Com exceção de Sookie, o povo de Bon Temps conhece muito pouco sobre vampiros e absolutamente nada sobre lobisomens. Até agora. Lobisomens e metamorfos finalmente decidem se revelar para os humanos. A princípio tudo corre bem, até que o corpo de um metamorfo é encontrado morto próximo ao bar na qual Sookie trabalha, e ela se sente no dever de descobrir o responsável por isso. Mas há um perigo muito maior ameaçando a cidade de Bon Temps: uma raça de seres inumanos — mais velhos, mais poderosos e mais reservados que vampiros ou lobisomens — está se preparando para a guerra e, no meio disso tudo, Sookie não vê benefício algum em seu excesso de humanidade.
......
SE ISTO FOSSE O Senhor dos Anéis e eu tivesse um sotaque britânico esperto como o de Cate Blanchett, eu poderia lhe contar os eventos daquele outono de um modo realmente cheio de suspense. E você estaria morrendo de vontade de saber do resto. Mas o que aconteceu no meu cantinho do norte da Louisiana não foi uma história épica. A guerra de vampiros foi mais como uma pequena tomada de posse, e a guerra dos Lobis uma escaramuça de fronteira. Mesmo nos anais da América sobrenatural — acho que elas existem em algum lugar — foram capítulos pequenos... a não ser que se esteja envolvido ativamente nas posses e escaramuças. Então elas se tornam um bocado grandes.
E tudo por culpa do Katrina, o desastre que continuava espalhando dor, sofrimento e permanente mudança em seu despertar.
Antes do Furacão Katrina, a Louisiana possuía uma próspera comunidade vampira. De fato, a população de vampiros de Nova Orleans tinha crescido, tornando-se o local da moda se você quisesse vê-los; e muitos americanos queriam ver. Os clubes de jazz dos morto-vivos, apresentando músicos que ninguém tinha visto tocando em público antes, eram atrações especiais. Clubes de strip vampiros, vampiros paranormais, sexo vampiro; lugares secretos e não-tão-secretos onde você podia ser mordido e ter um orgasmo grátis: tudo isso estava disponível no sul da Louisiana.
Na parte norte do estado... nem tanto. Eu moro na parte norte numa pequena cidade chamada Bon Temps. Mas mesmo em minha área, onde vampiros são relativamente discretos, os morto-vivos davam largos passos, social e economicamente.
Ao todo, os negócios de vampiros no Estado dos Pelicanos estavam crescendo. Mas então veio a morte do Rei do Arkansas enquanto sua esposa, a Rainha da Louisiana, o entretinha logo depois do casamento. Já que o corpo desapareceu e todas as testemunhas — exceto eu — eram sobrenaturais, a lei humana não tomou conhecimento. Mas os outros vampiros sim, e a rainha, Sophie - Anne Leclerq, se viu numa posição legal bastante precária.
Então veio o Katrina, que liquidou a base financeira do império de Sophie-Anne. Mas a rainha estava se recuperando daqueles desastres, quando outro aterrissou bem em cima dela. Sophie-Anne e alguns dos seus mais fortes aliados — e eu, Sookie Stackhouse, telepata e humana — foram atingidos por uma terrível explosão em Rhodes, a destruição de um hotel vampiro chamado Pirâmide de Gisé.
Um grupo independente da Irmandade do Sol reivindicou responsabilidade e, enquanto os líderes daquela “igreja” anti-vampiros censuravam o crime de ódio, todos sabiam que a Irmandade dificilmente estava chorando por aqueles que foram terrivelmente feridos na explosão, muito menos pelos vampiros mortos (final e absolutamente) ou os humanos que os serviam.
Sophie-Anne perdeu as pernas, vários membros de sua comitiva, e seu querido companheiro. Ela teve a vida salva por seu advogado metadedemônio, Sr. Cataliades. Mas a recuperação seria longa e ela estava numa posição de extrema vulnerabilidade.
Que papel eu desempenhei em tudo isso?
Eu ajudei a salvar vidas depois que a Pirâmide desabou, e agora estava apavorada porque estava na mira de pessoas que poderiam me querer a serviço deles, usando minha telepatia para seus propósitos.
Alguns desses propósitos eram bons e eu não me importaria de dar uma mão para ajudar em serviços de resgate de vez em quando, mas eu queria ter uma vida própria. Eu estava viva; meu namorado, Quinn, estava vivo; e os vampiros mais importantes para mim tinham sobrevivido também. Quanto aos problemas que Sophie-Anne encarava as conseqüências políticas do ataque e o fato de que grupos sobrenaturais rodeavam o enfraquecido estado da Louisiana como hienas ao redor de uma gazela agonizante... eu não pensava muito a respeito.
Eu tinha outras coisas em mente, coisas pessoais. Não costumo pensar muito no futuro; é minha única desculpa. Não apenas não estava pensando na situação dos vampiros, como havia outra situação sobrenatural que não levei em conta e tornou-se crucial para meu futuro. Perto de Bon Temps, em Shreveport, existe um bando de Lobis cuja maioria dos membros é de homens e mulheres da Base da Força Aérea Barksdale. No ano passado, esse bando se dividiu em duas facções distintas. Eu aprendi em História Americana o que Abraham Lincoln, citando a Bíblia, tinha a dizer sobre casas divididas.
Assumir que estas duas situações se resolveriam sozinhas, não prever que a solução me envolveria, bom... Eu estava fatalmente cega para isso. Sou telepata, não onisciente. As mentes dos vampiros são enormes pontos vazios relaxantes para mim. Lobis são difíceis de ler, mas não impossíveis. É minha única desculpa por ignorar a encrenca crescendo ao meu redor.
E eu, estava tão ocupada pensando no quê? Casamentos — e em meu namorado ausente.
EU ESTAVA ORGANIZANDO as garrafas de bebida sobre a mesa dobrável atrás do bar portátil quando Halleigh Robinson correu em minha direção, o rosto normalmente doce agora vermelho e molhado de lágrimas. Já que ia se casar dentro de uma hora e ainda estava vestindo blue jeans e uma camiseta, ela teve minha atenção imediata.
— Sookie! — ela disse, rodeando o bar e agarrando minha mão. — Você tem que me ajudar.
Eu já tinha ajudado ao colocar meu traje de garçonete ao invés do belo vestido que planejei usar. — Claro — respondi, imaginando que Halleigh quisesse que lhe fizesse um drinque especial — mas se eu tivesse ouvido seus pensamentos, teria descoberto algo diferente. Mas eu estava tentando me comportar bem então bloqueava tudo como uma louca. Ser telepata não é mole, especialmente num evento de alta tensão como um casamento duplo. Eu tinha esperado ser uma convidada ao invés de garçonete. Mas a fornecedora do bar tinha se envolvido num acidente de carro a caminho de Shreveport e Sam, que foi descontratado quando a E(E)E insistiu em usar um fornecedor próprio, foi abruptamente contratado de novo.
Eu estava um pouco desapontada por estar trabalhando no bar, mas você tinha que agradar a noiva em seu dia especial. — O que posso fazer por você? — perguntei.
— Preciso que você seja minha dama de honra — ela disse.
— Ah... O quê?
— Tiffany desmaiou depois que o Sr. Cumberland tirou a primeira rodada de fotografias. Ela está a caminho do hospital. — Faltava uma hora para o casamento e o fotógrafo esteve tentando conseguir tirar certa quantia de fotos de grupo do caminho. As damas de honra e os padrinhos já estavam vestidos. Halleigh devia estar se enfeitando, mas ao invés disso ali estava ela em jeans e rolos de cabelo, sem maquiagem, e com o rosto manchado de lágrimas.
Quem poderia resistir?
— Você tem o tamanho certo — ela disse. — E Tiffany provavelmente está prestes a ter o apêndice retirado. Então, pode experimentar o vestido?
Olhei para Sam, meu chefe. Sam sorriu para mim e assentiu.
— Vá, Sookie. Não abriremos o bar oficialmente até depois do casamento.
Então eu segui Halleigh até Belle Rive, a mansão dos Bellefleur, recentemente restaurada em algo como sua antiga glória. O assoalho de madeira brilhava, a harpa perto das escadas cintilava dourada, a prataria disposta no grande aparador da sala de jantar faiscava depois de polida. Havia atendentes em casacos brancos andando de um lado para outro, com o logotipo da E(E)E escrito em caracteres pretos elaborados em suas túnicas. A Eventos (Extremamente) Elegantes tornou-se a fornecedora número um dos Estados Unidos. Senti uma punhalada no coração quando notei o logotipo, porque meu namorado ausente trabalhava para o ramo sobrenatural da E(E)E. Mas não senti a dor por muito tempo, porque Halleigh me arrastou escada acima a passos implacáveis.
O primeiro quarto naquele andar estava cheio de mulheres animadas em vestidos dourados e coloridos, todas fazendo rebuliço ao redor da futura cunhada de Halleigh, Portia Bellefleur. Halleigh passou direto por aquela porta e entrou no segundo quarto à esquerda. Estava igualmente cheio de moças, mas estas usavam gaze azul-escura. O quarto estava um caos, com roupas civis das damas de honra empilhadas aqui e ali. Havia uma bancada de maquiagem e artigos de cabeleireiro contra a parede oeste, administrada por uma mulher estóica num avental pink, com um secador na mão. Halleigh lançou apresentações no ar como bolas de papel. — Meninas, esta é Sookie Stackhouse. Sookie, esta é minha irmã Fay, minha prima Kelly, minha melhor amiga Sarah, minha outra melhor amiga Dana. E aqui está o vestido. É manequim número oito.
Fiquei espantada por Halleigh ter tido presença de espírito de privar Tiffany do vestido de dama de honra antes de sua partida para o hospital. Noivas são cruéis. Em questão de minutos, eu fui despida ao essencial. Fiquei feliz por estar vestindo um belo lingerie, já que não havia tempo para modéstia. Teria sido embaraçoso estar usando calcinhas de vovó com buracos! O vestido era alinhado, então não precisei de uma combinação, outro golpe de sorte. Havia um par extra de meias-calças que vesti e então o vestido foi enfiado pela minha cabeça. Às vezes eu usava manequim número dez — de fato, na maioria das vezes — então estava prendendo a respiração quando Fay puxou o zíper.
Se eu não respirasse muito, ficaria tudo bem.
— Maravilha! — uma das mulheres (Dana?) disse com grande alegria. — Agora os sapatos.
— Oh, Deus — falei quando os vi. Eram saltos bem altos tingidos para combinar com os vestidos azul-escuros, e eu deslizei meus pés neles, antecipando a dor. Kelly (talvez) prendeu as fivelas e eu me levantei. Todas nós prendemos a respiração assim que dei o primeiro passo, e então outro. Eles eram meio apertados. E era um “meio” importante.
— Posso agüentar durante o casamento — falei, e todas aplaudiram.
— Venha cá então — disse Avental Pink e eu me sentei na cadeira, onde tive mais maquiagem reaplicada sobre a anterior e meu cabelo foi refeito, enquanto as verdadeiras damas de honra e a mãe de Halleigh ajudavam-na a se vestir. Avental Pink tinha um bocado de cabelo para arrumar. Eu tinha feito apenas algumas mechas nos últimos três anos, acho, e agora eles estavam compridos até os ombros. Minha colega de quarto, Amelia, havia feito algumas luzes e tinham ficado muito boas. Eu estava mais loura do que nunca.
Me examinei no espelho de corpo inteiro e parecia impossível eu ter sido transformada em vinte minutos. De uma garçonete em serviço, com camisa branca social e calças pretas, para uma dama de honra num vestido azul - escuro — e três polegadas mais alta, ainda por cima.
Ei, eu parecia ótima. O vestido era de uma cor maravilhosa para mim, a saia tinha um caimento suave, as mangas curtas não eram muito apertadas e ele não era tão decotado para parecer o de uma vadia. Com meus peitos, o fator vadia ressaltava se eu não tomasse cuidado.
Fui arrancada da auto-admiração pela prática Dana, que disse: — Escute, vai ser assim. — Daquele momento em diante, eu ouvi e assenti. Examinei um pequeno diagrama. Assenti mais um pouco. Dana era uma garota organizada. Se algum dia invadisse um pequeno país, eu queria essa mulher do meu lado. Na hora em que descemos cuidadosamente pelas escadas (vestidos longos e saltos altos, não é uma boa combinação), eu já estava totalmente instruída e pronta para minha primeira caminhada pela nave como dama de honra.
A maioria das garotas já fez isso algumas vezes antes de completar vinte e seis anos, mas Tara Thornton, a única amiga próxima o suficiente para me pedir, fugiu para se casar enquanto eu estava fora da cidade. O pessoal do outro casamento já estava reunido no andar de baixo quando nós descemos. O grupo de Portia precederia o de Halleigh. Os dois noivos e seus padrinhos já estavam do lado de fora, se tudo estava correndo bem, porque faltavam cinco minutos para começar.
Portia Bellefleur e suas damas de honra tinham, em média, sete anos a mais do que o grupo de Halleigh. Portia era a irmã mais velha de Andy Bellefleur, detetive de polícia de Bon Temps e noivo de Halleigh. O vestido de Portia era um pouco exagerado — estava coberto de pérolas e tanta renda e lantejoulas que achei que ficaria em pé sozinho — expressões mas era o grande dia de Portia, então ela podia vestir o que bem entendesse. Todas as damas de honra de Portia estavam usando dourado.
Os buquês das moças combinavam — branco, azul - escuro e amarelo. Coordenados com a opção azul — escura das damas de honra de Halleigh, o resultado era bem bonito.
A organizadora de casamentos, uma mulher magra e nervosa com uma grande nuvem de cabelos escuros encaracolados, contava cabeças quase audivelmente. Quando ficou satisfeita, por todos de que precisava estarem presentes e contados, ela escancarou as portas duplas para o enorme pátio de tijolos. Podíamos ver a multidão, de costas para nós, sentados no gramado em duas sessões de cadeiras brancas dobráveis, com uma faixa de tapete vermelha as atravessando. Eles encaravam a plataforma onde o padre estava num altar coberto por tecido e velas brilhantes. À direita do padre, o noivo de Portia, Glen Vick, esperava de frente para a casa. E, portanto, nós. Ele parecia muito, muito nervoso, mas estava sorrindo. Seus padrinhos já se encontravam posicionados ao lado.
As damas de honra douradas de Portia entraram no pátio e, uma por uma, começaram a deslizar pela nave através do jardim arrumado. O perfume das flores de casamento tornava a noite doce. E as rosas de Belle Rive estavam desabrochando, mesmo em outubro.
Finalmente, ao som de uma enorme onda de música, Portia cruzou o pátio até a ponta do tapete, a organizadora (com algum esforço) levantando uma porção do vestido dela para que não arrastasse nos tijolos. Com um aceno do padre, todos se levantaram e olharam para trás para que pudessem ver a marcha triunfal de Portia. Ela esperou anos por isso.
Após a chegada segura de Portia ao altar, foi a vez do nosso grupo. Halleigh lançou um beijo de ar na bochecha de cada uma enquanto passávamos por ela até o pátio. Ela incluiu até a mim, o que foi gentil de sua parte. A coordenadora nos organizou, uma por uma, ao lado dos padrinhos designados na frente. O meu era um primo Bellefleur de Monroe, que ficou um bocado surpreso em me ver chegando no lugar de Tiffany. Eu caminhei a passos lentos, como Dana havia enfatizado, e segurei meu buquê no ângulo desejado. Observei as outras damas de honra com olhos de águia. Eu queria fazer bonito.
Todos os rostos estavam voltados para mim e eu estava tão nervosa que esqueci de bloquear. Os pensamentos da multidão me inundaram numa comunicação indesejável. Parece tão bonita... O que aconteceu com Tiffany?... Nossa, que gata... Depressa, preciso de uma bebida… Que diabos eu estou fazendo aqui? Ela me arrasta para qualquer briga de galo na paróquia... Eu adoro bolo de casamento.
Um fotógrafo surgiu na minha frente e tirou uma foto. Era alguém que eu conhecia, uma bela lobisomem chamada Maria-Star Cooper. Ela era a assistente de Al Cumberland, um conhecido fotógrafo radicado em Shreveport. Sorri para Maria-Star e ela tirou outra foto. Continuei a andar pelo tapete, afivelei meu sorriso, e afastei todos os pensamentos da cabeça.
Após um instante, notei que havia pontos vazios na multidão, que assinalavam a presença de vampiros. Glen havia solicitado especificamente um casamento noturno para que pudesse convidar alguns de seus mais importantes clientes vampiros. Eu tive certeza que Portia realmente o amava ao concordar com isso, porque Portia não gostava nem um pouco de sanguessugas. De fato, eles lhe davam arrepios.
Eu meio que gostava de vampiros em geral, porque seus cérebros eram privados para mim. Estar na companhia deles era estranhamente relaxante. Tudo bem, eu estou forçando a barra, mas pelo menos meu cérebro podia relaxar.
Afinal cheguei ao lugar designado para mim. Observei os convidados de Portia e Glen se organizarem num V invertido, com um espaço na frente para o casal nupcial. Nosso grupo estava fazendo o mesmo. Eu os imitei e suspirei de alívio. Já que eu não estava no lugar da madrinha de casamento, meu trabalho estava acabado. Tudo que eu tinha que fazer era ficar imóvel e parecer atenta, e achei que podia fazer isso.
A música se elevou para um segundo crescendo, e o padre deu seu sinal novamente. A multidão se levantou e virou para olhar a segunda noiva. Halleigh começou a andar lentamente atrás de nós. Ela parecia absolutamente radiante. Halleigh escolhera um vestido muito mais simples que o de Portia, e parecia muito jovem e doce. Ela era pelo menos cinco anos mais nova do que Andy, talvez mais. O pai de Halleigh, tão bronzeado e esbelto quanto a esposa, não levaria Halleigh pelo braço até o altar; já que Portia caminhou pela nave sozinha (o pai dela tinha morrido há um bom tempo), foi decidido que Halleigh faria o mesmo também.
Depois que me fartei do sorriso de Halleigh, olhei para a multidão que se virou para seguir o progresso da noiva.
Havia tantos rostos familiares: professoras da escola primária onde Halleigh dava aula, membros do departamento de polícia onde Andy trabalhava, os amigos da velha Sra. Caroline Bellefleur que ainda viviam e cambaleavam, os colegas advogados de Portia e outras pessoas que trabalhavam no sistema judiciário, clientes de Glen Vick e outros contadores. Quase todas as cadeiras estavam ocupadas.
Havia alguns rostos negros e pardos visíveis, mas a maioria dos convidados era de brancos da classe média. Os rostos mais pálidos na platéia eram de vampiros, é claro. Um deles eu conhecia bem. Bill Compton, meu vizinho e ex-namorado, estava sentado no meio, vestindo um smoking e parecendo muito bonito. Bill conseguia parecer à vontade em qualquer traje que escolhesse usar. Ao lado dele estava sua namorada humana, Selah Pumphrey, uma agente imobiliária de Clarice. Ela estava usando um vestido vinho que realçava seus cabelos escuros. Havia talvez uns cinco vampiros que eu não reconheci. Presumi que fossem clientes de Glen. Embora Glen não soubesse, havia vários outros convidados que eram mais (ou menos) que humanos.
Meu chefe, Sam, era um raro e verdadeiro metamorfo que podia se transformar em qualquer animal. O fotógrafo era um lobisomem, assim como sua assistente. Para todos os convidados normais, ele parecia um afro-americano gordinho e baixo, usando um belo terno e carregando uma grande câmera. Mas Al se transformava num lobo na lua cheia, como Maria-Star. Havia alguns outros Lobis na multidão, embora eu conhecesse apenas uma, Amanda, uma ruiva na casa dos trinta que era dona de um bar em Shreveport, chamado Pêlo do Cachorro. Talvez a firma de Glen lidasse com a contabilidade do bar.
E havia um lobi-pantera, Calvin Norris. Calvin trouxera uma acompanhante, fiquei feliz em notar, embora eu não tenha ficado tão emocionada depois de identificá-la como Tanya Grissom. Droga. O que ela estava fazendo de volta na cidade? E por que Calvin estava na lista de convidados? Eu gostava dele, mas não conseguia imaginar a conexão. Enquanto estive verificando a multidão por rostos familiares, Halleigh assumira seu lugar ao lado de Andy, e agora todas as damas de honra e padrinhos tiveram que se voltar para ouvir o sermão.
Já que não tinha um grande investimento emocional neste procedimento, eu me descobri perambulando mentalmente enquanto o Padre Kempton Littrell, o sacerdote episcopal que normalmente vinha à pequena igreja de Bon Temps uma vez a cada duas semanas, conduzia o serviço. As luzes colocadas para iluminar o jardim refletiam nos óculos do Padre Littrell e apagavam um pouco da cor em seu rosto. Ele parecia quase um vampiro. As coisas prosseguiram num plano bem padronizado. Cara, sorte minha eu estar acostumada a ficar de pé no bar, porque aquilo era um bocado de tempo, e em salto alto também. Eu raramente usava saltos, muito menos saltos agulha. Era estranho medir um metro e oitenta. Tentei não me mexer muito, enchendo minha alma de paciência.
Agora Glen estava colocando o anel no dedo de Portia, e Portia parecia quase bonita ao olhar as mãos deles entrelaçadas. Ela nunca foi uma de minhas pessoas favoritas — nem eu dela — mas eu lhe desejava tudo de bom. Glen era ossudo, tinha calvície e óculos enormes. Se você telefonasse para uma seleção de elenco e pedisse um “tipo contador”, eles te mandariam Glen. Mas eu podia dizer, direto de seu cérebro, que ele amava Portia e ela o amava.
Eu me mexi um pouco, colocando o peso na perna direita.
Então o Padre Littrell começou tudo de novo com Halleigh e Andy. Mantive o sorriso fixo no rosto (sem problema; eu fazia isso o tempo todo no bar) e assisti Halleigh se tornar a Sra. Andrew Bellefleur. Eu tinha sorte. Casamentos episcopais podem ser compridos, mas os dois casais haviam optado pelo serviço mais curto.
Finalmente, a música ecoou seus acordes triunfantes e os recémcasados foram para a mansão. A caravana de casamento os seguiu em ordem reversa. Caminhando pelo tapete, eu me senti genuinamente feliz e um pouco orgulhosa. Eu tinha ajudado Halleigh em seu momento de necessidade... e em breve tiraria aqueles sapatos.
De sua cadeira, Bill percebeu meu olhar e silenciosamente colocou a mão sobre o coração. Era um gesto romântico e totalmente inesperado e, por um momento, me senti afetada. Eu quase sorri, apesar de Selah estar ao lado dele. Então lembrei que Bill era um rato bastardo imprestável, e engoli minha dor. Sam estava parado há alguns metros atrás da última fileira de cadeiras, usando uma camisa de smoking branca, como aquela que eu estava usando antes, e calça social preta. Relaxado e à vontade, aquele era Sam. Até mesmo o cabelo louro-avermelhado emaranhado combinava de alguma forma.
Lancei-lhe um sorriso genuíno, e ele retribuiu. Ele fez sinal de positivo com o polegar e, apesar dos cérebros dos metamorfos serem difíceis de ler, pude perceber que ele aprovava minha aparência e o modo como estava me portando. Seus olhos azuis brilhantes nunca se desviaram de mim. Ele tem sido meu chefe há cinco anos, e nos damos bem na maior parte do tempo. Ele ficou bem aborrecido quando comecei a namorar um vampiro, mas superou.
Eu precisava me aprontar para trabalhar, e rápido. Encontrei-me com Dana. — Quando poderemos trocar de roupa? — perguntei.
— Oh, ainda temos que tirar fotos — Dana disse alegremente. Seu marido surgiu ao lado dela, abraçando-a. Estava carregando o bebê, uma coisinha enrolada num cobertor amarelo sem definição de sexo.
— Com certeza não vou ser necessária aqui — respondi. — Vocês tiraram várias fotos antes, certo? Antes de, qual era o nome dela, ficar doente.
— Tiffany. Sim, mas vão tirar mais.
Eu seriamente duvidava que a família me quisesse nelas, apesar de minha ausência desequilibrar a simetria das fotografias em grupo. Encontrei Al Cumberland.
— Sim. — Ele disse, fotografando os noivos enquanto se olhavam embevecidos. — Eu preciso de algumas fotos. Você tem que ficar com o vestido.
—Droga — falei, porque meus pés doíam.
— Ouça, Sookie, o melhor que posso fazer é tirar fotos do seu grupo primeiro. Andy, Halleigh! Quero dizer... Sra. Bellefleur! Se todos vierem para cá, vamos terminar suas fotos.
Portia Bellefleur Vick pareceu um pouco atônita por seu grupo não ir primeiro, mas ela tinha pessoas demais para cumprimentar para realmente se aborrecer.
Enquanto Maria-Star fotografava a cena tocante, um parente distante levou a cadeira de rodas da velha Miss Caroline até Portia, e Portia inclinou-se para beijar a avó. Portia e Andy moraram com Miss Caroline durante anos, após seus pais terem falecido. A saúde frágil de Miss Caroline havia atrasado os casamentos pelo menos duas vezes. O plano original era para ter acontecido na primavera passada e foi apressado porque Miss Caroline estava ficando debilitada. Ela teve um ataque cardíaco e então se recuperou. Depois disso, fraturou o quadril. Eu tinha que dizer, para alguém que sobreviveu a dois grandes desastres de saúde, Miss Caroline parecia... Bem, para dizer a verdade, ela parecia uma senhora muito idosa que teve um ataque cardíaco e o quadril fraturado. Ela estava bem vestida num terninho de seda bege. Estava até mesmo maquiada e os cabelos brancos foram arrumados no estilo Lauren Bacall. Ela foi bonita na juventude, autocrata a vida toda, e uma cozinheira famosa até o passado recente.
Caroline Bellefleur estava no sétimo céu esta noite. Ela casara os dois netos, estava recebendo um bocado de tributo, e Belle Rive parecia espetacular, graças ao vampiro que a fitava com um rosto absolutamente ilegível. Bill Compton descobrira que era um antepassado dos Bellefleur, e deu anonimamente a Miss Caroline uma estonteante soma em dinheiro. Ela adorou gastá-lo e não tinha idéia de que viera de um vampiro. Ela achou que era o legado de um parente distante. Eu achava meio irônico, pois os Bellefleurs teriam cuspido em Bill como agradecimento. Mas ele era parte da família, e fiquei feliz por ele ter encontrado uma forma de ajudá-los.
Respirei fundo, bani o olhar sombrio de Bill de minha consciência e sorri para a câmera. Ocupei o espaço designado nas fotografias para equilibrar o grupo de casamento, me esquivei do primo de olhos esbugalhados e, finalmente, subi as escadas voando para trocar para meu traje de garçonete.
Não havia ninguém ali, e foi um alívio estar no quarto sozinha. Deslizei para fora do vestido, pendurei-o, e me sentei num banco para desafivelar os dolorosos sapatos. Houve um pequeno ruído na porta, e levantei os olhos, aturdida. Bill estava parado dentro do quarto, as mãos nos bolsos, a pele brilhando suavemente. Suas presas estavam expostas.
— Estou tentando me trocar aqui — respondi acidamente. Não havia sentido em dar show de modéstia. Ele já tinha visto cada centímetro meu.
—Você não contou a eles — disse.
— Hein? — Então meu cérebro entendeu. Bill quis dizer que eu não contei aos Bellefleur que ele era um antepassado. — Não, é claro que não — falei. — Você me pediu para não contar.
— Eu pensei que, em sua raiva, você poderia ter lhes dado a informação.
Eu lhe dei um olhar incrédulo.
— Não, alguns de nós realmente temos honra — falei. Ele desviou o olhar por um momento. — A propósito, seu rosto se curou muito bem.
Durante o ataque a bomba da Irmandade do Sol em Rhodes, o rosto de Bill foi exposto ao sol com resultados de virar o estômago literalmente.
— Eu dormi por seis dias — ele disse. — Quando finalmente acordei, já estava quase curado. E quanto ao seu comentário sobre minha falta de honra, não tenho qualquer defesa... exceto que, quando SophieAnne me mandou persegui-la... eu fiquei relutante, Sookie. No começo, nem mesmo queria fingir ter um relacionamento permanente com uma mulher humana. Achava isso degradante. Só fui ao bar para identificá-la quando não pude mais protelar. E aquela noite não terminou como planejei. Fui para fora com os drenadores e as coisas aconteceram. Quando foi você quem veio me ajudar, eu decidi que foi destino. Fiz o que minha rainha me mandou. E ao fazer isso, caí numa armadilha da qual não podia escapar. Ainda não posso.
A armadilha do AMOOOOR, pensei sarcasticamente. Mas ele era sério, calmo demais, para ridicularizar. Eu simplesmente estava defendendo meu próprio coração com a arma da crueldade.
— Você tem uma namorada — falei. — Volte para Selah — Olhei para baixo para me certificar de que havia soltado a fivela da segunda sandália. Tirei o sapato. Quando levantei a cabeça, os olhos escuros de Bill estavam fixos em mim.
— Eu daria qualquer coisa para deitar com você novamente —
disse.
Eu congelei, as mãos no ato de desenrolar a meia-calça de minha perna esquerda. Okay, aquilo me surpreendeu em vários níveis diferentes. Primeiro, o bíblico “deitar”. Segundo, meu espanto por ele me considerar uma parceira de cama tão memorável.
Talvez ele se lembrasse apenas das virgens.
— Eu não quero flertar com você esta noite, e Sam está me esperando lá embaixo para ajudá-lo a servir no bar — respondi rudemente.
— Vá embora — Me levantei e dei as costas para ele enquanto vestia minhas calças e a camisa, enfiando a camisa para dentro. Então foi a vez dos tênis pretos. Após uma rápida conferida no espelho para ter certeza de que ainda tinha batom, encarei a porta. Ele havia partido.
Desci as escadas largas e atravessei as portas do pátio até o jardim, aliviada por retomar meu lugar familiar atrás do balcão. Meus pés ainda doíam. Assim como o ponto em meu coração rotulado Bill Compton. Sam me lançou um olhar sorridente quando apareci correndo. Miss Caroline vetara nosso pedido para deixar uma jarra de gorjetas à vista, mas vários clientes do bar já tinham enfiado algumas notas numa taça vazia, e eu pretendia deixá-la no lugar.
— Você ficou muito bonita no vestido — Sam disse enquanto misturava Coca com rum. Entreguei uma cerveja sobre o balcão e sorri para o velho que veio buscá-la. Ele me deu uma gorjeta enorme e eu olhei para baixo para ver que, em minha pressa para descer, tinha pulado um botão. Estava mostrando um pouco do meu colo. Fiquei momentaneamente embaraçada, mas não era um botão apelativo, só um botão “Ei, eu tenho peitos”. Então deixei pra la.
— Obrigada — respondi, esperando que Sam não tivesse notado essa rápida avaliação. — Espero ter feito tudo certo.
— É claro que fez — Sam disse, como se a possibilidade de eu estragar meu novo papel nunca tivesse cruzado sua mente. Era por isso que ele era o melhor chefe que já tive.
— Bem, boa noite — disse uma voz levemente nasal, e levantei os olhos do copo de vinho que estava servindo para ver que Tanya Grissom tomava espaço e respirava ar que poderia ser melhor aproveitado por qualquer outra pessoa. Seu acompanhante, Calvin, não estava em nenhum lugar à vista.
— Oi, Tanya — Sam disse. — Como tem passado? Já faz um tempo.
— Bom, eu tive que resolver alguns assuntos pendentes no Mississippi — Tanya disse. — Mas voltei para uma visita e imaginava se você precisa de ajuda em meio período, Sam.
Fechei a boca e mantive as mãos ocupadas. Tanya afastou-se para o lado de Sam, quando uma senhora me pediu água tônica com uma fatia de lima. Entreguei-lhe a bebida tão rápido que ela pareceu aturdida, então cuidei do próximo cliente de Sam. Eu podia ouvir no cérebro de Sam que ele estava contente por ver Tanya. Homens podem ser idiotas, certo? Para ser justa, eu sabia de coisas a respeito dela que Sam ignorava.
Selah Pumphrey foi a próxima na fila, e eu só pude me espantar com minha sorte. No entanto, a namorada de Bill só pediu rum com Coca.
— Claro — falei, tentando não soar aliviada, e comecei a providenciar a bebida.
—Eu o ouvi — Selah disse em voz baixa.
— Ouviu quem? — perguntei, distraída por meu esforço para ouvir o que Tanya e Sam conversavam — tanto com meus ouvidos quanto com meu cérebro.
— Ouvi Bill quando ele estava falando com você antes. — Quando não respondi, ela continuou: — Subi as escadas atrás dele.
— Então ele sabe que você esteve lá — eu disse ausente, entregando-lhe o drinque. Seus olhos se inflamaram por um segundoalarmados, raivosos? Ela se afastou. Se um olhar pudesse matar, eu estaria desfalecida no chão. Tanya começou a se afastar de Sam como se seu corpo estivesse pensando em partir, mas sua cabeça ainda conversasse com meu chefe. Finalmente, sua graça voltou para seu acompanhante. Olhei para suas costas, tendo pensamentos sombrios.
— Bem, estas são boas notícias — Sam disse com um sorriso. — Tanya está disponível por um tempo.
Engoli meu desejo de dizer que Tanya deixara bem claro que estava disponível. — Ah, sim, ótimo — falei. Havia tantas pessoas de quem eu gostava. Por que duas das mulheres com quem eu não me importava estavam nesse casamento esta noite? Bom, pelo menos meus pés estavam praticamente chorando de felicidade por estarem livres dos saltos minúsculos.
Sorri, preparei drinques, juntei as garrafas vazias e fui até a caminhonete de Sam para descarregar o estoque. Abri cervejas, servi o vinho e bati papo até me sentir uma perpétua máquina automática.
Os clientes vampiros chegaram ao bar em grupo. Tirei a rolha de uma garrafa de Royalty Blended, uma mistura premium de sangue sintético e sangue de verdade da realeza européia. Tinha que ser refrigerada, é claro, e era um presente muito especial para os clientes de Glen, algo que ele arranjou pessoalmente (a única bebida de vampiro mais cara que o Royalty Blended era o quase puro Royalty, que continha apenas um traço de preservativos). Sam alinhou as taças de vinho. Então me disse para servir. Eu tomei cuidado especial extra para não desperdiçar nem uma gota. Sam serviu cada copo para seu destinatário. Todos os vampiros, inclusive Bill, deram enormes gorjetas e grandes sorrisos ao levantarem as taças num brinde aos recém-casados.
Após um gole do fluído escuro nas taças, as presas expostas provaram a satisfação. Alguns dos convidados humanos pareceram ligeiramente desconfortáveis com as expressões de apreciação, mas Glen estava bem ali sorrindo e assentindo. Ele conhecia os vampiros o suficiente para não oferecer apertos de mão. Notei que a nova Sra. Vick não estava vibrando com os convidados morto-vivos, embora tenha tentado mostrar para o grupo um tenso sorriso fixo no rosto.
Quando um dos vampiros voltou para pegar um copo de TrueBlood normal, servi-lhe o drinque morno.
— Obrigado — disse, dando gorjeta novamente. Enquanto ele estava com a carteira aberta, eu vi a licença de motorista de Nevada. Estava familiarizada com uma grande variedade de licenças por pedir documentos dos garotos no bar; ele viera de longe para o casamento. Olhei para ele de verdade pela primeira vez. Quando soube que chamara minha atenção, ele juntou as mãos e curvou-se levemente.
Já que tinha lido um livro de mistério ambientado na Tailândia, eu sabia que aquilo era um wai, um cumprimento cortês praticado por budistas — ou talvez somente por pessoas tailandesas em geral? De qualquer forma, ele pretendia ser educado. Após uma breve hesitação, larguei a toalha que tinha nas mãos e copiei seu movimento. O vampiro pareceu satisfeito.
— Eu me chamo Jonathan — disse. — Americanos não conseguem pronunciar meu verdadeiro nome.
Pode ter havido um toque de arrogância e desprezo ali, mas eu não podia culpá-lo.
—Eu sou Sookie Stackhouse — respondi.
Jonathan era um homem de porte pequeno, talvez 1.72m, com um suave colorido bronze e cabelos pretos característicos de seu país. Ele era realmente bonito. Seu nariz era pequeno e largo, os lábios cheios. Os olhos castanhos eram emoldurados por sobrancelhas castanhas absolutamente retas. A pele era tão bonita que eu não conseguia detectar poros. Ele possuía aquele pequeno brilho que os vampiros tinham.
— Este é seu marido? — ele perguntou, pegando sua taça de sangue e inclinando a cabeça na direção de Sam. Sam estava ocupado misturando uma piña colada para uma das damas de honra.
— Não, senhor, ele é meu chefe.
Nesse momento, Terry Bellefleur, primo em segundo grau de Portia e Andy, surgiu pedindo outra cerveja. Eu realmente gostava de Terry, mas ele era um bêbado mal-educado e achei que estava prestes a chegar àquela condição. Embora o veterano do Vietnã quisesse ficar e conversar a respeito da política do presidente sobre a guerra atual, eu o encaminhei a outro membro da família, um primo distante de Baton Rouge, e me certifiquei para que o homem mantivesse um olho em Terry e o impedisse de dirigir a picape.
O vampiro Jonathan ficou me olhando enquanto eu fazia isso, e eu não tive certeza do por quê. Mas não observei nada agressivo ou lascivo em sua postura ou comportamento, e suas presas estavam guardadas. Pareceu seguro não fazer caso dele e cuidar de meus afazeres. Se houvesse alguma razão para Jonathan querer conversar comigo, eu descobriria mais cedo ou mais tarde. Mais tarde estava ótimo.
Enquanto pegava um engradado de refrigerantes da caminhonete de Sam, minha atenção voltou-se para um homem parado sozinho nas sombras de um grande carvalho a oeste do gramado. Ele era alto, magro, e estava impecavelmente bem-vestido num terno obviamente muito caro. O homem deu um passo à frente e eu pude ver seu rosto, percebendo que ele retribuía meu olhar. Minha primeira impressão foi de que ele era uma criatura adorável e nem um pouco humana. O que quer que fosse, humano não era parte dele. Embora tivesse certa idade, ele era extremamente bonito e seus cabelos, ainda de um pálido dourado, eram tão longos quanto os meus. Ele os usava puxados para trás caprichosamente. Era levemente maduro, como uma deliciosa maçã colhida tardiamente, mas suas costas eram absolutamente eretas e ele não usava óculos. Ele carregava uma bengala bem simples, preta e com a ponta dourada.
Quando ele saiu das sombras, os vampiros se viraram em grupo para olhar. Após um instante, eles inclinaram as cabeças de leve. Ele retribuiu o reconhecimento. Eles mantiveram distância, como se ele fosse perigoso ou impressionante. Este episódio foi muito estranho, mas não tive tempo para pensar a respeito. Todos queriam um último drinque grátis. A recepção estava chegando ao fim e as pessoas dirigiam-se para frente da mansão, para a partida dos felizes casais. Halleigh e Portia haviam desaparecido para trocar os vestidos pelos trajes de despedida. O pessoal da E(E)E foi cuidadoso ao juntar os copos vazios e os pratinhos que continham bolo e guloseimas, então o jardim parecia relativamente limpo.
Agora que não estávamos ocupados, Sam me informou que tinha algo em mente.
— Sookie, eu estou tendo a impressão errada ou você não gosta de Tanya?
— Eu tenho algo contra Tanya — falei. — Só não tenho certeza se devia lhe contar a respeito. Você claramente gosta dela. — Até parece que eu estive experimentando o uísque. Ou o soro da verdade.
— Se você não gosta de trabalhar com ela, eu quero saber o motivo — ele disse. — Você é minha amiga. Respeito a sua opinião.
Isso era muito bom de se ouvir.
— Tanya é bonita — respondi. — Ela é esperta e capaz. — Aquelas eram as coisas boas.
— E?
— E ela veio para cá como espiã — falei. — Os Pelts a mandaram, tentando descobrir se eu tive algo a ver com o desaparecimento da filha deles, Debbie. Lembra-se de quando eles vieram ao bar?
— Sim — disse Sam. Sob a iluminação pendurada ao redor do jardim, ele parecia tão brilhante quanto sombrio. — Você teve algo a ver com isso?
—Tudo — respondi tristemente. — Mas foi autodefesa.
— Sei que deve ter sido. — Ele pegou minha mão. A minha se contraiu de surpresa. — Eu te conheço — disse e não me soltou.
A fé de Sam me fez sentir um pequeno brilho de calor por dentro. Eu trabalhava para ele há um bom tempo agora, e sua boa opinião significava muito para mim. Me senti quase sufocar de emoção e tive que pigarrear.
— Então, eu não fiquei feliz por ver Tanya — continuei. — Não confiei nela desde o começo e, quando descobri por que veio para Bon Temps, eu realmente a detestei. Não sei se ela ainda está sendo paga pelos Pelts. Além disso, esta noite, ela está aqui com Calvin e não tem nada que ficar flertando com você — Meu tom era muito mais raivoso do que pretendia.
— Ah. — Sam pareceu desconcertado.
— Mas se você quiser sair com ela, vá em frente — falei, tentando desanuviar. — Quero dizer, ela não pode ser tão ruim. E imagino que tenha achado que estava fazendo a coisa certa, vindo para ajudar a descobrir informações sobre a metamorfa desaparecida. — Aquilo soou muito bem e até podia ser verdade. — Eu não preciso gostar das pessoas com quem você sai — acrescentei, apenas para deixar claro que compreendia que não tinha direitos sobre ele.
— É, mas eu me sinto melhor quando você gosta — ele disse.
—Igualmente — concordei, para minha própria surpresa.
COMEÇAMOS A RECOLHER as coisas de modo silencioso e discreto, já que ainda havia convidados circulando.
— Já que estamos falando de encontros, o que houve com Quinn? — ele perguntou enquanto trabalhávamos. — Você anda deprimida desde que voltou de Rhodes.
— Bom, eu te contei que ele ficou seriamente ferido na explosão. — A divisão da E(E)E de Quinn organizava eventos especiais para a comunidade sobrenatural: casamentos vampiros hierárquicos, festas de maioridade Lobis, competições para líder da matilha, e assim por diante. Era por isso que Quinn estava na Pirâmide de Gisé quando a Irmandade armou seu golpe sujo.
O pessoal da IdS era anti-vampiro, mas eles não tinham idéia de que os vampiros eram só a ponta visível e pública do iceberg no mundo sobrenatural. Ninguém sabia disso; ou pelo menos somente alguns como eu, apesar de existir cada vez mais pessoas conscientes do grande segredo. Eu tinha certeza que os fanáticos da Irmandade odiariam lobisomens e metamorfos como Sam, tanto quanto odiavam vampiros... se soubessem que eles existiam. Esse momento chegaria em breve.
—Sim, mas eu achei que...
— Eu sei, achei que Quinn e eu estávamos firmes também — falei, e se minha voz estava triste, bom, pensar em meu tigre desaparecido me fazia sentir assim. — Fico pensando que vou ter notícias. Mas nem uma palavra.
— Você ainda está com o carro da irmã dele? — Frannie Quinn me emprestou o carro para que eu pudesse voltar para casa depois do desastre em Rhodes.
— Não, ele sumiu certa noite, quando Amelia e eu estávamos no trabalho. Eu liguei e deixei uma mensagem de voz no celular dele para dizer que foi levado, mas não recebi resposta.
— Sookie, sinto muito — disse Sam. Ele sabia que era inadequado, mas o que podia dizer?
— É, eu também — respondi, tentando não soar muito deprimida. Era um esforço evitar voltar ao estado mental cansativo. Sabia que Quinn não me culpava de modo algum por seus ferimentos. Eu o vi no hospital em Rhodes antes de ir embora, e ele esteve sob os cuidados da irmã, Fran, que pareceu não me detestar naquele momento. Sem culpa, sem raiva — por que sem comunicação?
Era como se o chão tivesse se aberto e o engolido. Levantei as mãos e tentei pensar em outra coisa. Manter-me ocupada era o melhor remédio quando estava preocupada. Começamos a levar algumas das coisas para a caminhonete de Sam, estacionada a cerca de uma quadra. Ele carregou a maioria das coisas pesadas. Sam não é um sujeito grande, mas é realmente forte, como todos os metamorfos.
Às dez e meia, nós tínhamos quase terminado. Pelos aplausos na frente da casa, eu sabia que as noivas tinham descido as escadas em seus trajes de lua-de-mel, jogado os buquês e partido. Portia e Glen iriam para San Francisco, e Halleigh e Andy para algum resort na Jamaica. Não pude evitar saber.
Sam disse que eu podia ir embora. — Vou chamar Dawson para me ajudar a descarregar no bar — disse. Já que Dawson, que estava substituindo Sam no Merlotte’s Bar esta noite, tinha um físico robusto, eu concordei que era um bom plano.
Quando dividimos as gorjetas, ganhei uns trezentos dólares. Foi uma noite lucrativa. Enfiei o dinheiro no bolso da calça. Era um rolo grande, já que a maioria das notas era de um dólar. Fiquei feliz por estarmos em Bon Temps, ao invés de uma cidade grande, ou estaria preocupada que alguém me acertasse a cabeça antes de eu chegar ao carro.
— Bem, noite, Sam — falei, vasculhando meu bolso atrás das chaves do carro. Não me incomodei em trazer bolsa. Ao descer a rampa do quintal até a calçada, toquei meus cabelos, embaraçada. Consegui impedir a senhora do avental pink de colocá-los para cima, então ela fez um penteado cheio e ondulado, meio Farrah Fawcett. Me senti ridícula.
Havia carros passando, a maioria de convidados do casamento, indo embora. Havia um pouco do tráfego noturno habitual de sábado. A fila de veículos estacionada no meio-fio descia um longo caminho rua abaixo, então todo o tráfego se movia devagar. Estacionei ilegalmente com o lado do motorista voltado para o meio-fio; normalmente não era grande coisa em nossa cidadezinha.
Inclinei-me para destrancar a porta do carro e ouvi um barulho atrás de mim. Num único movimento, envolvi a chave e fechei o punho, girei e bati com toda a força. As chaves deram ao meu punho um bom apoio, e o homem atrás de mim cambaleou pela calçada para cair de bunda no declive do gramado. — Não desejo lhe causar mal — disse Jonathan.
Não é fácil parecer digno e inofensivo quando se tem sangue escorrendo pelo canto da boca e está sentado sobre o traseiro, mas o vampiro asiático conseguiu.
— Você me surpreendeu — falei, o que era uma declaração atenuada ruim.
— Estou percebendo — ele disse, levantando-se facilmente. Ele tirou um lenço e limpou a boca. Eu não ia me desculpar. Pessoas que chegam furtivamente quando estou sozinha à noite, bom, elas merecem o que conseguem. Mas reconsiderei. Vampiros moviam-se silenciosamente.
— Sinto muito ter assumido o pior — falei, numa espécie de meiotermo. — Devia tê-lo identificado.
— Não, seria tarde demais então — disse Jonathan. — Uma mulher sozinha deve se defender.
— Aprecio sua compreensão — respondi cuidadosamente. Olhei para trás dele, tentando não registrar nada no rosto. Já que ouvia tantas coisas surpreendentes dos cérebros das pessoas, estou acostumada a fazer isso. Olhei diretamente para Jonathan. — Você... por que está aqui?
— Estou de passagem pela Louisiana, e vim ao casamento como convidado de Hamilton Tharp — ele disse. — Estou na Área Cinco com a permissão de Eric Northman.
Eu não tinha idéia de quem era Hamilton Tharp — provavelmente algum conhecido dos Bellefleurs. Mas conhecia Eric Northman muito bem (de fato, certa época, eu o conheci da cabeça aos pés, e todos os pontos no meio). Eric era o xerife da Área Cinco, uma grande porção do norte da Louisiana. Estávamos vinculados de um modo complexo, o que na maioria dos dias eu detestava como o inferno.
— Na verdade, o que eu estava perguntando era — por que se aproximou de mim só agora? — esperei, com as chaves ainda apertadas na mão. Prestaria atenção nos olhos, decidi. Até vampiros são vulneráveis ali.
— Eu estava curioso — disse Jonathan finalmente. Suas mãos estavam entrelaçadas diante dele. Eu estava desenvolvendo uma forte antipatia pelo vampiro.
— Por quê?
— Ouvi falar no Fangtasia sobre a mulher loura que Eric valoriza tanto. Eric é tão intransigente que não parecia provável que qualquer mulher humana pudesse interessá-lo.
— Então como sabia que eu estaria aqui, nesse casamento, esta
noite?
Seus olhos vacilaram. Ele não esperara que eu persistisse com as perguntas. Esperara ser capaz de me acalmar, talvez agora mesmo estivesse tentando me coagir com seu encantamento. Mas isso simplesmente não funcionava em mim.
— A jovem que trabalha para Eric, sua criança Pam, mencionou — ele disse.
Mentiroso de uma figa, pensei. Fazia algumas semanas desde que conversei com Pam e nosso último papo não foi tagarelice feminina sobre minha agenda social e de trabalho. Ela estava se recuperando dos ferimentos que sofreu em Rhodes. A recuperação dela, de Eric e da rainha foi o único assunto da conversa.
— Claro — respondi. — Bem, boa noite. Preciso ir embora. — Destranquei a porta e entrei cuidadosamente, tentando manter os olhos fixos em Jonathan para estar preparada para um movimento súbito. Ele permaneceu imóvel como uma estátua, inclinando a cabeça para mim depois que liguei o motor e parti. Na primeira placa de pare, afivelei o cinto de segurança. Eu não quis me prender enquanto ele estava tão perto. Tranquei as portas do carro e olhei ao redor. Nenhum vampiro à vista. Isso foi muito, muito estranho, pensei. De fato, eu provavelmente devia ligar para Eric e relatar o incidente.
Sabe qual foi a parte mais estranha? O homem de meia-idade com longos cabelos louros esteve parado nas sombras atrás do vampiro o tempo todo. Nossos olhos até se encontraram uma vez. Seu belo rosto se mostrou ilegível. Mas eu sabia que ele não queria que revelasse sua presença. Eu não li sua mente — não consegui—mas soube disso apesar de tudo.
E o mais estranho de tudo, Jonathan não soube que ele esteve lá. Devido ao sentido de olfato agudo que todos os vampiros possuem, a ignorância de Jonathan era simplesmente extraordinária.
Eu ainda meditava sobre o pequeno episódio estranho quando saí da Rodovia Hummingbird e virei na longa entrada através da floresta que conduzia à minha velha casa. O centro da casa foi construído há mais de cento e sessenta anos, mas é claro que muito pouco de sua estrutura original sobreviveu. Ela foi aumentada, remodelada, e ganhou um novo telhado várias vezes ao longo de décadas. Começou como um rancho de dois quartos e agora era muito maior, mas continuava uma casa bem comum.
Esta noite, a casa parecia pacífica sob o brilho da lâmpada externa que Amelia Broadway, minha colega de quarto, deixou acesa para mim. O carro de Amelia se encontrava estacionado nos fundos, e eu parei ao lado. Eu mantinha as chaves comigo para o caso dela subir para o andar de cima à noite. Ela deixou a porta telada destrancada e eu a tranquei ao entrar. Abri e tranquei a porta interna. Amelia e eu éramos um inferno com segurança, principalmente à noite.
Um pouco para minha surpresa, Amelia estava sentada à mesa da cozinha, esperando por mim. Criamos uma rotina após semanas de convivência, e geralmente Amelia já teria se retirado para cima há essa hora. Ela tinha a própria TV, telefone celular e o laptop, e fez um cartão na biblioteca, então tinha um bocado para ler. Além disso, ela tinha seu trabalho de magia, sobre a qual eu não fazia perguntas. Nunca. Amelia era uma bruxa.
— Como foi? — ela perguntou, derramando o chá como se tivesse que criar um pequeno redemoinho.
— Bom, eles se casaram. Ninguém deu uma de Jane Eyre. Os vampiros de Glen se comportaram e Miss Caroline despejou graciosidade por todo o lugar. Mas tive que substituir uma das damas de honra.
— Oh, nossa! Me conta.
Então contei, e compartilhamos algumas risadas. Pensei em contar a Amelia sobre o belo homem, mas não o fiz. O que podia dizer? “Ele olhou para mim”? Mas contei sobre Jonathan de Nevada.
— O que você acha que ele realmente queria? — perguntou Amelia.
— Nem imagino. — Dei de ombros.
— Você precisa descobrir. Especialmente quando nunca ouviu falar do sujeito cujo convidado ele disse que era.
— Vou ligar para Eric — se não hoje, amanhã à noite.
— Uma pena que você não tenha comprado uma cópia daquele banco de dados que Bill está vendendo. Vi uma propaganda na Internet ontem, num site vampiro. — Aquilo pode ter sido uma mudança de assunto súbita, mas o programa de Bill continha fotos e/ou biografias de todos os vampiros que ele conseguiu localizar em todo mundo, e alguns de quem só ouviu falar. O pequeno CD de Bill estava fazendo mais dinheiro para sua chefe, a rainha, do que eu poderia imaginar. Mas você tinha que ser um vampiro para comprar um, e eles tinham meios para verificar.
— Bom, já que Bill está cobrando quinhentos dólares por cabeça, e fingir ser um vampiro é um risco perigoso... — falei.
Amelia sacudiu a mão.
—Poderia valer a pena — ela disse.
Amelia é bem mais sofisticada do que eu... pelo menos de alguns modos. Ela cresceu em Nova Orleans e viveu lá a maior parte da vida. Agora estava morando comigo porque cometeu um grande erro. Ela teve que deixar Nova Orleans depois que sua inexperiência causou uma catástrofe mágica. Foi sorte ela ter partido a tempo, porque o Katrina aconteceu logo depois. Desde o furacão, seu inquilino estava morando no apartamento do andar de cima da casa de Amelia. Seu próprio apartamento no térreo sofreu alguns danos. Ela não estava cobrando o aluguel do inquilino porque ele estava supervisionando os reparos da casa.
E então surgiu a razão pela qual Amelia não estava voltando para Nova Orleans em breve. Bob entrou na cozinha para dizer olá, esfregandose afetuosamente contra as minhas pernas.
— Oi, meu fofinho docinho — falei, pegando o gato preto e branco de pêlo comprido. — Como está meu precioso? Amorzinho!
— Vou vomitar — disse Amelia. Mas eu sabia que ela era tão melosa quanto eu ao falar com ele, quando eu não estava por perto.
— Algum progresso? — falei, levantando a cabeça do pêlo de Bob. Ele ganhou um banho à tarde—pude perceber pela maciez.
— Não — disse ela, com a voz triste de desânimo. — Trabalhei nele por uma hora hoje, e só consegui lhe dar um rabo de lagarto. Foi preciso tudo que eu tinha para mudá-lo de volta.
Bob realmente era um cara, isto é, um homem. Um sujeito meio nerd com cabelos escuros e óculos, embora Amelia tenha confidenciado que ele possuía alguns atributos incríveis que não eram aparentes quando estava vestido para a rua. Amelia não devia estar usando magia de transformação quando transformou Bob em um gato; eles estavam tendo o que devia ser sexo cheio de aventura. Eu nunca tive coragem de perguntar a ela o que esteve tentando fazer. Claramente era algo bem exótico.
— O negócio é o seguinte — disse Amelia de repente, e eu fiquei alerta. A verdadeira razão de estar de pé para me ver estava prestes a ser revelada. Amelia era uma transmissora muito clara, então peguei direto de seu cérebro. Mas deixei-a continuar, porque as pessoas realmente não gostam se você lhes diz que não precisam de fato falar, especialmente quando o assunto é algo sobre a qual tiveram que meditar. — Meu pai estará em Shreveport amanhã, e ele quer vir a Bon Temps para me ver — ela disse numa torrente. — Será ele e o motorista, Marley. Ele quer vir para o jantar.
O dia seguinte seria domingo. O Merlotte’s abriria só | tarde, mas eu não estava escalada para trabalhar de qualquer forma, verifiquei em meu calendário.
— Então eu vou simplesmente sair — respondi. — Posso ir visitar JB e Tara. Nada demais.
— Por favor, fique — ela disse, e seu rosto revelava súplica. Ela não explicou por que. Mas pude ler a razão facilmente. Amelia possuía um relacionamento bem conflituoso com o pai; de fato, ela usava o sobrenome da mãe, Broadway, embora em parte fosse porque o pai era tão conhecido. Copley Carmichael tinha um bocado de desafetos políticos e era rico, apesar de eu não saber como o Katrina afetou sua renda. Carmichael era construtor e dono de enormes madeireiras, e o Katrina devia ter afetado seus negócios. Por outro lado, toda a área necessitava de madeira e reconstrução.
—Que horas ele virá? — perguntei.
—Às cinco.
— O motorista come à mesma mesa com ele? — Eu nunca lidei com empregados. Tínhamos apenas uma mesa na cozinha. Com certeza eu não faria o homem se sentar nos degraus dos fundos.
— Oh, Deus — ela disse. Isso claramente nunca lhe ocorreu. — O que faremos com Marley?
— É isso que estou perguntando. — Posso ter soado um pouco impaciente.
— Ouça — disse Amelia. — Você não conhece meu pai. Não sabe como ele é.
Eu sabia através do cérebro de Amelia que seus sentimentos a respeito do pai eram realmente confusos. Era muito difícil ver através do amor, medo e ansiedade e entender a verdadeira atitude básica de Amelia. Eu conheci poucas pessoas ricas e, ainda menos pessoas ricas que empregavam motoristas em tempo integral.
Esta visita seria interessante.
Dei boa noite a Amelia, fui para cama, e apesar de ter muito em que pensar, meu corpo estava cansado então dormi logo depois.
Domingo foi outro lindo dia. Imaginei os recém-casados seguramente se lançando em suas novas vidas, e pensei na velha Miss Caroline apreciando a companhia de alguns dos primos (jovens em seus sessenta anos) como cães de guarda. Quando Portia e Glen retornassem, os primos voltariam para seus lares mais humildes, provavelmente com algum alívio. Halleigh e Andy se mudariam para sua própria casinha.
Pensei em Jonathan e no belo homem de meia-idade. Lembrei-me de ligar para Eric à noite quando ele acordasse. Pensei nas palavras inesperadas de Bill. Pela milionésima vez, especulei sobre o silêncio de Quinn.
Mas antes que pudesse ficar cismada demais, fui atingida pelo Furacão Amelia. Havia um bocado de coisas que eu apreciava, e até adorava, em Amelia. Ela era franca, entusiástica e talentosa. Ela sabia tudo a respeito do mundo sobrenatural e meu lugar nele. Ela achava que meu estranho “talento” era realmente legal. Eu podia conversar com ela sobre qualquer coisa. Ela nunca reagiria com repugnância ou horror. Por outro lado, Amelia era impulsiva e teimosa, mas você tem que aceitar as pessoas como elas são. Eu realmente gostava de ter Amelia morando comigo.
Pelo lado prático, ela era uma cozinheira decente, cuidadosa a respeito de manter nossas propriedades separadas, e Deus sabia que era organizada. O que Amelia realmente fazia bem é limpar. Ela limpa quando está entediada, quando está nervosa, e limpa quando está se sentindo culpada. Eu não sou preguiçosa no quesito trabalho doméstico, mas Amelia é perita. No dia em que ela quase teve um acidente de carro, ela limpou a mobília de minha sala de estar, com estofado e tudo. Quando seu inquilino ligou para lhe contar que o telhado foi substituído, ela foi ao EZRent e trouxe para casa um aparelho para encerar e polir o assoalho nos dois andares.
Quando levantei as nove, Amelia já estava mergulhada num frenesi de limpeza por causa da visita iminente do pai. Na hora em que saí para ir à igreja lá pelas dez e quarenta e cinco, Amelia estava ajoelhada no banheiro do andar de baixo, que evidentemente é bem antigo com seus pequenos azulejos octogonais em preto e branco, e uma enorme e velha banheira com pezinhos; mas (graças ao meu irmão, Jason) possuía um sanitário mais moderno. Este era o banheiro que Amelia usava, já que não havia um no andar de cima. Eu tinha um pequeno banheiro particular em meu quarto, acrescentado nos anos cinqüenta. Em minha casa, era possível ver diversas tendências de decoração das últimas décadas, tudo num só lugar.
— Você realmente achou que está assim tão sujo? — perguntei, parada no batente da porta. Eu estava falando com o traseiro de Amelia. Ela levantou a cabeça e passou uma mão enluvada pela testa para tirar o cabelo curto do caminho.
—Não, não estava ruim, mas quero que fique ótimo.
— Meu lar é só uma casa velha, Amelia. Não acho que possa ficar ótimo. — Não havia razão para me desculpar pela idade e desgaste de minha casa e sua mobília. Aquilo era o melhor que podia fazer, e eu a adorava.
— Esta é uma casa antiga maravilhosa, Sookie — disse Amelia ferozmente. — Mas tenho que ficar ocupada.
— Okay — respondi. — Bom, eu vou à igreja. Estarei em casa às doze e trinta.
—Pode ir até o mercado depois da igreja? A lista está sobre o balcão.
Eu concordei, feliz por ter algo a fazer que me mantivesse fora de casa por mais tempo.
Parecia uma manhã de março (isto é, março no sul) ao invés de outubro. Quando saí do carro diante da igreja metodista, levantei o rosto para a brisa leve. Havia um toque de inverno no ar, um gostinho. As janelas na igreja modesta estavam abertas. Quando nós cantamos, as vozes combinadas flutuaram pelo gramado e as árvores. Mas vi algumas folhas soprando enquanto o pastor pregava.
Sinceramente, nem sempre eu ouço o sermão. Às vezes, a hora na igreja é só um tempo para pensar, um tempo para meditar sobre onde minha vida estava indo. Mas pelo menos esses pensamentos estão no contexto. E quando se observa as folhas caindo das árvores, o contexto fica bem restrito.
Hoje, eu escutei. O Reverendo Collins falava a respeito de dar a Deus as coisas que lhe eram devidas enquanto dava a Cesar as dele. Aquilo parecia um sermão de quinze de abril para mim, e me peguei imaginando se o Reverendo Collins pagou seus impostos trimestrais. Mas depois de um tempo, percebi que ele falava sobre as leis que infringimos o tempo todo sem nos sentirmos culpados—como limites de velocidade, ou enfiar uma carta com alguns presentes numa caixa que está enviando pelo correio, sem pagar a postagem extra.
Sorri para o reverendo Collins a caminho da saída da igreja. Ele sempre parecia meio perturbado quando me via.
Cumprimentei Maxine Fortenberry e o marido dela, Ed, ao chegar ao estacionamento. Maxine era grande e formidável e Ed tão tímido e quieto que parecia quase invisível. O filho deles, Hoyt, era o melhor amigo de meu irmão. Hoyt se encontrava ao lado da mãe. Usava um belo terno e seu cabelo tinha sido aparado. Sinais interessantes.
— Doçura, me dê um abraço! — disse Maxine e, é claro, eu a abracei. Maxine foi uma boa amiga de minha avó, embora tivesse a mesma idade que meu pai teria. Sorri para Ed e dei um leve aceno para Hoyt.
— Você parece ótimo — falei, e ele sorriu. Acho que nunca vi Hoyt sorrir daquele jeito, e olhei para Maxine. Ela sorria.
— Hoyt está saindo com a Holly que trabalha com você — disse Maxine. — Ela tem um filhinho, e é algo sobre a qual pensar, mas ele sempre gostou de crianças.
— Eu não sabia — respondi. Eu realmente estava por fora ultimamente. — Isso é simplesmente maravilhoso, Hoyt. Holly é mesmo uma ótima garota. — Eu não tinha certeza se me expressaria daquela forma, se tivesse tido tempo para pensar, então talvez tenha sido sorte eu não ter pensado. Havia coisas muito positivas a respeito de Holly (a devoção pelo filho, Cody; a lealdade para com os amigos; uma trabalhadora competente). Ela estava divorciada há vários anos, então Hoyt não era um substituto. Imaginei se Holly contou a Hoyt que era uma Wiccan. Não, ela não contou, ou Maxine não estaria sorrindo tão radiantemente.
— Vamos encontrá-la para almoçar no Sizzler — ela disse, referindo-se à churrascaria na estrada estadual. — Holly não freqüenta muito a igreja, mas estamos tentando convencê-la a vir conosco e trazer Cody. É melhor irmos se quisermos chegar a tempo.
— Vá em frente, Hoyt — falei, dando um tapinha em seu braço quando passou por mim. Ele me deu um sorriso satisfeito. Todo mundo estava se casando ou se apaixonando. Fiquei feliz por eles. Feliz, feliz, feliz.
Colei um sorriso no rosto e fui ao Piggly Wiggly. Tirei a lista de Amelia da bolsa. Era bem comprida, mas eu tinha certeza que haveria acréscimos agora. Liguei do celular e ela já tinha pensado em mais três itens para acrescentar, então fiquei mais um pouco no mercado.
Meus braços estavam carregados de sacolas plásticas enquanto lutava para subir os degraus na varanda dos fundos. Amelia correu até o carro para pegar as outras sacolas.
— Onde você esteve? — ela perguntou, como se tivesse esperado na porta, batendo o pé.
Olhei para meu relógio. — Saí da igreja e fui ao mercado — respondi defensivamente. — É só uma hora.
Amelia passou por mim novamente, sobrecarregada. Ela sacudiu a cabeça em exasperação ao passar, fazendo um ruído que eu só consegui descrever como “Urrrrrgh.”
O resto da tarde foi assim, como se Amelia estivesse se preparando para o encontro de sua vida. Eu não cozinho mal, mas Amelia me deixou fazer apenas as tarefas mais servis ao preparar o jantar. Fatiei cebolas e tomates. Ah, sim, ela me deixou lavar os pratos usados. Eu sempre imaginei se ela podia lavar os pratos como as fadas-madrinhas da Bela Adormecida, mas ela apenas fungou quando mencionei o assunto.
A casa estava impecável e embora tenha tentado não fazer caso, notei que Amelia limpou até o chão do meu quarto. Como regra, nós não entrávamos no espaço uma da outra.
— Desculpe por ter entrado em seu quarto — Amelia disse de repente, e me sobressaltei — eu, a telepata. Amelia conseguiu me pegar desprevenida. — Foi um daqueles impulsos malucos que tenho. Estava passando o aspirador e simplesmente pensei em limpar o seu chão também. E antes que pudesse pensar a respeito, já tinha terminado. Coloquei seus chinelos debaixo da cama.
—Okay — respondi, tentando soar neutra.
—Ei, eu sinto muito.
Eu assenti e voltei a secar os pratos e guardá-los. O cardápio, decidido por Amelia, seria salada verde sortida com tomates e cenoura ralada, lasanha, pão de alho e vegetais frescos cozidos no vapor, mas eu preparei todos os ingredientes crus — abobrinha, pimentões, cogumelos, couve-flor. Mais tarde, fui considerada capaz de misturar a salada, colocar uma toalha e um pequeno buquê de flores na mesa, e arrumar os talheres. Quatro conjuntos.
Ofereci-me para levar o Sr. Marley para a sala comigo, onde poderíamos comer em bandejas diante da TV, mas até parece que me ofereci para lavar os pés dele, porque Amelia ficou horrorizada.
—Não, você vai ficar comigo — ela disse.
— Você tem que conversar com seu pai — falei. — Em algum momento, eu vou deixar o aposento.
Ela respirou fundo, e soltou o ar. — Okay, sou adulta — murmurou.
—Medrosa — falei.
—Você não o conheceu ainda.
Amelia correu para cima as quatro e quinze para se aprontar. Eu estava sentada na sala, lendo um livro da biblioteca, quando ouvi o carro na entrada de cascalho. Olhei para o relógio na parede. Eram quatro e quarenta e oito. Gritei para as escadas e fui espiar pela janela. A tarde estava chegando ao fim, mas como ainda não tínhamos voltado ao horário padrão, foi fácil ver o Lincoln Town estacionar na frente. Um homem de cabelos escuros rentes, usando um terno de negócios, desembarcou do assento do motorista. Esse devia ser Marley. Ele não usava um daqueles quepes de motorista, para meu desapontamento. Ele abriu a porta de trás. Copley Carmichael desceu.
O pai de Amelia não era muito alto e possuía cabelos grisalhos curtos e espessos que pareciam na verdade um bom tapete, densos, macios e bem cortados. Ele era bem bronzeado e tinha sobrancelhas escuras. Sem óculos.
Sem lábios. Bom, ele tinha lábios, mas realmente finos, então sua boca parecia uma armadilha.
O Sr. Carmichael olhou ao redor como se estivesse avaliando uma propriedade. Ouvi Amelia cambalear pelas escadas atrás de mim enquanto eu observava o homem em meu pátio completar sua inspeção. Marley, o motorista, olhava direto para a casa. Ele avistou meu rosto na janela.
— Marley é novo — disse Amelia. — Ele está com meu pai só faz dois anos.
— Seu pai sempre teve um motorista?
— Sim. Marley é guarda-costas também — Amelia disse casualmente, como se todos os pais tivessem um guarda-costas. Eles caminhavam pela calçada agora, nem mesmo olhando para as laterais cobertas com azevinho. Subindo os degraus de madeira. Atravessando a varanda. Batendo.
Pensei em todas as criaturas assustadoras que estiveram em minha casa: Lobisomens, metamorfos, vampiros, até mesmo um demônio ou dois. Por que devia me preocupar com esse homem? Endireitei as costas, acalmei meu cérebro ansioso e fui até a porta da frente, embora Amelia quase tenha me ultrapassado. Afinal, aquela era minha casa. Coloquei a mão na maçaneta, e tinha o sorriso pronto antes de abrir a porta.
