Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FRITZMAC / Artur Azevedo
FRITZMAC / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

Revista fluminense de 1888, em prosa e verso, em um prólogo, três atos e dezessete quadros. 
PERSONAGENS: MADEMOISELLE FRITZMAC AMOROSA A AVAREZA A PACIÊNCIA UMA SENHORA DONA INÊS DE CASTRO O AMOR A LUXÚRIA A LIBERDADE O CONGRESSO DOS FENIANOS A SOBERBA A DILIGÊNCIA OUTRA SENHORA A GRÃ-VIA A INVEJA A TEMPERANÇA UMA CRIADA UM ASPIRANTE DA MARINHA A ÉPOCA O HIGH-LIFE UMA MULATA PEKY A IRA A CARIDADE UMA PRETA A SEMANA A PREGUIÇA A CASTIDADE A HUMILDADE O BARÃO DO MACUCO PERO BOTELHO FRITZMAC (alquimista) UM CREDOR  O CLUBE DOS FENIANOS  O ENTRUDO  O PADRE-SOLDADO  TIRO-E-QUEDA (capoeira) UM CONVIDADO  UM JORNALISTA  A GULA  UM SOLDADO DE POLÍCIA O CHEFE DOS COELHOS UM LICURGO  SEU ZÉ DO BECO  FONSECA-TCHING  ANTÔNIO JOSÉ (personagem invisível) OUTRO JORNALISTA  O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  O CARNAVAL  O PROJETO E A LEI  O VISCONDE (que dá o baile) UM ARTISTA  UM DILETANTE  ANTUNES  O COMENDADOR VILA ISABEL  OUTRO CONVIDADO  UM ENGENHEIRO  O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA  TRIPAS AO SOL (desordeiro) OUTRO CONVIDADO  TSING-TSING-SODRÉ O GALO  UM VENDEDOR DE CANIVETES  OUTRO CONVIDADO  OUTRO JORNALISTA  UM CAIXEIRO  O TIGRE  OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES  OUTRO CONVIDADO  OUTRO JORNALISTA  UM EX-ATOR  UM PADRE  O JACARÉ  UM HOMEM  OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES  UM PRETO  UM CRIADO  UM MEDROSO  O LEÃO OUTRO HOMEM  OUTRO PRETO  O DOUTOR GAZETA  OUTRO ENGENHEIRO  A ONÇA  O CONSELHEIRO JACÓ  SERAPIÃO  OUTRO CONVIDADO  UM ESGRIMISTA  OUTRO JORNALISTA  OUTRO LICURGO UM ITALIANO UM DIPLOMATA UM EMPRESÁRIO LÍRICO Pessoas do povo, peixes, coelhos, flores, mendigos, vagabundos, convidados, jornalistas, artistas líricos, soldados, etc.


#
#
#

#
#
#


PRÓLOGO
 
QUADROS I, II, III Laboratório sombrio e diabólico. Ao levantar o pano, o velho Fritzmac está ocupado nalgum trabalho de alquimia. Ao ver o público, ergue-se, aplica bem a vista, deixa o que está fazendo e vem ao proscênio. Música em surdina na orquestra desde o levantar do pano até a entrada de Pero Botelho.
 
CENA I Fritzmac, depois Pero Botelho.
 
FRITZMAC Meus senhores, eu sou Fritzmac, o alquimista: A falta de outro artista, O prólogo farei da pândega revista.  Desgostoso da terra, Onde sofri dos homens dura guerra, Ao serviço me pus Do bom Pero Botelho, Diabo assaz conhecido, Bon vivant, divertido, Que bons cobres me dá, me trata por meu velho, No conceito me tem do rei dos nigromantes,  E em breve — ele é que o diz — vai dar-me uma grã-cruz,  De ouro de lei, rodeada de brilhantes! Um presente de truz! (Pequena pausa) Do Botelho citado, Um capricho engraçado Vai ser, senhores meus, o ponto de partida  Da frívola comédia a que ides assistir. Quando a revista, por desenxabida,  Vos obrigue a dormir... (Acelera-se o movimento da música)
 
Mas que ouço!! A concluir sou forçado de chofre! Vem barulho do chão... sinto cheiro de enxofre! (Endireitando aqui e ali algum objeto) É o patrão!  Atenção! Vai abrir-se o alçapão!  Verão!
 
(Música forte. Pero Botelho surge do alçapão, acompanhado de labaredas. Cessa a música)
 
PERO BOTELHO Não te enganes, Fritzmac, sou eu. (Consultando o relógio) Meia-noite: é a minha hora, meu velho. Não sou desses demônios de hoje, que se enfaram de modernismo, e desdenham os costumes dos nossos avós. É justamente por isso que te procuro, amigo.
 
FRITZMAC Amigo, diz Vossa Alteza muito bem, porque nós, os homens da ciência, nada mais somos do que espíritos rebeldes, que se voltavam, como vós outros, contra as imposições de Deus. (Pero Botelho pula e estremece) Desculpe... sempre me esqueço de que não devo pronunciar o nome deste sujeito em presença de Vossa Alteza. (Vai buscar um banco e oferece-o a Pero Botelho) Deixe lá falar o velho Doutor Fausto, sábio carola e freguês de missas: a ciência é e sempre foi inimiga da Bíblia. Sente-se Vossa Alteza.
 
PERO BOTELHO (sentando-se) A prova ai está em Galileu, que pregou uma boa peça a Josué, e em Franklin, que desmoralizou o raio... Mas tratemos do objeto que aqui me trouxe.
 
FRITZMAC Sou todo ouvidos.
 
PERO BOTELHO Há bastante tempo vivo preocupado com a capital de um vasto império americano, que tem sabido resistir à minha influência.
 
FRITZMAC Vossa Alteza graceja.
 
PERO BOTELHO Não, meu velho. A capital de que te falo é o meu desespero. Conheces perfeitamente o nosso esplêndido sucesso sobre o antigo mundo pagão. Babilônia excedeu à nossa expectativa. Sodoma e Gomorra foram duas teteias. Nínive, aquilo que tu sabes. O Egito foi nosso de uma ponta a outra! Depois Roma... Ah! Roma! Roma!... Tão cedo não apanhamos outro Nero, nem outro Calígula... Aquilo é que era ouro de lei! Estendemos depois o nosso domínio por toda a Europa... Paris, Londres, Berlim, Viena, São Petersburgo, Madri, todas as capitais, enfim, de certa ordem, foram a pouco e pouco cedendo à nossa influência. Conseguimos plantar o nosso reinado em todas elas! Mas, meu velho, a América... (Abana a cabeça)
 
FRITZMAC A América não se tem explicado.
 
PERO BOTELHO É o termo. Ainda lá para o Norte não temos ido de todo mal. New York promete, isso promete. Mas o Brasil...
 
FRITZMAC O Brasil? Conheço. Um vasto território ocupado pelos portugueses.
 
PERO BOTELHO Isso é história antiga. O Brasil tornou-se independente há sessenta e tantos anos. E o Rio de Janeiro, a capital desse vasto império, é o meu cavalo negro.
 
FRITZMAC Deveras?
 
PERO BOTELHO Imagina que não tem mordido nem a pontinha da isca que lhe atiro com tanta insistência!
 
FRITZMAC É incrível!
 
PERO BOTELHO Despejei no Rio de Janeiro todos os elementos corrosivos que pude apanhar na Europa. Debalde! A tal cidadezinha resiste, e tem se conservado...
 
FRITZMAC Pura? Pois é possível que haja ainda no mundo uma cidade pura?
 
PERO BOTELHO Pura, pura, não digo que o seja. Não exageremos. Mas está tão longe da perfeição europeia, como da China. Um ou outro pândego pagame sobejamente o seu dízimo: mas não calculas que ingenuidade! que sancta simplicitas! Amam ainda e choram legítimas lágrimas. Há dedicação, há o que a moral chama bons exemplos; filhos modelos, mães extremosíssimas, quase santas, amigos desinteressados, e, parece incrível! há brio, há caráter, há honra!... Há lá quem dê a alma ao céu por uma questão de pundonor!... Para encurtar razões: já houve quem dissesse que a caridade se naturalizou fluminense!
 
FRITZMAC É com efeito uma capital sui generis.
 
PERO BOTELHO (erguendo-se, com resolução)  Pois bem, estou resolvido a ocupar-me seriamente com aquilo, a nivelar o mundo. Não tolero semelhante exceção... E como estou convencido de que só com o auxílio da ciência poderei realizar o meu plano de combate, venho ter contigo, meu velho, que és o meu sábio. Serve-me, e ainda mais depressa apanharás aquilo que te prometi.
 
FRITZMAC Já sei: a teteia. Estou às ordens de Vossa Alteza.
 
BEBO BOTELHO Quero que reduzas a um indivíduo só, os sete pecados mortais. Compreendes que é muito mais prático e mais cômodo enviar uma só criatura ao mundo, em vez de mandar para lá sete tipos que se prejudicariam uns aos outros, e acabariam por neutralizar mutuamente o que fizessem.
 
FRITZMAC (que tem estado a pensar, coçando a cabeça)  É... o plano não é mau...
 
PERO BOTELHO E é exequível?
 
FRITZMAC Homem, Alteza, para falar francamente, não posso afiançar a exequibilidade do plano. Até hoje tenho feito apenas algumas transmissões da alma de um corpo para outro, eletrizado diversos cadáveres e dado vida a meia dúzia de seres inanimados. Mas isto de reunir num só corpo nada menos de sete espíritos, e que espíritos!
 
PERO BOTELHO Recuas?
 
FRITZMAC É muito fácil com dois indivíduos fazer sete... Para isso nem é necessário a ciência... Mas de sete fazer um... Enfim, nada se perde por tentar.
 
BEBO BOTELHO Bravo! E quando tencionas dar começo ao teu trabalho?
 
FRITZMAC Imediatamente.
 
BEBO BOTELHO Nesse caso, mãos à obra! Vou invocar os sete pecados mortais!
 
CANTO
 
Eu ordeno com modo arrogante, E para isso não prego editais, Que apareçam aqui neste instante Os meus sete pecados mortais!
 
(Abre-se o fundo, deixando ver uma pequena gruta de fogo. Os sete pecados mortais estão alinhados e em linha descem ao proscênio. Fecha-se o fundo)
 
 
CENA II Fritzmac, Pero Botelho, os Sete Pecados Mortais.
 
 
CORO DOS PECADOS MORTAIS Pero Botelho, ó grande Alteza,  Cá estamos nós! Obedecemos com presteza  À tua voz, Rival de Belzebu,  Que queres tu!
 
(Continua a música em surdina na orquestra)
 
PERO BOTELHO Aí tens os sete pecados mortais, Fritzmac. São sete raparigas de se lhes tirar o chapéu.
 
FRITZMAC Estão bem dispostas, estão... principalmente aquela... (Aponta para a Gula)
 
PERO BOTELHO Já as conhecias?
 
FRITZMAC Apenas de tradição.
 
PERO BOTELHO Meninas, apresentem-se ao Doutor Fritzmac. (À avareza) Rompa você a marcha. 
 
(Os Pecados executam um pequeno movimento, e vão passando pela frente de Fritzmac sucessivamente, à medida que se apresentam)
 
A AVAREZA  Sou a Avareza sórdida, Que a força deletéria Do pranto e da miséria Desenvolvendo vai; Para os males do próximo Apática não olho, Porque tudo aferrolho Que nestas unhas cai.
 
FRITZMAC Faz muito bem. Quem para adiante não olha atrás fica.
 
A LUXÚRIA  Eis a luxúria, eis o pecado Que mais desgraças tem causado, E eternamente as causará! Enquanto, ao pé do masculino, No mundo houver o feminino, O meu domínio durará.
 
FRITZMAC Também não sei por que fizeram disto um pecado...
 
A INVEJA  Eu sou a vesga inveja; invejo a toda a gente;  Eu mordo-me, a chocar esta paixão ruim; Quando, por invejar, eu me sinto contente,  Invejo a própria Inveja, invejando-me a mim.
 
FRITZMAC Bom; esta tem muito em que se ocupar...
 
A GULA  A Gula sou; sou, e não vejo Em que um pecado possa...
 
FRITZMAC Nem eu.
 
A GULA  Não alimento outro desejo Senão comer, comer, comer...
 
FRITZMAC Este diabo abriu-me o apetite!
 
A IRA (que faz fugir Fritzmac)  Sumam-se! raspem-se, Que eu sou a Ira! Tudo me inspira Raiva e furor! Morro de cólera Se não espanco, Se não desanco Seja quem for!
 
FRITZMAC Vá desancar o boi! (A Soberba passa sem dizer nada) Então a menina não solta a sua piada? Quem é?
 
A SOBERBA  Não tenho que lhe dar satisfações! (Passa)
 
FRITZMAC Safa! é malcriada, é.
 
PERO BOTELHO Pudera! é a Soberba...
 
FRITZMAC Ah! (Vendo passar a Preguiça) E esta, que mal se arrasta?
 
A PREGUIÇA (com voz muito descansada) Eu sou a Preguiça; não há neste mundo  Coisinha melhor do que o dolce far niente.  Eu vivo deitada de papo pra cima,  E tenho preguiça de tudo e por tudo.
 
FRITZMAC Perdão, mas esses versos...
 
PERO BOTELHO Não rimam: ela teve preguiça de rimá-los. Bem, meninas, entretenham-se a ver esses bibelôs da nigromancia. (Os Pecados formam grupos ao fundo, examinando uma coisa ou outra. Pero Botelho vai ter com Fritzmac) Anda, trata de me reduzir sete raparigas a um rapaz bem sacudido e esperto.
 
FRITZMAC Um rapaz? Aí é que Vossa Alteza está na tinta.
 
PERO BOTELHO Como assim?
 
FRITZMAC Pois eu posso lá fazer um homem de sete mulheres!
 
PERO BOTELHO Por quê?
 
FRITZMAC Falta muita coisa. Não posso dispor de certos elementos dos quais nenhuma destas senhoras dispõe... a barba, por exemplo.
 
PERO BOTELHO Pois arranja uma mulher, com um milhão de raios! Pode ser até que lucremos com a troca! Uma mulher vale por vinte homens, e o que ela não alcançar, nem eu mesmo conseguirei! Que seria de mim se não fosse a mulher?
 
FRITZMAC Bom, comecemos o serviço. Vou metê-las todas naquela caldeira, que foi um presente de Vossa Alteza, e que tem sempre fogo.
 
PERO BOTELHO Ah, sim! a caldeira de Pero Botelho; mas provavelmente resistem.
 
FRITZMAC Resistem? Boas! E o hipnotismo?! (Pero Botelho mostra pela cara que não sabe o que é) Uma ciência moderna. (Vai buscar uma escada de mão, que encosta a uma cadeira, ligada a uma retorta. Depois vai aos Pecados, faz alguns passes magnéticos e as raparigas ficam imóveis) Vê Vossa Alteza? Estão prontas a obedecer à minha vontade!
 
CANTO
 
FRITZMAC Vamos lá, senhoras minhas. Sem fazer oposição; Entrem todas direitinhas Para aquele caldeirão!
 
PERO BOTELHO  A fazer um simples gesto, Tudo alcança um sabichão!  As pequenas, sem protesto,  Vão entrar no caldeirão!
 
OS PECADOS  Que diabólica artimanha! Que esquisita sensação! Sinto que uma força estranha Vai me pôr no caldeirão!
 
JUNTOS
 
FRITZMAC Vamos lá! senhoras minhas! etc.
 
PERO BOTELHO A fazer um simples gesto, etc.
 
Os PECADOS  Que diabólica artimanha! etc.
 
(Continua a música na orquestra. Fritzmac, sempre a fazer passes magnéticos, obriga os Pecados a entrarem para a caldeira. Eles o fazem a contra gosto. A Preguiça é a última)
 
PERO BOTELHO Agora me lembra. Essa não é lá precisa. No Rio de Janeiro o que não falta é preguiça.
 
FRITZMAC Deixe-a ir... agora é maçada desipnotizá-la. Quoci abundat non nocet. (Empurrando a Preguiça) Vamos! vamos! mova-se!... 
 
(Estão todos os pecados no caldeirão)
 
CENA III Fritzmac, Pero Botelho.
 
PERO BOTELHO És um homem extraordinário!...
 
FRITZMAC Ponha de quarentena os seus elogios, Alteza: quem sabe se, com tudo isto, nada mais consigo do que fazer um enorme ensopado?
 
PERO BOTELHO Não me digas.
 
FRITZMAC (trepa na escada, debruça-se sobre a caldeira, e começa a mexê-la com uma enorme colher de pau)  Oh! oh! como a gorducha esperneia! Só o caldo que aquilo dá! A Ira como esbraveja! A Preguiça ainda está viva... tem preguiça até de morrer!
 
PERO BOTELHO Que vais fazer dessa sopa?
 
FRITZMAC Esta sopa, quando estiver completamente líquida, passará por essa retorta, e irá depositar-se naquele reservatório. Dali é que há de sair a mulherzinha.
 
PERO BOTELHO E quanto tempo isso dura?
 
