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FREUD - Volume II (1893-1895)
FREUD - Volume II (1893-1895)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume II

 

Estudos sobre a histeria

Josef Breuer e Sigmund Freud

NOTA DO EDITOR INGLÊS

(James Strachey)

 

(A)       ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS HYSTERISCHER PHÄNOMENE (VORLÄUFIGE MITTEILUNG)

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃES:

 

1893   Neurol. Centralbl., 12 (1), 4-10 (Seções I-II), e 12 (2), 43-7 (Seções III-V). (1º e 15 de janeiro.)

1893   Wien. med. Blätter, 16 (3), 33-5 (Seções I-II), e 16 (4), 49-51 (Seções III-V). (19 e 26 de janeiro.)

1895, etc. Em Studien über Hysterie. (Ver adiante.)

1906   S.K.S.N., I, 14-29. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

 

  (b)     TRADUÇÕES INGLESAS:

“The Psychic Mechanism of Hysterical Phenomena

(Preliminary Communication)”

 

1909   S.P.H., 1-13. (Trad. A. A. Brill.) (1912, 2ª. ed., 1920, 3ª ed.)

1936   Em Studies in Hysteria. (Ver adiante.)

“On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”

1924   C.P., 1, 24-41. (Trad. J. Rickman.)

 

(B) STUDIEN ÜBER HYSTERIE

 

(a)       EDIÇÕES ALEMÃS:

 

1895   Leipzig e Viena: Deuticke. Págs. v + 269.

1909   2ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações, mas com novo prefácio.)     Págs. vii + 269.

1916   3ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269

1922   4ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269.

1925   G.S., 1, 3-238. (Com omissão das contribuições de Breuer; com notas      de rodapé adicionais de Freud.)

1952   G.W., 1, 77-312. (Reimpressão de 1925.)

 

(b)       TRADUÇÕES INGLESAS:

Studies in Hysteria

 

1909   S.P.H., 1-120. (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.) (Trad. A. A. Brill.) (Somente em parte: com omissão dos casos             clínicos da Srta. Anna O., Sra. Emmy von N. e Katharina, bem        como do capítulo teórico de Breuer.)

1936   New York: Nervous and Mental Disease Publishing. Co. (Monograph Series nº 61.) Págs. ix + 241. (Trad. A. A. Brill.)

(Completo, salvo quanto à omissão das notas de rodapé      adicionais de Freud, de 1925.)

 

A tradução inglesa, inteiramente nova e completa, de James e Alix Strachey, inclui as contribuições de Breuer, mas quanto ao resto baseia-se na edição alemã de 1925, contendo as notas de rodapé adicionais de Freud. A omissão das contribuições de Breuer das duas coletâneas alemãs (G.S. e G.W.) acarretou algumas modificações necessárias e notas de rodapé adicionais, onde Freud tinha feito referência, na edição original, às partes omitidas. Nessas edições completas, também a numeração dos casos clínicos foi alterada, em vista da ausência do caso clínico de Anna O. Todas essas alterações foram abandonadas na presente tradução. — Os extratos da “Comunicação Preliminar” e do volume principal tinham sido incluídos por Freud em sua primeira coletânea de extratos de seus próprios trabalhos (1897b, nºs XXIV e XXXI).

 

(1)

ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS SOBRE OS ESTUDOS

 

Conhecemos a história da redação deste livro com algum detalhe.

O tratamento da Srta. Anna O. por Breuer, no qual se baseou toda a obra, ocorreu entre 1880 e 1882. Naquela ocasião, Josef Breuer (1842-1925) já gozava de alta reputação em Viena, tanto como médico com grande clínica, como por realizações científicas, enquanto Sigmund Freud (1856-1939) apenas acabara de formar-se em medicina. Os dois, contudo, já eram amigos há vários anos. O tratamento terminou no início de junho de 1882, e em novembro Breuer relatou a notável história a Freud, que (embora, naquela época, tivesse seus principais interesses concentrados na anatomia do sistema nervoso) ficou muito impressionado com ela. Tanto assim que quando, cerca de três anos depois, estava estudando em Paris sob a orientação de Charcot, deu-lhe conhecimento do caso. “Mas o grande homem não mostrou nenhum interesse por meu primeiro esboço do assunto, de modo que jamais voltei ao tema e deixei que saísse de minha mente.” (Um Estudo Autobiográfico — 1925d, Capítulo II.)

Os estudos de Freud sob a orientação de Charcot tinham-se concentrado, em grande parte, na histeria, e quando Freud voltou a Viena em 1886 e ali se fixou para estabelecer uma clínica de doenças nervosas, a histeria forneceu uma grande proporção de sua clientela. De início, ele se baseou nos métodos de tratamento então correntemente recomendados, como a hidroterapia, a eletroterapia, massagens e a cura pelo repouso, de Weir Mitchell. Mas quando esses métodos se revelaram insatisfatórios, seus pensamentos se voltaram para outra área. “Nessas últimas semanas”, escreve ele a seu amigo Fliess em 28 de dezembro de 1887, “atirei-me à hipnose e logrei toda espécie de sucessos pequeninos, mas dignos de nota” (Freud, 1950a, Carta 2). E nos deu uma descrição pormenorizada de um desses tratamentos bem-sucedidos (1892-3b). Mas o caso de Anna O. ainda estava em sua mente, e “desde o início”, conta-nos ele (1925d), “vali-me da hipnose de outra maneira, independentemente da sugestão hipnótica”. Essa “outra maneira” foi o método catártico, que constitui o tema do presente volume.

O caso da Sra. Emmy von N. foi o primeiro, como sabemos por Freud (ver em. [1] e [2]), que ele tratou pelo método catártico. Numa nota de rodapé acrescentada ao livro em 1925, ele explica melhor essa observação e diz que esse foi o primeiro caso em que utilizou esse método “extensivamente” (ver em [1]); e é verdade que, nessa fase inicial, ele vinha constantemente empregando a hipnose na forma convencional — para dar sugestões terapêuticas diretas. Mais ou menos na mesma época, de fato, seu interesse pela sugestão hipnótica era acentuado o bastante para levá-lo a traduzir um dos livros de Bernheim em 1888 e outro em 1892, bem como a fazer uma visita de algumas semanas às clínicas de Liébeault e Bernheim em Nancy, no verão de 1889. A intensidade com que ele estava utilizando a sugestão terapêutica no caso da Sra. Emmy é indicada de maneira bem nítida no seu relato cotidiano das duas ou três primeiras semanas do tratamento, reproduzido por ele a partir das “anotações que fiz todas as noites” (ver em [1]). Não podemos, infelizmente, ter certeza de quando ele iniciou esse caso (ver Apêndice A, em [1]); foi em maio de 1888 ou 1889 — isto é, cerca de quatro ou cerca de dezesseis meses depois de ele haver pela primeira vez “adotado a hipnotismo”. O tratamento terminou um ano depois, no verão de 1889 ou 1890. Numa ou noutra alternativa, há um considerável hiato antes da data do caso clínico seguinte (em ordem cronológica, embora não em ordem de apresentação). Esse foi o caso da Srta. Elisabeth von R., que teve início no outono de 1892 (ver em. [1]) e que Freud descreve como sua “primeira análise integral de uma histeria” ( ver em [1]). Foi logo seguido pelo de Miss Lucy R., que começou no fim do mesmo ano (ver em [1]). Não se atribui nenhuma data ao caso restante, o de Katharina (ver.em [1]). Mas, no intervalo entre 1889 e 1892, Freud por certo teve experiência com outros casos. Em particular, houve o da Srta. Cäcilie M., a quem ele “veio a conhecer de forma muito mais completa do que qualquer das outras pacientes mencionadas nestes estudos” (ver em [1]), mas cujo caso não pôde ser descrito em detalhes em virtude de “considerações pessoais”. Contudo, ela é freqüentemente mencionada por Freud, bem como por Breuer, no decorrer do volume, e sabemos (ver em [1]) por Freud que “foi o estudo desse caso notável, feito em conjunto com Breuer, que levou diretamente à publicação de nossa ‘Comunicação Preliminar’”. [1]

 

O rascunho daquele memorável artigo (que compõe a primeira seção do presente volume) se iniciara em junho de 1892. Uma carta a Fliess, de 28 de junho (Freud, 1950a, Carta 9), anuncia que “Breuer concordou em que a teoria da ab-reação e os outros resultados sobre a histeria a que chegamos em conjunto também sejam apresentados conjuntamente numa publicação pormenorizada”. “Uma parte dela”, prossegue, “que, a princípio, eu queria escrever sozinho, está concluída”. Evidentemente, a essa parte “concluída” do artigo faz nova referência numa carta a Breuer escrita no dia seguinte, 29 de junho de 1892 (Freud, 1941a): “A inocente satisfação que senti quando lhe entreguei aquelas poucas páginas minhas deu margem a (…) inquietação.” Essa carta prossegue fornecendo um resumo muito condensado do conteúdo proposto do artigo. A seguir, temos uma nota de rodapé acrescentada por Freud a sua tradução de um volume das Leçons du Mardi, de Charcot (Freud, 1892-94, 107), que apresenta, em três curtos parágrafos, um resumo da tese da “Comunicação Preliminar” e se refere a ele como estando “começado”. Além disso, dois rascunhos bem mais elaborados chegaram até nós. O primeiro (Freud, 1940d) deles (escrito com a caligrafia de Freud, embora se afirme ter sido escrito em conjunto com Breuer) está datado de “Final de novembro de 1892”. Versa sobre ataques histéricos e a maior parte de seu conteúdo foi incluída, embora com palavras diferentes, na Seção IV da “Comunicação Preliminar” (ver em [1]). Entretanto, um importante parágrafo relacionado com o “princípio da constância” foi inexplicavelmente omitido, e nesse volume o tema é tratado apenas por Breuer, na parte final da obra (ver em [1] e [2].). Por fim, há um memorando (Freud, 1941b) com o título “III”, que não tem data. Examina os “estados hipnóides” e a dissociação histérica, estando estreitamente relacionado com a Seção III do artigo publicado (ver em [1]).

Em 18 de dezembro de 1892, Freud escreveu a Fliess (1950a, Carta11): “Apraz-me poder dizer-lhe que nossa teoria sobre a histeria (reminiscência, ab-reação, etc.) vai aparecer no Neurologisches Centralblatt no dia 1º de janeiro de 1893, sob a forma de uma comunicação preliminar pormenorizada. Custou-me longa batalha com meu colaborador.” O artigo, datado de “dezembro de 1892”, foi na realidade publicado em dois números do periódico: as duas primeiras seções em 1º de janeiro, e as três restantes em 15 de janeiro. O Neurologisches Centralblatt (que saía quinzenalmente) era publicado em Berlim; e a “Comunicação Preliminar” foi quase imediatamente reimpressa na íntegra em Viena, nas Wiener medizinische Blätter (em 19 e 26 de janeiro). Em 11 de janeiro, quando apenas metade do artigo fora publicada, Freud pronunciou uma conferência sobre o tema no Wiener medizinischer Club. A transcrição taquigráfica completa da conferência, “revista pelo conferencista”, apareceu no Wiener medizinische Presse em 22 e 29 de janeiro (34, 122-6 e 165-7). A conferência (Freud, 1893h) abrangia aproximadamente o mesmo tema que o artigo, mas tratava o material de forma bem diferente e de maneira muito menos formal.

A publicação do artigo parece ter surtido pouco efeito visível em Viena ou na Alemanha. Na França, por outro lado, como relata Freud a Fliess numa carta de 10 de julho de 1893 (1950a, Carta 13), o trabalho foi favoravelmente notado por Janet, cuja resistência às idéias de Freud só surgiria mais tarde. Janet incluiu uma nota longa e altamente elogiosa sobre a “Comunicação Preliminar” num artigo sobre “Algumas Definições Recentes da Histeria”, publicado nos Archives de Neurologie em junho e julho de 1893. Utilizou esse artigo como capítulo final de seu livro L’État Mental des Hystériques, publicado em 1894. Mais inesperado, talvez, é o fato de que em abril de 1893 — apenas três meses após a publicação da “Comunicação Preliminar” — um relato razoavelmente completo da mesma foi apresentado por F. W. H. Myers numa reunião geral da Society for Psychical Research, em Londres, tendo sido impresso em sua Ata (Proceedings) no mês de junho seguinte. A “Comunicação Preliminar” também foi totalmente resumida e examinada por Michell Clarke em Brain (1894, 125). A reação mais surpreendente e inexplicável, porém, foi a publicação, em fevereiro e março de 1893, de uma tradução completa da “Comunicação Preliminar” para o espanhol, na Gazeta Médica de Granada (11, 105-11 e 129-35).

 

A tarefa seguinte dos autores foi a preparação do material dos casos clínicos e, já em 7 de fevereiro de 1894, Freud referiu-se ao livro como“semi-acabado: o que resta a fazer é apenas uma pequena parte dos casos clínicos e dois capítulos gerais”. Num trecho não publicado da carta de 21 de maio, ele menciona que está justamente escrevendo o último caso clínico, e em 22 de junho (1950a, Carta 19) apresenta uma lista do que o “livro com Breuer” irá conter: “cinco casos clínicos, um ensaio da autoria dele, com o qual não tenho absolutamente nada a ver, sobre as teorias da histeria (resumo e crítica), e um meu sobre terapia, que ainda não comecei”. Depois disso, é óbvio que houve uma paralisação, pois só em 4 de março de 1895 (ibid., Carta 22) é que ele escreve dizendo estar “trabalhando apressadamente no ensaio sobre a terapia da histeria”, concluído em 13 de março (carta não publicada). Em outra carta não publicada, de 10 de abril, Freud envia a Fliess a segunda metade das provas tipográficas do livro, e no dia seguinte lhe diz que este sairá em três semanas.

Os Estudos sobre a Histeria parecem ter sido publicados, como se esperava, em maio de 1895, embora a data exata não seja indicada. O livro foi recebido desfavoravelmente nos círculos médicos alemães; recebeu, por exemplo, forte crítica de Adolf von Strümpell, o conhecido neurologista (Deutsch. Z. Nervenheilk., 1896, 159). Por outro lado, um escritor não-médico, Alfred von Berger, mais tarde diretor do Burgtheater de Viena, sobre ele se expressou com apreço no Neue Freie Presse (2 de fevereiro de 1896). Na Inglaterra, o livro foi alvo de longa e favorável nota de Mitchell Clarke em Brain (1896, 401) e mais uma vez Myers mostrou seu interesse pela obra numa palestra de considerável extensão, originariamente proferida em março de 1897, que acabou sendo incluída em seu Human Personality (1903).

Decorreram mais de dez anos antes que houvesse um pedido de segunda edição do livro, e já nessa época os caminhos de seus dois autores se haviam separado. Em maio de 1906 Breuer escreveu a Freud concordando com uma reimpressão, mas houve certa discussão para determinar se seria desejável um novo prefácio em conjunto. Seguiram-se outras delongas e, no final, como se verá mais adiante, foram escritos dois prefácios separados. Estes trazem a data de julho de 1908, embora a segunda edição só fosse realmente publicada em 1909. O texto continuou inalterado nessa e nas edições posteriores do livro. Mas, em 1924, Freud escreveu algumas notas de rodapé adicionais para o volume de suas obras completas que continha sua parte dos Estudos (publicado em 1925) e fez uma ou duas pequenas modificações no texto.

 

(2)

 A RELAÇÃO DOS ESTUDOS COM A PSICANÁLISE

 

Os Estudos sobre a Histeria costumam ser considerados como o ponto de partida da psicanálise. Vale a pena considerar brevemente se essa afirmação é verdadeira, e em que sentido. Para os objetivos dessa discussão, a questão das parcelas do trabalho atribuíveis aos dois autores será posta de lado, para consideração posterior, e o livro será tratado como um todo. A investigação sobre a relação dos Estudos com o desenvolvimento subseqüente da psicanálise pode ser dividida, por conveniência, em duas partes, embora tal separação seja necessariamente artificial. Até que ponto e de que maneira os procedimentos técnicos descritos nos Estudos e as descobertas clínicas a que conduziram prepararam o terreno para a prática da psicanálise? Em que medida os pontos de vista teóricos aqui propostos foram aceitos nas doutrinas posteriores de Freud?

Raras vezes se aprecia suficientemente o fato de que a mais importante das realizações de Freud talvez tenha sido sua invenção do primeiro instrumento para o exame científico da mente humana. Um dos principais atrativos do presente volume é que ele nos permite rastrear os primeiros passos do desenvolvimento desse instrumento. O que ele nos relata não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos; é a história da descoberta de uma série de obstáculos a serem superados. A própria paciente de Breuer, Anna O., demonstrou e superou o primeiro desses obstáculos — a amnésia característica dos pacientes histéricos. Quando a existência dessa amnésia foi trazida à luz, seguiu-se de imediato a compreensão de que a mente manifesta do paciente não é a mente em sua totalidade, havendo por trás uma mente inconsciente (ver em [1]). Tornou-se assim patente, desde o início, que o problema não era meramente a investigação dos processos mentais conscientes, para a qual bastariam os métodos corriqueiros de indagação empregados na vida cotidiana. Se havia também processos mentais inconscientes, era claramente necessário algum instrumento especial. O instrumento óbvio para esse fim era a sugestão hipnótica — a sugestão hipnótica utilizada não para finalidades diretamente terapêuticas, mas para persuadir o paciente a produzir material proveniente da região inconsciente da mente. Com Anna O. apenas um ligeiro uso desse instrumento se afigurou necessário. Ela produzia torrentes de material vindo de seu “inconsciente”, e tudo o que Breuer tinha de fazer era ficar sentado e ouvi-las sem interrompê-la. Mas isso não era tão fácil como parece, e o caso clínico da Sra. Emmy revela em muitos pontos como foi difícil para Freud adaptar-se a esse novo uso da sugestão hipnótica e ouvir tudo o que a paciente tinha a dizer, sem qualquer tentativa de interferir ou de levá-la a encurtar o relato (por exemplo em [1] e [2]). Nem todos os pacientes histéricos além disso eram tão dóceis quanto Anna O.; a hipnose profunda em que ela caía, aparentemente por sua própria vontade, não era tão prontamente alcançada com qualquer um. E aqui surgia outro obstáculo: conta-nos Freud que ele estava longe de ser adepto do hipnotismo. Neste livro (por exemplo em [1]), ele nos fornece vários relatos de como contornava essa dificuldade, de como pouco a pouco foi abandonando suas tentativas de provocar a hipnose e se contentava em levar os pacientes a um estado de “concentração”, com o uso ocasional da pressão na testa. Mas foi o abandono do hipnotismo que ampliou ainda mais sua compreensão dos processos mentais. Esse abandono revelou a presença de mais um obstáculo — a “resistência” dos pacientes ao tratamento (ver em [1] e [2]), sua relutância em cooperarem na própria cura. Como se deveria lidar com essa relutância? Deveria ser suprimida com gritos ou afastada pela sugestão? Ou deveria, como outros fenômenos mentais, ser simplesmente investigada? A opção de Freud por esse segundo caminho levou-o diretamente ao mundo desconhecido que iria passar a vida inteira explorando.

Nos anos que se seguiram aos Estudos, Freud abandonou cada vez mais a técnica da sugestão deliberada | ver em [1]| e passou cada vez mais a confiar no fluxo de “associações livres” do paciente. Estava aberto o caminho para a análise dos sonhos. Essa análise permitiu-lhe, em primeiro lugar, obter uma compreensão do funcionamento do “processo primário” na mente e das formas pelas quais ele influenciava os produtos de nossos pensamentos mais acessíveis, e assim Freud adquiriu um novo recurso técnico — o da “interpretação”. Mas a análise dos sonhos possibilitou, em segundo lugar, sua própria auto-análise e suas conseqüentes descobertas da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Todas essas questões, porém, salvo por alguns leves indícios, ainda estavam por surgir. No entanto, nas últimas páginas deste volume, Freud já se havia defrontado com outro obstáculo no caminho do pesquisador — a “transferência” (ver em [1]). Já tivera um vislumbre de sua impressionante natureza, e talvez já tivesse começando a reconhecer que ela iria revelar-se não só um obstáculo como também mais um instrumento fundamental da técnica psicanalítica.

À primeira vista, a principal posição teórica adotada pelos autores da “Comunicação Preliminar” parece simples. Eles sustentam que, no curso normal das coisas, se uma experiência for acompanhada de uma grande dose de “afeto”, esse afeto é “descarregado” numa variedade de atos reflexos conscientes, ou então vai-se desgastando gradativamente pela associação com outros materiais mentais conscientes. No caso dos pacientes histéricos, por outro lado (por motivos que logo mencionaremos), nenhuma dessas coisas acontece. O afeto permanece num estado “estrangulado”, e a lembrança da experiência a que está ligado é isolada da consciência. A partir daí, a lembrança afetiva se manifesta em sintomas histéricos, que podem ser considerados como “símbolos mnêmicos” — vale dizer, como símbolos da lembrança suprimida (ver em [1]-[2]). Sugerem-se duas razões principais para explicar a ocorrência desse resultado patológico. Uma delas é que a experiência original ocorreu enquanto o indivíduo se encontrava num particular estado de dissociação mental, descrito como “hipnóide”; a outra é que o “ego” do indivíduo considerou essa experiência como sendo “incompatível” com ele próprio e, portanto, ela teve de ser “rechaçada”. Em ambos os casos, a eficácia terapêutica do método “catártico” é explicada com base nos mesmos fundamentos: se a experiência original, juntamente com seu afeto, puder ser introduzida na consciência, o afeto é por si mesmo descarregado ou “ab-reagido”, a força que até então manteve o sintoma deixa de atuar, e o próprio sintoma desaparece.

Tudo isso parece muito claro, mas uma pequena reflexão mostra que restam ainda muitas coisas por explicar. Por que um afeto precisa ser “descarregado”? E por que são tão terríveis as conseqüências de ele não ser descarregado? Esses problemas subjacentes não são considerados de modo algum na “Comunicação Preliminar”, embora a eles se fizesse uma breve alusão em dois dos rascunhos postumamente publicados (1941a e 1940d) e já existisse uma hipótese para explicá-los. Curiosamente, na verdade essa hipótese foi formulada por Freud em sua conferência de 11 de janeiro de 1893 (veja em [1]), apesar de ter sido omitida na própria “Comunicação Preliminar”. Ele aludiu de novo a essa hipótese nos dois últimos parágrafos do seu primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), onde declara especificamente que ela fundamentava a teoria da ab-reação na “Comunicação Preliminar” de um ano antes. Mas essa hipótese básica foi formalmente enunciada e designada pela primeira vez em 1895, na segunda parte da contribuição de Breuer ao presente volume (ver em [1]). É curioso que esta, a mais fundamental das teorias de Freud, tenha sido integralmente examinada, pela primeira vez, por Breuer (se bem que, de fato, atribuída por ele a Freud), e que o próprio Freud, embora retornasse vez por outra a seu tema (como nas primeiras páginas de seu artigo sobre “As Pulsões e suas Vicissitudes”, 1915c), não a mencionasse explicitamente até escrever Além do Princípio do Prazer (1920g). Freud, como sabemos agora, referiu-se a essa hipótese pelo nome numa comunicação de data incerta a Fliess, possivelmente 1894 (Rascunho D, 1950a), e examinou-a na íntegra, embora sob outro nome (veja adiante, ver em [1]), no “Projeto para uma Psicologia Científica”, que escreveu alguns meses após a publicação dos Estudos. Mas só cinqüenta e cinco anos depois (1950a) é que o Rascunho D e o “Projeto” foram publicados.

O “princípio da constância” (pois esta foi a denominação dada à hipótese) pode ser definido nos termos empregados pelo próprio Freud em Além do Princípio do Prazer: “O aparelho mental esforça-se por manter a quantidade de excitação nele presente em um nível tão baixo quanto possível, ou pelo menos por mantê-la constante” (Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1], 1ª edição, Imago). Breuer o enuncia mais adiante, neste livro (ver em [1]), em termos muito semelhantes, mas com uma inclinação neurológica, como “uma tendência a manter constante a excitação intracerebral”. Em sua discussão em [1] e segs., argumenta ele que os afetos devem sua importância na etiologia da histeria ao fato de serem acompanhados pela produção de grandes quantidades de excitação, e de estas, por sua vez, exigirem uma descarga, de acordo com o princípio da constância. De modo semelhante, também as experiências traumáticas devem sua força patogênica ao fato de produzirem quantidades de excitação grandes demais para serem tratadas da maneira normal. Assim, a posição teórica essencial subjacente aos Estudos é que a necessidade clínica da ab-reação do afeto e os resultados patogênicos que surgem quando ele fica estrangulado são explicados pela tendência muito mais geral (expressa no princípio da constância) a manter constante a quantidade de excitação.

Tem-se pensado com freqüência que os autores dos Estudos atribuíam os fenômenos da histeria apenas aos traumas e às lembranças inextirpáveis deles, e que só mais tarde é que Freud, depois de deslocar a ênfase dos traumas infantis para as fantasias infantis, chegou a sua momentosa concepção “dinâmica” dos processos da mente. Ver-se-á, contudo, pelo que acaba de ser dito, que uma hipótese dinâmica sob a forma do princípio da constância já estava subjacente à teoria do trauma e da ab-reação. E quando chegou o momento de ampliar os horizontes e atribuir uma importância muito maior às pulsões, em contraste com a experiência, não houve necessidade de modificar a hipótese básica. Na realidade, Breuer já ressalta o papel desempenhado pelas “principais necessidades e pulsões fisiológicas do organismo” na gênese dos aumentos de excitação que exigem descarga (ver em [1]), e frisa a importância da “pulsão sexual” como “a fonte mais poderosa dos acúmulos sistemáticos de excitação (e, conseqüentemente, de neuroses)” (ver em [1]). Além disso, toda a noção de conflito e do recalcamento das idéias incompatíveis é explicitamente baseada no ocorrência dos aumentos desagradáveis de excitação. Isso conduz à consideração adicional de que, como salienta Freud em Além do Princípio do Prazer (Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. XVIII, ver em [1]), o próprio “princípio do prazer” está estreitamente vinculado ao princípio da constância. Ele chega mesmo a ir mais adiante e declarar (ibid., 83) que o princípio do prazer “é uma tendência que atua a serviço de uma função cuja tarefa é libertar inteiramente da excitação o aparelho mental, ou manter constância o nível de excitação dentro dele, ou mantê-lo tão baixo quanto possível”. O caráter “conservador” que Freud atribui às pulsões em seus trabalhos posteriores, assim como a “compulsão à repetição”, também são vistos no mesmo trecho como manifestações do princípio da constância; e fica claro que a hipótese em que se basearam esses primeiros Estudos sobre a Histeria ainda continuava a ser considerada fundamental por Freud em suas últimas especulações.

 

(3)

AS DIVERGÊNCIAS ENTRE OS DOIS AUTORES

 

Não estamos interessados aqui nas relações pessoais entre Breuer e Freud, descritas com detalhes no primeiro volume da biografia escrita por Ernest Jones, mas é interessante examinarmos brevemente suas divergências científicas. A existência de tais divergências foi abertamente mencionada no prefácio à primeira edição e muitas vezes falou-se nelas com exagero nas publicações posteriores de Freud. Mas no próprio livro, por estranho que pareça, elas estão longe de ganhar preeminência e, muito embora a “Comunicação Preliminar” seja a única parte do livro de autoria explicitamente conjunta, não é fácil determinar com certeza de quem é a responsabilidade pela origem dos vários elementos componentes do trabalho como um todo.

Sem dúvida, podemos com segurança atribuir a Freud os desenvolvimentos técnicos posteriores, bem como os conceitos teóricos vitais de resistência, defesa e recalcamento que decorreram deles. É fácil ver pelo relato apresentado em [1] como esses conceitos decorreram da substituição da hipnose pela técnica da “pressão”. O próprio Freud, em sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), declara que “a teoria do recalcamento é a pedra angular em que repousa toda a estrutura da psicanálise”, e dá a mesma explicação aqui apresentada sobre a maneira como se chegou a ela. Afirma também sua crença de ter chegado de forma independente a essa teoria, e a história da descoberta confirma amplamente essa crença. No mesmo trecho, Freud observa que uma sugestão da idéia do recalcamento encontra-se em Schopenhauer (1844), cujas obras, contudo, ele só veio a ler em idade avançada; e há pouco tempo se ressaltou que a palavra “Verdrängung” (“recalcamento”) ocorre nos escritos do psicólogo Herbart (1824), do início do século XIX, cujas idéias tiveram grande influência sobre numerosas pessoas que faziam parte do círculo de Freud, em particular seu professor imediato de psiquiatria, Meynert. Mas nenhuma dessas sugestões diminui de modo significativo a originalidade da teoria de Freud, com sua base empírica, que encontrou sua primeira expressão na “Comunicação Preliminar” (ver em [1]-[2]).

Em contraposição a isso, não há nenhuma dúvida de que Breuer deu origem à noção dos “estados hipnóides”, ponto a que voltaremos dentro em breve, e parece possível que tenha sido responsável pelos termos “catarse” e “ab-reação”.

Todavia, muitas das conclusões teóricas dos Estudos devem ter sido produto de discussões entre os dois autores durante seus anos de colaboração, e o próprio Breuer comenta (ver em [1]-[2]) sobre a dificuldade de determinar a prioridade em tais casos. Afora a influência de Charcot, sobre a qual Freud jamais deixou de insistir, deve-se também recordar que tanto Breuer como Freud eram basicamente fiéis à escola de Helmholz, da qual um professor deles, Ernst Brücke, foi membro preeminente. Grande parte da teoria subjacente aos Estudos sobre a Histeria deriva da doutrina daquela escola, teoria que diz serem todos os fenômenos naturais, em última análise, explicáveis em função de forças físicas e químicas.

 

Já vimos (em [1]) que, embora Breuer fosse o primeiro a mencionar o “princípio da constância” pelo nome, ele atribuiu essa hipótese a Freud. De modo semelhante, ele ligou o nome de Freud ao termo “conversão”, mas (como será explicado mais adiante, em [1]), o próprio Freud declarou que isso se aplicava apenas à palavra e que se chegou em conjunto ao conceito.

 

Por outro lado, há um grande número de conceitos muito importantes que parecem ser corretamente atribuíveis a Breuer: a idéia de a alucinação ser uma “retrogressão” das imagens mentais para a percepção (ver em [1]), a tese de que as funções da percepção e da memória não podem ser realizadas pelo mesmo aparelho (ver em [1]), e, finalmente, causando grande surpresa, a distinção entre a energia psíquica ligada (tônica) e a não-ligada (móvel) e a distinção correlata entre os processos psíquicos primário e secundário (ver em [1]).

O emprego do termo “Besetzung” (“catexia”), que aparece pela primeira vez em [1]-[2] com o sentido que iria tornar-se tão familiar na teoria psicanalítica, provavelmente deve ser atribuído a Freud. Como é natural, a idéia de todo o aparelho mental, ou parte dele, transportar uma carga de energia é pressuposta pelo princípio da constância. E embora o termo real que iria transformar-se no padrão fosse empregado pela primeira vez neste volume, a idéia fora antes expressa por Freud sob outras formas. Assim, encontramo-lo utilizando expressões tais como “mit Energie ausgestattet” (“suprido de energia”) (1895b), “mit einer Erregungssumme behaftet (“carregado de uma soma de excitação”) (1894a), “munie d’une valeur affective” (“provido de uma cota de afeto”) (1893c), “Verschiebungen von Erregungs summen” (“deslocamentos de somas de excitação”) (1941a |1892|) e, já no prefácio a sua primeira tradução de Bernheim (1888-9) “Verschiebungen von Erregbarkeit im Nervensystem” (deslocamentos de excitabilidade no sistema nervoso”).

Esta última citação, porém, constitui um lembrete de algo de grande importância que pode muito facilmente ser desprezado. Não há dúvida alguma de que, na época da publicação dos Estudos, Freud considerava o termo “catexia” como puramente fisiológico. Isso é comprovado pela definição do termo dada por ele na Parte I, Seção 2, de seu “Projeto para uma Psicologia Científica”, com o qual sua mente já estava ocupada (como se verifica nas cartas a Fliess) e que foi escrito apenas alguns meses depois. Ali, após fornecer uma explicação sobre uma entidade neurológica recém-descoberta, o “neurônio”, prossegue ele: “Se combinarmos esta descrição dos neurônios com uma abordagem nos moldes da teoria da quantidade, chegaremos à idéia de uma neurônio ‘catexizado’, cheio de certa quantidade, embora em outras ocasiões possa estar vazio.” A propensão neurológica das teorias de Freud nesse período é indicada ainda pela forma como o princípio da constância é enunciado no mesmo trecho do “Projeto”. Recebe a designação de “o princípio da inércia neuronal” e é definido como indicativo de “que os neurônios tendem a desembaraçar-se da quantidade”. Revela-se assim um notável paradoxo. Breuer, como veremos adiante (ver em [1]), declara sua intenção de tratar o assunto da histeria em moldes puramente psicológicos: “No que se segue, pouca menção será feita ao cérebro e absolutamente nenhuma às moléculas. Os processos psíquicos serão tratados na linguagem da psicologia.” Na verdade, porém, seu capítulo teórico versa basicamente sobre as “excitações intracerebrais” e sobre paralelos entre o sistema nervoso e as instalações elétricas. Por outro lado, Freud dedicava todas as suas energias a explicar os fenômenos mentais em termos fisiológicos e químicos. Não obstante, como ele próprio confessa com pesar (ver em [1]), seus casos clínicos têm a forma de contos e suas análises são psicológicas.

A verdade é que, em 1895, Freud encontrava-se a meio caminho no processo de passar das explicações fisiológicas dos estados psicopatológicos para as explicações psicológicas. Por um lado, propunha o que era, em linhas gerais, uma explicação química das neuroses “atuais” — neurastenia e neurose de angústia — (em seus dois artigos sobre neurose de angústia, 1895b e 1895f), e, por outro, propunha uma explicação essencialmente psicológica — em termos de “defesa” e “recalcamento” — para a histeria e as obsessões (em seus dois artigos sobre “As Neuropsicoses de Defesa”, 1894a e 1896b). Sua formação anterior e sua carreira como neurologista levavam-no a resistir à aceitação das explicações psicológicas como definitivas; e ele estava empenhado em elaborar uma estrutura complexa de hipóteses destinadas a possibilitar a descrição dos eventos mentais em termos puramente neurológicos. Essa tentativa culminou no “Projeto” e foi abandonada não muito depois. Até o fim da vida, porém, Freud continuou adepto da etiologia química das neuroses “atuais” e a acreditar que se acabaria encontrando uma base física para todos os fenômenos mentais. Entrementes, ele chegou pouco a pouco ao ponto de vista expresso por Breuer de que os processos psíquicos só podem ser tratados na linguagem da psicologia.  Foi só em 1905 (em seu livro sobre o chiste, Capítulo V) que ele pela primeira vez repudiou de forma explícita qualquer intenção de empregar o termo “catexia” em algum sentido que não fosse o psicológico e abandonou todas as tentativas de relacionar os tratos nervosos ou os neurônios com as vias de associação mental.

 

Quais eram, porém, as divergências científicas essenciais entre Breuer e Freud? Em seu Estudo Autobiográfico (1925d) Freud afirma que a primeira delas relacionava-se com a etiologia da histeria e poderia ser descrita como “os estados hipnóides versus as neuroses de defesa”. Mais uma vez, no entanto, aqui mesmo neste volume, o problema é menos nítido. Na “Comunicação Preliminar” elaborada em conjunto, ambas as etiologias são aceitas (ver em [1]). Breuer, em seu capítulo teórico, evidentemente dá maior ênfase aos estados hipnóides (ver em [1]), mas também acentua a importância da “defesa” (ver em [1] e [2]), embora de modo pouco entusiástico. Freud parece aceitar a noção dos “estados hipnóides” no caso clínico de “Katharina” (ver em [1]) e, de modo menos definitivo, no da Sra. Elisabeth (ver em [1]). É só no capítulo final que seu ceticismo começa a tornar-se evidente (ver em [1]). Num artigo sobre “A Etiologia da Histeria”, publicado no ano seguinte (1896c), esse ceticismo é expresso de forma ainda mais franca e, numa nota de rodapé ao caso de “Dora” (1905e), Freud declara que a expressão “estados hipnóides” é “desnecessária e confusa” e que a hipótese “decorreu inteiramente da iniciativa de Breuer” (Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. VII, pág. 25n).

Mas a principal diferença de opinião entre os dois autores, na qual Freud posteriormente insistiu, dizia respeito ao papel desempenhado pelos impulsos sexuais na causação da histeria. Também aqui, contudo, verificaremos que a divergência expressa aparece de uma forma menos clara do que seria de se esperar. A crença de Freud na origem sexual da histeria pode ser inferida com bastante clareza a partir da discussão em seu capítulo sobre a psicoterapia (ver em. [1]), mas em nenhum ponto ele chega a afirmar, como faria mais tarde, que uma etiologia sexual se mostra invariavelmente presente nos casos de histeria. Por outro lado, Breuer fala em vários pontos, e usando os termos mais incisivos, sobre a importância do papel desempenhado pela sexualidade nas neuroses, e o faz em especial no longo trecho em [1] e segs. Diz ele, por exemplo (como já se observou, em [1]), que “a pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa dos aumentos persistentes de excitação (e, conseqüentemente, das neuroses)” (ver em [1]), e declara (ver em [1]) que “a grande maioria das neuroses graves nas mulheres tem sua origem no leito conjugal”.

Parece que, para encontrarmos uma explicação satisfatória para a dissolução dessa parceria científica, deveríamos olhar o que está atrás da palavra impressa. As cartas de Freud a Fliess mostram Breuer como um homem cheio de dúvidas e reservas, sempre inseguro em suas conclusões. Há um exemplo extremo disso numa carta de 8 de novembro de 1895 (1950a, Carta 35), cerca de seis meses após a publicação dos Estudos: “Não faz muito tempo, no Colégio de Medicina, Breuer fez um longo discurso falando de mim, no qual anunciou sua conversão à crença na etiologia sexual |das neuroses|. Quando o chamei de lado para agradecer-lhe, ele estragou meu prazer, dizendo: ‘Ainda assim não creio nisso.’ Você consegue entender isso? Eu, não.” Algo dessa natureza pode ser lido nas entrelinhas das contribuições de Breuer aos Estudos, onde temos o quadro de um homem meio temeroso de suas próprias descobertas notáveis. Era inevitável que ele ficasse ainda mais desconcertado pelo pressentimento das descobertas ainda mais inquietantes que estavam por vir; e era inevitável que Freud, por sua vez, se sentisse prejudicado e irritado com as incômodas hesitações de seu companheiro de trabalho.

Seria enfadonho enumerar os muitos trechos, nas obras posteriores de Freud, nos quais ele se refere aos Estudos sobre a Histeria e a Breuer; porém, algumas citações ilustrarão a variação da ênfase em sua atitude para com eles.

Nos numerosos relatos abreviados de seus métodos terapêuticos e das teorias psicológicas que publicou durante os anos logo após o lançamento dos Estudos, Freud se esforçou por ressaltar as diferenças entre a “psicanálise” e o método catártico — as inovações técnicas, a extensão de seu processo quanto às outras neuroses que não a histeria, o estabelecimento da motivação da “defesa”, a insistência numa etiologia sexual e, como já vimos, a rejeição final dos “estados hipnóides”. Ao chegarmos à primeira série das obras principais de Freud — os volumes sobre sonhos (1900a), parapraxias (1901b), chistes (1905c) e sexualidade (1905d) — naturalmente há pouco ou nenhum material retrospectivo; e é somente nas cinco conferências proferidas na Universidade de Clark (1910a) que vamos encontrar um levantamento histórico extenso. Nessas conferências, Freud parecia ansioso por estabelecer a continuidade entre sua obra e a de Breuer. Toda a primeira conferência e grande parte da segunda são dedicadas a um resumo dos Estudos, e a impressão da era a de que não Freud, e sim Breuer era o verdadeiro fundador da psicanálise.

O longo levantamento retrospectivo seguinte, na “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), teve um tom muito diferente. Todo o artigo, naturalmente, teve uma intenção polêmica, e não é de surpreender que, ao esboçar a história inicial da psicanálise, Freud frisasse mais suas divergências com Breuer do que sua dívida para com ele, e que revogasse explicitamente sua visão de Breuer como o fundador da psicanálise. Também nesse artigo Freud discorreu largamente sobre a incapacidade de Breuer para enfrentar a transferência sexual e revelou o “lastimável evento” que encerrou a análise de Anna O (ver em [1]).

A seguir veio o que parece ser quase uma amende— já mencionada na ver em [1]: a inesperada atribuição a Breuer da distinção entre a energia psíquica ligada e a não-ligada e entre os processos primário e secundário. Não tinha havido nenhuma sugestão dessa atribuição quando essas hipóteses foram originalmente introduzidas por Freud (em A Interpretação dos Sonhos); ela foi feita pela primeira vez numa nota de rodapé à Seção V do artigo metapsicológico sobre “O Inconsciente” (1915e) e repetida em Além do Princípio do Prazer (1920g); (Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1] e [2]). Não muito tempo depois houve algumas frases de louvor num artigo preparado por Freud para o Handwörterbuch de Marcuse (1923a; Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1]): “Numa seção teórica dos Estudos, Breuer propôs algumas idéias especulativas sobre os processos de excitação da mente. Essas idéias determinaram a direção das futuras linhas de pensamento…” Mais ou menos na mesma orientação, Freud escreveu, um pouco depois, numa contribuição para uma publicação norte-americana (1924f): “O método catártico foi o precursor imediato da psicanálise e, apesar de toda amplitude da experiência e de todas as modificações de teoria, ainda se acha contido nela como seu núcleo.”

O longo levantamento histórico de Freud que se seguiu, Um Estudo Autobiográfico (1925d), pareceu mais uma vez afastar-se da obra conjunta: “Se o relato que fiz até agora”, escreveu, “levou o leitor a esperar que os Estudos sobre a Histeria, em todos os pontos essenciais de seu conteúdo, tenham sido um produto da mente de Breuer, isso é precisamente o que eu mesmo sempre sustentei… No tocante à teoria formulada no livro, fui parcialmente responsável, mas numa medida que hoje não é mais possível determinar. Aquela teoria, de qualquer modo, era despretensiosa e mal foi além da descrição direta das observações.” E acrescentou que “teria sido difícil adivinhar, pelos Estudos sobre a Histeria, a importância que tem a sexualidade na etiologia das neuroses”, passando mais uma vez a descrever a relutância de Breuer em reconhecer esse fator.

Logo depois disso Breuer faleceu, e talvez seja apropriado encerrar esta introdução à obra conjunta com uma citação do necrológio feito por Freud sobre seu colaborador (1925g). Depois de comentar a relutância de Breuer em publicar os Estudos e de declarar que o principal mérito dele próprio em relação a essa obra fora o de haver persuadido Breuer a concordar com seu lançamento, prosseguiu: “Na época em que ele aceitou minha influência e estava elaborando os Estudos para publicação, seu julgamento do significado da obra pareceu confirmar-se. ‘Creio’, disse-me ele, ‘que esta é a coisa mais importante que nós dois temos a dar ao mundo’. Além do caso clínico de sua primeira paciente, Breuer redigiu um artigo teórico para os Estudos. Esse texto está muito longe de ser desatualizado; pelo contrário, oculta pensamentos e sugestões que não foram suficientemente levados em conta. Qualquer um que se aprofunde nesse ensaio especulativo formará uma verdadeira impressão da estatura mental desse homem cujos interesses científicos, infelizmente, só foram orientados na direção de nossa psicopatologia por um curto episódio de sua longa vida.”

 

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

 

Em 1893 publicamos a “Comunicação Preliminar” sobre um novo método de examinar e tratar os fenômenos histéricos. A ela acrescentamos, de forma tão concisa quanto possível, as conclusões teóricas a que havíamos chegado. Estamos aqui reimprimindo essa “Comunicação Preliminar” para servir como a tese que temos por finalidade ilustrar e provar.

Anexamos a ela uma série de casos clínicos cuja seleção, infelizmente, não pôde ser determinada em bases puramente científicas. Nossa experiência provém da clínica particular numa classe social culta e letrada, e o assunto com que lidamos muitas vezes aborda a vida e a história mais íntimas de nossos pacientes. Constituiria grave quebra de confiança publicar material dessa espécie, com o risco de os pacientes serem identificados e seus conhecidos ficarem a par de fatos confiados apenas ao médico. Foi-nos portanto impossível fazer uso de algumas das nossas observações mais instrutivas e convincentes. Isso naturalmente se aplica de forma especial a todos os casos em que as relações sexuais e maritais desempenham um importante papel etiológico. Assim, ocorre que só conseguimos apresentar provas muito incompletas em favor de nosso ponto de vista de que a sexualidade parece desempenhar um papel fundamental na patogênese da histeria, como fonte de traumas psíquicos e como motivação para a “defesa” — isto é, para que as idéias sejam recalcadas da consciência. Foram precisamente as observações de natureza marcadamente sexual que nos vimos obrigados a não publicar.

Os casos clínicos são seguidos de diversas considerações teóricas e, num capítulo final sobre terapia, propõe-se a técnica do “método catártico” tal como se desenvolveu nas mãos do neurologista.

Se em algumas ocasiões se expressam opiniões divergentes e até mesmo contraditórias, isso não deve ser considerado como prova de qualquer vacilação em nossos pontos de vista. Decorre das divergências naturais e justificáveis entre as opiniões dos dois observadores que estão de acordo quanto aos fatos e à leitura básica dos mesmos, mas que nem sempre concordam invariavelmente em suas interpretações e conjeturas.

 

J. BREUER, S. FREUD

Abril de 1895

 

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

 

O interesse que, em grau sempre crescente, vem se voltando para a psicanálise parece agora estar-se estendendo a estes Estudos sobre a Histeria. O editor deseja publicar nova edição do livro, que no momento se acha esgotado. Aparece ele agora numa reimpressão sem quaisquer alterações, embora as opiniões e os métodos apresentados na primeira edição tenham desde então passado por desenvolvimentos de longo alcance e profundidade. No que me diz respeito, pessoalmente, desde aquela época não lidei ativamente com o assunto; não tive nenhuma participação em seu importante desenvolvimento e nada poderia acrescentar de novo ao que foi escrito em 1895. Assim, nada pude fazer além de expressar o desejo de que minhas duas contribuições ao volume fossem reimpressas sem alteração.

 

BREUER

 

Também quanto a minha participação no livro, a única decisão possível é que o texto da primeira edição seja reimpresso sem alteração. Os desenvolvimentos e mudanças ocorridos em meus pontos de vista no decorrer de treze anos de trabalho foram extensos demais para que seja possível vinculá-los a minha anterior exposição sem destruir inteiramente seu caráter essencial. Tampouco tenho qualquer motivo para desejar eliminar esta prova de meus conceitos iniciais. Ainda hoje não os considero como erros, mas como valiosas primeiras aproximações de um conhecimento que só poderia ser plenamente adquirido após longos e continuados esforços. O leitor atento será capaz de descobrir neste livro os germes de tudo aquilo que desde então foi acrescentado à teoria da catarse; por exemplo, o papel desempenhado pelos fatores psicossexuais e pelo infantilismo, e a importância dos sonhos e do simbolismo inconsciente. E não posso dar melhor conselho a qualquer interessado no desenvolvimento da catarse até chegar à psicanálise do que começar pelos Estudos sobre a Histeria e, desse modo, seguir o caminho que eu próprio trilhei.

 

FREUD

VIENA, julho de 1908

 

I - SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS:

COMUNICAÇÃO PRELIMINAR (1893)

(BREUER E FREUD)

 

I

Uma observação casual levou-nos, durante vários anos, a pesquisar uma grande variedade de diferentes formas e sintomas de histeria, com vistas a descobrir sua causa precipitante — o fato que teria provocado a primeira ocorrência, muitos anos antes com freqüência, do fenômeno em questão. Na grande maioria dos casos não é possível estabelecer o ponto de origem através da simples interrogação do paciente, por mais minuciosamente que seja levada a efeito. Isso se verifica, em parte, porque o que está em questão é, muitas vezes, alguma experiência que o paciente não gosta de discutir; mas ocorre principalmente porque ele é de fato incapaz de recordá-la e, muitas vezes, não tem nenhuma suspeita da conexão causal entre o evento desencadeador e o fenômeno patológico. Via de regra, é necessário hipnotizar o paciente e provocar, sob hipnose, suas lembranças da época em que o sintoma surgiu pela primeira vez; feito isso, torna-se possível demonstrar a conexão causal da forma mais clara e convincente.

Esse método de exame tem produzido, num grande número de casos, resultados que se afiguram valiosos tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático.

Eles são teoricamente valiosos porque nos ensinaram que os fatos externos determinam a patologia da histeria numa medida muito maior do que se sabe e reconhece. Naturalmente, é óbvio que, nos casos de histeria “traumática”, o que provoca os sintomas é o acidente. A ligação causal evidencia-se igualmente nos ataques histéricos quando é possível deduzir dos enunciados do paciente que, em cada ataque, ele está alucinando o mesmo evento que provocou o primeiro deles. A situação é mais obscura no caso de outros fenômenos.

Nossas experiências, porém, têm demonstrado que os mais variados sintomas, que são ostensivamente espontâneos e, como se poderia dizer, produtos idiopáticos da histeria, estão tão estritamente relacionados com o trauma desencadeador quanto os fenômenos a que acabamos de aludir e que exibem a conexão causal de maneira bem clara. Os sintomas cujo rastro pudemos seguir até os referidos fatores desencadeadores deste tipo abrangem nevralgias e anestesias de naturezas muito diversas, muitas das quais haviam persistido durante anos, contraturas e paralisias, ataques histéricos e convulsões epileptóides, que os observadores consideravam como epilepsia verdadeira, petit mal e perturbações da ordem dos tiques, vômitos crônicos e anorexia, levados até o extremo de rejeição de todos os alimentos, várias formas de perturbação da visão, alucinações visuais constantemente recorrentes, etc. A desproporção entre os muitos anos de duração do sintoma histérico e a ocorrência isolada que o provocou é o que estamos invariavelmente habituados a encontrar nas neuroses traumáticas. Com grande freqüência, é algum fato da infância que estabelece um sintoma mais ou menos grave, que persiste durante os anos subseqüentes.

Muitas vezes, a ligação é tão nítida que se torna bem evidente como foi que o fato desencadeante produziu um dado fenômeno específico, de preferência a qualquer outro. Nesse caso, o sintoma foi de forma bem óbvia determinado pela causa desencadeadora. Podemos tomar como exemplo muito comum uma emoção penosa surgida durante uma refeição, mas suprimida na época, e que produz então náuseas e vômitos que persistem por meses sob a forma de vômitos histéricos. Uma jovem que velava o leito de um enfermo, atormentada por uma grande angústia, caiu num estado crepuscular e teve uma alucinação aterrorizante, enquanto seu braço direito, que pendia sobre o dorso da cadeira, ficou dormente; disso proveio uma paresia do mesmo braço, acompanhada de contratura e anestesia. Ela tentou rezar, mas não conseguiu encontrar as palavras; por fim, conseguiu repetir uma oração para crianças em inglês. Posteriormente, ao surgir uma histeria grave e altamente complicada, ela só conseguia falar, escrever e compreender o inglês, enquanto sua língua materna permaneceu ininteligível para ela por dezoito meses. — A mãe de uma criança muito doente, que finalmente adormecera, concentrou toda a sua força de vontade em manter-se imóvel a fim de não despertá-la. Precisamente por causa da sua intenção, produziu um ruído de “estalo” com a língua. (Um exemplo de “contravontade histérica”.) Esse ruído se repetiu numa ocasião subseqüente em que ela desejava manter-se perfeitamente imóvel, tendo dele surgido um tique que, sob a forma de um estalido com a língua, ocorreu durante um período de muitos anos sempre que ela se sentia excitada. — Um homem muito inteligente estava presente quando uma articulação da coxa anquilosada de seu irmão foi submetida a uma manobra de extensão sob a ação de um anestésico. No momento em que a articulação cedeu com um estalido, ele sentiu uma dor violenta em sua própria articulação, que persistiu por quase um ano. — Outros exemplos poderiam ser citados.

Em outros casos a conexão causal não é tão simples. Consiste apenas no que se poderia denominar uma relação “simbólica” entre a causa precipitante e o fenômeno patológico — uma relação do tipo da que as pessoas saudáveis formam nos sonhos. Por exemplo, uma nevralgia pode sobrevir após um sofrimento mental, ou vômitos após um sentimento de repulsa moral. Temos estudado pacientes que costumavam fazer o mais abundante uso dessa espécie de simbolização. Noutros casos ainda, não é possível compreender à primeira vista como os sintomas podem ser determinados à maneira como sugerimos. São precisamente os sintomas histéricos típicos que se enquadram nessa classe, tais como a hemianestesia, a contração do campo visual, as convulsões epileptiformes e assim por diante. Uma explicação de nossos pontos de vista sobre esse grupo deve ser reservada para um exame mais acurado do assunto.

Observações como essas nos parecem estabelecer uma analogia entre a patogênese da histeria comum e a das neuroses traumáticas e justificar uma extensão do conceito de histeria traumática. Nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto — o trauma psíquico. De maneira análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para a maioria dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos — tais como os de susto, angústia, vergonha ou dor física — pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso acontecer de verdade depende, naturalmente, da suscetibilidade da pessoa afetada (bem como de outra condição que será mencionada adiante). No caso da histeria comum não é rara a ocorrência, em vez de um trauma principal isolado, de vários traumas parciais que formam um grupo de causas desencadeadoras. Essas causas só puderam exercer um efeito traumático por adição e constituem um conjunto por serem, em parte, componentes de uma mesma história de sofrimento. Existem outros casos em que uma circunstância aparentemente trivial se combina com o fato realmente atuante ou ocorre numa ocasião de peculiar suscetibilidade ao estímulo e, dessa forma, atinge a categoria de um trauma, que de outra forma não teria tido, mas que daí por diante persiste.

Mas a relação causal entre o trauma psíquico determinante e o fenômeno histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue como mero agent provocateur na liberação do sintoma, que passa então a levar uma existência independente. Devemos antes presumir que o trauma psíquico — ou, mais precisamente, a lembrança do trauma — age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas descobertas.

É que verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras. A lembrança sem afeto quase invariavelmente não produz nenhum resultado. O processo psíquico originalmente ocorrido deve ser repetido o mais nitidamente possível; deve ser levado de volta a seu status nascendi e então receber expressão verbal. Quando aquilo com que estamos lidando são fenômenos que envolvem estímulos (espasmos, nevralgias e alucinações), estes reaparecem mais uma vez com intensidade máxima e a seguir desaparecem para sempre. As deficiências funcionais, tais como paralisias e anestesias, desaparecem da mesma maneira, embora, é claro, sem que a intensificação temporária seja discernível.

 

É plausível supor que se trata aqui de sugestão inconsciente: o paciente espera ser aliviado de seus sofrimentos por esse procedimento, e é essa expectativa, e não a expressão verbal, o fator operativo. Mas não é isso que ocorre. O primeiro caso dessa natureza a ser objeto de observação remonta ao ano de 1881, isto é, à era da “pré-sugestão”. Um caso muito complicado de histeria foi analisado dessa maneira, e os sintomas que decorriam de causas distintas foram distintamente eliminados. Essa observação foi possibilitada por auto-hipnoses espontâneas por parte do paciente, e surgiu com uma grande surpresa para o observador.

Podemos inverter a máxima “cessante causa cessat effectus” |“cessando a causa cessa o efeito”| e concluir dessas observações que o processo determinante continua a atuar, de uma forma ou de outra, durante anos — não indiretamente, através de uma corrente de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora — da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito tempo depois de ocorrido o fato. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.

 

II

À primeira vista parece extraordinário que fatos experimentados há tanto tempo possam continuar a agir de forma tão intensa — que sua lembrança não esteja sujeita ao processo de desgaste a que, afinal de contas, vemos sucumbirem todas as nossas recordações. Talvez as considerações que se seguem possam tornar isso um pouco mais inteligível.

O esmaecimento de uma lembrança ou a perda de seu afeto dependem de vários fatores. O mais importante destes é se houve uma reação energética ao fato capaz de provocar um afeto. Pelo termo “reação” compreendemos aqui toda a classe de reflexos voluntários e involuntários — das lágrimas aos atos de vingança — nos quais, como a experiência nos mostra, os afetos são descarregados. Quando essa reação ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece como resultado. O uso da linguagem comprova esse fato de observação cotidiana com expressões como “desabafar pelo pranto” |“sich ausweinen”| e “desabafar através de um acesso de cólera” |“sich austoben”, literalmente “esvair-se em cólera”|. Quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Uma ofensa revidada, mesmo que apenas com palavras, é recordada de modo bem diferente de outra que teve que ser aceita. A linguagem também reconhece essa distinção, em suas conseqüências mentais e físicas; de maneira bem característica, ela descreve uma ofensa sofrida em silêncio como “uma mortificação” |“Kränkung”, literalmente, um “fazer adoecer”|. — A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce um efeito inteiramente “catártico” se for uma reação adequada — como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um lamento ou é a enunciação de um segredo torturante, por exemplo, uma confissão. Quando não há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva do início.

A “ab-reação”, contudo, não é o único método de lidar com a situação para uma pessoa normal que tenha experimentado um trauma psíquico. Uma lembrança desse trauma, mesmo que não tenha sido ab-reagida, penetra no grande complexo de associações, entra em confronto com outras experiências que possam contradizê-la, e está sujeita à retificação por outras representações. Depois de um acidente, por exemplo, a lembrança do perigo e a repetição (mitigada) do medo é associada à lembrança do que ocorreu depois — o socorro e a situação consciente da segurança atual. Da mesma forma, a lembrança de uma humilhação é corrigida quando a pessoa situa os fatos no devidos lugares, considerando seu próprio valor, etc. Desse modo, uma pessoa normal é capaz de provocar o desaparecimento do afeto concomitante por meio do processo de associação.

A isso devemos acrescentar a obliteração geral das impressões, o evanescimento das lembranças a que chamamos “esquecimento” e que desgasta as representações não mais afetivamente atuantes.

Nossas observações demonstraram, por outro lado, que as lembranças que se tornaram os determinantes de fenômenos histéricos persistem por longo tempo com surpreendente vigor e com todo o seu colorido afetivo. Devemos, contudo, mencionar outro fato notável do qual posteriormente poderemos tirar proveito, a saber, que essas lembranças, em contraste com outras de sua vida passada, não se acham à disposição do paciente. Pelo contrário, essas experiências estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária. Apenas quando o paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez inalterada de um fato recente.

Assim, durante nada menos de seis meses, uma de nossas pacientes reproduziu sob hipnose, com uma nitidez alucinatória, tudo o que a havia excitado no mesmo dia no ano anterior (durante um ataque de histeria aguda). Um diário mantido por sua mãe sem o conhecimento da paciente provou a inteireza da reprodução |ver em [1]|. Outra paciente, em parte sob hipnose e em parte durante ataques espontâneos, reviveu com clareza alucinatória todos os fatos de uma psicose histérica que experimentara dez anos antes e que havia esquecido, em sua maior parte, até o momento em que ela ressurgiu. Além disso, verificou-se que certas lembranças de importância etiológica que datavam dos quinze aos vinte e cinco anos estavam surpreendentemente intactas e possuíam uma intensidade sensorial notável, e que, ao retornarem, atuaram com toda a força afetiva das experiências novas |ver em [1]-[2]|.

Isso só pode ser explicado pelo fato de que essas lembranças constituem uma exceção em sua relação com todos os processos de desgaste que examinamos atrás. Em outras palavras: parece que essas lembranças correspondem a traumas que não foram suficientemente ab-reagidos; e se penetrarmos mais a fundo nos motivos que impediram isso, encontraremos pelo menos dois grupos de condições sob as quais a reação ao trauma deixa de ocorrer.

No primeiro grupo acham-se os casos em que os pacientes não reagiram a um trauma psíquico porque a natureza do trauma não comportava reação, como no caso da perda obviamente irreparável de um ente querido, ou porque as circunstâncias sociais impossibilitavam uma reação, ou porque se tratava de coisas que o paciente desejava esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente do pensamento consciente, inibindo-as e suprimindo-as. São precisamente as coisas aflitivas dessa natureza que, sob hipnose, constatamos serem a base dos fenômenos histéricos (por exemplo, os delírios histéricos de santos e freiras, de mulheres que guardam a castidade e de crianças bem-educadas).

O segundo grupo de condições é determinado, não pelo conteúdo das lembranças, mas pelos estados psíquicos em que o paciente recebeu as experiências em questão, pois encontramos sob hipnose, dentre as causas dos sintomas histéricos, representações que em si mesmas não são importantes, mas cuja persistência se deve ao fato de que se originaram durante a prevalência de afetos gravemente paralisantes, tais como o susto, ou durante estados psíquicos positivamente anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios, a auto-hipnose, etc. Em tais casos, é a natureza dos estados que torna impossível uma reação ao acontecimento.

É claro que ambas as espécies de condições podem estar presentes ao mesmo tempo, e isso de fato ocorre com freqüência. É o que acontece quando um trauma que é atuante por si mesmo ocorre enquanto predomina um afeto gravemente paralisante, ou durante um estado de alteração da consciência. Mas também parece ser verdade que em muitas pessoas um trauma psíquico produz um desses estados anormais, o que, por sua vez, torna a reação impossível.

 

Ambos os grupos de condições, porém, possuem em comum o fato de que os traumas psíquicos que não foram eliminados pela reação também não podem sê-lo pela elaboração por meio da associação. No primeiro grupo, o paciente está decidido a esquecer as experiências aflitivas e, por conseguinte, as exclui tanto quanto possível da associação; já no segundo grupo, a elaboração associativa deixa de ocorrer porque não existe nenhuma vinculação associativa abrangente entre o estado normal da consciência e os estados patológicos em que as representações surgiram. Logo teremos ocasião de nos aprofundarmos nesse assunto.

Assim, pode-se dizer que as representações que se tornaram patológicas persistiram com tal nitidez e intensidade afetiva porque lhes foram negados os processos normais de desgaste por meio da ab-reação e da reprodução em estados de associação não inibida.

 

III

 

Mencionamos as condições que, como demonstra nossa experiência, são responsáveis pelo desenvolvimento de fenômenos histéricos provenientes de traumas psíquicos. Ao fazê-lo, já fomos obrigados a falar nos estados anormais de consciência em que surgem essas representações patogênicas e a ressaltar o fato de que a lembrança do trauma psíquico atuante não se encontra na memória normal do paciente, mas em sua memória ao ser hipnotizado. Quanto mais nos ocupamos desses fenômenos, mais nos convencemos de que a divisão da consciência, que é tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob a forma de “double conscience”, acha-se presente em grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação, e com ela ao surgimento dos estados anormais da consciência que (reuniremos sob a designação de “hipnóides”), constitui o fenômeno básico dessa neurose. Quanto a esses concordamos com Binet e com os dois Janets, embora não tenhamos tido nenhuma experiência das notáveis descobertas que eles fizeram com pacientes anestésicos.

Gostaríamos de contrabalançar a conhecida tese de que a hipnose é uma histeria artificial com uma outra — a de que a base e condição sine qua non da histeria é a existência de estados hipnóides. Esses estados hipnóides partilham uns com os outros e com a hipnose, por mais que difiram sob outros aspectos, uma característica comum: as representações que neles surgem são muito intensas, mas estão isoladas da comunicação associativa com o restante do conteúdo da consciência. Podem ocorrer associações entre esses estados hipnóides, e seu conteúdo representativo pode, dessa forma, atingir um grau mais ou menos elevado de organização psíquica. Além disso, deve-se supor que a natureza desses estados e a extensão em que ficam isolados dos demais processos da consciência variam do mesmo modo que ocorre na hipnose, que vai desde uma leve sonolência até o sonambulismo, de uma lembrança completa até a amnésia total.

Quando os estados hipnóides dessa natureza já se acham presentes antes da instalação da doença manifesta, eles fornecem o terreno em que o afeto planta a lembrança patogênica com suas conseqüentes manifestações somáticas. Isso corresponde à histeria disposicional. Verificamos, todavia, que um trauma grave (tal como ocorre numa neurose traumática) ou uma supressão trabalhosa (como a de um afeto sexual, por exemplo) podem ocasionar uma divisão expulsiva de grupos de representações mesmo em pessoas que, sob outros aspectos, não estão afetadas; e esse seria o mecanismo da histeria psiquicamente adquirida. Entre os extremos dessas duas formas devemos presumir a existência de uma série de casos dentro dos quais a tendência à dissociação do indivíduo e a magnitude afetiva do trauma variam numa proporção inversa.

Nada temos de novo a dizer sobre a questão da origem desses estados hipnóides disposicionais. Ao que parece, eles freqüentemente emergem dos devaneios que são tão comuns até mesmo nas pessoas sadias e aos quais os trabalhos de costura e ocupações semelhantes tornam as mulheres particularmente propensas. Por que é que as “associações patológicas” surgidas nesses estados são tão estáveis, e por que é que exercem uma influência tão maior sobre os processos somáticos do que costumam fazer as representações, são perguntas que coincidem com o problema geral da eficácia das sugestões hipnóticas. Nossas observações não trazem nenhuma nova contribuição para esse assunto, mas lançam luz sobre a contradição entre a máxima “a histeria é uma psicose” e o fato de que, entre os histéricos, podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da maior força de vontade, do melhor caráter e da mais alta capacidade crítica. Essa caracterização é válida em relação a seus pensamentos em estado de vigília, mas, em seus estados hipnóides, elas são insanas, como somos todos nos sonhos. Todavia, enquanto nossas psicoses oníricas não exercem nenhum efeito sobre nosso estado de vigília, os produtos dos estados hipnóides intrometem-se na vigília sob a forma de sintomas histéricos.

 

IV

 

O que afirmamos sobre os sintomas histéricos crônicos pode ser aplicado quase que integralmente aos ataques histéricos. Charcot, como se sabe, deu-nos uma descrição esquemática do “grande” ataque histérico, segundo a qual se podem distinguir quatro fases num ataque completo: (1) a fase epileptóide, (2) a fase dos movimentos amplos, (3) a fase das “atittudes passionnelles” (fase alucinatória) e (4) a fase de delírio terminal. Charcot deduz todas as formas de ataque histérico que, na prática, são encontradas com maior freqüência do que o “grande attaque” completo, a partir da abreviação ou do prolongamento, da ausência ou do isolamento dessas quatro fases distintas.

Nossa tentativa de explicação tem como ponto de partida a terceira dessas fases, a das “atittudes passionnelles”. Quando esta se acha presente numa forma bem acentuada, ela apresenta a reprodução alucinatória de uma lembrança que foi importante no desencadeamento da histeria — a lembrança de um grande trauma isolado (que encontramos par excellence no que é denominado histeria traumática) ou de uma série de traumas parciais interligados (como os subjacentes à histeria comum). Ou, finalmente, o ataque pode reviver os fatos que se tornaram relevantes em virtude de sua coincidência com um momento de predisposição especial ao trauma.

Entretanto, há também ataques que parecem consistir exclusivamente em fenômenos motores e nos quais a fase de atittudes passionnelles se acha ausente. Quando se consegue entrar em rapport com o paciente durante um ataque como esse, de espasmos clônicos generalizados ou rigidez cataléptica, ou durante um attaque de sommeil |acesso de sono| — ou quando, melhor ainda, se consegue provocar o acesso sob hipnose — verifica-se que também aqui há uma lembrança subjacente do trauma psíquico ou da série de traumas, que, de modo geral, chama nossa atenção numa fase alucinatória.

Dessa forma, durante anos, uma menina sofreu ataques de convulsões generalizadas que poderiam ser, e realmente foram, considerados como epilépticos. Ela foi hipnotizada com vistas a um diagnóstico diferencial, e de imediato teve um de seus acessos. Perguntaram-lhe o que estava vendo e ela respondeu: “O cachorro! O cachorro está vindo!”; e de fato verificou-se que tivera o primeiro de seus ataques após ter sido perseguida por um cão feroz. O êxito do tratamento confirmou o diagnóstico.

Por sua vez, um funcionário que ficara histérico em decorrência de ser maltratado por seu superior sofria de ataques em que caía no chão e tinha acessos de raiva, mas sem dizer uma só palavra ou demonstrar qualquer sinal de alucinação. Foi possível provocar um ataque sob hipnose, e o paciente então revelou estar revivendo a cena em que seu patrão o insultara na rua e batera nele com a bengala. Dias depois o paciente voltou e queixou-se de ter tido outro ataque da mesma natureza. Nessa ocasião, verificou-se sob hipnose que ele estivera revivendo a cena com que estava relacionada a instalação real da doença: a cena no tribunal em que ele não conseguira obter reparação pelas injúrias sofridas.

Também em todos os demais aspectos as lembranças que emergem ou podem ser provocadas nos ataques histéricos correspondem às causas desencadeadoras que temos encontrado na raiz dos sintomas histéricos crônicos. Tais como estas últimas causas, as lembranças subjacentes aos ataques histéricos relacionam-se com traumas psíquicos que não foram eliminados pela ab-reação ou pela atividade associativa do pensamento. À semelhança delas, estas estão, quer inteiramente, quer em seus elementos essenciais, fora do alcance da lembrança da consciência normal, e mostram pertencer ao conteúdo representativo dos estados hipnóides de consciência, com associação restrita. Por fim, também o teste terapêutico pode ser aplicado a elas. Nossas observações nos têm com freqüência ensinado que uma recordação dessa espécie, que até então havia provocado ataques, deixa de ser capaz de fazê-lo depois que os processos de reação e de correção associativa são a ela aplicados sob hipnose.

Os fenômenos motores dos ataques histéricos podem ser parcialmente interpretados como formas universais de reação apropriadas ao afeto que acompanha a lembrança (tais como espernear e agitar os braços e pernas, o que até mesmo os bebês de tenra idade fazem), e em parte como uma expressão direta dessas lembranças; mas em parte, como no caso dos estigmas histéricos verificados entre os sintomas crônicos, não podem ser explicadas dessa maneira.

Os ataques histéricos, além disso, são especialmente interessantes se tivermos em mente uma teoria que mencionamos atrás, a saber, que na histeria certos grupos de representações que se originam nos estados hipnóides estão presentes e são isolados da ligação associativa com as outras representações, mas podem associar-se entre si, formando assim o rudimento mais ou menos altamente organizado de uma segunda consciência, uma condition seconde. Se assim for, um sintoma histérico crônico corresponderá à intrusão desse segundo estado na inervação somática, que, em geral, se acha sob o controle da consciência normal. O ataque histérico, por outro lado, é prova de uma organização mais elevada desse segundo estado. Quando o ataque surge pela primeira vez, indica um momento em que essa consciência hipnóide adquiriu controle sobre toda a existência do indivíduo — indica, em outras palavras, uma histeria aguda; quando ocorre em ocasiões subseqüentes e contém uma lembrança, indica um retorno daquele momento. Charcot já sugeriu que os ataques histéricos constituem uma forma rudimentar de uma condition seconde. Durante o ataque, o controle sobre toda a inervação somática passa para a consciência hipnóide. A consciência normal, como o demonstram observações bem conhecidas, nem sempre é inteiramente recalcada. Ela pode até mesmo perceber os fenômenos motores do ataque, enquanto os fatos psíquicos concomitantes ficam fora de seu conhecimento.

O curso característico de um caso grave de histeria é, como sabemos, o seguinte: de início, forma-se um conteúdo representativo durante os estados hipnóides; quando esse conteúdo aumenta de forma suficiente, ele assume o controle, durante um período de “histeria aguda”, da inervação somática e de toda a existência do paciente, criando sintomas crônicos e ataques; depois disso, desaparece, a não ser por certos resíduos. Quando a personalidade normal consegue recuperar o controle, o que resta do conteúdo representativo hipnóide reaparece em ataques histéricos e, de tempos em tempos, leva o sujeito de volta a estados semelhantes, eles próprios novamente influenciáveis a traumas. Um estado de equilíbrio, por assim dizer, pode então ser estabelecido entre os dois grupos psíquicos que se combinam na mesma pessoa: os ataques histéricos e a vida normal prosseguem lado a lado sem que um interfira no outro. O ataque ocorre de modo espontâneo, como fazem as lembranças nas pessoas normais; contudo, é possível provocá-lo, do mesmo modo que qualquer lembrança pode ser suscitada de acordo com as leis da associação. Pode-se provocá-lo, quer pela estimulação de uma zona histerogênica, quer por uma nova experiência que o desencadeia graças a uma semelhança com a experiência patogênica. Esperamos poder demonstrar que essas duas espécies de determinantes, embora pareçam tão diferentes, não diferem quanto aos pontos essenciais, mas que em ambas uma lembrança hiperestésica é evocada.

Em outros casos esse equilíbrio é muito instável. O ataque surge como manifestação do resíduo da consciência hipnóide sempre que a personalidade está esgotada e incapacitada. Não se pode afastar a possibilidade de que, nessa situação, o ataque tenha sido despojado de seu significado original e esteja recorrendo como uma reação motora sem qualquer conteúdo.

Cabe a uma pesquisa ulterior descobrir o que é que determina se uma personalidade histérica se manifestará em ataques, em sintomas crônicos ou numa mistura de ambos.

 

V

 

Agora poderá ficar claro por que o método psicoterápico que descrevemos nestas páginas tem um efeito curativo. Ele põe termo à força atuante da representação que não fora ab-reagida no primeiro momento, ao permitir que seu afeto estrangulado encontre uma saída através da fala; e submete essa representação à correção associativa, ao introduzi-la na consciência normal (sob hipnose leve) ou eliminá-la por sugestão do médico, como se faz no sonambulismo acompanhado de amnésia.

Em nossa opinião, as vantagens terapêuticas desse método são consideráveis. Naturalmente, é verdade que não curamos a histeria na medida em que ela dependa de fatores disposicionais. Nada podemos fazer contra a recorrência dos estados hipnóides. Além disso, durante a fase produtiva de uma histeria aguda, nosso método não pode impedir que os fenômenos tão laboriosamente eliminados sejam imediatamente substituídos por outros. Tão logo passa essa fase aguda, porém, quaisquer resíduos que possam ter ficado sob a forma de sintomas crônicos ou ataques costumam ser removidos de forma permanente por nosso método, porque ele é radical; e nesse sentido ele nos parece muito superior em sua eficácia à remoção através da sugestão direta, tal como é hoje praticada pelos psicoterapeutas.

Se, ao descobrirmos o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, demos um passo à frente na trilha inicialmente aberta com tanto êxito por Charcot, com sua explicação e sua imitação artificial das paralisias hístero-traumáticas, não podemos ocultar de nós mesmos que isso só nos aproximou um pouco mais da compreensão do mecanismo dos sintomas histéricos, e não das causas internas da histeria. Não fizemos mais do que tocar de leve na etiologia da histeria e, a rigor, só conseguimos lançar luz sobre suas formas adquiridas — sobre a importância dos fatores acidentais nessa neurose.

 

VIENA, dezembro de 1892

 

II - CASOS CLÍNICOS

(BREUER E FREUD)

 

CASO 1 - SRTA. ANNA O. (BREUER)

 

Na ocasião em que adoeceu (em 1880), a Srta. Anna O. contava vinte e um anos de idade. Pode-se considerar que era portadora de uma hereditariedade neuropática moderadamente grave, visto que algumas psicoses haviam ocorrido entre seus parentes mais distantes. Seus pais eram normais nesse aspecto. A própria paciente fora sempre saudável até então e não havia mostrado nenhum sinal de neurose durante seu período de crescimento. Era dotada de grande inteligência e aprendia as coisas com impressionante rapidez e intuição aguçada. Possuía um intelecto poderoso, que teria sido capaz de assimilar um sólido acervo mental e que dele necessitava — embora não o recebesse desde que saíra da escola. Anna tinha grandes dotes poéticos e imaginativos, que estavam sob o controle de um agudo e crítico bom senso. Graças a esta última qualidade, ela era inteiramente não sugestionável, sendo influenciada apenas por argumentos e nunca por meras asserções. Sua força de vontade era vigorosa, tenaz e persistente; algumas vezes, chegava ao extremo da obstinação, que só cedia pela bondade e consideração para com as outras pessoas.

Um de seus traços de caráter essenciais era a generosa solidariedade. Mesmo durante a doença, pôde ajudar muito a si mesma por ter conseguido cuidar de grande número de pessoas pobres e enfermas, pois assim satisfazia a um poderoso instinto. Seus estados de espírito sempre tenderam para um leve exagero, tanto na alegria como na tristeza; por conseguinte, era às vezes sujeita a oscilações de humor. A noção da sexualidade era surpreendentemente não desenvolvida nela. A paciente, cuja vida se tornou conhecida por mim num grau em que raras vezes a vida de uma pessoa é conhecida de outra, nunca se apaixonara; e em todo o imenso número de alucinações que ocorreram durante sua doença a noção da sexualidade nunca emergiu.

Essa moça, cheia de vitalidade intelectual, levava uma vida extremamente monótona no ambiente de sua família de mentalidade puritana. Embelezava sua vida de um modo que provavelmente a influenciou de maneira decisiva em direção à doença, entregando-se a devaneios sistemáticos que descrevia como seu “teatro particular”. Enquanto todos pensavam que ela estava prestando atenção, ela se imaginava vivendo contos de fada; mas estava sempre alerta quando lhe dirigiam a palavra, de modo que ninguém se dava conta de seu estado. Exercia essa atividade de modo quase ininterrupto enquanto se ocupava de seus afazeres domésticos, dos quais se desincumbia de forma irrepreensível. Terei a seguir que descrever a maneira pela qual esses devaneios habituais, no período em que ela estava com saúde, foram-se convertendo gradativamente em doença.

O curso da doença enquadrou-se em várias fases nitidamente separáveis:

(A)Incubação latente. De meados de julho até cerca de 10 de dezembro de 1880. Essa fase da doença costuma ficar omissa para nós; mas, nesse caso, graças a seu caráter peculiar, foi-nos completamente acessível; esse fato, por si só, traz um apreciável interesse patológico para o caso. Descreverei esta fase em seguida.

(B)A doença manifesta. Uma psicose de natureza peculiar, com parafasia, estrabismo convergente, graves perturbações da visão, paralisias (sob a forma de contraturas) completa na extremidade superior direita e em ambas as extremidades inferiores, e parcial na extremidade superior esquerda, e paresia dos músculos do pescoço. Redução gradual da contratura nas extremidades da mão direita. Alguma melhora, interrompida por um grave trauma psíquico (a morte do pai da paciente) em abril, depois do que se seguiram:

(C)Um período de sonambulismo persistente, alternando-se subseqüentemente com estados mais normais. Grande número de sintomas crônicos perduraram até dezembro de 1881.

(D)Cessação gradual dos estados e sintomas patológicos até junho de 1882.

Em julho de 1880, o pai da paciente, a quem ela era extremamente afeiçoada, adoeceu de um abscesso peripleurítico que não sarou e do qual veio a morrer em abril de 1881. Durante os primeiros meses da doença, Anna dedicou todas as suas energias a cuidar do pai, e ninguém ficou muito surpreso quando, pouco a pouco, sua própria saúde foi-se deteriorando de forma acentuada. Ninguém, talvez nem mesmo a própria paciente, sabia o que lhe estava acontecendo; mas afinal, o estado de debilidade, anemia e aversão pelos alimentos se agravou a tal ponto que, para seu grande pesar, não lhe permitiram mais que continuasse a cuidar do paciente. A causa imediata dessa proibição foi uma tosse muito intensa, razão pela qual a examinei pela primeira vez. Era uma tussis nervosa típica. Anna logo começou a mostrar uma pronunciada necessidade de repouso durante a tarde, continuada, ao anoitecer, por um estado semelhante a sono e, a seguir, por uma condição de intensa excitação.

No início de dezembro apareceu um estrabismo convergente. Um oftalmologista o explicou (erroneamente) como decorrente da paresia de um dos abdutores. Em 11 de dezembro a paciente caiu de cama e assim permaneceu até 1º de abril.

Surgiu em rápida sucessão uma série de perturbações graves que eram aparentemente novas: dor de cabeça occipital esquerda; estrabismo convergente (diplopia), acentuadamente aumentado pela excitação; queixas de que as paredes do quarto pareciam estar vindo abaixo (afecção do nervo oblíquo); perturbações da visão difíceis de ser analisadas; paresia dos músculos anteriores do pescoço, de modo que, afinal, a paciente só conseguia mover a cabeça pressionando-a para trás entre os ombros erguidos e movendo as costas inteiramente; contratura e anestesia da extremidade superior direita e, depois de certo tempo, da extremidade inferior direita. Esta última sofreu total extensão, adução e rotação para dentro. Posteriormente, surgiu o mesmo sintoma na extremidade inferior esquerda e, por fim, no braço esquerdo, cujos dedos, contudo conservaram até certo ponto a capacidade de movimento. De igual modo, também não havia uma rigidez completa nas articulações do ombro. A contratura atingiu seu ponto máximo nos músculos dos braços. Da mesma forma, a região dos cotovelos revelou-se a mais atingida pela anestesia quando, num estágio posterior, tornou-se possível fazer um exame mais cuidadoso da sensibilidade. No início da doença a anestesia não pôde ser testada de modo eficiente em virtude da resistência da paciente em decorrência de sentimentos de angústia.

Foi enquanto a paciente se achava nesse estado que comecei a tratá-la, havendo logo reconhecido a gravidade da perturbação psíquica com que teria de lidar. Havia dois estados de consciência inteiramente distintos, que se alternavam, de modo freqüente e súbito e que se tornaram cada vez mais diferenciados no curso da doença. Num desses estados ela reconhecia seu ambiente; ficava melancólica e angustiada, mas relativamente normal. No outro, tinha alucinações e ficava “travessa” — isto é, agressiva, e jogava almofadas nas pessoas, tanto quanto o permitiam as contraturas, arrancava botões da roupa de cama e de suas roupas com os dedos que conseguia movimentar, e assim por diante. Nesse estágio da doença, se alguma coisa tivesse sido tirada do lugar no quarto ou alguém tivesse entrado ou saído dele |durante seu outro estado de consciência|, ela se queixava de haver “perdido” tempo e tecia comentários sobre as lacunas na seqüência de seus pensamentos conscientes. Visto que as pessoas que a cercavam tentavam negar isso e confortá-la quando ela se queixava de estar ficando louca, Anna, depois de jogar os travesseiros, acusava as pessoas de fazerem coisas contra ela e de a deixarem num estado de confusão, etc.

