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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Fugindo do Ninho / Richard Back
Fugindo do Ninho / Richard Back

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Fugindo do Ninho

 

  HÁ MUITO TEMPO MINHA VERDADE vem sendo refinada. E eu a tenho explorado e a exercitado com esperança e intuição, filtrando-a, condensando-a e refletindo sobre ela da melhor maneira de que sou capaz; por fim, processo-a em minhas engrenagens, prudente a princípio, para ver no que vai dar.

       Trancos e solavancos, claro, eram mesmo inevitáveis, uma ou duas explosões no caminho, em que aprendi o quão volátil pode ser qualquer filosofia manipulada caseiramente. Chamuscado, porém mais experimentado, volto um pouquinho no tempo para perceber que venho, ao longo de boa parte da vida, alimentando minha mente com esse combustível peculiar. Mesmo hoje, cautelosamente imprudente, gota após gota, venho aos poucos aumentando a dose de octano.

       No entanto, não escolhi esquematizar minhas próprias verdades pelo prazer da coisa em si, ou porque nunca tenha me abastecido de combustível comum. Impetuoso na busca de razões que justifiquem o ser e que me dêem motivos pelos quais viver, escarafunchei as religiões ainda adolescente e estudei Aristóteles, Descartes e Kant em uma escola noturna, quando ainda era piloto de frente da Força Aérea.

       Concluído o último curso, passos pesados e lentos sobre a calçada, encontrava-me tomado por uma estranha depressão. Tanto quanto pude entender nas salas de aula, aqueles cavalheiros sabiam menos sobre quem somos e por que estamos aqui do que eu próprio; e olha que eu tinha apenas uma vaga idéia.

       Aqueles cavalheiros eram donos de intelectos sisudos, cruzando as estratosferas acima do teto dos aviões de combate do meu comando. Desejava, desavergonhadamente, tomar-lhes emprestadas suas idéias para estabelecer as minhas próprias, mesmo porque era tudo o que eu poderia fazer, prestar atenção nas aulas para me manter impedido de gritar: “Quem se importa?”

       O Sócrates prático, eu o admirava pela sua escolha em morrer por um princípio, quando escapar seria a atitude mais fácil. Os outros não se mostravam tão admiráveis. Todos aqueles calhamaços, letras microscópicas e, finalmente, a sábia conclusão deles: Agora, Richard, tudo depende de você. Como poderíamos saber o que é melhor para você?

       Concluídos os estudos, caminhava sem rumo pela noite, os passos ecoando em um compus vazio, nenhum lugar para onde eu quisesse ir.

       Tomei esse curso como um guia, pensei, eu precisava de uma bússola que me conduzisse pelas selvas. Para mim, religiões sistematizadas eram pontes oscilantes, pedaços de pau mal-ajambrados que cederiam à primeira pressão, uma questão infantil revolvendo o mistério impossível: por que as religiões pendem para questões irrespondíveis? Não se sabe que o irrespondível não é resposta. 

       Seguidamente, deparava-me com uma nova teologia e sempre me via diante do impasse: devo agarrar essa crença e fazer dela a minha vida?

       Cada vez que esse impasse se impunha, colocava meu peso sobre a ponte, as tábuas tremiam e rangiam; então, todas de uma só vez, caíam diante de mim, como que espanadas, rolando abaixo, escapando de vista.

       Nesse ponto, agarrava-me ao mundo, agachando-me de volta à beirada abaixo da qual estava o abismo, grato por não sucumbir à queda. Que sabor teria entregar o coração a uma religião, que garantia que o planeta se dissolveria em fogo quando chegasse o 31 de dezembro, e então acordar no Ano-Novo entregue ao canto dos pássaros? Constrangimento, este o sabor que teria.

       Atrás de mim, ao caminhar no breu da noite, as passadas de uma mulher. Esgueirei-me à direita para deixá-la passar.

       Agora que concluí meus cursos em vinte filosofias, pensei nas mais brilhantes estrelas da história, e em cada uma delas, um fracasso. Tudo o que eu pedia era que aqueles cavalheiros me mostrassem uma maneira de pensar o universo de modo a me guiar pela vida cotidiana — não é uma tarefa tão difícil para um Tomás de Aquino ou para um Georg Wilhelm Friedrich Hegel, diria você. As respostas deles funcionam para eles, mas suas vidas cotidianas estavam inscritas em uma esfera diferente da minha.

 

       — Seus estudos não serviram para nada? — perguntou ela. — Eles simplesmente te ensinaram o que você vem esperando aprender todos esses anos, e você nem mesmo sabe o que é?

 

       Um instante de embaraço... a mulher não estava passando por mim, mas sim escutando meus pensamentos!

 

       — O que foi que disse? — perguntei da forma mais fria possível.

 

       Cabelos negros com uma ousada mecha loira, vinte anos mais velha que eu, distinta, não muito bem vestida, desavisada do que eu faço com pessoas que ousam demolir minha quietude.

 

       — Eles te ensinaram o que você se propôs a aprender! — disse ela. — A sua vida está mudando esta noite, não pode sentir isto?

 

       Olhei para trás ao longo da calçada, ninguém mais à vista. Ela, evidentemente, encontrara a pessoa errada. Não era da aula de filosofia, não era ninguém que eu tivesse visto antes.

 

       — Não creio que nos conhecemos — disse a ela. Em vez de surpreender-se, riu.

 

       — Creio que não nos conhecemos. — Ela agitou a mão diante dos meus olhos. — Eles te ensinaram que não têm respostas! Não entende isso? Ninguém tem respostas para você, exceto um!

 

       Que os céus me ajudem, pensei. Ela vai dizer que Jesus Cristo é o meu Redentor e que ela me purificará com o sangue da ovelha. Será que teria de evocar citações da Bíblia para me ver livre dela?

       Suspirei.

 

       — Quando Jesus disse Ninguém alcança a Graça divina se não for por mim, ele não se referia ao ex-andarilho carpinteiro mas sim à busca do conhecimento do espírito em...

 

       — Richard! — exclamou ela. — Por favor! Petrifiquei-me e a encarei, aguardando uma reação. Seu sorriso não cedeu, os olhos faiscavam. Ela era bem mais bonita do que distinta, pensei. Por que não havia notado? Meu tédio era o que desfigurava os outros?

 

       Enquanto observava, as luzes da rua deviam ter se alterado... ela não era apenas bela, era linda.

       Ela esperou, então, até ganhar minha atenção totalmente. Era ela, pensei, e não a luz que se transfigurava? O que estava acontecendo?

 

       — Jesus não tem a verdade que você procura — disse ela. — Lao-tzu ou Henry James também não a têm. O que terá descoberto hoje, se é que abriu os olhos para algo mais do que uma bela face, é... o quê? Ela esperou.

 

       — Eu a conheço, não? — falei.

 

       Pela primeira vez naquela noite, ela se contraiu.

 

       — Pode estar certo que sim!

 

       Foi assim, tanto quanto posso me recordar. Alguém sempre me seguindo, esbarrando em mim quando eu dobrava as esquinas, alguém aparecendo nos metrôs ou nas carlingas dos aviões para me revelar qual a moral do mais insignificante acontecimento.

       No início pensei que fossem fantasmas, obras da minha própria imaginação, e, a princípio, de fato eram. Que surpresa, quando as próximas dessas diversas almas instrutoras revelaram-se tão mortais e fisicamente tridimensionais quanto eu, surpresa pelo fato de se mostrarem tão chocadas ao depararem comigo no meio de suas aventuras quanto eu ao me deparar com elas no meio das minhas.

       Depois de um certo tempo não saberia dizer se a pessoa que cuidava de mim e de minhas lições era mortal ou não, e hoje admito que são de carne e osso até que desaparecem no meio de uma frase ou me transportam rapidamente para mundos alternados só para ilustrar algum interessante ponto da metafísica.

       No final das contas, claro, não importa muito quem sejam. Algumas pessoas são anjos e deixam isso claro tão logo cruzam nosso caminho. Outras, eu as conheci durante anos até poder perceber-lhes as penas, outras eu as tomava por evangelhos vivos até o instante em que percebia que não passavam de maus presságios.

       Este livro é a história de um desses encontros, ocorridos dentro da minha pequena refinaria de pensamento, um livro sobre o que aprendi com isso e de como tal lição mudou minha vida.

       Se as minhas lições lhe serão úteis? Serei eu um anjo camarada, projetado em forma de fogo na estrada em que você também está trafegando, ou serei mais uma dessas estranhas criaturas andando na rua? Algumas respostas jamais saberei.

                         

       PAREI NO CUME DA MONTANHA, vigiando o vento. Lá longe, no horizonte, ele, o vento, enrugava suavemente o lago, soprando em minha direção. Fazia tremular algumas colunas de fumaça que saíam das chaminés da cidade, setecentos metros abaixo, e agitava as folhas verdes das árvores ao pé das colinas. À beira do penhasco, delicadas birutas de seda agitavam-se ao vento em ciclos com as térmicas de passagem, ora indolentes, ora enérgicos. Melhor que haja vento quando eu saltar do penhasco, pensei; melhor esperar por uma boa rajada.

       — Quem é a cobaia hoje, você ou eu?

       Virei-me e sorri para Ceejay Sturtevant, uma praticante de vôo livre cuja altura não ia além dos meus ombros, amarrada ao arnês de seu paraglider e enfiada em capacete e botas. Um ursinho de pelúcia esfarrapado espreitava do bolso do seu traje de vôo; o paraglider de Ceejay, uma combinação colorida de nylon, estava pousado cuidadosamente ao chão, um pouco atrás.

       — Estou esperando um pouco mais de vento — falei. — Vá em frente, se quiser.

       — Obrigada, Richard — disse ela. — Tudo OK?

       Deixei-lhe o caminho livre.

       — OK.

       Parou por um instante, olhando para o horizonte; por fim, de uma só vez, avançou na direção do penhasco. A princípio, a impressão era a de um convincente suicídio, ela correndo para o seu fim nas rochas lá embaixo. No momento seguinte, o velame do glider abriu-se num estalo e o tecido flácido transformou-se num turbilhão amarelo-canário e rosa fosforescente, sobre sua cabeça formou-se uma nuvem de tecido transparente, surgindo de súbito a imensa pipa chinesa para resgatá-la daquilo que seria uma morte sem sentido.

       Quando suas botas atingiram o precipício, ela já não estava mais correndo e sim voando, suspensa no ar pelos cabos da armação em cama-de-gato que brotavam do arnês e iam até o velame gigante.

       Seu marido observava enquanto colocava-se dentro do próprio arnês.

       — Vamos lá, vai fundo, Ceejay! — gritou ele. — Encontre a janela para nós!

       O primeiro a pular da montanha é o que chamamos de a cobaia do vento; o resto fica observando, rezando por ventos ascendentes perto dos declives, um dia para longos vôos arrojados. Falhando as preces, é um vento calmo, para planeios simples até o vale, depois caminhar novamente até o cume ou pedir carona aos motoristas de bom coração que sobem a estrada da montanha.

       O brilhante velame girou e começou a subir. Cumprimentos de nós seis que esperávamos para voar. Então, o velame descaiu novamente, planando ao longe. Suspiros. Acasos assim indicavam que estávamos num daqueles dias em que só os mais hábeis podem permanecer no ar por meia hora depois do lançamento.

       Observei o vôo de Ceejay por um instante, depois percebi minha térmica bordejando por sobre a montanha: folhas tremulando, os galhos deslocando-se à sua passagem, as birutas erguendo-se para a ascensão. Hora de voar.

       Dando as costas ao vento, puxei com vigor os batoques e meu velame ergueu-se do chão com o etéreo farfalhar da vela de fortuna de uma nau lançada ao céu.

       Foi como se eu tivesse puxado minha própria nuvem de cirro ao topo do mastro, um arco-íris de seda de dez metros de um extremo a outro do velame, as birutas verde-amareladas tremulando atrás da cauda. A asa pulsava acima enquanto eu permanecia na brisa: nada de penas, nada de cera — a pipa que teria impedido Ícaro de cair. Uma pipa inventada com três mil anos de atraso para ele, pensei, e no tempo certo para mim.

       Espiei por entre o arco-íris, verifiquei se os batoques estavam desembaraçados, e voltei a enfrentar o vento.

       Maravilhoso modo de vida. Curvei-me dentro do arnês e arrastei meu glider até a beira do penhasco, tão lento e pesado como um autêntico escafandrista inclinando-se para se locomover debaixo d'água. Por fim, passos deliberados rumo ao ar além do declive. Em vez de despencar pelo precipício, o arco-íris alçou-me, e levitamos à velocidade de um passeio para fora da montanha, acima das copas das árvores.

       — Vamos lá, Richard! — gritou alguém.

       Puxei levemente um dos pinos de freio, virei-me e sorri para eles através da repentina brecha de ar, na direção em que estavam posicionados, cinco praticantes de vôo livre em trajes de seda e envoltos em linhas e cabos, ansiosos para arremessar seus tecidos impermeáveis ao vento e lançar-se à deriva aos céus.

       — Muitas janelas — gritei de volta.

       Então minha rajada deslocou-se, e o ar ascendente foi perdendo o vigor.

       Ao nível dos olhos, os pilotos no topo da montanha elevaram-se sobre mim enquanto eu planava para baixo em busca de térmicas. Ao norte voava Ceejay, inclinada numa tensa espiral, mal conseguindo manter a altitude. Abaixo de mim, a parede da montanha se distanciava e o abismo lá no fundo parecia aguardar o frágil veleiro aéreo.

       Dois anos atrás, pensei, isto teria sido pura adrenalina, estar suspenso no ar por cinqüenta cordas num salto de oitocentos metros rumo à terra. Agora, no entanto, tratava-se de um indolente e suave sonho de vôo: nada de motores, nenhum casulo de aço e vidro à minha volta, apenas a visão das cores flutuando no ar acima da minha cabeça

       Um corvo surgiu brevemente ao lado, a uma distância entre o medo e a curiosidade. Vividos olhos pretos, a cabeça movimentando-se perplexa diante da visão: um agricultor arrebatado pelo arco-íris!

       Inclinei-me para trás dentro do arnês como se fosse uma criança num gigantesco balanço, observando a superfície da montanha erguer-se acima de mim, desistindo da busca de força ascensional. Era o sonho que costumava ter quando criança nos campos, com minhas pipas feitas de jornal Ser mais veloz do que as águias fazia parte do sonho, mas também sonhava com vôos mais lentos que os das borboletas, uma tenra relação de amor com o céu

       Lá embaixo surgiu o verde campo de feno que usávamos como área de pouso. Estacionados no acostamento da estrada estavam aqueles que paravam para observar os vôos. Ao me aproximar da grama, ainda a trinta metros de altura, contei cinco carros esperando e um sexto reduzindo a velocidade para estacionar. Parecia um tanto estranho que qualquer um lá no chão fosse olhar para cima, tornando público o meu vôo particular. Exceto em shows aéreos, sempre me senti invisível quando voando

       Dez minutos após ganhar o ar, eu me retirava dele. Reduzi para zero a velocidade do glider ao me aproximar da superfície da grama, colocando um pé no chão, em seguida o outro. O velame manteve-se protetoramente sobre a cabeça até que eu atingisse o solo com segurança. Então, ao puxar com força os cabos da suspensão traseira, o glider voltou ao estágio anterior, transformando-se outra vez em tecido flácido, desfalecida em feixes de nuvens e cor ao meu redor.

       Lá em cima, Ceejay e os demais eram pequenos pontinhos no céu, dependurados, buscando as janelas de ascensão e as descobrindo, trabalho duro, térmica por térmica. Eram pilotos mais tenazes do que eu, e a recompensa pelo seu trabalho era o fato de permanecerem no ar, enquanto eu já me encontrava no chão.

       Estiquei o paraglider, dobrando as pontas para o centro, até que elas convergissem e formassem um quadrado fofo sobre o feno; espremi o ar para fora e o coloquei de volta na minha mochila.

       — Quer uma carona até o topo?

       Uma voz vinda do céu do vôo livre me prometia economizar uma hora e meia de caminhada.

       — Obrigado! — Virei-me e deparei com um sujeito apequenado, cabelos grisalhos, os olhos amigáveis de um companheiro de colégio, debruçado sobre seu carro com os braços cruzados, observando-me.

       — É um esporte e tanto — disse ele. — Lá em cima vocês se parecem com fogos de artifício.

       — É divertido — admiti, colocando a alça da mochila num dos ombros e caminhando em direção ao carro dele. — Não imagina o quanto aprecio a carona.

       — Posso imaginar, e fico feliz por poder oferecê-la. — Ele estendeu a mão. — Meu nome é Shepherd.

       — Richard — respondi.

       Coloquei a mochila no banco traseiro e me ajeitei no assento de passageiro do enferrujado Ford 1955. Um livro jazia perto dele, sobre o roto estofamento.

       — Dobre à esquerda na rodovia — orientei. — A próxima entrada fica a um quilômetro e meio, mais ou menos.

       Deu partida no motor, engatou uma ré, dirigiu lentamente para a rodovia, dobrando por fim à esquerda.

       — Dia maravilhoso, não acha? — perguntei. Quando alguém é gentil o suficiente para me dar uma carona até o cume da montanha, é de bom tom ser meio tagarela.

       Ele permaneceu mudo por instantes, como se estivesse concentrado na estrada.

       — Você já encontrou alguém — disse afinal — como as pessoas que aparecem em seus livros?

       Meu coração foi a pique. Não é o fim do mundo quando estranhos sabem o seu nome. O que te conduz às Celebridades Anônimas é o fato de você nunca estar certo se este estranho em particular sabe disso, e o que pode acontecer em seguida. Zangue-se com uma flor e estará sendo pomposamente tolo. Envolva-se com um maluco de olhos espiralados e estará se atirando num campo minado.

       Por um centésimo de segundo, ponderei que Shepherd seria um maluco e que eu deveria me arrancar dali, abrindo a porta e me atirando na rodovia. No centésimo seguinte, resolvi correr o risco. Se fosse o caso, ainda poderia saltar mais tarde, e ponderei que me atirar para fora do carro não seria a resposta adequada para sua pergunta.

       — Todas as pessoas nos meus livros são reais — falei, demonstrando honestidade para ser convincente —, embora algumas delas eu nunca tenha encontrado no espaço real.

       — Leslie é uma pessoa real?

       — A pergunta favorita dela. — Aonde ele queria chegar? A conversa, a cada minuto, tornava-se cada vez menos inocente. — Você pode virar aqui, esta é a estrada da montanha. E suja e um tanto esburacada em alguns trechos, mas no geral é bastante razoável. Mas vai desejar ser cuidadoso lá no topo, porque, como a prática do vôo livre é tão arrebatadora, você ficará amarrado antes que consiga dirigir de volta, e nunca mais será o mesmo. Shepherd ignorou a brincadeira.

       — Só estou perguntando porque sou uma daquelas pessoas sobre as quais escreve. Estive com você quando era garoto. Sou um anjo instrutor.

       Coloquei-me em estado de Alerta Máximo, as defesas levantadas mais depressa que um raio.

       — Vamos parar com as perguntas — pedi. — Fale diretamente. O que você quer?

       — O problema não é o que eu quero, Richard, mas o que você quer.

       O carro avançava com lentidão suficiente para que eu pudesse pular sem o menor risco de me arrebentar. Ainda assim, pensei, ele não havia me xingado de anticristo, estava provavelmente desarmado, e além disso prevalecia ainda a minha calorosa primeira impressão. Ele falava como um cabeça-de-vento, mas eu gostava do cara.

       — Se você é um anjo instrutor, então tem as respostas — retruquei.

       Ele se voltou para mim por instantes e sorriu, surpreso.

       — Exatamente! Claro que as tenho! É por isso que estou aqui! Como sabia disso?

       — Eu faço as perguntas — repliquei. — Eu pergunto, você responde, tá? — Se Shepherd era um personagem de meus livros, eu queria descobrir.

       — Claro, está bem — concordou ele.

       — Eu tinha dois bichos de pelúcia quando garoto. Como se chamavam?

       — Seu camelo chama-se Cammie — respondeu ele —, sua zebra chama-se Zeebie.

       — O primeiro motor que fabriquei. De que tipo era? — Uma pegadinha.

       — Um reator de dezoito polegadas — disse ele —, quatro polegadas de diâmetro, as junções soldadas, montado no extremo de um contrapeso de base pentagonal. Você sabe que o aquecimento vai derreter a solda e que o motor vai explodir em um minuto ou dois, mas antes que exploda você vai ver se a idéia funciona. O combustível é álcool. Explode, certo. Fogo por todo o lado no quintal...

       Ele falava enquanto dirigia, descrevendo meus foguetes, minha casa, meus amigos e família e meu cachorro; contou fragmentos de meu passado em detalhes que nem eu mesmo lembrava até ele começar a falar.

       Os personagens dos meus livros são reais, com certeza, mas alguns são como táquions1... há uma dimensão na qual eles existem, cada um deles uma poderosa expressão de vida em seus mundos tanto quanto somos no nosso. Nos livros eles penetram na minha dimensão e alteram esse quadro.

       Shepherd não pertencia a nenhuma dessas categorias ou então era o maior mentalizador do mundo.

       — ...o oleandro espalha-se pelos cantos da parede. Pendurado num suporte da chaminé há um mobile que você construiu a partir de um pedaço de cobre e arame de solda. Elipses curvadas... você o chama de Radar. Na garagem estão maços de pinturas e desenhos a carvão, o dever de casa de sua mãe, do curso de artes. A caixa de madeira, você a usa como entrada secreta para a casa...

       — Pergunta.

       Ele parou de falar de imediato e seguimos em silêncio, sombreados ao meio-dia por sempre-vivas gigantes, o velho carro rangendo, fazendo as inúmeras curvas em marcha lenta.

       — Você não diz era, diz é — repliquei. — Aqueles tempos, minha infância. Para você ainda existem. O eu de quem fala e de quem pretende algo é Dickie. Você se refere a mim, porém na perspectiva do meu próprio passado.

       Ele balançou a cabeça.

       — Claro, aquela época está apenas do outro lado da rua.

       — Outra pergunta.

       — Pergunte qualquer coisa.

       — Qual o resultado de cento e trinta e um elevado ao cubo?

       Ele sorriu.

       — Sou um anjo, não um computador.

       — Adivinhe.

       — Quinhentos e vinte e sete?

       Resposta incorreta, passou milhões longe da resposta certa. O cara não é onisciente, pensei, ou pelo menos matemática não é o seu forte. O que mais ele não sabe?

       — Há força gravitacional no céu? Olhou surpreso em minha direção.

       — Quando você começou a se preocupar com essas coisas?

       — Há cerca de um ano. Tenho estado... cuidado com aquela pedra!

       Tarde demais. O impacto devolveu sua atenção à estrada, mas ele seguiu dirigindo, divinamente despreocupado.

       — Mais perguntas?

       — Por que você... por que é o que é?

       — Temos um ditado: Quanto mais fala o coração, menos fala o cérebro. — Pelo tom com que pronunciou as palavras, o provérbio fora tomado por verdade.

       Sabia que ele não iria me causar mal; sabia que ele havia me encontrado esta manhã por uma razão diferente do que uma carona até o topo da montanha; sabia que ele não era nenhum mago dos números. No mais, eu estava cheio de perguntas.

       — E você me diz tudo isso — falei — porque tem algo a ver com o fato de estar aqui.

       — Claro.

       Teria eu gostado dele logo de cara porque já havia visto aquele sorriso?

      

       ANJOS INSTRUTORES NÃO SÃO NECESSARIAMENTE exímios motoristas. Basta uma volta pelas curvas sinuosas perto dos penhascos da estrada da montanha do Tigre para que a maioria das pessoas se agarre no que for possível por puro instinto de conservação. As marcas dos pneus de Shepherd, contudo, estão lá até hoje, borracha preta queimada sobre pedra nua em uma curva infernal.

       — Sinto muito — disse ele. — Não dirijo há um bom tempo.

       Firmei os pés e me agarrei no esfiapado apoio de braço na porta do carro.

       — Mais à frente a estrada começa a melhorar. Trafegável ou não, a estrada pouco importava ao meu motorista; ele tinha outras preocupações.

       — Você não tem muitas lembranças de quando era pequeno, tem?

       — Quando você fala, eu me lembro. De outro modo, muito pouco.

       — É um bom garoto. Quando quer aprender alguma coisa, faz isso com a maior seriedade possível. Lembra-se de quando estava aprendendo a escrever?

       Pensei nas aulas de criatividade em redação do professor John Gartner, no ginásio. Aprende-se a escrever, ou as pessoas são simplesmente tocadas pelo poder da palavra desvanecida?

       — Não — disse ele. — Estou falando em caligrafia. Sua mãe à mesa da cozinha, escrevendo cartas, você sentado próximo com lápis e papel, desenhando as letras O, L e E, linhas retas e curvas e bolinhas, páginas e páginas.

       Lembrei-me. Lápis vermelho. E erres e esses. Tinha a impressão de estar crescendo ao fazer aquelas marcas ordenadas da esquerda para a direita ao longo da folha de papel. Mamãe dizia que o trabalho estava lindo, e assim me deixava com vontade de praticar mais e mais. Hoje, tenho a pior caligrafia do mundo.

       — Pelo jeito, conhece Dickie muito bem, não? Ele assentiu com a cabeça.

       — Conheço-o muito mais do que conheço você.

       — Porque ele precisa de ajuda e eu não, certo?

       — Porque ele quer ajuda e você não.

       O Ford venceu a última curva e chegamos ao topo da montanha, as árvores desaparecendo e o horizonte logo fazendo-se notar ao norte e a oeste. Ele estacionou a uns trinta metros da rampa de vôo livre, e por fim consegui abrir a porta.

       — Fico feliz que você tenha estado lá por ele — falei. — Dê-lhe minhas lembranças, faria isso?

       Ele não respondeu. Desci do carro, ergui a mochila do paraglider no banco traseiro, pendurando-a nos ombros. O vento estava tão leve quanto antes. A menos que eu possa voar bem alto desta vez, pensei, será o último salto; depois é empacotar a tralha e voltar para casa.

       Curvei-me e acenei para ele através da janela do carro.

       — Foi um prazer conhecê-lo, Sr. Shepherd — falei. — Muito obrigado pela carona.

       Ele balançou a cabeça, e comecei a me afastar.

       — Ah, só mais uma coisa — disse ele. Dei meia-volta.

       — Você se importaria em autografar um livro para Dickie?

       — Claro que não. — Que tal coisa fosse impossível, nem chegou a me passar pela cabeça. O que ultrapassa as fronteiras do tempo são a esperança e a intuição, não brochuras e tinta.

       Coloquei a mochila no chão, abri a porta e voltei a me enfiar dentro do carro.

       Shepherd tocou o livro sobre o banco do carro, entre nós dois.

       — Você fez uma promessa — disse ele. — Provavelmente não se lembra.

       — Tem razão. Não me lembro. — Quando garoto, eu era cheio de fantasias: desejos e sonhos, projeções de como as coisas deveriam ser. Não me surpreenderia se me recordasse de alguns dos meus sonhos como tendo sido fatos, e alguns fatos eu me recordo deles como sonhos. — Isto foi há muito tempo, Sr. Shepherd. Dickie está muito distante no passado, agora é uma pessoa diferente, esqueci-me de quem ele foi.

       — Bem, você não é uma pessoa diferente para ele. Dickie acha que você nunca o esquecerá, que fará qualquer coisa para ajudá-lo a aprender a viver. Ele está desesperado para descobrir o que você sabe.

       — Ele chegará lá — disse eu.

       — Mas quando isto acontecer, ele terá a sua idade. Você prometeu uma experiência, para ver no que ele se tornaria se não tivesse de passar cinqüenta anos num processo de tentativa e erro.

       — Prometi a mim mesmo? Shepherd balançou a cabeça.

       — Em 1944, quando eu lhe disse que o tempo não era para mim a barreira que era para você. Prometeu que em cinqüenta anos escreveria um livro para devolver tudo que sabe ao menino que você foi. O que buscar na vida, como ser feliz, conhecimento para salvar a sua vida, coisas que desejou saber quando era ele.

       — Não. É mesmo? — As birutas se agitaram ao vento termal que encapelava o cume da montanha. — Que bela idéia!

       Shepherd limpou a garganta.

       — Estamos a cinqüenta anos depois, Richard. — Ele se mexeu, buscando uma posição mais confortável no assento do carro. — Ele está lá, esperando; o menino que foi um dia. Você prometeu.

       — Não me lembro de nenhuma promessa.

       O anjo me olhou como se eu tivesse vendido a alma. As palavras saíram um tanto ásperas, pensei, mas nem o menino nem o anjo sabem como é difícil o ato de escrever.

       — Diga-lhe que me esqueci da promessa, mas que tudo sairá bem e que ele não tem com que se preocupar.

       Shepherd suspirou.

       — Ah!, Richard — disse ele. — Fazer promessas a crianças não significa nada para você?

       — Não quando cumpri-las significa machucar-lhes o coração! Ele, o menino, não quer saber do fato de que existem tempestades à frente, que depois de muito tempo ele será a única pessoa viva de sua família. Ele não quer saber sobre divórcio, traição e falência, não quer saber que não se casará com a mulher de seus sonhos nos próximos trinta e cinco anos. Shepherd, um ano é interminável para uma criança de nove anos. Tem razão quando diz que a promessa nada significa para mim!

       — Imaginei que se sentisse assim — disse ele. Um sorriso triste. — Sei como é difícil escrever um livro. Sabia que não iria escrevê-lo, por isso eu o escrevi para você.

      

       — TUDO O QUE PRECISA FAZER É assiná-lo — disse o anjo, passando-me o livro. — Será o nosso segredo o fato de que você não teve tempo para escrevê-lo de próprio punho. Dickie não precisa ficar sabendo. Ele o vê como um Deus, não importa o resto.

       — Não mentiremos ao garoto — falei. — Diga-lhe exatamente isso: ele não tem a menor idéia do que está pedindo. Diga-lhe que saberá, quando tiver a minha idade, que livros não são escritos por caprichos ou em função de promessas. Os livros são escritos em função de idéias que se revolvem em nosso interior ao longo de anos e anos e que só nos abandonam quando as colocamos definitivamente no papel. E mesmo assim escrever é o último recurso, um preço desesperado que se paga de modo a ter sua vida normal de volta. É maravilhoso quando tudo está concluído e quando tudo o que eu tinha a dizer já está escrito, graças ao Criador, e agora uma tarde no topo da montanha me aguarda com o meu paraglider.

       — Direi a ele o que tenho de dizer — replicou ele, não muito desanimado. — E é evidente que sei o que você escreveria. Simplesmente assine o livro. Não quer dizer que o tenha escrito, talvez, mas que o endossa, que você concorda com a verdade que ele traz. Então, seguirei meu caminho. — Ele sacou do bolso uma caneta de ponta de feltro. — Só uma palavra de encorajamento: Tenha fé! E o autógrafo.

       Pela primeira vez, olhei para o volume que ele me passara. Uma capa verde-musgo, o título em um bloco branco. RESPOSTAS — Algumas Diretrizes Sobre o que Fazer e Pensar Para se Viver uma Vida de Sucesso. Resultados Garantidos. De Richard Bach.

       Meu coração estremeceu. Ainda assim, pensei, muitos livros bons têm títulos tolos.

       Abri a capa, olhei para a página do sumário.

       Família

       Escola

       Estudo

       Trabalho

       Dinheiro

       Responsabilidade

       Obrigações

       Serviço

       Responsabilidade para com os outros

       Continuei, duas páginas com tipos minúsculos apenas para nomear os capítulos. Se Dickie tem quaisquer problemas para dormir, pensei, tais problemas estão a caminho de ser solucionados.

       Abri o livro ao acaso. Uma parte importante de seu ambiente de trabalho é a provisão de benefícios empregatícios. Um bom plano de aposentadoria é tão interessante quanto um salário alto, e um reajuste automático no custo de vida é a mesma coisa que dinheiro no banco.

       Ufa!, pensei. Que tal ir em busca daquilo que você adora fazer e deixar que isto se transforme em sua profissão?

       Tentei outra página. Todas as suas atitudes refletem em sua família. Antes de fazer qualquer coisa que possa embaraçá-los, pense: O que pensará minha família se eu for apanhado fazendo isto?

       Oh, Deus. A terceira tentativa tem de ser aquela que vale. Deus nos espreita. E chegará o tempo em que Ele perguntará: Toste um bom cidadão? Diga-Lhe que ao menos você tentou.

       Solucei, subitamente nervoso, virei as páginas. O garoto quer saber o que aprendi nestes cinqüenta anos e veja só o que ele ganha: isto? Como pode um anjo pôr no papel idéias tão estúpidas?

       Você cria a sua própria realidade, por isso, esteja certo de que está criando uma realidade feliz. Sacrifique a si próprio pelos outros, e eles serão bons para com você.

       Fiquei surpreso com o enorme esforço que foi rasgar o livro em dois, mas quando finalmente consegui, atirei uma das partes rasgadas na cara de Shepherd.

       — Você cria a sua própria realidade? Eles serão bons para com você? Não sei se você é louco porque acredita nessas coisas ou porque pensa que eu acredito! Seja como for, você é insano ao colocar estas coisas num livro para uma criança inocente... para Dickie ler! A realidade é o que ele vê com os próprios olhos? De que tipo de mestre diabólico e malfadado você está a serviço?

       Parei porque não conseguia fazer minha voz ficar ainda mais alta, e notei que minhas mãos tremiam enquanto amarfanhavam as páginas a centímetros do nariz do anjo.

       — O livro não foi escrito com cimento — interveio ele. — Posso mudá-lo, se é o que quer...

       — Shepherd, o garotinho tinha um sonho! Tinha uma idéia grandiosa, ou seja, descobrir que vida ele levaria se não tivesse que passar meio século peneirando verdade e mentira! E você pega o sonho dele e transforma em benefícios empregatícios? E além disso, vai dizer a ele que isto vem de mim?

       — Você prometeu — disse ele, sua voz o próprio emblema da probidade. — Eu sabia que você não estava muito predisposto a escrever o livro. Só estava tentando facilitar-lhe as coisas.

       Fui inundado por um rio de raiva, e os sinais ficaram nas margens: Perigo. Cataratas adiante. Que cataratas? Como poderia eu voltar a estar tão furioso quanto estive naquele minuto? Será que estava prestes a estrangular esta criatura com minhas próprias mãos?

       Ao mesmo tempo, porém, minha voz fez-se tranqüila:

       — Shepherd, você é livre para fazer o que quer que lhe dê na telha. Mas se der àquela criança inocente esta massa insípida de asneiras, dizendo que se trata de um aprendizado de meio século, com a minha assinatura (neste ponto meus olhos devem ter faiscado, pontas aguçadas de punhais incandescentes), vou buscá-lo nem que seja no inferno e farei com que engula cada uma dessas páginas.

       Não foi a ameaça o que o atingiu, creio, e sim a minha prudente resolução.

       — Bem — disse ele —, fico feliz que você se importe. É nisso que dá ser um anjo. Eles sempre vêem o lado bom.

      

       PUS A MOCHILA A TIRACOLO e saí a passos largos, balançando a cabeça. Mais uma lição aprendida, pensei. O simples fato de alguém desabar em nossa frente vindo de outra dimensão, Richard, não quer dizer que essa pessoa seja mais sábia do que você, ou que pode fazer qualquer coisa melhor do que você faria. Encarnados ou simples mortais, o que conta em relação às pessoas é a qualidade daquilo que aprenderam.

       Já no topo da montanha, desdobrei o paraglider para o salto, resmungando contra os anjos cabeças-de-vento que bisbilhotavam meu passado. Ao me erguer e olhar para cima, o Ford e seu estranho motorista já haviam desaparecido.

       Rezei para que Shepherd tivesse sumido, em vez de estar tentando dirigir o carro montanha abaixo. Se ele tivesse optado por descer guiando, esperava encontrá-lo pendurado num galho de árvore à beira da estrada quando tornasse a subir a montanha.

       Ajeitei-me dentro do arnês, calcei as luvas, verifiquei as fivelas e o capacete. Os outros pilotos já haviam saltado, e três já pousavam. Três ainda se encontravam no ar, distantes como borboletas sobre campos verdejantes, sibilando em busca das janelas de vento.

       Como a brisa era insuficiente para espalhar o paraglider antes do salto, arremeti direto ao penhasco, olhei para cima a fim de checar o meu enorme arco-íris, tremulando suavemente sobre minha cabeça, e atirando-me ao vento.

       Dickie não adoraria estar aqui comigo agora, voando? Isto poderia lhe dar uma idéia do que de fato conta em uma existência! O segredo é descobrir aquilo que se gosta de fazer e aprender tudo sobre tal coisa. E sobre este conhecimento você alicerça a sua vida e assim foge dos portos seguros, atira-se do alto da montanha, arremetendo-se ao ar, esperando que os Princípios do Vôo lhe proporcionem planar sobre as janelas abertas no ar e que você não pode ver com seus olhos.

       Naquele momento, uma pausa para o meu pensamento, a asa apanhou uma corrente ascendente de ar. Puxei para baixo o cabo do freio, posicionando-me para permanecer com o termal, e eu e o arco-íris nos erguemos suavemente rumo ao céu.

       Sobre as colinas a oeste, distante, erguia-se a silhueta de Seattle, resplandecendo como a velha Cidade das Esmeraldas do Mundo de Oz. A luz do sol faiscava sobre Puget Sound e, além, as montanhas Olympic mantinham-se gélidas, cobertas por bonés de neve. Há muitos destes bonés nesse exato momento que ele, Dickie, adoraria vislumbrar.

       Uma mariposa apareceu a não mais do que três metros à minha direita, batendo suas asinhas resolutamente, voando tão rápido quanto eu. Voltei-me em sua direção e ela recuou, para depois colocar-se de frente para mim, raspando por sobre o capacete e então desaparecendo ao sul.

       Taí algo que Dickie gostaria de saber, ele que adorava objetos voadores. O que estaria fazendo uma mariposa voando ao sul a 600 metros de altura?

       Afinal de contas, pensei, a criança que fui não morava na mente de Shepherd, morava na minha. Recordo muito pouco de minha infância, mas Dickie tem a posse de todas as lembranças. Meus motivos e valores brotaram cada um deles das raízes de sua vida diária. Se eu pudesse achar um meio de encontrá-lo, talvez aprendesse algo sobre mim mesmo, ao mesmo tempo em que ensinaria a ele um bocado sobre tentativas e erros ainda por vir.

       A janela foi se desvanecendo — em minutos, Seattle escondeu-se novamente atrás das colinas. O primeiro dos pilotos a pousar estava pronto outra vez na plataforma de salto, me observando planar aqui embaixo.

       Se eu relaxasse, aqui em pleno ar, pensei, pedisse que a porta entre mim e a criança que fui se abrisse, o que poderia acontecer? Faz tanto tempo que sequer penso naquela criaturinha! Se não fosse por Shepherd e o seu livro de mentiras, eu não estaria, afinal, pensando em Dickie.

       Imaginei uma porta nas profundezas do meu passado e ergui a pesada aldrava, fazendo-a ranger ao abrir-se. Dentro, uma gélida escuridão um tanto surpreendente. Talvez ele esteja dormindo.

       “Dickie”, chamei-o mentalmente. “Sou eu, Richard. Lá se vão cinqüenta anos, rapazinho! Não quer me dar um oi?”

       Ele estava esperando por mim na escuridão, apontando um lança-chamas. Um décimo de segundo, e o lugar foi iluminado com fogo e fúria escarlates. FORA! DÊ O FORA DAQUI SEU EGOÍSTA MISERÁVEL CHAMADO DE ADULTO PESSOA DESPREZÍVEL NA QUAL JAMAIS QUERO ME TRANSFORMAR! VÁ EMBORA E NÃO VOLTE MAIS E ME DEIXE EM PAZ!

       Recuei ofegante, estremecido dentro do meu capacete, fechei a porta num sobressalto, voltei rapidamente à realidade do arnês e do glider sobre as árvores da montanha do Tigre.

       Ufa!, pensei. Será que minha cabeça transformou-se em lançador de foguetes contra mim? Eu havia esperado que o rapazinho viesse correndo de braços abertos, da escuridão para a luz, cheio de perguntas, aberto para toda a sabedoria que eu tinha para lhe dar. Eu abrira a porta para uma maravilhosa e nova amizade e, sem nenhum aviso, ele quase me frita vivo!

       Era muito para uma aproximação com a nossa adorável criança íntima. A sorte é que a porta tinha uma pesada fechadura. Jamais sequer me aproximarei daquele lugar novamente, nunca mais tocarei naquele barril de pólvora outra vez.

       Ao pousar, os outros pilotos estavam prontos para saltar novamente, com ou sem vento. A mesma coisa, pensei. Empacotei o glider, depositei-o no porta-malas do meu carro, dei partida no motor e durante todo o percurso até em casa fui pensando no que se passara.

       Leslie acenou da ameixeira quando cheguei, tesouras de poda nas mãos, os galhos irregulares caindo no chão.

       — Olá, querido — gritou ela. — Fez um bom vôo? Divertiu-se?

       Minha esposa é uma linda e adorável mulher, a alma gêmea encontrada depois que eu já havia desistido de procurar. Se ela pudesse ser apenas isto que acabei de descrever e nunca fosse profunda e misteriosa e desafiadora! Divertiu-se? Como poderia responder a essa pergunta?

      

       — UM LANÇA-CHAMAS? — QUALQUER outra teria dado gargalhadas, com o marido chegando em casa e contando uma história dessas. Ela se enroscou no divã, a meu lado, um cobertor cobrindo seus pés. Uma xícara de chá segurada em concha para aquecer as mãos. Se quer apanhar um resfriado, diria ela, podar árvores na primavera é a melhor receita. — O que um lança-chamas significa para você?

       — Significa que estou aborrecido — disse eu. — Que quero acabar com alguém. Não simplesmente matá-los, mas transformá-los em pó.

       — Se isto é o que acontece quando você está aborrecido — disse ela —, o que acontece então quando está realmente furioso?

       — Está bem, Leslie. Ele não estava apenas aborrecido, ele estava realmente enfurecido.

       Ao contar-lhe a história, eu dera uma conotação cômica ao que de fato era inquietante. Shepherd era um louco fanático, lera algo em um livro que fixou sua mente em mim, inventou essa história, escreveu o seu deplorável manuscrito e imaginou que eu o publicaria para ele.

       Seria ele vim anjo instrutor? Somos todos anjos instrutores, todos aprendemos alguma coisa que alguém em algum lugar precisa se lembrar. Eu deveria ter-lhe dito sem rodeios que não me diplomara em aprendizado ontem, e que pretendia caminhar até o topo da montanha. Deveria ter-lhe dito muito obrigado, passar bem.

       Minha mulher não sorriu com tranqüilidade em relação ao encontro com a criança que fui um dia. Há muito ela suspeitava que o garoto era uma parte viva de mim, abandonado, que precisava ser resgatado e amado. Ela acabou encontrando um aliado em Shepherd.

       — Tem alguma idéia do motivo por que Dickie está zangado com você?

       — Estava frio e escuro lá onde o encontrei. Tratava-se de uma masmorra sombria — expliquei. — Se ele pensa que o trancafiei lá e fui embora deixando-o desamparado na escuridão... — Pensei nesta hipótese. — Posso presumir que ele deva estar meio chateado.

       — Chateado? — disse ela, enrugando a testa para mim.

       — Certo. Posso imaginar que ele gostaria de me cortar em pedacinhos e me servir aos ratos.

       — E ele está certo? Foi você quem o trancafiou atrás daquela porta?

       Apoiei a cabeça nos ombros dela e, olhando para as vigas do teto, suspirei.

       — Será que eu é que devo resgatá-lo? A cada semana aparece uma nova legião de pessoas que eu teria sido, acrescida de todas aquelas que fui anteriormente. Amanhã, eu mesmo serei uma delas. Será que o meu eu atual tem de arrastar essa multidão para onde quer que vá, cuidar para não machucar seus sentimentos, fazer uma assembléia para decidir o que fazemos no presente? — Eu estava, claro, na defensiva.

       — Não a multidão — disse ela. — Mas se afastar de todos, não deixando nem mesmo uma lembrança de sua infância... afinal, você tem um passado, não?

       — Tenho lembranças — murmurei e sabia que ela ouvira o resto que não foi pronunciado: muito poucas vezes tenho recordações dos esparsos oásis verdes na imensidão desértica da infância. Deve ser um país das maravilhas, pensei, mas que está num vácuo quando olho para trás, como se eu tivesse caído nesse vácuo, um visitante do Presente vagando com um passaporte falso.

       — Então me conte uma centena de lembranças — pediu ela.

       O próprio passado de Leslie tem seus próprios buracos negros, lares adotivos tornados vácuos estáticos em sua mente, nenhuma lembrança de contusões de uma garotinha mostradas com clareza em chapas de raios X. Ainda assim, sua vida diária é repleta das lembranças da criança que ela foi, velha sabedoria ajudando-a a decidir hoje e escolher amanhã.

       — Que tal duas, em vez de centenas?

       — Está bem, duas — disse ela.

       — Esqueci.

       — Vamos lá. Você pode se lembrar, se quiser.

       — Observando as nuvens. Deitado de costas, escondido num terreno baldio ao lado de minha casa. Ao meu redor, o verde do trigal silvestre. Olhar para o céu era como olhar através de um impossível oceano profundo; as nuvens eram ilhas, flutuando.

       — Certo — disse ela. — Observando as nuvens. E depois?

       Só que isto é importante, pensei. Não se pode desprezar assim o fato de estar observando as nuvens; o céu era a minha fuga, era minha paixão, e acabou sendo o meu futuro. E hoje ainda representa o meu futuro. Portanto, não diga “e depois?”, pois o céu representa tudo!

       — A torre de água — falei.

       — O que tem a torre de água?

       — Vivíamos no Arizona quando eu era pequeno, num rancho que tinha uma torre de água.

       — E o que significa a torre de água? Por que se lembra dela?

       — Não sei. Talvez porque fosse a maior coisa ao redor.

       — Está bem. E a outra recordação?

       — São essas duas.

       Ela aguardou por um longo momento, como se esperando que eu lhe contasse três, depois de não lhe ter contado uma centena de recordações, mas apenas duas.

       — Certa vez, passei uma tarde inteira subindo numa árvore até o escurecer — continuei. Nesse ponto, refleti, dei a ela mais do que havia prometido.

       — Por que subiu numa árvore?

       — Não sei. Você quer recordações, não justificativas. Mais silêncio. Outras poucas imagens se distorciam através do foco interior do trêmulo e vacilante rolo de filme que eu chamava de minha infância, mas, tal como a árvore e a torre de água, essas poucas lembranças eram monumentos ao nada: um passeio de bicicleta com um amigo de infância; uma pequena escultura de um Buda sorridente. Se eu contar a ela e ela perguntar o que essas imagens significam, eu me perderia ao tentar explicar.

       — Três dos meus avós morreram antes de eu nascer, o último morreu quando eu era ainda muito pequeno. A essa época também morreu meu irmão. Mas isto você sabe. — Estatísticas, pensei, não lembranças.

       Leslie havia sofrido muito com a morte de seu próprio irmão, e se recusava a acreditar no fato de que não me oprimi quando o meu se foi. Mas a verdade é que mal me dera conta.

       — Isto é o que chamo de estatística.

       Pensei que ela fosse remoer a coisa outra vez: “Como pode seu irmão morrer e você chamar isto de estatística, nem mesmo uma lembrança?”

       — Você se lembra de ter dito a Dickie que lhe escreveria um livro?

       Suas palavras soaram tão serenas que imaginei que ela estivesse bolando um tema. Nada que aconteceu hoje, pensei, é o fim do mundo material. A parte mais alarmante, o garoto com o lança-chamas, estava toda ela na minha mente.

       — Não seja tola — repliquei. — Como iria me lembrar de tal coisa?

       — Finja, Richard. Finja que está com nove anos nesse exato momento. Vovó e vovô Shaw estão mortos, vovó e vovô Bach estão mortos, seu irmão Bobby acaba de morrer. Quem é o próximo? Você não está assustado com o fato de que amanhã também estará morto? Não se preocupa com o futuro? Quais são os seus sentimentos?

       O que ela estava tentando dizer? Leslie sabe que não me preocupo. Se houver uma ameaça, eu me esquivarei, se puder. Se não puder, encaro-a de frente. Ou você se prepara para lutar com o que vem pela frente ou então luta com o que tem nas mãos; preocupação é uma perda de tempo.

       Para satisfazê-la, no entanto, fechei os olhos e fingi que estava lá, concentrado no garoto de nove anos, sabendo o que ele pensava.

       Eu o encontrei sem demora, petrificado em sua cama, os olhos fechados, os punhos cerrados, sozinho. Ele não estava preocupado, mas sim aterrorizado.

       — Se Bobby, com sua mente-relâmpago, não pode contar com uma vida depois de seus onze anos, então não tenho quem ore por mim — relatei a Leslie como eu via a coisa. — Sei que não faz sentido, mas sei que vou morrer quando estiver com dez anos.

       Que sensação estranha, estar no meu velho quarto outra vez! O beliche perto da janela, a cama de cima ainda no mesmo lugar, mesmo depois da morte de Bobby; a escrivaninha de madeira branca, sua superfície abarrotada de cola e lâminas para aeromodelismo; miniaturas de aviões feitas de madeira leve e revestida de papel dependuradas do teto por fios de nylon incolores; sólidos modelos de madeira da marca Strombercker empoleirados na estante no meio dos livros, cada um deles trabalhando durante horas, tanto quanto posso me lembrar: um bombardeiro JU-88 Stuka marrom, um Piper Cub amarelinho, um Lockheed P-38, com uma das caudas gêmeas avariada devido a um arremesso de cima do telhado... Tinha esquecido de quantos aviõezinhos tive na infância. Um caça P-40 de metal e um FW-190, ambos cheios de detalhes, estacionados sobre a escrivaninha, debaixo do abajur.

       — Olhe para esse quarto — falei. — Como posso me lembrar com tanta clareza? Isto tudo esteve enevoado ao longo de todos esses anos!

       Sobre o guarda-roupa, havia duas portas de gabinete, onde, eu sabia, estavam as peças do jogo de Monopólio, o tabuleiro de Ouija, Cammie e Zeebie, cobertores de inverno. Segui cuidadoso sobre o velho tapete trançado e esfiapado sobre o assoalho de madeira de lei que escorregava feito gelo a menos que se andasse em passos lentos.

       — Você quer falar com ele? — perguntou Leslie.

       — Não. Só estou observando. — Por que o fato de falar com ele me assustaria?

       Ele usava jeans e uma camisa de flanela xadrez preta, vermelha e amarela.

       Que rosto jovem! Uma faixa de sardas ia de bochecha a bochecha atravessando por sobre o nariz; os cabelos mais claros que os meus, a pele mais escura, por causa de horas passadas ao sol. O rosto mais amplamente arredondado, dos olhos fechados escorriam filetes de lágrimas. Um garoto belo, aterrorizado pela idéia da morte.

       Oh, vamos lá, Dickie, pensei. Tudo vai dar certo.

       De repente, seus olhos se abriram, ele me viu observando-o e abriu a boca para gritar.

       Por reflexo condicionado, voltei imediatamente ao tempo presente, o garoto desaparecendo de minha vista no mesmo instante em que eu devo ter desaparecido para ele.

       — Olá! — disse eu, um tanto tarde demais.

      

       — OLÁ! QUÊ? — DISSE LESLIE. — Bobagem — respondi. — Ele me viu. — E o que foi que ele disse?

       — Nada. Estávamos muito excitados. Uma estranha sensação.

       — Como se sente em relação a ele?

       — Ele ficará bem. Apenas não sabe o que vem em seguida, e por isso está temeroso.

       — Como se sente em relação a ele?

       — Tudo vai terminar bem. Ele vai se dar bem na escola, vai experimentar bons momentos aprendendo todo tipo de coisa: aviões, astronomia, foguetes, navegação, mergulho...

       Ela tocou minha mão.

       — Como você se sente em relação a ele?

       — O que está acontecendo me corta o coração! Eu queria que Deus me desse forças para soerguê-lo, abraçá-lo e dizer-lhe para não chorar, dizer-lhe que está a salvo e que não vai morrer.

       Querida Leslie, minha paixão e a maior amiga. Ela não disse uma palavra. Fez com que eu ouvisse o que acabara de dizer em silêncio, repetidas vezes.

       Busquei um ponto de equilíbrio. Nunca fui muito chegado a sensibilidades, já que são propriedade privada e freqüentemente melhores suprimidas. Difíceis de se dominar, pensei, mas não impossíveis. Tudo isso, afinal de contas, são coisas da minha cabeça.

       — Você é o guardião do futuro dele — disse ela, rompendo o silêncio.

       — Do seu futuro mais provável — respondi: — Ele tem outros.

       — Você é o único que sabe o que ele precisa saber. Se a vida dele exigir um salto mais alto do que os seus, cabe a você preveni-lo agora.

       Naquele momento, de fato amei o garotinho. E quando estava com ele, minha infância não era um nevoeiro, era cristalina, nada faltava.

       — Sou o guardião de seu futuro — falei — e ele o guardião do meu passado.

       Naquele instante, tive a estranha sensação de que eles precisavam um do outro, Dickie e Richard, uma vez que cada um estava destinado a compor um todo. Terei que seguir sozinho, o retirante, a fim de encontrar uma criança que me quer ver transformado em cinzas, para mostrar-lhe pessoalmente que a amei, não importa de que maneira? Seria mais fácil rastejar até o Oregon sobre estilhaços de vidro.

       Que outra saída? Meu filme retorcido continuava a ser uma metragem monocromática e borrado, um ponto de interrogação desvanecente; Dickie caminha em passos largos por corredores murais da cor da luz do sol, os detalhes delineados em pontos finos, nitidez total.

       Ainda assim, ele se lança apreensivo na escuridão por vir, não importa o quão claramente eu soubesse que a escuridão era a sombra das aventuras à frente, a descoberta vasculhando para pegá-lo e ensinar-lhe o que ele clamava por aprender.

       Enfrente os seus temores, eu desejava poder dizer-lhe, desafie-os a fazer o pior que possam e abatê-los quando tentarem. Se não o fizer, eles irão se reproduzir, Dickie, se espalharão até envolver você, obstruir a estrada para a vida que você quer. Cada curva que você receia não passa de puro vácuo, travestida para parecer o mais sinuoso inferno.

       Para mim, é fácil falar; já passei por todos eles. Para Dickie já não é tão fácil.

       Se hoje eu tiver medo, pensei, o que mais desejaria ouvir do meu eu sábio e futuro?

       Quando chegar a hora de lutar, Richard, estarei contigo, e a arma de que necessita estará em sua mão.

       Poderia eu dizer-lhe isto agora, com a parca esperança de que ele fosse me compreender?

       Pouco provável, pensei, sobretudo quando sou aquilo que ele deseja combater.

      

       — NÃO SERIA MELHOR ESQUECER tudo isso, Leslie? Tenho coisa melhor a fazer na vida do que ficar brincando com minha própria imaginação. — Bem, se é assim — disse ela, espreguiçando-se com luxúria —, que tal preparar o arroz para o jantar?

       — Não, falo sério. O que tenho a ganhar fechando os olhos e fingindo que sou amigo de uma pequena pessoa que possui minha infância? O que me interessa história antiga?

       — Não se trata de história antiga, mas do presente — disse ela. — Você sabe quem você é, ele sabe o porquê. Se são amigos, você pode barganhar. Mas ninguém está dizendo que você tem a obrigação de fazer alguma coisa. Eu te amo do jeito que é.

       Eu a abracei por ter me dito isso.

       — Obrigado, docinho.

       — Não me amole — disse ela. — Não ligo a mínima se está sendo um covarde sem fibra, temendo admitir que tem um resquício de sentimentos, preocupações ou qualquer outra emoção humana, se não entende que já foi criança, se pensa ser algum alienígena de outra galáxia. Você cozinha bem, e é isto o que importa em um marido.

       Oh, meu Deus, pensei. Ela acha que me fará bem regressar ao passado e abrir a porta de Pandora no quarto escuro de Dickie. Outra mulher provavelmente diria que não gostaria de ver seu marido chafurdando na escuridão da mente, tentando ser amigo de uma criança imaginária.

       As crianças têm adultos imaginários como amigos, pensei. Poderiam os adultos ter crianças com o mesmo intuito? Nos meus próprios livros, ponderei, Fernão Capelo Gaivota é imaginário, o mesmo acontecendo com Donald Shimoda e Pye... três dos meus amigos mais próximos e os mais queridos professores não têm um corpo. Qual o problema se Dickie também mudar a minha vida?

       Desta vez, estou perdendo o controle, pensei, graças ao maluco do Shepherd e de suas fantasias alucinadas. Se tornar a ver aquele velho Ford, a primeira coisa que farei será anotar a placa e descobrir que tipo de condenação prévia aquele cara está escondendo. Como pode um desmiolado como aquele transformar minha vida em um relógio-cuco?

       — Um marido que sabe fazer arroz, é isso — respondi finalmente.

       Deixei Leslie sentada no divã com sua xícara de chá, coloquei a panela no fogão, acendi a chama, pus um pouco de azeite, pitadas de aipo, cebolas, pimenta e gengibre retirados da geladeira, misturando bem esses ingredientes.

       O que está me amedrontando tanto? Quem está perturbando minha cabeça, afinal de contas? O que vou fazer agora é imaginar o garoto como sendo um pouco mais simpático... ele pode me abordar uma desculpa pelo lança-chamas, preencher algum vazio de minha infância e depois seguir o seu próprio caminho imaginário, fingindo-se mais feliz e mais sábio, sem esperar encontrar o pior pela frente.

       Acrescentei os legumes cortados em cubos, depois de misturar sobras do arroz da véspera, um pingo de molho de soja, um pouco de broto de feijão.

       Se quebrar alguns recordes físicos me traz tanto prazer, pensei — correr uma milha em dez minutos, em vez de em dez minutos e trinta e cinco segundos, permanecer suspenso no paraglider por duas horas e meia em vez de duas horas e quinze —, se busco sempre a superação física, o que haveria de errado em fazer o mesmo em relação ao espírito?

       Coloquei os pratos na mesa, azul sobre branco, com flores pintadas para contrastar com as flores frescas que Leslie colhera para enfeitar a casa.

       Não preciso fazer isso, ponderei, ninguém está me forçando. Mas se estou curioso para saber o que deixei lá na minha infância, e como a satisfação dessa curiosidade poderia mudar o que sou hoje, isto é algum crime? A Polícia Machista bateria à minha porta e me prenderia por eu não ser frio? Alguém ousaria dizer que não posso vasculhar meu próprio passado, apenas pelo prazer de fazê-lo?

       — O jantar está servido, querida — avisei. Enquanto comíamos, falamos de crianças, e de muitas outras coisas. Disse a ela o quanto me sentia orgulhoso de mim mesmo por ter feito as escolhas que fiz, do quão feliz estava por não me comportar outra vez como criança, por não ter que enfrentar de novo os mais cruéis e difíceis dias que a maioria das pessoas enfrenta.

       — Você está certo — disse Leslie enquanto eu apanhava morangos para a sobremesa. — É uma vergonha que uma criança tenha que enfrentar sozinha as crueldades desses dias difíceis.

      

       RARAMENTE TENHO INSÔNIA. Dou um beijo de boa-noite em minha mulher, faço um buraco no travesseiro e, imediatamente após depositar minha cabeça sobre ele, já peguei no sono.

       Não esta noite, porém. Duas horas depois de Leslie estar absorta em seus sonhos, continuo aqui olhando para o teto, ruminando, pela centésima vez, os acontecimentos do dia.

       Quando consultei o relógio pela última vez era uma hora da manhã, portanto faltavam seis horas para o dia raiar. No começo da tarde, sairei para remendar um pouco a lataria de Daisy, nosso Cessna Skymaster.

       Espero que esteja chovendo amanhã, pensei, imerso na escuridão do quarto. Tenho que tentar alguns vôos em diferentes condições climáticas, para não deixar meu equipamento enferrujar. Ir na direção de Bayview a fim de atingir o farol não-direcional de lá, surgir em Port Angeles pelo sistema de pouso por instrumentos...

       Qualquer lugar, menos dormir, pensei.

       Está com medo de que Dickie irrompa pela porta do quarto e ateie fogo em você enquanto está na cama?

       Isto é bobagem! Do que estou com medo? Quando

       Leslie está zangada comigo, eu não fujo, fujo? Claro. Não tanto quanto costumava fugir. Então, por que estou fugindo daquela cela de madeira? Eu o enclausurei lá, foi um ato errado e sinto muito por não saber o que estava fazendo. Não foi um ato deliberado e o mínimo que posso fazer é abrir a porta e deixá-lo sair, o pequeno garoto imaginário.

       Meia hora depois, no limite do sono, vi a porta mais uma vez, gélida e escura como sempre.

       Enfrentar meus temores, pensei, desafiá-los a fazer o pior que possam e abatê-los quando tentarem. Cada curva que receio não passa de puro vácuo, travestida para parecer o inferno.

       Ergui o ferrolho, mas mantive a porta fechada.

       — Dickie, sou eu, Richard. Não sabia o que estava fazendo. Eu estava errado. Estou profundamente arrependido do que fiz.

       Pude ouvir seus movimentos lá dentro.

       — Muito bem — disse ele. — Agora você entra aqui e me deixa trancafiá-lo por cinqüenta anos. Depois, voltarei e lhe direi que sinto muito. Vamos ver como se sentirá a respeito disso. Dente por dente, certo?

       Abri a porta.

       — Dente por dente — repeti. — Sinto muito. Fui um tolo ao bani-lo. Minha vida é insatisfatória pelo que fiz. Agora é a sua vez. Aprisione-me.

       A pequena chama azul do bico de seu lança-chamas brilhou em minha direção, apontada para minha face no momento em que abri aporta. Não importa o que aconteça, pensei, não vou fugir. E direito dele me matar, se é o que deseja.

       Ele não se levantou do banco diante da porta.

       — Você me trancou aqui e me deixou sozinho! Não se importou se gritei ou chorei, não ouviu porque pouco se importava — acusou ele. — RICHARD, EU PODERIA TÊ-LO AJUDADO! Eu poderia tê-lo ajudado, porém você não me quis, não me amou, nem mesmo se importou!

       — Voltei para dizer que sinto muito — falei. — Sou o maior estúpido do mundo.

       — Você acha que só porque habito sua mente não tenho nenhuma importância, que não sofro, que não preciso de você para me proteger, me instruir, me amar? BEM, EU PRECISO DE TUDO ISSO! Você acha que não sou real, que não estou vivo, que não tenho medo do que fará comigo, BEM, EU TENHO!

       — Não sei muita coisa sobre cuidar de alguém, Dickie. Quando o tranquei aqui, aprisionei também muitos dos meus sentimentos, e me entreguei ao mundo lá fora agindo mais com a razão e menos com o coração. Até ontem não sabia que você estava aqui, mas vim imediatamente ao seu encontro. — Meus olhos abriram-se para a escuridão. — Nesse exato momento você me assusta tanto quanto eu o assusto. Tem todo o direito de me atear fogo. Mas antes que o faça, quero que saiba que o vi deitado na cama, logo depois da morte de Bobby. Eu queria lhe dizer que tudo acabaria bem. Queria dizer-lhe que o amava.

       Seus olhos reluziram, mais escuros do que a escuridão da cela.

       — É assim que me ama? Deixando-me de lado? Mantendo-me afastado de sua vida? Vivi os pedaços mais difíceis da vida no seu lugar, MEREÇO saber o que você sabe, e que eu NÃO SEI! VOCÊ ME TRANCAFIOU! SEM SEQUER DEIXAR JANELAS. VOCÊ ME ISOLOU! VOCÊ SABE COMO É TUDO ISSO?

       — Não.

       — É como um diamante dentro de um cofre! Como uma borboleta acorrentada! É a morte em vida! Você sabe o que é a morte em vida! Já experimentou o frio? A escuridão? Conhece alguém que deveria amá-lo mais do que qualquer outra coisa no mundo, mas que no entanto nem se importa se está vivo ou morto?

       — Conheço a solidão — repliquei.

       — Solidão, uma ova! Pense em alguém que ama, pense em mim agarrando-me a você contra sua vontade e sendo jogado em uma gaiola de madeira fechada, você passando a grande tranca na porta e deixando-me lá sem comida, sem água, sem sequer um alô por cinqüenta anos! Coloque-se nesta situação e depois diga que sente muito! Eu o odeio! Se há algo que preciso lhe dar, algo que necessita de mim, algo que você morrerá se não tiver, eu o deixarei à mercê desse algo até o dia em que cair e depois vir me dizer que sente muito! ODEIO O SEU SINTO MUITO!

       Tudo o que eu tinha era a ponderação, a única arma em minhas mãos.

       — Este momento, Dickie, é o primeiro de um milhão de outros momentos em que poderemos estar juntos, se é que ficar juntos significa dar-lhe algo que você queira. Não sei quanto tempo temos, você e eu. Você pode tocar fogo em mim, pode me trancafiar nessa gaiola e abandonar-me pelo resto das nossas vidas, e se isso compensar minha crueldade para com você, vá em frente, é o que tem a fazer. Mas tenho muito o que mostrar-lhe sobre como entendo o funcionamento do mundo. Quer saber agora, neste exato momento, tudo o que aprenderá em cinqüenta anos? Eis-me aqui, parado na sua frente. O julgamento deste meio século nos mostrará muitos erros, mas às vezes eu também tateei a verdade. Prenda-me, se é isto o que quer, ou use-me para fazer com que seus velhos sonhos se tornem realidade. A escolha é sua!

       — Eu o odeio — disse ele.

       — Você tem todo o direito de me odiar. Mas haveria um modo de eu facilitar as coisas para você? Há algo com que tenha sonhado que eu possa lhe mostrar? Se houver, tudo que fiz e vivi pertence a você.

       Ele me olhou através da escuridão, jogou fora o lança-chamas e seus olhos escuros encheram-se de lágrimas.

       — Oh, Richard! — disse ele. — Como é a sensação de voar?

      

       LESLIE OUVIU TODA A HISTÓRIA logo ao amanhecer, e quando terminei, ela sentou-se na cama, olhando seu jardim através da janela, silenciosa como nunca.

       — Você deixou muita coisa para trás, Richie. Nunca olhou para o passado?

       — Quase ninguém faz isso, acho. A infância não foi algo que aprendi a guardar como um tesouro. Para mim, o que importava era atravessá-la. Aprender o máximo possível ao longo da vida, olhando à frente, prendendo a respiração, vencendo aquela colina imensamente poderosa da dependência até ficar por conta própria, pronto a dar a partida no motor.

       — Você tinha nove anos quando seu irmão morreu?

       — Por aí. Mas o que isto tem a ver com o que estamos falando?

       — Dickie está agora com nove anos. Assenti.

       — Foi muito duro para você, não foi?

       — Não. A morte de Bobby não me afetou. Não é estranho? Sinto-me como se devesse mentir para você, dizer-lhe que sim, foi muito duro, essa coisa toda. Mas não foi, querida. Ele foi para o hospital, morreu, e prosseguimos com nossa vida. Ninguém chorou, ao menos que eu tenha visto. Não há por que chorar quando nada se pode fazer.

       — Muita gente se sentiria devastada.

       — Por quê? Lamentamos quando alguém caminha para longe de nossa visão? Estão tão vivos quanto nós, mas só porque não mais podemos vê-los, devemos usar luto? Não faz muito sentido. Se fôssemos criaturas eternas...

       — Você pensava ser uma criatura eterna aos nove anos? Achava que Bobby estava apenas sumindo de vista quando ele morreu?

       — Não me lembro. Mas isto é uma intuição profunda. Não ficaria surpreso se pensasse assim já naquela época.

       — Eu me surpreenderia. Creio que boa parte desta profunda intuição se desenvolveu depois que seu irmão foi para o hospital e nunca mais voltou.

       — Pode ser — falei. — Perdi minhas anotações.

       Ela se voltou para mim, com seus imensos olhos azuis.

       — Você mantinha um caderno de notas? Quando seu irmão...

       — Eu estava apenas brincando, querida. Não tinha um caderno de notas. Mal me lembro se de fato ele morreu.

       Ela não achou graça.

       — Aposto que Dickie se lembra.

       — Não tenho certeza se quero saber. Neste exato momento, tudo o que desejo é fazer as pazes com ele e seguir em frente.

       — Isolá-lo outra vez?

       Voltei a me deitar na cama, estudei o veio nas pranchas de madeira acima, o nó que parecia uma aranha grudada na quina pelas suas minúsculas patas. Não, não iria isolar ninguém.

       — Leslie, o que ele quis dizer com eu poderia tê-lo ajudado?

       — Quando você sair para voar — disse ela. — Vamos dizer que está fazendo um belo dia e você quer voar, apenas pelo prazer de voar. Você vai até o aeroporto, compra um bilhete para ser um passageiro no mais remoto dos assentos de um desses gigantescos e pesados jatos?

       Não fazia a menor idéia ao que ela estava me comparando.

       — Não. Eu pego o paraglider e vou para a montanha. Ou então tiro o Daisy do hangar, pego o mais belo pedaço do céu, me misturo às asas e depois ao ar, até que eu seja apenas alma entre os raios de sol. Há provavelmente uma razão para a sua pergunta.

       — Lembra-se do seu jeito de contornar os problemas quando não pode se livrar deles?

       — Mas haverá outro jeito? Forçar as engrenagens para baixar, acelerar ao máximo, cerrar fortemente os olhos, a quatro milhas por hora, e me lançar direto à frente.

       — Quando Dickie falou Eu poderia ajudá-lo, você não acha que queria dizer que, se encontrasse uma maneira de torná-lo seu amigo, você poderia então abrir os olhos?

      

       AJEITANDO-ME NA CARLINGA DE Daisy, com Dickie em minha mente, era como se fosse um garoto outra vez. O garoto que um dia fui não era mais meu amigo inesperado do que algum guaxinim selvagem resgatado de uma armadilha, mas à medida que ele via o avião pela primeira vez através dos meus olhos, eu via através dos dele, sua voz em minha cabeça.

       — Ei! Olha só o painel de controle e os botões! O que é isto aqui?

       — É o mostrador de altitude — expliquei. — Vê aquele aviãozinho lá? O aviãozinho somos nós e lá está o pequeno horizonte, por isso, quando estamos no meio das nuvens, sabemos que estamos...

       — E isso, o que é?

       — São os controles de propulsão longitudinal, um para cada motor. Para decolar, empurra-se para a frente, e depois, em cruzeiro...

       — O que é isto?

       — Isto mostra onde estão os relâmpagos, em dias de tempestade. Assim, sabemos onde não devemos voar.

       — Deixe-me manobrar o manche!

       Isso me fez rir. Eu me senti como se tocasse o manche pela primeira vez em minha vida, pesado, mas fácil de virar. Qualquer coisa, aquele manche, tudo era extraordinário.

       — O que são aqueles botões?

       — Este aqui é o botão do microfone. Este outro é o do estabilizador de vôo. Aqui estão os freios, o botão para desligar o piloto automático, e estes são os controles de mapeamento de vôo...

       — Dê partida nos motores! Acionei o injetor de combustível.

       — Posso tentar?

       Como seria a sensação, quero dizer, para a criança dentro de mim? Sentar-se no assento do piloto de um avião de verdade pela primeira vez, e já saber como fazer funcioná-lo? Meu Deus!

       Bateria principal acionada, acelerar para bombear o motor dianteiro.

       — PROPULSOR DIANTEIRO OK! — gritei. Chave do magneto ACIONADA e... Caramba! Escute só o motor ligado!

       Uma surda explosão de fogos; nossa trovoada particular.

       Eu havia me esquecido de como um avião treme e dança no momento em que os motores são acionados, como se ele, o avião, não acreditasse que está vivo outra vez e que vai voar.

       — PROPULSOR TRASEIRO OK! — Chave do magneto ACIONADA.

       DUAS trovoadas!

       Ele apontava para qualquer ponteiro em movimento, eu respondia às suas perguntas feitas com a ponta do dedo.

       — Tacômetros! Pressão do óleo! Fluxo do combustível! Válvula de escape do gás!

       Como pude ter voado por tanto tempo, quantos anos, sem aproveitar como ele faz agora a delícia de cada momento, dentro desta carlinga? Um profundo prazer recalcado, foi o que experimentei; oh, era hora de crescer.

       — Escuta só — falei, apertando o botão Seletor do rádio para as informações de tráfego do aeroporto. Escuta só?, pensei.

       — ...vento a cento e setenta graus à intensidade de quinze nós — disse a voz saída do aparelho —, chegada e partida na pista um-seis à direita, confirme as informações Kilo...

       Pressionei o botão do microfone, e ele ficou eufórico. Estava falando com a torre de controlei

       — Olá, Torre de Controle, Skymaster 1-444 Alpha saindo do hangar oeste Kilo... — Ele era o espírito falando pela minha boca, falando exatamente como falaria um piloto de verdade, e ele estava ao lado de si próprio.

       — Tudo OK! — disse ele quando taxiamos para a posição de decolagem. Pela primeira vez percebeu que não tinha mais o corpo de um garoto. Podia alcançar os manetes e os pedais do leme sem ter de usar almofadas, podia ver através do pára-brisa e observar a pista como um piloto de verdade!

       Empurrar aqueles manetes para a frente significava para ele ter o grande poder nas mãos pela primeira vez. As trovoadas se transformaram em tornados, o Daisy lançou-se à frente, pressionando-nos contra os assentos na sua ânsia de ganhar os céus.

       A faixa central da pista transformou-se de traços brancos enfadonhos num borrão luminoso de setenta milhas por hora abaixo de nós.

       — Subir! Subir! Subir!

       Ele assumiu o manche com firmeza, o avião embicou o nariz para cima e levantamos vôo, um foguete verde e branco disparado para o céu.

       — Subindo! Subindo! — gritou ele. — Vamos, Daisy! Vamos lá, Daisy!

       Para mim, a decolagem foi de 1.600 pés por minuto, lia eu no mostrador de velocidade vertical. Para ele foi alguém cortando as correntes, o solo caindo como se fosse um piano e estávamos soltos no espaço vazio. Livres, finalmente!

       Afastei-nos do aeroporto, das rotas aéreas, do território de controle de tráfego, e o avião nos levou para uma enorme ilha de cúmulos perto das montanhas. Melhor que um sonho, um milhão de vezes melhor do que deitar na grama e fingir que se está sobre aquela nuvem.

       No momento em que nos aproximamos do cúmulo, estávamos voando a 220 milhas horárias, toda a sensação do vôo em sólido branco marmóreo, sem qualquer incômodo para nos tirar o prazer daquele momento.

       — Uau! Uau! Uau!

       Houve uma turbulência dentro da nuvem, mas não muito longa àquela velocidade. Disparamos uma bola incandescente contra o outro lado, a ponta de nossas asas deixando uma espiral de névoa.

       — Que BARATO!

       Giramos e subimos a torre de algodão-doce até ultrapassar seu topo, o avião em inclinação lateral nos permitindo ver o pico em ebulição, que ninguém no mundo havia visto antes ou tornaria a ver, depois passando pela encosta escarpada, supremos esquiadores a sete mil pés em pleno ar, mergulhando no abismo.

       — VAMOS, DAISY!

       Inacreditável, pensei. Ele é um garotinho!

       — Acima das montanhas — disse ele. — Onde ninguém jamais subiu!

       Eu nos mantive confortáveis e a salvo, planando a uma altura para um pouso forçado caso ambos os motores falhassem, um olho no nível de combustível, na pressão do óleo e na temperatura dos motores.

       Ele olhava através do pára-brisa e fazia Daisy voar.

       Abaixo de nós, os lagos da montanha aninhavam-se acima da linha da floresta, cobalto brilhante derretido dos altos campos de neve. Nenhuma estrada, nem sequer uma trilha, nenhuma árvore. Afiadas lâminas do inesperado granito, vastas placas de pedra e bacias transbordados em flocos de neve, riachinhos da cor do céu arremessando-se em selvagem abandono no ar vazio.

       — UM URSO! Richard, olheolheolhe! UM URSO!

       Eu sabia que ursos nada tinham a fazer em pontos tão altos das montanhas, depois tomei aquilo como pensamento adulto enquadrando o que quer que seja em razões, ignorando ursos-pardos logo abaixo.

       O urso manteve-se apoiado nas patas traseiras, farejando em nossa direção, creio, à medida que rodávamos à sua volta.

       — Dickie, você está tão certo quanto a chuva! Um urso!

       — Ele está acenando!

       Ele inclinou nossas asas para que pudéssemos acenar de volta, e no segundo seguinte quase raspamos o topo da montanha, mergulhando para o vale, eu e o menino que eu costumava ser, aquele que nunca tivera a chance de voar.

       Uma hora depois, pousamos e taxiamos de volta para o hangar; Dickie se desvencilhou de mim e eu o vi em seu próprio corpo outra vez, ansioso para abandonar a carlinga e observar Daisy do lado de fora. Ele abriu a porta, saltou ao chão e passou as mãos pela lataria do aeroplano, como se estudá-lo a um palmo de distância não fosse o suficiente para ele.

       Desembarquei, observando-o por um minuto.

       — O que você tanto olha?

       — Isto é metal de verdade — disse ele —, este metal pintado esteve dentro de uma nuvem! Esteve mais alto do que a montanha mais alta! Esteve! Sinta por você mesmo!

       Era como se a magia estivesse impregnada na lataria de Daisy, e desta magia ele não perderia sequer uma gota. Eu também a tateei.

       — Obrigado, Daisy — agradeci, como sempre costumava fazer.

       Dickie correu para a frente da aeronave, lançou os braços em volta do propulsor do motor dianteiro e beijou o lado mais brilhante do cone da hélice.

       — Obrigado, Daisy — disse ele — pelo passeio maravilhoso e maravilhosamente feliz, seu lindo, esperto e grande avião, avião que eu amo!

       O que me importava se a lustrosa lataria de Daisy estava agora manchada por dedos e marcas de beijo? Eu havia me lembrado do que é voar!

      

       QUANDO CHEGUEI EM CASA, Leslie estava no seu computador, trabalhando até tarde. Parei no seu escritório e ela me abordou com um sorriso.

       — Olá, querido. Como foi o vôo com Dickie?

       — Tudo bem — respondi. — Muito interessante. — Pus minha mochila de vôo encostada à porta, joguei a jaqueta sobre a cadeira e dei uma olhada na correspondência. Por que era tão difícil dizer a ela o quanto fora excitante o passeio de avião?

       — Todo vôo é interessante — replicou ela. — O que há, Richard?

       — Nada. Apenas... criancice, acho. Eu me sinto um tolo falando sobre isso.

       — Richard, é de se esperar que seja criancice! Afinal, você está convidando uma criança para dentro de sua mente, onde uma nunca esteve!

       — Se eu te contar, não vai achar que sou louco, vai?

       — Sempre achei você louco — disse ela. — Não me peça para mudar isso.

       Eu ri, contei-lhe o que acontecera, como tinha sido a sensação de voltar a agir como um garoto, tudo novo como se eu nunca houvesse voado antes, como se tivesse sentido tudo aquilo pela primeira vez.

       — Maravilhoso, querido — disse Leslie. — Quantas pessoas podem fazer o que você fez hoje? Estou orgulhosa de você!

       — Mas isto não pode durar para sempre. O que acontece quando quero falar-lhe sobre coisas de adulto, como ele reagirá? Mulheres, casamento, ganhar a vida, aprendizado religioso... não há nada mais interessante do que isso e receio que ele vá bocejar e pedir um doce. Não sei nada sobre crianças, não tenho nada a dizer a crianças a não ser que estejam crescidas.

       — Poderia ele ser o que você costuma dizer sobre si mesmo? — perguntou ela. — Absolutamente ignorante, mas infinitamente inteligente? Se ele espera que você lhe escreva um livro de tudo aquilo que aprendeu em cinqüenta anos, provavelmente está querendo algo mais do que um doce.

       Balancei a cabeça, lembrando-me de quando era ele... eu precisava saber de tudo sobre tudo, exceto economia, política e medicina, e precisava saber de tudo isso agora.

       Fiquei confuso sobre isso por um momento. Por que as exceções? Elas me aborrecem hoje em dia porque cada uma delas acaba se tornando um contrato social, e não há nada mais tedioso do que entrar em acordo com relutantes outros. Ele deve ter sentido o mesmo. Teríamos algo mais em comum do que um simples passado, poderíamos compartilhar algum valor fundamental ainda não encontrado? Como ele esculpiu a pessoa na qual me tornei? Quais poderiam ser os seus valores?

       Olhei para o tapete. Um garoto de nove anos com valores? Não vamos chegar a tanto, Richard!

       Leslie observou-me afundar em pensamentos e voltou-se para seu computador.

       Ele quer saber o que sei. Falar é fácil, mas além dos detalhes não há nenhuma emoção, sequer uma pedra para se sentir. Duvido que ele possa mudar isso, mas não há nada errado em eu ser o mestre e ele o aprendiz. Nada diz que as coisas devem ser sempre uma via de mão dupla.

       Ela não moveu os olhos da tela do computador. Onde ele está agora?

       — Vejamos. — Fechei os olhos. Nada. Nenhuma paisagem, nenhuma criança que eu havia sido. Uma vasta escuridão apontando para nenhum futuro.

       — Querida, isso vai parecer loucura, mas ele se foi — disse eu.

      

       NAQUELA NOITE, QUANDO ME joguei na cama e fechei os olhos, o primeiro lugar pelo qual procurei foi a masmorra medieval.

       — Dickie — chamei. — Perdão, eu me esqueci! A porta maciça se abriu.

       — Dickie? Olá!

       Nada lá dentro. Um banco, um catre, o frio lança-chamas. Ele passou décadas a fio aqui dentro porque decidi nunca ser um reservatório de sentimentos, oscilando irresoluto para lá e para cá enquanto a razão se desvanecia. Por que exagerei tanto nessa decisão? Por que a aniquilação? Estaria eu inseguro em relação a quem eu era?

       Hoje, não há dúvidas de quem sou, pensei, e hoje posso voltar e suavizar a aniquilação. Quer dizer, embora um pouco tarde, estou reencontrando meu lado humano. Um pouco tarde, no entanto, ainda é melhor que preso a rochas emocionais rolando colina abaixo.

       — DICKIE!

       Ecos.

       Ele está em algum lugar em minha mente, ponderei. Há muitos lugares escuros, caso ele prefira esconder-se. Por que não gostaria de estar comigo? Porque, de alguma forma, permaneceu vivo consigo próprio ao longo destes anos e sabe que não é muito sábio confiar no carcereiro?

       Ele escapuliu quando parei de falar com ele, no caminho do aeroporto para casa. Quando transformei-o de um ser humano num maricas cheio de truques, ele já havia desaparecido sem que eu sequer notasse.

       O que é isto no que eu me perdi?, ruminei. Será que tenho de falar a cada minuto com o garoto, do contrário ele some?

       Talvez não tenha que falar com ele, imaginei, mas pelo menos limpar as teias de aranha nos canais da mente pelos quais nos comunicamos. Talvez o simples fato de mostrar-me preocupado com ele seja suficiente.

       — DICKIE!

       Nenhuma resposta.

       No meu sonho, ergui-me à altitude de um helicóptero, abri um padrão de busca, procurando. Via as irregulares encostas da colina, o relevo do Arizona, o sol de rachar do meio-dia.

       Voltei ao solo à beira de um vasto lago seco, a superfície como telhas rachadas até onde a vista alcançava.

       Bem no meio daquele forno estava um pequeno vulto.

       A distância era maior do que parecia, e à medida que corria para ele, imaginava a razão para aquela desolada paisagem. Teria sido eu ou ele a escolhê-la?

       — DICKIE!

       Ele virou-se para mim, observou meu avanço, mas nem falou nem se moveu.

       — Dickie — supliquei. — O que está fazendo nesse lugar?

       — Vai me trancafiar outra vez?

       — Não, jamais! Como pode pensar que eu o faria, depois de termos voado juntos? Foi o vôo mais maravilhoso de toda a minha vida, e isto porque você esteve lá, voando comigo!

       — Você me esnobou! Tão logo partimos de volta, simplesmente parou de pensar em mim! Eu é que mando na minha vontade, e não pense que não sei que posso ir embora! Posso deixá-lo e nunca mais voltar! E aí, onde é que você vai estar?

       Ele disse isso como se eu pudesse responder, como se fosse uma catástrofe ele ir embora, como se eu já não tivesse vivido sem ele a maior parte da minha vida, com tudo correndo bem.

       — Sinto muito. Por favor, não vá.

       — Sou fácil de esquecer.

       — Não posso saber quem é você? Não podemos ser amigos? — Eu sobreviveria, imaginei. Mas odiaria por ele desaparecer agora, o inocente desaparecido, perdido na clareira do meu ser interior.

       Ele não respondeu. Vai ser como uma queda-de-braço, pensei, mas ele não será tolo de escapar de mim. Por que deveria ele confiar em um cara que o trancafiou numa masmorra e se afastou para sempre? Se há um tolo aqui, não é o rapazinho.

       Sentei-me no leito de argila seca do lago e olhei para as colinas distantes.

       — Onde estamos? — perguntei. Ele respondeu com tristeza:

       — Este é o meu lugar.

       — Seu lugar? Por que este lugar, Dickie? Você poderia ter optado por qualquer outro espaço de minha mente, poderia ter escolhido qualquer outro lugar, se quisesse, poderia ter se apossado do ponto perfeito para estar.

       — Este é o ponto perfeito — disse. — Olhe para isto.

       — Está morto! Você escolhe o maior lago seco do deserto e chama isso de o seu lugar, seu ponto perfeito para estar?

       — Não é um lago seco.

       — Até onde se pode ver — retruquei —, é chapado como um forno, barro cozido em pequenos quadrados fragmentados por muitos quilômetros. Se isto não for o Vale da Morte, então que outro lugar será?

       Ele desviou a vista, olhando à distância.

       — Não são quadrados fragmentados — disse ele. — Cada um é diferente. Eles são as suas lembranças. O deserto é a sua infância.

      

       TODAS AS PALAVRAS EM MINHA mente se despedaçaram, e fiquei em silêncio por um momento. Ele está certo, concordei finalmente, este é o seu lugar. Aqueles momentos em que busquei uma velha lembrança, eis onde vim parar: secura, morte, desencontro, tudo o que costumava ser transformado em pó. Depois de um certo tempo, dei de ombros, uma infância feliz, mas uma lembrança terrível, e aprendi a viver sem minha juventude, a maior parte dela. Aqui jaz ela.

       Ele virou-se e olhou para mim, a sua forma crescida, depois de todos esses anos, com ele em pessoa.

       Recuperei a palavra.

       — As lembranças estão mortas para você também?

       — Claro que não, Richard.

       — Por que elas têm essa aparência?

       — Estão enterradas. Cada uma delas. Mas posso evocá-las, se quiser. — Ele sorriu, embora tivesse acabado de jogar um balde de água fria na minha cabeça, sendo que ainda restavam mil baldes.

       — Toda a minha infância?

       — Sim — disse. — Você me abandona, eu o abandono.

       Enfiei o dedo na terra dura sob meus pés, puxei com força a crosta de um polígono ressequido. O barro bem que poderia ser uma placa de aço empenada.

       — A torre de água fica aqui? Por que me lembro da torre de água? O que significa?

       Ele riu, zombou de minha voz o mais que pôde.

       — É a maior coisa nas redondezas, imagino.

       — Dickie, por favor, preciso saber. Troco um passeio de avião pela torre de água, que tal?

       — Já tenho o passeio de avião — disse ele. — Você me devia isso. E me deve outros milhares de passeios de avião.

       Ninguém disse que deveríamos gostar um do outro, imaginei, mas não sabia que isto se tornaria uma negociação crucial entre nós, através de uma mesa de ferro. Nunca iria funcionar.

       — Dickie, você tem razão, sinto muito. Eu te devo milhares e milhares de passeios de avião, e ainda te devo mais. Devo tudo o que aprendi ao longo dos anos em que éramos apenas um, e vou te pagar tudo isso. Prometo. Guarde suas lembranças. Você nada me deve. Eu é quem devo.

       Sua boca se abriu em surpresa.

       — Está falando sério?

       — Você pode desaparecer, se é o que quer. Eu, de minha parte, continuarei voltando e tentando fazer a coisa certa, tanto quanto eu viver daqui para a frente.

       Então, ele fez a coisa mais estranha. Afastou-se alguns passos, aproximou-se do barro seco e tocou um mosaico quadrado indistinguível dos demais. Ao seu toque, o pedaço de barro se ergueu, um favo de mel de vidro âmbar, tirado de seu estojo no deserto.

       — Aqui está sua torre de água — disse ele e atirou o delicado objeto ao chão, fazendo-o espatifar-se diante dos meus olhos.

      

       TÃO LOGO A MEMÓRIA SE ESTILHAÇOU, pedacinhos ainda voando pelos ares, tão logo o mundo à minha volta mudou, a lembrança se fez, nítida. Havia cascavéis do lado de fora da casa, recordei-me, escorpiões dentro, centopéias no boxe do chuveiro. Mas, para um garoto num rancho do Arizona, tudo isso eram perigos que podiam ser controlados.

       Não calce os sapatos sem antes batê-los no chão, permitindo que as criaturas noturnas escapem. Não tateie por debaixo de pedras nem por entre lenha empilhada sem antes observar se não há uma criatura que possa chamá-lo de intruso, e avisá-lo em forma de ataque.

       O deserto era um mar de salva e pedra. As montanhas eram ilhas na orla do horizonte. Tudo o mais era plano, achatado, o tempo aprisionado em arenito.

       Não era tanto uma torre de água, vislumbrei, mas um moinho de vento. A única dimensão vertical em minha vida era aquela estrutura se avultando. A cada dia era tarefa de alguém subir a escada de madeira do moinho e verificar o nível da água no tanque aberto, empoleirado acima do topo da estrutura. Meus irmãos executavam a tarefa como uma obrigação chata. Para mim, a escada da torre era um patíbulo de condenados. Não era a altura que aterrorizava, mas a queda lá de cima, coisa que não conseguia explicar. Bobby tentava me fazer subir.

       — É a sua vez, Dickie. Vá verificar o nível da água.

       — Não é a minha vez.

       — Nunca é a sua vez! Roy sobe lá, eu subo também. Você também tem que subir.

       — Sou muito pequeno para isso, Bobby, não me obrigue a fazê-lo.

       — Está com medo, não é? — provocou ele. — O bebezinho está com medo de subir na torre?

       Por mais de meio século eu jamais supus o quanto amava meu irmão, e em situações como aquela era fácil desejar que estivesse morto.

       — É muito alto — falei.

       — O bebezinho está com medo de subir — dizia ele e subia a escada, sem nenhum cuidado, até o topo, até a tampa do tanque, contava 525 galões, descia e ia para o nosso quarto ler um livro.

       Como teria sido fácil para mim admitir: tem razão, Bob, sou apenas um bebezinho com medo de subir, sou um bebezinho que tem a convicção de que vou escorregar e cair, batendo o corpo contra a escada três ou quatro vezes durante a queda, quebrando-me todo nesses trancos, e finalmente espatifar-me contra uma pedra pontuda passando desta para uma melhor. Prefiro deixar essa experiência para quando for mais velho, obrigado.

       Hoje posso dizer isso e sentir que meu irmão me aceitaria de qualquer forma. À época, no entanto, admitir a primeira infância era impensável até mesmo para bebês, e a torre assomava como um ponto de exclamação gigante após a palavra covarde.

       Eu odiava aquela coisa alta tanto quanto um alfinete odeia um ímã. A alta estrutura rústica de madeira era um monumento de desdém aos bebês, aos maricas controlados pelo medo, aos garotos que fracassavam antes mesmo de terem terminado o segundo grau.

       De tempos em tempos, durante o ano em que vivemos no rancho, eu me via sozinho no amplo primeiro degrau da escada, a trinta centímetros do chão. O segundo degrau era um pouco mais estreito do que o primeiro, e estava a sessenta centímetros do chão. O terceiro estava no ponto em que começava a produzir medo, e era dele que na maioria das vezes eu começava a descer.

       Ousava manter-me no quarto degrau, olhando para cima, e a escada era uma ferrovia de madeira que apontava direto para o céu. A escada se inclinava para dentro, apoiada que estava na quina da torre de água, mas não havia nenhum corrimão, e o modo de alguém agarrar os quatro degraus acima ficava mais fraco com o medo à medida que se subia.

       Eu ficava gélido no quinto degrau, vinte degraus abaixo do topo da escada. Ninguém observando, eu poderia cair daquela altura e me matar. E tivesse alguém observando, que diferença faria, Dickie? Ainda assim, você poderia se matar. Você está só consigo mesmo, é hora de descer. Algo sobre sentar-se no chão: você está completamente salvo de qualquer queda.

       Cuidadosamente, muito cuidadosamente, deslizei um pé para baixo, e depois outro, descendo. De volta à terra firme, eu tremia de alívio e raiva.

       Odeio ser covarde! Sou aterrorizado pela idéia da morte. Por que eu deveria arriscar a minha vida por algo que ficaria lá estático e que era indiferente ao que eu fazia? E, seja como for, ninguém mais me pede para subir ao topo daquela estúpida torre.

       Curvei-me contra a madeira. Não era tão terrível assim no terceiro degrau. Posso subir até o terceiro e ir me acostumando com isso, e descer ou subir se eu quiser. Se puder chegar ao terceiro degrau e assoviar, é porque estou indo bem. Se puder assoviar, permanecerei até que continue podendo assoviar ou então descerei e ninguém saberá.

       Blasfemar contra torres não é fácil quando não se sabe nenhum xingamento além de ao diabo com isso; e ao diabo com isso seria o meu limite de blasfêmia por muitos anos que ainda estavam por vir. Ao diabo com isso não converte o medo em fúria tal como o vocabulário moderno o faz. Era um longo e lento passo até o quinto degrau.

       Mas a idéia funcionou. Fazer de cada degrau um amigo, passo a passo. Cada um deles tem uma personalidade... Se eu permanecesse o suficiente para falar com cada degrau, seria capaz de subir.

       Quando podia assoviar no quinto, subia para o sexto. Um longo tempo neste último... difícil respirar, mais difícil assoviar. Por que este parece tão alto? Estou apenas a l,90m do chão...

       ...meu pé está a apenas seis pés do chão. Minha cabeça, o centro da consciência, da vida e do ser, está quase três metros acima! Nenhum ar para um assovio.

       Mas espere aí! Se é assim, não preciso subir mais dezenove degraus! Tenho apenas que galgar o suficiente para que eu possa olhar por sobre o topo do tanque — meus pés não precisam olhar por sobre o tanque, apenas meus olhos... são três degraus e meio que não preciso subir!

       Assoviei ao me ver no sexto, e fui para o sétimo.

       Não olhe para baixo, tinha dito meus irmãos.

       Um assovio pífio, e me senti tão confortável como me sentiria ao observar um escorpião rastejando em minha direção, na cama. Melhor estar aqui nessa escada do que ter um escorpião rastejando em minha direção, os ferrões despontando por sobre sua cabeça, suas tenazes abertas. Assovio. Outro degrau.

       Senti minhas mãos desprendendo-se, joguei meu ombro direito sobre os segundo e quarto degraus e prendi o tórax no meio deles. O braço teria de ser arrancado antes de eu cair.

       Ou toda a subida poderia ir às favas e eu retroceder. O que estou fazendo aqui? Vou me matar por nenhuma razão, afinal de contas! Por que estou fazendo isto?

       Estava no no 17° degrau, abraçado à estrutura da escada de madeira, agora com menos de um metro de largura. Na altura dos meus ombros estava a lateral de madeira escura do tanque d'água, uma massa reconfortante, mas nada havia ao que pudesse me agarrar, nada em que me aferrar se a escada se desgarrasse da torre. Nenhum assovio. Tudo o que eu podia fazer era abraçar a madeira e conter os gritos de terror, e ainda faltavam três degraus.

       Dois degraus, disse a mim mesmo. Apenas mais dois passos. Não importa se ainda tenho três para subir, só existem dois à frente. Não vou olhar para baixo, para baixo, para baixo. Nem para cima. Vou focar meus olhos nas colinas... Papai reza à mesa de jantar, de onde ninguém vai cair. Santo Deus, isto é alto mesmo! Mais dois degraus.

       Dois degraus acima, embrulhou-me o estômago a visão que tive da tampa do tanque. Não propriamente a visão, mas por estar tão bem fechada para eu me agarrar com as duas mãos. Se eu o fizesse, iria ficar dependurado na beirada e sem a menor possibilidade de meus pés alcançarem novamente a escada. E eu ficaria lá suspenso no espaço, até que meus dedos lentamente se soltassem...

       Por que estou pensando assim? O que houve com minha mente? Pare, pare, pare. Pense que só falta um degrau.

       Há piche em toda a superfície da tampa do tanque. Alguém uma vez subiu aqui, não apenas subiu como trouxe um balde de piche numa das mãos e uma brocha na outra, pichando toda a superfície da tampa para a madeira não apodrecer! Será que teve medo? Esse alguém esteve aqui antes de mim e não ficou com medo de cair, preocupado apenas com o apodrecimento da madeira... deve ter sentado na borda do tanque, pichando tudo ao seu redor até esvaziar o balde. Depois descia, apanhava mais piche, subia de volta para terminar o trabalho!

       Do que tenho tanto medo? Não preciso pichar nada, não tenho que fazer nada, apenas subir mais um degrau e olhar por sobre uma das laterais do tanque.

       Tinha 40cm de largura, aquele último degrau que galguei, impulsionando-me para cima, olhando para a roda do moinho de vento; imensa, agora, a l,80m de minha cabeça.

       Vi os parafusos e rebites nas pás, pontos de ferrugem. Uma leve brisa moveu um pouquinho as pás e quando a brisa cessou, um segundo depois, a roda voltou à mesma posição de antes. A visão próxima que eu tinha da roda só fazia piorar as coisas, se é que poderiam ser piores. A escala estava terrivelmente errada... a roda deveria ser pequena, como são pequenos os objetos vistos de longe. Pelo amor de Deus, não poderia ser aquele enorme disco sobre a minha cabeça! Porque isso significava que eu era quase o objeto mais alto à vista, o que significava que era o mais provável de cair.

       E se alguém me visse agora? Por favor, não, porque esse alguém iria me chamar, e se eu tivesse que responder e me segurar ao mesmo tempo não o conseguiria e, sem dúvida, despencaria. Por favor, Bobby, por favor, Roy, não saiam de casa e não me vejam.

       Virei a cabeça, centímetro por centímetro de pura angústia, e olhei por sobre a borda do tanque. Lá dentro, números estavam pintados de branco nas paredes da caixa, números baixos no fundo e altos no topo. E no fundo do tanque, tão estranha suspensa no ar: água! Água esverdeada, não muito profunda, como uma piscina rasa, o nível pouco abaixo do número 400.

       Roy estivera aqui e vira este número; Bobby estivera neste mesmo ponto em que me encontro agora. Sei que morrerei em poucos segundos quando um terremoto me sacudir ou quando o vento me soprar daqui, mas sou tão corajoso quanto meus irmãos!

       Tudo o que tenho a fazer é descer, um degrau de cada vez, mas já àquele instante eu havia VENCIDO! Eu já havia VENCIDO!

       Concedi-me um rígido sorriso, olhando para o céu como um sanguessuga faminto. NUNCA mais vão me chamar de medroso!

       Sempre em perfeita lentidão, virei a cabeça, olhei para além do tanque, para além da torre.

       Enquanto eu subia, alguém havia transformado o mundo. Abaixo, nosso telhado, fuligem na chaminé, tabuinhas faltando aqui e ali, uma detalhada casa de brinquedo para pessoas de brinquedo do tamanho do meu dedo. Os cactos não mais pareciam sentinelas monstros, e sim inócuas alfineteiras anãs. Os burros pastavam no curral, suaves como esquilos, lá estava a porteira, e um pouco mais além a rodovia, Bisbee de um lado, do outro, Phoenix, a 160 quilômetros. Se eu pudesse voar!

       Lá estavam as montanhas, ainda acima de mim, apesar de eu tão no alto. Algum dia, Dickie, elas sussurram, quando nos olhar de cima, você imaginará que o mundo é um brinquedo? E como você vai brincar com ele, se de fato for?

       Estremeci, um terror gélido para cada pequeno movimento dos olhos ou do pescoço, tremendo sem controle. Eu cairei e morrerei antes que consiga chegar a salvo no chão, mas nunca vi...

       Nunca vi de cima, do ar... tudo muda! É maravilhoso! Como a vida pode ser tão plana no chão e tão glorioso vista do ar?

      

       DICKIE FITOU-ME ENQUANTO eu permanecia sentado sobre o leito seco do lago, nenhum sinal de alívio em sua face. Uma lembrança removida do peso de milhões de outras.

       — Quando? — perguntei, estupefato com o que ele havia me mostrado.

       — Éramos sete. Você se tornou adulto e trilhou o próprio caminho quando eu tinha nove anos, quando Bobby morreu. Depois, se preocupou apenas com o futuro, desejou crescer e dar o fora e quis viajar à velocidade da luz. — Ele não estava se queixando, apenas me recordando o que eu já sabia. — Você me deixou com todas as lembranças que não queria mais. Aqui estão elas, cada uma delas, mas nada me ensinam, não posso interpretá-las sem você. — Sua voz soava tão fraca que eu mal podia ouvi-la acima do silêncio do deserto. — Você poderia mostrar-me o que elas significam.

       Ele me olhou em silêncio, ainda vergastado pelos mistérios que me levavam inflexivelmente através da infância. Serei o único capaz de caminhar entre ele e sua ignorância? O único capaz de agarrar o chicote de suas mãos, e o único que poderia resgatá-lo?

       — Conte! — murmurou ele. — Preciso saber! Lembro de tudo, mas nada faz o menor sentido!

       Em vez de me imiscuir em sua dor, franzi a testa.

       — Claro que não faz sentido, Dickie. Nada faz sentido

       — Mas não são lembranças vazias para você! — Ele estava desesperado para subir no que para ele era um muro de vidro, besuntado de pontos de interrogação. — A torre de água! Richard, você sabe o que significa!

       Levantei-me de onde estava para tocar-lhe os ombros.

       — Sei o que significa para mim, Dickie. Mas a torre de água tem milhões de outros significados que não escolhi, significados que não representam a verdade para mim. Nada faz sentido até que mude o que pensamos e o que somos.

       — Você está falando como um adulto — interveio ele.

       — Nada faz sentido?

       — Até você processar o que aconteceu; em sua mente — falei. — Subir a torre de água vale um zero até você lhe atribuir um significado. Até decidir que aprendeu, dependurado no ar, que aquela altitude equivale ao terror, e toda a sua vida muda. “Um futuro nas alturas? Não para mim! Nunca a altitude, por favor, obrigado!” — Esta decisão — prossegui —, aquela lição que você inventou, constrói dez mil futuros mais prováveis para você, mas destrói dez mil outros, incluindo, por assim dizer, o meu próprio. A não-existência de altitude significa nada de aeroplanos, nada de vôo livre, e nenhum Shepherd e nenhuma lembrança de Dickie, significa não ter aberto sua cela, significa que não estaríamos aqui no meio desse lago de memórias.

       — Você não decidiu que altitude equivalente ao terror.

       — Muito bonito, Dickie! Do topo do moinho de vento, o terror estava escrito em letras minúsculas, PRODÍGIO! em maiúsculas. O significado que pude captar, aquele que mudou a minha vida: supere o medo, contemple o prodígio. Isto ainda é verdade.

       Observei seus olhos.

       — Você é a única pessoa que pode decidir se a minha verdade é autêntica para você ou se é bobagem — falei. — Os princípios pelos quais eu morreria, os mais altos valores que conheço... para você são sugestões, são possibilidades. Você escolhe, e por isso agüenta as conseqüências. Cada sim, não e talvez criam a escola que você chama de experiência pessoal.

       Imaginei que a carga iria acalmá-lo um pouco, mas num segundo ele se curvou em minha direção, como um velocista na linha de partida.

       — Em cinqüenta anos, você decidiu, para si mesmo, claro, o que tudo significa, como tudo funciona?

       — Para falar a verdade — disse eu modestamente —, a maioria, sim, eu decidi.

      

       DESDE QUE O LUNÁTICO DO SHEPHERD me falou sobre o livro para o garoto, tenho estado, um nível da minha mente tem estado, tremendamente ocupado, esboçando-o para ele.

       — Fale de maneira simples — disse Dickie. O que era aquele pavor em sua voz? O seu sonho de saber tornado realidade, porém complicado demais para acompanhar?

       Eu havia tentado isso antes, falar o que penso sobre o mundo, sem muito sucesso. Exige um pouco de teoria, afinal, um certo desenvolvimento no qual assentar as bases. Mas sempre, invariavelmente, após duas ou três horas a discorrer sobre questões básicas, meus ouvintes ruíam como ídolos de pedra, os olhos abertos porém vazios pelo espaço. E no exato momento em que eu chegava à parte mais interessante, eles já se encontravam distantes, totalmente dispersos.

       Com Dickie, pelo menos, seria diferente. Nada do que considero tão eletrizante seria de difícil compreensão para mim em qualquer idade.

       — Encontrar o seu caminho na terra — expliquei, ajeitando-me no solo do deserto. — Você precisa compreender duas coisas: o poder da harmonia e a razão da felicidade. Mas antes que possa conhecer essas duas coisas, precisa estar a par do próprio princípio do universo. Simples. Em três palavras: A Vida Ê. Tudo o mais se desencadeia no que se poderia chamar de uma cascata lógica. Aqui está o caminho...

       Ele estava ajoelhado no chão, seus olhos quase no mesmo nível dos meus.

       — Como é ser velho?

       — Como disse? — Será que aquela brilhante criança não estava acompanhando meu raciocínio?

       — Qual é a sensação de ser velho? — insistiu. Pisquei para ele.

       — Que tal falarmos sobre como funciona o universo?

       — Você está complicando — disse ele. — Quero saber o que você sabe.

       — Complicando? Estamos falando de minha vida, isso era tudo o que você queria saber, aprender! Acho que é tremendamente importante, o princípio do universo. Eu teria dado qualquer coisa para compreender isso quando era você. Além disso, a única coisa da qual nada sei é idade. Não acredito em idade.

       — Você não pode não acreditar nisso! — disse ele. — Quanto anos tem?

       — Parei de contar faz muito tempo. É muito perigoso.

       — Perigoso? — Ele podia não estar interessado em minha filosofia caseira, mas à idade dava importância. Meu Deus, como a gente muda!

       — Contar é perigoso — retruquei. — Quando se é um garoto, ficar velho é divertido. São festas, presentes, aniversários, bolo de chocolate. Mas cuidado, Dickie. Cada ano naquele bolo esconde uma armadilha, e se você engole muitas armadilhas, é apanhado pela idéia de que mais tarde não mais poderá se libertar.

       — Verdade? — Ele pensou que eu estivesse brincando.

       — Como as crianças morrem? — perguntei.

       — Elas caem das árvores — disse ele —, são atropeladas por bondes, são enterradas em covas...

       — Exatamente — concordei. — Qual é o seu sobrenome?

       Ele enrugou a testa, bateu sua cabeça em mim. Será que o cara havia esquecido?

       — Bach.

       — Errado — falei. — Este é o seu segundo sobrenome. Seu sobrenome real, nesta cultura, é um número, e o número é a sua idade. Você não é Dickie Bach, você é...

       — ...Dickie Bach, Nove.

       — Muito bem, rapaz! — repliquei. — E gente com números baixos como sobrenome quase sempre morrem de Desafortunadas Coisas Más... normalmente estão no lugar errado, na hora errada. Jimmy Merkle, Seis, saiu em um grande, imenso balão, o vento o soprou ao mar e ele nunca mais voltou. Annie Fisher, Catorze, ficou presa no fundo do mar em um pedalinho que afundou ao se distanciar da plataforma continental. Dickie Bach, Doze, explodiu a si mesmo quando fazia combustível de foguete de hidrazina em seu laboratório doméstico.

       Ele assentiu, sondando para ver aonde eu queria chegar.

       — Mas as pessoas que têm números altos como sobrenome — continuei — morrem de Inevitáveis Coisas Más; não há escapatória. O Sr. James Merkle, Oitenta e Quatro, perdeu a sua batalha na última semana, com letargia terminal. A Sra. Anne Fisher-Stovall, Noventa e Sete, esmagada pela doença de Lothman. O Sr. Richard Bach, Cento e Quarenta e Cinco, morreu de incortornável velhice.

       Ele riu finalmente. Idade de 145 anos é impossível.

       — Certo — disse ele. — E daí? O que há de errado com datas de nascimento?

       — Quando os números são pequenos, você sabe que não vai morrer de uma hora para a outra. Quando os números são grandes...

       — ...Você morre.

       Último número alto, tenho que morrer. É chamado de falta de crença, quando você concorda com regras antes de pensar, quando segue em frente porque isso é o que esperam de você. Há muito disso ao longo da vida, a menos que seja cuidadoso.

       — E falta de crenças é uma coisa má — disse ele.

       — Nem sempre. Se não aceitamos nenhuma das crenças comuns, não podemos existir no tempo-espaço. Mas quando não acreditamos em idade, pelo menos não temos de morrer por conta da mudança de nossos números.

       — Eu gosto do bolo — disse ele.

       — Uma vela para cada ano. Você come as velas? Ele fez uma careta.

       — Não!

       — Bolo sempre que desejar. Apenas não coma bolo com velas.

       — Gosto dos presentes.

       — Desista dos aniversários, você pode se dar seus próprios presentes, a cada dia do ano.

       Ele fez silêncio por um minuto, pensando no que eu dissera. Todo mundo que ele conhecia fazia aniversário.

       — Você está demente? — perguntou.

       Joguei a cabeça para trás e ri, lembrando-me. Em casa, nossos valores eram sempre cerebrais. A primeira palavra de adulto que aprendi foi vocabulário. Mamãe me ensinou a ler em casa, antes do primeiro grau, e eu me sentia espertalhão porque meus pais valorizavam a inteligência em vez de sentimento. Emoções, nós as controlamos, o intelecto passa por cima de tudo como um trator.

       Não apenas eu usava demente, recordei, como conhecia as palavras fiduciário, egrégio e polissilábico. Para se ter uma idéia, havia antidessistematizacionismo e disobutilfenoxiopolie-toxioetanol. Nunca se dava muita importância para minhas exibições com palavras, mas naqueles dias eu adorava o ziguezague da segunda, e a usava tanto quanto podia.

       — Claro que sou demente, Dickie. Mas no bom sentido.

       — Você simplesmente surrupiou meus aniversários. Isso é o que você chama de bom sentido?

       — Sim. O bom sentido que está livre das convenções. Também surrupiei mais alguma outra coisa.

       — O quê?

       — Quando não se acredita em aniversários, a idéia de envelhecer torna-se um tanto estrangeira. Você não cai em traumas ao fazer dezesseis ou trinta, ou o assustador cinqüenta ou o mortificante centenário. Você passa a medir sua vida pelo que aprendeu, não por ficar contando calendários. Se é para ter trauma, é melhor que seja pelo choque de descobrir o princípio fundamental do universo do que alguma data previsível como julho próximo.

       — Os outros garotos vão me apontar e dizer: O Menino Sem Aniversário.

       — Eles vão. Você decide. Se acha que há uma boa razão para contar quantas vezes escondeu este planeta atrás do seu sol, mantenha seus aniversários, conte o seu reloginho. Caia numa armadilha a cada ano e pague o preço como todo mundo paga.

       — Você está me manipulando — disse ele.

       — Eu estaria manipulando você se o forçasse a desistir dos aniversários quando você de fato os quer contar. Se não houvesse desistido deles, eu não o teria manipulado.

       Ele me olhou de rabo de olho, para avisar que não estava para brincadeiras.

       — Você é de fato um adulto?

       — Pergunte a si mesmo — repliquei. — Você é uma criança?

       — Espera-se que eu seja, embora me sinta bem mais velho! Você se sente como adulto?

       — Nunca.

       — Então, os sentimentos engraçados permanecem? Quando sou jovem me sinto velho, quando sou velho me sinto jovem?

       — Na minha opinião, somos criaturas sem idade. O sentimento engraçado de que somos mais jovens ou mais velhos do que nosso corpo é o contraste entre o senso comum... nossa consciência deveria sentir-se tão velha quanto nosso corpo... e a verdade, que diz que a consciência não tem nenhuma idade. Nossa mente simplesmente não pode juntar as duas coisas por qualquer regra que seja do tempo-espaço. Então, em vez de tentar outras regras, ela simplesmente deixa de tentar. Sempre que sentimos que não temos a idade correspondente aos nossos números, dizemos estranha sensação! e mudamos de assunto.

       — E se não mudamos de assunto? Qual a resposta?

       — Não rotule a idade. Não diga “tenho sete” ou “tenho noventa”, Tão logo se diz a si mesmo “não tenho idade!” não há nada para se contrastar, e a sensação estranha se vai. Verdade. Tente.

       Ele fechou os olhos.

       — Não tenho idade — murmurou e depois sorriu. — Interessante.

       — Verdade?

       — Funciona — disse ele.

       — Se nosso corpo é uma expressão perfeita de nosso pensamento sobre o corpo — falei —, e se nosso pensamento sobre o corpo é que sua condição tem tudo a ver com a imagem interna e nada a ver com o tempo, então não temos de ficar impacientes por sermos tão jovens ou assustados por sermos tão velhos.

       — Quem disse que o corpo é uma expressão perfeita do pensamento? Qual a origem dessa idéia?

       Deslizei a mão pela testa.

       — Ah! Isto é filosofia! Não estou apenas complicando, como você disse, tudo muito pesado e chato para alguém de apenas nove?

       Ele me olhou no mesmo nível, numa sugestão de sorriso.

       — Quem é que tem nove?

      

       — DICK, VOU LHE CONTAR UMA HISTÓRIA.

       — Adoro histórias.

       — Esta história é recordação minha, não sua. Você recorda meu passado, eu recordo o seu futuro. Um deles, de qualquer modo. Mas em vez de contar, vou lhe mostrar, certo?

       — Certo — respondeu cauteloso, mais curioso agora do que assustado. — É mais filosofia?

       — Uma história. Uma verdadeira história do seu ainda-por-vir. Agarre meu pensamento, observo o que acontece. Depois me diga se é filosofia ou não.

       Muitíssimo lentamente, Dickie estava se tornando um amigo, parceiro de aventura.

       — Pronto! Comece! Fechei os olhos e recordei.

       Havia uma comprida e maciça barra de aço, pendendo, pesada e na horizontal, de um único cabo de prata, bem acima de meu espaço vazio interior. Durante anos eu havia vivido, aprendido, brincado naquela barra, tão próxima ao centro que raramente ela se inclinava, e quando acontecia era quase imperceptível.

       Mas é na adolescência que todos os valores são testados.

       — Sei o que vamos fazer — disse Mike. Era verão, meio-dia, estávamos em sua casa, o pai no trabalho, a mãe fazendo compras. Mike, Jack e eu estávamos entediados. Em segredo, eu inutilmente considerava que não seria o fim do mundo voltar em breve às aulas.

       — O que vamos fazer? — perguntei.

       — Beber alguma coisa!

       Fiquei logo nervoso. Ele não se referia a limonada.

       — Beber o quê?

       — CERVEJA!

       — O que você disse? — interveio Jack. — Você tem CERVEJA aqui?

       — Aos montes. Vamos bebê-la!

       Eu estava sendo empurrado para onde não queria ir... lançado de supetão a uma distância de meu centro nunca antes alcançava, e a barra que significava o equilíbrio em minha vida oscilou gravemente.

       — Não sei se isto é uma boa — falei. — Seu pai vai descobrir. Quando ele chegar em casa e não achar a cerveja...

       — Que nada — disse Mike. — Tem cerveja à beça. Eles vão dar uma festa à noite. Papai não vai dar por falta de umas garrafas.

       Mike desapareceu na cozinha e voltou com três garrafas seguras pelo gargalo, três copos na outra mão, abridor entre os dentes. Pôs as garrafas na mesinha de centro.

       Isto é loucura, pensei. Não tenho idade para beber!

       — Ele vai te matar quando descobrir? — falei. — Ou vai te deixar aleijado pelo resto da vida?

       — Ele não vai descobrir — disse meu amigo. — Vamos, a gente tem que fazer isso mais cedo ou mais tarde. Quanto mais cedo melhor, não é, Jack?

       — Claro.

       — NÃO É JACKIE?

       — CERTO.

       — NÃO É, DICK?

       — Não sei. Acho.

       — Vamos servir: para dois homens e para um bebezinho.

       — Oh, pare com isso — falei.

       Quem sabe, pensei. Dizem que é uma coisa deliciosa, bem gelada num dia quente. Todos os homens bebem cerveja, exceto meu pai. Um copo provavelmente não vai me embebedar, e se é tão bom como dizem, o que importa se sou uns poucos anos jovem demais?

       O equilíbrio de aço interior oscilou tão fortemente que isto foi tudo que pude fazer para ficar mo topo. Eu não sabia o que aconteceria se caísse, mas não estava interessado em descobrir.

       Mike abriu as garrafas, despejando a coisa amarela e espumante até a borda dos nossos copos.

       Ele ergueu sua cerveja com apreciação, lambendo os lábios.

       — Vamos brindar, rapazes. À saúde de vocês! Bebemos.

       Meio gole e minha garganta se fechou. Gelada, sim. Deliciosa? Horrível! Não parecia certo.. Eu era jovem demais para beber cerveja.

       — Argh! — exclamei. — Vocês acham isso bom?

       — É bom para vocês! — disse Mike, copo erguido, olhando para nós.

       — É — concordou Jack. — Eu poderia me acostumar.

       — Parem com isso, vocês dois — falei. — Vocês estão loucos! Essa coisa tem o gosto do meu kit de química. Eles botam isso num tanque e deixam apodrecer!

       — Fermentar... a palavra é fermentar. — Mike esqueceu que éramos amigos. — Isto é cerveja, pelo amor de Deus!

       Não interessa o gosto, ou se vocês não apreciam! Vão gostar depois que beberem mais. Mas vão ter que beber agora!

       Congelei de medo... tinha de fazer isto, não importa o que achasse correto para mim? Crescer é isto, ter de fazer o que as outras pessoas fazem? Não gosto do que está acontecendo aqui. Como posso sair dessa? Socorro!

       Como resposta houve uma explosão no fundo da minha mente, portas arrancadas dos gonzos, uma força lívida arrebentando, agitando.

       Este idiota está querendo lhe dizer o que você deve ou não fazer? Que história é essa de você tem que fazer? Você não tem que fazer nada que não queira! Quem é esse palhaço para mandar VOCÊ fazer o que ELE quer?

       Bati com o copo na mesa, a cerveja saltando da borda.

       — Eu NÃO tenho que beber nada, Mike! NINGUÉM me diz o que FAZER!

       Os dois me olharam sem palavras, os copos de cerveja parados no ar.

       — NINGUÉM ME MANDA! — Levantei-me de chofre, de pura raiva, desafiando-os a erguer um dedo para me impedir. — NINGUÉM!.

       Saí vociferando, batendo a porta atrás de mim, tão atônito quanto os dois garotos.

       Quem é este selvagem que se apossou de mim? Que não estava só exagerando as coisas um pouquinho, alguém que eu nunca vi antes, investindo por trás, me agarrando, me lançando fora do caminho, não importa o que eu pense, que alguém pense que ele é um maldito LOUCO!

       Desci a rua rumo à minha casa, esfriando rapidamente a cabeça. Notei, tudo de uma vez, que o equilíbrio de aço gigante debaixo de mim se aprumara e firmara como granito. Pisquei, sorri um pouco, gargalhei, caminhando depressa. Este cara é... brabo! E ele sou eu! Ele está do meu lado! Quem é você, cara?

       Ninguém te força a fazer nada. Sacou, Dick? Nunca! Ninguém! Nem Mike, nem Jack, nem mamãe ou papai ou qual-quer-um em sua vida força você a fazer o que não quer fazer!

       Fiquei de queixo caído. Você se importa comigo!

       É. Outras pessoas se importam com você, também, mas só vai conhecê-las mais tarde. Você tem importância, garoto, e se é covarde demais para se defender, eu o farei por você!

       Espere aí, pensei, Mike é meu amigo. Não tenho que me defender de meus próprios amigos!

       Bobo, bobo, bobo. Preste atenção, porque só vai me ver quando estiver fora de equilíbrio e assustado novamente. Mike não é seu amigo. Aprenda agora que o seu melhor amigo é Dick Bach. Montes de camadas de si mesmo, e pode nos convocar quando quiser. Ninguém conhece você, ninguém realmente o conhece, a não ser nós. Você pode se destruir ou pode voar além das estrelas, e ninguém dá a mínima, ninguém fica do seu lado para o que der e vier, a não ser nós!

       Espere aí, pensei, obrigado por me salvar há pouco. Desculpe se sou bobo. Há muito o que aprender.

       Nenhuma resposta.

       Eu disse obrigado, ouviu? É sério!

       Nenhuma resposta. Meu guarda-costas interior durão se fora.

      

       — ISTO VAI ACONTECER COMIGO? — perguntou Dickie, intrigado com o futuro, um pouco assustado, talvez.

       — Se fizer as escolhas que eu fiz, sim. Mas algo aconteceu, como conseqüência daquele minuto, você deveria saber.

       — Mostre-me — disse ele.

      

       Desacelerando meus passos, muito perto de casa, virei-me para um terreno baldio, onde havia um milharal selvagem, no qual me enfurnei amaciando o capim da trilha que levava ao esconderijo que eu fizera no verão anterior.

       Deitei-me de costas, olhei para o céu, observando as nuvens de verão flutuarem sobre mim, formas modeladas de algodão-doce empurradas pela brisa.

       Qualquer voz que habitasse minha mente, imaginei, tinha de ser a minha própria fala sem palavras, ecos numa caverna vazia. Às vezes pensativa, às vezes produzindo fragmentos que eu mal ouvia, era uma espécie de jogo de palavras do espírito que procurava afastar a monotonia.

       Mas haveria níveis diferentes em meu interior? Partes de mim que eu ainda não havia descoberto? Eu fervia em curiosidade.

       Se as vozes interiores são algo mais do que ecos, serão elas uma espécie de família que eu poderia treinar a partir de conversas fortuitas para que se tornassem professores e guias?

       Contraí a testa. Não. Não há como treinar quem quer que seja para ser meu próprio professor. Como eu poderia fazer tal coisa?

       Senti-me como se pesquisasse em um microscópio gigante. A resposta estava debaixo das lentes, mas fora de foco. Eu estava prestes a focá-la, ajustando aqui, virando para lá, aqui, cuidadoso...

       E se meus professores estiverem aqui, exatamente aqui, neste momento?

       E se em vez de sempre falar, em minha mente, eu mudasse e passasse a ouvir?

       Nunca o mundo estivera tão definido, as cores tão nítidas. O capim, o céu, as nuvens, até mesmo o vento era brilhante.

       Meus professores já existem!

       E se todos esses níveis diferentes dentro de mim forem meus amigos, que sabem muito mais do que eu sei? Isso seria como...

       “...como se o fosse capitão de uma fragata, o capitão muito jovem de um maravilhoso navio veloz.”

       De repente, em minha mente, o céu e as nuvens, cintilaram para um cenário diferente: há um garoto em um uniforme azul, dragonas de ouro, de pé no tombadilho superior de um navio de combate de casco marfim, nuvens de lonas polidas dispostas obliquamente no topo do mastro.

       Teria eu inventado a cena, ou alguém a pintou em um relâmpago?

       O navio deslocava-se, os embornais de sotavento à flor d'água cortando as profundas ondas em partes: o garoto no convés, a tripulação uniformizada trabalhando por perto.

       Fascinado, acelerei o filme em minha mente. Bancos de areia à frente, monstruosas facas de coral submersas.

       — Arrebentação! — gritou um observador. — Perigo à vista!

       O navio precipitava-se para mudar de curso, cada costado, cada corda e cada metro de lona, cada vida a bordo avançava irremediavelmente, o curso imutável.

       — Arrebentação são os corais, não é? — perguntei, pois num piscar de olhos eu havia compreendido, e me transformei no garoto. — Se não mudarmos o curso vamos nos chocar com os corais, não vamos?

       O rosto coriáceo do primeiro-piloto permanecia impassível, a voz já exibia os anos passados no mar.

       — Sim, senhor, vamos sim.

       — Diga-lhes para virar o navio!

       — O senhor deve assumir o leme, capitão, ou então ordenar que o timoneiro o faça — disse o piloto. — Ele só obedecerá a um comando que venha do senhor.

       Do tombadilho superior eu podia ver a água azul explodindo em espuma alguns metros à frente.

       Ninguém comanda esse navio a não ser o capitão. Dirigi-me ao timão, mais assustado do que comandando.

       — Trabalhar duro!

       As malaguetas da roda do leme enevoaram-se deslealmente, o navio voltava, cortinas de borrifos voando, como se um mustangue estivesse a galope desenfreado sobre o mar.

       No topo do mastro, a tripulação soltava escotas e estais à medida que a fragata adernava contra o vento, açoitada da amura de bombordo a estibordo, as velas ribombando como trovões no céu.

       No tombadilho superior, os oficiais observavam, aguardando, nenhuma palavra ao capitão. A idade do mestre não importa, nem a conseqüência de suas ordens. O dever da tripulação é executar as ordens do comando. Comentários só devem ser feitos quando consentidos pelo capitão.

       A cena era mais brilhante do que filme em tecnicolor e era a minha vida o que se via na tela.

       Não inventei a cena. Eu a desejei, mas não a inventei. Há uma tripulação invisível ao meu redor? Quem me deu aquela imagem?

       — Aqui, senhor.

       A voz também era imaginação, tão nítida quanto a cena?

       — Sim, senhor. Falamos uma língua que o senhor desprezou por um tempo. É a sua imaginação que traduz nosso conhecimento em imagens e palavras que o servem na sua viagem.

       — E você fala apenas quando é solicitado a tal?

       — Com palavras, sim. Pois somos sentimentos, intuição, consciência.

       A fragata riscava o mar à frente, tão ansiosa para mudar para esta ou para aquela direção, ou para qualquer outra que eu desejasse. Caminhei à ré, agarrei a enxárcia de mezena com ambas as mãos. Meu navio! Como podia uma idéia que parecia tão perfeita ser tão difícil de acreditar?

       — Estou no comando — falei, uma última confirmação.

       — Sim, senhor.

       — E você é aquele que me salvou, que me salvou de Mike e da cerveja?

       — Não, senhor. Aquele era... neste filme, ele é o segundo-piloto. Daríamos nossas vidas pelo senhor, capitão, mas de modo diferente. E o segundo-piloto pensa mais claramente do que o resto de nós. Quando o vê em perigo, ele aparece rapidamente, senhor.

       — E o resto de vocês, não?

       — Cada um de nós é diferente.

       Por toda a vida, eu me sentira sozinho. Tinha sido uma criança tranqüila com algo, vagamente poderoso e bom, nostalgia de mim mesmo que eu não poderia entender.

       De uma só vez entendi. O algo era meu navio, e a sua tripulação secreta. Nunca havia compreendido que eu comando, com absoluta autoridade, o navio de minha vida! Decido suas missões, regulamentos e disciplina, da minha palavra depende cada ferramenta e vela, cada canhão, a força de cada alma a bordo. Sou mestre de um time de impetuosas habilidades para navegar através da própria garganta do inferno no instante em que aponto para o leme.

       — Por que não me contaram que vocês existiam? — perguntei. — Tenho muito a aprender! Preciso de vocês! Por que não me revelaram que estavam comigo?

       Deitado na grama, ouvi o barulho do vento.

       — Não contamos, senhor — veio a resposta —, porque o senhor não perguntou.

      

       Abri os olhos em imenso silêncio, Dickie estava sentado próximo, os olhos cerrados, estudando o navio.

       — O que você acha? — perguntei. — Filosofia ou não, rapazinho?

       Ele abriu os olhos.

       — Não sei — disse ele, me observando. — Mas, de agora em diante, pode me chamar de capitão.

       Eu o toquei com meus punhos, suave o suficiente para dizer que aquela não era má idéia.

 

       ISSO ESTÁ ALÉM DE MINHA curiosidade, pensei, olhar para o espelho sem nada ver, alisando o rosto com loção de macho. Remédio é um caminho errado.

       Estou dormente pelo meu sagrado remédio, aterrorizado por sua doutrina. Uma droga para tudo é maluquice. Legal ou não, prescrita ou não, passada por cima ou por debaixo do balcão, comprada para uso nas esquinas das ruas — cada pílula nos separa do conhecimento de nossa própria compleição e nos distancia do aprendizado da verdade. É melhor nos tratarmos sem recorrer a nenhuma droga, seja qual for a droga e a situação. É criminoso, imaginei, para mim, apoiar uma multidão que trata o corpo como uma máquina em vez de notar as manifestações psicológicas, que fracassam em ver além da primeira tela das aparências.

       Leslie é o meu oposto. Livros médicos em seu colo na cama, ela os lê durante horas, os olhos arregalados. Às vezes contraindo a testa, murmurando palavras, “Nutrição! Exercício! Como podem ignorá-los?”, mas maravilhada a despeito da complexidade das conseqüências médicas.

       Ela pode ler o que bem entender, disse a mim mesmo, pode estudar sapos e galinhas, se quiser. Mas e moi? Apoiar um sistema de gente viciada em pílulas, tão distraída a ponto de não ver que nossa própria atenção está competindo com um espectro de doenças criativas? Não é provável!

       Com esses pensamentos, eu me vestia para o baile beneficente do hospital.

       Um privilégio, achava Leslie, um convite para que ajudássemos na medida do possível o avanço do conhecimento sobre doenças terminais e mortes dolorosas.

       — Vamos! — disse eu. Raramente vejo minha mulher vestida para dançar. Esmaga meus princípios apoiar pesquisas que servem para fazer a consciência retroceder, que preço pequeno pela apresentação!

       Ajeitei-me dentro do paletó escuro, coloquei o pequeno alfinete do Cessna na lapela, não sem antes poli-lo com o dedão.

       — Me ajude com isso, querido, por favor! — gritou ela do banheiro. — A cintura está perfeita, mas o busto parece ter encolhido ou os meus seios estão ficando maiores.

       Dar uma mãozinha para minha mulher sempre me deixa feliz.

       — Aqui, isso! Obrigada — disse ela, procurando o espelho. Ajustou as mangas. — Que tal? Está bom?

       Ouviu o barulho da minha queda atrás dela, depois virou-se para ajudar a me pôr de pé outra vez, encostou-me no batente da porta e esperou ansiosa por uma crítica falada.

       O vestido era um suave líquido preto, o busto ia se estreitando até a cintura, e desta para baixo o movimento era inverso. A peça prendia seu corpo em espirais como se fosse um demorado abraço sensual.

       — Lindo — murmurei, diagonalmente. — Muito bonito! Caminhei até a pia e pressionei uma escova contra meus cabelos. Valia qualquer tentativa, pensei, não importa o quão desesperada, para dar a impressão de que eu morava com esta mulher quando déssemos o primeiro passo para o interior do salão de baile.

       Ela manteve-se em frente ao espelho, medindo a sua imagem por todos os ângulos possíveis, mas saindo de lá com dúvidas.

       — Não está muito espalhafatoso, está? Minha voz baixou subitamente.

       — Bem, se você não sair desse quarto — articulei —, não vejo nenhum problema.

       Do espelho, ela me fez uma careta, contraindo a testa. Quando Leslie coloca uma roupa formal, seus valores se voltam ao obstinado passado hollywoodiano, e a coisa fica séria.

       — Vamos lá, Richie, diga-me o que realmente está achando. Se estiver muito extravagante, vou tirar isso...

       Tire, pensei. Vamos ficar em casa esta noite, Leslie, vamos passar para o outro quarto, vamos, peça por peça, tirar essa profunda sombra de vestido que parece um daqueles das entregas do Oscar, e vamos desistir da idéia de ir para qualquer lugar que seja nas próximas semanas.

       — Não — disse-lhe eu, lamentando a chance perdida. — É uma escolha maravilhosa! Um perfeito vestido para a noite. E está lhe caindo muito bem, devo acrescentar, para este baile. Lua cheia esta noite, a polícia nem vai atender o telefone.

       Ela se manteve cética.

       — Comprei este vestido pouco antes de nos conhecermos, Richie, é um vestido de vinte anos. Será que o de seda branca ficaria melhor?

       — Provavelmente sim — eu disse a ela, ainda grudada no espelho. — Pelo menos seria mais seguro. Pois ninguém nesta cidade jamais viu um vestido como este. — Vinte anos! E mesmo que só por cortesia não pude deixar de ficar admirando. Ela me encanta, disse a mim mesmo. Leslie pode vestir-se bem sempre que deseja, mas, honestamente, hoje ela vai arrasar!

       Lembrei-me de um bilhete que escrevi pouco antes de nos conhecermos, encontrado anos mais tarde no fundo de um baú: “Amantes que crescem um com os ideais do outro tornam-se mutuamente mais atraentes à medida que o tempo passa.” Agora este pensamento mostrava-se verdadeiro, lá estava ela, linda e atraente, ajustando seu colar. Seria melhor uma ou duas voltas? A mulher em frente ao espelho é minha esposa!

       Busquei-a com os olhos, admirando-a. Pareceria ela tão exuberante porque há uma redoma de vidro subjetiva sobre os amantes... não importa como encaram o mundo, mesmo assim são lindos um para o outro? Ou seria deliberado, ou aconteceria porque nós o fazemos importante, como se tornar cada dia melhor um para o outro fosse um presente que daríamos a nós mesmos?

       Nada de cigarros, bebidas, drogas, nenhum outro parceiro íntimo. Nada de carne, café, açúcar, nada de gordura, chocolate, nada de se matar de trabalhar, nada de estresse. Tranqüilidade, comida na dose necessária, ginástica puxada, jardinagem e vôo livre, natação e ioga, ar e sucos frescos, música, estudo, conversa e dormir. Cada uma dessas coisas está ligada ao esforço de cada um para que o tempo transcorra melhor mesmo contra uma avalanche de objeções, cada uma um objetivo deliberado, conquistado depois de pouco ou até mesmo muitas relapsias angustiantes. Chocolate é o meu pior demônio, o que torna os dias dela ainda mais trabalhosos.

       — Não pense que o elogio vai ficar sem uma recompensa — cobrei.

       — Como disse?! — Já estávamos em cima da hora. Uma mecha de cabelos louros ondulados insistia em pender para a esquerda e ela pacientemente a ajustava para a direita. Tarde demais para trocar de roupa. O vestido arrasador teria que nos acompanhar. Como podem fazer roupas para mulheres que se ajustam com tanta perfeição a curvas impossíveis?

       — Você está de tirar o fôlego, linda demais.

       Ela virou-se do espelho para mim, presenteando-me com um sorriso.

       — Está falando sério, não é? — Ergueu os braços. — Oh!, benzinho, obrigada. Sinto muito, às vezes me concentro além da conta, mas é que não quero te fazer passar vergonha quando saímos juntos.

       Abracei-a e depois a libertei de meus braços para que terminasse de se arrumar. Por que a aparência é tão importante? Antes eu costumava pensar que a beleza fosse algo secundário para se exigir de um parceiro. Eu a exigia, mas não sabia a razão... estaria isso no âmbito daquilo que realmente conta?

       Olhando para trás, creio que já sabia a resposta antes mesmo de fazer a pergunta. Se eu e minha esposa não tivéssemos sido belos um para o outro, nunca teríamos chegado aonde chegamos devido a tantas tempestades em que tudo parecia perdido. “Eu não a compreendo”, resmungava eu em várias ocasiões. “Obstinado perfeccionista maluco! Se ela não fosse tão exuberantemente bela, juro que teria partido para sempre!”

       Ainda assim, tive várias mulheres bonitas ao longo da vida, as quais abandonei sem pensar duas vezes. Isso acontecia quando havíamos descoberto o que um tinha para descobrir do outro. Algumas mulheres extremamente atraentes, você precisa conhecê-las, elas se tornam todas iguais. Outras, por outro lado, quando são nossa alma gêmea, quanto mais nos tornamos amigos, mais belas elas vão ficando.

       Será que eu e Leslie nos encaixamos nesse modelo? Poderia eu ter imaginado que aquela incandescente Beleza fosse faceiramente juntar-se a nós permanentemente, e então tornar-se ainda mais incandescente com o passar do tempo? Isso aconteceu comigo apenas uma vez, e aqui aquela Beleza permanece.

       Abruptamente, ela terminou, jogou uma estola de seda preta nos ombros e apanhou a bolsa.

       — Estou pronta!

       — Ótimo!

       — Você me ama?

       — Sim.

       — Hum... não sei por que...

       — Porque você é amável, calorosa, criteriosa, desembaraçada, gentil, inquisidora, sensual, inteligente, criativa, tranqüila, multifacetada, livre, aberta, está sempre crescendo, porque é compreensiva, cintilante, prática, deliciosa, bonita, positiva, talentosa, articulada, ordeira, instintiva, misteriosa, camaleônica, curiosa, imprevisível, poderosa, determinada, aventureira, prudente, sincera, destemida e sábia.

       — Meu Deus! — disse ela. — Vou caprichar com mais freqüência!

      

       SENTIA-ME UM ROBIN HOOD DISFARÇADO quando entramos, e o salão de baile parecia o de Nottingham. As pessoas acenavam, riam e reluziam, bebericavam de borbulhantes taças de cristal de pé alto. Enrascado, pensei; eu, o medicinófobo de carteirinha, cercado de médicos para todos os gostos. Estava condenado ao primeiro brinde de aspirina, eles me flagrariam jogando o meu drinque no vaso de palmeira, haveria um clamor público, um vociferar de dedos apontados.

       A escada, pensei. Vou me lançar escada acima, transpor as cortinas, arremeter por aquelas altas portas envidraçadas, espalhando vidro e estilhaços, subir no parapeito da sacada, escalar aquelas paredes esculpidas de gárgulas até o telhado e me perder na noite.

       Sou um desistente autodidata, um aviador pé-rapado que vende passeios de bimotor, procedente dos pastos do Meio-Oeste, um falido que escapou raspando da faixa mais baixa de contribuinte... o que eu teria em comum com aquela gente afetada? Por que conquistar meu lugar entre a mais tênue minoria — As Drogas São o Mal — e depois correr para o Baile da Maioria? Para observar minha mulher, recordei.

       Os olhos de Leslie reluziam enquanto eu tirava a estola de seda dos seus ombros. Peguei-lhe a mão, retardei-me um pouco na orla do piso de madeira de lei, depois deixei a madeira dissolver-se gradualmente em campos de trigo, e ela e eu, o grande e a graciosa, nós, os ares majestosos da Áustria, impulsionados por galantes linhas isobáricas de Strauss. Ninguém nos diz como dançamos, mas é assim que parece: em vôo com a música.

       — Eu achava que os médicos já estavam fartos de anatomia, vendo todos os dias — disse a ela enquanto girávamos.

       — Como? — perguntou ela. Seu cabelo movia-se ao ritmo da dança.

       — Desde que você entrou, ainda não vi uma cabeça de homem voltada para outro lado.

       — Bobo — replicou, embora eu só tivesse dito a verdade.

       Como era bem mais seguro, antes que eu aprendesse a dançar! Ser mestre de dança vicariamente não exige risco ou esforço, e é este tipo de mestre que acho mais fácil ser.

       À maneira vicária, contudo, falta a alegria da música inundando o corpo em movimento. Para adquirir isto, eu tinha de ir até uma pista de verdade e aprender dança de verdade, com meu corpo, tropeçando feito um tolo em algum salão de dança espelhado. Pensamento cruel. Eu não viajara aquela distância toda, disse à minha mulher, para me tornar um aprendiz desajeitado outra vez, em coisa alguma.

       Leslie não concordou e tomou lições sem mim, chegando em casa tão radiante de suas noitadas dançantes que eu ficava especulando. O que poderia haver de tão alegre na dança?

       Ela exibiu-me um passo ou dois e, num momento, a segurança dignificada tornou-se menos interessante do que aprender com ela.

       Portanto, com plena certeza, meus medos se confirmaram. Durante semanas senti-me a criatura fugida do porão de Franskenstein, ou pior. Eletrodos percorrendo o cérebro teriam sido menos agressivos do que minhas botas de monstro quase esmagando o mais ágil dos instrutores debaixo de suas solas. Não desista, porém, e mais cedo ou mais tarde...

       Agora eu me entregava à música, não via ninguém no salão a não ser ela. Obrigado, meu bravo Richard anterior, pensei, por fugir finalmente da segurança de seu chá de cadeira! A música parecia o céu, e minha mulher devia estar pensando o mesmo.

       — Quando você era pequeno, Wookie, pensava às vezes ter vindo à terra saído das estrelas?

       — Hum, eu sabia disso. — Lembrei-me dos telescópios feitos em casa. Observar pelas oculares era como olhar através das janelas de uma nave espacial, procurando nossa casa.

       — Eu sabia disso também — disse ela. — Não de um planeta existente, mas lá de fora.

       Assenti, deslizando entre os outros dançarinos, espirais inversas da esquerda para a direita.

       — Se alguém me pedia para apontar o caminho de casa — falei —, eu apontava para cima, e não sabia por que, até bem pouco tempo atrás.

       Ela inclinou a cabeça.

       — Eu não podia apontar para dentro — continuei —, um espaço estreito amontoado de órgãos, mal dando para respirar. Não podia apontar à esquerda ou à direita: aquelas direções não levam a lugar nenhum senão a um outro “aqui”. Só restava apontar para cima, para longe da terra, portanto, por um longo tempo, senti saudades das estrelas.

       — Eu ainda sinto — disse ela. — Se um disco voador pousar no telhado, será que pediríamos a eles que nos levassem para casa?

       Ri com aquela imagem. Nosso telhado não agüentaria o peso de uma nave espacial. Como voaríamos com visitantes do espaço sideral depois deles terem destruído nossa cozinha?

       — Eles não poderiam nos levar para casa — falei. — As estrelas não estão lá de onde viemos. Como pode a gente além do tempo espacial apontar o caminho de casa?

       — Devem ter mapas — disse ela.

       Não consegui responder. Fiquei pensando em suas palavras até que a música voltou ao ponto de partida, suspirou e por fim parou.

       Há mapas, pensei. Eu não estava apontando para as estrelas, estava apontando para fora da terra. Sabendo, no meu íntimo, que nosso lar não é um planeta, tentava mostrar a mim que o lar é um “lugar”, mas só compreendi a mensagem muito tempo depois.

       Dirigimo-nos até uma mesa, conhecemos estranhos: um médico e sua esposa, uma administradora hospitalar com o marido. O que digo depois de “muito prazer”?, especulei.

       Você se sente de algum modo responsável pela sociedade que vive a base de drogas fervilhando em volta de nós? Fica feliz por acreditar que somos passageiros desamparados em nossos corpos? É verdade que, mais do que qualquer grupo profissional, são os médicos que mais temem a morte, que a taxa de suicídio entre eles é maior do que em qualquer outro grupo?

       Há umbrologistas aqui?, pensei em perguntar.

       Umbrologistas?

       Médicos que tratam de distúrbios da sombra, eu teria dito: sombras quebradas, sombras deformadas, carência de sombras, hiperumbia — atividade anormal da sombra. Vocês sabem, umbrologistas! Há algum umbrologista aqui?

       Isto é loucura, eles teriam rido. Tudo que o corpo faz, a sombra imita.

       Da mesma forma é loucura, eu teria rido, esquecer que tudo que a crença faz, o corpo imita. Nada de umbrologistas aqui? Com tantos médicos no salão? E então eu teria ido embora.

       Eu não disse nada semelhante. E não fui embora.

       — Você pilota um Skymaster! — disse a administradora.

       Olhei para ela. Médicos lêem a mente?

       — O alfinete na sua lapela — apontou ela. — É um Cessna Skymaster, não?

       — Oh, é claro! É, sim — disse eu. — Não é todo mundo que nota.

       — Eu piloto um Cessna 210 — continuou ela. — Quase como um Skymaster, acho. Um Skymaster monomotor.

       — Cessna, Cessna, Cessna — disse o médico. — Sou o único à mesa que voa num produto Piper? Não posso imaginar como vocês podem esnobar um Twin Comanche.

       — Aceleração plena e um pequeno mergulho — falei. — Não é tão difícil de fazer. — Para minha surpresa, eu estava sorrindo.

       Um instante depois, olhei para Leslie e ela deu de ombros num inocente “você não sabe de nada... uma noite de dança e aviões até que não é tão mau”.

       E assim a noite passou. Dançamos com freqüência. Lembrei-me de que muitos médicos são também aviadores, o salão estava repleto de doutores-pilotos. Por volta de meia-noite, tínhamos conhecido e gostado de uma dúzia deles e, por incrível que pareça, senti-me em casa.

       Então, eles têm um ponto de vista diferente, pensei, e isso não é o fim do mundo. Eles fazem o melhor que sabem, não estão escravizando as pessoas aos remédios contra a vontade delas, há lugar para todos no céu.

       Não houve o tal brinde de aspirina, não fui forçado a escapar para o telhado numa chuva de vidro quebrado. Essa era a fantasia de um menino de nove anos de idade, Dickie observando, tenso, a luta ou a fuga por trás das cortinas dos meus olhos.

       O vestido arrasador de Leslie era encanto em movimento, os cavalheiros apreciando sem tumulto, as damas sem se intimidarem, rodopiando no brilho de sua própria elegância.

      

       — Aprendi muitas coisas esta noite! — disse minha mulher na volta para casa.

       — Elas estão numeradas? Ela sorriu.

       — Um: nós dois dançando. Não fomos mais os dois que costumávamos ser. Melhoramos, e gosto disso!

       — Eu também.

       — Dois: você também. Você gostou de se vestir e ir a um baile! Com pessoas que acreditam em medicina! Eu não falei nada, mas meio que esperava que você esta noite acabaria resolvendo as coisas a ponta de espada, em desvantagem numérica, cercado, mas insistindo até a morte que corpo é mente, nesse caso por que tratá-lo com química, quando uma mudança no modo de pensar etc. etc?

       — Eu estava comedido — confessei-lhe.

       — Porque eles pilotam aviões, tantos deles. Se eles não fossem pilotos, você pensaria que eram Guardas do Rei ou algo assim, servos das Drogas do Demônio condenados ao inferno. Mas, como pilotam aviões, você os viu como pessoas iguais a você, e não gritou nem uma vez Morram, Drogados de Jaleco Branco!

       — Não. Sou por natureza uma pessoa gentil.

       — A não ser quando se sente ameaçado — disse ela. — E não se sentiu, ao ver que eles também adoram voar.

       — Isso mesmo.

       — Três: Gostei de Nossa Conversinha Sobre Lar. Eu realmente, toda a minha vida, me senti como uma forasteira. Não porque me mudasse bastante, mas porque sou mesmo de fora. Não penso do modo como todos pensavam onde fui criada, não penso como meu pai, minha mãe, nem ninguém da família.

       — Você pensa igualzinho à sua família, queridinha — falei. — Só que a sua família não é o que você pensava.

       — Acho que tem razão. Até que eu descobrisse, fui bastante solitária. Aí encontrei você.

       — Eu?! — exclamei, atônito. — Você desposou um-homem-que- é-de-muitas-maneiras seu irmão?

       — E o faria de novo — disse ela, sem se envergonhar. — Quantas pessoas há, Richie, que acham que são forasteiros estranhos, diferentes e solitários, quando tudo que aconteceu foi que não conheceram suas famílias?

       — A menos que sejamos estranhos e diferentes — falei —, a menos que tenhamos partido, nunca teremos a alegria do regresso ao lar.

       — O lar outra vez. Diga-me: o que é lar para você? Quando comecei a frase, não sabia como ela terminaria.

       — Lar, acho, é aquilo que é conhecido e amado. — Senti isto clicar lá dentro, do modo como toda resposta autêntica surge com um clique na mente. — Não é verdade? Você senta ao piano, apenas para tocar para si mesmo, conhece a música e gosta dela; isto não é uma volta ao lar? Sento-me nos controles de um aviãozinho, e é um lar para mim. Estamos juntos, eu e você, portanto o lar agora é um carro em movimento; no próximo mês pode ser uma cidade diferente. Quando estamos juntos no lar.

       — O lar não fica nas estrelas?

       — O lar não é um lugar. As coisas conhecidas e amadas, acho, não são pregadas ao solo, cobertas de telhas ou assentadas. Podemos nos tornar ligados a pregos e telhados, mas mudamos sua ordem do conhecido para desconhecido e, quando voltamos, dizemos “o que é esta pilha de telhas?” Lar é uma certa ordem que nos é cara, onde é seguro ser o que somos.

       — Isto é muito bonito, Wookie — disse ela.

       — E apostaria que antes de escolhermos uma vida na terra existe alguma ordem conhecida e amada da qual procedemos, que não tem nada a ver com tempo e distância, que não tem moléculas, afinal!

       — E só porque estamos aqui não significa que a tenhamos esquecido — disse ela. — Você não tem aqueles momentos, querido, já não os teve, quando você... quase... lembra?

       — Sexta série! — E aquele momento, dirigindo com minha esposa, sem sinal de Dickie, estava comigo como se nunca me tivesse deixado.

      

       — A SEXTA SÉRIE ERA UMA MULTIDÃO, Leslie, o que eu estava fazendo no meio de uma multidão? O rancho desaparecera, a torre d'água era apenas uma lembrança, o mar de salva e pedra bruxuleava para se transformar num mar de casas arrumadinhas, subúrbios cor de relva à deriva no lento fluxo da Califórnia.

       As crianças, todas elas na escola, pensei. Ninguém pode selar e embridar um burro, ainda assim, não é uma gente genericamente má, ao menos a maioria não é. Limitada, mas não má.

       Por sua vez, essa gente me olhava curiosa e isso durou alguns dias, porque chegar à Califórnia vindo do Arizona não é a mesma coisa que chegar de Nova York ou da Bélgica. Eu era inofensivo, tanto quanto aquela gente e, com o tempo, ao se dissipar a novidade, fui aceito, afinal era mais uma ovelha no rebanho.

       — Budgie, acha que sou louco?

       — Acho.

       Cruzamos lentamente a rua outonal vazia, as bicicletas de volta da escola pedaladas lado a lado, pneus grossos esmagando folhas de sicômoro.

       — Não responda sim até que eu lhe explique de que maneira sou louco, porque se sou você também é.

       — Você não é louco.

       Deve ter havido alguém mais esperto do que Anthony Zerbe na Mark Twain Elementary School, mas eu duvidava disso. Com certeza não havia ninguém com um raciocínio tão rápido quanto o dele, ou fisicamente mais forte e veloz, ou alguém melhor para estar do seu lado quando estivesse com problemas.

       — Você é uma criança, Budgie? — perguntei.

       — Sim. Tecnicamente, sou uma criança. Eu e você somos crianças.

       — Exatamente! Tecnicamente isso está certo. Mas por dentro, você se sente como tal? No íntimo, sente-se como uma criança?

       — Claro que não — disse ele, cruzando os braços, pedalando sem as mãos no guidom, acelerando um pouco mais e depois reduzindo a velocidade para que eu o alcançasse. — Minha mente é mais adulta do que a de muitos adultos que conheço. Preciso citar alguém... Sr. Anderson? Mas meu corpo ainda não é proporcional. Não sei como ganhar dinheiro ou me casar ou comprar casas. Não sou alto o suficiente. Há um monte de informações de que eu necessito e ainda não tenho. Mas por dentro, como pessoa, sou um adulto.

       — Então você imagina que a razão pela qual somos crianças não é porque não temos valor, mas porque precisamos de tempo para obter essas informações, e crescer mais? E que quando formos adultos nesse sentido, vamos nos sentir exatamente como nos sentimos agora, simplesmente vamos conhecer mais a essência das coisas de modo que possamos seguir em frente?

       — Pode apostar que você tem razão — disse ele, despreocupadamente. — Por dentro, vamos nos sentir como nos sentimos agora.

       — Isto não o aborrece?

       — Porquê?

       — Somos iguais aos adultos, mas não temos poder, Budge! Você não tem ódio de não ser poderoso? Não deseja ter poder?

       — Não. Não sou poderoso, mas ao contrário de você, eu sou... — Ele parou no meio da frase e, na suave ladeira da Blackthorne Street, ergueu os pés ao guidom, e seguiu pelo acostamento enquanto nossas velocidades aumentavam.

       — Ao contrário de mim você o quê?

       — Eu sou paciente! — disse ele, em meio ao vento. — Eu não me importo se é meu pai quem tem que ganhar o dinheiro e não eu. Não me importo em ser criança. Há muito o que aprender. Além da essência das coisas, há muito o que aprender!

       — Eu me importo. Quero me livrar dessa situação. Se sou adulto por dentro... eles deveriam ter um teste e se a gente passasse por ele seria um adulto licenciado, não importa a idade.

       — Tudo tem a sua hora — disse ele.

       Meu amigo voltou os pés aos pedais, agarrou o guidom, impulsionou-se contra o meio-fio e, momentos antes do impacto, ergueu a roda da frente alguns centímetros para subir a calçada. Iam longe os tempos em que as bicicletas me aterrorizavam, quando eu corria para debaixo da saia de minha mãe buscando proteção sempre que Roy me colocava no selim e me obrigava a me equilibrar sozinho.

       Contornei a calçada atrás de Zerbe pela próxima entrada de veículos, refletindo absortamente sobre nossas diferenças.

       — Você não acha que é alguém especial?

       — Essa é boa — disse ele, desacelerando para emparelhar comigo por um momento, depois parando sobre a grama de seu jardim. — Você não?

       Também parei, equilibrando-me com os pés nos pedais até que a bicicleta se desequilibrasse debaixo de mim. Então saltei e a deixei caída sobre a grama.

       — Claro que sou alguém especial — falei. — Todo mundo é especial! Aponte-me alguém em sua sala de aula, aponte-me quem quer que seja da Mark Twain Elementary School que esteja planejando crescer para fracassar!

       Zerbe sentou-se na grama com as pernas cruzadas, inclinando-se contra o selim da bicicleta.

       — Mas isso acontece, não acontece? Algo acontece entre o presente, em que sabemos que somos especiais, e entre o momento em que a gente fracassa sem saber por quê.

       — Isso não vai acontecer comigo. Ele sorriu.

       — Como pode saber? O que o faz ter tanta certeza? Talvez não sejamos realmente adultos, talvez só sejamos de fato adultos quando soubermos que não somos especiais. Talvez o fracasso seja algo que só adultos de verdade podem entender.

       — Bobagem! — repliquei. — Podemos ser garotos, mas por dentro já estamos prontos, e não somos apenas... apenas nada!

       — Prossiga. Não estou me opondo a você. Diga-me. Como sabe que somos especiais?

       — Nas manhãs, às vezes, em certas manhãs, levanto-me e vou lá fora e o ar é tão... verde, você entende? O ar está dizendo Algo vai acontecer hoje! Algo poderoso está para acontecer! Só que essa promessa nunca se cumpre, tanto quanto posso dizer, mas fica aquela sensação no ar. Não acontece, mas acontece. Você não pode saber do que estou falando, sabe?

       — Talvez você esteja simplesmente desejando que algo aconteça.

       — Não estou fantasiando, Budge! Juro que não estou fantasiando. Há algo lá fora e esse algo é como... é uma espécie de chamado para mim. Você também experimenta isso, não? Não quero dizer escutar, no sentido literal, mas você sente isso às vezes, não sente?

       Ele me olhou direto nos olhos.

       — Há uma luz dentro de mim — disse ele —, como se eu tivesse engolido uma estrela.

       — SIM! E nem virando alguém do avesso nunca se encontrará essa estrela, nem ela será notada, nem usando um microscópio gigante.

       Meu amigo recostou-se na bicicleta e observou o crepúsculo por entre as árvores.

       — Não se pode ver as estrelas à luz do dia. É preciso fechar os olhos, se ajustar ao escuro, e você vê esta luz tênue bem ao longe. É isso o que você vê, Dickie?

       Apenas amigos ousam falar dessa maneira.

       — A luz é uma corrente de prata, como a corrente de uma âncora em minha mente, que sai fora da vista e mergulha em águas turvas.

       — Águas turvas! — disse ele. — Exatamente isso! E somos mergulhadores, explorando essas águas, e cada vez mais para o fundo a corrente nos conduz à estrela naufragada. Esta é a nossa âncora...

       Eu era um golfinho, saltando no ar do tanque-prisão em que me encontrava, e caindo em mar aberto para encontrar um espelho amigo do lado. Eu não era o único a saber que havia Algo nos impulsionando para além das palavras!

       — Você sabe disso, Budge! Uma âncora de luz! Eu mergulhei nessas profundezas, e não interessa o quão ruim algumas coisas possam ser, tudo em geral está OK. Estou nas profundezas das águas, meu barco está afastado da visão na superfície, mas aquela âncora que brilha mais do que flashes espocando sempre esteve e está dentro de mim!

       — Sim! — O sorriso dissipado, ele suspirou profundamente. — O brilho está lá, certo.

       — Bem, o que você vai fazer quanto a isso? Você sabe que... A luz... está lá nas profundezas, e o que você fará em relação a ela?

       — Acho que vou esperar.

       — Vai esperar! Santo Deus, Budge, como pode saber que ela existe e esperar? — Eu esperava que ele entendesse que minha voz estava carregada de frustração, não de fúria.

       — O que mais poderia fazer? O que você faz, Dickie, nas suas manhãs verdejantes? — Ele apanhou um talo de grama, colocando-a entre os dentes.

       — Eu quero correr. É como se houvesse algum lugar bem próximo, e que se eu soubesse para onde correr, lá estaria uma espaçonave escondida, com a porta aberta, e dentro dela haveria alguém que soubesse quem sou eu, este alguém que havia viajado por longo tempo e que agora voltava para me buscar, colocando-me dentro da nave, a porta rapidamente se fechando, chiiiiiiiii, depois, vrummmm, a nave se projeta veloz ao espaço, minha casa vai ficando pequenininha lá embaixo, mas ninguém pode me ver ou ver a nave, que continua subindo, subindo, e então lá estou eu nas estrelas, indo para casa.

       Meu amigo girou a roda dianteira da bicicleta com um dedo, depois parou a roleta vazia.

       — Foi por isso que perguntou se eu o achava louco?

       — Mais ou menos.

       — Bem — disse ele —, você é louco, tudo bem.

       — Sim, sou. Você também é.

       — Eu não.

       — Fale outra vez sobre engolir estrelas, por favor. Ele sorriu.

       — Se contar isso para alguém, eu nego.

       — Obrigado.

       — E é melhor você negar também. Ou pelo menos que não fique dando com a língua nos dentes.

       — Acha que tenho esse tipo de conversa com todo mundo? — repliquei. — Nunca terei esse tipo de conversa com ninguém mais. Mas somos especiais, você sabe disso, não sabe? Não apenas eu e você, mas todo mundo.

       — Até a gente crescer — replicou ele.

       — Oh, sem essa, Budgie. Você não está falando sério. Ele parou sob a luz opaca, pegou a bicicleta e a foi levando para o quintal.

       — Estou sim. Não tenha tanta pressa. Essa coisa leva muito tempo. Se quer se lembrar de quem é você, é melhor arranjar um jeito de não crescer.

       Pedalando para casa na escuridão, pensei no que tínhamos conversado. Talvez minha espaçonave não me encontrasse. Talvez eu é que tivesse de encontrá-la.

      

       Leslie girou o volante, ainda me ouvindo, e mudou de pista; parou num sinal e depois apressou-se em descer a ampla rua suburbana.

       — Você nunca me contou isso — disse ela. — Quando penso que estou começando a conhecê-lo, você me vem com uma dessas.

       — Talvez você nunca chegue a me conhecer. Seria capaz de me lembrar de outras coisas, se você me pedir.

       — Verdade? Conte-me.

       — Os anos verdes! De vez em quando, eu sabia como tudo funcionava, por que eu era quem era, onde estava, o que iria acontecer. Eu não sabia tudo isso em palavras. Sabia em sentimentos, sim, eu sentia, era o que eu havia desejado, e aqui estou nesse pequeno planeta no meio de tudo aquilo que pode acontecer. Puxe a cortina e lá está o lar, à distância de apenas um movimento da mente.

       — Mas a cortina se fechou novamente, não foi? — perguntou ela. — Ela se fechou para mim.

       — Sim. Ela estava sempre se fechando, com o teto se fechando por sobre meu cineminha particular, e lá estava eu na escuridão mais uma vez, e a única coisa à vista era a minha vida se desenvolvendo, em duas dimensões, embora parecendo em quatro.

       Senti o garoto em minha mente, ouvindo à medida que eu falava.

       — Certa vez, na Flórida, na Força Aérea, voltando ao acampamento após alguns vôos noturnos, olhei para cima e lá estava aquela imensa cortina, como se toda a via láctea fosse empurrada para um determinado lado por cerca de meio minuto e eu me forçasse a parar, petrificado, observando o céu.

       — E o que havia do outro lado? — perguntou ela. — O que você viu?

       — Nada! Não é estranho? O que vi foi a luminosidade distante de um véu, mas no seu lugar não havia uma visão, mas um sentimento de profunda alegria: Tudo Bem. Tudo está bem. Então o véu se desfazia e lá estavam as estrelas novamente, as mesmas de sempre, e eu ainda lá, de pé, no meio da escuridão. — Olhei para Leslie, recordando. — Essa sensação jamais desapareceu, Wookie. Até esse minuto, ela nunca me abandonou.

       — Eu já o vi terrivelmente enlouquecido, querido — disse ela. — Mas eu o tenho visto em lugares que juraria não ser bons para você.

       — Com certeza. Mas não acontece o mesmo com você? Não é como se estivesse jogando batalha-naval e de repente se envolvesse tanto a ponto de esquecer que é um jogo?

       — Há muito que esqueci que isso é um jogo — interveio ela. — Acho que a vida real é real, e acho que você também pensa assim.

       — Pode parecer que sim algumas vezes, eu admitiria. Fico frustrado, pois algo se coloca no meu caminho. Ou fico furioso, o que equivale a dizer que fico assustado quando o que quero fazer ou quem eu quero ser são ameaçados. Mas isso é uma particularidade do jogo. Tire-me do jogo, diga-me no meu momento de maior fúria: Sua vida acabou, Richard, o espaço-tempo parou, e a fúria arrefece. O que quer que ela representasse, já não importa, ela desaparece e volto a ser eu mesmo outra vez.

       — Deixe ver se entendi bem aquela frase — disse ela. — Sua vida acabou...

       Eu ri, sabendo que ouviria aquelas palavras na próxima vez em que perdesse a calma.

       — Perspectiva instantânea, isso é tudo. Não acha? Ela dobrou uma esquina, na direção de nossa casa. O amor dura um casamento, pensei, tanto quanto marido e mulher permanecem se preocupando com o que o outro pensa.

       Ela parou o carro, desligou o motor.

       — E o que ele quer, não é? — perguntou.

       — Quem?

       — Dickie. Ele quer uma perspectiva instantânea. O que quer que venha a acontecer, ele quer que tudo esteja bem.

      

       DEVIA TER CHOVIDO NO DESERTO DELE, pois brotara grama no leito seco do lado, meros traços onde estiveram as linhas imperfeitas de suas lembranças. Havia uma árvore no horizonte próximo. Como podia mudar tão rápido?

       Ele estava do outro lado do lago, ao sopé de uma suave colina, e corri para encontrá-lo.

       — Estava lá, capitão? — perguntei.

       — No baile? Quando você estava assustado? Sim.

       — Eu não estava assustado.

       — Não se incomodou em que eu bolasse sua escapada, caso eles fizessem o brinde de aspirina...

       — Uma bela escapada, Dickie. Eu estava quase ansiando pelo brinde.

       — Obrigado — disse ele. — Teria funcionado.

       — Sim. Teria havido conseqüências.

       — Minha tarefa é tirar você de lá. As conseqüências são para os adultos.

       — Não foram exigidas conseqüências. Eu poderia ter saído do mesmo jeito que entrei. Sem explicações, apenas porque não me sentia à vontade lá. Sem perseguição, comoção, cortinas destruídas, vidraças estilhaçadas, nada de escalar gárgulas seis andares acima da calçada com meus sapatos de passeio, alcançar o telhado e voltar para Leslie. Não houve conseqüências. Ele deu de ombros.

       — Então você é um adulto.

       — Tem razão. Teria funcionado, teria sido uma grande cena.

       Pôs-se a subir a colina, como se houvesse alguma coisa lá em cima que desejasse me mostrar.

       — Não acredita mesmo em medicina? — perguntou.

       — Não.

       — Nem sequer em aspirina?

       — De jeito nenhum.

       — E quando fica doente?

       — Eu não fico doente.

       — Nunca?

       — Quase nunca.

       — O que faz quando está doente?

       — Saio da drogaria empurrando carrinhos de remédios. Começo com acetominofeno e vou engolindo comprimidos até acabar o Zantac.

       — Se o seu corpo é a perfeita expressão do que você pensa sobre o corpo, por que é careca feito uma bola de bilhar? Por que usa óculos para ler os mapas quando está voando?

       — NÃO SOU CARECA FEITO UMA BOLA DE BILHAR! — repliquei. — O que penso sobre o corpo inclui o fato de que decidi deixar o cabelo menos rebelde do que costumava ser. E que mal há em usar óculos para enxergar com mais nitidez aqueles borrões de letras miúdas? Estou percebendo nisso aquela mania de notar diariamente, quando eu era você, que o cabelo do papai estava rareando e que papai e mamãe usavam óculos para ler?

       Ela não respondeu.

       — Só por saber que meu corpo é o espelho do meu pensamento — falei —, isto não significa que eu não seja preguiçoso, que não deixe minhas crenças seguirem o caminho mais fácil. No minuto que minha imagem corporal me incomodar seriamente, quando houver prioridade máxima para mudar, eu mudarei.

       — E se estiver realmente doente? Sem brincadeira.

       — Isto não acontece. Uma vez, talvez, em anos. Quando aprendi a voar, estava convencido de que os pilotos nunca adoecem. É verdade. Não conheço nenhum piloto que fique doente com freqüência.

       Ele me fitou, intrigado.

       — Porquê?

       Por que é que não sabemos as respostas até que deparamos com a pergunta?, pensei. Antes de abrir a boca, eu não tivera qualquer indício da boa saúde dos aviadores.

       — Voar ainda é uma fantasia para muitos de nós — expliquei. — Quantas fantasias incluem doença? Viva bastante aquilo que você sempre sonhou em fazer e não sobra espaço para as doenças.

       Ele sorriu, subindo a colina, como se estivesse lendo minha mente.

       — Está brincando, Richard — disse. — Você é igualzinho ao papai. Está brincando, e faz isto com esta cara tão séria que eu nunca posso saber.

       — Não precisa acreditar em mim. Aprenda por si mesmo, capitão. Existe um estudo em algum lugar. Compare a saúde das pessoas que fazem aquilo que gostam com a condição daqueles que detestam seu trabalho. Quem você acha que está melhor?

       — Posso adivinhar.

       Toquei-lhe o ombro enquanto caminhava.

       — E se não houver um estudo? — continuei. — Isso torna a sua suposição menos válida?

       Ele me sorriu, baixando inteiramente a guarda.

       — É chamado de experiência de pensamento — falei-lhe. — É um meio de descobrir o que você já sabe.

       — Experiência de pensamento! — exclamou. — Grande!

       — Quer resposta?

       — Ora, Richard, claro!

       — Não.

       — Por que não posso ter respostas?

       — Porque as respostas mudam. Você não quer um milhão de respostas tanto quanto quer umas poucas perguntas eternas. As perguntas são diamantes a serem examinados sob a luz. Estude uma vida inteira e você verá diferente cores da mesma jóia. As mesmas perguntas, repetidas, dão-lhe as respostas que você quer exatamente no minuto em que precisa delas.

       Ele franziu o cenho, fixando os olhos no topo da colina enquanto subia.

       — Que tipo de perguntas?

       — Do tipo Quem eu sou? Ele não se impressionou.

       — Por exemplo.

       — Por exemplo, digamos que você tenha um problema. Todo mundo na escola fará qualquer coisa para ser popular. Você fará? Usará roupas da moda, usará juízos, preconceitos e atitudes da moda, de modo que possa estar seguro e ser igual aos outros?

       — Não sei. Quero ter amigos...

       — É este o seu problema. Aí você encontra uma bolha de tranqüilidade e se pergunta: quem sou eu?

       Lá em cima, podíamos ter uma visão ampla do deserto verde. Estaria minha paisagem interior ficando verde também, por ter encontrado esta criança e desejado libertá-la?

       — Quem eu sou — disse ele. — E depois?

       — Depois é só ouvir. E, ouvindo, você lembra. Você é alguém que pediu para ser largado na terra a fim de poder fazer algo marcante, alguma coisa que fosse importante para você. Algo marcante para você significa chafurdar na crença tola de cada joão-ninguém popular e inconseqüente fingido ter amigos?

       — Bem...

       — A pergunta Quem eu sou não se esgota, Dickie. Ela o ajuda a escolher o que fazer, o tempo todo, por sua vida inteira.

       — Quem são meus amigos?

       — Você conseguiu! — exclamei, orgulhoso dele. Ele parou de subir e me encarou.

       — Consegui o quê?

       — Quem são meus amigos? Eis uma pergunta para durar! Da próxima vez que se rodear de uma dúzia de ovelhas desgarradas, venerando o modelo da jaqueta do seu time, o seu corte de cabelo avançado e seus óculos de sol maneiros, faça essa pergunta. Quem são meus amigos, meus verdadeiros amigos, quem são os outros que vieram das estrelas? Onde estão agora e o que estão fazendo? Estou sendo meu próprio amigo, ao envenenar minha mente estelar com conformismo imundo, erguendo um copo de Morte Lenta com os caras?

       Dickie estendeu a mão para me acalmar.

       — Richard, sou apenas uma criança...

       — De qualquer modo — murmurei enquanto ele retomava a subida —, você entendeu. Lembre-se de quem você é e terá sua resposta. O que uma pessoa estelar está fazendo ao chafurdar em valores lamacentos?

       Ele sorriu para mim.

       — Você se importaria, Richard, se eu decidisse ser um bêbado?

       Virei-me estarrecido para ele.

       — Dickie?

       — Digamos, se eu me transformasse em fumante viciado em pílulas fanático religioso machão mulherengo bêbado — disse ele —, isto o incomodaria?

       — Se fizesse todas essas escolhas, capitão, a maioria das mulheres nem iria querer chegar perto de você. Pode riscar essa de mulherengo.

       — Vamos simplesmente dizer que fiz — disse ele. — O que você pensaria?

       Por um momento, fora de equilíbrio, estaria eu irritado? A raiva é sempre medo, pensei, e medo é sempre medo da perda. Eu perderia a mim mesmo se ele fizesse essas escolhas? Levei um segundo para me situar: eu não perco nada. São desejos dele, não meus, e ele é livre para viver como quiser. A perda ocorreria se eu ousasse forçá-lo, tentasse viver por nós dois. Seria um desastre pior do que a vida numa mesa de bar.

       Bastou aquele momento e aquela idéia para evaporar a irritação, para eu relaxar de novo.

       — As únicas qualidades que você perdeu — falei asperamente — são espírito crítico e controle. Elas são minhas e você não pode tê-las. Quanto ao mais, acho que tem o direito de viver sua vida.

       — Você se sentiria mal em relação a mim?

       — Não posso me afligir pelo que está fora de meu controle. Mas vou lhe dizer, Dickie: se me der autoridade sobre sua vida, seguir minha orientação ao pé da letra, só pensar, falar e fazer o que eu mandar, serei responsável por sua vida.

       — Não posso ser o capitão?

       — Não. Eu assumo o comando

       — Sucesso garantido?

       — Nada de garantias. Mas, se destroçar sua vida, prometo ficar muito sentido por isso.

       Ele parou.

       — O quê? Você assume, toma decisões por mim, faço o que você manda, e aí, quando destroça meu navio nos rochedos, você promete ficar muito sentido? Se é minha vida que vai ser destroçada, eu mesmo me guiarei, muito obrigado!

       Sorri para ele.

       — É o começo da sabedoria, capitão.

       Quando chegamos ao topo da colina, ele parou junto a um tosco assento de madeira socado na terra. Eu podia entender por que escolheu tal lugar para sentar: era o mais perto que podia chegar de um vôo sem asas ou de um sonho.

       — Linda vista — falei. — É primavera em seu país? Um sorriso tímido.

       — A estação chega lentamente.

       Por que não lhe digo logo de uma vez?, pensei. Por que simplesmente não digo a ele que o amo e que serei seu amigo enquanto viver? As intenções do coração nadam nas correntezas de nossa conversa, e são mais importantes quando vislumbradas através das águas profundas, e nunca capturadas?

       — Acho que precisa de um pouco de chuva — comentei.

       — Um pouco. — Por um momento, ele olhou para a distância, como se reunindo coragem. Depois virou-se para mim. — Seu país também precisa de chuva, Richard.

       — Talvez. — O que ele tinha em mente? É um prazer doar-lhe tudo que já aprendi, sem exigir pagamento.

       — Não sei o que isto significa para você — disse ele — mas provavelmente significa um bocado.

       Antes que eu pudesse perguntar o que ele planejava, forcejou violentamente com o assento de madeira, arrancou-o do solo por fim e entregou-o a mim, Moisés menino segurando uma tábua desbotada.

       Não era um assento, era uma tábua tumular, uma lápide feita em casa. Não havia data ou epitáfio entalhados na madeira. Apenas quatro palavras:

       Bobby Bach Meu irmão

       Meio século seguramente esquecido veio todo de volta.

      

       — POR QUE VOCÊ É TÃO ESPERTO?

       Meu irmão levantou os olhos do livro, lembrou da diferença de um ano e meio entre nós, e disse, cuidadoso:

       — Do que está falando, Dickie? Não sou tão esperto. Fiquei pensando sobre a resposta e ele voltou a ler.

       — Todo mundo diz que você é inteligente, Bobby. Qualquer outro irmão mandaria o caçula de sete anos sumir do mapa. Mas, por algum motivo, o meu não ligava.

       — Tudo bem, eles estão certos — falou. — Preciso ser esperto para ir na frente, abrindo caminho para você.

       Se era brincadeira, ele não deixava transparecer.

       — Roy fez isso por você?

       Ele deixou o livro de lado por um instante.

       — Não. Roy é quase um adulto, e Roy é diferente. Eu não sou bom em criar ou construir coisas. E não consigo desenhar daquele jeito.

       — Eu também não.

       — Mas nós podemos ler juntos, não é? — ele escorregou para o canto da cadeira. — Quer treinar sua leitura?

       Subi na cadeira e sentei a seu lado.

       — É por isso que você é inteligente, por ler tanto?

       — Não. Eu leio tanto porque tenho de estar à sua frente. Se vou abrir caminho, tenho de estar à frente, não é? — Abriu o livro sobre as nossas pernas. — Só espero que você ainda não consiga ler este livro. Você não seria tão esperto, seria?

       Olhei as páginas com ar de inteligência e sorri.

       — Oh, claro, eu poderia...

       Ele apontou para as letras grandes.

       — O que está escrito?

       — Fácil. CAPÍTULO TREZE. ALÉM DO SISTEMA SOLAR.

       — Ótimo! Leia o primeiro parágrafo.

       Uma criança ganhava muitos elogios em nossa casa, principalmente por uma boa leitura, “com vida”, como mamãe costumava dizer. Transformar palavras impressas em faladas fazia de você um filho excelente.

       Continuei a ler para o meu irmão, me esforçando ao máximo para que parecesse uma conversa sobre as estrelas e não uma leitura. Mas, no fundo de meu coração, estava gravada a frase que tomei por verdadeira: tenho de abrir caminho para você.

 

       De volta da escola, passei pelo portão dos fundos, faminto, e abri a porta da cozinha. Com sorte, poderia conseguir dois ou três pedaços de pão de centeio sem que mamãe visse: vai estragar o seu jantar, dizia.

       Epa... Papai tinha chegado cedo do trabalho e estava sentado com mamãe e Bobby à mesa da cozinha. A conversa era séria e solene, como se meu irmão fosse um convidado e não filho deles. Isso nunca tinha acontecido. Meu pai, mais cedo em casa?

       — Oi, pai — eu disse, sem mostrar que estava assustado. — Nós vamos mudar de novo? Algo importante vai acontecer? Isto é uma reunião?

       — Estamos conversando com Bobby — respondeu meu pai. — E acho que seria melhor se ficássemos sozinhos. Tudo bem?

       Encarei meu pai por quase um segundo e olhei para mamãe. Ela estava séria, não disse uma palavra. Alguma coisa estava mesmo errada.

       — Não tem problema — falei. — Vou para a casa do Mike. Vejo vocês mais tarde.

       Empurrei a porta de vaivém que separava a cozinha da sala, deixei-a fechar atrás de mim e saí pela porta da frente.

       Que diabos estava acontecendo? Eles nunca tinham tido uma conversa que eu não pudesse ouvir. Sou parte da família, não sou? Talvez não! Será que estavam decidindo se livrar de mim? Por quê?

       Ao lado da casa do Mike havia a melhor árvore para se subir, um tipo de pinheiro, com galhos que formavam uma escada em espiral até o topo, e tantos que não havia como cair. Se você conseguisse alcançar os primeiros ramos, a quase dois metros do chão, o resto era fácil.

       O que eles poderiam estar conversando? Por que eu não podia participar?

       Corri e pulei. Meus tênis grudaram no tronco e com mais um salto eu estava lá. Desapareci no meio dos galhos cheios de folhas, decidido, subindo com firmeza.

       Seja o que for, não é nada bom, não é uma surpresa para mim. Eles deviam ter parado de falar no momento em que cheguei, ou mudado de assunto, discutido a Bíblia ou outra coisa.

       No alto da árvore os galhos eram menores, dava para ver os telhados das casas. A vista era mais bonita, mas os galhos não passavam de brotos, o tronco tinha poucos centímetros de diâmetro e balançava fácil.

       Parei de subir já quase no alto... aquilo não era uma aposta, eu precisava pensar, e este o lugar mais tranqüilo que conhecia.

       Lembrei como mamãe sempre me perguntava como estava a escola, o que eu tinha aprendido. Queria contar que tinha aprendido sobre a Lei das Proporções, será que ela sabia como funcionava? Mas de repente, ela não ligava mais. E por que papai estava em casa àquela hora? Será que alguém tinha morrido? O que poderia ter dado errado?

       A única pessoa que eu conhecia que havia morrido era minha avó, e eles me contaram quando aconteceu. Eu a vira uma vez, pouco mais alta que eu, com seu temperamento rígido e seus cabelos brancos. Não chorei quando por sua morte. Nem mamãe, muito menos papai, é claro.

       Ninguém havia morrido. Eles teriam me contado.

       A trezentos metros de distância, minha casa estava quase escondida pelas agulhas dos pinheiros, mas eu podia ver parte do teto da cozinha. Não era difícil de identificar. Todos em Lakewood Village tinham telhados inclinados, o nosso era plano.

       O que estaria acontecendo lá dentro?

       O vento soprou, balançando suavemente a árvore. Agarrei o tronco com um braço.

       Tinha de ser algo a meu respeito, pensei, se não, poderia ter ficado. Tinha a ver comigo e não era coisa boa.

       Não é possível. Mesmo quando o diretor me chama na sala dele, é para dar uma boa notícia: parabéns, você foi escolhido como monitor; o que acha de concorrer para representante dos alunos? Suas notas nos testes foram as melhores do estado, só abaixo das do seu irmão.

       A tarde caiu e eu ainda estava dependurado na árvore, como um guaxinim preocupado, ainda no escuro apesar de tanto pensar, ansioso mas decidido a não perguntar nada a ninguém. Vou deixá-los contar o que está acontecendo quando quiserem. Estou sozinho, não há nada que possa ser feito. É algo importante que não devo saber, e é isso aí.

       Escorreguei pelo tronco e fui para casa, esfregando as manchas deixadas pela resina do pinheiro.

       Quando passei pela porta de vaiem da cozinha, papai já saíra e mamãe estava colocando uma torta no forno para o jantar.

       — Oi, Dickie — ela disse, desanimada. — O que aprendeu hoje na escola?

       Contaminado pelo seu estado de espírito respondi:

       — Nada.

      

       Bobby faltava às aulas mais freqüentemente e aquelas reuniões fechadas aconteciam de novo, de tempos em tempos. Sozinho no quarto que dividíamos, escutava frases em voz baixa através das paredes, a maior parte de papai, às vezes de mamãe e mais raro de Bobby, tão sutil que nem tinha certeza de que ele falara.

       Um dia, na hora de dormir, enquanto ele subia a escada do beliche, quebrei minha promessa.

       — O que está acontecendo, Bobby? — perguntei. — Com mamãe e papai. O que vocês têm conversado? Sou eu o problema?

       Ele não olhou para mim na cama de baixo, como costumava fazer.

       — É um segredo — respondeu. — Não é nada com você. Nada que precise saber.

      

       Sempre conversávamos, Bobby e eu, e agora não conseguíamos. Pelo menos eles não viriam me pegar à noite, cobrir meus olhos com uma venda, me atirar na caçamba de um caminhão e despachar para o inferno. Talvez meu irmão estivesse brincando. Talvez eles venham atrás de mim. Mas não adiantava insistir: quando ele resolvia não contar, nada o fazia mudar de idéia.

       No dia seguinte, achei uma sacola de camurça na mesa do quarto, como as que os piratas usam para guardar dinheiro. Nunca tinha visto antes...

       Quando soltei os cordões e abri, não encontrei ouro, mas uma medalha. Entalhada com perfeição em ébano, estava a figura de um Buda sorridente, com os braços acima da cabeça, as palmas viradas para cima, as pontas dos dedos quase se encostando. Que diabos...

       Passos. Ouvi Bobby chegando. Enfiei a figura de volta na bolsa, puxei os cordões, me joguei na cama com um livro, Foguetes, Mísseis e Viagens Espaciais, por Willy Ley.

       — Oi, Bobby — olhei quando ele entrou e voltei a ler.

       — Oi.

       Eu lia com vontade e ainda me lembro hoje do texto: foguetes de combustível sólido não estão lotados de pó. Este é armazenado ao redor de uma câmara de explosão cônica. Quanto maior a área de combustão, maior a propulsão. Se fosse bem grande, eu podia apostar que o foguete explodiria, BUUUUM, como dinamite.

       — Vejo você mais tarde — disse meu irmão, e partiu para algum lugar, no carro com papai, levando o casaco e a bolsa de camurça.

      

       Duas semanas mais tarde, Bobby, parecendo cansado, foi com papai para o hospital, nada sério.

       Em uma semana, sem despedidas, meu irmão estava morto.

       Claro, descobriu o Sherlock Holmes de nove anos da Baker Street, era esse o segredo! Explicadas as longas conversas em voz baixa: todos sabiam que Bobby ia morrer, menos eu! Era o jeito deles para me poupar da dor.

       O Buda de ébano era uma procura de respostas, e eu não sabia se meu irmão as tinha encontrado.

       Ele podia ter me contado, eu não ficaria triste. Poderia ter perguntado como era morrer, será que doía? Para onde você vai quando morre, Bobby, você pode não-morrer, se quiser? Os anjos vêm te visitar durante a noite? Morrer é tão simples quanto parece? Está com medo?

       Até onde pude observar, mamãe não chorou, Roy não chorou e papai com certeza não chorou. Então também não derramei uma lágrima, pelo menos não quando alguém pudesse ver. A única mudança foi um silêncio horrível no quarto, sozinho.

       O Press Telegram de Long Beach trazia um pequeno obituário, contando que Bobby tinha deixado mamãe, papai, Roy e eu. Colei o recorte na minha porta com um alfinete de aeromodelo, orgulhoso que um jornal tivesse noticiado e impresso os nossos nomes.

 

       No dia seguinte, o recorte estava solto; encontrei-o sobre a mesa, virado para baixo. Espetei-o de novo e no outro dia lá estava ele de volta, sobre a mesa. Entendi a mensagem. Mamãe podia não estar chorando, mas não queria que pedaços de jornal a lembrassem que Bobby estava morto.

      

       Ela me contou um dia, secando e arrumando os pratos no armário, a louça chinesa tilintando. — Bobby tinha leucemia. Gravei a palavra na hora.

       — Não tem cura. Nos últimos dias, Dick, ele estava tão calmo. Ele era tão sábio!

       Sem lágrimas e ela não me chamou de Dickie.

       — “Tudo tem seu destino, mãe”, ele me disse, “e o meu é morrer agora. Não estou com medo, por favor, não fique triste, não se aflija por mim. Não iria suportar vê-la chorando.”

       Uma lágrima caiu e a conversa terminou.

       Eu era um garoto de sorte, com certeza. Quer vida melhor que flanar, segura e tranqüilamente, atrás de meu irmão? Ele conduz, eu sigo.

       Agora, ao invés de vôo nivelado e curvas suaves à minha frente, com o motor em alta potência, Bobby tinha puxado o manche e desaparecido em direção ao sol.

       Meu coração estava apavorado. Eu soluçava sob as cobertas à noite, gritava embaixo do travesseiro. Por favor, Bobby, POR FAVOR! Não me deixe aqui sozinho! Você prometeu me mostrar o caminho! Prometeu! Não vá! Eu não sei viver sem o meu irmão!

       Chorar faz você melhorar zero por cento, descobri. Sentimentos não mudam a realidade. É saber que importa, e eu tinha muito a aprender.

       Eu procurei morte no dicionário: afirmativas formais sobre o óbvio.

       Olhei na enciclopédia: sem respostas.

       Bobby tinha sido tão sereno, pensei, tão corajoso. Era como se ele tivesse preferido encarar a morte de olhos abertos, como um treino para uma prova. Quando a hora chegou, quando a porta se abriu, ele endireitou os ombros e foi em frente, cabeça para o alto, sem olhar para trás.

       Bom trabalho, irmão, pensei, obrigado por me mostrar o caminho.

       Mas sabe de uma coisa, Bobby? Totalmente de repente eu mudei, de repente sou um filho da puta competitivo e não quero nem saber se vou morrer sem saber por que vivi. O garoto que chorou de terror pela perda do irmão, eu o abandonei há muito, e continuei a vida sem ele.

      

       DICKIE TOMOU A LÁPIDE DAS minhas mãos. — Conte-me de novo — ele pediu. — O que é significante?

       Pisquei. Acabava de reviver um dos momentos mais dolorosos da minha existência, em dor real. Teria ele se transformado em um estranho frio e indiferente? Ele respondeu ao meu pensamento.

       — Por que não? É o que você fez.

       — Obrigado pela comparação — disse.

       — Você sabe a sua resposta. O que significa significante?

       Assumi a pose de racional, uma mudança que fica fácil com o tempo, e falei:

       — Significante, para mim, é qualquer coisa que mude nosso pensamento e, desta forma, mude nossas vidas.

       — O que a morte de Bobby significou para você? — Ele enfiou a lápide de volta para a terra de onde tinha saído. Ela caiu tão logo ele afastou as mãos. — Como isso mudou a sua vida?

       — Eu nunca soube, até agora. Escondi em algum lugar e esqueci.

       Tentou de novo com a lápide, e desta vez deixou-a onde caiu.

       — O que significa?

       No momento em que ele perguntou, eu soube. Libertar aquela lembrança era como desobstruir um rio coalhado de troncos, e a corrente embaixo era rápida.

       — A morte de Bobby, pela primeira vez na minha vida, deixou-me sozinho. Por meio século pensei que sempre estive sozinho, apaguei aquele tempo. Errado! Quando eu era você, Bobby prometeu que faria as descobertas, que levaria os choques da vida antes deles chegarem até mim. Ele os tornaria mais leves, mais compreensíveis, de modo que meu caminho seria mais fácil, uma trilha no meio do deserto. Tudo o que eu tinha a fazer era segui-lo, e as coisas sairiam bem.

       Ele sentava-se quieto na grama, eu ficava medindo passos, um galgo ansioso para disparar a correr.

       — Naquele dia, tudo mudou. Quando Bobby morreu, seu irmão, o passageiro no carroção, teve de montar rapidamente e aprender a ser o guia da caravana.

       Voei acima de minha vida, em alta velocidade, olhando para baixo.

       — Tudo o que aprendi, Dickie, daquele momento em diante, comprovou o poder do indivíduo para mudar seu destino, o poder de escolha de cada um. Muito aconteceu depois: Roy foi para o exército, papai continuou distante, mamãe entrou para a política, eu aprendi a pilotar aviões... todos ensinavam autoconfiança, todos diziam: nunca espere alguém para mostrar-lhe o caminho ou fazê-lo feliz.

       Ele olhou o horizonte.

       — Mamãe e papai não pensavam assim.

       — É verdade. Eles acreditavam no oposto. Mamãe, a missionária, a assistente social, a conselheira; papai, o pastor, o capelão, diretor da Cruz Vermelha. Eles ensinaram Viva para os Outros, e estavam errados, Dickie! Ele ficou rígido.

       — Não diga que mamãe estava errada — grunhiu. — Pode dizer que ela era diferente, Richard, mas nunca me diga que estava errada.

       Quanto eu amei minha mãe e tão pouco de seus valores tinham permanecido em mim! Viver para os outros, mãe, é a pior coisa a se fazer com aqueles a quem se quer ajudar. Puxe os carroções montanhas acima para eles e é você quem acaba com a perna quebrada. Você me protegeu da morte de Bobby, evitou que eu enfrentasse meus sentimentos, e foram necessários cinqüenta anos até que eu os encarasse sozinho. Como poderia ter errado tanto, e eu continuar a amá-la?

       — Fiquei feliz por ela não ter contado que Bobby estava para morrer — eu disse. — Não posso imaginar, não consigo virar minha cabeça o suficiente para enxergar o que eu seria hoje se ela tivesse contado.

       — Um missionário?

       — Eu, missionário? Impossível! Provavelmente sim.

       — Você seria um missionário agora? — ele disse isso como se esperasse que pudesse trazer algum conforto póstumo à minha mãe.

       Ri alto.

       — Foi um padre que matou Deus para mim, Dickie. Não se lembra?

       — Não.

       Claro, pensei. Ele é o Guardião do Esquecido, e isso eu lembro como se fosse hoje.

       — Depois da morte de Bobby — continuei —, das minhas perguntas simples de criança-sobrevivente para o padre interior, resultou a destruição do Deus-como-eu-O-conhecia, e um primeiro vislumbre da minha própria verdade.

       Dickie não acreditava que eu lembrasse algo significativo da minha infância.

       — Que padre? O que aconteceu?

       — Vou mostrar o que aconteceu — falei. — Quando eu estiver aqui, serei eu. Quando for para lá, serei o Padre Interior.

       Ele sorriu, antecipando uma rápida escalada ao topo de uma montanha.

       — Deus é Todo-Poderoso? — perguntei, criança pequena ao adulto mais sábio.

       Afastei-me para olhar a criança que tinha sido. Eu era um padre divertido agora, com roupa verde-escuro, o emblema da companhia numa corrente ao redor do pescoço.

       — Claro! De outra maneira Ele não seria Deus, seria, filho?

       — Deus nos ama?

       — Como pode duvidar? Deus ama a todos, sem exceção!

       — Por que pessoas boas que Deus ama são mortas em guerras e violência, em mortes sem sentido e acidentes estúpidos, por que crianças espertas e inocentes sofrem sem misericórdia, por que meu irmão morreu?

       A voz compreensiva agora, máscara gentil para a ignorância.

       — Algumas coisas estão além do nosso entendimento, meu filho. O Pai manda o maior mal àqueles que mais ama. Ele precisa ter certeza que você gosta mais dele do que de seu irmão mortal. Tenha fé e confiança no Deus Todo-Poderoso.

       VOCÊ FICOU LOUCO DE PEDRA? ACHA QUE SOU UM IDIOTA DE NOVE ANOS? OU ADMITE QUE DEUS NÃO É MAIS TODO-PODEROSO DO QUE EU, QUE ESSE CARA É TOTALMENTE IMPOTENTE PERANTE O MAL, OU ADMITE QUE ELE CHAMA DE AMOR O ÓDIO SÁDICO E PERVERSO DO MAIS SANGUINÁRIO ASSASSINO QUE JÁ EMPUNHOU UM MACHADO!

       — Está bem — disse o padre, com toda doçura —, eu estou errado e você, certo. Eu lhe ofereci conforto, você queria a verdade. Como tantas crianças, você demoliu a religião organizada, Sr. Busca Racional. Sabe que não sei responder a essas perguntas, nenhum padre sabe. E agora terá de criar uma religião para si próprio.

       — Por quê? Não preciso de religião. Posso me virar sem.

       — E deixar sem solução o mistério de por que estamos aqui?

       — Deixar irresolvido — falei para Dickie dos bastidores — seria admitir que existia algo que eu não conseguia entender. E achava que se quisesse realmente saber, não havia nada além da minha compreensão. Isso, para inaugurar, seria a primeira doutrina da minha nova religião.

       Voltei ao palco.

       — Será fácil — digo. — Qualquer criança é capaz de imaginar um mundo melhor que um matadouro habitado por um Deus com facas nas mãos.

       — É o preço a pagar — avisou o padre. — Invente a sua teologia e você será diferente de todos os outros.

       — Isso não é preço, é uma recompensa — zombei — E, além disso ninguém realmente acredita em Deus-o-Impotente ou Deus-o-Assassino não é?  Vai ser fácil

       — Meu padre interior sorri a essa frase um sorriso superior, e desaparece

       Dickie olhava, absorto na minha interpretação

       — Assim que ele partiu — continuei — fiquei nervoso Teria sido impetuoso e emocional na minha pequena explosão? Tranqüilo e cuidadoso pelos próximos dez anos, juntei as peças, sem itálico, sem pontos de exclamação Levou todo esse tempo para encaixar as peças, mas a base estava encerrada. Graças a meu irmão, eu reconstruí Deus Ajude-me com isso, Dickie, mostre-me onde estou errado

       Ele assentiu, ansioso para fazer parte de uma religião feita em casa

       — Imagine que exista um Deus Todo-Poderoso que observe os mortais e seus problemas na Terra

       Ele concordou

       — Então, Deus deve ser responsável por todas as catástrofes, tragédias, terror e morte que flagelam a humanidade

       Dickie ergueu a mão

       — Ele não é responsável só porque vê nossos problemas

       — Pense bem. Porque Ele é Todo-Poderoso Quer dizer, Ele tem o poder de impedir as coisas ruins, se Ele quiser Mas Ele escolhe não impedir Ele é a causa do mal, por permitir que ele exista

       Ele avaliou o raciocínio

       — Talvez.. — disse, hesitante

       — Por definição, porque os inocentes continuam a sofrer e morrer, um Deus que tudo pode não só é indiferente como infinitamente cruel.

       Dickie levantou a mão novamente, mais pedindo tempo para pensar do que para fazer uma pergunta.

       — Talvez...

       — Você não tem certeza — eu disse.

       — Parece estranho, mas não consigo ver o que está errado.

       — Eu também não. Essa idéia está mudando o mundo para você, do mesmo modo que mudou para mim... um Deus mau e cruel?

       — Continue — ele pediu.

       — Seguinte: imagine um Deus Todo-Amoroso que olhe os mortais e conheça seus problemas na Terra.

       — Assim é melhor Concordei.

       — Então esse Deus deve ver com tristeza os inocentes sendo oprimidos e mortos pela maldade, vezes sem fim; assassinados aos milhões enquanto imploram em vão aos céus por socorro, através dos séculos.

       Ele ergueu o braço.

       — Agora você vai dizer: os inocentes sofrem e morrem, então o nosso Deus de bondade não tem poder para nos ajudar.

       — Exatamente! Diga quando estiver pronto para uma pergunta.

       Durante um momento, ele pensou sobre o que eu tinha dito. Então cedeu:

       — OK, estou pronto.

       — Qual é o Deus real, Dickie? O cruel ou o impotente?

      

       ELE REFLETIU POR MUITO TEMPO, então riu e sacudiu a cabeça.

       — Não há escolha! Quer dizer, se a opção é entre Cruel ou Impotente, então às favas com Deus!

       Olhando para ele, vi como eu deveria ter sido, anos atrás, tentando imaginar uma saída.

       — A escolha é não escolher — declarei. — Nenhum dos dois é real.

       — Vamos voltar ao começo. Havia algo errado com a pergunta?

       Eu teria sido tão perspicaz quando era criança?

       — Ótimo! O que faz a escolha irreal, Dickie, é a pergunta. Imagine um Deus Todo-Amoroso que olhe os mortais e conheça seus problemas na Terra. Você pode virar e revirar de todos os lados, como fiz durante anos, mas logo que imaginou que Deus nos vê como mortais sofredores não há como escapar da opção: Cruel ou Impotente.

       — Qual a saída? Não existe Deus?

       — Se você insistir que o espaço-tempo é real... que o espaço-tempo sempre existiu e sempre existirá, então ou não existe Deus ou há a escolha acima.

       — E se eu não insistir na realidade do espaço-tempo? Peguei uma pedra do chão e arremessei para baixo, por cima do alto da montanha em direção à encosta. Lembrei do momento em que decidi não insistir, só por curiosidade.

       — Não sei — respondi.

       — Ora, vamos! — ele puxou um torrão de terra de junto da grama e atirou sem direção. — Você bem que sabe!

       — Pense sobre isso e descobriremos da próxima vez.

       — É melhor você não ir agora, Richard! ONDE ESTÁ O MEU LANÇA-CHAMAS?

       — Sabe, Dickie, que esta seria uma ótima montanha para vôo livre? O vento vem sempre do sul?

       — Só há vento aqui se eu quiser — retrucou ele. — E agora que acabou de matar Deus, quero que você O ressuscite dos mortos ou juro que não vai conseguir dormir esta noite!

       — Certo. Mas não posso fazer com que Ele volte, porque Ele não é um Ele.

       — Ele é Ela?

       — Ela é um Ser.

       — Pronto. Pode começar — respondeu, me devolvendo o palco.

       — Tudo bem. Retiro minhas teses sobre um Deus impotente ou sem vontade de eliminar o mal. Mas não retiro o que disse sobre uma realidade todo-poderosa e cheia de amor.

       — Aí você começa tudo de novo.

       — Não. Escute. É simples. — Desenhei um contorno no ar. — Aqui está uma porta. Nela, estão três palavras: A Vida É. Se passar por essa porta, verá um mundo no qual isso é verdade.

       — Eu não tenho que acreditar que A Vida É — desafiou, determinado a não ser pego novamente em falsas premissas.

       — Não, não tem. Se não quiser, ou acreditar que A Vida

       Não É, ou A Vida Às Vezes É, Às Vezes Não É, ou A Morte É, o mundo será exatamente o que parece ser e dê adeus à busca por sentido ou propósito. Estamos sozinhos, alguns nasceram com sorte, outros choram muito até morrer, sem explicação. Boa sorte.

 

       Esperei por ele, enquanto batia naquelas portas, abria cada uma delas e se desinteressava pelo que estava detrás.

       — Muito chato — concluiu e se inclinou para a frente, pronto para saltar. — Tudo bem. Vamos supor que A Vida É.

       — Tem certeza?

       — Estou pronto para tentar...

       — Lembre da porta A Vida É — falei. — Ela não está brincando. Se você quiser, ponha palavras invisíveis embaixo: Não Importa o Que Pareça.

       — A Vida É.

       — AH, DICKIE — gritei como um samurai, a espada curva reluzindo em minha mão. — LÁ, EM SEU CAIXÃO, JAZ O CORPO DE SEU IRMÃO! A MORTE NÃO EXISTE?

       — A Vida É — ele repetiu, confiante. — Não Importa o Quê.

       Enfiei-me num roupão preto, afundei a cabeça no capuz, fiquei na ponta dos pés e falei, com voz trágica e solene:

       — Eu sou a Morte, criança, virei buscá-lo quando a hora chegar e não há nada que possa calar o meu chamado. — Eu podia ser bastante assustador, bastava estar um pouco preocupado.

       Ainda assim, ele se agarrava à verdade que punha à prova:

       — A Vida É, Não Importa o Quê.

       — Ei, cara — falei, de volta ao meu paletó esporte amarelo. — Nada é eterno. Espera que seus sapatos, seu carro, sua vida durem para sempre? Questão de bom senso... tudo se desgasta!

       — A Vida, É, Não Importa o Quê — insistiu.

       Então, disfarçado de mim mesmo, eu desafiei:

       — As aparências mudam.

       — A Vida É — replicou.

       — É fácil quando você está bem e feliz, capitão. Mas e quando você está magoado ou doente, ou deprimido por que sua namorada foi embora, sua mulher não o compreende, perdeu o emprego ou está falido, no fundo do poço mais fundo?

       — A Vida É.

       — A Vida se preocupa com as aparências?

       Ele pensou um minuto. Qualquer pergunta podia ser um truque.

       — Não.

       — A Vida conhece as aparências? Longo silêncio.

       — Me dê uma dica.

       — A luz conhece a escuridão?

       — Não!

       — Se A Vida É, Ela apenas conhece a Si própria?

       — Sim?

       — Sem chutes.

       — SIM!

       — Conhece as estrelas?

       — ...não.

       — Conhece começo e fim, tempo e espaço?

       — A Vida É. Agora e Sempre. Não.

       Por que as coisas simples são tão difíceis?, pensei. É quer dizer É. Não Era, ou Será, ou Costumava Ser ou Talvez Não Tenha Sido ou Pode Ser Cinzas Amanhã. É.

       — A Vida conhece Dickie Bach? Silêncio de novo.

       — Não o meu corpo. Muito bem, pensei.

       — Conhece... o endereço da sua casa?

       Ele riu.

       — Não!

       — Conhece o seu... planeta?

       — Não.

       — Conhece... o seu nome?

       — Não. Pegadinha:

       — A Vida conhece você?

       — Conhece... minha vida — disse ele. — Conhece meu espírito.

       — Tem certeza?

       — Não me importa o que você diga. A Vida conhece a minha vida.

       — Seu corpo pode ser destruído? — perguntei.

       — Claro que pode, Richard.

       — Sua vida pode ser destruída?

       — Nunca! — respondeu, surpreso.

       — Ora, vamos, Dickie. Está dizendo que não pode ser morto?

       — Dois tipos de morte. Qualquer um pode matar a minha aparência. Ninguém pode tirar a minha vida. — Ele pensou por um segundo. — Não se A Vida É.

       — Então — eu disse.

       — Então? — respondeu. — O quê?

       — A aula acabou. Você acaba de trazer Deus de volta.

       — Um Deus Todo-Poderoso?

       — A Vida é Todo-Poderosa?

       — Em seu mundo. No mundo Real, A Vida É. Nada pode destruí-la.

       — No mundo das Aparências?

       — Aparências são aparências. Nada destrói a Vida.

       — A Vida o ama?

       — Ela me conhece. Eu sou indestrutível. E sou uma boa pessoa...

       — E se não for? Se a Vida não vê aparências, se a Vida não tem noção de tempo e espaço, se a Vida considera apenas a Vida, se não conhece Condições, poderia vê-lo como uma pessoa boa ou ruim?

       — A Vida me vê perfeito?

       — O que acha? — eu disse. — Isso é amor? Estou aceitando sugestões.

       Ele ficou quieto durante um longo tempo, apertou os olhos e ergueu a cabeça.

       — Algo errado?

       Por um momento, olhou para mim como se tivesse um detonador nas mãos. Minha linda estrutura era o resultado de uma vida inteira e ele odiava explodir tudo. Mas eu não era seu único futuro possível, ele tinha sua própria vida pela frente e ninguém pode viver com idéias nas quais não acredita.

       — Conte-me — pedi, com o coração batendo mais rápido.

       — Não me entenda mal — disse. — Tenho de admitir, do jeito que você a expõe, logicamente sua religião pode ser verdadeira. — Ele considerou por um minuto. — Mas...

       — Mas...?

       — Mas o que ela tem a ver com a minha vida como um Ser Humano das Aparências, aqui na Terra das Aparências? O seu É é legal, Richard, mas e daí?

      

       RI PARA MIM MESMO NO SILÊNCIO. Quantos milhares de vezes tinha acontecido comigo, importando-me de repente com o que outra pessoa pensava, ou como decidiria agir? Como se uma fenda se abrisse suavemente em meu barco interior, abaixo da linha-d'água, uma onda de preocupação me invadiu e arrastou fundo no mar, não tão leve, rápido e fácil de contornar como eu gostaria, e sem saber por quê.

       — Você nunca pensou E Daí? — disse Dickie. — Já deve ter pensado.

       Abaixei-me e atirei uma pedra com força, zunindo sobre a montanha. Com o impulso certo, pensei, quase tudo podia voar.

       — Você enviou Shepherd — falei — porque queria aprender o que eu sabia.

       — Eu não mandei Shepherd.

       Peguei outra pedra e continuei minha pesquisa silenciosa sobre a aerodinâmica das rochas.

       — Sim — concordou. — Tinha de aprender com você. E ainda aprendo. Desculpe se feri seus sentimentos com E Daí.

       Preferi o silêncio a forçá-lo a aceitar minhas idéias... ele entendeu silêncio como mágoa por uma questão justa. Como é difícil as pessoas se entenderem quando há divergências.

       — Ajude-me com esse problema — pedi. — Quero mostrar-lhe o quanto aprendi. Vou fazê-lo de graça, pois você vai usar esse conhecimento diferente de mim, e vai encontrar um jeito de me contar o que fez e por quê. Quero que isso aconteça. Acredita em mim?

       Ele balançou a cabeça afirmativamente.

       — Mas outra coisa que sei é Nunca Convença Ninguém. Quando você disse e-daí eu vi um anúncio luminoso cor-de-rosa: Compre-o, Prove Sua Verdade ou Ele Não Acreditará No Que Você Diz!

       — Não. Não é isso que...

       — Eu não me importo de contar a você, nem de explicar o mais claro que possa, mas lembre-se que não posso me responsabilizar por alguém sobre quem não tenho autoridade... isto é, por ninguém a não ser eu mesmo.

       — Mas eu...

       — Confiar em outras pessoas para aprender é como confiar em médicos para cura, Dickie. Só vamos sair ganhando se eles estiverem presentes e quando estiverem certos... quando eles faltarem ou errarem, estamos em maus lençóis. Mas, por outro lado, se passarmos a vida inteira aprendendo a compreender o que sabemos, então nosso eu interior consciente estará sempre conosco, e quando estiver errado podemos quase sempre mudá-lo, até que funcione.

       — Richard, eu...

       — Lembre-se, capitão: a razão pela qual estou aqui não é convencê-lo, ou convertê-lo, ou transformá-lo em mim. Tive bastante trabalho para me transformar em Richard. Só guio a mim mesmo. Sinceramente, eu me sentiria bem melhor se parasse de pensar sobre meus valores, quem eu sou, no que acredito e por que sou diferente de todos os seus possíveis futuros. Eu lhe devo informação e uma resposta à sua curiosidade. Mas não posso convertê-lo ao meu jeito de pensar, que pode ser um amontoado de mentiras.

       Em troca do meu sermão recebi um longo silêncio. Negócio justo, pensei, e fiquei calado.

       Ele suspirou.

       — Sei que não é meu guia e que não é responsável por nada que eu possa ou não fazer pelo resto da minha vida ou vidas pela eternidade afora. Concordo em isentá-lo de qualquer dano real ou imaginário que possa advir de qualquer palavra sua que eu, certa ou erradamente, aplique em qualquer situação de qualquer futuro que escolha. Entendeu?

       Neguei com a cabeça.

       — O que quer dizer, não? Não entende? VOCÊ NÃO É MEU GUIA OU LÍDER OU PROFESSOR, NÃO IMPORTA QUANTAS VEZES...

       — Não adianta. Quero por escrito.

       Seu rosto espantado merecia uma moldura.

       — O QUÊ? Estou dizendo que compreendo que não queira ser guia de ninguém, e responde que isso não é suficiente para...

       Dei-lhe uma pedra lisa, ótima para atirar.

       — Estou brincando. Só provocando, Dickie. Queria ter certeza de que entende. Não preciso de uma declaração por escrito.

       Ele estudou a pedra em suas mãos. Não a arremessou nem deixou cair.

       — Está bem — disse por fim. — Sobre A Vida É. E daí?

       — O que sabe de matemática?

       — O que qualquer aluno de primeiro grau sabe de matemática? — respondeu, sabendo que eu estava dirigindo a conversa, com esperança de que não fosse apenas provocação de novo. — E o que sei.

       — É suficiente. Acho que a Vida é expressa na Aparência do mesmo modo que números são expressos no espaço-tempo. Vamos pegar o nove. Ou você prefere outro número?

       — Oito — ele disse, para o caso de nove esconder algum truque.

       — Está bem, oito. Podemos imprimir um oito em tinta, podemos modelá-lo em bronze, esculpi-lo em pedra, colocar oito dentes-de-leão numa linha, equilibrar oito dodecaedros cuidadosamente um em cima do outro. De quantas maneiras diferentes podemos exprimir a idéia do oito?

       Ele deu de ombros.

       — Zilhões de maneiras. Infinitas.

       — Mas espere — falei. — Vê este maçarico e esta marreta? Podemos também queimar o papel, derreter o bronze, esmagar a pedra em pó, soprar os dentes-de-leão ao vento, transformar os dodecaedros numa massa disforme.

       — Entendi. Podemos destruir os números.

       — Não. Podemos acabar com a aparência dos números no espaço-tempo. Criamos aparências e podemos destruí-las.

       Ele assentiu.

       — Mas antes do tempo começar, Dickie, e agora, nesse minuto, e depois que o tempo e o espaço tenham virado pó, a realidade da idéia do oito permanece, indestrutível pelas aparências. Quando o Big Bang se tornar a Grande Colisão e toda a matéria for reduzida a partículas tão pequenas que não mais existam, a idéia do oito flutuará serena, perfeita e impassível.

       — Ela não liga?

       — Agora, eis um machado. Corte a idéia do número oito, com tantos golpes que ela desapareça. Leve quanto tempo quiser. Avise quando terminar.

       Ele riu.

       — Não posso cortar idéias, Richard.

       — Eu também não poderia.

       — Do mesmo modo, o meu corpo não é mais o eu real do que um número no papel é o número real.

       Fiz um movimento afirmativo com a cabeça.

       — Mas estou demorando muito mais do que você para chegar lá. Espere um pouco.

       Ele aguardou.

       — Que outro número é como o oito? — perguntei, imaginando por um momento se ligava para o fato de ele acreditar nas minhas metáforas. Não ligo se ele acredita, pensei, mas sim se ele entende.

       — Sete?

       — Quantos oitos há na matemática? Ele pensou por alguns segundos

       — Um.

       — É o que eu penso, também. A idéia de um número é única. Não há outra existindo ao mesmo tempo. O Princípio dos Números depende desse oito, e sem o oito todo o Princípio entraria em colapso.

       — Ora, vamos, agora...

       — Não acha? Vamos supor que conseguimos destruir o oito. Rápido: quanto é quatro mais quatro? Seis mais dois? Dez menos dois?

       — Oh — ele disse.

       — Você pegou a idéia, então. Um número indefinido de números, cada um diferente do resto, e todos tão importantes para o Princípio quanto o Princípio para eles.

       — O Princípio precisa de cada um dos números! — disse ele. — Nunca tinha pensado nisso.

       — Real, indestrutível, vida além das aparências. Ainda assim, qualquer número pode ser expresso simultaneamente em quaisquer das infinitas possibilidades de aparências.

       — Como mudamos? — perguntou. — De onde vem a crença? Como de repente esquecemos tudo o que é verdadeiro e nos tornamos bebês da noite para o dia?

       Mordi o lábio.

       — Não sei.

       — O quê? Montou todo esse enorme quebra-cabeça e deixou faltar uma peça?

       — Sei que somos livres para acreditar em qualquer tipo de vida. Sei que fazemos isso pelo prazer de aprender e pelo poder de relembrar quem somos. Como esquecemos? Bem-vindo ao espaço-tempo, deixe a memória no guarda-volumes? Algo acontece, mas não descobri o que apaga a nossa memória quando damos o salto.

       Ele sorriu com a tentativa de explicação, um sorriso estranho que eu não conseguia desvendar, e depois de um minuto resolveu conceder.

       — Posso continuar mesmo sem essa peça. Algo Acontece. Nós Esquecemos. Prossiga.

       — De qualquer modo, uma vez no espaço-tempo — continuei —, estamos livres para acreditar que existimos sozinhos e desligados de todo o resto, livres para dizer que o Princípio dos Números é bobagem.

       Ele concordou com mais esse passo.

       — O Princípio não tem noção do espaço-tempo, porque o espaço-tempo não É. Então o Princípio não dá ouvidos a preces angustiadas ou pragas malditas, não reconhece sacrilégio nem heresia, nem blasfêmia ou impiedade, nem irreverência ou abominação. O Princípio não constrói templos, não emprega missionários, não faz guerras. É inconsciente, totalmente alheio se os símbolos de seus números são reduzidos a pó, rasgados em mil pedaços ou queimados até se tornarem cinzas.

       — O Princípio não se importa — repetiu ele, relutante.

       — Mamãe se importa com você? — perguntei.

       — Ela me ama!

       — Ela chorou quando você foi baleado dez vezes, na última vez que brincou de polícia-e-ladrão?

       — Hum.

       — É o mesmo com o Princípio — comparei. — Ele não percebe que damos importância a jogos. Tente agora. Vire-se de modo a dar as costas ao Infinito Princípio dos Números, à Realidade Imortal dos Seres Numéricos.

       Ele se virou no alto da montanha, um pouco para a esquerda.

       — Agora diga: Eu odeio o Princípio dos Números!

       — Eu odeio o Princípio dos Números! — ele repetiu, sem muita convicção.

       — Tente assim: O horrível e bobo Princípio dos Números come açúcar refinado, gorduras saturadas e carne vermelha!

       Ele riu.

       — Cuidado com este, capitão. Vamos precisar de muita coragem para dizer isto, já que se estivermos errados estaremos fritos: A PORCARIA DO IDIOTA E MENTIROSO PRINCÍPIO DOS NÚMEROS É UM MONTE DE RESTOS PODRES QUE NÃO SERVEM PARA NADA! NÃO PODERIA NOS ATINGIR COM UM RAIO PARA PROVAR A SUA ESTÚPIDA EXISTÊNCIA NEM SE QUISESSE!

       Ele se perdeu depois dos restos podres e inventou o resto, mas acabou com uma imprecação tão furiosa que poderíamos ter sido torrados.

       Nada aconteceu.

       — Podemos ignorar o Princípio, odiá-lo, xingá-lo e difamá-lo — continuei —, podemos até zombar dele. Não haverá vingança dos céus, nem mesmo o menor sinal de preocupação virá do alto. Então, por que não?

       Ele pensou durante um longo tempo.

       — Por que o Princípio não reage? — perguntei.

       — Porque não está ouvindo — ele respondeu por fim.

       — Quer dizer que não há castigo se acabarmos com ele?

       — Sem castigo.

       — Errado.

       — Por quê? Ele não está ouvindo!

       — Não está, Dickie, mas nós estamos. Quando viramos as costas ao Princípio dos Números, o que acontece com a nossa matemática?

       — Não conseguimos somar?

       — Não. Respostas serão diferentes a cada vez, os negócios e a ciência se tornam um emaranhado. Abandone o Princípio, e não é o Princípio que sairá prejudicado, mas nós!

       — Santa confusão!

       — Mas considere novamente o Princípio e tudo volta a funcionar. Nem é preciso pedir desculpas, Ele não ouviria mesmo se gritássemos. Ninguém será testado nem punido, nenhuma represália do Infinito. O resgate do Princípio cura magicamente todas as nossas somas, pois mesmo nos imaginários playgrounds das aparências o Princípio é real.

       — Interessante — ele disse, acompanhando o raciocínio mas sem acreditar.

       — E agora estamos empatados, Dickie. Pegue o Princípio da Vida, ao invés do Princípio dos Números.

       — A Vida É — ele respondeu.

       — Vida pura, amor puro, conhecendo seu próprio íntimo puro. Imagine que cada um de nós é a perfeita expressão desse Princípio, que existimos para além do espaço-tempo, imortais, eternos, indestrutíveis.

       — Imaginei. E daí?

       — E daí que somos livres para fazer qualquer coisa que quisermos, exceto duas: não podemos criar a realidade nem destruí-la.

       — E podemos o quê?

       — O Maravilhoso Nada, em todas as brilhantes variações. Quando se entra num Alugue-uma-Vida, o que espera encontrar? Podemos descobrir infinitos mundos de aparências, podemos comprar vida e morte, podemos negociar tragédias, delícias, desastres, paz, terror, nobreza, crueldade, céu e inferno; podemos mandar embrulhar para viagem nossas crenças, saboreá-las em seus mais microscópicos sofridos deliciosos e alegres detalhes. Mas antes, durante e depois do tempo, A Vida É e Nós Somos. A coisa que mais tememos é aquilo que não é possível: não podemos morrer nem sermos destruídos. A Vida É, Nós Somos.

       — Nós Somos — repetiu, pouco impressionado. — E daí?

       — Você responde, Dickie. Qual a diferença entre vítimas das circunstâncias, aprisionadas em vidas que não escolheram, e aqueles que são mestres de suas vidas, mudando-as de acordo com suas vontades?

       — As vítimas estão abandonadas, os mestres não. Concordei.

       — Esse é o e daí.

      

       ELE PENSAVA ACERCA DE TUDO O QUE me dera a chance de dizer, e eu achei que seria melhor seguir meu caminho por um tempo Olhei a paisagem e imaginei como seria quando a olhasse de novo

       — Te vejo na próxima vez

       — Você é mestre de sua vida? — perguntou ele

       — Claro que sou! EU, você e todos os outros. Mas nos esquecemos disso.

       — Como eles fazem isso?

       — Como quem faz o quê?

       — Como os mestres mudam suas vidas quando querem?

       Sorri a esta pergunta

       — Com armas poderosas

       — O quê?

       — Outra diferença entre mestres e vítimas é que as vítimas não descobriram as armas poderosas e os mestres as usam o tempo todo

       — Furadeiras elétricas? Serras circulares? — Ele parecia um náufrago em busca de socorro. Um bom professor o teria deixado descobrir a resposta sozinho, mas eu falo demais para um professor.

       — Nada disso. Escolha. A lâmina encantada, com um fio que modela as existências. Se ainda assim temos medo de escolher outra coisa que não o que já temos, o que adianta escolher? Melhor deixá-la embrulhada em sua caixa, sem se dar ao trabalho de ler as instruções.

       — Quem tem medo de usá-la? — perguntou ele. — O que há de apavorante na escolha?

       — Ela nos modifica.

       — Ora...

       — Tudo bem, não escolha — eu disse. — Faça o que qualquer um faria, cada minuto de sua vida. O que acontece?

       — Eu vou à escola.

       — Sim. E...?

       — Eu me formo.

       — Sim. E...?

       — Arrumo um emprego.

       — Sim. E...?

       — Me caso.

       — Sim. E...?

       — Tenho filhos.

       — Sim. E...?

       — Ajudo-os nos deveres.

       — Sim. E...?

       — Me aposento.

       — Sim. E...?

       — Morro.

       — E quando estiver morrendo, ouve as suas últimas palavras.

       Ele pensou sobre o assunto. E daí.

       — Mesmo que faça tudo o que esperam de você: respeitar a lei, ser um marido e pai perfeitos, votar, fazer donativos, ser bom para os animais. Você vive de acordo com as regras e morre de e daí?

       — Hum...

       — Porque nunca escolheu sua vida, Dickie! Nunca procurou uma mudança, nunca questionou o que gostava e nunca encontrou, nunca se atirou ao mundo que mais importava para você, nunca enfrentou os dragões que achava capazes de comê-lo, nunca se arriscou por sobre picos, a mil pés de altura, contando apenas com sua habilidade para evitar uma desgraça iminente, porque sua vida estava lá e você tinha de trazê-la de volta para casa a salvo do terror! Escolha, Dickie! Encontre o que gosta e vá atrás na velocidade máxima e eu, o seu futuro, prometo que você nunca vai morrer de e daí.

       Ele me olhou de través.

       — Está tentando me convencer?

       — Estou tentando resgatá-lo do Ir-com-os-Outros. Eu lhe devo isto.

       — E se eu fizer? O que acontecerá se eu aprender fazer as minhas escolhas, sem ouvir o que os outros dizem, e me lançar sobre as montanhas? Sua lâmina mágica vai me manter a salvo?

       Suspirei.

       — Dickie, quando foi que a segurança se tornou o seu objetivo? Afastar a segurança é o único recurso para que a última palavra seja Sim!

       Sim!

       — O plátano.

       — O quê?

       — ...no jardim da frente. Está sempre lá, sempre a salvo. Quando estou assustado, daria tudo para ser aquela árvore. Quando não estou, imagino como agüentaria o tédio.

       A árvore ainda está lá, pensei, maior do que ele imaginaria, mais frondosa, e estará nos próximos cinqüenta anos, cada vez com suas raízes mais fundo na terra.

       — Afastar-se da segurança não quer dizer correr riscos inúteis — expliquei. — Ninguém se lança aos céus num jato sem antes aprender a pilotar um monomotor. Pequenas escolhas, pequenas aventuras antes das grandes. Mas um dia, no meio de uma competição aérea, no máximo da potência, com o motor parecendo uma fornalha pronta para explodir, o mundo reduzido a uma mancha verde desfocada, cinqüenta pés abaixo, você está puxando aceleração de gravidade seis entre as torres de demarcação e de repente passa pela sua cabeça: escolhi isto para mim! Construí esta vida! Eu a queria acima de tudo, eu rastejei, caminhei e corri para pegá-la e agora ela está aqui.

       — Não sei — disse ele. — Tenho de arriscar a minha vida?

       — Claro que sim! Em cada escolha arrisca-se a vida que você teria tido; com cada decisão, você a perde. Um outro Dickie em um outro mundo se divide e vive o que você poderia ter escolhido, mas essa é a escolha dele, não a sua. Na escola, nos negócios ou no casamento, em qualquer aventura, se dá importância às suas últimas palavras, você confia que sabe e desafia a tudo em busca de sua esperança.

       — E se estiver errado, eu morro.

       — Se o que quer é segurança — continuei — entrou para o time errado. A única coisa certa é A Vida É, e isso é tudo que importa. Absoluta, imutável, perfeita. Mas Segurança nas Aparências? Mesmo o plátano, um dia, vai se tornar pó.

       Ele cerrou os dentes e seu rosto se enrugou, preocupado. Ri de sua expressão.

       — A madeira apodrece, o símbolo desaparece, não o espírito dessa vida. A escultura de seu corpo se quebra, não o escultor que a moldou.

       — Talvez meu espírito ame a mudança — arriscou —, mas meu corpo a detesta.

       Eu me lembrava. Seguro e confortável embaixo dos cobertores, dormindo como uma pedra às seis e meia de uma manhã de inverno e BOBBY! DICKIE! DE PÉ! JÁ PARA A ESCOLA! Eu lutava para acordar, jurando que quando crescesse nunca sairia da cama antes do meio-dia. O mesmo na Força Aérea: a sirene de alerta disparava, ligada no meu travesseiro, às duas da manhã HONGA-HONGA-HONGA! Isso é para eu acordar? E voar? Num avião? No escuro? Corpo: eu não consigo! Espírito: Faça! Já!

       — O corpo odeia mudanças — concordei. — Mas olhe para ele... cada dia um pouco mais alto, um pouco diferente; Dickie lentamente se transformando em Richard, condenado a ser adulto! Uma criança crescida é um corpo destruído, capitão. Desaparece sem vestígios, sem caixão, nem mesmo cinzas para serem veladas.

       — Socorro — disse ele. — Preciso de todas as armas poderosas que puder encontrar.

       — Elas já estão em suas mãos. O que você pode dizer às aparências?

       — A Vida É.

       — E?

       — E o quê? Dei uma dica:

       — Escolha.

       — E posso mudar as aparências.

       — Dentro de certos limites?

       — Ao inferno com os limites. Eu não tenho que respirar, se não quiser! Onde estão os seus limites agora?

       Dei de ombros.

       — Quando os mestres não gostam do jeito como as coisas estão indo, Richard, por que eles não param de respirar? Por que não abandonam o mundo das Aparências quando deparam com um problema duro de verdade e vão para casa?

       — Por que partir se podemos mudar o mundo? Diga A Vida É, bem na cara da aparência, saque a Escolha encantada e, depois de um intervalo decente para elaboração, o mundo muda.

       — Sempre?

       — Geralmente. Ele estava sem ar.

       — Geralmente? Você me dá uma fórmula mágica e sua garantia é geralmente funciona?

       — Quando não, o Princípio das Coincidências aparece.

       — O Princípio das Coincidências.

       — Você escolheu uma mudança positiva de vida no seu mundo de Aparência imediato, vamos supor. Você decide que as mudanças vão aparecer.

       Ele concordou.

       — Você declara A Vida É, sabendo que isso é real, e sua a camisa para transformar sua existência.

       Concordou com a cabeça.

       — E ela não muda — eu disse.

       — Era o que eu ia perguntar.

       — Eis o que você faz: continua trabalhando e aguarda a coincidência surgir passeando em seu caminho. Observe atentamente, porque ela sempre vem disfarçada.

       Assentiu novamente.

       — E você segue essa coincidência! Dickie não se alterava.

       — Um exemplo ajudaria — pediu. Um exemplo.

       — Precisamos atravessar um muro de tijolos, porque ele nos prende dentro da aparência de vida que escolhemos mudar.

       Ele estava acompanhando.

       — Trabalhamos como loucos para ultrapassá-lo, mas ele permanece compacto e cada vez mais duro. Já checamos: não há portas secretas, nem escadas, nem pá com que cavar... tijolo sólido.

       — Tijolo sólido.

       — Então fique quieto e escute. Ouve um tímido e abafado zumbido atrás de nós? Teria um operador de escavadeira, lá longe, deixado o motor ligado durante a hora de almoço, e a trepidação engatou a marcha? A máquina não vem roncando em direção ao nosso muro?

       — Devo confiar nas coincidências?

       — Lembre-se de que este mundo não é a realidade. É o playground das aparências, no qual praticamos a arte de superar o Parece Ser com o nosso conhecimento do É. O Princípio das Coincidências é uma ferramenta poderosa que promete, nesse playground, transportar-nos através do muro.

       — O que o Princípio das Coincidências já fez por você?

       — O que não fez? Todas as maiores viradas da minha vida tiveram por base uma coincidência.

       — Oh... — disse ele, sarcástico. — Conte-me uma.

       — Lembra-se de pedalar sua bicicleta para o aeroporto, agarrar com as mãos a corrente e se dependurar junto ao portão que dizia: Somente Permitida Passagem a Pilotos e Passageiros?

       — Montes de vezes — confirmou.

       — E de desejar poder voar, desenhar aviões, construir aeromodelos e escrever sobre eles na escola, e repetir a si mesmo que um dia seria piloto?

       Ele abriu bem os olhos. O velho camarada lembrava.

       — Voar era um muro de tijolos — prossegui. — Quando eu quis aprender, nada aconteceu. Nada de dinheiro para as aulas, nenhum amigo com avião, nenhuma fada-madrinha subitamente surgiu à minha frente, nenhum presente da família. Papai odiava aviões. Terminei o colegial e entrei na faculdade. Aulas de química e geometria analítica, música, ictiologia e aquela que mudou minha vida: arco-e-flecha.

       — Arco-e-flecha?

       — Todo mundo tinha de fazer um curso de Educação Física. Arco e flecha era o mais fácil.

       Ele entendeu.

       — Chegou a manhã de segunda, e eu era um dos vinte alunos alinhados ombro a ombro, frente ao alvo no campo aberto. Perto de mim, por coincidência, estava um veterano, obtendo os últimos créditos para a graduação. Ambos estávamos resolutos, disparando setas, quando por coincidência um aeroplano passou por cima de nós a caminho do Aeroporto Municipal de Long Beach. Ao invés de lançar a flecha, Bob Keech soltou o arco e olhou para o céu. Um olhar que mudou minha vida.

       — Por olhar para cima?

       — Ninguém em Long Beach olha para os aviões, tão comuns na cidade como pardais nos telhados. Esse cara, pensei, se incomodou em levantar a cabeça para observar um vôo, deve gostar do assunto. O destino me atingiu como um raio, e falei, sem pensar duas vezes: “Bob? Aposto que você é um instrutor de vôo à procura de alguém para lavar e polir seu avião, e como pagamento receber aulas de pilotagem.”

       — Ele confirmou — arriscou Dickie.

       — Não. Ele me olhou surpreso e perguntou “Como você sabe?”

       — Ora, vamos... — disse Dickie, sem acreditar. — Como poderia acontecer? Por que alguém faria isso?

       — Havia uma razão, sim. Bob acabara de receber seu certificado de Instrutor de Vôo Restrito e precisava ensinar cinco estudantes antes de receber o certificado real e permanente de Instrutor de Vôo. Era esse o motivo.

       — Mas como você sabia que ele precisava de alunos?

       — Intuição? Esperança? Sorte, eu achei, na ocasião. Em seis meses Bob me ensinou a voar. Larguei a escola para entrar na Força Aérea e o resto da minha vida relacionou-se com o céu. O Princípio das Coincidências acertou o meu destino, mas eu não sabia de sua existência até vinte anos atrás.

       — Como ele funciona?

       — Os semelhantes se atraem. Isso vai surpreendê-lo enquanto viver. Escolha um amor e trabalhe para que ele seja verdadeiro, e de algum modo algo vai acontecer, algo imprevisto vai juntar os semelhantes, vai libertá-lo e colocá-lo no caminho de seu próximo muro.

       — Meu próximo muro! Próximo muro?

       — Não é tão ruim quanto parece. Não temos que trabalhar para nos colocarmos na pior situação imaginável... sempre que esquecermos a mágica, isso acontece sozinho. Mas o divertido não é criar problemas, é sair deles. O jogo é lembrar quem somos e usar as armas poderosas. Como podemos aprender sem ser na prática?

       Ele estava duvidando.

       — Não sei...

       Será que ele quer um futuro sem problemas? Por que vir com espaço-tempo se ele não quer problemas?

       — Experiência imaginária. Suponha que não haja nada que queira mudar no seu mundo. Não poderia ser melhor do que já é.

       Ele sonhou um pouco.

       — Oba! Isto é ótimo!

       — Tudo bem — falei. — Agora viva nesse mundo por um mês. Dois meses. Um ano. Dois anos. Três. Como se sente?

       — Quero aprender algo novo. Fazer algo diferente.

       — E aí está a razão para a existência do mundo das Aparências.

       — Gostamos de aprender coisas novas?

       — Gostamos de lembrar o que já sabemos. Quando escuta sua música favorita, ou revê um bom filme, ou lê novamente uma boa história, você sabe como será, não sabe? Como vai ser o desenrolar, como vai terminar? A diversão é reviver tudo, quantas vezes quiser. O mesmo com os nossos poderes. Primeiro, recordamos vagamente, e timidamente tentamos a Escolha; o Princípio das Coincidências; Tudo o que Pensamos se Torna Verdadeiro na nossa Experiência; Semelhantes atraem Semelhantes; brincamos com a Lei das Aparências Mutantes, para fazer o mundo exterior refletir o interior.

       — É assustador.

       — E quando mudamos uma vez, duas, dez, ficamos mais corajosos e com certeza as armas funcionam. Com a prática, aprendemos a confiar sempre nelas, lembramos o que elas nos dizem, que podemos mudar as aparências sempre que quisermos, e vamos encarando novas aventuras, com diferentes regras.

       — Mostre-me outras armas.

       — De quantas precisa? Nossos corações estão cheios de leis cósmicas. Aprenda algumas, fique bom nelas, e não haverá nada entre você e a pessoa que quer ser.

       — Mas é por isso que estou falando com você! Não tenho certeza de quem quero ser!

       Franzi as sobrancelhas, em silêncio, defronte a um obstáculo que não sabia resolver.

       — Isso pode impedir seu caminho — falei.

      

       DEVE ACONTECER COM TODOS NÓS, pensei. Junta-mos o que aprendemos até então e deixamos o que é familiar para trás. Não é divertido, mas em algum lugar dentro de nós devemos ter uma noção de que dizer adeus à segurança traz a única certeza que jamais teremos.

       Quantas vezes acontece em nossas vidas? Centenas? Corremos da segurança da família para brincar com estranhos no playground. Deixamos a segurança dos amigos e vizinhos para entrar no caldeirão da escola. Saímos do conforto de estar assistindo aula com todos os colegas para fazer nossa própria apresentação oral. Do imóvel e sossegado trampolim mais alto para o turbilhão vertiginoso de um salto ornamental duplo. Da simplicidade do inglês para as profundezas do alemão. Do calor da dependência para as geleiras do estar-sozinho. Do casulo da academia para o furacão dos negócios. Do chão protetor aos adoráveis imprevistos de um vôo. Da tranqüilidade de ser solteiro à tempestuosa lealdade do casamento. De uma vida confortável como uma velha jaqueta à aventura ameaçadora da morte. Todo passo de uma vida orgulhosa é um escapar da segurança para a escuridão, e a única coisa confiável é o que achamos ser verdade

       Como eu sei isso?, me perguntei. Onde foi que aprendi? Sem perder o sono, sem Dickie para buscar minhas respostas, assim que formulei a pergunta adivinhei a resposta

      

       ANTES DE DESCOBRIR QUE UM LAR é um lugar conhecido e amado, eu já sentira uma atração magnética entre as palavras. Quando deixei a Força Aérea, o local onde mais me sentia em casa era Long Beach, Califórnia.

       Para lá me mudei, e não muito longe encontrei um emprego como redator técnico da Divisão de Publicações da Douglas Aircraft Company. Escrevia manuais para pilotos de jatos DC-8, de passageiros, e C-124, de carga. Era uma maneira de sobreviver, unindo máquina de escrever e aviões. Haveria trabalho melhor que esse?

       O prédio da Divisão de Publicações era conhecido como A-23, um vão livre sob uma cobertura alta, uma ilha gigante de metal emergindo abruptamente num mar de estacionamento arrematado por milhas de telas de arame.

       Passava pelas portas, batia o cartão de ponto, me virava e uma vastidão de pranchetas de desenho dos engenheiros se estendia ao horizonte, como uma tapeçaria monocromática de camisas brancas tingidas de verde-chá pelas luzes fluorescentes do teto.

       Daquelas pranchetas saíam os desenhos para os manuais; o texto era conosco. Pegue a cuidadosa explicação da engenheira projetista sobre o que acontece, por exemplo, quando todos os manetes estão para a frente, entenda o que ela quer dizer e traduza de modo que um piloto possa ler e compreender.

       Pilotos têm uma capacidade de compreensão igual a de um adolescente, eles nos diziam, mas não os force a usá-la. Palavras sem muitas sílabas. Frases curtas. Instruções claras.

       O checklist externo do C-124, por exemplo. O Manual do Piloto dizia que, se o comandante da aeronave mudasse de idéia sobre um pouso e decidisse arremeter novamente, ele deveria dizer “Abortar” para o engenheiro de vôo, que então colocaria todos os manetes de potência ao máximo, como na decolagem.

       Em um minuto ou dois, depois do avião estar com uma taxa de subida positiva, o piloto diria “Recolher trem de pouso”, e o co-piloto puxaria a alavanca, para que as rodas subissem e o avião pudesse subir mais rápido ainda.

       Um dia, aconteceu que um C-124 desceu um pouco a mais na aproximação final da pista e o piloto resolveu voltar e tentar de novo.

       “Abortar”, gritou, como ensinava o manual. O engenheiro de vôo, pronto para a aterrissagem, achou que o avião já estava quase na pista. Quando ouviu “Abortar!”, entendeu “Cortar” e cortou a mistura... desligando os quatro motores.

       Assim, um dos maiores aviões do mundo caiu, acertou o chão a meia milha do aeroporto e patinou por quase um minuto num arrozal, despedaçando-se pelo caminho até que seu nariz descansou nas primeiras polegadas da pista.

       Um recado azedo da Força Aérea dos Estados Unidos chegou ao diretor da Divisão de Publicações da Douglas no A-23. Imediatamente substituímos o “Abortar” por “Arremeter”, e todos resolvemos pensar com cuidado nas conseqüências de cada palavra escolhida. Um trabalho de responsabilidade, o de redator técnico.

       A maior parte de nós, redatores, era formada por ex-militares, escribas de última hora reescrevendo a Bíblia. Podíamos falar diretamente com o projetista, transformar suas palavras em outras mais simples, com as quais todos ganhávamos a vida. Não era somente um trabalho importante, mas útil e gratificante.

       Alguns meses depois, entretanto, eu estava irrequieto. De tempos em tempos, os supervisores discordavam da minha sintaxe, achavam que sabiam mais do que eu onde encaixar uma vírgula.

       — Calma, Richard, calma — aconselhavam meus colegas, atrás de suas máquinas. — É só uma vírgula, não estamos escrevendo o Grande Manual Americano aqui. A Douglas paga bem e você nunca será mandado embora. Conte os pontos positivos e, por favor, não discorde da pontuação do supervisor.

       Foi duro de aceitar. Por que eu estava pisando em palha seca, se havia grama verde e fresca logo após a cerca? Se estivesse escrevendo sozinho, ninguém me apunhalaria com vírgulas. Vírgulas, vão, ser, co,lo,ca,das, exatamente, aonde, eu, quiser!

       Lentamente, um velho dilema nascia no horizonte: eu tinha o coração de uma prima-dona e o corpo de um boi.

       — Vou sair da Douglas — anunciei na hora do almoço, montado no pára-choque dianteiro do meu Borgward de terceira mão. — Vou ficar como freelancer por um tempo; tenho algumas histórias que nunca serão publicadas na Norma Técnica 1-C-124G-1, independente de onde eu puser as vírgulas.

       — Claro — respondeu Bill Coffin, enquanto mastigava uma batatinha frita.—Vamos todos deixar a Douglas. Zack vai ser chamado pela United Airlines no mês que vem, e em um ano será comandante; Willy Pearson vai conseguir a patente de seu invento e ficar rico; o livro de Martha Dyer vai ser vendido pelo correio de novo e, desta vez, com certeza vai ser um best-seller. — Ele sacudiu o saquinho de batatas. — Acho que comi demais destas coisas. Quer uma?

       — Obrigado.

       — Acho que dá para ganhar muito dinheiro com pesca comercial, como você deve estar cansado de ouvir. Mas preste atenção, Richard, nenhum de nós chegou nem perto da cerca ainda. A Douglas pode não ser tão glamourosa como, vamos dizer, se aventurar no mar com uma traineira de quarenta e oito pés, mas é um emprego seguro, sabia?

       Eu sabia.

       — Sabe o que eu quero dizer com seguro? Não é o trabalho mais duro do mundo e, aqui entre nós, a gente ganha mais trabalhando menos que todo mundo que eu conheço. Enquanto os Estados Unidos precisarem de companhias aéreas, e a Força Aérea de aviões de carga, nunca seremos demitidos.

       — É... — mordisquei a beirada da batatinha, mais por educação que por fome.

       — Você acredita em mim, mas ainda assim quer dar sua escapadinha, não é?

       Não respondi.

       — Você acha realmente que pode ganhar a mesma coisa como freelancer? Quantas histórias teria de vender para conseguir ganhar o seu salário atual?

       — Muitas.

       Ele deu de ombros.

       — Você escreve suas histórias por prazer, trabalha na Douglas pelo dinheiro. E se as histórias não venderem, pelo menos não vai morrer de fome. E, se venderem, pode largar o emprego.

       O sinal tocou, fim do horário de almoço. Bill espalhou as migalhas das batatas pelo chão, um presente do marinheiro para as gaivotas.

       — Você ainda é uma criança que não escuta os outros e vai deixar o trabalho — continuou ele. — Mas um dia vai pedir a Deus para estar aqui de volta no A-23, feliz pelos supervisores lhe dizerem onde colocar as vírgulas — Ele apontou para além do estacionamento. — Olhe aqui- Aposto dez centavos que vai chegar o dia em que você vai estar do lado de fora daquele portão, olhando para dentro, e relembrando o que é segurança

       Não!, pensei. Não venha me dizer que segurança vem de algo exterior. Diga que eu sou responsável. Diga que segurança é um subproduto do que dei de minha habilidade, aprendizado e amor no mundo. Diga que segurança vem de uma idéia pensada com tempo e cuidado. Eu reclamo isso como a minha verdade, não importa quantos estáveis e sólidos contracheques venham do Departamento de Contabilidade da Douglas. Santo Deus, pensei, não me dê um emprego, dê-me idéias e deixe-me aproveitá-las!

       Eu ri, limpei as migalhas da roupa e saltei do pára-choque.

       — Talvez esteja certo, Willy. O tempo dirá. Estarei naquele portão, olhando para o lado de dentro.

       Pedi demissão no dia seguinte e antes do final do mês era um escritor freelancer a caminho da fome

       Vinte anos depois, não naquele dia, mas próximo, em visita a Los Angeles, dirigi na direção sul da estrada de San Diego, vi uma placa familiar, virei num impulso para o norte no Hawthorne Boulevard, um pouco para o leste.

       Como o corpo lembra o caminho para o trabalho! Vire à esquerda aqui, de novo à esquerda e continue pela longa avenida cercada de eucaliptos.

       Era quase meio-dia, o sol brilhava forte quando encontrei o local. A mesma tela de arame em volta do mesmo mar de vagas para estacionamento, o mesmo edifício de metal despontando alto, maior do que eu lembrava. Parei no portão, desci do carro, coração batendo rápido, a cena queimando meus olhos.

       O estacionamento era de cimento cinza desbotado, com capim crescendo pelas rachaduras, milhares de espaços totalmente vazios.

       Havia correntes em volta dos pilares, correntes bem apertadas com cadeados maciços.

       A vida é dura com escritores, mas também não é muito fácil para as grandes indústrias de aviões.

       Distante na imensidão do estacionamento reluzia o fantasma de Bill Coffin, apostando com o homem que eu era, e nesse momento ele ganhou a aposta. Eu lembrava o que segurança queria dizer, e estava sozinho, trancado do lado de fora, olhando o nada pelo portão.

       Joguei uma moeda por entre as correntes para o meu amigo e depois de um longo tempo fui embora, imaginando onde, ele, estaria.

      

       “O MUNDO ESTÁ SE ACABANDO EM guerras e terrorismo”, dizia o locutor, no momento em que a tela se acendeu. “Hoje, sentimos informar, há morte e fome, secas e inundações, peste, epidemias e desemprego espalhados pela face da Terra. O mar está morrendo e o futuro vai-se com ele, o clima está mudando, as florestas se consumindo em chamas, o ódio descontrolado, polêmicas versus deixe-estar, recessões e buracos na camada de ozônio, efeito estufa e animais em extinção, perdão, já extintos, drogas correndo livres e a educação em colapso, cidades desagregadas e superlotação em toda parte, crime tomando conta das ruas, países inteiros à beira da falência, poluição do ar, radiação no solo, chuva ácida e perda das safras, incêndios e deslizamentos de terra e vulcões, terremotos, maremotos, tornados, vazamentos de óleo, acidentes nucleares já previstos, alguns afirmam, no Livro, e, por falar nisso, há um asteróide gigante caindo na direção da Terra e se ele apenas tocar um dos pólos será o fim de toda a vida neste planeta.”

       — Quer outro canal? — perguntei.

       — Este está bom — disse Leslie.

      

       Dickie se encolhia de medo por trás dos meus olhos.

       — Vamos todos morrer.

       — Assim dizem. — Eu assistia O Armagedom na tela.

       — Você nunca fica mal? — perguntou ele. — Nunca se sente para baixo, deprimido?

       — Isso ajuda? Por que eu ficaria deprimido?

       — Por tudo que está vendo! Pelo que está ouvindo! Estão falando sobre o fim do mundo! Eles estão brincando?

       — Não. E as coisas estarão ainda piores em meia hora.

       — Então não há esperança! O que faz aqui?

       — Não há esperança? Claro que não há, capitão! Não há esperança de que as coisas permaneçam amanhã iguais ao que são hoje. Não há esperança de que nada senão a realidade perdure, e a realidade não é lugar nem tempo. Chamamos este mundo de Terra, mas o nome verdadeiro é Mudança. Pessoas que precisam de esperança não escolhem este planeta ou não levam seus jogos tão a sério. — Eu me sentia como um experimentado viajante do planeta, contando histórias, então percebi que realmente era.

       — Mas as notícias são péssimas!

       — É como voar, Dickie. Às vezes você sai para um vôo e a previsão do tempo manda tomar cuidado com tempestades elétricas, formações de gelo e chuvas frias, ter atenção com tempestades de areia e topos de montanhas escondidos pela neblina, há uma tesoura de vento e rajadas repentinas, a força do empuxo já superou a escala e você é louco se voar num dia destes. E aí você decola e faz um bom vôo.

       — Um bom vôo?

       — As notícias são como o tempo. Você não voa na previsão, mas no tempo que de fato estiver lá quando subir.

       — E o tempo lá é sempre bom?

       — Não. Às vezes é horrível, pior que a previsão.

       — Então, o que faz?

       — Lido com o céu ao meu redor naquele instante da melhor maneira possível. Não sou obrigado a sobreviver a todo tempo ruim em todo lugar. Apenas preciso atravessar um bloco que vai da ponta de uma asa à outra, e da base das rodas até o topo do leme. Sou obrigado, porque foi esse o tempo que escolhi para voar e decidir para onde apontar o nariz de Daisy. Até agora não morri.

       — E o mundo? — Havia preocupação em seus olhos, ele precisava saber.

       — O mundo não é uma esfera, Dickie, é uma enorme pirâmide flutuante. Na sua base está a mais baixa forma de vida que se possa imaginar, odiosa, cheia de vícios e praticando o mal por puro prazer, destituída de compaixão, um pouco acima da consciência, tão selvagem que se autodestrói assim que nasce. Existe espaço para esse tipo de consciência, muito espaço, bem aqui no nosso terceiro planeta triangular.

       — O que está no topo da pirâmide?

       — Uma consciência tão refinada que quase só reconhece a luz. Seres que vivem apenas para seus amores, para os mais altos princípios, criaturas com perspectiva perfeita, que morrem oferecendo um sorriso amoroso a qualquer monstro que as atinja pela diversão de ver alguém morrer. Baleias são assim, na minha opinião. A maior parte dos golfinhos. E algumas pessoas... os seres humanos entre nós.

       — No meio estamos nós.

       — Você e eu, garoto.

       — Não podemos mudar o mundo?

       — Claro. Podemos mudá-lo como quisermos.

       — Não o nosso mundo. O mundo. Não podemos fazer dele um lugar melhor?

       — Melhor para você e para mim, não para todos.

       — Paz é melhor que guerra.

       — Aqueles no topo da pirâmide concordariam. A paz os faria mais felizes.

       — E os da base?

       — ...amam a batalha! Há sempre uma razão para lutar. Com sorte, é uma causa quente: esta guerra nós fazemos por Deus, esta é para salvar nossa pátria, esta outra para limpar a Raça, para expandir o Império, para obter lata e tungstênio. Lutamos porque paga-se bem, porque é mais excitante matar do que construir vidas, porque guerra evita trabalhar para viver, porque todos estão lutando, porque vai provar que sou um homem, porque gosto de matar.

       — Terrível.

       — Não é terrível. É previsível. Quando um planeta abriga um espectro tão amplo de mentalidades, espera-se um monte de conflitos. Tudo bem com você?

       Ele franziu a testa.

       — Não.

       — E se não houver próxima vez? E se você estiver errado a respeito de outras vidas além desta?

       — Não faz diferença. Construímos nosso mundo pessoal calmo ou selvagem, de acordo com o nosso desejo. Podemos desfrutar da mais absoluta paz em meio ao caos. Podemos fazer mal em pleno paraíso. Depende de como formamos o nosso espírito.

       — Richard — ele disse —, tudo que você pensa é tão pessoal! Não imagina que possam existir outras coisas, sobre as quais não temos controle? Que pode haver um esquema totalmente diferente... a vida apenas acontece, sem razão, não importa o que você ache ou deixe de achar, ou que todo o planeta seja uma experiência de extraterrenos, análises num microscópio?

       — Muito chato, capitão, estar sem controle. Muito aborrecido. Quando vou de carona, me sinto inútil, fico infeliz. Não há diversão em voar quando não se pode fazer uma curva; é melhor sair de campo e ir andando. Enquanto os extraterrenos ficarem calmos e espertos, enquanto me deixarem pensar que estou no comando do meu destino, farei o jogo deles. Mas assim que tentarem me dirigir, pulo fora.

       — Talvez estejam te dirigindo m-u-i-t-o c-u-i-d-a-d-o-s-a- m-e-n-t-e — retrucou ele.

       Sorri.

       — Até agora, não deram nenhum escorregão. Quando sentir que estão pondo as mãos na direção, no mesmo minuto salto do carro.

       No final do desastre documentado, o locutor nos desejou um bom-dia e se despediu. Leslie virou-se para mim.

       — Dickie não está aí, está?

       — Como adivinhou?

       — Ele está preocupado com o futuro. Ela é vidente, pensei.

       — Vocês dois andaram conversando? — perguntei.

       — Não. — Se Dickie não estivesse preocupado, depois de tudo que acabamos de ver, eu acharia que você perdeu a cabeça.

      

       LESLIE ESTAVA GEMENDO PARA O COMPUTADOR na manhã seguinte, quando parei na entrada do escritório. Bati na porta.

       — Sou só eu.

       — Não só você — disse ela, erguendo a vista. — Você é muito! É o meu querido!

       Não sei o que ela estava fazendo, mas ia bem. Quando não vai bem, ela não faz um ruído, não desgruda o olhar, apenas abre um canal extra de consciência para mim e continua com o resto.

       — Quanto você pesa? — perguntei. Ela pôs as mãos sobre a cabeça.

       — Veja.

       — Ótimo. Muito bem. Apenas um pouquinho magra, não acha?

       — Você vai ao mercado — ela disse.

       Suspirei. Antigamente eu poderia ter falado por minutos, insistido sobre como a anorexia ataca as mulheres que trabalham e apavorá-la com a chegada da nova idade glacial e o mundo lutando por comida. Agora Leslie adivinha até minhas diversões mais ardilosas.

       Nem tudo estava perdido, porém, pois eu tinha visto quanto ela pesava.

       — Quer algo em especial? — Eu torcia para ela pedir tortas, bolos e cobertura de chocolate.

       — Legumes e cereais — falou, disciplina cega. — Precisamos de mais cenouras?

       — Estão na minha lista.

       No dia anterior antes de decidirmos ascender para fora de nossos corpos, pensei, farei duas tortas de limão, uma para cada um de nós, e vou sugerir comê-las quentes. Minha mulher vai recusar, chocada com a minha falta de controle, e vou comer as duas.

      

       Ele me encontrou na gôndola de arroz da seção de cereais.

       — Existe uma filosofia de vôo, não existe? Eu me virei, feliz por vê-lo.

       — Dickie, sim! Para voar, temos de confiar que podemos enxergar, não é? E quanto mais aprendemos sobre o invisível Princípio da Aerodinâmica, mais liberdade ganhamos, até parecer mágica, que podemos fazer tudo o que...

       — E há uma filosofia de boliche.

       A mudança me pegou de surpresa e repeti alto:

       — Boliche?

       Uma mulher na prateleira de trigo em grãos me olhou, falando sozinho, um saco de arroz integral dependurado nas mãos. Balancei a cabeça e sorri para ela por um segundo: sou um pouco excêntrico.

       Dickie não percebeu.

       — Deve existir. Se há uma filosofia de vôo, tem de haver uma de boliche também, para quem não gosta de aviões — comentou ele.

       — Capitão — repliquei silenciosamente, empurrando meu carrinho para a seção de legumes —, não existe tal coisa, pessoas que não gostam de aviões. Há uma filosofia de boliche, contudo. Nós escolhemos quando vamos para a pista, e a diversão é eliminar todos os pinos, que são os nossos testes na vida, recolocados sempre. Os pinos têm um balanço especial, são feitos para serem derrubados, com essa finalidade. Mas vão ficar indefinidamente no final da pista até que decidamos tomar uma atitude clara para retirá-los do caminho. Ter de derrubar o sete e o dez para completar um spare não é um desastre, é um prazer, a chance para mostrar nossa disciplina, habilidade e elegância sob pressão, e quem assiste fica tão encantado quanto nós quando conseguimos.

       — Jardinagem — ele provocou.

       — Colhemos o que plantamos, óbvio. Atente para as sementes que plantar, pois os frutos dessas sementes um dia se tornarão seu jantar...

       Tão entretido eu estava com o teste dele que rodei até a prateleira de chocolates sem perceber, aprontando metáforas sobre o sol, ervas daninhas, planejando o roteiro para as perguntas sobre salto com vara, corrida de carros, ou vendas a varejo. Em qualquer esporte que gostemos, pensei, lá está a metáfora mais clara e o caminho mais suave para descobrir por que resolvemos brincar na Terra.

       — Mas como funciona, Richard? — Na mesma hora ele cerrou os dentes, horrorizado com o erro. — Como você acha que funciona?

       — O universo? Já contei para você. — Escolhi um saco de maçãs num balcão.

       — Não o universo. As sementes. Como as coisas acontecem, e por quê. Não que isso importe muito, já que tudo é aparência, mas como crenças invisíveis se transformam em objetos visíveis e acontecimentos?

       — Às vezes eu preferia que você fosse um adulto, Dickie.

       Interessante, observei, pegando uma porção de beterrabas. Nem um murmúrio de nervosismo quando expressei um desejo impossível para ele. Será que além de um garotinho esperto eu era maduro emocionalmente?

       — Porque eu poderia explicar com muito menos palavras se você conhecesse mecânica quântica. Retalhei a física da consciência em cem palavras, mas você teria que pensar sobre ela para sempre. Nunca será um adulto, e nunca serei capaz de lhe entregar meu tratado em uma página.

       A curiosidade venceu.

       — Finja que sou um adulto que adora mecânica quântica. Como explicaria o funcionamento da consciência em uma página? Sou muito pequeno para entender, é lógico, mas seria divertido ouvir. Fale tão complicado quanto queira.

       Ele está me desafiando, pensei, acha que estou blefando. Empurrei o carrinho para o caixa.

       — Primeiro, o título: A Física da Consciência, ou A Explicação do Espaço-Tempo.

       — Agora, o abstrato — pediu ele.

       Olhei para ele. Eu nunca tinha ouvido falar de abstratos até fugir da escola. Como ele podia saber?

       — Certo — concordei. — E agora tenho de usar uma linguagem adequada, como eles fazem no American Journal of Particle Science. Ouça bem, e talvez entenda uma ou duas palavras, embora ainda criança seja.

       Ele riu.

       — Embora ainda criança seja.

       Limpei a garganta, diminuí a velocidade do carrinho e parei junto da registradora, feliz por ter de esperar na fila.

       — Você quer que eu diga tudo de uma vez?

       — Como se eu fora um mecânico quântico.

       Ao invés de corrigi-lo, comecei a história:

       — Somos pontos focais de consciência, enormemente criativos. Quando entramos na autocriada arena hologramétrica que chamamos espaço-tempo, começamos imediatamente a gerar partículas de criatividade, imajons, num contínuo e violento dilúvio. Imajons não têm carga própria, mas são fortemente polarizados pelas nossas atitudes. Pela força de nossa escolha e desejo, eles se transformam em nuvens de conceptons, uma família de partículas de alta energia, que pode ser positiva, negativa ou neutra.

       Ele ouvia, fingindo entender.

       — Alguns conceptons positivos mais comuns são exultons, excytons, alegrons, jovions. Os negativos mais difundidos são depressons, tormentons, tribulons, agonons e miserons. Um número indeterminado de conceptons é criado em erupção permanente, numa ruidosa cascata com nascente em cada centro de consciência pessoal. Eles se aglutinam em nuvens de conceptons, que podem ser neutras ou fortemente carregadas — leves e flutuantes, ou pesadas como chumbo, dependendo da natureza das partículas dominantes.

       “A cada nanossegundo, um número indeterminado de nuvens de conceptons atinge massa crítica, se transforma em quantum, explode em ondas de probabilidade de alta-energia em velocidade táquion num reservatório eterno de eventos alternativos supersaturados. De acordo com sua carga e natureza, as ondas de probabilidade cristalizam em aparência holográfica alguns acontecimentos em potencial segundo a polaridade da mente que as criou. Está entendendo, Dickie?

       Ele assentiu e ri.

       — Os eventos materializados tornam-se experiência mental, plenos de todos os componentes de estrutura física necessários para que sejam reais e contribuam para a consciência criativa. Esse processo autonômico é a fonte que alimenta todo objeto e todo acontecimento do espaço-tempo.

       “A hipótese do imajon é persuasiva pela sua capacidade de verificação pessoal. A hipótese garante que, ao focarmos nossa consciência no positivo e construtivo, ao concentrarmos nossos pensamentos nesses valores polarizamos massas de conceptons positivos, geramos ondas de probabilidade benéficas e atraímos eventos alternativos úteis que não teriam aparecido de outra maneira.

       “O reverso é verdade na produção de eventos negativos, como o medíocre em-cima-do-muro. Por intenção ou por deixar estar, querendo ou não, não apenas escolhemos como criamos condições exteriores visíveis que refletem o estado interior do ser.

       “Fim.

       Ele me esperou para pagar as verduras.

       — É tudo?

       — Está errado? — perguntei. — Há falha em meu raciocínio?

       Ele sorriu, pois papai ensinou a nós dois como é importante pronunciar corretamente as palavras.

       — Como posso avaliar se cometeu alguma falha, criança que sou?

       — Ria, se lhe apetecer — repliquei. — Prossiga e diga que sou o bobo da corte. Mas daqui a cem anos, alguém vai imprimir essas palavras na Teoria Quântica Moderna e ninguém o achará maluco.

       Ele subiu na base do carrinho, aproveitando a carona enquanto eu empurrava.

       — Se você não for pego por depressons — disse ele —, isso provavelmente acontecerá.

      

       EU ESTAVA NUM VÔO DE TESTE COM DAISY, uma longa subida a 20 mil pés para checar os turboalimentadores em grande altitude. Ultimamente os motores estavam rateando nas subidas, e eu esperava que tudo se resolvesse com algo simples como lubrificação dos escapamentos.

       O mundo se movia suavemente abaixo, montanhas, rios e a orla do mar transformados pela altitude na nebulosa pintura da casa de um anjo. A velocidade de ascensão de Daisy é maior que a potência máxima de muitos aeroplanos leves, mas lá em cima, olhando para baixo, parecia estar preguiçosamente à deriva num lago de ar azul-escuro.

       — De tudo que aprendeu — falou Dickie —, conte uma coisa que eu precise saber mais que todas as outras, uma coisa para nunca esquecer.

       Refleti sobre seu pedido.

       — Uma coisa?

       — Só uma.

       — Você sabe jogar xadrez?

       — Gosto de jogar. Papai me ensinou quando eu tinha sete anos.

       — Você ama seu pai? Ele franziu a sobrancelha.

       — Não.

       — Antes que ele morra, você vai amá-lo por sua curiosidade e humor, por viver o melhor possível com um conjunto de princípios rígidos. Por enquanto, ame-o por ensiná-lo a jogar o xadrez.

       — É só um jogo.

       — Futebol também é. Assim como tênis, basquete, hóquei no gelo e a vida.

       Ele suspirou.

       — É isso que preciso saber? Estava esperando algo um pouco mais... “secreto”. — Esperava o seu segredo. Todo mundo diz que a vida é um jogo.

       A 16 mil pés de altitude, as rotações do motor traseiro começaram a se alterar, às vezes mais fortes, às vezes mais fracas. O fluxo de combustível se mantinha constante, mas ouvia claramente a trepidação e o enfraquecimento. Puxei as alavancas de controle da hélice e o motor estabilizou.

       — Você quer um segredo? — perguntei. — Às vezes, em raras ocasiões, o que todo mundo diz costuma ser verdade. E se todo mundo estiver certo, e a crença da vida na crença da terra for realmente um jogo? Então...?

       Ele se virou para mim, perplexo.

       — E então... o quê?

       — Vamos dizer que estamos aqui pelo esporte de aprender a escolher aquilo que nos traga conseqüências positivas a longo prazo. Um esporte duro, Dickie, difícil de vencer. Mas se a vida é um jogo, diga-me o que há de verdadeiro nela.

       Ele tentou adivinhar.

       — Tem regras?

       — Tem — disse. — Mas quais?

       — Você tem de estar presente...

       — Absolutamente essencial. Precisamos comparecer, prontos para a partida, a consciência sintonizada.

       Ele franziu o cenho.

       — Como?

       — Se não sintonizarmos nossas consciências, capitão, não podemos jogar na terra. Uma expressão onisciente de Vida perfeita tem de rejeitar a onisciência e contar apenas com cinco sentidos. E aí temos de concordar em limitar mesmo esses cinco, captar somente determinadas emissões e não outras. Ouvir freqüências entre vinte e vinte mil ciclos por segundo e chamar isso de som; ver um espectro entre infravermelho e ultravioleta e chamá-lo de luz; aceitar que passado e futuro se estendem em tempo linear num espaço exclusivamente tridimensional, no corpo de uma forma de vida bípede, mamífera, ereta, baseada no carbono, adaptada a receber energia do sol, que habita a superfície de um planeta Classe M, orbitando uma única estrela Classe G. Agora estamos prontos para começar o jogo.

       — Richard...

       — Essas são as regras, Dickie, e eu e você as obedecemos.

       — Não sei quanto a você — disse ele —, mas...

       — Faça do seu jeito. Exercício mental: e se não se limitar? E se conseguir enxergar infravermelhos ultravioletas e raios X, além da luz visível para o resto do mundo? As casas, parques e pessoas vão parecer as mesmas que eu vejo? Poderemos compartilhar uma paisagem? E se a sua visão incluir ângulos tão estreitos que tampos de mesa sejam como cadeias de montanhas e moscas pareçam pássaros? Sua vida cotidiana será a mesma que a minha? E se conseguir ouvir toda conversa num raio de três milhas? Vai poder prestar atenção na aula? E se seu corpo não tiver a forma humana? E se lembrar de futuros anteriores ao seu nascimento e passados que não aconteceram? Acha que será convidado a jogar com o resto de nós se não seguir as nossas regras? Quem será sua companhia no jogo?

       Ele moveu a cabeça para a esquerda e depois para a direita.

       — Está bem — concedeu, menos impressionado que eu com as regras, mas ainda animado com o teste. — Esse jogo acontece num local. Um tabuleiro, um campo ou uma quadra.

       — Sim! E?

       — Tem jogadores. Ou times.

       — Sim. Sem a gente, não tem jogo. Quais outras regras?

       — Um começo, um meio e um fim.

       — Sim! E?

       — Ação.

       — Sim! E?

       — É tudo.

       — Esqueceu a regra principal. Papéis. Todos os jogos têm papéis, identidades que assumimos para poder brincar. Decidimos ser salva-vidas, vítimas, líder-com-todas-as-respostas, seguidores-sem- nenhuma-pista, brilhantes, corajosos, nobres, astuciosos, aborrecidos, carentes, apenas-tentando-prosseguir, diabólicos, amigáveis, miseráveis, honestos, descuidados, o melhor dos melhores, donos-do-espetáculo, cômicos, heróis... escolhemos nosso papel por capricho e destino, e podemos mudá-lo a qualquer hora.

 

       — Qual é o seu papel? — perguntou. — Agora, neste minuto?

       Achei graça”

       — Nesse exato instante estou interpretando o Cara-bem-legal- do-seu-futuro-com-algumas-lindas-idéias-para-a-criança-pensar. E o seu?

       — Estou fingindo ser o Garoto-do-seu-passado-que-precisa- saber-como-o-universo-funciona. — Enquanto falava, olhou-me da maneira mais estranha, como se sua máscara tivesse caído, como se soubesse que eu podia ver a verdade através de seu papel. Mas eu estava muito entretido no meu papel, muito envolvido com a diversão da aula para perceber.

       — Bom — falei. — Agora retire-se da peça, mas continue a me contar sobre o jogo.

       Ele sorriu e uniu as sobrancelhas.

       — O que quer dizer?

       Inclinei o avião para a direita e o direcionei para o chão, 13 mil pés abaixo.

       — O que pode me dizer sobre jogos nessa altitude? Ele olhou para baixo.

       — Oh! Há muitos deles acontecendo ao mesmo tempo. Em salas diferentes, quadras diferentes, campos diferentes, países diferentes.

       — ...e diferentes planetas, galáxias e universos — completei. — Sim! E?

       — Em tempos diferentes! Os participantes podem entrar em jogo após jogo após jogo. Olhando de cima, ele entendeu. — Podemos jogar em times diferentes, por diversão ou por dinheiro, contra um adversário fácil ou muito duro de derrotar...

       — Você gosta de jogar quando sabe que vai ganhar, não é?

       — NÃO! Quanto mais difícil, mais gostoso! — reconsiderou. — Desde que eu vença.

       — Se não houver risco, se souber que não vai perder, se conhecer o desfecho, o jogo ainda teria graça?

       — O bom é não saber, logo de cara. — Ele se virou para mim abruptamente. — Bobby sabia o final.

       — A vida de Bobby foi uma tragédia, por ter morrido tão jovem?

       Ele olhou para baixo de novo, pela janela.

       — Sim. Nunca saberei quem ele seria, quem eu seria.

       — Finja que viver é um jogo. Bobby acharia que sua vida foi uma tragédia?

       — Dê-me um exercício mental. Sorri.

       — Você e Bobby estão jogando xadrez numa linda casa, com muitos cômodos. No meio do jogo, seu irmão percebe como vai terminar, não acha nenhuma saída e desiste da partida para explorar a casa. Ele acha que o que aconteceu foi uma tragédia?

       — Não é divertido quando se sabe o fim, e ele quer conhecer outros lugares. Para ele não é uma tragédia.

       — É para você, quando ele sai?

       — Eu não choro quando alguém sai de uma sala.

       — Agora retorne para o tabuleiro de xadrez. Mas, ao invés de jogador, você é o jogo. As peças têm nomes: Dickie, Bobby, mamãe e papai; são feitas de carne e osso, e você as conhece desde que nasceu. No lugar de quadrados, há casas, escolas, ruas e lojas. Agora, no decorrer da partida, a peça “Bobby” é comida e desaparece completamente da partida. Isso é uma tragédia?

       — Sim! Ele não está em outra parte da casa, ele sumiu! Ninguém pode substituí-lo e terei de continuar para o resto da vida sem ele.

       — Quanto mais próximo do jogo, e mais envolvidos nele, tanto mais a perda parece tragédia. Mas a perda é uma tragédia somente para os jogadores, Dickie, só quando esquecemos que é xadrez, quando esquecemos o porquê, quando pensamos que o tabuleiro é tudo que existe.

       Ele me observou atentamente.

       — A vida se torna sem sentido se esquecemos que é um jogo do qual participamos. Mas a vida terrena é um jogo, como beisebol ou esgrima... assim que termina, nós lembramos... oh, eu jogo porque adoro o esporte!

       — Quando eu me esqueço — replicou ele —, tudo o que tenho a fazer é flutuar sobre o tabuleiro de xadrez e olhar de novo? Assenti.

       — Você aprendeu isso com aviões? — perguntou.

       — Aprendi com a altitude, empoleirado aqui em cima, observando um monte de partidas de xadrez ao redor do mundo.

       — Alguém morre. Você não fica triste?

       — Não, por eles, não. E não por mim também, não mais. Tristeza é um mergulho na autopiedade, e todas as vezes em que fiquei triste voltei não curado, mas frio e suado. Não consegui me convencer a acreditar que a morte no espaço-tempo é mais real que a vida no espaço-tempo, e depois de alguns anos desisti de tentar.

       Nivelei a vinte mil pés, puxei os manetes para velocidade de cruzeiro. Há uma demora razoável na troca de velocidades. As saídas dos turboalimentadores estavam totalmente fechadas, explodindo fogo branco direto nas turbinas. O céu lá fora estava congelado a vinte graus negativos, as chaminés dos exaustores eram tochas, quentes o suficiente para derreter prata. Em meio a esse contraste, pensei, nós voamos.

       — Muita gente diz, Dickie, que o luto é importante, que tristeza é mais saudável que suco de cenoura e ar da montanha. É muito complicado para mim. A tristeza torna-se dispensável quando entendemos a morte, assim como o medo quando aprendemos a voar. Por que chorar alguém que não morreu?

       — É o esperado? — perguntou ele. — Deve-se lamentar quando uma pessoa desaparece?

       — Porquê?

       — Porque você não deve pensar e sim ceder ao que vê, e então sentir-se infeliz! São as regras, Richard! Todos agem assim!

       — Nem todos, capitão. Até o sofrimento tem que fazer sentido, e até lá, por que sofrer? Se eu puder lhe dizer uma única coisa sobre a vida, eu diria: nunca esqueça que é um jogo.

       Nesse momento, o motor traseiro começou a oscilar novamente, pressão de rpm e distribuição, pressão do combustível, tudo junto.

       — Merda! — exclamei, irritado com o problema.

       — É só um jogo, Richard.

       — Droga — disse, suavizando a expressão. Diminuí o ângulo à frente e começamos a voltar para a terra.

       — Conte-me mais uma coisa que eu precise saber. Algumas máximas para usar no dia-a-dia.

       — Máximas — repeti. Sempre gostei quando poucas palavras carregam tanto peso! — Ao colocar compressão na hélice, não estranhe se o motor ligar.

       Ele se virou para mim, a testa enrugada de dúvidas.

       — Uma máxima de aviador — expliquei. — A Regra das Conseqüências Não-Intencionais. Em vinte anos você saberá como isso é profundo. Todo professor de verdade é você mesmo disfarçado.

       — É sério?

       — Dickie, gostaria de possuir algumas máximas de primeira?

       — Sim, por favor.

       — Estou vasculhando minha vida nesse minuto para lhe fornecer de graça o melhor que sei, comprado ao preço de todos os meus dias. Você é infinitamente inteligente. Se não as entender agora, vai entendê-las mais tarde, no seu próprio tempo.

       — Sim, senhor — humilde como um discípulo zen.

       — Ponha a segurança acima da felicidade e esse é o preço que irá pagar por ela.

       “Uma árvore que cai no meio da floresta não produz som, assim como não há espaço-tempo sem uma consciência por perto para observar.

       “Culpa é a tensão que sentimos por mudarmos o passado, presente ou futuro em função de alguém.

       “Algumas escolhas nós vivemos não uma só vez, mas vezes sem fim, lembrando para o resto de nossas vidas.

       Nossa sorte é não termos recordação de outras vidas, pensei. Imobilizados pela memória, não poderíamos prosseguir com esta.

       — Nada sabemos até ser confirmado pela intuição.

       O motor traseiro estabilizou enquanto mergulhávamos a dezesseis mil pés. Nem tudo está errado, pensei, talvez só um pouquinho.

       — Tenha isso claro em mente: nós nunca crescemos. “Tudo o que vemos de uma pessoa, rica ou pobre, alegre ou triste, num determinado momento, é um instantâneo de sua vida. Instantâneos não mostram os milhões de decisões que levaram àquele momento.

       — Obrigado, Richard — disse Dickie. — São ótimas máximas. Acho que já tenho o suficiente.

       — A mais leve sugestão de mudança é uma ameaça de morte a alguns status quo.

       “Razão premente nunca convence emoção cega.

       “A vida não requer que sejamos consistentes, cruéis, pacientes, prestativos, zangados, racionais, despreocupados, amorosos, agressivos, mente-aberta, neuróticos, cuidadosos, rígidos, tolerantes, esbanjadores, ricos, humilhados, gentis, doentes, atenciosos, engraçados, estúpidos, preguiçosos, ambiciosos, saudáveis, suscetíveis, bobos, caridosos, pressionados, íntimos, hedonistas, industriosos, manipulativos, cheios de idéias, inconstantes, sábios, egoístas, bons ou sacrificados. Todavia, ela requer que vivamos com as conseqüências de nossas escolhas.

       — Bem — disse ele. — Aposto que temos de pagar um preço, por levarmos a vida assim. Obrigado. São muitas máximas.

       — Vidas alternativas são paisagens refletidas no vidro de uma janela... reais como o dia-a-dia, mas não tão claras.

       “Se não é nossa culpa, não podemos assumir responsabilidades. Se não podemos assumir responsabilidades, seremos sempre vítimas.

       — Obrigado, Richard.

       — Nossa pátria verdadeira é a terra de nossos valores — continuei — e a nossa consciência é a voz de seu patriotismo.

       “Não temos direitos até lutarmos por eles.

       “Devemos honrar nossos dragões, encorajá-los a ser respeitáveis destruidores, esperar que eles se esforcem para nos derrubar. É tarefa deles tornar-nos ridículos, seu trabalho rebaixar-nos, forçar-nos, se puderem, a não sermos diferentes! E quando continuamos nosso caminho, a despeito de seu fogo e fúria, eles dão de ombros quando nos perdem de vista e voltam filosóficos a seus baralhos: ah, bem, não podemos queimá-los todos...

       “Quando agüentamos qualquer situação que não era necessária, não é porque somos burros. Agüentamos porque precisamos da lição que somente aquela situação pode ensinar, e precisamos mais dela do que da liberdade.

       “Felicidade é a recompensa que ganhamos por viver o mais certo que sabemos.

       — CHEGA! JÁ É DEMAIS, RICHARD! PARE COM ESSAS MÁXIMAS. SE DISSER MAIS ALGUMA EU VOU EXPLODIR!

       — OK — concordei. — Mas cuidado com o que diz, Dickie, porq...

       — AAAAAAAAAAAIIIIIIIIIEEEEEEEEEEE!!!!!!!!!!!!!!

      

       ENQUANTO EU MEXIA NOSSO JANTAR, Leslie ouvia divertida minhas aventuras com Dickie, empoleirada num banco alto de bar.

       — Até aqui ele é só um amiguinho imaginário — falei — e conto a ele tudo que sei só pelo prazer de relembrar a coisa toda.

       Despejei na nossa frigideira grande a tábua com todos os legumes trazidos cortados do supermercado.

       — Está se escondendo atrás de “imaginário”? — replicou Leslie. — Você precisa de uma distância segura? Tem medo dele? — Ela interrompeu a troca das suas roupas de jardinagem: shorts brancos, camiseta e chapéu de brim de abas largas. Já tinha tirado o chapéu, mas agora estava mordida pela curiosidade, em busca de significados profundos, e eu suspeitava que ia continuar vestida do mesmo jeito.

       — Medo? Talvez. — Eu duvidava, mas de tempos em tempos é bom checar algumas certezas, fingir que são mentiras. — O que ele poderia dizer que me magoasse? — acrescentei.

       Juntei o abacaxi e pus a frigideira no forno, coloquei mais trigo e dei quatro ou cinco mexidas rápidas.

       — Ele poderia dizer que inventou você, decidiu que você é só um futuro imaginário, e deixá-lo sozinho com tudo o que tem a dizer.

       Olhei-a sem sorrir, esqueci de torcer a tampa do molho de soja, que obviamente não escorreu. Antes não me importaria se ele fosse embora. Agora, sim.

       Ela deixou sua pergunta cozinhar em fogo brando, e continuou:

       — Dickie percebe que você está cozinhando e eu não? Será que faz diferença para ele?

       — Eu faço comida para minha mulher, direi a ele, mas sou muito másculo... até minhas tortas são duras! — Mentira, claro. Antes de abandonar o açúcar, eu fazia tortas. Delicadas como nuvens tostadas, crocantes, porém sou mais modesto que Deus. A nobre qualidade da qual mais me orgulho é uma falta completa de ego.

       É importante que o trigo fique bem quente, aconselham; o calor faz surgir um sabor de noz. Só para garantir, achei meio saco de amêndoas picadas e juntei à mistura na frigideira.

       Leslie conhece meus princípios tão bem quanto qualquer um que não acredite nele, mas é tolerante e às vezes gosta de ouvir mais detalhes.

       — O que você contou-lhe a respeito de casamento?

       — Ele não perguntou. Acha que estaria interessado?

       — Ele sabe que o casamento está esperando, logo à frente. Se ele é você, vai querer saber. O que dirá?

       — Que é o desafio a longo prazo mais alegre e importante da vida. — Mergulhei uma colher de chá no jantar assado e passei para ela provar. Não está pronto ainda, pensei, mas não custa nada ser gentil com uma alma-gêmea. — Não concorda?

       — Muito crocante — ela avaliou — e ressecado. Tirei a frigideira do forno e pus na pia, abri a torneira, deixei escorrer mais ou menos um copo, e voltei com ela para o fogo para secar por dez longos minutos.

       — Posso ajudar? — perguntou ela.

       — Doçura. Você estava trabalhando até agora. Fique aí quietinha.

       Ela foi até o armário, retirou pratos e garfos.

       — O que vai dizer a ele?

       — Vou dizer primeiro o segredo de meu casamento e depois enchê-lo de fatos.

       Encontrei a centrífuga, liguei na parede e peguei cenouras da geladeira. Ela sorriu.

       — Você é esperto! Qual o segredo de seu casamento?

       — Ora, Wookie, não venha com essa de esperta. Eu disse a ele que só vou contar o que sei.

       Encaixei um copo na saída de suco.

       — Tudo bem, esqueça a esperteza. Qual o segredo do seu casamento?

       Apertei o botão e empurrei a primeira cenoura. O suco é um paraíso, mas a nossa máquina é um diabo barulhento.

       — ESTÁ TUDO BEM SE FIZER O QUE ACHA CERTO — gritei acima do ruído das facas girando e cortando. — ESTÁ TUDO BEM SE A SUA MULHER FIZER O QUE ACHA CERTO. E ESTÁ TUDO BEM SE VOCÊS NÃO CONCORDAREM!

       — EU NÃO CONCORDO! — ela disse. — DE ACORDO COM SUA TEORIA, TUDO BEM SE ENGANARMOS UM AO OUTRO, MENTIRMOS, ABUSARMOS UM DO OUTRO DE QUALQUER MANEIRA QUE ACHARMOS CERTA! VOCÊ TEM DE ACRESCENTAR QUE O SEGREDO SÓ FUNCIONA PORQUE TEMOS ANOS DE CONFIANÇA MÚTUA, ANOS EM QUE APRENDEMOS A CONHECER O CARÁTER DO PARCEIRO COM QUEM ESTAMOS LIDANDO! SEI QUE ESTÁ TUDO BEM SE VOCÊ FIZER O QUE ACHA CERTO PORQUE O SEU SENSO DE CERTO E ERRADO É MUITO PARECIDO COM O MEU!

       A centrífuga é tão barulhenta quanto rápida. O segundo copo se encheu e desliguei o interruptor.

       — Não concorda? — disse ela no súbito silêncio.

       — Não — provei das cenouras. — Está sempre bem fazer o que achamos correto. Sem exceções.

       Ela riu da minha obstinação e fui forçado a também sorrir um pouco.

       — O seu segredo salvaria o seu primeiro casamento? Balancei a cabeça.

       — Não houve tempo. Quando você se torna desumano por causa de um casamento, está na hora de encerrá-lo. Discordávamos tanto que não podíamos mais ser nós mesmos. Não foi só porque paramos de nos amar. Não agüentávamos ficar na mesma sala. Não há cura para isso.

       — Lembro de épocas em que você e eu também não podíamos ficar juntos — provocou ela. Tinha tirado a tampa da frigideira e provava o jantar com uma colher. — Acha que deveríamos ter terminado?

       — Você está com fome, não está? Ela confirmou, os olhos bem abertos.

       — Quente...

       — Só mais um minuto — falei, desligando o fogo. — Naquela época era diferente, Wookie. Mesmo quando estava furioso com você, não conseguia esquecer de como é maravilhosa. Às vezes, saía de casa, arrasado que não compreendesse quem eu era, ou como eu pensava, ou como me sentia. Gritava do carro, enquanto dirigia: Caro Deus, como espera que eu viva com Leslie Parrish? É impossível! Não pode ser feito! E mesmo nessas horas eu sabia que você era inteligente pra diabo, linda de morrer. O divórcio era inevitável, e ainda assim eu a amava. Não é estranho?

       Levei a panela para a mesa, servindo nosso vegetrigo para dois.

       — Oh, Richie, o divórcio não era inevitável — replicou. — Foi só um pensamento desesperado.

       Defender conclusões do passado não é um sinal de sabedoria, pensei, e mesmo que fosse eu não o faria. Divórcio inevitável não importa.

       Se for preciso perder marido ou mulher quando vivemos de acordo com nossos mais altos princípios, perdemos um casamento infeliz mas ganhamos a nós mesmos. Mas se um casamento acontece entre duas pessoas já autodescobertas, que adoráveis aventuras terão início, com furacões e tudo mais!

       — No mesmo instante em que parei de ter a expectativa de que você me compreendesse sempre — continuei —, quando aprendi que é natural que tenhamos idéias e conclusões diferentes, e que isso gera reações também naturais, uma estrada se abriu no beco sem saída. Eu não estava preso pelas suas conclusões e nem você pelas minhas divergências.

       — Verdade — disse ela —, e obrigada pelo jantar. Está delicioso!

       — Esquentei demais? Você disse que estava quente.

       — Está melhor agora. — Ela bebericou o suco de cenoura. — E Dickie talvez nem pergunte sobre casamento.