FRITZMAC Uns cinco meses talvez.
 
PERO BOTELHO Julguei que a coisa fosse mais rápida. Tenho lá paciência para esperar tanto tempo!
 
FRITZMAC Oh! Alteza! o fogo, por mais forte que seja, não terá mais de três mil graus de calor especifico.
 
PERO BOTELHO No mundo, sim, mas no Inferno tenho fogo superior a trinta mil graus!
 
FRITZMAC Ah! com esse fogo tudo se arranjava em alguns minutos.
 
PERO BOTELHO Pois espera, vou, aplicar o fogo do inferno ao fundo da caldeira. (Solta um assovio e formam-se grandes chamas vivas debaixo da caldeira)
 
FRITZMAC (subindo à escada)  Xi! Fogo viste linguiça! Nem sinal de osso existe já! Foi mais rápido que um raio! A sopa escorreu toda!
 
PERO BOTELHO Quando teremos a nova criatura?
 
FRITZMAC Não se demora muito. Só o tempo necessário para que o caldo passe pelos canais competentes, distribua as respectivas moléculas e esfrie de todo.
 
PERO BOTELHO Bom!
 
FRITZMAC (que tem ido examinar o aparelho)  Vai muito bem; não temos que esperar mais do que alguns minutos. (Apalpa o reservatório) Está quase frio. Não tarda aí!
 
PERO BOTELHO Deve ser completa essa mulher! Um ente feito da infusão de todos os meus pecados! (Ameaçando) Ah, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro! agora juro que não zombarás do poder do Diabo! Hás de pertencerme!
 
FRITZMAC (destapado o reservatório)  Pronto! 
 
(Forte na orquestra. Sai uma mulher. Pero Botelho e Fritzmac dão-lhe a mão para descer)
 
 
CENA IV Fritzmac, Pero Botelho, a mulher.
 
PERO BOTELHO (a Fritzmac)  Como é linda e como estou contente! Amanhã terás a grã-cruz, meu velho!
 
FRITZMAC Que perfeição de mulher!
 
CANTO
 
A MULHER  Quem sou? Em que lugar estou?  (Como se lembrando)  Ah! Tudo me lembra já!
 
TANGO
 
Sinto todos os pecados  Dentro de mim; Inda não houve no mundo  Mulher assim!
 
Sou avarenta, Sou preguiçosa, Sou rabugenta, Sou invejosa,  Irosa,  Gulosa,  Vaidosa. Uma mulher completa enfim!
 
FRITZMAC  Ai, meu amor, como és bonita!  Estão meus olhos cativados!
 
PERO BOTELHO  O peito meu de amor palpita!  És realmente os meus pecados!
 
OS TRÊS  Sou avarenta, etc. É avarenta.
 
PERO BOTELHO Bom, acompanha-me. Vou confiar-te uma missão delicada. Mas agora me lembro: é preciso batizar esta pequena. Ela não há de ter sete nomes.
 
FRITZMAC Fui eu que a fiz. Nada mais justo que ter o nome do pai.
 
PERO BOTELHO Apoiado: chamar-te-ás Fritzmac. Madame ou Mademoiselle Fritzmac, à vontade. Vamos! Adeus! (Mesura de Fritzmac)
 
A MULHER  Vamos! (Sai, levada por Pero Botelho)
 
FRITZMAC (Indo gritar ao bastidor) 
 
Não vá Vossa Alteza esquecer-se da teteia!
 
 
CENA V Fritzmac, só.
 
FRITZMAC Uma grã-cruz! uma grã-cruz! Isto era caso para um viscondado, pelo menos! Mas não é que o tal serviçozinho prostroume? (Boceja) Tenho sono... vou me deitar... e com a consciência de não haver perdido o meu dia. (Sai)
 
 
CENA VI O Amor (só).
 
(Depois que Fritzmac se retira, a cena fica só, por alguns momentos. Há um forte na orquestra, um armário transforma-se numa gruta florida, e sai de dentro desta o Amor. Continua a música)
 
O AMOR Ao ver surgir esta figura, Que há tantos séc'los a pintura  Vulgarizou, O espectador menos esperto  De si pra si logo decerto Disse quem sou. Mas, pelo todo, me parece Que esta figura não conhece  Ali o senhor... (Aponta para um espectador qualquer) Se bem que o caso seja raro,  Eu, pelas dúvidas, declaro Que sou o Amor. Já percorri bem mau caminho,  Já fui feroz, já fui daninho, Já fui fatal;
 
Mas hoje em dia só patetas Podem temer que as minhas setas  Lhes façam mal. Não é, por Vênus! a vontade De atormentar a humanidade  Que aqui me traz: Venho, contente e petulante, Desempenhar uma importante  Missão de paz. (Dirigindo-se para o fundo) Vinde, olá! virtudes magas! Preciso do auxílio vosso! (Ao público) Ides ver que eu também posso
 
Invocar nas horas vagas... (Música. Abre-se o fundo, e aparece um templo de ouro e luz. As sete virtudes opostas aos sete pecados mortais aparecem abraçadas, e abraçadas descem ao proscênio, onde se desentrelaçam)
 
 
CENA VII O Amor, as Sete Virtudes, depois Amorosa.
 
CORO DAS VIRTUDES  Aqui estão, muito bem postas,  Aqui estão, sem mais nem mais,  As virtudes opostas  Aos pecados mortais.
 
PRIMEIRA VIRTUDE  Eu sou a Caridade.
 
SEGUNDA VIRTUDE  Eu sou a Castidade.
 
TERCEIRA VIRTUDE  Eu sou a Humanidade.
 
QUARTA VIRTUDE  A Liberalidade.
 
QUINTA VIRTUDE  A Temperança.
 
SEXTA VIRTUDE Paciência.
 
SÉTIMA VIRTUDE  E a Diligência,  Que não descansa! Se me encarrego  De uma incumbência,  Aquilo é zás! Trás! Nó cego!
 
TODAS Zás!  Trás! Nó cego!
 
A DILIGÊNCIA  Vamos! vamos, Amor! que desejas? para que nos invocaste? Dize! dize depressa, que não há tempo a perder!
 
A PACIÊNCIA  Para que tanta pressa? Temos multo tempo. Quem corre cansa.
 
A LIBERALIDADE  Cala-te, Paciência, já começas! Dize o que desejas, Amor.
 
O AMOR  Serei breve. Trabalha neste laboratório um mágico, doutor ou coisa que o valha chamado Fritzmac, que se acha ao serviço de Pero Botelho.
 
TODAS (benzendo-se)  Credo!
 
O AMOR Pero Botelho quis enviar ao Rio de Janeiro os sete pecados mortais; não é preciso que eu vos diga com que intenções. Receando que sete criaturas não dessem boa conta do recado, porque se estorvariam mutuamente, incumbiu Fritzmac de reduzir as sete a uma só, por meio de misteriosos processos de alquimia. Pois bem: eu, o Amor, desejo opor um poder a esse poder... desejo extrair das virtudes opostas aos sete pecados mortais uma criatura que faça guerra à outra e lhe inutilize os planos. Para isso, valho-me do próprio laboratório do diabo, e não empregarei, como ele, o fogo do céu, mas o do amor, pois, como sabeis, o amor tem fogo.
 
A CASTIDADE  Oh! (Tapa a cara)
 
O AMOR  Perdoa, Castidade. (Beija-lhe a mão)
 
A LIBERALIDADE Se for preciso fazer alguma despesa, cá estou eu.
 
O AMOR  Não, formosa Liberalidade: o Amor tudo arranja de graça. Muito obrigado. (Beija a mão à Liberalidade)
 
A CARIDADE  Estamos prontas para quanto quiseres.
 
A PACIÊNCIA  E pelo tempo que entenderes.
 
O AMOR  Ah, ah! Fritzmac, vais ver que o Amor é mais feiticeiro que tu!
 
(CANTO)
 
Mas agora reparo: trazeis flores...  Muito bem! O vosso contingente, meus amores,  A propósito vem.
 
RONDÓ
 
Doce Humildade, na caldeira lança  Essas gentis violetas belas Dá-me essas rosas, Temperança;  Perdoa se te obrigo a desfazer-te delas. Lá dentro atira, Liberalidade, Os teus esplêndidos lilases, E tu, desfaz-te, ó Caridade,  Do amor perfeito, a flor que no teu seio trazes, Essa camélia, ó cândida Paciência, Lá da caldeira põe no fundo; Dê-me o seu cravo a Diligência, E dê-me a Castidade um lírio pudibundo.
 
(As Virtudes obedecem à proporção que canta o Amor Todas as flores têm passado para a caldeira)
 
A DILIGÊNCIA  Vais água-florida fazer?
 
O AMOR  Vão ver! vão ver!...
 
(Bate com a seta na caldeira, e esta desaparece, deixando ver Amorosa)
 
TODAS  Oh!
 
O AMOR  Filha do Amor e das Virtudes; chamar-te-ás Amorosa. Vem comigo... vou dar-te as minhas instruções. Urge sair deste lugar maldito. Minhas filhas, vamos!
 
TODAS Vamos!...
 
CORO GERAL  Oh, que linda e bela fada Engendrou este fedelho! Ai, que peça bem pregada Ao Senhor Pero Botelho!
 
(Saem correndo)
 
 
 
ATO I
 
QUADRO IV O Largo da Lapa. Juntos a uma casa, um cabide na parede, uma esteira no chão, um baú, uma vela espetada no gargalo de uma garrafa; sobre uma cama de ferro, o Credor fuma tranquilamente e lê um jornal. Muitas pessoas do povo o rodeiam com curiosidade.
 
CENA I O credor, primeiro e segundo curiosos, pessoas.
 
(Do povo, depois um polícia)
 
CORO 
 
Oh, que coisa esquisita! Estaremos no mundo da lua?! O riso nos excita Ver um tipo morando na rua! Ah! ah! ah! ah! ah! ah!  Esta agora não é má!
 
O CREDOR  Paguei na Rua do Lavradio  Por mês de casa trinta mil réis;  Mas hoje o belo do senhorio  Não me incomoda por aluguéis, Porém Eu não lhe exijo reparações, Pois tem Tudo na vida compensações.
 
CORO  Oh, que coisa esquisita! etc.
 
O CREDOR Riam-se! Estou perfeitamente aqui! A casa não pode ser mais ventilada.
 
PRIMEIRO CURIOSO  Mas diga-nos, por que está o senhor aí deitado?
 
O CREDOR  É muito simples: tenho um devedor que mora aí defronte, e não há meio de apanhar-lhe vintém. Como o tenho procurado um ror de vezes, sem nunca o encontrar em casa, resolvi estabelecer aqui o meu domicílio. Desafio-o a que me escape!
 
PRIMEIRO CURIOSO  E se o homem pagar?
 
O CREDOR  Se pagar, mudarei de residência. Morarei defronte de outro devedor. Irei para a Rua do Carmo. É um meio de cobrar dívidas e morar de graça.
 
SEGUNDO CURIOSO  Que caradura!
 
O CREDOR  Eh! lá! não insulte um homem que está em sua casa. Trouxe a minha cama, o meu cabide, o meu baú de roupa e uma vela, para ler um pouco antes de dormir. Com este gás, não há meio de enxergar as letras.
 
PRIMEIRO CURIOSO  E se chover?
 
O CREDOR  Já encomendei um toldo. O tempo está seguro. Espero que não chova antes que ele fique pronto.
 
SEGUNDO CURIOSO  Mas isto é proibido!
 
O CREDOR Proibido? Mostre-me a lei que proíbe ao cidadão viver e dormir na praça pública. Na praça pública o que não se pode é fazer discursos políticos, isso sim. Mas dormir? Ora viva, meu amigo!
 
SEGUNDO CURIOSO  A polícia catrafila quem não tem domicílio certo.
 
O CREDOR Mas eu tenho-o, que diabo! É este... Largo da Lapa, casa sem número, nem portas, nem janelas, nem teto, nem telhado, nem senhorio. Uma casa que não precisa de claraboia.
 
SEGUNDO CURIOSO  Isto nunca se viu! 
 
(Entra um polícia)
 
O CREDOR Viu-se em Atenas. Havia lá um Fulano Diógenes, que passava a vidinha na rua, dentro de uma pipa. Ele trazia uma lanterna; eu trago um recibo. Ele andava à procura de um homem; eu também, para ver se apanho o meu dinheiro. Somos ambos filósofos.
 
O POLÍCIA  Levante-se, retire-se, ao contrário vai para o xadrez.
 
PRIMEIRO CURIOSO  Onde também não pagará aluguel.
 
TODOS Apoiado! Fora! Fora dai! É um abuso! etc. 
 
(Obrigam o Credor a levantar-se no meio de grande algazarra)
 
O CREDOR Não há liberdade neste país! Não pode um homem estar a gosto em sua casa!...
 
TODOS Fora! fora!...
 
O CREDOR Aos cães concede-se tudo... Podem dormir na rua... podem até fazer alguma coisa mais... e eu não tenho o direito de...
 
O POLÍCIA Sabe que mais? Venha explicar-se na Estação.
 
O CREDOR E a minha mobília?
 
TODOS Vá! Vá! Nós levamos tudo isto! (Cada um toma um dos objetos, e saem todos, fazendo grande algazarra) Vamos à Estação! Vamos! etc.
 
 
CENA II Antunes, o Barão do Macuco, entrando cada um do seu lado.
 
O BARÃO Não me engano... é seu Antunes!
 
ANTUNES O Barão do Macuco! Não sabia que estivesse na Corte!
 
O BARÃO Há quinze dias. Estou hospedado ali no Freitas Hotel.
 
ANTUNES Ah, sei... abriu-se há pouco tempo. É um belo edifício. Embirro é com o nome: por que Freitas Hotel e não Hotel Freitas?
 
O BARÃO Freitas Hotel entra melhor no ouvido. Nisto de nomes, um pouco de estrangeirice não faz mal. Nós temos, por exemplo, o Hotel do Caboclo (que é onde eu me hospedava antes de ser Barão); não era melhor Caboclo Hotel?
 
ANTUNES Ah, sim... Caboclotel... caboclotel... Até parece inglês. Pois, Senhor Barão, encontra-me muito aborrecido da vida.
 
O BARÃO Por que, homem de Deus?
 
ANTUNES Imagine que eu tinha (tinha e tenho) um bilhete inteiro da tal grande loteria de Pernambuco.
 
O BARÃO Saiu branco. Console-se comigo, que tinha (tinha e já não tenho) não um, mas três bilhetes, e foram sessenta mil réis deitados fora.
 
ANTUNES (num tom de profunda tristeza)  Pois eu tirei dois contos...
 
O BARÃO Dois contos?! E é por isso que está aborrecido da vida?
 
ANTUNES Naturalmente. Aborrecido, primeiro, por não ter apanhado a sorte grande. De que servem dois contos? Eu posso lá endireitar a vida com dois contos? E segundo, porque li nos jornais que só em Pernambuco se pagam os prêmios.
 
O BARÃO Mas ora essa! Desconte o bilhete em qualquer quiosque, ou arranje um saque para Pernambuco.
 
ANTUNES Se eu descontar o bilhete, tenho que perder alguma coisa, e a mim convinha-me receber os dois contos intactos. (Zangado) Maldita a hora em que me lembrei de comprar semelhante bilhete! Se eu adivinhasse que me havia de dar tanta maçada...
 
O BARÃO Bom! Não vá agora suicidar-se por ter abiscoitado dois contos de réis na loteria!
 
ANTUNES Oh, o Barão foi feliz! Os seus bilhetes saíram brancos... Invejo-o.
 
O BARÃO (comovido) 
 
Pois olhe, foi contra a minha vontade. (Abraçando-o) Coitado! pobre amigo! ganhou dois contos de réis, e só pode recebê-los em Pernambuco. Que desgraça!
 
ANTUNES É mesmo muito caiporismo.
 
O BARÃO Tenha paciência. Não viemos a este mundo senão para sofrer. Olhe, aqui onde me vê, não passei pelo transe de tirar dois contos na loteria, mas tirei-me dos meus cuidados, fui ao Eldorado, e não há meio de sair de lá todas as noites. Veja se não é também uma desgraça. Vim passar cinco ou seis dias na Corte, já lá se vão quinze... a Baronesa todos os dias chama por mim... e não há meio de arrancar-me do Baco do Império. (Vendo passar Mademoiseile Fritzmac) Ui! que tetéia! (Dirige-se a ela)
 
ANTUNES (à parte)  É o mesmo homem: em vendo rabo-de-saia...
 
 
CENA III Antunes, o Barão, Mademoiselle Fritzmac, depois Amorosa.
 
O BARÃO Minha senhora, quer um criado para carregar esse embrulhinho?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Obrigada. Não aceito obséquios de pessoas que não conheço.
 
O BARÃO A senhora diz isso porque não me conhece.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Monsieur de La Palisse faria a mesma observação. Com quem tenho a honra de falar?
 
ANTUNES (aproximando-se)  Com o Barão do Macuco, um dos primeiros políticos da província do Rio.
 