Essas “absences” já tinham sido observadas antes de ela cair de cama; costumava parar no meio de uma frase, repetir as últimas palavras e, depois de uma breve pausa, continuar a falar. Essas interrupções aumentaram de forma gradual até atingirem as dimensões que acabam de ser descritas; e no auge da doença, quando as contraturas se haviam estendido até o lado esquerdo do corpo, só durante um curto período do dia é que ela apresentava certo grau de normalidade. Mas as perturbações invadiram até mesmo seus momentos de consciência relativamente clara. Haveria modificações muitíssimo rápidas de humor, que levavam a uma fase de animação intensa, mas bastante passageira, e em outras ocasiões havia uma angústia acentuada, uma oposição tenaz a qualquer esforço terapêutico e alucinações assustadoras com cobras negras, que eram a maneira como Anna via seus cabelos, fitas e coisas semelhantes. Ao mesmo tempo, ficava dizendo a si mesma para deixar de ser tão tola: o que na verdade via eram apenas seus cabelos, etc. Em certos momentos, quando sua mente estava inteiramente lúcida, queixava-se da profunda escuridão na cabeça, de não conseguir pensar, de ficar cega e surda, de ter dois eus, um real e um mau, que a forçava a comportar-se mal, e assim por diante.

Às tardes caía num estado de sonolência que durava até cerca de uma hora depois do pôr-do-sol. Então despertava e se queixava de que algo a estava atormentando — ou melhor, ficava a repetir na forma impessoal: “atormentando, atormentando”, e isso porque, paralelamente ao desenvolvimento das contraturas, surgiu uma profunda desorganização funcional da fala. A princípio, ficou claro que ela sentia dificuldade de encontrar as palavras, e essa dificuldade foi aumentando de maneira gradativa. Posteriormente, ela perdeu o domínio da gramática e da sintaxe; não mais conjugava verbos e acabou por empregar apenas os infinitivos, em sua maioria formados incorretamente a partir dos particípios passados, e omitia tanto o artigo definido quanto o indefinido. Com o passar do tempo, ficou quase totalmente desprovida de palavras. Juntava-as penosamente a partir de quatro ou cinco idiomas e tornou-se quase ininteligível. Quando tentava escrever (até que as contraturas a impediram totalmente de fazê-lo), empregava o mesmo jargão. Durante duas semanas emudeceu por completo e, apesar de envidar grandes e contínuos esforços, foi incapaz de emitir uma única sílaba. E então, pela primeira vez, o mecanismo psíquico do distúrbio ficou claro. Como eu sabia, ela se sentira extremamente ofendida com alguma coisa e tomara a deliberação de não falar a esse respeito. Quando adivinhei isso e a obriguei a falar sobre o assunto, a inibição, que também tornara impossível qualquer outra forma de expressão, desapareceu.

Essa mudança coincidiu com a volta da capacidade de movimento das extremidades do lado esquerdo do corpo, em março de 1881. A parafasia regrediu, mas daí por diante ela passou a falar apenas inglês — só que, aparentemente, sem saber que o estava fazendo. Tinha discussões com a enfermeira, que, como é lógico, não conseguia entendê-la. Só alguns meses depois é que pude convencê-la de que estava falando inglês. Não obstante, ela própria ainda compreendia as pessoas a seu redor que falavam alemão. Só em momentos de extrema ansiedade é que sua capacidade de falar a abandonava por completo, ou então ela utilizava uma mistura de toda sorte de línguas. Às vezes, quando se encontrava em seu melhor estado e com a máxima liberdade, falava francês e italiano. Havia uma amnésia total entre essas ocasiões e aquelas em que falava inglês. Também nessa época seu estrabismo começou a diminuir e passou a se apresentar apenas nos momentos de grande excitação. Ela voltou a conseguir sustentar a cabeça. No dia 1º de abril, levantou-se pela primeira vez.

No dia 5 de abril morreu seu adorado pai. Durante a doença da paciente ela o vira muito raramente e por períodos curtos. Esse foi talvez o trauma psíquico mais grave que ela poderia ter experimentado. Uma violenta explosão de excitação foi acompanhada de um profundo estupor, que durou cerca de dois dias e do qual ela emergiu num estado acentuadamente modificado. No começo, ficou muito mais tranqüila e seus sentimentos de angústia tiveram uma redução considerável. A contratura do braço e perna direitos persistiu, bem como a anestesia de ambos, embora esta não fosse profunda. Houve um alto grau de restrição do campo visual: num buquê de flores que lhe proporcionou muito prazer, só pôde ver uma flor de cada vez. Queixava-se de não conseguir reconhecer as pessoas. Normalmente, dizia, fora capaz de reconhecer os rostos sem ter de fazer nenhum esforço deliberado; agora era obrigada a fazer um laborioso“recognizing work” e tinha que dizer a si mesma: “o nariz dessa pessoa é assim e assim e o cabelo é assim ou assado, de modo que deve ser fulano”. Todas as pessoas que via pareciam figuras de cera, sem qualquer ligação com ela. Achava muito aflitiva a presença de alguns de seus parentes próximos, e essa atitude negativa foi-se acentuando cada vez mais. Quando alguém a quem comumente via com prazer entrava no quarto, ela o reconhecia e ficava consciente das coisas por um curto espaço de tempo, mas logo mergulhava de novo em suas elucubrações, e o visitante se apagava. Eu era a única pessoa que ela sempre reconhecia quando entrava; enquanto eu conversava com ela, a paciente permanecia animada e em contato com as coisas exceto pelas súbitas interrupções causadas por uma de suas “absences” alucinatórias.

Nesses momentos, só falava inglês e não conseguia compreender o que lhe diziam em alemão. Os que a cercavam eram obrigados a dirigir-lhe a palavra em inglês, e até a enfermeira aprendeu, até certo ponto, a se fazer entender dessa maneira. Anna, porém, conseguia ler em francês e italiano. Se tivesse que ler uma dessas línguas em voz alta, o que produzia, com extraordinária fluência, era uma admirável tradução improvisada do inglês.

Ela recomeçou a escrever, mas de maneira peculiar. Escrevia com a mão esquerda, a menos rígida, e empregava letras de forma romanas, copiando o alfabeto da sua edição de Shakespeare.

Anteriormente, ela costumava comer muito pouco, mas agora recusava qualquer alimento. Entretanto, permitiu-me que a alimentasse, de modo que logo começou a se alimentar mais. Mas nunca consentia em comer pão. Após a refeição, lavava invariavelmente a boca, e o fazia até mesmo quando, por qualquer motivo, nada era comido — o que indica como era distraída a respeito dessas coisas.

Seus estados de sonolência à tarde e seu sono profundo depois do crepúsculo persistiram. Quando, depois disso, ela se havia esgotado de tanto falar (terei que explicar depois o que quero dizer com isso), ficava com a mente clara, calma e alegre.

Esse estado relativamente tolerável não durou muito. Cerca de dez dias após a morte do pai, chamou-se um médico para opinar sobre o caso, a quem, como fazia com todos os estranhos, ela ignorou inteiramente enquanto eu demonstrava a ele todas as peculiaridades da paciente. “That’s like an examination”, disse ela a rir quando fiz com que lesse em inglês, em voz alta, um texto escrito em francês. O outro médico interveio na conversa etentou atrair-lhe a atenção, mas foi inútil. Era uma autêntica “alucinação negativa” do tipo que, desde então, vem sendo produzida com freqüência em caráter experimental. No fim, ele conseguiu romper a alucinação ao soprar fumaça no rosto da paciente. De súbito, ela viu diante de si um estranho, precipitou-se para a porta a fim de retirar a chave e caiu no chão, inconsciente. Seguiu-se um breve acesso de raiva e depois uma grave crise de angústia, que tive grande dificuldade em acalmar. Infelizmente, tive que sair de Viena naquela noite e, ao retornar, passados vários dias, encontrei a paciente muito pior. Ela ficara sem qualquer alimentação durante todo aquele tempo, estava extremamente angustiada e, em suas absences alucinatórias, via figuras aterradoras, caveiras e esqueletos. Dado que se comportava diante dessas coisas como se as estivesse vivenciando e em parte as traduzia em palavras, as pessoas em torno dela ficaram amplamente cientes do conteúdo dessas alucinações.

A ordem habitual das coisas era: o estado sonolento à tarde, seguido, após o pôr-do-sol, pela hipnose profunda, para a qual ela inventou o nome técnico de “clouds”. Quando, durante a hipnose, ela conseguia narrar as alucinações que tivera no decorrer do dia, despertava com a mente desanuviada, calma e alegre. Sentava-se para trabalhar e escrever ou desenhar até altas horas da noite, de maneira bem racional. Por volta das quatro horas ia deitar-se. No dia seguinte, toda a série de fatos se repetia. Era um contraste realmente notável: durante o dia, a paciente irresponsável, perseguida por alucinações, e à noite a moça com a mente inteiramente lúcida.

Apesar de sua euforia noturna, seu estado psíquico continuava a se deteriorar. Surgiram fortes impulsos suicidas, que tornaram desaconselhável que ela permanecesse morando no terceiro andar. Contra sua vontade, portanto, foi transferida para uma casa de campo nas imediações de Viena (em 7 de junho de 1881). Eu nunca a havia ameaçado com essa mudança de seu lar, que ela encarava com horror, mas ela, sem o dizer, havia esperado e temido tal medida. Esse fato deixou claro, mais uma vez, até que ponto o afeto de angústia dominava seu distúrbio psíquico. Assim como se havia instalado um estado de maior tranqüilidade logo após a morte do pai da paciente, também agora, quando o que ela temia de fato ocorreu, de novo ela ficou mais calma. Não obstante, a mudança foi imediatamente seguida por três dias e três noites sem qualquer sono e sem alimento, por numerosas tentativas de suicídio (embora, como Anna ficasse num jardim, tais tentativas não fossem perigosas), pela quebra de janelas e assim por diante, e por alucinações não acompanhadas de absences — que ela era capaz de distinguir facilmente de suas outras alucinações. Depois disso, ficou mais calma, passou a deixar que a enfermeira a alimentasse e chegou até a tomar cloral à noite.

 

Antes de prosseguir em meu relato do caso, preciso voltar mais uma vez para descrever uma de suas peculiaridades, que até agora só mencionei de passagem. Já disse que ao longo de toda a doença, até esse ponto, a paciente caía num estado de sonolência todas as tardes, e que, após o pôr-do-sol, esse período passava para um sono mais profundo — “clouds”. (Parece plausível atribuir essa seqüência regular dos acontecimentos apenas à experiência dela enquanto cuidava do pai, o que teve de fazer por vários meses. Durante as noites, ela velava à cabeceira do paciente ou ficava acordada, escutando ansiosamente até amanhecer; às tardes, deitava-se para um ligeiro repouso, como é o costume habitual das enfermeiras. Esse padrão de ficar acordada à noite e dormir à tarde parece ter sido transposto para sua própria doença e persistido muito depois de o sono ter sido substituído por um estado hipnótico.) Após cerca de uma hora de sono profundo, ela ficava irrequieta, virava de um lado para outro e repetia “atormentando, atormentando”, com os olhos fechados o tempo todo. Também se observou como, durante suas absences diuturnas, ela obviamente criava alguma situação ou episódio para o qual dava uma pista murmurando algumas palavras. Acontecia então — de início por acaso, mas depois a propósito — que alguém perto dela repetia uma dessas suas frases enquanto ela se queixava do “atormentando”. Ela imediatamente fazia coro e começava a retratar alguma situação ou a narrar alguma história, a princípio com hesitação e no seu jargão parafásico; mas, quanto mais se estendia, mais fluente se tornava, até que por fim falava um alemão bem fluente. (Isso se aplica ao período inicial, antes que começasse a falar somente em inglês |ver em [1]|.) As histórias eram sempre tristes, e algumas delas, encantadoras, no estilo do Álbum de Figuras sem Figuras, de Hans Andersen, e de fato é provável que se estruturassem sobre aquele modelo. Via de regra, seu ponto de partida ou situação central era o de uma moça ansiosamente sentada à cabeceira de um doente. Mas ela também construía suas histórias com outros temas bem diversos. — Alguns momentos depois de haver concluído a narrativa, ela despertava, obviamente acalmada, ou, como dizia, “gehaeglich”. Durante a noite, tornava a ficar irrequieta, e pela manhã, após algumas horas de sono, estava visivelmente envolvida em algum outro grupo de representações. — Quando, por qualquer motivo, não podia narrar-me a história durante a hipnose do anoitecer, não conseguia acalmar-se depois, e no dia seguinte tinha que me contar duas histórias para que isso acontecesse.

As características essenciais desse fenômeno — o aumento e a intensificação de suas absences até sua auto-hipnose do anoitecer, o efeito dos produtos de sua imaginação como estímulos psíquicos e o afrouxamento e a remoção de seu estado de estimulação quando os expressava verbalmente em sua hipnose — permaneceram constantes durante todos os dezoito meses em que a paciente ficou em observação.

As histórias naturalmente se tornaram ainda mais trágicas após a morte do pai. Contudo, foi só depois da deterioração do estado mental da paciente, o que se seguiu quando seu estado de sonambulismo sofreu uma interrupção abrupta, da maneira já descrita, que suas narrativas do anoitecer deixaram de ter o caráter de composições poéticas, criadas de forma mais ou menos livre, e se transformaram numa cadeia de alucinações medonhas e apavorantes. (Já era possível chegar a elas a partir do comportamento da paciente durante o dia). Já descrevi | [1]-[2]| como sua mente ficava inteiramente aliviada depois que, trêmula de medo e horror, havia reproduzido essas imagens assustadoras e dado expressão verbal a elas.

 

Enquanto Anna ficou no campo, ocasião em que não pude fazer-lhe as visitas diárias, a situação processou-se da seguinte maneira. Visitava-a à tardinha, quando sabia que a encontraria em hipnose, e então a aliviava de toda a carga de produtos imaginativos que ela havia acumulado desde minha última visita. Era essencial que isso fosse feito de forma completa se se quisesse alcançar bons resultados. Quando isso era levado a efeito, ela ficava perfeitamente calma e, no dia seguinte, mostrava-se agradável, fácil de lidar, diligente e até mesmo alegre; no segundo dia, porém, tornava-se cada vez mais mal-humorada, voluntariosa e desagradável, o que se acentuava ainda mais no terceiro dia. Quando ficava assim, nem sempre era fácil fazê-la falar, mesmo em seu estado hipnótico. Ela descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma “talking cure, ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como “chimney-sweeping”. A paciente sabia que, depois que houvesse dado expressão a suas alucinações, perderia toda a sua obstinação e aquilo que descrevia como sua “energia”; equando, após um intervalo relativamente longo, ficava de mau humor, recusava-se a falar, sendo eu obrigado a superar sua falta de disposição encarecendo e suplicando, e até usando recursos como repetir uma fórmula com a qual ela estava habituada a iniciar suas histórias. Mas ela jamais começava a falar antes de haver confirmado plenamente minha identidade, apalpando-me as mãos com cuidado. Nas noites em que não se acalmava pela enunciação verbal, era necessário recorrer novamente ao cloral. Eu já o havia experimentado em algumas ocasiões anteriores, mas vi-me obrigado a aplicar-lhe 5 gramas, sendo o sono precedido por um estado de intoxicação que durava algumas horas. Quando me achava presente, esse estado era de euforia, mas em minha ausência era altamente desagradável e caracterizado por angústia e excitação. (Pode-se observar, a propósito, que esse estado de intoxicação aguda não fazia nenhuma diferença quanto a suas contraturas.) Eu havia conseguido evitar o uso de narcóticos, visto que a expressão verbal de suas alucinações a tranqüilizava, ainda que não induzisse ao sono; entretanto, quando ela estava no campo, as noites em que não conseguia alívio hipnótico eram tão insuportáveis que, apesar de tudo, era necessário recorrer ao cloral. Mas foi possível reduzir a dose, de forma gradual.

O sonambulismo persistente não reapareceu, mas, por outro lado, a alternância entre os dois estados de consciência perdurou. Ela costumava ter alucinações no meio de uma conversa, sair correndo, subir numa árvore, etc. Quando alguém a agarrava, com grande rapidez retomava a frase interrompida, sem tomar nenhum conhecimento do que acontecera no intervalo. Todas essas alucinações, contudo, sobrevinham e eram relatadas em sua hipnose.

Seu estado, de modo geral, experimentou melhoras. Ela ingeria alimentos sem dificuldades e permitia que a enfermeira a alimentasse com exceção do pão, que pedia mas rejeitava no momento em que lhe tocava os lábios. A paralisia espástica da perna teve uma diminuição acentuada. Verificaram-se também melhoras em sua capacidade de julgamento, e ela ficou muito apegada a um amigo meu, o Dr. B., médico que a visitava. Beneficiou-se muito da presença de um cão terra-nova que lhe tinha sido presenteado e pelo qual tinha uma afeição apaixonada. Em certa ocasião, porém, seu animal de estimação atacou um gato, e foi extraordinário ver a forma como a frágil moça tomou de um chicote na mão esquerda e afastou a chicotadas o enorme animal para salvar sua vítima. Mais tarde, cuidou de algumas pessoas pobres e doentes, e isto a ajudou.

Foi após minha volta de uma viagem de férias, que durou várias semanas, que tive a prova mais convincente do efeito patogênico e excitante ocasionado pelos complexos de representações produzidos durante suas absences, ou condition seconde, e do fato de que esses complexos eram eliminados ao receberem expressão verbal durante a hipnose. Nesse intervalo não fora efetuada nenhuma “cura pela fala”, porque foi impossível persuadi-la a confiar o que tinha a dizer a qualquer pessoa senão eu — nem mesmo ao Dr. B., a quem, sob outros aspectos, ela se havia afeiçoado. Encontrei-a num estado moral deplorável, inerte, intratável, mal-humorada e até mesmo malévola. Tornou-se claro por suas histórias noturnas que sua veia imaginativa e poética se estava esgotando. O que ela relatava dizia respeito, cada vez mais, a suas alucinações e, por exemplo, às coisas que a haviam aborrecido nos últimos dias. Estas eram revestidas de uma forma imaginativa, mas apenas formuladas em imagens estereotipadas, e não elaboradas em produções poéticas. Mas a situação só ficou tolerável depois de eu haver providenciado o retorno da paciente a Viena por uma semana e de, noite após noite, fazer com que ela me contasse três a cinco histórias. Quando levei isso a termo, tudo o que se acumulara durante as semanas de minha ausência fora descarregado. Foi só então que se restabeleceu o ritmo anterior: no dia seguinte àquele em que dava expressão verbal a suas fantasias, ela ficava amável e alegre; no segundo dia, mais irritadiça e menos agradável e, no terceiro, verdadeiramente “detestável”. Seu estado moral era uma função do tempo decorrido desde a última expressão oral. Isso ocorria porque cada um dos produtos espontâneos de sua imaginação e todos os fatos que tinham sido assimilados pela parte patológica de sua mente persistiam como um estímulo psíquico até serem narrados em sua hipnose, após o que deixavam inteiramente de atuar.

Quando, no outono, a paciente retornou a Viena (embora para uma casa diferente daquela em que adoecera), sua condição era suportável, tanto física como mentalmente, pois pouquíssimas de suas experiências — de fato, apenas as mais marcantes — eram transformadas em estímulos psíquicos de maneira patológica. Eu tinha esperança de uma melhora contínua e progressiva, desde que o permanente carregamento de sua mente com novos estímulos pudesse ser evitado através da expressão verbal dada a eles. Mas, de início, fiquei decepcionado. Em dezembro houve um agravamento acentuado de seu estado psíquico. Ela voltou a ficar excitada, taciturna e irritável. Não tinha mais nenhum “dia realmente bom”, mesmo quando era impossível detectar alguma coisa que estivesse permanecendo “presa” dentro dela. Em fins de dezembro, na época do Natal, a paciente ficou particularmente inquieta e por uma semana inteira, nos fins de tarde, nada me disse de novo além dos produtos imaginativos que havia elaborado dia a dia sob pressão de uma angústia e emoção intensas durante o Natal de 1880 |um ano antes|. Quando as séries eram concluídas, ela sentia um enorme alívio.

Já havia transcorrido um ano desde que Anna se separara do pai e caíra de cama, e a partir dessa época seu estado tornou-se mais claro e foi sistematizado de maneira muito peculiar. Seus estados de consciência alternados, que se caracterizavam pelo fato de que, a partir da manhã, suas absences (isto é, o surgimento de sua condition seconde) sempre se tornavam mais freqüentes à medida que o dia avançava e exerciam seu domínio absoluto até o anoitecer — esses estados alternados tinham diferido um do outro, no passado, pelo fato de o primeiro ser normal, e o segundo, alienado; agora, porém, eles diferiam ainda mais pelo fato de que, no primeiro, ela estava vivendo, como o restante de nós, no inverno de 1881-2, ao passo que, no segundo, vivia no inverno de 1880-1 e se esquecera por completo de todos os eventos subseqüentes. A única coisa que, não obstante, parecia permanecer consciente a maior parte do tempo era o fato de que o pai morrera. Ela se via transportada ao ano anterior com tal intensidade que, na casa nova, tinha alucinações com seu antigo quarto, de modo que quando queria ir até a porta, tropeçava na estufa, que ficava situada em relação à janela do mesmo modo que a porta em seu antigo quarto. A transição de um estado para outro ocorria de forma espontânea, mas também podia ser facilmente promovida por qualquer impressão sensorial que lembrasse o ano anterior com nitidez. Bastava segurar uma laranja diante dos olhos dela (essa fruta tinha constituído seu principal alimento durante a primeira parte da doença) para que ela se visse transportada para o ano de 1881. Mas essa transferência ao passado não ocorria de modo geral ou indefinido; ela revivia o inverno anterior dia a dia. Eu só teria podido suspeitar de que isso estava acontecendo, não fosse pelo fato de que todas as noites, durante a hipnose, ela falava sobre o que a havia excitado no mesmo dia em 1881, e não fosse pelo fato de um diário particular mantido pela mãe dela em 1881 ter confirmado, sem sombra de dúvida, a ocorrência dos fatos subjacentes. Essa revivescência do ano anterior continuou até que a doença chegasse a seu final, em junho de 1882.

Também foi interessante observar, nesse aspecto, a forma pela qual esses estímulos psíquicos revividos, pertencentes a seu estado secundário, insinuavam-se em seu primeiro estado, mais normal. Aconteceu, por exemplo, que certa manhã a paciente me disse rindo que não tinha nenhuma idéia de qual era o problema, mas estava com raiva de mim. Graças ao diário eu sabia o que estava ocorrendo, e dito e feito, a situação foi revivida na hipnose do anoitecer; eu tinha aborrecido muito a paciente na mesma noite, em 1881. Houve outra ocasião em que ela me disse que havia algo errado com seus olhos: estava vendo as cores erradas. Sabia estar usando um vestido marrom, mas o via como se fosse azul. Logo verificamos que ela sabia distinguir todas as cores das folhas de teste visual de forma correta e clara, e que a perturbação só se relacionava com o material do vestido. O motivo foi que, durante o mesmo período em 1881, ela estivera muito atarefada com a confecção de um roupão para o pai, que era feito do mesmo material de seu atual vestido, porém era azul em vez de marrom. A propósito, constatava-se com freqüência que essas lembranças emergentes revelavam de antemão seu efeito; a perturbação do estado normal ocorria mais cedo, e a lembrança era despertada de forma gradativa apenas em sua condition seconde.

Sua hipnose da noite ficava assim intensamente sobrecarregada, pois tínhamos que escoar pela fala não só seus produtos imaginários contemporâneos, como também os eventos e “vexations” de 1881. (Felizmente, nessa época eu já a havia aliviado dos produtos imaginários daquele ano.) Mas, além de tudo isso, o trabalho a ser executado pela paciente e por seu médico era imensamente aumentado por um terceiro grupo de perturbações isoladas, que tinham de ser eliminadas da mesma maneira. Tratava-se dos eventos psíquicos em jogo no período de incubação da moléstia, entre julho e dezembro de 1880; eles é que haviam produzido todos os fenômenos histéricos e, quando receberam expressão verbal, os sintomas desapareceram.

Quando isso aconteceu pela primeira vez — quando, em decorrência de um enunciado acidental e espontâneo dessa natureza, durante a hipnose da noite, uma perturbação que havia persistido por um tempo considerável veio a desaparecer — fiquei extremamente surpreso. Era verão, numa época de calor intenso, e a paciente sofria de uma sede horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se de repente impossibilitada de beber. Apanhava o copo de água desejado, mas, assim que o tocava com os lábios, repelia-o como alguém que sofresse de hidrofobia. Ao fazê-lo, ficava obviamente numa absence por alguns segundos. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas, como melões, etc. Quando isso já durava perto de seis semanas, um dia, durante a hipnose, ela resmungou qualquer coisa a respeito de sua dama de companhia inglesa, de quem não gostava, e começou então a descrever, com demonstrações da maior repugnância, como fora certa vez ao quarto dessa senhora e como lá pudera ver o cãozinho dela — criatura nojenta! — bebendo num copo. A paciente não tinha dito nada, pois quisera ser gentil. Depois de exteriorizar energicamente a cólera que havia contido,pediu para beber alguma coisa, bebeu sem qualquer dificuldade uma grande quantidade de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A partir daí, a perturbação desapareceu de uma vez por todas. Vários outros caprichos extremamente obstinados foram eliminados de forma semelhante, depois de ela haver descrito as experiências que os tinham ocasionado. A paciente deu um grande passo à frente quando o primeiro de seus sintomas crônicos desapareceu da mesma maneira — a contratura da perna direita, que, é verdade, já havia diminuído muito. Esses achados — de que, no caso dessa paciente, os fenômenos histéricos desapareciam tão logo o fato que os havia provocado era reproduzido em sua hipnose — tornaram possível chegar-se a uma técnica terapêutica que nada deixava a desejar em sua coerência lógica e sua aplicação sistemática. Cada sintoma individual nesse caso complicado era considerado de forma isolada; todas as ocasiões em que tinha surgido eram descritas na ordem inversa, começando pela época em que a paciente ficara acamada e retrocedendo até o fato que levara à sua primeira aparição. Quando este era descrito, o sintoma era eliminado de maneira permanente.

Dessa forma, suas paralisias espásticas e anestesias, os diferentes distúrbios da visão e da audição, as nevralgias, tosses, tremores, etc., e por fim seus distúrbios da fala foram “removidos pela fala”. Entre suas perturbações da visão, os seguintes, por exemplo, foram eliminados um de cada vez: o estrabismo convergente com diplopia; o desvio de ambos os olhos para a direita, de modo que quando a mão se estendia para apanhar algo, sempre se dirigia para a esquerda do objeto; a restrição do campo visual; a ambliopia central; a macropsia; a visão de uma caveira em vez do pai; e a incapacidade para a leitura. Apenas alguns fenômenos dispersos (como, por exemplo, a extensão das paralisias espásticas para o lado esquerdo do corpo), que surgiram enquanto ela estava confinada ao leito, permaneceram intocados por esse processo de análise, sendo provável, na realidade, que de fato não tivessem nenhuma causa psíquica imediata | ver em [1]-[2]|.

Revelou-se inteiramente impraticável abreviar o trabalho pela tentativa de evocar de imediato em sua memória a primeira causa provocadora de seus sintomas. Ela era incapaz de descobri-la, ficava confusa e as coisas se processavam ainda com maior lentidão do que se lhe fosse permitido, de modo tranqüilo e firme, retomar o fio retrospectivo das recordações em que se havia envolvido. Dado que este último método, porém, levava muito tempo na hipnose noturna, em vista de ela estar muito tensa e profundamente perturbada por “eliminar pela fala” os dois outros grupos de experiências —e também em virtude do fato de que as reminiscências precisavam de tempo antes para poderem atingir uma nitidez suficiente — elaboramos o seguinte método. Eu costumava visitá-la pela manhã e hipnotizá-la. (Alguns métodos muito simples para isso foram obtidos de forma empírica.) A seguir, pedia-lhe que concentrasse os pensamentos no sintoma que estávamos tratando no momento e me dissesse as ocasiões em que ele surgira. A paciente passava a descrever em rápida sucessão e em frases sucintas os fatos externos em causa, os quais eu anotava. Durante sua subseqüente hipnose noturna, ela então me fazia, com a ajuda de minhas anotações, um relato razoavelmente minucioso dessas circunstâncias.

Um exemplo revelará a forma completa pela qual ela realizava isso. Nossa experiência comum era que a paciente não ouvisse quando lhe era dirigida a palavra. Foi possível diferenciar da seguinte forma esse hábito passageiro de não ouvir:

(a) Não ouvir quando alguém entrava, enquanto se abstraía em seus pensamentos. 108 exemplos detalhados e isolados desses casos, com menção das pessoas e circunstâncias, muitas vezes com datas. Primeiro exemplo: não ouvir o pai entrar.

(b) Não compreender quando várias pessoas conversavam. 27 exemplos. Primeiro exemplo: o pai, mais uma vez, e um conhecido.

(c) Não ouvir quando estava sozinha e lhe dirigiam a palavra diretamente. 50 exemplos. Origem: o pai tendo em vão lhe pedido vinho.

(d) Surdez ocasionada por ter sido sacudida (numa carruagem, etc.). 15 exemplos. Origem: por ter sido sacudida com raiva pelo irmão mais novo quando este a surpreendeu, certa noite, com o ouvido colado ao quarto do doente.

(e) Surdez provocada ao assustar-se com um ruído. 37 exemplos. Origem: um acesso de sufocação do pai, causado por ter engolido mal.

(f) Surdez durante absence profunda. 12 exemplos.

(g) Surdez ocasionada por ouvir mal durante muito tempo, de modo que, quando lhe dirigiam a palavra, deixava de ouvir. 54 exemplos.

É claro que todos esse episódios eram, numa ampla medida, idênticos, no sentido de que era possível relacioná-los com estados de alheamento, absences ou susto. Mas, na memória da paciente, eram diferenciados de modo tão claro que, se acontecia ela cometer algum erro em sua seqüência, era obrigada a corrigir-se e pô-los na ordem certa; se isso não fosse feito, seu relato ficava paralisado. Os fatos que ela descrevia eram tão sem interesse e significação, e narrados com tanta riqueza de detalhes, que não se poderia suspeitar de que tivessem sido inventados. Muitos desses incidentes consistiam em experiências puramente internas e, assim, não podiam ser verificados; outros (ou as circunstâncias que os cercavam) estavam na lembrança das pessoas do ambiente de Anna.

Também esse exemplo apresentava uma característica que era sempre observável quando um sintoma estava sendo “eliminado pela fala”: o sintoma específico surgia com maior intensidade enquanto ela o abordava. Assim, durante a análise de sua incapacidade de ouvir, ela ficou tão surda que numa parte do tempo fui obrigado a comunicar-me com ela por escrito. A primeira causa provocadora costumava ser um susto de alguma espécie, experimentado enquanto ela cuidava do pai — alguma negligência da parte dela, por exemplo.

O trabalho de recordação nem sempre era fácil e, algumas vezes, a paciente tinha que fazer grandes esforços. Certa ocasião, todo o nosso progresso ficou obstruído por algum tempo porque uma lembrança recusava-se a emergir. Tratava-se de uma alucinação particularmente pavorosa. Quando cuidava do pai, vira seu rosto como se fosse uma caveira. Ela e as pessoas a seu redor lembravam que, certa vez, enquanto parecia ainda gozar de boa saúde, ela fizera uma visita a um de seus parentes. Abrira a porta e imediatamente caíra no chão, inconsciente. Para superar a obstrução a nosso progresso, ela tornou a visitar o mesmo lugar e, ao entrar no quarto, mais uma vez caiu no chão, inconsciente. Durante a hipnose noturna seguinte, o obstáculo foi superado. Ao entrar no quarto, ela vira seu rosto pálido refletido num espelho que pendia defronte à porta, mas não fora a si mesma que tinha visto, e sim o pai com um rosto de caveira. — Muitas vezes observamos que seu pavor de uma lembrança, como no presente exemplo, inibia o surgimento da mesma, e esta precisava ser provocada à força pela paciente ou pelo médico.

O seguinte incidente, entre outros, ilustra o alto grau de coerência lógica de seus estados. Durante esse período, como já se teve ocasião de explicar, a paciente estava sempre em sua condition seconde — isto é, no ano de 1881 — à noite. Certa ocasião, despertou durante a noite, declarando ter sido levada para longe de casa mais uma vez, e ficou de tal forma excitada que todas as pessoas da casa se alarmaram. A razão foi simples. Na noite anterior, a cura pela fala havia dissipado o distúrbio da visão, e isso também se aplicava a sua condition seconde. Assim, ao acordar durante a noite, ela se viu num quarto estranho, pois a família se mudara na primavera de 1881. Acontecimentos desagradáveis dessa espécie eram evitados por mim pelo fato de (a pedido da paciente) eu sempre fechar seus olhos à noite e dar-lhe a sugestão de que ela não poderia abri-los até que eu próprio o fizesse na manhã seguinte. Essa perturbação só se repetiu uma vez, quando a paciente gritou num sonho e abriu os olhos ao despertar dele.

Visto que essa trabalhosa análise de seus sintomas versou sobre os meses do verão de 1880, o período preparatório de sua doença, consegui uma compreensão completa da incubação e patogênese desse caso de histeria, que agora passarei a descrever de forma sucinta.

Em julho de 1880, quando se encontrava no campo, o pai de Anna adoeceu gravemente em decorrência de um abscesso subpleural. Ela dividia com a mãe as tarefas de cuidar do enfermo. Certa vez, acordou de madrugada, muito ansiosa pelo doente, que estava com febre alta; e ela estava sob a tensão de aguardar a chegada de um cirurgião de Viena que iria operá-lo. Sua mãe se ausentara por algum tempo, e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Entrou num estado de devaneio e viu, como se viesse da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito provável que, no terreno situado atrás da casa, algumas cobras tivessem de fato aparecido anteriormente, assustando a moça e fornecendo agora o material para a alucinação.) Ela tentou manter a cobra a distância, mas estava como que paralisada. O braço direito, que pendia sobre o espaldar da cadeira, ficara dormente, insensível e parético; e quando ela o contemplou seus dedos se transformaram em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas). (É provável que ela tenha tentado afugentar a cobra com o braço direito paralisado e por isso a anestesia e a paralisia do braço se associaram com a alucinação da cobra.) Quando a cobra desapareceu, Anna, aterrorizada, tentou rezar. Mas não achou palavras em idioma algum, até que, lembrando-se de um poema infantil em inglês, pôde pensar e rezar nessa língua. O apito do trem que trazia o médico por ela esperado desfez o encanto.

No dia seguinte, durante um jogo, Anna atirou uma argola em alguns arbustos e, quando foi buscá-la, um galho recurvado fez com que ela revivesse a alucinação da cobra, e ao mesmo tempo seu braço direito ficou distendido com rigidez. A partir de então, ocorria invariavelmente a mesma coisa sempre que a alucinação era recordada por algum objeto com aparência mais ou menos semelhante à de uma cobra. Essa alucinação, contudo, bem como a contratura, só apareciam durante as curtas absences, que se tornaram cada vez mais freqüentes a partir daquela noite. (A contratura só veio a se estabilizar em dezembro, quando a paciente ficou inteiramente prostrada e acamada de forma permanente.) Como resultado de algum fato particular cujo registro não consigo encontrar em minhas anotações e do qual não me recordo mais, a contratura da perna direita foi acrescida à do braço direito.

Sua tendência às absences auto-hipnóticas fixou-se a partir daquele momento. Na manhã seguinte à noite que descrevi, enquanto esperava a chegada do cirurgião, Anna caiu num tal estado de alheamento que ele por fim chegou ao quarto sem que ela o ouvisse aproximar-se. Sua angústia persistente interferia com a ingestão de alimentos e conduziu aos poucos a intensas sensações de náusea. Afora isso, a rigor, cada um de seus sintomas histéricos surgiu sob a ação de um afeto. Não é bem certo se em cada um dos casos houve um estado momentâneo de absence, mas isso parece provável em vista do fato de que, em seu estado de vigília, a paciente ficava totalmente alheia ao que havia acontecido.

Alguns de seus sintomas, contudo, parecem não haver surgido em suas absences, mas apenas quando de algum afeto durante sua vida de vigília; se foi esse o caso, porém, eles reapareciam da mesma forma. Assim pudemos rastrear todas as suas diversas perturbações da visão até diferentes causas determinantes mais ou menos claras. Por exemplo, certa ocasião, quando, com lágrimas nos olhos, se achava sentada à cabeceira do pai, ele de repente lhe perguntou que horas eram. Ela não conseguia enxergar com nitidez; fez um grande esforço e aproximou o relógio dos olhos. O mostrador pareceu-lhe então muito grande, explicando assim sua macropsia e seu estrabismo convergente. Ou então ela se esforçou para reprimir as lágrimas para que o doente não as visse.

Uma discussão, durante a qual Anna reprimiu uma resposta à altura, provocou um espasmo de glote, e isso se repetia em todas as ocasiões semelhantes.

Perdeu a capacidade de falar (a) como resultado do medo, depois de sua primeira alucinação à noite, (b) após haver reprimido uma observação noutra ocasião (por inibição ativa), (c) depois de ter sido injustamente culpada de algo e (d) em todas as ocasiões análogas (quando se sentia mortificada). Começou a tossir pela primeira vez quando, certa feita, sentada à cabeceira do pai, ouviu o som de música para dançar que vinha de uma casa vizinha sentiu um súbito desejo de estar lá e foi dominada por auto-recriminações. A partir de então, durante toda a sua doença, reagia a qualquer música acentuadamente ritmada com uma tussis nervosa.

Não lamento muito que o fato de minhas anotações serem incompletas torne impossível para mim enumerar todas as ocasiões em que seus vários sintomas histéricos apareciam. Ela própria os relatava a mim em cada caso isolado, com uma única exceção por mim mencionada |em [1] e também mais adiante, em [1]-[2]|; e, como já disse, todos os sintomas desapareciam depois de ela descrever sua primeira ocorrência.

Também dessa maneira toda a doença desapareceu. A própria paciente formara o firme propósito de que todo o tratamento deveria terminar no dia em que fizesse um ano da data em que foi levada para o campo |7 de junho (ver em [1])|. Por conseguinte, no começo de junho, ela iniciou a “cura pela fala” com a maior energia. No último dia — recorrendo, como ajuda, a uma nova arrumação do quarto, a fim de assemelhá-lo ao quarto de doente do pai — ela reproduziu a aterrorizante alucinação já descrita acima e que constitui a raiz de toda a sua doença. Durante a cena original, Anna só havia conseguido pensar e rezar em inglês; mas, logo após sua reprodução, pôde falar alemão. Além disso, libertou-se das inúmeras perturbações que exibira antes. Depois, saiu de Viena e viajou por algum tempo, mas passou-se um período considerável antes que recuperasse inteiramente seu equilíbrio mental. Desde então tem gozado de perfeita saúde.

Embora eu tenha suprimido um grande número de detalhes bem interessantes, este caso clínico de Anna O. tornou-se mais volumoso do que pareceria necessário para uma doença histérica que, em si mesma, não foi de caráter inusitado. Entretanto, foi impossível descrever o caso sem entrar em pormenores, e suas características me parecem suficientemente importantes para justificar esta exposição extensa. Da mesma maneira, os ovos dos equinodermos são importantes na embriologia, não porque o ouriço-do-mar seja um animal interessante, mas porque o protoplasma de seus ovos é transparente e porque o que neles observamos lança luz, desse modo, sobre o provável curso dos acontecimentos nos ovos cujo protoplasma é opaco. O interesse do presente caso me parece residir, acima de tudo, na extrema clareza e inteligibilidade de sua patogênese.

Havia nessa moça, enquanto ainda gozava de perfeita saúde, duas características psíquicas que atuaram como causas de predisposição para sua subseqüente doença histérica:

(1)Sua vida familiar monótona e a ausência de ocupação intelectual adequada deixavam-na com um excedente não utilizado de vivacidade e energia mentais, tendo esse excedente encontrado uma saída na atividade constante de sua imaginação.

(2)Isso a levou ao hábito dos devaneios (seu “teatro particular”), que lançou as bases para uma dissociação de sua personalidade mental. Não obstante, uma dissociação desse grau ainda se acha nos limites da normalidade. Os devaneios e as reflexões durante ocupações mais ou menos mecânicas não implicam, em si mesmos, uma divisão patológica da consciência visto que, ao serem interrompidos — quando, por exemplo, alguém dirige a palavra à pessoa — a unidade normal da consciência é restaurada; não implicam tampouco a existência de amnésia. No caso de Anna O., porém, esse hábito preparou o terreno em que o afeto de angústia e pavor pôde estabelecer-se na forma que descrevi, tão logo esse afeto transformou os devaneios habituais da paciente numa absence alucinatória. É notável que a primeira manifestação da doença em seus primórdios já exibisse de modo tão completo suas principais características, que depois permaneceram inalteradas por quase dois anos. Estas compreendiam a existência de um segundo estado de consciência, que surgiu primeiro como uma absence temporária e depois se organizou sob a forma de uma “double conscience”; uma inibição da fala, determinada pelo afeto de angústia, que encontrou uma descarga fortuita nos versos em língua inglesa; posteriormente, a parafasia e a perda da língua materna, que foi substituída por um inglês excelente; e, por fim, a paralisia acidental do braço direito, em virtude da pressão, que depois evoluiu para uma paresia espástica e anestesia do lado direito. O mecanismo pelo qual esta segunda afecção veio a existir mostrou-se em inteira consonância com a teoria da histeria traumática de Charcot — um ligeiro trauma ocorrido durante um estado de hipnose.

 

Mas, enquanto a paralisia experimentalmente provocada por Charcot em seus pacientes se estabilizava de imediato, e enquanto a paralisia causada em vítimas de neuroses traumáticas devidas a grave choque traumático logo se estabelece, o sistema nervoso dessa moça ofereceu uma resistência bem-sucedida durante quatro meses. Sua contratura, bem como as outras perturbações que se acompanharam, só se estabeleceu durante as curtas absences e em sua condition seconde, deixando-a, durante seu estado normal, com pleno controle do corpo, e em posse de seus sentidos, de modo que nada foi observado nem por ela própria nem por aqueles que a cercavam, se bem que a atenção deles estivesse enfocada no pai enfermo da paciente e, por conseguinte, desviada dela.

Entretanto, uma vez que suas absences, com sua amnésia total, e fenômenos histéricos concomitantes, tornaram-se cada vez mais freqüentes a partir da época de sua primeira auto-hipnose alucinatória, as oportunidades se multiplicaram para a formação de novos sintomas da mesma espécie, e os que já se haviam formado tornaram-se mais fortemente entrincheirados pela freqüente repetição. Além disso, qualquer afeto angustiante súbito passou gradativamente a ter o mesmo resultado de uma absence (embora, a rigor, seja possível que esses afetos causassem de fato uma absence temporária em todos os casos); algumas coincidências fortuitas formaram associações patológicas e perturbações sensoriais ou motoras, que daí por diante passaram a surgir junto com o afeto. Mas até então isso só havia ocorrido durante momentos passageiros. Antes de ficar permanentemente acamada, a paciente já havia desenvolvido todo o conjunto de fenômenos histéricos, sem que ninguém o soubesse. Só depois de ela ter entrado em colapso completo, graças ao esgotamento acarretado pela falta de alimentos, insônia e angústia constante, e só depois de ter começado a passar mais tempo em sua condition seconde do que em seu estado normal, foi que os fenômenos histéricos se estenderam a este último e passaram da condição de sintomas agudos intermitentes à de sintomas crônicos.

Surge agora a questão de determinar até que ponto se pode confiar nas declarações da paciente e de saber se as ocasiões e o modo de origem dos fenômenos foram realmente tais como ela os representou. Quanto aos fatos mais importantes e fundamentais, o grau de confiabilidade de seu relato me parece estar fora de dúvida. Quanto ao fato de os sintomas desaparecerem depois de “verbalizados”, não posso empregar isso como prova; é bem possível que isso se explique pela sugestão. Mas sempre achei que a paciente era inteiramente fiel à verdade e digna de toda confiança. As coisas que me relatou estavam intimamente vinculadas com o que lhe era mais sagrado. O que quer que pudesse ser verificado através de outras pessoas era plenamente confirmado. Até mesmo a moça mais bem-dotada seria incapaz de engendrar uma trama de dados com tal grau de coerência interna como o exibido na história deste caso. Não se pode duvidar, contudo, de que precisamente sua coerência talvez a tenha levado (em absoluta boa-fé) a atribuir a alguns dos seus sintomas uma causa desencadeadora que na verdade não possuíam. Mas também a essa suspeita considero injustificada. A própria insignificância de tantas dessas causas e o caráter irracional de tantas das conexões envolvidas depõem a favor de sua realidade. A paciente não conseguia entender como é que a música para dançar a fazia tossir; uma construção dessa natureza é por demais destituída de sentido para ter sido deliberada. (Pareceu-me muito provável, aliás, que cada um de seus dramas de consciência acarretasse um de seus habituais espasmos da glote e que os impulsos motores que sentia — pois ela gostava muito de dançar — transformassem o espasmo numa tussis nervosa.) Por conseguinte, em minha opinião, as declarações da paciente mereciam toda a confiança e correspondiam aos fatos.

E agora devemos considerar até que ponto é justificável supor que a histeria se produza de maneira análoga em outros pacientes e que o processo seja semelhante quando nenhuma condition seconde tão claramente distinta tenha-se organizado. Para sustentar esse ponto de vista, posso assinalar o fato de que, também no presente caso, a história da evolução da doença teria permanecido inteiramente desconhecida, tanto da paciente quanto do médico, se não fosse a peculiaridade de a paciente se recordar de coisas na hipnose, como descrevi, e de conseguir relacioná-las. Enquanto estava em seu estado de vigília, ela não tinha nenhum conhecimento de tudo isso. Portanto, é impossível, nos outros casos, chegar-se ao que está acontecendo através de um exame dos pacientes em estado de vigília, pois, com a melhor boa vontade do mundo, eles não podem dar informação alguma a ninguém. E já ressaltei como as pessoas que cercavam a paciente eram pouco capazes de observar aquilo que estava acontecendo. Por conseguinte, só seria possível descobrir o estado de coisas em outros pacientes por meio de um método semelhante ao que foi proporcionado, no caso de Anna O., por suas auto-hipnoses. Por enquanto, podemos apenas externar o ponto de vista de que seqüências de fatos semelhantes aos aqui descritos ocorrem com maior freqüência do que nos levou a supor nossa ignorância do mecanismo patogênico em causa.

Quando a paciente ficou de cama e sua consciência passou a oscilar de forma constante entre o estado normal e o “secundário”, toda a série de sintomas histéricos, que haviam surgido isoladamente e até então se achavam latentes, tornou-se manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos. Acrescentou-se então a estes um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido uma origem diferente: as paralisias espásticas das extremidades esquerdas e a paresia dos músculos elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos porque, uma vez que tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo na forma mais breve ou branda, ou durante a fase conclusiva e de recuperação, quando todos os outros sintomas se tornaram de novo ativos após terem ficado inativos por algum tempo. Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não foram rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me a pensar, portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo processo psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão secundária daquela condição desconhecida que constitui o fundamento somático dos fenômenos histéricos.

Durante toda a doença seus dois estados de consciência persistiram lado a lado: o primário, em que ela era bastante normal psiquicamente, e o secundário, que bem pode ser assemelhado a um sonho, em vista de sua abundância de produções imaginárias e alucinações, suas grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle em suas associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa situação de alienação. O fato de que toda a condição mental da paciente estava na dependência da intrusão desse estado secundário no normal parece lançar uma considerável luz sobre pelo menos um tipo de psicose histérica. Cada uma de suas hipnoses à noite oferecia provas de que a paciente estava inteiramente lúcida e bem ordenada em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a sua volição, desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente acentuada que surgia sempre que havia um intervalo considerável nesse processo de desabafo revelou o grau em que esses produtos influenciavam os fatos psíquicos de seu estado latentes, tornou-se manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos. Acrescentou-se então a estes um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido uma origem diferente: as paralisias espásticas das extremidades esquerdas e a paresia dos músculos elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos porque, uma vez que tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo na forma mais breve ou branda, ou durante a fase conclusiva e de recuperação, quando todos os outros sintomas se tornaram de novo ativos após terem ficado inativos por algum tempo. Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não foram rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me a pensar, portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo processo psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão secundária daquela condição desconhecida que constitui o fundamento somático dos fenômenos histéricos.

Durante toda a doença seus dois estados de consciência persistiram lado a lado: o primário, em que ela era bastante normal psiquicamente, e o secundário, que bem pode ser assemelhado a um sonho, em vista de sua abundância de produções imaginárias e alucinações, suas grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle em suas associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa situação de alienação. O fato de que toda a condição mental da paciente estava na dependência da intrusão desse estado secundário no normal parece lançar uma considerável luz sobre pelo menos um tipo de psicose histérica. Cada uma de suas hipnoses à noite oferecia provas de que a paciente estava inteiramente lúcida e bem ordenada em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a sua volição, desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente acentuada que surgia sempre que havia um intervalo considerável nesse processo de desabafo revelou o grau em que esses produtos influenciavam os fatos psíquicos de seu estado “normal”. É difícil evitar expressar a situação afirmando que a paciente estava dividida em duas personalidades, das quais uma era mentalmente normal, e a outra, insana. Em minha opinião, a nítida divisão entre os dois estados nessa paciente só vem revelar com maior clareza aquilo que ocasionou um grande número de problemas inexplicados em muitos outros pacientes histéricos. Foi especialmente observável, em Anna O., o grau em que os produtos de seu “mau eu”, conforme ela própria o denominava, afetavam seu senso ético mental. Se esses produtos não tivessem sido continuamente eliminados, ter-nos-íamos confrontado com uma histérica do tipo malévolo — teimosa, indolente, desagradável e rabugenta; mas o que se passava era que, após a remoção desses estímulos, seu verdadeiro caráter, que era o oposto de tudo isso, sempre ressurgia de imediato.

Não obstante, embora seus dois estados fossem assim nitidamente separados, não só o estado secundário invadia o primeiro, como também — e isso se dava com freqüência em todas as ocasiões, mesmo quando ela se encontrava numa condição muito ruim — um observador lúcido e calmo ficava sentado, conforme ela dizia, num canto de seu cérebro, contemplando toda aquela loucura a seu redor. Essa persistência do pensamento claro enquanto a psicose estava em pleno processo encontrava expressão numa forma muito curiosa. Numa ocasião em que, depois de terem cessado os fenômenos histéricos, a paciente estava atravessando uma depressão temporária, ela apresentou grande número de temores e auto-recriminações infantis, entre eles a idéia de que de modo algum estivera doente e tudo aquilo fora simulado. Observações semelhantes, como sabemos, têm sido feitas com freqüência. Depois que um distúrbio dessa natureza desapareceu e os dois estados de consciência voltaram a se fundir num só, os pacientes, lançando um olhar retrospectivo para o passado, se vêem como a personalidade única e indivisa que se dava conta de todo aquele absurdo; acham que poderiam tê-lo impedido se assim tivessem desejado e se sentem como se tivessem praticado todo o mal de forma deliberada. — Deve-se acrescentar que esse raciocínio normal que persistia durante o estado secundário deve ter variado enormemente de intensidade e, muitas vezes, até deve ter estado ausente de todo.

Já descrevi o surpreendente fato de que, do começo ao fim da doença, todos os estímulos decorrentes do estado secundário, junto com suas conseqüências, eram eliminados de maneira permanente ao receberem expressão verbal na hipnose, e resta-me apenas acrescentar a certeza de que isso não foi uma invenção minha imposta à paciente por sugestão. Fui apanhado inteiramente de surpresa, e só depois de todos os sintomas serem assim eliminados em toda uma série de situações é que desenvolvi uma técnica terapêutica a partir dessa experiência.

A cura final da histeria merece mais algumas palavras. Ela foi acompanhada, como já tive oportunidade de dizer, por perturbações consideráveis e uma deterioração do estado mental da paciente. Tive impressão muito forte de que os numerosos produtos do seu estado secundário que ficaram latentes forçavam agora sua entrada na consciência; e embora de início fossem recordados apenas em seu estado secundário, estavam ainda assim sobrecarregando e perturbando seu estado normal. Resta verificar se não deveríamos procurar a mesma origem nos outros casos em que a histeria crônica termina numa psicose.

 

CASO 2 - SRA EMMY VON N., IDADE 40 ANOS, DA LIVÔNIA (FREUD)

 

Em 1º de maio de 1889, comecei o tratamento de uma senhora de cerca de quarenta anos, cujos sintomas e personalidade me interessaram de tal forma que lhe dediquei grande parte de meu tempo e decidi fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para recuperá-la. Era histérica e podia ser posta com a maior facilidade num estado de sonambulismo; ao tomar ciência disso, resolvi fazer uso da técnica de investigação sob hipnose, de Breuer, que eu viera a conhecer pelo relato que ele me fizera do bem-sucedido tratamento de sua primeira paciente. Essa foi minha primeira tentativa de lidar com aquele método terapêutico | ver em [1] e [2]|. Estava ainda longe de tê-lo dominado; de fato, não fui bastante à frente na análise dos sintomas, nem o segui de maneira suficientemente sistemática. Talvez possa apresentar melhor um quadro da condição da paciente e de minha conduta clínica reproduzindo as anotações que fiz todas as noites durante as três primeiras semanas do tratamento. Onde quer que a experiência posterior me haja proporcionado melhor compreensão, eu a incorporarei em notas de rodapé e comentários intercalados.

1º de maio de 1889. — Essa senhora, quando a vi pela primeira vez, estava deitava num sofá com a cabeça repousando numa almofada de couro. Parecia ainda jovem e as feições eram delicadas e marcantes. O rosto tinha uma expressão tensa e penosa, as pálpebras estavam cerradas e os olhos, baixos; a testa apresentava profundas rugas e as dobras nasolabiais eram acentuadas. Falava em voz baixa, como se tivesse dificuldade, e a fala ficava de tempos em tempos sujeita a interrupções espásticas, a ponto de ela gaguejar. Conservava os dedos firmemente entrelaçados, e eles exibiam uma agitação incessante, parecida com a que ocorre na atetose. Havia freqüentes movimentos convulsivos semelhantes a tiques, no rosto e nos músculos do pescoço, durante os quais alguns destes, especialmente o esternoclidomastóideo direito, se tornavam muito salientes. Além disso, ela interrompia com freqüência suas observações emitindo um curioso “estalido” com a boca, um som impossível de imitar.

O que a paciente me dizia era perfeitamente coerente e revelava um grau inusitado de instrução e inteligência. Isso fazia com que parecesse ainda mais estranho que, a cada dois ou três minutos, ela de súbito se calasse, contorcesse o rosto numa expressão de horror e nojo, estendesse a mão em minha direção, abrindo e entortando os dedos, e exclamasse numa voz alterada, carregada de angústia: “Fique quieto! — Não diga nada! — Não me toque!” É provável que estivesse sob a influência de alguma alucinação recorrente de natureza apavorante e que, com essa fórmula, estivesse mantendo afastado o material intromissivo. Essas interpolações chegavam ao fim tão de súbito quanto começavam, e a paciente retomava seu relato anterior, sem dar continuidade a sua excitação momentânea e sem explicar ou pedir desculpas por seu comportamento — provavelmente, portanto, sem que ela própria notasse a interpolação.

Tomei conhecimento do seguinte sobre as circunstâncias de sua vida: Sua família era originária da Alemanha Central, mas duas de suas gerações haviam fixado residência nas províncias bálticas da Rússia, onde possuía grandes propriedades. Ela era a décima terceira de quatorze filhos. Apenas quatro dentre eles sobreviveram. A paciente recebeu uma educação cuidadosa, mas sob a disciplina rígida de uma mãe excessivamente enérgica e severa. Quando contava vinte e três anos, casou-se com um homem muito bem-dotado e capaz, que alcançara uma posição elevada como grande industrial, mas que era muito mais velho do que ela. Depois de um casamento de curta duração, ele morreu de derrame cerebral. A esse fato, bem como à tarefa de educar as duas filhas, então com dezesseis e quatorze anos, muitas vezes enfermas e que sofriam de distúrbios nervosos, ela atribuía sua própria doença. Desde a morte do marido, quatorze anos antes, vivera constantemente doente, com variados graus de gravidade. Há quatro anos, seu estado sofrera uma melhora temporária com uma série de massagens combinadas com banhos elétricos. Afora isso, todos os seus esforços para melhorar de saúde têm sido infrutíferos. Ela viajou muito e tem um vivo interesse por muitas coisas. Atualmente, mora numa casa de campo num ponto do Báltico, perto de uma grande cidade. Há vários meses tem estado outra vez muito doente, sofrendo de depressão e insônia e atormentada por dores; foi até Abbazia na vã esperança de obter melhoras, e nas últimas seis semanas está em Viena, até agora sob os cuidados de um médico de excelente reputação.

Sugeri que ela se separasse das duas filhas, que têm governanta, e se internasse numa casa de saúde, onde eu poderia vê-la todos os dias. Concordou com isso sem levantar a menor objeção.

 

Na noite de 2 de maio visitei-a na casa de saúde. Notei que se assustava muito sempre que a porta se abria de modo inesperado. Assim, providenciei para que, ao visitá-la, as enfermeiras e os médicos internos batessem com força na porta e só entrassem depois de ela dizer que podiam fazê-lo. Mesmo assim, ela ainda fazia trejeitos faciais e dava um pulo toda vez que alguém entrava.

Sua principal queixa hoje foi sobre sensações de frio e dor na perna esquerda, que se originavam nas costas, acima da crista do ilíaco. Ordenei que lhe dessem banhos quentes e lhe aplicarei massagens por todo o corpo duas vezes ao dia.

Ela é uma excelente paciente para o hipnotismo. Bastou eu levantar um dedo diante dela e ordenar-lhe que dormisse para que se reclinasse com uma expressão atordoada e confusa. Sugeri que ela dormiria bem, que todos os seus sintomas melhorariam, e assim por diante. Ela ouviu tudo isso com os olhos fechados, mas sem dúvida com uma atenção inconfundivelmente concentrada, e suas feições aos poucos se relaxaram e assumiram uma aparência pacífica. Depois dessa primeira hipnose, conservou uma tênue lembrança de minhas palavras, mas, já na segunda, houve completo sonambulismo (com amnésia). Tinha-a avisado de que pretendia hipnotizá-la, ao que ela não opusera nenhuma dificuldade. Ela nunca fora hipnotizada antes, mas pode-se supor que já leu sobre o hipnotismo, embora eu não saiba dizer quais são suas idéias sobre o estado hipnótico.

Esse tratamento à base de banhos quentes, massagens duas vezes ao dia e sugestão hipnótica prosseguiu por mais alguns dias. Ela dormia bem, melhorava a olhos vistos e passava a maior parte do dia tranqüilamente deitada. Não lhe foi proibido ver as filhas, ler, ou cuidar da correspondência.

 

8 de maio, manhã. — Ela me entreteve, num estado que parecia normal, com histórias aterradoras sobre animais. Lera no Frankfurter Zeitung, que estava na mesa em frente a ela, uma história de como um aprendiz amarrara um menino e lhe pusera na boca um rato branco. O menino morrera de susto. O Dr. K. lhe dissera ter mandado uma caixa cheia de ratos brancos para Tiflis. Ao narrar-me isso, ela demonstrava todos os sinais de horror. Torcia e retorcia as mãos várias vezes. “Fique quieto! — Não diga nada! — Não me toque! — Imagine só se houvesse uma criatura dessas na cama!” (Estremeceu.) “Pense só, quando for aberta! Há um rato morto entre eles — um que foi ro-o-í-do!”

Durante a hipnose tentei eliminar essas alucinações com animais. Enquanto ela dormia, apanhei o Frankfurter Zeitung. Achei a história do menino que fora maltratado, mas sem nenhuma referência a camundongos ou ratos. Logo, ela os havia introduzido a partir de seu delírio enquanto lia. (À noite, falei-lhe de nossa conversa sobre os ratos brancos. Ela não sabia de nada daquilo, ficou muito surpresa e deu boas risadas.)

À tarde teve o que chamou de uma “cãibra no pescoço”, que no entanto, como disse, “só durou pouco tempo — umas poucas horas”.

 

Noite. — Pedi-lhe que, sob hipnose, falasse, o que, depois de certo esforço, ela conseguiu fazer. Falava baixo e refletia por um momento, cada vez, antes de responder. Sua expressão se alterava de acordo com o tema de suas observações e se acalmava tão logo minha sugestão punha termo à impressão nela causada pelo que dizia. Perguntei-lhe por que se assustava com tanta facilidade e ela respondeu: “Está relacionado com as lembranças de minha meninice.” “Quando?” “Primeiro, quando eu tinha cinco anos e meus irmãos e irmãs costumavam atirar animais mortos em mim. Foi aí que tive meu primeiro desmaio e espasmos. Mas minha tia disse que aquilo era uma vergonha e que eu não devia ter daqueles ataques, de modo que eles pararam. Depois me assustei de novo quando tinha sete anos, e inesperadamente, vi minha irmã no caixão; e outra vez quando contava oito anos e meu irmão me aterrorizou uma porção de vezes, enrolando-se em lençóis como um fantasma; e também quando tinha nove anos e vi minha tia no caixão e de repente o queixo dela caiu.”

É claro que essa série de causas desencadeadoras traumáticas que ela citou em resposta a minha pergunta sobre a razão de ser tão propensa a se assustar já estava pronta em sua memória. Ela não poderia ter reunido tão depressa esses episódios de diferentes períodos de sua infância no curto intervalo transcorrido entre minha pergunta e sua resposta. No fim de cada uma das histórias ela se crispava toda e assumia uma expressão de medo e horror. Ao final da última, escancarou a boca e ficou ofegante. As palavras com que descreveu o tema pavoroso de sua experiência foram pronunciadas com dificuldade e entremeadas de estertores. Depois, suas feições se tranqüilizaram.

Em resposta a uma pergunta, disse-me que enquanto descrevia essas cenas via-as diante de si, numa forma plástica e em suas cores naturais. Contou que, em geral, pensava nessas experiências com muita freqüência e o fizera nos últimos dias. Sempre que isso acontecia, via essas cenas com toda a nitidez da realidade. Compreendo agora por que tantas vezes ela me entretém com cenas de animais e quadros de cadáveres. Minha terapia consiste em eliminar esses quadros, de modo que ela não possa mais vê-los diante de si. Para reforçar minha sugestão, passei suavemente a mão por seus olhos várias vezes.

 

9 de maio, |manhã.| — Sem que lhe tivesse dado nenhuma outra sugestão, ela dormiu bem. Mas sentiu dores gástricas pela manhã. Estas surgiram ontem, no jardim, onde ela permaneceu muito tempo com as filhas. Concordou em que eu limitasse as visitas das moças a duas horas e meia. Alguns dias atrás recriminara a si própria por deixar as filhas sozinhas. Encontrei-a um tanto agitada hoje; a testa estava enrugada, a fala era hesitante e ela produzia aqueles estalidos característicos. Enquanto era massageada, disse-me apenas que a governanta das filhas lhe levara um atlas etnológico e que algumas fotografias de índios norte-americanos vestidos como animais lhe produziram um grande choque. “Pense só se eles ganhassem vida!” (Estremeceu.)

Sob hipnose perguntei-lhe por que se assustara tanto com essas fotografias, visto já não ter mais medo de animais. Respondeu que a tinham feito recordar as visões que tivera (aos dezenove anos) na época da morte do irmão. (Deixarei para depois as indagações sobre essa lembrança.) A seguir, perguntei-lhe se sempre gaguejara e há quanto tempo tinha o tique (o estalido peculiar): A gagueira, disse, surgira quando estava doente; tinha o tique há cinco anos, desde o tempo em que estivera sentada à cabeceira da filha mais nova, quando esta esteve muito doente, e desejara ficar absolutamente quieta. Tentei reduzir a importância dessa lembrança, ressaltando que, afinal de contas, nada acontecera à filha, e assim por diante. A coisa surgia, disse-me ela, sempre que ficava apreensiva ou assustada. Dei-lhe instruções para que não se assustasse com os retratos dos peles-vermelhas, mas que risse à vontade deles e até chamasse para eles minha atenção. E isso de fato aconteceu depois de ela despertar: olhou para o livro, perguntou-me se o tinha visto, abriu-o na página e riu alto das figuras grotescas, sem o menor indício de medo e sem que suas feições denotassem a menor tensão. O Dr. Breuer entrou subitamente com o médico interno para visitá-la. Ela se assustou e começou a produzir o estalido característico, de modo que eles logo se retiraram. A paciente me explicou que ficara agitada daquela maneira por ser desagradavelmente afetada pelo fato de o médico interno também entrar a todo instante.

Eu também havia eliminado suas dores gástricas durante a hipnose, tocando-a levemente no abdome, e lhe disse que, embora ela esperasse pelo retorno da dor depois do almoço, isso não aconteceria.

Noite. — Pela primeira vez ela se mostrou alegre e falante e deu mostras de um senso de humor que eu não teria esperado numa mulher tão séria; e entre outras coisas, com a acentuada sensação de estar melhor, zombou do tratamento feito por meu antecessor. De há muito pretendia, segundo me disse, desistir daquele tratamento, mas não conseguia encontrar o método certo de fazê-lo, até que uma observação fortuita feita pelo Dr. Breuer, numa ocasião em que a visitou, indicou-lhe a solução. Quando pareci surpreso com isso, assustou-se e começou a recriminar-se asperamente por ter sido indiscreta. Ao que parece, porém, consegui reassegurá-la. — Ela não tinha sentido as dores gástricas, embora as houvesse esperado.

Sob hipnose pedi-lhe que me contasse outras experiências que tivessem dado margem a um medo duradouro. Ela forneceu uma segunda seqüência dessa espécie, que datava do final de sua juventude, com a mesma rapidez da primeira seqüência, e me assegurou mais uma vez que todas essas cenas surgiram diante dela muitas vezes, nitidamente e em cores. Uma delas era de como viu uma prima ser levada para um asilo de loucos (quando ela estava com quinze anos). Ela havia tentado pedir socorro, mas não conseguira e perdera a capacidade de falar até a noite do mesmo dia. Visto que ela falava em hospícios com muita freqüência em seu estado de vigília, interrompi-a e perguntei em que outras ocasiões ela se preocupara com a loucura. Ela me contou que sua própria mãe tinha passado algum tempo num hospício. Em certa época, tiveram uma empregada cuja antiga patroa estivera muito tempo internada numa dessas instituições e que costumava contar-lhes histórias aterradoras de como os pacientes eram amarrados a cadeiras, espancados, etc. Ao narrar-me isso, retorceu as mãos, horrorizada; estava vendo tudo diante dos olhos. Esforcei-me por corrigir-lhe as idéias sobre os manicômios e lhe assegurei que ela conseguiria ouvir falar de instituições dessa natureza sem referi-las a si mesma. Com isso, suas feições se relaxaram.

Prosseguiu com sua relação de lembranças aterradoras. Uma, aos quinze anos, de como encontrara a mãe, que tivera um derrame cerebral, estendida no chão (a mãe viveu mais quatro anos); de novo, aos dezenove, de como chegou a casa certo dia e encontrou a mãe morta, com o rosto contorcido. Naturalmente, tive uma dificuldade considerável em atenuar-lhe essas lembranças. Após uma explicação bastante longa, assegurei-lhe que também esse quadro só lhe surgiria outra vez de forma indistinta e sem intensidade. — Outra lembrança era a da maneira como, aos dezenove anos, ela levantou uma pedra e encontrou debaixo dela um sapo, o que a fez perder a fala durante horas.

Durante essa hipnose convenci-me de que ela sabia de tudo o que acontecera na última hipnose, enquanto na vida de vigília não tem nenhum conhecimento disso.

 

10 de maio, manhã. — Pela primeira vez, deram-lhe hoje um banho de farelo, em vez de seu habitual banho morno. Achei-a com uma expressão de aborrecimento e angústia, com as mãos envoltas num xale. Queixava-se de frio e dores. Quando lhe perguntei o que se passava, disse-me que o banho fora incomodamente curto e provocara dores. Durante a massagem, começou por dizer que ainda se sentia mal por ter atraiçoado o Dr. Breuer ontem. Acalmei-a com uma pequena mentira e disse que eu já sabia daquilo o tempo todo, ao que sua agitação (estalidos, trejeitos faciais) cessou. Todas as vezes, portanto, mesmo enquanto a massageio, minha influência já começa a afetá-la; a paciente fica mais tranqüila e mais lúcida, e mesmo sem que haja perguntas sob hipnose consegue descobrir a causa de seu mau humor daquele dia. Tampouco sua conversa durante a massagem é tão sem objetivo como poderia parecer. Pelo contrário, encerra uma reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas impressões que a afetaram desde nossa última conversa e, muitas vezes, de maneira bem inesperada, progride até as reminiscências patogênicas, que ela vai desabafando sem ser solicitada. É como se tivesse adotado meu método e se valesse de nossa conversa, aparentemente sem constrangimento e guiada pelo acaso, como um complemento de sua hipnose. Por exemplo, hoje começou a falar sobre sua família e, com muitos rodeios, passou ao assunto de um primo. Este não era muito bom da cabeça e os pais mandaram arrancar-lhe todos os dentes de uma só vez. Ela acompanhou a história com expressões de horror e ficou repetindo sua fórmula protetora (“Fique quieto! — Não diga nada! — Não me toque!”). Depois disso, seu rosto se descontraiu e ela ficou alegre. Assim, seu comportamento na vida de vigília é dirigido pelas experiências que teve durante o sonambulismo, embora acredite, enquanto está acordada, nada saber a respeito delas.

Sob hipnose repeti minha pergunta quanto àquilo que a perturbara e recebi as mesmas respostas, mas na ordem inversa: (1) sua conversa indiscreta de ontem, e (2) suas dores provocadas por ter sentido muito desconforto no banho. — Perguntei-lhe hoje o significado de sua frase “Fique quieto!”, etc. Explicou que, quando tinha pensamentos assustadores, temia que eles fossem interrompidos em seu curso, porque então tudo ficaria confuso e as coisas ficariam ainda piores. O “Fique quieto!” relacionava-se com o fato de que as formas animais que lhe apareciam quando ela se achava em mau estado começavam a mover-se e a atacá-la se alguém fizesse um movimento em sua presença. A exortação final “Não me toque!” provinha das seguintes experiências: contou-me como, quando o irmão estivera muito doente por ter ingerido muita morfina — ela estava com dezenove anos na ocasião — costumava muitas vezes agarrá-la, e como, de outra feita, um conhecido enlouquecera de súbito em sua casa e a tinha segurado pelo braço (houve um terceiro exemplo semelhante, do qual não se recordava com exatidão); e por último, como, quando tinha vinte e oito anos e a filha estava muito doente, a criança se agarrara nela com tanta força em seu delírio que ela quase fora sufocada. Embora esses quatro exemplos fossem tão separados no tempo, ela os relatou numa única frase e numa sucessão tão rápida que poderiam ter constituído um único episódio em quatro atos. A propósito, todos os relatos que me fazia de traumas como esses, dispostos em grupos, começavam por um “como”, sendo os traumas componentes separados por um “e”. Uma vez que percebi que a fórmula protetora se destinava a salvaguardá-la contra uma repetição dessas experiências, eliminei esse medo por meio da sugestão e, de fato, jamais a ouvi dizer a fórmula de novo.

Noite. — Encontrei-a muito animada. Contou-me, sorridente, que se assustara com um cãozinho que havia latido para ela no jardim. Seu rosto, porém, estava um pouco contraído, e havia certa agitação interna, que só desapareceu quando ela me perguntou se eu estava aborrecido com alguma coisa que ela dissera durante a massagem nessa manhã e respondi “não”. Sua menstruação recomeçou hoje, após um intervalo que mal chegou a uma quinzena. Prometi-lhe regulá-la por sugestão hipnótica e, sob hipnose, fixei o intervalo em 28 dias.

Em hipnose, também lhe perguntei se se recordava da última coisa que me contara; ao perguntar-lhe isso, o que eu tinha em mente era uma tarefa que restara da noite passada, mas ela começou, muito corretamente, pelo “não me toque” da hipnose de hoje de manhã. Assim, levei-a de volta ao assunto de ontem. Eu lhe havia perguntado qual a origem de sua gagueira e ela respondera “não sei”. Pedira-lhe, portanto, que se lembrasse disso na hora da hipnose de hoje. Em conseqüência, me respondeu hoje, sem nenhuma reflexão adicional, mas com grande agitação e com dificuldades espásticas na fala: “Como os cavalos certa vez saíram em disparada com as crianças na carruagem; e como outra vez eu estava passando de carruagem pela floresta com as meninas, durante uma tempestade, e uma árvore bem à frente dos cavalos foi atingida por um raio e os cavalos se assustaram e eu pensei: ‘Agora você precisa ficar bem quietinha, senão seus gritos vão assustar os cavalos ainda mais e o cocheiro não conseguirá contê-los de jeito nenhum.’ Surgiu a partir daquele momento.” A paciente ficou extraordinariamente agitada ao contar-me essa história. Soube também por ela que a gagueira tinha começado logo após a primeira dessas duas ocasiões, mas havia desaparecido pouco depois e então se estabelecera de uma vez por todas após a segunda ocasião semelhante. Apaguei sua lembrança plástica dessas cenas, mas pedi-lhe que as imaginasse mais uma vez. Ela pareceu tentar fazê-lo e permaneceu quieta enquanto atendia a meu pedido; a partir de então, falou durante a hipnose sem qualquer impedimento espástico.

Verificando que ela estava disposta a ser comunicativa, perguntei-lhe que outros fatos em sua vida a haviam assustado tanto a ponto de a terem deixado com lembranças plásticas. Ela respondeu fornecendo-me uma coleção de tais experiências: — |1| Como um ano após a morte da mãe, estava visitando uma francesa que era sua amiga, quando lhe disseram que fosse ao quarto contíguo com outra moça para buscar um dicionário e ela viu, sentado na cama, alguém que tinha a aparência idêntica à da mulher que ela acabara de deixar no outro aposento. Ficou toda rígida e pregada no chão. Depois, ficara sabendo que se tratava de um manequim especialmente preparado. Asseverei que o que a paciente tinha visto fora uma alucinação e apelei para seu bom senso, e então seu rosto se relaxou. |2| Como cuidara do irmão enfermo e este tivera acessos terríveis por causa da morfina, aterrorizando-a e agarrando-a. Lembrei que ela já havia mencionado essa experiência hoje de manhã e, a título de experimentação, perguntei-lhe em que outras ocasiões esse “agarramento” havia ocorrido. Para minha agradável surpresa, ela fez uma longa pausa dessa vez antes de responder e então perguntou, num tom de dúvida: “Minha filhinha?” Ficou inteiramente incapaz de recordar-se das outras duas ocasiões (ver atrás |em [1]|). Minha proibição — o apagamento de suas lembranças — tinha sido, portanto, eficaz. — E mais: |3| como, enquanto cuidava do irmão, o rosto pálido da tia havia aparecido de súbito por cima do biombo. Ela acabara de convertê-lo ao catolicismo.

Vi que havia chegado à raiz de seu constante temor das surpresas e pedi-lhe outros exemplos. Prosseguiu: como tinha na casa dela um amigo que gostava de entrar furtivamente no quarto, de modo que de repente estava lá; como ela ficara muito doente após a morte da mãe e fora para uma casa de saúde, e um lunático havia entrado por engano em seu quarto várias vezes, à noite, chegando bem perto de sua cama; e por fim, como, na vinda de Abbazia para cá, um estranho abrira quatro vezes a porta de sua cabine e cada vez fixara nela um olhar demorado. A Sra. Emmy tinha ficado tão apavorada que chegou a chamar o condutor.

Apaguei todas essas lembranças, despertei-a e lhe garanti que ela dormiria bem à noite, tendo deixado de fazer-lhe essa sugestão na hipnose. A melhora de seu estado geral foi revelada por sua observação de que não lera nada hoje, pois estava vivendo num sonho muito feliz — ela, que sempre tinha que estar fazendo alguma coisa em virtude de sua inquietude interior.

 

11 de maio, manhã. — Hoje teve uma entrevista com o Dr. N., o ginecologista, que deve examinar sua filha mais velha por causa das complicações menstruais. Encontrei a Sra. Emmy bastante agitada, embora isso se traduzisse em sinais físicos mais leves que antes. De vez em quando, exclamava: “Estou com medo, estou com tanto medo que acho que vou morrer.” Perguntei-lhe de que estava com medo. Era o Dr. N.? Não sabia, respondeu; simplesmente estava com medo. Sob a hipnose, que induzi antes da chegada de meu colega, declarou ter medo de que me tivesse ofendido por alguma coisa que dissera durante a massagem, ontem, que lhe parecera indelicada. Também tinha medo de tudo o que era novo e, por conseguinte, do novo médico. Consegui acalmá-la e, embora se assustasse uma ou duas vezes na presença do Dr. N., ela se comportou muito bem e não produziu nenhum de seus estalidos nem houve qualquer inibição da fala. Depois que ele se foi, tornei a colocá-la sob hipnose para eliminar qualquer possível resíduo da excitação provocada pela visita. Ela própria ficou muito contente com seu comportamento e depositou grandes esperanças no tratamento; tentei convencê-la, a partir desse exemplo, de que não é preciso ter medo do que é novo, já que o que é novo também contém o que é bom.

 

Noite. — Estava muito animada e desabafou um grande número de dúvidas e escrúpulos em nossa conversa antes da hipnose. Durante a hipnose, perguntei-lhe que acontecimento de sua vida havia produzido efeito mais duradouro sobre ela e que mais surgia em sua memória. A morte do marido, respondeu. Fiz com que me descrevesse esse fato com todos os pormenores e ela o fez, com todos os sinais da mais profunda emoção, mas sem nenhum estalido e sem gaguejar: — Como, começou a dizer, tinham ido a um lugar de que ambos gostavam muito na Riviera e, ao atravessarem uma ponte, ele caíra de repente no chão e lá ficara inerte por alguns minutos, mas depois se levantara, parecendo estar muito bem; como, pouco tempo depois, quando ela estava de cama após seu segundo parto, o marido, que estivera tomando o café da manhã numa mesinha ao lado de sua cama e lendo o jornal, levantara-se de súbito, olhando-a de modo muito estranho, dera alguns passos à frente e, em seguida, caíra morto; ela havia se levantado da cama, e os médicos que foram chamados se esforçaram para reanimá-lo, o que ela ouviu do quarto contíguo, mas em vão. E, prosseguiu a Sra. Emmy, como o bebê, que contava então algumas semanas de idade, fora tomado de grave moléstia, que durou seis meses, durante a qual ela própria ficara de cama com muita febre. — E vieram então, em ordem cronológica, suas reclamações contra essa criança, que ela externou rapidamente, com uma expressão zangada no rosto, da maneira como alguém falaria de uma pessoa que se houvesse tornado um incômodo. Essa criança, disse, se comportara de forma muito estranha por longo tempo; gritava o tempo todo e não dormia, e desenvolvera uma paralisia da perna esquerda cuja recuperação parecera apresentar muito poucas esperanças. Aos quatro anos, a criança tivera visões; aprendera a andar e a falar, tardiamente, de modo que por muito tempo fora julgada idiota. De acordo com os médicos, tivera encefalite e mielite e ela não sabia mais o quê. Interrompi-a nesse ponto e a fiz ver que essa mesma criança era hoje uma menina normal, que gozava de perfeita saúde, e impossibilitei-a de voltar a ver qualquer dessas coisas melancólicas, não apenas apagando suas lembranças das mesmas na forma plástica, mas também removendo toda a sua recordação dessas coisas, como se nunca tivessem existido em sua mente. Prometi-lhe que isso a levaria a libertar-se da expectativa de infortúnios que não cessava de atormentá-la e também das dores por todo o corpo, das quais se queixara precisamente durante sua narrativa, depois de passarmos vários dias sem ouvir falar nelas.

 

Para minha surpresa, depois dessa minha sugestão, ela começou a falar, sem qualquer transição, sobre o Príncipe L., cuja fuga de um hospício era objeto de muitos comentários nessa época. Externou novos temores sobre os hospícios — de que as pessoas que lá se encontravam recebiam duchas de água gelada na cabeça e eram postas num aparelho que as fazia girar ininterruptamente até se acalmarem. Quando, há três dias, ela se queixara pela primeira vez do seu medo dos hospícios, eu a havia interrompido após sua primeira história, a de que os pacientes eram amarrados a cadeiras. Vi então que nada tinha ganho com essa interrupção e que não posso me furtar a escutar suas histórias com todos os detalhes até a última palavra. Depois de reparar essas falhas, livrei-a também dessa nova safra de temores. Apelei para seu bom senso e lhe disse que ela realmente deveria acreditar mais em mim do que na moça tola de quem ouvira aquelas histórias horripilantes sobre a maneira como se trabalha nos hospícios. Como notei que ela às vezes ainda gaguejava ao narrar-me essas outras coisas, perguntei-lhe mais uma vez de onde provinha a gagueira. Nenhuma resposta. — “A senhora não sabe?” — “Não.” — “Por que não?” — “Por que não?” — “Porque não posso saber!” (Pronunciou estas últimas palavras com violência e raiva). Essa declaração me parece ser a prova do êxito de minha sugestão, mas ela me expressou o desejo de que a despertasse da hipnose, e assim fiz.

 

12 de maio, |manhã|. — Contrariamente a minha expectativa, ela dormira mal e por pouco tempo. Encontrei-a num estado de grande angústia, embora, incidentalmente, sem demonstrar seus costumeiros sinais físicos desta. Não disse o que estava acontecendo, mas apenas que tivera sonhos ruins e ficava vendo as mesmas coisas. “Como seria horrível”, disse, “se eles se tornassem realidade”. Durante a massagem, ela abordou alguns pontos em resposta a minhas perguntas. Ficou alegre então; falou-me de sua vida social na casa do Báltico que lhe coubera por morte do marido, das pessoas importantes que recebe da cidade vizinha, etc.

Hipnose. — Ela tivera alguns sonhos de horror. Os pés e braços das cadeiras se haviam transformado todos em cobras; um monstro com bico de abutre estraçalhava e comia todo o seu corpo; outros animais selvagens saltavam sobre ela, etc. Passou então a outros delírios com animais, que, contudo, qualificou acrescentando: “Isso foi real” (não um sonho): como (numa ocasião anterior) ela fora apanhar um novelo de lã e era um rato que saíra correndo; como estivera fazendo uma caminhada e um grande sapo saltara de repente sobre ela, e assim por diante. Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria de afastar dela suas impressões assustadoras uma a uma. Aproveitei também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores gástricas e de onde provinham. (Creio que todos os seus acessos de zoopsia |alucinações com animais| são acompanhados de dores gástricas.) Sua resposta, dada a contragosto, foi que não sabia. Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo: “Quando o levaram embora, não pude acreditar que ele estivesse morto.” (Estava, portanto, falando sobre o marido mais uma vez, e compreendi então que a causa de seu mau humor era que ela estivera sofrendo em virtude dos resíduos não revelados dessa história.) Depois disso, contou-me, odiara a filha por três anos, pois sempre disse a si mesma que talvez tivesse podido restaurar a saúde do marido se não estivesse de cama por causa da criança. Além disso, após a morte do marido, não tinha havido nada senão insultos e agitações. Os parentes dele, que sempre foram contra o casamento e que tinham ficado com raiva por eles serem tão felizes juntos, espalharam o boato de que ela o havia envenenado, de modo que ela desejara abrir um inquérito. Os parentes tinham-na envolvido em toda espécie de processos legais, com a ajuda de um jornalista suspeito. O miserável espalhara agentes a fim de incitar as pessoas contra ela. Fazia com que os jornais locais publicassem artigos difamantes a seu respeito e depois lhe mandava recortes. Essa fora a origem de sua insociabilidade e de seu ódio por todos os estranhos. Após eu dizer algumas palavras tranqüilizadoras sobre o que me contara, ela disse que se sentia melhor.

