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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FRAGMENTOS DE UMA VIDA / Ignácio de Loyola Brandão
FRAGMENTOS DE UMA VIDA / Ignácio de Loyola Brandão

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

CARA RUTH CARDOSO, Em 1999, a revista Vogue decidiu produzir um número especial dedicado a você. Se uso o "você" é porque, no nosso primeiro encontro, fui advertido de que não deveria, nunca, chamá-la de "senhora". Professora universitária, doutora, mulher internacionalmente respeitada, você era uma primeira-dama diferenciada de todas até então. O número foi preparado com ensaios a seu respeito, sua carreira acadêmica, seus trabalhos, escritos por pessoas que a conheceram e com quem você conviveu. Faltava o essencial, uma entrevista. Todos os contatos da Carta Editorial em Brasília davam em negativas. Você se recusava a dar uma entrevista como "primeira-dama".
"Se querem ouvir sobre política e economia, falem com o presidente", alegava, despachando os intermediários. Tentativas e mais tentativas, insistências, espera, muita ansiedade. Novos pedidos, aproximações, havia um muro, e você, fechada, irremovível. Depois descobri que esse "fechamento" fazia parte de seu temperamento, era sua famosa reserva. Estávamos quase desistindo quando a guarda foi aberta: "Conversemos. Mas venha você, um araraquarense, que conhece minha família, meus amigos, meus lugares. Vamos falar só de Araraquara". Marcou-se o encontro para certa tarde, entre 14 e 16 horas - não mais do que isso, foi ressaltado -, no apartamento da rua Maranhão. Cheguei pontualmente, afinal vivi em Berlim, você sorriu e se admirou. Mais tarde eu saberia que a pontualidade nunca foi seu forte, e talvez esta seja uma das heranças que você legou a José Serra, um de seus mais queridos e fiéisadmiradores. Começamos a conversar, era uma tarde amena, a Maranhão é uma rua quieta, em torno de nós o apartamento que tinha a sua cara, afinal, cada móvel, quadro, vaso, flor, xícara, toalhinha de centro (detalhe araraquarense), bibelô - como se diz lá - foi escolhido e colocado por você no ambiente. Fui aluno de Ciências Naturais, hoje Biologia, de sua mãe Mariquita, no Instituto de Educação Bento de Abreu, o mesmo colégio em que você e seu pai estudaram. Conheci José, seu pai, nos anos1950, na redação do jornal O Imparcial, onde trabalhei desde os dezesseis anos. José, caladão, era o contador da casa, o guarda-livros. Conheci seus amigos de juventude, o segundo namorado, a turma com quem você saía e dançava, os clubes, o footing, os cinemas. Sabia das tias beatas. A conversa se estendeu por horas, readquirimos o sotaque de nossa terra. Terezinha, a empregada, chegou com o café, você ficou frustrada, "eu queria passar o café, aprendi com minha mãe, sei fazer duas xícaras, se preciso, ou três, coisas de minha mãe". A expressão da cidade é essa, passar o café, ou coar o café. A conversa ultrapassou, entre risos, as quatro da tarde, as cinco, as seis. Despedimo-nos às sete. Daquele dia em diante, tivemos contatos irregulares, mas carinhosos, quando nos víamos. Quando a Editora Globo se propôs a publicar a sua biografia, foi em busca do autor para escrevê-la. Jorge Caldeira seria um candidato natural e prioritário, ótimo autor, tinha convivido com a família Cardoso desde a adolescência. No entanto, Jorge tinha outro projeto, junto com sua irmã Teresa - quer resgatar seu trabalho acadêmico. Nomes foram sendo eliminados, até Fernando Henrique Cardoso chegar ao meu. "Ela gostava dele, o perfil que a Vogue publicou a emocionou e a fez sorrir, por meio dele recuperou a cidade que lhe parecia perdida." Fiquei com a "incumbência". Assustou-me, porém adverti, será mais um perfil do que uma biografia. Na verdade, esta é uma crônica sobre vida. De momentos, fragmentos. Um livro com muitos claros a preencher. Quando fizemos uma lista preliminar de nomes a serem entrevistados, chegamos a quase duzentos no Brasil, no Chile, nos Estados Unidos, na França, pelo mundo. Isso levaria anos, e eu tinha prazo de revista, digamos. À medida que fui trabalhando, ouvindo pessoas, fatos se repetiam, fui eliminandonomes. Alguns perguntarão: e eu? Ainda é cedo para se ter acesso a documentos íntimos, a cartas privadas. Pessoas da família se emocionaram enormemente diante de lembranças. Ruth, não é uma biografia extensa, em que a veremos no dia a dia. Não a segui passo a passo, nem a interpretei. Há saltos, vácuos. Uma grande colagem de como as pessoas a viram. Retrato alongado, com detalhes que a maioria desconhece. A Ruth dos bastidores, a mulher por trás da catedrática, da doutora, da primeira-dama, da feminista. Escrevi o tempo todo com uma frase de Bibia Gregori na mente: "Ruth detestaria que coisas pessoais dela viessem a público, ela era muito reservada sobre a privacidade". Se de repente der com um segmento que parece uma crônica (calcada em fatos reais), tenha certeza, é uma crônica. Este livro é uma carta pessoal.
Súbito, entro na narrativa, comento. Historiadores e biógrafos ortodoxos podem se horrorizar. Ouso dizer que é pré-biografia com lacunas, despreocupada de cronologias (há o período, não a data, dia e hora exatos), um roteiro para outras que virão, mais profundas, percucientes. Este é o retrato de uma araraquarense por um araraquarense.
Deu-me imenso prazer escrever. Espero que o leitor sinta o mesmo. Iniciemos.

 


 


CERTA VEZ, NOS ANOS 1980, indo a Araraquara participar de uma banca de mestrado, Ruth Cardoso ficou hospedada no Hotel Eldorado, em pleno centro. Mal entrou no apartamento,
correu à janela. Atônita, teve a sensação de estar em outra cidade, não a sua. Os referenciais estavam transtornados. A velha igreja matriz, com seu avermelhado
que lembrava a cor de Roma, e o Teatro Municipal tinham desaparecido, assim como o Cine Paratodos, as árvores da rua São Bento, a casa dos Mendonça e a dos Sampaio.
Ah, a casa dos Mendonça! "De repente, me senti só. No lugar daquele hotel tinha existido a Gráfica Lia, que fazia os calendários que todos tínhamos na parede. Certa
época, assim que deixei a cidade, os Lia passaram a fabricar meias, porém competiram com a maior fábrica de meias da América Latina, fundada por outra família da
cidade, os Lupo. Olhando o largo lá embaixo, meus olhos deram com o chafariz. Não, a cidade não estava inteira desaparecida. Aquele chafariz era o mesmo, eu tinha
passado por ele centenas de vezes. Na calçada oposta os negros faziam o footing, segregados. As árvores também estavam ali, uma das marcas da cidade. E o monumento
ao primeiro batizado, realizado em 1817, igualmente existia, ainda que tivesse mudado de lugar, tinha avançado, porque a igreja nova, e muito feia, tinha ocupado
um espaço enorme. Eu sabia que a rua atrás do hotel era a Dom Pedro ii, onde nasci. De minha janela eu a via, me lembro de como era arborizada, subia do córrego
da Servidão em direção ao Carmo, passando pelo Jardim Público, onde brinquei na infância e na adolescência, lá íamos estudar nas vésperas de provas. À esquerda,
atrás do hotel, estava a rua Cinco vista do
alto, túnel de árvores, oitis, uma das áreas mais frescas da cidade, um corredor ameno naquelas tardes quentes, quando saíamos das sorveterias ou do Jardim Público.
Comecei a telefonar. Já não conhecia tanta gente. Descobri, então, de uma chamada para outra, que muitos amigos ainda estavam lá, e a cidade passou a ser reencontrada.
Também, desde que tinha me formado, casado e passado a trabalhar, voltara pouco, em geral eram a minha mãe e o meu pai que me visitavam em São Paulo. Naqueles telefonemas
do hotel, fui redescobrindo amigos e alguns parentes. A cidade começou a me ser devolvida." Essa cidade Ruth Cardoso levou dentro dela a vida inteira. Disseram todos
que quando presenciava uma situação na qual a boa educação e a ética eram agredidas, ou, melhor dizendo, estavam ausentes, Ruth tinha uma frase recorrente: "Isso
não está de acordo com os nossos padrões ara raquarenses". Como uma leve cortina a flutuar no fundo de um aposento, Araraquara sempre reaparecia como um referencial,
presença atuante, farol, memória necessária. }certdão

LUA MINGUANTE NO CÉU DE ARARAQUARA

O sr. José Corrêa Leite, hábil guarda-livros aqui residente, e sua exma. consorte, d. Maria Villaça Corrêa Leite, têm o seu lar em festa com o advento de sua primogênita,
Ruth. Felicitando os dignos progenitores, auguramos perenes felicidades à recém-nata.

Notícia na página 2. do diário O Popular, Araraquara, 21 de setembro de 1930

JOSÉ DOBROU A CERTIDÃO, colocou-a num envelope, junto com o recorte do jornal, enfiou no bolso, desceu para casa. Quinta-feira quente, dia
25 de setembro de 1930. Ele caminhou pela rua Quatro, a Padre Duarte, passou pelo Colégio Progresso e, por um momento, pensou que sua filha Ruth certamente não estudaria
ali. Mariquita, uma agnóstica, não gostaria de matricular a filha num colégio católico, ainda que, em seis anos de vida, o Progresso já tivesse reputação de escola
de primeira. A religião talvez não fosse o empecilho maior, a mensalidade sim seria problema, a vida era vivida no cortado. José registrou a filha com uma semana
de atraso, pois a menina tinha nascido na sexta-feira anterior, dia 19, às 6h45, quando a lua minguante ainda estava no céu de Araraquara.' O tempo mostrava-se ameaçador
nesse dia 19, com nuvens negras e baixas. No dia seguinte, uma tempestade caiu sobre a cidade, tanto que a esperada Prova Ciclística Silvânia-Araraquara foi adiada.
No dia do registro, já era a lua nova, o que, garantiam os antigos, era sinal de bom agouro, certeza de um grande futuro.
A vida toda a mãe de Ruth, que nasceu em São Roque, foi chamada de Mariquita. Filha de Antonio Ferraz Villaça e de Maria Petrina Villaça, seu pai foi um educador,
professor de matemática, que adorava lecionar e estava sempre procurando novas maneiras de ensinar. Terminou a carreira como diretor de grupo escolar. Quando Mariquita
tinha sete anos, a mãe morreu. Logo Antonio casou-se outra vez, com Ignez, também uma professora, que, segundo Circe Boueri, hoje com 91 anos, irmã de Mariquita
deste segundo casamento, foi uma pessoa que passou a vida a incentivar as mulheres a conduzir o próprio destino, tendo uma carreira que as sustentasse, libertando-as
de dependências. Antonio e Ignez moraram em várias cidades, por conta do magistério, até se fixarem em Campinas. Mariquita foi fazer o curso de farmácia em Itapetininga,
morando com um tio, irmão do pai. Ali começou a namorar um primo, mas na época isso era inadmissível, contrariava a moral e a religião, havia medo e enorme preconceito.
Casamento, nem pensar. A oposição foi enorme, levando à separação. Ela sonhava fazer o curso de medicina, mas nenhuma das cidades pelas quais a família de Antonio
Ferraz Villaça passou possuía faculdade. Acabou fazendo farmácia. Foi quando Mariquita conheceu José Corrêa Leite e começaram a namorar à distância. Noivado e casamento
demoraram, até que finalmente ele a foi buscar, casaram-se em São Roque e fixaram-se em Araraquara. Quando Ruth nasceu, sua mãe estava com 26 anos. Circe lembra-se
de que, criança ainda, os pais a embarcavam no vagão Pullman da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e ela ia sozinha até Araraquara, onde era esperada por José
e Mariquita. Uma ousadia para a época, liberalismo. Guarda a imagem de uma irmã atarefada o tempo todo, ativa, não parava, sempre bem-humorada, com uma piada na
ponta da língua, uma frase mordaz, e um profundo senso do ridículo. No livro dos santos, o 19 de setembro é dedicado a são Januário e seus mártires. São Januário
é o santo da firmeza e da coragem. Ele e seus seis irmãos, filhos de santa Felicidade, foram martirizados no ano delio, por determinação do imperador Antonino, por
se recusarem a abjurar a fé católica. No dia em que Ruth Corrêa Leite nasceu, o Teatro São Bento exibia o
filme Revista colorida, que tinha como "espetacular chamariz alguns rolos em cores''. A seguir, o filme principal, O beijo, com Greta Garbo e Conrad Nagel. Por outro
lado, o Cine Central, que garantia "onde soa o melhor som'', em sessão das moças apresentava O circo da morte. O cinema marcou a adolescência e a juventude de Ruth,
aliás, esteve presente a vida toda como um de seus maiores divertimentos. Não existem lembranças da infância passada na avenida Dom Pedro II, 51-A, no centro. Em
1930, Araraquara, a 315 quilômetros de São Paulo por rodovia (hoje são 278) ou 306 por ferrovia, era uma cidade pequena, apesar de já ter 98 anos, e contava com
uma população estimada entre 30 e 32 mil habitantes, os registros são imprecisos. A agricultura sempre foi sua base econômica. Quando Ruth nasceu, havia na região
quatrocentas propriedades agrícolas registradas, com fazendeiros cuidando de milhões de cafeeiros. Pode-se imaginar a cidade circundada por um cinturão verde de
cafeeiros, cujo produto alimentava as ferrovias. Pode-se imaginar, igualmente, o tamanho da catástrofe gerada com a crise de 1929, a debacle do café, que levou fortunas
de roldão e provocou mudanças radicais na estrutura de uma sociedade arrogante e pernóstica, moldando o espírito de uma população encerrada em si mesma, portas fechadas,
arredia aos que chegavam. O café começou a ser substituído por cana, laranja, algodão e gêneros alimentícios, ao mesmo tempo em que se implantava uma pecuária incipiente
e um parque industrial que, todavia, só se desenvolveu após 1960. Cidade conservadora, fechada. Cidade plana, a 664 metros de altitude, clima tropical, frio em junho
e julho, quente, abrasante no verão, com os termômetros chegando aos 37 °C e, não raro, aos 40 °C ou 42 °C. O sol é uma presença constante, avassaladora, tanto que
a tradução do nome da cidade em tupi-guarani é "morada do sol", segundo a monografia escrita por Pio Lourenço Corrêa, fazendeiro, intelectual, banqueiro e personagem
mitificado, que realizou um trabalho considerado definitivo.= Nos anos 1930, os dias eram pontuados pelos apitos das locomotivas dos trens que chegavam e partiam.
As ferrovias eram a Estrada de Ferro Araraquara, EFA, que se iniciava ali, e a linha-tronco
da Companhia Paulista, CP, que vinha de São Paulo para Barretos. Uma expressão corrente da época era: "Acerte o relógio, a Paulista está chegando". Ou partindo.
Pontualíssimos os trens, orgulho dos araraquarenses. As ferrovias cortavam a cidade e claramente a dividiam. Araraquara sempre teve uma característica muito forte,
os pequenos jardins em frente às casas. Não havia residência sem jardim, eram também ponto de orgulho. Neles cultivavam-se rosas, dálias, crisandálias, cravos, palmas,
violetas, margaridas, beijos-de-moça, cravos-de-defunto amarelos e brancos (lindos e fedidos), onze-horas, e também as apelidadas de marias-sem-vergonha, uma vez
que "davam em qualquer parte". Muitos chamavam Araraquara de terra das flores. Os buxinhos faziam as divisões entre os canteiros, buxinhos que a meninada gostava
de jogar no fogo para ouvir estalar. Ser ferroviário era uma das opções de trabalho para os homens. As outras, não tantas, eram os bancos, o comércio, o funcionalismo
público, profissões liberais, o professorado, algumas pequenas indústrias de transformação. Pontificava na cidade uma das maiores indústrias do estado de São Paulo,
se não do país, a fábrica das meias Lupo, porém sua mão de obra era essencialmente feminina. Araraquara recebeu um afluxo de imigrantes no final do século xIx, principalmente
italianos, libaneses, portugueses e espanhóis. Eles acabaram montando a estrutura do comércio, e seus descendentes lá estão até hoje. Já existia uma rádio local,
fundada por amadores em 1923, profissional depois de 1932, portanto anterior à Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Havia um teatro, o Municipal, em estilo mourisco,
construído por um grupo de empresários locais em 1914, mais um item de orgulho de todos, dizia-se o mais belo do estado, depois do Municipal de São Paulo. O que
havia de culturalmente importante acontecia no Municipal, os concertos, as palestras e declamações, as companhias teatrais itinerantes. Nele cantou Enrico Caruso.
Intensamente arborizada, Araraquara era chamada a "cidade mais limpa da América".
RUTH ERA PEQUENA quando sua família se mudou para a avenida Osório, de apenas duas quadras, na lateral do largo da Santa Cruz, com a igreja, o convento dos padres
redentoristas, o salão paroquial, onde se realizavam festas e apresentações teatrais, a padaria Madalena, a casa modernista do médico Aufiero Sobrinho, a fábrica
de tachos e panelas de cobre do Lombardi. No largo eram realizadas quermesses, com barracas, prendas, sorteios, e também feiras livres semanais. "Nossa casa era
comprida, o quintal extenso ia até o outro lado da quadra, nele se criavam galinhas", lembrava-se Ruth no início de 1995. "Nessa época havia dois tios que moravam
conosco, um era o Celso Villaça, irmão de mamãe, que se casou e se foi. O outro era tio Totó, Antonio Corrêa Leite, que mais tarde se mudou para Jaboticabal. Numa
das pontas da rua existia a casa do Edgar Sampaio, a mais maravilhosa do mundo. A filha dele, Maria Cândida, era muito amiga. Casa escura, chique, com uma sala de
jantar maravilhosa." A mãe e as amigas achavam curioso como as casas despertavam a atenção de Ruth, que observava tudo com acuidade, nenhum detalhe escapava, queria
ver os quadros, os bibelôs, os biscuits, os cristais nas cristaleiras, os aparelhos de jantar, as licoreiras, as cortinas e os adornos, as toalhinhas de crochê dos
filtros, as mesas de centro e as bandejas de café. Na Osório, vivia a Vó Vizinha. Figura que marcou a infância. "Era uma velha que morava num barraquinho escuro,
no fundo de um quintal enorme. Ela estava sempre lá e era extremamente simpática comigo. Tão solitária, não tinha companhia. Certos dias, eu era a sua ligação com
o mundo. Não, não me contava histórias, conversávamos por horas, eu perguntava muito, era perguntadeira. A Vó Vizinha, com suas roupas pretas, saia comprida, é a
memória mais antiga que tenho de uma pessoa que me marcou, permaneceu em mim. Eu a via passando e engomando ternos de linho branco moda para os elegantes da época,
arte que exigia cuidados imensos, desde a feitura da goma. E também enfeitando rendas, com precisão e paciência e uns poucos instrumentos, um deles uma tesoura
curiosa que ela esquentava em um fogareirinho. Deslumbrada, porque o fazer sempre me interessou muito, podia ficar horas observando a Vó, tão preci-
sa, cuidadosa, pessoa de uma humildade a toda prova, nunca reclamou da vida, apenas trabalhava. Não sei se ainda há pessoas enfeitando rendas, coisa tão araraquarense
para mim, era um franzido que se fazia, como se fossem cachinhos de boneca, uma arte." Vó Vizinha morava em uma casa de quatro cômodos pequenos e despojados, nos
fundos de um corredor. O nome dessa Vó era Primina Bianchini Simone, imigrante nascida em Ferrara, Itália, em 1885, e falecida em Araraquara aos 84 anos, em 1969.
Seu marido morreu cedo, seus filhos estavam com quatro e três anos. Passou a sobreviver como lavadeira e passadeira. Primina morou primeiro na avenida Barroso, paralela
à Osório, onde era visitada por Ruth, muito criança. Naqueles anos a cidade não tinha movimento, carroças e charretes eram mais "perigosas" do que automóveis. A
menina passava horas xeretando as comidas que Vó Vizinha fazia para Hilda Peres, que mantinha uma padaria na esquina da avenida Barroso. Cappelletti, tortelli com
recheio de moranga, crostoli (bolinhos de farinha de trigo, fritos e encharcados no mel), canaricoli (o mesmo processo, mas na massa entra vinho tinto) e ciccirata
(bolinhos fritos e lambuzados de mel), iguarias típicas peninsulares cujas receitas regionais os italianos trocavam entre si. Coisas artesanais que exigiam perícia
e delicadeza. "O que me encantava", disse Ruth em 1995, "eram os suspiros, pequenos e delicados, de difícil feitura. Eram colocados em forno aberto e fogo baixo
por horas, constantemente observados. Exigiam um timing perfeito, rigoroso, para saírem secos e crocantes por fora, úmidos por dentro." A filha de Hilda, Inayá,
sempre foi das melhores amigas de Ruth. Apesar da lembrança de Ruth quanto à solidão de Vó Vizinha, ela tinha amigas chegadas, como a napolitana Giovaninna Lombardi,
também imigrante, Carmelita de Castro, de apelido Tuta, e Elisa Madalena, companheira de cinema aos sábados. Elisa era igualmente passadeira e engomadeira, mas as
famílias que tinham roupas finas preferiam o zelo de Primina. Quem também fazia encomendas de quitutes a Vó Vizinha era a padaria Madalena. Ali Ruth comprava sonhos
"celestiais" - ela contou, vinha gente de longe para buscá-los - e mandava colocar na conta, paga ao fim de cada mês por José Corrêa Leite. Parte das contas de José
era quita-
da com seu trabalho como guarda-livros. Por um tempo, José e seu sócio, Mauro Dantas, um parente, mantiveram um escritório na avenida Feijó. Circe, tia de Ruth,
tem uma lembrança vaga de uma mesa no mercado central, na qual José atendia donos de bancas de frutas, verduras, peixes, que o chamavam para colocar em ordem a contabilidade.
As padarias Madalena e Peres, o Conservatório Dramático e Musical, o jornal O Imparcial, diário fundado em 1931, eram alguns dos clientes maiores. José se dedicava
ainda a perícias contábeis em processos da Justiça, seus pareceres eram competentes, tanto que advogados de nomeada, como José Benevenuto Fortes, o indicavam, ele
era de confiança. Até poucos anos atrás, Inayá e Inah, filhas de Hilda, mantiveram os livros-caixa e as "cadernetas dos fregueses", onde cada pessoa tinha seu nome
em uma página com os gastos. As anotações de José eram feitas com letra primorosa. Cabia a ele controlar tudo e somar as contas de cada um no fim do mês. Quando
Ruthinha, como era chamada, o acompanhava no fechamento, ganhava um agrado, era a regra do comércio regido pelas cadernetas. Figura conhecida, José, que todos tratavam
por Zé Corrêa, homem introvertido, que falava pouco e adorava degustar uma cachacinha da boa (hábito que manteve até o final da vida), caminhava de um cliente para
outro - cidade pequena, tudo era perto - com passos comedidos, e era célebre pela elegância com que ostentava seus ternos de linho, lavados e passados por Vó Vizinha.
José, com sapatos de cromo e um nó perfeito na gravata, estava sempre "na estica", isto é, impecável. Eram ternos simples, bem passados, o homem vivia "no prumo".
Ele teve infância e adolescência difíceis, morou algum tempo em uma fazenda, e depois que os pais, Luiz e Maria Augusta, morreram, foi viver com os avós Antonio
de Pádua Ferreira da Silva e Maria Salomé no casarão da esquina da rua Seis com a avenida São Paulo. Quando Maria Salomé adoeceu, Mariquita passava todos os dias
pela casa dela, levando remédios trazidos da Faculdade de Farmácia, ou comprados e aviados por Herculano de Oliveira, da então Farmácia Raia.
UMA IRMÃ DE MARIA AUGUSTA, portanto tia de José, OU tia-avó de Ruth, de apelido Binoca - chamava-se mesmo Noêmia Zerbina, mas ela odiava esse nome -, casou-se com
José Tescari, italiano que chegou ao Brasil com doze anos e com vinte foi viver em Araraquara, onde deu aulas, fundou o Conservatório Musical, organizou um quarteto
de cordas, compôs operetas, prelúdios, sonatas, e dedicou-se com paixão à música sacra. Ficaram célebres na cidade as brincadeiras dançantes organizadas por Binoca
nos aniversários do marido. "Além desses bailinhos familiares, deliciosos, que sempre frequentávamos, outra memória límpida, viva, da infância era o casarão amarelo
da rua Seis, ali morava vovô Jorge. Era uma casa muito grande, por anos nela viveram minhas tias Jacy e Adalgiza, solteironas altas, compridas, catolicíssimas, de
missa e reza diárias na igreja matriz, algumas quadras abaixo. Vivi uma situação curiosíssima, uma vez que conheci duas bisavós e nenhuma avó. Eu chamava todas as
tias de avó, a Salomé, a Binoca, era um povo muito ligado. Uma avó é coisa que me fez falta, afinal as bisavós eram bem velhinhas. Por isso, ser avó mexe comigo.
Acho uma delícia ser avó..." Outra avó entra em cena: "A Vó Elisena, que não era minha avó verdadeira, uma vez que era a segunda mulher do meu avô Jorge. Depois
que ele morreu, ela acabou muito pobre e foi morar com um parente, o Chiquinho Vaz. Íamos visitá-la, eu adorava entrar e brincar naquela casa, na esquina da rua
Quatro, em frente ao Colégio Progresso. Nas portas e janelas havia vidros bisotê importados, com desenhos delicados, e as maçanetas das portas e os lustres eram
de cristal da Boêmia. Cada detalhe da casa mostrava uma época de grandeza e sofisticação por que passara. Chiquinho morava em Santos, mas estava sempre na cidade,
fui muito amiga do filho dele, o Carlos Armando, um jovem alto e bem-apessoado. Pegada à casa do Chiquinho existia outra, imensa, com um grande quintal cheio de
árvores. A casa das Laras. Elas me ensinaram declamação, talento que meninas bem-educadas deviam ostentar. As Laras eram três solteironas que viviam com a mãe, viúva,
uma velha que usava uma peruquinha muito engraçada. Não tenho bem ideia, mas parece-me que ela tinha vindo de algum lugar da Europa Central. Uma das filhas, a Leonor,
dava aulas de piano, quase todos os dias
eu estava ali, tinha uma salinha de casa antiga, sofá e poltroninhas de madeira, almofadas, coluna para vaso de flores, toalhinhas de crochê. Leonor era famosa por
bater forte com um lápis nas mãos das meninas, quando elas erravam ou se distraíam. Meus pais também compraram uma pianola de segunda mão, daquelas que tocam sozinhas.
Era uma sensação, mas nunca funcionou direito. Aquele contraste entre a riqueza de Chiquinho Vaz, com sua casa, das mais belas da cidade, somente me veio claro muitos
anos depois, as diferenças do mundo, os abismos existentes dentro da sociedade. Claro, não realizava em termos racionais, criança não tem dessas coisas".
RUTH APRENDEU PIANO NO Conservatório Musical e muitas vezes ia para as aulas acompanhada por Inayá. Desses dias se ilumina a figura de uma pianista de nome Taís
Bittencourt, prima de Inayá, mulher exigente, que vinha a Araraquara uma vez por mês para fazer a inspeção dos cursos no Conservatório. Era uma mulher imponente,
respeitada, algumas alunas tinham medo de sua inspeção. Quando ela ficava alguns dias, Hilda Peres oferecia a Taís um jantar ao qual Mariquita e José Corrêa Leite
eram convidados. Comidas caprichadas, as meninas comiam apressadas e corriam para a rua, brincar com as bonecas e seus carrinhos, ou de roda, ou pular amarelinha.
Brincadeira comum era procurar nas calçadas de pedra rosa o que as professoras diziam ser as marcas dos dinossauros que tinham habitado a região há mais de 100 milhões
de anos. Coisa espantosa, os animais imensos provocavam pavor. Mariquita costumava falar deles para as crianças. Nem sempre se permitiam os brinquedos noturnos.
Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, quando a população enfrentava até racionamento de carne, pão e leite, muitas vezes vinha o blecaute, uma coisa misteriosa.
Todas as luzes da cidade eram apagadas por razões que as crianças não chegavam a entender. Os velhos murmuravam: é para que os inimigos não bombardeiem a cidade.
"Quem eram os inimigos? Por que a nossa cidade?". Ruth sempre insistia nos porquês. "Nunca me esqueço dos jantares de Hilda, numa sala enorme'', confessou Ruth.
Inayá faz o ajuste: "Questão de perspectiva. Nossa casa nem
era tão grande, nós é que éramos crianças. Na verdade, a casa de Ruth é que era pequena, cômodos apertados. A geladeira de Mariquita não passava de um móvel com
uma barra de gelo, que um homem entregava todos os dias. Na verdade, havia poucas geladeiras na cidade, eram caras e importadas, indicavam sinal de riqueza. A vida
não era fácil". Mariquita, José e Ruth eram os primeiros convidados para qualquer festa na casa de Hilda Peres, e havia muitas, nas quais faziam sucesso os quitutes
trazidos de Jaboticabal por tio Totó. Aquela cidade era famosa pelas doceiras, mestras em docinhos caseiros de abóbora, laranja, mamão, batata-doce, banana, de leite
em pedaços, pés de moleque, baba de moça, beijinhos e cajuzinhos, olhos de sogra, que encantavam Ruth pela forma, sabor, ela queria receitas, saber como eram feitos,
como conseguir o ponto, tudo. Era comum os amigos de Mariquita insistirem e Ruth ser colocada em cima de uma mesa de centro para declamar. Outras vezes, ela se sentava
ao piano e tocava "Clair de lune". Maria da Penha Carvalho, Villalobos depois de casada, sobrinha de Plínio de Carvalho, acompanhada, às vezes, por sua irmã Maria
Ernestina, costumava ir brincar no Jardim Público, ou Jardim da Independência, quase todas as manhãs. Ali encontrava Ruth e Mariquita. "Minha irmã e Ruth eram mais
de bonequinhas, roupinhas e carrinhos de bebê, enquanto eu era da bola queimada, ou pega-pega. Aproximamo-nos mais tarde como amigas." Mariquita, na hora de matricular
a filha numa escola, decidiu sem hesitação pela escola pública. Apesar de rodeada de todos os lados por parentes carolas e igrejeiros, ela pessoalmente não suportava
a ideia de ter a filha numa instituição católica, daí o Colégio Progresso estar fora de questão. Mariquita não tinha afinidades nem com a Igreja nem com a diretoria
do Progresso. Ruth "Minha mãe era a favor da escola pública, escolhia bem onde e com quem eu ia estudar".

A MENINA FOI MATRICULADA no Grupo Escolar Antonio J. Carvalho, no largo da Câmara. Pesquisas na escola mostram boletins somente a par-
tir do segundo ano do Primário. Nenhum registro sobre Ruth no primeiro ano. Muitos deram indicações - enquanto outros negaram de que Ruth teria feito o primeiro
ano no Coleginho, como era conhecido o Curso Particular Jardim da Infância São José, inaugurado em 1932 por freiras franciscanas. A questão fica no ar, porque o
Coleginho tinha por objetivo inicial ser um noviciado ou casa de formação para freiras, depois abriu-se para educação e formação de crianças e jovens. Mariquita
concordaria com isso? Outra hipótese em relação ao primeiro ano é que Ruth teria sido preparada pela própria mãe, que, em seguida, a matriculou já no segundo ano,
no início de 1939, quando Ruth estava com oito anos e seis meses. O período escolar iniciava-se aos sete anos. Ou aos seis, quando a família encaminhava os filhos
para o Jardim da Infância. O Grupo Antonio J. Carvalho (atualmente Escola Estadual) era central, de fácil acesso, uma bela praça que ocupava duas quadras inteiras,
intensamente arborizada com ipês amarelos e roxos, e ali realizavam-se comícios políticos, manifestações populares e semanalmente uma feira livre. A casa amarela
do avô Jorge ficava numa das esquinas, em frente à saída do grupo. Apesar de homenageado com o nome de uma das escolas tradicionais da cidade, o nome de Antonio
J. Carvalho foi polêmico e remete a um dos episódios mais trágicos da história de Araraquara, fato evitado por décadas: o linchamento dos Brito em 1897. Por questões
políticas, Antonio J. Carvalho, um dos líderes do clã que dominava a cidade, foi assassinado por Rosendo de Brito, jovem nordestino. Preso junto com seu tio Manoel,
os Brito foram linchados a pauladas e facadas dentro da cadeia, seus corpos retirados e deixados no largo da Matriz. Conta-se que, de manhã, quando o pároco Antonio
Cesarino abriu as portas da igreja e deu com os corpos, teria amaldiçoado a cidade, que permaneceu estagnada por décadas. Mitos araraquarenses. Matriculada no dia
10 de março de 1939, Ruth recebeu o número 27 em uma classe de 35 alunos. Nos exames finais, ela foi aprovada com a média
90. Terminado o terceiro ano da Classe A, feminino forte (eram as melhores alunas), Ruth, número 37, conseguiu ser aprovada com média 95. No quarto e último ano,
ela foi aprovada com média 100, ou seja, nota 100 em
todas as matérias. Única da classe a ter 100. Todavia, Ruth nunca se preocupou com a questão das notas e esse sempre foi um dos princípios que ela passou em classe.
Aprender e saber, conhecer e entender são uma coisa. Notas altas e baixas, outra. O diretor do grupo era Florestano Libuti, educador da melhor estirpe na história
da cidade. Ruth confessou: "Tive duas professoras fantásticas. Uma, a Eunice, mãe da Valnice Galvão, e a outra, a Iolanda Ópice".

NÃO HÁ UMA DATA EXATA de quando os Corrêa Leite se mudaram para a rua São Bento, número 1005, casa alugada de Ada Zerbini de Carvalho. A casa ficava a uma quadra
do Ginásio e do Cine São Bento, e a duzentos metros da Esplanada das Rosas, onde a juventude se reunia após o cinema para o footing. Em meados dos anos 1940 a família
já estava ali. Quatro janelas na parede da frente, um portãozinho que se abria para um corredor lateral comprido, janelas dando para ele. A primeira porta dava
para a sala que José Corrêa Leite tinha transformado em escritório, a porta sempre trancada. A porta seguinte dava para a copa e a sala principal (onde havia um
piano), que se comunicava com os três quartos. Vinham depois a cozinha e o quintal com árvores. Mariquita montou no quintal, numa edícula, a sala onde preparava
alunos para o Exame de Admissão ao Ginásio. Uma sala com carteiras em fila e uma lousa. As aulas eram em geral reforço de português e matemática. Havia uma classe
no período da manhã e outra à tarde. Não mais que quatro ou cinco alunos, em certas épocas um pouco mais. As aulas começavam às oito horas e iam até o meio-dia,
com um intervalo. Vez ou outra Ruth servia um cafezinho. Mariquita se desdobrava. Era assistente do professor de química, Joaquim Pinto Machado, o Machadinho, no
Ginásio Estadual, onde também substituía o professor de ciências naturais - atualmente biologia. Lecionava botânica na Faculdade de Farmácia e Odontologia, hoje
Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp. A renda era complementada com o nome dado como farmacêutica responsável a duas farmácias. Em 1956, foi contratada para
dar aulas de biologia pelo Colégio São Bento, uma nova instituição de ensino parti-
cular na cidade (desde 1997, Centro Universitário de Araraquara Uniara), cujo diretor hoje, Luiz Felipe Cabral Mauro, filho do fundador, Walter Medeiros Mauro,
lembra-se bem do "riso expansivo e do repertório de piadas que ela gostava de contar e de ouvir. Sua gargalhada contaminava. Sem esquecer, claro, que suas aulas
eram extraordinárias, muito bem preparadas e concorridas". Dona de uma didática clara, precisa e rigorosa, Mariquita explicava bem, tinha cultura geral ampla, era
exigente, passava muitas lições para fazer em casa e, quando via que o aluno não ia bem, não se aplicava, chamava os pais para uma conversinha. Extrovertida, bem-humorada,
não poupava ironias. Na época dos exames de seus alunos, ela comparecia ao Ginásio para acompanhá-los, tinha uma dedicação total. Mariquita dizia coisas que outros
professores não diziam, comentava a vida com naturalidade e certo avanço liberal, trazia à baila assuntos tabus, lembram ex-alunos. Essa maneira de ensinar e agir
se refletiu mais tarde nas aulas de Ruth e nas relações com suas orientandas em trabalhos universitários.

No BOLETIM GERAL DE EXAMES de Admissão para o ano de 1942, do Ginásio Estadual, o nome de Ruth Cardoso figurou em primeiro lugar, com a média geral 87. No curso
primário, ou "grupo", como o povo dizia, estudava-se aritmética. Ao entrar para o ginásio, ou secundário, a matéria passava a ser a matemática. O Ginásio Estadual
existia há décadas. O Álbum da cidade de 1915 dedica duas páginas a ele, então denominado Araraquara College, só que o povo preferia chamar de "a escola americana".
Mudou para Colégio Mackenzie, filial do estabelecimento paulistano, tornou-se Ginásio Municipal em 1933 e Ginásio do Estado em 1934. Ruth admitiu: "Achava fantástico
esse nome, Araraquara College. Meu pai tinha estudado lá, ele jogava futebol e ganhou uma bolsa, não sei se de graça, talvez com grandes descontos. Papai sempre
teve a letra muito bonita, aprendeu lá, nas aulas de caligrafia".
ELA TINHA ENTRE TREZE E catorze anos quando se apaixonou por Joaquim Adolfo Mendonça, moço bem-apessoado. Tido como bom partido, era filho de Adolfo Amaral Mendonça,
um fazendeiro de família tradicional que fundou duas cidades nas margens do rio Tietê, a caminho de Lins: Adolfo e Mendonça. Adolfo possuía inúmeras fazendas entre
Taquaritinga e Araraquara. A família Mendonça tinha as mais belas casas na cidade. Moravam todos perto. A casa de Casemiro Mendonça, tio de Joaquim Adolfo, na avenida
São Paulo, próxima à rua Seis, vizinha à casa amarela de Vô Jorge, era luxuosa, nela foram empregados mármores de Carrara. Ali, depois, funcionou por anos o Hospital
São Paulo. Hoje é um prédio de apartamentos. Joaquim Adolfo encontrava-se com Ruth no Clube Araraquarense ou a esperava na varanda repleta de colunas da casa de
seu tio José, construída em 1891. A casa, que ia de um quarteirão ao outro, ostentava um jardim repleto de palmeiras, de frente para a praça da Matriz e para o chafariz.
Ruth passava em direção ao Conservatório ou rumo à igreja, para a missa de domingo. Tudo era muito discreto, à distância. Olhares sorrateiros, risos nervosos, acenos
de mão. Os namoros eram estritamente vigiados, controlados, ainda que Mariquita visse com bons olhos a relação, afinal o jovem Mendonça estava entre os melhores
partidos de Araraquara. "Ruthinha era imensamente bela, um deslumbre, acho até que foi Glamour Girl do clube, não havia como não se apaixonar por ela, que, aliás,
tinha muitos pretendentes. Depois que se mudou para São Paulo, retomamos o namoro por um curto tempo", confessa hoje, aos 83 anos, Joaquim Adolfo. Também Ruth, quando
ia para a missa da igreja matriz, os dois namorados se olhavam. Ela vinha acompanhada pelos pais, porque, apesar de serem vizinhos à igreja de Santa Cruz, os Corrêa
Leite frequentavam - quando frequentavam - a igreja matriz, que, na verdade, era um ponto social, momento em que as pessoas se viam, trocavam notícias, combinavam
inclusive o almoço de domingo. Joaquim Adolfo somente seguia para a igreja depois que Ruth passava e fazia tudo para ficar num banco de onde pudesse vê-la. "Os Corrêa
Leite nunca foram igrejeiros, iam porque era o encontro, a comunicação. Hoje, diríamos, era o programa", explica Margarida Troncon Busatto, afilhada de Mariquita.
Quanto a Ruth, ela admitiu:
"Na verdade, meu pai era mais católico do que minha mãe. Uma das tias por parte dele, a Maria do Carmo Corrêa de Almeida, era freira. Aliás, a tiarada era muito
católica. Em casa a religião era importante, existia, no entanto não tomava todo o cotidiano. Nada de pertencer a associações, como a das Filhas de Maria, do Coração
de Jesus ou de São José".

NÃO SE SABE POR QUE terminou o namoro com Joaquim Adolfo, a verdade é que entrou em cena outro bonitão da cidade, Renato Corrêa Rocha. Coisa para provocar comentários,
porque reunia dois dos mais belos jovens da cidade. Ela, muito bonita, com suas trancinhas, vestida sempre impecavelmente. Mariquita não se descuidava de nenhum
detalhe; cada vez que a filha saía, a mãe passava em revista dos sapatos aos cabelos. Ruth era disputada platonicamente pela rapaziada bem situada de Araraquara.
Ainda que alguns, talvez por despeito, a considerassem um tanto pedantinha, vários eram os apaixonados que "carregavam vagões" por ela, tentavam flertar com Ruth
no colégio, no cinema, no Clube Araraquarense, na piscina do Tênis. Aliás, falar em Tênis e em Araraquarense era falar a mesma coisa, tratava-se do mesmo clube,
só que um era a sede social e o outro, a de campo, que, aliás, ficava dentro da zona urbana, verdade que no limite; além do Tênis, eram os campos de Araraquara,
uma das primeiras designações da cidade. Renato vinha de uma família conhecida e respeitada, dona de uma grande fazenda, a Santa Isabel, que resistiu até poucos
anos atrás. Intelectualizado, irmão de Gilda de Mello e Souza, que se casou com Antonio Candido. Politizado, fundou uma facção do Partido Socialista em Araraquara
aos dezesseis anos. Atualmente, aos 84 anos, Renato conta: "Ruth e Adolfo chegaram a namorar. Namoro de adolescente. Ele foi um rival em certo período da minha juventude.
Ruth e eu, foi um momento muito bonito, uma linda interação. Aquela grande paixão quando se é jovem e a vida está à sua frente. Penso que ela via em mim uma pessoa
diferente dos meninos da minha idade. Eu era quatro anos mais velho, inquieto, convivendo com pessoas como minha irmã Gilda, mulher à frente de seu tempo.
Houve uma relação um tanto tumultuada por causa do rigor de dona Mariquita, mas foi uma coisa profunda, durou dois anos. Ruth ia aos bailes, mas eu não podia dançar
com ela, mal a tirava, vinha a Mariquita e a levava para casa. Mas todos os meus amigos foram parceiros de dança especiais para ela". Ruth lembrava-se com afeto
de Renato, das poesias que liam juntos. Numa tarde, assim que uma súbita chuva de inverno parou, Maria da Penha Carvalho, que já tinha se mudado para São Paulo,
mas passava as férias em Araraquara, desceu para o centro e encontrou-se com Renato Corrêa Rocha. - Venha comigo, vou encontrar-me com a Ruth, quero te apresentar
a ela. Já a conheço. Da infância. Então venha, vou reapresentar. Mas depois não comente isso na casa dela; Mariquita quer me ver do outro lado do mundo.

DOMINGO DE MANHÃ, missa das dez horas na igreja matriz e em seguida o footing na Esplanada das Rosas, onde aconteciam os flertes, e então sabia-se quem estava dando
bola para quem. Por pouco tempo, pois a brincadeira dançante do Clube 22 de Agosto, da classe média, esperava. O 22 rivalizava em animação com o Araraquarense. Ruth,
Inayá Bittencourt da Silva, Maria da Gloria Jordão, as irmãs Galvão, Maria Lúcia, Vera e Ângela, seguiam para o Araraquarense, sentavam-se nas cadeiras da varanda
e, ao sentar-se, cruzavam as pernas. Então aparecia a fenda na renda da anágua de Ruth e todo mundo admirava, e ela ria. Ruth nem sempre ia ao clube. Muitas vezes
tinha de estar em casa, para fazer a sobremesa. Mariquita, cozinheira de mão-cheia, ensinava à filha os segredos da culinária. Quando se investiga a vida de Ruth
Cardoso em Araraquara, sente-se flutuar a figura da mãe como mentora, orientadora, conselheira. Margarida Troncon Busatto confirma: "Ela iluminava o lugar". Quanto
a Ruth, lembranças dessa época variavam: "Na minha casa se tomava muito café, meu pai tinha mania. Éramos obrigadas a fazer café
bom, ele não tomava requentado, era inaceitável. Minha mãe me treinou tanto que, se tiver três pessoas, vou à cozinha e faço a quantidade exata para três. Mariquita
me ensinou e ensinou às empregadas. Tivemos uma que ficou conosco por mais de trinta anos, a Delfa. Vivia nos candomblés. No Carnaval, sumia. Assim, aprendi a cozinhar
com minha mãe e com a Delfa. Exigência do meu pai, homem metódico, que ensinava postura, educação e caráter como qualidades essenciais. Ele tinha hora para cada
coisa e gostava de seguir as rotinas. Dizia que a pessoa tem de saber fazer tudo, saber se cuidar, ser autônoma. Só pode mandar quem sabe fazer, afirmava. Desde
pequena tenho essa consciência do trabalhar, do ser economicamente independente. Filha única, fui criada assim".

COM O PREPARO REFORÇADO pela mãe, Ruth enfrentou o Ginásio e suas catorze matérias: história geral e do Brasil, geografia geral e do Brasil, matemática, ciências
naturais, desenho, português, inglês, francês e latim, além de economia doméstica, canto orfeônico e trabalhos manuais. Educação física era obrigatória. O último
ano do Ginásio foi 1945, tendo sido Ruth aprovada com a média 8,9. "O Ginásio foi fundamental, aprendi muito. Sei matemática por causa das aulas do professor Djalma
Epinghaus, sei história por méritos do Luís Perestrello Carvalhosa. Ele era engraçado, tinha preguiça de dar aula, gostava de ler. Entrava e dizia: 'Provar. E ficava
lendo jornal. Quando dava aulas mesmo, não entendíamos nada. Ainda tenho um livro didático com anotações nas margens. No capítulo 'Capitanias Hereditárias', está
escrita a frase: 'As capitanias eram, na verdade, a expressão de um capitalismo expansionista'. Eu não tinha ideia do que significava, ele falava o que dava na cabeça,
a criançada não estava acompanhando, nem interessada. Era fascinante, ele impulsionava o pensar. Só que, no dia da prova, a pergunta era: 'Quem foi o donatário da
capitania tal?'. Quer saber? Onde mais aprendi foi no Ginásio do Estado." O uniforme do Ginásio era uma saia azul-marinho pregueada e uma blusa branca com bolso,
no qual estava bordado o monograma GE em azul. O dos homens era calça azul e blusa branca, com o mesmo monograma. As
classes eram mistas e os primeiros anos ficavam no andar de baixo. Todos deviam entrar e sair organizadamente em filas, sob o olhar severo da inspetora Lucíola Moema.

NA ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE havia um grupo apelidado "Turma da Banheira", devido a um carro enorme, uma verdadeira banheira, como se dizia, um Upmobile, largo na
traseira e com estribos, que levava todo mundo empoleirado, provocava sensação no corso carnavalesco. Anos mais tarde, o próprio Fernando Henrique andou nele várias
vezes, a turma ia buscá-lo na estação, lembra José Edgar Machado, conhecido pelos íntimos como Zé Baiano. A banheira pertencia ao "seu" Cândido, pai de Renato Corrêa
Rocha. Entre outros, no grupo, havia Brasilino Stefano, Isidoro Celiberto, Luís Pennelli, Arnaldo Palamone, Mário Granato, Roberto Carvalho Franco, Renato Ópice,
Celso Oelmayer, José Acetoza, Paulo Amarante. Eventualmente, participavam Mário Barra, Ernesto Lia e Nelson Guio. Granato foi outro namorado na época. Todos asseguram
que ele sempre teve o mais completo álbum de fotos de Ruth Corrêa Leite. A mim, confessou: "Sou um cavalheiro à antiga. À medida que minhas ex-namoradas foram se
casando, por lealdade à amizade, destruí fotos, cartas e bilhetes". "Angelical" - é como José Edgar define a Ruth daqueles dias. Para os amigos, Ruthinha. Antonio
Candido a chamou assim a vida toda. Conversei com alguns que conviveram com ela. Gente que, desde que o marido foi eleito presidente da República, foi rever velhos
álbuns de fotografias, remexer guardados de fundos de gavetas e armários. Imagens desencontradas foram fixadas em tempos diferentes. Maria Ernestina, descendente
dos Carvalho, família que por anos pilotou a política local, quando ia para Araraquara, em lugar de se hospedar na mansão dos parentes, preferia ficar na casa de
Mariquita, mais solta, descontraída, sempre com boas comidas. Cinema era programa desde a infância, com as matinês, ou vesperais, em que havia sempre um filme seriado,
do Zorro, ou Flash Gordon, de Tarzan ou Fu-Manchu, Tocha Humana ou O Príncipe Submarino. Na adolescência e juventude, principalmente às terças-feiras, havia a Sessão
das Moças. Mulheres pagavam menos para ver filmes românticos, comédias ou musicais. Ruth não perdia um musical da Metro, fazia o possível e o impossível para ir.
Os homens alegavam que frequentavam a sessão para flertar com as moças, uma vez que aqueles filmes leves e xaroposos eram desprezíveis, divertimento de mulher. Vinha
em seguida o footing na rua Três, com os homens parados na rua, continuando o flerte, fazendo sinais ou piscando os olhos para as mulheres, que andavam de braços
dados. Não se olhava diretamente para os homens, fingia-se indiferença, para não parecer oferecida, o pior que podia haver. Era necessário se fazer de difícil, quase
inacessível. Não se saía todas as noites. Terça-feira, sim, era o cinema. Às vezes, quinta-feira. Depois, sábado e domingo, sempre com alguma companhia. Em casa
havia o rádio, as novelas, os programas humorísticos e de auditório da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, imbatíveis em audiência, com as cantoras mais populares
do Brasil. Saiu de Araraquara um dos maiores autores de radionovela dos anos 1940 e 1950, Amaral Gurgel, apelidado Duque. Gurgel, ex-ferroviário, foi ainda autor
de uma peça teatral que explorava bem a questão da crise do café, Terra bendita. Ele era filho de Sebastiana, uma das mais célebres "boleiras" da cidade - não havia
festa, casamento ou comemoração sem os bolos de Sebastiana. Na Rádio Cultura de Araraquara, PRD-4, também havia novelas com boa audiência. Radioatores encenaram
no Municipal uma peça teatral, Jangadeiros, que foi comentada por meses, uma vez que, em ritmo de superprodução, caminhões de areia transformaram o palco numa praia.
De tempos em tempos, o Teatro Municipal lotava para a apresentação dos jovens irmãos Heitor e Altéa Alimonda, pianista e violinista nascidos na terra e que fizeram
carreira nacional. Também se comentou muito a peça Deus lhe pague, de Joracy Camargo, um supersucesso internacional, filmado inclusive na Argentina. Haveria um grande
baile no Municipal, e Mariquita garantiu que faria o vestido de Ruth. Como sempre, superocupada, deixou para a última hora. Praticamente o vestido saiu da máquina
pouco antes de o baile começar. Ruth vestiu e a família correu. Quando chegaram ao teatro, antes de entra-
rem, Mariquita viu uma linha saindo da manga do vestido. A cidade era quente, mas não havia vestidos de baile sem manga. Puxou e simplesmente a linha veio inteira,
desprendeu a manga do vestido. Antes que outros presenciassem a saia justa, voltaram para casa correndo moravam a cem metros - e Mariquita providenciou o conserto.
Despachada, criativa, certo Carnaval Mariquita resolveu fazer uma fantasia diferente para a filha. Era a maneira de fugir da realidade, ou seja, o dinheiro curto.
Escolhido um dia de relativa folga, ela convocou as amigas e, com paciência infinita, e em meio a risos, confabulações, bolos, cafezinhos e muito falatório, passaram
o tempo a estourar pipocas que foram costuradas, uma a uma, num vestido. As tardes então eram quietas, modorrentas, marcadas por cheiros que iam se alternando como
o das torrefações preparando-se para o dia seguinte, substituídos ao crepúsculo pelo doce intenso dos jasmins e damas-da-noite se abrindo. Quando os sinos das igrejas
bateram, assinalando o ângelus, a fantasia estava pronta. Com ela, Ruth ganhou o primeiro prêmio no concurso do Clube Araraquarense. "Aquela fantasia foi um momento
de plenitude para Ruthinha", comentou Gilda de Mello e Souza.

CERTOS DIAS, DEPOIS DO ALMOÇO, Maria Ernestina de Carvalho e Ruth desciam a rua Três e, na esquina da avenida Espanha, acenavam para o interior de um banco onde
Brasilino Stefano trabalhava. Ele fazia um sinal: "Já vou". Minutos depois, o trio ia para a piscina. Ruth aprendeu a nadar numa das primeiras piscinas da cidade,
a dos funcionários públicos, meio distante, onde hoje se localiza a Vila Melhado. Em seguida, veio a fase do Tênis, na avenida Dom Pedro II, com a piscina azulejada,
point da sociedade. Brasilino era parceiro nos jogos de tênis e nos bailes, um exímio dançarino. Buth adorava os bailes. Quando seus pais não podiam levá-la, ela
era confiada à guarda da "Turma da Banheira". Eficiente como segurança, muitas vezes era José Edgar, feroz, cônscio de suas responsabilidades, quem tinha a incumbência,
conferida por Mariquita, de ser o vigilante. Parece que todos tiveram sua queda por Ruthinha. Nos bailes, era disputada, não
parava. Conta-se que Nelson Gullo, um bonitão atlético (depois catedrático e cirurgião da Faculdade de Odontologia), quando não conseguia dançar com ela, não dançava
com ninguém. A Segunda Guerra Mundial terminou em maio de 1945 e nos meses seguintes os pracinhas, ou expedicionários, começaram a voltar para o Brasil. Os soldados
araraquarenses foram recebidos com desfiles e comemorações, e por muito tempo famílias convidavam famílias para ouvir histórias, não se falava de outra coisa. Não
houve pracinha que não tivesse trazido principalmente comidas, café e leite em lata, novidades que encantavam as pessoas. Entre os suvenires, as máscaras contra
gases que assustavam
as crianças. As formaturas eram um acontecimento numa cidade sem grandes eventos. Eram todas em dezembro, com a cidade decorada para o Natal e o tradicional Papai
Noel já empoleirado na marquise da Casa Barbieri, os presépios armados nas igrejas e nas casas católicas, árvores de Natal nas casas dos protestantes, cada um comemorava
à sua maneira. Aliás, no censo de 1940, para uma população de 67.724 pessoas, havia 64.026 católicos, 1.113 protestantes, 47 judeus e 282 budistas. Depois dos ortodoxos,
espíritas, ateus e aqueles de religião não declarada, foram descobertos um positivista e um maometano. A formatura de Ruth deu-se num sábado, dia 22. O vestido de
baile, branco, de renda, provocou frisson nas frisas do Teatro Municipal, reduto dos grandes acontecimentos. "Ah, o Municipal! Invejado por gente de outras cidades,
com o piso da plateia ajustável. Mecanismos erguiam o piso à altura do palco, formando um único plano, em geral para os dias de baile ou para as grandes formaturas.
Frisas, balcões, camarotes, muita luz, decoração feérica, diziam todos, felizes. As famílias, nas frisas, vigiavam as moças, mas fingiam às vezes não ver o que estavam
vendo", lembrou Ruth. Os oradores da turma foram os dois melhores alunos, Ruth Cardoso, pela turma B, e Luiz Rodovil Rossi, pela turma A, noticiado pelo jornal O
Imparcial, que reproduziu, na íntegra, o discurso de Ruth. Teria sido escrito por ela ou por Mariquita? Há um trecho curioso, visto à distância:
Avassala-nos o dever de elevar bem alto, aos píncaros da glória, o nome do Colégio Estadual de Araraquara, do qual hoje nos despedimos, após ter colhido todas as
flores do seu jardim, e com elas feito um resplandecente buquê, que levamos agora pelas diferentes estradas que queremos trilhar. Talvez ainda nos encontremos um
dia, então veremos quem melhor cumpriu este pacto que agora livremente constituímos, quem juntou mais louros àqueles com que já se coroa o Colégio Estadual desta
cidade. Colégio amado, berço dos nossos sonhos, esteio de nosso futuro, adeus!

Ela também sabia que estava se despedindo de Araraquara. Há meses, Mariquita vinha preparando o enxoval para o colégio em São Paulo. Roupas com monogramas, meias,
lençóis, fronhas, tudo levava a marca. Ela não tinha um minuto do dia, dava aulas na faculdade, no colégio, em casa. Para complementar a renda, passou a vender roupas
feitas, para homem e para mulher, e bijuterias, produtos de maquiagem, perfumes. O pintor Ernesto Lia, amigo de Ruth desde a juventude, artista que retratou toda
uma época da cidade, garante que comprou muito suéter e camisa, indo escolher na casa dela, a loja era no quarto do casal. Terminado o curso, a mãe decidiu: "A menina
vai para São Paulo". Inayá Bittencourt e Silva diz que "as mulheres ficavam na própria terra, estudando o que tivesse. Mariquita fez sacrifícios enormes para manter
a filha numa escola de primeira". Os homens que saíam iam para o Colégio Arquidiocesano. As poucas mulheres, para o Des Oiseaux ou o Sacré-Coeur. Margarida Troncon
Busatto: "Era uma atitude moderna, liberal, de quem estava cinquenta anos à frente. Uma atitude ousada para a época. Coisa do outro mundo, as jovens não iam embora
sozinhas". Para se ter ideia, uma prima de Maria da Penha Carvalho conta que, ao dizer ao pai que pretendia estudar arquitetura, teve esta resposta: "Estudar numa
escola onde há homens? De jeito nenhum!". Renato Corrêa Rocha acha que na atitude de Mariquita teve um dedo de Gilda, irmã dele, "uma influência velada". Sabe-se
que muita gente criticou Mariquita, lá isso é coisa que se faça, mandar uma menina dessas sozinha para São Paulo? E a própria Ruth: "O sonho de mamãe era ter feito
medicina, não tiveram condições, ela foi cursar farmácia meio a contragosto. Minha mãe
chorava na hora de fazer as minhas malas. Estava desesperada e me mandando para fora. Uma sensação esquisita. Ela tinha a certeza de que assim era melhor, não havia
outro caminho". Numa manhã de 1946, quando José e Mariquita levaram a filha Ruth à estação para apanhar o trem das 6h, que chegava em São Paulo às 11 h,, ainda estava
escuro. Esse foi o trem que levou gerações para fora de Araraquara. O sol começou a nascer quando o trem passou pela estação de Tamoyo, uma das mais famosas usinas
de açúcar do estado, e prosseguiu nos trilhos que, navalhas paralelas, cortavam extensos canaviais.

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA I: Pinheirão

Revoltado, Pinheirão exilou-se. Vem de um tempo remoto uma lembrança forte, e Ruth nunca soube precisar a data, ela era muito criança. Às vezes, José a levava à
Fazenda São Lourenço, também conhecida como Araraquara. Ficava na saída da cidade, a quatro quilômetros do centro. Havia uma reserva de mata nativa extensa, existente
ainda hoje, com madeiras nobres como jequitibá e peroba-rosa, além de uma cachoeira com mais de vinte metros de altura. Ali, numa casa senhorial do século xx, morava
Joaquim de Souza Pinheiro, o Pinheirão, homem esquisito, enorme, com barba e cabelos longuíssimos, há anos ele não os cortava. Tornara-se uma lenda. "Papai e ele
eram aparentados, não sei qual o grau de parentesco. Ficavam os dois a conversar e eu passeava pela casa, desarrumada e empoeirada, repleta de pilhas e pilhas de
jornais velhos. Era fascinante. O que havia naqueles jornais? Era uma coisa misteriosa que mantinha aquele homem ali. Pinheirão passava o dia a ler." Diziam em Araraquara
que, em 1917, ele teve um enorme desgosto ao perder uma eleição para Plínio de Carvalho, o homem que deteve o mando político na cidade por décadas. Houve uma briga
violenta entre os dois e Pinheirão, enraivecido, prometeu que abandonaria a cidade e, enquanto Plínio fosse vivo, nunca mais ali poria os pés. Dirigiu seu automóvel
até a avenida Portugal, parou, desceu, soltou o breque e empurrou o carro ladei-
ra abaixo na direção do córrego da Servidão (hoje canalizado, sobre ele está a Via Expressa). O automóvel espatifou-se num barranco. Pinheirão jamais apareceu na
cidade. "Por outro lado, papai era muito amigo de Plínio de Carvalho, e foi com ele que aprendi a conviver e a respeitar pessoas de diferentes opiniões.