— Por favor, entrem — falei, e Marley abriu a porta telada para o Sr. Carmichael, que entrou e abraçou a filha, não sem antes lançar outro olhar abrangente pela sala de estar. Ele era um transmissor tão claro quanto a filha.
Ele estava pensando que o lugar parecia simplório demais para a filha dele... Garota bonita com quem Amelia estava morando... Imaginou se Amelia estava fazendo sexo com ela... A garota provavelmente não era tão boa quanto devia... Sem antecedentes criminais, embora tenha saído com um vampiro e tivesse um irmão encrenqueiro...
Obviamente um homem rico e poderoso como Copley Carmichael teria a nova colega de quarto de sua filha investigada. Tal procedimento simplesmente nunca me ocorreu, como várias outras coisas que os ricos faziam. Respirei fundo.
— Sou Sookie Stackhouse — falei educadamente. — Você deve ser o Sr. Carmichael. E este é? — Depois de apertar a mão do Sr. Carmichael, eu estendi a minha para Marley.
Por um segundo, achei ter pegado o pai de Amelia desprevenido. Mas ele se recuperou em tempo recorde.
— Este é Tyrese Marley — disse o Sr. Carmichael tranquilamente.
O motorista apertou minha mão gentilmente, como se não quisesse quebrar meus ossos, e então assentiu para Amelia. — Srta. Amelia — disse, e ela pareceu zangada, como se estivesse prestes a dizer para tirar o “Srta.”, mas então reconsiderou. Todos esses pensamentos, batendo e voltando... Eram suficientes para me manter distraída.
Tyrese Marley era um afro-americano de pele muito, muito clara. Era longe de ser negro; sua pele era mais da cor de marfim antigo. Seus olhos eram castanhos luminosos. Embora o cabelo fosse preto, não era encaracolado, e possuía um tom avermelhado. Marley era um homem para quem sempre se olhava duas vezes.
— Vou levar o carro de volta à cidade para abastecer — ele disse para o chefe. — Enquanto o senhor passa o tempo com a Srta. Amelia. Quando quer que eu volte?
O Sr. Carmichael olhou para seu relógio. — Um par de horas.
— Você é bem-vindo para ficar para o jantar — respondi, usando um tom bem neutro. Queria que todos se sentissem confortáveis.
— Tenho algumas tarefas a cumprir — disse Tyrese Marley sem inflexão na voz. — Obrigado pelo convite. Vejo-os mais tarde.
E partiu. Okay, fim da minha tentativa de democracia.
Tyrese não podia saber o quanto eu preferia ir à cidade ao invés de ficar na casa. Recobrei o ânimo e comecei a agir como anfitriã.
— Posso lhe servir um copo de vinho, Sr. Carmichael, ou outra coisa para beber? E quanto a você, Amelia?
— Me chame de Cope — ele disse, sorrindo. Era parecido demais com o esgar de um tubarão para aquecer meu coração. — Claro. Um copo do que tiver para servir. Você, querida?
— Um pouco de vinho branco — ela respondeu, e a ouvi dizer ao pai para se sentar enquanto eu ia à cozinha.
Servi o vinho e acrescentei-o à bandeja de aperitivos: crackers, fatias de queijo Brie, geléia de damasco misturada com pimenta. Juntamos algumas faquinhas elegantes que pareciam talheres finos à bandeja, e Amelia arranjou guardanapos de coquetel para os drinques.
Cope possuía um bom apetite e apreciou o Brie. Provou o vinho, de uma marca do Arkansas, e assentiu educadamente. Bom, pelo menos, ele não cuspiu. Eu raramente bebo e não sou conhecedora de vinhos. De fato, não sou conhecedora de nada. Mas apreciei o vinho, gole por gole.
— Amelia, conte-me o que tem feito com seu tempo enquanto espera sua casa ser consertada — disse Cope, o que achei ser uma abertura razoável.
Eu começaria dizendo que ela não estava transando comigo, mas achei que seria um pouco direto demais. Tentei arduamente não ler seus pensamentos, mas eu juro, com ele e a filha na mesma sala, era como ouvir uma transmissão na TV.
— Trabalhei temporariamente para um dos agentes de seguro locais. E estou trabalhando meio período no Bar Merlotte’s — disse Amelia. — Sirvo drinques e uma cesta de frango ocasional.
— O serviço no bar é interessante? — Cope não soou sarcástico, eu lhe concedi isso. Mas, obviamente, tive certeza que ele pesquisou Sam também.
— Não é ruim — ela disse com um pequeno sorriso. Aquilo era um bocado de moderação para Amelia, então verifiquei seu cérebro para ver que ela se esforçava para ter uma conversa normal. — Eu ganho boas gorjetas.
O pai dela assentiu.
— E você, Srta. Stackhouse? — Cope indagou, polido.
Ele sabia tudo a meu respeito, exceto a cor do esmalte que eu estava usando, e com certeza acrescentaria aquilo ao meu arquivo se pudesse.
— Eu trabalho em tempo integral no Merlotte’s — respondi, como se ele não soubesse. — Estou lá há anos.
— Você tem familiares por perto?
— Oh, sim, moramos aqui há uma eternidade — falei. — Ou tão próximo de eternidade quanto os americanos conseguem. Mas nossa família diminuiu. Somos apenas meu irmão e eu agora.
— Irmão mais velho? Novo?
— Mais velho — respondi. — Casado, bem recentemente.
— Então talvez haja outros pequenos Stackhouses — ele disse, tentando soar como se achasse uma coisa boa.
Eu concordei como se a possibilidade me agradasse também. Eu não gostava muito da esposa de meu irmão, e achava inteiramente possível que quaisquer filhos que tivessem seriam extremamente mimados. De fato, havia um a caminho agora mesmo, se Crystal não abortasse de novo. Meu irmão era uma pantera (mordido, não nascido) e sua esposa nasceu pura... pantera, quero dizer. Ser criado na pequena comunidade de panteras de Hotshot não era algo fácil, e seria ainda mais difícil para crianças que não fossem puras.
— Pai, posso lhe servir mais vinho? — Amelia saiu da cadeira como um relâmpago, e correu para a cozinha com os copos de vinho pela metade. Ótimo, tempo sozinha com o pai de Amelia.
— Sookie — disse Cope — você tem sido muito gentil por deixar minha filha morar com você todo esse tempo.
— Amelia paga aluguel — respondi. — Ela compra metade dos mantimentos. Ela paga como pode.
— Contudo, eu gostaria que me deixasse lhe dar algo pelo incômodo.
— O que Amelia me dá de aluguel é suficiente. Afinal, ela pagou por algumas das melhorias na propriedade também.
Sua expressão se aguçou então, como se pressentisse algo grande. Ele achava que eu convenci Amelia a colocar uma piscina no quintal?
— Ela instalou um aparelho de ar-condicionado em seu quarto no andar de cima — respondi. — E arrumou uma linha extra de telefone para seu computador. E acho que também tem um tapete e algumas cortinas para o quarto dela.
— Ela vive no andar superior?
— Sim — falei, surpresa por ele de algum modo ainda não saber. Talvez houvesse algumas coisas que sua rede de inteligência não tinha desenterrado. — Eu vivo aqui embaixo, ela vive lá em cima e dividimos a cozinha e a sala de estar, embora eu ache que Amelia tenha uma TV lá em cima também. Ei, Amelia! — chamei.
— Sim? — Sua voz flutuou pelo corredor, vindo da cozinha.
— Você ainda tem aquela televisão pequena lá em cima?
— Sim, instalei a TV a cabo.
— Só me perguntando.
Sorri para Cope, indicando que a bola da conversa estava com ele. Ele estava pensando em várias perguntas para me fazer, e pensava na melhor forma de se aproximar para conseguir o máximo de informação. Um nome veio à superfície no redemoinho de pensamentos, e tive que me esforçar para manter uma expressão educada.
— A primeira inquilina que Amelia teve na casa em Chloe—ela era sua prima, certo? — disse Cope.
— Hadley. Sim. —Mantive o rosto calmo enquanto concordava. — Você a conheceu?
—Eu conheci o marido — ele respondeu, e sorriu.
EU SABIA QUE AMELIA TINHA RETORNADO e parado perto da poltrona onde o pai se sentava, e sabia que ela tinha congelado no lugar. Eu sabia que não respirei por um segundo.
— Nunca o conheci — respondi. Me senti como se tivesse caminhado numa selva e caído num fosso oculto. Com certeza estava feliz por ser a única telepata na casa. Eu não tinha contado a ninguém, ninguém mesmo, sobre o que encontrei no cofre de Hadley quando o esvaziei no dia em que fui ao banco em Nova Orleans. — Eles estavam divorciados a algum tempo, antes de Hadley falecer.
— Você devia arrumar tempo para conhecê-lo algum dia. É um homem interessante — disse Cope, como se não tivesse consciência de que estava jogando uma bomba em mim. É claro que estava esperando por minha reação. Ele esperara que eu não soubesse do casamento, que fosse pega completamente de surpresa. — Ele é um carpinteiro habilidoso. Adoraria encontrá-lo e contratá-lo novamente.
A poltrona onde ele estava sentado era estofada em tecido creme com pequenas flores azuis e caules verdes bordados. Ainda era bonita, apesar de apagada. Concentrei-me no padrão da poltrona para não mostrar a Copley Carmichael o quanto eu estava zangada.
— Ele não significa nada para mim, não importa o quanto seja interessante — respondi num tom de voz tão plano que podia jogar sinuca nele. — O casamento deles foi encerrado. Como eu tenho certeza que sabe, Hadley possuía outra parceria na época em que morreu. — Foi assassinada. Mas o governo não se dava ao trabalho de dar atenção a mortes de vampiros a não ser que fossem causadas por humanos. Vampiros faziam sua própria política.
— No entanto, achei que você gostaria de ver o bebê — disse Copley.
Graças a Deus peguei isso da cabeça de Copley um segundo ou dois antes de ele de fato dizer as palavras. Mesmo sabendo o que ele diria, senti essa afirmação “tão casual” me atingir como um soco no estômago. Mas eu não queria lhe dar a satisfação de deixá-lo ver isso.
— Minha prima Hadley era problemática. Ela usava drogas e pessoas. Não era a pessoa mais estável do mundo. Ela era realmente bonita, e tinha personalidade, então sempre teve admiradores. — Pronto, apontei todos os prós e contras a respeito de minha prima. E não disse a palavra “bebê”. Que bebê?
— Como sua família se sentiu quando ela se tornou vampira? — disse Cope.
A transformação de Hadley foi uma questão de registro público. Vampiros “convertidos” deviam se registrar quando entravam em condição alterada. Eles tinham que nomear seus criadores. Era uma espécie de controle de natalidade vampira do governo. Pode apostar que o Bureau de Assuntos Vampiros cairia como uma tonelada de tijolos em cima de um vampiro que fizesse vampirinhos demais. Hadley foi transformada pela própria Sophie-Anne Leclerq.
Amelia colocou o copo de vinho do pai ao alcance dele e voltou a se sentar no sofá ao meu lado.
— Pai, Hadley morou no andar acima do meu por dois anos. — disse. — É claro que sabíamos que ela era vampira. Pelo amor de Deus, achei que quisesse me dar notícias de casa.
Deus abençoe Amelia. Eu estava tendo dificuldades para me controlar e apenas anos de prática como telepata, ouvindo sem querer coisas terríveis, me mantinham no lugar.
— Preciso verificar a comida. Com licença — murmurei, me levantando e deixando a sala. Esperava não sair correndo. Tentei caminhar normalmente. Mas assim que cheguei à cozinha, continuei seguindo para a porta dos fundos e atravessei a varanda, saindo pela porta telada até o quintal.
Se eu esperava ouvir a voz fantasmagórica de Hadley me dizendo o que fazer, fiquei desapontada. Vampiros não deixam fantasmas para trás, pelo menos que eu saiba. Alguns vampiros acreditavam que não possuíam almas. Eu não sei. Isso é com Deus. E ali estava eu, balbuciando comigo mesma, porque não queria pensar no bebê de Hadley, no fato de que não sabia da criança. Talvez fosse apenas o jeito de Copley. Talvez ele sempre quisesse demonstrar a extensão de seu conhecimento, como forma de mostrar seu poder às pessoas com quem lidava.
Eu tinha que voltar lá pelo bem de Amelia. Recuperei-me, tornei a sorrir — embora soubesse que era o sorriso horripilante e nervoso—e voltei. Sentei-me ao lado de Amelia e sorri para ambos. Eles me fitaram em expectativa, e percebi que a conversa havia recuado.
— Oh — disse Cope, de repente. — Amelia, eu esqueci de contar. Alguém ligou para casa procurando por você na semana passada, alguém que eu não conheço.
— O nome?
— Oh, me deixe pensar. A Sra. Beech anotou. Ophelia? Octavia? Octavia Fant. É isso. Incomum. — Achei que Amelia fosse desmaiar. Ela ficou com uma cor estranha e agarrou-se ao braço do sofá.
— Tem certeza? — ela perguntou.
— Sim, tenho certeza. Dei o número de seu celular, e disse que você estava morando em Bon Temps.
— Obrigada, pai — Amelia grasnou. — Ah, aposto que o jantar está pronto; deixe-me verificar.
— Sookie não acabou de ir ver a comida? — Ele mostrava o largo sorriso tolerante que um homem usa quando acha que as mulheres estão sendo tolas.
— Oh, claro, mas está no estágio final — respondi enquanto Amelia se lançava para fora da sala tão rápido quanto eu fui antes. — Seria desastroso se queimasse. Amelia trabalhou tão duro.
— Você conhece essa Sra. Fant? — Cope indagou.
— Não, não posso dizer que conheça.
— Amelia pareceu quase assustada. Ninguém está tentando ferir minha garota, certo? — Ele foi um homem diferente quando disse isso, um de quem podia quase gostar. Não importa o que ele fosse, Cope não queria ninguém magoando sua filha. Isto é, ninguém exceto ele.
— Acho que não. — Eu sabia quem era Octavia Fant porque o cérebro de Amelia tinha acabado de me dizer, mas ela mesma não disse em voz alta, então não era algo que pudesse compartilhar. Às vezes, as coisas que eu ouvia em voz alta e as coisas que ouvia em minha cabeça tornavamse realmente emaranhadas e confusas — uma das razões pelas quais eu tinha a reputação de ser meio louca.
— O senhor é empreiteiro, Sr. Carmichael?
— Cope, por favor. Sim, entre outras coisas.
— Imagino que seus negócios estejam florescendo agora — falei.
— Se minha companhia fosse duas vezes maior, não conseguiríamos manter os serviços necessários — disse. — Mas eu detesto ver Nova Orleans toda destruída.
Estranhamente, eu acreditei nele.
O jantar transcorreu sem incidentes. Se o pai de Amelia ficou desconcertado por comer na cozinha, não deu sinais. Já que era um construtor, ele notou que a cozinha da casa era nova e eu tive que contar sobre o incêndio, mas aquilo podia ter acontecido com qualquer um, certo? Deixei de fora a parte sobre o incendiário.
Cope pareceu apreciar a comida e elogiou Amelia, que ficou bem satisfeita. Ele tomou outro copo de vinho com sua refeição, mas não mais do que isso, e comeu moderadamente também. Ele e Amelia conversaram sobre amigos da família e parentes, e eu fiquei pensando sossegada. Acreditem, eu tinha um bocado no que pensar.
A licença de casamento e os papéis de divórcio de Hadley estavam no cofre de seu banco quando abri, depois de sua morte. A caixa continha alguns objetos de família — fotografias, o obituário da mãe, algumas peças de joalheria. Também havia uma mecha fina de cabelos escuros e volumosos, preso com fita adesiva. Havia sido colocado num pequeno envelope. Imaginei quando notei o quanto o cabelo era fino. Mas não havia certidão de nascimento ou qualquer evidência de que Hadley tivesse concebido um bebê.
Até agora, eu não havia definido claramente uma razão para contatar o ex-marido de Hadley. Nem sabia que ele existia até abrir o cofre. Ele não foi mencionado no testamento dela. Eu nunca o encontrei. Ele não apareceu enquanto estive em Nova Orleans.
Por que ela não mencionou a criança no testamento? Certamente qualquer mãe ou pai faria isso. E embora tenha nomeado o Sr. Cataliades e eu como os executores conjuntos, ela não disse a nenhum dos dois — bom, ela não disse a mim — que renunciara aos direitos à criança, tampouco.
— Sookie, pode me passar a manteiga? — Amelia perguntou, e pude notar por seu tom que não era a primeira vez que falava comigo.
— Claro — falei. — Posso pegar mais água ou outro copo de vinho para um dos dois?
Ambos declinaram.
Após o jantar, eu me ofereci para lavar os pratos. Amelia aceitou a oferta depois de uma breve pausa. Ela e o pai tinham que ter algum tempo sozinhos, mesmo que Amelia não gostasse da perspectiva.
Lavei, enxuguei e guardei os pratos em relativa paz. Limpei o balcão, tirei a toalha da mesa e a enfiei na máquina de lavar na varanda dos fundos. Fui para o meu quarto e li por algum tempo, embora não entendesse o que acontecia na página. Finalmente, deixei o livro de lado e tirei uma caixa da gaveta de roupas íntimas. Aquela caixa continha tudo que recuperei do cofre de Hadley. Verifiquei o nome na certidão de casamento. Num impulso, liguei para o serviço de informações.
— Eu preciso do número de Remy Savoy — falei.
— Qual cidade?
— Nova Orleans.
— Esse número foi desconectado.
— Tente Metairie.
— Não, senhora.
— Está bem, obrigada.
Obviamente, muitas pessoas se mudaram desde o Katrina e muitas daquelas mudanças foram permanentes. As pessoas que fugiram do furacão não tiveram motivos para voltar, em muitos casos. Não havia onde morar e nem emprego para muitos deles.
Imaginei como encontraria o ex-marido de Hadley.
Uma solução bem indesejável brotou em minha cabeça. Bill Compton era um mago da computação. Talvez ele pudesse rastrear esse Remy Savoy, descobrir onde se encontrava agora e se a criança estava com ele. Experimentei a idéia na cabeça como um gole cheio de vinho duvidoso. Devido à conversa da noite anterior no casamento, eu não conseguia me imaginar aproximando-me de Bill para pedir um favor, embora fosse o homem certo para o trabalho.
Uma onda de saudade de Quinn quase me derrubou. Quinn era um homem astuto e experiente, e certamente teria um bom conselho para mim. Se eu o visse novamente. Me sacudi. Ouvi um carro entrando na área do estacionamento junto à calçada diante da casa. Tyrese Marley voltara por Cope. Endireitei as costas e deixei o quarto, com um firme sorriso fixo no rosto.
A porta da frente estava aberta, e Tyrese encontrava-se ali, preenchendo-a totalmente. Ele era um homem grande. Cope inclinava-se para dar um beijo no rosto da filha, que aceitou sem nenhum traço de sorriso. Bob o gato surgiu na porta e sentou-se ao lado dela. O gato fitou o pai de Amelia com olhos fixos enormes.
— Você tem um gato, Amelia? Achei que odiasse gatos.
Bob pousou o olhar sobre Amelia. Ninguém consegue encarar como um gato.
— Pai! Isso foi há anos atrás! Este é Bob. Ele é ótimo. — Amelia pegou o gato preto e branco e segurou-o junto ao peito. Bob pareceu presunçoso e começou a ronronar.
— Hmmm. Bom, eu telefono. Por favor, tome cuidado. Detesto pensar em você aqui do outro lado do estado.
— São apenas algumas horas de viagem — disse Amelia, soando como uma adolescente de dezessete anos.
— Verdade — ele disse, tentando soar pesaroso, mas simpático. Falhou por pouco. — Sookie, obrigado pela noite — ele respondeu por cima do ombro da filha.
Marley foi ao Merlotte’s para ver se conseguia descobrir mais informações a meu respeito, ouvi claramente em seu cérebro. Ele conseguiu dados interessantes. Conversou com Arlene, o que era ruim, e com nosso atual cozinheiro e seu assistente, o que era bom. Além de vários clientes do bar. Ele tinha um relatório bem variado a comunicar.
No momento em que o carro se afastou, Amelia desabou de alívio no sofá. — Graças a Deus ele se foi — disse. — Agora você percebe o que eu quis dizer?
— Sim — respondi. Sentei-me ao lado dela. — Ele é cheio de recursos, não?
— Sempre foi — ela disse. — Está tentando manter um relacionamento, mas nossas idéias não combinam.
— Seu pai ama você.
— Sim. Mas ele ama poder e controle também.
Aquilo era se expressar conservadoramente.
— E ele não sabe que você possui seu próprio tipo de poder.
— Não, não acredita nisso — disse Amelia. — Ele dirá que é um católico devoto, mas não é verdade.
— De certa forma, isso é bom — respondi. — Se acreditasse em seu poder de bruxa, ele tentaria obrigá-la a fazer todo tipo de coisas para ele.
Você não ia querer fazer algumas dessas coisas, eu aposto. — Eu podia ter mordido a língua, mas Amelia não ficou ofendida.
— Você está certa — ela disse. — Eu não ia querer ajudá-lo com suas ambições. Ele é capaz de fazer isso sem minha ajuda. Se simplesmente me deixar em paz, ficarei contente. Ele está sempre tentando melhorar minha vida, nos termos dele. Eu realmente estou bem.
— Quem era aquela que ligou para você em Nova Orleans? — Embora soubesse, eu tinha que fingir. — Fant era o nome dela?
Amelia estremeceu.
— Octavia Fant é minha conselheira — disse. — Ela é a razão de eu ter deixado Nova Orleans. Imaginei que meu clã faria algo terrível comigo quando descobrissem sobre Bob. Ela é a líder de meu clã. Ou do que restou dele. Se algo restou.
— Opa.
— É sem brincadeira. Eu vou ter que pagar o preço agora.
— Você acha que ela virá para cá?
— Simplesmente estou surpresa por ela já não ter aparecido.
Apesar do medo explícito, Amelia andou preocupada com o bemestar de sua conselheira após o Katrina. Ela fizera um enorme esforço para encontrar a mulher, embora não quisesse que Octavia a encontrasse.
Amelia temia ser descoberta, especialmente com Bob ainda na forma de gato. Ela me contou que seu interesse por magia de transformação seria considerado ainda mais condenável porque ela ainda era uma interna, ou algo do gênero... Um degrau acima de noviça. Amelia não discutia a hierarquia das bruxas.
— Você não está pensando em dizer ao seu pai para não revelar sua localização?
— Fazer isso o deixaria tão curioso que ele teria arruinado minha vida toda para descobrir por que eu pedi. Eu nunca achei que Octavia ligaria para ele, já que sabe como me sinto a respeito dele.
Que era, para dizer o mínimo, conflituoso.
— Tem algo que esqueci de lhe dizer — Amelia disse abruptamente. — Falando em telefonemas, Eric ligou.
— Quando?
— Ah, ontem à noite. Antes de você chegar em casa. Você estava tão cheia de novidades quando chegou, que eu simplesmente esqueci de contar. Além disso, você disse que ia ligar para ele de qualquer forma. E eu realmente estava aborrecida com a chegada do meu pai. Sinto muito, Sookie. Prometo que anoto da próxima vez.
Essa não era a primeira vez que Amelia se esquecia de me contar que alguém ligou. Não fiquei satisfeita, mas eram águas passadas, e nosso dia já tinha sido suficientemente estressante. Eu esperava que Eric tivesse notícias sobre o dinheiro que a rainha me devia por serviços prestados em Rhodes. Ainda não tinha recebido o cheque, e eu detestava incomodar a rainha desde que ela foi ferida tão gravemente. Peguei o telefone em meu quarto para ligar para o Fangtasia, que estava funcionando a pleno vapor. O clube ficava aberto todas as noites, exceto segunda-feira.
— Fangtasia, o bar com a mordida — disse Clancy.
Oh, ótimo. Meu vampiro menos favorito. Formulei meu pedido cuidadosamente.
— Clancy, é Sookie. Eric me pediu para retornar sua ligação.
Houve um momento de silêncio. Eu estava disposta a apostar que Clancy tentava imaginar um modo de bloquear meu acesso a Eric. Ele decidiu que não poderia.
— Um momento — disse. Uma breve pausa enquanto eu ouvia “Strangers In The Night.” Então Eric atendeu o telefone.
— Alô? — ele disse.
— Desculpe não ter ligado antes. Acabei de receber seu recado. Você ligou a respeito do meu dinheiro?
Um momento de silêncio.
— Não, é por uma razão totalmente diferente. Você sairá comigo amanhã à noite?
Olhei para o telefone. Não conseguia arranjar um pensamento coerente. Finalmente, respondi: — Eric, estou saindo com Quinn.
— E há quanto tempo você não o vê?
— Desde Rhodes.
— Há quanto tempo você não ouve falar dele?
— Desde Rhodes. — Minha voz estava inexpressiva. Eu não queria falar com Eric sobre isso, mas nós tínhamos compartilhado sangue com freqüência suficiente para ter um laço mais forte do que eu gostaria. De fato, eu odiava nosso vínculo, algo que fomos obrigados a forjar. Mas quando ouvia sua voz, eu me sentia contente. Quando estava com ele, me sentia bonita e feliz. E não havia nada que eu pudesse fazer a respeito.
— Acho que você pode me dar uma noite — Eric disse. — Não parece que Quinn tem um compromisso agendado com você.
— Isso foi mesquinho.
— Quinn é quem está sendo cruel, prometendo estar aqui e então não mantendo a palavra. — Havia um elemento sombrio na voz de Eric, um tom raivoso.
— Você sabe o que aconteceu com ele? — perguntei. — Sabe onde ele está?
Houve um silêncio significativo.
— Não — Eric respondeu muito gentilmente. — Eu não sei. Mas tem alguém na cidade que quer conhecê-la. Prometi que arranjaria o encontro. Gostaria de levá-la pessoalmente à Shreveport.
Então aquele não era um encontro de namorados.
— Você quer dizer aquele sujeito Jonathan? Ele veio ao casamento e se apresentou. Tenho que dizer, eu não dou a mínima para o cara. Sem ofensa, se ele é amigo seu.
— Jonathan? Que Jonathan?
— Estou falando do sujeito asiático: talvez seja tailandês? Ele esteve no casamento dos Bellefleur na noite passada. Disse que queria me ver porque estava de passagem por Shreveport e ouviu falar a meu respeito. Ele disse que se apresentou a você, como um bom vampirinho visitante.
— Eu não o conheço — disse Eric. Sua voz soou ainda mais aguda. — Vou perguntar aqui no Fangtasia para ver se alguém o viu. E avisarei a rainha sobre seu dinheiro, embora ela... não esteja normal. Agora, por favor, você fará o que eu lhe pedi?
Fiz uma careta ao telefone.
— Acho que sim — respondi. — Quem eu vou conhecer? E onde?
— Deixarei o “quem” permanecer um mistério — disse Eric. — uanto ao “onde”, iremos jantar num restaurante elegante. O tipo de lugar que sugere traje passeio.
— Você não come. O que vai fazer?
— Vou apresentá-la e ficarei no caso de você precisar de mim.
Um restaurante movimentado devia ser seguro.
— Está bem — falei, não muito graciosamente. — Sairei do trabalho lá pelas seis, ou seis e meia.
— Eu chego para pegá-la às sete.
— Venha às sete e meia. Preciso me trocar. — Eu sabia que parecia rabugenta, e era exatamente como me sentia. Detestava o grande mistério por trás do encontro.
— Você se sentirá melhor quando me vir — ele disse. Droga, ele estava absolutamente certo.
VERIFIQUEI A PALAVRA DO DIA em meu calendário enquanto esperava a chapa do alisador de cabelo esquentar. “Andrógino”. Huh.
Já que eu não sabia qual era o restaurante em que iríamos e nem quem encontraríamos lá, escolhi minha opção mais confortável e vesti uma camisa de seda azul-clara que Amelia disse ser muito grande para ela, e calças e sapatos pretos. Eu não uso muitas jóias, então uma corrente e pequenos brincos de ouro serviram como enfeites. Tive um dia difícil no trabalho, mas estava bem curiosa sobre a noite adiante para me sentir cansada.
Eric foi pontual e eu senti (surpresa) uma torrente de prazer quando o vi. Não acho que isso se devia inteiramente ao vínculo de sangue entre nós. Acho que qualquer mulher heterossexual sentiria uma onda de prazer ao avistar Eric. Ele era um homem alto e deve ter sido visto como um gigante em sua época. Ele foi feito para brandir uma espada pesada e cortar seus inimigos. Os cabelos louro-dourados de Eric cobriam a testa orgulhosa como a juba de um leão. Não havia nada andrógino a respeito de Eric, nada etereamente belo tampouco. Ele era todo masculino.
Eric inclinou-se para beijar minha bochecha. Senti-me aquecida e segura. Esse era o efeito que Eric tinha em mim agora que compartilhamos sangue mais do que três vezes. A troca de sangue não foi por prazer, mas uma necessidade—pelo menos, foi o que achei—toda vez, mas o preço a pagar foi exorbitante. Estávamos atados agora, e quando ele estava por perto, eu ficava absurdamente feliz. Tentei apreciar a sensação, mas saber que não era completamente natural tornava aquilo difícil.
Já que Eric veio em seu Corvette, fiquei duplamente feliz por estar usando calças. Entrar e sair de um Corvette sem passar vergonha seria um procedimento bem difícil se estivesse usando um vestido. Bati um papo leve a caminho de Shreveport, mas Eric estava estranhamente quieto.
Tentei questioná-lo sobre Jonathan, o vampiro misterioso no casamento, mas Eric disse: — Conversaremos a respeito depois. Você não o viu novamente, viu?
— Não — respondi. — Eu devia?
Eric sacudiu a cabeça. Houve uma pausa desconfortável. Pelo modo como ele apertava o volante, pude notar que Eric estava se preparando para me dizer algo que não queria.
— Estou feliz por você que Andre aparentemente não tenha sobrevivido à explosão — ele disse.
A querida criança da rainha, Andre, havia morrido na explosão em Rhodes. Mas não foi a bomba que o matou. Quinn e eu sabíamos o motivo: uma grande estaca de madeira que Quinn enfiou no coração de Andre enquanto o vampiro jazia incapacitado. Quinn matara Andre por mim, porque sabia que Andre tinha planos que me deixavam doente de medo.
— Tenho certeza que a rainha sentirá falta dele — falei cuidadosamente.
Eric me lançou um olhar oblíquo.
— A rainha está perturbada — ele disse. — E sua recuperação levará mais alguns meses. O que eu estava começando a dizer... — Sua voz se interrompeu.
Isso não era típico de Eric.
— O quê? — indaguei.
— Você salvou minha vida — disse. Voltei-me para fitá-lo, mas ele olhava direto para a estrada adiante. — Você salvou minha vida e de Pam também.
Mudei de posição desconfortavelmente. — Sim, bem. — Srta. Articulada. O silêncio se prolongou até que senti que tinha que dizer algo. — Nós temos esse laço de sangue.
Eric não respondeu por um longo tempo.
— Não foi por isso que você veio me acordar, em primeiro lugar, no dia em que o hotel explodiu — ele disse. — Mas não vamos falar a respeito disso agora. Você tem uma grande noite pela frente.
Sim, chefe, respondi rispidamente, mas só para mim.
Estávamos numa parte de Shreveport que eu não conhecia muito bem. Definitivamente ficava longe da área principal de compras, com a qual eu estava ligeiramente familiarizada. Nos encontrávamos numa vizinhança onde as casas eram grandes e os gramados bem cuidados. As lojas eram pequenas e caras... o que os varejistas chamavam de “butiques”. Estacionamos diante de um grupo de lojas assim. Eram organizadas num formato em L, e o restaurante ficava no fim do L. Era chamado Les Deux Poissons. Havia talvez uns oito carros estacionados ali, e cada um representava minha renda anual. Olhei para minhas roupas, de repente me sentindo preocupada.
— Não se preocupe você está linda — disse Eric em voz baixa. Ele inclinou-se para soltar meu cinto de segurança (para meu espanto) e me beijou novamente ao se endireitar, dessa vez na boca. Os brilhantes olhos azuis faiscavam no rosto branco. Era como se uma história inteira estivesse na ponta de sua língua. Mas então ele a engoliu e saiu do carro para dar a volta e abrir minha porta. Talvez o laço de sangue não afetasse apenas a mim, hein?
Pela tensão dele, percebi que algum grande evento estava se aproximando rápido, e comecei a ficar com medo. Eric pegou minha mão enquanto caminhávamos na direção do restaurante, acariciando distraidamente com o polegar a palma de minha mão. Fiquei surpresa ao descobrir que havia uma linha direta de minha palma até minha, minha feminilidade.
Entramos no vestíbulo, onde havia uma pequena fonte e uma tela que bloqueava a vista das mesas. A mulher parada na recepção era negra e linda, com cabelos cortados rentes ao crânio. Ela usava um vestido drapeado laranja e marrom, e os saltos mais altos que eu já vi. Ela podia muito bem estar usando “sand{lias de dedo”. Olhei-a de perto, experimentei a assinatura de seu cérebro e descobri que era humana. Ela sorriu radiante para Eric e teve o bom senso de me dar parte daquele sorriso.
— Mesa para dois? — ela disse.
— Viemos encontrar alguém — disse Eric.
— Oh, o cavalheiro...
— Sim.
— Por aqui, por favor. — Substituindo o sorriso por um olhar quase invejoso, ela se virou e caminhou graciosamente até os fundos do restaurante. Eric gesticulou para que eu a seguisse. O interior era escuro e velas brilhavam sobre as mesas, que estavam cobertas com toalhas brancas como neve e guardanapos dobrados elegantemente.
Meus olhos estavam nas costas da recepcionista, então quando ela parou, eu não reconheci imediatamente que parou diante da mesa onde íamos nos sentar. Ela deu um passo para o lado. Sentado de frente para mim, se encontrava o homem adorável que esteve no casamento duas noites atrás.
A recepcionista girou nos saltos altos, tocou as costas da cadeira à direita do homem para indicar que eu devia me sentar ali, e disse que o garçom nos atenderia em seguida. O homem levantou-se para puxar minha cadeira e segurou-a para mim. Fitei Eric. Ele me deu um aceno tranqüilizador. Deslizei para a cadeira e o homem a empurrou para frente numa sincronia perfeita.
Eric não se sentou. Eu queria que explicasse o que estava acontecendo, mas ele não falou. Ele parecia quase triste.
O belo homem olhava para mim atentamente.
— Criança — ele disse para chamar minha atenção. Então empurrou para trás os cabelos dourados longos e finos. Nenhum dos outros clientes podia ver o que ele me mostrava.
Sua orelha era pontuda. Ele era uma fada.
Eu conheci outras duas fadas. Mas elas evitavam vampiros a todo custo, porque o cheiro de fada era intoxicante para um vampiro, como mel para um urso. De acordo com um vampiro que foi particularmente dotado com sentido de olfato, eu tinha um traço de sangue de fada.
— Okay — falei para deixá-lo saber que as orelhas foram registradas.
— Sookie, este é Niall Brigant — disse Eric. Ele pronunciou “Nyeall”. — Ele conversará com você durante o jantar. Estarei lá fora se precisar de mim. — Ele inclinou rigidamente a cabeça para o elfo e então se foi.
Observei Eric se afastar, e fui dominada por uma torrente de ansiedade. Então senti uma mão sobre a minha. Voltei-me para encontrar os olhos do fada.
— Como ele disse, meu nome é Niall. — Sua voz era suave, assexuada, ressonante. Seus olhos eram do verde mais escuro que se possa imaginar. Sob a luz trêmula das velas, a cor mal importava — era a profundidade que se percebia. A mão sobre a minha era tão leve quanto uma pluma, mas muito calorosa.
— Quem é você? — perguntei, e não estava pedindo que repetisse o nome.
— Sou seu bisavô — disse Niall Brigant.
— Oh, merda — falei, e cobri a boca com a mão. — Desculpe, eu só... — sacudi a cabeça. — Vovô? — disse, experimentando a idéia. Niall Brigant estremeceu delicadamente. Num homem de verdade, o gesto teria parecido efeminado, mas não em Niall.
Muitas crianças em nossa localidade rural chamavam seus avôs de “Vô”. Eu adoraria ver sua reação a isso. A idéia me ajudou a recuperar a razão.
— Por favor, explique — pedi muito educadamente. O garçom veio atender nossos pedidos de bebidas e recitar os especiais do dia. Niall pediu uma garrafa de vinho e disse que teríamos o salmão. Ele não me consultou. Mandão.
O rapaz assentiu vigorosamente.
— Ótima escolha — disse. Ele era um Lobi e, embora esperasse sua curiosidade em relação à Niall (afinal não era um ser sobrenatural que se encontrava com freqüência), eu pareci ser mais interessante para ele. Atribui isso à juventude do garçom e aos meus peitos.
Veja, ali estava a estranheza de se conhecer o meu assim proclamado parente: eu nunca duvidei de sua sinceridade. Este era meu verdadeiro bisavô, e o conhecimento simplesmente se encaixou como um quebra-cabeça.
— Eu contarei tudo — disse Niall. Muito lentamente, informando sua intenção, ele inclinou-se para beijar minha bochecha. Seus olhos e boca enrugaram-se enquanto os músculos faciais se moviam para formular o beijo. A fina teia de rugas não depreciava de modo algum sua beleza; ele era como seda muito antiga ou uma pintura desgastada de um antigo mestre.
Essa era uma grande noite para ser beijada.
— Quando ainda era jovem, talvez quinhentos ou seiscentos anos atrás, eu costumava vagar entre os humanos — disse Niall. — E de vez em quando, tendo uma natureza masculina, eu via uma mulher humana que achava atraente.
Olhei ao redor para não ficar encarando o tempo todo, e notei uma coisa estranha: ninguém olhava para nós, exceto nosso garçom. Quero dizer, nem mesmo um olhar casual se desviava em nossa direção. E nenhum cérebro humano no salão nem mesmo registrava nossa presença. Meu bisavô parou enquanto eu fazia isso e recomeçou a falar quando terminei de avaliar a situação.
— Eu vi uma mulher na floresta, certo dia, e seu nome era Einin. Ela achou que eu fosse um anjo. — Ele ficou quieto por um momento. — Ela era deliciosa — disse. — Era exuberante, alegre e simples. — Os olhos de Niall estavam fixos em meu rosto. Imaginei se ele achava que eu era como Einin: simples. — Eu era jovem suficiente para me apaixonar, para ser capaz de ignorar o inevitável fim de nossa ligação enquanto ela envelhecia e eu não. Mas Einin ficou grávida, o que foi um choque. Fadas e humanos não procriam com freqüência. Einin deu à luz a gêmeos, o que é bem comum entre os fae. Einin e os dois garotos sobreviveram ao parto, algo longe de ser garantido naquela época. Ela chamou nosso filho mais velho de Fintan. O segundo foi Dermot.
O garçom trouxe nosso vinho e eu fui libertada do encanto que a voz de Niall produzia em mim. Era como se estivéssemos sentados num acampamento na floresta, ouvindo uma lenda antiga e então bam! Estávamos num restaurante moderno em Shreveport, Louisiana, e havia outras pessoas ao redor que não tinham idéia do que estava acontecendo. Eu automaticamente levantei o copo e provei o vinho. Senti-me compelida.
— Fintan, metade Fada foi seu avô paterno, Sookie — disse Niall.
— Não. Eu sei quem foi meu avô. — Minha voz tremia um pouco, notei, mas ainda era bem baixa. — Meu avô foi Mitchell Stackhouse e ele se casou com Adele Hale. Meu pai foi Corbett Hale Stackhouse, e ele e minha mãe morreram numa enchente quando eu era garotinha. Então fui criada por minha avó, Adele. — Embora lembrasse do vampiro no Mississippi que me contou ter detectado um traço de sangue de fada em minhas veias e acreditasse que este era meu bisavô, eu simplesmente não conseguia ajustar a imagem interna de minha família.
— Como era sua avó? — Niall perguntou.
— Ela me criou quando não tinha que fazer isso — respondi. — Ela levou a mim e Jason para casa e trabalhou duro para nos criar direito. Aprendemos tudo com ela. Ela nos amava. Ela mesma teve dois filhos e enterrou ambos, e aquilo devia tê-la quase matado, mas ainda assim foi forte por nós.
— Ela era linda quando jovem — Niall disse. Os olhos verdes perscrutaram meu rosto como se tentassem encontrar algum traço daquela beleza na bisneta.
— Acho que sim — respondi incerta. Não se pensa na avó em termos de beleza, pelo menos no modo normal das coisas.
— Eu a vi depois que Fintan a deixou grávida — disse Niall. — Ela era adorável. O marido dela contou que não podia lhe dar filhos. Ele teve caxumba na época errada. É uma doença, não? — Eu concordei. — Ela conheceu Fintan um dia quando estava batendo um tapete no varal, nos fundos da casa onde você vive agora. Ele pediu um copo de água. Ele foi fisgado na hora. Ela queria filhos desesperadamente, e ele prometeu que os daria.
— Você disse que fadas e pessoas geralmente não são férteis quando reproduzem.
— Mas Fintan era apenas metade fada. E ele já sabia que era capaz de dar filhos a uma mulher — A boca de Niall se retorceu. — A primeira mulher que ele amou morreu durante o parto, mas sua avó e o filho foram mais afortunados, e então dois anos depois ela conseguiu levar a gravidez da filha de Fintan até o fim.
— Ele a estuprou — falei, quase desejando que fosse assim. Minha avó foi a mulher mais fiel que já conheci. Eu não conseguia imaginá-la enganando ninguém por nada em particular, desde que prometeu na frente de Deus ser fiel ao meu avô.
— Não, ele não o fez. Ela queria filhos, embora não quisesse ser infiel ao marido. Fintan não se importava com os sentimentos dos outros, e a queria desesperadamente — disse Niall. — Mas ele nunca foi violento. Ele nunca a teria violentado. Contudo, meu filho podia convencer uma mulher a fazer qualquer coisa, até algo contra seu julgamento moral... e se ela era linda, ele também foi.
Tentei ver a mulher que ela deve ter sido na avó que eu conheci. E simplesmente não consegui.
— Como era seu pai, meu neto? — Niall perguntou.
— Ele era um sujeito bonito — falei. — Trabalhava duro. Era um bom pai.
Niall sorriu de leve.
— Como sua mãe se sentia sobre ele? — Aquela pergunta interrompeu bruscamente as memórias calorosas de meu pai.
— Ela, hã, ela realmente era devotada a ele. — Talvez à custa dos próprios filhos.
— Ela era obcecada? — A voz de Niall era imparcial, porém certeira, como se soubesse minha resposta.
— Realmente possessiva — admiti. — Embora tivesse apenas sete anos quando eles morreram, até eu percebia isso. Acho que pensei que fosse normal. Ela realmente queria dar a ele toda a atenção. Às vezes, Jason e eu ficávamos no caminho. E eu recordo que ela era de fato ciumenta. — Tentei parecer divertida, como se minha mãe ter tanto ciúme de meu pai fosse um desvio charmoso.
— Era a fada nele que tornava a posse dela tão forte — disse Niall. — Afeta alguns humanos desse modo. Ela viu o sobrenatural nele e isso a cativou. Diga-me, ela foi uma boa mãe?
— Ela tentou muito. — sussurrei.
Ela tentara. Minha mãe soube como ser uma boa mãe teoricamente. Ela sabia como uma boa mãe agia com os filhos. Ela se forçou a dar todos os passos. Mas todo o seu verdadeiro amor foi guardado para meu pai, que ficava desconcertado pela intensidade daquela paixão. Eu percebia isso agora, como adulta. Como criança, fiquei confusa e magoada.
O Lobi ruivo trouxe nossa salada e colocou-a diante de nós. Ele queria nos perguntar se desejávamos mais alguma coisa, mas estava com muito medo. Ele percebera a atmosfera na mesa.
— Por que decidiu vir me conhecer agora? — perguntei. — Há quanto tempo sabia a meu respeito? — Coloquei meu guardanapo no colo e fiquei segurando o garfo. Eu devia provar a comida. Desperdiçar não era parte do modo como fui educada. Por minha avó. Que teve sexo com um metade-fada (que perambulava pelo quintal como um cachorro vira-lata). Sexo suficiente por tempo suficiente para produzir dois filhos.
— Eu soube de sua família durante os últimos sessenta anos, mais ou menos. Mas meu filho, Fintan, proibiu-me de ver qualquer um de vocês. — Cuidadosamente, ele levou à boca um pedaço de tomate, manteve-o ali, pensou a respeito e mastigou. Ele comia do modo como eu faria se estivesse visitando um restaurante indiano ou nicaragüense.
— O que mudou? — falei, mas logo entendi. — Então seu filho agora está morto.
— Sim — ele disse, e largou o garfo. — Fintan está morto. Afinal, ele era meio humano. E viveu por setecentos anos.
Eu devia ter uma opinião a respeito? Sentia-me tão entorpecida, como se Niall tivesse injetado novocaína em meu centro emocional. Eu provavelmente devia perguntar como meu — meu avô morreu, mas não consegui me forçar a fazê-lo.
— Então você decidiu vir me contar a respeito — por quê? — Fiquei orgulhosa do quanto soei calma.
— Sou velho, mesmo para minha espécie. Eu gostaria de conhecê-la. Não posso compensá-la pela forma como sua vida foi moldada pela herança que Fintan lhe deu. Mas tentarei tornar sua vida um pouco mais fácil, se você me permitir.
— Pode levar minha telepatia embora? — perguntei. Uma esperança selvagem, combinada ao medo, ardeu em mim como o sol.
— Você está me perguntando se posso remover algo que está nas fibras de seu ser — disse Niall. — Não, não posso fazer isso.
Afundei na cadeira. — Pensei em perguntar — respondi, lutando contra as lágrimas. — Eu ganho três desejos ou isso é com os gênios?
Niall me fitou sem humor.
— Você não iria querer conhecer um gênio — disse. — E eu não sou objeto de diversão. Sou um príncipe.
— Desculpe — falei. — Estou tendo um pouco de problema para lidar com tudo isso... Bisavô. — Eu não lembrava dos meus bisavôs humanos. Meus avós — okay, acho que um deles não foi meu avô de verdade — não pareceram ou agiram nem um pouco como essa bela criatura. Meu avô Stackhouse morreu dezesseis anos atrás, e os pais de minha mãe morreram antes de minha adolescência. Então conheci minha avó Adele muito melhor do que qualquer um dos outros, mais até do que conheci meus verdadeiros pais.
— Ei — falei. — Como Eric me trouxe até você? Você é uma fada afinal. Vampiros ficam malucos quando sentem o cheiro de fadas.
De fato, a maioria dos vampiros perdia o autocontrole quando ficavam perto de fadas. Apenas um vampiro muito disciplinado conseguia se comportar quando uma fada ficava a uma distância onde se podia sentir o odor. Minha fada-madrinha, Claudine, ficava aterrorizada de estar perto de qualquer sanguessuga.
— Eu posso reprimir minha essência — disse Niall. — Eles podem me ver, mas não sentir meu cheiro. É uma magia conveniente. Posso evitar que humanos me notem também, como você observou.
O modo como disse isto me fez perceber que ele não apenas era muito velho e poderoso, mas também muito orgulhoso.
— Você enviou Claudine para mim? — perguntei.
— Sim. Espero que ela tenha sido útil. Somente pessoas com sangue parte fae podem ter tal relacionamento com uma fada. Eu sabia que você precisaria dela.
— Oh, sim, ela salvou minha vida — falei. — Ela tem sido maravilhosa. — Ela até mesmo me levou para fazer compras. — Todas as fadas são tão gentis quanto Claudine, ou belos como o irmão?
Claude, um stripper masculino e agora empresário, era tão bonito quanto um homem podia ser e possuía a personalidade de um nabo egocêntrico.
— Querida — disse Niall — todos nós somos belos para os humanos; mas algumas fadas são de fato muito ruins.
Okay, lá vinha a parte desagradável. Tive a forte sensação de que descobrir que tinha um bisavô com puro sangue de fada devia ser uma boa notícia, do ponto de vista de Niall — mas isso não era um total refresco. Agora eu teria as más notícias.
— Você seguiu muitos anos sem ser descoberta — disse Niall — em parte porque era o que Fintan queria.
— Mas ele me vigiou? — Eu quase senti um calor no coração ao ouvir aquilo.
— Meu filho sentiu remorso por condenar duas crianças à existência entre dois mundos que ele experimentou como fada que não era realmente uma fada. Receio que os outros de nossa raça não tenham sido gentis com ele. — O olhar de meu bisavô era firme. — Eu fiz meu melhor para defendê-lo, mas não foi suficiente. Fintan também descobriu que não era humano suficiente para se passar por um, pelo menos não mais do que por um curto período de tempo.
— Você não tem essa aparência normalmente? — perguntei, muito curiosa.
— Não. — E apenas por um segundo, vi uma luz quase ofuscante, com Niall bem no meio, belo e perfeito. Não era de se admirar que Einin tenha pensado que ele era um anjo.
— Claudine disse que estava trabalhando para ser promovida — falei. — O que isso significa? — Eu estava atrapalhada com aquela conversa. Sentia-me nocauteada com toda aquela informação e estava lutando para me levantar emocionalmente. Não estava tendo um momento bem sucedido.
— Ela não devia ter lhe contado isso — disse Niall. Ele debateu consigo mesmo por um segundo ou dois antes de continuar. — Metamorfos são humanos com uma distorção genética, vampiros são humanos mortos transformados em algo diferente, mas os fae possuem somente uma forma básica em comum com os humanos. Existem muitos tipos de fae — do grotesco, como duendes, até os belos, como nós. — Ele disse isso quase inconscientemente.
— Anjos existem?
— Anjos são outras formas que passaram por uma transformação quase completa, física e moral. Pode levar centenas de anos para se tornar um anjo.
Pobre Claudine.
— Mas já chega disso — disse Niall. — Eu quero saber sobre você. Meu filho me manteve afastado de seu pai e sua tia, e então dos filhos deles. Sua morte veio tarde demais para que eu conhecesse sua prima Hadley. Mas agora eu posso vê-la e tocá-la. — O que, a propósito, Niall estava fazendo de um modo que não era exatamente humano: se sua mão não segurava a minha, estava posicionada contra meu ombro ou minhas costas. Esse não era exatamente o modo como humanos se relacionavam, mas não estava me ferindo. Eu não estava tão assustada como poderia ter ficado, já que notei que Claudine era muito afetuosa também. Desde que não conseguia pegar vibrações telepáticas de fadas, esse contato era tolerável. Com um ser humano normal, eu seria bombardeada com pensamentos, já que o toque aumentava minha sensibilidade ao contato telepático.
— Fintan teve outros filhos ou netos? — perguntei. Seria bom ter outros familiares.
— Falaremos disso mais tarde — respondeu Niall, o que ocasionou de imediato um alerta vermelho. — Agora que me conhece um pouco — disse — por favor, diga-me o que posso fazer por você.
— Por que você devia fazer algo por mim? — falei. Tivemos a conversa sobre gênios. Eu não ia recapitular aquilo.
— Percebo que sua vida tem sido difícil. Agora que tenho permissão para vê-la, deixe-me ajudá-la de algum modo.
— Você me mandou Claudine. Ela tem sido de grande ajuda — repeti. Sem o apoio de meu sexto sentido, eu estava tendo problemas para compreender o estado emocional e mental de meu bisavô. Ele estava sofrendo por seu filho? Como foi realmente o relacionamento deles? Fintan achou que estava fazendo um bom negócio ao manter seu pai afastado dos Stackhouses durante todos esses anos? Niall era mal ou possuía más intenções com relação a mim? Ele podia ter feito algo terrível sem precisar se dar ao trabalho de me conhecer e pagar por um jantar caro.
— Você por acaso não quer explicar mais nada, não?
Niall sacudiu a cabeça, os cabelos roçando seus ombros como madeixas de ouro e prata tecidas com incrível delicadeza.
Eu tive uma idéia. — Você pode encontrar meu namorado? — perguntei esperançosa.
— Você tem um homem? Além do vampiro?
— Eric não é meu homem, mas já que tive o sangue dele algumas vezes, e ele teve o meu...
— Foi por isso que me aproximei de você através dele. Vocês possuem um vínculo.
— Sim.
— Eu conheço Eric Northman há muito tempo. Achei que você viria se ele lhe pedisse. Cometi um erro?
Fiquei surpresa com a questão. — Não, senhor — falei. — Não acho que teria vindo se ele não tivesse dito que estava tudo bem. Ele não teria me trazido se não confiasse em você... pelo menos, eu acho que não.
— Você quer que eu o mate? Encerre o vínculo?
— Não! — respondi, ficando meio exaltada de um jeito errado. —
Não!
De fato, algumas pessoas olharam para nós pela primeira vez, ouvindo minha agitação, apesar da influência de meu bisavô para não olharem.
— O outro namorado — disse Niall, provando outro pedaço de salmão. — Quem é ele e quando desapareceu?
— Quinn, o tigre — falei. — Ele se foi desde a explosão em Rhodes. Foi ferido, mas eu o vi depois disso.
— Ouvi falar sobre a Pirâmide — disse Niall. — Você esteve lá?
Eu lhe contei a respeito e meu recém-descoberto bisavô ouviu com uma reconfortante falta de julgamento. Ele não se mostrou horrorizado nem consternado, e não sentiu pena de mim. Eu realmente gostei disso.
Enquanto falava, eu tive a chance de reorganizar minhas emoções. — Quer saber? — falei, quando houve uma pausa natural. — Não procure por Quinn. Ele sabe onde eu estou e tem meu número. — De mais de um jeito, pensei amarga. — Ele vai aparecer quando sentir vontade, eu acho. Ou não.
— Mas isso me deixa sem nada para fazer por você como um presente — disse meu bisavô.
— Apenas me dê um cheque em branco — respondi sorrindo, e então tive que explicar o termo. — Algo vai aparecer. Eu... posso falar a seu respeito? Para os meus amigos? — perguntei. — Não, acho que não. — Eu não conseguia me imaginar contando a minha amiga Tara que eu tinha um novo bisavô que era uma fada. Amelia seria mais compreensiva.
— Eu quero manter nosso relacionamento em segredo — ele disse. — Estou tão feliz por finalmente encontrá-la, e quero conhecê-la melhor. — Ele pousou a mão sobre minha bochecha. — Mas tenho inimigos poderosos e não ia querer que eles a ferissem para chegar até mim.
Eu assenti. Compreendia. Mas era meio decepcionante ter um novo parente e ser proibida de falar a respeito dele. A mão de Niall deixou minha bochecha para deslizar sobre minha mão.
— E quanto a Jason? — perguntei. — Você vai falar com ele também?
— Jason — ele disse com o rosto mostrando desagrado. — De algum modo, a fagulha essencial não o envolveu. Sei que ele é feito do mesmo material que você, mas o sangue nele só se mostrou em sua habilidade para atrair amantes, o que afinal não é muito recomendado. Ele não compreenderia ou apreciaria nossa conexão.
Bisavô soou bem aborrecido ao dizer isso. Comecei a dizer algo em defesa de Jason, mas então fechei a boca. Tive que admitir bem lá no fundo que Niall estava quase certo. Jason seria cheio de exigências e falaria.
— Com que freqüência você estará por perto? — falei, esforçandome para soar despreocupada. Sabia que estava me expressando desajeitadamente, mas não sabia mais como estabelecer alguma base para este novo e delicado relacionamento.
— Tentarei visitá-la como qualquer outro parente faria — ele disse.
Tentei muito visualizar isso. Niall e eu comendo no Hamburger Palace? Compartilhando um banco na igreja aos domingos? Acho que não.
— Sinto como se houvesse várias coisas que não está me contando — falei abruptamente.
— Então teremos algo para conversar na próxima vez — ele disse e um olho verde-marinho piscou para mim. Okay, aquilo foi inesperado. Ele me deu um cartão de visitas, outra coisa que não antecipei. Dizia simplesmente, “Niall Brigant” com um número de telefone bem no meio. — Você pode me encontrar nesse número a qualquer hora. Alguém irá atender.
— Obrigada — respondi. — Imagino que saiba meu número? — Ele assentiu. Pensei que estivesse pronto para partir, mas ele vacilou. Ele parecia tão relutante em ir embora quanto eu. — Então — comecei, limpando a garganta. — O que você faz o dia todo? — Não conseguia expressar o quanto era estranho e correto estar com um membro da família. Eu tive somente Jason e ele não foi exatamente um irmão próximo, o tipo para quem se conta tudo. Eu podia contar com ele durante um aperto, mas andar juntos? Não ia acontecer.
Meu bisavô respondeu a pergunta, mas quando tentei lembrar depois, não consegui pensar em nada específico. Acho que ele fazia algum negócio secreto de príncipe-fada. Ele me contou que era sócio de um ou dois bancos, de uma companhia que fazia móveis de jardim e—isso pareceu estranho para mim — uma empresa que criava e testava medicina experimental.
Olhei para ele desconfiada. — Remédio para humanos — falei para ter certeza que entendia.
— Sim. Na maior parte — ele respondeu. — Mas alguns farmacêuticos fazem coisas especiais para nós.
— Para os fae.
Ele assentiu, os cabelos cor de milho finos e sedosos caindo ao redor do rosto enquanto movia a cabeça.
— Existe tanto ferro agora — disse. — Eu não sei se você percebe que somos muito sensíveis ao ferro? No entanto, se usarmos luvas o tempo todo, ficamos visíveis demais no mundo de hoje. — Olhei para sua mão direita pousada sobre a minha na toalha de mesa branca. Retirei meus dedos e acariciei sua pele. Pareceu estranhamente macia.
— É como uma luva invisível — falei.
— Exatamente — ele concordou. — Uma das fórmulas. Mas já chega sobre mim.
Justo quando estava ficando interessante, pensei. Mas pude notar que meu bisavô ainda não tinha um motivo real para confiar a mim todos os seus segredos. Niall perguntou a respeito de meu trabalho, meu chefe e minha rotina, como um bisavô de verdade. Embora claramente não gostasse da idéia de sua bisneta trabalhar, a parte do bar não pareceu aborrecê-lo. Como eu disse, Niall não era fácil de ler. Seus pensamentos eram privados no que me diziam respeito; mas notei que, de vez em quando, ele se impedia de falar.
Eventualmente, o jantar terminou e olhei para meu relógio, aturdida com o tempo decorrido. Eu precisava ir embora. Tinha que trabalhar no dia seguinte. Desculpei-me, agradeci meu bisavô (ainda me fazia estremecer, pensar nele desse modo) pela refeição e muito hesitantemente inclinei-me para beijá-lo na bochecha enquanto ele beijava a minha. Ele pareceu prender o fôlego enquanto eu fazia isso, e sua pele pareceu macia e lustrosa como uma pluma de seda sob meus lábios. Embora pudesse parecer humano, ele não era como um.
Ele ficou de pé quando eu parti, mas permaneceu à mesa—para cuidar da conta, presumi. Saí para fora sem perceber nada que meus olhos por ventura tenham visto ao longo do caminho. Eric esperava por mim no estacionamento. Ele tomara um pouco de TrueBlood enquanto esperava e estava lendo no carro, estacionado sob um poste.
Eu estava exausta.
Não percebi o quanto meu jantar com Niall foi estressante até me afastar de sua presença. Embora estivesse sentada confortavelmente numa cadeira durante toda a refeição, eu estava cansada como se tivéssemos conversado enquanto corríamos.
Niall foi capaz de ocultar o cheiro de fada no restaurante, mas notei pelas narinas de Eric que o odor embriagador se aderiu em mim. Os olhos de Eric se fecharam em êxtase, e ele de fato lambeu os lábios. Senti-me um filé ao alcance de um cachorro faminto.
— Corta essa — falei. Eu não estava no humor.
Com um enorme esforço, Eric dominou-se.
— Quando você cheira assim — disse — eu só quero transar, morder e me esfregar todo em você.
Aquilo era bem compreensível e não direi que não tive um segundo (dividido entre luxúria e medo) visualizando tal atividade. Mas eu tinha questões maiores em que pensar.
— Pode tirar o cavalo da chuva — respondi. — O que você sabe a respeito de fadas? Além do sabor?
Eric me fitou mais sóbrio.
— Eles são adoráveis, homens e mulheres. Incrivelmente resistentes e ferozes. Não são imortais, mas tem uma longa vida a menos que algo lhes aconteça. Pode matá-los com ferro, por exemplo. Existem outras maneiras de matá-los, mas é difícil. Gostam de se manter discretos na maioria das vezes. Gostam de climas moderados. Eu não sei o que comem ou bebem quando estão sozinhos. Eles experimentam comida de outras culturas; já vi uma fada provar sangue. Eles possuem uma opinião muito mais elevada do que tem direito sobre si próprios. Quando dão suas palavras, eles a mantêm. — Ele pensou por um momento. — Eles possuem magias diferentes. Não são todos que podem fazer as mesmas coisas. E eles são muito mágicos. É sua essência. Eles não têm deuses, exceto sua própria raça, pois são frequentemente confundidos como tal. Na verdade, alguns deles adotaram os atributos de uma divindade.
Fitei-o boquiaberta. — O que quer dizer?
— Bem, eu não quis dizer que eles são sagrados — disse Eric. — Quis dizer que as fadas que habitam as florestas se identificam tão fortemente com as árvores que ferir uma é ferir a outra. Então eles sofreram uma grande baixa em números. Obviamente, nós vampiros não nos metemos em políticas e questões de sobrevivência das fadas, já que somos tão perigosos para eles... simplesmente porque o achamos embriagadores.
Eu nunca pensei em perguntar a Claudine sobre nada disso. Primeiro porque ela parecia não gostar de falar sobre ser fada e quando aparecia normalmente era quando eu estava encrencada e, portanto, tristemente absorvida. Por outro lado, eu imaginava que talvez houvesse uma pequena porção de fadas restantes no mundo, mas Eric dizia que certa vez existiram tantas fadas quanto havia vampiros hoje, embora a raça estivesse diminuindo.
Num contraste agudo, vampiros — pelo menos na América — definitivamente estavam em alta. Havia três projetos de lei abrindo caminho no Congresso lidando com imigração vampira. A América tinha a distinção (junto com Canadá, Japão, Noruega, Suécia, Inglaterra e Alemanha) de ser um país que respondeu à Grande Revelação com relativa calma.
Na noite da cuidadosamente orquestrada Grande Revelação, vampiros de todo mundo apareceram pessoalmente na televisão, rádio e quaisquer meios de comunicação em suas áreas, para dizer à população humana, “Ei! Nós realmente existimos. Mas não ameaçamos vidas! O novo sangue sintético japonês satisfaz nossas necessidades nutricionais.”
Os seis anos desde então foram uma grande fonte de aprendizado. Esta noite, eu acrescentei uma grande soma ao meu arquivo de mitos sobrenaturais.
— Então os vampiros têm a vantagem — falei.
— Não estamos em guerra — disse Eric. — Não lutamos há séculos.
— Então no passado, os vampiros e fadas lutaram um contra o outro? Quero dizer, em batalhas campais?
— Sim — disse Eric. — E se isso acontecer de novo, o primeiro que eu derrubaria é Niall.
— Por quê?
— Ele é bem poderoso no mundo elfo. É muito mágico. Se ele está sendo sincero em seu desejo de colocá-la sob suas asas, você tem tanto boa quanto má sorte.
Eric ligou o motor do carro e saímos do estacionamento. Eu não vi Niall sair do restaurante. Talvez ele simplesmente tivesse desaparecido do salão. Esperava que tivesse primeiro pago a conta.
— Acho que tenho que lhe pedir para explicar isso — falei. Mas tive a sensação de que realmente não queria saber a resposta.
— Houve milhares de fadas, certa vez, nos Estados Unidos — disse Eric. — Agora existem apenas centenas. Mas aqueles que sobraram são sobreviventes bem determinados. E nem todos eles são amigos do príncipe.
— Oh, ótimo. Eu precisava de outro grupo sobrenatural que me detesta — murmurei.
Dirigimos pela noite em silêncio, seguindo o caminho pela interestadual que nos conduziria a leste para Bon Temps. Eric parecia profundamente pensativo. Eu também possuía um bocado de pensamentos a alimentar; mais do que comi no jantar, com certeza. Descobri que, no total, me sentia cautelosamente feliz. Era bom ter uma espécie de bisavô tardio. Niall parecia genuinamente ansioso para estabelecer um relacionamento comigo. Eu ainda tinha uma pilha de perguntas a fazer, mas elas podiam esperar até nos conhecermos melhor.
O Corvette de Eric podia ir bem rápido, e ele não estava exatamente obedecendo ao limite de velocidade na interestadual. Não fiquei realmente surpresa quando vi as luzes intermitentes vindo atrás de nós. Fiquei apenas surpresa pelo carro-patrulha conseguir alcançar Eric.
— Huh-hmm — falei, e Eric praguejou numa língua que provavelmente não era falada em voz alta há séculos. Mas mesmo o xerife da Área Cinco tinha que obedecer a leis humanas hoje em dia, ou pelo menos fingir que fazia isso. Eric parou no acostamento.
— Com uma placa arrogante como BLDSKR1, o que você esperava? — perguntei, apreciando o momento não tão secretamente. Notei as formas escuras do patrulheiro saindo do carro atrás de nós, caminhando com algo na mão—prancheta, lanterna?
Olhei melhor. E o alcancei. Uma massa confusa de agressão e medo encontrou meu ouvido interno.
1 Bloodsucker – chupa-sangue, sanguessuga.
— Lobisomem! Há algo errado — falei, e a mão grande de Eric me empurrou para o assoalho do carro, o que teria fornecido um esconderijo melhor se o carro fosse qualquer outra coisa, exceto um Corvette.
Então o patrulheiro surgiu na janela e tentou atirar em mim.
ERIC SE VIROU para cobrir a janela e bloquear o resto do carro da mira do atirador, e foi atingido no pescoço. Por um terrível momento, Eric afundou no assento com o rosto inexpressivo e sangue escuro fluindo lentamente pela pele branca. Eu gritei como se o barulho pudesse me proteger, e a arma virou em minha direção enquanto o atirador inclinavase para dentro do carro para passar por Eric.
Mas ele foi um tolo ao fazer isso. A mão de Eric agarrou o pulso do homem e começou a apertá-lo. O “patrulheiro” começou a gritar, empurrando Eric inutilmente com a mão livre. A arma caiu em cima de mim. Tive sorte por ela simplesmente não ter disparado quando caiu. Eu não sei muito sobre armas, mas aquela era grande e parecia mortífera, e lutei para me endireitar numa posição reta, apontando-a para o atirador.
Ele congelou no lugar, com metade do corpo para dentro da janela. Eric já tinha quebrado seu braço e mantinha um aperto firme. O imbecil devia ter receado mais o vampiro que o mantinha preso do que a garçonete que mal sabia como disparar uma arma, mas a pistola prendeu sua atenção.
Com certeza eu teria ouvido falar se a patrulha rodoviária tivesse decidido começar a atirar em motoristas que infringiam o limite de velocidade ao invés de multá-los.
— Quem é você? — falei, e ninguém poderia me culpar se minha voz não estava muito firme. — Quem o mandou?
— Eles me mandaram — o Lobi engasgou. Agora que eu tinha tempo para notar detalhes, percebi que ele não estava usando o uniforme próprio dos patrulheiros. Era a cor certa com o chapéu certo, mas as calças não eram dos uniformes.
— Eles quem? — perguntei.
As presas de Eric afundaram no ombro do Lobi. Apesar do ferimento, Eric estava puxando o oficial falso para dentro do carro centímetro a centímetro. Parecia simplesmente justo que Eric tivesse um pouco de sangue já que perdeu tanto do próprio. O assassino começou a chorar.
— Não deixe que ele me transforme num deles — ele me implorou.
— Você teria muita sorte — respondi, não que de fato pensasse que era ótimo ser vampiro, mas porque eu tinha certeza que Eric tinha algo muito pior em mente.
Eu saí do carro porque não adiantaria tentar fazer Eric soltar o Lobi. Ele não me ouviria com sua sede de sangue tão forte. Meu vínculo com Eric foi um fator crucial nessa decisão. Eu estava feliz por ele estar aproveitando, conseguindo o sangue de que necessitava. E estava furiosa por alguém tentar machucá-lo. Já que ambos os sentimentos normalmente não eram as cores de minha paleta emocional, eu sabia quem devia culpar.
Além disso, o interior do Corvette estava desagradavelmente apertado comigo, Eric e a maior parte do Lobi.
Milagrosamente, nenhum carro passou enquanto eu cambaleava pelo acostamento até o veículo de nosso agressor, que se revelou (nem tanto para minha surpresa) um simples carro branco com um pisca-pisca ilegal. Desliguei os faróis do carro e, apertando ou desconectando cada fio e botão que pude encontrar, consegui apagar o pisca-pisca também. Agora não estávamos tão visíveis. Eric tinha apagado os faróis do Corvette momentos antes do encontro.
Verifiquei rapidamente o interior do carro branco, mas não vi um envelope assinado “Confissão de quem me contratou, no caso de eu ser pego.” Eu precisava de uma pista. Devia haver pelo menos um número de telefone num pedaço de papel, um número que eu pudesse verificar numa lista inversa. Se soubesse como fazer tal coisa. Droga. Voltei para o carro de Eric, notando sob as luzes de um veículo de passagem que não havia mais pernas saindo para fora da janela do motorista, o que tornava o Corvette muito menos chamativo. Mas nós precisávamos sair dali.
Perscrutei dentro do Corvette e o encontrei vazio. A única lembrança do que tinha acabado de acontecer era a mancha de sangue no banco de Eric, então tirei um lenço de papel da bolsa, cuspi nele e esfreguei-o sobre o sangue seco; não era uma solução muito elegante, mas foi prático.