O BARÃO E este é o meu amigo Antunes, que acaba de passar pelo doloroso transe de tirar dois contos de réis na loteria... quando podia tirar cinquenta.
 
ANTUNES Ou não tirar coisa alguma.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (à parte)  O Barão do Macuco! É o homem que me convém...
 
O BARÃO E agora posso saber quem é a formosa dama com quem tenho a honra de falar?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Pois não!
 
VALSA
 
Eu sou solteira, E independente, Vivo contente, A viajar; Corro, percorro Todo esse mundo Vasto e profundo Sem descansar. Amo os prazeres, E pelo vinho Tenho um gostinho Particular. Apraz-me um tipo
 
Que me acompanhe Quando o champagne Possa pagar. Pátria não tenho, Não tenho afeto, Não tenho lar. Eu sou formosa Cosmopolita, Que necessita Rir e folgar! Ah! Eu sou solteira, etc.
 
O BARÃO Bravo! bravo! admirável!...
 
ANTUNES (à parte)  Está caído!
 
AMOROSA (que durante o canto apareceu, e observou sem ser vista, â parte)  Vai seduzi-lo, mas eu o defenderei! (Sai)
 
O BARÃO A madama canta muito bem. Canta muito bem, e entoa. É do Eldorado?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Não, mas talvez me contrate lá.
 
O BARÃO E é indiscrição perguntar onde mora?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Barão caiu-me em graça: não será nunca indiscreto. Moro ali pertinho, no próprio Beco do Império.
 
O BARÃO Somos vizinhos, a madame, o Eldorado e eu. Estou ali no Freitas. 
 
(São interrompidos por um Medroso, que entra a correr e esbarra em Antunes)
 
 
CENA IV O Barão, Antunes, Mademoiselle Fritzmac, o medroso, depois um Padre, Povo.
 
ANTUNES Eh! olá! Não enxerga?
 
O MEDROSO (esfalfado)  Ah!... desculpe... É que... Parece que eles ficaram longe... Vim a correr... desde... o Campo de Santana.
 
O BARÃO A correr de quê?
 
O MEDROSO  Dois malfeitores, armado cada um com uma faca deste tamanho!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (contente)  Ah! (Interessada e sorrindo) Mataram alguém?
 
O MEDROSO Mataram uma porção de gente... e, afinal, não tendo mais a quem matar, esfaquearam um burro de bonde! (Sai correndo)
 
O BARÃO Um burro?! Já não estou bem aqui!
 
ANTUNES Há perigo.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Nesse caso, venham cá para casa. Almoçam ambos comigo.
 
ANTUNES Eu não, que não dispenso o meu almoçozinho de quatrocentos réis no Democrata. Até sempre, Barão. Minha senhora...
 
O BARÃO Adeus, seu Antunes, apareça. 
 
(Saem todos. Entra o Padre, com uma tocha quebrada na mão, perseguido pelo povo)
 
O PADRE  Deixem-me! deixem-me!.
 
(O povo persegue-o, dando uma volta pelo palco, e cantando)
 
CORO  Este padre está demente!... Doido varrido ficou!  Aqui escandalosamente O padre, o padre pintou!  Fiau! Fiau! Deu-nos de tocha! Que sistema novo  De edificar o povo!
 
(Sai o Padre, perseguido pelo coro. Mutação)
 
 
QUADRO V Sala rica em casa de Mademoiselle Fritzmac.
 
CENA I Mademoiselle Fritzmac, o Barão, depois uma criada.
 
(O Barão almoçou bem; traz o colete desabotoado, palita os dentes, e está ligeiramente perturbado pelo vinho)
 
O BARÃO Sim, senhor! Tratou-me à vela de libra! (À parte) Nunca vi uma mulher comer tanto!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Espere pelo resto.
 
O BARÃO Gostei muito daquela... Como é mesmo o nome que você lhe deu?... Manarezi?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Maionese.
 
O BARÃO É isso. Eu aprecio também os quitutes franceses. Gosto tanto deles como de uma boa feijoada porca.
 
(A criada entra, trazendo uma bandeja com duas chávenas de café, uma garrafa de conhaque e dois cálices. Mademoiselle Fritzmac passa uma xícara ao Barão)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Veja se o seu café é melhor do que este!
 
O BARÃO Meu café é do melhor, e de terra ferruginosa. Este ano a colheita será esplêndida, se não vier por aí alguma retirada de negros. Não me queixo dos abolicionistas: queixo-me dos meus colegas que facilitam muito. (Acaba de tomar café, e Mademoiselle Fritzmac oferece-lhe um cálice de conhaque) Mais bebida? Enfim, vá lá! (Depois de tomar o cálice de conhaque, repoltreia-se, palitando os dentes; ela tem tomado também o seu cálice, e apresenta uma cigarreira ao Barão, depois de acender um cigarro. A criada sai)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Fuma?
 
O BARÃO Eu só pito cachimbo. (Boceja e espreguiça-se)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (sentando-se perto dele)  Sabe que estou simpatizando muito com você?...
 
O BARÃO Qual, madama! Quem sou eu para acompanhar nosso pai fora de horas!...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC São destas coisas! A gente sabe lá por que fica embeiçada por um homem?... Às vezes um defeito, uma esquisitice, o que nos seduz... E você sabe: quem o feio ama bonito lhe parece.
 
A CRIADA (entrando) Está aí o Clube dos Fenianos.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC O Clube dos Fenianos? Que pretende ele de mim? Fá-lo entrar. (Ao Barão) Você dá licença! 
 
(A criada sai)
 
O BARÃO Ó menina, faça de conta que está em sua casa!...
 
 
CENA II Os mesmos, o Clube dos Fenianos, depois o Clube dos Democráticos, depois o Clube dos Progressistas da Cidade Nova.
 
O CLUBE DOS FENIANOS (aparecendo à porta) 
 
Dá licença, Mademoiselle Fritzmac? 
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Entre, cavalheiro. (Apresentando o Barão, que cumprimenta sem se levantar) O Barão do Macuco. (Ao Barão) O Clube...
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Eu mesmo me apresento.
 
COPLA
 
O Clube eu sou dos Fenianos. Outro melhor não pode haver; Tenho vencido os demais anos, E agora mesmo hei de vencer! Proclamará por toda a parte Da Fama a voz universal Que só o meu carro de estandarte Vale por todo um carnaval!  Não há, não há,  Nem haverá Assim um clube, olá!...
 
(Dança cancã ao som dos últimos compassos. Durante o canto, o Barão dormita)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Queira sentar-se. (Sentam-se ambos) A que devo a honra de sua visita?
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Ao grande empenho de que a senhora faça parte do nosso préstito carnavalesco, este ano. Não se arrependerá. É um excelente anúncio para o seu gênero de negócio. Juro que seremos os primeiros em tudo: em grandeza, em luxo, em espírito, em bom gosto e...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC E em modéstia.
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Peço-lhe ardentemente que não aceite convite de outro clube.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Pode ser. Veremos.
 
O CLUBE DOS FENIANOS  O carnaval está a pingar; o tempo é curto e a senhora tem de preparar-se. A senhora é a mais rutilante estrela do nosso horizonte, e o Carnaval é a única moldura capaz de fazer sobressair a sua beleza! Oh! venha! decida-se a vir conosco! Os Tenentes não saem este ano à rua.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Ah! não saem? Há de ver que é a sociedade que se apresenta com mais espírito.
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Não deixe que os Democráticos nos passem a perna!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Pois sim, se me resolver...
 
O CLUBE DOS FENIANOS  É preciso que se note: não consentimos que a senhora faça a menor despesa; escolha a seu gosto uma fantasia, o carro que desejar, os cavalos que quiser, e nós marcharemos com os cobres! Aceita?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Darei depois uma resposta definitiva.
 
A CRIADA (entrando)  Está aí o Clube dos Democráticos...
 
O CLUBE DOS FENIANOS (à parte, levantando-se) 
 
Ora bolas!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Outro? Que entre!
 
O BARÃO (abrindo um olho)  Não me deixam ficar um instante só com ela!... (Adormece de novo)
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Encontra o beco tomado.
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS (à parte)  Dá licença?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (levantando-se)  Pois não!
 
COPLA
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS (entrando) O Clube eu sou dos Democráticos,  Vai o triunfo ser meu só!  Outro não há de mais espírito Que se apresente mais liró! Nem Progressistas, nem Políticos, Nem Fenianos que sei eu! Não são assim como eu tão pândegos, Nem têm decerto o valor meu! Não há, não há,  Nem haverá Um clube assim, olá!... (Dança)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Vou apresentá-lo ao Barão... (O Barão ronca) Coitado! deixá-lo dormir! (Vai apresentar os Democráticos aos Fenianos, mas eles medem-se com um olhar de desafio e voltam-se as costas) Bem, vejo que já se conhecem... (Cada um dos Clubes dá um grande assovio) Sentemo-nos. (Sentam-se)
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Minha senhora, vinha convidá-la para tomar parte no nosso préstito este ano... A senhora é indispensável!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Este senhor acaba de fazer o mesmo pedido...
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  E a senhora comprometeu-se?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Não resolvi coisa alguma.
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Nesse caso, decida-se por nós. Pagamos todas as despesas e damoslhe ainda em cima trezentos mil réis.
 
O CLUBE DOS FENIANOS  E nós quinhentos...
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Seiscentos!
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Oitocentos!
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Um conto de réis!
 
O CLUBE DOS FENIANOS (depois de hesitar)  Um conto e vinte e cinco mil réis! (Olha vitorioso para o rival. À parte) Quero ver se cobre o lance!...
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Minha senhora, nós lhe faremos um a pensão mensal de duzentos mil réis durante toda a sua vida. Isso é mais seguro. Um conto e vinte e cinco mil réis gastam-se numa pândega, ao passo que a senhora terá aqueles cobrinhos certos no fim de cada mês...
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Eu faço-lhe um patrimônio, minha senhora!
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Eu arranjo-lhe um dote!
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Eu dou-lhe um noivo!
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  E, eu dois!
 
A CRIADA (entrando)  Está aí o Clube dos Progressistas da Cidade Nova!
 
OS DOIS (levantando-se)  Hein?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (levantando-se)  Ainda? Manda-o entrar! Já agora farei coleção! 
 
O BARÃO Estou roubado!... (Torna a adormecer e daí em diante ressona)
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Pois a senhora dá confiança àquele tipo?...
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Até a Cidade Nova!...
 
O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA (entrando) 
 
Dá licença, minha senhora? Oh! os colegas por cá?... Agradável surpresa!...
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Viva!
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS  Adeus!
 
O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA (à parte) Impostores!... (A Mademoiselle Fritzmac) Senhora madama, faça favor de me ouvir.
 
COPLA-LUNDU
 
Eu não sou nenhum gabola; Sou modesto e faço bem; Dar não pode o mais pachola  Mais do que tem. Se a madama no meu carro Quer ir cheia de ouropeis, Imediatamente escarro Trinta mil réis.  (Dança)
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Creio que o amigo perde o tempo... nós já cá estávamos, e eu em primeiro lugar!...
 
O BARÃO (sonhando)  Vinte mil arrobas a dez mil réis... Duas vezes um, dois... (Resmunga)
 
O CLUBE DOS FENIANOS  Dê-me preferência! Cheguei em primeiro lugar! Eu disponho do que há de melhor no gênero mulher!...
 
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS Não lhe dê ouvidos! aquilo tudo é prosa!
 
O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA (querendo conciliá-los)  Então, colegas, então! (É repelido pelos dois) Ah! orgulhosos! Querem a guerra?! Pois bem — guerra! 
 
(Os três começam a falar de modo que ninguém entenda, disputam e caem por cima do Barão, que desperta sobressaltado, pedindo por socorro; mas, vendo que se trata de três imprudentes, agarra na cadeira e corre com eles, enquanto Mademoiselle Fritzmac ri às gargalhadas)
 
 
CENA III Mademoiselle Fritzmac, o Barão, depois a criada.
 
O BARÃO Que desordeiros!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Deixá-los!
 
A CRIADA (entrando, baixo)  Está ai um mocinho muito bonitinho, que quer falar com a senhora...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Quê?... Ainda algum clube?...
 
A CRIADA  Não, minh'ama, é um moço de espírito: deu-me esta moeda!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Uma libra? Deve então ser muito rico... Fá-lo entrar!
 
O BARÃO Que segredinhos são esses?...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Xi! Que cara de sono!... Olhe! entre naquele quarto e lá encontrará onde dormir.
 
O BARÃO Mas observo-lhe que não gosto de estar muito tempo sozinho... (Sai)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Manda entrar o mocinho. 
 
(A criada sai. Entra Amorosa, disfarçada em rapaz)
 
 
CENA IV Mademoiselle Fritzmac, Amorosa.
 
AMOROSA (à parte) Queres seduzir esse pobre chefe de família, mas a seduzida serás tu!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Ah! (À parte) Como é lindo!...
 
AMOROSA Perdoe, minha senhora, tanta ousadia... Se assim o ordena, retirome... (Faz menção de retirar-se)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (correndo para ele, com ímpeto, e tirando-lhe o chapéu das mãos)  Não! Não saia, e diga o que o trouxe aqui.
 
AMOROSA  O que me trouxe foi o... amor!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC O amor?... AMOROSA  O amor, sim, minha senhora.
 
(COPLA
 
Eu vi teus olhos divinais, E nunca mais tive sossego, Pois cada vez te adoro mais E amar-te é o meu único emprego. Vim declarar-te o meu amor, Guardar não posso este segredo... Vê como tremo, ó minha flor!... Não sei de quê, mas tenho medo!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Pobre rapaz!...
 
AMOROSA  Nunca amei outra mulher, nem nunca pensei que o amor fosse um sentimento tão despótico! Depois que te amo, só em ti penso, só te vejo a ti! Nada mais te peço, entretanto, senão que me deixes de vez em quando passar alguns momentos com as tuas mãos entre as minhas.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (à parte)  Coisa estranha! E não é que estou sensibilizada? Sinto neste instante por ele o que nunca senti por ninguém! Dir-se-ia que também o amo!
 
AMOROSA  Se quiseres, serei teu e só teu. Mudarás de vida... Levar-te-ei para o campo... casar-nos-emos... Que existência feliz e honesta passaremos numa casinha, entre árvores, até que, depois de muitos anos de virtude, sempre ao lado um do outro, cercados pelos nossos filhos e pelos nossos netos, eu te veja, coroada de cabelos brancos, passar entre o bom povo do campo, aureolada pelas bênçãos de todos, e amada por Deus (Mademoiselle Fritzmac estremece), que nos esperará no céu, sorrindo, de braços abertos!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (afastando-se)  Cala-te, criança! Esses prazeres não se fizeram para mim! se para o teu amor é necessário o meu arrependimento, foge de mim, nunca mais me procures!
 
AMOROSA  Vejo que não poderás ser minha... Adeus! 
 
(Mademoiselle Fritzmac não responde. Amorosa retira-se lentamente e sai)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (depois de algum tempo)  Não! Não posso separar-me dele! Amo-o! (Põe o chapéu e sai)
 
 
CENA V O Barão, depois o Congresso dos Fenianos, depois a criada.
 
O BARÃO (entrando e vendo-a sair) Madama! madama! Ela sai? Nada, isso é que não está no programa! (Pega no chapéu, vai a sair, e esbarra-se com o Congresso dos Fenianos) Oh, senhor! (O Congresso vai falar) Não lhe posso dar atenção! (Sai)
 
A CRIADA (entrando)  Que deseja o senhor?
 
O CONGRESSO DOS FENIANOS  Falar a Mademoiselle Fritzmac.
 
A CRIADA  Saiu neste momento. (À parte) Estes meninos!...
 
O CONGRESSO DOS FENIANOS  Pois quando ela vier, tenha a bondade de lhe dar este cartão... e pedir-lhe que não se comprometa com ninguém. (Sai)
 
A CRIADA (só, lendo o cartão) 
 
Congresso dos Fenianos. Também este! (Indo gritar à porta) Cresça e apareça! (Sai pelo lado oposto. Mutação)
 
 
QUADRO VI No Jardim Zoológico.
 
CENA I A raposa, a onça, o leão, o jacaré, o tigre, o galo, que descem ao proscênio; depois o Chefe dos Coelhos.
 
CORO  Do Jardim Zoológico  Eis o ministério! E, como hoje é sábado,  Há conselho, e sério!
 
A RAPOSA  Vamos lá, meus senhores! Antes de expor os negócios públicos à nossa amável rainha, a majestosa gazela, procedamos a um pequeno ensaio geral.
 
TODOS Apoiado!
 
A RAPOSA  Tanto na pasta dos Negócios Interiores, como na dos Negócios Exteriores, ambas comigo, não há novidade de maior. Fale o Senhor Onça, Ministro das Finanças.
 
A ONÇA  Excelentíssimo Senhor Raposa, as finanças estão no mesmo pé e na mesma mão em que estavam sábado passado. As coisas vão perfeitamente, e melhor hão de ir se me deixarem realizar as reformas que projeto.
 