VESTIR-SE DE SENHORA PARA DAR AULAS

O TREM DA COMPANHIA PAULISTA chegou pontualmente na Estação da Luz às 11 h Ruth tinha levado o dinheiro contado para o táxi. Com sua mala, que continha o enxoval
de semi-interna, seguiu para o Des Oiseaux, o colégio rodeado por um bosque - parte dele existe até hoje -, na esquina das ruas Augusta e Caio Prado, terreno imenso.
O palacete, projetado por dois arquitetos que mudaram a face de São Paulo, Ramos de Azevedo e Victor Dubugras, abrigava a elite estudantil da cidade. O Brasil começava
a viver o pós-guerra, anos efervescentes até o final da década. Getúlio tinha deixado o poder, substituído pelo general Eurico Gaspar Dutra, político amorfo, sem
carisma, eleito pela força de Vargas. Um ato de enorme repercussão foi a proibição total do jogo, dos cassinos, roletas e carteados. Economicamente o país estava
bem, com um superávit gerado pela exportação de produtos durante a guerra e importações mínimas. No entanto, as divisas baixaram a zero num frenesi consumista, com
a importação de produtos como automóveis, locomotivas, meias de nylon, chicletes, eletrodomésticos e todo tipo de objetos de plástico, a nova sensação vinda dos
Estados Unidos. A sociedade começava a se rearranjar e foi criada a Assembleia Constituinte, que daria ao Brasil a sua quinta Constituição. Todos os brasileiros,
homens e mulheres, passaram a ter o direito e a obrigação de votar. O divórcio, uma vez mais, foi repelido, pela força da Igreja. O Partido Comunista Brasileiro,
posto na legalidade, foi banido para a clandestinidade pouco depois, e seus eleitos, entre eles o escritor Jorge Amado, cassados. Ainda se falava na bomba atômica
lançada sobre Hiroshima e Naga
saki, dando início à era nuclear; o mundo estava dividido em dois blocos, o capitalista e o comunista, e a guerra fria estava em curso, com uma corrida armamentista
sem precedentes. A ONU foi fundada, Mao Tsé-tung criou a República Popular da China, surgiu o Estado de Israel, cientistas americanos inventaram o transistor, revolução
que repercute até hoje e mudou o futuro das comunicações, e o cinema neorrealista italiano, com Vittorio De Sica, Luchino Visconti, Cesare Zavattini e Roberto Rossellini,
mostrava a um mundo novo como enfrentar as imagens estereotipadas de Hollywood, que difundiam ao universo o american way of life. A filosofia existencialista entrou
para a ordem do dia, falava-se em Sartre, Simone de Beauvoir, Bons Vian e em Juliette Gréco, os homens sonhavam com as caves de Saint-Germain-des-Prés, onde "dominava"
o amor livre. As mulheres desejavam seduzir os homens com uma gota do perfume Chanel N.o 5. Clarice Lispector lançou dois romances, Perto do coração selvagem e O
lustre, e um mito surgiu na literatura brasileira. Outro mito, de pronto estabelecido, foi Guimarães Rosa, com Sagarana. A modernidade da poesia se refletiu em
João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade. Portinari foi pintar os painéis da ONU em Nova York, o que encheu o Brasil de orgulho. Em 1946,
São Paulo tinha menos de 2 milhões de habitantes, mas sua população crescia gradualmente. Tinha cessado o fluxo da imigração, substituído pelo da migração, quando
gente vinda do Nordeste começou a chegar, atraída pelo desenvolvimento da cidade, principalmente no setor da construção civil. A atmosfera, apesar dos arranha-céus,
do trânsito, da vida noturna, ainda conservava o tom provinciano e sossegado. Litros de leite e saquinhos com o pão eram deixados nas portas, portões e janelas na
madrugada, os tripeiros passavam vendendo miúdos, bucho e fígado, compras eram feitas em armazéns e quitandas. Coca-Cola era a pausa que refresca, Chica-Bon, o "sorvete
formidável", três canetas-tinteiro disputavam o mercado, a Parker, a Sheaffer e a Eversharp. O cinema continuava sendo a principal diversão e a cidade era considerada
um Eldorado, com suas salas luxuosas e lançamentos simultâneos com os Estados Unidos. Os bondes eram ainda o transporte público e cortavam a cidade por todos os
lados.
As linhas mais extensas eram a Penha-Lapa e a Praça João Mendes-Santo Amaro. Os táxis eram todos iguais, pretos, Chevrolets 1938, o transporte público, com a CMTC,
era uma calamidade, o Hotel Esplanada se apresentava como o Copacabana Palace paulistano, os ricos circulavam a bordo de Cadillacs e Oldsmobiles, o conde Francisco
Matarazzo era o homem mais rico do Brasil, as mulheres liam Vida Doméstica e os homens, a Seleções do Reader's Digest, e todo mundo lia a revista O Cruzeiro. Os
católicos andavam impacientes, as obras da catedral da Sé se eternizavam - iniciadas em 1913, ainda não estavam terminadas.
RUTH CORRÊA LEITE FOI ALUNA semi-interna. A menina de Araraquara era magra, bonita, com trancinhas, a única de sua classe a usar trancinhas, o que a diferenciava
e provocava a admiração das colegas. Ela uniu-se a duas amigas, uma de sua classe, Vera Martins Rodrigues, e Maria Helena Fonseca, hoje Gregori, prima de Vera,
que estava terminando o Ginásio. As duas primas eram, por sua vez, primas de Leôncio Martins Rodrigues, que ficaria ligado à família até os dias de hoje. A mãe de
Vera, Esther, nos primeiros tempos foi uma espécie de continuação de Mariquita. Era comum Ruth passar o fim de semana em sua casa. Maria Helena, mais nova, era um
rabicho, vivia atrás das mais velhas, copiando tudo. O Des Oiseaux não significava um sistema absolutista, férreo. Mantido pelas Cônegas de Santo Agostinho, ordem
belga fundada por são Pedro Fourier e pela madre Alice Leclerc, era um regime aberto, diferente dos outros colégios de freiras.' Os meninos, amigos, parentes e namorados
podiam aparecer nas quermesses e nas festinhas. As alunas falavam francês, algumas aulas eram nessa língua, assim como as orações. Já a missa era em latim, e diária.
O Des Oiseaux influenciou muito aquela geração de jovens, na base da religião ensinada como Deus é amor, em lugar de um Deus punitivo. No entanto, Ruth "respeitava,
mas não professava", acentuou Maria Helena. Quanto às mensalidades, apesar de ser frequentado pela elite, não era uma escola cara, impossível. Todos eram tratados
igualmente, sem diferenças sociais ou de dinheiro, um tratamento que impressionou Ruth.
As alunas usavam uniforme, uma saia cinza pregueada, blusa branca de fustão, e o "arreio", como as estudantes a chamavam - uma faixa que passava pelo ombro, pela
cintura e dava um laço atrás, bem diferente dos outros colégios. As faixas indicavam o ano que cursavam. Vermelha com listra branca, primeiro ano. Branca com listra
vermelha, segundo. Somente branca, terceiro. Ruth distinguia-se das jovens levadas da breca porque nunca perdia o cordão azul de tafetá, marca de bom comportamento.
Quase todo fim de semana eu ia para Araraquara. Quando dava, ia na sexta-feira, para aproveitar o maior tempo possível. Não estava sendo fácil me desligar daquele
mundo. A volta era na segunda-feira, no trem das 6h. Outras vezes, eram Mariquita e José que chegavam a São Paulo carregados de guloseimas e quitutes, feitos pela
mãe ou pelos parentes - Ruth era o "dodói", cada um enviava uma coisa. Joaquim Adolfo Mendonça disse que a visitava também e que retomaram ligeiramente o namoro.
"Durou pouco, até aparecer aquele que seria o homem definitivo da vida dela. Terminado o colegial, Ruth mudou-se para um pensionato de freiras no bairro de Pompeia,
cuja diretora era parente de José Corrêa Leite. A mesada continuava a ser enviada por intermédio de uma parente, Clarí Corrêa de Almeida Merussi, cujo marido, Lourival,
trabalhava no Banco do Brasil. A vida deu outra guinada. A Universidade de São Paulo era o paradigma de ensino superior no Brasil, com seus quinze anos de existência.
Ruth estava decidida a entrar para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que naquele ano de 1949 ainda funcionava no último andar do Colégio Caetano
de Campos, na praça da República. Orientada por Mariquita, ela fez um cursinho montado na própria faculdade pelo Centro Acadêmico. Coisa de quarenta dias, apenas
para uma base. Jovens professores davam aulas para ganhar um dinheiro extra. Organizada, Ruth preparava fichas muito bem ordenadas e classificadas, era superorganizada
em tudo que fazia, distribuía bem seu tempo. "Conheci Fernando Henrique no vestibular da faculdade. Ele estava sozinho em São Paulo e queria cursar filosofia e direito.
Sentado ao meu lado, íamos fazer exame oral. Matreiro, ele me comoveu, dizendo que não tinha tido tempo de estudar, me contou uma história dramática, de manei-
ra que passei todas as fichas a ele. Aí começou. Todos o consideravam o bonitão, mas confesso que nem era tanto. Tão magrinho

A VIDA ERA AO REDOR DA FACULDADE, localizada no terceiro andar do Caetano de Campos, na praça da República. Por muitos anos, quando se falava na faculdade, dizia-se
a "Praça". Tudo acontecia no centro da cidade. Era o que se chamava o circuito do centrão, dominado pela sofisticada rua Barão de Itapetininga, onde pontificavam
a Confeitaria Vienense e a Casa Vogue. Pela região espalhavam-se as melhores salas de cinema, os bares, como Paribar, Barbazul e Arpége, os restaurantes, como Da
Giovanni, Parreirinha, Gambrinus, Spadoni e Simpatia, livrarias como a Francesa e a Jaraguá, com seu salão de chá. Os encontros eram também na Leiteria Americana,
na rua Xavier de Toledo, cuja média de chocolate era imbatível. Ao lado, o Mappin Stores, cujo salão de chá, no quinto andar, era igualmente um lugar acolhedor e
chique. Ruth e Fernando Henrique pertenciam à "turma da biblioteca", referência aos estudantes que frequentavam a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, que funcionava
como espaço aglutinador. Ali todos se encontravam, liam, pesquisavam, estudavam, namoravam. Dirigida por Sérgio Milliet, poeta, crítico de literatura e de artes
de primeira linha, na biblioteca havia conferências obrigatórias que conferiam "status". Os namoros evoluíam devagar, cheios de formalidades. Quando a situação com
Ruth começou a ficar mais bem encaminhada, Fernando Henrique lembra-se de um encontro no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, recém-fundado por um grupo da burguesia
paulistana comandado por Franco Zampari, na rua Major Diogo. Todos comentavam a peça Nick Bar... Álcool, brinquedos e ambições, de William Saroyan, um autor americano
de origem armênia, então na moda. "Cheguei e encontrei Ruth com sua amiga de Araraquara, Maria Silvia de Carvalho Franco. Elas levaram um susto ao me ver todo elegante
com um terno, paletó jaquetão e colete, naquela época usava-se colete. Era de bom-tom. Ainda não tinha engrenado o namoro, aliás, naquela época, eu tinha outra namorada,
mas era
uma relação indefinida, muito vaga, nem tudo andava como hoje, velozmente . Maria da Penha Villalobos acentuou que Maria Sylvia estava interessada em Fernando Henrique,
porém Ruth venceu a parada. "Um de nossos desejos era poder ir uma noite ao Nick Bar, que funcionava anexo ao TBC e era frequentado pela intelectualidade e por artistas
como Cacilda Becker, Abílio Pereira de Almeida, Anselmo Duarte. Mas quem tinha dinheiro para isso?", confessou Ruth. FHC mandava fazer seus ternos no Soares, que
ficava em frente ao TBC, na rua Major Diogo, um alfaiate que servia não só a Antonio Candido, mas também ao pessoal do teatro. O namoro firmou - era o usual na época,
cinema, teatro, um barzinho sempre em companhia de outros. Fernando Henrique levava Ruth até o pensionato da avenida Pompeia, tinha horário para entrar à noite,
era tudo regulado. Iam a pé até o Anhangabaú, esperavam o ônibus que subia a avenida São João no rumo da Pompeia. "Eu me dava bem com as freiras, muitas vezes fui
assistir à missa. Ia por ela, não por mim, a esta altura não estava tão ligado à Igreja quanto Ruth, que mantinha breves resquícios do Des Oiseaux e de Araraquara,
das tias beatas e do pai, porque ele era católico praticante, ao contrário da Mariquita. Aliás, fisicamente Ruth se parecia mais com ele do que com ela. Um homem
magro, sempre bem-posto, de poucas palavras, o oposto de Mariquita." Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, filho de Nayde, uma mulher de porte mediano,
viva, altiva e falante, e do general Leôni das Cardoso, homem imponente, de cabelos brancos. Seu avô, Joaquim Ignácio Batista Cardoso, e seu tio-avô, Augusto Ignácio
do Espírito Santo Cardoso, tomaram parte na "conspiração republicana" contra a monarquia. Augusto foi ministro da Guerra do governo provisório de Getúlio Vargas,
entre 1930 e 1932. O pai e o tio de FHC, o general Felicíssimo Cardoso, eram nacionalistas. O pai foi eleito deputado federal com o apoio dos comunistas - que estavam
na ilegalidade. O general Leônidas e vários primos e tios estiveram envolvidos nas lutas "tenentistas" e nas campanhas nacionalistas dos anos 1950. FHC e Ruth estudaram
juntos desde o primeiro ano de faculdade, em
1949. Quando houve a mudança do Caetano de Campos para a rua Maria Antonia, eles já estavam no segundo ano. Uma aluna da época, Carmem Guedes, relata a desocupação
do terceiro andar: "A faculdade foi despejada, jogaram os móveis na rua e nós fomos à procura de um prédio, acabamos de sair da reitoria, na rua Maria Antonia, na
frente do grupo estava o Azis Simão, precisávamos conquistar um prédio para a faculdade e pareceu que íamos conseguir o da Maria Antonia". O prédio da Maria Antonia
tinha pertencido ao Liceu Rio Branco, que o vendeu ao governo do estado. A região de Vila Buarque prometia agitação. Além do Mackenzie, estava em curso a transferência
da Escola de Sociologia e Política para a rua General Jardim e se cogitava em trazer a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU, para a rua Maranhão, retirando-a
da Escola Politécnica.'

RUTH HESITOU ENTRE A FÍSICA e as ciências sociais. Boa em matemática e adorando literatura, afinal decidiu-se pelas ciências sociais. A Maria Antonia acabou se tornando
uma instituição não apenas na história da Universidade de São Paulo, como também na própria história da cidade. O professor José Goldemberg definiu o prédio como
a "maior densidade intelectual por metro quadrado que jamais se reuniu em São Paulo. Naquelas instalações acanhadas, em que os professores não tinham salas para
trabalhar, se acotovelavam milhares de alunos e grandes professores... O prédio da Maria Antonia foi o fermento no qual se geraram as tendências políticas de hoje,
nele estudaram e ensinaram muitos dos líderes de diversos partidos políticos de hoje"" Era um edifício atarracado, cinza e estranho, na rua em frente ao Mackenzie.
Colunas greco-romanas, pesadas e incongruentes, marcavam o ingresso no prédio. Nos primeiros anos, chegava-se à faculdade pelo bonde aberto 14, destino Vila Buarque,
chamado por alguns de o "bonde da filosofia". Saía da rua Xavier de Toledo, ao lado do Mappin, de onde partia igualmente o Avenida 3, que subia a Consolação, atravessava
a Paulista e descia a Brigadeiro Luís Antônio. Tilintar contínuo do marcador de passagens. "Tlim-tlim, tlim-tlim, um p'ra Light, dois p'ra mim", gritavam os estu-
dantes quando o cobrador fazia o registro, andando pelo estribo do bonde. No entorno, à medida que os anos se passaram, os bares foram fazendo, em épocas diferentes,
a sua história, marcando gerações, o Fonfon, o Bar do Zé, o Querência, o Bar do Meio, até o Sem Nome, que a princípio foi Quitanda e vendia mesmo frutas e verduras,
frequentado pelo estudante de arquitetura Chico Buarque, que ali teria composto -Pedro pedreiro" e "Olê, olá", em 1965. "A faculdade foi para nós uma revolução mental",
complementa Fernando Henrique Cardoso, "porque, na verdade, a gente chegava lá e não entendia nada, o nível dos professores era bastante elevado. As aulas no primeiro
ano eram em português, mas no segundo, quase todas em francês, dadas pelo Roger Bastide, pelo Pierre Monbeig, um homem desajeitado, e pelo Martial Guéroult - que
ensinava Kant e Descartes e citava a bibliografia em alemão. Depois, seu assistente, Lívio Teixeira, destrin chava tudo. Imagine, entender Kant aos dezoito anos
de idade! Havia Paul Hugon, sempre formal, camisa branca com colarinho e punhos engomados. Sem esquecer Florestan Fernandes, que falava em português, mas era difícil
entender o que ele dizia. Éramos muito, muito novos. Florestan, jovem assistente do professor Fernando de Azevedo, um grande professor, adepto de uma corrente teórica
chamada funcionalismo, nos ensinava a fazer análises sociológicas, mas não falava de marxismo, nem de revolução, ainda que tivesse suas preferências à esquerda.
Fomos treinados por ele na paixão pela pesquisa e na desconfiança do ensaio e da filosofice. Foi o homem que nos inspirou mais de perto. Florestan nos fazia ler
Max Weber, Georg Simmel, Werner Sombart, Karl Mannheim, autor de Ideologia e utopia, que fazia um sucesso incrível na USP, e Hans Freyer. Por sorte, havia Ravmond
Aron que ordenava nossas cabeças confusas! E o alemão Egon Schaden nos introduziu na antropologia, enquanto José Camargo nos ensinou a teoria do valor." Outra figura
emblemática da Maria Antonia era Antonio Candido, que nos "fascinava pela síntese entre um sabor literário indiscutível, a finura de sua antropologia social (Os
parceiros do Rio Bonito), seu discreto socialismo e sua invulgar capacidade de transformar os 'tijolos acadêmicos' em ara-
bescos de sutileza e penetração intelectual", ressalta Fernando Henrique" Cardoso, então professor assistente de sociologia, ainda na praça da República, fazia alguns
seminários, habituou-se a ver Ruth e Fernando Henrique sempre entre os ouvintes e ficou amigo do casal, amizade favorecida pela ligação entre Gilda de Mello e Souza
e a família de Ruth, desde Araraquara. "Senhor" e "senhora" eram os tratamentos habituais entre alunos e professores. Até o dia em que Antonio Candido ouviu Fernando
Henrique chamá-lo de você. "Olhei aquele rapazinho e pensei: esse vai longe. Era uma vida intelectualmente rica, com muitas conferências, palestras, debates. Vivia-se
em São Paulo uma época de buscas e inquietações com o Museu de Arte Moderna, o MASP, a criação da cinematográfica Vera Cruz, destinada a realizar filmes com "classe
europeia" para se opor à vulgaridade das chanchadas. Alfredo Mesquita acabara de fundar a Escola de Arte Dramática, que formaria os melhores atores e diretores do
Brasil por décadas. Sergio Cardoso fez um sucesso sem precedentes com Hamlet. Ruth e Fernando Henrique foram fazer um curso no MASP, queriam ser monitores do museu,
e quem dava as aulas era Pietro Maria Bardi. "Ninguém pode imaginar o que significou para os jovens de São Paulo o Museu de Arte, porque a gente via os quadros,
via os livros, ouvia e lia, relacionava, era arte, história e filosofia. Logo depois de nós, no ano seguinte, o Giannotti fez o mesmo curso", recorda-se FHC. Eles
frequentavam também o Clubinho, nome pelo qual era conhecido o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, fundado nos anos 1930 por Flávio de Carvalho, cuja sede foi primeiro
na rua Barão de Itapetininga, depois na rua Bento Freitas, no subsolo do Instituto dos Arquitetos. Absorvia-se de todos os lados. Ruth e Fernando Henrique estavam
na mesma classe, não havia mais do que seis alunos. O curso era o de ciências sociais, depois o aluno decidia se ia para sociologia, antropologia ou política. Ou
economia, mas isso já era outra faculdade. Quase no final do curso, Florestan Fernandes conseguiu trabalho para Fernando Henrique como assistente de Alice Canabrava
no Instituto de Administração da Faculdade de Economia, que ficava na rua Doutor Vila Nova, mas cujo pátio interno era comum com o da Maria Antonia, onde havia um
café e um restaurante.
No último ano da universidade, Ruth começou a dar aulas de história, à noite, no segundo grau no Colégio Estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros. "Ainda tinha cara
de criança e precisava dominar aquela turma de marmanjões. Eu me fantasiava inteira, puxava o cabelo, colocava uma saia mais justa, sóbria, virava senhora. Ali foi
professora de Gabriel Bolaffi e de Leôncio Martins Rodrigues, um de seus alunos mais brilhantes e, no futuro, um de seus amigos mais chegados. Leôncio tem uma memória
clara daquele período: "Ela, naquela altura, ainda não tinha terminado a faculdade, mas o Ministério da Educação permitia que alunos em final do curso dessem aulas
no colégio. O que era muito bom, os professores que vinham da Faculdade de Filosofia eram, de longe, superiores aos que se encontravam lá. Para se ter ideia, história
era lecionada por advogados, português e latim pelos padres, gente pouco preparada para a atividade docente. O pessoal da faculdade elevava o nível. Gostava de Ruth,
principalmente pela exigência bibliográfica, ampla, extensa, suas indicações eram de um nível muito superior, aberto e diferente do que existia antes. Lembro-me
bem de alguns livros que ela me indicou, o último foi Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, que achei formidável. Ela me conduziu também para A cidade antiga,
de Foustel de Coulanges". Quanto a Gabriel, acentua que gostava de história pelas aulas de Ruth, muito boas. Depois da aula, a gente ficava de papo, de repente ela
olhava para nós, percebia a hora, exclamava: 'Preciso ir embora, preciso correr, o Fernando está me esperando'. Leôncio não perdoou, apelidou-a de Cinderela. Depois,
na faculdade, fui aluno dela em antropologia, ótima professora. Aos poucos, começava o desligamento de Araraquara. Fernando Henrique a acompanhava à cidade nas visitas
que rareavam. Sempre no trem da Paulista. Ele ficava hospedado no Hotel São Bento, na avenida São Paulo, em frente à estação, da família do Nelson Monteiro, mais
conhecido como Tourinho, ou no Hotel Municipal. A Turma da Banheira teve de aceitá-lo, ainda que com muita ciumeira, afinal, era o "mocinho bonito", o "almofadinha"
inteligente de São Paulo que tinha conquistado a beldade do interior. Os orgulhos locais eram exasperados. Renato Corrêa Rocha lembra-se de muitas madrugadas, após
os bailes, em que precisavam bater firme na porta
do Hotel Municipal, quase estourar a campainha, acordando Chico Lastiri, o dono, um homem impertinente que se recusava a abrir a porta do hotel. Mas a cumplicidade
da mulher dele, dona Ritinha, suavizava o impasse e Fernando Henrique podia subir para o seu quarto.'" Ele, hoje, a quase sessenta anos de distância, sorri ao se
rever: "Costumava implicar com Ruth por causa do sotaque araraquarense, aquele R escandido. Coisa que ela perdeu com o tempo, mas readquiria assim que colocava os
pés na cidade. Eu nunca tinha ido ao interior, não conhecia o ritmo da vida. Era um estranho no ninho. Ia da casa de Ruth ao cinema, ao clube, ao baile. Não havia
muito a fazer. Ruth conhecia todo mundo, era popular, sempre cercada pelo seu grupo, eu ficava fora de foco, numa situação esquerda. Ela dançava muito bem, todos
lá dançavam bem, e eu sempre dancei mal. Havia um moreno magrinho, pé de valsa, como se dizia, acho que de origem árabe, era o mais saliente, muito bom, querido
por ela". "E cartas de amor? Escreviam um para o outro?". Ruth hesita, percebo um levíssimo ar reprovador mostrando que eu estava forçando uma brecha na privacidade.
Mesmo reticente, ela explicou: "Não, não! A gente de minha geração decidiu construir uma atitude antirromântica... Influenciados pelo cinema, pela literatura moderna
e pela faculdade, queríamos ser modernos, adotar atitudes modernas. Tínhamos verdadeiro horror pelo pieguismo... Assim, cartas eram escritas apenas quando se viajava,
mas naquela altura não se viajava como hoje... Era uma rebelião contra o convencionalismo, a gente se irritava com tudo, e cartas de amor entravam nessa categoria..."•"

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA II: Seis vestidos diferentes

Em uma de suas viagens a Araraquara, num feriado prolongado, Ruth encontrou-se com duas das amigas, Maria Sylvia e Maria da Penha. Era
1947 e as mulheres só falavam do new look, a última tendência da moda ditada por Dior em Paris. Estava nas revistas, nos jornais cinematográficos.
Na sobriedade do pós-guerra, o new look nasceu para mostrar que a moda estava mais viva do que nunca. Os vestidos eram amplos e quase chegavam à altura do tornozelo.
A cintura era bem marcada e os sapatos, de saltos altos Ao ouvir as jovens excitadas com o new look, Mariquita disse a elas que descessem até a rua Nove de Julho,
a do comércio, e comprassem os tecidos. Eram metros e metros. Na volta delas, Mariquita cortou-os, sentou-se à máquina, arrematou as peças e, após algumas horas,
cada uma das jovens tinha dois vestidos, duas anáguas, tudo. Em quatro horas, costurou seis vestidos.

O DESPERTAR PARA UMA NOVA ANTROPOLOGIA

Bota o retrato do velho outra vez

Bota no mesmo lugar O sorriso do velhinho

Faz a gente se animar, oi.

HAROLDO LOBO E MARINO PINTO

A MARCHA CARNAVALESCA DE Haroldo Lobo e Marino Pinto, cantada por Francisco Alves, o rei da voz, foi o maior sucesso do Carnaval de 1951 e refletiu o clima do Brasil
diante da campanha do PTB para reconduzir Getúlio Vargas ao poder. No dia 3 de outubro de 1950, o "pai dos pobres", como Vargas era chamado, venceu o brigadeiro
Eduardo Gomes, da UDN, com quase o dobro dos votos. Getúlio assumiu alertando que com ele o povo subiria as escadas do Catete e com ele permaneceria no governo.
A década de 1950 foi agitada e marcada por transformações em todos os segmentos da sociedade. Em 1950, houve o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro e foi criado
o Conselho Nacional das Mulheres Negras, seguidos pela aprovação da Lei Afonso Arinos, em 1951, que criminalizou o racismo. Vargas trouxe consigo um projeto nacionalista
que buscava a expansão industrial, com o aumento da intervenção estatal na economia, o crescimento da produção de bens de consumo e o aumento da renda nacional.
Foi criado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, BNDE, a Eletrobrás aprovada apenas em 1961 e a Petrobras, que gerou uma intensa campanha sob a bandeira
"O petróleo é nosso". A política getulista bateu
de frente com os interesses da classe dominante e uma oposição ferrenha se ergueu contra ele, conduzida principalmente pelo jornalista Carlos Lacerda, que se apropriou
de uma expressão de Getúlio - "mar de lama" - para intensificar seus ataques virulentos. O presidente populista foi perdendo o apoio das massas com o aumento do
custo de vida e a inflação. O movimento da "Panela Vazia", que reuniu 500 mil pessoas, e a greve dos 300 mil, em
1953, demonstraram o descontentamento popular. Um aumento de 100% no salário mínimo foi a gota d'água e o impeachment de Vargas foi pedido no Congresso. O atentado
que tirou a vida do major Vaz, que caminhava ao lado de Lacerda na rua Toneleros, foi o clímax daquele período. Exército, Marinha e Aeronáutica pediram o afastamento
de Getúlio, Lacerda recrudesceu seu ímpeto e as pressões atingiram o auge, provocando o suicídio do presidente na madrugada do dia 24 de agosto de 1954. Breves insights
de um tempo em que o êxodo rural se acentuou e São Paulo atingiu a marca de 2,2 milhões de habitantes. A televisão foi inaugurada com a TV Tupi, Canal 3, os centros
das cidades entraram num processo de declínio que se acentuaria velozmente, os supermercados começavam a mudar os hábitos cotidianos, a propaganda tornava-se adulta
e induzia a população ao consumo, surgiram a Tv Paulista (Globo, no futuro), a Record e a Cultura, o Brasil ganhou um prêmio em Cannes com o filme de Lima Barreto,
O cangaceiro, imenso sucesso de público, e a bossa-nova surgia. O rádio era a grande diversão com novelas, programas humorísticos, musicais e o Repórter Esso, a
"testemunha ocular da história".' No mundo, nessa década, surgiram Elvis Presley e Brigitte Bardot, ícones de liberação; Sartre e Simone dominavam o pensamento europeu
na filosofia, na política e no feminismo.

DONA NAYDE E O GENERAL Leônidas Cardoso moravam em São Paulo desde os anos 1940, tendo deixado o Rio de Janeiro com uma missão específica designada pelo ministro
da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra: vigiar os movimentos de Adhemar de Barros, então interventor do estado. Passando à reserva, Leônidas montou um escritório
de advocacia e se fixou na cidade
com seus três filhos, Fernando Henrique, Antonio Geraldo e Gilda. Nayde e Ruth se afeiçoaram uma à outra e as visitas eram mais do que frequentes; muitas vezes Ruth
dormia na casa da sogra na rua Piauí, em Higienópo lis. Passou a ser parte da família e nos fins de semana, quando não ia para Araraquara, ficava com os Cardoso.
Nesse período, juntando economias, porque a vida era muito disciplinada, eles compraram dois pequenos apartamentos, quitinetes, um na alameda Ribeiro da Silva e
outro na avenida São João, destinados a aluguel para renda complementar. Quem morou na avenida São João foi o cineasta Sergio Muniz, primo de Bráulio Pedroso, teatrólogo
e depois telenovelista, autor de Beto Rockfeller, uma revolução. A graduação de Ruth foi em 1952 e, no ano seguinte, no dia 2 de fevereiro, ela se casou no Rio de
Janeiro. A via Dutra tinha sido recém-inaugurada e Fernando Henrique foi para a capital num carro Opel, acompanhado de uma amiga, Orieta, mulher do historiador Fernando
Novais. Ruth esperou Mariquita e José e seguiram pelo Trem de Prata, composição de luxo da Estrada de Ferro Central do Brasil que fazia o percurso em nove horas
embora célebre pelos atrasos e maus serviços, oferecia conforto. O enxoval foi preparado por Mariquita, que fez inúmeras viagens a São Paulo; acompanhada de Maria
Ernestina Foz de Carvalho, mãe de Maria da Penha, ia às lojas na rua 25 de Março, principalmente à Casa Moysés, cujo dono era de Araraquara. Maria Ernestina - Tininha
para os íntimos conhecia um senhor que vendia enxovais em casa e dele comprou um véu vindo da Bélgica por bom preço. Reservava para uma das filhas, porém a mais
velha já tinha se casado, a outra disse que só se casaria no civil, de maneira que, quando Ruth anunciou que ia se casar, ganhou o véu. Tininha a acompanhou na viagem,
afinal era a madrinha. Fernando Henrique tinha seu emprego na Faculdade de Economia, não ganhava mal, e Ruth prestou concurso para um cargo na Secretaria do Trabalho
- foi uma das quatro selecionadas entre mais de uma centena de candidatos. Junto com ela, o amigo Eduardo Tess, filho de Aracy de Carvalho, que, após se separar
de seu primeiro marido, foi a companheira de vida de João Guimarães Rosa. Mulher célebre pela coragem ao ajudar centenas de judeus a escaparem do nazismo, quando
o escritor servia no consula-
do de Hamburgo. Tess ainda hoje participa das rodas de pôquer semanais de FHC e amigos, como Leôncio Martins Rodrigues e Bons Fausto. Ruth estava encarregada de
fazer uma das primeiras pesquisas sobre emprego e desemprego em São Paulo, o que a deixou feliz, "meus interesses sempre foram mais amplos e multidisciplinares".
As pesquisas ela aprendeu a fazer no segundo ano de faculdade, quando teve aulas com Roger Bastide, "que tinha na verdade uma cabeça de antropólogo. Íamos visitar
favelas e entrevistar, observar e anotar como viviam'', e foi assim que ela descobriu estar "dando um passo à frente para que a antropologia encarasse outros temas
que não os das sociedades indígenas". Era o despertar de Ruth para uma nova consciência da moderna antropologia, aquela que, fazendo um desvio e deixando de estudar
apenas os povos primitivos, passou a se debruçar com intensidade sobre as comunidades urbanas atuais. Leôncio Martins Rodrigues, também funcionário da Secretaria
do Trabalho, a certa altura foi designado para uma pesquisa sobre mão de obra em São Paulo. Ali se encontrou novamente com Ruth, e fizeram um trabalho sobre condições
de vida da classe trabalhadora. "Ela teve enorme.influência em minha vida; naquela altura eu conhecia apenas três cursos que um jovem de boa família devia seguir
- advocacia, engenharia ou medicina -, e não me interessava por nenhum. Eu ia até a Faculdade de Filosofia para vender o jornal do Partido Comunista e ficava com
inveja daquela gente, daquele tipo de estudo e ambiente. Foi quando Ruth me falou do curso de ciências sociais, me explicou como era, e fiquei fascinado. Naquela
altura, desiludido, achava que não fosse mais possível liquidar com o imperialismo americano, com a burocracia soviética, com a Igreja Católica ou com o Partidão,
sonhos de uma geração. Saí do Partido, Fernando Henrique também rompeu, ficamos amigos." O primeiro lar do novo casal foi na rua São Vicente de Paula, em Santa Cecília.
Era um prediozinho de tijolos marrons onde também morava Mário Schenberg, diretor do Departamento de Física da USP, um dos físicos teóricos mais importantes do país.
O apartamento, grande e simples, logo foi ocupado por Ruth, que lhe deu sua cara, moldou-o ao jeito dela. Ao longo da vida, as casas seriam seu referencial, refletindo
sua persona-
lidade, sua maneira de ser. Logo o lugar se transformou num centro de encontros. Habitué era o comunista Schenberg, uma celebridade, com seu inseparável charuto
e cujas aulas, imperdíveis, eram à noite, começavam às 18 ou às 19 horas, mas não se sabia nunca a que horas terminariam. Ali se encontravam ainda o jornalista Fernando
Pedreira, então casado com a artista plástica Renina Katz; os pintores Luiz Ventura e Mário Gruber, pai de Gregório; o advogado Agenor Barreto Parente, Octávio Araújo,
um desenhista excepcional, a pianista Anna Stella Schic, o maestro Claudio Santoro. Eram jantares ou chás, conversas, discussões, debates sobre sociologia e antropologia.
Houve certa vez um curso de literatura programado por Álvaro Bittencourt, que, junto com José Mindlin, comandava a Livraria Parthenon, espécie de centro cultural
agitado que promovia palestras, encontros e trazia os livros recém-publicados na Europa. Na livraria, "em uma sobreloja da rua Barão de Itapetininga, reunia-se à
tarde um grupo de jovens comunistas" e ferviam as discussões políticas, fomentadas por Schenberg e Pedreira, debatia-se a influência do Partidão, os rumos da esquerda.
Outro habitué era Maurício Segall, que se casou com Beatriz, hoje atriz teatral. "Ruth não entrava muito quando se discutia política partidária, ela sempre foi rebelde
em tudo, principalmente em relação aos partidos, esse nunca foi muito o lado dela." Para não falar das sessões de cinema e teatro e das mesas no Da Giovanni, na
rua Basílio da Gama, restaurante italiano de primeira linha, nas cantinas do Bexiga ou no Gigetto, na rua Nestor Pestana.

Ruth e Fernando Henrique desciam para o litoral no Opel, que enfrentava a parada valentemente pelas estradas de terra que demandavam Caraguatatuba e Ubatuba, uma
verdadeira aventura, coisa para jovens gregários. Em alguns momentos, os dois fizeram camping,' outras vezes alugavam casa - uma das mais frequentes pertencia a
Toledo Piza, prefeito de São Paulo. Depois de uma briga com Alice Canabrava, Fernando Henrique foi demitido e os dois passaram a viver com o salário de Ruth na Secretaria
do Trabalho. Pouco mais tarde, FHC foi contratado para ser o coordenador do levantamento de campo das pesquisas que ela estava fazendo, e passou a circular pela
periferia.
O casal frequentava muito a casa de Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza na pequena rua dos Perdões, entre Aclimação e Cambuci. Eram sobradinhos geminados e
o lugar tinha um nome, Vila Paulista. Uma vez, Gilda conseguiu verba para levantar documentação nas cidades históricas de Minas Gerais e levou consigo Fernando Henrique
e Ruth, já grávida do primeiro filho, Paulo Henrique. Foram de avião até Belo Horizonte, depois desceram para Ouro Preto de ônibus, e o material que colheram foi
doado à Universidade. Candido era muito afeiçoado a Ruth. Para se ter ideia, certa vez, poucos anos atrás, encontraram-se na sala de espera de um oculista. Quando
Ruth retornou, o médico revelou que tinha um amigo dela como paciente, um senhor que a chamava de "Ruthinha". Ela sorriu: "Ah, só pode ser o Antonio Candido, é
a única pessoa do mundo que ainda me chama de Ruthinha".

RUTH PRECISOU PEDIR LICENÇA na Secretaria do Trabalho com a chegada do primeiro filho, que nasceu na Maternidade São Paulo no dia 13 de abril de 1954. A cidade vivia
agitada com as comemorações do Quarto Centenário e Ruth sentiu perder alguns filmes importantes do Festival Internacional de Cinema, que trouxe ao Brasil diretores
como Erich von Stroheim e Mervyn LeRoy. "Como esquecer o Cine Marrocos, tão luxuoso, com seu lobby, uma fonte, um bar? A modernidade, o luxo e o kitsch juntos",
disse ela.19 Fernando Henrique conheceu José Arthur Giannotti pessoalmente no dia do nascimento de Paulo Henrique. A campainha soou, ele atendeu, Giannotti se apresentou:
"Vim buscar o livro do Max Weber". FHC nem convidou-o a entrar, apanhou o livro, entregou, e se desculpou: "Estou indo para o hospital, meu filho vai nascer". Uma
nova rotina se instalou na casa e no trabalho, porque Ruth fazia questão de amamentar e foi preciso organizar o cotidiano. Nesse mesmo ano, em outubro, o general
Leôni das elegeu-se deputado federal pelo PTB, COM o apoio dos comunistas e do movimento da "Panela Vazia" - foi o segundo deputado mais votado de sua bancada -,
e retornou com dona Nayde para o Rio de Janeiro, onde funcionava a Câmara Federal.
Em 1955, Ruth deixou a Secretaria do Trabalho e passou a dar aulas em Sorocaba, duas vezes por semana, na Faculdade Municipal de Filosofia, Ciências e Letras - antropologia,
etnografia geral e do Brasil. Levantavam-se muito cedo, ela organizava a casa e Fernando Henrique a levava de carro até a avenida Rebouças, onde às 6h30 passava
o ônibus da Viação Cometa rumo a Sorocaba. No ano seguinte, mais um emprego, o de professora de sociologia educacional do curso de formação de desenho na Fundação
Escola de Comércio Álvares Penteado, FECAP, no largo de São Francisco. Regina Meyer, uma de suas amigas mais chegadas, colaboradora em projetos que se expandiram
pelo país, confessou: "Sempre imaginei que minha mãe, da mesma geração que a Ruth, fosse uma trabalhadora excepcional, como todas as mulheres de sua época e idade.
Até que conheci Ruth e me assombrei com o tanto que ela trabalhava. Como organizava a vida em família, a dona de casa, a professora preparando aulas, as viagens,
a orientadora de teses, a leitora, a pesquisadora, a formadora de alunos, a apaixonada por cinema e teatro"." José Gregori certo dia procurou Fernando Henrique Cardoso,
pois precisava da assinatura dele num manifesto pela Reforma Agrária. Eram tempos em que os manifestos pipocavam de todos os lados, sobre todos os assuntos, com
todo tipo de reivindicações. FHC recebeu-o, assinou, conversaram um pouco, e, ao ver que Gregori se despedia, reteve-o: "Vamos ver se você tem sorte. Espere um pouco,
Ruth deve estar chegando, foi dar aula. Tenho certeza de que ela gostaria também de assinar". Gregori estava com pressa, ainda tinha uma via-sacra para colher assinaturas,
mas ficou na expectativa. "Tive uma curiosidade enorme em conhecer uma mulher que trabalhava à noite, dirigindo o próprio carro, era uma coisa completamente inusitada
em nossa geração, com mulheres casadas há dois, três ou mais anos, em casa cuidando dos filhos. Não era normal aquele trabalho, ainda mais noturno. No entanto, ela
demorou, Fernando Henrique se desculpou: 'Em geral ela vem mais cedo, nem sempre há a última aula, vai ver hoje teve. Vai demorar muito!'. Ainda por cima ia demorar,
chegaria a que horas? Foi um momento incrível, em que tive a nítida percepção de que as coisas estavam mudando, e muito, e aquela era uma geração pioneira."
DOIS MOVIMENTOS CULTURAIS estavam pondo em xeque e em choque os valores tradicionais da sociedade. Na Inglaterra, o teatrólogo John Osborne, com a peça Look back
in anger (Olhe para trás com raiva) estava se opondo ao establishrnent inglês, contestando a monarquia e propondo aos jovens que se tornassem irados contra o sistema.
Não por acaso, logo depois surgiriam os Beatles. Nos Estados Unidos, em 1954, Aldous Huxley provocou uma subversão com o livro As portas da percepção, narrando suas
experiências com a mescalina, droga indígena destinada a expandir a mente. Huxley foi seguido por Timothy Leary com o LSD. Simultaneamente aconteceu o despertar
da Geração Beat nos Estados Unidos por meio de Allen Ginsberg, cujo poema "Howl", de 1956, rachou com os valores americanos (e mundiais), seguido por Jack Kerouac,
com seu romance On the road, de 1957, que rapidamente se transformou numa bíblia, explodiu as mentes - todo jovem quis meter o pé na estrada e mudar o mundo. A Geração
Beat ficou conhecida no Brasil por meio do caderno de variedades do Jornal do Brasil, em traduções de Nelson Coelho. On the road foi lido no Brasil, naqueles anos,
numa tradução argentina feita pela Sudarnericana. Somente em 1984 teríamos uma tradução em português feita por Eduardo Bueno. Os novos ídolos eram os da contracultura.
Um vulcão em erupção chocou os americanos: Elvis Presley, com roupas brilhantes e um rebolado indecente (para a velha geração), arrebatou os adolescentes do mundo.
O rock entrou com som e fúria. Elvis cantava, e nós também, "Don't be cruel", "Hound dog", "All shook up, e nada mais seria o mesmo. Uma filha da alta burguesia
francesa ficou inteiramente nua num filme chamado E Deus criou a mulher, e um escândalo de proporções mundiais (incompreensível hoje) provocou um tsunami. Brigitte
Bardot ficou ligada à liberação sexual da mulher. Os anos 1950 queriam sair do sufoco.

NESSE MEIO-TEMPO, EM 1957, Egon Schaden fez um convite a Ruth e a Eunice Ribeiro Durham para serem assistentes voluntárias na cátedra de antropologia. Ele a tinha
assumido em 1950 e a fortaleceu institucional mente. Neto de alemães de Santa Catarina, formou-se na própria USP, onde
teve Lévi-Strauss como um de seus professores. A cátedra significava apenas Schaden e Gioconda Mussolini. Não havia a possibilidade de contratarem professores. Foi
quando se instituiu a "assistência voluntária'', para a qual não havia salários. Se, por um lado, as duas mulheres trabalhariam por três anos sem nada receber, por
outro havia a experiência a ser acumulada e a riqueza do aprendizado junto a Gioconda Mussolini, mestra dotada de impecável capacidade e rigor na pesquisa empírica"
Foram três anos ricos para Ruth e Eunice. As duas mulheres foram contemporâneas, ainda que Ruth estivesse dois anos à frente de Eunice. Pertenciam a grupos diferentes,
circulavam em rotas que nem sempre se cruzavam. Eunice acentua que era "curioso, Ruth frequentava muitos ambientes, era, digamos, eclética. Naquela época vivíamos
em turmas, a da Ruth, Fernando e Giannotti foi das mais brilhantes que já passou pela faculdade. Comecei convidada como voluntária, fui para os Estados Unidos por
um ano, e, quando voltei, lá estava também a Ruth como voluntária. Trabalhávamos juntas, Schaden dava as aulas, nós fazíamos os seminários, dividíamos as turmas,
que eram pequenas. Depois começamos a dar aulas juntas. Aprendemos muito, aprende-se mais dando aulas do que fazendo pesquisas. Com a Ruth praticávamos uma espécie
de militância didática, éramos fanáticas por ensino, queríamos continuamente preparar o melhor curso, o melhor seminário, discutíamos muito, porque os alunos não
aprendiam isto, não aprendiam aquilo. Até o fim de nossa proximidade, até o momento em que ela saiu da faculdade, mantivemos essa questão da discussão e da discussão
teórica. Ficamos na antropologia por muitos anos"" Por dois anos, entre 1958 e 1960, Ruth foi trabalhar no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, CRPE, com Fernando
de Azevedo. Nesse período, 1958, em pleno governo Juscelino Kubitscheck, o professor José Arthur Giannotti costumava visitar o casal Ruth e Fernando Henrique todos
os sábados. Ele tinha voltado da França com uma enorme bibliografia que, revelou, "fazia a crítica da burocracia soviética". A ideia dele era formar um grupo para
estudar esses textos, porém FHC mudou o ângulo, acentuando que na verdade ninguém nunca tinha lido Marx direito e era preciso, pri-
meiro, ir às fontes. Giannotti, homem em permanente turbilhão de pensamento, concordou, montaram um grupo para fazer a "leitura sistemática de O capital... Eram
sessões divertidas, lia-se, discutia-se, jantava-se bem e voltava-se à discussão para pensar o Brasil, o que estava acontecendo, como seria possível engatar o desenvolvimento""
O Seminário Marx, como ficou conhecido, tornou-se célebre e comentado - o que despertou ciúmes em parte da comunidade acadêmica. Dele participaram inicialmente jovens
assistentes como Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Giannotti, Paul Singer, Octavio Ianni, Bento Prado Júnior, Fernando Novais, aos quais foram se juntando Ruy Fausto,
Juarez Brandão Lopes, Leôncio Martins Rodrigues, Sebastião Advíncula da Cunha, Francisco Weffort, Roberto Schwarz, Michael Lôwy, Paulo Alves Pinto. Eram filósofos,
cientistas sociais, historiadores que decidiram ler O capital e Contribuição à crítica da Economia Política,' 5 "possivelmente cansados de conhecer Marx por ouvir
dizer e certamente empenhados em demonstrar a respeitabilidade cientifica da dialética, como exigiam os novos padrões acadêmicos". A cada quinzena liam um capítulo:
e discutiam parágrafo a parágrafo, linha a linha, palavra a palavra. A briga era teórica, muito acadêmica, brigava-se à morte por assuntos abstratos, nada a ver
com a vida política, queríamos entender o mundo." Os encontros eram em casas variadas, muitos aconteceram no apartamento da rua São Vicente de Paula, quando Ruth
corria da mesa de estudos e debates para a cozinha, primorosa em lanches ou quitutes. O grupo estudou junto por quatro anos e, mais tarde, ainda se debruçou sobre
Keynes e Max Weber. Depois que o general Leônidas Cardoso se mudou para o Rio de Janeiro, sua casa na rua Nebraska, no Brooklin, ficou vazia por um tempo, até que
Ruth e Fernando decidiram se mudar para lá. Isso significava uma economia no aluguel e muito mais conforto.

TUDO PODE, DESDE QUE HAJA INFORMAÇÃO

No FINAL DA DÉCADA, em 1959, Ruth tornou-se mestre em sociologia com a dissertação O papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses. Eunice Durham estava
estudando o imigrante italiano e Egon Schaden disse a Ruth para pesquisar o imigrante japonês. Ela tentou convencê-lo de que não era a pessoa indicada, porque deveria
ser alguém que falasse correntemente a língua, ficava difícil entrevistar imigrantes muito velhos que nem sequer falavam o português. Quanto a Eunice, os italianos
ou já falavam português ou havia mais facilidade de interlocução. Egon foi categórico: "Então, Ruth, arranje uma assistente que fale japonês". Eunice Ribeiro Durham,
hoje, passados cinquenta anos, afirma: "Sei que a Ruth jamais gostou dessa pesquisa".'

QUANDO 1960 COMEÇOU, a segunda filha de Ruth e Fernando Henrique, Luciana, nascida em 20 de fevereiro de 1958, já estava com dois anos. Aliás, quando Luciana estava
para nascer, Ruth contou a Antonio Candido que estava indecisa, sem saber se a batizava Luciana, nome de que gostava muito, ou outro, de uma longa lista. Candido
comentou: "Se eu tivesse um filho, escolheria Luciano. Filha então.., é um belo nome". No dia 26 de janeiro daquele 1960 nasceu Beatriz. Quase no aniversário de
São Paulo. A casa da rua Nebraska era grande e confortável, com uma pequena piscina no quintal. Um dos vizinhos era Florestan Fernandes, que tinha um filho e uma
filha com as mesmas idades de Paulo Henrique e Luciana. Fernando Henrique tinha telefone, e não raras vezes abriu a porta para o vizinho fazer
as suas chamadas. Os interurbanos demoravam horas para serem completados. Um frequentador assíduo da casa era Elias Chaves Neto, ensaísta combativo, diretor da Revista
Brasiliense, editada por Caio Prado Júnior. Chaves ia até lá de bicicleta, atravessando a cidade.= A lembrança de Paulo Henrique sobre essa casa é a de um lugar
cheio de crianças tomando lanche, correndo e brincando no jardim, enquanto a mãe fazia bolos. Ela era catalisadora, estava sempre juntando gente. A piscina, que
eles chamavam 'de pobre, era de tijolos e cimento, do chão para cima, com escadinha para subir e mergulhar. Ruth sempre vigilante, olhando a criançada. "Eu fugia
de casa, descia até a Hípica e roubava bambus para fazer tacos e jogar. Uma única vez eu a vi realmente brava, fora de si. Foi no dia em que sumi, caminhando até
o rio Pinheiros, voltei tarde e imundo, além de ser uma coisa perigosa. Ela perdeu a paciência, me deu três palmadas. Nunca mais me bateu. Não se pode dizer que
era brava, megera. Era justa, mas eu a fazia sair do sério às vezes. Com ideias firmes, defendia seus pontos de vista, eu sempre brincava, 'a senhora é protestante
e comunista'. Ela gostava das coisas boas da vida, mas possuía um sentimento ácido em relação a grã-finagens' e vaidades vazias. Era o lado Araraquara que ela insistia
em manter, aliás manteve a vida inteira. Não esquecer também que, por anos, 'eu me achei'. Na juventude, era de pegar o carro e correr, podia ser definido como um
playboyzinho. Isso a irritava, mamãe tinha horror a esse tipo de gente, achava que era uma coisa que não devíamos ser. À medida que cresci, tive horário para voltar,
depois ela me ensinou o princípio que transmiti às minhas filhas. Dizia: Tudo pode, desde que haja informação'. Então, era só dizer: hoje vou chegar tarde, hoje
não vou chegar. Uma vez fui parar no Juizado de Menores, os dois ficaram loucos comigo, mamãe muito mais. Na verdade, era ela quem tomava conta, papai só entrava
em cena por conta dela, ficava no mundo dele, não queria problemas, esse negócio de filhos é um incômodo. O criar era com ela. A frase que todo menino ouve, 'espere
até seu pai chegar', ouvi poucas vezes, ela resolvia logo, não era de delegar. O que víamos em casa era uma mulher sempre tentando passar uma visão, procurando ensinar,
uma professora", confessa Paulo Henrique.3 Havia uma combinação entre os casais Florestan Fernan-
des e Fernando Henrique. Cada dia era um que levava as crianças à escola Chapeuzinho Vermelho. Bia andava pela casa o dia inteiro carregando uma lancheira e dizendo
"quero ir para a escola". Não dava sossego. Tanto reivindicou que foi, aos dois anos e meio.

NAS FÉRIAS, PAULO, LUCIANA E BIA eram mandados para os avós maternos em Araraquara ou, eventualmente, para os paternos no Rio de Janeiro. Eles eram embarcados no
vagão Pullman da Paulista, sentindo-se importantes, e eram esperados por José na estação de Araraquara. Bia sofria uma angústia terrível na hora do embarque, porque
Ruth entrava no vagão para acomodar as coisas e a menina tinha medo de que o trem partisse e a mãe não conseguisse descer. Mariquita e José já moravam na avenida
Quinze, foi a última casa que tiveram na vida. Mandaram construir, quase à beira de um riacho, onde Paulo ficava tentando pescar, com o avô do lado, e Bia aproveitava
para nadar. Até a adolescência Bia frequentou essa casa, que, para todos, era imensa. Tinha um jardim e a meninada adorava o banho de esguicho. Uma vez, Bia precisou
fazer um trabalho sobre uma planta e Mariquita foi a fonte, afinal, era sua especialidade. Era uma planta estranha, a pessoa rasgava a folha e ela se colava sozinha,
ou se "costurava", como a avó dizia. Essa casa ainda existe, tem a soleira das portas e as escadas em mármore de Carrara, comprado quando da demolição da igreja
matriz. Os avós levavam as crianças à Doceria do Zoega ou à Sorveteria do Uesato, na avenida São Paulo, fechada recentemente. Às filhas de Ruth juntavam-se Valéria
e Adriana, filhas de Dora Medina, uma quase vizinha que morava pouco acima de Mariquita na avenida Quinze, para uma sessão de cinema infantil no Cine Capri, todos
os domingos, às dez da manhã. A empregada de Dora deixava as meninas, depois ia buscar. Interior ainda era tranquilo. Todas as crianças ainda se juntavam no quintal
e no enorme porão da casa de Rafael NIedina, um porão que se tornava castelo do bem e do ma1.5 Paulo Henrique adorava o jipão do avô José. "Nele andávamos pela cidade
e visitávamos fazendas das vizinhanças. Vovô gostava de dormir até
tarde. Todos em casa gostamos. Acordava, tomava um cafezinho, ficava na cama. Sistemático, obsessivo - qualidades que herdei, sou igual -, tinha tudo marcado, hora
de amolar a navalha no couro, de fazer a barba, do banho que durava cinquenta minutos, de limpar o revólver, almoçar. O jantar era maluco: em uma cidade em que chegávamos
aos 40 °C, uma sopa quentíssima, e a sobremesa, invariável, era um prato de leite com ameixas, para regular o intestino. Adorávamos as férias na cidade." A grande
amiga era a Delfa, cozinheira fantástica, uma negra, mãe de santo. "Parecida com Milton Nascimento", lembra-se Bia. Quanto a Paulo, Delfa foi a ligação dele com
o povo, seus amigos eram sobrinhos dela e o levavam aos terreiros. Boa pessoa, boa cozinheira, escondia garrafas de cachaça pela casa, Mariquita descobria e quebrava.
A volta era uma complicação, Paulo Henrique entrava no trem e Mariquita entregava um farnel com empadinhas e croquetes. "Os melhores do mundo. Só que eu, metido
a besta, queria ir ao carro-restaurante."

O BRASIL TINHA VINDO EM ritmo acelerado com JK, que criou Brasília e mudou a capital do país para o interior. A industrialização tinha sido a meta maior, fabricamos
os primeiros carros brasileiros. Foi o famoso "50 anos em 5". Não se sabe ainda se para o bem, se para o mal. Inflação e crise financeira. Fidel Castro tomou o
poder em Cuba, para gáudio da América Latina, que anteviu a possibilidade de 'formar um continente socialista. O Cinema Novo era a revolução nas artes, uma câmera
na mão, uma ideia na cabeça. E salas vazias, completavam os mais críticos. Já havia um teatro mergulhado no social e no político, o Arena seguido pelo Oficina. A
Nouvelle Vague ensinou novas formas de fazer filmes baratos e calcados na realidade, anti-Hollywood. Fellini, com A doce vida, espantou o mundo, mostrando que coisas
tenebrosas aconteciam na burguesia, na aristocracia. Ele anteviu as drogas em alta escala na sociedade, os travestis, os gays, a corrupção, a mídia exasperada, as
celebridades vazias. Jânio Quadros, um político demagogo, à base de uma vassoura e caspas nos ombros, passou de vereador a prefeito, a governador, e seria
eleito presidente da República. Mal se podia prever um terremoto no país. Na Maria Antonia, agitação. Alunos queriam mais professores e mais verbas. Houve uma greve,
a Faculdade se agitou, foi ocupada pelos alunos.

AGOSTO DE 1960. JEAN-PAUL SARTRE deixou a França e foi observar o fenômeno Fidel Castro e sua revolução, um impacto no mundo. Sobre essa viagem escreveu um best-seller,
Furacão sobre Cuba. Quando soube que Sartre iria a Cuba, o estudante Luiz Meyer, presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, telegrafou ao filósofo
convidando-o para que viesse a São Paulo. Meyer estava fissurado, como todo jovem antenado com o mundo, pela revolução cubana, queria ir para Cuba como médico. Toda
uma geração quis sair correndo para Havana naquele momento, era algo novo, excitante, uma ilusão ideológica. De qualquer modo, Sartre viria também ao Brasil para
o Primeiro Congresso de Crítica e História Literária do Recife. Pretendia ficar uns meses afastado da França, por motivos ideológico-políticos. Regina Meyer, mulher
de Luiz, conta: 'Não é que o homem aceitou? Tenho até hoje o telegrama que ele enviou. Nesse momento, Luiz, que era amigo de infância de Roberto Schwarz e se relacionava
com José Arthur Giannotti, se aproximou de Bento Prado Júnior, Renina Katz, Fernando Pedreira, Ruth e Fernando Henrique Cardoso. Ruth tinha um papel 'maternal'
naquele grupo e, embora todos estivessem no mesmo patamar, o casal se destacava. Ruth era a mulher-modelo, ela tinha essa coisa brasileira da mulher que sabe fazer
comida, arrumar casa, criar filhos, preparar e dar aulas, fazer pesquisas, teses, palestras, ir a cinema e teatro, divertir-se". Sartre esteve no Recife, foi à Bahia,
ao Rio de Janeiro, e chegou a São Paulo. Fez palestras, deu autógrafos na Livraria Francesa, reuniu-se com líderes sindicais na redação do jornal de centro-esquerda
Última Hora, na época o porta-voz do operariado, dos sindicatos. Entrou no circuito o professor Fausto Castilho, da Faculdade de Filosofia, Ciências de Letras de
Araraquara, uma faculdade muito nova que tinha enviado ao Recife, por
meio do professor Adolfo Casais Monteiro, uma carta formulando uma questão em torno da filosofia marxista e a ideologia existencialista. Sartre respondeu que era
a pergunta mais difícil que lhe tinham feito no Brasil e que poderia ser respondida somente por meio de uma conferência. Castilho não perdeu a deixa, convidou-o
para ir a Araraquara, e ele aceitou. O francês, apesar da oposição de Simone de Beauvoir e do escritor Jorge Amado, e dos ciúmes provocados no pessoal da USP como,
ir a uma faculdade tão nova, com apenas três anos, sem tradição? -, acabou fazendo um desvio em seu roteiro e foi a Araraquara, numa Kombi fechada e sem ar-condicionado,
no dia 4 de setembro de 1960. Era um domingo de verão causticante, marcado por outra festa - o jogo entre o Santos de Pelé e a Ferroviária, então um dos times poderosos
do interior.' A cidade ficou em polvorosa, do ponto de vista cultural. Enquanto a Igreja condenou veemente a presença do "comunista e existencialista", a UEE, União
Estadual dos Estudantes, mobilizou-se velozmente e convocou seus filiados caravanas partiram de cidades vizinhas como São Carlos, Matão, Catanduva, São José do
Rio Preto e Ribeirão Preto - e Araraquara encheu-se de jovens que ocuparam totalmente o Teatro Municipal com faixas de apoio a Cuba e à revolução socialista. Fidel
foi um dos ícones daquela geração. Da turma da Maria Antonia chegou um grupo compacto, comissão de frente: João Cruz Costa, Ruth e Fernando Henrique, Antonio Candido
e Gilda de Mello e Souza (ambos estavam dando aulas em Assis), Bento Prado Júnior, Michel Debrun, Gilles-Gaston Granger, que lá se juntaram a José Celso Martinez
Corrêa, Jorge Nagle, Nilo Scalzo, Dante e Minam Moreira Leite, José Aluysio Reis de Andrade, Dante Tringalli, Alain Touraine e sua mulher, a chilena Adriana, e ainda
Albertina de Oliveira Costa, então aluna de colegial. No Municipal, Sartre falou aos jovens sobre Cuba. Tinham prometido que trabalhadores rurais estariam presentes,
entre eles Jofre, um líder carismático de Santa Fé do Sul, espécie de Francisco Julião da alta araraquarense. Havia várias faixas de algodãozinho: "Posseiros de
Santa Fé do Sul saúdam Jean-Paul Sartre". Não apareceu um único posseiro. Sempre que se tratava de jovens, Ruth estava presente; ela conseguiu seu lugar
numa plateia em que não cabia mosca e debaixo de um calor tenebroso. Mal Sartre iniciou, verificou-se um descontentamento com a tradução, e chamaram Fernando Henrique
ao palco. Ele aceitou com uma condição: "Só se o Antonio Candido for comigo". Candido sentou-se ao lado de Sartre e reiniciaram fala e tradução. "Mas não consegui,
era muito difícil, calei-me logo; Fernando continuou aos tropeções, Sartre falava rápido, com um turbilhão de ideias. Não deu muito certo, mas estivemos na mesma
mesa", lembra-se Antonio Candido. Ruth, que nunca perdia a ocasião para a ironia e o bom humor, ria muito e perguntava: "Podem me sintetizar as falas do mestre...?"
.'2 De qualquer maneira, foi um dia histórico para a cidade e para a Faculdade.' 3 Terminada a fala no teatro, Sartre, Simone, Jorge Amado e um grupo de professores
subiram para a Faculdade de Filosofia, antigo Instituto de Educação Bento de Abreu, a cem metros dali. Mesmo lugar onde, quinze anos antes, Ruth tinha se formado
no Ginásio. Foi quando ele respondeu à pergunta de Fausto Castilho.

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA Iv COMO complicar uma simples sopa de mandioquinha

Na volta a São Paulo, ficou famoso o jantar que Ruth deu ao casal francês. Afinal, Simone era um ícone das feministas depois de seus livros Memórias de uma moça
bem-comportada e O segundo sexo, sucesso de vendas no Brasil e carregado debaixo do braço por toda a geração Maria Antonia e Cinemateca, ou por todas aquelas que
se diziam jeune filie rangée, um pouco pernosticamente. "Nós, mulheres, estávamos excitadíssimas com a presença de Simone, afinal O segundo sexo era a bíblia da
nossa geração, tínhamos certeza de que ela vinha pontificar sobre o feminismo. Assim, lá em casa, preparei a sopa de mandioquinha, um prato muito apreciado por estrangeiros.
Toda orgulhosa, trouxe a sopa para a mesa, mas a Simone começou: - O que é isso? Fica difícil explicar a mandioquinha, porém tentei. E ela:
Tem cebola?

- Tem.

- Ele não pode comer. Tem não sei o quê? - Tem.

- Ele não pode comer. Uma coisa de mãe e filho, irritante. Uma chata! Onde estava a mulher que defendia os direitos da mulher? Era uma submissa? Não estava entendendo.
Sartre, relaxado, foi comendo sem se incomodar, apesar da vigilância. Bem, a sopa não fez sucesso. Veio a sobremesa, goiabada com queijo, e vieram as perguntas,
a implicância. Ela comeu por delicadeza, via-se que não gostava. Mal acabou, o Fernando Henrique, por maldade, colocou nova porção, dizendo: Vi que a senhora gostou,
aceite mais um pouco'. Simone foi a grande decepção para nós, ela não se interessava por nada", concluiu, entre risos, Ruth Cardoso"! A antropóloga Teresa Caldeira
foi aluna de Ruth na USP, tornou-se amiga e, mais do que isso, afilhada de casamento. Por causa desse jantar, Teresa confessa que teve uma pendenga com Ruth. "Essa
história ficou famosa e me incomodava. Porque eu gostava muito da Simone de Beauvoir, tinha uma foto dela emoldurada no meu escritório. Ruth olhava e dizia: 'Você
está enganada, Simone de Beauvoir não era tudo isso'. Eu não me conformava: Ruth, mas O segundo sexo foi um dos livros mais importantes da minha vida, li ainda menina,
me fez a cabeça'. É que por trás daquele episódio havia um significado maior para Ruth, que ficou ofendida, sim. A questão era outra, não o gostar ou não da sopa.
O que pegou Ruth foi ela dizer para o Sartre: 'Não precisa se servir, você não vai gostar'. Ela decidia por ele, determinava do que não ia gostar, e pronto. Categórica,
Ruth acentuava que esse não é papel que uma mulher deva fazer, o de guardiã, guarda-costas do seu marido. Ela exemplificava: 'Imagine se vou ficar dizendo para o
Fernando Henrique o que ele pode e não pode comer. Você vê que o Sartre era famoso, e muito, tinha sua personalidade e jeito de ser, e a Simone ali, decidindo por
ele, protegendo, fazendo um papel desagradável para que ele pudesse posar de bom'. Isso que a irritava, porque Simone fazia o
papel desagradável, de chata, enquanto isso, ele ficava de charmoso. Então, era essa a interpretação, não era só a mandioquinha, uma questão menor. Independentemente
disso, é inegável que ela respeitava a Simone, conhecia o papel importante dela no feminismo."

O GOLPE DE 1964 E O EXÍLIO

No FINAL DE 1961, JÂNIO QUADROS já tinha renunciado à Presidência, Jango havia assumido e o parlamentarismo estava instalado. Deixando para trás um país inquieto,
Ruth e Fernando Henrique, ao lado de Lúcia e Bento Prado Júnior, partiram para a França. No Brasil, as crianças ficaram em São Paulo, com d. Mariquita. Em Paris,
todos se instalaram na Cidade Universitária - Ruth e Fernando Henrique na Maison Internationale, no mesmo andar em que estava alojado Tristão de Athayde, e Lúcia
e Bento na Maison du Brésil. Viviam uma vida boa, ainda que apertada, tudo medido, as grandes preocupações eram de cunho acadêmico. Só não suportavam o restaurantezinho
que havia próximo à Cité Universitaire. Barato, cinco francos a refeição, mas péssimo. FHC tinha um carro, e assim decidiram fazer um tour por Itália, Áustria e
Alemanha. Foram direto a Florença, onde José Arthur Giannotti estava à espera deles ele tinha insistido nessa viagem. Conhecedor de arte, queria ciceronear o grupo.
Nas mãos, o roteiro cronometrado do que iriam conhecer. A promessa era mostrar tudo. "Mas foi engraçado," revela Giannotti, "eles levantavam tarde, andavam um pouco,
logo queriam almoçar, parávamos, retomávamos, eles não tinham pressa. Ruth às vezes se encantava com alguma coisa, demorava." Circularam pela Toscana. De repente,
Bento Prado Júnior e Fernando Henrique diziam: "Ah, sabemos que em tal lugar tem um Piero Della Francesca e queremos ver". Giannotti ficava perplexo, não havia nenhum
Piero Della Francesca naquele lugar. "Ele não percebia que estávamos sacaneando", diz Fernando Henrique, "inventávamos, repetíamos informações lidas nos guias para
mostrar que também
sabíamos. Depois, pedíamos desculpas, alegando que tinha sido um erro de cálculo, de século e de cidade." Giannotti sorri ante as lembranças e confessa: "Eram golpes
de morte em meu ego". Assim, divertindo-se, viajaram gozando férias. Com FHC sempre "fominha" pela direção, não deixava que os outros ocupassem seu posto de condutor.
O Natal foi passado em Roma, depois Ruth voltou a Paris, onde frequentou o seminário de Claude Lévi-Strauss na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Lévi-Strauss,
naquele momento o mais novo membro do Collège de France, estava em evidência após a publicação de Antropologia estrutural, seguida de O toteísmo hoje e O pensamento
selvagem. As teorias estruturalistas explodiam nos meios acadêmicos. "Ruth", acentua seu ex-orientando Gilberto Velho, "foi uma leitora sistemática e atenta da obra
de Lévi-Strauss."