De repente, Eric estava ao meu lado e tive que reprimir um grito. Ele ainda estava excitado pelo ataque inesperado, e me prendeu contra a lateral do carro, segurando minha cabeça no ângulo correto para um beijo. Senti um impulso de desejo e cheguei perto de dizer, “Que diabos, me tome agora, seu grande Viking.” Não era apenas o vínculo de sangue que me fazia disposta a aceitar sua oferta tácita, mas minha memória do quanto Eric era maravilhoso na cama. Mas pensei em Quinn e separei-me da boca de Eric com um grande esforço.
Por um segundo, eu achei que não me soltaria, mas ele o fez.
— Deixe-me ver — falei num tom de voz instável, e puxei o colarinho de sua camisa para ver o ferimento a bala. Eric havia quase se curado, mas é claro que sua camisa ainda estava úmida de sangue.
— O que foi isso? — ele perguntou. — Era um inimigo seu?
— Não tenho idéia.
— Ele atirou em você — disse Eric, como se eu fosse meio lenta. — Ele a quis primeiro.
— Mas e se ele fez isso para ferir você? E se pretendia culpar você pela minha morte? — Eu estava tão cansada de ser objeto de complôs que suspeitei estar tentando convencer Eric a ser o alvo. Outra idéia me atingiu e me voltei para ela. — E como eles nos encontraram?
— Alguém sabia que estaríamos voltando para Bon Temps esta noite — disse Eric. — Alguém que sabia em que carro eu estava.
— Não pode ter sido Niall — falei, e então repensei o instante de lealdade para com meu recém auto-proclamado bisavô. Afinal, ele pode ter mentido o tempo todo em que estivemos à mesa. Como eu saberia? Não podia entrar em sua cabeça. A ignorância de minha posição era estranha para mim.
Mas eu não acreditava que Niall tivesse mentido.
— Não acho que seja o elfo, tampouco — disse Eric. — Mas é melhor falarmos a respeito na estrada. Este não é um bom lugar para nos demorarmos.
Ele estava certo quanto a isso. Não sabia onde ele colocou o corpo, e percebi que de fato não me importava. Um ano atrás, deixar um corpo para trás enquanto nos afastávamos a toda velocidade pela interestadual teria me dilacerado. Agora eu estava simplesmente contente por ser ele e não eu a ser abandonado na floresta.
Eu era uma terrível cristã e uma sobrevivente decente.
Enquanto dirigíamos pela escuridão, meditei sobre o abismo que se abria diante de mim, esperando que eu desse o passo extra. Senti-me desamparada na margem. Achava cada vez mais difícil me ater ao que era certo, quando o que era conveniente fazia mais sentido. Realmente, meu cérebro disse cruelmente, eu não entendia que Quinn me largou? Ele não teria mantido contato se ainda nos considerasse um casal? Eu não tive sempre uma quedinha por Eric, que fazia amor como um trem atravessando um túnel? Eu não tinha evidência suficiente de que Eric podia me defender melhor do que qualquer um que conhecia? Eu mal consegui reunir a energia para ficar chocada comigo mesma.
Se você se descobre considerando quem deve tomar como amante por sua habilidade para defendê-la, você está chegando perto de selecionar um par porque acha que ele possui traços desejáveis para legar às gerações futuras. E se houvesse uma chance de eu poder ter um filho de Eric (um pensamento que me fez estremecer), ele estaria no topo da lista, uma lista que nem mesmo sabia que estava compilando. Imaginei-me como um pavão fêmea procurando pelo pavão macho com o conjunto de plumas mais bonito, ou uma loba esperando pelo líder (mais forte, esperto e corajoso) da matilha para cobri-la.
Okay, senti-me enojada. Eu era uma mulher humana. Tentava ser uma boa mulher. Eu tinha que encontrar Quinn porque havia me comprometido com ele... algo assim.
Não, sem evasivas!
— No que está pensando, Sookie? — Eric perguntou no meio da escuridão. — Seu rosto tem pensamentos passando rápidos demais para que eu possa segui-los.
O fato de que ele podia ver — não apenas no escuro, mas quando devia estar olhando para a estrada — era irritante e assustador. E prova de sua superioridade, disse minha mulher das cavernas interior.
— Eric, apenas me leve para casa. Estou com uma sobrecarga emocional.
Ele não falou novamente. Talvez estivesse sendo sábio ou a cura fosse dolorosa.
— Precisamos conversar a respeito novamente — ele disse quando parou em minha entrada. Ele estacionou diante da casa e virou-se para mim tanto quanto era possível no carro pequeno. — Sookie, eu estou ferido... posso...? — Ele se inclinou, acariciando meu pescoço com os dedos.
Meu corpo me traiu diante daquela idéia. Uma palpitação começou lá embaixo e aquilo era simplesmente errado. Uma pessoa não devia ficar excitada com a idéia de ser mordida. Isso é ruim, certo? Fechei as mãos em punho com tanta força que as unhas machucaram minhas palmas.
Agora que podia vê-lo melhor, agora que o interior do carro se encontrava iluminado pelo brilho severo da luz de segurança, percebi que Eric estava ainda mais pálido que o habitual. Enquanto observava, a bala começou a sair pela ferida, e ele recostou-se contra o assento, com os olhos fechados. Milímetro por milímetro, a bala foi expelida até cair na minha mão. Lembrei de quando Eric me convenceu a sugar a bala em seu braço. Rá! Que fraude. A bala teria saído sozinha. Minha indignação me fez voltar à razão.
— Acho que você consegue chegar em casa — respondi, embora sentisse um desejo quase irresistível de me inclinar sobre ele e oferecer meu pescoço ou meu pulso. Cerrei os dentes e saí do carro. — Você pode parar no Merlotte’s e pegar sangue engarrafado se realmente precisa de um pouco.
— Você é impiedosa — Eric disse, mas não soou realmente zangado ou ofendido.
— Sou — falei e sorri para ele. — Tenha cuidado, ouviu?
— É claro — ele disse. — E não vou parar para nenhum policial.
Forcei-me a marchar para dentro de casa sem olhar para trás. Quando entrei pela porta da frente e fechei-a firmemente atrás de mim, senti um alívio imediato. Graças a Deus. Imaginei se conseguiria dar às costas a cada vez que me afastava dele. Esse laço de sangue era realmente irritante. Se não fosse cuidadosa e vigilante, eu faria algo da qual me arrependeria.
— Sou uma mulher, ouça-me bradar — falei.
— Céus, o que inspirou isso? — Amelia perguntou, e eu pulei. Ela vinha pelo corredor da cozinha, de camisola e roupão combinando, pêssego com arremates de renda cor creme. Tudo que Amelia vestia era bonito. Ela nunca zombou dos hábitos de compra de outra pessoa, mas nunca usou nada do Wal-Mart, tampouco.
— Tive uma noite difícil — respondi. Olhei para mim mesma. Somente um pouco de sangue na camisa de seda azul. Teria que deixá-la de molho. — Como foram as coisas por aqui?
— Octavia me ligou — disse Amelia e, embora tentasse manter a voz firme, pude sentir a ansiedade vindo dela em ondas.
— Sua conselheira — Eu não estava no meu melhor.
— Sim, a primeira e única. — Ela inclinou-se para pegar Bob, que sempre parecia estar por perto se Amelia ficava aborrecida. Ela segurou-o contra o peito e enterrou o rosto em seu pêlo. — Ela ouviu falar, é claro. Mesmo depois do Katrina e de todas as mudanças que aconteceram em sua vida, ela teve que mencionar o engano (Era assim que Amelia chamava — o engano).
— Imagino como Bob o chama — respondi.
Amelia olhou para mim por sobre a cabeça de Bob e eu soube imediatamente que disse algo indiscreto.
— Desculpe — falei. — Eu não estava pensando. Mas talvez não seja muito realista pensar que pode sair dessa sem prestar contas, hein?
— Você tem razão — ela disse. Não parecia muito feliz por eu ter razão, mas pelo menos concordou. — Eu errei. Tentei algo que não devia, e Bob pagou o preço.
Nossa, quando Amelia decidia confessar, ela ia até o fim.
— Vou ter que aceitar o castigo — ela disse. — Talvez eles me proíbam de praticar magia por um ano. Talvez mais.
— Oh. Isso parece severo — eu disse. Em minha fantasia, sua conselheira a repreendia diante de uma sala cheia de mágicos, feiticeiros, bruxos ou congêneres, e então eles transformavam Bob de volta. Ele rapidamente perdoava Amelia e dizia que a amava. Já que a perdoava, o resto do clã fazia o mesmo também, e Amelia e Bob voltavam para minha casa, onde viveríamos aqui juntos... por um bom e longo tempo (eu não estava sendo muito específica sobre essa parte).
— É a punição mais leve possível — disse Amelia.
— Oh.
— Você não quer saber as outras sentenças possíveis. — Ela estava certa. Eu não queria. — Bom, o que foi a misteriosa missão onde Eric a levou? — Amelia perguntou.
Amelia não poderia ter dado a ninguém a dica sobre nosso destino ou rota; ela não soube onde estávamos indo.
— Oh, ah, ele só queria me levar a um novo restaurante em Shreveport. Tinha um nome francês. Era bem elegante.
— Então, isso foi como um encontro? — Notei que ela estava imaginando qual era o papel de Quinn em meu relacionamento com Eric.
— Oh, não, não era um encontro — respondi, soando pouco convincente até para mim. — Nada desse negócio de homem e mulher. Só, você sabe, andando juntos. — Beijando. Levando tiros.
— Ele é lindo com certeza — disse Amelia.
— É, sem dúvida. Já encontrei alguns sujeitos apetitosos. Lembra de Claude? — Eu mostrei a Amelia o pôster que chegou com minha correspondência, duas semanas atrás, uma ampliação da capa do livro para o qual Claude posou. Ela ficou impressionada — que mulher não ficaria?
— Ah, eu fui assistir Claude dançar na semana passada. — Amelia não encontrou meus olhos.
— E você não me levou! — Claude era uma pessoa bem desagradável, especialmente quando comparado à irmã, Claudine, mas era lindo além dos limites. Ele estava na mesma categoria de Brad Pitt em beleza masculina. Obviamente, era gay. Que novidade. — Você foi quando eu estava trabalhando?
— Achei que você não aprovaria se eu fosse — ela disse, inclinando a cabeça. — Quero dizer, já que você é amiga da irmã dele. Eu fui com Tara. JB estava trabalhando. Você está zangada?
— Não. Eu não ligo. — Minha amiga Tara possuía uma loja de roupas e seu novo marido, JB, trabalhava numa academia de ginástica para mulheres. — Eu gostaria de ver Claude tentando agir como se estivesse se divertindo.
— Acho que ele estava se divertindo — ela disse. — Não há ninguém que Claude ame mais do que Claude, certo? Assim como todas essas mulheres olhando e admirando... Ele não é chegado em mulheres, mas certamente gosta de ser admirado.
— Verdade. Vamos algum dia ir vê-lo juntas.
— Ok — disse, e percebi que ela se animou novamente. — Agora me conte o que você pediu nesse novo restaurante grã-fino.
Então eu lhe contei. Mas fiquei desejando o tempo todo não manter silêncio sobre meu bisavô. Eu queria tanto contar a Amelia sobre Niall; como ele parecia, o que disse, que eu tinha uma história inteira que não conhecia. E levaria um tempo para processar o que minha avó passou, para alterar minha imagem dela depois dos fatos que descobri. E teria que repensar as recordações desagradáveis de minha mãe também. Ela se apaixonou por meu pai desesperadamente e teve seus filhos porque o amava... apenas para descobrir que não queria compartilhá-lo com eles, especialmente comigo, outra mulher. Pelo menos, era essa minha nova visão.
— Houve mais coisas — falei, abrindo a boca num bocejo. Era muito tarde. — Mas tenho que ir para a cama. Houve algum telefonema ou outra coisa?
— Aquele Lobi de Shreveport ligou. Ele queria falar com você e eu disse que você tinha saído, e ele devia ligar para o seu celular. Ele perguntou se poderia encontrá-la, mas falei que não sabia onde você estava.
— Alcide — falei. — Imagino o que ele queria. — Decidi que ligaria para ele no dia seguinte.
— E uma mulher ligou. Disse que foi garçonete no Merlotte’s antes e a viu no casamento da noite passada.
— Tanya?
— É, era o nome dela.
— O que ela queria?
— Não sei. Ela disse que telefonaria amanhã ou a veria no bar.
— Merda. Espero que Sam não a contrate para preencher uma vaga ou algo do gênero.
— Achei que eu era a substituta da vaga.
— É, a não ser que alguém se demita. Estou avisando, Sam gosta dela.
— Você não?
— Ela é uma cadela traiçoeira.
— Céus, me conte o que você acha de verdade.
— Sem brincadeira, Amelia, ela pegou um emprego no Merlotte’s para que pudesse me espionar para os Pelts.
— Oh, é essa. Bom, ela não irá espioná-la novamente. Vou cuidar
disso.
Esse era um pensamento mais assustador do que trabalhar com Tanya. Amelia era uma bruxa forte e habilidosa, não me entenda mal, mas também propensa a tentar coisas além de seu nível de experiência. Veja Bob.
— Avise-me primeiro, por favor — eu disse, e Amelia pareceu surpresa.
— Bem, claro — ela disse. — Agora eu vou para a cama.
Ela subiu as escadas com Bob nos braços e eu fui para meu pequeno banheiro, para remover a maquiagem e vestir minha própria camisola. Amelia não notou as manchas de sangue na camisa, e eu a coloquei de molho na pia. Que dia foi aquele. Passei tempo com Eric, que sempre mexeu comigo, e encontrei um parente vivo, embora não fosse humano. Descobri um bocado de coisas a respeito de minha família, a maioria desagradável. Jantei num restaurante elegante, embora mal lembrasse da comida. E finalmente, levei um tiro.
Quando subi na cama, fiz minhas orações, tentando colocar Quinn no topo da lista. Achei que a excitação da descoberta de um bisavô me manteria acordada à noite, mas o sono me reclamou justo quando estava no meio do pedido a Deus para que me ajudasse a encontrar o caminho através do pântano moral de ser cúmplice de um assassinato.
HOUVE UMA BATIDA NA PORTA da frente, na manhã seguinte, uma hora antes de eu querer acordar. Escutei somente porque Bob entrou em meu quarto e pulou na cama, onde não devia subir, para se instalar no espaço atrás de meus joelhos enquanto eu deitava de lado. Ele ronronou alto e eu me estiquei para coçar atrás de suas orelhas. Eu amava gatos. Isso não me impediu de gostar de cães também, e apenas o fato de ficar fora por tanto tempo não me deixava ter um filhote. Terry Bellefleur me ofereceu um, mas fiquei vacilando até os filhotes terem ido embora. Imaginava se Bob se importaria de ter um gatinho como companhia. Amelia teria ciúmes se eu comprasse uma gata? Tive que sorrir enquanto me aconchegava mais na cama.
Mas eu não estava realmente adormecida e ouvi a batida.
Murmurei algumas palavras sobre a pessoa na porta, calcei meus chinelos e vesti o roupão fino de algodão azul. A manhã estava levemente fria, me lembrando que apesar dos dias amenos e ensolarados, isso era outubro. Houve Halloweens onde até um suéter era quente demais, e outros em que tinha que se usar um casaco leve enquanto pedia gostosuras ou travessuras.
Perscrutei através do olho mágico e vi uma senhora negra idosa com uma auréola de cabelos brancos. Ela tinha pele clara com feições estreitas e definidas: nariz, lábios, olhos. Usava batom carmesim e um conjunto amarelo. Mas ela não parecia armada ou perigosa. Isso apenas demonstra como as primeiras impressões podem ser errôneas. Abri a porta.
— Jovem senhorita, estou aqui para ver Amelia Broadway — a mulher me informou num inglês proferido de forma precisa.
— Por favor, entre — eu disse, porque era uma mulher idosa e fui criada para respeitar os mais velhos. — Sente-se. — Indiquei o sofá. — Vou subir e buscar Amelia.
Notei que ela não se desculpou por me tirar da cama ou aparecer sem aviso. Subi as escadas com a deprimente sensação de que Amelia não gostaria daquela mensagem.
Eu subia tão raramente ao segundo andar que fiquei surpresa ao ver como Amelia deixou o local agradável. Já que os quartos superiores possuíam apenas a mobília básica, ela transformou o aposento à direita, o maior, em seu quarto. À esquerda ficava sua sala de estar. Continha sua televisão, uma poltrona com descanso para pés, uma pequena escrivaninha para o computador e uma ou duas plantas. O quarto, que creio foi construído para uma geração de Stackhouses que teve três filhos em rápida sucessão, possuía apenas um armário pequeno, mas Amelia comprou cabideiros com rodinhas em algum lugar na Internet e os montou de forma prática. Então comprou um biombo num leilão, pintou-o e colocou-o diante dos cabideiros para escondê-los. A colcha brilhante e a velha mesa que ela reformou para servir como penteadeira acrescentava cores que ressaltavam as paredes brancas. No meio de toda aquela animação, encontrava-se uma bruxa deprimida.
Amelia estava sentada na cama, com os cabelos curtos amassados em formas estranhas.
— Quem é que eu ouvi lá embaixo? — perguntou numa voz bem
baixa.
— Uma senhora idosa negra, pele clara? Lembra alguém?
— Oh, meu Deus — Amelia ofegou e recostou-se contra sua dúzia de travesseiros. — É Octavia.
— Bom, desça e converse com ela. Eu não posso entretê-la.
Amelia grunhiu para mim, mas aceitou o inevitável. Ela saiu da cama e tirou a camisola. Pegou um sutiã, calcinha, calças jeans e tirou um suéter da gaveta.
Eu desci para dizer a Octavia Fant que Amelia estava vindo. Amelia teria que passar por ela para ir ao banheiro, já que havia somente um perto da escada, mas pelo menos eu podia suavizar o caminho.
— Posso lhe servir um pouco de café? — perguntei. A mulher mais velha estava ocupada examinando a sala com olhos castanhos brilhantes.
— Se você tiver chá, eu gostaria de uma xícara — disse Octavia Fant.
— Sim, senhora, nós temos — respondi, aliviada por Amelia ter insistido em comprar. Eu não tinha idéia de que tipo era, e esperava que fosse de saquinho, porque eu nunca fiz chá quente em minha vida.
— Que bom — ela disse, e foi isso.
— Amelia já vai descer — falei, tentando pensar num modo gracioso de acrescentar, “E ela vai ter que passar correndo pela sala para ir fazer xixi e escovar os dentes, então finja que não a viu.” Abandonei aquela causa perdida e fugi para a cozinha.
Procurei o chá de Amelia num de seus armários e, enquanto a água esquentava, peguei duas xícaras com pires e coloquei-as numa bandeja. Acrescentei o açucareiro, um pequeno jarro com leite e duas colheres. Guardanapos!, pensei e desejei ter alguns de pano ao invés dos normais de papel (era como Octavia Fant me fazia sentir, sem nem mesmo usar magia em mim). Escutei a água correr no banheiro do corredor assim que coloquei uma porção de biscoitos num prato e acrescentei ao conjunto. Eu não tinha flores ou um vasinho, o que era a única outra coisa que pensei que poderia acrescentar. Peguei a bandeja e caminhei lentamente pelo corredor até a sala de estar.
Coloquei a bandeja sobre a mesa de centro diante da Sra. Fant. Ela me fitou com seu olhar penetrante e deu um curto aceno de agradecimento.
Percebi que não conseguia ler sua mente. Eu estive me segurando, esperando por um momento em que pudesse realmente captá-la apropriadamente, mas ela sabia como me bloquear. Nunca conheci uma humana que conseguisse fazer isso. Por um segundo, me senti quase irritada. Então lembrei quem e o que ela era, e fui para o quarto fazer a cama e visitar meu próprio banheiro. Passei por Amelia no corredor, e ela me lançou um olhar assustado.
Desculpe, Amelia, pensei ao fechar com firmeza a porta de meu quarto. Você está por conta própria.
Eu não estava escalada para trabalhar até a noite, então vesti uns jeans velhos e uma camiseta do Fangtasia (“O Bar Com a Mordida”). Pam me deu uma quando o bar começou a vendê-las. Calcei sandálias e fui à cozinha para preparar minha própria bebida, café. Fiz algumas torradas e abri o jornal local que peguei quando atendi a porta. Puxando o elástico, verifiquei a primeira página. O conselho escolar se reuniu, o Wal-Mart local fez uma generosa doação ao programa extracurricular do Clube de Moças e Rapazes, e a legislatura estadual votou para reconhecer casamentos entre vampiros e humanos. Ora, ora. Ninguém achou que aquele projeto fosse aprovado.
Folheei as páginas para ler os obituários. Primeiro os falecimentos locais — ninguém que eu conhecia, bom. Então os falecimentos na área — ah, não.
MARIA-STAR COOPER, informava o título. O artigo apenas dizia, “Maria-Star Cooper, 25, residente em Shreveport, faleceu inesperadamente ontem em sua casa. Cooper, uma fotógrafa, deixa pai e mãe, Matthew e Stella Cooper de Minden, e três irmãos. Arranjos pendentes.”
De repente, me senti sem fôlego e afundei na cadeira com uma sensação de total incredulidade. Maria-Star e eu não éramos exatamente amigas, mas gostava dela o suficiente, e ela e Alcide Herveaux, um membro importante da matilha de lobisomens de Shreveport, estavam saindo juntos há meses. Pobre Alcide! Sua primeira namorada morrera violentamente, e agora isso.
O telefone tocou e eu pulei. Agarrei-o com uma terrível sensação de desastre.
— Alô? — falei cautelosamente, como se o telefone pudesse cuspir em mim.
— Sookie — disse Alcide. Ele tinha uma voz profunda, e agora estava rouca com lágrimas.
— Eu sinto tanto — falei. — Acabei de ler o jornal. — Não havia mais nada a dizer. Agora eu sabia por que ele ligou na noite passada.
— Ela foi assassinada — Alcide disse.
— Oh, meu Deus.
— Sookie, foi apenas o começo. Na possibilidade remota de que Furnan esteja atrás de você também, eu quero que fique alerta.
— Tarde demais — respondi, após um momento para absorver aquelas notícias terríveis. — Alguém tentou me matar ontem à noite.
Alcide afastou o telefone e uivou. Ouvir aquilo ao telefone, no meio do dia... Mesmo assim, foi apavorante.
Os problemas dentro da matilha de Shreveport estiveram fomentando por um tempo. Até eu, afastada das políticas dos Lobis, sabia disso. Patrick Furnan, o líder da matilha Presas Longas, conseguiu o cargo ao matar o pai de Alcide num combate. A vitória foi legal — bem, para os Lobis — mas houve algumas jogadas não tão legais ao longo do caminho. Alcide — forte, jovem, rico e rancoroso — sempre foi uma ameaça a Furnan, pelo menos na cabeça dele.
Aquele era um assunto delicado, já que os Lobis ficavam ocultos da população humana, e não declarados como os vampiros. Chegaria o dia, breve, em que a população de metamorfos se revelaria. Eu os ouvia falando de vez em quando. Mas isso ainda não acontecera, e não seria bom se o primeiro conhecimento dos humanos a respeito dos Lobis fosse de corpos aparecendo em todo lugar.
— Alguém irá aí imediatamente — disse Alcide.
— Absolutamente não. Eu tenho que trabalhar esta noite, e estou tão à margem desse negócio que tenho certeza que não vão tentar novamente. Mas preciso descobrir como o sujeito sabia onde e quando me encontrar.
— Conte as circunstâncias à Amanda — disse Alcide com a voz áspera de raiva, e então Amanda atendeu. Difícil acreditar que quando a vi no casamento, ambas estávamos tão animadas.
— Me conte — ela disse secamente, e eu sabia que não era hora de discutir. Contei a história tão sucintamente quanto possível (deixando de fora Niall e o nome de Eric, e mais alguns detalhes), e ela ficou quieta por alguns segundos depois que terminei.
— Já que ele foi eliminado, é um a menos com quem temos que nos preocupar — ela disse, soando simplesmente aliviada. — Desejava que você soubesse quem ele era.
— Desculpe — respondi meio ácida. — Eu estava pensando na arma, não na identidade dele. Como vocês podem entrar em guerra com tão poucas pessoas? — A matilha de Shreveport não tinha mais do que trinta membros.
— Reforços de outros territórios.
— Por que alguém faria isso? — Por que se envolver numa guerra que não era sua? Que sentido havia em perder seu próprio pessoal quando a disputa era de outra matilha?
— Existem recompensas por apoiar o lado vencedor — disse Amanda. — Escute, você ainda está morando com aquela bruxa?
— Sim.
— Então há algo que você pode fazer para ajudar.
— Okay — respondi, embora não recordasse de ter oferecido. — Do que se trata?
— Você precisa perguntar à sua amiga bruxa se ela pode ir ao apartamento de Maria-Star para fazer algum tipo de leitura do que aconteceu por lá. Isso é possível? Queremos saber quais são os Lobis envolvidos.
— É possível, mas não sei se ela vai fazer.
— Pergunte a ela agora, por favor.
— Ah... deixe-me ligar depois. Ela tem uma visita.
Antes de ir à sala de estar, dei um telefonema. Não queria deixar essa mensagem na secretária eletrônica do Fangtasia, que ainda não estaria aberto, então liguei para o celular de Pam, algo que nunca fiz antes. Enquanto tocava, me descobri imaginando se estava no caixão com ela. Era uma coisa sinistra para visualizar. Eu não sabia se Pam de fato dormia num caixão ou não, mas se dormia... estremeci.
Obviamente, o telefone caiu na caixa de mensagens, e eu falei: — Pam, descobri por que Eric e eu fomos abordados ontem à noite, ou pelo menos, acho que sei. Há uma guerra acontecendo entre os Lobis, e acho que eu era um alvo. Alguém nos vendeu para Patrick Furnan. E não contei a ninguém onde estava indo. — Aquele era um problema que Eric e eu estávamos agitados demais para discutir na noite anterior. Como alguém, qualquer um, saberia onde estaríamos na noite passada? Que estávamos voltando de Shreveport?
Amelia e Octavia estavam no meio de uma discussão, mas nenhuma das duas parecia zangada ou aborrecida como eu receei.
— Detesto interromper — eu disse enquanto dois pares de olhos se voltavam para mim. Os olhos de Octavia eram castanhos e os de Amelia azuis-claros, mas no momento estavam estranhamente parecidos em expressão.
— Sim? — Octavia claramente era a rainha da situação.
Qualquer bruxa digna de seu sal saberia a respeito dos Lobis. Resumi a questão da guerra dos Lobis em algumas sentenças, contei-lhes sobre o ataque da noite passada na interestadual e expliquei o pedido de Amanda.
— Isso é algo na qual você devia se envolver, Amelia? — Octavia perguntou, a voz deixando claro que havia apenas uma resposta a dar.
— Oh, eu acho que sim — disse Amelia. Ela sorriu. — Não posso ter alguém atirando em minha colega. Eu ajudarei Amanda.
Octavia não poderia ficar mais chocada se Amelia tivesse cuspido sementes de melancia em suas calças.
— Amelia! Você está tentando coisas além de sua habilidade! Isso irá conduzir a problemas terríveis! Veja o que já fez ao pobre Bob Jessup.
Oh, cara, eu não conhecia Amelia há muito tempo, mas já sabia que aquele era um modo ineficaz de fazê-la obedecer a seus desejos. Se Amelia tinha orgulho de algo, era de sua habilidade como bruxa. Contestar sua capacidade era uma forma certeira de sacudi-la. Por outro lado, Bob foi uma grande cagada.
— Você pode transformá-lo de volta? — perguntei para a bruxa mais velha.
Octavia me fitou agudamente. —É claro — disse.
— Então por que não faz isso e podemos seguir daí? — falei.
Octavia pareceu aturdida e eu sabia que não devia ter dito isso assim de cara. Por outro lado, se ela queria mostrar a Amelia que sua magia era mais poderosa, ali estava a chance. Bob o gato encontrava-se sentado no colo de Amelia, parecendo despreocupado. Octavia alcançou seu bolso e tirou um estojo cheio do que parecia ser maconha; mas acho que qualquer erva seca parece igual e eu nunca mexi com maconha de verdade, então não sou juíza. Entretanto, Octavia pegou uma pitada daquela erva e jogou sobre o pêlo do gato. Bob não pareceu se importar.
O rosto de Amelia estava imóvel enquanto observava Octavia lançar um feitiço que parecia consistir em um pouco de Latim, alguns movimentos e a supracitada erva. Finalmente, Octavia pronunciou o que deve ter sido o equivalente esotérico de “Alakazam!” e apontou para o gato.
Nada aconteceu.
Octavia repetiu a frase, ainda mais vigorosa. Novamente com o dedo apontado. E de novo, sem resultados.
— Sabe o que eu acho? — falei. Ninguém parecia querer saber, mas era minha casa. — Imagino se Bob sempre foi um gato e, por alguma razão, era temporariamente humano. É por isso que não podem transformá-lo de volta. Talvez ele esteja em sua verdadeira forma agora.
— Isso é ridículo — a bruxa mais velha retrucou. Ela estava meio incomodada pelo fracasso. Amelia esforçava-se para reprimir um sorriso.
— Se tem tanta certeza de que Amelia é incompetente depois disso, e acontece que eu sei que ela não é, você pode querer considerar vir conosco para ver o apartamento de Maria-Star — eu disse. — Certificar-se de que Amelia não fique encrencada.
Amelia pareceu ficar indignada por um instante, mas notou meu plano e acrescentou sua súplica à minha.
— Muito bem. Eu irei — disse Octavia orgulhosamente.
Eu não conseguia ver dentro da mente da bruxa idosa, mas trabalhei num bar por tempo suficiente para reconhecer uma pessoa solitária quando via uma.
Peguei o endereço de Amanda, e ela disse que Dawson ficaria guardando o lugar até nós chegarmos. Eu conhecia e gostava dele, já que me ajudou antes. Ele era dono de uma oficina de motos local há algumas milhas de Bon Temps, e |s vezes substituía Sam no Merlotte’s. Dawson não fazia parte de uma matilha e o fato de ele escolher a facção rebelde de Alcide era significativo.
Não posso afirmar que a viagem até os subúrbios de Shreveport foi uma experiência unificante para nós três, mas informei Octavia sobre a origem dos problemas da matilha. E expliquei meu próprio envolvimento.
— Quando a competição para líder do bando aconteceu — eu disse — Alcide quis que eu estivesse lá como um detector de mentiras humano. De fato, eu peguei o outro cara trapaceando, o que foi bom. Mas depois disso tornou-se uma luta até a morte e Patrick Furnan era mais forte. Ele matou Jackson Herveaux.
— Imagino que eles tenham encoberto a morte? — A bruxa idosa não parecia chocada nem surpresa.
— Sim, eles deixaram o corpo numa fazenda isolada que ele possuía, sabendo que ninguém procuraria ali por algum tempo. Os ferimentos no corpo não eram reconhecíveis na época em que foi encontrado.
— Patrick Furnan tem sido um bom líder?
— Eu realmente não sei — admiti. — Alcide sempre pareceu estar com um grupo descontente por perto, e são eles que eu conheço melhor na matilha, então acho que estou do lado de Alcide.
— Você já considerou simplesmente ficar neutra? Deixar o melhor Lobi vencer?
— Não — respondi honestamente. — Eu teria ficado igualmente satisfeita se Alcide não tivesse ligado e me contado sobre os problemas da matilha. Mas agora que eu sei, irei ajudá-lo se puder. Não que eu seja um anjo ou qualquer coisa. Mas Patrick Furnan me odeia, e é simplesmente inteligente ajudar seu inimigo, ponto número um. Eu gostava de MariaStar, ponto número dois. E alguém tentou me matar na noite passada, alguém que pode ter sido contratado por Furnan, ponto número três.
Octavia assentiu. Com certeza, ela não era uma mulher fraca.
Maria-Star morou num prédio de apartamentos bem antigo na Rodovia 3, entre Benton e Shreveport. Um pequeno complexo, apenas dois prédios paralelos de frente para um estacionamento, ao lado da rodovia. Havia um campo nos fundos dos prédios e os estabelecimentos comerciais adjacentes eram negócios diurnos: uma agência de seguros e um consultório de dentista.
Cada um dos dois prédios de tijolos vermelhos era dividido em quatro apartamentos. Notei uma velha caminhonete familiar diante do prédio à direita e estacionei ao lado. Esses apartamentos eram anexos; havia uma entrada comum para o vestíbulo e portas de ambos os lados da escada para o segundo andar. Maria-Star tinha vivido no apartamento térreo à esquerda. Era fácil de avistar, porque Dawson encontrava-se apoiado na parede ao lado da porta.
Eu o apresentei as duas bruxas como “Dawson” porque não sabia seu primeiro nome. Dawson era um homem grande. Aposto que se podiam quebrar nozes em seu bíceps. Ele tinha cabelos castanhos escuros começando a ficar levemente grisalhos, e um bigode bem aparado. Eu soube quem ele era durante a vida toda, mas nunca o conheci bem. Dawson provavelmente era sete ou oito anos mais velho do que eu, e se casou cedo. Divorciou-se cedo também. Seu filho, que morava com a mãe, era um bom jogador de futebol do colegial em Clarice. Dawson parecia o cara mais durão que já conheci. Não sei se era os olhos escuros, o rosto sério, ou simplesmente seu tamanho.
Havia uma fita de cena do crime sobre a porta do apartamento. Meus olhos ficaram marejados ao ver aquilo. Maria-Star morrera violentamente nesse espaço apenas horas antes. Dawson tirou um conjunto de chaves (de Alcide?), destrancou a porta e nós passamos por baixo da fita para entrar.
Permanecemos congelados em silêncio, consternados com o estado da pequena sala de estar. Meu caminho era bloqueado por uma mesa virada com um grande talho estragando a madeira. Meus olhos oscilaram sobre as marcas escuras irregulares nas paredes até meu cérebro registrar que as manchas eram de sangue.
O cheiro era fraco, mas desagradável. Comecei a respirar superficialmente para não ficar enjoada.
— Agora, o que você quer que façamos? — Octavia perguntou.
— Achei que vocês poderiam fazer uma reconstrução ectoplásmica, como Amelia fez antes — falei.
— Amelia fez uma reconstrução ectoplásmica? — Octavia abandonou o tom arrogante e soou genuinamente surpresa e admirada. — Eu nunca vi uma.
Amelia assentiu modestamente.
— Com Terry, Bob e Patsy — ela disse. — Funcionou muito bem. Tivemos uma grande área para cobrir.
— Então tenho certeza que podemos fazer uma aqui — disse Octavia. Ela pareceu interessada e entusiasmada. Era como se seu rosto tivesse acordado. Percebi que o que eu vi antes foi um rosto deprimido. E estava captando o suficiente de sua cabeça (agora que ela não estava se concentrando em me bloquear) para saber que Octavia passou um mês após o Katrina imaginando de onde viria sua próxima refeição, onde dormiria noite após noite. Agora ela vivia com a família, embora eu não visualizasse uma imagem clara.
— Eu trouxe o material comigo — disse Amelia. Seu cérebro irradiava orgulho e alívio. Ela ainda poderia se livrar dos contratempos com Bob sem pagar um grande preço. Dawson permaneceu encostado contra a parede, ouvindo com aparente interesse. Era difícil ler seus pensamentos, sendo um Lobi, mas ele definitivamente estava relaxado.
Eu o invejei. Era impossível eu ficar à vontade nesse terrível e pequeno apartamento, que quase ecoava a violência demonstrada em suas paredes. Eu estava com medo de sentar no sofá ou na poltrona, ambos estofados em xadrez azul e branco. O tapete era azul-escuro e a pintura branca. Tudo combinava. O apartamento era meio sombrio para o meu gosto. Mas foi elegante, limpo e cuidadosamente arrumado, e um lar há menos de vinte e quatro horas atrás.
Pude ver os cobertores jogados através do quarto. Este era o único sinal de desordem no quarto ou na cozinha. A sala de estar foi o centro da violência.
Por falta de um lugar melhor para me acomodar, encostei-me contra a parede ao lado de Dawson.
Não acho que o mecânico de motos e eu já tivemos uma longa conversa, embora ele tenha levado um tiro em minha defesa alguns meses atrás. Ouvi falar que a lei (nesse caso, Andy Bellefleur e seu colega detetive Alcee Beck) suspeitava que algo mais acontecesse na loja de Dawson do que apenas reparos, mas eles nunca o pegaram fazendo nada ilegal. Dawson também era contratado como guarda-costas de vez em quando, ou talvez oferecesse seus serviços. Ele certamente se adequava ao trabalho.
— Vocês eram amigas? — Dawson murmurou, acenando com a cabeça para o ponto mais sangrento no chão, o local onde Maria-Star morrera.
— Éramos mais conhecidas amistosas — respondi, não querendo demonstrar mais tristeza que o devido. — Eu a vi num casamento, duas noites atrás. — Comecei a dizer que ela parecera bem, mas isso teria sido estúpido. Não se adoece antes de ser assassinada.
— Quando foi a última vez que alguém falou com Maria-Star? — Amelia perguntou a Dawson. — Preciso estabelecer alguns limites de tempo.
— Onze horas da noite de ontem — ele respondeu. — Telefonema de Alcide. Ele estava fora da cidade, com testemunhas. A vizinha ouviu ruídos de luta por aqui, cerca de trinta minutos depois e chamou a polícia. — Aquele foi um longo discurso para Dawson. Amelia voltou aos seus preparativos e Octavia lia um livro fino que Amelia tirou de sua pequena mochila.
— Você já assistiu isso antes? — Dawson me perguntou.
— Sim, em Nova Orleans. Compreendo que é algo raro e difícil de fazer. Amelia é muito boa.
— Ela está morando com você? — Assenti. — Foi o que eu ouvi — disse. Ficamos quietos por um momento. Dawson estava provando ser uma companhia pacata bem como uma útil porção de músculos.
Houve alguns gestos e cânticos, com Octavia seguindo sua outrora aluna. Octavia podia nunca ter feito uma reconstrução ectoplásmica, mas quanto mais o ritual se prolongava, maior poder reverberava pela pequena sala, até minhas unhas parecerem zumbir. Dawson não parecia exatamente assustado, mas definitivamente estava alerta enquanto a pressão da magia aumentava. Ele descruzou os braços e se endireitou, e eu também.
Embora eu soubesse o que esperar, ainda assim foi espantoso quando Maria-Star apareceu na sala conosco. Senti Dawson se contorcer de surpresa ao meu lado. Maria-Star estava pintando as unhas. Os longos cabelos escuros estavam presos num rabo de cavalo no topo da cabeça. Ela se encontrava sentada no tapete diante da televisão, com uma folha de jornal aberta cuidadosamente debaixo do pé. A imagem recriada magicamente possuía a mesma aparência líquida que eu vi na reconstrução anterior, quando observei minha prima Hadley durante suas últimas horas na terra. Maria-Star não era exatamente colorida. Era como uma imagem preenchida com gel cintilante. O efeito era estranho porque o apartamento não se encontrava mais composto como quando ela se sentou naquele local. Ela estava sentada bem no meio da mesa de centro virada.
Não tivemos que esperar muito. Maria-Star terminou de pintar as unhas e ficou assistindo a televisão (agora escura e apagada) enquanto esperava que secassem. Ela fez alguns exercícios para as pernas enquanto esperava. Então juntou o esmalte e os separadores que tinha entre os dedos dos pés e dobrou o jornal. Levantou-se e foi ao banheiro. Já que a porta do banheiro real estava agora meio fechada, a Maria-Star líquida teve que atravessá-la. De nosso ângulo, Dawson e eu não podíamos ver lá dentro, mas Amelia, cujas mãos estavam estendidas numa espécie de gesto de amparo, encolheu os ombros como se dissesse que Maria-Star não estava fazendo nada importante. Xixi ectoplásmico, talvez.
Minutos depois, a jovem mulher apareceu novamente, dessa vez de camisola. Ela entrou no quarto e foi para a cama. De repente, sua cabeça se virou na direção da porta.
Era como assistir uma pantomima. Maria-Star claramente ouviu um ruído na porta, e o som foi inesperado. Eu não sabia se ela estava ouvindo a campainha, uma batida ou alguém tentando arrombar a fechadura.
Sua postura alerta se transformou em alarme, até pânico. Ela voltou para a sala de estar e pegou o telefone celular — vimos aparecer quando ela o tocou — e digitou alguns números. Ligando para alguém na discagem rápida. Mas antes que o telefone pudesse tocar do outro lado da linha, a porta explodiu para dentro e um sujeito entrou, metade lobo, metade homem. Ele apareceu porque era uma criatura viva, mas era mais nítido quando se aproximava de Maria-Star, o foco do feitiço. Ele prendeu MariaStar no chão e a mordeu profundamente no ombro. Ela abriu a boca e era possível notar que estava gritando e lutando como uma Lobi, mas ele a pegou completamente de surpresa e os braços dela estavam presos. Linhas brilhantes indicavam sangue escorrendo da mordida.
Dawson apertou meu ombro, um rosnado surgindo em sua garganta. Eu não sabia se ele estava furioso com o ataque contra MariaStar, excitado com a ação e a impressão do sangue fluindo ou todas as opções anteriores.
Um segundo lobisomem surgiu atrás do primeiro. Ele estava em sua forma humana. E tinha uma faca na mão direita. Ele a cravou no torso de Maria-Star, removeu, levantou e enfiou de novo. Enquanto a faca era repetidamente cravada, gotas de sangue eram lançadas nas paredes.
Podíamos ver o sangue, então devia ter ectoplasma (ou o que quer que fosse de verdade) no sangue também.
Eu não conhecia o primeiro homem. Esse sujeito, eu reconheci. Ele era Cal Myers, partidário de Furnan e detetive da polícia no esquadrão de Shreveport. O ataque surpresa levou apenas alguns segundos. No momento em que Maria-Star se viu com certeza mortalmente ferida, eles saíram pela porta, fechando-a atrás deles. Eu estava chocada com a brusquidão e a crueldade terrível do assassinato, e senti minha respiração se acelerar. Maria-Star, brilhante e quase transparente, ficou caída diante de nós por um momento no meio da destruição, com manchas brilhantes de sangue na camisa e no chão ao redor dela, e então simplesmente desapareceu da existência, porque morreu naquele momento.
Todos nós ficamos em pavoroso silêncio. As bruxas estavam quietas, os braços caídos como se fossem marionetes cujos fios foram cortados. Octavia chorava, as lágrimas escorrendo pelas bochechas enrugadas. Amelia parecia prestes a vomitar. Minha reação foi trêmula e até Dawson parecia nauseado.
— Eu não conheço o primeiro cara já que se transformou pela metade — disse Dawson. — O segundo parecia familiar. Ele é tira, certo? Em Shreveport?
— Cal Myers. É melhor ligar para Alcide — eu disse quando achei que minha voz funcionaria. — E Alcide precisa enviar algo para essas senhoras pelo incômodo, quando resolver seus próprios problemas. — Imaginei que Alcide poderia não pensar nisso já que estava lamentando por Maria-Star, mas as bruxas fizeram aquele trabalho sem menção de recompensa. Elas mereciam ser compensadas pelo esforço. Aquilo lhes custara caro: ambas estavam encolhidas no sofá.
— Se as senhoras conseguirem — disse Dawson — é melhor nós sairmos daqui. Não há como saber quando a polícia vai voltar. O laboratório criminal acabou cinco minutos antes de vocês chegarem.
Enquanto as bruxas reuniam as energias e toda a parafernália, eu falei com Dawson.
— Você disse que Alcide possuía um bom álibi?
Dawson assentiu.
— Ele recebeu um telefonema da vizinha de Maria-Star. Ela ligou para Alcide assim que chamou a polícia, quando ouviu todo o alvoroço.
Com certeza a chamada foi para o seu celular, mas ele atendeu imediatamente e ela conseguiu ouvir os ruídos do bar do hotel no fundo da conversa. Além disso, ele estava com pessoas que acabara de conhecer e eles juraram que esteve ali quando descobriu que ela foi assassinada. Não é provável que se esqueçam.
— Acho que a polícia está tentando descobrir um motivo. — Era isso que faziam nos programas da televisão.
— Ela não tinha inimigos. — disse Dawson.
— E agora? — disse Amelia. Ela e Octavia estavam de pé, mas claramente esgotadas. Dawson nos conduziu para fora do apartamento e trancou-o.
— Agradeço por virem, senhoras — Dawson disse a Amelia e Octavia. Ele se virou para mim. — Sookie, você poderia vir comigo, explicar a Alcide o que acabamos de ver? Amelia pode levar a Srta. Fant de volta?
— Ah. Claro. Se ela não estiver muito cansada.
Amelia achava que podia manejar. Nós viemos em meu carro, então dei minhas chaves.
— Você está bem para dirigir? — perguntei, apenas para me tranqüilizar.
Ela concordou. — Irei devagar.
Eu estava entrando na caminhonete de Dawson quando percebi que este passo me arrastaria ainda mais para dentro da guerra dos Lobis. Então pensei, Patrick Furnan já tentou me matar. Não pode ficar pior.
A CAMINHONETE DE DAWSON, uma Dodge Ram, apesar de maltratada do lado de fora, era limpa por dentro. Não era um veículo novo de forma alguma — provavelmente tinha uns cinco anos — mas era muito bem conservada sob o capô e na cabine.
— Você não é um membro da matilha, Dawson, certo?
— É Tray. Tray Dawson.
— Oh, me desculpe.
Dawson deu de ombros, como para dizer Não é nada demais.
— Eu nunca fui um bom animal de matilha — disse. — Não conseguia me manter na linha. Não conseguia seguir a cadeia de comando.
— Então por que está se envolvendo nessa luta? — indaguei.
— Patrick Furnan tentou me tirar dos negócios — disse Dawson.
— Por que ele fez isso?
— Não existem muitas oficinas de motocicletas na área, especialmente depois que Furnan comprou a concessionária HarleyDavidson em Shreveport — Tray explicou. — É a ganância do fulano. Ele quer tudo só para ele. Não se importa com quem sai falido. Quando percebeu que eu estava mantendo minha loja, ele mandou alguns sujeitos para me visitar. Eles me espancaram e destruíram a loja.
— Eles devem ter sido realmente bons — falei. Era difícil acreditar que alguém conseguiu derrotar Tray Dawson. — Você chamou a polícia?
— Não. Os tiras em Bon Temps não são loucos por mim afinal. Mas entrei no jogo com Alcide.
O detetive Cal Myers, obviamente, não se importava em fazer o trabalho sujo de Furnan. Foi Myers quem colaborou com Furnan ao trapacear na competição para líder do bando. Mas fiquei realmente chocada por ele ter ido tão longe ao assassinar Maria-Star, cujo único pecado foi ser amada por Alcide. Contudo, nós vimos com nossos próprios olhos.
— Qual é o lance entre você e a polícia de Bon Temps? — perguntei, já que estávamos falando sobre a força policial.
Ele riu. — Eu fui tira; você sabia disso?
— Não — falei genuinamente surpresa. — Verdade?
— Verdade — ele disse. — Eu estava no esquadrão em Nova Orleans. Mas não gosto de política e meu capitão era um verdadeiro bastardo, desculpe o linguajar.
Eu assenti séria. Já fazia um bom tempo desde que alguém se desculpou por usar palavrões em minha presença.
— Então, algo aconteceu?
— Sim, eventualmente as coisas chegam num limite. O capitão me acusou de pegar o dinheiro que um vigarista deixou largado numa mesa quando o prendemos em sua casa. — Tray sacudiu a cabeça de desgosto. — Então tive que me demitir. Eu gostava do trabalho.
— O que você gostava nele?
— Nenhum dia era igual. Sim, claro, entrávamos nos carrospatrulha. Isso era igual. Mas toda vez que saíamos algo diferente acontecia.
Eu concordei. Podia entender isso. Todos os dias no bar eram um pouco diferentes também, embora provavelmente não fossem tão diferentes como os dias que Tray teve no carro-patrulha.
Dirigimos em silêncio por algum tempo. Percebi que Tray pensava nas chances de Alcide vencer Furnan na luta pela liderança. Ele estava pensando que Alcide era um sujeito de sorte por ter saído comigo e MariaStar, e ainda mais sortudo desde que aquela cadela Debbie Pelt desaparecera. Já foi tarde, Tray pensou.
— Agora eu tenho que fazer uma pergunta — disse Tray.
— É justo.
— Você teve algo a ver com o desaparecimento de Debbie?
Respirei fundo. — Sim. Autodefesa.
— Bom para você. Alguém precisava fazer isso.
Ficamos quietos novamente por pelo menos dez minutos. Não querendo arrastar demais o passado para o presente, mas Alcide terminou com Debbie Pelt antes de eu conhecê-lo. Então ele saiu comigo por um tempo. Debbie decidiu que eu era uma inimiga e tentou me matar. Eu a peguei primeiro. E fiz as pazes com isso... Tanto quanto é possível. Contudo, foi impossível para Alcide me olhar novamente do mesmo modo, e quem poderia culpá-lo? Ele encontrou Maria-Star, e isso era algo bom.
Foi algo bom.
Senti as lágrimas toldando meus olhos e olhei pela janela. Passamos pelo autódromo e pelo desvio do Shopping Pierre Bossier, seguindo por mais algumas saídas antes de Tray conduzir a caminhonete por uma rampa.
Serpenteamos por uma vizinhança modesta durante um tempo, com Tray verificando o espelho retrovisor tão frequentemente que até eu percebi que ele estava vendo se alguém nos seguia. Tray virou de repente numa entrada e parou nos fundos de uma das casas maiores, recatadamente pintada de branco. Estacionamos sob uma cobertura nos fundos, ao lado de outra picape. Havia uma pequena Nissan estacionada num canto. Havia algumas motos também, e Tray lançou-lhes um olhar de interesse profissional.
— De quem é o lugar? — Eu estava um pouco hesitante sobre fazer outra pergunta, mas afinal, eu queria saber onde estava.
— Amanda — ele disse. Ele esperou que eu fosse na frente, e subi os três degraus até a varanda dos fundos, tocando a campainha.
— Quem é? — perguntou uma voz abafada.
— Sookie e Dawson — respondi.
A porta se abriu cautelosamente, a entrada bloqueada por Amanda para que não pudéssemos visualizar o interior. Eu não entendo muito de armas, mas ela tinha um revólver enorme na mão e apontado firmemente para o meu peito. Aquela era a segunda vez em dois dias que eu tinha uma arma apontada para mim. De repente, me senti fria e um pouco tonta.
— Okay — disse Amanda depois de nos fitar agudamente.
Alcide encontrava-se atrás da porta, com uma espingarda preparada. Ele ficou em nossa linha de visão assim que entramos, e quando seus próprios sentidos nos verificaram, ele relaxou. Colocou a espingarda sobre o balcão da cozinha e sentou-se à mesa.
— Sinto muito sobre Maria-Star, Alcide — eu disse, forçando as palavras através de lábios rígidos. Ter armas apontadas para você é simplesmente aterrorizante, especialmente tão de perto.
— Ainda não consegui entender — ele disse, a voz oca e neutra. Decidi que ele estava dizendo que o impacto da morte dela ainda não o atingira. — Estávamos pensando em morar juntos. Isso teria salvado a vida dela.
Não adiantava nada se lamuriar pelo que teria sido. Era apenas outra forma de se torturar. O que de fato tinha acontecido já era ruim o bastante.
— Sabemos quem foi — disse Dawson e um arrepio percorreu a sala. Havia outros Lobis na casa — eu podia senti-los agora — e todos ficaram alertas diante das palavras de Tray Dawson.
— O quê? Como? — Sem eu perceber o movimento, Alcide ficou de pé.
— Ela chamou as amigas bruxas para fazer uma reconstrução — disse Tray, acenando na minha direção. — Eu assisti. Eram dois sujeitos. Um que eu nunca vi, então Furnan trouxe alguns lobos de fora. O segundo era Cal Myers.
As mãos grandes de Alcide se fecharam em punhos. Ele parecia não saber por onde começar a falar, teve tantas reações.
— Furnan contratou ajuda — disse Alcide, finalmente se decidindo por um tópico. — Então temos o direito de matar sem aviso. Agarramos um dos bastardos e o fazemos falar. Não podemos trazer um refém para cá; alguém notaria. Tray, onde?
— Pêlo do Cachorro — ele respondeu.
Amanda não ficou entusiasmada com a idéia. Ela era dona do bar, e usá-lo como local de execução ou tortura não a atraía. Ela abriu a boca para protestar. Alcide a encarou e grunhiu, o rosto se contorcendo em algo que não era totalmente Alcide. Ela ficou amedrontada e assentiu em concordância.
Alcide elevou ainda mais a voz para seu próximo pronunciamento.
— Cal Myers é Morte Imediata.
— Mas ele é um membro da matilha e membros são julgados — disse Amanda, e então se intimidou, corretamente antecipando o grito mudo de fúria de Alcide.
— Você não perguntou sobre o homem que tentou me matar — eu disse. Queria desarmar a situação, se aquilo fosse possível.
Furioso como se encontrava, Alcide ainda era decente demais para me lembrar que eu estava viva e Maria-Star não, ou que amou Maria-Star muito mais do que jamais se importou comigo. No entanto, ambos os pensamentos cruzaram sua mente.
— Ele era um Lobisomem — falei. — Cerca de 1,90m, vinte e poucos anos. Sem barba. Ele tinha cabelos castanhos, olhos azuis e um grande sinal de nascença no pescoço.
— Oh — disse Amanda. — Parece o fulano, o novo mecânico da oficina de Furnan. Contratado na semana passada. Lucky Owens. Ha! Com quem você estava?
— Estava com Eric Northman — respondi.
Houve um longo silêncio, não totalmente amistoso. Lobis e vampiros são rivais naturais, se não inimigos declarados.
— Então o sujeito está morto? — Tray perguntou de modo prático, e eu assenti.
— Como ele se aproximou de você? — Alcide perguntou num tom de voz mais racional.
— É uma pergunta interessante — falei. — Eu estava na interestadual indo para casa de Shreveport, com Eric. Fomos a um restaurante lá.
— Então quem saberia onde você estava e com quem? — disse Amanda, enquanto Alcide fazia uma careta para o chão, imerso em pensamentos.
— Ou que você teria que voltar para casa pela rodovia interestadual ontem à noite. — Tray realmente estava subindo em meu conceito; ele estava presente com idéias práticas e pertinentes.
— Eu contei à minha colega de quarto apenas que ia sair para jantar, não onde — falei. — Encontramos alguém lá, mas podemos deixá-lo de fora. Eric sabia, porque estava agindo como motorista. Mas eu conheço Eric, e o outro homem não contou a ninguém.
— Como pode ter tanta certeza? — Tray perguntou.
— Eric levou um tiro me protegendo — eu disse. — E a pessoa que ele me levou para encontrar era um parente.
Amanda e Tray não sabiam o quanto minha família era pequena, então não entenderam como aquela afirmação era importantíssima. Mas Alcide, que sabia mais a meu respeito, me fuzilou com o olhar.
— Você está inventando isso — disse.
— Não, não estou. — Encarei-o de volta. Sabia que esse era um dia terrível para Alcide, mas eu não tinha que explicar minha vida. Mas tive um pensamento repentino. — Sabe, o garçom — ele era um Lobi. — Aquilo explicaria um bocado.
— Qual é o nome do restaurante?
— Les Deux Poissons. — Meu sotaque não era bom, mas os Lobis assentiram.
— Kendall trabalha lá — disse Alcide. — Kendall Kent. Cabelo ruivo comprido? — Eu concordei e ele pareceu triste. — Achei que Kendall ficaria do nosso lado. Tomamos cerveja juntos algumas vezes.
— É o filho mais velho de Jack Kent. Tudo que teria que fazer era dar um telefonema — disse Amanda. — Talvez ele não soubesse...
— Não é desculpa — disse Tray. A voz profunda reverberou pela cozinha pequena. — Kendall tinha que saber quem era Sookie, da competição para líder do bando. Ela é uma amiga da matilha. Ao invés de contar a Alcide que ela estava em nosso território e devia ser protegida, ele ligou para Furnan e contou onde Sookie estava, talvez tenha informado quando ela voltaria para casa. Facilitou para que Lucky ficasse esperando.
Eu queria protestar e dizer que não havia certeza de que acontecera daquele jeito, mas quando pensei a respeito, teria sido exatamente assim ou algo bem parecido. Apenas para ter certeza de que estava lembrando corretamente, liguei para Amelia e perguntei se contou a alguém onde eu estava na noite passada.
— Não — ela disse. — Falei com Octavia, que não a conhecia. Recebi um telefonema daquele rapaz pantera que conheci no casamento de seu irmão. Acredite, você não foi mencionada na conversa. Alcide ligou, bem aborrecido. Tanya. Não contei nada.
— Obrigada, companheira — eu disse. — Você está se recuperando?
— Sim, estou me sentindo melhor, e Octavia voltou para a família com quem está ficando em Monroe.
— Okay, te vejo quando voltar.
— Você vai voltar a tempo de trabalhar?
— Sim, eu tenho que chegar a tempo. — Já que passei aquela semana em Rhodes, eu tinha que ser cuidadosa para me manter no horário por um tempo, do contrário as outras garçonetes me jogariam na cara que Sam estava me dando todas as folgas. Desliguei. — Ela não contou a ninguém — falei.
— Então você — e Eric — tiveram um jantar agradável num restaurante caro com outro homem.
Fitei-o incrédula. Isso não tinha nada a ver com a situação. Me concentrei. Eu nunca fiz uma sondagem mental em alguém com tal agitação. Alcide sentia pesar por Maria-Star, culpa porque não a protegeu, raiva por eu ter sido envolvida no conflito e, acima de tudo, avidez por nocautear alguns crânios. E a cereja do bolo em tudo aquilo, Alcide— irracionalmente—odiava o fato de eu ter saído com Eric.
Tentei manter a boca fechada em respeito por sua perda; eu mesma compreendia e tive emoções conflitantes. Mas me descobri abrupta e completamente cansada dele.
— Okay — eu disse. — Lute suas próprias batalhas. Eu vim quando você me pediu. Ajudei quando você me pediu, tanto na batalha para líder quanto hoje, à custa de minha própria dor. Foda-se, Alcide. Talvez Furnan seja o melhor Lobi. — Girei nos calcanhares e percebi o olhar que Tray Dawson lançou a Alcide enquanto eu marchava para fora da cozinha, descia os degraus e ia até a garagem coberta. Se houvesse uma lata no caminho, eu teria chutado.
— Eu a levo para casa — disse Tray, surgindo ao meu lado, e marchei até a porta do carro, grata por ele me dar o recurso para partir. Quando saí enfurecida, eu não estava pensando no que aconteceria depois. É a ruína de uma boa saída quando se tem que voltar e procurar na lista telefônica por uma companhia de táxi. Eu acreditei que Alcide realmente me odiava após o desastre com Debbie. Aparentemente o ódio não era total.
— Meio irônico, não acha? — eu disse após um instante de silêncio. — Quase levei um tiro na noite passada, porque Patrick Furnan achou que isso aborreceria Alcide. Até dez minutos atrás, eu teria jurado que isso não era verdade.
Tray parecia preferir estar fatiando cebolas ao invés de lidar com aquela conversa. Após outra pausa, ele disse, — Alcide agiu como um imbecil, mas está lidando com um bocado de problemas.
— Eu entendo — falei e fechei a boca antes que dissesse mais uma palavra.
No fim, cheguei a tempo para trabalhar à noite. Eu estava tão zangada enquanto trocava de roupa que quase rasguei minhas calças ao puxá-las com força. Escovei os cabelos com vigor desnecessário a ponto de estalar.
— Homens são idiotas incompreensíveis — eu disse a Amelia.
— Sem dúvida — ela disse. — Quando fui procurar Bob hoje, encontrei uma gata na floresta com filhotes. E adivinha? Eles eram todos preto-e-branco.
Eu realmente não tinha idéia do que dizer.
— Então para o inferno com a promessa que eu fiz, certo? Vou me divertir. Ele pode ter sexo; eu posso ter sexo. E se ele vomitar em minha colcha de novo, vou atrás dele com uma vassoura.
Tentei não olhar diretamente para Amelia.
— Eu não a culpo — falei, tentando manter a voz firme. Era bom estar a ponto de rir ao invés de querer bater em alguém. Peguei minha bolsa, verifiquei meu rabo de cavalo no espelho do banheiro e saí pela porta dos fundos, para ir ao Merlotte’s.
Sentia-me cansada antes mesmo de entrar pela porta dos funcionários, o que não era um bom modo de começar meu turno.
Não vi Sam quando guardei minha bolsa na gaveta da escrivaninha que todas usávamos. Quando segui pelo corredor de acesso para os dois banheiros públicos, o escritório de Sam, e a cozinha (apesar da porta da cozinha ser mantida trancada por dentro na maior parte do tempo), eu encontrei Sam atrás do balcão no bar. Dei-lhe um aceno enquanto amarrava o avental branco que peguei da pilha de dúzias. Enfiei meu bloquinho de pedidos e um lápis no bolso, olhei ao redor procurando por Arlene, a quem eu substituiria, e verifiquei as mesas em nossa seção.
Meu coração afundou. Nada de noite tranqüila para mim. Alguns imbecis com camisetas da Irmandade do Sol estavam sentados em uma das mesas. A Irmandade era uma organização radical que acreditava que (a) vampiros eram pecadores por natureza, quase demônios, e (b) deviam ser executados. Os “pastores” da Irmandade não diziam publicamente, mas advogavam a total erradicação dos morto-vivos. Ouvi falar que havia até mesmo uma pequena cartilha aconselhando membros sobre como deviam agir. Depois da explosão em Rhodes, eles se tornaram ousados em seu ódio.
O grupo da IdS estava crescendo enquanto os americanos lutavam para aceitar algo que não conseguiam entender — enquanto centenas de vampiros surgiam no país que lhes dava a mais favorável recepção de todas as nações na terra. Já que alguns países de maioria católica e muçulmana adotaram a política de matar vampiros imediatamente, os EUA começaram a aceitar vampiros como refugiados por perseguição política ou religiosa, e a reação a esta política era violenta. Recentemente, eu vi um adesivo de carro que dizia, “Eu direi que vampiros estão vivos quando você tirar meus dedos gelados da minha garganta estraçalhada.”
Eu considerava a IdS intolerante e ignorante, e desprezava aqueles que pertenciam às suas fileiras. Mas estava acostumada a manter a boca fechada sobre o assunto no bar, do mesmo modo que me acostumei a evitar discussões sobre aborto, controle de armas ou gays no serviço militar.
Claro, os caras da IdS provavelmente eram companheiros de Arlene. Minha influenciável ex-amiga engoliu com anzol e tudo a pseudoreligião que a IdS propagava.
Arlene me instruiu brevemente sobre as mesas enquanto seguia para a porta dos fundos, com uma expressão agressiva contra mim. Enquanto a observava partir, imaginei como estavam os filhos dela. Eu costumava ser babá deles. Provavelmente me detestavam agora, se ouviam a mãe.
Afastei minha melancolia, porque Sam não me pagava para ficar deprimida. Fiz as rondas dos clientes, renovei drinques, me certifiquei de que todos tinham comida suficiente, levei um garfo limpo para uma mulher que derrubou o dela, forneci guardanapos extras para a mesa onde Catfish Hennessy comia tiras de frango e troquei algumas palavras animadas com os caras sentados no balcão. Tratei a mesa da IdS do mesmo modo como tratava todos os outros, e eles não pareceram prestar qualquer atenção especial em mim, o que era ótimo. Esperei que eles fossem embora sem problemas... até Pam entrar.
Pam é branca como uma folha de papel e parece Alice no País das Maravilhas se esta crescesse para se tornar uma vampira. De fato, esta noite Pam tinha uma faixa azul prendendo os cabelos claros lisos, e usava um vestido ao invés do habitual conjunto de calças. Ela estava adorável — mesmo parecendo uma vampira escalada para um episódio de Leave It To Beaver∗. Seu vestido possuía pequenas mangas bufantes com renda branca, a mesma renda que enfeitava o colarinho também. Os pequenos botões na frente do corpete eram brancos para combinar com as pintas da saia. Sem meias, notei, mas qualquer meia que ela comprasse pareceria estranha já que o resto de sua pele era tão pálido.
∗ Seriado de TV dos anos 50, sobre típica família americana.
— Oi, Pam — eu disse enquanto ela vinha na minha direção.
— Sookie — ela disse calorosamente, me dando um beijo tão leve quanto um floco de neve. Seus lábios pareceram frios em minha bochecha.
— O que foi? — perguntei. Pam normalmente trabalhava no Fangtasia à noite.
— Eu tenho um encontro — ela disse. — Você acha que eu pareço bonita? — Ela girou.
— Oh, claro — respondi. — Você sempre está linda, Pam. — Aquilo era simplesmente a verdade. Embora as escolhas de roupas de Pam frequentemente fossem ultraconservadoras e estranhamente antiquadas, isso não significava que não a favoreciam. Ela possuía uma espécie de charme doce-mas-letal. — Quem é o cara de sorte?
Ela lançou um olhar tão oblíquo quanto um vampiro de duzentos anos pode lançar. — Quem disse que é um cara? — disse.
— Oh, certo. — Olhei ao redor. — Quem é a pessoa de sorte?
Nesse instante, minha colega de quarto entrou. Amelia usava um belo par de calças pretas de linho e saltos, com um suéter branco e um par de brincos âmbar de tartaruga. Ela parecia conservadora também, mas de um jeito mais moderno. Amelia aproximou-se de nós, sorriu para Pam e disse, — Já pediu um drinque?
Pam sorriu de um modo que eu nunca vi antes. Era... tímido. — Não, esperando por você.
Elas se sentaram no bar e Sam as serviu. Logo elas estavam batendo papo e quando terminaram seus drinques, levantaram-se para ir embora. Quando passaram por mim a caminho da saída, Amelia disse, — Te vejo quando a vir — seu modo de me dizer que podia não voltar para casa esta noite.
— Okay, divirtam-se as duas — falei. A despedida foi acompanhada por mais do que um par de olhos masculinos. Se córneas se embaçassem como óculos, todos os sujeitos no bar estariam vendo nublado.
Fiz a ronda de minhas mesas novamente, levando mais cerveja para um, deixando a conta para outro, até que alcancei a mesa com os dois sujeitos usando camisetas da IdS. Eles ainda observavam a porta como se esperassem que Pam pulasse para dentro e gritasse, “BOO!”
— Eu acabei de ver o que acho que vi? — um dos homens me perguntou. Ele tinha trinta e poucos anos, sem barba, cabelos castanhos, apenas um cara. O outro homem era alguém que eu teria olhado com cautela se estivéssemos sozinhos num elevador. Ele era magro, tinha uma barba rala no maxilar, decorado com algumas tatuagens que pareciam serviços caseiros para mim — tatuagens de cadeia — e carregava uma faca presa ao tornozelo, algo que não foi difícil de avistar, uma vez que ouvi em sua mente que ele estava armado.
— O que você acha que viu? — perguntei docemente. Cabelo Castanho achou que eu era meio simplória. Mas isso era uma boa camuflagem e significava que Arlene não chegou a contar tudo sobre minhas pequenas peculiaridades. Ninguém em Bon Temps (se perguntar do lado de fora da igreja aos domingos) teria dito que telepatia era possível. Se você perguntasse do lado de fora do Merlotte’s no sabado a noite, eles poderiam dizer que havia algo aí.
— Eu acho que vi uma vampira entrar aqui, como se tivesse o direito. E acho que vi uma mulher ficar contente por sair com ela. Juro por Deus, não consigo acreditar. — Ele me olhou como se eu compartilhasse com certeza de seu ultraje. Tatuagem de Cadeia concordou vigorosamente.
— Desculpe — você viu duas mulheres saindo juntas do bar e isso o incomoda? Eu não entendo o seu problema com isso. — É claro que entendia, mas tinha que fingir algumas vezes.
— Sookie! — Sam estava me chamando.
— Posso servir mais alguma coisa aos cavalheiros? — perguntei, já que Sam sem dúvida estava tentando me fazer voltar à razão.
Ambos me fitavam de modo estranho agora, tendo deduzido corretamente que eu não concordava exatamente com o programa deles.
— Acho que estamos prontos para ir embora — disse Tatuagem de Cadeia, claramente desejando que eu sofresse por afastar clientes pagantes. — Você tem nossa conta pronta? — Eu tinha e deixei-a sobre a mesa entre eles. Eles olharam para ela, jogaram uma nota de dez dólares e puxaram as cadeiras para trás.
— Volto com o troco num segundo — falei, me virando.
— Sem troco — disse Cabelo Castanho, embora seu tom fosse firme e não parecesse genuinamente emocionado com meu serviço.
— Idiotas — murmurei enquanto ia até a caixa registradora no balcão.
Sam disse, — Sookie, você tem que engolir.
Eu fiquei tão surpresa que encarei Sam. Ambos estávamos atrás do balcão, e Sam misturava uma vodca collins. Mantendo os olhos nas mãos, ele continuou em voz baixa: — Você tem que servi-los igual a todo mundo.
Não era com freqüência que Sam me tratava como uma empregada ao invés de associada de confiança. Me magoou; ainda mais porque percebi que ele estava certo. Embora tenha sido cortês na superfície, eu teria (e devia) engolido as últimas afirmações deles sem comentários—se não fosse pelas camisetas da IdS. O Merlotte’s não era meu negócio. Era de Sam. Se os clientes não voltassem, ele sofreria as conseqüências. Eventualmente, se ele tivesse que deixar as garçonetes irem embora, eu teria que ir também.