A RAPOSA Ainda bem... vê-se que estar a Onça no governo não quer dizer que o governo esteja na onça.
 
TODOS Apoiado!
 
A RAPOSA  E que diz o Senhor Galo, Ministro dos Rolos?
 
O GALO  Não há novidade no galinheiro. Depois que lhe pusemos aquela tranca, reina a paz... em Varsóvia.
 
A RAPOSA  Ainda bem. Senhor Leão, Ministro da Lavoura, que há de novo pela sua pasta?
 
O LEÃO  Grandes projetos, meu senhor, grandes projetos! A existência deste jardim começa apenas, e o nosso maior cuidado deve ser povoá-lo. Conto que não fique aqui lugar para uma formiga.
 
A RAPOSA  Muito bem. E o Senhor Tigre? que tem feito?
 
O TIGRE Ah, Senhor Presidente, esta pasta das coisas justas, habitualmente tão calma, está começando a dar-me água pela barba!
 
A RAPOSA  Que me diz?
 
O TIGRE  Que o diga ali o Senhor Jacaré, Ministro das Águas.
 
O JACARÉ  É verdade; as coisas não vão lá para que digamos.
 
A RAPOSA  Mas expliquem-me!...
 
O JACARÉ  Olhe, é melhor que vossa excelência se informe com o Chefe dos Coelhos, encarregados da ordem pública. Ele aí vem. 
 
(O Chefe dos Coelhos entra apressado)
 
A RAPOSA  Então? que há? que há?
 
O CHEFE DOS COELHOS  O diabo com botas! Os meus coelhos estão atrapalhadíssimos!
 
A RAPOSA  Mas por quê?
 
O CHEFE DOS COELHOS  Estava um peixe a fazer desordem fora do seu elemento. Um coelho prendeu-o, mas teve o desazo de tratá-lo como a um reles parati, quando era um badejo de alta prosápia.
 
A RAPOSA  E daí?
 
O CHEFE DOS COELHOS  Daí, é que os peixes escamaram-se, e voltaram-se todos contra os coelhos!
 
A RAPOSA  Fizeram-na bonita! (Ao Tigre) Vá imediatamente demitir o coelho que deu causa ao conflito! (O Tigre sai) É preciso ter muito cuidado com aquela gente. Se eles não se satisfizerem com essa demissão, as coisas ficarão muito entroviscadas.
 
O CHEFE DOS COELHOS Antes que elas se entrovisquem, peço a vossa excelência que me meta na relação dos beneméritos. O seguro morreu de velho.
 
(Barulho fora) 
 
A RAPOSA  Aquilo que é?
 
O TIGRE (entrando a correr)  O bicho está demitido, mas não há meio de acalmar os outros!
 
A RAPOSA  Mau! mau! mau! mau!...
 
 
CENA II Os mesmos, um grupo de coelhos, um grupo de peixes, aquele perseguido por este.
 
CORO
 
OS PEIXES  Vingança, amigos, vingança!  Vingar-nos todos devemos! Lavemos sem mais tardança, O insulto que recebemos!
 
OS COELHOS  Desejam todos vingança! Pois bem! fugir-lhes devemos!  Fujamos sem mais tardança,  Senão, em boas nos vemos!
 
A RAPOSA Sabem que mais? Vou expor todas estas circunstâncias à nossa amável rainha, e pedir providências contra tamanha falta de disciplina! Esperem-me aí vocês, que já volto. (Sai)
 
O TIGRE  A rainha é capaz de dar razão aos peixes!
 
A ONÇA  E se assim for, vamos para os peixinhos.
 
O CHEFE DOS COELHOS  Contanto que me metam na relação dos beneméritos.
 
O GALO (olhando para dentro)  Vejam!... o Senhor Raposa conversa com a rainha...
 
A ONÇA  Sua Majestade está com cara de poucos amigos...
 
O TIGRE  A conversação anima-se.
 
O CHEFE DOS COELHOS  Gesticulam ambos.
 
O GALO  Céus!
 
TODOS Que é?
 
O GALO  O Senhor Raposa entregou as suas pastas! (Atirando-se ao chão) Caí!...
 
TODOS (menos o Leão e o Chefe dos Coelhos, atirando-se ao chão)  Caímos!
 
A RAPOSA (entrando muito cabisbaixa, e atirando-se também ao chão)  Caí!... (Ao Chefe dos Coelhos) Você também caiu!
 
O CHEFE DOS COELHOS  Eu? Pois isso é possível? (Sentando-se no chão, muito desconfiado e aos poucos)
 
A RAPOSA  Caiu, sim, senhor. Caiu, e deu causa a que todos nós caíssemos. A rainha exigiu a sua demissão. Eu apoiei-o... nada! — fiz finca-pé, ela também, e não tive remédio senão resignar o poder!
 
O CHEFE DOS COELHOS  Estou arranjadinho!...
 
A RAPOSA (ao Leão)  Olá, amiguinho, está de pé? Olhe que você também caiu! 
 
O LEÃO  Eu? Boas! Estava com vocês por honra da firma! Hei de fazer parte do novo governo!... (Sai. Ouvem se foguetes)
 
A RAPOSA  Estão ouvindo? A notícia é recebida com foguetório! Aposto que hão de deitar luminárias na gaiola dos macacos! (Suspirando) Ah!...
 
TODOS (suspirando)  Ah!...
 
CORO  Nesta vida sem ventura,  Tudo é pérfida ilusão;  Pensa a gente estar segura,  Quando leva um trambolhão! Ai! ai! Ai! ai! Tudo neste mundo
 
De catrâmbias cai!  Ai!
 
(Os bichos acabam chorando. Findo o canto, aparece o Comendador Vila Isabel, que estaca ao ver a bicharia reunida)
 
 
CENA III Os bichos, que logo saem, o Comendador Vila Isabel, depois o Barão do macuco; depois o Carnaval, depois Mademoiselle Fritzmac e Amorosa, depois Pero Botelho, depois o Barão e o Comendador Vila Isabel, depois o Amor.
 
VILA ISABEL  Que é isso? que pândega é esta?... Já para os seus lugares! (Todos os bichos se levantam e fogem) São temíveis! Em apanhando a gente descuidada, vêm cá para fora fazer política!...
 
O BARÃO (entrando, consigo)  Qual! já perdi as esperanças de encontrá-la... Meteu-se com o pelintra num bonde de Vila Isabel... julguei que tivessem vindo para o Jardim Zoológico.
 
VILA ISABEL  Oh! Barão!...
 
O BARÃO Oh! Comen... Comendador ou Barão também?
 
VILA ISABEL  Comendador... Comendador... mas não tarda por aí o baronato.
 
O BARÃO Não me canso de admirar o seu jardim...
 
VILA ISABEL  Meu é um modo de dizer.
 
O BARÃO Oh! o Comendador tem sido a alma deste bairro vitorioso! Vejo constantemente nas Notícias Várias os presentes que todos os dias se fazem ao Jardim Zoológico. Hei de mandar-lhe também dois macacos e uma jararaca.
 
VILA ISABEL  Serão recebidos com muito prazer.
 
O BARÃO (à parte)  Não lhe poder eu mandar minha sogra!... 
 
(Entra o Carnaval, e vai sentar-se num banco a meditar profundamente até chegar-lhe a ocasião de falar)
 
VILA ISABEL  Temos aí uma onça muito bonita, chegada hoje. Quer vir vê-la?
 
O BARÃO Com todo o prazer. (À parte) O que eu queria era encontrar a pequena.
 
VILA ISABEL  Venha por cá. 
 
(Sai com o Barão. Mademoiselle Fritzmac entra com Amorosa)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (correndo)  Ai, que linda borboleta! que linda! Ora! Voou!...
 
AMOROSA  Pousou naquele galho... vou apanhá-la e trazer-lha, mas com a condição de que lhe não fará mal.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Descansa. (Amorosa sai) É singular! Operou-se uma revolução completa em todo o meu ser! Como adoro este rapaz... uma adoração pura... sagrada... quisera vê-lo sempre, sempre ao meu lado, e, no entanto, não me tarda o momento de estar com ele a sós... Se Pero Botelho soubesse disto...
 
PERO BOTELHO (deitando a cabeça fora do tronco de uma árvore)  És uma idiota!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Pero Botelho!
 
PERO BOTELHO Os momentos são preciosos... Pois não vês, minha tonta, que esse mancebo por quem te apaixonaste é uma mulher como tu?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Uma mulher!
 
PERO BOTELHO É a suma das Virtudes, como tu és a suma dos pecados. Obra do Amor, que me quis pregar uma peça; mas para cá vem de carrinho. Não me posso demorar mais tempo. Cautela! (Desaparece)
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (só)  Em que esparrela ia eu caindo!
 
AMOROSA (voltando com a borboleta)  Aqui a tens, meu amor! É azul como os teus olhos e doirada como Os teus cabelos!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (toma a borboleta, esmaga-a e pisa-a aos pés) Aí tens o caso que faço da tua borboleta! (Gesto de espanto de Amorosa) Julgas que continuarei a ser o teu ludibrio? Descobri toda a verdade, e a tempo de evitar que frustres o desempenho da minha missão! (Vendo o Barão, que entra com o Comendador Vila Isabel) É o diabo que O envia! (Vai abraçar o Barão; Vila Isabel foge envergonhado) Oh, meu bom amigo... meu querido Macuco... já te não largo!...
 
O BARÃO Ora graças!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Vamos jantar ali no hotel...
 
O BARÃO Mas que foi isto?
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Vamos! 
 
(Sai com o Barão, que lança um olhar de triunfo a Amorosa)
 
AMOROSA (só)  Não há que ver! Fui vencida pelo diabo!
 
O AMOR (aparecendo)  Vencida! Isso é o que havemos de ver!
 
AMOROSA  Ah! és tu? Ainda bem! Inspira-me; diz-me O que devo fazer.
 
O AMOR  É preciso que esse homem se apaixone por ti. É o único meio de salvá-lo. Vai!
 
AMOROSA  Serás obedecido. (Sai)
 
O AMOR (só)  A Fritzmac tem seguido muito mal as instruções do diabo. Atracouse a um homem isolado, sem se lembrar de que uma andorinha só não faz verão. A minha vitória será ainda mais fácil do que eu supunha.
 
COPLAS
 
I Quando nalgum ponto Meto o meu bedelho, O poder afronto De Pero Botelho. 'Stava eu bem servido, Se fosse vencido!  Meu pobre Pero Botelho,  Tu cantas, mas não entoas...  Venceres este fedelho? Boas!
 
II Quando antigamente Era um deus vendado, Fui por toda a gente Bem mistificado. Hoje nem por graça Já ninguém me embaça...  Meu pobre Pero Botelho, etc.  (Desaparece)
 
 
CENA IV O Carnaval, depois o Entrudo, depois o High-Life.
 
O CARNAVAL (só, erguendo-se) Desanimado estou! Não tenho ideias!  Mas não! mas não! Desanimar não quero! Hei de vencer, espero! (Outro tom) Estou bem aviado! Pois o Entrudo não vem para este lado!
 
O ENTRUDO (entrando) Ó Carnaval tirânico!  Maldito sejas, que a vitória é tua!  Já não se encontra uma bisnaga tímida,  Nem um limão de cheiro sai à rua! Quisera que tu, déspota, Me dissesses a causa dos meus males! Por que razão não tenho o teu prestígio? Por que razão não valho o que tu vales?
 
O CARNAVAL  Não me interrompas! cala-te, defunto!  Não me vês dando tratos ao bestunto?
 
O ENTRUDO  Tu procuras espírito?  Encontrá-lo não podes nesse vaso! É mel que não se fez para os teus lábios (O Carnaval encolhe os ombros) Ria-te, provavelmente, se eu acaso  Te disser que fui muito espirituoso.
 
O CARNAVAL Não me rio; deploro-te!
 
O ENTRUDO  Pois ouve-me, orgulhoso; Uma bisnaga, delicadamente Espremida por mão de sinhazinha, Ao passar por um Juca de repente, Muito mais graça tem, por vida minha!  Que um boneco mal feito, Representando um célebre sujeito.
 
O CARNAVAL  Vai-te catar!
 
O ENTRUDO Quem pândego não acha Um bom limão de cheiro de borracha, Como uma bala o espaço atravessando E uma velha cartola derrubando, Que um tipo traga na cabeça?
 
O CARNAVAL Ó tolo,  Não me esquentes o miolo! Deste modo, não posso ter espírito!
 
O ENTRUDO Um bom mergulho numa tina dado Faz rir, como não faz um mascarado Dizendo asneiras do alto da carroça;
 
O CARNAVAL  Fala pr'aí, que eu faço vista grossa!
 
O ENTRUDO Pois é crível que nem sequer distingas  As clássicas seringas, Dessas que a medicina hoje condena E que o grande Molière pôs em cena? Há lá nada mais cômico?
 
O CARNAVAL E mais sujo? Foge, senão eu fujo! Fazes-me o efeito de um montão de lixo!
 
O ENTRUDO Como tem graça o esguicho Que sai do bico da gentil seringa, E, descrevendo graciosa curva,
 
Vai molhar uma velha que rezinga! E o limãozinho pândego, bonito, A quebrar-se num colo de donzela? E o susto? e aquele grito  Que solta a moça bela, Quando bate o limão noutro mais rijo? Achas-me sujo? Adeus! não me corrijo! Não é por me gabar, porém sustento Que hei promovido muito casamento; Muitos banhos de igreja são causados Por meus banhos brutais. — Ó salafrário, Algum dia casaste uns namorados? Antes pelo contrário,  Já descasado tens alguns casados,  E tais façanhas não têm sido poucas!
 
O CARNAVAL  Orelhas moucas a palavras loucas
 
O ENTRUDO Vejo que passa ali, ó céus! que dita! Uma negra baiana e bem bonita! Adeus! adeus, ó filho! Vou mascarar-lhe a cara com polvilho! (Sai)
 
O CARNAVAL (só) Nem à mão de Deus Padre arranjo espírito!  Atrapalhar-me veio este abelhudo! Nem uma ideia! nem uma facécia!  Estou quase tão besta como o Entrudo!
 
O HIGH-LIFE (entrando) Pois espírito o Entrudo ter bem pode.
 
O CARNAVAL  Quem és tu?
 
O HIGH-LIFE O meu nome não te acode,  Por que nós nos vemos há que séculos!  Eu sou o High-life, e quero que repares  Na batalha das flores, de Petrópolis, E depois me declares  Se aquilo tem ou se não tem espírito!
 
(Mutação)
 
 
QUADRO VII Cena de fantasia. Bailado de flores animadas.
 
(Depois do bailado começa a chover torrencialmente. Cada uma das flores abre um guarda-chuva)
 
 
 
ATO II
 
QUADROS VIII E XIX A Rua da Misericórdia, entre a Câmara de Deputados e a Rua da Assembleia.
 
CENA I Mendigos, que atravessam a cena para o lado do mar; o Barão, Amorosa, vestida modestamente.
 
CORO DE MENDIGOS Sem levar mágoas No coração, Vamos do Mangue Pro Galeão. Nosso passado, Sem mais tardar,
 
Vai o trabalho Regenerar.
 
(Saem os Mendigos. Aparecem o Barão e Amorosa)
 
AMOROSA São os asilados do Mangue, que vão para a Ilha do Governador. Vamos assistir ao embarque?
 
O BARÃO Não; tenha paciência, menina. Quero estar junto da Câmara, para acompanhar de perto os acontecimentos.
 
AMOROSA E eu não o deixo um só instante. Tenho tantos ciúmes do senhor!
 
O BARÃO Não compreendo como tem tantos ciúmes de mim, e consente que se prolongue assim este platonismo. Creio que é platonismo que se chama...
 
AMOROSA O melhor da festa é esperar por ela.
 
O BARÃO Quem espera desespera.
 
AMOROSA Quem espera sempre alcança.
 
O BARÃO Já com a outra foi a mesma coisa!
 
AMOROSA Pelo amor de Deus, não me fale da outra.
 
O BARÃO Que infelicidade a minha! Levei-a a jantar ao restaurante do Jardim Zoológico, e ela apanhou uma tremenda indigestão, cujos efeitos duraram perto de um mês. Pobre Mademoiselle Fritzmac! Mas também nunca vi comer com tanta velocidade! O homem do restaurante levou-me quarenta e cinco mil réis pelo jantar, e eu achei que foi de graça! Antes que ela ficasse restabelecida, tive a ventura (a ventura ou a desgraça), de encontrar a menina, e desde então me deixei subjugar completamente pelos seus encantos. Já não acho graça na Fritzmac!
 
AMOROSA E quem sabe se a natureza do nosso afeto não se transformará? Quem sabe se o senhor não será ainda para mim um pai?
 
O BARÃO Com franqueza: prefiro ser um paio!
 
AMOROSA Pois bem, se lhe não agrada o nome de pai, será meu irmão mais velho. O BARÃO (com força)  Nunca!... (Consigo) Entretanto, é esquisito... tenho por ela um certo respeito... Aprecio aqueles escrúpulos, por mais singulares que me pareçam, e não seria capaz de uma violência.
 