 

13 de maio, |manhã|. — Mais uma vez ela dormira mal, por causa de dores gástricas. Não tinha jantado. Também não se queixou de dores no braço direito. Mas estava de bom humor; mostrou-se alegre e, desde ontem, tem-me tratado com especial distinção. Pediu minha opinião sobre toda espécie de coisas que lhe pareciam importantes e ficou excessivamente agitada, por exemplo, quando tive de procurar as toalhas necessárias à massagem, e assim por diante. Seu estalido e seu tique facial eram freqüentes.

Hipnose. — Ontem à noite, súbito lhe ocorrera por que os animaizinhos que ela via se tornavam tão grandes. Isso lhe acontecera pela primeira vez em D —, durante um espetáculo teatral em que um enorme lagarto aparecia em cena. Essa lembrança a havia atormentado muito ontem também.

O motivo do reaparecimento dos estalidos foi que ontem ela teve dores abdominais e tentou não gemer para não demonstrá-las. Não tinha nenhuma idéia da verdadeira causa desencadeadora do estalido (ver em |[1]|.) Também se recordou de que eu lhe dera instruções para descobrir a origem de suas dores gástricas. Não o sabia, contudo, e me pediu que a ajudasse. Perguntei-lhe se, talvez, em alguma ocasião após uma grande excitação, ela se haveria forçado a comer. Ela confirmou isso. Após a morte do marido, perdera inteiramente o apetite por muito tempo e havia comido apenas por um sentimento de obrigação, e as dores gástricas haviam de fato começado naquela época. Eliminei então essas dores passando a mão algumas vezes sobre seu epigástrio. A seguir, por conta própria, ela começou a falar sobre as coisas que mais a haviam afetado. “Já lhe contei”, disse, “que não gostava da criança. Mas devo acrescentar que ninguém poderia adivinhar isso por meu comportamento. Fiz tudo o que era necessário. Até hoje me recrimino por ter gostado mais da primogênita”.

 

14 de maio, |manhã.| — Estava bem e alegre e dormira até 7h30min da manhã. Queixou-se apenas de ligeiras dores na região radial da mão e na cabeça e rosto. O que ela me diz antes da hipnose vai adquirindo um significado cada vez maior. Hoje não teve quase nada de horrível para apresentar. Queixou-se de dores e perda de sensibilidade na perna direita. Disse-me que teve um surto de inflamação abdominal em 1871; mal se havia recuperado, ficou tratando do irmão doente, e foi então que as dores apareceram pela primeira vez, chegando até a levar a uma paralisia temporária da perna direita.

Durante a hipnose, perguntei-lhe se agora lhe seria possível participar da vida social, ou se ainda estava muito temerosa. Respondeu-me que ainda lhe era desagradável ter alguém de pé atrás dela ou mesmo a seu lado. A esse respeito, falou-me de outras ocasiões em que fora desagradavelmente surpreendida pelo súbito aparecimento de alguém. Certa feita, por exemplo, quando passeava com as filhas na ilha de Rügen, dois indivíduos de aparência suspeita haviam saído de uns arbustos e lhes dirigido insultos. Em Abbazia, quando estava passeando certa noite, um mendigo saíra de repente de detrás de uma pedra e se ajoelhara diante dela. Parece que era um louco inofensivo. Por último, contou-me como sua isolada casa de campo fora arrombada à noite, o que muito a havia alarmado. É fácil ver, entretanto, que a origem essencial desse medo das pessoas foi a perseguição a que ela se viu sujeita após a morte do marido.

Noite. — Embora parecesse muito animada, saudou-me com a exclamação: “Estou morta de medo; oh, mal posso lhe dizer, eu me odeio!” Afinal fui informado de que ela havia recebido a visita do Dr. Breuer e levara um susto ao vê-lo aparecer. Como ele percebeu isso, ela lhe assegurou que fora “só aquela vez”. Ficou profundamente penalizada por minha causa, por ter traído esse vestígio de seu antigo nervosismo. Em mais de uma ocasião tive oportunidade de notar, nestes últimos dias, o quanto ela é severa consigo mesma, como tende a se culpar com severidade pelos ínfimos sinais de negligência — quando as toalhas para a massagem não estão em seu lugar habitual ou quando o jornal para eu ler enquanto ela adormece não se encontra prontamente à mão. Após a eliminação da primeira e mais superficial camada de lembranças torturantes, sua personalidade moralmente supersensível, com tendência à autodepreciação, veio à tona. Tanto em seu estado de vigília como sob a hipnose, eu lhe disse (o que correspondeu ao velho preceito legal “de minimis non curat lex” que existe uma multidão de coisinhas insignificantes entre o que é bom e o que é mau — coisas sobre as quais ninguém precisa censurar-se. Ela não aceitou minha lição, suponho, tal como não o faria um monge medieval, que vê o dedo de Deus ou a tentação do Demônio em cada fato trivial de sua vida e que é incapaz de imaginar o mundo, sequer por um momento fugaz ou em seu menor recanto, como destituído de uma referência a ele próprio.

Em sua hipnose, ela trouxe à baila algumas outras imagens apavorantes (em Abbazia, por exemplo, via cabeças ensangüentadas em cada onda do mar). Fi-la repetir as instruções que lhe dera enquanto estava acordada.

 

15 de maio, |manhã.| — Ela dormira até as 8h30min da manhã, mas depois ficara inquieta, tendo-me recebido com ligeiros sinais de seu tique, dos estalidos e da inibição da fala. “Estou morta de medo”, disse mais uma vez. Em resposta a uma pergunta, falou-me que a pensão onde se encontravam suas filhas ficava no quarto andar de um prédio e lá se chegava de elevador. Ontem havia insistido em que as filhas usassem o elevador tanto para descer como para subir, e agora se recriminava por isso, porque não se devia confiar inteiramente no ascensor. O próprio dono da pensão tinha dito isso. Teria eu ouvido, perguntou, a história da Condessa Sch., que encontrara a morte em Roma num acidente dessa natureza? Por coincidência, conheço essa pensão e sei que o elevador é propriedade particular do dono da mesma; não me parece provável que esse homem, que chama uma atenção especial para o elevador num anúncio, fosse ele próprio advertir alguém contra sua utilização. Pareceu-me que teríamos aí uma das paramnésias acarretadas pela angústia. Dei a minha opinião à Sra. Emmy e consegui, sem nenhuma dificuldade, fazê-la rir da improbabilidade de seus temores. Exatamente por essa razão, não pude acreditar que esta fosse a causa da sua angústia e decidi formular a pergunta a sua consciência hipnótica. Durante a massagem, que hoje reiniciei após um intervalo de alguns dias, ela me contou uma série de histórias sem ligação umas com as outras, que talvez tenham sido reais — sobre um sapo que foi encontrado num porão, uma mãe excêntrica quecuidava do filho idiota de maneira estranha, uma mulher que foi trancada num hospício porque sofria de melancolia — e que revelavam o tipo de recordações que lhe passavam pela cabeça quando ela estava intranqüila. Depois de se livrar dessas histórias, ficou muito animada. Descreveu a vida em sua propriedade e seus contatos com homens preeminentes da Rússia teutônica e da Alemanha setentrional e, na verdade, achei extremamente difícil conciliar atividades desse tipo com o quadro de uma mulher tão gravemente neurótica.

Assim, perguntei-lhe em sua hipnose por que ela estava tão desassossegada esta manhã. Em vez de suas dúvidas sobre o elevador, informou-me ter sentido medo de que sua menstruação recomeçasse e tornasse a interferir na massagem.

 

Fiz então com que ela me contasse a história das dores na perna. Começou da mesma forma que ontem |falando sobre haver cuidado do irmão| e prosseguiu com uma longa série de exemplos de experiências, alternadamente aflitivas e irritantes, que tivera ao mesmo tempo que as dores na perna e cujo efeito fora o de torná-las cada vez piores, até mesmo a ponto de ela ficar com paralisia bilateral e perda de sensibilidade nas pernas. O mesmo se aplicava às dores do braço. Elas também surgiram enquanto a paciente cuidava de algum doente, ao mesmo tempo que as cãibras no pescoço.”Quanto a estas, fiquei sabendo apenas que se seguiram a alguns curiosos estados de inquietude acompanhados de depressão, que já existiam antes. Consistem num “aperto gelado” na nuca, juntamente com o surgimento da rigidez e um frio doloroso em todas as extremidades da paciente, incapacidade de falar e completa prostração. Duram de seis a doze horas. Falharam minhas tentativas de demonstrar que esse complexo de sintomas representava uma lembrança. Fiz-lhe algumas perguntas com a finalidade de descobrir se seu irmão, enquanto a paciente o assistia durante o delírio dele, alguma vez a agarrara pelo pescoço; mas ela negou e disse não saber de onde provinham esses acessos.

 

Noite. — Ela estava muito animada e demonstrava grande senso de humor. Contou-me, aliás, que o caso do elevador não era como me havia relatado. O proprietário só dissera aquilo para dar uma desculpa pelo fato de o elevador não ser utilizado para descer. Ela me fez um grande número de perguntas que nada tinham de patológicas. Tem sofrido de lancinantes dores no rosto, na mão junto ao polegar e na perna. Fica rígida e sente dores no rosto se ficar sentada sem se mexer ou se olhar fixamente para algum ponto por um período considerável de tempo. Quando levanta qualquer coisa pesada, isso lhe causa dores no braço. — O exame da perna direita revelou sensibilidade relativamente boa na coxa, alto grau de insensibilidade na parte inferior da perna e no pé e menor na região das nádegas e do quadril.

Sob hipnose, ela me informou que ocasionalmente ainda tem idéias assustadoras, como a de que algo pode acontecer com suas filhas, que elas poderiam adoecer ou morrer, ou que o irmão dela, que está agora em lua-de-mel, poderia sofrer um acidente, ou que a esposa dele poderia morrer (porque os casamentos de todos os seus irmãos e irmãs tinham sido muito curtos). Não consegui arrancar da paciente quaisquer outros temores. Proibi-a de sentir qualquer necessidade de se assustar quando não houvesse nenhum motivo para isso. Prometeu-me desistir disso “porque o senhor está pedindo”. Dei-lhe outras sugestões quanto às dores, à perna, etc.

 

16 de maio, |manhã|. — Ela havia dormindo bem. Queixava-se ainda de dores no rosto, braços e pernas. Estava muito alegre. Sua hipnose não rendeu nada. Apliquei um pincel farádico em sua perna insensibilizada.

Noite. — Sobressaltou-se assim que entrei: “Estou muito contente com sua vinda”, disse, “estou muito assustada”. Ao mesmo tempo, dava todos os sinais de terror, juntamente com a gagueira e o tique. Primeiro fiz com que me contasse, em estado de vigília, o que tinha acontecido. Retorcendo os dedos e estendendo as mãos para a frente, pintou um quadro nítido de seu terror ao dizer: “Um camundongo enorme passou de repente sobre minha mão no jardim e desapareceu num segundo; as coisas ficaram deslizando para trás e para a frente.” (Uma ilusão do jogo de sombras?) “Um bando inteiro de ratinhos estava sentado nas árvores. — O senhor não está ouvindo os cavalos batendo com as patas no circo? — Há um homem gemendo no quarto ao lado; deve estar sentindo dores depois de sua operação. — Será que estou em Rügen? Eu tinha uma estufa como essa lá?” Ela estava confusa com a multidão de pensamentos que se entrecruzavam em seu cérebro e com o esforço que fazia para separá-los do ambiente que a cercava de fato. Quando lhe formulei perguntas sobre coisas atuais, tais como se as filhas estavam aqui, não soube dar nenhuma resposta.

Tentei desembaraçar por meio da hipnose a confusão que lhe ia pela mente. Perguntei-lhe o que era que a assustava. Repetiu a história do camundongo, com todos os sinais de terror, e acrescentou que, quando descia os degraus, viu um animal horrível deitado, que desapareceu imediatamente. Disse-lhe que isso eram alucinações e lhe instruí para que não se assustasse com os camundongos; só os bêbados é que os viam (ela detestava bêbados). Contei-lhe a história do Bispo Hatto. Ela também a conhecia, e ouviu-a horrorizada. — “Como foi que a senhora veio a pensar no circo?” perguntei-lhe então. Disse-me que tinha ouvido claramente os cavalos batendo com as patas nos estábulos ali perto e acabando presos nos arreios, o que poderia machucá-los. Quando isso acontecia, Johann costumava sair para desamarrá-los. Neguei que houvesse estábulos por perto ou que alguém no quarto contíguo tivesse gemido. Ela sabia onde estava? Respondeu que agora sabia, mas antes pensara estar em Rügen. Perguntei-lhe como tinha chegado a essa lembrança. Tinham estado conversando no jardim, disse, sobre como fazia calor numa parte dele, e imediatamente lhe viera a idéia do terraço sem sombra em Rügen. Muito bem, perguntei-lhe, quais eram as recordações tristes que guardava de sua estada em Rügen? Ela citou uma série delas. Lá sentira as dores mais terríveis nas pernas e nos braços; quando saía em excursões, fora várias vezes apanhada por um nevoeiro e se perdera; duas vezes, quando passeava, um touro tinha corrido atrás dela, e assim por diante. Como é quando tinha tido essa crise hoje? — Como (respondeu)? Escrevera grande número de cartas; tinha levado três horas e isso lhe deixara a cabeça confusa. — Pude presumir, por conseguinte, que seu surto delirante fora provocado pelo cansaço e que seu conteúdo fora determinado por associações tais como a do lugar sem sombra do jardim, etc. Repeti todos os conselhos que tinha o hábito de lhe dar e deixei-a recomposta para dormir.

 

17 de maio, |manhã|. — Ela passou a noite muito bem. No banho de farelo que tomou hoje, deu alguns gritos, por ter confundido o farelo com vermes. Fui informado disso pela enfermeira. A própria paciente relutou em falar-me a respeito. Estava quase exageradamente alegre, mas interrompia-se com exclamações de horror e asco e fazia caretas que expressavam terror. Também gaguejou mais do que nos últimos dias. Contou-me haver sonhado, na noite passada, que estava caminhando sobre uma porção de sanguessugas. Na noite anterior tinha tido sonhos horríveis. Tivera que amortalhar um grande número de defuntos e colocá-los em caixões, mas não os tampava. (Obviamente, uma lembrança do marido.) Disse-me ainda que, no decurso de sua vida, tivera inúmeros incidentes com animais. O pior tinha sido com um morcego que ficara preso em seu guarda-roupa, de modo que ela se precipitara para fora do quarto sem nenhuma roupa. Para curá-la desse medo, o irmão lhe dera um belo broche com a forma de um morcego, mas ela nunca pudera usá-lo.

Sob hipnose, explicou-me que seu medo de vermes provinha de ter recebido como presente, certa vez, uma linda almofada para alfinetes; na manhã seguinte, porém, quando quis usá-la, uma porção de vermezinhos saíram da almofada, que tinha sido enchida com farelo que não estava bem seco. (Uma alucinação? Talvez um fato real.) Pedi-lhe que me contasse outras histórias de animais. Certa feita, disse ela, quando passeava com o marido num parque de São Petersburgo, todo o caminho que levava a um pequeno lago estava recoberto de sapos, de modo que foram obrigados a voltar. Houve épocas em que ela ficara impossibilitada de estender a mão para qualquer pessoa, temendo que a mão se transformasse num animal terrível, como tantas vezes tinha acontecido. Tentei libertá-la de seu medo de animais designando-os um por um e perguntando-lhe se tinha medo deles. Em alguns casos, respondeu “não”; em outros, “não devo ter medo deles”. Perguntei-lhe por que havia gaguejado e se mexido tanto ontem. Respondeu que sempre fazia isso quando estava muito assustada. — Mas por que tinha estado tão assustada ontem? — Porque todas as espécies de pensamentos opressivos lhe haviam passado pela cabeça no jardim: em particular, a idéia de como poderia impedir que algo se acumulasse de novo dentro dela depois que seu tratamento terminasse. Repeti as três razões que eu já lhe tinha dado para sentir-se reassegurada: (1) que ela se tornara mais sadia e mais capaz de ter resistência, (2) que adquiriria o hábito de contar seus pensamentos a alguém com quem mantivesse estreitas relações, e (3) que, daí por diante, consideraria indiferente um grande número de coisas que até então a haviam oprimido. Ela prosseguiu dizendo que também estivera preocupada porque não me havia agradecido pela visita que eu lhe fizera ao fim do dia, e temia que eu perdesse a paciência com ela em vista de sua recente recaída. Ficara muito perturbada e alarmada porque o médico interno perguntara a um senhor no jardim se ele agora se sentia capaz de enfrentar sua operação. A esposa estava sentada ao lado dele, e ela (a paciente) não pôde deixar de pensar que talvez aquela fosse a última noite do pobre homem. Após esta última explicação, sua depressão pareceu dissipar-se.

Noite. — Ela estava muito animada e satisfeita. A hipnose não produziu absolutamente nada. Dediquei-me a cuidar de suas dores musculares e restaurar-lhe a sensibilidade da perna direita. Isso foi conseguido com muita facilidade na hipnose, mas sua sensibilidade restaurada tornou a perder-se parcialmente quando ela despertou. Antes de eu deixá-la, externou seu espanto de que há tanto tempo não tivesse cãibras no pescoço, já que elas costumavam sobrevir antes de cada tempestade.

 

18 de maio. — Há anos não dormia tão bem como na noite passada. Depois do banho, porém, queixou-se de frio na nuca, contrações e dores no rosto, nas mãos e nos pés. Suas feições estavam tensas, e os punhos, cerrados. A hipnose não revelou qualquer conteúdo psíquico subjacente às cãibras no pescoço. Melhorei-as através de massagens, depois que ela havia despertado.

 

Espero que este resumo do histórico das três primeiras semanas do tratamento seja suficiente para fornecer um quadro nítido do estado da paciente, da natureza de meus esforços terapêuticos e da medida de seu êxito. Passarei agora a ampliar o relato do caso.

O delírio que acabo de descrever foi também a última perturbação importante no estado da Sra. Emmy von N. Visto que eu não tomava a iniciativa de procurar os sintomas e sua base, mas esperava que algo surgisse na paciente ou que ela me revelasse algum pensamento que lhe estivesse causando angústia, suas hipnoses logo deixaram de produzir material. Assim, passei a usá-las principalmente com a finalidade de proporcionar-lhe máximas que ficassem sempre em sua mente e que a protegessem contra recaídas em estados semelhantes quando voltasse para casa. Naquela época, eu estava sob total influência do livro de Bernheim sobre sugestão e previa mais resultados dessas medidas didáticas do que o faria hoje. O estado de minha paciente melhorou tão depressa que ela logo me assegurou que não se sentia tão bem desde a morte do marido. Após um tratamento que durou ao todo sete semanas, permiti-lhe que voltasse para sua casa no Báltico.

Não fui eu, mas o Dr. Breuer, quem recebeu notícias dela cerca de sete meses depois. Seu estado de saúde continuara bom durante vários meses, mas depois havia voltado a piorar como resultado de um novo choque psíquico. Sua filha mais velha, durante a primeira estada de ambas em Viena, já havia tido, como a mãe, cãibras no pescoço e ligeiros estados histéricos; em particular, porém, sofrera de dores ao andar, em virtude de uma retroversão do útero. A conselho meu, procurara para tratamento o Dr. N., um de nossos mais famosos ginecologistas, que recolocara o útero em sua posição por meio de massagens, havendo ela ficado livre de problemas durante vários meses. Seus problemas reapareceram, contudo, enquanto as duas estavam em casa, e a mãe chamou um ginecologista da cidade universitária vizinha. Ele receitou para a moça um tratamento local e geral que, todavia, acarretou uma grave doença nervosa (ela estava, na época, com dezessete anos). É provável que isso já fosse um indício da sua predisposição patológica que iria manifestar-se um ano depois numa alteração do caráter. |Ver em [1].| A mãe, que havia entregue a moça às mãos dos médicos com sua habitual mistura de docilidade e desconfiança, foi dominada pelas mais violentas auto-recriminações após o infeliz resultado do tratamento. Uma associação de idéias que eu não tinha investigado levou-a à conclusão de que eu e o Dr. N. éramos os responsáveis pela doença da filha, porque havíamos feito pouco caso da gravidade de seu estado. Por um ato de vontade, por assim dizer, ela desfez os efeitos do meu tratamento e de imediato recaiu nos estados dos quais eu a havia libertado. Um ilustre médico de suas redondezas, a quem procurou para obter orientação, juntamente com o Dr. Breuer, que se correspondia com ela, conseguiram convencê-la da inocência dos dois alvos de suas acusações; mas, mesmo depois que isso se dissipou, a aversão formada contra mim nessa época permaneceu como um resíduo histérico, e ela declarou que lhe era impossível reiniciar o tratamento comigo. A conselho da mesma autoridade médica, recorreu à ajuda de um sanatório na Alemanha setentrional. Por desejo de Breuer, expliquei ao médico encarregado as modificações da terapia hipnótica que eu julgara eficazes no caso dessa paciente.

Essa tentativa de transferência falhou completamente. Desde o início ela parece ter mostrado uma disposição contrária ao médico. Esgotava-se na resistência ao que quer que fosse feito por ela. Ficou deprimida, perdeu o sono e o apetite e só se recuperou depois que uma amiga sua, que foi visitá-la no sanatório, na verdade a seqüestrou às escondidas e tratou-a em sua casa. Pouco tempo depois, exatamente um ano após seu primeiro encontro comigo, ela estava de novo em Viena e mais uma vez se entregou a meus cuidados.

Achei-a muito melhor do que esperava pelos relatos que recebera por carta. Podia movimentar-se e estava livre da angústia, e grande parte do que eu conseguira um ano antes ainda se mantinha. Sua principal queixa era com relação a freqüentes estados de confusão — “tempestades na cabeça”, como as denominava. Além disso, sofria de insônia e muitas vezes ficava em prantos por horas a fio. Sentia-se triste numa determinada hora do dia (cinco horas). Esse era o horário habitual em que, no inverno, pudera visitar a filha na casa de saúde. Gaguejava e emitia o estalido com grande freqüência e esfregava as mãos como se estivesse enfurecida, e quando lhe perguntei se estava vendo muitos animais, apenas respondeu: “Oh, fique quieto!”

À minha primeira tentativa de induzir a hipnose, cerrou os punhos e exclamou: “Não deixarei que me apliquem nenhuma injeção antipirética; prefiro ter minhas dores! Não gosto do Dr. R.; ele me é antipático.” Compreendi que ela estava presa à lembrança de ser hipnotizada no sanatório, e acalmou-se tão logo eu a trouxe de volta à situação atual.

Logo no início do tratamento |reiniciado| tive uma experiência instrutiva. Eu lhe havia perguntado há quanto tempo a gagueira voltara, e ela respondera de forma hesitante (sob hipnose) que tinha sido desde um choque que experimentara em D — durante o inverno. Um garçom do hotel em que estava hospedada havia se escondido em seu quarto de dormir. Na escuridão, disse ela, confundira o objeto com um sobretudo e estendera a mão para apanhá-lo, tendo o homem de repente “dado um pulo para o alto”. Eliminei essa imagem mental e, de fato, a partir daquele momento, ela deixou de gaguejar visivelmente, quer na hipnose, quer na vida de vigília. Não me recordo do que foi que me levou a testar o êxito da minha sugestão, mas quando voltei na mesma noite, perguntei-lhe, num tom aparentemente inocente, como eu poderia trancar a porta quando fosse embora (quando ela estivesse deitada dormindo), de modo que ninguém pudesse entrar furtivamente no quarto. Para meu assombro, ela levou um susto horrível e começou a rilhar os dentes e esfregar as mãos. Revelou que tivera um choque violento desse tipo em D —, mas não consegui persuadi-la a me contar a história. Percebi que tinha em mente a mesma história que me narrar aquela manhã, durante a hipnose, e que eu julgara haver apagado. Em sua hipnose seguinte, contou-me a história com maior riqueza de detalhes e maior verossimilhança. Agitada, estivera andando pelo corredor de um lado para o outro e encontrara aberta a porta do quarto da empregada. Tentou entrar e sentar-se. A empregada lhe bloqueou o caminho, mas a paciente não se deixou deter e entrou, e foi então que viu contra a parede o objeto escuro que veio a se revelar como sendo um homem. Evidentemente, o fator erótico dessa pequena aventura é que a levara a fazer um relato falso da mesma. Isso me ensinou que uma história incompleta sob hipnose não produz nenhum efeito terapêutico. Acostumei-me a considerar incompleta qualquer história que não trouxesse nenhuma melhora, e aos poucos tornei-me capaz de ler nos rostos dos pacientes se eles não estariam ocultando uma parte essencial de suas confissões.

O trabalho que tive de levar a efeito com ela nessa ocasião consistiu em lidar, por meio da hipnose, com as impressões desagradáveis que ela recebera durante o tratamento da filha e quando de sua própria estada no sanatório. Ela estava cheia de raiva, reprimida, pelo médico que a tinha obrigado, sob hipnose, a soletrar a palavra “s…a…p…o” e me fez prometer que jamais a faria dizer isso. A esse respeito, aventurei-me a fazer uma brincadeira prática numa de minhas sugestões a ela. Este foi o único abuso da hipnose — aliás um abuso muito inocente — cuja culpa para com essa paciente tenho de confessar. Assegurei-lhe que sua estada no sanatório em “-tal” |“vale”| se tornaria tão remota para ela que nem sequer conseguiria lembrar-se do nome, e sempre que quisesse referir-se a ele hesitaria entre “-berg” |“colina”|, “-tal”, “-wald” |“bosque”|, e assim por diante. Isso efetivamente aconteceu, e logo o único sinal remanescente de sua inibição da fala foi sua incerteza sobre esse nome. Por fim, após uma observação do Dr. Breuer, aliviei-a dessa paramnésia compulsiva.

Travei com o que ela descrevia como “as tempestades na cabeça” uma luta mais longa do que com os resíduos dessas experiências. Quando a vi pela primeira vez num desses estados, estava deitada no sofá com as feições transtornadas e todo o corpo em permanente agitação. Ficava a pressionar a testa com as mãos e a chamar, em tons de súplica e desânimo, o nome “Emmy”, que era o de sua filha mais velha e também o seu. Sob hipnose, confessou-me que esse estado era uma repetição dos numerosos acessos de desespero pelos quais se vira dominada durante o tratamento da filha, quando, depois de passar horas tentando descobrir algum meio de corrigir seus efeitos negativos, não se lhe apresentava nenhuma saída. Quando, em tais ocasiões, sentia que seus pensamentos ficavam confusos, adotava o hábito de chamar pelo nome da filha, de modo que pudesse ajudá-la a desanuviar a cabeça; e isso porque, durante o período em que a doença da filha lhe estava impondo novos deveres e ela sentia que seu próprio estado nervoso mais uma vez começava a dominá-la, ela determinou que o que quer que tivesse a ver com a moça devia ficar isento de confusão, por mais caótico que tudo o mais pudesse estar em sua cabeça.

 

No decurso de algumas semanas conseguimos eliminar também essas lembranças, e a Sra. Emmy permaneceu sob minha observação por mais algum tempo, sentindo-se perfeitamente bem. Ao final da sua estada aconteceu algo que passarei a descrever com pormenores, visto que lança a mais intensa luz sobre o caráter da paciente e a maneira pela qual seus estados se produziam.

Visitei-a um belo dia na hora do almoço e surpreendi-a no ato de atirar no jardim algo embrulhado em papel, que foi apanhado pelos filhos do porteiro. Em resposta à minha pergunta, ela admitiu que era o seu pudim (seco) e que a mesma coisa acontecia todos os dias. Isso me levou a investigar o que sobrava dos outros pratos e verifiquei que restava mais da metade da comida. Quando lhe perguntei por que comia tão pouco, respondeu que não tinha o hábito de comer mais e que passava mal se o fizesse; a Sra. Emmy tinha a mesma constituição do pai, que também tinha o hábito de comer pouco. Quando lhe perguntei o que bebia, disse-me que só podia tolerar líquidos espessos, como leite, café ou chocolate; beber água, comum ou mineral, lhe perturbava a digestão. Isso tinha todos os sinais de uma escolha neurótica. Tirei uma amostra de sua urina e verifiquei que estava altamente concentrada e sobrecarregada de uratos.

Julguei portanto aconselhável recomendar-lhe que bebesse mais e resolvi também aumentar a quantidade de seus alimentos. É verdade que ela de modo algum parecia magra a ponto de chamar atenção, mas mesmo assim achei que valeria a pena fazê-la comer mais um pouco. Quando, em minha visita seguinte, ordenei-lhe que ingerisse água alcalina e proibi-a de lidar com o pudim da maneira como fazia, demonstrou agitação considerável. “Farei isso porque o senhor está pedindo”, disse “mas posso dizer-lhe de antemão que dará mau resultado, porque é contrário à minha natureza, e o mesmo aconteceu com meu pai”. Quando lhe perguntei sob hipnose por que não podia comer mais nem beber água, respondeu num tom mal-humorado: “Não sei.” No dia seguinte, a enfermeira informou que ela havia comido tudo o que lhe fora servido e bebera um copo de água alcalina. Mas encontrei a própria Sra. Emmy numa profunda depressão e num estado de humor muito irritado. Queixou-se de sentir dores gástricas muito violentas. “Eu lhe disse o que aconteceria”, falou. “Sacrificamos todos os bons resultados pelos quais vimos lutando há tanto tempo. Estraguei minha digestão, como sempre acontece quando como mais ou bebo água, e agora terei de morrer de fome por cinco dias a uma semana antes que possa tolerar qualquer coisa.” Assegurei-lhe que não havia nenhuma necessidade de ela morrer de fome e que era impossível estragar a digestão dessa forma: suas dores se deviam somente à angústia em relação a comer e beber. Ficou claro que essa explicação minha não causou nela a mais leve impressão, pois quando, logo depois, tentei fazê-la dormir, pela primeira vez não consegui provocar a hipnose; e o olhar furioso que ela me dirigiu convenceu-me de que estava em franca rebelião e de que a situação era muito grave. Desisti de tentar hipnotizá-la e anunciei que lhe daria vinte e quatro horas para pensar bem e aceitar a opinião de que suas dores gástricas provinham apenas de seu medo. No fim desse período, eu lhe perguntaria se ainda era de opinião que sua digestão podia ser estragada por uma semana pela ingestão de um copo de água mineral e de uma modesta refeição; se ela dissesse que sim, eu lhe pediria que fosse embora. Essa pequena cena apresentava um acentuado contraste com nossas relações normais, que eram as mais amistosas.

Encontrei-a vinte e quatro horas depois, dócil e submissa. Quando lhe perguntei o que pensava sobre a origem de suas dores gástricas, ela respondeu, porque era incapaz de subterfúgios: “Penso que provêm da minha angústia, mas só porque o senhor é dessa opinião.” Em seguida, coloquei-a em hipnose e perguntei mais uma vez: “Por que a senhora não consegue comer mais?”

A resposta veio prontamente e consistiu, mais uma vez, numa série de razões dispostas em ordem cronológica a partir de seu acervo de lembranças: “Estou pensando em como, quando eu era criança, muitas vezes acontecia que, por malcriação, recusava-me a comer carne ao jantar. Minha mãe era muito severa a esse respeito e, sob a ameaça de um castigo exemplar, eu era obrigada, duas horas depois, a comer a carne, que era deixada no mesmo prato. A essa altura a carne já estava muito fria e a gordura, muito dura” (ela demonstrou sua repulsa) “…Ainda posso ver o garfo na minha frente… um de seus dentes era meio torto. Sempre que me sento à mesa vejo os pratos diante de mim, com a carne e a gordura frias. E me lembro como, muitos anos depois, morei com meu irmão, que era oficial e teve aquela doença horrível. Eu sabia que era contagiosa e tinha um medo terrível de apanhar sua faca e seu garfo por engano” (estremeceu) “…e apesar disso, fazia minhas refeições com ele, para que ninguém soubesse que ele estava doente. E como, logo depois disso, cuidei de meu outro irmão quando esteve muito doente de tuberculose. Sentávamos ao lado de sua cama, e a escarradeira ficava sempre sobre a mesa, aberta” (estremeceu de novo) “…ele tinha o hábito de escarrar por sobre os pratos na escarradeira. Isso sempre me provocava muita náusea, mas eu não podia demonstrá-la, temendo magoar os sentimentos dele. E essas escarradeiras ainda estão na mesa sempre que faço uma refeição, e ainda me causam náuseas.” Naturalmente, removi com cuidado todo esse conjunto de fomentadores da repulsa e então lhe perguntei por que ela não conseguia beber água. Quando tinha dezessete anos, respondeu, a família havia passado alguns meses em Munique e quase todos os membros haviam contraído catarro gástrico, graças à água potável de má qualidade. No caso dos outros, o distúrbio foi logo aliviado pelos cuidados médicos, mas com ela havia persistido. Tampouco melhorara com a água mineral que lhe fora recomendada. Quando o médico a receitou, ela logo pensou: “isso não vai adiantar nada”. A partir daquela ocasião, essa intolerância pela água comum e pela água mineral repetiu-se inúmeras vezes.

O efeito terapêutico dessas descobertas sob hipnose foi imediato e duradouro. Ela não passou fome durante uma semana, mas logo no dia seguinte comeu e bebeu sem nenhuma dificuldade. Dois meses depois, informou-me numa carta: “Estou comendo muitíssimo bem e ganhei bastante peso. Já bebi quarenta garrafas de água. O senhor acha que devo continuar?”

Revi a Sra. von N. na primavera do ano seguinte em sua propriedade rural perto de D—. Nessa ocasião, sua filha mais velha, por cujo nome ela havia chamado durante suas “tempestades na cabeça”, entrou numa fase de desenvolvimento anormal. Exibia ambições desenfreadas, inteiramente desproporcionais a seus escassos dons, e tornou-se desobediente e até violenta para com a mãe. Eu ainda gozava da confiança da Sra. Emmy e fui chamado para dar minha opinião sobre o estado da moça. Tive uma impressão desfavorável da alteração psicológica que se processara na jovem e, para chegar a um prognóstico, também tive que levar em conta o fato de que todos os seus meio-irmãos e irmãs (os filhos do primeiro matrimônio do Sr. von N.) tinham sucumbido à paranóia. Também na família de sua mãe não faltava uma hereditariedade neuropática, embora nenhum de seus parentes mais próximos houvesse desenvolvido psicose crônica. Comuniquei à Sra. von N., sem qualquer reserva, a opinião que me havia pedido, e ela a recebeu com calma e compreensão. Ela havia engordado, e sua saúde era florescente. Tinha-se sentido relativamente bem durante os nove meses decorridos desde o término de seu último tratamento. Fora perturbada apenas por ligeiras cãibras no pescoço e outros males de pequena monta. Nos vários dias que passei em sua casa vim a compreender, pela primeira vez, toda a extensão de seus deveres, ocupações e interesses intelectuais. Conheci também o médico da família, que não tinha muitas queixas da paciente: logo, até certo ponto, ela fizera as pazes com a profissão médica.

Em inúmeros aspectos, portanto, ela estava mais saudável e mais apta; porém, apesar de todas as minhas sugestões de melhora, verificara-se pouca alteração em seu caráter fundamental. Ela não parecia ter aceito a existência de uma categoria de “coisas sem importância”. Sua inclinação para atormentar-se era muito pouco menor do que na época do tratamento, e tampouco sua disposição histérica estivera estagnada durante esse bom período. Ela se queixava, por exemplo, de uma impossibilidade de fazer viagens de trem, de qualquer duração. Isso aparecera nos últimos meses. Uma tentativa necessariamente apressada de aliviá-la dessa dificuldade resultou apenas na produção de diversas impressões desagradáveis e insignificantes deixadas por algumas viagens recentes que ela fizera a D— e suas imediações. Entretanto, ela parecia relutar em ser comunicativa sob hipnose, e comecei mesmo a suspeitar de que estava a ponto de se afastar mais uma vez da minha influência e de que a finalidade secreta de sua inibição em relação aos trens era impedir que fizesse uma nova viagem a Viena.

Foi também durante esses dias que ela formulou suas queixas a respeito de lacunas na memória, “em especial quanto aos fatos mais importantes” |ver em [1]|, donde concluí que o trabalho que eu executara dois anos antes tinha sido inteiramente eficaz e duradouro. — Um dia, ela passeava comigo por uma avenida que se estendia da casa até uma enseada no mar e me arrisquei a perguntar se o caminho costumava ficar infestado de sapos. Como resposta, ela me lançou um olhar de censura, embora não acompanhado de sinais de horror; ampliou isso um momento depois, com as palavras “mas os daqui são reais”. Durante a hipnose, que induzi para lidar com sua inibição a respeito dos trens, ela própria pareceu insatisfeita com as respostas que me deu e externou o temor de que, no futuro, era provável que fosse menos obediente sob hipnose do que antes. Decidi-me a convencê-la do contrário. Escrevi algumas palavras num pedaço de papel, entreguei-o a ela e disse: “No almoço de hoje a senhora me servirá um copo de vinho tinto, da mesma forma que ontem. Quando eu levar o copo aos lábios, a senhora dirá: ‘Oh, por favor, sirva-me também um copo de vinho’, e quando eu estender a mão para apanhar a garrafa, dirá: ‘Não, obrigada; afinal, acho que não vou querer’. A senhora então porá a mão em sua bolsa, retirará dela um pedaço de papel e encontrará essas mesmas palavras escritas nele”. Isso foi pela manhã. Algumas horas depois, o pequeno episódio ocorreu exatamente como eu o havia predisposto, e de maneira tão natural que nenhuma das muitas pessoas presentes notou qualquer coisa. Quando me pediu o vinho, ela revelou visíveis sinais de uma luta interna — pois nunca bebia vinho — e depois de haver recusado a bebida com evidente alívio, pôs a mão na bolsa e retirou o pedaço de papel em que figuravam as últimas palavras que havia pronunciado. Balançou a cabeça e olhou-me com assombro.

Após minha visita em maio de 1890, minhas notícias da Sra. von N.foram ficando cada vez mais escassas. Soube indiretamente que o estado deplorável da filha, que lhe causava todas as espécies de aflições e agitações, acabou por minar-lhe a saúde. Por fim, no verão de 1893, recebi dela um bilhete pedindo-me permissão para ser hipnotizada por outro médico, visto que voltara a ficar doente e não podia vir a Viena. A princípio, não compreendi por que minha permissão era necessária, até me recordar que, em 1890, por sua própria solicitação, eu a havia protegido de ser hipnotizada por qualquer outra pessoa, para que não houvesse nenhum risco de ela ficar aflita ao se colocar sob o controle de algum médico que lhe fosse antipático, tal como acontecera em -berg (-tal, -wald). Por conseguinte, renunciei por escrito a minha prerrogativa exclusiva.

 

 

DISCUSSÃO

 

A menos que tenhamos em primeiro lugar chegado a um acordo completo sobre a terminologia em jogo, não é fácil resolver se um caso particular deve ser considerado como sendo de histeria ou de alguma outra neurose (refiro-me aqui às neuroses que não são de tipo puramente neurastênico); e ainda temos de aguardar a mão orientadora que fixará os marcos fronteiriços na região das neuroses mistas, que ocorrem comumente, e que trará à tona os aspectos essenciais para a caracterização destas. Por conseguinte, se ainda estivermos acostumados a diagnosticar uma histeria, no sentido mais estrito do termo, por sua semelhança com casos típicos já conhecidos, dificilmente poderemos questionar o fato de que o caso da Sra. Emmy von N. era de histeria. O caráter brando de seus delírios e alucinações (enquanto suas outras atividades mentais permaneciam intactas), a modificação de sua personalidade e de seu acervo de lembranças quando se encontrava num estado de sonambulismo artificial, a anestesia em sua perna dolorida, certos dados revelados em sua anamnese, sua nevralgia ovariana, etc. não admitem dúvida quanto à natureza histérica da doença, ou, pelo menos, da paciente. Se alguma questão pode ser levantada, é apenas graças a um aspecto particular do caso, que também dá oportunidade para um comentário de validade geral. Como explicamos na “Comunicação Preliminar” que aparece no início deste volume, consideramos os sintomas histéricos como efeitos e resíduos de excitações que atuaram sobre o sistema nervoso como traumas. Não há permanência de resíduos dessa natureza quando a excitação original é descarregada por ab-reação ou pela atividade do pensamento. Não é mais possível, a esta altura, evitar a introdução da idéia de quantidades (ainda que não mensuráveis). Devemos considerar o processo como se uma soma de excitação, atuando sobre o sistema nervoso, se transformasse em sintomas crônicos, na medida em que não fosse empregada em ações externas na proporção de sua quantidade. Ora, estamos habituados a verificar que, na histeria, uma parte considerável dessa “soma de excitação” do trauma é transformada em sintomas puramente somáticos. Foi essa característica da histeria que por tanto tempo atrapalhou seu reconhecimento como um distúrbio psíquico.

Se, para sermos breves, adotarmos o termo “conversão” para designar a transformação da excitação psíquica em sintomas somáticos crônicos, que é tão característica da histeria, podemos então dizer que o caso da Sra. Emmy von N. apresentava apenas uma pequena quantidade de conversão. A excitação, que era originariamente psíquica, permaneceu em sua maior parte nessa esfera, e é fácil compreender que isso lhe confere uma semelhança com as outras neuroses, não histéricas. Existem casos de histeria em que todo o excedente da estimulação sofre conversão, de modo que os sintomas somáticos da histeria se intrometem no que parece ser uma consciência inteiramente normal. A transformação incompleta, no entanto, é mais comum, de modo que pelo menos parte do afeto que acompanha o trauma persiste na consciência como um componente do estado emocional do indivíduo.

Os sintomas psíquicos em nosso atual caso de histeria, em que havia muito pouca conversão, podem ser divididos em alterações do humor (angústia, depressão melancólica), fobias e abulias (inibições da vontade). As duas últimas classes de perturbação psíquica são consideradas pela escola francesa de psiquiatria como estigmas da degenerescência neurótica, mas em nosso caso verifica-se que foram suficientemente determinadas por experiências traumáticas. Essas fobias e abulias eram, na sua maior parte, de origem traumática, como mostrarei com detalhes.

Algumas das fobias da paciente, é verdade, correspondiam às fobias primárias dos seres humanos, e especialmente dos neuropatas — em particular, por exemplo, seu medo de animais (cobras e sapos, bem como todos os vermes de que Mefistófeles se gabava de ser o senhor), de tempestades e assim por diante. Mas também essas fobias se firmaram mais graças a acontecimentos traumáticos. Assim, seu medo dos sapos foi fortalecido pela experiência, nos primeiros anos de infância, de um de seus irmãos lhe ter atirado um sapo morto, o que levou a seu primeiro acesso de espasmos histéricos |ver em [1]|; e de modo semelhante, seu medo de tempestades foi provocado pelo choque que deu lugar a seu estalido característico | ver em [1]|, e o medo de nevoeiros pelo passeio na Ilha de Rügen |ver em [1]|. Não obstante, neste grupo o medo primário — ou talvez se pudesse dizer o medo instintivo — (considerado como um estigma psíquico) desempenha o papel preponderante.

As outras fobias, mais específicas, também foram explicadas por acontecimentos bem determinados. Seu temor de choques inesperados e súbitos era conseqüência da terrível impressão que teve ao ver o marido, que parecia estar gozando de ótima saúde, sucumbir a um ataque cardíaco diante de seus próprios olhos. Seu medo dos estranhos e das pessoas em geral revelou-se originário da época em que estava sendo perseguida pela família |do marido| e tendia a ver um agente deles em cada estranho, e de quando lhe pareceu provável que os estranhos soubessem das coisas que estavam sendo espalhadas por toda parte a respeito dela, por escrito e verbalmente |ver em [1]-[2]|. Seu medo dos hospícios e de seus ocupantes remontava a toda uma série de acontecimentos tristes ocorridos em sua família e às histórias despejadas em seus ouvidos atentos por uma empregada estúpida |ver em [1]|. Independentemente disso, essa fobia era sustentada, de um lado, pelo horror primário e instintivo que as pessoas sadias têm à loucura, e de outro, pelo medo sentido por ela, não menos do que por todos os neuróticos, de que ela mesma viesse a enlouquecer. Seu medo altamente específico de que houvesse alguém de pé atrás dela |ver em [1]| foi determinado por diversas experiências apavorantes na mocidade e mais tarde. Desde o episódio do hotel |ver em [1]|, que lhe foi especialmente aflitivo por causa de suas implicações eróticas, seu medo de que um estranho se esgueirasse para seu quarto foi muito acentuado. Por fim, seu medo de ser enterrada viva, que partilhava com tantos neuropatas, era inteiramente explicado por sua crença de que o marido não estava morto quando seu corpo foi levado — crença esta que expressava de modo tão comovente sua incapacidade de aceitar o fato de que sua vida com o homem a quem amava chegara a um fim súbito. Na minha opinião, contudo,todos esses fatores psíquicos embora possam responder pela escolha dessas fobias, não podem explicar-lhe a persistência. É necessário, julgo eu, acrescentar um fator neurótico para explicar sua persistência — o fato de que a paciente vinha vivendo há anos em estado de abstinência sexual. Tais circunstâncias se acham entre as causas mais freqüentes de uma tendência à angústia.

As abulias de nossa paciente (inibições da vontade, incapacidade de agir) admitem ainda menos que as fobias sejam consideradas como estigmas psíquicos causados por uma limitação geral da capacidade. Pelo contrário, a análise hipnótica do caso tornou claro que suas abulias eram determinadas por um duplo mecanismo psíquico — o qual, no fundo, era um só. Em primeiro lugar, uma abulia pode ser simples conseqüência de uma fobia. Isso ocorre quando a fobia se acha ligada a uma ação do próprio sujeito, e não a uma expectativa |de um fato externo| — por exemplo, em nosso caso atual, o medo de sair ou de se relacionar com as pessoas, em contraste com o medo de alguém se esgueirar para dentro do quarto. Aqui, a inibição da vontade é causada pela angústia concomitante à realização da ação. Seria errado considerar tais espécies de abulias como sintomas distintos das fobias correspondentes, embora se deva admitir que essas fobias podem existir (contanto que não sejam graves demais) sem produzir abulias. A segunda classe de abulias depende da presença de associações carregadas de afeto e não resolvidas que se oponham à vinculação com outras associações, e particularmente com qualquer uma que seja incompatível com elas. A anorexia da nossa paciente oferece o mais brilhante exemplo dessa espécie de abulia |ver em [1] |. Ela comia tão pouco por não gostar do sabor, e não podia apreciar o sabor porque o ato de comer, desde os primeiros tempos, se vinculara a lembranças de repulsa cuja soma de afeto jamais diminuíra em qualquer grau; e é impossível comer com repulsa e prazer ao mesmo tempo. Sua antiga repulsa às refeições permanecera inalterada porque ela era constantemente obrigada a reprimi-la, em vez de livrar-se dela por reação. Na infância ela fora forçada, sob ameaça de punição, a comer a refeição fria que lhe era repugnante, e nos anos posteriores tinha sido impedida, por consideração aos irmãos, de externar os afetos a que ficava exposta durante suas refeições em comum.

 

Neste ponto, talvez deva referir-me a um pequeno artigo no qual tentei dar uma explicação psicológica das paralisias histéricas (Freud 1893c). Nele cheguei à hipótese de que a causa dessas paralisias residiria na inacessibilidade a novas associações por parte de um grupo de representações vinculadas, digamos, a uma das extremidades do corpo; essa inacessibilidade associativa dependeria, por sua vez, do fato de a representação do membro paralisado estar ligada à lembrança do trauma — uma lembrança carregada de afeto que não fora descarregado. Mostrei, a partir de exemplos extraídos da vida cotidiana, que uma catexia como essa, de uma representação cujo afeto não foi decomposto, envolve sempre uma certa dose de inacessibilidade associativa e de incompatibilidade com novas catexias.

Até agora não consegui confirmar, por meio da análise hipnótica, essa teoria sobre as paralisias motoras, mas posso citar a anorexia da Sra. von N. como prova de que esse mecanismo é o que opera em certas abulias, e de que as abulias nada mais são que uma espécie altamente especializada — ou, para usar uma expressão francesa, “sistematizada” — de paralisia psíquica.

A situação psíquica da Sra. von N. pode ser caracterizada no seu essencial, ressaltando-se dois pontos. (1) Os afetos aflitivos vinculados a suas experiências traumáticas tinham ficado indecompostos — por exemplo, sua depressão, sua dor (pela morte do marido), seu ressentimento (por ser perseguida pelos parentes dele), sua repulsa (pelas refeições compulsórias), seu medo (das numerosas experiências assustadoras), e assim por diante. (2) Sua memória exibia uma intensa atividade, que, ora espontaneamente, ora em reação a um estímulo contemporâneo (por exemplo, as notícias da revolução em São Domingos |ver em [1]|), trazia seus traumas e os afetos concomitantes, pouco a pouco, até sua consciência atual. Minha conduta terapêutica baseou-se nessa atividade de sua memória, e esforcei-me todos os dias para resolver e livrar-me de tudo o que cada dia trazia à tona, até que o acervo acessível de suas lembranças patológicas pareceu estar esgotado.

Essas duas características psíquicas, que considero como geralmente presentes nos paroxismos histéricos, abriram caminho para muitas considerações importantes. Adiarei, contudo, a discussão das mesmas até que tenha dispensado certa atenção ao mecanismo dos sintomas somáticos.

Não é possível atribuir a mesma origem a todos os sintomas somáticos desses pacientes. Pelo contrário, mesmo a partir deste caso, que não os apresentava em grande número, verificamos que os sintomas somáticos de uma histeria podem surgir de várias maneiras. Ousarei, em primeiro lugar, incluir as dores entre os sintomas somáticos. Até onde posso ver, um grupo de dores da Sra. von N. fora por certo organicamente determinado por ligeiras modificações (de natureza reumática) nos músculos, tendões ou feixes, que causam muito mais dor nos neuróticos do que nas pessoas normais. Outro grupo de dores era, com certeza, as lembranças de dores — eram símbolos mnêmicos das épocas de agitação e cuidados prestados aos doentes, épocas que desempenharam papel de grande relevância na vida da paciente. É bem possível que essas dores também se tenham justificado, originariamente, em bases orgânicas, mas foram depois adaptadas para as finalidades da neurose. Baseio estas afirmativas sobre as dores da Sra. von N. principalmente em observações feitas em outro caso, as quais relatarei mais adiante. Quanto a este ponto particular, poucas informações puderam ser colhidas com a própria paciente.

Alguns dos notáveis fenômenos motores revelados pela Sra. von N. eram simplesmente expressão das emoções e podiam ser reconhecidos com facilidade como tal. Assim, a maneira como estendia as mãos para a frente com os dedos separados e retorcidos expressava horror, do mesmo modo que seu jogo facial. Esta era, com certeza, uma maneira mais viva e desinibida de expressar as emoções do que era comum entre as mulheres de sua instrução e raça. Na realidade, ela própria era comedida, quase rígida em seus movimentos expressivos quando não se encontrava em estado histérico. Outros de seus sintomas motores estavam, de acordo com ela própria, relacionados diretamente com suas dores. Agitada, ela brincava com os dedos (1888) |ver em [1]| ou esfregava as mãos uma na outra (1889) |ver em [1]| para impedir-se de gritar. Esse raciocínio nos obriga a lembrar de um dos princípios formulados por Darwin para explicar a expressão das emoções — o princípio do extravasamento da excitação |Darwin, 1872, Cap. III|, que explica, por exemplo, por que os cães abanam as caudas. Todos nós estamos acostumados, ao sermos atingidos por estímulos dolorosos, a substituir o grito por outros tipos de inervações motoras. Uma pessoa que tenha tomado a firme decisão de, no consultório do dentista, conservar a cabeça e a boca imóveis, e não colocar a mão no caminho, poderá no mínimo começar a bater com os pés.

 

Um método mais complicado de conversão é revelado pelos movimentos semelhantes a tiques da Sra. von N., como estalar a língua e gaguejar, chamar pelo nome “Emmy” nos estados confusionais |ver em [1]| e empregar a expressão “Fique quieto! Não diga nada! Não me toque!” (1888) |ver em [1]|. Dessas manifestações motoras, a gagueira e o estalido com a língua podem ser explicados segundo um mecanismo que descrevi, num breve artigo sobre o tratamento de um caso por sugestão hipnótica (1892-93), como “o acionamento de idéias antitéticas”. O processo, tal como exemplificado em nosso caso atual |ver em [1]| seria como se segue. Nossa paciente histérica, esgotada pela preocupação e pelas longas horas de vigília junto ao leito da filha enferma que afinal adormecera, disse a si mesma: “Agora você precisa ficar inteiramente imóvel para não acordar a menina.” É provável que essa intenção tenha dado origem a uma representação antitética, sob a forma de um medo de que, mesmo assim, ela fizesse um ruído que despertasse a criança do sono que tanto esperara. Representações antitéticas como essa surgem em nós de forma marcante quando nos sentimos inseguros de poder pôr em prática alguma intenção importante.

Os neuróticos, em cujo sentimento a respeito de si mesmos é difícil deixar de encontrar uma veia de depressão ou de expectativa ansiosa, formam um número maior dessas idéias antitéticas do que as pessoas normais, ou as percebem com mais facilidade, e as consideram mais importantes. No estado de exaustão de nossa paciente a idéia antitética, que seria normalmente rejeitada, mostrou-se a mais forte. Foi essa idéia que entrou em ação e que, para horror da paciente, na realidade produziu o ruído que ela tanto temia. A fim de explicar todo o processo, pode-se ainda presumir que sua exaustão fosse apenas parcial; ela afetava, para empregarmos a terminologia de Janet e seus seguidores, apenas seu ego “primário”, e não resultava igualmente num enfraquecimento da representação antitética.

Pode-se ainda presumir que foi seu horror ao ruído produzido contra sua vontade que tornou traumático aquele momento e fixou o ruído em si como um sintoma mnêmico somático de toda a cena. Creio, realmente, que o caráter do próprio tique, que consistia numa sucessão de sons emitidos de forma convulsiva e separados por pausas e que melhor se assemelharia a estalidos, revela traços do processo ao qual devia sua origem. Parece ter havido um conflito entre a intenção dela e a idéia antitética (a contravontade), o que deu ao tique seu caráter descontínuo e confinou a representação antitética em outras vias que não as habituais para inervar o aparelho muscular da fala.

A inibição espástica da fala da paciente — sua gagueira peculiar — era o resíduo de uma causa excitante fundamentalmente similar |ver em [1]-[2]|. Nesse caso, contudo, não foi o resultado da inervação final — a exclamação — mas o próprio processo de inervação — a tentativa de inibição convulsiva dos órgãos da fala — que foi transformado num símbolo do acontecimento em sua memória.

Esses dois sintomas, o estalido e a gagueira, que estavam assim intimamente relacionados pela história de sua origem, continuaram a se associar e se transformaram em sintomas crônicos após se repetirem numa ocasião semelhante. A partir daí, passaram a ser utilizados em mais um sentido. Tendo-se originado num momento de violento pavor, foram desde então ligados a qualquer medo (de acordo com o mecanismo da histeria monossintomática, que será descrito no Caso 5 |ver em [1] |), mesmo quando o medo não podia levar ao acionamento de uma representação antitética.

Os dois sintomas acabaram sendo vinculados a tantos traumas, e tiveram tantas razões para serem reproduzidos na memória, que passaram a interromper sempre a fala da paciente, sem nenhuma causa específica, à maneira de um tique sem significado. A análise hipnótica, entretanto, pôde demonstrar quanto significado se ocultava por trás desse aparente tique; e se o método de Breuer não conseguiu, nesse caso, eliminar de todo os dois sintomas de um só golpe, foi porque a catarse se estendera apenas aos três traumas principais, e não aos traumas associados de forma secundária.

 

Segundo as normas que regem os ataques histéricos, a exclamação “Emmy” durante seus acessos de confusão reproduzia, como havemos de recordar, seus freqüentes estados de desamparo durante o tratamento da filha. Essa exclamação estava ligada ao conteúdo do ataque por um complexo encadeamento de idéias e sua natureza era a fórmula protetora contra o ataque. A exclamação, por uma aplicação mais ampla do seu significado, provavelmente degeneraria num tique, como de fato já havia acontecido no caso da complicada fórmula protetora “Não me toque”, etc. Em ambas as situações o tratamento hipnótico impediu qualquer outra progressão dos sintomas; mas a exclamação “Emmy” mal havia surgido, e apanhei-a enquanto ainda estava em seu solo nativo, restrito aos ataques de confusão.

Como vimos, esses sintomas motores se originaram de várias maneiras: por meio do acionamento de uma representação antitética (como no estalido), por uma simples conversão da excitação psíquica em atividade motora (como na gagueira), ou por uma ação voluntária durante um paroxismo histérico (como nas medidas protetoras exemplificadas pela exclamação “Emmy” e pela fórmula mais longa). Mas como quer que esses sintomas motores se tenham originado, todos têm uma coisa em comum. Pode-se demonstrar que possuem uma ligação originária ou de longa data com os traumas, e representam símbolos destes nas atividades da memória.

Outros dos sintomas somáticos da paciente não eram em absoluto de natureza histérica. Isto se aplica, por exemplo, às cãibras no pescoço, que considero como uma forma modificada de enxaqueca |ver em [1]| e que, como tal, não devem ser classificadas como uma neurose, mas como um distúrbio orgânico. Os sintomas histéricos, porém, ligam-se regularmente a tais distúrbios. As cãibras no pescoço da Sra. von N., por exemplo, eram empregadas para fins dos ataques histéricos, embora ela não tivesse a seu dispor a sintomatologia típica dos ataques histéricos.

Ampliarei esta descrição do estado psíquico da Sra. von N. com algumas considerações sobre as alterações patológicas de consciência que puderam ser observadas nela. Tais como suas cãibras no pescoço, os acontecimentos aflitivos presentes (cf. seu último delírio no jardim |em [1]|) ou qualquer coisa que a fizesse recordar com intensidade qualquer de seus traumas levavam-na a um estado de delírio. Em tais estados — e as poucas observações que fiz não me conduziram a nenhuma outra conclusão — havia uma limitação da consciência e uma compulsão a associar, semelhante à que predomina nos sonhos |em. [1]|; as alucinações e ilusões eram facilitadas até o mais alto grau e faziam-se inferências tolas ou mesmo disparatadas. Esse estado, que era comparável ao da alienação alucinatória, provavelmente representava um ataque. Poderia ser encarado como uma psicose aguda (servindo como equivalente de um ataque) que seria classificada como uma situação de “confusão alucinatória”. Uma outra semelhança entre esses seus estados e um ataque histérico típico foi mostrada pelo fato de que uma parcela das lembranças traumáticas enraizadas desde longa data podia em geral ser detectada como subjacente ao delírio. A transição de um estado normal para um delírio ocorria muitas vezes de forma imperceptível. Num dado momento, ela ia conversando de modo perfeitamente racional sobre assuntos de pequena importância emocional e, à medida que a conversa passava para idéias de natureza aflitiva, eu notava por seus gestos exagerados ou pelo surgimento de suas fórmulas habituais de fala, etc., que ela se encontrava num estado de delírio. No início do tratamento o delírio durava o dia inteiro, de modo que era difícil definir com certeza se quaisquer sintomas — como seus gestos — faziam parte de seu estado psíquico como meros sintomas de um ataque, ou se — como o estalido e a gagueira — tinham-se tornado autênticos sintomas crônicos. Muitas vezes, só após o evento é que era possível distinguir entre o que tinha acontecido num delírio e o que tinha acontecido em seu estado normal, pois os dois estados estavam separados em sua memória e, algumas vezes, ela ficava extremamente surpresa ao saber das coisas que o delírio havia introduzido aos poucos em sua conversa normal. Minha primeira entrevista com ela constituiu o exemplo mais marcante da maneira como os dois estados se entrelaçavam sem prestar nenhuma atenção um ao outro. Somente num momento dessa gangorra psíquica foi que sua consciência normal, em contato com o tempo presente, mostrou-se afetada: foi quando me deu uma resposta oriunda do delírio e disse ser “uma mulher que datava do século passado” |ver em [1]|.

A análise desses estados delirantes na Sra. von N. não foi realizada de forma completa, em virtude de ter sua condição melhorado tão depressa que os delírios se tornaram nitidamente diferenciados de sua vida normal e se restringiram aos períodos de suas cãibras no pescoço. Por outro lado, colhi grande número de informações sobre o comportamento da paciente num terceiro estado, o do sonambulismo artificial. Enquanto, em seu estado normal, ela não tinha nenhum conhecimento das experiências psíquicas ocorridas durante seus delírios e o sonambulismo, tinha acesso durante o sonambulismo, às lembranças de todos os três estados. A rigor, portanto, era no estado de sonambulismo que ela se encontrava no auge de sua normalidade. Realmente, se eu deixar de lado o fato de que no sonambulismo ela era muito menos reservada comigo do que em seus melhores momentos da vida cotidiana — isto é, que no sonambulismo me dava informações sobre sua família e coisas semelhantes, enquanto nas outras ocasiões me tratava como um estranho — e se, além disso, eu desprezar o fato de que ela exibia o grau pleno de sugestionabilidade que é característico do sonambulismo, serei forçado a dizer que durante o sonambulismo ela se achava num estado inteiramente normal. Era interessante observar que, por outro lado, seu sonambulismo não apresentava nenhum sinal de ser supernormal, mas estava sujeito a todas as falhas mentais que estamos acostumados a associar a um estado normal de consciência.

Os exemplos que se seguem esclarecem o comportamento de sua memória no sonambulismo. Certo dia, numa conversa, ela expressou seu encanto pela beleza de uma planta num vaso que decorava o saguão de entrada da casa de saúde. “Mas qual é o nome dela, doutor? O senhor sabe? Eu sabia seus nomes em alemão e latim, mas esqueci.” A paciente tinha amplo conhecimento de plantas, ao passo que fui obrigado, nessa ocasião, a admitir minha falta de preparo em botânica. Alguns minutos depois perguntei-lhe, sob hipnose, se ela agora sabia o nome da planta do saguão. Sem qualquer hesitação, respondeu: “O nome em alemão é ‘Tuerkenlilie’ |martagão|; esqueci mesmo o nome em latim.” De outra feita, quando se sentia bem de saúde, falou-me de uma visita que fizera às catacumbas romanas, mas não conseguia recordar-se de dois termos técnicos, nem pude eu ajudá-la. Logo depois perguntei-lhe, sob hipnose, quais as palavras que estavam em sua mente. Mas ela também não soube dizê-las em hipnose, de modo que lhe falei: “Não se preocupe mais com elas agora, mas quando estiver no jardim amanhã, entre cinco e seis da tarde — mais perto das seis do que das cinco — elas subitamente lhe ocorrerão.” Na noite seguinte, enquanto conversávamos sobre algo que não tinha nenhuma relação com as catacumbas, ela subitamente exclamou: “’Cripta’, doutor, e ‘Columbário’.” “Ah! essas são as palavras em que a senhora não conseguia pensar ontem. Quando foi que lhe ocorreram?” “Hoje à tarde no jardim, pouco antes de eu subir para meu quarto.” Vi que, com isso, ela queria que eu soubesse que havia seguido com precisão minhas instruções quanto ao horário, já que tinha o hábito de sair do jardim por volta das seis horas da tarde.

Vemos assim que mesmo no sonambulismo ela não tinha acesso a toda a extensão do seu conhecimento. Mesmo nesse estado havia uma consciência real e outra potencial. Muitas vezes acontecia que, quando eu lhe perguntava, durante seu sonambulismo, de onde provinha esse ou aquele fenômeno, ela franzia a testa e, depois de uma pausa, respondia num tom de desculpas: “Não sei.” Em tais ocasiões eu tinha adquirido o hábito de dizer: “Pense por um momento; virá sem nenhum rodeio”; e depois de breve reflexão, ela conseguia dar-me a informação desejada. Mas algumas vezes acontecia nada lhe ocorrer, e eu era obrigado a deixá-la com a tarefa de lembrar-se daquilo no dia seguinte, o que nunca deixou de acontecer.

Em sua vida cotidiana a Sra. von N. evitava escrupulosamente qualquer inverdade, e jamais mentiu para mim sob hipnose. Às vezes, contudo, dava-me respostas incompletas e retinha parte da história até eu insistir uma segunda vez para que a completasse. Em geral, como no exemplo citado em [1], era o desagrado inspirado pelo assunto que lhe fechava a boca no sonambulismo, assim como na vida cotidiana. Não obstante, apesar desses traços restritivos, a impressão causada por seu comportamento mental durante o sonambulismo era, no conjunto, a de um desinibido desenrolar de seus poderes mentais e de um pleno domínio sobre seu acervo de lembranças.

Embora não se possa negar que no estado de sonambulismo ela era altamente sugestionável, estava longe de exibir uma ausência patológica de resistência. Pode-se asseverar, de modo geral, que eu não lhe causava maior impressão nesse estado de que esperaria conseguir se estivesse procedendo a uma pesquisa dessa natureza sobre os mecanismos psíquicos de alguém em pleno gozo de suas faculdades e que tivesse plena confiança no que eu dizia. A única diferença era que a Sra. von N. era incapaz, no que era considerado seu estado normal, de ter para comigo tal atitude mental favorável. Quando, como aconteceu com sua fobia por animais, eu não conseguia apresentar-lhe razões convincentes, ou não penetrava na história psíquica da origem de um sintoma, mas tentava atuar por meio de sugestão autoritária, invariavelmente notava em seu rosto uma expressão tensa e insatisfeita; e quando, ao final da hipnose, perguntava-lhe se ainda tinha medo do animal, ela respondia: “Não… já que o senhor insiste.” Uma afirmação como esta, baseada apenas em sua obediência a mim, nunca tinha êxito, como também não o alcançavam as numerosas injunções genéricas que lhe fazia em lugar das quais bem poderia ter repetido a simples sugestão de que ela ficasse boa.

Mas essa mesma pessoa que se apegava tão obstinadamente a seus sintomas em face da sugestão e só os abandonava em resposta à análise psíquica ou à convicção pessoal era, por outro lado, tão dócil quanto a melhor paciente encontrável em qualquer hospital, no que dizia respeito às sugestões irrelevantes — na medida em que se tratasse de assuntos não relacionados com sua doença. Já apresentei exemplos de sua obediência pós-hipnótica ao longo do relato do caso. Não me parece haver nada de contraditório nesse comportamento. Também aqui a idéia mais forte estava destinada a se afirmar. Se penetrarmos no mecanismo das “idées fixes”, constataremos que se acham baseadas e apoiadas por tantas experiências, que atuam com tal intensidade, que não nos podemos surpreender ao descobrir que essas idéias são capazes de opor uma resistência bem-sucedida à idéia contrária apresentada pela sugestão, que só está revestida de poderes limitados. Apenas de um cérebro verdadeiramente patológico é que se poderiam varrer por mera sugestão produtos tão bem fundamentados de eventos psíquicos intensos.

Foi enquanto estudava as abulias da Sra. von N. que comecei a ter sérias dúvidas quanto à validade da asserção de Bernheim de que “tout est dans la suggestion” |“tudo está na sugestão”| e sobre a dedução do seu sagaz amigo Delboeuf: “Comme quoi il n’y a pas d’hypnotisme” |“Sendo assim, não existe o que se chama de hipnotismo”|. E até hoje não posso compreender como se pode supor que, apenas levantando um dedo e dizendo uma vez “durma”, eu tinha criado na paciente o estado psíquico peculiar em que sua memória tinha acesso a todas as suas experiências psíquicas. Talvez eu tenha evocado esse estado com minha sugestão, mas não o criei, visto que suas características — que, aliás, são encontradas universalmente — foram uma grande surpresa para mim.

O relato do caso esclarece suficientemente a maneira como o trabalho terapêutico foi conduzido durante o sonambulismo. Como é praxe na psicoterapia hipnótica, lutei contra as representações patológicas da paciente por meio de garantias e proibições e apresentando toda espécie de representações opostas. Mas não me contentei com isso. Investiguei a gênese dos sintomas individuais a fim de poder combater as premissas sobre as quais se erguiam as representações patológicas. No curso dessa análise costumava acontecer que a paciente expressava verbalmente, com a mais violenta agitação, assuntos cujo afeto associado até então só se manifestara como uma expressão de emoção. |ver em [1].| Não sei dizer quanto do êxito terapêutico, em cada situação, deveu-se ao fato de eu ter eliminado o sintoma por sugestão in statu nascendi, e quanto se deveu à transformação do afeto por ab-reação, já que combinei esses dois fatores terapêuticos. Por conseguinte, este caso não pode ser rigorosamente utilizado como prova da eficácia terapêutica do método catártico; ao mesmo tempo, devo acrescentar que só os sintomas de que fiz uma análise psíquica foram de fato eliminados de forma permanente.

De modo geral o êxito terapêutico foi considerável, mas não duradouro. A tendência da paciente a adoecer de forma semelhante sob o impacto de novos traumas não foi afastada. Qualquer um que desejasse empreender a cura definitiva de um caso de histeria como este teria que penetrar mais a fundo do que eu o fiz, em minha tentativa, no complexo de fenômenos. A Sra. von N. era, sem dúvida, uma personalidade com grave hereditariedade neuropática. Parece provável que não pode haver histeria independente de uma predisposição dessa natureza. Mas, por outro lado, a predisposição sozinha não faz a histeria. Deve haver razões que a trazem à tona, e, na minha opinião, essas razões devem ser apropriadas: a etiologia é de natureza específica. Já tive ocasião de mencionar que, na Sra. von N., os afetos pertinentes a um grande número de experiências traumáticas tinham ficado retidos, e que a atividade dinâmica de sua memória fazia aflorar à sua mente ora um, ora outro desses traumas. Aventurar-me-ei agora a formular uma explicação do motivo por que ela retinha os afetos dessa maneira. Esse motivo, é verdade, estava ligado a sua predisposição hereditária. Por um lado, seus sentimentos eram muito intensos; ela possuía uma natureza veemente, capaz das mais fortes paixões. Por outro, desde a morte do marido, tinha vivido em completa solidão mental; a perseguição que lhe moveram os parentes a havia tornado desconfiada dos amigos, e ela ficou atentamente em guarda para impedir que qualquer pessoa adquirisse demasiada influência sobre suas ações. O círculo de suas obrigações era muito amplo, e ela realizava sozinha todo o trabalho mental que estas lhe impunham, sem um amigo ou confidente, quase isolada da família e prejudicada por sua conscienciosidade, sua tendência a se atormentar e também, muitas vezes, pelo desamparo natural da mulher. Em suma, o mecanismo da retenção de grandes quantidades de excitação, independente de tudo o mais, não pode ser desprezado neste caso. Baseava-se em parte nas circunstâncias de sua vida, e em parte em sua predisposição natural. Sua aversão, por exemplo, a dizer qualquer coisa sobre si mesma era tão grande, que, como notei com assombro, em 1891, nenhum dos visitantes diários que iam à sua casa percebia que ela estava doente nem tinha consciência de que eu era seu médico.

Será que isso esgota a etiologia deste caso de histeria? Penso que não, pois, na época de seus dois tratamentos, eu ainda não levantara em minha própria mente as questões a que é preciso responder antes que seja possível uma explicação completa de um caso como este. Sou agora de opinião que deve ter havido algum fator adicional para provocar a irrupção da doença precisamente nestes últimos anos, considerando-se que as condições etiológicas operantes tinham estado presentes durante muitos anos anteriormente. Também me ocorreu que, dentre todas as informações íntimas que me foram dadas pela paciente, houve uma ausência completa do elemento sexual, que é, afinal de contas, passível mais do que qualquer outro de ocasionar traumas. É impossível que suas excitações nesse campo não tivessem deixado quaisquer vestígios; o que me foi permitido ouvir foi, sem dúvida, uma editio in usum delphini |uma edição expurgada| da história de sua vida. A paciente comportava-se com o maior e mais natural senso de decoro, a julgar pelas aparências, sem nenhum traço de pudicícia. Quando, porém, reflito sobre a reserva com que me narrou, sob hipnose, a pequena aventura de sua empregada no hotel, não posso deixar de suspeitar de que essa mulher, que era tão passional e tão capaz de sentimentos fortes, não tenha vencido suas necessidades sexuais sem grandes lutas, e que, por vezes, suas tentativas de suprimir essa pulsão, que é de todas a mais poderosa, tinham-na exposto a seu grave esgotamento mental. Uma vez, ela admitiu que ainda não se havia casado de novo porque, em vista da sua grande fortuna, não podia dar crédito ao desinteresse de seus pretendentes e porque se recriminaria por prejudicar as expectativas de suas duas filhas com um novo matrimônio.

Cabe-me fazer mais uma observação antes de encerrar o caso clínico da Sra. von N. O Dr. Breuer e eu a conhecíamos razoavelmente bem e há bastante tempo, e costumávamos sorrir ao comparar seu caráter com o quadro da psique histérica que pode ser acompanhado desde os primeiros tempos por meio dos trabalhos e das opiniões dos médicos. Nós tínhamos aprendido, a partir de nossas observações da Sra. Caecilie M., que o tipo mais grave de histeria pode coexistir com dons da natureza mais rica e mais original — uma conclusão mais do que comprovada na biografia de mulheres eminentes na história e na literatura. Da mesma forma, a Sra. Emmy von N. nos deu um exemplo de como a histeria é compatível com um caráter impecável e um modo de vida bem orientado. A mulher que viemos a conhecer era admirável. A seriedade moral com que encarava suas obrigações, sua inteligência e energia, que não eram inferiores às de um homem, e seu alto grau de instrução e de amor à verdade nos impressionaram grandemente, enquanto seu generoso cuidado para com o bem-estar de todos os seus dependentes, sua humildade de espírito e o requinte de suas maneiras revelaram também suas qualidades de verdadeira dama. Descrever essa mulher como “degenerada” seria distorcer por completo o significado desse termo. Faríamos bem em distinguir o conceito de “predisposição” do de “degenerescência” tais como aplicados às pessoas; de outra forma, ver-nos-emos forçados a admitir que a humanidade deve uma grande parcela de suas maiores realizações ao esforço de “degenerados”.

Devo igualmente confessar que não vejo na história da Sra. von N. nenhum sinal da “ineficiência psíquica” à qual Janet atribui a gênese da histeria. De acordo com ele, a predisposição histérica consiste numa restrição anormal do campo da consciência (em virtude da degenerescência hereditária), que resulta no desprezo por grupos inteiros de representações e, mais tarde, numa desintegração do ego e na organização de personalidades secundárias. Se assim fosse, o que resta do ego após a retirada dos grupos psíquicos histericamente organizados seria, por necessidade, também menos eficiente do que um ego normal; e de fato, de acordo com Janet, o ego na histeria é afligido por estigmas psíquicos, condenado ao monoideísmo e incapaz dos atos volitivos da vida cotidiana. Janet, julgo eu, cometeu aqui o erro de promover o que constituem os efeitos secundários das alterações da consciência decorrentes da histeria à posição de determinantes primários da histeria. O assunto merece maior consideração em outro trecho, mas na Sra. von N. não havia qualquer sinal de tal ineficiência. Por ocasião de seus piores momentos, ela era e continuou a ser capaz de desempenhar seu papel na administração de uma grande empresa industrial, de manter uma vigilância constante sobre a educação das filhas e de manter sua correspondência com pessoas preeminentes do mundo intelectual — em suma, de cumprir com suas obrigações bastante bem para que sua doença permanecesse oculta. Inclino-me a acreditar, portanto, que tudo isso envolvia com excesso considerável de eficiência, que talvez não pudesse ser mantido por muito tempo e estava fadado a levar ao esgotamento — a uma “misère psychologique” |“empobrecimento psicológico”| secundária. Parece provável que algumas perturbações desse tipo em sua eficiência estivessem começando a se fazer sentir na época em que a vi pela primeira vez, mas, seja como for, uma histeria grave estivera presente por muitos anos antes do aparecimento dos sintomas de esgotamento.

 

CASO 3 - MISS LUCY R., 30 ANOS (FREUD)

 

No fim do ano de 1892, um colega conhecido meu encaminhou-me uma jovem que estava sendo tratada por ele de rinite supurativa cronicamente recorrente. Verificou-se em seguida que a obstinada persistência do problema da jovem se devia a uma cárie do osso etmóide. Ultimamente, ela se vinha queixando de alguns sintomas novos que o competente clínico não pôde mais continuar a atribuir a uma afecção local. Ela perdera todo o sentido do olfato e era quase continuamente perseguida por uma ou duas sensações olfativas subjetivas, que lhe eram muito aflitivas. Além disso, estava desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência.

A jovem, que vivia como governanta na casa do diretor-gerente de uma fábrica nos arredores de Viena, vinha visitar-me de vez em quando em meus horários de consulta. Era de nacionalidade inglesa. Tinha uma constituição delicada, de pigmentação deficiente, mas gozava de boa saúde, salvo por sua afecção nasal. Suas primeiras declarações confirmaram o que o médico me dissera. Sofria de depressão e fadiga e era atormentada por sensações subjetivas do olfato. Quanto aos sintomas histéricos, apresentava uma analgesia geral mais ou menos definida, sem nenhuma perda da sensibilidade tátil, e um exame grosseiro (com a mão) não revelou nenhuma restrição do campo visual. O interior de seu nariz era inteiramente analgésico e sem reflexos: ela era sensível à pressão tátil no local, mas a percepção propriamente dita do nariz como órgão dos sentidos estava ausente, tanto para estímulos específicos quanto para outros (por exemplo, amônia, ou ácido acético). O catarro nasal purulento estava então numa fase de melhora.

Em nossas primeiras tentativas de tornar a doença inteligível, foi necessário interpretar as sensações olfativas subjetivas, visto que eram alucinações recorrentes, como sintomas histéricos crônicos. Sua depressão talvez fosse o afeto ligado ao trauma, e deveria ser possível encontrar uma experiência em que esses odores, que agora se haviam tornado subjetivos, tivessem sido objetivos. Essa experiência devia ter sido o trauma que as sensações recorrentes do olfato simbolizavam na memória. Talvez seja mais correto considerar as alucinações olfativas recorrentes, em conjunto com a depressão que as acompanhava, como equivalentes de um ataque histérico. A natureza das alucinações recorrentes, a rigor, torna-as inadequadas para desempenharem o papel de sintomas crônicos. Mas na verdade essa questão não surgiunum caso como este, que mostrava apenas um desenvolvimento rudimentar. Era essencial, contudo, que as sensações subjetivas do olfato tivessem tido uma origem especializada de uma natureza que admitisse terem-se derivado de algum objeto real bem específico.

Essa expectativa foi logo realizada. Quando lhe perguntei qual era o odor pelo qual era mais constantemente perturbada, ela me respondeu: “Um cheiro de pudim queimado.” Assim, eu só precisava presumir que um cheiro de pudim queimado tinha de fato ocorrido na experiência que atuara como trauma. É muito incomum, sem dúvida, que as sensações olfativas sejam escolhidas como símbolos mnêmicos de traumas, mas não foi difícil explicar essa escolha. A paciente vinha sofrendo de rinite supurativa e, em conseqüência disso, sua atenção estava especialmente enfocada no nariz e nas sensações nasais. O que eu sabia das circunstâncias da vida da paciente limitava-se ao fato de que as duas crianças de quem ela cuidava não tinham mãe; esta morrera alguns anos antes em decorrência de uma moléstia aguda.

Resolvi então fazer do cheiro de pudim queimado o ponto de partida da análise. Descreverei o curso dessa análise como se tivesse ocorrido em condições favoráveis. De fato, o que deveria ter sido uma única sessão estendeu-se por várias. Isso se verificou porque a paciente só podia visitar-me em meus horários de consulta, quando eu só lhe podia dedicar pouco tempo. Além disso, uma única discussão dessa natureza costumava estender-se por mais de uma semana, visto que as obrigações dela não lhe permitiam fazer a longa viagem da fábrica até minha casa com grande freqüência. Costumávamos, portanto, interromper nossa conversa em meio a seu curso e retomar o fio da meada no mesmo ponto na vez seguinte.

Miss Lucy R. não entrou em estado de sonambulismo quando tentei hipnotizá-la. Assim, abri mão do sonambulismo e conduzi toda a sua análise enquanto ela se encontrava num estado que, a rigor, talvez tenha diferido muito pouco de um estado normal.

 

Terei que falar com mais detalhes sobre esse aspecto de meu procedimento técnico. Quando, em 1889, visitei as clínicas de Nancy, ouvi o Dr. Liébeault, o doyen (decano) do hipnotismo, dizer: “Se ao menos tivéssemos meios de pôr todos os pacientes em estado de sonambulismo, a terapia hipnótica seria a mais poderosa de todas.” Na clínica de Bernheim chegava quase a parecer que essa arte realmente existia e que era possível aprendê-la com Bernheim. Mas logo que tentei praticá-la com meus próprios pacientes, descobri que pelo menos meus poderes estavam sujeitos a graves limitações e que, quando o sonambulismo não era provocado num paciente nas três primeiras tentativas, eu não tinha nenhum meio de induzi-lo. A percentagem de casos acessíveis ao sonambulismo era muito menor, em minha experiência, do que a relatada por Bernheim.

Vi-me, por conseguinte, defrontado com a opção de abandonar o método catártico na maioria dos casos que lhe seriam apropriados ou aventurar-me à experiência de empregar esse método sem o sonambulismo, quando a influência hipnótica fosse leve ou mesmo quando sua existência fosse duvidosa. Parecia-me indiferente qual o grau de hipnose — de acordo com uma ou outra das escalas propostas para medi-la — que era alcançado nesse estado sonambúlico, pois, como sabemos, de qualquer modo cada uma das várias formas assumidas pela sugestionabilidade independe das outras, e a obtenção da catalepsia, de movimentos automáticos e assim por diante não funciona nem favorecendo, nem prejudicando aquilo de que eu precisaria para minhas finalidades, ou seja, que o despertar das lembranças esquecidas fosse facilitado. Além disso, logo abandonei a prática de fazer testes para indicar o grau de hipnose alcançado, visto que num bom número de casos isso provocava a resistência dos pacientes e abalava sua confiança em mim, da qual eu necessitava para executar o trabalho psíquico mais importante. Ademais, logo comecei a ficar cansado de proferir asseguramentos e ordens tais como “Você vai dormir… durma!” e de ouvir o paciente, como tantas vezes acontecia quando o grau de hipnose era leve, reclamar comigo: “Mas doutor, eu não estou dormindo”, e de ter então que fazer distinções sutis: “Não me refiro a um sono comum, mas sim à hipnose. Como vê, você está hipnotizado, não consegue abrir os olhos”, etc., “e de qualquer modo, não há necessidade de que você adormeça”, e assim por diante. Estou certo de que muitos outros médicos que praticam a psicoterapia sabem sair dessas dificuldades de forma mais hábil do que eu. Se assim for, hão de poder adotar algum outro método que não o meu. Parece-me, contudo, que quando alguém espera com tanta freqüência descobrir-se numa situação embaraçosa pelo uso de determinada palavra, será prudente evitar tanto a palavra quanto o embaraço. Quando, portanto, minha primeira tentativa não me conduzia nem ao sonambulismo nem a um grau de hipnose que acarretasse modificações físicas marcantes, eu abandonava de modo ostensivo a hipnose e pedia apenas “concentração”; e ordenava ao paciente que se deitasse e deliberadamente fechasse os olhos como meio de alcançar essa “concentração”. É possível que, dessa forma, eu obtivesse com apenas um ligeiro esforço o mais profundo grau de hipnose possível de ser alcançado naquele caso particular.