— Desculpe — eu disse, apesar de não ser fácil conseguir botar para fora. Dei um sorriso brilhante para Sam e saí para fazer uma ronda desnecessária em minhas mesas, uma que provavelmente cruzava a linha entre atencioso e irritante. Mas se eu fosse para o banheiro dos funcionários ou o banheiro público das senhoras, eu acabaria chorando, porque doía ser repreendida e estar errada; mas acima de tudo, doía ser colocada em meu lugar.
Quando fechamos naquela noite, eu fui embora tão rápida e silenciosamente quanto possível. Sabia que teria que superar o fato de sair magoada, mas preferia me curar em minha própria casa. Eu não queria ter uma “conversinha” com Sam—ou qualquer outro, sobre isso. Holly me olhou com grande curiosidade.
Então saí para o estacionamento com minha bolsa e ainda usando o avental. Tray estava apoiado contra meu carro. Pulei antes que pudesse me impedir.
— Você está correndo de medo? — ele perguntou.
— Não, estou correndo de irritação — falei. — O que está fazendo
aqui?
— Vou segui-la até sua casa — disse. — Amelia está lá?
— Não, ela saiu para um encontro.
— Então eu vou definitivamente verificar a casa — disse o homenzarrão que subiu em sua caminhonete para me seguir pela Rodovia Hummingbird.
Não havia qualquer razão que eu pudesse ver para protestar. De fato, me fez sentir bem ter alguém comigo, alguém em quem confiava.
Minha casa estava como eu havia deixado, ou melhor, como Amelia deixou. A luz externa de segurança se acendeu automaticamente e ela deixou acesa a luz sobre a pia na cozinha, bem como a luz da varanda nos fundos. Chaves na mão, eu cruzei a porta da cozinha.
A mão grande de Tray agarrou meu braço quando comecei a girar a maçaneta da porta.
— Não há ninguém lá — eu disse, tendo checado de meu próprio jeito. — E está enfeitiçada por Amelia.
— Você fica aqui enquanto eu olho por aí — ele disse gentilmente. Eu concordei e o deixei entrar. Após alguns segundos de silêncio, ele abriu a porta para me dizer que eu podia entrar na cozinha. Eu estava pronta para segui-lo através da casa para o resto de sua busca, mas ele disse: — Eu certamente gostaria de um copo de Coca, se você tiver.
Ele me impediu perfeitamente de segui-lo ao apelar para minha hospitalidade. Minha avó teria me batido com um mata-moscas se não tivesse arrumado a Coca para Tray imediatamente.
No momento em que ele voltou para a cozinha e declarou que a casa estava livre de intrusos, a Coca gelada estava num copo sobre a mesa e havia um sanduíche de bolo de carne ao lado. Com um guardanapo dobrado.
Sem uma palavra, Tray sentou-se, abriu o guardanapo no colo, comeu o sanduíche e tomou a Coca. Eu sentei do lado oposto com minha própria bebida.
— Ouvi dizer que seu homem desapareceu — disse Tray, limpando os lábios no guardanapo. Eu assenti. — O que você acha que aconteceu com ele?
Eu expliquei as circunstâncias. — Então não ouvi uma palavra dele — concluí. Essa história estava se tornando quase automática, como se eu devesse gravá-la numa fita.
— Isso é ruim — foi tudo que ele disse. De algum modo isso me fez sentir melhor, aquela discussão tranqüila e sem dramaticidade sobre um assunto bem sensível. Após um minuto de silêncio meditativo, Tray disse: — Espero que você o encontre logo.
— Obrigada. Eu realmente estou ansiosa para saber como ele está. — Aquilo era uma enorme atenuação da verdade.
— Bem, é melhor eu ir andando — ele disse. — Se ficar nervosa à noite, me ligue. Posso chegar aqui em dez minutos. Não é bom você ficar sozinha com uma guerra começando.
Tive uma imagem mental de tanques invadindo minha entrada.
— Quanto você acha que pode ficar ruim? — perguntei.
— Meu pai me contou que na última guerra, que aconteceu quando o pai dele era pequeno, a matilha em Shreveport lutou com a matilha em Monroe. A matilha de Shreveport tinha cerca de quarenta membros na época, contando os meio-lobos. — Aquele era o termo comum para Lobis que se tornavam lobos ao serem mordidos. Eles podiam se transformar apenas numa espécie de homem-lobo, nunca alcançando a forma perfeita que os nascidos achavam ser vastamente superior. — Mas a matilha de Monroe tinha um bocado de crianças do colegial, então vieram com quarenta, quarenta e cinco membros também. Ao fim da luta, ambas as matilhas foram reduzidas à metade.
Pensei nos Lobis que eu conhecia. — Espero que pare agora — falei.
— Não vai — disse Tray objetivamente. — Eles experimentaram sangue, e matar a garota de Alcide ao invés de tentar ir atrás dele foi um modo covarde de começar a luta. Tentarem pegar você também; isso apenas piorou as coisas. Você não tem uma gota de sangue Lobi. É amiga da matilha. Isso devia torná-la intocável, não um alvo. E essa tarde, Alcide encontrou Christine Larrabee morta.
Fiquei chocada novamente. Christine Larrabee era — foi — viúva de um dos líderes anteriores. Ela possuía uma posição elevada na comunidade Lobi e até apoiou, relutantemente, Jackson Herveaux para líder do bando. Agora ela recebeu a desforra atrasada.
— Ele não vai atrás de nenhum homem? — eu finalmente consegui falar.
O rosto de Tray estava sombrio de desprezo.
— Não — disse o Lobi. — O único modo como eu posso interpretar isso é que Furnan quer provocar o temperamento de Alcide. Ele quer que todos fiquem por um fio, enquanto o próprio Furnan permanece frio e controlado. Ele está prestes a conseguir o que quer também. Entre a dor e o insulto pessoal, Alcide está prestes a explodir como uma espingarda. Ele precisa ser mais como um rifle de mira telescópica.
— A estratégia de Furnan não é realmente... incomum?
— Sim — disse Tray pesadamente. — Eu não sei o que deu nele. Aparentemente, ele não quer encarar Alcide num combate pessoal. Não quer simplesmente derrotar Alcide. Está pretendendo matá-lo e ao seu pessoal, tanto quanto posso perceber. Alguns dos Lobis, aqueles com filhos pequenos, já estão voltando a jurar lealdade a ele. Estão com muito medo do que ele fará aos filhos, após os ataques contra as mulheres. — O Lobi ficou de pé. — Obrigado pela comida. Tenho que ir alimentar meus cães. Você tranque bem a porta depois que eu sair, ouviu? E onde está seu telefone celular?
Eu o entreguei a ele, e com movimentos surpreendentemente perfeitos para mãos tão grandes, Tray programou o número de seu celular na minha agenda telefônica. Então foi embora com um aceno de mão casual. Ele possuía uma bela casinha ao lado da oficina e eu fiquei realmente aliviada por descobrir que ele calculou a viagem de lá para cá em apenas dez minutos. Tranquei a porta atrás dele e verifiquei as janelas da cozinha. Certamente, Amelia deixou uma aberta em algum momento durante a tarde amena. Depois daquela descoberta, me senti compelida a verificar cada janela da casa, até mesmo aquelas no andar de cima.
Após ter feito isso e me sentir tão segura quanto possível, liguei a televisão e sentei diante dela, não vendo realmente o que acontecia na tela. Eu tinha muito no que pensar.
Meses atrás, eu fui à competição para líder do bando a pedido de Alcide para vigiar trapaças. Foi má sorte que minha presença tenha sido notada e a descoberta da traição de Furnan tenha sido pública. Me incomodava ter sido envolvida naquela luta que não era de minha conta. Na verdade, em essência, conhecer Alcide não me trouxe nada exceto dor.
Senti quase alívio por sentir uma ponta de raiva crescer com essa injustiça, mas meu melhor lado me incitou a cortá-lo pela raiz. Não era culpa de Alcide que Debbie Pelt tivesse sido uma cadela homicida, e não era culpa de Alcide que Patrick Furnan tivesse decidido trapacear na competição. Igualmente, Alcide não era responsável pela sede de sangue de Furnan e a abordagem incomum para consolidar sua matilha. Imaginei se este comportamento era até remotamente característico dos lobos.
Imaginei que era simplesmente típico de Patrick Furnan.
O telefone tocou e eu pulei uma milha de distância. — Alô? — eu disse, infeliz por notar como minha voz soava assustada.
— O Lobi Herveaux me ligou — disse Eric. — Ele confirma que está em guerra com o líder de seu bando.
— Sim — falei. — Você precisava da confirmação de Alcide? Minha mensagem não foi suficiente?
— Eu teria pensando numa teoria alternativa quanto ao fato de você ser atacada num golpe contra Alcide. Tenho certeza que Niall deve ter mencionado que possui inimigos.
— A-hã.
— Imaginei que um desses inimigos agiu muito sorrateiramente. Se os Lobis têm espiões, as fadas também têm.
Meditei sobre aquilo. — Então, ao querer me conhecer, ele quase causou minha morte.
— Mas ele foi sábio ao me pedir para escoltá-la de Shreveport.
— Então ele salvou minha vida, mesmo embora a tenha arriscado.
Silêncio.
— Na verdade — eu disse, pulando para um terreno emocional mais firme — você salvou minha vida, e sou grata. — Eu meio que esperei Eric perguntar o quanto estava grata, para se referir ao beijo... mas ainda assim ele não falou.
Justo quando estava prestes a deixar escapar algo estúpido para romper o silêncio, o vampiro disse: — Vou interferir na guerra dos Lobis apenas para defender nossos interesses. Ou defender você.
Minha vez de ficar em silêncio.
—Está bem — respondi fracamente.
— Se vir problemas surgindo, se eles tentarem envolvê-la ainda mais, me ligue imediatamente — Eric me disse. — Acredito que o assassino realmente foi mandado pelo líder da matilha. Certamente ele era um Lobi.
— O pessoal de Alcide reconheceu a descrição. O sujeito, Lucky qualquer coisa, tinha acabado de ser contratado por Furnan como mecânico.
— Estranho que ele tenha confiado tal missão a alguém que mal conhecia.
— Já que o cara demonstrou ser tão azarado2.
Eric de fato bufou. Então disse, — Não falarei mais com Niall a respeito disso. Obviamente, eu contei a ele o que aconteceu.
Tive um momento ridículo de dor por Niall não ter corrido para o meu lado ou ligado para perguntar se eu estava bem. Eu o encontrei apenas uma vez e agora estava triste por ele não agir como minha babá.
— Está bem, Eric, obrigada — falei, e desliguei assim que ele disse adeus. Eu devia ter perguntado sobre meu dinheiro novamente, mas estava desanimada demais; além disso, não era problema de Eric.
Fiquei sobressaltada o tempo todo enquanto me preparava para dormir, mas nada aconteceu para me deixar ainda mais ansiosa. Lembrei umas cinqüenta vezes que Amelia havia protegido a casa. Os feitiços funcionariam independente de ela estar ou não na casa. Eu tinha boas trancas nas portas. Estava cansada.
2 Aqui há um trocadilho entre o nome de Lucky Owens na frase “Since the guy turned out to be so unlucky.” Unlucky – azarado. Lucky – sorte, sortudo.
Finalmente, eu dormi, mas acordei mais de uma vez, tentando ouvir um assassino.
ACORDEI COM OS OLHOS pesados no dia seguinte. Sentia-me tonta e a cabeça doía. Eu tinha o equivalente a uma ressaca emocional. Algo tinha que mudar. Não podia passar outra noite como essa. Imaginei se devia ligar para Alcide e ver se ele, hã, foi para a cama com seus soldados. Talvez eles me dessem um canto? Mas a simples idéia de ter que fazer isso para me sentir segura me deixou zangada.
Não consegui impedir o pensamento que atravessou minha cabeça — se Quinn estivesse aqui, eu poderia ficar em minha própria casa sem medo. E por um momento, não fiquei apenas preocupada com o desaparecimento de meu namorado ferido, mas zangada com ele.
Eu estava pronta para ficar zangada com alguém. Havia muita emoção solta ao redor. Bom, aquele era o início de um dia muito especial, hein?
Sem Amelia. Tive que assumir que ela passou a noite com Pam. Eu não tinha qualquer problema por elas terem um relacionamento. Simplesmente queria que Amelia estivesse por perto, porque eu estava sozinha e assustada. Sua ausência deixava um pequeno espaço vazio em minha paisagem.
Pelo menos, o ar estava mais frio esta manhã. Podia se sentir claramente que o outono estava a caminho, já no solo pronto para pular e reclamar as folhas, a grama e as flores. Vesti um suéter sobre meu pijama e fui à varanda da frente para tomar meu primeiro copo de café. Ouvi os pássaros por um tempo; eles não estavam tão barulhentos quanto na primavera, mas suas canções e discussões me informaram que não havia nada de incomum na floresta esta manhã. Terminei o café e tentei fazer planos para o dia, mas continuava colidindo contra uma barricada mental. Era difícil fazer planos quando se suspeitava que alguém podia tentar matá-la. Se conseguisse me afastar da questão de minha possível morte iminente, eu precisava passar o aspirador no andar de baixo, lavar uma pilha de roupas e ir à biblioteca. Se sobrevivesse àquelas tarefas, eu tinha que ir trabalhar.
Imaginei onde Quinn estava.
Imaginei quando ouviria falar de meu novo bisavô outra vez.
Imaginei se mais Lobis morreram durante a noite.
Imaginei quando meu telefone tocaria.
Já que nada aconteceu na varanda, me arrastei para dentro e cumpri a rotina habitual para me aprontar. Quando olhei no espelho, me arrependi por ficar preocupada. Eu não parecia descansada e renovada. Parecia uma pessoa preocupada que não conseguiu dormir. Passei um pouco de corretivo debaixo dos olhos, sombra extra e blush para dar alguma cor ao meu rosto. Então decidi que parecia uma palhaça e tirei a maior parte da maquiagem. Depois de alimentar Bob e repreendê-lo pela ninhada de gatinhos, verifiquei minhas trancas novamente e subi no carro para ir à biblioteca.
A biblioteca Renard Parish, filial de Bon Temps, não é um prédio grande. Nossa bibliotecária formou-se na Louisiana Tech em Ruston, e é uma super-mulher no fim dos trinta anos, chamada Barbara Beck. Seu marido, Alcee, é detetive da polícia de Bon Temps, e eu realmente espero que Barbara não saiba no que ele anda metido. Alcee Beck é um homem durão que faz coisas boas... às vezes. E também faz um bocado de coisas ruins. Alcee teve sorte quando conseguiu se casar com Barbara, e sabe disso.
Barbara é a única funcionária em tempo integral da biblioteca, e não fiquei surpresa por encontrá-la sozinha quando abri a porta pesada. Ela estava guardando livros. Barbara se vestia num estilo que eu achava ser chique confortável, significando que ela escolhia malhas de cores brilhantes e usava sapatos combinando. Ela preferia jóias grandes e arrojadas também.
— Bom dia, Sookie — ela disse, dando um grande sorriso.
— Barbara — falei, tentando retribuir o sorriso. Ela notou que eu não estava no meu humor habitual, mas manteve os pensamentos para si. Na verdade não, é claro, já que tenho minha pequena anomalia, mas ela não falou nada em voz alta. Coloquei os livros que estava devolvendo no balcão apropriado, e comecei a olhar as prateleiras de livros recémchegados. A maioria deles era de auto-ajuda, permutados. Se levasse em conta o quanto esses livros eram populares e com que freqüência eram retirados, todo mundo em Bon Temps devia ser perfeito agora.
Peguei dois romances novos e alguns livros de mistério, até um de ficção científica que eu raramente lia (acho que considerava minha realidade mais maluca do que qualquer escritor de ficção científica pudesse sonhar). Enquanto olhava a contracapa do livro de um autor que nunca li, ouvi um baque nos fundos e soube que alguém entrou pela porta dos fundos da biblioteca. Eu não prestei atenção; algumas pessoas normalmente usavam a porta de trás.
Barbara fez um pequeno ruído e eu levantei a cabeça. O homem atrás dela era enorme, pelo menos uns dois metros, e magérrimo. Ele tinha uma grande faca e segurava Barbara pelo pescoço. Por um segundo, achei que ele fosse um assaltante, e imaginei quem pensaria em roubar uma biblioteca. Dinheiro das multas por atraso na devolução?
— Não grite — ele sibilou através de longos dentes afiados. Eu congelei. Barbara estava em algum lugar além do medo. Estava totalmente aterrorizada. Mas percebi outro cérebro ativo no prédio.
Alguém estava entrando silenciosamente pelos fundos.
— O Detetive Beck irá matá-lo se machucar a esposa dele — falei em voz bem alta. E falei com absoluta certeza. — Pode dizer adeus para o seu traseiro.
— Eu não sei quem é esse e não ligo — disse o homem alto.
— É melhor ligar, filho da puta — disse Alcee Beck, surgindo atrás dele silenciosamente. Ele apontou a arma para a cabeça do homem. — Agora solte minha esposa e largue essa faca.
Mas Dentes Afiados não fez isso. Ele girou, empurrou Barbara contra Alcee e correu na minha direção, a faca levantada. Joguei um livro de capa dura da Nora Roberts, atingindo-o na lateral da cabeça. Estendi o pé. Cegado pelo impacto do livro, Dentes Afiados tropeçou em meu pé, como eu esperava.
Ele caiu sobre a própria faca, o que eu não planejei.
A biblioteca caiu num abrupto silêncio, exceto pela respiração ofegante de Barbara. Alcee Beck e eu olhamos a sinistra poça de sangue surgindo debaixo do homem.
— Oh-oh — eu disse.
— Boooom... merda — disse Alcee Beck. — Onde você aprendeu a arremessar assim, Sookie Stackhouse?
— Softball — falei, o que era literalmente verdade.
Como podem imaginar, eu me atrasei para o trabalho naquela tarde. Para começar, eu estava ainda mais cansada do que anteriormente, mas achei que podia sobreviver ao dia. Até agora, por duas vezes seguidas, o destino havia intercedido para evitar meu assassinato. Tive que supor que Dentes Afiados foi mandado para me matar e se deu mal, assim como o patrulheiro rodoviário falso. Talvez a sorte não funcionasse uma terceira vez; mas havia uma chance de que sim. Quais eram as chances de que outro vampiro levasse um tiro por mim, ou que, por puro acidente, Alcee Beck trouxesse o almoço que sua esposa esqueceu no balcão da cozinha em casa? Mínimas, certo? Mas tive a vantagem por duas vezes.
Não importa o que a polícia tenha assumido oficialmente (já que eu não conhecia o sujeito e ninguém podia dizer o contrário—e ele agarrou Barbara, não eu), Alcee Beck agora me tinha sob a mira. Ele era realmente bom em interpretar situações e percebeu que Dentes Afiados estava concentrado em mim. Barbara foi o meio para conseguir minha atenção. Alcee nunca me perdoaria por isso, mesmo que a culpa não fosse minha. Além disso, eu joguei aquele livro com uma força e acuidade suspeitas.
No lugar dele, eu provavelmente me sentiria do mesmo modo.
Então agora eu estava no Merlotte’s, fazendo meu trabalho cansada, imaginando para onde ir e o que fazer, e por que Patrick Furnan ficou maluco. E de onde vieram todos esses estranhos? Eu não conheci o Lobi que arrebentou a porta de Maria-Star. Eric levou um tiro de um sujeito que trabalhava na concessionária de Patrick Furnan há apenas alguns dias. Nunca vi Dentes Afiados antes, e ele era um tipo inesquecível.
A situação toda não fazia nenhum sentido.
De repente, eu tive uma idéia. Perguntei a Sam se podia dar um telefonema já que minhas mesas estavam tranqüilas, e ele concordou. Ele vinha me lançando olhares oblíquos durante a noite toda, mas por hora tive uma folga. Então fui ao escritório de Sam, procurei pelo número da casa de Patrick Furnan na lista telefônica de Shreveport e liguei.
— Alô?
Eu reconheci a voz.
— Patrick Furnan? — eu disse, só para ter certeza.
— Falando.
— Por que você está tentando me matar?
— O quê? Quem está falando?
— Ora, vamos. É Sookie Stackhouse. Por que está fazendo isso?
Houve uma longa pausa.
— Você está tentando me encurralar? — ele perguntou.
— Como? Você acha que o telefone está grampeado? Eu quero saber por quê. Eu nunca fiz nada contra você. Nem mesmo estou saindo com Alcide. Mas você está tentando me eliminar como se eu fosse poderosa. Você matou a pobre Maria-Star. Matou Christine Larrabee. Qual é o problema? Eu não sou importante.
Patrick Furnan disse lentamente, — Você realmente acredita que sou eu quem está fazendo isso? Matando membros femininos da matilha? Tentando matar você?
— Claro que sim.
— Não sou eu. Eu li a respeito de Maria-Star. Christine Larrabee está morta? — ele pareceu quase assustado.
— Sim — respondi, e minha voz soou tão incerta quanto à dele. — E alguém tentou me matar duas vezes. Receio que algumas pessoas totalmente inocentes serão atingidas no fogo cruzado. E, é claro, eu não quero morrer.
Furnan disse, — Minha esposa desapareceu ontem. — Ele vociferava de dor e medo. E raiva. — Alcide a pegou e esse filho da mãe vai pagar.
— Alcide não faria isso — falei (bom, eu estava bem segura de que Alcide não faria isso). — Você está dizendo que não ordenou as execuções de Maria-Star e Christine? E minha?
— Não, por que eu iria atrás de mulheres? Nós nunca iríamos querer matar fêmeas Lobis puro-sangue. Exceto talvez Amanda — Furnan acrescentou sem tato. — Se fôssemos matar alguém, seriam os homens.
— Acho que você e Alcide precisam se sentar para conversar. Ele não está com sua esposa. Ele acha que você enlouqueceu, atacando mulheres.
Houve um longo silêncio. Furnan disse, — Acho que você está certa sobre a conversa, a menos que tenha inventado a coisa toda para me colocar numa posição onde Alcide possa me matar.
— Eu mesma só quero viver para ver a próxima semana.
— Eu concordarei em me encontrar com Alcide se você estiver lá e jurar dizer aos dois o que o outro está pensando. Você é uma amiga da matilha, toda a matilha. Pode nos ajudar agora.
Patrick Furnan estava tão ansioso para encontrar a esposa que até se dispunha a acreditar em mim.
Pensei nas mortes que já tinham acontecido. Pensei nas mortes por vir, talvez inclusive a minha. Imaginei que diabos estava acontecendo.
— Farei isso se você e Alcide se encontrarem desarmados — falei. — Se o que estou suspeitando é verdade, vocês têm um inimigo em comum que está tentando fazer com que ambos se matem.
— Se aquele bastardo de cabelo preto concordar, eu darei uma chance — disse Furnan. — Se Alcide estiver com minha esposa, é melhor que nem um fio de cabelo dela tenha sido tocado e a traga junto. Ou eu juro por Deus que irei desmembrá-lo.
— Eu compreendo. Vou me certificar de que ele compreenda também. Voltaremos a entrar em contato — prometi, e desejei de todo coração estar dizendo a verdade.
ERA O MEIO DA MESMA noite e eu estava prestes a caminhar na direção do perigo. E era minha própria maldita culpa. Através de uma série de rápidos telefonemas, Alcide e Furnan decidiram onde se encontrar. Visualizei-os sentados numa mesa, com seus tenentes bem atrás, resolvendo toda aquela situação. A Sra. Furnan apareceria e o casal seria reunido. Todos ficariam satisfeitos ou, pelo menos, não tão hostis. Eu não estaria por perto.
No entanto, ali estava eu num prédio de escritórios abandonado, em Shreveport, o mesmo local onde a competição para líder da matilha aconteceu. Pelo menos Sam estava comigo. Estava escuro e frio, e o vento levantava os cabelos em meus ombros. Dei um passo atrás do outro, ansiosa para que aquilo acabasse. Embora não estivesse tão inquieto quanto eu, percebi que Sam se sentia da mesma forma.
Era culpa minha ele estar ali. Quando ele ficou curioso demais sobre o que estava acontecendo com os Lobis, eu tive que lhe contar. Afinal, se alguém passasse pela porta do Merlotte’s tentando me dar um tiro, Sam pelo menos merecia saber por que seu bar estava cheio de buracos. Discuti amargamente com ele quando disse que viria comigo, mas ali estávamos nós.
Talvez eu esteja mentindo para mim mesma. Talvez simplesmente queira um amigo comigo, alguém definitivamente do meu lado. Talvez estivesse apenas assustada. Na verdade, não havia nenhum “talvez”.
A noite estava fresca e ambos vestíamos jaquetas a prova d’agua com capuzes. Não que precisássemos de capuzes, mas se ficasse mais frio, nos sentiríamos gratos por eles. O estacionamento do prédio abandonado estendia-se ao nosso redor num silêncio sombrio. Paramos na zona de embarque de uma empresa que aceitava grandes carregamentos de algo.
As largas portas de metal onde os caminhões descarregavam pareciam grandes olhos brilhantes sob as luzes de segurança restantes.
De fato, havia um bocado de grandes olhos brilhantes ao redor esta noite. Os Sharks e os Jets estavam negociando. Oh, perdão, os Lobis de Furnan e de Herveaux. Os dois lados da matilha podiam chegar a um entendimento, ou não. E bem no meio daquilo estavam Sam, o Metamorfo e Sookie, a Telepata.
Assim que senti a pulsação vermelha e dura dos cérebros dos Lobis se aproximando do norte e do sul, eu me virei para Sam e disse do fundo do coração, — Eu nunca devia tê-lo deixado vir comigo. Nunca devia ter aberto a boca.
— Você se habituou a não me contar as coisas, Sookie. Eu quero que me conte o que está acontecendo com você. Especialmente se existe perigo.
Os cabelos louro-avermelhados de Sam foram soprados por uma pequena brisa aguda entre os prédios. Senti sua diferença muito mais forte do que antes. Sam é um raro e verdadeiro metamorfo. Ele pode se transformar em qualquer coisa. Prefere a forma de um cachorro, porque cães são familiares e amistosos, e as pessoas não atiram neles com tanta freqüência. Encarei seus olhos azuis e vi selvageria. — Eles estão aqui — disse, levantando o nariz para a brisa.
Então os dois grupos se encararam a cerca de três metros de distância de nós, e foi hora de se concentrar.
Reconheci os rostos de alguns lobos de Furnan, que eram mais numerosos. Cal Myers, o detetive de polícia, estava entre eles. Era uma espécie de descaramento da parte de Furnan trazer Cal junto, quando anunciava sua inocência. Também reconheci a garota adolescente que Furnan tomou como parte de sua celebração de vitória depois da derrota de Jackson Herveaux. Ela parecia um milhão de anos mais velha esta noite.
O grupo de Alcide incluía a ruiva Amanda, que assentiu para mim com o rosto sério, e alguns lobisomens que vi no Pêlo do Cachorro na noite em que Quinn e eu visitamos o bar. A garota desleixada, vestida num espartilho de couro vermelho naquela noite, se encontrava parada bem atrás de Alcide, e estava tão intensamente excitada como profundamente assustada. Para minha surpresa, Dawson estava ali. Ele não era um lobo tão solitário quanto apregoava ser.
Alcide e Furnan se afastaram de seus grupos.
Aquele era o formato combinado para a negociação, ou reunião, ou como quiser chamá-lo: eu ficaria entre Furnan e Alcide. Cada líder Lobi pegaria uma de minhas mãos. Eu seria o detector de mentiras humano enquanto eles falavam. Jurei dizer a ambos se o outro mentisse, pelo menos usando o melhor de minha habilidade. Eu conseguia ler mentes, mas elas podem ser enganosas e complicadas, ou simplesmente densas. Eu nunca exatamente fiz algo assim, e rezei para que minha habilidade fosse extra precisa esta noite além de usada sabiamente, para que pudesse ajudar a encerrar o desperdício de vidas.
Alcide se aproximou de mim rigidamente, o rosto duro sob o brilho áspero das luzes de segurança. Pela primeira vez, eu notei que ele parecia mais magro e velho. Havia um leve grisalho nos cabelos escuros que não estava lá antes, quando seu pai ainda vivia. Patrick Furnan também não parecia bem. Ele sempre teve uma tendência para engordar, e agora parecia ter ganhado uns bons seis ou nove quilos. Ser líder da matilha não foi bom para ele. E o choque do seqüestro da esposa deixara sua marca no rosto dele.
Eu fiz algo que nunca imaginei que faria. Estendi minha mão direita para ele. Ele pegou, e a torrente de suas idéias me percorreu instantaneamente. Mesmo seu cérebro distorcido de Lobi foi fácil de ler, porque ele estava concentrado. Estendi a mão esquerda para Alcide e ele a apertou com força. Por um longo minuto, me senti inundada. Então, com grande esforço, canalizei-os num fluxo para que eu não ficasse sobrecarregada. Seria fácil para eles mentirem em voz alta, mas não tão fácil dentro das próprias cabeças. Não de forma consistente. Fechei os olhos. Um cara ou coroa deu a Alcide a primeira pergunta.
— Patrick, por que você matou minha mulher? — As palavras soavam como se estivessem cortando a garganta de Alcide. — Ela era uma Lobi pura, e tão gentil quanto uma Lobi pode ser.
— Eu nunca ordenei que nenhum pessoal meu matasse os seus — disse Patrick Furnan. Ele soava cansado como se mal conseguisse ficar de pé, e seus pensamentos prosseguiam quase da mesma forma: lentos, cansados, numa trilha própria em seu cérebro. Ele era mais fácil de ler do que Alcide. E acreditava no que dizia.
Alcide ouviu com grande atenção, e disse a seguir, — Você disse a alguém que não era de seu bando para matar Maria-Star, Sookie e a Sra. Larrabee?
— Eu nunca dei ordens para matar nenhum de vocês, jamais — disse Furnan.
— Ele acredita nisso — eu falei.
Infelizmente, Furnan não calou a boca.
— Eu te odeio — disse, soando tão cansado quanto antes. — Ficaria contente se um caminhão o atingisse. Mas não matei ninguém.
— Ele acredita nisso também — eu disse, talvez um pouco ríspida.
Alcide perguntou: — Como você pode se dizer inocente com Cal Myers em seu bando? Ele esfaqueou Maria-Star até a morte.
Furnan pareceu confuso. — Cal não estava lá — ele disse.
— Ele acredita no que diz — falei a Alcide. Virei o rosto para Furnan. — Cal estava lá e ele assassinou Maria-Star. — Embora não ousasse perder o foco, eu ouvi os sussurros começarem ao redor de Cal Myers e vi o resto dos Lobis de Furnan se afastarem dele.
Era a vez de Furnan fazer uma pergunta.
— Minha esposa — ele disse, a voz falhando. — Por que ela?
— Eu não peguei Libby — disse Alcide. — Nunca seqüestraria uma mulher, especialmente uma Lobi com crianças. Eu nunca ordenaria que alguém o fizesse.
Ele acreditava naquilo.
— Alcide não fez isso e não ordenou que fizessem. — Mas Alcide odiava Patrick Furnan com grande ferocidade. Furnan não precisava matar Jackson Herveaux durante o clímax da competição, mas o fez. Melhor começar sua liderança com a eliminação do rival. Jackson nunca teria se submetido a seu governo e seria uma pedra no sapato durante anos.
Eu estava captando pensamentos de ambos os lados, sopros de idéias tão fortes que queimavam em minha cabeça, e disse, — Acalmem-se os dois. — Pude sentir Sam atrás de mim, seu calor, o toque de sua mente e falei, — Sam, não me toque, está bem? — Ele entendeu e se afastou.
— Nenhum de vocês matou qualquer uma das pessoas que morreram. E nenhum dos dois ordenou que se fizesse isso. Tanto quanto eu posso ver.
Alcide disse: — Dê-nos Cal Myers para interrogatório.
— Então onde está minha esposa? — Furnan rosnou.
— Morta e enterrada — disse uma voz clara. — E estou pronta para tomar o lugar dela. Cal é meu.
Todos nós levantamos as cabeças, porque a voz veio do telhado do prédio. Havia quatro Lobis ali, e a fêmea morena que falou encontrava-se mais perto da beirada. Ela tinha senso do dramático, eu lhe concedia isso. Lobis fêmeas têm poder e posição, mas não são líderes de matilha... nunca. Esta mulher era claramente grande e estava no comando, apesar de ter talvez 1,58m. Ela se preparara para se transformar; isto é, estava nua. Ou talvez só quisesse que Alcide e Furnan vissem o que poderiam conseguir. O que era um bocado, tanto em quantidade como qualidade.
— Priscilla — disse Furnan.
Parecia um nome tão improvável para uma Lobi que eu de fato me senti sorrir, o que era uma má idéia sob aquelas circunstâncias.
— Você a conhece — Alcide disse a Furnan. — Isso é parte do seu plano?
— Não — eu respondi por ele. Minha mente percorreu os pensamentos que pude ler e prendeu-se a um fio em particular. — Furnan, Cal é uma criatura dela — falei. — Ele traiu você.
— Achei que se eliminasse algumas cadelas-chave, vocês dois se matariam — disse Priscilla. — Que pena que não funcionou.
— Quem é essa? — Alcide perguntou a Furnan novamente.
— Ela é a companheira de Arthur Hebert, líder da matilha de St. Catherine Parish. — St. Catherine ficava bem no sul, à leste de Nova Orleans. Foi duramente atingida pelo Katrina.
— Arthur está morto. Não temos mais um lar — disse Priscilla Hebert. — Queremos o de vocês.
Bem, isso foi claro suficiente.
— Cal, por que você fez isso? — Furnan perguntou ao seu tenente. Cal devia ter subido para o telhado enquanto era capaz. Os lobos de Furnan e de Herveaux formaram um círculo ao redor dele.
— Cal é meu irmão — gritou Priscilla. — É melhor vocês não tocarem num só pêlo de seu corpo. — Havia um toque de desespero na voz dela que não existia antes. Infeliz, Cal encarou a irmã. Ele percebeu a encrenca, e eu tinha certeza que queria que ela se calasse. Aquele seria seu último pensamento.
O braço de Furnan subitamente livrou-se da manga e cobriu-se de pêlos. Com uma força enorme, ele se virou para seu ex-soldado, eviscerando o Lobi. A mão com garras de Alcide arrancou a parte de trás da cabeça de Cal enquanto o traidor caía no chão. O sangue de Cal espirrou em mim num arco. Às minhas costas, Sam zumbiu com a energia de sua transformação vindoura, engatilhada pela tensão, pelo cheiro de sangue e meu grito involuntário.
Priscilla Hebert rugiu de fúria e angústia. Com elegância desumana, ela saltou do topo do prédio para o estacionamento, seguida por seus homens (lobos?).
A guerra começara.
Sam e eu nos viramos no meio dos lobos de Shreveport. Enquanto a matilha de Priscilla começava a se aproximar de cada lado, Sam disse: — Eu vou me transformar, Sookie.
Eu não conseguia imaginar que utilidade teria um collie nessa situação, mas falei: — Okay, chefe. — Ele sorriu para mim de um jeito torto, tirou as roupas e se agachou. Todos os Lobis faziam o mesmo ao nosso redor.
O ar frio da noite se encheu de sons borbulhantes, o som de coisas duras se movendo através de líquidos grossos e pegajosos que caracterizam a transformação de homem para animal. Enormes lobos se endireitaram e sacudiram ao meu redor; reconheci as formas lupinas de Alcide e Furnan. Tentei contar os lobos de nossa matilha subitamente unida, mas eles se espalharam, posicionando-se para a futura batalha, e não havia como não perdê-los de vista.
Virei-me para Sam a fim de lhe dar um tapinha e me descobri parada ao lado de um leão. — Sam — falei num sussurro, e ele rugiu.
Todos congelaram no lugar por um longo momento. No início, os lobos de Shreveport ficaram tão assustados quanto os lobos de St. Catherine, mas então pareceram perceber que Sam estava do lado deles, e gritinhos de entusiasmo ecoaram entre os prédios vazios.
Então a luta começou.
Sam tentou me cercar, o que era impossível, mas foi uma tentativa cavalheiresca. Como humana desarmada, eu basicamente era indefesa nessa briga. Era uma sensação bem desagradável — de fato, uma sensação aterrorizante.
Eu era a coisa mais frágil no local.
Sam era magnífico. Suas patas enormes relampejavam e, quando atingia um lobo em cheio, aquele lobo caía. Eu me esquivei ao redor como um elfo demente, tentando ficar fora do caminho. Não conseguia observar tudo que estava acontecendo. Grupos de lobos de St. Catherine viraram-se para Furnan, Alcide e Sam, enquanto batalhas individuais continuavam ao nosso redor. Percebi que esses grupos foram encarregados de derrubarem os líderes, e sabia que um bocado de planejamento foi gasto nisso. Priscilla Hebert não conseguiu resgatar o irmão com rapidez suficiente, mas aquilo não a retardou nem um pouco.
Ninguém parecia muito preocupado comigo, já que eu não demonstrava ameaça. Mas havia grandes chances de eu ser nocauteada pelos ruidosos combatentes e ser ferida gravemente, caso fosse um alvo.
Priscilla, agora uma loba cinza, escolheu Sam como alvo. Eu acho que ela queria provar que tinha mais coragem do que os outros indo para o alvo maior e mais perigoso. Mas Amanda mordeu as pernas traseiras de Priscilla enquanto esta abria caminho através da confusão. Priscilla respondeu virando a cabeça para mostrar os dentes à loba menor. Amanda se esquivou e então, quando Priscilla virou para recomeçar seu progresso, se lançou para morder a perna novamente. Já que a mordida de Amanda era poderosa suficiente para quebrar um osso, isso foi mais do que um aborrecimento, então Priscilla girou sobre ela com tudo. Antes que eu pudesse pensar Oh não, Priscilla agarrou Amanda com as mandíbulas de ferro e quebrou seu pescoço.
Enquanto eu observava horrorizada, Priscilla largou o corpo de Amanda no chão e girou para pular nas costas de Sam. Ele sacudiu várias vezes, mas ela mergulhou as presas no pescoço dele e não soltou.
Algo estalou em mim com tanta certeza quanto os ossos no pescoço de Amanda. Perdi qualquer senso que pudesse ter, e me lancei no ar como se fosse um lobo também. Para evitar escorregar no meio da pesada massa de animais, prendi os braços ao redor do pescoço de Priscilla, e as pernas em seu corpo, apertando os braços até estar prestes a me abraçar. Priscilla não queria soltar Sam, então se sacudiu de lado a lado para me derrubar. Mas eu estava me agarrando nela como uma macaca homicida.
Finalmente, ela teve que soltar o pescoço dele para se ocupar de mim. Eu apertei cada vez mais forte, e ela tentou me morder, mas não conseguiu alcançar apropriadamente já que eu estava em suas costas. Ela foi capaz de se curvar o suficiente para roçar minha perna com as presas, mas não conseguiu agarrá-la. A dor mal foi registrada. Apertei ainda mais, apesar de meus braços doerem como o inferno. Se soltasse por um segundo, eu me juntaria à Amanda.
Embora tudo isso tenha acontecido tão rápido que era difícil acreditar, me senti como se estivesse tentando matar essa mulher/lobo por uma eternidade. Eu não estava realmente pensando, “Morra, morra”; só queria que ela parasse o que estava fazendo, e ela não parava, maldição.
Então houve outro rugido ensurdecedor e dentes enormes faiscaram a alguns centímetros dos meus braços. Entendi que devia soltá-la e, no segundo em que meus braços afrouxaram, caí de cima da loba, rolando pelo concreto para aterrissar num monte a alguns metros de distância.
Houve uma espécie de puf! e Claudine surgiu sobre mim. Ela estava usando regata e calças de pijama e parecia ter saído da cama. Através de suas pernas nuas, vi o leão quase arrancar a cabeça da loba e então cuspi-la de modo desdenhoso. Então ele se virou para vigiar o estacionamento, avaliando a próxima ameaça.
Um dos lobos pulou em Claudine. Ela provou que estava completamente acordada. Enquanto o animal estava no ar, as mãos dela agarraram suas orelhas. Ela o girou, usando seu próprio ímpeto. Claudine arremessou o enorme lobo com a facilidade de um garoto jogando uma lata de cerveja, e o lobo colidiu contra o portão de cargas com um som que pareceu bem derradeiro. A velocidade desse ataque e sua conclusão foram absolutamente incríveis.
Claudine não saiu de sua posição escarranchada, e eu era esperta o suficiente para permanecer imóvel. Na verdade, eu estava exausta, assustada e um pouco ensangüentada, embora só a mancha vermelha na perna parecesse ser minha. Lutas levam bem pouco tempo, contudo gastam as reservas do corpo com velocidade incrível. Pelo menos, é assim que funciona com humanos. Claudine parecia bem exuberante.
— Cai dentro, traseiro peludo! — ela gritou, acenando com ambas as mãos para um Lobi se movendo furtivamente atrás dela. Ela girou sem mover as pernas, uma manobra que seria impossível para um corpo humano comum. O Lobi saltou e recebeu exatamente o mesmo tratamento de seu companheiro. Tanto quanto eu podia perceber, Claudine nem mesmo ofegava. Seus olhos estavam maiores e mais atentos do que o normal, e mantinha o corpo solto e agachado, claramente pronto para ação.
Houve mais rugidos, latidos, rosnados, gritos de dor e ruídos rasgados que não valiam um pensamento. Mas após talvez mais cinco minutos de batalha, o barulho cessou.
Claudine nem mesmo lançou um olhar para mim nesse meio tempo, porque estava protegendo meu corpo. Quando olhou, ela estremeceu. Então eu parecia bem ruim.
— Cheguei atrasada — ela disse, movendo os pés para ficar ao meu lado. Ela estendeu a mão e eu a peguei. Num instante, fiquei de pé. Eu a abracei. Não só queria, mas precisava abraçá-la. Claudine sempre cheirou maravilhosamente e seu corpo era curiosamente mais firme ao toque do que carne humana. Ela pareceu feliz em retribuir o abraço, e permanecemos unidas por um longo momento enquanto eu recuperava meu equilíbrio.
Então levantei a cabeça para olhar ao redor, receando o que veria. Os derrotados jaziam em montes de pêlos ao nosso redor. As manchas escuras no concreto não eram de óleo. Aqui e ali um lobo ensopado fuçava os corpos, procurando por alguém em particular. O leão encontrava-se agachado a alguns metros de distância, ofegante. Sangue manchava seu pêlo. Havia uma ferida aberta em seu ombro, causada por Priscilla. Havia outra mordida em suas costas. Eu não sabia o que fazer primeiro.
— Obrigada, Claudine — eu disse, beijando-a na bochecha.
— Não é sempre que eu consigo — Claudine me avisou. — Não conte com um resgate automático.
— Eu estou usando algum tipo de botão de Alerta de Vida elfo? Como sabia que tinha que vir? — Percebi que ela não iria responder. — Mesmo assim, certamente aprecio esse salvamento. Ei, acho que você sabe que conheci meu bisavô. — Eu estava balbuciando. Estava tão feliz por estar viva.
Ela inclinou a cabeça. — O príncipe é meu avô — ela disse.
— Oh — falei. — Então, nós somos como primas?
Ela olhou para mim, os olhos límpidos, escuros e calmos. Ela não parecia uma mulher que acabou de matar dois lobos tão rápido quanto um estalar de dedos.
— Sim — disse. — Acho que somos.
— Então como você o chama? Vovô? Avozinho?
— Eu o chamo “Meu Lorde”.
— Oh.
Ela se afastou para verificar os lobos de quem cuidou (eu estava bem segura de que ainda estavam mortos), então fui até o leão. Agachei-me ao lado dele e coloquei o braço ao redor de seu pescoço. Ele ronronou. Automaticamente, cocei o topo de sua cabeça e atrás das orelhas, como eu fazia com Bob. O ronronar se intensificou.
— Sam — eu disse. — Muito obrigada. Eu lhe devo minha vida. Seus ferimentos estão muito ruins? O que posso fazer a respeito?
Sam suspirou. Ele deitou a cabeça no chão.
— Você está cansado?
Então o ar ao redor dele mudou e eu me afastei. Eu sabia o que estava acontecendo. Após alguns instantes, o corpo que jazia ao meu lado era humano, não animal. Percorri Sam com os olhos ansiosamente e vi que ele ainda tinha os ferimentos, mas eram bem menores do que na forma de leão. Todos os metamorfos são ótimos em cura. Era um bocado revelador o modo como minha vida mudou e não parecia significativo para mim o fato de que Sam estava totalmente nu. Eu meio que superei isso agora—o que era bom, já que havia corpos nus por todos os lados. Os cadáveres estavam se transformando, bem como os lobos feridos.
Foi mais fácil olhar os corpos em forma de lobo.
Cal Myers e sua irmã, Priscilla, estavam mortos, é claro, assim como os dois Lobis que Claudine despachou. Amanda estava morta. A garota magricela que conheci no Pêlo do Cachorro estava viva, apesar de gravemente ferida na parte de cima da coxa. Reconheci o bartender de Amanda também; ele parecia ileso. Tray Dawson aconchegava um braço que parecia quebrado.
Patrick Furnan jazia no meio de um círculo de mortos e feridos, todos lobos de Priscilla. Com alguma dificuldade, abri caminho entre os corpos quebrados e ensangüentados. Pude sentir todos os olhos, de lobos e humanos, focados em mim enquanto me agachava ao lado dele. Coloquei os dedos em seu pescoço e não captei nada. Verifiquei seus pulsos. Até coloquei a mão contra seu peito. Nenhum movimento.
— Morto — eu disse, e aqueles remanescentes em forma de lobo começaram a uivar. Ainda mais perturbadores eram os uivos vindo das gargantas de Lobis na forma humana.
Alcide cambaleou na minha direção. Ele parecia estar mais ou menos intacto, embora listras de sangue escorressem através dos pêlos em seu peito. Ele passou pela despedaçada Priscilla, chutando o cadáver. Ajoelhou-se por um instante ao lado de Patrick Furnan, inclinando a cabeça como se estivesse reverenciando o corpo. Então ficou de pé. Ele parecia sombrio, selvagem e decidido.
— Eu sou o líder dessa matilha! — disse numa voz com absoluta certeza. A cena tornou-se sinistramente silenciosa enquanto os lobos sobreviventes absorviam aquilo.
— Você precisa ir embora agora — Claudine disse em voz bem baixa, atrás de mim. Eu pulei como um coelho. Estava hipnotizada pela beleza de Alcide, pela selvageria primitiva que brotava dele.
— O quê? Por quê?
— Eles irão celebrar a vitória e a ascensão de um novo líder — ela disse.
A garota magra juntou as mãos, descendo-as sobre o crânio de um inimigo derrotado — mas ainda vivo. Os ossos quebraram com um som revoltante. Os Lobis derrotados ao meu redor estavam sendo executados, pelo menos aqueles gravemente feridos.
Um pequeno grupo de três membros cambaleou para se ajoelhar diante de Alcide, as cabeças inclinadas para trás. Duas eram mulheres. O terceiro era um rapaz adolescente. Eles ofereciam suas gargantas à Alcide em rendição. Alcide estava muito excitado. Totalmente. Lembrei o modo como Patrick Furnan celebrou quando conseguiu o cargo de líder da matilha. Eu não sabia se Alcide ia transar com os reféns ou matá-los. Tomei fôlego para exclamar.
Não sei o que eu teria dito, mas a mão suja de Sam cobriu minha boca. Virei os olhos para fuzilá-lo, zangada e agitada, e ele sacudiu a cabeça veementemente. Ele prendeu meu olhar por um longo tempo para se certificar de que eu permaneceria em silêncio, e então retirou a mão. Ele rodeou minha cintura com o braço e me virou abruptamente para longe da cena. Claudine tomou a retaguarda enquanto Sam me fazia marchar rapidamente. Mantive os olhos em frente.
Tentei não ouvir os ruídos.
SAM TINHA ALGUMAS ROUPAS extras na caminhonete e as vestiu sem preâmbulos.
Claudine disse: — Tenho que voltar para a cama — como se tivesse acordado para tirar o gato para fora ou ir ao banheiro, e então puf! se foi.
— Eu dirijo — Mofereci, porque Sam estava ferido.
Ele me entregou as chaves.
Nós seguimos em silêncio. Era um esforço lembrar do caminho de volta para a interestadual e retornar a Bon Temps, porque eu ainda estava chocada em vários níveis diferentes.
— É uma reação normal à batalha — disse Sam. — A onda de luxúria.
Tomei cuidado para não olhar para o colo de Sam e ver se ele estava tendo sua própria onda.
— É, eu sei disso. Já estive em algumas lutas. Lutas demais.
— Além disso, Alcide subiu à posição de líder da matilha.
Outra razão para me sentir “feliz”.
— Mas ele lutou toda essa batalha porque Maria-Star morreu. — Então devia ter se sentido deprimido demais para pensar em celebrar a morte de seu inimigo, era minha opinião.
— Ele lutou essa batalha porque foi ameaçado — disse Sam. — Foi realmente estúpido da parte de Alcide e Furnan não terem sentado para conversar antes de chegar a esse ponto. Eles podiam ter descoberto o que estava acontecendo muito mais cedo. Se você não os tivesse convencido, eles ainda estariam sendo eliminados e começariam uma guerra total. Eles fizeram a maior parte do trabalho de Priscilla por ela.
Eu estava cansada dos Lobis, da agressão e da teimosia.
— Sam, você passou por tudo isso por minha causa. Sinto-me terrível a respeito. Eu teria morrido se não fosse por você. Devo-lhe muito. E sinto muito mesmo.
— Manter você viva — disse Sam — é importante para mim.
Ele fechou os olhos e dormiu pelo resto da viagem de volta até chegar ao seu trailer. Ele mancou pelos degraus sem ajuda e fechou a porta com firmeza. Sentindo-me um pouco infeliz e não deprimida, subi em meu próprio carro e dirigi para casa, imaginando como encaixar o que aconteceu esta noite ao resto de minha vida.
Amelia e Pam encontravam-se sentadas na cozinha. Amelia fez um pouco de chá e Pam estava trabalhando numa peça de bordado. Suas mãos voavam enquanto a agulha furava o tecido, e eu não sabia o que era mais espantoso: sua habilidade ou a escolha de passatempo.
— O que você e Sam andaram fazendo? — Amelia perguntou com um grande sorriso. — Você parece que caiu e foi atropelada.
Então ela me examinou mais de perto e disse: — O que aconteceu, Sookie?
Até Pam largou seu bordado e fez sua cara mais séria.
— Você está cheirando — disse. — Cheirando a sangue e guerra.
Olhei para mim mesma e registrei a desordem em que me encontrava. Minhas roupas estavam sangrentas, rasgadas e sujas, e minha perna doía. Era hora de primeiros-socorros e eu não poderia ter melhores cuidados de Enfermeira Amelia e Enfermeira Pam. Pam ficou meio excitada por causa da ferida, mas se conteve como uma boa vampira. Eu sabia que ela contaria tudo a Eric, mas simplesmente não me importava. Amelia lançou um feitiço de cura sobre minha perna. Cura não era seu ponto mais forte, ela disse modestamente, mas o feitiço ajudou um pouco. Minha perna parou de latejar.
— Você não está preocupada? — Amelia perguntou. — Isso foi feito por um Lobi. E se você pegar?
— É mais difícil de pegar do que qualquer outra doença conhecida — eu disse, já que perguntei a quase todas as criaturas metamorfas que conheci sobre as chances de suas condições serem transmitidas pela mordida. Afinal, eles também têm médicos. E pesquisadores. — A maioria das pessoas tem que ser mordida várias vezes, pelo corpo todo, para pegar e mesmo assim não há certeza. — Não é como gripe ou resfriado comum. Além disso, se você limpar o ferimento logo depois, suas chances diminuem consideravelmente. Eu joguei uma garrafa de água sobre a perna antes de entrar no carro. — Então não estou preocupada, mas estou dolorida e acho que posso ficar com uma cicatriz.
— Eric não ficará feliz — disse Pam com um sorriso antecipatório. — Você se colocou em perigo por causa dos Lobis. Sabe que ele os tem em baixa estima.
— É, é, é — respondi, não me importando nem um pouco. — Ele pode ir empinar uma pipa.
Pam se iluminou. — Vou dizer isso a ele — falou.
— Por que você gosta tanto de provocá-lo? — perguntei, percebendo que estava quase me arrastando de cansaço.
— Eu nunca tive tanta munição para provocá-lo — ela respondeu, então ambas saíram do meu quarto e eu fiquei abençoadamente sozinha em minha própria cama, viva. Então dormi.
O banho que tomei na manhã seguinte foi uma experiência sublime. Na lista de Ótimos Banhos que Tive, este ficava pelo menos em quarto lugar (o melhor banho foi aquele que compartilhei com Eric, e nem mesmo conseguia pensar nele sem me arrepiar toda). Esfreguei-me bem. Minha perna parecia boa e, embora estivesse ainda mais dolorida por esticar músculos que não usava muito, senti que um desastre foi evitado e o mal subjugado, ao menos de um modo obscuro.
Enquanto permanecia debaixo do jato de água quente, enxaguando o cabelo, pensei em Priscilla Hebert. No breve vislumbre que tive de seu mundo, ela ao menos tentou encontrar um lugar para sua matilha desalojada, e pesquisou para encontrar uma área fraca onde pudesse estabelecer uma base. Talvez se ela tivesse ido até Patrick Furnan como solicitante, ele teria ficado feliz em dar um lar à matilha. Mas nunca teria entregado a liderança. Ele matou Jackson Herveaux para alcançá-la, então com certeza não concordaria com qualquer tipo de arranjo cooperativo com Priscilla — mesmo se a sociedade lupina permitisse isso, o que era duvidoso, especialmente devido ao seu status como rara líder fêmea.
Bem, ela não era mais uma.
Teoricamente, eu admirava sua tentativa de restabelecer seus lobos num novo lar. Já que encontrei Priscilla pessoalmente, só podia ficar feliz por ela não ter tido sucesso.
Limpa e renovada, sequei o cabelo e passei minha maquiagem. Eu estava trabalhando no turno do dia, então tinha que estar no Merlotte’s |s onze. Vesti o uniforme habitual de calça preta e camisa branca, decidindo deixar o cabelo solto dessa vez, e amarrei meus Reeboks pretos.
Decidi que me sentia muito bem, considerando todas as coisas.
Um bocado de pessoas morreu e muita dor cercou os eventos da noite passada, mas pelo menos a matilha invasora foi derrotada e agora a área de Shreveport ficaria em paz por um tempo. A guerra terminou em muito pouco tempo. E os Lobis não foram expostos ao resto do mundo, embora fosse um passo que dariam em breve. Quanto mais tempo os vampiros se mostrassem em público, era mais provável que alguém expusesse os Lobis.
Acrescentei esse fato à caixa gigante cheia de coisas que não eram problemas meus.
O arranhão em minha perna, seja devido à sua natureza ou por causa dos cuidados de Amelia, já estava cicatrizado. Havia hematomas em meus braços e pernas, mas meu uniforme cobria. Era aceitável usar mangas compridas hoje, porque realmente estava frio. De fato, uma jaqueta teria sido ótimo, e me arrependi de não pegar uma ao ir para o trabalho. Amelia não apareceu quando eu estava saindo, e eu não tinha idéia se Pam estava em meu esconderijo secreto para vampiros no quarto vago. Ei, não é da minha conta!
Enquanto dirigia, eu aumentei a lista de coisas com as quais não devia me preocupar ou considerar. Mas esbarrei num beco sem saída quando cheguei ao trabalho. Quando vi meu chefe, um bocado de pensamentos que não antecipei surgiram num amontoado. Não que Sam parecesse abatido nem nada. Ele parecia praticamente o mesmo de sempre quando parei em seu escritório para deixar minha bolsa na gaveta habitual. De fato, a briga parecia tê-lo revigorado. Talvez tenha sido bom se transformar em algo mais agressivo do que um collie. Talvez tenha apreciado chutar o traseiro de alguns lobisomens. Estraçalhar alguns estômagos... quebrar algumas espinhas.
Okay, bem—a vida de quem foi salva através do referido estraçalhar e quebrar? Meus pensamentos sumiram depressa. Impulsivamente, inclinei-me para lhe dar um beijo na bochecha. Senti o cheiro que era de Sam: loção pós-barba, floresta, algo selvagem, porém familiar.
— Como está se sentindo? — ele perguntou, como se eu sempre lhe desse um beijo de olá.
— Melhor do que achei que estaria — respondi. — Você?
— Um pouco dolorido, mas dá para agüentar.
Holly enfiou a cabeça pela porta. — Oi, Sookie, Sam. — Ela entrou para guardar a própria bolsa.
— Holly, ouvi dizer que você e Hoyt são um casal — falei, esperando parecer sorridente e satisfeita.
— É, estamos nos dando bem — ela disse, tentando soar despreocupada. — Ele é realmente bom com Cody e sua família é bem legal. — Apesar dos cabelos espetados e tingidos agressivamente de preto e a maquiagem pesada, havia algo de pensativo e vulnerável no rosto de Holly.
Foi fácil para eu dizer: — Espero que dê certo. — Holly pareceu muito contente. Ela sabia tão bem quanto eu que, se casasse com Hoyt, seria para todas as intenções e propósitos minha cunhada, já que a amizade entre Jason e Hoyt era tão forte.
Então Sam começou a nos contar sobre o problema que estava tendo com um de seus fornecedores de cerveja, eu e Holly prendemos nossos aventais e o dia de trabalho começou.
Enfiei a cabeça através do balcão para cumprimentar o pessoal da cozinha. O atual cozinheiro do Merlotte’s era um ex-militar do exército chamado Carson. Cozinheiros inconstantes entravam e saíam. Carson era um dos melhores. Ele aprendeu a fazer os hambúrgueres Lafayette bem rápido (hambúrgueres embebidos no molho especial de um antigo cozinheiro), conseguia fazer as tiras de frango e batatas fritas exatamente do modo certo, e não tinha chiliques ou tentava esfaquear o assistente. Ele aparecia na hora e deixava a cozinha limpa no fim de seu turno, e isso era algo enorme para que Sam perdoasse as muitas esquisitices de Carson.
Estávamos com poucos clientes, então eu e Holly servíamos os drinques e Sam encontrava-se ao telefone no escritório quando Tanya Grissom entrou pela porta da frente. A mulher baixa e curvilínea parecia tão bonita e saudável quanto uma leiteira. Tanya tinha maquiagem leve e autoconfiança pesada.
— Onde está Sam? — ela perguntou. A boca pequena curvou-se num sorriso. Eu retribuí com o mesmo sorriso insincero. Cadela.
— Escritório — falei, como se sempre soubesse exatamente onde Sam estava.
— Aquela mulher lá — disse Holly, parando a caminho do balcão da cozinha. — A garota é um poço profundo.
— Por que diz isso?
— Ela está morando em Hotshot, dividindo a casa com algumas mulheres por lá — disse Holly. De todos os cidadãos comuns de Bon Temps, Holly era uma das poucas que sabiam da existência de criaturas como Lobisomens e metamorfos. Eu não sabia se ela descobrira que os moradores de Hotshot eram panteras, mas ela sabia que eram consangüíneos e estranhos, porque era do conhecimento geral em Renard Parish. E ela considerara Tanya (uma raposa) culpada por associação ou pelo menos suspeita por associação.
Tive um baque de genuína ansiedade. Pensei, Tanya e Sam podiam se transformar juntos. Sam gostaria disso. Poderia até mesmo se transformar ele próprio numa raposa, se quisesse.
Foi um esforço enorme sorrir para meus fregueses depois que tive essa idéia. Senti-me envergonhada quando percebi que devia ficar feliz por ver alguém interessado em Sam, alguém que podia apreciar sua verdadeira natureza. Não contava a meu favor que não estivesse feliz. Mas ela não era boa suficiente para ele, e eu o avisei a respeito dela.
Tanya voltou do corredor que conduzia ao escritório de Sam e saiu pela porta, não parecendo tão confiante quanto antes. Eu sorri pelas suas costas. Ha! Sam veio servir cervejas. Ele não parecia nem remotamente alegre. Aquilo apagou o sorriso em meu rosto.
Enquanto servia o almoço do Xerife Bud Dearborn e Alcee Beck (me fuzilando com o olhar o tempo todo), fiquei preocupada com aquilo. Decidi dar uma espiada na cabeça de Sam, porque estava melhorando a pontaria de meu talento de certa forma. Também era mais fácil bloquear e afastar pensamentos durante minhas atividades diárias agora que estava vinculada a Eric, embora detestasse admitir isso. Não é legal perambular pelos pensamentos de outra pessoa, mas sempre fui capaz de fazer isso, e era simplesmente como uma segunda natureza.
Sei que é uma desculpa esfarrapada. Mas eu estava acostumada a saber, não imaginar. Metamorfos são mais difíceis de ler do que pessoas comuns, Sam era difícil mesmo para um metamorfo, mas captei que ele estava frustrado, incerto e pensativo.
Então fiquei horrorizada com minha própria petulância e falta de educação. Sam arriscara a vida por mim na noite anterior. Ele salvou minha vida. E ali estava eu, explorando sua cabeça como uma criança com uma caixa cheia de brinquedos.
A vergonha fez minhas bochechas corarem, e eu perdi o fio da meada sobre o que a moça em minha mesa dizia, até ela perguntar gentilmente se eu me sentia bem. Voltei ao presente e concentrei-me em pegar seu pedido de chili, crackers e um copo de chá doce. Sua amiga, uma mulher de uns cinqüenta anos, pediu hambúrguer Lafayette e salada como acompanhamento. Anotei sua escolha de molho e cerveja, e disparei até o balcão da cozinha para fazer o pedido. Acenei para a torneira de cerveja quando parei ao lado de Sam, e ele me entregou a bebida um segundo mais tarde. Eu estava desconcertada demais para conversar com ele. Ele me lançou um olhar de curiosidade.
Fiquei contente por ir embora do bar quando meu turno acabou. Holly e eu fomos substituídas por Arlene e Danielle, e pegamos nossas bolsas. Saímos para a quase escuridão. As luzes de segurança já estavam acesas. Iria chover mais tarde e as nuvens cobriam as estrelas. Podíamos ouvir baixinho Carrie Underwood cantando numa jukebox. Ela queria que Jesus tomasse a direção. Aquilo pareceu realmente uma boa idéia.
Paramos ao lado de nossos carros por um momento, no estacionamento. O vento soprava e estava definitivamente frio.
— Sei que Jason é o melhor amigo de Hoyt — disse Holly. Sua voz soava insegura e, embora seu rosto fosse difícil de decifrar, eu sabia que ela não tinha certeza se eu queria ouvir o que ia dizer. — Eu sempre gostei de Hoyt. Ele era um sujeito legal no colegial. Eu acho — espero que você não fique realmente zangada comigo—acho que o que me impediu de sair com ele antes foi o fato de ser tão próximo de Jason.
Eu não sabia como responder. — Você não gosta de Jason — falei finalmente.
— Oh, claro que eu gosto de Jason. Quem não gosta? Mas ele é bom para Hoyt? Hoyt pode ser feliz se essa corda entre eles enfraquecer? Porque eu não consigo pensar em me aproximar de Hoyt a menos que acredite que ele possa ficar comigo do modo como sempre esteve com Jason. Você entende o que eu quero dizer.
— Sim — eu disse. — Eu amo meu irmão. Mas sei que Jason realmente não está habituado a pensar no bem estar de outras pessoas. — E isso era pegar leve.
Holly disse: — Eu gosto de você. Não quero magoá-la. Mas imagino que saiba, de qualquer forma.
— Sim, eu sei — falei. — Gosto de você também, Holly. Você é uma boa mãe. Você trabalha duro para cuidar de seu filho. Você se dá bem com seu ex. Mas e quanto a Danielle? Eu diria que vocês eram tão chegadas quanto Hoyt é com Jason. — Danielle era outra mãe divorciada, e ela e Holly eram unha e carne desde a primeira série. Danielle possuía um sistema de apoio ao contrário de Holly. A mãe e o pai de Danielle ainda estavam sãos e muito felizes por ajudá-la com os dois filhos. Danielle agora vinha saindo com alguém há algum tempo também.
— Eu nunca diria que algo pudesse ficar entre mim e Danielle, Sookie. — Holly vestiu sua jaqueta e pescou as chaves no fundo da bolsa. — Mas eu e ela nos separamos um pouco. Ainda nos vemos para um lanche às vezes, e nossos filhos brincam juntos. — Holly suspirou profundamente. — Eu não sei. Quando fiquei interessada em algo além do mundo aqui em Bon Temps, o mundo onde crescemos, Danielle começou a achar que havia algo meio errado com isso, com minha curiosidade. Quando decidi me tornar uma Wiccan, ela odiou isso, ainda detesta. Se ela soubesse a respeito dos Lobis, se soubesse o que aconteceu comigo... — Uma bruxa metamorfa tentou forçar Eric a lhe dar parte dos empreendimentos financeiros. Ela forçou todas as bruxas locais que conseguiu encontrar para ajudá-la, inclusive uma relutante Holly. — Aquela coisa toda me mudou — ela disse agora.
— Muda, não muda? Lidar com os sobres.
— Sim. Mas eles fazem parte de nosso mundo. Algum dia todos saberão disso. Algum dia... o mundo todo será diferente.
Eu pestanejei. Isso foi inesperado.
— O que quer dizer?
— Quando todos se revelarem — disse Holly, surpresa com minha falta de entendimento. — Quando todos se revelarem e admitirem suas existências. Todos, no mundo todo, terão que se ajustar. Mas algumas pessoas não vão querer. Talvez haja uma reação. Talvez guerras. Talvez os Lobis lutem contra todos os outros metamorfos, ou os humanos ataquem os Lobis e vampiros. Ou os vampiros — você sabe que eles não dão a mínima para lobos — esperem até uma boa noite, matem todos e façam os humanos dizer obrigado.
Ela possuía um toque poético, Holly. E era um bocado visionária, de um modo apocalíptico. Eu não tinha idéia de que Holly fosse tão profunda, e me senti envergonhada novamente. Leitores de mentes não deviam ser pegos de surpresa assim. Tentei tanto permanecer fora da cabeça das pessoas que estava perdendo pistas importantes.
— Tudo ou nada disso — falei — talvez as pessoas simplesmente aceitem. Não em todos os países. Quero dizer, quando se pensa no que aconteceu aos vampiros no leste europeu e em alguns países da América do Sul...
—O papa nunca se resolveu a respeito — Holly comentou.
Eu concordei. — Meio difícil saber o que dizer, eu acho. — A maioria das igrejas passou um (perdão) inferno decidindo sobre políticas religiosas e teológicas com relação aos morto-vivos. O anúncio dos Lobis com certeza acrescentaria outra ruga àquilo. Eles estavam definitivamente vivos, sem dúvida... mas possuíam quase vida demais, ao contrário daqueles que já morreram uma vez. Troquei o peso de um pé. Eu não planejava ficar parada ali, resolvendo os problemas do mundo e especulando sobre o futuro. Ainda estava cansada por causa da noite anterior.
— Até logo, Holly. Talvez você, eu e Amelia possamos ir ao cinema em Clarice uma noite dessas?
— Claro — ela disse um pouco surpresa. — Essa Amelia não considera minha arte digna de nota, mas pelo menos podemos conversar um pouco a respeito.
Tarde demais, tive a convicção de que o trio não funcionaria, mas que diabo. Podíamos tentar.
Dirigi para casa me perguntando se alguém estaria lá esperando por mim. A resposta veio quando estacionei ao lado do carro de Pam nos fundos. Pam dirigia um carro conservador, é claro, um Toyota com um adesivo do Fangtasia. Fiquei simplesmente surpresa por não ser uma minivan.
Pam e Amelia estavam assistindo um DVD na sala de estar. Elas se encontravam sentadas no sofá, mas não exatamente enroscadas uma na outra. Bob estava enrolado em minha poltrona reclinável. Havia uma tigela de pipoca no colo de Amelia e uma garrafa de TrueBlood na mão de Pam. Eu me aproximei para ver o que elas assistiam. Anjos da Noite. Hmmm.
—Kate Beckinsale é gata — disse Amelia. — Ei, como foi o trabalho?
— Okay — eu disse. — Pam, como pode você ter duas noites de folga seguidas?
— Eu mereço — disse Pam. — Não tive folga em dois anos. Eric concordou que eu merecia. Como você acha que eu pareceria nesse traje preto?
— Oh, tão boa quanto Beckinsale — Amelia disse, e virou a cabeça para sorrir para Pam. Elas estavam no estágio da lisonja. Considerando minha própria e completa falta de lisonja, eu não queria ficar por perto.
— Eric descobriu mais alguma coisa sobre aquele sujeito Jonathan? — perguntei.
— Eu não sei. Por que você mesma não liga para ele? — Pam disse com uma completa falta de preocupação.
— Certo, você está de folga — murmurei, marchando para o meu quarto rabugenta e um pouco envergonhada comigo. Disquei o número do Fangtasia sem nem ter que olhar. Isso não era bom. E estava na discagem rápida do meu celular. Céus. Não era algo sobre a qual queria meditar agora. O telefone tocou, e eu deixei minha meditação sombria de lado. Tinha que estar atenta quando se falava com Eric.
— Fangtasia, o bar com a mordida. Aqui é Lizbet. — Uma das vampirófilas. Fucei meu armário mental, tentando dar um rosto ao nome.
Okay — alta, bem curvilínea e orgulhosa disso, rosto de lua, lindos cabelos castanhos.
— Lizbet, aqui é Sookie Stackhouse — falei.
— Oh, oi — ela disse, parecendo espantada e impressionada.
3 Underworld, filme de 2003 com Kate Beckinsale, Scott Speedman e Michael Sheen, cuja protagonista vampira está em guerra contra os lobisomens e se apaixona por um.
— Hm... oi. Escute, eu posso falar com Eric, por favor?