QUANDO ELA VOLTOU DA FRANÇA, estava entusiasmada. Ao reencontrar Eunice Durham, entregou-lhe o livro O toteísmo hoje: "Olha que maravilha, você precisa ler!". Entusiasmadas
as duas, introduziram o estruturalismo nos cursos. "A cada viagem que fazia, Ruth captava as coisas, comprava livros, vinha com novidades, levantava questões, problemas
e dúvidas com relação a toda a bibliografia", revela Eunice. "Éramos modernas naquele momento, estávamos a par do que se passava no mundo." Ao longo de sua vida,
Ruth foi assim, segundo seus alunos e seus orientandos. Eunice criou uma palavra: "captativa". Era a qualidade que Ruth tinha de absorver, assimilar novos assuntos,
tendências, informações, e procurar toda a bibliografia existente para trazer ao Brasil. Para aceitar ou recusar, de qualquer maneira, era o que havia de novo lá
fora. Em 1962, a estudante Albertina de Oliveira Costa, então com dezenove anos, foi convidada a integrar a equipe de pesquisadoras de Ruth, que voltava ao tema
da imigração japonesa, com vistas, agora, ao doutorado. Além dela, havia Mansa Todescan, Eunice Nishikawa e Renata Nutzler. Cada pesquisadora era acompanhada por
uma nissei encarregada de traduzir os
diálogos. No início das reuniões do grupo, Ruth, que tinha dezenas de potinhos japoneses lindos, oferecia chá e com ele começavam os trabalhos. Com sua perene preocupação
com bibliografias exatas e esclarecedoras, e de modo a introduzir suas assistentes na cultura e na história japonesas, Ruth recomendou (recomendar era eufemismo,
queria dizer "leiam porque é essencial") que lessem O crisântemo e a espada, de Ruth Benedict, antropóloga de grande prestígio formada pela Universidade Columbia,
discípula de Franz Boas, considerado o pai da antropologia americana. Poucos estudos, explicava Ruth, conseguiram penetrar tão fundo e explicar tanto as peculiaridades
ideológica e cultural do universo nipônico, por meio de suas maneiras e costumes cotidianos. Clássico da antropologia. Foi um período em que não havia ainda essa
valorização da cultura japonesa no Brasil. Essa busca era um passo insólito de Ruth dentro da universidade, onde os projetos ditos maiores e de interesse mais amplo
eram os mitos da época, luta de classes, marxismo, revolução etc. Para Albertina, "o livro da Benedict é maravilhoso e só ele já valeu. Sempre foi agradável trabalhar
com Ruth, ela prestava atenção em todos, fazia com que as pessoas se sentissem confortáveis. Mulher que frequentava vários círculos, sua casa era movimentada, e
ela discorria com naturalidade da antropologia à sociologia à maneira de fazer cuscuz, ou onde se comprava um bom abacaxi e como saber se a fruta era doce, papo
que muitas de nós achávamos abobrinha total". Albertina acompanhou, às vezes mais próxima, outras mais distante, a carreira de Ruth ao longo dos anos, até ver consolidada,
mais tarde, "sua reputação de mulher ponderada, tanto que houve época em que sempre era chamada como mediadora quando surgiam problemas no Departamento. Era normal
vê-la numa banca de tese. Quando estava numa banca, ela lia tudo direitinho, era gentil nas perguntas, não necessitava se exibir com agressividade, como é costume.
Ela reconhecia: 'Tenho jeito para orientar'.' E tinha mesmo um modo de tirar as coisas boas das pessoas. Com o tempo ficaram famosas as 'meninas da Ruth, ou seja,
alunas que ela orientou. "Aqui entra outra questão, a corrente que julgava que Ruth deixava em segundo plano os projetos acadêmicos pessoais, porque em primeiro
lugar vinha o Fernando Henrique, que ele merecia todas as atenções, e ela devia
ser também esposa perfeita, mãe, dona de casa. Por outro lado, o que não se percebia era a qualidade incrível que tinha de fazer coisas e dar a impressão de que
não tinha tido trabalho algum. Chegava com a aula preparada, porém não mostrava o arcabouço, o que tinha custado em tempo, pesquisa. Ela e as fichinhas. Apanhava
uma, nela havia apenas quatro linhas, e podia falar horas. Na época, Ruth achava que tinha de pôr a mão na massa, e, se recebia pessoas, devia ir para a cozinha
e fazer, até descobrir que, se encomendasse e desse o seu toque, era a mesma coisa. Ela sabia onde era o sapateiro, o alfaiate, a costureira, que tanto fazia como
consertava, ou quem vendia a massa, o frango, a boa carne. Não eram comuns como hoje tais serviços. A palavra delivery só entraria no cotidiano mais de 35 anos depois.
Não me esqueço de quanto ela era irônica e mordaz, certeira na pontaria, muitas vezes com relação a outros grupos. Ruth era igualmente uma espécie de Nossa Senhora
Medianeira, pois as pessoas, quando queriam alguma coisa do Fernando Henrique, iam direto nela para que fizesse a intermediação. Ele tinha sua corte, que inclusive
o cercava e 'protegia', então as pessoas precisavam encontrar um meio de se aproximar. Por outro lado, Ruth era a única que sabia e podia falar das limitações do
marido. Era comum numa conversa, quando a pessoa fazia uma citação dele, ou uma opinião, ela entrava com `mas você sabe como é o Fernando Henrique...', deixando
o resto para a imaginação." O amigo Leôncio Martins Rodrigues lembra que era dela o papel de contrabalançar algumas coisas do Fernando Henrique, que, por sua vez,
gostava de provocar. Quando surgiam certas afirmações, exageros, ela dava um corte: "Para, Fernando; que coisa é essa?". Outras vezes, dava uma olhada fulminante
e exclamava, alongando o nome no sotaque araraquarense: "Fernando Henrriiiique...". "Era uma espécie de jogo, ela sabia que era exagero, ele levava na brincadeira.
Outro detalhe, para se ter ideia da personalidade dela. Todos os professores usavam um jaleco branco para dar aulas, inclusive o Florestan Fernandes e o Octavio
Ianni. Dava a eles um ar professoral, digamos. Ruth, não. jamais usou o jaleco, dava aulas com seus vestidos e sentava-se muito descontraidamente", finaliza Albertina.
EM JANEIRO DE 1963, Jango Goulart convocou um plebiscito que decidiu pelo fim do sistema parlamentarista. O presidente anunciou o seu Programa de Reformas de Base,
que incluía divisão dos latifúndios e reforma agrária, reforma eleitoral, reforma universitária, voto aos analfabetos, entre outros pontos. Com uma política dita
nacionalista, vieram leis que limitaram a remessa de lucros e pregaram o monopólio estatal do petróleo. O país se moveu inquieto. Um comício monstro no Rio de Janeiro,
no dia
13 de março de 1964, foi o estopim. Jango nacionalizou as refinarias particulares de petróleo, desapropriou terras e anunciou reformas urbanas. A classe média e
a burguesia tremeram. No interior das Forças Armadas já vinha crescendo um movimento conspiratório, a Igreja se levantou e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade
mobilizou em São Paulo 500 mil pessoas. O país estava dividido, as forças da esquerda assegurando que possuíam um esquema de resistência. No dia 31 de março o Exército
depôs João Goulart e se instalou no poder. Houve focos isolados de resistência, os sindicatos não ergueram uma palha. A ditadura militar substituiu a democracia.
O general Castello Branco foi o primeiro presidente da nova ordem. Liberdades civis canceladas, greves proibidas, sindicatos dissolvidos, milhares de prisões, inquéritos
militares contra oposicionistas. Uma era opressiva tinha se iniciado.
numa esquina, antes que Fernando Henrique chegasse à Faculdade, avisaram-no para que desaparecesse, estava sendo esperado, ia ser preso. Na época, ele era membro
do Conselho Universitário, um dos criadores da FAPESP e também do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, Cesit, ligado a Florestan Fernandes. Tinha participado
anos antes de um movimento visando modernizar a universidade, criar a carreira de magistério e valorizar o tempo integral, o que tinha sido visto por alguns setores
como um desafio da esquerda. Assim, disse ele, "fui denunciado pela direita interna à universidade como comunista. Não a direita política,
nem a direita golpista, mas a direita acadêmica, que usou o golpe militar para ampliar seu poder" . Alertado, Fernando Henrique foi para a casa de uma amiga, Célia
Calvão, também professora da Faculdade, depois seguiu para o apartamento de um casal belga, em seguida refugiou-se na casa do cineasta Sérgio uniz. Nesse meio-tempo,
a polícia tinha ido à Maria Antonia, onde quase prendeu Bento Prado Júnior confundindo-o com FHC. Pedro Paulo Poppovic, também um amigo chegado, abrigou-o em seu
sítio. No final de abril, Maurício Segall, que tinha conexões, enviou Fernando Henrique para a Argentina, instalando-o na casa de um amigo, José "Pepe" Nun, mais
tarde ministro de Kirchner. Fernando Henrique tinha ainda a ilusão de voltar e defender a tese de docência sobre os empresários brasileiros. Como nada se decidia,
ele trabalhou no Departamento de Sociologia da Universidade de Buenos Aires até receber o convite para assumir um posto na Comissão Econômica para a América Latina,
a Cepal, no Chile. No dia 12 de maio de
1964 embarcou para Santiago. Ruth Cardoso tinha entrado com um pedido de afastamento para o marido na Faculdade, porém o reitor indeferiu e Fernando Henrique perdeu
o emprego. Ela tentou um encontro com a Reitoria e recusaram-se a recebê-la. Procurou o Conselho Universitário por meio de Honório Monteiro, um araraquarense, que
era afilhado de dona Salomé, bisavó de Ruth. Honório respondeu: "Nada a fazer, a situação não tem jeito". Ela enviava cartas ao jornal O Estado de S. Paulo denunciando
os acontecimentos. Foi corajosa num momento confuso. Mas continuou trabalhando, cuidando dos filhos. E preparando-se para se mudar para o Chile. Havia mil coisas
a organizar, móveis a guardar, despachar, vender, malas a fazer, mas igualmente foi necessário encontrar quem ficasse com o cachorro Janjão, um poodle preto. Maria
da Penha aceitou ser a guardiã, mas depois o cão foi para dona Nayde. Momento traumático foi o de se desfazer da biblioteca. Os livros eram milhares, e no meio deles
havia duzentos de sociologia, postos sob custódia do casal por Antonio Candi do. Preservados, mais tarde foram devolvidos, menos alguns que Candido mandou que escolhessem
como presente. Boa parte foi para o Rio de
Janeiro, ficou com Dalva e Fernando Gasparian, amigos íntimos. Outros foram deixados com pessoas que, por sua vez, mudaram ou desapareceram na conjuntura da época.
Paulo Henrique recorda-se de uma passagem por Guarujá, antes de a família embarcar para Santiago. Como se fossem curtas férias, com muita praia e sorvete. Não dava
para sentir a aflição de Ruth, cuja vida estava de pernas para o ar. Ela conseguia não passar a ansiedade para as crianças. Mas vivia um drama com um problema na
Faculdade. Não podia perder o emprego e solicitou afastamento, porém o professor Egon Schaden, titular da cátedra, negou peremptoriamente, num episódio que provocou
mal-estar entre membros da comunidade acadêmica. Se ela fosse embora, perderia o lugar. Ruth lutou, mas a negativa continuava. E ela precisava partir, levar a família
para junto do marido. Insistiu, insistiu, até que finalmente conseguiu. O novo trabalho sobre os japoneses, e que ela fazia sob orientação de Eunice Ribeiro Durham,
foi interrompido. Ruth teve de tomar decisões sobre a casa que tinham começado a construir, já nos alicerces, na rua General Euclides de Figueiredo, no bairro do
Morumbi. Compraram o terreno e encomendaram o projeto ao arguiteto Ennes Silveira de Mello, que trabalhava com Sergio Bernardes. Interrompeu-se a obra por um tempo
que não se saberia qual. Mariquita e José vieram de Araraquara para "dar uma força" e ajudar nos preparativos. Para os filhos, as lembranças daqueles meses são vagas.
Paulo Henrique, com dez anos, sabia apenas que o pai estava escondido, sem atinar com as razões. Bia era muito pequena, tinha quatro anos, não guardou nenhuma imagem
da época. Nada traumático. A não ser que, de um dia para o outro, o pai tinha sumido. Somente dois anos antes de a mãe morrer, ela sentou-se com o filho Pedro e
a mãe, pedindo que Ruth contasse tudo, falasse sobre o Chile. Uma noite, Leôncio Martins Rodrigues e sua mulher Aracy foram visitar Ruth em companhia de Cândido
Procópio Ferreira de Camargo. Fazia um frio danado, não havia lenha para a lareira, e Ruth decidiu queimar um móvel velho que não pretendia levar. Despediam-se
da casa.

CHILE, 1964. JORGE ALESSANDRI havia deixado a Presidência, assumida por Eduardo Frei. Salvador Allende saiu derrotado, mas venceria as eleições em
1970. Fernando Henrique Cardoso, naqueles poucos meses, tinha começado a arranjar as coisas em Santiago. Trabalhava na Cepal e morava numa casa com Celso Furtado,
Francisco Weffort e Wilson Cantoni. "O Chile era muito central nas áreas de economia e de sociologia. Parte da elite cultural do continente estava exilada ali. Entre
os brasileiros havia o Plínio de Arruda Sampaio, o Paulo de Tarso, o economista Jesus Soares Pereira, Vilmar Faria, Jáder de Andrade, o cineasta Leon Hirschmann,
logo chegou o José Serra, ainda um menino", define FHC. Os que estavam melhor de vida organizaram uma caixinha para ajudar os que chegavam. Quando Ruth avisou que
estavam deixando o Brasil, FHC alugou uma casa na rua Luiz Carrera, depois se mudaram para a calle Las ipas. A viagem, com a passagem pela cordilheira dos Andes,
impressionou Paulo Henrique, visão que permaneceu viva até hoje. Já Santiago se mostrou uma cidade cinza, sombria, ainda que a casa, simpática, logo tenha começado
a ficar com a cara de Ruth. O menino olhava estranhamente para os criados-mudos nas cabeceiras das camas, que não passavam dos caixotes de mudança, adaptados. Na
manhã seguinte Paulo foi para a rua e uma bola apareceu. Os meninos chilenos disseram "se é brasileiro é bom de bola", só que esse brasileiro era ruim: "Eu era uma
tragédia, desajeitado, mal sabia matar uma bola", diz ele. Curiosamente não houve estranheza entre os meninos que falavam espanhol e o que falava português. Quando
Bia acessa a memória das duas casas, vê-se falando em espanhol com Luciana, e vem também a figura da empregada, que acordava todos muito cedo para ir à escola. A
calefação era a querosene - o ambiente ficava com aquele cheiro típico da casa do caboclo brasileiro que tem lampião a querosene. No inverno, com a neve, Ruth sentia
pena de tirar as crianças da cama - a escola Nido de Aguilas ficava na cordilheira e o ônibus passava quase de madrugada. "Meu tormento mesmo era a comida que nos
davam lá, horrorosa. Colocavam muito coentro e cominho, até hoje detesto esses temperos", assegura Bia. Ela se lembra de ter muitas amigas e, por ter sido alfabetizada
muito cedo, tinha facilidade e aprendeu rápido o espanhol, tanto que
passou à frente, pulou um ano. Por ser uma escola bilíngue, as duas meninas foram alfabetizadas em inglês e espanhol. Com o trabalho na Cepal, a família não tinha
grandes dificuldades, ainda que vivessem sempre de olho nas contas. Mesmo assim, conseguiam separar uma parte que era enviada ao Brasil para, mais tarde, continuar
as obras da casa do Morumbi. As comunicações com o Brasil eram deficientes, dificílimo fazer uma chamada internacional. Quando Ruth queria falar com a mãe em Araraquara,
usava os radioamadores. Era preciso combinar antes com Mariquita para que ela, em certo dia e horário, fosse à casa de alguém que tivesse o sistema na cidade. E
eram muitos. Havia uma sociedade que os unia, e os mais conhecidos e com quem mais fez contato foram três: Benedito Brasileiro de Souza, Quirino dos Santos (dono
da PRD-4 Rádio Cultura) e Nelson Gullo, este da Turma da Banheira na juventude. As cenas ainda são claras para Fernando Henrique: "Santiago era uma cidade linda,
havia aquelas montanhas belíssimas, mas nos sentíamos isolados do mundo. Ruth deu aulas, como professora visitante, na Escola de Sociologia da Universidade Católica.
Foi das primeiras disseminadoras das teorias de Lévi-Strauss no Chile, na Flacso, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, onde por sinal lecionei economia.
A língua foi sendo dominada aos poucos. A pronúncia no Chile é uma pronúncia peculiar, não é o espanhol da Espanha ou da Argentina. As mulheres falam aspirado e
Ruth aprendeu esse maneirismo. Ela sempre falou melhor do que eu, principalmente porque, como fez aqui a vida inteira, tinha o dom de chegar às pessoas, de conversar,
perceber os truques da língua. As mulheres levam vantagem, vivem na pele o dia a dia do país e penetram na linguagem concreta. Dois dias depois, Ruth sabia como
era repolho em espanhol. Comandando a casa, o que fazia? Ia todos os dias ao Vega, um supermercado, ia à feira, conversava com as empregadas que estavam fazendo
compras, com as donas de casa, com os funcionários. Ia à quitanda, ao açougue, à padaria. Ruth fez o que uma pessoa inteligente faz, misturou-se ao chileno, captou
a sua maneira de se expressar. Por outro lado, vivíamos num meio intelectualizado. Uma de nossas grandes amigas nessa época foi Malucha Solari, mulher de Aníbal
Pinto, um grande economista, e por aí tínhamos outro
nível de linguagem. Desse grupo faziam parte Tiago de Melo, adido cultural que morava na casa de Pablo Neruda, o então senador Salvador Allende e sua filha Izabel,
e Enzo Faletto, meu parceiro na escritura de Dependência e desenvolvimento". Pablo Neruda, que receberia o Prêmio Nobel de Literatura sete anos mais tarde, aparecia
vez ou outra. Enquanto o marido, por ser da Cepat podia importar um carro, e ele escolheu um Mercedes, Ruth, sempre ciosa de sua independência, comprou um pequenino
carro francês, para duas pessoas, não mais do que isso, com o qual se deslocava. Ela andava no Nlercedes, mas gostava mesmo de sua "carroça". Não se pode dizer
que dirigia bem, mas dirigir lhe dava liberdade. Anos mais tarde, odiaria os motoristas particulares, principalmente os impostos pelo cargo e pela segurançaia
Paulo Henrique comemorou a chegada de uma bicicleta importada, escolhida no catálogo da Sears que eles recebiam. "Era", confessa FHC, "quase o mesmo estilo de vida
que tínhamos em São Paulo, ainda que envolvido pela angústia do exílio e corroído pelas saudades da cidade e das pessoas." Ruth adorou o Chile, entrosou-se, acabou
voltando lá diversas vezes, A família teve, a certa altura, também a sua botijeria particular, aquela que fornecia os vinhos em garrafões, as bebidas. O que todos
lembram é que aquele foi um momento de convívio familiar intenso.

Em Araraquara, parte da vida de Mariquita passou a ter um objetivo, o de economizar para fazer suas viagens ao Chile. Ia uma ou duas vezes por ano e, na volta,
já em Araraquara, contava cem orgulho do carro Mercedes-Benz, de como trabalhavam muito e que estavam tendo uma vida melhor do que quando eram professores da USP.
A chegada da avó era aguardada com júbilo pelos netos. Além de Mariquita, amigos como Leôncio Martins Rodrigues e sua mulher Aracy e José Arthur Giannotti também
visitaram os Cardoso em Santiago. Em agosto de 1965, o general Leônidas morreu no Rio de Janeiro. Fernando Henrique nem sabia que o pai estava doente. Recebeu
um telegrama de um amigo dizendo apenas "O Sapo morreu" - Sapo era o apelido do general. Como FHC tinha passaporte diplomático, porque trabalhava para a universidade.
Então, embarcou imediatamente para o Rio dei Janeiro, , sem pensar em mais
nada. Foi ao enterro e à missa. A igreja estava repleta de militares. No fim da missa, um deles se aproximou discretamente e comunicou: "Agora, vá embora imediatamente,
ou então...". Dois anos depois, em 1967, Alain Touraine, Michel Crozier, Henri Lefebvre e Eucien Goldmann enviaram um convite a Fernando Henrique Cardoso para que
se juntasse a eles na recém-criada Universidade de Nanterre, um dos braços da Sorbonne em Paris. O Chile significava, àquela altura, a estabilidade, porém, incentivado
por Ruth, FHC aceitou. Os dois sabiam o que tinha significado a vivência ali. O Chile era cosmopolita, ali se estava em contato com a Europa e os Estados Unidos.
"São Paulo era muito fechado, comparado com Santiago naquela época. Foi um ambiente propício para entendermos as coisas do mundo. Saímos de lá por uma única razão,
queríamos uma experiência intelectual mais ampla", justifica Fernando Henrique. Deixaram o Chile com pesar.

RUTH NÃO VIU O MAIO DE 68 EM PARIS

EM PARIS, A FAMÍLIA FOI morar num apartamento em Nation, linha 1 do metrô, no lado oposto a Nanterre. Para chegar à universidade, atravessava-se quase toda a cidade,
ao menos, a velha cidade. O apartamento era muito bom, antes havia sido ocupado por "antropólogos malucos que foram dar aula na África", segundo Beatriz. O lugar
era sujo, os antigos inquilinos não cuidavam, só usavam luz de velas, "decerto para que não se visse a sujeira". Mas nada que uma boa faxina não mudasse o astral.
André, filho de Ana Maria e Pedro Paulo Poppovic, morava também com os Cardoso. Anos mais tarde ele seria um dos namorados de Bia. Ruth não matriculou os filhos
na escola, pois não se sabia quanto tempo ficariam na França. Paulo, caminhando para os catorze anos, fez um curso de artes e era o único que podia sair sozinho.
Luciana e Bia, além de aulas de conhecimentos gerais, acompanhavam a mãe em programas culturais todos os museus foram passados e repassados. André era o único que
podia tomar Coca-Cola durante a semana, pois tinha o dinheiro dele. A vida continuava regrada. "A gente aprendeu desde cedo a viver bem, mas a viver bem com o que
se tinha, não era esbanjamento. Minha mãe era muito normatizadora: o que é certo, o que é errado. Pedagoga em tempo integral no dia a dia. Eu me transformei numa
por profissão, ela exercia cotidianamente, em todos os momentos. Ensinava, ensinava", comenta Bia com um leve sorriso. Ruth fez alguns seminários muito curtos, mas
a maior parte do tempo ficava com a família. Havia uma faxineira semanal, Madame Emmanuelle, que cobrava uma fábula. Quando ela entrava, a família saía, ia dar uma
volta, a mulher dava a impressão de nunca ter tomado um
banho. Nos outros dias todos ajudavam, aprenderam desde cedo essa parte da vida, a colaborar, fazer junto. Havia um lado curioso nesse apartamento. As pessoas vinham
jantar, conversavam, discutiam, normalidade em qualquer casa dos Cardoso. Todavia, havia aqueles que vinham das vizinhanças ou de longe para um banho. Eram brasileiros
que moravam em quitinetes com banheiro compartilhado no corredor, coisa comum em Paris, e preferiam se deslocar até Nation para um banho brasileiro.

NESSE PERÍODO ELES SE ligaram a um jovem sociólogo, um assistente em Nanterre de nome Manuel Castells,' depois reconhecido como o inovador da teoria sociológica.
Ruth e Castells sentiram muita afinidade e começou ali uma amizade que se fortaleceu e persistiu. Ao longo da vida, encontrando-se em seminários e cursos pelo mundo
afora, dialogaram intensamente, sempre a respeito do desenvolvimento de novas análises sociológicas, pessoas que se debruçavam sobre os movimentos nascentes, enquanto
o grosso da esquerda acadêmica estava ainda na luta de classes. A sociedade estava se transformando e Ruth sempre foi mais aberta do que eu para perceber esse tipo
de comportamento a nível popular. Ela se interessava, mergulhava", na avaliação de Fernando Henrique. Com a morte, em São Paulo, do professor Lourival Gomes Machado,
abriu-se a vaga para a cátedra de ciência política na Faculdade de Filosofia da USP, ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal Militar declarou o processo de Fernando
Henrique nulo. Diante disso, disposto a concorrer à vaga, continuou a escrever a sua tese. Ruth voltou ao Brasil não só para começar a reorganizar a vida e a volta,
como também para cuidar do processo de inscrição do marido. Ele escrevia capítulo a capítulo e enviava ao Brasil para a montagem final. Ruth lia, anotava, sugeria,
indicava, e ele aceitava ou discutia. "Ela não escrevia tanto, mas era excelente leitora, tinha o olho para apanhar o cerne das questões, ia ao ponto," reconhece
FHC.
POR UM MÊS, RUTH PERDEU o bonde da história. Ela deixou a França em abril de 1968. Em maio, Paris explodiu, a partir de Nanterre, chamada também Nanterre la folie
(a louca) ou Nanterre la rouge (a vermelha). Momento em que aconteceram as manifestações que repercutiram no mundo todo e se tornaram um marco divisor na história
moderna. O historiador Voltaire Schilling definiu 1968 como "o ano louco e enigmático de nosso século Uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente
insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções". Estudantes, operários, executivos, donas de casa, professores - todas as classes ocuparam as ruas,
formaram barricadas, queimaram carros, combateram a polícia. Durante trinta dias o governo francês esteve ameaçado de colapso. Nada menos de 1.434 jornalistas estrangeiros
se deslocaram para Paris para cobrir uma revolução existencial, de mudança cultural. Revolução cujo lema era educação, sexualidade e prazer, e sobre a qual Sartre,
dois anos depois, ainda se dizia perplexo, pensando no que tinha acontecido, sem entender o que os jovens queriam. Os slogans do Maio de 68 correram mundo, eram
centenas de propostas novas, poéticas ou radicais: "Sejam realistas, exijam o impossível!", "A humanidade só será feliz no dia em que o último capitalista for pendurado
com as tripas do último burocrata", "Abaixo a universidade", "Levemos a revolução a sério, não nos levemos a sério", "O álcool mata, tomem Lsp". Mas havia outro
bonde do qual ela não escapou no Brasil. Os tempos eram bravos. O general Costa e Silva tinha sucedido a Castello Branco na Presidência. A situação aqui se precipitou.
Carlos Lacerda e jK formaram a Frente Ampla, fazendo oposição ao que era denominado Sistema. Grupos de extrema-esquerda iniciaram a radicalização, com a luta armada,
sequestros, roubos a bancos, terrorismo. Os direitistas também entraram na onda de atentados e terrorismo. Os estudantes se organizaram e denunciaram o acordo MEC-USAID,
por meio do qual os Estados Unidos interferiam na estrutura educacional brasileira, abrindo caminho para a privatização do ensino superior. Na Maria Antonia discutia-se
a reforma universitária e foram formadas comissões paritárias de professores, estudantes e funcionários para discutir e projetar os processos internos e a gestão
da escola,
tendo cada grupo um coordenador docente. Em julho, os estudantes ocuparam o prédio da universidade. No Rio de Janeiro, o estudante Edson Luís foi assassinado pela
polícia e recrudesceram os protestos, e igualmente a repressão, culminando com uma passeata histórica na luta pela democratização, a dos Cem Mil. Os operários se
mobilizaram e organizaram greves em Contagem, Minas Gerais, e em Osasco, São Paulo. A Frente Ampla de Juscelino Kubitscheck e Carlos Lacerda, em oposição ao regime,
foi proibida. Costa e Silva fechou o Congresso e, em 13 de dezembro de 1968, editaria o AI-5, cancelando liberdades individuais e instalando um regime duro. Nos
dias
2 e 3 de outubro eclodiu a Guerra da Maria Antonia, uma violenta batalha que teve, da parte da Filosofia, rojões, paus, pedras e tiros, contra metralhadoras, rifles,
revólveres e bombas da turma do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, entrincheirada no Mackenzie. Significou o fim da Maria Antonia, que se viu incendiada e destruída.
Os departamentos foram transferidos para a Cidade Universitária, no Butantã, que não tinha condições de abrigar convenientemente os novos cursos - amontoaram-se
em barracões precários de madeira e zinco, erguidos rapidamente, insuportáveis no calor, impossíveis nas chuvas, com o barulho da água nos tetos de zinco, de arrepiar
de frio no inverno.

ANTES DISSO, ao VOLTAR, Ruth viu que a casa do Morumbi estava quase pronta, mas ainda não habitável. Alugou um apartamento pequenino na rua Major Sertório e reiniciou
a vida. Inclusive, retomou sua tese de doutorado que, sob orientação de Eunice Ribeiro Durham, focava a Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses
no estado de São Paulo. Na Major Sertório o espaço era mínimo, mas Ruth tinha paciência de Jó (como se diz em Araraquara). As crianças tinham cachorro, passarinho,
houve até um hamster que morreu afogado na privada. Quando Fernando Henrique voltou de Paris, a família já estava instalada no Morumbi. Em outubro de
1968, diante de uma banca presidida por Sérgio Buarque de Holanda, FHC defendeu sua tese e ganhou a cátedra. Quase não chegou a dar aulas.
Em 1973, Paulo Henrique, que estudava no Colégio Equipe, costumava aparecer dirigindo o Dodge Dart azul do pai. E convocava sua turma: "Vamos pra casa ouvir música".
Jorge Caldeira, amigo dos mais chegados, conta que todos iam para lá. Era "uma casa bastante liberal para os padrões da época, Paulo tinha som no quarto, cada um
fazia o que bem entendia, não tinha ninguém à tarde em casa. De vez em quando, um ou outro aparecia no fim da tarde, e assim conheci a Ruth e o Fernando, sabendo
apenas que eram os pais do Paulo. Não tinha ideia de que o Fernando Henrique era sociólogo e a Ruth, antropóloga". Em novembro de 1968, um jovem de 26 anos bateu
à porta da casa dos Cardoso com a mala na mão. Chegou para ficar um mês. Foram trinta dias dos mais importantes, tanto para ele como para Ruth Cardoso. Manuel Castells,
nascido em Barcelona e tendo estudado em Nanterre, viria a ser um dos sociólogos mais importantes do mundo, principalmente com seus trabalhos sobre a Sociedade em
Rede. Naquele ano de 1968, Castells descobriu a Ruth mulher, professora, dona de casa e antropóloga, e compreendeu seu método de trabalho, o imiscuir-se na vida
cotidiana como mulher comum, ao mesmo tempo em que captava a realidade e a colocava num laboratório. Era a antropologia urbana. Depois de ler a tese de 1959 e os
primeiros capítulos do novo trabalho, Castells e Ruth visitaram a Liberdade, o bairro japonês, percorreram a cidade, foram ao Mercadão Central, estiveram em feiras
livres, viveram o cotidiano paulistano. Ruth não deu descanso ao jovem e essa experiência o marcou e está descrita no posfácio a este livro. Em abril de 1969, a
caminho da Universidade, Fernando Henrique ouviu no rádio do carro mais um decreto com cassações. Eram constantes, a cada semana ou dia. Seu nome estava na lista
dos cassados. Ao chegar à USP a comoção era grande, e ele viu, dentro da Universidade, os primeiros sinais de reação. A polícia cercou os professores numa sala,
ele conseguiu escapar, foi a pé para casa. Ruth não tinha ido dar aulas nessa tarde. Aos
37 anos, veio a aposentadoria compulsória. A casa do Morumbi era o oposto do apartamento em matéria de espaço, dava e sobrava. Voltou a ser movimentada, agitada,
característica per-
manente da família. O dia em que o pai se aposentou foi um choque para Bia, ela não conseguia entender o que estava acontecendo, sabia que era grave, ruim, e ao
mesmo tempo obscuro. As conversas em casa eram claras, objetivas, não havia aquela história de criança sair da sala porque os adultos estavam conversando, nunca
houve. Mas eram tempos de sobressalto: se a campainha da casa tocava, naquela solidão do Morumbi - então um bairro isolado em São Paulo, ruas escuras -, as pessoas
tremiam e logo se pensava na repressão. Na verdade, esse era o clima geral no país, ao menos entre as classes mais lúcidas e intelectualizadas. Na Faculdade as pessoas
iam "caindo", cassadas, perseguidas, como Célia Gaivão, José Arthur Giannotti, Elza Berquó, Roberto Schwarz. Fechavam-se todas as portas, de todos os lados. Mesmo
com a proibição de reuniões políticas, a casa dos Cardoso tornou-se - como de hábito um centro de discussões. Fazer o quê? Fugir? Novo exílio? Decidiram ficar,
não fugir. Tinham experimentado o exílio, estavam preocupados com os filhos. Desses encontros nasceu a ideia de um centro de pesquisas independente, privado, destinado
a realizar estudos sobre a realidade brasileira. Com as relações feitas no tempo em que trabalhou na Cepal, FHC chegou a Peter Bell, da Fundação Ford no Brasil,
que, mesmo hesitante (afinal eram pessoas banidas pelos militares), concordou em financiar o projeto com uma doação inicial de usS100 mil. Assim nasceu uma das mais
celebradas, discutidas e famosas instituições do Brasil, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, que teria uma ação singular nas décadas seguintes.
Seria um baluarte, núcleo de resistência à ditadura, um posto avançado para o caminho de redemocratização. O primeiro endereço do Cebrap foi na rua Bahia, 499. A
data oficial de nascimento é 3 de maio de 1969. Os fundadores foram FHc, Elza Berquó, José Arthur Giannotti, Juarez Brandão Lopes e Cândido Procópio Ferreira de
Camargo, o primeiro presidente. Nos anos seguintes juntar-se-iam nomes como Bolívar Lamounier, Octavio Ianni, Francisco Weffort, Vilmar Faria - futuro braço direito
de Ruth Cardoso, um dos pensadores em quem ela mais confiava -, Carlos Estevam Martins, Francisco de Oliveira, Lúcio Kowarick, Bons Fausto, Luiz Werneck Vianna,
Maria Hermínia Tavares de Almeida,
Regis de Castro Andrade. Veio também o eventual apoio financeiro de José Mindlin e de Severo Gomes, empresários de proa. Acrescentou-se a eles o prestígio de Celso
Lafer.

Com O EXÍLIO, RUTH TINHA atrasado seu doutorado. Sua amiga Eunice Durham havia feito o dela antes, de maneira que foi encarregada de ser a orientadora de Ruth. Por
outro lado, como Eunice já estava fazendo a livre-docência, e para isso estudando a migração rural urbana a convite de Darcy Ribeiro, Ruth passou a ser sua orientadora.
Eunice escrevia como desesperada e ia à casa de Ruth: "Veja se está bom". Dias depois, Ruth chegava e fazia sugestões. Depois era Ruth quem ia à casa de Eunice e
entregava uma pasta cheia de papéis. Dias depois ouvia: "Melhor mudar este pedaço de lugar. Isso que está aqui fica melhor mais à frente. Corte este trecho". Para
Eunice, foi uma época divertida, "o primeiro caso de orientação em mão dupla". As duas davam apoio ao movimento estudantil, a luta contra o regime autoritário, a
ocupação. Tempos de polvorosa, agito total. Ficavam na Faculdade muitas noites, ainda que não a noite toda, por causa dos filhos. "Ruth sempre teve uma identificação
maior com os estudantes", reconhece Eunice, "sabia falar e compreendia os jovens. Ela se entusiasmou pelos cursos paritários, até que um dia eu a fiz refletir. Se
íamos dar cursos paritários, devíamos dividir o dinheiro com eles, porque, sendo um esforço coletivo, eles trabalhariam para montar o curso, era a aprendizagem mútua.
No fundo, um delírio da democracia igualitária e assembleística. Que o trabalho é feito com o aluno, é; o aluno aprende, interfere, pergunta, discute; agora, o aluno
não é capaz de dar aula. Claro, dizer isso na época era uma heresia. Acabamos dando os cursos." Nessa época, Ruth Cardoso e Eunice Durham trabalhavam com populações
urbanas, estavam levando à frente alguma coisa que já existia - havia uma tradição americana, pequena, mas havia. "Época dos estudos de comunidades. Influências
de Robert Redfield e seus trabalhos sobre Yucatán, a cidade e a área tribal, comparando as duas coisas, misturadas à tra-
dição da Escola de Chicago, na qual os estudiosos estavam mergulhados na antropologia urbana. Não era uma coisa inteiramente nova, ainda que o fosse no Brasil. A
cidade era o contexto, os camaradas estavam aqui, nós estudávamos aqui. Na verdade, fizemos uma bela adaptação da antropologia existente, junto com o marxismo galopante
que tomou conta da Faculdade de Filosofia, numa situação muito complicada. Quanto a Ruth, ela reintroduziu Lévi-Strauss nos cursos." Mesmo com a ocupação da Faculdade,
foi um momento fértil para o ensino. Ruth e Eunice começaram a inventar métodos pedagógicos, seminários, a dividir as turmas em grupos de trabalho, os alunos faziam
relatórios, elas liam, discutiam, um trabalho do cão, porque tudo era devolvido, cada um dos trabalhos, anotado, uma tarefa maluca. "A dedicação dela aos jovens
era inesgotável", confirma Eunice. O ano de 1968 se fecharia (ou nunca se fecharia, de acordo com Zuenir Ventura em seu livro 1968 - o ano que não terminou) com
a polícia invadindo um sítio em Ibiúna onde a União Estadual de Estudantes realizava, clandestinamente, seu xxx Congresso. Foram presas centenas de jovens, entre
eles os líderes Luís Travassos e Vladimir Palmeira. O governador Abreu Sodré, referindo-se ao episódio, afirmou sua disposição de "manter a paz e a tranquilidade
para a população que deseja trabalhar". E acrescentou, referindo-se à prisão dos estudantes: "Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei
a prisão de estudantes subversivos que participavam do congresso da UNE". Nessa altura é que Ruth conheceu uma jovem de nome Danielle Ardaillon, que, no futuro,
estaria muito ligada a ela e a Fernando Henrique, de tal modo que, hoje, ela é a responsável pelos arquivos pessoais do ex-presidente, tarefa da maior confiança
e sigilo. Danielle tinha ido morar na rua Nebraska, vizinha à casa de Ruth, então habitada pelo general Leônidas e dona Nayde. Entre as casas dos dois havia um terreno
que ela atravessava para ir telefonar, um hábito da casa que se manteve na vizinhança. Ao decidir fazer pós-graduação em antropologia, Danielle se aproximou de Ruth.
"Trazia em mim essa coisa francesa que se misturava a timidez. A casa do outro, um espaço muitíssimo pessoal. Ruth, porém, não era assim,
acolhia as pessoas em sua casa, uma casa aberta o tempo todo. Quase me assustei quando ela disse: 'Está bem, vai fazer pós-graduação? Venha até em casa, vamos tomar
um café e discutir'. Imagine, chegar até a casa do Fernando Henrique, o deus da usP? E fomos nos aproximando. Ela tinha um jeito muito especial, me olhava e dizia:
'Ah, adoro suas roupas', e eu me sentia mais perto. Outra vez, comentava: 'Ah, Danielle, a gente devia fazer uma viagem juntas para Portugal'. Nunca fizemos, claro,
mas isso quebrava protocolos, facilitava a relação. Ainda que ela fosse reservada era muito reservada sobre ela mesma, acho que nunca se abria. Ruth ficou entusiasmada
quando contei sobre o meu trabalho, os programas do Chacrinha, que na época eram o máximo de audiência. Ela considerou um tema inusitado, corajoso, ficou fascinada.
'Este é o Brasil', ela disse." Essa era a Ruth.

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA IV: A teimosia e a tese de Mariquita

De Araraquara chegavam notícias sobre a tese que Mariquita iria defender na faculdade, o que servia para amenizar e, de alguma maneira, divertir Ruth, que se encantava
com o temperamento e a determinação da mãe. Em primeiro lugar, o tema era a Luffa operculata, nome botânico da buchinha, ou cabacinha, uma planta medicinal usada
popularmente no tratamento de rinites e rinossinusites. Ruth ria, pensando no buxinho (Buxus sempervirens), planta que estava em todos os jardins de Araraquara e
que as crianças jogavam no fogo para ouvir estalar. A buchinha era outra planta. Ao mesmo tempo, Ruth sabia que aquela defesa era o fim de um percurso de teimosia
e integridade da mãe. Mostrava o seu jeito de ser, herdado por Ruth. Mariquita estava quase para se aposentar quando, em 1967, defendeu sua tese de doutorado na
Faculdade de Farmácia e Odontologia. Há um bom tempo, ela dera entrada num recurso para ser efetivada, porém a direção da Faculdade argumentou que para isso teria
de defender uma tese. Ao que Mariquita respondeu que já estava há muitos anos como professora concursada e se recusava a defender uma tese. Era seu direito.
Entrou com mandato de segurança e ganhou a causa. Depois do processo concluído, e confirmada a vitória do direito à efetivação, ela foi à direção da escola e disse:
"Agora, vou fazer a tese". Fez, e quem a orientou foi o professor Angeli, do Departamento de Botânica da USP. Dez com louvor. A tese encontra-se na biblioteca da
Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, em Araraquara.

INTERESSE PELOS MOVIMENTOS
SOCIAIS URBANOS

RUTH ERA MUITO INVENTIVA em métodos pedagógicos e seminários, estava constantemente criando, renovando. A divisão das turmas em grupos de trabalho levava os professores
a dar aulas o tempo todo, o que era exaustivo, complicado. Era uma maneira também de defender a democracia dentro do movimento libertário dos estudantes. Fim dos
anos 1960, começo dos
1970, o setor de ciência política perdeu quase todos os seus professores, restaram dois ou três uns fugiram, outros se exilaram, foram presos, desapareceram no
clima tenso da época. Houve recrutamento de professores e Ruth Cardoso e Eunice Duhram se viram na ciência política. "Foi quando Ruth começou a trabalhar com o conceito
de sociedade civil", diz Eunice, "passou a se interessar e a se dedicar aos movimentos sociais urbanos. E eu trabalhava com o conceito de ideologia como fenômeno
cultural, o que é diferente de pensar a ideologia em termos marxistas. Era uma visão nova e assim conseguimos construir um campo não trilhado na antropologia. Os
antropólogos estudavam aquilo que veio a ser o que a Igreja católica chama de pobre oprimido. Estudávamos as favelas, os cortiços, os negros, o migrante rural urbano,
a família. Não nos debruçávamos sobre nenhuma classe revolucionária, esse é que era o problema naquele tempo. Nossos alunos inventavam um tema atrás do outro, a
empregada doméstica, as comunidades de base etc. e iam atrás. Tudo o que a gente estava tentando fazer se juntava e tinha um significado político. Nessa altura,
nos preocupava muito a fragmentação das pesquisas e da pós-graduação. Os alunos ou grupos de alunos escolhiam o tema e ficávamos com aquele amontoado de temas na
mão, orientava-se um para cá, outro para lá. Quando montamos
os Seminários das Segundas-Feiras destinados a encontrar uma problemática teórica que fosse comum, nos reuníamos, indicávamos e líamos a bibliografia, discutíamos
a aplicabilidade daquilo para o trabalho que cada um estava fazendo. Esses Seminários acabaram tão célebres quanto os de Marx, do grupo de Fernando Henrique e Ciannotti."
Jorge Caldeira afirma que "Ruth teve a visão de que antropologia não era só para estudar a cultura dos outros, mas era para estudar a sua própria cultura com estranhamento".
Os novos movimentos sociais, feitos com gente da periferia, que às vezes nem eram operários, era um bando misto, não podia ser considerado uma classe. Esses movimentos
ficaram politicamente importantes e, ao estudar isso, Ruth e Eunice conseguiram fazer uma reformulação do setor de ciência política, dando uma visão mais ampla e
nova à antropologia. Aqueles encontros duraram alguns anos e os participantes ficaram conhecidos como a "Turma do Seminário". Diz Eunice: "Ruth era uma pensadora
original, possuída por uma incrível avidez de saber o que se passava no mundo, buscando bibliografias para criar novos conceitos. Ela lia e interagia com os antropólogos,
os sociólogos, os historiadores, os cientistas, os artistas, os filósofos, os marxistas, e me pôs a ler também, para dar aula. Assim fizemos uma transição para
a nova antropologia. Ela era uma formadora, professora de primeira categoria, dotada de um rigor enorme. Todo mundo precisava estar teoricamente fundamentado, não
se tratava de dar palpites, dizer coisas simpáticas sobre favelados ou outro tema, não era para fazer a glorificação dos pobres. Para Ruth pensar era uma aventura,
coisa prazerosa. Ficar com um problema na cabeça e tentar transformar aquilo em aula, tornar aquilo uma pesquisa. Tudo era intelectualmente estimulante". Para dar
contornos mais claros à situação de meados dos anos 1970, Fernando Henrique Cardoso acentua que, "pouco a pouco, consolidava-se a presença política dos trabalhadores
urbanos, independentemente de sua ligação com esse tipo de movimento organizado [forças tradicionais de esquerda, movimentos de inspiração trotskista, maoísta ou
fidelista. E as manifestações de apoio de setores das classes médias, intelectuais, padres e jornalistas, sem contar estudantes, mostraram que os sindicatos não
esta-
vam isolados. [...] Já se notava a presença desses 'atores sociais' na segunda metade dos anos 1970, quando se começou a falar no papel da 'sociedade civil' na política,
utilizando-se uma linguagem não usual na época. A linguagem tradicional referia-se unicamente a classes e setores de classes".' Lourdes Sola, que foi fazer antropologia
em 1959, teve aulas com Ruth, então grávida de Bia. "As aulas de Ruth eram descontraídas, sempre foi uma professora muito organizada, sua matéria, mantida sob controle,
de uma clareza impressionante. Sua voz era calma, havia naquela voz algo especial, um elemento a mais. Uma voz bonita, não uma voz de comando, mas uma voz analítica
que fluía. Uma professora séria que não deixava passar leituras mal ou pouco lidas. Gioconda Mussolini dizia que queria ser filha da Ruth, porque ela era tranquilizadora
e ao mesmo tempo disciplinadora. Cultivava muito a autonomia, ainda que essa fosse a marca geral das mulheres da Maria Antonia", comenta Lourdes Sola. "Éramos uma
geração que se sentia eufórica de conquistar um espaço profissional." Para Maria Filomena Gregori, conhecida como Bibia, que participou dos Seminários já na década
de 1980, Ruth Cardoso e Eunice Durham a marcaram fundamente, eram professoras mitificadas. "Elas foram as grandes estrelas de sua época. Diferentes, às vezes opostas.
Eunice agregava as massas, era ríspida e brilhante, tinha um domínio extraordinário do culturalismo norte-americano, imbatível nessa matéria, seguidora de Malinovski,
famoso por sua teoria da pesquisa de campo. Ruth era ultraprofessoral, consistente, construía esquemas sofisticados para dar aula, mantinha o ego sob controle. Ruth
era doce e Eunice, elétrica, cortante com todo mundo, menos com a Ruth, que, por sua vez, tinha coragem de cortar Eunice, dizia a ela coisas que nenhum de nós, aliás,
ninguém na faculdade, se atreveria a dizer. O curioso é que elas se admiravam e se complementavam, e se espicaçavam. Eunice, muito clássica, segura de si, enquanto
Ruth nunca levou a sério o classicismo, tinha a cabeça aberta para novos autores, indagações, questões, insights, desconfianças, suspeitas. Ela não acreditava em
coisas canônicas."

Em 1971, QUANDO A FACULDADE passou a ser denominada Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas e as cátedras haviam sido extras, Fernando Henrique e Ruth passaram
larga temporada em Stanford onde ele foi professor residente e ela retomou sua tese sobre os japoneses mudando, todavia, o rumo afinal, tinha sido iniciada oito
anos antes voltando-se agora para a questão da urbanização, tema no qual estava mer gulhada, detendo-se principalmente na questão das novas gerações.

NESSE ANO DE 1971, ao acompanhar Fernando Henrique a Genebra, onde ele participaria de um seminário intitulado "Center Europa Terceiro Mundo", Ruth encontrou-se
com uma mulher que, no futuro, seria uma de suas melhores amigas e colaboradoras. Essa mulher, então no exílio com o marido Miguel, tinha organizado e construído,
com um grupo de estudantes e patrocinadores, o Center Europa, destinado a discutir com pensadores de todos os segmentos as grandes questões sociais, políticas e
econômicas que separavam esses dois mundos. Essa mulher era Rosiska. Ambos, Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira, no futuro teriam papéis essenciais na grande virada
de vida que Ruth deu. "Ali em Genebra nos encontramos, olhamos uma na cara da outra e vimos que nos daríamos bem, apesar de termos temperamentos diferentes. Ela
era inteligente, sedutora e preocupada com as mesmas coisas que eu. Éramos bastante jovens e tínhamos 1 interesse pelo movimento feminista. Era um tema que estava
nascendo, mas estávamos dentro dele e descobrimos em nossas conversas pontos coincidentes no plano da experiência pessoal. O mais importante era como ironizávamos
o fato de sermos, de certa maneira, ironizadas. Vi como Ruth tinha humor, não era de se zangar com as coisas. Carregava um gênio forte, porém não era esquentada.
Mas destilava uma ironia mortal. Ela cortava! Tinha uma gilete afiadíssima." Em 1972, ao defender sua tese Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses
no estado de São Paulo, orientada por Eunice Durham, Ruth recebeu o título de doutora em ciências sociais (antropologia social), pela Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Tornou-se professora associada de antropologia, docente em cursos de graduação e de pós-graduação, diretora de seminários teóricos e de pesquisa, e
orientadora de dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em 1973, Ruth e Eunice publicaram na Revista de Cultura Vozes, de Petrópolis, um ensaio sobre "A investigação
antropológica em áreas urbanas". Nos anos de 1973 e 1974, junto com Lúcio Kowarick, Ruth coordenou um trabalho de grande repercussão, o "Estudo de dez famílias faveladas.
Para Eunice Durham, o ambiente na Faculdade de Filosofia estava se tornando um pouco provinciano e, com a saída de Roger Bastide e de Florestan Fernandes, houve
uma queda - decadência mesmo no rigor metodológico com relação a pesquisa, documentação de pesquisa, análise de dados. Uma consequência provável do regime militar,
que levou o pensamento crítico para o denuncismo. "Com a Ruth não tinha isso, você podia fazer a denúncia, mas não a denúncia fácil. Para ela a denúncia não era
o importante, e sim entender efetivamente o que estava acontecendo. Essa posição deu um prestígio maior para a antropologia, que, de ciência menor, de repente se
tornou importante, uma vez que fomos levadas ao aprofundamento das análises, a compreender o que efetivamente se passava dentro dos processos." Celso Lafer começou
a ter um relacionamento mais intenso com os Cardoso no início da década de 1970, quando Fernando Henrique já estava aposentado e se dedicando ao Cebrap. Nas conversas
e discussões, que eram intensas, Ruth chamou a atenção de Celso para uma coisa que, para ele, não estava ainda muito clara, mas estava para ela. Dizia a Celso: "Por
conta daquilo que você tem escrito, você tem o foco no papel do Estado, na dimensão do planejamento, nos partidos políticos, e o que isso significa. Mas chegou a
hora de prestar atenção na dinâmica própria da sociedade, porque é lá que está a inovação do que vai acontecer". Ela, diz Celso, "estava com a cabeça voltada para
o papel dos sindicatos, dos movimentos sociais, para as variações de sociabilidade que derivavam da urbanização, que foram assuntos que, depois, ela trabalhou de
maneira muito interessante e significativa".
As NOTÍCIAS DE ARARAQUARA, em 1972, eram inquietantes. Por motivos de saúde. Mariquita teve de se afastar do Colégio São Bento, onde dava aulas desde 1956. Os problemas,
entretanto, começaram a se agravar, até que os médicos a aconselharam que fosse para São Paulo. Ela e José foram morar com Circe Boueri, sua irmã por parte de pai,
que ainda se lembra bem: "Ela me dizia que não conseguia comer, não tinha fome, foi enfraquecendo, não se alimentava. Então, Ruth e Fernando Henrique chegaram de
uma viagem e a levaram para a casa deles. Porém ela foi piorando, emagrecendo mais e mais. Mariquita, muito mal, Fernando Henrique propôs que se tentasse a acupuntura.
Foram a um médico que pediu uma série de exames e descobriu-se que, além de um problema no fêmur, ela estava com um câncer que já tinha tomado conta do baço. Ruth
não se desgrudava da mãe, era de uma dedicação ímpar. Um dia, fomos para Taubaté, onde dizem que havia um médico com um tratamento novo para câncer. Ao ver as radiografias,
ele disse que não havia mais condições de fazer nada". Jorge Caldeira seguiu de perto o declínio de Mariquita. "Tinha perdido, claro, todo o humor que fazia parte
dela, sofria muito, foi uma coisa pesada, mas a Ruth cuidou." Um dia, em 1974, Margarida Troncon Busatto, afilhada de Ruth, veio de Araraquara visitar Mariquita
- encontrou-a completamente alheia, nem conversava mais, o olhar vago e distante. Logo depois ela morreu. Desde então, Ruth ficou bloqueada, dificilmente pronunciava
o nome da mãe, travava.

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA V: Ruth, mulher de televisão

Na altura de 1970 ou 1971 as lembranças das pessoas acabaram imprecisas , Ruth recebeu um convite do jornalista Fernando Pacheco Jordão, que estava pronto
para produzir uma série de programas didáticos sobre ciências humanas para a Tv Cultura de São Paulo, Fundação Padre Anchieta, que todos conheciam como TV Educativa.
Seis professores eram os consultores de produção: Ruth Cardoso, antropologia; José Sebastião Witter e José Jobson Arruda, história; Rodolfo Azzi, psicologia; Gabriel
Cohn, sociologia; e Paulo Singer, economia. Eventualmente outros especialistas, todos acadêmicos, eram chamados a colaborar, discutir, fazer pesquisas e elaborar
textos teóricos em forma de apostilas, que eram roteirizados para a linguagem da televisão. O programa, de vinte minutos a meia hora, ia ao ar no início da noite,
às 19 horas, e misturava teatro e música. Como era sobre família e problemas familiares, usavam-se muitas vezes bonecos de papel machê eram eles que abordavam os
assuntos, discutiam as questões levantadas pelos consultores. Fernando Pacheco Jordão lembra-se com um sorriso de como havia escrúpulos por parte dos acadêmicos,
notava-se um visível preconceito com relação à televisão, considerada arte menor (e havia pudores quanto à palavra "arte"). Com exceção de Ruth e Azzi, os outros
se sentiam levemente incomodados, preocupados em ver como tudo seria formatado. Ela achava graça em tudo, queria saber como se fazia, qual era o processo, divertia-se
com os achados e as soluções, adorava os bonecos, entregava-se sem restrições. Era um conhecimento que acrescentava. "Muitas vezes, Ruth sentava-se ao meu lado no
estúdio para conversar sobre meios de comunicação. Na época eu já trabalhava com pesquisas sobre a mídia, atuava em agências de publicidade, e ela queria saber minhas
descobertas, indagava muito sobre as mudanças no comportamento dos brasileiros, tendo em vista o crescente 'consumo' dos bens de comunicação. Ela vivia com os olhos
bem abertos para isso, e ainda estávamos no início dos anos 1970. Eu não tinha, vamos dizer assim, a 'respeitabilidade acadêmica', porém estava mergulhado de cabeça
nas investigações e trazia dados que eles não possuíam, nem sequer imaginavam. Eram esses dados que ela recolhia de mim. Ruth não se fechava numa torre de marfim."
Fernando, por um instante, fica em silêncio, depois faz uma indagação: "Sempre me perguntei por que Ruth nunca teve ambição, curiosidade, ou por que nunca foi convidada
a fazer alguma coisa em rádio ou televisão. Não sei se em algum momento ela cogitou isso. Por quê? Notei naquele período os olhos dela, curiosos, intensos, excitados
com aquele meio, com as palavras transformadas em imagens".