Mas, ao abrir mão do sonambulismo, talvez me estivesse privando de uma precondição sem a qual o método catártico não parecia utilizável, pois esse método era claramente baseado na possibilidade de os pacientes, em seu estado alterado de consciência, terem acesso às lembranças e serem capazes de identificar ligações que não pareciam estar presentes em seu estado de consciência normal. Se a extensão sonambúlica da memória estivesse ausente, também não haveria nenhuma possibilidade de estabelecer quaisquer causas determinantes que o paciente pudesse apresentar ao médico como algo desconhecido para ele (o paciente); e está claro que são precisamente as lembranças patogênicas que, como já tivemos ocasião de dizer em nossa “Comunicação Preliminar” |ver em [1]|, se acham “ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária”.

Poupei-me desse novo embaraço ao me lembrar de que eu próprio vira Bernheim dar provas de que as lembranças dos acontecimentos ocorridos durante o sonambulismo são apenas aparentemente esquecidas no estado de vigília, e podem ser revividas por meio de uma ordem delicada e de uma pressão com a mão, destinada a indicar um estado diferente de consciência. Ele havia, por exemplo, dado a uma mulher em estado de sonambulismo uma alucinação negativa, no sentido de que ele não estava mais presente, e depois se esforçava por chamar a atenção dela para si próprio de diversas maneiras diferentes, inclusive algumas de natureza decididamente agressiva. Não teve sucesso. Depois de ela ser despertada, ele lhe pediu que contasse o que lhe fizera enquanto ela achava que ele não estava mais lá. Surpresa, ela respondeu nada saber a esse respeito. Mas ele não aceitou essa resposta, insistindo em que ela podia recordar-se de tudo, e pôs a mão em sua testa a fim de ajudá-la a lembrar-se. E vejam só! Ela acabou por descrever tudo o que aparentemente não havia percebido durante o sonambulismo e aparentemente não havia recordado no estado de vigília.

Essa surpreendente e instrutiva experiência me serviu de modelo. Resolvi partir do pressuposto de que meus pacientes sabiam tudo o que tinha qualquer significado patogênico e que se tratava apenas de uma questão de obrigá-los a comunicá-lo. Assim, quando alcançava um ponto em que, depois de formular ao paciente uma pergunta como “Há quanto tempo tem este sintoma?” ou “Qual foi sua origem?”, recebia como resposta “Realmente não sei”, eu prosseguia da seguinte maneira. Colocava a mão na testa do paciente ou lhe tomava a cabeça entre a mãos e dizia: “Você pensará nisso sob a pressão da minha mão. No momento em que eu relaxar a pressão, verá algo à sua frente, ou algo aparecerá em sua cabeça. Agarre-o. Será o que estamos procurando. — E então, o que foi que viu ou o que lhe ocorreu?”

 

Nas primeiras ocasiões em que usei esse método (não foi com Miss Lucy R.), eu próprio me surpreendi ao constatar que ele me proporcionava precisamente os resultados de que eu necessitava. E posso afirmar com segurança que quase nunca me deixou em dificuldades desde então. Sempre apontou o caminho que a análise deveria seguir e me permitiu conduzir cada uma dessas análises até o fim sem o emprego do sonambulismo. Afinal fiquei tão confiante que, quando os pacientes respondiam “não vejo nada” ou “nada me ocorreu”, podia descartar essa afirmação como uma impossibilidade e assegurar-lhes que por certo haviam ficado conscientes do que se desejava, mas se recusavam a acreditar que fosse aquilo e o rejeitavam. Dizia-lhes que estava pronto a repetir o método quantas vezes desejassem e que eles veriam a mesma coisa todas as vezes. Invariavelmente, eu tinha razão. Os pacientes ainda não tinham aprendido a relaxar sua faculdade crítica. Haviam rejeitado a lembrança que surgira ou a idéia que lhes tinha ocorrido, sob a alegação de que não servia e era uma interrupção irrelevante. E depois que a relatavam a mim, ela sempre revelava ser aquilo que se desejava. Às vezes, quando após três ou quatro pressões eu tinha por fim extraído a informação, o paciente replicava: “Aliás, eu de fato já sabia disso desde a primeira vez, mas era justamente o que eu não queria dizer”, ou então, “Eu tinha esperança de que não fosse isso”.

Era trabalhosa essa questão de ampliar o que se supunha ser uma consciência limitada — muito mais trabalhosa, pelo menos, do que uma investigação durante o sonambulismo. Não obstante, tornou-se independente do sonambulismo e me proporcionou uma compreensão dos motivos que muitas vezes determinam o “esquecimento” das lembranças. Posso afirmar que esse esquecimento é muitas vezes intencional e desejado, e seu êxito nunca é mais do que aparente.

Achei ainda mais surpreendente, talvez, que pelo mesmo método fosse possível fazer retornarem números e datas que, a um exame superficial, há muito tinham sido esquecidos, e assim revelar como a memória pode ser inesperadamente precisa.

O fato de, ao procurarmos números e datas, nossa escolha ser tão limitada permite-nos chamar em nosso auxílio uma proposição que nos é familiar a partir da teoria da afasia, ou seja, que reconhecer alguma coisa é uma tarefa mais leve para a memória do que pensar nela espontaneamente. Assim, quando o paciente é incapaz de recordar-se do ano, mês ou dia em que um fato particular ocorreu, podemos repetir-lhe os números dos anos possivelmente relevantes, os nomes dos doze meses e os trinta e um números dos dias do mês, assegurando-lhe que, quando chegarmos ao número certo, ou ao nome certo, seus olhos se abrirão por sua livre vontade ou ele sentirá qual é o certo. Na grande maioria dos casos, de fato o paciente se decide por uma data particular. Com grande freqüência (como no caso da Sra. Caecilie M.) é possível comprovar, por documentos do período em questão, que a data foi reconhecida de forma correta, enquanto em outros casos e em outras ocasiões a indiscutível exatidão da data escolhida pode ser inferida pelo contexto dos fatos recordados. Por exemplo, depois que uma paciente teve sua atenção atraída para a data a que se tinha chegado por esse método de “contagem”, ela disse: “Ora, esse é o aniversário do meu pai!” e acrescentou: “É claro! foi por ser aniversário dele que eu estava esperando o acontecimento de que estávamos falando”.

Aqui, só de passagem posso tocar nesse tema. A conclusão que extraí de todas essas observações foi que as experiências que desempenharam um papel patogênico importante, junto com todos os seus concomitantes secundários, são retidas com exatidão na memória do paciente, mesmo quando parecem ter sido esquecidas — quando ele é incapaz de relembrá-las.

 

Após essa longa mais inevitável digressão, voltarei ao caso de Miss Lucy R. Como disse, portanto, minhas tentativas de hipnose com ela não produziram o sonambulismo. Ela simplesmente ficava deitada, quieta, num estado acessível a um discreto grau de influência, com os olhos fechados o tempo todo, as feições um pouco rígidas e sem mexer nem as mãos nem os pés. Perguntei-lhe se conseguia lembrar-se da ocasião em que sentira pela primeira vez o cheiro de pudim queimado. — “Ah, sim, sei exatamente. Foi há uns dois meses, dois dias antes do meu aniversário. Estava com as crianças na sala de aula e brincava de cozinhar com elas” (eram duas meninas). — “Chegou uma carta que acabara de ser entregue pelo carteiro. Vi pelo carimbo postal e pela letra que era da minha mãe, em Glasgow, e queria abri-la e lê-la, mas as crianças se precipitaram sobre mim, arrancaram a carta de minhas mãos e gritaram: ‘Não, você não vai ler agora! Deve ser pelo seu aniversário, vamos guardar a carta para você!’ Enquanto as crianças faziam essa brincadeira comigo, houve de repente um cheiro forte. Elas haviam esquecido o pudim que estavam assando, e ele estava queimando. Desde então tenho sido perseguida pelo cheiro, que está sempre presente e fica mais forte quando estou agitada”.

— “Você vê essa cena com nitidez diante de seus olhos?” — “Em tamanho natural, exatamente como a experimentei.” — “Que poderia haver a respeito dela que fosse tão perturbador?” — “Fiquei emocionada porque as crianças foram muito afetuosas comigo.” — “E não o eram sempre?” — “Sim… mas justamente quando recebi a carta de minha mãe.” — “Não compreendo por que há um contraste entre a afeição das crianças e a carta de sua mãe, pois é o que você parece estar sugerindo.” — “Eu estava pretendendo voltar para a casa de minha mãe, e pensar em deixar aquelas crianças queridas me deixava muito triste.” — “Qual é o problema com sua mãe? Tem se sentido sozinha e mandou buscar você? Ou estava doente na ocasião, e você esperava notícias dela?” — “Não; ela não é muito forte, mas não está exatamente doente, e tem alguém que lhe faz companhia.” — “Então por que você precisava deixar as crianças?” — “Não podia mais suportar ficar naquela casa. A empregada, a cozinheira e a governanta francesa pareciam pensar que eu me estava colocando acima do meu lugar. Aliaram-se numa pequena intriga contra mim e disseram toda espécie de coisas a meu respeito ao avô das crianças, e não obtive tanto apoio quanto esperava dos dois cavalheiros quando me queixei a eles. Assim, notifiquei o Diretor (o pai das crianças) de que pretendia ir embora. Ele respondeu de maneira muito amável que seria melhor eu pensar mais sobre o assunto durante umas duas ou três semanas, antes de dar-lhe minha decisão final. Eu estava nessa situação de incerteza na época e achava que iria deixar a casa, mas acabei ficando.” — “Havia algo em particular, afora a afeição delas por você, que a ligasse às crianças?” — “Havia. A mãe delas era parente distante da minha mãe, e eu lhe prometera em seu leito de morte que me devotaria com todas as minhas forças às crianças, que não as deixaria e que ocuparia o lugar da mãe junto a elas. Ao dar a notificação de minha saída eu havia quebrado essa promessa”.

Isso pareceu completar a análise da sensação objetiva de cheiro apresentada pela paciente. De fato, ela mostrara ter sido, em sua origem, uma sensação objetiva, intimamente associada a uma experiência — uma pequena cena — em que dois afetos antagônicos tinham estado em conflito: sua tristeza por deixar as crianças e as desconsiderações que, não obstante, a estavam impelindo a decidir-se por aquele curso de ação. A carta da mãe naturalmente a havia feito relembrar suas razões para tomar essa decisão, visto que era sua intenção juntar-se a ela ao partir. O conflito entre seus afetos promovera o momento da chegada da carta à categoria de um trauma, e a sensação de cheiro associada a esse trauma persistiu como seu símbolo. Ainda era necessário explicar por que, de todas as percepções sensoriais proporcionadas pela cena, ela havia escolhido aquele odor como símbolo. Eu já estava preparado, contudo, para recorrer à afecção crônica do nariz de minha paciente para ajudar a explicar esse ponto. Em resposta a uma pergunta direta, disse-me que, justamente naquela época, estava mais uma vez com um resfriado nasal tão forte que mal podia sentir o cheiro do que quer que fosse. Entretanto, quando em seu estado de agitação, percebeu o cheiro do pudim queimado, que transpôs a barreira da perda organicamente determinada de seu sentido de olfato.

Mas não fiquei satisfeito com a explicação assim alcançada. Tudo parecia muito plausível, mas havia algo que me escapava, alguma razão adequada por que essas agitações e esse conflito de afetos levaram à histeria, e não a qualquer outra coisa. Por que tudo não havia permanecido no nível da vida psíquica normal? Em outras palavras, qual era a justificativa para a conversão que havia ocorrido? Por que ela não se recordava sempre da própria cena, em vez da sensação associada que ela isolava como o símbolo da lembrança? Tais questões poderiam parecer curiosas demais e supérfluas, se estivéssemos lidando com uma histérica de longa data em quem o mecanismo da conversão fosse habitual. Mas não fora senão quando do advento desse trauma, ou pelo menos dessa pequena história de perturbações, que a moça ficara histérica.

Ora, eu já sabia, pela análise de casos semelhantes, que antes de a histeria poder ser adquirida pela primeira vez, uma condição essencial precisa ser preenchida: uma representação precisa ser intencionalmente recalcada da consciência e excluída das modificações associativas. Em minha opinião, esse recalcamento intencional constitui também a base para a conversão total ou parcial da soma de excitação. A soma de excitação, estando isolada da associação psíquica, encontra ainda com mais facilidade seu caminho pela trilha errada para a inervação somática. A base do próprio recalcamento só pode ser uma sensação de desprazer, uma incompatibilidade entre a representação isolada a ser recalcada e a massa dominante de representações que constituem o ego. A representação recalcada vinga-se, contudo, tornando-se patogênica.

Por conseguinte, do fato de Miss Lucy R. ter sucumbido à conversão histérica no momento em questão, inferi que, entre os determinantes do trauma, devia ter havido um que ela intencionalmente procurara deixar na obscuridade e se esforçara por esquecer. Se sua afeição pelas crianças e sua sensibilidade em relação aos outros membros da casa fossem consideradas em conjunto, só se poderia tirar uma conclusão. Fui ousado o bastante para informar minha paciente dessa interpretação. Disse-lhe: “Não consigo conceber que essas sejam todas as razões para seus sentimentos a respeito das crianças. Creio que, na verdade, você está apaixonada por seu patrão, o Diretor, embora talvez sem que você própria esteja consciente disso, e que nutre a esperança secreta de tomar de verdade o lugar da mãe delas. E devemos também recordar a sensibilidade que você agora tem em relação às criadas, após ter vivido pacificamente com elas durante anos. Você teme que elas suspeitem de suas esperanças e se divirtam à sua custa.

Ela respondeu em seu habitual estilo lacônico: “Sim, acho que isso é verdade.” — “Mas, se você sabia que amava seu patrão, por que não me disse?” — “Não sabia… ou melhor, não queria saber. Queria tirar isso de minha cabeça e não pensar mais no assunto, e creio que ultimamente tenho conseguido.” — “Por que foi que você não estava disposta a admitir essa inclinação? Estava envergonhada de amar um homem?” — “De forma alguma, não sou assim tão pudica. De qualquer forma, não somos responsáveis por nossos sentimentos. Isso me foi aflitivo apenas porque ele é meu patrão e estou a seu serviço, morando em sua casa. Não sinto em relação a ele a mesma independência completa que sentiria em relação a qualquer outro. E depois, sou apenas uma moça pobre, e ele é um homem muito rico e de boa família. As pessoas iriam rir de mim se tivessem alguma idéia disso”.

A essa altura, ela não opôs nenhuma resistência a esclarecer a origem dessa inclinação. Disse-me que nos primeiros anos vivera feliz na casa, cumprindo com seus deveres e livre de quaisquer desejos irrealizáveis. Um dia, porém, seu patrão, um homem sério e sobrecarregado de trabalho, cujo comportamento em relação a ela sempre fora reservado, iniciou uma discussão sobre os moldes em que as crianças deveriam ser educadas. Ele foi menos formal e mais cordial do que de costume e lhe disse o quanto dependia dela para cuidar de seus filhos órfãos; e ao dizer isso, olhou-a de modo significativo… O amor da jovem por ele havia começado nesse momento, e ela se permitira até mesmo apoiar-se nas esperanças gratificantes que havia baseado nessa conversa. Mas quando não houve nenhum outro progresso, e depois de esperar em vão por outra hora íntima de troca de opiniões, ela decidiu banir tudo aquilo da mente. Miss Lucy concordou inteiramente comigo em que era provável que o olhar por ela notado durante a conversa havia brotado dos pensamentos dele sobre a esposa, e reconheceu de maneira bem clara que não havia nenhuma perspectiva de que seus sentimentos por ele fossem de algum modo correspondidos.

Esperava que essa conversa trouxesse uma modificação fundamental em seu estado, mas por algum tempo isso não se verificou. Ela continuou desanimada e deprimida. Sentia-se um pouco revigorada pela manhã, graças ao tratamento hidropático que eu lhe receitara ao mesmo tempo. O cheiro de pudim queimado não desapareceu por completo, embora se tornasse menos freqüente e mais fraco. Só aparecia, disse-me ela, quando ficava extremamente agitada. A persistência desse símbolo mnêmico levou-me a suspeitar que, além da cena principal, ele havia assumido a representação dos numerosos traumas secundários associados àquela cena. Assim, procuramos alguma outra coisa que pudesse ter relação com o pudim queimado; penetramos na questão do atrito doméstico, do comportamento do avô e assim por diante, e à medida que o fazíamos o cheiro de queimado foi-se dissipando cada vez mais. Também durante essa época o tratamento foi interrompido por um tempo considerável, graças a um novo ataque de seu distúrbio nasal, que levou então à descoberta da cárie do etmóide |ver em [1]|.

Ao retornar, contou ela que no Natal recebera muitos presentes dos dois cavalheiros da casa e até das empregadas, como se todos estivessem ansiosos por fazer as pazes com ela e apagar de sua lembrança os conflitos dos últimos meses. Mas esses sinais de boas intenções não haviam causado nenhuma impressão nela.

Quando lhe perguntei mais uma vez sobre o cheiro de pudim queimado, ela me informou que ele havia desaparecido, mas que agora vinha sendo importunada por outro cheiro semelhante, parecido com o de fumaça de charuto. Esse cheiro também estivera presente antes, mas fora encoberto, por assim dizer, pelo cheiro do pudim. Agora aparecera por si mesmo.

Não fiquei muito satisfeito com os resultados do tratamento. O que acontecera fora exatamente o que sempre se consegue com um tratamento sintomático: eu apenas eliminara um sintoma só para que seu lugar fosse ocupado por outro. Entretanto, não hesitei em dedicar-me à tarefa de eliminar esse novo símbolo mnêmico através da análise.

Mas dessa vez ela não sabia de onde provinha a sensação olfativa subjetiva — em que ocasião importante ela fora uma sensação objetiva. “Todos os dias as pessoas fumam em nossa casa,” disse, “e realmente não sei se o cheiro que sinto se refere a alguma ocasião especial”. Insisti então em que ela tentasse recordar sob a pressão de minha mão. Já tive oportunidade de mencionar |ver em [1]| que suas lembranças possuíam a qualidade de uma nitidez plástica, que ela era um tipo “visual”. E de fato, por insistência minha, um quadro surgiu gradativamente diante dela, a princípio de maneira hesitante e fragmentada. Era a sala de jantar de sua casa, onde ela esperava com as crianças que os dois cavalheiros voltassem da fábrica para almoçar. “Agora estamos todos sentados à mesa: os cavalheiros, a governanta francesa, a empregada, as crianças e eu. Mas isso é o que acontece todos os dias.” — “Continue a olhar para o quadro; ele se desenvolverá e ficará mais específico.” — “Sim, há um convidado. É o contador-chefe. É um senhor e é tão afeiçoado às crianças como se fossem seus próprios netos. Mas ele vem tantas vezes almoçar que também não há nada de especial nisso.” — “Tenha paciência e continue a olhar para o quadro; é certo que acontecerá alguma coisa.” — “Não está acontecendo nada. Estamos nos levantando da mesa; as crianças se despedem e sobem conosco, como de costume, para o segundo andar.” — “E então?” — “Ora, afinal de contas é uma ocasião especial. Agora reconheço a cena. Quando as crianças se despedem, o contador tenta beijá-las. Meu patrão se exalta e chega a gritar com ele: ‘Não beije as crianças!’ Sinto uma punhalada no coração, e como os cavalheiros já estão fumando, a fumaça dos charutos fica em minha memória.”

Essa, portanto, era uma segunda cena, mais profunda, que à semelhança da primeira funcionou como um trauma e deixou atrás de si um símbolo mnêmico. Mas a que essa cena devera sua eficácia? — “Qual das duas cenas foi a primeira”, perguntei, “essa ou a do pudim queimado?” — “A cena que acabo de lhe contar foi a primeira, com uma diferença de quase dois meses.” — “Então por que você sentiu essa punhalada quando o pai das crianças deteve o velho? A reprimenda dele não visava a você.” — “Não foi certo da parte dele gritar com um senhor idoso, que era um bom amigo e, ainda por cima, um convidado. Ele poderia ter dito aquilo com delicadeza.” — “Então foi só a violência com que ele se expressou que magoou você? Você se sentiu constrangida por ele? Ou talvez tenha pensado: ‘Se ele pode ser tão violento por uma coisa tão insignificante com um velho amigo e convidado, quanto mais seria comigo se eu fosse mulher dele.’” — “Não, não é isso.” — “Mas teve algo a ver com a violência dele, não foi?” — “Teve, em relação ao fato de as crianças serem beijadas. Ele jamais gostou disso.”

E nesse momento, sob a pressão de minha mão, emergiu a lembrança de uma terceira cena, ainda mais antiga, que fora o trauma realmente atuante e que dera à cena com o contador-chefe sua eficácia traumática. Ainda acontecera, alguns meses antes, que uma senhora conhecida do patrão fora visitá-los e, ao sair, beijara as duas crianças na boca. O pai delas, que se achava presente, conseguira refrear-se para não dizer nada à senhora, mas depois que ela havia partido, sua fúria explodira sobre a cabeça da infeliz governanta. Disse que a responsabilizaria se alguém beijasse as crianças na boca, que era seu dever não permitir tal coisa e que ela estaria incidindo numa falta para com seu dever se o permitisse; se aquilo acontecesse de novo, ele confiaria a educação das crianças a outras mãos. Isso havia acontecido numa ocasião em que Miss Lucy ainda supunha que ele a amava, e estava na expectativa de uma repetição de sua primeira conversa amistosa. A cena esmagara suas esperanças. Ela dissera consigo mesma: “Se ele pode enfurecer-se comigo dessa maneira e fazer tais ameaças por um assunto tão banal, e em relação ao qual, além disso, não tenho a mínima responsabilidade, devo ter cometido um erro. Ele não pode jamais ter tido quaisquer sentimentos ternos por mim, senão eles o teriam ensinado a tratar-me com maior consideração.” Foi obviamente a lembrança dessa cena aflitiva que lhe veio quando o contador-chefe tentou beijar as crianças e foi repreendido pelo pai destas últimas.

Depois dessa última análise, quando, dois dias depois, Miss Lucy tornou a me visitar, não pude deixar de lhe perguntar o que lhe acontecera para deixá-la tão feliz. Parecia transfigurada. Estava sorridente e de cabeça erguida. Pensei por um momento que, afinal de contas, eu estava errado sobre a situação e a governanta das crianças tinha ficado noiva do Diretor. Mas ela desfez essa minha idéia. “Não aconteceu nada. Ocorre apenas que o senhor não me conhece. O senhor só me viu doente e deprimida. Em geral, sou sempre alegre. Quando acordei ontem pela manhã, não sentia mais aquele peso na cabeça, e desde então tenho-me sentido bem.” — “E o que acha de suas perspectivas na casa?” — “Tenho uma idéia bem clara sobre o assunto. Sei que não tenho nenhuma possibilidade e não vou ficar infeliz por isso.” — “E será que agora vai se dar bem com os empregados?” — “Acho que minha própria sensibilidade exagerada foi a responsável pela maior parte do que aconteceu.” — “E você ainda está apaixonada por seu patrão?” — “Sim, é claro que estou, mas isso não faz nenhuma diferença. Afinal, posso guardar comigo meus próprios pensamentos e sentimentos.”

Examinei-lhe então o nariz e verifiquei que sua sensibilidade à dor e sua excitabilidade reflexa tinham sido quase inteiramente restauradas. Ela também conseguia distinguir os odores, embora com insegurança e apenas se fossem fortes. Cabe-me deixar em aberto, contudo, a questão de saber até que ponto seu distúrbio nasal terá desempenhado um papel na redução de seu sentido do olfato.

Esse tratamento durou ao todo nove semanas. Quatro meses depois encontrei-me por acaso com a paciente numa de nossas estações de veraneio. Estava animada e assegurou-me que sua recuperação fora duradoura.

 

 

DISCUSSÃO

 

Não estou inclinado a subestimar a importância do caso que acabo de descrever, muito embora a paciente só estivesse sofrendo de uma histeria leve e benigna e houvesse apenas poucos sintomas em jogo. Pelo contrário, parece-me um fato instrutivo que mesmo uma doença como essa, tão improdutiva quando encarada como uma neurose, exigisse tantos determinantes psíquicos. Na realidade, quando considero esse caso clínico mais detidamente, fico tentado a vê-lo como um modelo exemplar de um tipo particular de histeria, ou seja, a forma dessa moléstia que pode ser contraída mesmo por uma pessoa de boa hereditariedade, como resultado de experiências apropriadas. Deve-se compreender que não me refiro, com isso, a uma histeria independente de qualquer predisposição já existente. É provável que tal histeria não exista. Mas só reconhecemos uma predisposição dessa natureza numa pessoa depois que ela se torna de fato histérica, pois antes disso não há provas da sua existência. A predisposição neuropática, tal como genericamente compreendida, é diferente. Já está marcada, antes da instalação da doença, pelo quantum da contaminação hereditária do sujeito ou pela soma de suas anormalidades psíquicas individuais. Até onde vão minhas informações, não havia em Miss Lucy R. nenhum traço de qualquer desses fatores. Sua histeria, portanto, pode ser descrita como adquirida, e não pressupôs nada além da posse do que é, provavelmente, uma tendência muito difundida — a tendência para adquirir a histeria. Ainda não temos quase nenhuma idéia de quais possam ser as características dessa tendência. Nos casos dessa espécie, contudo, a ênfase principal recai na natureza do trauma, embora, é claro, considerada em conjunto com a reação do sujeito ao mesmo. Para a aquisição da histeria, vem a ser um sine qua non o desenvolvimento de uma incompatibilidade entre o ego e alguma idéia a ele apresentada. Espero ter a possibilidade de indicar, em outro texto, como diferentes perturbações neuróticas emergem dos diversos métodos adotados pelo “ego” para escapar a essa incompatibilidade. O método histérico de defesa — para o qual, como vimos, é necessária a posse de uma tendência específica — reside na conversão da excitação em uma inervação somática; e a vantagem disso é que a idéia incompatível é forçada para fora do ego consciente. Em troca, essa consciência guarda então a reminiscência física surgida por meio da conversão (em nosso caso, as sensações subjetivas de olfato da paciente) e sofre por causa do afeto que se acha de forma mais ou menos clara ligado precisamente àquela reminiscência. A situação assim provocada passa então a não ser suscetível de modificação, pois a incompatibilidade que teria exigido uma eliminação do afeto não existe mais, graças ao recalque e à conversão. Assim, o mecanismo que produz a histeria representa, por um lado, um ato de covardia moral e, por outro, uma medida defensiva que se acha à disposição do ego. Com bastante freqüência temos de admitir que rechaçar as excitações crescentes provocando a histeria é, nessas circunstâncias, a coisa mais conveniente a fazer; com maior freqüência, naturalmente, temos que concluir que uma dose maior de coragem moral teria sido vantajosa para a pessoa em causa.

O momento traumático real, portanto, é aquele em que a incompatibilidade se impõe sobre o ego e em que este último decide repudiar a idéia incompatível. Essa idéia não é aniquilada por tal repúdio, mas apenas recalcada para o inconsciente. Quando esse processo ocorre pela primeira vez, passa a existir um núcleo e centro de cristalização para a formação de um grupo psíquico divorciado do ego — um grupo em torno do qual tudo o que implicaria uma aceitação da idéia incompatível passa então a se reunir. A divisão da consciência nesses casos de histeria adquirida é, portanto, deliberada e intencional. Pelo menos, é muitas vezes introduzida por um ato de volição, pois o resultado real é um pouco diferente do que o indivíduo pretendia. O que ele desejava era eliminar uma idéia, como se jamais tivesse surgido, mas tudo o que consegue fazer é isolá-la psiquicamente.

Na história de nossa atual paciente, o momento traumático foi o da explosão do patrão contra ela porque as crianças foram beijadas pela senhora. Por algum tempo, contudo, essa cena não teve nenhum efeito manifesto. (Pode ser que a hipersensibilidade e o desânimo da paciente tenham começando a partir dela, mas não posso afirmá-lo.) Seus sintomas histéricos só começaram depois, em momentos que podem ser descritos como “auxiliares”. O traço característico do momento auxiliar é, creio eu, que os dois grupos psíquicos divididos convergem temporariamente para ele, como fazem na consciência ampliada que ocorre no sonambulismo. No caso de Miss Lucy R., o primeiro dos momentos auxiliares, no qual ocorreu a conversão, foi a cena à mesa, quando o contador-chefe tentou beijar as crianças. Aqui a lembrança traumática estava desempenhando um papel: a paciente não se comportou como se se tivesse livrado de tudo o que se relacionava com sua dedicação ao patrão. (Na história de outros casos, esses diferentes momentos coincidem; a conversão ocorre como efeito imediato do trauma.)

O segundo momento auxiliar repetiu o mecanismo do primeiro de forma quase exata. Uma impressão poderosa reagrupou temporariamente a consciência da paciente, e a conversão mais uma vez seguiu a trilha que se abrira na primeira ocasião. É interessante notar que o segundo sintoma a se desenvolver camuflou o primeiro, de modo que este só foi percebido com clareza quando o segundo foi retirado do caminho. Também me parece que vale a pena fazer uma observação sobre o curso inverso que teve de ser seguido também pela análise. Tive a mesma experiência num grande número de casos; os sintomas surgidos posteriormente camuflaram os primeiros, e a chave de toda a situação estava apenas no último sintoma a ser alcançado pela análise.

O processo terapêutico, neste caso, consistiu em compelir o grupo psíquico que fora dividido a se reunir mais uma vez com a consciência do ego. Estranhamente, o êxito não acompanhou pari passu o volume de trabalho realizado. Foi só quando a última tarefa foi concluída que de repente ocorreu a recuperação.

 

CASO 4 - KATHARINA - (FREUD)

 

Nas férias de verão do ano de 189.. fiz uma excursão ao Hohe Tauern para que por algum tempo pudesse esquecer a medicina e, mais particularmente, as neuroses. Quase havia conseguido isso quando, um belo dia, desviei-me da estrada principal para subir uma montanha que ficava um pouco afastada e que era renomada por suas vistas e sua cabana de hospedagem bem administrada. Alcancei o cimo após uma subida estafante e, sentindo-me revigorado e descansado, sentei-me, mergulhando em profunda contemplação do encanto do panorama distante. Estava tão perdido em meus pensamentos que, a princípio, não relacionei comigo estas palavras, quando alcançaram meus ouvidos: “O senhor é médico?” Mas a pergunta fora endereçada a mim, e pela moça de expressão meio amuada, de talvez dezoito anos de idade, que me servira a refeição e à qual a proprietária se dirigira pelo nome de “Katharina”. A julgar por seus trajes e seu porte, não podia ser uma empregada, mas era sem dúvida filha ou parenta da hospedeira.

Voltando a mim, respondi:

—Sim, sou médico, mas como você soube disso?

—O senhor escreveu seu nome no livro de visitantes. E pensei que, se o senhor pudesse dispor de alguns momentos… A verdade, senhor, é que meus nervos estão ruins. Fui ver um médico em L— por causa deles, e ele me receitou alguma coisa, mas ainda não estou boa.

Assim, lá estava eu novamente às voltas com as neuroses — pois nada mais poderia haver de errado com aquela moça de constituição forte e sólida e de aparência tristonha. Fiquei interessado ao constatar que as neuroses podiam florescer assim, a uma altitude superior a 2.000 metros; portanto, fiz-lhe outras perguntas. Relato a conversa que se seguiu entre nós tal como ficou gravada em minha memória, e não alterei o dialeto da paciente.

—Bem, e de que é que você sofre?

—Sinto muita falta de ar. Nem sempre. Mas às vezes ela me apanha de tal forma que acho que vou ficar sufocada.

Isso não pareceu, à primeira vista, um sintoma nervoso. Mas logo me ocorreu que provavelmente era apenas uma descrição representando uma crise de angústia: ela estava destacando a falta de ar do complexo de sensações que decorrem da angústia e atribuindo uma importância indevida a esse fator isolado.

—Sente-se aqui. Como são as coisas quando você fica “sem ar”?

—Acontece de repente. Antes de tudo, parece que há alguma coisa pressionando meus olhos. Minha cabeça fica muito pesada, há um zumbido horrível e fico tão tonta que quase chego a cair. Então alguma coisa me esmaga o peito a tal ponto que quase não consigo respirar.

—E não nota nada na garganta?

—Minha garganta fica apertada, como se eu fosse sufocar.

—Acontece mais alguma coisa na cabeça?

—Sim, umas marteladas, o bastante para fazê-la explodir.

—E não se sente nem um pouco assustada quando isso acontece?

—Sempre acho que vou morrer. Em geral, sou corajosa e ando sozinha por toda parte, desde o porão até a montanha inteira. Mas no dia em que isso acontece não ouso ir a parte alguma; fico o tempo todo achando que há alguém atrás de mim que vai me agarrar de repente.

Portanto, era de fato uma crise de angústia, e introduzida pelos sinais de uma “aura” histérica — ou, mais corretamente, era um ataque histérico cujo conteúdo era a angústia. Mas não seria provável que houvesse também outro conteúdo?

—Quando você tem uma dessas crises, pensa em alguma coisa? E sempre a mesma coisa? Ou vê alguma coisa diante de você?

—Sim. Sempre vejo um rosto medonho que me olha de uma maneira terrível, de modo que fico assustada.

Talvez isso pudesse oferecer um meio rápido de chegarmos ao cerne da questão.

—Você reconhece o rosto? Quero dizer, é um rosto que realmente já viu alguma vez?

—Não.

—Sabe de onde vêm as suas crises?

—Não.

—Quando as teve pela primeira vez?

—Há dois anos, quando ainda morava na outra montanha com minha tia. (Ela dirigia uma cabana de hospedagem e nós nos mudamos para cá há dezoito meses.) Mas elas continuam a acontecer.

Deveria eu fazer uma tentativa de análise? Não podia aventurar-me a transplantar a hipnose para essas altitudes, mas talvez tivesse sucesso com uma simples conversa. Teria que arriscar um bom palpite. Eu havia constatado com bastante freqüência que, nas moças, a angústia era conseqüência do horror de que as mentes virginais são tomadas ao se defrontarem pela primeira vez com o mundo da sexualidade.

Então disse-lhe:

—Se você não sabe, vou dizer-lhe como eu penso que você passou a ter seus ataques. Nessa ocasião, há dois anos, você deve ter visto ou ouvido algo que muito a constrangeu e que teria preferido muitíssimo não ver.

—Céus, é isso mesmo! — respondeu. — Foi quando surpreendi meu tio com a moça, com Franziska, minha prima.

—Que história é essa sobre uma moça? Não vai me contar?

—Suponho que se pode contar tudo a um médico. Bem, naquela época, o senhor sabe, meu tio, o marido de minha tia que o senhor viu aqui, tinha a estalagem na — kogel. Agora eles estão divorciados, e a culpa é minha, pois foi através de mim que se veio a saber que ele estava andando com Franziska.

—E como você descobriu isso?

—Foi assim. Um dia, há dois anos, uns cavalheiros tinham subido a montanha e pediram alguma coisa para comer. Minha tia não estava em casa, e Franziska, que era quem sempre cozinhava, não foi encontrada em parte alguma. E meu tio também não foi encontrado. Procuramos por toda parte, e finamente Alois, o garotinho que era meu primo, disse: “Ora, Franziska deve estar no quarto de papai!” E ambos rimos, mas não estávamos pensando em nada de mau. Fomos então ao quarto do meu tio, mas o encontramos trancado. Isso me pareceu estranho. Então Alois disse: “Há uma janela no corredor de onde se pode olhar para dentro do quarto.” Dirigimo-nos para o corredor, mas Alois recusou-se a ir até a janela e disse que estava com medo. Então, eu falei: “Seu menino bobo! Eu vou. Não tenho o menor medo.” E não tinha nada de mau na mente. Olhei para dentro. O quarto estava um pouco escuro, mas vi meu tio e Franziska; ele estava deitado em cima dela.

—E então?

—Afastei-me da janela imediatamente, apoiei-me na parede e fiquei sem ar, justamente o que me acontece desde então. Tudo ficou opaco, minhas pálpebras se fecharam à força e havia marteladas e um zumbido em minha cabeça.

—Você contou isso a sua tia no mesmo dia?

—Oh, não, não disse nada.

—Então por que ficou tão assustada quando os viu juntos? Você entendeu? Sabia o que estava acontecendo?

—Oh, não. Não compreendi nada naquela ocasião. Tinha apenas dezesseis anos. Não sei por que me assustei.

—Srta. Katharina, se pudesse lembrar-se agora do que lhe aconteceu naquela ocasião em que teve sua primeira crise, no que pensou sobre o fato … isso a ajudaria.

—Sim, se pudesse. Mas fiquei tão assustada que me esqueci de tudo.

(Traduzido na terminologia de nossa “Comunicação Preliminar” |ver em [1]|, isso significa: “O próprio afeto criou um estado hipnóide cujos produtos foram então isolados da ligação associativa com a consciência do ego”.)

—Diga-me, senhorita, será que a cabeça que você sempre vê quando fica sem ar é a de Franziska, tal como a viu naquele momento?

—Não, não, ela não era tão horrível. Além disso, é uma cabeça de homem.

—Ou talvez a de seu tio?

—Não vi o rosto dele assim com tanta clareza. Estava escuro demais no quarto. E por que estaria fazendo uma cara tão medonha exatamente naquela hora?

—Você tem toda razão.

(O caminho de repente pareceu bloqueado. Talvez algo pudesse surgir no restante de sua história.)

—E o que aconteceu depois?

—Bem, os dois devem ter ouvido algum ruído, porque saíram logo em seguida. Senti-me muito mal o tempo todo. Ficava sempre pensando naquilo. Então, dois dias depois, era domingo, havia muito o que fazer, e trabalhei o dia inteiro. E na manhã de segunda-feira tornei a me sentir tonta e caí doente, fiquei acamada por três dias seguidos.

Nós |Breuer e eu| muitas vezes havíamos comparado a sintomatologia da histeria com uma escrita pictográfica que se torna inteligível após a descoberta de algumas inscrições bilíngües. Nesse alfabeto, estar doente significa repulsa. Então eu disse:

—Se você ficou doente três dias depois, creio que isso significa que quando olhou para dentro do quarto sentiu repulsa.

—Sim, tenho certeza de que senti repulsa — disse ela, pensativa —, mas repulsa de quê?

—Não terá visto alguém nu, talvez? Como estavam eles?

—Estava muito escuro para ver qualquer coisa; além disso, ambos estavam vestidos. Oh, se pelo menos soubesse do que foi que senti nojo!

Eu também não tinha nenhuma idéia. Mas disse-lhe que continuasse e que me contasse qualquer coisa que lhe ocorresse, na confiante expectativa de que ela viesse a pensar exatamente no que eu precisava para explicar o caso.

Bem, ela passou a descrever como afinal havia contado sua descoberta à tia, que a achou mudada e suspeitou que estivesse escondendo algum segredo. Seguiram-se algumas cenas muito desagradáveis entre o tio e a tia, no decorrer das quais as crianças vieram a ouvir muitas coisas que lhes abriram os olhos de várias maneiras e que teria sido melhor que não tivessem ouvido. Finalmente, a tia resolveu mudar-se com os filhos e a sobrinha e ficar com a atual estalagem, deixando o tio sozinho com Franziska, que entrementes ficara grávida. Depois disso, contudo, para minha surpresa, Katharina abandonou o fio da meada e começou a me contar dois grupos de histórias mais antigas, que retrocediam a dois ou três anos antes do momento traumático. O primeiro grupo relacionava-se com ocasiões em que o mesmo tio fizera investidas sexuais contra ela própria, quando estava com apenas quatorze anos. Ela descreveu como, certa feita, fora com ele numa viagem até o vale, no inverno, e ali passara a noite na estalagem. Ele ficou no bar bebendo e jogando cartas, mas ela sentiu sono e foi cedo para a cama, no quarto que iam partilhar no andar de cima. Não estava ainda inteiramente adormecida quando ele subiu; depois, tornou a adormecer e acordou de repente, “sentindo o corpo dele” na cama. Deu um salto e admoestou-o: “O que é que o senhor está pretendendo, tio? Por que não fica na sua própria cama?” Ele tentou apaziguá-la: “Ora, sua bobinha, fique quieta. Você não sabe como é bom.” — “Não gosto de suas coisas ‘boas’; o senhor nem ao menos deixa a gente dormir em paz.” Ela ficou de pé na porta, pronta a se refugiar no corredor do lado de fora, até que finalmente ele desistiu e foi dormir. Então ela voltou para sua própria cama e dormiu até de manhã. Pela maneira como relatou ter-se defendido, parece que ela não reconheceu nitidamente a investida como sendo de ordem sexual. Quando lhe perguntei se sabia o que ele estava tentando fazer com ela, respondeu: “Não naquela ocasião.” Disse então que isso lhe ficara claro muito depois: resistira porque era desagradável ser perturbada durante o sono e “porque não era bom”.

Fui obrigado a relatar isso minuciosamente por causa de sua grande importância para a compreensão de tudo o que se seguiu. Ela passou a relatar-me ainda outras experiências um pouco posteriores: como mais uma vez teve de defender-se dele numa estalagem, quando ele estava inteiramente bêbado, e histórias semelhantes. Em resposta a uma pergunta para saber se, nessas ocasiões, sentira algo semelhante a sua posterior falta de ar, ela respondeu com firmeza que em todas as ocasiões sentira a pressão nos olhos e no peito, mas nada semelhante à força que havia caracterizado a cena da descoberta.

Logo após ter terminado esse conjunto de lembranças, ela começou a me contar um segundo conjunto, que se relacionava com ocasiões em que notara algo entre o tio e Franziska. Uma vez, toda a família passara a noite, com a roupa que trazia no corpo, num palheiro, e ela fora subitamente despertada por um ruído; pensou ter reparado que o tio, que estivera deitado entre ela e Franziska, se afastava, e que Franziska estava acabando de se deitar. De outra feita, passavam a noite numa estalagem na aldeia de N—; ela e o tio estavam num quarto, e Franziska, num outro contíguo. Ela acordou de repente durante a noite e viu uma figura alta e branca na porta, prestes a girar a maçaneta: — “Deus do céu, é o senhor, tio? O que está fazendo na porta?” — “Fique quieta. Estava só procurando uma coisa.” — “Mas a saída é pela outra porta.” — “É, foi um engano meu” … e assim por diante.

Perguntei-lhe se ficara desconfiada nessa ocasião. “Não, não dei nenhuma importância àquilo; apenas notei e não pensei mais no assunto.”

Quando lhe perguntei se tinha ficado assustada também nessas ocasiões, respondeu que achava que sim, mas não estava tão certa disso.

Ao fim desses dois conjuntos de lembranças, ela parou. Parecia alguém que tivesse passado por uma transformação. O rosto amuado e infeliz ficara animado, os olhos brilhavam, sentia-se leve e exultante. Entrementes, a compreensão de seu caso tornara-se clara para mim. A última parte do que me contara, numa forma aparentemente sem sentido, proporcionou uma admirável explicação de seu comportamento na cena da descoberta. Naquela ocasião, ela carregava consigo dois conjuntos de experiências de que se recordava mas que não compreendia, e das quais não havia extraído nenhuma inferência. Quando vislumbrou o casal no ato sexual, estabeleceu de imediato uma ligação entre a nova impressão e aqueles dois conjuntos de lembranças, começou a compreendê-los e, ao mesmo tempo, a rechaçá-los. Seguiu-se então um curto período de elaboração, de “incubação”, após o qual os sintomas de conversão se instalaram, com os vômitos funcionando como um substituto para a repulsa moral e física. Isto solucionou o enigma. Ela não sentira repulsa pela visão das duas pessoas, mas pela lembrança que aquela visão despertara. E, levando tudo em conta, esta só poderia ser a lembrança da investida contra ela na noite em que “sentira o corpo do tio”.

Assim, quando ela terminou sua confissão, eu lhe disse:

—Sei agora o que foi que você pensou ao olhar para dentro do quarto: “Agora ele está fazendo com ela o que queria fazer comigo naquela noite e nas outras vezes.” Foi disso que você sentiu repulsa, porque lembrou-se da sensação de quando despertou durante a noite e sentiu o corpo dele.

—É bem possível — respondeu — que tenha sido isso o que me causou repulsa e que tenha sido nisso que pensei.

—Diga-me só mais uma coisa. Você agora é uma moça crescida e sabe toda espécie de coisas…

—Sim, agora eu sou.

—Diga-me apenas uma coisa. Qual foi a parte do corpo dele que você sentiu naquela noite?

Mas ela não me deu mais nenhuma resposta definida. Sorriu de maneira constrangida, como se tivesse sido apanhada, como alguém que é obrigado a admitir que se atingiu uma posição fundamental na qual não resta mais muita coisa a dizer. Pude imaginar qual fora a sensação tátil que ela depois aprendera a interpretar. Sua expressão facial parecia dizer que ela achava que eu tinha razão em minha conjetura. Mas não pude ir mais além e, de qualquer modo, fiquei-lhe grato por me haver tornado muito mais fácil conversar com ela do que com as senhoras pudicas da minha clínica na cidade, que consideram vergonhoso tudo o que é natural.

Assim, o caso ficou esclarecido. Mas esperemos um momento! O que dizer da alucinação periódica da cabeça que surgia durante suas crises e lhe infundia terror? De onde provinha? Perguntei-lhe então sobre isso e, como se seu conhecimento também tivesse sido ampliado por nossa conversa, ela respondeu prontamente:

—Sim, agora eu sei. A cabeça é a do meu tio, agora a reconheço, mas não daquela época. Mais tarde quando todas as brigas tinham irrompido, meu tio deu vazão a uma cólera absurda contra mim. Vivia dizendo que era tudo culpa minha: se eu não tivesse dado com a língua nos dentes, aquilo nunca teria redundado em divórcio. Ele vivia ameaçando fazer alguma coisa contra mim; e quando me avistava a distância, seu rosto se transfigurava de ódio e ele partia para cima de mim com a mão levantada. Eu sempre fugia dele e sempre ficava apavorada com a idéia de que um dia ele me pegasse desprevenida. O rosto que sempre vejo agora é o dele, quando ficava furioso.

Esses dados me fizeram recordar que seu primeiro sintoma histérico — o vômito — havia passado, a crise de angústia permanecera e adquirira um novo conteúdo. Por conseguinte, estávamos lidando com uma histeria que fora ab-reagida num grau considerável. E, de fato, ela havia informado a tia de sua descoberta pouco depois do acontecimento.

—Você contou a sua tia as outras histórias… sobre as investidas que ele fez contra você?

—Contei. Não imediatamente, mas depois, quando já se falava em divórcio. Minha tia disse: “Vamos guardar isso de reserva. Se ele criar caso no tribunal, contaremos isso também.”

Posso compreender muito bem que tenha sido precisamente este último período — quando ocorreram cenas cada vez mais agitadas na casa e quando o estado da própria paciente deixou de interessar a tia, que estava inteiramente absorta na disputa — que tenha sido esse período de acúmulo e retenção que lhe tenha deixado o legado do símbolo mnêmico |do rosto alucinado|.

Espero que essa moça, cuja sensibilidade sexual fora afetada numa idade tão precoce, tenha tirado algum benefício de nossa conversa. Desde então não voltei a vê-la.

 

 

DISCUSSÃO

 

Se alguém afirmasse que o presente relato não é tanto um caso analisado de histeria, e sim um caso solucionado por conjeturas, eu nada teria a dizer contra ele. É certo que a paciente concordou que aquilo que introduzi em sua história provavelmente era verdade, mas ela não estava em condições de reconhecê-lo como algo que houvesse experimentado. Creio que teria sido necessária a hipnose para conseguir isso. Admitindo que minhas conjeturas tenham sido certas, tentarei agora inserir o caso no quadro esquemático de uma histeria “adquirida”, nos moldes sugeridos pelo Caso 3. Parece plausível, portanto, comparar os dois conjuntos de experiências eróticas com momentos “traumáticos”, e a cena da descoberta do casal, com um momento “auxiliar”. | ver em [1] e seg.| A semelhança está no fato de que, nas experiências anteriores, criou-se um elemento da consciência que foi excluído da atividade de pensamento do ego e permaneceu, por assim dizer, armazenado, ao passo que, na última cena, uma nova impressão ocasionou forçosamente uma ligação associativa entre esse grupo separado e o ego. Por outro lado, existem diferenças que não podem ser desprezadas. A causa do isolamento não foi, como no Caso 3, um ato de vontade do ego, mas ignorância por parte deste, que ainda não era capaz de lidar com experiências sexuais. Nesse sentido, o caso de Katharina é típico. Em toda análise de casos de histeria baseados em traumas sexuais, verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança atingem um poder traumático, numa data posterior, como lembranças, quando a moça ou a mulher casada adquire uma compreensão da vida sexual. Pode-se dizer que a divisão dos conjuntos psíquicos é um processo normal no desenvolvimento do adolescente, sendo fácil ver que sua recepção posterior pelo ego proporciona oportunidades freqüentes para perturbações psíquicas. Além disso, gostaria, neste ponto, de externar a dúvida de se uma divisão da consciência devida à ignorância é realmente diferente de uma que se deva à rejeição consciente, e se mesmo os adolescentes não possuem conhecimento sexual com muito mais freqüência do que se supõe ou do que eles mesmos acreditam.

Outra distinção no mecanismo psíquico deste caso reside no fato de que a cena da descoberta, que classificamos de “auxiliar” merece igualmente ser denominada de “traumática”. Ela atuou por seu próprio conteúdo, e não simplesmente como alguma coisa que revivesse experiências traumáticas anteriores. Combinou as características de um momento “auxiliar” e de um momento “traumático”. Não parece haver nenhum motivo, contudo, para que essa coincidência nos leve a abandonar uma separação conceitual que em outros casos corresponde também a uma separação no tempo. Outra peculiaridade do caso de Katharina, que, aliás, há muito já nos é familiar, pode ser observada na circunstância de que a conversão, a produção dos fenômenos histéricos, não ocorreu imediatamente após o trauma, e sim depois de um intervalo de incubação. Charcot gostava de classificar esse intervalo de “período de elaboração |élaboration| psíquica”.

 

A angústia de que Katharina sofria em suas crises era histérica, isto é, era uma reprodução da angústia que surgira em conexão com cada um dos traumas sexuais. Não comentarei aqui o fato que tenho encontrado regularmente num número muito grande de casos — a saber, que a mera suspeita de relações sexuais desperta o afeto de angústia nas pessoas virgens. | ver em [1].|

 

CASO 5 - SRTA. ELISABETH VON R. (FREUD)

 

No outono de 1892, um médico meu conhecido pediu-me que examinasse uma jovem que vinha sofrendo há mais de dois anos de dores nas pernas e que tinha dificuldades em andar. Ao fazer esse pedido, acrescentou que julgava tratar-se de um caso de histeria, embora não houvesse nenhum vestígio das indicações habituais dessa neurose. Disse-me conhecer ligeiramente a família, e que, nos últimos anos, ela tivera muitos infortúnios e pouca felicidade. Primeiro, o pai da paciente morrera, em seguida a mãe tivera de submeter-se a uma séria operação da vista e logo depois uma irmã casada sucumbira a uma afecção cardíaca de longa duração após o puerpério. De todas essas dificuldades e todos os cuidados dispensados aos enfermos, a maior parcela recaíra sobre nossa paciente.

Minha primeira entrevista com essa jovem de vinte e quatro anos de idade não me ajudou a realizar grandes progressos na compreensão do caso. Ela parecia inteligente e mentalmente normal, e suportava seus problemas, que interferiam em sua vida social e seus prazeres, com ar alegre — a belle indifférence dos histéricos, como não pude deixar de pensar. Andava com a parte superior do corpo inclinada para a frente, mas sem fazer uso de qualquer apoio. Sua marcha não era de nenhum tipo patológico reconhecido e, além disso, de modo algum era notavelmente mau. Tudo o que se observava era que ela se queixava de grande dor ao andar e de se cansar rapidamente ao andar e ao ficar de pé, e que depois de curto intervalo tinha de descansar, o que diminuía as dores mas não as eliminava inteiramente. A dor era de caráter indefinido; depreendi que era algo da natureza de uma fadiga dolorosa. Uma área bastante grande e mal definida da superfície anterior da coxa direita era indicada como o foco das dores, a partir da qual elas se irradiavam com mais freqüência e onde atingiam sua maior intensidade. Nessa região, a pele e os músculos eram também particularmente sensíveis à pressão e aos beliscões (embora uma picada de agulha provocasse, quando muito, certa dose de indiferença). A hiperalgia da pele e dos músculos não se restringia a essa região, mas podia ser observada mais ou menos em toda a extensão das duas pernas. Os músculos eram talvez ainda mais sensíveis à dor do que a pele;mas não havia dúvida de que as coxas eram as partes mais sensíveis a essas duas espécies de dor. A força motora das pernas não podia ser qualificada de pequena e os reflexos eram de intensidade média. Não havia outros sintomas, de modo que não existia fundamento para se suspeitar da presença de qualquer afecção orgânica grave. O distúrbio se desenvolvera gradativamente durante os dois anos anteriores e variava bastante em intensidade.

Não achei fácil chegar a um diagnóstico, mas resolvi por duas razões concordar com o que fora proposto por meu colega, isto é, que se tratava de um caso de histeria. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com a indefinição de todas as descrições do caráter das dores fornecidas pela paciente, que era, não obstante, uma pessoa muito inteligente. Um paciente que sofra de dores orgânicas, a menos que além disso seja neurótico, as descreverá de forma definida e calma. Dirá, por exemplo, que são dores lancinantes, que ocorrem a certos intervalos, que se estendem deste lugar para aquele e que lhe parecem ser provocadas por uma coisa ou outra. Por outro lado, quando um neurastênico descreve suas dores, dá a impressão de estar empenhado numa difícil tarefa intelectual que ultrapassa em muito suas forças. Suas feições se contraem e se deformam como se ele estivesse sob a influência de um afeto angustiante. A voz torna-se mais aguda e ele luta por encontrar um meio de expressão. Rejeita qualquer descrição de suas dores proposta pelo médico, mesmo que ela depois se revele inquestionavelmente adequada. Percebe-se que ele é da opinião de que a linguagem é pobre demais para que ele encontre palavras para descrever suas sensações e de que essas sensações são algo único e até então desconhecido do qual seria inteiramente impossível dar uma descrição completa. Por esse motivo, ele jamais se cansa de acrescentar novos detalhes sem cessar e, quando é obrigado a parar, com certeza fica com a convicção de que não conseguiu se fazer entender pelo médico. Tudo isso porque as dores atraíram toda a atenção dele para elas. A Srta. von R. comportava-se de forma inteiramente oposta, e somos levados a concluir que, já que ela ainda assim atribuía importância suficiente a seus sintomas, sua atenção devia estar em outra coisa, da qual as dores eram apenas um fenômeno acessório — provavelmente, portanto, em pensamentos e sentimentos que estavam vinculados a elas.

Mas existe um segundo fator que é ainda mais decisivamente favorável a essa opinião sobre as dores. Quando estimulamos uma região sensível à dor em alguém com uma doença orgânica ou num neurastênico, o rosto do paciente assume uma expressão de mal-estar ou de dor física. Além disso, ele se esquiva, retrai-se e resiste ao exame. No caso da Srta. von R., contudo, quando se pressionava ou beliscava a pele e os músculos hiperalgésicos de suas pernas, seu rosto assumia uma expressão peculiar, que era antes de prazer do que de dor. Ela gritava mais e eu não podia deixar de pensar que era como se ela estivesse tendo uma voluptuosa sensação de cócega — o rosto enrubescia, ela jogava a cabeça para trás e fechava os olhos, e seu corpo se dobrava para trás. Nenhum desses movimentos era muito exagerado, mas era distintamente observável, e isso só podia ser conciliado com o ponto de vista de que seu distúrbio era histérico e de que o estímulo tocara uma zona histerogênica.

Sua expressão facial não se ajustava à dor evidentemente provocada pela beliscadura dos músculos e da pele; provavelmente se harmonizava mais com o tema dos pensamentos que jaziam ocultos por trás da dor e que eram despertados nela pela estimulação das partes do corpo associadas com esses pensamentos. Observei repetidamente expressões de significado semelhante em casos incontestáveis de histeria, quando se aplicava um estímulo às zonas hiperalgésicas. Os outros gestos da paciente eram, é claro, indícios muito leves de um ataque histérico.

Para começar, não havia explicação para a localização inusitada de sua zona histerogênica. O fato de a hiperalgia afetar principalmente os músculos também dava o que pensar. O distúrbio mais habitualmente responsável pela sensibilidade difusa e local à pressão nos músculos é uma infiltração reumática desses músculos — o reumatismo muscular crônico comum. Já mencionei | ver em. [1]| a tendência desse distúrbio a simular afecções nervosas. Essa possibilidade não entrava em contradição com a consistência dos músculos hiperalgésicos da paciente. Havia numerosas fibras endurecidas na substância muscular e estas pareciam ser especialmente sensíveis. Assim, era provável que uma alteração muscular orgânica da espécie indicada estivesse presente e que a neurose se houvesse ligado a ela, fazendo-a parecer exageradamente importante.

O tratamento prosseguiu na suposição de que o distúrbio fosse dessa espécie mista. Recomendamos a continuação da massagem e faradização sistemática dos músculos sensíveis, independentemente da dor resultante, e reservei para mim o tratamento das pernas com correntes elétricas de alta tensão, a fim de poder manter-me em contato com a paciente. Sua pergunta quanto a se deveria forçar-se a andar foi respondida com um incisivo “sim”.

Dessa maneira, promovemos uma ligeira melhora. Em especial, ela parecia gostar muito dos choques dolorosos produzidos pelo aparelho de alta-tensão, e quanto mais fortes estes eram, mais pareciam afastar suas próprias dores para um segundo plano. Entrementes, meu colega preparava o terreno para o tratamento psíquico, e quando, após quatro semanas de meu pretenso tratamento, propus a ela o outro método e lhe dei algumas explicações sobre seu processamento e modo de ação, obtive rápida compreensão e pouca resistência.

A tarefa em que então me empenhei veio a ser, entretanto, uma das mais árduas que já empreendi, e a dificuldade de fazer um relato dela é comparável, além disso, às dificuldades que tive então de superar. Também por muito tempo fui incapaz de apreender a conexão entre os fatos de sua doença e seus sintomas reais, que, não obstante, deveriam ter sido causados e determinados por aquele conjunto de experiências.

Quando se inicia um tratamento catártico dessa natureza, a primeira pergunta que se faz é se a própria paciente tem consciência da origem e da causa precipitante de sua doença. Em caso afirmativo, não se faz necessária nenhuma técnica especial para permitir-lhe reproduzir a história de sua doença. O interesse que o médico demonstra por ela, a compreensão que lhe permite sentir e as esperanças de recuperação que lhe dá, tudo isso faz com que a paciente se decida a revelar seu segredo. Desde o início me pareceu provável que a Srta. Elisabeth estivesse consciente da causa de sua doença, que o que guardava na consciência fosse apenas um segredo, e não um corpo estranho. Contemplando-a, não se podia deixar de pensar nas palavras do poeta:

 

Das Maeskchen da weissagt verborgnen Sinn

 

A princípio, portanto, pude dispensar a hipnose, porém com a ressalva de que poderia fazer uso dela posteriormente, se no curso de sua confissão surgisse algum material cuja elucidação não estivesse ao alcance de sua memória. Ocorreu assim que nesta, que foi a primeira análise integral de uma histeria empreendida por mim, cheguei a um processo que mais tarde transformei num método regular e empreguei deliberadamente. Esse processo consistia em remover o material psíquico patogênico camada por camada e gostávamos de compará-lo à técnica de escavar uma cidade soterrada. Eu começava por fazer com que a paciente me contasse o que sabia e anotava cuidadosamente os pontos em que alguma seqüência de pensamentos permanecia obscura ou em que algum elo da cadeia causal parecia estar faltando. E depois penetrava em camadas mais profundas de suas lembranças nesses pontos, realizando uma investigação sob hipnose ou utilizando alguma técnica semelhante. Todo o trabalho baseava-se, naturalmente, na expectativa de que seria possível identificar um conjunto perfeitamente adequado de determinantes para os fatos em questão. Examinarei agora os métodos utilizados para a investigação profunda.

A história que a Srta. Elisabeth me relatou de sua doença foi cansativa, composta de muitas experiências penosas diferentes. Enquanto fazia o relato, ela não ficava sob hipnose, mas eu a fazia deitar-se e conservar os olhos fechados, embora não me opusesse a que os abrisse ocasionalmente, mudasse de posição, se sentasse e assim por diante. Quando ela ficava mais profundamente emocionada do que de costume com uma parte da história, parecia cair num estado mais ou menos semelhante à hipnose. Ficava então imóvel e mantinha os olhos bem fechados.

Começarei por repetir o que surgiu como a camada mais superficial de suas lembranças. Sendo a mais jovem de três filhas, ela era ternamente apegada aos pais e passara a juventude na propriedade deles, na Hungria. A saúde da mãe era freqüentemente perturbada por uma afecção dos olhos, bem como por estados nervosos. Foi assim que ela se viu atraída para um contato muito íntimo com o pai, um homem alegre e experiente conhecedor da vida que costumava dizer que aquela filha ocupava o lugar de um filho e de um amigo com quem ele podia trocar idéias. Embora a mente da moça encontrasse estímulo intelectual nessa relação com o pai, ele não deixava de observar que a constituição mental dela estava, por causa disso, afastando-se do ideal que as pessoas gostam de ver concretizado numa moça. Em tom brincalhão, ele a chamava de “insolente” e “convencida” e a aconselhava a não ser categórica demais em seus julgamentos, advertindo-a contra o hábito de dizer a verdade às pessoas sem medir as conseqüências e muitas vezes dizendo que ela teria dificuldades em achar um marido. Ela se sentia, de fato, muito descontente por ser mulher. Tinha muitos planos ambiciosos. Queria estudar ou receber educação musical e ficava indignada com a idéia de ter de sacrificar suas inclinações e sua liberdade de opinião pelo casamento. Assim, nutria-se de seu orgulho pelo pai e do prestígio e posição social da família, e guardava zelosamente tudo o que se relacionava com essas vantagens. O altruísmo, contudo, com que colocava em primeiro lugar a mãe e as irmãs mais velhas, quando surgia a ocasião, reconciliava inteiramente seus pais com o lado mais áspero do seu caráter.

Em vista da idade das moças, ficou resolvido que a família se mudaria para a capital, onde Elisabeth, durante um curto espaço de tempo, pôde desfrutar de uma vida mais completa e mais alegre no círculo familiar. Mas sobreveio então o golpe que destruiu a felicidade da família. O pai ocultara, ou talvez tivesse ele próprio subestimado, uma afecção crônica do coração, e um dia foi levado inconsciente para casa, com um edema pulmonar. Foi assistido durante dezoito meses, e Elisabeth agiu no sentido de desempenhar o papel principal junto a seu leito de doente. Dormia no quarto dele, estava pronta a despertar quando ele a chamava à noite, cuidava dele durante o dia e obrigava-se a parecer alegre, enquanto ele se conformava com seu estado irremediável, mostrando uma resignação sem queixas. O início da doença dela deve ter-se relacionado com esse período de desvelos, pois ela se recordava de que, durante os últimos seis meses, ficara acamada por um dia e meio por causa das dores que descrevemos. Ela asseverou, porém, que essas dores passaram rapidamente e não lhe haviam causado nenhuma inquietação nem atraído sua atenção. E, de fato, só dois anos após o falecimento do pai foi que ela se sentiu doente e ficou impossibilitada de andar por causa das dores.

A lacuna causada na vida dessa família de quatro mulheres pela morte do pai, seu isolamento social, a interrupção de tantas relações que prometiam trazer-lhe interesse e diversão, a saúde precária da mãe, que então se tornou mais acentuada — tudo isso lançou uma sombra sobre o estado de espírito da paciente; mas, ao mesmo tempo, despertou-lhe um vivo desejo de que sua família logo pudesse encontrar algo para substituir a felicidade perdida, levando-a a concentrar toda a sua afeição e cuidado na mãe que ainda vivia.

Quando o ano de luto havia passado, sua irmã mais velha casou-se com um homem bem-dotado e dinâmico. Ele ocupava posição de responsabilidade e sua capacidade intelectual parecia prometer-lhe um grande futuro. Mas para com os conhecidos mais íntimos ele exibia uma sensibilidade mórbida e uma insistência egoísta em suas excentricidades. E foi o primeiro do círculo da família a ousar demonstrar falta de consideração pela velha senhora. Isso foi demais para Elisabeth. Ela se sentiu convocada a empreender uma luta contra o cunhado sempre que ele lhe dava oportunidade para isso, enquanto as outras mulheres não levavam a sério as explosões temperamentais dele. Foi um desapontamento penoso para ela ver assim interrompida a reconstrução da antiga felicidade da família, e ela não conseguia perdoar a irmã casada pela complacência feminina com que esta sempre evitava tomar partido. Elisabeth reteve na memória inúmeras cenas ligadas a isso, envolvendo queixas parcialmente não verbalizadas contra seu primeiro cunhado. Mas sua principal recriminação a ele continuava a prender-se ao fato de, em nome de uma possível promoção, ele ter-se mudado com sua pequena família para uma remota cidade da Áustria e assim ter ajudado a aumentar o isolamento da mãe. Nessa ocasião, Elisabeth sentiu de maneira intensa seu desamparo, sua incapacidade de proporcionar à mãe um substituto pela felicidade que perdera e a impossibilidade de levar a cabo a intenção que tivera quando da morte do pai.

O casamento da segunda irmã pareceu prometer um futuro mais brilhante para a família, pois o segundo cunhado, embora menos bem-dotado intelectualmente, era do agrado daquelas mulheres cultas, educado que fora, como acontecera com elas, para ter consideração pelos outros. Seu comportamento reconciliou Elisabeth com a instituição do matrimônio e com a idéia dos sacrifícios que este implicava. Além disso, o segundo casal permaneceu morando perto da mãe e o filho que tiveram tornou-se o predileto de Elisabeth. Infelizmente, outro acontecimento veio lançar uma sombra sobre o ano em que a criança nasceu. O tratamento do problema na vista da mãe exigiu que ela permanecesse num quarto escuro por várias semanas, durante as quais Elisabeth ficou com ela. Uma operação foi considerada inevitável. A agitação diante dessa perspectiva coincidiu com os preparativos para a mudança do primeiro cunhado. Finalmente, a mãe saiu-se bem da operação, que foi realizada por mão de mestre. As três famílias se reuniram numa estação de veraneio e esperou-se que Elisabeth, que ficara exausta com as ansiedades dos últimos meses, se recuperasse inteiramente durante o que seria o primeiro período de libertação dos pesares e temores a ser desfrutado pela família desde a morte do pai.

Foi precisamente durante essas férias, contudo, que as dores e a fraqueza locomotora de Elisabeth começaram. Ela estivera mais ou menos cônscia das dores por um curto período, mas elas sobrevieram com violência, pela primeira vez, depois de ela ter tomado um banho quente na pequena estação de águas. Alguns dias antes ela saíra para dar um longo passeio — na verdade, uma caminhada que durou meio dia —, o qual eles relacionaram com o aparecimento das dores, de modo que foi fácil adotar o ponto de vista de que Elisabeth primeiro ficara “cansada demais” e em seguida “se resfriara”.

A partir dessa época Elisabeth foi a inválida da família. Foi aconselhada pelo médico a dedicar o resto do mesmo verão a um período de tratamento hidropático em Gastein |nos Alpes austríacos|, e viajou para lá com a mãe.  Mas foi então que surgiu uma nova preocupação. A segunda irmã ficara grávida novamente e as notícias de seu estado eram extremamente desfavoráveis, de modo que a custo pôde decidir-se a ir para Gastein. Ela e a mãe mal tinham passado quinze dias lá quando foram chamadas de volta pelas notícias de que a irmã se achava acamada e em estado gravíssimo.

Seguiu-se uma viagem angustiante, durante a qual Elisabeth foi atormentada não só por suas dores como também por expectativas sombrias. Quando as duas chegaram à estação, houve sinais que as levaram a temer o pior; e ao entrarem no quarto da doente tiveram a certeza de que haviam chegado tarde demais para se despedirem de uma pessoa viva.

Elisabeth sofreu não só com a perda dessa irmã, a quem amava ternamente, mas quase na mesma medida com os pensamentos provocados pela morte dela e pelas mudanças que esta acarretou. A irmã sucumbira a uma doença cardíaca que fora agravada pela gravidez. Surgiu então a idéia de que a doença de coração fora herdada do lado paterno da família. Recordou-se que a irmã morta havia sofrido, no início da adolescência, de coréia, acompanhada de um distúrbio cardíaco brando. A família culpou a si própria e aos médicos por terem permitido o casamento, e foi impossível poupar o infeliz do viúvo da acusação de ter posto em perigo a saúde da esposa, ao provocar duas gestações em sucessão imediata. A partir dessa época, os pensamentos de Elisabeth se ocuparam ininterruptamente com a sombria reflexão de que quando, para variar, as raras condições para um casamento feliz tinham sido preenchidas, essa felicidade chegara a um fim terrível. Além disso, ela viu mais uma vez o colapso de tudo o que desejara para a mãe. O cunhado viúvo ficou inconsolável e afastou-se da família da esposa. Ao que parece, a família dele, que se afastara durante seu breve e feliz casamento, achou que aquele momento era favorável para atraí-lo de volta para seu próprio círculo. Não houve meio de preservar a união que existira anteriormente. Não era viável ele morar com a mãe dela, uma vez que Elisabeth era solteira. Como ele também se recusasse a deixar a criança, que era o único legado da esposa morta, sob a custódia das duas mulheres, deu-lhes a oportunidade, pela primeira vez, de acusá-lo de crueldade. Por fim — e este não foi o fato menos aflitivo — chegou aos ouvidos de Elisabeth o boato de que surgira uma querela entre seus dois cunhados. Ela só pôde tentar adivinhar-lhe a causa; mas, ao que parecia, o viúvo formulara exigências de ordem financeira que o outro declarou injustificáveis e que, na verdade, em vista do pesar da mãe na ocasião, ele pôde caracterizar como chantagem da pior espécie.

Essa era, portanto, a infeliz história dessa moça orgulhosa com sua ânsia de amor. Incompatibilizada com seu destino, amargurada pelo fracasso de todos os seus pequenos planos para o restabelecimento das antigas glórias da família, com todos aqueles a quem amava mortos, distantes ou estremecidos, e despreparada para refugiar-se no amor de algum homem desconhecido, ela viveu dezoito meses em reclusão quase completa, não tendo nada a ocupá-la senão os cuidados com a mãe e com suas próprias dores.

Se pusermos de lado os grandes infortúnios e penetrarmos nos sentimentos de uma moça, não poderemos deixar de sentir profunda solidariedade humana pela Srta. Elisabeth. Mas que dizer do interesse, puramente médico, dessa história de sofrimentos, de suas relações com a dolorosa fraqueza locomotora da paciente e das possibilidades de explicação e cura proporcionadas por nosso conhecimento desses traumas psíquicos?

No que concerne ao médico, a confissão da paciente foi, à primeira vista, uma grande decepção. Era um relato de choques emocionais corriqueiros e nada havia que explicasse por que ela adoecera precisamente de histeria ou por que sua histeria assumira a forma específica de uma abasia dolorosa. O relato não esclarecia nem as causas, nem a determinação específica de sua histeria. Talvez pudéssemos presumir que a paciente havia estabelecido uma associação entre suas impressões mentais dolorosas e as dores corporais que por acaso estava experimentando na mesma época, e que agora, em sua vida de lembranças, estivesse usando suas sensações físicas como símbolo das mentais. Mas restava explicar quais teriam sido seus motivos para fazer tal substituição e em que momento ela ocorrera. Essas perguntas, aliás, não eram do tipo que os médicos tinham por hábito formular. Em geral, nós nos contentávamos com a afirmação de que um paciente era constitucionalmente histérico e sujeito a desenvolver sintomas histéricos sob a pressão de excitações intensas de qualquer natureza.

Aquela confissão parecia oferecer ainda menos ajuda para a cura de sua doença do que para sua explicação. Não era fácil verificar que tipo de influência benéfica a Srta. Elisabeth poderia obter da recapitulação da história de seus sofrimentos de anos recentes — com os quais todos os membros da sua família estavam acostumados — para um estranho que a ouvia com solidariedade apenas moderada. Nem havia qualquer sinal de que a confissão produzisse um efeito curativo dessa espécie. Durante esse primeiro período de tratamento, ela nunca deixou de repetir que ainda se sentia doente e que suas dores continuavam intensas como sempre; e, quando dizia isso olhando-me com uma expressão maliciosa de satisfação por eu estar confuso, eu não podia deixar de me lembrar da opinião do velho Sr. von R. sobre sua filha predileta — que ela era muitas vezes “insolente” e “convencida”. Mas eu era obrigado a admitir que ela estava certa.

 

Se eu tivesse interrompido o tratamento psíquico da paciente nesse estágio, o caso da Srta. Elisabeth von R. não teria lançado nenhuma luz sobre a teoria da histeria. Mas continuei minha análise porque esperava, convicto, que os níveis mais profundos de sua consciência proporcionariam uma compreensão tanto das causas como dos determinantes específicos dos sintomas histéricos. Resolvi, portanto, formular uma pergunta direta à paciente, num estado ampliado de consciência, e indagar-lhe qual teria sido a impressão psíquica à qual se vinculara a primeira emergência de dores nas pernas.

Com essa finalidade em vista, propus-me pôr a paciente em hipnose profunda. Infelizmente, porém, não pude deixar de observar que meu procedimento não a colocara em nenhum outro estado a não ser naquele em que ela fizera seu relato. Já me dei por satisfeito por ela não ter protestado triunfalmente nessa ocasião: “Não estou dormindo, sabe; não posso ser hipnotizada.” Nesse ponto, ocorreu-me a idéia de recorrer ao expediente de aplicar-lhe a pressão na cabeça, cuja origem descrevi na íntegra no caso clínico de Miss Lucy | ver em. [1] e segs.|. Realizei isso instruindo a paciente para que me informasse com fidelidade tudo o que aparecesse em sua imaginação ou de que se lembrasse no momento da pressão. Ela ficou calada por muito tempo e então, por insistência minha, admitiu ter pensado numa noite em que um jovem a acompanhara até em casa depois de uma festa, da conversa que houvera entre eles e dos sentimentos com que voltara para casa a fim de ficar à cabeceira do pai enfermo.

Essa primeira menção ao rapaz abriu uma nova corrente de representações cujos conteúdos extraí então gradativamente. Tratava-se aqui de um segredo, pois ela não havia contado a ninguém, exceto a um amigo comum, suas relações com esse rapaz e as esperanças ligadas a elas. Ele era filho de uma família com a qual há muito eles mantinham relações amistosas e que morava perto da antiga propriedade de nossa paciente. O jovem, que era órfão, fora devotadamente afeiçoado ao pai dela e seguira os conselhos deste no tocante a sua carreira. Estendera sua admiração pelo pai às damas da família. Numerosas lembranças de leituras feitas em comum, de trocas de idéias e de observações feitas por ele que eram repetidas a ela por outras pessoas apoiaram nela o gradual desenvolvimento da convicção de que ele a amava e a compreendia e de que o casamento com ele não implicaria sacrifícios por parte dela, sacrifícios esses que ela tanto temia no casamento de maneira geral. Infelizmente, ele era pouco mais velho do que ela e ainda estava longe de poder sustentar-se. Mas ela estava firmemente determinada a esperar por ele.

 

Depois que o pai de Elisabeth adoeceu gravemente e ela ficou muito ocupada em cuidar dele, seus encontros com o namorado se tornaram cada vez mais raros. A noite da qual ela se recordara pela primeira vez representou o que fora, na verdade, o clímax dos sentimentos dela, mas mesmo nessa ocasião não tinha havido nenhum éclaircissement entre eles. Naquela ocasião ela se deixara convencer, por insistência da família e do próprio pai, a ir a uma festa em que era provável que o encontrasse. Quisera voltar cedo para casa, mas fora pressionada a ficar e cedera quando ele prometeu acompanhá-la até a residência dela. Elisabeth nunca experimentou sentimentos tão afetuosos para com ele como enquanto ele a acompanhou nessa noite. Mas ao chegar tarde em casa, nesse estado de espírito abençoado, ela constatou que o pai sofrera uma piora e se recriminou amargamente por ter sacrificado tanto tempo à sua própria diversão. Essa foi a última vez que se afastou do pai doente por uma noite inteira. Encontrou-se poucas vezes com o namorado depois disso. Após a morte do pai, o jovem pareceu afastar-se dela em sinal de respeito por seu pesar. O curso de sua vida levou-o então por outros rumos. Ela teve de se acostumar pouco a pouco com a idéia de que o interesse dele por ela fora substituído por outros e de que ela o havia perdido. Mas essa decepção em seu primeiro amor ainda a feria sempre que ela pensava nele.

Foi nessa relação, portanto, e na cena descrita acima, na qual ela atingiu seu auge, que pude procurar as causas de suas primeiras dores histéricas. O contraste entre os sentimentos de alegria que ela se permitira ter naquela ocasião e o agravamento do estado do pai com que deparara ao voltar para casa constituiu um conflito, uma situação de incompatibilidade. O resultado desse conflito foi que a representação erótica foi recalcada para longe da associação e o afeto ligado a essa representação foi utilizado para intensificar ou reviver uma dor física que estivera presente simultaneamente ou pouco antes. Assim, tratava-se de um exemplo do mecanismo de conversão com finalidade de defesa, o qual descrevi com pormenores em outro texto.

Vários comentários, é claro, podem ser feitos a esta altura. Devo ressaltar que não consegui estabelecer, com base em suas recordações, se a conversão ocorreu no momento de sua volta à casa. Assim, procurei por experiências semelhantes durante o tempo em que ela cuidou do pai e trouxe à tona grande número delas. Entre estas, uma importância especial se prendeu, por causa de sua ocorrência freqüente, a cenas em que, a chamado do pai, ela pulava da cama de pés descalços num quarto frio. Eu me senti inclinado a atribuir alguma importância a esses fatores, visto que além de se queixar de dor nas pernas, ela também se queixava de torturantes sensações de frio. Não obstante, mesmo aqui fui incapaz de obter qualquer cena passível de ser identificada como aquela em que ocorreu a conversão. Por essa razão, eu me sentia inclinado a achar que havia uma lacuna na explicação nesse ponto, até me lembrar que, de fato, as dores histéricas nas pernas não haviam surgido durante o período em que ela estava cuidando do pai. Ela só se recordava de um único acesso de dor, que durara apenas um ou dois dias e não lhe chamara a atenção | ver em. [1]|. Dirigi então minhas indagações para esse primeiro aparecimento das dores. Consegui reavivar com segurança a lembrança que a paciente tinha dele. Precisamente naquela ocasião um parente os visitara e ela não pudera recebê-lo por estar de cama. Esse mesmo homem fora infeliz o bastante para visitá-las novamente dois anos depois, para encontrá-la de cama mais uma vez. Mas, apesar de repetidas tentativas, não conseguimos descobrir qualquer causa psíquica para as primeiras dores. Julguei seguro presumir que, de fato, elas haviam surgido sem nenhuma causa psíquica e eram uma afecção reumática branda; e pude estabelecer que esse distúrbio orgânico, que foi o modelo copiado em sua histeria posterior, teria de ser situado, de qualquer modo, antes da cena em que ela voltara da festa acompanhada. A julgar pela natureza das coisas, não obstante, é possível que essas dores, sendo de origem orgânica, tivessem persistido por algum tempo em grau atenuado, sem serem muito percebidas. A obscuridade devida ao fato de que a análise apontava para a ocorrência de uma conversão de excitação psíquica em dor física, embora essa dor certamente não fosse percebida na ocasião em questão ou relembrada em época posterior — esse é um problema que espero poder solucionar mais tarde, com base em outras considerações e em exemplos posteriores. | ver em [1] |

A descoberta da razão da primeira conversão abriu um segundo período profícuo do tratamento. A paciente surpreendeu-me logo depois, ao anunciar que agora sabia por que era que as dores sempre se irradiavam daquela região específica da coxa direita e atingiam ali sua maior intensidade: era nesse lugar que seu pai costumava apoiar a perna todas as manhãs, enquanto ela renovava a atadura em torno dela, pois estava muito inchada. Isso deve ter acontecido uma centena de vezes, mas ela não havia notado a ligação até esse momento. Assim, ela me forneceu a explicação de que eu precisava quanto ao surgimento do que era uma zona histerogênica atípica. Além disso, suas pernas doloridas começaram a “participar da conversa” durante nossas sessões de análise. | ver em [1].| O que tenho em mente é o seguinte fato notável: em geral, a paciente estava sem dor quando começávamos a trabalhar. Se então, por meio de uma pergunta ou pela pressão na sua cabeça, eu despertava uma lembrança, surgia uma sensação de dor, e esta era comumente tão aguda que a paciente estremecia e punha a mão no ponto doloroso. A dor assim despertada persistia enquanto a paciente estivesse sob a influência da lembrança; alcançava seu clímax quando ela estava no ato de me contar a parte essencial e decisiva do que tinha a comunicar, e com a última palavra desse relato, desaparecia. Com o tempo, passei a utilizar essas dores como uma bússola para minha orientação: quando a moça parava de falar mas admitia ainda estar sentindo dor, eu sabia que ela não me havia contado tudo e insistia para que continuasse sua história, até que a dor se esgotasse pela fala. Só então eu despertava uma nova lembrança.

Durante esse período de ‘ab-reação’, o estado da paciente, tanto físico quanto mental, teve uma melhora tão notável que eu costumava dizer, meio de brincadeira, que estava retirando um pouco de seus motivos de dor de cada vez e que, quando os tivesse eliminado inteiramente, ela ficaria boa. Elisabeth logo chegou ao ponto de passar a maior parte do tempo sem dor; deixou-se convencer a caminhar bastante e a abandonar seu isolamento anterior. No curso da análise, ora eu acompanhava as oscilações espontâneas do estado da paciente, ora seguia minha própria estimativa da situação, quando achava não ter esgotado inteiramente alguma parte da história de sua doença.

Durante esse trabalho, fiz algumas observações interessantes, cujas lições vi confirmadas mais tarde, ao tratar de outros pacientes. Quanto às oscilações espontâneas, em primeiro lugar, constatei que, na verdade, não ocorrera nenhuma que não tivesse sido provocada por associação com algum evento contemporâneo. Numa ocasião, ela ouvira falar de uma doença de um de seus conhecidos, o que a fez lembrar-se de um detalhe da doença do pai; de outra feita, o filho da irmã morta fora visitá-las e sua semelhança com a mãe provocara nela sentimentos de pesar; e ainda noutra ocasião uma carta da irmã distante mostrou claramente a influência do cunhado insensível e causou-lhe uma dor que a obrigou a relatar a história de uma cena familiar que ainda não me contara. Visto que ela nunca trazia à tona duas vezes a mesma causa precipitante para uma dor, parecia-me justificado supor que assim esgotaríamos o estoque dessas causas. Desse modo, eu não hesitava em colocá-la em situações projetadas para despertar novas lembranças que ainda não tivessem alcançado a superfície. Por exemplo, mandei-a visitar o túmulo da irmã e encorajei-a a ir a uma festa, em que poderia mais uma vez encontrar o namorado de sua juventude.

A seguir, consegui algum discernimento sobre o modo originário do que poderia ser chamado de histeria “monossintomática”. Verifiquei que sua perna direita doía durante a hipnose quando a discussão versava sobre os cuidados que ela dispensara ao pai enfermo, ou sobre suas relações com o namorado da mocidade, ou sobre outros acontecimentos que se enquadravam no primeiro período de suas experiências patogênicas; por outro lado, a dor surgia na outra perna, a esquerda, tão logo eu provocava uma lembrança relacionada com a irmã morta ou com os dois cunhados — em suma, com uma impressão proveniente da segunda metade da história de sua doença. Tendo assim minha atenção despertada pela regularidade dessa relação, levei minha pesquisa adiante e fiquei com a impressão de que essa diferenciação ia ainda mais além e que cada novo determinante psíquico de sensações dolorosas ficara ligado a algum ponto novo da região dolorosa das pernas. O ponto doloroso original de sua coxa direita se relacionara com os cuidados prestados ao pai; a região da dor estendera-se desse ponto para regiões vizinhas, como resultado de novos traumas. O que tínhamos aqui, portanto, não era, rigorosamente falando, um sintoma físico único, ligado a uma variedade de complexos mnêmicos na mente, mas sim um grande número de sintomas semelhantes, que pareciam, numa visão superficial, estar fundidos num único sintoma. Mas, ao verificar que a atenção da paciente se desviava desse tema, não prossegui com a delimitação das zonas de dor correspondentes aos diferentes determinantes psíquicos.

Não deixei, contudo, de voltar minha atenção para o modo como todo o complexo sintomático da abasia poderia ter-se estruturado nessas zonas dolorosas e, nesse sentido, fiz várias perguntas à paciente, tais como: Qual foi a origem de suas dores ao andar? E ao ficar de pé? E ao deitar-se? A algumas dessas perguntas ela respondeu espontaneamente, a outras sob a pressão de minha mão. Duas coisas resultaram daí. Em primeiro lugar, ela dividiu em grupos para mim todas as cenas a que estavam vinculadas impressões dolorosas, conforme as tivesse experimentado enquanto estava sentada ou de pé, e assim por diante. Por exemplo, estava de pé junto a uma porta quando o pai foi levado para casa logo após o ataque cardíaco | ver em [1]| e, com o susto, ficara paralisada como se tivesse raízes no chão. Continuou acrescentando várias outras lembranças a esse primeiro exemplo de susto quando se achava de pé, até chegar à cena assustadora em que, mais uma vez, estava de pé, como que enfeitiçada, junto ao leito de morte da irmã | ver em [1]|. Poder-se-ia esperar que toda essa cadeia de lembranças mostrasse haver uma conexão verdadeira entre suas dores e o ficar de pé, e a rigor ela poderia ser aceita como prova de uma associação. Mas convém lembrar que seria preciso comprovar a presença de um outro fator em todos esses eventos, um fator que lhe teria dirigido a atenção precisamente para o fato de estar de pé (ou, conforme o caso, andando, sentada, etc.) e, por conseguinte, levado à conversão. A explicação para o fato de sua atenção ter tomado esse rumo só pode ser buscada na circunstância de que andar, ficar de pé e deitar são funções e estados da parte do corpo que, no caso dela, abrangiam as zonas dolorosas: a saber, as pernas. Portanto, foi fácil compreender nesse caso a ligação entre a astasia-abasia e a primeira ocorrência da conversão.

Entre os episódios que, de acordo com esse catálogo, pareceram ter tornado doloroso o andar, um recebeu destaque especial: um passeio que ela fizera na estação de águas em companhia de várias outras pessoas | ver em [1]-[2]| e que teria sido longo demais. Os detalhes desse episódio só emergiram de maneira hesitante e deixaram vários enigmas não solucionados. Ela estivera num estado de ânimo particularmente dócil e se juntou, alegremente, a seu grupo de amigos. O dia estava bonito e não fazia muito calor. A mãe ficou em casa e a irmã mais velha já tinha ido embora. A irmã mais moça sentiu-se mal, mas não quis estragar o prazer dela; o cunhado primeiro disse que ficaria com a esposa, mas depois resolveu juntar-se ao grupo por causa de Elisabeth. Essa cena parecia estar estreitamente relacionada com o primeiro aparecimento das dores, pois ela se lembrou de ter ficado muito cansada e de ter sentido uma dor violenta ao voltar do passeio. Disse, contudo, não estar certa de já ter percebido as dores antes disso. Fiz-lhe ver que era improvável que tivesse empreendido uma caminhada tão longa se já tivesse sentido quaisquer dores fortes. Perguntei-lhe o que na caminhada poderia ter provocado a dor, e ela me forneceu a resposta um tanto obscura de que o contraste entre sua própria solidão e a felicidade conjugal da irmã enferma (felicidade esta que o comportamento do cunhado lhe lembrava constantemente) fora doloroso para ela.

Outra cena, muito próxima da primeira no tempo, teve seu papel na ligação das dores com o sentar. Ocorreu alguns dias depois, quando a irmã e o cunhado já haviam ido embora. Ela estava inquieta e ansiosa. Levantou-se cedo e subiu uma pequena colina, indo até um lugar onde muitas vezes eles tinham estado juntos e que proporcionava uma linda vista. Sentou-se num banco de pedra e se abandonou a seus pensamentos, que mais uma vez diziam respeito a sua solidão e ao destino de sua família, e dessa vez confessou abertamente o desejo intenso de ser tão feliz quanto a irmã. Retornou dessa meditação matinal com dores violentas e, naquela mesma noite, tomou o banho após o qual as dores surgiram em caráter definitivo e permanente | ver em [1]|.

Constatou-se ainda, sem qualquer sombra de dúvida, que suas dores ao andar e ao ficar de pé eram, de início, aliviadas quando ela se deitava. As dores só passaram a se relacionar com o ficar deitada quando, após ter notícia da doença da irmã, ela viajou de volta de Gastein [loc. cit.] e foi atormentada durante a noite tanto pela preocupação com a irmã quanto por dores lancinantes, tendo ficado estendida e insone no vagão de trem. E por muito tempo depois disso, deitar-se foi, na realidade, mais doloroso para ela do que andar ou ficar de pé.

Dessa forma, em primeiro lugar, a região dolorosa se estendera com o acréscimo de áreas adjacentes: cada novo tema que exercia um efeito patogênico catexizara uma nova região das pernas; em segundo lugar, cada uma das cenas que lhe haviam causado uma forte impressão deixara um vestígio, provocando uma catexia duradoura e constantemente acumulada das várias funções das pernas, uma ligação dessas funções com suas sensações dolorosas. Mas um terceiro mecanismo indubitavelmente estivera envolvido na formação de sua astasia-abasia. A paciente encerrou sua descrição de uma série de episódios com a queixa de que eles lhe haviam tornado doloroso o fato de “ficar sozinha”. Em outra série de episódios, que abrangiam suas tentativas frustradas de estabelecer uma nova vida para sua família, ela nunca se cansou de repetir que o doloroso nelas tinha sido seu sentimento de desamparo, o sentimento de que não podia “dar um único passo à frente”. Em vista disso, fui forçado a supor que entre as influências que contribuíram para a formação de sua abasia, tiveram papel essas suas reflexões; não pude deixar de pensar que a paciente não fizera nada mais nada menos do que procurar uma expressão simbólica para seus pensamentos dolorosos, e que a encontrara na intensificação de seus sofrimentos. O fato de que os sintomas somáticos da histeria podem ser produzidos por uma simbolização dessa natureza já foi afirmado em nossa “Comunicação Preliminar” | ver em [1]|. Na discussão do presente caso, apresentarei dois ou três exemplos conclusivos disso. | ver em [1] e segs.| Esse mecanismo psíquico de simbolização não exerceu um papel importante na Srta. Elisabeth von R, não criou sua abasia. Mas tudo contribui para mostrar que a abasia que já estava presente recebeu assim um reforço considerável. Por conseguinte, essa abasia, na fase de desenvolvimento em que a encontrei, devia ser igualada não só a uma paralisia funcional baseada em associações psíquicas, mas também a uma paralisia baseada na simbolização.

Antes de prosseguir meu relato do caso, acrescentarei algumas palavras sobre o comportamento da paciente durante essa segunda fase do tratamento. No curso de toda a análise usei a técnica de provocar o surgimento de imagens e idéias através da pressão sobre a cabeça da paciente, um método, vale dizer, que seria impraticável sem a plena cooperação e a atenção voluntária da paciente. | ver em [1] e segs.| Por vezes, realmente, seu comportamento correspondeu às minhas melhores expectativas, e durante tais períodos foi surpreendente a prontidão com que as diferentes cenas relacionadas com um dado tema surgiram numa ordem rigorosamente cronológica. Era como se ela estivesse lendo um extenso livro ilustrado cujas páginas estivessem sendo viradas diante de seus olhos. Em outras ocasiões, parecia haver impedimentos de cuja natureza eu não desconfiava na época. Quando lhe pressionava a cabeça, ela sustentava que nada lhe havia ocorrido. Eu repetia a pressão e lhe dizia que esperasse, mas ainda assim nada aparecia. Nas primeiras vezes em que surgiu, essa recalcitrância permitiu-me interromper o trabalho: era um dia desfavorável, tentaríamos em outra ocasião. Duas observações, contudo, levaram-me a alterar minha atitude. Notei, em primeiro lugar, que o método só falhava quando eu encontrava Elisabeth alegre e sem dor, e nunca quando ela se sentia mal. Em segundo lugar, reparei que muitas vezes ela fazia essas afirmações de não ter visto nada depois de deixar passar um longo intervalo durante o qual, não obstante, a expressão tensa e preocupada de seu rosto traía o fato de haver um processo mental em curso. Resolvi, portanto, adotar a hipótese de que o método nunca falhava: de que, em todas as ocasiões, sob a pressão da minha mão, alguma idéia ocorria a Elisabeth ou alguma imagem surgia diante de seus olhos, mas ela nem sempre estava preparada para comunicá-las a mim e tentava reprimir mais uma vez o que fora evocado. Consegui pensar em dois motivos para esse encobrimento. Ou ela estava criticando a idéia, o que não tinha nenhum direito de fazer, com o pretexto de que não era suficientemente importante ou de que era uma resposta irrelevante à pergunta que lhe fora formulada, ou estava hesitando em exibi-la por achá-la muito desagradável de contar. Passei a agir, portanto, como se estivesse inteiramente convencido da confiabilidade da minha técnica. Não aceitava mais sua declaração de que nada lhe havia ocorrido e assegurava a ela que algo devia ter acontecido. Talvez, dizia eu, ela não tivesse prestado bastante atenção, e nesse caso eu teria prazer em repetir a pressão. Ou talvez ela achasse que sua idéia não era a idéia certa. Isso, dizia-lhe eu, não era problema dela; sua obrigação era a de ser inteiramente objetiva e dizer o que lhe viesse à cabeça, quer fosse apropriado, quer não. Por fim, eu declarava saber muito bem que algo lhe havia ocorrido e que ela o estava ocultando de mim, mas que jamais se livraria de suas dores enquanto escondesse qualquer coisa. Ao insistir dessa maneira, consegui que, a partir dessa época minha pressão sobre sua cabeça jamais falhasse. Não pude deixar de concluir que minha opinião estava certa e extraí dessa análise uma confiança literalmente irrestrita em minha técnica. Muitas vezes acontecia de só depois de eu pressionar-lhe a cabeça por três vezes é que ela me dava uma informação. Mas ela mesma observava depois: “Poderia ter-lhe dito isso da primeira vez.” — “E por que não disse?” — “Pensei que não fosse o que era preciso”, ou “Pensei que pudesse evitá-lo, mas ficava voltando todas as vezes”. No curso desse difícil trabalho, comecei a atribuir maior importância à resistência oferecida pela paciente na reprodução de suas lembranças e a compilar cuidadosamente as ocasiões em que era particularmente acentuada.

 

Cheguei então à terceira fase do tratamento. A paciente sentia-se melhor. Fora mentalmente aliviada e era agora capaz de esforços bem-sucedidos. Mas suas dores, manifestamente, não tinham sido eliminadas, repetiam-se de tempos em tempos e com toda a sua antiga gravidade. Esse resultado terapêutico incompleto correspondia a uma análise incompleta. Eu ainda não sabia exatamente em que momento e por qual mecanismo as dores se haviam originado. Durante a reprodução da grande variedade de cenas da segunda fase e enquanto observava a resistência da paciente em falar-me delas, eu havia formado uma suspeita específica. Não me aventurava ainda, contudo, a adotá-la como base para minha ação subseqüente. Mas uma ocorrência fortuita resolveu o assunto. Um dia, enquanto trabalhava com a paciente, ouvi passos de um homem na sala contígua e uma voz agradável que parecia estar formulando alguma pergunta. Minha paciente levantou-se de imediato e pediu para interrompermos os trabalhos por aquele dia: tinha ouvido o cunhado chegar e perguntar por ela. Até esse momento ela estivera livre de dor, mas, após a interrupção, sua expressão facial e seu andar traíram o súbito surgimento de dores agudas. Minha suspeita foi fortalecida por esse fato e decidi-me a precipitar a explicação decisiva.

Assim, perguntei-lhe pelas causas e circunstâncias da primeira vez em que as dores haviam surgido. À guisa de resposta, seus pensamentos se voltaram para a visita de verão à estação de águas antes de sua viagem a Gastein, e inúmeras cenas que não tinham sido tratadas de maneira muito completa surgiram de novo. Ela se lembrou de como se sentia na época, de como estava esgotada após a preocupação com a visão da mãe e os cuidados prestados a ela na época da operação, e de como por fim perdera a esperança de que uma moça solitária como ela pudesse ter alguma felicidade na vida ou realizar alguma coisa. Até então ela se julgara forte o bastante para poder passar sem a ajuda de um homem, mas agora se via dominada pelo sentimento de sua fraqueza como mulher e por um anseio de amor no qual, citando suas próprias palavras, sua natureza congelada começava a derreter-se. Nesse estado de espírito, ela foi profundamente afetada pelo casamento feliz da segunda irmã — por ver com que tocante carinho o cunhado cuidava dela, como os dois se entendiam com um simples olhar e como pareciam seguros um do outro. Sem duvida, era lastimável que a segunda gravidez tivesse vindo tão perto da primeira, e a irmã sabia que esse era o motivo de sua doença, mas como a suportava de bom grado por ter sido ele o causador! Por ocasião do passeio que estava tão intimamente ligado às dores de Elisabeth, o cunhado a princípio não se mostrara disposto a participar e desejara permanecer ao lado da esposa enferma. Ela, porém, o persuadira com um olhar a acompanhá-los, por achar que isso daria prazer a Elisabeth. Elisabeth permaneceu na companhia dele durante todo o passeio. Falaram sobre todos os assuntos, até os mais íntimos. Ela se descobriu em completo acordo com tudo o que ele dizia, e o desejo de ter um marido como ele acentuou-se muito. Então, alguns dias depois, veio a cena da manhã após a partida da irmã e do cunhado, quando ela foi ao local que tinha uma vista bonita e que fora o preferido nos passeios deles. Ali, sentou-se e sonhou mais uma vez em desfrutar de uma felicidade como a da irmã e em encontrar um marido que soubesse cultivar-lhe o coração, como seu cunhado cativara o dela. Sentiu dor ao levantar-se, mas esta passou mais uma vez. Foi somente à tarde, depois de ter tomado o banho quente, que as dores irromperam, e ela nunca mais se livrou delas. Tentei descobrir que pensamentos lhe teriam ocupado a mente enquanto ela tomava banho, mas soube apenas que o banheiro a fizera recordar-se dos membros da família que haviam partido, pois fora naquela casa que eles tinham ficado.

Como era inevitável, tudo isso já ficara claro para mim há muito tempo. Mas a paciente, mergulhada em suas lembranças acridoces, não parecia notar para onde se estava encaminhando e continuou a reproduzir suas recordações. Passou a falar de sua visita a Gastein, da ansiedade com que aguardava cada carta e finalmente das más notícias sobre a irmã, da longa espera até o anoitecer, que foi o primeiro momento em que puderam partir de Gastein, e então da viagem, feita numa torturante incerteza, e da noite insone — tudo isso acompanhado por um violento aumento das dores. Perguntei-lhe se durante a viagem havia pensado na possibilidade deplorável que depois se concretizou. Respondeu-me que evitara cuidadosamente pensar nela, mas acreditava que desde o início a mãe havia esperado o pior. Suas lembranças passaram então à chegada a Viena, à impressão que lhes causaram os parentes que as esperavam, à curta viagem de Viena até a estação de veraneio próxima onde morava a irmã, à chegada à noite, à caminhada apressada pelo jardim até a porta da casa ajardinada, ao silêncio que reinava em seu interior e à escuridão opressiva. Lembrou que o cunhado não estava lá para recebê-las e que ficaram diante da cama, olhando para a irmã morta. Naquele momento de terrível certeza de que a irmã amada estava morta sem ter-lhes dito adeus, e sem que ela lhe tivesse aliviado os últimos dias com seus cuidados, naquele exato momento outro pensamento atravessou a mente de Elisabeth, e agora se impunha de maneira irresistível a ela mais uma vez, como um relâmpago nas trevas: “Agora ele está livre novamente e posso ser sua esposa.”

Tudo ficou claro então. Os esforços do analista foram ricamente recompensados. Os conceitos de “rechaço” de uma representação incompatível, da gênese dos sintomas histéricos através da conversão de excitações psíquicas em algo físico e da formação de um grupo psíquico separado, através do ato de vontade que conduziu ao rechaço — todas essas coisas, naquele momento, apareceram diante de meus olhos de forma concreta. Assim, e de nenhuma outra maneira, as coisas haviam ocorrido nesse caso. Essa moça sentia pelo cunhado uma ternura cuja aceitação na consciência deparara com a resistência de todo o seu ser moral. Ela conseguiu poupar-se da dolorosa convicção de que amava o marido da irmã induzindo dores físicas em si mesma. E foi nos momentos em que essa convicção procurou impor-se a ela (no passeio com o cunhado, durante o devaneio matinal, no banho e junto ao leito da irmã) que suas dores surgiram, graças à conversão bem-sucedida. Na época em que comecei o tratamento dela, o grupo de representações relativas a seu amor já havia sido separado de seu conhecimento. De outra forma, penso eu, ela jamais teria concordado em iniciar o tratamento. A resistência que ela havia repetidamente oferecido à reprodução das cenas que atuaram de forma dramática correspondera, na verdade, à energia com que a representação incompatível fora expulsa de suas associações.

O período que se seguiu, porém, foi árduo para o médico. O resgate dessa representação recalcada teve um efeito devastador sobre a pobre moça. Ela chorou alto quando lhe expus secamente a situação com as palavras: “Quer dizer que, durante muito tempo, você esteve apaixonada por seu cunhado. ”Nesse momento, ela queixou-se das dores mais terríveis e fez um último e desesperado esforço para rejeitar a explicação: não era verdade, eu a havia induzido àquilo, não podia ser verdade, ela seria incapaz de tanta maldade, jamais poderia perdoar-se por isso. Foi fácil provar-lhe que o que ela própria me dissera não admitia outra interpretação. Mas passou-se muito tempo antes que meus dois argumentos consoladores — o de que não somos responsáveis por nossos sentimentos e o de que seu comportamento, o fato de ter adoecido naquelas circunstâncias, era prova suficiente de seu caráter moral — passou-se muito tempo antes que essas minhas consolações a impressionassem um mínimo que fosse.

Para minorar os sofrimentos da paciente, tive então que percorrer mais de um caminho. Em primeiro lugar, eu queria dar-lhe uma oportunidade de se livrar da excitação que se vinha acumulando há tanto tempo através da “ab-reação”. Vasculhamos as primeiras impressões que suas relações com o cunhado lhe causaram, o início dos sentimentos por ele que ela mantivera inconscientes. Aí deparamos com todos os pequenos sinais e impressões premonitórios a que uma paixão plenamente desenvolvida confere tanta importância em retrospectiva. Na primeira visita que fizera à família, ele a confundira com a moça com quem iria casar-se e a cumprimentara antes da irmã mais velha, de aparência um tanto insignificante. Certa noite, os dois conversavam com tanta animação e pareciam dar-se tão bem que a noiva os interrompeu num tom parcialmente sério, com a seguinte observação: “A verdade é que vocês dois se ajustariam de maneira esplêndida.” De outra vez, numa festa em que ninguém sabia do noivado dele, falava-se do rapaz e uma senhora criticou-lhe um defeito físico que indicava que ele tivera uma doença óssea na infância. A própria noiva ouviu isso tranqüilamente, mas Elisabeth inflamou-se e defendeu a simetria do físico de seu futuro cunhado com um zelo que ela própria não pôde compreender. À medida que fomos trabalhando essas lembranças, tornou-se claro para Elisabeth que seu sentimento afetuoso pelo cunhado estivera latente por muito tempo, talvez mesmo desde que o conhecera e ficara escondido todo aquele tempo atrás da máscara de uma mera afeição fraterna, que seu senso familiar muito desenvolvido permitia-lhe aceitar como natural.

Esse processo de ab-reação certamente lhe fez muito bem. Mas pude aliviá-la ainda mais ao me interessar como amigo por sua situação atual. Com essa finalidade em mente, providenciei uma entrevista com a Sra. von R. Verifiquei ser ela uma senhora compreensiva e sensível, embora seu ânimo vital tivesse sido abatido pelos recentes infortúnios. Soube por ela que, num exame mais detido, a acusação de chantagem insensível que o cunhado mais velho proferira contra o viúvo, e que fora tão penosa para Elisabeth, tivera de ser retirada. Não restou nenhuma mancha no caráter do rapaz. Tudo fora um mal-entendido devido aos valores diferentes que, como se pode ver facilmente, são atribuídos ao dinheiro por um homem de negócios, para quem o dinheiro constitui um instrumento de sua profissão, e por um servidor público. Nada além disso restara do penoso episódio. Pedi à mãe dela que, a partir daquele momento contasse a Elisabeth tudo o que ela precisava saber, e que no futuro lhe desse a oportunidade de descarregar sua mente, coisa a que eu já a teria habituado.

Eu também estava, naturalmente, ansioso para saber que possibilidade haveria de que o desejo da moça, do qual ela agora tinha consciência, se concretizasse. Aqui, as perspectivas eram menos favoráveis. A mãe contou-me que há muito adivinhara os sentimentos de Elisabeth pelo rapaz, embora não soubesse que esses sentimentos já existiam quando a irmã era viva. Ninguém que visse os dois juntos — embora, na verdade, isso agora ocorresse raramente — poderia duvidar da ânsia da moça em agradá-lo. Mas, disse, nem ela (a mãe) nem os conselheiros da família eram muito favoráveis a um casamento. A saúde do rapaz não era nada boa e recebera um novo golpe com a morte da esposa amada. Também não era nada certo que o estado mental dele já se houvesse recuperado o bastante para que ele fizesse um novo casamento. Talvez fosse por isso que ele se comportava com tanta reserva; talvez, também, estivesse incerto da acolhida que poderia ter e desejasse evitar os comentários que provavelmente seriam feitos. Em vista dessas restrições de ambos os lados, era improvável que a solução pela qual ansiava Elisabeth viesse a ocorrer.

Disse à moça o que ouvira da mãe dela e tive a satisfação de ajudá-la ao dar-lhe a explicação sobre a questão do dinheiro. Por outro lado, encorajei-a a enfrentar com calma a incerteza sobre o futuro, que era impossível dissipar. Mas a essa altura, a aproximação do verão tornou urgente que encerrássemos a análise. O estado da paciente estava de novo melhor e não se falara mais em suas dores desde que começáramos a investigar-lhes as causas. Ambos tínhamos a sensação de havermos chegado ao fim, embora eu dissesse a mim mesmo que a ab-reação do amor que ela havia refreado por tanto tempo não se realizara completamente. Considerei-a curada e disse-lhe que a solução de suas dificuldades se processaria por sua própria conta, agora que o caminho fora aberto. Ela não questionou isso. Partiu de Viena com a mãe para encontrar-se com a irmã mais velha e a família desta, a fim de passarem juntas o verão.

Tenho algumas palavras a acrescentar sobre o curso posterior do caso da Srta. Elisabeth von R. Algumas semanas depois de nos termos separado, recebi uma carta desesperada de sua mãe. Na primeira tentativa que fizera, disse-me ela, de discutir os assuntos sentimentais da filha com ela, a moça se rebelara violentamente e desde então passara a sofrer de dores intensas mais uma vez. Ficara indignada comigo por eu ter traído seu segredo. Mostrava-se inteiramente inacessível e o tratamento fora um fracasso completo. O que se deveria fazer agora? — perguntou. Elisabeth se recusava a ter mais qualquer outra coisa a ver comigo. Não respondi a isso. Era evidente que Elisabeth, depois de sair dos meus cuidados, faria mais uma tentativa de rejeitar a intervenção da mãe e refugiar-se mais uma vez no isolamento. Mas eu tinha uma espécie de convicção de que tudo acabaria bem e de que o trabalho que eu tivera não fora em vão. Dois meses depois elas voltaram a Viena, e o colega que me apresentara o caso deu-me notícias de que Elisabeth se sentia perfeitamente bem e se comportava como se não houvesse nada de errado com ela, embora ainda sofresse ocasionalmente de leves dores. Várias vezes desde então ela me enviou mensagens semelhantes e, em cada uma delas, prometeu vir ver-me. Mas é característico da relação pessoal que se estabelece nos tratamentos dessa natureza que ela nunca o tenha feito. Como me assegura meu colega, ela deve ser considerada curada. A ligação do cunhado dela com a família permaneceu inalterada.

Na primavera de 1894, eu soube que ela iria a um baile particular para o qual eu poderia obter um convite, e não deixei escapar a oportunidade de ver minha ex-paciente passar por mim rodopiando numa dança animada. Depois dessa ocasião, por sua própria vontade, casou-se com alguém que não conheço.

 

 

DISCUSSÃO

 

Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e ainda me causa estranheza que os relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca de seriedade da ciência. Tenho de consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não qualquer preferência minha. A verdade é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam a parte alguma no estudo da histeria, ao passo que uma descrição pormenorizada dos processos mentais, como as que estamos acostumados a encontrar nas obras dos escritores imaginativos, me permite, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma espécie de compreensão sobre o curso dessa afecção. Os casos clínicos dessa natureza devem ser julgados como psiquiátricos; entretanto, possuem uma vantagem sobre estes últimos, a saber: uma ligação íntima entre a história dos sofrimentos do paciente e os sintomas de sua doença — uma ligação pela qual ainda procuramos em vão nas biografias das outras psicoses.

Ao relatar o caso da Srta. Elisabeth von R., esforcei-me por entrelaçar as explicações que pude fornecer sobre o caso com minha descrição do curso da recuperação da paciente. Talvez valha a pena reunir mais uma vez os pontos importantes. Descrevi o caráter da paciente — as características que são encontradas com tanta freqüência nas pessoas histéricas e que não há nenhuma desculpa para se considerar como conseqüência da degenerescência: seus talentos variados, sua ambição, sua sensibilidade moral, sua excessiva exigência de amor, a princípio atendida pela família, e a independência de sua natureza, que ia além do ideal feminino e encontrava expressão numa dose considerável de obstinação, combatividade e reserva. Nenhuma mancha hereditária apreciável, segundo me disse meu colega, pôde ser encontrada em qualquer dos dois lados da família. É verdade que a mãe sofrera por muitos anos de uma depressão neurótica que não fora investigada, mas os irmãos e as irmãs da mãe, assim como o pai e a família deste, podiam ser considerados pessoas equilibradas, sem problemas nervosos. Não ocorrera nenhum caso grave de neuropsicose entre os parentes próximos.

Tal era a natureza da paciente, que agora se via dominada por emoções dolorosas, a começar pelo efeito depressivo de cuidar de seu querido pai durante uma doença prolongada.

 

Há bons motivos para que o fato de cuidar de pessoas doentes desempenhe um papel tão significativo na pré-história dos casos de histeria. Muitos dos fatores em ação são óbvios: a perturbação da saúde física que decorre do sono interrompido, o desleixo para consigo mesmo e o efeito da preocupação constante sobre as próprias funções vegetativas. Em minha opinião, porém, deve-se procurar o determinante mais importante em outra parte. Qualquer pessoa cuja mente seja ocupada pelas mil e uma tarefas envolvidas na prestação de cuidados a pessoas enfermas, tarefas essas que se seguem umas às outras numa sucessão interminável por um período de semanas e meses, adotará, por um lado, o hábito de suprimir todos os sinais de sua própria emoção, e por outro, logo desviará a atenção de suas próprias impressões, visto não ter nem tempo nem forças para apreciá-las devidamente. Assim, acumula uma massa de impressões passíveis de carregar afeto, que mal chegam a ser suficientemente percebidas e que, de qualquer modo, não foram enfraquecidas pela ab-reação. Está criando material para uma “histeria de retenção”. Quando o doente se recupera, é claro, todas essas impressões perdem seu significado. Mas quando ele morre e se instala então o período de luto, no qual as únicas coisas que parecem ter valor são as que se relacionam com a pessoa que morreu, aquelas impressões que ainda não foram trabalhadas entram igualmente em cena, e após um breve intervalo de exaustão, irrompe a histeria, cujas sementes foram lançadas durante o tempo de prestação de cuidados ao doente.

Também deparamos ocasionalmente com esse mesmo fato de os traumas acumulados durante a prestação de cuidados a um enfermo serem enfrentados mais tarde, sem que haja nenhuma impressão geral de doença, mas retendo-se ainda assim o mecanismo da histeria. É o caso, por exemplo, de uma senhora que conheço, extremamente bem-dotada, que sofre de leve nervosismo e cujo caráter, como um todo, apresenta traços de histeria, embora ela nunca tenha tido que procurar assistência médica ou ficado impossibilitada de cumprir seus deveres. Ela já cuidou até o fim de três ou quatro pessoas a quem amava. A cada vez, chegava a um estado de completo esgotamento, mas não adoecia depois desses trágicos esforços. Pouco depois da morte de cada paciente seu, contudo, iniciava-se nela um trabalho de reprodução que mais uma vez lhe colocava diante dos olhos as cenas da doença e da morte. Todos os dias ela repassava cada uma daquelas impressões, chorava e se consolava — a seu bel-prazer, poder-se-ia dizer. Esse processo de lidar com suas impressões encaixava-se em suas tarefas cotidianas sem que as duas atividades interferissem uma na outra. A situação inteira lhe passava pela mente em seqüência cronológica. Não sei dizer se o trabalho de rememoração correspondia dia a dia ao passado. Desconfio que isso dependia do número de horas de lazer proporcionadas por seus afazeres domésticos correntes.

Além dessas explosões de choro com que ela compensava o atraso e que ocorriam logo após o término fatal da doença, essa senhora celebrava festivais anuais de lembranças no período de suas várias catástrofes, e nessas ocasiões sua nítida reprodução visual e suas expressões de sentimento se atinham rigorosamente às datas exatas. Por exemplo, uma vez encontrei-a chorando a perguntei-lhe amavelmente o que acontecera naquele dia. Ela repeliu minha pergunta, um pouco irritada: “Não foi nada”, disse, “foi só que o especialista esteve aqui hoje novamente e nos deu a entender que não havia mais nenhuma esperança. Não tive tempo de chorar por causa disso na hora”. Referia-se à última doença do marido, que falecera três anos antes. Muito me interessaria saber se as cenas que ela relembrava nesses festivais anuais de recordações eram sempre as mesmas, ou se a cada vez se apresentavam detalhes diferentes para fins de ab-reação, tal como suspeito em vista de minha teoria. Mas não posso saber com certeza. Essa senhora, que não tinha menos força de caráter do que inteligência, sentia-se envergonhada do efeito violento que essas reminiscências tinham sobre ela.

Devo frisar mais uma vez que essa mulher não está doente; sua ab-reação retardada não era um processo histérico, por mais que se assemelhasse a tal processo. Podemos perguntar por que uma situação de velar por doentes é acompanhada de histeria e outra, não. Não pode ser uma questão de predisposição individual, pois esta se achava presente em alto grau na senhora de que falei.

Mas devo agora voltar à Srta. Elisabeth von R. Enquanto cuidava do pai, como vimos, ela desenvolveu pela primeira vez um sintoma histérico — uma dor numa região específica da coxa direita. Por meio da análise, foi possível encontrar uma elucidação adequada para o mecanismo do sintoma. Ele aconteceu no momento em que o círculo de idéias que abrangia seus deveres para com o pai enfermo entrou em conflito com o conteúdo do desejo erótico que ela estava sentindo na época. Sob a pressão de intensas autocensuras, ela se decidiu em favor do primeiro e, ao fazê-lo, provocou a dor histérica.

De acordo com a visão sugerida pela teoria conversiva da histeria o que aconteceu pode ser descrito da seguinte maneira. Ela recalcou uma idéia erótica fora da consciência e transformou a carga de seu afeto em sensações físicas de dor. Não ficou claro se esse primeiro conflito se apresentou a ela numa única ocasião ou em várias; a segunda alternativa é a mais provável. Um conflito exatamente semelhante — embora de maior significação ética e ainda mais claramente estabelecido pela análise — desenvolveu-se de novo alguns anos depois e levou a uma intensificação e uma extensão das mesmas dores para além dos limites originais. Mais uma vez, foi um círculo de representações de natureza erótica que entrou em conflito com todas as suas representações morais, pois suas inclinações centralizaram-se no cunhado e, tanto durante a vida da irmã como depois de sua morte, a representação de ser atraída precisamente por esse homem lhe era totalmente inaceitável. A análise proporcionou informações pormenorizadas sobre esse conflito, que foi o ponto central da história da doença. Os germes do sentimento da paciente pelo cunhado podiam ter estado presentes por muito tempo; seu desenvolvimento foi favorecido pela exaustão física devida à ampliação dos cuidados com os doentes e pela exaustão moral devida às decepções que se estendiam por muitos anos. A frieza de sua natureza começou a ceder e ela admitiu para si mesma sua necessidade do amor de um homem. Durante as várias semanas que passou na companhia dele na estação de águas, seus sentimentos eróticos, bem como suas dores, alcançaram seu clímax.

A análise, além disso, deu provas de que durante o mesmo período a paciente se encontrava num estado psíquico especial. A ligação desse estado com seus sentimentos eróticos e suas dores parece possibilitar a compreensão do que aconteceu segundo a teoria da conversão. Parece-me seguro afirmar que, na época, a paciente só se conscientizou claramente de seus sentimentos pelo cunhado, por mais poderosos que fossem, numas poucas ocasiões, e mesmo assim apenas momentaneamente. Se tivesse sido de outra forma, ela também se teria conscientizado, inevitavelmente, da contradição entre esses sentimentos e suas representações morais, e teria experimentado tormentos mentais como os que a observei ter depois de nossa análise. Ela não se lembrava de nenhum sofrimento desse tipo; havia-os evitado. Sucedeu que seus próprios sentimentos não ficaram claros para ela. Naquela época, assim como durante a análise, seu amor pelo cunhado estava presente em sua consciência, como um corpo estranho, sem entrar em relação com o restante de sua vida representativa. Com relação a esses sentimentos, ela estava na situação peculiar de saber e, ao mesmo tempo, de não saber — situação, vale dizer, em que um grupo psíquico é isolado. Mas isto, e nada mais, é o que queremos dizer quando afirmamos que esses sentimentos não estavam claros para ela. Não queremos dizer que a consciência deles fosse de qualidade inferior ou de menor grau, mas sim que eles foram isolados de qualquer livre conexão associativa de pensamento com o resto do conteúdo representativo de sua mente.

Mas como poderia ocorrer que um grupo representativo com tanta força emocional fosse mantido tão isolado? Afinal de contas, em geral o papel desempenhado nas associações por uma idéia aumenta, proporcionalmente à quantidade de afetos que há nela.

Poderemos responder a essa pergunta se levarmos em conta dois fatos que podemos usar como estabelecidos com certeza. (1) Simultaneamente à formação desse grupo psíquico isolado, a paciente desenvolveu suas dores histéricas. (2) A paciente ofereceu forte resistência à tentativa de se promover uma associação entre o grupo psíquico isolado e o resto do conteúdo de sua consciência; e quando, apesar disso, a ligação se realizou, ela sentiu uma grande dor psíquica. Nossa visão da histeria relaciona esses dois fatos com a divisão de sua consciência, afirmando que o segundo deles indica o motivo para a divisão da consciência, ao passo que o primeiro indica seu mecanismo. O motivo foi o de defesa — a recusa, por parte de todo o ego da paciente, a chegar a um acordo com esse grupo representativo. O mecanismo foi o de conversão, isto é, em lugar das dores mentais que ela evitou, surgiram as dores psíquicas. Desse modo, efetuou-se uma transformação que teve a vantagem de livrar a paciente de uma condição mental intolerável, embora, é verdade, à custa de uma anormalidade psíquica — a divisão da consciência que se efetuou — e de uma doença física — suas dores, sobre as quais se desenvolveu uma astasia-abasia.

Devo confessar que não posso oferecer nenhuma indicação de como se processa uma conversão dessa natureza. Evidentemente, ela não se efetua da mesma maneira que uma ação intencional e voluntária. É um processo que ocorre sob a pressão da motivação de defesa em alguém cuja organização — ou modificação temporária dela — tem uma tendência nesse sentido.

Essa teoria exige um exame mais detido. Podemos perguntar: o que é que se transforma aqui em dor física? Uma resposta cautelosa seria: algo que talvez se tivesse transformado e que deveria ter-se transformado em dor mental. Se nos aventurarmos um pouco mais e tentarmos representar o mecanismo representativo numa espécie de quadro algébrico, poderemos atribuir uma certa carga de afeto ao complexo representativo dos sentimentos eróticos que permaneceram inconscientes e dizer que essa quantidade (a carga afetiva) é o que foi convertido. Resultaria diretamente dessa descrição que o “amor inconsciente” teria perdido tanto de sua intensidade através de uma conversão desse tipo que se teria reduzido a apenas uma representação fraca. Essa redução da força seria, então, a única coisa que tornou possível a existência desses sentimentos inconscientes como um grupo psíquico isolado. O presente caso, contudo, não se presta bem a dar um quadro nítido de um assunto tão delicado, pois nele provavelmente só houve conversão parcial; em outros, pode-se demonstrar com probabilidade que a conversão completa também ocorre, e que nela a representação incompatível é de fato “recalcada”, como somente uma representação de intensidade muito fraca pode ser. Os pacientes em questão declaram, depois que a ligação associativa com a representação incompatível se estabelece, que seus pensamentos não se voltavam para ela desde o aparecimento dos sintomas histéricos.

Afirmei anteriormente | ver em [1]| que em algumas ocasiões, embora apenas por um momento, a paciente reconheceu conscientemente seu amor pelo cunhado. Como exemplo disso, podemos recordar o momento em que ela se encontrava de pé junto à cama da irmã e um pensamento lhe cruzou a mente: “Agora ele está livre e você pode ser sua esposa” | ver em [1]|. Cabe-me agora considerar o significado desses momentos em sua relação com nossa visão de toda a neurose. Parece-me que o próprio conceito de “histeria de defesa” implica que pelo menos um desses momentos deve ter ocorrido. A consciência simplesmente não sabe por antecipação quando uma representação incompatível vai aflorar. A representação incompatível, que juntamente com as que lhe estão associadas é depois excluída e forma um grupo psíquico separado, deve originalmente ter estado em comunicação com a corrente principal de pensamento. De outra forma, o conflito que levou a sua exclusão não poderia ter ocorrido. São esses momentos, portanto, que devem ser classificados de “traumáticos”; é nesses momentos que ocorre a conversão, cujos resultados são a divisão da consciência e o sintoma histérico. No caso da Srta. Elisabeth von R., tudo indica que ocorreram vários desses momentos — as cenas do passeio, o devaneio matinal, o banho e a presença à cabeceira da irmã. É até possível que novos momentos da mesma espécie tenham acontecido durante o tratamento. O que possibilita a existência de vários desses momentos traumáticos é que as experiências semelhantes à que originalmente introduziu a representação incompatível acrescentam uma nova excitação ao grupo psíquico separado e, desse modo, suspendem temporariamente o êxito da conversão. O ego é obrigado a prestar atenção a essa irrupção súbita da representação e a restaurar o antigo estado de coisas através de uma nova conversão. A Srta. Elisabeth, que passava muito tempo na companhia do cunhado, deve ter ficado particularmente sujeita à ocorrência de novos traumas. Do ponto de vista da minha exposição atual, eu teria preferido um caso em que a história traumática se situasse inteiramente no passado.

Cabe-me agora tocar num ponto que conforme descrevi | ver em [1]-[2]| levanta um obstáculo à compreensão desse caso. Baseando-se na análise, presumi que uma primeira conversão havia ocorrido quando a paciente estava cuidando do pai, na época em que seus deveres de enfermeira entraram em conflito com seus desejos eróticos, e que o que aconteceu então foi o protótipo dos eventos posteriores, na estação de águas nos Alpes, que levaram à irrupção da doença. Mas parecia, pelo relato da paciente, que enquanto cuidava do pai e durante o tempo que se seguiu — o que descrevi como o “primeiro período” — ela não teve nenhuma dor e nenhuma fraqueza locomotora. É verdade que certa vez, durante a doença do pai, ela esteve acamada por alguns dias com dores nas pernas, mas permaneceu uma dúvida quanto a determinar se esse ataque deveria ser atribuído à histeria. Não se pôde achar na análise nenhuma ligação causal entre essas primeiras dores e qualquer impressão psíquica. É possível, e na realidade provável, que o que ela sentia na época fossem dores musculares reumáticas comuns. Além disso, mesmo que estivéssemos inclinados a supor que esse primeiro acesso de dores foi o efeito de uma conversão histérica devida ao repúdio de seus pensamentos eróticos na época, permanece o fato de que as dores desapareceram depois de apenas alguns dias, de modo que a paciente se comportara, na vida real, de maneira diferente do que pareceu indicar na análise. Durante a reprodução do que denominei de primeiro período, todas as histórias da paciente sobre a doença e morte do pai, sobre suas impressões acerca do relacionamento com o primeiro cunhado, e assim por diante, foram acompanhadas de dores, ao passo que, na época em que efetivamente vivenciou essas impressões, ela não sentira dor alguma. Não seria esta uma contradição destinada a reduzir bastante nossa crença no valor explicativo de uma análise como esta?

Creio que posso solucionar essa contradição presumindo que as dores — os produtos da conversão — não ocorreram enquanto a paciente estava experimentando as impressões do primeiro período, mas só posteriormente, isto é, no segundo período, enquanto reproduzia essas impressões em seus pensamentos. Em outras palavras, a conversão não se deu ligada a suas impressões enquanto novas, mas sim em conexão com suas lembranças das mesmas. Acredito mesmo que esse curso dos acontecimentos não é nada incomum na histeria e que, na verdade, desempenha um papel regular na gênese dos sintomas histéricos. Mas como uma afirmação desse tipo não é evidente em si mesma, tentarei torná-la mais plausível apresentando mais alguns exemplos.

Certa vez aconteceu que um novo sintoma histérico se desenvolveu numa paciente em pleno curso de um tratamento analítico dessa espécie, de modo que pude empreender a tarefa de me livrar dele um dia após seu aparecimento. Interpolarei aqui as principais características do caso. Foi um caso bem simples, porém não destituído de interesse.

A Srta. Rosalia H., de vinte e três anos de idade, vinha há alguns anos estudando para tornar-se cantora. Tinha boa voz, mas se queixava de que, em certas partes de seu registro, perdia o controle sobre ela. Tinha uma sensação de sufocamento e de constrição na garganta, de modo que sua voz soava velada. Por esse motivo seu professor ainda não pudera consentir que ela se apresentasse em público como cantora. Embora essa imperfeição lhe afetasse apenas o registro médio, não podia ser atribuída a um defeito no próprio órgão. Às vezes a perturbação desaparecia por completo e seu professor expressava grande satisfação; em outras ocasiões, bastava ela estar um pouco agitada, algumas vezes sem nenhuma causa aparente, para que a sensação de constrição reaparecesse e a produção da voz fosse prejudicada. Não foi difícil reconhecer uma conversão histérica nessa sensação extremamente perturbadora. Não tomei nenhuma providência para descobrir se havia de fato uma contratura dos músculos das cordas vocais. Durante a análise hipnótica que realizei com a moça vim a saber dos seguintes fatos sobre sua história e, conseqüentemente, sobre a causa de seu problema. Ela perdera os pais cedo e fora levada para morar com uma tia que tinha muitos filhos. Em conseqüência disso, envolveu-se numa vida familiar muito infeliz. O marido da tia, que era uma pessoa visivelmente patológica, maltratava de maneira brutal a esposa e os filhos. Feria os sentimentos deles, sobretudo pela forma como demonstrava uma evidente preferência sexual pelas criadas e amas da casa; e quanto mais os filhos foram crescendo, mais ofensivo isso se tornou. Após a morte da tia, Rosalia tornou-se a protetora da multidão de crianças que agora eram órfãs e oprimidas pelo pai. Ela levava seus deveres a sério e superou todos os conflitos a que sua posição a conduziu, embora isso requeresse grande esforço para reprimir o ódio e o desprezo que sentia pelo tio. Foi nessa época que a sensação de constrição na garganta começou. Todas as vezes que tinha de refrear uma resposta, ou se obrigava a ficar calada em face de alguma acusação ultrajante, sentia a garganta arranhar e apertar e perdia a voz — todas as sensações localizadas na laringe ou na faringe que agora interferiam com o canto. Não era de admirar que ela buscasse uma oportunidade para se tornar independente e escapar das agitações e das experiências aflitivas que ocorriam diariamente na casa do tio. Um professor de canto muito competente ajudou-a de modo desinteressado e lhe assegurou que sua voz justificava que escolhesse o canto como profissão. Ela começou então a tomar lições com ele em segredo. Mas muitas vezes saía às pressas para a aula de canto enquanto ainda tinha a constrição na garganta, que costumava persistir após cenas violentas em casa. Como conseqüência, estabeleceu-se com firmeza uma ligação entre o canto e sua paraestesia histérica — uma ligação para a qual o caminho foi preparado pelas sensações orgânicas provocadas pelo canto. O aparelho sobre o qual ela deveria ter pleno controle quando cantava revelou-se catexizado com resíduos de inervação que sobraram das numerosas cenas de emoção reprimida. Depois dessa época, ela abandonou a casa do tio e se mudou para outra cidade, para ficar longe da família. Mas isso não eliminou sua dificuldade.

 

Essa moça bonita e excepcionalmente inteligente não exibia quaisquer outros sintomas histéricos.

Fiz o melhor que pude para livrá-la dessa “histeria de retenção” fazendo-a narrar todas as suas experiências perturbadoras e a ab-reagi-las a posteriori. Fiz com que destratasse o tio, lhe passasse sermões, lhe dissesse a verdade nua e crua e assim por diante, e esse tratamento lhe fez bem. Infelizmente, contudo, ela vivia em Viena em condições muito desfavoráveis. Não tinha sorte com os parentes. Fora alojada por outro tio, que a tratava de maneira amistosa, mas exatamente por esse motivo a tia tomara aversão a ela. Essa mulher suspeitava que o marido tinha um interesse mais profundo pela sobrinha e, assim resolveu tornar-lhe a estada em Viena tão desagradável quanto possível. A própria tia, em sua mocidade, fora obrigada a desistir de uma carreira artística e invejava a sobrinha por poder cultivar seu talento, embora no caso da moça não tivesse sido seu desejo, mas sua necessidade de independência, que lhe determinara a decisão. Rosalie sentia-se tão constrangida na casa que não se aventurava, por exemplo, a cantar ou tocar piano enquanto a tia pudesse ouvi-la, e evitava cuidadosamente cantar ou tocar para o tio (que, aliás, era um senhor idoso, irmão de sua mãe) quando havia alguma possibilidade de a tia entrar. Enquanto eu tentava eliminar os vestígios de antigas agitações, surgiram outras a partir dessas relações com seu anfitrião e sua anfitrioa, que por fim interferiram no êxito do meu tratamento e o levaram a um fim prematuro.

Um dia a paciente chegou para a sessão com um novo sintoma, que não chegava a ter vinte e quatro horas. Queixava-se de uma desagradável sensação de alfinetadas nas pontas dos dedos, as quais, segundo disse, vinha sentindo com intervalos de poucas horas desde o dia anterior e que a obrigavam a fazer um movimento peculiar de contorção dos dedos. Não cheguei a observar um acesso, caso contrário sem dúvida teria podido adivinhar, pela natureza dos movimentos, o que os havia ocasionado. Mas imediatamente tentei seguir a trilha da explicação do sintoma (era, na verdade, um ataque histérico menor) pela análise hipnótica. Visto que a coisa só começara a existir há tão pouco tempo, eu tinha esperança de poder explicar rapidamente o sintoma e eliminá-lo. Para minha surpresa, a paciente desfiou um grande número de cenas, sem hesitação e em ordem cronológica, a começar por sua primeira infância. Pareciam ter em comum o fato de lhe ter sido causado algum dano do qual ela não pudera defender-se e que teria feito seus dedos estremecerem. Eram cenas, por exemplo, como a de ter que estender a mão na escola para que o professor lhe batesse com uma régua. Mas tinham sido ocasiões muito comuns e eu estava preparado para negar que pudessem desempenhar um papel na etiologia de um sintoma histérico. Mas foi diferente com uma cena de sua infância que ela descreveu. O tio mau, que sofria de reumatismo, pedira-lhe que massageasse suas costas e ela não ousara recusar. Na ocasião, ele estava deitado na cama e, de repente, jogou longe os lençóis, deu um salto e tentou agarrá-la e derrubá-la na cama. A massagem, é claro, estava terminada, e no momento seguinte ela havia fugido e se trancado em seu quarto. Ficou claro que ela relutava em se lembrar disso e não estava disposta a dizer se vira algo quando ele se descobriu subitamente. As sensações nos dedos poderiam ser explicadas, nesse caso, pelo impulso reprimido de puni-lo, ou simplesmente por tê-lo massageado na ocasião. Foi somente depois de relatar essa cena que ela chegou à do dia anterior, depois da qual a sensação e os tremores nos dedos haviam-se instalado como um símbolo mnêmico recorrente. O tio com quem ela morava agora pedira-lhe que tocasse alguma coisa. Ela se sentara ao piano e se acompanhara numa canção, pensando que a tia houvesse saído, mas, de repente, esta apareceu na porta. Rosalie deu um salto, fechou violentamente a tampa do piano e jogou longe a partitura. Podemos adivinhar qual foi a lembrança que lhe surgiu à mente e qual a seqüência de pensamentos que ela estava rechaçando naquele momento: um sentimento intenso de ressentimento pela suspeita injusta a que ficou sujeita e que a teria levado a abandonar a casa, ao passo que, na verdade, se via obrigada a permanecer em Viena por causa do tratamento e não havia nenhum outro lugar onde pudesse alojar-se. O movimento dos dedos que a vi fazer enquanto narrava essa cena foi o de afastar algo retorcendo os dedos, da maneira como em sentido literal ou figurado, pomos algo de lado — jogamos fora um pedaço de papel ou rejeitamos uma sugestão.

Ela foi muito firme em sua insistência de que não havia notado esse sintoma antes — de que ele não fora ocasionado pelas cenas inicialmente descritas por ela. Assim, só nos restou supor que o acontecimento da véspera havia, em primeiro lugar, despertado a lembrança de acontecimentos anteriores de temática semelhante, e que a partir daí se formara um símbolo mnêmico que se aplicava a todo o grupo de lembranças. A energia para a conversão fora suprida, de um lado, por um afeto renovado e, de outro, pelo afeto relembrado.

 

Ao considerarmos a questão mais detidamente, devemos reconhecer que um processo dessa natureza é mais a regra do que a exceção na gênese dos sintomas histéricos. Quase invariavelmente, ao investigar os determinantes desses estados, o que tenho encontrado não é uma única causa traumática, mas um grupo de causas semelhantes. (Isso foi bem exemplificado no caso da Sra. Emmy — Caso 2). Em alguns desses exemplos, foi possível comprovar que o sintoma em causa já aparecera por um breve período após o primeiro trauma e depois passara, até ser novamente provocado e estabilizado por um trauma subseqüente. Não existe, contudo, em princípio, nenhuma diferença entre o fato de o sintoma surgir dessa forma temporária após sua primeira causa provocadora e o fato de estar latente desde o começo. Com efeito, na grande maioria dos exemplos, verificamos que um primeiro trauma não deixa nenhum sintoma, ao passo que um trauma posterior da mesma espécie produz um sintoma, só que este último não pode ter surgido sem a cooperação da causa provocadora anterior, nem pode ter esclarecido sem se levarem em conta todas as causas provocadoras.

 

Enunciado em termos da teoria da conversão, esse fato indiscutível da soma dos traumas e da latência preliminar dos sintomas nos ensina que a conversão pode resultar tanto de sintomas novos quanto dos que são relembrados. Essa hipótese explica inteiramente a aparente contradição que observamos entre os fatos da doença da Srta. Elisabeth von R. e sua análise. Não resta dúvida de que a existência persistente na consciência de idéias cujo afeto não foi trabalhado pode ser tolerada em alto grau por indivíduos saudáveis. A opinião que acabo de apresentar nada mais faz do que aproximar o comportamento das pessoas histéricas do das pessoas sadias. O que nos interessa aqui é claramente um fator quantitativo — a questão de qual o grau máximo de tensão afetiva dessa natureza que o organismo pode tolerar. Mesmo uma pessoa histérica é capaz de reter certa quantidade de afeto com o qual não se lidou; quando, em virtude da ocorrência de causas provocadoras semelhantes, essa quantidade é aumentada pela soma até um ponto além da tolerância do indivíduo, dá-se o ímpeto para a conversão. Assim, quando dizemos que a formação dos sintomas histéricos pode processar-se com base tanto em afetos relembrados quanto em afetos novos, não estamos fazendo nenhuma afirmação desconhecida, e sim declarando algo que é quase aceito como um postulado.

Acabo de examinar os motivos e o mecanismo desse caso de histeria; resta-me considerar com que precisão o sintoma histérico foi determinado. Por que foi que o sofrimento mental da paciente passou a ser representado por dores nas pernas e não em qualquer outra parte? As circunstâncias indicam que essa dor somática não foi criada pela neurose, mas apenas utilizada, aumentada e mantida por ela. Posso acrescentar imediatamente que encontrei um estado de coisas semelhantes em quase todos os casos de dores histéricas dos quais pude obter alguma compreensão. | ver em [1].| Sempre estivera presente, no início, uma dor autêntica, de base orgânica. Parece que as dores humanas mais comuns e mais difundidas são as escolhidas com mais freqüência para desempenhar um papel na histeria: em particular, as dores periosteais e nevrálgicas que acompanham as doenças dentárias, as dores de cabeça provenientes de muitas fontes diferentes e, não com menos freqüência, as dores musculares reumáticas que tantas vezes deixam de ser reconhecidas | ver em [1]|. Da mesma forma, atribuo uma base orgânica ao primeiro acesso de dor da Srta. Elisabeth von R., que ocorreu muito antes, quando ela ainda cuidava do pai. Não obtive nenhum resultado quando tentei descobrir uma causa psíquica para ela — e estou inclinado, devo confessar, a atribuir um poder de diagnóstico diferencial a meu método de evocar lembranças ocultas, contanto que ele seja utilizado com cuidado. Essa dor, que fora reumática em sua origem, tornou-se então um símbolo mnêmico das excitações psíquicas penosas da paciente, e isso aconteceu, até onde posso ver, por mais de uma razão. A primeira, e sem dúvida a mais importante delas, foi que a dor se achava presente na consciência |de Elisabeth| mais ou menos na mesma época que as excitações. Em segundo lugar, estava ligada, ou poderia estar ligada, por muitos caminhos com as idéias em sua mente na época. De fato, a dor pode realmente ter sido uma conseqüência, embora apenas remota, do período em que ela cuidara dos doentes — da falta de exercício e da alimentação reduzida que seus deveres de enfermeira acarretavam. Mas a moça não tinha nenhum conhecimento nítido disso. Maior importância provavelmente há de ser atribuída ao fato de que ela deve ter sentido a dor naquela ocasião em momentos significativos, por exemplo, quando pulava da cama no frio do inverno em resposta aos chamados do pai | ver em [1]|. Mas o que deve ter tido influência positivamente decisiva sobre o rumo tomado pela conversão foi outra linha de conexão associativa | ver em [1]|: o fato de que, durante vários dias seguidos, uma de suas pernas doloridas entrou em contato com a perna intumescida do pai enquanto as ataduras eram trocadas. A região da perna direita que foi marcada por esse contato ficou sendo, a partir daí, o foco de suas dores e o ponto de onde elas se irradiavam.  Formou uma zona histerogênica artificial cuja origem, no presente caso, pôde ser claramente observada.

Se alguém ficar surpreso com essa conexão associativa entre a dor física e o afeto psíquico, em razão de ela ser de caráter tão múltiplo e artificial, devo responder que esse sentimento é tão pouco justificado quanto a surpresa diante do fato de serem os ricos aqueles que têm mais dinheiro. Na verdade, quando não existem essas conexões tão numerosas, o sintoma histérico não se forma, pois a conversão não encontra nenhuma trilha aberta para ela. E posso afirmar que, quanto a sua determinação, o exemplo da Srta. Elisabeth von R. situou-se entre os mais simples. Já tive que desenredar fios dos mais emaranhados, especialmente no caso da Sra. Caecilie M.

No relato do caso clínico | ver em [1] e segs.| já discuti a maneira pela qual a astasia-abasia da paciente se desenvolveu sobre essas dores, depois de uma trilha específica ter sido aberta para a conversão. Naquele trecho, contudo também externei a opinião de que a paciente criara ou aumentara seu distúrbio funcional por meio da simbolização, que encontrara na astasia-abasia uma expressão somática para sua falta de uma posição independente e sua incapacidade de fazer qualquer alteração em suas circunstâncias de vida, e que expressões como “não ser capaz de dar um único passo à frente” e “não ter nada em que se apoiar” serviram de ponte para esse novo ato de conversão | ver em [1]|.

Tentarei sustentar esse ponto de vista por meio de outros exemplos. A conversão com base na simultaneidade, quando há também uma ligação associativa, parece ser a que menos exige uma predisposição histérica; a conversão por simbolização, por outro lado, parece exigir a presença de um grau mais elevado de modificações histéricas. Isso pôde ser observado no caso da Srta. Elisabeth, mas apenas no último estágio de sua histeria. Os melhores exemplos de simbolização que vi ocorreram na Sra. Caecilie M., cujo caso eu poderia descrever de o mais grave e instrutivo que já tive. Já expliquei | ver em [1]| que um relato pormenorizado de sua doença é infelizmente impossível.

A Sra. Caecilie sofria, entre outras coisas, de uma nevralgia facial extremamente violenta, que surgia subitamente duas ou três vezes por ano, durava de cinco a dez dias, resistia a qualquer espécie de tratamento e cessava abruptamente. Limitava-se à segunda e terceira ramificações do trigêmeo, e visto que uma excreção anormal de uratos estava sem dúvida alguma presente e que um “reumatismo agudo” não muito bem definido desempenhava certo papel na história da paciente, o diagnóstico de nevralgia gotosa era bastante plausível. Esse diagnóstico foi confirmado pelos diferentes médicos chamados a cada acesso. Prescrevia-se o tratamento comum para esses casos: escova elétrica, água alcalina e purgantes; mas a cada vez a nevralgia se mantinha inalterada até que resolvia dar lugar a outro sintoma. Numa época anterior de sua vida — a nevralgia tinha quinze anos de idade —, os dentes da paciente tinham sido responsabilizados pelo problema. Foram condenados à extração e, um belo dia, sob narcose, a sentença foi executada em sete dos criminosos. Essa tarefa não foi tão fácil; os dentes estavam presos com tanta firmeza que as raízes da maioria deles tiveram que ser deixadas no lugar. Essa operação cruel não teve nenhum resultado, nem temporário nem permanente. Naquela época, a nevralgia campeou por meses a fio. Mesmo durante meu tratamento, a cada acesso de nevralgia o dentista era chamado. Em todas essas ocasiões, ele diagnosticou a presença de raízes doentes e começou a trabalhar nelas; mas, em geral, logo foi interrompido, pois a nevralgia cessava de repente, ao mesmo tempo, cessava a necessidade dos serviços do dentista. No intervalo entre as crises, os dentes da paciente não doíam. Certo dia, quando um acesso estava outra vez campeando furiosamente, a paciente fez com que eu lhe aplicasse tratamento hipnótico. Proibi-lhe energicamente que sentisse dores e, a partir desse momento, elas pararam. Comecei então a ter dúvidas quanto à autenticidade da nevralgia.

Cerca de um ano após esse tratamento hipnótico bem-sucedido, a doença da Sra. Caecilie assumiu uma forma nova e surpreendente. Ela subitamente apresentou novos estados patológicos, diferentes dos que haviam caracterizado os últimos anos. Mas, após pensar um pouco, a paciente declarou que tivera todos eles em várias ocasiões durante sua longa doença, que datava de trinta anos antes. Surgiu então uma abundância realmente surpreendente de ataques histéricos a que a paciente pôde atribuir um lugar preciso no passado. Logo foi possível acompanhar também as cadeias de pensamento muitas vezes complexas que determinaram a ordem de ocorrência desses ataques. Elas pareciam uma série de quadros com textos explanatórios. Pitres deve ter pensado em algo semelhante ao apresentar sua descrição do que denominou de “délire ecmnésique”. Era notável observar a maneira como um ataque histérico desse tipo, pertencente ao passado, era reproduzido. Primeiro surgia, enquanto a paciente gozava da melhor saúde, um estado de “ânimo patológico com um colorido específico, que ela sistematicamente interpretava mal e atribuía a algum acontecimento corriqueiro das últimas horas. A seguir, acompanhados por uma crescente turvação da consciência, sobrevinham os sintomas histéricos: alucinações, dores, espasmos e longos discursos declamatórios. Por fim, estes sintomas eram seguidos pela emergência, sob forma alucinatória, de uma experiência passada que tornava possível explicar seu estado de espírito inicial e o que determinara os sintomas de seu atual ataque. Com essa última parte do ataque ela recuperava a lucidez mental. Seus problemas desapareciam como que num passe de mágica e ela voltava a sentir-se bem — até o ataque seguinte, meio dia depois. Em geral, eu era chamado no clímax do ataque, induzia um estado de hipnose, evocava a reprodução da experiência traumática e apressava o final do ataque por meios artificiais. Como assisti a várias centenas desses ciclos com a paciente, obtive as informações mais instrutivas sobre a maneira pela qual os sintomas histéricos são determinados. Na realidade, foi o estudo desse caso notável, juntamente com Breuer, que levou diretamente à publicação de nossa “Comunicação Preliminar” |de 1893, que serve de introdução ao presente volume|.

Nessa fase do trabalho chegamos finalmente à reprodução de sua nevralgia facial, que eu próprio tratara nas ocasiões em que surgiu em ataques atuais. Estava curioso em descobrir se também a nevralgia mostraria ter uma causa psíquica. Quando comecei a evocar a cena traumática, a paciente viu-se de volta a um período de grande irritabilidade mental para com o marido. Descreveu uma conversa que tivera com ele e uma observação dele que ela sentira como um áspero insulto. De repente, levou a mão à face, soltou um grande grito de dor e exclamou: “Foi como uma bofetada no rosto”. Com isso, cessaram tanto a dor como o ataque.

Não há dúvida de que o que acontecera fora uma simbolização. Ela se sentira como se tivesse realmente recebido uma bofetada. Todos perguntarão imediatamente como foi que a sensação de uma “bofetada no rosto” veio a assumir os contornos externos de uma nevralgia do trigêmeo, por que se restringiu às segundas e terceiras ramificações e por que piorava quando a paciente abria a boca e mastigava — embora, diga-se de passagem, não quando ela falava.

No dia seguinte, a nevralgia estava de volta. Mas dessa vez foi dissipada pela narração de outra cena, cujo conteúdo fora, mais uma vez, um suposto insulto. As coisas continuaram assim por nove dias. Parecia que, durante anos, os insultos, principalmente os externados verbalmente, haviam, através da simbolização, provocado novos ataques de sua nevralgia facial.

Mas por fim repercorreu o caminho de volta a seu primeiro acesso de nevralgia, mais de quinze anos antes. Ali não tinha havido simbolização, mas uma conversão através da simultaneidade. Ela vira um quadro doloroso, acompanhado de sentimentos de autocensura, e isso a forçara a rechaçar outro grupo de pensamentos. Assim, tratava-se de um caso de conflito e defesa. A geração da nevralgia naquele momento só podia ser explicada pela suposição de que ela estava sofrendo, na época, de leves dores de dentes ou de dores no rosto, e isso não era improvável, visto que ela estava então nos primeiros meses de sua primeira gravidez.

Assim, a explicação foi que essa nevralgia passara a ser indicativa de uma excitação psíquica específica pelo método usual da conversão, mas que, posteriormente, pôde ser acionada através de reverberações associativas provenientes de sua vida mental ou da conversão simbólica — a rigor, o mesmo comportamento que encontramos na Srta. Elisabeth von R.

Darei um segundo exemplo que demonstra a ação da simbolização em outras condições. Num determinado período, a Sra. Caecilie foi acometida de uma violenta dor no calcanhar direito — uma dor lancinante a cada passo que dava, que tornou impossível andar. A análise levou-nos, com relação a isso, a uma época em que a paciente estivera num sanatório no exterior. Ela passara uma semana de cama e ia ser levada ao refeitório comum pela primeira vez pelo médico residente. A dor sobreveio no momento em que ela lhe tomou o braço para sair da sala com ele; desapareceu durante a reprodução da cena, quando a paciente me disse que, não ocasião, ficara com medo de não “acertar o passo” com aqueles estranhos.

A princípio, isso parece ser um exemplo surpreendente e mesmo cômico da gênese dos sintomas histéricos através da simbolização por meio de uma expressão verbal. Um exame mais detido da situação, no entanto, favorece outra opinião do caso. A paciente vinha sofrendo, na época, de dores generalizadas nos pés, e fora por causa delas que ficara presa ao leito por tanto tempo. Tudo o que se poderia alegar em favor da simbolização era que o medo que dominou a paciente ao dar os primeiros passos escolheu, dentre todas as dores que a afligiam na época, a dor específica que era simbolicamente apropriada, a dor no calcanhar direito, e a transformara numa dor psíquica, imprimindo-lhe uma persistência especial.

Nesses exemplos, o mecanismo da simbolização parece ser relegado a uma importância secundária, como sem dúvida é a regra geral. Mas disponho de exemplos que parecem provar a gênese dos sintomas histéricos apenas através da simbolização. O exemplo que se segue é um dos melhores e se relaciona, mais uma vez, com a Sra. Caecilie. Quando contava quinze anos, ela estava deitada na cama sob o olhar vigilante da avó rigorosa. A moça subitamente deu um grito; sentira uma dor penetrante na testa, entre os olhos, que durou semanas. No decorrer da análise dessa dor, que foi descrita após quase trinta anos, ela me disse que a avó lhe dirigira um olhar tão “penetrante” que fora direto até o cérebro. (Ela sentira medo de que a velha a estivesse olhando com desconfiança.) Ao contar-me isso, irrompeu numa sonora gargalhada e a dor mais uma vez desapareceu. Neste caso, não posso discernir outra coisa senão o mecanismo da simbolização, que tem seu lugar, em certo sentido, a meio caminho entre a auto-sugestão e a conversão.

Minha observação da Sra. Caecilie M. proporcionou-me a oportunidade de fazer uma coletânea sistemática de tais simbolizações. Todo um grupo de sensações físicas que normalmente se considera que são determinadas por causas orgânicas era, no caso dela, de origem psíquica, ou pelo menos possuía um significado psíquico. Uma série específica de suas experiências foi acompanhada por uma sensação de punhalada na região cardíaca (significando “apunhalou-me no coração”). A dor, que ocorre na histeria, em que se cravam pregos na cabeça tinha sem dúvida de ser explicada, no caso dela, como uma dor relacionada com o pensamento. (“Uma coisa me entrou na cabeça.”) As dores dessa espécie eram sempre dissipadas tão logo os problemas em jogo eram esclarecidos. Junto com a sensação de uma “aura” histérica na garganta, quando essa sensação surgia após um insulto, havia a idéia de que “terei de engolir isto”. A paciente apresentava uma quantidade enorme de sensações e idéias que corriam paralelamente umas às outras. Ora a sensação evocava a idéia que a explicava, ora a idéia criava a sensação por meio de simbolização, e não raro tinha-se que deixar em aberto a questão de qual dos dois elementos fora o primário.

 

Não constatei nenhum uso tão extenso da simbolização em qualquer outro paciente. É verdade que a Sra. Caecilie M.era uma mulher de talentos bastante incomuns, principalmente artísticos, e cujo senso muito desenvolvido da forma era revelado em alguns poemas de grande perfeição. Sou de opinião, contudo, que quando um histérico cria uma expressão somática para uma idéia emocionalmente colorida, através da simbolização, isso depende menos do que se poderia imaginar de fatores pessoais ou voluntários. Ao tomar uma expressão verbal ao pé da letra e sentir uma “punhalada no coração” ou uma “bofetada no rosto” após um comentário depreciativo vivido como um fato real, o histérico não está tomando liberdades com as palavras, mas simplesmente revivendo mais uma vez as sensações a que a expressão verbal deve sua justificativa. Como poderíamos referir-nos a alguém que foi menosprezado dizendo que foi “apunhalado no coração”, a menos que o menosprezo tivesse de fato sido acompanhado por uma sensação precordial que poderia ser adequadamente descrita por essa expressão e a menos que fosse identificável por essa sensação? O que poderia ser mais provável do que a idéia de que a figura de linguagem “engolir alguma coisa”, que empregamos ao falar de um insulto ao qual não foi apresentada nenhuma réplica, originou-se na verdade das sensações inervatórias que surgem na faringe quando deixamos de falar e nos impedimos de reagir ao insulto? Todas essas sensações e inervações pertencem ao campo da “Expressão das Emoções”, que, como nos ensinou Darwin |1872|, consiste em ações que originalmente possuíam um significado e serviam a uma finalidade. Em sua maior parte, estas podem ter-se enfraquecido tanto que sua expressão em palavras nos parece ser apenas um quadro figurativo delas, ao passo que, com toda probabilidade, essa descrição um dia foi tomada em seu sentido literal; e a histeria tem razão em restaurar o significado original das palavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum. [1]

 

III - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

(BREUER)

 

Na “Comunicação Preliminar” que introduz este trabalho formulamos as conclusões a que fomos levados por nossas observações, e penso que posso mantê-las em essência. Mas a “Comunicação Preliminar” é tão curta e concisa que, em sua maior parte, só nos foi possível ventilar nossos conceitos. Portanto, agora que os casos clínicos apresentaram provas que confirmam nossas conclusões, talvez seja permissível enunciá-las mais amplamente. Por certo aqui não é uma questão, é evidente, de lidar com todo o campo da histeria. Mas talvez possamos dar um tratamento mais detido e mais claro (com acréscimo de algumas ressalvas, sem dúvida) dos pontos para os quais foram reunidas provas insuficientes ou que não receberam bastante destaque na “Comunicação Preliminar”.

No que se segue, far-se-á pouca menção ao cérebro e nenhuma absolutamente às moléculas. Os processos psíquicos serão abordados na linguagem da psicologia; e, a rigor, não poderia ser de outra forma. Se em vez de “idéia” escolhêssemos falar em “excitação do córtex”, a segunda expressão só teria algum sentido para nós na medida em que reconhecêssemos um velho amigo sob esse disfarce e tacitamente restaurássemos a “idéia”. Pois, enquanto as idéias são objetos permanentes de nossa experiência e nos são familiares em todas as suas gradações de significado, as “excitações corticais” pelo contrário, têm mais a natureza de um postulado: são objetos que temos a esperança de identificar no futuro. A substituição de um termo pelo outro não pareceria ser mais do que um disfarce desnecessário. Por conseguinte, talvez me seja perdoado recorrer quase exclusivamente a termos psicológicos.

Há outro aspecto para o qual devo pedir de antemão a indulgência do leitor. Quando uma ciência vem fazendo rápidos avanços, certos pensamentos inicialmente expressos por indivíduos isolados logo se transformam em domínio público. Dessa forma, ninguém que tente formular hoje seus conceitos sobre a histeria e sua base psíquica pode evitar repetir um grande número de idéias de outrem que se acham em transição do domínio pessoal para o público. É difícil ter sempre a certeza de quem os expressou pela primeira vez, e há sempre o perigo de se considerar como produto próprio o que já foi dito por terceiros. Espero, portanto, que me desculpem se forem encontradas poucas citações neste trabalho e se não for feita qualquer distinção rigorosa entre o que é de minha própria lavra e o que tem origens alhures. Reivindicamos originalidade para uma parte muito pequena do que será encontrado nas páginas que se seguem.

 

(1) SERÃO IDEOGÊNICOS TODOS OS FENÔMENOS HISTÉRICOS?

 

Em nossa “Comunicação Preliminar” examinamos o mecanismo psíquico dos “fenômenos histéricos”, e não da “histeria”, pois não quisemos defender o conceito de que esse mecanismo psíquico, ou a teoria psíquica dos sintomas histéricos em geral, têm validade ilimitada. Não somos de opinião de que todos os fenômenos da histeria ocorram da maneira descrita por nós naquele artigo, nem acreditamos que todos sejam ideogênicos, isto é, determinados por idéias. Nesse aspecto divergimos de Moebius, que em 1888 propôs definir como histéricos todos os fenômenos patológicos determinados por idéias. Essa afirmação foi posteriormente elucidada no sentido de que apenas parte dos fenômenos patológicos corresponde, em seu conteúdo, às idéias que os provocam — a saber, os fenômenos que são produzidos por alo-sugestão ou auto-sugestão, como, por exemplo, quando a idéia de não poder mover o braço provoca uma paralisia do mesmo, enquanto outra parte dos fenômenos, embora causados por idéias, não corresponde a elas em seu conteúdo — como, por exemplo, quando em uma de nossas pacientes uma paralisia do braço foi provocada pela visão de objetos semelhantes a cobras |ver em [1]-[2]|.

Ao dar essa definição, Moebius não está meramente propondo uma modificação na nomenclatura e sugerindo que, no futuro, só deveremos descrever como histéricos os fenômenos patológicos que forem ideogênicos (determinados por idéias); o que ele está supondo é que todos os sintomas histéricos são ideogênicos. “Visto que as idéias são com muita freqüência a causa dos fenômenos histéricos, creio que sempre o são.” Ele denomina isso de inferência por analogia. Prefiro denominá-lo de generalização, cuja justificativa deve primeiro ser submetida à prova.

Antes de qualquer discussão do assunto, devemos obviamente decidir o que entendemos por histeria. Considero que a histeria é um quadro clínico empiricamente descoberto e baseado na observação, da mesma maneira que a tuberculose pulmonar. Esses quadros clínicos empiricamente obtidos ganham mais precisão, profundidade e clareza com o progresso de nossos conhecimentos, mas não devem nem podem ser desmontados por eles. A pesquisa etiológica revela que os vários processos constitutivos da tísica pulmonar têm diversas causas: o tubérculo é devido ao bacillus Kochii, enquanto a degeneração do tecido, a formação de cavernas e a febre séptica se devem a outros micróbios. Apesar disso, a tuberculose permanece como uma unidade clínica e seria um erro desintegrá-la, atribuindo-lhe apenas as modificações “especificamente tuberculosas” do tecido, provocadas pelo bacilo de Koch, e desvinculando dela as outras modificações. Da mesma forma, a histeria deve continuar a ser uma unidade clínica, mesmo se ficar demonstrado que suas manifestações são determinadas por várias causas e que algumas delas são acarretadas por um mecanismo psíquico e outras, não.

Estou convencido de que é isto o que de fato ocorre; apenas parte dos fenômenos da histeria é ideogênica, e a definição formulada por Moebius rompe a unidade clínica da histeria, e, a rigor, também a unidade de um mesmo sintoma num mesmo paciente.

Estaríamos fazendo uma inferência inteiramente análoga à “inferência por analogia” de Moebius, se afirmássemos que, como as idéias e percepções com muita freqüência provocam ereções, devemos presumir que só elas é que o fazem e que os estímulos periféricos só poriam esse processo vasomotor em ação por vias indiretas através da psique. Sabemos que essa inferência seria falsa e, no entanto, ela está baseada em pelo menos tantos fatos quanto os que fundamentam a asserção de Moebius sobre a histeria. De conformidade com nossa experiência de um grande número de processos fisiológicos, tais como a secreção de saliva ou de lágrimas, as modificações no trabalho do coração, etc., é possível e plausível presumir que o mesmíssimo processo pode ser igualmente acionado por idéias e por estímulos periféricos e outros estímulos não-psíquicos. O contrário teria de ser provado e estamos muito longe disso. Com efeito parece certo que muitos fenômenos descritos como histéricos não são provocados apenas por idéias.

Consideremos um exemplo cotidiano. Uma mulher pode, sempre que surge um afeto, apresentar no pescoço, nos seios e no rosto um eritema, que aparece primeiro em manchas e depois se torna confluente. Isso é determinado por idéias e, portanto, de acordo com Moebius, é uma manifestação histérica. Mas esse mesmo eritema surge, embora numa área menos extensa, quando a pele fica irritada ou é tocada, etc. Isso não seria histérico. Assim, um fenômeno que é indubitavelmente uma unidade completa seria histérico numa ocasião e não-histérico em outra. É claro que se pode indagar se esse fenômeno — o eretismo vasomotor — deveria ser considerado como especificamente histérico ou se não seria mais apropriado encará-lo como simplesmente “nervoso”. Do ponto de vista de Moebius, porém, o esfacelamento da unidade seria uma conseqüência necessária, de qualquer maneira, e só o eritema determinado pelo afeto deveria ser denominado histérico.

Isso se aplica exatamente do mesmo modo às dores histéricas, que são de tão grande importância prática. Sem dúvida, elas muitas vezes são determinadas diretamente por idéias. São “alucinações de dor”. Se as examinarmos bem mais de perto, veremos que, ao que parece, o fato de uma idéia ser muito nítida não é suficiente para produzi-las, mas que deve haver uma condição anormal especial nos aparelhos relativos à condução e percepção da dor, do mesmo modo que no caso do eritema emocional deve estar presente uma excitabilidade anormal dos vasomotores. A expressão “alucinações de dor” sem dúvida proporciona a mais rica descrição da natureza dessas nevralgias, mas também nos obriga a transpor para elas os conceitos que formamos sobre as alucinações em geral. Não caberia aqui um exame pormenorizado desses conceitos. Endosso a opinião de que as “representações”, imagens mnêmicas puras e simples, sem qualquer excitação do aparelho perceptivo, jamais, nem mesmo no ápice de sua nitidez e intensidade, atingem o caráter de existência objetiva, que é a marca das alucinações.

Isso se aplica às alucinações sensoriais e mais ainda às alucinações de dor, pois não parece possível que uma pessoa sadia seja capaz de dotar a lembrança de uma dor física sequer com o mesmo grau de nitidez ou sequer com uma aproximação distante da sensação real que pode, afinal de contas, ser alcançada pelas imagens mnêmicas ópticas e acústicas. Mesmo no estado alucinatório normal das pessoas sadias, que ocorre durante o sono, nunca há, creio eu, sonhos de dor, a menos que uma sensação real de dor esteja presente. Essa excitação “retrogressiva”, que emana do órgão da memória e atua sobre o aparelho perceptivo por meio das reproduções, é, portanto, no curso normal das coisas, ainda mais difícil no caso da dor do que no das sensações visuais ou auditivas. Uma vez que as alucinações de dor surgem com tanta facilidade na histeria, devemos pressupor uma excitabilidade anormal do aparelho relacionado com as sensações de dor.

Essa excitabilidade surge não apenas sob o estímulo das idéias, mas também sob estímulos periféricos, da mesma forma que o eretismo dos vasomotores que examinamos acima.

É uma observação cotidiana constatar que, nas pessoas com nervos normais, as dores periféricas são provocadas por processos patológicos não dolorosos em si mesmos, localizados em outros órgãos. Assim, surgem as dores de cabeça decorrentes de alterações relativamente insignificantes no nariz ou nas cavidades vizinhas, e nevralgias dos nervos intercostais e braquiais provenientes de patologias do coração, etc. Quando a excitabilidade anormal, que fomos obrigados a postular como uma condição necessária para as alucinações de dor, acha-se presente num paciente, essa excitabilidade também fica à disposição, por assim dizer, das irradiações que acabo de mencionar. As irradiações que ocorrem também em pessoas não-neuróticas são mais intensificadas e formam-se irradiações de um tipo que, na verdade, só encontramos em pacientes neuróticos, mas que se baseiam no mesmo mecanismo que as outras. Dessa forma, a nevralgia ovariana depende, creio eu, das condições do aparelho genital. Sua causalidade psíquica teria que ser provada, e não se chega a essa comprovação pela demonstração de que essa particular espécie de dor, como qualquer outra, pode ser produzida sob hipnose como uma alucinação, ou de que suas causas podem ser psíquicas. Tal como o eritema ou qualquer das secreções normais, a nevralgia surge tanto de causas psíquicas como de causas puramente somáticas. Será que devemos descrever apenas a primeira espécie como histérica — os casos que sabemos terem uma origem psíquica? Se assim for, os casos comumente observados de nevralgia ovariana teriam de ser excluídos da síndrome histérica, e isso mal seria uma solução.

Quando um ligeiro traumatismo numa articulação é gradativamente seguido de uma artralgia grave, o processo sem dúvida envolve um elemento psíquico, isto é, uma concentração da atenção na parte traumatizada, o que intensifica a excitabilidade dos filetes nervosos em questão. Poder-se-ia dificilmente expressar isso, no entanto, afirmando que a hiperalgesia foi causada por representações.

O mesmo se aplica à diminuição patológica da sensação. Não está de modo algum provado e é improvável que a analgesia geral ou a analgesia de partes individuais do corpo, desacompanhada de anestesia, seja provocada por representações. E mesmo que as descobertas de Binet e Janet fossem confirmadas por completo, no sentido de que a hemianestesia é determinada por uma condição psíquica peculiar, por uma divisão da psique, o fenômeno seria psicogênico, mas não ideogênico, e portanto, de acordo com Moebius, não deve ser denominado histérico.

Se existe, portanto, um grande número de fenômenos histéricos característicos que não podemos supor que sejam ideogênicos, pareceria acertado limitar a aplicação da tese de Moebius. Não definiremos como histéricos os fenômenos patológicos que são causados por representações, mas apenas asseveraremos que um grande número de fenômenos histéricos, provavelmente mais do que suspeitamos hoje em dia, são ideogênicos. Mas a alteração patológica fundamental que se acha presente em cada caso e que permite às representações, bem como aos estímulos não-psicológicos, produzirem efeitos patológicos, reside numa excitabilidade anormal do sistema nervoso. Até que ponto essa excitabilidade é de origem psíquica é uma outra questão.

 

Contudo, mesmo que apenas alguns dos fenômenos da histeria sejam ideogênicos, na verdade são eles que podem ser considerados especificamente histéricos, e é a investigação deles, a descoberta de sua origem psíquica, que constitui o avanço recente mais importante na teoria desse distúrbio. Surge então uma outra pergunta: como se dão esses fenômenos? Qual é seu “mecanismo psíquico”?

Essa pergunta exige uma resposta bem diferente no caso de cada um dos dois grupos em que Moebius divide os sintomas ideogênicos | ver em [1]|. Os fenômenos patológicos que correspondem em seu conteúdo à representação instigadora são relativamente compreensíveis e claros. Quando a representação de uma voz ouvida não a faz apenas ecoar fracamente no “ouvido interior”, como acontece nas pessoas sadias, mas a leva a ser percebida de maneira alucinatória como uma sensação acústica objetiva real, isso pode ser equiparado a fenômenos familiares da vida normal — aos sonhos — e é bem inteligível com base na hipótese de excitabilidade anormal. Sabemos que a cada movimento voluntário é a idéia do resultado a ser alcançado que dá início à contração muscular pertinente, e não é muito difícil ver que a idéia de que essa contração é impossível impedirá o movimento (como acontece na paralisia por sugestão).

A situação é outra com os fenômenos que não têm nenhuma conexão lógica com a representação determinante. (Também aqui, a vida normal oferece paralelos como, por exemplo, o enrubescer de vergonha.) Como surgem eles? Por que uma representação num homem doente evoca um movimento ou uma alucinação específica inteiramente irracional que de modo algum corresponde a ela?

Em nossa “Comunicação Preliminar” sentimo-nos em condições de dizer algo sobre essa relação causal com base em nossas observações. Em nossa exposição do assunto, entretanto, introduzimos e empregamos, sem o justificar, o conceito de “excitações que fluem ou têm de ser ab-reagidas”. Esse conceito, que é de fundamental importância para nosso tema e para a teoria das neuroses em geral, parece exigir e merecer um exame mais detalhado. Antes de passar a efetuá-lo, devo pedir desculpas por levar o leitor de volta aos problemas básicos do sistema nervoso. Um sentimento de opressão está fadado a acompanhar qualquer descida desse tipo até as “Mães” [isto é, à exploração das profundezas|.

Mas qualquer tentativa de chegar às raízes de um fenômeno leva inevitavelmente, dessa forma, a problemas básicos dos quais não se pode escapar. Espero, portanto, que a obscuridade do exame que se segue possa ser encarada com indulgência.

 

(2) AS EXCITAÇÕES TÔNICAS INTRACEREBRAIS — OS AFETOS

 

(A)

Conhecemos duas condições extremas do sistema nervoso central: um estado lúcido de vigília e um sono desprovido de sonhos. Uma transição entre elas é proporcionada por uma série de condições com todos os graus de decrescente lucidez. O que nos interessa aqui não é a questão da finalidade do sono e sua base física (seus determinantes químicos ou vasomotores), mas a questão da distinção essencial entre as duas condições.

Não podemos dar nenhuma informação direta sobre o sono mais profundo e sem sonhos, pela mesma razão de que todas as observações e experiências são excluídas pelo estado de total inconsciência. Mas no que tange à condição fronteiriça do sono acompanhado de sonhos podem-se fazer as asserções que se seguem. Em primeiro lugar, quando, estando nessa condição, tencionamos fazer movimentos voluntários — de andar, falar, etc. — isso não faz com que as contrações correspondentes dos músculos sejam voluntariamente iniciadas, como na vida de vigília. Em segundo lugar, os estímulos sensoriais talvez sejam percebidos (pois muitas vezes forçam sua entrada nos sonhos), mas não são apercebidos, isto é, não se tornam percepções conscientes. Além disso, as representações que emergem não ativam, como na vida de vigília, todas as representações vinculadas a ela e que se encontram presentes na consciência potencial; um grande número destas últimas permanece não excitado. (Por exemplo, descobrimo-nos falando com uma pessoa morta sem nos lembrarmos de que está morta.) Outrossim, representações incompatíveis podem estar presentes ao mesmo tempo sem se inibirem mutuamente, como fazem na vida de vigília. Dessa forma, a associação é imperfeita e incompleta. Podemos presumir com segurança que, no sono mais profundo, essa ruptura das vinculações entre os elementos psíquicos é levada ainda mais além e se torna total.

Por outro lado, quando estamos inteiramente acordados, todo ato de vontade inicia o movimento correspondente; as impressões sensoriais transformam-se em percepções conscientes e as representações se associam com todo conteúdo presente na consciência potencial. Nesse estado o cérebro funciona como uma unidade, com conexões internas completas.

Talvez estejamos apenas descrevendo esses fatos com outras palavras, se dissermos que, no sono, as vias de conexão e condução do cérebro não são percorríveis pelas excitações dos elementos psíquicos (células corticais?), ao passo que na vida de vigília o são inteiramente.

 

A existência desses dois estados diferentes das vias de condução, ao que parece, só pode tornar-se inteligível se supormos que, na vida de vigília, essas vias se encontram num estado de excitação tônica (o que Exner |1894, 93| chama de “tetania intercelular”) e que essa excitação intracerebral tônica é o que determina sua capacidade condutora, sendo que sua diminuição e desaparecimento é que estabelecem o estado de sono.

Não devemos pensar na via cerebral de condução como semelhante a um fio telefônico que só é eletricamente excitado no momento em que tem de funcionar (isto é, no contexto presente, quando tem que transmitir um sinal). Devemos assemelhá-lo ao tipo de fio telefônico em que há sempre um fluxo constante de corrente galvânica e que deixa de ser excitável quando tal corrente cessa. Ou melhor, imaginemos um sistema elétrico amplamente ramificado para transmissão de luz e força; o que se espera desse sistema é que o simples estabelecimento de um contato seja capaz de pôr qualquer lâmpada ou máquina em funcionamento. Para possibilitar isso, de modo que tudo esteja pronto para funcionar, deve haver certa tensão presente em toda a rede de linhas de condução, devendo o gerador despender uma dada quantidade de energia para esse fim. Da mesma forma, há certa quantidade de excitação presente nas vias condutoras do cérebro quando este se encontra em repouso, mas desperto e preparado para trabalhar.

 

Esse conceito é apoiado pelo fato de que estar meramente desperto, sem realizar qualquer trabalho, dá lugar à fadiga e produz a necessidade de dormir. O estado de vigília em si provoca um consumo de energia.

Imaginemos um homem num estado de intensa expectativa, que não está, contudo, dirigida para qualquer campo sensorial específico. Temos então diante de nós um cérebro em repouso mas preparado para a ação. Podemos com razão supor que em tal cérebro todas as vias de condução se encontram no máximo de sua capacidade condutora — que se acham num estado de excitação tônica. É significativo que na linguagem comum nos refiramos a esse estado como sendo de tensão. A experiência nos ensina o quanto de desgaste esse estado representa e como pode ser fatigante, mesmo que nenhum trabalho motor ou psíquico seja nele realizado.

Esse é um estado excepcional que, precisamente por causa do grande consumo de energia em jogo, não pode ser tolerado por muito tempo. Mas mesmo o estado normal de estar bem desperto exige uma quantidade de excitação intracerebral que varia entre limites separados de forma não muito ampla. Cada grau decrescente de vigília, até a sonolência e o verdadeiro sono, faz-se acompanhar por graus correspondentes menores de excitação.

Quando o cérebro está realmente trabalhando, exige-se sem dúvida um consumo maior de energia do que quando está apenas preparado para executar trabalho. (Da mesma forma, o sistema elétrico descrito anteriormente à guisa de analogia deve fazer com que maior quantidade de energia elétrica flua para as linhas condutoras quando um grande número de lâmpadas ou motores está ligado ao circuito.) Quando o funcionamento é normal, não se libera maior quantidade de energia do que a empregada de imediato na atividade. O cérebro, contudo, comporta-se como um daqueles sistemas elétricos de capacidade restrita que são incapazes de produzir ao mesmo tempo uma quantidade superior de luz e de trabalho mecânico. Quando um deles está transmitindo força, dispõe-se apenas de uma pequena quantidade de energia para a iluminação, e vice-versa. Assim, constatamos que, se estivermos fazendo grandes esforços musculares, seremos incapazes de nos empenharmos num raciocínio contínuo, ou que, se concentrarmos nossa atenção num único campo sensorial, a eficiência dos outros órgãos cerebrais ficará reduzida — em outras palavras, verificamos que o cérebro trabalha com uma quantidade de energia variável, mas limitada.

 

A distribuição não-uniforme de energia é sem dúvida determinada pelo que Exner |1894, 165| denomina de “facilitação pela atenção” — por um aumento da capacidade condutora das vias em uso e um decréscimo da capacidade das outras, e assim, num cérebro em funcionamento, a “excitação tônica intracerebral” também é distribuída de maneira não uniforme.

Despertamos uma pessoa que está adormecida — ou seja, elevamos de repente a quantidade de sua excitação intracerebral tônica — fazendo que um vívido estímulo sensorial exerça influência sobre ela. Se as alterações na circulação sanguínea cerebral são aqui elos essenciais na corrente causal, e se os vasos sanguíneos são diretamente dilatados pelo estímulo, ou se a dilatação é conseqüência da excitação dos elementos cerebrais — tudo isso é incerto. O certo é que o estado de excitação, penetrando por uma das portas dos sentidos, espalha-se pelo cérebro a partir desse ponto, torna-se difuso e leva todas as vias de condução a um estado de facilitação mais elevado.

Ainda não está nada esclarecido, é natural, como ocorre o despertar espontâneo — se é sempre a mesma parte do cérebro que entra num estado de excitação de vigília, e se a excitação então se difunde a partir dali, ou se ora um, ora outro grupo de elementos atua como o agente que desperta. Não obstante, o despertar espontâneo que, como sabemos, pode ocorrer na total quietude e escuridão sem qualquer estímulo externo, prova que o desenvolvimento da energia se baseia no processo vital dos próprios elementos cerebrais. Um músculo pode permanecer não estimulado e quiescente por mais que tenha ficado em estado de repouso e mesmo que tenha acumulado um máximo de força elástica. O mesmo não se aplica aos elementos cerebrais. Sem dúvida, temos razão ao supor que durante o sono os elementos cerebrais recuperam sua condição anterior e acumulam energia potencial. Quando isso acontece até certo ponto — quando, por assim dizer, certo nível é atingido — o excedente é descarregado nas vias de condução, facilita-as e estabelece a excitação intracerebral do estado de vigília.

Podemos encontrar um exemplo instrutivo da mesma coisa na vida de vigília. Quando o cérebro em vigília ficou quiescente por um tempo considerável, sem transformar a força elástica em energia ativa através de seu funcionamento, surgem uma necessidade e um impulso para a atividade. Aquiescência motora prolongada gera necessidade de movimento (compare-se o correr sem objetivo, de um lado para outro, de um animal enjaulado), e quando essa necessidade não pode ser atendida instaura-se uma sensação aflitiva. A falta de estímulos sensoriais, a escuridão e o silêncio total tornam-se uma tortura; o repouso mental e a falta de percepções, idéias e atividade associativa produzem o tormento de tédio. Essas sensações de desprazer correspondem a uma “excitação”, a um aumento da excitação intracerebral normal.

Assim, os elementos cerebrais, depois de serem restaurados por completo, liberam certa quantidade de energia mesmo quando estão em repouso; e quando essa energia não é empregada funcionalmente, ela aumenta a excitação intracerebral normal. O resultado é uma sensação de desprazer. Tais sensações são sempre geradas quando uma das necessidades do organismo deixa de encontrar satisfação. Visto que essas sensações desaparecem quando a quantidade excedente de energia que foi liberada é empregada funcionalmente, podemos concluir que a eliminação dessa excitação excedente é uma necessidade do organismo. E aqui deparamos pela primeira vez com o fato de que existe no organismo uma “tendência a manter constante a excitação intracerebral”. (Freud.)

Tal excedente de excitação é uma sobrecarga e um incômodo, e o impulso de consumi-lo surge como conseqüência disso. Quando não pode ser utilizado na atividade sensorial ou ideacional, o excedente se descarrega numa ação motora sem finalidade, no andar de um lado para outro e assim por diante — o que encontraremos mais à frente como o método mais comum de descarregar as tensões excessivas.

Estamos familiarizados com as grandes variações individuais que se encontram a esse respeito: as grandes diferenças entre as pessoas vivazes e as inertes e letárgicas, entre as que “não conseguem ficar paradas” e as que têm o “dom inato de se espreguiçarem nos sofás”, e entre os espíritos mentalmente ágeis e os embotados, que conseguem tolerar a inação intelectual por um período ilimitado de tempo. Essas diferenças, que constituem o “temperamento natural” de um homem, por certo se baseiam em profundas diferenças em seu sistema nervoso — no grau em que os elementos cerebrais funcionalmente quiescentes liberam energia.

Já nos referimos à tendência, por parte do organismo, a manter constante a excitação cerebral tônica. Uma tendência dessa natureza, porém, só se torna inteligível quando conseguimos ver a que necessidade atende. Podemos compreender a tendência nos animais de sangue quente de manter uma temperatura média constante porque nossa experiência nos ensinou que essa temperatura é a ideal para o funcionamento de seus órgãos. E fazemos uma suposição similar quanto à constância do teor de água no sangue, e assim por diante. Creio podermos também presumir que existe um ponto ótimo para o nível da excitação tônica intracerebral. Nesse nível de excitação tônica o cérebro é acessível a todos os estímulos externos, os reflexos são facilitados, embora apenas na medida da atividade reflexa normal, e o acervo de representações é passível de ser despertado e aberto à associação, na relação mútua entre representações individuais que corresponde a um estado mental de lucidez. É nesse estado que o organismo se acha mais bem preparado para funcionar.

A situação já fica alterada pela elevação uniforme | ver em [1]| da excitação tônica que constitui a “expectativa”. Isso torna o organismo hiperestésico aos estímulos sensoriais, que rapidamente se tornam aflitivos, e aumenta também sua excitabilidade reflexa acima do que é útil (inclinação ao susto). Sem dúvida esse estado é útil para algumas situações e finalidades, mas quando aparece espontaneamente e não por quaisquer dessas razões, não melhora nossa eficiência, mas a prejudica. Na vida cotidiana, chamamos a isso estar “nervoso”. Na grande maioria das formas de aumento da excitação, contudo, a superexcitação não é uniforme, o que é sempre prejudicial à eficiência. Chamamos a isso “excitamento”. Que o organismo tenda a manter o ponto ótimo de excitação e a retornar a esse ponto ótimo depois de havê-lo ultrapassado não é de se surpreender, mas está inteiramente de acordo com outros mecanismos reguladores do organismo.

Permitir-me-ei mais uma vez recorrer à comparação com um sistema de iluminação elétrica. A tensão na rede de linhas de condução possui também o seu ponto ótimo. Se este for ultrapassado, seu funcionamento pode ser prejudicado com facilidade; por exemplo, os filamentos da luz elétrica podem ser prontamente queimados. Falarei mais adiante sobre o dano causado ao próprio sistema se o isolamento falhar ou se ocorrer um “curto-circuito”.

 

(B)

 

Nossa fala, resultado da experiência de muitas gerações, distingue com admirável sutileza as formas e graus de elevação da excitação que ainda são úteis à atividade mental |isto é, apesar de se elevarem acima do ponto ótimo (ver penúltimo parágrafo)|, por elevarem a energia livre de todas as funções cerebrais de maneira uniforme, das formas e graus que prejudicam essa atividade, por aumentarem parcialmente e inibirem parcialmente essas funções psíquicas de uma maneira que não é uniforme. Às primeiras se dá o nome de “incitação” e às últimas, de “excitamento”. Uma conversa interessante ou uma xícara de chá ou café têm um efeito “incitante” |estimulante|; uma altercação ou uma dose considerável de álcool têm um efeito “excitante”. Enquanto a incitação desperta apenas a ânsia de empregar funcionalmente o excesso de excitação, o excitamento procura descarregar-se de formas mais ou menos violentas, que são quase ou decididamente patológicas. O excitamento constitui a base psicofísica dos efeitos, que serão examinados mais adiante. Mas devo em primeiro lugar abordar sucintamente algumas causas fisiológicas e endógenas dos aumentos de excitação.

Entre essas, em primeiro lugar, estão as principais necessidades e pulsões fisiológicas do organismo: a necessidade de oxigênio, o anseio intenso de alimentos e a sede. Visto que o excitamento que eles disparam está vinculado a certas sensações e idéias intencionais, esse não é um exemplo tão puro do aumento de excitação como o examinado anteriormente | ver em [1]-[2]|, que surgia apenas da aquiescência dos elementos cerebrais. O primeiro sempre possui seu colorido especial. Mas é inconfundível na agitação angustiante que acompanha a dispnéia e na inquietação de um homem faminto.

O aumento da excitação que provém dessas fontes é determinado pela alteração química dos próprios elementos cerebrais, que estão carentes de oxigênio, de força elástica ou de água. Tal excitação flui por vias motoras pré-formadas que levam à satisfação da necessidade que a estimulou: a dispnéia leva à respiração forçada, e a fome e a sede, à busca e obtenção de alimento e água. O princípio da constância da excitação quase não entra em ação no que tange a essa espécie de excitamento, pois os interesses que são atendidos pelo aumento da excitação nesses casos são de muito maior importância para o organismo do que o restabelecimento das condições normais de funcionamento no cérebro. É verdade que vemos os animais de um jardim zoológico correndo excitadamente de um lado para outro antes da hora da alimentação, mas isso sem dúvida pode ser considerado como um resíduo da atividade motora pré-formada de procurar alimento, que agora se tornou inútil pelo fato de estarem eles em cativeiro, e não como um meio de livrar o sistema nervoso do excitamento.

Se a estrutura química do sistema nervoso tiver sido permanentemente alterada pela introdução sistemática de substâncias estranhas, então a falta dessas substâncias provocará estados de excitamento, tal como a falta de substâncias nutritivas normais nas pessoas sadias. Vemos isso no excitamento que se verifica na abstinência de narcóticos.

Uma transição entre esses aumentos endógenos da excitação e os afetos psíquicos no sentido mais estrito é proporcionada pela excitação sexual e pelo afeto sexual. A sexualidade na puberdade surge, na primeira dessas formas, como uma elevação vaga, indeterminada e despropositada da excitação. À medida que o desenvolvimento se processa, tal elevação endógena da excitação, determinada pelo funcionamento das glândulas sexuais, torna-se firmemente vinculada (no curso normal das coisas) à percepção ou idéia do outro sexo — e, a rigor, à idéia de um indivíduo em particular, quando ocorre o notável fenômeno do apaixonar-se. Essa idéia absorve toda a quantidade de excitação liberada pela pulsão sexual. Torna-se uma “idéia afetiva”; em outras palavras, quando está ativamente presente na consciência, ela estimula o acréscimo de excitação que de fato se originou de outra fonte, a saber, as glândulas sexuais.

A pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa de acúmulos sistemáticos de excitação (e, por conseguinte, de neuroses). Esses aumentos distribuem-se de maneira muito desigual pelo sistema nervoso. Quando alcançam um grau considerável de intensidade, o encadeamento de idéias fica perturbado e o valor relativo das idéias se altera; e no orgasmo o pensamento é quase inteiramente extinto.

Também a percepção — a interpretação psíquica das impressões sensoriais — é prejudicada. Um animal normalmente tímido e cauteloso torna-se cego e surdo ao perigo. Por outro lado, pelo menos nos machos, há uma intensificação do instinto agressivo. Os animais pacíficos ficam perigosos, até a sua excitação ser descarregada nas atividades motoras do ato sexual.

 

(C)

 

Tal perturbação do equilíbrio dinâmico do sistema nervoso — uma distribuição não uniforme do aumento da excitação — é o que compõe a faceta psíquica dos afetos.

Não se fará aqui nenhuma tentativa de formular uma psicologia ou uma filosofia dos afetos. Examinarei apenas um único ponto, que é de importância para a patologia, e além disso apenas para os afetos ideogênicos — os que são provocados por percepções e representações. (Lange, 1885 |[1] e segs.|), ressaltou com razão que os afetos podem ser causados por substâncias tôxicas, ou, como a psiquiatria nos ensina, acima de tudo pelas alterações patológicas, quase da mesma forma que podem ser causadas pelas representações.

Pode-se considerar evidente por si mesmo que todas as perturbações do equilíbrio mental que denominamos de afetos agudos acompanham um aumento da excitação. (No caso dos afetos crônicos, tais como o pesar e a preocupação, isto é, a angústia prolongada, o quadro se complica por um estado de grave fadiga, que, embora mantenha a distribuição não uniforme da excitação, reduz sua intensidade.) Mas esse aumento da excitação não pode ser empregado na atividade psíquica. Todos os afetos intensos restringem a associação — o fluxo de representações. As pessoas ficam “insensatas” com a raiva ou com o pavor. Somente o grupo de representações que provocou o afeto persiste na consciência e o faz com extrema intensidade. Assim, a atividade associativa não consegue aplacar o excitamento.

Os afetos que são “ativos” ou “estênicos”, entretanto, de fato aplacam a excitação aumentada através da descarga motora. Os gritos e os saltos de alegria, o maior tônus muscular da cólera, as palavras raivosas e as ações retaliatórias — tudo isso permite que a excitação se escoe em movimentos. O sofrimento mental a descarrega na respiração difícil e em atividades secretoras: em soluços e lágrimas. É uma constatação cotidiana que tais reações reduzem e aliviam o excitamento. Como já tivemos ocasião de observar | ver em [1]|, a linguagem comum expressa isso em frases como “debulhar-se em lágrimas”, “desabar as mágoas”, etc. Aquilo que se está expelindo nada mais é do que o aumento da excitação cerebral.

Apenas algumas dessas reações, como os atos e as palavras raivosas, servem a uma finalidade no sentido de promoverem alguma modificação no estado real de coisas. O resto não serve a qualquer finalidade, ou melhor, seu único objetivo é aplainar o aumento da excitação e estabelecer o equilíbrio psíquico. Na medida em que o conseguem, servem à “tendência a manter constante a excitação |intra-|cerebral” | ver em [1]|.

Os afetos “astênicos” do medo e da angústia não promovem essa descarga reativa. O pavor paralisa por completo a capacidade de movimento, bem como a de associação, e o mesmo faz a angústia, quando a única reação útil — de fugir — é excluída pela causa do afeto de angústia ou pelas circunstâncias. A excitação do pavor só desaparece através de um nivelamento gradual.

A raiva dispõe de reações adequadas que correspondem a sua causa. Quando estas não são viáveis ou estão inibidas, são trocadas por substitutos. Até as palavras raivosas são substitutos dessa espécie. Mas outros atos, mesmo inteiramente destituídos de sentido, podem aparecer como substitutos. Quando Bismarck teve de reprimir seus sentimentos enraivecidos na presença do Rei, desabafou depois espatifando um valioso vaso no chão. Essa substituição deliberada de uma ação motora por outra corresponde exatamente à substituição dos reflexos naturais da dor por outras contrações musculares. Quando se extrai um dente; o reflexo pré-formado é o de empurrar o dentista e soltar um grito; se, em vez disso, contraímos os músculos dos braços e fazemos pressão nos braços da cadeira, estamos deslocando o quantum de excitação que foi gerado pela dor de um grupo de músculos para outro. |ver em [1].| No caso de uma violenta dor de dente espontânea, quando não há nenhum reflexo pré-formado afora o gemido, a excitação se escoa num despropositado andar de um lado para outro. Da mesma forma, transpomos a excitação da raiva da reação adequada para outra e nos sentimos aliviados, contanto que ela seja consumida por qualquer inervação motora vigorosa.

Quando, porém, o afeto não consegue encontrar nenhuma descarga de excitação de qualquer natureza dentro desses moldes, a situação é a mesma, tanto com a raiva quanto com o pavor e a angústia. A excitação intracerebral é poderosamente aumentada, mas não é empregada nem em atividade associativa, nem motora. Nas pessoas normais a perturbação é eliminada de modo gradativo. Mas em algumas, aparecem reações anormais. Forma-se uma “expressão anormal dos afetos”, como afirma Oppenheim |1890|.

 

(3) CONVERSÃO HISTÉRICA

 

Dificilmente hão de suspeitar que identifico a excitação nervosa com a eletricidade por eu recorrer mais uma vez à comparação com um sistema elétrico. Quando a tensão em tal sistema torna-se excessivamente alta, há um risco de que ocorra uma interrupção nos pontos fracos do isolamento. Os fenômenos elétricos aparecem então em pontos anormais, ou, quando dois fios estão muito próximos um do outro, dá-se um curto-circuito. Visto que uma alteração permanente produz-se nesses pontos, a perturbação assim provocada pode repetir-se constantemente se a tensão for aumentada de modo suficiente. Passou a haver uma “facilitação” anormal.

É perfeitamente possível afirmar que as condições que se aplicam ao sistema nervoso são, até certo ponto, semelhantes. Ele forma em toda a sua extensão um todo interligado, mas em muitos de seus pontos interpõem-se grandes resistências, embora não insuperáveis, que impedem a distribuição geral uniforme da excitação. Assim, nas pessoas normais em estado de vigília, a excitação no órgão de representação não passa para os órgãos da percepção: essas pessoas não têm alucinações. |ver em [1].| A bem da segurança e da eficiência do organismo, os plexos nervosos dos complexos de órgãos que são de importância vital — os aparelhos circulatório e digestivo — são separados por fortes resistências dos órgãos de representação. Sua independência está assegurada e eles não são diretamente afetados pelas representações. Mas as resistências que impedem a passagem da excitação intracerebral para os aparelhos circulatório e digestivo variam de intensidade de um indivíduo para outro. Todos os graus de excitabilidade afetiva situam-se, por um lado, entre o ideal (que raramente se encontra hoje em dia) de um homem absolutamente livre de problemas dos “nervos” — um homem cuja ação cardíaca permanece constante em todas as situações e só é afetada pelo trabalho específico que tem de realizar, um homem que tem bom apetite e boa digestão, qualquer que seja o perigo em que se ache — entre um homem desse tipo e, por outro lado, um homem “nervoso”, que tem palpitações e diarréia à menor provocação.

Como quer que seja, há resistências nas pessoas normais contra a passagem da excitação cerebral para os órgãos vegetativos. Essas resistências correspondem ao isolamento nas linhas condutoras elétricas. Nos pontos onde estão anormalmente fracas, elas são invadidas quando a tensão da excitação cerebral se eleva, e esta — a excitação afetiva — passa para os órgãos periféricos. Segue-se a isso uma “expressão do afeto anormal”.

Dos dois fatores que mencionamos como responsáveis por esse resultado, um já foi examinado por nós com pormenores. Esse primeiro fator é um alto grau de excitação intracerebral que deixou de ser aplacada, fosse por atividades ideacionais, fosse pela descarga motora, ou que é grande demais para ser enfrentado dessa maneira.

 

O segundo fator é uma fraqueza anormal das resistências em algumas vias específicas de condução. Isso pode ser determinado pela constituição inicial do indivíduo (predisposição inata), ou pode ser determinado por estados de excitação de longa duração, que afrouxam, por assim dizer, toda a estrutura do sistema nervoso do indivíduo e reduzem toda a sua resistência (predisposição puberal); ou pode ser determinado por influências debilitantes, como doença e subnutrição (predisposição devida aos estados de esgotamento). A resistência de certas vias específicas de condução pode estar reduzida por uma doença prévia do órgão em causa, que facilitou as vias que ascendem e descendem do cérebro. Um coração doente é mais suscetível à influência de um afeto do que um coração sadio. “Tenho uma espécie de caixa de ressonância no abdome”, disse-me uma mulher que sofria de parametrite; “quando acontece alguma coisa, ela recomeça minha antiga dor”. (Disposição através de doença local.)

As ações motoras em que a excitação dos afetos costuma ser descarregada são ordenadas e coordenadas, muito embora com freqüência sejam inúteis. Mas uma excitação excessivamente forte pode contornar ou irromper através dos centros coordenadores e se escoar em movimentos primitivos. Nos bebês, além do ato respiratório de gritar, os afetos só produzem e encontram expressão em contrações musculares descoordenadas desse tipo primitivo — em arquear o corpo e espernear. À medida que o desenvolvimento se processa, a musculatura passa cada vez mais para o controle da coordenação e da vontade. Mas o opistótono, que representa o máximo de esforço motor da musculatura somática total, bem como os movimentos clônicos do espernear e do debater-se, persistem pela vida afora como a forma de reação à excitação máxima do cérebro — à excitação puramente física dos ataques epilépticos e à descarga dos afetos máximos sob a forma de convulsões mais ou menos epileptóides (por exemplo, a parte puramente motora dos ataques histéricos).

 

É verdade que essas reações afetivas anormais são características da histeria. Mas também ocorrem independentemente dessa doença. O que indicam é um grau mais ou menos elevado de distúrbio nervoso, e não de histeria. Tais fenômenos não podem ser descritos como histéricos, quando aparecem como conseqüências de um afeto que, embora de grande intensidade, possui uma base objetiva, mas só quando surgem com aparente espontaneidade, como manifestações de uma moléstia. Estas últimas, como demonstraram muitas observações, inclusive as nossas, baseiam-se em lembranças que revivem o afeto original — ou melhor, que o reviveriam se essas reações de fato não ocorressem em seu lugar.

Pode-se admitir como certo que um fluxo de representações e lembranças corre pela consciência de qualquer pessoa razoavelmente inteligente enquanto sua mente está em repouso. Essas representações são tão pouco nítidas que não deixam nenhum traço na memória e é impossível dizer, posteriormente, como foi que as associações ocorreram. Quando, porém, surge uma representação que originalmente esteve vinculada a um afeto intenso, esse afeto é revivido com maior ou menor intensidade. A representação assim “colorida” pelo afeto emerge na consciência clara e nitidamente. A intensidade de afeto que pode ser liberada por uma lembrança é muito variável, conforme o grau em que tenha ficado exposta ao “desgaste” por diferentes influências e sobretudo o grau em que o afeto original tenha sido “ab-reagido”. Ressaltamos em nossa “Comunicação Preliminar” | ver em [1]| em que extensão variável o afeto de raiva diante de um insulto, por exemplo, é evocado por uma lembrança, conforme o insulto tenha sido revidado ou suportado em silêncio. Se o reflexo psíquico tiver sido plenamente realizado na ocasião original, a lembrança dele liberará uma quantidade muito menor de excitação. Em caso negativo, a lembrança ficará perpetuamente forçando nos lábios do indivíduo as palavras abusivas que foram originalmente reprimidas e que teriam sido o reflexo psíquico do estímulo original.

Nos casos em que o afeto original foi descarregado não através de um reflexo normal, mas por um reflexo “anormal”, este último é também liberado pela lembrança. A excitação decorrente da idéia afetiva é “convertida” (Freud) num fenômeno somático.

Caso esse reflexo anormal se torne inteiramente facilitado pela repetição freqüente, poderá, ao que parece, exaurir a força operativa das representações liberadoras de forma tão total que o próprio afeto não surgirá, ou surgirá com intensidade mínima. Em tal caso, a “conversão histérica” é completa. Além disso, a representação, que agora não produz mais quaisquer conseqüências psíquicas, pode ser desprezada pelo indivíduo, ou pode ser prontamente esquecida quando emergir, como qualquer outra representação desacompanhada de afeto.

Talvez seja mais fácil aceitar a possibilidade de uma excitação cerebral que deveria ter dado origem a uma representação ser substituída por uma excitação de alguma via periférica, se recordarmos o curso inverso dos acontecimentos que se verifica quando um reflexo pré-formado deixa de ocorrer. Escolherei um exemplo extremamente trivial — o reflexo do espirro. Quando um estímulo da membrana mucosa do nariz deixa, por qualquer motivo, de liberar esse reflexo pré-formado, surge uma sensação de excitação e de tensão, como todos sabemos. A excitação, que ficou impossibilitada de se escoar pelas vias motoras, agora, inibindo todas as outras atividades, dissemina-se pelo cérebro. Esse exemplo cotidiano nos fornece o modelo do que acontece quando um reflexo psíquico, mesmo o mais complicado, deixa de ocorrer. O excitamento que examinamos anteriormente | ver em [1]| como característica da pulsão de vingança é, em essência, o mesmo. E podemos seguir esse processo mesmo até as regiões mais elevadas da realização humana. Goethe não sentia haver elaborado uma experiência até tê-la descarregado numa atividade artística criadora. Esse era, no seu caso, o reflexo pré-formado concernente aos afetos, e enquanto não fosse levado a cabo, persistia no poeta o aumento aflitivo de excitação.

A excitação intracerebral e o processo excitatório nas vias periféricas são de magnitudes recíprocas: a primeira aumenta se e enquanto nenhum reflexo é liberado; diminui e desaparece depois de transformada em excitação nervosa periférica. Assim, parece compreensível que nenhum afeto observável seja gerado quando a representação que deveria tê-lo feito emergir libera imediatamente um reflexo anormal, no qual a excitação se escoa tão logo é gerada. A “conversão histérica” é então completa. A excitação intracerebral original pertinente ao afeto é transformada em processo excitatório nas vias periféricas. O que era originalmente uma representação afetiva deixa agora de provocar o afeto, suscitando apenas o reflexo anormal.

Acabamos de dar um passo além da “expressão anormal dos afetos”. Os fenômenos histéricos (reflexos anormais) não parecem ser ideogênicos mesmo para os pacientes inteligentes que são bons observadores, porque a representação que lhes deu origem não é mais colorida pelo afeto, nem destacada de outras representações e lembranças. Surgem como fenômenos puramente somáticos, aparentemente sem raízes psíquicas.

 

O que é que determina a descarga de afeto de tal forma que um específico reflexo anormal é produzido em vez de algum outro? Nossas observações respondem a essa pergunta, em muitos casos, revelando que novamente aqui a descarga segue o “princípio da menor resistência” e ocorre ao longo das vias cujas resistências já foram enfraquecidas por circunstâncias coincidentes. Isso abrange o caso que já mencionamos | ver em [1]| de um reflexo particular ser facilitado pela doença somática já existente. Se, por exemplo, alguém sofre com freqüência de dores cardíacas, estas também serão provocadas pelos afetos. Alternadamente, um reflexo pode ser facilitado pelo fato de a inervação muscular em causa ter sido deliberadamente pretendida no momento em que o afeto ocorreu originalmente.

Assim, Anna O. (em nosso primeiro caso clínico) | ver em [1]| tentou, em seu medo, estender o braço direito, que ficara dormente por causa da pressão contra o espadar da cadeira, a fim de afastar a cobra; e a partir dessa época a tetania no braço direito passou a ser provocada pela visão de qualquer objeto semelhante a cobras. Ou ainda | ver em [1]|, em sua emoção, ela forçou a vista para ler os ponteiros do relógio, e a partir de então um estrabismo convergente se transformou num dos reflexos daquele afeto. E assim por diante.

Isso se deve à ação da simultaneidade que de fato rege as nossas associações normais. Toda percepção sensorial traz de volta à consciência qualquer outra percepção sensorial que tenha originalmente ocorrido ao mesmo tempo. (Cf. o exemplo do livro-texto com a imagem visual de um carneiro e o som do seu balido, etc.) Se o afeto original se fez acompanhar de uma nítida impressão sensorial, esta última é evocada mais uma vez quando o afeto se repete; e já que é uma questão de descarga de uma excitação excessivamente grande, a impressão sensorial emerge não como uma lembrança, mas como uma alucinação. Quase todos os nossos casos clínicos proporcionam exemplos disso. É também o que aconteceu no caso de uma mulher que experimentou um afeto aflitivo numa época em que estava sofrendo de violenta dor de dente por causa de uma periostite, e que a partir daí passou a sofrer nevralgia infra-orbital sempre que o afeto se renovava ou sequer era relembrado | ver em [1]-[2]|.

O que temos aqui é a facilitação de reflexos anormais de acordo com as leis gerais da associação. Mas algumas vezes (embora, deva-se admitir, só em graus mais elevados de histeria) há verdadeiras seqüências de representações associadas entre o afeto e seu reflexo. Temos aí a determinação através do simbolismo. O que une o afeto ao seu reflexo é, muitas vezes, algum trocadilho ridículo ou associações pelo som, mas isso só acontece em estados semelhantes ao sonho, quando os poderes críticos se acham reduzidos, e está fora do grupo de fenômenos com que estamos lidando aqui.

Num grande número de casos o caminho seguido pela seqüência da determinação permanece ininteligível para nós, pois com freqüência temos uma compreensão muito incompleta do estado mental do paciente e um conhecimento imperfeito das representações que eram ativas por ocasião da origem do fenômeno histérico. Mas podemos presumir que o processo não é inteiramente dessemelhante do que podemos observar com clareza em casos mais favoráveis.

As experiências que liberaram o afeto original, cuja excitação foi então convertida num fenômeno somático, são por nós descritas como traumas psíquicos, e a manifestação patológica que surge desta forma, como sintomas histéricos de origem traumática. (A expressão “histeria traumática” já foi aplicada a fenômenos que, por serem conseqüência de danos físicos — traumas no sentido mais estrito do termo — fazem parte da classe das “neuroses traumáticas”.)

A gênese dos fenômenos que são determinados por traumas encontra analogia na conversão histérica da excitação psíquica, que se origina não de estímulos externos nem da inibição dos reflexos psíquicos normais, e sim da inibição do curso de associação. O exemplo e modelo mais simples disso é proporcionado pela excitação que surge quando não conseguimos recordar um nome ou não podemos solucionar um enigma, e assim por diante. Quando alguém nos diz o nome ou nos dá a resposta do enigma, a cadeia de associações termina e a excitação desaparece, exatamente como faz no final de uma cadeia de reflexos. A intensidade da excitação causada pelo bloqueio de uma linha de associações está na razão direta do interesse que temos nelas — isto é, do grau em que elas acionam nossa vontade. Visto, porém, que a procura de uma solução do problema, ou o que quer que seja, sempre envolve grande volume de trabalho, embora possa não ter nenhuma serventia, mesmo uma poderosa excitação encontra utilização e não pressiona a descarga, e conseqüentemente, jamais se torna patogênica.

Essa excitação, entretanto, se torna de fato patogênica quando o curso de associações é inibido graças às representações irreconciliáveis de igual importância — quando, por exemplo, novas representações entram em conflito com complexos representativos enraizados. Tais são os tormentos da dúvida religiosa a que muitas pessoas sucumbem e muitas outras sucumbiram no passado. Mesmo nesses casos, contudo, a excitação e o sofrimento psíquico acompanhante (a sensação de desprazer) só atingem um grau considerável quando entra em jogo algum interesse volitivo do sujeito — quando, por exemplo, alguém cheio de dúvidas se sente ameaçado em sua felicidade ou salvação. Tal fator está sempre presente, no entanto, quando o conflito se dá entre complexos firmemente enraizados de representações morais em que o indivíduo foi educado e a lembrança de ações ou simples pensamentos irreconciliáveis com essas representações; quando, em outras palavras, se sentem as dores da consciência. O interesse volitivo em gostar da própria personalidade e estar satisfeito com ela entra em ação nesse ponto e eleva ao mais alto grau a excitação atribuída à inibição das associações. É uma constatação cotidiana que um conflito entre representações irreconciliáveis possui um efeito patogênico. O que se acha em questão na maioria das vezes são representações e processos ligados à vida sexual: a masturbação num adolescente com susceptibilidades morais; ou, numa mulher casada de moral rigorosa, a conscientização de sentir-se atraída por um homem que não é o próprio marido. Com efeito, o primeiro aparecimento das sensações e representações sexuais, por si só, é muitas vezes suficiente para acarretar um intenso estado de excitação, por causa de seu conflito com a representação profundamente enraizada da pureza moral.

Um estado de excitação dessa natureza costuma ser seguido por conseqüências psíquicas, tais como a depressão patológica e os estados de angústia (Freud |1895b|). Às vezes, porém, algumas circunstâncias coincidentes acarretam um fenômeno somático anormal em que a excitação é descarregada. Assim, pode haver vômitos quando o sentimento de impureza produz uma sensação física de náusea; ou uma tussis nervosa, como em Anna O. (Caso Clínico nº 1 | ver em [1]|), quando a angústia moral provoca um espasmo da glote, e assim por diante.

Há uma reação normal apropriada à excitação provocada por representações muito nítidas e irreconciliáveis — a saber, comunicá-las pela fala. Um quadro divertidamente exagerado da ânsia de fazer isso é fornecido na história do barbeiro de Midas, que revelou em voz alta seu segredo aos caniços. Encontramos o mesmo anseio como um dos fatores básicos de uma grande instituição histórica — o confessionário católico romano. Dizer as coisas é um alívio; descarrega a tensão, mesmo quando a pessoa a quem elas são ditas não é um padre e mesmo quando não se procura qualquer absolvição. Quando se nega essa saída à excitação, ela às vezes se converte num fenômeno somático, tal como acontece com a excitação pertinente aos afetos traumáticos. Todo o grupo de fenômenos histéricos que assim se origina pode ser descrito, com Freud, como fenômenos histéricos de retenção.

O relato que fizemos até aqui do mecanismo pelo qual se originam os fenômenos histéricos está sujeito à crítica de ser esquemático em demasia e de simplificar os fatos. Para que uma pessoa saudável que não seja inicialmente neuropata possa desenvolver um sintoma histérico autêntico, com sua aparente independência da mente e com existência somática própria, deve haver sempre grande número de circunstâncias convergentes.

O caso seguinte servirá de exemplo da natureza complicada do processo. Um menino de doze anos de idade, que antes sofrera de pavor nocturnus e cujo pai era altamente neurótico, voltou certo dia da escola para casa sentindo-se mal. Queixava-se de dificuldade de engolir e de dor de cabeça. O médico da família presumiu que a causa fosse uma inflamação na garganta. Mas o estado não melhorou, mesmo após vários dias. O menino recusava os alimentos e vomitava quando estes lhe eram forçados. Movia-se de um lado para o outro apaticamente, sem energia ou prazer; queria ficar deitado o tempo todo e estava fisicamente muito abatido. Quando o examinei cinco semanas depois, ele me deu a impressão de ser uma criança acanhada e introvertida e me convenci de que seu estado tinha uma base psíquica. Ao ser inquirido detidamente, apresentou uma explicação trivial — uma reprimenda severa passada pelo pai — que claramente não fora a causa real de sua doença. Nada se pôde saber tampouco em sua escola. Prometi que extrairia a informação mais tarde, sob hipnose. Mas isso foi desnecessário. Reagindo a fortes apelos de sua mãe inteligente e enérgica, o menino debulhou-se em lágrimas e contou a seguinte história. Quando voltava da escola para casa, ele fora a um mictório e um homem lhe mostrara o pênis e pedira-lhe que ele o pusesse na boca. O garoto fugira apavorado e nada mais lhe tinha acontecido. Mas a partir daquele instante, adoeceu. Tão logo fez sua confissão, recuperou-se inteiramente. — Para produzir a anorexia, a dificuldade de engolir e os vômitos, vários fatores se fizeram necessários: a natureza neurótica inata do menino, seu intenso pavor, a irrupção da sexualidade em sua forma mais crua no seu temperamento infantil e, como fator especificamente determinante, a idéia de repulsa. A doença deveu sua persistência ao silêncio do menino, que impediu a excitação de encontrar sua saída normal.

Em todos os outros casos, como nesse, é preciso haver uma convergência de vários fatores para que um sintoma histérico possa ser gerado em qualquer um que até então tenha sido normal. Tais sintomas são invariavelmente “sobredeterminados”, para usar a expressão de Freud.

Pode-se presumir que uma sobre determinação dessa natureza também se ache presente quando o mesmo afeto é evocado por uma série de causas desencadeantes. O paciente e aqueles que o cercam atribuem o sintoma histérico apenas à última causa, embora essa causa, em geral, só tenha gerado algo que já fora quase realizado por outros traumas.

 

Uma moça de dezessete anos teve seu primeiro ataque histérico (seguido de vários outros) quando um gato pulou sobre seu ombro no escuro. O ataque parecia ser apenas o resultado do susto. Uma investigação mais detida revelou, contudo, que a moça, que era bonita e não muito vigiada, recentemente experimentara várias investidas mais ou menos brutais e ficara sexualmente excitada com elas. (Temos aqui o fator da predisposição.) Alguns dias antes, um jovem a atacara na mesma escada escura e ela fugira dele com dificuldade. Esse fora o verdadeiro trauma psíquico, que o gato nada mais fez do que tornar manifesto. Mas teme-se que em muitos outros casos dessa natureza o gato seja considerado a causa efficiens.

Para que a repetição de um afeto promova uma conversão dessa maneira, nem sempre é necessário que haja grande número de causas externas desencadeantes; a renovação do afeto na memória é também muitas vezes suficiente, se a lembrança for repetida com rapidez e freqüência, logo após o trauma e antes que seu afeto fique enfraquecido. Isso é o bastante caso o afeto tenha sido muito intenso. Tal é o caso da histeria traumática, no sentido mais estrito do termo. Durante os dias que se seguem a um acidente ferroviário, por exemplo, o sujeito volta a vivenciar suas experiências assustadoras, tanto dormindo como acordado, e sempre com o afeto renovado de pavor, até que afinal, depois desse período de “elaboração |élaboration| psíquica” (para usar a expressão de Charcot | ver em [1]| ou de “incubação”, ocorre a conversão num fenômeno somático (embora haja outro fator em causa, que teremos de examinar mais tarde).

Em geral, porém, uma representação afetiva é prontamente submetida a um “desgaste”, isto é, a todas as influências mencionadas em nossa “Comunicação Preliminar” (ver em. [1]), que a privam pouco a pouco de sua carga de afeto. Sua revivescência causa uma quantia sempre decrescente de excitação, e a lembrança perde assim a capacidade de contribuir para a produção de um fenômeno somático. A facilitação do reflexo anormal desaparece e o status quo ante é então restabelecido.

As influências do “desgaste”, entretanto, são todas efeitos da associação, do pensamento e de correções por referências a outras representações. Esse processo de correção torna-se impossível quando a representação afetiva retira-se do “contato associativo”. Quando isso acontece, a representação retém toda a sua carga afetiva. Visto que a cada renovação toda a soma de excitação do afeto original volta a ser liberada, a facilitação do reflexo anormal que se iniciou na época é finalmente estabelecida; ou então, se a facilitação já estava completa, ela é mantida e estabilizada. O fenômeno da conversão histérica assim se estabelece permanentemente.

Nossas observações mostram duas maneiras pelas quais as representações afetivas podem ser excluídas da associação.

A primeira é a “defesa”, a supressão deliberada de representações aflitivas que parecem ameaçar a felicidade ou a auto-estima do indivíduo. Em seu |primeiro| artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a) e em seus casos clínicos no presente volume, Freud examinou esse processo, que indubitavelmente possui altíssima significação patológica. Não podemos, é verdade, compreender como uma representação pode ser deliberadamente recalcada da consciência. Mas estamos perfeitamente familiarizados com o processo positivo correspondente, o de concentrar a atenção numa representação, e somos da mesma maneira incapazes de dizer como efetuamos isso. Assim, as representações de que a consciência se desvia, que não são objeto de pensamento, são também retiradas do processo de desgaste e retêm sua carga afetiva sem diminuição.

Verificamos ainda que existe outra espécie de representação que permanece isenta do desgaste pelo pensamento. Isso pode acontecer, não porque não se queira lembrar a representação, mas porque não se consegue lembrá-la: porque ela emergiu originalmente e foi dotada de afeto em estados com relação aos quais existe uma amnésia na consciência de vigília — isto é, na hipnose ou estados semelhantes a ela. Estes últimos parecem ser da mais alta importância para a teoria da histeria e, por conseguinte, merecem um exame um pouco mais complexo.

 

(4) ESTADOS HIPNÓIDES

 

Quando, em nossa “Comunicação Preliminar” | ver em [1]|, apresentamos a tese de que a base e condição sine qua non da histeria é a existência de estados hipnóides, estávamos desprezando o fato de que Moebius já dissera exatamente a mesma coisa em 1890. “A condição necessária para a atuação (patogênica) das idéias é, por um lado, uma predisposição inata — isto é, uma disposição histérica — e, por outro, um peculiar estado mental. Podemos apenas formar uma idéia imprecisa desse estado mental. Deve assemelhar-se a um estado de hipnose; deve corresponder a alguma espécie de vazio da consciência em que uma idéia emergente não depara com qualquer resistência por parte de outra — no qual, por assim dizer, o campo está livre para a primeira idéia que vier. Sabemos que esse tipo de estado pode ser acarretado não somente pelo hipnotismo, como também pelo choque emocional (susto, cólera, etc.) e por fatores que esgotam as forças (privação do sono, fome, etc.)” |Moebius, 1894, 17|.

O problema para cuja solução Moebius fazia aqui uma abordagem preliminar é o da geração de manifestações somáticas pelas idéias. Ele recorda nesse ponto a facilidade com que isso pode ocorrer sob hipnose e considera análoga à atuação dos afetos. Nosso conceito sobre a atuação dos afetos, um tanto diferente, foi plenamente explicado atrás | ver em [1] e segs.|. Não preciso, portanto, penetrar ainda mais na dificuldade existente na suposição de Moebius de que, na raiva, há um “vazio da consciência” (o que reconhecidamente existe no pavor e na angústia prolongada), ou na dificuldade mais geral de traçar uma analogia entre o estado de excitação num afeto e o estado quiescente na hipnose. Recorreremos mais adiante | ver em [1]|, contudo, a essas observações de Moebius, que em minha opinião contêm uma verdade importante.

A nosso ver, a importância desses estados que se assemelham à hipnose — “os estados hipnóides” — reside além disso e principalmente na amnésia que os acompanha e em seu poder de provocarem a divisão da mente, que logo examinaremos e que é de fundamental significação para a “grande histeria”. Ainda atribuímos essa importância aos estados hipnóides. Mas devo acrescentar uma ressalva substancial à nossa tese. A conversão — a produção ideogênica de fenômenos somáticos — também pode ocorrer independentemente dos estados hipnóides. Freud encontrou na amnésia deliberada de defesa uma segunda fonte, independente dos estados hipnóides, para a formação de complexos representativos que são excluídos do contato associativo. Mas ao aceitar essa ressalva, ainda sou de opinião que os estados hipnóides são a causa e a condição necessária de muitas, na realidade da maioria, das histerias grandes e complexas.

Antes de mais nada, é claro, devem-se enumerar entre os estados hipnóides as auto-hipnoses verdadeiras, que só se distinguem das hipnoses artificiais pelo fato de se originarem de modo espontâneo. Encontramo-las em grande número de histerias plenamente desenvolvidas, ocorrendo com variada freqüência e duração, e muitas vezes alternando-se rapidamente com estados de vigília normais (cf. Casos Clínicos 1 e 2). Em virtude da natureza quase onírica de seu conteúdo, muitas vezes merecem o nome de “delirium histericum”. O que acontece durante os estados auto-hipnóticos está sujeito à amnésia mais ou menos total na vida de vigília (ao passo que é completamente recordado na hipnose artificial). Os produtos psíquicos desses estados e as associações que se formaram neles são impedidos pela amnésia de qualquer correção durante o pensamento de vigília; e como na auto-hipnose a crítica e o controle provocados por outras idéias se reduzem, e em geral desaparecem quase por completo, os mais loucos delírios podem emergir dela intactos por longos períodos. Assim, quase só nesses estados é que surge uma “relação simbólica (um tanto irracional e complicada) entre a causa precipitante e o fenômeno patológico” | ver em [1]-[2]|, que, na verdade, muitas vezes se baseia nas mais absurdas semelhanças fonéticas e associações verbais. A ausência de crítica nos estados auto-hipnóticos explica por que deles surgem auto-sugestões com tanta freqüência — como, por exemplo, quando uma paralisia fica como seqüela após um ataque histérico. Mas — e isso talvez apenas se deva ao acaso — quase nunca deparamos, em nossas análises, com um exemplo de um fenômeno histérico que se tenha originado assim. Sempre a vimos acontecer, não menos na auto-hipnose do que fora dela, como resultado do mesmo processo — a saber, a conversão de uma excitação afetiva.

Seja como for, essa “conversão histérica” verifica-se mais facilmente na auto-hipnose do que no estado de vigília, do mesmo modo que as representações sugeridas se realizam fisicamente, como alucinações e movimentos, com muito mais facilidade na hipnose artificial. Não obstante, o processo de conversão da excitação é em essência idêntico ao descrito acima. Uma vez que tenha ocorrido, o fenômeno somático se repete se o afeto e a auto-hipnose ocorrerem simultaneamente. E nesse caso, é como se o estado hipnótico fosse evocado pelo próprio afeto. Por conseguinte, desde que haja uma alternância nítida entre a hipnose e a vida de vigília plena, o sintoma histérico permanece restrito ao estado hipnótico e é nele fortalecido pela repetição; além disso, a representação que lhe deu lugar fica isenta de correção pelos pensamentos de vigília e pela sua crítica, precisamente porque nunca emerge na vida lúcida de vigília.

Assim, com Anna O. (Caso Clínico 1), a contratura do braço direito, que se associava em sua auto-hipnose com o afeto de angústia e com a representação da cobra, permaneceu durante quatro meses restrita aos momentos durante os quais ela se encontrava num estado hipnótico (ou, se considerarmos esse termo inapropriado para as absences de duração muito curta, um estado hipnóide), embora se repetisse com freqüência. A mesma coisa aconteceu com outras conversões que se verificaram em seu estado hipnóide; e dessa forma, o grande complexo de fenômenos histéricos organizou-se num estado de completa latência e veio a revelar-se quando seu estado hipnóide se tornou permanente. | ver em [1] |

Os fenômenos assim surgidos só emergem na consciência lúcida quando a divisão da mente, que examinarei depois, já foi concluída, e quando a alternância entre os estados de vigília e hipnose foi substituída por uma coexistência entre os complexos representativos normais e os hipnóides.

Será que existem estados hipnóides dessa natureza antes de o paciente adoecer? Como aparecem eles? Muito pouco posso dizer a respeito disso, pois afora o caso de Anna O., não dispomos de qualquer observação que possa lançar luz sobre esse ponto. Parece certo que, no caso dela, a auto-hipnose teve seu terreno preparado por devaneios habituais e foi plenamente estabelecida por um afeto de angústia prolongado, o qual, por si só, teria sido a base de um estado hipnóide. Não nos parece improvável que este processo seja válido de um modo bastante geral.

Uma grande variedade de estados conduz à “ausência da mente”, mas apenas alguns deles predispõem à auto-hipnose ou logo passam para ela. Sem dúvida, um investigador profundamente absorto num problema fica anestesiado até certo ponto, não formando qualquer percepção consciente de grandes grupos de suas sensações; e o mesmo se aplica a qualquer um que esteja usando ativamente sua imaginação criadora (cf. “o teatro particular” de Anna O. | ver em [1]|). Mas em tais estados, um intenso trabalho mental é executado e a excitação liberada pelo sistema nervoso é consumida nesse trabalho. Nos estados de distração e devaneio, por outro lado, a excitação intracerebral cai abaixo de seu nível lúcido de vigília. Esses estados bordejam a sonolência e se convertem em sono. Se, durante tal estado de absorção e enquanto o fluxo de representações é inibido, um grupo de representações de tonalidade afetiva estiver em ação, criará um alto nível de excitação intracerebral que não será consumida pelo trabalho mental e ficará à disposição do funcionamento anormal, como a conversão.

Assim, nem a “ausência da mente” durante o trabalho intenso, nem os estados crepusculares destituídos de emoção são patogênicos; por outro lado, os devaneios carregados de emoção e os estados de fadiga decorrentes de afetos prolongados são patogênicos. As ruminações de um homem cheio de preocupações, a angústia de uma pessoa que esteja velando à cabeceira de um doente que lhe é caro e os devaneios dos amantes são estados desta segunda natureza. A concentração no grupo afetivo de representações começa por produzir uma “ausência da mente”. O fluxo de representações torna-se gradualmente mais lento e, por fim, quase pára; mas a representação afetiva e seu afeto permanecem ativas e, por conseguinte, também a grande quantidade de excitação que não está sendo consumida funcionalmente. A semelhança entre essa situação e os determinantes da hipnose parece inconfundível. O indivíduo que vai ser hipnotizado não precisa realmente adormecer, isto é, sua excitação intracerebral não precisa mergulhar ao nível do sono; mas seu fluxo de representações deve ser inibido. Quando isso acontece, toda a massa de excitação fica à disposição da representação sugerida.

É dessa maneira que a auto-hipnose patogênica parece surgir em algumas pessoas — através da introdução de afeto num devaneio habitual. Essa talvez seja uma das razões por que, na anamnese da histeria, deparamos tão freqüentemente com os dois grandes fatores patogênicos de estar apaixonado e cuidar de doentes. No primeiro, os pensamentos saudosos do indivíduo sobre a pessoa amada ausente criam nele um estado de espírito “arrebatado”, fazem com que seu ambiente real se esmaeça e então levam seu pensamento a um estado de paralisação carregado de afeto; já no cuidar de doentes, a quietude pela qual o indivíduo se vê rodeado, sua concentração num objeto, sua atenção fixada na respiração do paciente — tudo isso garante precisamente as condições exigidas por muitas técnicas hipnóticas e enche o estado crepuscular assim produzido com o afeto de angústia. É possível que esses estados difiram apenas quantitativamente das auto-hipnoses verdadeiras e que se transformem nelas.

Uma vez que isso tenha acontecido, o estado semelhante à hipnose se repete muitas vezes ao surgirem as mesmas circunstâncias, e o indivíduo, em vez dos dois estados normais da mente, possui três: o estado de vigília, o de sono e o hipnóide. Verificamos que a mesma coisa acontece quando a hipnose artificial profunda é com freqüência provocada.

Não sei dizer se os estados hipnóticos espontâneos podem também ser gerados sem que haja a intervenção de um afeto dessa maneira, como resultado de uma predisposição inata, mas considero-o muito provável. Quando vemos a diferença de suscetibilidade à hipnose artificial tanto entre pessoas sadias como entre doentes, e vemos quão facilmente é provocada em algumas delas, parece razoável supor que em tais pessoas ela também possa aparecer de modo espontâneo. E talvez seja necessária uma predisposição para isso para que um devaneio possa transformar-se numa auto-hipnose. Estou, portanto, longe de atribuir a todos os pacientes histéricos o mecanismo gerador que nos foi ensinado por Anna O.

Refiro-me antes a estados hipnóides do que à hipnose em si porque é muito difícil estabelecer uma demarcação clara desses estados, que desempenham um papel tão importante na gênese da histeria. Não sabemos se os devaneios, descritos acima como estágios preliminares da auto-hipnose, não podem eles próprios ser capazes de produzir o mesmo efeito patológico que a auto-hipnose, e se os mesmos também não podem aplicar-se a um afeto prolongado de angústia. Por certo que isso se aplica ao medo. Visto que o medo inibe o fluxo de representações ao mesmo tempo em que uma representação afetiva (de perigo) está muito ativa, ele oferece um paralelo completo a um devaneio carregado de afeto; e uma vez que a lembrança da representação afetiva que sempre se renova, continua a estabelecer esse estado mental, passa a existir um “medo hipnóide” em que a conversão é promovida ou estabilizada. Temos aí o estágio de incubação da “histeria traumática” no sentido estrito da expressão.

Uma vez que há possibilidade de agrupar com a auto-hipnose estados mentais tão diferentes, embora compatíveis entre si nos aspectos mais importantes, parece desejável adotar a expressão “hipnóide”, que dá ênfase a essa semelhança interna. Ela resume o conceito, apresentado por Moebius no trecho citado anteriormente | ver em [1]-[2]|. Acima de tudo, porém, essa expressão aponta para a própria auto-hipnose, cuja importância na gênese dos fenômenos histéricos repousa no fato de que ela torna a conversão mais fácil e protege (pela amnésia) as representações convertidas de se desgastarem — proteção esta que acaba por levar a um aumento da divisão psíquica.

 

Quando um sintoma somático causado por uma representação é repetidamente desencadeado por ela, poderíamos esperar que os pacientes inteligentes e capazes de auto-observação ficassem conscientes da vinculação; eles saberiam por experiência que a manifestação somática aparecia ao mesmo tempo que a lembrança de um fato específico. O nexo causal subjacente, na verdade, é desconhecido deles; mas todos nós sempre sabemos qual é a representação que nos faz chorar, rir ou enrubescer, ainda que nãotenhamos a mais leve compreensão do mecanismo nervoso desses fenômenos ideogênicos. Algumas vezes os pacientes realmente observam a conexão e estão cônscios dela. Por exemplo, uma mulher pode dizer que seu ataque histérico branco (tremores e palpitação, talvez) provém de alguma grande perturbação emocional e se repete quando, e somente quando, algum fato faz com que ela se lembre disso. Mas este não é o caso com muitos ou, na verdade, com a maioria dos sintomas histéricos. Mesmo os pacientes inteligentes não estão cônscios de que seus sintomas surgem como resultado de uma representação e os consideram manifestações físicas independentes. Se fosse de outra forma, a teoria psíquica da histeria já teria alcançado uma idade respeitável.

Seria plausível acreditar que, embora os sintomas em questão fossem originalmente ideogênicos, a repetição deles os tornou, para usar o termo de Romberg |1840, 192|, “gravados” no corpo, e agora não mais se baseariam num processo psíquico, e sim em modificações no sistema nervoso ocorridas nesse meio tempo: ter-se-iam tornado sintomas independentes e genuinamente somáticos.

Esse conceito não é, em si mesmo, nem insustentável nem improvável. Mas creio que a nova luz que nossas observações lançaram sobre a teoria da histeria reside precisamente em ter ela demonstrado que essa visão é insuficiente para sustentar os fatos, pelo menos em muitos casos. Vimos que sintomas histéricos dos mais variados tipos, que datavam de muitos anos, “desapareciam imediata e permanentemente quando conseguíamos evocar com clareza a lembrança do fato que os havia provocado e despertar seu afeto concomitante, e quando a paciente havia descrito tal evento com os maiores detalhes possíveis e traduzira o afeto em palavras” | ver em [1]|. Os casos clínicos relatados nessas páginas fornecem algumas provas em apoio de tais asser-ções. “Podemos inverter a máxima ‘cessante causa cessat effectus‘ |’cessando a causa cessa o efeito’| e concluir dessas observações que o processo determinante” (isto é, a recordação dele) “continua a atuar durante anos — não indiretamente, através de uma cadeia de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora — do mesmo modo que um sofrimento psíquico que é recordado na consciência de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito depois do acontecimento. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” |p. [1]|. Mas se esse for o caso — se a lembrança do trauma psíquico tiver que ser considerada tão atuante quanto um agente contemporâneo, como um corpo estranho muito depois da sua entrada forçada, e se, não obstante, o paciente não tiver nenhuma consciência de tais lembranças ou do surgimento delas — então deveremos admitir que as representações inconscientes existem e são atuantes.

Além disso, quando chegamos a analisar os fenômenos histéricos, não encontramos apenas essas representações inconscientes em isolamento. Devemos reconhecer o fato de que na realidade, como foi demonstrado pelo valioso trabalho executado por pesquisadores franceses, grandes complexos de representações e processos psíquicos complicados e de importantes conseqüências permanecem inteiramente inconscientes num grande número de pacientes, e coexistem com a vida mental consciente: devemos reconhecer que há algo que se pode chamar de divisão da atividade psíquica, e que isso é de valor fundamental para nossa compreensão das histerias complicadas.

Talvez me seja permitido explorar bem mais amplamente essa região difícil e obscura. A necessidade de estabelecer o significado da terminologia aqui empregada talvez justifique, até certo ponto, a discussão teórica que se segue.

 

 

(5) REPRESENTAÇÕES INCONSCIENTES E REPRESENTAÇÕES INADMISSÍVEIS À CONSCIÊNCIA — DIVISÃO DA MENTE

 

Chamamos representações conscientes àquelas de que temos conhecimento. Existe nos seres humanos o fato estranho da consciência de si mesmo. Somos capazes de encarar e observar, como se fossem objetos, representações que surgem em nós e se sucedem umas às outras. Isso nem sempre acontece, uma vez que são raras as oportunidades de auto-observação. Mas a capacidade para isso está presente em cada um, pois todos podem dizer: “pensei nisto ou naquilo”. Descrevemos como conscientes as representações que observamos como ativas em nós, ou que assim observaríamos se prestássemos atenção a elas. Em qualquer momento específico do tempo há pouquíssimas delas; e se além dessas houver também outras representações presentes, teremos de chamá-las de representações inconscientes.

Não mais parece necessário argumentar em favor da existência de representações correntes que são inconscientes ou subconscientes. Elas se acham entre os fatos mais comuns na vida cotidiana. Caso me esqueça de fazer uma de minhas visitas médicas, terei sentimentos de viva inquietação. Sei por experiência o que significa essa sensação de que me esqueci de algo.Vasculho minhas lembranças em vão; não consigo descobrir a causa até que, subitamente, talvez algumas horas depois, ela entra em minha consciência. Mas estive inquieto o tempo todo. Por conseguinte, a representação da visita esteve todo o tempo atuante, isto é, presente, mas não em minha consciência. Ou então um homem atarefado se aborrece com alguma coisa em certa manhã. Fica inteiramente absorto em seu trabalho no escritório; enquanto o executa, seus pensamentos conscientes estão inteiramente ocupados e ele não pensa em seu aborrecimento. Mas suas decisões são influenciadas por ele e é bem possível que o sujeito diga “não” onde de outra forma diria “sim”. Portanto, apesar de tudo, essa lembrança é atuante, ou seja, está presente. Grande parte do que descrevemos como “estado de ânimo” provém de fontes dessa natureza, de representações que existem e estão atuantes abaixo do limiar da consciência. De fato, toda a conduta da nossa vida é constantemente influenciada por representações subconscientes. Podemos ver na vida cotidiana como, quando há degenerescência mental, como por exemplo nos estágios iniciais da paralisia geral, as inibições que normalmente restringem certas ações se tornam mais fracas e desaparecem. Mas o paciente que agora faz piadas indecentes na presença de mulheres não era, em seus dias de saúde, impedido de fazê-lo por lembranças e reflexões consciente; evitava-o “instintiva” e “automaticamente” — isto é, era refreado por representações que eram evocadas pelo impulso de comportar-se dessa forma, mas que permaneciam abaixo do limiar da consciência, embora, não obstante, inibissem o impulso. — Toda a atividade intuitiva é dirigida por representações que em grande medida são inconscientes, pois apenas as representações mais claras e mais intensas são percebidas pela consciência de si mesmo, enquanto a grande massa de representações correntes, porém mais fracas, permanece inconsciente.

As objeções que são levantadas contra a existência e a atuação das “representações inconscientes” parecem, na maior parte, ser um jogo de palavras. Sem dúvida, “representação” é uma palavra que pertence à terminologia do pensamento consciente, e “representação inconsciente” é portanto uma expressão autocontraditória. Mas o processo físico subjacente a uma representação é o mesmo no conteúdo e na forma (embora não em quantidade), quer a representação se eleve acima do limiar da consciência, quer permaneça abaixo dele. Bastaria construir uma expressão como “substrato representativo” para evitar a contradição e rebater a objeção.

Assim, não parece haver nenhuma dificuldade teórica em reconhecer também as representações inconscientes como causas dos fenômenos patológicos. Mas se entrarmos no assunto mais detidamente, encontraremos outras dificuldades. Em geral, quando a intensidade de uma representação inconsciente aumenta, ela penetra na consciência ipso facto. Só quando sua intensidade é leve é que ela permanece inconsciente. O que parece difícil de compreender é como uma representação pode ser suficientemente intensa para provocar um ato motor ativo, por exemplo, e ao mesmo tempo não ser intensa o bastante para tornar-se consciente.

Já mencionei |ver em. [1] | um conceito que talvez não deva ser descartado de imediato. De acordo com ele, a clareza de nossas representações, e conseqüentemente sua capacidade de serem observadas por nossa autoconsciência — isto é, de serem conscientes — é determinada, entre outras coisas, pelas sensações de prazer ou desprazer que desperta, por sua carga de afeto. Quando uma representação produz imediatamente nítidas conseqüências somáticas, isso implica que a excitação engendrada por ela escoou-se pelas vias implicadas nessas conseqüências, em vez de difundir-se no cérebro, e precisamente porque essa representação tem conseqüências físicas, porque suas somas de estímulos psíquicos são “convertidas” em estímulos somáticos, ela perde a clareza que de outra forma a teria destacado na corrente de representações. Em vez disso, perde-se entre as demais.

Suponhamos, por exemplo, que alguém tenha experimentado um afeto violento durante uma refeição e não o tenha “ab-reagido”. Ao tentar comer, mais tarde, ele é dominado por engasgos e vômitos e estes lhe parecem sintomas puramente somáticos. Seus vômitos histéricos continuam por tempo considerável. Desaparecem depois que o afeto é revivido, descrito e tornado alvo de reação por parte do paciente sob hipnose. Não há dúvida de que cada tentativa de comer evocava a lembrança em causa. Essa lembrança deu origem aos vômitos, mas não surgiu claramente na consciência, pois estava então destituída do afeto, enquanto os vômitos absorviam a atenção inteiramente.

É concebível que a razão que acaba de ser dada explique por que algumas idéias que liberam fenômenos histéricos não sejam reconhecidas como suas causas. Mas essa razão — o fato de as representações que perderam seu afeto, por terem sido convertidas, passarem despercebidas — não tem possibilidade de explicar por que, em outros casos, complexos representativos que são tudo, menos desprovidos de afeto, não entram na consciência. Numerosos exemplos disso são encontrados em nossos casos clínicos.

Em tais pacientes verificamos que a norma era a perturbação emocional — apreensão, irritabilidade raivosa, tristeza — preceder o aparecimento do sintoma somático ou segui-lo imediatamente, e aumentar até ser dissipada através de sua expressão em palavras, ou até que o afeto e a manifestação somática tornassem a desaparecer gradativamente. Quando ocorria o primeiro caso, a qualidade do afeto sempre se tornava perfeitamente compreensível, embora sua intensidade não pudesse deixar de parecer, aos olhos de uma pessoa normal (e do próprio paciente, depois de ter sido esclarecida), totalmente desproporcional. Essas eram, portanto, representações intensas o bastante não apenas para causar fortes fenômenos somáticos, como também para evocar o afeto apropriado e influenciar o curso da associação, dando destaque a representações afins — mas que, apesar de tudo isso, permaneciam elas próprias fora da consciência. Para trazê-las à consciência, a hipnose se fazia necessária (como nos Casos Clínicos 1 e 2), ou (como nos Casos 4 e 5) era preciso empreender uma busca trabalhosa com a ajuda esforçada do médico.

Representações tais como essas, que, embora presentes, são inconscientes, não por causa de seu grau relativamente pequeno de nitidez, mas apesar de sua grande intensidade, podem ser descritas como representações que são “inadmissíveis à consciência”.

A existência desse tipo de representações inadmissíveis à consciência é patológica. Nas pessoas normais, todas as representações que podem tornar-se presentes também penetram na consciência, desde que sejam suficientemente intensas. Em nossos pacientes encontramos um grande complexo de representações admissíveis à consciência coexistindo com um complexo menor de representações que não o são. Neles, portanto, o campo da atividade psíquica representativa não coincide com a consciência potencial. Esta última é mais restrita que a primeira. A atividade psíquica representativa dessas pessoas divide-se numa parte consciente e noutra inconsciente, e suas representações se dividem em algumas que são admissíveis e algumas que são inadmissíveis à consciência. Não podemos, portanto, falar numa divisão da consciência, embora possamos mencionar uma divisão da mente.

Inversamente, essas representações subconscientes não podem ser influenciadas ou corrigidas pelo pensamento consciente. Com muita freqüência elas se referem a experiências que, entrementes, perderam seu significado — o pavor de fatos que não ocorreram, o susto que se transformou em riso ou alegria após um salvamento. Tais desenvolvimentos subseqüentes privam a memória de todo o seu afeto no que tange à consciência, mas deixam inteiramente intacta a representação subconsciente que provoca fenômenos somáticos.

Talvez me seja permitido citar outro exemplo. Uma jovem mulher casada ficou, por algum tempo, muito preocupada com o futuro de sua irmã mais moça. Como resultado disso, sua menstruação, normalmente regular, passou a durar duas semanas. Ela ficou com o hipogástrico esquerdo sensível e por duas vezes se descobriu deitada no chão, rígida, voltando a si de um “desmaio”. Seguiu-se uma nevralgia ovariana do lado esquerdo, com sinais de peritonite aguda. A ausência de febre e uma contratura da perna esquerda (e das costas) indicaram que a moléstia era uma pseudo-peritonite; e quando alguns anos depois a paciente faleceu, e se procedeu à autópsia, tudo o que se encontrou foi uma “degeneração microcística” de ambos os ovários, sem quaisquer vestígios de uma antiga peritonite. Os sintomas agudos foram desaparecendo aos poucos e deixaram atrás de si uma nevralgia ovariana, uma contratura dos músculos das costas, de modo que seu tronco ficara rijo como uma tábua, e uma contratura da perna esquerda. Esta última foi eliminada sob hipnose por sugestão direta. A contratura das costas não foi afetada por isso. Entrementes, as dificuldades da irmã mais moça tinham sido inteiramente dissipadas e todos os seus temores baseados nelas desapareceram. Mas os fenômenos histéricos, que só poderiam ter-se originado delas, permaneceram inalterados. Era tentador presumir que aquilo com que nos defrontávamos eram modificações da inervação, que teriam assumido um status independente e não mais estariam vinculadas à representação que as havia causado. Mas depois de a paciente ter sido obrigada a narrar, sob hipnose, toda a história até a época em que adoecera de “peritonite” — o que fez muito a contragosto — ela logo sentou-se aprumada na cama, sem ajuda, e as contraturas das costas desapareceram para sempre. (A nevralgia ovariana, que sem dúvida era de origem muito antiga, permaneceu inalterada.) Assim, vemos que sua representação patogênica angustiada continuara a agir ativamente por meses a fio e fora totalmente inacessível a qualquer correção pelos acontecimentos reais.

 

Se formos obrigados a reconhecer a existência de complexos representativos que jamais penetram na consciência e não são influenciados pelo pensamento consciente, teremos admitido que, mesmo em casos tão simples de histeria como o que acabo de descrever, há uma divisão da mente em duas partes relativamente independentes. Não afirmo que tudo o que denominamos de histérico apresente tal divisão como sua base e condição necessária; mas de fato assevero que “a divisão da atividade psíquica que é tão marcante nos casos famosos sob a forma de ‘double conscience‘ encontra-se presente, em grau rudimentar, em toda grande histeria”, e que “a disposição e tendência a essa dissociação constitui o fenômeno básico dessa neurose”.

Mas antes de examinarmos este assunto, devo acrescentar um comentário quanto às representações inconscientes que produzem efeitos somáticos. Muitos fenômenos histéricos duram continuamente por muito tempo, como a contratura no caso antes descrito. Será que devemos e podemos supor que, por todo esse tempo, a representação causativa está perpetuamente em ação e se acha presente na atualidade? Penso que sim. É verdade que nas pessoas sadias vemos a atividade psíquica processar-se concomitantemente a uma rápida mudança de idéias. Mas encontramos portadores de melancolia grave imersos, por longos períodos, numa mesma representação aflitiva, que está perpetuamente ativa e presente. Na verdade, podemos muito bem acreditar que mesmo quando uma pessoa sadia tem uma grande preocupação em sua mente, esta se faz presente o tempo todo, uma vez que tal preocupação domina a expressão facial mesmo quando a consciência está repleta de outros pensamentos. Mas a parcela da atividade psíquica que é isolada nas pessoas histéricas, e na qual costumamos pensar como estando repleta de representações inconscientes, encerra, em geral, uma dose tão pequena destas e é tão inacessível ao intercâmbio com as impressões externas que é fácil acreditar que uma representação única possa estar permanentemente ativa na mente.

Se nos parece, como ocorre com Binet e Janet, que o que se acha no centro da histeria é uma expulsão de parte da atividade psíquica, temos o dever de ser tão claros quanto possível sobre este assunto. É fácil demais cairmos num hábito de pensamento que pressupunha que todo substantivo tem por detrás uma substância — um hábito que pouco a pouco passa a considerar a “consciência” como representando uma coisa real; e quando nos acostumamos a fazer uso das relações espaciais metaforicamente como no termo “subconsciente”, verificamos, à medida que o tempo passa, que na verdade formamos uma representação que perdeu sua natureza metafórica e que podemos com facilidade manipular como se fosse real. Nossa mitologia torna-se então completa.

Todo o nosso pensamento tende a se fazer acompanhar e ajudar por representações espaciais, e nos expressamos através de metáforas espaciais. Assim, quando falamos de representações que se encontram na região da consciência lúcida e de representações inconscientes que jamais penetram na plena luz da consciência de si mesmo, quase inevitavelmente formamos quadros de uma árvore com o tronco à luz do dia e as raízes na escuridão, ou de um edifício com seus escuros porões subterrâneos. Se, contudo, tivermos sempre em mente que todas essas relações espaciais são metafóricas, e não nos deixarmos iludir pela suposição de que essas relações se acham literalmente presentes no cérebro, poderemos, não obstante, falar numa consciência e num subconsciente. Mas só nessa condição.

Estaremos livres do perigo de nos deixarmos enganar por nossas próprias figuras de linguagem se sempre nos lembrarmos de que, afinal de contas, é no mesmo cérebro, e muito provavelmente no mesmo córtex cerebral, que as representações conscientes e inconscientes têm sua origem. Como isso é possível não sabemos dizer. Por outro lado, sabemos tão pouco sobre a atividade psíquica do córtex cerebral que mais uma complicação enigmática quase não chega a aumentar nossa ignorância sem limites. Devemos aceitar como um fato que, nos pacientes histéricos, parte de sua atividade psíquica é inacessível à percepção pela autoconsciência do indivíduo desperto e que a mente deles é assim dividida.

Um exemplo universalmente conhecido de uma divisão de atividade psíquica como essa pode ser visto nos ataques histéricos, em algumas de suas formas e fases. No início deles, o pensamento consciente muitas vezes se extingue, mas depois gradualmente desperta. Muitos pacientes inteligentes admitem que seu eu consciente estava bem lúcido durante o ataque e contemplava com curiosidade e surpresa todas as coisas loucas que eles faziam e diziam. Esses pacientes têm, além disso, a crença (errônea) de que, com um pouco de boa vontade, poderiam ter inibido o ataque, e mostram-se inclinados a culpar-se por isso. “Não precisavam ter-se comportado assim.” (Suas autocensuras por se sentirem culpados de simulação também se baseiam, em grande medida, nesse sentimento.) Mas quando sobrevém outro ataque, o eu consciente é tão incapaz de controlá-lo como nos anteriores. — Temos aqui uma situação na qual o pensamento e a representação do eu consciente e desperto encontram-se lado a lado com representações que normalmente residem nas trevas do inconsciente, mas que agora adquiriram controle sobre o aparelho muscular e sobre a fala e, na realidade, até mesmo sobre grande parte da própria atividade representativa: a divisão da mente é manifesta.

Talvez se possa observar que as descobertas de Binet e Janet merecem ser descritas como uma divisão não só da atividade psíquica, mas da consciência. Como sabemos, esses observadores conseguiram entrar em contato com o “subconsciente” de seus pacientes, com a parcela da atividade psíquica da qual o eu consciente e desperto nada sabe, e puderam, em alguns de seus casos, demonstrar a presença de todas as funções psíquicas, inclusive a autoconsciência, nessa parte da mente, uma vez que ela tem acesso à lembrança de fatos psíquicos anteriores. Essa metade da mente é, portanto, bastante completa e consciente em si mesma. Em nossos casos, a parte dividida da mente é “lançada nas trevas”, como os Titãs aprisionados na cratera do Etna, que podem abalar a terra, mais jamais emergirem à luz do dia. Nos casos de Janet, a divisão do domínio da mente foi total. Não obstante, existe ainda uma desigualdade de status. Mas também esta desaparece quando as duas metades da consciência se alternam, como fazem nos célebres casos de double conscience, e quando não diferem em sua capacidade funcional.

Mas voltemos às representações que indicamos em nossos pacientes como as causas de seus fenômenos histéricos. Está longe de ser possível para nós descrever todas elas com sendo “inconscientes” e “inadmissíveis à consciência”. Elas formam uma escala quase ininterrupta, passando por todas as gradações da indefinição e obscuridade, entre as representações perfeitamente conscientes que liberam um reflexo inusitado e aquelas que jamais entram na consciência na vida de vigília, a não ser na hipnose. Apesar disso, consideramos estabelecido que uma divisão da atividade psíquica ocorre nos graus mais graves da histeria e que só ela parece tornar possível uma teoria psíquica da doença.

Que, então, pode ser asseverado ou suspeitado com probabilidade sobre as causas e a origem desse fenômeno?

Janet, a quem a teoria da histeria tanto deve e com quem estamos em concordância na maioria dos aspectos, externou uma opinião sobre esse ponto que não podemos aceitar.

O conceito de Janet é o seguinte. Considera ele que a “divisão de uma personalidade” repousa numa insuficiência psicológica inata (“insuffisance psychologique”). Toda atividade mental normal pressupõe certa capacidade de “síntese”, a capacidade de unir várias representações num complexo. A combinação das várias percepções sensoriais num quadro do ambiente já é uma atividade sintética dessa natureza. Verifica-se que essa função mental está muito abaixo do normal nos pacientes histéricos. Quando a atenção de uma pessoa normal é dirigida tão plenamente quanto possível para algum ponto, por exemplo, para uma percepção por um único sentido, é verdade que ela perde temporariamente a capacidade de aperceber impressões provenientes dos outros sentidos — ou seja, de absorvê-las em seu pensamento consciente. Mas nos indivíduos histéricos isso acontece sem qualquer concentração especial da atenção. Logo que percebem qualquer coisa, eles se tornam inacessíveis a outras percepções sensoriais. De fato, sequer estão em condições de receber em conjunto diversas impressões decorrentes de um único sentido. Podem, por exemplo, aperceber-se apenas de sensações táteis em um lado do corpo; as que são oriundas do outro lado alcançam o centro e são utilizadas para a coordenação do movimento, mas não são apercebidas. Uma pessoa assim é hemianestésica. Nas pessoas normais, uma representação atrai para a consciência um grande número de outras, por associação; estas podem relacionar-se com a primeira, por exemplo, de maneira confirmatória ou inibitória, e apenas as representações mais nítidas têm tamanho poder que suas associações permanecem abaixo do limiar da consciência. Nas pessoas histéricas isso sempre acontece. Cada representação apodera-se de toda a sua limitada atividade mental, e isso explica sua afetividade excessiva. Essa característica da mente delas é descrita por Janet como a “restrição do campo da consciência”, nos pacientes histéricos, por analogia com a “restrição do campo da visão”. Em sua maior parte, as impressões sensoriais que não são apercebidas e as representações que são despertadas, mas não entram na consciência, cessam sem produzir outras conseqüências. Contudo, elas às vezes se acumulam e formam complexos — camadas mentais retiradas da consciência; formam uma subconsciência.

A histeria, que se baseia essencialmente nessa divisão da mente, é uma“maladie par faiblesse” |“doença causada pela fraqueza”|, e eis por que se desenvolve mais depressa quando uma mente fraca por natureza é submetida a influências que a enfraquecem ainda mais, ou se defronta com exigências fortes em relação às quais sua debilidade se destaca ainda mais.

As opiniões de Janet, resumidas dessa forma, dão de antemão sua resposta à importante questão sobre a predisposição para a histeria — sobre a natureza do typus hystericus (tomando a expressão no sentido pelo qual nos referimos a um typus phthisicus, pelo que compreendemos o tórax estreito e longo, o coração pequeno, etc.). Janet considera que a predisposição à histeria é uma forma particular de debilidade mental congênita. Em resposta, gostaríamos de formular em breves linhas nosso conceito, como se segue. Não é uma questão de a divisão da consciência ocorrer porque os pacientes têm a mente fraca; eles parecem ter a mente fraca porque sua atividade mental está dividida e apenas parte de sua capacidade se acha à disposição do seu pensamento consciente. Não podemos considerar a fraqueza mental como o typus hystericus, como a essência da predisposição à histeria.

Um exemplo esclarece o que se pretende dizer com a primeira dessas duas frases. Pudemos observar muitas vezes a seguinte evolução dos acontecimentos com uma de nossas pacientes (Sra. Caecilie M.). Quando ela se sentia relativamente bem, surgia um sintoma histérico — uma alucinação torturante e obsessiva, uma nevralgia ou coisa semelhante — que, durante algum tempo, aumentava de intensidade. Simultaneamente, a capacidade mental da paciente decrescia de forma contínua e, após alguns dias, qualquer observador não-iniciado seria levado a dizer que a mente dela era fraca. Em seguida, ela era aliviada da representação inconsciente (a lembrança de um trauma psíquico, muitas vezes pertencente ao passado remoto), quer pelo médico, sob hipnose, quer pelo fato de ela descrever de súbito o evento, num estado de agitação e com o acompanhamento de ativa emoção. Depois que isso acontecia, ela não só ficava tranqüila, alegre e livre do sintoma torturante, como era sempre espantoso observar a amplitude e a lucidez de seu intelecto, bem como a agudeza de sua compreensão e julgamento. O xadrez, que ela jogava muito bem, era uma de suas ocupações favoritas, e ela gostava de jogar duas partidas de cada vez, o que se poderia dificilmente considerar indicativo de falta de síntese mental. Era impossível fugir à impressão de que, durante uma evolução de acontecimentos como o que acabamos de descrever, a representação inconsciente atraía para si própria uma parcela sempre crescente da atividade psíquica da paciente e que, quanto mais isso acontecia, menor se tornava o papel desempenhado pelo pensamento consciente, até ficar reduzido à imbecilidade total; mas que, para empregarmos a expressão vienense notavelmente adequada, quando ela estava “beisammen” |literalmente, “reunida”, significando “eu seu juízo perfeito”|, possuía poderes mentais bem marcantes.

Como um estado comparável nas pessoas normais poderíamos mencionar não a concentração da atenção, mas a preocupação. Quando alguém está “preocupado” com alguma nítida representação, como um aborrecimento, sua capacidade mental fica similarmente reduzida.

Todo observador é basicamente influenciado por seus objetos de observação, e estamos inclinados a crer que os conceitos de Janet formaram-se principalmente na evolução de um estudo detalhado dos pacientes histéricos oligofrênicos que costumam ser encontrados nos hospitais e instituições, por não terem conseguido levar sua própria vida em virtude de sua doença e da fraqueza mental por ela provocada. Nossas próprias observações, levadas a efeito em pacientes histéricos instruídos, forçaram-nos a adotar uma visão essencialmente diferente de suas mentes. Em nossa opinião, “entre os histéricos podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da maior força de vontade, do melhor caráter e da mais elevada capacidade crítica” | ver em [1]|. Nenhuma parcela de uma dotação mental sólida e autêntica é excluída pela histeria, embora as realizações efetivas com freqüência se tornem impossíveis por causa da doença. Afinal, a padroeira da histeria, Santa Teresa, era uma mulher de gênio com grande capacidade prática.

Mas por outro lado, nenhum grau de sandice, incompetência e fraqueza de vontade constitui proteção contra a histeria. Mesmo que desprezemos o que é meramente um resultado da doença, devemos reconhecer o tipo de histérico oligofrênico como um tipo comum. Mesmo assim, entretanto, o que encontramos aí não é a estupidez embotada e fleumática, mas um grau excessivo de mobilidade mental que leva à ineficiência. Examinarei posteriormente a questão da predisposição inata. Aqui, proponho apenas demonstrar que a opinião de Janet de que a fraqueza mental está de algum modo na raiz da histeria e de que a divisão da mente é insustentável.

Em total oposição aos conceitos de Janet, creio que, num grande número de casos, o que está subjacente à dissociação é um excesso de eficiência, a coexistência habitual de duas seqüências de representações heterogêneas. Tem-se ressaltado com freqüência que, muitas vezes, não estamos apenas “mecanicamente” ativos enquanto nosso pensamento consciente se acha ocupado com cadeias de representações que nada têm em comum com nossa atividade, mas que somos também capazes do que é, sem dúvida, um funcionamento psíquico, enquanto nossos pensamentos estão “ocupados em outro lugar” como, por exemplo, quando lemos em voz alta corretamente e com entonação adequada, mas depois não temos a menor idéia do que estivemos lendo.

Há sem dúvida inúmeras atividades, desde as mecânicas, como tricotar ou tocar escalas, até algumas que exigem no mínimo um pequeno grau de funcionamento mental, que são todas realizadas por muitas pessoas com apenas parte da mente concentrada nelas. Isso se aplica especialmente às pessoas dotadas de disposição muito ativa, para as quais uma ocupação monótona, simples e desinteressante constitui uma tortura, e que na realidade começam deliberadamente a se divertir pensando em algo diferente (cf. o “teatro particular” de Anna O. | ver em [1]|. Outra situação semelhante, ocorre quando um grupo interessante de representações, oriundo por exemplo de livros ou peças, impõe-se à atenção do sujeito e se intromete em seus pensamentos. Essa intromissão é ainda mais vigorosa quando o grupo estranho de representações tem uma intensa tonalidade afetiva (por exemplo, a aflição ou a saudade da pessoa amada). Temos então o estado de preocupação a que aludi acima, o qual, não obstante, não impede muitas pessoas de executarem ações bastante complicadas. As situações sociais muitas vezes exigem uma duplicação dessa espécie, mesmo quando os pensamentos em jogo são de natureza dominadora — como, por exemplo, quando uma mulher que lutando com uma extrema preocupação ou uma excitação inflamada desempenha seus deveres sociais e as funções de afável anfitriã. Todos nós conseguimos apenas realizações desse tipo no decurso de nosso trabalho, e a auto-observação parece sempre demonstrar que o grupo de representações afetivas não é meramente despertado de quando em vez pela associação, mas está presente todo o tempo na mente e penetra na consciência, a menos que esta esteja tomada por alguma impressão externa ou ato de vontade.

Mesmo nas pessoas que têm o costume de não permitirem que sua mente seja perpassada por devaneios paralelos a sua atividade habitual, certas situações dão margem, durante consideráveis períodos de tempo, a essa existência simultânea de impressões e reações mutáveis da vida externa, por um lado, e de um grupo de representações coloridas de afeto, por outro. Post equitem sedet atra cura |“atrás do cavaleiro senta-se a negra preocupação”|. Entre essas situações, as mais marcantes são a de cuidar de alguém que nos é caro e a de estar apaixonado. A experiência mostra que o cuidar de doentese os afetos sexuais também desempenham o papel principal na maioria dos casos de pacientes histéricos analisados mais detidamente.

Suspeito que a duplicação do funcionamento psíquico, quer seja habitual, quer provocada por situações emocionais da vida, atue como uma predisposição apreciável para uma divisão patológica autêntica da mente. Essa duplicação passa para o segundo estado quando o conteúdo dos dois grupos de representações coexistentes deixa de ser da mesma espécie, quando um deles encerra representações que são inadmissíveis à consciência — ou seja, que foram repelidas ou surgiram de estados hipnóides. Quando isto ocorre, é impossível para as duas correntes temporariamente divididas voltarem a se reunir, como acontece com freqüência nas pessoas sadias, e uma região da atividade psíquica inconsciente é dividida de forma permanente. Essa cisão histérica da mente está para o “duplo eu” assim como o estado hipnóide está para um devaneio normal. Neste segundo contraste, o que determina a qualidade patológica é a amnésia, e no primeiro, o que a determina é a inadmissibilidade das representações à consciência.

Nosso primeiro caso clínico, o de Anna O., a que sou obrigado a estar sempre recorrendo, proporciona uma compreensão nítida do que acontece. Essa moça tinha o hábito, enquanto gozava de perfeita saúde, de permitir que seqüências de representações imaginativas lhe passassem pela mente durante suas ocupações corriqueiras. Enquanto se encontrava numa situação que favorecia a auto-hipnose, o afeto de angústia penetrou em seu devaneio e criou um estado hipnóide em relação ao qual ela teve amnésia. Isso se repetiu em diversas ocasiões e seu conteúdo representativo foi-se tornando cada vez mais rico, mas continuou a se alternar com estados de pensamento de vigília inteiramente normais. Após quatro meses, o estado hipnóide assumiu pleno controle da paciente. Os ataques isolados esbarraram uns nos outros e assim surgiu um état de mal, uma histeria aguda do tipo mais grave. Este durou vários meses sob diversas formas (o período de sonambulismo); foi então interrompido à força | ver em [1]| e, a partir daí, voltou a se alternar com o comportamento psíquico normal. Mesmo durante seu comportamento normal, porém, havia uma persistência de fenômenos somáticos e psíquicos (contraturas, hemianestesia e alterações da fala) a respeito dos quais, neste caso, sabemos com certeza que se baseavam em representações pertinentes ao estado hipnóide. Isso prova que, mesmo durante seu comportamento normal, o complexo representativo pertencente ao estado hipnóide, a “subconsciência”, estava atuante, e que a divisão em sua mente persistia.

Não disponho de um segundo exemplo a oferecer de um curso evolutivo semelhante. Penso, contudo, que o caso lança alguma luz também sobre o desenvolvimento das neuroses traumáticas. Durante os primeiros dias após o fato traumático, o estado de pavor hipnóide repete-se a cada vez que o fato é relembrado. Enquanto esse estado se repete com freqüência cada vez maior, sua intensidade vai diminuindo tanto que ele não mais se alterna com o pensamento de vigília, mas apenas coexiste com ele. Torna-se então contínuo, e os sintomas somáticos, que antes só se faziam presentes durante o ataque de pavor, adquirem existência permanente. Todavia, posso apenas suspeitar de que seja isso o que acontece, já que nunca analisei um caso dessa natureza.

As observações e as análises de Freud revelam que a divisão da mente também pode ser causada pela “defesa”, pelo desvio deliberado da consciência das representações aflitivas: mas só em algumas pessoas, às quais, portanto, devemos atribuir uma idiossincrasia mental. Nas pessoas normais, tais representações ou são suprimidas com êxito, e nesse caso desaparecem por completo, ou não o são, e nesse caso continuam a surgir na consciência. Não sei dizer qual é a natureza dessa idiossincrasia. Arrisco-me apenas a sugerir que o auxílio do estado hipnóide é necessário para que a defesa resulte não meramente na transformação de representações convertidas isoladas em representações inconscientes, mas numa autêntica divisão da mente. A auto-hipnose, por assim dizer, terá criado o espaço ou região da atividade psíquica inconsciente para o qual são dirigidas as representações rechaçadas. Seja como for, porém, a realidade da significância patogênica da “defesa” é um fato que devemos reconhecer.

Não penso, entretanto, que a gênese da divisão da mente sequer seja abarcada pelos processos incompletamente compreendidos que vimos discutindo. Assim, em suas fases iniciais, as histerias de grau severo costumam exibir por algum tempo uma síndrome que pode ser descrita como de histeria aguda. (Na anamnese dos casos masculinos de histeria em geral nos defrontamos com uma representação dessa forma de doença como “encefalite”; nos casos femininos, a nevralgia ovariana leva a um diagnóstico de “peritonite”.) Nesse estágio agudo da histeria, os traços psicóticos são muito distintos, tais como estados de excitação maníacos e coléricos, fenômenos histéricos que se transformam rapidamente, alucinações e assim por diante. Em tais estados, a divisão da mente talvez ocorra de maneira diferente da que tentamos descrever acima. Talvez todo esse estágio deva ser encarado como um longo estado hipnóide cujos resíduos fornecem o núcleo do complexo representativo inconsciente, enquanto o pensamento de vigília é amnésico quanto a ele. Visto que na maioria das vezes ignoramos as causas que levam a uma histeria aguda dessa natureza (não me arrisco a considerar o curso dos acontecimentos observados em Anna O. como tendo aplicação geral), parece haver outra espécie de divisão psíquica que, em contraste com as examinadas acima, poderia ser denominada de irracional. E sem dúvida ainda existem outras formas desse processo, que ainda se acham ocultas de nossa jovem ciência psicológica, pois é certo que demos apenas os primeiros passos nesse setor do conhecimento e nossos conceitos atuais serão substancialmente alterados por outras observações.

Perguntemo-nos agora qual o resultado que o conhecimento da divisão da mente alcançado nos últimos anos trouxe para a compreensão da histeria. Parece ter sido grande em quantidade e importância.

Tais descobertas possibilitaram, em primeiro lugar, que o que parece serem sintomas puramente somáticos fosse relacionado com representações, as quais, contudo, não podem ser descobertas na consciência dos pacientes. (É desnecessário abordar isso novamente.) Em segundo lugar, ensinaram-nos a compreender os ataques histéricos, pelo menos em parte, como sendo produtos de um complexo representativo inconsciente. (Cf. Charcot.) Mas, além disso, explicaram também algumas das características psíquicas da histeria, e este ponto talvez mereça um exame mais pormenorizado.

É verdade que as “representações inconscientes” jamais, ou só raramente e com dificuldade, penetram no pensamento de vigília; mas elas o influenciam. Fazem-no, em primeiro lugar, através de suas conseqüências — quando, por exemplo, um paciente é atormentado por uma alucinação que é totalmente ininteligível e absurda, mas cujo significado e motivação tornam-se claros sob hipnose. Além disso, influenciam a associação, tornando certas representações mais nítidas do que teriam sido caso não fossem assim reforçadas a partir do inconsciente. Dessa maneira, alguns grupos específicos de representações impõem-se constantemente ao paciente com certo grau de compulsão e ele é obrigado a pensar neles. (O caso é semelhante aos dos pacientes semi-anestésicos de Janet. Quando sua mão anestésica é repetidamente tocada, eles não sentem nada, mas quando lhes mandam indicar um número qualquer a seu gosto, eles sempre escolhem o que corresponde ao número de vezes que foram tocados.) Por outro lado, as representações inconscientes regem o tônus emocional do paciente, seu estado de espírito. Quando, no curso do desenrolar de suas lembranças, Anna O. abordava umfato que em sua origem estivera ligado a um afeto nítido o sentimento correspondente surgia com vários dias de antecedência e antes que a lembrança aparecesse claramente, mesmo em sua consciência hipnótica.

Isso torna inteligíveis os “estados de ânimo” dos pacientes — suas alterações inexplicáveis e desarrazoadas de humor, que parecem ao pensamento de vigília ocorrer sem motivo. Com efeito, a impressionabilidade dos pacientes histéricos é determinada, em grande parte, simplesmente por sua excitabilidade inata; mas os afetos nítidos em que eles são lançados por causas relativamente triviais ficam mais inteligíveis ao considerarmos que a “parte dividida da mente” reage como uma caixa de ressonância à nota de um diapasão. Qualquer acontecimento que provoque lembranças inconscientes libera toda a força afetiva dessas representações que não sofreram desgaste, e o afeto evocado fica então inteiramente desproporcional a qualquer um que surgisse apenas na mente consciente.

Referi-me antes (ver em [1]) a uma paciente cujo funcionamento psíquico estava sempre na razão inversa da nitidez de suas representações inconscientes. A diminuição de seu pensamento consciente baseava-se, em parte, mas apenas em parte, numa espécie peculiar de abstração. Após cada uma de suas “absences” momentâneas — e estas sempre ocorriam — ela não sabia em que havia pensado no curso dela. Oscilava entre suas “conditions primes” e “secondes”, entre os complexos representativos conscientes e inconscientes. Mas não era apenas por isso que seu funcionamento psíquico se via reduzido, nem por causa do afeto que a dominava a partir do inconsciente. Enquanto se encontrava nesse estado, seu pensamento de vigília ficava sem energia, seu julgamento era infantil e ela parecia, como já tive ocasião de dizer, positivamente imbecil. Creio que isso se devia ao fato de que o pensamento de vigília dispõe de menos energia quando uma grande quantidade de excitação psíquica é apropriada pelo inconsciente.

Quando este estado de coisas não é apenas temporário, quando a parte dividida da mente está num constante estado de excitação, como ocorria com os pacientes hemianestésicos de Janet — nos quais, além disso, todas as sensações em nada menos da metade do corpo só eram percebidas pela mente inconsciente — quando este é o caso, resta tão pouco funcionamento cerebral para o pensamento de vigília que a debilidade mental que Janet descreve e considera inata fica plenamente explicada. São pouquíssimas as pessoas de quem se pode dizer, como do Bertrand de Born, de Uhland, que nunca precisam de mais da metade de sua mente.1 Tal redução da energia psíquica realmente transforma a maioria das pessoas em débeis mentais.

Essa debilidade mental, causada por uma divisão da psique, também parece ser a base de uma notável característica de alguns pacientes histéricos — sua sugestionabilidade. (Digo “alguns” por ser certo que entre os pacientes histéricos também se encontram pessoas do julgamento mais sensato e mais crítico.)

Por sugestionabilidade entendemos, em primeiro lugar, apenas uma incapacidade de criticar as representações e complexos de representações (julgamentos) que emergem na própria consciência do sujeito, ou são nela introduzidos de fora através da palavra falada ou da leitura. Qualquer crítica dessas representações recém-chegadas na consciência baseia-se no fato de elas despertarem outras representações por associação, e entre estas algumas que são irreconciliáveis com as novas. A resistência a estas últimas fica assim na dependência do acervo de representações antagônicas na consciência potencial, e a intensidade da resistência corresponde à proporção entre a nitidez das novas representações e a das despertadas na memória. Mesmo nos intelectos normais essa proporção é muito variada. O que descrevemos como um temperamento intelectual depende dela em larga medida. Um homem “sangüíneo” sempre se delicia com novas pessoas e coisas, e isso sem dúvida ocorre porque a intensidade de suas imagens mnêmicas é menor em comparação com a das novas impressões num homem mais tranqüilo e “fleumático”. Nos estados patológicos a preponderância de novas representações e a falta de resistência a elas aumentam em proporção à escassez das imagens mnêmicas despertadas — isto é, proporcionalmente à pobreza e à debilidade de seus poderes associativos. Isso já é o que acontece no sono e nos sonhos, na hipnose e sempre que há uma redução da energia mental, desde que esta não reduza também a nitidez das novas representações.

A parte inconsciente expelida pela mente na histeria é sobretudo sugestionável, em virtude da pobreza e incompletude de seu conteúdo representativo. Mas em alguns pacientes histéricos também a sugestionabilidade da mente consciente parece basear-se nisso. Eles são excitáveis por causa de sua predisposição inata; neles, as representações novas são muito nítidas. Em contraste com isso, sua atividade intelectual propriamente dita, sua função associativa, é reduzida, porque apenas parte de sua energia psíquica se acha à disposição de seu pensamento de vigília, em virtude da cisão de um “inconsciente”. Como resultado disso, seu poder de resistência tanto às auto-sugestões como às alo-sugestões se vê reduzido e por vezes abolido. A sugestionabilidade de sua vontade também parece dever-se apenas a isso. Por outro lado, a sugestionabilidade alucinatória, que transforma prontamente qualquer representação de uma percepção sensorial numa percepção real, exige, como todas as alucinações, um grau anormal de excitabilidade do órgão perceptivo e não pode ser atribuída apenas a uma divisão da mente.

 

(6) PREDISPOSIÇÃO INATA — DESENVOLVIMENTO DA HISTERIA

 

Em quase todas as etapas destas considerações fui obrigado a reconhecer que a maioria dos fenômenos que nos vimos esforçando por compreender pode basear-se, entre outras coisas, numa idiossincrasia inata. Isso desafia qualquer explicação que procure ir além de uma simples enunciação dos fatos. Mas a capacidade de adquirir a histeria também se acha indubitavelmente ligada a uma idiossincrasia da pessoa em questão, e a tentativa de defini-la com maior exatidão talvez não seja inteiramente infrutífera.

Expliquei acima por que não posso aceitar a opinião de Janet de que a predisposição para a histeria se baseia numa fraqueza psíquica inata. O clínico que, na qualidade de médico da família, observa os membros de famílias histéricas em todas as idades, por certo ficará inclinado a achar que essa predisposição reside antes num excesso do que numa falta. Os adolescentes que depois se tornarão histéricos são, em sua maioria, bem vivazes, dotados e repletos de interesses intelectuais antes de adoecerem. Muitas vezes, sua força de vontade é notável. Incluem-se entre eles moças que levantam da cama à noite, em segredo, para fazer algum estudo que seus pais lhes proíbem temendo que se esforcem demais. A capacidade de formar opiniões sólidas por certo não é maior neles do que nas outras pessoas; mas é raro encontrar neles simples inércia intelectual e estupidez. A produtividade exuberante de suas mentes levou um de meus amigos a afirmar que os histéricos são a flor da humanidade — tão estéreis, sem dúvida, mas tão belos quanto as flores.

Sua vivacidade e inquietude, sua ânsia de sensações e atividade mental, sua intolerância à monotonia e ao tédio podem ser assim formuladas: eles se situam entre aquelas pessoas cujo sistema nervoso, enquanto em repouso, libera um excesso de excitação que exige ser utilizado (ver em [1]). Durante o desenvolvimento na puberdade e em conseqüência dele, esse excesso original é complementado pelo poderoso aumento da excitação que decorre do despertar da sexualidade, das glândulas sexuais. A partir daí há uma quantidade excedente de energia nervosa livre disponível para a produção de fenômenos patológicos.

Mas, para que esses fenômenos surjam sob a forma de sintomas histéricos, evidentemente precisa haver também uma outra idiossincrasia específica no indivíduo em questão, pois, afinal, a grande maioria das pessoas ativas e excitáveis não se torna histérica. Um pouco mais atrás | ver em [1]|, só pude definir essa idiossincrasia com uma expressão vaga e não esclarecedora: “excitabilidade anormal do sistema nervoso”. Mas talvez seja possível ir mais além e dizer que essa anormalidade reside no fato de que em tais pessoas a excitação do órgão central pode fluir para os aparelhos nervosos sensoriais que normalmente só são acessíveis aos estímulos periféricos, bem como para os aparelhos nervosos dos órgãos vegetativos, que são isolados do sistema nervoso central por poderosas resistências. É possível que essa idéia de haver um excedente de excitação constantemente presente, com acesso aos aparelhos sensorial, vasomotor e visceral, já explique certos fenômenos patológicos.

Nas pessoas desse tipo, tão logo sua atenção se concentra forçosamente em alguma parte do corpo, aquilo a que Exner |1894, 165 e segs.| chama de “facilitação pela atenção” na via sensorial de condução em questão excede a quantidade normal. A excitação livre e flutuante é, por assim dizer, desviada para essa via, produzindo-se uma hiperalgesia local. Como resultado, qualquer dor, como quer que seja causada, alcança intensidade máxima, e qualquer mal-estar é “horrível” e “insuportável”. Além disso, enquanto nas pessoas normais uma quantidade de excitação, depois de catexizar uma via sensitiva, sempre a abandona, isto não ocorre nestes casos. Aquela quantidade, ademais, não só permanece ali como é constantemente aumentada pelo influxo de novas excitações. Um leve dano a uma articulação leva assim à artralgia, e as sensações dolorosas devidas ao intumescimento ovariano conduzem à nevralgia ovariana crônica; e visto que os aparelhos nervosos da circulação são mais acessíveis à influência cerebral do que nas pessoas normais, deparamos com palpitações nervosas do coração, tendência a desmaios, propensão ao enrubescimento e empalidecimento excessivos, e assim por diante.

Todavia, não é apenas quando às influências centrais que os aparelhos nervosos periféricos são mais facilmente excitáveis. Eles também reagem de maneira excessiva e imprópria a estímulos funcionais adequados. Surgem palpitações tanto a partir de esforços moderados quanto da excitação emocional, e os nervos vasomotores fazem com que as artérias se contraiam (“dedos mortos”) independentemente de qualquer influência psíquica. E, da mesma forma que um ligeiro dano deixa uma artralgia atrás de si, um curto acesso de bronquite é seguido de asma nervosa, e a indigestão, de freqüentes dores cardíacas. Por conseguinte, devemos admitir que a acessibilidade a somas de excitação de origem central nada mais é do que um caso especial de uma excitabilidade anormal genérica, muito embora ela seja a mais importante do ponto de vista de nosso tópico atual.

 

Parece-me, portanto, que a antiga “teoria reflexa” desses sintomas, que talvez fossem mais bem definidos simplesmente como “nervosos”, mas que fazem parte do quadro clínico empírico da histeria, não deve ser inteiramente rejeitada. Os vômitos, que naturalmente acompanham a dilatação do útero na gravidez, podem muito bem, quando existe uma excitabilidade anormal, ser desencadeados de maneira reflexa por estímulos uterinos banais, ou talvez até mesmo pelas alterações periódicas do tamanho dos ovários. Estamos familiarizados com tantos efeitos remotos decorrentes de alterações orgânicas, tantos casos estranhos de “dor transferida”, que não podemos rejeitar a possibilidade de que um imenso grupo de sintomas nervosos por vezes determinados psiquicamente possam, em outros casos, ser efeitos distantes da ação reflexa. De fato, arrisco-me a formular a heresia bastante conservadora de que até mesmo a debilidade motora numa perna pode, algumas vezes, ser determinada por uma afecção genital, não psiquicamente, mas por ação reflexa direta. Penso que faremos bem em não insistir demais na exclusividade de nossas novas descobertas ou procurar aplicá-las a todos os casos.

Outras formas de excitabilidade sensorial anormal ainda escapam inteiramente à nossa compreensão: a analgesia geral, por exemplo, as áreas anestésicas, a restrição real do campo da visão, e assim por diante. É possível, e talvez provável, que outras observações venham comprovar a origem psíquica de um ou outro desses estigmas e assim expliquem o sintoma; só que isso ainda não aconteceu (pois não me arrisco a generalizar os resultados apresentados por nosso primeiro relato de caso), e não acho justificável presumir que essa seja a origem deles enquanto ela não tiver sido satisfatoriamente investigada.

Por outro lado, a idiossincrasia do sistema nervoso e da mente que vimos examinando parece explicar uma ou duas propriedades muito familiares de diversos pacientes histéricos. O excedente de excitação liberado pelo sistema nervoso dessas pessoas quando em estado de repouso determina sua incapacidade de tolerarem uma vida monótona e o tédio — a ânsia de sensações que os impele, após início de sua doença, a interromper a monotonia de sua vida sem validade por toda sorte de “incidentes”, dos quais os mais destacados são, a julgar pela natureza das coisas, fenômenos patológicos. Muitas vezes, essas pessoas são ajudadas nisso pela auto-sugestão. São impelidas a cada vez mais penetrar nesse caminho por sua necessidade de ficarem doentes — um traço notável que é tão patognomônico para a histeria quanto é o medo de adoecer para a hipocondria. Conheço uma mulher histérica que infligia a si mesma danos freqüentemente muito graves, apenas para seu próprio consumo e sem que aqueles que a cercavam, ou seu médico, tomassem conhecimento disso. Que mais não fosse, ela costumava fazer toda sorte de brincadeiras enquanto estava sozinha em seu quarto, simplesmente para provar a si mesma que não era normal. E o fazia, por ter, de fato, uma nítida sensação de não estar bem e de não poder desempenhar seus deveres de maneira satisfatória, tentando justificar-se a seus próprios olhos através de ações como essas. Outra paciente, uma mulher muito doente que sofria de uma conscienciosidade patológica e era cheia de dúvidas a respeito de si mesma, vivenciava todos os fenômenos histéricos como algo culposo, pois, segundo dizia, não precisava tê-los se realmente não os quisesse ter. Quando uma paresia em suas pernas foi erroneamente diagnosticada como uma doença da espinha, ela vivenciou isso como um imenso alívio e, quando lhe disseram que era “apenas nervosa” e que passaria, isso foi o bastante para acarretar graves dores de consciência. A necessidade de adoecer decorre do desejo da paciente de convencer a si mesma e às outras pessoas da realidade de sua doença. Quando essa necessidade se associa ainda à aflição causada pela monotonia de um quarto de enfermo, a inclinação a produzir cada vez mais sintomas novos desenvolve-se ao máximo.

Quando, no entanto, isso se transforma em fingimento e verdadeira simulação (e penso que agora pecamos tanto por excesso ao negar a simulação quanto pecávamos ao aceitá-la), isso se baseia, não na predisposição histérica, mas, como disse Moebius tão apropriadamente, em ser ela complicada por outras formas de degenerescência — por uma inferioridade moral inata. Da mesma forma, o “histérico rancoroso” surge quando alguém que é inatamente excitável, mas deficiente de emoção, cai também vítima do embrutecimento egoísta do caráter que é tão facilmente produzido pela má saúde crônica. Aliás, o “histérico rancoroso” mal chega a ser mais comum do que o paciente rancoroso nos estágios mais avançados da tabes.

O excedente da excitação também dá margem a fenômenos patológicos na esfera motora. As crianças com essa característica desenvolvem com muita facilidade movimentos semelhantes a tiques. Estes podem começar, num primeiro caso, por alguma sensação nos olhos ou no rosto, ou por alguma peça desconfortável do vestuário, mas se tornam permanentes a menos que sejam prontamente contidos. As vias reflexas são muito fáceis e rapidamente marcadas a fundo.

Também não se pode afastar a possibilidade de haver ataques convulsivos puramente motores, independentes de qualquer fator psíquico, e nos quais tudo o que acontece é que a massa de excitação acumulada por soma é descarregada, do mesmo modo que a massa de estímulos causada por modificações anatômicas é descarregada num ataque epiléptico. Nesse caso, teríamos a convulsão histérica não-ideogênica.

É tão freqüente vermos adolescentes anteriormente sadios, embora excitáveis, adoecerem de histeria durante a puberdade, que devemos perguntar a nós mesmos se esse processo não poderia criar uma predisposição para a histeria quando ela não está inatamente presente. E de qualquer modo, devemos atribuir a ela mais do que uma simples elevação da quantidade de excitação. O amadurecimento sexual incide sobre todo o sistema nervoso, aumentando a excitabilidade e reduzindo as resistências por toda parte. Isso nos é ensinado pela observação de adolescentes que não são histéricos, e temos assim justificativas para crer que o amadurecimento sexual também estabelece a predisposição histérica, na medida em que consiste precisamente nessa característica do sistema nervoso. Ao afirmarmos isso, já estamos reconhecendo a sexualidade como um dos principais componentes da histeria. Veremos que o papel que desempenha nela é ainda muito maior e que contribui das mais diversas maneiras para a constituição da doença.

 

Se os estigmas brotam diretamente desse campo de cultura inato da histeria e não são de origem ideogênica, é também impossível dar à ideogênese uma posição tão central na histeria quanto às vezes se dá hoje em dia. O que poderia ser mais autenticamente histérico do que os estigmas? Eles são os achados patognomônicos que estabelecem o diagnóstico, e no entanto, precisamente, eles não parecem ser ideogênicos. Mas se a base da histeria é uma idiossincrasia de todo o sistema nervoso, o complexo de sintomas ideogênicos psiquicamente determinados ergue-se sobre ela tal como um prédio sobre seus alicerces. E é um prédio de vários andares. Do mesmo modo que só é possível compreender a estrutura de tal prédio se distinguirmos os planos dos diferentes pisos, é necessário, penso eu, para entendermos a histeria, prestar atenção às várias espécies de complicação na causação dos sintomas. Se as desprezarmos e tentarmos levar adiante uma explicação da histeria empregando um nexo causal único, sempre encontraremos um resíduo muito grande de fenômenos que permanecem inexplicados. É como se tentássemos inserir os diferentes cômodos de uma casa de muitos pavimentos na planta de um único andar.

Tal como os estigmas, diversos outros sintomas nervosos — certas dores e fenômenos vasomotores, e talvez os ataques convulsivos puramente motores — são, como vimos, não causados por idéias, mas resultados diretos da anormalidade fundamental do sistema nervoso.

 

Os mais próximos deles são os fenômenos ideogênicos que consistem simplesmente em conversões da excitação afetiva (ver em [1]). Surgem como conseqüências de afetos em pessoas com uma predisposição histérica e, a princípio, são apenas uma “expressão anormal das emoções” (Oppenheim |1890|). Esta se transforma, pela repetição, num sintoma histérico autêntico e, na aparência, puramente somático, enquanto a idéia que deu lugar a ele se torna imperceptível (ver em [1]) ou é rechaçada e, portanto, repelida da consciência. As mais numerosas e importantes das representações que são rechaçadas e convertidas possuem um contexto sexual. Elas se acham na base de grande parte dos casos de histeria da puberdade. As moças que se aproximam da maturidade — e é principalmente delas que se trata — comportam-se de maneiras muito diferentes em relação às representações e sentimentos sexuais que se avolumam nelas. Certas moças defrontam-se com eles com total desembaraço, havendo entre elas algumas que ignoram e fecham os olhos a todo o assunto. Outras aceitam-nos como os meninos, sendo esta sem dúvida a norma entre as moças das classes camponesa e trabalhadora. Outras ainda, com uma curiosidade mais ou menos obstinada, correm atrás de qualquer coisa sexual que possam encontrar em conversas ou livros. E, finalmente, há naturezas de organização requintada que, embora seja grande sua excitabilidade sexual, possuem uma pureza moral igualmente grande e sentem que qualquer coisa sexual é algo incompatível com seus padrões éticos, algo de conspurcante e degradante. Elas recalcam a sexualidade afastando-a da consciência, e as representações afetivas de conteúdo sexual que provocaram os fenômenos somáticos são rechaçadas e assim se tornam inconscientes.

A tendência a rechaçar o que é sexual é ainda mais intensificada pelo fato de que, nas moças solteiras, a excitação sensual tem uma mescla de angústia, de medo do que está por vir, do que é desconhecido e apenas suspeitado, ao passo que, nos rapazes normais e saudáveis, ela é uma pulsão agressiva sem mesclas. A moça sente em Eros o terrível poder que rege e decide seu destino, e se assusta com isso. Tanto maior, portanto, é sua inclinação para desviar os olhos e recalcar para fora da consciência a coisa que a assusta.

 

O casamento acarreta novos traumas sexuais. É surpreendente que a noite de núpcias não tenha efeitos patogênicos com maior freqüência, visto que, infelizmente, o que ela implica é, muitas vezes, não uma sedução erótica, mas uma violação. A rigor, porém, não é raro encontrar em jovens casadas histerias que podem ser relacionadas a isso e que desaparecem quando, no correr do tempo, o prazer sexual emerge e apaga o trauma. Os traumas sexuais também ocorrem no curso ulterior de muitos casamentos. Os relatos de caso de cuja publicação fomos obrigados a nos abster incluem um grande número deles — exigências caprichosas feitas pelo marido, práticas antinaturais, etc. Não penso estar exagerando ao afirmar que a grande maioria das neuroses graves nas mulheres tem sua origem no leito conjugal.

Certos fatores sexuais nocivos, que consistem essencialmente em satisfação insuficiente (coitus interruptus, ejaculatio praecox, etc.) resultam, de acordo com a descoberta de Freud (1895b), não na histeria, mas numa neurose de angústia. Sou da opinião, entretanto, de que mesmo nesses casos a excitação do afeto sexual muitas vezes se converte em fenômenos histéricos somáticos.

É evidente por si só, e suficientemente comprovado por nossas observações, que os afetos não sexuais do susto, da angústia e da raiva levam ao desenvolvimento de fenômenos histéricos. Mas talvez valha a pena insistir repetidamente em que o fator sexual é de longe o mais importante e o que mais produz resultados patológicos. As observações pouco sofisticadas de nossos antecessores, cujo resíduo é preservado no termo “histeria” |originado da palavra grega designativa de “útero”|, aproximaram-se mais da verdade do que a concepção mais recente, que situa a sexualidade quase em último lugar, a fim de poupar os pacientes de recriminações morais. As necessidades sexuais dos pacientes histéricos são, sem dúvida, tão variáveis em grau de indivíduo para indivíduo quanto nas pessoas sadias, e não são mais fortes do que nelas; mas os primeiros adoecem por causa delas e, na maioria das vezes, precisamente pela luta que travam contra elas, em virtude de sua defesa contra a sexualidade.

Juntamente com a histeria sexual, devemos recordar nesta altura a histeria devida ao susto — a histeria traumática propriamente dita —, que constitui uma das formas de histeria mais conhecidas e reconhecidas.

 

No que se pode denominar de camada idêntica à dos fenômenos que resultam da conversão da excitação afetiva, encontram-se aqueles que devem sua origem à sugestão (na maioria das vezes, à auto-sugestão) em indivíduos inatamente sugestionáveis. O grau elevado de sugestionabilidade — isto é, a preponderância irrestrita das representações que foram despertadas recentemente — não se encontra entre os traços essenciais da histeria. Contudo, pode estar presente como uma complicação em pessoas com predisposição histérica, nas quais essa mesma idiossincrasia do sistema nervoso possibilita a realização somática de representações supervalentes. Além disso, na maioria dos casos, são apenas representações afetivas que se realizam em fenômenos somáticos por sugestão e, conseqüentemente, o processo pode muitas vezes ser considerado uma conversão do afeto concomitante de medo ou de angústia.

Esses processos — a conversão do afeto e a sugestão — permanecem idênticos mesmo nas formas complicadas de histeria que devemos agora considerar. Eles simplesmente encontram condições mais favoráveis em tais casos: é sempre através de um desses dois processos que surgem os fenômenos histéricos psiquicamente determinados.

 

O terceiro componente da predisposição histérica, que aparece em alguns casos além dos que já foram analisados, é o estado hipnóide, a tendência à auto-hipnose (ver em [1]). Esse estado favorece e facilita em grau máximo tanto a conversão como a sugestão, e dessa forma erige, por assim dizer, no topo das pequenas histerias, o pavimento mais alto da grande histeria. A tendência à auto-hipnose é um estado que, no começo, é apenas temporário e se alterna com o estado normal. Podemos atribuir-lhe o mesmo aumento de influência mental sobre o corpo que observamos na hipnose artificial. Essa influência é muito mais intensa e profunda aqui, na medida em que atua sobre um sistema nervoso que mesmo fora da hipnose é anormalmente excitável. Não sabemos dizer até que ponto e em que casos a tendência à auto-hipnose constitui uma propriedade inata do organismo.Externei antes (ver em [1]-[2]) a opinião de que ela se desenvolve a partir de devaneios carregados de afeto. Mas não há nenhuma dúvida de que a predisposição inata também desempenha um papel nisso. Se esse ponto de vista for correto, mais uma vez ficará claro aqui o quanto é enorme a influência atribuível à sexualidade no desenvolvimento da histeria, pois, salvo pelo cuidar de doentes, nenhum fator psíquico é tão bem destinado a produzir devaneios carregados de afeto quanto os anseios de uma pessoa apaixonada. E acima de tudo isso, o próprio orgasmo sexual, com sua riqueza de afeto e sua restrição da consciência, é intimamente afim dos estados hipnóides.

O elemento hipnóide manifesta-se mais claramente nos ataques histéricos e nos estados que podem ser classificados de histeria aguda e que, segundo parece, desempenham um papel tão relevante no desenvolvimento da histeria (ver em [1]). Estes são, obviamente, estados psicóticos que persis-tem por muito tempo, muitas vezes durante vários meses, e que com freqüência é necessário classificar de confusão alucinatória. Mesmo quando a perturbação não vai tão longe assim, surge nela uma grande variedade de fenômenos histéricos, alguns dos quais, na realidade, persistem depois de ela terminar. O conteúdo psíquico desses estados consiste, em parte, precisamente nas representações que foram rechaçadas na vida de vigília e recalcadas, sendo eliminadas da consciência. (Cf. os “delírios histéricos dos santos e das freiras, das mulheres que guardam a castidade e das crianças bem-educadas” | ver em [1]|.)

Visto que esses estados são, com muita freqüência, nada menos do que psicoses, apesar de derivados imediata e exclusivamente da histeria, não posso concordar com a opinião de Moebius de que, “com exceção dos delírios ligados aos ataques, é impossível falar numa insanidade histérica real” (1895, 18). Em muitos casos, esses estados constituem uma insanidade dessa natureza; e psicoses como estas também se repetem no curso ulterior de uma histeria. É verdade que, em essência, elas nada mais são do que a fase psicótica de um ataque, mas, considerando-se que duram meses, seria difícil denominá-las de ataques.

Como surge uma dessas histerias agudas? No caso mais conhecido (Caso 1), surgiu de uma acumulação de ataques hipnóides; em outro caso (quando já estava presente uma histeria complicada), surgiu associada a uma suspensão da morfina. O processo, em sua maior parte, é inteiramente obscuro e aguarda elucidação a partir de observações adicionais.

 

Assim sendo, podemos aplicar às histerias aqui analisadas o pronunciamento de Moebius (ibid., 16): “A modificação essencial que ocorre na histeria é que o estado mental do paciente histérico torna-se temporária ou permanentemente semelhante ao de um indivíduo hipnotizado.”

No estado normal, a persistência dos sintomas que surgem durante o estado hipnóide corresponde inteiramente a nossas experiências com a sugestão pós-hipnótica. Mas isso já implica que complexos de representações inadmissíveis à consciência coexistem com as seqüências de representações que seguem um curso consciente, que ocorreu uma divisão da mente (ver em [1]). Parece certo que isso pode acontecer até mesmo sem um estado hipnóide, a partir da profusão de pensamentos que foram rechaçados e recalcados da consciência, mas não suprimidos. De um modo ou de outro, passa a existir uma região da vida mental — ora precária de representações e rudimentar, ora mais ou menos em igualdade de condições com o pensamento de vigília — cujo conhecimento devemos, acima de tudo, a Binet e Janet. A divisão da mente é a consumação da histeria. Mostrei anteriormente (na Seção 5) de que modo ele explica as principais características desse distúrbio. Uma parte da mente do paciente fica em estado hipnóide permanentemente, mas com um grau variável de nitidez em suas representações, estando sempre preparada, todas as vezes que há um lapso no pensamento de vigília, para assumir o controle da pessoa inteira (por exemplo, num ataque ou num delírio). Isso ocorre tão logo um afeto poderoso interrompe o curso normal das representações, nos estados crepusculares e nos estados de exaustão. A partir desse estado hipnóide persistente, representações não motivadas e estranhas à associação normal forçam sua entrada na consciência, introduzem-se alucinações no sistema perceptivo e inervam-se atos motores independentemente da vontade consciente. Essa mente hipnóide é suscetível, no mais alto grau, à conversão de afetos e à sugestão, e assim aparecem com facilidade novos fenômenos histéricos, que, sem a divisão da mente, só surgiriam com grande dificuldade e sob a pressão de afetos repetidos. A parte expelida da mente é o demônio pelo qual a observação ingênua dos supersticiosos dos tempos primitivos acreditava que esses pacientes se achavam possuídos. É verdade que um espírito estranho à consciência de vigília do paciente exerce domínio sobre ele, porém o espírito não é de fato um estranho, mas parte dele mesmo.

 

A tentativa aqui empreendida de fazer uma interpretação sintética da histeria partindo do que dela sabemos hoje está sujeita à recriminação de ecletismo, se é que tal recriminação é justificável. Houve inúmeras formulações da histeria, desde a antiga “teoria reflexa” até a “dissociação da personalidade”, que tiveram de encontrar um lugar nela. Mas dificilmente poderia ser de outra forma, já que numerosos observadores excelentes e espíritos agudos se interessaram pela histeria. É improvável que qualquer de suas formulações estivesse destituída de uma parcela de verdade. Uma futura exposição do verdadeiro estado de coisas por certo as abrangerá a todas e simplesmente combinará todas as visões unilaterais do assunto numa realidade coletiva. O ecletismo, portanto, não me parece nada de que se deva envergonhar.

Mas quão longe ainda estamos hoje da possibilidade de qualquer compreensão completa da histeria! Com que traços incertos seus contornos foram esboçados nestas páginas, com que hipóteses toscas as imensas lacunas foram escondidas, e não preenchidas! Apenas uma consideração é até certo ponto consoladora: a de que essa falha se prende, e deve prender-se, a todas as exposições fisiológicas de processos psíquicos complexos. Devemos sempre dizer delas o que Teseu, no Sonho de uma Noite de Verão, diz da tragédia: “As melhores dentre estas não passam de sombras.” E mesmo a mais fraca não será destituída de valor se, honesta e modestamente, tentar apegar-se aos contornos das sombras que os objetos reais desconhecidos lançam sobre a parede, pois assim, apesar de tudo, sempre se justificará a esperança de que possa haver algum grau de correspondência e semelhança entre os processos reais e a idéia que fazemos deles.

 

 

IV - A PSICOTERAPIA DA HISTERIA

(FREUD)

 

 

Em nossa “Comunicação Preliminar” relatamos como, no curso de nossa pesquisa sobre a etiologia dos sintomas histéricos, deparamo-nos também com um método terapêutico que nos pareceu de importância prática. Pois “verificamos, a princípio para nossa grande surpresa, que cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhava, e quando o paciente havia descrito esse acontecimento com o maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras.” (ver em [1].)

Esforçamo-nos ainda por explicar o modo como funciona nosso método psicoterapêutico: “Ele põe termo à força atuante da representação que não fora ab-reagida no primeiro momento, ao permitir que seu fato estrangulado encontre uma saída através da fala; e submete essa representação à correção associativa ao introduzi-la na consciência normal (sob hipnose leve), ou eliminá-la por sugestão do médico, como se faz no sonambulismo acompanhado de amnésia.” (ver em [1].)

Tentarei agora fazer um relato coerente de até onde este método nos leva, dos aspectos em que ele consegue mais do que outros métodos, da técnica pela qual funciona e das dificuldades com que se defronta. Grande parte da substância disso já se acha no relato dos casos que constam da parte anterior deste livro, e não conseguirei evitar repetir-me no relato que se segue.

 

(1)

 

De minha parte, também posso afirmar que ainda me mantenho fiel ao que está contido na “Comunicação Preliminar”. Não obstante, devo confessar que, durante os anos decorridos desde então — nos quais estive incessantemente voltado para os problemas ali abordados —, novos pontos de vista se impuseram a minha mente. Estes levaram ao que é, ao menos em parte, um agrupamento e uma interpretação diferentes do material fatual por mim conhecido naquela época. Seria injusto tentar atribuir uma responsabilidade grande demais por essa transformação a meu estimado amigo Dr. Josef Breuer. Por este motivo, as considerações que se seguem são formuladas principalmente em meu próprio nome.

Quando tentei aplicar a um número relativamente grande de pacientes o método de Breuer, de tratamento de sintomas histéricos pela investigação e ab-reação destes sob hipnose, defrontei-me com duas dificuldades e, ao lidar com elas, fui levado a fazer uma alteração tanto na minha técnica quanto na minha visão dos fatos. (1) Verifiquei que nem todas as pessoas que exibiam sintomas histéricos indiscutíveis e que, muito provavelmente, eram regidas pelo mesmo mecanismo psíquico podiam ser hipnotizadas. (2) Vi-me forçado a tomar uma posição quanto à questão do que, afinal, caracteriza essencialmente a histeria e do que a distingue de outras neuroses.

 

Deixarei para depois meu relato de como superei a primeira dessas duas dificuldades e o que dela aprendi e começarei por descrever a atitude que adotei em minha prática diária em relação ao segundo problema. É muito difícil obter uma visão clara de um caso de neurose antes de tê-lo submetido a uma análise minuciosa — uma análise que, na verdade, só pode ser efetuada pelo uso do método de Breuer; mas a decisão sobre o diagnóstico e a forma de terapia a ser adotada tem de ser tomada antes de se chegar a qualquer conhecimento assim minucioso do caso. O único caminho aberto a mim, portanto, era selecionar para tratamento catártico os casos que pudessem ser provisoriamente diagnosticados como histeria, que exibissem um ou mais dos estigmas ou sintomas característicos da histeria. Ocorreu então algumas vezes que, apesar do diagnóstico de histeria, os resultados terapêuticos se revelaram muito escassos e nem mesmo a análise trazia à luz nada de significativo. Em outras ocasiões ainda, tentei aplicar o método de tratamento de Breuer a casos de neurose que ninguém poderia confundir com histeria, e assim verifiquei que eles podiam ser influenciados e, na verdade, esclarecidos. Tive essa experiência, por exemplo, com as idéias obsessivas — idéias obsessivas autênticas, do tipo de Westphal — em casos sem um único traço que lembrasse a histeria. Conseqüentemente, o mecanismo psíquico revelado pela “Comunicação Preliminar” não poderia ser patogmônico da histeria, nem tampouco consegui decidir-me, apenas para preservar aquele mecanismo como critério, a englobar todas essas neuroses na histeria. Acabei encontrando uma saída para todas essas dúvidas através do plano de tratar todas as outras neuroses em questão da mesma forma que a histeria. Determinei-me a investigar sua etiologia e a natureza de seu mecanismo psíquico em cada caso e a deixar na dependência do resultado dessa investigação a decisão quanto a se o diagnóstico de histeria se justificava.

Assim, partindo do método de Breuer, vi-me envolvido em considerações sobre a etiologia e o mecanismo das neuroses em geral. Tive sorte o bastante para chegar a alguns resultados úteis num prazo relativamente curto. Em primeiro lugar, fui obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar em causas determinantes que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em fatores sexuais. Seguiu-se a descoberta de que diferentes fatores sexuais, no sentido mais geral, produzem diferentes quadros de distúrbios neuróticos. Tornou-se então possível, na medida em que essa relação era confirmada, correr o risco de utilizar a etiologia com o objetivo de caracterizar as neuroses e de fazer uma distinção nítida entre os quadros clínicos das várias neuroses. Quando as características etiológicas coincidiam sistematicamente com as clínicas, isso era naturalmente justificável.

Dessa maneira, verifiquei que a neurastenia apresentava um quadro clínico monótono no qual, como demonstram minhas análises, nenhum papel era desempenhado por um “mecanismo psíquico”. Havia uma nítida distinção entre a neurastenia e a “neurose obsessiva”, a neurose das idéias obsessivas propriamente ditas. Nesta última pude reconhecer um complexo mecanismo psíquico, uma etiologia semelhante à da histeria e uma ampla possibilidade de reduzi-la pela psicoterapia. Por outro lado, pareceu-me absolutamente necessário destacar da neurastenia um complexo de sintomas neuróticos que dependem de uma etiologia inteiramente diferente e, na verdade, no fundo, contrária. Os sintomas que formam esse complexo estão unidos por uma característica que já foi reconhecida por Hecker (1893), pois são sintomas ou equivalentes e rudimentos de manifestações de angústia; e por essa razão dei a tal complexo, a ser destacado da neurastenia, o nome de neurose de angústia. Sustentei (Freud, 1895b) que ele decorre de um acúmulo de tensão física, que é, em si mesma, também de origem sexual. Essa neurose também não possui nenhum mecanismo psíquico, mas invariavelmente influencia a vida mental, de modo que a “expectativa ansiosa”, as fobias, e hiperestesia às dores, etc. encontram-se entre suas manifestações regulares. Essa neurose de angústia, no sentido que dou à expressão, sem dúvida coincide em parte com as neuroses que, sob o nome de “hipocondria”, encontra lugar em muitas descrições ao lado da histeria e da neurastenia. Mas não posso considerar correta a delimitação da hipocondria em nenhum dos trabalhos em questão, e a aplicabilidade de seu nome me parece ser prejudicada pela ligação fixa do termo com o sintoma de “medo de doença”.

Depois de ter fixado assim os quadros simples de neurastenia, neurose de angústia e idéias obsessivas, passei a considerar os casos de neurose comumente incluídos no diagnóstico de histeria. Refleti que não era certo rotular de histérica uma neurose, em sua totalidade, só porque alguns sintomas histéricos ocupavam um lugar de destaque em seu complexo de sintomas. Era-me fácil compreender essa prática, visto que, afinal de contas, a histeria é a mais antiga, a mais conhecida e a mais marcante das neuroses em consideração; mas isso era um abuso, pois lançava por conta da histeria muitos traços de perversão e degenerescência. Sempre que um sintoma histérico, como uma anestesia ou um ataque característico, era observado num caso complicado de degeneração psíquica, todo esse estado era descrito como de “histeria”, de modo que não surpreende que as piores e mais contraditórias coisas fossem reunidas sob esse rótulo. Mas, assim como era certo que esse diagnóstico estava errado, era igualmente certo que também deveríamos separar as várias neuroses; e já que estávamos familiarizados com a neurastenia, a neurose de angústia, etc., em sua forma pura, não havia mais necessidade de desprezá-las no quadro conjunto.

O ponto de vista que se segue, portanto, parecia ser o mais provável. As neuroses que comumente ocorrem devem ser classificadas, em sua maior parte, de “mistas”. A neurastenia e as neuroses de angústia são facilmente encontradas também em formas puras, especialmente em pessoas jovens. As formas puras de histeria e neurose obsessiva são raras; em geral, essas duas neuroses combinam-se com a neurose de angústia. A razão por que as neuroses mistas ocorrem com tanta freqüência é que seus fatores etiológicos se acham muitas vezes entremeados, às vezes apenas por acaso, outras vezes como resultado de relações causais entre os processos de que derivam os fatores etiológicos das neuroses. Não há nenhuma dificuldade em descobrir isso e demonstrá-lo com detalhes. Quanto à histeria, porém, sucede que esse distúrbio dificilmente poderia ser segregado, para fins de estudo, do eixo de ligação das neuroses sexuais; que, em geral, ele representa apenas um lado isolado, apenas um aspecto de um caso complicado de neuroses; e que é somente em casos marginais que ele pode ser encontrado e tratado isoladamente. Talvez possamos dizer em algumas ocasiões: a potiori fit denominatio |isto é, recebeu seu nome pela sua característica mais importante|.

Examinarei agora os casos clínicos aqui relatados a fim de verificar se eles depõem em favor da minha opinião de que a histeria não é uma entidade clínica independente.

A paciente de Breuer, Anna O., parece contradizer minha opinião e ser um exemplo de distúrbio histérico puro. Esse caso, porém, que foi tão útil para nosso conhecimento da histeria, não foi de modo algum considerado por seu observador do ponto de vista de uma neurose sexual, sendo agora inteiramente inútil para esse propósito. Quando comecei a analisar a segunda paciente, a Sra. Emmy von N., a expectativa de que a base da histeria fosse uma neurose sexual estava muito longe de minha mente. Eu acabara de sair da escola de Charcot e encarava a ligação da histeria com o tema da sexualidade como uma espécie de insulto — exatamente como fazem as próprias pacientes. Quando examino minhas notas sobre esse caso hoje em dia, parece-me não haver nenhuma dúvida de que ele deve ser visto como um caso grave de neurose de angústia acompanhada de expectativa ansiosa e fobias — uma neurose de angústia que se originara da abstinência sexual e se combinara com a histeria. O caso 3, de Miss Lucy R., talvez possa ser definido de maneira mais conveniente como um caso marginal de histeria pura. Foi uma histeria breve que seguiu um curso episódico e tinha uma inconfundível etiologia sexual do tipo que corresponderia a uma neurose de angústia. A paciente era uma moça plenamente madura, que precisava ser amada e cujos afetos tinham sido despertados, muito apressadamente, por um mal-entendido. A neurose de angústia, contudo, não se tornou visível ou me escapou. O caso 4, de Katharina, nada mais era do que um modelo do que classifiquei de “angústia virginal”. Era uma combinação de neurose de angústia e histeria. A primeira criava os sintomas, enquanto a segunda os repetia e se valia deles para atuar. A propósito, era um caso típico de um grande número de neuroses de pessoas jovens que são classificadas de “histeria”. O caso 5, da Srta. Elisabeth von R., também não foi investigado como neurose sexual. Pude apenas expressar, sem confirmá-la, a suspeita de que uma neurastenia espinhal talvez tivesse constituído sua base | ver em [1]|.

Devo acrescentar, todavia, que nesse meio tempo as histerias puras se tornaram ainda mais raras em minha experiência. Se pude reunir esses quatro casos como de histeria e se, ao relatá-los, pude desprezar os pontos de vista que eram de importância quanto às neuroses sexuais, a razão foi que essas histórias remontam a um tempo algo distante e que, naquela época, eu ainda não submetia tais casos a uma investigação deliberada e minuciosa de sua base sexual neurótica. E se, em vez desses quatro, não relatei doze casos cuja análise proporciona uma confirmação do mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos proposto por nós, essa relutância foi exigida pelo próprio fato de que a análise revelou esses casos como sendo, simultaneamente, neuroses sexuais, embora por certo nenhum diagnosticador lhes recusasse o nome de histeria. Mas a elucidação dessas neuroses sexuais ultrapassaria os limites da presente publicação conjunta.

Eu não gostaria que se pensasse, erroneamente, que não desejo admitir que a histeria é uma afecção neurótica independente, que a considero meramente uma manifestação psíquica da neurose de angústia e que lhe atribuo apenas os sintomas “ideogênicos”, transferindo os sintomas somáticos (por exemplo, pontos histerogênicos e anestesias) para a neurose de angústia. Nada disso. Em minha opinião, é possível lidar com a histeria, liberada de qualquer mistura, como algo independente, e fazê-lo em todos os aspectos, salvo na terapêutica, pois nesta estamos voltados para uma finalidade prática — livrarmo-nos do estado patológico como um todo. E se em geral a histeria aparece como componente de uma neurose mista, essa situação se assemelha àquela em que há uma infecção mista e em que a preservação da vida cria um problema que não coincide com o de combater a ação de um agente patogênico específico.

É muito importante para mim distinguir o papel desempenhado pela histeria, no quadro das neuroses mistas, do papel desempenhado pela neurastenia, pela neurose de angústia e assim por diante, pois, uma vez feita essa distinção, poderei expressar de maneira concisa o valor terapêutico do método catártico. E isso porque me inclino a arriscar a afirmação de que esse método é, em termos teóricos, perfeitamente capaz de eliminar qualquer sintoma histérico, ao passo que, como será fácil compreender, ele é inteiramente impotente contra os fenômenos da neurastenia e só raramente e por vias indiretas, é capaz de influenciar os efeitos psíquicos da neurose de angústia. Sua eficácia terapêutica em qualquer caso específico dependerá, por conseguinte de os componentes histéricos do quadro clínico assumirem ou não uma posição de importância prática em comparação com os outros componentes neuróticos.

Existe ainda outro obstáculo à eficácia do método catártico, que já indicamos na “Comunicação Preliminar” | ver em [1]|. Ele não consegue afetar as causas subjacentes da histeria: assim, não consegue impedir que novos sintomas tomem o lugar daqueles que foram eliminados. Grosso modo, portanto, cabe-me reivindicar um lugar de destaque para nosso método terapêutico quando empregado dentro do contexto de uma terapia das neuroses, mas eu gostaria de advertir contra a apreciação de seu valor ou sua aplicação fora desse contexto. Entretanto, uma vez que não posso, nestas páginas, oferecer uma “terapia das neuroses” do tipo de que os clínicos precisam, o que acabo de dizer equivale a adiar minha visão do assunto para uma possível publicação ulterior. Penso, no entanto, poder acrescentar as seguintes observações à guisa de ampliação e elucidação.

(1) Não sustento ter de fato eliminado todos os sintomas histéricos que me dispus a influenciar pelo método catártico. Mas sou da opinião de que os obstáculos residiram nas circunstâncias pessoais das pacientes e não se deveram a qualquer questão de teoria. Sinto-me justificado a desconsiderar esses casos malsucedidos ao formar um juízo sobre o assunto, da mesma forma que um cirurgião despreza os casos de morte ocorridos sob anestesia, devido a hemorragia pós-operatória, sepsia acidental, etc., ao tomar uma decisão sobre uma nova técnica. Quando vier a abordar as dificuldades e os defeitos do processo, mais adiante, voltarei a uma consideração das falhas oriundas dessa fonte. | ver em [1].|

(2) O método catártico não deve ser considerado sem valor pelo fato de ser sintomático, e não causal, pois a rigor a terapia causal é, via de regra, uma terapia profilática; ela faz com que cessem quaisquer efeitos adicionais do agente nocivo, mas não elimina, necessariamente, os resultados que esse agente já causou. Em geral, uma segunda fase de tratamento é necessária para realizar esta segunda tarefa, e nos casos de histeria o método catártico é de valor inestimável para esse fim.

(3) Depois que um período de produção histérica, um paroxismo histérico agudo, é superado e tudo o que resta são sintomas histéricos sob a forma de fenômenos residuais, o método catártico é suficiente para todas as indicações e promove êxitos completos e permanentes. Tal quadro terapêutico favorável não raro é encontrado precisamente na esfera da vida sexual, graças às amplas oscilações da intensidade das necessidades sexuais e às complicações das condições necessárias para provocar um trauma sexual. Aqui o método catártico faz tudo o que se pode esperar dele, pois um médico não pode atribuir-se a tarefa de alterar uma constituição como a histérica. Deve contentar-se em eliminar os problemas a que tal constituição está inclinada e que podem decorrer dela em conjunto com as circunstâncias externas. Deve sentir-se satisfeito se o paciente recuperar sua capacidade de trabalho. Além disso, não precisa ficar desanimado quanto ao futuro, ao considerar a possibilidade de uma recaída. Ele está ciente do aspecto principal da etiologia das neuroses — que sua gênese é, em geral, sobredeterminada, que vários fatores precisam reunir-se para produzir esse resultado; e poderá ter esperança de que essa convergência não se repita de uma só vez, mesmo que alguns fatores etiológicos individuais permaneçam atuantes.

Talvez se possa objetar que, em casos de histeria como esse, em que a doença já completou seu curso, os sintomas residuais, de qualquer modo, desaparecem espontaneamente. Pode-se replicar, porém, que uma cura espontânea desse tipo muitas vezes não é rápida nem completa o bastante, e que pode ser ajudada num grau extraordinário por nossa intervenção terapêutica. Podemos deixar em aberto, por enquanto, a questão de se por meio da terapia catártica curamos apenas o que é passível de cura espontânea ou, algumas vezes, também o que não se teria dissipado espontaneamente.

(4) Quando nos defrontamos com uma histeria aguda, um caso que esteja atravessando o período da produção mais ativa de sintomas histéricos, no qual o ego seja constantemente subjugado pelos produtos da doença (isto é, durante uma psicose histérica), até mesmo o método catártico fará poucas alterações no aparecimento e na evolução do distúrbio. Nessas circunstâncias, vemo-nos, no que diz respeito à neurose, na mesma posição de um médico que se defronta com uma doença infecciosa aguda. Os fatores etiológicos realizaram suficientemente seu trabalho numa época que já passou e que está fora do alcance de qualquer influência; e agora, passado o período de incubação, eles se tornaram manifestos. A doença não pode ser interrompida de súbito. Temos de esperar que siga seu curso e, enquanto isso, tornar a situação do paciente tão favorável quanto possível. Quando, durante um período agudo como esse, eliminamos os produtos da doença, os sintomas histéricos recém-gerados, devemos também estar preparados para descobrir que aqueles que foram eliminados serão prontamente substituídos por outros. Não será poupado ao médico o sentimento deprimente de estar às voltas com uma tarefa de Sísifo. O imenso dispêndio de trabalho e a insatisfação da família do paciente, para quem a extensão inevitável de uma neurose aguda não tende a ser tão familiar quanto é o caso análogo de uma moléstia infecciosa aguda — em geral, estas e outras dificuldades provavelmente tornarão impossível, de qualquer modo, uma aplicação sistemática do método catártico. Não obstante, continua sendo um assunto para séria reflexão a questão de se é ou não verdade que, mesmo numa histeria aguda, a elucidação regular dos produtos da doença exerce uma influência curativa, ao apoiar o ego normal do paciente, que se acha ocupado no trabalho de defesa, e ao impedi-lo de ser subjugado e cair numa psicose, e talvez até num estado permanente de confusão.

O que o método catártico é capaz de realizar, mesmo na histeria aguda, e como pode até mesmo restringir a nova produção de sintomas patológicos, de uma forma que tem importância prática, é revelado de maneira bem clara pelo caso clínico de Anna O., em que Breuer aprendeu originalmente a empregar tal processo psicoterapêutico.

(5) Quando se trata de histerias que seguem um curso crônico, acompanhadas de uma produção moderada, mas constante, de sintomas histéricos, encontramos a mais forte razão para lamentar nossa falta de uma terapia que tenha eficácia causal, mas temos também os maiores motivos para apreciar o valor do processo catártico como terapia sintomática. Em tais casos temos que lidar com o dano produzido por uma etiologia que persiste de maneira crônica. Tudo depende de reforçar a capacidade de resistir do sistema nervoso do paciente, e devemos lembrar que a existência de um sintoma histérico significa uma diminuição da resistência do sistema nervoso e representa um fator que predispõe à histeria. Como se pode ver pelo mecanismo da histeria monossintomática, a maneira mais fácil de se formar um novo sintoma histérico é em relação e em analogia com outro que já esteja presente. O ponto no qual um sintoma já irrompeu uma vez (ver em [1]) constitui um ponto fraco onde ele irromperá novamente da vez seguinte. Um grupo psíquico que já tenha sido expelido uma vez desempenha o papel de cristal “provocador” a partir do qual se inicia, com a maior facilidade, uma cristalização que de outra forma não teria ocorrido | ver em [1]|. Eliminar os sintomas já presentes e desfazer as alterações psíquicas subjacentes a eles é devolver aos pacientes toda a sua capacidade de resistência, de modo que possam suportar com êxito os efeitos do agente prejudicial. Muito se pode fazer por esses pacientes através de uma supervisão prolongada e de uma “limpeza de chaminé” ocasional (ver em [1]).

(6) Resta-me citar a aparente contradição entre admitir que nem todos os sintomas histéricos são psicogênicos e afirmar que todos eles podem ser eliminados por um processo psicoterapêutico. A solução está no fato de que alguns desses sintomas não-psicogênicos (os estigmas, por exemplo), são, é verdade, sinais de doença, mas não podem ser classificados de moléstias e conseqüentemente não tem importância prática que eles persistam após o tratamento bem-sucedido da doença. Quanto a outros sintomas desses, parece que, de alguma forma indireta, eles são eliminados juntamente com os sintomas psicogênicos, do mesmo modo que, afinal, de alguma forma indireta dependem de uma causação psíquica.

 

Devo agora considerar as dificuldades e desvantagens de nosso processo terapêutico, na medida em que elas não se tornem óbvias para todos a partir dos casos clínicos relatados antes ou das observações sobre a técnica do método que se seguem mais adiante. Irei sobretudo enumerar e indicar essas dificuldades, e não entrar em pormenores sobre elas.

O processo é laborioso e exige muito tempo do médico. Pressupõe grande interesse pelos acontecimentos psicológicos, mas também um interesse pessoal pelos pacientes. Não consigo me imaginar sondando o mecanismo psíquico de uma histeria de alguém que me causasse a impressão de ser vulgar e repelente e que, num conhecimento mais íntimo, não fosse capaz de despertar solidariedade humana, ao passo que consigo manter o tratamento de um paciente tabético ou reumático, independentemente de uma aprovação pessoal desse tipo. As exigências feitas ao paciente não são menores. O processo não é de modo algum aplicável abaixo de certo nível de inteligência, sendo extremamente dificultado por qualquer vestígio de debilidade mental. A concordância e a atenção integrais dos pacientes são necessárias, mas, acima de tudo, é preciso contar com sua confiança, visto que a análise invariavelmente leva à revelação dos eventos psíquicos mais íntimos e secretos. Grande número dos pacientes que se adequariam a essa forma de tratamento abandonam o médico tão logo começam a suspeitar da direção para a qual a investigação está conduzindo. Para tais pacientes, o médico continua a ser um estranho. Com outros, que resolvem colocar-se em suas mãos e depositar sua confiança nele — um passo que em outras situações dessa natureza só é dado voluntariamente, e nunca a pedido do médico —, com esses pacientes, repito, é quase inevitável que sua relação pessoal com ele assuma indevidamente, pelo menos por algum tempo, o primeiro plano.Na verdade, parece que tal influência por parte do médico é uma condição sine qua non para a solução do problema. Não penso que faça qualquer diferença essencial, nesse sentido, se a hipnose poderá ser utilizada ou se terá que ser contornada e substituída por outra coisa. Mas a razão exige que ressaltemos o fato de que esses obstáculos, embora inseparáveis de nosso método, não podem ser atribuídos unicamente a ele. Pelo contrário, está bastante claro que eles se baseiam nas condições predeterminantes das neuroses a serem curadas e que têm de estar ligados a qualquer atividade médica que envolva uma intensa preocupação com o paciente e conduza a uma modificação psíquica nele. Não pude atribuir nenhum efeito deletério ou qualquer perigo ao emprego da hipnose, embora a tenha usado abundantemente em alguns de meus casos. Nas situações em que causei algum dano, as razões foram outras e mais profundas. Ao examinar meus esforços terapêuticos desses últimos anos, desde que as comunicações feitas por meu estimado mestre e amigo Josef Breuer me mostraram a utilidade do método catártico, creio que, apesar de tudo, fiz muito mais, e com maior freqüência, o bem do que o mal, e consegui algumas coisas que nenhum outro processo terapêutico poderia ter alcançado. De modo geral, como disse a “Comunicação Preliminar”, ele trouxe “consideráveis vantagens terapêuticas” | ver em [1]|.

Há uma outra vantagem no uso desse processo que devo ressaltar. Não conheço melhor forma de começar a compreender um caso grave de neurose complicada, com maior ou menor mistura de histeria, do que submetendo-o a uma análise pelo método de Breuer. A primeira coisa que acontece é o desaparecimento de qualquer coisa que exiba um mecanismo histérico. Entrementes, aprendi, no curso das análises, a interpretar os fenômenos residuais e a traçar-lhes a etiologia, e assim assegurei uma base firme para decidir qual das armas do arsenal terapêutico contra as neuroses é indicada no caso em questão. Ao refletir sobre a diferença que costumo encontrar entre meu julgamento sobre um caso de neurose antes e depois de uma análise, sinto-me quase inclinado a considerar a análise essencial à compreensão de uma doença neurótica. Além disso, adotei o hábito de combinar a psicoterapia catártica com uma cura de repouso, que pode, se necessário, estender-se a um tratamento completo de dieta alimentar nos moldes de Weir Mitchell. Isso me dá a vantagem de poder, por um lado, evitar a introdução muito perturbadora de novas impressões psíquicas durante a psicoterapia, e, por outro, eliminar o tédio de uma cura de repouso, na qual os pacientes não raro caemno hábito de entregar-se a devaneios prejudiciais. Poder-se-ia esperar que o trabalho psíquico, freqüentemente muito intenso, imposto aos pacientes durante um tratamento catártico, bem como as excitações resultantes da reprodução de experiências traumáticas, fossem de encontro às intenções do método da cura de repouso de Weir Mitchell e prejudicassem os êxitos que estamos acostumados a vê-lo trazer. Mas é o oposto que de fato se verifica. Uma combinação dos métodos de Breuer e de Weir Mitchell produz todas as melhoras físicas que esperamos deste último, além de ter uma influência psíquica de grande amplitude, que jamais resulta de uma cura de repouso sem psicoterapia.

 

 

(2)

 

Voltarei agora a minha observação anterior | ver em [1]| de que, em minhas tentativas de aplicar mais amplamente o método de Breuer, deparei com a dificuldade de que muitos pacientes não eram hipnotizáveis, embora seu diagnóstico fosse de histeria e parecesse provável que o mecanismo psíquico por nós descrito atuasse neles. Eu precisava da hipnose para ampliar-lhes a memória, a fim de descobrir as lembranças patogênicas que não estavam presentes em seu estado comum de consciência. Assim, eu era obrigado a desistir da idéia de tratar tais pacientes, ou a me esforçar por promover essa ampliação de alguma outra forma.

Eu era tão incapaz quanto qualquer outra pessoa de explicar por que uma pessoa pode ser hipnotizada e outra não, e assim não podia adotar um método causal para enfrentar essa dificuldade. Notei, contudo, que em alguns pacientes o obstáculo era ainda mais arraigado: eles recusavam até mesmo qualquer tentativa de hipnose. Ocorreu-me então, um dia, a idéia de que os dois casos poderiam ser idênticos e de que ambos poderiam significar uma indisposição: que as pessoas não hipnotizáveis eram as que faziam uma objeção psíquica à hipnose, quer sua objeção se expressasse como má vontade ou não. Não está claro para mim se posso manter este ponto de vista.

O problema, porém, estava em como contornar a hipnose e, ainda assim, obter as lembranças patogênicas. Consegui fazer isso da maneira que relato a seguir.

Quando, em nossa primeira entrevista, eu perguntava a meus pacientes se se recordavam do que tinha originariamente ocasionado o sintoma em questão, em alguns casos eles diziam não saber nada a esse respeito,enquanto, em outros, traziam à baila algo que descreviam como uma lembrança obscura e não conseguiam prosseguir. Quando, seguindo o exemplo de Bernheim ao provocar em seus pacientes impressões provenientes do estado sonambúlico que tinham aparentemente sido esquecidas (ver em [1] e seg.), eu me tornava insistente — quando lhes assegurava que eles efetivamente sabiam, que aquilo lhes viria à mente — então, nos primeiros casos, algo de fato lhes ocorria, e nos outros a lembrança avançava mais um pouco. Depois disso, eu ficava ainda mais insistente: dizia aos pacientes que se deitassem e fechassem deliberadamente os olhos a fim de se “concentrarem” — o que tinha pelo menos alguma semelhança com a hipnose. Verifiquei então que, sem nenhuma hipnose, surgiam novas lembranças que recuavam ainda mais no passado e que provavelmente se relacionavam com nosso tema. Experiências como essas fizeram-me pensar que seria de fato possível trazer à luz, por mera insistência, os grupos patogênicos de representações que, afinal de contas, por certo estavam presentes. E visto que essa insistência exigia esforços de minha parte, e assim sugeria a idéia de que eu tinha de superar uma resistência, a situação conduziu-me de imediato à teoria de que, por meio de meu trabalho psíquico, eu tinha de superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes (fossem lembradas). Uma nova compreensão pareceu abrir-se ante meus olhos quando me ocorreu que esta sem dúvida deveria ser a mesma força psíquica que desempenhara um papel na geração do sintoma histérico e que, na época, impedira que a representação patogênica se tornasse consciente. Que espécie de força poder-se-ia supor que estivesse em ação ali, e que motivo poderia tê-la posto em ação? Pude formar com facilidade uma opinião sobre isso, pois já dispunha de algumas análises concluídas em que viera a conhecer exemplos de representações que eram patogênicas e que tinham sido esquecidas e expulsas da consciência. A partir desses exemplos, reconheci uma característica universal de tais representações: eram todas de natureza aflitiva, capazes de despertar afetos de vergonha, de autocensura e de dor psíquica, além do sentimento de estar sendo prejudicado; eram todas de uma espécie que a pessoa preferiria não ter experimentado, que preferiria esquecer. De tudo isso emergiu, como que de forma automática, a idéia de defesa. Com efeito, em geral os psicólogos têm admitido que a aceitação de uma nova representação (aceitação no sentido de crer ou de reconhecer como real) depende da natureza e tendência das representações já reunidas no ego, e inventaram nomes técnicos especiais para esse processo de censura a que a nova representação deve submeter-se. O ego do paciente teria sido abordado por uma representação que se mostrara incompatível, o que provocara, por parte do ego, uma força de repulsão cuja finalidade seria defender-se da representação incompatível. Essa defesa seria de fato bem-sucedida. A representação em questão fora forçada para fora da consciência e da memória. Seu traço psíquico foi aparentemente perdido de vista. Não obstante, esse traço deveria estar ali. Quando eu me esforçava por dirigir a atenção do paciente para ele, apercebia-me, sob a forma de resistência, da mesma força que se mostrara sob a forma de repulsão quando o sintoma fora gerado. Ora, se eu pudesse fazer com que parecesse provável que a representação se tornara patogênica precisamente em conseqüência de sua expulsão e de seu recalcamento, a cadeia pareceria completa. Em várias discussões sobre nossos casos clínicos e num breve artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), tentei esboçar as hipóteses psicológicas com cuja ajuda essa ligação causal — o fato da conversão — pode ser demonstrada.

Assim, uma força psíquica, uma aversão por parte do ego, teria originariamente impelido a representação patogênica para fora da associação e agora se oporia a seu retorno à memória. O “não saber” do paciente histérico seria, de fato, um “não querer saber” — um não querer que poderia, em maior ou menor medida, ser consciente. A tarefa do terapeuta, portanto, está em superar, através de seu trabalho psíquico, essa resistência à associação. Ele o faz, em primeiro lugar, “insistindo”, usando a compulsão psíquica para dirigir a atenção dos pacientes para os traços representativos que está buscando. Seus esforços, contudo, não se esgotam aí, mas, como demonstrarei, assumem outras formas no decorrer da análise e recorrem a outras forças psíquicas para assistir-lhes.

Devo repisar um pouco mais a questão da insistência. As simples afirmações do tipo “é claro que você sabe”, “diga-me assim mesmo” ou “você logo se lembrará” não nos levam muito longe. Mesmo com pacientes num estado de “concentração”, o fio da meada se quebra após algumas frases. Não se deve esquecer, entretanto, que se trata sempre aqui de uma comparação quantitativa, de uma luta entre forças motivacionais de diferentes graus de vigor ou intensidade. A insistência por parte de um médico estranho, não familiarizado com o que está acontecendo, não é poderosa o bastante para lidar com a resistência à associação nos casos graves de histeria. Devemos pensar em meios mais vigorosos.

Nessas circunstâncias, valho-me em primeiro lugar de um pequeno artifício técnico. Informo ao paciente que, um momento depois, farei pressão sobre sua testa, e lhe asseguro que, enquanto a pressão durar, ele verá diante de si uma recordação sob a forma de um quadro, ou a terá em seus pensamentos sob a forma de uma idéia que lhe ocorra; e lhe peço encarecidamente que me comunique esse quadro ou idéia, quaisquer que sejam. Não deve guardá-los para si se acaso achar que não é o que se quer, ou não são a coisa certa, nem por ser-lhe desagradável demais contá-lo. Não deve haver nenhuma crítica, nenhuma reticência, quer por motivos emocionais, quer porque os julgue sem importância. Só assim podemos encontrar aquilo que estamos procurando, mas assim o encontraremos infalivelmente. Depois de dizer isso, pressiono por alguns segundos a testa do paciente deitado diante de mim; em seguida, relaxo a pressão e pergunto calmamente, como se não houvesse nenhuma hipótese de decepção: “que você viu?”, ou “que lhe ocorreu?”

Esse método muito me ensinou e também nunca deixou de alcançar sua finalidade. Hoje, não posso mais passar sem ele. Naturalmente, estou ciente de que a pressão na testa poderia ser substituída por qualquer outro sinal, ou por algum outro exercício de influência física sobre o paciente, mas, já que o paciente está deitado diante de mim, pressionar sua testa ou tomar-lhe a cabeça entre minhas mãos parece ser o modo mais conveniente de empregar a sugestão para a finalidade que tenho em vista. Ser-me-ia possível dizer, para explicar a eficácia desse artifício, que ele corresponde a uma “hipnose momentaneamente intensificada”, mas o mecanismo da hipnose me é tão enigmático que eu preferiria não utilizá-lo como explicação. Sou, antes, de opinião que a vantagem do processo reside no fato de que, por meio dele, desvio a atenção do paciente de sua busca e reflexão conscientes — de tudo, em suma, em que ele possa empregar sua vontade — do mesmo modo que isso é feito quando se olha fixamente para uma bola de cristal, e assim por diante. A conclusão que tiro do fato de que o que estou procurando sempre aparece sob a pressão de minha mão é a seguinte: a representação patogênica aparentemente esquecida está sempre “à mão” e pode ser alcançada por associações facilmente acessíveis. É uma simples questão de retirar algum obstáculo do caminho. Este obstáculo parece, mais uma vez, ser a vontade do sujeito, e diferentes pessoas podem aprender, com diferentes graus de facilidade, a se liberar de seu pensamento intencional e a adotar uma atitude de observação inteiramente objetiva dos processos psíquicos que nelas se verificam.

O que emerge sob a pressão de minha mão nem sempre é uma lembrança “esquecida”; apenas nos casos mais raros é que as lembranças patogênicas reais acham-se tão facilmente à mão na superfície. É muito mais freqüente o surgimento de uma representação que é um elo intermediário na cadeia de associações entre a representação da qual partimos e a representação patogênica que procuramos; ou pode ser uma representação que constitui o ponto de partida de uma nova série de pensamentos e lembranças, ao fim da qual a representação patogênica será encontrada. É verdade que, quando isso acontece, minha pressão não revela a representação patogênica — que, de qualquer modo, seria incompreensível, arrancada de seu contexto e sem que se fosse levado até ela — mas aponta o caminho para ela e indica o sentido em que se devem fazer maiores pesquisas. A representação provocada em primeiro lugar pela pressão nesses casos pode ser uma lembrança familiar que nunca foi recalcada. Quando em nosso caminho para a representação patogênica o fio se interrompe mais uma vez, é necessária apenas uma repetição do processo, da pressão, para nos dar novas orientações e um novo ponto de partida.

Ainda em outras ocasiões a pressão da mão provoca uma lembrança que é em si mesma familiar ao paciente, mas cujo surgimento o surpreende por ele ter-se esquecido de sua relação com a representação de que partimos. Essa relação é então confirmada no desenvolvimento subseqüente da análise. Todas essas conseqüências da pressão dão-nos uma impressão ilusória de haver uma inteligência superior fora da consciência do paciente, que mantém um grande volume de material psíquico organizado para fins específicos e fixou uma ordem planejada para seu retorno à consciência. Suspeito, porém, de que essa segunda inteligência inconsciente nada mais seja do que uma aparência.

Em toda análise mais ou menos complicada, o trabalho é efetuado pelo uso repetido, na verdade contínuo, desse método de pressão sobre a testa. Algumas vezes, partindo de onde a retrospectiva de vigília do paciente se interrompe, esse procedimento aponta o outro caminho a seguir através das lembranças das quais o paciente permaneceu consciente; por vezes, chama a atenção para ligações que foram esquecidas; noutras, evoca e organiza lembranças que foram retiradas das associações por muitos anos, mas que ainda podem ser reconhecidas como lembranças; e às vezes, por fim, como auge de sua realização em termos do pensamento reprodutivo, ele faz com que emerjam pensamentos que o paciente jamais reconhece como seus, dos quais nunca se recorda, embora admita que o contexto os exige inexoravelmente e se convença de que são precisamente essas idéias que levam à conclusão da análise e à eliminação de seus sintomas.

 

Tentarei enumerar alguns exemplos dos excelentes resultados obtidos com esse procedimento técnico.

Tratei de uma moça que sofria de intolerável tussis nervosa que se arrastava por seis anos. Sua tosse obviamente se alimentava de qualquer catarro comum, mas, não obstante, devia ter fortes motivações psíquicas. Todos os outros tipos de terapia há muito se haviam mostrado impotentes contra ela. Portanto, tentei eliminar o sintoma por meio da análise psíquica. Tudo o que a jovem sabia era que sua tosse nervosa começara quando, na idade de quatorze anos, ela estava morando com uma tia. Ela sustentava não saber de quaisquer agitações mentais naquela época, e não acreditava que houvesse nenhum motivo para sua queixa. Sob a pressão de minha mão, ela se lembrou, em primeiro lugar, de um grande cachorro. Em seguida, reconheceu o quadro em sua memória: era um cão de sua tia que ficara afeiçoado à paciente, acompanhava-a por toda parte, e assim por diante. E então lhe ocorreu, sem maior instigação, que esse cão havia morrido, que as crianças o enterraram com solenidade e que a tosse havia começado na volta do enterro. Perguntei-lhe por que, mas tive mais uma vez que recorrer à ajuda da pressão. Veio-lhe então o seguinte pensamento: “Agora estou inteiramente só no mundo. Ninguém aqui me ama. Esse animal era meu único amigo, e agora eu o perdi.” Prosseguiu com sua história: “A tosse desapareceu quando deixei a casa de minha tia, mas voltou dezoito meses depois.” “Por quê?” “Não sei.” Usei novamente a pressão. Ela se lembrou da notícia da morte do tio, quando a tosse começara de novo, e também se lembrou de ter tido uma cadeia de pensamentos semelhante. O tio parece ter sido o único membro da família que mostrara qualquer afeição por ela, que a havia amado. Ali estava, portanto, a representação patogênica. Ninguém a amava, preferiam qualquer outro a ela, ela não merecia ser amada, e assim por diante. Mas havia alguma coisa vinculada à representação de “amor” que ela mostrava forte resistência em me contar. A análise foi interrompida antes que isso fosse esclarecido.

Há algum tempo pediram-me que aliviasse uma senhora idosa de seus ataques de angústia, embora, a julgar por seus traços de caráter, ela dificilmente se prestasse a um tratamento dessa espécie. Desde a menopausa ela ficara excessivamente devota, e em cada visita costumava receber-me armada de um pequeno crucifixo de marfim oculto em sua mão, como se eu fosse o Demônio. Seus ataques de angústia, que eram de natureza histérica, remontavam aos primeiros anos da juventude e, de acordo com a paciente, haviam-se originado do uso de um preparado de iodo destinado a reduzir um discreto crescimento de sua tireóide. Naturalmente, rejeitei essa origem e tentei encontrar outra que se harmonizasse melhor com meus pontos de vista sobre a etiologia das neuroses. Pedi-lhe primeiro que me desse alguma impressão de sua juventude que tivesse uma relação causal com seus ataques de angústia e, sob a pressão de minha mão, surgiu a lembrança de ela ter lido o que é chamado de livro “edificante”, no qual se fazia uma menção, em tom suficientemente respeitoso, aos processos sexuais. O trecho em questão causara na moça uma impressão inteiramente oposta à intenção do autor: ela irrompera em lágrimas e arremessara o livro para longe. Isso foi antes de seu primeiro ataque de angústia. Uma segunda pressão sobre a testa da paciente evocou outra reminiscência — a lembrança de um tutor de seus irmãos que havia manifestado grande admiração por ela, e por quem ela própria nutrira sentimentos um tanto calorosos. Essa lembrança culminou com a reconstituição de uma noite na casa de seus pais, quando todos se haviam sentado em torno da mesa com o rapaz e se haviam divertido imensamente numa animada conversa. Na madrugada seguinte a essa noite, ela foi despertada por seu primeiro ataque de angústia, que, pode-se afirmar com segurança, teve mais a ver com o repúdio de um impulso sensual do que com quaisquer doses concomitantes de iodo. — Que perspectiva teria eu tido, com qualquer outro método, de revelar tal ligação, contra suas próprias opiniões e asserções, nessa paciente recalcitrante que tinha tantos preconceitos contra mim e contra qualquer forma de terapia comum?

Outro exemplo diz respeito a uma mulher jovem e bem-casada. Ainda nos primeiros anos de sua adolescência, ela costumava por algum tempo ser encontrada todas as manhãs num estado de estupor, com os membros rígidos, a boca aberta e a língua para fora; e agora, mais uma vez, estava sofrendo, ao despertar, de acessos que eram semelhantes, embora não tão graves. Como a hipnose profunda se revelou inobtenível, comecei a investigar enquanto ela estava num estado de concentração. À primeira pressão, assegurei-lhe que ela veria algo que estava diretamente relacionado com as causas de seu estado na infância. Ela era tranqüila e cooperativa. Viu mais uma vez a casa em que passara os primeiros anos de sua juventude, seu próprio quarto, a posição de sua cama, a avó, que morava com eles naquela época, e uma de suas governantas, de quem gostava muito. Algumas pequenas cenas, todas sem importância, ocorridas nesses aposentos e em meio a essas pessoas, sucederam-se umas às outras; terminaram com a partida da governanta, que fora embora para se casar. Não pude depreender absolutamente nada dessas reminiscências; não consegui estabelecer nenhuma relação entre elas e a etiologia dos ataques. Várias circunstâncias mostravam, contudo, que elas pertenciam ao mesmo período em que os ataques haviam surgido. Mas antes que eu pudesse prosseguir na análise, tive oportunidade de conversar com um colega que, anos antes, fora o médico da família dos pais de minha paciente. Ele me deu a seguinte informação: na época em que tratara da menina por causa de seus primeiros ataques, ela se aproximava da maturidade e já era muito desenvolvida fisicamente, e ele ficara surpreso com a excessiva afetuosidade que havia na relação entre ela e a governanta que estava na casa na ocasião. Ficara desconfiado e induziu a avó a manter vigilância sobre aquele relacionamento. Após um curto período, a senhora pôde informá-lo de que a governanta tinha o hábito de visitar a menina na cama à noite e que, após essas noites, a criança era invariavelmente encontrada na manhã seguinte presa de um ataque. Depois disso, não hesitaram em providenciar o discreto afastamento dessa corruptora de jovens. As crianças e até mesmo a mãe foram levadas a crer que a governanta partira a fim de se casar. — Minha terapia, que teve sucesso imediato, consistiu em transmitir à jovem senhora as informações que eu recebera.

Às vezes, as revelações que se obtêm através do método da pressão aparecem de forma muito marcante e em circunstâncias que tornam ainda mais tentadora a suposição de haver uma inteligência inconsciente. Assim, lembro-me de uma senhora que sofrera durante muitos anos de obsessões e fobias e que me indicou a infância como gênese de sua moléstia, mas que era também totalmente incapaz de dizer a que se poderia atribuir a culpa por esta última. Ela era franca e inteligente e opunha apenas uma resistência consciente notavelmente pequena. (Posso observar entre parênteses que o mecanismo psíquico das obsessões tem uma afinidade interna muito grande com os sintomas histéricos, e que a técnica de análise é a mesma para ambos.) Quando perguntei a essa senhora se vira alguma coisa ou recordara algo sob a pressão de minha mão, ela respondeu: “Nem uma coisa nem outra, mas de repente uma palavra me ocorreu.” “Uma única palavra?” “Sim, mas parece tola demais.” “De qualquer maneira, diga-a.” “Porteiro.” “Nada mais?” “Não.” Pressionei uma segunda vez e de novo uma palavra isolada lhe atravessou a mente: “Camisola.” Vi então que essa era uma nova espécie de método de resposta e, pressionando repetidas vezes, trouxe à tona o que parecia ser uma série de palavras sem sentido: “Porteiro” … “camisola” … “cama” … “carroça”. “O que significa tudo isso?”, perguntei. Ela refletiu um momento e a seguinte idéia lhe ocorreu: “Deve ser a história que acaba de me vir à mente. Quando eu tinha dez anos, e minha irmã mais velha, doze, certa noite ela enlouqueceu e teve que ser amarrada e levada para a cidade numa carroça. Lembro perfeitamente que foi o porteiro que a dominou e depois também foi com ela ao hospício.” Seguimos esse método de investigação e nosso oráculo produziu outra série de palavras que, embora não fôssemos capazes de interpretar todas, tornaram possível continuar essa história e passar para outra. Além disso, o significado dessa reminiscência ficou logo claro. A doença da irmã causara nela essa impressão tão profunda porque as duas partilhavam um segredo; dormiam no mesmo quarto e, uma noite, ambas sofreram as investidas sexuais de certo homem. A menção desse trauma sexual na infância da paciente revelou não apenas a origem de suas primeiras obsessões como também o trauma que em seguida produziu os efeitos patogênicos.

A peculiaridade desse caso estava apenas na emergência de palavras-chave isoladas, que tivemos de elaborar em frases, pois a aparente incoerência e impropriedade que caracterizavam as palavras enunciadas dessa forma oracular aplicam-se tanto às representações quanto às cenas completas que são normalmente produzidas sob minha pressão. Quando estas são acompanhadas, nunca se deixa de constatar que as reminiscências aparentemente desconexas se acham ligadas de modo estreito no pensamento e conduzem de forma bastante direta ao fator patogênico que estamos buscando. Por essa razão, apraz-me recordar um caso de análise no qual minha confiança nos produtos da pressão foi, de início, submetida a um rigoroso teste, mas depois brilhantemente justificada.

Uma jovem mulher casada, muito inteligente e aparentemente feliz, consultara-me sobre uma dor persistente no abdome, que resistia ao tratamento. Vi que a dor estava situada na parede abdominal e devia relacionar-se com indurações musculares palpáveis, e prescrevi um tratamento local. Alguns meses depois, tornei a examinar a paciente, e ela me disse: “A dor que eu sentia desapareceu após o tratamento que o senhor recomendou, e permaneceu assim por muito tempo. Mas agora ela voltou sob uma forma nervosa. Sei que é nervosa porque não é mais como eu costumava senti-la, ao fazer certos movimentos, mas só em certas ocasiões — por exemplo, quando acordo de manhã e quando fico agitada de certas maneiras.” O diagnóstico dessa jovem senhora estava certo. Tratava-se agora de descobrir a causa da dor, e ela não conseguiu ajudar-me nisso enquanto se achava num estado de consciência não influenciado. Quando lhe perguntei, em concentração e sob a pressão de minha mão, se algo lhe ocorria ou se via alguma coisa, ela me disse estar vendo e começou a descrever suas imagens visuais. Viu algo como um sol cheio de raios, que naturalmente tomei como um fosfeno produzido pela pressão nos olhos. Eu esperava que algo mais útil se seguisse. Mas ela prosseguiu: “Estrelas de uma curiosa luz azul-pálido, como o luar” e assim por diante, que julguei não serem mais do que cintilações, clarões e pontos brilhantes diante dos seus olhos. Já estava preparado para considerar a experiência como um fracasso e imaginava como poderia fazer uma retirada discreta do caso, quando minha atenção foi atraída por um dos fenômenos que ela descreveu. Viu uma grande cruz negra, inclinada, que tinha em volta de seus contornos o mesmo brilho luminoso com que todos os seus outros quadros haviam brilhado, e em cuja viga transversal bruxuleava uma pequena chama. Era claro que não podia mais tratar-se de um fosfeno. Passei então a escutar com atenção. Inúmeros quadros apareceram banhados na mesma luz, sinais curiosos que se pareciam muito com o sânscrito; figuras como triângulos, entre elas um grande triângulo; de novo a cruz… Dessa vez, suspeitei de um significado alegórico e perguntei o que poderia ser a cruz. “Provavelmente significa sofrimento”, respondeu. Objetei que por “cruz” em geral se quer dizer responsabilidade moral. Que estaria oculto por trás do sofrimento? Ela não soube dizer e prosseguiu com suas visões: um sol com raios dourados. E a isso também pôde interpretar: “É Deus, a força primeva.” Surgiu então um lagarto gigantesco que a contemplava de maneira inquisidora, mas não alarmante. A seguir, um grande número de cobras. Depois, mais uma vez, um sol, mas de raios suaves e prateados, e à sua frente, entre ela e essa fonte de luz, uma grade que escondia dela o centro do sol. Eu já sabia há algum tempo que estava lidando com alegorias e de imediato perguntei qual o sentido dessa última imagem. Ela respondeu sem hesitar: “O sol é a perfeição, o ideal, e a grade representa minhas fraquezas e falhas, que se interpõem entre mim e o ideal.” “A senhora está então se recriminando? Está insatisfeita consigo mesma?” “Na verdade, estou.” “Desde quando?” “Desde que passei a ser membro da Sociedade Teosófica e tenho lido suas publicações. Sempre me tive em baixa conta.” “O que lhe causou a mais forte impressão recentemente?” “Uma tradução do sânscrito que agora mesmo está saindo em fascículos.” Um momento depois eu era introduzido em suas lutas mentais e suas auto-recriminações e ouvia o relato de um episódio insignificante que dera margem à autocensura — uma ocasião na qual o que antes fora uma dor orgânica surgiu pela primeira vez como conseqüência da conversão de uma excitação. Os quadros que eu a princípio tomara por fosfenos eram símbolos de seqüências de representações influenciadas pelas ciências ocultas e, na verdade, talvez fossem emblemas provenientes das páginas de frontispício de livros de ocultismo.

 

Até aqui, tenho sido tão entusiasmado em meus louvores aos resultados da pressão como método auxiliar, e durante todo o tempo tenho negligenciado de tal maneira o aspecto da defesa ou resistência que, sem dúvida, deve ter dado a impressão de que esse pequeno artifício nos deixou em condições de dominar os obstáculos psíquicos a um tratamento catártico. Mas acreditar nisso seria cometer um grave erro. Êxitos dessa espécie, pelo que sei, não devem ser procurados no tratamento. Aqui, com em tudo o mais, uma grande mudança exige um grande volume de trabalho. A técnica da pressão nada mais é do que um truque para apanhar temporariamente desprevenido um ego ansioso por defender-se. Em todos os casos mais ou menos graves o ego torna a relembrar seus objetivos e oferece resistência.

Preciso mencionar as diferentes formas em que surge essa resistência. Uma delas é que, em geral, a técnica da pressão falha na primeira ou segunda ocasião. O paciente então declara, com grande desapontamento: “Esperava que alguma coisa me ocorresse, mas tudo em que pensei foi no grau de tensão com que estava esperando por isso. Não surgiu nada.” O fato de o paciente pôr-se assim em guarda ainda não chega a constituir um obstáculo. Podemos dizer em resposta: “é precisamente porque você estava curioso demais: da próxima vez dará resultado.” E de fato dá. É notável a freqüência com que os pacientes, mesmo os mais dóceis e inteligentes, conseguem esquecer-se por completo de seu compromisso, embora tenham concordado com ele de antemão. Uns prometem dizer o que quer que lhes ocorra sob a pressão de minha mão, independentemente de lhes parecer pertinente ou não e de lhes ser ou não agradável dizê-lo — isto é, prometem dizê-lo sem selecionar e sem serem influenciados pela crítica ou pelo afeto. Mas não cumprem essa promessa; evidentemente, fazê-lo está além de suas forças. O trabalho torna a ser paralisado, e eles continuam a dizer que dessa vez nada lhes ocorreu. Não devemos crer no que dizem; devemos sempre presumir, e dizer-lhes também, que eles retiveram algo porque o julgaram sem importância ou o acharam aflitivo. Devemos insistir nisso, devemos repetir a pressão e representar o papel de infalíveis, até que afinal nos contem alguma coisa. O paciente então acrescenta: “Eu poderia ter-lhe dito isso desde a primeira vez.” “Por que não disse?” “Não consegui acreditar que pudesse ser isso. Foi só quando continuou voltando todas as vezes que resolvi dizê-lo.” Ou então: “Esperava que não fosse logo isso. Eu poderia muito bem passar sem dizê-lo.Foi só quando isso se recusou a ser repelido que vi que não devia desprezá-lo.” Assim, a posteriori, o paciente trai os motivos de uma resistência que, de início, se recusava a admitir. É evidente que ele é incapaz de fazer outra coisa senão opor resistência.

Essa resistência muitas vezes se oculta por trás de notáveis desculpas. “Minha cabeça hoje está distraída; o relógio (ou o piano da sala ao lado) está me perturbando.” Aprendi a responder a tais observações: “De modo algum. Neste momento você esbarrou em alguma coisa que preferiria não dizer. Isso não lhe fará nenhum bem. Continue a pensar nela.” Quanto mais longa a pausa entre a pressão de minha mão e o momento em que o paciente começa a falar, mais desconfiado fico e mais se deve temer que o paciente esteja reorganizando o que lhe surgiu e o esteja mutilando em sua reprodução. Uma informação importantíssima é muitas vezes anunciada como sendo um acessório redundante, como um príncipe de ópera disfarçado de mendigo. “Agora me ocorreu uma coisa, mas não tem nada a ver com o assunto. Só estou lhe dizendo porque o senhor quer saber de tudo.” Palavras como essas em geral introduzem a solução há muito procurada. Sempre aguço os ouvidos quando ouço um paciente falar de forma tão depreciativa de algo que lhe ocorreu, pois é sinal de que a defesa foi bem-sucedida se as representações patogênicas parecem ter tão pouca importância ao reemergiram. Disso podemos inferir em que consistiu o processo de defesa: consistiu em transformar uma representação forte numa representação fraca, em roubá-la de seu afeto.

Portanto, uma lembrança patogênica é reconhecível, entre outras coisas, pelo fato de o paciente a descrever como sem importância e, não obstante, só enunciá-la sob resistência. Também existem casos em que o paciente tenta renegá-la mesmo após seu retorno. “Agora me ocorreu uma coisa, mas é óbvio que foi o senhor que a pôs em minha cabeça.” Ou então: “Sei o que o senhor espera que eu responda. É claro que acredita que pensei nisto ou naquilo.” Um método particularmente hábil de recusa está em dizer: “Agora me ocorreu uma coisa, é verdade, mas é como se eu a tivesse provocado de propósito. Não parece de modo algum ser um pensamento reproduzido.” Em todos esses casos, permaneço inabalavelmente firme. Evito entrar em qualquer uma dessas distinções, mas explico ao paciente que elas são apenas formas de sua resistência e pretextos por ela levantados contra a reprodução dessa lembrança em particular, que devemos reconhecer apesar de tudo isso.

Quando as lembranças retornam sob a forma de imagens, nossa tarefa costuma ser mais fácil do que quando voltam como pensamentos. Os pacientes histéricos, que em geral são do tipo “visual”, não oferecem tantas dificuldades ao analista quanto aqueles que têm obsessões.

 

Uma vez surgida uma imagem na memória do paciente, podemos ouvi-lo dizer que ela vai se tornando fragmentada e obscura à medida que ele continua a descrevê-la. O paciente está, por assim dizer, livrando-se dela ao transformá-la em palavras. Passamos a examinar a própria imagem lembrada para descobrir a direção em que nosso trabalho deve prosseguir. “Olhe para a imagem mais uma vez. Ela desapareceu?” “A maior parte, sim, mas ainda vejo um detalhe.” “Então esse resíduo ainda deve significar alguma coisa. Ou você verá alguma coisa nova além dele, ou algo lhe ocorrerá em ligação com ele.” Realizado esse trabalho, o campo de visão do paciente volta a ficar limpo e podemos evocar outro quadro. Em outras ocasiões, porém, uma dessas imagens permanece obstinadamente diante da visão interior do paciente, apesar de ele a ter descrito; para mim, isso é um indício de que ele ainda tem algo importante a me dizer sobre o tema da imagem. Tão logo isso é feito, a imagem desaparece, como um fantasma que fosse exorcizado.

Naturalmente, é de grande importância para o progresso da análise que o analista sempre mostre ter razão diante do paciente, caso contrário ficará sempre na dependência do que este resolver contar. Assim, é reconfortante saber que a técnica da pressão na verdade nunca falha, afora um único caso, que terei de examinar depois | ver em [1] e segs.|, mas do qual posso dizer desde logo que corresponde a um motivo particular para a resistência. Pode acontecer, é claro, que se faça uso do método em circunstâncias em que ele nada tenha a revelar. Por exemplo, podemos procurar a etiologia adicional de um sintoma quando já o temos por completo diante de nós, ou podemos investigar a genealogia psíquica de um sintoma, como uma dor, que de fato seja somático. Nesses casos, o paciente também afirmará que nada lhe ocorreu, e dessa vez terá razão. Podemos evitar cometer injustiças contra o paciente se nos habituarmos, como norma geral durante toda a análise, a observar-lhe a expressão facial quando ele estiver deitado em silêncio diante de nós. Assim poderemos aprender a distinguir sem dificuldade o sereno estado de ânimo que acompanha a verdadeira ausência de lembranças, da tensão e dos sinais de emoção com que ele tenta recusar a lembrança emergente, em obediência à defesa. Além disso, experiências como essa também possibilitam o uso da técnica da pressão para fins de diagnóstico diferencial.

Assim, mesmo com a assistência da técnica da pressão, de maneira alguma o trabalho é fácil. A vantagem que obtemos é descobrir, pelos resultados desse método, a direção em que temos de conduzir nossas indagações e as coisas em que temos de insistir junto ao paciente. Em alguns casos isso basta. O ponto principal é que devo adivinhar o segredo e dizê-lo diretamente ao paciente, sendo ele, em geral, obrigado a não mais rejeitá-lo.Em outros casos, mais alguma coisa é necessária. A persistente resistência do paciente é indicada pelo fato de que as ligações se interrompem, as soluções não aparecem e as imagens são recordadas de forma indistinta e incompleta. Voltando a olhar de um período posterior para um período anterior da análise, muitas vezes ficamos atônitos diante da maneira mutilada com que surgiram todas as idéias e cenas que extraímos do paciente pelo método da pressão. Precisamente os elementos essenciais do quadro estavam faltando — a relação do quadro com o próprio paciente ou com os principais conteúdos de seus pensamentos — e eis por que ele permanecia ininteligível.

Darei um ou dois exemplos da forma pela qual uma censura dessa espécie atua quando surgem pela primeira vez as lembranças patogênicas. Por exemplo, o paciente vê a parte superior de um corpo de mulher com o vestido mal fechado — por descuido, parece. Só muito depois é que ele coloca uma cabeça nesse tronco e assim revela uma determinada pessoa e sua relação com ela. Ou ele evoca de sua infância uma reminiscência sobre dois meninos. A aparência deles lhe é inteiramente obscura, mas ele diz que são culpados de algum malfeito. Só muitos meses depois, após a análise ter feito grandes progressos, é que ele revê essa reminiscência e se reconhece numa das crianças, e seu irmão na outra.

De que meios dispomos para superar essa resistência contínua? Poucos, mas abrangem quase todos pelos quais um homem pode comumente exercer uma influência psíquica sobre outro. Em primeiro lugar, devemos refletir que a resistência psíquica, em especial uma que esteja em vigor há muito tempo, só pode ser dissipada com lentidão, passo a passo, e devemos esperar com paciência. Em segundo lugar, podemos contar com o interesse intelectual que o paciente começa a sentir após trabalhar por um curto espaço de tempo. Explicando-lhe as coisas, dando-lhe informações sobre o mundo maravilhoso dos processos psíquicos que nós mesmos só começamos a discernir através dessas análises, nós o transformamos num colaborador, induzimo-lo a encarar a si mesmo com o interesse objetivo de um pesquisador e assim afastamos sua resistência, que repousa, de fato, numa base afetiva. Mas por último — e essa continua a ser a alavanca mais poderosa — devemos nos esforçar, depois de descobrirmos os motivos de sua defesa, por despojá-los de seu valor ou mesmo substituí-los por outros mais poderosos. É aqui, sem dúvida, que deixa de ser possível enunciar a atividade psicoterapêutica em fórmulas. Trabalha-se com o melhor da própria capacidade, como elucidador (ali onde a ignorância deu origem ao medo), como professor, como representante de um visão mais livre ou superior do mundo, como um padre confessor que ministra a absolvição, por assim dizer, pela permanência de sua compreensão e de seu respeito depois de feita a confissão. Tenta-se dar ao paciente assistência humana, até o ponto em que isso é permitido pela capacidade da própria personalidade de cada um e pela dose de compreensão que se possa sentir por cada caso específico. É uma precondição essencial para tal atividade psíquica que tenhamos mais ou menos adivinhando a natureza do caso e os motivos da defesa que nele atuam, e felizmente a técnica da insistência e da pressão nos leva até esse ponto. Quanto mais tenhamos solucionado tais enigmas, mais fácil achamos decifrar um novo enigma e mais cedo podemos iniciar o trabalho psíquico verdadeiramente curativo. Pois é bom reconhecer uma coisa com clareza: o paciente só se livra do sintoma histérico ao reproduzir as impressões patogênicas que o causaram e ao verbalizá-las com uma expressão de afeto; e assim a tarefa terapêutica consiste unicamente em induzi-lo a agir dessa maneira; uma vez realizada essa tarefa, nada resta ao médico para corrigir ou eliminar. O que quer que se faça necessário para esse fim em termos de contra-sugestões já terá sido despendido durante a luta contra a resistência. A situação pode ser comparada ao destrancamento de uma porta trancada, depois de sua abertura girando a maçaneta, não oferece nenhuma outra dificuldade.

Além das motivações intelectuais que mobilizamos para superar a resistência, há um fator afetivo, a influência pessoal do médico, que raramente podemos dispensar, e em diversos casos só este último fator está em condições de eliminar a resistência. A situação aqui não é diferente da que se pode encontrar em qualquer setor da medicina, não havendo processo terapêutico sobre o qual possamos dizer que dispensa por completo a cooperação desse fator pessoal.

 

 

(3)

 

Em vista do que disse na seção precedente sobre as dificuldades de minha técnica, que expus extensamente (reuni-as, aliás, a partir dos casos mais graves; as coisas muitas vezes se passam de maneira muito mais conveniente) — em vista de tudo isso, portanto, sem dúvida, todos hão de sentir-se inclinados a perguntar se não seria mais vantajoso, em vez de enfrentar todas essas complicações, fazer uso mais enérgico da hipnose ou restringir o emprego do método catártico a pacientes que possam ser colocados em hipnose profunda. Quanto à segunda proposta, eu teria de responder que, nesse caso, o número de pacientes apropriados, até onde vai minha habilidade, seria por demais reduzido; e quanto ao primeiro conselho,desconfio de que a imposição forçada da hipnose não nos pouparia de muita resistência. Minhas experiências nesse aspecto, curiosamente, não têm sido numerosas, e não posso, portanto, ir além de uma suspeita. Mas nas situações em que apliquei um tratamento catártico sob hipnose, em vez de concentração, não achei que isso diminuísse o trabalho que eu tinha a executar. Não faz muito tempo, concluí um tratamento dessa espécie, e em seu decorrer fiz com que uma paralisia histérica das pernas desaparecesse. A paciente passava para um estado muito diferente, psiquicamente, do de vigília, e que no aspecto físico se caracterizava pelo fato de que lhe era impossível abrir os olhos ou levantar-se até que eu lhe dissesse em voz alta: “Agora, acorde!” Não obstante, jamais me defrontei com maior resistência do que nesse caso. Eu não atribuía nenhuma importância a esses sinais físicos e, ao aproximar-se o final do tratamento, que durou dez meses, eles haviam deixado de ser dignos de nota. Mas, apesar disso, o estado da paciente enquanto trabalhávamos não perdeu nenhuma de suas características psíquicas — a capacidade que possuía de lembrar-se de material inconsciente e sua relação toda especial com a figura do médico. Por outro lado, dei um exemplo, no relato do caso da Sra. Emmy von N., de um tratamento catártico no mais profundo sonambulismo, no qual a resistência mal chegou a desempenhar qualquer papel. Mas também é verdade que nada ouvi dessa senhora cujo relato pudesse ter exigido qualquer superação especial de objeções, nada que ela não me pudesse ter dito mesmo em estado de vigília, supondo-se que nos conhecêssemos há algum tempo e que ela me tivesse razoavelmente em boa conta. Nunca cheguei às verdadeiras causas de sua doença, que sem dúvida foram idênticas às causas de sua recaída após meu tratamento (pois essa foi minha primeira tentativa com esse método); e na única ocasião em que me aconteceu pedir-lhe uma reminiscência que envolvesse um elemento erótico | ver em [1]|, achei-a tão relutante e indigna de confiança no que me dizia quanto o foram, mais tarde, quaisquer de meus pacientes não sonambúlicos. Já me referi, no relato do caso dessa senhora, à resistência que ela opunha, mesmo durante o sonambulismo, a outras solicitações e sugestões minhas. Tornei-me inteiramente cético quanto ao valor da hipnose na facilitação dos tratamentos catárticos, visto ter vivenciado situações em que, durante o sonambulismo profundo, houve absoluta recalcitrância terapêutica, ao passo que em outros aspectos o paciente era perfeitamente obediente. Relatei casos, de modo resumido, em [1] e poderia acrescentar outros. Posso também admitir que essa experiência correspondeu bastante bem ao requisito em que insisto, no sentido de que deve haver uma relação quantitativa entre causa e efeito também no campo psíquico |assim como no físico|.

 

No que afirmei até agora, a idéia de resistência se impôs no primeiro plano. Demonstrei como, no curso de nosso trabalho terapêutico, fomos levados à visão de que a histeria se origina por meio do recalcamento de uma idéia incompatível, de uma motivação de defesa. Segundo esse ponto de vista, a idéia recalcada persistiria como um traço mnêmico fraco (de pouca intensidade), enquanto o afeto dela arrancado seria utilizado para uma inervação somática. (Em outras palavras, a excitação é “convertida”.) Ao que parece, portanto, é precisamente por meio de seu recalcamento que a idéia se transforma na causa de sintomas mórbidos — ou seja, torna-se patogênica. Pode-se dar a designação de “histeria de defesa” à histeria que exiba esse mecanismo psíquico.

Ora, tanto eu como Breuer temo-nos referido muitas vezes a duas outras espécies de histeria, para as quais introduzimos as expressões “histeria hipnóide” e “histeria de retenção”. Foi a histeria hipnóide a primeira de todas a entrar em nosso campo de estudo. Eu não poderia, de fato, encontrar melhor exemplo dessa histeria do que no primeiro caso de Breuer, que encabeça a exposição de nossos casos clínicos. Breuer propôs para esses casos de histeria hipnóide um mecanismo psíquico substancialmente diferente do de defesa por conversão. Segundo a visão de Breuer, o que acontece na histeria hipnóide é que uma idéia se torna patogênica por ter sido recebida durante um estado psíquico especial e permanecido desde o início fora do ego. Portanto, não foi necessária nenhuma força psíquica para mantê-la fora do ego, e nenhuma resistência precisa ser despertada quando a induzimos no ego com a ajuda da atividade mental durante o sonambulismo. E o caso de Anna O. de fato não mostra nenhum sinal de uma resistência dessa natureza.

Considero de tal importância essa distinção que, com base nela, alio-me de bom grado a essa hipótese da existência de uma histeria hipnóide. Estranhamente, em minha própria experiência, nunca deparei com uma histeria hipnóide autêntica. Todas as que aceitei para tratamento transformaram-se em histerias de defesa. A rigor, não é que eu jamais tenha tido de lidar com sintomas que comprovadamente emergiram durante estados dissociados de consciência, sendo obrigados, por esse motivo, a ficar excluídos do ego. Isso também aconteceu algumas vezes em meus casos, mas pude demonstrar, mais tarde, que o chamado estado hipnóide devia sua separação ao fato de nele haver entrado em vigor um grupo psíquico que antes fora dividido pela defesa. Em suma, é-me impossível reprimir a suspeita de que em algum ponto as raízes da histeria hipnóide e da histeria de defesa se reúnem, e que seu fator primário é a defesa. Mas nada posso dizer a esse respeito.

Meu julgamento é, no momento, igualmente incerto quanto à “histeria de retenção”, na qual se supõe que o trabalho terapêutico também se processe sem resistência. Tive um caso que encarei como uma típica histeria de retenção e exultei com a perspectiva de um êxito fácil e certo. Mas esse êxito não ocorreu, embora o trabalho fosse efetivamente fácil. Suspeito, portanto, embora mais uma vez com todas as ressalvas próprias da ignorância, de que também na base da histeria de retenção também haja um elemento de defesa que tenha forçado todo o processo na direção da histeria. É de se esperar que novas observações logo venham decidir se estou correndo o risco de incidir em parcialidade e erro ao favorecer assim a extensão do conceito de defesa para toda a histeria.

 

Tratei até agora das dificuldades e da técnica do método catártico e gostaria de acrescentar algumas indicações quanto à forma assumida pela análise quando essa técnica é adotada. Para mim, isto é um assunto altamente interessante, mas não posso esperar que desperte interesse semelhante em outros, que ainda não efetuaram uma análise dessa espécie. Estarei, é verdade, referindo-me mais uma vez à técnica, mas desta vez falarei das dificuldades inerentes pelas quais não podemos responsabilizar os pacientes e que, em parte, devem ser as mesmas tanto numa histeria hipnóide ou de retenção quanto nas histerias de defesa que tenho diante dos olhos como modelo. Abordo esta última parte de minha exposição na expectativa de que as características psíquicas a serem nela reveladas possam um dia adquirir certo valor como matéria-prima para a dinâmica da representação.

A primeira e mais poderosa impressão causada numa dessas análises é com certeza a de que o material psíquico patogênico aparentemente esquecido, que não se acha à disposição do ego e não desempenha nenhum papel na associação e na memória, não obstante está de algum modo à mão, e em ordem correta e adequada. Trata-se apenas de remover as resistências que barram o caminho para o material. Em outros sentidos esse material é conhecido, da mesma forma como somos capazes de conhecer qualquer coisa; as ligações corretas entre as representações separadas e entre elas e as não-patogênicas, que são lembradas com freqüência, existem, foram completadas em alguma época e estão armazenadas na memória. O material psíquico patogênico parece constituir o patrimônio de uma inteligência não necessariamente inferior à de um ego normal. A aparência de uma segunda personalidade é muitas vezes apresentada da maneira mais enganosa.

Se essa impressão é justificada, ou se, ao pensar nela, estamos atribuindo ao período da doença um arranjo do material psíquico que na verdade foi feito após a recuperação — essas são perguntas que eu preferiria não discutir ainda, e não nestas páginas. De qualquer modo, as observações feitas durante tais análises serão descritas de modo mais claro e convincente se as considerarmos a partir da posição que nos é possível assumir após a recuperação, com a finalidade de examinar o caso como um todo.

Em geral, de fato, a situação não é tão simples como a representamos nos casos específicos — por exemplo, quando existe apenas um sintoma surgido de um trauma principal. Não costumamos encontrar um sintoma histérico único, mas muitos deles, em parte independentes uns dos outros e em parte ligados. Não devemos esperar encontrar uma lembrança traumática única e uma idéia patogênica única como seu núcleo; devemos estar preparados para sucessões de traumas parciais e concatenações de cadeias patogênicas de idéias. A histeria traumática monossintomática é, por assim dizer, um organismo elementar, uma criatura unicelular, em comparação com a estrutura complexa de tais neuroses relativamente graves com que costumamos deparar.

O material psíquico nesses casos de histeria apresenta-se como uma estrutura em várias dimensões, estratificada de pelo menos três maneiras diferentes. (Espero logo poder justificar essa forma pictórica de expressão.) Para começar, há um núcleo que consiste em lembranças de eventos ou seqüências de idéias em que o fator traumático culminou, ou onde a idéia patogênica encontrou sua manifestação mais pura. Em torno desse núcleo encontramos o que é muitas vezes uma quantidade incrivelmente grande de outro material mnêmico que tem de ser elaborado na análise e que está, como dissemos, arranjado numa ordem tríplice.

Em primeiro lugar, há uma inconfundível ordem cronológica linear que vigora em cada tema isolado. Como exemplo disso, apenas citarei o arranjo do material na análise de Anna O. por Breuer. Tomemos o tema do ensurdecimento, do não ouvir. Este se diferenciou de acordo com sete conjuntos de determinantes, e em cada um desses sete tópicos foram coletadas em seqüência cronológica dez a mais de cem lembranças individuais (ver em [1]-[2]). Foi como se estivéssemos examinando um arquivo que fosse mantido em perfeita ordem. A análise de minha paciente Emmy von N. continha arquivos semelhantes de lembranças, embora não fossem enumerados e descritos de forma tão completa. Esses arquivos são um traço bastante geral de cada análise, e seu conteúdo sempre emerge numa ordem cronológica tão infalivelmente fidedigna quanto a sucessão dos dias da semana ou dos meses numa pessoa mentalmente normal. Eles dificultam o trabalho da análise pela peculiaridade de que, ao reproduzirem as lembranças, invertem a ordem em que estas se originaram. A experiência mais recente e mais nova do arquivo aparece em primeiro lugar, como uma capa externa, e por último vem a experiência com a qual a seqüência de fatos realmente começou.

Descrevi esses agrupamentos de lembranças semelhantes, em coleções dispostas em seqüências lineares (como um arquivo de documentos, um maço de papéis, etc.) como constituindo “temas”. Esses temas exibem um segundo tipo de arranjo. Cada um deles está — não sei expressá-lo de outra forma — concentricamente estratificado em torno do núcleo patogênico. Não é difícil dizer o que produz essa estratificação, qual a magnitude decrescente ou crescente que é a base desse arranjo. O conteúdo de cada camada caracteriza-se por um grau igual de resistência, e esse grau aumenta na proporção em que as camadas se acham mais perto do núcleo. Assim, há zonas dentro das quais existe um grau idêntico de modificação da consciência, e os diferentes temas estendem-se através dessas zonas. As camadas mais periféricas contêm as lembranças (ou arquivos), as quais, pertencendo a temas diferentes, são recordados com facilidade e sempre estiveram claramente conscientes. Quanto mais nos aprofundamos, mais difícil se torna o reconhecimento das lembranças emergentes, até que, perto do núcleo, esbarramos em lembranças que o paciente renega até mesmo ao reproduzi-las.

É essa peculiaridade da estratificação concêntrica do material psíquico patogênico que, como veremos, confere ao decorrer dessas análises seus traços característicos. É preciso mencionar ainda uma terceira espécie de arranjo — a mais importante, porém aquela sobre a qual é menos fácil fazer qualquer afirmação genérica. O que tenho em mente é um arranjo de acordo com o conteúdo do pensamento, a ligação feita por um fio lógico que chega até o núcleo e tende a seguir um caminho irregular e sinuoso, diferente emcada caso. Esse arranjo possui um caráter dinâmico, em contraste com o caráter morfológico das duas estratificações mencionadas acima. Enquanto estas seriam representadas num diagrama espacial por uma linha contínua, curva ou reta, o curso da cadeia lógica teria de ser indicado por uma linha interrompida, que passaria pelos caminhos mais indiretos, indo e vindo da superfície até as camadas mais profundas, e contudo, de modo geral, avançaria da periferia para o núcleo central, tocando em cada ponto de parada intermediário — uma linha semelhante à linha em ziguezague na solução de um problema do lance do cavalo, que atravessa os quadrados do diagrama no tabuleiro de xadrez.

Devo demorar-me um pouco mais neste último símile para enfatizar um ponto em que ele não faz justiça às características do objeto da comparação. A cadeia lógica corresponde não apenas a uma linha retorcida, em ziguezague, mas antes a um sistema de linhas em ramificação e, mais particulamente, a um sistema convergente. Ele contém pontos nodais em que dois ou mais fios se juntam e, a partir daí, continuam como um só; e em geral diversos fios que se estendem de forma independente, ou não, ligados em vários pontos por vias laterais, desembocam no núcleo. Em outras palavras, é notável a freqüência com que um sintoma é determinado de vários modos, é “sobredeterminado”.

Minha tentativa de demonstrar a organização do material psíquico patogênico ficará completa quando eu tiver introduzido mais uma complexidade. Pois é possível que haja mais de um único núcleo no material patogênico — quando, por exemplo, temos de analisar uma segunda irrupção da histeria que possui uma etiologia própria, mas, apesar disso, está ligada a uma primeira irrupção de histeria aguda superada anos antes. É fácil imaginar, quando é esse o caso, quantos acréscimos deve haver nas camadas e linhas de pensamento para estabelecer uma ligação entre os dois núcleos patogênicos.

Farei agora um ou dois comentários adicionais sobre o quadro da organização do material patogênico a que acabamos de chegar. Dissemos que esse material se comporta como um corpo estranho, e que também o tratamento atua como a remoção de um corpo estranho do tecido vivo. Estamos agora em condições de ver onde essa comparação fracassa. Um corpo estranho não entra em qualquer relação com as camadas de tecido que o circundam, embora as modifique e exija delas uma inflamação reativa. Nosso grupo psíquico patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente extirpado do ego. Suas camadas externas passam em todas as direções para partes do ego normal; e, na realidade, pertencem tanto a este quanto a organização patogênica. Na análise, a fronteira entre os dois é fixada de maneira puramente convencional, ora num ponto, ora em outro, sendo que em alguns lugares não pode em absoluto ser estabelecida. As camadas internas da organização patogênica são cada vez mais estranhas ao ego, porém mais uma vez sem que haja nenhuma fronteira visível em que se inicie o material patogênico. De fato, o organização patogênica não se comporta como um corpo estranho, porém muito mais como um infiltrado. Nesse símile, a resistência deve ser considerada como aquilo que se infiltra. E o tratamento também não consiste em extirpar algo — a psicoterapia até agora não é capaz de fazer isso — mas em fazer com que a resistência se dissolva e assim permitir que a circulação prossiga para uma região que até então esteve isolada.

(Estou usando aqui diversos símiles, dos quais todos apresentam apenas uma semelhança muito limitada com meu assunto e, além disso, são incompatíveis entre si. Estou ciente disso e não corro o perigo de superestimar seu valor. Mas meu propósito ao utilizá-los é lançar luz de diferentes direções sobre um tópico altamente complexo, que nunca foi representado até hoje. Arriscar-me-ei, portanto, nas páginas seguintes, a introduzir outros símiles da mesma maneira, embora saiba que isso não está livre de objeções.)

Se fosse possível, depois de um caso ter sido completamente elucidado, mostrar o material patogênico a outra pessoa naquilo que agora sabemos ser organização complexa e multidimensional de tal caso, com razão nos seria perguntado como foi que um camelo como esse passou pelo buraco da agulha. Pois há certa justificativa em falarmos num “desfiladeiro” da consciência. O termo ganha sentido e vida para um médico que conclua uma análise como essa. Apenas uma única lembrança de cada vez consegue entrar na consciência do ego. O paciente que esteja ocupado em elaborar tal lembrança nada vê daquilo que a está empurrando e se esquece do que já conseguiu entrar. Quando há dificuldades em dominar essa lembrança patogênica isolada — como, por exemplo, quando o paciente não relaxa sua resistência contra ela, quando tenha recalcá-la ou mutilá-la — então o desfiladeiro fica, por assim dizer, bloqueado. O trabalho fica paralisado, nada mais consegue aparecer, e a lembrança isolada que está no processo de atravessar permanece diante do paciente até que ele a tenha absorvido na amplitude de seu ego. Toda a massa especialmente ampliada de material psicogênico é assim impelida através de uma fenda estreita e chega à consciência, por assim dizer, retalhada em pedaços ou tiras. Cabe ao psicoterapeuta voltar a reunir estes últimos na organização que ele presuma ter existido. Qualquer um que sinta atração por novas analogias poderá pensar, a essa altura, num quebra-cabeças chinês.

Se tivermos que iniciar uma análise assim, em que tenhamos razões para esperar uma organização do material patogênico como essa, seremos ajudados pelo que nos ensinou a experiência, ou seja, que é inteiramente inútil tentar penetrar direto no núcleo da organização patogênica. Ainda que nós mesmos pudéssemos adivinhá-lo, o paciente não saberia o que fazer com a explicação a ele oferecida e não seria psicologicamente modificado por ela.

Não há nada a fazer senão manter-se, a princípio, na periferia da estrutura psíquica. Começamos por fazer com que o paciente nos diga aquilo que sabe e lembra, enquanto, ao mesmo tempo, já vamos direcionando sua atenção e superando suas resistências mais leves pelo uso da técnica da pressão. Sempre que tivermos aberto um novo caminho pressionando-lhe a testa, podemos esperar que ele avance mais um pouco sem nova resistência.

Depois de trabalharmos assim por algum tempo, em geral, o paciente começa a cooperar conosco. Muitas reminiscências passam então a lhe ocorrer sem que tenhamos de fazer-lhe perguntas ou fixar-lhe tarefas. O que fizemos foi abrir caminho para uma camada interna dentro da qual o paciente agora dispõe espontaneamente de um material ligado a um grau idêntico de resistência. O melhor é permitir-lhe, por algum tempo, reproduzir esse material sem ser influenciado. É verdade que ele próprio não está em condições de desvendar ligações importantes, mas se pode deixar que elucide o material que está dentro da mesma camada. As coisas que ele traz à tona dessa maneira parecem muitas vezes desconexas, mas fornecem um material que ganhará sentido quando mais tarde se descobrir uma ligação.

Nesse ponto, em geral temos de nos prevenir contra duas coisas. Se interferirmos com o paciente em sua reprodução das idéias que nele estão jorrando, poderemos “enterrar” coisas que depois terão de ser liberadas com grande dificuldade. Por outro lado, não devemos superestimar a “inteligência” inconsciente do paciente e deixar a cargo dela a direção de todo o trabalho. Se eu quisesse fornecer um quadro diagramático de nosso modo de operação, diria talvez que nós mesmos empreendemos a abertura das camadas internas, avançando radialmente, enquanto o paciente cuida da extensão periférica do trabalho.

Os progressos são conseguidos, como sabemos, pela superação da resistência, na forma já assinalada. Mas antes disso temos, em geral, outra tarefa a executar. Precisamos apoderar-nos de um pedaço do fio lógico, pois é apenas através de sua orientação que podemos ter esperança de penetrar no interior. Não podemos esperar que as comunicações livres feitas pelo paciente, o material proveniente das camadas mais superficiais, facilitem ao analista reconhecer em que pontos o caminho conduz às profundezas ou onde ele irá encontrar os pontos de partida das ligações de idéias que está procurando. Pelo contrário. É precisamente isso que é ocultado com cuidado; o relato feito pelo paciente soa como se fosse completo e auto-suficiente. De início, é como se estivéssemos diante de um muro que obstrui toda a perspectiva e nos impede de ter qualquer idéia de haver ou não algo atrás dele e, em caso afirmativo, o quê.

Mas se examinarmos com visão crítica o relato que o paciente nos fez sem muito esforço ou resistência, nele descobriremos infalivelmente lacunas e imperfeições. Em determinado ponto, a seqüência de idéias será visivelmente interrompida e remendada da melhor forma possível pelo paciente, com um recurso de linguagem ou uma explicação inadequada; noutro ponto depararemos com uma motivação que teria de ser descrita como débil numa pessoa normal. O paciente não reconhece essas deficiências quando sua atenção é chamada para elas. Mas o médico terá razão em procurar atrás dos pontos fracos uma abordagem para o material das camadas mais profundas e em esperar descobrir precisamente ali os fios de ligação que está buscando por meio da técnica da pressão. Por conseguinte, dizemos ao paciente: “Você está enganado; o que você está formulando não pode ter nada a ver com o assunto atual. Devemos esperar encontrar aí alguma outra coisa, e isso lhe ocorrerá sob a pressão de minha mão.”

Pois podemos fazer a um paciente histérico as mesmas exigências de ligação lógica e motivação suficiente na cadeia de idéias, mesmo que se estenda até o inconsciente, que faríamos a um individuo normal. Não está dentro das possibilidades de uma neurose relaxar essas relações. Se nos pacientes neuróticos, e particularmente nos histéricos, as cadeias de idéias produzem uma impressão diferente, se neles a relativa intensidade das diferentes idéias se afigura inexplicável apenas por determinantes psicológicos,já descobrimos a razão disso e podemos atribuí-la à existência de motivos inconscientes ocultos. Podemos assim suspeitar da presença de tais motivos secretos sempre que esse tipo de interrupção numa cadeia de idéias se torna evidente, ou quando a força atribuída pelo paciente a seus motivos vai muito além do normal.

Ao executarmos esse trabalho, é claro, devemos manter-nos isentos do preconceito teórico de estarmos lidando com os cérebros anormais de “dégénérés” e “déséquilibrés”, que estão livres, graças a um estigma, para lançar por terra as leis psicológicas comuns que regem a ligação das idéias, e nos quais uma única idéia fortuita pode tornar-se exageradamente intensa sem nenhum motivo, enquanto outra pode permanecer indestrutível sem nenhuma razão psicológica. A experiência demonstra que o contrário se aplica à histeria. Uma vez que descubramos os motivos ocultos, que muitas vezes permaneceram inconscientes, e os levemos em conta, nada de enigmático ou contrário às normas persiste nas ligações de pensamento histéricos, não mais do que nas normais.

Dessa forma, portanto, detectando lacunas na primeira descrição do paciente, lacunas muitas vezes encobertas por “falsas ligações” |ver mais adiante, ver em [1]-[2]|, apoderamo-nos de um pedaço do fio lógico na periferia e, a partir desse ponto, desobstruímos mais um caminho pela técnica da pressão.

Ao fazê-lo, é muito raro conseguirmos abrir caminho diretamente para o interior através de um único fio. Em geral, ele se rompe a meio caminho: a pressão falha e não produz nenhum resultado, ou então produz um resultado que não pode ser esclarecido ou levado adiante, apesar de todos os esforços. Logo aprendemos, quando isso acontece, a evitar os erros em que poderíamos incorrer. A expressão facial do paciente deverá determinar se chegamos mesmo ao fim, ou se se trata de uma situação que não exige nenhuma elucidação psíquica, ou se o que levou o trabalho a uma paralisação é uma resistência excessiva. Neste último caso, se não pudermos superar de imediato a resistência, poderemos presumir que seguimos o fio até uma camada que, por enquanto, ainda é impenetrável. Abandonamo-lo e tomamos outro fio, que talvez possamos seguir até a mesma distância. Quando tivermos atingido essa camada percorrendo todos os fios e tivermos descoberto os emaranhados em virtude dos quais os fios separados não puderam ser isoladamente seguidos até mais longe, poderemos pensar em atacar de novo a resistência diante de nós.

É fácil imaginar até que ponto um trabalho dessa natureza pode tornar-se complexo. Forçamos nossa entrada nas camadas internas, superando resistências todo o tempo; travamos conhecimento com os temas acumulados numa dessas camadas e com os fios que a atravessam, e experimentamos até que ponto podemos avançar com nossos meios atuais e os conhecimentos que adquirimos; obtemos informações preliminares sobre o conteúdo das camadas seguintes por meio da técnica da pressão; abandonamos fios e os retomamos;seguimo-los até os pontos nodais; constantemente voltamos atrás; e toda vez que perseguimos um acervo de lembranças, somos conduzidos a algum desvio que, não obstante, termina por confluir para o fio inicial. Por esse método, chegamos afinal a um ponto em que podemos parar de trabalhar em camadas e podemos penetrar, por uma trilha principal, diretamente no núcleo da organização patogênica. Com isso a luta está vencida, embora ainda não esteja terminada. Devemos retroceder e retomar outros fios e esgotar o material. Mas agora o paciente nos ajuda vigorosamente. A maior parte de sua resistência foi quebrada.

Nessas etapas finais do trabalho convém que possamos adivinhar o modo como as coisas se interligam e dizê-lo ao paciente antes que o desvendemos. Se tivermos adivinhado certo, o curso da análise será acelerado; mas até mesmo uma hipótese errada nos ajuda a prosseguir, compelindo o paciente a tomar partido e induzindo-o a negativas enérgicas que traem seu indubitável conhecimento.

Disso aprendemos com admiração que não estamos em condições de impor nada ao paciente sobre as coisas que ele aparentemente ignora, nem de influenciar os produtos da análise pela provocação de expectativas. Nem uma só vez consegui, ao prever algo, alterar ou falsificar a reprodução das lembranças ou a ligação dos acontecimentos, pois se o tivesse feito, isso inevitavelmente teria sido traído no final por alguma contradição no material. Quando algo mostrava ser tal como eu o previra, nunca se deixava de comprovar por um grande número de reminiscências indiscutíveis que eu não fizera nada além de adivinhar certo. Não precisamos ter medo, portanto, de dizer ao paciente qual pensamos que será sua próxima associação de idéias; isso não causará nenhum dano.

Outra observação, constantemente repetida, relaciona-se com as reproduções espontâneas do paciente. Pode-se afirmar que toda reminiscência isolada que emerge durante uma dessas análises tem importância. A rigor, a intromissão de imagens mnêmicas irrelevantes (que estejam associadas por acaso, de uma forma ou de outra, às imagens importantes) jamais ocorre. Uma exceção que não contradiz essa regra pode ser postulada quanto às lembranças que, apesar de destituídas de importância em si mesmas, são indispensáveis como pontes, no sentido de que a associação entre duas lembranças importantes só pode ser feita através delas.

O prazo durante o qual uma lembrança permanece no estreito desfiladeiro diante da consciência do paciente está, como já foi explicado | ver em [1]|, em proporção direta com sua importância. Uma imagem que se recusa a desaparecer é uma imagem que ainda exige consideração, um pensamento que não pode ser afastado é um pensamento que precisa ser mais explorado. Além disso, uma lembrança nunca retorna uma segunda vez depois de ter sido trabalhada; a imagem que foi “eliminada pela fala” não volta a ser vista. Quando, não obstante, isso de fato acontece, podemos presumir com segurança que, na segunda vez, a imagem será acompanhada de um novo grupo de pensamentos, ou a idéia terá novas implicações. Em outras palavras, estes não foram trabalhados por completo. Além disso, é freqüente uma imagem ou um pensamento reaparecerem com diferentes graus de intensidade, primeiro como um indício e depois com total clareza. Isso, entretanto, não contradiz o que acabo de afirmar.

Entre as tarefas apresentadas pela análise encontra-se a de eliminar os sintomas passíveis de aumentar de intensidade ou retornar: dores, sintomas (como vômitos) causados por estímulos, sensações ou contraturas. Enquanto trabalhamos num desses sintomas defrontamo-nos com o fenômeno interessante e não indesejável da “participação na conversa”. O sintoma problemático reaparece, ou aparece com maior intensidade, tão logo alcançamos a região da organização patogênica que contém a etiologia do sintoma, e daí por diante ele acompanha o trabalho com oscilações características, que são instrutivas para o médico. A intensidade do sintoma (tomemos como exemplo o desejo de vomitar) aumenta quanto mais profundamente penetramos numa das lembranças patogênicas pertinentes; atinge seu clímax pouco antes de o paciente enunciar essa lembrança; e, depois que ele termina de fazê-lo, diminui de súbito ou até desaparece por completo durante algum tempo. Quando, graças à resistência, o paciente demora muito tempo para dizer algo, a tensão da sensação — do desejo de vomitar — torna-se insuportável e, se não conseguirmos forçá-lo a falar, ele começará mesmo a vomitar. Assim obtemos uma impressão plástica do fato de que o “vomitar” toma o lugar de um ato psíquico (nesse exemplo, o ato de proferir), exatamente como sustenta a teoria conversiva da histeria.

Essa oscilação de intensidade do sintoma histérico é repetida toda vez que nos aproximamos de uma nova lembrança que é patogênica em relação a ele. O sintoma, poderíamos dizer, está nos planos o tempo todo. Quando somos obrigados a abandonar temporariamente o fio a que está ligado, também esse sintoma recua para a obscuridade, para tornar a emergir num período posterior da análise. Isso continua até que a elaboração do material patogênico tenha eliminado o sintoma de uma vez por todas.

 

Em tudo isso, a rigor, o sintoma histérico de modo algum se comporta de modo diferente da imagem mnêmica ou da idéia reproduzida que invocamos sob a pressão da mão. Em ambos os casos encontramos a mesma recorrência obsessivamente pertinaz na lembrança do paciente, que tem de ser eliminada. A diferença está apenas no surgimento aparentemente espontâneo dos sintomas histéricos, ao passo que, como nos recordamos muito bem, nós mesmos provocamos as cenas e idéias. De fato, contudo, há uma seqüência ininterrupta que se estende desde os resíduos mnêmicos não modificados das experiências e atos de pensamento afetivos até os sintomas histéricos, que são símbolos mnêmicos dessas experiências e pensamentos.

O fenômeno dos sintomas histéricos que participam da conversa durante a análise envolve um inconveniente de ordem prática, com o qual devemos poder reconciliar o paciente. É inteiramente impossível efetuar a análise de um sintoma de uma só vez, ou distribuir os intervalos de nosso trabalho de modo a se ajustarem com precisão às pausas no processo de lidar com o sintoma. Ao contrário, algumas interrupções que são prescritas de forma imperativa por circunstâncias incidentais no tratamento, tais como o adiantado da hora, muitas vezes ocorrem nos pontos mais inconvenientes, exatamente quando nos podemos estar aproximando de uma decisão ou quando surge um novo tópico. Qualquer leitor de jornal tem a mesma desvantagem ao ler o capítulo diário de sua história seriada, quando, logo após a fala decisiva da heroína, ou depois de o tiro haver ecoado, ele se defronta com as palavras: “Continua no próximo número.” Em nosso próprio caso, o tópico que foi levantado, mas não abordado, o sintoma que temporariamente se intensificou e ainda não foi explicado, persiste na mente do paciente e talvez possa perturbá-lo mais do que fazia até então. Ele terá apenas que lidar com isso da melhor forma possível, pois não existe outra maneira de organizar as coisas. Há pacientes que, no curso de uma análise, simplesmente não conseguem livrar-se de um tópico que tenha sido levantado e ficam obcecados por ele no intervalo entre duas sessões; visto que, por si mesmos, não podem tomar nenhuma providência no sentido de se livrarem dele, sofrem mais, a princípio, do que antes do tratamento. Mas mesmo tais pacientes acabam aprendendo a esperar pelo médico e a deslocar todo o interesse que sentem por se livrarem do material patogênico para os horários das sessões, após as quais começam a se sentir mais livres nos intervalos.

 

O estado geral dos pacientes durante essas análises também merece atenção. Por algum tempo ele não é influenciado pelo tratamento e continua a ser uma expressão dos fatores que atuavam antes. Mas depois surge um momento em que o tratamento se apodera do paciente, capta seu interesse. Daí por diante, seu estado geral se torna cada vez mais dependente do desenvolvimento do trabalho. Sempre que uma coisa nova é elucidada ou se atinge um estágio importante do processo da análise, também o paciente se sente aliviado e desfruta de um antegozo, por assim dizer, da sua libertação iminente. Todas as vezes que o trabalho se paralisa e há uma ameaça de confusão, aumenta o fardo psíquico que oprime o paciente, e seu sentimento de infelicidade e sua incapacidade para o trabalho se tornam mais intensos. Mas nenhuma dessas coisas dura mais do que um curto período, pois a análise continua, sem se vangloriar pelo fato de num dado momento o paciente sentir-se bem, e prosseguindo independentemente dos períodos de tristeza do paciente. Ficamos satisfeitos, em geral, quando substituímos as oscilações espontâneas de seu estado por oscilações que nós mesmos provocamos e que compreendemos, da mesma forma que ficamos satisfeitos ao ver a sucessão espontânea dos sintomas substituída por uma ordem do dia que corresponde ao estado da análise.

De início, o trabalho torna-se mais obscuro e difícil, em geral, quanto mais profundamente penetramos na estrutura psíquica estratificada que descrevi atrás. Porém, uma vez que tenhamos, pelo trabalho, chegado até o núcleo, a luz aparece, e não precisamos temer que o estado geral do paciente fique sujeito a nenhum período grave de depressão. Entretanto, a recompensa de nossos esforços — a cessação dos sintomas — só pode ser esperada depois de termos efetuado a análise completa de cada sintoma individual; e a rigor, já que os sintomas individuais são interligados em numerosos pontos nodais, nem sequer devemos ser estimulados durante o trabalho pelos êxitos parciais. Graças às abundantes ligações causais, toda representação patogênica que ainda não tenha sido eliminada atua como uma motivação para a totalidade dos produtos da neurose, e é apenas com a última palavra da análise que todo o quadro clínico desaparece, tal como ocorre com as lembranças reproduzidas de forma individual.

Quando uma lembrança patogênica ou uma ligação patogênica antes retirada da consciência do ego é revelada pelo trabalho da análise e introduzida no ego, verificamos que a personalidade psíquica assim enriquecida tem várias maneiras de expressar-se quanto ao que adquiriu. É particularmente freqüente, depois de havermos imposto com esforço algum conhecimento ao paciente, ouvi-lo declarar: “Eu sempre soube disso, poderia ter-lhe dito antes.” Os que são dotados de certo grau de discernimento reconhecem, mais tarde, que essa é uma forma de enganarem a si mesmos e se culpam por serem ingratos. Afora isso, a atitude adotada pelo ego quanto a sua nova aquisição costuma depender da camada de análise da qual se origina essa aquisição. As coisas que pertencem às camadas externas são reconhecidas sem dificuldades; haviam, de fato, permanecido sempre em poder do ego, e a única novidade para o ego é a ligação delas com as camadas mais profundas do material patológico. As coisas que são trazidas à luz dessas camadas mais profundas também são reconhecidas e admitidas, porém muitas vezes só depois de consideráveis hesitações e dúvidas. As imagens mnêmicas visuais são, naturalmente, mais difíceis de ser renegadas do que os traços mnêmicos de simples cadeias de pensamentos. Não é raro o paciente começar por dizer: “É possível que eu tenha pensado nisso, mas não consigo me lembrar.” E não é senão depois de ter-se familiarizado com a hipótese há algum tempo que ele vem a reconhecê-la também; ele se recorda — e confirma também esse fato por vínculos secundários — de que realmente, certa vez, a idéia lhe ocorreu. Durante a análise, porém, adoto como norma reservar minha avaliação da reminiscência que surge independente do reconhecimento da mesma pelo paciente. Jamais me cansei de repetir que somos forçados a aceitar tudo o que nossa técnica traz à luz. Se houver algo nela que não seja autêntico ou correto, mas tarde o contexto nos dirá para rejeitá-lo. Mas, posso dizer de passagem que raramente tive ocasião de renegar, mais tarde, uma reminiscência aceita de modo provisório. Tudo o que emergiu, a despeito da mais enganosa aparência de ser contradição gritante, acabou por revelar-se correto.

As representações que se originam das camadas mais profundas e que formam o núcleo da organização patogênica são também aquelas que são reconhecidas com extrema dificuldade como lembranças pelo paciente. Mesmo quando tudo termina e os pacientes são dominados pela força da lógica e convencidos pelo efeito terapêutico que acompanha o surgimento precisamente dessas representações — quando, digo eu, os próprios pacientes aceitam o fato de terem pensado isso ou aquilo, muitas vezes acrescentam: “Mas eu não consigo me lembrar de ter pensado isso.” É fácil chegar a um acordo com eles dizendo-lhes que os pensamentos estavam inconscientes. Mas como enquadrar esse estado de coisas em nossas próprias concepções psicológicas? Devemos desprezar essa negação de reconhecimento por parte dos pacientes, quando, agora que o trabalho terminou, não existe mais nenhum motivo para que eles ajam dessa forma? Ou devemos supor que estamos de fato lidando com pensamentos que nunca ocorreram, que meramente tiveram uma possibilidade de existir, de modo que o tratamento consistiria na realização de um ato psíquico que não se verificou na época? É claro que é impossível dizer qualquer coisa a esse respeito — isto é, sobre o estado em que se encontrava o material patogênico antes da análise — até que tenhamos chegado a uma elucidação completa de nossas concepções psicológicas básicas, em especial quanto à natureza da consciência. Resta, penso eu, como elemento digno de séria consideração, o fato de que em nossas análises podemos seguir uma cadeia de pensamentos desde o consciente até o inconsciente (isto é, até algo que de modo algum é reconhecido como uma lembrança), de que podemos mais uma vez acompanhá-la por certa distância através da consciência, e de que podemos vê-la terminar de novo no inconsciente, sem que essa alternância de “revelação psíquica” cause qualquer modificação na própria cadeia de pensamentos, em sua coerência lógica e na interligação entre suas várias partes. Uma vez que essa cadeia de pensamentos se colocasse diante de mim como um todo, eu não seria capaz de adivinhar qual de suas partes seria reconhecida pelo paciente como lembrança e qual não o seria. Vejo apenas, por assim dizer, os cumes da cadeia de pensamentos mergulhando no inconsciente — o inverso do que foi afirmado quanto a nossos processos psíquicos normais.

 

Por fim, tenho de examinar mais outro tópico, que desempenha um papel indesejavelmente grande na condução de análises catárticas como essas. Já admiti | ver em [1]| a possibilidade de a técnica de pressão falhar, de não suscitar nenhuma reminiscência, apesar de toda a garantia e insistência. Quando isso acontece, disse eu, há duas possibilidades: ou, no ponto que estamos investigando, não há mesmo nada mais a ser encontrado — e isso é algo que podemos reconhecer pela completa serenidade da expressão facial do paciente —, ou esbarramos numa resistência que só poderá ser superada mais tarde, estamos diante de uma nova camada em que ainda não podemos penetrar — e isso, mais uma vez, é algo que podemos inferir da expressão facial do paciente, que se acha tensa e dá mostras de esforço mental | ver em [1]|. Mas existe ainda uma terceira possibilidade que da mesma forma testemunha a presença de obstáculo, porém um obstáculo externo, e não inerente ao material. Isso acontece quando a relação entre o paciente e o médico é perturbada e constitui o pior obstáculo com que podemos deparar. No entanto, podemos esperar encontrá-lo em qualquer análise relativamente séria.

Já indiquei | ver em [1]-[2]| o importante papel desempenhado pela figurado médico na criação de motivos para derrotar a força psíquica da resistência. Não são poucos os casos, especialmente com as mulheres e quando se trata de elucidar cadeias de pensamento eróticas, em que a cooperação do paciente se torna um sacrifício pessoal, que deve ser compensado por algum substituto do amor. O empenho do médico e sua cordialidade têm que bastar na condição desse substituto. Ora, quando essa relação entre a paciente e o médico é perturbada, a cooperação da primeira também falha; quando o médico tenta investigar a representação patogênica seguinte, o paciente é retido pela interposição da consciência das queixas que nele se acumulam contra o médico. Em minha experiência, esse obstáculo surge em três casos principais.

(1) Quando há uma desavença pessoal — quando, por exemplo, a paciente acha que foi negligenciada, muito pouco apreciada ou insultada, ou quando ouve comentários desfavoráveis sobre o médico ou sobre o método de tratamento. Esse é o caso menos grave. O obstáculo pode ser superado com facilidade por meio da discussão e da explicação, muito embora a sensibilidade e a desconfiança dos pacientes histéricos possam às vezes atingir dimensões surpreendentes.

(2) Quando a paciente é tomada pelo pavor de ficar por demais acostumada com o médico em termos pessoais, de perder sua independência em relação a ele, e até, quem sabe, de tornar-se sexualmente dependente dele. Esse é um caso mais importante, pois seus determinantes são menos individuais. A causa desse obstáculo reside na especial solicitude que é inerente ao tratamento. A paciente tem então um novo motivo para a resistência, que se manifesta não só em relação a alguma reminiscência específica, mas a qualquer tentativa de tratamento. É muito comum a paciente se queixar de dor de cabeça ao iniciarmos a técnica da pressão, pois em geral seu novo motivo para a resistência permanece inconsciente, expressando-se por meio de um novo sintoma histérico. A dor de cabeça indica que ela não gosta de se deixar influenciar.

(3) Quando a paciente se assusta ao verificar que está transferindo para a figura do médico as representações aflitivas que emergem do conteúdo da análise. Essa é uma ocorrência freqüente e, a rigor, usual em algumas análises. A transferência para o médico se dá por meio de uma falsa ligação. Preciso fornecer um exemplo disso. Numa de minhas pacientes, a origem de um sintoma histérico específico estava num desejo, que ela tivera muitos anos antes e relegara de imediato ao inconsciente, de que o homem com quem conversava na ocasião ousasse tomar a iniciativa de lhe dar um beijo. Numa ocasião, ao fim de uma sessão, surgiu nela um desejo semelhante a meu respeito. Ela ficou horrorizada com isso, passou uma noite insone e, na sessão seguinte, embora não se recusasse a ser tratada, ficou inteiramente inutilizada para o trabalho. Depois de eu haver descoberto e removido o obstáculo, o trabalho prosseguiu e, vejam só!, o desejo que tanto havia assustado a paciente surgiu como sua próxima lembrança patogênica, aquela que era exigida pelo contexto lógico imediato. O que aconteceu, portanto, foi isto: o conteúdo do desejo apareceu, antes de mais nada, na consciência da paciente, sem nenhuma lembrança das circunstâncias contingentes que o teriam atribuído a uma época passada. O desejo assim presente foi então, graças à compulsão a associar que era dominante na consciência da paciente, ligado a minha pessoa, na qual a paciente estava legitimamente interessada; e como resultado dessa mésalliance — que descrevo como uma “falsa ligação” — provocou-se o mesmo afeto que forçara a paciente, muito tempo antes, a repudiar esse desejo proibido. Desde que descobri isso, tenho podido, todas as vezes que sou pessoalmente envolvido de modo semelhante, presumir que uma transferência e uma falsa ligação tornaram a ocorrer. Curiosamente, a paciente volta a ser enganada todas as vezes que isso se repete.

É impossível concluir qualquer análise a menos que saibamos como enfrentar a resistência que surge por essas três maneiras. Mas podemos encontrar um meio de fazê-lo se resolvermos que esse novo sintoma, produzido com base no modelo antigo, deve ser tratado da mesma forma que os sintomas antigos. Nossa primeira tarefa é tornar o “obstáculo” consciente para o paciente. Numa de minhas pacientes, por exemplo, de repente a técnica da pressão falhou. Eu tinha razões para supor que havia uma representação inconsciente do tipo antes mencionado no item (2), e tentei primeiro lidar com essa representação pegando a paciente de surpresa. Disse-lhe que deveria ter surgido algum obstáculo à continuação do tratamento, mas que a técnica da pressão tinha pelo menos o poder de mostrar-lhe qual era esse obstáculo; pressionei sua cabeça e ela disse, admirada: “Estou vendo o senhor sentado aqui na cadeira, mas isso é absurdo. Que pode significar?” Pude então dar-lhe os esclarecimentos. Numa outra paciente, o “obstáculo” costumava não aparecer diretamente como resultado de minha pressão, mas eu sempre conseguia descobri-lo levando a paciente de volta ao momento em que ele se havia originado. A técnica da pressão jamais deixou de nos trazer de volta esse momento. Quando o obstáculo era descoberto e demonstrado, a primeira dificuldade era removida do caminho. Mas persistia outra maior, que estava em induzir a paciente a produzir informações que dissessem respeito a relações aparentemente pessoais e onde a terceira pessoa coincidisse com a figura do médico.

A princípio, fiquei muito aborrecido com esse aumento de meu trabalho psicológico, até que percebi que o processo inteiro obedecia a uma lei; e então notei também que esse tipo de transferência não trazia nenhum aumento significativo para o que eu tinha de fazer. Para a paciente, o trabalho continuava a ser o mesmo: ela precisava superar o afeto aflitivo despertado por ter sido capaz de alimentar aquele desejo sequer por um momento; e parecia não fazer nenhuma diferença para o êxito do tratamento que ela fizesse desse repúdio psíquico o tema de seu trabalho no contexto histórico, ou na recente situação relacionada comigo. Aos poucos, também os pacientes aprenderam a compreender que nessas transferências para a figura do médico tratava-se de uma compulsão e de uma ilusão que se dissipavam com a conclusão da análise. Creio, porém, que se lhes tivesse deixado de esclarecer a natureza do “obstáculo”, eu simplesmente lhes teria dado um novo sintoma histérico — embora, é verdade, mais brando — em troca de outro que fora espontaneamente gerado.

 

Já forneci indicações suficientes, penso eu, da maneira pela qual essas análises foram efetuadas e das observações que fiz no decorrer das mesmas. O que disse talvez faça com que algumas coisas pareçam mais complicadas do que são. Muitos problemas se solucionam quando nos descobrimos empenhados nesse trabalho. Não enumerei as dificuldades do trabalho para criar a impressão de que, em vista das exigências que a análise catártica impõe tanto ao médico como ao paciente, só vale a pena empreendê-la em casos extremamente raros. Permito que minhas atividades médicas sejam regidas pela suposição contrária, embora eu não possa, é verdade, formular as indicações mais definidas para a aplicação do método terapêutico descrito nestas páginas sem entrar num exame do ponto mais importante e abrangente do tratamento das neuroses em geral. Em minha própria mente, tenho muitas vezes comparado a psicoterapia catártica com a intervenção cirúrgica. Tenho descrito meus tratamentos como operações psicoterapêuticas e tenho exposto sua analogia com a abertura de uma cavidade cheia de pus, a raspagem de um região cariada, etc. Uma analogia como essa justifica-se menos pela remoção do que é patológico do que pela criação de condições que tenham maior probabilidade de conduzir o avanço do processo no sentido de recuperação.

Quando prometo a meus pacientes ajuda ou melhora por meio de um tratamento catártico, muitas vezes me defronto com a seguinte objeção: “Ora, o senhor mesmo me diz que minha doença provavelmente está relacionada com as circunstâncias e os acontecimentos de minha vida. O senhor, de qualquer maneira, não pode alterá-los. Como se propõe ajudar-me, então?” E tem-me sido possível dar esta resposta: “Sem dúvida o destino acharia mais fácil do que eu aliviá-lo de sua doença. Mas você poderá convencer-se de que haverá muito a ganhar se conseguirmos transformar seu sofrimento histérico numa infelicidade comum. Com uma vida mental restituída à saúde, você estará mais bem armado contra essa infelicidade.”

 

APÊNDICE A:  A CRONOLOGIA DO CASO DA SRA. EMMY VON N.

 

Existem sérias incoerências nas datas do caso clínico da Sra. Emmy von N. apresentadas em todas as edições alemãs da obra e reproduzidas na presente tradução. O início do primeiro período de tratamento da Sra. Emmy por Freud é atribuído duplamente a maio de 1889 em [1]. Esse período durou cerca de sete semanas (ver em [1]). Seu segundo período de tratamento começou exatamente um ano após o primeiro, isto é, em maio de 1890. Tal período durou umas oito semanas (ver em [1]). Freud visitou a Sra. Emmy em sua propriedade do Báltico na primavera do ano seguinte (ver em [1]), isto é, 1891. A primeira contradição dessa cronologia aparece em [1], onde a data dessa visita é indicada como maio de 1890. Esse novo sistema de datação é mantido em pontos posteriores. Em [1] Freud atribui um sintoma surgido no segundo período de tratamento ao ano de 1899, e por duas vezes atribui sintomas que surgiram no primeiro período de tratamento ao ano de 1888. No entanto, recorre a seu sistema original em [1], onde indica a data de sua visita à propriedade do Báltico como 1891.

Há uma evidência em favor da primeira cronologia — isto é, a que atribui o primeiro tratamento da Sra. Emmy por Freud ao ano de 1888. Em [1] ele observa que foi enquanto estudava as abulias dessa paciente que começou pela primeira vez a ter sérias dúvidas sobre a validade da asserção de Bernheim de que “a sugestão é tudo”. Externou essas mesmas dúvidas energicamente em seu prefácio a sua tradução do livro de Bernheim sobre a sugestão (Freud, 1888-9), e somos informados, numa carta a Fliess de 29 de agosto de 1888 (1950a, Carta 5), de que ele já terminara o prefácio naquela data. Também nessa carta escreve ele: “Não partilho das opiniões de Bernheim, que me parecem unilaterais.” Se as dúvidas de Freud foram indicadas pela primeira vez pelo tratamento da Sra. Emmy, esse tratamento deve ter tido início, portanto, em maio de 1888, e não de 1889.

A propósito, essa correção esclareceria uma incoerência no relato aceito de algumas das atividades de Freud após seu retorno a Paris, na primavera de 1886. Em seu Estudo Autobiográfico (1925d, Capítulo II) ele observa que, ao utilizar o hipnotismo, empregou-o “desde o começo” não só para dar sugestões terapêuticas, mas também com a finalidade de rastrear a história do sintoma até suas origens — desde o começo, em outras palavras, ele usouo método catártico de Breuer. Sabemos por uma carta a Fliess, de 28 de dezembro de 1887 (1950a, Carta 2), que foi em fins daquele ano que ele começou a dedicar-se ao hipnotismo; já em [1] e [2] do presente volume, ele nos diz que o caso da Sra. Emmy foi o primeiro em que tentou manejar o procedimento técnico de Breuer. Se, portanto, esse caso data de maio de 1889, houve um intervalo de no mínimo dezesseis meses entre os dois fatos, e, como observa o Dr. Ernest Jones (no Vol. I de sua biografia, 1953, pág. 63, edição inglesa), a memória de Freud era pouco precisa quando ele empregava a expressão “desde o começo”. No entanto, se a data do tratamento da Sra. Emmy fosse antecipada para maio de 1888, essa lacuna ficaria reduzida a apenas uns quatro ou cinco meses.

A questão se encerraria caso fosse possível demonstrar que Freud esteve fora de Viena por um período longo o bastante para cobrir uma visita à Livônia (ou qualquer país que este possa ter representado) durante o mês de maio de 1890 ou de 1891. Mas, infelizmente, as cartas que ainda existem daquele período não oferecem qualquer prova de tal ausência.

A questão torna-se ainda mais obscura em virtude de outra incoerência. Num nota de rodapé em [1], Freud comenta sobre a enorme eficácia de algumas de suas sugestões feitas durante o primeiro período de tratamento (a rigor, em 11 de maio de 1888 ou 1889). A amnésia então produzida por ele, em suas palavras, ainda estava atuante “dezoito meses depois”. Isso por certo se refere à época de sua visita à propriedade campestre da Sra. Emmy, pois, em seu relato dessa visita, ele volta a mencionar tal episódio. Ali, contudo, fala das sugestões originais como se fossem feitas “dois anos antes”. Se a visita à propriedade se deu em maio de 1890 ou de 1891, os “dois anos” devem estar certos e os “dezoito meses” devem ter sido um lapso.

Mas essas contradições repetidas sugerem outra possibilidade. Há motivos para crer que Freud alterou o local da residência da Sra. Emmy. Não terá ele, como uma precaução extra para não trair a identidade de sua paciente, alterado também a época do tratamento, mas falhado em manter essas alterações coerentemente até o fim? Toda essa questão permanece em aberto.

 

APÊNDICE B: LISTA DE OBRAS DE FREUD QUE TRATAM PRINCIPALMENTE DA HISTERIA DE CONVERSÃO

 

|Na lista que se segue, a data no início de cada título é a do ano em que a obra em questão provavelmente foi escrita. A data no final é a da publicação; a consulta a essa data na Bibliografia e Índice Remissivo de Autores fornecerá maiores detalhes sobre a obra em questão. Os títulos entre colchetes foram publicados postumamente.|

 

|1886  “Observação de um Caso Grave de Hemianestesia num Homem Histérico.” (1886d)|

1888   “Histeria”, em Handwoerterbuch, de Villaret. (1888b)

1892   “Carta a Josef Breuer.” (1941a)

|1892  “Sobre a Teoria dos Ataques Histéricos.” (Com Breuer.)        (1940d)|

|1892  “Rascunho III”. (1941b)|

1892   “Um Caso de Cura pelo Hipnotismo.” (1892-93)

1892   “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos           Histéricos: Comunicação Preliminar.” (Com Breuer.) (1893a)

1893   “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos           Histéricos: Uma Conferência.” (1893h)

1893   “Considerações para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Histéricas e Orgânicas.” (1893c)

1894   “As Neuropsicoses de Defesa”, Seção I. (1894a)

1895   Estudos sobre a Histeria. (Com Breuer.) (1895d).

|1895  “Projeto para uma Psicologia Científica”, Parte II. (1950a)|

|1896  “Rascunho K”, última Seção, (1950a)|

1896   “Observações Adicionais sobre as Neuropsicoses de                                    Defesa”. (1896b)

1896   “A Etiologia da Histeria.” (1896c)

1901-5           “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria.” (1905e)

1908   “As Fantasias Histéricas e sua Relação com a            Bissexualidade.” (1908a)

1909   “Algumas Observações Gerais sobre os Ataques Histéricos.” (1909a)

1909   Cinco Lições de Psicanálise, Lições I e II. (1910a)

1910   “A Concepção Psicanalítica do Distúrbio Psicogênico da  Visão.” (1910i)

 

                                                                                         

                      

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