 
CENA II O Barão, Amorosa, dois licurgos, depois um Aspirante de marinha, depois primeiro e segundo homens, depois o Conselheiro Jacó, depois o PadreSoldado 
 
(Os dois Licurgos atravessam a cena).
 
PRIMEIRO LICURGO  Vossa excelência é um ladrão confesso!
 
SEGUNDO LICURGO  E vossa excelência é uma pústula que hei de espremer! 
 
(Desaparecem)
 
O BARÃO Não faça caso... são dois licurgos, que repetem na rua as amabilidades trocadas lá dentro.
 
O ASPIRANTE DE MARINHA (entrando e colocando-se entre o Barão e Amorosa)  Então? que tal acham este fato?
 
AMOROSA Muito feio.
 
O BAR  Reprovadíssimo.
 
O ASPIRANTE  Quê? pois este uniforme é feio? o dólmã reprovadíssimo?!...
 
AMOROSA Houve confusão. O senhor referiu-se ao fato...
 
O BARÃO E nós nos referimos ao fato.
 
O ASPIRANTE  Falava-lhes do negligé da Armada Nacional.
 
COPLA
 
Num corpo esbelto e chibante, Todo airoso e perfilado, Nada há de mais elegante Do que um dólmã bem talhado. As sinhazinhas por isto
 
De amores ficam babadas; Depois que este dólmã visto, Tenho mais três namoradas.
 
(O Aspirante sai. Entra da esquerda um Homem, acompanhado por outro, que traz um livro e uma campainha na mão)
 
PRIMEIRO HOMEM  Escusa de insistir! Juro que não juro! É contra as minhas ideias! (Sai pela direita)
 
SEGUNDO HOMEM  Venha cá! (Vai segui-lo)
 
O BARÃO (agarrando-o)  Que há, meu amigo?
 
SEGUNDO HOMEM  É aquele herege que não quer jurar nem pelo diabo!
 
AMOROSA Com razão! Pelo diabo ninguém jura!
 
SEGUNDO HOMEM  Estou vendo que há de ser preciso alterar o regimento! (Gritando a sair pela direita) Venha cá! venha jurar, homem de Deus! (Sai)
 
O BARÃO Isto aqui está muito divertido. (Vendo entrar o Conselheiro Jacó, que traz uma mala) Oh, Conselheiro Jacó! De volta de Paris! Dou-lhe os parabéns... apanhou finalmente a sua Raquel...
 
O CONSELHEIRO JACÓ  Ah, meu amigo, não foi porque Labão o quisesse! Olhe que trabalhei!... Fui candidato vinte e tantos anos!... Hei de escrever a história das minhas eleições. Pelo menos três volumes!
 
AMOROSA Água mole em pedra dura...
 
O CONSELHEIRO JACÓ  Bem... lá estou na Rua do Areal às ordens dos amigos.
 
Q BARÃO e AMOROSA Conselheiro! 
 
(O Conselheiro Jacó sai)
 
O BARÃO Isto aqui está muito divertido! (Vendo entrar o Padre-soldado) Quem será este agora?
 
O PADRE-SOLDADO  Psiu... (Vem ao meio dos dois)
 
COPLA (Música Religiosa) Por esta batina tétrica Por este ar de santarrão, Já sabeis que canto vésperas E que prego o meu sermão.
 
(Transforma-se em soldado. A música muda de andamento e toma caráter marcial)
 
Eu sou soldado, Sou desertor! E ao velho estado Volto ao som da trombeta e tambor! Trá lá lá lá! Rataplã plã... 
 
(Sai marchando)
 
AMOROSA Padre e soldado!
 
O BARÃO Não será também estudante?
 
 
CENA III O Barão, Amorosa, pessoas do povo, que entram a pouco e pouco, o projeto, que atravessa a cena da direita para a esquerda montado num velocípede, com uma casaca de abas exageradamente compridas; depois o primeiro vendedor de canivetes, depois o projeto, depois o segundo vendedor de canivetes, depois o terceiro vendedor de canivetes.
 
O PROJETO (enquanto atravessa a cena)  Eu sou o projeto! Venho de São Paulo! Deixem-me passar! Não tenho tempo a perder!
 
O Povo (aclamando-o)  Viva! viva!...
 
O BARÃO É ele! É o projeto, que vem de São Paulo! Entrou na Câmara! Meus Deus! que velocidade! Ai, os meus ricos pretinhos!...
 
AMOROSA Esqueça-se dos seus interesses e só se lembre da liberdade de tantos homens.
 
O BARÃO O grande caso é que, quando estou a seu lado, a minha indignação diminui consideravelmente.
 
(A cena tem se enchido. No meio do burburinho geral, entra o primeiro Vendedor de Canivetes e é logo rodeado de povo, que faz vozeria)
 
CORO  Quem será este sujeito, Este tipo que aqui está?
 
Quer vender alguma coisa: Vamos ver o que será!
 
PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES  Meus senhores, comprai o canivete-abolição!
 
TODOS Bravo! bravo!... 
 
(Indignação do Barão, que é contido por Amorosa)
 
PRIMEIRO VENDEDOR (mostrando um canivete)  Esta folha chama-se a Cidade do Rio... é a mais pequenina, mas é também a mais cortante. Esta outra folha, a maior, chama-se o País; corta que nem uma navalha! Esta aqui, cheia de figurinhas, chama-se a Revista Ilustrada! Comprai, comprai todos o canivete! O canivete-abolição extrai, destrói, extirpa, extermina esse calo chamado escravidão, com o qual o pais não pode dar um passo para diante!...
 
TODOS Venha! venha!... 
 
(O Vendedor distribui canivetes, e sai, distribuindo-os sempre)
 
AMOROSA (ao Barão)  O senhor devia ter ficado com um.
 
O BARÃO Não! — aqueles canivetes amolam-me!
 
(O Projeto atravessa a cena, em sentido oposto, sempre em velocípede. Leva as abas da casaca cortadas)
 
O PROJETO (enquanto passa)  Passei na Câmara! Vou para o Senado! Não tenho tempo a perder! (Desaparece)
 
O Povo (aclamando-o)  Viva! viva!...
 
O BARÃO Ai, minha Nossa Senhora, é o projeto, e já vai sem rabo!...
 
(Entra o segundo Vendedor de Canivetes e é rodeado pelo povo)
 
SEGUNDO VENDEDOR DE CANIVETES  Meus senhores, comprai, comprai o canivete-indenização!
 
TODOS Fora! fora!...
 
SEGUNDO VENDEDOR (mostrando)  Só tem uma folha, e uma folha que só serve para cortar largo, mas é um ótimo canivete, e a maior novidade das novidades! O caniveteindenização extrai, destrói, extirpa, extermina esse calo, ou antes esse calote, chamado abolição!
 
TODOS Não queremos! Fora! Fora!
 
O BARÃO Aquele compro eu. (Dá um passo)
 
AMOROSA (retendo-o)  Não!
 
SEGUNDO VENDEDOR  Não arranjo nada! (Sai muito murcho)
 
TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES (entrando e vendo-se logo rodeado de povo)  Meus senhores, comprai o canivete-república! Tem uma infinidade de folhas, e mais esta balança, em que se pesam os direitos do homem, e mais este saca-rolhas, que se chama Princípios de 89. O canivete-república extrai, destrói, extirpa, extermina esse velho calo — a monarquia!
 
(Uns compram e outros não. O Terceiro Vendedor sai)
 
O BARÃO Eu também quero a república, contanto que me deixem ficar com o meu título de Barão, que me custou bem bons cobres.
 
 
CENA IV O Barão, Amorosa, povo, o projeto, que atravessa a cena vestido de mulher.
 
O PROJETO  Passei no Senado!
 
TODOS (com entusiasmo)  Bravo! Viva! Viva!... 
 
(A cena deve estar completamente cheia)
 
O BARÃO É o projeto... Está vestido de mulher!
 
AMOROSA Naturalmente. Foi convertido em lei.
 
O BARÃO Vamos ao Paço. 
 
(Saem. Os coros descem ao proscênio)
 
CORO Um novo sol brilhante Os horizontes desta  Pátria doura! 
 
Foi-se a nódoa infamante! Salve, salve, Princesa redentora!
 
(Rasga-se parte do pano do fundo, e aparece no céu, cercada de flores, uma enorme roseira de ouro. Mutação)
 
 
QUADRO X Corredor de casa pobre.
 
CENA I Zé do Beco, depois Tripas-ao-sol.
 
ZÉ (falando para a esquerda)  Nada, meu amigo. Você cá não dorme hoje! Se quiser cama, pague o atrasado!
 
UMA VOZ  Amanhã dou tudo junto.
 
ZÉ Qual amanhã nem pera amanhã! Você já deve meia pataca de duas noites! Se a continha aumenta, adeus, minhas encomendas!... De meu rico dinheiro não vejo nem a sombra!
 
A VOZ  Pois vá pro diabo, seu burro!
 
ZÉ Burro vá ele! (Vindo ao proscênio) Era o que faltava! ter eu aqui, às ordens destes caloteiros, a melhor casa de alugar camas do Beco de Dom Manuel, célebre pelo horroroso assassinato de um grumete que ressuscitou em Resende! (Indo à porta e gritando) Não tenho medo de navalha, ouviu?
 
TRIPAS-AO-SOL (entrando com um movimento de capoeira)  Isso é com o degas?
 
ZÉ Oh! não senhor, seu Tripas-ao-sol! É com outro vagabundo que saiu agora.
 
TRIPAS-AO-SOL  Ah! pensei!
 
ZÉ Seja bem aparecido por esta sua casa. Ainda o fazia lá pela chácara de Catumbi...
 
TRIPAS-AO-SOL  Neste sábado agora faz quinze dias que eu fui sorto.
 
ZÉ E por onde tem andado?
 
TRIPAS-AO-SOL  Por aí. Tenho visto as festa da abolição.
 
ZÉ Dizem que têm estado muito bonitas...
 
TRIPAS-AO-SOL  Você não foi, seu Zé do Beco?
 
ZÉ Eu tenho lá licença de arredar pé daqui?...
 
TRIPAS-AO-SOL  Pois eu tenho ido a tudo! Fui à missa do campo de São Cristovo; fui às corrida; entrei lá num rolo danado; agora acabou-se o cobre, e não há remédio senão vir dormir barato.
 
ZÉ É! Vocês andam, viram, mexem, mas afinal de contas aqui vêm todos parar! Vocês hão de se capacitar que não há nada como isto! (Reparando em Tripas-ao-sol) Mas, sim, senhor: o Senhor Tripasao-sol engordou na Correção!...
 
TRIPAS-AO-SOL  Pois, olhe, a boa vida por lá começa agora.
 
ZÉ Como assim?
 
TRIPAS-AO-SOL  Foi lá quem pode, provou a boia, achou ela má, e quer que, de hoje em diente, os preso tenha muito bom bife, muito boa salada, azeitona, e até vinho do Porto!
 
ZÉ Qual! Isso são caraminholas! (Outro tom) Lá vem freguesia!
 
TRIPAS-AO-SOL  Tome os quatro vintém. Vou me deitar, que quero acordar cedo. (Paga e sai)
 
 
CENA II Zé, Serapião.
 
SERAPIÃO (entrando e tirando o chapéu)  Muito boa noite.
 
ZÉ Boa noite.
 
SERAPIÃO (à meia voz)  O senhor tem aí uma cama disponível?...
 
ZÉ Tenho algumas.
 
SERAPIÃO Preço?
 
ZÉ Para acordar a que horas?
 
SERAPIÃO Seis ou sete da manhã...
 
ZÉ Oitenta réis. (À parte) Este é calouro...
 
SERAPIÃO É o último preço?
 
ZÉ São as mais baratas. Há também de tostão, com travesseiro.
 
SERAPIÃO Dispenso o travesseiro. Mas, diga-me uma coisa: não faz um abatimento, eu ficando freguês?
 
ZÉ Por quanto tempo?
 
SERAPIÃO Não sei... até a reforma dos correios. Tenho lá um lugar prometido, mas o diabo é que os candidatos são muitos. Conheço uma família em que há quatro primos e um tio, todos com promessas de se encaixarem lá.
 
ZÉ Se o senhor quer tomar uma assinatura por mês, dou-lhe a cama por dois mil réis, dinheiro adiantado.
 
SERAPIÃO Adiantado é que é o diabo: tenho a vida muito atrasada! Olhe, eu pago os quatro vinténs! Faz favor de me dar a cama?
 
ZÉ Faz favor de me dar o cobre? (Serapião paga) O senhor tem sono pesado?
 
SERAPIÃO Pelo contrário; muito leve: para me acordar, é bastante puxar-me a perna com força e gritar-me aos ouvidos.
 
ZÉ É que de vez em quando há barulho aqui por casa. Se ouvir alguma coisa, faça de conta que não ouviu nada. Vire-se para o outro lado e continue a dormir. Vamos lá. Vou dar-lhe a cama.
 
(Entram um preto e uma preta, que mal podem andar, porque trazem os pés apertados)
 
 
CENA III Uma preta, primeiro preto, depois Zé, depois segundo preto primeiro preto. — Entra, nhá Bituca! Aqui é que é casa que gente "drume" por quatro "gintém".
 
A PRETA  Eu é capaz de jurá que gente aqui não drume tão bem como lá em casa de meu senhô.
 
PRIMEIRO PRETO  Que senhô! Gente não tem mais senhô!... Treze de Maio botou tudo tão bom, como tão bom! Diabo é este brutina, que tá me pretando pé.
 
A PRETA  Eu também tá que não pode!
 
ZÉ (entrando)  Boa noite! Desejam dormir?
 
PRIMEIRO PRETO  Eu qué drume com minha praceira, sim senhô.
 
ZÉ Nesta maison meublée não há aposentos separados! Não há quartos com menos de oito camas.
 
PRIMEIRO PRETO  Ué! Então home drume com muié tudo junto?
 
ZÉ E até crianças! Olha! (Entra uma turca maltrapilha, com duas crianças pela mão. Paga e sai) As crianças só pagam dois vinténs: metade do preço.
 
A PRETA  Eh, pai João, ante no cativero!...
 
ZÉ Não seja mal agradecida! não diga mal da liberdade!
 
PRIMEIRO PRETO  Libredade é bom, mas barriga cheia é mió!
 
ZÉ Pois você não está contente com o Treze de Maio?...
 
PRIMEIRO PRETO  É! Pru mode Treze de Maio preto já não vale nem dé tutão!
 
ZÉ O que vocês precisam é dormir! Passem para cá a bela da meia pataca, e por ali é o caminho!
 
PRIMEIRO PRETO (pagando)  Tá'í!
 
ZÉ (empurra-os para dentro. Saem os dois)  Aí vem mais gente!
 
SEGUNDO PRETO (entrando, com as botas na mão)  Viva a lei Treze de Maio! Ave libertas!
 
ZÉ Bom! bom! nada de barulho, que isto aqui é casa de sossego!
 
SEGUNDO PRETO  Ave libertas!
 
ZÉ Que libertas, nem meio libertas! Que quer você?
 
SEGUNDO PRETO  Cama com travesseiro para um! Aqui tem nicolau, Diabo, tou rouco de dá tanto viva!
 
ZÉ Ainda bem que este está contente!
 
SEGUNDO PRETO  Pois não há de tá contente um home que levou toda a sua vida a trabaiá de meia cara, e agora pode se empregá e ter seu dinheiro no borso?... Branco safado que deixou a gente tanto tempo no cativero!
 
ZÉ Bem, bem! Vá dormir, que seu mal é sono!
 
SEGUNDO PRETO  Ave libertas!
 
ZÉ Mas que é isso de Ave libertas?
 
SEGUNDO PRETO  Sei lá! É francês! Isso anda em toda a boca! Ave é galinha e libertas é muié que ficou livre! (Sai)
 
ZÉ Aí vem mais povo. Hoje isto está quente! Também não admira: dia de pagode!...
 
 
CENA IV Zé, uma mulata, depois um italiano, depois Tiro-e-queda.
 
A MULATA (entrando)  Me dê uma cama, seu Zê do Beco! (Dando-lhe dinheiro) Tem aí mais dois vintém pro café de menhã.
 
ZÉ Então tem festejado muito o Treze de Maio?
 
A MULATA  Eu? Ixe! (Traçando o chale sobre o ombro) Pra cá, mais pra cá! Não sou muita de Trezes de Maio, nem de livros de ouro. Esta que aqui está pra ser livre não precisou de leses. O pai de meu filho pagou minha carta. Eu até acho que os branco faz mal em acabá cos escravo. Agora é que vai se vê o que é vadiação! (Saindo) Não se esqueça do café de menhã.
 
ZÉ (só)  É muito prosa esta mulata, mas é boa freguesa. 
 
(Entra um italiano, com um realejo e um macaco no ombro)
 
O ITALIANO  Signor, dateme una cama; ecco il denaro. (Senhor dá-me uma cama, eis o dinheiro)
 
ZÉ Quatro vinténs só? E o macaco?
 