       — Vai perguntar — repliquei. — Vai dizer: Por que acha que estamos aqui? E responderei que acho que estamos aqui para expressar amor, há milhões de testes diferentes para demonstrarmos isso, outro milhão quando falhamos, outro ainda quando passamos por eles. E em todo lugar mais testes, cada minuto do dia, ano após ano de vida íntima com a alma-gêmea.

       — Isso é doce. Amor é importante. Fico feliz em ouvi-lo falar assim. Acho que você é maravilhoso, mas também é o homem menos amoroso que conheço, às vezes. Nunca encontrei ninguém, homem ou mulher, que consiga ser tão frio e distante quanto você. Espinhos no gelo, quando se sente ameaçado.

       Dei de ombros.

       — Não tenho para onde fugir... Não estou dizendo que passei nos testes, mas que sei de sua existência. Paciência. Vou dar um jeito de adotar uma vida onde eu seja o tipo de pessoa igual a várias outras. Até agora, sou mais feliz sendo eu mesmo. Desconfiado, blindado, defensivo...

       — Oh, você não é tão ruim — disse ela alegremente. — Há algum tempo não é mais desconfiado.

       — Estou caçando elogios! Não vai cair na armadilha?

       — Diga a Dickie que, na minha opinião, você não é o pior homem do mundo.

       — Quando está furiosa comigo, você acha que sou.

       — Não. Longe disso. O que mais vai contar a Dickie sobre casamento?

       — A diferença entre casamento e cerimônia. Que um casamento de verdade não é feito por duas pessoas desfilando por uma ponte entre arroz, fitas e flores. É descobrir que, depois de uma vida inteira, eles construíram a ponte juntos, com as próprias mãos.

       Ela apoiou o garfo no prato.

       — Richard, isso é bonito!

       — É para você que deveria falar e não para Dickie.

       — Fale com nós dois — pediu ela. — Se você fica feliz, eu passo a viver como um homem feliz.

       — Vou dizer isso também. Maridos e mulheres não detêm o poder de fazer uns aos outros felizes. Essa é uma conquista individual. Cada um só pode cuidar de sua própria felicidade.

       — Até certo ponto, é verdade. Mas se quer dizer que nada que fazemos tem impacto no outro, discordo completamente.

       — Os impactos são testes mútuos — falei. — Você pode decidir ser feliz independente de mim, e as chances de eu ficar alegre por você estar feliz aumentam, porque é assim que gosto de vê-la. Mas sou eu me fazendo feliz, não você.

       Ela balançou a cabeça e sorriu, condescendente comigo.

       — Que maneira estranha de ver as coisas.

       Leslie achava que aquilo era um detalhe, uma questão de pura lógica para mim, rejeitando um presente de seu amor. Eu me sentia como um rinoceronte patinando no gelo fino e tinha de deixar tudo claro.

       — Se estiver deprimida, mas decidir que me fará feliz se me preparar um jantar ou sair comigo, acha que vai funcionar? Acha que vou ficar contente sabendo que está triste?

       — Não deixaria você perceber que estava triste, e sim, acho que ficaria contente.

       — Então seria uma mártir, me fazendo “feliz” pelo seu sacrifício, mentindo para mim, fingindo uma alegria inexistente. Se funcionasse, eu ficaria feliz não por você estar feliz, mas por acreditar que era verdade. Não é você, nem o que você faz, é o que acredito que me faz bem. E no que acredito seja minha responsabilidade, não sua.

       — Soa tão frio — disse ela. — Se é assim, por que deveria me esforçar para agradá-lo?

       — Quando não tem vontade, não deve fazê-lo! Lembra-se de trabalhar dezesseis horas por dia no escritório, quando ficamos atolados de trabalho?

       — Nosso trabalho, mas eu fazia tudo — disse, docemente. — Sim, eu me lembro.

       — E lembra-se de como fiquei agradecido?

       — Claro que sim. Você sentou aqui, carrancudo, ressentido e ofendido, como se fosse uma criatura condenada a trabalhar até morrer.

       — Lembra-se de quanto isso durou?

       — Anos.

       — E como as coisas se tornaram tão ternas entre nós por você fazer meu trabalho?

       — O que me recordo é que por volta do final desse período não podia mais vê-lo! Suava do amanhecer até a meia-noite e você anunciava tranqüilo que ia sair para voar, tinha trabalhado demais. Teve sorte por eu não te matar!

       Quanto mais tempo passamos fazendo trabalhos que odiamos, menor a felicidade do nosso casamento.

       — Mas finalmente algo disparou — continuei. — Você disse dane-se o trabalho, dane-se esse Richard Bach filho da mãe egoísta, eu vou atrás da minha vida. Não dou a mínima para ele. Vou cuidar de mim, vou me divertir.

       — E fui mesmo! — ela disse, com olhos alegres e travessos.

       — O que aconteceu? Ela riu.

       — Quanto mais eu me divertia, mais você gostava!

       — Aí está! Entende o que digo? A escolha de ser feliz foi sua!

       — Fui eu.

       — E me fez sentir o mesmo. Sem tentar “me fazer feliz”.

       — Com certeza.

       Bati na mesa, o dedo fazendo às vezes de martelo.

       — Caso encerrado.

       — Acredito que você tentava me fazer feliz, dizendo para não trabalhar tanto no escritório.

       — Claro que estava. Naqueles dias, eu tentava resolver seus problemas.

       — Dizer a mim para não trabalhar naquela época era estupidez — replicou. — Eu posso deixar de trabalhar e me divertir hoje porque estamos num estágio diferente de nossas vidas. O que fazemos hoje é um trabalho selecionado, não coisas de vida ou morte. Podemos fazê-lo ou não, como quisermos. Naquela época, trabalho era assunto sério... tratava-se de tirá-lo do emaranhado de problemas legais e financeiros em que estava quando nos conhecemos, se é que se lembra. E sem todo meu trabalho você não estaria nessa situação confortável de hoje. Na melhor das hipóteses, teria de deixar o país, e não quero nem imaginar o que aconteceria na pior. Então, com obstáculos altos assim, escolhi trabalhar como uma louca. Se queria me fazer feliz, deveria ter aparecido e ajudado!

       — Não vê? Eu não queria! Fazer todo aquele trabalho não era importante para mim! Podia não tê-lo acabado nunca! Nas poucas vezes em que tentei ajudá-la, eu estava tão infeliz, miserável e ressentido que só conseguia piorar a situação!

       — Obviamente, minha escolha foi eu mesma fazer cada vez mais, ao invés de ter a meu lado um duende hostil e espinhudo tentando “ajudar”, fazendo uma bagunça por estar ressentido.

       — Obviamente, não. Havia outras possibilidades. Mas apesar de estar tentando “fazer você feliz”, não funcionou porque eu mesmo não estava feliz.

       — Tem razão, eu tinha outras opções. Devia ter deixado que fosse atropelado pelos seus problemas. Aí, aprenderia a lição e eu não recordaria uma que já sabia. De tudo, sobrou isso: se você se enrolar de novo, não vou poupá-lo de aprender com a vida. Mas a verdade é que você não estava tentando “me fazer feliz”, e sim buscando o seu bem-estar, como faz agora.

       Oh-oh, pensei. A conversa do jantar estava se tornando uma tempestade?

       — A diferença entre agora e ontem — continuou ela — é que nossas vidas mudaram, e na calma e conforto ambos temos a chance de ser felizes. Você parece achar que é porque resolvi trabalhar menos e brincar mais. Preferiu acreditar que trabalho por amor ao ofício e finalmente recobrei a razão. Acho que você viveu numa terra da fantasia todos esses anos por não conseguir lidar com os enormes problemas que criou. Seja qual for a verdade, estou gostando muito da minha vida atual para discutir além deste ponto.

       Modelei minha resposta em silêncio por um momento. Vivemos anos juntos, mas nossas convicções são tão diferentes que hoje relembramos passados distintos.

       — Isto é para Dickie — ela perguntou, os olhos azuis-celestes direto nos meus —, ou é para nós? Vai contar a ele sobre nossas brigas?

       — Talvez não. Talvez eu devesse dizer que um casamento perfeito não tem brigas. Perfeição é quando duas pessoas se olham e dizem: sabíamos tudo antes de casar. Sem brigas, sem testes, nenhuma mudança em cinqüenta anos. Nada a aprender.

       Ela sorriu, imaginando a cena.

       — Tédio mortal. Evite problemas e você nunca será um dos que os superam.

       — Ele precisa saber. Ensinar lições sobre o casamento é uma ótima maneira de se lembrar delas. Dickie tem de fazer o melhor que puder com elas, guardar algumas e jogar o resto fora. Vou contar o que descobri de mais importante: nunca pense que sua mulher lê pensamentos, que entende quem você é ou como se sente. Assumir essa postura é pedir para sofrer. Pode ser que ela entenda, pode ser que saiba, de tempos em tempos, mas não espere que ela o entenda mais que você a ela. Decida ser feliz fazendo o que quiser. Se sua felicidade a irritar, ou se você a odeia quando ela está se divertindo, isso não é um casamento, mas uma experiência condenada desde o início.

       — Faz o casamento parecer tão divertido quanto pular de um rochedo. É o que quer que ele pense?

       — Casamento é diferente de tudo o que já viveu, duas almas-gêmeas trazidas para perto por um magnetismo misterioso, descobertas por uma incrível coincidência, pelo mistério do romance, e você ainda tem de resolver os conflitos em conjunto. Conflitos fascinantes, é verdade, provas apimentadas ano após ano, mas perca o romance e terá perdido o poder de atravessar as épocas difíceis, aprendendo a amar. Perca o romance e nunca aprenderá, fracassará no amor. Fracasse no amor e as outras provas perderão importância.

       — E filhos?

       — Não estou qualificado para falar qualquer coisa sobre isso — respondi. — Próxima.

       — O que quer dizer “não estou qualificado, próxima”? Você tem filhos e seguramente aprendeu algo com eles. O que irá dizer a Dickie?

       Meu ponto fraco, pensei. Sou tão útil para as crianças quanto uma bigorna num berçário.

       — Posso afirmar que a resposta está no seu interior, o que não acontece só com adultos. Vivenciamos o que nos é trazido, apesar da idade. O único guia que damos a nossos filhos é o exemplo de comportamento mais alto e avançado que sabemos ter. Crianças podem entender ou não, podem nos amar por nossas opções, ou amaldiçoar o chão que pisamos. Mas os filhos não são nossa propriedade, nem devem ser controlados por nós... não mais que nós devemos ser controlados por nossos pais.

       — Você se parece com um iceberg quando diz essas coisas — comentou Leslie —, ou é só para mim que parece estar a quarenta graus abaixo de zero?

       — Não é verdade?

       — Pode ter alguma base real — admitiu ela. — Certamente não temos nossos próprios filhos, mas percebo algo faltando. Poderia ser um pouco de ternura?

       — Bem, claro que vou ser terno ao falar com ele! Ela balançou a cabeça, sem esperança, e continuou:

       — Há mais de um segredo no casamento.

       — O quê?! — Eu tenho um, pensei, será que ela tem outro?

       — Quando alguém olha para nós, quando se olha qualquer relacionamento longo, nós só amamos realmente uma ou duas vezes na vida. Cuide bem desse amor. É o meu segredo do casamento.

      

       QUANDO ACABAMOS O JANTAR E TIRAMOS OS pratos, joguei meu paraglider no carro e dirigi até a montanha. No caminho, vasculhei a mente à procura de meu amiguinho.

       Ele estava no mesmo pico, mas agora havia árvores nas encostas, e um prado verde se estendia até o horizonte. Ele se virou para mim no instante em que o vi.

       — Conte-me sobre o casamento.

       — Claro. Por quê?

       — Nunca achei que aconteceria comigo, mas agora sei que vai. Não estou preparado.

       Evitei um sorriso.

       — Tudo bem, estar despreparado. Ele enrugou a testa, impaciente.

       — O que preciso saber?

       — Uma palavra — eu disse. — Guarde apenas uma palavra e se dará bem. Diferente. Você é diferente de todos no mundo e da mulher com quem se casará.

       — Aposto que está me contando alguma coisa simples por achar que era simples e no final descobriu que não era.

       — Simples não é óbvio, capitão. Somos diferentes é uma revelação que muitos casamentos nunca alcançam, uma iluminação que não aparece para várias pessoas inteligentes mesmo anos após a poeira do divórcio ter baixado.

       — Diferente mas igual?

       — Não totalmente. Casamento não é uma arena de igualdade. Leslie é melhor que eu em música, por exemplo. Nunca chegarei ao estágio em que ela estava quando tinha doze anos, imagine agora. Poderia estudar o resto da vida e nunca vir a saber tanto quanto ela, ou tocar de modo tão agradável quanto ela. Por outro lado, ela provavelmente nunca pilotará aviões melhor que eu. Começou vinte anos depois de mim e não vai me alcançar.

       — Todo o resto é desigual, também?

       — Tudo. Não sou tão organizado como ela, e ela não tem a minha paciência. Leslie é uma batalhadora quando o assunto a interessa, eu sou o observador à distância. Sou egoísta, o que para mim é igual a agir em prol dos meus interesses a longo prazo; ela odeia egoísmo, que define como satisfação imediata sem medir conseqüências. As vezes, espera que eu sacrifique meu senso de certo e errado por ela e fica surpresa quando não o faço.

       — Então vocês são diferentes — disse ele. — É assim com todos os casais?

       — E quase todos esquecem. Quando eu esqueço, espero que Leslie seja egoísta; quando ela esquece, espera que eu seja organizado; e assumimos que o outro é tão bom quanto nós em aspectos que dominamos. Isso não acontece. Casamento não é uma competição, mas uma cooperação que precisa de diferenças.

       — Mas de vez em quando ser diferente deve deixá-los loucos, aposto.

       — Não. O que nos deixa malucos é esquecer as diferenças. Quando supus que Leslie era eu mesmo em outro corpo, que sabia o que eu pensava a todo segundo e compartilhava de meus valores e prioridades, estava pedindo para ser lançado catarata abaixo dentro de um barril. Continuei a fazer suposições e, no minuto seguinte, estava imaginando por que estava descendo o rio, e o que são estes anéis soltos e esses pedaços de madeira dependurados no meu pescoço enquanto saio da água como uma esponja inchada, pingando? Senti-me culpado de tudo, até encarar a situação, lembrar que somos diferentes e deixar a vida seguir seu curso.

       Ele apertou os olhos.

       — Culpado? Por quê?

       — Recorde suas máximas. Culpa é a tensão por mudar o nosso passado, presente ou futuro em função de alguém. Culpa está para o casamento assim como um iceberg para o Titanic. Tropece nela no escuro e estará perdido.

       Sua voz ficou melancólica.

       — De algum modo estava esperando casar com uma mulher parecida comigo.

       — Não. Deseje que ela não seja, Dickie! Há duas coisas em que Leslie e eu somos iguais: ambos concordamos que o nosso esposo tem alguns valores mal colocados e prioridades irrefletidas. Também concordamos que estamos mais apaixonados agora do que quando nos conhecemos. Em todo resto, somos mais ou menos diferentes.

       Ele não estava convencido.

       — Não tenho certeza se enfrentar cataratas me faria amar mais alguém.

       — Não foi Leslie quem me prendeu no barril, capitão, fui eu mesmo! Achei que a conhecia, e olhando para trás... como pude ser tão pouco perspicaz? Ela fez algumas suposições sobre mim que erraram o alvo, com certeza, mas como é bom conviver tanto com a pessoa amada! Anos com ela, e mesmo as tempestades são divertidas depois que acabam. Eu a abraço à noite, e é como se acabássemos de nos conhecer, apenas tivéssemos trocado um olá!

       — Difícil imaginar.

       — Não dá para imaginar, Dickie. É preciso viver. Eu te desejo paciência e habilidade.

       Deixei-o sossegado para refletir sobre isso. Só depois percebi que esquecera de lhe contar o meu segredo do casamento.

      

       TODA ESTRUTURA TEM CONSCIÊNCIA. Aeronaves são criaturas vivas se acreditarmos nisso. Quando lavo Daisy, dou polimento e cuido de cada estalido antes que se transforme num grito; chega um dia em que ela poderá retribuir a gentileza e decolar antes do previsto, se necessário, ou aterrizar num espaço impossivelmente curto. Em quarenta anos no ar, isso aconteceu uma vez, e não sei se não precisarei de um favor desses de novo.

       Portanto, não era estranho ver-me deitado no piso de concreto do hangar certa manhã, limpando três horas de motor no cano de escapamento e crostas de óleo da barriga de Daisy.

       Toda noite trocamos de consciência quando dormimos, pensei, mergulhando o pano levemente na gasolina, mas cada dia mudamos novamente, sempre que fazemos uma coisa e pensamos em outra. Dormir e acordar, sonhar e devanear, cem vezes ao dia, quem inclui isso na conta de estados alterados?

       Só via uma calça jeans, do joelho para baixo, mas os pés estavam enfiados em tênis fora de moda, e eu sabia de quem eram.

       — Tudo é sua responsabilidade pessoal? — perguntou Dickie. — Tudo na sua vida? Você carrega todo o peso?

       — Tudo — respondi, alegre por ele ter me encontrado. — Massas não existem, somos nós, velhos indivíduos comuns, fazendo nossas velhas vidas simples tão simples e antigas quanto quisermos. Não é um peso, Dickie. A responsabilidade por tudo é divertida de carregar, e nós indivíduos animamos o negócio, nos ajudando mutuamente.

       Ele sentou-se no chão, cruzou as pernas e observou meu trabalho.

       — Como quem?

       — Como o verdureiro que ajuda a encontrar comida para a mesa; como o cineasta que nos conta histórias, o carpinteiro que prende o teto acima de nossas cabeças, o construtor de aviões que pôs a bela Daisy à venda.

       — E se Daisy não existisse, você a construiria sozinho?

       — Se tivesse de construir meu próprio avião ele seria menor, provavelmente. Um planador ou ultraleve.

       Passei o pano pela cera de polir. Só um pouquinho irá limpar de uma vez as piores manchas de escapamento.

       — Você é responsável por encontrar comida, mesmo que não houvesse lojas?

       — Quem faria isso por mim?

       — Mataria vacas sem ajuda?

       Enquanto polia, notei uma rachadura na fibra de vidro, começando no suporte da antena de medição de distância. Nada perigoso, mas anotei para no futuro limar e colar a falha.

       — Leslie e eu não comemos mais vacas, Dickie. Não mataríamos uma e decidimos que, se não concordamos com todo o processo, não aceitamos o produto final.

       Ele pensou sobre o assunto.

       — Vocês não usam couro?

       — Jamais vou comprar outro casaco de couro, provavelmente nem outro cinto, mas talvez continue a comprar sapatos, se não houver alternativa. Mas de novo pode acontecer de chegar até o caixa com os sapatos e não conseguir ir em frente. Mudança de princípios é um processo lento, e não sabemos que eles mudaram até que algo que antes parecia correto passa a não ser. Ele assentiu, sem surpresa.

       — Tudo é individual.

       — Sim.

       — Você é responsável pela sua educação? — perguntou.

       — Sou eu que vou proporcionar a educação que quero, sim.

       — Lazer?

       — Continue.

       — Ar, água, trabalho...

       — ...viagens, atitudes, comunicação, saúde, proteção, objetivos, filosofia e religião, sucesso e fracasso, casamento, felicidade, vida e morte. Respondo a mim mesmo por tudo o que penso, por todas as palavras que digo e atitudes que tomo. Goste ou não, é a verdade, então há muito tempo decidi gostar. — Aonde ele estava querendo chegar com essas perguntas? Seria um teste?

       Esfreguei a cera na pintura polida, com cuidado ao redor dos geradores de vórtex, salientes como uma grade de lâminas, mais rápido próximo das antenas de rádio, varrendo o resto em longos movimentos. Curiosidade ou teste, decidi, queria que ele soubesse.

       — Então tudo o que se faz no mundo das aparências é por você mesmo — disse ele.—Você, sozinho, constrói sua civilização inteira?

       — Eu o fiz, obrigado — respondi. — Não queira saber como.

       Ele riu.

       — Você despejaria tudo, mesmo que eu não quisesse.

       — Não tem importância — menti. — Tudo bem, vou despejar.

       — Conte-me. Como construiu sua civilização pessoal?

       — Escolhemos nascer na terra do espaço e tempo, Dickie, e então ficamos nos portões da consciência, avaliando, decidindo se aceitamos ou recusamos as sugestões, idéias, avanços e retrocessos que o nosso tempo oferece. Ler, sim; fugir de casa, não; bichos de pelúcia, sim; pais confiáveis, sim; acreditar na propaganda de guerra, sim; aeromodelos, sim; esportes de equipe, não; pontualidade, sim; sorvete, sim; cenouras, não; lição de casa, sim; fumar, não; beber, não; egoísmo, sim; drogas, não; matar aulas, não; cortesia, sim; autoconfiança elevada, sim; caçar, não; revólveres, sim; gangues, não; garotas, sim; entusiasmo pela escola, não; universidade, sim; militar, sim; política, não; servir aos outros, não; casamento, sim; filhos, sim; militar, não; divórcio, sim; casar de novo, não; casar de novo, sim; cenouras, sim... Pintamos um retrato perfeito e único de quem seremos, cada sim e não é um pequeno ponto de tinta no nosso quadro. Quando mais decididos somos, mais clara fica a nossa pintura.

       Tudo no mundo da minha consciência, que é o único que existe para mim na Terra, só entra com meu consentimento. Sou livre para mudar qualquer coisa que não sirva mais. Então não pode haver lamúrias nem reclamações de estar sofrendo porque alguém me decepcionou. Tenho que superar isso, não eles.

       — O que você faz quando alguém o decepciona?

       — Eu os mato — disse — e continuo meu caminho. Ele riu, nervoso.

       — Está brincando, não está?

       — Não podemos destruir a vida, nem criá-la — falei. — A Vida É, lembre-se.

       Acabei de polir a barriga, rastejei para sair de debaixo do avião e arrumei uma escada para o leme, a 2,70m de altura.

       — No mundo das aparências — perguntou, cauteloso — já matou alguém?

       — Sim. Matei moscas, matei mosquitos, formigas e, fico triste em dizer, aranhas também. Matei peixes, quando era pouco mais velho que você. Cada um deles era expressão indestrutível da vida, mas eu acreditava que os estava matando, e essa crença me deprimia, ainda hoje me entristece, até relembrar a verdade.

       Ele escolheu cuidadosamente suas palavras.

       — Matou algum ser humano, no mundo das aparências?

       — Não, Dickie, não matei. — Graças a uma coincidência brilhante, pensei. Poucos anos antes de entrar na Força Aérea, teria sido enviado à Coréia para matar gente. Alguns anos depois, teria sido o Vietnã, se não tivesse antes me recusado a obedecer ordens dos outros.

       — Foi morto?

       — Nunca. Antes do começo do tempo, eu sou, depois que ele se acabe, eu serei.

       Ele se exasperou.

       — No mundo das aparências, a sua existência como ser humano limitado...

       — Oh, nesse mundo! — interrompi. — Fui morto milhares, milhões e bilhões de vezes, um número impossível de calcular.

       Dickie subiu a escada para o estabilizador horizontal, andou até perto do leme e sentou de frente para mim, com as pernas cruzadas, absorto na sua curiosidade. Nenhuma outra criança poderia ter se empoleirado lá sem ouvir meus protestos sobre marcas de tênis na pintura, peso nos estabilizadores, quedas de l,50m no piso de concreto. Mas Dickie era bem-vindo onde quer que se sentasse. Essas são as vantagens dos desencarnados, pensei, é de se estranhar que não convidemos mais deles.

       — Isso é reencarnação. Você acredita em reencarnação? Borrifei a parte superior do leme com cera líquida e esfreguei para limpar.

       — Não. Reencarnação é uma série de vidas, uma em seguida da outra, em seqüência, todas nesse planeta. Parece um pouco limitado, como uma roupa apertada nos ombros.

       — O que lhe serve melhor?

       — Um número infinito de experiências de vida, por favor, algumas em corpos, algumas não; algumas em planetas, outras não; todas acontecendo simultaneamente, porque o tempo não existe, e nenhuma delas real porque há somente uma Vida.

       Ele franziu a testa.

       — Por que experiências-de-vida-infinitas é verdade e reencarnação não?

       Há muito tempo, recordei, essa era minha pergunta favorita: por que deste jeito e não daquele? Deixava uma porção de adultos loucos, eu me lembro, mas eu precisava saber.

       — Infinitas-experiências-de-vida não é mais verdadeiro que reencarnação — expliquei a ele. — Até reconhecermos que A Vida É, não acreditamos meramente em reencarnação, ou infinitas experiências de vida ou céu-e-inferno ou tudo-fica-preto. Vivemos de acordo com esses sistemas... eles são reais para nós, a cada minuto lhes damos força.

       — Então, não entendo. Por que não aceitar A Vida É, e parar de jogar?

       — Eu gosto de jogos! Se alguém duvidar que vivemos para nos divertir, faça uma lista detalhada, para ele ou ela, de seu futuro pessoal... cada fato, cada desfecho, anos antes de acontecer. Quanto acha que levará até que peçam para parar? Não tem graça conhecer de antemão o futuro. Eu gosto de xadrez, mesmo sabendo que é uma brincadeira. Gosto do espaço-tempo, mesmo sabendo que não é real.

       — Socorro! — exclamou. — Se nada é real, por que escolher infinitas-experiências-de-vida ao invés de todos-nos-tornamos-anjos ou reencarnação?

       — Por que xadrez e não damas? — perguntei. — Há outras opções para brincar! Se todas as minhas experiências de vida são simultâneas, por exemplo, deve haver uma maneira delas se encontrarem face a face. Deve haver como encontrar o Richard que viveu na China, no que agora chamo de sete mil anos atrás; o que escolheu construir barcos em 1954 ao invés de pilotar aviões; o que é um Proximida e vive nas frotas espaciais de Centauro Quatro a um milhão de anos de hoje. Se o tempo é Agora, tem de haver um meio para falarmos. O que eles sabem que não sei?

       Uma expressão curiosa surgiu em seu rosto, um sorriso disfarçado.

       — Conseguiu algo até agora?

       — Algumas luzes aqui e ali.

       — Hum. — Ele sorriu de novo daquela maneira estranha, como se fosse ele o professor e não eu. Deveria ter aproveitado para perguntar-lhe o que havia de tão engraçado? Mas deixei passar, achando que ele não tinha acreditado, me vigiando para não insistir. Ele precisava fazer sua própria cabeça.

       — Não é necessário ter provas — repliquei, subindo para recolocar a guia do estabilizador esquerdo. — A vida não limita nossa liberdade de acreditar em limites. Até deixarmos correr nosso romance com organização, aposto que vamos acordar de uma crença limitada a outra, ultrapassando o espaço-tempo da mesma maneira que deixamos para trás nossos jogos de blocos quando crescemos, por mais coloridos e diferentes que sejam, em busca de outros brinquedos.

       — Brinquedos? Para um futuro indefinido? — ele se espantou. — Pensei estar à sua frente. Pensei que ia me dizer que a próxima vida é amor incondicional.

       — Não. Amor incondicional não tem mais força no espaço-tempo que no xadrez, no futebol ou no hóquei sobre o gelo. Regras definem a vida no jogo, e o amor incondicional não aceita regras.

       — Cite uma regra.

       — Deixe-me ver... — Terminei o estabilizador esquerdo, desci e movi a escada para o direito, subi e passei cera na guia. — Autopreservação é uma regra. No minuto em que não nos importarmos em viver ou morrer, no minuto em que transferirmos nossos valores para fora do espaço-tempo, poderemos amar incondicionalmente.

       — É mesmo?

       — Tente — propus. — Encerei a guia e passei o pano.

       — Como?

       Os estabilizadores verticais brilhavam, duas esculturas de marfim gêmeas no hangar. Fui para o horizontal.

       — Finja que é uma alma avançada, um líder pacifista contra a violência, que jurou libertar sua nação escravizada por um tirano. Você promete ao tirano que organizará manifestações de protesto gigantes até que ele renuncie.

       — Eu conto isso a ele? Posso ser avançado, mas não sou muito esperto, sou?

       Sorri. Meu pai costumava dizer: não muito esperto.

       — Você é avisado: os homens do tirano estão a caminho, para matá-lo. Está assustado?

       — Sim! — respondeu Dickie. — Para onde vou fugir?

       — Lugar nenhum. É uma alma avançada, lembre-se. Então bem agora, neste minuto, deixe a autopreservação, deixe as regras, não ligue se vai viver ou morrer. Este é um mundo de aparências, e você tem um lar diferente, mais amado e conhecido que a Terra, para o qual ficará feliz em voltar.

       — Os assassinos estão à porta. Está assustado?

       — Não — respondeu, sonhando. — Não são meus assassinos, são meus amigos. Somos atores numa peça. Escolhemos nossos papéis e interpretamos.

       — Estão desembainhando as espadas. Tem medo deles?

       — Eu os amo.

       — Eis a resposta. Agora sabe como é o amor incondicional. Não é preciso ser um santo, qualquer um pode fazer: deixe de lado o espaço-tempo e não fará diferença se matam você ou não.

       Nesse instante, Dickie abriu os olhos e foi sentar-se no fim do estabilizador, para que eu pudesse polir onde ele estivera.

       — Interessante. Funciona do outro lado? Quanto mais me preocupo com a autopreservação, menos amor incondicional sinto?

       — Quer descobrir?

       — Quero — ele fechou os olhos e esperou.

       — Imagine ser um fazendeiro, tranqüilo, gentil — comecei. — Tem três amores: sua família, sua terra e seu campo de narcisos. Você e sua mulher criam seus filhos e suas flores no mesmo vale que foi roçado e arado pelos seus pais antes de você. Nasceu nessa terra e nela planeja morrer.

       — Oh-oh — disse ele. — Algo vai acontecer.

       — Sim. Boiadeiros, Dickie. Querem sua fazenda como atalho para a estrada de ferro, e não vendeu para eles quando fizeram a proposta. Ameaçaram criar problemas e você não fugiu. Agora mandaram mais um aviso: ao meio-dia de hoje vão tomar suas terras à força. Saia da propriedade, abandone suas flores à morte ou morrerá com elas.

       — Oh, Deus — ele disse, olhos fechados, sonhando de novo.

       — Está com medo?

       — Sim.

       — É quase meio-dia, Dickie. Eles estão chegando em seus cavalos, uma dúzia de homens armados numa nuvem de poeira, disparando seus revólveres, estourando uma manada de longhorns bem na direção dos seus verdes campos. Você ama incondicionalmente esses homens?

       — NÃO! — disse.

       — Assim é...

       — Tenho meus vizinhos de guarda — disse. — Cada um de nós com fuzis de repetição; enterrei dinamite junto à cerca. Pisem nas minhas flores, durões, e terão um poderoso estouro de manada ao contrário! Se ousarem espezinhar-nos, será a última vez que tentam!

       — Pegou a idéia — falei, sorrindo de sua defesa relâmpago. — Veja como é diferente de amor in...

       — Não pare agora. Deixe-me mandá-los pelos ares! Achei graça.

       — Dickie, esse é um exercício para pensar, não um massacre!

       Ele abriu os olhos.

       — Buum... — disse, sombriamente. — Ninguém invade minhas terras!

       Sorri de sua careta, levantei-o para o topo da fuselagem e troquei a escada de lugar para polir a asa direita de Daisy.

       — Então, o único modo do Amor ser incondicional — disse, por fim — é quando não dá importância aos nossos jogos.

       — Nem para jogos, nem para objetivos baseados em mudanças — respondi. — Nem autopreservação, nem justiça, nem resgate, nem moral, nem melhoria, nem educação, nem progresso. Ele ama quem somos, não quem fingimos ser. É por isso que morrer é um choque tão grande, acho. O contraste entre a ficção e o real é agudo, nessa hora. Quem esteve próximo de morrer e voltou, conta que é Amor como uma marreta.

       — Ama boiadeiros tanto quanto plantadores de flores?

       — Os mortos e os assassinos, os mansos e os monstros. O mesmo. Absoluto. Total. Incondicional. Amor.

       Dickie deitou na fuselagem, seu rosto virado sobre o metal frio, observando-me trabalhar.

       — Tudo o que você me disse... como aprendeu?

       — Esperava que você soubesse. A pergunta Como funciona o universo sempre esteve na minha cabeça. Quando começou?

       Tinha esperança de que ele me relembrasse um fato antigo, mas, se sabia, não iria dizer.

       — Como sabe que suas respostas estão corretas?

       — Não sei. Mas cada pergunta carrega uma tensão dentro de si, um pequeno choque elétrico que percorre meu corpo até que eu encontre uma resposta. Quando uma questão encontra uma resposta, põe seus alicerces na intuição e surge uma luz azul: a tensão desaparece. Não há certo ou errado, só há resposta.

       Droga, pensei em silêncio. Há uma massa na guia... devemos ter atingido uma bolsa de ar pesado, no último vôo.

       — Dê um exemplo.

       Poli levemente a asa com um pedaço de camurça, relembrando.

       — Quando eu fazia pulverizações — contei —, decolando das pastagens do Meio-Oeste no meu velho biplano Fleet, por um tempo me senti culpado. Seria justo viver daquela maneira, flutuando livre pelo vento e ganhando dinheiro com isso, quando as outras pessoas tinham de trabalhar das nove às cinco para sobreviver? Nem todos podem ser pulverizadores, pensava.

       — Era essa a pergunta?

       — Era o que me tensionava, como uma pergunta, zunindo na minha mente por semanas: nem todos podem ser pulverizadores. Por que não sou estressado como o resto? É justo que eu seja privilegiado?

       Ele não achou engraçado, dormir no meio do óleo debaixo da asa, trocar passeios barulhentos por dólares e preocupar-se por ser o cara mais sortudo da face da Terra.

       — Qual foi a resposta? — quis saber, atento como uma coruja.

       — Pensava nela à noite, sozinho, assando pão na frigideira sobre o fogo. Pulverizar é a grande profissão romântica, pensei, mas a advocacia e arte dramática também. Se todos fossem atores, abriríamos as páginas amarelas e só haveria uma longa lista, uma categoria: A de Atores. Nenhum instrutor de vôo, nem fabricantes de brinquedos, nenhum advogado, policial, doutores ou lojas de varejo, construtoras, estúdios, produtores. Só atores. E finalmente compreendi. Nem todos podem ser pulverizadores. Nem advogados, atores ou pintores de paredes, também. Não pode haver uma única profissão!

       — Essa foi a resposta?

       — Como uma baleia surgindo das profundezas do mar veio essa intuição que inundou minha mente, Dickie: todos não podem fazer uma única coisa, mas alguns podem!

       — Oh — ele disse, também atingido pelos respingos.

       — De lá para cá, parei de pensar se era justo ser quem eu tinha escolhido. — Esfregava a asa em silêncio, ainda assim ele prestava atenção, examinando a idéia em sua cabeça.

       — Posso ser quem eu quiser? — perguntou. — Mesmo que não seja você?

       — Especialmente se não for eu — disse a ele. — Eu piso no tomate, de tempos em tempos, mas meu emprego já tem dono. O de todo mundo já tem dono, capitão, menos o seu.

      

       — UM SUSSURRO NA ESCURIDÃO. — Não vai ensiná-lo a ser egoísta, vai?

       Eram 3:22 da madrugada, brilhava o relógio. Como Leslie notou que estou acordado? Como um cervo percebe uma folha caindo no meio da floresta? Ela ouviu uma respiração diferente.

       — Não estou ensinando nada — murmurei de volta. — Estou revelando o que acho ser verdadeiro e ele terá de decidir por si mesmo em que acreditar.

       — Por que está falando baixo?

       — Não queria acordá-la.

       — Já acordou. Sua respiração mudou de tom há um minuto. Está pensando em Dickie.

       — Leslie — disse, testando. — O que estou fazendo agora?

       Ela ouviu em silêncio.

       — Está piscando os olhos.

       — É IMPOSSÍVEL ALGUÉM PERCEBER QUE O OUTRO ESTÁ PISCANDO OS OLHOS NO ESCURO!

       Silêncio. Então um murmúrio.

       — Quer que eu peça desculpas por ouvir bem?

       Suspirei.

       Um cochicho baixo, desafiador.

       — Bem, não pedirei.

       — O que estou fazendo agora?

       — Não sei.

       — Estou sorrindo.

       Ela se virou para mim. Pus meus braços em torno dela na noite.

       — O que o acordou?

       — Você vai me gozar.

       — Não vou. Prometo.

       — Pensava sobre o bem e o mal.

       — Oh, Richie! Às três horas, no meio da madrugada, você desperta para pensar sobre bem e mal?

       — Está me gozando? Ela suavizou a voz:

       — É só uma pergunta.

       — Sim.

       — O que estava pensando?

       — Que pela primeira vez percebi... não existe tal coisa.

       — Não existe bem e mal?

       — Não.

       — O que existe?

       — Felicidade ou infelicidade.

       — Felicidade é bem e infelicidade é mal?

       — Completamente subjetivo. Está tudo na nossa cabeça!

       — Então o que significam felicidade e infelicidade?

       — O que são para você?

       — Felicidade é estar alegre! Delícia intensa! Infelicidade é depressão, desesperança, desespero.

       Eu devia ter imaginado. Achei que suas palavras seriam as minhas: felicidade é uma sensação de bem-estar, infelicidade é a falta dela. Mas minha mulher sempre foi a mais intensa de nós dois. Revelei a ela a minha definição.

       — Não é pouco? Uma sensação de bem-estar?

       — Preciso de uma definição que não coloque quinze metros entre a base da felicidade do topo da infelicidade. Como chama esse intervalo?

       — Chamo de tudo certo.

       — Não tenho um tudo certo. Tenho uma sensação de bem-estar.

       — Muito bem — disse ela. — E agora?

       — Ajude-me a achar uma situação na qual o Bem não é definido pelo coração como “Me Faz Feliz”. Ou uma em que o Mal não seja “Me Faz Infeliz”.

       — Amar é bom — ela disse.

       — Amar me faz feliz — respondi.

       — Terrorismo é um mal.

       — Você pode fazer mais que isso, doçura. Terrorismo me faz infeliz.

       — É bom quando fazemos amor — disse ela, pressionando seu braço quente contra mim na escuridão.

       — Nos faz felizes — repliquei, me agarrando desesperadamente ao intelecto.

       Ela se afastou.

       — Oh, Richie, aonde está querendo chegar?

       — Não importa como olhe, no final a moralidade depende sempre de nós.

       — Claro que depende! — ela disse. — Foi isso que o acordou?

       — Não vê, Wookie? Bem e Mal não são o que nossos pais disseram, ou o que a Igreja ensinou, ou nosso país, nem o que todos dizem! Decidimos bem e mal por nossa conta, automaticamente, com as escolhas que fazemos.

       — Oh-oh — fez ela. — Por favor, nunca escreva uma palavra sobre isso.

       — Estou só pensando. E é estranho porque não consigo achar nenhuma saída!

       — Por favor...

       — Tente isso — sugeri — do livro do Gênesis, sobre a Criação: E Deus viu que era bom.

       — Vai dizer que isto significa que Deus estava feliz.

       — Óbvio!

       — Você não acredita num Deus que vê o mundo, ou que tenha mais emoções que a aritmética. Como pode seu Deus estar feliz?

       — O autor do Gênesis, o tolinho, não checou comigo antes de pegar no lápis. Em seu livro, Deus é cheio de sentimentos: alegre e triste, furioso, calculista e vingativo. Bem e Mal não são absolutos, são medidas da felicidade de Deus. Ele escreveu a história e eis o que tinha em mente: “Se eu acho que Deus ficará contente com isso, vou chamar de bom.” — O relógio me apressava. — Preciso de exemplos onde as pessoas usem bem e mal, mas está tarde e não consigo achar nenhum.

       — Bom.

       — Isso a faz feliz?

       — Claro. Se não teria de acender as luzes, pegar livros, o computador, tagarelar noite adentro.

       — Então está contente que seja tarde e eu provavelmente não a incomodarei com essa história de bem e mal a noite toda. Naturalmente você diz: “Bom.”

       — Apenas não escreva isso. Fará todos os extremistas... ou melhor, todos os seres humanos razoáveis do país, rasgarem seu livro em pedaços!

       — Leslie, isso não passa de curiosidade. Descobrir que a moralidade é um assunto pessoal não a torna oposta ao que era; não nos transformamos em maníacos homicidas só porque podemos ser um se quisermos. Somos pensativos, calmos, bons, educados, amorosos uns com os outros, arriscamos nossa vida para salvar a de outras pessoas porque gostamos de ser desse jeito, não para evitar a fúria de Deus ou Sua desaprovação. Nós somos responsáveis por nosso personagem, não papai, nem Deus... Ela estava irredutível.

       — Por favor, não. Se escrever que Bom é o que nos faz felizes, não vê o raciocínio? “Richard Bach afirma que Bom é o que me faz feliz. Adoro roubar trens, então roubar é bom, e como alguém poderia ser processado por fazer o que é bom, por ir para casa com a locomotiva da companhia no bolso? De qualquer modo, foi idéia do Richard.” E lá você estará, em julgamento com todos os felizes ladrões de trens.

       — Então terei de testemunhar na corte. “Os sábios, meritíssimo, avaliam as conseqüências antes de se precipitar no ato. Pode ser a delícia de nossos corações e, logo, o bem do momento, sair por aí afanando a turbina diesel alheia, mas, a menos que as possíveis conseqüências também façam a alegria de nosso coração, ficaríamos mais felizes repensando a travessura.”

       Ela suspirou, impaciente com as questões a formular.

       — “Imploro pela indulgência do meritíssimo” — continuei. — “Toda ação tem suas prováveis, possíveis e inesperadas conseqüências. Bom, quando todas essas conseqüências concorrem para o bem-estar a longo prazo da pessoa, vai resultar da soma de cada conseqüência com o ato original. ‘Provavelmente não serei pego’ não é o mesmo que ‘eu serei brindado com uma sensação de felicidade para o resto da minha vida em função do que vou fazer agora.’ Gostaria de acrescentar, meritíssimo, que já que nosso prisioneiro está infeliz por se encontrar neste tribunal, ele não estava de fato agindo em busca de seus melhores interesses quando escamoteou aquela locomotiva na lancheira, e é, por definição, culpado de falta de sabedoria, seu roubo revelou-se uma péssima idéia!”

       — Criativo — disse Leslie. — Mas você avaliou que o bem deriva seu sentido de um acordo comum, que bem é o que a maior parte das pessoas, ao longo dos séculos, acha que é positivo para a vida? E considerou que pode não ser seu melhor interesse e, portanto, Mal, é passar o resto da vida depondo em tribunais? E vamos esquecer isso e voltar a dormir?

       — Se a maior parte das pessoas acha que é bom matar aranhas, somos maus por deixá-las livres? Devemos governar nossa vida pelo que os outros pensam?

       — Sei o que quer dizer.

       — Leia o dicionário — pedi. — Todas as palavras que julgam valores são circulares. Bom é moral é apropriado é justo é o bem. Mas confira os exemplos e eles não são circulares, de modo algum: Todos dizem me faz feliz! Vou buscar o dicionário!

       — Por favor, não — implorou ela.

       — O que você fez sobre a guerra do Vietnã, Wookie? O presidente e a maior parte da população acharam que era uma boa guerra. Eu também, Wookie, até encontrá-la. Fazia todos nós felizes, achar que defendíamos um país inocente de um agressor cruel. Mas você não! O que você sabia sobre o assunto não a fazia feliz... você atiçou o presidente do Congresso contra ela, e os concertos, e as marchas...

       — Richie?

       — Sim?

       — Pode ser que esteja certo sobre bem e mal. Vamos discutir amanhã.

       — Sempre que dizemos Ótimo!, quer dizer que nossa sensação de bem-estar aumentou. Ao contrário, quando exclamamos Droga!, ou Oh, não!, quer dizer que diminuiu. O tempo todo estamos checando o bem e o mal, certo e errado. Podemos nos ouvir a cada instante e seguir nossa própria ética!

       — Dormir é bom — disse ela — e me faria feliz.

       — Se eu ficar aqui deitado sem dar um pio e testar todos os exemplos que puder imaginar, trocando me faz feliz por bom e certo e maravilhoso e ótimo e legal, e me faz infeliz por mal, ruim, errado, terrível, pecaminoso e cruel, vou atrapalhar seu sono?

       Ela se enrolou do meu lado e enfiou a cabeça no travesseiro.

       — Não. A menos que pisque.

       No escuro, calado, eu sorri.

      

       LOGO EM SEGUIDA CAÍ NO SONO, cabeça cheia de bem e mal...

      

       — Não acredito no que está pensando! Bom é o que nos faz felizes?

       — Acredite se quiser, Dickie — falei. — Pensar não é crime.

       — Se fosse, você provavelmente faria do mesmo jeito. O topo da montanha estava mais verde que nunca e agora desabrochavam pela encosta rios de pequenas flores, amarelas e azuis, que Leslie saberia o nome só de olhar.

       — Como sabe o que penso? — perguntei. — Eu lhe dei a chave do meu cérebro? Está observando tudo o que faço?

       Em lugar de uma pedra, sem palavras ele me deu um modelo planador em estilo balsa, com 30cm de envergadura de asa e um monte de argila no nariz para equilibrar.

       — Eu não observo nada — replicou. — Não sei sobre sua vida, a menos que me conte. Mas ultimamente sei o que está aprendendo. Isso não acontecia antes.

       Seria invasão de privacidade, encontrá-lo mais perto de minha mente? Isso me deixava desconfortável, que ele me acompanhasse no meu aprendizado?

       Sorri.

       — Bem, você está crescendo. Ele me olhou surpreso.

       — Não estou. Esqueceu? Tenho nove anos, Richard, e sempre terei.

       — Então por que quer saber tudo o que sei, a não ser para aproveitar as vantagens da minha vida e não cometer os meus erros?

       — Eu não disse que viveria eu mesmo, disse que queria saber como seria viver. Para o homem no qual me tornarei, que age tal como aprendi com você, sempre terei nove anos. Conte-me a verdade... não sei o que pensar sobre bem e mal, e preciso saber!

       — O que é que não está claro? — perguntei. — Bom é o que nos faz...

       — É muito... simplista! — disse ele, saboreando a palavra. — Eu poderia ter imaginado isso.

       — Oh, vamos, capitão. Primeiro, você não é burro; segundo, as coisas mais simples geralmente são as mais verdadeiras; terceiro sou eu, cinqüenta anos à frente, o cara com a sabedoria que você procura. É simplista: quando escutar Bom! e antes de concordar, considere quem está dizendo que está feliz e por quê?

       Balancei o planador, lancei-o no ar. Ele decidiu mudar de rumo e mergulhou de l,20m de altura direto no chão. Um nariz um tanto pesado, eu diria.

       — Deve haver mais bem — continuou ele — do que me fazer feliz.

       — É certo que há mais. Gratificação a curto prazo pode não ser felicidade a longo, e temos que pensar, para notar a diferença. Em toda história de ele-vendeu-sua-alma-ao-diabo, o trato com Satã é o mesmo: Vou negociar minha felicidade a longo prazo por uma satisfação imediata, e a moral é sempre: negócio furado, meu amigo!