PREZANDO A AUTONOMIA DOS FILHOS

O HOMEM JÁ TINHA IDO à Lua quando chegaram os anos 1970, tempos do general Garrastazu Médici, o avozinho de olhos azuis sempre com o radinho de pilha ao ouvido,
enquanto nos porões da ditadura, como se dizia, pessoas eram mortas e torturadas. O Brasil ganhou o tricampeonato mundial de futebol no México e a televisão em cores
chegou a todas as casas. Delfim Netto manipulou os índices e nos tornamos o Brasil do milagre econômico. Houve uma crise do petróleo, obras ditas faraônicas garantiam
o Brasil grande. Orgulhoso de si, o governo, mais que recomendar, ordenava: Brasil. Ame-o ou deixe-o. Geisel substituiu Médici, iniciou-se o processo gradual de
abertura e a linha dura em alguns meios militares começou a sofrer contestação. Porém, em 1975, Vladimir Herzog foi torturado e assassinado na prisão, causando enorme
celeuma e provocando um princípio de distensão no sufoco que passávamos. O Movimento Democrático Brasileiro, MDB, surgiu como força se opondo ao partido oficial,
a Arena. A censura, por meio do ministro Armando Falcão, recrudesceu e ampliou os seus tentáculos livros, peças, filmes e canções eram proibidos a cada instante.
Inventaram os senadores biônicos, isto é, não eleitos pelo voto popular. A Emenda Constitucional 112 ii revogou o famigerado AI-5. A Comissão Pastoral da Terra,
sob influência da Igreja, criou novas lideranças. Os trabalhadores do ABC se uniram, do que resultou o Partido dos Trabalhadores, PT, e Lula surgiu no cenário como
força nova, carismática. O general Figueiredo que não gostava do cheiro do povo, preferia o dos cavalos sucedeu a Geisel e, ainda que muito mal-humorado, manteve
a transição para a democracia. No final da década surgiu a Lei da Anistia. Em 1977,
um Manifesto Contra a Censura foi levado ao Ministério da Justiça, assinado por 1.046 intelectuais do Brasil inteiro, sendo a primeira assinatura a de Antonio Candido.
Tempos de O último tango em Paris, de Love story ("Amar é nunca ter de pedir perdão"), de Cabaret e Liza Minnelli, de Tubarão, de Preto.' baby com Brooke Shields.
Amávamos Jane Fonda, Jessica Lange, Margaux Hemingway, Farrah Fawcett, Linda Lovelace (a garganta profunda), e a principal, essencial e fundamental Leila Diniz,
nossa musa libertária. Louvávamos Dina Sfat, Duda Cavalcanti, Adriana Prieto, Joana Fomm, Helena Ignez, Rose di Primo. Homens usavam bolsa capanga e camisas de tergal,
camisas de gola rulê, calças boca de sino. Por toda parte Dener e Clodovil, pôsteres de Guevara, sandálias de sola de pneu, concertos de rock. Orelhões pelas ruas
assombrando o povo pela tecnologia em comunicações, máquinas pensantes ou computadores entrando no cotidiano. Chico, Gil, Caetano, Dzi Croquettes, Rita Lee, Elis
Regina, Raul Seixas, os Festivais de Música Popular Brasileira, o programa Esta noite se improvisa, Vinicius e Toquinho, revista Senhor, O Pasquim, Rolling Stones,
o jornal Flor do Mal e os nanicos Opinião e Movimento. A pornochanchada (proibido mostrar pelos púbicos), O poderoso chefão, MA,S,H, Carlos Castarie da e A erva
do diabo, maconha e LSD, psicodelismo, chá de lírio e de cogumelo, O despertar dos mágicos, a revista Planeta e o realismo mágico, artes marciais, tae kwon do, Bruce
Lee, kung fu, David Carradine, uísque Old Eight, conhaque Dreher, cerveja em lata, Kodak Instamatic, Mônica e a sua turma, revista Recreio, os teatros Arena e Oficina,
O rei da vela, o nu frontal de Ítala Nandi, The Living Theatre no Brasil, o show Opinião, Bethâfia, Carcará, João do Vale, Zé Kéti, Clóvis Bornay, Bandeira 2, Irmãos
Coragem, O cafona, A família Trapo e A grande Família, as peças teatrais Gota d'água e Roda viva, o Fantástico e Heloísa Millet, a chegada da cultura dos shoppings,
o patrulhamento ideológico, Fernando Gabeira, a tanga de crochê, O que é isso, companheiro?, Os Beatles, John Travolta, Os embalos de sábado à noite, Glauber Rocha,
Dona Flor e seus dois maridos, Sonia Braga, danceterias, Regine's, Hippopotamus, Ricardo Amaral, Ton Ton Macoute, Ta N Iatete, rodízio de pizzas, Dj (no fim da década),
Danuza Leão, Zózimo
Barrozo do Amaral, Daniel Más, revista Status, As Frenéticas. Pelé abandona o futebol e namora Xuxa, Loteria Esportiva, os 13 pontos, Saramandaia, "Silvio Santos
vem aí...", Buzina do Chacrinha, as "chacretes", Carlos Imperial, Dancin' days, A mulher biônica, Mulher maravilha, Os Waltons e As panteras, o pirulito do Kojak,
bebê de proveta, o punk, o terrorismo no mundo, a holografia. Apesar da repressão, foi a era do desbunde, das viagens de ácido, da amizade colorida, da promiscuidade,
do esoterismo, das civilizações desaparecidas, do misticismo, o islamismo começando a surgir como força. A mulher se redescobrindo, os spas, os exercícios físicos,
os regimes, o colesterol, e forte, muito forte, o culto ao corpo, a ego trip. Nesses anos, os Cardoso se deslocaram para Stanford em 1972, para Princeton em 1975,
para Cambridge em 1976-1977, para Paris (École des Hautes Études) em 1977, em momentos diversos indo e voltando, em períodos mais longos ou breves. Os dois dando
aulas, ou um em trabalho acadêmico e o outro, não. Para Princeton, os filhos foram junto e cursaram parte da High School. FHC define o Institute for Advanced Study
de Princeton "como uma torre de marfim criada para Einstein, quando ele foi para os Estados Unidos em 1935 com sua mulher, Elsa. Uma instituição voltada basicamente
para a física e a matemática e um pequeno grupo de ciências humanas". Bia levou sua amiga de infância Marjorie Geller - que também foi a Araraquara diversas vezes
-, que mais tarde seria uma estilista reconhecida. As duas passavam de propósito diante do 112 da Mercer Street, onde tinha morado Einstein. Era uma casa simples,
revestida de madeira, com uma pequena varanda na frente. "Imaginávamos sempre ver uma velhinha caminhando pelas ruas e reconhecíamos nela a mulher de Einstein que
tinha morrido em 1936, no ano seguinte ao da chegada deles aos Estados Unidos", recorda-se Bia. O pequeno grupo de ciências humanas era constituído de três ou quatro
professores, não mais. Um deles foi Albert Otto Hirschman, cuja mulher, Sarah, tornou-se grande amiga de Ruth. Era um sistema curioso os professores convidados
não davam aulas propriamente, tinham como único dever fazer uma palestra de tantos em tantos meses. Quanto aos alunos, eles eram convidados - trinta ou quarenta
jovens que viviam em grande competição porque, ou descobriam uma coisa muito importante
e continuavam no Instituto, ou iam dar aulas na universidade. Todos queriam descobrir uma novidade de impacto, ganhar o Prêmio Nobel. Havia na época um grande antropólogo,
formado em Filosofia, Clifford Geertz, tão importante quanto Lévi-Strauss, não apenas pela teoria e a prática antropológica, mas também fora de sua área, em disciplinas
como psicologia, história e teoria literária. Geertz foi o fundador da antropologia hermenêutica ou interpretativa, que floresceu a partir dos anos 1950. "Não me
lembro se Ruth tinha aulas de inglês com a mulher de Clifford, porque sempre desejou aprimorar-se, ou se foi com a de outro professor. O que é uma certeza é que
ela ficou fascinada com os trabalhos de Geertz sobre a Indonésia e o Marrocos, e especialmente seus estudos sobre a religião em Java e as brigas de galos, analisadas
do ponto de vista de valores culturais e simbologia na cultura. Quanto a Sarah Hirschman, Ruth a acompanhava em seu trabalho com literatura, principalmente no projeto
de literatura nos presídios, fazendo sessões de leitura para os presos. Outra que se aproximou muito de Sarah foi Mônica Serra", revela Fernando Henrique. "Hirschman,
judeu-alemão nascido em Berlim, hoje com mais de noventa anos, foi um sujeito que poderia ter ganho o Prêmio Nobel. Um tipo curioso, que nunca fez doutorado, e escreveu
livros admiráveis de economia e filosofia política. Em seu círculo de amigos figuram brasileiros como Fernando Pedreira, José Serra e Roberto Schwarz. A última vez
que estivemos com Hirschman, Ruth ficou impressionada - ele nos recebeu todo engravatado e feliz, mas não disse palavra. Mudo. Sarah explicou que o marido tinha
desistido, já tinha falado muito na vida, agora dedicava-se apenas à pintura. No estúdio dele havia dezenas de autorretratos." Ruth conseguiu criar um esquema que
funcionava com relação às viagens e às escolas dos filhos. Houve época em que eles os acompanharam, deixaram o país, outras ficaram com os avós. Houve momentos em
que foram matriculados em escolas locais no exterior, mesmo que temporariamente. Bia confessa que nunca teve traumas, que até se divertia com as mudanças de escola,
não havia monotonia, e a mãe estava sempre controlando os estudos, atenta. Em São Paulo estudaram na Pirajá, "escola muito maluca, porque multisseriada, não sei
por que cargas d'água eu estudava
numa escola multisseriada. Dali nos transferimos para o Externato Jaraguá - onde conheci NIarjorie Geller e Esther Hamburger. Depois, veio o Rainha da Paz, dirigido
por freiras, que me marcou, estive numa sala mista, enquanto Luciana pegou uma apenas de meninas. Escola moderna, superposicionada, tanto que uma professora de português,
de nome Maria Otília, teve problemas sérios. Uma vez recomendou como leitura o livro O caneco de prata e o pai de uma das alunas - mais tarde modelo, atriz e apresentadora
de televisão - denunciou Otília, que foi presa.' Havia professoras revolucionárias como Gigi, de estudos sociais, e a Cynira Fausto, coordenadora de ensino.2 Terminamos
no Equipe, que, então, abria a cabeça da meninada, ali fui colega de Arnaldo Antunes, Leda Catunda, de vários músicos, artistas plásticos. Cursamos uma escola que
preparou a elite que hoje chegou aos cinquenta anos. Do Equipe, partimos para Cambridge". Fernando Henrique foi para a Inglaterra dar aulas no Clare College, acompanhado
por Paulo e Bia, enquanto Ruth seguiu depois com Luciana, que tinha ficado um tempo no Brasil preparando-se para os vestibulares. Na Inglaterra, Bia, sempre muito
independente, estudou, trabalhou num pub, no final decidiu viajar pela Europa - com data certa para voltar e terminar os estudos, afinal fazia o colegial. As datas
corriam, Bia não voltava, e, quando conseguia ligar, dizia que tinha perdido o avião. Estava na Grécia com uma amiga e perdeu realmente o navio de volta, foi um
transtorno. E não havia telefone fácil para avisar, dar notícias, ligar era uma odisseia. "Meus pais sempre foram de tirar o chapéu, mantinham a calma, navegavam
juntos, impressionante. Confiavam na gente, na educação que nos deram. Eu, que sou mãe, imagino como ela devia se controlar, se segurar, porque a gente não acha
graça nenhuma em não ter notícias dos filhos o tempo todo. Hoje, vejo que ela valorizava a importância da experiência, do crescimento. Então dava corda para a gente
ter autonomia e independência." Quando Paulo Henrique, em 1978, terminou seu curso na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, e quis voltar a morar em casa,
Ruth advertiu: "Olhe, meu filho, acho que há um engano aqui. Sabe, até acabar a faculdade a gente ajuda muito, mas agora está na hora de você se cuidar.
Arranje o seu lugar". Jorge Caldeira, quase um irmão, lembra que Paulo, em choque, foi morar na casa dele, na rua Conselheiro Brotero, um prédio eclético e movimentado
onde moravam José Américo Peçanha, filósofo, Mariângela Alves de Lima, hoje crítica teatral de O Estado de S. Paulo, Alberto Rocha Barros, físico, do Partidão, Silvia
Poppovic, Enio Mainardi, o publicitário, e Cynthia Sarti, com quem Caldeira se casou. Luciana Cardoso, a primeira das filhas, revela que, chegando aos trinta anos,
os filhos eram "despachados" para que cuidassem de suas vidas. De qualquer modo, cada um ganhou um apartamento para viver. "Mas eu ia comer na casa da minha mãe
todos os dias." Ruth e Fernando Henrique deixavam Cambridge, acompanhados por Luciana, e iam para Brighton, onde moravam Clélia e Gabriel Bolaffi, ela fonoaudióloga,
ele sociólogo. Passavam lá fins de semana ou mesmo expandiam a estada, pois Ruth adorava o cottage dos Bolaffi, achava lindíssimo. Clélia também nasceu em Araraquara
e morava próximo da casa de Mariquita. Dora, irmã mais velha de Clélia, conviveu com Ruth na juventude, frequentaram juntas o footing, o cinema e o clube. Clélia
fez parte do grupo araraquarense de Zé Celso Martinez Corrêa e Luiz Roberto Salinas Fortes, o Dedeto. Os pais dela, os Miari, eram amigos de José e Mariquita. Gabriel,
marido de Clélia, foi aluno de história de Ruth no Colégio Pernão Dias, em São Paulo. Bia queria fazer jornalismo, comunicação, no Brasil, mas, "ao conversar com
Gabriel e Clélia Bolaffi, ganhei deles um livrinho pequenino, vermelho, chamado The little red book, sobre educação. Era uma espécie de manual de sobrevivência nas
escolas inglesas e fiquei alucinada com aquilo, e eu, que achava a educação inglesa inacreditável, fiquei revoltada, resolvi prestar para pedagogia. Aqui no Brasil,
claro, fui para a ECA, e não passei, fui ser aprovada na PUC, fiz um ano, adorei a matéria, odiei a escola, era como se eu tivesse retrocedido no tempo. Decidi,
voltei à USP, prestei vestibular, passei. Eu continuava com minhas ideias de independência, minha mãe queria me dar dinheiro, eu não tinha um tostão, mas recusava,
era uma luta. Depois tentei ensinar aos meus filhos que não precisavam ser assim tão.., tão fundamentalistas ...
Lourdes Sola, que fazia seu doutorado na Inglaterra, costumava passar fins de semana em Cambridge. Lembra-se da casa bastante ampla dos Cardoso, num bairro fora
da universidade, ainda que próximo, tanto que costumavam caminhar até o centro. Eram três quartos em cima e o dia a dia perfeitamente organizado, porque Ruth listava
os deveres de cada um, incluindo os do marido. Havia um jardinzinho bem cuidado e um pequeno quintal. "Surpreendia-me vendo o Fernando Henrique tentando arrumar
as camas, enquanto Ruth, diante do desajeitamento dele, dizia: Deixe, deixe'." Eventualmente iam a Londres e Lourdes e Ruth saíam para o teatro. "Ela era fanática
por teatro, íamos ver tudo, engolíamos cada coisa. Às vezes Fernando Henrique nos acompanhava, só se recusava a ir aos balés. Certa vez, conseguimos entradas para
ver Nureyev em Romeu e Julieta, era uma coisa dificílima, ingressos sempre esgotados." No mesmo período, Regina e Luiz Meyer estavam em Londres. Ele tinha ido para
a Europa fazer seu doutorado em psiquiatria e psicanálise, naquele tempo flertava com a ideia de uma psicanálise existencial. "Era uma relação que tinha se estreitado
a partir dos anos 1960, dos tempos de Sartre no Brasil. A vida na Inglaterra era animada e alegre, um momento efervescente. Fernando estava à frente de uma cátedra
chamada Simón Bolívar, que tinha sido ocupada antes por Celso Furtado. Ruth não tinha uma atividade universitária, só me lembro que ela escrevia muito", diz Regina.
"Fernando estava começando a se interessar por política, ao passo que Ruth fazia de conta que não estava nem aí. E, quando a conversa ia para esse lado, ela mostrava
uma expressão irônica que significava: 'Não estou ouvindo nada'. Eram frequentes os telefonemas do Brasil, da parte do Ulysses Guimarães, ou do Severo Gomes, as
conversas eram longas, e se eu estava na casa, ouvia e pensava: mas o que está acontecendo? Mal podia saber que o embrião do que aconteceu no futuro estava ali,
naquela casa em Cambridge."

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA VI: O dia em que Ruth foi reprovada

Jorge Caldeira, que fazia ciências sociais, chegou à casa de Ruth pesaroso, tinha sido reprovado num trabalho sobre sociologia da comunicação de massas. Bravíssimo,
Caldeira xingou o professor, um incompetente, só era catedrático porque era sobrinho de alguém. Ruth tentou argumentar: Conheço vocês, alunos. Conheço você aqui
de casa, é estourado, você é quem não sabe fazer um trabalho direito, é desleixado, e a culpa é do professor. Está bem, vou ser bom aluno, vou refazer o trabalho.
Jorge frequentou seguidamente o sítio que os Cardoso mantinham em Ibiúna, refazendo o trabalho. Terminou, Ruth pediu para ver, leu e anotou, chamou-o: Sente aqui!
Mexa aqui, aqui, tire aqui, explique melhor isso, refaça todo este período. Está vendo? É assim. Jorge refez ponto a ponto, entregou o trabalho na Faculdade. Dias
depois, ou semanas, não importa, entrou no apartamento da Joaquim Eugênio de Lima. E Ruth: Como foi? Você foi reprovada. Tiramos nota 3.

MERGULHANDO NO MOVIMENTO FEMININO

A notícia chegou como um balde de água fria. - Dalmo Dallari e Hélio Bicudo recusaram.

- Por quê? Foram aconselhados por dom Paulo Evaristo Arns, que acredita não ser o momento de entrarem na política partidária. Silêncio. Depois de minutos ouviu-se
a voz de Antonio Angarita, que até aquele momento não dissera muito, observando a reunião. Há dois meses o grupo se reunia no domingo à noite na casa de José Gregori,'
discutindo. Apontando o dedo para o homem à sua frente, Angarita propôs: - Então, por que não o príncipe da sociologia brasileira? Era como o chamavam, às vezes,
em tom de cordialidade e humor. Fernando Henrique deu um salto: - Eu? Enlouqueceram? Candidato a senador? O meu papel não é esse. Meu papel é pensar coisas e passar
para a classe política. Não é me meter em política. Maria Helena Gregori, mulher de José, retrucou em cima: Ninguém pode escolher papel numa hora dessas! Ruth ficou
paralisada. Por alguns instantes os olhos tornaram-se frios, furiosos. Mas contidos. Estavam brincando? Não! Era sério, seriíssimo. Fernando Henrique ainda se lembra
que a reação dela foi negativa, porque Ruth nunca foi chegada à política. A nossa vida era outra e a visão dela era a da acadêmica, da intelectual, da pesquisadora
de movimentos sociais, mas não a vida de partido. A política poderia modificar inteiramente nosso ritmo e nossos projetos de vida. Uma coisa a perturbava, entrar
num mundo diferente do nosso em prática, exigências, necessidade de concessões". O que amigos e alunos comentam é que ela ficava por demais ansiosa tentando descobrir
qual seria a relação dela com essa nova posição. Ela não queria morar em Brasília, tinha preconceito em relação à cidade. A indicação de FHC se deu após uma série
de circunstâncias que foram se encadeando. Ulysses Guimarães, que tanto tinha telefonado para Cambridge, apareceu no Cebrap para conversar sobre um artigo que Fernando
Henrique tinha escrito no jornal Opinião, condenando o marasmo e a apatia da intelectualidade. Chegara o momento de apoiar o partido da oposição, o MDB, que vinha
sendo criticado pelos bem-pensantes como uma farsa, o partido do yes, sir. Ulysses pediu um programa para o MDB. Foi explicado a ele que o Cebrap era um centro de
pesquisas, estudos e debates, não de formulação de plataformas políticas, mas, de qualquer maneira, as relações estavam estabelecidas até chegarem a 1977 e Ulysses
insistir que deveria haver um candidato ao senado que pudesse atrair jovens e estudantes para o MDB. André Franco Montoro, o candidato natural, não gostou, achou
que era golpe contra ele, mas concordou finalmente que seria uma candidatura com o objetivo de fortalecer a campanha da oposição. Uma anticandidatura. Reuniões foram
realizadas com Francisco Weffort, Roberto Gusmão, Francisco de Oliveira e Plínio de Arruda Sampaio, que tivera grande experiência política como assessor de Carvalho
Pinto quando governador de São Paulo. Os exilados estavam voltando ao país após a Lei da Anistia. Os primeiros nomes cogitados, Hélio Bicudo e Dalmo Dallari, em
alta por causa da campanha pelos Direitos Humanos, permaneceriam na resistência no plano da sociedade civil, apoiados por dom Paulo Evaristo Arns.

FINALMENTE, NA CASA DE José Gregori, saiu a indicação. Havia um problema: FHC era professor cassado na universidade, o que invalidava sua candidatura. Assim, ele
revelou: "Usei esse argumento com Ruth, no início. Seria uma provocação da oposição, era pura campanha, eu seria cassado pelos tribunais e, mesmo candidato, não
teria votos, onde estava meu elei-
torado?. Na semana seguinte, em Ibiúna, Maria Helena e José Gregori tiveram uma longa conversa com Ruth, tentando convencê-la da necessidade dessa anticandidatura.
Acalmada, Ruth concordou. De tal modo que, antes do lançamento oficial da candidatura, que seria no Teatro Sergio Cardoso, ela conversou longamente com José Gregori
no comitê eleitoral, na rua Sena Madureira. Nesse dia, Gregori reconhece, "ela me deu uma lição de política, aceitando a candidatura do marido. Fez uma análise do
Brasil, mostrou quanto aquela geração que tinha estudado, viajado, dado aulas no estrangeiro, e possuía ampla visão do Brasil e do mundo, essa geração tinha sido
proscrita, mas estava madura para realizar coisas. Foi uma aula de raciocínio estratégico, ela tinha uma cabeça política. Anotei e comentei que aquela seria a minha
fala no lançamento da candidatura. Entendi que o recheio existencial de uma vida política não era o que ela queria, e aí entrava Araraquara, porque ela sabia que
o político tem a vida invadida, perde a privacidade, o direito de pautar a sua vida, os outros é que a pautam, o político não tem o direito de dizer: estou cansado,
estou com sono, não vou sair, não vou lá. Os interlocutores marqueteiros pressionam: Como não vai? Quer perder os
2 mil votos que a Vila Quererê significa? Há também o outro lado, o de você ter, muitas vezes, de limitar suas ideias, sua autodefinição das coisas, tudo passa
pelo crivo do partido. Ruth era ciosa do exercício do direito do livre pensar e expressar seu pensamento. Em síntese, a liturgia da vida política é que a incomodava.
Por outro lado, Ruth dominava a teologia da política, conhecia bem o que ela é como instrumento para avançar o pensamento, as ideias, a liberdade, a igualdade. Sempre
teve noção clara disso e exerceria, no futuro, uma influência grande, porque várias vezes chegamos a esquinas onde devíamos decidir para que lado seguir, e ali estava
aquela mulher para fazer a cabeça da gente. Uma vez, disse a ela: 'Você tem uma qualidade entre nós todos, porque vai direto à jugular do problema.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL acabou reconhecendo a legitimidade da candidatura e então era entrar com tudo. A campanha foi articulada por um
grupo de voluntários Almino Affonso, Luiz Inácio Lula da Silva, Sergio Motta, João Rodarte, Jorge Caldeira, Maria Helena e José Gregori, Plínio de Arruda Sampaio,
Francisco Weffort , além do apoio de Mario Covas, sem contar nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Mário Pedrosa e Antonio Candido. Chico Buarque
compôs um fingia, e Elis Regina, Bruna Lombardi, Carlos Alberto Riccelli, Gianfrancesco Guarnieri e Fúlvio Stefanini foram alguns dos artistas que se engajaram.
Regina Duarte, ao saber que FHC era candidato, foi ao comitê e se ofereceu para trabalhar. "Um dia, tive de ir até o apartamento deles e conheci Ruth. Ela estava
ocupada lá para dentro, mas passou rapidamente pela sala e fomos apresentadas. Simpática, gentil, afetiva, olhava a gente dentro do olho. Tinha um jeito delicado
de ser, parecia uma prima que eu tinha em Avaré, interior de São Paulo. No final daquele ano, Daniel Filho me chamou para fazer Malu Mulher, que era uma socióloga.
Sabendo que eu conhecia Ruth, ele me pediu para solicitar que ela nos recebesse em sua casa para falarmos do projeto. A ideia, por trás, era saber mais, observar
a casa de uma socióloga, o seu ambiente pessoal, extrair referenciais para a personagem, como anda, fala, age, pensa, o que lê. Ruth era uma profissional importante
em sua área, seria inspirador para nosso trabalho mergulhar naquela atmosfera. Ela nos recebeu com chá e bolos e não deixou de responder a uma única pergunta. Enquanto
isso, a direção de arte estava de olho em móveis, estantes, cômodas, estatuetas, paredes, fotografias, gravuras, vasos, e acabou se inspirando na casa dela para
criar o cenário de Malu. Objetos indígenas, muito artesanato brasileiro, pinturas naïves nas paredes ao lado de Calder, pôsteres de vanguarda de Berlim. Um toque
de bom gosto com personalidade, nacionalidade. O que se viu na série foi a cópia do que vimos naquela tarde. Ela gostou, tinha humor."

EM 1978 RUTH MOSTROU UMA nova face. Ela narra melhor do que ninguém: "Naquele momento eu estava diante de uma situação diferente. Nunca tinha sido de me inserir
em grupos de mulheres, ainda que conhecesse e
me relacionasse com muitíssimas pessoas que participavam da luta feminista e se organizavam em círculos que agregavam os nomes mais variados. Todavia, convivia com
um problema de ordem pessoal, a minha rebeldia a engajamentos. Militância não combinava. comigo. Havia uma pergunta importante. Como me comportar sendo mulher de
candidato? Não queria saber de ficar num comitê, dar plantão na sede da campanha. Foi quando me veio a ideia. Havia, sim, algo em que eu poderia ser útil. Era mobilizar
as mulheres e montar, estruturar, uma série de questões que nos afligiam, para levar à campanha, mobilizar o eleitor e os políticos. Houve receptividade, vários
grupos se juntaram, até mesmo a Federação das Mulheres, entidade ligada à esquerda radical". Maria Helena Gregori acrescenta que, em 1977, ela e Ruth tinham participado
da Comissão de Mães em Defesa dos Direitos Humanos de Nossos Filhos. Eram jovens que estavam sendo vigiados, perseguidos pela polícia política. Essas mães estavam
a par de todos os movimentos dos filhos, onde se reuniam, onde estavam, para onde iriam, havia vários telefones de plantão, estratégicos, para que eles ligassem
para contar o que estava acontecendo, ou tinha acontecido. Eram estudantes universitários que promoviam passeatas, manifestações, distribuíam panfletos. Aquela Comissão
fazia parte da defesa da sociedade civil num regime em que direitos estavam sendo cancelados, pessoas eram presas, mortas, torturadas ou desapareciam de um minuto
para o outro. Na eleição de 1978 Ruth entrou com tudo, redigiu panfletos e folhetos e foi para o corpo a corpo nas feiras livres. Os folhetos faziam muito sucesso,
mas, admitiu ela, foram prematuros como discurso político. Regina Duarte a acompanhava nessas ocasiões. Na busca por votos, viajava-se por toda parte. José Serra
acompanhou Fernando Henrique e Ruth até Araraquara. "Apesar de tudo, ele não era conhecido, as pessoas ligadas a Ruth sabiam dele, mas o povo, o eleitorado, esse
não tinha ideia de quem se tratava. Seria um milagre ter votos. Era uma corrida, de uma cidade para outra, mas abriu-se uma brecha e fomos até a casa da avenida
Quinze em que morava, sozinho, o pai de Ruth, viúvo há quatro anos. Uma casa modesta, tradicional, com móveis antigos. José
estava lá, calado, quietinho, humilde, solitário. Uma pessoa muito suave. Ficamos pouco, nos fomos, a campanha exigia." Fernando Henrique acabou tendo votação suficiente
para fazer dele o suplente de André Franco Montoro.

Numa TARDE, EM 1981, Ruth apareceu no sos Mulher, que, naquele momento, estava empenhado numa campanha pela abertura de creches em São Paulo, uma das muitas reivindicações
femininas. Funcionava em cima de uma sorveteria na rua Artur de Azevedo, em Pinheiros, numa sala cedida por Fernando Morais. O italiano da sorveteria concordou em
abrir uma extensão da linha telefônica. Ficou quase louco com o montante de chamadas. O sos evoluiu com rapidez, principalmente na questão da violência contra a
mulher.casos rumorosos tinham trazido o assunto ao topo da mídia, os assassinatos de Ângela Diniz por Doca Street - se bem que na década de 1970, porém sempre lembrado
pela violência e estupidez e o de Eliane de Grammont pelo cantor Lindomar Castilho. Lá no sos foi a primeira vez que Iara Prado viu Ruth. Havia entre elas um link
e foi por aí que Iara entrou: "Morei anos em Araraquara.... Bastou. Ruth sorriu e fez uma pergunta referencial: "Morava onde? Não vá me dizer que na rua Três, onde
também morei?". "Não, morava na Seis, próximo à Agrimensura." "Portanto, perto da Maria Alice Lia, minha melhor amiga! E também perto de minhas tias." Quando se
dizia Agrimensura, sabia-se que era a escola, hoje Faculdades Logatti. Quanto aos Lia, eram praticamente vizinhos de Iara. Maria Alice depois se casou com o advogado
Miguel Tedde Netto. Ruth, interessada e curiosa, fez um monte de perguntas, especulou, como se diz em Araraquara, e se confessou seduzida por aquele nosso grupo,
em que a mais velha tinha 35 anos. Estávamos sentadas no chão, não havia cadeiras para todo mundo, e oferecemos um 'chazinho'. Ela apanhou a xícara e descobriu que
o nosso chazinho era uma dose de Domecq, conhaque barato que todos tomavam. Percebeu que estava diante de um grupo que, em lugar de escrever artigos e ensaios, partia
para a batalha,
brigando na rua. Nada de teorias, luta. Ela já estava com cinquenta anos e tinha uma carreira pronta. Foi de uma geração que não entrou na luta armada, mas que se
solidarizou, apoiou, brigou. Nunca me esqueço do Fernando Henrique visitando uma amiga dele na prisão, era minha companheira de cela, Maria do Carmo Campello de
Souza, a Carmute. O que Ruth encontrou naquela casa? Todo tipo de gente, de empregadas domésticas a lésbicas, universitárias, advogadas, secretárias, muita mulher
de periferia. Desde então ela disse que, conquistada, passaria a contribuir com a gente, e a escrever, porque tinha muito espaço. Com ela aprendemos uma maneira
de chegar mais próximo das pessoas. Tinha anos de pesquisa de campo em seus trabalhos acadêmicos. Ela sentava-se e começava: 'Como você se chama? O que faz? Onde
mora? Como é a sua casa? O seu marido faz o quê?'. E ia estabelecendo a intimidade, provocando a abertura, era o que chamávamos conversinha de Araraquara', porque
sempre aparecia no meio um comentário: 'Lá em Araraquara também é assim' ou 'Lá em Araraquara é diferente', e a pessoa ia sendo envolvida, percebendo que os valores
dela eram, em muitos pontos, semelhantes, e que se estava diante de alguém em quem se podia confiar. Ela foi se transformando numa pessoa querida da gente e militamos
juntas em muitas situações. Algumas absolutamente constrangedoras para ela, como no dia em que uma companheira nossa foi brutalmente agredida pelo marido, grande
amigo de Ruth e uma pessoa notória, o que causou assombro e tristeza. E ela se mostrou solidária ao amigo, levando-o para fora do Brasil, e essa era uma coisa que
lembrava Araraquara, o companheirismo, a amizade, a solidariedade mesmo. Tinha um lado nosso que a fascinava, aquele de romper amarras, sem medo de sermos feministas,
porque então era uma coisa meio ridícula, ironizada. Foi um casamento interessante, não para todas, claro, havia aquelas que não a viam como nós, a mulher que venceu,
teve sua carreira, seu marido e filhos, fez um nome, era intelectualmente respeitada, era centrada. Quando veio a rearticulação partidária e surgiu o PT, em 1980,
muitos companheiros foram para ele, siderados. Ficamos no PMDB e foi quando passamos a conviver de perto com Ruth, no mesmo grupo político. Nas minhas lutas femininas
confesso que não gostava do Lula, ele atrapalhava o nosso trabalho, era
contra o movimento das mulheres dentro do sindicato. Sabe como é? Tinha aquela visão do sindicalista cujo único objetivo é conseguir uma melhor condição para os
seus sindicalizados. E basta! Tivemos momentos difíceis, tensos, discussões, ele achava que íamos virar a cabeça da ala feminina da chapa dele. Daí fui com a Ruth
para a campanha do Montoro."

DESDE QUE A MÃE tinha morrido, em 1974, Ruth passou a se preocupar com o pai. José vivia sozinho em Araraquara, semiaposentado, dando seus passeios, fazendo um e
outro bico, mas cada vez mais enfiado em casa, um sobradão. A morte da mulher foi um choque, ele custou a se recuperar. Eventuálmente ia a São Paulo, no apartamento
da Joaquim Eugênio de Lima o quarto dele e de Mariquita continuava sempre arrumado. Às vezes, Ruth ia buscá-lo na antiga rodoviária, na praça Júlio Prestes, na
frente de onde hoje é a Sala São Paulo. Outras vezes, para mostrar que estava bem, ele chegava de táxi. José tinha um problema circulatório, estava sempre em tratamento,
mas tocava a vida. Um dia Ruth levou um susto ao receber um telefonema. O pai tinha ido dar um passeio e não estava conseguindo voltar para casa, rodava, rodava,
estava perdido. Custou a se reencontrar. Naquele dia ela fez uma série de cartõezinhos com o endereço e o telefone da casa e pediu que ele pusesse no bolso. José,
conhecido pela teimosia, ficou bravíssimo, não estava velho, nem caduco, nem esclerosado. O que ela estava pensando? Ela contornou a situação: "Não, papai! Não é
por nada! Fiz isso para meus filhos, fiz um para mim, outro para o Fernando. Vai que algum de nós cai na rua? Ninguém está livre dessas coisas. O cartão facilita
a ajuda". Ele concordou, foi a salvação. O ano de 1981 corria e José cada vez mais desligado. Estava surdo, mas insistia em continuar dirigindo seu velho Opala
todo mundo ficava em sobressalto, esperando a volta dele para casa. Um dia houve a gota d'água. Ele saiu dirigindo em Araraquara, bateu o carro, meteu-se numa confusão,
um sujeito tentou roubá-lo, um perereco danado. Logo depois ele veio a São Paulo, ficou pouco tempo, quis voltar, não havia como levá-lo de carro. Decidiu-se que
o melhor era tomar um ônibus. "Levei-o
à rodoviária", conta Fernando Henrique, "coloquei-o no ônibus, fiz alguma coisa na cidade e, ao voltar, encontrei Ruth em choque: 'Papai morreu!'. Como? Acabei de
colocá-lo no ônibus, foi para Araraquara. Estava ótimo, fomos conversando." Então ele soube que o ônibus tinha saído da rodoviária, estava entrando na via Anhanguera,
quando José caiu no banco. O coração estourou de repente. O ônibus fez meia-volta, retornou, deixou-o na Santa Casa, e ali encontraram o cartão com endereço e telefone,
a família foi avisada.

Em 1982, MONTORO CANDIDATOU-SE ao governo do estado de São Paulo pelo PMDB. Eram as primeiras eleições diretas em vinte anos e o MDB tinha acabado de se transformar
em PMDB, sob o governo do general Figueiredo, que, diante do crescimento do partido oposicionista, decidiu cancelar o bipartidarismo. Montoro correu às mulheres
pedindo apoio, elas concordaram desde que, eleito, ele criasse um órgão dedicado exclusivamente à mulher. Promessa feita, criou-se o Grupo de Estudos da Mulher do
PMDB, do qual fizeram parte, entre outras, Eva Blay, Anésia Pacheco Chaves, Beth Mello, Marta Suplicy, Maria Helena Gregori, Danda Prado, Maria Luisa Eluf, Iara
Prado, Zuleika Alambert, Silvia Pimentel, Heleieth Saffioti, Maria Malta Campos, Fátima Pacheco Jordão, Florisa Verucci e Ruth Cardoso. Foi uma coisa muito elaborada,
formulou-se uma proposta consistente, não se criou conflito com o Comitê Feminino Pró-Montoro, de dona Lucy, mulher do governador. Ficaram célebres os encontros
na rua Madre Teodora, no Jardim Paulista, em São Paulo. "Reuniões eram convocadas, cada vez num lugar, mas surgiam dificuldades, como a questão do aborto, que foi
muito debatida, mas encontrou resistência feroz por parte das mulheres católicas. Outro impasse foi a questão do planejamento, assunto tabu. Discutiu-se aqui, debateu-se
ali, montamos uma série de pontos que sintetizavam as reivindicações das mulheres. Entrou em cena a figura de Ruth Escobar promovendo encontros e mais encontros
na casa dela ou no teatro, querendo organizar um grande movimento. Sabíamos que ou os grupos se uniam e se dedicavam a atividades conjuntas, ou iríamos para o brejo.
Para conseguir comandar, conta-se que Ruth Escobar dirigia as reuniões com um potente apito. Contemporâneas acrescentam que se Ruth Cardoso, por todos considerada
um ponto de equilíbrio, não chegava para participar da reunião, Escobar dava um jeito e cancelava o encontro. Não eram encontros fáceis. Havia sempre todos os tipos
de facções, de ideologia partidária, ou sexual, políticas femininas, muita vaidade entrava em questão, havia desde as intelectuais (apelidadas as "tesudas", ou ainda
aquelas que faziam e orientavam teses), até as metalúrgicas, as lésbicas, e assim por diante. Diz Fátima Pacheco Jordão que, na "época, havia uma divisão entre movimento
de mulheres e movimento feminista. Um se concentrava em problemas imediatos, urgentes, como creches, água, luz, esgotos, era coisa ligada às necessidades primárias
(e negadas) do cotidiano, enquanto as feministas conduziam uma luta mais libertária, ligada a autonomia e direitos da mulher, igualdade etc.".9 Zuleika Alambert,
Iara Prado e Eva Blay foram das que trabalharam muito no sentido de definir qual seria o estatuto a ser apresentado. A primeira ideia era ter uma Secretaria de Estado
da Mulher - que conduziria mais tarde a um Ministério. Isso implicaria, no entanto, burocracia. Ruth foi realista: "Se as mulheres pedissem uma Secretaria só para
elas, os negros também exigiriam a sua, e em seguida cada grupo dito minoritário começaria a solicitar uma, e Montoro acabaria não atendendo ninguém. Tínhamos uma
noção do pouco poder que estava em nossas mãos, todavia tratava-se de uma porta aberta, estava à nossa disposição um instrumento de ação, era preciso entrar". Se
não era uma Secretaria, o que deveria ser, que tipo de órgão? As mulheres passaram um grande período mergulhadas na Fundação do Desenvolvimento Administrativo, Fundap,
buscando informações, coordenadas, caminhos até chegar à fórmula do Conselho, uma vez que, dada a diversidade de problemas da mulher, seria necessário operar por
meio de várias Secretarias e um Conselho faria a ponte entre todas elas, com tranquilidade. "Fiz com Ruth a campanha do Montoro, da qual José Serra era o articulador.
Ruth trazia para nós suaexperiência de viagens, Bolívia, Estados Unidos, trazia referenciais de outros movimentos sociais de mulhe-
res, não só as feministas, havia as questões do cotidiano, da vida normal, levantávamos problemas como o enfrentamento da pobreza, e havia ainda a sua experiência
acadêmica. Participei do grupo que procurava estruturar o Conselho Estadual da Condição Feminina, sabíamos que era um instrumento de força para implantar o órgão
que seria formulador de políticas da mulher para outras Secretarias. Trabalhamos por três meses seguidos, sem parar, nossa estrutura de pessoal era mínima, mas chegamos
a um consenso, acentua Iara Prado.

AQUELE MOMENTO SIGNIFICAVA uma etapa a mais numa batalha. Chegava-se a uma nova fase das conquistas das mulheres no Brasil. A partir da ditadura militar instalada
em 1964, "[...] um forte movimento progressista feminino articulou-se. [...] Enquanto em outras partes do mundo lutava-se contra a discriminação da mulher e pela
igualdade de direitos, no Brasil, a estes objetivos se somava a luta pela redemocratização, a anistia aos presos e presas políticos, além de melhor condições de
vida. [... A direita também se reorganizou com base em grupos ligados à Igreja Católica conservadora. A parcela progressista da Igreja, autointitulada Teologia da
Libertação, aproximou-se dos objetivos da esquerda. A luta pela recuperação dos direitos civis marcou o movimento feminista desde 1964, na década de 1970 até início
da de 1980. As mulheres criaram alternativas à censura que coibia a ação dos sindicatos, da imprensa e dos partidos políticos. Fizeram movimentos de rua reivindicando
a redução do custo de vida em face do arrocho salarial. Iniciou-se o primeiro movimento de demanda de creches. [...] Ao lado destas questões gerais discutia-se o
direito ao corpo, à sexualidade feminina, ao prazer, ao aborto. Lutava-se contra uma política de controle da natalidade e, em contraposição, nascia a ideia do planejamento
familiar como uma questão de política pública"." Em 1972 começaram a surgir em São Paulo os Grupos de Reflexão sobre a Questão da Mulher, coordenados por professoras
e pesquisadoras da USP. Três anos mais tarde, momento em que a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher, foi realizada na Câmara Municipal de São Paulo
o Diagnóstico da Mulher Paulista, ao mesmo tempo em que surgiam duas entidades, o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira, com sede em São Paulo, sob a égide
do Partido Comunista Brasileiro, e a Sociedade Brasil Mulher, que se iniciou no Paraná e migrou para São Paulo, cuja bandeira era a luta pela anistia. A Sociedade
editava o jornal Brasil Mulher que, a partir de 1978, aderiu a pautas mais feministas. Já as mulheres que voltavam do exílio criaram outro jornal, o Nós Mulheres,
feminista desde a fundação e que durou até 1982. Em 1981 surgiu, dentro da Fundação Carlos Chagas, o jornal Mulherio, que se manteve até 1987, tendo Ruth Cardoso
no conselho editorial. Também em 1981 fundou-se o sos Mulher, cujo objetivo era a luta contra a violência à mulher, base da criação da Delegacia da Mulher. Ainda
nesse ano veio o Coletivo Feminino da Sexualidade e Saúde da Mulher, que desenhou as bases da política de saúde da mulher para o novo Brasil. O MB-8 colocou em pauta
uma entidade, a Federação das Mulheres Paulistas, em 1981, e o PC do B criava a União Brasileira das Mulheres. Com a redemocratização do país em 1982, o movimento
tomou dois rumos - umas seguiram para as questões relevantes, como trabalho, educação, saúde, violência, outras se aliaram aos grupos de esquerda, como o PC do B
e o MB-8. Três Congressos da Mulher Paulista foram realizados, sucessivamente em 1979, 1980 e 1981, quando se tentou definir e unificar as bases e a luta por problemas
essenciais.

PARA SE TER IDEIA DE COMO se processavam, na época, os encontros, fóruns, reuniões, para se avaliar o tanto de convergências existentes, como o movimento foi tomando
força e, sobretudo, observar como havia uma diferença entre o feminismo importado e o brasileiro, podemos recorrer ao contato entre Ruth Cardoso e Danielle Ardaillon,
depois de uma sessão especialmente acalorada. Ao sair, Ruth virou-se para Danielle: "O feminismo é complicado porque é ideologia pura". "É, mas não é só ideologia,
a gente também sente isso na pele, há fatos concretos." Os debates, conflitos, eram contínuos. Ruth sorria: "Você é muito francesa!", o que queria dizer que ela
era muito
radical. Significava que não levava em consideração o jeitinho brasileiro: "O jeitinho é uma coisa muito difícil para um francês aceitar. Danielle, você está no
Brasil, as coisas são diferentes, não se pode ser fundamentalista aqui". Por essa razão, levando em conta os valores, as necessidades, as diferenças, "é que ela
nessa época trabalhava com os movimentos sociais. Porque o feminismo puro e duro não era legítimo no Brasil, o que havia de premente eram as creches, o custo de
vida, a violência etc., principalmente num período de ditadura. Eram vertentes do feminismo e Ruth via o que se podia e não se podia fazer na política. Daí aquele
misto de Partidão e de catolicismo que permeava o ar". Ruth era séria e curiosa, muito curiosa. "Eu era bem mais velha quando decidi voltar ao mestrado, e aqui entra
um ponto importante: ela me aceitou, achava que não tinha hora para você querer ter um diploma. Esse era um traço de modernidade nela, não habitual no meio acadêmico.
Ela se entusiasmou quando revelei que desejava ver como andava a nova geração de mulheres, como estavam se dando ao decidirem ser profissionais, como lidavam com
seus projetos e sua vida familiar, sempre contraditórios. Ela gostou que eu me concentrasse em casais com filhos, uma situação que sempre 'pegava'. Profissionais,
mães perfeitas, relação com a empregada, um mundo complicado. Nessa época havia uma 'técnica' doméstica muito em voga, a do congelamento caseiro de alimentos. Então,
contratavam-se mulheres que produziam a comida para um mês, tudo ia para o congelador. Essa mulher era uma profissional terceirizada, não uma empregada. Fiz como
parte da minha dissertação um segmento inteiro sobre a etnografia do congelamento, algo que jamais seria aceito na França, por ser um problema 'menor'. Não era menor
para Ruth, que criou uma turma de alunos que fez alguns dos projetos mais interessantes até então levantados numa faculdade. Havia a prática e o fundamento teórico.
Precisávamos conhecer teoria política também. Foram alunos que perceberam a evolução dos tempos, ao mesmo tempo em que verificavam como valores arcaicos permaneciam
no que diz respeito à família, que perceberam como a população evoluía e agia politicamente em relação às suas reivindicações (água,
esgoto, luz, pavimentação, segurança, saúde), movimentos de mães. Essas mulheres estavam fazendo política, ainda que sem saber, porque política era coisa de homem.
Envolvidas nesses movimentos, as mulheres saíam de casa, passavam a tarde fora, reuniam-se, encontravam amigas, discutiam, iam à prefeitura. Isso era política. E
quando em cima disso se fazia um programa e se levava a um partido, os partidos não entendiam. O papel de Ruth foi avançado. Como intelectual, se interessava pelo
que estava acontecendo hoje, agora, na cidade, no estado, no país. Moderna no sentido de captar o que estava correto na cidade, o que havia a se corrigir, ampliar
e aplicar isso num programa sobre as mulheres."

ENFIM, ERA PRECISO ENCONTRAR o nome, que Se alternava entre Conselho da Mulher e Conselho Feminista, sem consenso. Finalmente foi Ruth, segundo Eva Blay, quem encontrou
a designação ideal, Conselho Especial da Condição Feminina. O governador Franco Montoro não recuou assim que eleito, criou em 1983 o Conselho, que, presidido por
Eva Blay, funcionou inicialmente com um número mínimo de pessoas numa sala cedida pela CESP na rua Estados Unidos. A infraestrutura veio de funcionárias cedidas
pelas secretarias de Saúde e de Educação. Quanto às "conselheiras", cada uma tinha seus empregos fixos, o que lhes dava sustento, mas conseguiam se reunir e trabalhar
no Conselho. A mídia abriu enormes espaços para aquela novidade em matéria de governo. A Delegacia da Mulher foi um espanto, nunca se vira coisa igual. Descobriu-se
que na polícia havia inúmeras mulheres que tinham estudado, prestado concurso e não chegavam nunca a delegadas, estavam designadas para serviços burocráticos, encostadas
pelos homens. Delegada mulher? Nem pensar. Então aquelas mulheres todas apareceram e ocuparam postos. E não eram feministas, eram profissionais que simplesmente
aplicavam as leis. Segundo Eva Blay aquelas delegadas eram treinadas, porque ninguém nasceu feminista, e elas acabaram se sensibilizando tremendamente com os problemas.
Mais tarde, a partir de agosto de 1985, já com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, as delegacias se espalharam pelo Brasil, e atualmente
são cerca de quatrocentas. Todos os grandes problemas foram levantados a partir de então, do ponto de vista de política pública, como a violência, o aborto, o estupro,
a saúde, a educação, o planejamento familiar. Ruth, acentua ainda Eva Blay, "foi fundamental ao movimento feminista, pela coerência, pelas posições fortes e seguras.
Um documento assinado por ela era uma coisa, sem a sua assinatura, enfraquecia. Ela deu legitimidade ao feminismo, uma corrente que no começo era ridicularizada.
Ela trouxe, imprimiu essa dimensão"" Para Rosiska Darcy, esse movimento em "primeiro lugar trouxe dignidade para a mulher. Dignidade pública. Levou também à descoberta
de que a humanidade é feita de dois sexos e não somente de um, e que as mulheres não são o contrário dos homens. Porque elas eram o contrário dos homens. E o feminino
não é isso. Assim, essa emergência do feminino na cultura como gente é um fato histórico que marcou o século xx, o século que quebrou um paradigma milenar. Ruth
Cardoso só foi a primeira-dama que foi porque ela foi feminista, senão não teria sido, teria sido apenas uma senhora muito digna, muito bem-educada, cumprindo seu
papel. A causa das mulheres sempre foi essencial, e andamos pelo interior do Brasil inteiro, falamos com todos os tipos de mulheres, a conversa era sempre uma conversa
de quem conhece o assunto por dentro, não era um papo teórico. Ruth era uma boa acadêmica, mas conhecia a vida".'

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA VII: Não dou recados a Fernando Henrique

A secretária-geral da campanha foi Gilda Portugal Gouvêa, responsável pela agenda, e assim ela seguia o candidato por toda parte, frequentava o apartamento, à época
na alameda Joaquim Eugênio de Lima. A família tinha deixado a casa do Morumbi em 1973. Foi nessa época que Gilda foi se aproximando de Ruth e a ficou conhecendo,
"nossos filhos eram pouco mais do que adolescentes, e percebi como aquele casal era diferente, nada daquilo que era 'normal', um gostar do que o outro gosta, só
ir a um lugar se o outro fosse, cortar o cabelo assim ou vestir-se de tal maneira só porque
o outro queria. Nunca vou esquecer a tarde em que Juarez Brandão Lopes ligou, ela atendeu e ouviu dele: Ruth, por favor, diga ao Fernando Henrique para passar aqui
em casa, porque...' e desfiou um assunto qualquer. Com toda a calma, ela retrucou: Juarez, não dou recado para o Fernando Henrique. No máximo vou dizer que você
telefonou'. Estava mais do que provado que ela não era uma sombra do marido. Ao mesmo tempo, é preciso dizer que ela sempre estava absolutamente presente em tudo
e a casa dela era o lugar mais acolhedor que conhecíamos".
EM 1982, NUMA FESTA na casa de Pedro Paulo Poppovic em Paraty, Ruth Cardoso e Iara Prado se encontraram e tiveram uma conversa rápida. - Iara, o que vamos fazer
neste governo? Não sei, função burocrática não quero ter. Nem eu. Ficou por aí. Pouco depois, em Picinguaba, litoral norte do estado, onde Fernando Henrique e Ruth
tinham comprado uma casa de praia, novo encontro, desta vez num boteco, diante de uma cerveja. Ruth viu Iara e a chamou: "Você não sabe! Fui convidada para ser secretária
da Promoção Social em Osasco". Humberto Parro, um professor ligado ao grupo de esquerda do PMDB, tinha ganhado a eleição para prefeito. Parro não pensava em concorrer,
acabou convencido e venceu por cinco votos. Então ligou para Ruth e quase implorou: "Precisamos fazer alguma coisa, você pode assumir a área social?". Na época,
Osasco não era a cidade de hoje, desenvolvida - não passava de uma cidade-dormitório, com uma prefeitura endividada até o pescoço, os impostos federais não chegavam,
enfim, só penúria. Ruth acariciou a ideia por momentos, chegou a convidar Iara Prado para ser sua chefe de gabinete. Porém, em seguida, a vida de Ruth deu uma guinada.
Montoro assumiu o governo em São Paulo, deixou o Senado e Fernando Henrique assumiu a vaga. Ruth disse que não se mudaria para Brasília e não se mudou. Fez várias
viagens, foi junto olhar o apartamento funcional de Fernando Henrique, tomar providências quanto à instalação do marido, mas foi tudo. Ele vinha para São Paulo,
ela, eventualmente, ia para lá por
alguns dias. Tinha ainda a vida acadêmica, seus orientandos. Diante disso, renunciou à ideia da Secretaria de Osasco e indicou José Augusto Guilhon Albuquerque,
aconselhando-o a ter Iara Prado como chefe de gabinete. Todavia, através do CEDAC e junto com alunos de antropologia, dela e de Eunice Durham continuou apoiando
os movimentos sociais de Osasco. O CEDAC, Centro de Estudos e Documentação para a Ação Comunitária, tinha sido fundado em 1979 e sua sede era na rua dos Ingleses,
numa casa que ela havia herdado dos pais. Foi um período solitário de Ruth, o marido em Brasília, os filhos cada um para um lado. Eram fins de semana repletos, foram
organizados grupos comunitários de apoio a mulheres com maridos desempregados, Casa da Criança, para quem não tinha onde deixar filho, Cozinha Comunitária, com pratos
baratos, preparados em conjunto, orientados por nutricionistas. Nesse momento, Bia Cardoso, então com 22 anos, professora e jornalista, foi trabalhar no CEDAC, ela
que já tinha uma coluna sobre educação na Folha de S. Paulo. Bia queria uma experiência mais emocionante, não desejava ficar dando aulas, e Osasco foi uma espécie
de turning point. Iara tem sempre em mente a calma de Ruth e seu modo de conviver e pesquisar. "Estávamos no meio da favela Braço Morto, hora de ir embora, e a Ruth
ainda lá na sua conversinha, sentada numa cozinha, tomando café: 'E a senhora faz como? Pode me dar a receita de tal coisa? Usa o quê? Quanto tempo ao fogo?'." Calma,
sem pressa, deixando a situação fluir - viria daí sua impontualidade?, um desprezo pelo tempo convencional? -, olhando em volta, anotando detalhes, porque aquele
era seu método, o que ela passou a todos os alunos. Observar e anotar o entorno, dele extrair o cotidiano. Quando entrevistei Teresa Caldeira, ela desenhou de maneira
límpida o método de Ruth que marcou gerações de alunos e orientandos, muitos deles nomes de primeiro plano - Sergio Paulo Rouanet--, Gilberto Velho, Eduardo Graeff,
Guita Grin Debert, Maria Filomena Gregori, Danielle Ardaillon, Helena Sampaio, Esther Hamburger, Ana Maria Niemeyer, José Álvaro Moisés, Simone Coelho, entre outros.
Ruth, para Teresa, foi muito influenciada pela escola inglesa The Centre for Contemporary Culture Studies, de Bir
mingham, onde se fundou a Culture Studies, que junta literatura, antropologia e sociologia. Richard Hoggart, com seu livro The Uses of Literaey, influenciou bastante
a maneira de Ruth ser, fazer e ensinar. "Ao lermos os ensaios dela sobre favelas, vemos como foi Hoggart quem forneceu as pistas de como avaliar a favela e sua cultura.
Ela olhava para a cultura da favela como Hoggart olhou para a cultura operária inglesa, que era a da mãe dele, porque veio de uma família operária inglesa e reproduziu
o cotidiano dessas famílias. Assim, ele contava as histórias da avó, descrevia seus gestos. Lembro-me bem, é tão claro, Ruth lendo um texto do Hoggart, em que ele
diz como a avó tocava piano na cadeira quando ficava sentada, ou então cortava a casca de laranja depois de comer e dizia que aquelas mãos não podiam ficar sem fazer
nada. Ruth nos lia esses trechos, para dizer que a gente tinha de observar tudo quando íamos para a periferia. Tenho ainda meus cadernos de anotações de campo e
posso ouvir Ruth exigindo: 'Quero os diagramas das casas, preciso saber onde tem mesa, tem cadeira, onde está a televisão, quero saber o que tem na sala, o fogão,
objetos, roupas, o chão, qual é a cultura material, como as pessoas se inserem nela'. Ensinava a fazer o caderno de anotação de campo. Era essencial observar os
gestos, ver como as pessoas falavam, prestar atenção nas posturas. Escrevíamos mais horas de anotações que horas de entrevistas. Ensino meus alunos da mesma maneira,
hoje. Para cada hora de entrevista, são duas ou três de anotação. Fazer aparecer nas anotações a cultura, o que não vinha nos depoimentos. A cultura é tudo, o entorno,
o ambiente, os objetos da casa, as interações, os movimentos no espaço. Obviamente que isso é teoria antropológica clássica, mas houve uma transformação provocada
pelo Richard Hoggart, que obviamente a Ruth e a Eunice Durham continuaram a fazer, nos ensinando a trabalhar e como trabalhar. Ela mandava ler Hoggart e, na época,
eu lia mal inglês, então, a primeira regra era ler bem o inglês, para continuar trabalhando, tínhamos de falar várias línguas, espanhol, inglês e francês, como se
lêssemos português. Caso contrário, não tinha discussão", relata Teresa Caldeira. A menção da avó de Hoggart, que dizia que suas mãos nunca podiam ficar sem nada
a fazer, nos remete a uma observação de amigos e familia-
res de Ruth. Ela fazia tricô o tempo todo, coisa que a Bia, filha dela, faz também. Os grupos de pesquisa iam para alguma parte, Ruth tricotava sentada no banco
da rodoviária, à espera do ônibus, e tricotava no ônibus a viagem inteira.

FERNANDO HENRIQUE EM BRASÍLIA, Ruth sozinha em São Paulo. Ele no Senado e ela aqui. Bibia Gregori conta que ela ia de vez em quando, era uma pessoa muito independente,
gostava, prezava e cultivava essa independência: "Penso que ela e Fernando Henrique não viveram juntos de fato como um casal convencional durante anos, a partir
do momento em que ele começou a vida política, a vida pública. Foi um período em que ela foi muito independente e era feliz com essa independência, tinha uma administração
tranquila da situação. Ela gostava disso, primeiro porque gostava de estar rodeada de jovens e a gente gostava demais dela. Éramos muito jovens e ela curtia a nossa
companhia, gostava do que a gente trazia para ela de jovialidade. Isso tinha muito a ver também, porque muitos de nós éramos amigos dos filhos dela, então ficava
tudo meio em casa. Ela gostava de ter os programas com as amigas dela, iam ao teatro, ao cinema, liam. Ruth insistiu muito para que eu fosse para os Estados Unidos:
Sibia, você vai ver que coisa maravilhosa é a experiência de poder aprender a gostar da gente vivendo só'. Foi um grande ensinamento porque, vindo de uma família
de um lado italiana e de outro meio quatrocentona, eu achava que não ia conseguir viver sozinha nunca, então, quando fui morar em Campinas, era em república, e,
quando fui morar em Berkeley, onde fiquei três meses, primeiro inteiramente sozinha e depois só com o meu filho, foi uma coisa assim, o maior presente que eu me
dei, e foi ela que insistiu muito... Ela criou uma coisa como se isso fosse absolutamente imperdível para a minha formação, só que, lógico, ela estava pensando não
só na formação acadêmica, mas na formação pessoal. Quando comecei a trabalhar com ela, quando saí de casa e casei e tudo o mais, o primeiro presente que ela me deu
de Natal foi um caderninho, sempre um caderninho, de capa dura, com aquela letrinha dela maravilhosa,
ela fez um caderninho para cada uma com as receitas de culinária, porque ela achava que a gente tinha de saber cozinhar. Achava que tinha de saber passar creme no
rosto, tinha coisas assim, que eram informações práticas na vida, não é?"

NESSE MEIO-TEMPO, entre 1980 e 1982, Ruth deu aulas no curso de especialização: "Práticas coletivas populares: movimentos sociais urbanos"; foi coordenadora e pesquisadora
do Cebrap no estudo "A periferia de São Paulo e o contexto da ação política"; promoveu dois seminários, um sobre a "Violência contra a mulher", na Associação Brasileira
de Antropologia, ABA, e outro sobre "Cultura brasileira: uma noção ambígua", no Centro de Estudos Rurais e Urbanos, CERU, da USP. Debateu, em Paris, no colóquio
"Identité nationale et expressions culturelles: une comparaison entre les États-Unis et le Brésil", na Maison de Sciences de l'Homme, onde estava como professora
associada, tendo passado ainda como professora visitante por Berkeley, Universidade da Califórnia, no curso "Comparative Urban Culture". Ruth e Fernando Henrique
foram para Berkeley, alugaram uma casa perto da casa de Manuel Castells, com quem Ruth foi trabalhar, enquanto FHC dava aulas no Departamento de Sociologia. A proprietária
era mulher de um notório comunista americano, dirigente de um sindicato, que alugava a casa para ter um dinheirinho extra. A casa era simpática, de madeira, num
bom lugar - tinha vista para a ponte Golden Cate. Embaixo havia um basernent e um jardim. Quem cuidava dele era um jardineiro que se via ter sido hippie tempos antes,
com um cabelão amarrado tipo rabo de cavalo. Entrava-se na casa por um jardinzinho lateral, subia-se uma escada, havia uma sala boa, uma cozinha, dois quartos, tudo
confortável. Ao voltar para o Brasil, Fernando Henrique assumiu sua cadeira no Senado e Ruth foi para o Cebrap, onde já desenvolvia alguns trabalhos. Ela só entrou
no Cebrap após a saída dele, porque ali havia uma norma: ou o marido ou a mulher, nunca os dois juntos. Ela juntava o salário da USP COM o do Cebrap, que era ninharia,
uma vez que se tratava de uma espécie de
ONG. Ele tinha a aposentadoria, mas era mínima - tinha sido por tempo de serviço, não contaram os anos no Chile. Assim, o pé-de-meia era feito com trabalhos no exterior
Estados Unidos, Inglaterra e França. No Cebrap, Ruth foi se ligando a Vilmar Faria, com quem tinha convivido no Chile nos tempos do exílio, e que no futuro desempenharia
um papel fundamental na vida e na participação dela na vida pública. Vilmar era um mineiro introspectivo, fechado, low profile; habilíssimo negociador, cientista
social de primeira linha, interessado nos movimentos sociais urbanos, foi acurado analista da situação política e social brasileira.

Em 1984, o BRASIL SE agitou num movimento que mostrou alto grau de ebulição política - o Diretas Já convulsionou o país em megacomícios e manifestações por toda
parte, em todos os estados. No entanto, a Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso no dia 25 de abril daquele ano, provocando imensa frustração. O próximo
embate ficaria para o Colégio Eleitoral, em 1985, quando seria eleito o novo presidente da República, desta vez um civil, para substituir o general Figueiredo. Tancredo
Neves foi eleito, mas morreu em seguida, num drama que comoveu o Brasil por meses. José Sarney assumiu, sob desconfiança dos setores liberais da sociedade brasileira
afinal ele tinha sido sempre governo militar, era o homem da Arena. Eleições diretas foram marcadas para novembro nas principais cidades brasileiras. Em São Paulo,
o senador Fernando Henrique foi o candidato do PMDB à prefeitura de São Paulo, concorrendo contra Eduardo Suplicy, do PT, e Jânio Quadros, do PTB. A vitória do PMDB
parecia assegurada, mas já na abertura das primeiras urnas verificou-se a disparada de Jânio, político conservador, representante da direita e demagogo clássico.
Jânio chamou a imprensa para vê-lo desinfetar a cadeira em que Fernando Henrique se sentara dias antes, para uma fotografia pedida pela imprensa. No dia da eleição,
tudo estava preparado para a comemoração da vitória que Seria no Buffet Baiuca. Na noite anterior, José Gregori e João Rodarte, um dos assessores de campanha, além
de amigo da família, conversaram no comitê e Gregori sentia no ar um quê de derrota.
Maria Eliana criticou o marido: ''Você está louco, lógico que vai ganhar. Por que diz isso?". José puxou o braço de Rodarte: "João, se ele ganhar, tudo bem. Mas
se perder, quero estar ao lado dele, para levá-lo para casa". Moravam na rua Maranhão, e Ruth estava em casa, acompanhada de Sergio Motta e José Serra, e, assim
que o resultado se tornou oficial, a rua se agitou com os militantes janistas tripudiando, num barulho ensurdecedor. Ela tomou as rédeas e decidiu que o melhor era
sair de São Paulo; refugiaram-se em Ibiúna por uma semana. "Ficou sentida", disse Maria Helena Gregori, "mas sem grandes manifestações." Quando voltaram, Fernando
Henrique tinha virado a página. No ano seguinte, ele disputou nova eleição para o Senado e teve uma vitória arrasadora. Para Ruth significava conviver com Brasília
de novo, com as ausências. Todavia, suas atividades acadêmicas prosseguiam ela acabara de fundar o Nemge, Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero,
da Pró-Reitoria da USP, tornou-se professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, também da usp, passou uma temporada na Universidade Columbia,
em Nova York, deu aulas de antropologia na Unicamp, em Campinas, e continuou atuando no CEDAC, em São Paulo, ao lado de sua filha Bia, assessorando associações comunitárias,
alunos e institutos. Em 1989 ela liderou o projeto "O contexto cultural da ação política", com Eunice Durham, a parceira constante, e José Augusto Guilhon Albuquerque,
cujas pesquisas trariam subsídios importantes para seu trabalho futuro na vida pública. Eles escolheram seis jovens professores para as pesquisas e eram estes que
iam para Ibiúna com Ruth e Eunice, onde o trabalho rendia. Ruth foi diminuindo o ritmo de orientação a partir de 1990, aceitando ocasionais participações em bancas
de mestrado ou doutorado, e passou também a fazer palestras pelo país sobre movimentos sociais e políticas públicas. Cada vez mais os temas ligados aos jovens e
aos direitos dos estudantes a interessavam, sentia uma angústia muito grande em relação ao futuro do Brasil e ao papel que os jovens nele desempenhariam. "Seu olhar
antropológico identificava grupos diferentes, com linguagem própria; não considerava a existência de uma única juventude, mas de juventudes
diversas, com potencialidades distintas, todas se desenvolvendo em contato direto com as tecnologias de comunicação e sendo o melhor exemplo de rede. Discutia isso
com seus orientandos e queria conhecer suas opiniões. Ouvindo, refletindo, estudando, ela ampliou os limites das ciências sociais, derrubou fronteiras e abriu novos
campos de estudo.

Assim como VEIO, Fernando Collor de Mello se foi, rapidamente. Eleito em 1989, prometeu acabar com a inflação com um único tiro, e no fim acabou confiscando o dinheiro
de todos os brasileiros, mudou a moeda, congelou salários e preços, enxugou a máquina estatal (ele se proclamou "o caçador de marajás"), extinguiu autarquias e fundações,
anunciou medidas para abrir o Brasil ao mercado exterior, mergulhou o país em depressão, arruinou empresas, provocou suicídios. Montou uma máquina governamental
de corrupção perfeitamente orquestrada, que daria, a cada membro, 1 bilhão de dólares, porém o desmonte da engrenagem resultou no impeachment do presidente, o primeiro
da história do Brasil. O ano de 1992 ainda não tinha terminado, mas o governo do dono da Casa da Dinda, sim. Itamar Franco sucedeu a Collor. Ao formar seu gabinete,
chamou para o cargo de ministro das Relações Exteriores o senador Fernando Henrique Cardoso, líder do PSDB, um novo partido criado por dissidentes do PMDB em 1988.

IBIÚNA, MEMÓRIA DE UMA VIDA

RUTH, NA MESA DA COZINHA, Segura com a mão esquerda O maço de couves que ela enrolou com cuidado, as folhas compactadas na grossura de um charuto. Empunhando uma
faca de aço, lâmina de navalha, com a mão direita pica a couve, que se deposita sobre a mesa como delgados fios de cabelo de criança. Está concentrada na couve,
ao mesmo tempo em que ouve Danielle Ardaillon falar sobre sua dissertação de mestrado. No silêncio do lugar, onde o tempo parece correr mais lento, o trabalho tinha
rendido. Passaram horas à tarde debatendo página a página, até Ruth dizer: "Agora chega! Vamos jantar. Porque eu trouxe você aqui também para o meu caldo verde".
Isso significava fazer o jantar, e ela havia prometido caldo verde, uma de suas especialidades, que começava pelo corte da couve. Couve que vinha da horta, perto
da casa. Esta é uma das imagens de Ibiúna sempre presente na memória de Danielle, que mostra duas faces de Ruth que ela equilibrava com maestria, a acadêmica e a
gourmet. Ao longo dos anos montou um caderno com receitas vindas de Araraquara, da mãe e das tias, copiadas de outros cadernos, de livros, programas da televisão,
que amigas enviavam ou coletadas nas viagens ao exterior. Escreveu com cuidado vários cadernos no Des Oiseaux a caligrafia era arte essencial; udeles ficava em
Ibiúna, outro em São Paulo, outros ela presenteou a Luciana, Bia e a nora Evangelina Seiler, carinhosamente conhecida como Van Van, segunda mulher de Paulo Henrique,
e às filhas de amigos. Nas noites frias de Ibiúna, os jantares começavam pela sopa. Predominam nos livrinhos as receitas de sopa, que ela adorava, havia de todos
os tipos? De vez em quan-
do ainda não eram tempos do politicamente correto, de preocupações com meio ambiente, nada , o caseiro Joaquim aparecia com um tatu que ela preparava e chamava
os amigos. Maria Helena Gregori se regalava e falava muito da maneira como Ruth preparava um coelho, no que é secundada por Celso Lafer: "Era de desmanchar na boca".
Outro prato em que ela se excedia era o creme de mandioquinha, cuja receita não contava. "Guisados, Ruth dedicava-se aos guisados com grande competência, tinha panelas
especiais para tudo, panela de barro, panela de ferro, de cobre, de alumínio, de vidro, panela daquilo, faca de não sei o quê, faca de não sei o que mais, cultivava
a variedade. Era imbatível nos cassoulets", afirma Jorge Caldeira, que viveu Ibiúna em sua totalidade e hoje toma conta da casa. "Ela era p'ra valer. Coisa meia
boca, tipo bifinho batido, massa com molho de tomate, só tinha vez de quando em quando, mas chegava à mesa acompanhada da menção 'emergência, olhem lá'. Ela gostava
de pratos que demoravam para cozinhar, que tinham bastante tempero, pratos aos quais era preciso se dedicar, estar atenta. Um bom jantar com a Ruth tinha duas horas
e meia de conversa depois, era o grande prazer dela, que sempre gostou muito de reunir pessoas. Ibiúna era para quem cultivava a prosa com grande gosto." Caldeira
tem uma visão curiosa sobre Ruth e a gastronomia: "Ela achava que a pessoa que não cozinhava era alguém que tinha algum defeito, algum problema. Ela imediatamente
se punha a ensinar o manejo na cozinha e isso era para todo mundo. Vim de uma casa que tinha empregada o tempo todo, casa de brasileiro que não põe a mão em nada,
e a Ruth rapidamente me 'curou', me ensinou a fritar ovo, fazer café, lavar pratos, copos, panelas, ensinava técnicas especiais, exigia competência. A Ruth era uma
pessoa para quem o exemplo era fundamental, não tem conversa, exemplo é exemplo quem vai por exemplo, vai, quem não vai por exemplo, não vai". Aquela casa, a pouco
mais de sessenta quilômetros de São Paulo, desde os anos 1970 foi um refúgio ali ela podia se isolar ou receber amigos íntimos. Condomínio aberto dos tempos
em que o Brasil não tinha tantos problemas com segurança, assim permaneceu até o momento em que
foi necessário instituir portaria e vigilantes. As casas estão plantadas em terrenos amplos, nem tão próximas que se possa viver uma vida bisbilhotada, nem tão distantes
que não se possa caminhar de uma a outra para um almoço, uma tarde à beira da piscina comum a várias moradias, ou um fim de tarde diante de canapés, cervejas, vinho
ou uísque, ou fechar a noite com um jantar grupal A casa é protegida por altas árvores, rodeada por um gramado. Tem uma varanda aberta, um jardim e uma horta. Verde,
em toda a volta. Por dentro, alvenaria e madeira rústicas. Sempre se disse "a casa de Ibiúna", mas na verdade ela fica no condomínio denominado Mirim-Açu, junto
à represa de Itupararanga, nas encostas da serra de Paranapiacaba. A cidade, que fica bastante próxima do condomínio, tornou-se histórica por ter abrigado o célebre
e já citado xxx Congresso da União Nacional dos Estudantes, em outubro de 1968. Encontro clandestino, 2 mil estudantes foram presos numa noite de chuva e lama. Ibiúna
foi criação do arquiteto Carlos Lemos, que descobriu o lugar, projetou um loteamento nos anos 1960 e começou a vender muito barato aos amigos. Amigos de nomeada
como Pedro Paulo Poppovic e sua mulher Ana Maria, de apelido Nani. E foram chegando o historiador Bons Fausto, os sociólogos Juarez Brandão Lopes, Lúcio Kowarick,
Clélia e Gabriel Bolaffi, o advogado José Gregori e sua mulher Maria Helena, o jornalista Ottaviano de Fiore, mais conhecido como Barão, e sua mulher Elizabeth,
Regina e Luiz Meyer, Luiz Carlos Bresser-Pereira, José Serra (que nunca vai), entre outros. Os lotes foram sorteados, nada de cada um escolher o seu e depois começarem
as reclamações. Formou-se lentamente um reduto dito "uspiano", não apenas pelos moradores, mas porque Ibiúna acabou sendo ponto de encontro, de fins de semana, de
breves férias de pessoas ligadas à USP. Foi Pedro Paulo quem levou Ruth e Fernando Henrique para lá como hóspedes, eles se encantaram e alugaram a casa de Fernando,
irmão de Carlos Lemos. Era uma casa bastante simples, mas muito divertida, porque tinha duas alas: os pais ficavam embaixo e a juventude subia. Numa das alas havia
a cozinha, a sala e um quarto; na outra, dois quartos e a lavanderia somando tudo, não chegava a 100 m2.
Depois disso juntaram dinheiro, venderam um quadro que ninguém na família mais se lembra qual foi , compraram um terreno e construíram a casa, que teve várias
reformas comandadas por Ruth. Ela é quem tratava com pedreiros, pintores, fazia compras de materiais de construção, escolhia portas e janelas, pias e chuveiros,
regateava preços, acompanhava e cobrava Os serviços e os prazos. Um dia, o motor que puxava a água do poço artesiano do condomínio quebrou e foi Ruth quem tomou
as providências. Para a casa, pedia sugestões a Regina Nleyer, que é arquiteta, mas nem sempre seguia o indicado. Ela gostava do simples, do despojado, do limpo
dizia-se modernista, mas não dispensava uma compoteira para dar o toque caipira. Ibiúna foi o refúgio também dos filhos. Era divertido, reunia-se uma turma enorme,
os pais eram amigos, os filhos se juntavam e, quando os mais velhos não iam, vivia-se uma vida de adultos. Todos se interligavam, havia campeonatos de vôlei entre
os lotes, andava-se de barco na represa que margeia o condomínio todo o tempo. Paulo Henrique, então com dezessete anos, comprou de um alemão um veleirinho usado,
um Snipe, que dava sempre um trabalhão para velejar. Parece que ganhou da mãe, que, apesar de dura, fazia muito as vontades dele foram buscá-lo na represa de Santo
Amaro. Entre os jovens, brincava-se que o rico de Ibiúna era o Pedro Paulo Poppovic, que tinha lancha e um Landau branco. Afinal, ele era diretor da Abril.

Aos poucos aquele reduto acabou tendo a cara de Ruth e um pouco de Araraquara, transplantada em quadros, luminárias, móveis, estantes, panelas, xícaras, objetos,
quadros, vasos de flores, cortinas de crochê, mesa de centro, estantes, biblioteca. Principalmente a cozinha, que ela moldou ao seu jeito e maneira, exibindo uma
coleção de panelas muitas trazidas do exterior que provocava inveja entre os amigos, principalmente os que também eram homens de cozinha, como José Arthur
Giannotti e Luiz Meyer. Fernando Henrique acentua que da mãe de Ruth "vieram duas coisas: o interesse pela biologia e pelos jardins. O jardim de Ibiúna sempre foi
paixão. Na varanda, ela cuidava de planta por planta. Teve esse cuida-
do a vida inteira. Trazia sementes de nossas viagens, plantava, replantava, regava, seguia. E lia sobre jardins, plantas, adubos, conhecia as espécies, as que crescem
ao sol, à sombra, as que se abrem de manhã, as da tarde, essas coisas. Havia um diálogo constante com Carlos Lemos o tempo todo. Queriam fazer fogão a lenha, e ela
amava o jardim, que dava um trabalho danado, é tudo gramado, é bonito. Indo lá, se vê que é o estilo da Ruth, não é o meu estilo. O jardim é desordenado. Mistura
árvores frutíferas com sei lá o quê, era o estilo dela, que eu chamava de caipira. Araraquara, exatamente. Não é cartesiano. Mas é muito agradável, bem cuidado.
Agora, ela gostava da casa como foi feita originariamente por ela e pelo Lemos, uma loucura, tinha chão de cimento queimado colorido, estava na época inventar moda
e o telhado era de telha-vã, como se fosse colonial, um frio desgraçado. Ibiúna é região fria. Isso levou anos para mudar, e só mudou porque fomos para a Europa
ou os Estados Unidos, não me lembro para onde, e Bia ficou tomando conta da casa, e então pôs assoalho e forro, por volta de 1990 e poucos, por aí". Gabriel Bolaffi,
vizinho de Ruth, é um gourmet e sempre teve uma horta de especiarias, salsinha e cebolinha para o cheiro-verde, e Ruth ali se abastecia de hortelã, orégano e manjericão.
Certa vez, querendo fazer uma horta também, ela propôs a Roberto Schwarz a compra de um terreno que ele tinha no condomínio. A venda não aconteceu, porém Roberto
liberou: "Olhe, venha, entre no terreno, plante o que quiser". Clélia Bolaffi guarda algumas imagens e uma delas, forte, foi a de Ruth fazendo o enxoval para uma
empregada em Ibiúna. "Ela criava uma relação diferente com seus empregados. Pois Gilberto, o motorista dela em São Paulo, não foi estudar convencido por ela e acabou
fazendo Direito? Havia uma empregada que engravidava e perdia, engravidava e perdia, e Ruth passou a orientá-la: Você tem que se tratar antes, vamos ver um médico'.
Ou seja, ela sentia apreço por todos que estavam à volta dela." Os encontros entre as duas famílias ocorriam, em geral, na piscina, onde, segundo Gabriel, "Fernando
Henrique divertia todo mundo fazendo imitações, é ótimo imitador e mímico. Quando estava inspirado e imitava o Lula e o Itamar Franco, eram gargalhadas sem parar.
Ele se descontraía
à beira d'água". Houve um período, depois da morte de Mariquita, em que os Bolaffi levavam José Corrêa Leite para Ibiúna, e ali ele se encontrava com Ferrutti, pai
de Clélia. "Papai não tinha sotaque caipira, mas quando se juntava ao seu José, voltava a falar com todos os 'erres araraquarenses. Os dois estavam meio surdos,
mas se entendiam, adoravam nossa casa." Naquele tempo, os terrenos não eram cercados, ao contrário, eram unidos por meio de jardins. De Fiore foi o primeiro a levantar
uma cerca, já nos anos 1980. Ruth, em Ibiúna, vivia para a cozinha e a casa, para a horta e o jardim, entrava tranquilamente na conversa cricri criados e crianças
, conversava com empregados e com os locais no mesmo tom, conhecendo e usando suas expressões. As filhas de Clélia e Gabriel, bem mais novas que Bia e Luciana, tinham
uma impressão curiosa: "Ah, mamãe, ela só fala de sofá, de trocar a capa do sofá, de fazer reforma". Havia noites calmas, Maria Helena e José Gregori apareciam,
jantavam. Se estava frio, abria-se um vinho, a adega era bem abastecida, ainda que controlada. Ruth cutucava: "Fernando Henrique, abra um vinho dos bons, você tem
tantos". Tinha, sim, das melhores marcas, das melhores cepas, que, dizia ele, ficavam para ocasiões especiais. "Vamos perder todos se não bebermos", Ruth reclamava,
e ele acabava concordando, mas era econômico no servir, fazia a garrafa render. Depois de comer, Ruth sentava-se na sala e ficava conversando com José, os dois
não eram dados ao jogo. Ela jogava baralho, sim, com os netos, biriba ou rouba-monte, e divertia-se. Ruth e José eram também parceiros de dança, faziam dupla em
qualquer festa. Na quietude de Ibiúna e boa conversa, ela sorvia uma boa cachaça, tinha uma coleção de esplêndidas marcas. Preferia pura, nada de batidas ou caipirinhas.
Maria Helena e Fernando Henrique sentavam-se à mesa de jogo ele gosta do pôquer, mas fazia concessão concordando em jogar buraco ou tranca. Apostas baixas. Quando
perdia, Fernando Henrique não gostava nada. Em fins de semana mais agitados, casa cheia, a mesa de pôquer durava horas. Havia um bar por lá, onde os locais se reuniam
para conversar, beber, jogar sinuca. Começaram a aparecer problemas, inclusive de drogas. As mulheres dos operários, jardineiros, caseiros, pedreiros passaram a
recla-
mar. Ruth interveio, negociou com o prefeito, conseguiu o fechamento do lugar, as mulheres agradeceram: "Agora nossos maridos não chegam mais bêbados em casa". O
bar tornou-se um lugar onde se vendia artesanato, feito pela população local. Durou dois anos. À medida que o tempo passou e as questões ligadas à segurança se acentuaram,
decidiu-se "fechar" o condomínio, com os empregados usando crachás, o que deixou parte dos "condôminos" indignados, causando protestos. Bolaffi foi um deles: "Logo
estaremos todos isolados em fortalezas fechadas". Momento especial era a ceia de Natal. Algumas foram feitas em Ibiúna e uniram mais a família. Ruth curtia toda
a preparação, a compra de presentes para cada um, porque todos ganhavam, e cada qual embrulhado de maneira personalizada, a árvore de Natal, a arrumação da mesa,
a toalha, os pratos, os arranjos, as velas. Depois de muita comida, inventavam-se coisas engraçadas que todo mundo fazia. Mas em geral a ceia era no apartamento
da cidade - além da família, amigos chegados passavam para os abraços de boas-festas -, ainda que muitos preparativos tivessem sido feitos em Ibiúna, antecipadamente,
em especial certas comidas. Uma vez, Luciana e um namorado fizeram para Ruth um manto de Super-Mãe igualzinho ao do Super-Homem, tinha o sm nas costas, e ela distribuiu
todos os presentes com o manto nas costas, ria muito. Os filhos vinham com os namorados e namoradas, para os amigos era uma casa em que todos se sentiam bem-vindos,
a maior farra. Ela continuou fazendo esses Natais em Brasília, mas então só para os filhos e netos, em encontros mais contidos. Teresa Caldeira conheceu Ruth em
Ibiúna e jamais imaginou que um dia seria sua aluna e ali desenvolveriam trabalhos em fins de semana. Ela e o irmão Jorge Caldeira foram como que adotados por Ruth
e Fernando Henrique. Teresa acompanhava o irmão a Ibiúna, junto a um grupo de jovens. Mais tarde, já na faculdade e trabalhando com Ruth, transferiamse todos para
lá, principalmente nas pesquisas sobre a periferia. "Ela e Eunice Durham levavam a equipe inteira. Éramos seis pesquisadores de campo ali reunidos e o trabalho rendia
naquele silêncio e solidão. Eu estudava a Zona Leste, Helena Sampaio estudava Osasco, Antonio Teixeira
Mendes, hoje superintendente do Grupo Folha, fazia o que a gente chamava o bairro virgem, que era uma questão de método fundamental. Esse bairro, Cidade Júlia,
na Zona Sul, era o único que não tinha movimento social. Ficou assim chamado porque não tinha nenhuma forma de organização social, para servir de comparação com
os outros. Claro que em seis meses o bairro estava agitado, cheio de movimentos sociais, e vimos tudo aquilo começar. Os outros da equipe eram Antônio Flávio Pierucci,
professor de sociologia da USP, que trabalhava com o Procópio Ferreira de Camargo no Cebrap, a Célia Sakurai, que depois foi estudar os imigrantes japoneses, e
a Cristina Guarnieri. Claro que, depois, Ruth fazia o caldo verde para todo mundo." Pedro Paulo Poppovic morava em lbiúna numa casa perto do lago, a dez minutos
de caminhada da casa de Ruth. Depois, ele se mudou para a casa vizinha, era só atravessar um gramado. Pedro Paulo, cuja mulher morrera num acidente em 1983, casou-se
de novo com uma egípcia recém-chegada ao Brasil, Malak El Chichini. Mulher interessante, inteligente e bonita, economista que tinha estudado na Suíça, trabalhado
na ONU e morado na África e nos Estados Unidos, Malak veio ao Brasil em 1985 para passar o Carnaval, gostou e ficou. No encontros em Ibiúna, uma de suas primeiras
amigas foi Ruth, porque se comunicavam em francês, uma vez que Malak não falava uma palavra em português. "Nas reuniões, as pessoas procuravam falar numa língua
que eu entendesse, mas depois de quinze minutos e alguns copos, estavam todos falando português e eu inteiramente perdida", diz Malak. Numa viagem que Ruth fez ao
Egito para uma reunião sobre antropologia, entre 1986 e 1987, Malak não só lhe deu todas as dicas sobre os modos de ser do país, como também o endereço de sua mãe
- as duas almoçaram juntas, conversaram e, evidente, ficaram amigas. "Eu estava interessada em trabalhar, fazer alguma coisa, e Ruth me aconselhou a participar do
núcleo de estudos da violência. Na época conheci muitas alunas dela, que alguns chamavam de 'ruthetes', e acabei me entrosando com elas. Mal podia prever que trabalharíamos
juntas, mais tarde, num projeto de importância vital para o Brasil." Danielle Ardaillon, no começo dos anos 1980, estava trabalhando no
Cebrap e seu relacionamento com Ruth e Fernando Henrique se estreitou, ela foi convidada para Ibiúna, o que, de certo modo, indicava sinal verde, uma vez que os
dois sempre foram reservados quanto ao círculo familiar e amigável. Quando Danielle, que teve uma trajetória de vida complicada devido à ditadura, prisões e perseguições,
foi fazer seu doutorado, precisou antes fazer o mestrado para fechar o círculo o mundo acadêmico era rigoroso em suas regras. Nesses momentos, foi como se Ruth
a tivesse tomado sob sua guarda. As visitas a Ibiúna passaram a ser mais frequentes. Era comum ver Paulo Henrique e Ana Lúcia chegando com as filhas gêmeas Helena
e Joana, mais júlia, filha de Bia, e as netas logo rodeavam a avó na cozinha, aprendendo a cozinhar. Pedro tirava suas casquinhas, vez ou outra. Havia ainda lições
de corte e costura, entremeadas por uma conversa cheia de casos. O espírito da bisavó Mariquita perpassava, evocando aquelas tardes em que ela fazia vestidos de
baile para Ruth ou uma fantasia de pipoca, ou copiava, com o que havia nas lojas de Araraquara, a alta-costura parisiense. Certa noite, Ruth deu um presente a Van
Van. Um ovo de madeira? Para cerzir as meias do Paulo. Muito obrigada, mas acho que não vou usar isso, não! Com a mãe de Evangelina, já idosa, Ruth conversava sobre
árvores e natureza, inclusive enviava fotos ou livros sobre fazendas, ela sabia como chegar e envolver cada um, não importava a idade e o meio. Regina e Luiz Meyer
eram amigos de longuíssima data que também tinham casa em Ibi úna, ainda que um pouco afastados para se visitarem era preciso ir de carro. Luiz, um psicanalista
que também fazia da cozinha um momento especial, adorava cozinhar para Ruth. Esta cena era comum: ele terminava um prato, oferecia, ela apanhava o garfo, levava
até a boca, fechava os olhos, sentia o paladar, e comentava. Ficou famosa a mesa de almoço com gavetas (uma coisa mineira) e um centro giratório que era um sucesso.
Wilma, mulher de Sergio Motta, braço direito de FHC, fez uma cópia moderna dessa mesa em pau-marfim. Aliás, certa vez NArilma trouxe de Paris uma luminária em forma
de losango (-Me deu um trabalho enorme trazê-
-la no avião", confessou) que deixava todo mundo embasbacado. Ruth colocou-a sobre essa mesa. -Em Ibiúna, eu saía de cena e Luiz entrava", comenta Regina, -porque
era uma coisa muito forte, ele é quem comprava as coisas para levar, escolhia, procurava, buscava uma novidade, e a ida para Ibiúna era agradável, muitas vezes levávamos
trabalho, ela também, e nos reuníamos à noite, a conversa rolava. Ela insistia: 'Regina, precisamos fazer alguma coisa aqui', e eu pensava em biblioteca, tinha mania
de biblioteca, ela não, procurava alternativas. Um dia, falou: 'A gente tem de montar aqui uma escola de hotelaria'. 'Mas por que hotelaria?' 'Esse pessoal do interior
sabe receber, gosta de receber, sabe colocar as pessoas à vontade.' E, como eles sabiam, talvez pudessem ensinar. A última foi: 'Temos de levar essas pessoas a aprender
formas novas de agricultura, criativas, eles têm de ter perspectivas, não serão caseiros apenas porque seus pais são caseiros, é preciso quebrar essa engrenagem'.
Ela sabia que as pessoas mais interessantes não são as mais conhecidas, as que estão sob os holofotes; às vezes, as pessoas interessantíssimas estão é fora, e Ruth
tinha atenção para essas pessoas, ela gostava, ia buscar, não ia atrás do consagrado. Ruth gostava de ver fazer, ela punha gosto nisso. Olhar uma mulher fazendo
renda, ou comida, uma peça de artesanato. Quando ela me trazia um presente, por exemplo, eu abria e ela dizia entusiasmada: Você precisa ver como é feito'. O fazer
era importante, forte para ela. E o descrever? Ela gostava de descrever o lugar, o espaço, a decoração. Foi essa história do fazer que a levou para a antropologia,
porque na antropologia ela estava mais perto da comunidade, do real, não do abstrato. Ela não gostava tanto da teoria, aliás nem o Fernando, ainda que ele faça teoria
com facilidade. Ela era da concretude, da realidade das coisas, e isso a levou a essa dimensão do chegar perto, falar com as pessoas, ela sentia interesse pelas
pessoas, mais interesse pelas pessoas que pelos livros. Ruth se formou em Araraquara, ali teve o aprendizado do mundo real, da valorização do fazer. Tudo o que
veio depois poderia tê-la afastado desse mundo, no entanto ela guardou tudo como uma herança que prezava profundamente. Não ficou nostálgica, e sim evocativa. Carlos
Drummond de Andrade foi para o Rio de Janeiro e o que fez? Falou de
Minas, porém Minas era o retrato na parede. Para Ruth, Araraquara não era o retrato na parede, era uma coisa do cotidiano - se comia goiabada, falava de Araraquara.
Quando visitavam os Meyer aos sábados, logo após o jantar todos saíam, sentavam-se nos degraus da entrada, ficavam batendo papo. Então Ruth se esgueirava pelo corredor,
ia para a salinha de televisão, via um capítulo da novela e voltava toda contente. Regina comenta: "Ela não se justificava, 'Estava zapeando, por acaso parei na
novela'. Via mesmo, gostava, não se envergonhava, se interessava, achava graça, dizia que as novelas a faziam entender o Brasil. Era uma intelectual sem o pedantismo
intelectual". Ruth tinha loucura por Ibiúna, coisa que a Bia não tinha, e a Luciana viveu mais afastada, morando em Brasília", comenta Bibia Gregori, que teve uma
relação bem próxima com o lugar. "Paulo ali passou sua juventude e depois, vivendo no Rio de Janeiro, ligou-se menos. Ruth adorava Ibiúna, tanto é que ela, aos poucos,
começou a levar as coisas dela para lá, achava que ia começar a viver um pouco lá, um pouco cá. Mas era a única que gostava muito. Depois que o caseiro Joaquim foi
morto em circunstâncias misteriosas, aquilo foi virando uma experiência dolorosa para ela." Fernando Henrique conclui: "Foram quarenta anos de Ibiúna, e foi muito
bom, ali os meninos foram criados, desfrutava-se a convivência de todos. Depois, casa de campo, você ocupa por geração, primeiro os filhos, depois os netos. Se os
netos vêm, tudo bem, mas nossos netos foram criados todos fora de São Paulo. Ficamos eu e a Ruth. Lá a gente almoçava e ia para a varanda, tomar sol, ler um pouco.
Ela implicava comigo nisso também, porque eu gostava de dormir na rede. Porque ela não dormia depois do almoço, então implicava: 'Você fica dormindo, depois não
dorme à noite'. Depois ela parou de implicar. Ibiúna é a memória de uma vida".

A MULHER QUE NÃO QUERIA IR PARA BRASÍLIA

EM 1992, FERNANDO HENRIQUE Cardoso foi ao Japão para solucionar um problema em relação ao seguro exportação e aqui deixou o presidente Ita mar Franco às voltas com
a excitação da mídia em torno de um escândalo envolvendo Eliseu Resende, ministro da Fazenda. Começavam no Brasil os rumores de que Fernando Henrique estava cotado
para substituir Resende. Do Japão, FHC foi para Nova York, e estava na embaixada brasileira jantando com o diplomata Ronaldo Mota Sardenberg e sua mulher, Célia,
quando Itamar chamou-o ao telefone. O presidente perguntou: - Você está sentado ou em pé?' - Por quê? - Estou com um problema enorme. A situação do Eliseu Resende
é insustentável. - E pretende fazer o quê? Substituí-lo por você. Itamar, não faça isso! Mantenha o Eliseu, por favor! Não tenho mais justificativas, não tenho como
explicar no exterior as mudanças de ministro da Fazenda. Já foram três. O Eliseu está fazendo o que pode. Mas a coisa está difícil, a situação é insustentável, você
não imagina, ficou horrível. - Presidente, não estou no Brasil, não posso e não quero faltar a você, eu só peço uma coisa: converse com o Eliseu, veja se dá para
ficar com ele. - Está bem, eu ligo depois. Fernando Henrique voltou à mesa, e os diplomatas perceberam que
ele estava um pouco tenso. Dali a pouco, Célia Sardenberg, que tinha saído, voltou à sala: Olhe, o comandante Carvalho mandou dizer que o presidente não precisa
mais falar com o senhor. O telefone tocou muito cedo, na manhã seguinte. Do Brasil ligava Luiz Felipe Lampreia, secretário-geral do Itamaratv: Ministro, o senhor
agora está na Fazenda. Atônito, Fernando Henrique ligou para o presidente Itamar, foi atendido pela empregada Geralda, que, antes de ele dizer alguma coisa, comunicou:
Caiu muito bem a sua nomeação aqui. Quando itamar apanhou o telefone, foi logo dizendo: Pois saiba que sua nomeação repercutiu muitíssimo bem no Brasil. Parabéns!

Fernando Henrique dormiu de novo. Acordou com o telefone, atendeu, do outro estava uma Ruth Cardoso furiosa: Você é louco?

O que foi? Quer dizer que virou ministro da Fazenda? Não. Onde viu isso? Itamar me convidou, não aceitei. Como não aceitou? Você está mentindo. - Como mentindo,
Ruth? É verdade, não aceitei Ela não se continha, danada de brava. Desligou. Do lado de lá da linha, em São Paulo, estavam Ruth e Rosiska Darcy que, naquela noite,
tinha ido jantar na rua Maranhão. "Fui a São Paulo buscar orientação para a organização de oNgs, assunto em que Ruth era mestra, tinha até o apelido de ongueira.
Deviam ser duas da manhã, ela falou com Fernando Henrique e desligou o telefone bastante transtornada, bem alterada. Quando disse que não entendia tal perturbação,
ele retrucou que estava vendo nisso um sinal, um aviso de que o marido seria um candidato à Presidência da República. E, que se fosse, toda a vida deles estaria
alterada. Não seja negativa assim, Ruth, eu disse. Veja isso com outro olhar. Se o Fernando Henrique chegar à Presidência, essa será a aventura de nossa geração."
Bem, diz hoje Fernando Henrique, Ruth nunca acreditou que ele não tivesse aceitado o convite na primeira conversa que teve com o Itamar. Ela achou que ele estava
enganando todos, inclusive ela. "Nunca acreditou, mas a verdade foi essa. Ela ficou indignada! Ela e todo mundo, Serra também, aliás, todos, porque achavam que eu
estava liquidado, a inflação era galopante, derrubaria todo mundo, eu tinha metido o pé no buraco. Era o quarto ministro da Fazenda, o governo Itamar, instável,
CPI dos 'anões do orçamento' no Congresso, isso era um golpe contra mim, eu estava liquidado! Não obstante, eu era o ministro da Fazenda, fazer o quê? Cheguei ao
Brasil, a Ruth já estava no meu apartamento, meu apartamento era do Itamaraty. Bem, Ruth já estava no apartamento com os filhos, ela era contra, mas solidária. Estava
todo mundo esperando explicações. Aquele foi um dia terrível; cheguei, tomei um banho, fui para o Palácio do Planalto, o Eliseu e o Itamar me passaram a função.
À tarde, fui para o Ministério da Fazenda fazer um discurso de posse, auditório repleto. Ruth, filhos, amigos, todos com cara de enterro, o auditório me esperando
com uma fórmula mágica. Eu disse: O Brasil tem três problemas, o primeiro é inflação, o segundo é inflação, e o terceiro é inflação, e vou acabar com ela'. Bem,
aí foi uma época de tensão, todos achavam que era um erro, mas tinha sido nomeado, ia fazer o quê? Meus amigos e minha família tinham certeza de que ia ser um desastre,
primeiro, lidar com o temperamento do Itamar, e segundo, eu, que não sou economista, ter de lidar com economia. Além disso, foi um drama para Ruth. Um momento difícil
para ela." Como ministro da Fazenda, Fernando Henrique ganhou notoriedade nacional ao criar, no combate à inflação, a Unidade Real de Valor, a URV, junto com o
Cruzeiro Real, nova designação da moeda brasileira, logo depois transformada simplesmente em Real. Estabilizava-se o Brasil sem planos, congelamentos e outras medidas
de choque que, até então, tinham fracassado. A implantação do Real foi uma dura luta no Congresso. Lula e o PT bateram-se fortemente contra o plano. O Real conferiu
a FHC uma celebridade popular que consolidou seu nome como o candidato natural do PSDB à Presidência da República. -Aqui começou outra história", diz ele. "Essa
candidatura foi, a prin-
cípio, uma coisa que ninguém lá em casa quis, ninguém teve essa aspiração, nem Ruth nem os filhos. Quanto a mim, era ambíguo, por que é que eu queria? Eu queria
efetivar o Plano Real, não é? Buscava a estabilização. Quando deixei o Ministério e vim para São Paulo, em maio de 1994, confessei a minha família: 'Não vai dar,
vou desistir', porque eu não subia nas pesquisas, estava parado! Eles entenderam a candidatura, conheciam a lógica da política. Não tinham grande entusiasmo e conviviam
com uma ponta de esperança de que eu não ganhasse, mas entenderam. Mas aí eu disse: 'Vou desistir, porque não dá'. Não ganhava apoios, não havia dinheiro. Mas com
o Plano Real a situação mudou, de repente comecei a subir, a crescer. A tal ponto que logo tivemos certeza de que ganharia no primeiro turno, direto.'' Uma noite,
voltando de um concerto no Cultura Artística, Ruth, que dirigia, passou pela casa de Lourdes Sola e acabou subindo, parecia ansio-
sa para conversar. Quer um chá? - perguntou Lourdes. Ela consultou o relógio. Meia-noite! Mas vou tomar o seu chá. - Você não está bem! O que te preocupa? O que
há? - Lourdes, se o Fernando Henrique ganhar essa eleição, não sei o que vou fazer da minha vida. Não sei o que vou ficar fazendo. - Não me preocupa a mínima isso.
- Como? Não estou dizendo que passo pela maior angústia? Ruth, tenho a seguinte teoria. As pessoas vitais, muito vitais, colocadas em situações novas, inventam
o que fazer. Vejo por mim, certa época, exilada, me separando, deprimida e consegui inventar algo a fazer. Você e o Fernando Henrique... - Mas o Fernando Henrique
terá o que fazer, e muito! - Ruth, eu te conheço. Você vai inventar. Não vai ficar parada, você é vital demais. Ela ficou olhando para Lourdes, sorvendo o chá, um
sorriso aflorou, baixou a angústia. Para José Arthur Giannotti, ela confessou: "Se for possível, não vou
para Brasília. Não vou, não. Vou dar um jeito de cumprir minhas funções oficiais, mas não quero deixar meus alunos". Assim, acentua Giannotti, "ela não queria largar
essa vida de professora, tinha enorme contato e carinho pelos alunos dela". Bia Cardoso admite que foi um momento difícil para sua mãe, porque a candidatura virou
realidade, a Presidência também, "e ela não navegava bem nessa parte. A Presidência, toda a exposição, a vida nova que viria pela frente. Ela era muito da casa,
gostava do cotidiano, vivia bem nessa dimensão, então no começo foi sufocante, depois ela administrou bem, conciliou as coisas. Conciliou principalmente com a vida
pessoal, nunca perdemos nada de nossa vida privada, familiar, preservamos nossa intimidade, ela e papai conseguiram equacionar bem a situação, mas houve um período
que foi um susto, ela não achava a menor graça". Reações isoladas para amigos chegados, familiares. Porque uma das marcas mais fortes de Ruth foi a reserva. Calada
quanto aos próprios problemas, ansiedades. "Ela se abria pouco", comenta Regina Meyer, "esperava mais que a gente deduzisse do que a gente soubesse. Ela imaginava
que entendêssemos seus subentendidos, silêncios. Ruth viveu momentos muito difíceis, em que estávamos juntas sem falar, ela sabendo que havia em mim um caldo de
conhecimento daquilo em que ela estava mergulhada. Aqui e ali afloravam algumas coisas. Não era amiga dessas de contar no detalhe uma intimidade. Nunca deixava ultrapassar
certos limites. Eu acompanhava, via às vezes que ela não estava bem, mas nunca tivemos conversas assim de rasgar, abrir a alma literalmente. Não era o perfil da
Ruth." "Por outro lado, era ótima ouvinte e conselheira", diz Gilda Portugal Gouvêa. "Eu contava tudo a ela, problemas com minha filha, com o ex-marido, com namorado.
No entanto, sobre ela, Ruth não abria a boca, não contava nem do passado, nem nada. Falava dos filhos, sim, comentava o jeito de cada um, problemas, afetos, era
mãe em tempo integral. Quando o Fernando Henrique entrou na campanha, para ela foi traumático, viu que teria de abrir mão de alguma coisa, seria obrigada a fazer
escolhas. Ela passava a ser um personagem novo e essa mudança não estava em suas mãos. Quando me disse, cheia de convicção, 'Não vou morar em Brasília', quase
caí de costas e pensei: meu Deus, e agora? Desde que veio estudar em colégio interno em São Paulo, ela estava predeterminada a ter uma vida com certo perfil. Quis
sempre ter o trabalho dela e lutou muito por isso. Não conseguia imaginar que iria ocupar um cargo que dependia inteiramente do papel ocupado pelo marido." Muitas
pessoas chegavam até Ruth dizendo: -Não fique se martirizando, acalme-se, Fernando Henrique jamais será eleito, ele é ruim de campanha, de palanque, professoral
demais". Outros iam mais longe: "Imagine se vai ter um voto no Nordeste!".

Até então, na história da República, o que era a primeira-dama além de uma figura decorativa? Uma mulher vista na companhia do marido em recepções, banquetes, homenagens,
palanques oficiais, coquetéis, almoços. Uma pessoa sem o mínimo poder de decisão. Apavorava-a que lhe dessem um script, o que dizer, o que declarar, o que fazer,
aonde ir. Gilda Portugal Gouvêa, quando da campanha para a prefeitura em 1985, viveu ao lado de Ruth um momento inesquecível e que a explica bem. A certa altura,
por necessidades de campanha, negociações políticas, agrado ao eleitorado, Ruth teve de ir a uma reunião de senhoras no Clube Pinheiros. Era uma reunião ligada a
assistência social e uma falava do clube do tricô, outra do chá beneficente, e assim por diante. Ruth, calada. Ao entrar disse boa-tarde, ao sair, até-logo. Foi
tudo. Gilda, numa saia justa, tentava explicar que Ruth era assim mesmo, que só ouvia, registrava tudo, processava, e viria depois com soluções e ideias. A reunião
acabou por falta de energia, as mulheres se dispersaram, Gilda e Ruth desciam pela escada no escuro. Então Gilda ouviu dela: -Se eu fosse abrir a boca, acabava com
aquelas mulheres. Preferi ficar calada!". Ruth cochichou um dia para Gilda Portugal Gouvêa que sairia do Brasil, iria para Stanford passar um tempo, quando voltasse
a eleição já teria acabado, Fernando Henrique estaria eleito ou derrotado. A campanha começou, eles a chamavam, e ela avisava "não posso", "tenho uma banca", "um
trabalho", -um aluno". A imprensa querendo entrevistas, fotografias, e ela se esquivando estava ficando cada vez mais delicada a situação. Sergio Motta não se conteve
e ligou para Gilda: "Você precisa entrar no cir-
cuito, conversar com a Ruth, não dá mais, está criando um problemão, ela precisa definir, como fez em outras campanhas, um nicho, dizer o que quer fazer, com o que
quer trabalhar, com quem. Ela precisa de um assessor, não dá para sair na rua sozinha, como vem fazendo, uma hora vai topar com um jornalista que vai fazer uma pergunta
torta, ela vai responder mais torto, a coisa vai para a televisão, para os jornais, está formado o quiproquó". Gilda convidou Ruth para um almoço no centro da cidade,
no restaurante Dinho's da rua Vieira de Carvalho. Ruth, não dá mais, você vai precisar de alguém que te acompanhe. -Acompanhar para quê? Alguém colado em mim? Uma
pessoa para fazer e controlar a sua agenda, há coisas para você fazer, coisas a dizer. Não sei se quero. - Então o melhor é você ir para Stanford, ficar por lá uns
meses, volte em setembro ou outubro, a campanha já estará no auge. O que não dá é você ir aqui, ir ali, esporadicamente, quando te dá na cabeça. Um dia vai, no outro
não. Nunca se sabe se podemos contar com você. - Assessora... Não, não quero... Bem, quem podia ser? Bibia, filha do José Gregori. Não, Bibia não vai aceitar, tem
sua carreira, acha que vai se dedicar a uma bobagem dessas? Por meio de Iara Prado chegou-se ao nome de Márcia Ferreira. Professora de Minas Gerais, diretora de
escola já aposentada, Ruth a prezava muito tinham feito viagens juntas e as duas tinham a mesma paixão em descobrir as tecedeiras, as bordadeiras, as mulheres que
faziam tricô e crochê, as habilidosas em ponto de cruz. Márcia tinha trabalhado com o grupo durante o governo Montoro e Ruth a escolheu, justificando: "Gosto dela,
porque não sabe distinguir quem é o jornalista importante do outro, para ela serão todos iguais, o meu interesse é que vai estar à frente, não a pressão deles. Não
será alguém grudado em mim, invadindo a minha casa". Márcia retrucou: -Está doida, Ruth? Não entendo nada, sou uma caipira, nunca fiz política".
Pouco depois, Ruth dizia dela: "A Márcia é fantástica". Marcia realmente organizou a vida dela, tudo passou a ser mais tranquilo não havia jornalistas à espera
quando saía do apartamento, ninguém a segui-la nas ruas. Ela também não atendia mais a nenhum telefonema. Aceitou até que Márcia fosse à casa dela para montar a
agenda. A campanha pressionava, precisavam de eventos, e um dos primeiros foi em Araraquara, no dia 1º de setembro de 1994. Centenas de pessoas a esperavam no Hotel
Eldorado. Para ela foi um encadeado de emoções, principalmente porque era a primeira vez que Ruth vinha à cidade sem a família, o pai e a mãe tinham morrido há muito.
Na mesa, ao seu lado, estavam a amiga de infância Inaiá Bittencourt, o empresário Ivo Dal'Acqua, um dos organizadores e amigo da família Cerqueira Leite, Luiz Felipe
Cabral Mauro, reitor da Uniara, onde a mãe dela, Mariquita, trabalhou por anos e se aposentou, e Roberto Ramalho, diretor do eampus da Unesp, que organizou um encontro
com os professores na Casa de Cultura Luiz Antonio Martinez Corrêa (homenagem ao irmão de José Celso, do Teatro Oficina). O almoço aconteceu no Clube
22 de Agosto, um dos tradicionais da classe média araraquarense. Ali Ruth, depois da missa das dez na matriz, ia para a domingueira, seguindo para casa para fazer
a sobremesa do almoço. Na plateia, entre outros, Heloisa e Eduardo Michetti, Renato Corrêa Rocha, o segundo namorado na juventude, José Edgar Machado, o Zé Baiano,
da Turma da Banheira, e Biluca, sua mulher, o professor Joaquim Pinto Machado, conhecido como Macha dinho, de quem Mariquita foi assistente no Colégio Estadual,
a professora Edite Guião, instituição da cidade, e Ernesto Lia, pintor que documentou várias fases de Araraquara e amigo da casa dos Corrêa Leite. Ele presenteou
Ruth com um quadro. A saudação, em nome das mulheres de Araraquara, foi feita por uma amiga íntima, Maria Alice Lia Tedde, professora de português e latim. Depois
do encontro com os professores na Casa de Cultura, Ruth foi mostrar a Iara a casa da avenida Quinze de Novembro, e foi surpreendida com uma recepção repleta de sorvetes.
A cidade é famosa pelas sorveterias, todas em mãos de japoneses há décadas. Uma das parentes de Ruth, Celisa Troncon, sabendo da chegada de Ruth, foi à tradicionalíssima
Nosso
Sorvete, na avenida São Paulo, onde todos tomavam suas taças depois das sessões de cinema aos sábados e domingos. Diz-se que o sorveteiro Eichim Uesato, ao saber
que era sorvete para uma comitiva, a princípio relutou, era muita coisa - tudo feito à mão, com a pá de madeira, batendo as claras e misturando os ingredientes de
suas duas maiores especialidades: creme suíço e creme de limão. Mas, ao saber que era para Ruth Cardoso, passou toda a manhã, muito orgulhoso, batendo o sorvete,
e foi entregá-lo pessoalmente na avenida Quinze. Outro evento foi numa creche de periferia, Campo Limpo, mantida por Amélia Watanabe. Toda a imprensa compareceu,
controlada por Márcia Ferreira. Houve ainda um terceiro momento da campanha que ficou célebre por uma fotografia, reproduzida em todo o país. A imprensa fugiu ao
controle e Ruth, que não era de beliscar e assoprar, incomodada, teve um gesto tipicamente araraquarense: voltou-se para os fotógrafos e mostrou a língua. As eleições
se aproximavam, Fernando Henrique continuava subindo nas pesquisas. O pessoal da campanha começou a ter a certeza da vitória quando apareceram nas ruas cédulas pintadas
de verde com as pessoas exclamando: "Que dólar, que nada, temos o Real". Na antevéspera das eleições, no Rio de Janeiro, Dalva e Fernando Gasparian, amigos muito
chegados de FHC deram um jantar ao qual estiveram presentes Fernando Pedreira, a esta altura com sua nova mulher, Monique, Celso Furtado, Lucia e Luciano Martins,
Maria Helena e José Gregori. Fernando Henrique estava no auge da tensão, Ruth mostrava-se calma. José, na despedida, disse: - Vamos ver vocês no dia de eleição e
no dia seguinte embarcamos para os Estados Unidos. Como? E o segundo turno? - Fernando, não vai haver segundo. No dia da eleição, Ruth e Fernando Henrique votaram
e, em sigilo, seguiram para a Fazenda Bela Vista, em Pardinho, de propriedade de Jovelino Mineiro e sua mulher, Maria do Carmo Sodré. "Nossos filhos, genros, nora
e netos foram todos para lá. Paulo Henrique, o mais velho, à época casado com Ana Lúcia Magalhães Pinto, e as filhas gêmeas, Joana e Hele-
na; Luciana, grávida da filha Isabel, mais o marido, Getúlio Vai.; e Beatriz, a Bia, com o então seu marido, David Zylbersztajn,5 e os filhos Júlia e Pedro. Apenas
nós, e os anfitriões com o filho, Bento, assistimos num grande aparelho de Tv aos resultados da apuração. Não tardou para minha dúvida íntima se dissipar, e ficou
claro que, sim, vencia no primeiro turno. [...] Dois dias depois, a Globo descobriu que estávamos lá. Começou uma revoada de helicópteros da imprensa, com muita
movimentação, e decidimos regressar a São Paulo". Ruth, recém-aposentada da USP, teve certeza de que sua vida estava mudando radicalmente naqueles dias.

CENA FARFALHANTE DE UM MUSICAL

LOGO DEPOIS DA ELEIÇÃO e da vitória, O editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, deu um jantar em sua casa na rua Salvador. Celso Lafer e sua mulher, Mary,
ali estavam e, a certa altura, conversando os três, à parte, Celso disse a Ruth: - Olha, vou te dizer uma coisa. Acho que o Fernando deve muito da eleição dele
a você. - Por quê? - Você representa o que o Fernando tem de melhor, dignidade e padrões éticos. Você emblematiza para a opinião pública essa dimensão que é do
Fernando, mas da qual você é a expressão mais óbvia. - Se você acha realmente isso, vai lá e diz a ele. Ela riu, estava bem-humorada, ainda que inquieta quanto aos
dias que viriam. Celso Lafer diz que não somente foi e contou ao presidente o que tinha acabado de afirmar, como ainda enviou-lhe uma carta reforçando. "E ele aceitou
tudo com naturalidade. Se achava ou não aquilo, não sei, porém o futuro mostrou, trouxe a comprovação inequívoca dessa dimensão dela, que deve ter surpreendido inclusive
a ele." A mulher que tinha perdido o chão no início da campanha presidencial chegou a Brasília recuperada, ainda que com o pé atrás. Ela começou a perceber o peso
da mídia, a sua pressão. Sabia que teria atritos, que seria necessário impor limites. De que maneira? Decidiu que não daria entrevistas, isto cabia ao presidente.
E nos primeiros tempos ela foi muito crítica, sempre questionava por que estavam interessados em aspectos pessoais,
dizia que invadiam a sua privacidade, que não podia dar um passo etc. Mas acabou dando uma longa entrevista que foi capa da Veja. Para essa entrevista, foi Fátima
Pacheco Jordão, do grupo de trabalhos sobre a mulher, quem fez a intermediação entre a revista e Ruth. Quando se garantiu de que quem ia fazer e editar a entrevista
era a Dorrit Harrazin, não havendo o perigo de um colher as informações e o outro editar e escolher as linhas ao hei-prazer, Ruth aceitou. Ao falar, deixou bem claro
que ela seria uma primeira-dama ou uma mulher de presidente com características totalmente diferentes das anteriores. Já naqueles dias todos perceberam que Ruth
ia reorganizar os termos, os códigos e as funções de uma primeira-dama. Interessante acompanharmos o trecho de um diálogo que Ruth manteve em 1994 com o repórter
Ernesto Paglia, da Globo. Surge sempre a Ruth professoral, didática, ensinando: A senhora, que acompanhou o seu marido, cresceu junto com ele na vida acadêmica,
fez uma carreira independente da dele, agora, de repente, se vê, se a senhora me permite, primeira-dama. Não é uma surpresa, ou melhor, parece difícil assumir esse
papel? Bom, devolvo a pergunta: qual é o papel? Acho que esse papel está mudando muito. Aliás, todos os papéis que tradicionalmente as mulheres assumiam, e que eram
papéis femininos, estão mudando bastante, elas estão entrando em áreas onde não entravam antes, estão redefinindo papéis tradicionais. Neste país, uma dona de casa
hoje não é a mesma que uma dona de casa de dez anos atrás. Ela é uma pessoa que pode ser ativa politicamente, pode ter uma participação na sociedade muito maior
do que tinha antes. Então todos os papéis estão mudando e, certamente, este que ocupo agora também está. Digo isso não porque eu tenha a pretensão de mudá-lo, mas
porque eu acho que no mundo inteiro, se olharmos em volta, o que está acontecendo com a participação das mulheres são inovações, algumas boas, outras nem tão boas,
mas esta função está sendo trabalhada e está assumindo um caráter bastante diferente do que tinha. Numa entrevista para a jornalista Beth Lima, também da Globo,
em
1995, que insistiu no porquê da ojeriza dela ao termo primeira-dama, Ruth retrucou veemente: "Você diz que não gosto de ser chamada de primeira-
-dama, mas procure entender que esta é que tem muito pouco a ver com o Brasil, não tem nenhuma tradição entre nós. É uma coisa nova essa ideia de primeira-dama,
por isso acho que ela é desnecessária, quero dizer que bem poderíamos nos ater a tradições que já temos". O carrossel da posse em Brasília durou cerca de 24 horas,
porque a efervescência começou no dia 31 de dezembro e prosseguiu até o dia seguinte. A cerimônia foi às onze da manhã, depois seguiram-se almoço e rituais formais.
José Gregori sintetiza tudo num episódio: "Na noite do dia primeiro, estávamos no jantar no Palácio das Relações Exteriores, e Maria Helena e eu, quando conseguimos
chegar perto da Ruth, eram mais ou menos nove da noite. Quer dizer que passamos não só o dia inteiro como parte da noite sem conseguirmos nos aproximar, tal o turbilhão
que se estabeleceu. Para chegar ao Fernando, então, demorou muito mais. Ela estava deslumbrante num vestido criado pela sua amiga Marjorie Gueller. Abraçamo-nos
felizes. 'Como é, Ruth?' 'Parece que estou vivendo uma cena de um daqueles musicais da Metro. Lembram-se dos musicais? Neles, uma cena se segue à outra e nada tem
muita ligação, mas tudo é colorido, farfalhante! É isso! Aqui tudo é colorido, farfalhante!".

A POSSE DE FERNANDO HENRIQUE tinha sido realizada no primeiro dia de janeiro de 1995. As posses no Brasil constituem um anticlímax, comenta FHC, porque são feitas
num dia em que as pessoas estão em família, curtindo o primeiro dia de um novo ano, há uma atmosfera de festa, porém de outro gênero, o que está no ar é um feriadão.
Os diplomatas estão em férias ou em viagem, os que chegam são representantes consulares de menor expressão. No final, salva-se pelo povo, que gosta de uma festa.
Anticlímax foi a "posse" do Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente. Quem visse a primeira-dama naqueles dias se assustaria, porque ela se transformou
em dona de casa. A mulher que tinha montado todas as casas em todos os anos de casamento, em todos os lugares em que viveram, a mulher que tinha feito de Ibiúna
o seu cantinho, no Alvorada
agitou-se. O palácio era desolador, com seus espaços enormes, o vazio, o mau gosto da decoração. Cortinas rasgadas, carpetes velhos e manchados. Era um lugar inviável
para viver e ela queria transformar aquilo num lugar "vivível", aconchegante. Ela poderia ter chamado alguém e ordenado "faça isto'', "faça aquilo". Mas não a filha
da Mariquita. A mulher de Araraquara meteu mãos à obra, porque as coisas deviam ser do jeito dela. -Parecia uma casa abandonada, onde ninguém vivia há décadas",
avalia Regina Mever, que foi para Brasília com Ruth. "E a cozinha, então? Um lugar sombrio, sujo, cheiro de mofo. Andamos por toda parte e a Ruth ia apontando: 'Esta
sala aqui, ao lado do nosso quarto, vou transformar num cômodo para ficarmos à noite, conversarmos, vermos televisão'. Percebi então que ela já estava em Brasília,
tinha assumido, enfrentaria tudo, sabia que tinha de estar ao lado do marido. Assim fui vendo chegarem dois sofás, e um quadro da Renina Katz, a grande amiga, e
surgia um paninho, uma toalhinha, e quadros, objetos, os ambientes iam se transformando." Oscar Niemeyer tinha dado ao país uma grande criação, desenhado com dignidade
um palácio para o presidente da República do Brasil, mas com o tempo as coisas tinham se degradado, e o que Ruth estava tentando recuperar era a dignidade daqueles
espaços, trazendo móveis, quadros, esculturas. Só achou que uma compoteira interiorana não ficaria bem naquele ambiente tão modernista. Recuperou um piano que estava
encostado. Ali era apenas um lugar triste que merecia receber uma mãozinha. Ela mandou construir uma copa na parte de cima - quando chegavam amigos para jantar,
pouca gente, comiam em cima, era mais íntimo, era o lugar que usavam para lanches quando estavam sós. Um dia, Francisco Weffort deu uma dica sobre duas esculturas
que estavam ao lado da porta no Ministério da Cultura, ignoradas, em situação estranha. Ela foi ver, ficou fascinada - eram dois Brecheret, duas figuras femininas
lindíssimas. Foram para o Alvorada, mas tudo dentro da lei, com papéis formalizados. Para esse trabalho ela criou uma comissão em que estavam Emanoel Araújo, Vera
Pedrosa, Lélia Coelho Frota. Esculturas de Maria Martins e Amilcar de Castro foram levadas para lá. O palácio foi se transformando e adquirindo vida ao longo dos
anos. Ela queria - e mon-
tou - um lugar onde o Brasil, na pessoa deles, pudesse receber com dignidade, um lugar em ordem. O fotógrafo Cristiano Mascaro chegou para documentar o Alvorada,
passou dois dias, registrou tudo, até hospedou-se lá. Certa tarde, Regina Meyer ouviu um diálogo. - Qual é o cantinho que a senhora mais gosta neste palácio? Qual
é o seu cantinho? - Cantinho? Como, cantinho? Esta não é a minha casa, é a casa do presidente da República do Brasil, no momento ocupada por mim. O cantinho era
a casa dela em São Paulo, a casa de Ibiúna, retratos da vida dela. Muitas vezes, na hora de um jantar, Dalina, que se tornou um braço direito de Ruth, colocava a
toalha na mesa e descobria um rasgo, uma renda esgarçada - eram jogos de toalhas da Tchecoslováquia que estavam lá desde os tempos de Juscelino, sem manutenção.
A primeira-dama desaparecia, surgia a dona de casa com agulha e linha na mão. Ela de um lado, Dalina do outro, cerzindo o melhor possível. Daisy Setubal, mulher
de Olavo Setubal, que foi ministro das Relações Exteriores no governo Sarney, conhecia a situação e ficou tão penalizada que deu de presente ao Alvorada um jogo
de toalhas de linho.

EMBATE DURO, COMPLICADO, foi com a cozinha do palácio. Foi um desafio difícil, ela quase desistiu por causa das tradições e da burocracia existente. No início foi
uma tragédia, porque a cozinha do Alvorada estava a cargo da Marinha e os cozinheiros eram taifeiros. Uma coisa inominável, garante Celso Lafer, que comeu ali várias
vezes. Era muita lataria, muita maionese, comida de gente que ficava 25 dias no mar. "As razões dela eram muito substantivas", releva Lafer, "a comida era um horror."
Ruth ia para a cozinha e tentava fazer mudanças numa simples salada. Impossível. Qualquer coisa, por mais elementar que fosse, encontrava obstáculo. Era a inação
da burocracia. Em determinado momento, Ruth achou que tinha encontrado a solução quando o embaixador em Paris, Carlos Alberto Leite Barbosa, sugeriu que se enviasse
o pessoal da cozinha do palácio à França, para
fazer um estágio com algum chef ou numa escola estrelada, a fim de que aprendessem a diferença entre lataria e cozinha. Não foi solução. Deu em nada. A solução só
veio quando Roberta Sudbrack, uma das melhores chefs do eixo Rio-São Paulo, foi contratada. Marv e Celso Lafer deixaram uma boa herança para Ruth, a secretária Dulcineia,
segundo os dois uma personagem fantástica. Conhecia todo o funcionamento da máquina, dos bastidores, dos usos e vezos da burocracia, sabia onde as coisas pegavam
e emperravam. Inteligente e hábil. Quem a "herdou" depois foi o embaixador Alberto da Costa e Silva. Para enfrentar e destrinchar o cerimonial, Ruth encaminhava
Dulcineia. Se bem que ela mesma às vezesdizia "Isto é a senhora que tem de fazer", em outras tranquilizava: "Deixe comigo, resolvo o assunto". Ruth gostava muito
dessa secretária, ainda que reconhecesse que "para ela chegar no ponto exato, preciso ouvi-la durante meia hora, porque ela nunca vai direto ao assunto". Isso porque
a mulher tinha encarnado o jeito e a maneira do Itamaraty. Conhecia e julgava bem as pessoas, mas nunca batia de frente, montava as narrativas cheias de desvios
e maneirismos. Mas protegia bem Ruth. Sabendo quem era quem, depois de meia hora, quarenta minutos, chegava e cortava a reunião, encontro, fosse o que fosse, com
quem fosse.

ISTO É PARA O SER OU PARA O PODER?

Se isso tudo vai dar certo 100% ninguém pode garantir e nem eu, e nem estou aqui neste papel de produzir ilusões. Nós estamos procurando um caminho novo, e a partir
de tudo aquilo que nós já de antemão sabemos que é preciso corrigir. O Programa Comunidade Solidária não irá autorizar despesas. O Programa Comunidade Solidária
é uma espécie de selo de prioridade. Ruth Cardoso, na posse do Conselho do Comunidade Solidária

CONHEÇAMOS, ANTES, Vilmar Faria que, ao morrer em 2001, deixou um enorme vácuo. Mineiro convicto, falava pouco, era discretíssimo, não gostava de muita conversa
e tinha uma admiração incontida por Ruth. Foi uma sólida amizade, Ruth, Fernando e ele. Um homem ponderado, perspicaz, inteligente, nasceu para ficar fora dos holofotes.
Vilmar foi o secretário da coordenação da Câmara de Política Social da Previdência no governo FHC. Nascido em Belo Horizonte, combateu na Ação Popular, AP, um dos
grupos que se opuseram à ditadura militar, militou na Juventude Universitária Católica, juc, e foi membro da União Nacional dos Estudantes, UNE. Resultado: aos 22
anos estava exilado no Chile. Vilmar foi aluno de Fernando Henrique Cardoso no Chile, na Flacso, depois trabalhou na Cepal e no Instituto Latinoamericano y del Caribe
de Planificación Económica y Social, Ilpes. Segundo Fernando Henrique, "ele me ensinou técnicas de estatística para lidar com certos dados, sabia muito. Nas sombras,
exerceu uma influência muito maior do que foi notado. Aliás, poucos notaram, ninguém nunca ressaltou. Os que trabalhavam com ele sabiam, os que conviveram
também, mas não está registrado nos escritos. Muito do que o governo fez na área social, na época em que fui presidente, tem o dedo do Vilmar".' "Vilmar era hábil
e, sobretudo, um homem que fazia um esforço para buscar convergências. Dotado de enorme diplomacia e persuasão, certamente sua maneira de ser era fundamental para
que ele pudesse agregar as pessoas. Ele cumpriu missões difíceis na busca da convergência de pessoas", disse Paulo Paiva.= Já para Regina Meyer, "a ideia de estar
no centro da política também é uma coisa que apaixona e Vilmar estava feliz de poder realizar, criar por meio daquilo que estava à volta dele. O que fez era uma
forma de poder, mas não o poder no sentido de nomear e desnomear. Ele tinha uma noção e uma consciência muito forte da política e fazia análises exatas de tudo à
sua volta. Ajudava Fernando Henrique porque era um homem que tinha o sentido prático do mundo e com ele nasceu a ideia e o nome solidariedade, essa rede que Ruth
acabou criando de Universidade Solidária, Artesanato Solidário e Alfabetização Solidária. Essa rede nasceu do Vilmar". Mudemos a testemunha, passando para Celso
Lafer:"Vilmar dominava o conceito da política pública, tinha pleno domínio dos métodos quantitativos e muita sensibilidade. Ele se deu conta de que não era a vocação
dele a atuação direta como ator político. O papel dele sempre foi o de um grande colaborador e assessor. Pessoa de imensa qualidade, grande caráter. É óbvio que
um presidente em exercício tenha grandes dificuldades de ter confidentes. E a pessoa com a qual talvez o Fernando Henrique tenha tido mais facilidade para trocar
ideias tenha sido o Vilmar. Porque ele não tinha ambições ou aspirações políticas, portanto o conselho dele era um conselho dado em benefício do presidente, e não
em benefício próprio. Ruth e Fernando sabiam disso e o apreciavam por essa qualidade". "Foi uma pessoa muito especial, que teve atuação importante na construção
que a Ruth acabou dando ao seu papel. Sabemos que ela sempre quis ter um papel próprio, compatível com a sua capacidade. Tinha consciência de que teria de atuar
não como sombra, e sim como a mulher do presidente; o Comunidade Solidária é a expressão disso e, no diálogo com Vilmar, ela encontrou o parceiro que a ajudou nesse
objetivo."
"Quem ajudou Ruth a formular a ideia do Comunidade Solidária foi o Vilmar. Era uma pessoa profundamente analítica, cabeça privilegiada, um professor e tanto, porque
ele tinha essa coisa que a Ruth admirava muito, era completamente diferente da Eunice Durham e do José Arthur Giannotti, que eram brilhosos', Vilmar não era 'brilhoso',
era analítico, e Ruth adorava isso, ele era profundo e inventivo, sabia avaliar bem os processos. Acho que foi com Vilmar que ela construiu a ideia'', cogita Bibia
Gregori.

O TELEFONe TOCOU na casa de Regina Duarte. Era Ruth Cardoso. - Regina, quero te fazer um convite. - Para...? - Fazer parte do grupo de conselheiros de uma organização
que estamos montando. Estamos montando a ação social do novo governo. - Ruth, que maluquice é essa? Não posso, não sou capaz, nunca participei nem do grêmio acadêmico.
Procure alguém mais experiente, alguém equipado para pensar nossos problemas. Eu? Loucura! Não fui preparada, quero dizer educada para a coisa política. Pois é isso
o que quero, uma visão desavisada. Será um dia só, uma vez por mês. Ou a cada dois meses. Pense! Regina ficou tentada, achava um privilégio estar perto de Ruth,
era uma chance de conhecer um mundo novo. "Se ela achava que eu podia, por que recusar? Experiências sempre me atraíram, ainda mais que tinha a certeza de estar
diante de uma situação que seria um imenso aprendizado. Aceitei, contente, mas apreensiva com a responsabilidade. A partir dali, janeiro de 1995, foram quatro anos
de convivência no Comunidade Solidária, em Brasília ou viajando para o Rio de Janeiro, Porto Alegre, Alcântara, no Maranhão, aí pelo Brasil." Regina confessa que
nas primeiras reuniões ficava ouvindo os colegas falarem e tudo parecia grego. Às vezes, havia terminologias estranhas a ela. "Ali ouvi pela primeira vez a palavra
'sinergia', só mais tarde descobri o que significava. Lembro-me bem do primeiro encontro, quando Ruth pôs em pauta a discussão do tratamento assistencialista que
vinha sendo ado-
tado pela LBA. Doce e ao mesmo tempo dura e firme, ela se colocou contra o protecionismo paternalista, combatendo posturas cujo resultado, ao longo da história,
se mostraram controladoras, autoritárias e castradoras do desenvolvimento dos 'protegidos'. Sua proposta, esclareceu, era levantar no IBGE todos Os dados, mapear
a miséria, conscientizar, equipar e emancipar as populações que viviam abaixo da linha da pobreza." Ruth estava com o conceito elaborado, com a filosofia do que
pretendia, ainda que não soubesse como iria pôr em prática o que queria e pensava. 'Importante ressaltar que na época não se sabia ainda quem eram nem onde estavam
os miseráveis de nosso país. Sabíamos que existiam, mas ainda não estavam no mapa. O número de brasileiros sem carteira de identidade era assombroso. Era muito trabalho,
muitas carências, tudo estava por ser feito. Betinho propôs o 'Natal sem Fome' logo nas primeiras reuniões, mas o projeto em curso pretendia ir muito além de matar
a fome física das pessoas. Inclusão, conscientização, justiça, libertação e desenvolvimento eram os objetivos. Assistência médica, alfabetização, educação de qualidade,
qualificação profissional, criação do marco zero para as oNGs, Banco do Povo, Bolsa Família e tantos outros objetivos foram sendo articolados e trabalhados."'

ESTAVA NASCENDO O Comunidade Solidária e Regina não podia avaliar que estava testemunhando um duplo turning point - para Ruth Cardoso e para o Brasil. Após todo
o aparente trauma que para Ruth significava ser primeira-dama e a brusca virada de vida, tinha vindo a bonança. Fernando Henrique assegura, com clareza, que na verdade
Ruth "tinha um horror simbólico, ela queria simplesmente mostrar que era preciso criar um novo papel, e criou". Ela descobriu um caminho próprio que era, paradoxalmente,
no governo, ainda que fora do governo. Aliás, na contradição do seu nascimento residiu, no início, um dos problemas mais complexos do Comunidade Solidária, iniciativa
não somente inédita como inovadora e, mais do que isso, revolucionária. Ela foi brigando para abrir esse espaço, para construir essa função, que ela teve, a duras
penas, de explicar para todo mundo. "Enten-
der o Comunidade, naqueles dias, era uma coisa inversamente proporcional ao entusiasmo que ela provocava. A difusão do Comunidade foi muito mais veloz que o entendimento
do que ele era realmente, o que significava. Por sinal, Ruth passou a maior parte dos oito anos de governo FHC a explicar o que o Comunidade era", revelou Helena
Sampaio em Nova York, numa noite de homenagens a Ruth, promovida pela Universidade Columbia, em abril de 2009. Existia apenas um Comunidade Solidária, mas com duas
"caras" ou vertentes: a Secretaria Executiva e o Conselho Consultivo. A Secretaria Executiva era um órgão claramente governamental, com orçamento e quadros, cuja
missão era buscar maior sinergia entre as políticas sociais conduzidas pelos diversos ministérios. O Conselho era um órgão situado na intersecção entre governo
e sociedade civil (nisto residindo exatamente seu caráter inovador), com uma dupla missão: fomentar uma interlocução entre governo e sociedade a respeito das políticas
sociais e fomentar projetos sociais inovadores via parcerias, envolvendo múltiplos atores (oNGs, universidades, empresas, prefeituras). O financiamento para esses
projetos propostos pelo Conselho não vinha do orçamento público, e sim de captações em empresas, fundações e órgãos multilaterais como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, BID. Para complicar ainda um pouco mais a questão "Comunidade Solidária é ou não é governo", a composição do Conselho no primeiro mandato incluía
dez ministros de Estado e 21 conselheiros da sociedade civil. No segundo mandato, foi feito certo deslocamento pró-sociedade civil, reduzindo o número de ministros
a cinco. Malak El Chichini Poppovic, dada a sua experiência, foi uma assessora direta de Ruth para assuntos internacionais. Ela comenta as dificuldades iniciais
para se compreender a questão do Comunidade: "Difícil, pois o Comunidade Solidária era duas coisas, o Comunidade Solidária do governo, e o que ela quis fazer como
primeira-dama, que é o trabalho com a sociedade civil. Foi um erro desde o início dar o mesmo nome para as duas. Uma que era realmente do governo, oficial, pegava
os municípios mais pobres e supria as necessidades deles. O que foi uma ideia maluca,
porque se precisava de uma grande coordenação nos próprios municípios, que eles não conseguiam fazer por falta de pessoal, falta de dinheiro, era uma pequena equipe
que corria atrás de boas ideias com poucos fundos. E a Ruth nem sempre achava bom o que estava acontecendo, por exemplo, as cestas básicas, que foram distribuídas
durante muito tempo. Ela era contra uma cesta básica sempre. Uma vez, fomos para a Amazônia e vimos que os índios estavam recebendo farinha de mandioca. Nas cestas
que aquela gente recebia, quase metade era de farinha de mandioca industrializada. Ora, farinha de mandioca eles produziam naquela aldeia!". Em Brasília, não tinha
"lugar" para ela. Uma comentarista política muito lida revelou as dificuldades que Ruth teve para se encaixar em Brasília. Realmente foi complicado, dizem os que
estiveram à sua volta. E os boicotes? Ela precisava de espaço para montar esse trabalho do Comunidade Solidária. Vinham as dificuldades. Ficou esperando meses um
lugar, aí lhe deram uma sala no Ministério do Esporte, mas tudo era lento, demorado, ela tinha de batalhar, precisava de gente para ajudar e não tinha. "Sabe que
até hoje é um mistério para mim a causa daqueles boicotes? Mas teve, aconteceu, assisti a tudo, fui testemunha, ela desabafava comigo", diz Regina Meyer. "As pessoas
não sabiam no que ia dar aquela 'coisa'. O que pretendia a primeira-dama que pedia um espaço para montar uma 'Comunidade Solidária'. O que era aquilo? Ela precisava
de motorista para levá-la a alguma parte e era uma complicação. Depois, Ruth foi se impondo também e sabendo neutralizar esse universo brasiliense, porque Brasília
tem uma cultura complicada. Ali, eles chamam de gatos aqueles que já estão em Brasília e, quando vêm os governantes, são os cachorros, porque vêm e vão embora e
os gatos já estão e vão ficar. E neutralizar os gatos é complicado, são os donos do pedaço, o território é deles, assim, formam uma barreira", conclui Regina. Ruth
não quis levar o Comunidade para o seu gabinete oficial de primeira-dama. O espaço de trabalho no quarto andar do Bloco A da Esplanada dos Ministérios, vizinho à
catedral, sempre foi a cara dela. A salinha do Comunidade era simples, móveis usados apanhados nos depósitos do Ministério de Educação. A sala de Ruth, com o tempo,
foi sendo decorada
com peças de artesanato que ela ganhava das comunidades. Fotografias, só permitia as tiradas em viagens de trabalho, principalmente junto às pessoas mais simples.
Ou fotos em aulas com seus jovens universitários. Fotos posadas, portraits a incomodavam, não queria, não deixava. Na maior parte das vezes, Ruth comia ali mesmo
com suas colaboradoras. Ela não se incomodava com nada, se tivesse pão com queijo, estava bem. Súbito, surgia uma fornada quentinha de pães de queijo. Eventualmente
- uma regalia pediam um delivery. Se precisasse fazer uma ligação, apanhava o telefone e discava. A secretária só ligava se Ruth bobeasse. Um dos problemas era
que, muitas vezes, ela precisava dividir e ajeitar a agenda com atividades oficiais inerentes ao cargo, mas então respondia bem pela obrigação. No caso das entidades
ligadas ao Comunidade, discutia as prioridades. Ruth Cardoso levou para Brasília, entre outras, Maria Helena Gregori, Regina Esteves, Regina Meyer, Iara Prado, Danielle
Ardaillon, Rosiska Darcy, que foi chamada para presidir o Conselho Nacional da Mulher, Malak El Chichini Poppovic, Helena Sampaio, Maria Helena Guimarães de Castro,
uma linha de frente fechada com ela, em diferentes posições. Ela tentou levar Eunice Durham, mas esta preferiu trabalhar com educação. Todos, o tempo todo, ouviam
Ruth dizendo, não como advertência, porque eram adultos, experientes e vividos, mas como se fosse um mantra: "Nesta nossa situação, porque somos governo, representamos
um governo, temos sempre de nos perguntar: isso é para o ser ou para o poder? Porque somos humanos e o tempo inteiro todo mundo se aproxima e todos têm milhões de
interesses, que são apenas para o ser". Logo que Fernando Henrique Cardoso assumiu, um de seus primeiros atos foi extinguir a Legião Brasileira de Assistência, entidade
que vinha dos tempos de Getúlio Vargas, criada pela primeira-dama dona Darcy. A LBA era tradicional e distribuía benesses por todo o país. Eram auxílios de vários
gêneros, manipulados, aproveitados pela classe política, prefeitos, vereadores, deputados, senadores e até ministros, como uma maneira de angariar votos, amarrar
os eleitores nas urnas. Um cabide de empregos para apadrinhados de todos os tipos. Clientelismo em alto grau que distribuía de comida a cadeira de rodas e dinheiro.
Para Jorge Caldeira, quando a LBA foi extinta, o Comunidade Solidária estava pronto como ideia. Foi um trabalho que começou na faculdade, na cátedra de antropologia,
nos estudos dos movimentos sociais urbanos, nas pesquisas do Cebrap, na atuação do Centro de Estudos e Documentação para a Ação Comunitária, CEDAC, fundado por Ruth,
Eunice Durham, Guita Grin Debert e José Augusto Guilhon Albuquerque, para dar suporte a instituições comunitárias, grupos, associações, por meio do desenvolvimento
e administração de projetos de interesse da comunidade, organização de cursos e seminários, e o desenvolvimento de estudos sociais e projetos, segundo seus estatutos.
Bia Cardoso até hoje faz parte do cEDAc. "Então, no dia da posse de Fernando Henrique, toda a pauta de Ruth, o que ela queria fazer, estava desenhado, o primeiro
decreto que o Fernando Henrique assinou foi extinguindo a LBA e criando a estrutura, que já estava em pauta, inclusive juridicamente. Ruth brincava que ela era uma
ONG em si, porque tinha extinto o cargo de primeira-dama, as obrigações legais de primeira-dama, as instituições que estavam presas à primeira-dama, o clientelismo,
aquilo tudo acabou no primeiro dia, já estava tudo prontinho. E não é que estava pronto há um mês - há mais de uma década a Ruth tinha, com seu trabalho acadêmico,
formulado todos os conceitos que precisava para uma nova política social. Tinha ensaiado tudo em pesquisas. Com ajuda do Vilmar sabia de todos os detalhes operacionais
dos programas. E conseguiu montar toda a estrutura jurídica da mudança. Desse modo, desde o primeiro dia estava tudo pronto para ser executado. Os dez anos de grande
trabalho intelectual iam se provar como prática", concluiu Jorge Caldeira. Ruth inventou um lugar para ela. "Essa atitude de Ruth de sempre questionar o presente
e sempre reinventar a sua inserção nesse presente marcou-a desde os trabalhos acadêmicos, marcou a maneira pela qual ela escreveu suas pesquisas e transformou os
campos intelectuais em que atuou'', analisa Teresa Caldeira. "Ela sempre esteve interessada em processos sociais emergentes e na possibilidade de intervir neles,
estudou o problemático e aquilo que considerava necessário pensar, aquilo que imediatamente parecia incerto, não havia como explicar, mas que do ponto de
vista tanto pessoal quanto político ela achava necessário refletir... Três trabalhos foram a base para as conexões que mais tarde seriam exploradas no Comunidade
Solidária. Um, a famosa pesquisa Estudo de dez famílias faveladas, de 1974, que ela desenvolveu junto com Lúcio Kowarick. O segundo foi As periferias urbanas na
representação de seus moradores. Estudo em quatro cidades paulistas, de 1981. E o terceiro foi o trabalho A periferia de São Paulo e o contexto da ação política,
também da década de 1980, em parceria com a Comissão de Justiça e Paz."" Ali se alicerçou igualmente a parceria com Vilmar Faria. A LBA funcionou por décadas e jamais
tirou alguém da miséria ou ensinou alguma coisa aos desprotegidos. A sua extinção, no entanto, provocou animosidades e polêmicas. Ninguém sabia o que estava vindo
no lugar. Comunidade Solidária? Ninguém conseguia entender o projeto. Para aqueles que estavam conduzindo o Comunidade, o que se queria ainda não era definido, todavia
era bastante claro o que não se queria. Não se queria "uma Evita Perón, não se queria a LBA gigantesca, daí a decisão de acabar com ela. O que sonhávamos precisava
ser inventado", recorda-se Miguel Darcy, companheiro de Ruth desde os primeiros instantes. "Numa das primeiras reuniões do Conselho na Granja do Torto, quando Ruth
declarou enfática 'Não sou governo!', um dos jornalistas levantou-se e questionou: `Se a senhora não é governo, isto aqui é o quê? É uma das residências oficiais
do presidente da República. A senhora chegou aqui como? Em carro oficial e com seguranças. Os conselheiros viajaram até aqui como? Com o dinheiro do governo. Então,
como a senhora não é governo?'. A expectativa da mídia era clara: `Qual é esse novo programa, essa nova instituição que vai tomar o lugar da LBA?'." Na questão das
incompreensões, Miguel Darcy acrescenta outro episódio: "A mídia tinha um padrão para o que Ruth tinha de fazer, que não era o padrão dela, mesmo porque ela foi
criando com o tempo. O tempo todo os jornalistas viviam perguntando: `Dona Ruth, onde está o dinheiro? A senhora é a esposa do presidente, tem um poder muito grande,
quais são as verbas, quanto a senhora vai investir?'. 'Não vou investir nada!' Eles não entendiam, voltavam à carga: 'Quais são as diretrizes para a educação?'.
'Nenhuma. Não é isso o que estou fazendo. Se eu tiver de falar de educação, vamos discutir.' A mídia queria que ela adotasse um certo estilo, que falasse de política,
falasse mal do PFL: 'Que governo é esse que tem personagens políticos de quem a senhora não gosta, já declarou que não concorda, como é o caso do Antonio Carlos
Magalhães. Como é que fica?'. 'Não vou falar disso agora, vou falar do meu trabalho, vou falar do que estou fazendo'." Quanto a ACM, a imprensa trazia à baila uma
famosa declaração dela, em 1994, quando Fernando Henrique fazia suas alianças políticas visando a Presidência. Ruth, certo dia, afirmou publicamente não entender
como o marido se aliava a um político como ACM, figura que trazia todos os vícios do autoritarismo e da prepotência da ditadura, político da velha guarda, com métodos
arcaicos. Foi um constrangimento que precisou ser "remendado" mais tarde, uma vez que ACM costurava a aliança PFL e PSDB, fundamental naquele momento. A mídia e
os políticos não entendiam o que iam fazer dez ministros e
21 conselheiros que rejeitavam o velho, mas ainda não sabiam exatamente o que seria o novo. Ruth procurava explicar que não era governo, sem negar, contudo, que
era um espaço viabilizado e legitimado pelo governo. "Na verdade", esclarece ainda Miguel Darcy, "tentávamos trabalhar numa intersecção governo e sociedade, e aí
fomos inovadores, principalmente quando Ruth repetia que não queria recursos públicos para nenhum programa do Comunidade Solidária. Rompia-se um padrão histórico.
Se não é dinheiro do governo, vai sair de onde? O Comunidade ia trabalhar com o Terceiro Setor, atuar com a força dos recursos da sociedade civil brasileira, a esta
altura suficientemente madura para assumir projetos com seus recursos humanos e financeiros próprios. Uma inovação é a intuição de algo novo que é preciso captar,
perceber o emergente e, em seguida, experimentar. Se for bem-sucedido, fica alguma coisa que se aperfeiçoa. O primeiro conceito que se tinha em mente era não olhar
para as pessoas e para as comunidades como gente destituída de, ou com problemas, necessidades, carências. Porque se sabe que as carências são um poço sem fundo,
não há recurso que baste. O fundamental era buscar as capacidades das pessoas
e os recursos das comunidades. Todos os programas passaram a ser pautados por um investimento na capacidade das pessoas. O segundo ponto foi focar nas áreas geográficas
mais pobres e nos setores mais vulneráveis, em especial os jovens. Todos os programas do Comunidade Solidária tiveram, em certa medida, um forte componente educativo
e estão voltados para jovens, se apoiam, valorizam o segmento jovem. O terceiro elemento foi a mobilização dos mais variados recursos da sociedade e aqui residiu
outra grande mudança. Ruth abriu o leque e chamou a universidade - e, claro, ela estava muito bem posicionada para isso, tinha autoridade. Colocou a universidade
dentro dos debates, dos projetos." Nessa etapa, certo dia, num grande encontro na Universidade de Brasília, no lançamento do programa Universidade Solidária, uma
espécie de reinvenção do projeto Rondon, ou seja, levar estudantes e professores das mais variadas universidades para comunidades pobres, enquanto Ruth estava expondo
suas intenções, um grupo de jovens, liderado por professores radicais, invadiu a sala aos gritos e palavras de ordem: "Queremos participar! Exigimos participação!
Estudante é participação!". Ruth olhou e tentou continuar a fala, no seu jeito professoral. A balbúrdia recrudesceu. Os estudantes tinham vindo para cima dela,
deixando assustados os seguranças - principalmente a tenente Patrícia, fiel escudeira -, que não sabiam se distribuíam pescoções ou o quê. Impassível, mesmo porque
não havia muito a fazer, Ruth indagou: - Simplesmente, digam. O que reivindicam? - Queremos participar! - Ótimo, é o que eu também desejo e estou aqui propondo.
Participação. Vim convocar para participar. -A senhora não entendeu, queremos fazer parte do poder, queremos estar no comitê central. - Mas não existe comitê, muito
menos comitê central. Vivemos
outros tempos. A sala - havia ali cerca de 250 estudantes - explodiu em gargalhada. Um dos "indignados" tentou ignorar e prosseguir, e ela se mostrou enérgica: "Você
já falou, ouvi, respondi. Agora, se quer participar, procure o seu
grupo. Qual é? De que universidade? Da Universidade de Brasília? Pois ali tem um grupo de trabalho. Junte-se a ele, participe, já que é o que deseja. Não venha aqui
me interpelar dessa forma Cessou o tumulto, a turma do protesto sentou-se e ouviu, a reunião fluiu. Ela ganhava na calma, na segurança, no respeito que impunha.
A incompreensão foi enorme com a extinção da LBA. Maria Helena Gregori conta que recebia uma avalanche de cartas por dia chegaram a quinhentas no início -, de
políticos, deputados, prefeitos e correligionários políticos fazendo solicitações assistenciais. Insistiam para marcar audiência com Ruth, porém Maria Helena, que
tinha o apelido de "mandona", segurava bem as pontas. Fazia-se uma triagem das cartas e, no fim do dia, Ruth e ela limpavam a mesa. Quando Ruth não queria uma coisa,
era inútil, e ela sempre repetia: "Não adianta, isso não passa, nem pense". Acontece que muitas coisas que Ruth idealizava, pensava, procurava estruturar, não faziam
sentido naquele momento. "Hoje, imagino que nem ela se dava conta de que algumas coisas não eram para aquele instante, e sim para o futuro", reflete Regina Esteves,
aliada que Ruth foi buscar na área da educação, uma vez que Regina atuava na FAI-EFMD, uma fundação do Ministério da Educação que cuida de financiamentos e linhas
de crédito. "Ela sabia que tudo deveria funcionar em rede, numa relação em que uma entidade pode ajudar a outra de acordo com as necessidades, pode ser um somatório
de esforços, uma vez que essas entidades têm missões diferentes, mas que se complementam, nenhuma missão se contrapunha a outra.3 A mais significativa contribuição,
o que mudou completamente o desenho da situação, foi a atitude do setor empresarial perante a questão social. Não foi fácil convencer esse mundo porque, até então,
pelos velhos hábitos político-burocratas, ou simplesmente se pedia e não se mostravam resultados o dinheiro escoava-se por sacos sem fundo e sem explicações -,
ou funcionava como moeda de troca - dou tanto, mas quero isto, isto e isto. O papel de Ruth foi decisivo nos incontáveis encontros que teve com lideranças empresariais,
céticas a princípio, depois se aliando gradualmente, até se tornarem parceiros sólidos. Foi um momento difícil e histórico esse da renovação da visão do mundo empresarial
para a questão social.
Algumas ideias e propostas de Ruth, hoje concretas e reconhecidas, naquela época não eram vistas dessa maneira. Quando se diz hoje que a iniciativa privada é parceira,
está certo, porque foram atingidos 5 milhões de alunos atendidos. Mas, naquele tempo, chegar até uma empresa e dizer que se queria ação e colaboração, mas que não
seria num município da sua escolha, e sim no lugar selecionado pelo ranking, lugar que talvez o empresário nem soubesse onde era, do qual nunca tinha ouvido falar,
aí era outra história. Vencer isso foi uma mudança de postura e de relacionamento com a iniciativa privada. A conquista do banqueiro Pedro Moreira Salles ilustra
o clima com que o empresariado entrou em contato com o projeto e foi sendo cooptado: "Fui convidado para um almoço no Palácio da Alvorada e compareci, já conhecia
o presidente, tinha admiração por ele e pela equipe que montou. Cheguei, encontrei vários ministros, outros empresários, e fiquei muito cético quando me contaram
qual era a ideia, o propósito e as pessoas que iam se envolver. Senti na hora que ia virar comício. Então entrou Ruth e começou a falar, o clima foi mudando. Não
me convenci muito, porém continuei indo às reuniões, a cada mês, dois meses. Não havia ainda, como era natural, uma agenda posta, e me parecia que Ruth estava pondo
fogo na panela de pressão, deixando as pessoas falarem para depois chegar a uma visão mais concentrada. Quando ela encontrou o caminho da estruturação, fez com que
todos se sentissem envolvidos, todos viram claramente que havia algo novo, que iria acrescentar, juntando segmentos da sociedade. À medida que a agenda foi se estabelecendo,
ela se conscientizou de que eu não tinha ainda uma visão positiva e clara do projeto, e Ruth, paciente, marcou comigo reuniões menores, fora do Comunidade Solidária,
muitas aqui em São Paulo, e eu diria que a minha relação passou a ser de maior aproximação. Passei a entender as dificuldades do desenvolvimento da questão social
no Brasil, a identificar quais eram os obstáculos, fui conhecendo a legislação, entendi como ela enxergava as limitações, como lidava com o governo. Ela sempre deixou
muito claro que não era governo, o Comunidade Solidária não era governo, nós éramos sociedade civil era dessa maneira -, e ela sabia orientar, mostrar pelo que
valia a pena brigar
e o que era secundário, e não valia a pena gastar esforço. Passei a enxergar a proposta sob outra óptica. Foi quando percebi o profundo compromisso dela com o Comunidade.
Quando os projetos surgiram, entrei no primeiro, o da questão dos microcréditos. Então outros vieram e acabei me envolvendo numa série deles. Além de Moreira Salles,
envolveram-se no Comunidade Solidária Antônio Ermírio de Moraes, Jorge Gerdau Johannpeter, Milú Villela, Renata de Camargo Nascimento, Horácio Lafer Piva, Emílio
Odebrecht, um a um convencidos por Ruth. Sérgio Reze, da Associação Brasileira dos Revendedores de Automóveis, propôs dar para o programa da Alfabetização Solidária
(AlfaSol) um real por veículo vendido. Quanto lhe perguntaram o que isso significava, assustaram-se - receberiam 2 milhões de reais, usados para criar um caixa e
fazer deslanchar vários programas. A Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas, ofereceu-se para colaborar e então foram pedidos, em lugar de dinheiro,
kits para os agentes de saúde, ou seja, bicicleta, mochila, balança e medicamentos.

NA VERDADE, HAVIA POUCOS recursos para o funcionamento do Comunidade Solidária. Podiam usar uma sala da Granja do Torto, havia um escritório na Esplanada dos Ministérios,
verbas mínimas para locomoção. O presidente era quem nomeava os 21 conselheiros, começando por Ruth. Mas não era governo, na medida em que ela, Ruth, foi quem escolheu
personalidades da sociedade civil, da Igreja, das universidades - dom Luciano Mendes de Almeida, Gilberto Gil, Betinho, Regina Duarte, banqueiros como Pedro Moreira
Salles, universitários. Luiza Erundina, chamada para o projeto, recusou o convite. Eram pessoas com luz própria que iam pensar com suas próprias cabeças e abrir
um diálogo com o governo, sobretudo com a área social, e com a sociedade ao mesmo tempo. Estava claro? Não, ainda não. O Comunidade Solidária foi se fazendo, às
vezes percorrendo caminhos errados e outras os que davam resultados. Surgiu outro fator complicador no desenho inicial, porque havia no Conselho dez ministros dos
mais expressivos, como os da Saúde, da Educação, da Fazenda, o chefe
da Casa Civil. O que queria dizer que havia significativo peso governamental dentro do Conselho. Era um diálogo complicado. Ruth reclamava: "Cada ministro quer que
eu apoie a área dele, os programas dele, quer que eu funcione como uma superministra da área social e não vou fazer isso". Era impressionante a firmeza e a determinação
dela, indo contra a ponta da faca, principalmente ao sabermos que, em oito anos do Comunidade Solidária, ela jamais recebeu um político, um deputado, um senador.
Claro que ela mantinha muito boas relações com alguns ministros, como Paulo Renato Souza e José Serra, mas não com os outros. O que era preciso fazer? Criar um modelo
de atuação. Ter uma parte do diálogo voltada para o governo, enquanto outra parte estava voltada para a sociedade civil. E isso foi inovador. Ela mostrou ser possível
trabalhar num espaço legitimado pelo governo, sem ser governo, e sobretudo falar de uma coisa nova a sociedade como ator político. Então, com quem se dialogou?
Com as ONGS, as empresas, a Igreja, as universidades, e foram estes os setores que ajudaram a dar força aos programas. Até mesmo o ultrapoderoso homem do governo,
Sergio Motta, teve uma definição sarcástica: "masturbação sociológica". Era uma estocada nos "uspianos". Mais tarde ele se rendeu, e então apoiou com todas as forças.
Ruth tinha encontrado seu nicho e pela primeira vez na história estava dando um sentido ao cargo, se é que primeira-dama é um cargo. Até então, as esposas dos presidentes
não tinham passado de acompanhantes oficiais, organizadoras de chás, recepções, coquetéis e bazares beneficentes. Nasceu o Comunidade Solidária, um "processo de
experimentação e inovação social desenvolvido ao longo de oito anos, ou seja, por todo o governo FHC. O Comunidade desenvolveu novos modos de ver e de fazer, provocando
a gestação de mudanças de grande alcance e para melhor no padrão histórico de relacionamento entre Estado e sociedade", segundo Ruth Cardoso:' Alfabetização Solidária,
Capacitação Solidária, Universidade Solidária, Artesanato Solidário, Programa Voluntários, Rodadas de Interlocução Política, Comunidade Ativa, Rede Jovem, Rede de
Informações para o Terceiro Setor.
É evidente que, por um tempo, houve desconfiança de todos os lados. Os do governo achavam que o Comunidade era uma apropriação indébita do trabalho deles, enquanto
os setores da sociedade civil resistiam: "O que vem a ser isso? Estamos aqui trabalhando para o governo Fernando Henrique, mas não votamos nele, inclusive temos
sérias críticas a vários aspectos desse governo". Entrava aqui a famosa capacidade de Ruth de administrar egos, o que tinha aprendido na vida acadêmica, época em
que transitava entre os maiores, alguns descomunais. "E isso ela fez lá o tempo todo, com grande garbo, adorava viajar pelo Brasil, tinha pauta própria, todos os
inimigos do presidente a adoravam, ela dizia que não era do Estado e se divertia, fazia piada com isso, e Fernando Henrique Cardoso também, as noites eram divertidas
quando vinha cada um de um lugar para contar as coisas e fazer brincadeiras a respeito disso, então eu acho que foi muito bom", confidencia Jorge Caldeira.

AUGUSTO DE FRANCO E Miguel Darcy de Oliveira foram dois assessores, ideólogos, pesquisadores de campo, administradores, o que se possa pensar, junto a Ruth no Comunidade
Solidária. Reúno aqui falas de ambos, que mostram como se pensava e se agia. "O trabalho que nós queríamos fazer partia do conceito de que a sociedade civil era
um sujeito subsistente por si mesmo e que tinha um papel de protagonista no desenvolvimento. Foram realizadas catorze rodadas de interlocução política, para as quais
foram chamadas pessoas de todos os setores, intelectuais, estudiosos envolvidos, economistas, políticos, artistas, acadêmicos, todos de alguma maneira ligados ao
tema em debate naquela sessão, e tentávamos chegar a alguma conclusão. Graças à intuição de Ruth, nasceu uma situação que passamos a chamar de reforma social. Tínhamos
certeza de que o Terceiro Setor merecia um tipo de regulamentação legal que tivesse como objetivo incentivar a sua própria reprodução. Não nos interessavam as grandes
organizações do Terceiro Setor, o que nos interessava eram as pequeninas. Porque a nossa força estaria na pulverização e não na consolidação daquelas megainstituições
da sociedade civil.
Havia um dito, espécie de chiste particular entre nós, uma brincadeira: 'O povo desunido jamais será vencido'. Esse era um pouco o nosso lema. Quer dizer, era o
contrário do negócio do arrebanhamento: vamos arrebanhar e fazer um contingente para dar combate a outro contingente. Não, vamos pulverizar! Havia, por trás disso,
uma intuição, a ideia de que o processo na sociedade civil é molecular, ele é um contágio. As teorias das redes sociais ainda estavam engatinhando, palmilhando o
caminho inicial, naqueles meados dos anos 1990. Nessa concepção já estava embutida a ideia de que a sociedade não se transforma e não transforma a realidade social
a partir da acumulação de forças de grandes contingentes e da criação de instituições sólidas, que então merecem uma legislação. A sociedade se via assim, na pulverização
e a expressão foi de Ruth , contaminada pelo sarampo. Quantas e quantas vezes ouvimos essa palavra, 'sarampo', as pintinhas que se propagam por todo o corpo. Muitas
e muitas vezes ouvimos dela 'pega como sarampo'. Ou seja, vai pegando, quer dizer, essa dinâmica viral, ela adivinhou, ela não formulou, ela intuiu e caminhou nessa
direção. Qual era a direção? O Terceiro Setor tem um papel estratégico no desenvolvimento; não é para ser braço do Estado, não é para ser continuidade da cadeia
clientelista do sistema político tradicional é para mudar as relações ali mesmo onde elas se constituem. Levantando a bandeira do 'Povo desunido jamais será vencido',
começamos a tentar fazer algumas coisas. Talvez a mais importante tenha sido a aprovação de algumas leis, como a que define o trabalho voluntário e estabelece a
inexistência de vínculo empregatício e todas as obrigações trabalhistas e previdenciárias. Uma reforma começa pelas definições, o que é o quê. Uma associação para
defender os direitos das crianças portadoras da Síndrome de Down não pode ser igual a uma fundação empresarial, mas é tudo Terceiro Setor. Assim começamos pela tentativa
de estabelecer o que seria o caráter público, e depois de vinte meses de discussão e de muitas idas e vindas, foi aprovada a Lei 9.790. a Lei das OSCIPS, que institui
o termo de parceria, que traz também inovação. E a Lei da Gratuidade do Registro Civil, a lei que criou as Sociedades de Crédito ao Microempreendedor, a Lei de Desoneração
do icms sobre a Cesta Básica. As rodadas serviram para construir canais políticos de diá-
logo entre governo e sociedade, sobre temas que subsidiassem a formação de uma agenda de desenvolvimento social para o Brasil."'

MUITO CEDO RUTH verificou que não existia nenhum órgão governamental, ou programa, que tratasse do jovem, uma de suas perenes preocupações. "Está aqui a oportunidade,
aproveitemos", dizia, "vamos ocupar o espaço vazio, montar programas para jovens, e que sejam inovadores, não copiem o modelo clientelista, vamos dar atendimento
a necessidades." Repetia que é necessário olhar para as pessoas procurando as capacidades que elas têm, e não detectando as suas necessidades. "Se olharmos para
alguém e dissermos que o jovem da periferia não tem escola, não tem atendimento, está submetido à violência, ficamos aprisionados pela lógica das necessidades, vai
ser preciso dinheiro, programas, recursos. Se olharmos para ele como uma pessoa que tem capacidade e aptidões, então podemos dinamizar isso, potencializar. Está
encontrado o caminho." Quando o Comunidade Solidária foi iniciado, cerca de 32% da população brasileira era constituída de jovens entre dez e 24 anos, e quase
8o% deles viviam em áreas urbanas. Quase 10% desses jovens não tinham nenhuma instrução, 22% (no Nordeste a cifra era de 40%) deles tinham ido à escola apenas por
três anos. O baixo índice educacional e a ausência de qualificação tornavam extremamente difícil a incorporação desses jovens no mercado de trabalho. Era um problema
a ser atacado com urgência, "propiciar a esse segmento a oportunidade para o descobrimento e o desenvolvimento de seus potenciais. Com o aprendizado de uma habilidade
de geração de renda era possível interferir positivamente em suas trajetórias de vida e reduzir a vulnerabilidade social a que estavam e estão expostos". Em agosto
de 1995 já estava criada a Associação de Apoio ao Programa Comunidade Solidária, AAPCS, hoje Apoio ao Programa de Capacitação Solidária. Estavam fora de questão
as conhecidas e difundidas escolas técnicas. Era preciso trabalhar "a autoestima desses jovens, a sua sociabilidade, suas habilidades cognitivas básicas, como a
leitura, a escrita e o cálculo elementar", diz Célia de Ávila, que foi coordenadora dos programas de
Capacitação Solidária. "Os cursos do Capacitação incluíam a vivência prática, e o jovem podia ter contato com a realidade de uma profissão. Parte do tempo era dedicada
à colocação em prática daquilo que vinha sendo aprendido. Qualquer organização, independentemente do seu porte, podia executar um projeto e receber recursos para
isso. Esses cursos levavam em conta as realidades locais e tentavam dar ao jovem chances de inserção no mercado de trabalho no meio em que vive. Para realizar um
trabalho eficiente procurava-se usar organizações já inseridas na comunidade. Daí encontrar-se segmentos como reparo de jangadas, criação de ostras, conserto de
redes de pesca, animadores de festas infantis, paginação eletrônica, conserto de computadores, e assim por diante. Os gestores sociais das ONGS que atuavam nesses
cursos tinham uma consciência muito grande do papel que desempenhavam na comunidade. Um dos primeiros e fortes financiadores desses programas na época foi a Federação
Nacional dos Distribuidores de Veículos Automotores, Fenabrave. Anos depois, os parceiros chegaram a 150, entre públicos e privados. Os jovens que participavam
do Capacitação Solidária, segundo estudos do Núcleo de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas, aproveitaram mais a escola; melhoraram a vida social
e familiar; obtiveram ou ampliaram suas chances de obter trabalho; descobriram e exploraram novos horizontes e tiveram mais chances de romper o círculo de desalento
e da falta de perspectiva que reforça a exclusão. Uma pessoa que trabalhou bom tempo com Ruth foi o coreógrafo e professor de dança Ivaldo Bertazzo, figura singular,
homem aberto a todas as experimentações em arte e dança, chegando a montar um espetáculo com indígenas da etnia tuiuca que vieram de São Gabriel da Cachoeira (Am).
Ruth frequentou as aulas de Ivaldo por muito tempo, adorava dançar (lembremos de sua paixão pelos musicais), levava filhas e netas. Cooptou-o para o Comunidade Solidária.
Bertazzo foi um grande parceiro nos cursos do Capacitação. Ruth foi a todos os lugares possíveis neste Brasil. No Amazonas, viajou uma hora de helicóptero até chegar
a uma comunidade indígena. O aparelho pousou e havia ainda uma caminhada até a aldeia. Os índios à frente, nas
trilhas, entrando na água, saindo, Ruth e Malak El Chichini atrás, um calor tenebroso, os vestidos grudados no corpo, cansadas, suadas. E firmes. Outra vez, no Acre,
elas ficaram num hotel que estava mais para maloca, chovia em cima das camas, e Ruth ainda tinha de equilibrar o ciúme de egos disparados estudantes da Unicamp
de um lado e estudantes amazonenses de outro, todos eles querendo se mostrar. Uma noite, os índios vieram até o hotel e dançaram e cantaram para ela, que estava
com Bia e os netos Júlia e Pedro (que dormia no colo da avó). Marlui Miranda cantou junto com os índios. Ela tinha ensinado a eles que no canto era melhor ficarem
parados, para não atrapalhar a voz. Depois que cantaram, todo mundo dançou.

UM DOS PROGRAMAS mais bem-sucedidos, o Alfabetização Solidária não era para crianças, e sim para jovens e adultos. Todos concordam que foi o exemplo mais feliz da
parceria entre universidade, empresa e poder público porque se montou um programa de ONG que é quase um programa público em grande escala, com um balanço formidável
de resultados. Tratava-se de uma parceria público-privada como não existia na época, não se falava nisso, não se cogitava, e saiu inteira da cabeça de Ruth. A primeira
reunião foi realizada no Recife e Ruth dizia aos seus colaboradores que não era fundamental inovar, bastava observar o que existia, avaliar e ver o que podia ser
feito para fortalecer. "Muitas vezes estão acontecendo coisas muito boas e nem é o caso de melhorar, apenas fortalecer, colocar uma rede em contato com outra, ligar
um parceiro ao outro." Regina Esteves acentua que a primeira preocupação de Ruth não foi buscar a melhor metodologia de alfabetização, e sim verificar o que existia
no país, nas redes pública e privada, nas universidades. E então multiplicar esse esforço, trabalhar para que tivesse cobertura nacional, para que determinada proposta
atendesse às comunidades que mais necessitavam. Em um projeto-piloto, no interior do Amazonas, do qual até Paulo Henrique Cardoso fez parte, 82% da população era
analfabeta. E analfabetos eram também 8o% dos funcionários públicos. Dá para imaginar o impacto que isso tinha no sistema público?
Regina trabalhava com cinco colaboradores, funcionários que a FAI lhe cedeu, na sala pequena do Bloco A, no quarto andar, com telefone e fax, e todos os planejamentos
tinham sido feitos com base nos dados do IBGE. Subitamente, ela se lembrou de como Ruth trabalhava, ou seja, indo aos locais, olhando, anotando, conversando, perguntando.
"Ela era uma grande perguntadeira. E anotava em cadernos tudo o que observava." Naquele dia, Regina e seus colaboradores fecharam gavetas e portas, dividiram-se
em grupos e partiram para visitar os municípios com maior índice de analfabetismo. Ao voltar, jogaram fora todo o planejamento e reiniciaram do zero. A princípio,
encontrou-se resistência. Numa reunião com um enorme grupo de universidades, em Alagoas, Regina detectou enorme desconfiança porque as pessoas ainda tinham ideia
de que se tentava retomar o falido Mobral - não se convenciam de que era um programa autônomo, tinham certeza de que a AlfaSol era do Ministério da Educação. Ela
confessa que os questionamentos que receberam foram bons, porque ajudaram a preparar respostas e a encaminhar projetos. Ensinaram também que o trabalho só se desenvolveria
ouvindo as comunidades e fazendo, antes de tudo, parcerias locais. Assim, ao invés de um programa pedagógico único para todo o Brasil, a AlfaSol desenvolveu uma
enorme variedade de programas, cada um criado a partir das necessidades locais. Conseguiu-se uma mobilização maciça de instituições de ensino superior, responsáveis
por produzir as propostas pedagógicas. Em 25 estados foi montada uma rede voluntária formada por universidades federais e estaduais, públicas e privadas, faculdades
e centros de ensino superior e cursinhos. Além disso, os professores também intervieram em nível local, fomentando melhorias no sistema educacional dos municípios,
apoiando projetos sociais e econômicos. A linha de frente desse exército era formada por aqueles que treinavam e capacitavam os alfabetizadores e representam o elo
entre a estrutura montada e os alunos nas classes de aula. Os alfabetizadores eram escolhidos entre os moradores das cidades atendidas e a maioria era de jovens
entre vinte e 24 anos. Esses alfabetizadores faziam estágios nas universidades parceiras e, quando iam para os grandes centros, capitais como São Paulo, Rio de
Janeiro,
Curitiba e Recife, participavam de várias atividades, visitavam museus e exposições, iam a shows de música, ouviam palestras, frequentavam teatros, faziam passeios
turísticos. Pela primeira vez na vida, alguns entraram num museu ou assistiram a uma peça teatral. As aulas não se limitavam a alfabetização, ensinavam também noções
de higiene, saúde, obrigações civis, e assim eles se tornavam promotores de cidadania. O banqueiro Pedro Moreira Salles, que se tornou um dos mais entusiastas defensores
e colaboradores do Comunidade Solidária, escreveu um pequeno texto que _repassou a amigos, conhecidos e empresários:

Aquilo que parecia a muitos de nós uma ideia ingênua, fadada a não ser mais do que outra experiência bem-intencionada, acabou sendo uma realidade inquestionável.
Em retrospecto, o ceticismo se devia possivelmente à excessiva simplicidade aparente da ideia: reunir governo, universidade e setor privado em torno de um projeto,
extraindo de cada um uma contribuição específica fundamental. Material didático, capacitação pedagógica, recursos; "bastava" reunir esses ingredientes na sua justa
proporção e pronto. Havia certa lógica no ceticismo inicial...

E D. Ruth pôs-se a campo. Promoveu dezenas de encontros com grupos de empresários e universidades. A cada rodada, mostrava o quanto acreditava na ideia de que era
possível mobilizar a sociedade em torno de uma causa concreta, e demonstrava a sua habilidade em gerar consensos. Uma vez montada uma equipe mínima para fazer a
gestão do programa, deu-se início ao projeto. De forma prudente, o primeiro módulo do Alfabetização Solidária abrangeu apenas 38 municípios do Norte e Nordeste,
atendendo 9 mil alunos. Contava então com o apoio de onze empresas privadas e 38 universidades. Apesar do óbvio impacto que o processo trazia para as comunidades
envolvidas, o Conselho do Programa optava por avançar com cuidado, avaliando constantemente os resultados obtidos, redesenhando o formato sem-
pre que necessário. Apesar das críticas então feitas ao projeto, acusado de não ser mais do que uma experiência de laboratório, a equipe procura prever e eliminar
eventuais limitadores ao crescimento sadio do Alfabetização Solidária, sem ceder
ao apelo e à demagogia fácil dos grandes números. A questão da formação acelerada de um contingente expressivo de alfabetizadores torna-se, desde o início, claramente
um gargalo. Nesse ponto, o papel das universidades foi fundamental, já que a dispersão geográfica do programa exigia que as parcerias se multiplicassem, garantindo
um processo de formação e acompanhamento a custos baixos. Da mesma forma, o volume de recursos financeiros necessários cresceu na exata proporção da ambição do programa;
aqui também o número de parceiros precisava ser ampliado para assegurar a continuidade do projeto. Felizmente, nada disso assustava os idealizadores do Alfabetização
Solidária.

No final dos anos 1990, Pedro Moreira Salles deslocou-se para Barroquinha, Ceará, quase divisa com o Piauí. Eram 10h3o de um sábado, temperatura de 35 °C à sombra.
O relato emocionado é dele:

Numa das modestas salas da escola Governador Virgílio Távora, Suyara, mulher de idade, conta orgulhosamente a sua história para a Presidente do Conselho do Comunidade
Solidária, Professora Ruth Cardoso. "Descobri que tinha talento, um dom; quero dar o melhor de mim para os meus alunos", explica, desinibida, para mais de vinte
pessoas, entre elas o Governador do Estado e o Prefeito da cidade. "A Solidária me ajudou a definir o que quero ser. Quero continuar e vou continuar." Suyara é um
dos 70 mil alfabetizadores de um admirável, e pouco conhecido, programa, o Alfabetização Solidária. Iniciado em 1997 a partir de ideias discutidas no conselho presidido
por D. Ruth, o Alfabetização Solidária terá atendido mais de milhão e meio de indivíduos até o final deste ano, o que equivale a 10% do contingente de analfabetos
do país. O programa é dirigido à população acima de catorze anos de idade, sendo a maioria dos alunos até o momento moradores de zonas rurais, entre vinte e 29 anos.
É isso mesmo: quatro anos apenas, 1,5 milhão de pessoas! E o custo? R$ 34 por aluno, por mês. O sucesso do programa foi de tal ordem que, uma vez concluído o módulo
básico de alfabetização - cuja duração era de cinco meses , os alunos queriam mais. Uma evidência concreta é que 93% dos municípios atendidos organizaram turmas
de ensino supletivo. Onde o programa foi implantado,
observou-se a expansão imediata da rede formal de ensino. Uma verdadeira revolução, sem ruídos e com um mínimo de palanques e holofotes. Dela participaram 90 empresas,
180 universidades, 1.200 municípios e vários governos de estado.

Quanto a Suyara, a alfabetizadora de Barroquinha, ela decidiu entrar para a faculdade. "Estou com saudades de deixar os meus alunos'', explicou para sua plateia
seleta. Pode não ter sido o mais perfeito uso do idioma, mas a frase expressou com clareza a força desse extraordinário projeto.

A cada momento, problemas eram encontrados e resolvidos. Quando se avaliou o porquê da enorme evasão dos cursos, descobriu-se um dado curioso. Grande parte dos que
desistiam tinha problemas de visão. Criou-se imediatamente o Programa Ver, que distribuiu 5o mil óculos após as avaliações oftalmológicas. O que havia a fazer? Agregar
as universidades que tivessem competência e criar condições para que essa competência chegasse aos lugares mais carentes. Criar logísticas impossíveis. As empresas
privadas não contribuíam apenas financeiramente, mas também com expertise, com eficiência. A AlfaSol estimulava a sintonia entre a iniciativa privada, as universidades,
as comunidades e as prefeituras, cujas estruturas são diferentes daquelas das grandes metrópoles. A expectativa de cada parceiro era diferente. O empresário queria
ver o resultado prático, o que aconteceu com o município e como o índice se comportou. Para a universidade, isso não era suficiente o professor queria ter oportunidades
de pesquisa, de reflexão, esperava outro retorno. As prefeituras queriam saber o que resultaria de recursos. O que a AlfaSol levava até eles era uma demanda pela
escolarização a que a prefeitura e a rede tinham de responder. O grande objetivo era que o projeto criasse demanda para que novas salas fossem abertas na própria
rede de ensino. Cabia à AlfaSol potencializar, reunir parceiros de diversos segmentos para uma ação conjunta, com foco. Qual era o objetivo? Atender a comunidades
que não tinham programas de alfabetização, que não recebiam nenhum atendimento. Numa avaliação dos primeiros seis anos da AlfaSol, verificou-se que para 74% dos
municípios atendidos aquela tinha sido a primeira experiência de alfabetização. O Timor Leste foi um dos primeiros países a adotar a experiência do Alfabetização
Solidária, em 2001. Em seguida ela migrou para Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Uma sucessão de prêmios internacionais mostra o alcance do Alfabetização
Solidária: em 1999, o Prêmio para Iniciativas Bem-Sucedidas em Educação, concedido pela Unesco. Em
2000, em Paris, o Prêmio Internacional de Alfabetização. Em 2002, participação no kit comemorativo da Década da Alfabetização, iniciativa lançada pela ONU. No ano
seguinte, Prêmio ONU para a Educação, como uma das dez mais bem-sucedidas experiências de alfabetização existentes no mundo. Em 2004, o Prêmio Rei Sejong de Alfabetização,
uma doação da Coreia do Sul à Unesco, e o da Rede Innovemos Rede de Inovações Educacionais para a América Latina e o Caribe. Em 2007, O Prêmio Dubai, iniciativa
do Programa de Melhores Práticas e de Lideranças Locais desenvolvido pelo UN - Habitat, programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, e pela Together Foundation,
com sede em Nova York, instituição que prepara líderes socialmente responsáveis ao redor do mundo.

RUTH NÃO ESTAVA EM toda parte, ainda que viajasse para os mais longínquos lugares. Ela sempre foi uma pessoa que deu liberdade, incentivou a autonomia, mas com absoluto
compromisso e muita responsabilidade. "Não tínhamos necessidade de ela se fazer presente diariamente, ou de ela ter uma agenda determinada na AlfaSol", acentua Regina
Esteves. "Só que a relação com ela de concepção, de ideias, de fidelidade, era um compromisso rigoroso. Ela manteve a vida toda um aspecto que era próprio da sua
personalidade. Gostava de formar pessoas. Toda vez que via alguém jovem na equipe, dava para ver um brilho diferente nos olhos dela. Tinha paciência e interesse
na formação de jovens. Essa formação não era apenas no campo profissional, a coisa era mais complexa. Ela se preocupava como estava a Regina profissional da AlfaSol,
a mãe, a esposa, como estavam minha família, minhas relações de amizade. Assim como se preocupava
com uma mulher simples do vale do Jequitinhonha. Delegava, impunha desafios, confiava. Uma vez, no gabinete do Comunidade Solidária, em Brasília, ela devia fazer
uma apresentação para o pessoal do Banco Mundial. De repente, virou-se para mim: 'Você é quem vai fazer essa apresentação!'. Uma coisa é você ter as coisas preparadas
para o seu trabalho, outra é a apresentação para um banco desse porte. Ela sentou-se na primeira fileira e me apoiava com o olhar e acenos de cabeça. Foi um desafio
assustador na hora, porém vejo que foi uma oportunidade para mim, ela fez com que eu enfrentasse meus medos e limites. Era uma pessoa que, ao comentar algo, destacava
os pontos positivos. Não apontava os negativos, fortalecia os positivos. Era muito séria e exigente em algumas coisas. Por exemplo, naquilo que acreditava em termos
de seriedade e respeito em relação à comunidade, ela não abria mão. Nosso compromisso era com aquele lugar, aquela gente. Com os recursos captados, então, era de
uma rigidez total, quase absurda, contava tostão por tostão. Agora, se fosse para testar, inovar, mesmo que naquele momento ela não estivesse convencida, ela dava
apoio para fazer, estimulava. Achava sempre que é essencial testar, experimentar, pensar diferente, avançar. Acreditava que as pessoas poderiam sempre colocar um
tijolinho numa ideia que veio dela e dava total liberdade para que essa construção fosse um processo. Era uma pessoa única porque conseguia manter o foco num ponto
específico, técnico, olhando o todo, sem se desviar do conjunto", conclui Regina Esteves. Miguel Darcy jamais viu Ruth Cardoso dar uma ordem, impondo autoritariamente
algo como "quem manda aqui sou eu, vai ser feito do meu jeito". Quando não estava de acordo, afirmava com clareza: "Isso não vou fazer". Demonstrando certa teimosia,
para ela não era fácil abrir mão de seu ponto de vista, ficava firme nas suas ideias. Sempre foi opinativa, determinada. Era questionadora também. Se o grupo estivesse
discutindo uma nova forma de atuação, e ela tivesse uma dúvida, intervinha, discutia, repensava e tentava ver lá na ponta como é que aquilo funcionaria. Se achasse
que ia funcionar para a comunidade, então tudo bem. Importante ouvir Teresa Caldeira: "A atitude da Ruth de constante questionamento, tanto dela quanto da prática
e do contexto que ela encontrava, tinha um complemen
to fundamental. Ela foi sempre uma grande professora, mas detestava a escola, e ficaria horrorizada em saber que tem seguidores, porque o que ela ambicionava, acima
de tudo, era forjar a autonomia de cada um que se relacionava com ela. Jamais quis que repetíssemos o que ela dizia. Tinha ataques se isso acontecia, porque o que
ela queria era abrir caminhos para que cada um seguisse o seu. Sempre enfatizou que dar autonomia aos outros era a melhor coisa que se podia fazer, e ela fez isso
brilhantemente, foi essa atitude que ela levou para o Comunidade Solidária. Queria criar condições para que sobretudo os jovens pudessem ser, eles mesmos, produtores
da sua própria visão de mundo e da sua própria representação. Numa das últimas discussões que tivemos com ela, num trabalho sobre vídeos na Cidade Tiradentes, ela
explodiu: 'Esses meninos têm de produzir eles mesmos os seus vídeos. Não dá para a gente ficar aqui vendo os intelectuais produzirem vídeos sobre a periferia. O
que a gente tem de fazer é capacitar esses meninos para que eles criem as suas próprias representações'. A ênfase nessa atitude de forjar sujeitos autônomos, que
podem ser agentes do seu próprio futuro, é um dos seus grandes legados, foi a alma e o eixo do Comunidade".

UMA COISA QUE PROVOCAVA perplexidade nos críticos do Comunidade Solidária e na mídia, sempre preocupada com o que é governo e o que não é, era a participação da
Força Aérea Brasileira nas ações do programa Universidade Solidária. Para isso, a Aeronáutica montou uma Sala de Comando e uma Sala de Estado-Maior para gerenciar
a logística dos aviões, cuidar do abastecimento e formar as unidades de intervenção em casos emergen ciais. Fizeram um mapa gigantesco do Brasil, das linhas de comando,
das hierarquias, a logística funcionou, os universitários adoraram, partiram com entusiasmo para as comunidades mais pobres e longínquas. Os aviões Buffalo, da FAB,
desciam em qualquer pista, e era neles que os estudantes viajavam. Ruth fazia questão de estar no aeroporto a cada chegada dos jovens. Revirava sua programação para
liberar aquele dia, aquela hora. Desde os tempos de Faculdade de Filosofia ela conse-
guia administrar bem o tempo, dona de casa, funcionária pública, mas a chegada dos estudantes era dos raros momentos em que ela não se atrasava nunca. Eles chegavam
e, quando a porta se abria, Ruth Cardoso corria, com um sorriso enorme no rosto. Queria abraçar a rapaziada que descia vestida com a camiseta da Universidade. Todos
eles bastante emocionados, muitos choravam, inclusive Ruth. Alguns daqueles jovens estudantes não acreditavam que estavam diante da primeira-dama. Aquela mulher
vestida simplesmente, que distribuía abraços e conversava com todos era a mulher do presidente? Uma das mulheres mais importantes da República? Em pequenos municípios
do interior da Bahia, de Pernambuco, Ceará ou Acre, a chegada dela era uma festa, o lugar como que se iluminava. O espírito araraquarense auxiliava, facilitando
tudo - em poucos minutos ela estava integrada. Numa viagem ao Amazonas, em 1996, o grupo seguiu de barco para visitar comunidades ribeirinhas, pois Ruth queria avaliar
como estavam se comportando os universitários naquela região. A determinada altura havia uma pequena comunidade mais distante e ela insistiu em chegar até lá. Protocolo
rígido, pediu às seguranças que a rodeavam: "Me deixem só, não me acompanhem". A essa altura, as seguranças estavam começando a aprender - ou não ficariam no grupo
-, quase a caminho de se sentirem acostumadas com essa sua maneira de ser, mas mesmo assim ficaram apreensivas. Elas adoravam Ruth. Chegaram à tal comunidade, Ruth
começou a conversar com um, com outro, perguntava, respondia. Para se ter ideia do isolamento do lugar, meia hora depois ninguém tinha se dado conta de que aquela
era a primeira-dama. Na hora de partir, um senhor idoso, líder da comunidade, não se conteve: "Diga, por favor, aquela senhora não é a mulher do presidente? Ou estou
enganado?". Identificada, ela distribuiu abraços e sorrisos. No barco, de volta, abriu-se: "Foi o máximo essa viagem, tive uma hora de pura antropologia". No Acre,
Rosiska Darcy e Ruth foram a Xapuri, terra de Chico Mendes. Emocionaram-se com o túmulo de Chico num cemitério de covas rasas. Há um mausoléu de ladrilho branco
com uma pequena luz permanentemente acesa acima dele. Todos os dias alguém vem e troca as flores. Dali foram visitar o hospital. Encontraram um número grande de
meninas
onze, doze anos, grávidas, maltratadas, tremendo com a malária. Já emo-
cionadas com a visita ao cemitério, passaram contidas por aquelas quase crianças. Pouco depois, quando entraram no avião, as duas desabaram. Todos que trabalharam
com Ruth asseguram que as formas de monitora mento foram aprendidas com ela, que ensinava: nos primeiros momentos se devia ter uma relação de igual para igual, sem
intimidar ninguém, de maneira que as pessoas se vissem reconhecidas pela capacidade e importância que têm na comunidade e o que têm a dizer, comunicar. Regina Esteves
traz outros episódios significativos: "Fomos à favela da Rocinha para o lançamento de um programa em parceria com o BNDES, planejado em conjunto com a Associação
Comunitária local. Chegamos ao pé do morro, o favelão estendia-se acima de nós, compacto. As seguranças vieram, temerosas: 'Não vai dar. A senhora precisa mudar
o programa. Não pode subir. A situação é perigosa. Vamos fazer a cerimônia aqui embaixo mesmo'. 'Mas aqui não é a Rocinha! Estão nos esperando lá em cima, se prepararam
para isso. O programa é deles, para eles, vai fazer bem para a comunidade. Vamos lá, estão nos esperando. Confiem neles.' 'Só que não dá para subir, de maneira alguma.'
`Vocês fiquem. Já estou subindo.' E começou a caminhar. Juntei-me a ela, tensa, tremendo. Teria sido um vexame não subir. Ela passando e o povo saudando, aplaudindo.
As seguranças dela tiveram de montar um esquema diferente, mas sabíamos que havia também uma segurança própria da comunidade. Chegamos a uma pequena e humilde casa,
já nos esperavam, uma alegria imensa nos rostos. De repente, um susto. Começaram a soltar fogos, uma confusão, as seguranças se prepararam. Tanto poderia ser algo
festivo como o anúncio da chegada de drogas ou armamentos, ou mesmo a presença de polícia. O lugar tinha seus códigos, que desconhecíamos. Ruth, imperturbável, conversando,
e o diretor do BNDES alarmado. Quando tudo terminou, descemos, entramos no carro, ela virou-se para mim: 'Nossa, Regina, como você está acabada!'. Recostou-se no
banco: `Vocês não conhecem esse tipo de comunidade. Sei como trabalhar nas favelas, conheço os códigos. Sei como tenho de trabalhar. E este projeto irá a toda parte'.
Em outro evento, em Mangueira, tivemos uma situação parecida e ela soube como interagir e nos ensinou
muito. Nunca ouvi Ruth dizer que algum projeto seria difícil, complicado ou impossível. Isso não existia. Ela sempre trabalhou nos mostrando que era necessário apenas
desenhar o modelo para cada tipo de comunidade. O nosso princípio era trabalhar em parceria com as prefeituras municipais. Num dos 38 municípios do projeto-piloto,
em Mata Grande, Alagoas, o prefeito não quis apoiar, não havia condições, e mesmo assim ela não desistiu, insistia que devíamos achar um jeito. Esse era o desafio.
Acabamos fazendo parceria com a associação comunitária. Foi tudo tão benfeito que depois o prefeito acabou assumindo. Podemos não ter as condições ideais para o
trabalho, mas temos os ideais, ela sempre repetia". Os alfabetizadores sempre foram jovens locais que tinham ido fazer estágio numa capital e voltavam com a cabeça
cheia de imagens e novidades. Ela dizia: "Ofereçam algo sólido e todos crescem". Ruth quebrou a ideia de professor e aluno. Cada um, em diferentes situações, pode
ser educador ou educando. Os alfabetizadores se educavam e transmitiam, enriqueciam suas comunidades, alargavam horizontes. A troca de experiências era rica. A UniSol
nasceu de uma ideia simples: a troca de conhecimentos. Todas as atividades valorizam o envolvimento da comunidade na busca de soluções locais, ampliando as possibilidades
municipais de parcerias inovadoras. As prefeituras tinham a chance de reciclar seus servidores, professores e agentes comunitários e de ver o cotidiano transformado
em atividades educativas e culturais. No município baiano de Araci, os universitários conseguiram reduzir a taxa de mortalidade infantil a partir da descoberta de
uma tradição: as parteiras cicatrizavam os umbigos dos recém-nascidos utilizando estrume de galinha e de cabra. Extinta a prática, mudou-se a situação. São detalhes
que transformam um lugar. Multiplicados, transformam regiões. Ou o mundo, se quisermos. Em muitos municípios, a simples criação de uma escola reduziu a migração
de moradores que buscavam outras localidades, desejando dar ensino aos filhos. Os universitários alfabetizadores eram (e são) criativos, de acordo com a necessidade.
Em Acauã, no Piauí, por exemplo, construíram um sistema que puxava água de uma localidade a dois quilômetros de distância.
Recusa-se a questão assistencial e isso é explicado em reuniões, seminários, publicações. Aquela história antiga de os jovens chegarem e extraírem dentes não existe
mais, é outro departamento. O Comunidade Solidária não atua, nunca, sob este ângulo. Muitos universitários, uma vez formados, acabaram indo trabalhar nas regiões
onde estiveram com a UniSol. Outros pediam para ser monitores de novas equipes. A ideia de Ruth sempre foi, no futuro, a formação de uma grande rede de troca de
informações. Com o programa Universidade Solidária conseguiu-se mexer com a cabeça dos estudantes, contribuir para sua formação pessoal e profissional, como acentua
Elisabeth Vargas, uma de suas coordenadoras: "As universidades descobriram que podiam fazer diferença, participando de uma ação conjunta e coordenada, podiam ser
parceiras do desenvolvimento. Estava sendo cumprido o papel da universidade, que é o de disseminar conhecimentos e informações. Ou seja, uma ação educativa que semeava
para o futuro e levaria ao desenvolvimento sustentável". Miguel Darcy sustenta que "as equipes do Universidade Solidária foram as maiores beneficiárias do programa,
talvez mais que as próprias comunidades. Muita coisa se levou, muita se aprendeu. A UniSol levou a modernidade às comunidades".

No MEIO DE UMA REUNIÃO formal do Comunidade Solidária, estivesse presente quem estivesse, de repente Ruth se inclinava para Regina Esteves e anunciava:

- Vou sair por dez minutos. Logo agora? E se entrar algum assunto importante na pauta? - Dez minutos, segura aí. - Mas, Ruth... - Nem mais, nem menos. Combinei com
o Pedrinho, meu neto, filho da Bia, e ele vai me mandar um fax em cinco minutos. E saía. Aqueles compromissos com os netos eram sagrados, ela não abria mão deles
de modo algum. Inúmeras vezes desmarcava tudo porque havia prometido a Bía ficar com os filhos dela no Rio de Janeiro. Ela não
era muito ligada a horários e a equipe à sua volta dava um jeito de manter a pontualidade, raras vezes conseguida. Quando viajavam, o problema era diferente. Ao
chegar a uma comunidade, cumpria as inevitáveis formalidades com prefeitos, empresários etc., mas sabia que havia encontros reservados com pessoas da comunidade,
todo tipo de gente, e era a hora da conversinha, de onde ela tirava farto material e via o andamento dos projetos. Ali estava a resposta de tudo. Os atrasos muitas
vezes eram motivados por essas conversas. Ela se deixava levar deliciada e esquecia o tempo, o relógio, as obrigações. José Gregori tem uma explicação curiosa: "Ruth
nunca aprendeu a entrada do político. Este chega a um lugar, cumprimenta um por um, aperta a mão de todos, diz uma frase, segue. Feito o tour, então ele seleciona
com quem vai se demorar. Ruth, não. Entrava e ia se enroscando em papos que se eternizavam". Havia muito de Araraquara nisso. Para Regina Esteves, ela trazia a cultura
de sua terra natal em tudo o que fazia, daí sua empatia com o povo do interior. "Sei como as coisas funcionam nessas cidades, sou de Araraquara", enfatizava Ruth.
Era uma mulher de fácil manejo, mas que ninguém chegasse bajulando. Odiava isso, cortava logo, desviava o assunto. Que ninguém viesse tentando usá-la como intermediária
para chegar ao presidente. Para vê-la irritada, bastava mudar algum programa do Comunidade Solidária inserindo no meio de uma agenda previamente estabelecida algum
encontro de cunho político que nada tinha a ver com o Comunidade. Exclamava, irada: "Faço outra viagem só para isso, mas não posso gastar meu tempo em prejuízo do
programa que vim cumprir". Há um programa pelo qual Ruth tinha muito interesse, o voluntariado. Foi algo muito discutido, eram pessoas que vinham do mundo acadêmico,
das ONGS, da sociedade civil. O voluntariado é uma ação bastante antiga, principalmente entre senhoras da alta sociedade dispostas à prática da caridade. É uma coisa
entranhada na raiz brasileira, surge nas associações religiosas, nos bairros, nas escolas, nas associações esportivas ou culturais, nos comitês políticos, até numa
quadra entre amigos. Nos Estados Unidos o voluntariado é algo diferente, é um componente fundamental da ação cidadã. Assim, o Comunidade Solidária decidiu ressignificar
o sentido de
voluntariado, sem desqualificar as formas generosas de ação inspiradas no desejo de ajudar os outros. Decidiu-se fazer um casamento entre a noção de solidariedade
e a de cidadania. A cidadania sozinha é coisa abstrata, a solidariedade sozinha é apenas um ato generoso. "Vamos juntar esses dois mundos", disse Ruth. Montou-se
um projeto, financiado pelo BID, para estimular a criação de centros de voluntariado em várias cidades, a fim de formar gente e desenvolver tecnologias de ação de
voluntários e isso explodiu no Brasil inteiro. O que faziam esses voluntários? Tudo o que quisessem. Tudo o que fosse necessário. Foi uma coisa inovadora, porque
se quebraram as hierarquias. Perguntava-se às pessoas o que elas tinham a oferecer, que bem elas poderiam fazer a alguém com alguma carência Ler para um cego? Trabalhar
numa creche? Tudo bem, ainda que se saiba que uma coisa não é melhor ou mais nobre do que a outra. Quer então trabalhar com causas "maiores", mais contemporâneas?
Com o meio ambiente? Cada qual é voluntário ao seu jeito e maneira, e não existem fórmulas ou modelos. O Programa Voluntários sabia que mobilizar adeptos não era
tarefa difícil, as pessoas estão sempre dispostas a ajudar, a participar. Fundamental é oferecer a elas um leque amplo de oportunidades. O que cada um precisava
saber e disso se imbuir é que voluntariado é escolha, é ação, é compromisso. Quando se estruturou o programa, em 1996, havia no Brasil uma ausência de infraestrutura
de apoio, devido ao desgaste da palavra "voluntariado", significando apenas ação de cunho assistencial. Havia isolamento. Faltava diálogo, dominava a ausência de
um esforço sistemático de produção de conhecimento, de metodologia de trabalho, portanto, perda de eficiência. E existia, principalmente, desinteresse das empresas
pelo voluntariado como componente da responsabilidade social do empresariado. O desafio era este: como se organiza uma coisa que é espontânea? Uma das ideias foi
montar um programa de incentivo, com Regina Duarte como garota-propaganda. Agências de publicidade produziram comerciais e spots, valorizando a ideia de participação.
Logo se formaram Centros de Voluntariado nas principais cidades brasileiras. Em seguida cuidou-se da elaboração de uma metodologia para a melhoria das ações voluntárias,
com seminários, publicações, intercâmbios. Foram elencadas as prioridades: pessoas portadoras de deficiências, segmento de aposentados e idosos, jovens e crianças.
A publicação do manual Como as empresas podem implementar programas de voluntariado, a parceria com a Rede Globo na divulgação e o aporte financeiro do BNDES deram
uma estatura física forte ao programa. Os Centros de Voluntariado nasciam de uma demanda local. A publicação Fortalecendo a sociedade, promovendo o desenvolvimento
assinala que "uma pessoa de terceira idade, que tem tempo, vontade de trabalhar e de ajudar os outros, pode se engajar num trabalho voluntário. Isso é ótimo para
a saúde psíquica dessa pessoa, ela se sente útil, vive experiências com outros grupos sociais. Os deficientes, os idosos e os jovens são três grupos muito importantes
e não podem ser vistos apenas como beneficiários da ação voluntária. Nós queremos vê-los também como sujeitos dessa ação voluntária". Ou então, "quanto mais uma
escola se abre à participação dos pais de alunos e da comunidade, melhor ela é. E a participação dos pais é uma ação voluntária. A entrada da comunidade na escola
é uma ação voluntária". Ruth Cardoso era intransigente quanto a compromisso: "A partir do momento em que a pessoa diz 'sim, serei voluntário', assume o compromisso
de fazer, de ter horários e tarefas. Não é aparecer quando dá na veneta, quando tem um tempinho livre. Se você dispõe de quatro horas por semana e oferece essas
quatro horas, que seja responsável, sério, porque é uma relação com os outros, haverá pessoas esperando, instituições que precisam de sua presença. Não é só você
doando, é você também recebendo, abrindo-se a novas experiências e vivências, se enriquecendo". Se alguma coisa a tirava do sério era o fato de não se cumprirem
compromissos. Foi criada uma lei para defender as organizações nas quais os voluntários trabalhavam. Muitas vezes um sujeito se apresentava, trabalhava três ou seis
meses como voluntário, se desinteressava e saía, ou se desentendia e ia embora e então acionava a Justiça do Trabalho, requerendo direitos. A Justiça sempre dava
ganho de causa a eles. Daí as organizações terem medo de receber voluntários. A lei visava proteger os parceiros desses abusos.
Nos ANOS 1970, VIAJANDO pelo interior de Minas Gerais, na cidade de Boa Esperança fui levado à casa da velha Dula, noventa anos, dita a última tecelã da região.
Dula tecia colchas, toalhas de mesa e edredons a partir da lã que escolhíamos e comprávamos no próprio carneiro. Ela tosquiava, tingia e tecia. Seu tear era de madeira
centenária, abrigado num telheiro ao lado da casa. Dula me confessou: "Este ofício acaba comigo". Por quê?, indaguei. E ela foi realista: "As meninas não querem
aprender, acham as coisas das Casas Pernambucanas mais bonitas e fáceis. O povo também tem ido para as lojas". Estava chegando ao fim uma época de beleza. Dula morreu
em seguida, seu tear apodreceu. Quando a seca assolou o sertão nordestino em 1998 e se criou o Projeto de Capacitação e Geração de Renda, percebeu-se que o artesanato
poderia se tornar uma atividade geradora de renda, já que profundamente ligado ao modo de vida de centenas de comunidades e forte expressão de sua identidade cultural.
Mas o que estava ocorrendo, com a modernidade do mundo e as tecnologias se disseminando? Do mesmo modo que as filhas de Dula aliás, mulheres na casa dos setenta
anos tinham se recusado a aprender a arte da mãe, a maioria dos jovens não se interessava por herdar dos pais e avós aquele conhecimento cultural. Não valia a pena,
consideravam. Não se ganha quase nada. Com obras espalhadas por museus do Brasil e do mundo, todavia a vida dos artistas populares continuava inalterada, à beira
da miséria. Um dos problemas que se apresentavam era o escoamento da produção. No Nordeste, ou em Minas Gerais - para citar apenas dois centros mais difundidos -,
era difícil um canal para se chegar às capitais, portanto o ritmo era de pouca demanda e os preços, aviltados. Havia, e este foi um fator complicador, os intermediários,
aqueles lojistas de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte etc., que iam buscar esse artesanato, pagavam uma ninharia por ele e o revendiam a preço de peça
de design. Quando a grande seca devastou o Nordeste, uma das primeiras perguntas de Ruth à sua equipe foi: "O que podemos fazer, de imediato? Mandar cestas básicas?
Tudo bem, precisa. Mas só eu vou mandar? Cestas básicas, não! Isso vai ser feito pelo Ministério de Assistência Social". Ela tinha uma
ojeriza a isso. Mesmo sabendo que em certas horas é preciso dar de comer, ela oferecia resistência à cesta básica, preferia encontrar algo novo, que não fosse assistencialismo.
Então foi feita uma pesquisa, no Nordeste e no vale do Jequitinhonha, e vieram as respostas às perguntas: o artesanato estava sobrevivendo com dificuldade, à beira
da extinção. O que fazer? Quem são os artesãos? Do que eles precisam? Treinamento? Comercialização? Novas perguntas se sucederam, equipes foram enviadas para várias
regiões, gente com experiência de cidade, para ver como se poderia comercializar melhor os produtos, como aprimorar a técnica dos artistas. Um ângulo que parece
pequeno, mas que aposta na capacidade das pessoas, por isso tende a durar, não está condenado a ficar pequeno. Quem ia para o Jequitinhonha era uma pessoa diferenciada,
não ia para intervir na criatividade, castrar a imaginação, não ia fazer a cabeça de ninguém, ia compartilhar, auxiliar. Nenhum agente do artesanato foi ensinar
a fazer diferente, essas coisas vêm passando de geração para geração e a intenção era fortalecer isso. Recuperar o que estava sendo perdido e aprimorar o trabalho.
Aquelas bonecas feita com bucha, ou com pano, ou papel, eram lindas, mas como avançar, valorizar mais o material? A questão sempre foi a potencialidade, era esse
o ponto no qual Ruth Cardoso batia. Identificar e fortalecer potencialidades, desenvolver quem executa, quem cria. Desse modo, foi montada uma central de vendas
para quebrar o intermediário e canalizar o máximo de rendimento para o artista local. Quebrar o intermediário mas sem criar atritos, procurando encontrar outros
tipos de canais. Parcerias funcionaram com o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Funarte, com seus pesquisadores selecionando municípios e orientando artesãos
que passaram a integrar o Artesanato Solidário. O projeto foi iniciado com os trabalhos em Candeal (MG), onde se montou o Galpão dos Oleiros, e rapidamente a cerâmica
começou a ser revitalizada em outras localidades mineiras, como Campo Alegre de Minas e Coqueiro do Campo, em São Mateus, no Espírito Santo, em Tracunhaém, em Pernambuco,
Rio Real e Irará, na Bahia, em São João da Varjota, no Piauí. Os brinquedos da Paraíba, cuja produção era desorganizada e escassamente comercializada, começaram
a ser disseminados pelo Brasil. A renda irlan-
desa, feita pelas sergipanas de Divina Pastora, passaram a fazer parte da alta moda - foram vistas até nas passarelas da Fashion Week. O labirinto, trabalho dificílimo,
complexo, mistura de renda e bordado do Rio Grande do Norte, foi redescoberto. Em cada lugar, os consultores do Artesanato orientavam as artesãs a procurar revitalizar
técnicas e aprendizados do tempos das avós e bisavós, e assim se recuperou muita técnica desaparecida. O programa, em alguns anos, atingiu 66 localidades de treze
estados brasileiros. Muitas questões foram tratadas, como as relações interpessoais, o uso sustentável dos recursos naturais, o aproveitamento do lixo, saúde, educação,
cidadania e autoestima. Na ONU, no Banco Mundial, no BID, eles viam em Ruth a possibilidade de falar com uma pessoa que estava seriamente interessada em problemas
sociais, em como investir aqui, como ajudar, mesmo quando não davam dinheiro. Eles a ouviam com respeito. A certa altura, a União Europeia decidiu dar dinheiro para
o Artesanato Solidário, mas impuseram tantas condições, mudaram tanto o projeto, que Ruth recusou a oferta. Malak El Chichini, que transitava à vontade nesses meios,
tinha dito a eles que não interferissem. Houve bons resultados quando o BID ajudou o Capaci tação Solidária. Muitas vezes Ruth fez questão de acompanhar seus agentes,
e passava horas em cada localidade, sentada ao lado daquelas senhoras de mãos habilíssimas (85% delas praticam o artesanato), conversando, perguntando, às vezes
tentando fazer, aprendendo. Os que a conheciam, os que estavam próximos, íntimos mesmo, não sabiam, no entanto, daquela Ruth, criança em Araraquara, na casa da Vó
Vizinha, fascinada enquanto a velha senhora "entiotava" rendas. Se soubessem, entenderiam melhor Ruth. Uma bela definição do que Ruth fazia com o artesanato foi
expressada por Celso Lafer: "Ela conseguia trazer o sujeito lá do Piauí, ou de onde quer que fosse, para uma dimensão mais ampla do que sua localização".

MULHER, A PROMOTORA DA MUDANÇA
NO MUNDO

NO ANO DE 1995, RUTH chefiou a delegação brasileira à IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, em Pequim, na China. Ela foi acompanhada pela embaixadora
Thereza Quintella e por Rosiska Darcy. Na China, iriam se reunir com mais 18o delegações de todo o mundo e representantes de 2.500 ONGS, e Ruth então divulgaria
o Plano Estratégico de Ação no Brasil. Mais de quinhentas mulheres brasileiras embarcaram para Pequim às próprias custas. A viagem foi uma aventura. O discurso foi
sendo preparado no meio do caminho. Como não havia tempo para nada, tudo era feito correndo. Fizeram escala em Zurique, foram para o hotel e trabalharam por horas
no texto. Ruth e Rosiska se relacionavam mal com o computador, de maneira que chamaram Vilmar Faria e Miguel Darcy, que formataram tudo. Na releitura, Ruth reclamou
de um trecho acrescentado por Rosiska entre duas vírgulas: "Não vou ler isto! Quem fala assim é você. Não eu!". "Leia, Ruth! Para empolgar a plateia. Não pode ficar
lendo uma coisa acadêmica, monótona. Tem de dar força." Põe, não põe, põe, tira, põe, afinal o trecho ficou, Rosiska venceu a parada, talvez pelo cansaço - se Ruth
firmasse o pé, o trecho não entraria. De qualquer maneira, ela não gostou muito. Terminado o discurso, mortos de fome, decidiram sair para jantar. Ruth ficou, estava
preocupada, ia falar no dia seguinte. Rosiska, Miguel e Vilmar foram em busca de um restaurante e avisaram a Ruth que não mexesse no computador, o texto estava na
agulha, afinado. Ao voltar, deram com Ruth lívida: "Fui mexer, sumiu tudo. Desapareceu".
Miguel e Vilmar sentaram, levaram horas, recuperaram o texto já na madrugada. Ela ficou acordada, cara de criança culpada: "Eu só queria ajeitar para ficar mais
bonitinho". No dia seguinte, Ruth subiu à tribuna e começou a ler. Quando chegou ao tal trecho entre vírgulas que Rosiska tinha escrito, a plateia ergueu-se em aplausos.
Ela localizou Rosiska, desviou o olhar e começou a rir, não parava de rir, ninguém entendia, precisou tomar fôlego e retomar sua fala, evitando olhar para a amiga,
e foi assim até o fim do discurso. Ela sabia ter humor. Inquieta, certo dia sem programação, ela começou: "E o que vamos fazer? Ficar paradas aqui?". Decidiram ir
para Xi'an conhecer o Exército do Imperador Oin, também conhecido como os Guerreiros de Terracota. A embaixadora Thereza Quintella fez as conexões. Ruth pediu uma
viagem sem rituais oficiais, sigilosa, e lá se foram. Ruth se vestiu informalmente, de tênis e camiseta branca, bem à vontade. Lá chegando, quando pôs o pé no primeiro
degrau da escada para descer até as escavações, teve um ataque de riso um tapete vermelho, autoridades perfiladas e dezenas de bastidores de prontidão. Rosiska
recuou: "O que é isso?". E Ruth: "Para mim, claro. Para quem vai ser?". Respirou fundo e, impávida, percorreu o tapete vermelho, de tênis e camiseta. Essa impossibilidade
de um minuto de privacidade às vezes a incomodava, ainda que soubesse que fazia parte do cargo que ocupava. Falando à Tv Globo no dia 9 de setembro de 1995, Ruth
Cardoso avaliou que "uma vez mais ficou constatado que a pobreza atinge mais as mulheres do que os homens no mundo contemporâneo. Ela afeta diferentemente as mulheres
porque elas são chefes de família, e vejam que aumentou o número de mulheres chefes de família e, principalmente, porque os salários das mulheres, em todos os países
do mundo, continuam sendo menores do que os dos homens. Estou vendo emergir dessa conferência, e disse no meu discurso, uma nova consciência de que a questão da
mulher é uma questão da humanidade toda, e que a mulher não é só uma vítima da discriminação, mas ela é a promotora da mudança no mundo. Essa nova visão do feminismo
faz uma ligação muito mais articulada entre combate à pobreza e igualdade das mulheres. Este é um enriquecimento da
agenda feminista, que vamos levar para o Brasil, onde já estamos, de certa maneira, trabalhando conjuntamente a questão da pobreza e a questão da mulher. Vamos ter
de avançar mais nessa direção". Cinco anos mais tarde ela presidiria o Comitê Nacional Pequim +5, uma conferência realizada em Nova York.

NUMA DAS PRIMEIRAS entrevistas coletivas que deu, Ruth tentou fazer um acordo: "Vamos ter de discutir até onde vocês vão. Porque só vou falar com vocês quando tiver
o que falar". Ficou uma saia justa, uma situação delicada, criou-se certa animosidade. Mas aos poucos ela foi ganhando a imprensa, que passou a ter outra postura.
Até a revista Caras ficava o tempo todo atrás dela, ali na cola, tentando pegá-la numa situação assim ou assado. Ruth em Brasília nunca abriu mão das coisas dela.
O grande problema com a imprensa, com o fato de ser primeira-dama, foi a exposição pública da vida pessoal; ela pensava nas consequências que isso teria para os
filhos e para os netos. Era a invasão de uma vida que ela preservou por tantos anos, uma agressão à independência dela. Ruth sempre foi law profile e, de repente,
essa invasão tornou-se permanente, cotidiana. Uma vez, em São Paulo, precisava fazer compras - havia um casamento, ou o aniversário de alguma criança. E os jornalistas
ali, diante do prédio, dia e noite. Ela desceu, olhou para aquele paredão de fotógrafos, sorriu e pensou algo que repetia para os íntimos: "Ninguém sabe quanto sou
capaz de ser teimosa". Saiu tranquilamente, o batalhão atrás. Foi para os Jardins, em seguida para os shoppings. Caminhava, entrava em todas as lojas - ficava um
pouco, saía, entrava em outra. Não comprava nada, apenas conversava. Entrava e saía, entrava e saía, dando canseira neles todos. Então os jornalistas começaram
a desistir, um a um foi desertando. Quando viu que não tinha mais ninguém, ela começou realmente a fazer
as suas compras. Ruth não ficava na defensiva com a imprensa por mero acaso ou picuinha, na terminologia araraquarense. Precisava estar sempre alerta. Certa vez,
durante uma coletiva, um repórter avançou com o microfone na mão,
até se postar diante dela. Rosiska percebeu a manobra, escreveu num papel "cuidado, aborto", e colocou-o na frente dela. Era um momento delicado, tenso, nas discussões
sobre a descriminalízação do aborto, tudo conduzido com cautela por causa das posições da Igreja e do Congresso. Não deu outra, o repórter jogou o microfone e fez
a pergunta. Era sobre o aborto mesmo. Rosiska levantou-se, deu por encerrada a entrevista, o jornalista ficou furioso, Ruth agradeceu e saiu. Complicado, no entanto,
foi durante a visita do papa João Paulo ii ao Brasil em outubro de 1997. Corria no Congresso a discussão sobre o aborto e Ruth Cardoso foi visitar uma obra na Rocinha,
no Rio de Janeiro. No momento em que entrou no carro para ir embora, um repórter enfiou o microfone pela janela do carro: Qual a influência do papa na votação do
Congresso? -A influência do papa na votação do Congresso é zero. No dia seguinte a declaração estava na primeira página dos jornais, logo na chegada de João Paulo
II. No Rio de Janeiro haveria um encontro entre Fernando Henrique, Ruth e o papa. No grupo de brasileiros foram incluídos Rosiska e Miguel Darcy. Os casais, para
estarem junto ao papa, deviam ser casados, e os únicos casados da entourage eram Rosiska e Miguel. Tensão no ar, afinal Rosiska era do Conselho da Mulher, que se
batia pelo aborto. Aqueles cardeais todos e o grupo se aproximando. Um deles, ao olhar para Miguel, comentou: "O senhor parece muito com uma pessoa que conheço".
Miguel deixou escapar: "Em geral dizem que me pareço com Fidel Castro". Pronto, aborto de um lado, Fidel Castro do outro. Estavam bem-arranjados em matéria de saia
justa. Todos riram nervosamente, para aliviar o clima, e se lembraram do dia em que, na ONU, o papa tinha interpelado Maria de Lourdes Pintassilgo, a mulher que
ocupou o cargo de primeiro-ministro em Portugal. Portanto, já havia um precedente de provável animosidade pública. A cada passo, a ansiedade aumentava. Finalmente
viram-se frente a frente com Sua Santidade. João Paulo foi simpático, deu presentes, tirou fotos. Ele era um homem grande, com muito carisma. Bonito, mesmo aos 88
anos, impressionou como personagem, concluíram todos. Elegâncias de parte a parte, nada foi mencionado,
sorrisos, Igreja e Estado reconciliados. No dia seguinte, os jornais estamparam uma foto de Ruth que ela detestou, de óculos escuros e os cabelos revoltos pelo vento.
Logo ela, que jamais perdeu a postura e sempre aparecia bem penteada, impecável.

FORAM INÚMERAS AS VIAGENS internacionais protocolares. No voo, as malas privadas do presidente e da primeira-dama vão dentro do avião, porque eles desembarcam já
vestidos para a cerimônia de recepção. No início, FHC e Ruth viajavam num avião da FAB, depois se alugava um avião da TAM adaptado - tinham nos voos uma cabine com
cama e chuveiro. Para cada lugar que iam havia as exigências formais. O que vestir, os presentes a levar, como agir. A viagem à Inglaterra, em 1995, ficou célebre,
por ser um país cheio de tradições e ornamentos. Precisa-se usar chapéu, luva, o comprimento do vestido é determinado, a cor é especificada, a reverência diante
da rainha, o modo de estender a mão, a distância de cada pessoa, os rituais fossilizados. Apesar de toda a rigidez, Ruth comentou com Gilda Portugal Gouvêa que enfrentava
tudo com naturalidade, porque tinha colocado na cabeça "que era como o enredo de uma escola de samba. Não te dão o enredo, não existe um papel para você, tudo o
que há a fazer é colocar a fantasia, entrar na ala e sambar. Não é você que decide a cor, a fantasia foi desenhada por outro que não te conhece, ela está pronta,
você entra nela. Então, é assim que vejo, entrei no enredo, vou fazer tudo o que me mandarem, vou entrar na avenida". Um problema foi a questão dos chapéus ela
deveria levar ao menos três, para ter opções. Assim, indo a Nova York por uma semana, para resolver questões do Comunidade Solidária, aproveitou a oportunidade.
Mas o que a incomodava era que vinham as mulheres dos diplomatas, os secretários, gente do cerimonial, a assistente de não se sabe quem, e ela ficava rodeada por
uma corte que a acompanhava, e dava palpites. Queriam ajudar, compre um Armani, compre um Dior, desconhecendo a natureza de Ruth e sua independência. Numa loja,
certa tarde, quando viu que tinha em volta dela cinco mulheres dando palpites, ela disse: "Por hoje, chega".
Voltou no dia seguinte, acompanhada da amiga Maria do Carmo Sodré, de quem gostava e em quem confiava, e escolheu o chapéu. No final, a viagem à Inglaterra foi simpática.
Quando viram os filmes e os noticiários na volta, acharam curioso e divertido perceber que quando Ruth chegou, a rainha olhou-a de alto a baixo, medindo-a, curiosa
com o fato de ela ser uma intelectual de nomeada. Ruth apenas não fez a reverência protocolar por causa de um problema no joelho se o joelho dela fosse, não voltava.
Para os jantares em Buckingham, ela usou um modelo de Lino Villaventura, em que entravam rendas do Nordeste, e um de Marie Toscano, que durante toda a Presidência
fez para ela vestidos muito elegantes. Quando não eram presentes, porque todos eram amigos pessoais, Ruth fazia questão de pagar de sua conta pessoal. Em Londres,
circularam em carruagens, Fernando Henrique ao lado do príncipe Philip, Ruth junto à rainha. Conto de fadas para a mulher de Araraquara, a quem o mundo se inclinava.
Em Buckingham, onde ficaram hospedados, se divertiram com as peculiaridades que revelavam os bastidores da nobreza. Por exemplo, o vaso sanitário era tão camuflado,
tão escondido, que custaram a encontrar. Era oculto num pequeno móvel. Os seguranças ficavam num andar diferente, mas se revezavam de tantas em tantas horas. Foram
avisados de que os cachorros da rainha ficavam soltos e costumavam seguir as pessoas. Que tomassem cuidado. Toda a noite se viu segurança fugindo de cachorro e procurando
porta para se esconder. Ruth tinha convidado Regina Meyer para fazer parte da comitiva, porém a amiga não foi. Na volta, só para espicaçar, Ruth passava horas descrevendo
a corte inglesa, as roupas de cada um, os detalhes, o dourado de tudo, parecendo escola de samba. Observadora, descreveu até mesmo a arrumação das toalhas nos banheiros.
Ela adorou a Rainha Mãe, velhinha simpática, pareceu-lhe a pessoa mais interessante dali, viva. Referiu-se igualmente de maneira positiva à irmã de Elizabeth, a
princesa Margareth, que viveu sempre em conflito com a Casa Real, primeiro ao se apaixonar por um plebeu, Peter Townsend, da Real Força Aérea, ligação que foi cortada
pelo palácio. Mais tarde, Margareth acabou se casando com Tony Armstrong Jones, um fotógrafo de moda que recebeu um título de nobreza, Lord
Snowdon, porém o casamento naufragou. Margareth era uma mulher liberada, célebre pelos muitos affairs.

Um BANQUETE EM PEQUIM adquiriu contornos surrealistas e Ruth descreveu-o aos amigos nos mínimos detalhes. Eram pratos chineses, claro, mas não negociados com o cerimonial
brasileiro. Serviram primeiro pintinhos que vinham com os pés para cima dentro de um consomê; eles eram recheados por barbatanas de tubarão. As luzes do salão se
apagaram e entraram trezentos garçons carregando, cada um, um leitãozinho frito numa bandeja. Cada leitão tinha luz no lugar dos olhos, alimentada por baterias velhas
que lhes davam um ar lânguido.'

Ao CHEGAR AO JAPÃO, foram recebidos no aeroporto pelos imperadores. A imperatriz, toda de amarelo, aproximou-se de Ruth e disse: "Escolhi o amarelo porque é a cor
do ipê, a flor nacional do Brasil". Foi uma revelação para Ruth e a comitiva. O presente para a imperatriz teve a mão de Ruth: uma plaquinha de jacarandá com aplicações
de pau-brasil, café, ouro e rubis. O café era referência aos imigrantes japoneses que vieram para o Brasil e foram trabalhar nas lavouras. Por anos, FHC e Ruth
se lembraram do banquete no palácio imperial. O chefe de cerimonial alertou o presidente: "Vão tocar os hinos de cada país. Quando o senhor levantar o copo, o senhor
se levanta também e então ouve o hino nacional. Mas não pode beber. O senhor deixa o copo na mesa e só bebe no fim, porque tem o outro hino, de novo o copo, levanta,
espera". Começada a cerimônia, o presidente se levantou, ergueu o copo, começou o hino, ele bebeu. O hino parou. Começou de novo, ele se levantou, ergueu o copo,
bebeu. O hino parou. Só deu certo o ritual na terceira tentativa. Um dos problemas é que havia cerca de trinta copos à frente de Fernando Henrique na mesa. Ruth
ficava cutucando o embaixador Fred Araújo: "Fala para ele, explica". Pequenas nuances que suavizam com humor o formalismo às vezes rígido.
Istambul, em 1996, foi uma viagem que Ruth relatou em incontáveis encontros com as amigas. Ela foi convidada por Boutros-Ghali para integrar o grupo mais do que
seleto de doze personalidades nomeadas assessoras especiais do secretário-geral da ONU, durante o evento em que foram entregues os prêmios aos responsáveis pelas
doze melhores práticas urbanas. Nesse encontro, Ruth presidiu a mesa cujo tema era "Diálogo sobre a democracia e a solidariedade". Em 1998 estavam em Madri e houve
um banquete só para brasileiros na embaixada. Naquele momento ligaram de Brasília para comunicar o falecimento do senador Luís Eeluardo Magalhães, filho de ACM.
Fernando Henrique telefonou, conseguiu falar com ACM, avisou que estava interrompendo uma visita de Estado para acompanhar o sepultamento. Ele tinha especial apreço
por Luís Eduardo, altamente cotado para ser presidente em 2002. O funeral foi atrasado, esperando o presidente. A ligação com Luís Eduardo era tão forte que o próprio
ACM parecia sentir ciúme dessa amizade.

A CADA VIAGEM, RUTH chamava logo Fred Araújo. Davam-se bem, tinham o mesmo tipo de humor, a maneira de ser: "O que vamos presentear agora?". Os presentes para os
chefes de Estado tinham sempre um dedo de FHC ou de Ruth. Eles preferiam livros raros, documentos, gravuras, e contavam para isso com a assessoria de Pedro Corrêa
do Lago. O presidente da Itália recebeu um original com anotações do barão de Rio Branco, que escrevia artigos para o Diário da Noite, do Rio de Janeiro, e que eram
traduzidos na Itália. Menem, da Argentina, ganhou um manuscrito de San Martín atestando que ele tinha nascido em Yapeyú, desfazendo dúvidas históricas. A rainha
da Inglaterra deveria receber uma coleção das aquarelas de Margaret Mee, mas pertenciam ao Banco Real e o custo era altíssimo. Então foram dadas gravuras e aquarelas
sobre botânica, pintadas por Dulce Nascimento, que tinha estudado em Kew Gardens. Portanto, havia uma relação com a Inglaterra.
Para a visita à Bélgica, as joias que Ruth usou tinham sido de dona Mary, mulher de Epitácio Pessoa, e pertenciam ainda à família. Quanto à Holanda, depois de consultas
ficou acordado porque tudo é negociado que a rainha ia receber Ruth sem chapéu. As histórias que o embaixador Fred Araújo tem são uma vasta antologia. Na hora em
que desembarcou, Ruth olha e o que vê? A rainha com o maior chapéu. "Estão vendo, me disseram para vir sem chapéu e a rainha está com o dela. E agora?"

NINGUÉM SE ESQUECEU da visita a Bruges, histórica cidade medieval belga, chamada a joia de Flandres. Houve um banquete na prefeitura que durou três horas e meia.
Interminável. Assim que acabou, as portas se abriram e os convidados saíram para a praça principal da cidade. Todos se despediram, um ônibus parou, abriu a porta,
Ruth olhou e, tão ansiosa para voltar ao hotel, correu até ele e entrou. A porta foi fechada e o ônibus partiu. Acontece que aquele era um circular da cidade, transporte
público comum. Num ônibus, assim que se entra, ou pouco depois, se paga a passagem. O motorista olhou para ela, esperou o dinheiro, ela olhou para o motorista, e
de repente entendeu a situação - caiu na gargalhada. Nesse momento os seguranças já tinham rodeado o ônibus. Resgataram Ruth.

CELSO LAFER SERVIU EM Genebra como embaixador do Brasil durante anos e ali era um lugar que Ruth gostava de chegar, ficava relaxada. "Aqui estou à vontade, faço
o que quero, ninguém me impõe nada, não estou presa por esta armadura que o cerimonial coloca. Em Genebra, faço o que quero, sento-me e converso horas com Mary,
despreocupada de horários. Sento-me na varanda e leio, ninguém preocupado em me providenciar uma atividade, ninguém fica me mostrando o que sabe, o que conhece,
como tal lugar é sofisticado." Ruth ficava ouvindo repetidas vezes um disco de Eliete Negreiros, decorou todas as letras, cantava junto. "Foram deliciosos esses
momentos que ela passava com a gente, permanecia três ou quatro dias.2 Ruth cantando é uma imagem que também Rosiska Darcy recuperou. Uma
vez, quando Rosiska fez 55 anos, recebeu amigos em sua casa no Rio de Janeiro. Depois do jantar, Ruth sentou-se na varanda a cantar "Lua branca". Era afinada, cantava
bem. Em Genebra, Mary e Ruth entraram numa galeria onde havia uma loja com coisas bonitas e divertidas. Ruth deu uma bolsa de presente a Mary. A vendedora, ao ouvi-las
falando português, se apresentou, era também brasileira. - Sou de São Paulo. E as senhoras? - Somos também de São Paulo, mas moramos em Brasília. - Brasília? Mas
por que moram lá? É um lugar horrível. - Moramos lá porque nossos maridos trabalham lá. Fazer o quê? No final, tiveram de se identificar e Mary acrescentou: - O
marido dela é o presidente Fernando Henrique Cardoso. - Não sei, sabe? Estou fora há muito tempo. Houve duas visitas que Fernando Henrique e Ruth adoraram nesse
período em Genebra. Uma delas foi ao Museu Voltaire, a outra, à Fundação Martin Bodmer, em Cologny. Bodmer, um ex-presidente da Cruz Vermelha, possuía uma coleção
fantástica de obras raras que iam de plaquetas cuneiformes a papiros egípcios, manuscritos medievais, a Bíblia de Gutenberg e outros, e para preservar os mil documentos
criou uma fundação. Sobre o túmulo de Bodmer, no cemitério de Cologny, há uma frase de Sêneca, que está nas Cartas a Lucílio: "Aquilo que terás feito de tua vida,
veremos no momento em que a perderás". Ao sair da Fundação, viram-se todos diante de uma coletiva de imprensa. A certa altura, FHC, com humor, declarou: "Ruth e
Celso só gostaram da Fundação porque descobriram um manuscrito raríssimo - ou um livro, me parece -, em que há uma referência a Araraquara. Porque os dois ficam
o tempo todo falando de Araraquara e puderam verificar como essa Fundação é da maior qualidade, tanto que tem referências àquela cidade". Os suíços procuram entender
o que ele disse até hoje.
MALAK EL CHICHINI POPPOVIC, por sua experiência internacional, fez uma série de viagens com Ruth Cardoso. Ela fez parte da UN Foundation e teve vários encontros
com Ted Turner, um homem fissurado no relógio. Começa às oito? Às oito ele estava sentado à mesa. Aos poucos ele se acostumou com Ruth, que jamais chegava na hora,
mas nada exagerado, cinco, dez minutos de atraso. Apesar disso, tinham boa relação os dois, ele gostava muito dela. Quando havia discussões em que não estavam chegando
a lugar nenhum, ele dizia: "Agora, vamos ouvir a Ruth". Os debates eram principalmente sobre para quem iam dar dinheiro, de que maneira, como seria o monitoramento.
Havia grupos que só queriam para o meio ambiente, mudanças climáticas, enquanto Ruth pendia para os problemas sociais, direitos humanos, crianças. Ted dizia que
era mais fácil dar dinheiro do que bens. Ruth odiava quando marcavam reuniões cedo, logo às oito da manhã. Mesmo às nove ela resmungava. Quanto à questão dos atrasos,
o pessoal que trabalhou com ela diz que o problema é que Ruth nunca sabia como acabar uma reunião, deixava as conversas se estenderam, não dizia fim, acabou, não
tem mais, fechando a pasta, levantando-se da mesa e seguindo para a reunião seguinte.

NINGUÉM EM BRASÍLIA COMENTOU a ausência de Ruth no início de 2000. Ela sumiu de Brasília e somente uns poucos souberam de seu paradeiro. Foi para Berkeley, Califórnia.
Fez questão de ir sozinha e de morar num pequeno apartamento bonitinho, mas simples. Caminhava diariamente até a universidade. Raramente pegava um táxi, só quando
chovia, hábito que surpreendeu enormemente o então embaixador Rubens Barbosa e sua mulher, Maria Ignez. Na verdade, era um grande problema, uma vez que ela era uma
primeira-dama e não podia dispensar a segurança e todo o aparato oficial em torno dela. Ruth não deu curso. Fez o que planejava há muito tempo, na solitude e sem
formalismos. Sempre repetiu a Bibia Gregori que "precisamos, de tempos em tempos, de um período de solidão, essencial para uma reciclagem, um repensar, ou testar
se conseguimos viver sozinhos conosco". Leu,
pesquisou, escreveu artigos de antropologia, sua grande fonte de prazer, encontrou colegas das ciências sociais, e, sobretudo, fez palestras sobre o Comunidade Solidária,
com grande entusiasmo. Lourdes Sola, que se encontrava lá na mesma época, juntou-se a ela muitas vezes em jantares, em compras em San Francisco, em visitas aos museus.
San Francisco lembrava-lhe o filme de Alfred Hitchcock, Uni corpo que cai (Vertigo), com
1 James Stevvart e Kim Novak, um de seus trabalhos mais complexos. Divertiu-se e ficou fascinada com o documentário Buena Vista, de Wim Wen
ders, que acabou sendo um sucesso mundial, ao recuperar a música de um f dos grupos musicais mais instigantes de Cuba. Quando descobriram que o Buena Vista
ia se apresentar em San Francisco, correram para lá e conseguiram os ingressos. Diz Lourdes que o difícil foi se conterem para não dançar junto com a plateia, que
estava a toda. Houve, na época, um grande seminário internacional sobre o Brasil, com um mix no mínimo curioso: Ruth Cardoso, Marina Silva, Raul Jungmann, os sindicalistas
Marinho e Medeiros, Antônio Barros de Castro, k Jorge Wilheim, Vilmar Faria e Lourdes Sola. Pelo lado brasileiro. Pelo lado americano, além de líderes sindicais,
o que ficou na memória de Lourdes Sola foi a intervenção da democrata Nancy Pelosi, a atual speaker da Câmara dos Representantes, que acaba de liderar a reforma
da saúde no Congresso dos Estados Unidos.

VER FILMES SEMPRE FOI um dos divertimentos no Palácio da Alvorada.
Eventualmente produtores e diretores brasileiros levavam suas produções em avantprernière e então havia convidados especiais, a sala se enchia. Uma dessas estreias
foi Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, com a presença do escritor Paulo Lins, autor do livro. No dia a dia, todavia, reuniam-se a família e alguns empregados
mais chegados. Pedro Paulo Poppovic, que estava em Brasília, ia muito ao palácio. Vilmar Faria também, e Pedro Nlalan, que já era amigo de antes, Luiz Felipe Lampreia,
Mary e Celso Lafer. Ruth recebia um catálogo de filmes e indicava os que desejava. Em geral, era Luciana quem ia buscar nas locadoras um lote que dura-
va dias. Tudo com a nota fiscal e o dinheiro do próprio bolso. Não se usava o dinheiro público. Luciana confessa que aprendeu a gostar de musicais acompanhando a
mãe, desde criança. As duas adoravam, iam muito ao cinema. Muitas e muitas vezes, quando os netos estavam em Brasília, em algum feriado, ou em férias escolares,
Ruth pegava a troupe e ia por sua conta entrava na fila e recusava qualquer mordomia. Tanto em viagem quanto em São Paulo, quando amigos a visitavam ou jantavam,
Ruth de repente se levantava e perguntava: "Agora vamos ficar parados? O que vamos fazer?". Se estavam em viagem, saíam para museus, eventualmente para lojas. Durante
o governo, Rosiska Darcy ia para Brasília e ficava até a quinta-feira, e então regressava ao Rio de Janeiro. Todos os dias, ao sair do Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher, ela ia para o Comunidade Solidária e faziam um balanço do dia. Uma noite, cansada, depois de um dia cheio de problemas, Rosiska comunicou: "Está ficando
pesado, Ruth! Vou voltar para o Rio de Janeiro. Brasília é muito chata, além de tudo". Ruth ouviu um rosário de queixas com um leve sorriso nos lábios. Quando Rosiska
terminou, ela disse apenas isto: "Engraçado! E eu que pensava que esta era a aventura da nossa geração. Você vai voltar lá, ficar quieta e aguentar este negócio
até o fim". Ela trabalhava muito. Uma noite, terminado o expediente do Comunidade, as duas saíram e Ruth bateu a mão na testa: "Tem uma recepção para as embaixatrizes
de todos os países. Vamos correr". Era uma recepção anual comandada pela primeira-dama. Chegaram ao palácio, entraram por uma porta dos fundos, Ruth subiu, trocou
de roupa, se arrumou toda e desceu, fresca e lépida, para receber as embaixatrizes, como se nada tivesse acontecido. E tinha sido um dia puxado, desde a manhã. Havia,
de tempos em tempos, um café com as embaixatrizes. Regina Meyer acompanhou Ruth algumas vezes e conta que era um encontro de um tédio mortal, uma coisa sem graça
e que isso fazia parte, sempre tinha sido assim e continuaria a ser. Nessa tarde, havia um café para as embaixatrizes do mundo árabe. Lá estavam todas aquelas mulheres,
muito quietas, as mãos cruzadas sobre os joelhos, a conversa não saía, não fluía, silêncios
longos. Somente uma delas falava inglês, algumas arranhavam uma palavra de português, ainda que houvesse intérpretes para um socorro. Uma coisa encrencada. Eram
vinte pessoas no máximo, sentadas em poltronas, um sofá maior, banquinhos, enquanto funcionárias do palácio serviam canapés. "Então, está gostando de Brasília? Muito
seca a cidade, não?" E pronto, a conversa parava. De repente, a dona de casa que havia em Ruth emergiu: "Tenho muita curiosidade de saber uma coisa. Vocês todas
são de países onde se toma muito café. E me contem, quero muito saber como é que cada uma prepara o seu". Foi um alvoroço. De um minuto para o outro, todas elas
destravaram, se tornaram faladeiras, começaram a dar depoimentos, riam, se animaram, foi preciso organizar a conversa e acabou sendo muito interessante. Ela se demorou
relatando a maneira de fazer café em Araraquara, como a mãe e as tias faziam, o café para um ,ou para dois, na medida exata. Ruth tinha essa capacidade, diz Regina,
de sacar, levantar um assunto pelo qual todos se interessariam, era a inteligência ligada à visão prática de mundo. Tirava leite da pedra.

QUANDO HILLARY CLINTON veio ao Brasil, Ruth, que gostava dela, convidou-a para um encontro reservado. As duas se davam bem porque ambas tinham projetos em defesa
da mulher. Era uma coisa fechada e Hillary chegou com quatro acompanhantes. Do lado brasileiro estavam Ruth, Rosiska, Malak, Marina Silva e Teresa Caldeira. Falaram
dos trabalhos do Comunidade Solidária, do Conselho dos Direitos da Mulher e então Marina Silva começou a contar a sua história. Falava em português com tradução
e as americanas ficaram fascinadas. Uma trajetória que pareceu uma epopeia, rara. Hillary, impressionada, perguntava e perguntava. Havia naquela sala uma corrente
de verdade que permeava todos e emocionava. Uma das assessoras de Hillary não se conteve: "É uma coisa fantástica". Rosiska acentuou: "Pois sem o movimento feminista
não teria sido possível. Ou seja, vinte anos atrás não teria acontecido, seria um chazinho com bolachas, não uma conversa densa sobre dificuldades".
CERTO DIA, RUTH SUMIU no Alvorada, desapareceu das vistas dos seguranças, foi andar, andar, andar. Só para mostrar que eles não tinham controle sobre ela. Também
para fazer picuinha, como boa araraquarense, aquela coisa de "vocês não são tão bons assim!". Ela saiu caminhando e eles a perderam, foi um desespero. Em outro dia,
ela e Luciana saíram caminhando e também desapareceram. De repente, ela apareceu e foi um auê: "Viu? Viu só? Vocês não viram que eu saí?". Tipo transgressão, sabe?
"O negócio do palácio era assim: você estava no banheiro, entrava um cidadão para colocar papel higiênico, era público! Por quê? Porque quem manda é o Itamaraty,
o Serviço Secreto de não sei o quê." Uma noite, em São Paulo, ela telefonou para Regina e foram ao teatro. A segurança em volta, atenta. Mas era uma peça em que
havia nudez, nu frontal, e ela subitamente percebeu o constrangimento das moças que faziam a segurança. Levantou-se e liberou-as: "Se quiserem, me esperem ali fora".
Elas saíram rapidamente, aliviadas.

POR ALGUM TEMPO, HAVIA as visitas à fazenda de Goiás. Nos anos 1980, FHC vendeu a casa de Picinguaba e, estimulado por Severo Gomes e Sergio Motta, comprou uma fazenda
a oitenta quilômetros de Brasília. Eram terras baratas, o hectare custava um par de sapatos na época. Mas ele não tinha dinheiro para tocar a fazenda, e então indagou
de Sergio Motta se ele não queria ser seu sócio. Motta aceitou, fifty-fifty, US$ 25 mil para cada um. Com o tempo Fernando Henrique foi investindo lá dinheiro de
senador, "a época em que eu tive mais dinheiro", mais os minguados vencimentos da aposentadoria, juntando com parte do salário da Ruth. Quando Sergio morreu, Fernando
Henrique tinha apenas 28% da fazenda, porque não tivera fôlego para acompanhar os investimentos do amigo. Foi então que Jovelino Mineiro, que era fazendeiro, comprou
a parte do Sergio, porque a Wilma, mulher de Sergio Motta, disse: "Não vou tocar fazenda". Logo em seguida vendeu-se a fazenda para um plantador de soja. "Bom, a
Ruth não era muito favorável à fazenda, por quê? Porque Ibiúna era dela, ela mandava, era dela e de mais ninguém. Em Goiás tinha o
Sergião, que mandava também, então, como é que faz? Ruth nunca incorporou a fazenda, porque ela era uma pessoa que mandava. Em Ibiúna ela mandava, ela gostava, ela
adorava o jardim, a horta, as plantas. Luciana, por sua vez, diz que as viagens até a fazenda eram complicadas, em geral iam de helicóptero, havia a eterna questão
da segurança, imagine o presidente ficar sozinho no sertãozão? Isabel, filha de Luciana, adorava, porque, curtindo cavalos e praticando hipismo, a fazenda era o
paraíso."

TANTO FHC QUANTO RUTH refletiam sobre o fato de um presidente ser um
prisioneiro de luxo. As vezes, aos sábados, andávamos a pé pelo parque, mas era complicado; a não sei cada quantos metros, passávamos por um guarda com fuzil. Era
uma vida aborrecida também pra eles, rapazes jovens e pobres da periferia, houve o caso de dois que se suicidaram, espremidos pelo tédio. Não tinha graça nenhuma
passear e dar com aqueles jovens, e ainda perceber a segurança que nos seguia a uma distância prudente. Não havia privacidade, era a sensação constante de estarmos
vigiados. Para variar, outras vezes, íamos ao jardim da frente, e então éramos observados pelo povo, pelos turistas, pela imprensa que ficava esperando não se sabe
o quê. Se você decide ser simpático e se aproximar do povo, os seguranças ficam nervosíssimos. Saíamos com os netos, eles gostavam de assistir à cerimônia de hasteamento
da bandeira, com os toques de clarins. A vida era isso, enfim, curiosamente doméstica, porque você não pode sair, não tem para onde ir em Brasília, a imprensa não
deixa, vai atrás. Nunca fomos a um clube comer fora, era complicado, cinco minutos depois que você se sentava chegavam os fotógrafos avisados pelo dono. Ou o próprio
dono cheio de rapapés." Sobre a estrutura e o poder, com sua mordacidade, um dia Ruth deu exemplo do que isso significava: "Você entra num espaço, cheio de figuras
do primeiro ao último escalão, olha para o teto e comenta como quem não quer nada: puxa, não tem uma vaca neste teto? No dia seguinte, ao entrar no salão, vai descobrir
que alguém colocou uma vaca no teto".

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA VIII: A leitora

No Cebrap, Ruth trabalhava numa sala ao lado da escada, e Bibia Gregori e Rodrigo Naves gostavam de passar para prosear, coisa a que ela não resistia. Os dois sabiam
que estavam atrapalhando, mas adoravam os casos de Ruth. Certo dia, Bibia deu com Rodrigo Naves do lado de fora da sala de Ruth, a observá-la. Fez um gesto a ela,
disse "Veja que beleza", e Bibia se aproximou. Ficaram por uns minutos observando Ruth mergulhada num livro, tão concentrada que nem percebeu os dois. "Ela lia de
um jeito especial", confessou Bibia. "Cruzava a perna muito professoralmente, um tanto pudica, o livro sobre a mesa, a cabeça levemente inclinada, uma expressão
de prazer. 'Uma imagem linda', comentou Rodrigo, que a admirava demais." Rodrigo esteve no Cebrap entre 1987 e 1996, convidado a reformular a revista Estudos Cebrap,
que se transformou em Novos Estudos. Contei um dia a Regina Meyer que os boletins de Ruth no ginásio mostravam que suas notas em português eram mais baixas que
as notas em trabalhos manuais e canto orfeônico. E ela acrescentou: "Ela não era boa de português porque escrever não era o pedaço de Ruth, mesmo. Já ler! Como lia!".
Fernando Henrique reforça Regina: "Como a Ruth mais lia do que escrevia, ela escrevia com dificuldade e pouco. Agora, lia muito, e eu sempre dizia: ah, você lê muito
e não consegue escrever, as ideias dos outros atrapalham as nossas. Leio bastante, mas escrevo mais do que leio, o que também não é bom. A Ruth não, a Ruth lia,
lia, lia sem parar, e nunca deixou de ler, até o fim. Ela lia à noite. Ou, então, no fim de semana. Como dormia tarde, gostava de dormir ali pela uma, duas da
madrugada, ficava lendo. Nunca acordou cedo. Ruth despertava por ela mesma às oito e meia. Até o fim da vida, quando íamos para Ibiúna, a primeira noite ali, com
aquele silêncio, o cheiro da natureza, Ruth dormia dez horas direto. Em Ibiúna líamos bastante também, aquele recanto foi muito bom desse ponto de vista. Porque
se isola e se lê muito". Ela tinha uma relação torturada com a escrita, escrevia pouco, rabiscava tudo e nunca publicava, porque achava que nunca estava bom, era
perfeccionista e achava que faltava sempre alguma coisa, e ela se recrimi-
nava: "Ah! Nunca consigo acabar esses artigos, não tenho parágrafo final", e as pessoas à volta diziam: "Ruth, está pronto, manda o texto para publicar, para com
isso". A maior parte das coisas que ela publicou é da época em que ela estava no Cebrap, porque a pressão para publicar era muito grande, todo mundo forçando: "Imagine,
Ruth, publica, põe aí e publica". Lourdes Sola, falando a respeito da divisão do tempo em Ruth, que mantinha inúmeras atividades paralelas, comentou que "algumas
vezes ela deixou escapar: 'Tive de me dividir e, portanto, não escrevi tanto como gostaria'. É claro que se ela se comparava com o Fernando Henrique, ou com a minha
geração, que produziu muito em escrita, ela produziu menos, mas ela virou a antropologia". "Ela tinha uma relação singular com o que escrevia. É que ela enjoava
da coisa assim que acabava de escrever, então achava que não precisava publicar", na visão de Bibia Gregori. "Pode ser que outras pessoas tenham outra interpretação,
certamente terão, o que eu acho engraçado, o que a gente via, era que ela adorava discutir e ter ideias e propor essas ideias para a gente produzir ideias vivas.
Ela tinha imenso apego à ideia viva, quando a ideia passava a ficar enrijecida pelo texto, ela se desinteressava. Então, por exemplo, os textos que ela publicou,
tem textos que são absolutamente pioneiros, mas sempre tem alguma coisa que ela não burilava, porque ela se desinteressava. Não sei se era um desinteresse, se uma
insegurança, não sei, mas ela produzia a ideia e não tinha interesse em publicar. Então, para publicar, a gente sempre tinha de fazer certo esforço, dizer que a
gente revia, porque ela não tinha esse interesse." Conversei sobre isso com a professora Lourdes Sola e a posição dela é que "não é que Ruth não escrevia, mas escrevia
muito menos do que sabia e do que doava". E comentou: "Escrever é um ato muito solitário. Escrever com a intenção de fazer algum tipo de ciência, só faz piorar as
coisas, pois você tem uma interlocução direta e imaginária (pode ser fantasiosa) com os autores, mestres, adversários, concorrentes etc. Seus fantasmas são acionados
toda vez que surgem dúvidas. Sua insegurança também. Imagine se tiver ao seu lado uma pletora de intelectuais extremamente confiantes e competitivos, que conviviam
regularmente com ela e Fernando Henrique
Cardoso. Conheço poucas mulheres da geração dela nenhuma da geração que a antecedeu, Gioconda Mussolini é um caso paradigmático que tenham produzido por escrito
o que sabiam e o que doaram. Mas isso tem a ver com duas ou três coisas. A meu ver, sempre a meu ver. Uma: o contexto acadêmico, nos anos 1956-1970, era totalmente
outro, não exigiu produção regular na escala que passamos a ter depois, a partir da instauração do sistema nacional de pós-graduação, que exigia mestrado e doutorado
reconhecidos pelo MEC para os docentes. O Florestan, ao obrigar os assistentes, como FHC e outros, a fazer várias teses, não era o padrão. Nesse contexto, o golpe
de 1964 acelerou muito a disposição do Florestan de nos obrigar - aos mais jovens assistentes, como eu - a fazer imediatamente um mestrado para garantir a nossa
inserção formal na universidade. E a sobrevivência da cátedra de Sociologia. Fizemos, com o que tínhamos e sem a orientação dela. A Ruth estava em outra cátedra,
a de Antropologia. Duas, questão de geração. A dela era muito menos competitiva, quase nenhuma pressão 'demográfica': eram poucos os pares, e poucos os jovens a
pressionar por critérios competitivos. O que dispensou a preocupação com títulos, reforçando as limitações inerentes à dupla ou tripla jornada das mulheres profissionais.
Hoje, para ser livre-docente ou disputar a condição de titular, são necessárias duas teses mais, além do mestrado e doutorado. Uma vez escritas, viram livros ou
artigos em série. Três, hesito um pouco em dizer, mas a autoconfiança foi adquirida com o tempo, bem mais tarde, num ambiente que era, e é ainda, machista, e que
tendia a 'ignorar' o que ela de fato era - em benefício dos pares homens. A imagem que se tem hoje, de enorme deferência para com a Ruth intelectual e iniciadora
das Redes Solidárias, foi construída e isso levou tempo. Portanto, a terceira razão resume-se à timidez". Jorge Caldeira fecha o quadro: "Como dizia o Murilo Mendes,
existia o menino experimental, que toca fogo no circo para testar a eficiência dos bombeiros. Ruth era o menino experimental. O que ela gostava mesmo era de estar
na ponta. Respeitava as instituições políticas no sentido de que achava que tudo em política tinha de ser institucionalizado, fazer direito, etcétera e tal, mas
as ideias dela, ela não se deixava institucionalizar.
Desenvolvia uma ideia nova, testava. Se tudo estivesse certo, apresentava os conhecimentos. Em geral em paper para um pequeno grupo de especialistas. Esses leitores
muito capazes apresentavam alternativas, sugeriam caminhos - e, claro, faziam os elogios. A imensa maioria dos intelectuais guardaria os elogios e publicaria. A
Ruth, menina experimental, guardava as críticas que ajudavam a ir adiante, jogava os elogios na conta das bobagens formais, quase não perdia tempo com publicação.
Simplesmente incorporava as boas ideias da crítica, fazia um projeto ainda mais ousado e ia adiante. Seu projeto intelectual não parava, não ganhava a forma fixa
do reconhecimento público. Em vez de livros, ela produzia inovações permanentes. Com a Presidência do marido, ela viu a oportunidade de mudar de escala. Tudo aquilo
que ela dominava em laboratório foi aplicado ao país como um todo, com o nome de Comunidade Solidária. Esses resultados são conhecidos, embora quase ninguém saiba
como tudo foi construído. Do meu modesto ponto de vista, acho que superaram até os sonhos que ela e o Fernando Henrique alimentaram sobre políticas sociais".

A VOLTA AO COTIDIANO

ENTREGUE O CARGO EM 12 de janeiro de 2003, Ruth e Fernando Henrique não perderam um minuto. Acompanhados por Luciana e pela neta Isabel, foram direto para o aeroporto.
Aguardando o voo na sala VIP, Ruth chorou bastante. Embarcaram acompanhados do embaixador Fred Araújo, fizeram escala em São Paulo, rumo a Paris. Na viagem, Fernando
Henrique disse que lhe daria um presente. "O que você quer?" Ela não hesitou: "Um telão para meu home theater". Avião de carreira, Fernando Henrique e Ruth avisaram,
categóricos: "Não queremos ninguém à nossa volta, nenhum assessor, segurança, nada". Mas no avião tinha um jornalista do jornal O Estado de S. Paulo, Ruth não queria
que FHC falasse com ele, porém o marido foi veloz e discreto, e sugeriu: "Vou ali, digo uma coisa rápida para ele não amolar mais". Quando desceram em Paris, foram
recebidos pelos dois embaixadores do Brasil, um junto ao governo francês, outro junto à Unesco, Marcos Azambuja e José Vargas. Um carro estava à espera. Fernando
Henrique pegou o volante e, quando procurava as placas da rodovia que os levaria a um antigo castelo, hoje hotel, percebeu a polícia, os batedores, o ritual. Eles
sorriram e comentaram: "Agora chega, não precisamos mais". No hotel, chamaram a segurança, quase implorando: "Muito obrigado! Os senhores são perfeitos, gentis,
mas não precisamos, não queremos mais, a função de vocês está terminada". Dormiram no hotel e no dia seguinte foram à igreja. Pela primeira vez, em oito anos, estavam
sozinhos, sem estar cercados por seguranças e jornalistas. Ao voltar a Paris, foram para o apartamento da mãe de Maria do Carmo Sodré, dona Maria, viúva de Abreu
Sodré, ex-ministro das Relações
Exteriores, na avenue Foch. Dali para frente foi um tal de caminhar, de pegar metrô, de assombrar brasileiros que olhavam para os dois: "Nossa! É o presidente, andando
de metrô". Voltaram à planície, ao convívio dos mortais, não tinham empregada, a Ruth fazia as coisas e saíam para compras caseiras. "Foi uma maravilha, passamos
três meses em Paris e estávamos entre amigos. A única vez que houve aparato foi no dia que fomos almoçar com Jacques Chirac, pessoa educada, gentil, muito amiga
nossa, homem simples", diz Fernando Henrique. "Fomos às velhas livrarias no boulevard Saint-Germain, aos cinemas nos Champs-Elysée, líamos muito, fazíamos um pouco
de ginástica, RPG, tinha uma senhora que ia lá e judiava muito de mim." Ao lado havia um prédio que era do irmão da dona Maria do Carmo, com piscina, e ele conseguiu
autorização para nadarem, mas "era um frio desgraçado, um inverno danado". "A Ruth sempre fez exercícios, ela sempre foi mais ativa que eu, ela não gostava de nadar.
Lá em Brasília, nadava, mas não gostava, ela andava e fazia esteira. Como tinha problemas de coração, ela fazia muito esteira", confessa FHC. "Ruth sempre cuidou
mais do corpo, da saúde, do que eu. Na França, que eu me lembre, ela não fazia exercício, eu é que fazia, por pressão dela." Quase no final, Bia Cardoso apareceu
para alguns dias com os filhos, depois voltaram todos para o Brasil.

A VOLTA FOI PARA O NOVO apartamento na rua Rio de Janeiro, um imóvel encontrado por Regina Meyer e que foi inteiro reformado sob as ordens de Regina e Ruth. O imóvel
tinha sido comprado detonado, demorou para que terminassem as obras. O piso era todo de mármore, havia lambri de madeira em todas as paredes, era um tanto soturno,
foi preciso remodelar, ganhar atmosfera. Terminada a reforma, entraram os móveis, muitos assinados por Carlos Motta ou Sergio Rodrigues, muita coisa anos 1950, uma
cadeira de balanço que lembra Araraquara, cadeiras trazidas do Uruguai por Maria Ignez Barbosa. "Os tapetes sempre foram comigo", ressalva Fernando Henrique. "No
resto tem as mãos dos dois. Há quadros que estão há cinquenta anos conosco", e um breve tour mostra Vieira da Costa,
Amilcar de Castro, um Miró comprado nos anos 1970, um Tàpies, Rebolo, Yamandu, Potero, Milton da Costa, Renina Katz, a amiga, um Portinari, Cenize, uma foto assinada
de Mario Cravo Neto, Poti, Di Cavalcanti, Carlos Lemos, Bonadei, Gracimar. O Comunidade Solidária tinha sido extinto pelo novo governo. Na verdade, afirma Miguel
Darcy, foi extinto do ponto de vista formal, porque morreu de inanição. No entanto, sobreviveram ações e ele se prolongou de duas maneiras. A mais visível é através
dos programas e instituições criados pela Ruth. O mais abrangente e bem-sucedido é o Alfabetização Solidária. A eles se somam a Comunitas (que deu seus próprios
desdobramentos: Solidaritas, Rede Jovem, Portal do Voluntário <V2V.net>, Artesanato Solidário, Capacitação Solidária. E, mais recentemente, o Centro Ruth Cardoso.
Substantivamente, o Comunidade e as ideias da Ruth - se prolongam através de seu exemplo e de seus valores, ponto de referência e fonte de inspiração para inúmeros
projetos de organizações da sociedade civil: investimento nas parcerias entre múltiplos atores, abertura para o mundo empresarial, valorização do capital social
de pessoas e comunidades. Em uma palavra, a busca de uma síntese entre liberdade e solidariedade como fermento de uma sociedade mais justa. Ruth e sua equipe abriram
algumas ONGS, continuaram o trabalho. Ruth retomou as funções dela no Comunidade Solidária, arranjou um prédio na avenida Angélica, onde funcionava um dos programas,
continuou muito ativa e voltou a ter contato com antigos alunos, contatos que na verdade nunca perdeu, e continuou a vida. De 2004 a 2008, durante cinco semanas
por ano ia à Brown University, onde era pesquisadora associada e conduzia seminários. Fernando Henrique foi montar o iFHC - Instituto Fernando Henrique Cardoso.
A vida permaneceu por um tempo em suspenso, porque suas coisas ainda não tinham chegado de Brasília. "Quando voltamos de Brasília, a Ruth se empenhou muito em retomar
Ibiúna. Se você for lá hoje, deve estar igual. Está conservada, pintada, a empregada é a mesma, o caseiro morreu, mas tem outro, as coisas funcionam. Ela fez muito
empenho. Fizemos uma pequena sala para o meu pôquer com os amigos, ela comprou uma mesa de jogo que nunca usei e
comprou outros móveis para mim, ela mesma desenhou a mesa que está na varanda, escolhemos também cadeiras para a varanda", relata Fernando Henrique.'

ASSIM QUE A PRESIDÊNCIA TERMINOU, Luciana entrou no palácio e encaixotou todos os pertences pessoais dos pais, quadros, móveis, presentes, enviando para São Paulo
em três caminhões. De certa maneira, a presença de Luciana em Brasília era gratificante, dado o sentido gregário que o casal tinha em relação à família. Era Luciana,
por exemplo, quem cuidava das compras pessoais, fazia os pagamentos, controlava contas e cheques. "Eu tinha um compromisso com eles. Tudo o que comprasse do ponto
de vista pessoal, com nosso dinheiro, devia ter nota. Os dois nunca aceitaram presentes, não adiantava um estilista querer dar um vestido para mamãe, ela não aceitava.
Nas viagens pelo Comunidade Solidária, recebia, sim, alguma peça de artesanato, porque eram coisas dadas com amor, como homenagem, e seria grosseiro não aceitar.
Mas também comprava. Fora disso, de uma agulha a um aluguel de filmes, tudo vinha com nota. Eles conheciam o mundo brasíliense, eram pessoas vividas. A mínima coisa
ia para a imprensa, com escândalo", reitera Luciana. Depois de oito anos em Brasília, vivendo uma vida atípica, a volta a São Paulo, para os dois, foi um período
de adaptação um pouco difícil. "Retomamos as idas a Ibiúna, que era a paixão dela, voltamos a uma vida, digamos, de estilo de professor universitário, que é o que
ela gostava. E que estilo é esse? Basicamente é o seguinte: você trabalha intelectualmente, vai ao cinema, vai ao teatro, tem muitas discussões com os amigos, se
apaixona por coisas abstratas e sem exibicionismo, vida comum, comum na classe média alta, no nosso caso, não é? Nem todo professor universitário vive a classe média
alta que vivemos, nós tínhamos algum recurso... Claro que a vida de um ex-presidente não é mais a normal, mas a gente foi procurando ser o mais comum possível dentro
das limitações e daí retornam os problemas da rotina, quer dizer, ex-presidente tem segurança, e este sempre foi ponto de atrito com a Ruth, ela jamais gostou muito
de ter segurança."
NORMALMENTE, RUTH Só USAVA um motorista, o Gilberto, que por instância dela foi estudar e acabou se formando em Direito. Depois que terminou o curso de advogado,
Gilberto saiu. "Com ele, Ruth se entendia bem, ela gostava dele, e ele era uma pessoa que tomava conta de um mundo de coisas como pagamento de contas, ou fazer certas
compras, já que muitos anos lhe deram a visão do que era o mundo dela", confessa Fernando Henrique. "Ruth nunca tinha muita noção de tempo e de valor de tempo, quer
dizer, quanto tempo custa fazer uma coisa, sempre levava mais tempo do que ela imaginava. Então estava sempre um pouco atrapalhada, porque não dava tempo para fazer
o que tinha planejado. Ela se organizava, mas depois a organização era maior do que ela podia cumprir, então confundia, ela queria ser minuciosa e na minúcia se
perdia, mas tentava organizar...! No armário de remédios, sempre houve caixinhas com remédios separados para cada tipo de doença. Nas contas dela lá, tem várias
caixinhas também com contas disso, contas daquilo e tal... As bijuterias também, todas em caixinhas e tal, sempre teve a vontade de ter tudo em ordem, e não conseguiu.
Quem chegasse na cozinha, daria com prateleiras e os livros de gastronomia. Porque ela gostava de cozinhar, tinha receitas à mão que guardava para os filhos, para
dar para os amigos, algumas eram dela, outras de coisas que ela achava boas. Mas depois começou a se cansar, já não aguentava mais a rotina de tomar conta da casa
e se queixava, queria que eu tomasse também, o que é difícil, não fui treinado para isso! Mas ela cansava até mesmo de escolher comida, o que ia fazer, salvo quando
tinha algum amigo... Os dois últimos anos tiveram a ver também com a diminuição da capacidade física dela, não é? Mas, ainda assim, se tivesse um jantar de pessoas
que ela gostasse, ela se interessava. Ruth sempre gostou muito de tomar vinho e sempre achou que eu era pão-duro com os vinhos. Depois, reconheceu que agora, pelo
menos nos últimos anos, comecei a ser mais aberto em matéria de vinho. Nunca vi, nunca se preocupou muito, com quanto custa um vinho, porque vinho aqui não custa
nada, porque o que eu tenho, quase tudo é presente que ganhei, ganho até hoje muito vinho de presente. Nossa adega deve ter mil garrafas."
RUTH CARDOSO TINHA RAZÃO quanto a querer se distanciar da política como ela é feita no Brasil e em certos setores de Brasília. Ela, que sempre foi uma pessoa célebre
pela integridade e pelo cuidado com a coisa pública, se viu ameaçada pela então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, com um escândalo em torno de um dossiê sobre
os gastos corporativos da Presidência, em que se alegava que Ruth havia despendido milhares de reais ou dólares em compras fúteis, inúteis e banais, em vinhos e
comidas. Caiu mal no mundo político, no qual Ruth sempre foi respeitada até mesmo pelos adversários mais ferrenhos. O jornalista Augusto Nunes, que tem um blog dos
mais visitados, não resistiu e comentou: "Dilma foi a primeira a agredir uma mulher gentil, suave, e também por isso tratada com respeito até por ferozes inimigos
do marido". Pegaram pesado e Ruth sentiu o baque, logo ela que sempre teve o cuidado de separar o privado do público, até mesmo no aluguel de filmes exibidos no
palácio. O dossiê teria sido preparado pela secretária executiva da Casa Civil, Erenice Guerra. As reações contra o dossiê foram imediatas e a chefe da Casa Civil
se desculpou, voltou atrás. Ruth, elegantemente, ainda que magoadíssima, aceitou as desculpas, porém o círculo íntimo sabe quanto isso a feriu e atingiu um coração
já afetado.

RETALHOS DA VIDA COTIDIANA IX: Quero fazer só o que gosto

Laura Bush, mulher do ex-presidente Bush, em 2005 e 2006 assumiu a liderança das políticas de alfabetização da Unesco. Foram eleitas as nove principais experiências
de alfabetização no mundo e elas seriam proclamadas em Nova York, numa reunião formal com Laura Bush e todos os governos. Quem deveria estar presente seria Ruth
Cardoso, todavia surgiu um impedimento formal. Ela não era mais governo, e tratava-se de uma iniciativa do governo americano. Portanto, deveria ser de governo para
governo. Ou seja, o governo brasileiro deveria se envolver, porém o Comunidade Solidária não existia mais, e aquilo significou um desafio. No entanto, a representante
da AlfaSol poderia estar presente. Para qualquer outra pessoa,
interessada em estrelismos, honrarias, isso seria problema. Ruth nem se alterou, e chamou Regina Esteves: - Pois vá você. Eu? Estou com uma filha de 25 dias. Veja
com seu pediatra se a menina pode ir, e leve. O que importa é que a AlfaSol compareça. Ela não é governo, portanto não vai provocar polêmicas nem incidentes. A AlfaSol
agora é uma ONG. O prêmio não é meu, não é da Ruth, é da AlfaSol. Regina foi e levou a filha, que era amamentada nos intervalos. A história teve um desdobramento
no ano de 2007, quando Laura Bush veio ao Brasil em visita oficial e manifestou vontade de visitar a AlfaSol. O primeiro problema que apareceu foi com relação
ao prédio na rua Pamplona. Não era adequado para receber com segurança a primeira-dama americana. Essa foi a análise dos americanos. Segundo entrave: a primeira-dama
norte-americana não tinha escolhido um programa social do governo brasileiro, e sim um da ex-primeira-dama brasileira. Formalmente, havia constrangimentos. Caso
Ruth Cardoso não comparecesse, o problema estava contornado, seria a AlfaSol, uma ONG, a receber a visita em caráter não oficial. Ruth nem pestanejou. "Não vou",
disse. "Que venha Laura Bush." Acompanhou todos os preparativos para a visita, participou de cada movimento, ligava de manhã e à noite, vibrava. A americana veio
e se foi, a imprensa cobriu, nenhum arranhão no mundo burocrático. Em janeiro de 2008, Ruth convidou Regina Esteves para um almoço na rua Rio de Janeiro. Era um
encontro há muito marcado entre as duas, não para discutirem projetos, andamento de programas, e sim um bate-papo entre duas amigas sobre tudo e sobre nada. Fernando
Henrique abriu um vinho, conversou um pouco, e deixou as duas à vontade. Nesse dia, Ruth disse: - Tenho pensado muito e daqui para frente quero ser mais seletiva.
- O que significa mesmo isso? - Quero priorizar os assuntos a que vou me dedicar. De trabalho ou da vida pessoal?
De tudo. Quero ser mais firme em relação a coisas que quero e que não quero fazer. Há algum tempo Regina vinha sentindo uma Ruth diferente. Não era mais aquela Ruth
que nunca se cansava. Começara sutilmente a limitar seu tempo, suas atividades. Diminuíra o ritmo, não o entusiasmo. Ao se despedirem nessa tarde, Ruth reiterou:
- Decidi. Vou começar a fazer só aquilo que gosto.=
NUNCA SE VIU TANTA UNANIMIDADE

RUTH E FERNANDO HENRIQUE tinham voltado de uma viagem à China, ela estava entusiasmada, sentia-se tão bem que ele, em seguida, fez uma rápida viagem de três dias
a Paris, cidade que ela planejava visitar com a neta Isabel, filha de Luciana. Isabel morava em Brasília, era a única neta que ainda não tinha viajado com Ruth,
o que tornava a viagem um sonho que a deixava feliz, só falava nisso. Estava com passagens compradas e programava museus, passeios, queria mostrar a cidade em detalhes,
refazer os itinerários de sua vida em Paris. Na noite de 20 de junho de 2008, uma sexta-feira, Ruth e FHC tinham um programa oficial: ele, como presidente do Conselho
Administrativo da Fundação Osesp, receberia o príncipe Naruhito do Japão na Sala São Paulo, onde haveria um concerto da Orquestra Sinfônica de São Paulo, em comemoração
aos cem anos da imigração japonesa. Lembremos que a tese de doutorado de Ruth foi sobre a imigração japonesa no Brasil. Ela passara a tarde no Hospital Sírio Libanês,
onde Maria Helena Gregori, sua amiga de juventude, estava internada desde o dia ii e tinha passado por uma cirurgia delicada. Conversaram muito e Ruth foi embora
junto com Bibia, filha de Maria Helena. Quando FHC chegou em casa, no início da noite, conhecendo a mulher e seus atrasos, encontrou-a no computador. Vivia recebendo
e respondendo e-mails ou escrevendo seus textos, às vezes até duas da manhã. - Ruth, não está pronta? Não, mas espere, me apronto num minuto.
Fechou o computador, levantou-se, apalpou a mandíbula. - Parece que estou com uma nevralgia. Fui abrir uma janela, acho que levei um golpe de ar, me deu uma dor
incômoda. Talvez seja melhor você não ir. Não, nada disso! Tomo um banho rápido e vamos. No banho, fez uma leve massagem com a água quente, melhorou. Meio atrasados,
cortando caminhos, conseguiram chegar antes do príncipe, e aguardaram a chegada da comitiva. Ruth passou por Pedro Moreira Salles e nem olhou para ele. Pedro estranhou,
segurou-a pelo braço, e brincou: - Ruth, não me conhece mais? Foi alguma coisa que fiz? - Pedro, me desculpe. Mil desculpas. Não estou bem hoje, fiz mal em vir aqui,
estou aérea, estranha. "Ela parecia um tanto transtornada", confessou depois Moreira Salles. Cumpridas as formalidades, foram todos para o camarote oficial, cercados
por japoneses. O concerto começou e FHC ficou de olho nela. Para ele, Ruth não parecia normal, tinha uma feição esquisita, via-se que estava com dor. Ele pegou a
mão dela, estava fria. Mais tarde, ele diria que ao olhar as fotografias daquela noite, pode-se perceber que havia uma expressão nebulosa no rosto dela, como se
estivesse em outro lugar. No intervalo, Ruth cochichou: "Vou embora, a nevralgia está me incomodando. Você fique, por favor!". Fernando Henrique e Pedro Moreira
Salles a acompanharam até o elevador. Assim que o concerto terminou, FHC voou para casa e encontrou-a tomando sopa: "Melhorei. Não se preocupe, estou bem". Na hora
de deitar-se, tomou um remédio e dormiu. Acordou às duas da manhã, com muita dor no peito. Fernando Henrique, imaginando que fosse um infarto, preocupadíssimo, ligou
para o celular do cardiologista dela, o doutor Artur Ribeiro, que estava em Berlim, e descreveu os sintomas. Ribeiro diagnosticou: "Dor também na mandíbula? Sintoma
de angina, leve-a rápido para o Hospital Sírio Libanês": De Berlim, onde eram seis da manhã, Ribeiro ligou para o cardiologista Edson Stefanini, de quem Ruth gostava,
e recomendou que fosse para o hospital, a recebesse, fizesse os procedimentos, enquanto ele acelerava
o retorno ao Brasil. Em casa, FHC chamou o filho Paulo e levaram Ruth para o Sírio Libanês. Feito o eletro, constatou-se que era realmente angina, não um infarto,
ela tomou Isordil, a dor foi atenuada. "Ela estava muito bonita nessa noite, mostrava-se serena, conversou um pouco e dormiu'', lembrou-se Fernando Henrique. Às
cinco da manhã, ele e o filho voltaram para casa, descansaram e, ao retornarem ao hospital, Ruth já tinha saído da semi-intensiva e estava no apartamento, mostrando-se
preocupada com Maria Helena Gregori, internada no andar de cima. "Estou boa, posso voltar para casa", dizia, inquieta.

AQUELE CORAÇÃO VINHA preocupando a família há alguns anos, não era um processo recente. Em fevereiro de 1988, ao voltar de um seminário sobre "La participación de
la mujer em programas de salud de la comunidad", em Santiago de Cuba, ela começou a sentir seguidas indisposições. Por volta de maio, além da indisposição vieram
fortes dores de cabeça, e Ruth Cardoso, com quase 58 anos, conversando com sua sobrinha, a médica Fernanda Boueri, filha de sua tia Circe, descobriu-se hipertensa.
Em seguida, veio a consulta com o médico Artur Ribeiro, que confirmou a hipertensão, normal em mulheres de sua idade, e medicou-a. Ribeiro estava ligado à família
Cardoso desde 1983, quando, por intermédio de José Arthur Giannotti, que tinha conhecido e tratado em Nova York, tornou-se o cardiologista de dona Nayde, mãe de
Fernando Henrique, que até a morte dela, em 1984, passou a tratá-lo como a um filho. O processo da doença de dona Nayde não foi simples, obrigava-a a contínuos exames,
e Ruth estava sempre ao lado dela, presente, acompanhava a sogra em tudo, unidíssimas. A relação, que até então tinha sido de amizade, dali em diante passou a ser
também de médico e paciente. Naquele ano, na primeira consulta, depois de ouvir sobre sintomas e consequências, permeados por termos técnicos herméticos aos leigos,
Ruth foi objetiva: - Artur, não me venha enganar com papo de médico! A minha mãe sempre foi entendida nisso e me passou algum conhecimento. Você só vai
me dar coisas que eu aceitar. Nossa conversa será negociada. Você propõe, questiono, aceito ou não, e vamos ver como isso anda! - É um direito seu, está bem. Na
hora da receita, ele indicou Higroton, um diurético. - Diurético? Não, senhor. - Por que não? - Diuréticos estragam a pele. Ruth era assim, discutia, dava sua opinião,
colocava na mesa - o que, vez ou outra, gerou problemas no governo. O remédio foi trocado. Naqueles primeiros exames, descobriu-se que Ruth não tinha condições arteriais
muito boas, o coração estava um pouco crescido, e o colesterol era elevado. Remédios contra o colesterol, em geral, provocam dores musculares. Ruth ficou atenta
e, se a ponta do dedo doía, ela reclamava: "É o teu remédio!". Foi uma pequena novela, às vezes com certa comicidade da parte dela, para controlar a pressão alta
e o colesterol. A cada medicamento, ela abria, lia a bula, fazia uma sabatina. Certo dia, quando Artur associou dois remédios, ela leu as bulas e deu um pito: "Artur,
estes dois remédios não podem ser associados". Falava com firmeza, nunca agressivamente. Todos que trabalharam com ela conheceram os pitos de Ruth, até José Serra,
conhecido pela sua franqueza. Veio a explicação científica, ela aceitou. Com ela era assim, "na linha", outra expressão araraquarense. No entanto, nunca fez nada
sem ouvir o médico. A amiga Regina Meyer revela outra faceta, ao contar como a sua dermatologista ponderava: "Por que você não é como a dona Ruth Cardoso, que obedece
todas as recomendações, usa direitinho todos os medicamentos e pomadas e cremes, é disciplinada?". Aquela oposição a remédios que traziam efeitos colaterais era
uma defesa, ao mesmo tempo em que "revelava um aspecto juvenil dela, uma rebeldia". Ruth foi uma cardíaca que evoluiu sob controle, sem nenhum problema maior, sem
restrições e sem preocupações de porte. Estava bem quando, em setembro de 1988, partiu para os Estados Unidos, a fim de fazer estudos para o pós-doutorado em Nova
York, na Universidade Columbia e também na Universidade de Nova York. Permaneceu lá
três meses e, segundo as amigas, curtiu a "solidão", longe de tudo, do cotidiano brasileiro. Ela gostava, eventualmente, desses espaços abertos dentro de uma rotina
de casa, academia, orientadora de teses, pesquisadora, participação em comissões, como o do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq,
do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo, da Fundação Nacional para Apoio a Projetos, Finep. Eram momentos de respiro. E Nova York significava também muito cinema,
musicais, muito teatro, livrarias e museus. Ela era consciente de sua situação cardíaca e sempre se mostrou atenta à alimentação, o que de certo modo exigia aqui
e ali sacrifícios, uma vez que a cozinha era um de seus reinos. "Tenho esta saúde porque como frutas, gosto de frutas. Não exagero, não sou como Fernando Henrique,
que come de tudo, devora o que está à sua frente." Ribeiro acentua que ela sempre foi afetuosa, sem dispensar, jamais, a posição crítica. Quando o médico começava
a explicar demasiadamente sintomas e consequências, ela rebatia: "Ai, quanta besteira, Artur". No tom da voz havia um certo carinho. A expressão é igualmente típica
de Araraquara, de pessoas mais velhas. Ruth, já primeira-dama, sempre preferiu vir a São Paulo para check-ups, daí algumas viagens feitas em sigilo. Não era desconfiança
da medicina em Brasília, era muito mais uma questão de preservar a intimidade. Na capital, se ela se internasse, teria na porta do hospital uma bateria de jornalistas,
cinegrafistas e fotógrafos o tempo todo, e ela temia que isso perturbasse a tranquilidade dos outros, além da invasão ao seu espaço pessoal, com os infalíveis boletins
médicos diários. Quanto ao problema cardíaco, mesmo as amigas chegadas souberam muito depois, ela era absolutamente reservada. Já com o Comunidade Solidária correndo,
Ruth costumava convocar Ribeiro de tempos em tempos, com relação a ajuda quanto a problemas médicos: "Tenho aqui umas coisinhas em que você pode me ajudar". Eram
cartas que vinham de todo o Brasil pedindo coisas. Uma delas sensibilizou Ruth, que a repassou ao médico: "Veja como resolver". Era uma mãe de Salvador cuja filha
tinha ausência de hormônios de crescimento, um problema que pode ser resolvido. Só que é um tratamento muito
caro. Mas foram movidos os pauzinhos e se conseguiu o medicamento por meio do Programa de Saúde do Estado de São Paulo. A menina cresceu. Agradecida, a mãe escreveu
de novo dizendo que não tinha dinheiro, porém oferecia sua casa como pagamento. Ruth se comoveu com tanta simplicidade e desprendimento. Ruth continuou a ser avaliada
periodicamente e os médicos estavam seguros de que os distúrbios que ela apresentava eram normais em 1% da humanidade, sem matar ninguém, devido à baixa frequência.
Ela se sentia bem e dava pitos: - Vocês estão inventando, não tenho nada no coração. - Não inventamos nada, lemos os exames, diagnosticamos. Ela lia atentamente,
pedia explicações de tudo, queria ver os DVDS do exame, ganhava cópias, exibia para a família. Em abril de 2004, morando na rua Rio de Janeiro, costumava fazer caminhadas
pelas ruas do bairro de Higienópolis. Um dia, depois de subir uma escada que leva de uma rua a outra, ela parou no alto e ligou para Artur Ribeiro pelo celular:
- Olha, estou sentindo um formigamento no peito. - Não gosto nada disso. Para um médico, é um sinal ruim. Vamos fazer um cateterismo, não podemos brincar. Você está
com um problema e temos de diagnosticar. - Cateterismo? Ah! Vocês são sempre assim, querem um procedimento agressivo, querem me passar um cano por dentro do corpo,
e não sei o que mais... Ruth, por favor, venha já! Ela foi para o Hospital da Universidade Federal de São Paulo, Uni fesp, também conhecido como Hospital do Rim,
onde Ribeiro sempre a atendia, e, feita uma cinecoronariografia, apareceu um problema e os cardiologistas decidiram implantar dois stents, espécie de pequenas molas
que regularizam o fluxo sanguíneo. Nem precisou anestesia, a Ruth foi dado apenas um calmante, porque Artur a conhecia bem. Fernando Henrique e Paulo assistiram
à colocação, ela dormiu uma noite no hospital, no dia seguinte teve alta. "Dormiu no hospital por precaução e um tanto por insistência das enfermeiras, que a conheciam
e a adoravam", ressal,.'
tou Ribeiro, completando: "Dali em diante, tínhamos uma paciente coronariana, que é uma das grandes causas de morte no mundo, consequente à hipertensão". Vez ou
outra, Ruth sofria breves tonturas, ligeiros cansaços, mas ainda que com o coração fibrilando, não teve maiores problemas, continuava a tomar um betabloqueador,
que faz o coração bater em ritmo mais baixo, e deu-se bem. Certo dia, Ruth deu outro pito em Ribeiro: "Você é muito organicista, ou coisa semelhante, não sei bem,
você só pensa em remédio. A vida é mais do que isso. Sabe o que vou fazer? Dieta! Vou procurar uma médica light, natural". Mas, devido a um problema de coluna, um
bico de papagaio que apareceu, ela passou a se tratar com um fisioterapeuta especialista em naturopatia, a medicina natural. Fazia ginástica, gostava, caminhava,
cuidava-se. Assim, a situação foi mantida sob controle, até que, no início de 2008, Ruth, bastante apreensiva, ligou para o cardiologista. "Meu coração está batendo
esquisito!" Feito o eletrocardiograma, verificou-se que a fibrilação atrial dela, que era de frequência baixa, estava alta. O médico se viu numa situação de alerta,
pois significava que ela poderia sofrer um AVC a qualquer momento. Chamou outros dois cardiologistas. Angelo de Paola, especialista em eletrofisiologia do coração,
e Valter Correia Lima, avaliaram e decidiram que o caminho, naquele momento, seria anticoagular Ruth como prevenção. Ou seja, deixá-la com o sangue menos coagulável.
Decidir é fácil, colocar em prática já é mais difícil - é preciso experimentar até chegar à dose certa, ao índice ideal rezado pela medicina, a fim de evitar o AVC
que estava sendo sinalizado. O que significou que, a partir daquele dia, uma vez por semana ela estava no consultório para colher sangue, verificar a coagulabilidade
e ajustar a dose do medicamento. Isso a incomodava tremendamente. Acrescente-se outro problema que ela vinha apresentando há algum tempo, o de sangramentos esporádicos
pelo nariz. Quando morava em Brasília, onde o clima é árido, ela começou a apresentar dificuldades respiratórias e sofreu uma laringotraqueobronquite, que se manifestava
por meio de tosses secas e intolerância ao ar-condicionado. Ruth sofria nos meses secos.
Os sangramentos continuaram, sempre observados pelos otorrinos e pelos cardiologistas, estes cautelosos por causa da medicação anticoagulante e o medo do AVC. Por
duas vezes ela foi internada, ainda que rapidamente, uma delas às pressas, em plena madrugada, tendo sofrido microcirurgias para conter o sangramento. A partir daí,
Ruth passou a demonstrar certa insegurança, ficava intranquila quando precisava viajar, consultava sempre os médicos: "Preciso ir a Salvador, tenho uma reunião.
Acham que posso?". Vacilava antes de assumir compromissos, embora do ponto de vista cardíaco estivesse bem, fazia ginástica, comia com gosto, tinha até engordado
um pouco, a família chegou a brincar com o médico, chamar sua atenção. Porém ele se justificava: "Nunca fui adepto da medicina castrativa".

Vieram então as viagens à China e a Mendoza. O roteiro para a Argentina previa uma escala na Bolívia, porém os médicos pensaram nos problemas de altitude e recomendaram
que não fizessem a escala, que fossem diretamente. Ruth, ao regressar da China, contou que tinha adorado a viagem, visitara o deserto de Gobi, andara de camelo,
fora ver a Grande Muralha, que Fernando Henrique, sempre competitivo, tinha subido mais rápido do que ela. "Rimos muito", confessou. Logo depois da viagem à China,
no começo de agosto, Ruth, Fernando Henrique e Lourdes Sola tinham jantado na casa de Anna Verônica Mautner, amiga de longos anos. Lourdes tem a imagem desse jantar
bem viva: "O casal estava tomado pela China', este foi o assunto principal. Depois, falamos muito sobre Obama, o que significava, não significava, se ganharia ou
não. Foi antes mesmo de sua indicação pelos democratas. Acho que nós duas fomos as únicas de nosso meio a ver o que acontecia com Obama. Ruth tinha muita sintonia,
era uma coisa intuitiva, instintiva com as mudanças sociais, sempre teve. Ele vai ganhar', dizia. 'Quer apostar?' não, também acho. Por que não aposta com Fernando
Henrique?' Outro tema no jantar foi antropologia, misturada com mercado financeiro, e se alguém nos ouvisse ia achar estranho, ela começava uma frase, um pensamento,
eu continuava na mesma hora, e o mesmo da parte dela, eu começava, ela prosseguia, sem intermediação. Produto de uma intimidade
alguém nos ouvisse ia achar que éramos loucas". No dia 18 de junho, aniversário de Fernando Henrique, Bia, Paulo Henrique e Van Van decidiram comemorar com um jantar
fora e Ruth, que gostava de variar, lembrou-se da cozinha espanhola e foram para o Efie, na rua Mário Ferraz. Restaurante novo, tinha acabado de sair uma matéria
sobre ele. FHC levou uma garrafa de Vega Sicilia e todos brindaram. Paulo Henrique estava preocupado nesse jantar, porque ela viajaria com a neta Isabel para Paris,
depois seguiria para Washington. Em determinado momento, ele pediu à mãe: "Não viaje agora, não. Vou ficar em São Paulo, tomando conta de você". Sempre houve entre
os dois uma ligação profunda, ela adorava o filho. Se alguém quisesse irritá-la era dizer que o Paulo era a cara do Fernando Henrique. Ela retrucava na hora, brava:
"Não é não, ele se parece comigo, é a minha cara!". Nesse jantar, ela sorriu ao responder: "Vou viajar e vou viver o que tenho para viver. Vou fazer tudo, não adianta
você vir me dizer que não, porque vou. Não se esqueça disso". E foi dormir feliz da vida, acordou serelepe, recordou-se Van Van.

RUTH TEVE SUAS ATIVIDADES normais até a noite de 20 de junho de 2008, quando deixou o concerto da Osesp e voltou sozinha para casa. No sábado, dia 21, Ruth foi
para o apartamento após os exames e Maria Helena Gregori foi visitá-la na companhia da filha Bibia. Conversaram, logo entraram Fernando Henrique, Paulo e Van Van
e, como começou a chegar mais gente, Maria Helena voltou ao seu apartamento. Fernando Henrique telefonou para casa, a empregada Terezinha Barbosa de Moraes atendeu,
e ele indagou: Você não gostaria de fazer companhia à Ruth hoje? - Seria um presente para mim. - Pode vir já? Quando pode vir? - Vou congregar, vou de mala e de
lá sigo para o hospital.
"Congregar" significava participar da cerimônia na Congregação Cristã no Brasil, da qual ela fazia parte há 25 anos. Ruth sabia e incentivava, era preciso
ter uma crença, fé em algo. Os encontros eram na Congregação da rua Heitor Penteado. Terminado seu culto, Terezinha partiu para o Sírio Libanês. Aproveitou que ainda
havia visitas no quarto e subiu para ver Maria Helena Gregori. Quando desceu, Ruth estava cochilando. "Estranhei, ela nunca dormia cedo, era uma coisa com a qual
eu estava acostumada. Muitas vezes, tarde da noite, em casa, ia olhar e encontrava dona Ruth ao computador, mandando e-mails ou trabalhando em algum projeto. Ali
no hospital fiquei de vigília, quase não dormi, atenta, mas vi que ela dormiu profundamente, parecia tranquila", relata Terezinha. No domingo, Maria Helena e José
Gregori desceram antes do almoço, ficaram mais de duas horas conversando, até que o médico Artur Ribeiro chegou da viagem e comunicou que fariam um cateterismo.
Na mesma hora, segundo Maria Helena, Ruth disse: "Quero fazer no seu hospital!". O hospital era o do Rim. "Pois bem, faremos lá, na segunda-feira." Em seguida, Ruth
ligou para Anna Verônica Mautner e ficaram conversando um largo tempo. Ruth desligou e sugeriu: "Vamos marcar um jantar de poesia, o Zé tem de declamar isto e aquilo".
E citou alguns poetas que José Gregori interpreta bem. Logo depois Teresa Caldeira ligou, tinha chegado dos Estados Unidos. - Não sabia que você estava no hospital,
Terezinha acabou de me contar. Vou para aí. - Nem pensar. Imagina! Estou aqui, não sinto nada, esses médicos é que não me deixam ir para casa. Nos vemos esta semana.
Tinha se tornado uma frase recorrente dela, como um mantra - "esses médicos não me deixam ir para casa". "Estou indo para Portugal, tenho uma conferência, vou abrir
um congresso de sociologia. Na volta, marcamos, nos encontramos." No domingo, Regina e Luiz Meyer fizeram uma visita. Ao sair, Regina brincou:

-Agora você vai ficar sozinha, não é? - Não, olha aqui.
Bateu com a mão num livro, era de uma autora africana com quem ela teria um encontro naquela semana. No final da tarde, Fernando Henrique ligou outra vez para Terezinha:
- Pode repetir a dose...? - Quer dizer, ficar com dona Ruth? Sim.

Vou congregar e sigo para aí, como ontem. Terezinha conta que, quando chegou, Ruth sorriu: Estou com tanta saudade da minha sopinha. Nessa noite as duas dormiram
bem, só acordaram com as enfermeiras entrando no quarto. Tomaram o café e, por volta das nove horas, o doutor Artur Ribeiro foi buscar Ruth, enquanto Terezinha apanhava
um táxi e voltava para casa, levando algumas flores e uns presentes que tinham chegado. De domingo para segunda, Maria Helena comeu alguma coisa que não caiu bem,
passou malíssimo, não visitou Ruth, soube que ela havia sido transferida para o Hospital do Rim. No cateterismo, foi detectada uma obstrução numa artéria muito pequena,
todavia os médicos decidiram não mexer, não era o caso. Maria Helena, por causa da indisposição, não teve alta na segunda-feira, os médicos preferiram esperar. Quando
Ruth voltou para casa, felicíssima, começou a contatar amigos, enviando e-mails para todos os lados. Um destes e-mails foi para Regina Esteves que, nos Estados Unidos,
preparava um projeto muito querido para Ruth, o lançamento do Alfabetização Solidária no mercado americano, em parceria com a iniciativa privada. Pessoas físicas
poderiam adotar um aluno brasileiro no processo de educação. Foram longas as negociações e Regina convenceu Ruth a fazer um evento na Organização dos Estados Americanos
- OEA. Faltavam detalhes finais, Regina embarcou com o marido e os filhos, deu-se umas feriazinhas. No dia 24 de agosto de 2008, uma terça-feira, dia frio, Ruth
levantou cedo, foi tomar banho, olhou o corpo em busca da marca de entrada do cateter, mal conseguiu localizá-lo, e fez um curativo com a ajuda do marido . Agora
vou fazer uns exercícios - comunicou.
- Está louca? Nem pense nisso. Acabou de sair do hospital, não tem
cabimento Ela sentou-se na cama, deu uma organizada nas pilhas de livros sobre o criado-mudo: Tocquevilleanas: notícias da América, de Roberto DaMatta, Memórias
de Adriano, de Marguerite Yourcenar, o Caderno de Literatura do Instituto Moreira Salles dedicado a Guimarães Rosa, O salão de beleza de Cabul. O mundo secreto
das mulheres afegãs, de Deborah Rodriguez, os originais de Os sonhos que alimentam a vida, autobiografia de José Gregori, inteiramente anotado para a orelha que
ela escreveu, O banqueiro dos pobres, de Muhammad Yunus (que admirava Ruth, tornara-se amigo dela), A cabeça do brasileiro, de Alberto Carlos de Almeida, Tigre de
papel, de Olivier Rolin, um programa do Cirque de Soleil, ao qual levou todas as netas, uma caixa de bombons semivazia, que a fez sorrir, pensando no regime, uma
pasta com originais de artigos de Flic,7 um livro sobre o D.O.M., de Alex Atala, um de seus restaurante favoritos - adorava ler sobre gastronomia. Durante o almoço,
ela e Fernando Henrique conversaram, programando a semana. Haveria um jantar com Roberto Schwarz, ela queria saber quem viria, para equilibrar os casais. Tinha essas
preocupações. Às três da tarde Fernando Henrique se foi, tranquilo, ela estava com excelente disposição. O filho Paulo Henrique passou por lá, conversaram, e, de
repente, uma vez mais, ela criticou os cariocas. "Vez ou outra, lembrava-se de que tinha essa ojeriza, era um trauma." - Mas, mãe, você não pode falar isso, moro
no Rio há trinta anos, seus netos moram no Rio, setenta por cento de sua família está lá. Nesse momento, ela o surpreendeu, revelando: - Você nunca foi esnobado
como eu fui. Diziam que eu era branca, muito branca, que eu era caipira. Nessa conversa, de repente, assim sem mais, ela disse onde queria ser enterrada.

- Mãe, que é isso? Que papo é esse? Ela falou onde Mariquita e José estavam sepultados, queria estar ao lado deles, queria juntar toda a família.
"Ah, mãe! Fique tranquila, deixe que eu faço isso, um dia coloco todo mundo junto!" Ruth estava particularmente bem nessa tarde, sentia-se contente. Paulo Henrique
partiu, logo depois Van Van chegou, encontrou-a feliz, dizendo: "Vamos arrumar essas flores". Começaram a distribuir pela casa as dezenas de buquês e ramalhetes
de flores vindos de amigos, colaboradores e organizações que enchiam a casa. Entre um arranjo e outro, um e outro cafezinho (sempre na quantia exata, duas xícaras),
Ruth lembrava-se de alguém, corria ao computador, enviava um e-mail. Até o final da tarde teria mandado mais de vinte. Cheios de júbilo, confessam os amigos. Feliz
por estar bem, de volta a sua casa, detestava hospital. Van Van contou em minúcias a exposição Espelhos: reflexos e reflexões, na Galeria Manha Razuk, da qual era
a curadora, reunindo artistas contemporâneos que usaram espelhos em suas obras. Ruth quis saber tudo, trocaram ideias. Pouco antes de sair, Van Van notou que Ruth
tinha desaparecido, procurou-a, e a encontrou no quarto, empurrando uma mesinha de televisão que não era leve. Pediu que deixasse aquilo, depois ela e o Paulo mudariam
o móvel de lugar. Ruth continuou empurrando: "Veja como é fácil, tem rodinhas", e ria. Ao se despedirem, ela prometeu à nora: "Por mim, iria hoje. Os médicos me
proibiram de sair. Fico, contra a minha vontade. Amanhã vou, pode esperar. Esse tema, o dos espelhos, me interessa, é uma coisa de Jorge Luis Borges. Deve ser linda
a exposição". E Van Van se foi. Ruth chamou Terezinha e avisou: "Olha, Fernando Henrique tem um compromisso à noite, vai jantar fora, então você bem que podia fazer
aquela sopinha nossa". Era uma sopa simples, ou com ossobuco ou com frango sem pele. Extraía-se um caldo espesso, sem gordura, misturava-se com legumes bem picados,
e Ruth adorava que acrescentassem também aveia. No final da tarde, depois de telefonar à mulher e certificar-se, uma vez mais, de que ela se sentia bem, Fernando
Henrique Cardoso, tranquilo com a recuperação de Ruth, deixou o Instituto que leva seu nome, no Anhangabaú, e se dirigiu ao Hotel Golden Tulip Plaza, na alameda
Santos. A convite do Instituto de Estudos Empresariais, ia fazer uma palestra sobre o tema "O Brasil num mundo em transformação: desafios e perspectivas".
Ruth ligou para Rosiska Darcy no Rio de Janeiro, alegre, avisando que tinha deixado o hospital e que estava perfeita, tinha sido apenas um susto. Rosiska prometeu
vir a São Paulo quando descobrisse uma brecha. No meio da tarde, Celso Lafer telefonou, disse que gostaria de lhe fazer uma visita, ela repetiu que estava bem, mas
que adoraria que ele aparecesse no fim de semana. Quer que leve uma cachaça das boas? Tem a do meu primo, Armando Klabin. Vem da fazenda dele em Minas, você experimenta,
me diz. - Pois me traga essa! Quase ao mesmo tempo, Paulo Henrique Cardoso tomou um táxi na cidade, decidido a passar em casa para tomar um banho e trocar de roupa,
a fim de chegar em tempo ao vernissage de Van Van. Quando o táxi parou em frente ao prédio da rua Rio de Janeiro, o motorista não tinha troco e Paulo subiu para
apanhar dinheiro. Ele entrou, procurou pela mãe, encontrou-a no escritório ao telefone: Você tem troco para eu pagar o táxi? Ela fez um sinal, espere, e disse seca
e rapidamente: Não vê que estou falando com meu fisioterapeuta? Paulo virou as costas, foi à procura de Terezinha, não a encontrou, voltou, viu a bolsa da mãe,
tirou a carteira, apanhou quinze reais e desceu. Ao subir, deu com Ruth na porta, esperando. Inquieta, achava que o filho tinha ido embora, bravo com a maneira como
ela dera um "corte" nele. Às vezes, quando ela se mostrava rígida, severa, para dar um "corte" nela, Paulo sumia. Quase um jogo entre os dois. Filho, você sumiu,
saiu correndo... - Tudo bem, mãe, precisava do dinheiro, apanhei eu mesmo, foram quinze reais. O que veio fazer? - Tomar um banho, me aprontar, vou para a galeria
encontrar Van Van. Antes, vou comer alguma coisa, estou com fome. - Vamos para a cozinha, conversamos um pouco. Era o que gostava de fazer, conversar, contar histórias,
tinha sempre assunto.
"Naquela tarde, ela estava particularmente radiante, feliz por ter deixado o hospital, o cateterismo tinha sido tranquilo, o médico estava satisfeito. Os dias anteriores
tinham sido tensos, mamãe tinha ficado assustada", disse Paulo. Nem chegaram a sentar-se, Paulo abriu a geladeira, pegou um pedaço de queijo e virou-se para Terezinha:
Tem banana? Ruth aconselhou: Coma uma pera, é muito melhor. Terezinha apontou para uma fruteira cheia de bananas vindas de Iguape, trazidas por amigos dela. - Purinhas,
das boas, experimente. A empregada saiu, Paulo apanhou uma e viu a mãe oferecendo: - Olhe este figozinho seco, trouxe da China, delicioso. Passou a contar histórias
da viagem recente. Então, levou a mão ao peito e deu um suspiro abafado: - Ui. Nada mais, como se fosse um sopro provocado por uma dor intensa. - Mãe...! Ao ver
que ela cambaleou, Paulo largou tudo, segurou-a por trás, porém um, corpo desmaiado pesa, e os dois foram ao chão. Ele acomodou a cabeça de Ruth, começou a ver pulso,
temperatura, saiu correndo em busca de Isordil, um remédio que ele também toma depois de ter colocado dois stents. Completamente transtornado, desesperado, sem saber
que atitude tomar, o que fazer, tentava massagear o coração. Chegaram as empregadas, Terezinha e Rose, e começaram a chorar. - O que fazemos? O que fazemos? Não
sei, rezem. Terezinha abaixou-se, amparou a cabeça de Ruth. Atordoado, Paulo correu ao telefone e ligou para o Hospital Samaritano, a duas quadras dali, pedindo
ambulância e uma equipe médica. Esperou, andando para lá e para cá, olhando a mãe no chão da cozinha. Ligou de novo, pedindo urgência. Nada. Acabou ligando cinco
vezes, inclusive dizendo "É a primeiradama!". Aí Terezinha telefonou para Sandra, uma vizinha do nono andar,
cuja irmã pertence à mesma Congregação Cristã. A amiga desceu e, mais calma, viu que Ruth estava morta. Chamaram o Corpo de Bombeiros, o resgate chegou em minutos,
fez os primeiros procedimentos. Veio uma segunda equipe e, enfim, o pessoal do Samaritano. O médico Artur Ribeiro entrou, inclinou-se sobre Ruth, avaliou e comunicou:

- Perdemos a guerra! Moveu a cabeça, abalado. Paulo sentou-se na sala para tomar fôlego, o apartamento estava cheio de gente, devia haver lá umas quinze pessoas
agitadas. "Olhei para o chão e vi um brilho. Abaixei-me e era uma estrelinha simples. E brilhava. O que será isso? Apanhei e guardei. De onde surgiu essa estrelinha?
Imediatamente vi que precisava avisar meu pai e minhas irmãs." Ligou para o celular do segurança, o homem levou o aparelho para Fernando Henrique, que estava começando
a palestra. FHC estranhou, atendeu e ouviu: "Pai, venha para cá que a mãe está passando mal, não precisa vir depressa". Não disse mais nada. Fernando Henrique, quando
ouviu o "não precisa vir depressa", compreendeu tudo. Apanhou o carro, enfrentou o trânsito do início da noite. Os minutos pareceram séculos. Ele entrou em casa
profundamente transtornado, Ruth já estava acomodada no quarto de hóspedes, Paulo o acompanhou até lá, viu quando ele caiu de joelhos e abraçou sua mulher. Paulo
deixou-o sozinho, ele ficou um tempo e saiu em lágrimas. "Porém, ele tem uma capacidade incrível de recuperar-se, as pessoas o rodearam." As outras ligações foram
para as filhas dele, Helena e Joana, as gêmeas de 23 anos, e para a irmã Luciana, que mora em Brasília. Helena chorava: "Pai, uma amiga minha que trabalha na Globo
me ligou e disse que vovó morreu, verdade?". Ele confirmou e então percebeu que a imprensa já sabia. Vizinhos do bairro, ao verem a movimentação de ambulâncias,
tinham avisado jornais e televisão, e em minutos a rua Rio de Janeiro e adjacências ficaram bloqueadas. Estabeleceu-se rapidamente uma corrente de informações, os
celulares congestionaram. Nessa rede, funcionaram os rádios dos seguranças dos prédios e das casas da rua, porque eles têm canal aberto com a polícia e os bombeiros
e foram captando e transmitindo mensagens. Uma amiga
de Gilda Portugal Gouvêa, assessora do secretário de Educação e amiga de Ruth, que passeava com o cachorro pela rua, ao ver ambulância, resgate e imprensa aproximou-se,
soube da morte e comunicou a Gilda, que ligou para o Palácio dos Bandeirantes avisando o governador. José Serra comunicou ao presidente Lula. Amigos que moravam
perto, quase vizinhos, como Luiz Meyer e Regina, Fátima e Fernando Pacheco Jordão, Malak e Pedro Paulo Poppovic, Maria Adelaide Amaral, todos logo se inteiraram
da situação e passaram a comunicar aos amigos. O grande problema foi avisar Bia, que estava em Barcelona, na Espanha, com o celular desligado, era madrugada lá.
José Safra, que acabara de chegar, ofereceu um Learjet para buscá-la. No entanto, um avião de carreira seria mais rápido, até preparar o jatinho, obter autorização
de voo, atravessar o oceano, regressar, demoraria mais. Embaixada e consulados entraram no circuito, Bia foi avisada, embarcou de volta. Outra ligação foi para a
galeria de arte onde estava Van Van, porém o coquetel tinha começado e ela desligara o telefone. E a cada um que perguntava pela sogra, sorria e comentava: "Está
ótima". A certa altura, Van Van percebeu Amanda, filha dela, fazendo sinais desesperados. Van Van, rodeada de gente, acenava: "Espere um pouco, o que há?". A filha
insistia: "Mãe, venha aqui, preciso falar com você". Van Van imaginou que era um problema menor, uma roupa rasgada. Amanda insistiu: "Liga para o Paulo Henrique,
liga já!". Bateu uma preocupação, afinal o Paulo Henrique tinha, também, colocado dois stents há pouco tempo. Van Van, ressabiada, indagou: "Aconteceu alguma coisa
com ele?". Quando a filha respondeu "Não, ele está bem, é a Ruth", caiu a ficha. Na mesma hora Van Van ligou o celular, havia dezenas de mensagens. Ela correu a
Jorge Caldeira, que estava na galeria, avisou-o, saíram juntos, voando, não disseram nada a ninguém, não quiseram alarmar nem estragar o coquetel. Partiram, chegando
ao apartamento cerca de 2h30. O telefone de Jorge Caldeira tocou, era sua irmã Teresa completamente fora de si, sem compreender o que se passava, totalmente bloqueada.
Era tarde da noite em Lisboa, ela estava lendo os e-mails, havia um de Ruth dizendo: "Já estou em casa, foi só para dar um susto nos médicos. Confimou
nosso encontro semana que vem". Pouco depois, Jim, marido de Teresa, telefonou a ela dos Estados Unidos contando que Ruth tinha morrido. Na porta, um mar de jornalistas,
carros de televisão e rádio, populares, curiosos. Van Van entrou no elevador, errou o andar, subiu, desceu, errou de novo, até acertar o oitavo andar: "Havia um
mundo de gente, um tumulto, todos atarantados. Ruth já estava numa cama do quarto de hóspedes. As amigas confabulando como vesti-la. Acabamos escolhendo um vestido
discreto, bege, uma cor que ficava bem nela, apanhamos um xale, ela gostava de xales". Os amigos de Paulo, Jorge Caldeira e Carlos Eduardo Régis Bittencourt, estavam
pensando no velório, providenciando o necessário. Chegou Andrea Matarazzo e ajudou fazendo contatos. O Palácio dos Bandeirantes e a Assembleia Legislativa foram
descartados, não tinham o perfil de Ruth, e assim chegou-se à Sala São Paulo, "lugar que ela amava", completa Van Van. No começo da noite, no Rio de Janeiro, Miguel
entrou no escritório de Rosiska pálido,abalado: Ruth morreu. Como morreu? Acabamos de nos falar, estava bem. Nesse momento, o celular tocou, ela atendeu e ouviu:
"Aqui é fulana de tal, da Globo News, meus sentimentos". Rosiska correu para o escritório de Miguel, a notícia estava na internet viajando. Chovia muito no Rio.
Uma amiga ligou, havia um helicóptero pronto para decolar. Rosiska, que tem horror a avião, agradeceu, disse que ainda estavam decidindo. Helicóptero, e numa chuva
daquelas! Outro telefonema, de Eduardo Eugênio Vieira, presidente da Firjan, a Fiesp do Rio, oferecendo-se para levalos num jatinho. Aceitaram, decolaram, meia hora
de voo e uma pane no avião, tiveram de voltar em meio à tempestade. Nessa altura, os aeroportos do Rio estavam fechados, já era tarde. Na manhã seguinte partiram
no primeiro avião de carreira, e somente ali Rosiska se lembrou do medo que tinha de avião. No Hospital Sírio Libanês, Maria Helena Gregori percebeu uma movimentação
estranha, funcionários entraram no apartamento, desligaram a televisão, começaram a retirar o aparelho.
O que está acontecendo? Vão levar minha tevê? Deu um problema com a tevê a cabo, estamos desligando tudo, até que façam os reparos. Vamos trocar sua tevê, logo traremos
outra. Não trouxeram. E assim Maria Helena não viu os telejornais da noite. Os médicos tinham se prevenido, ela estava frágil, convalescendo. Depois, ela viu suas
três filhas, Maria Stella, Maria Cecília (Ticha) e Bibia, chegarem juntas e estranhou. De repente, as três desabaram e Maria Helena ficou sabendo. José Arthur Giannotti
tinha acabado de chegar do cemitério, sua mãe tinha falecido no dia anterior. Ele telefonou para FHC, que pediu: "Não venha, não é justo, você não vai suportar duas
dores dessas seguidas". Quando José Gregori entrou, deu com o governador Serra, abismado: "Você acabou de perder a sua parceira de dança, Gregori". E lágrimas correram
pelo rosto dos dois. Pedro Moreira Salles chegou ao apartamento da rua Rio de Janeiro cerca de uma da madrugada e encontrou um Fernando Henrique desolado, atônito:
"O que fazer sem ela? Olhe esta casa, ela está inteira aqui, fez tudo, a gente respira Ruth neste lugar". Regina Esteves, em Nova York, recebeu a notícia e não pensou
duas vezes - falou com o marido, apanhou bolsa e passaporte e foi para o aeroporto, conseguiu um voo para o Brasil. Ficou até a missa de sétimo dia - que provocou
polêmicas, Ruth nunca teve essa religiosidade de missas e igreja. Terminada a missa, quando Regina saía da igreja, o celular avisou que havia uma mensagem. Ela abriu:
"Regina, muito obrigada pela sua solidariedade e pela sua fidelidade. Ruth". A mensagem tinha ficado retida no espaço por sete dias. A essa altura, a notícia corria
o Brasil em edições extras. Por instantes a nação paralisou, percorrida por uma profunda emoção. Todos os jornais do país, no dia seguinte, falariam dessa mulher.
Como disse Eva Blay, "poucas vezes se viu tanta unanimidade". Desapareceram partidarismos, ideologias, rivalidades, ressentimentos, idiossincrasias. Roberto Pompeu
de Toledo, na revista Veja, sintetizou que ela uniu, "na mesma louvação e na mesma tristeza, pessoas de diferentes áreas e posições políticas opostas. A admiração
e o respeito que despertava faziam dela uma unanimidade". Gaudêncio Torquato definiu-a com exatidão: "Ela nunca transigiu com a
integridade". Manuel Castells telegrafou de Barcelona: "Ruth foi uma das maiores antropólogas urbanas do mundo". No dia seguinte, José Arthur Giannotti foi o primeiro
a chegar, encontrou Fernando Henrique desmoronado, o ar perdido. A casa estava silenciosa, enormemente vazia. Giannotti disse que iria à Sala São Paulo, o corpo
de Ruth já tinha sido preparado para o velório. FHC tomou um banho, vestiu-se. "Ao entrar na sala, estava recomposto, a postura de presidente reassumida", acentuou
Giannotti. Em Lisboa, Teresa chegou para sua conferência, estava completamente atordoada. Pediu desculpas, comunicou que leria rapidamente seu texto, não teria tempo
para debater, nem ânimo, acrescentou. Já tinha passagem marcada na TAP para regressar ao Brasil. E disse o porquê. Na plateia, dezenas de pessoas começaram a chorar.
O falecimento foi notícia de primeira página em todos os jornais brasileiros, nas rádios, nas tevês. Os grandes jornais do mundo deram destaque. O Brasil continuava
incrédulo, atônito. As filas começaram a se formar diante da Sala São Paulo. O presidente Lula, rodeado por sete ministros, entrou, e o abraço entre ele e Fernando
Henrique, ambos em lágrimas, emocionou todos os presentes. No avião da comitiva presidencial veio uma pessoa simples, ligadíssima a Ruth, seu braço direito no Palácio
da Alvorada. Era Dalina, uma de suas assessoras diretas mais queridas. Ela fincou pé, fez porque fez, embarcou com Lula e Marisa. De pé, magro e ereto, aos
91 anos, ali estava o professor Antonio Candido, o único que ainda chamava Ruth de Ruthinha. Coroas e coroas chegavam a cada minuto. Nenhuma celebridade, nenhum
estadista brasileiro, nenhum ídolo recebeu tantas flores, o espaço na Sala São Paulo quase desapareceu. O velório estendeu-se por toda a quarta-feira, à espera de
Bia Cardoso, já no avião, de volta. Ruth foi levada às dez horas do dia 26 ao Cemitério da Consolação, a essa altura já tomado por uma multidão. Difícil entrar,
impossível se loco, mover. Terezinha, a empregada, estava esperando amigas que não chegavam, tentou sair, um segurança avisou-a: "Se sair, não terá mais como entrar.
Aliás, não vai encontrar ninguém no meio dessa multidão". A bandeira de Araraquara surgiu sobre o caixão. Fazia sol, o símbolo da terra natal dela. Na noite seguinte
seria lua minguante.

Posfácio

RUTH LEITE CARDOSO, MINHA MESTRA,

MINHA COLEGA, MINHA AMIGA

RUTH IRRADIAVA SERENIDADE seus olhos café que iluminavam seu rosto eternamente jovem, embelezado por seu sorriso tranquilo. Conversar com ela sobre qualquer coisa,
da política brasileira às alegrias e dores da vida, sempre me transmitia uma profunda calma. Os temas mais espinhosos, as questões mais complicadas se simplificavam,
se tornavam razoáveis e se transformavam em possibilidades de entender, de fazer, de trabalhar para as pessoas e com as pessoas, de se sentir à vontade com os entes
queridos. Mas Ruth, a dona Ruth, a professora Ruth Leite Cardoso, era muito mais do que um ser dileto e uma mulher inteligente e sensível. Era uma pesquisadora de
primeiro nível, uma acadêmica respeitada no mundo todo, uma líder de mulheres, uma ativista política comprometida e apaixonada e, chegada a ocasião, uma primeira-dama
que rompeu com os moldes tradicionais e também com os novos modelos que outras primeiras-damas quiseram introduzir. E, para mim, foi minha mestra e amiga. Ruth
foi minha mestra. Ensinou-me muitas coisas desde os nossos primeiros encontros na Paris de 1968 e, em seguida, em novembro do mesmo ano, no mês que morei em sua
casa no Morumbi, com sua família. Conduziu-me pela São Paulo que só uma antropóloga urbana como ela sabe decifrar. Permitiu que lesse sua tese sobre as comunidades
japonesas de São Paulo, levou-me aos mercados onde eles vendiam suas verduras e me explicou os circuitos comerciais e familiares a partir dos quais cresceram em
riqueza e influência, com base no duplo processo de integração ao país e de conservação de sua identidade. Um tema que hoje é central no mundo e que Ruth me ensinou
a pensar quatro décadas atrás. Mas o tema em torno
do qual desenvolvemos nossa mais profunda colaboração de pesquisa foi o dos movimentos sociais urbanos. Juntos, identificamos a importância das comunidades locais
na mudança social a partir da luta cotidiana pela satisfação das necessidades básicas das pessoas e o papel decisivo das mulheres como organizadoras da comunidade.
Procuramos encontrar uma perspectiva de pesquisa que superasse o dogmatismo marxista de fazer das organizações comunitárias um apêndice da classe operária, ao mesmo
tempo em que nos distanciávamos do enfoque funcionalista da cultura da pobreza, montagem ideológica a serviço dos interesses das Igrejas. Com a Ruth, procuramos,
e acho que conseguimos, identificar um novo sujeito de transformação, a cidade dos cidadãos, um movimento cidadão e de vizinhos que, para resolver seus problemas,
tinha de transformar a cidade e, portanto, a sociedade, o que constitui a essência de um movimento social. Ruth era radicalmente crítica do populismo e encontrou
na análise concreta do povo concreto a forma de desmistificar a ideologia e de identificar as vias de mudança social que se adaptassem a uma realidade latino-americana,
em que a classe operária foi mais frequentemente fonte de privilégios corporativos do que agente de transformação social. Ruth me ajudou, sem dizer nada, a superar
o dogmatismo ideológico que em parte impregnava meu primeiro livro, A questão urbana. Sem dizer nada porque, em vez de entrar numa discussão textual (frequente nos
círculos talmúdico-marxistas da América Latina da época), abriu meus olhos para o novo significado dos movimentos sociais urbanos que eu tinha identificado no Chile
e na França, mas que procurava entender com categorias que não se adaptavam à sua problemática. Desse compartilhamento de experiências urbanas com a Ruth saiu um
novo olhar meu para os movimentos sociais urbanos na Espanha e, a partir dessa nova pesquisa, meu livro La ciudad y las masas, que rompeu explicitamente com a teorização
marxista estruturalista para tentar situar a prática de transformação urbana em seu contexto, partindo do que os sujeitos eram e diziam ser ao invés de codifica-los
conforme os interesses ideológicos do analista. Essa conversa sobre as comunidades locais e os movimentos sociais urbanos nunca se interrompeu. Prosseguiu nos seminários
que Ruth ministrou no Departamento de
Planejamento Urbano e Regional em Berkeley, em 1982, e no Centro de Estudos Latino-Americanos de Berkeley, em 1999. E se articulou em reuniões locais e internacionais
nas quais continuamos a redefinir a análise dos movimentos sociais segundo sua evolução na prática. Um dos momentos mais reveladores de sua capacidade analítica,
exercida com a discrição da pesquisadora atenta à observação, foi sua intervenção no seminário sobre globalização e mudança social na América Latina no ano de 2002,
em Cochabamba. Num momento da animada discussão nesse seminário fechado, de alto nível acadêmico, Ruth sintetizou em uma frase o que estávamos descrevendo sem realmente
entender: "O povo desunido jamais será vencido". Simples, brilhante, profundo. Porque o que ela estava dizendo era que as vias de transformação em nossas sociedades
segmentadas e multiculturais não surgem de uma centralidade do sujeito, seja ele qual for, em torno do qual se aglutinem os protestos sociais e os projetos políticos.
É a multiplicidade de fontes da mudança social, sua não articulação em aparelhos políticos instrumentais, seu trabalho intersticial nas mentes das pessoas numa série
de práticas diversas que vai solapando as raízes da dominação. Porque a dominação tende a se exercer centralmente, no Estado, no capital, no oligopólio da informação,
já que resulta de alianças entre interesses e valores dominantes. Ao passo que a resistência é multiforme, cada pessoa, cada grupo, cada fonte de valores alternativos
tem suas próprias causas para defender contra a dominação encarnada nos aparelhos da sociedade. Fundir essa diversidade de resistências e projetos alternativos sob
uma bandeira comum pode ajudar a ganhar eleições ou tomar o poder. Mas à custa de sacrificar a capacidade transformadora dos movimentos sociais, ações coletivas
que procuram, antes, mudar os valores da sociedade do que empoleirar-se nas instituições. Esse debate com a Ruth e essa fórmula sintética, que agora figura no frontispício
de minha análise sobre os movimentos sociais, forneceu-me a pedra angular que me faltava para entender a descentralização do processo de transformação social em
nossos tempos. Mas Ruth não concebia os movimentos sociais como gestas heroicas, desvinculadas das reivindicações cotidianas. Ao contrário, via-os brotar da
luta diária para satisfazer as necessidades das pessoas e da organização comunitária dessas lutas. E via o processo político relativo ao Estado como uma instância
necessária para uma melhora da sociedade, mas uma instância na qual um projeto de reforma só poderia triunfar caso se enraizasse na dinâmica dos movimentos sociais,
sem por isso segui-los em seu deslocamento utópico. Sempre desconfiada da ideologia, que tanta dor causou na América Latina, alertava contra o voluntarismo político
das vanguardas. Ao mesmo tempo, insistia na necessidade de manter os valores de transformação social que surgiam da base da sociedade como referentes últimos da
gestão política, obrigatoriamente prudente e limitada pelo contexto institucional. Diferentemente dos líderes políticos, porém, ela e eu sempre consideramos que
a essência da mudança provinha do que sucedesse nas comunidades locais e nos movimentos sociais múltiplos que surgem em todas as esferas da vida social. Não creio
que seja trair um segredo de Estado recordar conversas semiprivadas nas quais, cada vez que num círculo íntimo lembravam ao então presidente Cardoso a importância
dos movimentos sociais e comunitários, ele costumava dizer, concentrado que estava nas grandes decisões políticas do Estado, que "desses temas" (ou seja, sociedade
civil, movimentos sociais e outros) já se ocupavam Ruth e Manolo. Não era um comentário pejorativo, muito pelo contrário: sabia que ali estava a raiz de tudo, mas
suas tarefas e responsabilidades de gestão eram inadiáveis. Esperava que de Ruth saíssem ideias para o restante. E saíam. Mas Ruth nunca interferiu nas decisões
do presidente. Diferentemente de outras primeiras-damas, que consideraram ter direito a copresidir, Ruth soube definir um papel autônomo de primeira-dama, utilizando
o prestígio de sua função para tomar iniciativas próprias, como o desenvolvimento da rede de programas sociais das Comunidades Solidárias, financiados e patrocinados
por recursos privados. Foi uma decisão amadurecida e consciente, que a transformou em agente de ação na sociedade, à margem de sua função de representação como primeira-dama,
que assumiu dentro de parâmetros estritamente protocolares. A coerência da visão de Ruth sobre a distância e a relação entre socie
dade civil e Estado se manifestou com clareza exemplar em sua prática e análise do feminismo. Dela aprendi o que foi e é atualmente minha visão do movimento de mulheres
e do feminismo. Ruth não se dizia feminista, apesar de ser uma mulher plenamente autônoma e já defender os direitos da mulher antes de o termo feminismo ser utilizado
no Brasil. No entanto, ela não qualificava a si mesma como tal para se distanciar do feminismo ideológico da classe média alta que, na América Latina, importava
modelos de feminismo norte-americano ou europeu e os aplicava a um contexto completamente diferente. O que interessava a Ruth era a emancipação das mulheres populares
na sociedade mediante a assunção da liderança da família, do bairro, das associações civis, mudando, assim, as relações de poder dentro e fora da família. Ela distinguia
movimento de mulheres, direitos da mulher e feminismo ideológico. Interessou-se pelos dois primeiros e ignorou (sem se opor) a dimensão ideológica, que sempre lhe
pareceu artificial e elitista no contexto do Brasil. Assim, entendi o que em seguida denominei (e Ruth considerou apropriado) "feminismo prático", isto é, uma prática
de afirmação cotidiana da autonomia da mulher sem ter de revesti-la com a roupagem conceitual da crítica do patriarcado. Essa perspectiva é essencial para a transformação
da condição feminina no mundo, porque é somente por meio desse feminismo prático que se solapa o patriarcado na maior parte do planeta. Sem essa perspectiva, não
é possível entender o feminismo prático de mulheres islâmicas, mesmo o das integristas, para quem usar o véu não as impede de decidir sobre suas vidas e escolher
suas próprias batalhas, dentro de sua cultura. Ruth não interveio diretamente nesses debates, deixou-os simplesmente de lado, porque para ela o essencial era a igualdade
legal, as condições de vida das famílias, a defesa do direito ao aborto e a proteção das mulheres contra a violência doméstica. Quando teve de defender esses direitos,
não hesitou, de forma tranquila, em enfrentar as mais altas instâncias do poder, ganhando batalhas decisivas e contrariando todos os prognósticos. A Ruth acadêmica
educou, na sua cátedra da Universidade de São Paulo e em algumas das mais prestigiosas universidades do mundo, gerações de jovens cientistas sociais, para os quais
abria novas perspectivas
partindo de observações minuciosas de realidades no Brasil e na América Latina. Lembro como, no Centro de Estudos Latino-Americanos de Berkeley, estudantes de vários
países, frequentemente imbuídos de juízos preconcebidos sobre a realidade da América Latina, alcançavam de repente a compreensão de seu mundo real. Passavam a ver,
por exemplo, na realidade das crianças de rua, não pobres criaturas abandonadas, mas trabalhadores precoces explorados por seus próprios pais para trazer dinheiro
para casa, estando proibidas de voltar enquanto não conseguissem o suficiente. E, de repente, nos dávamos conta da conexão entre uma análise colada na realidade
e a possibilidade de transformar essa realidade. Por exemplo, oferecendo um subsídio suficiente aos pais em troca de mandarem os filhos para a escola, programa este
que teve um impacto decisivo na redução do número de crianças de rua no Brasil. Ou a análise de Ruth sobre a possibilidade de controlar a AIDS mediante o fortalecimento
do poder das mulheres para poderem dizer não e, assim, evitar a contaminação. Esse fortalecimento só podia provir da capacidade de organização comunitária e, portanto,
da sociedade. Só depois é que as instituições do Estado podiam apoiar as mulheres para reduzir a violência doméstica resultante de sua negativa ao sexo perigoso.
Essa análise, que também esteve na base do desenvolvimento de comunidades de mulheres contra a AIDS no Brasil, foi decisiva para frear a disseminação da doença,
em contraste com a África do Sul, onde a incapacidade da sociedade civil para organizar a resistência das mulheres contra o abuso sexual dos homens tornou quase
inúteis os programas institucionais de informação. Ruth foi uma grande pesquisadora e sua obra será compilada de forma sistemática nos anos vindouros. Mas foi sobretudo
uma extraordinária inovadora social, que utilizou sua pesquisa e sua mente para inventar processos de mudança social em benefício de uma multidão de pessoas. E extraiu
permanentemente ensinamentos dessas experiências a fim de refinar a análise e colocá-la em prática em novas iniciativas que contribuíram para mudar a sociedade,
de baixo para cima. Influenciou agentes políticos, empresariais, líderes sociais, que viram em suas ideias a resposta para muitos dos problemas práticos que eles
se colocavam. Durante muito tempo
veremos seus conselhos e suas ideias nas práticas de políticas reformadoras no Brasil, no Chile e em toda a América Latina. Muitos jamais saberão que, na origem
dessas práticas, estão suas ideias. Ruth não se importará com isso. Ela desfiava ideias com paixão tranquila em torno de uma xícara de café, no transcurso de uma
viagem, na sala de um seminário ou numa reunião de um centro comunitário. Semeava. Semeava as sementes do que aprendeu como pesquisadora, esperando que a colheita
fosse algo mais além de artigos científicos: que fosse uma colheita de humanizar as vidas de pessoas que ninguém via. Foi uma antropóloga para quem as comunidades
observadas eram comunidades vivas e não culturas dissecadas para consumo das elites.

COMPARTILHEI MOMENTOS DE vida com a Ruth. Muitos momentos. Na sua casa do Morumbi, no meu apartamento de Paris, no apartamento dela em São Paulo, na minha casa de
Berkeley, nas aldeias da Amazônia, nos bairros de Barcelona, nos seminários do Cebrap, nos seminários em São Paulo, no Chile, no México e na Bolívia, nos seminários
de Berkeley e Stanford, em movimento comunitários e em palácios presidenciais, em universidades censuradas e em acadêmicas torres de marfim, em jantares preparados
por ela e em churrascos feitos por mim, em viagens longas e curtas, em entardeceres e amanheceres, em esperanças e desesperos. Cada um desses vários momentos foi
intenso e tranquilo, falávamos de tudo e projetávamos
tudo, mas sem angústia, com tempo pela frente. Tínhamos toda a vida pela frente para analisar o mundo, senti-lo, mudá-lo. E, de repente, a música parou. Durante
muito tempo não pude aceitá-lo, não conseguia imaginá-lo, o mundo não podia prosseguir sem a Ruth, porque não achava o rumo sem essa bússola escondida fundamental
que, periodicamente, ela era para mim. Inicialmente, reagi como intelectual, escrevendo um artigo sobre ela no jornal da minha aldeia local (La Vanguardia, de Barcelona),
como se o testemunho e a análise pudessem aliviar a ausência. Não podem. E não o fizeram e continuei com esse espaço vazio na minha vida, um vazio ao mesmo tempo
pessoal, intelectual e político. Até que entendi que a Ruth
está viva, viva em mim, como tenho certeza de que está viva em muitas outras pessoas. Não só como memória e lembrança. Mas no que pensamos, no que pesquisamos,
no que fazemos. Sem pensar nela. Sendo ela na realidade. E quando reconheci sua presença em tantos gestos de meu trabalho e de minha vivência, recuperei a calma, a calma que ela transmitia. E por isso pude agora, só agora, escrever este texto.

 

 

                                                                  Ignácio de Loyola Brandão

 

 

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