— Vou ver se o mestre está disponível — Lizbet ofegou, tentando soar reverente e toda misteriosa.
“Mestre”, meu traseiro.
Os vampirófilos eram homens e mulheres que amavam tanto vampiros que queriam estar perto deles cada minuto em que eles estavam acordados. Empregos em lugares como o Fangtasia eram pão com manteiga para esse pessoal, e a oportunidade de ser mordido era tratada como algo quase sagrado. O código vampirófilo requeria que eles ficassem honrados se algum chupa-sangue quisesse experimentá-los; e se morressem, bom, isso também era considerado uma honra. Por trás de toda situação patética e sexualidade distorcida do típico vampirófilo havia a esperança oculta de que algum vampiro achasse o vampirófilo “merecedor” de ser transformado em vampiro. Como se você tivesse que passar por um teste de caráter.
— Obrigada, Lizbet — eu disse.
Lizbet largou o telefone com um baque e foi procurar Eric. Eu não podia tê-la deixado mais feliz.
— Sim — disse Eric, cerca de cinco minutos depois.
— Você estava ocupado?
— Ah... jantando.
Franzi o nariz. — Bom, espero que tenha se fartado — respondi com total falta de sinceridade. — Escute, você descobriu mais alguma coisa sobre Jonathan?
— Você o viu novamente? — Eric perguntou bruscamente.
— Ah, não. Só estava me perguntando.
— Se você o vir, preciso saber imediatamente.
— Okay, entendi. O que você descobriu?
— Ele foi visto em outros lugares — disse Eric. — Ele até veio aqui certa noite quando eu estava fora. Pam está em sua casa, certo?
Senti um vazio no estômago. Talvez Pam não estivesse dormindo com Amelia por pura atração. Talvez tenha combinado negócios com uma grande história de cobertura e estivesse com Amelia para me manter sob vigilância. Malditos vampiros, pensei zangada, porque esse cenário era totalmente próximo a um incidente em meu passado recente que me magoou de forma incrível.
Eu não ia perguntar. Saber seria pior do que suspeitar.
— Sim — falei entre lábios rígidos. — Ela está aqui.
— Ótimo — disse Eric com alguma satisfação. — Se ele aparecer novamente, sei que ela pode dar conta do recado. Não que seja o motivo para ela estar aí — acrescentou sem convicção. A óbvia reflexão era uma tentativa de Eric de apaziguar o que ele percebia como meu aborrecimento; com certeza não surgiu de nenhum sentimento de culpa.
Olhei carrancuda para a porta do meu armário.
— Você vai me dar alguma informação de verdade sobre por que está tão sobressaltado com esse sujeito?
— Você não tem visto a rainha desde Rhodes — disse Eric.
Aquela não seria uma conversa agradável.
— Não — falei. — O que há com as pernas dela?
— Elas estão crescendo — Eric disse, após uma breve hesitação.
Imaginei se os pés estavam crescendo através dos cotos, ou se as pernas cresceriam para então os pés aparecerem no fim do processo.
— Isso é bom, certo? — falei. Ter pernas tinha que ser algo bom.
— É muito doloroso — disse Eric — quando se perde membros e eles crescem de volta. Levará algum tempo. Ela está muito... ela está incapacitada. — Ele disse a última palavra muito lentamente, como se conhecesse a palavra, mas nunca a tivesse dito em voz alta.
Pensei no que ele estava me dizendo, tanto na superfície quanto debaixo dela. As conversas com Eric raramente eram simples.
— Ela não está bem o bastante para governar — falei em conclusão. — Então quem está?
— Os xerifes têm manejado as coisas — disse Eric. — Gervaise pereceu na explosão, é claro; isso deixa a mim, Cleo e Arla Yvonne. Seria mais fácil se Andre tivesse sobrevivido. — Senti uma pontada de pânico e culpa. Eu podia ter salvado Andre. Eu o temia e detestava, e não salvei. Deixei que ele fosse morto.
Eric ficou quieto por um minuto, e imaginei se ele estava captando o medo e a culpa. Seria muito ruim se ele descobrisse que Quinn matou Andre por minha causa. Eric continuou: — Andre podia ter mantido o núcleo porque estava bem estabelecido como o braço direito da rainha. Se um dos subordinados dela tinha que morrer, eu desejava poder ter escolhido Sigebert, que é todo músculo e nenhum cérebro. Pelo menos Sigebert está lá para proteger o corpo dela, embora André pudesse ter feito isso e cuidado do território também.
Eu nunca ouvi Eric tão tagarela a respeito de assuntos vampiros. Estava começando a ter uma terrível sensação arrepiante de que sabia para onde ele estava seguindo.
— Você espera algum tipo de invasão — falei, e senti meu coração despencar. De novo não. — Acha que Jonathan era um batedor.
— Cuidado ou vou começar a achar que você pode ler minha mente. — Embora o tom de Eric fosse leve como marshmallow, o significado era como uma lâmina afiada oculta.
— É impossível — respondi, e se ele achou que eu estava mentindo, não me desafiou. Eric parecia arrependido por ter me contado tanto. O resto da conversa foi breve. Ele disse para telefonar de novo caso visse Jonathan, e eu o assegurei que ficaria feliz em fazer isso.
Depois que desliguei, não senti sono. Em honra à noite fria, vesti meu pijama de lã branco e rosa com camiseta branca. Desenterrei meu mapa da Louisiana e procurei um lápis. Sublinhei as áreas que conhecia. Eu estava juntando meu conhecimento com pedaços de conversas ocorridas em minha presença. Eric tinha a Área Cinco. A rainha tinha a Área Um que era Nova Orleans e proximidades. Isso fazia sentido. Mas havia uma confusão no meio. O finalmente falecido Gervaise teve a área que incluía Baton Rouge, onde a rainha vinha morando desde que o Katrina danificou gravemente suas propriedades em Nova Orleans. Então essa devia ser a Área Dois, devido à sua proeminência. Mas era chamada Área Quatro. Bem de leve, tracei uma linha que pudesse apagar, e apagaria, depois que a examinasse por um tempo.
Explorei minha cabeça por outros pedaços de informação. Cinco, no topo do estado, se estendia quase de uma ponta a outra. Eric era mais rico e poderoso do que pensei. Abaixo dele, e quase similar em território, ficavam a Área Três de Cleo Babbitt e Área Dois de Arla Yvonne. Percorrendo o Golfo até o canto sul-ocidental do Mississippi marquei as grandes áreas anteriormente mantidas por Gervaise e a rainha, Quatro e Um respectivamente. Eu só podia imaginar que contorções políticas vampiras conduziram para a numeração e disposição.
Olhei para o mapa por alguns longos minutos antes de apagar todos os traços leves que risquei. Fitei o relógio. Quase uma hora tinha se passado desde minha conversa com Eric. Num humor melancólico, escovei os dentes e lavei o rosto. Depois de subir na cama e fazer minhas preces, fiquei deitada e acordada por mais um tempo. Ponderei a inegável verdade de que o vampiro mais poderoso no estado da Louisiana, nesse exato instante, era Eric Northman, meu elo de sangue e outrora amante. Eric havia dito em meu entendimento que não queria ser rei, não queria tomar novos territórios; e agora que entendi a extensão de seu domínio, o tamanho tornou aquela afirmação um pouco mais provável.
Eu acreditava que conhecia Eric um pouco, talvez tanto quanto uma humana podia conhecer um vampiro, o que não significa que meu conhecimento seja profundo. Não acreditava que ele quisesse tomar posse do estado, ou já teria feito isso. Achava que seu poder significava que havia um alvo gigante preso às suas costas. Eu precisava tentar dormir. Olhei o relógio novamente. Uma hora e meia desde que falei com Eric.
Bill deslizou silenciosamente para dentro de meu quarto.
— O que foi? — perguntei, tentando manter a voz bem baixa e calma, embora cada nervo em meu corpo tivesse começado a gritar.
— Estou inquieto — ele disse com sua voz fria, e eu quase ri. — Pam teve que ir para o Fangtasia. Ela me ligou para tomar o lugar dela.
— Por quê?
Ele sentou-se na cadeira no canto. Estava bem escuro em meu quarto, mas as cortinas não estavam completamente cerradas e eu tinha a iluminação da luz de segurança no quintal. Havia uma lâmpada noturna no banheiro também, e eu podia perceber os contornos de seu corpo e o rosto enevoado. Bill possuía um leve brilho, como todos os vampiros tinham aos meus olhos.
— Pam não conseguiu falar com Cleo ao telefone — ele disse. — Eric deixou o clube para resolver alguns negócios e Pam não conseguiu alcançá-lo, tampouco. Mas consegui deixar uma mensagem de voz. Tenho certeza que ele vai responder. O problema é que Cleo não está respondendo.
— Pam e Cleo são amigas?
— Não, não exatamente — disse sem preâmbulos. — Mas Pam devia ser capaz de falar com ela na loja de conveniência. Cleo sempre responde.
— Por que Pam está tentando falar com ela? — perguntei.
— Elas se telefonam todas as noites — disse Bill. — Então Cleo liga para Arla Yvonne. Elas possuem uma corrente. Não deve ser rompida, não nos últimos tempos. — Bill levantou-se numa velocidade que não consegui acompanhar. — Ouça! — ele sussurrou com a voz leve em meu ouvido, como as asas de uma mariposa. — Você ouviu?
Eu não ouvi nem um pio. Permaneci imóvel debaixo dos cobertores, desejando apaixonadamente que essa coisa toda simplesmente sumisse. Lobis, vampiros, problemas, conflitos... mas não existia tal sorte.
— O que você ouviu? — perguntei, tentando ser tão silenciosa quanto Bill, um esforço destinado ao fracasso na tentativa.
— Alguém está vindo — ele disse.
Então ouvi uma batida na porta da frente. Era uma batida bem leve. Afastei os cobertores e levantei. Não consegui achar meus chinelos porque estava atrapalhada demais. Segui descalça para a porta do quarto. A noite estava gelada e ainda não tinha ligado o aquecedor; meus pés pressionaram friamente o assoalho de madeira polido.
— Eu atendo a porta — disse Bill, seguindo na minha frente sem que eu visse seus movimentos.
— Jesus Cristo, Pastor da Judéia — murmurei, seguindo-o. Me perguntei onde estaria Amelia; dormindo no andar de cima ou no sofá da sala de estar? Esperava que ela estivesse apenas dormindo. Já estava tão assustada naquele momento que imaginei que ela poderia estar morta.
Bill flutuou silenciosamente através da casa escura, seguiu pelo corredor até a sala de estar (que ainda cheirava a pipoca) e a porta da frente, então espiou através do olho mágico, o que por alguma razão achei engraçado. Tive que tapar a boca com a mão para evitar uma risadinha.
Ninguém atirou em Bill através do olho mágico. Ninguém tentou derrubar a porta. Ninguém gritou.
O silêncio contínuo estava me deixando arrepiada. Eu nem mesmo percebi Bill se movendo. Sua voz fria surgiu em minha orelha direita. — É uma mulher muito jovem. O cabelo é tingido de branco ou louro e é bem curto e escuro nas raízes. Ela é magra. Humana. Está assustada.
Ela não era a única.
Esforcei-me para desvendar quem seria minha visitante noturna. De repente achei que podia saber.
— Frannie — sussurrei. — A irmã de Quinn. Talvez.
— Deixe-me entrar — disse uma voz feminina. — Oh, por favor, deixe-me entrar.
Era como uma daquelas histórias de fantasmas que li certa vez. Todos os pêlos em meus braços se eriçaram.
— Eu tenho que lhe dizer o que aconteceu com Quinn — disse Frannie, e aquilo me fez decidir de imediato.
— Abra a porta — falei para Bill em minha voz normal. — Temos que deixá-la entrar.
— Ela é humana — respondeu Bill, como se dissesse, “Que problemas ela pode causar?” Ele destrancou a porta.
Não vou dizer que Frannie tropeçou para dentro, mas certamente não perdeu tempo ao atravessar a porta e fechá-la. Eu não tive uma boa primeira impressão de Frannie, que exagerou na agressão e atitude e economizou no charme, mas pude conhecê-la um pouco melhor quando ela se sentou na cabeceira da cama de Quinn no hospital, após a explosão. Ela teve uma vida dura, e amava o irmão.
— O que aconteceu? — perguntei abruptamente, enquanto Frannie cambaleava até a cadeira mais próxima e se sentava.
— Você teria um vampiro por aqui — ela disse. — Posso beber um copo de água? Então, eu vou tentar fazer o que Quinn quer.
Corri até a cozinha e peguei o copo. Acendi a luz da cozinha, mas quando voltei para a sala, nós continuamos no escuro.
— Onde está o seu carro? — Bill perguntou.
— Quebrou há cerca de um quilômetro e meio — ela respondeu. — Mas não consegui esperar. Chamei um caminhão-reboque e deixei as chaves na ignição. Espero por Deus que eles o tenham tirado da estrada e fora de vista.
— Diga-me agora o que está acontecendo — falei.
— Versão curta ou longa?
— Curta.
— Alguns vampiros de Vegas estão vindo para invadir a Louisiana.
Aquilo interrompeu o show.
A VOZ DE BILL foi feroz. — Onde, quando, quantos?
— Eles já derrubaram alguns dos xerifes — disse Frannie, e pude notar que ela sentia um leve toque de prazer por dar aquelas importantíssimas notícias. — Equipes menores estão eliminando os mais fracos enquanto forças maiores se reúnem para cercar o Fangtasia, para lidar com Eric.
Bill estava no celular antes das palavras terem deixado os lábios de Frannie, e eu fiquei de boca aberta. Tarde demais, eu percebi o quanto a situação da Louisiana era fraca e me pareceu por um segundo que eu trouxe isso à tona só por pensar nela.
— Como isso aconteceu? — perguntei à garota. — Como Quinn se envolveu? Como ele está? Ele a mandou para cá?
— É claro que ele me mandou para cá — ela disse, como se eu fosse a pessoa mais estúpida que já conheceu. — Ele sabe que você está atada àquele vampiro Eric, então isso a torna parte do alvo. Os vampiros de Vegas até já mandaram alguém para dar uma olhada em você.
Jonathan.
— Quero dizer, eles estavam avaliando os bens de Eric, e você foi considerada parte disso.
— Por que isso se tornou problema de Quinn? — perguntei, o que pode não ter sido a forma mais clara de me expressar, mas ela entendeu o significado.
— Nossa mãe, nossa maldita e ferrada mãe — disse Frannie amargamente. — Você sabe que ela foi capturada e violentada por alguns caçadores, certo? No Colorado. Há uma centena de anos atrás. — Na verdade, talvez tenha sido há uns dezenove anos, porque Frannie foi concebida assim. — E Quinn a resgatou e matou todos, embora fosse só uma criança, e ele ficou endividado com os vampiros locais por ajudá-lo a limpar a cena e livrar mamãe.
Eu conhecia a triste história da mãe de Quinn. Estava assentindo freneticamente agora, porque queria descobrir algo que ainda não sabia.
— Ok, bom, minha mãe ficou grávida de mim depois do estupro — disse Frannie, me fuzilando desafiadoramente. — Então ela me teve, mas nunca ficou bem da cabeça, e crescer com ela foi meio difícil, entende? Quinn estava pagando sua dívida nos fossos (pense em Gladiador com metamorfos). Ela nunca ficou boa da cabeça — Frannie repetiu. — E está ficando cada vez pior.
— Entendo — falei, tentando manter a voz calma. Bill parecia prestes a esmurrar Frannie para apressar sua narrativa, mas eu sacudi a cabeça.
— Ok, então ela estava nesse lugar bacana que Quinn pagava nos arredores de Las Vegas, o único centro de assistência na América onde se pode mandar gente como minha mãe. — A Casa de Repouso dos Tigres Malucos? — Mas mamãe fugiu, matou uma turista, pegou as roupas dela e uma carona para Vegas, onde arranjou um homem. Ela o matou também. Ela o roubou, pegou seu dinheiro e foi jogar até que nós a encontramos. — Frannie se deteve e respirou fundo. — Quinn ainda estava se curando de Rhodes, e isso quase o matou.
— Oh, não. — Mas tive a sensação de que ainda não tinha ouvido o ponto final do incidente.
— Sim, o que é pior, certo? A fuga ou os assassinatos?
Provavelmente os turistas teriam uma opinião a respeito.
Eu vagamente notei que Amelia entrou na sala, e também percebi que não pareceu surpresa por ver Bill. Então ela esteve acordada quando Bill tomou o lugar de Pam. Amelia não tinha encontrado Frannie antes, mas não interrompeu a história.
— Contudo, existe um enorme cartel vampiro em Vegas, porque os lucros são abundantes — Frannie contou. — Eles rastrearam mamãe antes que a polícia pudesse pegá-la. Eles livraram a barra dela novamente. Acontece que o Whispering Palms, o lugar que a deixou escapar, alertou todos os sobrenaturais da área para ficarem alertas. No momento em que cheguei ao cassino onde agarraram mamãe, os vampiros estavam dizendo a Quinn que já tinham cuidado de tudo e agora havia mais dívidas para ele pagar. Ele disse que estava se recuperando de um ferimento sério e não podia voltar aos fossos. Eles se ofereceram para me aceitar como doadora de sangue ou prostituta para vampiros visitantes ao invés disso, e ele simplesmente apagou o sujeito que disse isso.
Claro. Troquei um olhar com Bill. A oferta para “empregar” Frannie foi planejada para tornar qualquer outra coisa muito melhor.
— Então eles disseram que sabiam de um reino bem fraco que simplesmente estava esperando para ser agarrado, e queriam dizer a Louisiana. Quinn lhes disse que podiam consegui-lo de graça se o Rei de Nevada simplesmente se casasse com Sophie-Anne, já que ela não estava em posição de discutir. Mas acontece que o rei estava lá. Ele disse que detestava aleijadas e de jeito nenhum se casaria com uma vampira que matou o marido anterior, não importa o quanto o reino seja bom, mesmo com o Arkansas de presente. — Sophie-Anne era a chefe titular do Arkansas, bem como Louisiana, já que foi considerada inocente pelo assassinato do marido (o Rei do Arkansas) num tribunal vampiro. SophieAnne não teve chance de consolidar seu direito, por causa da explosão. Mas eu tinha certeza que isso estava em sua lista de coisas para fazer, assim que suas pernas crescessem.
Bill abriu o celular novamente e começou a apertar números.
Para quem quer que ele tenha ligado, Bill não foi atendido. Os olhos escuros faiscavam. Estava absolutamente engrenado. Ele inclinou-se para pegar a espada que deixou apoiada contra o sofá. Sim, ele veio totalmente armado. Eu não mantinha itens como aquele em meu barracão de ferramentas.
— Eles querem nos eliminar rápida e silenciosamente para que os meios de comunicação humanos não percebam. Irão fabricar uma história para explicar por que vampiros familiares foram substituídos por estranhos — disse Bill. — Você, garota—que papel seu irmão desempenha nisso?
— Eles o fizeram contar quantas pessoas vocês tinham e compartilhar o que soubesse a respeito da situação na Louisiana — disse Frannie. Para tornar as coisas perfeitas, ela começou a chorar. — Ele não queria. Ele tentou barganhar, mas eles o tinham onde queriam. — Agora Frannie parecia dez anos mais velha do que era. — Ele tentou ligar para Sookie um milhão de vezes, mas eles estavam vigiando e ele ficou com medo de que os conduzisse direto para ela. Mas eles descobriram mesmo assim. Assim que soube o que iam fazer, ele correu um grande risco — para nós dois — e me mandou na frente. Fiquei feliz por ter mandado uma amiga pegar meu carro de volta de você.
— Um de vocês devia ter me ligado, escrito, qualquer coisa. — Apesar da atual crise, não consegui me impedir de expressar a amargura.
— Ele não podia deixar você saber o quanto estava ruim. Disse que sabia que você tentaria tirá-lo da encrenca de alguma forma, mas não havia como escapar.
— Bem, é claro que eu teria tentado tirá-lo disso — falei. — É o que se faz quando alguém está com problemas.
Bill estava quieto, mas senti seus olhos pousarem em mim. Eu resgatei Bill quando ele ficou encrencado. Às vezes eu me arrependia disso.
— Seu irmão, por que ele está com eles agora? — Bill perguntou bruscamente. — Ele lhes deu a informação. Eles são vampiros. Por que precisam dele?
— Eles estão trazendo-o junto para que ele possa negociar com a comunidade sobrenatural, especificamente com os Lobis — disse Frannie, subitamente soando como Srta. Secretária Corporativa.
Senti pena de Frannie. Como produto da união entre um humano e uma tigresa metamorfa, ela não possuía poderes especiais para lhe dar suporte ou fornecer uma moeda de troca. Seu rosto estava manchado com rímel escorrido e as unhas estavam roídas até a carne. Ela estava uma bagunça.
E aquela não era hora de ficar preocupada com Frannie, porque os vampiros de Vegas estavam tomando posse do estado.
— O que é melhor nós fazermos? — perguntei. — Amelia, você verificou os feitiços da casa? Elas incluem nossos carros? — Amelia concordou rapidamente. — Bill, você ligou para o Fangtasia e todos os outros xerifes?
Bill assentiu. — Sem resposta de Cleo. Arla Yvonne respondeu e já percebeu o ataque. Ela disse que iria por terra e tentaria chegar à Shreveport. Ela tem seis membros de seu ninho a acompanhando. Desde que Gervaise encontrou seu fim, os vampiros dele estavam atendendo a rainha, e Booth Crimmons é o tenente. Booth diz que esteve fora e sua criança, Audrey, que foi deixada com a rainha e Sigebert, não responde. Até o delegado que Sophie-Anne enviou para Little Rock não está respondendo.
Todos nós ficamos em silêncio por um instante. A idéia de que Sophie-Anne pudesse finalmente estar morta era quase inimaginável. Bill estremeceu visivelmente.
— Então — ele continuou — podemos ficar aqui ou encontrar outro lugar para vocês três. Quando eu tiver certeza de que estão seguras, tenho que encontrar Eric assim que puder. Ele precisará de cada par de mãos esta noite, se sobreviver.
Alguns dos outros xerifes com certeza morreram. Eric podia morrer esta noite. A compreensão total esmurrou meu rosto com a força de uma enorme mão enluvada. Engoli um ofego e lutei para ficar de pé. Eu simplesmente não podia pensar nisso.
— Nós ficaremos bem — Amelia disse resolutamente. — Tenho certeza de que é um grande lutador, Bill, mas não estamos indefesas.
Com todo o devido respeito pelas habilidades de Amelia em bruxaria, nós estávamos totalmente indefesas; pelo menos contra vampiros.
Bill afastou-se de nós e encarou o corredor e a porta dos fundos. Ele ouvira algo que não alcançou nossos ouvidos humanos. Mas um segundo depois, ouvi uma voz familiar.
—Bill, deixe-me entrar. Quanto mais cedo melhor!
— É Eric — Bill disse com grande satisfação. Movendo-se tão rápido que era um borrão, ele foi para os fundos da casa. Com certeza, Eric estava lá fora e algo em mim relaxou. Ele estava vivo. Notei que dificilmente estava em sua disposição habitual. A camiseta estava rasgada e ele estava descalço.
— Fui deserdado do clube — disse enquanto ele e Bill vinham pelo corredor para juntarem-se à nós. — Minha casa não era boa, não sozinho. Não consegui alcançar ninguém mais. Recebi sua mensagem, Bill. Então, Sookie, estou aqui para solicitar sua hospitalidade.
— É claro — falei automaticamente, embora realmente devesse pensar a respeito. — Mas talvez seja melhor irmos... — Eu estava prestes a sugerir que devíamos cortar caminho pelo cemitério e ir até a casa de Bill, que era maior e teria mais instalações para vampiros quando a encrenca surgisse de outra fonte.
Não prestávamos qualquer atenção a Frannie desde que terminou sua história, e a depressão que ela experimentou assim que as dramáticas notícias foram comunicadas lhe permitiram pensar no desastre em potencial que encarávamos.
— Eu tenho que dar o fora daqui — disse Frannie. — Quinn me disse para ficar aqui, mas vocês caras são... — Sua voz estava ficando mais alta, ela ficou de pé e cada músculo em seu pescoço esticou-se de alívio enquanto a cabeça se sacudia em agitação.
— Frannie — disse Bill. Ele colocou as mãos brancas nas laterais do rosto de Frannie. Olhou direto nos olhos da garota. Ela ficou quieta. — Fique aqui, sua garota estúpida, e faça o que Sookie lhe mandar fazer.
— Está bem — Frannie disse numa voz tranqüila.
— Obrigada — respondi. Amelia olhava para Bill de modo chocado. Acho que ela nunca viu um vampiro usar seus truques antes. — Vou pegar minha espingarda — falei para ninguém em particular, mas antes que pudesse me mexer, Eric virou-se para o armário perto da porta da frente. Ele alcançou e engatilhou a Benelli. Virou-se para me entregar com uma expressão aturdida. Nossos olhos se encontraram.
Eric se lembrou onde eu mantinha a espingarda. Ele soube daquilo quando ficou comigo enquanto a memória estava perdida.
Quando consegui desviar os olhos, notei que Amelia estava embaraçosamente pensativa. Mesmo em minha curta experiência morando com Amelia, aprendi que aquele não era um olhar da qual gostava. Significava que ela estava prestes a dar uma opinião à qual eu não dava a mínima.
— Não estamos ficando agitados demais por nada? — ela perguntou retoricamente. — Talvez estejamos entrando em pânico por nenhuma boa razão.
Bill olhou para Amelia como se ela tivesse se transformado num babuíno. Frannie parecia totalmente despreocupada.
— Afinal — disse Amelia, mostrando um pequeno sorriso convencido — por que alguém viria atrás de nós? Ou mais especificamente você, Sookie. Porque eu não acho que os vampiros estejam atrás de mim. Tirando isso, por que eles viriam para cá? Você não é parte essencial do sistema de defesa vampiro. O que lhes daria uma boa razão para querer matá-la ou capturá-la?
Eric esteve verificando as portas e janelas. Ele terminou assim que Amelia resumiu seu discurso.
—O que aconteceu? — perguntou.
Eu disse: — Amelia está me explicando por que não existe razão racional para que os vampiros venham atrás de mim em sua tentativa de conquistar o estado.
— É claro que eles virão — disse Eric, mal olhando para Amelia. Ele examinou Frannie por um minuto, assentiu com aprovação, e então se posicionou ao lado de uma janela na sala para vigiar. — Sookie tem um vínculo de sangue comigo. E agora eu estou aqui.
— É — disse Amelia agastada. — Muito obrigada, Eric, por abrir um caminho direto até esta casa.
— Amelia, você não é uma bruxa poderosa?
— Sim, eu sou — ela disse cautelosamente.
— Seu pai não é um homem rico com um bocado de influência no estado? Sua conselheira não é uma grande bruxa?
Quem andou fazendo um pouco de pesquisa na Internet? Eric e Copley Carmichael tinham algo em comum.
— Sim — disse Amelia. — Okay, eles ficariam felizes se conseguissem nos encurralar. Mas ainda assim, se Eric não tivesse vindo para cá, eu não acho que precisaríamos nos preocupar com dano corporal.
— Você está imaginando se estamos realmente em perigo? — falei. — Vampiros excitados, sede de sangue?
—Não seremos úteis se não estivermos vivas.
— Acidentes acontecem — falei e Bill fungou. Eu nunca o ouvi fazendo um som tão comum, e olhei para ele. Bill estava apreciando a perspectiva de uma boa luta. As presas estavam à mostra. Frannie o encarava, mas sua expressão não mudou. Se houvesse a menor chance de ela permanecer calma e cooperativa, eu teria pedido a Bill que a tirasse daquele estado artificial. Eu adorava que Frannie ficasse imóvel e quieta — mas detestava sua perda de livre arbítrio.
— Por que Pam foi embora? — perguntei.
— Ela pode ser mais valiosa no Fangtasia. Os outros foram para o clube, e ela pode me dizer se estão trancados lá dentro ou não. Foi estúpido da minha parte ligar para eles e dizer que se reunissem; devia ter dito para se espalharem. — Pelo modo como parecia agora, era um erro que Eric não cometeria novamente.
Bill posicionou-se perto de uma janela, ouvindo os sons da noite. Ele olhou para Eric e sacudiu a cabeça. Ninguém ainda.
O telefone de Eric tocou. Ele ouviu por um minuto, disse, — Boa sorte para você — e desligou.
— A maioria do pessoal está no clube — ele disse a Bill, que assentiu.
— Onde está Claudine? — Bill me perguntou.
— Eu não tenho idéia. — Como era possível Claudine vir quando eu estava encrencada algumas vezes e não em outras? Eu a estava cansando? — Mas não acho que ela virá, porque vocês estão aqui. Não há razão para aparecer para me defender se você e Eric não conseguem manter as presas afastadas dela.
Bill enrijeceu. A audição aguda captara algo. Ele se virou e trocou um longo olhar com Eric.
— Não é a companhia que eu teria escolhido — Bill disse em sua voz fria. — Mas faremos uma boa exibição. Lamento pelas mulheres. — E ele olhou para mim, os profundos olhos escuros cheios de alguma intensa emoção. Amor? Tristeza? Sem uma ou duas dicas de seu cérebro silencioso, eu não conseguia imaginar.
— Nós ainda não estamos em nossos túmulos — Eric disse friamente.
Agora eu também consegui ouvir carros se aproximando pela entrada. Amelia fez um som involuntário de medo, e os olhos de Frannie se arregalaram, embora permanecesse na cadeira como que paralisada. Eric e Bill mergulharam em si próprios.
Os carros pararam na frente, e houve sons de portas se abrindo e fechando, alguém caminhando na direção da casa.
Houve uma rápida batida — não na porta, mas na viga da varanda. Eu me mexi lentamente. Bill agarrou meu braço e posicionou-se diante de mim.
— Quem é? — ele gritou, e imediatamente nos moveu a uns quatro metros de distância.
Ele esperou que alguém atirasse através da porta. Isso não aconteceu.
— Sou eu, o vampiro Victor Madden — disse uma voz amistosa.
Okay, inesperado. E especialmente para Eric, que fechou os olhos brevemente. A identidade e presença de Victor Madden deram uma tonelada de informações a Eric, e eu não sabia o que ele tirou dessas informações.
— Vocês o conhecem? — sussurrei para Bill.
Bill disse: — Sim. Eu o encontrei. — Mas ele não acrescentou quaisquer detalhes e permaneceu perdido num debate interno. Eu nunca quis tão intensamente saber o que alguém estava pensando do que naquele momento. O silêncio estava me afetando.
— Amigo ou inimigo? — falei.
Victor riu. Foi uma verdadeira boa risada — genial, uma gargalhada do tipo “estou rindo com você, não de você”.
— É uma excelente pergunta — disse — e uma que só você pode responder. Eu tenho a honra de falar com Sookie Stackhouse, famosa telepata?
— Você tem a honra de falar com Sookie Stackhouse, garçonete — respondi friamente. E ouvi uma espécie de som gutural, a vocalização de um animal. Um grande animal.
Meu coração afundou até os pés.
— As proteções vão funcionar — Amelia dizia para si mesma num rápido sussurro. — As proteções vão funcionar; as proteções vão funcionar. — Bill me encarava com olhos sombrios, pensamentos relampejando em seu rosto numa rápida sucessão. Frannie parecia ausente e desinteressada, mas seus olhos estavam fixos na porta. Ela ouviu o som também.
— Quinn está lá fora com eles — sussurrei para Amelia, já que era a única na sala que não tinha percebido.
Amelia disse: — Ele está do lado deles?
— Eles estão com a mãe dele — eu a lembrei. Mas sentia-me doente por dentro.
— Mas nós temos sua irmã — disse Amelia.
Eric parecia tão pensativo quanto Bill. De fato, eles estavam se encarando agora, e acreditei que ambos estavam tendo um diálogo completo sem falar uma palavra.
Toda essa meditação não era boa. Significava que eles não haviam decidido como agir.
— Podemos entrar? — perguntou a voz charmosa. — Ou podemos tratar com um de vocês cara-a-cara? Vocês parecem ter alguns salvaguardas na casa.
Amelia agitou o braço e disse, — Sim! — Ela sorriu para mim.
Nada de errado com um pouco de merecida auto-congratulação, embora o momento não fosse apropriado. Eu retribuí o sorriso, apesar de sentir que minhas bochechas se partiriam.
Eric pareceu se recompor e, após trocarem um longo último olhar, ele e Bill relaxaram. Eric virou-se para mim, beijou meus lábios de leve e olhou para meu rosto por um longo instante.
— Ele irá poupá-la — disse Eric, e compreendi que ele não estava falando comigo, mas consigo mesmo. — Você é única demais para ser desperdiçada.
E então abriu a porta.
JÁ QUE AS LUZES ainda estavam apagadas na sala e a luz de segurança estava acesa no exterior, nós conseguimos ver muito bem de dentro da casa. O vampiro parado sozinho no pátio não era particularmente alto, mas era um homem impressionante. Ele usava um terno executivo. O cabelo era curto e encaracolado e, apesar da luz não ser muito boa para determinar, eu achei que ele fosse negro. Ele se posicionava com atitude, como um modelo da GQ. Eric estava praticamente bloqueando a entrada, então foi tudo que eu pude perceber. Parecia redundante ir até a janela para olhar.
— Eric Northman — disse Victor Madden. — Não o vejo há algumas décadas.
— Você tem trabalhado duro no deserto — Eric disse neutro.
— Sim, os negócios têm prosperado. Há algumas coisas que eu quero discutir com você—coisas bem urgentes, receio. Posso entrar?
— Quantos estão com você? — Eric perguntou.
— Dez — sussurrei atrás de Eric. — Nove vampiros e Quinn. — Se um cérebro humano fazia um buraco ruidoso em minha consciência interior, um cérebro vampiro deixava um vazio. Tudo que eu tinha que fazer era contar os buracos.
— Tenho quatro companhias comigo — disse Victor, soando absolutamente sincero e franco.
— Eu acho que você perdeu sua habilidade de contar — Eric disse. — Acredito que existam nove vampiros e um metamorfo.
A silhueta de Victor se reajustou enquanto sua mão se contraía. — É inútil tentar enganá-lo, velho camarada.
— Velho camarada? — murmurou Amelia.
— Faça-os saírem da floresta para que eu possa vê-los — pediu Eric.
Amelia, Bill e eu desistimos de ser discretos e fomos para as janelas para observar. Um por um, os vampiros de Las Vegas saíram detrás das árvores. Já que estavam à beira da escuridão, eu não consegui ver a maioria muito bem, mas notei uma mulher escultural com um bocado de cabelos castanhos e um homem não mais alto do que eu que usava barba bem cortada e brinco.
O último a surgir do meio da floresta foi o tigre. Eu tinha certeza de que Quinn mudou para sua forma animal porque não queria me olhar cara-a-cara. Senti-me terrivelmente pesarosa por ele. Percebi que não importava o quanto eu estivesse destroçada por dentro, dentro dele tinha que estar como carne de hambúrguer.
— Vejo alguns rostos familiares — Eric disse. — Todos estão sob o seu comando? — Aquilo tinha um significado que eu não entendi.
— Sim — Victor respondeu com firmeza.
Isso significou algo para Eric. Ele afastou-se da porta e o resto de nós se virou para fitá-lo.
— Sookie — Eric disse — não cabe a mim convidá-lo. Esta é sua casa. — Eric virou-se para Amelia. — Este feitiço é especificamente seu? — perguntou. — A proteção deixaria apenas ele entrar?
— Sim — ela disse. Desejei que ela soasse mais confiante. — Ele tem que ser convidado por alguém que a proteção aceita, como Sookie.
Bob o gato caminhou até a porta aberta. Ele sentou-se exatamente no meio do batente, o rabo enrolado ao redor das patas, e vigiou o recémchegado fixamente. Victor riu um pouco quando Bob apareceu pela primeira vez, mas parou após um segundo.
— Isso não é apenas um gato — disse Victor.
— Não — respondi alto o bastante para Victor me ouvir. — Tampouco aquele lá fora. — O tigre fez um som alto, que interpretei como sendo supostamente amigável. Acho que era o mais próximo que Quinn podia vir a me dizer que sentia muito sobre toda a maldita coisa. Ou talvez não. Parei atrás de Bob. Ele levantou a cabeça para olhar para mim e então se afastou com tanta indiferença quanto chegou. Gatos.
Victor Madden aproximou-se da varanda. Evidentemente as proteções não o deixariam cruzar o assoalho, e ele esperou no começo dos degraus. Amelia acendeu as luzes da varanda e Victor piscou com o brilho súbito. Ele era um homem muito atraente, se não exatamente bonito. Os olhos eram grandes e castanhos, e o maxilar decidido. Ele possuía belos dentes dispostos num enorme sorriso. Ele me olhou muito cuidadosamente.
— Relatos de seus atrativos não foram exagerados — disse o que levei um minuto para decifrar. Eu estava assustada demais para agir com inteligência. Divisei Jonathan o espião entre os vampiros no pátio.
— A-hã — falei pouco impressionada. — Só você pode entrar.
— Estou encantado — ele disse, inclinando a cabeça numa reverência. Ele deu um passo cauteloso para frente e pareceu aliviado. Depois disso, ele cruzou a varanda tão facilmente que de repente estava bem diante de mim, o lenço em seu bolso — eu juro por Deus, um lenço de bolso branco como neve — quase tocando minha camiseta branca. Era tudo que podia fazer para evitar recuar, mas consegui permanecer imóvel. Encontrei seus olhos e senti a pressão por trás deles. Ele estava tentando seus truques da mente para ver o que podia funcionar em mim.
Em minha experiência, não muita coisa. Depois que o deixei estabelecer isso, me afastei para lhe dar espaço para entrar.
Victor permaneceu imóvel assim que entrou pela porta. Lançou um olhar bem cauteloso para todos na sala, embora o sorriso nunca desaparecesse. Quando avistou Bill, o sorriso de fato aumentou. — Ah, Compton — disse, e apesar de ter esperado que ele seguisse adiante com um comentário mais esclarecedor, isso não aconteceu. Ele deu a Amelia um minucioso escrutínio. — A fonte da magia — murmurou e inclinou a cabeça para ela. Frannie recebeu uma rápida avaliação. Quando Victor a reconheceu, ele pareceu severamente aborrecido por um segundo.
Eu devia tê-la escondido. Simplesmente não pensei nisso. Agora o grupo de Las Vegas sabia que Quinn enviou a irmã na frente para nos avisar. Imaginei se sobreviveríamos a isso.
Se vivêssemos até o amanhecer, as três humanas podiam partir num carro e, se os carros estivessem incapacitados, bom, nós tínhamos celulares e podíamos chamar uma carona. Mas não havia como calcular que outros ajudantes diurnos dos vampiros de Las Vegas podiam existir... além de Quinn. Quanto a Eric e Bill serem capazes de abrir caminho lutando através da fileira de vampiros lá fora: eles podiam tentar. Eu não sabia até onde eles chegariam.
— Por favor, sentem-se — falei, apesar de soar tão hospitaleira quanto uma senhora da igreja forçada a receber um ateu. Todos nos movemos para o sofá e as poltronas. Deixamos Frannie onde ela estava. Seria melhor manter cada instante de calma que pudéssemos conseguir. A tensão na sala era quase palpável por enquanto.
Acendi algumas lâmpadas e perguntei aos vampiros se gostariam de uma bebida. Todos pareceram surpresos. Apenas Victor aceitou. Após um assentimento de minha parte, Amelia foi à cozinha para aquecer um pouco de TrueBlood. Eric e Bill estavam no sofá, Victor pegou a poltrona e eu me empoleirei no canto da poltrona reclinável, as mãos cerradas no colo. Houve um longo silêncio enquanto Victor escolhia sua frase de abertura.
— Sua rainha está morta, Viking — ele disse.
Eric meneou a cabeça. Amelia, entrando, imobilizou-se por um segundo antes de levar o copo de TrueBlood para Victor. Ele aceitou com uma pequena reverência. Amelia encarou-o e eu notei a mão dela escondida nas dobras do roupão. No instante em que juntei fôlego para lhe dizer para não ser louca, ela se afastou dele e veio ficar ao meu lado.
Eric disse: — Imaginei que fosse esse o caso. Quantos xerifes? — Tive que aplaudi-lo. Era impossível perceber como ele se sentia através da voz.
Victor se exibiu consultando a memória. — Deixe-me ver. Oh, sim! Todos eles.
Cerrei os lábios com força para não deixar nenhum som escapar. Amelia puxou a cadeira de espaldar reto que mantínhamos ao lado da lareira. Ela colocou-a perto de mim e afundou-se como um saco de areia. Agora que estava sentada, pude notar que ela tinha uma faca apertada na mão, a faca de cortar filés da cozinha. Era realmente afiada.
— E quanto ao pessoal deles? — Bill perguntou. Ele estava imitando a fachada neutra também.
— Alguns estão vivos. Um jovem rapaz moreno chamado Rasul... alguns servos de Arla Yvonne. O grupo de Cleo Babbitt morreu com ela, mesmo depois de uma oferta de rendição, e Sigebert parece ter perecido com Sophie-Anne.
— Fangtasia? — Eric deixou isso por último, porque mal suportava falar a respeito. Eu quis ir até ele e lançar meus braços ao seu redor, mas ele não apreciaria nem um pouco. Pareceria fraqueza.
Houve um longo silêncio enquanto Victor dava um gole no TrueBlood. Então, ele disse: — Eric, todo seu pessoal está no clube. Eles não se renderam. Dizem que não farão isso até ter notícias a seu respeito. Estamos prontos para incendiá-lo. Um de seus subordinados escapou, e ela—achamos que é uma mulher — está eliminando qualquer membro do meu pessoal estúpido suficiente para se separar dos outros.
Viva, Pam! Inclinei a cabeça para esconder um sorriso involuntário. Amelia sorriu para mim. Até Eric pareceu satisfeito, só por um segundo. O rosto de Bill não se alterou.
— Por que eu estou vivo, de todos os xerifes? — Eric perguntou — a pergunta de um milhão de dólares.
— Porque você é o mais eficiente, mais produtivo e o mais prático. — Victor tinha a resposta pronta nos lábios. — E você tem uma das mais rentáveis fontes de dinheiro vivendo em sua área e trabalhando para você. — Ele indicou Bill. — Nosso rei gostaria de deixá-lo na posição, se você jurar lealdade a ele.
— Imagino que sei o que acontecerá se eu me recusar.
— Meu pessoal em Shreveport está pronto com as tochas — disse Victor com seu sorriso alegre. — Na realidade, são aparelhos mais modernos, mas você entendeu o recado. E, é claro, podemos cuidar de seu pequeno grupo aqui. Você com certeza gosta de diversidade, Eric. Eu o rastreei até aqui achando que o descobriria com seus vampiros de elite, e o encontramos com essas companhias estranhas.
Eu nem mesmo pensei em reclamar. Nós éramos um grupo estranho, sem dúvida. Também notei que o resto de nós não tinha voto. Tudo isso se apoiava na questão do quanto Eric era orgulhoso.
No silêncio, eu imaginei por quanto tempo Eric iria avaliar sua decisão. Se ele não cedesse, todos nós morreríamos. Aquele seria o modo de Victor “cuidar” de nós, apesar do pensamento audível de Eric sobre eu ser valiosa demais para ser morta. Eu não achava que Victor dava a mínima para meu “valor”, muito menos de Amelia. Mesmo que dominássemos Victor (e entre Bill e Eric isso provavelmente podia ser feito), o resto dos vampiros lá fora tinha apenas que botar fogo na casa, como estavam ameaçando fazer com o Fangtasia, e nós estaríamos liquidados. Eles podiam não ser capazes de entrar sem um convite, mas nós certamente tínhamos que sair.
Meus olhos encontraram os de Amelia. Seu cérebro zumbia de medo, apesar de ela fazer um esforço supremo para manter as costas rígidas. Se ela ligasse para Copley, ele barganharia pela vida dela, e ele tinha os recursos para negociar efetivamente. Se o grupo de Las Vegas estava faminto o suficiente para invadir a Louisiana, então estaria faminto para aceitar o suborno pela vida da filha de Copley Carmichael. E certamente Frannie ficaria bem, já que o irmão estava lá fora? Com certeza eles poupariam Frannie para manter Quinn complacente? Victor já tinha apontado que Bill possuía habilidades que eles precisavam, porque seu banco de dados de computador se provou lucrativo. Portanto Eric e eu éramos os mais dispensáveis.
Pensei em Sam, desejando poder telefonar e falar com ele só por um minuto. Mas eu não o arrastaria para dentro disso por nada, porque significaria morte certa. Fechei os olhos e lhe disse adeus.
Houve um ruído do lado de fora da porta, e levei um instante para interpretar como o barulho de um tigre. Quinn queria entrar.
Eric olhou para mim e eu sacudi a cabeça. Isso já era ruim o suficiente sem jogar Quinn no meio. Amelia sussurrou, — Sookie — e pressionou sua mão contra a minha. Era a mão com a faca.
— Não — eu disse. — Não fará nenhum bem. — Eu esperava que Victor não tivesse percebido a intenção dela.
Os olhos de Eric estavam abertos e fixos no futuro. Eles fulguravam azuis no longo silêncio.
Então algo inesperado aconteceu. Frannie saiu de seu transe, abriu a boca e começou a gritar. Quando o primeiro grito rompeu de sua boca, a porta começou a sacudir. Cinco segundos depois, Quinn destruiu minha porta ao jogar seus duzentos quilos contra ela. Frannie lutou para ficar de pé e correu, girando a maçaneta e abrindo-a antes que Victor pudesse agarrá-la, embora tenha a perdido por meia polegada.
Quinn saltou para dentro da casa tão rápido que derrubou a irmã. Ele permaneceu sobre ela, rugindo para todos nós. Para seu crédito, Victor não mostrou medo. — Quinn, me escute — disse.
Após um segundo, Quinn se calou. Era sempre difícil divisar quanta humanidade sobrou na forma animal de um metamorfo. Eu tive provas de que os Lobis me compreendiam perfeitamente, e me comuniquei com Quinn antes quando era um tigre; ele definitivamente compreendia. Mas ouvir Frannie gritar desatou sua fúria e ele não parecia saber para onde apontá-la. Enquanto Victor prestava atenção em Quinn, eu tirei um cartão de meu bolso.
Eu detestava a idéia de usar o cartão Me Tire da Cadeia de meu bisavô tão cedo (“Te amo, Vovô — me salve!”), e detestava a idéia de trazêlo sem aviso para uma sala cheia de vampiros. Mas se havia um momento para a intervenção de fadas, esse momento seria agora, e podia ser tarde demais. Eu tinha o celular no bolso do pijama. Tirei-o disfarçadamente e abri, desejando ter colocado o número na discagem rápida. Olhei para baixo, verificando o número e comecei a apertar os botões. Victor estava falando com Quinn, tentando convencê-lo de que Frannie não estava sendo ferida. Eu não fiz tudo certo? Não esperei até ter certeza de que precisava dele antes de ligar? Não fui esperta por manter o cartão comigo, ter o telefone?
Às vezes, quando se faz tudo certo, ainda assim tudo dá errado. Assim que a chamada foi completada, uma mão rápida se estendeu e arrancou o telefone de minha mão, arremessando-o contra a parede.
— Não podemos envolvê-lo — Eric disse em meu ouvido — ou uma guerra terá início e matará todos nós.
Acho que ele quis dizer todos eles, porque eu tinha certeza que ficaria bem se meu bisavô começasse uma guerra para me manter assim, mas não havia mais nada a fazer agora. Olhei para Eric com algo muito próximo a ódio.
— Não há ninguém para quem possa ligar que a ajudaria nessa situação — disse Victor Madden complacentemente. Mas então pareceu um pouco menos satisfeito consigo mesmo, como se estivesse tendo segundos pensamentos. — A menos que exista algo que eu não sei sobre você — acrescentou.
— Existem muitas coisas que você não sabe a respeito de Sookie — disse Bill. Era a primeira vez que ele falava, desde que Madden entrou. — Saiba disso: eu morrerei por ela. Se você feri-la, eu o mato. — Bill pousou os olhos escuros em Eric. — Você pode dizer o mesmo?
Eric simplesmente não podia, o que o deixava em desvantagem na aposta de “Quem Ama Mais Sookie?”. No momento, aquilo não era tão relevante.
— Você também deve saber — Eric disse a Victor. — Ainda mais pertinente, se algo acontecer a ela, forças que você não pode imaginar serão postas em movimento.
Victor pareceu profundamente pensativo.
— Obviamente, isso pode ser uma ameaça inútil — disse. — Mas, de alguma forma, eu acredito que esteja falando sério. Contudo, se está se referindo ao tigre, eu não acho que ele nos matará por ela, já que temos sua mãe e a irmã em nosso poder. O tigre já tem muito pelo que responder, desde que sua irmã está aqui.
Amelia se moveu para colocar um braço ao redor de Frannie, tanto para confortá-la como para se incluir no círculo de proteção do tigre. Ela olhou para mim, pensando claramente, Devo tentar um pouco de magia? Talvez um feitiço de stasis?
Era esperto da parte de Amelia pensar em se comunicar dessa forma comigo e pensei furiosamente a respeito de sua oferta. O feitiço de stasis congelaria tudo exatamente como estava. Mas eu não sabia se o encantamento podia abranger os vampiros esperando lá fora, e não conseguia imaginar como a situação melhoraria se ela congelasse todos na sala, exceto ela própria. Ela podia ser específica sobre quem a magia afetava? Desejei que Amelia fosse telepata também, e nunca desejei isso para alguém antes. Como estavam, simplesmente havia coisas demais que eu não sabia. Relutantemente, sacudi a cabeça.
— Isso é ridículo — disse Victor. Sua impaciência era calculada. — Eric, esse é o fim da linha e minha última oferta. Você aceita a posse da Louisiana e do Arkansas por meu rei, ou quer lutar até a morte?
Houve outra pausa, mais curta.
— Eu aceito a soberania de seu rei — disse Eric, o tom vazio.
— Bill Compton? — Victor perguntou.
Bill olhou para mim, os olhos escuros demorando-se em meu rosto. — Eu aceito — ele disse.
E simples assim, a Louisiana teve um novo rei e o antigo regime se foi.
SENTI A TENSÃO me deixar como ar saindo de um pneu furado. Eric disse: — Victor, avise seu pessoal. Quero ouvir você lhes dizer.
Victor, sorrindo mais do que nunca, sacou um pequeno celular do bolso e ligou para alguém chamada Delilah para dar suas ordens. Eric usou seu próprio celular para telefonar ao Fangtasia. Eric contou a Clancy sobre a mudança de liderança.
— Não se esqueça de contar a Pam — disse Eric muito claramente — ou ela vai matar mais alguns membros do pessoal de Victor.
Houve uma pausa incômoda. Todos se perguntavam o que viria a seguir. Agora que eu tinha certeza que ia viver, esperava que Quinn se transformasse de volta em sua forma humana para que eu pudesse conversar com ele. Havia muito sobre o que falar. Não tinha certeza se tinha o direito de me sentir assim, mas sentia-me traída.
Não acho que o mundo gire ao meu redor. Podia ver que ele foi forçado a se envolver naquela situação. Sempre havia um bocado de pressão com vampiros.
Pelo que notei, esta era a segunda vez que a mãe de Quinn o expunha, bem inadvertidamente, ao cair nas mãos dos vampiros. Entendia que ela não era responsável; de verdade, entendia. Ela nunca quis ser violentada e não escolheu se tornar mentalmente doente. Eu nunca conheci a mulher e provavelmente nunca conheceria, mas ela certamente era um canhão descontrolado. Quinn fez o que podia. Mandou a irmã na frente para nos avisar, apesar de eu não estar exatamente certa de que isso acabou ajudando. Mas valeu a tentativa.
Agora, enquanto observava o tigre afocinhar Frannie, eu soube que cometi erros do início ao fim com Quinn. E senti a raiva da traição; não importava o quanto argumentasse comigo mesma, a imagem de meu namorado ao lado dos vampiros que eu considerava inimigos acendeu uma chama em mim. Voltei ao presente, olhando ao redor da sala. Amelia correu para o banheiro assim que decentemente conseguiu deixar Frannie, que ainda chorava. Eu suspeitei que a tensão foi demais para minha colega bruxa, e os sons no banheiro do corredor confirmaram isso. Eric ainda estava ao telefone com Clancy, fingindo estar ocupado enquanto absorvia a enorme mudança em suas circunstâncias. Eu não conseguia ler sua mente, mas sabia disso. Ele seguiu pelo corredor, talvez querendo um pouco de privacidade para reafirmar seu futuro.
Victor saiu para falar com seus soldados, e ouvi um deles dizer, — Sim! Isso! — como se o seu time tivesse feito o gol vencedor, o que supus ser o caso.
Quanto a mim, sentia um pouco de fraqueza nos joelhos, e meus pensamentos estavam em tal tumulto que eles mal podiam ser chamados de pensamentos. O braço de Bill me envolveu e ele me depositou no assento que Eric desocupara. Senti seus lábios frios tocarem minha bochecha. Eu teria que ter um coração de pedra para não ser afetada por seu pequeno discurso a Victor — eu não esqueceria, não importa o quanto a noite tenha sido aterrorizante — e meu coração não é feito de pedra.
Bill ajoelhou-se aos meus pés, o rosto branco voltado para mim. — Espero que um dia você se volte para mim — disse. — Eu nunca me forçarei ou minha companhia a você. — Então se levantou e saiu para encontrar seus novos parentes vampiros.
Está bem.
Deus me abençoe; a noite ainda não tinha acabado.
Arrastei-me até meu quarto e abri a porta, pretendendo lavar o rosto, escovar os dentes ou tentar arrumar o cabelo, porque achei que isso podia me fazer sentir um pouco menos maltratada.
Eric estava sentado em minha cama, com o rosto enterrado nas mãos.
Ele me olhou quando entrei e pareceu chocado. Bom, não era de se espantar, com a invasão meticulosa e a traumática mudança na liderança.
— Sentado aqui em sua cama, sentindo seu cheiro — ele disse numa voz tão baixa que eu tive que me esforçar para ouvir. — Sookie... eu lembro de tudo.
— Ah, inferno — falei, indo para o banheiro e fechando a porta. Penteei os cabelos, escovei os dentes e lavei o rosto, mas tive que sair. Eu estaria sendo tão covarde quanto Quinn se não encarasse o vampiro.
Eric começou a falar no minuto em que apareci. — Não consigo acreditar que eu...
— É, é, eu sei, amou uma simples humana, fez todas aquelas promessas, foi doce como uma torta e quis ficar comigo para sempre — murmurei. Certamente havia um atalho que pudéssemos pegar através dessa cena.
— Não consigo acreditar que senti algo tão forte e estava tão feliz pela primeira vez em centenas de anos — disse Eric com alguma dignidade. — Dê-me um pouco de crédito por isso também.
Esfreguei a testa. Estávamos no meio da noite, pensei que iria morrer, o homem que achei ser meu namorado simplesmente bagunçou toda minha percepção sobre ele. Apesar de agora os vampiros “dele” estarem do mesmo lado dos “meus” vampiros, eu me alinhava com os vampiros da Louisiana, mesmo que alguns deles fossem aterrorizantes ao extremo. Victor Madden e seu grupo podiam ser menos assustadores? Eu achava que não. Nessa mesma noite, eles mataram um bocado de vampiros que conheci e de quem gostava.
No topo de todos esses eventos, eu não achava que conseguiria lidar com um Eric que acabou de ter uma revelação.
— Podemos conversar sobre isso numa outra hora, se tivermos que conversar? — perguntei.
— Sim — ele disse após uma longa pausa. — Sim. Este não é o momento certo.
—Eu não sei se qualquer momento será certo para esta conversa.
—Mas nós a teremos — disse Eric.
— Eric... oh, está bem. — Fiz um gesto de “apagar” com a mão. — Fico feliz pelo novo regime querer mantê-lo.
— Você ficaria ferida se eu morresse.
— Sim, estamos vinculados por sangue, blá blá blá.
— Não por causa do vínculo.
— Tudo bem, você está certo. Me machucaria se você morresse. Eu também teria morrido, provavelmente, então não teria doído por muito tempo. Agora você poderia, por favor, ir embora?
— Oh, sim — ele respondeu, voltando a ser o velho Eric. — Irei embora por agora, mas vejo-a mais tarde. E esteja segura, minha amada, chegaremos a um entendimento. Quanto aos vampiros de Las Vegas, eles são muito capazes de governar outro estado que depende profundamente do turismo. O Rei de Nevada é um homem poderoso, e Victor não é alguém que se pode subestimar. Victor é implacável, mas não destruirá algo que pode usar. Ele é muito bom em dominar seu temperamento.
— Então você não está tão infeliz com a invasão? — Não consegui impedir o choque em minha voz.
— Aconteceu — disse Eric. — Não h{ motivo para ficar “infeliz” agora. Não posso ressuscitar ninguém e não posso derrotar Nevada sozinho. Não pedirei ao meu pessoal que morra numa tentativa inútil.
Eu simplesmente não conseguia aceitar o pragmatismo de Eric. Entendia seu ponto de vista e de fato, quando tivesse um descanso, eu poderia concordar com ele. Mas não aqui nem agora; ele parecia frio demais para mim. É claro, ele teve algumas centenas de anos para entender daquele modo, e talvez tenha passado várias vezes por esse processo.
Que perspectiva desoladora.
Eric parou a caminho da porta para inclinar-se e beijar minha bochecha. Essa foi outra noite para colecionar beijos. — Sinto muito sobre o tigre — disse, e aquela foi a gota d’{gua da noite no que me dizia respeito.
Desabei na pequena poltrona no canto do quarto até ter certeza de que todos haviam saído da casa. Quando apenas um cérebro quente permaneceu, de Amelia, espiei para fora do quarto por uma confirmação. Sim, todo mundo foi embora.
— Amelia? — chamei.
— Sim — ela respondeu e fui procurá-la. Ela estava na sala, tão exausta quanto eu.
— Você vai conseguir dormir? — perguntei.
— Eu não sei. Vou tentar. — Ela sacudiu a cabeça. — Isso muda
tudo.
— O quê? — Incrivelmente, ela me entendeu.
— Oh, a posse vampira. Meu pai tem muitos negócios com os vampiros de Nova Orleans. Ele ia trabalhar para Sophie-Anne, reconstruindo o quartel-general em Nova Orleans. Todas as outras propriedades dela também. É melhor eu ligar e contar. Ele vai querer falar logo com o sujeito novo.
De seu próprio jeito, Amelia estava sendo tão prática quanto Eric. Me senti fora de sintonia com o mundo todo. Eu não conseguia pensar em ninguém para quem pudesse ligar que se sentiria pelo menos um pouco enlutado com as perdas de Sophie-Anne, Arla Yvonne, Cleo... e a lista continuava. Me fez imaginar, pela primeira vez, se os vampiros se acostumaram às perdas. Veja todas as vidas que passaram por eles e então desapareceram. Geração após geração, eles foram para seus túmulos, enquanto os morto-vivos ainda permaneciam. Seguindo em frente.
Bem, esta humana cansada — que eventualmente desmaiaria — precisava dormir na pior das hipóteses. Se houvesse outra tomada hostil esta noite, teria que prosseguir sem mim. Tranquei todas as portas novamente, disse boa-noite bem alto nas escadas para Amelia e rastejei para minha cama. Fiquei acordada por pelo menos meia hora, porque meus músculos se contraíram justo quando estava prestes a apagar. Comecei a acordar por completo, achando que alguém estava entrando no quarto para me avisar de um grande desastre. Mas finalmente até as contrações não conseguiram mais me manter acordada. Caí num sono pesado.
Quando acordei, o sol estava alto e brilhava em minha janela, e Quinn encontrava-se sentado na poltrona do canto onde eu desabei na noite anterior, enquanto tentava lidar com Eric.
Isso era uma tendência desagradável. Eu não queria um monte de sujeitos entrando e saindo do meu quarto. Queria um que ficasse.
— Quem deixou você entrar? — perguntei, apoiando-me num cotovelo. Ele parecia bem para alguém que não dormiu muito. Ele era um homem grande com uma cabeça bem lisa e enormes olhos púrpuros. Eu sempre adorei sua aparência.
— Amelia — ele disse. — Sei que não devia ter entrado; devia ter esperado até você estar levantada. Você pode não me querer em sua casa.
Fui ao banheiro para me dar outro minuto, outro estratagema que estava ficando familiar demais. Quando saí, um pouco mais arrumada e acordada do que quando entrei, Quinn tinha uma caneca de café para mim. Tomei um gole e me senti instantaneamente mais capaz de lidar com o que viesse pela frente. Mas não em meu quarto.
— Cozinha — falei, e fomos para o aposento que sempre foi o coração da casa. Foi velho quando o incêndio a atingiu. Agora eu possuía uma cozinha nova em folha, mas ainda sentia falta da antiga. A mesa onde minha família comeu durante anos foi substituída por uma mais moderna, e as cadeiras novas eram mais confortáveis do que as velhas, mas o pesar ainda me atingia de vez em quando ao pensar no que foi perdido.
Tive a agourenta sensação de que “pesar” seria o tema do dia. Durante meu sono inquieto, eu aparentemente absorvi uma dose da praticidade que pareceu tão triste para mim na noite anterior. Para protelar a conversa que iríamos ter, eu saí pela porta dos fundos para ver que o carro de Amelia não estava lá. Pelo menos, nós estávamos sozinhos.
Sentei-me do lado oposto do homem que esperei amar.
— Docinho, você parece alguém que acabou de ser informada que eu morri — disse Quinn.
— Bem que podia ter sido assim — falei, porque tinha que passar por isso e não olhar para a esquerda nem para a direita. Ele recuou.
— Sookie, o que eu podia ter feito? — ele perguntou. — O que eu podia ter feito? — Havia um toque de raiva em sua voz.
— O que eu posso fazer? — perguntei em retorno, porque não tinha resposta para ele.
— Eu mandei Frannie! Tentei avisá-la!
— Um pouco tarde demais — respondi. Questionei-me imediatamente; eu estava sendo dura demais, injusta, ingrata? — Se você tivesse me ligado semanas atrás, mesmo uma vez, eu podia ter me sentido diferente. Mas acho que você estava ocupado demais tentando encontrar sua mãe.
— Então você está rompendo comigo por causa de minha mãe — ele disse. Ele soava amargo e eu não o culpei.
— Sim — eu disse, após um teste interior momentâneo sobre minha própria resolução. — Eu acho que estou. Não é tanto sua mãe quanto toda a situação dela. Sua mãe sempre terá que vir primeiro enquanto estiver viva, por causa de sua doença. Eu simpatizo com isso, acredite. E sinto muito por você e Frannie terem tantos problemas. Eu sei tudo sobre problemas.
Quinn olhava para sua caneca de café, com o rosto rígido de raiva e cansaço. Este provavelmente era o pior momento possível para colocar as cartas na mesa, porém tinha que ser feito. Era doloroso demais deixar isto continuar por mais tempo.
— No entanto, sabendo disso tudo e sabendo que me importo com você, você não quer mais me ver — disse Quinn, cuspindo cada palavra. — Você não quer tentar fazer funcionar.
— Eu me importo com você também e desejei que tivéssemos tido muito mais — falei. — Mas a noite passada simplesmente foi demais para mim. Lembra-se, eu tive que descobrir sobre seu passado por outra pessoa? Acho que talvez você não tenha contado desde o começo, porque sabia que isso seria um problema. Não suas lutas no fosso — eu não ligo para isso. Mas sua mãe e Frannie... Bem, elas são sua família. São... dependentes. Elas têm que tê-lo. Elas sempre virão primeiro. — Eu parei por um instante, mordendo o interior da bochecha. Essa era a parte mais difícil. — Eu quero ser a primeira. Sei que é egoísta e talvez inalcançável e fútil. Mas eu simplesmente quero vir em primeiro lugar para alguém. Se isso é errado de minha parte, que seja. Estarei errada. Mas é como eu me sinto.
— Então não resta mais nada para conversar — disse Quinn, após um momento de reflexão. Ele me fitou desolado. Eu não podia discordar. Colocando as mãos sobre a mesa, ele levantou-se e partiu.
Me senti uma pessoa má. Me senti miserável e carente. Me senti uma cadela egoísta.
Mas deixei-o sair pela porta.
ENQUANTO ME APRONTAVA para o trabalho — sim, mesmo após uma noite como a que tive, eu tinha que ir trabalhar — houve uma batida na porta da frente. Ouvi algo grande vir pela estrada, então amarrei os sapatos apressadamente.
O caminhão da FedEx não era uma visita freqüente em minha casa, e a mulher magra que saltou era uma estranha. Abri a porta danificada com alguma dificuldade. Ela nunca mais seria a mesma depois da entrada de Quinn na noite anterior. Fiz uma nota mental para telefonar para a Lowe’s em Clarice e perguntar sobre uma reposição. Talvez Jason me ajudasse a pendurá-la. A mulher da FedEx deu uma longa olhada na condição arrebentada da porta quando eu finalmente consegui abri-la.
— Quer assinar por isto? — ela disse, estendendo um pacote, discretamente não fazendo comentários.
— Claro. — Aceitei a caixa, meio perplexa. Viera do Fangtasia. Huh. Assim que o caminhão voltou para a Rodovia Hummingbird, eu abri o pacote. Era um telefone celular vermelho. Estava programado para meu número. Havia um bilhete com ele. “Desculpe pelo outro, amada”, dizia. Assinado com um grande “E”. Havia um carregador incluído. E um carregador para o carro também. E uma nota informando que a conta de meus primeiros seis meses já estava paga.
Com uma espécie de assombro, ouvi outro caminhão chegar. Nem mesmo me incomodei de sair da varanda. O recém-chegado era do Home Depot4 de Shreveport. Era uma porta nova, muito bonita, com dois empregados para instalá-la. Todas as despesas estavam pagas.
4 Espécie de loja de departamentos em cadeia que vende artigos variados.
Imaginei se Eric limparia o escoadouro de minha secadora.
Cheguei cedo ao Merlotte’s para poder conversar com Sam. Mas a porta de seu escritório estava fechada, e pude ouvir vozes lá dentro. Apesar de incomum, a porta fechada era algo raro. Fiquei instantaneamente preocupada e curiosa. Consegui captar a assinatura mental familiar de Sam e outra que já encontrei antes. Ouvi as pernas de uma cadeira se arrastando e rapidamente entrei na despensa antes que a porta se abrisse. Tanya Grissom passou.
Esperei por alguns instantes e então decidi que meu negócio era tão urgente que tinha de arriscar uma conversa com Sam, apesar de ele talvez não se mostrar disposto. Meu chefe ainda estava em sua ruidosa cadeira giratória com os pés apoiados sobre a mesa. O cabelo estava ainda mais bagunçado que o habitual. Ele parecia ter uma auréola ruiva. E também parecia pensativo e preocupado, mas quando eu disse que precisava lhe contar algumas coisas, ele assentiu e me pediu que fechasse a porta.
— Você sabe o que aconteceu na noite passada? — perguntei.
— Ouvi dizer que houve uma tomada hostil — disse Sam. Ele se inclinou sobre a mola da cadeira e ela rangeu de um modo irritante. Eu definitivamente estava oscilando num limite frágil hoje, então tive que morder o lábio para evitar descarregar nele.
— Sim, pode se dizer que sim. — Uma tomada hostil era um modo perfeito de expressar. Contei-lhe o que aconteceu em minha casa.
Sam pareceu perturbado.
— Eu nunca interfiro em negócios vampiros — disse. — Criaturas de dupla natureza e vampiros não se misturam bem. Sinto muito por você ser envolvida nisso, Sookie. Aquele Eric imbecil. — Ele pareceu querer dizer mais, mas cerrou os lábios.
— Você sabe alguma coisa sobre o Rei de Nevada? — perguntei.
— Eu sei que ele possui um império editorial — Sam disse prontamente. — E pelo menos um cassino e alguns restaurantes. Ele também é o dono principal de uma administradora que lida com entretenimento vampiro. Você sabe, a Produtora Elvis Imortal com todos os artistas vampiros que homenageiam Elvis, o que é bem engraçado quando se pensa a respeito, e alguns ótimos grupos de dança. — Ambos sabíamos que o verdadeiro Elvis ainda andava por aí, mas raramente estava em forma para se apresentar. — Se uma invasão teve que acontecer num estado turístico, Felipe de Castro é o vampiro certo para a tarefa. Ele se certificará de que Nova Orleans seja reconstruída como deve ser, porque vai querer o lucro.
— Felipe de Castro... Parece exótico — eu disse.
— Eu não o conheço, mas entendi que ele é muito, hã, carismático — disse Sam. — Imagino se ele virá morar na Louisiana ou se esse Victor Madden será seu agente por aqui. De qualquer forma, isso não afetará o bar. Mas sem dúvida afetará você, Sookie. — Sam descruzou as pernas e endireitou-se na cadeira, que rangeu em protesto. — Desejava que houvesse um modo de tirá-la desse vínculo vampiro.
— A noite em que conheci Bill, se eu soubesse o que sei agora, me pergunto se teria feito algo diferente — eu disse. — Talvez tivesse deixado os Rattrays o pegarem. — Eu salvei Bill de um casal escorregadio que se mostrou não apenas escorregadio, mas assassino. Eles eram drenadores de vampiros, pessoas que atraíam vampiros para locais onde pudessem ser subjugados com correntes de prata e ter o sangue drenado, que era vendido por uma grana preta no mercado negro. Drenadores tinham vidas perigosas. Os Rattrays pagaram um preço alto.
— Você não está falando sério — disse Sam. Ele se sacudiu na cadeira novamente (squeak! squeak!) e ficou de pé. — Você nunca faria isso.
Foi realmente agradável ouvir algo bom a meu respeito, especialmente depois da conversa matutina com Quinn. Fiquei tentada a falar com Sam sobre aquilo também, mas ele se dirigiu para a porta. Hora de nós dois trabalharmos. Levantei-me também. Saímos e começamos os preparativos habituais. Minha mente mal estava focada nisso, entretanto. Para levantar meu humor frouxo, tentei pensar em algum ponto animador do futuro, algo pela qual ansiar. Não consegui pensar em nada. Por um longo e sombrio momento, fiquei no balcão com a mão em meu bloquinho de notas, tentando não cair no abismo de depressão. Então me estapeei no rosto. Idiota! Eu tenho um lar, amigos e um emprego. Tenho mais sorte do que milhões de pessoas no planeta. As coisas vão melhorar.
Por um tempo, aquilo funcionou. Sorri para todo mundo e, se esse sorriso era frágil, por Deus, ainda era um sorriso.
Uma ou duas horas depois, Jason veio ao bar com sua esposa, Crystal. Crystal estava parecendo rabugenta e ligeiramente grávida, e Jason parecia... Bom, ele tinha aquela expressão rígida, o olhar severo que tinha às vezes quando se mostrava desapontado.
—O que foi? — perguntei.
— Oh, nada — disse Jason comunicativo. — Pode nos trazer duas cervejas?
— Claro — respondi, percebendo que ele nunca fez um pedido por Crystal antes.
Crystal era uma mulher bonita e vários anos mais jovem que Jason. Ela era uma pantera, mas não muito boa, principalmente devido a toda endogamia da comunidade de Hotshot. Crystal tinha dificuldade para se transformar se não houvesse lua cheia, e abortara ao menos duas vezes pelo que eu sabia. Eu sentia pena por suas perdas, ainda mais porque sabia que a comunidade pantera a considerava fraca. Agora Crystal estava grávida pela terceira vez. Essa gravidez talvez tenha sido a única razão para Calvin tê-la deixado se casar com Jason, que era mordido, não nascido. Isto é, ele se tornou uma pantera ao ser mordido repetidamente — por um macho ciumento que queria Crystal para ele. Jason não podia se transformar numa verdadeira pantera, mas numa espécie de versão metade-besta, metade-homem. Ele gostava disso.
Eu lhes trouxe a cerveja junto com duas canecas geladas e esperei para ver se eles pediriam comida. Indaguei-me sobre o fato de Crystal beber, mas decidi que não era da minha conta.
— Eu gostaria de um cheeseburger com fritas — disse Jason. Nenhuma surpresa.
— E quanto a você, Crystal? — perguntei, tentando soar amistosa. Afinal, ela era minha cunhada.
— Oh, eu não tenho dinheiro suficiente para comer — ela disse.
Eu não sabia o que dizer. Olhei indagadoramente para Jason, e ele sacudiu os ombros. Aquela sacudida dizia (para sua irmã), “Eu fiz algo estúpido e errado, mas não vou voltar atrás, porque sou um merda teimoso.”
— Crystal, eu apreciaria bancar seu lanche — falei em voz baixa. — Do que você gostaria?
Ela fuzilou o marido. — Gostaria do mesmo, Sookie.
Anotei seu pedido numa conta separada e me afastei até o balcão para providenciá-lo. Eu estava pronta para ficar zangada, e Jason tinha acendido o fósforo e jogado em meu temperamento. A história toda estava nítida em suas cabeças e, assim que compreendi o que estava acontecendo, me senti doente com ambos.
Crystal e Jason tinham se instalado na casa de Jason, mas Crystal ia quase todos os dias para Hotshot, sua zona de conforto, onde não tinha que fingir nada. Ela estava acostumada a ser cercada pelos parentes, e sentia falta especialmente da irmã e dos bebês dela. Tanya Grissom estava alugando um quarto da irmã de Crystal, o quarto onde ela viveu até se casar com Jason. Crystal e Tanya se tornaram amigas instantaneamente. Já que a ocupação favorita de Tanya era fazer compras, Crystal a acompanhara diversas vezes. De fato, ela gastara todo o dinheiro que Jason lhe deu para as despesas da casa. Ela fez isso com dois contracheques seguidos, apesar das múltiplas cenas e promessas.
Agora Jason se recusava a lhe dar mais dinheiro. Ele estava comprando todos os mantimentos e pegando as roupas na lavanderia, pagando cada conta pessoalmente. Ele disse a Crystal que se ela quisesse dinheiro para si, que arranjasse um emprego. A inexperiente e grávida Crystal não conseguiu arranjar um, então estava sem um centavo. Jason estava tentando provar algo, mas ao humilhar a esposa em público agia de modo completamente errado. Que idiota meu irmão podia ser.
O que eu podia fazer nessa situação? Bom... nada. Eles tinham que resolver sozinho. Eu estava olhando para duas pessoas que não progrediram e nunca cresceram, e não me sentia otimista sobre as possibilidades.
Com uma intensa pontada de inquietude, lembrei de seus votos matrimoniais incomuns; pelo menos, eles pareceram estranhos para mim, apesar de supor que era a norma em Hotshot. Como a parenta viva mais próxima de Jason, eu tive que prometer aceitar a punição se Jason não se comportasse, assim como o tio dela, Calvin, teve que prometer o mesmo em nome de Crystal. Eu fui malditamente precipitada ao fazer essa promessa.
Quando levei seus pratos até a mesa, percebi que os dois estavam no estágio de cerrar o maxilar e olhar para qualquer outro lugar exceto para o outro na discussão. Servi os pratos cuidadosamente, levei uma bisnaga de ketchup Heinz e dei o fora. Interferi o suficiente ao pagar o lanche de Crystal.
Havia uma pessoa envolvida nisso de quem eu podia me aproximar, e prometi a mim mesma naquele instante que o faria. Toda minha raiva e infelicidade concentraram-se em Tanya Grissom. Eu realmente queria fazer algo horrível para aquela mulher. Por que diabos ela estava andando por aí, fuçando ao redor de Sam? Qual era seu objetivo ao envolver Crystal naquela espiral de esbanjamento? (e não pensei nem por um segundo que minha cunhada fosse a provável nova melhor amiga de Tanya) Tanya estava tentando me irritar até a morte? Era como ter um mosquito zumbindo por perto e incomodando ocasionalmente... mas nunca perto o suficiente para esmagar.
Enquanto fazia meu serviço no piloto automático, eu meditei sobre o que podia fazer para tirá-la de minha órbita. Pela primeira vez na vida, imaginei se podia pegar outra pessoa de propósito para ler sua mente. Não seria fácil, já que Tanya era uma transmorfa, mas eu descobriria o que estava a conduzindo. E tive a convicção de que essa informação me pouparia um bocado de tristeza... muita.
Enquanto eu planejava, conspirava e fumegava, Crystal e Jason almoçaram silenciosamente, e Jason mordazmente pagou a própria conta, quando cuidei da parte de Crystal. Eles partiram e imaginei como seria a noite deles. Estava feliz por não fazer parte dela.
Atrás do balcão, Sam observou tudo aquilo e me perguntou em voz baixa: — O que há com aqueles dois?
— Estão tendo as dificuldades dos recém-casados — eu disse. — Severos problemas de adaptação.
Ele pareceu preocupado. — Não deixe que eles a arrastem para isso — disse, e então pareceu arrependido de ter aberto a boca. — Desculpe, não pretendia lhe dar conselhos indesejáveis.
Algo ardeu nos cantos de meus olhos. Sam estava me dando conselhos porque se importava comigo. Em meu estado abatido, isso era motivo para lágrimas sentimentais. — Tudo bem, chefe — falei, tentando soar animada e despreocupada.
Girei nos calcanhares e fui patrulhar minhas mesas. O xerife Bud Dearborn estava sentado em minha seção, o que era incomum. Normalmente, ele escolhia sentar em qualquer outro lugar se sabia que eu estava trabalhando. Bud tinha uma cesta de anéis de cebola diante dele, besuntados de ketchup, e lia o jornal de Shreveport. A manchete principal era POLÍCIA EM BUSCA DE SEIS, e eu parei para perguntar a Bud se podia pegar o jornal quando ele terminasse de ler.
Ele me olhou desconfiado. Os olhinhos no rosto amassado me perscrutaram como se ele suspeitasse encontrar um cutelo ensangüentado pendurado em meu cinto.
— Claro, Sookie — ele disse após um longo momento. — Você tem alguma dessas pessoas desaparecidas escondidas na sua casa?
Eu sorri para ele, a ansiedade transformando meu sorriso naquele esgar radiante de alguém que não estava tão sã mentalmente. — Não, Bud, eu só quero descobrir o que está acontecendo no mundo. Estou desatualizada com as notícias.
Bud disse: — Deixarei na mesa — e começou a ler novamente. Acho que ele me culparia por Jimmy Hoffa5 se conseguisse descobrir um modo de convencer alguém. Não que necessariamente pensasse que eu era uma assassina, mas me achava suspeita e que talvez eu estivesse envolvida em coisas que ele não queria acontecendo em seu condado. Bud Dearborn e Sindicalista norte-americano, envolvido em fraudes e subornos, desaparecido nos anos 70 cujo corpo jamais foi encontrado.
Alcee Beck tinham aquela convicção em comum, especialmente desde a morte do homem na biblioteca. Para minha sorte, o homem demonstrou ter uma ficha criminal tão longa quanto meu braço; e não apenas uma ficha, mas acusações por crimes violentos. Embora Alcee soubesse que eu agi em autodefesa, ele nunca confiou em mim... tampouco Bud Dearborn.
Quando Bud terminou de beber sua cerveja e comer os salgadinhos, partindo para aterrorizar os malfeitores de Renard Parish, eu levei o jornal até o balcão para ler a história, com Sam perscrutando sobre meu ombro. Eu deliberadamente fiquei afastada das notícias após o banho de sangue no parque industrial vazio. Tive certeza de que a comunidade Lobi não conseguiria ocultar algo tão grande; tudo que podiam fazer era enlamear a trilha que a polícia certamente estaria seguindo. Aquilo provava ser o caso.
Após mais de vinte e quatro horas, a polícia permanece confusa na busca por seis cidadãos desaparecidos de Shreveport. A dificuldade é a incapacidade de descobrir alguém que tenha visto qualquer dos desaparecidos após as dez horas da noite de quarta-feira.
“Não conseguimos descobrir nada que eles tenham em comum”, disse o Detetive Willie Cromwell.
Entre os desaparecidos está um detetive da polícia de Shreveport, Cal Myers; Amanda Whatley, dona de um bar na área central de Shreveport; Patrick Furnan, dono da concessionária Harley-Davidson local, e sua esposa, Libby; Christine Larrabee, viúva de John Larrabee, superintendente escolar aposentada; e Julio Martinez, militar da Base da Força Aérea de Barksdale. Vizinhos dos Furnan dizem que não viram Libby Furnan no dia anterior ao desaparecimento de Patrick Furnan, e a prima de Christine Larrabee diz que não foi capaz de entrar em contato com Larrabee por telefone durante três dias, então a polícia especula que as duas mulheres podem ter encontrado um crime violento anterior ao desaparecimento dos outros.
O desaparecimento do Detetive Cal Myers deixou a força em alerta. Seu parceiro, Detetive Mike Coughlin, disse, “Myers era um dos detetives recém-promovidos, e não tivemos tempo para nos conhecermos bem. Eu não tenho idéia do que pode ter acontecido com ele.” Myers, 29, esteve com o departamento de polícia de Shreveport durante sete anos. Ele não era casado.
“Se eles estão todos mortos, é de se pensar que pelo menos um corpo teria aparecido agora,” disse ontem o Detetive Cromwell. “Fizemos buscas em todas as residências e locais de trabalho por pistas, e até agora não descobrimos nada.”
Somando-se ao mistério, na segunda-feira, outra residente da área de Shreveport foi assassinada. Maria-Star Cooper, fotógrafa assistente, foi brutalizada em seu apartamento na Rodovia 3. “O apartamento parecia um matadouro,” disse a locadora de Cooper, uma das primeiras testemunhas na cena. Nenhum suspeito foi apontado no homicídio. “Todos amavam Maria-Star,” disse a mãe, Stella Cooper. “Ela era tão talentosa e bonita.”
A polícia ainda não sabe se a morte de Cooper está relacionada aos desaparecimentos.
Em outra nota, Don Dominica, dono do Acampamento de Trailers Don’s, relatou a ausência dos donos de três trailers estacionados em sua propriedade há uma semana. “Não tenho certeza de quantas pessoas estão em cada trailer,” disse. “Todos eles chegaram juntos e alugaram espaço por um mês. O nome da locatária é Priscilla Hebert. Acho que havia pelo menos seis pessoas em cada trailer. Todos pareceram bem normais para mim.”
Perguntado se todos os pertences ainda estavam no local, Dominica respondeu, “Eu não sei, não tenho verificado. Não tenho tempo para isso. Mas não vejo sinais deles há dias.”
Outros residentes do acampamento não conheceram os recém-chegados. “Eles são discretos,” disse um vizinho.
O Chefe de Polícia Parfit Graham disse, “Tenho certeza de que resolveremos estes crimes. O pedaço certo de informação vai surgir. Nesse meio tempo, se alguém souber do paradeiro de qualquer uma dessas pessoas, ligue para a Linha Direta de informações.”
Eu meditei. Imaginei o telefonema. “Todas essas pessoas morreram como resultado da guerra dos lobisomens,” eu diria. “Elas são todas Lobis, e uma matilha desalojada e faminta do sul da Louisiana decidiu que o desacordo nas fileiras em Shreveport criou uma abertura para eles.”
Eu não acho que seria ouvida.
— Então eles ainda não encontraram o local — disse Sam em voz bem baixa.
— Acho que realmente foi um bom lugar para o encontro.
— Porém cedo ou tarde...
— Sim. Fico imaginando o que restou?
— O pessoal de Alcide tem bastante tempo agora — disse Sam. — Então, não sobrou muito. Eles provavelmente queimaram os corpos em algum lugar numa floresta. Ou enterraram na terra de alguém.
Eu estremeci. Graças a Deus eu não precisei me envolver nisso; e pelo menos realmente não sabia onde os corpos foram enterrados. Após verificar minhas mesas e servir mais alguns drinques, voltei ao jornal e abri na p{gina dos obitu{rios. Lendo a coluna intitulada “Mortes no Estado”, tive um choque terrível.
SOPHIE-ANNE LECLERQ, proeminente mulher de negócios, residindo em Baton Rouge desde o Katrina, faleceu de Sino-AIDS em sua casa. Leclerq, uma vampira, teve amplos negócios em Nova Orleans e em vários locais do estado. Fontes próximas a Leclerq dizem que ela morou na Louisiana durante cem anos ou mais.
Eu nunca vi um obituário para um vampiro. Este era uma completa fabricação. Sophie-Anne não teve Sino-AIDS, a única doença que podia ser transmitida de humanos para vampiros. Sophie-Anne provavelmente teve um ataque agudo do Sr. Estaca. A Sino-AIDS era temida entre os vampiros, é claro, apesar do fato de ser difícil de ser comunicada. Ao menos providenciava uma explicação aceitável à comunidade empresarial humana para esclarecer por que os negócios de Sophie-Anne estavam sendo conduzidos por outro vampiro, e era uma explicação que ninguém questionaria demais, especialmente agora que não havia corpo para refutar a afirmação. Para entrar na edição de hoje do jornal, alguém devia ter informado diretamente após a morte dela, talvez até antes de ser morta. Ugh. Estremeci.
Imaginei o que teria realmente acontecido a Sigebert, o devotado guarda-costas de Sophie-Anne. Victor dera a entender que Sigebert morreu junto com a rainha, mas ele não disse isso exatamente. Eu não conseguia acreditar que o guarda-costas pudesse estar ainda vivo. Ele nunca teria permitido que alguém chegasse perto o suficiente para matar Sophie-Anne. Sigebert esteve ao lado dela durante tantos anos, século após século, que eu não achava que ele pudesse sobreviver à sua perda.
Deixei o jornal aberto nos obituários e coloquei-o sobre a mesa de Sam, entendendo que o bar era movimentado demais para se ter uma conversa a respeito, mesmo que tivéssemos tempo. Tivemos um afluxo de fregueses. Eu estava correndo para servi-los e ganhando algumas boas gorjetas também. Mas depois da semana que tive, não apenas era difícil me sentir normalmente feliz sobre o dinheiro, também era impossível me sentir animada sobre estar no trabalho. Simplesmente fiz o meu melhor para sorrir e responder quando se dirigiam a mim.
No momento em que saí do trabalho, eu não queria conversar com ninguém sobre nada.
Mas, é claro, não tive alternativa.
Havia duas mulheres esperando no pátio de minha casa, e ambas irradiavam raiva. Uma eu já conhecia: Frannie Quinn. A mulher com ela tinha de ser a mãe. Sob a luz severa da lâmpada de segurança, dei uma boa olhada na mulher cuja vida foi tão desastrosa. Percebi que ninguém nunca me disse o nome dela. Ela ainda era bonita, mas de uma forma gótica que não era gentil para sua idade. Ela tinha uns quarenta anos; o rosto era descarnado e os olhos sombrios. Possuía cabelos escuros com mais do que um toque grisalho, e era muito alta e magra. Frannie vestia uma regata que deixava o sutiã à mostra, jeans apertados e botas. Sua mãe usava quase o mesmo traje, mas em cores diferentes. Imaginei que Frannie se encarregara de vestir a mãe.
Estacionei ao lado delas, porque não tinha intenção de convidá-las para entrar. Saí do carro relutantemente.
— Sua cadela — disse Frannie, passional. O rosto jovem estava rígido de fúria. — Como pôde fazer aquilo com meu irmão? Ele fez tanto por você!
Aquele era um modo de se interpretar.
— Frannie, — eu disse, mantendo minha voz tão calma e neutra quanto possível — o que acontece entre Quinn e eu realmente não é da sua conta.
A porta da frente se abriu e Amelia saiu na varanda. — Sookie, você precisa de mim? — ela perguntou, e senti a magia ao seu redor.
— Vou entrar daqui a pouco — respondi claramente, mas não disse para ela voltar para dentro. A Sra. Quinn era uma tigresa puro-sangue, e Frannie era metade; ambas eram mais fortes do que eu.
A Sra. Quinn deu um passo à frente e me fitou perplexa. — Você é aquela que John amou — disse. — Você é aquela que rompeu com ele.
— Sim, senhora. Simplesmente não iria funcionar.
— Eles dizem que eu tenho que voltar para aquele lugar no deserto — ela disse. — Onde eles guardam todos os Lobis malucos.
Não brinca. — Oh, é mesmo? — falei, para deixar claro que eu não tive nada a ver com isso.
— Sim — disse ela, mergulhando no silêncio, o que foi um grande alívio.
Frannie, no entanto, ainda não terminara comigo. — Eu lhe emprestei meu carro — ela disse. — Vim avisá-la.
— E eu agradeço — respondi. Meu coração afundou. Não conseguia pensar em quaisquer palavras mágicas para diminuir a dor no ar. — Acredite, eu desejei que as coisas tivessem funcionado de modo diferente.
Pouco convincente, mas verdadeiro.
— O que há de errado com meu irmão? — Frannie perguntou. — Ele é bonito; ele te ama; ele tem dinheiro. Ele é um ótimo sujeito. O que há de errado com você para não querê-lo?
A resposta nua e crua—que eu realmente admirava Quinn, mas não queria ser coadjuvante diante das necessidades de sua família — simplesmente era indizível por duas razões: era desnecessariamente cruel, e eu podia ser seriamente ferida como resultado. A Sra. Quinn podia não estar mentalmente composta, mas estava ouvindo com uma agitação crescente. Se ela se transformasse num tigre, eu não tinha idéia do que aconteceria. Ela poderia fugir para a floresta ou atacar. Tudo isso passou pela minha mente em pequenas imagens. Eu tinha que dizer alguma coisa.
— Frannie — falei muito lentamente, de forma deliberada, porque não sabia o que se seguiria a isso. — Não há nada de errado com seu irmão.
Acho que ele é o melhor. Mas simplesmente temos muitos obstáculos contra nós como um casal. Quero que ele tenha a melhor oportunidade para se unir a uma mulher com muita, muita sorte. Então eu o deixei partir. Acredite, estou ferida também. — Na maior parte isso era verdade, o que ajudou. Mas esperava que Amelia estivesse com os dedos prontos para lançar uma boa mágica. E esperava que ela tivesse o feitiço certo. Por via das dúvidas, comecei a me afastar de Frannie e sua mãe.
Frannie oscilava prestes a entrar em ação, e sua mãe parecia cada vez mais inquieta. Amelia aproximou-se da margem da varanda. O cheiro de magia se intensificou. Por um longo momento, a noite pareceu prender o fôlego. E então Frannie deu as costas.
— Venha, Mama — ela disse, e as duas mulheres entraram no carro de Frannie. Tirei vantagem do momento para correr para a varanda. Amelia e eu permanecemos paradas ombro a ombro, mudas, até Frannie ligar o motor do carro e ir embora.
— Bem — disse Amelia. — Então, você rompeu com ele, pelo que eu entendi.
— Sim. — Eu estava exausta. — Ele tinha muita bagagem. — Então me encolhi. — Céus, eu nunca pensei que me veria dizendo isso. Especialmente considerando a minha própria bagagem.
— Ele tinha a mãe dele. — Amelia estava numa disposição perceptiva esta noite.
— Sim, ele tinha a mãe. Escute, obrigada por sair da casa e arriscar ser ferida.
— Para que servem colegas de quarto? — Amelia me deu um leve abraço e disse, — Você parece estar precisando de uma tigela de sopa e ir para a cama.
— Sim — respondi. — Isso parece bom.
DORMI ATÉ TARDE no dia seguinte. E dormi como uma pedra. Não sonhei. Não me remexi. Não levantei para ir ao banheiro. Quando acordei, já era quase meio-dia, então foi bom eu não ter que aparecer no Merlotte’s até a noite.
Ouvi vozes na sala de estar. Aquela era a desvantagem de se ter uma colega de quarto. Havia alguém lá quando acordava, e às vezes essa pessoa tinha companhia. Porém Amelia era muito boa ao fazer café suficiente para mim quando levantava cedo. Essa perspectiva me tirou da cama.
Tive que me vestir já que tínhamos companhia; além disso, a outra voz parecia masculina. Me arrumei rapidamente no banheiro e tirei o pijama. Vesti um sutiã, camiseta e calça caqui. Estava bom. Segui direto para a cozinha e descobri que, de fato, Amelia fez um grande bule de café. E deixou uma caneca pronta para mim. Oh, ótimo. Me servi e enfiei alguns pães de fôrma na torradeira. A porta dos fundos bateu e me virei surpresa ao ver Tyrese entrando com uma braçada de lenha.
— Onde você mantém a lenha que traz para dentro? — ele perguntou.
— Tenho uma arca perto da lareira na sala. — Ele rachou a lenha que Jason cortou e empilhou no barracão de ferramentas, da primavera anterior. — Foi muito gentil de sua parte — falei atrapalhada. — Hm, você já tomou café, que tal algumas torradas? Ou... — Olhei para o relógio. — Que tal um sanduíche de presunto ou bolo de carne?
— Comida parece bom — ele respondeu, deslizando pelo corredor como se a madeira não pesasse nada.
Então o visitante na sala de estar era Copley Carmichael. Por que o pai de Amelia estava aqui, eu não tinha idéia. Me mexi para fazer alguns sanduíches, servi um pouco de água, e coloquei dois tipos de salgadinhos no prato para que Marley pudesse escolher o que quisesse. Então me sentei à mesa e finalmente consegui tomar meu café e comer minhas torradas. Eu ainda tinha um pouco da geléia de ameixa de minha avó para usar, e tentava não ficar melancólica toda vez que o comia. Não havia razão para desperdiçar uma boa geléia. Ela certamente olharia desse modo.
Marley voltou e sentou-se do meu lado oposto, sem sinais de desconforto. Eu mesma relaxei.
— Aprecio o trabalho — falei, depois que ele provou a comida.
— Não tenho nada para fazer enquanto ele conversa com Amelia — disse Marley. — Além disso, se ela ainda estiver aqui durante o inverno, ele ficará feliz se ela tiver fogo. Quem cortou a madeira para você e não rachou?
— Meu irmão — eu disse.
— Humph — disse Marley, e instalou-se para comer.
Eu terminei minha torrada, me servi de uma segunda caneca de café e perguntei a Marley se precisava de mais alguma coisa.
— Estou bem, obrigado — disse, abrindo o pacote de batatas fritas sabor churrasco.
Pedi licença para ir tomar banho. Definitivamente estava mais frio hoje, e peguei uma camiseta de mangas compridas de uma gaveta que não abria há meses. Era clima de Halloween. Já passara da época de comprar uma abóbora e alguns doces... não que eu recebesse visitas para gostosuras ou travessuras. Pela primeira vez em dias, me senti normal: quer dizer, confortavelmente feliz comigo mesma e meu mundo. Havia muitas coisas para me sentir triste e eu ficaria, mas não estava andando por aí esperando um soco no rosto.
Claro, no minuto em que pensei nisso, comecei a cismar com as coisas ruins. Notei que não tive quaisquer notícias dos vampiros de Shreveport, e então imaginei por que achei que devia ou teria. Esse período de adaptação de um regime para outro seria cheio de tensão e negociação, e era melhor deixá-los assim. Tampouco ouvi falar dos Lobis de Shreveport.
Já que a investigação sobre o desaparecimento de todas aquelas pessoas ainda estava ativa, isso era algo bom.
E desde que acabei de romper com meu namorado, isso significava (teoricamente) que eu estava livre, leve e solta. Maquiei meus olhos como um gesto em direção à minha liberdade. E então acrescentei um pouco de batom. Contudo, era difícil me sentir afortunada. Eu não desejei ficar livre.
Enquanto terminava de fazer a cama, Amelia bateu em minha porta.
— Entre — eu disse, dobrando meu pijama e guardando na gaveta. — O que foi?
— Bem, meu pai tem um favor a lhe pedir — ela disse.
Pude sentir meu rosto se fechar em linhas sombrias. É claro, tinha que ter algo que Copley queria se ele dirigiu de Nova Orleans para conversar com a filha. E já imaginava qual era aquele pedido.
— Continue — falei, cruzando os braços sobre o peito.
— Ah, Sookie, sua linguagem corporal já está dizendo não!
— Ignore meu corpo e diga o que tem a dizer.
Ela deu um grande suspiro para indicar como estava relutante por me arrastar para os negócios de seu pai. Mas notei que estava meio emocionada por ele ter lhe pedido ajuda.
— Bem, já que eu contei a ele sobre a posse dos vampiros de Vegas, ele quer restabelecer sua ligação de negócios com os vampiros. Ele quer uma apresentação. E esperava que você pudesse, hã, arranjar isso.
— Eu nem mesmo conheço Felipe de Castro.
— Não, mas você conhece aquele Victor. E parece que ele já tem os olhos em sua própria ascensão.
— Você o conhece tão bem quanto eu — apontei.
— Talvez, mas o mais importante é que ele sabe quem você é, e eu sou apenas a outra mulher na sala — disse Amelia, e entendi o que ela quis dizer — embora detestasse. — Quero dizer, ele sabe quem eu sou, quem é meu pai, mas ele realmente notou você.
— Ah, Amelia — lamentei, e por um instante senti vontade de chutá-la.
— Sei que não vai gostar disso, mas ele disse que está preparado para pagar, como um honorário de recomendação — Amelia murmurou, parecendo embaraçada.
Sacudi as mãos diante de mim como um ventilador para afastar aquele pensamento. Eu não ia deixar o pai de minha amiga me pagar para dar um telefonema ou o que tivesse que fazer. Naquele momento, eu soube que havia decidido fazer isso em nome de Amelia.
Fomos para a sala de estar para conversar pessoalmente com Copley.
Ele me cumprimentou com muito mais entusiasmo do que mostrara em sua visita anterior. Fixou seu olhar em mim, fez todo aquele negócio de “estou concentrado em você”. Recebi Copley com um olhar cético. Já que não era tolo, ele percebeu aquilo imediatamente.
— Sinto muito, Srta. Stackhouse, por importuná-la tão cedo após minha última visita — ele disse, decidindo ser suave. — Mas as coisas em Nova Orleans estão tão desesperadoras. Estamos tentando reconstruir para trazer os empregos de volta. Essa conexão é realmente importante para mim, e eu emprego muitas pessoas.
Primeiro, eu não achava que Copley Carmichael estivesse sofrendo com os negócios mesmo sem os contratos de reconstrução de propriedades vampiras. Segundo, nem por um minuto pensei que sua única motivação fosse o melhoramento da cidade destruída; mas após um momento olhando dentro de sua cabeça, eu fiquei disposta a conceder que isso contasse pelo menos como uma fração de sua urgência.
Além disso, Marley havia rachado a lenha para o inverno e transportara uma carga. Isso contava mais para mim do que qualquer apelo baseado em emoção.
— Telefonarei para o Fangtasia esta noite — eu disse. — Verei o que eles dizem. É o limite do meu envolvimento.
—Srta. Stackhouse, eu realmente me sinto em débito — ele disse. — O que posso fazer por você?
— Seu motorista já fez — respondi. — Se ele puder terminar de rachar a lenha, seria um grande favor. — Eu não faço isso muito bem e sei, porque já tentei. Três ou quatro cepos, e estou acabada.
— É o que ele tem feito? — Copley fez um bom trabalho ao fingir espanto. Eu não tive certeza se era ou não genuíno. — Bem, que bela iniciativa de Marley.
Amelia estava sorrindo e tentava não deixar o pai notar. — Okay, então estamos combinados — ela disse rapidamente. — Pai, eu posso lhe fazer um sanduíche ou uma sopa? Temos alguns petiscos ou salada de batata.
— Parece bom — ele disse, já que ainda estava tentando ser um sujeito simples.
— Marley e eu já comemos — falei casualmente, acrescentando: — Preciso ir à cidade, Amelia. Você precisa de alguma coisa?
— Eu gostaria de alguns selos — ela disse. — Você vai passar pelo correio?
Dei de ombros. — Fica no caminho. Tchau, Sr. Carmichael.
— Me chame de Cope, por favor, Sookie.
Eu simplesmente sabia que ele ia dizer isso. Em seguida, ele tentaria ser cortês. Com certeza absoluta, ele sorriu para mim com a mistura exata de admiração e respeito. Peguei minha bolsa e segui para a porta dos fundos. Marley ainda estava trabalhando na pilha de madeira, de camisa. Eu esperava que isso tivesse sido uma idéia própria. E esperava que ele recebesse um aumento.
Na verdade, eu não tinha o que fazer na cidade. Mas queria evitar mais conversas com o pai de Amelia. Parei na mercearia e comprei mais toalhas de papel, pão e atum, e passei no Sonic para pegar um Oreo Blast6. Oh, eu era uma garota má, sem dúvida.
Eu estava no meu carro, tomando o Blast quando avistei um interessante par de carros à distância. Elas não me notaram, aparentemente, porque Tanya e Arlene conversavam animadamente. As duas se encontravam no Mustang de Tanya. O cabelo de Arlene foi pintado recentemente, então estava vermelho flamejante até as raízes, amarrado com uma presilha. Minha ex-amiga usava uma blusa de malha com estampa tigrada, e foi tudo que consegui ver de seu conjunto. Tanya vestia uma linda blusa verde-limão e um suéter marrom-escuro. E ouvia atentamente.
Tentei acreditar que ambas conversavam a respeito de qualquer outra coisa, exceto sobre mim. Quero dizer, eu tento não ser paranóica demais. Mas quando você vê sua ex-companheira conversando com uma conhecida inimiga, você tem que pelo menos acolher a possibilidade de que você surja como assunto de um modo não lisonjeiro.
Não era tanto pelo fato de elas não gostarem de mim. Conheci pessoas durante a vida toda que não gostavam de mim. Sabia exatamente por que e o quanto elas não gostavam. É realmente desagradável, como vocês podem imaginar. O que me incomodou foi que eu achei que Arlene e Tanya estavam planejando de fato fazer algo contra mim.
Imaginei o que podia descobrir. Se chegasse mais perto, elas definitivamente me notariam, mas eu não tinha certeza de que poderia “ouvi-las” de onde estava. Inclinei-me como se estivesse mexendo no meu aparelho de CD, e me concentrei nelas. Tentei me esquivar mentalmente ou abrir caminho através das pessoas nos carros adjacentes para alcançá-las, o que não era uma tarefa fácil.
Finalmente, o padrão familiar de Arlene me ajudou a chegar até elas. A primeira impressão que tive foi de prazer. Arlene estava adorando imensamente, já que tinha a completa atenção de uma platéia relativamente nova e estava tendo a oportunidade de falar sobre as convicções de seu novo namorado e a necessidade de matar todos os
6 Espécie de milk-shake.
vampiros e talvez pessoas que colaboravam com eles. Arlene não possuía convicções firmes para formar sozinha, mas era ótima em adotar o de outras pessoas se elas lhe convinham emocionalmente. Quando Tanya sentiu uma ponta de exasperação especialmente forte, mudei para seu padrão de pensamento. Eu havia entrado. Permaneci em minha posição semi-oculta, minha mão se movendo de vez em quando sobre os CDs no pequeno estojo em meu carrinho, enquanto tentava captar tudo que pudesse.
Tanya ainda estava sendo paga pelos Pelts: Sandra Pelt, especificamente. E gradualmente comecei a entender que Tanya foi mandada para cá a fim de fazer qualquer coisa que ela pudesse para me tornar miserável.
Sandra era irmã de Debbie Pelt, quem eu matei com um tiro em minha cozinha (Depois de ela tentar me matar. Diversas vezes. Deixe-me esclarecer).
Maldição. Eu estava cansada até a morte da questão sobre Debbie Pelt. A mulher foi um veneno para mim viva. Ela foi tão maldosa e vingativa quanto sua irmãzinha, Sandra. Eu sofri com sua morte, senti culpa e remorso, foi como se eu tivesse um C enorme de “Cain” na testa. Matar um vampiro é ruim o suficiente, mas o cadáver desaparece e eles meio que... são apagados. Matar outro ser humano muda você para sempre.
É como deve ser.
Mas é possível ficar nauseada com esse sentimento, cansada desse albatroz ao redor de seu pescoço emocional. E eu fiquei nauseada e cansada de Debbie Pelt. Então sua irmã e os pais começaram a me causar dor, me seqüestraram. Virei a mesa, e os tive em meu poder. Em retribuição para que eu os deixasse partir, eles concordaram em me deixar em paz. Sandra prometeu ficar afastada até os pais morrerem. Tive que me indagar se os velhos Pelts ainda estavam entre os vivos.
Liguei o carro e comecei a perambular por Bon Temps, acenando para rostos familiares em quase cada veículo pela qual passei. Eu não tinha idéia do que fazer. Parei no pequeno parque da cidade e saí do carro.
Comecei a passear, com as mãos enfiadas nos bolsos. Minha cabeça era um grunhido.
Lembrei da noite quando confessei para meu primeiro amante, Bill, que meu tio-avô havia me molestado quando eu era criança. Bill se sentiu tão afetado pela história que arranjou para que um visitante passasse pela casa de meu tio-avô. E, surpresa, meu tio morreu ao cair das escadas. Fiquei furiosa com Bill por tomar conta de meu passado. Mas não pude negar que foi bom descobrir que meu tio-avô morreu. Aquele profundo alívio me fez sentir uma cúmplice no assassinato.
Quando estava tentando encontrar sobreviventes nos escombros retorcidos da Pirâmide de Gisé, eu encontrei alguém ainda vivo, um vampiro que queria me manter firmemente sob seu controle em benefício da rainha. Andre se encontrava terrivelmente ferido, mas teria vivido se um machucado Quinn não houvesse se arrastado e eliminado Andre. Eu me afastei sem deter Quinn ou salvar Andre, e aquilo me tornou vários graus mais culpada da morte dele do que de meu tio-avô.
Passeei pelo parque vazio, chutando as folhas soltas que surgiam em meu caminho. Eu estava lutando contra uma tentação doentia. Tinha apenas que dizer uma palavra para qualquer membro da comunidade sobrenatural, e Tanya seria morta. Ou poderia voltar minha atenção para a fonte e ter Sandra eliminada. E novamente — que alívio seria sua partida desse mundo.
Eu simplesmente não podia fazer isso.
Mas não podia viver com Tanya beliscando meus calcanhares, tampouco. Ela fizera o possível para arruinar o relacionamento já estremecido de meu irmão com sua esposa. Aquilo era simplesmente errado.
Eu finalmente pensei na pessoa certa para consultar. E ela morava comigo, então era conveniente.
Quando voltei para casa, o pai de Amelia e seu prestativo motorista tinham partido. Amelia encontrava-se na cozinha, lavando pratos.
— Amelia — falei, e ela pulou. — Desculpe — continuei. — Eu devia ter caminhado mais pesado.
— Eu esperava que meu pai e eu nos compreendêssemos um pouco melhor — ela confessou. — Mas não acho que seja realmente verdade. Ele só precisa de mim para fazer algo por ele de vez em quando.
— Bem, pelo menos nós temos lenha cortada.
Ela riu um pouco e secou as mãos.
— Você parece ter algo importante a dizer.
— Eu quero esclarecer as coisas antes de lhe contar essa longa história. Estou fazendo um favor ao seu pai, mas faço isso por você — falei. — Vou ligar para o Fangtasia por seu pai de qualquer forma, porque você é minha colega de quarto e isso a fará feliz. Então é um acordo fechado. Agora vou contar sobre algo terrível que fiz.
Amelia sentou-se à mesa e eu ocupei o lugar oposto ao dela, assim como Marley e eu fizemos anteriormente.
— Isso parece interessante — ela disse. — Estou pronta. Manda ver.
Contei tudo a Amelia: sobre Debbie Pelt, Alcide, Sandra Pelt e os pais dela, a promessa de que Sandra nunca mais me incomodaria novamente enquanto eles vivessem. O que eles fizeram comigo e como eu me senti a respeito. Tanya Grissom, espiã, sorrateira e sabotadora do casamento de meu irmão.
— Nossa — disse quando eu terminei. Ela pensou por um minuto. — Okay, primeiro, vamos verificar o Sr. e a Sra. Pelt.
Usamos o computador que eu trouxe do apartamento de Hadley em Nova Orleans. Levou cinco minutos para descobrir que Gordon e Barbara Pelt tinham morrido duas semanas antes, quando tentavam fazer uma curva à esquerda num posto de gasolina, apenas para serem atingidos em cheio por um caminhão. Olhamos uma para a outra, franzindo os narizes.
— Eca — disse Amelia. — Modo ruim de partir.
— Imagino se ela esperou até eles serem enterrados antes de ativar o plano de Irritar Sookie até a Morte — falei.
— Essa cadela não vai parar. Tem certeza de que Debbie Pelt foi adotada? Porque essa atitude totalmente vingativa parece ser característica da família.
— Elas deviam ser realmente unidas — falei. — De fato, tive a impressão de que Debbie era mais irmã de Sandra do que filha para os pais.
Amelia assentiu pensativamente. — Uma pequena patologia acontecendo aqui — disse. — Bem, deixe-me pensar no que eu posso fazer. Eu não faço magia de morte. E você disse que não quer que Tanya e Sandra morram, então estou confiando em sua palavra.
— Bom — respondi breve. — E, hã, estou disposta a pagar, é claro.
— Bah — disse Amelia. — Você se disponibilizou a me aceitar quando precisei sair da cidade. Você me agüentou durante todo esse tempo.
— Bom você paga aluguel — apontei.
— É suficiente para cobrir minha parte nas despesas. E você me agüenta e não fica tão crítica a respeito da situação com Bob. Então acredite, fico realmente feliz por fazer isso por você. Só tenho que arquitetar o que de fato vou fazer. Você se importa se eu consultar Octavia?
— Não, nem um pouco — falei, tentando não demonstrar que estava aliviada com a idéia da bruxa mais velha oferecer sua experiência. — Você percebeu, certo? Que Octavia está numa situação precária? Sem dinheiro?
— Sim — disse Amelia. — E não sei como lhe oferecer um pouco sem deixá-la ofendida. Esse é um bom modo de fazer isso. Eu entendi que ela está enfiada num canto qualquer da sala de estar na casa da sobrinha com quem está ficando. Ela me contou isso — mais ou menos — mas não sei o que posso fazer a respeito.
— Vou pensar em algo — prometi. — Se ela realmente precisa muito se mudar da casa da sobrinha, ela poderia ficar no quarto de hóspedes extra por um tempo. — Não era um oferecimento que me encantava, mas a bruxa idosa pareceu bem abatida. Ela se distraiu ao participar da pequena excursão ao apartamento de Maria-Star, que foi uma visão terrível.
— Vamos tentar pensar em alguma coisa em longo prazo — disse Amelia. — Vou ligar para ela.
— Está bem. Avise-me sobre o que decidirem. Tenho que me aprontar para o trabalho.
Não havia muitas casas entre a minha e o Merlotte’s, mas todas tinham fantasmas pendurados nas árvores, abóboras infláveis de plástico no quintal, e uma ou duas abóboras de verdade colocadas na varanda. Os Prescotts tinham um feixe de milho, um fardo de feno e algumas abóboras decorativas arrumadas caprichosamente no gramado da frente. Fiz uma nota mental para elogiar Lorinda Prescott quando a visse no Wal-Mart ou no correio.
Na hora em que cheguei ao trabalho, estava escuro. Peguei meu celular para ligar para o Fangtasia antes de entrar.
— Fangtasia, o bar com a mordida. Venha ao primeiro bar vampiro de Shreveport, onde os morto-vivos bebem todas as noites — disse uma gravação. — Para horário de funcionamento, aperte um. Para agendar uma festa particular, aperte dois. Para falar com um humano vivo ou um vampiro morto, aperte três. E saiba disso: trotes não são tolerados. Nós o encontraremos.
Eu tinha certeza que a voz era de Pam. Ela soava incrivelmente entediada. Apertei três.
— Fangtasia, onde todos os seus sonhos morto-vivos se tornam realidade — disse uma das vampirófilas. — Aqui é Elvira. Com quem gostaria de falar?
Elvira, meu traseiro. — Aqui é Sookie Stackhouse. Eu preciso falar com Eric — eu disse.
— Clancy pode ajudá-la? — Elvira perguntou.
— Não.
Elvira pareceu perplexa.
— O mestre está muito ocupado — ela disse, como se fosse difícil para uma humana como eu compreender.
Elvira definitivamente era uma novata. Ou talvez eu estivesse ficando meio arrogante. Fiquei irritada com “Elvira”.
— Ouça — falei, tentando soar agradável. — Coloque Eric no telefone em dois minutos ou ele ficará bem descontente com você.
— Bem — disse Elvira. — Você não precisa agir como uma cadela.
— Evidente que sim.
— Estou colocando-a em espera — disse Elvira rancorosa. Lancei um olhar para a porta dos funcionários do bar. Eu precisava me apressar.
Click.— Aqui é Eric — ele disse. — Esta é minha antiga amante?
Okay, até isso fazia as coisas dentro de mim palpitarem e estremecerem de excitação.
— É, é, é — respondi, orgulhosa de como parecia firme. — Ouça, Eric, sem qualquer garantia, eu tive uma visita de Nova Orleans hoje, um figurão chamado Copley Carmichael. Ele esteve envolvido em algumas transações de negócios com Sophie-Anne sobre a reconstrução do quartelgeneral. Ele quer estabelecer um relacionamento com o novo regime. — Respirei fundo. — Você está bem? — perguntei, negando toda a minha cultivada indiferença numa pergunta lamentável.
— Sim — ele disse, a voz intensamente pessoal. — Sim, estou... enfrentando. Tivemos muita, muita sorte por estarmos em posição de... Temos muita sorte.
Soltei o fôlego bem de leve para que ele não percebesse. Obviamente, ele notaria de qualquer forma. Não posso dizer que senti comichões imaginando como as coisas estavam para os vampiros, mas não andei descansando muito bem, tampouco. — Okay, muito bom — falei rapidamente. — Agora, quanto a Copley. Existe alguém que possa falar com ele sobre o negócio de reconstrução?
— Ele está na área?
— Não sei. Ele estava aqui pela manhã. Posso perguntar.
— A vampira com quem estou trabalhando agora provavelmente seria a mulher certa para ele procurar. Ela pode encontrá-lo em seu bar ou aqui no Fangtasia.
—Está bem. Tenho certeza que ele fará uma coisa ou outra.
— Avise-me. Ele precisa ligar para cá para marcar uma reunião. Ele deve perguntar por Sandy.
Eu ri.—Sandy, hein?
— Sim — ele disse, soando lúgubre suficiente para me deixar sóbria num instante. — Ela não é nem um pouco engraçada, Sookie.
— Está bem, está bem, eu entendi. Deixe-me ligar para a filha dele, ela vai telefonar para ele, ele ligará para o Fangtasia, tudo será resolvido e meu favor está feito.
— Esse é o pai de Amelia?
— Sim. Ele é um imbecil — falei. — Mas é pai dela, e eu acho que ele conhece seu negócio de construção.
— Deitei diante de sua lareira e conversei com você a respeito de sua vida — ele disse.
Okay, mudança brusca de assunto. — Uh. Sim. Nós fizemos isso.
— Lembro de nosso banho juntos.
— Fizemos isso também.
— Fizemos tantas coisas.
— Ah... sim. Okay.
— De fato, se não tivesse tanta coisa para fazer aqui em Shreveport, eu ficaria tentado a visitá-la pessoalmente para lembrá-la o quanto você gostou dessas coisas.
— Se a memória lhe servir — falei bruscamente — você meio que gostou também.
—Ah, sim.
— Eu realmente preciso desligar. Tenho que trabalhar. — Ou entrar em combustão espontânea, o que vier primeiro.
— Adeus. — Ele conseguia fazer até isso soar sexy.
— Adeus. — Eu não.
Levei um segundo para recuperar meus pensamentos. Estava lembrando de coisas que me esforcei para esquecer. Os dias que Eric ficou comigo—bom, as noites—nós conversamos e fizemos um bocado de sexo. E foi maravilhoso. A companhia. O sexo. As risadas. O sexo. As conversas. O... bom. De algum modo, ir servir cervejas pareceu repentinamente desinteressante.
Mas era o meu trabalho e meu dever com Sam aparecer e trabalhar. Arrastei-me para dentro, guardei a bolsa e cumprimentei Sam enquanto dava um tapinha no ombro de Holly para informá-la que estava ali para substituí-la. Nós trocávamos de turno pela mudança e pela conveniência, mas principalmente porque as gorjetas noturnas eram maiores. Holly ficou feliz por me ver porque tinha um encontro esta noite com Hoyt. Eles iriam ao cinema e jantar em Shreveport. Ela conseguiu uma babá adolescente para cuidar de Cody. Ela me contou isso enquanto eu captava de seu cérebro satisfeito, e tive que me esforçar para não ficar confusa. Aquilo mostrava o quanto eu estava desconcertada com a conversa com Eric.
Fiquei realmente ocupada por uns trinta minutos, me certificando de que todos estavam bem-servidos com drinques e comida. Peguei um momento para ligar para Amelia logo depois, para retransmitir o recado de Eric, e ela disse que avisaria o pai assim que desligasse. — Obrigada, Sook — disse. — De novo, você é uma ótima colega.
Eu esperava que pensasse nisso quando ela e Octavia planejassem uma solução mágica para meu problema com Tanya.
Claudine veio ao Merlotte’s naquela noite, acelerando corações masculinos ao caminhar até o balcão. Ela vestia uma blusa de seda verde, calças pretas e botas pretas de salto alto. Aquilo a deixava com pelo menos 1.90m, calculei. Para meu espanto, seu irmão gêmeo, Claude, surgiu atrás dela. Os corações acelerados se estenderam para o sexo oposto, com a velocidade de um rastilho de pólvora. Claude, cujos cabelos eram tão negros quanto os de Claudine, embora não tão compridos, era tão adorável quanto um modelo masculino num anúncio da Calvin Klein. Claude usava uma versão masculina do traje de Claudine e amarrara os cabelos com uma tira de couro. Também estava usando botas bem “masculinas”. Ja que tirava a roupa na noite das mulheres num clube em Monroe, Claude sabia exatamente como sorrir para as mulheres, apesar de não estar interessado nelas. Retiro o que eu disse. Ele estava interessado em quanto dinheiro elas tinham em suas bolsas.
Os gêmeos nunca vieram juntos; na verdade, não recordo de Claude botando os pés no Merlotte’s antes. Ele tinha seu próprio negócio para administrar, seu próprio peixe para fritar.
Obviamente, eu fui dizer olá e recebi um abraço compreensível de Claudine. Para meu espanto, Claude a imitou. Imaginei que ele estivesse representando para a platéia, que praticamente era todo o bar. Até Sam estava embasbacado; juntos, os gêmeos elfos eram irresistíveis.
Ficamos no bar, comigo transformada num recheio de sanduíche entre eles, ambos com um braço ao meu redor, e ouvi os cérebros se acenderem no aposento com pequenas fantasias, algumas espantando até a mim, e já vi as coisas mais bizarras que as pessoas podem imaginar. Sim, tudo lá para a sortuda Sookie ver em cores vívidas.
— Trazemos saudações de nosso avô — disse Claude. Sua voz estava tão baixa e suave que eu tinha certeza de que ninguém podia ouvir. Provavelmente Sam podia, mas ele sempre foi bom em ser discreto.
— Ele se pergunta por que você não telefonou — disse Claudine — especialmente considerando os eventos da outra noite, em Shreveport.
— Bem, aquilo tinha acabado — eu disse surpresa. — Por que falar a respeito de algo que terminou bem? Você esteve lá. Mas tentei ligar para ele na outra noite.
— Tocou uma vez — Claudine murmurou.
— No entanto, certa pessoa quebrou meu celular para que eu não pudesse completar a ligação. Ele disse que era a coisa errada a fazer, que iniciaria uma guerra. Sobrevivi a isso também. Então está tudo bem.
— Você precisa falar com Niall, contar-lhe toda a história — disse Claudine. Ela sorriu através do salão para Catfish Hennessy, que largou sua caneca de cerveja na mesa tão bruscamente que a entornou. — Agora que Niall se revelou a você, ele quer que confie nele.
— Por que ele não pode pegar o telefone como todo mundo?
— Ele não passa todo seu tempo neste mundo — disse Claude. — Ainda existem lugares apenas para a nossa raça.
— Lugares bem pequenos — disse Claudine saudosamente. — Mas muito especiais.
Eu estava feliz por ter parentes e sempre fiquei feliz por ver Claudine, que era literalmente minha salva-vidas. Mas os dois irmãos juntos eram meio sufocantes, dominadores — e quando ficavam tão perto, comigo rodeada por eles (até Sam estava tendo imagens daquilo), o cheiro doce, o cheiro que os tornava tão embriagadores para os vampiros, inundava meu pobre nariz.
— Veja — disse Claude, levemente divertido. — Acho que temos companhia.
Arlene se aproximou furtivamente, olhando para Claude como se visse um prato enorme de churrasco e anéis de cebola.
— Quem é seu amigo, Sookie? — ela perguntou.
— Este é Claude — falei. — Ele é um primo distante.
— Bem, Claude, prazer em conhecê-lo — disse Arlene.
Ela era descarada, considerando o modo como se sentia a meu respeito agora e como me tratava desde que começou a freqüentar os cultos da Irmandade do Sol. Claude pareceu absolutamente desinteressado. Ele assentiu.
Arlene havia esperado mais e, após um momento de silêncio, fingiu ter ouvido alguém de uma de suas mesas a chamando. — Tenho que pegar um jarro! — disse animadamente e se afastou. Observei-a inclinar-se sobre uma mesa para conversar seriamente com dois sujeitos que eu não conhecia.
— É sempre bom ver vocês dois, mas estou trabalhando — falei. — Então, vocês só vieram me contar que meu... que Niall quer saber por que liguei uma vez e desliguei?
— E nunca ligou depois disso para explicar — disse Claudine. Ela inclinou-se para beijar minha bochecha. — Por favor, telefone para ele esta noite quando sair do trabalho.
— Está bem — respondi. — Ainda assim desejava que ele mesmo ligasse para perguntar. — Mensageiros eram bons e tudo mais, mas o telefone era mais rápido. E eu gostaria de ouvir a voz dele. Não importava onde meu bisavô pudesse estar ele podia surgir nesse mundo para telefonar, se realmente estava preocupado com minha segurança.
De qualquer forma, eu achava que ele podia.
É claro, eu não sabia o que significava ser um príncipe elfo. Escreva isso abaixo de “problemas que eu sei que nunca vou encarar”.
Após outra rodada de abraços e beijos, os gêmeos saíram lentamente do bar, e vários olhos pensativos seguiram o progresso até a porta.
— Uau, Sookie, você tem amigos e tanto! — exclamou Catfish Hennessy, e houve uma onda geral de concordância.
— Eu vi esse cara num clube em Monroe. Ele não faz strip? — disse uma enfermeira chamada Debi Murray que trabalhava num hospital perto de Clarice. Ela estava sentada com outras duas enfermeiras.
— Sim — eu disse. — Ele é dono do clube também.
— Aparência e grana — disse uma das outras enfermeiras. Seu nome era Beverly alguma coisa. — Vou levar minha filha na próxima noite das mulheres. Ela acabou de romper com um verdadeiro perdedor.
— Bem... — considerei explicar que Claude não estaria interessado na filha de ninguém, então decidi que não era responsabilidade minha. — Divirtam-se — respondi ao invés disso.
Já que peguei um intervalo com meus “primos”, tive que me apressar para apaziguar todos. Embora não tenham recebido minha atenção durante a visita, eles se distraíram com os gêmeos, então ninguém ficou realmente irritado.
Perto do fim de meu turno, Copley Carmichael entrou.
Ele parecia engraçado sozinho. Presumi que Marley estivesse no
carro.
Em seu belo terno e corte de cabelo caro, ele não se encaixava exatamente, mas tive que lhe dar crédito: ele agia como se viesse a lugares como o Merlotte’s o tempo todo. Eu me encontrava ao lado de Sam, que misturava bourbon e Coca para uma de minhas mesas. Expliquei a Sam quem era o estranho.
Entreguei o drinque e acenei para uma mesa vazia. O Sr. Carmichael entendeu a dica e sentou-se.
— Ei! Posso lhe servir um drinque, Sr. Carmichael? — eu disse.
— Por favor, sirva-me um uísque de malte escocês — disse. — O que tiver estará ótimo. Vou encontrar alguém aqui, Sookie, graças ao seu telefonema. Apenas me diga da próxima vez que precisar de algo, e farei tudo em meu poder para atendê-la.
— Não é necessário, Sr. Carmichael.
— Por favor, me chame de Cope.
— A-hã. Okay, deixe-me pegar seu uísque.
Eu não sabia diferenciar um uísque de malte escocês de um buraco no chão, mas Sam sabia, é claro, e me deu um copo brilhante e limpo com uma dose bem respeitável. Eu sirvo bebidas alcoólicas, mas raramente bebo. A maioria dos sujeitos por aqui bebe as coisas realmente óbvias: cerveja, bourbon e Coca, gim tônica, Jack Daniels.
Coloquei o drinque e um guardanapo na mesa diante do Sr. Carmichael e voltei com uma pequena tigela de petiscos variados.
Então eu o deixei sozinho, porque tinha outras pessoas para atender. Mas não o perdi de vista. Notei que Sam mantinha uma vigilância cuidadosa sobre o pai de Amelia também. Mas todos os outros estavam envolvidos demais em suas próprias conversas e bebidas para dar atenção ao estranho, alguém que não era nem um pouco interessante como Claude e Claudine.
Num momento em que eu não estava olhando, uma vampira juntou-se a Cope. Não acho que alguém mais sabia o que ela era. Uma vampira bem recente, com isso eu quero dizer que morreu nos últimos cinqüenta anos, e ela tinha cabelos prematuramente prateados, cortados num estilo modesto na altura do queixo. Ela era pequena, talvez 1.58m, curvilínea e firme em todos os lugares certos. Usava pequenos óculos de aro prateado que eram pura afetação, porque eu nunca conheci um vampiro cuja visão não fosse absolutamente perfeita e de fato bem mais aguda do que a de qualquer humano.
— Posso lhe servir um pouco de sangue? — perguntei.
Os olhos dela eram como raios laser. Assim que ela realmente lhe dava atenção, você se arrependia.
— Você é a mulher Sookie — ela disse.
Eu não vi qualquer necessidade de afirmar o que ela sabia com certeza. Esperei.
— Uma taça de TrueBlood, por favor — ela disse. — Bem quente. E gostaria de conhecer seu chefe, se você o trouxer.
Como se Sam fosse um osso. Porém ela era uma cliente e eu uma garçonete. Então aqueci o TrueBlood para ela e disse a Sam que ele estava sendo chamado.
— Estarei lá num minuto — ele disse, porque estava arrumando uma bandeja de drinques prontos para Arlene.
Eu assenti e levei o sangue para a vampira.
— Obrigada — ela disse civilizadamente. — Sou Sandy Sechrest, a nova representante local para o Rei da Louisiana.
Eu não tinha idéia de onde Sandy foi criada, mas foi nos Estados Unidos e não no sul.
— Prazer em conhecê-la — eu disse, mas sem nenhum entusiasmo.
Representante local? Não era o cargo dos xerifes, entre outras funções? O que aquilo significava para Eric?
Naquele momento, Sam veio à mesa e eu parti porque não queria parecer indagadora. Além disso, eu provavelmente podia captar de seu cérebro mais tarde, se Sam escolhesse não me contar o que a nova vampira queria. Ele era bom em bloquear, mas tinha que fazer um esforço especial para isso.
Os três se engajaram numa conversa por alguns minutos, então Sam pediu licença para voltar ao balcão do bar.
Olhei para a vampira e o magnata de vez em quando caso eles precisassem de algo mais para beber, mas nenhum dos dois indicou sede. Eles conversaram seriamente, e ambos eram adeptos de manter um rosto de pôquer. Eu não me importava o suficiente para tentar captar os pensamentos do Sr. Carmichael, e obviamente Sandy Sechrest era um ponto em branco para mim.
O resto da noite foi habitual. Eu nem mesmo notei quando a nova representante do rei e o Sr. Carmichael foram embora. Então chegou a hora de encerrar e aprontar minhas mesas para que Terry Bellefleur viesse e limpasse pela manhã bem cedo. Na hora em que realmente olhei ao redor, todos já tinham ido, exceto Sam e eu.
— Ei, você acabou? — ele disse.
— Sim — respondi, depois de outra olhada ao redor.
— Você tem um minuto?
Eu sempre tinha um minuto para Sam.
ELE SE SENTOU NA CADEIRA por trás da escrivaninha e inclinou-se para trás no habitual ângulo perigoso. Eu me sentei numa das cadeiras diante da mesa, o assento mais almofadado. A maioria das lâmpadas do prédio estava apagada, exceto a que ficava sobre a área do balcão e uma no escritório de Sam. O prédio ecoava silêncio após a cacofonia de vozes altas acima da vitrola de música e os sons da cozinha, limpeza e de passos.
— Aquela Sandy Sechrest — ele disse. — Ela tem um emprego totalmente novo.
— É? O que a representante do rei faz?
— Bom, tanto quanto posso dizer, ela viaja constantemente pelo estado, vendo se os cidadãos têm problemas com algum vampiro, verificando se os xerifes têm tudo em ordem e sob controle em seus próprios feudos, e se reporta ao rei. Ela é como uma solucionadora de problemas morta-viva.
— Oh. — Pensei a respeito. Eu não conseguia ver como esse trabalho depreciaria o de Eric. Se Eric estivesse bem, seu pessoal ficaria bem. Por outro lado, eu não ligava para o que os vampiros faziam. — Então, ela decidiu conhecê-lo porque...?
— Ela entendeu que eu tinha associações com a comunidade sobrenatural da região — disse Sam secamente. — Ela queria que eu soubesse que estava disponível para ser consultada no caso de “surgirem problemas”. Eu tenho o cartão comercial dela. — Ele o pegou. Não sei se esperava que sangue gotejasse dele ou algo assim, mas era apenas um cartão de visitas comum.
— Está bem. — Dei de ombros.
— O que Claudine e o irmão dela queriam? — Sam perguntou.
Eu estava me sentindo muito mal por ocultar meu novo bisavô de Sam, mas Niall disse para mantê-lo em segredo.
— Ela não teve notícias minhas desde a luta em Shreveport — eu disse. — Ela só queria verificar, e pegou Claude para vir junto.
Sam me fitou meio obliquamente, mas não fez comentários.
— Talvez — disse após um minuto — esta seja uma longa época de paz. Talvez possamos apenas trabalhar no bar e nada aconteça na comunidade sobrenatural. Eu espero que sim, porque está chegando cada vez mais perto a hora dos Lobis irem a público.
— Você acha que será em breve? — Eu não tinha idéia de como os americanos reagiriam à notícia de que os vampiros não eram as únicas coisas lá fora à noite. — Você acha que todos os outros metamorfos irão anunciar na mesma noite?
— Teremos que fazer isso — disse Sam. — Estamos falando a respeito em nosso website.
Sam tinha uma vida que era desconhecida para mim. Aquilo acendeu um pensamento. Eu vacilei, então segui em frente. Havia perguntas demais em minha própria vida. Queria pelo menos algumas delas respondidas.
— Como você veio se estabelecer por aqui? — perguntei.
— Passei pela área — ele disse. — Eu estive no Exército durante quatro anos.
— É mesmo? — Eu não conseguia acreditar que não sabia disso.
— Sim — ele disse. — Não sabia o que fazer com minha vida, então me alistei quando tinha dezoito anos. Minha mãe chorou e meu pai praguejou, já que tinha sido aceito numa faculdade, mas eu estava decidido. Eu era o adolescente mais teimoso do planeta.
— Onde você cresceu?
— Em parte foi na cidade de Wright, Texas — disse. — Além de Forth Worth. Bem além de Forth Worth. Nem tão grande quanto Bon Temps. Mas nós nos mudamos muito durante minha infância, porque meu pai também foi militar. Ele saiu quando eu tinha quatorze anos e a família de minha mãe estava em Wright, então foi para onde fomos.
— Foi difícil se estabelecer depois de mudar tanto? — Eu nunca vivi em qualquer outro lugar, exceto Bon Temps.
— Foi ótimo — ele respondeu. — Eu estava bem preparado para ficar num único lugar. Não havia percebido como seria difícil encontrar meu próprio nicho num grupo de crianças que cresceram juntos, mas consegui tomar conta de mim mesmo. Eu jogava beisebol e basquete, portanto encontrei meu lugar. Então me alistei no Exército. Imagine.
Eu estava fascinada. — Sua mãe e seu pai ainda estão em Wright? — perguntei. — Deve ter sido difícil para ele no serviço militar, sendo um metamorfo. — Já que Sam era um metamorfo, eu sabia sem ele ter que me dizer que era o filho primogênito de metamorfos puro-sangues.
— Sim, as luas cheias eram um saco. Havia uma bebida de ervas que sua avó irlandesa costumava fazer. Ele aprendeu a fazer sozinho. Era inacreditavelmente horrível, mas ele bebia durante as luas cheias quando tinha que ficar de serviço e ser visto durante toda a noite, e aquilo o ajudava a esconder... Mas você não iria querer ficar perto dele no dia seguinte. Papai faleceu há uns seis anos atrás, e me deixou algum dinheiro. Eu sempre gostei dessa área, e este bar estava à venda. Pareceu um bom modo de investir o dinheiro.
— E sua mãe?
— Ela ainda está em Wright. Casou-se novamente, uns dois anos depois de meu pai morrer. É um sujeito bom o bastante. Ele é normal. — Não metamorfo ou qualquer espécie de sobrenatural. — Então há um limite para minha aproximação — disse Sam.
— Sua mãe é puro-sangue. Certamente ele suspeita.
— Ele é deliberadamente cego, eu acho. Ela diz que tem que sair para suas corridas noturnas, ou está passando a noite com a irmã em Waco, indo me visitar ou outra desculpa qualquer.
— Deve ser difícil ocultar.
— Eu nunca tentaria fazer isso. Quase me casei com uma garota normal uma vez, enquanto estava no serviço militar. Mas eu simplesmente não consegui me casar com alguém e manter um segredo tão grande. Salva minha sanidade ter alguém com quem conversar a respeito, Sookie. — Ele sorriu para mim e eu apreciei a confiança que demonstrava. — Se os Lobis anunciarem, então todos iremos a público. Será um grande fardo tirado de minhas costas.
Ambos sabíamos que haveria novos problemas a serem encarados, mas não havia qualquer necessidade de falar a respeito de complicações futuras. Problemas sempre surgiam em seu próprio ritmo.
— Você tem irmãos ou irmãs? — perguntei.
— Um de cada. Minha irmã é casada e tem dois filhos, e meu irmão ainda é solteiro. Ele é um ótimo sujeito. — Sam estava sorrindo e seu rosto parecia mais relaxado do que jamais vi. — Craig diz que vai se casar na primavera — continuou Sam. — Talvez você possa ir ao casamento comigo.
Fiquei tão espantada que eu não soube o que dizer, mas também me senti muito lisonjeada e satisfeita.
— Parece divertido. Avise-me quando souber a data — respondi. Sam e eu saímos juntos uma vez, e foi muito agradável; mas foi durante meus problemas com Bill e a noite nunca mais se repetiu.
Sam assentiu casualmente e a pequena pontada de tensão que me percorreu se evaporou. Afinal, aquele era Sam, meu chefe, e pensando bem, também um de meus melhores amigos. Ele se encaixou naquela categoria durante o último ano. Eu me levantei. Peguei a bolsa e vesti minha jaqueta.
— Você recebeu um convite para a festa de Halloween do Fangtasia este ano? — ele perguntou.
— Não. Depois da última festa para a qual me convidaram, eles podem não querer que eu volte — falei. — Além disso, com todas as perdas recentes, eu não sei se Eric está a fim de celebrar.
— Você acha que devemos ter uma festa de Halloween no Merlotte’s? — ele perguntou.
— Talvez não com doces e coisas assim — eu disse, pensando muito. — Talvez uma sacola de petiscos para cada cliente, com amendoins torrados? Ou uma tigela de pipoca laranja em cada mesa? E alguns enfeites?
Sam olhou na direção do bar como se pudesse enxergar através das paredes.
— Parece bom. Vamos fazer algo. — Geralmente nós decorávamos apenas no Natal, e isso apenas depois do Dia de Ação de Graças, com a insistência de Sam.
Dei um aceno de adeus e saí do bar, deixando Sam para verificar se tudo estava bem trancado. A noite tinha um toque frio. Este seria um dos Halloweens que realmente pareciam aqueles que eu vi nos livros infantis.
No centro do estacionamento, com o rosto virado para uma porção de lua e os olhos fechados, encontrava-se meu bisavô. Os cabelos pálidos caíam pelas costas como uma cortina densa. A miríade de rugas finas era invisível sob a luz da lua ou ele se despia delas. Ele carregava sua bengala e mais uma vez estava usando um terno preto. Havia um pesado anel em sua mão direita, a mão segurando a bengala.
Ele era o ser mais belo que já vi.
Ele não parecia nem remotamente com um avô humano. Avôs humanos usavam bonés de John Deere e macacões. Eles a levavam para pescar. Deixavam-na passear em seus tratores. Queixavam-se de que você era mimada demais e então lhe compravam doces. Quanto a bisavôs humanos, a maioria de nós dificilmente chegava a conhecer.
Percebi que Sam estava parado ao meu lado.
— Quem é aquele? — ele sussurrou.
— É meu, hã, meu bisavô — eu disse. Ele estava ali bem na minha frente. Eu tinha que explicar.
— Oh — ele disse com a voz cheia de assombro.
— Acabei de descobrir — respondi, me desculpando.
Niall parou de absorver a luz da lua e abriu os olhos. — Minha bisneta — ele disse, como se minha presença no estacionamento do Merlotte’s fosse uma surpresa agrad{vel. — Quem é seu amigo?
—Niall, este é Sam Merlotte, dono deste bar — eu disse.
Sam estendeu cautelosamente a mão, e após uma boa olhada, Niall a tocou com a sua. Senti Sam se contorcer de leve, como se meu bisavô tivesse um aparelho de choque na mão.
— Bisneta — disse Niall — eu soube que você correu perigo na rixa entre os lobisomens.
— Sim, mas Sam estava comigo e então Claudine veio — falei, me sentindo estranhamente defensiva. — Não sabia que haveria uma rixa, como você disse, quando fui. Eu estava tentando ser uma pacificadora. Fomos emboscados.
— Sim, é o que Claudine relatou — ele disse. — Compreendo que a cadela está morta?
Ele quis dizer Priscilla. — Sim, senhor — falei. — A cadela está morta.
— E então você correu perigo novamente na noite seguinte?
Eu estava começando a me sentir definitivamente culpada de algo.
— Bem, não é realmente minha norma — respondi. — Simplesmente aconteceu dos vampiros da Louisiana serem dominados pelos vampiros de Nevada.
Niall pareceu apenas levemente interessado.
— Mas você chegou a discar o número que lhe deixei.
— Ah, sim, senhor, fiquei bem assustada. Mas então Eric tirou o telefone de minha mão, porque achou que se você entrasse na equação, haveria uma guerra declarada. No fim, acho que foi melhor, porque ele se rendeu a Victor Madden. — No entanto, eu ainda estava um pouco zangada com isso, mesmo depois de Eric me presentear com um telefone substituto.
— Ahhh.
Eu não consegui decifrar aquele som reservado. Isso devia ser a desvantagem de ter um bisavô presente. Fui chamada para ser repreendida. Era um sentimento que eu não tinha desde a minha adolescência quando vovó descobriu que deixei de tirar o lixo para fora e não dobrei as roupas lavadas. Não gostei da sensação agora tanto quanto não gostava antigamente.
— Eu amo sua coragem — disse Niall inesperadamente. — Mas você é muito frágil — mortal, quebradiça e efêmera. Não quero perdê-la agora que finalmente me tornei capaz de falar com você.
— Não sei o que dizer — murmurei.
— Você não quer que eu a impeça de fazer nada. Você não mudará. Como eu posso protegê-la?
— Não acho que possa, não cem por cento.
— Então que utilidade eu tenho para você?
— Você não tem que ser útil para mim — falei surpresa. Ele não parecia ter a base emocional que eu possuía. Não sabia como lhe explicar. — É suficiente para mim — é maravilhoso — apenas saber que você existe. Que se preocupa comigo. Que eu tenho uma família viva, não importa o quanto seja distante ou diferente. E você não acha que sou esquisita, louca ou embaraçosa.
— Embaraçosa? — Ele parecia perplexo. — Você é muito mais interessante do que a maioria dos humanos.
— Agradeço por não pensar que eu sou retardada — falei.
— Outros humanos acham que você é retardada? — Niall soava genuinamente ultrajado.
— Eles às vezes não conseguem se sentir confortáveis — Sam disse inesperadamente. — Sabendo que ela pode ler suas mentes.
— Mas você, metamorfo?
— Eu a acho ótima. — disse Sam. E eu podia perceber que ele era absolutamente sincero.
Endireitei as costas. Senti uma rajada de orgulho. No calor emocional do momento, eu quase contei a meu bisavô sobre o grande problema que descobri hoje, para provar que podia compartilhar. Mas tive a grande impressão de que a solução dele para o Eixo do Mal Sandra PeltTanya Grissom causaria suas mortes de um modo macabro. Minha meioprima Claudine podia estar tentando se tornar um anjo, um ser que eu associava ao Cristianismo, mas Niall Brigant era definitivamente de outra crença. Eu suspeitava que o ponto de vista dele era, “Arrancarei seus olhos antes, só para o caso de você querer os meus.” Bem, talvez não tão preferencial, mas próximo.
— Não há nada que eu possa fazer por você? — Ele soava quase queixoso.
— Eu realmente gostaria que você viesse apenas passar algum tempo comigo em casa, quando tiver tempo. Gostaria de lhe fazer um jantar. Se quiser fazer isso? — Me senti tímida por oferecer algo que eu não tinha certeza que ele valorizaria.
Ele me fitou com olhos brilhantes. Eu não podia decifrar seu rosto e, apesar de seu corpo ter um formato humano, ele não era humano. Ele era um total enigma para mim. Talvez ele estivesse exasperado, entediado ou enojado com minha sugestão.
Finalmente Niall disse, — Sim. Farei isso. Eu a avisarei, é claro. Nesse meio tempo, se precisar de algo de minha parte, ligue para o número. Não deixe ninguém dissuadi-la se achar que posso ajudá-la. Conversarei com Eric. Ele me foi útil no passado, mas não pode me questionar com relação a você.
— Ele sabia que eu era sua parente há muito tempo? — Prendi a respiração, esperando pela resposta.
Niall tinha se virado para partir. Agora ele se voltou um pouco, então vi seu rosto de perfil. — Não — ele disse. — Eu tinha que conhecê-lo melhor, primeiro. Contei-lhe pouco antes de ele trazê-la para me conhecer. Ele não me ajudaria até lhe contar por que eu a queria.
E então ele se foi. Era como se tivesse atravessado uma porta que não podíamos ver e, pelo que eu sabia, foi exatamente o que fez.
— Okay — disse Sam após um longo momento. — Okay, foi realmente... diferente.
— Está tudo bem para você? — Acenei com a mão para o local onde Niall esteve parado. Provavelmente. A não ser que tenhamos visto alguma projeção astral ou algo parecido.
— Não sou eu quem tem que estar bem com isso. É algo seu — disse Sam.
— Eu quero amá-lo — falei. — Ele é tão bonito e parece se importar tanto, mas ele é realmente bem...
— Assustador — Sam terminou.
— Sim.
— E ele se aproximou de você através de Eric?
Já que aparentemente meu bisavô achou que estava tudo bem se Sam soubesse sobre ele, eu contei a Sam sobre meu primeiro encontro com Niall.
— Hmmm. Bom, eu não sei o que fazer com isso. Vampiros e fadas não interagem, devido a tendência dos vampiros comerem fadas.
— Niall consegue mascarar seu cheiro — expliquei orgulhosamente.
Sam parecia sobrecarregado de informação.
— Isso é outra coisa da qual nunca ouvi falar. Espero que Jason não saiba a respeito?
— Oh, Deus, não.
— Sabe que ele sentiria ciúmes e isso o deixaria zangado com você.
— Já que eu conheço Niall e ele não?
— Sim. A inveja simplesmente devoraria Jason.
— Eu sei que Jason não é a pessoa mais generosa do mundo — comecei para ser interrompida quando Sam bufou. — Está bem — falei — ele é egoísta. Mas ainda é meu irmão de qualquer forma e eu tenho que apoiá-lo. Mas talvez seja melhor nunca lhe contar. No entanto, Niall não teve qualquer problema em se mostrar para você, depois de me dizer para mantê-lo em segredo.
— Imagino que ele tenha verificado — disse Sam suavemente. Ele me abraçou, o que foi uma surpresa bem-vinda. Senti que precisava de um abraço depois da visita de Niall. Retribuí o abraço de Sam. Ele pareceu caloroso, reconfortante e humano.
Mas nenhum de nós era cem por cento humano.
No instante seguinte, eu pensei, nós somos também. Tínhamos mais em comum com humanos do que com nossa outra parte. Vivíamos como humanos; morreríamos como humanos. Desde que conhecia Sam muito bem, eu sabia que ele queria uma família, alguém para amar e um futuro que continha todas as coisas simples que os humanos desejavam: prosperidade, boa saúde, descendentes, risos. Sam não queria ser o líder de alguma matilha, e eu não queria ser princesa de ninguém — não que algum elfo puro-sangue pensasse que eu fosse algo além de um produto de segunda-mão barato de sua própria maravilha. Aquela era uma das grandes diferenças entre mim e Jason. Jason passaria sua vida desejando ser mais sobrenatural do que era; eu passei a minha desejando ser menos, se minha telepatia era de fato sobrenatural.
Sam beijou minha bochecha e então, após um momento de hesitação, virou-se para entrar em seu trailer, atravessando o portão da bem-cuidada sebe e subindo os degraus até o pequeno vestíbulo que construiu do lado de fora da porta. Quando inseriu a chave, ele se virou para sorrir para mim.
— Grande noite, hein?
— Sim — respondi. — Grande noite.
Sam observou enquanto eu subia em meu carro, fez um gesto de apertar para me lembrar de trancar as portas, esperou enquanto eu obedecia e então entrou no trailer. Dirigi para casa preocupada com questões profundas e fúteis, e foi sorte não ter tráfego na estrada.
AMELIA E OCTAVIA se encontravam sentadas à mesa da cozinha no dia seguinte, quando apareci. Amelia tinha tomado todo o café, mas pelo menos lavou a cafeteira e eu levei apenas alguns minutos para fazer uma caneca muito necessária. Amelia e sua conselheira mantiveram uma conversa discreta enquanto eu arrumava um pouco de cereal, acrescentando adoçante e despejando leite. Inclinei-me sobre a tigela porque não queria derramar leite em minha regata. E a propósito, estava ficando frio demais para usar uma regata em casa. Vesti uma jaqueta fina feita de material absorvente e consegui terminar meu café e cereal confortavelmente.
— O que vocês duas andam fazendo? — perguntei, sinalizando que estava pronta para interagir com o resto do mundo.
— Amelia me contou sobre o seu problema — disse Octavia. — E sobre sua gentil oferta.
Oh-oh. Que oferta?
Eu assenti sabiamente, como se tivesse uma pista.
— Ficarei muito feliz em sair da casa de minha sobrinha, você não tem idéia — a mulher mais velha disse seriamente. — Janesha tem três filhos pequenos, inclusive um bebê, e um namorado que vem e vai. Estou dormindo no sofá da sala, e quando as crianças acordam pela manhã, elas aparecem para assistir desenhos na TV. Não importa se estou ou não acordada. É a casa deles, é claro, e já estou lá há semanas, então eles não me vêem mais como uma hóspede.
Entendi que Octavia dormiria do lado oposto ao meu, no quarto vago do andar de cima. Eu estava votando que fosse no andar de cima.
— E sabe, agora que sou velha, preciso de um acesso rápido ao banheiro. — Ela me olhou com aquela depreciação bem humorada que as pessoas demonstram quando admitem a condição da passagem do tempo. — Então o andar de baixo seria maravilhoso, especialmente porque meus joelhos são artríticos. Eu contei que o apartamento de Janesha fica no andar de cima?
— Não — respondi através de lábios entorpecidos. Céus, isso aconteceu tão rápido.
— Agora, quanto ao seu problema. Eu não trabalho com magia negra, mas você precisa tirar essas jovens moças de sua vida, tanto a agente da Srta. Pelt quanto a própria Srta. Pelt.
Concordei vigorosamente.
— Então — disse Amelia, incapaz de permanecer quieta por mais tempo — nós bolamos um plano.
— Sou toda ouvidos. — eu disse, me servindo de uma segunda caneca de café. Eu precisava.
— O modo mais simples de se livrar de Tanya, obviamente, é contar ao seu amigo Calvin Norris sobre o que ela anda fazendo — disse Octavia.
Fitei-a boquiaberta. — Ah, provavelmente isso resultaria em coisas muito ruins acontecendo com Tanya — falei.
— Não é isso que você quer? — Octavia parecia inocente de um modo realmente astuto.
— Bom, sim, mas eu não quero que ela morra. Quero dizer, não quero que nada aconteça com ela. Só que vá embora e não volte mais.
Amelia disse: — “Va embora e não volte mais” parece bem definitivo para mim.
Soou daquele jeito para mim também. — Eu vou reformular. Quero que ela vá viver sua vida em algum outro lugar, mas bem longe de mim — respondi. — Isso é claro o bastante? — Eu não estava tentando soar brusca; só queria me expressar.
— Sim, minha jovem, eu acho que conseguimos entender — disse Octavia com gelo na voz.
— Não quero que haja nenhum mal-entendido aqui — falei. — Há muitas coisas em jogo. Acho que Calvin meio que gosta de Tanya. Por outro lado, aposto que ele poderia assustá-la eficazmente.
— Suficiente para fazê-la ir embora para sempre?
— Você teria que demonstrar que está dizendo a verdade — disse Amelia. — Sobre ela estar sabotando você.
— O que vocês têm em mente? — perguntei.
— Está bem, aqui está o que eu acho — disse Amelia e, simples assim, a Fase Um foi definida. Era algo que eu poderia ter pensado sozinha, mas a ajuda das bruxas tornou o plano muito melhor.
Telefonei para a casa de Calvin e pedi que ele viesse quando tivesse um minuto durante o almoço. Ele pareceu surpreso por ter notícias minhas, mas concordou em vir.
Ele teve uma surpresa extra ao entrar na cozinha e encontrar Amelia e Octavia ali. Calvin, o líder das panteras que viviam na pequena comunidade de Hotshot, encontrou Amelia várias vezes antes, mas Octavia era nova para ele. Ele a respeitou imediatamente porque era capaz de sentir seu poder. Aquilo foi de grande ajuda.
Calvin provavelmente estava no meio dos quarenta anos, era forte e sólido, seguro de si. Os cabelos estavam ficando grisalhos, mas ele era direto como uma flecha em postura, e possuía uma calma enorme que nunca deixou de me impressionar. Ele esteve interessado em mim por um tempo, e senti somente pesar por não poder me sentir da mesma forma. Ele era um bom homem.
— O que está acontecendo, Sookie? — ele disse depois de recusar o oferecimento de biscoitos, chá ou refrigerante.
Respirei fundo. — Eu não gosto de ser fofoqueira, Calvin, mas nós temos um problema — falei.
— Tanya — ele disse imediatamente.
— Sim — respondi, não me incomodando em ocultar o alívio.
— Ela é ardilosa — ele disse, e fiquei pesarosa por ouvir um elemento de admiração em sua voz.
— Ela é uma espiã — disse Amelia. Amelia podia ir direto ao ponto.
— Para quem? — Calvin, nem um pouco espantado, mas curioso, inclinou a cabeça para o lado.
Contei-lhe uma versão editada da história, uma história que eu estava extremamente doente de repetir. Calvin precisava saber que os Pelts tinham uma grande desavença comigo, que Sandra me assombraria até o túmulo, e Tanya foi plantada como uma irritação.
Calvin esticou as pernas enquanto ouvia, com os braços cruzados sobre o peito. Ele usava jeans novos e uma camisa xadrez. Ele cheirava a árvores recém-cortadas.
— Você quer lançar um feitiço nela? — perguntou a Amelia quando terminei.
— Queremos — ela disse. — Mas precisamos que você a traga aqui.
— Qual seria o efeito? Isso a machucaria?
— Ela perderia interesse em causar mal a Sookie e toda a família dela. Ela não iria querer mais obedecer Sandra Pelt. Não a machucaria fisicamente.
— Isso a mudaria mentalmente?
— Não —disse Octavia. — Mas não é tão preciso quanto o feitiço que a faria não querer voltar mais para cá. Se lançarmos este, ela irá embora daqui e não desejará voltar.
Calvin meditou. — Eu meio que gosto da garota — ele disse. — Ela é exuberante. Porém, eu andei bem preocupado com o problema que ela está causando a Crystal e Jason, e imaginava que providências tomar sobre os gastos malucos de Crystal. Acho que isso traz a questão à frente.
— Você gosta dela? — perguntei. Eu queria todas as cartas na mesa.
— Eu disse isso.
— Não, eu quero dizer, você gosta dela.
— Bem, eu e ela tivemos alguns bons momentos de vez em quando.
— Você não quer que ela vá embora — falei. — Quer tentar outra coisa.
— É uma opinião. Você está certa: ela não pode ficar e continuar agindo assim. Ou ela muda a atitude ou vai embora. — Ele pareceu infeliz com aquilo. — Você está trabalhando hoje, Sookie?
Verifiquei o calendário na parede. — Não, é meu dia de folga. — Eu teria dois dias seguidos.
— Vou pegá-la e trazê-la esta noite. Isso dá tempo suficiente às senhoras?
As duas bruxas trocaram um olhar e consultaram-se silenciosamente.
— Sim, assim está bem — disse Octavia.
— Eu a trarei às sete — disse Calvin.
Aquilo estava acontecendo com inesperada tranqüilidade.
— Obrigada, Calvin — respondi. — Isso realmente será benéfico.
— Isso mata um bocado de coelhos com uma cajadada, se funcionar — disse Calvin. — Obviamente, se não funcionar, vocês senhoras não serão minhas pessoas favoritas. — A voz dele era completamente objetiva.
As duas bruxas não pareceram felizes.
Calvin fitou Bob, que acabara de entrar na sala. — Olá, irmão — disse Calvin para o gato. Ele lançou um olhar estreito para Amelia. — Me parece que sua magia não funciona o tempo todo.
Amelia pareceu culpada e ofendida simultaneamente. — Faremos isso funcionar — ela disse, rígida. — Apenas observe.
— É meu objetivo.
Passei o resto do dia lavando minha roupa, refazendo as unhas, trocando os lençóis — todas aquelas tarefas que você deixa para o dia de folga. Fui à biblioteca para trocar os livros e absolutamente nada aconteceu. Uma das assistentes de meio-período de Barbara Beck estava de serviço, o que foi bom. Eu não queria experimentar o horror do ataque novamente, como tinha certeza que aconteceria a cada encontro com Barbara durante um longo tempo por vir. Notei que a mancha havia desaparecido do chão da biblioteca.
Depois disso, fui ao mercado. Nenhum Lobi atacou, nenhum vampiro surgiu. Ninguém tentou me matar ou a alguém que eu conhecia. Nenhum parente secreto se revelou e nem uma alma tentou me envolver em seus problemas, conjugais ou de outro tipo.
Eu praticamente estava fedendo a normalidade na hora em que cheguei em casa.
Esta noite seria minha vez de cozinhar, e decidi preparar costeletas de porco. Eu tenho uma mistura caseira favorita para empanar que faço numa enorme fornada, então embebi as costeletas em leite e coloquei-as na mistura para que ficassem prontas para o forno. Preparei maçãs recheadas com uvas passas, canela e manteiga e levei-as para assar, temperei feijões verdes e milho em conserva e botei para aquecer em fogo baixo. Depois de um tempo, abri o forno para colocar a carne. Pensei em fazer biscoitos, mas parecia haver calorias suficientes a bordo.
Enquanto eu cozinhava, as bruxas faziam coisas na sala de estar. Elas pareciam estar apreciando. Pude ouvir a voz de Octavia, que parecia estar ensinando. De vez em quando, Amelia fazia uma pergunta.
Eu resmunguei um bocado enquanto cozinhava. Esperava que esse procedimento mágico funcionasse, e me senti grata com as bruxas por estarem tão dispostas a ajudar. Mas me senti um pouco de lado no fronte doméstico. Minha breve menção a Amelia de que Octavia podia ficar conosco por um tempo foi um improviso (percebi que teria de ser mais cuidadosa ao conversar com minha colega de quarto daqui por diante). Octavia não disse que ficaria em minha casa durante um fim de semana, um mês ou qualquer período de tempo. Isso me assustava.
Eu podia ter encurralado Amelia e dito, “Você não me perguntou se Octavia podia ficar agora mesmo nesse instante, e é minha casa”, conjeturei. Mas eu tinha um quarto vago e Octavia precisava de um lugar para ficar. Era um pouco tarde para descobrir que não estava totalmente feliz por ter uma terceira pessoa na casa — alguém que eu mal conhecia.
Talvez eu pudesse encontrar um emprego para Octavia, porque ganhos regulares permitiriam a independência da mulher mais velha e ela se mudaria daqui. Indaguei-me sobre o estado da casa dela em Nova Orleans. Assumi que estava inabitável. Apesar de todo poder que possuía, acho que até Octavia não podia desfazer o estrago de um furacão. Após suas referências às escadas e a crescente necessidade de um banheiro, corrigi sua idade para cima, mas ela ainda não parecia ter mais do que, digamos, sessenta e três. Isso era praticamente uma franguinha hoje em dia.
Chamei Octavia e Amelia para jantar às seis horas. Tinha a mesa posta e chá gelado servido, mas deixei que se servissem do forno. Não era elegante, mas economizava pratos.
Não conversamos muito enquanto comíamos. Nós três pensávamos na noite adiante. Apesar de não gostar dela, eu estava um pouco preocupada com Tanya.
Senti-me esquisita com a idéia de alterar alguém, mas a questão era que eu precisava tirar Tanya de minhas costas, de minha vida e daqueles ao meu redor. Ou precisava que ela tivesse uma nova atitude a respeito do que estava fazendo em Bon Temps. Não conseguia ver outra saída para aqueles fatos. Alinhada com minha nova praticidade, percebi que se tivesse que escolher entre continuar minha vida com a interferência de Tanya ou continuar a vida com Tanya alterada, não havia disputa.
Comecei a recolher os pratos. Normalmente, se uma de nós cozinhasse, a outra lavava os pratos, mas as duas mulheres tinham preparativos mágicos a fazer. Mas estava tudo bem; eu queria me manter ocupada.
Ouvimos o cascalho sob as rodas de uma caminhonete às 7:05. Quando pedimos que a trouxesse para cá às sete, eu não tinha percebido que ele a traria como um pacote.
Calvin carregava Tanya nos ombros. Tanya era pequena, mas não era leve. Calvin definitivamente estava trabalhando, mas seu fôlego estava bem, normal e ele não suava. As mãos e tornozelos de Tanya estavam amarrados, mas notei que ele enrolou um cachecol por baixo da corda para que ela não se machucasse. E (graças a Deus) ela estava amordaçada, com uma alegre bandana vermelha. Sim, a cabeça do metamorfo definitivamente sentia algo por Tanya.
Obviamente, ela estava tão zangada quanto uma cascavel perturbada, se contorcendo, sacudindo e nos fuzilando. Ela tentou chutar Calvin, e ele lhe deu um tapa no traseiro. — Você pare com isso agora — disse, mas não como se estivesse particularmente aborrecido. — Você agiu mal; tem que tomar seu remédio.
Ele tinha entrado pela porta da frente e agora largou Tanya no sofá.
As bruxas haviam desenhado algumas coisas com giz no assoalho da sala, um processo que não me agradou. Amelia assegurara que poderia limpar tudo, e já que ela era a campeã em limpeza, eu as deixei prosseguir.
Havia várias pilhas de coisas (eu realmente não queria olhar muito de perto) espalhadas ao redor em tigelas. Octavia acendeu o material em uma das tigelas e carregou até Tanya. Ela soprou a fumaça na direção de Tanya com a mão. Dei um passo extra para trás e Calvin, que estava parado atrás do sofá e segurando Tanya pelos ombros, virou a cabeça. Tanya prendeu a respiração por tanto tempo quanto conseguiu.
Após respirar a fumaça, ela relaxou.
— Ela precisa se sentar ali — disse Octavia, apontando para uma área circulada com símbolos em giz. Calvin tombou Tanya numa cadeira de espaldar reto no meio. Ela permaneceu parada, graças à misteriosa fumaça.
Octavia começou um cântico numa língua que eu não entendia. Os feitiços de Amelia sempre foram em Latim, ou pelo menos uma forma primitiva dela (ela me contou), mas achei que Octavia fosse mais variada. Ela falava algo que soava totalmente diferente.
Eu andei bem nervosa a respeito desse ritual, mas tornou-se algo bem chato a não ser que fosse uma das participantes. Desejei poder abrir as janelas para tirar o cheiro de fumaça da casa, e fiquei feliz por Amelia ter pensado em tirar as baterias dos detectores de incêndio. Tanya claramente estava sentindo algo, mas eu não tinha certeza se era a remoção do efeito Pelt.
— Tanya Grissom — disse Octavia — arranque as raízes do mal de sua alma e retire-se da influência daqueles que a usam para fins maldosos. — Octavia fez vários gestos para Tanya enquanto segurava um curioso objeto que parecia terrivelmente com um osso humano preso num galho. Tentei não imaginar onde ela conseguiu o osso.
Tanya gritou através da mordaça e suas costas se arquearam de modo alarmante. Então ela relaxou.
Amelia fez um gesto e Calvin inclinou-se para desamarrar a bandana vermelha que fazia Tanya parecer uma pequena bandida. Ele tirou outro lenço branco e limpo da boca de Tanya. Ela definitivamente foi seqüestrada com afeto e consideração.
— Não consigo acreditar que você está fazendo isso comigo! — Tanya gritou no instante em que sua boca se viu livre. — Não posso acreditar que você me seqüestrou como um homem das cavernas, seu grande imbecil! — Se as mãos dela estivessem livres, Calvin teria levado um soco. — E que diabos há nessa fumaça? Sookie, você está tentando incendiar sua casa? Ei, dona, poderia tirar essa porcaria do meu rosto? — Tanya bateu no osso com as mãos amarradas.
— Sou Octavia Fant.
— Bem, ótimo, Octavia Fant. Tire-me dessas cordas! — Octavia e Amelia trocaram olhares.
Tanya apelou para mim. — Sookie, diga a esses malucos para me soltarem! Calvin, eu estava meio interessada em você antes de me amarrar e jogar aqui! O que você acha que está fazendo?
— Salvando sua vida — disse Calvin. — Você não vai fugir agora, vai? Temos algumas coisas para conversar.
— Está bem — Tanya disse lentamente, percebendo (pude ouvi-la) que algo sério estava acontecendo. — O que significa tudo isso?
— Sandra Pelt — eu disse.
— É, eu conheço Sandra. O que tem ela?
— Qual é sua ligação? — Amelia perguntou.
— Qual é seu interesse nisso, Amy? — Tanya contra-atacou.
— Amelia — eu corrigi, sentando no grande apoio para pés diante de Tanya. — E você precisa responder essa pergunta.
Tanya me lançou um olhar agudo — ela tinha um repertório deles — e disse: — Eu tinha uma prima que foi adotada pelos Pelts, e Sandra era a irmã de minha prima adotada.
— Você tem uma amizade íntima com Sandra? — falei.
— Não, não particularmente. Não a vejo há algum tempo.
— Você não fez um acordo com ela recentemente?
— Não, Sandra e eu não nos vemos muito.
— O que você acha dela? — Octavia perguntou.
— Acho que ela é uma cadela de duas caras. Mas meio que a admiro — disse Tanya. — Se Sandra quer algo, ela vai atrás. — Ela deu de ombros. — Ela é meio radical para o meu gosto.
— Então se ela dissesse para você arruinar a vida de alguém, você não faria isso? — Octavia observava Tanya atentamente.
— Tenho coisas melhores a fazer — Tanya respondeu. — Ela mesma pode ir arruinar vidas, se quer tanto fazer isso.
— Você não tomaria parte nisso?
— Não — disse Tanya. Ela estava sendo sincera, percebi. De fato, estava começando a ficar ansiosa com nossa linha de interrogatório. — Ah, eu fiz alguma coisa ruim para alguém?
— Acho que passou pela sua cabeça — disse Calvin. — Estas gentis senhoras intervieram. Amelia e a Srta. Octavia são, hã, mulheres sábias. E você já conhece Sookie.
— É, eu conheço Sookie. — Tanya me lançou um olhar rabugento. — Ela não quer fazer amizade comigo de jeito nenhum.
Bom, sim, eu não a quero perto o suficiente para me apunhalar pelas costas, eu pensei, mas não disse nada.
— Tanya, você tem levado minha cunhada para fazer compras demais ultimamente — falei.
Tanya explodiu de rir. — Terapia demais a varejo para a noiva grávida? — disse. Mas então ela pareceu perplexa. — É, parece que fomos ao shopping em Monroe vezes demais para meu talão de cheques. Onde consegui o dinheiro? Eu nem gosto tanto assim de fazer compras. Por que fiz isso?
— Você não vai mais fazer isso — disse Calvin.
— Você não me diz o que fazer, Calvin Norris! — Tanya retrucou. — Não farei compras porque não quero ir, não porque você me disse.
Calvin pareceu aliviado.
Amelia e Octavia pareceram aliviadas.
Todos nós assentimos simultaneamente. Essa era Tanya, sem dúvida. E parecia estar sem a orientação destrutiva de Sandra Pelt. Eu não sabia se Sandra lançou alguma magia própria ou se apenas ofereceu um bocado de dinheiro a Tanya e a convenceu a pensar que a morte de Debbie era minha culpa, mas as bruxas pareciam ter sido bem-sucedidas em cortar a porção poluída de Sandra da personalidade de Tanya.
Senti-me estranhamente vazia com aquela fácil — isto é, fácil para mim — remoção de uma verdadeira pedra em meu sapato. Descobri-me desejando que pudéssemos seqüestrar Sandra Pelt para reprogramá-la também. Eu não achava que ela seria tão fácil de converter. Houve alguma grande patologia ocorrendo na família Pelt.
As bruxas estavam felizes. Calvin estava satisfeito. Eu estava aliviada. Calvin disse a Tanya que a levaria de volta para Hotshot. Uma perplexa Tanya partiu com muito mais dignidade do que quando veio. Ela não entendeu por que estava em minha casa e não parecia lembrar do que as bruxas fizeram. Mas ela também não pareceu aborrecida sobre a confusão em sua memória.
O melhor de todos os mundos possíveis.
Talvez Jason e Crystal pudessem se entender agora que a influência perniciosa de Tanya se foi. Afinal, Crystal realmente quis se casar com Jason e pareceu genuinamente contente por estar grávida de novo. Por que estava tão descontente agora... eu simplesmente não compreendia.
Enquanto as bruxas limpavam a sala de estar com as janelas abertas — apesar de a noite estar congelante, eu queria me livrar do cheiro persistente de ervas — me esparramei na cama com um livro. Descobri que não estava concentrada o suficiente para ler. Finalmente, decidi ir lá fora, coloquei um capuz e avisei Amelia. Sentei numa das cadeiras de madeira que Amelia comprou no Wal-Mart na liquidação de fim de verão, e admirei a mesa combinada com seu guarda-sol novamente. Lembrei-me de tirar o guarda-sol e cobrir a mobília para o inverno. Então me inclinei e soltei os pensamentos.
Era bom simplesmente ficar do lado de fora por um tempo, sentindo o cheiro das árvores e do solo, ouvindo um pássaro fazer seu enigmático chamado na floresta ao redor. A lâmpada de segurança me fez sentir segura, apesar de saber que era uma ilusão. Se há luz, você simplesmente consegue ver o que está vindo atrás com um pouco mais de nitidez.
Bill saiu da floresta e caminhou silenciosamente pelo pátio. Ele sentou-se numa das outras cadeiras.
Não falamos por alguns instantes. Eu não senti a onda de angústia dos últimos meses quando ele estava por perto. Ele mal perturbava o anoitecer com sua presença, fazia tanto parte dele.
— Selah se mudou para Little Rock — ele disse.
— Por quê?
— Ela conseguiu um cargo numa grande empresa — ele disse. — Ela me contou que queria. Eles são especializados em propriedades vampiras.
— Ela se amarra em vampiros?
— Acredito que sim. Não foi obra minha.
— Você não foi o primeiro? — Talvez eu tenha soado um pouco amarga. Ele foi meu primeiro, em todos os sentidos.
— Não. — ele disse, virando o rosto em minha direção. Era radiantemente pálido. — Não — disse por fim. — Eu não fui o primeiro. E sempre soube que era o vampiro em mim que a atraía, não a pessoa que era um vampiro.
Eu entendi o que ele dizia. Quando descobri que ele recebeu ordens para cair em minhas boas graças, senti que foi a telepata em mim que chamou sua atenção, não a mulher que era telepata.
— O que vai, volta — eu disse.
— Eu nunca me importei com ela — ele disse. — Ou muito pouco. — Deu de ombros. — Existem tantas como ela.
— Não tenho certeza de como você acha que isso me fará sentir.
— Apenas estou lhe dizendo a verdade. Houve apenas uma única você. — Então ele se levantou e voltou para a floresta a passos humanos, me deixando observá-lo enquanto partia.
Aparentemente, Bill estava conduzindo uma espécie de campanha camuflada para reconquistar meu respeito. Imaginei se ele sonhava que eu poderia amá-lo novamente. Eu ainda sentia dor quando pensava na noite em que descobri a verdade. Compreendi que meu respeito seria o limite máximo do que ele podia esperar ganhar. Confiança, amor? Eu não conseguia ver isso acontecendo.
Fiquei sentada do lado de fora por mais alguns minutos, pensando na noite que acabei de ter. Um agente inimigo a menos. A própria inimiga por vir. Então pensei na busca policial pelas pessoas desaparecidas, todas Lobis, em Shreveport. Imaginei quando eles desistiriam. Certamente eu não teria que lidar com políticas Lobis novamente em breve; os sobreviventes estariam ocupados colocando a casa em ordem.
Eu esperava que Alcide estivesse apreciando ser o líder, e imaginei se ele teve sucesso ao fazer outro pequeno Lobi puro-sangue na noite da tomada. Imaginei quem tomaria conta dos filhos de Furnan.
Já que estava especulando, imaginei onde Felipe de Castro estabeleceu seu quartel-general na Louisiana ou se permaneceu em Vegas. Perguntei-me se alguém contou a Bubba que a Louisiana estava sob um novo regime e imaginei se o veria novamente. Ele possuía um dos rostos mais famosos do mundo, mas sua cabeça infelizmente foi afetada ao ser trazido de volta no último segundo possível por um vampiro que trabalhava no necrotério em Memphis. Bubba não resistiu bem ao Katrina; ele foi separado dos outros vampiros de Nova Orleans e teve que sobreviver de ratos e pequenos animais (gatos abandonados, eu suspeitava), até ser resgatado certa noite por um grupo de busca de vampiros de Baton Rouge. Da última vez em que ouvi falar dele, eles tiveram que mandá-lo para fora do estado para descanso e recuperação. Talvez ele tenha terminado em Vegas. Ele sempre se deu bem em Vegas, quando era vivo.
De repente, percebi que estava rígida por ficar sentada durante tanto tempo, e a noite se tornara desconfortavelmente fria. Minha jaqueta não estava resolvendo. Era hora de entrar e ir para a cama. O resto da casa estava escuro e imaginei que Octavia e Amelia estavam exaustas depois do trabalho de bruxaria.
Levantei-me com esforço da cadeira, tirei o guarda-sol e abri a porta do galpão de ferramentas, apoiando o guarda-sol contra um banco onde o homem que achei ser meu avô fizera seus consertos. Fechei a porta, sentindo que estava fechando o verão lá dentro.
APÓS UMA SILENCIOSA e pacífica segunda-feira de folga, fui trabalhar na terça durante o turno do almoço. Quando saí de casa, Amelia pintava uma cômoda que encontrou na loja de usados local. Octavia podava as rosas mortas. Ela dissera que precisavam de cuidados para o inverno, e eu lhe disse para ficar à vontade. Minha avó foi a jardineira em nossa família, e não me deixou colocar um dedo nelas a menos que precisasse borrifar inseticida contra pulgões. Esse era um de meus trabalhos.
Jason veio ao Merlotte’s para almoçar com um bando de colegas do trabalho. Eles juntaram duas mesas e formaram um grupo de homens felizes. Clima frio e nenhuma grande tempestade serviam para a alegre turma de operários local. Jason parecia quase animado demais, seu cérebro uma mistura de pensamentos agitados. Talvez apagar a influência perniciosa de Tanya já tivesse feito diferença. Mas fiz um verdadeiro esforço para ficar fora da cabeça dele, porque afinal, era meu irmão.
Quando levei uma grande bandeja de refrigerantes e chá até a mesa, Jason disse: — Crystal diz oi.
— Como ela está se sentindo hoje? — perguntei, para mostrar a preocupação apropriada, e Jason fez um círculo com o indicador e o polegar. Servi a última caneca de chá, tomando cuidado para colocá-la sem derramar, e perguntei a Dove Beck, um primo de Alcee, se ele queria limão extra.
— Não, obrigado — ele disse educadamente. Dove, que se casou um dia depois da formatura, era completamente diferente de Alcee. Aos trinta, ele era mais jovem e, tanto quanto eu podia notar — e isso era muito — ele não possuía aquele núcleo de raiva interno que o detetive tinha. Freqüentei a escola com uma das irmãs de Dove.
— Como está Angela? — perguntei-lhe, e ele sorriu.
— Ela se casou com Maurice Kershaw — ele respondeu. — Eles têm um garotinho, a criança mais bonita do mundo. Angela é uma nova mulher — ela não fuma ou bebe, e está na igreja quando as portas se abrem.
— Fico feliz em ouvir isso. Diga-lhe que perguntei por ela — falei, começando a anotar os pedidos. Ouvi Jason falar a seus companheiros sobre uma cerca que ia construir, mas não tive tempo para prestar atenção.
Jason se demorou depois que os outros homens foram para seus veículos.
— Sook, pode passar em casa e verificar Crystal quando sair do trabalho?
— Claro, mas você não vai sair do trabalho depois?
— Eu tenho que ir a Clarice e pegar uma cerca telada. Crystal quer cercar o quintal dos fundos para o bebê. Então terá um lugar seguro para brincar.
Fiquei surpresa por Crystal demonstrar tanta cautela e instinto maternal. Talvez ter um bebê a mudasse. Pensei em Angela Kershaw e seu filhinho.
Não queria contar quantas moças, mais jovens do que eu, estavam casadas há anos e tinham bebês — ou simplesmente tinham bebês. Disse a mim mesma que inveja era um pecado e trabalhei duro, sorrindo e acenando para todo mundo. Felizmente, foi um dia movimentado. Durante a calmaria da tarde, Sam me pediu para ajudá-lo a fazer um inventário no estoque enquanto Holly cobria o balcão e as mesas. Tínhamos apenas nossos dois alcoólatras residentes para atender, então Holly não teria muito trabalho. Já que eu fiquei bem nervosa com o Blackberry7 de Sam, ele anotou o total enquanto eu contava, e tive que subir a escada e descer umas cinqüenta vezes, contando e tirando o pó. Comprávamos nossos produtos de limpeza em grande quantidade. Contamos todos aqueles também. Sam era simplesmente o bobo contador hoje.
7 Espécie de aparelho de bolso, celular com múltiplas funções.
O depósito não possuía janelas, então ficou bem quente enquanto trabalhávamos. Fiquei feliz por sair do espaço confinado quando Sam finalmente se deu por satisfeito. Tirei uma teia de aranha do cabelo dele enquanto seguia para o banheiro, onde lavei as mãos e cuidadosamente limpei o rosto, verificando meu rabo de cavalo (o melhor que pude) para ver se tinha alguma teia de aranha grudada em mim.
Quando fui embora do bar, eu estava tão ansiosa para me enfiar no chuveiro que quase virei à esquerda para ir para casa. Bem a tempo, lembrei que prometi verificar Crystal, então virei à direita.
Jason morava na casa de meus pais e a mantinha bem cuidada. Meu irmão era o tipo de sujeito com orgulho do lar. Ele não se importava em passar seu tempo livre pintando, cortando a grama e fazendo consertos básicos, um lado dele que sempre achei meio surpreendente. Ele recentemente pintara o exterior em cor camurça e os arremates em branco cintilante, e a casinha parecia bem arrumada. Havia uma entrada em forma de U na frente. Ele acrescentara um calçamento que conduzia à garagem coberta nos fundos, mas estacionei perto dos degraus. Enfiei as chaves do carro no bolso e atravessei a varanda. Girei a maçaneta porque planejava enfiar minha cabeça pela porta e chamar Crystal, já que era da família. A porta da frente estava destrancada, como a maioria das portas durante o dia. A sala da família se encontrava vazia.
— Ei, Cristal, é Sookie! — chamei, apesar de tentar manter a voz baixa para não sobressaltá-la se ela estivesse cochilando. Ouvi um som abafado, um gemido. Vinha do quarto maior, aquele que meus pais usaram e ficava à direita da sala de estar.
Ah, merda, ela está abortando de novo, pensei, e corri até a porta fechada. Empurrei com tanta força que a porta sacudiu contra a parede, mas não prestei a mínima atenção, porque Crystal e Dove Beck se encontravam sacudindo na cama.
Eu estava tão chocada, tão zangada e desiludida que, assim que eles pararam o que estavam fazendo e me encararam, eu disse a pior coisa na qual pude pensar.
— Não é de se admirar que você perca todos os seus bebês. — Girei nos calcanhares e marchei para fora da casa. Eu me sentia tão ultrajada que não consegui nem mesmo entrar no carro. Foi realmente inoportuno que Calvin tenha estacionado atrás de mim e saltado de sua caminhonete quase antes de parar.
— Meu Deus, qual é o problema? — ele disse. — Crystal está bem?
— Por que você não pergunta a ela? — falei rudemente, subindo em meu carro apenas para sentar ali trêmula.
Calvin correu para dentro da casa como se tivesse que apagar um incêndio, e acho que era quase o caso.
— Jason, maldição — gritei, batendo os punhos contra o volante. Eu devia ter tirado um tempo para ouvir o cérebro de Jason.
Ele soubera muitíssimo bem que, já que tinha negócios em Clarice, Dove e Crystal provavelmente aproveitariam a oportunidade para ter um encontro. Ele contara que eu fosse responsável e passasse pela casa. Simplesmente era coincidência demais Calvin aparecer. Ele também devia ter dito a Calvin para verificar Crystal. Então não haveria como negar e nenhuma chance de abafar aquilo — não agora que Calvin e eu sabíamos. Eu estive certa ao ficar preocupada com os termos do casamento, e agora tinha algo totalmente novo com a qual me preocupar.
Além disso, eu estava envergonhada. Estava envergonhada com o comportamento de todos os envolvidos. Em meu código de conduta, que realmente não me torna uma boa cristã, o que pessoas solteiras fazem ao cuidar de seus relacionamentos é da conta deles. Mesmo numa relação mais casual — bem, se as pessoas respeitam uma a outra, tudo bem. Mas um casal que prometeu ser fiel, que garantiu isso publicamente, é governado por um conjunto de regras totalmente diferente em meu mundo.
Não no mundo de Crystal ou de Dove, aparentemente.
Calvin desceu as escadas parecendo muitos anos mais velho do que quando os casou. Ele parou ao lado de meu carro. Tinha uma expressão semelhante à minha — desilusão, desapontamento, desgosto. Um bocado de “des” ali.
— Entrarei em contato — ele disse. — Temos que fazer a cerimônia agora.
Crystal saiu na varanda vestida num roupão com estampa de leopardo e, ao invés de suportá-la falando comigo, eu liguei o carro e fui embora o mais rápido possível. Dirigi para casa aturdida. Quando cheguei à porta dos fundos, Amelia picava algo na velha tábua de cozinha, aquela que sobreviveu ao incêndio com apenas algumas marcas chamuscadas. Ela se virou para falar comigo e tinha aberto a boca quando viu meu rosto. Sacudi a cabeça, avisando-a para não falar, e fui direto para meu quarto. Este seria um bom dia para querer viver sozinha novamente.
Sentei-me na cadeira no canto do meu quarto, aquela que tantos visitantes ocuparam ultimamente. Bob encontrava-se enrolado como uma bola em minha cama, um lugar que ele era expressamente proibido de dormir. Alguém abriu minha porta durante o dia. Pensei em repreender Amelia por isso, então descartei a idéia quando vi uma pilha de roupas íntimas limpas e dobradas sobre minha cômoda.
— Bob — falei, e o gato esticou e levantou-se num único movimento fluído. Ele continuou em minha cama, me encarando com enormes olhos dourados. — Saia daqui — eu disse. Com imensa dignidade, Bob saltou da cama e seguiu para a porta. Abri alguns centímetros e ele saiu, conseguindo deixar a impressão de que estava fazendo isso por livre e espontânea vontade. Fechei a porta nas costas dele. Eu amo gatos. Só queria ficar sozinha.
O telefone tocou e levantei-me para atender.
— Amanhã à noite — disse Calvin. — Vista algo confortável. Sete horas. — Ele pareceu triste e cansado.
— Está bem — respondi, e ambos desligamos. Fiquei sentada mais um pouco. No que quer que essa cerimônia consistisse, eu teria que participar? Sim, teria. Ao contrário de Crystal, eu mantinha minhas promessas. Eu tive que apoiar Jason em seu casamento, como sua parenta mais próxima, como substituta para aceitar a punição se ele fosse infiel à nova esposa. Calvin apoiou Crystal. E agora veja o que aconteceu.
Eu nem imaginava o que aconteceria, mas sabia que seria terrível. Embora os lobi-panteras compreendessem a necessidade de acasalamento entre cada macho puro disponível com cada fêmea pura disponível (a única forma de produzir panteras bebê puras), eles também acreditavam que uma vez que o acasalamento tivesse sua chance, qualquer parceria formada devia ser monogâmica. Se você não quisesse aceitar esse voto, você não formava uma parceria ou se casava. Era assim que eles conduziam a comunidade. Crystal absorveu estas regras desde o nascimento, e Jason aprendeu com Calvin antes do casamento.
Jason não telefonou e eu fiquei contente. Imaginei o que estaria acontecendo em sua casa, mas apenas de forma paralisada. Quando Crystal conheceu Dove Beck? A esposa de Dove sabia disso? Não fiquei surpresa por Crystal trair Jason, mas estava um pouco espantada com a escolha dela.
Decidi que Crystal quis tornar sua traição tão enfática quanto possível. Ela estava dizendo, “Farei sexo com outra pessoa enquanto carrego seu filho. Ele será mais velho e de uma raça diferente da sua, e até mesmo estar{ trabalhando para você!” Cravando e revolvendo bem fundo a faca. Se isto era retaliação pelo maldito cheeseburger, eu diria que ela conseguiu uma vingança do tamanho de um bife.
Porque não queria parecer deprimida, eu apareci para jantar o que foi uma humilde e reconfortante macarronada de atum com ervilhas e cebolas. Depois de empilhar os pratos para que Octavia cuidasse deles, eu voltei para meu quarto. As duas bruxas estavam praticamente andando nas pontas dos pés pelo corredor, porque estavam ansiosas para não me perturbar, embora obviamente morressem de vontade de perguntar qual era o problema.
Mas elas não perguntaram; Deus as abençoe. Eu realmente não conseguiria explicar. Estava envergonhada demais. Fiz um milhão de preces antes de ir dormir aquela noite, mas nenhuma delas acabou me fazendo sentir melhor.
Fui trabalhar no dia seguinte porque tinha que ir. Ficar em casa não me faria sentir melhor. Fiquei profundamente feliz por Jason não vir ao Merlotte’s, porque teria jogado uma caneca nele se aparecesse.
Sam cuidadosamente me olhou várias vezes e finalmente me puxou para trás do balcão com ele. — Me conte o que está acontecendo — ele disse.
Lágrimas inundaram meus olhos e eu estava prestes a causar uma verdadeira cena. Agachei-me rapidamente, como se tivesse derrubado algo no chão, e falei, — Sam, por favor, não me pergunte. Estou abalada demais para falar a respeito. — De repente, percebi que seria um grande conforto contar a Sam, mas eu simplesmente não podia, não num bar cheio.
— Ei, você sabe que eu estou aqui, se precisar de mim. — Seu rosto estava sério. Ele deu um tapinha em meu ombro.
Eu tinha tanta sorte por tê-lo como chefe.
Seu gesto me lembrou que eu possuía vários amigos que não se desonrariam como Crystal fez. Jason desonrou a si mesmo também, forçando eu e Calvin a testemunhar a traição barata dela. Eu possuía tantos amigos que não fariam tal coisa! Era um truque do destino que o único a fazer isso fosse meu próprio irmão. Esse pensamento me fez sentir melhor e mais forte.
De fato, eu estava mais firme no momento em que cheguei em casa. Ninguém estava lá. Vacilei, me perguntando se poderia ligar para Tara ou implorar a Sam que tirasse uma hora de intervalo, ou até ligar para Bill para que fosse comigo a Hotshot... mas aquilo era simplesmente a fraqueza falando. Isso era algo que eu tinha que fazer sozinha. Calvin me avisou para usar algo confortável e não me vestir exageradamente, e meu traje do Merlotte’s certamente eram as duas coisas. Mas parecia errado usar minha roupa de trabalho para um evento como aquele. Poderia haver sangue. Eu não sabia o que antecipar. Vesti calças de ioga e um velho moletom cinza. Certifiquei-me de amarrar o cabelo. Eu parecia estar vestida para limpar os armários.
A caminho de Hotshot, liguei o rádio e cantei a plenos pulmões para me impedir de pensar. Harmonizei com Evanescence e concordei com as Dixie Chicks em não desanimar... Uma boa canção inspiradora para ouvir.
Cheguei a Hotshot bem antes das sete. Estive aqui pela última vez no casamento de Jason e Crystal, onde dancei com Quinn. Aquela visita de Quinn foi a única vez em que nós ficamos íntimos. Olhando para trás, eu me arrependia de ter dado aquele passo. Foi um erro. Contei com um futuro que nunca aconteceria. Me precipitei. Esperava nunca cometer esse erro novamente.
Estacionei, como na noite do casamento de Jason, no acostamento da estrada. Esta noite não havia tantos carros como anteriormente, quando foram convidados vários humanos comuns. Mas havia alguns veículos extras. Reconheci a caminhonete de Jason. Os outros pertenciam a alguns metamorfos que não viviam em Hotshot.
Uma pequena multidão já se encontrava reunida no quintal da casa de Calvin. As pessoas abriram caminho para mim até eu chegar ao centro da reunião e encontrar Crystal, Jason e Calvin. Vi alguns rostos familiares. Uma pantera de meia-idade chamada Maryelizabeth assentiu para mim. Vi a filha dela por perto. A garota, cujo nome não conseguia lembrar, era provavelmente a única expectadora menor de idade. Tive aquela arrepiante sensação que levantava os pêlos de meus braços, todas as vezes que tentava imaginar a vida diária em Hotshot.
Calvin encarava as próprias botas e não levantou o rosto. Jason não encontrou meus olhos, tampouco. Apenas Crystal estava ereta e desafiadora, os olhos escuros se prendendo aos meus, me desafiando a menosprezá-la. Eu ousei e, após um momento, ela desviou os olhos para algum lugar à distância.
Maryelizabeth tinha um velho livro esfarrapado na mão, e o abriu numa página marcada com um pedaço de jornal rasgado. A comunidade pareceu se imobilizar e acomodar. Aquele era o propósito da reunião.
— Nós, povo da presa e da garra, estamos aqui porque um de nós rompeu seus votos — Maryelizabeth leu. — No casamento de Crystal e Jason, panteras desta comunidade, cada um prometeu permanecer verdadeiro aos seus votos de casamento, tanto na forma felina quanto na forma humana. O substituto de Crystal foi seu tio Calvin, e de Jason foi sua irmã, Sookie.
Eu estava consciente dos olhos de toda comunidade reunida pousando em mim e em Calvin. Vários daqueles olhos eram amarelodourados. As uniões consangüíneas em Hotshot produziram alguns resultados ligeiramente alarmantes.
— Agora que Crystal rompeu seus votos, um fato testemunhado por seus substitutos, seu tio ofereceu-se para aceitar a punição já que Crystal está grávida.
Aquilo seria ainda pior do que eu suspeitava.
— Já que Calvin toma o lugar de Crystal, Sookie, você escolhe tomar o lugar de Jason?
Ah, merda. Olhei para Calvin e sabia que meu rosto lhe perguntava se havia qualquer outra alternativa. E seu rosto me disse que não. Ele de fato se sentia pesaroso por mim. Eu nunca perdoaria meu irmão — ou Crystal — por isso.
— Sookie — Maryelizabeth incitou.
— O que eu tenho que fazer? — falei e, se soava rabugenta, rancorosa e zangada, achei que tinha uma boa razão.
Maryelizabeth abriu o livro novamente e leu a resposta. — Nós existimos de acordo com nossos espíritos e garras, e se a confiança é rompida, uma garra é quebrada — ela disse.
Encarei-a, tentando decifrar aquilo.
— Você ou Jason tem que quebrar o dedo de Calvin — ela disse simplesmente. — De fato, já que Crystal rompeu a confiança completamente, você tem que quebrar pelo menos dois. Mais seria melhor. Jason pode escolher, eu acho.
Mais seria melhor. Jesus Cristo, Pastor da Judéia. Tentei ser desapaixonada. Quem poderia causar o maior estrago em meu amigo Calvin? Meu irmão, sem dúvida. Se eu fosse uma verdadeira amiga para Calvin, eu faria isso. Conseguiria seguir adiante? No entanto, isso foi tirado de minhas mãos.
Jason disse: — Não achei que aconteceria desse modo, Sookie. — Ele soava zangado, confuso e defensivo ao mesmo tempo. — Se Calvin toma o lugar de Crystal, eu quero que Sookie tome o meu lugar — ele disse a Maryelizabeth.
Eu nunca achei que poderia odiar meu próprio irmão, mas naquele momento descobri que era possível.
— Que assim seja — disse Maryelizabeth.
Tentei me preparar mentalmente. Afinal, talvez isso não fosse tão ruim quanto antecipei. Eu imaginei Calvin sendo chicoteado ou tendo que chicotear Crystal. Ou teríamos que fazer algo terrível envolvendo facas; aquilo teria sido bem pior.
Tentei acreditar que isso não seria tão ruim até o momento em que dois homens trouxeram um par de blocos de concreto e colocaram sobre uma mesa de piquenique. E então Maryelizabeth preparou um tijolo. Ela o estendeu para mim.
Comecei a sacudir a cabeça involuntariamente, porque sentia uma grande pontada no estômago. A náusea saltava em minha barriga. Olhando para o tijolo vermelho comum, eu comecei a ter uma idéia do que aquilo iria me custar.
Calvin deu um passo à frente e pegou minha mão. Ele se inclinou bem perto de meu ouvido. — Querida — disse — você tem que fazer isso. Eu aceitei isso quando a apoiei no casamento. E eu sabia o que ela era. E você conhece Jason. Isso poderia facilmente ter acontecido de outra forma. Eu poderia estar prestes a fazer isso com você. E você não se cura tão bem. Assim é melhor. Tem que ser. Nosso povo exige isso. — Ele se endireitou e me olhou direto nos olhos. Seus próprios olhos eram dourados, completamente estranhos e firmes.
Cerrei os lábios e me forcei a assentir. Calvin me deu um olhar de apoio e tomou seu lugar junto à mesa. Ele colocou a mão sobre os blocos de concreto. Sem mais cerimônias, Maryelizabeth me entregou o tijolo. O resto das panteras esperou pacientemente que eu executasse a punição. Os vampiros teriam organizado isso com trajes especiais e provavelmente usariam uma pedra enfeitada de um velho templo ou algo do gênero, mas não as panteras. Era somente um maldito tijolo. Segurei-o com ambas as mãos, apertando a lateral.
Após fitar a pedra por um longo minuto, eu disse a Jason: — Eu não quero falar com você novamente. Nunca mais. — Encarei Crystal. — Espero que aprecie, cadela — falei, me virando o mais rápido possível, lançando o tijolo sobre a mão de Calvin.
AMELIA E OCTAVIA PAIRARAM AO REDOR por dois dias antes de decidirem que me deixar em paz seria a melhor política. Ler seus pensamentos ansiosos apenas me deixou mais agressiva, porque eu não queria aceitar consolo. Eu devia sofrer pelo que fiz, e isso significava que não podia aceitar qualquer alívio de minha miséria. Então fiquei triste, deprimida, cismei e espalhei a disposição sombria por toda a casa.
Meu irmão veio ao bar uma vez e eu lhe dei as costas. Dove Beck não escolheu beber no Merlotte’s, o que era uma coisa boa, embora ele fosse o menos culpado do grupo no que me dizia respeito — apesar disso não torná-lo nenhum santo. Quando Alcee Beck veio, ficou claro que seu irmão lhe fez confidências, porque Alcee parecia ainda mais zangado do que o habitual, e me encarou em todas as oportunidades que teve, só para informar que estava à minha altura.
Graças a Deus, Calvin não apareceu. Eu não teria suportado. Escutei conversas suficientes ao redor do bar, de seus companheiros de trabalho na Norcross, a respeito do acidente que ele teve enquanto trabalhava na caminhonete em casa.
Muito inesperadamente, na terceira noite, Eric veio ao Merlotte’s. Dei uma olhada nele e de repente minha garganta pareceu se afrouxar e senti lágrimas subirem aos olhos. Mas Eric entrou como se fosse o dono do bar e seguiu pelo corredor até o escritório de Sam. Momentos depois, Sam tirou a cabeça para fora e acenou para mim.
Depois que entrei, eu não esperava que Sam fechasse a porta do escritório.
— Qual é o problema? — Sam me perguntou. Ele vinha tentando descobrir há dias, e eu me esquivei de suas perguntas bem-intencionadas.
Eric estava apoiado de um lado, os braços cruzados sobre o peito. Ele fez um gesto com a mão que dizia, “Conte-nos; estamos esperando.” Apesar de sua brusquidão, a presença dele relaxou um grande nó dentro de mim, o nó que manteve as palavras trancadas em meu estômago.
— Eu quebrei a mão de Calvin Norris em pedaços — falei. —Com um tijolo.
— Então ele era... Ele respondeu por sua cunhada no casamento — disse Sam, entendendo rapidamente.
Eric pareceu indiferente. Vampiros sabiam algo a respeito dos metamorfos — tinham que saber — mas se achavam bem mais superiores, então não se esforçavam para aprender coisas específicas sobre os rituais e cadências de ser um metamorfo.
— Ela teve que quebrar a mão dele, que representa sua garra em forma de pantera — Sam explicou impaciente. — Ela respondeu por Jason. — Então Sam e Eric trocaram um olhar que me assustou em sua completa concordância. Nenhum dos dois gostava de Jason nem um pouco.
Sam olhou de mim para Eric como se esperasse que Eric fizesse algo para me fazer sentir melhor.
— Eu não pertenço a ele — respondi bruscamente, já que tudo isso estava me fazendo sentir extremamente manipulada. — Você achou que, por Eric vir, me faria sentir toda feliz e despreocupada?
— Não — disse Sam, ele próprio soando um pouco zangado. — Mas esperava que a ajudasse a falar sobre qual era o problema.
— Qual é o problema — falei em voz bem baixa. — Okay, o problema é que meu irmão arranjou para que Calvin e eu verificássemos Crystal, que está grávida de quatro meses, e ele tramou para que chegássemos lá ao mesmo tempo. E quando verificamos, descobrimos Crystal na cama com Dove Beck. Como Jason sabia que encontraríamos.
Eric disse: — E por isso, você teve que quebrar os dedos do metamorfo. — Ele devia ter perguntado se tive que usar ossos de galinha e girar três vezes; era tão óbvio que estava perguntando sobre os costumes pitorescos de uma tribo primitiva.
— Sim, Eric, foi o que eu tive que fazer — respondi sombria. — Tive que quebrar os dedos de meu amigo com um tijolo na frente de uma platéia.
Pela primeira vez, Eric pareceu perceber que usara a abordagem errada. Sam o encarava com total exasperação. — E eu achei que você seria de grande ajuda — disse.
— Eu estou resolvendo algumas coisas em Shreveport — Eric respondeu com um toque defensivo. — Inclusive hospedando o novo rei.
Sam murmurou algo que soou como um suspeito “Malditos vampiros.”
Isso era totalmente injusto. Eu esperava toneladas de simpatia quando finalmente confessei a razão de meu mau humor. Mas agora Sam e Eric se encontravam tão envolvidos ficando irritados um com o outro que nenhum dos dois estava me dando um instante de pensamento.
— Bem, obrigada, rapazes — falei. — Isso foi muito divertido. Eric, grande ajuda—apreciei as palavras gentis. — E saí, como minha avó dizia, ressentida. Marchei de volta ao balcão e servi tão mal-humorada as mesas que algumas pessoas ficaram com medo de me chamar para pedir mais drinques.
Decidi limpar as superfícies atrás do balcão, porque Sam ainda estava no escritório com Eric... embora provavelmente Eric tenha ido embora pela porta dos fundos. Esfreguei, poli e peguei algumas cervejas para Holly, e organizei tudo tão meticulosamente que Sam poderia ter alguns problemas para encontrar as coisas. Por uma ou duas semanas.
Então Sam saiu para ocupar seu lugar, fitou o balcão com um desgosto mudo e sacudiu a cabeça para indicar que eu devia dar o fora de trás do bar. Meu mau humor era contagioso.
Sabe como é, às vezes, quando alguém realmente tenta animá-la? Quando você simplesmente decide que nada no mundo a fará se sentir melhor? Sam jogou Eric sobre mim como se estivesse lançando uma pílula da felicidade, e ainda ficou irritado por eu não ter engolido. Ao invés de sentir gratidão por Sam gostar o suficiente de mim para telefonar para Eric, fiquei zangada com sua presunção.
Eu estava num humor totalmente negro.
Quinn foi embora. Eu o bani. Erro estúpido ou decisão sábia? Veredicto ainda indefinido.
Vários Lobis estavam mortos em Shreveport por causa de Priscilla, e eu vi alguns deles morrerem. Acredite, isso não se esquece.
Mais do que alguns vampiros estavam mortos também, inclusive alguns que conheci bem.
Meu irmão era um bastardo manipulador dissimulado.
Meu bisavô nunca me levaria para pescar.
Está bem, agora eu estava sendo ridícula. De repente, eu sorri, porque estava imaginando o príncipe das fadas num macacão de brim velho e com um boné de beisebol dos Hawks de Bon Temps, carregando uma lata de minhocas e um par de varas de pescar.
Percebi o olhar de Sam enquanto recolhia os pratos de uma mesa. Pisquei para ele. Ele se virou, sacudindo a cabeça, mas captei a sombra de sorriso nos cantos de sua boca.
E simples assim, meu mau humor acabou oficialmente. Meu senso comum levou a melhor. Não havia razão para me afligir com o incidente de Hotshot por mais tempo. Tive que fazer o necessário. Calvin entendeu aquilo melhor do que eu. Meu irmão era um imbecil e Crystal era uma piranha. Eram fatos com as quais eu tinha que lidar. Certamente, ambos eram pessoas infelizes que agiam assim porque casaram com o cônjuge errado, mas também eram cronologicamente adultos, e eu não podia consertar o casamento deles mais do que fui capaz de evitá-lo.
Os Lobis lidavam com os problemas de seu próprio jeito e eu fiz meu melhor para ajudá-los. Vampiros, idem... algo assim. Okay. Não tão bem de todo, mas suficientemente melhor.
Quando saí do trabalho, não fiquei completamente aborrecida ao encontrar Eric esperando junto ao meu carro. Ele parecia estar apreciando a noite, parado sozinho no frio. Eu mesma estava congelando, porque não trouxe uma jaqueta pesada. Meu blusão não era suficiente.
— É agradável ficar sozinho por um tempo — Eric disse inesperadamente.
— Imagino que você fique sempre cercado no Fangtasia — falei.
— Sempre cercado por pessoas querendo coisas — ele disse.
— Mas você gosta disso, certo? Ser o grande chefão?
Eric pareceu meditar sobre aquilo. — Sim, eu gosto disso. Gosto de ser o chefe. Não gosto de ser... supervisionado. É a palavra certa? Ficarei feliz quando Felipe de Castro e sua subordinada Sandy partirem. Victor ficará para cuidar de Nova Orleans.
Eric estava compartilhando. Isso era quase sem precedentes. Era quase como uma troca entre iguais.
— Como é o novo rei? — Apesar do frio, não consegui resistir em continuar a conversa.
— Ele é bonito, implacável e inteligente — disse Eric.
— Como você. — Eu podia ter me estapeado.
Eric assentiu após um momento. — Mas muito mais — disse Eric sombrio. — Terei que permanecer muito alerta para ficar à frente dele.
— Como é gratificante ouvi-lo dizer isso — disse uma voz acentuada.
Aquele definitivamente era um momento Ah, merda! (um MAM, como eu costumo chamar).
Um belo homem saiu do meio das árvores e eu pestanejei ao percebê-lo. Enquanto Eric fazia uma reverência, examinei Felipe de Castro desde os sapatos brilhantes até o rosto atrevido. Enquanto me inclinava também, atrasada, eu percebi que Eric não exagerou quando disse que o novo rei era bonitão.
Felipe de Castro era um sujeito latino que colocava Jimmy Smits no chinelo, e eu sou uma grande admiradora do Sr. Smits. Apesar de ter talvez 1.78m, Castro se portava com tal imponência e postura reta que não era possível pensar nele como baixo — ao invés disso, ele fazia os outros homens parecerem altos demais. Os cabelos escuros grossos eram cortados bem curtos e ele tinha um bigode e cavanhaque no queixo. Possuía pele em tom caramelado e olhos escuros, sobrancelhas arqueadas e decididas, nariz arrebitado. O rei usava uma capa — sem brincadeira, uma verdadeira capa preta comprida. Eu lhe digo o quanto ele era impressionante; nem pensei em rir. Tirando a capa, ele parecia vestido para uma noite que podia incluir dança flamenca, com uma camisa branca, terno preto e sapatos sociais pretos. Uma das orelhas de Castro era furada e havia uma pedra escura nela. A lâmpada de segurança não me deixou ter uma idéia melhor do que podia ser. Rubi? Esmeralda?
Endireitei-me e o encarei de novo. Mas quando olhei para Eric, vi que ele ainda estava inclinado. Oh-oh. Bom, eu não era uma de suas súditas e não ia fazer isso de novo. Ia contra meu americanismo fazer mesmo uma vez.
— Oi, sou Sookie Stackhouse — falei, já que o silêncio estava ficando desconfortável. Estendi a mão automaticamente, lembrei que vampiros não se apertavam as mãos e a retirei. — Desculpe — eu disse.
O rei inclinou a cabeça. — Srta. Stackhouse — ele disse, o sotaque ecoando meu nome agradavelmente (Senhorita Steckhuss).
— Sim, senhor. Desculpe-me por encontrá-lo e sair correndo, mas realmente está frio aqui e eu preciso ir para casa. — Sorri para ele, o sorriso lunático que dou quando estou nervosa de verdade. — Adeus, Eric — balbuciei e fiquei na ponta dos pés para lhe dar um beijo na bochecha. — Ligue quando tiver um minuto. A menos que você necessite que eu fique, por alguma razão maluca?
— Não, amada, você precisa ir para casa e se aquecer — disse Eric, prendendo minhas mãos na sua. — Ligarei quando meu trabalho permitir.
Quando ele me soltou, fiz uma espécie de aceno desajeitado na direção do rei (Americanos! Não acostumados a se inclinar!) e pulei em meu carro antes que um dos vampiros pudesse mudar de idéia sobre minha partida. Me senti covarde — uma covarde bem aliviada — ao dar marcha-ré na vaga e sair do estacionamento. Mas já estava questionando a sabedoria de minha partida ao virar na Rodovia Hummingbird.
Eu estava preocupada com Eric. Aquele era um fenômeno totalmente novo, um que me deixava bem inquieta, e começou na noite do golpe. Preocupar-me com Eric era como me preocupar com o bem-estar de uma pedra ou de um tornado. Quando foi que tive que me preocupar com ele antes? Ele era um dos mais poderosos vampiros que já conheci. Mas Sophie-Anne foi ainda mais poderosa e protegida pelo enorme guerreiro Sigebert, e veja o que aconteceu. Senti-me abrupta, agudamente miserável. O que havia de errado comigo?
Tive uma idéia terrível. Talvez estivesse preocupada simplesmente porque Eric estava preocupado? Miserável porque Eric estava miserável? Eu podia captar suas emoções com tanta força e de uma distância tão grande? Eu devia voltar e descobrir o que estava acontecendo? Se o rei estivesse sendo cruel com Eric, eu provavelmente não poderia ter qualquer utilidade. Tive que parar no acostamento da estrada. Não conseguia mais dirigir. Eu nunca tive um ataque de pânico, mas achei que estava tendo um agora. Estava paralisada de indecisão; de novo, não era uma de minhas características habituais. Lutando comigo mesma, tentando pensar com clareza, percebi que tinha que voltar, querendo ou não. Era uma obrigação que não podia ignorar, não porque eu estava vinculada a Eric, mas porque gostava dele.
Girei o volante e fiz uma curva em U no meio da Rodovia Hummingbird. Já que vi apenas dois carros desde que deixei o bar, a manobra não foi uma grande violação de tráfego. Dirigi de volta bem mais r{pido do que parti, e quando cheguei ao Merlotte’s, descobri que o estacionamento dos clientes estava completamente vazio. Estacionei na frente e tirei meu bastão de softball de debaixo do banco. Minha avó me deu no meu aniversário de dezesseis anos. Era um bastão muito bom, embora tenha visto dias melhores. Arrastei-me ao redor do prédio, tirando vantagem dos arbustos que cresciam na base como cobertura. Nandinas. Eu detesto nandinas. Elas são emaranhadas, feias, compridas e eu sou alérgica a elas. Apesar de estar coberta com blusão, calça e meias, meu nariz começou a escorrer no minuto em que comecei a abrir caminho através das plantas. Espiei na esquina muito cautelosamente.
Fiquei tão chocada que não consegui acreditar no que estava vendo.
Sigebert, o guarda-costas da rainha, não foi morto no golpe. Não, senhor, ele ainda estava entre os mortos-vivos. E estava ali no estacionamento do Merlotte’s, divertindo-se muito com o novo rei, Felipe de Castro, com Eric, e Sam, que foi capturado na teia provavelmente só por deixar o bar para entrar em seu trailer.
Respirei fundo — fundo, mas silenciosamente — e me forcei a analisar o que estava vendo. Sigebert era uma montanha de homem e foi o músculo da rainha durante séculos. Seu irmão, Wybert, morreu a serviço da rainha, e eu tinha certeza que Sigebert foi um alvo para os vampiros de Nevada; eles deixaram suas marcas nele. Vampiros se curam rápido, mas Sigebert foi gravemente ferido, suficiente para que ainda estivesse visivelmente machucado, mesmo dias depois da luta. Havia um enorme corte sobre sua testa e uma marca horrível pouco acima de onde achei que estaria seu coração. As roupas estavam rasgadas, manchadas e imundas. Talvez os vampiros de Nevada tenham pensado que ele se desintegrou quando de fato conseguiu escapar e fugir. Não importa, disse a mim mesma.
A parte importante foi que ele conseguiu amarrar Eric e Felipe de Castro com correntes de prata. Como? Não importa, eu disse novamente. Talvez essa tendência de vagar mentalmente viesse de Eric, que estava parecendo muito mais maltratado do que o rei. Claro, Sigebert veria Eric como um traidor.
Eric sangrava na cabeça e seu braço estava claramente quebrado. Castro sangrava lentamente pela boca, então Sigebert talvez o tivesse atingido. Eric e Castro encontravam-se deitados no chão e, sob a luz áspera da lâmpada de segurança, ambos pareciam mais brancos do que a neve. Sam de algum modo foi amarrado ao pára-choque da própria caminhonete, e não estava ferido, pelo menos até agora. Graças a Deus.
Tentei imaginar uma forma de derrotar Sigebert com meu bastão de alumínio de softball, mas não consegui pensar em quaisquer boas idéias. Se eu corresse para cima dele, ele simplesmente riria. Mesmo gravemente ferido como estava, ainda era um vampiro e eu não era páreo para ele, a não ser que tivesse uma grande idéia. Então observei e esperei, mas no fim, não consegui mais suportar vê-lo machucar Eric; acredite, quando um vampiro chuta, você fica bem machucado. Além disso, Sigebert estava se divertindo com uma grande faca que tinha trazido.