O ITALIANO  Il macaquito anche dove pagare?... (O macaco também deve pagar?)
 
ZÉ Aqui os macacos pagam como crianças: metade do preço.
 
O ITALIANO  Si lei vuole, lo faró danzare um pouquito, per pagare la sua parte... 
 
ZÉ Não! não! Aqui não se admite barulho! Pagate, pagate e não buffate!
 
O ITALIANO  Ecco. Povero simioco, tratato come un bambino! 
 
ZÉ Andate! andate, mossiú! (O italiano sai) Já uma vez veio aqui dormir um homem que andava com um urso, mas também cobrei-lhe dez tostões pelo companheiro! O diabo do bicho fungou toda noite, que parecia caçoada! Nessa noite ninguém aqui dormiu, nem ele!
 
TIRO-E-QUEDA (entrando)  Ora viva o seu Zé do Beco!
 
ZÉ Olá! Venha esse abraço! Que é feito?
 
TIRO-E-QUEDA  Ah, seu padre! eu fui no Cabeça de Porco vê uma roupa lavada, e um português me convidou pro sete-e-meio. Logo na segunda mão eu já tinha mordido dois cruzado, mas o bruto quis fazer estréias comigo, e eu não lhe conto nada! Enchi ele, e o cabra foi conversá cas formiga! Num ápis a estalage ficou toda num sarseiro: cacete voava que nem mosca!
 
ZÉ E a canoa?
 
TIRO-E-QUEDA  Canoa só de longe, contemplando os acontecimentos. 
 
ZÉ Você não toma caminho! Um dia acaba na ponta de uma sardinha!
 
TIRO-E-QUEDA  Só se fô sardinha de Nantes. Ferro que há de me furá inda não está feito folha! Pois não! um diabo que teve o desaforo de me chamá indivíduo! Indivíduo é home que anda fora de hora. 
 
(Ouvem-se passos apressados na escada)
 
ZÉ Que é isto?
 
 
CENA V Zé, Tiro-e-queda, o Barão, depois todos os demais personagens do quadro.
 
O BARÃO (entra insuflado; traz a tiracolo a fita distintiva dos jornalistas nas festas da abolição)  Escondam-me! escondam-me por amor de Deus!
 
OS DOIS  Que foi?
 
O BARÃO Aquela mulher é os meus pecados.
 
Os DOIS  Que mulher?
 
O BARÃO Vinha muito descansado ali pela Rua da Misericórdia, em companhia da outra, quando ela passou num bonde, apeou-se, e fez um chinfrim de todos os diabos!
 
Os DOIS  Ela quem? Ela quem?
 
O BARÃO Intervenho, naturalmente; chega a polícia...
 
TIRO-E-QUEDA  A canoa.
 
O BARÃO Um soldado toma-me pelo desordeiro e vai prender-me; eu — pernas para que te quero? Embarafusto por este beco e entro na primeira porta que encontro aberta! Onde estou eu?
 
TIRO-E-QUEDA  Tá diante de um home bom pra lhe defendê! Se qué sabê quem é o Tiroe-queda...
 
O BARÃO Tiro-e-queda?...
 
TIRO-E-QUEDA  É o meu vulgo! Se quer saber quem ele e, aqui seu Zé do Beco que lhe informe!
 
ZÉ (dando um beijo nos dedos)  É obra! No gênero capanga é o que se pode encontrar de melhor no mercado.
 
TIRO-E-QUEDA (lisonjeado)  Favores que não mereço!...
 
O BARÃO Não me despeço dos seus serviços...
 
TIRO-E-QUEDA (reparando na fita que o Barão traz a tiracolo)  Ah, espera, vossa senhoria também é desses home que escreve nas folha?
 
O BARÃO Eu não senhor... nunca escrevi senão à família.
 
TIRO-E-QUEDA  Mas essa fita...
 
O BARÃO Dizem que é o distintivo da imprensa... Mas como vejo toda a gente na rua com o tal distintivo a tiracolo, comprei também o meu, para não me distinguir das outras pessoas: não gosto de me dar ares de original.
 
(Ouve-se tocar realejo lá dentro e logo uma gritaria infernal de pessoas que protestam e brigam)
 
ZÉ Hein? Já tardava!...
 
(Todos os personagens do quadro entram fazendo algazarra e empurrando o Italiano adiante de si)
 
O ITALIANO  Perdonate, signori, non é colpa mia! Il macaquito há torcito la manivella! 
 
ZÉ O pescoço torço-lhe eu, se continua! Bom! Toca a dormir! Não vale a pena... 
 
(Todos resmungam)
 
O BARÃO Ah! isto cá é hotel?
 
SERAPIÃO Hospedaria.
 
ZÉ Hospedaria vá ele. Maison garnie. Vossa senhoria quer uma cama?
 
PRIMEIRO PRETO  Quá! Branco limpo há de assujetá a drumi em cama de quatro gintém!
 
ZÉ Há também de tostão, com travesseiro...
 
O BARÃO Está doido! Eu posso lá dormir aqui!
 
TIRO-E-QUEDA  Não faça pouco da casa, seu Conselheiro, e ouça lá esta cantiga pra ficá ciente.
 
LUNDU
 
I Quem é pobre não tem luxo, Se deixe de imposturia! Meta só feijão no bucho, E, em vez de vinho, água fria! Deve andar alegre um home E não ter pena nenhuma De matar no frege a fome, Drumir onde um cão não druma. Perfeitamente
 
Acha-se aqui Caminha quente Para drumi. Se fofas penas, Aqui não tens, Gastas apenas Quatro vinténs.
 
II Nesta casa não se acoite Quem pode ir para os hotéis E pagar por uma noite Pelo menos dois mil réis. Mas logrado está quem julga Ser melhor o tal Ravot, E ter de achar menos pulga Lá no Frères Provençaux.  Perfeitamente, etc.
 
ZÉ Bom. São horas! toca a dormir!
 
O BARÃO Eu vou tomar o bondinho. (À parte) Lá no Freitas sempre estou melhor do que aqui! 
 
(Os personagens têm-se retirado aos poucos)
 
TIRO-E-QUEDA  Eu acompanho vossa senhoria até a sua casa.
 
O BARÃO Pois sim! Vá lá! (À parte) Dou-lhe dois mil réis! (A Zé) Boa-noite!
 
ZÉ Boa-noite. 
 
(O Barão sai)
 
TIRO-E-QUEDA (a Zé)  Se ele não marcha com uma de cinco, eu encho ele! (Sai)
 
ZÉ (só)  Este diabo é levado! É pena, porque é boa pessoa, e podia fazer caminho na política... se tivesse juízo!... (Sai. Mutação)
 
 
QUADRO XI No Cassino Fluminense. É o final de um grande baile. O salão está quase vazio. Senhoras e cavalheiros passeiam fatigados.
 
CENA I Convidados, depois o Visconde, que dá o baile, depois o primeiro e segundo convidados, depois um criado, com uma bandeja de chocolate.
 
CORO  Que belo baile! Que animação! Luzes e flores Em profusão! Comes e bebes  discrição! Que belo baile! Que animação!...
 
O VISCONDE (fatigadíssimo, vindo ao proscênio)  Valha-me Deus! já terminou o cotilhão... Que faz ainda aqui esta gente? Estou morto por me deitar... Que dia! Nunca trabalhei tanto em toda a minha vida!... (Consultando o relógio) Já passam de quatro horas. (Falando a um e a outro) Então, minha senhora, ficou satisfeita com o presente que lhe coube no cotilhão? — Conselheiro, por que não trouxe sua senhora? — Dançou muito, Doutor? 
 
(Sai, falando sempre e muito preocupado em obsequiar a um e a outro. Vêm ao proscênio o Primeiro e o Segundo Convidados)
 
PRIMEIRO CONVIDADO (com um pé no ar)  Arre! que um bruto pisou o meu melhor calo! Também arrumei-lhe uma descompostura como ele tão cedo não ouvirá outra! Não gosto disto. É a primeira vez que venho ao tal Cassino, e há ele ser a última!
 
SEGUNDO CONVIDADO  Não faça caso, Comendador!
 
PRIMEIRO CONVIDADO  Basta que o estupor das botas me apertem os joanetes, que é uma desgraça!...
 
(Passa um criado levando uma bandeja de xícaras de chocolate. Todos os convidados avançam para ele. O criado levanta a bandeja de modo que não lhe possam tocar)
 
VOZES  Dê cá! Dê cá!
 
(O criado consegue sair. O Segundo e o Quarto Convidados encontram-se no proscênio)
 
 
CENA II Convidados, terceiro e quarto convidados, depois o Visconde.
 
TERCEIRO CONVIDADO  Oh! estás também por cá?
 
QUARTO CONVIDADO  Desde o princípio. Já fiz três declarações de amor.
 
TERCEIRO CONVIDADO  Eu procurei-te, mas podia lá encontrar-te no meio de três mil pessoas!...
 
QUARTO CONVIDADO  Que tal achaste o baile?
 
TERCEIRO CONVIDADO  Muito bom, mas estou arrependido de ter vindo. Está aqui todo o comércio. Não dou um passo que não encontre um credor. Ainda agora esbarrei com o alfaiate que me fez esta casaca há dois anos.
 
QUARTO CONVIDADO (examinando)  Ouvidor?
 
TERCEIRO CONVIDADO  Hospício.
 
QUARTO CONVIDADO  Pois olha, está soberba. Devias ter pago.
 
TERCEIRO CONVIDADO  Ah! isso era muito difícil.
 
QUARTO CONVIDADO  O baile acabou, mas creio que ainda há o que beber. Vamos tomar alguma coisa?
 
TERCEIRO CONVIDADO  Vamos lá. Desde a lei de Treze de Maio, não faço outra coisa senão tomar alguma coisa.
 
QUARTO CONVIDADO  Já fui a quinze banquetes... 
 
(Afastam-se)
 
O VISCONDE (a um e a outro, entrando) 
 
A sua menina gostou da festa? — Jogou a sua partidinha de voltarete? — Por que não trouxe a família? Ah! veio? Bom!... Minha senhora, por onde anda seu esposo? Divirtam-se, divirtam-se até o fim!! (No proscênio) Ora esta! Querem passar aqui o dia!... (Sai)
 
 
CENA III Convidados, o Barão, segundo convidado, primeira senhora, depois o Visconde.
 
O BARÃO (conversando com o segundo convidado, que entra de braço com uma senhora)  Pois é verdade, meu caro senhor, não sei para que estas levas para Mato Grosso! A cidade está agora, mais do que nunca, infestada de capoeiras! Aqui há dias, ali no Largo da Lapa, à porta do Freitas Hotel, este seu criado apanhou uma cabeçada na boca do estômago... porque não quis dar cinco mil réis a um desses meliantes.
 
A SENHORA  Credo!...
 
SEGUNDO CONVIDADO  Valia a pena ter-lhe dado o dinheiro.
 
O BARÃO Ah, se eu adivinhasse, dava-lhe até mais alguma coisa. Durante quatro dias não me animei a sair à rua!...
 
A SENHORA Ainda se demora muito tempo na Corte, Senhor Barão?
 
O BARÃO Não sei, Senhora Dona Mariana, não sei: há aí um negócio, ou antes, dois negócios que me têm prendido. A Baronesa, coitadinha! chamame todos os dias. Para consolá-la, mandei-lhe o meu retrato... deste tamanho... tirado na Fotografia União!
 
SEGUNDO CONVIDADO  Ah! eu vi-o na Glacé Elégante.
 
O BARÃO Agora mesmo a Baronesa me escreveu dizendo que os negros não abandonaram a fazenda e aceitaram os salários.
 
O VISCONDE (entrando)  Minhas senhoras... meus senhores... tomaram chocolate? Está delicioso!
 
O BARÃO (ao Visconde)  Oh! Visconde!...
 
O VISCONDE  Ah!... perdão!... estou a conhecê-lo e não me recorda...
 
O BARÃO Ora essa! dar-se-á caso que não me conheça e tenha me convidado para a sua festa? Eu sou o Barão do Macuco... Ainda não lhe havia falado, porque sentei-me numa cadeira ali naquela sala... ao pé da janela, a tomar fresco e peguei no sono. Mas tenho me divertido muito. (Boceja)
 
O VISCONDE  Pois, Barão, estimo muito que... 
 
(Saem ambos. O quinto convidado com a senhora têm se afastado)
 
 
CENA IV Convidados, quinto convidado, segunda senhora, depois segundo convidado e primeira senhora, depois um diplomata, depois primeiro e sexto convidados.
 
SEGUNDA SENHORA (acompanhando o quinto convidado) 
 
Vamos embora, Roberto... já deu o tiro de peça, são horas. Às onze horas eu devo estar de pé, senão é uma desordem lá em casa que ninguém se entende.
 
QUINTO CONVIDADO  Ainda não tomei chocolate.
 
SEGUNDA SENHORA  Já arranjaste os doces para as crianças?
 
QUINTO CONVIDADO (tirando um embrulho de doces do bolso) Cá estão. Vim prevenido com papel.
 
SEGUNDA SENHORA  Nhozinho e Lili sempre que vamos a qualquer parte e não levamos alguma coisa para casa, nos apoquentam todo o santo dia. (Examinando o embrulho) Oh, Roberto! que miséria de balas!... Vai arranjar mais algumas!
 
QUINTO CONVIDADO  Aonde, senhora? Restavam algumas... foi o Meio da botica quem se lambeu com elas!
 
SEGUNDA SENHORA  Olha, estas cocadas é que se dispensavam, fazem muito mal às crianças.
 
QUINTO CONVIDADO  Deixa ir. Mandam-se de presente ao filho do Góis.
 
SEGUNDA SENHORA  Mesmo para pagar aquela compoteira de doce de marmelo que nos mandaram o outro dia.
 
SEGUNDO CONVIDADO (sempre de braço com a primeira senhora)  Ó Dona Senhorinha, como tem passado?
 
PRIMEIRA SENHORA (voltando, vai cumprimentar a segunda senhora) Adeus, seu Roberto... como está Dona Aquela? (Beijam-se) Não lhe tinha visto. 
 
(O quinto e o sexto convidados cumprimentam-se)
 
SEGUNDA SENHORA  Pudera! tanta barafunda!... Não sei pra que se convida tanta gente... eu gosto mais das soirées de família que destes bailes de maçada. — Viu a nossa vizinha, a Henriquetinha Barros? Como estava ridícula!
 
PRIMEIRA SENHORA  É sempre no que dão vestidos aproveitados... Olhe, com aquela saia de seda azul, eu vi ela há dois anos no Clube do Engenho Velho.
 
SEGUNDA SENHORA  Como tem ido lá por casa com a falta d'água?
 
PRIMEIRA SENHORA  Tem havido pouca, mas alguma. Sempre dá para os gastos.
 
SEGUNDA SENHORA  Lá em casa tem sido um horror. Não é, Roberto?
 
QUINTO CONVIDADO  Uma calamidade! Há mais de oito dias não temos um pingo d'água!
 
PRIMEIRA SENHORA  Que coisa! Então agora, depois do tal Treze de Maio, que não se pode contar com as criadas, que ficaram todas umas senhoras fidalgas!
 
SEGUNDA SENHORA  A lavadeira não nos dá roupa há um mês!... A cesta da roupa suja está que não se pode fechar!
 
QUINTO CONVIDADO Então, que tal tem achado a festa?
 
SEGUNDO CONVIDADO  Muito bonita... Este homem deve ter gastado muito dinheiro!
 
QUINTO CONVIDADO  Dizem que trinta contos, e eu acredito.
 
SEGUNDO CONVIDADO  Mas há muita mistura... Ainda agora vi um sujeito metendo doces na algibeira da casaca.
 
QUINTO CONVIDADO  Oh! péssimo costume!
 
SEGUNDO CONVIDADO (vendo passar pelo fundo o diplomata)  Conhecem? É um dos homens da época. 
 
(Apaga-se a luz do salão)
 
QUINTO CONVIDADO  Olhe, apagam-se as luzes... Vamos embora? Já temos bonde. (Ao sexto) Vão de carro?
 
SEGUNDO CONVIDADO  Nada, vou tomar o bondinho da Praça Onze, que me deixa na porta.
 
TODOS QUATRO  Então vamos juntos. (Saem)
 
(Aparece o primeiro convidado conversando com o sexto)
 
PRIMEIRO CONVIDADO  Não há dúvida! O câmbio está bonito, está; sobe que é um louvar a Deus de gatinhas! Mas ou eu me engano, ou vamos ter uma crise terrível! Esta lei!...
 
SEXTO CONVIDADO  Não diga isso! E a imigração? Não vê como tem entrado gente? Quer que lhe diga? Cá para o meu comércio de vinhos, a lei foi providencial. Tem sido um beber, meu rico senhor, mas um beber!...
 
PRIMEIRO CONVIDADO  Ah, por esse lado não me queixo também. Para o meu negócio de calçado, a lei foi obra. Não imagina a quantidade de sapatos que tenho vendido para o interior! — Mas vamos embora, que isto já está deserto. 
 