       — Então há um consenso de bem e mal, valores macios que se encaixam em muitas pessoas. As culturas podem não concordar entre si sobre o que é bom e o que não é, mas cada uma delas, em si mesmas, geralmente concordam.

       — Tem que ser tão nebuloso? Não pode ser claro? Eu tenho conceitos claros.

       — Matar é...

       — Mau — disse, sem hesitar.

       — Caridade é...

       — Bom.

       Lixei um pouco da argila do nariz do pequeno planador.

       — Ser uma voz contrária durante a guerra é...

       — Hum...

       — É bom ou mau?

       — O que é a guerra? Estamos nos defendendo ou atacando algum pequeno e pobre país?

       — Aí está — disse. — Assim que se depara com uma situação em que bem e mal dependem das circunstâncias, o conceito todo se torna subjetivo, e nunca mais será a mesma escolha definida que era antes. Como qualquer outro julgamento de valor, temos que dizer isto é bom para mim, é mau para mim.

       Lancei de novo o pequeno planador, com cuidado. Subiu abruptamente, estolou, atingindo suavemente a grama.

       — Uma exceção não anula a regra!

       — Não — repliquei, recuperando o planador e tentando resolver seu problema de peso e balanço colocando um pouco de argila de volta no nariz. — Mas uma exceção abre as portas para milhões de outras.

       — Mostre.

       — Matar é mau quando em legítima defesa? É errado quando matamos inimigos na guerra? É imoral quando um médico realiza o desejo refletido e deliberado de seu paciente acometido de doença terminal e dor insuportável?

       — De acordo com você, não é possível matar. A Vida É, e não podemos criá-la nem destruí-la.

       — A Vida, Dickie, É. Não tem regras. Mas você e eu, nós somos brinquedos falantes, agora, espaço-tempo, suposições sobre aparências, bem institucionalizado e mal cultural, sociedades onde o real é o que parece ser e o Princípio passa despercebido.

       — Não há certo e errado de verdade?

       — Não há Certo e Errado absolutos. O único absoluto é A Vida É.

       — Então posso fazer tudo que tenho vontade e não haverá conseqüências? Sou livre para sair trapaceando, roubando e matando sem castigo, se a minha própria moralidade disser que está OK?

       — Claro que é livre para fazer tudo isso — disse. — Mas há conseqüências, que você pode achar que não são OK.

       — Por exemplo?

       — Por exemplo, seu feito permanecer na mente pelo resto de seus dias. Ou penar na prisão por sete a doze anos. Ou morrer estupefato: achou que sua vítima era indefesa e ela carregava uma arma. No mundo das aparências existem infinitas conseqüências, infinitos contrapesos para todas as decisões que tomar.

       — Para todas, sem exceção?

       — Sem exceção.

       Ele apertou o polegar com o indicador.

       — Para cada coisa desse tamaninho?

       — Tente. Qual escolha não tem conseqüências? Arremessei o aviãozinho pela terceira vez. Embicou para o chão, nivelou acima da grama e planou por uns dez metros antes de pousar. Nada mal, para três tentativas.

       — Existem conseqüências por ser um escritor?

       — Sim — falei —, posso dormir todos os dias até a hora do almoço.

       — Ora, vamos...

       Levantei e fui buscar o planador na grama.

       — Dickie, não entende? Existe sempre algum... resultado, bom ou ruim...

       — ...me faz feliz ou infeliz... — ele explicou a nós dois.

       — ...por fazer tudo o que decidimos fazer — completei —, por sermos quem escolhemos ser.

       — E a respeito de escrever como uma conseqüência ruim?

       Caminhando de volta, não pude decifrar sua expressão nem descobrir por que estava perguntando.

       — Escrevi um livro sobre regime, anos atrás, que, para alguns de nós, perder quatro quilos poderia ser uma boa idéia.

       — Essa é uma conseqüência ruim?

       — Não — expliquei. — O que me fez sentir mal foi que um de meus leitores concordou, adotou-me como uma autoridade e cortou a cabeça para perder peso.

       Seus olhos pareciam pratos.

       — O QUÊ?!

       — Ele não entendeu o que escrevi, Dickie, mas perdeu os quatro quilos.

       — Está brincando!

       — Não muito — falei. — Escrevi outro livro, sobre um homem que não tinha medo de morrer. Um jovem leu, decidiu que a morte também não o assustava e se matou.

       — Você está brincando.

       — Não. É verdade. — Sentei-me na grama, segurando o aeromodelo.

       — Por que ele fez isso?

       — Estava apaixonado, os pais da namorada não o aceitavam, e ameaçaram mandar a garota embora para que os dois nunca mais se vissem. Os amantes decidiram se matar, batendo com um carro em alta velocidade contra um muro. Ela sobreviveu, ele não.

       — Por que não fugiram juntos?

       — Boa pergunta.

       — Se quisesse me suicidar por algo, Richard, não hesitaria em fazer nada menos! E menos que morrer inclui alguns atos bastante drásticos.

       — Como o quê? — O que eu acharia drástico aos nove anos?

       — Pegar meu canivete de escoteiro, fósforos, um pouco de comida e acampar na montanha com ela.

       Recordei minha última escapada; vagueando além de minha cidade natal em meio à vastidão abandonada, o horizonte envolto em brumas todos os dias. Aguardei mais detalhes.

       — Se soubesse dirigir, iria a Montana com ela. Ou embarcaríamos como clandestinos num cargueiro para a Nova Zelândia.

       Com certeza, fugir era seu primeiro pensamento. Chegada a hora de decisões drásticas, pensei, eu ainda escolheria fugir.

       — Conversaria com os pais dela — continuou ele —, prometeria cortar a grama do jardim deles enquanto vivessem, mostraria meus elogios na escola e combinaria com cinqüenta amigos para visitá-los e repetir que sou um cara legal.

       Concordei.

       — Santo Deus! Os pais não são donos dela, são?

       — Não para sempre. Nem por um segundo, eu acredito, mas provavelmente não é o que eles pensavam.

       — Deixe-a mudar — disse ele. — Eu escreveria aos cuidados do primeiro amigo que ela encontrasse, em qualquer parte, e continuaria escrevendo até crescer o suficiente para ir buscá-la.

       — Poderia funcionar.

       — Trabalharia e mandaria dinheiro a ela, para me ligar sempre que quisesse. Planejaríamos ao telefone, e nos encontraríamos de novo.

       Esperei.

       — Paciência. Cedo ou tarde estaríamos ambos sozinhos, sem pais nem ninguém que pudesse impedir nossa união.

       Em cinco minutos o garoto tinha cinco planos para enfrentar o desafio dos pais da garota, sem suicídio. Um plano por minuto. Em um dia, pensei, o meu jovem leitor não poderia ter feito o mesmo?

       Se o pobre menino estivesse dependurado por uma corda, sobre um lago cheio de jacarés, e a corda arrebentasse, concordo que suas chances seriam limitadas. Mas mesmo a morte, hoje em dia, está longe de ser inevitável. Eu costumava nadar com jacarés na Flórida; eles não são agressivos. Se estiverem bem alimentados ou meditando enquanto você mergulha, é como em qualquer outro lago.

       Joguei o aviãozinho. Ele subiu, nivelou, voou alto sobre a montanha e sumiu de vista.

       Morrer só se faz uma vez na vida, pensei, desejando que meu leitor inquieto estivesse aqui, comigo e Dickie. Suicidar-se aos dezesseis anos não nos qualifica como vencedores do jogo que escolhemos participar.

       E entenda bem isto: se vai usar meu livro para justificar esse ato, precisa de minha permissão por escrito, por carta registrada, antes de fazê-lo. Caso contrário eu me irritarei como o diabo; qualquer leitor meu que esqueça que espaço-tempo é nosso esporte, curva-se demais a um mundo de espelhos.

       Fiquei calado por um momento, pensando na opção dele.

       — Como se sentiria, Dickie? Morre com a batida, sai de seu corpo todo esmagado sob a direção, e então percebe: Oh, não! Eu podia ter fugido para Auckland! Sou um tolinho ou não?

       — Tarde demais — disse ele. — Segundo a sua teoria, eu iria para o final da fila, nasceria de novo como um bebê ainda mais carente de ajuda que qualquer adolescente e recomeçaria: aprender a falar, a andar, a contar, ir para o jardim de infância, fazer como dizem os adultos porque sou pequeno e eles, grandes...

       Não é preciso ir para o fim da fila, pensei. Não temos que fazer nada. Queremos fazer tudo de novo, tentar acertar, consertar um ato impensado.

       Pela primeira vez desde que nos encontramos, o garoto que fui sentiu pena do homem que eu era.

       — Quais as conseqüências — perguntou ele baixinho — de escrever um livro que alguém não entendeu?

       — Senti um peso enorme, Dickie, e ainda sinto. Gostaria de falar com ele, mostrar que havia outras possibilidades.

       — Não pode. Ele está morto.

       Quem pode garantir?, pensei. Talvez até o próximo livro estar pronto, ele já possa ler.

       

       DICKIE DEIXOU-ME SOZINHO POR UM tempo, partiu, partiu sem se despedir.

       Sempre que algo terrível nos acontece, ou quando não vislumbramos uma saída, é reconfortante ouvir alguém dizer “tudo bem”, mesmo que seja nossa própria voz falando.

       Tudo bem é uma verdade cósmica, pensei, e senti a tensão indo embora. O suicida que nunca encontrei tem suas lições a aprender, e nós também. Tudo bem. Se não houvesse nada aqui para aprender, não valeria a pena pagar a entrada.

       Olhei para as montanhas, o ar claro como diamante por muitos quilômetros. Voando, não há distância. Pode-se ir a qualquer lugar na Terra: aldeias longínquas, picos isolados cobertos de neve, recifes de coral, nuvens em torvelinho. Nos dias de tempestade podemos visitar o sol, se quisermos. Confie nos instrumentos, não pare de subir apesar da neblina, da chuva ou do vento e logo chegará ao topo. É a lei cósmica, experimentada por pilotos no dia-a-dia.

       Hora de acordar, pensei, e entrar em um novo sonho.

       Ao me preparar para fazer a mudança, vi a cabeça de

       Dickie aparecer na encosta. Ele se arrastou bufando de volta, com o pequeno planador na mão.

       — Voou de verdade, Richard! Estava lá longe, desceu a montanha! Você realmente pode fazer aviões voar! Como consegue?

       — Prática — expliquei, escondendo a sorte com minha modéstia.

       — O nome é segredo? — disse, mesmo sabendo que eu não tinha a menor idéia sobre o que ele estava falando.

       — Qual nome?

       — O nome da sua religião.

       — Não tem nome, Dickie, nunca terá e não é uma religião. Pelo menos não de forma organizada. Religião organizada é Deus-numa-teia, a Grande Aranha no centro de centenas de doutrinas, rituais e crenças. Pessoas morrem nessa teia. Desorganização, por favor!

       Ele sorriu para mim.

       — Você tem uma religião desorganizada sem nome? Tem algo em que acredita. Você tem uma... o quê?

       — Tenho uma maneira de encontrar a verdade para mim e ainda não está acabada. É... é uma filosofia pessoal experimental e nunca terá um nome. Você sabe por quê.

       Sabia que ele desconhecia o motivo, mas merecia a cortesia, pensei, de tentar adivinhar.

       — Um nome é um rótulo, e assim que as rotulamos, as idéias desaparecem e em seu lugar surge a veneração aos rótulos? E ao invés de viver por um leque de idéias as pessoas morrem por rótulos, e a última coisa que quer dar ao mundo é uma nova religião?

       Eu o encarei.

       — Boa tentativa.

       — E sua religião pessoal particular sem nome tem um símbolo?

       — Claro que não. Um símbolo é tão ruim quanto...

       — Entendo — disse ele. — Mas não seria diferente, não seria bacana, só para você, ter um símbolo representando a sua maneira de pensar, para lembrá-lo de que ela não tem nome e nunca terá? — perguntou. — E é seguro, também. Algo que não pode ser traduzido em palavras dificilmente se torna um rótulo.

       — Belo pensamento — elogiei. — Mas o que importa é como eu uso a minha sabedoria, todos os minutos do dia; como a utilizo para recordar, no decorrer do jogo.

       Ele continuou preso à questão.

       — Se houvesse um símbolo em sua mente, o que seria? Não uma estrela, nem uma lua, nem uma cruz, aposto.

       Eu ri.

       — Não, Dickie, uma cruz não. Uma cruz sem o traço horizontal. Não gosto de traços.

       — Uma cruz sem traço é o número um.

       — Você matou! — exclamei. — Um em aritmética binária é Não-Nada, É em lugar de Não-É. Um é o número da Vida, não importa quantos sonhos.

       — Uma cruz sem o traço é o I maiúsculo.

       — Para me lembrar que o caminho sem nome é o meu modo pessoal de pensar, que não deve ser oferecido a ninguém que não o peça, e mesmo assim só se eu estiver com vontade de contar, o que só faço para você.

       — Uma cruz sem o traço é o i minúsculo.

       — Para me lembrar que há uma prova, uma questão esperando no final de cada sonho: Você expressou bem o seu amor desta vez?

       — É isso — disse ele. — I. O símbolo perfeito.

       — Sem símbolos. Não na sua vida.

       — Claro que na minha vida não. Só há uma vida.

       Ele segurou o planador e sentou na grama, a poucos centímetros do meu joelho.

       — Tenho de decidir, Richard, e não pode demorar muito.

       — Decidir o quê?

       Ele me olhou surpreso, como se eu devesse saber, e então compreendeu... eu não podia saber.

       — Decidir partir. Acho que preciso de alguns conselhos.

       Sua voz lembrava vagamente a de meu irmão, e me assustou um pouco.

       Dickie é um aspecto da vida real e irreal quanto qualquer Richard Bach, pensei, a morte é tão impossível para ele como para mim. E, além disso, eu gosto dele, temos confiança um no outro, somos amigos agora, e ainda há muito por ser dito. Por que essa história de partir?

       — Não sei se acontece com todo mundo ou não — prosseguiu ele. — Mas, com você e eu, há uma hora em que tenho de decidir se fico aqui por você ou desapareço de novo. Eu e o resto da sua infância.

       — Aprendi tão pouco, que pode pegar tudo assim rápido e ir embora?

       — Deixar-me trancado por cinqüenta anos não traz conseqüências?

       Como se ele tivesse jogado uma pedra na minha cabeça. Pisquei com o impacto, antes de perceber que não era uma vingança. Ele estava apenas propondo questões, avaliando opções.

       — Você está certo — disse ele. — Não aprendi tudo. Mas prestei atenção direitinho ao que você considera verdadeiro. — Ele me entregou o planador. — Obrigado, Richard.

       Dickie não é meu irmão, pensei. Como posso me sentir igual a quando Bobby morreu?

       — Você nunca mencionou nada sobre ir embora ou tomar decisões — falei. — Você é uma criança imaginária, um eu imaginário, não é real. Não pode partir.

       — Você é um adulto imaginário — retrucou ele. — Diz que é um de meus futuros. Confio em você, acredito, acho que está certo. Mas se vai mudar de idéia agora e dizer que quem não tem um corpo, você incluído nesse momento, não é real, então nada entendi do que disse. Quer começar de novo e me ensinar que real é o que vejo com meus olhos? Duvido muito disso, Richard, e olha que não sou adulto.

       Simpatize com qualquer coisa, sinta suas emoções no coração e estará unido pelo amor: a uma boneca, a um bicho de estimação, a um menino criado pela sua mente. Quando isso acontece, o que pode quebrar o elo de ternura?

       — Desculpe — eu disse. — Foi uma frase estúpida. Se é a hora de ir, é a hora. Estou agindo como uma criança.

       Ele me olhou curioso ao ouvir isso, e ergueu a cabeça para ter certeza de que eu não estava brincando.

       — Sabendo o que você me ensinou, posso começar uma vida tão diferente da sua que nunca adivinhará ter sido você que me lançou nela quando nos encontrarmos novamente face a face. Vai ser divertido.

       — É — falei. Um longo silêncio se seguiu. — Hora de seguir seu caminho, acho.

       — Será bom para você também — disse ele. — A maior parte do tempo você tem tentado esquecer sua infância, um peso morto. Nunca o deixei fazê-lo. Eu não morreria no porão, e não o deixaria prosseguir sem mim. Mas você abriu a porta. Um pouco tarde, mas abriu. Obrigado por chover no meu deserto.

       — Não vá — pedi. — Somos amigos.

       — Richard, você tem quase sessenta anos! Não quer continuar aprendendo? Não quer se livrar do excesso de bagagem? Sua infância é uma carga que eu sei como eliminar!

       — Eu tenho o quê? Tenho quase o quê?

       — Tem quase sessenta. Eu tenho nove anos, e você está cinqüenta anos à minha frente.

       Seria aquele sorriso uma declaração de independência?

       — Não acredito em nove, você sabe. Nem em sessenta. Não somos criaturas inseridas no tempo...

       Ele me olhou com paciência, como se fosse eu a criança.

       — Dickie — insisti. — Bolas de gude, xadrez, espadas, sabres ou floretes, em pistas ou quadras, piscinas ou campos. Escolha sua arena, escolha sua idade. Dezenove. Vinte e oito? Quarenta. Vou alcançá-lo em qualquer idade... Vou esmagá-lo! Quase sessenta! O que quer dizer com isso?

       Ele me observou por um instante, ainda sorrindo, mais amigo que criança. Aí algo aconteceu por trás de seus olhos, como se um despertador tocasse e sua hora tivesse chegado. Ele me agradeceu com a cabeça, reafirmou sua decisão.

       — Sessenta — disse ele. — São muitos anos para se carregar uma infância que mal recorda. Deixe-me fazer uma coisa por você. Deixe-me aliviar esse peso. E poderemos ir embora.

      

       LESLIE BAIXOU O LIVRO: Maneiras Delicadas de Sugerir Novos Lares às Pragas de Jardim. — O que tem em mente, doçura? — perguntou ela. — O que o preocupa?

       Eu estava deitado ao seu lado na cama, fitando o teto.

       — Nada. Só pensando.

       — Oh, tudo bem. — Ela retomou a leitura.

       Decidi não mencionar a decisão de Dickie antes de refletir bem sobre ela, antes de passar algumas horas revisando aquela estranha amizade, qual seu significado para mim, que outros futuros poderiam acontecer se ele decidisse não partir.

       Como ele prometera, sentia-me mais leve sem o peso da velha infância atado a meus pés. A dúvida de décadas havia desaparecido, aquela suspeita de ter deixado para trás algo terrivelmente importante. Com a ajuda dele conseguira ultrapassar essa época, e a obscura memória do passado sumira.

       — Uma aula rápida — disse Leslie, ainda lendo seu livro.

       — Quê?

       — Dickie. Aprendeu o que queria e foi embora?

       — O que a faz pensar isso?

       — Só um palpite. Mas teria de ser uma pedra para não captar suas ondas de tensão-por-falta-de-alguém.

       Será gostoso, um dia, ter uma aventura completa e bem elaborada para contar a minha mulher, com tranqüilidade, o começo, meio, fim e mensagem. Ainda vai acontecer, no dia em que o inferno se congelar.

       — Bem, sim.

       — Ele veio pegar ou dar-lhe alguma coisa? — perguntou ela como se já soubesse a resposta.

       — Ele queria aprender, e foi divertido ensinar. Agora ele sabe quase tudo o que eu sei, e deve decidir o que fazer com isso. Só faço parte de um de seus possíveis futuros.

       — Quer dizer que não significa nada mais para ele do que isso — falou, e a pergunta se tornou uma afirmação. — Sente falta dele?

       — Honestamente, não poderia dizer isso. Nunca o esquecerei, vou pensar sobre ele.

       Ela sorriu da minha evasiva.

       — Deu trabalho para ensiná-lo a racionalizar todo resquício de sentimento humano, ou ele também aprendeu isso rápido?

       — Oh, Wookie, não seja boba! Sou uma alma racional, não vou mudar agora: você ficaria perdida. Nós nos completamos perfeitamente, num vaivém equilibrado, não vá querer que eu jogue todo o meu peso para o seu lado. Corrija-me, se eu estiver errado.

       — Racional ou emocional — ela falou —, não importa. Resolvi ficar com você.

       — Obrigado, docinho. — Acheguei-me a ela, apaguei a luz, passei o braço sob seu travesseiro e fechei os olhos para dormir. — Ficaria muito frio sem você.

       — Está aprendendo, não é?

       — Não, docinho — murmurei. — Pela primeira vez em minha vida fui o professor e não o aluno.

       — Hum.

       Ela voltou para o livro e leu até eu quase ter dormido.

       — Da próxima vez em que o encontrar, diga a Dickie que eu o amo também.

      

       NAQUELA NOITE, ÀS TRÊS DA MADRUGADA, acordei sobressaltado, olhos arregalados na escuridão, um despertar com meses de atraso: Dickie se lembra da infância que eu esqueci! Ele se lembra desde o primeiro minuto!

       Duas extremidades de uma vida, em busca de um centro que nenhuma das duas poderia encontrar sozinha. Nos momentos que passamos sozinhos, pensei, tudo o que eu tinha a fazer era perguntar! Ele ainda guardava uma aventura, a chave para tudo em que passei a acreditar, a cena de que deveria participar uma vez, como adulto.

       Ele não pode ter partido!

       Apertei os olhos, me obriguei a relaxar, trouxe seu rosto de volta à minha mente, claro e brilhante, e mergulhei nele.

       Um momento depois, estava numa montanha onde a floresta terminava num prado, uma galáxia de minúsculas flores reluzindo em espiral ao meu redor. De um lado, lá embaixo, havia um oceano quase tão escuro quanto o céu, e um rio de diamante resplandecendo em sua direção. Do outro, até onde se podia enxergar, montes e vales claros e puros, se revezando até o horizonte. Deserto e imóvel, o Éden revisitado.

       Diferente do topo da montanha que eu conhecia, mas ainda familiar. Onde já teria visto antes? Ele tinha de estar por perto.

       Encontrei-o sentado em cima de uma pedra, o mesmo garoto, brincando com o planador. Dickie o arremessava pelo céu com a miniatura de um piloto a bordo, sobre a grama, subindo ao encontrar uma corrente ascendente junto da encosta.

       Uma visão surpreendente. Como ele fazia isso? Não esperei para ver.

       — Você se lembra da minha infância! — falei, sem dizer olá. — Do começo ao fim! Não é?

       — Claro que sim — respondeu. — Só porque resolveu esquecê-la não quer dizer que esteja morta.

       — Você se lembra de estar nascendo!

       Desde o início, pensei, ele tinha a resposta. Dickie conhece o que nos transforma de espíritos serenos de vivida luz em gritos infantis de eu-nunca-pedi-por-isto. A ligação que nunca encontrei e não conseguia imaginar.

       — Preciso dessa lembrança — eu disse. Um raio de fingida surpresa.

       — Achei que nunca perguntaria.

       Ele buscou no bolso da camisa uma pequena cúpula de cristal já da cor do âmbar, pouco maior que um drops de limão.

       — Feita para durar para sempre. Nada pode abri-la a não ser seu desejo de saber. — Mostrou-a para mim. — Cuidado. Vai quebrar quando você a segurar. Tem certeza do que quer fazer?

       Peguei-a de suas mãos. Mais leve que casca de ovo, a pequena cúpula. Por que não, suave panorâmica cheia de paz do meu primeiro dia na Terra, com seu mistério envolto por pétalas de rosa? Tão delicada!

       Mal toquei a superfície etérea com a ponta do dedo e ela partiu-se em minhas mãos, uma hora antes de meu nascimento.

      

       NESSA HORA, EU ME LEMBRAVA, era realmente uma grande idéia.

        Aventura! Romance! Reunido com meus amigos, me atirando na última batalha contra o círculo chamejante dos meus inimigos preferidos. Desta vez eles vão se acovardar! Pior desfecho possível: um arranhão ou dois se esquecer quem eu sou por um minuto.

 

       Improvável, o arranhão. Eu me lembro! Nunca mais os velhos desastres quando perdia minha sabedoria, lutando a vida inteira contra fantasmas, reduzido a pó, perguntando na hora da morte a razão de ter nascido.

       Nunca mais. Os poderes que aprendi, nenhum inimigo pode igualar. Vida no espaço-tempo. Sou tão bom nesse jogo, tão completamente invulnerável a qualquer arma, totalmente seguro do que sei, que vou planar sorrindo através do círculo de dragões que me pulverizou tantas vezes antes. Descansado, recuperado, armado com um conhecimento inabalável da realidade ao invés da minha velha crença em ficções. O que poderia me atingir agora?

       Destemido não é a palavra... isto vai ser DIVERSÃO!

       Uma última vida, a rodada final do jogo, para provar que não é difícil vencer, mostrar que aprendi definitivamente a máxima sobre a qual todo triunfo real é construído.

       Lembre-se de quem você é, cowboy, nunca acredite no que vê ao seu redor e isto vai ser Sopa! No! Mel!

       Com essas armas, sem pensar em dragões, cruzei a margem e caí na escuridão.

      

       Como era estranho nascer!

       Horas atrás eu estava seguro, flutuando alegre, sistemas em funcionamento perfeito na temperatura adequada. Agora minha mente era a sala de controle de uma central nuclear em emergência. Centenas de alarmes de brilhante vermelho sangue piscando em terror: respire já ou morre; cair mata; fogo mata; água mata; inimigos na noite; cachorro manso come bebês.

       Tantos alarmes disparando ao mesmo tempo e agora estou totalmente VUL-NE-RÁ-VEL, soletrei impotente, não consigo nem mesmo gemer a palavra “Socorro!”

       Uma pessoa por perto. Mamãe, detesto ser egoísta, mas será que pode ficar por perto até passar o perigo, até eu estar armado e protegido, até mais ou menos os trinta anos, por favor? E por falar nisso, me conte: o que estou fazendo aqui? Parece que perdi a memória... escolhi esta vida ou foi você? E será que dava para me explicar por quê?

       Ela tinha respostas, mas minhas perguntas saíam como gritos, e calma-calma pequenino não adianta muito, quando o vento lá fora está a trinta abaixo e eu começo a tremer com 68 positivos. A única alternativa é fechar os olhos, estabilizar os sistemas e dormir.

       O sono leva de volta a colinas verde-âmbar, pulo e não caio mas flutuo, com chuvas de fogos de artifício espalhadas ao vento. Dormir é como voltar para casa, esperto de novo num mundo sem palavras, professor e aluno ao mesmo tempo, sentido e razão em tudo.

       VOCÊS NÃO ACREDITARIAM!, avisei a eles. Da próxima vez que eu disser isto vai ser uma diversão, outra vida no espaço-tempo, daria para me segurar com uma rede? Vocês não perceberam que estava LOUCO? Eles o acertam com todos os limites de uma só vez, assim que chega à Terra... limites de tempo e de espaço: estou separado e diferente de todos os outros, encerrado num molde gelatinoso de uma PEQUENA e FRÁGIL criatura, uma miniatura desajeitada e cabeçuda num corpo como camisa-de-força, um anão comparado a todos os outros objetos. Não consigo estabelecer contato com outras mentes, nem voltar para casa, nem voar, e a gravidade é enorme, sou mais pesado que elefantes de concreto, mais frágil que borboletas transparentes, tudo em toda parte é aço e gelo, adagas na minha garganta, exceto mamãe e o cobertor, regras que não adivinho, a cortina subiu, a peça começou e tenho de criar meu papel com palavras que não conheço e com uma mente que parece um bolo de carne, tentando usar uma boca que não diz nem mesmo deixe-me sair daqui.

       Espaço-tempo é bastante maluco na teoria... na prática é confusão dobrada, um minuto para os adultos é dias para mim, tum-tum-tum: o universo está se partindo em mil pedaços a cada minuto e ninguém percebe, atados a mil escolhas reduzidas a apenas uma, indo dormir com um passado imutável e um futuro sem surpresas.

       Isto é uma farsa, não é? Irreal, eu sabia, mas isto é como uma vingança, um desafio impossível: transformar esse corpo e mente de criança café-com-leite em alguém que, na melhor das hipóteses, chegará a refletir com dificuldade sobre quem eu sou e, na pior, será um graveto nas cataratas, que nunca chega às terras secas, rolando sem esperança pelas quedas-d'água, tentando adivinhar o que se passa, quem consegue se lembrar em meio a essa confusão?

       Fui louco de escolher isso, mas posso tentar: o pior que pode acontecer é virar jantar desse cachorro, e então estarei fora desse universo traiçoeiro, de volta ao lar.

       Ao acordar, nem sequer me lembrei.

      

       Eu, que era um observador, acabo de sair do mundo dos fantasmas — os que eu vigiava podiam me vigiar de volta. Que menino bonitinho, diziam à minha mãe, agradecidos até a alma por não terem mais a minha idade. Ele é tão sortudo! Que belos olhos grandes... inocentes, felizes, seguros.

       Errado, errado, errado.

       Estava lutando a maior batalha de minha vida nessas primeiras horas, e perdendo: filas e filas de dominós caindo.

       — Eu sou — disse ao mundo — uma expressão individual de vida infinita, que nunca nasceu nem morreu, e optou pelo espaço-tempo como escola e playground. Vim aqui pela diversão, para encontrar novamente velhos amigos, para desafiar formidáveis e queridos inimigos...

       Como um chute no rosto com uma bota de ferro, assim eram meus inimigos. Não usavam palavras, nem precisavam.

       Dor! Bem-vindo ao espaço-tempo, Terra-Sem-Alternativas. O que você vê é o que existe, cara. No momento é uma grande mancha, mas quanto melhor enxergar, pior será. Eis o frio, eis a fome, eis a sede, eis seu corpo, que é tudo o que tem. Nenhuma vertigem de vida infinita. O que o impede de morrer é um casal de mortais que você mal reconhece e que nem têm certeza se querem ser seus pais.

       — Eu lembro da vida antes de vir para cá! Não era preciso respirar nem comer, não tinha corpo e vivia! Escolhi meus pais e eles me escolheram! Eu me lembro...

       Você recorda sonhos! Lampejos no seu cérebro vazio de bebê. Mostre-nos essa vida, aponte onde ela está. Não pode fazê-lo? Tente com mais empenho! Esqueceu? Tão rápido?

       Tente assim, criança... segure a respiração por três minutos, ande pelo gelo por cinco, durma na neve por dez, abandone sua mãe por um dia. Então, venha nos contar sobre Vida Infinita!

       Mente nebulosa de recém-nascido, derrotada a cada minuto. O mundo físico comanda o tempo, não há como pensar. O mundo está lutando em seu próprio campo, só é verdadeiro o que ele vê com seus olhos e toca com seus dedos. Só se aceitam provas físicas, todo o resto é porcaria.

       Perdi o equilíbrio, de volta à cerca. Crianças não sabem que extremidade segurar de uma espada. Estou em minoria e sendo retalhado pela mais tediosa arma desse exército cruel, brincadeira de criança, corte a cabeça desse pequeno rebelde antes que ele aprenda a enxergar.

       O mundo é pedra e granito, machuca. Eu sou fitas e sangue, resisto, e mamãe nem sabe que luto por minha vida.

       — Está tudo bem, pequenino, não chore. Está tudo bem...

       Mãe!, gritei, sem palavras. Ajude-me! Nem toda conversa precisa de palavras, e às vezes as mães entendem mais quando seus filhos choram. Ela afagou a minha cabeça.

       — Pequenino. Os dragões são muitos e mentem. Você pode escolher. Duas alternativas. Uma: eles são falsos, não preste atenção no que dizem, nos limites que querem impor. Feche os olhos, liberte seu espírito, recorde quem você é, transcenda o espaço, transcenda o tempo, nunca nasceu, nunca morrerá...

       Eu relaxei.

       — ...e o mundo físico vai levantar o punho e comemorar a vitória — Vejam! Morto! Todos os olhos vêem seu pequeno corpo imóvel, todos os dedos checam a falta de pulsação e assinam um certificado de morte.

       Ela me segurou perto de seu rosto.

       — Outra alternativa: ganhe perdendo. Antes de quebrar suas cercas, e será preciso quebrá-las se for ficar, construa um esconderijo secreto para guardar sua verdade. Proteja sua vida infinita, que escolheu esta brincadeira; proteja o mundo que existe para você e por suas próprias razões; proteja seu propósito e sua missão de fazer o amor brilhar de maneira divertida, nos momentos que achar mais dramáticos. Os dragões são seus amigos!

       Ouvi minha mãe recordando, sua existência como um prisma entre a luz do sol de onde vim e este lugar de espelhos escuros distorcidos, com ataques ao anoitecer.

       Ela fitou meus olhos arregalados e espantados.

       — Escondeu bem seu segredo? — continuou ela, cochichando em meus ouvidos. — Ponha uma cúpula de cristal, agora, no centro do seu ser, mais profunda e forte que o espaço e o tempo, construa um escudo que nada consiga quebrar... Mas mamãe, pisquei, ouvindo, divagando. Mesmo você está no espaço-tempo. Está aqui e não lá. Agora está a meu lado mas um dia vai morrer...

       — É certo — murmurou. — Ouça seus dragões. Estamos presos no espaço-tempo. Vou morrer, assim como seu pai e seus irmãos. E ficará sozinho. Não ligue. Renda-se. Deixe cair sua cerca, deixe ruir, pedras transformadas em pó. Embeba-se no mundo, aprenda suas mentiras, nade nelas, não resista. Mas não esqueça do segredo que guarda consigo e um dia, daqui a vinte anos, pequenino, daqui a sessenta anos, encontre essa verdade e ria...

       Confiei nela e não resisti, rendi-me aos dragões dias após meu nascimento, assisti minha cerca transformar-se em ruínas por gigantescas ondas azuis: sem alternativas, sem questões, uma vida miseravelmente curta e injusta, despropositada. Não somos avezinhas prontas a alçar vôos altos, somos lemíngües sem cérebro arremessados contra os penhascos do acaso, sem motivo. Bem-vindo à Terra, estúpido.

       — Ei, oi! — eu disse. — É ótimo estar aqui!

      

       Assim é melhor, meus dragões sussurraram, dançando perto de mim. A vida é muito fácil quando não se opõe resistência. Você não tem nada a relembrar, só a aprender.

       Seus olhos estão tão fechados — abra seus olhos, agora.

       Seu corpo está tão relaxado — contraia seu corpo, agora.

       Sua mente está tão dispersa — concentre sua mente, agora.

       Sua alma está tão segura — entregue sua alma, agora.

       Eles repetiam a cantilena sem parar.

       Você está dormindo como uma pedra, no sono mais profundo. Cada palavra que murmuramos o traz mais perto de um barulhento despertar. Não imagine, não questione.

       Tem algo em mente. Fale, e ao fazê-lo vai acordar ainda mais depressa.

       — Obrigado — eu disse. — Tanto a aprender!

       Bom. Sim. Mortais adoram aprender, e nosso presente para você será que sempre amará aprender. Guarde isto: Aparência é realidade. O real é aquilo que pode ser visto e tocado, ouvido, cheirado e saboreado. O pensamento não é real, o que deseja não existe. Teste Número Um: O que é a realidade?

       — Aparência é realidade.

       Ótimo. Excelente aluno. Durma bem. Há muito que aprender.

       A realidade muda com o tempo.

       Os átomos formam, regulam e terminam com a vida.

       Destino é acaso.

       Algumas pessoas têm sorte, outras não.

       Viver é ganhar, é vencer, é ser alguém; morrer é perder, desaparecer, tornar-se ninguém.

       Teste Número Dois, um pouco mais difícil, agora: O que muda a realidade?

       — Tempo — respondi. — E espaço.

       O correto é tempo. Por que disse espaço?

       — Porque a realidade é diferente em lugares diferentes. Bom! “Tempo” é a resposta, mas espaço também é certo.

       Já entendeu! Está pensando criativamente. Compreende a criatividade?

       — Sim. Nada existe até ser inserido fisicamente no tempo e espaço. Antes disso é irreal. Após ser destruído é inexistente. É tudo questão de tempo.

       O que há além do espaço?

       — Nada.

       O que permanece além do tempo?

       — Nada.

       Sua mãe vai ensiná-lo a andar. Vai sempre atravessar portas e nunca paredes?

       — As paredes são os limites. Ninguém as atravessa porque são sólidas, e não posso passar por algo sólido sem me machucar. Mamãe e papai não atravessam paredes, apesar de grandes e poderosos. Ninguém pode mais que os limites do espaço e do tempo; eu, menos ainda.

       Bom. Tudo é limitado. As fontes são limitadas. A comida, a água, o ar, os abrigos e as idéias. Quanto mais usa, menos sobrará para o resto. Os outros são mais velhos, mais fortes e sabem mais que você, chegaram primeiro, são veteranos. Por isso, lembre-se:

       Crianças devem passar despercebidas, e não devem falar. Não podem incomodar os adultos.

       Crianças não pensam, ou, se pensarem, o resultado deve ser uma estrutura instável e rudimentar, um fracasso retumbante, pois suas mentes são túmulos vazios. Uma criança não consegue imaginar nada novo, diferente ou significativo.

       Fique no seu lugar. Sempre reflita: o que as pessoas dirão? Não aborreça ninguém porque, frágil como teia de aranha, nos seus primeiros anos de vida até o mais covarde fracote pode matá-lo com as mãos nuas.

       Força é poder.

       Ódio é o único aviso que receberá.

       Medo não é defesa.

       Teste: Qual o único mundo que sempre foi e sempre será?

       — Aquele que vejo com meus olhos. De onde veio?

       — De lugar nenhum, e é para onde vou. Não há propósito.

       Bom! Origem é sorte. Corpo é máquina: carbono, hidrogênio, oxigênio, queimando com combustível orgânico. Corpo controla a mente, a atividade elétrica aleatória do cérebro.

       Só há uma realidade física, existindo independente da sua consciência, que permanece separada da sua mente e de sua vida. Seu pensamento tem efeito zero no reino material. Realidade não-física é nada.

       Rejeite essas idéia e morrerá. Perguntas?

       — Ensine mais.

       O mundo tem muitos problemas, desde antes do seu nascimento, e não precisa de mais. Ninguém liga para quem você é ou o que você pensa. Todas as idéias importantes já foram pensadas, todos os livros importantes estão escritos, todos os belos quadros estão pintados, todas as descobertas realizadas, todas canções compostas, todos os filmes produzidos, todas as conversas encerradas. Todas as vidas importantes já foram vividas. Você não importa e nunca importará.

       Teste: Quem se importa com você?

       — Eu me importo comigo!

       Errado. Mais uma tentativa: Quem se importa com você?

       — Ninguém, e é egoísmo gostar de si mesmo. Há bilhões de pessoas no planeta, cheguei sem convite, os outros me deixarão ficar se eu for quieto e obediente e comer com moderação. Quieto acima de tudo.

       Correto. Somos indivíduos separados. O conhecimento transita em palavras e números. Você nada sabe a não ser que alguém ensine. Os mais velhos são sempre mais inteligentes que você. Os maiores, sempre mais poderosos.

       Os valores se estendem numa escala objetiva de ruim-pior-o- pior de todos e bom-melhor-o-melhor de todos. Há Certo e Errado, Bom e Mau. Bom e Certo merecem viver. Mau e Errado devem morrer.

       Você não vive para si mesmo, vive para agradar os outros e ajudá-los.

       Há inúmeras nações e línguas no mundo. Você nasceu na melhor delas, falando o melhor idioma, com o melhor sistema político e o melhor exército. Obedeça às ordens que recebe de seu país, de todos os níveis de autoridade, lute e morra por sua pátria, para que seja sempre Número Um.

       Os mocinhos vencem, os bandidos perdem.

       — Mas se todos morrem, mesmo as pessoas boas perdem, no final?

       Os bons vão para o céu e são felizes.

       — O céu não pode ser visto com os olhos, então não é real. Foi o que disse!

       O céu é uma mentira, para esconder que a morte é uma derrota. Acredite na mentira.

       Justiça é quando uma pessoa má morre, tragédia é quando morre alguém bom, a morte é o fim da vida.

       Nem tudo tem resposta. Não se pode conhecer o universo. Nada importante faz sentido.

       — Como isso tudo pode ser verdade? É verdade. É a realidade.

       — Claro.

      

       Não haviam se passado dez horas desde minha chegada e eu já estava desarmado. A chave que eu conquistara, ao preço de milhares de vidas, enterrada naquela massa profunda de chumbo, na segurança de aceitar os conceitos do senso comum. A vida é o acidente que acontece antes de escorregarmos e morrermos.

       Lá no fundo, um pensamento consciente: o mundo não precisa de mais um tolo. Por que estou tão desesperado para ser um joão-ninguém de novo, o que posso ganhar com essa hipnose de ver é crer, de desaprender tudo o que sei que é verdadeiro? Estou crescendo como todas as outras crianças do planeta, engolindo tudo o que mandam, e daqui a pouco será tarde demais para relembrar. Eu me lembro ainda? Por que estou aqui?

       A batalha acabou. O bebê dorme.

      

       — O QUE SABIA ANTES DE NASCER não está perdido. — Sua voz era uma brisa suave no alto da montanha. — Apenas escondido até ser testado, até o momento certo. Quando precisar, com certeza encontrará um belo modo de encontrar.

       Sentei-me perto dele na beirada da pedra, queixo nos joelhos, tentando decifrar o que mudara nele.

       Observei os olhos de Dickie, e então, por quase um minuto, sem dizer uma palavra, me perguntei como sabia tanto quando era ele. Eu era um garoto brilhante, isso é certo, mas ainda tinha muito a aprender, não era tão brilhante.

       E então cheguei a uma conclusão, com a rapidez de uma lesma, muito muito tempo depois.

       Dickie também me observava e devolveu meu olhar sem pestanejar, lendo meus pensamentos, e ah, tão lentamente que o canto de sua boca deslocou-se para o mais leve sorriso.

       — Deixe-me adivinhar — disse a ele. — Você sabia o tempo todo, não é? Queria que eu relembrasse tudo o que sei, não por você, mas por mim. Todos esses meses, cada minuto com você foi um teste. Ele não confirmou nem negou.

       — Pye?

       Após alguns segundos ele confirmou, balançando a cabeça.

       — Donald Shimoda?

       De novo, quase imperceptível.

       — Fernão Capelo Gaivota.

       O sorriso sutil permanecia, assentindo estático, os olhos grudados nos meus.

       Um pensamento repentino assustador, mas não podia deixar de perguntar:

       — Dickie, você não é Shepherd, também; escreveu um livro para eu assinar, um bom plano de saúde é dinheiro no banco?

       O sorriso se alargou.

       Puxei os cabelos, sem saber se ria ou chorava.

       — Garoto, puxa vida! Não se importa? Isto é trapaça! Ele se divertiu ao olhar para mim, a alma sob a máscara da criança que fui.

       — Como a vida pode trapacear alguém que tem armas poderosas? Como a vida pode usar meios-termos com quem já passou por todos os testes? A questão é relembrar!

       Eu deveria ter adivinhado, pensei. Quando vou aprender a adivinhar o que não imagino que vai acontecer?

       — Se quiser encontrar aquilo que acredito saber — eu disse —, nunca lhe ocorreu apenas perguntar?

       Ele me ironizou com seu sorriso.

       — E preencher declarações de responsabilidade em três vias, ver você censurar o que sabe para não causar confusões e alguém bater a noventa milhas por hora num muro? Não quero suas precauções, Richard, quero a sua verdade! Nós não...

       — POR QUÊ? Não sou uma gaivota mais rápida que o pensamento, não sou o Redentor do mundo, não sou um futuro alternativo multidimensional, em forma de luz, que conhece todas as respostas para todas as perguntas já formuladas! Por que se preocupa comigo?

       — Qual o espanto, Richard? Você não é um náufrago numa ilha perdida do planeta. Acha que não teve sorte em encontrar suas outras vidas e aprender com elas? Nós. Você é nós.

       Ele fez uma pausa, procurando as palavras que eu entenderia.

       — Nos escolheu como professores? Nós escolhemos você, também. Se preocupa com o que aprendeu? Nós também. Acha que veio à vida por nos amar? Nós amamos você também!

       Segurei firme com minhas mãos na pedra. Por que era tão duro saber que aqueles que amamos também nos amam?

       — Você nunca partiu, não é? — falei por fim. — Mudou seu rosto, ficou invisível, mas estava sempre aqui. Até nos piores momentos, no divórcio, na falência, no fracasso e na morte?

       — Especialmente nos piores momentos.

       Como pude ser tão estúpido? Durante as épocas mais difíceis da minha vida, ela sempre estava lá, uma segurança muda e vigilante: Há uma razão por ter escolhido o que está acontecendo ao seu redor. Resista, Richard, aja da melhor maneira que souber, e em mais um pouquinho vai descobrir a razão. Quem ousa dizer algo assim, que ousa nos relembrar a não ser nossos mestres interiores, intocados pelas aparências?

       Meses após testar-me com essas questões, Dickie não tinha mais nada a perguntar. Meu exame terminou em silêncio, só com mais um contato:

       — Dickie — concluí —, você é ele, não é? Você é o capitão da minha nave espacial escondida, esperando para me levar para casa?

       O mais leve dos sorrisos.

       — Errado — sussurrou ele. — É você o capitão.

      

       A TRIPULAÇÃO QUE CONVIDAMOS A viajar em nossa nave interior compõe-se, é certo, dos exploradores, atiradores, timoneiros e conselheiros, que se tornam nossos amigos para toda a vida. Nós os encontramos quando estamos prontos ou necessitados ou curiosos em contatá-los para — no momento em que ousamos imaginar que existem — pedir-lhes ajuda.

       Duvido que esta tenha sido a última vez que encontrei Fernão Capelo, Donald Shimoda, Pye ou Shepherd, apesar de não ter a menor idéia do que eles estão preparando para o próximo teste, daqui a meio minuto ou a centenas de anos. E não vou perguntar.

 

       Tenho certeza de que não é meu último encontro com Dickie. Ele observa o mundo exterior pelos meus olhos nesse exato momento, vê seu passado e futuro vertidos em caracteres na tela de meu notebook.

       O garotinho que queria saber tudo o que eu tinha aprendido encontrou o seu lar. O prisioneiro que eu trancara naquela cela escura vive agora em um lugar com uma bela vista, alto em meu espírito, uma torrente de questões jorrando:

       — Richard, quem você pensa que é?

       — Quem será em seguida?

       — Quais valores está escolhendo como estrela-guia, e quais está deixando escapar?

       — O que está fazendo aqui, capitão, o que preferia estar fazendo e por que não o faz?

       Mostre-me o que aprendeu do amor.

       Esperamos todos esses anos para encontrar alguém que nos compreenda, pensei, alguém que nos aceite como somos, alguém com o poder mágico de fazer raios de sol brotar das pedras, que nos traga felicidade e não julgamentos, que enfrente nossos dragões à noite, que nos transforme naquilo que queremos ser. Só ontem descobri esse Alguém mágico, na face que vi refletida no espelho: somos nós e nossas máscaras caseiras.

       Todos esses anos, e afinal nos encontramos.

      Quem diria.

 

                                                                                            Richard Back

 

 

                      

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