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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FUGA PARA AMAR / Barbara Cartland
FUGA PARA AMAR / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FUGA PARA AMAR

 

Estive em Marrocos em 1988. Fica numa região linda e tem a mais variada paisagem da África do Norte, com seus platôs, planícies e montanhas. O povo, tanto o nômade quanto o estabelecido, é de origem bérbere.

            Foi em 1830 que os franceses decidiram conquistar a Algéria. O líder local, após ter se nomeado governador da Algéria Ocidental, sentindo-se pressionado pelos franceses, buscou asilo em Marrocos.

            O sultão enviou tropas em seu auxílio, mas estas foram vencidas um ano mais tarde.

            Em 1844 a Inglaterra detinha o maior poder na região, tanto no comércio quanto na influência sobre os marroquinos.

            Preocupada que o litoral sul do Estreito de Gibraltar se visse controlado por outra potência européia, a Inglaterra resolveu apoiar a independência de Marrocos.

            Em 1901, o sultão assumiu o governo. Estava cheio de boas intenções.

            Gostava do convívio com europeus e demonstrava boa vontade em seguir-lhes os conselhos. Em suma, era um governante decidido a modernizar seu país, mas não sabia como.

            Seus seguidores, tanto europeus quanto marroquinos, encorajavam-lhe o gosto por brinquedos caros. Os cortesãos, inclusive, tomavam parte em estranhas corridas de bicicleta nos jardins do palácio.

            Quando ele quis introduzir uma forma moderna de imposto territorial, enfrentou muitos problemas burocráticos, devido à falta de administradores treinados e preparados para a difícil tarefa de coleta.

            Somente em 1956, Marrocos se tornou independente.

 

              

            Aflita, Alba consultou o horizonte pela milésima vez. Embora o veículo seguisse com rapidez, tinha a impressão de que levava séculos para percorrer alguns quilômetros.

            — Temos de virar à esquerda — disse para o cocheiro.

            — Já sei, senhorita, fique descansada. Conheço bem o caminho.

            — Sim, desculpe. É que estou um pouco atrasada, e isso me põe nervosa. Preciso apanhar aquele vapor que sai todos os dias e percorre a costa, sabe qual é?

            — Se for uma barca grande, com duas chaminés, sei. Acontece que ela sai muito cedo. Acho que não vamos conseguir, mas prometo tentar.

            Dizendo isso, o rapaz estalou o chicote mais uma vez.

            Era jovem, robusto e afeito a lidar com cavalos. O pai de Alba o havia contratado sem acreditar muito em sua eficiência, mas ao fim de alguns meses constatara, agradavelmente surpreendido, que o novo empregado era o melhor cocheiro que já tivera.

            Alba madrugara aquele dia, a fim de conseguir escapar de casa antes que o pai descesse para o café da manhã, e tivera a sorte de encontrar Bobby sozinho. Se Jones, o velho cocheiro, estivesse ali junto, decerto faria perguntas embaraçosas e talvez até se recusasse a levá-la ao porto.

            Alba suspirou e recostou-se no assento macio. Até o momento, tudo correra bem. Rezava agora para que o milagre se prolongasse um pouquinho mais, a fim de que pudesse fugir da cidade antes que dessem por sua falta.

            Fechou os olhos, relembrando o terrível dia anterior, quando seu pequeno mundo se desmoronara de repente.

            O pai, coronel Storton, havia ido almoçar com lorde Hillborough, homem rico e pouco atraente, dono de uma capacidade inacreditável de falar durante horas sobre os assuntos mais aborrecidos, o que era feito num tom monocórdio, quase sem gesticulação alguma. Enfim, era o soporífero mais infalível que ela conhecia. Em bailes e reuniões, Alba fazia o possível para evitá-lo, mas nem sempre isso era possível. Por vezes, para seu desgosto, via-se obrigada a dançar com ele. Nesses momentos, mantinha-se calada, o corpo tão afastado do dele quanto lhe permitia a etiqueta.

            Naquela manhã, depois do café, o coronel lhe dissera, como quem queria nada:

            — Há tanto tempo não vejo você com aquele vestido rosa, minha querida. Por que não o veste hoje?

            Alba tinha muitos vestidos cor-de-rosa, mas sabia muito bem a qual deles o pai se referia. De fato, era soberbo, entremeado de fitas e rendas delicadas.

            — Mas, papai! É um desperdício usá-lo aqui em casa, só para nós dois.

            A pobre Shirley passa horas engomando a saia e enfiando as fitas. Vamos ter algum convidado especial hoje à noite?

            — Não, nenhum programado, mas isso não quer dizer nada. Bem sabe que gosto de convidar amigos sem avisar antes. Seja como for, é um capricho de seu velho pai — arrematara ele, dando-lhe um beliscão na bochecha corada. — Não quer me atender?

            — Claro que sim, papai. Se fizer questão.

            A conversa ficara nisso, porém mais tarde ela soube o que o pai queria.

            Bem que tivera o desagradável pressentimento de que o pai convidaria lorde Hillborough para jantar.

            Desde que esse irritante senhor havia se tornado vizinho deles, o coronel como que rejuvenescera. Antes nem olhava para os moradores do belíssimo castelo ao lado, mas, de repente, tomara-se de súbito interesse pelo novo proprietário. Convidara-o para jantar diversas vezes, mostrara-lhe sua biblioteca, ficara conversando com ele até tarde da noite e acompanhara-o até a porta para se despedir, coisa que raramente fazia. Costumava dizer que Hillborough havia sido uma ótima aquisição para a região.

            Alba não conseguia imaginar a razão desse súbito entusiasmo, uma vez que na sua opinião o homem era feioso, aborrecido e pouco interessante.

            Quando abria a boca, então, era entediante. Adorava falar de si mesmo e do título que herdara do avô, sem contar a mania de descrever o castelo da família, o haras com mais de cinquenta cavalos de raça, o canil com outro tanto de cães de caça.

            — Esse homem vai trazer nome ao nosso condado — repetia o coronel, sempre que avistava o novo vizinho.

            E lá vinham os cumprimentos, um tirando a cartola para o outro.

            Na primeira vez em que o coronel fora visitá-lo, como mandava a boa etiqueta, voltara encantado da casa vizinha.

            — Nosso homem não só é rico — dissera, animado. — O castelo é maior e mais bonito do que eu imaginava. E ele ainda pretende reformá-lo por completo. Já contratou os melhores arquitetos de Londres, que virão especialmente para isso. Até um hipódromo ele tem intenção de construir, você acredita? Diz que as corridas deste condado ficarão famosas no país inteiro, e eu não duvido de nada, com a quantidade de dinheiro que está investindo nessa pista. E que cavalos ele tem! Magníficos!

            — Fico contente com isso — replicara Alba, só para agradar o pai.

            — Pena é que esse homem viva tão sozinho. Com aquele castelo maravilhoso, cheio de antiguidades e preciosidades, é bem o caso de achar uma boa mulher e assentar família, não acha?

            — Com certeza — assentira ela, distraída.

            Na época, não dera muita atenção a essa conversa, e agora se arrependia disso.

            Quando o coronel o convidara para jantar, mandara descer a antiga baixela de prata e abrira vinhos das melhores safras. E, milagre dos milagres, interessara-se pelo que seria servido, tendo pedido a Alba que cuidasse pessoalmente dos arranjos florais.

            Ao final da noite, logo depois que o ilustre convidado se fora, pouco faltara para ele ralhar com a filha.

            — Você não foi nada simpática com lorde Hillborough, Alba. Poderia ter conversado mais, sorrido mais. Afinal, ele é nosso vizinho.

            — Eu conversei o quanto aguentei, papai. Esse homem é cansativo.

            Deus, como se gaba do que tem! Quando começou a descrever os cavalos maravilhosos que cria no haras, juro que precisei me conter para não bocejar.

            Parece até que nós nunca tivemos cavalos de raça na vida! Ora, ele praticamente nos deu uma aula sobre o assunto, e logo para quem? Para mim, que cuido de meus potros desde pequenininha. Vai me desculpar, papai, mas acho lorde Hillborough um arrogante, com aquele nariz empinado e aquele monóculo enjoado, sempre examinando tudo com ar de superioridade.

            — Não seja implacável assim nos seus julgamentos, filha. Afinal, ele é novo na região. E é muita sorte nossa tê-lo como vizinho. Da próxima vez, seja menos crítica e agrade mais.

            — Isso é uma ordem?

            — Encare como quiser.

            Naquele momento, e pela primeira vez, Alba desconfiara de alguma coisa. Numa voz hesitante, perguntara:

            — Por que esse interesse repentino em lorde Hillborough, papai?

            Afinal de contas, ele não significa nada… para nós, pelo menos.

            Fizera-se um silêncio carregado na biblioteca, enquanto o coronel enchia o cachimbo.

            — Sempre fui um pai extremoso, Alba — dissera ele, por fim, parecendo escolher as palavras com cuidado. — Tenho prazer em vê-la bonita, bem-vestida, culta e educada do jeito de que sua mãe gostaria. Por isso mesmo, estou pensando em seu futuro e na pessoa com quem deverá se casar.

            Alba prendera a respiração e deixara-se desabar sobre o sofá, emudecida.

            Lembrou-se da noite de seu primeiro baile, o baile de debutantes pelo qual tanto esperara. O coronel, comovido, beijara-a na testa.

            — Tenho muito orgulho de minha linda filhinha. E sei que você fará um casamento tão proveitoso quanto importante.

            Alba rira muito.

            — Está indo depressa demais, papai! Devagar, por favor. Mal acabo de sair da escola e meu pai já fala em casamento! Fique sabendo que não tenho nenhuma intenção de me casar tão cedo. Quero primeiro conhecer o mundo, viajar, ler e pintar. Depois… depois pode ser.

            O pai se limitara a sorrir, e ela esquecera a conversa. Agora sabia que a ideia nunca deixara a mente do velho coronel. Um marido rico e importante para a filha, era o que mais desejava. E, de preferência, portador de algum título de nobreza, que trouxesse fama à família Storton.

            Certo dia, a mãe comentara com ela:

            — Seu pai tem uma amargura grande na vida, que é o fato de não ter sido nomeado comandante de um regimento maior. Com isso, ele receberia um título.

            — Mas quem é que precisa de título? — ela protestara, pondo as mãos na cintura. — Eu não faço questão alguma.

            —: Seu pai faz.

            — A rainha dá título a quem se torna herói da pátria, por uma razão ou por outra. Muitas vezes, o título é recebido postumamente, pela família enlutada. De minha parte, prefiro um pai vivo e inteiro. Além do mais, ele trabalhou com honestidade a vida inteira, e se a rainha não lhe deu nenhum título, Deus lá de cima já o condecorou mais de cem vezes. Tenho certeza disso, mamãe.

            — Eu também, querida, mas parece que para seu pai isso não é suficiente. É um homem ambicioso, e eu morreria feliz se ele obtivesse o que tanto quer.

            Alba inclinara-se e beijara a mãe.

            — Ele tem você, minha mãezinha. Nenhum outro homem é tão sortudo assim.

            — Obrigada, Alba — sorrira a mãe, acariciando-lhe os cabelos dourados. — Mas, mesmo assim, acho que seu pai merece ter tudo o que quer, do mesmo modo como acho que você também merece.

            Olhando para trás, Alba pensava com ternura no modo como a mãe preparara o belíssimo baile em que fora apresentada à sociedade, como era de costume. Lembrava-se do vestido branco, uma nuvem fofa e brilhante, das flores, dos castiçais, das pratarias, das iguarias servidas, dos músicos escolhidos entre os mais afamados de Londres. Enfim, fora uma festa inesquecível, em que ela se tornara o centro das atenções da sociedade londrina.

            Parecia mesmo que a doce e meiga sra. Storton tinha adivinhado que essa seria sua última tarefa na vida. Uma doença súbita e estranha atacara-a de modo fulminante, levando-a para Deus em poucos meses.

            O coronel quase foi junto, tamanha sua tristeza. Alba se desdobrava em atenções, fazendo o possível e o impossível para amenizar a dor do pai.

            Assumiu com coragem as tarefas da casa, esforçando-se para imitar a mãe nos menores detalhes, a fim de que o coronel não lhe sentisse tanto a falta.

            Juntos haviam conseguido superar o tremendo impasse, e a vida começara a entrar nos eixos, numa rotina agradável de convidados, dias de caça, pesca, competições de arco e flecha, partidas de críquete nos jardins da casa e, vez ou outra, bailes em homenagem a algum convidado mais importante. Tudo transcorria bem.

            Até a chegada do importuno vizinho, que se instalara sem a menor cerimônia na vida do coronel Storton. Amigos, festas e comemorações foram postos de lado. O coronel, deslumbrado com a possibilidade de, finalmente, ter um título de nobreza na família, só tinha olhos para lorde Hillborough.

            Alba, para não se indispor com o pai, tratava o intruso com polidez, mas detestara-o desde o primeiro instante em que o vira.

            Era não só arrogante, mas pretensioso. Andava e agia como se fosse o dono do mundo e tratava a todos com condescendência superior, além de estar sempre pronto a dar lições sobre qualquer assunto que fosse levantado numa conversa. Muitas vezes, Alba teve a impressão de que ele inventava, só para não admitir que não entendia da matéria em discussão. A bomba, por fim, explodira na véspera.

            — Lorde Hillborough não pode vir jantar hoje — anunciara o pai, medindo a filha de alto a baixo, com um sorriso de aprovação. — Vejo que pôs o vestido rosa. Está linda, filha.

            — Ah, papai, que bom que ele não vem. Queria tanto ficar sozinha com você! Além do mais, não gosto de lorde Hillborough.

            — Vamos com calma, Alba. Ele não virá hoje, mas amanhã almoçará conosco. Depois do café, quero que você o leve para visitar nosso jardim.

            Como sabe, as rosas estão lindas, e acho que elas serão a moldura mais romântica possível para vocês.

            Ela recuou um passo, o coração batendo forte.

            — Que bobagem é essa, papai? Não quero saber de romantismo, e muito menos com lorde Hillborough.

            A expressão zangada do pai fez com que recuasse ainda mais, levando a mão ao coração. Deus, o que podia fazer para convencê-lo de que não podia ser feliz ao lado de um homem detestável como aquele emproado?

            Esperou, o coração batucando furiosamente.

            Mas o coronel nada disse. Limitou-se a girar nos calcanhares e deixar a sala.

            Alba correu para o quarto, onde se trancou, tremendo.

            — Antes morrer a me casar com esse homem — disse, a meia voz, os punhos erguidos.

            Voltou-se para a pequena estatueta de biscuit  que a mãe lhe dera, um anjo de asas abertas e mãos espalmadas para frente, como que oferecendo proteção. Sempre rezava para seu anjo da guarda, e acreditava com firmeza que ele a guiaria para os caminhos da felicidade um dia.

            — Ajude-me, amiguinho — pediu, as mãos postas. — Converse com mamãe aí em cima, dê algum sinal para mim mas, por favor, me poupe deste encontro.

            Sabia que o coronel acolheria de braços abertos a possibilidade de ser sogro de lorde Hillborough, e isso a deixava desesperada. Porque ele, como pai e tutor, tinha o direito legal de forçar a filha a se casar com quem escolhesse. Nada neste mundo o demoveria, disso tinha certeza.

            Argumentaria que seria para o próprio bem da filha. Quisesse ela ou não, teria de se casar com lorde Hillborough.

            O coronel era alguém que podia se tornar muito agressivo quando contrariado: mais de uma vez Alba tivera oportunidade de verificar sua força dominadora, principalmente quando no comando do regimento.

            A mãe, sempre meiga e conciliadora, era quem protegia todos da fúria do sr. Storton. Lembrava-se de tê-la ouvido argumentar em favor de um ou outro oficial que se atrevera a discutir ordens do severo coronel. Quase sempre ela acabava levando a melhor, mas só depois de muita conversa e paciência.

            — Não sei como ele consegue — dissera-lhe a mãe, certa vez —, mas a verdade é que, de uma forma ou de outra, seu pai sempre acaba obtendo o que quer. Sinto muita pena de quem ousa contestar alguma ideia ou ordem dele.

            Nessa noite, rolando insone na cama imensa, Alba se perguntou se a mãe, lá de cima, sentia pena dela também, pois desafiara abertamente o pai.

            Sim, porque não havia alternativa aceitável. Tinha engulhos só de pensar nas carícias de lorde Hillborough ou no que seria sua vida com ele.

            Até que a morte os separasse. Não, mil vezes não.

            Já passava da meia-noite quando, exausta, teve uma ideia salvadora.

            Fugiria de casa!

            Não sabia para onde ainda, mas esse problema era o menor de todos.

            Dispunha de muitas amigas que a acolheriam de braços abertos, caso lhes pedisse ajuda. Aliás, cansara de recusar convites insistentes para ir morar com esta ou aquela amiga pois o dever filial impunha-lhe a obrigação de permanecer ao lado do pai. Mas agora a situação mudara por completo. Se era seu dever legal obedecer à vontade do coronel, tinha também o dever moral de fugir daquela situação insustentável. Jamais poderia se casar com quem não amasse, e essa decisão já havia sido tomada por ela desde a adolescência. O melhor, pois, seria fugir para bem longe, e antes que lorde Hillborough a pedisse em casamento.

            — Quer se casar comigo, Alba?

            “Não, não e não!” pensava, em silêncio. Mas o coronel Storton não a ouviria, mesmo que gritasse a plenos pulmões. Queria o título de lorde Hillborough na família e a solução para isso era simples: casar a filha com ele.

            Ao mesmo tempo, as duas enormes propriedades se uniriam numa só, tornando-se a mais rica da região, talvez de toda a Inglaterra. Bem, a fuga estava assentada e decidida. Faltava-lhe decidir o lugar.

            Depois de muito pensar, Alba chegara à conclusão de que a situação era mais difícil do que lhe parecera de início. Amigos e parentes iriam recebê-

            la com carinho, disso não havia dúvida. Mas e quanto a manter sigilo?

            Ninguém, tinha certeza, se disporia a não contar nada ao coronel Storton, mesmo porque correria o risco de enfrentar sua fúria redobrada quando a história se tornasse pública.

            Desse modo, aquilo que em princípio lhe parecia um problema menor, acabou sendo o mais complicado deles.

            Havia sua amiga Ellen. Essa poderia guardar segredo, mas por pouco tempo. O primeiro lugar em que o coronel iria procurá-la seria, precisamente, na casa de Ellen, sua amiga desde a tenra infância. E os pais dela decerto contariam tudo. Mesmo que não contassem, ficariam numa posição muito delicada, pois seriam obrigados a mentir. E logo para quem!

            Não, essa hipótese estava descartada, em definitivo.

            Então… então para onde ir?

            Havia também as tias Janet e Rose, duas solteironas. Eram dois doces, bem mais velhas que sua mãe, sempre tagarelas e despachadas. Mas elas seriam as primeiras a aconselhá-la a seguir a vontade do pai.

            — Seu pai conhece a vida e quer o melhor para você, querida —

            costumavam dizer, sempre que ouviam uma queixa da menina.

            Alba podia até adivinhar o que alegariam.

            — Você está jogando pela janela uma oportunidade e tanto, a de se tornar uma verdadeira lady, Alba! Já pensou que beleza? Lady Alba Hillborough. E não se preocupe, o amor virá com o tempo.

            Esse, com pequenas variantes, seria o conselho das duas. O que entendiam elas de amor, afinal? De mais a mais, adoravam o coronel e faziam tudo o que ele queria.

            — Preciso fugir, preciso me esconder — repetia baixinho.

            Sentou-se de chofre na cama e acendeu a lamparina. Não conseguia dormir nem achar a melhor solução. Que fazer? Apanhou a fotografia da mãe, que sorria para ela ao lado do anjo de biscuit.  Era uma peça tão linda quanto valiosa, delicadamente pintada sobre jaspe polido, emoldurada por uma trama de ouro e brilhantes. De vez em quando, Alba usava-a como camafeu.

            — Ajude-me, mãezinha querida! — exclamou, com todo o fervor. —

            Sei que você não concordaria com papai e daria um jeito de me livrar desse compromisso. Não quero me casar com um homem que não amo. Por favor, mamãe!

            Nesse momento, lembrou-se de uma de suas colegas de classe, a francesinha Yvette. Ao se despedirem no último dia de aula, ambas se abraçaram com ternura, e Alba prometera à amiga que iria visitá-la na França assim que possível.

            — Isso, vá mesmo — dissera Yvette, carinhosa. — E eu vou pedir a meus pais licença para vir visitar você e sua família aqui na Inglaterra de vez em quando.

            Entre beijos e abraços, trocaram endereços e promessas de se escreverem regularmente.

            Essas promessas nunca foram cumpridas, mas Alba guardava uma lembrança agradável da alegre Yvette.

            — É isso! — quase gritou, erguendo-se rapidamente. — Vou morar algum tempo com Yvette.

            O coronel nem se lembrava da existência dessa amiguinha distante, o que já era um grande passo. Mesmo assim, Alba sabia que não devia subestimar o poder do pai, a possibilidade de ele achar uma pista não era pequena. Caso isso acontecesse, paciência: seguiria caminho para outro canto do mundo, e assim por diante. Iria até o fim da China, até o coração da África, até um convento no Tibete, se preciso fosse. Qualquer coisa, menos se casar à força com lorde Hillborough.

            Muito excitada para conciliar o sono, preparou uma pequena valise, onde colocou, bem dobradinhos, os melhores costumes que possuía. Depois vestiu-se, tomando o cuidado de escolher trajes mais pesados, que não caberiam na valise. Apesar de não estar muito frio, pôs um casaco de lã com gola e punho de peles, combinando com o chapeuzinho. Com esse conjunto, mais os vestidos que escolhera, estaria preparada para enfrentar qualquer clima, inclusive o inverno da França.

            França!

            Adorava esse país de sol, de amizade, de mar e luz. Que mistérios e novidades a esperavam por lá?

            Quando terminou os preparativos, o dia se preparava, de mansinho, para vir beijar a noite. Certificando-se de que tinha apanhado o dinheiro da gaveta, Alba fechou a bolsa, pegou a valise e desceu na pontinha dos pés.

            Com o coração batendo, esperou alguns segundos, alerta, a respiração suspensa. A casa dormia.

            Movendo-se com toda a cautela, ganhou a cozinha, abriu a porta e saiu no imenso pátio. Correu os olhos em volta, sentindo-os marejados de repente.

            Lã estava, esquecido num canto, o cavalinho de madeira que o coronel lhe havia dado quando completara três anos, e que agora fazia as delícias de Marianne, filha da arrumadeira. Lá estava o grande carvalho, em cujo oco gostava de se esconder e brincar de casinha.

            Tempos felizes, que não mais voltariam. Que seria dela, longe dos entes queridos, longe da casa e da pátria?

            “Bom, dona Alba, se você começa desde já a se lamentar, então é melhor ficar por aqui mesmo e casar-se com lorde Hillborough. É isso o que quer?”

Não precisou lembrar-se de mais nada. Enxugou a lágrima teimosa e rumou para a estrebaria, onde esperava encontrar Bobby, com um pouco de sorte. Só ele, de preferência.

            Encontrou-o debruçado sobre a mesa, limando e polindo uma infinidade de arreios.

            — Bom dia, Bobby.

            A expressão concentrada do garoto cedeu lugar a um largo sorriso.

            — Bom dia, srta. Alba! — Bobby poderia ser bonito, não fosse a falta dos dois dentes da frente. — Quer montar Raio de Luz agora?

            — Não, hoje não. Quero que me leve até o porto, e depressinha. Não atrele a carruagem, porque vai demorar muito. Vamos de aranha, que é muito mais rápida.

            O rapaz não protestou, embora se mostrasse admirado com a decisão.

            A aranha era um veículo leve, puxado por um cavalo só, mas oferecia pouca comodidade, sendo utilizado mais em competições e corridas. Mas enfim, a srta. Alba era a filha do patrão.

            — Muito bem, senhorita — respondeu, saltando do banco em que trabalhava. Vou arrear Pandemônio neste instante.

            — Não, deixe que eu faço isso. Você vai buscar a aranha. Depressa, Bobby.

            Minutos depois, Alba trazia Pandemônio pela mão. Era um animal forte, de pelo lustroso e trote rápido.

            Enquanto observava Bobby trabalhando, Alba rememorou o plano.

            Iria até o porto e tomaria o vapor de passageiros que a levaria pela costa até Dover. De lá, escolheria um navio para a França. Não muito grande e luxuoso, porque o coronel poderia procurá-la num deles.

            Alba sabia da existência do vapor que a levaria até Dover porque a velha ama, Nana, costumava tomá-lo para visitar a família. Certa vez, Alba fora buscar Nana no porto e vira a grande embarcação, antiga e barulhenta.

            — Quanta gente! — exclamara, assustada com a agitação do vaivém na barcaça.

            — É o povo que vai visitar a família, Albinha — respondera Nana, beijando-a. — Algumas pessoas não voltam mais, mas outras vêm depressa para rever a queridinha, como eu. Que saudade da minha menina!

            — Nana, eu também quero viajar com você da próxima vez. Posso?

            A babá rira com gosto.

            — Não, bobinha, não nesse barco velho e feio. Você vai viajar, sim, mas num navio enorme, todo branco, com três chaminés que apitam rouco,

 assim. — Nana levou a mão à boca e imitou o som. — E sabe para onde? Para a França, para a Itália, para onde você quiser.

            — Papai me disse que eu vou para a França um dia, quando for grande. E você vai comigo, Nana.

            A babá apertara-a entre os braços e nada respondera.

            Pobre Nana, tão meiga, tão dedicada. Morrera não fazia muito tempo, deixando um mundo de recordações ternas.

            Alba, de fato, fora à França num daqueles navios que ela descrevera.

            Estivera em Paris, onde debutara pela segunda vez com outras amigas, incluindo Yvette.

            Tinha sido uma época feliz e despreocupada, em que não pensava em nada além de se divertir e aproveitar as férias. Seu francês melhorara consideravelmente, a ponto de todos ficarem pasmos com o sotaque. Mesmo os parisienses não percebiam que ela era inglesa, no máximo, julgavam-na bretã. Isso a deixava orgulhosa, é claro, e provocava a inveja das colegas de classe, que mal conseguiam pronunciar oui  com correção.

            Que dias gostosos, aqueles que passara em França.

            E agora seu pai tencionava casá-la com um homem detestável.

            Sim, iria para Paris, em busca de Yvette e dos dias de sol e luz. Ficaria escondida na casa dela por quanto tempo fosse preciso, até que o pai mudasse de ideia. Ou até que lorde Hillborough se casasse com outra.

            Qual seria a reação do coronel quando descesse para o café da manhã e não encontrasse a filha, como de costume, sentada ao lado da janela à sua espera? Decerto ficaria furioso.

            E um pouco preocupado, talvez.

            Mas não muito, pelo menos no começo. Julgaria que ela, zangada com a história de almoçar com lorde Hillborough, tinha ido para a casa de uma amiga em Londres.

            Depois, sofreria com o sumiço da filha. Mas era um sofrimento necessário, pois sem isso o coronel não se dobraria.

            E depois?

            Alba não se atrevia a ir mais adiante no futuro. Só esperava que a mãe e todos os anjos do céu a ajudassem a enfrentar os dias que tinha pela frente, que adivinhava difíceis e cheios de espinhos.

            Todas essas lembranças haviam se atropelado em sua mente enquanto a aranha trotava pela estrada.

            — Srta. Alba — chamou Bobby. — Estamos chegando.

            Ela abriu os olhos e viu o mar diante de si. Calmo, cinzento, o sol emergindo como bola de fogo na linha do horizonte e espalhando estilhaços de ouro sobre a água.

            No porto, estivadores iam e vinham em lufa-lufa, carregando pesados fardos, barris de vinho, toneis de especiarias.

            — Ali, é aquele vapor ali, Bobby! — exclamou, apontando para a direita.

            Mas não pôde dizer mais nada. Com um grito abafado, notou que a barcaça se afastava devagar da margem.

            — Não! Não pode ser! Não pode ser! — repetia-se baixinho, em desespero.

            Bobby voltou-se consternado para ela.

            — Calma, srta. Alba, calma. Amanhã sai outro, nós poderemos voltar para cá. A senhorita se levanta um pouco mais cedo, assim terá bastante tempo.

            Alba sorriu com amargura. Mal sabia ele que ficara em vigília a noite toda, à espera do momento de embarcar, para agora ter essa decepção.

            — Nós viemos o mais depressa que pudemos — continuou Bobby, aflito para se justificar. — Pandemônio é  rápido. O problema foi a estrada.

            Faz dias que não chove, e a poeira atrapalhou muito.

            Alba assentiu em silêncio, a mente trabalhando febrilmente. Se voltasse com Bobby, o coronel seria bem capaz de armar uma cena, pois ela saíra sem avisar ninguém. Mesmo que não desconfiasse das intenções da filha, seus gritos fariam as paredes tremer.

            E, o que era pior, estaria perto da hora do almoço. Do temido almoço, em que seria oferecida numa bandeja de prata, como noiva de lorde Hillborough.

            Alba gostava do pai, mas não tinha ilusões. Sabia que ele a enredaria de tal forma que não haveria escapatória possível daquele odioso casamento.

            Quanto mais se negasse a obedecê-lo, mais irredutível ele se mostraria. E, tendo a lei do seu lado, não hesitaria em forçá-la a obedecer.

            Bobby aguardava em respeitoso silêncio, o chicote pousado no colo.

            Alba olhou para ele, hesitante. De repente, decidiu-se.

            Não voltaria. Talvez encontrasse outro navio que a levasse para longe dali. Em último caso, acharia um lugar onde se esconder até o dia seguinte, quando pegaria a próxima barca. “Hei de encontrar um jeito, seja qual for”, pensou.

            — Bobby, eu vou descer aqui.

            O rapaz saltou agilmente da aranha e correu para o lado dela, estendendo-lhe a mão.

            — Quer que eu a ajude em alguma coisa?

            — Não, obrigada. Você vai para casa. Mas antes prometa que não dirá a ninguém onde estou.

            Bobby olhou-a, em atitude solene.

            — Juro pela Bíblia, senhorita.

            — Volte logo, antes que estranhem sua ausência. Diga que resolveu sair com Pandemônio porque ele estava muito inquieto na estrebaria. O que é verdade, não é mesmo?

            — Se é! Esse cavalo parece que tem bicho carpinteiro no corpo. Nunca vi nome tão bem escolhido.

            Alba riu, apesar da aflição.

            — Obrigada, porque fui eu que o escolhi. Então, meu amiguinho, posso contar com sua discrição?

            Bobby encantou-se com o tratamento, e seu sorriso se alargou.

            — Claro que pode! Sei cumprir um trato, srta. Alba.

            — Ótimo. Adeus, então, e até uma próxima vez.

            — Espero vê-la logo, senhorita. Pretende viajar?

            — Não sei ainda. Nada está decidido.

            Ele entregou-lhe a valise e a bolsa em silêncio.

            — É bom mesmo que eu não saiba. Assim não terei o que contar.

            — Bobby!

            — Desculpe, foi uma brincadeira. De qualquer maneira, desejo-lhe muito boa sorte. A senhorita merece.

            Alba agradeceu, comovida. De alguma forma compreendeu que Bobby percebera que ela pretendia fugir de casa, e procurava confortá-la, à sua maneira rude de camponês.

            Ficou de pé, acenando, um nó travando-lhe a garganta. Aquela aranha representava o último elo com a família, e rapidamente se transformava num pontinho preto, engolido pela poeira.

            Depois correu os olhos ao longo do cais. Só via barcos de pesca, além de um enorme cargueiro. Por alguns momentos, viu-se tentada a buscar a sorte nesse cargueiro, mas ele se achava cheio de trabalhadores. Não havia como passar despercebida ali.

            De mala na mão, caminhou devagar, a cabeça baixa. O jeito era esperar pelo dia seguinte, mas onde passaria a noite? Teria que procurar uma pensão, uma taverna, até mesmo um bar. A perspectiva era pouco atraente, além de perigosa.

Continuou a caminhar, prestando atenção nos letreiros. Viu um armazém, uma leiteria, uma loja de artigos de pesca. Deus, onde estavam as pensões? Os hotéis baratos, típicos da área?

            De repente, estacou. Escondido atrás do cargueiro viu um iate magnífico, o mastro altivo parecendo querer furar o céu. Alba já vira muitos iates, mas nenhum tão grande e majestoso como aquele.

            Devia pertencer a alguém de muito dinheiro, a julgar pela pintura nova e pelos metais reluzentes. A elegante embarcação boiava tranquila, solitária, senhora das águas.

            Foi então que lhe veio uma ideia que mudaria sua vida por completo.

            Era um plano simples, embora ousado: esconder-se a bordo do iate e tomar cuidado para não ser descoberta antes que estivessem em alto-mar, bem longe do pai e da Inglaterra. Depois pediria para descer num porto qualquer, o mais próximo possível da França.

            — A decisão está tomada — disse, em voz alta, para afastar o medo que seu coração teimava em sentir. — Agora é só sonhar com Paris e com Yvette.

            Olhou em volta, estudando a situação. Era cedo, e embora o cargueiro estivesse fervilhando de gente, aquela ponta do cais encontrava-se mergulhada em calma. O silêncio só era quebrado por um ou outro grito vindo dos carregadores, ou pelo titilar estridente das gaivotas em busca de comida.

            O iate continuava boiando, impassível e solitário. Se alguém estivesse a bordo, decerto ainda dormia.

            Movendo-se com rapidez, Alba se aproximou da rampa de subida e ocultou-se atrás de um tabique, o coração batendo. Olhou para todos os lados, alerta, receando que alguém surgisse e lhe perguntasse o que desejava.

            Que responderia então?

            — Hã, bom dia. Eu queria me esconder no seu iate por algumas horas, se não se importa.

            Não, não daria certo. Precisava encontrar um modo de não ser vista antes da hora.

            Respirou fundo e ajeitou melhor a alça da valise na mão. Só então percebeu que tinha as palmas úmidas, assim como a testa.

            — Medrosa! — ralhou-se, em voz baixa. — Afinal, você é uma Storton.

            Assim dizendo, deu a volta no tabique e correu para a rampa. Subiu-a de um fôlego só, sem olhar mais para os lados. Se houvesse de ser apanhada, paciência. E de seu coração subia uma prece desesperada:

            — Mamãe, meu anjo da guarda e todos os santos do céu, ajudem-me!

            Parou ofegante no alto da rampa, os nervos à flor da pele, alerta ao menor ruído.

            Mas somente o silêncio a recebeu, um silêncio quase assustador. Os motores do iate dormiam, tanto quanto os marinheiros, parecendo reunir forças para mais tarde enfrentar outro dia de trabalho.

            Muito devagar, Alba caminhou pelo convés. Já frequentara outros iates, e por isso não teve dificuldade em achar o caminho das cabines. Mas, para sua tristeza e frustração, as portas de todas achavam-se trancadas.

            Tentou uma por uma, à medida que sentia o coração cada vez mais pesado.

            Tanto trabalho tivera para chegar até ali, e agora essas benditas portas se recusavam a recebê-la.

            Uma delas, porém, cedeu à pressão no trinco. Era a da cabine principal, a que ficava no fim do longo corredor. Alba tinha experiência bastante para saber que se tratava do quarto do comandante, ou de algum convidado muito especial.

            Hesitou alguns segundos. Essa era a cabine menos indicada para se esconder, mas o que podia fazer? Não havia escolha.

            Abriu a porta devagar, e espiou. Sob a luz fraca da manhã nascente, pôde ver a cama desfeita e vazia. Quem quer que ocupasse a cabine havia acordado e saído dali. Talvez houvesse descido para apreciar o movimento do porto.

            Ela mesma havia feito isso algumas vezes, junto com as amigas.

            Quietinha, quase sem respirar, Alba entrou na cabine e fechou a porta.

            Sabia que devia haver um banheiro ali, como costumava acontecer em iates luxuosos. Pois bem, trataria de se esconder nele. Quem se lembraria de examiná-lo antes que o iate zarpasse?

            Procurou com a vista e logo localizou uma porta estreita. Resoluta, caminhou até lá e abriu-a.

            Ao entrar viu uma toalha no chão, e isso a tranquilizou em parte. A pessoa devia ter tomado banho naquela madrugada, e decerto não se daria ao trabalho de tomar outro tão cedo.

            Suspirou e deixou-se cair sentada na beira da banheira. Tudo corria bem, mas seu coração estava precisando de um descanso.

            Inspecionou o luxuoso aposento devagar, maravilhada com os espelhos e mármores que a rodeavam. Fosse quem fosse o proprietário, era obviamente alguém de extremo bom gosto.

            Agora, era esperar até o iate zarpar, mas isso poderia levar horas.

E se não zarpasse hoje?

            A esse pensamento, Alba esfriou.

            Não, isso não aconteceria. Tinha de manter o espírito confiante, tinha de acreditar no melhor.

            De mais a mais, um iate daquele tamanho só estaria em um porto tão pequeno para se abastecer.

            Assim ia se consolando, buscando forças na sua fraqueza.

            Por enquanto, tudo corria bem. Restava-lhe torcer para que o dono da cabine só aparecesse mais tarde, quando o iate estivesse bem distanciado da costa.

            Distraída, olhou pela pequena vigia aberta e pôde ver o cais. Este achava-se ainda quase vazio, mas já começava a dar sinais de vida. Um cachorro se pôs a latir para um marinheiro, que se abaixou para lhe fazer festa. Mais adiante, uma mulher saiu na soleira de casa e principiou a bater um tapete.

            Súbito, a chegada de dois homens a cavalo chamou-lhe a atenção. A distância era grande, mas os olhos experientes de Alba identificaram sem dificuldade um homem de posses, acompanhado de seu valete. Esse homem… seria ele o dono do iate?

            Forçou a vista, curiosa, mas não conseguiu ver-lhe as feições.

            Afastou-se da vigia, sentindo o sangue correr mais depressa nas veias.

            Se fosse ele, então… então… não sabia o que pensar.

            Talvez tivesse a sorte de encontrar um homem bondoso o suficiente para deixá-la ficar no iate por algum tempo. Talvez não a forçasse a desembarcar na mesma hora.

            Arriscou mais uma espiadela. O homem desmontou, entregou as rédeas para o acompanhante e dirigiu-se para a rampa do iate. Deus meu, era o dono.

            Como que em resposta, os motores puseram-se a trabalhar com um ronco macio. O ruído ressoava sob seus pés, trazendo-lhe uma mensagem de esperança renovada. Ao que tudo indicava, o iate começaria a se afastar da margem tão logo aquele homem subisse a bordo. Até ele se resolver a descer e vir à cabine, já estariam bem distantes do porto.

            Alba sentiu vontade de dançar. Vencera a primeira etapa, a mais difícil.

            “Consegui, consegui!”, cantava seu coração. “Por favor, meu anjo da guarda, continue a me ajudar assim. Não deixe que papai me encontre!” O ronco dos motores cresceu, e Alba viu o homem subir a rampa. Em seguida, o iate começou a se mover, e ela se sentou na beira da banheira, respirando fundo. A sorte parecia estar do seu lado.

            Como imaginava, o iate era veloz. Em pouco tempo a costa virou uma massa cinzenta no horizonte, e ela se perguntou quando reveria a Inglaterra, sua pátria querida.

            Um dia voltaria, e vitoriosa. Com a ajuda da mãe e do anjo da guarda, sentia-se capaz de conquistar o mundo.

            Por mais assustador que lhe parecesse o futuro, Alba agora tinha certeza de que podia contar com ambos, e isso aquecia seu coração. Assim como lograra escapar de um destino terrível, conseguiria achar o caminho da felicidade e do amor verdadeiro. Essa era sua esperança mais cara e secreta: encontrar o amor.

            Mas não se iludia, devia se preparar para enfrentar momentos penosos. Em silêncio, prometeu para si mesma que nunca se arrependeria do passo que havia dado. Nunca, mesmo que se visse perdida e desamparada naquele mundo hostil que a esperava.

            A primeira providência, agora, era tentar chegar à França. Se o dono do iate a deixasse em qualquer porto, não seria difícil encontrar um navio que atravessasse o canal.

            Tudo dependia do destino do iate. Aonde iria?

            Ainda bem que trouxera dinheiro. Com ele, poderia ir para onde quisesse. E mesmo que fosse forçada a desembarcar, percebia agora que seu medo diminuíra bastante.

            Até que o pai a encontrasse de novo, teria tempo suficiente para deixar de vez a Inglaterra.

            “Sim, estou indo bem”, convenceu-se, pela milésima vez. E, pela milésima vez, sentiu aquele friozinho aborrecido na espinha.

            Queria ser forte e corajosa, mas não conseguia deixar de pensar nos perigos de um futuro totalmente incerto. Nem mesmo sabia por onde começar, uma vez na França.

            — Bem, o jeito é rezar para que o homem não se aborreça quando me encontrar aqui — disse, em voz alta. — Nem me atire vigia afora, ou me sirva de jantar aos tubarões.

            Tentava ser espirituosa para afastar a ansiedade, mas não conseguia. A dorzinha na boca do estômago continuava lá, renitente.

            “Como será ele?”, perguntou-se de novo. Muito velho não podia ser, pois tinha os cabelos escuros. Talvez um pacato chefe de família, desses bem compreensivos.

E se fosse frio e calculista?

            Alba tapou os ouvidos, para não ouvir mais seus pensamentos.

            — Chega! — quase gritou. — Pare de especular assim, senão você fica maluca. Meu anjo e mamãe estão do meu lado, e isso me basta.

            Para se distrair, tentou pensar em outra coisa. A imagem do pai veio-lhe à mente. Céus, como ele ficaria bravo quando sentisse sua falta! Aliás, era bem capaz de isso já ter acontecido.

            Que Bobby mantivesse a palavra, era o que ela mais queria agora. Se o garoto abrisse a boca, seu plano poderia ruir.

            Riu alto. Estava ficando meio maluca, conversando e ralhando consigo mesma. O que devia fazer era analisar com frieza a situação. Bobby não sabia onde ela estava. Mesmo que contasse onde a havia deixado, o coronel decerto concluiria que a filha havia partido para Londres. Esse era seu maior trunfo, ele nem se lembraria de Yvette, a coleguinha francesa.

            Com isso, Alba ganharia preciosos dias. O suficiente para poder se esconder e…

            Parou, o pensamento ficando suspenso no ar.

            Alguém acabava de entrar na cabine.

            Alba prendeu a respiração, o coração em polvorosa. Ouviu o som pesado de botas, primeiro no assoalho, depois no tapete.

            “Meu Deus, ainda não. Ainda não é hora de ele vir ao banheiro, por favor. Só mais um pouquinho.”

            Ansiosa, consultou a vigia. O iate agora seguia com rapidez, logo estariam bem longe da costa. Para onde iriam?

            “Seja aonde for, com toda essa velocidade chegaremos bem depressa.

            Quem sabe até o iate faça escala em outro porto aqui perto. Se for assim, é capaz de eu conseguir escapulir antes mesmo que ele me descubra.” Voltou a prestar atenção nos sons da cabine, mas só escutou o silêncio.

            “Ele é um homem bom e compreensivo. Vai me levar até a França, porque vai sentir pena de mim.”

            Abanou a cabeça, quase com raiva. Isso não era hora de ficar arquitetando hipóteses fantasiosas. Era preciso ser realista e achar sozinha o caminho de Paris.

            “Aconteça o que acontecer, papai não pode saber onde estou. Tenho de..,”

            Não pôde terminar o pensamento. Alguém acabava de abrir a porta, trazendo consigo uma lufada de vento.

           

            — Posso saber quem é a senhora e o que faz aqui?

            Alba tremia, os joelhos mal podendo com seu peso, um batendo contra o outro com tanta força que quase era possível ouvi-los. Ainda bem que estava de saia!

            Erguendo a cabeça, cruzou as mãos devagar, tentando ganhar tempo para se acalmar.

            “É agora que ele me atira pela vigia”, pensou, apavorada. Mas não podia se deixar trair. Esconderia o nervosismo e manteria o sangue frio.

            Calma e dignidade eram o único .trunfo que lhe restava no momento.

            — Queira me desculpar, meu senhor — disse, enquanto se admirava com o tom surpreendentemente calmo de sua voz. Estava indo bem. — O fato é que eu queria fugir de casa, e este foi o único barco que encontrei onde me esconder. Eu… eu não tive coragem de esperar até amanhã, como deveria.

            Peço… peço desculpas mais uma vez.

            O discurso terminou com um fiozinho de voz. A coragem de Alba começava a titubear, e a última frase foi dita quase num sussurro.

            Para sua imensa surpresa, o homem riu. Uma risada forte, descontraída, que reverberou pelas paredes de azulejo.

            — Ora, sim senhores! Aí está uma historinha bem esquisita, não acha?

            O mais divertido é  que, ao mesmo tempo, ela me soa bastante familiar.

            Façamos o seguinte: vamos até a cabine, onde podemos conversar com mais conforto. Afinal, banheiros não foram feitos para travar conhecimento, concorda?

            Ainda rindo, ele abriu a porta e esperou que ela saísse primeiro.

            Antes de obedecer, Alba olhou de relance pela vigia. O iate se movia com rapidez, e já devia estar longe da costa, pelo menos, longe o suficiente para não dar meia volta. Isso a reconfortava.

            Em todo o caso, faria o possível para retardar sua expulsão do iate, e a melhor maneira seria entreter o homem com uma boa conversa. Era ele mesmo, sem dúvida, o que ela tinha visto pela vigia minutos antes. E tudo indicava que era o dono do iate. Que Deus a ajudasse.

            — Vamos lá — disse ele, oferecendo-lhe uma cadeira. — Conte sua história para mim. Confesso que estou curioso, porque a última coisa que esperava era encontrar uma passageira clandestina dentro de meu próprio banheiro. E bonita, devo acrescentar.

            Ele acompanhou as palavras com uma risada sonora, tão alegre que pareceu iluminar a cabine.

            Apesar de ainda estar assustada, o bom humor do homem contagiou-a.

            — Bem — começou, com um sorriso mais calmo —, minha esperança era de que o senhor não me achasse tão cedo. Eu queria estar mais longe do porto.

            — O senhor está no céu. Antes de tudo, que tal nos apresentarmos?

            Quanto a mim, tenho certeza de que já percebeu que sou o dono do iate. Meu nome é George Willon. E você, quem é?

            — Eu… eu moro por aqui perto. Meu pai quer que eu me case com um homem por causa do título que ele tem, e como não estou de acordo, preferi fugir. Minha… minha ideia é… bem, eu gostaria de ir para a França.

            Pronto, contara tudo de uma só vez. E não fora tão difícil quanto imaginava. Agora, restava-lhe rezar para o homem levá-la até a França. Que presente dos deuses não seria!

            Por alguns segundos, o anfitrião encarou-a como se estivesse vendo um fantasma. Ou como quem não havia entendido o que ela explicara.

            Em seguida, inesperadamente, desabou numa gargalhada estrondosa.

            Em princípio, Alba sentiu-se desconfortável. Afinal, as paredes tremiam com as gargalhadas estrepitosas do homem, e ela não via muita graça no que acabara de dizer. Contudo, a alegria dele contagiou-a de novo, e ela se viu rindo junto, sem saber bem por quê.

            — Desculpe, moça… Você vai entender num minuto por que estou rindo tanto… O que acabo de ouvir é simplesmente espantoso! Tem certeza de que não está se divertindo à minha custa?

            — Eu? Não, meu senhor. Tudo o que disse é a mais pura verdade. Não quero me casar sem estar apaixonada, eis tudo. Preferi fugir de casa, e agora preciso rezar para que meu pai não me encontre,

            — E pretende se esconder na França.

            — Sim, porque tenho muitos amigos lá. E também vejo alguma perspectiva de emprego, já que falo bem francês. Preciso ganhar o suficiente para me sustentar. Não quero pedir nem um tostão ao meu pai.

            — Emprego? Que espécie de emprego?

            O dono do iate havia parado de rir, mas seus olhos continuavam fixando-a com ar divertido.

            — Não sei ainda, mas acho que gostaria de ser atriz. Em Paris, conheci algumas que fizeram muito sucesso, e para falar francamente, creio que sou capaz de atuar tão bem quanto elas.

            — Entendo. Sabe por que ri tanto na hora em que me contou sua história? Porque meu caso é exatamente igual ao seu.

            — Eu… eu acho que não entendi, desculpe.

            Ele riu de novo e recostou-se na poltrona, as pernas esticadas para frente.

            — Daqui a alguns dias terei de visitar uma pessoa que me quer para genro. Ou seja, em princípio eu teria de me casar com a filha dele, porque…

            bem, porque tenho um título. Entendeu agora a razão de tanta risada? Não é uma coincidência extraordinária?

            Alba fitou-o, incrédula.

            — Isso é uma brincadeira, não é  mesmo?

            — Não, senhora. Nunca falei tão sério na minha vida, embora esteja a ponto de estourar de novo na gargalhada, principalmente por causa de seu espanto. Se quer saber, eu estava pensando em fazer o mesmo que você. Ou seja, fugir.

            Ambos riram, menos tensos.

            — Sendo assim, minha proposta é unirmos nossas forças. Já ouviu falar em “unidos venceremos”? Pois então, é nossa oportunidade. Um poderá ajudar o outro.

            — Como?

            — Ainda não sei. Mas sua aflição é igual à minha, e só isso já é um grande passo na mesma direção. Vamos achar uma boa saída, garanto.

            Ele falara com tanta gentileza que Alba ficou tranquila. Estava diante de um verdadeiro cavalheiro, disso não tinha dúvida.

            — O senhor é muito amável, e está me oferecendo muito mais do que eu esperava. Realmente, só queria desembarcar o mais longe possível de minha casa, para que meu pai não me encontrasse.

            — Bem, vamos começar como se deve então. Primeiro vamos nos apresentar. Qual é seu nome?

            Alba hesitou por alguns momentos, temendo que o homem conhecesse seu pai.

            — Prometo-lhe, minha cara — interveio ele, como se houvesse lido seu pensamento —, que não contarei a seu pai onde você está. Prometo também que não vou deportá-la, quem quer que seja. Acho que quando escutar minha história vai entender muito bem por que quero ajudá-la.

Isso acabou por convencê-la.

            — Meu nome é Alba Storton. Vivo sozinha com papai desde a morte de minha mãe, não faz muito tempo. Moramos numa casa de campo próxima ao litoral, e por isso não me foi difícil ir até o porto procurar um navio. Minha intenção era pegar a barca de passageiros até Dover, mas cheguei muito tarde. Como não queria voltar para casa…

            — Achou meu iate e se escondeu nele — completou o outro, sem traço de aborrecimento na voz.

            — É, foi assim mesmo.

            Ele fez silêncio por algum tempo, os olhos perdidos na vigia. Depois virou-se para ela.

            — Bem, de minha parte estou fugindo de um homem que quer, por toda a lei, que eu me case com a filha. Diz que eu arruinei a reputação da moça e o mínimo que posso fazer agora é dar-lhe o título de condessa.

            — Então… então o senhor é um conde…

            — Sim, sou conde. Interessante é que o fato de ser conde tem lá suas vantagens, mas também tem algumas desvantagens terríveis, e essa é uma delas. Toda mamãe zelosa quer me fisgar para seus rechonchudos rebentos, e isso me enfurece. Não tenho a menor intenção de me casar por enquanto.

            — Todo o mundo quer se casar com o senhor… com você por causa do título.

            Ele aquiesceu.

            — Vivo recebendo propostas de casamento. Todas as candidatas só estão interessadas no meu título. Pouco se importam se eu estou interessado ou não nelas. A alegação é sempre a mesma: com o tempo você vai me amar.

            Como se fosse algo que se pode programar!

            Ele soltou um risinho amargo e passou os dedos morenos pelos cabelos lustrosos.

            — Mas o mais aborrecido dessa história é o ataque insistente das mães e, por vezes, dos pais. Como esse último caso, que está me aborrecendo bastante. Céus, esses senhores não têm ideia do que seja decoro. Agarram-se a mim como se eu fosse um… um… nem sei o quê, um salva-vidas talvez.

            Alba não pôde deixar de rir.

            — Desculpe, estou imaginando como eles fazem. Devem ficar de tocaia nos bailes, prontos a correr ao seu encontro, sorridentes, bajuladores…

            É, acho que não o invejo, conde.

            — Antes, eu é que invejo sua posição. As vezes anseio por ser um simples e anônimo camponês.

            — Nem diga isso. A tarefa de um conde é importante para o reino.

            Você devia se orgulhar de sua posição.

            — Bem, não fujo de minhas responsabilidades. Mas, por vezes, elas me cansam bastante.

            Houve outro instante de silêncio antes que Alba falasse de novo.

            — Acho engraçada essa corrida atrás de títulos, como tanta gente faz.

            Meu pai, por exemplo. Quanto a mim, não estou nem um pouco interessada em nomes. Quero saber é da pessoa em si, do que ela gosta, no que ela pensa.

            Isso sim me interessa.

            — Então somos dois. Fez muito bem em fugir de casa, Alba, e eu me comprometo a ajudá-la no que for possível.

            — Tudo o que quero é chegar a Paris o mais depressa possível.

            — E seu pai, não vai adivinhar onde você está?

            — Acho que não. Ele nem se lembra de minha amiga francesa, Yvette, em cuja casa pretendo me hospedar. Acho que papai vai me procurar em Londres, antes de qualquer outro lugar, porque estive lá há pouco tempo, e tenho recebido muitas cartas de amigos londrinos me convidando para passar uns dias com eles.

            — Bem, se é  assim, terei muito prazer em fazer o que quer. Agora, vamos discutir o meu caso, que é bem mais complicado que o seu. Vou me encontrar com um comandante, grande amigo da rainha, que é capaz de atrapalhar bastante minha vida se eu não me casar com a filha dele. Parece que esse homem não pensa outra coisa.

            — Mas… desculpe, não quero me intrometer.

            — Pode falar.

            — Com franqueza?

            — Adoro franqueza.

            — Bem, então ouça. Se você arruinou mesmo a reputação da moça, acho que… que você tem obrigação moral de…

            O conde deu uma risada, interrompendo-a.

            — Não precisa continuar. Em primeiro lugar, obrigado por ser tão direta comigo. Acho que é assim que devemos nos tratar sempre. Quanto à moça, minha resposta é “não”. O máximo que fiz foi dar um beijo nela depois de dançar uma valsa. Levei-a ao jardim, por causa do calor, e quando dei acordo de mim, ela estava me beijando.

            Ele se ergueu da cadeira e deu as costas para Alba, os olhos postos na vigia.

            — Não gosto de me esquivar de responsabilidades, Alba, e quero que  você acredite em mim. Foi a moça que me beijou de surpresa. Acontece que o comandante, para mal dos meus pecados, viu nosso beijo e pronto, formou-se a confusão.

            — Então você não ama a moça?

            — Quem, eu? Ha! — A risada amarga fez com que Alba erguesse a vista, espantada. — Se eu tinha acabado de conhecê-la! O máximo que fiz foi ser bem-educado, não me esquivando do beijo.

            — Mas… mas isso é uma barbaridade, um abuso! Se o comandante sabe que você não ama a filha dele, não tem o direito de forçá-lo a se casar com ela! — O fervor de Alba era tão genuíno que o conde sorriu. — Não consigo entender como é que ele…

            — Então pense em seu pai — interrompeu-a o conde. — Por que seu pai haveria de querer casá-la com alguém só por causa de um título?

            — Sim, mas ninguém me beijou, muito menos lorde Hillborough.

            Céus, que homem insuportável!

            — Se é assim, não se deixe intimidar, Alba. Não se case com ele.

            — Nunca! Antes a morte. Mas eu prezo minha vida, e acho que tenho muita coisa boa para viver ainda. Por isso, prefiro fugir. Por favor, ajude-me!

            Tenho tanto medo de que papai me encontre.

            — Está prometido. Agora quero que você me ajude também.

            — Claro, naquilo que for possível. Mas o que posso fazer?

            — Estava me lembrando de uma coisa que você me disse ainda há pouco.

            Alba encarou-o, desnorteada. Não conseguia atinar com o que fosse.

            — Não me lembro de ter dito nada de muito importante, sinto muito.

            — Você disse que gostaria de ir à França e aprender a ser atriz.

            Lembra-se?

            — Ah, isso! Lógico que me lembro. Sendo atriz talvez eu consiga ganhar algum dinheiro.

            — E você disse que tinha jeito para representar. Não com essas palavras, mas foi mais ou menos isso.

            — É verdade. Quando terminei os estudos, ganhei uma medalha especial da escola, por causa de minhas atuações. Até hoje guardo com carinho a medalha e o diploma, que declara que eu sou “a melhor atriz da escola”.

            Alba terminou a frase com uma pontinha inequívoca de orgulho.

            — Não duvido — volveu o conde. — Não gosto de elogiar à toa, mas você é uma moça bonita e inteligente. Deve ter feito sucesso como atriz, e é pensando nisso mesmo que resolvi lhe pedir um favor.

            — Se for possível, será um prazer ajudá-lo. Só que não consigo imaginar de que modo. Afinal, você é  um conde, dono deste iate maravilhoso, e pode fazer tudo o que quer.

            — Nem tudo. Mas, voltando ao nosso assunto, sabe no que estive pensando durante este tempo todo?

            — Sinto muito, mas não faço a menor ideia.

            — Que você é um anjo caído do céu. Chegou exatamente na hora em que eu estava mais desesperado que nunca, imaginando um modo de me desvencilhar desse emaranhado em que me encontro agora.

            — E o que é que eu posso fazer?

            — É simples. Seja minha mulher.

            O sorriso de Alba morreu no ar.

            — Como… como disse?!

            — De mentirinha, é claro — apressou-se o conde a esclarecer. -—

            Quando eu for me encontrar com Devlin, apresentarei você a ele como sendo minha mulher.

            No pesado silêncio que se seguiu, ouvia-se apenas o sussurro da água batendo no casco do iate.

            — Então, a sua ideia é  eu agir como se fosse sua mulher.

            — Precisamente. Já vi como você se porta, é uma verdadeira lady.

            Continue assim e aja com naturalidade diante do comandante que, aliás, se chama Devlin. Vai ser o suficiente para ele desistir da ideia maluca de me casar com a filha.

            Atordoada, Alba respirou fundo. Esperava algo muito diferente, e ainda não se recuperara do susto inicial.

            Mas afinal, o pedido não era tão absurdo assim. E ela sabia como devia agir, era fácil. Bastava-lhe imitar os modos e os gestos da mãe, e seria uma lady em toda a extensão da palavra. Tal como o conde dissera.

            — Será um prazer, conde.

            Ele soltou o ar que prendera nos pulmões.

            — Ufa! Que alívio. Muito obrigado, Alba. Quanto ao seu problema, terei todo o gosto de deixá-la no porto que quiser, depois de nossa pequena encenação, é claro. Acho que a melhor maneira de alcançarmos Paris é ir através do Mediterrâneo. Gosta da ideia?

            — Gosto muito! Muito melhor do que ir de trem. Trens são vagarosos e imprevisíveis, não acha?

            — Tem razão. Da última vez que entrei num, a locomotiva simplesmente se recusou a trabalhar a partir da metade do caminho. — O

            conde riu gostosamente, jogando a cabeça para trás. — Precisava ver o maquinista. Dizia palavras doces e ternas para a locomotiva, acariciava, mimava como se fosse uma criança birrenta. No fim, perdeu a paciência e desandou a dar-lhe pontapés. Um número!

            — Mas ela acabou obedecendo — volveu Alba, rindo muito da história.

            — Sim, depois de dois dias. Já não havia quase água alguma, e a comida começou a escassear. Estávamos no meio do deserto, num sol escaldante. Nem queira imaginar como foi desagradável.

            — Bem, espero que nosso ato seja bem mais simples.

            — Vai ser, sim, e você me ajudará muito. Como pode imaginar, já que está numa situação parecida com a minha, eu não tenho a menor vontade de me casar. A razão principal é que sempre, de uma forma ou de outra, tenho a impressão de que estou vendendo meu título. Ainda não encontrei a fada de meus sonhos, talvez seja isso.

            — Posso compreendê-lo muito bem. Coitado de papai, tão bom comigo, mas tão enganado com essa mania de ser nobre a qualquer preço.

            Acho que você pensaria o mesmo dele, se o conhecesse.

            — Acredito.

            O conde inclinou-se para frente, as mãos cruzadas.

            — Tem certeza de que estará bem na França? Há outros países onde você pode se esconder. Conheço muita gente e…

            — Não é preciso, obrigada — atalhou Alba, com firmeza. — Tenho bons amigos na França, e eles vão me esconder sem fazer muitas perguntas.

            Ao mesmo tempo, confesso que fico um pouco amedrontada. Acho que papai logo vai desconfiar que fugi para a França.

            — Você me disse que ele não se lembra de sua colega…

            — É verdade, mas ele conhece minha simpatia pelo país, e minha habilidade com a língua. Enfim, seja o que Deus quiser.

            — Vamos por partes, Alba, senão acabaremos malucos. Em primeiro lugar, vamos levar adiante meu plano para eu me livrar da filha do comandante. Depois pensaremos no seu problema. Concorda?

            — Concordo.

            — Seja como for, por enquanto seu pai não faz ideia de onde você está.

            Isso são favas contadas. Quando terminar nossa representação diante do comandante Devlin, prometo fazer o que estiver ao meu alcance para ajudá-

            la. Da melhor maneira possível!

            — Obrigada, é muito gentil.

            Com um suspiro, ela se reclinou na cadeira e fechou os olhos.

            — Que sorte tive quando encontrei seu iate! Estava certa de que iria viajar num cargueiro, na companhia de cenouras e rabanetes.

            O conde riu.

            — Bem, aqui temos cenouras e rabanetes também. É só querer.

            — Estou falando sério. Este iate foi um presente do céu.

            — Então estamos quites — volveu ele, erguendo-se. — Agora quero lhe mostrar meu iate de ponta a ponta. Você trouxe bagagem?

            — Bem, se você chama aquilo de bagagem — respondeu ela, rindo e apontando para a maleta que havia ficado no banheiro —, então eu trouxe.

            O conde se adiantou e apanhou a valise.

            — Não posso lhe oferecer esta cabine porque é a minha, mas a que fica contígua a esta é igualmente confortável. Espero que goste da decoração.

            Alba acompanhou-o e, quando entrou na cabine que seria sua, não pôde conter um gritinho abafado.

            — Mas… mas é linda! Tão feminina e suave que seria possível ficar muitos dias aqui

            — Ainda bem que gostou — fez o conde, modesto.

            De fato, o quarto parecia uma nuvem cor-de-rosa. Cortinas, cama e penteadeira achavam-se forradas de cetim rosa muito suave, com pequeninas rosas bordadas na barra. Paredes e teto haviam sido pintados de rosa, mas num tom mais claro. Nada ali era exagerado ou vulgar, tudo parecia encaixar-se com perfeição no lugar, incluindo frascos de perfume e o pequeno relógio de mesa.

            — Um encanto — murmurou ela, apanhando um frasco de perfume e aspirando-o. — Na verdade, nunca vi nada tão bonito.

            — Confesso que tenho orgulho desta cabine também. Eu a projetei especialmente para mamãe, há alguns anos atrás. Ela fez um cruzeiro comigo.

            — É uma honra ficar no quarto dela. Obrigada, conde.

            — Nada a agradecer, Alba. Você vai me livrar de um problema, e o que estou fazendo não paga nem parte de seu favor.

            — Mas você também está me prestando um favor imenso. Não fosse sua generosidade, eu teria que voltar para meu pai, ou estaria em péssima situação, à busca de emprego. Fazendo minhas as suas palavras, estamos quites, conde.

            — Está bem, concedo. Mas, por enquanto, não vamos pensar nos seus problemas, e sim nos meus. Pode parecer egoísmo, mas é pura questão de estratégia.

            — Compreendo.

            — Vamos começar pelo trivial. Uma aliança na sua mão esquerda, para início de conversa.

            — É mesmo! — exclamou ela, olhando para os dedos nus. — Nem havia pensado nisso. O tal comandante bem pode estranhar a falta de aliança.

            — Temos de arranjar uma, e depressa.

            Ambos estudaram a situação em silêncio por algum tempo.

            — Deixe-me ver seu dedo, Alba.

            Ela estendeu a mão esquerda.

            O conde ficou impressionado com a brancura da pele e o tamanho diminuto dos dedos, mas não emitiu nenhum comentário. Apenas disse:

            — Acho que descobri a solução. Está no relógio de bolso de papai, que eu uso muito pouco. Espere aqui.

            Alba deixou-se cair sobre a cama, sentindo o cetim macio sob a palma da mão. Quanta coisa acontecera naquele curto espaço de tempo, céus.

            Mas não teve tempo de dar asas à imaginação. O conde voltou em questão de segundos, trazendo consigo um relógio de ouro, com uma argolinha na ponta.

            Aproximou o objeto do dedo de Alba, apenas para confirmar a ideia, e ambos chegaram à conclusão que, uma vez solta do relógio, a argolinha seria um anel perfeito.

            — Uma dificuldade a menos — comentou ele, risonho. — Já é alguma coisa, não acha? Vou pedir ao meu valete que fabrique sua aliança o quanto antes.

            — Se ele não conseguir fechar direito a argola, depois de aberta, não tem importância. Tomarei o cuidado de manter a parte defeituosa escondida na palma.

            O conde sorriu.

            — Vejo que você pensa em tudo.

            — É um elogio ou uma crítica?

            — Elogio, claro. Sabe o que sinto? Que você é mesmo um anjo caído do céu. Tem certeza de que não há nenhuma asinha quebrada aí nas suas costas?

            Alba começou a rir, e o conde, sem dizer mais nada, se retirou do quarto.

            Com um suspiro de satisfação, atirou-se sobre a cama, afundando-se nela, deliciada.

            — Alba Storton, você é uma mulher de sorte — disse, a meia voz.

De fato, tudo caminhava para o melhor. O dono do iate havia não só aceitado sua presença, como ainda lhe oferecia conforto e um tratamento digno das mil e uma noites. O coronel Storton estava longe, e o perigo de ele achar a filha era remoto. E ela iria chegar a Paris dentro de poucos dias.

            Sim, era uma mulher de sorte.

            — Então vamos fazer jus a essa sorte e ficar bem bonita para subir ao convés. Preciso tomar cuidado para o conde não se arrepender do gesto generoso que teve, e vou começar pela minha aparência.

            Assim dizendo, saltou da cama e abriu a valise, não sem antes espiar pela vigia. Para sua intensa satisfação, notou que o iate seguia a uma velocidade regular.

            A Inglaterra estava longe.

            Como havia trazido pouca coisa, trocou de roupa e arrumou o armário num instantinho. Sobre a penteadeira colocou a fotografia da mãe e o seu querido anjo da guarda de biscuit. Foi o tempo certo para o conde voltar com a argolinha de ouro na mão.

            — Experimente no dedo, Alba.

            Ela obedeceu.

            — Ficou ótimo — disse, mostrando-lhe o resultado. — Essa pequena abertura não tem a mínima importância. Basta eu manter a mão fechada ou virada para baixo.

            — Sim, creio que tem razão. Ninguém vai perceber o defeito.

            — Foi bastante esperto de sua parte lembrar-se da aliança. De qualquer forma, não acredito que Devlin desconfie de alguma coisa. Ele não seria tão grosseiro a ponto de julgar que você estava mentindo.

            — Talvez não externe a ideia, mas a desconfiança pode vir. Seja como for, o homem vai sofrer um belo choque. Você não imagina do que essa gente é capaz, quando se trata de conseguir um título.

            — De fato, não imagino — riu ela. — Mas posso fazer uma ideia razoável, a julgar pelo comportamento de meu pai.

            — É mesmo, quase me esquecia de que você está em situação semelhante à minha. Bem, pelo menos de momento estamos a salvo. Aliás, creio que seria uma boa ideia me dar seu endereço.

            — Para quê?

            — Para o caso de aparecerem outros pais zelosos como Devlin. Posso bem precisar de seus préstimos outra vez…

            Alba riu com gosto.

            — Nesse caso, não iria fazer mais nada na vida. Até que não é má ideia, você me contratar como esposa de plantão.

            — Pode acreditar, você teria trabalho para o resto da vida.

            — Gostaria de saber o porquê dessa sua ojeriza ao casamento — disse, por fim. — Mas suponho que não seja de minha conta. De mais a mais, eu devia saber a resposta, uma vez que estou em situação parecida. A única diferença é que eu não tenho nenhuma objeção ao casamento em si. Ao contrário, sonho sempre com o meu.

            — Mas eu também, Alba. Quero me casar, sim, mas, com alguém que se apaixone por mim pelo que sou, não pelo que represento. Acho que você sente o mesmo que eu.

            — Claro que sinto. No meu caso, lorde Hillborough se casaria comigo porque eu seria uma companheira “recomendada”, se é que entende o que quero dizer. Educada, letrada, trabalhadeira, essas coisas.

            — Tudo deve ser verdade.

            — Até pode ser, mas para mim é insuficiente. Imagine só, eu me casar para ser o bibelô de luxo de lorde Hillborough… Nunca!

            — E para ser uma lady também.

            — Só na cabeça de meu pai isso tem algum valor.

            — Você despreza a nobreza?

            — Não, de maneira alguma. Se eu fosse filha de lordes, teria muito orgulho em ostentar meu título. Mas não é o que acontece, e não será à custa de minha infelicidade que serei lady.

            — É uma menina de fibra, Alba, e eu a admiro por isso. Agora que estamos juntos, enfrentaremos qualquer fera. Mais uma vez devo lhe dizer que estou feliz por tê-la encontrado em meu iate. Foi um presente, acredite.

            — Bem, na verdade, eu é que encontrei seu iate. O prêmio devia ir para ele.

            Os dois riram, divertidos.

            — Pois aí está uma ideia que me agrada — disse ele. — Dar um presente para meu iate.

            — Na França será fácil encontrar um, bem bonito. Mas duvido de que ele esteja precisando de algum. No meu entender, seu iate é perfeito.

            — Meu Mermaid  tem me dado um bocado de trabalho.

            — Mermaid? — repetiu ela, sonhadora. — Sereia. É um nome bonito.

            — Quando comprei o barco e mandei reformar do jeito que queria, imaginei que nunca encontraria uma mulher tão perfeita quanto ele. Por isso escolhi esse nome. Aliás, o iate me atrai como ímã, não consigo ficar muito tempo longe dele. Exatamente como uma sereia faria. Acho que a partir daí, este barco passou a ser como… como uma mulher para mim. Minha mulher.

            — Ah, então está explicado.

            — O quê?

            — Quando embarquei aqui, tive a sensação de que havia uma simbiose entre o iate e seu dono, uma relação quase sensual, até. Essa sensação foi aumentando e chegou ao máximo quando conheci você. É isso.

            — Não me diga que é vidente.

            Ela riu.

            — Não, céus! Estou muito longe disso. Mas foi o que senti, de qualquer modo. E digo mais: este iate vai ter ciúme de quem quiser substituí-

            lo em seu coração.

            — Isso não vai acontecer nunca, acho. Estamos falando demais sobre mim. É hora de eu saber um pouco mais sobre você. O que quer da vida, afinal?

            Alba considerou a pergunta com gravidade.

            — Bem, em primeiro lugar, um casamento perfeito.

            — Em outras palavras, você quer um casamento por amor.

            — Certo. Nunca para aumentar meu patrimônio.

            — Nem para servir de bibelô na casa de lorde… lorde..

            — Hillborough. Correto.

            — Pois meus parabéns por pensar assim. Minha esperança é de que você nunca mude e continue idealista desse modo.

            — Obrigada. Posso dizer o mesmo em relação a você.

            Enquanto falava, Alba revia na mente os rapazes com quem havia dançado. Alguns bonitos e interessantes, outros nem tanto. John Curt, por exemplo, fora um cortejador assíduo, tendo mesmo ensaiado um ou dois beijos sob o luar. Mas nenhum deles conseguira tocar seu coração.

            — Sabe do que mais? — perguntou o conde. — Acho que estamos pedindo mais do que a vida pode nos oferecer. Queremos perfeição, e isso não existe. Creio que ambos teremos uma bela decepção.

            Alba refletiu durante algum tempo. Depois, escolhendo bem as palavras, respondeu:

            — Em minha opinião, estamos certos em exigir bastante da vida. Se nossos sonhos forem fáceis de alcançar, onde está a graça? Não, George.

            Vamos sonhar grande, com coisas difíceis, esperar sempre pelo melhor, acreditar que tudo é realizável. Um belo dia, podemos ter uma surpresa e descobrir que, afinal de contas, o impossível era possível.

            Como ele não retrucasse, Alba continuou:

            — De fato, estamos procurando a perfeição. E acho que, com um pouco de boa sorte e fé, vamos encontrar o que queremos. Basta manter os olhos abertos e cuidar para não ceder à tentação de fazer algo que não queremos fazer apenas porque é um caminho mais cômodo.

            O conde aquiesceu de leve, muito atento, a mão apoiada no queixo.

            — Talvez tenha razão, Alba. O difícil é descobrir onde está o melhor.

            Às vezes podemos nos enganar com a aparência.

            — Por isso é que eu falei em manter os olhos bem abertos.

            — Os melhores frutos estão no alto da árvore.

            — Isso é Sócrates! — riu ela, encantada com a citação.

            — Exato. Tão velho quanto nossa cultura, e ao mesmo tempo tão atual quanto este iate. Sócrates era genial.

            — Concordo com você e com ele. De fato, os melhores frutos estão no alto, quase inatingíveis.

            — Quase. Mas com perseverança podemos chegar a eles.

            — É essa a ideia. O casamento é algo muito sério, e só devemos nos unir ao par perfeito, à nossa outra metade.

            — Sempre pensei assim, desde garoto — disse o conde, erguendo-se e estendendo-lhe a mão. — Bom, falamos tanto que nem tive tempo de lhe mostrar o Mermaid,  como planejava. Agora estamos muito perto da hora do almoço. Prepare-se, porque vamos enfrentar a fera.

            — O comandante Devlin? — perguntou ela, aceitando a ajuda e levantando-se.

            — Em pessoa. O homem deve estar à minha espera no porto.

            — E ele é tão importante assim, a ponto de você estar assustado?

            Afinal, você é um conde. Quero dizer, tem muita importância social.

            — Sim, mas Devlin é amigo da rainha, e isso dificulta tudo. Não tenho a menor intenção de me indispor com ela, como bem pode imaginar.

            — Mas de que modo ela poderia intervir nesse caso?

            — Muito simples. O comandante vai até ela e pede-lhe que arranje um noivo para a filha.

            — Sim, já ouvi falar nisso. Parece que nossa rainha tem um fraco por promover casamentos.

            — Pois tem mesmo. Ela vai logo se interessar, ainda mais sendo a filha de um comandante. E meu nome vai estar na lista dos possíveis maridos, acredite. Nesse momento, depois de ter preparado tudo, o comandante, com cara de inocente, conta que nos viu trocando beijos ao luar. Pronto, a isca vai ser engolida. E como todo o mundo sabe, é quase impossível dizer “não” a Sua Majestade.

            Alba riu baixinho.

            — Papai vira um feixe de nervos sempre que tem que se apresentar no Castelo de Windsor.

            — E com toda a razão. Não há quem não fique nervoso com a perspectiva de ir se encontrar com a rainha Vitória. Agora, imagine recusar um pedido dela! Impossível, eu lhe digo.

            — Sendo assim, é bem capaz de o comandante Devlin pedir à rainha que arranje seu casamento com a filha dele — comentou Alba, mais para si mesma.

            — É o que vai acontecer, tão certo quanto dois mais dois fazem quatro.

            Se é  que já não aconteceu, que Deus me ajude. A única pessoa que pode me salvar agora é você.

            Alba começou a brincar com a franja de uma almofada que tinha no colo.

            — Compreendo sua aflição, conde, mas não deixa de ser estranho que uma pessoa de sua condição social seja obrigada a obedecer a uma mulher naquilo que é a parte mais importante de sua vida, o casamento. Mesmo que essa mulher seja a rainha da Inglaterra, ainda assim me parece estranha essa obediência.

            — Talvez seja uma questão de lealdade, de patriotismo, de vassalagem ancestral. Talvez seja uma mistura de tudo isso. Não sei responder. O que posso lhe afirmar é que já vi gente muito mais importante e influente do que eu saindo de pernas bambas de uma audiência com a rainha. De uma forma ou de outra, ela consegue o que quer.

            — Bom, nesse caso, vamos rezar para que meu disfarce seja convincente — brincou Alba. — E para papai não ouvir falar de nosso suposto noivado, senão é bem capaz de ele assestar as baterias contra você e se esquecer de lorde Hillborough. Afinal, um conde é bem mais importante do que um lorde…

            Ambos riram.

            — Não quero saber de casamentos por ora. Não enquanto eu não encontrar a mulher de meus sonhos, aquela que me ame pelo que sou e não pelo que tenho.

            — Há gente que se casaria só por causa deste iate. Eu mesma, por exemplo, fiquei bem tentada. Depois que vi o quarto rosa, então…

            Ele ergueu a cabeça com vivacidade, e Alba corou.

            — Desculpe, foi só uma brincadeira.

De repente, os motores do iate diminuíram a marcha.

            — Céus, estamos chegando! E nosso almoço ficou para trás, Alba.

            Sinto muito, mas a culpa é sua.

            — Minha?

            — Claro. Tem uma conversa tão brilhante e espirituosa, que este pobre mortal nem se lembrou dos prazeres terrenos da boa mesa.

            Ela riu.

            — Pois é, estamos de pé há uns quinze minutos, ameaçando subir a todo o instante. Enfim, para sua sorte, senhor conde, não estou com muita fome.

            — Então vamos depressa. Devlin já deve estar subindo a bordo. É um apressadinho de marca maior.

            Quando chegaram ao convés, viram que dois marinheiros baixavam lentamente a rampa de acesso. O comandante Devlin esperava em baixo, e logo que pôde começou a subir por ela. Era um velhote baixo, de cabelos grisalhos e uniforme impecavelmente branco. No peito, reluziam algumas medalhas.

            Alba sorriu para si mesma. O homenzinho era daqueles que gostava de impor respeito pela aparência, e tinha a expressão determinada de quem era dono do mundo.

            Sem querer, ela o comparou ao pai. Sim, ambos tinham muita coisa em comum.

            Assim que o comandante atingiu o convés, o conde se adiantou.

            — Bom dia, comandante. Seja bem-vindo a bordo do Mermaid.  

            O outro aceitou a mão que lhe era oferecida e replicou:

            — Você chegou mais tarde do que eu esperava.

            — Sinto muito se o fiz esperar. A culpa é do mar, que andou bastante agitado ontem à noite.

            Somente nesse momento os olhos do comandante pousaram na figura elegante e esbelta de Alba, que esperava na sombra.

            O espanto do homenzinho foi genuíno. Era óbvio que ele não esperava ver uma mulher a bordo do iate do futuro genro.

            O conde soube tirar proveito da situação e fez um sinal a Alba, que se aproximou com graça felina.

            — Comandante, acho que ainda não foi apresentado à minha mulher.

            Mas ela o conhece bastante de nome, e desejava muito conhecê-lo.

            — Sua… sua mulher! — exclamou ele, atônito.

            — Muito prazer, comandante — disse Alba, com seu sorriso mais cativante. — É com muito gosto que o recebemos a bordo do nosso Mermaid.

            Meu marido falou tanto a seu respeito, contou tantas façanhas suas, que fiquei realmente interessada em conhecê-lo melhor.

            O outro não teve remédio senão se inclinar e beijar-lhe a mão. Mas por baixo das aparências, Alba adivinhou uma rigidez quase mortal nos gestos dele.

            — Temos uma garrafa de champanhe bem gelado à nossa espera —

            anunciou o conde. — Minha mulher e eu ainda não almoçamos, e naturalmente ficaremos muito felizes em convidá-lo para se juntar a nós.

            — Eu… bem… sim, obrigado — gaguejou o outro, que claramente não sabia o que fazer.

            — Por aqui, comandante — disse o conde, guiando-os até o salão.

            De fato, o champanhe aguardava dentro de um balde de prata cheio de gelo.

            — Sente-se, comandante. Aceita uma taça?

            Ele aceitou em silêncio e não falou nada antes de tomar um largo trago.

            — Eu… eu não sabia que você era casado — disse, por fim.

            — Nós nos casamos no mês passado. O problema é que ainda não pedi as bênçãos da rainha, como é o costume na corte. Mas pretendo pedir assim que terminarmos a lua-de-mel, não é assim, querida?

            — Claro, amor — respondeu Alba de pronto. — É tão cansativo ir até Windsor! Vamos primeiro aproveitar nossa viagem, que é bem merecida.

            — Então… então a rainha não sabe que você se casou?

            — Nem ela nem quase ninguém, só os parentes mais próximos. Minha mulher fez questão de um casamento a portas fechadas, porque está de luto ainda.

            No silêncio que se seguiu, Alba quase pôde sentir a frustração e a raiva do comandante.

            — Estamos seguindo em viagem de lua-de-mel por enquanto —

            continuou o conde, imperturbável —, mas assim que voltarmos iremos visitar Sua Majestade, é claro. Espero que ela goste de minha Alba.

            — A rainha não gosta muito desse tipo de surpresas, como sabe —

            volveu Devlin.

            — Tem razão, não gosta mesmo. Mas estou certo de que tenho ótimas explicações para ela. Obrigado pelo seu interesse, comandante.

            — Ela é severa, mas muito compreensiva e humana — interveio Alba, com doçura.

O comandante Devlin engoliu o resto do champanhe quase com raiva.

            — Sinto muito, mas não posso acompanhá-los no almoço — disse, por fim, depositando a taça sobre a mesa. — Sua Majestade espera por mim daqui a pouco.

            — É uma pena, comandante. Mas compreendo bem sua posição. Só lhe peço o favor de não contar a ninguém que estou casado, pelo menos nos próximos meses, até minha volta da lua-de-mel. Como bem pode imaginar, a imprensa virá nos procurar, e isso vai incomodar muito minha querida mulher, que não pretende sair do luto tão cedo.

            Assim dizendo, o conde abraçou Alba.

            — Espero poder contar com sua discrição, comandante.

            — Naturalmente — foi a seca resposta. — Bem, tenho de ir andando.

            — É uma pena não ficar para almoçar conosco. Alba mandou preparar uma refeição especial só para o senhor.

            — Obrigado, fica para outra vez.

            Falava aos arrancos, como que com enorme esforço. Alba sorriu por dentro, ao vê-lo tentar se aprumar a qualquer preço. Como um robô, Devlin tomou-lhe a mão e beijou-a.

            — Desejo-lhe toda a sorte do mundo, madame — conseguiu murmurar, sem convicção alguma.

            — Obrigada, o senhor é muito gentil.

            — Vou acompanhá-lo até a carruagem — disse o conde, piscando um olho maroto para Alba.

            Esta entendeu o recado. O conde estava encantado com o final feliz daquela incômoda situação.

            Os dois desapareceram na rampa, e ela se sentou de novo, levando a taça aos lábios.

            — Até agora, tudo vai correndo bem — disse, de si para si. — Papai jamais vai me achar aqui. E se de fato o conde me levar até a França, como espero, minhas melhores esperanças vão se confirmar.

            — Conseguimos! — exclamou o conde, assim que entrou, aplaudindo-a. — Bravo, srta. Alba Storton! É uma grande atriz, pois o pobre do comandante ficou sem ter o que dizer o tempo todo. E nem por um momento duvidou de nosso casamento.

            — É, mas ficou zangado também. Não gostou nem um pouco de perder o genro.

            Ele riu e sentou-se ao lado de Alba.

            — Quanto a isso, não há dúvida. E eu confesso que não estava muito

entusiasmado em tê-lo como sogro. Mas fique tranquila, que nosso comandante ainda vai achar um ótimo marido para a filha. Enquanto isso, vamos brindar.

            O conde ergueu a taça borbulhante.

            — A boa sorte que me trouxe você de presente, Alba. Obrigado por ter me tirado daquela difícil situação.

            — Você fez a mesma coisa comigo — replicou ela, tocando de leve a taça na dele.

            — Formamos um time e tanto, não acha? Sinto que somos capazes de vencer o mundo, se preciso.

            — Especialmente sogros e sogras casamenteiros — completou Alba, sorvendo um gole.

            — E pais incompreensivos — acrescentou o conde. — Amém.

           

            Próximo à baía de Biscaia, o mar tornou-se agitado e turbulento. Alba conhecia a reputação daquela baía. Não foram poucas as histórias de amigas que caíram de cama com enjoos terríveis ao tentar atravessá-la.

            — Vou pedir ao capitão que aporte à noite numa enseada mais tranquila — avisou o conde.

            — É uma ótima ideia. Pelo menos vou conseguir dormir sem ser atirada ao chão.

            — Ou ao teto — sorriu ele. — Pode acreditar, isso quase me aconteceu uma vez. Mas eu ainda não tinha o Mermaid, é  claro.

            — Ah, ainda bem — brincou ela, fingindo um susto exagerado. — Não fico muito entusiasmada com a ideia de ganhar um galo na cabeça.

            — Então está decidido. Vamos passar a noite ancorados numa enseada que o capitão descobriu na última viagem. É uma beleza de lugar, vai ver.

            Ele se levantou.

            — Quer conhecer o iate agora, Alba?

            — Se não se importa, prefiro descansar um pouco. Muitas emoções num dia só, sabe como é.

            — Muito bem, então vou dar minhas ordens ao capitão. Se precisar de alguma coisa, é só pedir.

            Alba deixou-se ficar parada, desfrutando aqueles momentos de paz.

            De fato, era uma mulher de sorte. Achava-se a caminho da França, a bordo de um iate magnífico, sendo tratada como rainha por um dos homens mais importantes da Inglaterra.

            Um homem especial.

            Que se assustara tanto quanto ela com a perspectiva de ser obrigado a se casar sem amor.

            Que queria, tanto quanto ela, encontrar o par perfeito e ser feliz para sempre.

            E que gostava, tanto quanto ela, de música, pintura e artes. De fato, haviam trocado muitas ideias naquele dia, e ela se admirara com o conhecimento geral do conde.

            Era quase como conversar com a alma gêmea.

            Uma hora mais tarde, o iate aportava na pequena enseada, cujas águas calmas lembravam um grande espelho.

            — Bem, aqui estamos livres de tombos indesejáveis — disse o conde, sentando-se ao lado dela. — Gostou da enseada?

            — É linda. E calma também, como você descreveu. Mas me diga uma coisa, a baía de Biscaia é tão ruim assim como dizem? Não é mais um mito?

            — De modo nenhum. Não à toa os antigos chamavam-na de Baía Assassina. Em dia de tempestade, então, é um verdadeiro suplício para os marujos mais experientes. Espero que você seja uma boa marinheira, senão vai sofrer um bocado. Mesmo sem tempestade, ela faz com que os barcos joguem muito. Todas as mulheres que conheci até hoje caíram de cama na baía de Biscaia

            — Então minhas perspectivas não são muito boas — suspirou Alba. —

            Vamos ver o que acontece.

            — Já navegou antes?

            — Muitas vezes. A última foi no Mediterrâneo, mas as águas estavam sempre calmas, quase como aqui. Confesso que estou com medo.

            — Também não é para tanto. Minha tripulação é bastante experiente e sabe escolher os pontos menos turbulentos. Agora, conte-me mais um pouco sobre você e sobre essa incrível decisão de seu pai. Imagine só, forçá-la a se casar com um homem que você não ama!

            — Prefiro não falar nisso, se não se importa. Quero esquecer a agonia por que passei até encontrar o Mermaid.  Foi este iate que me salvou.

            — E a mim também, de certo modo. Foi por causa dele que nos conhecemos, e você me tirou de uma enrascada que não tinha mais tamanho.

            O interessante é que se eu tivesse resolvido levantar âncoras um pouco antes, nós jamais teríamos nos encontrado, e eu estaria noivo, bem fisgado pelo nosso querido comandante Devlin. O destino gosta de pregar peças desse tipo.

            — Não sei como é que você conseguiu escapar do casamento até agora

            — gracejou Alba.

            — Nem eu.

            Ambos riram.

            — É ridícula essa mania de querer um título a qualquer preço —

            continuou o conde.

            — Talvez você pense assim porque já tem um — sugeriu ela. — Se não tivesse, não agiria do mesmo modo?

            — Claro que não, ora esta! E a senhora, que não tem título e não faz questão nenhuma de ter, como já declarou algumas vezes?

           Ela riu.

            — É, você me pegou agora. Fiquei sem resposta.

            — é por isso que muitas vezes pensei em abrir mão do meu título.

            — Bem, não entendo muito disso, mas a mim me parece pouco patriótico.

            — Exato, é esse todo o ponto. Nasci com minhas obrigações já definidas, e fugir delas seria fugir do dever. Pelo menos, foi assim que meu pai me ensinou, e eu estou inclinado a concordar com ele.

            — Há o lado positivo, senhor conde — provocou Alba, com um sorriso matreiro. — Dinheiro, posição, fama. Afinal, não é tão ruim assim, confesse.

            — Bom, não nego que há momentos bons na minha vida. Outra coisa que meu pai me ensinou foi aproveitar as pequenas alegrias, quando quer que elas apareçam. É o que procuro fazer, sempre que posso.

            — Que engraçado, mamãe também me dizia isso. Mas não é tão fácil pôr em prática esses ensinamentos, principalmente quando parece que tudo está dando errado na sua vida.

            — Para você, Alba, pouca coisa poderá dar errado. Porque você já nasceu com um dom raro, que é o da beleza. E não falo só da beleza externa, não, senhora.

            Ela sorriu, enleada.

            — Estou falando sério — continuou ele. — Conheci poucas mulheres que pudessem igualar sua beleza e inteligência.

            — Suponho que isso seja um elogio, a julgar pelo número de mulheres que você conhece.

            — Claro que é. Do outro lado do Mediterrâneo, onde há muitos árabes, você seria disputada a peso de ouro, sabia? Naqueles lados, loiras de olhos azuis valem fortunas.

            — Agora você está querendo me assustar. Acho que vou pintar meu cabelo e usar óculos escuros.

            — Nada disso, não enquanto estiver no meu iate. Quero que todo o mundo me inveje por ter uma companhia tão bonita e inteligente como você.

            Aproveite as pequenas alegrias, Alba. Uma delas é ser bonita e admirada por todos.

            — Obrigada.

            — As ordens. Agora, vamos conversar sério. Você gosta de ler, pelo que deduzi.

            — Muito.

            — Pois pretendo escrever um livro a respeito dos países que visitei.

            Minha proposta é conseguir que o leitor se entusiasme com minhas descrições e sinta vontade de visitar e explorar esses países. Acho que você poderá contribuir bastante com seus conhecimentos de história.

            — Um livro de viagens! Que ideia maravilhosa! Ao mesmo tempo, você fará uma atualização geral em todos os livros de história e geografia da Inglaterra. Já não era sem tempo! É claro que vou fazer o possível para ajudar.

            — Então você tem a mesma ideia que eu — disse o conde, pensativo.

            — Acha que nossos livros andam meio antiquados.

            — Demais! Quando eu era adolescente, costumava dizer que os livros acabavam sempre na parte mais interessante.

            — Exagerada!

            — Bem, há uma certa dose de exagero nisso, mas o pensamento é próprio de uma adolescente, não acha? De mais a mais, dê uma olhadinha nos nossos livros escolares. Todos terminam no início do século. Nenhum descreve as novas descobertas, as guerras que se travam na Europa continental, as conquistas femininas deste século, enfim, tanta coisa de interesse. Todo o mundo quer saber o que se passa na sua época, não acha?

            — Claro que acho, caso contrário meu livro seria inútil. E a verdade é que, no momento, a Inglaterra é o país mais importante do mundo.

            — É o que acredito também. Quando estive na França, percebi que os franceses tinham inveja dos ingleses. Mas em certas coisas eles avançaram muito, especialmente no que se refere a mulheres.

            O conde piscou-lhe um olho maroto.

            — Se está sugerindo que as mulheres francesas são mais bonitas que as inglesas…

            Alba caiu na risada.

            — Não foi isso que quis dizer, mas decerto você tem razão. As francesas são mestras na arte de fazer com que o homem se sinta dono do mundo. Sabem agir de modo a que ele se julgue insubstituível.

            Ele fez um gesto de pouco caso.

            — Vai me dizer que você não sabe fazer isso também?

            — Obrigada, mas acho que o senhor conde anda gastando elogio demais comigo. Seja como for, há muito o que aprender com as mulheres francesas. Elas têm uma conversa inigualável, sempre interessante e atualizada.

            O conde considerou as observações de Alba em silêncio, e respondeu devagar:

            — Creio que tem razão. Encontrei algumas francesas tão interessantes quanto divertidas, e confesso que passei horas agradáveis flertando com algumas. Mas, cá entre nós, não me casaria com nenhuma delas.

            — Posso saber por quê?

            — Porque embora elas sejam mestras em nos fazer acreditar que somos os únicos, por dentro estão pensando de modo bem diferente. É essa a impressão que me dão. Uma francesa nunca se entregaria a mim de corpo e alma. Quero uma mulher que me ache maravilhoso de verdade, não uma que me faça acreditar que o sou, entende? Alguém que goste de estar ao meu lado dia e noite, sem enjoar nunca, e deseje meus beijos tanto quanto eu os dela.

            Alba bateu palmas, entusiasmada.

            — Que linda resposta! Ah, se sua eleita estivesse aqui perto, juro que cairia a seus pés neste instante.

            — Uma vez que conhece meus problemas, Alba, sabe como me sinto quando me vejo forçado a fazer algo que não quero. De modo especial, estou falando de me casar com quem não amo.

            — Está certo, conde. Seus argumentos são tão bons que vou roubá-los para mim mesma. Será mais fácil explicar por que fugi de casa.

            Nesse momento, uma sombra passou pelos olhos claros de Alba, que suspirou baixinho.

            — Ainda bem que estou aqui. Não há modo de nos alcançarem, não é mesmo?

            — Claro que não, sossegue. Aproveite as pequenas alegrias, e a primeira delas é  o jantar delicioso que o cozinheiro vai nos preparar hoje.

            — Como sabe? É você que escolhe o menu?

            — Não. Mas sei que vai ser delicioso porque meu cozinheiro é um chef francês, contratado a peso de ouro. Só ele já é uma figura que enche os olhos: pequeno, gordinho, de bigodinho fino virado para cima. Veio reclamar que

            “os ondas do mar muito forrte misturraron tudos os molhos, um horror, monsieur, a comide vai ficar ruim, oh-lá-lá”.

            A imitação foi tão boa que Alba desandou a rir.

            — Agora posso dizer que já fui apresentada ao seu cozinheiro — disse, enxugando os olhos. — Aí está outra coisa que considero imbatível nos franceses, a cozinha.

            — É, sou obrigado a concordar. Caso contrário, não teria admitido François.

            — Quando estive na Alemanha com papai, sofri um bocado com aqueles jantares pesados, à base de carne de caça. E a conversa deles, então?

Quase tão pesada quanto a comida.

            — Quantos anos você tinha?

            — Oh, uns onze ou doze.

            — É por causa disso — riu George, divertido. — Os alemães são tão bem-humorados quanto nós, pode acreditar. E a comida deles é mesmo um tanto pesada, mas depende da escolha. Experimente os consumês, por exemplo. São notáveis!

            Ela fez um muxoxo.

            — Talvez tenha razão. Vou verificar pessoalmente, quando for à Alemanha.

            — Vamos voltar ao meu manuscrito. Minha ideia é exatamente essa: dar informações ao leitor sobre lugares para visitar, restaurantes bons, passeios diferentes. Um livro descontraído, cheio de tópicos curtos que atraiam a atenção e agucem a vontade do leitor.

            — Muito boa ideia. Na Inglaterra, por exemplo, o que você recomendaria?

            Ele refletiu durante alguns momentos.

            — A caça à raposa e as corridas de cavalo. Acho que ninguém faz isso melhor que o inglês.

            — De pleno acordo — aplaudiu Alba. — Então aí tem mais uma ótima ideia para seu livro.

            — Preciso anotar isso.

            Assim falando, ele se sentou à escrivaninha e rabiscou algumas palavras numa folha de bloco.

            — Estou sendo otimista demais quanto a esse livro. Para dizer bem a verdade, mal o comecei, e não sei se vou acabá-lo um dia. Quando estou no barco, gosto de ficar no convés olhando para o mar. E, quando desembarco, há sempre tantas providências a tomar, tanta gente para visitar, que nem me lembro de escrever.

            — Para começar, por que não manda instalar uma escrivaninha no tombadilho?

            Ele parou de brincar com a pena e fitou-a, primeiro espantado, depois com um largo sorriso no rosto.

            — E não é que você me deu uma ideia fenomenal? Claro, como é que não pensei nisso antes? As ideias mais simples são as mais úteis, como diziam os antigos.

            — E se ainda assim você não escrever, então eu escrevo sozinha. Você ficará com ciúme de mim e vai tentar me provar que homens são superiores às mulheres e aí há de escrever o livro inteiro de um jato só.

            O conde desatou a rir.

            — Ora vejam só! Quer dizer que além de filósofa a minha companheira é psicóloga também. Pois olhe, devo dizer que se tive dúvida sobre ter agido bem ao convidá-la para ficar no Mermaid,  essa dúvida agora desapareceu por completo. Se quer saber, creio que fui um rapaz de muita sorte ao encontrá-la aqui. Já vi que vou gostar desta viagem, e farei tudo para prolongá-la o mais possível.

            — Vamos devagar, senhor conde — protestou Alba. — É fácil pensar assim no primeiro dia em que estamos juntos, mas quando se passarem vinte, trinta dias, seu ponto de vista poderá ser bem diferente.

            — Nesse caso, a melhor solução é atirar você aos tubarões.

            — Essa solução é boa para um inglês, mas não para um conde.

            Os dois riram de novo.

            — É, acho que eu tenho razão quando digo que vou me divertir muito nesta viagem. E agora acabo de ter outra ideia sobre meu livro.

            — Qual?

            — Misturar viagens com ficção e pôr você como heroína. Vai ser um best-seller,  sem dúvida alguma.

            — Obrigada, mas não creio que seja uma boa ideia. E agora, conde, por que não me mostra o iate? É um passeio que vem me prometendo faz tempo.

            — Tem razão. Vamos, então.

            Caminharam devagar para o convés, sempre tagarelando.

            — Há muitas coisas para lhe mostrar, Alba, mas tenho que ir devagar para não gastar todos os trunfos de uma vez só. Senão corro o risco de você se aborrecer.

            — Agora está pescando elogios, é? Sabe muito bem que nunca hei de me aborrecer neste iate.

            — Então seu primeiro passo será conhecer o meu Mermaid,  bem como o capitão e a turma de marujos. Há ainda um garotinho, filho de um dos maquinistas.

            — Um garotinho? — repetiu Alba, espantada. — Aqui, a bordo do iate? Por quê?

            — A mãe dele morreu há poucos dias, e o pai, que trabalha para mim há anos, veio me pedir as contas. Disse que tinha de ficar em terra firme e procurar trabalho, pois não havia ninguém para tomar conta do filhinho.

            — E você se sensibilizou e ficou com pai e filho a bordo — completou Alba. — Foi um gesto generoso de sua parte, George.

            — Interesseiro também. É o melhor maquinista que já tive.

            — Sim, mas uma criança poderá trazer alguns problemas a bordo.

            Como é que os demais marinheiros reagiram?

            — De um modo geral, muito bem. Dei um quarto separado para o pai, assim a criança não incomodará ninguém à noite. O menino virou uma espécie de mascote aqui no iate.

            Alba calou-se, pensando em lorde Hillborough. Quando é que ele teria um gesto assim generoso e desprendido? Nunca, decerto. Na realidade, seria capaz de apostar que nenhum dos empregados de Hillborough amava o patrão. Se ficavam a seu serviço, era apenas por causa do dinheiro.

            George guiou-a por todo o barco, detendo-se de vez em quando para mostrar-lhe uma novidade, uma peça mais antiga, um aparelho moderno. O

             Mermaid  era, na realidade, o iate mais bem decorado que Alba já vira.

            O capitão encontrava-se na ponte de comando. Era um senhor simpático, de cabelos fartos e brancos, que atendeu a bonita convidada com deferência.

            — É uma honra recebê-la a bordo, srta. Alba.

            — Obrigada, capitão — Ela dirigiu-lhe um sorriso arrasador. — Agora, gostaria de conhecer o restante da tripulação, se não for muito trabalho.

            — Trabalho nenhum — rebateu ele, mostrando-se encantado com o pedido.

            O conde e ele levaram-na para conhecer a sala de motores, explicaram de modo simples e claro seu funcionamento, e depois apresentaram-na à tripulação.

            Por fim, Alba fez questão de conhecer a cozinha e o chef.  Conversou longamente com François em francês, para grande deleite do homenzinho, e cumprimentou os ajudantes um por um, não deixando de dirigir-lhes uma palavra carinhosa.

            O garotinho era um bebê rosado e fofo, e Alba ficou com ele no colo durante um bom tempo, encantada.

            — Bem posso entender por que o senhor não quis deixá-lo sozinho —

            disse, erguendo os olhos para o orgulhoso papai, enquanto o bebê brincava com seus dedos. — Sem pai nem mãe, ele acabaria se envolvendo com más companhias na rua.

            — Pois era esse mesmo o meu maior receio — admitiu o maquinista, que se chamava Robson. — Mas o senhor conde foi compreensivo, e eu lhe sou muito grato.

            Quando voltaram ao tombadilho, George cumprimentou-a, entusiasmado.

            — Meus parabéns, moça. Minha tripulação está inteirinha na palma de sua mão agora. Todos gostaram de você, principalmente François.

            Alba riu.

            — Sabe que tive de me conter para não rir diante dele? Sua imitação foi tão perfeita, que eu o reconheci na mesma hora. Ele é exatamente como você descreveu.

            — O bom e velho François. Sou capaz de apostar que ele está caprichando como nunca no jantar para a linda mademoiselle. — O conde esboçou nova caricatura do francês, o que provocou uma risada cristalina de Alba. — Agora falta conhecer a última cabine do iate. Vamos?

            — Mais uma? — indagou ela. — Mas eu pensei que tinha visto todas.

            — Esta é especial, vai ver.

            Era uma pequena cabine anexa à do conde. Quando ele abriu a porta, Alba mal conteve um gritinho abafado.

            Livros. Livros por toda a parte, em estantes que iam de alto a baixo, catalogados e numerados em rigorosa ordem. Ao lado, perto da vigia, uma escrivaninha parecia convidá-la a sentar-se, ler e tomar notas.

            — Uma biblioteca! — exclamou Alba, maravilhada. — Nunca esperei encontrar uma tão grande a bordo de um iate.

            — Um fato que sempre me intrigou foi justamente a falta de livros bons nos iates de meus amigos. Mesmo em navios grandes de passageiros, só vi velharias fora de moda.

            — Estes são moderníssimos. Então você mantém a biblioteca em dia?

            — Faço questão absoluta disso.

            — Matthew Arnold. — Leu ela, animada. — É um poeta e tanto, na minha opinião.

            — Ainda bem que pensa assim. Os críticos às vezes me irritam ao extremo. Ficam presos a poetas antigos, como Byron, e acham os modernos ruins.

            — De pleno acordo. Aliás, penso que o mundo da arte viveria muito melhor sem críticos.

            Riram juntos.

            — Veja este agora — disse ele, escolhendo outro livro.

            — Foi publicado há duas semanas apenas, e eu ainda nem tive tempo de ler.

            — Quanto a mim, tenho todas as horas do dia para isso — retrucou Alba. — Não imagina quantas vezes pedi a papai que reformasse nossa biblioteca, que só tem volumes antigos. Mas ele não é homem de grandes leituras, para minha tristeza. Aliás, não gosta de me ver lendo muito tempo seguido. Diz que estou perdendo tempo, imagine só.

            — Esse tipo de reação é  normal. No outro dia eu fui a um concerto com meu tio, e ele quase me matou de vergonha porque começou a roncar no meio da sinfonia. Quando o cutuquei, ele se aborreceu e disse que não tinha nascido para perder tempo com baboseiras. Pôs a cartola, reclamou, tossiu, fungou e acabou me deixando sozinho no camarote. E olhe que eu gosto desse tio. Mas ele não aprecia Mozart, e por isso acha esnobe qualquer um que pense diferente.

            — É, sua analogia está muito boa. É assim mesmo.

            — Para mim, estes livros têm vida própria. Quando os abro, é como se mergulhasse em um mundo diferente. As personagens parecem saltar das páginas e vêm conviver comigo por algum tempo.

            — Isso! E quando o livro acaba, é como se houvéssemos nos despedido de todos. E sentimos saudade de cada um.

            Os dois se entreolharam, maravilhados.

            Alba admirava-se com a argúcia e os conhecimentos de seu anfitrião.

            Era um homem diferente de todos os que havia conhecido, e a perspectiva de passar alguns dias em sua companhia era-lhe atraente sob todos os aspectos.

            — Antes quero que você leia este — disse o conde, entregando-lhe um volume ricamente encadernado em veludo azul, sem título. — Estou interessado na sua opinião sobre a heroína e o caráter histórico da narrativa.

            Os olhos de Alba cintilaram.

            — Já vi que vamos discutir bastante. Você o leu?

            — Li, e tenho uma opinião bem formada a respeito da história. Quero ver se nossas ideias são iguais.

            Ela se pôs muito séria.

            — Obrigada, conde. Vejo que está fazendo o possível para me distrair e tirar de minha cabeça as lembranças tristes.

            — Se pretende ler meus pensamentos, protesto com veemência — riu George. — Eles são meus, e não quero saber de dividi-los com ninguém. Mas é claro que você, mais uma vez, está certa. Desejo que encare esta viagem como uma nova etapa em sua vida. Um renascimento, por assim dizer. Chega de medos e tristezas, está bem?

            — Obrigada — repetiu ela, com suavidade.

            — Quando a encontrei, Alba, pude ler em seus olhos todo o seu medo, sua insegurança. Os olhos são a janela da alma, não é assim que costumam dizer? Sabia que você estava assustada, receosa do que eu poderia fazer.

            — E você me acolheu de braços abertos.

            — Puro interesse, moça. Porque você tirou dos meus ombros uma carga pesada. Acho que, em sã consciência, temos obrigação de acreditar que estamos contando com a ajuda de anjos lá em cima. Ou, quem sabe, dos deuses dos países que vamos visitar.

            — Sem dúvida. Acho que tive sorte em encontrá-lo, conde. Espero, de coração, poder retribuir tudo o que está fazendo por mim.

            — Já está retribuindo, só de compreender o que digo. Para muitos, minha linguagem não faz sentido. A falar com franqueza, as pessoas até me acham excêntrico.

            Alba deixou escapar uma risada, fresca como a primavera.

            — O mesmo acontece com minhas colegas de escola. Sou considerada meio maluquinha entre elas, mas não ligo muito. Finjo que não percebo, rio e mudo de assunto.

            — Exatamente como eu. Então não se esqueça de ler o livro que lhe dei. Depois dele, pode escolher o que quiser aqui na biblioteca.

            — Quanto a isso, senhor conde, fique sossegado. Esse é o tipo de recomendação de que não se esquece…

            — Tenho agora outra proposta para lhe fazer. Escreva numa folha de papel, todos os dias, alguma experiência sua.

            — Que tipo de experiência?

            — Qualquer uma. Uma lembrança, um brinquedo de criança diferente dos comuns, uma charada ou adivinhação. Uma mágica que você tenha aprendido. Os livros que leu, as impressões que eles lhe causaram. Mesmo aqui no iate, algum conhecimento novo, alguma conversa que lhe tenha chamado a atenção. Enfim, qualquer coisa. Eu, de minha parte, faço o mesmo.

            Minha ideia é trocarmos essas experiências, um pouquinho, todas as noites.

            Tenho certeza de que vamos, os dois, enriquecer nossos conhecimentos.

            Alba bateu palmas, encantada.

            — Que divertido vai ser! Claro que concordo com tudo, em gênero e número. Agora mesmo me ocorreu pôr no papel o que senti quando conheci o filhinho de Robson.

            — Pois é isso mesmo, moça. Vejo que captou bem minha ideia.

            — Ao mesmo tempo, vamos pôr o cérebro para funcionar, o que já é ótimo por si mesmo. Não sei por que, sempre que paro um pouco penso que minha cabeça está começando a enferrujar e a ficar preguiçosa.

            — É isso acontece mesmo. O cérebro precisa de estudo para se lubrificar, creio eu. Não é uma afirmativa científica, mas faz todo o sentido.

            — Bom, para começar tenho estes dois livros. O de Matthew Arnold e esse aqui, misterioso, que você me deu. Estou doida para ler.

            — O meu primeiro — insistiu ele, sorrindo.

            — Claro, o seu primeiro. E já vou pôr em prática sua ideia, vou escrever minhas primeiras impressões.

            — Faça isso.

            Carregando seus preciosos volumes, Alba foi para a cabine cantarolando. A vida lhe parecia, no momento, mais cor-de-rosa que o quarto todo. Que sorte tivera!

            Primeiro, conseguira fugir de casa sem que ninguém se apercebesse.

            Segundo, encontrara uma pessoa espetacularmente interessante, sob todos os sentidos.

            Olhou pela vigia. O crepúsculo caía, trazendo seu manto escuro sobre o mar. Logo as águas refletiriam milhões de estrelas tangidas pela lua. E ali dentro aquela paz, aquele silêncio.

            Fechou os olhos, pensando em como gostaria que essa viagem não terminasse nunca.

            O conde parecia ter-se interessado com sua conversa, e era bem capaz de prolongar o passeio por mais alguns dias.

            “Só um pouquinho, meu Deus, não peço muito.” Quem sabe até ele a convidasse para conhecer alguns países?

            Não, isso seria querer demais. Pelo menos tinha um consolo: o conde não a deixaria em nenhum porto antes de ter certeza de que o comandante não mais insistiria no casamento dele com a filha. E isso poderia levar algum tempo.

            “Tomara que sim!”, pensou, fervorosa.

            Tinha o pressentimento de que o comandante Devlin não se convencera de todo com aquele casamento, tão conveniente quanto apressado, aliás.

            Além disso, o conde, muito bem relacionado na sociedade londrina, teria sempre espiões e repórteres em seus calcanhares. Como é que ninguém soubera de seu repentino casamento? E como é que não se achava alguém que estivera presente à cerimônia, mesmo que fosse supersecreta?

            — Pensando bem — disse, em voz alta — o comandante Devlin não engoliu a pílula, não, senhores. E a estas alturas está fazendo algumas pesquisas por conta própria.

            Quanto mais pensava no caso, mais certeza lhe vinha de que tinha razão.

            Decidiu nada dizer a George, afinal não era de sua conta a vida privada do anfitrião. Mas tinha absoluta certeza de que o comandante, uma vez passado o susto inicial, iria desconfiar da encenação toda. E tentaria pôr tudo em pratos limpos.

            Nesse caso, ela já não seria mais útil ao conde. Adeus, passeios e sonhos!

            “Preciso ficar com ele o mais que puder, não só por mim mesma, mas por George também. Seria um escândalo se o comandante descobrisse a mentira e contasse tudo à rainha. Pelo que ouço dizer, ela é bem severa às vezes”.

            Nesse caso, ninguém poderia salvar George Willon do naufrágio social. A menos que ele, para manter a cabeça à tona da água, concordasse em se casar com a filha do comandante.

            Bem, o jeito era não pensar muito nas inúmeras possibilidades. Por enquanto, tudo corria nos trilhos, e ela só podia torcer para que essa viagem maravilhosa se prolongasse.

            Assim, Alba ajeitou-se na poltrona ao lado da vigia e mergulhou na leitura. Não por muito tempo, porém. Logo o relógio sobre a penteadeira avisou-a de que era hora de se vestir para o jantar.

            Resolveu que capricharia, pois tinha a intenção de impressionar bem o dono do iate. Queria que ele achasse sua companhia agradável de todas as maneiras, e um dos caminhos mais simples era sua aparência.

            Escolheu, pois, um dos vestidos mais bonitos que trouxera na valise.

            Era muito leve, de fino jérsei azul-claro, mangas largas e ombros bordados de pequenas pérolas. Na cintura, um cordão de seda do mesmo tom, arrematado por um fecho de ouro e pérolas. Prendeu os cabelos numa única trança, farta e grossa, que também entremeou com delicados fios de ouro e pérola.

            — Nada mal, Alba Storton.

            Por um momento, passou-lhe pela cabeça a ideia que havia exagerado na toalete, mais apropriada para um baile. Mas depois imaginou que havia muito o que celebrar naquela noite. Além do mais, fazia questão fechada de se apresentar bonita para George Willon, e a opinião do resto do mundo não importava.

            Já se preparava para sair quando ouviu uma batida discreta na porta.

            — Alba — chamou o conde. — Posso entrar?

            — Claro, a porta está aberta.

            — Está pronta?

            — Sim, acabei de me vestir.

            — Não tenho damas de companhia a bordo, sinto muito — disse ele, piscando um olho. — Mas estive pensando em pedir ao meu valete que viesse ajudá-la no que fosse possível. Ele é experiente e respeitoso.

            — De modo nenhum! Não preciso de ninguém para cuidar de mim, obrigada. Já fico muito agradecida de estar aqui. Isso me basta.

            — Pois eu também fico agradecido de você estar aqui.

            Fitaram-se sorrindo, e nesse momento Alba sentiu o sangue circular mais rápido em suas veias.

            — Vamos, Alba. — O conde estendeu-lhe a mão. — Temos um belo champanhe para celebrar nosso primeiro dia a bordo.

            — Com prazer — retrucou ela, pondo sua mão sobre a dele com graça e naturalidade. — Não bebo muito, mas gosto de champanhe.

            — Quero que saiba, Alba, que é uma honra para mim tê-la no iate. E

            que estou vivendo uma aventura muito agradável ao seu lado.

            — Eu também. As vezes chego a ter medo de acordar e descobrir que tudo não passa de um sonho.

            — Garanto que não é. Você e eu estamos aqui, e isso é muito real para mim.

            Foram andando de mãos dadas em direção ao salão.

            — Outro medo que tenho — confessou ela — é que papai me encontre, não sei como. Não acho impossível que esteja me esperando em Gibraltar.

            — Deixe que eu enfrente a fera. Temos que ter os olhos voltados para o futuro, Alba, não para o passado. O melhor é esquecer os problemas, deixá-

            los para trás, e acreditar no que virá daqui para frente. Tudo vai lhe parecer mais fácil, garanto. Experimente.

            — Não é tão fácil assim.

            — É uma questão de tentar. Mas tentar de verdade, não se sentindo derrotada logo de início.

            — Está certo, vou seguir seu conselho. Acha que dá certo?

            — Não acho, tenho certeza. Como não admito cometer erros em minhas profecias — aqui ele riu gostosamente —, pode acreditar em mim.

            — Então já estou acreditando, porque é esse o meu desejo.

            Assim que entraram no salão, Alba prendeu a respiração.

            A mesa havia sido posta ao lado da janela maior, de modo que ambos podiam ver o mar. Dois enormes candelabros de prata sustentavam velas que espalhavam uma luz difusa e aconchegante. A mesa fora decorada com conchas e corais, que contrastavam com a prataria reluzente.

            — Que cenário adorável! — exclamou, por fim. — E olhe, a lua começou a aparecer.

            — Pois ela é minha madrinha nesta noite. — George entregou-lhe uma taça e ergueu a sua de encontro à janela. — E é para ela que eu brindo em primeiro lugar. Em segundo, ao nosso encontro. Estou feliz de ter uma companheira tão bonita e inteligente ao meu lado, ainda mais que ela me salvou de uma situação terrivelmente incômoda.

            Alba deu uma risada argentina.

            — Não cante vitória antes do tempo, é  perigoso. Ninguém tem certeza de que o comandante Devlin desistiu da caça, essa é que é a verdade. Mas vou brindar em segredo.

            — E eu, do modo mais aberto possível. Pensar que pulei do inferno para o paraíso num dia só!

            — Exagerado!

            — Creia que é exatamente o que sinto.

            Ela sorriu.

            — Para dizer a verdade, é essa a minha impressão também.

            — Pois então, tim-tim!

            — Tim-tim. Eu brindo também ao meu anjo da guarda, que não me deixa nunca, e às estrelas que estão começando a piscar. Veja que beleza, elas aparecem no céu e no mar ao mesmo tempo.

            — É o meu estojo de jóias — retrucou o conde. — Não preciso de mais nenhuma, quando vejo esse espetáculo.

            Beberam em silêncio, impregnados da beleza mágica da noite.

            — É bom demais para ser verdade — sussurrou ela, fechando os olhos.

            — Ao contrário! A verdade é que deixamos para trás nossos piores problemas e dificuldades, Alba. Agora começamos a explorar um mundo novo, diferente, onde com certeza encontraremos o amor que tanto procuramos.

            — Sua fé no futuro é contagiante, conde — riu ela, erguendo a taça. —

            Brindo a isso também.

            Nos minutos seguintes, ninguém falou, mas o silêncio era mais do que eloquente. Palavras seriam inúteis para expressar o que ambos sentiam naquele instante. Tristezas, misérias e dificuldades estavam longe, atrás da lua protetora. George e Alba pertenciam, por ora, àquela imensidão de veludo azul-marinho forrada de diamantes.

            Quando ele lhe ofereceu a cadeira, Alba sentiu-se banhada de paz e luar.

           

            No dia seguinte, o mar achava-se encapelado e cinzento.

            — Vamos ficar por aqui ainda hoje — avisou o conde, assim que Alba subiu para o café da manhã. — Por melhor marinheira que seja, acho melhor não arriscar. Para ser bem franco, estou preocupado com o iate. Não quero que ele sofra nenhuma avaria.

            — Quanto a mim, tudo bem. Afinal, não temos pressa alguma, que eu saiba.

            — Certo. Ninguém aqui está com vontade de lutar contra a maré.

            Depois do café, Alba desceu à praia para espairecer um pouco. Andou por um bosque ao longo da areia branca, colhendo flores e pensando.

            Algum tempo depois, o conde teve oportunidade de apreciar os arranjos que ela espalhara pelo iate.

            — Estão belíssimos, minha senhora. Parabéns. Aliás, sempre pensei que contribuições femininas são muito necessárias.

            — Gostei de ouvir isso. Quer dizer que nós, mulheres, somos de alguma utilidade?

            — Mais do que nós gostaríamos de admitir, confesso — riu ele, bem-humorado. — De qualquer modo, nesta viagem sou eu que mando.

            — Mesmo? — espantou-se ela.

            — Sim, porque você está sob meus cuidados, lembra-se? Portanto, sou uma espécie de tutor seu. Nada mais justo que a pupila obedeça ao tutor, como as meninas bem-educadas costumam fazer. Enquanto não acha o grande amor de sua vida, Alba Storton, está em minhas mãos.

            Nesse momento, George baixou a voz e pôs a mão em concha sobre a boca:

            — Cã entre nós, não espalhe, mas eu também estou em suas mãos.

            — Ainda bem — riu ela. — Já começava a ficar nervosa. Já que estamos um nas mãos do outro, vamos torcer para achar logo quem tanto procuramos. É isso, eu vou achar meu par ideal em Paris. Quanto a você, todo o mundo sabe que Paris é  uma tentação para qualquer homem.

            — Está aí uma coisa que uma mulher inexperiente não devia dizer nunca em público — brincou ele. — As pessoas podem desconfiar de seus conhecimentos sobre o assunto. Inclusive seu ilustre papai.

            — Não fale nele! — exclamou Alba. — A imagem de ele me procurando no cais não me sai da cabeça, e isso me aflige. Espero que ninguém tenha visto seu iate no embarcadouro…

            — Impossível, minha cara. Não há quem não repare no Mermaid.  Mas isso é irrelevante, o importante é perguntar se alguém viu Alba Storton embarcando nele. E como a hipótese é pouco provável, creio que devia parar de se preocupar. De mais a mais, ninguém naquele embarcadouro sabe quem é o dono do Mermaid,  pois eu nunca ancoro ali, e sim num outro, perto de minha casa.

            — Então por que foi parar lá?

            — Porque o “meu” porto estava muito cheio, e o “seu” estava vazio.

            — Foi obra do destino, tenho certeza. Insisto: posso dizer que sou uma mulher de sorte.

            — E eu, então?

            — Fiz um passeio delicioso pela praia, sabia? Tirei os sapatos e andei pela areia fofa. É tão gostoso esse contato com a natureza, não acha?

            — Muito. Pena não ter podido acompanhá-la, mas o capitão precisava de mim.

            — Eu notei que o Mermaid  também faz parte da natureza, porque quase não faz barulho. Como conseguiu isso?

            — Gostei de você ter percebido esse fato, e não vou disfarçar meu orgulho. Eu mesmo desenhei os motores, e fiz questão de mandar recobri-los com material acústico. Meus amigos todos ficaram com inveja e querem copiar minha ideia.

            — O que é muito saudável.

            — Sem dúvida. E você, passou bem? Não sentiu nenhuma tontura?

            — Nada. Estou ótima.

            — Está, mesmo — retrucou ele, olhando-a com admiração. — Algo me diz que estou diante de uma marinheira tão boa quanto eu mesmo, e isso vai simplificar muito nossa viagem. Não há nada mais desagradável que cuidar de passageiros verdes de enjoo, jogados nas camas, gemendo e pedindo água com limão.

            Ela riu.

            — Que quadro bonito, sim senhor!

            — E realista. Por falar nisso, o capitão acha que amanhã o mar vai estar mais calmo. Isso quer dizer que poderemos zarpar logo cedo.

            — É uma boa notícia — disse ela, com uma pontada de tristeza na voz.

            — Mas eu não vou me esquecer nunca mais desta baía, tão aconchegante quanto bonita. Nem das flores e do passeio que fiz.

           

            Na manhã seguinte, Alba acordou quando o iate já se encaminhava para o mar alto. As ondas ainda estavam bravas, mas não tanto quanto na véspera.

            Saltou da cama e preparou-se devagar, sabendo que era preciso ter muita cautela em mar agitado. Qualquer movimento em falso e poderia ganhar uma perna luxada.

            Quando subiu, encontrou a mesa posta só para um. Deduziu que o conde já havia tomado seu café, e agora se achava em companhia do capitão na ponte de comando.

            Um tanto desapontada, sentou-se e serviu-se de café preto, torradas e um ovo quente, embora não tivesse muita fome.

            Já estava terminando quando ele apareceu na porta, muito elegante, de calça branca e jaqueta azul-marinho com botões dourados.

            — Bom dia, moça. Passou bem a noite ou o mar está difícil para você?

            — Dormi como um anjinho. E tomei um belo café, se lhe interessa.

            Ele se sentou à mesa, rindo baixinho.

            — Então, por baixo dessa aparência de fragilidade, temos um marujo calejado.

            — Bom, não sei como há de ser em dias mais agitados. Por enquanto, estou indo muito bem, obrigada.

            — Estou preocupado. O capitão acaba de me dizer que viu o comandante Devlin, ou pelo menos um de seus navios, passando por nós logo de madrugada. Pelos meus cálculos, o homem navegou a noite inteira.

            Isto é, se ele de fato estiver a bordo. Pode ser simples coincidência.

            — Sim, não há razão para pensarmos que ele esteja atrás de nós.

            — Não sei, não. O que me deixa mais sossegado é que eram duas embarcações. Não sou tão importante assim, para ser perseguido por dois navios da frota inglesa.

            — Ele deve ter uma razão muito boa para ter vindo para estes lados.

            Talvez Sua Majestade o tenha enviado ao Egito, ou aos Bálcãs.

            Ele não respondeu.

            — Na minha opinião, é para os Bálcãs que ele vai — continuou ela, de testa franzida. — A rainha anda muito preocupada com essa região, pelo que ouço contar. Ela tem enviado muitas noivas para os príncipes governantes dos Bálcãs, a fim de proteger as ilhas contra a Rússia. E digo-lhe mais: o comandante está com uma noiva a bordo.

            George parou de mastigar, olhando-a com respeito.

            — Pois é muito possível, sim, senhora. O próprio Devlin me contou que transportou algumas noivas para os Bálcãs, ótimo, ele que se preocupe com outros casamentos que não o meu.

            — Bem, a estas alturas ele já percebeu que você não está nem um pouco interessado na filha. E, apesar das bênçãos e da amizade da rainha, Devlin deve saber que tem em mãos um caso pouco favorável. Pelo que pude ver, ele não é nenhum bobo.

            — Ao contrário, é uma raposa astuta, e sempre consegue o que quer.

            Sua fama como comandante é terrível. Os oficiais que o servem morrem de medo dele.

            — É assim com meu pai também — suspirou Alba. — Ele mesmo me disse que é  severo e muito pouco popular entre os oficiais.

            — Acho que nosso comandante é um tanto pior — riu George. —

            Conheci um oficial que subornou um amigo para embarcar em outro navio.

            Já imaginou?

            — Ainda bem que não será esse o seu futuro sogro. De qualquer maneira, temos de ficar de sobreaviso para que ele não o veja.

            — Ao contrário, estou torcendo para isso. Porque você está a bordo, entende? Isso servirá para tapar-lhe a boca. Se eu estivesse sozinho, aí sim, o homem ia ficar intrigado.

            — É verdade, não havia pensado nisso. Já que ele pode investigar, é melhor ficarmos juntos, principalmente se pretendermos desembarcar em Gibraltar.

            — É o que eu estava pensando. Claro que vamos descer, porque é minha intenção dar-lhe um presente.

            — Para mim! Por quê?

            — Porque você tem sido uma companheira e tanto, além de compreensiva. Já sabe o que todo mundo compra de lembrança em Gibraltar, não sabe?

            Ela fitou-o, desconcertada.

            — Não, não sei. E não quero adivinhar, pois isso poderia trazer embaraço para nós dois.

            — Embaraço nenhum. Tente adivinhar, por favor. É algo que faço questão de lhe dar, porque combina com você.

            Ela estudou a situação por alguns momentos, e depois arriscou:

            — Você está se referindo àqueles xales bordados, maravilhosos, que só se pode encontrar em Gibraltar?

            — Claro que sim, moça! Bingo! Esses xales vêm da China e são simplesmente fantásticos.

            — É verdade. Todo o mundo fala neles, lá em Londres.

            — Certa vez comprei um para mamãe. Ela gostou tanto que passou a usá-lo noite e dia. No fim, nem eu podia mais ver o tal do xale.

            — Bem, não vou ser tímida e dizer que não mereço o presente. Ao contrário, vou recebê-lo de braços abertos, muito feliz da vida de possuir uma peça tão preciosa e tão comentada no mundo inteiro.

            — E o que eu esperava ouvir de você.

            — Nunca vi um xale desses. Quer dizer, já vi em figuras, nessas revistas de moda. Ouvi falar que são delicadíssimos, e que um é diferente do outro.

            — Sim, não existem dois iguais no mundo.

            — Também ouvi dizer que os chineses empregam crianças para bordá-

            los.

            — Quanto a isso, não posso afirmar nada, mas creio que é verdade. E

            vou comprar o mais bonito que encontrar, com comandante ou sem comandante.

            Alba sorriu.

            — Obrigada, desde já. Agora sou eu que pergunto: o que vou lhe dar?

            — Há objetos em Gibraltar que nunca vi em outra parte do mundo.

            Estou certo de que você há de encontrar um que me seja útil.

            — Pois aceito sua sugestão. É isso mesmo que vou fazer.

            — E eu vou guardar seu presente como lembrança de nossa fuga dupla.

            — Eu também. Agora minha vontade de conhecer Gibraltar aumentou alguns pontos.

            — Vai ver como é interessante. Não é um lugar bonito, longe disso.

            Mas é interessante. Não consigo encontrar outro adjetivo.

            — Para mim, Gibraltar é uma espécie de portão para um mundo que quero conhecer melhor.

            Havia tanto entusiasmo em sua voz que George riu.

            — Devemos ancorar lá amanhã. Mas confesso que não estou com pressa alguma, depois da notícia que o capitão me deu. Se o comandante Devlin estiver por perto, vai ser um contratempo daqueles.

            — Quanto a mim, também não tenho pressa. Como já disse, estou gostando demais desta viagem, deste iate e de sua companhia.

            Ele aquiesceu, muito sério. Não sabia como, mas algo lhe dizia que Alba falava a verdade com toda a naturalidade, sem sombra de bajulação.

            Era-lhe impossível não compará-la com as outras mulheres que havia levado a bordo. Todas interesseiras, sempre insinuando uma ligação mais íntima, todas se oferecendo sem o menor pudor.

            Na realidade, Alba era diferente de tudo o que vira antes. Longe de dar-lhe a impressão que corria atrás dele, trazia sempre nos olhos e no sorriso uma mensagem fraterna de paz, de simples alegria camponesa, despida de qualquer interesse mais imediato.

            A diferença era simples: Alba não queria outra coisa dele além de proteção e amizade. Tratava-o de igual para igual, como se fosse sua irmã, e nem por um instante dava a impressão de tentar conquistá-lo.

            George Willon era homem experiente e maduro, sabia que não se enganava a respeito dela.

            — Um tostão pelos seus pensamentos — disse Alba, brincalhona.

            — Hã? Desculpe, estava longe daqui.

            — É, pude perceber. Eu estava dizendo que gostaria de me demorar um pouco em Gibraltar.

            — Negócio fechado. Vamos aproveitar o passeio ao máximo, já que não há ninguém à sua espera em Marselha.

            — Ninguém mesmo. De fato, ando me perguntando se seria bom descer em Marselha. Afinal, é um porto grande e movimentado. É bem possível que papai mande me procurar por lá.

            — Então por que não escolhe outro lugar para se esconder? Não tem amigos na Itália ou na Grécia?

            — Conheço alguns, mas não posso dizer que somos amigos. E não devo abusar da hospitalidade de ninguém, é claro. Afinal, quem gostaria de receber uma mulher em casa por tempo indeterminado? E ainda por cima ver-se obrigado a escondê-la do pai? Só mesmo uma amiga muito íntima, como Yvette.

            Houve um silêncio prolongado.

            — Estive pensando em fazer um cruzeiro pelo oriente, já que também ando fugido. Que tal me acompanhar?

            — Ao oriente? — gaguejou ela, incrédula. — Você… você não está falando sério, está?

            — Seriíssimo. Gosto de sua companhia, e acho que o mesmo acontece com você. Não há razão para nos separarmos agora.

            Alba continuou fitando-o, emudecida.

            — Tenho a impressão de que você apreciará os países exóticos do oriente. Eles são bem diferentes daquilo a que estamos acostumados.

            Como não houvesse resposta, ele insistiu:

            — Como é? Aceita ou não?

            — E… é lógico que sim! — exclamou ela, sem esconder sua excitação.

            — Não imagina como seu convite me faz feliz, George. E me deixa aliviada também, porque quando papai descobrir que eu não estou na Inglaterra, fatalmente irá me procurar na França. Para ser honesta, isso estava me preocupando demais.

            — Sua companhia vai ser duplamente vantajosa para mim. Enquanto Devlin estiver pelas vizinhanças, você continua agindo como minha mulher.

            Depois de passado o perigo, pode se considerar livre e desimpedida.

            — Não sei por quê, de repente senti uma fome daquelas. Acho que vou atacar esse sanduíche aí.

            O conde esticou os dedos e estalou-os, num gesto que começava a se tornar familiar para Alba.

            — Eu vou acompanhá-la. Aqueles aspargos estão me chamando. Quer um pouco?

            — Não, obrigada. Ufa, que alívio! Tão cedo papai não me encontra.

            — Não pense mais nisso. Agora o mais importante é arranjarmos um mapa, bem grande e colorido. Depois de Gibraltar, vamos começar a explorar o mundo. Tremei, povos! George Willon e Alba Storton estão a caminho de conquistar todos vocês!

            Ela riu, feliz.

            — Na sua biblioteca há muitos mapas. Gostaria de visitar um lugar que você ainda não conhece. Acho mais interessante explorar a dois.

            — Isso é meio difícil, já que conheço o mundo todo — provocou ele. —

            Mas com uma lente, talvez encontre um ou dois pontinhos no mapa onde ainda não estive. Ou melhor, que já esqueci.

            — Convencido!

            Separaram-se, ainda rindo. Alba desceu correndo à biblioteca, enquanto George se dirigia à ponte de comando. Enquanto caminhava, sorria para si mesmo com o entusiasmo e a alegria contagiante da jovem companheira.

            — Bem diferente de Maisie — disse, a meia voz, pensando na filha do comandante. — E das outras que conheci.

            Mesmo as mais jovens, mocinhas na aparência, meigas e recatadas, praticamente se atiravam em seu colo, suspirando, sussurrando propostas que fariam corar um padre.

            Que diferença de Alba!

            Era uma mulher completa, vaidosa sim, mas nunca fútil. George sabia separar o joio do trigo, e para ele a vaidade, longe de ser um defeito, era antes uma poderosa arma na mão das mulheres que soubessem dosá-la.

            Por outro lado, apesar de saber explorar bem sua beleza, Alba não fazia ideia do poder que tinha em mãos e não o utilizava para conquistar.

            Esse era seu grande trunfo, e o que mais cativava George.

            Sim, em definitivo Alba era uma charada, um enigma. Criança ingênua às vezes, mulher madura outras, ora dava conselhos ponderados ora brincava com a brejeirice de uma adolescente.

            O que mais o abismava era a naturalidade com que ela encarava o relacionamento de ambos. George sabia que muitos homens tentariam tirar proveito da situação delicada de Alba, e do fato de ela estar desacompanhada no iate de um solteirão convicto. No entanto, a moça agia como se não receasse, nem por um momento, um ataque por esse lado.

            Talvez justamente por causa disso, George determinou-se tratá-la com a mesma simplicidade, sem encorajá-la nem assustá-la. No que dependesse dele, a magia daquela amizade florescente não seria estragada.

            Nenhum dos dois pensava em casamento, e isso, por si, já era motivo de sossego para ele. Restava-lhe agora tomar cuidado para não demonstrar o quanto a achava bonita, com isso, não correria o risco de ser mal interpretado.

            Assim pensando, George subiu para a ponte de comando.

           

            — Veja só o que encontrei! — exclamou Alba, exibindo com orgulho dois grossos volumes. — Um Atlas geral do mundo e outro especial do oriente. Não é uma beleza? Aposto que nem você sabia que possuía este tesouro.

            — Confesso que não sabia mesmo. Na verdade, contratei um bibliotecário para organizar os livros, e foi ele que comprou a maior parte.

            — Está vendo só? E seu bibliotecário é bem sabido, pelo que posso deduzir. Achei uns títulos que papai me proibiu de ler, dizendo que eram impróprios para mim.

            O conde encarou-a, divertido.

            — E você pretende ler algum aqui?

            — Em princípio, não. Não estou muito interessada, a menos que tenham algum valor literário.

            — Pois faz muito bem, porque em geral esses livros são de leitura tão fácil quanto inútil. Mas confesse, eles não lhe despertam nenhuma curiosidade?

            Ela refletiu com gravidade.

            — Um pouco, acho que sim.

            Ele quase engasgou de rir.

            — Você é única, mesmo. Com que candura confessa que é curiosa!

            — E você não é? Nunca?

            — Claro que sou, mas o homem não precisa esconder nenhum defeito.

            — E a mulher precisa?

            — Precisar mesmo, não. Mas o diabo é  que elas gostam de esconder.

            — Eu não. Gosto de mim como sou, com meus defeitos mesmo. E

            minha curiosidade não é grande o bastante para eu ler essas bobagens.

            Minhas colegas viviam com esses livros debaixo do colchão, mas eu nunca quis saber deles.

            As últimas palavras foram ditas num sussurro. Pela primeira vez, George viu-a embaraçada, e isso o divertiu.

            — Por que você nunca quis ler esta literatura melosa?

            — Não acho bonito andar de agarramentos e beijos sem que haja amor de verdade. Eu, se tiver que aprender alguma coisa sobre o amor, não há de ser através de um livro, e sim através do homem que me amar.

            Ele se deu por satisfeito com a explicação e preferiu não alongar o assunto. Alba, obviamente, não estava muito a vontade.

            — Então vamos ver esses mapas. Já escolheu aonde vamos?

            — Já. Para o mundo todo!

            — É uma ideia.

            — Juro que não consigo me decidir. É como se eu estivesse no alto do céu, lã em cima, observando o mundo aqui em baixo. Cada lugar que vejo parece mais bonito e atraente que o outro.

            — Nem todos — advertiu o conde. — É preciso saber escolher. Em alguns países podemos não ser muito bem recebidos.

            — Oh, sei disso muito bem. Há quem encare a Inglaterra como inimiga, não é o que está querendo dizer?

            — Exato.

            — Mas são poucos. A maioria nos considera amigos, tanto que a rainha é conhecida como a maior casamenteira da Europa.

            Ele se sentou ao lado dela, bem-humorado.

            — É isso mesmo. Vemos princesas inglesas em quase todos os países, simplesmente porque com a proteção de nossa armada eles crêem estar a salvo de invasões. E com razão, é claro.

            — Especialmente invasões russas — completou Alba, com um estremecimento. — Acho que o mundo inteiro tem medo dos russos.

            — De fato, eles podem ser perigosos. Agora deixe a Rússia para lá e concentre-se em dois pobres mortais, George e Alba, sem outra proteção que não o Mermaid.  

            Ainda discutiam calorosamente quando avistaram Gibraltar no horizonte.

            — Lá está, a nossa primeira escala. — Apontou ele. — Venha comigo até a ponte de comando. De lá podemos enxergar melhor a chegada.

            Enquanto o capitão manobrava com perícia e adentrava o porto, o conde narrou a Alba a lenda da criação do Mediterrâneo.

            — Do outro lado do canal, na costa marroquina, fica o monte Abyla.

            Diz a história que esse monte e o estreito eram colados um no outro, e Hércules afastou-os para dar vazão ao mar. A água passou e foi assim que o Mediterrâneo foi criado. Até hoje o monte Abyla e o estreito de Gibraltar são conhecidos como os pilares de Hércules.

            — Muito bem, George! — Aplaudiu Alba. — Sei pouco sobre mitologia, e acho todas as histórias fascinantes. E não deixo de me perguntar se não há verdade nessas lendas.

            — Um pouco sempre há.

            — Quem é que diz que os deuses gregos não existem mesmo? Talvez estejam apenas adormecidos, porque os homens agora andam muito céticos.

            Estão dormindo, esperando que acreditemos neles de novo, para então renascerem.

            — Muito bem, srta. Alba! Gostei da sua filosofia, e acho até que vou adotar esse pensamento. Na minha opinião, os homens andam muito materialistas, sem espiritualidade alguma.

            O capitão ouvia, fascinado, e às vezes até arriscava um palpite. Seu encantamento pela bela passageira era óbvio. Para ele, não poderia existir pessoa mais adequada que Alba para ser a futura condessa de Willon.

            Por isso mesmo, afastou-se discretamente e deixou os dois tagarelando à vontade.

           

            Logo depois do almoço, George e Alba desceram ao cais, onde tomaram um cabriolé que os deixou na rua mais movimentada da cidade.

            Os xales eram tantos e tão magníficos, que Alba corria de um para outro, indecisa, soltando exclamações extasiadas.

            — Não há pressa. — Ria-se o conde. — Escolha à vontade.

            — Impossível, não consigo! É cada um mais lindo que o outro. Como é que não temos disso em Londres?

            — Há alguns, em lojas mais especializadas, mas o comércio mais forte deles é aqui em Gibraltar. Há gente que vem de longe só para conseguir um xale desses.

            — E com razão. Ai, meu Deus, tenho mesmo que escolher? Não quer me ajudar?

            — De jeito nenhum, minha senhora. A escolha é sua.

            Depois de muita hesitação, Alba acabou se decidindo por um xale azul-safira, cuja cor, segundo George notou, combinava com seus olhos. Mas ele, fiel ao que se havia proposto, não externou sua opinião. Apenas limitou-se a comentar que a escolha havia sido bem-feita.

            — Agora é a minha vez de lhe dar um presente — anunciou ela, toda orgulhosa. — Pode começar a procurar.

            — Como já disse antes, não pretendo recusar oferta tão simpática como essa.

            — Acho bom, mesmo, senão eu ficaria triste.

            — Estou é meio desorientado — confessou. — Como você, não sei nem por onde iniciar.

            Depois de muito andar e procurar, George ficou com uma bengala de castão de marfim, diferente de todas as que possuía.

            — Vai para um lugar de honra em minha coleção — anunciou, rodando a bengala no ar.

            E era verdade. O lugar de honra estava reservado não só na coleção, como em seu coração. Porque George levara muitas mulheres a Gibraltar e dera-lhes xales, tal como fizera com Alba, contudo, nenhuma delas lhe oferecera um presente em troca. E todas, sem exceção, eram mais ricas que Alba.

            Quando voltaram ao iate, ela ainda dançava com o xale, tal como vinha fazendo desde que saíra da loja. Não o embrulhara, apesar dos protestos do lojista.

            — Não, nada de embrulhar. Onde já se viu esconder essa preciosidade?

            E punha-o em volta do pescoço, em volta dos quadris, erguia-o no ar, rodava-o.

            George se arrependeu dos inúmeros xales que havia comprado e dado. Todas as outras moças haviam encarado o presente como um direito que lhes cabia. Algumas nem tinham tirado a peça da caixa.

            — Olhe só para a delicadeza deste bordado. Quanto tempo uma pessoa leva para fazer uma só dessas flores? Os chineses são mesmo uns artistas. E que cores eles conseguem, que efeito!

            — É, são uns gênios com a seda e os pigmentos que usam. O que você escolheu, por exemplo, tem a cor exata dos seus olhos.

            Alba se espantou.

            — E não é que é mesmo? — Deu uma risada e encostou o tecido macio no rosto. — Deve ter sido uma escolha inconsciente, então. Seja como for, estou muito feliz com meu presente.

            — E eu com o meu. Agora, que tal irmos a um concerto à noite?

            — Um concerto! Que maravilha!

            — Vou pedir a Edward que providencie os bilhetes e reserve uma mesa num restaurante delicioso, que fica próximo ao teatro. Até lá, vamos descansar. Não sei quanto a você, mas essas andanças pela cidade me deixaram exausto.

            — A mim também. Mas foi bom percorrer as lojas, as ruazinhas estreitas, examinar aquele mundo de objetos diferentes. Acima de tudo, adorei escolher meu xale.

           

            O concerto realizou-se no teatro da avenida principal. Antes do espetáculo, houve apresentação de coros e bale, executados pelos alunos de uma escola local.

            Alba aplaudiu-os com entusiasmo.

            — Você gostou tanto assim? — inquiriu o conde.

            — Muito. Você não?

            — Bem, para ser franco, foi um número de amadores.

            — Claro que foi. E daí? São garotos ainda, começando a se interessar pelas artes. Garanto que a maioria nem sequer sonha em ser artista e faz música por puro prazer. Só por isso eles merecem todo o nosso apoio. Mais do que a orquestra que vai se apresentar agora, que é  profissional. Essa tem toda a obrigação de ser perfeita.

            George calou-se, pensativo. A inglesinha sabia muito bem onde tinha a cabeça, e seus argumentos eram irrefutáveis.

            — Não tinha pensado por esse ângulo — confessou, pouco depois. — Sou obrigado a concordar com você mais uma vez.

            O concerto decorreu impecável, e no fim a platéia aplaudiu de pé. O

            conde de Willon, porém, preocupou-se ao ver inúmeros marinheiros e oficiais entre a multidão. Tinha quase certeza de que alguns pertenciam ao navio comandado por Devlin, embora ele mesmo não estivesse à vista.

            Quando deixara o iate, George se certificara de que não havia nenhum navio inglês no porto. Contudo, aqueles marinheiros eram todos ingleses, sem sombra de dúvida. Deviam pertencer àqueles dois navios que o capitão vira de madrugada. Navios da frota do comandante Devlin, que por alguma razão se mantinham invisíveis.

            Preferiu, porém, nada dizer a Alba, para não assustá-la. No fundo, ele mesmo achava que estava se preocupando mais do que devia. Decerto Devlin dirigia-se para os Bálcãs, e embora não tivesse aportado junto ao cais, podia muito bem ter ancorado mais ao largo.

            Durante o jantar, Alba não falou em outra coisa a não ser o dia maravilhoso que havia passado em companhia do conde.

            — E este jantar agora, à luz de velas, veio coroar tudo . — rematou ela, risonha.

            — Ótimo, então você vai ter boas lembranças para sonhar hoje à noite, quando estiver em seu quarto cor-de-rosa. Amanhã pretendo zarpar logo depois do café.

            — Assim tão depressa? — Alba não pôde esconder seu desaponto.

            — Por quê? Acho que já vimos o suficiente de Gibraltar.

            — É por causa dos macaquinhos, George.

            — Aqueles que ficam no cais?

            — Esses mesmo. Hoje, quando desembarcamos, mal tive tempo de vê-

            los, porque estávamos no cabriolé. Ouvi falar tanto nesses animaizinhos que tenho vontade de brincar com eles um pouco. Afinal, os macaquinhos ensinados de Gibraltar são conhecidos no mundo todo, quase tanto quanto os xales.

            Ele sorriu, condescendente.

            — Bem, faça-se a sua vontade, srta. Alba. O Mermaid  pode muito bem ficar mais um dia por estas paragens. Só que amanhã não teremos concerto.

            — Oh, não me importo. Podemos passar a manhã olhando os macaquinhos, e à tarde ir ao iate para decidir nossa próxima escala. Até agora ainda não conseguimos resolver que país vamos visitar.

            — Estou vendo que essa decisão vai ser difícil — caçoou ele. — E

            demorada, sem dúvida. Pois muito bem, passaremos o dia aqui. Satisfeita?

            — Obrigada! E quero aproveitar cada minuto desta viagem, não deixar nada para trás.

            Voltaram ao iate conversando sob as estrelas, Alba envolvida no precioso xale.

            Quando ela desceu para a cabine, George correu os olhos em volta, ansioso. O iate balouçava devagar no silêncio. Não havia nenhum sinal de outra embarcação inglesa.

            Mais adiante, avistou alguns membros de sua tripulação aproximando-se e apresentando-se ao capitão, que se encontrava na entrada.

            Nesse sentido, o homem era bastante severo.

            — Essa turma é difícil de lidar, conde. Se dermos aos homens muita liberdade à noite, é uma encrenca atrás da outra, com bebedeiras e mulheres.

            O salário deles é alto, e acho apenas justo exigir que voltem cedo todas as noites, pelo menos enquanto estiverem a seu serviço.

            Com o tempo, George se convencera de que o capitão fora sábio.

            Enquanto os colegas se queixavam de problemas com os marinheiros, sua tripulação mantinha-se fiel e disposta, sem nunca lhe dar trabalho.

            Cada marinheiro que chegava batia continência e dizia seu nome, enquanto o capitão anotava em sua lista.

            Quando o último entrou, conde e capitão reuniram-se para um drinque final.

            — Estivemos na cidade hoje, no concerto. Foi lindíssimo.

            — Acredito, milorde, mas quanto a mim prefiro este silêncio. Tenho ouvido música o bastante nos últimos anos. Minhas duas meninas estudam piano, e meu filho cismou de aprender a tocar violino.

            O conde riu.

            — Sossego total, então.

            — Milorde está rindo? Espere até chegar sua vez.

            Houve uma pausa antes de ele perguntar:

            — Para onde vamos quando sairmos de Gibraltar? Para a França?

            — Era essa a ideia inicial, mas agora penso em ir mais adiante.

            Amanhã darei instruções mais precisas. Teremos de ficar mais um dia aqui.

            Depois de amanhã podemos deixar o porto bem cedinho.

            — Um dia! — exclamou o capitão. — Vai ser difícil tourear meus homens mais um dia. Não sei por que, em Gibraltar eles parecem perder a cabeça. Hoje, por exemplo, dois deles voltaram trocando as pernas, como se diz. Meu medo é perder gente por causa da indisciplina. E para mal dos pecados, aqui tem muita mulher bonita.

           George soltou uma risada gostosa.

            — São os ossos do ofício, meu caro. Mas você tem pulso e eu confio em seu poder de persuasão. Aliás, você vive se preocupando com a tripulação, mas nunca despedimos sequer um grumete.

            — Mas não é fácil, milorde.

            — Seja como for, depois de amanhã deixaremos Gibraltar. Preciso conversar com a srta. Alba antes, por isso não lhe dou instruções agora.

            — Oh, ela vai adorar qualquer lugar que milorde escolher, tenho certeza. Nunca vi alguém tão entusiasmado com o mar como ela. Pena que não seja homem, porque seria um marinheiro para lá de bom. Mas estou dizendo bobagem, claro. A srta. Alba está muito bem como mulher. Para mim, é o tipo da moça perfeita, um diamante sem jaça.

            — Está assim entusiasmado? — troçou o conde.

            — Bem, já passei da idade de me interessar por moças bonitas. Mas sim, estou entusiasmado com a graça e a simplicidade da srta. Alba. E acho que ela combina muito bem com mi… com a vida do mar.

            — Quem sabe um dia teremos marinheiras mulheres.

            — E por que não? Acho que tudo é puro preconceito dos homens.

            — Pode ser. Não sou profeta, mas arrisco dizer que mais cedo ou mais tarde as mulheres vão invadir todas as profissões masculinas. Até soldadas elas hão de ser.

            — Ah, isso também não — protestou o capitão. — Milorde está exagerando. Já imaginou se apaixonar por uma linda e meiga soldada? Não dá.

            Ainda rindo, George desceu para a cabine.

           

            Alba, no quarto ao lado, dormia profundamente. Sonhava que brincava com um macaquinho que soltava guinchos alegres, enquanto ela lhe oferecia amendoim. De repente, notou que os guinchos não eram de alegria, mas de dor.

            Assustada, acordou. Parecia-lhe que ouvira, de fato, os gritos do animalzinho do lado de fora da vigia. Então percebeu que o ruído não vinha de algum macaquinho, mas de um cachorro que gemia lá fora.

            Alba sempre tivera um fraco por cães, e insistira muito com a mãe para ganhar um. Tanto chorara e reclamara, que por fim fora presenteada com Bimbo, um terrier preto e branco. A menina passara a cuidar do cachorrinho com todo o carinho, não deixando que ninguém lhe desse banho nem comida.

            Ao cabo de doze anos de amizade inseparável, Bimbo morrera, levando consigo uma parte do coração da dona.

            Ainda estremunhada, Alba chegou a pensar que Bimbo estava chorando ao seu lado. Quando percebeu o engano, tratou de virar para o lado e dormir de novo, mas não conseguiu. Os ganidos do cãozinho chegavam até ela e partiam seu coração.

            Acendeu o lampião e desceu da cama, os ouvidos atentos. Correu a cortina e olhou pela vigia, mas nada viu. O ruído continuava. De fato, parecia o ganido triste de um cachorro perdido. E se ele estivesse se afogando?

            Precisava fazer alguma coisa.

            Enrolou-se depressa no xale novo, calçou as delicadas chinelinhas de veludo e saiu ao corredor na ponta dos pés. Ao passar pela cabine do conde, hesitou. Talvez fosse melhor pedir-lhe ajuda?

            Não, a ideia não era boa. George estaria dormindo a estas horas, e não valia a pena acordá-lo por causa de um cachorro desconhecido. Depois, aquele iate era o lugar mais seguro do mundo. Iria e voltaria num instante.

            Assim pensando, subiu as escadas em silêncio e atingiu o deque sem fazer o menor ruído. O vigia da noite roncava em seu posto, fato que não a surpreendeu. O porto ali era seguro e calmo, não havia razão para nenhum marinheiro manter-se acordado.

            Ao atingir o deque, viu que a rampa de acesso estava baixada, conforme esperava. Desceu ligeiro e caminhou ao longo do píer, perto do iate, procurando se guiar pelos ganidos. Como a luz da lua não lhe permitia ver com clareza, preferiu deixar-se guiar pelo instinto. Súbito, os ganidos cessaram, e ela parou, alerta. Ouviu uma respiração baixa atrás de si, e seus cabelos se eriçaram. Paralisada, não conseguia mais se mover, os pés parecendo revestidos de chumbo.

            Num arranque desesperado, tentou correr, mas foi impedida no ato.

            Um pano grosseiro caiu sobre sua cabeça, abafando-a, ao mesmo tempo em que dois braços possantes amarravam suas mãos. Num instante, teve os pés juntados e fortemente amarrados. Era como se dez pessoas trabalhassem para imobilizá-la em segundos.

            Começou a gritar, mas ao fazê-lo, o pano foi empurrado por mãos hábeis para dentro de sua boca. Agora, além de quase sufocar, ainda não podia gritar nem se debater. Em seguida viu-se erguida no ar e carregada às pressas para o que ela adivinhou ser um bote. Logo o barulho de remos se ouviu, acompanhado de ordens curtas emitidas por uma voz abafada. Alba não queria acreditar no que estava acontecendo. Um rapto, em plena alvorada do século XX? Impossível. Devia estar sonhando.

            A custo, conseguiu cuspir o pedaço de pano da boca. Vendo-se momentaneamente livre, gritou com toda a força de seus pulmões:

            — Socorro! Socorro!

            Os outros só fizeram rir, sem se importar, e Alba deixou pender a cabeça, vencida. Ninguém poderia ouvi-la, com todo aquele pano cobrindo-lhe a cabeça.

            “O que está acontecendo, por Deus?”, gritou seu coração.

            O bote parecia avançar com rapidez, a julgar pelos gemidos dos remadores. Deviam ser uns quatro, no mínimo. Obedeciam ao comando de um deles, que produzia um som esquisito com a garganta, como que numa contagem ritmada.

            E George, dormindo com os anjos. Céus, como fora louca em não chamá-lo!

            Desesperada, tentou mover-se um pouco. Mas foi impossível como já esperava.

            Pouco a pouco, o horror da realidade foi tomando corpo em sua mente, subjugando-a. Seus piores receios se confirmaram: estava sendo raptada.

           

            O bote seguia veloz, os remos entrando na água e dela saindo em ritmo ligeiro. Corria inexorável, rumo a um destino que Alba previa negro e triste.

            Com o pouco bom senso de que ainda dispunha, decidiu que pouparia suas energias para uma ocasião mais favorável.

            — Calma, calma — repetia-se, a cada remada. — Nada de nervosismo, Alba Storton. Seja forte e mantenha a serenidade. Acima de tudo, nada de pânico. Não revele seu medo, guarde-o bem escondido. Demonstre desprezo e indiferença, isso sim.

            Mas não era fácil. Que vontade tinha de gritar, de espernear, de lutar contra esse destino cruel que a arrancara do aconchego daquele iate, daqueles dias de sonho que passara em companhia de George Willon.

            De vez em quando uma risada mais forte fazia-a estremecer.

            Sentia pernas e mãos dormentes, pois as cordas prendiam sua circulação. A operação toda fora tão rápida e inesperada, que Alba começou a suspeitar que aqueles homens, fossem quem fossem, eram experientes nesse tipo de rapto.

            Sim, mas o que fariam com ela? Aonde a levariam? Para quê? E por que ela, logo ela, que nem filha de nobres era? Apesar de ter posses, o coronel Storton estava muito longe de ser milionário.

            Respirava com dificuldade, e sentia o ar cada vez mais rarefeito.

            Procurou ajeitar a cabeça e, desse modo, encontrar um pouco mais de oxigênio. Mas descobriu que cada movimento causava-lhe forte dor nos membros imobilizados.

            Um medo frio e cruel insinuou-se em sua cabeça. Não sabia exatamente do quê, talvez fosse simples medo do desconhecido. Mas ele estava ali, palpável, sinistro.

            E George, estaria dormindo ainda? Com certeza. Só muito mais tarde daria por sua ausência, o que poderia ser fatal para ela. Quanto mais se afastava do iate, mais sentia suas esperanças se esvaindo em fumaça.

            Os músculos, tensos, principiavam a dar sinais de cãibra.

            “Respire fundo, Alba, mesmo que lhe pareça impossível. Relaxe. Se conseguir relaxar, a tensão diminui. Relaxe,”

            Foi o que fez, e de alguma forma sentiu-se melhor. Seu pensamento voou para George.

            “Meu anjo da guarda, ajude-me. Faça com que George acorde depressa”, rezou, com todo o fervor da alma.

            Lembrou-se com carinho do modo como ele a acordava de manhã.

            — De pé, dorminhoca! — dizia sua voz alegre do outro lado da porta.

            Hoje não haveria resposta. Ele tomaria café sozinho, talvez meio intrigado com a demora da companheira. E só bem mais tarde se daria conta de que ela não estava no barco.

            Imaginou-o abrindo a porta e espiando com cuidado para não acordá-

            la. Tentou adivinhar qual seria sua reação quando encontrasse a cama vazia: poderia ser de espanto, tristeza, preocupação. Só tinha certeza de que, ao se ver sozinho, o conde iria procurá-la. Perguntaria por ela a todo o mundo, e é claro que ninguém saberia responder.

            E depois disso, o que aconteceria?

            Talvez se cansasse de procurá-la e desistisse. Talvez pensasse que ela havia voltado para casa, ou ido por conta própria para a França.

            “Deus, meu Deus, ajudai-me. Não tenho mais ninguém a quem recorrer, só a vós e ao meu anjo. Estou com tanto medo.” A resposta que recebeu foi o som da água no fundo do bote e o titilar de uma gaivota.

            Os homens continuavam remando em silêncio, sempre em ritmo acelerado.

            A certa altura, depois do que ela calculou que fosse uma hora, o bote perdeu velocidade. Em seguida, veio o ruído macio de madeira raspando na areia.

            Estaria numa ilha? Ou numa praia da costa? Pela primeira vez, ouviu algumas frases trocadas em voz baixa, mas por mais que se esforçasse não foi capaz de reconhecer a língua, mesmo porque as vozes chegavam-lhe abafadas através dos panos espessos que a cobriam.

            Novamente, sentiu-se erguida no ar. Levaram-na pela margem, os passos rangendo forte como se caminhassem sobre pedras, e não na areia.

            Podia ser uma pista, e ela guardou a informação no cérebro. Aquela praia era de cascalho.

            Sem maiores cerimônias, os homens — deviam ser uns três ou quatro

            — atiraram-na para dentro de um lugar, que ela logo adivinhou ser uma carruagem. Aterrada, ouviu o ruído da portinhola se fechando e o estalo de língua característico para incitar cavalos.

            Toda essa operação não havia durado mais que dez minutos, calculou ela. Mas para onde iria? Quem eram seus raptores? De início, a carruagem se movia com lentidão exasperante, como se estivesse num caminho pedregoso de difícil acesso. Tudo indicava que era uma subida íngreme, e de novo ela armazenou a informação. Praia de cascalho, barrancos. Onde estava, meu Deus?

            Pouco depois, a carruagem ganhava terreno firme e seguia mais veloz.

            O ruído de cascos de cavalo acompanhava os solavancos que a jogavam de um lado para outro. A julgar pela rapidez, deviam ser no mínimo dois cavalos.

            O zumbido seco de estalidos de chicote faziam-na sobressaltar-se a cada instante.

            “Calma. Não é para você, é para o cavalo. Sangue frio, Alba.” Para não se perder em desespero, resolveu contar os minutos. Talvez fosse uma forma de saber para onde ia. Começou a contar, procurando seguir o ritmo dos segundos: Um, dois, três… Quando chegou a sessenta, dobrou o dedo mindinho. Recomeçou a conta, procurando ignorar as manchas roxas e vermelhas que principiavam a se formar. Em pouco tempo, porém, embaralhou-se na conta.

            Sua cabeça doía, os músculos reclamavam e as pontas dos dedos formigavam. Tentava em vão respirar agora. Não lograva mais relaxar nem coordenar os movimentos, seu corpo parecia de chumbo. A mente começou a girar vertiginosamente, e Alba sentiu que a consciência começava a lhe faltar.

            Mal percebeu que alguém amparou sua cabeça, impedindo-a de bater pesadamente no chão da carruagem.

            Estranho, lutara tanto a vida toda para conseguir um lugar ao sol. E

            agora que quase estava conseguindo…

            Era obrigada a parar de lutar.

           

            Acordou bruscamente, erguida de novo no ar por mãos possantes. A triste realidade atingiu-a como estilete de gelo. Então era verdade. Tinha mesmo sido sequestrada. O pesadelo continuava.

            Não sabia quanto tempo permanecera desmaiada, e também pouco se importava. Deixou-se conduzir sem fazer um único movimento, receosa de que descobrissem que havia acordado. Talvez eles falassem um pouco mais, caso a julgassem inconsciente.

            Ouviu vozes alteradas, como que numa briga, mas não conseguiu captar nenhuma palavra. Estava muito cansada. Esperava que tudo terminasse de uma vez, para o pior ou para o melhor, tanto fazia àquela altura.

            Queria George.

            “Isso mesmo”, pensou, para se consolar. “Hei de descobrir um meio de me comunicar com George. Será minha primeira tarefa aqui.” Aqui onde? Ainda não tinha ideia, mas algo lhe dizia que logo saberia.

            Os homens que a carregavam pareciam agora subir uma escada. Alba apurou os ouvidos, mas quase não escutava o ruído dos passos. Deviam estar no interior de alguma casa.

            O caminho que eles seguiram dava a impressão de não ter mais fim.

            Ora dobravam à esquerda, ora à direita. De repente, os passos começaram a soar mais firmes, e Alba teve a sensação de que se achava num corredor vazio e comprido.

            Pararam, e ela esperou, atenta. Não ouviu nada, porém. Aqueles homens eram, em definitivo, muito bem treinados.

            Súbito, eles a puseram no chão, de pé. Ela cambaleou, ameaçou cair, mas conseguiu se aprumar, sentindo a maciez de um tapete alto sob os pés nus. Só então se deu conta de que seus chinelinhos haviam caído no meio do caminho. Quem sabe não seriam uma pista para George?

            De pé, toda enrolada com cordas, Alba esperava. Escutou uma conversa cochichada entre um homem e uma mulher. Agora tinha certeza: a língua que falavam era-lhe totalmente desconhecida. Árabe, calculou.

            Devagarinho, ela se pôs a flexionar os dedos, a fim de restabelecer a circulação. Já se sentia melhor, com mais disposição para lutar. Mas de nada adiantaria desandar a distribuir socos e pontapés, sua intuição dizia-lhe que seria melhor fingir docilidade para então examinar com frieza a situação.

            Que, de resto, não lhe parecia nada promissora.

            O primeiro saco de pano foi retirado, e ela respirou fundo, sentindo um alívio indescritível ao encher os pulmões. Esperava que tirassem o segundo, quando um pânico súbito obrigou-a a fechar os olhos. Não queria ver, tinha medo do lugar onde estava.

            Finalmente, viu-se livre do outro saco, que agora percebia ser de pesada lona, mas manteve os olhos fechados por alguns instantes, numa prece silenciosa. Depois, obrigou-se a abri-los devagar.

            Esperava uma luz ofuscante, mas enganou-se. Deparou com uma penumbra aconchegante, e em princípio nada conseguiu divisar. Esfregou os olhos, dando-se um tempo para ajustá-los, e olhou em volta.

            A primeira coisa que viu foi um rosto. Um rosto moreno e sério, coroado por basta cabeleira negra, enfeitada de fitas coloridas. Uma mulher, sem sombra de dúvida.

            Ainda atordoada, percebeu que havia gente falando à sua volta, mas não conseguia se concentrar em mais nada. Tentava adivinhar se lia compaixão ou simpatia naquele rosto liso, quase impenetrável, que parecia estudá-la com o mesmo interesse de um botânico examinando uma planta exótica.

            Nada conseguindo, procurou de onde vinham as outras vozes. Virou-se devagar, a dor de cabeça ainda mandando pontadas de aço para o cérebro.

            Mulheres. Cinco ou seis, todas olhando fixamente para ela. Eram morenas, de pele escura, olhos brilhantes e roupas coloridas.

            Uma delas se adiantou e falou rapidamente com outra, como que dando ordens. No mesmo instante, uma cortina foi descerrada e a luz do sol entrou em jorros radiosos na sala.

            Alba deixou escapar uma exclamação de dor e tapou a vista com as mãos, curvando-se um pouco. As moças pararam de cochichar entre si e o silêncio caiu sobre todas.

            Devagar, piscando muito, Alba conseguiu abrir os olhos. A janela oriental, as tapeçarias e os lustres logo denunciaram o nome do lugar.

            Marrocos!

            As mulheres se aproximaram, parecendo muito excitadas. Tocavam-na com admiração, pegavam em seus cabelos, apontavam para os olhos, tagarelando entre si.

            “Se forem marroquinas, como penso, decerto não conhecem inglês ou francês. De nada adianta falar com elas.” De repente, deu-se conta de como estava cansada. Uma das moças pareceu adivinhar o que ela pensava. Segurou-a com delicadeza pelo braço e apontou para uma grande cadeira de madeira entalhada, amparando-a. Alba deixou-se cair ali, exausta.

            — Onde… onde estou? — perguntou, com voz trêmula. Como esperava, nenhuma respondeu. Houve um silêncio desconcertante, e Alba escondeu o rosto entre as mãos, lutando contra as lágrimas. Não, não iria chorar ali, não se mostraria fraca.

            — Vous êtes três jolie.  

            A frase apanhou-a desprevenida. Erguendo vivamente a cabeça, viu uma delas sorrir-lhe. Parecia mais madura que as companheiras, embora fosse tão bonita quanto elas. A pronúncia era pesada e arrastada, mas Alba compreendeu-a. Tentou, em vão, extrair um sorriso dos lábios ressequidos, enquanto dizia, na mesma língua:

            — Onde estou, e por que razão fui trazida para cá? Quem mandou me trazer?

            A outra contemplou-a calada, indicando que não compreendera.

            Alba tentou de novo, escandindo bem as sílabas:

            — Onde estou?

            — No palácio do sultão. — Foi a resposta, tão curta quanto seca.

            — Aqui é Marrocos?

            A moça aquiesceu com a cabeça.

            — O que o sultão quer de mim?

            Essa pergunta devia estar, obviamente, além das possibilidades linguísticas da mulher. Alba repetiu-a inúmeras vezes, com gestos, mas ela se limitava a sacudir a cabeça, murmurando:

            — Je ne comprends pas.  

            E depois, como que para compensar uma coisa com outra, disse de novo:

            — Vous êtes três jolie.  

            Com um calafrio sinistro na espinha, Alba percebeu, horrorizada, que essa era a resposta correta à sua pergunta.

            “Fui raptada porque sou bonita. Isto é um harém!” Desesperada, olhou em volta, em busca de uma possível escapatória.

            A sala era impressionante, toda de mármore rosa e verde, com tapeçarias riquíssimas e lustres de prata pendentes do teto.

            Nada, nenhum lugar por onde pudesse fugir, a não ser portas. E essas, com certeza, achavam-se guardadas por pelos menos dois guardas do lado de fora.

            Tinha a impressão de que se movia no meio de um pesadelo. Raptada para um harém, em pleno século XX! E dizer que havia poucas horas estivera do outro lado do canal, em Gibraltar, em meio a uma multidão de pessoas de todas as raças, cores e credos.

            Ao mesmo tempo, observava, fascinada, aquelas mulheres tão diferentes, de pele azeitonada, e que pareciam felizes a seu modo. Riam por nada e tagarelavam sem parar, parecendo gracejar uma com a outra.

            — Roupa bonita. Vestir — anunciou a mulher, em francês. — Joias também.

            Depois acrescentou, quase com reverência:

            — Para o sultão.

            Ao se dar conta do que a esperava, Alba sentiu um calafrio na boca do estômago. Ainda assim, empurrou o terrível pensamento para o fundo da alma. Talvez estivesse vendo fantasmas onde eles não existiam. Talvez não fosse nada do que suspeitava.

            Uma das mulheres saíra e voltara com tigelas de água perfumada e esponjas. Apesar dos protestos de Alba, elas se puseram a lavar-lhe os pés.

            Pouco depois passaram para as pernas, rindo muito dos protestos veementes da hóspede.

            Outras moças vieram ajudar, e Alba desistiu de reclamar, pois tinha uma dúzia de mulheres debruçadas sobre si, lavando-a e massageando-a. Por fim, despiram-na e esfregaram todo o seu corpo, untando-o com óleo perfumado. Enquanto trabalhavam, não cessavam de tagarelar e rir, como crianças brincando com uma boneca.

            Cobriram-na com uma veste de seda e brocado parecida com o que elas mesmas usavam, só que muito mais suntuoso. Duas outras puseram-se a escovar seu cabelo.

            Alba sabia que de nada valeriam choros e gritos. Se quisesse convencer alguém de que precisava voltar para Gibraltar imediatamente, era necessário, antes de tudo, estar vestida com um mínimo de decência. Naquele momento, até bendizia os cuidados recebidos, depois da exaustiva viagem que fizera, enrolada em sacos de pano malcheirosos.

            Por fim, recuaram, rindo e batendo palmas. A moça que falava francês apontou para o próprio peito, dizendo:

            — Jasmine.

            Depois apontou para ela e esperou.

            — Alba — respondeu, conseguindo ensaiar um sorriso. As outras moças riram, repetindo o nome em voz alta.

            Jasmine tirou de uma caixa de cristal um colar de pérolas e brilhantes, atando-o ao pescoço da recém-chegada. Era tão magnífico que Alba arquejou.

            Houve problema na hora de colocarem os brincos. As moças, espantadas, examinaram as orelhas de Alba, discutindo entre si, porque não eram furadas. Por fim, decidiram-se por dois grandes brilhantes que foram aplicados aos lóbulos de Alba com uma resina forte.

            Enquanto se via enfeitada e decorada como um prato requintado que seria servido mais tarde, Alba se concentrava em achar um modo de sair dali.

            Não podia se distrair por nenhum momento, pois à menor chance que se apresentasse trataria de fugir do palácio.

            Por isso, manteve os olhos baixos e deixou-se manipular com docilidade, para não levantar suspeitas.

            O segundo brinco acabava de ser fixado quando se ouviu o ressoar pausado e sonoro de um gongo.

            — Almoço — anunciou Jasmine, puxando-a pela mão.

            As demais, em alegre revoada, saíram do quarto.

            — Fome? Nós comemos agora, Sultão mais tarde.

            Alba aquiesceu, de olhos baixos, dando impressão de total submissão.

            No fundo, tinha vontade de sair dançando pelo comprido corredor. Pelo menos durante algumas horas estaria livre de se apresentar diante do temido governante.

            Sua cabeça fervilhava, sempre com as mesmas e insistentes perguntas, para as quais não achava resposta convincente.

            Como? Por quê? Quem?

            O terror que sentira no momento em que ouvira a estranha respiração atrás de si, lá no cais de Gibraltar, continuava a assaltá-la, principalmente quando imaginava o que viria a seguir.

            No final do corredor, Jasmine ergueu um reposteiro de seda e convidou-a a entrar.

            Era, sem dúvida, o salão mais majestoso e impressionante que jamais vira. Do tamanho de um quarteirão, com paredes de mais de três metros de altura, era todo forrado de mármore decorado com filetes de ouro. No teto, desenhos orientais vivamente coloridos, de cujo centro pendia enorme lustre de cristal e bronze polido. Na parede do fundo, uma poltrona alta, de madeira entalhada, presidia duas mesas compridas que a ladeavam. O centro ficava vazio.

            Alba logo adivinhou que se achava no lugar onde o sultão devia se divertir com suas concubinas. Com certeza elas dançavam ali para alegrá-lo, para depois sentarem-se ao longo das imensas mesas, talvez na companhia de convidados especiais, bebendo e comendo.

            Pelo que havia lido, sabia que naquele dia não haveria espetáculo algum, uma vez que o grande senhor da casa não se achava presente.

            Seus olhos percorreram o suntuoso salão, em busca de uma saída ou reposteiro que pudesse levá-la à salvação. Além da entrada principal, havia outras duas portas menores ladeando-a, mas que davam para o mesmo lugar.

            Não encontrando mais nada que pudesse interessá-la, aceitou com um sorriso apagado o lugar que lhe era oferecido ao lado de Jasmine, bem abaixo da cadeira do sultão. Era um lugar honroso, adivinhou.

            Decidiu que devia se alimentar bem, para se revigorar da cansativa viagem daquela madrugada, e também para ter forças de enfrentar o sultão.

            Era sua intenção interrogá-lo diretamente e fazê-lo entender que ele corria perigo ao contraria uma pessoa tão importante da Inglaterra como o conde de Willon, amigo pessoal da rainha Vitória.

            Porque estava em jejum desde a véspera, Alba apreciou os quitutes exóticos que lhe foram oferecidos. Alguns pratos ela nunca vira, e esses foram rejeitados com delicadeza. Os outros, todavia, foram aceitos com prazer.

            Para aplacar sua sede, foi-lhe oferecida uma refrescante bebida em taças de cristal com bordas douradas. Por mais que tentasse, não foi capaz de identificar o gosto da deliciosa bebida, que oscilava entre o azedo e o doce.

            As moças tagarelavam ao seu lado, e Jasmine mostrou-se atenciosa o tempo todo. Por meio de gestos, e com a ajuda do parco francês da marroquina, ambas conseguiram se comunicar com algum sucesso. Alba ardia por fazer centenas de perguntas, mas resolveu que seria prematuro.

            Preferiu ficar de olhos e ouvidos bem abertos, e escutar mais do que falar.

            Tinha quase certeza de que não enfrentaria esse tipo de problema quando se encontrasse com o sultão, pois ele deveria se orgulhar de falar inglês ou francês fluentemente. Principalmente porque Marrocos se situava num ponto estratégico, rodeado de países das mais diferentes nacionalidades.

            Contudo, precisava encontrar outra pessoa que falasse bem o francês.

            Apenas desse modo teria alguma chance de mandar um aviso a George.

            George! Onde estaria agora? Aborrecido, sem dúvida, com sua falta.

            Mas algo lhe dizia que já descobrira uma pista. Talvez algum marinheiro de sono mais leve tivesse acordado com os ganidos daquele cãozinho, nesse caso, ela teria sido vista ao descer do iate.

            Mais uma vez, arrependeu-se de ter saído sozinha, em plena madrugada, atrás de um cachorro.

            “Nada disso, Alba. De nada adianta lamentar-se. O que tem de fazer agora é achar um modo de sair desta encrenca pavorosa.” Examinando com mais vagar as moças que a haviam lavado, Alba notou que eram todas bonitas e jovens, aparentando menos de vinte anos.

            Apenas Jasmine parecia mais velha, embora fosse igualmente bela.

            Os pratos principais foram servidos por criados de librés de cores berrantes, que riam e conversavam com as moças de igual para igual, fato que surpreendeu Alba. De sobremesa, foram servidos doces orientais e frutas.

            Quando terminou, Alba sentiu-se um pouco melhor. Até mesmo sua velha coragem começava a voltar, e ela resolveu se preparar para enfrentar o temível sultão. Quando seria? Decerto à noite, na hora do jantar. Estudaria com cuidado algumas frases de efeito, ensaiaria bastante para não ficar nervosa, tentaria explicar o…

            Novo soar de gongos veio interromper seus planos. Todas se levantaram, em respeitoso silêncio, correndo para postar-se em frente às mesas. Alba, consternada, percebeu que interpretara a informação de Jasmine de modo errado. O “sultão mais tarde” significava que ele almoçaria alguns minutos depois das mulheres. Sem saber o que fazer, achou que seria uma boa ideia imitá-las. Levantou-se e foi para frente da mesa, o coração batendo descompassado.

            Os gongos ressoaram mais forte, e o pesado reposteiro da entrada se ergueu.

            “É agora”, pensou, trêmula, mal podendo se manter de pé. “É ele.” Assim que o sultão entrou, todas avançaram um passo e se curvaram profundamente, até tocar o chão com a testa. Ele andou pelas duas fileiras de cabeça erguida, sem olhá-las, e subiu os primeiros degraus para se sentar na poltrona alta.

            A única pessoa que não havia se curvado era Alba. Embora seus joelhos se entrechocassem por baixo do belo djellaba,  ela sustentou com firmeza o olhar terrível que o sultão lhe lançou.

            Depois, como que para demonstrar que o fazia por vontade própria e não por obrigação, curvou-se numa leve reverência, como faria para qualquer pessoa da nobreza.

            Ele se deteve, estudando-a de alto a baixo. Depois, sem pressa, subiu os últimos degraus e sentou-se na poltrona. Uma serva se adiantou e colocou uma bandeja de madeira preciosa sobre os braços da poltrona, prendendo-a com firmeza. Era uma bandeja tão finamente entalhada, que parecia feita de renda. Outra criada depositou um prato de ouro sobre a bandeja.

            As mulheres esperavam, agora ajoelhadas, de cabeça baixa. Alba permaneceu de pé, as mãos cruzadas, rezando para seu tremor não ser percebido por ninguém.

            — Levantem-se! — ele ordenou.

            Na verdade, a palavra que Alba ouviu foi outra, pois o sultão dera uma ordem em sua língua. Mas era fácil adivinhar do que se tratava, porque de imediato as mulheres se ergueram, rindo e cochichando dentro dos vestidos esvoaçantes, um bando de borboletas coloridas. Todas retomaram seus lugares alegremente, embora caladas. Era evidente que se sentiam à vontade diante do amo, e isso aplacou um pouco os temores de Alba, pois era indicação de um mínimo de compreensão.

            Um servo trouxe-lhe vinho e amêndoas, enquanto outro apresentou-lhe uma bandeja cheia de iguarias.

            Sem se interessar pela platéia feminina, o sultão se concentrou no exame da bandeja, apontando o que queria. Alba percebeu, intrigada, que ele fazia questão que lhe servissem a quantidade exata de cada iguaria. Se um servo mais descuidado pusesse a mais, tinha de retirar o excesso, depois de muitas mesuras que, decerto, indicavam pedidos de desculpas. Assim, punham um pouquinho e aguardavam um sinal do sultão indicando se deviam servir mais ou parar. Tudo isso levou um bom tempo, e as moças permaneciam em silêncio absoluto, embora de vez em quando trocassem olhares e risos entre si. Quando o sultão achou que o prato estava a seu gosto e no tamanho certo, dispensou os criados com um gesto. Eles se retiraram de costas, caminhando desse modo até a entrada.

            Alba acompanhava o estranho ritual fascinada, não querendo acreditar no que via. Aquela gente se comportava, em pleno século XX, como escravos da mais ínfima categoria. E, no entanto, agiam com simplicidade, como se essas práticas fossem as mesmas no mundo inteiro. O que mais a impressionava era a submissão das mulheres, que pareciam gostar das pequenas migalhas de afeto que recebiam.

            O silêncio continuava a imperar enquanto o sultão comia.

            De vez em quando ele olhava para a inglesa recém-chegada, estudava-a sem pressa, e em seguida voltava a se concentrar no prato. Nessas horas, o coração de Alba disparava em louca sarabanda. Bem podia perceber os olhos negros e astutos estudando a cor de sua pele, de seus cabelos e, naturalmente, de seus olhos. Sustentava o exame como podia, embora tivesse vontade de ser engolida pelo chão.

            Seria mesmo possível que esse homem quisesse incluí-la na coleção de mulheres do harém? Ou havia outra razão, tão sutil que escapava à sua compreensão, para tê-la no palácio por alguns dias? Talvez quisesse dar uma demonstração de poder aos ingleses. Mas se fosse isso, por que não escolher alguém mais importante do que uma simples moça do povo?

            E o coronel Storton, iria ajudá-la se soubesse de sua situação?

            Sim, sem dúvida. Iria até a rainha e pediria seu auxílio, pois a filha iria se casar com um lorde inglês.

            “Se bem que seria difícil escolher entre ele e o sultão”, pensou, agoniada.

            Não, era melhor que apenas uma pessoa ficasse sabendo do que lhe acontecera. Uma única, chamada George Willon. Rezaria com fervor para que isso acontecesse o quanto antes.

            Lembrou-se com saudade de seu anjo de biscuit.  Queria revê-lo, pegá-

            lo nas mãos. Sobretudo, queria agradecer-lhe por tê-la salvado do sultão de Marrocos.

            “Isso há de acontecer um dia, meu Deus. Ajudai-me.” Mas os pensamentos sombrios não a deixavam. Supondo que o conde tomasse conhecimento do que lhe acontecera, que poderia ele fazer? Como iria tirá-la dali sem provocar um tumulto internacional? Seria quase como declarar guerra ao sultão.

            George Willon não gostaria, de forma nenhuma, de se indispor com o governante marroquino, porque uma briga entre pessoas de tanta importância exigiria a intervenção da própria rainha Vitória. Ora, a rainha, por seu turno, pediria em troca que o jovem conde se casasse com a filha de seu amigo, o almirante.

            Que confusão, santo Deus. E ela ali, sem poder fazer nada, à mercê daquele homem de pele escura que não parava de comer.

            Não era bonito, embora não fosse feio. Tinha aquele mundo de mulheres mais para se exibir e fazer inveja aos outros sultões.

            No internato, as colegas de Alba haviam contado que um deles, o sultão de Brunei, gostava que as mulheres se juntassem aos pares todas as noites. Cada uma ficava com um pé, e se punha a beijar os dedos aos pouquinhos. Iam subindo, devagarinho, até fazerem tudo o que ele queria.

            “Revoltante”, pensou ela. “Antes morrer que me sujeitar desse modo.” O palácio devia ser muito bem guardado e protegido, mas ela acharia uma saída. Certamente, não através de Jasmine, nem de nenhuma das mulheres que a rodeavam, seria necessário procurar auxílio entre os servos mais humildes. Talvez encontrasse um que se apiedasse dela.

            Depois do que lhe pareceu uma eternidade, os servos tiraram o prato vazio da frente do sultão. Alba imaginou, com alívio, que o almoço havia terminado, mas logo viu que se enganara. Outro criado entrou, carregando bem alto, acima da cabeça, uma bandeja de prata. Atrás dele vinham dois garotos vestidos de libré, portando bandejas menores.

            Não demorou muito para Alba entender que se tratava da sobremesa.

            A bandeja maior, contendo uma espécie de pasta escura que ela não conseguiu identificar, foi posta em frente ao sultão, enquanto os meninos se ajoelhavam, as bandejas brilhando no alto de seus braços esticados. Uma continha creme, a outra açúcar. Ele se serviu da primeira, pondo uma camada generosa de creme sobre o doce, depois serviu-se da segunda, polvilhando o creme com açúcar. Foi repetindo a operação sucessivamente, até encher a terrina.

            As mulheres, contudo, pareciam encantadas com o ritual. Era como se estivessem diante de um deus, não de um simples mortal de carne e osso.

            Com crescente repugnância, Alba observou-o comer. O sultão não era gordo mas seu físico já denunciava futura obesidade. Enterrava a colher no creme e levava enormes quantidades de doce à boca, não se dando ao trabalho de limpá-la. De vez em quando, chupava os dedos, à maneira de uma criancinha mal-educada.

            Por fim, a terrina foi esvaziada e levada embora, do mesmo modo que os demais pratos.

            Trouxeram-lhe uma lavanda com água, onde ele lavou as mãos, enxugando-as numa fina toalha bordada.

            Estava terminada a cansativa cerimônia. O sultão se reclinou na poltrona, claramente satisfeito, e bateu palmas, quando um oficial entrou e declarou, depois de fazer muitas mesuras:

            — Um mensageiro da embaixada inglesa está aqui. Diz que é muito importante ser recebido agora.

            Alba estremeceu. Embaixada inglesa. A sua embaixada.

            Esperou, ansiosa, até o sultão aquiescer com um leve aceno de cabeça.

            O soldado desapareceu, e por alguns instantes nada aconteceu.

            Numa prece muda e desesperada, Alba elevou seu pensamento para Deus, fechando os olhos, os lábios se movendo quase imperceptivelmente.

            Quando os abriu, dois homens acabavam de entrar no imenso salão.

           

            Entre esperançosa e cética, Alba ergueu-se na ponta dos pés, tentando ver os recém-chegados. Um deles vestia-se à moda árabe, o outro trajava um uniforme que ela conhecia muito bem, o de oficial da cavalaria inglesa.

            Aquele andar… Era inconfundível.

            O oficial avançava a largos passos. Era George!

            O marroquino curvou-se, como era de regra, enquanto o oficial saudava o sultão com uma continência.

            Alba seguia tudo emudecida, levada numa vertigem de emoções desencontradas. Em algum lugar da mente, porém, uma luz vermelha de alerta se acendeu. Precisava fingir descaso e agir como se nunca tivesse visto o visitante.

            A esta altura, os visitantes já haviam trocado saudações com o sultão e se preparavam para falar. O marroquino fez um sinal para o oficial dar início.

            — Majestade, venho da embaixada britânica. Como não falo sua língua, tomei a liberdade de trazer um intérprete comigo.

            Fez uma pausa, enquanto o outro traduzia sua fala de introdução para o marroquino.

            O sultão fez um gesto de enfado e mandou prosseguir.

            — Sua Alteza Real, o príncipe Edward, filho mais velho da rainha Vitória, acaba de chegar à nossa embaixada. Vai ficar neste país apenas uma noite, mas deseja muito encontrá-lo. Ao mesmo tempo, ele lhe manda felicitações pelo seu belíssimo harém, famoso no mundo inteiro.

            Nova pausa, a fim de permitir ao tradutor que falasse.

            O sultão sorriu, obviamente orgulhoso, enquanto o oficial prosseguia:

            —É intenção do príncipe é oferecer-lhe um banquete. Ficaríamos muito honrados se Vossa Majestade aceitasse nosso convite e comparecesse à nossa embaixada, acompanhado de suas belíssimas esposas.

            Quando essas palavras foram traduzidas, um murmúrio excitado percorreu o colorido bando de mulheres.

            Depois de alguns instantes, respondeu em sua língua:

            — Transmita a Sua Alteza Real meus agradecimentos por tão honroso convite e confirme nossa presença.

            Muito devagar, Alba deixou escapar o ar que vinha prendendo nos pulmões. Era George, agora não tinha mais dúvida. Um George diferente, estranho e marcial, que ainda não conhecia. Foi com dificuldade que não se deixou levar pelo impulso de sair correndo atrás dele.

            Sentia vontade de cantar e dançar ali mesmo. George se achava ali, e viera para salvá-la!

            Ainda assim, sabia que corria perigo, e quando a porta se fechou atrás dele, experimentou uma aguda sensação de abandono. O conde se fora, sem ter certeza de que Alba estaria a salvo do assédio do sultão. De fato, quem lhe garantia que o homem não exigiria sua companhia nos aposentos reais agora mesmo?

            “Calma, confie em George. Ele sabe o que está fazendo.” Então, quase que em resposta aos seus pensamentos, a porta se abriu com estardalhaço e os dois homens voltaram.

            O sultão, que se preparava para deixar o lugar, deteve-se, surpreendido, esperando que o oficial se aproximasse. O pobre intérprete esforçava-se para vir em sua esteira, mas suas perninhas se atrapalhavam no djellaba  e ele acabou por ficar muito atrás.

            O soldado, impaciente, fez-lhe sinal que se apressasse. O homenzinho chegou ofegante, curvou-se e começou a falar alto. Pelos gestos, Alba compreendeu que ele se desculpava porque havia esquecido de mencionar um assunto muito importante.

            Quando terminou, o soldado pigarreou, torceu o bigode e declarou:

            — Sua Alteza Real tem especial predileção por cabelos loiros.

            O sultão, ao ouvir isso, olhou atônito para o oficial. Depois sorriu, indicando que entendera o recado.

            Repetiu-se o cerimonial das despedidas, com continências e curvaturas.

           

            Alba sentou-se na cama de chofre, entre surpresa e envergonhada.

            Não sabia como, mas adormecera em meio àquele lufa-lufa das mulheres se preparando para a visita a Sua Alteza Real.

            Quando Jasmine veio buscá-la e a levou para escolher as joias que Alba iria usar, ela não pôde conter grito de surpresa. Baús e baús de jóias maravilhosas, como nunca vira anteriormente.

            Jasmine pegou um colar de águas-marinhas, comparando os olhos com as pedras. Não gostou do efeito, e pegou outro, que fez a amiga piscar.

            Era uma fieira de grandes brilhantes, intercalados com safiras azul-marinho.

           Ao aproximá-lo do rosto de Alba, soltou uma risada alegre.

            Para os cabelos, escolheu uma pequena tiara de brilhantes, também enfeitada por uma safira solitária no centro. Quanto aos brincos, decidiu-se pela mesma solução anterior, só que acrescentando uma safira a cada brilhante.

            Terminada a escolha, Jasmine trancou cuidadosamente a porta e guardou a chave na cintura.

            Foram então escolher o vestido. Era longo, de seda azul entremeada com fios de prata. A cada passo, o vestido parecia se desfazer em luzes de tons cambiantes que iam do prata ao azul-celeste. Na verdade, Alba nunca vira nada igual, e sabia que ficaria bonita ao experimentá-lo.

            De fato, quando se viu dentro do belo traje, os cabelos arranjados em cachos no alto da cabeça e arrematados pela pequena tiara, não pôde deixar de gostar do resultado. O instinto lhe dizia que recebera todos esses cuidados por causa do príncipe de Gales. O sultão havia dado ordens nesse sentido, seria capaz de jurar.

            Uma saída seria tentar dirigir a palavra ao príncipe, ainda que com isso quebrasse todos os protocolos. Contaria o que lhe acontecera, e suplicaria ao príncipe que a salvasse daquele palácio feito de mármore e lágrimas.

            A ideia era boa, mas impraticável. Alba conhecia bem o rígido protocolo da corte inglesa, e sabia que seria quase impossível chegar perto do príncipe Edward, quanto mais falar-lhe.

            Não tinha importância, porém. George estaria lá, pronto para salvá-la.

            De repente, a certeza atingiu sua consciência como um raio. Ela estava amando. Sim, amava George com todas as forças de seu ser. Como não havia percebido antes?

            Estava apaixonada, perdidamente apaixonada por George Willon. De outra forma, por que gostava tanto de ficar ao seu lado? Por que se entristecia quando tinham de se separar à noite, na hora de dormir? A resposta agora era simples. O amor viera com toda a sua força, o amor com que sempre sonhara.

            Essa descoberta fortaleceu-lhe o ânimo. Agora teria coragem de enfrentar Jasmine, as mulheres, o sultão e todo o exército marroquino, a fim de salvar sua vida e com isso ganhar o bem mais precioso que existia: o amor.

            Foi com espanto que viu Jasmine se aproximar dela com expressão preocupada e convidá-la para sair do quarto. Nesse momento, algumas mulheres avançaram, tentando impedi-las de sair, mas Jasmine foi mais rápida. Puxou-a com força pela mão e levou-a para um aposento especial, particular da favorita.

            Num átimo, compreendeu. Jasmine estava tentando protegê-la das outras mulheres!

            Incredulidade e medo assaltaram-na de repente.

            Jasmine trancou a porta, ofegante.

            — Está salva agora, mas fique comigo. Algumas mulheres são más, estão com ciúme. Você é bonita. Querem prejudicar você!

            — Como? Que podem fazer contra mim?

            — Estragar seu vestido, quebrar o colar, desmanchar cabelo. São muito ciumentas.

            — Então aqui não é o paraíso como eu pensei…

            — Nem sempre. Mulher ciumenta é difícil de lidar. Ficaremos aqui até elas acalmarem. No fundo, são boazinhas.

            Alba sorriu. A meiga Jasmine procurava defender as colegas, mesmo as piores. O sultão havia demonstrado sabedoria ao escolhê-la para favorita.

            Sem ela, o harém se desintegraria em pouco tempo.

            — Ficamos aqui até virem nos buscar — disse ela. — Enquanto isso, é melhor tirar o lindo vestido. Para poder descansar bastante.

            — Tirar? Mas… depois de tanto trabalho?

            — Trabalho nenhum. Depois eu ajudo vestir de novo.

            Alba suspirou e obedeceu. Ser mulher do sultão era, em definitivo, complicado demais para seu gosto.

            — Jasmine, posso fazer uma pergunta pessoal? Você gosta do sultão?

            — Eu amo meu senhor.

            — E não sente ciúme das outras? Seria capaz de jurar que você me detestava, assim que cheguei.

            A mulher levantou o olhar, espantada. Depois sorriu.

            — No começo, detestava todas as novas que chegavam.

            — E agora não mais?

            — Não. Agora não detesto ninguém. Nem você.

            — Bem, obrigada pela franqueza. Pode explicar por quê?

            — Você não vai ficar aqui — retrucou a outra, dando de ombros. —

            Não gosta do sultão. Vai embora logo. Se não conseguir, morre de tristeza.

            Houve uma pausa, enquanto Jasmine ajeitava o vestido dela sobre a cama. Tinha os reflexos dourados do sol, com riquíssimo trabalho em pedrarias e fios de ouro. Era um vestido especial, pois ela era a favorita, e seria exibida como tal.

            Seguindo um impulso intuitivo, Alba arriscou:

            — Hei de dar um jeito de fugir daqui. Não posso e não quero ficar neste palácio, nem quero ser mulher do sultão.

            A amiga voltou-se, fitando-a com o semblante carregado.

            — Não repita isso para mim. Sou fiel ao sultão, não gosto de ouvir confidencias. Se fugir, fugiu. Mas nunca, nunca conte com minha ajuda.

            Alba encolheu-se. Era a primeira vez que via o rosto de Jasmine tão zangado.

            — Está bem, entendi. Não direi uma só palavra. Esse vestido é lindo.

            — Sim, é novo. Nossas costureiras são muito hábeis.

            A expressão dela retomara a serenidade anterior.

            — O sultão não vai fazer nada que magoe você.

            Alba levantou as mãos para o céu, sem saber se ria ou chorava. Queria fazer os dois ao mesmo tempo.

            — Como pode saber o que me magoa ou não?

            — Conheço o sultão.

            — Bom, quanto a isso, não há o que discutir — rebateu Alba, com uma ponta de sarcasmo.

            — Ele é bom para nós. Quando chegamos, estamos sempre magras, doentes e sem dinheiro. O sultão cuida de nossos pais, nos dá conforto e comida.

            — E a liberdade, Jasmine?

            A outra fitou-a, sem compreender.

            — Podemos fazer o que quiser aqui no palácio. Aqui é bom.

            Dizendo isso, abriu uma das gelosias. Uma lufada de vento veio brincar com seus cabelos, fabulosamente fartos e negros.

            — Obrigada, Jasmine. Fez-me um grande bem.

            A conversa havia corrido solta, apesar da barreira da língua. As palavras que uma e outra não entendiam eram substituídas por gestos, o que fez com que a comunicação, apesar de difícil, se tornasse calorosa e amigável.

            A marroquina tirou uma tiara do armário e colocou-a em cima da penteadeira. Os brilhantes faiscavam, gloriosos, sobre a armação de ouro.

            Alba logo imaginou que aquela jóia só era usada pela favorita, e em ocasiões muito solenes.

            Enquanto a observava pentear-se e untar os cabelos com óleo perfumado, perguntou:

            — Quando o sultão foi convidado, falou-se em parada. Que parada é essa?

            — Oh, é o desfile do harém. O sultão chega ao banquete com todas as mulheres, e desfila numa carruagem grande, toda enfeitada. O espetáculo é bonito, mas o sultão o concede só de vez em quando, porque não podemos deixar o palácio.

            Jasmine cobriu a boca com os dedos, soltando um risinho divertido.

            — Mas o convite era muito importante, meu amo não podia dizer não.

            Eu quero muito conhecer o príncipe da Inglaterra, minhas colegas também.

            Por isso, temos que ir bem bonitas.

            Alba admirou-se com a perícia com que George havia manobrado a difícil situação, praticamente obrigando o sultão a aceitar o convite. O conde sabia, em definitivo, o que estava fazendo. Podia confiar nele, de olhos fechados.

            “Deus, como sinto falta dele. Ajudai-me, Senhor, a agir conforme ele espera, para não pôr tudo a perder com minha ansiedade.” Não muito tempo depois, Jasmine avisou que estava na hora de se vestir.

            Alba obedeceu, dizendo-lhe:

            — Está muito bonita, Jasmine.

            De fato, a moça parecia ter escapado de um conto das mil e uma noites. O djellaba  dourado, mais os braceletes e colares, transformavam-na numa espécie de Sheherazade moderna, sem véu. A tiara continuava pousada sobre a penteadeira, e Alba imaginou que Jasmine ia deixá-la para a última hora, pois aparentava ser pesada e incômoda.

            Vestiu-se de novo, com a ajuda da amiga. Os cabelos, que já haviam sido penteados, receberam uma finíssima camada de pó, um pó que Alba nunca tinha visto, e que brilhava como miríades de estrelas diminutas.

            Nesse momento, um gongo soou, impaciente, repetidas vezes.

            Jasmine puxou-a pela mão, os pezinhos miúdos correndo aflitos pelas tapeçarias.

            As outras mulheres achavam-se reunidas no salão principal, mais coloridas e alegres do que nunca, as joias faiscando sob o grande lustre.

            Assim que viu Jasmine, o camareiro bateu palmas e contou as moças, dispondo-as em fila ordenada. A um sinal, todas se encaminharam para a imponente entrada do palácio, onde a carruagem as aguardava.

            Era, como Alba esperava, magnificente, puxada por quatro robustos cavalos brancos. Acima do assento dos cocheiros havia uma espécie de plataforma elevada, onde se via um trono dourado, forrado de veludo vermelho. Era, naturalmente, o assento do sultão.

            Abaixo, atrás dos cocheiros, várias fileiras de bancos foram ocupadas pelo bando colorido e alvoroçado. Nas pontas havia dois assentos especiais, mais altos que os demais. Esses, para grande espanto de Alba, foram ocupados por Jasmine e por ela mesma.

            Metros e metros de cetim bordado, preso de vez em quando por flores e fitas, enfeitavam toda a parte externa da carruagem.

            Deslumbrada, ela se perguntou quanto fora gasto naquele aparato, que no fundo servia apenas para impressionar.

            Ao se sentar no lugar de honra, recebeu um buquê de lírios brancos, com instruções para ficar com ele nas mãos o tempo todo do desfile. Até as flores, para seu espanto, continham pequeninas lágrimas de brilhantes nas pétalas. Tudo cuidadosamente planejado, tudo grandioso, destinado a impressionar.

            Mas George também ultimava seus preparativos, e decerto planejava uma boa surpresa na embaixada. Qual seria sua ideia para tirá-la dali?

            Assim que todas se acomodaram, o sultão veio e subiu para seu lugar.

            Enquanto se instalava, dizia palavras ternas para as mulheres, que riam e escondiam o rosto. Era óbvio que ele as elogiava, sendo mesmo provável que fizesse alguns comentários picantes, a julgar pela reação delas.

            Usava um uniforme que era, no mínimo, espetacular, além de colares de gemas preciosas. Era esse o modo que ele tinha de anunciar ao mundo seu poder e sua riqueza.

            Quando a carruagem começou a se mover, dois músicos a cavalo ladearam-na, dedilhando instrumentos exóticos. O som que se ouvia pouco significava para Alba, afeita aos acordes e melodias ocidentais, mas as outras acompanhavam-no ondulando as mãos, no ritmo da música. Vez por outra, uma delas alteava a voz e cantava junto, o que indicava que a canção lhes era familiar.

            Pelo visto, o povo sabia dessa parada, pois algumas pessoas começaram a se juntar ao longo do caminho. Quanto mais a carruagem se aproximava da cidade, mais se adensava a multidão, até se tornar compacta.

            O séquito seguiu devagar, alegre apesar de toda a pompa, até os portões da embaixada inglesa, que Alba logo reconheceu por causa dos brasões com os leões coroados. Também ali dentro havia muita gente aguardando o desfile, só que as pessoas ficavam sentadas em cadeiras especiais, bem como Alba se lembrava de ter visto em corridas de cavalo.

            Mesmo fora dos portões havia cadeiras, dispostas em três fileiras, todas superlotadas. A plateia era variada, formada por mulheres elegantemente trajadas à moda européia, outras à moda oriental, além de oficiais e soldados tanto da marinha quanto do exército.

           Era um público respeitável.

            Uma banda, postada em lugar estratégico, começou a tocar assim que a carruagem chegou. Eram vários artistas, mas a música continuava incompreensível para Alba, embora ela reconhecesse que, para os orientais, devia ser celestial.

            O séquito deteve-se na entrada, enquanto a banda começou a tocar uma música marcial, lembrando um hino. Deslumbrado, o povo se pôs a acenar e a gritar vivas para o recém-chegado, enquanto este acenava de volta, sorridente.

            Os cavalos retomaram o passo, mas os portões permaneceram fechados. A carruagem fez uma volta pela praça, devagar, enquanto a banda continuava com outras melodias. O povo acompanhava e cantava, batendo palmas ritmadas. Toda a vez que o sultão acenava, eles gritavam vivas, jogando chapéus e casquetes para o ar. Era um espetáculo digno de vista, além de impressionante. Quando passou bem defronte aos portões fechados, Alba pôde ver o príncipe de Gales sentado diante do palácio, tendo ao lado alguns oficiais. Firmou a vista, em busca de George, mas a distância era muito grande.

            “Não importa., Ele, decerto, já me viu aqui neste lugar mais alto”, consolou-se.

            As pessoas aplaudiam, encantadas com aquele grupo colorido de moças bonitas.

            Olhando para trás, Alba se surpreendeu ao notar que havia outras carruagens atrás da do sultão, não tão decoradas, mas tão grandes quanto a sua. Tentou ver quem as ocupava, mas a multidão comprimida impedia-a de enxergar direito.

            Aproximaram-se do imponente edifício da embaixada, e de pronto Alba identificou a silhueta inconfundível do príncipe Edward, destacada no meio de uma plataforma, a de George, porém, permanecia uma incógnita.

            Havia muitos oficiais, e era impossível reconhecê-lo àquela distância.

            “Mas ele está aí, sei que está”, repetiu-se, mil vezes. “Afinal, quem arrumou essa festa toda foi ele.”

            De outra forma, essa parada teria sido planejada com meses de antecedência. Pelo convite feito naquele mesmo dia, era óbvio que tinha sido preparada às pressas, apesar da perfeita organização.

            Para encanto dela, logo atrás vinha um desfile de animais selvagens, incluindo tigres e leões, fortemente presos a correntes douradas. Seus rugidos enchiam os ares, eletrizando o público.

            A banda acompanhava cada apresentação com uma música diferente, o que contribuía para o sucesso do desfile. Se tudo aquilo fora feito de improviso, como Alba queria acreditar, decerto seus organizadores mereciam um prêmio especial.

            Feitas as contas, a parada durou quase duas horas. No fim, a banda tocou o hino nacional de Marrocos, e todos se levantaram, respeitosos. Ao terminar, uma tempestade de palmas acompanhada de gritos e vivas coroou o espetáculo. Em seguida, o sultão fez um discurso de boas-vindas ao príncipe herdeiro, ao que este respondeu com outro.

            Ambos apertaram-se as mãos e entraram na embaixada, enquanto as mulheres eram convidadas a segui-los.

            Podiam-se ouvir os murmúrios e exclamações da multidão que se achava mais próxima, quando as mulheres desceram da carruagem e se encaminharam, em fila comportada, para dentro do edifício. Por ser a mais alta, Alba ficou no fim da fila, fechando o séquito feminino.

            Entrou, meio perdida, embora respirasse um ar familiar e inglês que lhe trouxe um nó na garganta e a fez dar-se conta de que sentia saudade de seu país.

            Jasmine veio ter com ela.

            — Os lugares têm nomes. Vamos procurar os nossos.

            Alba logo encontrou seu cartão, e alegrou-se ao notar que se sentaria junto de Jasmine. Correu os olhos, procurando a mesa do príncipe. Não se achava muito longe da sua, isso indicava que havia alguma possibilidade de ficar perto de George.

            De fato, pouco depois avistou-o. E não se surpreendeu ao vê-lo ocupando o segundo lugar de honra, à esquerda do príncipe. À direita sentou-se o embaixador.

            A mesa principal, muito comprida, ocupava toda a largura do grande salão, duas outras ladeavam-na, quase tão longas quanto a do centro. As mulheres foram distribuídas nessas laterais, cabendo a Alba um assento não muito longe do de George.

            Era um verdadeiro martírio, vê-lo e não poder falar-lhe, pôr sua mão sobre a dele. Com vontade de ferro, porém, permaneceu fiel ao que se determinara fazer. George não a procurara com os olhos nem uma vez, o que significava que ela devia agir de modo semelhante. O jeito era esperar e preparar-se para alguma surpresa.

            O salão, enorme e iluminado com milhares de lamparinas e candelabros, estava tomado de gente ansiosa por ver o famoso harém do sultão e conhecer de perto o filho da rainha Vitória.

            Durante o desfile, Alba notara a presença de muitos oficiais da marinha inglesa, mas não vira o comandante, embora o tivesse procurado com cuidado. E pelo visto ele não se achava ali tampouco.

            Mas George sim, esse estava tão bonito e elegante como sempre. Como faria para vir falar com ela?

            “Se é que ele vem”, disse uma vozinha irritante, que quase a fez engasgar.

            Viria, sim. George já a vira naquela tarde, perto do sultão, embora a tivesse tratado como a uma parede transparente. Essa atitude, com certeza, fazia parte de sua estratégia para salvá-la.

            Mas como era difícil manter-se indiferente. Queria gritar, fazer um escândalo, contar a todos que havia sido raptada, implorar a ajuda da embaixada. Mas é claro que não faria nada semelhante, sua sensibilidade indicava-lhe que cometeria um erro fatal, caso tentasse dar o primeiro passo.

            Forçou-se, pois, a baixar a vista. Nem conversar podia, pois Jasmine se ocupava da outra vizinha, e a moça sentada ao seu lado não falava nem uma palavra de francês. Contudo, não se mostrava hostil, pois sorria-lhe a todo o momento.

            Dali a pouco, entraram criados de libré, portando terrinas de prata, enquanto outros puseram-se a servir vinho nas taças de cristal.

            Sem querer, o olhar de Alba encontrou o do sultão, que a fitava com ares de dono. Desesperada, cerrou os punhos, enterrando as unhas na carne.

            “Meu Deus, ajudai-me. Fazei com que eu não trema nem pisque. Dai-me forças, meu Deus.”

            Aquele olhar queimava-a por dentro. Fez questão, porém, de sustentá-

            lo, enquanto escondia as mãos trêmulas sob a mesa.

            “Calma, Alba Storton. Pode ter medo à vontade, mas demonstrá-lo é proibido”.

           

            O banquete não se alongou tanto quanto Alba esperava, porque a embaixada ofereceu uma refeição tipicamente marroquina. O costume, em Marrocos, era não servir muitos pratos e terminar logo as refeições. As refeições do sultão constituíam exceção, e assim mesmo apenas quando ele se achava em seu palácio.

            Assim, em pouco mais de uma hora o café já havia sido servido.

            O embaixador levantou-se e proferiu um pequeno discurso, agradecendo a visita do príncipe e pedindo-lhe que voltasse de outra feita, em estada mais prolongada, o que daria oportunidade ao ilustre convidado de melhor conhecer aquele país encantador que era Marrocos.

            — Para terminar, Sua Alteza Real gostaria de cumprimentar todos os presentes pessoalmente, começando, como é natural, por Sua Majestade, o sultão.

            Os convidados entreolharam-se, surpresos e gratos ao mesmo tempo.

            Afinal, poucas vezes teriam uma oportunidade igual de apertar a mão do príncipe da Inglaterra e dirigir-lhe algumas palavras.

            Houve, assim, um frêmito de excitação antecipada entre todos, quando o príncipe se levantou e postou-se ao lado da bandeira da Inglaterra, perto de uma porta interna. Alba imaginou que ele escolhera aquele canto para mais tarde poder sair despercebido, numa hora em que todos estivessem conversando. Dali, decerto iria para seus aposentos descansar, ou talvez até para o porto, onde haveria um navio à sua espera.

            George, que se sentara ao lado do príncipe, agora trocava ideias animadamente com o sultão e o embaixador. Alba observou-o de longe, na esperança de que seus olhares se cruzassem ao menos uma vez, mas ele parecia bastante interessado no assunto.

            Pouco depois, um adido entregou uma lista ao embaixador, que se postou no meio do salão.

            Pigarreou, pediu silêncio e leu em voz alta:

            — Para dar início ao cerimonial de cumprimentos, convoco Sua Majestade, o rei Abu Yakub, de Marrocos.

            O sultão levantou-se do lugar e encaminhou-se para o príncipe.

            Ambos apertaram-se as mãos, enquanto Edward dizia, em tom amigável, perfeitamente audível:

            — Foi um prazer conhecer seu país. É belíssimo, e Vossa Majestade decerto sabe como cuidar dele e dos súditos. Ao mesmo tempo, aproveito para lhe apresentar os parabéns pela parada que nos ofereceu. Um verdadeiro espetáculo de cor e riqueza. Obrigado por ter vindo, e principalmente por ter trazido suas joias mais belas: as mulheres aqui presentes.

            Um tradutor apressou-se em transmitir a mensagem, enquanto o sultão sorria, com orgulho e satisfação.

            O príncipe então fez um gesto, convidando-o a entrar no salão atrás de si. Um criado abriu a porta, e Alba pôde divisar outra sala, profusamente iluminada e decorada em tons de azul. Decerto a festa se prolongaria um pouco mais ali.

            Jasmine foi apresentada em seguida. Com passinhos miúdos, cabeça baixa e mãos postas, cumprimentou o príncipe à moda oriental. Edward dirigiu-lhe algumas palavras amáveis, e ela fez uma profunda reverência antes de ser conduzida para a sala azul.

            Da sala azul vieram acordes de música de dança, e Alba sentiu sua curiosidade aguçada. Então ainda seria oferecido um baile!

            Foi quando viu que George, com muita discrição, fora se posicionar atrás do príncipe.

            “É agora!”, pensou, trêmula. “Ele está esperando minha vez de ser chamada.”

            Por mais que se esforçasse, não conseguia despregar os olhos do conde. Era como se tivesse medo de que, ao desviar a vista, ele desaparecesse num passe de mágica.

            Por sorte, George se achava atrás do príncipe, o que lhe dava uma boa cobertura. Ninguém a censuraria se a visse observando Edward com tanta aplicação.

            Sua tensão era tamanha, mas conseguia manter a cabeça alta e as mãos cruzadas com elegância no colo.

            Foi em meio a uma névoa de sonho e medo que ela ouviu o embaixador chamando-a.

            — Princesa Alba.

            Sua primeira reação foi não se levantar. Afinal, ela ainda não era nenhuma princesa, pois não havia se casado com o sultão.

            Ao notar, porém, que todo mundo esperava que ela se erguesse do assento, incluindo o príncipe Edward, decidiu-se. Levantou-se com a calma de que dispunha, forçando-se a caminhar devagar, consciente de que era, naquele momento, o centro de todas as atenções. Seguindo um instinto natural, não olhou para George, mas sorriu para o príncipe. Assim que chegou perto, fez a reverência protocolar.

            Ele tomou-lhe a mão:

            — É um prazer encontrar uma conterrânea tão bonita neste país de magia. Você, sem dúvida, contribuiu para enfeitá-lo ainda mais.

            Alba inclinou a cabeça, num agradecimento gracioso. O príncipe, sem soltar-lhe a mão, murmurou baixinho, quase num sopro:

            — Boa sorte, inglesinha.

            Com o canto dos olhos, Alba percebeu que George não se achava mais ali. Por um terrível momento, hesitou e sentiu-se fraquejar. Queria implorar por ajuda ali mesmo, gritar, sair correndo. Algo porém, avisou-lhe que tivesse paciência, pois George sabia o que fazia.

            Com a morte na alma, preparou-se para entrar no salão azul, de onde subia um zumbido de vozes alegres.

            Nesse instante, uma mão puxou-a quase que com brutalidade, empurrando-a para um corredor lateral, à esquerda da sala azul. O corredor achava-se às escuras, e por isso permanecia quase invisível para os convidados.

            A ação fora tão inesperada, que num primeiro momento Alba pensou em resistir ou protestar. Em seguida, porém, o nome de George acorreu-lhe à mente. Era como se acendesse em seu cérebro, povoado de pesadelos, uma luz brilhante. A luz da liberdade tão ansiada.

            Tentou olhar para a mão que a puxava, mas a escuridão era grande.

            Sem pensar duas vezes, pôs-se a correr tão rápido quanto suas pernas permitiam, deixando-se levar quase que num arrebatamento de intenso alívio.

            Correu, feliz, as lágrimas toldando-lhe a visão, enquanto se agarrava cada vez mais à mão salvadora. Era a mão de George. Do seu conde, que tivera a coragem de enfrentar a pessoa mais importante de Marrocos.

            Nenhum falava. Apenas corriam, a respiração de um se misturando com a do outro. Por intuição, Alba sabia que cada minuto era precioso, pois o sultão e as demais mulheres decerto logo dariam por sua falta.

            Principalmente Jasmine.

            Alcançaram um lance de escada, que subiram com a mesma ligeireza, passando pelas janelas da cozinha, onde inúmeros criados iam e vinham.

            Estavam nos fundos da embaixada, calculou ela.

            Alcançaram um jardim enorme, pouco iluminado, onde Alba parou, procurando alento. Estava quase sem fôlego.

            — Vamos, querida — murmurou ele. — Estamos perto.

            Nova correria desabalada pelos gramados, até atingirem uma carruagem. Um homem segurava as rédeas, enquanto outro abria rapidamente a portinhola. George virou-se e ergueu-a no ar, colocando-a sobre o banco, ao mesmo tempo em que saltava para dentro. Antes mesmo que o homem conseguisse bater a porta, os cavalos já saíam num galope desenfreado.

            Fitaram-se por alguns momentos, atordoados, ofegantes, um vendo o paraíso nos olhos do outro.

            Alba foi a primeira a se mover. Jogou-se nos braços do conde, soluçando, o rosto enterrado nos ombros largos e protetores.

            — Você veio! Você veio! Oh, George, tive tanto medo!

            Ele acariciou os cabelos louros, acabando de desmanchar o caprichado penteado.

            — Até que enfim, meu amor — murmurou, beijando-a mil vezes na testa, no rosto, no pescoço. — Também tive medo.

            As bocas se encontraram, sôfregas, apaixonadas.

            Em êxtase, Alba entregou-se ao beijo de corpo e alma, percebendo que ele também havia chegado à conclusão que a amava. Era como se mergulhasse num mar de felicidade, para dele nunca mais sair.

            — Você conseguiu me salvar — murmurou, erguendo os olhos em muda adoração.

            — O destino me ajudou, querida. Estava quebrando a cabeça para achar uma solução, quando meu amigo, o príncipe de Gales, chegou.

            Alba aninhou-se nos braços de George, enlevada, enquanto ele a beijava outra vez. Teve vontade de declarar seu amor ali mesmo, mas uma espécie de pudor impedia-a. Deixou-se, pois, acariciar, fechando os olhos, sentindo-se transportada para o céu.

            — O que aconteceu nunca mais se repetirá, minha Alba — disse ele, com voz enrouquecida. — De hoje em diante, você está sob minha proteção.

            Mas como teve coragem de sair do iate àquela hora da madrugada?

            — Foi uma bobagem minha, George. Ouvi um cachorro ganir e resolvi sair para ajudá-lo.

            — Pensei que fosse ficar doido quando percebi sua falta. Andei por aquele cais como alma penada, perguntando, prometendo recompensas. Por sorte, um marinheiro se lembrou de ter visto alguns criados do sultão carregando um pacote grande para um bote cheio de remadores. Aí foi fácil imaginar.

            — Então foi assim que você adivinhou — murmurou ela, em tom de admiração.

            Ela sorriu, feliz.

            George examinou-a com ar preocupado.

            — Ele… ele tocou em você?

            Alba estremeceu e aconchegou-se mais.

            — Não, não e não! Preferia morrer, George, e já tinha feito um pacto comigo mesma. Mas você veio, fez aquele convite inesperado, e aí o sultão não tinha tempo de celebrar casamento algum. Foi o que me salvou.

            — Então meu estratagema deu certo — volveu ele, orgulhoso. — O

            príncipe, quando soube de minha aflição, mostrou-se generoso e compreensivo, como você mesma viu.

            Ela soltou um risinho travesso.

            — Quando você entrou naquele salão enorme, fantasiado de soldado, pensei que fosse desmaiar. Nem queria acreditar. Estava perfeita a sua imitação.

            — É que eu fui um oficial da cavalaria, Alba. Por isso, não foi difícil me comportar como um deles. Tive de usar bigode postiço, pois sabia que mais tarde teria de conversar com o sultão e não queria levantar nenhuma suspeita.

            — O modo como agiu foi perfeito. — Sorriu ela, com meiguice. —

            Agora estou feliz, mas não imagina como sofri antes.

            — Claro que imagino, Alba. Eu sofri do mesmo modo. Até o fim tive receio de que o plano não desse certo.

            — Será que o sultão não vai nos seguir?

            — Daqui a minutos estaremos a bordo do Mermaid,  não se preocupe.

            Nenhum navio dele é tão rápido.

            Houve um instante de silêncio em que os olhos de George brilharam com intensa ternura.

            — Seja como for, não quero mais correr riscos, meu bem.

            Afastando-se um pouco, fitou-a nos olhos, muito sério.

            — Você será minha mulher. Aceita?

            Ela prendeu a respiração, sem querer acreditar no que ouvia.

            — Acho que me apaixonei por você logo no primeiro dia, dentro do banheiro. — Aqui ele deixou escapar uma risada. — Pouco romântico, não?

            Mas é a pura verdade. E fique sabendo que você estava linda, ao lado daqueles vidros de sais e perfumes. Parecia uma sereiazinha fugida do fundo do mar.

            Alba ouvia, abrasada de amor.

            — Não confessei meu amor antes porque me custou a perceber a verdade, minha Alba. Confesso que tinha um pouco de medo de me casar, como bem se lembra de nossas conversas.

            — Eu também, mas mudei de ideia lá no palácio. Foiquando descobri que o amava.

            — Então você me ama? De verdade?

            — Amo, George, com todo o meu coração. Eu o amo com loucura.

            — Meu amor, minha preciosa! Vamos ser o par mais feliz do mundo, vai ver. Minha proposta é nos casarmos na Grécia, o país do amor. Depois disso, minha querida, nada mais importará em nossa vida, a não ser nossa felicidade.

            — Grécia! — repetiu ela, em êxtase. — Céus, é muita felicidade junta!

            Depois, mergulhando os olhos límpidos nos dele:

            — Tem certeza do que vai fazer, não é? Mesmo com tantas mulheres interessadas em você?

            Ele soltou uma risada feliz.

            — Nem uma delas se compara com a minha doce Alba.

            — Obrigada, George. Não sabe como me faz bem ouvir essas palavras.

            E agora deixe-me repetir: obrigada por vir me salvar. Tinha tanto medo do sultão! Ao mesmo tempo, alguma coisa me dizia que você estava a caminho de Marrocos.

            — Se sabia, por que sentiu medo?

            — Receava ser otimista demais, acho. Imaginava que você não quisesse se indispor com o sultão, por causa da rainha. Ainda por cima, havia seu problema com o comandante Devlin.

            Uma sombra passou pelos olhos do conde.

            — Esse homem está por trás de toda a história.

            Alba ergueu a cabeça com vivacidade.

            — Como assim?

            — Foi ele que falou ao sultão a seu respeito. Falou de sua beleza até despertar-lhe a cobiça. O sultão, que sempre foi um homem mimado, mandou raptá-la, mesmo sabendo que se arriscava, porque afinal de contas eu sou um conde no Reino Unido. Obra e graça do comandante, que me queria como genro a qualquer preço.

            — É quase inacreditável! — exclamou Alba, indignada. — Esse homem não faz ideia do mal que me fez. Se eu fosse forçada a me casar com o sultão, acabaria me matando, e a culpa seria toda dele.

            George abraçou-a com ternura.

            — Vamos esquecer Devlin, preciosa. Quando ele souber que celebramos oficialmente o casamento na Grécia, vai desistir de mim. É minha intenção mandar uma nota a todos os jornais de Londres, confirmando nossa união. O comandante acabou perdendo sua grande batalha, portanto não devemos mais gastar tempo com essa figura. Ele que procure um genro em outro lugar.

            Alba sorriu, satisfeita.

            — Sim, estamos juntos agora, e ninguém no mundo poderá nos separar de novo.

            — Ninguém, minha Alba.

            A carruagem deteve-se, e ela olhou pela janela, admirada. A noite espalhava estilhaços de luz sobre a água que ondulava a seu lado. De repente, com um gritinho de alegria, Alba apontou para fora.

            — É ele, George! O seu Mermaid!  

            — Nosso. Alba. Nosso — revidou o conde, saltando da carruagem. —

            Tire essas joias, querida. Elas pertencem ao sultão, e a última acusação que quero ouvir é que sou ladrão.

            — Tem toda a razão. Aliás, elas me dão arrepio.

            Dizendo isso, tirou o fabuloso colar e entregou-o nas mãos do conde.

            — A tiara caiu durante nossa correria, George. Sobraram os brincos e este anel.

            Ele piscou-lhe um olho maroto, e pôs a mão no bolso, dele extraindo a preciosa tiara.

            — Por acaso não está se referindo a esta?

            Alba encarou-o, assombrada.

            — Mas… como?

            — Você nem percebeu, minha bobinha. Eu mesmo a tirei e guardei, no meio da correria, porque notei que estava escorregando de sua cabeça.

            Ambos riram, descontraídos, enquanto ele abria o lenço e guardava ali o colar e a tiara. Alba tirou os anéis e desprendeu os brincos das orelhas, entregando-lhe tudo.

            — Você confia neles? — perguntou, num cochicho, apontando para os cocheiros.

            — Inteiramente — replicou ele, fazendo uma trouxinha com o lenço.

            — São tão fiéis ao embaixador quanto à Inglaterra. Fique sossegada, que as joias serão entregues ao sultão.

            Em seguida, o conde chamou um dos cocheiros.

            — Preste bem atenção, Ahmed. O embaixador está esperando esta encomenda, que é da maior importância. Esconda-a dentro de sua roupa e volte o mais depressa que puder ao palácio. Entregue-lhe a encomenda, dizendo “A sereia está em casa”. Entendeu? Repita, por favor.

            — A sereia está em casa.

            — Isso — aprovou o conde, entregando-lhe um saquinho cheio de moedas. — Vá em paz, e obrigado por tudo.

            Era uma recompensa mais do que generosa, e Ahmed se inclinou três vezes, agradecendo efusivamente.

            — Depressa, Ahmed — riu George.

            Em pouco, a carruagem sumia na estrada, deixando uma nuvem de poeira.

            George estendeu-lhe a mão, amoroso.

            — Venha, querida. O Mermaid  nos espera. Temos de fugir deste país o quanto antes.

            Assim que subiram a bordo, a prancha de acesso foi recolhida e os motores começaram a roncar.

            — Graças a Deus! — exclamou o capitão, assim que viu Alba. —

            Milorde avisou que teríamos de zarpar depressa agora à noite, mas nada me falou da senhorita. Confesso que estava com medo de que ele nunca mais a encontrasse.

            — Muito bonito! — ralhou George, rindo. — Que bela confiança tem em mim, capitão!

            — Tenho muita — rebateu o outro, sem se alterar. — Só que eu pensava que super-homens não existiam. Estou vendo que tenho que começar a acreditar neles…

            Riram os três.

            — Pois é, capitão — interveio Alba. — Estou de volta, sã e salva, graças a George.

            — A senhorita precisava ver a aflição de milorde quando descobriu seu desaparecimento. Garanto-lhe que toda atripulação está contente de vê-

            la de novo a bordo.

            — Obrigada, capitão, é muito amável.

            — Se quiserem descer ao salão, mandarei preparar uma bandeja com champanhe e caviar.

            — Champanhe, todos nós queremos — asseverou o conde, abraçando Alba. — Quanto ao caviar, estamos dispensando. Concorda, minha preciosa?

            — Concordo. Não tenho fome alguma.

            Desceram de mãos dadas, num silêncio eloquente. Assim que o criado trouxe o champanhe, George serviu duas taças, entregando uma para Alba.

            — A nossa felicidade, Alba.

            — A nossa, George.

            A lua espiava por trás da vidraça, boiando tranquila no céu salpicado de estrelas.

            — Estou tão feliz de estar aqui, que acho que não quero mais nada da vida — murmurou ela, fechando os olhos. — Meu anjo da guarda ficou comigo o tempo todo, mesmo nas horas em que eu pensava que ele tinha me abandonado.

            — Por falar nisso, achei um anjinho adorável sobre sua mesa de cabeceira.

            — É um presente de mamãe. Gosto demais desse anjo, e senti terrivelmente a falta dele.

            — Vai ver ele ficou aqui de propósito, só para me inspirar e me ajudar a encontrá-la.

            Ela sorveu um gole, pensativa.

            — Pode bem ser. Por que não?

            — Pois vamos brindar ao seu anjo.

            Depois do brinde, Alba pousou a taça sobre a mesa e abraçou George.

            — Tem certeza de que quer mesmo se casar comigo?

            — Tenho, Alba. Venho pensando nisso há dias, e minha certeza se baseia no amor que sinto por você. Gosto de sua presença, do seu perfume, gosto de você inteirinha. Em uma palavra, estou enamorado. Demorei a admitir esse fato para mim mesmo, porque queria ter certeza.

            — Certeza de quê?

            — De que você me ama pelo quesou, e não pelo que tenho.

            Alba deu uma risada argentina e provocou-o, brejeira:

            — Bom, a esta altura eu podia ter um título bem mais importante que o seu, além de ganhar joias e roupas como você nunca viu na vida.

            — É, tive uma boa amostra no banquete. São joias fabulosas, não há dúvida. Mas para ter tudo isso, você seria obrigada a aceitar o sultão.

            Ela estremeceu.

            — Nem por brincadeira quero falar nisso. Apesar de estar aqui, ainda tenho a sensação de que ele vai descer do céu num tapete mágico para me tirar de você.

            — Minha bobinha! — exclamou o conde, abraçando-a. — Mesmo que existissem, tapetes mágicos não gostam de donos malvados. Pelo menos, é o que me lembro histórias que li.

            Embora gracejasse, George pôde perceber, em toda a extensão, o terror por que ela passara. Beijou-lhe a testa com ternura, murmurando:

            — Esses dias terríveis, minha Alba, acabaram se tornando gloriosos para mim. Porque foi por causa de sua ausência que descobri o quanto estava apaixonado. Não aconteceu o mesmo com você?

            — É verdade. Só no palácio do sultão pude me convencer de que o amava.

            — Então! Não digo que seria preciso acontecer esse rapto para descobrirmos o amor, não é isso. Mas ele apressou o que estava para vir. Por isso, de certa maneira, sou até grato ao nosso amigo Abu.

            — Amigo! — repetiu ela, escandalizada.

            George caiu na risada, perdido no brilho do olhar de Alba.

            — Agora, vá dormir. Você deve estar exausta.

            — É estranho. Deveria estar, mas me sinto bem, sem vontade de me deitar.

            — É a agitação do dia. Vou mandar preparar um chá calmante, e você vai dormir com os anjinhos.

            Alba suspirou, tonta de felicidade.

            Quando se deitou, tomou o anjo de biscuit  nas mãos e apertou-o contra o peito, numa prece fervorosa de agradecimento. Rezou para o anjo e para a mãe, que decerto interviera lá do alto com sua doçura e meiguice. Em seguida, caiu num sono reparador.

           

            Acordou tarde no dia seguinte, revigorada, sentindo-se dona do mundo. Os fantasmas e pesadelos haviam sumido de sua cabeça como num passe de mágica. Agora antevia um futuro tão brilhante e bonito quanto o sol daquela manhã, despejando ouro e esperança sobre o azul do mar.

            Aspirou com força a brisa marinha, deixando os cabelos brincarem selvagemente ao vento. A vida toda esperara pelo amor verdadeiro, e agora o encontrara na pessoa de George Willon. Amava-o com toda a força da alma, pela sua bravura, bondade e cavalheirismo.

            Afinal, poucos conseguiriam repetir a façanha da véspera. George havia resolvido um problema quase insolúvel como se fosse uma brincadeira de criança. Fora um resgate corajoso, cheio de lances dignos de um romance de capa e espada. E no fim, sua fuga não provocara nenhum escândalo, nenhuma briga, nenhuma comoção. Perfeita, sob todos os pontos de vista.

            A costa de Marrocos agora não passava de um borrão azul no horizonte.

            — Adeus, Jasmine — murmurou baixinho, com ternura. — De vez em quando hei de me lembrar de você, de sua bondade e compreensão.

            Passaram o dia conversando, encantados, e à tarde nadaram em meio a risos e brincadeiras.

            No dia seguinte, ainda cedo, Alba descia numa ilha da Grécia abraçada a George, sabendo que vivia os momentos mais belos de sua vida.

            Juntos foram a um joalheiro conhecido do conde, que tinha peças belíssimas e antigas. George escolheu um conjunto de colar e brincos que a fez protestar.

            — Não quero tanta riqueza! Para mim, basta uma aliança.

            — Mas para mim não é o bastante. Nada é demais para minha doce Alba. Depois, não quero que se arrependa de ter perdido aquelas joias de Ali Babá.

            — George!

            Ele a beijou, divertido.

            — E agora vamos para uma igrejinha encantadora, nos arredores de Atenas. O capelão é meu amigo há anos.

            O templo, pequenino e antigo, ficava no alto de uma colina. Rodeado de ciprestes, exalava paz espiritual e convidava à meditação.

            O capelão, um velhote rosado, de óculos, acolheu os apaixonados com alegria.

            — Quando querem se casar?

            — O mais cedo possível — apressou-se a responder George. — O

            senhor entende, não é, padre Brown?

            O outro riu, malicioso.

            — Claro que sim, meu filho. Nesse caso, por que não esta tarde? Véus e grinaldas são enfeites terrenos, que podem ser dispensados. O importante são os enfeites do coração, e esses eu adivinho que existem em abundância nos dois.

            George olhou para Alba, numa consulta muda.

            — Só quero ser sua mulher, querido — disse ela. — Nada mais tem importância para mim.

            — Então está combinado, padre. Estaremos aqui às seis da tarde, quando o sol começar a se pôr. Agora temos uma coisa muito importante para fazer.

            Admirada, Alba perguntou-se que outra surpresa estaria reservada para ela.

            — Aonde vamos, querido?

            — Ao iate.

            — Ao iate! Mas… bem, você quer almoçar lá?

            Ele riu, feliz.

            — Não, meu amor. Quero levá-la para visitar o templo do Deus do Amor, na montanha de Apoio. Fica ali, naquela ilha maior, vê?

            Ela deixou escapar um gritinho feliz.

            — Oh, George! Sempre sonhei com esse templo! Como foi que adivinhou?

            — Fácil, porque você é minha alma gêmea.

            — Dizem que Apoio abençoa os casais que sobem ao templo, e que o amor entre eles nunca morre — murmurou ela, perdida de encanto.

            — É essa a ideia. Vamos ser abençoados tanto na capela quanto no templo de Apoio. Depois disso, nada poderá nos separar.

           

            Quando o Mermaid  ancorou ao lado da ilha, pouco mais de uma hora depois, o sol brilhava em toda a sua plenitude, banhando a ilha de ouro e azul. Subiram a pequena trilha que os levaria até o templo, tomados de súbito respeito silencioso. Quando atingiram o topo, Alba soube que aquele era, de fato, um lugar mágico. Sentia-se levitar ao lado de George, puxada pela mão de Apoio. Do templo, restavam apenas algumas ruínas, mas a força do deus parecia dominar a ilha toda.

            Mão na mão, foram visitar o famoso lago dos cisnes, ao lado das ruínas. Ofuscada pela reverberação do sol sobre o espelho estilhaçado da água, Alba teve de fato a impressão de que enxergava um belo cisne de penas brilhantes boiando, majestoso, na fímbria do horizonte. Dizia a lenda que quem enxergasse um cisne, receberia a graça do amor eterno.

            George rodeou-lhe os ombros com um braço protetor.

            — Eu a amo, Alba. E sei que nossa união está abençoada, porque acabo de ver um cisne.

            Ela não pôde responder, presa de intensa emoção.

            O céu espelhava todo o esplendor da tarde de outono quando Alba caminhou pela nave da pequena capela. Avançava com passos leves e graciosos, pois que eram os passos de uma mulher na plenitude da felicidade.

            O capelão esperava risonho, mais rosado que nunca, ao lado de um orgulhoso e elegante George Willon, trajando seu belo uniforme de comandante. Quando Alba chegou ao altar, ele a acolheu com o sorriso de quem compartilhava a mesma felicidade.

            Ajoelharam-se diante do padre, que abençoou aquela união nascida do sofrimento, da fé e do amor. E no momento em que proferiram as palavras eternas, o sol jorrou pelos vitrais, inundando-os de uma festa de cores e luz.

            As sombras do passado foram banidas para dar lugar ao brilhante futuro que os esperava.

            Radiante, Alba ergueu o rosto para o homem que amava, pondo no olhar toda a ternura e adoração que sentia naquele momento.

            — Veja, minha Alba — murmurou o conde. — O sol veio nos trazer um sinal. Nossa vida será brilhante, cheia de cores e alegrias.

            E quando o entusiasmado capelão os declarou marido e mulher, ela entreabriu os lábios, num sorriso apaixonado.

 

                                                                                            Barbara Cartland  

 

                      

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