(Saem)
 
 
CENA V O Barão, depois Mademoiselle Fritzmac, depois Amorosa, depois o Visconde.
 
O BARÃO Já são horas de me pôr ao fresco... mas não devo retirar-me sem me despedir do dono da casa... Com que saudades estou daquela misteriosa mulherzinha, que me tem acompanhado a tanta parte e nem sequer me disse o seu nome nem aonde mora! Tenho por ela um sentimento difícil de explicar. E a Fritzmac? Que será feito dela? Não a vejo desde a cena da Rua da Misericórdia. Deixem lá, é levada da carepa, mas é muito boa fazenda, e não se me dava...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (aproximando-se e batendo-lhe ao ombro, amigavelmente)  Não se te dava de quê!
 
O BARÃO Ela! Vestida de homem!... Que grande atrevimento! Você aqui!... num baile aristocrata!...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Adivinhei que vinhas; era o único meio de encontrar-te. Que fim levou aquela sirigaita com quem estavas na Rua da Misericórdia?
 
O BARÃO Você não devia falar nisso, que é a sua vergonha!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Tenho-te procurado por toda a parte. Já não vais ao Eldorado, já não apareces no Santana, ninguém te vê na Rua do Ouvidor. Não recuei diante da ideia de me vestir de homem, pois só assim poderia penetrar aqui. (Abraçando-o meigamente) Então, meu Macucozinho, tem pena de mim: por que tratas assim a tua bichinha?
 
O BARÃO (deixando-se abraçar)  Quem vir isto há de supor que tenha havido entre nós intimidades de certa transcendência! Pois, senhores...
 
COPLAS
 
I MADEMOISELLE FRITZMAC Macuco, de mim não fujas. Macuco, de mim tem dó; Macuco, meu bem, reserva Teus beijos para mim só. Macuco, vê que a Macuca  Já está maluca Pelo seu bem; Macuco, vê que à Macuca  Fere e machuca Tanto desdém!
 
II Macuco, tão mau macuco Palavra que nunca vi! Macuco, tu não calculas Que coisas tenho pra ti!
 
Macuco, vê que a Macuca, etc.
 
O BARÃO Não há que ver! Estou vencido!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Vem!
 
O BARÃO Ora adeus! Vamos!... 
 
(Vão a sair. Entra Amorosa)
 
AMOROSA Alto!
 
Os DOIS (estacando)  Ela?!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (à parte)  Como o domina com o olhar!...
 
AMOROSA (com muita calma, ao Barão)  Retire-se para sua casa. Esta cena, neste lugar, pode ter consequências muito lamentáveis.
 
O BARÃO Mas... (É vencido por um olhar de Amorosa e sai, dizendo) Decididamente esta mulher tem feitiço!...
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (cruzando os braços)  Agora nós! 
 
AMOROSA Que quer dizer essa frase: Agora nós? Nem agora nem nunca! Por lealdade não aceito a luta, pois tenho certeza que te hei de sempre vencer, qualquer que seja o terreno em que nos coloquemos! Os teus pecados nada podem contra as minhas virtudes!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Veremos!
 
O VISCONDE (entrando de chapéu e sobretudo)  Ah, finalmente... (Reparando) Que vejo! Ainda aqui duas pessoas! (Alto) Meus senhores... vão se fechar as portas.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (à parte)  Se eu apanhasse este homem! Que ótimo instrumento seria!... (Alto) Aproveito este momento em que o acaso nos põe em frente um do outro, para saudar em vossa excelência o amigo dos prazeres!
 
AMOROSA Não! Eu saúdo em vossa excelência o brasileiro que tanto concorre para que a sua pátria prospere com o advento da indústria, do comércio, das artes, das letras e da ciência!(Apontando para o fundo) Possa realizar-se aquele quadro! 
 
(Mutação)
 
 
QUADRO XII Apoteose ao progresso da indústria, do comércio, das artes, das letras e da ciência.
 
 
 
ATO III
 
QUADRO XIII E XIV A cena representa o jornal Imprensa Fluminense, distribuído pelas festas da abolição.
 
CENA I O Barão, Amorosa.
 
(O Barão entra rapidamente, acompanhado por Amorosa)
 
AMOROSA Mas venha cá! Que vai fazer? Onde estamos?
 
O BARÃO Não vê? (Aponta para o pano do fundo) Imprensa Fluminense!
 
AMOROSA Ah! Agora reparo! Um imenso jornal!
 
O BARÃO A imprensa fluminense congraçou-se por ocasião da lei de Treze de Maio, e fez aquele jornal de anúncios. Toda ela está representada aí, toda, exceto o País, que não gosta de andar acompanhado.
 
AMOROSA Pois deve aborrecer-se bastante, porque circula tanto...
 
O BARÃO É mesmo o jornal de maior circulação da América do Sul.
 
AMOROSA Mas o que vem o senhor fazer à imprensa?
 
O BARÃO Protestar contra as notícias que escreveram a respeito daquele rolo do Eldorado; deram a entender que fui eu o provocador, quando foi a Fritzmac quem me atirou um copo de cerveja tigre à cara.
 
AMOROSA Não publicaram o seu nome.
 
O BARÃO Mas puseram-lhe as iniciais, e é quanto basta para que todo o mundo saiba de quem se trata. Isto de iniciais é até um meio de chamar mais a atenção para o nome.
 
AMOROSA E que foi o senhor fazer ao Eldorado? Dir-se-ia que tem saudades dessa mulher!
 
O BARÃO Asseguro que lá não fui por causa dela. Quando ainda restasse alguma coisa do que sentia por aquele diabo, um copo de cerveja tigre na cara me curaria de todo!
 
AMOROSA Pois sim, mas deixe os tipos tranquilos.
 
O BARÃO Que tipos?
 
AMOROSA Os tipos da tipografia. Não faça protesto algum a semelhante respeito.
 
O BARÃO Por quê?
 
AMOROSA (com sobranceria)  Porque não quero! (Meiga) Bem sabe que só desejo o que o não prejudique.
 
O BARÃO Pois seja! A senhora faz de mim o que quer!... Estamos aqui como Ceci e Peri. Ceci manda; Peri obedece!
 
 
CENA II
 
Os mesmos, o Doutor Gazeta, depois um artista.
 
(O Doutor entra com dois quadros debaixo do braço)
 
O BARÃO Oh doutor! como tem passado?
 
O DOUTOR  Menos mal.
 
O BARÃO Que leva aí? dois quadros?
 
O DOUTOR  Não são dois quadros: são dois anzóis.
 
AMOROSA Dois anzóis?...
 
O DOUTOR  Dois prêmios para os assinantes do ano.
 
COPLA
 
Co'estes cromos tão chibantes Que a Paris mandei buscar, Dezesseis mil assinantes Eu tenciono abiscoitar! Sujeitinho que se estima E figura quer fazer, Na parede esta obra-prima Pendurada deve ter. Oh, que pendant, Como é gentil! En badinant E M'aime t'il!
 
O DOUTOR Para o ano devo arranjar coisa melhor: darei um relógio a cada assinante!
 
O BARÃO Com corrente?
 
O DOUTOR  Decerto, todo assinante é concorrente.
 
AMOROSA Um relógio de ouro?
 
O DOUTOR  Quase. Tempo virá em que hei de dar como prêmio uma apólice da dívida pública. Adeus! (Sai)
 
O ARTISTA (entrando)  É uma indignidade!
 
O BARÃO Por que vem tão zangado, amigo?
 
O ARTISTA  Pois não! O senhor assistiu às festas por ocasião do regresso de Suas Majestades?
 
O BARÃO A algumas. Fui um dos setenta mil logrados de Botafogo!
 
AMOROSA Um verdadeiro logro, na verdade. Anunciam um fogo de vistas de dez contos de réis, e, afinal de contas, impingem ao público, tarde e a más horas, algumas pobres girândolas.
 
O BARÃO Uma pulha de Primeiro de Abril.
 
O ARTISTA  Ah! não, mas é disso que trato. Bem me importa a mim que em Botafogo houvesse um fogo bota! Estou indignado, porque sou um pintor, sou um artista, e o comércio, tendo de ornamentar a fachada do edifício da Bolsa e dispondo de recursos para fazê-lo dignamente, foi procurar uns seringueiros muito ordinários, uns caiadores muito incompetentes, uns pinta-monos, capazes de fazer ladrar um cão! Como se neste país não houvesse artistas!
 
O BARÃO E o coreto da Rua do Ouvidor, canto da dos Ourives?
 
AMOROSA Um arco de triunfo, que obrigava o triunfador a passar por baixo de uns músicos!
 
O ARTISTA  Um desastre! Pois olhem, dantes, estas coisas faziam-se com mais limpeza e talvez com menos despesa. Vou deitar um artigo! (Sai)
 
AMOROSA Tudo salva a boa intenção...
 
 
CENA III O Barão, Amorosa, a semana e a época, que entram desfeitas e cadavéricas; depois um esgrimista, depois primeiro, segundo e terceiro jornalistas.
 
O BARÃO Ó pobres raparigas! Ó meninas, onde vão vocês?
 
AS DUAS  Vamos morrer.
 
O BARÃO Morrer tão jovens? na primavera da vida? na idade das ilusões e do amor?... Coitadinhas! (Tomando a Semana pela mão) A menina como se chama?
 
A SEMANA  A Semana. Já fui bonita, bonita e guapa; hoje estou neste belo estado!
 
AMOROSA Não admira; tem passado por tantas mãos!...
 
A ÉPOCA  E eu que passei por uma única mão e estou também morre não morre?!...
 
O BARÃO Como se chama?
 
A ÉPOCA  A Época.
 
O BARÃO Pois, meus amores, vão morrer mais longe, porque eu, a respeito de defuntos, temos conversado. (Empurra-as brandamente. Elas saem, e entra o Esgrimista, todo cheio de emplastros e coxeando) Querem ver que este é também algum jornal que vai morrer?
 
O ESGRIMISTA  Não, senhor, não sou um jornal, sou um jornalista.
 
O BARÃO Pelo que estou vendo veio de algum rolo!...
 
O ESGRIMISTA  Engana-se. Sou membro do Clube de Esgrima e acabo de tomar uma lição de florete.
 
AMOROSA Ah! o tal clube que se fundou este ano...
 
O BARÃO Deve ser muito divertido.
 
O ESGRIMISTA  Ah! é preciso saber esgrima! A moda dos duelos vai se introduzindo no Rio de Janeiro.
 
AMOROSA É o meio mais fácil de resolver os pontos de honra...
 
O BARÃO E de dar extração aos pontos falsos.
 
O ESGRIMISTA  Em todo o caso, é bom saber uma pessoa como se há de haver em frente de uma espada.
 
O BARÃO Por exemplo (servindo-se da bengala como de um florete): Um, dois e...
 
O ESGRIMISTA  Ai! (Foge)
 
AMOROSA É provável que no clube não se ensine o principal requisito para quem se vai bater, que é ter coragem...
 
(Entram os três jornalistas, carregados de malas e de presentes. Chegam ao meio da cena, deixam cair as malas, sentam-se sobre elas e soltam um grande suspiro de alívio)
 
OS TRÊS  Ai...
 
O BARÃO É a comissão de jornalistas que foi ao Rio da Prata.
 
PRIMEIRO JORNALISTA Trinta banquetes!
 
SEGUNDO JORNALISTA Vinte e três espetáculos!
 
TERCEIRO JORNALISTA  Dezoito recepções!
 
PRIMEIRO JORNALISTA Dezenove maioneses!
 
SEGUNDO JORNALISTA Cinquenta e cinco discursos!
 
PRIMEIRO JORNALISTA (levantando-se)  Mas, em compensação, que amabilidade!
 
SEGUNDO JORNALISTA (idem)  Que gentileza!
 
TERCEIRO JORNALISTA (idem)  E que bonitos presentes!
 
PRIMEIRO JORNALISTA Sem contar que vimos e ouvimos a Patti...
 
OS TRÊS  Oh! a Patti!...
 
TANGO
 
I PRIMEIRO JORNALISTA São cavalheiros finos  Os argentinos;  Não têm rival. Enquanto lá estivemos,  Não despendemos  Nem um real!
 
SEGUNDO JORNALISTA Casa bem mobiliada,  Roupa lavada,  Nada faltou!
 
TERCEIRO JORNALISTA Que belas petisqueiras  O Pederneiras  Saboreou!
 
OS TRÊS Oh, que linda terra! Como são gentis! Pode lá haver guerra Com tão bom país! As tais argentinas São mesmo uma flor! Por pouco as meninas Nos matam de amor!
 
II PRIMEIRO JORNALISTA Nuns corrupios doidos  Andamos todos  De cá pra lá, E coisas viu a gente  Que infelizmente  Nunca viu cá!
 
SEGUNDO JORNALISTA Foi um passeio bruto! Nem um minuto  Se descansou!
 
TERCEIRO JORNALISTA Mas — é bom que se note — Este velhote Não fraquejou!
 
OS TRÊS  Oh, que linda terra! etc.
 
(Saem os três dançando)
 
O BARÃO Pobres homens! Vêm estrompados!
 
AMOROSA Mas vêm contentes!
 
(Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando todos a um tempo)
 
JORNALISTAS Não entendi palavra!
 
O BARÃO Discutem a imigração chinesa.
 
AMOROSA Qual é a sua opinião sobre esse assunto?
 
O BARÃO A minha?
 
AMOROSA Sim.
 
O BARÃO Homem, menina, eu não sou muito contra os chins. Dizem que são ótimos agricultores.
 
AMOROSA Não há dúvida, mas não passam disso. Levam a miséria e a corrupção a toda a parte. E tanto é assim, que os americanos do norte já os repelem a mão armada.
 
O BARÃO Os americanos têm lá muita gente, e nós cá precisamos de braços.
 
AMOROSA Pois deixe mostrar-lhe qual será o futuro da sociedade brasileira, se a sua terra proteger semelhante imigração.
 
(Agita o braço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano do fundo e aparece uma sala no gosto chinês, lembrando ao mesmo tempo as nossas casas atualmente. Fonseca-Tching está assentado, num coxim, fumando ópio e abanando-se com uma ventarola. Continua a música em surdina na orquestra durante o quadro suplementar)
 
O BARÃO Que é isto?
 
AMOROSA É o que está vendo.
 
O BARÃO Eu quando digo que esta mulher tem feitiço!...
 
AMOROSA Imagine que estamos em meado do século que vem. Chegue-se aqui para o lado. Observemos, como se estivéssemos num teatro.
 
 
CENA IV
 
O Barão, Amorosa, Fonseca-Tching, depois Tzéng-Tzéng-Sodré, depois Peky.
 
FONSECA  Eu sou feliz, porque em suma Não há no mundo outro emprego Melhor que estar em sossego E não fazer coisa alguma. Batem à porta. Quem é?
 
A VOZ DE SODRÉ  Um seu infame criado!...
 
FONSECA  Queira entrar. (Sodré entra) Oh! Deus louvado! É o Senhor Tzeng-Tzeng-Sodré! Seja bem aparecida Nesta pobre casa imunda Essa cara rubicunda Que é toda saúde e vida!
 
(Ergue-se e os dois cumprimentam-se à chinesa)
 
SODRÉ Então, como tem comido?
 
FONSECA Perfeitamente. Obrigado.
 
SODRÉ Cada vez mais anafado!
 
FONSECA Vou como Buda é servido...
 
SODRÉ  Minha família canalha Me pede que cumprimente A sua esposa excelente. Onde está ela?
 
FONSECA  Trabalha. Minha ignóbil mulherzinha Retribui reconhecida Tais cumprimentos. Metida Ela está lá na cozinha A lavar facas e pratos: Não lhe pode aparecer. E o senhor? Come a valer?
 
SODRÉ  Ainda hoje comi dois ratos  Que achei no barril do cisco.
 
FONSECA Arrotou? Não teve azia? (Sinais afirmativo e negativo de Sodré) É prato de economia  Mas é muito bom petisco. (Sentindo os efeitos do ópio) Tenho fumado demais! Fume você no meu próprio Chibuque. Veja que bom ópio Este de Minas Gerais! (Passa o cachimbo a Sodré, que fuma)
 
SODRÉ (vendo entrar Peky)  Olé! formosa Peky!
 
PEKY  'Stava lavando a gamela; Ouvi-lhe a voz...
 
SODRÉ Como é bela!
 
PEKY  E pressurosa corri.
 
SODRÉ (tomando a mão de Peky, a Fonseca) Esta mão já duas vezes Tive a honra de pedir.
 
PEKY  É tempo de decidir: 'Stou d'esp'ranças há três meses...
 
FONSECA  Ainda não é visível Esse estado interessante, E noivo mais importante Que se apresente é possível! Mesmo saber desse estado Há muito noivo que estima; Acha mulher e, inda em cima, Trabalho já começado, Porque, enfim, Sodré querido, A tudo a ambição recorre; Se a mulher sem filho morre, Não herda nada o marido! (Com resolução, abraçando-os) Ora adeus! Eu não desejo Que me torçais os narizes; Casai-vos! sede felizes!
 