A maior arma ao meu dispor? Okay, esse seria meu carro. Senti uma pequena pontada de remorso, porque foi o melhor carro que já tive, e Tara me vendeu por um dólar quando conseguiu um mais novo. Mas foi a única coisa que consegui pensar que fizesse estrago em Sigebert.
Então me afastei, rezando para que Sigebert estivesse tão absorto em sua tortura que não notasse o som da porta do carro. Descansei a cabeça no volante e pensei furiosamente. Considerei o estacionamento e sua topografia, pensei na localização dos vampiros amarrados, respirei fundo e virei a chave. Segui ao redor do prédio, desejando que meu carro pudesse andar furtivamente através dos malditos arbustos de nandinas, pisei no acelerador e fui direto para cima dele. Ele tentou se esquivar, mas não era muito esperto e o peguei com as calças na mão (literalmente — eu realmente não gostaria de pensar em seu próximo plano de tortura), atingindo-o com força, e ele voou para aterrissar no teto do carro com um enorme baque.
Eu gritei e pisei no freio, porque aquilo seria o mais longe que meu plano iria. Ele deslizou para trás do carro, deixando uma horrível trilha de sangue escuro, e desapareceu de vista. Com medo de que ele surgisse no espelho retrovisor, dei marcha ré no carro e pisei no acelerador novamente. Bump. Bump. Puxei o freio de mão e saltei, bastão na mão, para encontrar as pernas de Sigebert e a maior parte de seu torso presos debaixo do carro. Corri até Eric e comecei a lutar com as correntes de prata, enquanto ele me fitava com os olhos arregalados. Castro estava praguejando em espanhol, fluente e fluidamente, e Sam dizia, — Depressa, Sookie, depressa! — o que realmente não ajudava em meu poder de concentração.
Desisti das malditas correntes, peguei a faca grande e cortei a corda de Sam para que ele pudesse ajudar. A faca chegou bem perto de sua pele para fazê-lo protestar uma ou duas vezes, mas eu realmente estava fazendo o melhor que podia, e ele não sangrou. Para lhe dar crédito, ele foi até Castro em tempo recorde e começou a libertá-lo enquanto eu corria para Eric, largando a faca no chão entre nós enquanto trabalhava. Agora que tinha pelo menos um aliado que podia usar os pés e as mãos, fui capaz de me concentrar e soltar as pernas de Eric (pelo menos agora ele podia fugir — acho que aquela era minha idéia) e então mais lentamente, suas mãos e braços. A prata havia sido enrolada várias vezes; Sigebert se certificou de que tocasse as mãos de Eric. Elas pareciam horríveis. Castro sofrera ainda mais com as correntes, porque Sigebert arrancou sua bela capa e parte da camisa.
Eu estava soltando o último fio quando Eric me empurrou com toda a força, agarrou a faca e ficou de pé tão agilmente que vi apenas um borrão. Então ele estava sobre Sigebert, que de fato levantou o carro para desprender as próprias pernas. Ele começou a sair debaixo dele, e em mais um minuto estaria livre.
Eu mencionei que era uma faca grande? E devia ser afiada também, porque Eric pousou sobre Sigebert, dizendo, — Vá para seu criador — e cortou fora a cabeça do vampiro guerreiro.
— Oh — falei trêmula, sentando-me abruptamente no concreto frio do estacionamento. — Oh, uau.
Nós todos permanecemos onde estávamos, ofegando, por uns bons cinco minutos. Então Sam se endireitou ao lado de Felipe de Castro e lhe ofereceu a mão. O vampiro a aceitou e, quando ficou de pé, apresentou-se a Sam que automaticamente fez o mesmo.
— Srta. Stackhouse — disse o rei — Estou em débito.
Com maldita certeza.
— Tudo bem — respondi num tom de voz que não era tão neutro quanto devia.
— Obrigado — ele disse. — Se seu carro estiver danificado demais para ser consertado, ficarei muito feliz em lhe comprar outro.
— Oh, obrigada — falei com absoluta sinceridade, enquanto me levantava. — entarei dirigi-lo para casa esta noite. Não sei como poderei explicar o estrago. Você acha que a oficina acreditaria se eu dissesse que atropelei um crocodilo? — Aquilo acontecia ocasionalmente. Era estranho estar preocupada com o seguro do carro?
— Dawson pode dar uma olhada para você — disse Sam. Sua voz estava tão estranha quanto a minha. Ele também achou que ia morrer. — Sei que ele é mecânico de motos, mas aposto que pode consertar seu carro. Ele trabalha sozinho o tempo todo.
— Faça o que for necessário — disse Castro grandiosamente. — Eu pagarei. Eric, você se importaria de explicar o que acabou de acontecer? — Sua voz ficou consideravelmente mais ácida.
— Você devia pedir ao seu pessoal para explicar — Eric retrucou, justificado. — Eles não lhe contaram que Sigebert, o guarda-costas da rainha, estava morto? No entanto, aqui está ele.
— Uma excelente questão. — Castro fitou o corpo desintegrado. — Então este era o lendário Sigebert. Ele juntou-se ao irmão Wybert. — Ele soava bem satisfeito.
Eu não sabia que os irmãos eram famosos entre os vampiros, mas eles certamente foram únicos. Os físicos enormes, o inglês capenga e primitivo, a total devoção à mulher que os transformou séculos atrás — claro, qualquer vampiro racional adoraria aquela história. Cambaleei onde estava e Eric, movendo-se mais rápido do que eu podia ver, me pegou. Foi um momento totalmente Scarlett e Rhett, estragado apenas pelo fato de que havia dois outros sujeitos ali, estávamos num monótono estacionamento e eu estava infeliz com os estragos em meu carro. Além de um pouco chocada.
— Como ele conseguiu dominar três sujeitos fortes como vocês? — perguntei. Não fiquei preocupada com o fato de Eric estar me segurando. Aquilo me fazia sentir pequena, uma sensação que eu não apreciava com tanta freqüência.
Houve um momento de embaraço geral.
— Eu estava de costas para as árvores — Castro explicou. — Ele preparou as correntes para jogar como um... sua palavra é quase igual. Lazo.
— Laço — disse Sam.
— Ah, laço. Ele lançou o primeiro ao meu redor e, é claro, o choque foi grande. Antes que Eric pudesse cair sobre ele, ele o dominou também. A dor da prata... fomos rapidamente amarrados. Quando este — ele assentiu na direção de Sam — veio em nosso auxílio, Sigebert o deixou inconsciente, pegou a corda na traseira da caminhonete e o amarrou.
— Estávamos envolvidos demais em nossa discussão para notar — disse Eric. Ele soava bem aborrecido e eu não o culpei. Mas decidi manter a boca fechada.
— Irônico, hein, precisarmos de uma garota humana para nos salvar — disse o rei alegremente, a mesma idéia que eu decidi não mencionar.
— Sim, muito divertido — disse Eric num tom terrivelmente não divertido. — Por que você voltou, Sookie?
— Eu senti sua, hã, raiva ao ser atacado. — Por “raiva” leia “desespero”.
O novo rei pareceu muito interessado.
— Um vínculo de sangue. Que interessante.
— Não, não realmente — falei. — Sam, imagino se você se importaria de me levar para casa. Não sei onde vocês cavalheiros deixaram seus carros, ou se voaram. E imagino como Sigebert soube onde encontrálos.
Felipe de Castro e Eric compartilhavam expressões quase idênticas de profunda meditação.
— Nós descobriremos — disse Eric, e me soltou. — Então cabeças irão rolar. — Eric era bom em fazer cabeças rolarem. Era uma de suas coisas favoritas. Eu estava disposta a apostar que Castro compartilhava daquela predileção, porque o rei parecia positivamente animado em antecipação.
Sam pescou as chaves do bolso sem uma palavra, e eu subi na caminhonete com ele. Deixamos os dois vampiros envolvidos numa profunda conversa. O cadáver de Sigebert, ainda parcialmente debaixo de meu pobre carro, havia quase desaparecido, deixando um resíduo escuro e oleoso no concreto do estacionamento. A vantagem dos vampiros — não havia corpos para jogar.
— Vou ligar para Dawson esta noite — disse Sam inesperadamente.
— Oh, Sam, obrigada — falei. — Fiquei tão feliz por você estar lá.
— É o estacionamento do meu bar — ele disse, e pode ter sido minha própria reação de culpa, mas acho que detectei alguma reprovação.
Subitamente percebi que Sam se envolvera numa situação em seu próprio quintal, uma situação na qual ele não tinha envolvimento ou interesse, e que quase morreu como resultado. E por que Eric estava no estacionamento do Merlotte’s? Para falar comigo. E então Felipe de Castro surgiu para falar com Eric... embora eu não tivesse certeza do por que. Mas a questão era que eles estiveram lá por culpa minha.
— Oh, Sam — eu disse, quase chorando. — Eu sinto tanto. Não sabia que Eric estaria esperando por mim, e com certeza não sabia que o rei o seguiria. Ainda não sei por que ele estava lá. Sinto muito — falei novamente. Eu diria centenas de vezes se aquele tom desaparecesse da voz de Sam.
— Não é culpa sua — ele disse. — Em primeiro lugar, eu pedi que Eric viesse para cá. É culpa deles. Não sei como poderíamos livrá-la deles.
— Isso é ruim, mas de qualquer forma, você não está aceitando como eu achei que iria.
— Eu só quero ser deixado em paz — disse inesperadamente. — Não quero me envolver em políticas sobrenaturais. Não quero escolher lados na confusão dos Lobis. Não sou um Lobi. Sou metamorfo, e eles não se organizam. Somos diferentes demais. Odeio políticas vampiras ainda mais do que políticas Lobis.
— Você está zangado comigo.
— Não! — Ele parecia estar lutando com o que queria dizer. — Eu não quero isso para você também! Você não estava mais feliz antes?
— Você quer dizer antes de eu conhecer vampiros, antes de saber sobre o resto do mundo que está além dos limites?
Sam assentiu.
— De algumas formas. Era bom ter um caminho claro diante de mim — falei. — Eu realmente fico enojada com as políticas e batalhas. Mas minha vida não era nenhum prêmio, Sam. Todo dia era uma luta para simplesmente agir como uma humana normal, como se não soubesse de todas as coisas que sei sobre outros humanos. As traições e infidelidades, os pequenos atos de desonestidade, a falta de gentileza. Os julgamentos realmente severos que as pessoas fazem das outras. A falta de caridade. Quando se sabe de tudo isso, é difícil continuar seguindo em frente às vezes. Saber sobre o mundo sobrenatural coloca tudo isso numa perspectiva diferente. Não sei por que. As pessoas não são melhores nem piores do que os sobrenaturais, mas elas não são tudo que existe, tampouco.
— Acho que entendo — disse Sam, embora soasse um pouco duvidoso.
— Além disso — falei em voz baixa — é bom ser valorizada por algo que faz as pessoas normais pensarem que sou apenas uma garota maluca.
— Eu definitivamente entendo isso — disse Sam. — Mas existe um preço.
— Oh, sem dúvida.
— Você está disposta a pagar?
— Até agora.
Paramos diante de minha entrada. Sem luzes acesas. A dupla de bruxas tinha ido para a cama, ou saiu para festejar ou lançar feitiços.
— Ligo para Dawson pela manhã — disse Sam. — Ele irá verificar seu carro, certificar-se de que você pode dirigir ou mandar rebocar até sua oficina. Acha que consegue uma carona para o trabalho?
— Com certeza — respondi. — Amelia pode me levar.
Sam me acompanhou até a porta dos fundos como se estivesse me trazendo para casa de um encontro. A luz da varanda estava acesa, o que foi atencioso da parte de Amelia. Sam colocou os braços ao meu redor, algo que me surpreendeu, e então simplesmente acomodou a cabeça perto da minha, e ficamos parados apreciando o calor do outro por um longo momento.
— Sobrevivemos à guerra dos Lobis — ele disse. — Você conseguiu atravessar o golpe dos vampiros. Agora vivemos através do ataque de um guarda-costas enlouquecido. Espero que consigamos manter nosso recorde.
— Agora você está me assustando — falei, enquanto lembrava de todas as outras coisas às quais sobrevivi. Eu devia estar morta, sem dúvida.
Os lábios calorosos tocaram minha bochecha.
— Talvez seja uma coisa boa — disse, virando-se para voltar à caminhonete.
Observei-o subir e dar a ré, então destranquei a porta dos fundos e fui para meu quarto. Depois de toda adrenalina, medo e ritmo acelerado de vida (e morte) no estacionamento do Merlotte’s, meu próprio quarto parecia bem tranqüilo, limpo e seguro. Fiz o melhor para matar alguém esta noite. Foi pura sorte Sigebert ter sobrevivido à minha tentativa de homicídio veicular. Duas vezes.
Não pude deixar de notar que não estava sentindo remorso. Isso certamente era um defeito, mas no momento eu simplesmente não ligava. Definitivamente havia partes de minha personalidade que eu não aprovava, e talvez de vez em quando, tivesse momentos em que não gostasse muito de mim mesma. Mas enfrentava cada dia como eles se apresentavam, e até agora sobrevivi a tudo que a vida tinha jogado sobre mim. Só podia desejar que a sobrevivência compensasse o preço que estava pagando.
PARA MEU ALÍVIO, acordei numa casa vazia. Nem as mentes pulsantes de Amelia ou Octavia se encontravam sob meu teto. Fiquei deitada na cama e apreciei a notícia. Talvez da próxima vez que tivesse um dia de folga, eu pudesse passar completamente sozinha. Aquela não parecia uma ocorrência provável, mas uma garota pode sonhar.
Depois de planejar meu dia (ligar para Sam para saber de meu carro, pagar algumas contas, ir trabalhar), entrei no chuveiro e tomei um bom banho. Usei tanta água quente quanto queria. Pintei as unhas das mãos e dos pés, vesti um par de calças moletom e camiseta, e fui fazer um pouco de café. A cozinha estava impecável; Deus abençoe Amelia.
O café foi ótimo, a torrada com geléia de amora deliciosa. Até minhas papilas gustativas estavam felizes. Depois de limpar os restos do café da manhã, eu estava praticamente cantando de prazer com a solidão. Voltei para o quarto para fazer minha cama e a maquiagem.
Claro, foi quando a batida ecoou na porta de trás, quase me matando de susto. Calcei sapatos e fui atender. Tray Dawson estava lá, e ele sorria.
— Sookie, seu carro está ótimo — disse. — Tive que substituir algumas peças aqui e ali, e é a primeira vez que tive que raspar cinza de vampiro de um chassi, mas está funcionando.
— Oh, obrigada! Você pode entrar?
— Só por um minuto — ele disse. — Você tem uma Coca na geladeira?
— Com certeza.
Trouxe-lhe o refrigerante, perguntei se ele queria alguns biscoitos ou sanduíche de pasta de amendoim para acompanhar e, quando ele recusou, pedi licença para terminar minha maquiagem. Eu tinha imaginado que Dawson me conduziria até o carro, mas resultou que ele dirigira até minha casa, então eu precisava lhe dar uma carona ao invés disso.
Eu tinha meu talão de cheques e uma caneta na mão quando sentei à mesa do lado oposto do homenzarrão, e perguntei quanto lhe devia.
— Nem um centavo — disse Dawson. — O cara novo pagou.
— O novo rei?
— É, ele me telefonou no meio da noite de ontem. Contou a história, mais ou menos, e perguntou se eu podia dar uma olhada no carro logo de manhã. Eu estava acordado quando ele ligou, então não me importei. Fui ao Merlotte’s esta manhã, disse a Sam que ele desperdiçou um telefonema já que sabia tudo a respeito. Eu o segui enquanto ele dirigia o carro até minha oficina, colocamos no elevador e demos uma boa olhada.
Aquele era um longo discurso para Dawson. Guardei meu talão de cheques na bolsa e escutei, perguntando silenciosamente se queria mais Coca ao apontar para seu copo. Ele sacudiu a cabeça, me informando que estava satisfeito.
— Tivemos que arrumar algumas coisas, substituir o tanque reserva de seu pára-brisa. Eu sabia onde havia outro carro como o seu no ferrovelho do Rusty e não levou muito tempo para completar o serviço.
Eu só podia agradecê-lo novamente. Levei Dawson até sua oficina. Desde a última vez em que passei por lá, ele cortou a grama do quintal de seu lar, uma casa de madeira modesta, mas bem arrumada que ficava ao lado da loja. Dawson também guardou todas as peças das motocicletas sob uma cobertura em algum lugar, ao invés de deixá-las jogadas e espalhadas ao redor de forma prática, mas não atraente. E sua caminhonete era limpa.
Enquanto Dawson saía do carro, eu disse: — Sinto-me tão grata. Sei que carros não são a sua especialidade e aprecio você trabalhar no meu.
Mecânico do submundo, aquele era Tray Dawson.
— Bem, eu fiz porque queria — disse Dawson, e então se deteve. — Mas se não se importar, eu com certeza gostaria se você dissesse algumas palavras sobre mim para sua amiga Amelia.
— Eu não tenho muita influência sobre Amelia — respondi. — Mas ficarei feliz em contar que personalidade genuína você é.
Ele deu um largo sorriso: sem repressão. Eu não acho que já tenha visto Dawson dar um sorriso assim.
— Ela com certeza parece saudável — disse, e já que eu não tinha idéia dos critérios de Dawson para sua admiração, aquilo foi uma grande pista.
— Ligue para ela, eu darei referências — falei.
— Combinado.
Nos separamos felizes, e ele atravessou o pátio recém arrumado até sua loja. Eu não sabia se Dawson seria ou não do gosto de Amelia, mas faria o possível para persuadi-la a lhe dar uma chance.
Ao dirigir para casa, prestei atenção no carro, tentando ouvir qualquer ruído estranho. Ele ronronava. Amelia e Octavia vieram quando eu estava saindo para o trabalho.
— Como está se sentindo? — Amelia perguntou com um ar entendido.
— Bem — respondi automaticamente. Então entendi que ela achava que não voltei para casa na noite anterior. Ela achou que estive me divertindo com alguém. — Ei, você se lembra de Tray Dawson, certo? Você o conheceu no apartamento de Maria-Star.
— Claro.
— Ele vai te ligar. Seja gentil.
Deixei-a sorrindo ao entrar no carro.
Dessa vez, o trabalho foi chato e normal. Terry estava substituindo, ja que Sam detestava trabalhar nos domingos | tarde. O Merlotte’s estava tendo um dia calmo. Abrimos tarde aos domingos e fechamos cedo, então eu estava pronta para voltar para casa às sete. Ninguém apareceu no estacionamento e consegui caminhar diretamente para meu carro sem ser detida por uma longa e estranha conversa ou ser atacada.
Na manhã seguinte, eu tinha algumas tarefas a cumprir na cidade. Estava com pouco dinheiro, então dirigi até o ATM, acenando para Tara Thornton du Rone. Tara sorriu e acenou de volta. O casamento combinou com ela e eu esperava que ela e JB fossem mais felizes do que meu irmão e a esposa.
Ao me afastar do banco, para meu espanto, avistei Alcide Herveaux saindo de um dos escritórios de Sid Matt Lancaster, um velho e renomado advogado. Parei no estacionamento de Sid Matt, e Alcide aproximou-se para conversar comigo.
Eu devia ter continuado em frente, esperando que ele não tivesse notado.
A conversa foi desconfortável. Alcide teve muito com que lidar, com toda imparcialidade. Sua namorada foi morta, brutalmente assassinada. Vários outros membros de sua matilha também estavam mortos. Ele tinha uma enorme cobertura para organizar. Mas agora ele era o líder da matilha, e celebrara sua vitória do modo tradicional. Tarde demais, eu suspeitava que ele estivesse bem embaraçado por fazer sexo com uma moça em público, especialmente logo depois da morte da namorada. Eu estava lendo um bocado de emoções na cabeça dele, e ele ruborizou ao se aproximar da janela de meu carro.
— Sookie, eu não tive a chance de agradecê-la por toda ajuda aquela noite. Foi sorte nossa o seu chefe ter decidido vir com você.
É, já que você não salvou minha vida e ele sim, eu fico feliz também.
— Sem problema, Alcide — respondi, minha voz maravilhosamente neutra e calma. Eu teria um bom dia, maldição. — As coisas se acalmaram em Shreveport?
— A polícia parece não ter pistas — disse, olhando ao redor para se certificar de que ninguém podia ouvir. — Eles ainda não encontraram o local, e houve muitas chuvas. Esperamos mais cedo do que tarde que eles interrompam a investigação.
— Vocês ainda estão planejando o grande anúncio?
— Terá que ser em breve. Os chefes de outras matilhas na área estão em contato comigo. Não temos uma reunião de todos os líderes como os vampiros fazem, principalmente porque eles têm um líder para cada estado e nós temos um bocado de líderes de matilhas. Parece que vamos todos eleger um representante dos líderes, um de cada estado, e esses representantes irão para uma reunião nacional.
— Parece um passo na direção certa.
— Também podemos convidar outros metamorfos se eles quiserem vir conosco. Tipo, Sam poderia pertencer a minha matilha de modo auxiliar, embora não seja um Lobi. E seria bom se os lobos solitários, como Dawson, viessem a algumas das reuniões... vir uivar conosco ou algo assim.
— Dawson parece gostar de sua vida do jeito que está — falei. — E você terá que falar com Sam, não eu, a respeito de ele querer ou não se associar com vocês formalmente.
— Claro. Você parece ter um bocado de influência com ele. Só pensei em mencionar.
Eu não via daquela forma. Sam possuía um bocado de influência sobre mim, mas quanto a eu influenciá-lo... tinha dúvidas. Alcide começou a fazer as pequenas mudanças na postura que me informavam tão claramente quanto seu cérebro que ele estava prestes a seguir caminho para resolver quaisquer negócios que o tivessem trazido para Bon Temps.
— Alcide — falei, tomada por um impulso — eu tenho uma pergunta.
Ele disse: — Claro.
— Quem está tomando conta dos filhos de Furnan?
Ele me encarou e então desviou os olhos. — A irmã de Libby. Ela mesma tem três filhos, mas disse que ficaria feliz em aceitá-los. Há dinheiro suficiente para criá-los. Quando chegar a hora de ir para a faculdade, veremos o que podemos fazer pelo garoto.
— Pelo garoto?
— Ele é da matilha.
Se tivesse um tijolo na mão, eu não teria me importado de usá-la em Alcide. Bom Deus Todo-poderoso. Respirei fundo. Para lhe dar crédito, o sexo da criança não era a questão. Era seu sangue puro.
— Deve haver dinheiro do seguro suficiente para a menina também — disse Alcide, já que não era tolo. — A tia não entrou em detalhes, mas sabe que nós ajudaremos.
— E ela sabe quem é “nós”?
Ele sacudiu a cabeça. — Dissemos que Furnan pertencia a uma sociedade secreta, como os Maçons.
Parecia não haver mais nada a dizer.
— Boa sorte — falei. Ele já teve uma boa porção dela, não importa o que se pensasse a respeito das mulheres mortas que foram suas namoradas. Afinal, ele mesmo sobreviveu para alcançar o objetivo do pai.
— Obrigado e agradeço novamente por sua parte nessa sorte. Você ainda é amiga da matilha — ele disse muito seriamente. Os belos olhos verdes se demoraram em meu rosto. — E você é uma das minhas mulheres favoritas no mundo — acrescentou inesperadamente.
— É um elogio realmente gentil, Alcide — falei, me afastando. Estava feliz por ter falado com ele.
Alcide amadurecera um bocado nas últimas semanas. Ao todo, ele estava se transformando num homem que eu admirava muito mais do que o antigo. Eu nunca esqueceria o sangue e os gritos da terrível noite no parque industrial abandonado em Shreveport, mas comecei a sentir que algo bom viria disso.
Quando voltei para casa, descobri que Octavia e Amelia estavam no pátio, varrendo as folhas. Era uma agradável descoberta. Eu detestava varrer mais do que tudo no mundo, mas se não fizesse isso no pátio uma ou duas vezes durante o outono, o acúmulo dos pinheiros era terrível.
Andei agradecendo pessoas o dia todo. Estacionei nos fundos e voltei para frente.
— Você coloca isso em sacos ou queima? — Amelia gritou.
— Oh, eu queimo quando não há uma proibição — falei. — É tão gentil de vocês duas pensarem em fazer isso. — Eu não pretendia bajular — mas ter sua tarefa menos favorita feita por você era realmente um agrado e tanto.
— Eu preciso do exercício — disse Octavia. — Fomos ao shopping em Monroe ontem, então passeei um pouco.
Achei que Amelia tratava Octavia mais como uma avó do que mestra.
— Tray ligou? — perguntei.
— Com certeza. — Amelia sorriu largamente.
— Ele a achou atraente.
Octavia riu. — Amelia, você é uma femme fatale.
Ela pareceu feliz e disse: — Acho que ele é um sujeito interessante.
— Um pouco mais velho do que você — falei, só para que ela soubesse.
Amelia deu de ombros. — Eu não ligo. Estou pronta para namorar. Acho que Pam e eu somos mais amigas do que flertes. E desde que encontrei aquela ninhada de gatinhos, estou aberta para rapazes.
— Você realmente acha que Bob teve escolha? Não teria sido, como, instinto? — eu disse.
Naquele instante, o gato em questão atravessou o jardim, curioso em saber por que estávamos todas paradas ali fora quando havia um perfeito e bom sofá e algumas camas na casa. Octavia deu um suspiro ruidoso.
— Oh, inferno — ela murmurou. Ela se endireitou e estendeu as mãos. — Potestas mea te in formam veram tuam commutabit natura ips re affirmet Incantationes praeviae deletae sunt — ela disse.
O gato piscou para Octavia. Então fez um ruído peculiar, uma espécie de grito que nunca ouvi na garganta de um gato antes. De repente, o ar ao redor dele ficou denso, compacto, enevoado e cheio de faíscas. O gato guinchou novamente. Amelia encarava o animal com a boca aberta. Octavia parecia resignada e um pouco triste.
O gato se contorceu na grama desbotada e, de repente, tinha uma perna humana.
— Deus todo-poderoso! — falei, tapando a boca com uma mão.
Agora tinha duas pernas cabeludas, um pênis, e então começou a se transformar num homem, guinchando o tempo todo. Após dois terríveis minutos, o bruxo Bob Jessup jazia na grama, trêmulo, mas totalmente humano de novo. Após outro minuto, ele parou de guinchar e apenas se contraía. Não era um progresso, realmente, mas mais fácil para os tímpanos.
Então ele se colocou de pé, saltou sobre Amelia e fez um esforço determinado para estrangulá-la até a morte.
Agarrei os ombros dele para tirá-lo de cima dela, e Octavia disse: — Você não quer que eu use minha magia em você novamente, certo?
Aquilo provou ser uma ameaça bem eficaz. Bob soltou Amelia e ficou ofegando no ar frio.
— Não consigo acreditar que você fez isso comigo! — disse. — Não posso acreditar que passei os últimos meses como um gato!
— Como se sente? — perguntei. — Você está fraco? Precisa de ajuda para entrar na casa? Gostaria de algumas roupas?
Ele olhou vagamente para si próprio. Ele não usara roupas por um tempo, mas de repente ficou vermelho, quase por completo.
— Sim — ele disse rigidamente. — Sim, eu gostaria de algumas roupas.
— Venha comigo — falei.
O crepúsculo estava se aproximando enquanto eu conduzia Bob para dentro de casa. Ele era um sujeito pequeno, e achei que um par de meus moletons poderia lhe servir. Não, Amelia era um pouco mais alta, e uma doação de roupas dela seria simplesmente justa. Avistei a cesta cheia de roupas dobradas na escada onde Amelia deixara para carregar da próxima vez que subisse ao quarto.
Vejam só, havia uma velha blusa azul e um par de calças moletom pretas. Sem palavras, entreguei as roupas para Bob e ele as vestiu com dedos trêmulos. Remexi a pilha e encontrei um par de meias brancas simples. Ele se sentou no sofá para calçá-las. Aquilo era o mais longe que eu iria para vesti-lo. Seus pés eram maiores do que os meus ou de Amelia, então sapatos estavam descartados.
Bob se abraçou como se temesse desaparecer. Os cabelos escuros se aderiam ao crânio. Ele piscou, e eu imaginei o que teria acontecido aos seus óculos. Esperava que Amelia os tivesse guardado em algum lugar.
— Bob, posso lhe servir uma bebida? — perguntei.
— Sim, por favor — respondeu. Ele parecia estar tendo um pouco de dificuldade para fazer sua boca formar as palavras. Sua mão se moveu para a boca num gesto curioso, e percebi que era como o movimento de minha gata Tina, quando ela levantava a pata para lamber antes de usá-la para se esfregar. Bob percebeu o que estava fazendo e baixou a mão abruptamente.
Pensei em lhe trazer leite num pires, mas decidi que isso seria um insulto. Ao invés disso, trouxe chá gelado. Ele tomou, mas fez uma careta.
— Desculpe — falei. — Eu devia ter perguntado se você gostava de chá.
— Eu gosto de chá — ele respondeu, e fitou o copo como se simplesmente tivesse conectado chá com o líquido em sua boca. — Só não estou mais acostumado.
Okay, eu sei que isso é realmente horrível, mas de fato abri a boca para perguntar se ele queria ração. Amelia tinha um saco de 9Lives no armário da varanda dos fundos. Mordi o interior de minha boca com força.
— Que tal um sanduíche? — perguntei. Eu não tinha idéia do que conversar com Bob. Ratos?
— Claro — disse. Ele parecia não saber o que queria fazer em seguida.
Então lhe preparei um sanduíche de manteiga de amendoim com geléia, e presunto e picles com pão integral e mostarda. Ele comeu ambos, mastigando muito lenta e cuidadosamente. Então ele disse: — Com licença — e levantou-se para procurar o banheiro. Ele fechou a porta e ficou lá por um longo tempo.
Amelia e Octavia entraram no momento em que Bob surgiu.
— Eu sinto muito mesmo — disse Amelia.
— Eu também — disse Octavia. Ela parecia menor e mais velha.
— Você sabia o tempo todo como transformá-lo? — tentei manter a voz neutra e não julgar. — Sua tentativa falha foi uma fraude?
Octavia assentiu.
— Fiquei com medo de que se não precisassem de mim, eu não poderia mais visitá-las. Teria que ficar o dia todo na casa de minha sobrinha. Aqui é bem melhor. Eu teria dito algo em breve, porque minha consciência estava incomodando terrivelmente, especialmente agora que estou vivendo aqui. — Ela sacudiu a cabeça grisalha de um lado para o outro. — Sou uma mulher má por deixar Bob como um gato por mais alguns dias.
Amelia estava chocada. Obviamente, a desgraça de sua mestra era um progresso incrível para Amelia, nitidamente ofuscando sua própria culpa a respeito do que fizera a Bob em primeiro lugar. Amelia definitivamente era o tipo de pessoa que vivia-o-momento.
Bob saiu do banheiro. Marchou em nossa direção.
— Quero voltar para o meu lugar em Nova Orleans — disse Bob. — Onde diabos nós estamos? Como eu cheguei aqui?
O rosto de Amelia perdeu toda a animação. Octavia parecia abatida. Deixei a sala em silêncio. Seria bem desagradável quando as duas mulheres contassem a Bob sobre o Katrina. Eu não queria estar por perto enquanto ele tentava processar aquelas terríveis notícias além de tudo mais que ele estivesse tentando manejar.
Imaginei onde Bob morou, se a casa ou apartamento dele ainda estava de pé, se seus pertences de algum modo se encontravam intactos. Se sua família estava viva. Ouvi a voz de Octavia aumentando e diminuindo, e então escutei um terrível silêncio.
NO DIA SEGUINTE, eu levei Bob ao Wal-Mart para comprar algumas roupas. Amelia enfiou um pouco de dinheiro na mão de Bob, e o rapaz aceitou porque não tinha escolha. Ele mal podia esperar para se afastar de Amelia. E eu não podia dizer que o culpava.
Enquanto dirigíamos para a cidade, Bob continuou piscando de modo aturdido. Quando entramos na loja, ele foi ao corredor mais próximo e esfregou a cabeça contra um canto. Dei um sorriso radiante para Marcia Albanese, uma bem-sucedida senhora que participava do conselho escolar. Eu não a via desde que oferecera o chá de panela para Halleigh.
— Quem é seu amigo? — Marcia perguntou. Ela naturalmente era tão sociável quanto curiosa. Não perguntou sobre o gesto de Bob, o que me fez gostar dela para sempre.
— Marcia, este é Bob Jessup, um visitante de fora da cidade — respondi, desejando ter preparado uma história. Bob assentiu para Marcia com olhos enormes e estendeu a mão. Pelo menos, ele não a cutucou com a cabeça e exigiu ter as orelhas coçadas. Marcia apertou-lhe a mão e disse que era um prazer conhecê-lo.
— Obrigado, é bom conhecê-la também — disse Bob. Oh, ótimo, ele parecia realmente normal.
— Vai ficar em Bon Temps por um longo período, Bob? — disse Marcia.
— Oh, Deus, não. — disse. — Com licença, tenho que comprar alguns sapatos. — E se afastou (muito silenciosa e sinuosamente) para o corredor de sapatos masculinos. Ele estava usando um par de chinelos de dedo que Amelia tinha doado, chinelos verde-brilhantes que não eram grandes o suficiente.
Marcia ficou claramente surpreendida, mas eu realmente não consegui pensar numa boa explicação.
— Te vejo mais tarde — falei, seguindo o despertar dele.
Bob pegou tênis, meias, dois pares de calças, duas camisetas e uma jaqueta, além de roupas íntimas. Perguntei a Bob o que ele gostaria de comer, e ele perguntou se eu podia fazer alguns croquetes de salmão.
— Claro que posso — respondi, aliviada por ele ter pedido algo tão fácil, e peguei as latas de salmão que precisava. Ele também quis pudim de chocolate, e isso era bem fácil também. Deixou o resto da escolha de cardápio para mim.
Jantamos cedo naquela noite, antes de eu sair para o trabalho, e Bob pareceu realmente satisfeito com os croquetes e o pudim. Ele parecia bem melhor também, depois que tomou banho e vestiu as roupas novas. Ele até estava falando com Amelia. Entendi pela conversa que ambos navegaram através das páginas da Internet por informações sobre o Katrina e seus sobreviventes, e ele entrou em contato com a Cruz Vermelha. A família com quem se criou, da tia, morou na Baía de Saint Louis, no sul do Mississippi, e todos sabíamos o que havia acontecido lá.
— O que você fará agora? — perguntei, já que imaginava que tinha um tempo para pensar a respeito agora.
— Tenho que ir ver — ele disse. — Quero tentar descobrir o que aconteceu com meu apartamento em Nova Orleans, mas minha família é mais importante. E tenho que pensar em algo para lhes dizer, para explicar onde estive e por que não entrei em contato.
Nós todos ficamos em silêncio, porque aquilo seria um problema.
— Você poderia lhes dizer que foi enfeitiçado por uma bruxa do mal — Amelia disse abatida.
Bob fungou. — Eles podem acreditar — disse. — Sabem que eu não sou uma pessoa normal. Mas não acho que seriam capazes de engolir que isso durou tanto tempo. Talvez eu diga que perdi a memória. Ou que fui para Vegas e me casei.
— Você os contatava regularmente antes do Katrina? — perguntei.
Ele deu de ombros. — A cada duas semanas — ele disse. — Eu não considero que éramos próximos. Mas definitivamente teria tentado depois do Katrina. Eu os amo. — Ele desviou o olhar por um minuto.
Consideramos as idéias por algum tempo, mas realmente não havia uma razão crível para ele ter ficado tanto tempo sem contato. Amelia disse que compraria uma passagem de ônibus até Hattiesburg para Bob, e ele tentaria encontrar uma carona de lá até a área mais afetada para que pudesse rastrear seu pessoal. Amelia estava limpando a consciência ao gastar dinheiro com Bob. Eu não tinha problema com isso. Ela devia fazer aquilo; e eu esperava que Bob encontrasse seu pessoal, ou pelo menos descobrisse o que aconteceu a eles, onde estavam vivendo agora.
Antes de sair para trabalhar, parei na porta da cozinha por um minuto ou dois, olhando para o trio. Tentava descobrir o que Amelia viu em Bob, o elemento que a atraiu tão poderosamente. Bob era magro e não particularmente alto, e os cabelos escuros caíam naturalmente simples sobre a cabeça. Amelia desenterrara seus óculos, que eram grossos e de armação preta. Eu vi cada centímetro de Bob, e percebi que a Mãe Natureza foi generosa com ele no departamento masculino, mas certamente não era suficiente para explicar as ardentes escapadas sexuais de Amelia com o sujeito.
Então Bob riu, pela primeira vez desde que se tornou humano novamente, e eu entendi. Bob possuía dentes brancos, retos, e lábios incríveis, e quando sorria, havia uma espécie de charme intelectual sardônico nele.
Mistério resolvido.
Quando eu chegasse em casa, ele teria partido, então me despedi de Bob achando que nunca o veria novamente, a não ser que ele decidisse voltar a Bon Temps para se vingar de Amelia.
Enquanto dirigia para a cidade, imaginei se poderíamos ter um gato de verdade. Afinal, tínhamos aquela caixa de areia e comida de gato. Eu perguntaria a Amelia e Octavia daqui a alguns dias. Isso com certeza lhes daria tempo para parar de ficarem tão ansiosas a respeito de Bob.
Alcide Herveaux estava sentado no bar conversando com Sam quando entrei no salão principal pronta para trabalhar. Estranho, ele aparecer de novo. Parei por um segundo, e então fiz meus pés se moverem. Consegui dar um aceno e chamei atenção de Holly para dizer que estava a substituindo. Ela levantou um dedo, indicando que estava cuidando da conta de um cliente, e então iria embora. Ganhei um olá de uma mulher e um como vai de outro homem, e me senti instantaneamente confortável. Aquele era meu lugar, meu lar longe do lar.
Jasper Voss quis outra Coca com rum, Catfish quis uma jarra de cerveja para ele, a esposa e outro casal, e um de nossos alcoólatras, Jane Bodehouse, ficou pronta para comer algo. Ela disse que não se importava com o tipo de comida, então me decidi por uma cesta de frango. Fazer Jane comer era um verdadeiro problema, e esperava que ela comesse metade da cesta. Jane se encontrava sentada do outro lado do balcão, diante de Alcide, e Sam virou a cabeça de lado para indicar que eu devia me juntar a eles. Providenciei o pedido de Jane, e então me aproximei relutantemente. Inclinei-me sobre o canto do balcão.
— Sookie — disse Alcide, assentindo para mim. — Vim para agradecer você e Sam.
— Que bom — respondi bruscamente.
Alcide assentiu, não encontrando meus olhos. Após um instante, o novo líder de matilha disse: — Agora ninguém vai ousar tentar uma invasão. Se Priscilla não tivesse nos atacado no momento que escolheu, com todos nós juntos e conscientes do perigo que encarávamos como grupo, ela podia ter nos dividido e eliminado até que matássemos uns aos outros.
— Então ela enlouqueceu e vocês tiveram sorte — eu disse.
— Nós nos reunimos por causa de seu talento — disse Alcide. — E você sempre será uma amiga da matilha. Assim como Sam. Peça-nos para fazer um serviço para você, a qualquer hora, qualquer lugar, e estaremos lá. — Ele acenou para Sam, colocou algum dinheiro no balcão e partiu.
— É bom ter um favor de reserva no banco, hein? — disse Sam.
Eu tive que sorrir. — Sim, é uma sensação boa.
Na verdade, eu me senti cheia de animação de repente. Quando olhei para a porta, descobri o motivo. Eric estava entrando, com Pam ao seu lado.
Eles se sentaram numa de minhas mesas, e eu me aproximei, cheia de curiosidade. E também irritação. Eles não podiam ficar afastados?
Ambos pediram TrueBlood e, depois que servi a cesta de frango para Jane Bodehouse e Sam aqueceu as garrafas, voltei para a mesa deles. A presença dos dois não teria causado nenhum problema se Arlene e seus amigos não estivessem no bar naquela noite.
Eles escarneceram de modo inconfundível enquanto eu colocava as garrafas diante de Eric e Pam, e mal consegui manter minha calma de garçonete enquanto perguntava aos dois se queriam copos.
— A garrafa serve — disse Eric. — Posso precisar dela para quebrar alguns crânios.
Se eu sentia o bom humor de Eric, Eric estava sentindo minha ansiedade.
— Não, não, não. — falei quase num sussurro. Sabia que eles podiam me ouvir. — Vamos ter paz. Tivemos guerra e mortes suficientes.
— Sim — Pam concordou. — Podemos poupar as mortes para mais tarde.
— Estou feliz por ver vocês dois, mas estou tendo uma noite movimentada — eu disse. — Vocês só estão perambulando por aí para ter novas idéias para o Fangtasia ou eu posso fazer algo?
— Nós podemos fazer algo por você — disse Pam. Ela sorriu para os dois sujeitos com camisetas da Irmandade do Sol e, já que estava meio zangada, suas presas estavam à mostra. Eu esperava que a visão os contivesse, mas como eles eram idiotas sem o mínimo de bom senso, isso inflamou o fervor. Pam bebeu o sangue e lambeu os lábios.
— Pam — falei entre dentes. — Pelo amor de Deus, pare de piorar as coisas.
Pam me deu um sorriso charmoso, simplesmente atingindo todos os botões.
Eric disse: — Pam — e imediatamente toda a provocação desapareceu, embora Pam parecesse um pouco desapontada. Mas ela se endireitou no banco, colocando as mãos no colo e cruzando as pernas na altura do tornozelo. Ninguém podia parecer mais inocente ou recatada.
— Obrigado — disse Eric. — Querida — essa é você, Sookie — você impressionou tanto Felipe de Castro que ele nos deu permissão para lhe oferecer nossa proteção formal. Esta é uma decisão tomada apenas pelo rei, compreenda, e é um contrato vinculado. Você prestou tal serviço que ele sentiu que esse era o único modo de retribuí-la.
— Então, isso é um negócio grande?
— Sim, minha amada, é bem grande. Isso significa que quando você nos pedir ajuda, somos obrigados a vir e arriscar nossas vidas pela sua. Não é uma promessa que vampiros fazem com muita freqüência, já que ficamos mais e mais ciumentos de nossas vidas quanto mais vivemos. Você acharia que é o contrário.
— De vez em quando aparece alguém que quer encontrar o sol após uma longa vida — disse Pam, como se quisesse esclarecer as coisas.
— Sim — disse Eric, franzindo o cenho. — De vez em quando. Mas ele está lhe oferecendo uma grande honra, Sookie.
— Realmente agradeço por vocês terem vindo trazer esta notícia, Eric, Pam.
— Obviamente, eu esperava que sua bela colega de quarto viesse — disse Pam. Ela me lançou um olhar malicioso. Então talvez sair com Amelia não tenha sido totalmente idéia de Eric.
Eu ri em voz alta. — Bem, ela tinha um bocado no que pensar esta noite — falei.
Eu estive pensando tanto na proteção vampira que não notei a aproximação do partidário baixinho da IdS. Agora ele passou me empurrando de modo a atingir meu ombro, deliberadamente me jogando para o lado. Eu cambaleei antes de conseguir recuperar o equilíbrio. Nem todos notaram, mas alguns dos clientes regulares sim. Sam tinha começado a sair do balcão e Eric já estava de pé quando me virei e bati com a bandeja na cabeça do imbecil com toda a força que pude reunir.
Ele mesmo cambaleou um pouco.
Aqueles que notaram a provocação começaram a aplaudir. — Bom para você, Sookie — exclamou Catfish. — Ei, cabeça oca, deixe a garçonete em paz.
Arlene estava vermelha e zangada, e quase explodiu ali mesmo. Sam aproximou-se e murmurou algo no ouvido dela. Ela ficou ainda mais vermelha e fuzilou-o, mas manteve a boca fechada. O sujeito mais alto da IdS veio ajudar o companheiro e ambos deixaram o bar. Nenhum deles falou (eu não tinha certeza se Baixinho podia falar), mas praticamente tinham “Vocês ainda não viram nada” tatuados em suas testas.
Percebi como a proteção dos vampiros e minha posição de amiga da matilha podia ser útil.
Eric e Pam terminaram suas bebidas e permaneceram sentados por tempo suficiente para provar que não estavam fugindo porque não se sentiam bem-vindos, e não estavam partindo atrás dos fãs da Irmandade. Eric deu uma gorjeta de vinte dólares e me jogou um beijo ao sair pela porta — assim como Pam — fazendo com que eu recebesse um olhar extraespecial de raiva de minha ex-amiga-para-sempre Arlene.
Trabalhei duro pelo resto da noite para pensar em qualquer das coisas interessantes que aconteceram naquele dia. Depois que os clientes se foram, até Jane Bodehouse (seu filho veio buscá-la), colocamos os enfeites de Halloween. Sam tinha uma pequena abóbora para cada mesa e pintara um rosto em cada uma. Fiquei totalmente admirada, porque os rostos eram realmente bem feitos, e alguns deles pareciam clientes do bar. Na verdade, um se parecia muito com meu querido irmão.
— Eu não tinha idéia de que você podia fazer isso — falei, e ele pareceu satisfeito.
— Foi divertido — ele disse, pendurando um longo cordão de folhas de outono — claro, elas na verdade eram feitas de tecido — sobre o espelho do bar e entre algumas garrafas. Prendi um esqueleto de papelão em tamanho natural com pequenos parafusos nas juntas para que pudessem ser movidos. Arrumei-o para que parecesse estar claramente dançando. Não podíamos ter nenhum esqueleto deprimido no bar. Tínhamos que ter os felizes.
Até Arlene relaxou um pouco porque aquilo era algo diferente e divertido de fazer, embora tivéssemos que ficar até um pouco mais tarde.
Eu estava pronta para ir para casa e minha cama quando disse boa noite a Sam e Arlene. Arlene não respondeu, mas tampouco lançou o olhar de desgosto que normalmente me dava.
Naturalmente, meu dia não tinha acabado.
Meu bisavô encontrava-se sentado na varanda da frente quando cheguei. Era muito estranho vê-lo no balanço da varanda, sob a combinação estranha de escuridão e luz que a lâmpada de segurança e o horário noturno criavam. Desejei por um momento ser tão bela quanto ele, e então tive que sorrir para mim mesma.
Estacionei o carro na frente e saí. Tentei subir os degraus em silêncio para não acordar Amelia, cujo quarto ficava na parte da frente. A casa estava escura, então eu tinha certeza que elas estavam na cama, a não ser que tenham se atrasado na rodoviária quando levaram Bob.
— Bisavô — eu disse. — Fico feliz em vê-lo.
— Você está cansada, Sookie.
— Bem, eu acabei de sair do trabalho. — Me perguntei se ele mesmo ficava cansado. Não conseguia imaginar um príncipe fada rachando lenha ou tentando encontrar um vazamento no encanamento.
— Eu queria vê-la — disse. — Você pensou em algo que eu possa fazer por você? — Ele soou bem esperançoso.
Que noite para as pessoas me darem apoio positivo. Por que eu não tinha mais noites como essa?
Pensei por um minuto. Os Lobis fizeram as pazes, ao seu próprio modo. Quinn foi encontrado. Os vampiros se estabeleceram num novo regime. Os fanáticos da Irmandade deixaram o bar com o mínimo de problema. Bob era humano de novo. Supunha que Niall não ia querer oferecer um quarto para Octavia em sua própria casa, onde quer que fosse. Pelo que eu sabia, ele possuía uma casa no rio ou sob um carvalho vivo em algum lugar nas profundezas da floresta.
— Há algo que eu quero — falei, surpresa por não ter pensado nisso antes.
— O que é? — ele perguntou, parecendo bem satisfeito.
— Quero saber o paradeiro de um homem chamado Remy Savoy. Ele pode ter deixado Nova Orleans durante o Katrina. Pode ter uma criancinha com ele. — Dei o último endereço conhecido de Savoy ao meu bisavô.
Niall pareceu confiante.
— Eu o encontrarei para você, Sookie.
— Com certeza eu apreciaria.
— Só isso? Nada mais?
— Eu tenho que dizer... parece um bocado rude... mas não consigo evitar imaginar por que você quer tanto fazer algo por mim.
— Por que não iria querer? Você é minha única descendente viva.
— Mas você pareceu contente sem mim durante os primeiros vinte e sete anos de minha vida.
— Meu filho não deixaria que eu me aproximasse de você.
— Você me contou isso, mas não compreendo. Por quê? Ele não apareceu para me deixar saber que se importava comigo. Ele nunca se mostrou pessoalmente ou... — Jogou Palavras Cruzadas comigo, me mandou um presente de formatura, alugou uma limusine para que eu fosse ao baile, comprou um belo vestido, me acolheu nos braços nas várias ocasiões em que chorei (crescer não é fácil para uma telepata). Ele não me salvou de ser molestada por meu tio-avô, ou resgatou meus pais, um deles o próprio filho, quando se afogaram numa enchente súbita, ou impediu um vampiro de colocar fogo em minha casa enquanto eu dormia lá dentro. Toda a proteção e vigilância que meu pretenso avô Fintan alegou terem acontecido não foi saldado de qualquer forma tangível para mim; e se foi intangível, eu não sabia.
Coisas ainda piores teriam acontecido? Difícil imaginar.
Supunha que meu avô teria combatido hordas de demônios escravocratas do lado de fora da janela de meu quarto todas as noites, mas eu não podia me sentir grata se não sabia a respeito.
Niall pareceu aborrecido, uma expressão que nunca vi em seu rosto antes.
— Existem coisas que não posso lhe contar — disse finalmente. — Quando puder falar a respeito, eu o farei.
— Está bem — respondi secamente. — Mas isso não é exatamente a troca que eu desejaria ter com meu bisavô, tenho que dizer. Isso sou eu contando tudo e você não me contando nada.
— Isso pode não ser o que você desejou, mas é o que posso lhe oferecer — disse Niall com alguma rigidez. — Eu te amo, e esperava que isso fosse o que importava.
— Fico feliz por ouvi-lo dizer que me ama — falei lentamente, porque não queria me arriscar vê-lo se afastar de uma Exigente Sookie. — Mas agir como tal seria ainda melhor.
— Eu não ajo como se a amasse?
— Você some e reaparece quando lhe é conveniente. Todas as suas ofertas de ajuda não são do tipo práticas, como as coisas que a maioria dos avôs — ou bisavôs — faz. Eles consertam o carro das netas com as próprias mãos, ou oferecem ajuda com aulas particulares da escola, ou cortam a grama para que ela não tenha que fazer isso. Ou a levam para caçar. Você não fará isso.
— Não. — ele disse. — Não vou. — Uma sombra de sorriso cruzou seu rosto. — Você não ia querer caçar comigo.
Okay, eu não pensaria muito a respeito disso.
— Então, eu não tenho qualquer idéia de como devemos ficar juntos. Você está além de meu ponto de referência.
— Eu compreendo — ele disse seriamente. — Todos os bisavôs que você conhece são humanos, e eu não sou. Você não é o que eu esperava, tampouco.
— Sim, eu entendi. — Eu já conheci algum outro bisavô? Entre amigos de minha idade, mesmo avôs não eram algo garantido, muito menos bisavôs. Mas aqueles que conheci eram todos cem por cento humanos. — Espero não ter sido um desapontamento — falei.
— Não. — ele disse lentamente. — Uma surpresa. Não desapontamento. Sou ruim em prever suas ações e reações tanto quanto você é ao prever as minhas. Teremos que trabalhar nisso devagar.
Me descobri imaginando novamente por que ele não estava tão interessado em Jason, cujo nome ativava uma dor profunda em mim. Algum dia, em breve, eu teria que falar com meu irmão, mas não conseguia encarar a idéia agora. Quase pedi a Niall para verificar Jason, mas então mudei de idéia e fiquei quieta. Niall olhou para meu rosto.
— Você não quer me dizer algo, Sookie. Eu me preocupo quando faz isso. Mas meu amor é sincero e profundo, e encontrarei Remy Savoy para você. — Ele beijou minha bochecha. — Você cheira como minha descendente — disse aprovador.
E desapareceu.
Então outra misteriosa conversa com meu misterioso bisavô foi concluída por ele em seus próprios termos. De novo. Suspirei, catei minhas chaves na bolsa e destranquei a porta da frente. A casa estava silenciosa e escura, e atravessei a sala de estar até o corredor com o mínimo ruído possível. Acendi a lâmpada de cabeceira do meu quarto e executei minha rotina noturna, cortinas cerradas contra o sol da manhã que tentaria me acordar dali a poucas horas.
Eu fui uma cadela ingrata com meu bisavô? Quando recapitulei o que falei, imaginei se pareci exigente ou choramingas. Numa interpretação mais otimista, achei ter soado uma mulher determinada, o tipo de pessoa com quem não se deve mexer, o tipo de mulher que fala o que pensa.
Liguei o aquecedor antes de ir para a cama. Octavia e Amelia não reclamaram, mas as últimas manhãs definitivamente estavam frias. O cheiro de mofo que sempre vem quando o aquecedor é usado pela primeira vez encheu o ar, e eu franzi o nariz enquanto me aconchegava sob o lençol e o cobertor. O ruído abafado embalou meu sono.
Ouvi vozes durante algum tempo antes de perceber que elas estavam do lado de fora da minha porta. Pisquei, vi que era dia, e fechei os olhos novamente. De volta ao sono. As vozes continuaram, e pude notar que discutiam. Abri um olho para espiar o relógio digital na cabeceira da cama. Eram nove e trinta. Nossa.
Já que as vozes não se calaram ou foram embora, eu relutantemente abri os olhos de vez, absorvi o fato de que o dia não estava brilhante e sentei, empurrando os cobertores. Fui até a janela à esquerda da cama e olhei para fora. Cinzento e chuvoso. Enquanto estava ali, gotas começaram a atingir o vidro; seria aquele tipo de dia.
Fui ao banheiro e ouvi as vozes do lado de fora silenciarem agora que eu estava claramente de pé e me mexendo. Abri a porta para descobrir minhas duas companheiras paradas do lado de fora, o que não foi uma grande surpresa.
— Nós não sabíamos se devíamos acordá-la — disse Octavia. Ela parecia ansiosa.
— Mas achei que devíamos, porque uma mensagem de uma fonte mágica claramente é importante — disse Amelia. Ela parecia ter dito aquilo várias vezes nos últimos minutos, pela expressão no rosto de Octavia.
— Que mensagem? — perguntei, decidindo ignorar a parte da discussão naquela conversa.
— Esta — disse Octavia, me entregando um enorme envelope camurça. Era feito de papel pesado, como um super elegante convite de casamento. Meu nome estava escrito do lado de fora. Sem endereço, apenas o nome. Além disso, estava selado com cera. O carimbo na cera era a cabeça de um unicórnio.
— Está bem — falei. Aquela seria uma carta incomum.
Fui até a cozinha para pegar um copo de café e uma faca, nessa ordem, com as duas bruxas me seguindo como um coro grego. Após me servir de café e puxar uma cadeira para sentar à mesa, deslizei a faca sob o selo e soltei-o gentilmente. Abri a dobra e tirei um cartão. Havia um endereço escrito à mão no papel: Bienville 1245, Red Ditch, Louisiana. Era tudo.
— O que significa? — disse Octavia. Ela e Amelia naturalmente se encontravam atrás de mim para poderem ter uma boa visão.
— É a localização de alguém que eu estive procurando — respondi, o que não era exatamente verdade, mas perto o suficiente.
— Onde fica Red Ditch? — disse Octavia. — Nunca ouvi falar.
Amelia já estava tirando o mapa da Louisiana de uma gaveta debaixo do telefone. Ela procurou pela cidade, percorrendo a coluna de nomes com o dedo.
— Não fica muito longe — ela disse. — Viu? — Ela colocou o dedo sob um minúsculo ponto, cerca de uma hora e meia de viagem à sudeste de Bon Temps.
Tomei meu café o mais rápido possível e me enfiei num jeans. Passei um pouco de maquiagem, escovei o cabelo e segui para a porta da frente até meu carro, mapa na mão.
Octavia e Amelia me seguiram, morrendo de vontade de saber o que estava acontecendo e que significado a mensagem teve para mim. Mas elas simplesmente teriam que imaginar, pelo menos por enquanto. Imaginei por que eu estava com tal pressa para fazer isso. Não era como se ele fosse desaparecer, a menos que Remy Savoy também fosse uma fada. Achei aquilo altamente improvável.
Eu tinha que voltar para o turno da noite, mas tinha um bocado de tempo.
Dirigi com o rádio ligado, e esta manhã eu estava numa disposição country-sertaneja. Travis Tritt e Carrie Underwood me acompanharam, e no momento em que cheguei a Red Ditch, eu estava sentindo minhas raízes. Red Ditch era ainda menor do que Bon Temps, e isso dizia algo.
Imaginei que seria fácil encontrar a Rua Bienville, e estava certa. Era o tipo de rua que se encontrava em qualquer lugar da América. As casas eram pequenas, arrumadas, apertadas, com espaço para um carro na garagem e um pequeno quintal. No caso da 1245, o quintal era cercado e pude ver um alegre cãozinho preto correndo ao redor. Não havia uma casinha de cachorro, então a porta possuía uma entrada para animais. Tudo era arrumado, mas não obsessivamente. Os arbustos ao redor da casa eram podados e o quintal varrido. Passei pela frente umas duas vezes, e então imaginei o que faria. Como descobriria o que queria saber?
Havia uma caminhonete estacionada na garagem, então Savoy provavelmente estava em casa. Respirei fundo, estacionei do outro lado da rua diante da casa e tentei enviar minha habilidade extra para caçar. Mas numa vizinhança cheia de pensamentos de pessoas vivas nas casas, era difícil. Achei ter captado duas assinaturas cerebrais da casa que estava observando, mas era difícil ter absoluta certeza.
— Dane-se — eu disse, saindo do carro. Enfiei minhas chaves no bolso da jaqueta e caminhei pela calçada até a porta da frente. Bati.
— Espere, filho — disse uma voz masculina lá dentro, e ouvi uma voz infantil dizer: — Papai, eu! Eu atendo!
— Não, Hunter — disse o homem, e a porta se abriu. Ele olhou para mim através da porta telada. Ele a destrancou e abriu quando viu que eu era uma mulher. — Oi — disse. — Posso ajudá-la?
Olhei para a criança que se agitou atrás dele para me fitar. Ele tinha talvez uns quatro anos de idade. Possuía cabelos e olhos escuros. Era a imagem vívida de Hadley. Então olhei para o homem de novo. Algo em seu rosto havia mudado durante meu silêncio prolongado.
— Quem é você? — ele disse num tom de voz completamente diferente.
— Sou Sookie Stackhouse — respondi. Não conseguia pensar em nenhuma maneira hábil de fazer aquilo. — Sou prima de Hadley. Acabei de descobrir onde vocês estavam.
— Você não tem quaisquer direitos sobre ele — disse o homem, mantendo um domínio firme da voz.
— É claro que não. — falei surpresa. — Quero apenas conhecê-lo. Eu não tenho muitos familiares.
Houve outra pausa significativa. Ele estava avaliando minhas palavras e comportamento, e decidindo se bateria a porta ou me deixaria entrar.
— Papai, ela é bonita — disse o menino, e aquilo pareceu inclinar a balança ao meu favor.
— Entre — disse o ex-marido de Hadley.
Olhei ao redor da pequena sala de estar, que possuía um sofá e poltrona, televisão e um armário cheio de DVDs e livros infantis, além de brinquedos espalhados.
— Eu trabalho aos sábados, então tenho folga hoje — ele disse, no caso de eu imaginar se era desempregado. — Oh, sou Remy Savoy. Acho que sabe disso.
Eu assenti.
— Este é Hunter — disse, e a criança ficou tímida. Ele se escondeu entre as pernas do pai e me espiou através delas. — Sente-se, por favor — Remy acrescentou.
Empurrei um jornal para um canto do sofá e sentei, tentando não encarar o homem ou a criança. Minha prima Hadley foi impressionante, e se casou com um homem de boa aparência. Era difícil destacar o que deixava aquela impressão. O nariz dele era grande, o maxilar levemente pronunciado e os olhos um pouco espaçados. Mas a soma total disso era um homem que a maioria das mulheres olharia duas vezes. Os cabelos eram de um tom médio entre loiro e castanho, grosso e em camadas, as pontas cobrindo o colarinho. Ele estava usando uma camisa de flanela desabotoada sobre uma camiseta Hanes branca. Jeans. Sem sapatos. Uma covinha no queixo.
Hunter usava calças de veludo cotelê e blusa de moletom com um grande FOOTBALL estampado. As roupas eram novas, ao contrário dos trajes do pai.
Terminei de examiná-los antes que Remy acabasse de olhar para mim. Ele não achou que eu tivesse qualquer traço de Hadley em meu rosto. Meu corpo era mais cheio, a cor mais clara e eu não era tão severa. Ele achou que eu parecia não ter muito dinheiro. Considerou-me bonita, como seu filho achou. Mas não confiava em mim.
— Quanto tempo faz que não ouve falar dela? — perguntei.
— Não ouço falar de Hadley desde alguns meses depois de ele nascer — disse Remy. Ele se acostumara àquilo, mas também havia tristeza em seus pensamentos.
Hunter se encontrava sentado no chão, brincando com alguns carrinhos. Ele carregou alguns blocos de montar na carroceria de um caminhão de carga, que parou atrás de um carrinho dos bombeiros bem devagar, guiado pelas mãozinhas de Hunter. Para o espanto do bonequinho sentado na cabine de bombeiro, o caminhão derrubou toda sua carga sobre ele. Hunter se divertiu muito com isso e disse: — Papai, olha!
— Eu vi, filho. — Remy me observava atentamente. — Por que está aqui? — perguntou, decidindo ir direto ao ponto.
— Acabei de descobrir que podia existir um bebê, algumas semanas atrás — falei. — Não havia razão para procurá-lo até ouvir falar a respeito.
— Eu nunca conheci a família dela — ele disse. — Como soube que se casou? Ela lhe contou? — Então, relutantemente, disse: — Ela está bem?
— Não. — respondi em voz bem baixa. Eu não queria que Hunter ficasse interessado. O garoto estava carregando todos os bloquinhos de volta no caminhão de carga. — Ela morreu pouco antes do Katrina.
Pude ouvir o choque detonar como uma pequena bomba na cabeça dele. — Ela já era uma vampira, eu ouvi — disse incerto, a voz vacilando. — Esse tipo de morte?
— Não. Quero dizer realmente final.
— O que aconteceu?
— Ela foi atacada por outro vampiro — respondi. — Ele tinha ciúmes do relacionamento de Hadley com sua, hã, sua...
— Namorada? — Não havia como confundir a amargura na voz e na cabeça do ex-marido.
— Sim.
— Foi um choque — ele disse, mas aquilo já havia passado em sua cabeça. Havia apenas uma triste resignação, a perda de orgulho.
— Eu não sabia a respeito de nada disso até depois de ela falecer.
— Você é prima dela? Lembro de ela me contar que tinha dois... você tem um irmão, certo?
— Sim — falei.
— Você sabia que ela esteve casada comigo?
— Descobri quando limpei o cofre dela no banco algumas semanas atrás. Eu não sabia que havia um filho. Peço desculpas por isso. — Eu não estava certa do por que estava me desculpando ou como poderia ter sabido, mas estava arrependida por jamais ter considerado o fato de que Hadley e o marido podiam ter tido um filho. Hadley foi um pouco mais velha do que eu, e achei que Remy provavelmente tivesse trinta anos ou por aí.
— Você parece bem. — ele disse subitamente, e eu corei, entendendo imediatamente.
— Hadley lhe contou que eu tinha uma incapacidade. — Desviei o olhar dele e fitei o garoto que ficou de pé, anunciando que tinha que ir ao banheiro e correndo da sala. Não consegui evitar um sorriso.
— Sim, ela disse algo... Disse que você teve dificuldades na época da escola — ele disse discreto.
Hadley lhe contara que eu era louca de pedra. Ele não estava vendo sinais disso, e imaginou por que Hadley pensou assim. Mas olhou na direção onde o menino sumiu, e eu sabia que estava pensando que tinha de ser cuidadoso já que Hunter estava na casa, ficar alerta para quaisquer sinais dessa instabilidade — embora Hadley nunca tenha especificado que tipo de loucura eu tinha.
— É verdade. — respondi. — Passei dificuldades. Hadley não foi de grande ajuda. Mas a mãe dela, minha tia Linda, foi uma ótima mulher antes de o câncer afetá-la. Ela realmente foi gentil comigo, sempre. E tivemos alguns bons momentos de vez em quando.
— Eu posso dizer o mesmo. Tivemos alguns bons momentos — disse Remy. Seus antebraços prendiam os joelhos, e as mãos grandes maltratadas e com cicatrizes pendiam soltas. Ele era um homem que sabia o que era trabalho pesado.
Houve um som na porta da frente e uma mulher entrou sem se incomodar em bater. — Oi, amor — ela disse, sorrindo para Remy. Quando ela me notou, o sorriso vacilou e desapareceu.
— Kristen, esta é uma parente de minha ex-mulher — disse Remy, e não havia qualquer pressa ou desculpa em sua voz.
Kristen tinha longos cabelos castanhos, grandes olhos da mesma cor, e talvez uns vinte e cinco anos. Estava usando calças cáqui e camisa pólo com um logotipo no peito, um pato sorridente. A legenda acima do pato dizia, “Jerry’s Gr{fica”.
— Prazer em conhecê-la — disse Kristen insincera. — Sou Kristen Duchesne, namorada de Remy.
— Prazer em conhecê-la — respondi, mais honesta. — Sookie Stackhouse.
— Você não ofereceu uma bebida a essa mulher, Remy! Sookie, posso lhe servir uma Coca-cola ou uma Sprite?
Ela sabia o que havia na geladeira. Imaginei se ela morava ali. Bom, não era da minha conta, contanto que ela fosse boa para o filho de Hadley.
— Não, obrigada — respondi. — Tenho que ir embora daqui a pouco. — Fingi, dando uma olhada em meu relógio. — Tenho que trabalhar esta noite.
— Oh, onde você trabalha? — perguntou Kristen. Ela estava um pouco mais relaxada.
— Merlotte’s. É um bar em Bon Temps — respondi. — Cerca de cento e vinte oito quilômetros daqui.
— Claro, foi de onde sua esposa veio — disse Kristen, fitando Remy.
Remy disse: — Sookie veio com algumas notícias, eu receio. — As mãos dele se entrelaçaram, embora a voz fosse firme. — Hadley está morta.
Kristen inspirou agudamente, mas teve que manter o comentário para si porque Hunter voltou correndo para a sala.
— Papai, eu lavei as mãos! — gritou, e o pai sorriu para ele.
— Bom para você, filho — ele respondeu, despenteando o cabelo escuro do menino. — Diga olá para Kristen.
— Oi, Kristen — disse Hunter sem muito interesse.
Eu fiquei de pé. Desejava ter um cartão de visitas para deixar. Isso parecia estranho e errado, simplesmente ir embora. Mas a presença de Kristen era estranhamente inibidora. Ela pegou Hunter e segurou-o no colo. Ele era um bocado pesado, mas ela insistiu em fazer parecer algo fácil e habitual, embora não fosse. Mas gostava do garoto; eu podia ver na cabeça dela.
— Kristen gosta de mim — disse Hunter, e olhei para ele agudamente.
— Claro que gosto — disse Kristen, rindo.
Remy olhava de Hunter para mim com uma expressão inquieta, uma expressão que estava começando a ficar preocupada. Imaginei como explicar nosso relacionamento a Hunter. Eu estava bem perto de ser sua tia, como consideramos por aqui. Crianças não ligam para primas em segundo grau.
— Tia Sookie — disse Hunter, experimentando as palavras. — Eu tenho uma tia?
Respirei fundo. Sim, você tem, Hunter, pensei.
— Eu nunca tive uma antes.
— Você tem uma agora — falei e encarei Remy nos olhos. Eles estavam assustados. Ele ainda não admitira para si mesmo, mas sabia.
Havia algo que eu precisava lhe dizer, apesar da presença de Kristen. Podia sentir a confusão dela e a sensação de que algo estava acontecendo sem seu conhecimento. Mas eu não tinha espaço em minha agenda para me preocupar com Kristen também. Hunter era a pessoa importante.
— Você vai precisar de mim — falei a Remy. — Quando ele ficar um pouco mais velho, você vai precisar conversar. Meu número está na lista, e não irei a lugar nenhum. Você entendeu?
Kristen disse: — O que está acontecendo? Por que estamos sendo tão sérios?
— Não se preocupe, Kris — disse Remy gentilmente. — Apenas assuntos de família.
Kristen soltou um irrequieto Hunter no chão.
— A-hã — ela disse, no tom de alguém que sabe muito bem que está sendo enganada.
— Stackhouse — lembrei Remy. — Não adie até ser tarde demais, quando ele já estiver miserável.
— Eu entendo — respondeu. Ele mesmo parecia miserável, e eu não o culpei.
— Tenho que ir — falei novamente, para acalmar Kristen.
— Tia Sookie, você está indo embora? — Hunter perguntou. Ele ainda não estava pronto para me abraçar, mas pensou a respeito. Ele gostou de mim. — Você vai voltar?
— Uma hora dessas, Hunter — respondi. — Talvez seu pai o leve para me visitar algum dia.
Apertei a mão de Kristen e Remy, o que ambos acharam estranho, e abri a porta. Quando pisei nos degraus, Hunter disse silenciosamente, Tchau, tia Sookie.
Tchau, Hunter, respondi.
Charleine Harris
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