SODRÉ Oh! que felicidade! Um beijo! (Beija Peky. Fonseca cai no chão completamente embriagado)
 
O velho bêbado está, E eu já me sinto também... (Cai)  Vem a meus braços, oh, vem! Beijos ardentes me dá... (Adormece)
 
PEKY  Dormem ambos... Ora pois, Neste cachimbo dourado  Vou fumar o meu bocado,  E adormecer como os dois...
 
(Tira o cachimbo das mãos de Sodré e começa a fumar. Cai o pano do fundo. Cessa a música)
 
 
CENA V O Barão, Amorosa, depois o terceiro jornalista.
 
AMOROSA Então? que diz àquele quadro?
 
O BARÃO Digo que a menina lavrou dois tentos. Já estou completamente voltado contra o chim.
 
TERCEIRO JORNALISTA (entrando)  Aqui tem o primeiro número do meu Diário do Comércio. A alma do Diário de Notícias num corpo novo.
 
O BARÃO (examinando)  O aspecto é agradável. Naturalmente o miolo diz com a casca.
 
AMOROSA Já vi também a Tribuna Liberal. Bem escrita, mas perversa.
 
TERCEIRO JORNALISTA  Adeus. (Sai)
 
AMOROSA É um jornal garantido.
 
O BARÃO Xi! que grupo ali vem! Fujamos! 
 
(Saem. Entra um grupo de caixeiros)
 
 
CENA VI Caixeiros, armados com baldes de piche e broxas.
 
CORO  Das portas o fechamento Nós vimos todos pedir. A imprensa neste momento  Vai nossas queixas ouvir.
 
UM CAIXEIRO Amigos da liberdade Os maus patrões vão ficar; Embora contra a vontade, As portas hão de fechar. Quando algum deles capriche, E liberdade não der,  Leva de piche,  Haja o que houver!
 
CORO Leva de piche, de piche, de piche,  Haja o que houver! Das portas o fechamento, etc.
 
(Saem Os caixeiros. Mutação)
 
QUADRO XV O Rossio, no ponto compreendido entre a Rua Sete de Setembro e o Teatro São Pedro. Cena escura.
 
CENA I O Barão, Amorosa.
 
AMOROSA O senhor durante todo o caminho tem me parecido contrariado... Não está satisfeito por se ir embora?
 
O BARÃO Pois bem, deixe falar-lhe com o coração nas mãos! Não estou nada satisfeito! Fiz uma figura de urso — aí está o que fiz! Compreendo que a senhora não me concedesse certas regalias; está se vendo que é uma menina honrada... o que, aliás, torna ainda mais inexplicável o seu procedimento de acompanhar-me por toda a parte e fazer-me contínuas declarações.
 
AMOROSA O senhor tem uma falsa compreensão do amor.
 
O BARÃO Mas a outra, a Fritzmac?.. Por que não deixou que arranjássemos nós a nossa vida? Afinal de contas, que perderia eu com isso? Agora, usando dessa misteriosa influência que exerce sobre a minha pessoa, a senhora obriga-me a tomar o trem de ferro e voltar para a fazenda!
 
AMOROSA É o que devia ter feito há mais tempo.
 
O BARÃO E o bonito é que uma força irresistível me obriga a obedecer sem tugir nem mugir! E vou-me embora! Só lhe digo duas palavras, duas palavras apenas, mas enérgicas e cheias de filosofia! Essas duas palavras são: — Ora bolas!
 
AMOROSA Chegou o momento de revelar-lhe tudo.
 
O BARÃO Tudo quê?
 
AMOROSA Tudo quanto não sabe. A Fritzmac é uma criatura sobrenatural.
 
O BARÃO Hein?...
 
AMOROSA É uma invenção do Diabo, assim como eu sou uma invenção do Amor.
 
O BARÃO (recuando)  Quê?... A senhora também é sobrenatural?...
 
AMOROSA Pois não deu ainda por isso?...
 
O BARÃO Já andava desconfiado... principalmente depois da tal feitiçaria dos china...
 
AMOROSA O meu poder é ilimitado!
 
COPLA
 
Na terra embora tudo se mude, Tomem as coisas diversa cor, Forte há de sempre ser a virtude, No eterno orgulho do seu vigor.  Anos decorram, 
 
Séculos corram, É inabalável o Deus do amor.
 
O BARÃO Ao mesmo tempo que a senhora me parece criatura de outro planeta, custa-me crer que não seja uma mulher como as outras...
 
AMOROSA Experimente.
 
O BARÃO (maliciosamente)  Como?
 
AMOROSA Quer que eu faça aparecer aqui alguma coisa que o divirta?... Temos tempo: ainda não são horas de tomar o trem, daqui à estação é um instante e já lá estão as bagagens.
 
O BARÃO Ora! O que me poderá divertir?...
 
AMOROSA Qual é o divertimento da sua predileção?
 
O BARÃO É o teatro.
 
AMOROSA Pois bem, farei desfilar diante de seus olhos Os principais acontecimentos teatrais do ano que está a findar.
 
O BARÃO Sempre quero ver isso.
 
AMOROSA Pois vai ver! (Faz um gesto) Aí tem Dona Inês de Castro.
 
 
 
CENA II Os mesmos, a Castro.
 
O BARÃO Olá! a mísera e mesquinha! (Vendo entrar a Castro) Tem razão: é a própria; conheço-a do bom tempo.
 
A CASTRO  Estava a linda Inês...  A linda Inês sou eu!...
 
O BARÃO (a Amorosa)  É ela!
 
A CASTRO  Estava a linda Inês posta em sossego, Entre o pó de esquecidos alfarrábios, E sacrílega mão ninguém lhe punha. Quando o empresário do Recreio Dramático, Prevendo que a ressurreição da peça Lhe levaria público ao teatro, Foi buscá-la nos lôbregos arquivos, Mandou tirar papéis, meteu-a em cena, E encarregou-se do papel de Afonso, O rei severo, o pai meigo e sensível. Se nós não temos lá um João Caetano, Se nós não temos uma Ludovina, Possuímos, no entanto, alguns artistas Que ainda podem prestar bem bons serviços! A tragédia montada foi com luxo, Luxo nas roupas e nos acessórios...
 
O BARÃO  Nem era de esperar que o Dias Braga  Procedesse jamais de outra maneira!...
 
A CASTRO  Eu quisera, porém, que me deixassem No meu canto gozando o doce fruto Da paz inalterável dos arquivos...
 
(Saem majestosamente)
 
UMA VOZ  Pchit! Pchit!
 
AMOROSA Donde partem estes psius?... Quem nos chama?
 
A VOZ  Sou eu! Estou aqui! Deste lado! no terraço do Teatro São Pedro de Alcântara!
 
O BARÃO Ah! Lá está! É um homem muito branco!
 
AMOROSA Não se engano! É a estátua de Antônio José!
 
A VOZ  Digam-me uma coisa, meus senhores. É verdade que estão representando ali defronte as minhas Guerras do Alecrim e da Manjerona?
 
AMOROSA É verdade, sim, Senhor Antônio José. E com muitos aplausos.
 
A VOZ  Faço ideia! Aplausos de convenção, muito diversos daqueles do Bairro Alto! Tenham a bondade de dizer ao empresário que a minha época passou. Deixem as minhas óperas em companhia da Nova Castro!
 
AMOROSA Lá direi.
 
A VOZ  Adeus. Vou tomar um semicúpio.
 
AMOROSA Adeus, Senhor Antônio José.
 
 
CENA III O Barão, Amorosa, um ex-ator, depois primeiro e segundo engenheiros, depois a Grã-via.
 
AMOROSA Aqui está outro acontecimento teatral do ano. Barão, apresento-lhe o ator Martins.
 
O EX-ATOR  Ator, risque: ex-ator.
 
CANTO
 
Sou do Correio Almoxarife; Agora o bife Seguro está! Já não receio Tacão de bota, Nem a risota Provoco já! Meus ex-colegas Todos me invejam E até desejam Me acompanhar, Pois sem pelegas Não vale a pena Ir para a cena Representar. Muito contente, olé! muito contente, olá! O almoxarife está! (Sai dançando)
 
AMOROSA Um homem feliz! Passou pelo teatro, foi aplaudido, e não acabará no Galeão.
 
O BARÃO Onde dizem que o governo vai fundar um asilo para os artistas dramáticos... 
 
(Entram dois engenheiros)
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  Olhe, colega, neste teatro é preciso abrir cem portas!
 
SEGUNDO ENGENHEIRO  Ficará um Teatro Tebas!
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  No Recreio pôr-se-ão cinco escadas.
 
SEGUNDO ENGENHEIRO  No Santana umas poucas de saídas.
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  Que, sendo preciso, poderão também servir de entradas...
 
SEGUNDO ENGENHEIRO  O Pedro II é que de mais reformas precisa!
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  Passará por uma transformação completa!
 
SEGUNDO ENGENHEIRO  O mesmo acontecerá à Fênix.
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  Ora, o mesmo acontecerá a todos os outros!
 
SEGUNDO ENGENHEIRO  Talvez fosse mais curial propor o arrasamento dos teatros existentes e a edificação de novos.
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  Pelo menos a economia seria maior...
 
SEGUNDO ENGENHEIRO  Vamos estudar?
 
PRIMEIRO ENGENHEIRO  Estudemos! (Saem ambos)
 
O BARÃO Os proprietários dos nossos teatros podem considerar-se também vítimas do incêndio do Baquet.
 
AMOROSA Ai vem a Grã-via, que foi, por bem dizer, o único sucesso teatral do ano. A GRÃ-VIA  Conhecem a Grã-via?
 
OS DOIS  E quem não conhece?
 
CANTO
 
AMOROSA  Essa  Peça
 
Tantas vezes se tem dado,  Que hoje Foge Dela o público maçado!
 
O BARÃO  Por formas tão diversas  A dão, coitada, Que ninguém quer conversas  Co'a desgraçada!
 
A GRÃ-VIA  Má sorte em Grande Avenida  Me transformou; Não há música batida  Mais do que eu sou. Sou vítima dos planos  Deste pais... Digam-me tais desumanos, O que lhes fiz! (Sai dançando)
 
 
CENA IV O Barão, Amorosa, um diletante, depois um empresário lírico, depois primeiro jornalista, acompanhado do quarto e do quinto, que não falam.
 
O BARÃO (vendo entrar o Diletante a chorar)  Oh! um homem a chorar! Que é isto? É também um acontecimento teatral? Querem ver que este senhor acabou de assistir à representação de uma comédia?
 
O DILETANTE (chorando)  Não, senhor... choro por que ela não veio.
 
AMOROSA Ela quem?
 
O DILETANTE  Ou antes, veio e não cantou; e se cantou, não a ouvi! Ouvi-la era o meu sonho doirado! Ouvi-la, sim, ainda que não fosse senão nalguns compassos daquela ária do Barbeiro,em que a dizem sublime. (Chorando e cantando ao mesmo tempo) Una voce poco fa...
 
AMOROSA Ah! fala da Adelina Patti.
 
O DILETANTE  Sim, falo da célebre diva italiana! Eu estava tão esperançado agora de não morrer sem ouvi-la! Já tinha resolvido empenhar até os colchões em que durmo para tomar uma assinatura!
 
O BARÃO Já é vontade de ouvir a Patti!
 
O DILETANTE  Viram os telegramas? Que tormento: "A Patti vai." "Não vai a Patti." "Vai." "Não vai." "Vai." e não veio! Quero dizer, veio mas não cantou nem nada, e lá se muscou outra vez sem dar uma nota! Nunca me hei de consolar desta hipótese. (Sai chorando)
 
O BARÃO Que grande pedaço de asno!...
 
(Entram os artistas de uma companhia lírica perseguindo o Empresário)
 
CORO DOS ARTISTAS O senhor empresário, sem demora O que deve é pagar, senão há briga! Não podemos daqui nos ir embora; Temos todos a sela na barriga!...
 
O EMPRESÁRIO Artistas meus caríssimos, Não me griteis assim!
 
Queixai-vos só do público; Não vos queixeis de mim.
 
(Sai. A orquestra faz lembrar um motivo da canção do aventureiro, do Guarani)
 
CORO  Co' esta quebradeira insólita, Co' esta falta de dinheiro, Não vem fora de propósito A canção do aventureiro! Pobre de nós! na miséria  Vamos ficar!  Que a coisa é séria Não há mais que duvidar.
 
PRIMEIRO JORNALISTA (entrando acompanhado pelo terceiro e quinto jornalista) Recitativo Da imprensa generosa, ilustre comissão  De que fazemos parte, Vos toma a todos sob a sua proteção  Por amor da arte.
 
ÁRIA DO TROVADOR Pobres artistas, Corro a salvar-vos! Hei de arranjar-vos Alguns mil réis; Pagareis todos Vossas passagens, E as hospedagens Nesses hotéis.
 
CORO  Muito obrigado.
 
PRIMEIRO JORNALISTA Não há de quê.
 
CORO  Isto só nesta Terra se vê.
 
PRIMEIRO JORNALISTA Em mim achastes Um bom amigo! Vindo comigo Ao Castelões! O fluminenses, Ides um dia Ter companhia A dez tostões!
 
CORO Se nos dá de comê. Se nos dá de bebê. Se nos paga os hotéis o seu bem, Vamos lá com você!
 
(Saem os jornalistas e os coros)
 
O BARÃO Mas a senhora não me mostrou o acontecimento teatral mais importante do ano: a vinda do grande Coquelin.
 
AMOROSA Não temos tempo para mais nada. Daqui a vinte minutos, parte o trem. Vamos!...
 
O BARÃO Vamos lá! Estou convencido... A Baronesa vai ter um alegrão! (Música na orquestra) Que é aquilo?
 
AMOROSA São as tropas que vão para Mato Grosso. Vamos ao encontro delas.
 
O BARÃO Vamos! 
 
(Saem. Começam a desfilar as tropas da esquerda para a direita. No meio da desfilada, faz-se a mutação)
 
 
QUADRO XVI A sala do quadro terceiro.
 
CENA ÚNICA Mademoiselle Fritzmac, depois Pero Botelho.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC (entrando enraivecida)  Inferno e danação! Ele partiu!... Partiu sem que eu pudesse transmitir-lhe os meus pecados! Fui vencida por aquela maldita filha do Amor! Que contas hei de dar de mim a Pero Botelho?! (Pero Botelho surge do alçapão) Ele!...
 
PERO BOTELHO És um gênio pulha, um espírito de meia tigela, não vales dois caracóis! Em vez de corromper uma sociedade inteira, procuraste perverter um indivíduo só, e isso mesmo não conseguiste! Estúpida!... Que fizeste durante todo este ano? O mormo dos burros talvez, só isso!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Fiz o que pude... Até me vesti de homem!...
 
PERO BOTELHO Pois foi pena que te não recrutassem para o exército.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Tive uma adversária terrível...
 
PERO BOTELHO Qual adversária nem qual carapuça! És um gênio mau.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC E tu tens muito mau gênio.
 
PERO BOTELHO Nunca o Brasil foi tão feliz como neste ano! Aboliu-se a escravidão, receberam-se cento e trinta mil imigrantes, o comércio prosperou, as artes deram sinal de vida, e publicaram-se livros! Até as mulheres!... Foi preciso que tu cá viesses para que no Rio de Janeiro houvesse uma doutora, uma farmacêutica, e até uma toureadora!... Com certeza não és a criatura que eu desejava. Fritzmac deu-me uma mulher falsificada... Condenei-o a três meses de cadeia, e retirei-lhe a Grã-cruz com que o havia condecorado.
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Fez mal; não é dele a culpa, mas dos próprios pecados, que estão serôdios, e já não produzem efeito em ninguém. A sociedade moderna transformou os pecados em virtudes; a avareza hoje é economia e previdência; a ira, coragem e energia; a preguiça, prudência, discrição e modéstia a inveja, ambição e estímulo; a gula, é sinal de saúde e bons costumes, e a luxúria... amor!...
 
PERO BOTELHO Talvez tenhas razão... mas olha que lá no inferno não me pões mais os pés!... Fica-te no Rio de Janeiro a tomar cajuadas, e deixa-te dominar pelas virtudes, se quiseres. Nada tenho com isso. Para o ano virei em pessoa corromper esta boa gente. Bem diz o ditado que quem quer vai, e quem não quer manda.
 
AMOROSA (entrando)  Então não se conta comigo?
 
O AMOR (idem)  Nem comigo?
 
PERO BOTELHO Por Satanás! que grande audácia!...
 
O AMOR  Volta para o ano, e aqui me encontrarás pronto para o combate!
 
MADEMOISELLE FRITZMAC Veremos.
 
AMOROSA  Há de o Brasil crescer: do amor o deus antigo  De protegê-lo não cansa; O Oitenta e Nove há de lhe ser amigo...  Boa figura vai fazer em França.
 
(Aponta para o fundo. Mutação)
 
 
QUADRO XVII O Palácio do Brasil na Exposição Universal de 1889. A orquestra executa um trecho de música, composto pela Marselhesa e pelo Hino Brasileiro, engenhosamente ligados.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades