Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FUGITIVAS / V. C. Andrews
FUGITIVAS / V. C. Andrews

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Fugitivas é o quinto volume da Série Órfãs, último romance que encerra a série iniciada com Borboleta, onde a autora narra as peripécias das quatro adolescentes órfãs, seus sucessos e fracassos, e o encontro providencial das quatro no lar de adoção Lakewood House.

"Um por todos e todos por um" era o lema de Brooke, Crystal, Raven e Borboleta. No triste lar de adoção administrado por Louise e Gordon Tooey, pelo menos as meninas amavam umas às outras, chamando-se de "irmãs", e, juntas, conseguiam esquecer o passado e desfrutar a vivência efêmera de um verdadeiro lar.

Mas eis que descobrem um segredo ainda mais assustador do que o ruído das pesadas botas de Gordon ecoando no piso de madeira. Abalada a frágil esperança de uma vida melhor, resolvem escapar da única forma que lhes é possível: num carro roubado. Sonham ansiosas por acordar no dia seguinte de manhã num outro lugar, mais acochegante e feliz, onde possam vislumbrar a perspectiva de uma vida melhor.

Cada uma tem um sonho. Raven quer tornar-se cantora; Borboleta quer dançar; Crystal acalenta planos de cursar uma faculdade; e Brooke tem esperança de encontrar a mãe na Califórnia.

Na estrada desimpedida, à medida que se afastam de Nova York sentem que a tristeza diminui, e a gentileza das pessoas lhes acena como algo seguro e real.

Mas a estrada é um lugar perigoso e logo ficam sem dinheiro e mais vulneráveis do que nunca. Inteiramente sós sob a amplidão de uma estrada que parece sem fim, elas podem questionar somente umas às outras se convém desistir de seus sonhos ou se realmente estão a meio caminho de uma vida segura e feliz.

 

 

 

 

Abri os olhos abruptamente, ao som abafado de choro passando pelas paredes. Os quartos se encolhiam ao tamanho de closets quando se punha as escrivaninhas e cadeiras, junto com uma cômoda e duas camas, e mais uma mesinha-de-cabeceira entre elas. Para se ter o máximo de espaço possível, as camas ficavam encostadas na parede. Meu ouvido quase se tornava parte do papel de parede quando eu dormia.

Duas das novas crianças, que chamávamos de Não-Nascidos, dormiam no quarto ao lado. Choramingavam como cachorrinhos à noite. Nós os apelidávamos de Não-Nascidos porque vir para cá, um lar de adoção provisório, era como nascer de novo, só que desta vez para viver no limbo. Haviam chegado ontem e passavam sua primeira noite na Lakewood House, o lugar que Crystal, Borboleta, minha companheira de quarto Raven e eu batizáramos de Casa do Inferno.

As informações sobre os novos tutelados do Estado, como os órfãos eram chamados, espalhavam-se por aqui mais depressa do que geléia num pão fresco. Quando se tratava de descobrir alguma coisa sobre os Não-Nascidos, todos se tornavam de repente estudiosos aplicados.

Se você sabia de alguma coisa, sentia-se quase que na obrigação de partilhar com eles.

Segundo Potsy Philips, um órfão que tinha o hábito de azucrinar cada nova criança que chegava ao nosso lar de adoção temporário, aqueles Não-Nascidos não tinham pai. Haviam passado vários dias sozinhos com a mãe morta antes que alguém os notasse ou se importasse com eles.

Que novidade havia nisso?, pensei. Há anos que estávamos ali sem que alguém notasse ou se importasse conosco. Na verdade, não é bem assim. Nós nos importávamos uns com os outros. Nem todos se davam bem, mas tive sorte de encontrar aqui amigas de verdade, minhas irmãs... Raven, Crystal e Janet, a quem chamamos de Borboleta, por ela ser muito franzina. Todas chegamos na casa a-intervalos de poucas semanas e nos tornamos grandes amigas. Quando sentíamos vontade de chorar, ou as esperanças ficavam tão baixas que não podíamos sequer imaginar que um dia voltassem a subir, ou sempre que tínhamos notícias felizes para partilhar, sabíamos que podíamos contar com as outras. E isso significa mais do que qualquer coisa para nós.

Continuei deitada na cama, pensando se os novos órfãos teriam a mesma sorte, mas logo percebi que já estava quase na hora de levantar e brilhar. Louise Tooey, nossa mãe de adoção, bateria nas portas dentro de dez minutos. Se você não se levantasse e se vestisse depressa, o marido de Louise, Gordon, poderia subir em seguida, as botas ressoando como malhos nos degraus e tábuas do assoalho, ao se encaminhar para seu quarto. Se você permanecesse na cama, ele era capaz de arrancar as cobertas com um movimento brusco. Olhava furioso para a pessoa, como um enorme abutre, os olhos arregalados, esbugalhados, os lábios grossos retraídos para mostrar os dentes.

— Onde pensa que está? Num hotel? Quer o café da manhã servido na cama? Tenho de interromper meu trabalho para vir aqui? Vai ganhar dez deméritos!

O rosto bronzeado tornava-se vermelho-escuro, os músculos e veias no pescoço pareciam grossos elásticos prestes a se partirem. Seu nome subia de posição no Quadro de Honra, um enorme painel de cortiça pendurado na sala de jantar. Quando você chegava a vinte deméritos, tinha de ficar de castigo no quarto, com mais um dia para cada cinco deméritos além dos vinte.

Uma simples olhada nos quartos explicava por que era uma punição tão rigorosa ficar de castigo ali. Não tínhamos permissão para pendurar qualquer coisa nas paredes, nem mesmo cartazes ou retratos. Supostamente, era para proteger o papel de parede, que parecia prestes a descolar por completo a qualquer momento e a se jogar na lata de lixo por iniciativa própria. E já começara a se soltar em alguns pontos. Também não se podia ter rádios ou aparelhos de CD, porque as paredes eram finas demais. Se alguém ouvisse música, por mais baixo que fosse, incomodaria os outros... especialmente Gordon e Louise. Se você era bastante afortunado para chegar com um gravador ou outro aparelho similar, tinha de guardá-lo no depósito. Só podia usá-lo durante o período de recreação, precisando até assinar o registro de entrada e saída de seu próprio aparelho!

Todos os quartos tinham duas janelas. Os quartos dos residentes mais antigos, como nós quatro, ofereciam uma vista do lago. Não havia cortinas, apenas persianas desbotadas, quase todas com defeito. Tínhamos de usar um lápis no rolo para mantê-las na posição. Fôramos informadas de que as persianas eram outrora de um amarelo-vivo, enquanto o papel de parede era de tonalidade branca, com círculos azuis que pareciam violetas recém-desabrochadas. Agora, as paredes tinham a cor de um ovo cozido de duas semanas, ou seja, cinza-sujo, enquanto os círculos estavam mais para violetas mortas, desbotadas e ressequidas, iguais àquelas guardadas entre as páginas de um diário.

Apenas para nos fazer apreciar a sorte que tínhamos por estar ali, Louise gostava de descrever a Lake-wood House como fora no passado, quando seus pais e avós a mantinham como uma pousada. Ela parava para verificar todos na sala de recreação, corria o olhar ao redor e suspirava, os olhos marejados de lágrimas, enquanto contemplava os velhos assoalhos de carvalho, as paredes gastas, a tinta descascando no teto.

— Nos velhos tempos, crianças, esta era a pousada mais procurada no norte do Estado de Nova York, aninhada entre duas montanhas, com um lago alimentado por água de fonte, tão cristalina que se podia divisar os olhos dos peixes nadando lá no fundo.

Algumas das crianças menores podiam sorrir. Parecia um lugar maravilhoso. Agora, no entanto, o lago era salobro, cheio de algas, com lodo no fundo, um lugar proibido para todos nós. Não se podia pescar. O velho cais estava apodrecido, com dois botes furados quase que totalmente submersos ao lado. Se Gordon surpreendia alguém a menos de três metros da beira do lago, o resultado eram vinte e cinco deméritos, com um dia de confinamento imediato. Ninguém sabia qual poderia ser a punição para uma segunda violação dessa norma. Gordon deixava isso para nossa imaginação. Talvez ele pusesse uma criança dentro de um barril.

Havia um rumor de que Louise e Gordon guardavam velhos barris de conservas vazios nos fundos da casa. Se o comportamento de alguma delas era muito ruim, eles a metiam num dos barris e o tapavam, deixando apenas alguns buracos abertos para a respiração. A criança ficava apertada ali por dias, tendo que urinar e fazer as necessidades na cueca ou na calcinha. Quando o castigo terminava, o barril era virado de lado e rolado por dezenas de metros. Só depois ela era retirada, lacrimejando e tonta. A maioria dos Não-Nascidos menores quase que se mijava na roupa só de ouvir a história. Quando, em seguida, viam Gordon avançando pelo corredor, os olhos castanhos-avermelhados esquadrinhando a sala e as crianças, à procura de qualquer comportamento indevido, elas tremiam da cabeça aos pés e prendiam a respiração.

Gordon era suficiente para proporcionar a qualquer garoto ou garota pesadelos para o resto da vida. O fato de ele e Louise haverem se qualificado como pais de adoção é, como diz Crystal, um testemunho eloqüente e conclusivo de que as crianças órfãs ocupam o ponto mais baixo no poste totêmico social. É assim que Crystal costuma falar. Dá para pensar que ela já foi professora universitária ou algo parecido.

Esfreguei os olhos para afugentar o sono, passei os dedos pelos cabelos e sentei na cama. Raven continuava em sono profundo, a perna direita por cima do cobertor, os cabelos escuros espalhados sobre o travesseiro.

Raven é, de longe, a mais bonita de nós quatro. Seu rosto é tão lindo quanto o de uma modelo. Todas invejam seus cabelos cor de ébano, descendo até os ombros. Ela só precisa tomar uma chuveirada e passar xampu para seus cabelos brilharem, como se uma fada madrinha os tivesse tocado com sua varinha de condão.

Ei, bela adormecida! — chamei. Ela não se mexeu. — Raven, querida, está na hora de acordar!

Nada. Nem sequer uma contração muscular em todo o seu corpo. Estendi a mão, tirei meus tênis, depois as meias, transformando-as numa bola e arremessando-a através do quarto. Acertei a parte posterior da adorável cabeça de Raven. Foi o suficiente para despertá-la.

— O que...

Ela virou-se, olhou para mim e sorriu. Tornou a afundar no travesseiro, como se este fosse feito de marshmallow.

Levante-se e brilhe, antes que você-sabe-quem apareça e faça você-sabe-o-quê.

Saí da cama para abrir a gaveta da cômoda e pegar uma calcinha limpa. Temos de partilhar a única cômoda, o refugo de uma loja de terceira, que já se encontrava naquele quarto quando o primeiro turista chegou da cidade de Nova York, no tempo em que os trens estavam na moda e a Lakewood House aparecia numa revista de turismo chamada Summer Homes.

— Meus avós construíram esta casa para ser a sede de uma pequena fazenda — dissera-nos Louise pela milésima vez no dia anterior. — Não conseguiram ganhar a vida com a fazenda e passaram a aceitar hóspedes. Fizeram de Lakewood House uma pousada de prestígio. Meus pais também foram bem-sucedidos. Mas a economia mudou desde então. Gordon e eu decidimos: por que desperdiçar tudo isso? Por que não aproveitar a propriedade para fazer um lar de adoção temporário? Vocês, crianças afortunadas, serão as beneficiadas.

Crianças afortunadas? Ela acha mesmo que é uma boa ação? Alguma vez Louise e Gordon se importaram com alguma outra pessoa senão com eles próprios? Crystal, que é bastante inteligente para se tornar presidente dos Estados Unidos, se as mulheres conseguirem algum dia alcançar esse posto, disse-nos que Louise e Gordon recebem dinheiro por cada criança que chega. O dinheiro aumenta à medida que a criança cresce... e ainda por cima há isenção de impostos!

- Hoje é sábado — resmungou Raven. — Por que não podemos dormir até mais tarde no sábado?

— Aborde o assunto na próxima reunião da diretoria — gracejei. — É melhor se levantar logo, Raven, antes que os dois banheiros fiquem ocupados.

Em nosso andar tínhamos de partilhar o banheiro com seis outros órfãos. Gordon vivia nos fazendo um sermão sobre a inconveniência de deixar a água quente aberta por tempo demais. Estávamos convencidas de que ele era o inventor do banho de chuveiro de dois minutos. A Lakewood House tinha seu próprio poço, mas ele nos ameaçava com a horrível possibilidade de ficarmos sem água e de se ter de trazê-la do lago em baldes.

— Detesto isso — murmurou Raven.

Por um momento, fitei-a com os olhos arregalados, como se ela tivesse dito algo inesperado.

Também detesto, pensei, mas nenhuma das duas tem pais em perspectiva a cercá-la. E tudo indicava que nunca teríamos. Crystal, que era um prodígio em computação, passava mais tempo do que todos com o único computador doado a Lakewood House. Costumava nos apresentar fatos incríveis, em particular sobre crianças disponíveis para adoção. Em qualquer dia, garantia ela, havia quase 50 mil crianças esperando para serem adotadas nos Estados Unidos. Não viviam mais com a mãe ou o pai e tinham sido declaradas por tribunais como disponíveis para adoção. De um modo geral, no entanto, permaneciam em instituições administradas ou financiadas pelo estado. Boa sorte para todas. Segundo Crystal, a população de crianças disponíveis para adoção cresce 33 por cento mais depressa do que a população dos Estados Unidos em geral. Talvez acabemos dominando o mundo, gracejei em certa ocasião, mas ninguém riu.

Vesti a calcinha e estendi a mão para ojeans no instante em que Crystal entrou no quarto, o rosto vermelho. Ainda estava de pijama, o que no seu caso é excepcional. Crystal é a Miss Pontualidade.

- Ela começou de novo! E pior ainda! Parece... uma árvore petrificada!

Olhei para Raven, que saltou da cama e vestiu seu roupão, seguindo-nos para o quarto de Crystal e Borboleta, esta última com as pernas encolhidas, as mãos cerradas, os olhos fechados e apertados com tanta força, que as pálpebras pareciam costuradas. Os lábios estavam contraídos, as narinas tremendo a cada respiração pesada. Trocamos olhares. Ultimamente, Borboleta vinha entrando naqueles transes catatônicos mais e mais vezes. Não era preciso ser cientista espacial para compreender o motivo. Ela era solitária e frágil, tinha medo de rejeição. Entrar naquele transe era como se meter num casulo. Crystal, nossa psicóloga infantil de plantão, dizia que Borboleta tentava retornar ao útero. Raven achava que ela estava maluca, mas eu a compreendia. Nunca fiz qualquer comentário, mas às vezes gostaria de poder voltar também.

Sacudi o braço de Borboleta e todo o seu corpo se mexeu, como se fosse uma peça única sólida, sem qualquer articulação.

- Borboleta, pare com isso. Estamos todas aqui. Sabe muito bem o que vai acontecer se continuar assim. Gordon e Louise virão ver como você está. Chamarão a ambulância e você será levada para uma enfermaria psiquiátrica.

Tornei a sacudi-la, mas não houve qualquer reação. Crystal adiantou-se até a beira da cama.

— Precisamos nos unir — murmurou ela. Olhei para a porta.

— Feche a porta, Raven.

Depois da porta fechada, nós três cercamos a cama — Raven e eu de um lado, Crystal do outro. Tornamos a trocar olhares. Depois, como se estivéssemos mergulhando, respiramos fundo e nos inclinamos para a frente, as cabeças se encostando. Unidas dessa maneira, iniciamos o cântico. Era a nossa cerimônia secreta.

- Somos irmãs. Sempre seremos irmãs. Uma por todas e todas por uma. Quando uma está triste, todas ficam tristes. Todas precisam ser felizes, para que cada uma seja feliz. Somos irmãs. Sempre seremos irmãs.

As pálpebras de Borboleta tremeram.

- Somos irmãs — continuou Crystal, acompanhada por Raven e por mim. — Sempre seremos irmãs.

Borboleta abriu os olhos, a boca se mexeu... e no instante seguinte ela se pôs a entoar o cântico conosco. Paramos e recuamos. Borboleta olhou para cada uma de nós.

— O que aconteceu?

- Você está bem agora — declarei. — Vamos nos vestir e descer para o café da manhã. Estou morrendo de fome.

Fora Crystal quem tivera a idéia de nos juntarmos para o cântico, por causa de Borboleta. Afinal, Borboleta era a responsável por nossa união. Ali, ninguém era mais vulnerável. Crystal fora sua primeira protetora, porque partilhavam o quarto. Raven e eu entráramos em cena para impedir que as garotas mais velhas se aproveitassem das duas. Crystal usava o sarcasmo e a língua afiada para humilhar qualquer pessoa que ousasse escarnecer de Janet por seu tamanho e timidez. Assim, nós três passamos a cercá-la como irmãs protetoras. Diante disso, era inevitável que nos tornássemos mais íntimas.

Crystal costumava nos chamar de Quatro Orfãteiras, parodiando as Quatro Mosqueteiras. Vivíamos dizendo: "Todas por uma e uma por todas." Por enquanto, ou talvez para sempre, nós quatro éramos a única família que tínhamos.

Crystal assegurava que o ritual e o cântico acabariam com nosso sentimento de abandono e solidão. Era como uma professora.

— O ser humano é um animal gregário — dissertava ela. — Os grupos religiosos e de meditação são sempre favoráveis às recitações coletivas. Há segurança em ouvir outras vozes dizendo as mesmas coisas ou emitindo ruídos similares. O contato é íntimo, representa um compromisso.

Eu não entendia direito o que tudo isso significava, mas sabia que fazia sentido, porque em geral funcionava.

Mais uma vez dera certo naquela manhã. Mas eu não podia deixar de temer o dia em que não mais adiantaria.

 

                     Uma tênue esperança

Enquanto me preparava para o café da manhã, não pude deixar de me preocupar com Borboleta. Especulei como minhas outras irmãs e eu fôramos poupadas do mesmo destino. Afinal, cada uma de nós tinha uma história mais ou menos trágica, como eu começava a compreender.

Quase fui adotada, pouco antes de completar treze anos, por Pamela e Peter Thompson, um jovem casal que não tivera filhos. Pamela era a mulher mais linda que eu já tinha visto. Estranhei ela querer que eu a chamasse pelo nome, em vez de mamãe, mas fiz o que me pedia. Os órfãos aprendem desde cedo a fazer qualquer coisa... isto é, quase tudo, para agradar aos pais em potencial.

Pamela ganhara concursos de beleza e me escolhera porque me considerava uma versão dela quando mais jovem. Ninguém jamais me dissera antes que eu era bonita, ou que tinha um potencial de beleza. Assim, quando Pamela e Peter me escolheram justamente por esse motivo, minha surpresa foi total. Mas também me senti feliz. Pela primeira vez na vida pensei que talvez fosse mesmo uma pessoa especial, que não era apenas uma garotinha que ninguém queria.

Logo descobri que Pamela não me julgava especial pelo que eu era de fato, mas sim pelo que pensava no que poderia me transformar. Todas as roupas bonitas e aulas de elegância fizeram sentir-me uma princesa a princípio, mas depois começaram a me sufocar. Não tinha permissão para me empenhar nos esportes em que me saía tão bem. Não podia sequer ser eu mesma. E fui me sentindo cada vez mais confusa. Queria agradar Pamela, que era a minha nova mãe, mas também sabia que agradá-la implicaria na perda de mim mesma.

Peter bem que tentou ajudar. Explicou a Pamela que eu podia me destacar nos esportes e ao mesmo tempo ganhar concursos de beleza. Mas Pamela foi se tornando mais e mais exigente e rigorosa. Finalmente, quando parecia que ela jamais ouviria os sonhos que eu tinha no coração, fiz a única coisa que me passou pela cabeça para fazê-la compreender. Cortei meus cabelos compridos e bonitos... os cabelos que ela tanto gostava de lavar e escovar; os cabelos que me ajudariam a ganhar seus preciosos concursos de beleza.

Pamela teve um acesso de raiva ao me ver daquele jeito. Depois, começou a ficar ofegante, com dificuldade para respirar, declarando que estava à beira de um colapso. Disse que eu seria um tremendo embaraço para ela, e que não prestava como candidata de um concurso de beleza... ou como sua filha. Peter não sabia como lidar com a fúria de Pamela. Por isso, mandara-me de volta ao Serviço de Proteção à Infância e Adolescência. Passaram-se anos e eu ainda aqui, na Casa do Inferno.

As experiências de Borboleta devem ter sido muito piores do que as minhas, já que mal consegue falar a respeito. Mas descobrimos um pouco ao longo dos anos. Entretanto, ao tentar falar ou quando alguma coisa a lembra daquele tempo, Borboleta entra em choque. Sua mãe adotiva, Celine Delorice, era uma mulher de trinta e poucos anos, que no passado tivera uma carreira promissora como bailarina. Casara-se com um próspero industrial, Sanford Delorice, que apoiava suas tentativas de se tornar uma prima ballerina. Mas, pouco depois do casamento, Celine sofrera um grave acidente de carro, sendo obrigada a passar o resto de sua vida numa cadeira de rodas. Persuadira Sanford a adotar uma criança. Escolhera Borboleta por ela ser uma garota delicada e ter os pés perfeitos. Achava que Borboleta se tornaria a bailarina que ela esperava que fosse. Começou a treiná-la quase que no mesmo dia em que a tirara do orfanato e a levara para casa.

Borboleta era uma boa bailarina, mas não uma grande bailarina. Não progredira tão depressa quanto Celine esperava. Em vez disso, começara a ficar paralisada pelo medo, sob a pressão e a possibilidade de fracasso. Celine Delorice acabara sofrendo um colapso nervoso. Pelo menos fora isso que Borboleta nos contara. Pouco depois, Sanford a devolvera ao sistema, alegando que a deficiência física da esposa não permitia que criassem corretamente uma criança. Crystal achava que tinha de haver mais alguma coisa, mas nunca pressionou Borboleta, que podia se transformar numa pedra se alguém insistisse para que falasse sobre seu passado.

Apesar do seu ar reservado, Raven não era muito diferente de nós. Vivera por algum tempo com sua família de verdade, um tio, depois que a mãe fora presa por um crime relacionado com drogas e internada num centro de reabilitação. Não conhecíamos os detalhes essenciais, mas alguma coisa acontecera, fazendo Raven vir para cá. Ela se limitou a nos dizer que o casal de tios não tinha condições para criá-la, especialmente o tio. Disse-me que os problemas na casa deles envolviam sua prima Jennifer. Eu queria que Raven confiasse em mim o suficiente para explicar o que acontecera. Mas Raven parecia ter dificuldades para confiar em qualquer pessoa, incluindo Crystal, Borboleta e eu.

A situação de Raven era muito mais complicada do que a nossa. Como tinha a mãe biológica viva em algum lugar, o Estado tornava sua adoção quase impossível. Isso sempre acontecia quando havia alguma possibilidade, por menor que fosse, de a criança voltar para a mãe ou para o pai biológico.

Crystal era a única que tivera uma boa experiência com pais adotivos. Não falava muito a respeito, mas descrevera a obsessão de Thelma por novelas de TV e a obsessão de Karl por ser eficiente e organizado. Disse que ele era contador, que encarava a vida como um equilíbrio entre dever e haver. Fazia-lhe preleções constantes sobre sensatez. Crystal garantiu que seus pais adotivos eram muito simpáticos, mas creio que achava, pela maneira como os descrevia, que ambos viviam em um mundo de fantasia. Quando morreram, num acidente de carro, nenhum dos parentes quisera ficar com ela. Assim, Crystal voltara ao sistema.

E agora aqui estávamos, as Orfãteiras, tão diferentes entre si, mas atraídas umas pelas outras, sentindo-nos seguras em nosso pequeno grupo. Cada uma acrescentava alguma coisa de que todas precisavam; cada uma se dispunha a correr o risco de dor ou aflição para proteger a outra ou o grupo. Olhando para nós, ninguém pensaria que tínhamos algo de especial para nos manter unidas.

Eu costumava usar jeans, uma camisa de malha ou um velho blusão. Tinha tênis e um par de sapatos finos, mas preferia meus velhos tanques, como Raven os chamava, com meias soquetes. Sempre usava a fita rosa que minha mãe verdadeira prendera em meus cabelos, antes de me deixar no orfanato. Claro que já desbotara por completo. Amarrava-a no pulso. Quase nunca usava batom ou maquilagem. Passava um desodorante de bastão em vez de água-de-colônia... quando me lembrava. Raven sempre andava de saia ou vestido.

Crystal usava roupas simples. Os cabelos castanho-escuros eram penteados para trás, presos num coque ou num rabo-de-cavalo. Raramente usava batom, muito menos maquilagem. Podia passar o dia inteiro com uma mancha de tinta no queixo, porque raramente se olhava no espelho.

Borboleta ainda guardava muitas das roupas que tinha quando vivia com os Delorice. Eram vestidos graciosos e elegantes, tênis de várias cores, e até um lindo blusão de couro rosa. Poder-se-ia dizer que o seu crescimento fora tolhido pela infelicidade. Quase não crescera. Os cabelos dourados eram crespos. Só usava batom quando Raven a ajudava a se maquilar.

Apesar das quatro personalidades diferentes, tínhamos uma coisa especial, algo que sabíamos que as outras garotas cobiçavam. Talvez fosse apenas a "união". Talvez houvesse algum vínculo espiritual. Mas de uma coisa podíamos ter certeza: a confiança que tínhamos umas nas outras.

Apesar do incidente com Borboleta, terminamos de nos vestir e descemos para o café da manhã dentro do horário. A Lakewood House era fisicamente um dormitório perfeito para cerca de duas dúzias de crianças abandonadas. E pouco mudara desde os dias em que se tornara uma pousada. Ainda havia uma ampla sala de recreação, outrora ocupada por mesas pequenas, para jogos de tabuleiro, cartas, dominó e até uma novidade de que nenhuma de nós jamais ouvira falar antes: um jogo chamado mah-jongg. Louise dizia que era o jogo mais popular entre as mulheres que se hospedavam na pousada. Ela nos mostrara as peças, todas com letras asiáticas.

Advertira-nos que nunca deveríamos tocar naquelas peças. E explicara que ela e Gordon só esperavam o momento certo para vendê-las como antigüidades.

A maior parte da casa era antiga, ou apenas maltratada. A escada que descemos para alcançar o refeitório oscilava e rangia. Os canos gemiam como velhos com artrite, as janelas ficavam emperradas com o frio no inverno, às vezes até mesmo no verão, e com bastante freqüência o sistema elétrico não funcionava. Gordon detestava fazer qualquer trabalho de manutenção. Costumava esperar só o absolutamente necessário. Não trocava um degrau rachado da escada de madeira, por exemplo, mesmo sendo perigoso, até saber se algum fiscal viria inspecionar a propriedade. Se alguma coisa quebrava em nossos quartos, ou se havia problemas de encanamento;- ele nos atribuía a culpa e o deixava quebrado pelo maior tempo possível.

Logo percebemos que Louise tinha quase tanto medo de Gordon quanto nós. Se alguma vez ela o contradizia em nossa presença, Gordon lançava-lhe um olhar furioso, o rosto vermelho, os olhos luzindo como carvões em brasa numa lareira, os músculos do pescoço se contraindo, as artérias e veias dilatando-se, e as mãos enormes fechadas, como se fossem malhos. Tinha uma força excepcional. Quando queria se exibir, deixava que as crianças o observassem derrubando uma árvore. Fazia isso com um machado, nunca parando até rachar-lhe o tronco. As lascas voavam ao seu redor, como mariposas amarelas; as árvores pareciam feitas de papel. Essas demonstrações de força ficavam gravadas indelevelmente na memória das crianças. E ai de quem se tornasse alvo da fúria de Gordon.

No entanto, sempre que havia visitantes ou agentes do governo na casa, Gordon se transformava num gigante sorridente e gentil, que ficava circulando com uma criança pequena nos ombros, protetor e carinhoso. Ver alguém com uma força física tão óbvia se comportar com tanta ternura era comovente para as pessoas de fora. Uma ocasião ele me surpreendeu a observá-lo com repulsa durante um desses desempenhos dignos de um Oscar. Lançou um olhar em minha direção, virou-se para me fitar, com uma expressão fria e assustadora. Tive de me afastar apressada, o peito vibrando com as marteladas do coração. Evitei-o por vários dias, até que finalmente ele deu a impressão de que esquecera.

Nenhuma das crianças ali parecia interessá-lo. Conhecia nossos nomes e sabia quais poderia usar quando queria fazer uma demonstração para os agentes do governo. Mas em geral deixava para Louise o trabalho de cuidar das crianças. Ela era a verdadeira administradora da Lakewood House; Gordon era o típico capataz.

No entanto, ele sempre a pressionava para manter uma certa distância das crianças. Protestava, na nossa presença, recomendando-lhe em voz alta:

— Tem se envolvido demais com essas crianças, Louise. Estou avisando.

Mais tarde, Louise explicou que Gordon e ela haviam recebido ordens expressas para, de qualquer forma, não ficarem ligados demais a uma criança. A lógica era a de que só estávamos ali temporariamente. Muito em breve voltaríamos para nossos pais de verdade, ou iríamos para uma família adotiva. Ninguém queria que nos sentíssemos tristes por partir, ou contrariados com a nova casa. Só podia ser uma piada. Quem haveria de se ressentir por deixar aquele lugar? De minha parte, sentia-me feliz por Gordon se manter a distância, ainda mais porque sempre insistia com Louise para fazer a mesma coisa.

Às vezes ela nos contemplava como se fôssemos realmente seus filhos. Como não tivera nenhum, lamentava nos perder. Uma mãe autêntica não poderia ser mais possessiva de vez em quando. Mas a afeição sincera era como um contrabando por aqui. Ela tinha de olhar primeiro ao redor, para ter certeza de que Gordon não se encontrava por perto, para dar um beijo na testa de uma criança ou apertá-la contra seu peito.

Louise não era a única que tentava fazer com que nos sentíssemos uma família. Uma velhinha meiga que preparava nossas refeições diárias insistia para que a chamássemos de vovó Kelly. Sempre tinha palavras gentis ou um sorriso para nós. Vovó Kelly morava na aldeia próxima de Mountaindale. Trabalhava para a família Tooey desde o tempo em que a Lakewood House ainda era uma pousada. Tinha apenas 1,60m de altura, o rosto redondo, as faces sempre rosadas, principalmente quando trabalhava na beira do fogão quente. Tinha olhos suaves, tão azuis quanto as penas de um gaio. Os cabelos eram da cor de chumbo escuro, ainda mais crespos que os de Borboleta. Sempre usava uma touca quando estava na cozinha. Disse-nos que só viera para os Estados Unidos quando já tinha quase doze anos. Ainda falava com um sotaque irlandês. Crystal comentou que ela a fazia pensar num leprechaun.

— Seria maravilhoso se vovó Kelly fosse mesmo um leprechaun e nos levasse ao tesouro, para podermos sair daqui — murmurei.

Crystal, é claro, não acreditava nessas histórias, mas gostávamos de pensar que havia um pote cheio de ouro à nossa espera.

Especulamos sobre o que vovó Kelly serviria no café da manhã, ao descermos para o refeitório.

Nota de rodapé:

No folclore irlandês, um duende revelador de tesouros ocultos a quem conseguisse agarrá-lo. (N. T.)

Fim da nota de rodapé.

Enquanto esperávamos na fila pela nossa vez, Crystal disse que ten-cionava passar o dia na biblioteca, usando o computador. O sonho de Crystal era se tornar uma doutora. Vinha pesquisando sobre bolsas de estudos para universidades. Afirmava que se encontraria na Internet qualquer coisa que se quisesse descobrir.

— Até mesmo o meu futuro? — indaguei.

- Como já informei antes, existem estatísticas sobre crianças disponíveis para adoção. A cada ano, cerca de quinze mil deixam os lares provisórios ao completarem dezoito anos, sem terem encontrado uma família permanente. Quarenta por cento dos que deixam o sistema acabam sendo sustentados pelos serviços de assistência social.

— Obrigada pelas palavras de estímulo — murmurei. — Miss Boas Notícias.

— Você pode se casar — sugeriu Raven. — É o que farei, assim que encontrar alguém bastante rico.

— Por que alguém rico se casaria com você? — perguntei.

- Porque sou a garota mais linda que ele vai conhecer — respondeu ela, virando de lado e agitando as compridas pestanas pretas. — E sou a próxima Selena, que fará sucesso com uma canção atrás da outra.

Borboleta soltou uma risada. Raven abraçou-a e acrescentou:

- Alguém me ama. Borboleta também será uma bailarina famosa, Crystal. Inclua isso na sua estúpida estatística.

- Detesto desapontar ou desanimar, mas é muito difícil ter sucesso na indústria de entretenimento — insistiu Crystal. — E lembre-se do que aconteceu com Selena.

Raven esticou a língua para ela, enquanto segurava a mão de Borboleta.

— Vamos apanhar nossa comida, Borboleta, e deixar Crystal entregue a seu mau humor. Ela não sabe acreditar. Podemos ser qualquer coisa, desde que acreditemos.

As palavras de Raven soavam otimistas, mas eu sabia que eram em grande parte para animar Borboleta, que ainda tremia pelo episódio daquela manhã.

Enquanto esperávamos na fila para nos servirmos, corri os olhos pelo refeitório.

Ao longo das paredes havia fotos dos velhos tempos da Lakewood House: grupos à beira do lago ou em cadeiras no jardim. As pessoas vestiam-se de uma maneira formal na maioria das fotos, os homens de paletó e gravata, as mulheres de vestido longo, gola alta e punhos de babados, todos de rosto pálido, todos parecendo anos e anos mais velhos do que de fato eram. Havia muitas fotos de famílias porque a Lakewood House hospedava famílias. As crianças que agora viviam na casa olhavam atentamente para as fotos, em geral com um sorriso sonhador, imaginando-se parte de uma daquelas famílias, abraçando a mãe, segurando a mão do pai, de pé ao lado dos irmãos e irmãs, com direito a um nome e sobrenome.

A impressão era a de que Lakewood House fora outrora um lugar lindo e feliz, com muito riso e música. Segundo vovó Kelly, os hóspedes sentavam-se na varanda em torno do prédio, conversando pela noite adentro, enquanto os grilos cantavam e as corujas espiavam pela noite enluarada, curiosas pelo murmúrio de vozes, o som de portas de tela, o grito de uma criança. Às vezes, embora eu nunca dissesse, nem mesmo para uma Or-fãteira, tinha a impressão de ouvir risos fantasmas, até mesmo os passos rápidos de crianças felizes correndo pela casa, passando pela porta de tela, descendo os degraus para brincar no gramado viçoso, seguras, alegres, transbordando de esperança.

Talvez algum dia pudéssemos sair correndo daquela casa para um lugar repleto de segurança, felicidade e bons sonhos.

A zoeira das conversas, pratos e talheres batendo, risos e rangidos, que nos recebeu naquela manhã, era uma centena de decibêis mais alta do que nos dias de semana. As crianças na escola sabiam que tinham dois dias de folga pela frente. Podiam esquecer os deveres escolares durante esse tempo, exceto nas horas finais da tarde de domingo. Nos dias sem chuva, podíamos jogar softball ou descer até as quadras de tênis e vôlei, dilapidadas, com o piso rachado, e participar de jogos de duplas, assim que concluíssemos nossas tarefas. Raven e eu éramos as campeãs das quadras; e eu era sempre a capitã do time de softball. Louise permitia que os mais velhos fizessem um piquenique, desde que levassem algumas crianças menores e as vigiassem. Confiava crianças pequenas mais a nós quatro do que a qualquer outro grupo.

Muitas vezes, porém, Gordon arrumava um trabalho para nós. Pintávamos a casa, cortávamos a grama, recolhíamos as folhas caídas, ou lavávamos as janelas. Lá dentro, limpávamos o chão, ajudávamos com a louça, tirávamos o pó e passávamos o aspirador. Sempre nos informavam de que aquele era o lugar onde vivíamos, por isso tínhamos de cuidar dele da melhor maneira possível.

- Com isso, vão apreciar nosso lar ainda mais — explicava Louise, a fim de atenuar o peso das tarefas determinadas por Gordon.

— Não precisa justificar coisa alguma que eu mando fazer. Elas devem trabalhar pelo que recebem. — Gordon virava-se para nós, os olhos parecendo lançar raios laser. — E não quero ouvir reclamações.

As tarefas eram rotativas. Nenhuma de nós quatro teria de trabalhar na cozinha naquele fim de semana. Entramos no refeitório, longo e amplo, com as maiores janelas, da casa, as únicas que tinham persianas novas, pois ali eram recebidos os agentes do governo em suas visitas. Avistamos Meg Callaway dirigindo a fila. Havia uma mesa comprida na outra extremidade da sala, onde estava a comida. Meg tinha quinze anos, era alta e magra, com aparelhos nos dentes que mais pareciam um pára-choque de carro. Crystal dizia que ela podia ser a filha de Ichabod Crane, de Sleepy Hollow. Lera uma descrição dele afirmando que tinha um pescoço longo e um nariz tão grande, que dava a impressão de alguém ter posto um cata-vento em seus ombros.

Meg sempre tentava se infiltrar em nosso grupo, ser uma de nós. Mas qualquer que fosse a química que existia entre nós, nela não existia. Era furtiva e astuta, tão ciumenta que Raven dissera que seus olhos,não podiam deixar de ser verdes de inveja, independente de qualquer outra coisa. Vivia sussurrando e tentando nos jogar umas contra as outras. Espalhava boatos a torto e a direito, na expectativa de que virassem conflitos e a fizessem parecer a heroína de todos. Ninguém gostava de Meg, mas muitos tinham medo de se tornarem alvo de alguma maldade se não fingissem gostar dela. Por duas vezes, na semana que passou, eu a surpreendera tirando coisas das crianças menores.

- Lá vem Cachinhos Dourados e as três ursinhas — zombou ela, quando nos aproximamos da mesa com a comida.

Depois de estudar Borboleta por um momento, Meg contraiu os lábios, alteados nos cantos, em seu arremedo de sorriso gelado, e acrescentou:

- Por que Cachinhos Dourados estava chorando desta vez? Alguém despejou cola em suas sapatilhas de balé?

— Vamos até lá fora, depois do café, e lhe mostrarei por que ela estava chorando — murmurei.

O sorriso de Meg desapareceu no mesmo instante. Ela virou-se para uma garota de dez anos que a ajudava.

— Já mandei você ir buscar mais torradas — resmungou, evitando olhar para mim.

Levamos nossa comida para a mesa habitual.

— Por que o pão está tão duro? — indaguei. Crystal terminou de tomar seu suco de laranja e fez sinal com os olhos para nos aproximarmos.

- Ouvi uma conversa entre vovó Kelly e Gordon ontem, quando trabalhava no computador. Vovó reclamou que ele tem comprado pão dormido de dois dias, porque é mais barato. E disse que sabe também que ele não vem comprando carne de primeira. Gordon negou, recomendando que ela não se metesse no que não era da sua conta. Vovó respondeu que a comida era, certamente, responsabilidade dela. Foi quando Gordon respondeu que talvez ela devesse pensar em se aposentar.

- Que canalha... — murmurou Raven, os olhos fuzilando.

- Não quero que vovó Kelly se aposente — disse Borboleta, com uma cara triste.

Ela quase sempre baixava os olhos depois de falar, como se temesse as reações que suas palavras provocariam nas pessoas que a ouviam. Sua mãe adotiva devia ter sido uma tirana.

— Não se preocupe, isso não vai acontecer — assegurei. — Será que ninguém o fiscaliza, Crystal? Ninguém verifica como ele usa o dinheiro que deveria ser gasto conosco?

Ela deu de ombros e, após um momento, disse:

— As contas são conferidas. Ele deve fazer acordos as escondidas com os fornecedores.

— Deveríamos denunciá-lo.

Nós quatro ainda estávamos inclinadas sobre as bandejas, sussurrando. Parecia uma conspiração.

— Se não dermos nosso nome, ele pode acusar vovó de ser a responsável, agora que ela se queixou — ressaltou Crystal. — E não creio que qualquer uma de nós queira assinar uma denúncia contra Gordon Tooey.

Como se fosse uma deixa, Gordon entrou no refeitório nesse instante. O burburinho logo diminuiu. Ele esquadrinhou a sala como se procurasse por um intruso, os olhos escuros contraídos em fendas mínimas, as mãos enormes nos quadris. Usava uma camisa branca, as mangas compridas enroladas até os cotovelos. Tinha no braço direito a tatuagem de um tubarão, feita quando servira na marinha.

- Espero não ver ninguém voando hoje. Logo depois do café, todos vão cuidar das tarefas determinadas. Teremos uma inspeção dentro de uma semana e quero tudo aqui brilhando.

Tive vontade de gritar: "Pois então queime tudo e comece do zero." Mas apenas fiquei olhando para minha comida. Louise apareceu afobada por trás dele, desmanchando-se em sorrisos. Devia ter cinqüenta e poucos anos, uma morena de 1,78m, os cabelos descendo até os ombros. Eu achava que seus surpreendentes olhos de um azul-celeste eram lindos. Ela tinha um jeito diferente de olhar para a gente, como se estivesse nos ligando e desligando, enquanto falava. Assim, a pessoa nunca sabia se tinha sua atenção total. Era como se tivesse mesmo medo do que Gordon lhe dizia, que poderia formar um relacionamento mais profundo se fitasse por tempo demais uma das tuteladas do Estado, sofrendo depois se e quando a criança fosse adotada.

- Bom-dia para todos! — Ela olhou mais para o teto do que para nós, depois virou-se para as janelas. — Não é um dia glorioso? Vamos todos fazer o nosso trabalho, com rapidez e eficiência, para depois termos tempo de desfrutar o ar fresco e o sol. Sabem, crianças, há muitos anos as pessoas vinham para estas montanhas a fim de se recuperarem de doenças do pulmão, como a tuberculose.

Porque temos o melhor ar do mundo. Vocês são afortunadas por viverem aqui.

Louise bateu palmas, antes de se encaminhar para uma mesa, a fim de ajudar algumas das crianças menores.

— Ela tem melado nas veias em vez de sangue — murmurei. — Não posso imaginar os dois fazendo amor. parecem óleo e água. Louise deve manter os olhos fechados durante todo o tempo, prendendo a respiração até ele acabar.

Raven riu tão alto que atraiu por um instante a atenção de Gordon. Todas baixamos os olhos para nossos pratos. Quando tornamos a olhar, ele estava deixando o refeitório. Houve um suspiro de alívio coletivo.

— Sejam bem-vindos para outro alegre fim de semana de trabalho escravo na Casa do Inferno — falei, e bastante alto para que as crianças da mesa ao lado ouvissem.

Algumas riram, outras olharam para a porta, querendo se certificar de que Gordon saíra mesmo.

— Não quero pintar aquela cerca de novo — declarou Raven. — É melhor ele não me dar esse serviço. O cheiro da tinta me fez tossir por vários dias.

— Isso acontece porque é ruim para seus pulmões — explicou Crystal.

- Vamos comer logo e sair, mesmo que seja para trabalhar — sugeri, querendo mudar de assunto.

A lista de tarefas já fora fixada no quadro de avisos. Eu teria de cortar a grama. Não me agradava, mas pelo menos trabalharia ao ar livre. Crystal e Raven deveriam recolher as folhas caídas no chão. Borboleta iria tirar o pó e polir os metais na sala de recreação.

— Acha que ela se sente bastante bem para ficar sozinha esta manhã? — perguntei a Crystal, antes de sairmos.

— Não haverá problemas. Não é mesmo, Borboleta?

— Estou bem. — Ela me ofereceu seu sorriso mais envolvente. — Juro que estou.

- Se alguém a importunar, especialmente se for Megan Callaway, trate de me avisar — recomendei.

— Não gosto de ser dedo-duro.

— Não será dedo-duro se a pessoa for maior do que você e exagerar, Borboleta — assegurei.

— Todo mundo aqui é maior do que eu.

Olhei para Crystal. Sempre olhava para Crystal quando precisava de outra resposta ou uma explicação melhor.

— Todo mundo também é maior do que vovó Kelly, mas isso não faz dela uma pessoa inferior... e muito menos uma cozinheira pior, não é mesmo? — disse Crystal. — Quando pensamos no que ela consegue realizar com o que tem...

— É isso mesmo — concordei. — Os melhores perfumes estão nos menores frascos.

Borboleta voltou a ficar radiante.

- Teremos um piquenique hoje no almoço — anunciei. — Perto da quadra de tênis.

Vovó Kelly nos preparava sanduíches para os fins de semana. Podíamos escolher entre sanduíche de queijo e presunto, ou apenas queijo, manteiga de amendoim, geléia ou ovo, levar uma garrafa de leite ou suco, um bolinho ou um cookie. Estendíamos uma manta na grama para comer. Quase nos sentíamos como pessoas reais nos fins de semana de tempo bom. Raven detestava quando eu dizia isso.

— Somos pessoas reais — protestava ela, furiosa. — Não é culpa nossa se ninguém tem notado isso ultimamente.

Os fins de semana eram quase como audições para nós. Os pais adotivos em potencial visitavam a propriedade para nos ver e conversar com qualquer criança que eles pudessem querer levar para casa. Obrigar-nos a trabalhar na propriedade era um meio de aumentar nossas possibilidades, argumentava Gordon. Assim, os pais e mães candidatos à adoção compreenderiam que trabalhávamos, que nada tínhamos de mimados em nossa vida como tutelados do Estado. Mal havíamos estendido a manta para o piquenique, Louise se aproximou, à procura de Borboleta.

- Ah, você está aqui, Janet! Um casal viu suas fotos e vieram conhecê-la.

Louise falou em seu tom de voz oficial. Sempre que assumia esse tom, meu coração disparava.

— Quem são? — perguntou Borboleta.

- Sr. e sra. Lockhart. Vamos logo, Janet. Ajeite o vestido, por favor. — Louise adiantou-se para arrumar os cabelos de Borboleta. — Detesto quando as pessoas aparecem sem pelo menos avisar um dia antes.

— As pessoas não costumam aparecer aos sábados e domingos? — indaguei.

— Entendeu o que eu quis dizer. — Como eu sacudisse a cabeça, ela acrescentou: — Sinceramente, Broo-ke, você às vezes é tão... pouco cooperativa. Por que não segue o exemplo de Crystal? Ela sabe quando falar e quando tem de ficar calada.

— Falo quando tenho algo para dizer e quando sei que minhas palavras vão adiantar alguma coisa — declarou Crystal.

— Está vendo? — Louise mal percebeu o sarcasmo de Crystal. — Por favor, Janet, não fique encurvada e não contraia tanto os olhos. Vamos embora. O sr. e a sra. Lockhart estão esperando.

Borboleta olhou para nós, nervosa. Levantei o polegar.

— Boa sorte — disse Raven.

— Não posso entender por que ela até agora não foi escolhida — comentei, enquanto as duas se encaminhavam para a casa. — Borboleta é adorável, doce e inteligente.

Crystal largou o livro e fitou-nos.

— Cada uma de nós tem algo especial, se alguém se desse ao trabalho de notar. Hoje em dia as pessoas escolhem crianças quase como escolhem qualquer outra coisa. Não nos vêem como pessoas, mas apenas como um tipo de mercadoria. Essa casa é como uma loja de departamentos. Estou cansada de esperar, cansada de me sentir como um produto em exposição.

Ela falou com uma emoção inesperada. Franzi as sobrancelhas, surpresa.

— É exatamente assim que me sinto — acrescentou Raven. — Detesto ser examinada como um animal de loja de bichos de estimação.

— É melhor se acostumar com a idéia de as pessoas ficarem de olho em você, Raven — gracejei. — Você é linda... todos olham para você.

Raven ficou inibida.

— Não peço a atenção de ninguém... Além do mais, não preciso desse tipo de atenção. Sabe que sempre tento fazer com que as pessoas vejam a verdadeira Raven, a cantora cheia de sonhos.

- Eu só estava brincando, Raven. Sabemos que não é de propósito que você atrai os rapazes para a seguirem como cachorrinhos. Mas eles fazem isso.

Agora eu me sentia embaraçada; Raven estava bastante transtornada.

- Sei que vocês me compreendem. Acontece apenas que às vezes me sinto triste. Acho que nunca vou encontrar alguém que goste de mim pelo que sou, e não apenas por causa de minha aparência.

Crystal e eu trocamos um olhar, desoladas. Sabíamos como era sentir que nunca seríamos amadas.

Borboleta demorou a voltar. Já tínhamos acabado de comer e arrumávamos as coisas quando ela apareceu de cabeça baixa, andando devagar. Crystal tinha razão ao afirmar que éramos como mercadorias numa loja de departamentos, pensei, enquanto observava Borboleta. O que deve ser feito durante uma audiência por sua vida, por sua família? Tentar falar corretamente? Sorrir tanto quanto puder, para que pensem que é uma pessoa feliz? Às vezes examinam você de uma maneira mais meticulosa do que um médico. E você se pergunta se lavou direito atrás das orelhas. Está com mau hálito? Não deveria ter posto as melhores roupas? Quais seriam as respostas certas para perguntas idiotas como: "Gostaria de viver conosco?"

Se gostaríamos? O que vocês acham? Detestaríamos. Preferimos continuar aqui, não ser ninguém.

— Como eles eram? — perguntou Raven, assim que Borboleta nos alcançou.

— Simpáticos — respondeu ela.

— Velhos ou jovens? — indagou Crystal.

- Não muito velhos. Ela é bonita. Os olhos e os cabelos são da minha cor. Disse que eu poderia passar por sua filha legítima.

— Uau! — exclamou Raven. — Adeus, Borboleta. O rosto de Borboleta revelou um medo súbito.

— Onde eles moram? — perguntou Crystal.

— Perto de Albany

— Isso é ótimo — disse Crystal. — Aposto que vão matriculá-la numa boa escola.

- Não ficaremos aqui para sempre, Borboleta — declarei, ao perceber sua tristeza ante a perspectiva de nos deixar. — E Raven, Crystal e eu adoraríamos ter a mesma oportunidade que você está tendo agora. Estamos felizes por você.

Ela balançou a cabeça, a compreensão surgindo em seus olhos.

- Vamos jogar pingue-pongue — sugeriu Raven, Pegando-a pela mão.

Havia uma mesa por trás da casa.

— Irei daqui a pouco — disse Crystal. — Tenho de dar um pulo na biblioteca.

Borboleta olhou para mim.

- Irei depois também. Quero reunir a equipe de softbaü e jogar um pouco.

Todas nos separamos. Fui para o closet ao lado do escritório de Louise em que ficavam guardados os equipamentos esportivos e os aparelhos de rádio e CD.

Ao entrar, avistei os Lockhart, o casal que se encontrara com Borboleta. Pareciam mesmo simpáticos, jovens, felizes, bem-vestidos, o tipo de pais que amariam e cuidariam bem de alguém tão doce quanto Borboleta. Como as paredes eram finas, bastava encostar o ouvido na parede que separava o closet da sala de Louise para ouvir a conversa. Esperava escutar boas notícias e ser a primeira a anunciá-las.

— Sei como se sentem — disse Louise. — Ela é mesmo adorável. Mas devo fornecer mais alguns detalhes a respeito dela, a fim de que não tenham surpresas desagradáveis.

- Surpresas desagradáveis? — repetiu a mulher, cautelosa.

- Difíceis é uma palavra melhor, eu suponho. Ela tem ido muitas vezes ao psicoterapeuta. Vou ler um trecho do seu relatório: "Janet sofre de um senso de inferioridade profundamente enraizado. Seus ataques catatônicos são uma decorrência direta disso. Retira-se, então, para um estado de imobilidade, fechando assim todos os sentidos, como uma defesa contra o medo de rejeição."

— Catatônica? Aquela garotinha?

- Isso mesmo — confirmou Louise. — Já tive de chamar a ambulância algumas vezes.

Fiquei boquiaberta. Isso nunca acontecera. Nem uma única vez.

— Oh, não...

Percebi o tom de profunda resignação. A recusa do casal começara. Furiosa, saí do closet e subi a escada, entrando no quarto de Crystal. Esperava encontrá-la ali, antes de sua saída para a biblioteca. Ela olhou para mim e no mesmo instante baixou a mochila com os livros.

— O que aconteceu?

— Louise está sabotando Borboleta. Ouvi-a falar aos pretensos pais sobre a condição psicológica de Borboleta, fazendo-a parecer uma lunática que cai em estados catatônicos a toda hora e precisa de constante atenção médica.

Crystal limitou-se a acenar com a cabeça.

— Por que ela está fazendo isso, Crystal?

— Muito simples. Já expliquei. Os responsáveis por instituições como esta recebem mais dinheiro à medida que as crianças sob seus cuidados se tornam mais velhas. Por isso, quanto mais tempo o sistema deixa de encontrar pais adotivos para crianças como nós, mais dinheiro entra. Somos como uma máquina de fazer dinheiro para os Tooey.

- Mas isso é terrível! — exclamei, furiosa. — Como Louise pode nos usar desse jeito?

— No caso de Louise, acho que é muito complicado. No fundo, ela detesta abrir mão de qualquer criança daqui. Gordon quer o dinheiro, mas Louise gosta de nós, à sua maneira. Pensa em nós como seus próprios filhos.

- De que adianta ter alguém gostando de você se outra pessoa só dificulta sua vida e quer transformá-la na criança perfeita?

Eu já passara por isso antes... e não podia acreditar que fosse acontecer de novo.

— Tem alguma alternativa? — indagou Crystal. Fitei-a nos olhos.

— Tenho.

— E qual é?

— Vamos fugir daqui.

Ela não riu, como eu esperava; em vez disso, sustentou meu olhar, balançando a cabeça.

— É melhor eu ficar aqui hoje. Borboleta pode precisar de mim. — Crystal soltou um suspiro. — Não vamos contar a Borboleta o que Louise está fazendo. Ela ficaria muito triste se pensasse que talvez nunca saia daqui. E eu também não mencionaria nada sobre essa idéia de fugir.

— Eu falo sério, Crystal.

Ela virou-me as costas e olhou pela janela. Eu falava sério. Juro que falava. Mas o difícil agora era fazer com que as outras três acreditassem ém mim.

 

                         Por um triz

Depois de jogarem pingue-pongue, Raven e Borboleta foram até o campo de softball. Levei Raven para um lado e contei o que Louise fizera. Ela quis então invadir a sala de Louise para dizer-lhe umas verdades.

— Vamos virar aquele lugar pelo avesso e arrancar os cabelos daquela víbora — ameaçou.

- Eu bem que gostaria, mas não podemos. Não quero que ela saiba que fiquei ouvindo a conversa... e quem vai querer encarar Gordon depois?

Raven conteve-se. A imagem de Gordon Tooey enfurecido era suficiente para acalmar até mesmo seu espírito latino. No inverno, quando fazia muito frio e se podia ver o vapor da respiração nas narinas de Gordon, eu pensava que era fumaça saindo das ventas de um dragão.

- Não é justo — resmungou ela. — Deveríamos nos queixar a alguém.

- Como se alguém quisesse nos escutar. Nossa única esperança é fugir e construir nossas vidas.

- Fugir? — Ela arregalou os olhos. — É uma boa idéia...

Raven parecia desapontada por não ter pensado nisso primeiro. Depois de um momento, acrescentou:

— Realmente é uma boa idéia.

— Vamos dar um tempo para conversarmos mais a respeito. Quero traçar um plano.

— Fala sério? — Ela sorriu. — Sabe, Brooke, acho mesmo que há uma grande possibilidade.

Em seguida, Raven nos disse que ia subir e se aprontar para ir ao cinema com Gary Davis, um garoto da nossa idade que, no fundo, era somente mais um amigo, apenas isso.

Tínhamos permissão para sair com rapazes depois de completarmos dezesseis anos, mas não podíamos passar das onze horas da noite. O toque de recolher era imposto com rigor. Se se violasse uma das regras, não se poderia sair por um mês, talvez dois. Crystal e eu já saíramos para encontros algumas vezes, mas Borboleta ficava nervosa quando um rapaz tentava sequer puxar conversa com ela.

Raven sempre procurava promover encontros duplos. Eu não entendia por que, até que Crystal explicou que Raven não gostava de ficar a sós com os rapazes com quem saía. Então perguntei por que Raven aceitava os convites. Crystal disse que Raven era uma otimista, sempre procurando encontrar o melhor nas pessoas.

Como já tivera muitos namorados, Raven sempre se dispunha a nos dar conselhos sobre rapazes, como descobrir se eram sinceros, ou se apenas queriam emoções vulgares. Ela também conhecia muitos meios de se livrar dos que tentavam ir longe demais. Aparentemente, tinha muita experiência em se esquivar de avanços indesejáveis. Dizia que metade dos rapazes com quem saía merecia o apelido de "Polvo".

Quando me apaixonei por Bobby Sanders, um garoto da nossa equipe de tênis, perguntei a Raven por que ele nunca me olhava duas vezes. Ela respondeu que, provavelmente, era porque eu nunca o deixava ganhar quando jogávamos um contra o outro.

Os homens não gostam que as mulheres sejam melhores do que eles nos esportes, Brooke. Abala seus egos.

— Apenas tento tornar o jogo mais divertido.

- Nada disso. Você tenta vencer. Sempre tenta vencer.

Ela fez a acusação com um sorriso. Eu não podia negar. Raven tinha razão. Não era da minha natureza perder qualquer coisa deliberadamente. Será que isso tornava impossível encontrar alguém para me amar?

Eu detestava pedir a opinião de Crystal nessas questões. Ela tirava os óculos, limpava as lentes, pensava por um momento e depois começava a descrever os hábitos de acasalamento das baleias ou algo parecido.

- Não me fale sobre animais — eu protestava. — As pessoas são diferentes.

— Nem tanto.

Ela se punha a falar sobre a evolução, como as pessoas, no fundo, são muito mais parecidas com os animais do que imaginam.

Poupe-me, eu pensava, e tratava de encontrar alguma desculpa para escapar antes que ela me submetesse a um teste.

Era mais fácil ter uma experiência indireta, através de Raven; ficar na cama e esperar por sua volta. Enquanto se despia, ela relatava a noite, e eu acompanhava com a maior atenção, as imagens se formando por trás dos meus olhos. De modo geral, Raven gostava de me falar sobre seus encontros tanto quanto eu gostava de ouvir. Entretanto, quando ela voltou do encontro com Gary, percebi logo que havia alguma coisa errada.

- Não sei o que deu em Gary esta noite — disse ela, furiosa. — Acho que ele é igual aos outros. Suas mãos estavam em toda parte. E quando finalmente o empurrei para afastá-lo, ele começou a rir.

Raven fez uma pausa, respirou fundo, tremendo um pouco.

— Ele me disse que todos sabiam para que servem garotas como eu. E que ouvira histórias a meu respeito.

- Que tipo de histórias? Os garotos andam espalhando mentiras sobre você?

Minha raiva era tão grande, que eu tive vontade de entrar naquele carro para dizer a Gary o que pensava dele e de seus amigos nojentos. Depois de respirar fundo várias vezes, Raven explicou:

— Quando eu era mais jovem e morava com minha mãe, jurei que nunca seria como ela, Brooke. Cada vez que ela levava outro homem para casa, eu a odiava ainda mais. Não tanto pelo que fazia comigo, mas muito mais pelo que fazia com ela própria. Nunca pude compreender por que mamãe era assim.

Fez uma pausa.

- Quando vim para cá e comecei a freqüentar a escola, detestei que os outros pensassem em nós como sendo "aquelas órfãs, aquelas garotas do lar de adoção", como se fôssemos inferiores. Depois, percebi como os rapazes se sentiam atraídos por mim. Era muito fácil me sentir alguém quando desfilava pelos corredores parecendo mais sensual do que a maioria das garotas. Acho que provocava um pouco, é verdade, mas me sentia bem, quase poderosa às vezes. Não era apenas uma daquelas "órfãs". Talvez minha mãe fizesse tudo aquilo para não se sentir insignificante. Sei que não faz sentido para você, mas talvez ela tentasse também ser notada. E acabou envolvida por tudo, a bebida, as drogas...

Raven respirou fundo outra vez.

— Isso não vai acontecer comigo, Brooke. Mas não me envergonho de os rapazes olharem para mim e me desejarem. Já não sinto tanto ódio de minha mãe. Mudei um pouco, mas todas mudamos, não é mesmo?

— Este lugar faz a gente mudar — murmurei, incapaz de esconder minha amargura. — Não a culpo por se exibir, Raven, mas não se esqueça de que é perigoso.

- Sei disso. Gary falou que muitos dos rapazes com quem saí antes garantiram que tinham avançado até o fim. Juro que não é verdade. Essa será sempre a grande diferença entre mim e minha mãe, Brooke. Terei de gostar de um homem antes de fazer tudo com ele. Aqueles desgraçados inventam histórias. É muito... frustrante. Quero que gostem de mim, mas não quero ter uma péssima reputação.

- Isso não tem importância, Raven. Você sabe quem você é. As pessoas que gostam da gente, as pessoas que realmente se importam conosco, vão compreender.

- Será mesmo? Somos órfãs, Brooke. Não temos ninguém para nos defender. Quem somos não importa tanto quanto o que as pessoas pensam que somos. É como uma maldição de que não conseguimos nos livrar. E nada fizemos para a merecer.

Raven virou-me as costas. Enquanto mergulhava no sono, especulei se ela estava certa. Torcia para que não.

Borboleta não teve mais notícias sobre os Lockhart durante toda a semana seguinte. Finalmente, ao café da manhã, Louise passou por nossa mesa para avisá-la de que os Lockhart não poderiam adotá-la.

— Eles ainda não estão preparados para cuidar de filhos — comentou Louise. — Mas não se preocupe, querida. Algum dia, muito em breve, um casal simpático virá aqui para buscá-la.

Uma pausa, e ela acrescentou, olhando para mim, Crystal e Raven:

— Todas vocês.

— Não vamos prender a respiração enquanto esperamos, Louise — comentei.

— Não é uma boa atitude, Brooke. Seja positiva.

— Ora, sou sempre positiva.

Raven olhou para mim e sorriu. Louise empertigou-se e foi para outra mesa, a fim de instruir alguém sobre o uso correto dos talheres. Borboleta parecia estar murchando. Baixou a cabeça, ficou mexendo na comida sem levar nada à boca, empurrando os ovos de um lado para o outro no prato.

Trocamos alguns olhares sugestivos, e depois Crys-tal entrou em ação:

- Não fique triste por isso, Borboleta. Se não a quiseram, provavelmente não seriam mesmo bons para você. Não vai querer ficar de novo com pessoas erradas, não é?

Borboleta levantou os olhos e sacudiu a cabeça. Tinha as faces marejadas de lágrimas. Era como se todas nós tivéssemos sido rejeitadas mais uma vez.

— Quando as pessoas certas aparecerem, Borboleta, você saberá. Haverá uma espécie de química entre vocês, um sentimento agradável. Aquela impressão de que se conhecem há muito tempo.

Crystal daria uma grande médica, pensei. Sabia como fazer uma pessoa se sentir melhor.

— Eles gostaram de mim — murmurou Borboleta. — E eu também gostei deles. Eram simpáticos.

- Se mudaram de idéia, não eram bons para você — interferi. — Ouviu o que Crystal disse. Ela tem razão.

Não queríamos contar como Louise sabotara suas chances. Sem esperança, Borboleta poderia se tornar ainda mais retraída do que já era. Eu sabia disso porque também me sentia assim.

- Além do mais — acrescentei, piscando para Raven —, tenho outra idéia, que apresentarei em breve.

— Não faça isso — advertiu Crystal.

- Não se preocupe. Não direi nada enquanto não tiver um bom plano.

Um plano para quê? — perguntou Borboleta, agora intrigada.

— Para...

— Brooke!

Crystal arregalou os olhos e alteou as sobrancelhas, como costumava fazer ao se zangar.

— Seja paciente — pedi a Borboleta. — É uma surpresa.

Crystal sacudiu a cabeça.

- Falsas promessas podem magoar muito mais, Brooke.

— Não será falsa. Vai ver só.

- Estou com você — declarou Raven, virando os olhos negros como ônix para Crystal.

- Por que não me surpreendo ao ouvir isso? — murmurou Crystal, tornando a balançar a cabeça.

Tratamos de terminar de comer.

Era a última semana de aula. A maior parte do tempo agora era consumida em revisões para as provas finais. Havia o inevitável excitamento no ar, a expectativa pelas férias de verão. Os mais velhos no lar de adoção temporário podiam candidatar-se e conseguir empregos. Empresas diversas, lojas, e até mesmo escritórios de profissionais liberais precisavam de ajuda extra no verão e enviavam pedidos para a Lakewood House. Louise os punha no quadro de avisos. Os interessados preenchiam os formulários, que ela encaminhava aos empregadores. Era parte da estrutura da agência governamental apelar para a cooperação da iniciativa privada. Para nós, parecia mais caridade. Os empregadores gostavam de se gabar quando contratavam crianças órfãs. Crystal, Raven e eu trabalhamos muito no verão Passado e por isso tínhamos algum dinheiro em nossas Poupanças. E eu tinha planos para usar esse dinheiro. Mas seria preciso ser muito mais dramática para convencer Crystal... e, sem ela, seria impossível incluir Borboleta.

Além do mais, apesar de sua atitude pessimista e de suas preleções, eu realmente amava Crystal. Amava todas elas e todas me amavam.

Naquela noite de sexta-feira, o último fim de semana antes das provas finais, Louise subiu antes do jantar e entrou no quarto de Crystal e Borboleta. Raven e eu havíamos começado a estudar quando ouvimos os gritos de Louise.

- Vocês conhecem as regras sobre cigarros nesta casa! — berrou Louise para Crystal e Borboleta. — Gordon fica zangado. Este prédio pode ser destruído pelo fogo em minutos.

- Não temos nenhum cigarro — respondeu Crystal. — Nenhuma de nós jamais fumou. Sei o que o fumo pode fazer a uma pessoa.

— Claro que ela não fuma — comentei, quase rindo, entrando no quarto e me postando ao lado de Louise. — Seria a última pessoa deste mundo a ter um cigarro em seu quarto. Vive até repreendendo quem fuma. Se nos olhasse direito e visse realmente quem somos, saberia disso.

— Não se meta no que não é da sua conta, Brooke, ou lhe darei dez deméritos.

Louise tornou a se virar para Crystal e Borboleta, que estava encolhida em sua cadeira. Percebi que ela começava a sentir falta de ar.

- Eu gostaria que vocês, meninas, não me pusessem nesta situação. Mas tenho de cuidar de vocês como se fosse a sua mãe.

— Por que está fazendo isso, Louise? — perguntei. — Quem lhe disse que Crystal e Borboleta estavam fumando?

— Não interessa — resmungou ela. — E agora voltem para o seu quarto. As duas.

Raven avançou para ela. Segurei-a pelo braço e balancei a cabeça.

— Espere um pouco, Raven. Ela vai descobrir que se enganou dentro de um minuto.

Subitamente, Louise atravessou o quarto, até a estante improvisada de Crystal. Começou a arrancar os livros das prateleiras e acabou descobrindo um maço de cigarros. Levantou-o, segurando-o com o polegar e o indicador, como se fosse uma coisa nojenta.

— E o que é isto, posso perguntar?

Crystal sacudiu a cabeça, os olhos arregalados.

- Não sei como esse maço foi parar na minha estante, Louise.

— Talvez tenha andado até a estante. — Louise lançou um olhar furioso para Borboleta, agora vermelha de medo. — Isto vale vinte deméritos. As duas ficarão confinadas no quarto este fim de semana.

— Mas tenho de ir à biblioteca amanhã para usar o computador! — protestou Crystal.

- Não vai mesmo. Vocês duas voltarão para o quarto assim que acabarem de comer. Seus nomes irão para o quadro de avisos e ninguém poderá entrar aqui até o final do castigo.

Louise lançou um olhar furioso para Raven e para mim. Não pude deixar de interferir:

- Sabe muito bem que alguém pôs o maço de cigarros aqui, Louise. Crystal jamais fumaria, e não pode sequer imaginar Borboleta fumando.

— Foi você quem pôs o maço aqui, Brooke? — perguntou ela, os olhos contraídos, como se pudesse perceber a verdade dentro de nós.

- Claro que não. Nenhuma de nós fuma, Louise. Tem de acreditar nisso.

— Eu aconselharia vocês duas a voltarem para seu quarto, antes que eu também lhes dê vinte deméritos.

Eu já ia responder, quando ouvimos Gordon subindo a escada.

— O que está acontecendo? — indagou ele.

— Nada. Tenho tudo sob controle.

Louise pareceu ficar assustada com Gordon, que olhou furioso para mim e para Raven, voltando depois a fitar Louise. Viu o maço de cigarros na mão dela.

— De quem é isso?

— Já tenho tudo sob controle, Gordon — repetiu ela, um pouco mais suave. — As partes culpadas receberam sua punição.

- Sorte delas que tenha sido você e não eu — murmurou Gordon, os músculos dos maxilares se contraindo.

Todo tipo de raiva entrava em erupção dentro de Gordon Tooey, pensei. Um dia ele explodiria. Era um "homem bomba", como Crystal costumava dizer. Ele seguiu em frente, as botas ressoando no assoalho do corredor, a caminho dos aposentos do casal. Todas deixaram escapar o ar retido nos pulmões, até mesmo Louise.

— Isso não é justo.

Eu ia falar mais, porém vi Crystal balançar a cabeça, quase me suplicando para permanecer em silêncio.

— Um absurdo — murmurei, virando-me e saindo do quarto, acompanhada por Raven.

Depois que ouvimos Louise se afastar, voltamos ao quarto de Crystal e Borboleta. As duas pareciam atordoadas. Crystal batia nos livros, angustiada.

— Tenho de ir à biblioteca para usar o computador. Há algumas coisas de que preciso para terminar meus trabalhos.

- Escreva o que devo fazer e irei à biblioteca por você, Crystal — propus.

Ela arriou na cadeira.

— Quem fez isso conosco? — indagou, desnorteada com a rapidez dos acontecimentos.

— Acho que não é preciso muito esforço para adivinhar — murmurei. — A doce Megan Callaway. Ela planeja há dias vingar-se de nós, ainda mais depois que a embaracei no refeitório.

— Então, por que ela não pôs o maço no seu quarto?

— Provavelmente pensou que você e Borboleta sofreriam mais se ficassem presas no quarto do que Raven e eu. Além disso, ela sabe também que tudo que acontece a uma de nós, acontece com todas.

- Detesto este lugar. — Crystal não era de dizer isso com tanta veemência. — Ele transforma todas as pessoas em... monstros.

— Podem deixar que cuidarei de Megan — prometi.

— Não vai me adiantar de nada agora — lamentou-se Crystal.

- Não gosto de passar o dia inteiro no quarto — choramingou Borboleta. — Principalmente quando faz bom tempo. As flores pequenas precisam de sol.

Era um comentário que a mãe adotiva fizera, e que ela recitava com freqüência.

- Pense mais um pouco em minha sugestão, Crystal — murmurei, fitando-a nos olhos.

Ela olhou para mim por um momento, depois para Borboleta, e voltou a se concentrar em seus livros.

Algumas das outras crianças saíram de seus quartos para ver o que causara a comoção. Megan e sua companheira de quarto estavam na outra extremidade do corredor. Percebi o ar de satisfação no rosto de Megan quando a notícia passou de boca em boca pelo corredor.

— Vou até ela dizer que sabemos que é a culpada — murmurei para Raven.

Já ia avançar para Megan quando Raven me segurou.

— Tenho outra idéia, Brooke. Venha comigo.

Confusa, mas intrigada, desci a escada atrás dela. Fomos para o closet que servia como depósito. Raven acendeu a luz. Acenou com a cabeça para a câmera Polaroid de Patty Orsini.

- Tem até filme, Brooke. Ela está guardando as três últimas chapas para uma ocasião especial. Foi o que me disse ontem.

— E daí?

— Estou pensando numa ocasião muito especial. Raven exibia um sorriso malicioso ao pegar a câmera na prateleira.

— Isso pode valer cinqüenta deméritos — adverti.

— Vamos apenas tomá-la emprestada. Não se preocupe.

Ela guardou a câmera por baixo da blusa e saímos de lá. Voltámos para o quarto, onde Raven descreveu seu plano.

— Raven, você é incrível! — exclamei, excitada. — Por que não pensei nisso antes?

Ela ficou na porta, que deixamos entreaberta, enquanto esperávamos. As meninas se revezavam no banheiro, preparando-se para dormir. Megan Callaway, como sempre, saiu do quarto com sua toalha. Usava o roupão e foi tomar um banho de chuveiro. Assim que ela fechou a porta, Raven acenou com a cabeça para mim. Fomos até o banheiro. Raven abriu a porta, enfiando seu cartão de plástico da biblioteca entre a lingüeta da fechadura e o batente. Eu tinha a câmera nas mãos. Raven abriu a porta sem fazer barulho e entramos no banheiro. Assim que ela puxou a cortina do boxe, bati a foto, antes que Megan sequer soubesse o que estava acontecendo. Foi uma foto estupenda, um nu frontal. Ela gritou, enquanto saíamos.

Histéricas de excitamento, voltamos ao quarto, fechamos a porta e esperamos a Polaroid completar o trabalho. A imagem emergiu, clara e perfeita. A vingança estava nas pontas dos nossos dedos. Pusemos câmera de lado e mostramos nosso prêmio a Crystal.

Quem, senão Megan, iria plantar os cigarros naquele lugar? — ela se admirou.

— Tenho certeza de que foi Megan mesmo quem fez essa bandalheira, Crystal.

— E agora todas nós vamos ter mais problemas — comentou ela.

- A essa altura já nem me preocupo mais — eu disse.

Crystal olhou na direção de Borboleta.

— Não se preocupe que não vamos envolver vocês duas. Deixe tudo com Raven e comigo.

Megan Callaway não tinha idéia do que faríamos, mas sabíamos que falaria com Louise. Por isso, escondemos a foto atrás de uma saliência no papel de parede, confiantes de que não seria encontrada mesmo com uma busca meticulosa no quarto. Por qualquer motivo, porém, Megan não disse nada a Louise.

No dia seguinte, iniciei a aplicação do plano. Ao entrarmos no refeitório, sentei-me ao lado de Megan.

- Não foi nada engraçado o que vocês fizeram ontem à noite — murmurou ela.

— Nem tivemos essa intenção.

Abri a mão, e ela viu a foto. Empalideceu como um fantasma, antes que uma onda de vermelho se espalhasse por seu rosto.

- Não há um só garoto aqui que não vá ver esta foto... e não pense que pode nos denunciar a Louise, Porque ela nunca encontrará nada conosco.

Megan estava quase em lágrimas.

- Suba agora e diga a Louise que você plantou o maço de cigarros para se vingar de Crystal ou de Borboleta. Se fizer isso, eu lhe darei a foto e ninguém mais averá. Caso contrário...

Olhei para Billy Edwards. Depois me levantei e me encaminhei para o lugar em que ele estava sentado. Megan observou, horrorizada, quando sentei a seu lado e comecei a conversar, sem desviar os olhos dela. Vi-a engolir em seco, depois se levantou e saiu do refeitório, de cabeça baixa.

Não queria que me encontrassem com a foto, se ela me denunciasse. Por isso, entreguei-a a Raven, que foi escondê-la no closet de depósito. Já estávamos quase acabando de comer quando Crystal e Borboleta entraram. Crystal exibia uma expressão indicando que ela e Borboleta haviam sido dispensadas do castigo no quarto.

— O que você fez? — perguntou, antes mesmo de se sentar.

- Não muita coisa. Mostrei-lhe a foto, disse que todos os garotos daqui a veriam. Mas prometi entregar a ela se confessasse o que fizera.

— Ela confessou — murmurou Crystal. — Vai ficar confinada no fim de semana.

- Raven merece todo o crédito — comentei. — A idéia foi dela.

— Sei como lidar com esse tipo de lixo — gabou-se a jovem.

- Vou para a biblioteca. — Crystal fitou-nos em silêncio por um momento. — Obrigada por nos ajudarem, mas eu gostaria...

— Que nunca tivesse acontecido? — sugeri. Ela acenou com a cabeça.

— Já disse o que acho que devemos fazer.

— Deixem-me pensar a respeito.

— A respeito do quê? — indagou Borboleta. Olhei para Crystal, que inclinou a cabeça.

— De fugir.

— Fugir?!

Raven quase saltou da cadeira para tapar a boca de Borboleta. Disse a ela para falar baixo. Algumas crianças olharam para nós. Gordon conversava com vovó Kelly sobre um defeito no fogão.

- Fugir? — repetiu Borboleta, a voz mais baixa, quando Raven tirou a mão de sua boca.

- Isso mesmo — confirmou Raven. — Por que não? Estou cansada de trabalhar para Gordon e Louise, fingindo que é para desenvolver nosso caráter e ajudar a pagar a estadia. Eles estão nos explorando. Crystal descobriu sobre a comida, não foi?

- Mas... ninguém jamais poderá nos adotar se fugirmos — lamentou Borboleta. — E mesmo que pudessem, não iam querer adotar fugitivas.

- Ninguém será adotada aqui, Borboleta... pelo menos não uma de nós.

- Por que não? Quase fui adotada esta semana, não é mesmo? Pode acontecer. Você mesma disse que podia. E que eu devia querer isso. Falou...

— Louise impediu a sua adoção.

Ela me fitava com seus olhos grandes, bonitos e tristes.

— Como assim?

Relatei o que eu ouvira e o que acontecera. Borboleta ficou angustiada, os olhos tremeram.

— Eles acham que sou louca?

— Não — interveio Crystal. — Sabem que você não é louca, mas usam de todos os recursos e todos os motivos para nos manter aqui, e tudo por causa do dinheiro. E também porque tudo é isento de impostos. Brooke está certa.

— Já é tarde demais para nós, Borboleta — murmurou Raven. — Adolescentes criam muitos problemas. Os pais querem que seus filhos nunca passem dos cinco anos.

- Raven tem razão — declarei. — Uma vez ouvi Gordon dizer isso. Crianças pequenas, problemas pequenos; crianças maiores, problemas maiores. De qualquer forma, não sei se ainda quero ser adotada. Estou sozinha há tanto tempo que parece a coisa certa, como um sapato velho ou algo parecido.

— Eu também acho isso — murmurou Raven.

- Neste caso, devemos partir. — Virei-me para Crystal. — Vamos finalmente assumir o controle de nossas vidas.

— Para onde iremos? — perguntou Borboleta.

— Oeste — respondi. — Califórnia.

— O que significa atravessar todo o país — comentou Borboleta, num sussurro.

- Podemos parar onde quisermos e sempre que assim decidirmos — respondi. — Mas meu palpite é que iremos até o fim.

Todas ficaram caladas, pensativas, imersas na imaginação e nos sonhos.

— Lá você pode se tornar uma bailarina com muito mais facilidade, Borboleta — acrescentei. — E você pode se tornar uma médica, Crystal. E você uma cantora ou atriz, Raven. Pode comparecer a audições todos os dias, todas as semanas, até se tornar uma estrela.

— E você, Brooke? — perguntou Crystal. Pensei um pouco.

— Eu poderia ser eu mesma.

Raven não queria, mas entreguei a foto a Megan, como havia prometido.

— Acordo é acordo — ressaltei.

— Não se pode fazer acordos com pessoas assim — declarou Raven. — Acredite em mim, Brooke. Tenho experiência.

Havia muita coisa que ela sabia sobre pessoas mesquinhas e manipuladoras, mas eu não queria me transformar numa pessoa cheia de ódio. Enfiei a foto por baixo da porta de Megan e esqueci o assunto.

Devotei o tempo que podia, durante toda a semana seguinte, no planejamento de nossa fuga e para onde iríamos-, além de estudar para as provas finais. Pedi a Crystal que consultasse um computador para determinar o melhor percurso do Estado de Nova York à Califórnia.

- Como viajaríamos? — indagou ela. — Nós quatro não podemos pedir carona durante toda a viagem.

- Deixe essa parte comigo. Estou trabalhando nisso.

- Trabalhando nisso? Vamos de trem? De avião? Como posso planejar um roteiro se não sei o que você está planejando?

Tive medo de dizer. Afinal, se ela soubesse o que eu planejava, talvez quisesse desistir antes mesmo de começarmos.

- Por enquanto, o plano é viajar de carro — respondi.

- De carro? E onde vai conseguir um carro? Não tem habilitação, não tem dinheiro suficiente para comprar um carro. Mesmo que juntássemos todo o nosso dinheiro, que tipo de carro poderíamos comprar? E também não teríamos o suficiente para as despesas de viagem. Com toda sinceridade, Brooke, eu não...

— Será que pode fazer isso por mim? Por favor? Eu sabia que ela gostava de um desafio e adorava demonstrar sua capacidade no computador.

- Está bem. Vou acessar o Automóvel Clube na Internet. Eles fornecem roteiros e mapas. Para onde vamos, na Califórnia?

Crystal pegou uma caneta e um bloco enquanto falava.

— Vamos pensar primeiro em Los Angeles.

— Certo. — Ela pensou um instante. — Já estamos quase no verão. Podemos fazer um percurso pelo meio do país ou ir pelo norte. Providenciarei várias rotas e Pensaremos nos prós e contras de cada uma.

— É exatamente o que eu gostaria de fazer: pensar nos prós e contras.

Ela me fitou, aturdida, e sorriu.

- Não vou fazer nada se começar a me gozar Brooke.

- Não estou lhe gozando — disse, mas não pude deixar de sorrir. Abracei-a. — Faça isso. E deixe o resto comigo.

— Ainda me parece uma maluquice, Brooke. Farei isso mais como um exercício intelectual do que por qualquer outra coisa. Não sei como será possível.

Crystal pegou sua pasta e saiu para ir à biblioteca. Eu sabia que ainda precisaria me esforçar muito para persuadi-la. Ela teria uma centena de razões objetivas e lógicas para que meu plano falhasse. Mas nenhuma das duas podia saber que, naquela mesma noite, Gordon a pressionaria tanto, que ela concordaria com qualquer coisa que eu propusesse, mesmo que fosse para fugir num tapete mágico.

Pouco antes das dez horas, Crystal retirou-se, a fim de tomar um banho e relaxar. Além de pesquisar uma rota para a nossa viagem, ela passara o dia inteiro trabalhando. Amanhã teria suas provas finais e queria tirar a nota máxima em tudo.

Cerca de quinze minutos depois de Crystal entrar no banheiro, Raven fechou seu livro, jurando que nunca mais estudaria.

- Não me importo se for reprovada em tudo — declarou, irritada.

Raven era uma boa aluna, mas, àquela altura, todas nós cansáramos de estudar.

Eu já ia concordar quando ouvimos o grito de Crystal. Foi tão alto, que passou pela porta fechada do banheiro e também pela porta fechada do nosso quarto. Saí para o corredor e vi Gordon se afastando, com uma caixa de ferramentas na mão. Ele olhou para trás, com uma expressão culpada, antes de descer. Raven olhou para mim depois para a porta do banheiro, os olhos cheios de espanto e medo. Borboleta apareceu no corredor.

— O que aconteceu? — perguntou ela.

- Não sei... — murmurei, avançando para o banheiro. — Crystal?

Ouvi um soluço. Entramos todas no banheiro. Crystal estava sentada na borda da banheira, uma toalha enrolada no corpo, os braços se enlaçando, toda trêmula. Ainda estava molhada e com espuma de sabonete nos cabelos.

- O que houve? — perguntei, enquanto Raven fechava a porta.

— Ele... ele... entrou aqui e...

- Gordon? — indagou Raven. — Enquanto você tomava banho?

Crystal nos fitou, os olhos cheios de lágrimas. Acenou com a cabeça.

- Não o ouvi chegar. Estava quase dormindo na banheira.

— Não tinha trancado a porta? — perguntou Raven.

— Claro que tranquei. Ele deve ter usado sua chave. Não bateu nem fez barulho. Quando dei por mim, ele estava parado aqui, me olhando. Eu tinha a cabeça recostada, os olhos fechados. Subitamente, senti sua presença e olhei. O rosto de Gordon estava... muito vermelho... ele tinha um sorriso alucinado. Por um momento, não fui capaz de emitir qualquer som.

- O que ele fez? — perguntei, com a respiração acelerada.

— Começou a me apalpar.

— Eu sabia! — murmurou Raven.

— Ele tocou em você? — indaguei.

— Ele estendeu a mão e disse...

- Disse o quê? — pressionou Borboleta.

— "Deixe-me ver se estas maçãs já estão maduras." Foi nesse momento que gritei e ele retirou a mão. "Só vim consertar um vazamento na pia", justificou-se ele, "Não precisa armar um tumulto." Gritei de novo, ele se virou e saiu.

— Vazamento na pia? Ninguém disse que havia um vazamento na pia. — Dei uma olhada nos canos. — Ele não veio aqui consertar nenhum vazamento.

— Devemos contar a Louise — Borboleta propôs.

- De que adiantaria? — murmurei — Gordon diria que Crystal deixou a porta destrancada, que não podia saber que ela estava na banheira.

— Brooke tem razão — interveio Raven.

— E as coisas que ele disse? — indagou Borboleta. — Foram horríveis. Gordon não se referia a maçãs realmente.

- Ele vai negar tudo, Borboleta — expliquei. — Deixem-me pensar um pouco, por favor.

Tornamos a olhar para Crystal. Ela ainda tremia. Raven também sentou-se na borda da banheira, passando o braço em torno dela.

— Calma, calma...

— Fiquei... apavorada.

— Vamos nos unir — sugeriu Borboleta.

— Agora? — indaguei.

Raven disse que sim. Encostamos então nossas cabeças.

— Somos irmãs. Estamos juntas. Nada de ruim pode acontecer a uma de nós enquanto estivermos unidas.

Crystal pôs-se a entoar também. A cor começou a voltar ao seu rosto.

— Foi horrível — balbuciou ela.

- Sei como é isso. — Raven fitou uma a uma. — Também o surpreendi me olhando algumas vezes.

— Você nunca me contou — murmurei. Ela deu de ombros. — Mas ele nunca tocou em você, não é?

Eu não podia acreditar que Gordon fosse tão sórdido.

— Não. Nunca. Não contei porque não queria deixar ninguém com mais medo dele. Mas se algum dia Gordon tentasse tocar em minhas maçãs, eu faria sua voz aumentar algumas oitavas.

— O que isso significa? — perguntou Borboleta.

— Não importa. — Olhei para Crystal. — Sente-se bem agora?

— Muito melhor. Vou me enxugar e ir para a cama. Obrigada.

— Vamos todas nos deitar — sugeri. Começamos a nos encaminhar para a porta.

— Brooke... Virei-me.

— O que é?

- Quero conhecer seu plano — disse Crystal. — Todos os detalhes. Depois das provas de amanhã.

Balancei a cabeça em concordância, um pouco triste porque fora preciso aquele incidente desagradável para que Crystal aceitasse o meu plano.

- Espero que você tenha mesmo um plano — acrescentou ela, fazendo um esforço para reprimir os soluços.

- Claro que tenho. E muito bom. Conseguiu os mapas?

Ela acenou com a cabeça.

- Amanhã. — Olhei de Borboleta para Raven e Crystal. — Amanhã vamos nos reunir e dar os retoques finais.

Eu me sentia ao mesmo tempo tão furiosa pelo que Gordon fizera com Crystal e tão ansiosa em partir, que não consegui fazer com que a imaginação parasse de funcionar a mil. Precisava descansar um pouco para as provas, mas era como se minha mente tivesse se transformado numa máquina de fliperama, com a idéia da fuga saltando de uma possibilidade emocionante para outra, iluminando a escuridão, pondo para ressoar campainhas e sinetas.

Acabei me levantando e fui ao banheiro. Parei de repente ao voltar, porque avistei uma luz acesa na frente da Lakewood House. Raven dormia profundamente, não notara coisa alguma. Curiosa, fui até a janela. Divisei dois vultos andando pelo caminho dos carros. Um deles, definitivamente, era Gordon. Não dava para me enganar, com toda a sua corpulência, por mais escuro que estivesse lá fora. O outro homem era bem mais baixo. Por um.momento, cheguei a pensar que os dois discutiam. Gordon ergueu os braços, mas baixou-os em seguida. Passou então um dos braços pelos ombros do outro homem. Os dois sumiram na curva do caminho. Reapareceram um instante depois, junto da caminhonete de Gordon. Eu soube que uma porta fora aberta, porque a luz dentro do carro acendeu. Mas ninguém entrou. Logo em seguida o homem mais baixo se afastou. Gordon fechou a porta da caminhonete e ficou observando o homem, que foi pegar o carro dele e partiu.

Gordon continuou parado ali por mais um minuto. Depois, virou-se e levantou os olhos, como se sentisse minha presença na janela. Meu coração foi parar no estômago. Tratei de recuar e esperei. Quando tornei a olhar, ele desaparecera, e a escuridão parecia ainda mais densa do que antes.

 

                       Como ladras na calada da noite

Eu queria iniciar os preparativos para a viagem assim que as aulas terminassem no dia seguinte. Era difícil me concentrar em qualquer outro assunto. Havia coisas que precisávamos levar na viagem. Pensei em passar pela loja de departamentos antes de voltarmos para a casa. Mas esquecera que Raven, Crystal e eu teríamos de trabalhar no refeitório. Crystal me lembrou quando nos encontramos na área dos armários na escola e eu lhe disse o que queria fazer.

- Não podemos. Precisamos voltar logo e ajudar vovó Kelly a preparar o jantar. Se nos atrasarmos, Gordon sairá à nossa procura.

Depois do que Gordon fizera com ela no banheiro na noite anterior, Crystal sentia um terror absoluto pela perspectiva.

- Pare de se preocupar, Crystal. Não vamos nos atrasar. Só precisamos de vinte minutos para andar até a casa.

- Compraremos o que for necessário amanhã — insistiu ela, o rosto contraído pelo medo. — Teremos a tarde inteira para isso, não é?

Crystal parecia não acreditar que íamos mesmo fugir. Era como se me tratasse com a maior condescen dência. Raven lançou-me um olhar de advertência Inclinei a cabeça para indicar que compreendia.

- Está bem — concordei, relutante. — Vamos embora.

Pegamos o ônibus de volta, em vez de iniciarmos os preparativos para a viagem. Nem mesmo conversamos a respeito no ônibus. Junto com os outros estudantes, limitamo-nos a falar sobre as provas que acabáramos de concluir. Comecei a sentir que talvez Crystal tivesse razão, talvez não passasse de uma quimera, uma fantasia.

Entretanto, um fato extraordinário: as provas finais não haviam sido tão difíceis quanto eu previra. Quase tudo que caíra eu havia estudado pouco antes ou consegui recuperar, do fundo da memória, com a maior facilidade. Era como se o cérebro estivesse eletrificado pelo excitamento e cada pensamento um cartaz em néon, anunciando onde fora arquivado.

Crystal manteve-se pensativa. Disse apenas que fora bem nas provas, mas recusou-se a discorrer a respeito, o que era próprio dela. Em geral, ela nos fazia uma resenha de suas provas, quer quiséssemos ou não, dando notas ao professor ou professora sobre a escolha dos pontos mais importantes. Eu sabia que o ato de Gordon na noite passada era como um peso de chumbo em sua mente. Sentia-se apavorada em vê-lo ou ser vista por ele, mas tinha o mesmo pavor do plano que eu propusera.

Quando chegamos na Lakewood House, ela entrou correndo no prédio e subiu para seu quarto, a fim de trocar de roupa, esperando evitar um encontro com Gordon.

- Ela ficou na pior — comentei para Raven. — Tirá-la daqui é a melhor coisa que podemos fazer por ela.

- A melhor coisa que podemos fazer por todas nós. – falou Raven. — Espero que você tenha um bom plano, Broke.

Tenho mesmo.

Borboleta, que nos seguia como um cachorrinho ansioso, escutou e arregalou os olhos em preocupação. Não estava na lista de serviço, mas mesmo assim foi trabalhar conosco na cozinha. Agora que sabia o tipo de maldade de que Gordon era capaz, sentia-se nervosa demais para ficar em qualquer lugar sozinha.

Eu queria discutir os planos em detalhes assim que fosse possível, mas com vovó Kelly pairando ao nosso redor era difícil conversar na cozinha. Fiquei tão frustrada que até pensei que podia estourar como um balão cheio. Raven e eu trocávamos olhares de expectativa a todo instante, mas trabalhamos com a devida eficiência, ao lado de Crystal e Borboleta, empilhando os pratos, arrumando os talheres e preparando as bandejas.

— Vamos nos encontrar no seu quarto logo depois de lavarmos a louça e lá explicarei tudo — sussurrei para Crystal, assim que iniciamos o trabalho na cozinha.

Ela acenou com a cabeça. A todo instante, seus olhos se desviavam do trabalho para a porta. Não era difícil perceber que estava apavorada.

Gordon apareceu uma vez, parando na porta da cozinha e olhando para nós. Raven, a mais destemida, fitou-o com seus olhos pretos enfurecidos, depois virou-me as costas. Vi o canto superior direito dos seus lábios tremer. Crystal, quase trêmula da cabeça aos pés, manteve os olhos abaixados, os dedos agitando-se, descuidados, em torno das travessas quentes, até que queimou o polegar. Gordon alargou o sorriso e se retirou.

Raven murmurou um insulto baixinho.

— O que foi, minha cara? — perguntou vovó Kelly.— Nada — respondi no mesmo instante. — Apenas estamos com fome. Gostaríamos que chegasse logo a hora de servir e comer.

Isso levou-a a contar uma história sobre a Lake-wood House no auge de seu prestígio como pousada descrevendo como os hóspedes apreciavam a comida e se empanturravam a ponto de explodir.

— Tinham de fazer longas caminhadas depois das refeições. Ao voltar para casa em meu carro, podia avistá-los andando pela estrada. Depois, muitos dormiam nas enormes cadeiras de madeira ou nas redes da varanda. Todos queriam ter certeza de que valia a pena o dinheiro que gastavam.

Vovó Kelly arrematou com uma risada. Suspirou em seguida, balançou a cabeça, enquanto corria os olhos pela cozinha.

- Era muito diferente quando a mãe e o pai de Louise dirigiam a casa. Eu gostaria que vocês tivessem conhecido Lakewood House naquele tempo.

Ela olhou para Borboleta, que escutava as histórias como se fossem contos de fadas.

— Ah, esse seu rostinho tão meigo... — murmurou ela, abraçando Borboleta. — Se eu fosse vinte anos mais moça, pode ter certeza de que a adotaria... adotaria todas vocês.

Vovó Kelly voltou a se concentrar no preparo da comida. Sentiríamos saudade dela, pensei, com uma profunda tristeza. Tive vontade de me adiantar, abraçá-la também e dizer:Adeus, vovó Kelly. Esta é a última vez que a ajudaremos na cozinha. Obrigada por gostar de nós, por se importar conosco, por nos tratar como trataria seus próprios netos. Agora, aceite o meu conselho e saia daqui logo depois que partirmos."

É claro que não falei nada. Não podíamos revelar coisa alguma; e não queríamos sobrecarregá-la com os nossos segredos. Servimos o jantar, comemos e limpamos tudo o mais depressa que podíamos. Megan notou que trabalhávamos com o maior empenho e resolveu zombar-

Puxa, vocês resolveram trabalhar como nunca esta noite. O que estão tentando fazer? Cair nas graças de Gordon?

— Ele não tem nada de bom — respondeu Raven.

— Gostaria que eu repetisse isso para ele? Crystal lançou-me um olhar amedrontado.

— Deixe-nos em paz, Megan — intervi.

Ela me fitou em silêncio por um momento, decidindo se deveria ou não me desafiar. Ainda se ressentia do que fizéramos e de ter amargado um fim de semana confinada no quarto.

- Estou de olho em vocês — disse Megan. — E terei minha oportunidade. Podem apostar.

Ela virou-se e deixou o refeitório.

- Se ela descobrir o que estamos planejando... — murmurou Crystal.

— Ela não vai descobrir — garanti. — Teremos partido muito antes de Megan desconfiar de qualquer coisa.

Demos boa-noite para vovó Kelly. Como já fizera uma centena de vezes antes, ela nos agradeceu por sermos boas ajudantes. Subimos para os nossos quartos, junto com os outros, que ainda tinham de estudar para as últimas provas do dia seguinte. As crianças menores foram assistir à televisão na sala de recreação. Depois de esperar um pouco, Raven e eu fomos nos juntar a Crystal e Borboleta, no quarto delas. Fechei a porta sem fazer barulho. Podíamos finalmente conversar sobre o Plano. O ar era tão denso, que eu tinha a sensação de andar por um quarto cheio de teias de aranha.

— Onde estão os mapas? — perguntei, quase num o sussurro.

Crystal virou-se e ajeitou-os, lado a lado, em sua escrivaninha.

— Este é o roteiro por dentro do país e este é pelo norte — informou ela. — Há também um caminho pelo sul. Mas descobri que ainda pode estar nevando nas Montanhas Rochosas, tornando a passagem difícil. Achei melhor evitar essa possibilidade. Pegaremos a 17 East até a Jersey Turnpike, para começar.

- Quanto tempo leva para chegarmos à Califórnia? — perguntou Borboleta.

— Depende da rota que seguirmos. Mas se alguém viajasse durante o dia inteiro, todos os dias, sem contemplar as paisagens no caminho, provavelmente demoraria quatro dias.

Crystal virou-se para mim, ao final da resposta, e acrescentou:

— Muito bem, Brooke, fiz o que me pediu. E agora nos diga como tenciona atravessar todos os Estados Unidos da América.

Recostei-me, os braços cruzados sobre o peito.

— Vou guiar o carro — respondi, dando de ombros, como se fosse a coisa mais óbvia.

- Você não tem carteira de motorista — lembrou ela, no mesmo instante. — Não fez o exame.

- É preciso ter a habilitação para ser legal, não para guiar. Não esqueça que fiz o curso de motorista.

- Pode ser, mas ainda precisa de um carro para guiar.

Era como se estivéssemos jogando xadrez com palavras.

— Temos um carro.

— Temos? — Crystal olhou para Raven, que deu de ombros, e depois para Borboleta, que tinha os olhos arregalados de surpresa. — E onde está?

— Ali fora. — Sorri e acenei com a cabeça para a janela. — À nossa espera.

Crystal começou a sorrir, pensando que era uma brincadeira minha. Parou de repente, ao compreender o que eu queria dizer. Levantou-se e foi até a janela. Borboleta e Raven a acompanharam. As três olharam para a caminhonete de Gordon.

— Quer levar o carro dele? — perguntou Raven.

— Por que não? Ele não tira o dinheiro que deveria ser nosso?

Elas ficaram me olhando fixamente, em silêncio, como se eu tivesse pirado por completo. Depois, Crystal recuperou a calma e assumiu seu ar de professora.

— Se levar o carro — disse ela —, Gordon colocará a polícia atrás de nós.

— Não por algum tempo. De qualquer maneira, só precisamos do carro para nos afastarmos o suficiente até encontrarmos outro meio de transporte, talvez um ônibus ou um trem. Podemos estudar esses mapas e encontrar um caminho fora das estradas mais movimentadas. Não precisamos atravessar o país em quatro ou cinco dias, nem mesmo em dez. Não há pressa.

- É preciso dinheiro para ir devagar, Brooke — comentou Crystal. — Viajar é caro.

- Sei disso. Amanhã vamos ao banco para retirar nossas economias. A não ser que vocês tenham gasto em alguma coisa que ignoro, calculo que, juntas, temos quase mil e quatrocentos dólares.

- Não é muito dinheiro, quando se considera o que pretendemos fazer — respondeu Crystal. — Provavelmente gastaríamos tudo nos primeiros dias. Temos de pensar nas despesas de gasolina, pedágio e comida. Para não falar em quartos de hotel e problemas imprevistos com o carro.

- E daí? Arrumaremos trabalho pelo caminho. Você, Raven e eu já trabalhamos numa porção de coisas. E Borboleta... — Sorri para ela. — Talvez Borboleta consiga que as pessoas lhe dêem dinheiro sem a menor dificuldade, se dançar numa esquina ou algo parecido.

— Isso é fantasia, um sonho — murmurou Crystal balançando a cabeça. — Eu sabia desde o início.

— Pare de dizer isso! — exclamei. — Não é fantasia. Eu planejei tudo. Sei onde Gordon guarda as chaves do carro. Ele as deixa naquele velho blusão de couro que fica pendurado na parte de dentro da porta de seu quarto. Já o vi pôr as chaves ali.

— Vai entrar no quarto de Gordon e lhe roubar as chaves? — perguntou Borboleta.

— Claro. Não será difícil. Louise não tranca a porta durante a noite.

Borboleta continuou a me fitar, espantada com a minha coragem.

— Talvez ele nem chame a polícia — sugeriu Raven subitamente, pensativa. — Talvez apenas saia em nossa perseguição no caminhão.

Isso me deixou quieta por um momento, imaginando um furioso Gordon Tooey em disparada pela estrada, a boca contorcida, as narinas tremendo, os olhos esbugalhados, enquanto ia apertando o acelerador até o fundo para nos alcançar. Se nos pegasse, não havia como saber o que faria. Seria melhor se fôssemos apanhadas pela polícia.

Crystal olhou para os mapas.

- Poderíamos enviá-lo para outro lugar com uma pista falsa — murmurou ela.

— Como? — perguntei.

- Deixaremos aqui a rota que não escolhermos. Talvez... fingindo que a deixamos cair na pressa de partir. Ele a encontrará e pensará que tem uma maneira fácil de nos encontrar, partindo na direção errada.

- Brilhante, Crystal! — exclamei, encorajada por ela oferecer uma sugestão. — Genial!

Ainda é um risco muito grande, Brooke. Não sei.

Ela tirou os óculos para limpar as lentes, enquanto balançava a cabeça.

É melhor do que ficar sentada aqui esperando até completar dezoito anos... ou até que Gordon tente tocar em uma de nós outra vez. Não há como prever quem poderá ser a próxima.

Virei-me para Borboleta e fitei-a nos olhos. Estava decidida a usar todo e qualquer recurso para fazer Crystal compreender que não havia outra saída.

- Ela tem razão, Crystal — murmurou Borboleta. — Estou disposta a tentar, se você também for.

- Não precisamos gastar dinheiro em quartos de hotel se usarmos a caminhonete — continuei. — É bastante espaçosa para nós quatro dormirmos, se baixarmos o encosto do banco de trás. Amanhã de noite, depois que todos estiverem dormindo, Raven e Crystal irão à cozinha e pegarão tanta comida quanto puderem. Isso também nos ajudará a poupar algum dinheiro. Daqui até lá, todas devem escolher as roupas que couberem numa fronha. Não podemos levar muita coisa. Usaremos essas fronhas como travesseiro.

— Já vem pensando nisso há algum tempo, não é? — perguntou Crystal.

- Há mais tempo do que você pode imaginar.

- Não esqueçam a escova de dentes — disse Borboleta.

Até mesmo Crystal teve de rir.

- Agora — murmurei —, vamos estudar o mapa Que usaremos.

Crystal olhou para Raven e Borboleta, a fim de se certificar de que elas continuavam de acordo. Depois, apontou para um dos mapas. Todas nos reunimos ao seu redor.

— Deixaremos esta rota para Gordon encontrar - disse Crystal. — Passa pela Pensilvânia, Virgínia, Flórida, Texas. Talvez ele chegue até a Flórida antes de compreender que seguiu uma pista falsa. A essa altura, já estaremos longe.

Borboleta riu. Calculamos onde poderíamos chegar no primeiro dia e no segundo, todas falando ao mesmo tempo. Era uma sensação maravilhosa... uma sensação de esperança.

Mais tarde, foi quase impossível dormir. Minutos depois que a luz do nosso quarto foi apagada, Raven me chamou.

— O que é?

— Não vai mudar de idéia, não é, Brooke? A voz dela tremia um pouco.

— Claro que não. Acha que estamos fazendo a coisa errada?

Subitamente, também me senti apavorada.

- Não se preocupe, Brooke. Não importa o que nos aconteça na estrada, não será nem a metade tão ruim quanto o que poderia acontecer se ficássemos.

— Boa-noite, Raven.

— Brooke...

— O que é?

— Eu estava pensando... esta é a nossa última noite aqui.

Pensei um pouco. Era verdade. Adeus a estas quatro paredes. Para sempre. Adeus à sensação de me sentir uma pessoa insignificante, anônima e solitária. Amanhã... amanhã pegaremos a estrada, a caminho do nosso futuro.

- Eu não poderia me sentir mais feliz por isso. Não me importo com o quanto será difícil para nós depois de partirmos. Estou contente por irmos embora... contente por finalmente assumirmos o controle de nossas vidas.

- Eu também. Boa-noite.

Boa-noite.

Fechei os olhos para o meu sonho.

Agora que a última semana de aula se arrastava, os alunos não precisavam mais ir à escola, a menos que tivessem alguma prova para fazer. Todas fizemos nossas últimas provas pela manhã e podíamos ir embora. Mas Louise e Gordon não sabiam disso. Em vez de voltarmos para Lakewood House, fomos ao banco retirar nosso dinheiro. A caixa ficou desconfiada. Crystal receou que ela telefonasse para Louise, mas isso não aconteceu. Passamos o resto do dia comprando pequenas coisas que poderíamos precisar na viagem.

Ao chegarmos na casa, encontramos nossas tarefas fixadas no quadro de avisos, como sempre. Gordon não abriria qualquer exceção naquele dia, independente das provas finais na escola. Fomos trabalhar, fazendo um esforço para ocultar nosso excitamento e ansiedade. Para todas nós, era uma sensação estranha circular pela propriedade, sabendo que naquela noite deixaríamos aquele lugar para sempre. Durante o jantar, trocamos olhares conspiradores. Borboleta estava tão nervosa que quase não comeu. Obriguei-a a fazer um esforço e comer alguma coisa, porque não queria que nenhuma de nós fizesse qualquer coisa diferente que pudesse despertar suspeitas ou atrair olhares curiosos sobre o nosso comportamento.

Com a sensação de que borboletas se agitavam no nosso estômago, subimos para os nossos quartos, a fim de esperar a passagem do tempo, a escuridão e o silêncio que se seguiam depois que todos dormiam. Louise passou pelos quartos para perguntar como nos saíramos nas provas.

— Espero que todo mundo só tenha tirado A — comentou ela. — Sempre me orgulhei do desempenho de minhas crianças na escola. No ano que vem, Crystal será a oradora da turma. Imaginem só, uma das crianças de Louise Tooey como oradora da turma!

Ninguém falou muito, pois esperávamos que ela seguisse logo adiante se não respondêssemos. Mas Louise demorou, falando sobre o verão iminente, a perspectiva de empregos, as melhorias que tencionava fazer na propriedade. Finalmente ela nos desejou boa-noite e desceu para seu escritório.

- Pensei que ela nunca mais iria embora — murmurei, aliviada. — Vamos nos deitar e fazer tudo da maneira habitual. Mas fiquem vestidas sob as cobertas, para podermos partir depressa.

Nós quatro tremíamos de expectativa e prendíamos a respiração de tanta ansiedade.

Foi ficando tarde. Ouvi Louise e Gordon subirem para seu quarto. Tive impressão de que Gordon andara bebendo, pelo tom de sua voz. Torci para que fosse isso mesmo, pois assim ele dormiria mais depressa. Já o vira fazer isso antes. Quando bebia, Gordon podia dormir em qualquer lugar, até mesmo numa daquelas velhas e incômodas cadeiras de madeira, os braços e pernas pendendo, como apêndices de algum gigantesco inseto morto.

Levantei-me pouco depois da meia-noite, o coração batendo forte. Raven sentou-se na cama. Era óbvio que ela ficara deitada de olhos abertos, observando-me.

— Já está na hora? — perguntou ela.

— Já, sim. Vá chamar Crystal e desçam para a cozinha. Não deve haver mais ninguém lá embaixo. Não façam barulho e tomem o maior cuidado. E não esqueçam que não podemos levar coisas demais. Vou pegar as chaves da caminhonete.

Falei como se a coisa mais simples do mundo fosse entrar no quarto dos Tooey e pegar as chaves.

Você é que tem de tomar cuidado, Brooke — advertiu ela. — Se houver algum imprevisto de Gordon pegar você, é melhor desistir.

- Não há a menor possibilidade — assegurei, tomando coragem.

— Talvez devêssemos unir as cabeças e entoarmos nosso cântico.

— Estou bem, Raven. Não se preocupe. Posso fazer isso sem problemas.

Eu me sentia ansiosa em pegar logo as chaves de Gordon. Só então saberia o que ia mesmo acontecer.

Antes de sair da cama, bati de leve na parede para o quarto de Crystal e Borboleta. Uma das duas bateu em resposta.

— Vamos embora — murmurei.

Não calcei os sapatos, para poder andar mais silenciosamente pelo corredor. Saí do quarto e deparei com Crystal e Borboleta na porta do outro quarto.

— Estou bem — sussurrei, antes que Crystal pudesse perguntar. — Você e Raven devem descer agora para pegar a comida. Borboleta, fique de vigia.

As duas se afastaram apressadas. Virei-me e olhei pelo corredor, na direção do quarto de Louise e Gordon. O corredor era iluminado por três lâmpadas fracas no teto. Uma claridade amarela derramava-se pelas paredes encardidas. A porta do quarto de Gordon e Louise parecia mais distante do que nunca. Cada passo provocava um rangido nas tábuas do assoalho; para mim, esses rangidos soavam muito alto. Hesitei, atenta ao barulho de alguém acordando. Seria difícil explicar por que eu andava por ali descalça, se fosse descoberta. Também tinha medo de que alguma das crianças me visse e armasse uma confusão.

As batidas dentro do meu peito pareciam cada vez mais fortes e rápidas. Tive medo de perder o fôlego, ficar tonta e cair. O que me levara a pensar que tinha força e habilidade para fazer aquilo?, perguntei-me, agora que devia fazê-lo. Crystal tinha razão. Era uma fantasia. Eu não seria capaz de abrir a porta do quarto e tatear no blusão de couro, à procura das chaves. E se o blusão caísse? E se as chaves fizessem barulho? E se Gordon não estivesse dormindo?

Comecei a entrar em pânico. Meu coração ameaçava parar. Raven tinha razão. Deveríamos ter nos encontrado para entoar nosso cântico. Eu me mostrara confiante demais. Olhei para trás. Borboleta esperava na outra extremidade do corredor, quase prendendo a respiração. Vê-la ali, pequena e ansiosa, mas também esperançosa, restaurou minha coragem. Tinha de tirá-la de LakewoodHouse. De qualquer maneira.

Acenei para mostrar que estava tudo certo, embora não me sentisse nada bem.

Tornei a olhar para a porta do quarto de Louise e Gordon, avançando de novo, encostada na parede. Finalmente cheguei ali. Fechei os olhos, respirei fundo e experimentei a maçaneta, que girou. A porta se entreabriu, com um rangido mínimo.

Já entrara naquele quarto uma dúzia de vezes, por uma razão ou outra, às vezes levando alguma coisa para Louise. Sabia que a porta se abria para um pequeno vestíbulo. À esquerda ficava o quarto, com duas janelas grandes, dando para o lago, com um closet anexo. A direita havia duas cômodas e a porta do banheiro.

Continuei empurrando a porta até ter espaço suficiente para me esgueirar. Entrei depressa, encostando a porta em seguida, a fim de que a claridade vinda do corredor fosse mínima. Lá estava eu, parada no escuro, no vestíbulo do quarto de Gordon e Louise, prendendo a respiração. Já entrara. Era tarde demais para recuar agora.

Em pequenos movimentos, levando quase que uma hora só para virar o corpo, encontrei o casaco onde Sempre ficava. Enfiei os dedos no primeiro bolso. As pontas do meu polegar e indicador tocaram no chaveiro.

Foi nesse instante que uma luz noturna acendeu.

Fiquei paralisada.

— O que foi? — resmungou Gordon.

— Tenho de ir ao banheiro — disse Louise.

— Não pode ir sem acender a droga dessa luz e me acordar?

— É para não tropeçar em alguma coisa — explicou Louise.

Ele soltou um grunhido abafado contra o travesseiro. Eu não mexia um músculo sequer, não soltava a respiração. Ouvi-a entrar no banheiro e fechar a porta. Permaneci tão imóvel quanto podia, esperando. Ouvi a descarga do vaso, vi a luz quando ela abriu a porta, depois ouvi-a voltar para a cama e apagar a luz.

— Desculpe — murmurou Louise.

Gordon não respondeu. Esperei mais um pouco, o suor agora escorrendo pela nuca. Queria ter certeza de que os dois haviam mergulhado de novo num sono profundo. Todo o meu corpo se tornara dormente e gelado. Subitamente, experimentei a sensação de que as pernas se derretiam. Dali a pouco cairia no chão, pensei. Era melhor fazer logo o que precisava.

Tornei a estender a mão, encontrei as chaves e comecei a tirá-las do bolso. O dorso de minha mão tocou em outra coisa. Fiz uma pausa, compreendendo o que devia ser. Se fosse mesmo o que eu pensava, seria Maravilhoso. Tirei as chaves, estendi a mão outra vez e Peguei o cartão de crédito para gasolina. Era muita sorte, pensei; uma tremenda bonificação.

Agora tinha de sair dali, tão depressa e silenciosamente quanto entrara. Tornei a abrir a porta, o mínimo possível, o suficiente apenas para poder passar de quatro. Depois que saí, fechei a porta sem fazer barulho. Por um momento, fiquei agachada ali, ouvindo, à espera do som aterrador do grito de Gordon vindo atrás de mim Mas o silêncio persistiu. No outro lado do corredor avistei Crystal, Raven e Borboleta, observando-me. Raven e Crystal haviam voltado da cozinha e tinham um saco com comida. Ergui a mão, com o polegar para cima levantei-me e comecei a me adiantar na ponta dos pés. Todas entramos no quarto meu e de Raven, falando em sussurros.

- Você passou tanto tempo lá dentro que pensamos que tinha sido apanhada — disse Raven.

Contei o que acontecera e depois mostrei-lhes o cartão de crédito.

- Gordon não apenas vai nos emprestar o carro, mas também o dinheiro para a gasolina.

— Tem certeza de que nenhum dos dois a ouviu? — perguntou Crystal.

- Se tivessem me ouvido, Gordon já estaria aqui neste momento. O que conseguiram?

Ela mostrou o que havia no saco, quase tudo produtos enlatados e não perecíveis.

— Escolheram bem — comentei. — Estamos prontas. Nada mais pode nos deter agora.

— Tenho medo — balbuciou Borboleta.

Ao compreender que já tínhamos tudo de que precisávamos para partir, ficou apavorada.

— Vamos nos juntar — sugeriu Raven, olhando para mim, Borboleta e Crystal. — Também preciso disso.

Olhei para Crystal, que acenou com a cabeça. Nós quatro demos a mão e entoamos o cântico baixinho, tomando coragem, acumulando força. Depois nos separamos, respiramos fundo e pegamos nossas coisas. Avançamos pelo corredor como quatro fantasmas, a caminho da escada. No momento em que ali chegamos, Megan Callaway saiu de seu quarto para ir ao banheiro. Todas ficamos imóveis.

O que estão fazendo, suas idiotas? — indagou ela, aproximando-se.

— Fale baixo — sussurrei, olhando frenética na direÇão do quarto de Gordon e Louise.

Ela olhou para as fronhas e o saco com comida.

— O que é isso?

— Estamos fugindo — respondi, como se fosse uma coisa sem a menor importância.

Ela fitou cada uma, depois fixou-se em mim.

— Fala sério?

- Claro. Se fizer algum barulho, juro que tirarei tantas fotos suas que dará para cobrir todas as paredes do refeitório.

Mantive os olhos fixos nos dela. Megan compreendeu que eu não teria a menor hesitação. E murchou.

— Por que eu me importaria se vocês fugirem? Será ótimo para mim. Boa viagem. E divirtam-se.

Acenei com a cabeça para Raven, que recomeçou a avançar para a escada. Megan continuou parada lá atrás, observando. Crystal pôs a mão em meu braço. Olhei para ela. Crystal tirou o mapa falso do bolso. Compreendi sua intenção e sorri.

Pouco antes de descermos, ela deixou cair o mapa, como se fosse por acaso. Descemos apressadas, tentando ser tão leves quanto o ar, já que nossos passos faziam os degraus da velha escada rangerem.

— Ela não será capaz de se controlar — murmurou Crystal, referindo-se a Megan. — Assim que partirmos, entregará o mapa a Gordon.

- Crystal, você é brilhante... até um pouco diabólica.

— Sei disso — sussurrou ela, sorrindo.

Atravessamos a casa. Borboleta andou quase que o tempo todo na ponta dos pés.

Abri a porta dos fundos, bem devagar. Contemplei minhas irmãs, cada uma com os olhos cheios de expectativa e medo.

— Foi muito fácil — murmurei.

Eu tentava parecer mais corajosa do que me sentia, Raven deu um sorriso nervoso. Borboleta ainda dava a impressão de que poderia chorar a qualquer momento. Decidi agir mais depressa, antes que ela tivesse tempo de pensar em recuar.

Seguimos para a caminhonete. Em noites de verão como aquela, Gordon deixava-a fora da garagem. Nem sequer a trancava. Com o maior cuidado para não fazer muito barulho, abri a porta e sentei ao volante. As outras também entraram, Raven ao meu lado, Borboleta e Crystal no banco de trás. Todas as portas foram fechadas, com um suave zunido de metal contra metal. Enfiei a chave na ignição, os dedos tremendo um pouco.

- O cheiro dentro desse carro é o de um porão cheio de mofo — disse Raven, tapando o nariz. — Horrível!

— Aqui está um motivo.

Crystal nos mostrou uma garrafa de vinho ordinário, que provavelmente derramara no chão.

- Teremos de fazer uma limpeza para podermos dormir no carro — comentou Borboleta.

— Tem certeza de que sabe guiar esta caminhonete? — perguntou Raven.

— Claro que sei — respondi, com um sorriso confiante. — Eu me saí muito bem no curso de motorista. Não tirei a maior nota no exame?

- Era apenas um exame. Agora é para valer... e sem um instrutor do seu lado durante o tempo todo.

— Pare de se preocupar. Estão prontas, meninas?

Todas murmuraram que sim. Virei a chave. A caminhonete pegou no mesmo instante, com um ronco que a fez estremecer toda.

O tanque está cheio. O velho Gordon sempre deixa seu carro preparado. — Olhei para a casa enorme e escura. - Obrigada, Gordon.

Dei a partida, acelerando um pouco depressa demais. Os pneus levantaram algum cascalho, mas segurei o volante com firmeza e desci pelo longo caminho até a rua. Não queria que as outras percebessem, mas me sentia espantada comigo mesma.

Continuamos até a estrada, que se estendia à nossa frente, como a estrada para Oz, ou seja, uma faixa prateada apontando para o desconhecido.

- Eu bem que gostaria de ver a cara de Gordon pela manhã — comentou Raven.

— Eu não — murmurou Crystal.

- Ele vai culpar Louise — declarei. — Sempre a acusa de ser mole demais com a gente.

— Tenho pena dela — disse Raven. — Não consigo entender por que Louise casou com um homem assim.

- Ela vai se perguntar a mesma coisa amanhã de manhã.

Subitamente, soltei uma gargalhada.

— O que foi? — indagou Raven.

- Estava pensando em Megan. Ela vai entregar o mapa falso a Gordon, para bancar a pequena heroína. E ele partirá por uma direção errada.

— E daí? — disse Raven. — Não é o que você queria que acontecesse?

Olhei para Crystal. Ela sorriu, virou-se para Raven e explicou:

— Gordon vai pensar que ela fez isso de propósito, que ajudou em nosso plano.

— Vai ser engraçado... ou talvez não. — Crystal respirou fundo. — Ele é capaz de matá-la.

Todas permanecemos em silêncio, pensando na raiva de Gordon.

— Talvez seja melhor voltarmos — sugeriu Borboleta, alguns minutos depois.

— Voltar? Voltar para onde? Não há como voltar. Só podemos seguir adiante. — Respirei fundo. — Não se preocupe, Borboleta. Estamos todas juntas, todas com você.

Ninguém disse nada em contrário. Ninguém podia discordar.

— Conseguimos! — exclamou Crystal, aturdida, os olhos grudados na estrada à frente. — Conseguimos!

- Eu sempre tive certeza de que conseguiríamos — declarei.

Por cima de nós, o céu estava todo estrelado.

— Ligue o rádio — disse Raven.

Inclinei-me e liguei. Encontramos uma emissora de rock. Raven aumentou o volume e pôs-se a cantar junto, enchendo o carro com sua voz melodiosa.

Comecei a me sentir mais confiante ao volante e acelerei.

Nossa viagem começara para valer.

 

               A estrada menos movimentada

No maior excitamento, nenhuma de nós percebeu o quanto nos sentíamos cansadas. A tensão era suficiente para esgotar qualquer uma. O fato de ser tarde tornava ainda mais difícil permanecermos acordadas. Guiar àquela hora da noite tinha uma grande vantagem: não havia muito tráfego. Eu conhecia as estradas que nos levariam até a rodovia principal, mas depois disso teria de confiar em Crystal e nos seus mapas. Assim que chegamos à rodovia e avistei uma placa que dizia CIDADE DE NOVA YORK 140 KM, senti o coração palpitar. O fato de estarmos realmente na estrada fugindo, pondo quilômetros e quilômetros entre nós e a única vida que conhecêramos durante anos e anos, deixou-nos caladas por um longo momento, absortas em nós mesmas.

Durante toda a nossa vida fôramos veladas e protegidas por pais adotivos durante um breve período e, depois, na maior parte do tempo, pelo sistema. Era sempre difícil fazer com que alguém que vivera com os pais durante toda a vida compreendesse como era ser uma de nós. Sem família, sentíamos que éramos sem história,que fôramos largadas em algum lugar e instruídas para dormir, brincar e comer como crianças normais. Era difícil viver como tutelada de uma entidade gigante chamada Estado. Quando tínhamos medo ou nos sentíamos solitárias, quando os sonhos se transformavam em pesadelos, quando fracassos e desapontamentos ocorriam em nossa vida, não podíamos correr para casa e procurar o consolo de papai e mamãe. Podíamos conversar com uma conselheira quando chegasse nossa vez, é claro. Podíamos ser analisadas e receber recomendações de manual para curar nosso bom senso da ausência de sentido, mas quase nunca faziam com que nos sentíssemos melhor conosco mesmas.

Certa ocasião, quando uma garota na escola me deixara furiosa, acusei-a de ser mimada e de não saber como era viver sem uma família de verdade. Ela apenas sorriu, e então eu me inclinei e acrescentei, nossos rostos quase colados um no outro:

— Imagine sentar-se na frente da televisão todas as noites e ver aqueles comerciais sobre crianças com os pais indo para a Disneylândia ou sentados à mesa do café da manhã. Imagine olhar para isso e pensar que, no seu caso, não passava de pura ficção.

O sorriso da garota evaporou. Todas ao nosso redor baixaram os olhos, envergonhadas por terem nascido com mais sorte do que eu.

Nunca me senti alguém especial. Exceto pelo tempo que passei com Pamela e Peter. Mas se me sentir especial significava que teria de ser uma pessoa que não era, então eu não queria. Preferia continuar a ser a menina solitária do que virar o projeto especial de alguém, apertada e comprimida em um molde feito para mim.

Agora, guiando aquela caminhonete, correndo pela noite em companhia de minhas maiores amigas, experimentei uma intensa sensação de liberdade. Era como se tivéssemos nos livrado das correntes de quem éramos; como se, finalmente, estivéssemos livres das pessoas que tentavam nos transformar. Até poucas horas antes, éramos mais conhecidas pelos números de nossas fichas. Como Crystal dizia com freqüência, estávamos no Sistema, rotuladas e descritas por algum funcionário público, nossas histórias resumidas em poucas páginas, incluindo os fatos biológicos sobre o tipo sangüíneo, cor dos olhos, vacinas.

Nada disso importava para nós agora. Fôramos lançadas, navegávamos para o espaço, à procura de um novo planeta, algum lugar a que pudéssemos chamar de lar. Muito em breve faríamos nossa própria história, preencheríamos nossas fichas. Pela primeira vez, senti-me no controle de meu destino.

- Cuidado com a velocidade — disse Crystal. — Mesmo a esta hora, pode haver um radar ligado em algum lugar, e não podemos ser detidas, Brooke.

— Sei disso.

Olhei para o velocímetro. A verdade é que não o vigiara. Ficara sonhando e acelerara demais. A velha Crystal, pensei, sempre se podia contar com ela.

Olhei pelo espelho retrovisor. Borboleta arriara no banco, a cabeça pendendo para um lado, os olhos fechados. Parecia uma boneca de trapos, vulnerável, dependente. Penso que as três viam alguma coisa de si mesmas em Borboleta, sendo esse o motivo pelo qual éramos tão protetoras.

O rádio continuava a tocar. Quilômetros e quilômetros de estrada estendiam-se à nossa frente e desapareciam em meio à escuridão. De vez em quando outro veículo se aproximava e passava por nós. Eu segurava o volante com firmeza. Sentia-me como o comandante de uma nave espacial, lançada para o espaço e nos aproximando mais e mais do ponto em que deixaríamos a gravidade da Terra. Muito em breve o controle do passado sobre nós seria rompido e não olharíamos mais para trás.

- Talvez seja melhor verificar seu mapa agora, Crystal — sugeri, ao deixarmos de olhar os lugares mais familiares.

Crystal desdobrou o mapa e encontrou o interruptor para a luz, atrás. Mas não estava funcionando. Ela inclinou-se, a fim de aproveitar a claridade da frente.

- Podemos seguir pela New York Thruway, 01 pegar a Rota Seis para a Palisades Parkway e encontrar a saída para a 1-95.

— Qual é o melhor percurso?

- Quanto menos pessoas nos virem e puderem nos reconhecer, melhor será — concluiu Crystal. — Vamos evitar as cabines de pedágio. Pegue a Rota Seis. A entrada deve estar próxima.

Ficamos atentas, observando as placas. Quando a avistamos, fiz a curva com perfeição e entrei na estrada.

- Está guiando muito bem — comentou Raven, impressionada. — Eu deveria ter feito também o curso de motorista.

E seria de grande ajuda ter outra pessoa para revezar na direção, pensei.

Crystal recostou-se e bocejou.

- Se Megan não acordou ninguém, ainda não sabem que fugimos — murmurou ela, depois de um longo momento.

Olhei para o relógio do painel. Eram quase três e meia da madrugada. Gordon, o cérebro encharcado de uísque, devia estar apagado em sua cama. Todo mundo dormia. Dentro de poucas horas, teriam uma surpresa e tanto.

Raven encostou a cabeça na janela. A exaustão que adiáramos com o excitamento começava a dominar nossas pernas e braços, até nossos olhos.

— Vamos viajar durante a noite inteira? — perguntou Crystal.

Não acha que é uma boa idéia nos distanciarmos o máximo possível?

Claro que acho. Mas você está bem? Não vá acabar dormindo no volante.

- Estou bem.

Minhas pálpebras, no entanto, queriam fechar como portas de elevador. Concentrei-me em mantê-las abertas. A emissora de rádio só tinha entrevistas agora.

— Procure música, Raven — pedi. — Alguma coisa animada, está bem?

Ela sintonizou até encontrar uma música vibrante, depois tornou a se recostar.

Continuamos em frente. Eu deveria ter mantido a conversa. Borboleta mergulhara num sono profundo. Crystal, apesar dos esforços em contrário, permitia que seus olhos se fechassem a todo instante, também pegando no sono. Raven, numa exaustão física e emocional, parou de falar e deixou a cabeça pender para trás. Percebi de repente que era a única acordada. Comecei a contar coisas, a cantar para mim mesma, a me mexer com a música, qualquer recurso para me manter alerta. Mas comecei meu devaneio no momento errado. Pisquei os olhos subitamente ao avistar um cartaz, que dizia: PONTE GEORGE WASHINGTON.

— Crystal? — chamei. — Crystal!

- Como? Ah, desculpe. Devo ter pegado no sono. Onde estamos?

- Deveríamos passar pela ponte George Washington?

A cabine de pedágio ficava logo à frente. Não havia mais como evitá-la.

— Não! Não! — gritou ela. — Oh, Brooke, você passou da saída!

- E agora, o que deverei fazer? — perguntei, em pânico.

— Qual é o problema? — indagou Raven. Borboleta soltou um grunhido e sentou, esfregando os olhos para afugentar o sono.

- Atravesse a ponte — disse Crystal, enquamto desdobrava o mapa. — Não dê a impressão de que está perdida. Aja de uma forma natural. Como se já tivesse feito isso antes. Encontrarei um novo caminho depois

Diminuí a velocidade, olhei para a placa com o preço do pedágio e enfiei a mão no bolso para pegar o dinheiro. Uma afro-americana, que parecia ter quarenta anos, pegou a nota e me entregou o troco, sem sequer olhar para mim.

— Ela não podia se importar nem um pouco com quem somos — murmurei. — Deve ser um trabalho muito chato.

Olhei à frente para a ponte George Washington, toda iluminada. Era uma visão impressionante, pensei, enquanto começava a atravessá-la, o coração batendo forte como um tambor numa parada militar. A cidade de Nova York destacou-se contra o céu noturno.

- Olhem só para aquilo! — murmurou Raven, o espanto transparecendo na voz.

As três aproximaram o rosto das janelas e contemplaram, boquiabertas, o Empire State Building e as Twin Towers, todos os prédios cintilando. Os jatos comerciais pareciam bastante próximos para bater nos edifícios. Era emocionante.

— Aposto que a Broadway está toda iluminada como um parque de diversões — murmurou Crystal, excitada.

— Broadway? — repetiu Raven, quase pulando no banco. — Podemos ver a Broadway?

— Podemos? — acrescentou Borboleta.

— Temos de voltar ao nosso caminho — declarei. Eu tinha dúvidas se conseguiria guiar pelo tráfego da cidade.

- Oh! Por favor, vamos dar uma olhada na Broadway - suplicou Raven. — Não pode estar longe, não é mesmo, crystal? Já que estamos aqui, podemos tirar o melhor proveito do erro.

O que eu faço agora? — perguntei quando nos aproximamos do lado de Manhattan pela ponte.

- Continue pela direita — disse Crystal. — Pegaremos a Henry Hudson Parkway e seguiremos para o centro. Deixaremos Raven e Borboleta ver a Broadway, antes de entrarmos no túnel e voltarmos para o nosso caminho. Todas devem permanecer acordadas agora.

Por sorte, àquela hora da madrugada não havia nenhum engarrafamento. Seguindo as instruções de Crystal, entrei na Rua 42 e fui avançando devagar, até que de repente saímos na Times Square. As luzes e os cartazes eram tão espetaculares que tive de parar. Todas ficamos olhando aturdidas para os enormes cartazes, para a quantidade de pessoas andando pelas calçadas, apesar da hora, e para o tráfego ainda intenso.

— Tudo é gigantesco — murmurou Crystal, estendendo a cabeça pela janela e admirando um edifício muito alto. — É lindo!

- Algum dia, Borboleta, seu nome estará nesses cartazes luminosos — comentei. — E você, Raven, cantará num palco aqui.

— E você? — perguntou Crystal.

— Serei a dona de um dos teatros. Todas riram. No instante seguinte, tivemos um sobressalto, ao ouvirmos uma batida firme no lado da caminhonete. Era um guarda muito alto.

— O que pensam que estão fazendo aqui? — perguntou ele, abaixando-se para nos fitar.

Ele se empertigou em seguida, olhando para mim. Essa não!", pensei. Se ele pedir minha habilitação e os documentos do carro, estará tudo acabado. Só teríamos realizado uma curta viagem à cidade de Nova York.

-SÓ queríamos ver a cidade à noite, seu guarda - respondeu Crystal. — Viemos visitar minha tia.

— Não podem estacionar aqui. Viram aquilo? "Proibido Estacionar ou Parar".

Ele apontava para a placa na frente da caminhonet

— Sinto muito — murmurei.

O guarda nos estudou mais atentamente.

— A essa altura, vocês já deveriam estar na cama. Sua tia sabe que estão aqui?

— Acabamos de chegar — disse Crystal. — E estamos indo para seu apartamento.

— Sabem como chegar lá?

— Sim, senhor — respondeu Crystal. — Recebemos uma boa orientação.

— Pois então tratem de seguir em frente.

— Obrigada. — Crystal inclinou-se e sussurrou em meu ouvido: — Vamos logo!

Engrenei o carro e parti, outra vez um pouco depressa demais. Prendemos a respiração. Crystal olhou para trás.

- Tudo bem — murmurou ela. — O guarda não está nos perseguindo.

- Você foi sensacional, Crystal — comentei. — Pensou depressa.

Éramos todas boas mentirosas?, especulei. A vida nos fizera assim?

— Temos de nos manter alertas. Vire aqui. Vamos pegar o Túnel Lincoln. — Ela olhou para o mapa. — Vire à esquerda mais adiante e siga em frente.

Apesar da hora e do cansaço, era impossível não permanecer acordada agora. Segui as instruções de Crystal de maneira precisa. Quando entramos no túnel, Borboleta teve medo de nunca mais sairmos. Parecia interminável, mas de repente emergimos no outro lado. Com todo cuidado, as quatro agora atentas âs placas e sinais, encontramos o caminho para oeste.

Tornei a olhar para o relógio. Mais algumas horas e Gordon Tooey acordaria. Depois de se vestir, tomar o café da manhã e reclamar de alguma coisa, sairia da Lakewood House e descobriria que seu carro desaparecera.

E nesse momento a perseguição começaria.

Continuamos a viajar pelo amanhecer, vendo e sentindo o sol subir pelo céu. Quando se tornou mais claro, contemplamos um céu azul à frente, apenas uma pequena nuvem branca aqui e ali, contra o horizonte.

- Por que não paramos para tomar um café? — sugeriu Raven. — Preciso de um pouco de cafeína... e tenho de ir ao banheiro.

— Eu também — acrescentou Borboleta.

Fiquei contente por elas pedirem. Não queria ser a primeira a dizer, mas já me sentia como um balão cheio de água. Avistei uma placa anunciando uma parada quinze quilômetros adiante.

- Vamos parar ali — murmurei, acenando com a cabeça.

Uns dez minutos depois entramos no estacionamento. Saímos do carro e nos espreguiçamos. Provavelmente por causa da tensão, sentia as costas doendo e as pernas davam a impressão de terem sido espremidas no famoso barril de Gordon e Louise.

- É maravilhoso poder me esticar — murmurou Raven.

- Se já está se queixando, imagine como estará quando chegarmos ao Meio Oeste — comentei.

Eu tinha de manter todas elas fortes e determinadas, o que significava que eu precisava ser ainda mais forte.

- Quem está se queixando? Por acaso me ouviu reclamar de alguma coisa, Crystal?

— Não vamos discutir isso aqui. Vamos embora.

Crystal pegou a mão de Borboleta, e as duas se encaminharam para o restaurante.

Havia três motocicletas paradas na frente. Através da janela, avistei três rapazes de blusão de couro, olhando para nós. Ou melhor, olhando para Raven.

— Lá vamos nós outra vez — adverti.

— O que foi?

Raven remexia em sua bolsa e não notara os motoqueiros.

— Brooke está avisando que você já arrumou um fã-clube lá dentro — explicou Crystal.

— Ahn... Parecem com os homens com quem minha mãe costumava sair. Significam encrenca. E das grandes.

Raven estremeceu um pouco, enquanto enlaçava o próprio corpo.

- Não se preocupe, Raven. Não deixaremos que eles a incomodem.

Borboleta sempre se mostrava ansiosa em proteger Raven. Sabia o que era ser o alvo de atenções indesejáveis.

- Vamos entrar e sentar — declarei. — Eles nos deixarão em paz se os ignorarmos.

Abri a porta do restaurante. Depois que pedimos, levantei-me para ir ao banheiro. Quando voltei, descobri que um dos motoqueiros sentara na minha cadeira. Pigarreei e ele começou a se levantar. Crystal, Raven e Borboleta olharam para mim, agradecidas, como se eu tivesse acabado de salvá-las de alguma espécie de tortura. Ao ouvir o motoqueiro falar, compreendi que fora isso mesmo que acontecera:

— Se precisarem de qualquer coisa, meninas, basta chamarem o Paulio. Estarei bem ali.

Ele apontou para a mesa onde estavam seus sebosos amigos. Por sorte, a garçonete trouxe nossos pedidos

No momento certo. Tratamos de encher nossos estômagos vazios. Assim que acabamos de comer, Crystal perguntou se não precisaríamos de gasolina em breve.

Encherei o tanque aqui, antes de partirmos — respondi. — A caminhonete consome muita gasolina.

Ainda bem que temos o cartão de crédito de Gordon.

— Não precisa assinar o nome dele? — perguntou Borboleta, apreensiva.

- Usaremos uma dessas bombas em que basta inserir o cartão. Vi uma assim quando chegamos.

Crystal pegou o mapa e começamos a discutir a viagem, o lugar onde pensávamos que estaríamos depois de mais um dia, que distância conseguiríamos percorrer no dia seguinte, entre outras coisas.

Mas subitamente nosso coração parou. Um carro da polícia estacionou bem na frente da nossa janela. Os guardas saltaram e olharam para a caminhonete de Gordon.

— Ainda é muito cedo para terem espalhado uma descrição — murmurei, olhando para Crystal à espera de confirmação.

- A menos que Megan tenha resolvido acordar Gordon depois que saímos, e ele ligou para a polícia — respondeu ela.

Borboleta parecia prestes a chorar.

— Vão nos prender — balbuciou ela.

— Fiquem todas calmas — disse Crystal. — Não se comportem de maneira suspeita.

A garçonete trouxe-nos o café e o suco no momento em que os guardas entravam.

— O que eles estão fazendo? — perguntei a Crystal. Ela olhou.

— Foram para o balcão. Nem sequer estão olhando para nós.

Soprei o ar dos pulmões e recostei-me.

— Teremos esse tipo de reação cada vez que encontrarmos policiais — comentei, desolada.

— É por isso que precisamos sair das estradas principais o mais depressa possível — disse Crystal.

Ela voltou a estudar o mapa. A garçonete serviu nossas torradas e bolinhos. Começamos a comer.

— Para onde vocês vão?

Virei-me e deparei com um dos motoqueiros parado ao lado de nossa mesa.

— Visitar parentes, como eu disse antes — respon-deu Crystal.

— Começaram cedo as férias de verão, hein?

— Isso mesmo.

Lancei meu olhar, que dizia "Caia fora". Mas o rapaz me ignorou e tornou a se concentrar em Raven.

— Onde moram esses parentes?

Os cabelos castanho-escuros, sebentos, presos atrás, tinham fios que pareciam cordas de piano quebradas. O nariz era fino e os olhos escuros bem fundos. Se fizera a barba recentemente, não fora muito cuidadoso. Manchas escuras destacavam-se no queixo e nas faces. As costeletas pareciam cobertas de óleo de motor.

Raven olhou para Crystal, em busca de ajuda.

— Vamos para uma pequena cidade nos arredores de Filadélfia — disse ela, indicando no mapa.

— Tem um mapa, hein?

Ele se inclinou, virando-se depois para os dois companheiros, que estavam terminando de pagar a conta.

— Já estou indo! — Ele tornou a olhar para Crystal-— Conheço essa cidade. Devem entrar na primeira saída à esquerda naquela direção.

O rapaz fez uma pausa, apontando para um dos lados da estrada pela janela, antes de acrescentar:

— Sigam essa estrada por uns quinze quilômetros, até a 1-78. Podem cortar caminho por aqui. — Ele aponto Para o mapa de Crystal. — Pouparão oitenta quilômetros da viagem.

- É mesmo? — murmurou Crystal, estudando prontámente o mapa.

- É sim. Somos daqui, e por isso conhecemos os atalhos. Tenham uma boa viagem. Com um sorriso de despedida, ele foi ao encontro dos amigos. Raven, que obviamente estivera prendendo a respiração, murmurou:

— Graças a Deus que ele foi embora!

— Talvez não seja um cara tão ruim quanto pensamos — disse Crystal. — E se ele estiver certo, nossa viagem será reduzida em muitos quilômetros. Além disso, evitaremos o tráfego mais intenso. Faz sentido.

Olhamos pela janela. Os três montaram em suas motocicletas, observando-nos. O que tinha o rabo-de-cavalo acenou em despedida, enquanto o trio deixava o estacionamento, ruidosamente. Terminamos o café, as torradas e os bolinhos, pagamos a conta e saímos do restaurante, tão discretas quanto podíamos. Um dos guardas no balcão lançou-nos um olhar, mas logo voltou a se concentrar em seus ovos mexidos.

— Meu estômago embrulhou quando aquele guarda olhou para nós — comentou Raven, depois que embarcamos na caminhonete. — Brooke tem razão. Vamos suar cada vez que encontrarmos um carro de polícia. Crystal tornou a estudar o mapa.

— Vamos tentar o atalho que ele nos indicou. Parece um caminho menos movimentado e talvez não encontremos nenhum carro de polícia por algum tempo.

Boa idéia — concordei.

Fomos até as bombas de gasolina. Enchi o tanque, paguei com o cartão de crédito de Gordon, inserido na fenda da bomba. Partimos sem olhar para trás.

— É aqui — disse Crystal, apontando para uma estrada à esquerda, que parecia não ser bem conservada.

— Tem certeza?

— Foi o que ele nos disse — respondeu Crystal. Primeira saída à esquerda depois do restaurante.

— Está certo.

A estrada tinha muitas rachaduras na pavimentação. Depois de apenas dois ou três quilômetros, só tinha buracos. O que me obrigou a diminuir a velocidade.

— Não pode ser por aqui — comentei. — Não é de admirar que tenha tão pouco movimento. Ninguém passa por esta estrada.

— Tenho certeza de que é a estrada que ele indicou — garantiu Crystal. — Foi o que nos disse.

Nesse instante, como se pudessem ouvi-la, os três motoqueiros apareceram. Dois deles cruzaram a estrada à nossa frente, enquanto o terceiro, o de rabo-de-cavalo, veio para o lado da caminhonete. Tive de parar. Os dois à nossa frente pararam suas motocicletas no meio da estrada, junto do pára-choque da caminhonete, e saltaram.

— O que está acontecendo? — perguntei, a voz trêmula.

— Vejo que seguiram meu conselho de pegar o atalho — disse Paulio. — Devem estar com muita pressa.

— E daí? — indaguei, esperando que ele não percebesse o tremor em minha voz.

— E daí que estão numa estrada de pedágio — respondeu ele, sorrindo.

— Como?

Comecei a sorrir, mas me contive quando um dos outros dois abriu a porta do lado de Raven e inclinou-se para dentro.

— Olá de novo — murmurou ele.

Era baixo e corpulento, cabelos castanho-claros, olhos azuis, a boca fina, queixo redondo, marcas de espinhas

Nas faces, o nariz bulboso. Estendeu a mão e pegou os cabelos pretos de Raven.

Não me toque! — exclamou ela, desviando a cabeça-

O medo em seus olhos era evidente.

Estou apenas fazendo um elogio. Não seja tão arrogante, Maria.

- Meu nome não é Maria — murmurou Raven, sem querer falar com ele mais do que o necessário.

paulio enfiou a mão no bolso e tirou um canivete de mola.

— O que acha de cortarmos um pouco desses cabelos para prendermos em nossas motocicletas, Duke?

— Boa idéia.

Duke estava quase no colo de Raven. Seu bafo de uísque era tão intenso que impregnava o carro. Deixou-me nauseada.

Pelo espelho retrovisor, percebi a expressão de terror de Borboleta e a raiva de Crystal. Estávamos no meio do nada, sem casas por perto, sem nenhuma outra pessoa nas proximidades... e, com toda certeza, não havia tráfego por ali. Haviam nos enganado quando nos convenceram a aceitarmos seu conselho.

- Quanto dinheiro vocês têm? — perguntou-me Duke.

— Temos toneladas de dinheiro. É por isso que viajamos num carro tão bom.

Falei em tom de desafio. Instintivamente, sabia Que nossa situação se tornaria ainda pior se deixasse transparecer algum medo.

- Espertinha, hein? Talvez eu corte seus cabelos também... embora não tenha muito.

- Que tal a orelha dela? Você poderia pendurá-la em seu cinto como um troféu, Tony.

O terceiro homem pôs o pé no pára-choque dianteiro e soltou uma risada.

- O pedágio é de cinqüenta dólares — anunciou Duke. — Mas daqui a cinco minutos aumenta para setenta e cinco.

— O prazo é de dois minutos, Duke — disse Paulio os três rindo.

— Ele tem razão. Dois minutos. E então?

— Acho que vou pegar outra estrada — declarei.

— Tarde demais. Já estão nesta.

Duke tentou de novo pegar os cabelos de Raven que empurrou sua mão com toda força.

- Contaremos tudo à polícia se não nos deixarem em paz — ameaçou Crystal.

- Quer saber de uma coisa? — Duke mexeu um pouco com a cabeça, até contraí-la da maneira que queria. — Acho que não farão isso. Certo, quatro-olhos?

— Não — respondi. — Vocês estão completamente errados em tudo.

Pisei no acelerador. A caminhonete saltou para a frente. A porta aberta bateu nas costas de Duke, que perdeu o equilíbrio e caiu para o lado. O que estava na nossa frente conseguiu tirar o pé do pára-choque a tempo, mas perdeu o equilíbrio e desabou na estrada. A caminhonete derrubou as motocicletas, jogando uma para a esquerda, a outra para a direita. Senti as rodas passarem por cima.

Os motoqueiros começaram a nos xingar. Raven fechou a porta, enquanto eu dava marcha à ré. Paulio ligou sua motocicleta e avançou para nós. Mas fui direto para cima dele, obrigando-o a acelerar para sair da frente. Quase voou para fora da estrada, a motocicleta batendo na vala e dando uma cambalhota no ar. Não esperei para ver o que mais aconteceu. Avançamos aos solavancos pelos buracos, tão depressa que nossas cabeças quase batiam no teto. Acelerei mais ainda assim que avistei a estrada. Minutos depois, deixamos aquele caminho esburacado.

- Não acelere tanto, Brooke — advertiu Crystal.

Diminuí um pouco a velocidade. Borboleta estava chorando. Raven parecia atordoada. Mantive os olhos na estrada, um pouco tonta com a nossa fuga.

Crystal olhou pela janela traseira.

— Não há sinal deles — avisou ela, com um sorriso. — Acho que você deixou as motocicletas avariadas.

— Continue em frente — balbuciou Raven. — Não diminua a velocidade demais.

Não diminuí. Seguimos em frente, sem ninguém falar, apenas os soluços de Borboleta e nossa respiração ofegante povoando o ar.

- Está tudo bem agora, Borboleta — murmurou Crystal, passando o braço em torno dela e começando a confortá-la.

— É melhor observar a estrada e conferir o mapa, Crystal — declarei. — Não podemos cometer nenhum erro agora.

— Vamos pegar a saída para a 1-287, a cerca de quarenta quilômetros daqui — disse ela. — Fique atenta.

Quando chegamos lá, fiz tudo certo e seguimos para sudoeste. Crystal nos orientou para outra estrada. Pouco depois, nossa direção era para oeste, a caminho da Pensilvânia. Não havia qualquer sinal dos motoqueiros. Senti-me bastante confiante para recostar e relaxar. Mas Crystal continuava preocupada com Borboleta. Percebi por sua expressão, quando olhei pelo espelho retrovisor. Numa reação instintiva, saí da estrada na Próxima parada. Todas respiramos fundo. Borboleta dava a impressão de que se tornaria catatônica a qualquer momento.

— Precisamos disso — murmurou Crystal.

Olhei para Raven, que acenou com a cabeça. Nós duas fomos também para o banco traseiro. As cabeças se juntaram.

— Somos irmãs. Sempre seremos irmãs... Entoamos o cântico, abraçadas. Depois de alguns momentos, a tensão pareceu sair de nossos corpos e flutuar para longe.

Recostamo-nos, aliviadas.

— Viram a cara de Duke quando Brooke pisou no acelerador? — indagou Raven, rindo.

— A porta acertou-o com toda força — disse Crysta

- Gostaria de saber se ele perdeu um pouco de cabelo.

- Senti as rodas passarem por cima de uma das motocicletas — comentei.

- Eles também não podem se queixar à polícia, não é? — perguntou Raven.

- O cara de rabo-de-cavalo criou asas — acrescentei.

Rimos de novo. Depois, ficamos quietas por um longo tempo.

— Acho que formamos uma grande equipe — murmurei. — Somos as Superorfãteiras... não concorda, Borboleta?

Ela acenou com a cabeça, sorrindo.

— Vamos recomeçar a viagem.

Fui me sentar ao volante, antes de sugerir:

— Que tal uma canção, Raven?

Ela pensou um instante e começou a cantar. As outras juntaram-se em coro. "Vai dar tudo certo", pensei.

Viajamos por quase três horas antes de pararmos para almoçar e ir ao banheiro de novo, desta vez num restaurante barulhento. Era um pouco mais caro do que eu previra. Compreendi que Crystal tinha razão sobre a rapidez com que gastaríamos nosso dinheiro. Apesar do cartão de crédito de Gordon para a gasolina, viajar ainda era muito caro, principalmente com o nosso orçamento. Pensei em várias maneiras de economizar. Sugeri

Uma lanchonete fast food de galinha para o jantar. Foi ri oi o que fizemos.

A essa altura, como viajáramos durante toda a noite e a maior parte do dia, todas nos sentíamos e parecíamos eSgotadas. Ainda faltava algumas horas para anoitecer mas eu achava que não tinha mais condições de continuar dirigindo por muito tempo.

— Acho que teremos de dormir mais cedo esta noite - sugeri.

— Boa idéia — concordou Crystal. — Procure uma estrada sem saída.

Tivemos de percorrer mais trinta quilômetros antes de encontrarmos um lugar que parecia promissor para todas. Quase passamos adiante, porque a entrada se achava oculta por bordos luxuriantes, os galhos formando uma arcada verde natural. A estrada fora outrora pavimentada, mas agora estava coberta por cascalho.

— Perfeito! — exclamou Crystal.

- Não há ursos por aqui? — indagou Borboleta, preocupada.

— Os ursos não são normalmente agressivos, a menos que sejam ameaçados ou que os filhotes da mamãe ursa corram perigo — explicou Crystal.

- Normalmente? — repetiu Raven, alteando as sobrancelhas.

- É bem provável que agora nós afugentemos a maior parte da vida selvagem por aqui — concluiu Crystal.

Entrei no caminho e fui avançando devagar, até encontrar um lugar na beira que parecia seguro.

— E agora? — perguntou Raven.

- Agora vamos limpar o carro e torná-lo o mais confortável possível — respondeu Crystal. — Acho que estamos todas cansadas demais para dormir no teto.

Ela tinha razão nesse ponto. Demorou um pouco Para baixarmos o encosto do banco traseiro. As trancas estavam enferrujadas e emperradas. Por baixo dos bancos não havia apenas papéis de bala, bandejas de hanbúrguer e garrafas vazias de cerveja e vinho, mas também uma bandeja que continha, outrora, alguma comida chinesa, agora endurecida e mofada.

— Vamos dormir com as janelas abertas — propôs Raven.

— Os mosquitos podem entrar — lembrei. Crystal inclinou a cabeça concordando. Ajeitamos tudo para que ela, Raven e Borboleta pudessem deitar-se, confortáveis, atrás, enquanto eu me acomodava no banco da frente. Eu não esperava mais que dez minutos para que nós quatro pegássemos no sono.

O sol acabara de mergulhar por trás dos bordos, bétulas e nogueiras que nos cercavam. A escuridão parecia um manto,quente a nos envolver. Havia um silêncio profundo. Os passarinhos também pareciam dormir.

— Fico me perguntando o que Gordon está fazendo neste momento — murmurou Raven.

— Pensando em nós, com toda certeza — respondi. Raven soltou uma risada.

— Eu não quero nem pensar nele — disse Borboleta. Todas grunhimos em concordância.

— Boa-noite — murmurei.

As outras também deram boa-noite. Só acordei quando o carro ficou todo iluminado. A luz incidiu em minhas pálpebras, desmanchando meus sonhos. Abri os olhos e descobri que a claridade não era causada pelo sol da manhã, e sim por faróis.

"Oh, não!", pensei, sentando no banco. Havia um carro logo atrás de nós.

Antes que eu pudesse acordar as outras, alguém bateu na janela do meu lado. Era um velho, espiando com a mão por cima dos olhos. Meu coração disparou. Deixara a janela do meu lado completamente fechada.

Baixei-a devagar. Enquanto fazia isso, as outras se remexeram e acordaram.

 

Essa não! — exclamou o velho. — Um bando de desordeiros que se perdeu no caminho. O que estão fazendo aqui, dormindo no carro, quando temos espaço de sobra lá em casa? Vamos embora.

Ele apontou para a frente e acrescentou:

— Sigam por esta estrada. Nana ficará feliz em ver vocês todas. E agora vamos embora.

Olhei para Crystal.

— É melhor fazer o que ele diz — sussurrou ela. — Afinal, não podemos atropelar um velhinho na estrada.

Liguei a caminhonete e segui em frente, devagar. Ele foi para seu carro e nos acompanhou, quase colado no pára-choque traseiro.

Não havia mais nada que pudéssemos fazer.

 

                         Uma visão do paraíso

A casa de dois andares que surgiu a nossa frente parecia perdida no tempo. Havia um pequeno jardim na frente, precisando urgentemente de ser cortado, e o mato de ser arrancado. As árvores perto da casa, em particular os três salgueiros-chorões, puderam crescer à vontade. Os galhos encostavam em alguns pontos do telhado. Calculei que durante o dia as folhas bloqueavam uma boa parte do sol; e quando o vento soprava, os moradores deviam imaginar que galhos enormes arranhavam o telhado.

A casa tinha uma fundação de pedra, sendo a parte externa de estuque áspero e granuloso. Havia uma arcada à direita, dando para um pequeno pátio e um jardim. Quando os faróis do carro iluminaram o lugar, avistei o que parecia ser uma fonte quebrada, parecendo um enorme pires, com um querubim no meio.

As janelas tinham venezianas pretas. Havia, no primeiro andar, luzes acesas por trás de algumas. À direita da casa existia um campo dominado pelo mato alto. Estendia-se por alguma distância, até alcançar um bosque escuro. A garagem, separada, ficava à esquerda. O velho passou por nós, apontando com o dedo o lugar onde queria que eu estacionasse, depois entrou no caminho para a garagem, com a pavimentação toda rachada e esburacada. Parou ali e saltou, enquanto eu desligava o motor.

 

Talvez devêssemos dar a volta e escapar enquanto ainda temos uma oportunidade — sugeriu Raven.

— Ele pode chamar a polícia, que estaria em nosso encalço em poucos minutos — disse Crystal. — Com toda certeza, a essa altura a polícia já recebeu a nossa descrição de Gordon.

— Vamos saber o que ele quer — murmurei.

— Não fiquem sentadas aí! Saiam! Saiam! — gritou o velho, enquanto se aproximava, esfregando as mãos. — Nana está lá dentro, ouvindo música e tricotando alguma coisa para as crianças de Gerry.

— Quem é Gerry?

— Meu filho. É o único que ainda mora por estas bandas. Helen casou e mudou-se para Akron. Burt foi para Atlanta. Acho que Burt nunca vai casar. Vamos entrar e tomaremos um chocolate quente.

Olhei para Crystal. Ela acenou com a cabeça, e nós quatro saímos da caminhonete.

- Mas que coisinha linda! — exclamou o velho, olhando para Borboleta. — Gerry tem uma filha com os cabelos de Cachinhos Dourados que nem você. Qual é o seu nome?

— Janet — respondeu Borboleta, tímida.

— Janet, Janet...

Ele coçou a cabeça, como se tentasse localizá-la em sua memória. Tinha um pouco de cabelos brancos e ralos em torno da coroa calva, com enormes sobrancelhas, iguais às de Papai Noel. O rosto era também redondo e jovial. Estava muito escuro para se divisar mais alguma coisa nele, exceto que devia ter três a quatro centímetros a mais do que Raven, a mais alta das quatro. Os braços eram musculosos, os antebraços compridos, as mãos grandes. Era meio encurvado, os ombros projetando-se junto ao pescoço largo. Apesar da idade, ainda havia algo de poderoso no velho, algo que me fez pensar num antigo tronco de árvore, envelhecido, pálido, mas ainda forte e determinado.

— Vamos entrar.

Ele seguiu na frente por um caminho de ardósia, algumas pedras rachadas e outras salientes, depois de anos de congelamento e degelo.

A porta da frente tinha uma janela multicolorida no centro. Ele apenas girou a maçaneta. Não estava trancada.

— Nana, temos visitas!

O velho deu um passo para o lado, segurando a porta, a fim de nos deixar entrar. Assim que passamos pela porta, senti os aromas que ainda restavam do jantar. Parecia ter sido bife de panela e pão feito em casa. A casa irradiava o calor de um cobertor velho, muito usado, mas confortável e aconchegante. Fotos da família ocupavam as paredes do pequeno vestíbulo. Havia um suporte, à direita, para pendurar chapéu e casaco, com um velho aquecedor de ferro batido à esquerda. Uma capa de abajur, de tricô rosa, fora ajeitada sobre o aquecedor, com alguma correspondência ainda fechada por cima.

Podíamos ouvir o som de uma música saindo de uma das salas além da entrada. Crystal sussurrou:

— Debussy.

Ela falou tão depressa que pensei no jogo "Informe a Música". Crystal podia dar o nome de uma música depois de ouvir apenas duas notas.

Raven fechou a porta no instante em que surgiu a nossa frente uma mulher idosa e magra, os cabelos brancos presos com grampos por cima das orelhas e em torno da cabeça. Usava um vestido de algodão azul-claro, com um enorme alfinete de camafeu no pescoço. A bainha do vestido descia até os tornozelos. As mangas eram três-quartos, deixando à mostra a faiscante pulseira de ouro e pedras preciosas no pulso direito e o relógio caro no esquerdo.

Os olhos eram enormes, castanho-claros, os lábios quase perfeitos, contraídos num sorriso gentil e cordial. a pele parecia extraordinariamente suave, com pés-de-galinha profundos nos cantos dos olhos e algumas manchas da idade na testa e nas faces. Não usava batom ou qualquer outro cosmético. Não achei que ela precisasse. Devia ter sido muito bonita quando era mais jovem.

- Quem são elas, Norman? — perguntou a velhinha, a voz também suave e cordial.

- Quatro crianças perdidas, Nana. Encontrei-as dormindo no próprio carro no caminho para nossa casa.

— Oh, não!

— Não tivemos a intenção de invadir a propriedade — apressei-me em dizer. — Pensamos que era um caminho que ninguém usasse.

- Parece mesmo que nunca usamos. Já lhe disse isso, Norman. Devia falar com Gerry para contratar Billy Powers e consertar tudo.

- Gerry diz que vai custar os olhos da cara... e sabe como ele se sente em relação a essa casa. — O velho olhou para nós. — Meu filho não quer que continuemos a morar aqui. Diz que o custo de manutenção é muito alto... ainda mais para candidatos ao asilo de velhos como nós.

- Pare com isso, Norman Stevens — protestou Nana. — Gerry nunca disse nada assim.

Norman sorriu para nós.

— E nem precisa dizer. Sei o que ele está pensando. É meu filho. Tenho que saber, não é mesmo? E agora digam seus nomes a Nana.

Nana sorriu, com as mãos cruzadas sobre a barriga, e esperou. Desejei ter perguntado a Crystal se ela achava que deveríamos dar nossos nomes verdadeiros, mas não houve tempo.

— Sou Brooke — informei.

As outras também se apresentaram. Quando Borboleta falou, os olhos de Nana se tornaram ainda mais suaves, o sorriso mais profundo.

- Olhem só para ela! Que coisa preciosa! Imaginem. nem só, dormindo no carro! Quero saber tudo sobre vocês, meninas, e por que dormiam no carro, quando tenho tantos quartos disponíveis.

Nana falava como se tivesse nos conhecido durante toda a vida.

- Eu estava pensando em preparar um chocolate quente — anunciou Norman.

- Faça isso, Norman Stevens, mas sem sujar minha cozinha — disse ela, com um brilho afetuoso nos olhos.

- Ela vive implicando comigo — comentou o velho, rindo. — Há quase sessenta anos.

— Venham comigo — disse Nana, levando-nos para a sala de estar.

Atravancada era a palavra que aflorava de imediato na mente, mas não suja ou desarrumada. Cada mesa, cada prateleira, cada espaço disponível, tudo estava ocupado por antigüidades, vasos, porta-retratos ou estatuetas. Havia muita coisa de latão e de madeira de lei, cadeiras com almofadas macias e dois sofás, muito usados, mas não rasgados. Haviam sido feitas algumas tentativas em vão para polir e reformar os braços das cadeiras e as mesas. Na parede da direita havia uma estante, com o que pareciam ser primeiras edições, encadernadas em couro e pano. Percebi que os olhos de Crystal foram atraídos para lá no mesmo instante. Ela pôs-se a verificar as lombadas dos livros, absorvendo os títulos como uma exploradora literária que acabara de achar um tesouro.

- Sentem onde quiserem — disse Nana. — Norman vai demorar um pouco para encontrar uma panela e medir as seis xícaras de chocolate quente. Seus olhos já não são mais como antes. Gerry não quer que ele continue a dirigir, mas Norman não é de admitir a idade ou uma fraqueza de qualquer tipo. Nunca foi.

— Vocês estão mesmo casados há sessenta anos? — perguntou Raven, arriando-se devagar numa cadeira.

Nana foi se acomodar na cadeira de balanço.

— Vamos fazer 62 anos de casados no próximo dia 5 de novembro — anunciou ela, orgulhosa.

Para Raven, era como conhecer uma pessoa saída do Acredite Se Quiser de Ripley. Ela ficou olhando-a com cara de espanto.

— Parece que foi ontem — continuou Nana. — Posso vê-lo entrando na casa dos meus pais em Denton, o chapéu na mão, debaixo do braço uma pequena caixa de bombons para mamãe e uma garrafa do licor de amora que a mãe dele fizera para papai. Trazia também um buquê de rosas amarelas para mim. Eram muito caras naquele tempo. "Vim pedir a mão de sua filha em casamento”, declarara. Percebia-se que ele ensaiara aquilo durante o dia inteiro. Papai pensara um pouco, só para dar a mpressão de que era uma idéia que nunca lhe ocorrera tes, quando era uma coisa esperada por todos que nos nheciam e sabiam há quanto tempo namorávamos. Ela sorriu ao recordar.

- "Acha que pode dar uma vida boa a minha filha?", perguntou papai. "Acho, sim, senhor. Será uma vida de agricultor, mas boa e honesta", respondera Norman. — Nana soltou uma risada. — E estamos aqui desde então.

— Está querendo dizer que viveu todos esses anos no mesmo lugar? — indagou Raven. — Na mesma casa?

— Isso mesmo, meu bem. Norman não queria dei-xar esta propriedade, não importava o que acontecesse. Planeja morrer aqui... e eu também, se o bom Senhor assim desejar. É por isso que Gerry fala em vão ao insistir em lares para os idosos e coisas assim. Poderia até uivar para a lua que não adiantaria. E agora, meninas, falem-me sobre vocês.

Ela olhou para mim, Raven, Crystal e Borboleta, antes de acrescentar:

— Por que dormiam no carro? De onde vocês são? Para onde vão?

Olhei para Crystal. Ela tinha agora de rebuscar sua imaginação e encontrar uma boa história de cobertura para nós.

— Somos amigas que estudam numa escola só para meninas no leste — começou Crystal. — Permanecemos unidas porque somos as mais pobres da escola, com bolsas de estudo. Convidei-as para passarem parte das férias de verão em minha casa. Estamos indo para lá, tentando economizar ao máximo na viagem. Foi por isso que tivemos a idéia de dormir no carro, para não gastar o dinheiro no hotel. Achamos que seria seguro e divertido, como acampar.

Fiquei impressionada com a habilidade de Crystal para inventar uma história. Adquirira uma tremenda imaginação com todos os livros que lera.

— Mas as mães e os pais de vocês não ficarão preocupados se não telefonarem para avisar onde estão?

— Já telefonamos, pouco antes de pararmos para passar a noite — respondeu Crystal. — Mas todos sabem que não temos pressa, pois queremos apreciar as paisagens.

Nana sacudiu a cabeça e balançou na cadeira.

— Ah, as crianças de hoje... Quando eu tinha a idade de vocês sentia medo só de pensar em percorrer cinco quilômetros sozinha. E aqui estão vocês, andando por todo o país. É verdade que se precisa ter muito cuidado hoje em dia.

— É claro que temos — assegurou Crystal. Nana olhou para Borboleta.

— Aposto que você não é muito mais velha do que minha neta Lindsey. Quantos anos tem, querida?

- Quase dezessete — respondeu Borboleta, a voz apenas um pouco acima de um sussurro.

- É mesmo? Pensei que tinha em torno de doze. Tenho certeza de que sua mãe sente muita saudade de você e desses lindos cabelos dourados.

Borboleta comprimiu os lábios e lançou um olhar rápido para Crystal, que se apressou em dizer:

— A mãe dela morreu. Ela vive com o pai, que está sempre viajando a trabalho.

— Ahn... — murmurou Nana, com um sorriso compadecido. — Sinto muito.

— Borboleta tem muito talento — interveio Raven. — Será uma bailarina famosa um dia.

— Borboleta?

— É seu apelido — expliquei.

— Você lembra mesmo uma linda borboleta. Qual é o seu tipo de dança, querida?

— Balé — respondeu Crystal. — Ela é capaz de dançar com essa música — e acenou com a cabeça para o toca-disco antigo, ainda ligado.

— Ah, que maravilha! — exclamou Nana, batendo palmas. — Eu adoraria ver.

Crystal olhou para Borboleta, que passou de um olhar de terror para uma expressão de orgulho. Talvez ela não fosse bastante boa para ingressar numa grande escola de balé, mas com certeza podia mergulhar por completo na dança, depois que começava.

— Mostre a ela — exortou Crystal.

— Isso mesmo — acrescentou Raven. — Dance um pouco.

Borboleta olhou para Nana, que sorria em expectativa, depois levantou-se. Assumiu uma posição e todas nos recostamos. Foi nesse instante que Norman apareceu com o chocolate quente.

— Aqui está! — anunciou ele.

— Fique calado e sente-se — ordenou Nana. — Vamos ter uma apresentação.

- O que houve? — Ele olhou para Borboleta. — Ah, desculpem...

Norman largou a bandeja numa mesinha e sentou-se. Borboleta começou. Não dançou por muito tempo, nem fez nada de especial. Já a víramos praticar os movimentos muitas vezes, mas para Nana e Norman foi como se uma prima ballerina tivesse entrado na casa. Nana bateu palmas com o maior entusiasmo quando Borboleta terminou.

- Foi muito bom, muito bom... — murmurou Norman. — Você se apresenta em público?

— Não — respondeu Borboleta, o rosto vermelho.

— Mas deveria.

— Ela ainda vai se apresentar — assegurou Raven.

- Raven é cantora — disse Borboleta, tentando desviar a atenção do casal idoso.

— É mesmo? — disse Norman, impressionado.

- Ela sabe cantar as músicas da Broadway — acrescentou Borboleta. — Cante aquela canção de O Fantasma da Ópera. Eu adoro.

— Ahn... está bem — murmurou Raven, hesitante. Levantou-se e foi até a lareira. Norman serviu o chocolate quente. Borboleta foi sentar perto de Nana, que inClinou-se para afagar seus cabelos, sorrindo.

Raven começou, a voz mais melodiosa do que nunca. Todo mundo ficou impressionado, até mesmo nós. Nana tornou a bater palmas. Norman recostou-se, balançando a cabeça em admiração.

— Vocês são de alguma escola de artes? — perguntou Nana.

— A escola dá ênfase às artes — declarou Crystal, na voz de professora que podia assumir com a mesma facilidade com que vestia uma blusa.

— Crystal vai ser médica — informou Raven, querendo que ela se sentisse incluída. — Mas às vezes também escreve poesia.

— É mesmo? — murmurou Norman, tomando um gole do chocolate quente. — Pois então vamos ouvir alguma coisa.

Crystal pensou por um momento, correu os olhos pela sala e depois levantou-se.

- Escrevi esta poesia para meus avós, há muito tempo — declarou ela.

Minhas sobrancelhas se altearam abruptamente, como se fossem sair do rosto. Como ela conseguia inventar aquelas coisas tão depressa?

- Não conheço meu passado, exceto através de vocês — começou Crystal, os olhos no teto. — Não conheço meu nome, exceto através de vocês. Quando penso em minha voz, em meu rosto, por que rio e choro de coisas diferentes, paro e penso em vocês, as raízes do meu ser, meu avô e minha avó, que partilharam seu amor e sonhos comigo, sempre que puderam. Mesmo agora, penso neles sempre que penso em mim mesma.

Ela fez uma pausa, baixou os olhos e tornou a sentar-se.

- É lindo, meu bem... — murmurou Nana. — O que acha, Norman?

— Estou emocionado. Acho que compreendi tudo. Todo mundo riu.

— E agora fale de você — disse Nana, olhando para mim, em expectativa.

— Não canto, não danço e não escrevo poesia.

— Brooke é nossa grande atleta... tão boa que pode competir nas Olimpíadas — informou Borboleta, feliz.

— É mesmo? — Norman acenou com a cabeça para mim. — Também fui atleta, na juventude. Nunca fui de ficar dentro de casa... ninguém podia me impedir de fazer as coisas ao ar livre.

Uma pausa e ele acrescentou, com uma risada amarga:

— É verdade que ninguém acreditaria pelo estado em que se encontram as coisas por aqui.

— O gramado bem que precisa ser aparado — concordei.

— Não posso negar. Há tempo venho adiando esse trabalho.

- Devia se envergonhar, Norman Stevens — repreendeu Nana, gentilmente.

— Já não consigo mais manter tudo em ordem — confessou Norman, sorrindo.

- Cuidar de um jardim é, de fato, um trabalho árduo — interveio Crystal. — Sabemos disso muito bem, porque cuidar do jardim era uma das nossas tarefas na escola.

— Talvez vocês queiram dar uma ajuda a Norman no jardim pela manhã — sugeriu Nana, depois de um momento de silêncio.

— De manhã?

Olhei para Crystal, que começou a sacudir a cabeça.

- Isso mesmo. Não pensaram que eu as deixaria sair pela noite para dormirem num carro, quando tenho dois ótimos quartos, cada um com duas camas, não é? E as camas estão arrumadas, com lençóis limpos. Sempre deixo tudo preparado para minha família, caso resolvam aparecer.

Pela tristeza em sua voz, era evidente que a família não lhe fazia visitas freqüentes.

— É muita gentileza, mas...

Nana levantou-se, interrompendo Crystal:

— Pela manhã teremos um antiquado café da manhã ao estilo do campo. Há muito tempo que não preparo nada assim, por ter apenas duas pessoas em casa. Como que nem um passarinho, enquanto Norman hoje se sente satisfeito apenas com uma tigela de mingau de aveia.

— E suco de ameixa — acrescentou ele, sorrindo.

— Não vamos falar sobre isso agora. Vocês, meninas, devem estar exaustas, depois de acordarem cedo e viajarem o dia inteiro. Vou lhes mostrar os quartos.

Crystal fez menção de falar, mas ela acrescentou no mesmo instante:

— Sem discussão. Por aqui, querida.

Nana passou o braço pelos ombros de Borboleta. Era espantoso como até estranhos podiam captar a necessidade especial de amor e aceitação que ela demonstrava.

Borboleta nos ofereceu um sorriso radiante. Raven olhou para mim. Dei de ombros e nós três subimos a escada, atrás de Nana e Borboleta.

Cada quarto tinha duas camas com colchões macios e travesseiros grandes. Havia um lindo papel de parede azul-claro nos dois quartos. As cortinas eram azul-escuras. As camas eram separadas por uma mesinha-de-cabeceira, com um abajur de latão, a copa de babados. Havia quadros a óleo de paisagens rurais nas paredes; um dos quadros mostrava um homem e uma mulher contemplando uma manada de bois, enquanto em outro duas meninas vinham de um açude carregando baldes.

Cada quarto tinha também duas cômodas com fotos em molduras de pewter por cima. Nana disse que eram de seus filhos e netos. Disse ainda que sentia muita saudade e que ficava feliz quando vinham visitá-la — Nada é tão feliz quanto uma casa cheia de gente da família — comentou ela, triste.

Nós quatro trocamos olhares. Se ao menos ela soubesse o quanto queríamos isso também, pensei. Sentia-me mal por mentir para ela, e percebi que Crystal também estava contrariada.

— O banheiro fica no outro lado do corredor — informou ela. — Alguém precisa de alguma coisa para dormir? Tenho lindas camisolas para emprestar, meninas.

- Seria ótimo — murmurou Raven, ansiosa para tirar as roupas amarrotadas.

— Eu não preciso — declarei, pensando em dormir com minha T-shirt.

- Nem eu — acrescentou Crystal, tirando uma camisola da mochila que trouxera consigo.

Borboleta deixara suas coisas no carro e disse a Nana que gostaria de usar uma camisola emprestada, se fosse possível.

— Tenho a camisola certa para você, querida. Nana abriu uma gaveta numa das cômodas e tirou uma camisola azul e rosa, com um laço na gola.

— Aposto que é do tamanho certo, meu bem. Borboleta pegou a camisola e contemplou-a como se fosse de ouro.

— E agora, meninas — acrescentou Nana —, decidam como se dividir pelos quartos.

- Vamos dormir como na escola — explicou Crystal.

— Alguém precisa de mais alguma coisa? — indagou Nana.

Sacudimos a cabeça. Estávamos todas cansadas demais agora

- Vou pegar aquela linda camisola que lhe prometi, querida — acrescentou Nana, ao se retirar. Borboleta sentou-se numa das camas.

- É muito agradável — disse ela. — Eu dormia num quarto parecido quando vivia com Celine e Sanford.

- Estou tão cansada que poderia dormir num banco de praça — murmurei. — Até amanhã.

— Será mesmo certo? — especulou Crystal, em voz alta.

Dei de ombros.

— Para mim é. Tenho certeza de que é melhor do que dormir no banco da frente do carro.

— Eu bem que gostaria que este fosse o nosso lar e eles os nossos avós — comentou Borboleta.

Todas ficaram em silêncio, concordando em pensamento. Nana voltou com a camisola para Raven.

- Era minha quando eu era mais jovem — explicou. — Espero que goste.

Os olhos de Raven revelavam toda a sua satisfação, enquanto pegava a camisola e a comprimia contra o corpo.

- Obrigada — murmurou ela, esfregando o linho branco no rosto, passando os dedos pelas flores bordadas ao longo da gola.

Ver Raven com aquela linda camisola antiga me deu vontade de também pedir uma emprestada. Imaginei que me sentiria como uma princesa numa camisola assim. Mas não queria mais saber de coisas bonitas e fingimento. Não me permitiria acalentar esperanças por coisas que nunca teria, mas nunca mesmo. Era muito Melhor me sentir satisfeita com a vida que eu levava; assim, sabia que não poderia ser desapontada.

Peguei no sono no instante em que encostei a cabeça no travesseiro macio, com a fragrância de flores nas narinas. Foi a melhor noite de sono que tive em muito tempo. Pelo que as outras comentaram na manhã seguinte, também foi para elas.

O aroma de pão fresco, café, ovos e bacon era melhor do que qualquer despertador. Assim que meu nariz absorveu os aromas, os olhos se abriram abruptamente Raven já havia se levantado. Em segundos, meu estômago começou a roncar.

E, ainda por cima, fazia uma linda manhã. Os passarinhos cantavam lá fora. O sol entrava através da cortina, realçando todas as cores no quarto. Que diferença despertar aqui, pensei, vendo tantas coisas bonitas, em vez de naquele quarto horrível na Lakewood House, que chamáramos de lar por tanto tempo.

Quando estiquei a cabeça para o corredor, fiquei surpresa ao constatar que Borboleta e Crystal já estavam descendo. Raven saiu do banheiro. Pela expressão do seu rosto", compreendi que ela também sentia-se feliz por estar numa casa aconchegante e segura.

— Depressa, dorminhoca! — exclamou ela, quando me encaminhei para o banheiro. — Tenho tanta fome que posso comer sua parte também, se não descer logo.

Ri baixinho para mim mesma. Era maravilhoso ter a velha Raven de volta.

Assim que sentei para comer, Norman entrou pela porta dos fundos, ofegante.

- O que houve com você, Norman? — perguntou Nana.

— É a droga daquele cortador de grama. Enguiçou de novo.

Ele sentou-se com um grunhido.

— Verificou a gasolina? — perguntei.

— Hum... Esqueci de olhar.

Norman levantou-se. Saí atrás. Ele foi direto para o cortador de grama e desatarraxou a tampa do tanque de combustível. Soltou uma risada sem graça.

— Essa não! — exclamou ele, coçando a cabeça - Tem alguma gasolina por aqui? — perguntei, torcendo para que ele não se sentisse embaraçado demais.

— Acho que tenho um pouco no galpão. Pode deixar que vou buscar.

Fui até o galpão. Depois de entregar a gasolina a Norman, tornei a entrar. Todas esperavam, Nana de pé junto da janela, com um sorriso insinuante.

- Deu uma ajuda a Norman, não é? — perguntou ela.

- Não foi nada — respondi, sem saber o quanto Nana vira.

Depois do café da manhã, Raven, Crystal e Borboleta ajudaram Nana a tirar a mesa. Saí para ajudar Norman a recolher a grama cortada. Fiquei contente ao ver Raven, Crystal e Borboleta saírem para nos ajudar pouco depois. Havia muita coisa para fazer.

Cada uma se revezou em fazer companhia a Nana, sentada na varanda e tricotando. Ela nos serviu uma limonada e depois sugeriu que almoçássemos na mesa de piquenique atrás da casa.

- Há anos que não fazemos isso — comentou Norman.

Os dois pareciam tão felizes quanto nós. Algumas vezes, durante o almoço, Borboleta e até mesmo Raven quase revelaram a verdade a nosso respeito. Referências à Lakewood House, a Gordon e Louise provocavam perguntas de Nana. Crystal sempre encontrava alguma explicação lógica, mas a situação nos deixava tensas.

— Precisamos reiniciar a viagem — sugeri, ao final do almoço.

— Por que não passam outra noite aqui? Vou assar um peru e preparar meu purê de batata especial.

- Ela é famosa pelo purê de batata — comentou Norman. — Nenhuma torta, Nana?

- Ia ser uma surpresa, Norman. — Ela virou-se para nós. — Faço uma torta de maçã que já ganhou muitos elogios.

— E prêmios em feiras — acrescentou Norman.

— Adoro torta de maçã — disse Borboleta.

Ela me lançou um olhar esperançoso. Olhei para Crystal e Raven.

— Mais um dia longe da estrada principal não seria má idéia — murmurou Crystal.

Raven fez que sim com a cabeça.

— Por que isso? — perguntou Nana. — Por que longe da estrada principal?

— Eu apenas quis dizer mais um dia sem enfrentar o tráfego intenso na estrada principal — explicou Crystal.

Os olhos de Nana deslocaram-se de Borboleta para mim e depois para Raven, antes que ela balançasse a cabeça com um sorriso suave. Quanto mais tempo ficássemos aqui, pensei, mais nossa história se tornaria inverossímil.

— Talvez seja melhor partirmos depois do jantar — sugeri.

- Não pode fazer isso. Mandarei Norman bloquear a passagem se tentar. É melhor viajar durante o dia. E vocês ganharam a estadia, ajudando Norman no gramado. Ficou quase como era no tempo em que Norman era mais jovem e podia cuidar de tudo aqui.

- Está bem, Nana — murmurei, cedendo. — Vamos ficar.

Borboleta exibiu um sorriso radiante.

- Talvez Janet queira dançar para nós outra vez. Raven também poderá cantar de novo. E aposto que se deixarmos Crystal sozinha aqui, ela vai escrever outra linda poesia. — Nana olhou para o marido. — Terá de buscar algumas compras no armazém, Norman. Talvez Brooke o acompanhe para ajudar.

— Seria ótimo. — Norman olhou para nós e sorriu. — Alguns avós em algum lugar são afortunados.

Se pudéssemos, contaríamos toda a verdade, só para evitar que as lágrimas nos turvassem os olhos.

Fiquei feliz em acompanhar Norman, ouvindo-o falar sobre seus dias como agricultor, sobre a família, como conhecera e se apaixonara por Nana, o quanto amava os netos. Gostaria de vê-los com mais freqüência, tanto por Nana quanto por si mesmo, ele disse. Não pude deixar de especular por que os netos não apareciam mais regularmente. Pelo que Norman disse, calculei que sua nora não gostava de visitar a casa.

Ele começou a fazer perguntas sobre minha família. Houve momentos em que fiquei acuada. Não era tão boa quanto Crystal para inventar histórias. De um modo geral, era melhor deixar que ela cuidasse de toda a conversa, pois caí em contradições algumas vezes e disse coisas que faziam pouco ou nenhum sentido.

Só podia imaginar como minha família seria. Disse que não tinha irmãos e usei as lembranças de Pamela como referência.

- Ela parece bastante com a mulher de Gerry — murmurou Norman.

Circulei pelos corredores do armazém, localizando as coisas que Nana pusera na lista. Ele comentou que eu reduzia à metade seu tempo de fazer compras, porque eu era capaz de encontrar tudo mais depressa.

— Eu deveria adotá-la — gracejou Norman, quando saímos.

Quase perdi a respiração. Apressei-me em baixar os olhos, para que ele não percebesse minha expressão. Nunca fora tão boa quanto Crystal, muito menos como Raven, para disfarçar meus sentimentos e pensamentos. Raven costumava dizer que meus olhos eram como duas pequenas telas de televisão, porque meus Pensamentos se projetavam ali com a mesma nitidez de Ulum programa de TV.

O jantar foi maravilhoso. Nenhuma de nós podia recordar algo parecido, nem mesmo quando vivíamos com nossos pais adotivos. Borboleta declarou que era como o Dia de Ação de Graças, o que provocou risadas.

Era difícil descrever a sensação de prazer que experimentávamos, mas parecia que Norman e Nana eram mesmo nossos avós, a família que jamais conheceramos, e uma noite os encontrávamos por acaso. Sentimos como se os conhecêssemos durante toda a vida. As risadas eram espontâneas, o sorriso e o afeto fluíam com a maior naturalidade.

Depois do jantar, Borboleta tornou a dançar. Desta vez, no entanto, dançou por mais tempo, com um desempenho melhor que qualquer outro anterior. Raven cantou duas músicas. Teria cantado uma terceira se pedissem. Crystal escrevera um poema curto sobre a natureza a maneira como esta nos envolve e nos faz sentir vivos e espirituais.

Mantive os olhos fixos em Nana. Não podia deixar de me sentir atraída por ela. Era gentil e muito bonita, à sua maneira. Havia uma sinceridade de sentimentos que nos faltara durante a maior parte da vida. Quando admirava Borboleta, ouvia Raven e Crystal, seus olhos se enchiam de lágrimas de alegria, o que também trazia lágrimas aos meus próprios olhos.

Norman tornou a nos agradecer por ajudá-lo no quintal.

— Eu deveria contratar vocês para todo o verão — comentou ele, rindo.

- Ah, como gostaria que fosse possível — acrescentou Nana. — Adoraria se ficassem.

- Eu também gostaria — murmurou Borboleta, cujo anseio por um lar e uma família era tão intenso que não podia se conter.

- Mas temos de seguir para minha casa — interveio Crystal, semicerrando os olhos para fitar Borboleta Que no mesmo instante olhou para o chão.

- Claro, minha querida. Suas famílias já devem star preocupadas. Tenho certeza de que sua mamãe e seu papai estão ansiosos por revê-la. Agora, estou um pouco cansada. Podem ir para a sala de estar, assistir à televisão, meninas, se quiserem. — Nana se levantou, acrescentando: — Sentimos falta de todos os programas a que assistimos.

— Desculpem — murmurou Crystal.

— Não há por que se desculpar. Foi melhor do que qualquer coisa a que poderíamos assistir na televisão, não é, Norman?

— Um milhão de vezes melhor — murmurou ele, acenando com a cabeça.

- Farei um bom café da manhã para vocês, meninas.

Nana encaminhou-se para a porta. Parecia cansada e, subitamente, muito velha.

— Não precisa se incomodar, Nana — intervi. — Sairemos bem cedo.

- Sempre levantamos cedo — respondeu ela. — E não vão deixar esta casa sem alguma coisa quente no estômago, está bem?

— Está. Obrigado, Nana. Ela sorriu.

— Boa-noite, meninas. Durmam bem.

— Boa-noite, Nana — respondemos em coro. Norman ficou para trás por mais um momento.

— Quero agradecer a vocês por nos visitarem. Foi uma alegria. Uma enorme alegria.

Ele se levantou, com um gemido. Apalpou a parte inferior das costas, sorrindo para mim.

— Vocês me fizeram trabalhar hoje mais do que no resto do mês, meninas. Poderia ser perigoso ter vocês aqui por mais tempo. — Ele soltou uma gargalhada. - Boa-noite, meninas.

— Boa-noite.

Ouvimos os dois subirem a escada e depois nos recostamos, deixando o silêncio nos envolver por um momento. Crystal foi a primeira a falar:

— Talvez seja melhor partir agora, Brooke.

— Não! — murmurou Borboleta.

- É melhor viajar à noite, Borboleta — ressaltou ela. — A despedida será muito difícil.

— Não me importo. E não é certo fazer isso com eles, ir embora sem se despedir.

Borboleta olhou para mim em busca de apoio.

— Crystal tem razão sobre viajar à noite — declarei —, mas Borboleta também tem razão sobre o que é certo e o que não é.

- Estou apenas avaliando o caso e apresentando minha conclusão — respondeu Crystal.

— O que você acha, Raven? — indagou Borboleta, na expectativa de que Raven desempatasse o impasse.

— Não sinto a menor vontade de passar a noite inteira dirigindo um carro com aquela cama macia lá em cima à minha espera. E também gostaria de assistir à televisão, talvez a MTV, para saber o que está acontecendo na música. Que mal pode haver em passar mais uma noite aqui?

Ninguém respondeu, porque ninguém podia prever o mal que a luz do dia traria.

Fomos assistir à televisão. Raven foi a última a subir para dormir. Tive um sono irrequieto, revirando na cama, dominada pelo sentimento de culpa, porque aceitáramos a hospitalidade sob uma cortina de mentiras. Quando Raven finalmente se deitou, consegui pegar no sono também.

Fomos todas despertadas pelo som de uma voz ríspida lá embaixo. Raven olhou para mim. Sentei na cama. Crystal abriu a porta do nosso quarto sem fazer barulho.

Vistam-se depressa — disse ela. — Fui até a escada, e escutei. É o filho Gerry, que está furioso por eles terem recebido quatro estranhas em sua casa. Ele diz que isso prova que seus pais não têm mais condições de viverem sozinhos aqui. Nana desatou a chorar. Eu ouvi.

— Mas que miserável! — murmurei, pensando que ele falava como Gordon.

— Não demorem — acrescentou Crystal. — Borboleta já se aprontou. Vamos sair o mais depressa que pudermos.

— Certo.

Raven e eu saímos da cama num instante. Vestimos as roupas e fomos ao banheiro rapidamente. Minutos depois, nós quatro descemos.

Gerry, o filho de Nana e Norman, era um homem enorme, com mais de 1,90m de altura e pesando uns cem quilos. Parecia mais com Norman, mas tinha os olhos de Nana. Os cabelos castanho-claros eram cortados bem curtos, fazendo as orelhas parecerem maiores. Usava um casaco esporte marrom-claro sobre uma camisa branca aberta no colarinho. Quando entramos na cozinha, ele estava encostado no balcão, os braços cruzados sobre o peito. Norman, sentado à mesa e de cabeça baixa. Nana trabalhava no fogão, mas parecia bastante perturbada.

— Quem são vocês? — perguntou Gerry, antes que pudéssemos dar bom-dia ou sermos apresentadas.

- Estamos indo para minha casa — respondeu Crystal. — Eu sou Crystal. Esta é Brooke. Esta...

— Não me refiro a seus nomes — interrompeu ele. — O que faziam no caminho aqui de casa, dormindo no carro?

- Já expliquei o motivo — interveio Nana. — Sentem-se, meninas. Já preparei tudo.

— Talvez seja melhor partirmos logo — sugeri.

— Também acho — declarou Gerry, os olhos cheios de desconfiança e raiva, contemplando-nos.

— Vamos, precisam pôr alguma coisa no estômago. — Nana parecia à beira das lágrimas. — Deixe-as comer Gerry. Por favor.

— Aqui não é hotel. Porém desviou os olhos.

— Sentem-se, meninas — insistiu Nana. Norman levantou os olhos e sorriu.

— Isso mesmo — acrescentou o velho. Borboleta foi a primeira a sentar. Raven seguiu-a, olhando para Gerry, depois para Crystal e para mim. Nana nos serviu os ovos mexidos.

— Não gosto de ver minha mãe bancando a criada de alguém — resmungou Gerry.

- Não estou sendo criada de ninguém, Gerry. As meninas nos ajudaram muito. Papai não contou como cortou a grama e arrumou o quintal?

— Hum...

Gerry ficou nos observando comer. Era muito desagradável, todas nós mantendo os olhos baixos, tentando ser cordiais, tentando fazer com que Norman e Nana se sentissem bem.

- Esperem um pouco! — exclamou Gerry subitamente. — Onde estão seu relógio e sua pulseira, mamãe?

- Como? — Nana olhou para os pulsos. — Ahn... Devo ter deixado lá em cima.

- Onde, lá em cima? — insistiu ele, olhando para nós.

— Na cômoda, onde sempre deixo, Gerry. Eu gostaria...

Ele não hesitou. Deixou a cozinha apressado e foi para a escada.

— Não se importem com ele — disse Nana. — Gerry desconfia de pessoas estranhas. Sempre foi assim, desde menino. Não é verdade, Norman?

— É, sim.

- E vive preocupado conosco — acrescentou ela, com um sorriso forçado.

— Eu também ficaria preocupada — admiti. Comemos um pouco mais depressa, apesar do esforço de Norman e Nana para nos deixarem à vontade. Momentos depois, ouvimos os passos pesados de Gerry na escada. Ele parou na porta, com um sorriso irônico.

— Não estão na cômoda, mamãe. E também verifiquei na sua caixa de jóias.

— Não estão? — Ela parecia perplexa. — Tenho certeza de que deixei na cômoda.

Gerry olhou para nós.

— Ninguém vai deixar esta casa enquanto o relógio e a pulseira não forem devolvidos.

— Não pegamos nada! — protestei.

— Claro que não — acrescentou Crystal. — Por que está nos acusando?

— Por favor, Gerry. Essas meninas...

- Não sabe nada sobre elas, mamãe. Há garotas vagando por toda parte hoje em dia, fugindo de casa, fugindo da cadeia, tornando-se pequenas prostitutas.

- Não somos assim! — exclamou Crystal, na defensiva.

- Não parecem nem um pouco com Mary Poppins. — O rosto de Gerry voltou a ser ameaçador. — Quero as jóias.

— Não pegamos nada — insisti. — Não roubamos nada.

Ele balançou a cabeça.

- Claro que não.

- Ei, esperem um instante! — interveio Norman. — Se bem me lembro, Nana, você tirou a pulseira e o relógio antes de começar a cozinhar ontem à noite.

— É isso mesmo!

Ela foi abrir então uma gaveta do armário ao lado da pia. E lá estavam o relógio e a pulseira.

— Aqui estão! — anunciou Nana. — Eu os tinha esquecido nessa gaveta.

Todo mundo permaneceu em silêncio por um momento.

— Acho que alguém nos deve um pedido de desculpas — declarou Crystal, olhando para Gerry.

- E eu acho que vocês já exploraram meus pais demais.

— Eu não me referia a eles — insistiu Crystal.

- Você deveria pedir desculpas, Gerry — disse Nana.

— Ahn... Não estou gostando nada disso. Vou para o trabalho -agora, papai. Conversaremos mais tarde. — Ele nos lançou um olhar furioso. — Espero que já tenham partido quando eu voltar.

— Mas é claro! — respondi, furiosa.

— Acho bom.

Ele virou-se e saiu da casa. Assim que a porta foi fechada, Nana tornou a pedir desculpas por ele.

- Temos de ir embora — disse Crystal. — Está tudo bem. Fico contente por ter encontrado seu relógio e sua pulseira.

- É fácil esquecer as coisas nos dias de hoje — murmurou Nana, desolada.

- Não deveríamos ficar mais um pouco e ajudar com a louça? — indagou Borboleta.

- Não se preocupem com isso — disse Nana. — Não tenho mesmo muita coisa para fazer.

Eles saíram da casa conosco, mais uma vez desculpando-se por Gerry.

— Talvez possam passar de novo por aqui quando voltarem — sugeriu Norman.

Não pude deixar de sorrir.

Nana abraçou Raven e Crystal, deu um abraço especialmente longo e apertado em Borboleta, antes de me abraçar também. Entrei no carro e liguei o motor. Embarcamos todas. Fiz a manobra, virando o carro para a estrada. Os dois ficaram parados lado a lado, observando-nos, acenando, parecendo menores do que nunca.

— Eu gostaria que pudéssemos ficar — murmurou Borboleta, triste.

Ninguém fez qualquer comentário.

- Só espero que o filho dele não nos denuncie à polícia — comentou Crystal, depois de algum tempo.

Foi uma preocupação que nos acompanhou por quase duas horas de viagem, antes de nos sentirmos mais relaxadas.

Fora uma parada sensacional, pensei. Mas depois observei as outras, vi a tristeza em seus olhos, e pensei de novo. Talvez fosse melhor se não tivéssemos conhecido Nana e Norman.

O tempo que passáramos com eles parecia confirmar o que sempre receáramos: nunca teríamos uma chance de sermos amadas, de fazer parte de uma família. Ser órfãs nos maculara para sempre.

 

                     Um raio de sol

Crystal voltou a estudar o mapa, à procura das estradas mais seguras, porque ainda se preocupava com Gerry, o filho de Norman e Nana, e com a inevitável denúncia de Gordon à polícia.

— Mesmo que Louise conseguisse dissuadi-lo por algum tempo, na esperança de que poderíamos voltar, pensando que resolvêramos apenas fazer um passeio, ele estaria furioso a essa altura, ainda mais se tiver seguido a pista falsa daquele mapa. Vamos continuar fora das estradas mais movimentadas, onde há sempre guardas patrulhando.

Ela olhou para o mapa e me orientou:

— Entre aqui. Vamos seguir por esta estrada até eu avisar para pegar outra.

- Podemos fazer um piquenique hoje? — perguntou Borboleta, depois de algum tempo. — Foi divertido comer ontem no quintal com Nana e Norman.

— Parece que vai chover — murmurou Raven, com algum desânimo.

As nuvens escuras que se amontoavam no céu pareciam já ter penetrado no carro. Raven nem sequer notou que eu ligara o rádio. Ficou olhando pela janela, contemplando a paisagem, parecendo hipnotizada. Quando olhei pelo espelho retrovisor para Crystal e Borboleta, constatei que as duas estavam pensativas. Borboleta parecia mais triste do que nunca.

— O que está acontecendo lá na frente? — indagou Raven subitamente, empertigando-se no banco.

Menos de um quilômetro à frente, na beira da estrada, havia uma pessoa sentada numa mala. Diminuí a velocidade e nos aproximamos.

— É alguém pedindo carona — informou Raven. — Uma garota. Pare o carro, Brooke.

— Não — disse Crystal.

— Por que não? Ela deve estar sozinha, como nós. Quem mais lhe daria carona nesta estrada? E a chuva está prestes a começar.

- Não podemos correr nenhum risco — insistiu Crystal.

— Ajudar alguém não é um risco. Pare, por favor, Brooke — suplicou Raven. — Bem que estamos precisando dar uma variada na companhia.

Ela lançou um olhar para Crystal. Brooke acrescentou:

— Não me importo. Pode ser divertido.

Ao chegarmos perto, verificamos que a garota era jovem, talvez dezessete ou dezoito anos. Usava uma saia curta marrom-clara, botinhas sem meias e uma blusa sem mangas e decotada, toda estampada. Tinha um lenço verde e branco em torno da testa e dos cabelos amarelos e azuis. A mala marrom desbotada parecia ter sido Jogada de um trem em alta velocidade. Era toda arrebentada, a tal ponto que as roupas saíam por algumas aberturas. Ela amarrara uma corda em torno para mantê-la fechada.

— Está bem — murmurei, parando o carro. — Ela é Patética.

A garota exibia apenas um brinco, que parecia ser uma tira de couro fina, com uma pedra azul na extremidade. Os óculos escuros azuis escondiam os olhos. Não usava maquilagem, mas parecia ter alguns pontos azuis pequenos na face esquerda.

A blusa era justa e revelava que ela não usava sutiã, apesar dos seios grandes. Tinha braços esguios, com uma tatuagem que parecia ser de um girassol desabrochando no antebraço esquerdo. A mão direita estava cheia de anéis de metal, nenhum dos quais dava a impressão de ser caro. Apesar da tatuagem, pontos azuis, aparência e roupas esquisitas, era uma jovem bonita. O nariz era perfeito, os lábios cheios e retos, apenas descendo um pouco no canto esquerdo.

— Obrigada por parar — balbuciou ela, ofegante. — Há dias que não vejo ninguém aparecer por esta estrada. Onde devo largar isso? — e apontou para a mala.

Por um longo momento, nós quatro ficamos olhando para a jovem, sem saber o que dizer.

— Vão me dar uma carona ou não?

— Vou abrir a traseira.

Saltei do carro e fui abrir a porta do bagageiro. Ela jogou a mala lá dentro.

— Pode sentar na frente! — gritou Raven, estendendo a cabeça pela janela.

A garota deu a volta e entrou, assim que Raven se afastou para o lado. Tornei a sentar ao volante e dei a partida.

— Obrigada, pessoal.

Sorriu para Crystal e Borboleta, que continuavam a fitá-la como se ela fosse uma extraterrestre.

— Para onde você vai? — perguntei.

— Para qualquer lugar longe daqui. E vocês? Olhei para Crystal pelo espelho retrovisor. Ela sacudiu a cabeça de forma quase imperceptível.

Para a casa de uma amiga minha em Ohio — respondi.

ótimo. Irei também para Ohio. Pela maneira como falou, concluí que ela concordaria em ir até para o Alasca, se fosse esse o nosso rumo.

— Qual é o seu nome? — perguntou Raven, a mais fascinada pela garota.

— Sunshine. E o seu?

- Sunshine? Raio de sol? — Raven hesitou, como se seu próprio nome não pudesse ser comparado em valor. — Ahn... meu nome é Raven. Estas são Brooke, Crystal e Borboleta.

- Borboleta? Grande nome. Tive uma amiga que deu à filha o nome de Beetle Bug, porque ela nasceu com olhos tão escuros, que parecia um pequeno besouro na neve.

— Borboleta é apenas um apelido — expliquei. — Seu verdadeiro nome é Janet. E você, qual é o seu verdadeiro nome?

— Já disse. É Sunshine. Não tenho outro nome.

— Por que estava pedindo carona?

— Porque meu querido namorado, Sky, deixou-me ali. Tivemos uma briga

— Sky de "céu"? — indaguei com um sorriso.

- Ele tinha outro nome. Ormand Boreman. Era o que constava de sua carteira de motorista. Em vez disso, deveria ser Ormand Boring, o Chato.

— Ele deixou você aqui? — perguntou Crystal. Sunshine virou-se para ela e sorriu.

— Para ser franca, abri a porta e disse que pularia se ele não parasse o carro. Por isso, ele parou e saltei. Sky partiu com a porta ainda aberta.

- Que tipo de namorado é esse? — indagou Borboleta.

- O pior tipo — respondeu Sunshine. — Que os ventos o levem para longe, não é? De qualquer maneira, os homens me cansam. Sempre pensam que você está disponível para ser agarrada e apertada só porque é bonita.

— Sei como é isso — murmurou Raven. Sunshine olhou para ela, com um pequeno sorriso

Não podia haver a menor dúvida de que eram almas gêmeas.

— Quem são vocês? De onde vêm?

— Do norte do Estado de Nova York — respondeu Crystal —, menos eu, que sou de Ohio. E você?

— Nasci na Califórnia, mas não vou lá desde...

— Desde quando?

— Desde que mamãe e papai se separaram.

— Sinto muito — murmurou Crystal.

— Não se preocupe. Não há por que sentir pena.

— Você tem irmãos? — perguntou Raven.

— Provavelmente.

— Provavelmente? — repeti. — Como assim?

- Conhecendo meu pai, acho que tenho, em algum lugar. — Ela olhou para mim. — Talvez tenhamos algum parentesco. Não posso saber.

— Onde estão seus pais agora? — indagou Borboleta. A aparência de Sunshine a estava tirando da depressão.

- Na última vez que eu soube, mamãe tinha ido para Rosarita Beach, no México, e papai para o Oregon.

- E não os viu mais nem teve notícias deles até agora? — insistiu Borboleta.

- Não. No que me diz respeito, sou órfã... e não me importo.

— Diz isso porque de fato não é uma órfã — murmurou Crystal.

— O que você disse?

— Nada.

— Quantos anos tinha quando saiu de casa? — perguntei.

Dezesseis. Ou talvez apenas quinze. Foi há tanto tempo que nem me lembro mais.

— Que idade você tem agora? — perguntou Borboleta. — Dezessete?

Sunshine riu.

— Tenho vinte anos.

— Vinte?

— Isso mesmo. Já estou velha.

Ela abriu a bolsa pendurada no pescoço e tirou um cigarro de aparência lamentável, o papel mal conseguindo segurar o fumo.

- Alguém quer dar uma puxada? — indagou ela, enquanto acendia o cigarro.

— Não fumamos — respondeu Crystal, incisiva.

— Eu também não — declarou Sunshine.

— Isso não é um cigarro — murmurou Raven, com uma súbita desconfiança.

— Tem toda razão. É um baseado.

Com um sorriso, Sunshine ofereceu a Crystal, que sacudiu a cabeça, depois a Borboleta, que arregalou os olhos, assustada.

- Ela também não quer — respondeu Crystal por Borboleta.

- Nenhuma de nós puxa fumo — disse Raven. — Essa coisa só traz encrenca.

— Com E maiúsculo! — declaramos Crystal e eu ao mesmo tempo, com uma risada nervosa.

— Não tem problema. Uma tragada não pode fazer mal. — Sunshine aspirou a fumaça ao máximo. — Nunca faz mal... e é isso que importa.

Ela inclinou-se para mim. Sacudi a cabeça. O cheiro forte impregnou o carro.

— Jogue isso fora — exigiu Crystal, tossindo. Sunshine olhou para mim.

— Por favor — acrescentei.

Eu não queria parar o carro e expulsá-la, mas sabia que teríamos de fazer isso se ela insistisse.

- Que desperdício... — murmurou Sunshine, jogando o cigarro de maconha pela janela.

- Cuidado, você pode começar um fogo no mato — protestou Crystal, olhando para trás.

— Quem é você? Uma líder de escoteiros? Raven fitou-a com expressão irritada, e ela se apressou em mudar de assunto.

— O que vocês faziam lá no leste?

- Estudávamos numa escola particular — respondeu Crystal no mesmo instante, talvez um pouco depressa demais.

Sunshine olhou para Raven e de novo para Crystal. Alteou as sobrancelhas, tirou os óculos escuros lentamente, fitou Borboleta, que se apressou em baixar os olhos.

— Alguma coisa me diz que vocês não estão falando a verdade. Não estou certa? — Como ninguém dissesse nada, ela acrescentou: — Estão fugindo de alguma coisa?

— Não — respondi. — Vamos para a casa de Crystal, em Ohio. Fomos convidadas.

- É mesmo? — Ela olhou para trás e sorriu. — Viajam com pouca bagagem, hein? Só vejo algumas fronhas. E sei que não é uma festa de pijama. Tenho certeza de que estão fugindo. Não precisam me dizer nada. Tenho bastante experiência de pessoas em fuga.

— Eu disse para não dar carona a ela — resmungou Crystal.

— Relaxe — disse Sunshine. — Sou a última pessoa no mundo com que precisam se preocupar. Há anos que venho fugindo.

Ela recostou-se, rindo.

Apesar da relutância de Crystal em permitir que Sunshine continuasse conosco, não podíamos deixar de nos sentir interessadas e intrigadas com a nossa nova conhecida. Ela descreveu suas viagens, os lugares dos Estados Unidos em que estivera, sempre pedindo carona e mantendo relacionamentos com homens que a levavam de um lado para o outro. Depois de algum tempo os homens a abandonavam ou faziam alguma coisa que levava Sunshine a abandoná-los.

- Quase fui assassinada no Texas. — Ela fez uma pausa. Nenhuma de nós respirava, com medo de interrompê-la. — Conheci um caminhoneiro numa parada de caminhões... o melhor lugar para se conseguir caronas. Até mesmo os que têm adesivos na janela com as palavras Não Dou Carona aceitam você, se pedir com jeito... entendem o que estou querendo dizer?

- Não — respondeu Crystal, os olhos e os lábios contraídos. — O que é que significa?

— É muito simples, Poliana.

Isso deixou Crystal ainda mais furiosa.

— Meu nome não é Poliana!

- Vá lá que seja. Você mostra um pouco de pele, flerta, enche a cabeça do cara com fantasias.

— E o que acontece depois? — perguntei.

— Depende. Se você realmente gostou do cara, paga a carona. Se não, há sempre meios de escapulir. Só que desta vez, no Texas, Roy não quis aceitar um não como resposta. E encostou uma faca na minha garganta.

Raven soltou um murmúrio aturdido.

— O que aconteceu? — indagou Borboleta. Sunshine olhou para ela.

— Você quer mesmo saber?

— Não — respondeu Crystal por ela.

— Achei que não ia querer, Poliana.

— Mas eu quero saber — interveio Raven. — Devemos ouvir e aprender.

— Por quê? — indagou Crystal. — Planeja sair por aí pedindo carona em paradas de caminhão?

— Nunca se sabe — disse Raven.

— É assim que se fala. Sunshine sorriu para Raven.

— Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser deixar que ele se servisse... ou pelo menos começasse. É preciso saber quando os homens estão no... no momento mais fraco, digamos assim. Esperei pela oportunidade, dei-lhe uma joelhada onde dói até o fim do ano e fui embora. Perdi algumas coisas. É por isso que só tenho uma mala. Mas não ia voltar e pedir a ele que devolvesse minhas coisas.

Ninguém falou por algum tempo. Ficamos absorvidas em nossos devaneios, cada uma considerando os momentos aterradores por sua perspectiva pessoal.

— Por que faz isso? — perguntou Crystal, finalmente.

— Faço o quê?

- Viaja por toda parte, pedindo carona a estranhos... ligando-se a estranhos e não sei mais o quê?

- O problema é que não estou matriculada em nenhuma escola particular no leste — respondeu Sunshine. — Vivo por minha própria conta e risco.

— Então arrume um emprego, aprenda alguma coisa, leve uma vida normal como as outras pessoas — continuou Crystal. — Muitas pessoas vivem por sua própria conta e risco, e não precisam acabar estupradas e assassinadas na boléia de um caminhão.

Sunshine fitou-a nos olhos por um longo momento, depois soprou o ar dos pulmões pelos lábios.

- Todo mundo neste país acha que sabe o que é bom para todo mundo. Quando não puder contar com mais ninguém por algum tempo, venha me procurar. Arrumarei uma hora para recebê-la em minha movimentada agência.

- Passamos a maior parte de nossas vidas sem contar com ninguém — murmurou Crystal.

- É mesmo? — Sunshine olhou para ela e as outras. O ceticismo foi substituído por um novo interesse. - Como assim? Quem são vocês?

- Somos órfãs — explicou Crystal. — Viemos de um lar de adoção. Escutou bem?

— Não está brincando? Jura que é verdade?

Ela sorriu como se nossa cotação subisse dez vezes ante seus olhos.

- Por que nunca foi internada num deles? — perguntou Raven.

- Quase fui, uma vez. Prenderam-me por vadiagem numa cidadezinha de Oklahoma. A polícia ia me entregar às autoridades estaduais, mas consegui blefar para escapar. Tinha uma amiga em Phoenix, que fingiu ser minha tia e mandou o dinheiro para a passagem de ônibus. A polícia engoliu a história. Peguei o ônibus, mas saltei na primeira parada. No fundo, não estavam muito interessados. Queriam apenas se livrar de mim. Como eu disse, Poliana, é preciso aprender a viver numa estrada.

- Pare de me chamar de Poliana! — protestou Crystal.

— Sensível, hein? A primeira regra para quem vive na estrada é não ser sensível. Você tem de desenvolver uma carapaça dura como a de uma tartaruga. Virei uma com a carapaça para baixo nos arredores de El Paso.

— Puxa, você já esteve em toda parte — murmurou Raven, impressionada.

- Mas não em Nova York. Tratei de me manter à distância da cidade de Nova York. Uma pessoa pode ser devorada viva ali.

- Acabamos de passar por lá — gabou-se Borboleta. — É linda.

— É mesmo? Quanto tempo ficaram lá?

— Apenas alguns minutos — expliquei. — Fiz a volta errada e acabamos na Broadway.

- Muitas pessoas tentam acabar na Broadway. — Sunshine soltou uma risada. Cutucou Raven, que riu também. — Gostei de vocês. Têm algum dinheiro?

- Nossas economias. Recebemos pagamento pelo trabalho no lar de adoção e em empregos de verão.

— Quanto vocês têm?

— Quase mil e quinhentos dólares — respondi.

- Mil quatrocentos e vinte agora — lembrou Crystal.

— Isso mesmo — concordei. — Ela é a banqueira.

— Ahn... — Sunshine tornou a olhar para Crystal. — Parece que o dinheiro de vocês está em mãos seguras. Não creio que Poliana seja do tipo que desperdice um centavo.

— Se me chamar assim mais uma vez... Sunshine riu.

— Por favor, não zombe dela — pedi.

- Está bem. — Ela virou-se para Crystal. — Até gosto de você... como é mesmo seu nome?

— Crystal. Meu nome é Crystal.

- É quase a mesma coisa que Poliana, mas está bem, Crystal. Mas como quatro órfãs arrumaram um carro como este? Não que seja tão espetacular...

Nenhuma de nós falou.

- Ah, já entendi. Crystal não é tão imaculada quanto simula, hein?

— O lugar em que estávamos não era nada bom — expliquei. — E não havia nenhum futuro para nós ali.

— O nome do lugar é Lakewood House e o dono se chama Gordon — disse Borboleta. — Ele é um monstro.

Crystal cutucou-a para evitar que falasse mais alguma coisa.

— Ele é uma ótima companhia — acrescentei. — Tomamos seu carro emprestado para escapar.

— Costumo fazer isso — comentou Sunshine, dando de ombros.

— Fazer o quê? — indagou Raven.

— Tomar coisas emprestadas. É a maneira de sobreviver na estrada. Conheci um cara em Las Vegas, que é uma cidade muito divertida. Ele tomou um carro emprestado, mas trocou as placas ao deixar a cidade. Vocês fizeram isso?

— Trocar as placas? Sacudi a cabeça.

— A polícia deve estar atenta ao número da placa. Troquem as placas com outro carro e terão mais chances de escapar. A maioria das pessoas nem nota que as placas foram trocadas.

— É uma boa idéia — concordou Raven.

— Nada disso — declarou Crystal. — Não vamos fazer qualquer coisa que nos meta em mais encrenca.

— Se a polícia pegar vocês neste carro, Poliana, já terão encrenca suficiente. Trocar as placas não vai piorar a situação.

— Não sei, não, Sunshine... — murmurou Raven.

— Eu ajudarei — prometeu Sunshine. — É muito fácil.

Quando olhei pelo espelho retrovisor, vi que Crystal assumira uma expressão preocupada.

— Veremos o que fazer — declarei. — Vamos pensar em um dia de cada vez.

— Exatamente. É o que sempre faço. — Sunshine virou-se para Crystal. — Já estão começando a viver como eu. Vamos nos dar muito bem. Seremos como... irmãs na estrada.

Paramos para almoçar num restaurante que tinha bombas de gasolina na frente. Apesar do tamanho e da localização, tinha bastante movimento e ficou lotado logo depois que chegamos. Crystal queria que fôssemos econômicas e escolhêssemos com cuidado o cardápio mas Sunshine interrompia a todo instante, insistindo que pedíssemos tudo que tínhamos direito.

— É um dos lugares mais baratos na estrada — garantiu ela. — Tratem de aproveitar.

— Estou mesmo com fome — resmungou Raven.

— Comemos bastante no café da manhã — lembrou Crystal.

— Mas ainda tenho fome. Quero um milkshake também. E Sunshine diz que as batatas fritas daqui são ótimas.

— Já estive aqui uma vez — explicou Sunshine. — Talvez duas.

Pediu então um hambúrguer duplo, batatas fritas, e um milkshake e sorvete de chocolate como sobremesa.

— Você paga a conta e eu acerto depois — disse ela a Crystal.

Crystal lançou-me um de seus olhares. Como eu não queria fazer uma cena ali, limitei-me a acenar com a cabeça. Relutante, Crystal pagou a conta. Deixamos uma gorjeta e saímos.

— Volto num instante — disse Sunshine, encaminhando-se para o banheiro.

— Vamos embora e deixá-la aqui — sugeriu Crystal, assim que entramos na caminhonete. — Nunca receberemos o dinheiro do seu almoço. Ela vai nos criar problemas, Brooke.

— Não podemos fazer isso — disse Raven. — Ela deixou a mala no carro.

— Vamos deixar no estacionamento — propôs Crystal.

— Alguém poderia roubá-la — protestou Borboleta.

— Roubar aquilo? Duvido muito. O departamento rodoviário pode levar para prevenir doenças, mas ninguém vai roubar, Borboleta. Vamos fazer isso, Brooke.

Não posso, Crystal. Ela está numa situação tão ruim quanto a nossa. Deixaremos ela nos acompanhar por mais algum tempo, e depois diremos que vamos para outro lugar.

— Ela não vai se importar com o lugar para onde vamos — advertiu Crystal. — Ficará conosco enquanto puder. Vai ver só.

— Lá vem ela — anunciou Raven.

Sunshine veio apressada do restaurante e entrou na caminhonete.

— Podemos ir embora.

Assim que partimos, ela virou-se para entregar algum dinheiro a Crystal.

— Aqui está pelo meu almoço — disse Sunshine, sorrindo.

Crystal pegou o dinheiro, surpresa. Olhou para mim, antes de esfregar as notas por um instante, como se pensasse que podiam ser falsas. Depois levantou os olhos, com mais surpresa ainda, até mesmo chocada.

— Onde arrumou essa nota de cinco dólares?

— Como assim? Eu já a tinha. Isso é tudo.

— Não, não tinha. Esta é a nota que deixei com a gorjeta. Sei por causa desta mancha de tinta no rosto de Abraham Lincoln.

— Mas o que você faz? — indagou Sunshine. — Memoriza a aparência de cada nota?

Ninguém disse nada por um longo momento. Depois, Crystal declarou:

— Lembro porque achei estranho que houvesse uma mancha de tinta aqui. Você pegou a gorjeta da garçonete.

— E daí? — disse Sunshine. — Ela vai receber gorjetas de pessoas que têm mais condições.

— Isso é horrível — insistiu Crystal.

— E imagino que roubar o carro de alguém vai lhe valer o Prêmio Nobel — respondeu Sunshine.

Crystal ficou vermelha, antes de morder a língua e se recostar.

— Não é certo — murmurou ela.

— Dinheiro é dinheiro, ainda mais quando se está na estrada. Vocês vão aprender. Esperem só para ver.

— É disso que tenho medo — murmurou Crystal. Sunshine riu.

— Deixem-me falar sobre uma ocasião no Kansas — disse ela, sem querer continuar a discussão. — Imaginem o meu desespero. Eu tinha apenas vinte centavos.

Ela foi de história em história, falando sobre lugares, pessoas e acontecimentos, desfiando a saga de suas andanças pelas estradas americanas. Inclusive descreveu ligações amorosas eventuais sem o menor embaraço ou arrependimento. Logo ficou patente para nós que, em sua opinião, os homens existiam apenas para serem usados, que o sexo não passava de uma boa maneira de pagar uma refeição, comprar uma passagem de ônibus, ou não passar uma noite solitária no meio do nada.

Para mim e minhas irmãs, no entanto, isso era mais do que entretenimento, enquanto viajávamos juntas. Era uma descrição do que poderia ser o nosso destino, se não tomássemos cuidado. O problema era só um: como ser cuidadosa no mundo de Sunshine, onde nos encontrávamos agora? Levou-me a especular se não deveríamos voltar e agradecer pelo que tínhamos.

Não tornamos a sair da estrada até todas precisarem ir ao banheiro. Crystal voltou a seu papel de navegadora e nos guiou por estradas paralelas às rodovias principais pelo máximo de tempo possível. Prendíamos a respiração cada vez que avistávamos um carro da polícia.

- Não se preocupem tanto — disse-nos Sunshine. Há tantos carros roubados neste país, todos os dias, que a polícia não tem condições de verificar todos... e, de qualquer modo, devemos criar uma máscara.

Ela se comportava como nossa instrutora, ensinando a sobreviver sem ter praticamente nada.

— Uma máscara? — indagou Borboleta.

Ela não parecia tão alarmada quanto nós pelas ações de Sunshine, o que começava a me preocupar.

— A expressão, entende? — Sunshine pestanejou, parecendo tão doce quanto era possível. — Você tem de parecer inocente, nunca dar a ninguém a impressão de que está preocupada que descubram alguma coisa negativa a seu respeito. Apenas relaxe, seja descontraída.

— Como? — insistiu Borboleta.

— Diga a si mesma que todos os outros também usam uma máscara e que você pode fazer a mesma coisa. É verdade. Todo mundo tira alguma coisa dos outros. Algumas pessoas fazem isso legalmente, porque têm o governo por trás ou porque sabem como burlar as leis e se aproveitar dos outros. Já vi isso acontecer muitas vezes. Já ouviram falar naquele ditado antigo, que diz que quem não pecou pode atirar pedras?

— Aquele que está sem pecado que atire a primeira pedra? — disse Crystal, sarcástica. — Está na Bíblia. Foi Jesus quem falou.

— Eu sabia que era da Bíblia — respondeu Sunshine, ríspida. — Seja como for, essa é a maneira de pensar. Com isso, pode usar a máscara. Ninguém vai atirar pedras, queridinha. Acredite em mim.

— Estou surpresa por você se chamar Sunshine com todo esse pensamento sinistro — comentou Crystal.

Sunshine virou-se para ela e sorriu.

— É a máscara, Poliana. Agora você começa a entender. Estão vendo? Ela é mais esperta do que vocês pensavam.

Até mesmo eu tive de rir. Crystal recostou-se, mal humorada. Não demorou muito para que Raven passasse a contar mais e mais sobre nós. Percebi que isso dei-xava Crystal nervosa, mas não pude imaginar que importância tinha. O que Sunshine faria para nos prejudicar? Ela era uma fugitiva experiente. Nós éramos novatas. Sunshine falava como se tivesse se formado na universidade da vida há muitos anos.

À medida que a noite caía, começamos a pensar onde comer e dormir. As coisas estavam mais complicadas agora que Sunshine viajava conosco.

— Onde vocês dormiram ontem à noite? — perguntou ela.

Raven contou o que acontecera.

— Pois teremos sorte esta noite também. — Sunshine tirou um cartão de crédito da carteira. — Podemos pagar um quarto de motel.

— De quem é esse cartão? — indagou Crystal, desconfiada.

— Meu.

— Não acredito.

Sunshine deu de ombros. Tinha uma carapaça muito dura. Nada do que Crystal dizia podia afetá-la.

— Quando ele nos conseguir o quarto, Poliana, você vai acreditar.

— Deveríamos dormir no carro — insistiu Crystal.

— Não sei, não, Sunshine... — murmurou Raven. — Poderemos ser presas se você estiver usando um cartão de crédito roubado.

Percebi que ela já se preocupava com as poucas vezes em que eu usara o cartão para gasolina de Gordon.

— Eu vou alugar um quarto. Se quiserem dormir no carro, o problema é de vocês. — Sunshine deu de ombros. — Não é muito seguro dormir no carro.

Ela fez uma pausa e lançou um olhar para Borboleta-

— Alguém pode aparecer e roubar o carro com você dentro!

Os olhos de Borboleta quase saltaram das órbitas.

— Isso é um absurdo! — protestou Crystal.

— Tudo bem, é um absurdo. Aprendam da maneira mais difícil, se preferem assim.

Continuamos em silêncio. O céu escurecia, as nuvens de tempestade ainda pairavam sobre nós. Finalmente um motel surgiu à nossa frente.

— Este é um bom lugar, não muito movimentado — comentou Sunshine. — Ficarão felizes em nos receber. Vamos alugar um quarto e pedir pizzas.

— Acho que é melhor — murmurou Raven, relutante.

Ela olhou para mim. Olhei para Crystal, que estava furiosa, os braços cruzados sobre o peito, o rosto virado para a janela.

— É uma democracia — declarei. — Vamos votar. As que estiverem a favor de passar a noite aqui digam sim.

Todas concordaram, menos Crystal.

— Os sins venceram.

— Desde quando ela vota por nós? — indagou Crystal.

— Ela tem direito a voto, pois vai pagar — declarou Raven.

Parei na entrada do motel e Sunshine saltou.

— Não vou demorar — disse ela.

Ficamos olhando, enquanto ela entrava na recepção do motel.

— Como ela pode ter um cartão de crédito, Brooke? Não tem endereço permanente. Roubou o cartão, com toda certeza, e estamos deixando que ela o use.

— Ela é que vai assinar tudo, não nós — ressaltou Raven.

— Estão deixando que ela assuma o comando —. insistiu Crystal. — Vamos nos meter mais e mais em encrencas.

— Estamos na estrada. Temos de sobreviver. Eu não quero voltar. Você quer? E você, Brooke?

— Claro que não quero — respondi.

— Nem eu — acrescentou Borboleta.

— Deixe-a fazer alguma coisa por nós em troca da carona que lhe demos — concluiu Raven.

Era óbvio que Raven não queria que tirássemos conclusões precipitadas sobre Sunshine, pois acreditava que todas as pessoas mereciam uma oportunidade de provarem quem eram.

Ficamos observando a porta que dava para a recepção. Cinco minutos depois Sunshine saiu, sorrindo e balançando uma chave de quarto. Entrou no carro.

— Siga até o 32 — disse ela. — Bem em frente.

— Não houve nenhum problema? — perguntei.

— Não. Por que haveria?

— Você tinha um documento de identidade? — indagou Crystal, cética.

— Claro. Tenho vários.

Sunshine soltou uma risada. Abriu a bolsa e tirou várias carteiras de motorista, cartões de crédito, até mesmo uma carteira de universidade, com sua foto.

— Onde conseguiu tudo isso? — perguntou Raven.

— Onde pensa que foi? — Ela riu de novo. — Ganhei alguns, peguei outros. Se forem legais comigo, ensinarei como se faz. E querem saber o que mais? O gerente disse que há uma pizzaria aqui perto que tem entregador. Mal posso esperar para tomar uma chuveirada quente. E o gerente disse que vai nos mandar uma cama de lona. Acho que vocês estão acostumadas a dormirem juntas. Por isso, ficarei com a cama de lona.

Ninguém protestou. Como Sunshine previra, o gerente, careca e jovem, levou uma cama de lona para o quarto. Entregou as roupas de cama extras a Sunshine.

— Obrigada. — Ela sorriu, sedutora. — Até mais tarde.

— O que vai acontecer mais tarde? — perguntei, depois que ele se retirou.

— Nada. Apenas prometi que o encontraria quando saísse do trabalho, para tomar um drinque num bar aqui perto. Talvez eu vá.

— Mas você disse que prometeu — lembrou Borboleta.

Sunshine riu.

— Não será a primeira promessa que vou quebrar... nem a última. Vamos pedir as pizzas. Estou morrendo de fome.

Pedimos duas pizzas e refrigerantes. Enquanto esperávamos, tratamos de nos revezar no chuveiro. As pizzas chegaram, e Crystal recorreu ao nosso dinheiro para pagar. Tivemos um banquete, todas falando ao mesmo tempo, exceto Crystal, ainda transtornada. Depois, ficamos vendo televisão. Por volta das onze horas, Sunshine anunciou que decidira se encontrar com o gerente.

— Não vou demorar — garantiu ela. — Pode me emprestar as chaves do carro, Brooke? Quero pegar minha mala e trocar de roupa.

Crystal olhou para mim com uma evidente preocupação. Por isso saí com Sunshine e abri a porta do carro. Ela pegou a mala, tirou a saia e a blusa, e vestiu um jeans e um blusão.

— Espero não estar vestida demais para este lugar — comentou ela, rindo. — Durmam bem, meninas. Vou acordá-las quando voltar.

Sunshine saiu.

— Já vai tarde — murmurou Crystal.

— Pare com isso, Crystal. Até agora ela é a única que nos deu bons conselhos e nos ajudou.

A chuva que ameaçara durante o dia inteiro acabava de desabar, as gotas batendo nas janelas e no telhado com tanta força que mais pareciam granizo.

— Espero que ela não tenha sido apanhada pela tempestade — comentou Raven.

— Seria uma lição bem merecida — resmungou Crystal.

— Estou exausta — declarei, antes que elas entrassem em outra discussão. Olhei para Borboleta, que já adormecera. — Não acordem Borboleta.

Crystal apagou a luz.

— Gosto de Sunshine — sussurrou Raven. — Ela é um pouco maluca, mas é divertida. Não acha, Brooke?

— Acho, sim, mas Crystal também tem razão. Não podemos ficar com ela para sempre, Raven. E estou preocupada com a maneira de como vamos nos livrar dela.

Pelo que aconteceu depois, não precisávamos nos preocupar em encontrar a melhor maneira de nos separarmos de Sunshine.

Todas adormecemos assim que fechamos os olhos. Quando acordamos, descobrimos que Sunshine não usara sua cama de lona. Os lençóis ainda estavam dobrados ao lado. Raven foi a primeira a notar, quando sentou na cama.

— Vejam! — exclamou ela, apontando. — Sunshine não voltou ontem à noite!

Crystal soltou um grunhido e se levantou, devagar. Borboleta também se levantou. Fui a última. Ficamos olhando para a cama intacta por um longo momento.

— Esperem um pouco — disse Crystal. — A mala de Sunshine... não ficou junto da porta?

— Ficou — respondi.

- Quer dizer que ela pegou a mala e foi embora? — murmurou Raven. — Por quê? Crystal sacudiu a cabeça.

— Não sei, mas estou feliz e...

De repente, alguma coisa atraiu sua atenção. Ela soltou um grito.

— O que foi? — perguntei.

Crystal atravessou o quarto tão devagar, que tive a impressão de que ainda sonhava. Levantou a blusa caída no chão, ao lado da cadeira em que a pusera, junto com a saia. Sua bolsa desaparecera.

— Nosso dinheiro! — exclamou ela, virando-se para mim. — Brooke, todo o nosso dinheiro desapareceu!

 

                 Em cima da hora

—É tudo culpa sua! — gritou Crystal para Raven. — Eu disse que não deveríamos lhe dar carona, mas você insistiu! E agora veja o que aconteceu!

Ela apontava para a cadeira onde estivera sua bolsa. Os lábios de Raven começaram a tremer, os olhos lacrimejaram. Ela virou-se para mim e depois para Borboleta, que chorava forte, os braços em torno do corpo, como se estivesse congelando. As pálpebras adejaram e depois o choro parou, tão subitamente que até pensei que suas cordas vocais haviam rebentado.

— Borboleta? — murmurou Raven.

Borboleta caiu novamente sobre o travesseiro, os olhos arregalados, fixos no teto, a boca também aberta. Parecia apavorada. O rosto se tornava mais e mais branco a cada momento.

— Crystal! — exclamei, saltando da cama. — Está acontecendo alguma coisa com ela!

Fui pegar sua mão, que se encontrava gelada.

— Está tudo bem, Borboleta... Crystal!

— Não entre em pânico. — A voz de Crystal soava controlada e profunda. — Se ela perceber que você ficou em pânico, vai piorar ainda mais.

Raven permaneceu atrás de nós, esperando, a cabeça baixa. Crystal virou-se para ela.

— Traga uma toalha de rosto molhada.

Raven foi para o banheiro. Quando ela voltou, Crystal ajeitou a toalha na testa de Borboleta. Afagou sua mão.

— Vamos, Borboleta, não nos deixe agora. Precisamos umas das outras.

Raven mordeu o lábio inferior, abraçando-se, como se também estivesse congelando. Todas começávamos a desmoronar, e muito depressa. Passei o braço em torno de Borboleta e levantei-a para uma posição sentada. As pupilas pareciam dançar dentro das órbitas. Crystal deu a volta para o outro lado.

— O que há de errado com ela? — perguntei a Crystal.

— É apenas outro ataque de ansiedade, só que um pouco mais severo. Fique calma.

Ela daria uma ótima médica, pensei. Crystal virou-se para Raven e acrescentou:

— Depressa!

Raven subiu na cama. Inclinou a cabeça, encostan-do-a na minha e na de Crystal. Chegamos mais perto de Borboleta, fazendo o contato físico, com extrema gentileza. Crystal começou:

— Somos todas irmãs. Sempre seremos irmãs. O que acontece com uma, acontece com todas.

Raven entoou junto comigo e logo nos fundimos em uma só voz, uma só esperança, uma só oração. Senti o corpo tenso de Borboleta relaxar um pouco. A pele foi se tornando mais quente. Logo ouvimos sua voz acompanhar a nossa.

— Sempre seremos irmãs. Quando uma fica triste, todas ficamos tristes. Quando uma está feliz, todas estão.

As quatro se separaram. Borboleta piscou rapidamente, olhando de uma para a outra.

— O que vai acontecer conosco? — indagou ela como se o tempo tivesse parado, e o ataque não tivesse ocorrido.

— Você nos deixou apavoradas — balbuciou Raven.

— É mesmo?

— Esqueça, Raven — aconselhou Crystal, com um olhar firme.

Raven, ainda mortificada pelas acusações de Crystal, atendeu sem hesitar. Borboleta tornou a olhar de uma para outra, confusa.

— O que faremos, Brooke? — perguntou-me ela.

Eu não tinha respostas, e nem Raven, e nem Crystal. Depois de um longo momento de silêncio, Crystal foi pegar suas roupas.

— Acho que teremos de voltar.

— Não! — gritou Raven. — Nunca mais voltarei!

— Também não quero voltar — murmurou Borboleta.

Não falei nada. Crystal provavelmente tinha razão, pensei. Não poderíamos viver de um cartão de crédito de gasolina. Além disso, Gordon muito em breve receberia a conta e poria um paradeiro naquilo de qualquer maneira.

— Acham que eu quero voltar? — disse Crystal. — Lembrem-se do que Gordon fez comigo. Mas creio que não temos mais qualquer opção. Com aquele dinheiro pelo menos tínhamos um pouco para nos sustentar. Agora não temos mais nada.

— Ainda tenho dois dólares — anunciou Raven.

— Acho que também tenho alguns dólares — acrescentou Borboleta.

— Todas temos algum dinheiro. Somando tudo, quanto dá? Dez dólares? Até onde isso poderia nos levar?

Ela parecia derrotada.

— Crystal tem razão. Só nos resta agora algumas roupas numa fronha. É ridículo pensar que poderíamos atravessar todo o país com isso.

— Não podemos voltar — suplicou Raven.

Ninguém falou por algum tempo. Todas nos vestimos, usamos o banheiro e saímos do quarto. Raven parou na calçada, segurando a fronha com as roupas, parecendo desesperada, enquanto nós três entrávamos no carro.

— Não seja ridícula, Raven — argumentei. — Voltaremos e pensaremos em outra coisa.

— Não, não pensaremos. Se voltarmos, Gordon transformará nossas vidas num verdadeiro inferno... e isso se o Estado não nos separar e nos obrigar a viver em algum lugar pior do que Lakewood House. — Ela começou a fungar. — É tudo culpa minha. Pensei que Sunshine fosse igual a nós; que ela merecia uma oportunidade.

— Ela levou nosso dinheiro, Raven. Ninguém está culpando você. Todas temos de arcar com alguma responsabilidade. Eu também concordei em lhe dar uma carona. E agora entre no carro, por favor.

— Entre, Raven — implorou Borboleta. — Não podemos partir sem você.

— Sinto muito ter gritado com você, Raven — disse Crystal. — Não posso culpá-la por querer ajudar alguém.

Raven olhou para Crystal e abrandou. Correu os olhos pela fileira de quartos do motel, depois nos fitou.

— É bem provável que Gordon mande nos prender — murmurou ela, entrando na caminhonete, relutante.

— Devemos dar uma volta pela área, para ver se encontramos Sunshine. Eu a obrigarei a devolver o nosso dinheiro.

— Não vamos encontrá-la — disse Crystal. — Agora que levou nosso dinheiro, tenho certeza de que não vai mais pedir carona.

— Como ela pôde fazer isso conosco? — gritou Raven, enquanto deixávamos o estacionamento do motel. — Achei que éramos iguais a ela!

— Não somos iguais a ela — declarou Crystal. — Nossa situação é melhor, Raven. Sunshine está sozinha. Nós temos umas às outras. Como você acha que ela vai acabar? Provavelmente morrerá em algum beco escuro.

— Para que lado vamos? — indaguei, quando alcancei a estrada.

Crystal consultou seus mapas.

— Devemos continuar para oeste por cerca de trinta quilômetros. Pegaremos a entrada para uma das rodovias principais, mesmo correndo risco. Agora que vamos mesmo voltar, não faz diferença se formos detidas.

O clima fúnebre que eu sentira no dia anterior era como uma feliz celebração se comparado com o ânimo que nos dominava hoje. O céu nublado agravava a situação. Começou a chuviscar. Não demorou muito para que a chuva se tornasse mais intensa. Chovia tanto em determinado momento que tive de parar no acostamento.

— Espero que ela não tenha conseguido pegar uma carona e esteja agora no meio dessa chuva — murmurou Raven.

Depois suspirou e arriou no banco, enquanto a água escorria pelo pára-brisa e pelos lados da caminhonete.

— Estou com fome — comentou Borboleta. — Não vamos parar em algum lugar para o café da manhã?

— Não tenho nenhum dinheiro — disse Crystal. — Brooke, quanto você tem exatamente?

— Apenas algumas moedas. Talvez noventa centavos. Você guardava tudo na sua bolsa.

— Poderíamos dividir alguma coisa — sugeriu Borboleta.

— E o que comeríamos no almoço e no jantar? — indagou Crystal. — Temos de viajar alguns dias para voltar. Talvez seja melhor nos entregarmos à polícia.

Ninguém disse nada. Cada momento transcorrido parecia nos levar para mais perto de um desastre ainda pior do que tudo o que imagináramos. A chuva finalmente diminuiu para um chuvisco, mas ainda ventava muito.

— Estou me sentindo uma grande idiota — murmurei. — Por que não percebi logo como ela era?

— Não entre nessa — ordenou Crystal. Observei-a pelo espelho retrovisor. Sua expressão era firme. Já recuperara o controle. E tinha toda razão. Eu detestava a autocompaixão, assim como a desprezava nas outras pessoas. E me sentia ainda pior se me ouvia lamentando e gemendo.

Raven empertigou-se abruptamente.

— Tenho uma idéia. Uma ocasião, quando eu estava com Dede, resolvemos sair com Charlie Weiner. Não tínhamos dinheiro suficiente para comprar refrigerantes. Charlie então sugeriu que levantássemos o banco traseiro para procurar moedas que poderiam ter caído lá atrás. Talvez encontremos alguma coisa agora.

— De que adianta encontrar algumas moedas? — perguntou Crystal.

— Pelo menos poderemos pagar o café da manhã, Crystal. Também estou com fome. E teremos algum tempo para pensar.

Raven olhou para mim. Dei de ombros e murmurei:

— Muito bem, vamos levantar o banco traseiro. Ela e eu saltamos e abrimos as portas. Crystal e Borboleta saíram. Raven e eu enfiamos os dedos por trás do banco traseiro e o puxamos. Conseguimos levantá-lo com facilidade. Encontramos uns poucos dólares em moedas, mas também descobrimos outra coisa.

— O que é isso? — indaguei.

Não toquei. Raven inclinou-se devagar, enquanto Borboleta espiava por cima do seu ombro e Crystal do meu.

Era um saco de plástico transparente, cheio do que parecia ser farinha de trigo branca. Raven abriu e enfiou um dedo no saco. Olhou para mim enquanto pegava um pouco do pó branco e levava aos lábios. Arregalou os olhos.

— É cocaína! — anunciou ela, levantando o saco. — E uma grande quantidade!

— Cocaína? — repetiu Crystal. — Tem certeza?

— Tenho, sim. Já vi antes. Mamãe e seus namorados costumavam deixar um pouco no apartamento. Esta aqui deve valer um bom dinheiro.

— Gordon devia estar vendendo — comentei. Recomeçara a chover forte, mas nenhuma de nós parecia se importar. Pensei um pouco e acrescentei:

— Agora compreendo o que ele fazia quando o vi com alguém na caminhonete tarde da noite. Aposto que era seu fornecedor ou algum cliente.

— Você viu? — perguntou Borboleta.

— Vi, sim. Pensei até que ele tinha me visto na janela e fiquei assustada. Puxa, cocaína! — Eu me sentia atordoada. — E viajamos com isso bem por baixo de nós!

— E até cruzamos fronteiras de estados — lembrou Crystal. — Vamos jogar fora imediatamente.

Raven começou a levantar o saco.

— Espere! — exclamou Crystal. Raven hesitou.

— Quer guardar?

— Não. Pode me dar.

Raven entregou o saco. Crystal abriu-o, enquanto acrescentava:

— Não podemos deixar apenas na margem da estrada. Alguém poderia encontrar e vender, até mesmo para crianças. Seríamos as responsáveis.

Ela se afastou do carro.

— O que vai fazer? — gritou Raven.

Crystal sacudiu o saco para o vento. O pó saiu e começou a se espalhar pelo chão. A chuva dissolveu-o num instante.

— Trate de se apressar, antes que alguém chegue e veja isso! — gritei.

Ela sacudiu o saco com mais força. Uma pequena nuvem branca apareceu, para logo se dissolver e desaparecer ao vento. Crystal afastou-se da estrada por mais alguns passos e pôs o saco vazio embaixo de uma pedra.

— Vamos logo embora! — disse ela, quando apareceu um carro na estrada.

Endireitamos o banco traseiro e embarcamos na caminhonete. Dei a partida, enquanto o veículo em sentido contrário diminuía a velocidade. Um homem e uma mulher olharam para nós. Pareciam ter em torno de cinqüenta anos. Não pararam. Fiquei observando o carro pelo espelho retrovisor.

— Espero que nunca venhamos a nos arrepender por ter feito isso — murmurou Raven.

— Vamos nos arrepender de uma porção de coisas que fizemos, mas nunca disso — garantiu Crystal.

— Ei, esperem um pouco! — exclamei, sem parar de guiar. — Não podemos mais voltar agora!

— Por que não? — indagou Crystal.

— Gordon pode não nos matar por levar seu veículo, mas por jogar fora a cocaína...

— Brooke tem razão, Crystal — interveio Raven. — Não há como prever o que ele será capaz de fazer conosco.

Crystal não disse nada.

— Podemos procurar a polícia — sugeriu ela depois de um momento. — Vão nos perguntar por que não aparecemos quando estávamos com a droga nas mãos — ressaltou Raven.

— Deveríamos ter feito isso. — Desolada, Crystal olhou pelo espelho retrovisor, como se pudesse haver algum meio de voltarmos ao lugar e repormos a cocaína no saco. — Acho que estamos mesmo numa situação crítica. É melhor continuar em frente até pensarmos em outra coisa para fazer.

Junto com as moedas que encontramos debaixo do banco tínhamos pouco mais de onze dólares. Meu estômago também roncava. Por isso, quando avistamos a placa do Crossroads Restaurant, resolvi sair da estrada.

— Torço para que não seja muito caro — murmurou Crystal.

Quando o vimos, concluímos que não podia ser. Não chegava a estar dilapidado, mas era despretensioso: um restaurante num prédio que devia ter sido outrora a casa de alguém. Havia um estacionamento na frente, duas bombas de gasolina e uma placa que dizia:

                           CROSSROADS RESTAURANT

                              COMA AQUI E PONHA GÁS

 

— Espero que não seja um comentário sobre a comida — gracejou Raven.

Crystal e eu rimos. Havia um trailer grande à direita do restaurante, com um pequeno gramado amarelado e um cortador de grama enferrujado na frente. Por trás do restaurante havia um pequeno chalé, as janelas da frente cobertas por tábuas, um pedaço de calha pendendo do lado direito da porta. Havia meia dúzia de carros e três pickups no estacionamento quando paramos. A porta de tela estava aberta e podíamos ouvir música country tocando lá dentro.

— O que vocês acham? — perguntei.

Mendigas não podem escolher — respondeu Crystal, jovialmente.

Compreendi que ela tentava fazer com que todas se sentissem melhor. Saltamos do carro e entramos no restaurante. Não era tão pequeno por dentro quanto pensávamos. Havia mesas à direita e à esquerda, mas nenhum reservado. Bem na nossa frente havia um balcão com bancos de aço inoxidável, cobertos por um vinil preto já meio gasto. Por trás ficava a cozinha, aberta para quem quisesse ver. Um preto baixo e magro, com duas mechas de cabelos brancos nos lados da cabeça, cozinhava ali. Virou a cabeça com algum interesse, mas logo voltou a se concentrar no fogão, onde havia bolinhos, ovos e bacon impregnando o ar com aromas deliciosos. Meu estômago deu saltos-mortais em expectativa; e pelas expressões de Crystal, Borboleta e Raven, compreendi que a mesma coisa acontecia com elas.

Uma mulher alta, com cabelos castanhos malcui-dados, cheios de fios brancos, trabalhava no balcão. Ao que parecia, era a única garçonete. Tinha olhos úmidos, injetados e cansados, que combinavam com sua pele pálida. Não era corpulenta, mas a parte superior dos braços era bem grossa. O busto volumoso forçava a blusa branca apertada, com os dois botões de cima abertos, deixando à mostra um sulco profundo entre os seios. Percebi ser uma vista atraente para seus fregueses, todos homens. A saia preta era tão justa que os quadris se delineavam com clareza. Ela fez uma pausa no trabalho e olhou para nós, com as mãos na cintura.

— Se vieram comer, escolham um lugar para sentar — ordenou.

Os fregueses, todos olhando para nós, sorriram. Um homem encheu a boca com um pedaço de pão molhado com gema de ovo, enquanto nos observava seguindo para uma mesa.

— Parece que você vai ter de acordar o Danny, Patsy — disse ele. — É uma manhã de grande movimento, hein?

— Vá acordá-lo você — murmurou ela. — Será como tentar levantar os mortos.

Todos riram.

— Deixe que eu vou acordá-lo para você.

Quem fez a sugestão foi um homem alto e forte em torno dos quarenta anos, sentado em outra mesa. Era evidente que se tratava de um lugar bastante pequeno, pois todos os clientes se conheciam e participavam da conversa.

— Se você fosse acordá-lo, Gordy, sei que ele nunca mais seria de qualquer proveito para mim — respondeu a mulher.

— Não seria grande perda — comentou Gordy. — Como não é de grande proveito para você, mesmo agora.

Todos riram novamente.

— Não me lembre...

Patsy pegou um prato com bolinhos estendido pelo cozinheiro e foi largá-lo na frente de um freguês que se encontrava no balcão. Limpou as mãos numa toalha de prato e contornou o balcão para falar conosco. Não tinha cardápio nas mãos, mas percebeu no mesmo instante o que eu pensava.

— O cardápio do café da manhã está na parede — informou ela, apontando com a cabeça para um quadro-negro à esquerda.

Tudo era bastante barato, mas não teríamos dinheiro suficiente se as quatro pedissem. Crystal estudou o quadro-negro.

— O que fazem por aqui? — perguntou Patsy, olhando de mim para Borboleta, Raven e Crystal.

— Estamos viajando e vimos sua placa — respondi-

— Eu disse que valia a pena anunciar! — gritou o homem chamado Gordy.

Alguns dos fregueses do balcão riram mais uma vez.

— Fique quieto — disse a mulher. — Tenho negócios de verdade para tratar aqui.

Ele riu ainda mais. Patsy virou-se para nós.

— Podemos pedir uma porção de panquecas, dois ovos, dois sucos de laranja grandes e dois cafés? — perguntou Crystal.

— Para todas vocês?

— Isso mesmo.

A mulher ficou espantada.

— Quanto dinheiro vocês têm?

— O suficiente para isso — respondeu Crystal.

— Não foi isso que eu perguntei!

Crystal sustentou o olhar da mulher por mais um momento, depois olhou para o nosso dinheiro.

— Temos onze dólares e quarenta e três centavos.

— No total?

— Isso mesmo.

— Até onde vão?

Raven começou a se remexer na cadeira. Borboleta parecia mais apavorada.

— Deveríamos ir para a Califórnia, mas fomos roubadas ontem à noite e isso é tudo o que temos.

— Fala sério? — A mulher coçou a cabeça. — Como foram roubadas?

— Uma pessoa que merecia toda a confiança levou nosso dinheiro enquanto dormíamos — expliquei.

— E com isso só têm onze dólares agora, hein?

— E quarenta e três centavos — corrigiu Crystal.

— É verdade, mais quarenta e três centavos... — Ela suspirou fundo, balançou a cabeça. — Podem me chamar de Dona Coração Mole.

A mulher virou-se para o cozinheiro e gritou:

— Charlie, quatro panquecas especiais! O cozinheiro acenou com a cabeça.

— Mas não podemos pagar! — protestou Crystal preocupada.

— Ninguém deixa o restaurante da Patsy com fome — declarou a mulher. — É uma regra da casa.

Ela voltou ao balcão. Ficamos observando enquanto servia quatro copos com suco.

— É muita gentileza dela — murmurou Raven, cautelosa, não se sentindo mais disposta a confiar numa estranha muito depressa.

Mais dois fregueses chegaram; e antes de recebermos a comida, outros três entraram. Patsy estava muito ocupada. Vi quando o cozinheiro terminou de preparar os nossos pratos.

— Vou ajudá-la — anunciei, levantando-me.

— Vai fazer o quê? — perguntou Raven.

Patsy anotava um pedido, mas viu quando dei a volta para trás do balcão. Não se queixou quando peguei os pratos e levei para nossa mesa. Já trabalhara como garçonete antes e sabia como carregar quatro pratos. Sentei-me depois de colocá-los na mesa.

— Está uma delícia — comentou Raven, enquanto comia.

— Muito bom mesmo — acrescentou Borboleta. — Os ovos estão no ponto que eu gosto.

Patsy tinha de anotar os pedidos, trabalhar no balcão e servir às mesas. O restaurante tinha obviamente uma boa reputação entre os moradores locais, apesar do serviço lento, porque mais fregueses chegaram e todos pareciam conhecê-la. Mostravam-se pacientes, embora ansiosos. Comi depressa e tornei a me levantar, antes que as outras acabassem.

— O que vai fazer? — indagou Crystal.

— Ajudá-la.

Comecei a tirar os pratos das mesas que os fregueses haviam deixado. Encontrei a bandeja para pratos e ovos sujos atrás do balcão. Havia do lado um pano úmido para limpar as mesas. Assim que acabou de comer, Raven também se levantou para fazer a mesma coisa.

Patsy ficou olhando, sorrindo, e balançando a cabeça para nós.

— Arrumou ajudantes? — perguntou alguém.

— É o que parece.

Depois que tiramos toda a louça suja, começamos a pôr talheres limpos nas mesas. Um rapaz de cabelos vermelho-dourados elogiou Raven por sua competência como garçonete. Pelo seu sorriso tímido e um "obrigada" discreto, percebi que ela se sentia lisonjeada. Patsy, ao passar por mim apressada, levando um pedido, murmurou:

— Obrigada pela ajuda.

— Devo perguntar se alguém quer mais café? Patsy gritava mais um pedido para o cozinheiro.

Parou e fitou-me por um momento.

— Já trabalhou em restaurante antes?

— Já, sim, madame. Durante o verão.

— Está bem, pode oferecer.

Ela foi entregar outro pedido e a acompanhei, perguntando quem queria mais café. Crystal continuava sentada, aturdida, enquanto Borboleta nos observava com um sorriso radiante.

— Bem que precisamos de mais ajuda — falei para Crystal. — Raven parece ocupada.

O rapaz pedira mais café e continuava dispensando elogios a Raven. Ela parecia um pouco constrangida, mas ao mesmo tempo interessada.

O restaurante começou finalmente a esvaziar, e Patsy pôde organizar melhor seu trabalho. O movimento intenso do café da manhã acabara. Ela serviu café para um homem no balcão e depois aproximou-se de mim e de Crystal.

— Por que vocês estão viajando sozinhas? — perguntou.

— Estávamos indo para a Califórnia, a fim de fazer uma visita de duas semanas a minha tia — respondeu Crystal, com ar desolado. — Todas estudamos na mesma escola em Nova York. Nossos pais nos deram dinheiro para a viagem. Deveria ser uma aventura de verão. Agora temos de voltar.

— Quando deveriam chegar à Califórnia?

— Não havia data marcada — declarei, enfeitando a história imaginativa de Crystal. — Poderíamos demorar o tempo que quiséssemos. Tínhamos todo o verão pela frente.

Era engraçado como sempre pensei em Crystal contando histórias criativas, não inventando mentiras. Acho que fazia isso porque sabia que não havia maldade nela, nenhuma intenção de fraude. Ela sempre dava a impressão de que gostava de contar aquelas histórias tanto quanto apreciaria inventar um relato para alunos de uma turma de inglês.

— Cometemos o erro de dar carona a uma moça ontem e ela nos roubou — acrescentou Crystal, misturando a verdade com a fantasia.

— Entendo... — murmurou Patsy, balançando a cabeça.

Olhou para duas das mesas em que os fregueses haviam deixado gorjeta.

— Uma parte daquele dinheiro é de vocês, meninas.

— De jeito nenhum! — protestei. — Você nos ofereceu a comida. Não podemos aceitar.

Ela riu e pensou por um momento, enquanto observávamos Raven despedir-se do rapaz com quem conversara durante todo o tempo.

— Se sua tia pode esperar umas poucas semanas por vocês, bem que estou precisando de uma ajuda aqui.

Poderiam ganhar o dinheiro necessário para o resto da viagem até a Califórnia. Tenho um chalé por trás do restaurante em que poderiam ficar. Não está muito bom. Terão de arrumar algumas coisas, mas posso lhes dar toalhas e lençóis limpos. Era usado antigamente para receber viajantes... no tempo em que meu marido era vivo.

— Qual foi o problema com ele? — perguntou Crystal.

— Morreu num acidente de carro. O outro motorista estava bêbado. Ouviram falar em meu filho Danny. Ele não ajuda muito aqui, infelizmente. Não consigo controlá-lo desde que Eddie morreu. Charlie é nosso cozinheiro há mais de dez anos.

— Isso mesmo — interveio Charlie, sorrindo. — Gostei de ver vocês em ação. São autênticas profissionais.

— Este restaurante tinha outrora um movimento maior, antes de abrirem a nova estrada. Naquele tempo podíamos contratar um batalhão de garçons e garçonetes. Eu tinha até um homem para trabalhar no balcão. Não posso pagar muito, mas vocês podem ganhar boas gorjetas. Além disso, teriam casa e comida de graça. Este é o período mais movimentado do ano para mim.

— Podemos fazer isso, não é, Crystal? Raven juntou-se a nós.

— Fazer o quê?

— Ficar aqui e trabalhar por algumas semanas, a fim de recuperarmos o dinheiro que perdemos ontem à noite — expliquei, torcendo para que Raven não dissesse qualquer coisa que pudesse contradizer a nossa história.

— É mesmo? Seria sensacional!

Ela olhou pela janela, sonhadora. Percebeu de repente o que fazia e sacudiu a cabeça.

— Não sei o que há de errado comigo. Acho que vou molhar o rosto com água fria. Estou sentindo um calor súbito. Esse trabalho de garçonete é mais pesado do que eu lembrava.

Enquanto Raven se afastava, Crystal especulou em voz alta:

— O que será que deu nela?

Borboleta, que olhava pela janela, virou-se para nós

— Quem é aquele garoto, Patsy?

— Taylor Cummings. — Patsy franziu o rosto. — Ele não deixa escapar um rostinho bonito. Avisem a Raven para tomar cuidado... pois ele é perigoso.

— Não precisa se preocupar com Raven — assegurou Crystal. — Ela pode parecer meio boba, mas sabe muito bem quando alguém está lhe lançando uma isca.

Em geral eu concordaria com ela, mas agora não tinha tanta certeza.

— É verdade, mas Raven se comportou de uma maneira diferente com aquele rapaz... — murmurei, mais para mim mesma do que para outra pessoa.

— Se é assim, vamos verificar como está o chalé — propôs Patsy. — Charlie, fique de olho aqui. Volto num instante.

— Claro, madame — respondeu ele, saindo da cozinha.

Ao sairmos do restaurante, Raven se aproximou, apressada, observando seu novo amigo se afastar num caminhão.

— Vamos mesmo ficar? — perguntou ela.

Havia um inconfundível tom de esperança em sua voz.

— Talvez. — Estudei-a atentamente. — Vamos dar uma olhada no chalé e depois nos aprontaremos para o trabalho.

O chalé era pequeno, mas tinha um quarto com duas camas de solteiro e um sofá-cama para duas pessoas. A cozinha era apenas uma reentrância na parede com uma pia e um pequeno fogão. A geladeira parecia quebrada, com a porta entreaberta. Como não íamos mesmo cozinhar nada, isso não importava. O banheiro bém era pequeno, mas tinha uma banheira e um chuveiro por cima. Havia manchas de ferrugem nos ralos e torneiras, na pia e na banheira. O ar estava impregnado pelo cheiro de mofo. Havia teias de aranha em quase todos os cantos; uma camada de poeira cobria tudo. —

- Parece um pouco pior do que eu pensava — murmurou Patsy.

— Não está tão ruim assim — declarou Raven no mesmo instante. — Podemos ficar, não é mesmo, Brooke? Vamos arregaçar as mangas e transformar tudo isso num palácio rapidamente.

— Daremos um jeito — concordei. — Crystal?

— Vamos conversar.

— Eu compreendo que precisam pensar, meninas — interveio Patsy. — Discutam o assunto e voltem ao restaurante para me dizer que chegaram a uma decisão, qualquer que seja.

Assim que ela se retirou, Raven virou-se para Crystal.

— Por que disse isso? É uma possibilidade de ficarmos aqui de graça!

— Ela vai desconfiar se nos mostrarmos ansiosas demais — murmurou Crystal. — Por que quatro garotas cujas famílias têm condições de enviá-las para a Califórnia aceitariam isto?

Crystal gesticulou com os braços pelo chalé.

— Porque acabamos de ser roubadas! — exclamou Raven. — É por isso!

— Pessoas ricas mandariam o dinheiro para voltarmos ou mesmo para continuarmos até a Califórnia, Raven. Não podemos nos precipitar.

Ela refletiu sobre a situação por algum tempo, enquanto Raven esperava, na maior ansiedade.

— Acho que podemos muito bem dormir aqui. - comentou Borboleta.

— Claro que podemos — concordou Raven, olhando para Crystal. — Não íamos dormir no carro na outra noite?

— Muito bem, vamos aceitar — decidiu Crystal -Faremos parecer que é tudo parte de uma aventura para nós. Mas não diga nada que possa deixá-la desconfiada, Raven.

— Não direi nada — prometeu ela, erguendo a mão direita.

Crystal acenou com a cabeça e depois olhou para mim.

— Talvez dê tudo certo; talvez nossa sorte esteja começando a mudar. Vamos decidir quem dorme no sofá-cama.

— Borboleta e eu — respondeu Raven no mesmo instante.

— Raven ronca — queixou-se Borboleta.

— Não ronco, não!

— Eu dormirei no sofá-cama com Raven — anunciei, determinada a chegar ao fundo de seu estranho ânimo.

Todas voltamos ao restaurante para comunicar a Patsy que decidíramos aceitar sua oferta. Quando entramos, havia um garoto de uns de dezenove anos, de cabelos compridos, tomando um café fumegante no balcão. Usava uma blusa "Grateful Dead", o morto agradecido... e parecia mesmo que o blusão morrera e fora ressuscitado, pois estava puído e desbotado. O traje era completado por jeans e tênis sujos, sem meias.

— Aqui estão elas! — exclamou Patsy. O rapaz virou-se.

— Gostaríamos de ficar, Patsy — anunciei.

— Ótimo. Este é o meu filho Danny.

O sorriso dela contraiu-se numa expressão de desgosto. O rapaz nos contemplou, mais franzindo o rosto que sorrindo, como se estivesse desapontado pelo que via ou pelo que ouvira. Tinha uma boca suave, com um lábio inferior parecendo inchado, e um pequeno talho no queixo. O nariz era de Patsy, um pouco mais largo na parte superior, mas as orelhas eram maiores e bem pontudas no alto.

Danny não era gordo, nem tinha um físico imponente, mas já apresentava os sinais de uma barriga de cerveja. Não havia dúvida de que ele não venceria nenhuma competição, exceto se fosse para escolher o homem de aparência menos higiênica até os vinte e cinco anos de idade.

— Pode dar um olá, Danny — murmurou Patsy.

— Olá. — E tornou a se virar para o café, enquanto perguntava à mãe: — O que elas vão fazer?

— Quase tudo que você deveria fazer. Venham comigo, meninas. Vou lhes dar as roupas de cama e toalhas, assim como o material de limpeza. Danny, pode fazer o favor de tirar as tábuas das janelas do chalé?

Ele soltou um grunhido.

Patsy sacudiu a cabeça, desolada. Nós a seguimos até o trailer. No momento em que abriu a porta, ela se desmanchou em desculpas. As roupas de Danny estavam espalhadas por toda parte, havia latas de cerveja vazias, pontas de cigarros e pratos sujos na mesa da cozinha. Patsy fez uma tentativa de limpar um pouco a sujeira.

— Pedi a ele que arrumasse tudo antes de sair hoje. Alguns amigos dele estiveram aqui ontem... até tarde da noite.

Ela soltou um gemido e estendeu a mão para a região lombar, enquanto se empertigava, depois de pegar uma lata no chão.

— Volto num instante — murmurou Patsy, afastando-se para o fundo do trailer.

— Por que ele é tão mau com a mãe? — indagou Borboleta.

— O que ele precisa mesmo é de levar um bom chute no rabo — murmurei.

Patsy nos trouxe lençóis, toalhas e um balde com produtos de limpeza. Entregou a Raven o esfregão e algumas esponjas.

— Avisem-me se precisarem de mais alguma coisa. Por volta das quatro horas começamos a nos preparar para a turma do jantar. Temos tido um bom movimento ultimamente. Sejam bem-vindas ao Crossroads, meninas.

O nome em inglês do restaurante significa encruzilhada... e estávamos mesmo numa encruzilhada, pensei, num lugar em que poderíamos recuperar o fôlego e decidir se nos enganávamos com nossos sonhos ou se nos encontrávamos no meio do caminho na busca por um lar de verdade.

 

               Na saúde e na doença

Como Raven e eu já tínhamos experiência como garçonete, decidimos que naquele primeiro dia, pelo menos, Crystal e Borboleta ficariam incumbidas de limpar o chalé. Danny removera as tábuas das janelas, com a maior má vontade. Percebêramos no mesmo instante que precisaríamos de cortinas ou persianas. Improvisei o uso de toalhas para podermos ter alguma privacidade e evitar que o sol nos acordasse cedo demais pela manhã. É verdade que em geral teríamos de levantar antes do sol nascer, de qualquer maneira, para nos prepararmos para a turma do café da manhã. Raven foi a primeira a resmungar por ter de levantar tão cedo, embora todas quiséssemos continuar por baixo das cobertas.

— No fundo não temos nada de livres! — exclamou ela.

Crystal começou a rir, mas parou de repente, e, assumindo seu ar de professora, disse a Raven que a verdadeira liberdade implicava responsabilidade, não apenas por si mesma, mas quase sempre por alguém mais.

— Eu sei, eu sei, apenas gostaria de poder dormir um pouco mais — murmurou Raven, bocejando.

Crystal olhou para mim, como se dissesse "Eu tentei", depois mudou de assunto. Quer gostássemos ou não, teríamos de acordar muito cedo enquanto perma-necêssemos ali.

Charlie sempre chegava antes do amanhecer, preparava a massa de panqueca, os cereais, o mingau de aveia e o café. Sabia fazer omeletes maravilhosas. Pelo que logo constatamos, sua reputação como cozinheiro era o que mantinha os pontuais fregueses fiéis ao restaurante de Patsy, junto com os preços atraentes.

— Vocês, meninas, são como um sopro de ar fresco aqui — disse-nos ele. — Há muito tempo que não vejo Patsy tão alegre e animada. É verdade que ultimamente ela não vem tendo muitos motivos para se mostrar alegre e animada.

Na convivência com Charlie, ninguém poderia imaginar que havia depressão e tristeza ali. Por maior que fosse o movimento e por mais afobadas que estivéssemos, Charlie sempre se mantinha alegre e despreocupado. Era um colega fácil de se trabalhar, paciente e cordial. Nunca perdia a calma quando uma de nós confundia pedidos, mas eu percebia que seus olhos se tornavam mais sombrios e o sorriso desaparecia do rosto sempre que Danny aparecia. O rapaz não demonstrava qualquer respeito quando falava com ele. Sempre fazia exigências em vez de pedidos, e, diga-se de passagem, nunca agradecia a Charlie... nem a qualquer outra pessoa.

Todas nós jantamos cedo naquela primeira noite. Perguntei a Patsy onde estava Danny. Ela não sabia e me arrependi no instante seguinte por ter perguntado. Observei seus olhos tristes. Danny só apareceu quando nos aprontávamos para receber os primeiros fregueses do jantar. Não estava muito limpo, mas pelo menos pusera uma camisa de malha lavada, com as palavras Leões 5 X Cristãos na frente, e um jeans que não parecia muito desbotado nem encardido. Usava os mesmos tênis sujos, sem meias. Fizera uma tentativa de pentear 0S cabelos e se barbeara.

Não apenas evitara todos os preparativos para o jantar, como também logo deixou claro que não se encontrava ali para trabalhar.

— Parece que não precisará de mim aqui esta noite, mãe. Vou sair com Terry e Mark. — Antes que Patsy pudesse responder, ele acrescentou: — Preciso de dez pratas.

Danny foi até a caixa registradora, tirou uma nota de dez dólares, lançou um olhar furioso para mim e fechou-a.

— Certo? — resmungou ele para Patsy.

Ela baixou os olhos, enquanto enxugava um prato.

— Aonde vai, Danny?

— Já disse que vou sair. E sair é sair. Certo?

Ele olhava para mim, com uma expressão desafiadora.

— Uma pessoa pode sair para perto, sair para longe e sair do seu juízo normal — comentei.

Raven riu.

— Muito engraçada — disse Danny. — Lembre-me de rir.

— Por quê? — indaguei. — Perdeu a memória? Ele me lançou outro olhar furioso, depois deixou o restaurante. Quando olhei para Charlie, avistei um sorriso largo em seu rosto. Mas Patsy estava desolada.

— Não teremos problema, Patsy — apressei-me em assegurar. — Se o movimento for muito grande, chamarei Crystal.

— Não estou preocupada com isso. Muitas vezes já tive de cuidar de tudo sozinha. Apenas eu e Charlie defendendo o velho forte... não é mesmo, Charlie?

— É, sim, madame... e não deixamos ninguém ir embora insatisfeito. — Charlie olhou para nós. —

pura verdade.

Os fregueses começaram a chegar. O bolo de carne de Charlie era a opção predileta. Patsy o apresentava como o prato especial da noite; mas pelo que ouvimos era sempre o prato especial da noite... e com toda razão. Era delicioso. Para nosso espanto, o restaurante ficou lotado em apenas meia hora. Crystal e Borboleta viram o que estava acontecendo e vieram correndo para ajudar. Eu disse a Patsy que Crystal poderia ficar na caixa registradora, se ela assim quisesse. Patsy achou que era uma boa idéia. Borboleta foi incumbida de tirar as mesas. Não demorou muito para que tudo estivesse sob controle.

Raven, no entanto, logo se descobriu o foco das atenções e passou a alimentá-las, parando junto das mesas para flertar e conversar. Taylor Cummings, que atraíra sua atenção pela manhã e a convidara para sair, voltou à noite. Agora que podia examiná-lo melhor, constatei que era um homem bonito, em torno dos vinte e cinco anos, com cabelos compridos, louro-ruivos, olhos azuis maliciosos. Tive de admitir que seu sorriso era capaz de derreter gelo.

Patsy veio se postar ao meu lado e sussurrou:

— Ele é conhecido como Trator do Amor, porque já destruiu inúmeros corações femininos. Avise a Raven para tomar cuidado.

Eu não podia pensar em nada mais futil do que tentar advertir Raven em questões de amor e romance. Cada vez que passava por ela, eu comentava que o movimento era grande, que precisávamos de toda ajuda possível.

— Já estou indo... — murmurava ela.

Mas era como se Taylor Cummings a mantivesse hipnotizada. Mesmo quando se afastava de sua mesa, a jovem logo era atraída de volta.

Ele voltará daqui a uma hora para me buscar — informou Raven, depois que Taylor finalmente pagou a conta e foi embora. — Vamos sair para dançar.

Você não o conhece. Como pode sair com um estranho? — Virei-me para Crystal, em busca de ajuda, mas ela se limitou a sacudir a cabeça. — E então, Raven?

— Não haverá qualquer problema — garantiu ela. — Já saí com estranhos antes, Brooke.

— Mas estamos na estrada, Raven... desamparadas.

— Talvez você esteja desamparada — disse ela, com um sorriso frio e arrogante —, mas, em matéria de homens, não estou e nunca estarei desamparada.

Não havia mais nada a fazer. Tratei de tirar o assunto da mente.

Ao final da noite, Patsy recebeu muitos elogios sobre a rapidez e eficiência do serviço no jantar. Ao conferir os recibos, ela comentou que entrara mais dinheiro naquela noite do que em muito tempo, porque houvera revezamento maior às mesas.

— Vocês são uma dádiva do céu, meninas! — exclamou ela.

Depois que o último freguês se retirou e ficamos a sós, sentamos a uma mesa, descansando e comendo a torta de maçã de Charlie. Patsy sentiu necessidade de desculpar-se pelo comportamento anterior de Danny.

— Não sei mais o que fazer com ele. Tenho certeza de que vai acabar se metendo numa encrenca séria.

— Danny está sofrendo de baixa auto-imagem — disse Crystal.

Patsy olhou para ela, enquanto eu pensava: "Lá vamos nós outra vez".

— Não sei como era o relacionamento dele com o Pai, mas você nos disse que ele se tornou um problema maior depois da morte do seu marido. Provavelmente sentiu-se inútil, incapaz de tomar o lugar do pai e ser a metade do homem que o pai era. Em vez de lutar contra a ansiedade, seu filho desistiu e se desviou para a direção oposta, cedendo às suas fraquezas para conviver com elas, por assim dizer. É um mecanismo clássico de defesa psicológica, sobretudo em adolescentes. Patsy fitava-a boquiaberta.

— Como sabe tudo isso? — perguntou ela.

— Crystal é um gênio — declarou Borboleta, orgulhosa.

— Ela foi a primeira da turma e provavelmente seria a oradora — acrescentou Raven.

— Provavelmente seria? Como assim? — indagou Patsy no mesmo instante.

Se ela não percebeu a maneira como nós trocamos olhares, deve ter a percepção de uma pedra, pensei.

— Ela quis dizer que provavelmente serei — corrigiu Crystal. — Não foi isso, Raven?

— Claro que foi. — Raven soltou uma risada nervosa. — Sempre cometo erros gramaticais. Se não fosse pela ajuda de Crystal, seria reprovada todos os anos.

Patsy, no entanto, ainda nos estudava, com um pouco mais de suspeita.

— Ligaram para suas famílias e avisaram onde passarão algum tempo?

— Claro — respondeu Crystal, assumindo o papel de nossa porta-voz. — Mas não contamos que fomos roubadas.

Ouvir Crystal confessar uma pequena fraude contribuiu para dissolver as dúvidas de Patsy a nosso respeito. Ela exibiu um sorriso de compreensão.

— Espero que recuperem depressa o dinheiro que perderam, meninas. Como se saíram?

— Ganhei quarenta e um dólares — anunciei.

— E eu ganhei trinta e três — acrescentou Raven.

Percebi que ela especulava por que eu ganhara tanto, e resolvi gracejar:

Basta conversar menos e trabalhar mais. Raven sorriu, contrafeita.

— Isso é ótimo. — Patsy olhou para Crystal e Borboleta E com os salários que pagarei a vocês, não precisarão esperar muito para terem condições de partir de novo. Já sei que vou sentir saudade. Por isso, talvez seja melhor eu torcer por dias de menor movimento.

Rimos também, mas no fundo sabíamos que não era nada engraçado. Se ela soubesse o quanto precisávamos ser apreciadas daquele jeito, compreenderia que não era uma situação que pudéssemos considerar como inconseqüente.

Subitamente, ouvimos uma buzina lá fora. Raven levantou-se de um pulo.

— Deve ser Taylor! — exclamou ela, tirando o avental enquanto se encaminhava para a porta. — É ele mesmo! Não vão se importar se eu sair, não é? Juro que estarei bem.

Raven sentia-se tão feliz, que nenhuma de nós queria acabar com seu entusiasmo.

Mas quando vi a expressão de profunda preocupação no rosto de Patsy, concluí que tinha de avisar Raven, mesmo que ela ficasse zangada comigo por isso. Saí correndo e chamei-a antes que ela alcançasse o caminhão de Taylor.

— Qual é o problema? — perguntou ela.

— É melhor você tomar um cuidado extra, Raven. Patsy diz que Taylor é um conquistador.

O desapontamento levou-a a contrair o rosto.

— Não posso acreditar. Ele é tão simpático... muito mais simpático do que os outros rapazes com quem já saí.

— Acontece que ele não é mais um rapazinho, Raven, e sim um homem. Além disso, Patsy não mentiria.

Ela pensou por um momento.

— Tem razão, ela não mentiria. Mas tenho de dar a mim mesma a oportunidade de descobrir. Por que é tão difícil para todo mundo acreditar que alguém possa estar de fato interessado em mim como pessoa, e não apenas por minha aparência?

A voz saiu um pouco trêmula. Ela virou-se e correu o resto da distância até o caminhão.

Raven voltou bem tarde do seu passeio. Estávamos acordadas, esperando na maior ansiedade. Deixamos todas escapar um suspiro de alívio quando vimos o sorriso de Raven ao entrar no nosso pequeno chalé.

— Ei, por que ficaram acordadas? Pensei que tivéssemos deixado o toque de recolher para trás, na Lake-wood House.

— Só queríamos ter certeza de que você está bem, que Taylor não se comportou como um patife — explicou Crystal, falando por todas nós.

— Podem dormir sossegadas agora, porque Taylor foi um perfeito cavalheiro, como eu já esperava que aconteceria. Ele gosta de mim. E eu também gosto muito dele.

Raven foi para o banheiro, cantarolando baixinho, e começou a se preparar para dormir. Crystal, Borboleta e eu trocamos olhares e demos de ombros. No final das contas, Taylor Cummings não era um problema. Ou pelo menos ainda não.

Na manhã seguinte, bem cedo, antes mesmo de o sol iluminar as cortinas que eu improvisara, ouvi o gemido de Borboleta. Crystal ainda se encontrava num sono profundo e aparentemente não ouvira nada; e eu sabia que um caminhão de bombeiros podia passar ao lado da cama de Raven com a sirene ligada que ela nem piscaria, principalmente depois de ter chegado tão tarde. Prestei atenção e ouvi outro gemido, ainda mais intenso e mais prolongado. Levantei-me e fui até a cama.

— Borboleta?

Ela tossiu e murmurou:

— Meus olhos doem.

Crystal mexeu-se. Acendi o abajur. E soltei um grito abafado assim que meus olhos se acostumaram à claridade.

— Crystal!

— O que foi?

Ela sentou-se na cama no mesmo instante e olhou para Borboleta, que tinha o nariz escorrendo, fazia uma careta de dor, as faces avermelhadas. Crystal encostou a palma da mão na testa de Borboleta.

— Ela está ardendo em febre.

— O que... o que aconteceu? — balbuciou Raven.

— Ainda não é hora de levantar. Não pode ser.

— Borboleta está doente. — Virei-me para Crystal.

— O que há com ela?

Borboleta tossiu e fungou de novo. Sem responder, Crystal foi até o banheiro e molhou uma toalha de rosto. Voltou para colocá-la na testa da amiga.

— Onde dói, Borboleta?

Raven apareceu na porta, finalmente perguntando o que acontecia.

— O que foi? O que ela tem?

— Meus olhos doem. Aqui...

Ela indicou onde doíam. Crystal abriu a camisa de Borboleta para examinar-lhe o peito e a barriga.

— Sabe o que ela tem? — perguntei.

— Acho que sim — murmurou Crystal.

— O que é? — indagou Raven, impaciente. Crystal olhou para nós.

— Acho que está com sarampo.

— Sarampo? Oh, não! — Os olhos de Raven se encheram de medo. — Todas nós vamos pegar?

— Eu não. Já tive.

— Eu também — murmurei. — E você, Raven?

— Não sei — respondeu ela, em pânico. — Não me lembro se tive sarampo ou catapora.

— Se você pegar, então pegou — declarou Crystal, estóica. — É melhor se livrar logo disso.

— Mas não é uma doença de criança?

— Não — respondeu Crystal. — Os adultos podem ter sarampo se não tiveram quando crianças.

Borboleta gemeu de novo.

— Não me sinto bem...

— O que vamos fazer, Crystal? — perguntei..

— Não há muito o que fazer, e sim mantê-la confortável, dar-lhe um pouco de acetaminofeno...

— O que é isso? — indagou Raven.

— Apenas Tylenol.

— Então por que não diz exatamente o que é?

— Porque é o que falei — explicou Crystal, friamente.

— Parem de discutir, vocês duas — interferi. — Não temos nenhum, não é?

— Talvez Patsy tenha — sugeriu Crystal. — Ela deve acordar dentro de uma hora.

— Será que ela não nos obrigaria a ir embora? — indagou Raven. — Temos mesmo de lhe contar?

— Não creio que ela faça isso — murmurei. — Qual é a sua opinião, Crystal?

Ela pensou um pouco, enquanto Borboleta se contorcia, em desconforto, tossia e fungava, antes de gemer.

— Patsy pode querer que a levemos a um médico, o que criaria problemas — disse Crystal. — Talvez Raven tenha razão. Talvez seja melhor não contar nada a Patsy, pelo menos por enquanto. Diremos apenas que ela está com dor de cabeça e um leve resfriado. Se ela vier até aqui e encontrar Borboleta nesse estado, é bem possível que perceba que é sarampo. Acenei com a cabeça, concordando.

— Sendo mãe, ela já deve ter passado por isso com Danny. Mas não poderia ser outra coisa, Crystal? Algo mais grave?

— Teremos de observá-la para saber. Se for... paciência. Depois que a levarmos para um pronto-socorro ou a um médico, será necessária a presença de um pai ou responsável.

— Oh, não! — exclamou Raven, por todas nós.

— Vamos precisar de um termômetro para verificar a febre — continuou Crystal. — Se subir demais...

— Posso me vestir e procurar uma farmácia — sugeri.

— Ainda é muito cedo, mas alguns postos têm lojas de conveniências que vendem Tylenol — disse Crystal.

— Vou sair para procurar — declarei, feliz em poder fazer alguma coisa por Borboleta.

Depois de me lavar e vestir, parti à procura de uma loja aberta. O sol começava a nascer. Era de fato a melhor parte do dia. Imaginei a própria Terra abrindo os olhos, recebendo um beijo afetuoso de luz, livrando-se da coberta de sombras, absorvendo sua radiância. A próxima pequena cidade ainda começava a despertar; só avistei nas ruas alguns vira-latas, fungando à procura de sua primeira refeição do dia. No outro lado da cidade, no entanto, encontrei um posto de auto-serviço. Na área do pequeno escritório havia máquinas operadas por moedas que vendiam aspirina, Tylenol e antiácidos para o estômago.

A velha Crystal, pensei. Ela previra aquilo. Era muito inteligente, e me proporcionava confiança e um senso de segurança ter alguém com a sua experiência em nossa pequena família. Eu também tinha fé em seu diagnóstico sobre a doença de Borboleta. Crystal queria ser médica mais do que qualquer outra coisa e passava a maior parte de suas horas de lazer estudando como se já estivesse na faculdade de medicina. Seu apetite em aprender nunca acabava.

Quando voltei, Patsy e Charlie já haviam começado a trabalhar no restaurante. Crystal mandara Raven ir para lá, a fim de evitar que Patsy pensasse que havia alguma coisa errada. Uma verdade tinha que se dizer sobre Crystal: ela sempre antecipava os problemas em potencial. O aviso sobre Sunshine era o melhor exemplo que eu poderia ter, pensei. Nunca mais tornaria a ignorar suas advertências.

Entreguei o Tylenol, e Crystal deu dois comprimidos a Borboleta.

— Ela não vai sentir fome, mas devemos trazer suco de laranja e água para que possa beber durante a manhã — disse Crystal. — Agora temos de ir para o restaurante. Vá na frente. Quero deixar Borboleta tão confortável quanto for possível. Vou passar uma esponja úmida em seu corpo e tentar diminuir a febre.

— Certo, doutora — murmurei.

Crystal sorriu, mas logo voltou a ficar muito séria.

— Isto pode ser um problema, Brooke.

— Eu sei. Mas a saúde de Borboleta é o mais importante.

Patsy ficou curiosa sobre Borboleta, como era de se esperar. Mas Crystal, ao chegar, fez um bom trabalho para dar a impressão de que o problema com Borboleta era insignificante.

— Ela vem resistindo a um resfriado há vários dias. E eu lhe disse que um bom descanso na cama, muito líquido e um mingau de aveia quente ajudariam muito.

Crystal falava como se já tivesse tirado o diploma em medicina com que tanto sonhava. Patsy acenou com a cabeça, olhando para cada uma de nós três.

— É muito bonita a maneira como vocês cuidam umas das outras. É quase como se estivessem juntas há anos e anos. Parecem mais irmãs do que amigas.

Quase lhe revelei tudo quando ela disse isso. Tive de baixar os olhos rapidamente.

Crystal não queria pedir-lhe um termômetro. Receava que isso pudesse deixá-la preocupada. Assim, logo que acabou o movimento do café da manhã, voltei à pequena cidade, parei numa drogaria e comprei um termômetro.

Quando tiramos a temperatura, constatamos que Borboleta tinha uma febre de 38,4C. Ao final da tarde, subira para 39.

— Apesar do Tylenol — lembrou-nos Crystal. — Não está sendo fácil.

Crystal e eu continuamos a passar a esponja úmida no corpo de Borboleta. Raven continuava apavorada de chegar perto demais, estremecendo ao pensamento de também pegar sarampo. Vasculhava o cérebro na tentativa de lembrar se já tivera sarampo, mas não conseguia.

— De qualquer forma, Raven, talvez seja melhor você se manter longe — advertiu Crystal. — Não podemos nos dar o luxo de ter as duas doentes.

Subitamente, ouvimos uma batida na porta. Todas ficamos imóveis.

— É Patsy! — murmurei, dando uma espiada pela cortina improvisada.

Crystal disse a Borboleta para virar de lado e fingir que estava num sono profundo. Só depois abriu a porta.

— Como ela está? — perguntou Patsy.

— Dormindo confortavelmente — respondeu Crystal.

— Pobre menina... Avisem-me se precisarem de alguma coisa. Se quiserem levá-la a um médico, falarei com o meu e marcarei uma consulta. Ele é muito bom e...

— Acho que ela vai ficar boa logo — interrompeu Crystal.

— Teve febre?

— Não.

Crystal falou com veemência demais, pensei. Os olhos de Patsy tornaram a se encher com aquele brilho de suspeita, enquanto nos observava.

— Como sabe?

— Temos um termômetro — explicou Crystal. — Preparamos um kit de primeiros socorros ao partirmos.

— Está querendo dizer que Brooke não acaba de comprar um termômetro? — indagou Patsy, sorrindo. Ela olhou para mim. — Ouvi quando você saiu.

— Eu pedi a ela que fosse comprar Tylenol — informou Crystal.

— Eu tenho. Poderia ter me pedido. Guardo por baixo do balcão do restaurante. — Ela ficou calada por um momento. Pensei que ia pedir para examinar Borboleta, mas apenas acrescentou: — Muito bem, meninas, tratem de descansar. Esta é uma grande noite. Podem me chamar se precisarem.

Ofereci-lhe um sorriso, e Crystal agradeceu. Ficamos observando-a se encaminhar para o trailer por algum tempo. Depois, Crystal fechou a porta, devagar.

— Detesto mentir — murmurou ela. — Inventar nosso passado é divertido; é como contar uma história, mas às vezes detesto ser uma impostora.

— Só espero que ela não fique desconfiada — disse Raven, balançando a cabeça.

— Lamento muito ter ficado doente — balbuciou Borboleta.

Todas voltamos para junto da cama.

— Não diga bobagem, Borboleta — declarou Crystal. — Você não podia evitar.

— Acho que vou pegar — disse Raven, preocupada. Tenho certeza. O que faremos se eu também não puder trabalhar? Levaremos uma eternidade para recuperar nosso dinheiro!

— Não vamos nos preocupar com as coisas até chegar o momento — aconselhou Crystal. — Já temos problemas suficientes para agora e não precisamos de mais.

O que era a pura verdade.

O jantar naquela noite foi bastante movimentado. Bem que fez falta a ajuda de Borboleta. Danny só apareceu quase uma hora depois. Começou a servir algumas mesas, mas logo foi para os fundos do restaurante, quando dois de seus amigos chegaram. Raven comentou que achava que eles estavam fumando maconha. Fora à despensa para falar com Charlie e os observara através da porta entreaberta.

— Não diga a Patsy — recomendei. — Não agora. Sempre que tínhamos uma pausa na atividade, Crystal saía para ver Borboleta. Ao voltar, na segunda vez, ela me disse que a febre estava em quase 40C.

— Se não baixar dentro de uma hora, Brooke, acho que devemos levá-la para o hospital. Posso não ter acertado. Talvez ela esteja tendo uma reação a algum vírus, ou a algo que comeu.

Raven e eu trocamos um olhar. O desastre parecia iminente. Os ponteiros do relógio nos aproximavam mais e mais do momento final, a cada minuto que passava. Trabalhar com afinco era a única maneira de não pensar a respeito. O movimento finalmente diminuiu, e os últimos fregueses começaram a se preparar para ir embora. Foi então que Danny voltou.

— Onde você estava? — indagou Patsy. — Viu como estávamos ocupadas, Danny. Por que deixou o restaurante?

— Odeio o restaurante!

Os ombros de Patsy penderam, enquanto ela inclinava a cabeça para trás, no esforço de conter as lágrimas. Ninguém disse nada. Voltamos a trabalhar, ajudando Charlie a limpar tudo. Antes de acabarmos, Taylor apareceu, para buscar Raven. Ele a convidara para sair pelo segundo dia consecutivo.

— Talvez seja melhor você não sair com ele esta noite, Raven — sugeri.

Ela assumiu uma expressão angustiada.

— Brooke, posso cuidar de mim. Além do mais... — Seus olhos tornaram a assumir uma expressão sonhadora. — ...ninguém jamais foi tão simpático comigo quanto Taylor. Ele gosta realmente de mim. Tenho certeza.

— Sei que tem toda razão, Raven. Apenas não queremos vê-la magoada.

Pela sua expressão, era evidente que Raven não ouviria nada do que eu tinha a dizer. Crystal também tentou romper a névoa de paixão que envolvia Raven.

— Por que não fica em casa esta noite, Raven? Borboleta precisa de todo o nosso apoio.

— Querem parar de se preocupar comigo? Nada de ruim vai me acontecer. Além do mais, Crystal, você mesma disse que eu não deveria ficar muito perto de Borboleta, para não pegar sarampo também.

E, dito isso, ela pegou seu suéter atrás do balcão e foi para a mesa de Taylor. Crystal e eu trocamos um olhar, dando de ombros, derrotadas. Desejamos uma boa diversão aos apaixonados, antes de deixarmos o restaurante e seguirmos para o chalé.

Quando acordei, na manhã seguinte, encontrei Crystal sentada à pequena mesa da cozinha, contando as gorjetas. Meio tonta de sono, fui até a mesa e perguntei onde se encontravam as outras.

— Raven está ajudando Borboleta a se lavar. Ela deve ter tido uma noite e tanto, pois exibe um sorriso permanente.

O tom de Crystal era cauteloso. Pela maneira como balançou a cabeça, compreendi que se sentia tão preocupada quanto eu com as intenções de Taylor.

— Acha que Patsy poderia estar enganada sobre Taylor? — murmurei. — Raven não se apaixonaria por um pilantra.

Antes que Crystal pudesse responder, a porta do banheiro foi aberta e Borboleta e Raven saíram. Borboleta ainda estava vermelha, mas pelo menos ria agora, um sinal de que talvez estivesse começando a se recuperar. Raven, por outro lado, parecia desconfiada.

— O que vocês duas estavam fofocando? — perguntou.

Crystal, sempre com rapidez de raciocínio, tinha uma resposta imediata:

— Estávamos discutindo o fato de que deveremos ter dentro de uma ou duas semanas o dinheiro suficiente para partir.

Raven empalideceu. Sabíamos que ela pensava em Taylor.

— Eu gostaria que não tivéssemos de partir... pelo menos não tão cedo.

— Esse homem realmente mexeu com você, não é, Raven?

Eu queria compreender o que acontecera com Raven nos últimos dias. Nunca estivera apaixonada, e não podia imaginar qual era a sensação.

— Sei que vocês estão preocupadas, mas podem ter certeza de que Taylor é especial. E há alguma coisa... um clima mágico entre Taylor e mim. Sempre sonhei em encontrar um dia o homem perfeito, e acho que isso aconteceu agora.

Borboleta finalmente falou:

— Espero que meu coração também me leve um dia ao meu Príncipe Encantado.

Um terrível acesso de tosse dominou-a nesse instante. Crystal levou-a para a cama.

Até aquele momento, Patsy aceitara nossas desculpas para Borboleta permanecer no chalé. Na manhã seguinte, porém, sua desconfiança aumentara. Ainda bem que a febre de Borboleta cessara durante a noite, e ela se sentia bastante bem para ajudar no horário do almoço.

No momento em que pensávamos estar seguras, Patsy fez um comunicado que nos deixou com o sangue gelado.

— Amanhã é o dia do pagamento — anunciou ela, alegremente. — Precisarei do número da previdência social e do endereço de cada uma.

Olhamos para Crystal.

— Não pode nos pagar por fora, Patsy? — sugeriu Crystal. — Aceitaríamos menos dinheiro.

Patsy balançou a cabeça devagar, com uma expressão curiosa.

— Já devem ter percebido a essa altura que não é assim que dirijo meu negócio. Tudo aqui é legalizado.

Ela nos olhou uma a uma. Parecia esperar que uma de nós cedesse. Não pude suportar o silêncio por mais tempo e disse:

— Precisamos procurar os cartões da previdência no meio de nossas coisas. Existe algum problema se entregarmos amanhã?

Crystal fitou-me com expressão irritada, enquanto Raven e Borboleta arregalavam os olhos. Patsy deixou-nos sair naquela noite sem fazer mais nenhuma pergunta. Mas assim que chegamos ao chalé, Crystal caiu em cima de mim, lívida.

— O que estava pensando, Brooke? Como poderemos apresentar os cartões?

— Não pude me conter. Patsy nos fitava com aqueles seus olhos enormes, e pensei que tínhamos de inventar alguma coisa.

Eu sabia que minhas palavras nos meteriam numa encrenca ainda maior, mas em minha opinião já estávamos perdidas de qualquer maneira.

— Suponho que podemos dizer que nossos cartões da previdência foram roubados também... e teremos de inventar os endereços — disse Crystal.

Raven finalmente falou:

— E se Patsy resolver conferir, descobrindo que os endereços são falsos?

— Ela não vai conferir nada — garanti, tentando parecer confiante.

Mais uma vez, tive o pressentimento de que nossas mentiras nos enredavam numa teia impostora da qual nunca mais conseguiríamos escapar.

 

                   Em flagrante

Naquela noite Crystal decidiu qual seria o endereço domiciliar de todas nós. Tinha o seu cartão da previdência social e o entregaria a Patsy, explicando que os outros haviam sido roubados.

— Acho que assim podemos dar um jeito, mas não sei por quanto tempo mais deveremos permanecer aqui sob falsas informações. Mentiras são como bolhas. Mais cedo ou mais tarde, flutuam até a superfície.

— Ficaremos no mínimo até termos dinheiro suficiente, não é? — indagou Raven.

Ela andava de um lado para o outro, junto da janela do chalé. Taylor não aparecera depois do grande movimento do jantar, e Raven se tornava mais e mais ansiosa.

— Não posso fazer nenhuma promessa, Raven — respondeu Crystal, num cuidadoso tom neutro.

— Promessas? Por que todo mundo pensa de repente que estou à procura de promessas?

Raven saiu, batendo a porta.

— Por que Raven está tão transtornada? — perguntou Borboleta.

— Acho que ela e Taylor tiveram uma briga — respondi. — Pelo menos ele não apareceu até agora.

Crystal estava sentada à mesa, trabalhando num orçamento cuidadoso, com base no dinheiro que já ganháramos e no que podíamos prever. Borboleta queria sair e fazer companhia a Raven, mas Crystal disse que seria melhor deixar Raven sozinha por enquanto.

— Em vez disso, você pode me ajudar. — Ela abriu o mapa sobre a mesa. — Vamos determinar para onde iremos em seguida e o que poderemos encontrar no caminho.

Fui tomar uma chuveirada. Quando nos instaláramos no chalé, a água saía marrom e demorara algum tempo para se tornar razoavelmente clara. Corria limpa agora, mas não havia muita pressão. Tomar uma chuveirada era mais uma aflição do que um prazer. Por um lado, o chuveiro não era bastante alto, o que nos obrigava, com exceção de Borboleta, a ficar agachadas. Não havia muito espaço para os movimentos, e a regulagem da água quente e fria exigia uma técnica de laboratório. Mas dávamos um jeito.

Entrei no banheiro e tirei a roupa. Nua, mexi nas torneiras, até deixar a água bastante aquecida para me agradar, mas não quente demais. Enquanto o fazia, percebi algum movimento no canto da pequena janela por cima da banheira. Fiquei imóvel. Esperei e olhei de novo. Com toda certeza, era a cabeça de alguém.

Não gritei. Muito calma, fingindo que ainda estava absorvida no chuveiro, recuei até ficar fora de vista. Vesti a blusa e a calça tão depressa o quanto pude. Depois me abaixei, ficando livre do campo de visão da janela, abri a porta e saí.

Crystal virou-se, com um olhar de total confusão, ao me ver de quatro.

— O que está fazendo?

Levei um dedo aos lábios. Ela e Borboleta ficaram paralisadas de medo e curiosidade. Levantei-me e passei pela porta. Contornei o chalé para encontrar Dannv e seus dois amigos agachados junto da janela do banheiro, de costas para mim. Nenhum deles me ouvira.

— Divertindo-se? — Quando eles se viraram, acrescentei: — Imagino que é assim que vocês se divertem. É o melhor que podem fazer?

Os dois amigos riram, nervosos, mas Danny não deixou transparecer qualquer embaraço ou culpa. Avançou em minha direção.

— Só queríamos saber se você era homem ou mulher — gracejou ele.

— Como você poderia saber a diferença?

Os amigos riram dele. À claridade difusa que saía pela janela do banheiro, pude ver que ele ficou vermelho. Raven, que esperava no estacionamento, veio apressada pelo lado do prédio. Crystal e Borboleta a acompanhavam.

— Em geral eu sei — disse ele. — Mas você é a exceção. Talvez possamos descobrir agora.

Danny lançou um olhar para seus companheiros, que se adiantaram, com sorrisos insinuantes. Ele me segurou pelo pulso e puxou-me.

— Que tal nos mostrar o que você esconde aí por baixo?

Certa ocasião, na nona série, meti-me numa briga com um garoto. Seu nome era Eddie Goodwin. Vivia me provocando porque eu me candidatara à seleção masculina de basquete da escola e quase conseguira entrar. As meninas tinham seu próprio time, mas o treinador, talvez como um meio de sacudir seus jogadores, decidira me dar a oportunidade de tentar uma vaga. Eddie telegrafava suas jogadas, e por isso consegui lhe roubar a bola duas vezes. Ele fora o alvo de muitas gozações dos amigos. Mais tarde, abordou-me no corredor. Compreendi que não pretendia apenas me insultar e se divertir à minha custa. Faria algo mais, talvez até me agredisse. Não lhe dei a chance. Quando ele ficou bastante perto, acertei uma joelhada entre suas pernas. Eddie arriou no mesmo instante, contorcendo-se de dor.

Mais tarde, fui chamada ao gabinete do diretor. Como fora a primeira a partir para a agressão física, recebi a punição maior. Fiquei suspensa da escola por dois dias. Não importava que eu me sentisse fisicamente ameaçada. Também fui punida no lar de adoção. Achei muito injusto, mas ser tratada com injustiça nesse mundo não tinha nada de excepcional para mim. Claro que bater num garoto daquele jeito não foi muito bom para minha reputação. Serviu apenas para reforçar a imagem que a maioria dos meus colegas e professores já tinham.

Mas estava cansada de ser humilhada, cansada de ser vista como uma espécie de aberração, só porque não me ajustava à idéia preconcebida de como uma menina devia ser. Era como se fôssemos robôs ou talvez produzidas em massa num laboratório de genética, era o que me parecia. Decidira então preservar minha auto-imagem e auto-respeito, independente do custo, mesmo que isso significasse que nunca me tornaria alvo do interesse de algum rapaz bonito.

Os dedos de Danny apertaram meu pulso. Doeu. Senti a pele arder quando ele torceu meu braço. Quando estendeu a outra mão para abrir minha blusa, virei-me depressa, levantando o joelho direito na direção de sua virilha. A expressão angustiada em seu rosto revelava uma surpresa total. Largou-me, dobrou o corpo e caiu no chão, gritando de dor.

Os dois amigos ficaram observando-o se contorcer como uma serpente que acabara de ser atropelada. Depois me fitaram, cegos de raiva.

— Peguem-na! — ordenou Danny.

Eles avançaram para mim. Pelo canto do olho, avistei um caixote quebrado. Peguei um pedaço que estava cheio de pregos com as pontas de fora. Eles pararam quando o levantei como se fosse um porrete.

— Podem ter certeza de que vou usar isso aqui — murmurei, a voz trêmula.

Raven nos alcançou.

— O que aconteceu? — perguntou ela, olhando para Danny, agora de quatro no chão, respirando fundo.

— Ele tentou arrancar minha blusa. Vi os três na janela do banheiro quando fui tomar banho. Ele e seus amigos idiotas esperavam pela grande diversão do ano.

Os amigos de Danny ajudaram-no a se levantar.

— Sua vaca — resmungou ele. — Vai se arrepender.

— Não enche!

Enquanto eles se afastavam, Raven comentou:

— Agora você foi longe demais. O quie Patsy vai fazer?

— Provavelmente me dar uma medalha.

— Você está bem? — indagou Crystal, quando nos alcançou.

— Claro que estou. Duvido que ele diga qualquer coisa a Patsy, Raven. Teria de explicar para ela o que fazia atrás do chalé, junto da janela do banheiro.

Vimos os três se encaminharem para um carro no estacionamento. Acenderam cigarros, olhando furiosos em nossa direção.

— Vamos entrar — disse Crystal. Relatei toda a história, em detalhes.

— Esqueci de pendurar uma toalha na janela. É bem provável que ele já tenha espiado antes.

— Tenho certeza de que é a única maneira de ele poder ver uma garota despida — gracejou Raven.

Ela continuava a olhar pela janela a todo instante, na expectativa de algum sinal de Taylor. Acabei me acalmando, mas não tive coragem de voltar ao chuveiro. Crystal, Borboleta e eu decidimos ir para a cama, mas Raven insistiu em continuar acordada, sentada numa cadeira, recusando-se a se deitar porque Taylor ainda podia aparecer. Ficou no escuro, olhando para o estacionamento.

— Ele não vem mais, Raven — comentei, depois de algum tempo. — Por que se torturar?

— Deve ter acontecido algo muito inesperado.

— Claro, claro...

— Está contente, não é?

— Não diga bobagem, Raven. Admito que não me senti satisfeita por você se envolver com alguém durante nossa estada aqui, mas não quero que seja infeliz. Apenas me preocupo com você.

— Nunca posso ter um namorado decente. Acho que só vou conhecer rapazes pilantras.

Virei-me na cama e fechei os olhos. Pouco mais de meia hora depois, ouvi-a suspirar fundo, levantar-se e preparar-se para dormir. Raven finalmente meteu-se sob as cobertas.

— Brooke...

— O que é?

— Ainda está acordada?

— Não. Estou respondendo de um pesadelo. O que é?

— Menti para vocês.

Raven não disse mais nada. Droga, pensei. Sentia-me como um peixe, fisgada. Relutante, virei-me.

— Muito bem, mordi a isca. O que é?

— Não sou tão experiente quanto fingia. Na verdade..

— O quê, Raven? Na verdade, o quê?

— Ontem à noite foi a primeira vez.

— Ontem à noite? — Comecei a me sentar. — Tomou o devido cuidado, não é?

— Foi difícil tomar cuidado, Brooke. Nunca aconteceu com você, e por isso não sabe como é. A gente esquece que está indo longe. É tão bom que não há tempo de parar. Claro que se deve tomar as precauções, mas...

— Mas o quê?

— Não houve tempo.

— Ele não usou nenhuma proteção?

— Não.

— Oh, Raven, ele é um cafajeste por fazer isso com você! Por que ele não se preveniu?

— Ele não é um cafajeste — disse Crystal subitamente, do quarto. — É apenas um idiota. Não sabe quem você é, mas mesmo assim correu o risco de usar você sexualmente? Isso é estupidez.

Não pude deixar de sorrir. A velha Crystal, fingindo dormir, mas ouvindo tudo.

— Fiz a mesma coisa — admitiu Raven. — Também fui estúpida.

Crystal veio até a porta e nos fitou.

— Tem razão, foi mesmo estúpida. Vamos torcer para que agora tenha sorte.

— Estou apavorada — murmurou Raven, depois de uma pausa. — Posso ficar grávida?

— Claro que pode — respondi. — Certo, Crystal?

— Quando vai ficar menstruada, Raven?

— Daqui a três dias.

— Não deverá ter problemas. Sempre foi regular, não é?

— Sempre — respondeu Raven, num fio de voz.

— Acho que pode ficar tranqüila, Raven — declarou Crystal. — Mas eu não sairia com ele de novo. Uma coisa é certa: Taylor não se preocupou com o que poderia acontecer a você.

Raven não disse nada. Virou-se e comprimiu o rosto contra o travesseiro. Um instante depois ouvimos seus soluços.

- Desculpem — balbuciou ela. — Desculpem por ser tão estúpida. É que não posso deixar de ter medo.

Borboleta ainda dormia no quarto e aparentemente não ouvira a conversa. Crystal aproximou-se da cama e olhou para Raven, cujos ombros tremiam com os soluços. Fitou-me em seguida e deitou no sofá-cama. Encostamos a cabeça na de Raven.

— Somos irmãs — começou Crystal. — Sempre seremos irmãs.

Entoamos e nos abraçamos, rezando para que Raven tivesse sorte.

Na manhã seguinte nos levantamos e nos vestimos sem qualquer comentário sobre Taylor Cummings. Nem sequer falamos sobre Danny e seus amigos repulsivos. Fora uma noite agitada para Crystal, Raven e para mim, por isso nos movimentávamos como zumbis. Fomos para o restaurante e nos absorvemos no trabalho.

Patsy estava a fim de conversar, mais feliz do que nunca, falando sobre o período em que fecharia o restaurante e viajaria de férias, para onde pudesse ir.

— Talvez eu visite a Califórnia também — comentou ela. — Nunca estive lá. Alguma de vocês já conhece a Califórnia?

Como sempre, esperamos que Crystal respondesse. Percebi que isso aguçava o interesse de Patsy por nós. Ela nos observava atentamente, enquanto Crystal respondia:

— Não. Esta é também nossa primeira visita. É por isso que estamos tão excitadas.

— Seus pais são muito corajosos por deixarem vocês viajarem assim, sozinhas.

O primeiro freguês ainda não chegara.

— Não temos a vida doméstica perfeita que inventamos — continuou Crystal.

Raven e eu limpávamos os talheres e endireitávamos as cadeiras, enquanto Borboleta dobrava os guarda-napos. Era uma informação tão nova para nós quanto para Patsy.

— O que isso significa? — perguntou Patsy.

— A mãe de Borboleta morreu há alguns anos. O pai viaja muito. Meus pais são divorciados, assim como os de Raven. Brooke é adotada. E recentemente sua mãe adotiva foi submetida a uma grave operação. O pai adotivo achou que seria bom para ela viajar conosco, enquanto ele se concentrava na esposa.

Crystal era como uma aranha, tecendo sua teia de vidas pessoais, eventos, tragédias e comédias, para pegar na armadilha os ouvintes, que de nada desconfiavam. E foi o que aconteceu com Patsy. Ela fitou cada uma de nós com profunda compaixão, limitando-se a murmurar:

— Ahn...

— Mas estamos bem — acrescentou Crystal. — E estávamos nos divertindo muito até encontrarmos aquela pessoa horrível... não é mesmo, Brooke?

— É, sim. E estou gostando de trabalhar aqui. Todas gostamos.

Borboleta acenou com a cabeça vigorosamente. Raven adiantou-se.

— As meninas me disseram que queria me advertir sobre Taylor, Patsy. Eu deveria ter-lhe escutado. Ele é mesmo um canalha.

— Ele a machucou? Porque se fez isso...

— Não quero que faça nada. Se e quando Taylor voltar, eu mesma acertarei com ele. Obrigada, Patsy.

— Aposto que você saberá o que fazer com ele — murmurou Patsy, sorrindo.

Os primeiros fregueses chegaram e começamos a trabalhar. Dois amigos de Taylor apareceram, mas não ele.

Vi Raven falando com eles, para depois se afastar, enxugando os olhos. Deixei minhas mesas e fui ao seu encontro.

— O que aconteceu?

— Eles me disseram que Taylor voltou para sua antiga namorada. Saiu com ela ontem à noite. Ele apenas me usou, Brooke. Sou uma idiota.

Dei-lhe um abraço apertado.

— Ele é que sairá perdendo. Vamos voltar ao trabalho. Procure não pensar mais naquele idiota.

Ela tornou a enxugar os olhos e acenou com a cabeça.

— Obrigada, Brooke.

Voltamos às mesas. Foi outro café da manhã movimentado, com todas as mesas ocupadas e pessoas esperando na fila. Borboleta acabou indo trabalhar no balcão. Depois, quando fez as contas, Patsy nos disse outra vez que o lucro aumentara.

— Se continuar assim, poderei me aposentar em breve — disse ela, rindo. — Vou ao banco agora para depositar a féria de ontem e a desta manhã. Alguém precisa de alguma coisa da drogaria?

— Acho que não — respondi, olhando para Raven.

— Eu não quero nada — murmurou ela. Permanecemos no restaurante, tomando café e conversando com Charlie, que queria nos contar sobre suas viagens quando era jovem. Tinha histórias sensacionais. Estivera até na China.

— Há muita coisa para se ver no mundo, e muito para se aprender — disse ele. — Mas o que se aprende com certeza é o quanto é difícil encontrar um bom amigo. Vocês, meninas, parecem ter encontrado umas às outras. Isso vale ouro. Não precisam mais viajar, se procuram algo mais valioso do que isso.

Ele fez com que todas nos sentíssemos bem. Até mesmo Raven começou a se animar. Mas sabíamos que levaria algum tempo para que seu coração magoado pudesse ficar curado. Já íamos para o chalé a fim de descansar um pouco, quando Patsy voltou. Ainda não fora ao banco. Sua expressão indicava que alguma coisa terrível acontecera.

— Meu dinheiro desapareceu! — anunciou ela. — Tudo que eu ia depositar!

Patsy parou na nossa frente, os cantos da boca tremendo.

Crystal foi a primeira a se manifestar:

— Danny também sumiu?

— Não — respondeu Patsy, o que nos surpreendeu. — Ele estava em casa, acordando. Jurou que não sabia de nada.

— Quando viu o dinheiro pela última vez? — perguntei.

— Ontem à noite.

Ela continuou parada ali, olhando para nós. Senti um arrepio. Virei-me para Crystal, cujos olhos começavam a se contrair.

— Procurei em toda parte — acrescentou Patsy. — Vasculhei o quarto de Danny melhor do que um cão de caça.

— O que acha que aconteceu? — perguntou Charlie. Patsy hesitou.

— Danny disse que pensava que eu estivera em casa esta manhã depois do movimento aqui. Ouviu meus passos.

Ela fitou Borboleta, Raven, Crystal e a mim. Senti um frio no estômago, que se transformou em gelo e subiu pela espinha.

— Não pode acreditar que uma de nós... que uma de nós... pegou o dinheiro, não é? — murmurei, na esperança de que ela sacudisse a cabeça com veemência.

— Não quero acreditar em nada de ruim sobre ninguém — disse Patsy, quase à beira das lágrimas agora. — Danny insiste que ouviu passos.

— Ele está mentindo — declarou Raven. — Danny contou o que aconteceu ontem à noite?

— Não. O que aconteceu?

— Raven... — murmurei.

— Não, Brooke, ela precisa saber — insistiu Raven. — Danny e seus amigos foram espiar pela janela do nosso banheiro. Brooke os descobriu quando foi tomar banho. E depois eles até tentaram...

— Tentaram o quê?

— Atacá-la.

— O quê?!

— Não foi nada, Patsy — interrompi. — Eles foram embora quando os enfrentei.

Ela nos fitava com expressão aturdida.

— A melhor coisa a fazer agora é você ir até o chalé e revistá-lo, se quiser — disse Crystal, depois de um longo momento de silêncio.

— Não quero fazer isso, meninas. Quero acreditar que nunca me roubariam.

— E não roubaríamos mesmo — enfatizei.

Patsy acenou com a cabeça. Esperei que fosse o fim do incidente, mas ela suspirou e olhou para trás por um momento.

— Danny diz que nunca acredito em sua palavra. Diz que sempre o acuso primeiro. Espero que não me interpretem mal, mas se formos juntas até o chalé...

— Está certo — disse Crystal, levantando-se. — Vamos agora.

— Isso mesmo — murmurou Raven, levantando-se também. — Depois teremos uma conversa com Danny.

— Essas meninas nunca roubariam nada de você, Patsy — comentou Charlie.

— Sei disso — respondeu ela, forçando um sorriso. — Obrigada, meninas.

Saímos todas. Quando começamos a contornar o restaurante, ouvimos uma porta bater. Era Danny, deixando o trailer, enquanto enfiava uma camiseta de malha pela cabeça. Ele soltou uma risada zombeteira e nos seguiu.

Entramos no chalé. Crystal e Borboleta haviam arrumado suas camas, e eu fechara o sofá-cama antes de sairmos para o trabalho. As cobertas e travesseiros estavam arrumados ao lado. Exceto pela blusa de Raven, pendurada numa cadeira, nenhuma de nossas coisas estava espalhada. O banheiro também se encontrava limpo e arrumado. Paramos no meio da pequena sala.

— Pode procurar onde quiser, Patsy — declarei, sem conseguir eliminar o desapontamento do meu rosto e voz.

— Olhe naqueles sacos, mamãe — sugeriu Danny, indicando as fronhas em que guardávamos nossas roupas.

— Elas não fariam isso, Danny — disse Patsy, balançando a cabeça.

— Pois então eu vou revistar.

E passou por nós. Esvaziou as fronhas no chão. Algumas roupas nossas se misturaram, mas não havia mais nada ali.

— Satisfeito? — indaguei.

Danny olhou para a mãe e sacudiu a cabeça.

— Não!

Ele olhou ao redor e foi até a pequena cômoda. Abriu as gavetas, tateando embaixo das roupas íntimas e das meias.

— Não aprendeu sua lição ontem à noite? — perguntei, quando ele levantou um sutiã de Raven.

Danny ficou vermelho.

- Vamos embora, Danny — suplicou Patsy. — As meninas não pegaram meu dinheiro.

— Por que não conta a ela onde está? — indagou Raven.

Ele rangeu os dentes. Virou-se abruptamente para o sofá, como se um fantasma tivesse sussurrado em seu ouvido. Caiu de joelhos e estendeu a mão por baixo do móvel. Ficamos observando. Raven começou a rir, mas de repente ele se levantou, mostrando um saco de depósito bancário.

— Eu sabia que estava aqui!

O prazer de Danny era doentio. Ele largou o saco no chão, e o dinheiro de Patsy se espalhou.

— Não fomos nós! — protestei. — Você mesmo deve ter posto o dinheiro aí!

— Tem razão. Sou um mágico. — Ele olhou para Patsy. — Mãe, chame a polícia.

— Não! — gritou Raven. — Não fomos nós, Patsy. Ele está mentindo.

— Se eu tivesse posto o dinheiro ali, por que não fui direto pegá-lo? — indagou Danny, olhando para Patsy. Ele fez uma pausa e fitou Raven. — Por que desperdiçaria tanto tempo procurando em outros lugares, sua espertinha?

— Porque você estava fazendo uma encenação — respondeu Raven, recuando.

— Vocês é que fizeram uma encenação. Sabiam que minha mãe sempre deixa aberta a porta do trailer. Ouvi quando entraram esta manhã.

— Não é verdade, Patsy — declarei, controlando-me ao máximo. — Juro que não fizemos isso.

Ela comprimiu os lábios com toda força. Parecia a ponto de explodir em lágrimas.

— Chame a polícia, mãe. Aposto que elas roubam de todo mundo. Eu mesmo vou chamar.

— Não. Guarde o dinheiro no saco, Danny. Vamos logo.

— Mas...

— Faça o que estou mandando — disse Patsy, a voz firme. — Ponha tudo no saco e me entregue.

— É a prova, mãe. Você tem de deixar onde está para a polícia.

— Danny! Por favor, guarde o dinheiro de volta no saco.

— Está cometendo um erro, mãe, ficando do lado delas, mesmo agora. — O rosto de Danny contraía-se em raiva. — Sempre acredita em todo mundo, menos em mim!

— Não estou acreditando em ninguém, Danny. Eu...

— Está, sim, sua desgraçada!

Ele passou correndo por nós e saiu do chalé, batendo a porta com toda força. Era como se um tornado tivesse acabado de atingir o lugar. Crystal passou o braço pelos ombros de Borboleta e puxou-a. Raven olhou para as duas e depois para o chão. Ajoelhei-me para guardar o dinheiro no saco.

— Não fizemos isso, Patsy — reiterei, entregando o saco. — Não sei como foi parar embaixo do sofá.

— Eu sei — anunciou Raven. Patsy balançou a cabeça.

— Acredito em vocês, meninas. Juro que acredito. Mas acho que seria melhor para todo mundo se fossem embora agora. Pagarei tudo o que devo. — Havia uma tristeza profunda em sua voz. — Preciso dar um jeito em Danny, mas não conseguirei nada se vocês continuarem aqui. Ele parece culpá-las por seus problemas. Sinto muito. Eu lhes desejo muita sorte. Passem pelo restaurante depois de arrumarem suas coisas.

Ela encaminhou-se para a porta. Todas nós prendemos a respiração. Quando Patsy abriu a porta e se voltou, Borboleta separou-se de Crystal e disse:

— Não pegamos seu dinheiro, Patsy. Não roubaríamos de você ou de qualquer outra pessoa. Por favor, não nos obrigue a ir embora.

O rosto de Patsy contraiu-se, angustiado.

— Sinto muito, querida.

As lágrimas finalmente brotaram de seus olhos e começaram a escorrer pelas faces. Ela respirou fundo e se afastou apressada.

— Aquele idiota, desgraçado, pilantra! — explodiu Raven. — Por que ela está fazendo o que Danny quer? Ele jamais gostou de nós, desde o primeiro momento!

— O que mais ela pode fazer? — disse Crystal. — Ele é filho dela. E nós somos apenas estranhas.

Frustrada, Raven foi para o banheiro.

— Vamos arrumar nossas coisas, Brooke — acrescentou Crystal. — Quanto mais cedo partirmos, melhor será.

Não demoramos muito tempo para pôr tudo na caminhonete. íamos partir sem apanhar nossos salários com Patsy, mas ela mandou Charlie nos chamar.

— Sei o que o garoto fez com vocês. Danny não é apenas uma maçã apodrecendo o restante da caixa. Está apodrecendo todo o barril. — Charlie estava furioso como nunca o víramos. — E vou dizer isso a ele.

— Patsy precisa de toda ajuda e apoio que puder obter, Charlie — lembrou Crystal.

— Sei disso. É como nadar com uma pedra pendurada no pescoço.

Dirigimos de volta ao restaurante e saltamos. Patsy esperava perto da porta, com os nossos envelopes na mão.

— Não é muita coisa, mas espero que ajude vocês na viagem. Talvez devessem voltar. — Ela olhou atentamente para Crystal. — Deixem essa viagem para outra ocasião. Viajar pode ser muito difícil, até mesmo para jovens.

Borboleta parecia prestes a chorar. Patsy abraçou-a depois abraçou Raven, Crystal e a mim. Havia lágrimas em seus olhos. Ela mordeu o lábio inferior.

— Obrigada pela ajuda. Vocês são boas meninas. Patsy afastou-se. Ficamos paradas ali por alguns momentos, olhando para o restaurante e para Charlie, que nos fitou com ar sombrio, antes de voltar ao trabalho. Pareceu-me que ele odiava despedidas tanto quanto nós.

— Vamos embora — sussurrou Crystal.

Tornamos a embarcar na caminhonete, em silêncio. Sentei ao volante. O céu nublado que mantivera a manhã sombria começava a se abrir agora. As nuvens se separavam a distância, e o sol ia aparecendo.

— O tempo está melhorando — comentei. — Pelo menos não teremos de viajar na chuva.

Ninguém disse nada. Ninguém estava prestando atenção ao tempo. Liguei o motor. Quando olhei pelo espelho retrovisor, avistei Danny parado na frente do trailer, os braços cruzados, parecendo muito satisfeito.

Parti, virei à direita na estrada, seguindo para oeste. O silêncio persistia.

— Acho que é melhor você consultar o mapa de novo, Crystal — sugeri.

Ela abriu o mapa, ainda calada.

Raven encostara a face direita na janela. Observava a paisagem passando. Respirou fundo algumas vezes, depois fechou os olhos.

— Deve ter sido um recorde — comentou ela, com uma risada trêmula. — Traída por dois canalhas em menos de vinte e quatro horas.

— Tenho certeza de que logo você encontrará alguém honesto e sincero, Raven — declarei.

— Ainda não posso acreditar que Danny fosse capaz de fazer aquilo.

Raven removeu as lágrimas do rosto com um gesto furioso. Borboleta inclinou-se para a frente e pôs a mão em seu ombro. Raven virou-se, sorriu para ela, estendeu a mão sobre a dela.

— Por que ele foi tão mau conosco, Raven? — perguntou Borboleta.

— Porque ele é mau para si mesmo — respondeu Crystal. — Odeia tanto ele mesmo, que odeia todas as outras pessoas, inclusive a mãe.

— Pensei que ele tinha sorte por ter uma mãe — murmurou Borboleta.

— E ele tem, mas não sabe disso.

— Nem se importa — acrescentou Raven. Ficamos em silêncio de novo, até que Raven sorriu e disse:

— Querem saber de uma coisa que eu pensei? Talvez não sejamos tão desafortunadas assim, no final das contas. Talvez tenhamos uma coisa melhor.

— O quê? — indagou Borboleta.

— Temos umas às outras.

Segui para o sol que surgia entre as nuvens, que também, como nós, seguia para oeste.

 

                       De volta à estrada

Recomeçou a chover. Guiar já perdera todo o excitamento para mim e se tornara desagradável e monótono, ainda mais nas intermináveis rodovias interestaduais, em que havia pouco para se olhar, exceto os outros carros. Sentíamos um arrepio cada vez que avistávamos uma patrulha estadual, mas nenhum guarda demonstrou qualquer interesse por nós, nem mesmo nos lançou um olhar curioso. Eu tomava o maior cuidado para permanecer dentro dos limites de velocidade. As paradas para gasolina, almoço e jantar foram os únicos eventos que despertaram algum entusiasmo. Borboleta dormiu bastante. Crystal, que era capaz de ler em qualquer lugar, manteve o nariz grudado num livro. Raven, entediada e aflita, amarrava a cara, cochilava e se remexia, indócil. O arrependimento, como uma serpente teimosa, esgueirava-se por nossos pensamentos, manifestando-se a intervalos periódicos, através de pequenos comentários, gemidos e suspiros.

— Os verões em Lakewood não eram tão ruins assim — murmurou Raven, pouco antes de pararmos para jantar.

Viajávamos há quase uma hora sem falar nada. O rádio continuava tocando, mas eu já não o ouvia.

— Pelo menos conseguíamos escapar de Gordon e Louise quando saíamos para trabalhar — acrescentou ela, depois de um momento.

— Isso é espantoso, Raven — comentei. — Eu devia estar sob o efeito de sedativos, porque nunca soube que você se sentia tão feliz ali. Era bastante estúpida para pensar que você odiava aquele lugar quase a cada minuto. E devo ter imaginado o fluxo contínuo de queixas que saía de sua boca.

— Eu não disse que gostava — protestou ela, ríspida. — Apenas comentei que não era tão difícil no verão. Talvez devêssemos ter esperado até o outono para fugir.

Crystal baixou o livro.

— Minha esperança é encontrar outro lugar para viver e terminar a escola. Se fôssemos embora no outono, estaríamos bastante atrasadas quando começássemos numa outra escola.

— Escola? — gritou Raven. — Quem se importa com escola?

— Não acha que Borboleta terá de continuar a estudar? E eu ainda quero me candidatar a bolsas de estudo — respondeu Crystal, sem perder a calma. — Se eu soubesse que você pensava que nunca mais voltaríamos a estudar, não teria concordado em partir.

Raven murmurou alguma coisa em voz bem baixa, depois olhou furiosa pela janela.

— Não deveríamos ter deixado você jogar fora a cocaína de Gordon — disse ela. — Seria melhor se a deixássemos onde estava. Agora não podemos mais voltar, mesmo se quiséssemos.

Crystal voltou à sua leitura. Raven fechou os olhos. Borboleta gemeu no sono, enquanto eu olhava para a longa reta na estrada. Tinha a sensação de que afundava numa banheira cheia de lama fria. A liberdade não torna as coisas automaticamente melhores para a pessoa, pensei. Ainda era preciso enfrentar a derrota e a frustração; e não se tinha mais ninguém para culpar a não ser a si mesma. Até eu começava a ter sérias dúvidas. Persuadira todas a se meterem num desastre?

Jantamos numa lanchonete e seguimos em frente até cruzarmos a fronteira de Indiana. Todas sentiam-se apreensivas com a perspectiva de dormir no carro. Resolvemos então procurar um motel barato. Encontramos um que parecia ter sido invadido por roedores, mas o preço do quarto com duas camas de casal era de apenas dezessete dólares.

O quarto tinha um cheiro de mofo e ranço. Crystal comentou que a impressão era de que alguma coisa morrera dentro das paredes. Tentei abrir uma janela, mas estava emperrada.

— Ninguém abre esta janela há tanto tempo que agora ela não quer se mexer — murmurei.

— Devemos dormir com a porta entreaberta — sugeriu Raven.

Mas Crystal teve medo.

— Estamos no meio do nada e parece não haver mais ninguém hospedado aqui.

— Vamos tentar tirar o melhor proveito da situação. Minha intervenção foi para evitar outra discussão.

Estávamos furiosas e cansadas, cada uma deixando as outras nervosas.

Quando finalmente deitamos, descobrimos que os colchões eram tão velhos e surrados que quase arriamos até o chão. Dormimos todas vestidas, usando nossas fronhas, em vez das encardidas que estavam nas camas. Apesar do horror do aposento, a viagem e a montanha-russa emocional nos deixaram tão cansadas, que logo mergulhamos no sono. Nenhuma de nós acordou durante a noite.

O sol claro da manhã passou sem qualquer dificuldade pelas cortinas finas. Mas em vez de nos acolher para um dia novo e quente, serviu apenas para realçar a decadência, deterioração e sujeira do quarto. Relutamos até em usar o banheiro, mas fizemos o que tínhamos de fazer por pura necessidade. Partimos o mais depressa possível. Ao encontrarmos um lugar para o café da manhã, tornamos a nos lavar no seu banheiro.

Nenhuma de nós sentia muita fome. Crystal fez um balanço de nossas finanças. Concluiu que, se fôssemos bastante frugais — e se Gordon não cancelasse seu cartão de crédito para gasolina — ainda poderíamos chegar à Califórnia.

— Por que ele ainda não pediu o cancelamento? — especulei em voz alta.

Crystal pensou por um momento, para depois dizer:

— Há a possibilidade de que ele esteja anotando nossa rota de fuga pelos lugares em que o cartão é usado.

Foi o suficiente para que uma nuvem de medo nos envolvesse por alguns instantes.

— Claro que ele estaria sempre um pouco atrás de nós, mas ainda assim...

Crystal deixou o resto da frase pairando no ar, como pingentes de gelo escorrendo em visões de horror.

— Quanto tempo mais poderemos ser frugais? — indagou Raven, levando a conversa de volta ao nosso problema imediato.

— Estou falando em economizar de verdade — disse Crystal. — Esta é a última vez que comemos num restaurante. Daqui por diante, compraremos a comida e comeremos no carro. Todas gostam de manteiga de amendoim. Este será nosso almoço... todos os dias.

— Que maravilha... — resmungou Raven. – Sempre nos queixávamos da comida na Lakewood House, mas agora lá seria um restaurante de gourmets.

— Se seu coração está tão empenhado em voltar, Raven, pode voltar — interferi, com alguma irritação

— Com que dinheiro? Cinco dólares? E o que vai acontecer quando eu chegar lá? Gordon vai me usar para prática de tiro ao alvo? Não, obrigada.

— Pois então pare de falar bobagem. Não ajuda em nada ficar nos lembrando a todo instante que estamos numa situação difícil.

— Brooke tem razão, Raven — disse Crystal. — Procure se concentrar no lado positivo. É a única maneira de combater a depressão.

— Desculpem. Não tive a intenção de ser desagradável. Acontece apenas que... que... ora, nem eu mesma eu sei!

E com lágrimas escorrendo pelas faces, ela seguiu em passos rápidos para o banheiro.

— Por que estamos discutindo tanto? — perguntou Borboleta.

— Porque sentimos medo e assim é mais fácil descarregar nas outras — analisou Crystal. — Mas não se preocupe, Raven vai se recuperar.

No entanto, quando voltou, Raven parecia ainda mais desanimada.

— Preciso de um banho quente — murmurou ela, deixando escapar um profundo suspiro. — Aturaria até mesmo Gordon me olhando na banheira.

Assim que as palavras saíram, pude perceber que ela se arrependera de tê-las enunciado. Crystal ergueu a cabeça de uma forma tão brusca e rápida, que até pensei que poderia romper a pele do pescoço.

— Acha que exagerei? Foi mesmo horrível e assustadora a maneira como ele me devorou com os olhos. As mãos chegaram a poucos centímetros dos meus seios. E ele começou a babar. Fiquei tão contraída de medo que quase não conseguia respirar. Tenho certeza de que meu corão parou por um instante. Pensei que ia desmaiar, mas no mesmo instante, disse a mim mesma que, se isso acontecesse, ele poderia...

— Desculpe, Crystal — sussurrou Raven. — Sabe que não tive a intenção.

— Vamos logo embora — sugeriu Crystal. — Se continuarmos nos movendo, num instante nos sentiremos melhor.

A viagem não foi muito agradável, embora Raven se empenhasse ao máximo em alegrar o ambiente. Fez alguns jogos com Borboleta, entoou canções tolas, até se meteu numa discussão acalorada com Crystal sobre feminismo. Por algum tempo, nos mantivemos distraídas.

Pouco depois de entrarmos no estado de Illinois, a caminhonete começou a esquentar demais. Notei a agulha da temperatura subindo, diminuí a velocidade e parei no acostamento o mais depressa possível.

— O que houve? — perguntou Raven.

— Não sei. O mostrador da temperatura disparou.

— Temos de sair desta estrada, Brooke — disse Crystal, enquanto carros passavam por nós. — Chamaremos muita atenção e talvez até da patrulha rodoviária.

Saltei, abri o capô e examinei o motor. Não sabia o que procurava, mas tinha certeza de que a água esguichando de uma das mangueiras não era um bom sinal.

— Sabe qual é o problema? — indagou Crystal.

— Acho que é a mangueira. Olhe só para o esguicho.

— O que isso significa? — perguntou Raven.

— Significa que precisamos de uma nova.

Eu sabia guiar o carro, mas não entendia de mecânica.

— O que vamos fazer? — murmurou Borboleta.

Olhei para a estrada e avistei uma placa bem antiga, anunciando, a um quilômetro de distância, um posto e uma oficina.

— Vou caminhar até lá para descobrir se o posto ainda existe — sugeri. — Se existir, pedirei a alguém para vir consertar a caminhonete.

— Não temos condições para isso — disse Crystal — Pode custar todo o nosso dinheiro.

— Vamos esperar para ver. Talvez eles nos deixem pagar com o cartão de crédito. Vou só confirmar se o posto não está mais funcionando, depois pensaremos no que fazer.

Crystal conferiu o mapa.

— Deve haver uma pequena cidade aqui por perto. Encontraremos uma solução -

— Está certo. Fiquem calmas. — Olhei para Raven em particular, enquanto acrescentava: — Voltarei o mais depressa que puder.

Comecei a me afastar e logo passei a correr. Havia apenas uma casa no caminho, mas concluí que não havia ninguém morando ali, por causa do mato crescido na frente e das janelas escuras. Ao final de uma curva, avistei o posto lá na frente. Daquela distância era difícil saber se ainda funcionava. Não vi qualquer pessoa ou carro algum perto das bombas. O prédio era velho, a tinta estava descascando.

No entanto, ao me aproximar, ouvi o som de ferramentas elétricas. A porta estava aberta. Parei e dei uma olhada. A princípio não avistei ninguém, mas logo um rapaz se levantou. Estava agachado junto de um pneu de caminhão. Usava um macacão cinza. Calculei que devia estar no final da adolescência, vinte anos no máximo. Tinha cabelos castanho-escuros e abundantes. Até mesmo do lugar em que me encontrava pude reparar que seus olhos eram excepcionais, parecendo duas pérolas negras reluzentes. Os malares eram salientes, o queixo forte, quase quadrado, a boca perfeita. Ele me fitou por um momento como se eu fosse uma ilusão.

- De onde você veio? — perguntou em seguida. — o ouvi seu carro parar.

- Nosso carro enguiçou a cerca de um quilômetro daqui, pouco antes da saída da pista.

A princípio, ele não se mexeu nem demonstrou qualquer interesse. Depois, largou a chave de porca elétrica, limpou as mãos num pano e saiu da oficina. Apesar de trabalhar dentro do prédio, seu bronzeado era forte e regular. Tinha pelo menos um metro e oitenta de altura, e um corpo rijo e musculoso que o macacão não conseguia encobrir.

— Eu não sabia se a oficina ainda funcionava — comentei, quando ele se manteve em silêncio.

Ele continuou a me fitar, com um pequeno sorriso lhe contraindo os lábios. Só depois de algum tempo é que explicou:

— No momento só fazemos algum trabalho de lanternagem e um pouco de mecânica. Fechamos as bombas de gasolina há pouco mais de um ano. Não há muito tráfego por aqui hoje em dia. Qual é o seu carro?

— Uma caminhonete Buick 1990.

— Não temos mais reboque também. Talvez seja melhor vocês chamarem o Automóvel Clube.

— Não somos sócias.

O rapaz tornou a me estudar. Eu me sentia embaraçada quando ele me lançava aqueles olhares prolongados e silenciosos. Tive de desviar os olhos. Sentia as faces ardendo.

Ele acenou com a cabeça e olhou ao redor, como se esperasse avistar mais alguém.

— Onde está sua família? Por que a mandaram sozinha?

— Somos apenas eu e três amigas. Estamos indo para a Califórnia.

— Califórnia?

Ele sorriu como se eu tivesse acabado de informar que viajávamos para a lua.

— Isso mesmo — gracejei. — Algumas pessoas vão para lá.

O sorriso aumentou mais um pouco.

— Tem razão. Afinal, é o estado mais populoso do país. Bem... — Ele pôs as mãos nos quadris e olhou para a estrada. — O que aconteceu com a caminhonete?

— Começou a esquentar. E havia água esguichando de uma mangueira.

O rapaz alteou as sobrancelhas.

— É mesmo? — Ele sorriu. — Parece que já diagnosticou o problema, doutora.

— Claro que não. Apenas percebi que havia um vazamento... e a água esguichou em cima de mim.

Mostrei o tênis molhado como prova.

— A mangueira deve ter rompido. Quando foi feita a última revisão?

Respirei fundo e desviei os olhos.

— Não sei.

— De quem é o carro?

— É... meu, mas não me lembro de quando foi feita a última revisão.

— Se eu fosse viajar para a Califórnia, com certeza mandaria fazer uma revisão completa em meu carro.

— Tomamos a decisão de viajar na última hora. Ele tornou a sorrir, com uma expressão divertida nos olhos, fixos em meu rosto. Tentei desviá-los de novo, mas seu olhar provocou um formigamento em minha espinha, que parecia uma bolha subindo e flutuando em torno de meu coração.

— De onde você é?

— Do norte do Estado de Nova York.

— E decidiram na última hora atravessar todo o país de carro?

A voz tinha ceticismo suficiente para abalar a fé de um padre.

— Isso mesmo. Foi o que aconteceu. Pode nos ajudar ou não?

Ele não chegou a parar de sorrir para mim, mas se tornou um pouco mais sério.

— Iremos no meu Chevy. Tenho uma corrente que posso usar para rebocar o carro de vocês até aqui. E levarei também uma lata com água.

O rapaz acenou com a cabeça para um Impala que tinha a traseira arriada e canos de descarga especiais. A porta do motorista fora preparada para pintura.

— É Betty Lou — disse ele. — Pode entrar. Vou pegar a água.

— Betty Lou? — repeti, sorrindo.

— Minha namorada.

Ele contornou o lado do prédio para buscar água. Entrei no carro. Os bancos haviam sido reformados ao estilo dos anos 50. O painel era tão impecável quanto o chão. Dois dados brancos, de algodão, pendiam do espelho retrovisor.

O rapaz pôs a lata com água na mala do carro, foi fechar a porta da oficina, sentou-se ao volante e ligou o motor. Soltou um grunhido baixo.

— Uma beleza, não acha? — Era como se estivéssemos ouvindo uma orquestra sinfônica. — Não uma beleza tão grande quanto você, é claro.

Agora foi a vez dele de desviar os olhos timidamente. O elogio me deixou perturbada. Seguimos em silêncio até avistarmos a caminhonete.

— É o seu carro? Acenei com a cabeça.

— Isso mesmo.

Ele fez uma volta em U e parou. Saltamos.

— Não cheguem muito perto, meninas — recomendou ele, enquanto mexia nas mangueiras. — A água está saindo muito quente. Hum... Parece que a bomba d'água também quebrou.

Percebi por sua expressão que o problema da caminhonete era grave.

— Pode consertar? — perguntou Raven.

O rapaz olhou para ela e depois para mim. Era a primeira vez que um homem se interessava mais por mim do que por Raven.

— Vou rebocar até a oficina. A loja de peças mais próxima fica em Grover, a cinqüenta quilômetros daqui.

— Não temos muito dinheiro — murmurei. — Aceitaria um cartão de crédito?

— Não aceitamos mais cartões de crédito. Somos apenas papai e eu... e ele quase não aparece mais na oficina. — O rapaz pensou um pouco. — Talvez eu possa dar um jeito.

— Seria ótimo— exclamei, meus olhos brilhando. Ele fechou o capô e foi abrir a mala do seu carro para pegar a corrente. Raven olhou para mim e, enquanto o rapaz prendia a corrente por baixo da caminhonete e depois em seu carro, ela indicou, pela linguagem de sinais, que o achava um gato. Resolvi ignorá-la.

— Sente-se ao volante e ponha em ponto morto — disse ele.

Entrei no carro, e Raven seguiu-me.

— Para onde ele vai nos levar? — perguntou Crystal.

Expliquei a situação.

— Ele parece muito simpático, Brooke — comentou Raven, enquanto o mecânico entrava em seu carro e começava a nos rebocar.

— É bastante simpático — murmurei.

Raven soltou um gemido quando viu a oficina.

— Talvez devêssemos ir para outro lugar.

— Mendigos não podem ser exigentes — declarou Crystal. — Vamos ver se ele consegue consertar.

Todas saltamos quando ele parou.

— Há um ferro-velho a cerca de vinte e cinco quilômetros daqui. — O rapaz olhou para sua oficina. — Talvez eles tenham a peça.

Ele virou-se para mim, com um sorriso caloroso.

— Por que não vem comigo? Se vocês quiserem, podem esperar no escritório. — Ele foi destrancar a porta e virou-se para nós. — Tem Coca-Cola na geladeira, além de biscoitos e outras coisas. Há também algumas revistas, mas não creio que possam interessá-las.

O rapaz arrematou suas palavras com um sorriso malicioso. Raven jogou os cabelos para trás e arregalou os olhos.

— Provavelmente não — murmurou ela.

— Obrigada — disse Crystal.

Ela se encaminhou para o escritório, acompanhada por Borboleta. O rapaz pediu:

— Pode atender o telefone para mim, por favor?

— Claro.

— Quanto tempo vai levar? — indagou Raven.

— Pode demorar um pouco. Primeiro, temos de encontrar uma bomba que funcione, para depois instalá-la. Para ser franco, talvez tenham de passar a noite aqui.

— Passar a noite? — Raven olhou para a estrada deserta. — Onde?

— Não sei mais quanto cobram, mas há um lugar chamado Woodside, a uns três quilômetros ao norte daqui, onde oferecem quartos com direito a café da manhã. Pertence a uma velhinha simpática, a sra. Slater. Procurem na lista telefônica durante a minha ausência.

— Tem certeza de que deve ir com ele? — perguntou-me Raven, enquanto o mecânico voltava para seu carro.

— Não se preocupe. Ele está fazendo tudo para nos ajudar. Além do mais, é muito simpático.

— Brooke, sou a pessoa que mais tem condições de aconselhá-la sobre "rapazes simpáticos". Não cometa o mesmo erro que eu cometi.

Fiquei corada e tratei de ir para o carro.

— Eu sou Todd — disse ele, quando cheguei ao carro. — Todd Mayton.

— Meu nome é Brooke.

— Prazer em conhecê-la.

Ele se afastou em marcha à ré, deixando Raven parada ali nos observando, o rosto uma máscara de preocupação.

Foi Todd quem mais falou durante todo o caminho até o ferro-velho. Descobri que ele era o mais moço de três irmãos, os outros vivendo e trabalhando com um tio em Indianápolis. A mãe deixara seu pai quatro anos antes. Ela e o novo marido moravam perto de seus irmãos. Era evidente, pela maneira como falava sobre a mãe, que Todd se ressentia do que ela fizera com o pai.

— Ele sempre foi um cara trabalhador, o meu velho. Acho que nossa vida nunca foi muito boa. Ela dizia que a vida com ele a deixou dez anos mais velha do que era. É uma mulher bonita, minha mãe. Quando tínhamos as bombas, muitos homens costumavam guiar por quinze ou vinte quilômetros a mais para abastecer aqui, só porque ela operava as bombas, usando um short mínimo e uma blusa de frente-única. — O tom era de amargura. — Eu era apenas um garoto, mas sabia o que os comentários deles significavam e odiava a maneira como olhavam para ela.

Depois de uma pausa, ele acrescentou:

— Ei, olhe só para mim, falando sem parar! Nunca faço isso. Você deve ser mesmo especial.

Todd sorriu. Eu sabia, pelo calor que subia por meU pescoço e se espalhava pelas faces, que estava corando de novo, como uma rosa vermelha.

- E você? — indagou ele, quando me mantive calada.

— O que quer saber?

— Para começar, por que quatro garotas saem sozinhas pelas estradas americanas?

Hesitei. Havia alguma coisa nele, na maneira como me abrira seu coração, de bom grado e sem medo, que me fazia resistir à mentira.

— Somos fugitivas — respondi, enfrentando o risco de dizer a verdade.

As outras me matariam, se soubessem disso, pensei. Todd começou a sorrir, olhou para mim e perdeu o sorriso.

— Fala sério?

— Claro. Somos órfãs. Não temos família. Vivemos há anos numa casa à espera de adoção. Por diversos motivos, decidimos que era tempo de sair de lá.

Os olhos de Todd se contraíram, enquanto me estudava com a maior atenção.

— É uma piada, não é mesmo?

— Está se tornando. Fomos roubadas durante a viagem, acusadas de roubo e agora temos problemas com o carro. Não podemos voltar. E pelo que parece, estamos presas num torno, que nos aperta cada vez mais.

Ele não fez qualquer comentário. Pouco depois, acenou com a cabeça para um pátio cercado à nossa frente.

— Lá está o ferro-velho.

Um homem que parecia beirar os 70 anos empilhava alguns pneus logo depois da entrada. Usava uma camisa de flanela com as mangas enroladas até os cotovelos e um jeans com um buraco considerável no fundilho, deixando a cueca à mostra. As rugas em seu rosto pareciam ter sido esculpidas por um bisturi. Tinha uma pele da cor de torrada queimada. Quando sorriu, revelou a ausência de vários dentes.

— O que está fazendo aqui tão tarde? — perguntou ele, quando paramos.

— Um problema de enguiço — respondeu Todd. — Preciso de uma bomba d'água para uma caminhonete Buick 90. Acha que tem, Lefty?

O velho virou-se, coçou o queixo sujo com o polegar e o indicador da mão esquerda, e pensou por um momento. Contemplei a pilha de destroços, o mar de metal, borracha e vidro. Aos meus olhos, não havia ordem ou razão para que qualquer coisa estivesse em qualquer lugar. Vi destroços antigos misturados com veículos novos, carros e caminhões, um ônibus escolar virado, perto de um trator John Deere, ao lado de um carro esporte que parecia ter sido destruído pelo fogo. Passarinhos haviam feito seus ninhos em alguns veículos.

— Pegue a freeway para a Golden Gate — instruiu Lefty. — Se bem me lembro, há um Buick ali mais ou menos dessa época. Johnny recolheu-o perto do Cran-berry Lake há cerca de um ano.

— Obrigado. Todd partiu.

— A freeway para a Golden Gate? — repeti. Ele soltou uma risada.

— Uma piada de Lefty. Ele dá nomes aos corredores entre os destroços. Se você já tivesse vindo aqui muitas vezes, como eu, saberia do que se trata. — Todd virou à direita, diminuiu a velocidade. — Aqui é a Golden Gate.

Passamos sobre placas de metal, postas ali para se transpor algumas valas profundas. Carros estavam empilhados uns sobre os outros, em alguns pontos até a altura de três, à esquerda e à direita. Ambos ficamos procurando, até que o avistei.

Ali está! — exclamei, apontando para a direita, a poucos metros do corredor.

O veículo tivera o teto esmagado, o pára-brisa e as janelas estilhaçadas, a porta do motorista arrancada.

— Parece que capotou — comentou Todd, ao parar. Saltamos e fomos até lá. Ele tentou abrir o capô, mas estava emperrado.

— Vai dar algum trabalho.

— Lefty ajudará? — perguntei.

— Aqui você procura o que quer e pega pessoalmente. Depois vai para o portão e barganha com Lefty. Tenho algumas ferramentas na mala.

Todd voltou para seu carro. Examinei o capô e verifiquei onde a tranca ficara emperrada. Enquanto ele contornava o Buick destruído, peguei o martelo e uma talhadeira e comecei a bater na tranca. Para minha surpresa, soltou-se num instante. Enfiei os dedos por baixo do capô e levantei-o. Todd parou, com um sorriso espantado, quando o capo subiu.

— Precisa de um emprego? — perguntou ele, em tom meio de brincadeira.

— Na verdade, preciso, sim. Estamos quase sem dinheiro.

— Dá para imaginar. Viajar não é barato.

— Ainda mais quando roubam a gente.

Todd balançou a cabeça, sem saber se eu estava inventando ou não a história. Depois, inclinou-se para o motor, localizou a bomba d'água e examinou-a por um momento.

— Parece perfeita — murmurou ele.

Fiquei de lado e observei-o retirar a bomba. Enquanto trabalhava, Todd falou mais um pouco sobre si mesmo e o lugar, mas de vez em quando encaixava uma pergunta sobre nossa vida como órfãs. -

— Quer dizer que os responsáveis pelo tal lar de adoção não estão procurando por vocês? — pergumtou ele, antes de tirar a bomba.

— A essa altura, é claro que estão.

Todd balançou a cabeça e tirou a bomba. Ajudei-o a guardar as ferramentas. Fomos para o portão, onde mostramos a Lefty o que pegáramos. Ele examinou a bomba

— Vinte dólares parece justo.

— Parece justo, mas não é. Tenho uma nota de dez que é justa.

Todd mostrou a nota.

— Você está me roubando — resmungou Lefty.

— Não seria a primeira vez — respondeu Todd. Lefty soltou uma gargalhada, que logo definhou para uma risadinha silenciosa.

— Seu pai ensinou você muito bem — disse ele, pegando a nota de dez. — E me sinto generoso hoje.

— Obrigado, Lefty. Até outro dia.

— Dê minhas lembranças a seu pai! — gritou Lefty, enquanto nos afastávamos.

— Obrigada por ser um negociador tão bom, Todd. Ele riu.

— É apenas um jogo. Lefty sempre pede o dobro do que vai receber. Todo mundo sabe disso. Você foi de grande ajuda.

— Seu pai não vai ficar aborrecido por você estar gastando tanto tempo com a gente?

— Papai quase não vai mais à oficina. Tem um problema na perna. Diabetes. — Todd fez uma pausa, virou-se para mim e acrescentou: — Passa a maior parte do tempo com uma garrafa.

— Sinto muito.

— Terei de ir para casa daqui a pouco, mas voltarei depois do jantar e trabalharei no carro. De qualquer forma, acho melhor vocês arrumarem um quarto para passar a noite.

- Está bem. Talvez Crystal já tenha telefonado. Ela é muito eficiente.

Crystal?

Falei um pouco sobre cada uma de nós. Era fácil conversar com Todd; parecia que sempre nos conhecêramos. Ele ouviu em silêncio, depois me fitou e disse:

— Não precisa se preocupar comigo, Brooke. Façam o que julgarem melhor para vocês. Não chamarei a polícia.

— Sei disso.

Eu acreditava sinceramente nele; e meu comentário o fez sorrir.

— Posso voltar mais tarde e ajudá-lo, Todd; é só me dizer quando.

— Claro. Como eu disse, se quiser ficar e se tornar minha ajudante...

Não pude deixar de rir, só por imaginar.

— Sou eu quem guia a caminhonete. Todas teriam de ficar.

— Ei, seriam garotas demais para mim!

Ambos rimos. Continuávamos a rir quando chegamos à oficina. Raven estava sentada no degrau da entrada do escritório, dando a impressão de que montava guarda.

— Já não era sem tempo! — exclamou ela, no instante em que saímos do carro. — É bem tarde. Crystal ligou para a pensão e acha que devemos dormir lá.

— É uma boa idéia — disse Todd. — Vocês têm de passar a noite em algum lugar.

Crystal saiu do escritório e me transmitiu os detalhes.

— Assumi um risco, Brooke, torcendo para que o conserto não saia por mais de vinte dólares. Quanto vai custar?

A preocupação de Crystal era evidente. Todd ouviu e se aproximou.

— Não se preocupem com o carro. A peça Custou apenas dez dólares. E não vou cobrar nada pela mão-de-obra.

— É mesmo? Isso é maravilhoso!

— Tenho de ir até em casa. Posso levá-las à pensão Ah, Brooke, vou precisar de alguma ajuda mais tarde quando trocar a bomba. Quer vir me ajudar?

— Ahn... claro.

Pela maneira como meu coração disparara, era de se imaginar que eu acabara de ser convidada para o baile de formatura da escola.

— Estou com fome — murmurou Borboleta. — Só havia algumas barras de chocolate no escritório.

Todd riu.

— É verdade. Preciso começar a me alimentar melhor. Terão um bom jantar no Woodside.

Entramos em seu carro, e ele nos levou para o que parecia ser uma residência particular. Havia apenas uma pequena placa para indicar que ali se alugavam quartos.

— Transmitam meus cumprimentos à sra. Slater — disse Todd, quando saltamos.

— Certo — respondi. — Daqui a duas horas?

— Combinado.

Ele partiu. Raven sacudiu a cabeça.

— Não sei, não, Brooke... Fiquei preocupada em você sair sozinha com ele. Mas se instalar uma bomba d'água no motor de um carro é a idéia que ele tem para um encontro com uma garota, acho que não existe qualquer risco.

Todas riram, enquanto eu ficava vermelha como uma beterraba.

Talvez porque eu também sentisse muita fome, considerei a sra. Slater em termos de comida. Ela era apenas cinco ou seis centímetros mais alta do que Borboleta, e tão roliça quanto um peru de Natal. As bochechas tremiam como gelatina quando andava... gingava, seria melhor dizer. Os cabelos eram brancos como a neve, com grampos da cor de chocolate segurando o coque contra a cabeça. Os olhos eram quase de um verde-menta, brilhantes e cordiais, "olhos de avó", como diria Borboleta. Tinha braços que me faziam pensar em enormes pães de centeio, dedos que lembravam massa fresca um dos quais aprisionava uma aliança de casamento para sempre nas dobras entre a articulação e a mão.

A casa, pequena, mas agradável e aconchegante, estava impregnada dos aromas de bolo de carne e torta de maçã. Tinha outro hóspede, o sr. Franklin, um vendedor.

— Fico contente que Todd tenha recomendado que viessem para cá — disse ela. — Como sempre, fiz comida demais para o jantar.

Ela nos mostrou o quarto, com duas camas grandes. Tínhamos um banheiro para partilhar com o outro hóspede, e por isso ela pediu que fôssemos prudentes. Raven ficou feliz, porque poderia tomar uma chuveirada quente e lavar os cabelos, "antes que caiam com o peso da sujeira". Uma pausa, e ela acrescentou:

— Talvez o problema com o carro tenha sido um golpe de sorte, no final das contas.

— É por isso que vivo dizendo para se concentrar no positivo — comentou Crystal, na maior animação.

— Essa não!

Raven se afastou apressada, para ser a primeira a usar o banheiro. Quase ao final do jantar, ela inclinou-se para mim e sussurrou:

— Talvez seja melhor eu ir à oficina com você, como acompanhante. É óbvio que Todd gosta de você.

— Não! — recusei, depressa demais, o que a fez franzir as sobrancelhas. — Todd e eu não temos tempo Para perder com conversa. O carro precisa ser consertado esta noite, para nós todas partirmos amanhã de manhã.

Raven não parecia convencida. Balançou a cabeça devagar.

— Depois não diga que não a avisei.

Crystal sentiu a tensão entre nós e se apressou em dizer:

— Acho que todas aprendemos com sua experiência com Taylor, Raven. Tenho certeza de que Brooke será cuidadosa.

E, com isso, ela me lançou um olhar sugestivo. Borboleta pôs a mão no meu braço.

— Acho Todd muito bonito, Brooke. Você o deixaria beijá-la, se ele pedisse?

— Querem parar com isso? Não vou a nenhum encontro romântico, mas apenas ajudá-lo a consertar o carro!

Eu me sentia desesperada para que elas mudassem de assunto. Não podia esconder as chamas que iluminavam minhas faces. Crystal, no entanto, não podia deixar de me gozar.

— Hum... Está me parecendo que ela protesta demais...

Enquanto todas riam, não pude deixar de me indagar: e se Raven estiver certa? E se Todd realmente gostou de mim? Deixaria ele me beijar, como Borboleta perguntara?

Com todos esses pensamentos e dúvidas fervilhando em minha cabeça, mal ouvi o carro de Todd quando parou na frente da pensão. Minhas pernas tremiam quando saí para encontrá-lo. Ao me virar para a casa, avistei os rostos de Crystal, Raven e Borboleta espremidos contra a janela.

Todas pareciam muito preocupadas, como se pudessem ver meu futuro. E como se estivessem assustadas pelo que viam.

 

                           Novas amizades

— Como é ser uma órfã? — perguntou Todd, enquanto seguíamos para a oficina.

— Eu nunca soube quem era meu pai e nem imagino se tenho irmãos ou irmãs.

Ele acenou com a cabeça.

— E sua mãe? Chegou a conhecê-la?

— Não. Esta fita... — indiquei a fita amarrada em meu pulso — ...é a única coisa de que tenho certeza que veio dela. Estava presa nos meus cabelos quando ela me abandonou. Alguém teve o bom senso de guardá-la para mim. Era vermelha e brilhante, mas agora está desbotada.

Paramos diante da oficina e saltamos. Ele destrancou a porta e levantou-a, fazendo o maior barulho. Empurrou o interruptor, e as luzes de néon acenderam, depois de piscarem por um momento, iluminando o interior, onde fora estacionada a caminhonete de Gordon. O capô continuava erguido. Todd foi até a bancada de trabalho e estudou a bomba d'água por um momento.

— Como estava seu pai?

Ele não olhou para mim ao responder:

— Estava dormindo quando cheguei em casa e continuou dormindo quando saí.

Todd ligou na tomada uma lanterna com um fio comprido e levou-a até o motor. Segurei-a enquanto ele tornava a examinar a nossa bomba quebrada, antes de escolher suas ferramentas, quase da mesma maneira que um cirurgião escolheria um bisturi.

— Aposto que você tem trabalhado em carros durante toda a sua vida.

— Desde o momento em que fui capaz de segurar uma chave de porca. Não devia ter mais de catorze anos quando papai me deixou tomando conta daqui. Ele saía para prestar algum serviço a alguém e aproveitava para uma visita à taverna. Era sempre para tomar apenas uma cerveja, mas acabava ficando lá por horas. O trabalho se acumulava. As pessoas ficavam furiosas porque seus carros não eram consertados, e eu tinha de inventar histórias.

Todd fez uma pausa, virou-se para me fitar e acrescentou:

— Quer saber de uma coisa?

— O quê?

— Você e eu não somos tão diferentes assim. Tive pai e mãe, mas era como se não tivesse durante a maior parte do tempo. Passei a cozinhar para mim, cuidar de minhas roupas e limpar a casa depois que mamãe foi embora. Até escrevia minhas desculpas para a escola quando faltava às aulas. — Ele sorriu. — Passando tanto tempo aqui, aprendi a falsificar a assinatura de papai muito bem. Agora, as pessoas pensam na oficina como mais minha que de papai. E ele não se importa.

Todd pensou por um momento, como se estivesse decidindo se devia ou não dizer mais alguma coisa. Finalmente, voltou a se concentrar no trabalho.

— Compreendo o que está dizendo, Todd, mas pelo menos não teve de viver numa instituição administrada pelo Estado.

— Vocês quatro devem ter sofrido um bocado naquele lugar para fugirem sem dinheiro, não?

— Tínhamos algum dinheiro.

Relatei o encontro com Sunshine. Ele ouviu sem parar de trabalhar. Não demorou muito para remover a bomba quebrada e colocar a substituta usada no motor.

— A estrada não é lugar para você, Brooke. Há muitas coisas assim acontecendo. Espero que encontre logo o que procura e possa se acomodar.

— Eu também.

Ele limpou as mãos num pano.

— Quer beber alguma coisa? Tenho refrigerante... ou até mesmo cerveja, se preferir.

— Aceito um refrigerante.

Todd foi ao escritório e voltou com duas Cocas. Sentamos num banco e olhamos para a caminhonete.

— De quem é o Buick? Não respondi.

— Não é de nenhuma de vocês se todas são órfãs, não é mesmo? — insistiu ele, com um sorriso gentil.

— Pertence à criatura que dirige a casa junto com a esposa.

— Gordon Tooey?

— Isso mesmo. Como soube disso?

— Vi o registro no porta-luvas. — Todd tomou um gole da Coca. — É um problema sério, roubar um carro.

— Pode perceber agora como nos sentíamos desesperadas.

— Eu entendo, mas como Gordon vai reagir?

— Creio que muito mal. Crystal tem medo de que ele possa vir atrás de nós.

— Vocês estão mesmo em fuga. — Ele tomou outro gole e fitou-me nos olhos. — Não parece uma fora-da-lei.

Ficamos olhando em silêncio um para o outro por um longo momento. Assim como eu o avaliava, ele também fazia o mesmo comigo, pensei. Especulei se aquilo lembrava alguém. Nenhum dos dois parecia intimidado ou embaraçado pelo olhar do outro. Sentia-me agora contente e à vontade, em vez de inibida. Gostei da maneira como os olhos de Todd se enterneceram, ele me contemplava com atenção, como se quisesse gravar minha imagem em sua memória para sempre.

Ele acabou desviando os olhos, para a porta e para o céu noturno, e murmurou:

— Uma linda noite. É a minha época predileta do ano. O final da primavera aqui é quente, mas não quente demais para ser desconfortável. Nem muito úmido. Passo mais tempo olhando para as estrelas ou observando passarinhos. Gosto muito, mas também detesto.

— Detesta? Por quê? Torna-se quase poético quando fala a respeito. Crystal adoraria ouvi-lo.

Todd riu.

— Poético, hein? Minha velha professora de inglês ficaria histérica se a ouvisse dizer isso.

— Por que falou que detesta?

— Não sei. Talvez porque me sinto mais solitário do que em outras épocas do ano.

Ele largou a garrafa e voltou a trabalhar no carro. Observei-o ajustar a bomba nova, sentindo meu coração palpitar por modos e ritmos que jamais sentira antes. Levantei-me e fui ficar a seu lado, enquanto ele lutava com um parafuso enferrujado.

— Você não tem namorada?

No mesmo instante em que acabei de falar, desejei poder retirar as palavras. Era uma dessas perguntas que você prefere não fazer porque teme a resposta, mas que sabe que não pode deixar de fazer.

— Tinha. Rompemos há cerca de três meses. Ela queria me envolver numa coisa para a qual eu não estava preparado.

Ele jogou óleo no parafuso e conseguiu tirá-lo com certa facilidade, suspendendo-o como se tivesse acabado de extrair uma pepita de ouro.

— Vitória!

Não pude deixar de sorrir. Todd se tornou de repente muito sério e murmurou:

— Você tem o nariz mais gracioso que já conheci. Era um elogio que parecia surgir da escuridão, completamente inesperado, deixando-me sem fôlego por um momento. Todd tornou a se virar para o motor, enquanto acrescentava:

— Aposto que já ouviu isso antes.

— Não, nunca ouvi.

Ele me fitou como se não acreditasse, depois voltou a trabalhar. Observei-o, meu coração batendo tão forte que pensei não ser capaz de segurar a lanterna com um mínimo de firmeza. Todd parecia não notar o quanto minha mão tremia. A bomba usada foi finalmente instalada.

— É hora de testar nosso trabalho, Brooke. Ligue o motor.

Foi o que fiz. Ele ficou examinando o funcionamento da bomba.

— Como está o mostrador?

— Voltou ao normal — respondi. — Mas teremos de esperar para saber se continuará assim.

— Por que não deixa o motor ligado por algum tempo?

Depois de uns poucos minutos, Todd perguntou de novo. Respondi que estava normal.

— Vocês estão com sorte. Pode desligar o carro agora.

Ele começou a limpar o motor.

— Para onde querem ir, Brooke?

— Los Angeles. Esperamos encontrar um lugar barato para viver e arrumar trabalho. Crystal pretende voltar a estudar e queremos encontrar uma escola de balé para Borboleta.

— Borboleta? A pequena?

Acenei com a cabeça, e Todd acrescentou:

— Ela parece muito frágil... frágil demais para esse tipo de coisa.

— Tem razão, mas ela conta conosco para protegê-la.

— É suficiente? Desculpe, mas às vezes tenho tendência a ser brutalmente realista.

— Não se preocupe. — Respirei fundo. — Não conheço todas as respostas, Todd. Sei que odiávamos o lugar em que estávamos e o que acontecia conosco. Todas nos sentíamos acuadas. Era como se fôssemos mercadorias deixadas numa prateleira; mercadorias que ninguém queria levar para casa. Talvez tenhamos feito uma loucura. Talvez não passássemos de um bando de garotas idiotas, mas assumimos o controle de nossas vidas, mesmo que seja por pouco tempo... e isso é maravilhoso. Quando partimos, eu me senti...

— Como? — indagou ele, contendo um sorriso.

— Não sei direito. Senti-me livre, poderosa. Senti-me... viva. Acho que parece estupidez.

— Não, não parece — declarou Todd, balançando a cabeça. — Parece maravilhosa para mim.

Senti o rosto quente. Por que eu tinha de corar desse jeito?

— Posso compreender como se sentiu.

Todd foi até a porta e o acompanhei. Por um momento, ele apenas contemplou a estrada, o bosque, as moitas próximas.

— Este lugar às vezes me deixa num ânimo estranho e triste, como se precisasse correr bastante para alcançar as melhores coisas em minha vida, coisas que parecem me escapulir. Sinto o mesmo tipo de pânico que você experimentou... Sinto-me acuado e sozinho.

Começamos a andar pela noite, enquanto ele continuava a falar:

— Às vezes quando vejo um veículo com placa de outro estado, penso em sair daqui com meu carro e guiar até a gasolina acabar. E onde quer que eu fosse, ficaria ali e começaria uma vida nova.

Havia um caminhão com a traseira aberta ao lado da oficina. Parecia um remanescente dos anos 60, enferrujado, faltando um pneu traseiro, a janela do passageiro espatifada.

— Por que não faz isso?

A voz de Todd e a minha mal se elevavam acima de um sussurro. Ele deu de ombros.

— Por causa de papai, eu acho. Sou tudo o que resta a ele, embora na metade do tempo nem mesmo tome conhecimento de minha presença. E penso em outra coisa: o que vou encontrar por aí? Pelo menos aqui tenho alguma coisa. Não é muito, eu sei, mas a oficina é minha, sou meu próprio chefe. Não são muitos os caras da minha idade que podem dizer isso.

Ele alçou-se na traseira do caminhão e sentou, as mãos no colo, a cabeça um pouco inclinada. Pus um pé no pára-choque e subi para sentar a seu lado, com tanta facilidade, que ele riu.

— Você é bastante ágil.

— Posso ficar de ponta-cabeça... mas não me peça uma demonstração.

Ficamos olhando para a estrada, escura e silenciosa.

— Não há muito tráfego por aqui nesta época do ano, não é, Todd?

— Não. — Ele inclinou-se para trás, apoiado num cotovelo, e encontrou uma haste de relva seca, pondo-a na boca. — E você, Brooke? Deixou algum namorado no lugar de onde veio?

— Não.

— Ora, você deve ter tido vários namorados.

— Ahn... não houve ninguém importante.

— Como assim? Será possível? Como os garotos podiam deixar de se apaixonar por você?

A expressão nos olhos de Todd se tornou séria. Compreendi que ele me fazia outro elogio.

— Era o que eu costumava me perguntar todos os dias — gracejei, com um súbito constrangimento.

Todd riu, mas parou de repente, os olhos fixos nos meus. Na escuridão, seus belos olhos cor de ébano fais-cavam. Quando se virou, seu corpo chegou mais perto do meu. Estávamos separados por poucos centímetros apenas. Não desviei o rosto quando seus lábios se aproximaram. Fizemos contato, quase que por acaso a princípio, especulativo, suave, rápido. Depois, ele mudou a posição do corpo e me beijou com mais força, por mais tempo, a mão subindo para meu ombro, a fim de me puxar.

— Gosto de você, Brooke... e gosto muito.

— Também gosto de você.

— Fico contente porque a bomba de água do seu carro quebrou.

Tornamos a nos beijar, e depois nos deitamos de costas na traseira do caminhão. Todd estendeu o braço. Ajeitei a cabeça em seu ombro e virei para me aconchegar nele. Por cima de nós, as estrelas cintilavam como velas na escuridão. Senti-me tonta ao deitar ali, ouvindo as batidas dos dois corações. Os lábios de Todd passaram por minha testa, desceram para a ponta do nariz, beijando-a, tornando depois a encontrar meus lábios. O novo beijo foi mais longo, mais suave, mais ardoroso. Senti um calor subir por minhas pernas, como se estivesse entrando em um banho quente.

Passei os dedos por seus cabelos e desci para a nuca. Ouvi-o gemer, sentindo seu excitamento aumentar.

Ele chegou mais perto, a mão direita deslizando por meu braço e encontrando o seio. Comprimi o rosto contra seu peito. Todd beijou o alto de minha cabeça, mor-discou de leve a minha orelha. O que fez com que um delicioso calafrio me percorresse a espinha.

Ele ficou de joelhos e, com extrema gentileza, me guiou para um ponto da traseira do caminhão em que ficaríamos ocultos de quem passasse pela estrada. Havia um fardo de feno ali. Encostei minha cabeça. Todd baixou as alças do macacão e tirou a camisa. Seu peito faiscava no escuro, refletindo a luz das estrelas, que também brilhava em meus olhos.

— Para mim, Brooke, você é um sopro de ar fresco — sussurrou ele, antes de se abaixar para me beijar de novo.

Seus dedos entraram por baixo do meu blusão. Ergui a cabeça para que Todd pudesse tirá-lo com mais facilidade. Ele me beijou o pescoço, estendendo as mãos para abrir meu sutiã. Quando senti o fecho soltar, meu coração parou por um instante... e depois recomeçou como um tambor de parada militar. Todd não afastou o sutiã de meus seios no mesmo instante. Continuou bei-jando-o ao redor por mais alguns momentos, roçando nos seios. Nunca antes eu fora tão longe com um rapaz. Mal podia respirar.

Nenhuma voz dentro de mim dizia-me para parar. Não sentia medo, nenhuma hesitação. Surpreendi-me com minha ansiedade, o desejo de continuar, explorar meus próprios sentimentos.

Todd era muito diferente dos outros rapazes com quem eu saíra. Cada vez que me tocava, era como se tivesse me pedido primeiro, como se tomasse o cuidado de se certificar de que eu também queria. Parecia querer que eu lhe tivesse tanto prazer quanto ele tinha comigo. Era o ato de amor naquele nível romântico, naquele nível de igualdade, sobre o qual as garotas tanto lêem, com tanto sonham, mas raramente experimentam. Era o que eu tinha agora... e inundava meu coração com um praz que eu nunca julgara ser possível.

Meus mamilos ficaram de repente tão duros que até doíam. Não pude deixar de gemer.

— Brooke... você é linda... mais linda do que qualquer outra garota que já vi.

Logo descobri que as palavras podiam ofuscar como pedras preciosas. Passavam pelos ouvidos e alcançavam o cérebro, mas continuavam até penetrarem no meu eu mais profundo e mais secreto. Pressionavam a mulher em mim e ansiei por ele, por meios que só me haviam ocorrido nas fantasias mais íntimas.

Senti a perna de Todd entre as minhas e me comprimi contra ele, ansiosa. Ambos nos contorcemos, nos beijamos, sorvendo um ao outro. Eu me encontrava atordoada. Senti vagamente os dedos de Todd abrirem meu jeans. Antes que pudesse detê-lo, sua mão entrou por baixo da calcinha e atingiu minha parte mais íntima. Não me desviei. O excitamento dele agora crescia depressa, sua respiração cada vez mais acelerada. Senti a primeira pontada de medo.

— Todd, nunca fiz isso antes...

— Eu sei, mas nunca desejei tanto uma outra mulher.

Suas palavras eram hipnóticas. Mas, finalmente, uma vozinha lá no fundo começou a gritar uma advertência. Chamou-me pelo nome. Eu gostava de pensar que essa voz dentro de mim era como a voz de minha mãe, alguma coisa que captei quando era bebê, escondida no fundo de mim, para ressurgir nos momentos em que eu mais precisava.

Todd abrira a calça e pude sentir sua nudez. Tentou baixar minha calcinha, mas parou de repente, quando não me mostrei tão cooperativa como no começo.

Estou com medo... — balbuciei. — Sei que estamos indo muito depressa, Todd. Por favor...

Ele se apertou contra mim.

Tem razão... mas acontece que você vai embora amanhã.

— Vou embora, mas não o esquecerei se não quiser que eu esqueça.

A respiração de Todd foi se tornando mais lenta. Ele comprimiu a testa contra meu ombro e esperou por um momento, como se estivesse suportando uma terrível agonia.

— Você está bem, Todd?

— Estou, sim. Apenas me dê um minuto. Deixei-o estendido assim, o corpo dele contra o meu. Ouvíamos o coração um do outro, batendo como tambores na selva. Quem podia saber as mensagens que trocavam? Todd finalmente voltou a se deitar de costas, puxou o macacão e respirou fundo. Ajeitei o sutiã e vesti o blusão.

— Desculpe... — murmurei.

— Não há nada para se desculpar, Brooke. Você causou alguma coisa em mim desde o momento em que a vi. Não pude me conter. Pode ter certeza de que não costumo agir assim.

Ele sentou-se, ergueu os joelhos, abraçou as pernas com as mãos, baixou a cabeça. Era mais fácil para ele abrir seu coração para mim nessa postura.

— Tenho medo de me tornar igual à minha mãe, desenfreado, imoral. É como se estivesse em meu sangue ou algo parecido. Odiava a maneira como os homens a tratavam e não quero tratar uma mulher do mesmo jeito... nenhuma mulher.

Todd ergueu a cabeça antes de acrescentar:

— Mas foi diferente com você. Não consegui controlar meus sentimentos.

— Sei disso. Também não consegui.

Pude ver o sorriso de Todd à luz das estrelas.

— Acho que suas amigas devem estar perguntando onde você se meteu.

— Não, porque elas não têm a menor idéia do tempo que leva para consertar um carro. Não se preocupe.

— Pode voltar agora no Buick.

— Não há pressa.

Baixei a cabeça para seu colo quando ele esticou as pernas e fitei-o.

— Acho que é a isso que se referem quando falam em amor à primeira vista... e não sei se devo me sentir feliz ou um tolo.

— Sinta-se feliz, Todd. É como eu me sinto.

— Jura que não vai me esquecer? Soltei uma risada.

— Você vai me esquecer primeiro. Tenho certeza.

— Aceito essa aposta. Assim que se fixar em algum lugar, escreva ou telefone. Irei para lá nas minhas primeiras férias.

— Promete?

— Por todas as estrelas do céu. Cada vez que levantar os olhos à noite, poderá pensar em mim e na minha promessa. Lembre apenas que estou esperando aqui... e não me deixe esperar para sempre, está bem?

— Oh, Todd, não sei onde vamos acabar. Tenho medo neste momento... e sou a líder, a que tem de animar as outras a continuarem.

— Vai encontrar um jeito, Brooke. É o tipo de pessoa que sempre cai de pé. Aposto todo o meu dinheiro em você.

Não pude deixar de rir.

— Fala agora como se estivesse apaixonado... porque o amor torna as pessoas cegas para a realidade.

— Quem lhe disse isso?

— Ninguém. Cheguei a essa conclusão por mim mesma.

— Já disse que sou realista demais. Não se aplica no meu caso.

— Claro, claro... Nós fugimos, roubamos um carro, fomos roubadas, não sabemos para onde vamos ou o que faremos quando chegarmos lá, mas eu sempre caio de pé. Isso é ser realista?

— No seu caso, é, sim.

Levantei a mão. Todd baixou a cabeça para que minha mão pudesse enlaçá-lo pelo pescoço, deixando que o puxasse a uma distância suficiente para que nossos lábios se encontrassem. Foi o nosso beijo mais maravilhoso, porque foi um beijo de juramento, de uma promessa, o beijo destinado a durar por toda a eternidade.

A sra. Slater não havia me dito que trancava a porta depois das onze horas da noite. Foi embaraçoso ter de tocar a campainha; e como ninguém atendesse, bater e bater. Ela acabou aparecendo. Usava um roupão felpu-do, marrom-escuro, de um tamanho pelo menos duas vezes maior do que o dela, com chinelos de homem.

— Desculpe tê-la acordado — murmurei.

— Não sabia que você ainda estava fora, minha cara. Sempre tive por norma trancar as portas às onze horas, a menos que alguém me avise do contrário. Pensei que já estavam todas lá em cima, aconchegadas na cama. Aonde foi?

— Estava consertando nosso carro. Obrigada. Boa-noite.

Passei direto por ela, antes que tivesse tempo de fazer outra pergunta, e subi para o quarto que partilhava com Raven. Encontrei-a acordada, estendida na cama, com as mãos atrás da cabeça, o abajur na mesinha-de-cabeceira aceso.

- Não precisa me contar — disse ela, assim que entrei no quarto. — Posso ver em seu rosto.

— O quê?

Raven riu e olhou para o relógio.

— Quase quatro horas para trocar uma bomba d'água?

— Foi difícil. A velha bomba tinha enferrujado e...

— Por favor, Brooke. Eu conheço essa sua expressão. Havia um pouco de tristeza nas palavras de Raven.

Ela também se sentira apaixonada assim por Taylor, cujo comportamento lamentável ainda a mortificava.

— Oh, Raven!

Nem eu mesma reconheci minha voz. Ela abandonou o ar jovial, os olhos se tornaram mais preocupados do que curiosos.

— O que foi?

— Acho... acho que estou apaixonada.

— Apaixonada? Mas mal o conhece... Espere um pouco, Brooke. Não pode estar falando sério.

Raven sentou na cama, com as mãos nos quadris.

— Por que não?

— Por que não? Acaba de conhecê-lo, Brooke. Sabe o que pode acontecer se for rápida demais... Não vai querer que aconteça com você o mesmo que aconteceu comigo e Taylor!

Havia tanta angústia em seu rosto, que eu queria escutá-la, mas meu coração insistia em que Todd e eu éramos diferentes.

— Sei que tem as melhores intenções, Raven, e lamento muito que Taylor tenha partido seu coração, mas Todd é diferente... nem um pouco parecido com Taylor.

Ela me fitou nos olhos, depois recostou-se no travesseiro.

— Conte o que aconteceu, Brooke. Quero acreditar que você tem razão sobre Todd.

- Não fui até lá na expectativa de que ocorresse qualquer coisa romântica. — Como os olhos dela se contraíssem, tratei de acrescentar: — Juro que não esperava nada, Raven. Conversamos um pouco e ajudei-o enquanto trabalhava.

Ela começou a rir, mas minha expressão irritada a fez calar.

— Desculpe, Brooke. Acontece apenas que uma oficina é o último lugar do mundo em que eu esperaria um encontro romântico.

Raven apertou os lábios com força e fez o sinal de quem passava um zíper pela boca.

— Todd é muito sensível. Comecei a sentir mais pena dele do que de mim. O pai é um alcoólatra, e a mãe fugiu com outro homem há muitos anos.

— E esse é o seu Homem Certo?

— Não se pode culpá-lo por seus pais, Raven. Gostaria que fôssemos culpadas pelos nossos?

A expressão maliciosa de Raven desapareceu no mesmo instante.

— Tem razão, Brooke.

— Todd rompeu com a namorada há algum tempo. Acho que não era a garota certa para ele... e ainda por cima queria um compromisso sério.

— Ahn, já entendi...

Raven franziu as sobrancelhas.

— O que isso significa, Raven?

— Às vezes os homens se mostram mais apaixonados ou mais gentis quando acabam de perder um amor, Brooke. Sofrem com o coração partido e aí você aparece para remediar a situação.

— Todd não sofria de coração partido. Se houve sofrimento, a garota é quem sofria.

Raven balançou a cabeça, ainda cética.

— Conversamos um pouco sobre isso, depois fomos para a traseira de um caminhão.

— Como?

— A traseira de um caminhão, Raven.

— Ahn...

Ela reprimiu um sorriso com o dorso da mão.

— Vai ficar rindo de mim ou escutar direito?

— Está bem. Desculpe. O que aconteceu?

— Começamos a nos beijar e...

— E o quê?

— Beijamo-nos e beijamo-nos, mas paramos antes que fosse tarde demais. — Baixei os olhos quando ela se manteve calada. — Eu não queria realmente parar.

— Não queria? Isso é mesmo especial. —. Raven pensou por um instante, depois inclinou-se para a frente e tocou em meu ombro. — O que vai fazer?

— Nada. O que posso fazer? Prometi que lhe escreveria do lugar em que parássemos, e ele prometeu que iria me visitar.

Raven recostou-se de novo, pensou mais um pouco e balançou a cabeça, sorrindo.

— Acho que ele pode mesmo ir visitá-la. Parece ser de fato alguém especial. Desculpe se fiquei tão desconfiada... mas não queria que você caísse na mesma armadilha que eu.

Percebi por seu rosto que ela falava sério e agradeci. Trocamos um abraço. Fui escovar os dentes e me aprontar para dormir.

Mais tarde, no escuro, pouco antes de eu me virar, Raven chamou-me.

— O que é?

— É muito bom, Brooke, é maravilhoso ter alguém com quem sonhar.

— E se nunca passar de um sonho, Raven? Ela pensou por um momento.

— Será mais do que isso para você, Brooke. Tenho certeza.

— Como sabe?

— Como sei? Porque estou com inveja.

Havia um tom de pesar em sua voz. Perguntei-me quanto tempo se passaria antes que ela pudesse superar o fato de ter entregue a Taylor uma parte sua tão íntima.

— Boa-noite, Raven. Obrigada.

— Não precisa me agradecer. Você é minha irmã, Brooke.

— Para todo o sempre.

— As Orfãteiras.

E adormecemos, as duas se aventurando pela terra dos sonhos.

Raven não disse nada a meu respeito para Crystal e Borboleta na manhã seguinte. As duas haviam dormido logo na noite anterior, e nunca souberam a que horas eu voltara. Como sempre, Crystal nos acordou.

— O carro ficou pronto? — perguntou ela, enquanto eu esfregava os olhos para sair dos sonhos.

— Já está lá fora.

— Vamos tomar o café da manhã aqui. Assim, é melhor você se apressar.

Cutuquei Raven, que gemeu e resmungou, suplicando para que a deixassem em paz. Crystal também a sacudiu, até que conseguimos arrancá-la da cama e levá-la para o café da manhã, quase como uma sonâmbula. Foi um excelente café da manhã, a sra. Slater se mostrando uma simpática anfitriã, conversando sobre tudo, do tempo às manchetes no jornal deixado em sua porta naquela manhã. Sentia-se curiosa a nosso respeito, mas não o bastante para bisbilhotar. Como todas as pessoas que conhecíamos, ficou encantada com Borboleta, que concentrava nela seu sorriso cativante e olhos meigos, como um farol em busca de afeição.

Depois, Crystal e eu sentamos na varanda examinando o mapa e planejando até onde poderíamos ir naquele dia, quando faríamos outra parada.

— Temos pouco mais de cem dólares agora, Brooke. Não sei o que faremos, mesmo que pudéssemos chegar a Los Angeles em dois dias.

— Podemos procurar por empregos de garçonete Ou talvez vender o carro.

— Vender o carro? Como? Não é nosso.

— Há pessoas que não se importam.

— Não saberíamos como ou onde encontrar essas pessoas, Brooke... e não tenciono vender uma coisa que tomamos emprestada.

Enquanto continuássemos a dizer a nós mesmas que apenas o pegáramos emprestado, não nos sentiríamos tão culpadas, nem pensaríamos em nós como ladras. Crystal tinha razão.

— Alguma coisa vai acontecer, Crystal. Pode ter certeza.

Eu prometera passar pela oficina de Todd antes de seguirmos viagem. Mas senti alguma hesitação, pensei até em passar direto. Compreendi, no entanto, que isso o deixaria tão magoado quanto a mim.

— Pronto! — exclamou Raven, aparecendo na porta. — Califórnia, lá vamos nós!

Borboleta saiu com um pacote que a sra. Slater arrumara para nós.

— Ela disse que não podia nos deixar partir sem o almoço — informou Borboleta, enquanto nos encaminhávamos para o carro.

Mais uma vez, encontrávamos pessoas que se preocupavam conosco no momento em que íamos partir. Entramos na caminhonete e liguei o motor. A sra. Slater surgiu na porta e acenou em despedida quando nos afastamos. Diminuí a velocidade ao nos aproximarmos da oficina.

Só vou parar para me despedir — avisei às outras.

Só? — murmurou Crystal.

parei e saltei. Todd estava debaixo de um carro, no fundo da oficina. Ouvi-o soltar um grunhido. Um momento depois, ele interrompeu o trabalho e saiu de baixo do carro.

— Estamos indo embora — murmurei.

Todd levantou-se e olhou para o nosso carro. As meninas nos observavam. Ele acenou com a cabeça para o outro canto, onde não poderiam nos ver. Fui para lá. Assim que me virei, ele me beijou.

— Quero que prometa que vai me chamar se passar por alguma situação difícil durante a viagem. Promete?

— Prometo.

— Mandei fazer um cartão de visita no ano passado. Tenho uma gaveta cheia. — Ele tirou um cartão do bolso do macacão e enfiou no bolso do meu jeans. — Dê uma olhada de vez em quando, para não esquecer de mim.

— Não o esquecerei, Todd. Não diga bobagem. Pensarei em você durante todo o tempo.

— É mesmo? — Ele sorriu. — Espero que sim. Telefone assim que chegarem no lugar para onde vão, está bem?

— Combinado.

— Você é como um milagre que entrou de repente em minha vida e saiu logo em seguida.

— Não estou saindo. — Senti meu coração vazio, enquanto nos fitávamos nos olhos. — É melhor eu ir agora.

Minha voz era pouco mais que um sussurro. Baixei os olhos. Todd pôs a mão sob o meu queixo e tornei a fitá-lo.

— Estou memorizando seu lindo narizinho... memorizando você toda...

Trocamos outro beijo. Depois, desvencilhei-me do seu abraço e voltei apressada para o carro, fazendo um esforço desesperado para reprimir as lágrimas e soluços que queriam escapar.

— Está tudo bem? — perguntou Raven. Acenei com a cabeça.

— Qual é o problema? — indagou Crystal.

— Nenhum — murmurei, ligando o motor.

— Brooke gosta dele — disse Borboleta. — Não é isso, Brooke?

Fitei-a pelo espelho retrovisor e sorri.

— É, sim, Borboleta. E parti.

Todd veio até a porta da oficina e ergueu a mão. Registrei a cena dele parado ali, e gravei-a tão profundamente na memória que seria preciso uma marreta para arrancá-la.

Algum dia tornarei a vê-lo, pensei, e ficaremos juntos para sempre. Casaremos e construiremos uma vida, porque não só nos amamos, mas também precisamos um do outro. Ou aquilo era apenas uma nova fantasia?

Que tipo de casamento eu poderia ter? Não tinha pai para me levar ao altar, não tinha mãe para me ajudar a escolher o enxoval, o vestido, as flores e o bolo.

Não tinha mais ninguém além de mim mesma.

 

               Conferindo a realidade

O pneu traseiro direito furou logo depois que entramos na 1-70. Por sorte nossa, Gordon mantinha o estepe cheio. Com a ajuda de Crystal e Raven, consegui trocá-lo. As porcas estavam tão apertadas que nós três precisamos nos revezar com a chave para afrouxá-las. No final, Crystal quase que ficou em cima da chave, enquanto Raven e eu fazíamos força. Tenho certeza de que era uma cena insólita. Muitos carros passaram, mas ninguém parou para ajudar. Crystal achou que era melhor assim, pois dessa forma mentiríamos para menos pessoas. Claro que ficamos apavoradas com a possibilidade de uma patrulha rodoviária aparecer, mas todos os guardas deviam estar tomando café. Não avistamos nenhum carro de polícia naquele momento e nem nos oitenta quilômetros seguintes.

Logo depois do almoço, Crystal levou-nos para a 1-255, por onde chegamos ao estado do Missouri. Logo em seguida pegamos a 1-44, seguindo para oeste. Crystal explicou que aquela estrada nos levaria ao Texas, de onde seguiríamos para o Novo México, Arizona e finalmente Califórnia.

Califórnia! Começava a parecer que nos encontrávamos a caminho da lua.

Toda vez que parávamos para encher o tanque, pensávamos que o cartão de crédito já estava cancelado; mas a cada vez era aceito sem qualquer problema.

— Ele está bem perto de nós — previu Raven. — Posso senti-lo nos ossos.

Ninguém a contestou. Todas tínhamos ansiedades similares. A todo instante eu espiava pelo espelho retrovisor, na expectativa de avistar a pick-up de Gordon se aproximando. Seu rosto estaria quase encostado no pára-brisa, os dentes cerrados entre os lábios lívidos.

Continuei a guiar, fazendo grande esforço para repelir as imagens de minha mente.

O lanche oferecido pela sra. Slater fora tão satisfatório que não tornamos a sentir fome pelo menos até as sete horas da noite. Crystal decidiu que era melhor parar num dos supermercados pequenos e comprar saladas prontas. Saiu mais barato e não houve qualquer problema. Depois, antes de voltarmos à auto-estrada, decidimos nos permitir uma indulgência e paramos para comprar creme gelado. O desafio seguinte era encontrar um lugar apropriado para dormir que não consumisse uma parcela substancial dos nossos recursos restantes. Quase todos os motéis eram caros, inclusive os que se encontravam em péssimas condições, que cobravam mais do que podíamos pagar.

— Vamos tentar dormir outra vez na caminhonete — propôs Crystal. — Isso não vai nos matar.

Desta vez encontrei uma pequena estrada transversal que estava mesmo fora de uso. A pavimentação quase não existia mais e terminava numa campina. Para nossa sorte, era uma dessas estradas começadas mas jamais concluídas. O mato alto nos escondia. Trancamos as portas, ajeitamos os travesseiros, deixamos só uma fresta das janelas aberta e fomos dormir. Ou pelo menos tentamos dormir. Raven começou a dizer o que todas pensavam.

— Se tivéssemos podido trabalhar mais algum tempo no no restaurante da Patsy, teríamos mais dinheiro e não precisaríamos dormir numa estrada. Poderíamos comer como pessoas. E até comprar algumas roupas. Estou com vontade de ir ao banheiro agora. O que devo fazer?

— Imaginar que está num dos acampamentos juvenis que o Estado costumava organizar para nós — sugeri. — A natureza está à espera.

— Eu detestava aqueles acampamentos. De qualquer forma, há mosquitos lá fora, sem falar em cobras...

— Lobisomens e vampiros — acrescentou Crystal.

— Fantasmas e duendes — disse Borboleta, rindo.

— E assassinos psicopatas — arrematei. — Não vamos esquecer os assassinos psicopatas que também se perderam no caminho.

— Vocês todas são muito engraçadas, mas lembrem-se de que também terão de usar o mato como banheiro — resmungou Raven.

— Era o que nossos ancestrais faziam — disse Crystal. — A idéia de encanamentos nas casas é um fenômeno relativamente recente.

— Ora, por favor, não me venha com uma preleção sobre a história dos banheiros! — suplicou Raven.

Ri tanto, que também senti vontade de ir ao banheiro.

— Vamos embora, Raven. Ficarei de vigia para você, e depois você faz a mesma coisa por mim.

Logo que acabamos, voltamos à caminhonete e tentamos dormir. Depois do que pareceu ser quase uma hora, soltei um suspiro profundo e bastante alto para que todas ouvissem.

— Não consigo dormir — declarou Raven.

— Nem eu — murmurou Crystal. — Pensei que me sentia tão cansada que só precisaria de um minuto para pegar no sono.

— Também estou acordada — acrescentou Borboleta.

— Vamos conversar — sugeriu Crystal.

— Sobre o quê? — indagou Raven. — E não me diga que é sobre política ou ciência.

— Claro que não — respondeu Crystal. — Cada uma poderia contar qual é a coisa que mais deseja encontrar no final deste arco-íris. Quem é a primeira?

— Pode ser você — disse Raven. — Você deu a idéia.

— Está bem. Quero encontrar uma boa escola na Califórnia, para depois me candidatar a bolsas de estudo nas universidades.

— Que coisa mais chata... — murmurou Raven. Crystal continuou, ignorando-a:

— Também quero ir à praia... e surfar. Ela riu.

— Não quer conhecer nenhum artista de cinema? — perguntou Raven.

— Não, não quero. Não tem a menor importância para mim se os artistas são famosos. Prefiro assistir a uma das conferências médicas da UCLA. A pesquisa é muito importante, e aqueles médicos são famosos por seu trabalho em...

— Está dando certo, Crystal — anunciou Raven.

— O quê?

— Estou começando a sentir sono.

— Muito engraçado... — Crystal reprimiu outra risadinha. — Agora vamos ouvi-la, Miss Ave Canora.

Aí vai Crystal outra vez com seu sarcasmo, pensei. Está armando a cena.

Está bem — respondeu Raven. — Quero chegar Los Angeles, comparecer à minha primeira audição e ser contratada para assinar um disco antes mesmo de cantar qualquer música.

— Isso não é um objetivo, mas um sonho — interveio Crystal. — Deveria converter essa história numa pílula e vendê-la aos insones.

— O que isso significa? Pode compreender o que ela diz, Brooke? Juro que eu não consigo. Além do mais, qual é o problema de eu ter um sonho?

— Eu gostaria de obter uma bolsa de estudo atlética para uma grande universidade — resolvi falar, antes que elas iniciassem uma discussão acalorada. — Depois de algumas semanas, escreveria para Todd. Ele iria ao meu encontro e nos casaríamos depois que eu terminasse a universidade. Então viajaria pelo mundo inteiro comigo e com minha equipe olímpica.

— Pense que poderia ter filhos em quantidade suficiente para formar seu próprio time de softball — comentou Raven, rindo.

— Não creio que esse jogo esteja nos ajudando a relaxar e dormir — comentei.

— E você, Borboleta? — perguntou Raven. Houve uma longa pausa.

— Quero apenas encontrar um pai e uma mãe, talvez uma avó e um avô — murmurou ela, em seu fio de voz.

Ninguém falou por muito tempo.

— Estou cansada agora — murmurei finalmente, fechando os olhos e arriando no banco.

— Eu também — disse Raven. — Chega de conversa.

Estava tudo escuro e silencioso, uma brisa minúscula passava pelas aberturas nas janelas. Em algum lugar, a distância, ouvi o que parecia ser o pio de uma coruja. Fechei os olhos. O simples desejo de Borboleta ressoava como um poderoso poema dentro de mim.

Deveria ter revelado às meninas o que eu realmente desejava? Queria que no final do meu arco-íris estivesse minha mãe, que se apresentaria para me levar de volta, pedir perdão, contar uma história que justificaria e explicaria por que me abandonara. Seu remorso seria tão profundo que eu a perdoaria. Ela me abraçaria e beijaria, diria que sonhara em me encontrar de novo desde aquele dia horrível em que me abandonara na porta de um asilo.

E seguiríamos para a frente como se todos aqueles anos de ausência não passassem de um pesadelo. Em minutos seríamos como irmãs. Ela não ficaria transtornada por me descobrir mais interessada em esportes do que em concursos de beleza. Jogaríamos tênis e nadaríamos, faríamos grandes passeios a pé pelas praias da Califórnia, onde a areia brilha como pequenos diamantes e as pessoas são eternamente jovens.

Como seria maravilhoso ter finalmente alguém a quem se pudesse de fato chamar de mamãe!

A escuridão nos envolvia por completo, quatro almas perdidas e assustadas, seguras por um momento, dormindo na caminhonete que pertencia ao homem que todas aprendêramos a odiar, o demônio em nossos pesadelos, com certeza nos caçando, impulsionado por sua raiva implacável, uma razão para nunca esquecermos de trancar as portas.

Como se pudesse ler meus pensamentos até mesmo no sono, Borboleta teve um terrível pesadelo quase no mesmo instante em que adormeceu. Acordou aos gritos. Crystal tratou de confortá-la, assegurando-lhe que estava sã e salva.

— O que foi? — perguntou Raven.

Borboleta não podia falar, não queria contar.

— Está tudo bem, Borboleta — murmurou Crystal. Estamos aqui com você.

— Ela me deixou assustada — lamentou Raven. — Meu coração parece um pequeno punho batendo dentro do peito.

— Volte a dormir — aconselhou Crystal.

— Voltar a dormir.

— Isso mesmo.

Raven pensou por um momento, compreendeu que Borboleta se acalmaria se o fizéssemos, e ficou quieta.

Mas era difícil voltar a dormir. Eu sentia muita pena de Borboleta. Talvez tivesse sido um erro levá-la conosco. Talvez Todd estivesse certo. Ela era frágil demais. Nem mesmo nosso amor, nossa companhia, nossa união e a promessa de continuarmos juntas para sempre eram suficientes.

Afinal, perguntei-me, quem nós pensávamos que éramos?

Não éramos ninguém.

Como eu pudera ter aquela idéia?

A claridade da manhã nos despertou. Povoava o carro com tantos raios de sol, que pensei, ao abrir os olhos, que nos encontrávamos no meio do fogo. Tive um sobressalto, um grito aflorou aos meus lábios. Depois de um momento, lembrei onde estávamos. Eram apenas cinco e meia da manhã. Raven não se mostraria muito feliz se eu a acordasse agora, pensei, enquanto ela gemia e se virava, tentando desesperadamente pegar no sono.

Saltei da caminhonete, estiquei o corpo, respirei fundo, aspirando o ar fresco. Crystal veio ao meu encontro. Borboleta também dormia.

— Temos de procurar uma solução, Brooke, trar um meio de conseguir dinheiro. Não podemos continuar assim. E o que faremos se realmente conseguirmos chegar à Califórnia? Não podemos arrumar emprego de imediato; e mesmo que fosse possível, não receberíamos o pagamento logo. Como faremos para comer enquanto isso? Quem nos dará um apartamento sem o aluguel adiantado?

Crystal fez uma pausa e confessou:

— Estou acordada há algum tempo, pensando nisso tudo.

— Aonde quer chegar, Crystal?

— Talvez seja o momento de pararmos de nos iludir. Tem sido uma aventura e tanto, mas é só isso. Não podemos esperar mais nada, em termos realistas.

— Sabe que não podemos mais voltar, Crystal. Sabe o que acontecerá.

— Será diferente se contarmos tudo à polícia. Vão acreditar em nós, mesmo que tenhamos de levá-los ao lugar em que deixamos a cocaína. Pus uma pedra em cima do saco. Tenho certeza de que ainda está lá. Deve haver resíduos suficientes para convencê-los de que dizemos a verdade. Gordon será preso.

— E se não for?

— Mesmo que não seja, não vão nos deixar no mesmo lugar que ele. Saberão que isso poderia ser terrível.

— Será mesmo, Crystal? — Chutei uma pedra e suspirei, as lágrimas subindo-me aos olhos. — Acho que prefiro assumir o risco de passar fome.

— Ou se tornar uma daquelas garotas que Norman e o filho de Nana nos acusaram de ser... vivendo nas ruas? Não vai querer isso, Brooke. Temos de...

— O quê?

— Voltar à custódia do Estado por mais algum tempo. É o nosso lamentável destino. Sinto muito.

— Eu também. Não diga nada a elas por enquanto.

Olhei para a caminhonete. — Vamos continuar pelo máximo que pudermos apenas pela...

— Diversão? Não creio que Raven e Borboleta ainda estejam achando que é divertido.

— Não; não pela diversão, mas apenas para sentirmos que tentamos tudo. Combinado?

— Desde que você compreenda qual será o fim, Brooke.

— Eu compreendo.

Reprimi um soluço e respirei fundo. Crystal me abraçou. Ela podia ser às vezes muito afetuosa. Não era apenas um cérebro frio. Era também eficiente em manter seus sentimentos sob uma blindagem de palavras, lógica e fatos. Eu não tinha a menor dúvida de que, em seus momentos de retraimento, Crystal chorava tanto quanto todas as outras.

— Vamos acordá-las e voltar para a estrada, Crystal. Ela acenou com a cabeça e me fitou com aqueles seus olhos intensos e perceptivos.

— Quase gostaria que fôssemos detidas, Brooke. Seria mais fácil do que desistir.

— Sim, seria muito mais fácil aceitar. Borboleta começava a se levantar no momento em que abrimos as portas. Raven gemeu e virou-se, comprimindo o rosto contra seu travesseiro.

— Vamos, Raven, trate de se levantar — declarei. — Temos de endireitar o banco e partir. Não quero que alguém nos encontre aqui e nos prenda por invasão de propriedade.

Ela sentou-se, com cara de exaustão.

— Capataz de escravas... Você deveria trabalhar no sistema penitenciário.

Junto com Crystal, Raven levantou o banco traseiro, indo depois sentar na frente. Liguei o motor. Voltei de ré pela estrada interrompida e partimos. Quando avistamos uma placa oferecendo um “café da manhã com tudo o que você puder comer por um dólar e noventa e nove centavos", Raven suplicou a Crystal que parássemos ali.

— É bastante barato, e assim não precisaremos comer no carro, Crystal.

Crystal concordou e paramos. Era uma casa de auto-serviço, freqüentada em grande parte por idosos.

— É porque eles vivem de uma renda fixa mínima — explicou Crystal.

Muitas cabeças viraram em nossa direção quando entramos na fila e pegamos a bandeja.

— É quase como Lakewood — murmurou Raven.

— Estou perdendo o apetite.

Apesar disso, ela comeu muito bem, voltando ao balcão para se servir de mais ovos mexidos. Usamos os banheiros, lavando-nos e nos aprontando para voltar à estrada. No estacionamento, perto da caminhonete, havia uma velha usando um casaco que me pareceu muito grosso para aquela época do ano. Tinha pelo menos uma dúzia de grampos marrons e pretos prendendo os cabelos grisalhos e ralos, as mechas caindo soltas pelos lados e atrás da cabeça. Não usava maquilagem, mas tinha faces rosadas. Os olhos escuros eram pequenos, com a boca, embora cheia, um pouco torta no canto direito. Quando mencionei isso para Crystal, ela comentou que a mulher devia ter sofrido um derrame. Mantinha-se bastante empertigada, em sapatos de saltos grossos... com um mínimo de dez anos de uso.

Segurava uma sacola de compras cheia de roupas, os lados estufados. Ao nos aproximarmos, ela nos fitou com expressão cautelosa, depois sorriu para Borboleta, que respondeu com um de seus sorrisos irresistíveis.

— Mas que menina adorável você é! — exclamou a mulher. — Minha neta Donna tem cabelos como os seuS) embora não tão dourados. Qual é o seu nome?

— Janet.

— Será uma linda mulher um dia, Janet. Igual à minha Marion. Ela poderia ser uma artista de cinema. Estão sozinhas, meninas?

— Estamos, sim, madame — respondeu Crystal. Ela me lançou um olhar cauteloso. Encaminhei-me para a porta do carro.

— Perdi minha carona. Cheguei aqui tarde demais e descobri que me deixaram para trás.

Parei e alteei as sobrancelhas. Crystal fez a mesma coisa.

— Quem a deixou para trás? — perguntou Raven.

— Amigos de meu falecido marido. Depois que o marido morre, todos os amigos dele passam a evitar você como se fosse uma praga. Quando ele era vivo, viviam nos cercando. Não é a pura verdade?

— Deveria encontrar-se com eles aqui no estacionamento e foram embora sem levá-la? — insistiu Crystal, como se fosse uma advogada consultando uma testemunha.

— Não é a primeira vez que me deixam para trás. Quando se fica viúva, meninas, é preciso aprender a se virar sozinha mais do que podem imaginar. Mas ainda são jovens demais para se preocuparem com a viuvez. A velhice não é nada agradável. Não é a pura verdade?

Raven olhou para mim e depois para a mulher.

— Para onde vai?

— Até Morrisville, que fica a uns sessenta quilômetros daqui. Acho que agora terei de caminhar até a estação rodoviária.

— Onde fica? — perguntou Crystal.

— Não sei direito. Acho que é... — Ela virou-se para um lado, depois para o outro. — Terei de pergumtar lá dentro.

— Espere um instante. — Crystal pegou o mapa abriu no capô da caminhonete. — Morrisville... Não fica fora do nosso caminho. Podemos levá-la até lá, madame

— É mesmo? Seria muita gentileza. A maioria das pessoas não tem mais qualquer gentileza com estranhos. Obrigada, querida. Muito obrigada.

— Pode sentar atrás com a gente — disse Borboleta abrindo a porta.

— Ora, Janet, obrigada. Viu só? Lembrei seu nome. Janet. Lembra minha Donna. Já lhe disse isso?

— Já, sim — respondeu Borboleta, com seu sorriso mais doce.

A velha entrou, seguida por Borboleta. Raven segurou Crystal pelo cotovelo e puxou-a para trás.

— É melhor ela não nos roubar! Crystal sorriu.

— Não há muita analogia aqui, Raven.

— Não há o quê? Por que não fala direito como todo mundo?

Crystal soltou uma risada.

— Estou falando mais do que direito.

Crystal embarcou. Raven virou-se para mim, com cara de desespero.

— É preciso andar com um dicionário quando se está com Crystal. Não entendo a metade do que ela diz. É quase como aprender uma nova língua.

Ri também e embarcamos. Deixamos o estacionamento.

— Meu nome é Theresa James — disse a velha. — Morei em Morrisville durante quase quarenta e um anos. Meu marido Eugene era vendedor de sapatos. Costumava dizer que vendia boas solas e poupava boas colas. — Ela riu. — Não é a pura verdade?

— Quantos filhos e netos você tem? — perguntou Borboleta.

— Tenho três crianças: um filho, Thomas Kincaid Tames, e duas filhas, Marion e Jennie. Jennie é a mais parecida comigo. Uma ótima cozinheira. Marion não cozinha. Tem empregadas que fazem tudo. Casou bem. O marido constrói lanchas de passeio. Moram numa casa que parece um castelo. E ainda fica perto de um lago. Passei parte do verão ali e vi meus netos. Tenho cinco, três meninos e duas meninas. Dois meninos são de Thomas. Ele tem uma filha que acaba de fazer sete anos. Seu nome é Connie, e tem cabelos escuros, lisos, não dourados e encaracolados como os seus, minha cara. Ela é muito boa em ortografia. Sempre me mandam suas provas com a nota máxima. Penduro na porta da geladeira. Já tenho tantas que não consigo mais encontrar a alça da porta. — Ela soltou uma risada. — Não é a pura verdade?

Olhei pelo espelho retrovisor e vi que Crystal fazia uma careta. Alteei as sobrancelhas, e ela indicou com gestos que havia um estranho odor. Depois de um momento, também senti o cheiro. Era de madeira queimada e exalava de Theresa James.

— Meu marido era um excelente vendedor. Nunca perdeu uma venda. Podia arrancar até o último centavo de Rockefeller. Queriam que ele fosse vice-presidente, que passasse o dia no escritório, mas ele disse "não, senhor, muito obrigado. Prefiro continuar na estrada, negociando com as pessoas". Ele adorava a companhia das pessoas, falando, trocando idéias, como dizia.

— Quando ele morreu? — perguntou Borboleta.

— Morreu... deixe-me pensar... Ei, já tem quase dez anos! Não é fácil ser uma viúva. Todos os meus antigos amigos olham para o outro lado quando me vêem.

— Isso é horrível... — murmurou Raven.

— Já estou me acostumando, minha cara. Às vezes basta fingir que as pessoas também não estão ali, como se todos nós fôssemos fantasmas. Quando você envelhece, vira um fantasma. Não é a pura verdade?

— Eu não deixaria que se tornasse um fantasma se fosse minha avó — declarou Borboleta.

— Mas não é maravilhoso? Acho que você é a criança mais adorável que já conheci, até mesmo mais meiga do que a minha Donna, que é capaz de arrancar um sorriso até mesmo de uma pedra.

Borboleta riu.

— Quando foi a última vez que a viu? — perguntou ela.

— Deixe-me pensar... Acho que tem quatro meses. Não... talvez seis ou sete meses.

— Não ligam para você todos os dias? — perguntou Crystal.

— Claro que ligam. Meu telefone não pára de tocar. Os vizinhos pensam até que sou bookmaker. Sabe o que é um bookmaker, não é, minha doçura?

Borboleta sacudiu a cabeça, e ela explicou:

— É um homem para quem as pessoas telefonam quando querem apostar num cavalo. Se você ganha, ele tem de pagar a você, mas se você perde, tem de pagar a ele. Tenho um irmão que já foi bookmaker. Agora ele está num abrigo para velhos. Nunca mais o vi.

— Por que não? — indagou Raven. — Seu filho ou suas filhas não a levam para vê-lo?

— Não, porque não gostam dele. Jamais gostaram. Também não querem que eu o procure. Dizem que meu irmão é a ovelha negra da família, que fez minha mãe envelhecer antes do tempo. As mães podem envelhecer antes do tempo se os filhos são maus. Não é a pura verdade?

— Passou o último Natal com seus netos? — perguntou Borboleta.

- Claro. Fomos todos para a enorme casa de minha filha. Tivemos uma árvore imensa, com montanhas de presentes. Havia um peru capaz de alimentar um exército. Fiz uma torta de abóbora e uma torta de maçã. Jennifer fez um pão de tâmaras e nozes, além de um pastelão de Yorkshire. Foi uma grande festa, com música e a lareira acesa, como naqueles cartões de Natal que tocam uma pequena melodia quando a pessoa os abre. Claro que passo todos os feriados com meus filhos e netos, os aniversários e... os aniversários.

Ela fez uma pausa, como se tivesse esquecido o que dizia. Mas logo reencontrou o seu assunto:

— Mas por enquanto moro sozinha em minha casinha, paga há muitos anos por meu marido, que era o melhor vendedor de sapatos do mundo. Já contei o que ele costumava dizer? Sempre falava que uma boa sola valia mais que uma cola.

Ela riu.

— Não é a pura verdade? — disse Borboleta. Todas sorriram. Theresa James soltou uma risada.

Continuou a falar quase que durante todo o percurso até Morrisville. Raven não parava de revirar os olhos para mim, como se eu pudesse detê-la ou fosse a culpada. Ela acabou ligando o rádio e pôs-se a cantar a música que tocava.

— Tem uma linda voz, minha cara — comentou Theresa James. — Minha Jennie também tem uma linda voz, mas não tanto quanto a sua. Poderia cantar numa esquina e recolher dinheiro num chapéu.

Raven sorriu, orgulhosa.

— Ainda vou subir num palco e ganhar muito dinheiro cantando — declarou ela.

— Tenho certeza que sim. Irei ouvi-la e direi que a conheci quando era... quando era... Esqueci a hora em que deveria estar no estacionamento. Talvez tenha chegado mais cedo, não atrasada. Eu me sentiria horrível se ficarem esperando por mim quando já fui embora. Talvez eu devesse ter ficado, em vez de vir com vocês. Oh minhas caras, já não sei mais...

Ninguém disse nada. Olhei para Crystal pelo espelho retrovisor. Ela baixou sua janela para deixar um pouco de ar fresco entrar na caminhonete, enquanto balançava a cabeça.

— Seus filhos deveriam cuidar melhor de você — disse Raven subitamente.

— Não é a pura verdade? Todo mundo me diz isso. As pessoas perguntam por que uma mãe pode cuidar de três filhos e três filhos não podem cuidar de uma mãe? Talvez seja mais difícil cuidar das mães, não acham?

— Não — respondeu Borboleta. — Seria mais fácil cuidar das mães.

— Você é tão doce... Seu nome é Janet. Quase que dei à minha filha Jennie o nome de Janet. Procurávamos um nome que começasse com J. Meu marido disse que podia ser Joyce ou Joan, mas eu disse que não. Ocorreu-me de repente que deveríamos chamá-la de Jennie, em homenagem à minha avó pelo lado materno. Ele concordou, embora nunca tivesse conhecido minha avó. Se a conhecesse, garanto que lhe venderia um par de sapatos.

Ela riu, e Borboleta acompanhou-a quando acrescentou:

— Não é a pura verdade?

Todas nos sentíamos gratas, quando uma placa avisou que faltavam poucos quilômetros para Morrisville.

— Onde você mora? — perguntei a Theresa. — Nós a levaremos até lá.

— É muita gentileza. Está vendo como pessoas estranhas podem ser simpáticas, Janet? Agora moro numa área exclusiva. Meu marido achou que sempre seria um bom bairro e disse: "Vamos investir numa casa aqui. Nunca nos arrependeremos..." E foi verdade, não nos arrependemos. É um pouco grande para uma velha como eu, mas estou acostumada àquelas paredes antigas, assim como as paredes se acostumaram comigo. Não poderia me imaginar morando com meus filhos. É ótimo visitar, mas não podemos esquecer as palavras de Ben Franklin quando disse que hóspedes e peixes fedem em três dias. Ela riu. Desta vez, Crystal também aderiu ao coro:

— Não é a pura verdade?

Todas entoavam isso quando entramos em Morris-ville. O céu escurecera, e uma chuva fina caía. Um dos limpadores de pára-brisa de Gordon estava gasto e arranhava um lado. Eu evitava o seu uso o máximo que podia.

— Pode descer direto pela Main Street. Depois pegue a Rua Quatro e lhe mostrarei a casa. Obrigada, minha cara. — Theresa sorriu para Borboleta. — Que doce criança! Sabe, minha mãe dizia que fui uma linda menina. Dizia que todos os homens queriam me dar uma moeda e me pediam para dançar um pouco. Meu pai era capaz de assobiar sinfonias inteiras. Era um homem feliz e despreocupado, mas nunca soube ganhar uma boa vida. Diferente de meu marido, que vendia sapatos e dizia que uma boa sola... uma boa sola...

Ela fez uma pausa, passando a mão pelo rosto.

— Estou cansada... e contente por ter vindo com vocês, meninas.

Cheguei à Rua Quatro e virei à direita. Pareceu-me um bairro pobre. As casas eram velhas, em péssimo estado, os pequenos gramados cheios de falhas, invadidos pelo mato e lixo. Um deles tinha até alguns pneus velhos. Não vimos muitas pessoas. A chuva começara a cair um pouco mais forte.

— Eu deveria ter trazido o guarda-chuva. Mas não pensei que pudesse chover.

Com as nuvens escuras por cima, e a chuva persistente, o bairro parecia ainda mais melancólico. Os bueiros não estavam limpos. Na frente de uma casa, quatro cachorros haviam virado uma lata de lixo e procuravam os restos de comida que pudessem encontrar.

— Você não mora aqui, não é? — perguntou Raven.

— Oh, não! Moro perto. Quando chegar à esquina vire à esquerda e saltarei. Posso andar um pouco. Foram muito simpáticas, mas não devo convidá-las a entrar. Minha casa está uma bagunça e me sinto muito cansada. Vou direto para a cama.

— Não se preocupe — disse Crystal. — Temos muita viagem a fazer e precisamos percorrer o máximo de distância possível antes do anoitecer.

— Obrigada, minhas caras. Muito obrigada — repetiu.

Ela começou a se mexer no banco.

— É aqui? — perguntei.

— Obrigada, minhas caras. Muito obrigada. Parei, e Crystal abriu a porta. Theresa começou a sair. Parou de repente e virou-se para contemplar Borboleta.

— Não venda a ninguém nenhum de seus cachos. E tome cuidado com os homens que piscam quando sorriem. Adeus.

— Adeus — murmurou Borboleta, com alguma tristeza.

— Adeus — acrescentou Crystal.

Raven também se despediu e eu por último. Crystal voltou ao carro. Por um momento, observamos Theresa James afastar-se pela calçada. Ela parou perto de um terreno baldio. Comecei a dar partida.

— É melhor voltarmos para a Main Street — sugeriu Crystal. — Ali será mais fácil encontrar a saída para a estrada.

— Certo.

Avancei pelo caminho de entrada de uma casa para fazer a manobra. Ao voltarmos à rua, avistamos Theresa no lado direito do terreno baldio. Largara o saco no chão, ao lado de uma enorme caixa de papelão. Parei a caminhonete.

— O que ela está fazendo? — especulou Raven, em voz alta.

Era o que todas nós queríamos saber. Um momento depois, Theresa ficou de quatro e engatinhou para dentro da caixa. Meu coração deu um salto-mortal.

— Crystal... — murmurei.

— Ela é uma sem-teto — explicou Crystal. — Eu já tinha pensado nisso. Havia alguma coisa estranha nela, sem falar naquele cheiro de madeira queimada. Tudo o que dizia era um sonho ou...

— Ou o quê?

— Ou ela é o pior tipo de órfã que existe, Borboleta; a mãe esquecida por todos os filhos.

— Como podemos deixá-la dormir numa caixa? — gritou Borboleta, enquanto o carro se afastava.

— O que podemos fazer, Borboleta? — indagou Raven. — Não podemos sequer ajudar a nós mesmas.

A verdade nua e crua caiu como uma chuva gelada. O silêncio tornou-se de repente mais alto do que as trovoadas.

— Não é a pura verdade? — murmurou Crystal.

— Não é mesmo? — acrescentei. E seguimos em frente.

 

               A isca foi lançada

Depois que deixamos Theresa James, experimentei a sensação de que nos encontrávamos à deriva, flutuando pelo espaço, sem destino, levadas pela força do motor da caminhonete. Nosso objetivo se tornara muito vago, o propósito perdido e confuso. Sentia que não levaria muito tempo para que a predição de Crystal se consumasse. Teríamos de desistir, nos entregar, ficar à mercê daquela impessoal agência do governo que servira por tanto tempo como nossos pais substitutos.

A realidade tinha um jeito de me deixar atordoada. Theresa falara sobre velhos, viúvos e viúvas que se tornavam invisíveis. De uma estranha maneira, eu acreditava que era exatamente isso o que acontecera e continuava a acontecer conosco. Sem família para nos sustentar, éramos na verdade invisíveis. Podíamos muito bem ter números em vez de nomes. Nunca se percebe como é grande o papel que uma família desempenha nas relações costumeiras até que não se tem nenhuma. Ao nosso redor, os outros alunos da escola falavam dos pais, irmãos e irmãs, tias, tios e primos. Havia sempre alguém que fazia alguma coisa, que se parecia com outro alguém, ou dizia alguma frase brilhante ou estúpida.

O que mais interessava a meus colegas de escola era o quanto eu conhecia ou me lembrava de meus pais verdadeiros. Eu não sabia absolutamente nada sobre meu pai, o que a maioria parecia aceitar ou compreender. Havia diversos alunos filhos de divorciados, e muitos tinham pouco contato com os pais. O que mais os intrigava, porém, eram as minhas vagas referências à mulher que chamava de mãe.

Depois de viver com ela somente pouco mais de um ano, nada tinha que pudesse mencionar expressamente. Contava apenas com meus sonhos e alguns detalhes que extraíra dos administradores do orfanato. Descobrira que ela ainda não tinha vinte anos quando eu nascera. Não vinha de uma família rica e, pelo que pude adivinhar, estava sozinha na ocasião. Talvez tivesse sido repudiada por minha causa. Não sei por que chegara a uma conclusão sobre seu paradeiro, mas certas indicações me levavam a pensar que ela também fora para a Califórnia.

No fundo do meu coração, eu torcia e rezava para encontrá-la ali. Claro que sabia que o estado era enorme e muito populoso. Ou seja, minhas chances eram mínimas; apesar disso, era o meu sonho. Não podia contar a Crystal ou a Raven, nem mesmo a Borboleta, embora elas fossem minhas irmãs. Seria como ficar nua, exposta, tirar a armadura. Como a garota mais corajosa que elas conheciam podia ser tão fraca e sentimental?

— Qual é o problema? — perguntou-me Raven abruptamente.

Viajávamos há quase duas horas, o rádio ligado, a chuva passando para aguaceiro e voltando a chuvisco. As nuvens no horizonte eram escuras, como marshmàl-low queimado. De vez em quando o vento tangia a chuva para formar lençóis de água que se despejavam sobre a estrada. Tínhamos de caminhar devagar.

— Por quê? — indaguei, olhando para ela. Raven virou-se um pouco no banco e lançou um olhar para Crystal.

— Você está chorando. Há lágrimas no seu rosto. Levei a mão ao rosto e senti as gotas quentes.

Surpreendeu a mim mais do que a Raven. Apressei-me em enxugar os olhos.

— Não sei — murmurei. — Alguma coisa deve ter caído em meus olhos.

— Nos dois?

— Isso mesmo, nos dois.

Falei num tom ríspido. Raven virou-se, como se tivesse levado um tapa, e olhou pela janela.

— Devemos nos conceder uma indulgência esta noite e dormir em camas quentes — sugeri, tentando compensar a rispidez com Raven. — Com direito a televisão e banho de chuveiro quente. Vamos nos sentir muito melhor.

— Se fizermos isso, restará pouco dinheiro para a comida e quase nada para o outro dia — comentou Crystal.

— Não me importo — declarou Raven. — Deixarei para me preocupar com a comida depois. Posso mendigar.

— Mendigar? — repetiu Crystal. — Você se rebaixaria a esse ponto?

— Talvez sim, talvez não. — Raven sorriu, jovial. — Deixem tudo comigo.

— É a última coisa que devemos fazer — resmungou Crystal, cansada de brincadeiras.

Raven quase deu um salto ao se virar no banco, furiosa.

— O que está querendo dizer com isso? Por que tem de ser sempre a Miss Tragédia e Depressão?

— Não estou sendo trágica, mas apenas dizendo que mendigar as refeições não é suficiente para nos manter.

A calma de Crystal deixou Raven ainda mais enfurecida.

— E o que será suficiente, Crystal? Se tem todas as respostas, por que não as divide conosco?

— Vocês duas querem parar com isso? — gritei. — Não estamos agindo como as Orfãteiras.

— Orfãteiras... — resmungou Raven. — Que nome mais idiota!

— Você achava que era ótimo — lembrou Borboleta.

— Foi antes de eu crescer.

— E quando ocorreu essa milagrosa maturidade? — perguntou Crystal, sarcástica.

— Ouviu isso, Brooke?

— Pedi para vocês duas pararem! — exclamei, diminuindo a velocidade ainda mais. — Se não pararem, vou encostar e... O que é aquilo?

Raven tornou a se virar e espiou pelo pára-brisa.

— É uma mulher, acenando — disse ela. — Parece histérica.

À direita, pouco antes de uma saída, uma mulher em torno dos quarenta anos balançava os braços, angustiada. Não usava capa ou casaco para proteger-se da chuva. Os cabelos castanho-claros já estavam encharcados, os fios grudados na testa e orelhas. Parecia tão desesperada que seria capaz de pular na frente dos carros, se ninguém parasse logo. Dois carros passaram, mas não diminuíram a velocidade para descobrir o que ela queria.

— Pare o carro — disse Crystal.

Passei para o acostamento e reduzi a velocidade. A mulher veio correndo.

Raven baixou sua janela.

— Graças a Deus que alguém parou! — A mulher limpou a chuva do rosto. — É meu marido. Ele se sentia tonto e entrou neste atalho. Assim que paramos, tombou sobre o volante. Minhas duas filhas estão com ele mas não há qualquer tráfego naquela estrada. Pensei em voltar até aqui, acenar para alguém e pedir ajuda Mas vocês são as primeiras a pararem, embora eu já esteja aqui há vários minutos.

— Entre logo e nos mostre onde ele está — disse Crystal, no seu tom de voz de comando, enquanto abria a porta.

A mulher embarcou e segui pelo atalho. Não precisamos andar muito depois da curva. A van fora estacionada meio torta no lado direito da estrada, a sinaleira ainda piscando. Havia uma menina sentada na grama do acostamento, chorando.

— Levante-se, Denise! — gritou a mulher. A menina se levantou lentamente. — Mandei que ficasse com papai!

— Ele não quer falar — balbuciou a menina. Crystal também saltou e avançou para a van.

Havia um homem de quarenta e poucos anos arriado sobre o volante, o rosto virado para nós, os olhos fechados, a boca contorcida. Achei-o meio azulado, principalmente nos lábios.

A outra menina, com apenas cinco ou seis anos, estava enroscada no banco.

— George! — gritou a mulher. — Oh, Deus! Crystal verificou o pulso do homem e depois virou-se para mim.

— Brooke, venha até aqui e me ajude a deitá-lo.

A mulher recuou quando me adiantei. Abraçou a filha Denise. Espantou-me como Crystal podia parecer eficaz e competente, até mesmo para pessoas completamente estranhas.

George era um homem alto, com mais de um metro e oitenta, e pesando no mínimo noventa quilos. Nosso esforço era grande. Olhei para Raven, que veio correndo nos ajudar. Juntas, com todo cuidado, conseguidos tirá-lo do banco e estendê-lo de costas.

Crystal começou a agir no mesmo instante. Até mesmo Raven, Borboleta e eu ficamos surpresas e impressionadas. Eu não sabia que ela era capaz de realizar um ressuscitamento cardiopulmonar. Crystal ajoelhou-se ao lado dele, pôs a mão direita em sua testa, a esquerda sob o queixo. Observei-o. Era um homem bonito, de cabelos grisalhos nas têmporas. Crystal olhou para mim, com ar preocupado, depois prestou atenção na respiração do homem. Sem hesitar, apertou seu nariz e encostou a boca na dele. Soprou duas respirações profundas. O peito do homem subiu.

Borboleta chegou mais perto de Raven, que passou o braço em torno de seus ombros.

— Ele está morto? — balbuciou a mulher. Crystal encostou as pontas dos dedos no pomo-de-adão do homem, desceu-os para o sulco ao lado da traquéia. Procurava por uma pulsação.

— Ele morreu? Oh, Deus, George!

Crystal tornou a me fitar, parecendo agora mais triste do que nervosa. Percebi em seus olhos, que haviam se tornado reflexos dos meus, de Raven e de Borboleta. Todas havíamos perdido nossos pais. Nenhuma queria testemunhar aquilo.

— Acho que ele sofreu uma parada cardíaca — murmurou Crystal.

Ela abriu a camisa do homem e pôs as mãos em seu peito, uma por cima da outra.

— Temos de levá-lo para um pronto-socorro o mais depressa possível.

— Não sei guiar essa coisa — murmurou a mulher.

— E não quero tirá-lo daqui. — Crystal olhou para mim. — Brooke?

Olhei para o painel e acenei com a cabeça. Depois sentei ao volante e liguei o motor.

Enquanto isso, Crystal começara a bombear o peito do homem. Contou até quinze e depois soprou mais duas respirações, antes de bombear outra vez.

A menina mais velha passou a chorar mais forte. Borboleta foi tentar confortá-la, enquanto a mulher ia para a filha caçula, que parecia em estado de choque. Raven foi para junto dela. Ficamos observando Crystal trabalhar.

— Não sei para onde ir...

Continuei a guiar até encontrar uma loja de conveniências, onde parei.

— Vou descobrir onde fica o hospital mais próximo. Saí correndo. Havia apenas um cliente na loja, além do homem baixo, de cabelos grisalhos e bigode escuro, por trás do balcão.

— Precisamos chegar a um hospital o mais depressa possível!

— Hospital? Siga por mais três quilômetros, vire a esquerda, percorra oito quilômetros até chegar ao semáforo, depois vire à direita. Começará a ver as placas cerca de um quilômetro e meio depois. O que aconteceu?

— Ataque do coração.

Voltei correndo para a van. Não era difícil guiá-la, mas não tivera tempo de ajustar o banco e meu pé mal alcançava o freio. Tentei endireitá-lo enquanto dirigia.

— Como ele está? — perguntei.

— Acho que tem pulsação, mas muito fraca — respondeu Crystal. — O hospital fica longe?

— Não.

Era mais difícil guiar a van do que a caminhonete. Quase perdi a entrada porque ia muito depressa. Os pneus rangeram. Meu coração disparou. Pensei que íamos capotar ou um pneu explodiria.

— Desculpem...

Havia um veículo compacto na minha frente, quase se arrastando. Toquei a buzina, na esperança de que a mulher ao volante chegasse para o lado. Mas ela não reagiu. Tive de esperar para arriscar uma ultrapassagem. Assim que achei seguro, desviei a van para o lado e ultrapassei o carro. Não tinha a menor idéia da potência da van. Descobri que sua aceleração era lenta. Um carro se aproximava em sentido contrário. Nenhum dos dois tinha para onde se desviar. Murmurei uma oração, mantive o pé no acelerador e joguei a van para a direita no último segundo. O outro motorista tocou a buzina, furioso.

— Desculpem... — murmurei de novo.

Tenho certeza de que só mais uns poucos minutos transcorreram até alcançarmos o hospital, o que pareceu levar mais tempo por causa da tensão. Segui as placas que indicavam EMERGÊNCIA e parei tão perto da porta quanto possível. Depois saltei e entrei correndo.

Duas enfermeiras conversavam junto a uma mesa. À direita havia um homem sentado, segurando o braço. Dava a impressão de sentir muita dor, mas ninguém parecia notar ou se importar.

— Trouxe um homem que sofreu um ataque do coração! — gritei.

As enfermeiras pararam de falar. Um atendente saiu de uma sala de exames. Os três vieram em minha direção.

— Onde?

— Lá fora, na van! Depressa, por favor! Minha amiga vem aplicando a técnica de ressuscitamento, mas não sabe se está dando certo!

Outro atendente apareceu. Pegaram uma maca e saíram para o veículo. Momentos depois, tornaram a entrar no hospital, empurrando a maca com o homem, todas nós seguindo atrás.

— Não se preocupe — disse Raven para a mulher. — Ele vai ficar bom agora.

— Oh, Deus!

As duas filhas permaneciam sob seus braços — a menor ainda atordoada, a mais velha enxugando os olhos injetados.

— Quem pode identificá-lo? — perguntou a mais velha das duas enfermeiras, deslocando-se para o outro lado do balcão.

— Eu posso — respondeu a mulher. — Ele é meu marido, George Forbas. Sou Caroline Forbas.

A enfermeira cumprimentou-a, sorrindo gentilmente.

— Preciso que a senhora preencha esta ficha o mais completamente possível — disse ela.

Caroline olhou freneticamente para o aposento onde tinham levado seu esposo. Um jovem médico chegou apressado e entrou no aposento, seguido por outra enfermeira e mais um ajudante.

— Eu cuidarei de Sophie — disse Raven, referindo-se à filha caçula. — Venha comigo, Sophie. Vamos sentar ali e dar uma olhada nas revistas.

Ela pegou a mão da menina, que a seguiu até as cadeiras. Borboleta foi atrás.

— Vá sentar junto com Sophie, Denise — disse Caroline.

Relutante, Denise afastou-se. Crystal e eu permanecemos com Caroline.

— Obrigada, meninas — murmurou ela, agradecida. — Muito obrigada.

— Não foi nada — disse Crystal. — Não precisa nos agradecer.

Caroline olhou para a enfermeira.

— Não consigo pensar direito.

— Ela tem de fazer isso agora? — perguntei à enfermeira.

— Terá de esperar enquanto o médico lhe examina o marido, que é o que costumamos fazer nessas ocasiões — respondeu a enfermeira, secamente. Depois aoontou a cadeira ao lado de uma mesa. — Mas pode levar para lá. Não precisa se apressar, sra. Forbas.

Caroline sentou-se diante do formulário. Virei-me para Crystal, que parecia assustada como eu jamais a vira antes.

— Qual é o problema? — perguntei em voz baixa, não querendo chamar atenção.

— Lembro-me de quando meus pais adotivos morreram. Eu estava na casa de uma amiga, estudando para uma prova de matemática. Alguém telefonou. Não me lembro quem foi, mas a mãe de minha amiga apareceu na porta do quarto e disse: "Crystal, houve um terrível acidente. Sabe qual é o telefone do seu tio Stuart em Albany?"

Crystal respirou fundo.

— "Tenho certeza de que está no Rolodex de meu pai", respondi. "Vou procurar." Morávamos na casa ao lado. Lembro-me que saí correndo sem sequer pensar nas conseqüências. Nem vagamente me ocorreu que ambos haviam morrido. Era bem jovem na ocasião, e já pensava na morte como uma coisa estranha, reservada somente aos idosos, mas não em algo que atingia as pessoas mais próximas.

Balancei a cabeça, ouvindo, enquanto observava Raven fazer milagres com Sophie, e Borboleta conversar com Denise, evitando que a menina chorasse. Ocorreu-me que estávamos tão apavoradas quanto elas. Crystal mal falava sobre seu passado daquele jeito, muito menos com tanto nervosismo. De vez em quando Raven parava de falar e olhava para Caroline, seus lábios tremendo. Respirava fundo várias vezes. Os olhos de Borboleta também procuravam os meus a todo momento em busca da mesma segurança.

Já perdêramos pais demais. Era inconcebível ficar sentada impassível observando alguém se encaminhar para uma espécie de portal do pesar.

— Corri de volta à casa de minha amiga e entreguei o número do telefone à sua mãe — continuou Crystal. — Percebi a maneira estranha como ela me fitava, mas mesmo assim não fiz perguntas. Em vez disso, fiquei parada ali, escutando, enquanto ela telefonava para o irmão de meu pai.

A angústia de Crystal era evidente.

— "Stuart", disse ela, "aqui é Vera Raymond, vizinha de Thelma. Estou bem, obrigada. Houve um terrível acidente, Stuart. Um acidente de carro. Karl e Thelma... Os dois morreram. Sinto muito. Isso mesmo. Aconteceu há poucas horas. Um motorista bêbado numa pickup. Sinto muito." Tenho tudo gravado na memória, Brooke. Muitas vezes revivo a cena, com flash-backs angustiantes. Às vezes basta uma campainha de telefone para que todo o episódio me volte.

Fez uma pausa.

— Foi assim que soube que eles haviam morrido. Por um momento, foi como ouvir o relato sobre a vida de outra pessoa. Não compreendi direito, Brooke. Prestei atenção a cada palavra. Ouvi-a dizer: "Isso mesmo. Ela está aqui. O que querem que eu faça?" Ela escutou, acenou com a cabeça, depois virou-se e fitou-me, como se tio Stuart dissesse alguma coisa que eu nunca saberia o que era. Como ela sabia que eu era adotada, não podia ser isso. Não sei o que ele falou, mas ela olhou para mim e balançou a cabeça. "Eu compreendo", disse ela. "Mas o que quer que eu faça enquanto isso, Stuart? É mesmo?" Uma pausa. "Está bem. Vou descobrir e cuidarei de tudo. Sinto muito."

Crystal baixou os olhos para o chão.

— A mulher desligou. Explicou que meus pais haviam morrido e que meu tio não viria me buscar. Dissera-lhe para chamar o juizado de menores. Naquela tarde eles vieram me apanhar. Foi assim que voltei ao sistema. Compareci ao funeral, mas depois nunca mais tornei a ver nenhum dos parentes.

— Sinto muito, Crystal. Ela deu de ombros.

— Creio que se pode dizer que tive sorte. Minha vida, por mais difícil que seja imaginar isso, provavelmente seria pior se eu fosse viver com pessoas que não me queriam.

Caroline levantou-se e levou os papéis para a recepção.

— Por que está demorando tanto? — perguntou ela. A enfermeira limitou-se a pegar os papéis e virou-se para registrar as informações no computador. Caroline olhou para nós e fomos ao seu encontro. O médico finalmente veio da sala de exames da emergência. A enfermeira da recepção entregou o formulário preenchido por Caroline. Ele deu uma olhada, balançou a cabeça e virou-se para Caroline.

— É a sra. Forbas?

— Sou, sim. Como está meu marido? Está vivo?

— Sua situação é estável agora, sra. Forbas. Vamos levá-lo para a unidade de tratamento cardíaco. Vamos esperar que o especialista o examine e nos dê um diagnóstico. Quem fez o ressuscitamento?

— Foi ela — respondeu Caroline, indicando Crystal.

— Fez um excelente trabalho, minha jovem. Não tenho a menor dúvida de que salvou a vida dele. Deve se orgulhar. Onde foi que aprendeu?

— Na aula de primeiros socorros na escola. O médico riu do seu tom modesto.

— Você é a prova dos motivos pelos quais os estudantes devem prestar mais atenção. Diga isso à sua professora.

Observamos George sair da sala de exames, a máscara de oxigênio cobrindo seu rosto. Caroline correu para ele. Virou-se um momento antes de entrarem no elevador.

— Podem ficar mais um pouco com as meninas?

— Claro — respondi.

Ela desapareceu com o marido e o atendente no elevador. Fomos sentar junto com Raven e Borboleta procurando distrair Denise e a pequena Sophie.

A chuva voltou a cair. Não a notamos até o vento começar a soprá-la contra as janelas. As meninas, cansadas da provação emocional, acabaram dormindo; Sophie, a menor, com a cabeça no colo de Raven. Nós nos sentíamos exaustas e atordoadas. Borboleta cochilava a intervalos. Raven recostou-se, com os olhos fechados, os dedos na testa. Só Crystal procurou aproveitar o tempo de uma maneira produtiva, lendo números atrasados da revista Time.

Nenhuma de nós prestou atenção aos dois guardas na recepção, falando em voz baixa com a enfermeira. Quando as portas do elevador abriram e Caroline apareceu, a enfermeira acenou com a cabeça, e os guardas foram abordá-la. Conversaram por um momento e depois vieram até nós.

— Obrigada por esperarem, meninas, e por tomarem conta de Denise e Sophie. A enfermeira lá em cima fez a gentileza de ligar para o gabinete do xerife, porque não sei guiar a van e temos de ir para um motel. O guarda Donald as levará até seu carro. Não sei como posso agradecer. — Ela olhou para Crystal. — Pode me dar seu endereço, para que eu lhes mande alguma coisa mais tarde?

— Não há necessidade — respondeu Crystal muito depressa. — Como está o sr. Forbas?

— Descansando muito bem. Os médicos acham que ele vai se recuperar. Seu estilo de vida terá de mudar é claro. Não pode mais fumar, esse é o começo.

— Eu disse a papai para deixar de fumar — murmurou Denise. — Aprendemos sobre isso na escola.

— Eu sei, querida. — Caroline acariciou o rosto da filha, afetuosa. — Agora ele vai escutá-la.

— Eu a levarei até o motel — anunciou um dos guardas. — Vamos, Dave?

— Meninas, venham comigo — disse o guarda mais alto.

Raven lançou-me um olhar nervoso, mas Crystal nem pestanejou. Tratamos de nos despedir das meninas. Raven e Borboleta abraçaram Sophie, que ficou triste por elas terem de ir embora. Depois, sem mais comentários, seguimos o guarda para seu carro.

— Três de vocês podem ir atrás. — O guarda sorriu. — Não fiquem nervosas por sentarem atrás de uma grade, sem maçanetas nas portas. Em geral os suspeitos ficam atrás.

Raven arregalou os olhos com ansiedade. Crystal pegou a mão de Borboleta e abriu a porta. Coube a mim sentar na frente com o guarda.

— Então vocês fizeram uma boa ação — comentou ele, sentando-se ao volante. — É sempre bom testemunhar uma coisa assim. Restaura minha fé nos jovens. Na maior parte das vezes, eles entram no meu carro por motivos muito piores.

Ele riu, ligou o motor e saiu do estacionamento do hospital.

— Você é a motorista?

— Isso mesmo.

O guarda fez a volta e foi andando devagar.

— Todas vocês são de Nova York?

Virei-me e olhei para Crystal. Alguma de nós dissera isso? Ela comprimiu os lábios, os olhos se contraindo em suspeita.

— Somos — respondi, cautelosa.

— Estão bem longe de casa, não é?

— Vamos visitar parentes.

— Ahn...

Ele virou em outra rua e acelerou. Não podia ter certeza, porque me sentia nervosa e excitada ao mesmo tempo, mas pareceu-me que ele seguia numa direção diferente daquela por onde viéramos.

— Quando recebemos o telefonema do hospital, eu patrulhava nas proximidades do lugar em que deixaram seu veículo. Vi a placa. — Ele me lançou outro olhar, fez uma volta. — É por isso que sei que são de Nova York.

— Ahn...

Sorri e olhei para Crystal, mas ela não parecia aliviada. Continuou a olhar fixamente para a frente, com uma expressão de intensa expectativa.

O guarda fez mais uma volta, levando-nos por uma área mais povoada. Logo avistamos lojas e postos de gasolina. Subimos uma ladeira, deixando a comunidade para trás.

— Isto é um atalho? — perguntei. — Tenho certeza de que não viemos por este caminho.

— Sempre que encontramos um veículo abandonado em uma de nossas estradas, o procedimento normal é fazer uma verificação da placa.

Ele lançou outro sorriso em minha direção.

— Essa não! — murmurou Raven, recostando-se e olhando pela janela.

— Você não é Gordon Tooey, não é mesmo? — perguntou o guarda, depois de um momento.

— Não.

Fiz um esforço para engolir um caroço que se formara em minha garganta.

— E aposto que ninguém lá atrás é Gordon, hein? — acrescentou ele, olhando as três pelo espelho retrovisor.

— Claro que não — disse Crystal.

Avistei a delegacia logo à frente. O guarda olhou para mim.

— Vamos parar aqui porque algumas pessoas têm perguntas para fazer a vocês. Aposto que sabem quais são essas perguntas, não é?

— Sim, senhor — murmurei, baixando os olhos. Ele riu.

— Não importa o que aconteça, meninas, reitero o que disse antes. É um prazer ver jovens praticarem uma boa ação. Claro que isso torna tudo mais desconcertan-te, mas sem dúvida é uma boa coisa.

O guarda parou no estacionamento da delegacia.

— Estamos presas? — perguntei, depois que ele desligou o motor.

— Em geral investigamos, fazemos perguntas, procuramos as provas e depois prendemos as pessoas. Tudo o que tenho neste momento são quatro pessoas de aparência muito suspeita. E agora vamos ver se esclarecemos tudo e encontramos algum sentido na confusão.

Ele abriu a porta para Crystal, Borboleta e Raven. Nós quatro o seguimos para a frente do prédio.

— Está tudo bem — murmurou Crystal. — Aconteceu apenas o que conversamos.

Raven fitou-a como se ela tivesse enlouquecido. Depois me fitou, como se eu a tivesse traído... traído a todas.

Fomos levadas para uma sala de reuniões. Havia uma parede de vidro no outro lado. Eu já assistira a muitos filmes para saber que pessoas podiam nos observar do outro lado sem serem vistas. Uma recepcionista entrou primeiro e nos ofereceu refrigerantes. Crystal pediu chá e nós outras escolhemos Sprites.

— O que vai acontecer conosco agora? — perguntou Borboleta, num fio de voz, enquanto tomava seu refrigerante.

— Podemos ir para a cadeia — respondeu Raven, com o medo estampado em sua voz.

Borboleta olhou para Crystal e depois para mim

— Não vamos tirar conclusões precipitadas — disse Crystal. — Devemos descobrir primeiro o que eles têm a dizer e perguntar.

A porta foi aberta nesse instante, fazendo entrar uma mulher com pouco mais de quarenta anos, usando um uniforme de policial.

Ela não usava revólver, mas trazia um par de algemas preso no cinto. Carregava uma prancheta e tinha uma rígida postura militar.

— Sou a tenente Mathews.

A mulher apontou para o crachá por cima do seio esquerdo. Sentou na nossa frente e estudou cada rosto por um momento, antes de baixar os olhos para a prancheta.

— Quem é Brooke Okun?

— Sou eu.

Ela me fitou como se quisesse memorizar o meu rosto.

— Janet Taylor?

— Eu — respondeu Borboleta.

Outro olhar demorado, antes que ela tornasse a consultar o que tinha na prancheta.

— Raven Flores?

— Prazer em conhecê-la — disse Raven.

Os olhos da tenente Mathews se contraíram, antes de se desviarem para Crystal.

— E você é Crystal Perry?

— Isso mesmo.

— Muito bem, meninas. — A tenente Mathews largou a prancheta na mesa. — Já soube que acabaram de ajudar uma família, que fizeram uma coisa maravilhosa. Assim, sei que não estou lidando com delinqüentes. Mas a menos que eu ouça alguma explicação em contrário, todas são suspeitas de roubo de carro. E mais: levaram

O carro através de fronteiras estaduais. Além de ninguém ter carteira de motorista. Algum desses fatos é inverídico?

— Não roubamos o carro — disse Raven. — Apenas o tomamos emprestado por algum tempo.

A tenente Mathews não sorriu. Examinou algumas páginas e dobrou-as em seguida.

— Todas estão sob a tutela legal do Estado. Chamei um representante do serviço de proteção à infância, que está a caminho.

— Então por que não esperamos até ele chegar antes de continuarmos a falar sobre nossa situação? — indagou Crystal.

Ela tirou os óculos e limpou-os. Sua frieza não nos valeu qualquer simpatia, nem o sorriso presunçoso de Raven. Nem sequer o terror absoluto de Borboleta nos valeu alguma compaixão. Baixei os olhos, o coração batendo forte.

— A melhor coisa que vocês podem fazer por si mesmas, agora, é contar a verdade — declarou a tenente Mathews. — Ninguém quer tornar a situação pior do que já está. Foi você quem guiou durante todo o tempo?

— Todas nós guiamos — interveio Raven, protetora. — Até mesmo Borboleta. Viajava sentada numa almofada para poder ver por cima do volante.

— Posso lhe assegurar, srta. Flores, que daqui a pouco não achará nada tão engraçado.

Houve uma batida na porta. Ela olhou para nós, em vez de responder. A batida soou de novo. Finalmente ela se levantou e foi abrir a porta. Um homem alto e magro, que parecia mais apavorado do que nós, fitou-nos em silêncio. Usava um terno marrom-escuro e gravata. O rosto era estreito, com um nariz que podia ser uma pista de esqui. A boca se contraía para baixo nos cantos, emoldurando o queixo, que era arredondado, os ossos delineados contra a pele clara. Tinha olhos azul-claros e deslocou-os de um rosto para outro, as linhas da boca aprofundando-se ainda mais.

— Muito bem, sr. Glashalter, elas são suas, por enquanto. Eu diria que precisam muito de uma orientação

A tenente Mathews fitou-nos e depois se retirou. Ele entrou na sala, com sua pasta, e sentou-se na cadeira desocupada pela policial.

— Olá, meninas. Sou Clarence Glashalter, o representante do serviço de proteção à infância. Tenho algumas informações sobre vocês, mas preciso que respondam às minhas perguntas. Sei que roubaram o carro do homem que tomava conta de vocês. Correto? — Ele não esperou por nossa resposta. — E seguiram para oeste durante dias. Para onde pretendiam ir?

— Tentávamos alcançar a Califórnia — respondi. Ele acenou com a cabeça, como se fosse um propósito legítimo.

— Por quê?

—Para escapar dos lares de adoção para sempre — declarou Raven.

— Roubando o carro do homem que tomava conta de vocês?

— Ele não é exatamente o Mister Imaculado — insistiu Raven.

— Bom... — Clarence Glashalter consultou suas anotações. — Mas parece que ele é o Mister Perdão. Acaba de nos dizer que está disposto a retirar todas as acusações contra vocês se voltarem para casa. Vem de avião até aqui para buscar seu carro.

— Voltar? — murmurou Raven. — Prefiro ir para a cadeia.

Glashalter fitou-nos e percebeu o mesmo desejo em cada uma. Balançou a cabeça.

— Ele alega que a esposa gosta muito de vocês e ficou transtornada, até doente. Não me parecem monstros. — Uma pausa e acrescentou, sorrindo: — Além do mais, não creio que queiram ir para a cadeia por roubarem um carro.

— Queremos, sim — insistiu Raven. — Vamos sobreviver. Enquanto permanecermos juntas, poderemos sobreviver. Somos irmãs.

— Eu compreendo. — Clarence Glashalter tornou a sacudir a cabeça. — Mas vocês quatro não iriam para o mesmo lugar.

Borboleta soltou um gemido, depois olhou para mim e para Raven em desespero.

— Isso não é engraçado, meninas. Não é um jogo.

— O que devemos fazer? — perguntou Crystal.

— Devem pedir desculpas, voltar e se comportar. Talvez eu consiga uma suspensão da sentença. Foi um ponto favorável para vocês terem ajudado aquela família.

— Não queremos voltar! — exclamou Raven. — Não podemos voltar! Ele é um monstro!

— Se vocês têm queixas legítimas contra seus pais de adoção deveriam comunicar aos conselheiros em Nova York, e não roubar um carro para atravessar o país. Têm que seguir os procedimentos legais. Tenho certeza de que os conhecem. Estão todas no sistema há algum tempo e...

— Ah, o sistema... — resmungou Raven. — Fugirei de novo.

Os olhos do sr. Glashalter se contraíram.

— Só iria se meter em mais encrenca... e pode ter certeza de que não encontrará outra oportunidade como esta, se não quiser cooperar.

— Vamos cooperar — prometeu Crystal no mesmo instante. — Obrigada por nos ajudar.

O sr. Glashalter retomou seu sorriso artificial e olhou para Crystal.

— Uma sábia decisão, minha cara. Assim poderei fazer tudo o que for possível para ajudá-las.

— O que fará agora? — indagou Crystal.

286

— Por enquanto, quero que esperem quietas, enquanto Explicarei a situação ao xerife e conversarei com o assistente do promotor distrital. Talvez demore um pouco, mas acho que posso dar um jeito, desde que vocês continuem a cooperar.

Não havia qualquer ameaça velada em sua voz. Ele se levantou e acrescentou, antes de sair:

— Voltarei daqui a pouco.

Assim que ele saiu, Raven virou-se para Crystal.

— Por que não contou a ele o que encontramos na caminhonete? Por que não explicou o motivo de não querermos voltar com Gordon Tooey?

— Porque não acreditariam em nós, Raven. Pense no que pode acontecer depois... Gordon muda de idéia, insiste nas acusações e nos separam. Quer que isso aconteça?

— Claro que não — respondeu Raven. — Mas...

— Não há nenhum "mas". Apenas devemos ser pacientes e prudentes, esperar por outra oportunidade.

— Mas sabe o que Gordon vai querer... e também quando descobrir o que fizemos...

— O que ele vai fazer? Denunciar-nos por jogar fora sua cocaína?

— Detesto pensar no que ele vai fazer — murmurou Raven, olhando para mim em busca de ajuda.

— No momento, Raven — declarei —, não temos outra opção.

— É fácil dizer isso agora! — gritou Raven. — Mas lembrem-se de que daqui a pouco Gordon Tooey estará passando por aquela porta!

Ninguém disse nada.

A trovoada de nossos corações enchia os ouvidos. Era suficiente.

 

               Os maus fazem isso

Cada vez que a porta se abria, prendíamos a respiração na expectativa de deparar com Gordon. Depois que o sr. Glashalter se retirou, no entanto, a primeira pessoa a entrar foi o guarda que nos trouxera do hospital. Trazia sacos com hambúrgueres e batatas fritas, além de refrigerantes. Os aromas deliciosos deixaram meu estômago agitado.

— Pensei que podiam estar com fome. Parece que passarão algum tempo aqui. — Ele pôs os sacos em cima da mesa e recuou, sorrindo. — Vamos, comam enquanto está quente. Com os cumprimentos do condado.

Olhei para Crystal. Ela acenou com a cabeça. Fizemos a distribuição dos hambúrgueres e batatas fritas. O guarda ficou parado ali, observando-nos. Percebi que as engrenagens começavam a se movimentar na cabeça de Raven. Olhei para Crystal, que parecia tão ansiosa quanto eu.

— Vamos supor que você encontrasse drogas no carro de alguém e não contasse à polícia — disse Raven. — Isso é crime?

Acho que o pedaço de hambúrguer que eu acabara de engolir transformou-se em pedra na minha garganta.

— É sempre um crime reter provas ou não comuni car um crime que sabe estar sendo cometido — respondeu ele. — Por quê?

— Eu apenas queria saber.

— Há drogas naquela caminhonete?

O guarda teria de ser mais estúpido do que uma anta para não fazer essa pergunta, pensei.

— Não — murmurou Raven.

— Mas havia? — Ele esperou um pouco. — Se havia, talvez ainda se encontrem resíduos.

— E se não houver resíduos? — indagou Crystal. — Não pode provar que havia alguma droga, não é mesmo?

— Não, não se pode provar, na ausência de provas materiais ou de testemunhas.

Crystal lançou um olhar furioso para Raven.

— Falei de outro carro. De um namorado meu, lá em Nova York.

— Nesse caso, é melhor largá-lo como se fosse uma batata quente. Se ele for apanhado com a droga e você estiver em sua companhia, você também vai se dar mal. — O guarda olhou para Borboleta. — Aposto que você gostaria de tomar uma casquinha de sorvete. Qual é o seu predileto?

— Gosto de morango.

— Alguém mais vai querer? Melhor me dizer logo enquanto ainda é tempo.

— Quero uma casquinha de baunilha — pediu Raven.

Crystal e eu recusamos. Ele saiu.

— Foi uma estupidez o que você fez, Raven. Pode imaginar o que teria acontecido se desmontassem a caminhonete, com Gordon observando, e nada encontrassem? Gordon entenderia que sua cocaína desaparecera e ficaria ainda mais furioso. Tenho certeza de que, nesse caso, ele insistiria nas acusações contra nós.

— Apenas queria saber se não havia outra maneira de escapar — protestou Raven. — Sabe que não quero fazer nada que possa nos separar.

— Estou com medo... — balbuciou Borboleta, os lábios tremendo. — Nunca fui presa antes.

— E não está presa agora. — Crystal olhou para Raven. — Ninguém mais vai fazer ou dizer qualquer coisa.

Ficamos em silêncio por algum tempo.

— Também estou com medo — admitiu Raven. — Sinto muito, mas estou.

— Tudo vai acabar bem — assegurei. — Não se preocupem.

— Muito bem, não vou me preocupar. Você chamará o supermecânico e ele virá voando em seu... Como é mesmo que ele chamou o carro? Betty Lou?

Fitei-a nos olhos, irritada, lágrimas de raiva ardendo contra as pálpebras. Raven baixou os olhos e cruzou os braços.

O guarda voltou com os sorvetes e disse que acabara de receber um aviso de que Gordon estaria ali dentro de uma hora. Tornou a se retirar em seguida.

— Como ele pode chegar aqui tão depressa? — indagou Raven, olhando para Crystal.

— Ele deve ter voado de algum lugar próximo. — Ela fez uma pausa. — O cartão de crédito.

Raven virou a cabeça para mim, num movimento brusco.

— Isso mesmo. Ele vem nos seguindo pelo cartão de crédito.

— Foi uma boa idéia no início, Raven — argumentei, na defensiva. — Todas achamos que era. E que diferença faz agora se ele vai chegar dentro de uma hora ou quatro? Ele está vindo. Não há nada que possamos fazer para evitar isso.

— Brooke tem razão, Raven — interveio Crystal. — Vamos parar de brigar, por favor.

— Não quero voltar com ele — murmurou Borboleta, olhando de Raven para mim. — Não quero, Crystal! Não quero.

Ela começou a sacudir a cabeça com tanta força que pensei que ia partir o pescoço.

— Oh, não! — exclamou Raven. — Se ela entrar num daqueles estados catatônicos agora...

— Vamos nos juntar! — disse Crystal.

Ela era como uma fogueira fumegante em que se jogasse um balde de água fria. Levantamos e rodeamos Borboleta. Seus olhos já começavam a revirar. Passamos os braços ao redor e baixamos a cabeça para a dela.

— Somos irmãs — entoou Crystal. — Vai dar tudo certo. Sempre estaremos bem enquanto permanecermos juntas. Somos fortes.

— Somos irmãs — murmuramos Raven e eu. — Vamos ficar bem.

Borboleta apertou nossas mãos e ficamos unidas, como se pensássemos que o chão sumiria de baixo dos nossos pés.

— O que estão fazendo? — Era o sr. Glashalter. Não o ouvíramos voltar. Interrompemos o cântico e nos separamos. — O que é isso? Alguma espécie de feitiçaria?

Voltamos aos nossos lugares. Borboleta parecia muito melhor. A cor retornara a seu rosto, ela já não respirava com tanta dificuldade.

— Não é nada — respondeu Crystal. — Apenas confortávamos umas às outras. Costumamos fazer isso.

Ele nos fitou em silêncio por um longo momento, depois sentou na frente de Raven.

— Já acertei todos os detalhes. As autoridades estão de acordo. Serão entregues a seu pai de adoção, que mais uma vez assumirá a responsabilidade por vocês. As questões de guiar sem habilitação e conduzir um carro roubado através das fronteiras estaduais serão arquivadas, mas os detalhes serão transmitidos à agência de vocês em Nova York. Têm muita sorte por escaparem com tanta facilidade.

— Acho que tiramos a sorte grande na loteria — murmurou Raven, bastante alto para que todos ouvissem.

— É melhor começar a apreciar os favores que as pessoas lhe prestam, mocinha — disse Glashalter, ríspido. — Não vai conseguir nada nesse mundo só porque está aqui.

Sua boca se contorceu toda, como se o rosto fosse feito de cera. Os ombros de Raven se empinaram, enquanto ela se inclinava para a frente.

— Raven! — advertiu Crystal.

Ela sabia que Raven estava prestes a explodir, e não havia como saber o que sairia de sua boca desta vez. Raven olhou para Crystal, recuou, passou os braços em torno de seu corpo, mordeu o lábio inferior.

O sr. Glashalter deu por terminado o trabalho que fazia e saiu para esperar Gordon. Pouco depois, a tenente Mathews veio nos chamar.

— Seu pai de adoção chegou, meninas — anunciou ela. — Vamos embora.

Crystal se apressou em pegar a mão de Borboleta. Levantamos e seguimos a tenente Mathews. Gordon estava encostado na mesa de controle, com um sorriso enorme. Usava um casaco marrom-claro e um macacão de brim. Parecia cansado, os cabelos caindo sobre a testa, a barba por fazer, olheiras escuras. Imaginei-o guiando dia e noite numa perseguição implacável.

— Aí estão elas, as minhas meninas! Não sabem como Louise está preocupada com vocês. Eu deveria estar muito zangado. — Virou-se para o controlador e balançou a cabeça. — E estaria, se não ficasse me lembrando de todas as bobagens que fiz quando tinha a idade delas.

O despachante riu também. Gordon olhou para tenente Mathews, que o fitava com desconfiança, numa repulsa evidente.

— É isso que me torna um bom pai de adoção. Compreendo os adolescentes. — Ele riu de novo, antes de perguntar ao despachante: — Preciso fazer mais alguma coisa?

— Não. Já assinou tudo, sr. Tooey. Pode levá-las. São todas suas.

— Isso mesmo, são todas minhas. O que é uma sorte. Vamos embora, meninas. Temos uma longa viagem de volta para casa e muitas explicações a dar no caminho.

Ele se adiantou, e nos encaminhamos para a porta. Borboleta tinha a cabeça baixa e apertava a mão de Crystal com tanta força, que pude ver seus dedos ficarem brancos.

Lancei um olhar para a tenente Mathews. Por um momento, pensei que ela falaria ou perguntaria alguma coisa, impedindo-nos de partir. Mas ela hesitou, e Gordon se interpôs entre nós.

— Vamos logo, Brooke — disse ele, os olhos frios. — Conhece o caminho.

Alcancei as outras e deixamos a delegacia. A caminhonete de Gordon fora estacionada bem na frente.

— Vocês três, atrás — ordenou ele a Raven, Crystal e Borboleta. — Você vai na frente comigo, Brooke.

Entramos, e Gordon se apressou em ligar o motor e dar a partida. Não disse nada até estarmos bem longe, na estrada.

— Acho que vocês se divertiram muito, até demais. — Ele olhou para mim. — Sei que foi você a motorista, Brooke. Certo?

Em vez de responder, virei o rosto e olhei pela janela.

— Todas poderiam ficar na cadeia. Prestei um grande favor a vocês, e agora quero um favor em troca.

Gordon cutucou meu ombro com o indicador da mão direita, comprido e grosso. Estremeci. Ele olhou para as outras.

— Fizeram até um mapa falso e me mandaram pela pista errada. Muita esperteza, meninas. Posso ver que tenho gênios em minhas mãos.

Ele guiou em silêncio por algum tempo, antes de acender um cigarro e recostar-se.

— Muito bem, meninas, já estamos bem longe da delegacia. Tive de ir à garagem da polícia para pegar minha caminhonete. Assinei os papéis e saí de lá. Parei no meio do caminho, a fim de procurar uma coisa que tinha deixado nela. E adivinhem o que aconteceu? — Gordon olhou para mim e sorriu. — Vamos, Brooke, dê um palpite.

— Não está me assustando, Gordon — declarei, imprimindo à minha expressão todo o desafio de que era capaz.

— Não estou assustando você? Pois muito bem! Ele bateu no painel com a mão, usando tanta força que pensei que o deixaria rachado. Em seguida bateu com o punho, não apenas uma vez, mas três vezes, em rápida sucessão. O carro todo tremeu. Alguma coisa no porta-luvas chocalhou. Quase esperei que as janelas se espatifassem. Era uma demonstração impressionante de violência física. Todas gritaram, inclusive eu, só que meu grito foi interior. Meu coração batia forte, a garganta parecia entalada com um bloco de carvão me arranhando. Borboleta desatou a chorar, enquanto Raven, a brava e desafiadora Raven, baixava a cabeça. Só Crystal parecia ter recuperado o controle no momento em que Gordon parou.

Ele tornou a se recostar, na maior calma, parecendo tão relaxado que me levou a pensar que a cena talvez tivesse ocorrido apenas em minha imaginação. Gordon era um louco, pensei, o que o tornava ainda mais perigoso.

— Quer que eu a assuste? — indagou ele. — É isso o que quer, Brooke?

— Não, Gordon.

— Ainda bem. Porque se tiver de assustá-la, vou ficar ainda mais furioso do que estou agora... e não sei como poderia me tornar mais furioso sem rasgar você em pedacinhos.

A voz saiu controlada, através dos dentes cerrados.

— O que você quer de nós? — perguntou Crystal, em seu comportamento sereno.

— O que eu quero? Quero o que é meu, Crystal. Quero o que vocês encontraram debaixo desse banco. Onde está?

— Não encontramos nada debaixo do banco! — gritou Raven.

Gordon apontou um dedo para ela através do espelho retrovisor.

— Não me trate como um idiota, Raven, ou começarei por você. Mas talvez prefiram... — Ele fez uma pausa, com um sorriso frio. — ...que eu pare o carro, saia com a nanica e pergunte a ela. Sei que ela vai me contar tudo. Não é mesmo, nanica?

O rosto de Borboleta ficou vermelho como uma maçã. Crystal passou o braço por seus ombros e disse:

— Procurávamos moedas, e a princípio nem sabiamos o que era.

— Moedas? — Gordon sorriu e sacudiu a cabeça. "" Muito bem, aceito isso. E depois?

— Depois que sabemos o que era, ficamos tão apavoradas que paramos na beira da estrada e o enterramos.

— Enterraram?

— Não queríamos que alguma criança o encontrasse e não queríamos ser apanhadas com aquilo no carro.

Gordon ficou pensativo por um momento, depois diminuiu a velocidade, foi para o acostamento e parou. Depois de uma tragada no cigarro, virou-se para nós.

— Onde enterraram? Ou vão me dizer que esqueceram?

— Claro que lembro onde foi — declarou Crystal, a voz firme, sem piscar.

Olhei para ela e alteei as sobrancelhas. Como ela podia dizer isso? O que aconteceria se levássemos Gordon ao lugar verdadeiro e ele descobrisse que esvaziáramos o saco?

— Pois então me leve até lá.

— Não poderei encontrar no escuro.

A noite caía depressa agora. A camada de nuvens impedia que o luar iluminasse a estrada. Gordon fitou-a nos olhos, mas Crystal nem estremeceu. A velha Crystal, pensei; quando Gordon se metia em jogos mentais com ela, não tinha como ganhar. Ele recostou-se por um momento, pensando.

— Muito bem. Vamos parar no primeiro motel para passar a noite. Amanhã encontraremos o que é meu, e depois... Já sei o que faremos, meninas. Deixarei que fujam de novo, só que desta vez não comunicarei às autoridades. O que acha disso, Raven? Não se sente feliz?

— Me sinto, sim — respondeu ela, os olhos faiscan-do de angústia e raiva.

— Nada mais justo — acrescentou Gordon. — Eu consigo o que quero, vocês conseguem o que querem.

— E Louise? — indaguei. — Pensei que tivesse ficado com o coração partido quando fomos embora.

Ele me lançou um olhar irritado.

— Ela vai superar. Sempre supera.

Gordon deixou o acostamento.

— Sei que vocês não gostam. Não tem problema. Nunca pedi para ser um pai de adoção afetuoso. A idéia foi de Louise. Nunca foi fácil dirigir aquele lugar quando era uma pensão. Os pais de Louise me tratavam como um empregado, nunca como um genro. Quando saí da marinha sabia fazer uma porção de coisas. Tinha o meu valor. Não foi por culpa minha que o lugar entrou em declínio. Os clientes deixaram de vir, não havia mais dinheiro. Foi então que Louise teve a idéia do lar de adoção. Aceitei, é verdade, mas ter vocês por lá durante todo o tempo não era nada agradável. Não peço desculpas por aproveitar uma oportunidade. Sempre foi esse o meu lema, meninas, aproveitem as oportunidades.

Ele soltou uma risada, lançou um olhar para mim e para Raven.

— Vocês têm muita coragem, devo admitir. Acho que nos compreendemos agora. Vamos nos dar muito bem. Ali está. — Gordon indicou a placa luminosa que anunciava um motel. — Vamos descansar, e amanhã nos separaremos como amigos. Combinado?

Nenhuma de nós disse nada. Ele pegou a saída para o motel. Olhei para Crystal.

E agora?, tive vontade de perguntar. Mas teria de esperar até mais tarde. Gordon alugou dois quartos. Mas quando paramos diante das portas, ele disse:

— Sei como vocês são, meninas. Por isso, faremos um trato: uma de vocês passará a noite no meu quarto.

— O quê?! — gritou Raven, dominada pelo terror. — Ficar num quarto com você?

— Não me entendam errado. Só quero que uma de vocês fique onde eu possa vê-la. Assim saberei que as outras não fugirão. São muito unidas, não é mesmo? — Gordon olhou para as três, depois para mim. — Quem vai ser?

Crystal parecia absolutamente apavorada, ainda mais do que Borboleta. Tive medo por todas nós, medo do que ele poderia nos obrigar a fazer.

— Talvez seja melhor eu ficar com a nanica — acrescentou Gordon.

Estive a ponto de poder ouvir o grito aterrorizado de Borboleta. Apressei-me em declarar:

— Eu ficarei com você. Ele sorriu.

— Ótimo. Vamos ter uma boa noite de descanso, hein, meninas? Temos muito o que fazer amanhã... muito mesmo.

Gordon abriu um quarto para Raven, Crystal e Borboleta, o outro para nós dois.

— Posso ficar um pouco com elas? — perguntei.

— Não, não pode. Não quero me preocupar com isso. Trate de entrar e vá para a cama. As outras também vão deitar-se agora... e não tentem me enganar, entendido? Vamos logo!

Todas estremeceram. Raven pegou minha mão.

— Posso trocar de lugar com você, Brooke. Sou capaz de controlá-lo melhor.

— Não se preocupe, Raven. Ficarei bem. Mas obrigada. Cuide de Borboleta.

Entrei no quarto. Gordon pegou alguma coisa na traseira da caminhonete e me seguiu.

— Use o banheiro primeiro — ordenou ele.

Fui para o banheiro. Quando saí, ele tinha a televisão ligada e estava estendido numa das camas. Tomava uísque sem parar de uma garrafa pequena.

— Não trouxe sua camisola? — perguntou ele, quando puxei as cobertas da outra cama.

— Não durmo de camisola.

Gordon sorriu, os olhos fixos em mim de uma maneira que me deixava bastante nervosa. Fiz um esforço para não deixar transparecer. Com Gordon, era sempre melhor parecer corajosa e destemida. Era o tipo de homem que dava o bote nas fraquezas e se aproveitava da bondade e inocência.

— De quem foi a idéia dessa fuga? — indagou ele — Foi Crystal quem armou o plano?

— Não. A idéia foi minha.

— E para onde pensou que poderiam ir? Quem poderia estar esperando por vocês de braços abertos hein? Quem?

Virei-me para fitá-lo.

— Não há ninguém nos esperando, Gordon. Apenas queríamos escapar de você e de Louise, de tudo que havia na Lakewood. Queixa-se de que não tem sido um piquenique para você. Também não tem sido para nós. Sabemos que você e Louise farão tudo para evitar que alguém nos adote. É um beco sem saída para nós. Por isso decidimos que era melhor ir embora.

— E roubaram meu carro! — O rosto dele se tornou ainda mais feio do que já era. — Por que o meu carro?

Ele bateu no peito com tanta força que ouvi o barulho. Por um momento, senti que era em mim que batia. Gordon é uma bomba-relógio, pensei.

— Tenho pessoas dependendo de mim em Nova York, pessoas que ficaram furiosas comigo por causa do que vocês fizeram. Por que não pegaram um ônibus? Pode ter certeza de que ninguém se importaria se fizessem isso.

Senti um calafrio. Se dissesse a coisa errada, ou se fizesse a coisa errada, não havia como prever como seria sua reação. De qualquer forma, pensei, Gordon tinha razão. Fora um erro levar seu carro. Ele não se importaria se não fosse por isso, e poderíamos ter chegado à Califórnia. Por outro lado, no entanto, seria muito mais fácil nos apanhar num transporte público.

- Crystal diz que vocês o enterraram. Ela está dizendo a verdade?

— Está.

— É melhor eu descobrir que isso é verdade amanhã, Brooke, ou vai haver o diabo. Se mentiram, vão se arrepender mais do que se tivessem vivido em Lake-wood para sempre, muito mais do que se fossem para a cadeia. Não tenha a menor dúvida quanto a isso. Entendido? Hein? Hein?

— Entendido.

Meu coração disparou outra vez. Desejei poder conversar com Crystal, descobrir se ela tinha algum plano para o dia seguinte. Até que ponto ela pensava que poderia levá-lo? E o que aconteceria quando finalmente parássemos?

Ouvi-o levantar-se e se postar ao lado da minha cama. Abri os olhos. Gordon me contemplava da maneira mais estranha. Era como se tentasse decidir alguma coisa, sendo atraído para direções opostas.

— Já esteve com um homem alguma vez? Fechei os olhos.

— Acho que a resposta é não. Ainda é virgem. Aposto que pensa nisso todas as noites, hein? Aposto que fica acordada em sua cama, pensando em como deve ser. Talvez até imagine que faz, hein? Hein?

— Deixe-me em paz, Gordon. Vamos fazer o que você quer amanhã. Portanto, deixe-me em paz.

Sua voz era mais suave agora, mas também mais sinistra. Começava a me assustar terrivelmente.

— Você menstrua como todas as outras garotas, não é? Já pensou alguma vez em ter filhos?

As lágrimas eram quentes, pesadas sob as minhas Pálpebras. Mantive-as fechadas, fazendo um esforço enorme para não soluçar.

— Eu poderia lhe ensinar... mostrar como é que se faz, melhor do que qualquer adolescente seria capaz Num instante. — Ele estalou os dedos. — É diferente com um homem de verdade. A experiência é importante em coisas desse tipo.

Não me mexi. Não abri os olhos, mas podia senti-lo se aproximar. Desejei poder me transformar numa bola e rolar para longe. Quando seus dedos encostaram em meus cabelos, sentei na cama abruptamente, envolvi-me com o cobertor, comprimi os joelhos contra o peito.

— Pare com isso! — gritei.

Ele continuou estático, a boca entreaberta, os olhos arregalados.

— Se me tocar de novo, gritarei tão alto que vai atrair o gerente ou pessoas dos outros quartos. Juro que vou. A polícia será chamada e não lhe mostraremos coisa alguma amanhã.

Gordon ainda hesitou por um instante, abrindo e fechando os olhos.

— Fique calma, menina. Não estou tão desesperado assim. Mas acabou de desistir da melhor coisa que poderia acontecer em sua vida.

— Não é verdade! Tenho um namorado, e um dia casarei com ele!

Ele riu. A raiva tomou o lugar do medo, envolveu-me por completo, trazendo a sensação de que me encontrava banhada em sangue. Se ele tentasse outra vez me pegar, jurei, arrancaria seus olhos. Gordon percebeu algo em meu rosto e recuou um pouco.

— Ahn... — Ele estremeceu, tomou outro trago da garrafa de uísque, olhou para o banheiro. — Volto num instante. Não pense em ir a qualquer lugar.

Gordon me apontou seu dedo comprido como se fosse uma faca, antes de se afastar. O calor se desvaneceu do meu rosto e tornei a relaxar. Sabia que não dormiria naquela noite. Passaria o tempo todo acordada, com medo de que ele tentasse alguma coisa. Crystal, Crystal, o que vamos fazer? Deveríamos ter corrido o risco com a polícia. Como podemos proteger Borboleta, se nem a nós mesmas somos capazes de proteger?

Ele tropeçou, quando saiu do banheiro, e resmungou um palavrão. Não olhei em sua direção. Passou por minha cama e continuei de costas para ele, mas prendi a respiração. A televisão continuava ligada, o clarão refletido na parede por cima de mim.

Subitamente, Gordon me agarrou pelo braço direito. Comecei a gritar, mas ele tapou minha boca com a outra mão. Aproximou sua boca malcheirosa da minha. Meu estômago ficou embrulhado. Quase vomitei o hambúrguer que comera na delegacia.

— Não vou tocar em você, Brooke. Mas também não vou correr nenhum risco. Quero dormir um pouco esta noite e sei como vocês são traiçoeiras. Não grite, Brooke, ou acertarei a sua cara com este punho para valer.

Ele suspendeu a mão enorme, enfatizando a ameaça. Tirou a outra mão da minha boca. Prendi a respiração. Senti-o torcer meu braço e depois vi quando passou uma pequena corda em torno do meu pulso.

— Não vai conseguir escapar de mim, Brooke. — Enquanto dava o nó, ele se gabou: — Isto aqui é um nó de marinheiro, um oito.

Depois de me prender, Gordon passou a outra extremidade da corda pelo próprio pulso e voltou para sua cama. Havia margem suficiente para eu me virar, se quisesse.

— E se eu precisar ir ao banheiro?

— Já foi. Agora terá de esperar até de manhã. E cale a boca, pois quero dormir.

Gordon tomou outro gole prolongado de uísque, quase esvaziando a garrafa, depois recostou-se e fechou os olhos. Olhei para o nó. Estava tão apertado que seria pior do que uma algema, pensei. Frustrada, continuei deitada, os olhos abertos. Ele não desligara a televisão. Os programas foram se sucedendo, até começar um de entrevistas, já de madrugada. Quando tornei a olhar para Gordon, constatei que ele tinha os olhos fechados, com o braço pendendo pelo lado da cama.

Soltou um gemido no sono e virou-se um pouco antes de começar a roncar. Pensei nas meninas. Crystal e Raven teriam entoado o nosso cântico com Borboleta, no quarto ao lado? Continuavam acordadas, pensando, apavoradas, no que poderia ocorrer no dia seguinte? Que plano Crystal teria bolado?

Tornei a olhar para Gordon e decidi que precisava tentar alguma coisa. Devagar, deslocando-me quase que apenas um centímetro de cada vez, saí da cama e fiquei de quatro no chão. Aproximei-me da cama de Gordon. Examinei a maneira como ele prendera a corda em seu próprio pulso. Depois, comecei a desatá-la, tão lentamente que tive a impressão de levar horas só para desenrolar as primeiras voltas. Ele soltou um grunhido e virou-se para o outro lado. Prendi a respiração e esperei. Gordon não acordou, mas agora eu precisava ficar de pé e me inclinar por cima da cama para alcançar seu braço. A qualquer momento, pensei, seus olhos se abririam e ele faria alguma coisa terrível comigo.

Finalmente soltei a corda do pulso de Gordon. Puxei-a e enrolei-a em torno do meu braço. Não havia tempo agora para tentar tirá-la de meu próprio pulso. Atravessei o quarto na ponta dos pés até seu casaco, para pegar as chaves da caminhonete. Gordon virou-se de novo, resmungou palavras ininteligíveis, o braço pendeu pelo lado da cama, na mesma posição anterior. Esperei e escutei, prendendo a respiração. Os roncos eram regulares e profundos.

Movendo-me como se estivesse sobre um colchão de ar, fui até a porta, virei a tranca devagar, até abri-la, com um pequeno estalido. Pensei que o ruído poderia acordá-lo, por isso vigiei seus olhos. As pupilas deslocaram-se com vigor por baixo das pálpebras, mas ele não os abriu. Continuou a roncar. Abri a porta apenas o mínimo necessário para me esgueirar, e tornei a fechá-la depois de sair. Meu coração batia tão depressa que tive de parar para recuperar o fôlego.

Já era de madrugada, tudo estava quieto. Só um outro quarto e o escritório estavam com as luzes acesas. Fui até o quarto das meninas e bati de leve, na esperança de que elas ouvissem. Esperei e bati de novo.

— Quem está aí? — sussurrou Raven.

— Sou eu.

Ela abriu a porta e entrei. Crystal e Borboleta estavam deitadas numa das camas, cobertas. Seus olhos se arregalaram, surpresos, quando me viram. Indiquei que deviam manter silêncio.

— Gordon me amarrou a ele — murmurei, mostrando a corda em meu pulso —, mas tirei a corda do pulso dele quando ele pegou no sono.

— Amarrou você a ele? — disse Crystal. — Oh, Brooke, ficamos tão preocupadas!

— Ele ficou ainda mais louco do que antes, Crystal. Não sei o que poderá fazer amanhã. Peguei as chaves do carro. — Levantei-as para mostrar. — Podemos escapar?

— Quer roubar o carro novamente? — indagou Crystal. — Oh, Brooke, não!

— O que você tinha planejado para amanhã, Crystal? Porque se não for uma grande idéia, correremos um risco ainda maior. Foi o que ele me disse. Qual é o seu plano?

— Não sei — confessou ela. — Esperava que alguma coisa me ocorresse esta noite.

— Não terá nenhuma idéia e não podemos perder mais tempo. Portanto, é isso que precisamos fazer.

Tornei a levantar as chaves da caminhonete.

— Ele mandará a polícia atrás de nós outra vez — disse Raven.

— Deixarei a corda da maneira como ele me amarrou. Mostrarei à polícia e contarei o que mais ele queria fazer comigo depois.

— O quê? — perguntou Raven.

— Não pergunte — disse Crystal, lançando um olhar para Borboleta. Ela pensou um pouco. — Vamos embora. Levante-se, Borboleta.

As duas saíram da cama e calçaram os sapatos. Abri a porta e escutei. Parecia que o caminho estava livre. Gordon ainda dormia, pensei. Ou melhor, rezei. Acenei com a cabeça e nos encaminhamos para a caminhonete, com o mínimo de barulho possível. Destranquei-a e abri as portas, sempre com o maior cuidado. Entramos e inseri a chave na ignição. Raven pôs a mão sobre a minha.

— Espere, Brooke. Ele vai ouvir quando você ligar o motor.

— Talvez não. Bebeu demais. Acho que está morto para o mundo por enquanto.

— Não posso nem imaginar sua raiva quando acordar e descobrir que mais uma vez levamos seu carro — comentou Crystal.

— Imagine o que acontecerá quando revelarmos que sua droga não existe mais.

Olhei para Raven. Ela respirou fundo e acenou com a cabeça. Todos os olhos desviaram-se para a porta do quarto de Gordon.

Virei a chave. O motor pegou. A porta do quarto de Gordon continuou fechada. Sem acender os faróis, saí de ré da vaga e acelerei pouco a pouco através do estacionamento.

Raven não despregava os olhos daquela porta assustadora.

— Ele não nos ouviu — anunciou ela, num sussurro tenso.

Quando alcançamos a saída, acendi os faróis e disparei pela estrada. Era uma estrada secundária, sem lampiões e com poucas casas. Também não havia placas. No momento, eu perdera todo e qualquer sentido de direção.

— Meu coração está batendo tão depressa que acho que vou desmaiar — balbuciou Raven.

Creio que nenhuma de nós deixou escapar o ar dos pulmões por no mínimo dez minutos. Imagens do rosto feio de Gordon perto do meu, naquele quarto de motel, surgiam à minha frente. Acelerei ainda mais, os pneus rangendo nas curvas, ao passar pelo acostamento, fazendo um tremendo esforço para controlar o carro.

— O que vamos fazer? — perguntou Raven. — Não temos dinheiro nem cartão de crédito.

— Não me importo — declarei. — Temos de nos afastar de Gordon.

— Para onde vamos?

Raven olhou para trás, na direção do motel, como se esperasse vê-lo correndo em nosso encalço. Borboleta abraçava Crystal.

— Para longe — respondi. — O mais depressa que pudermos.

A única coisa em que eu podia pensar era pôr o máximo de distância entre Gordon e nós. Qualquer coisa que viesse depois disso teria que ser melhor. Claro que teria.

 

                 Um oásis no deserto

O medo nos manteve sob um véu de silêncio. Os faróis da caminhonete cortavam a escuridão, mas sem casas e janelas acesas, sem outros veículos e atividades, nós nos sentíamos sozinhas na noite, distante de qualquer sinal de civilização. As árvores assomavam como sentinelas aguardando o céu clarear. Eu tinha a sensação de que guiava à procura de um túnel que nos passasse de um mundo para outro. Não demorou muito para que a linha de árvores desaparecesse, substituída por longos campos áridos. As casas que avistávamos pelo caminho estavam escuras ou vagamente iluminadas, os moradores ainda aconchegados em suas camas. Quando olhei pelo espelho retrovisor, descobri que Borboleta adormecera nos braços de Crystal. Raven encostara a cabeça na janela, os olhos fechados. Afundáramos todas num poço de torpor.

O terreno tornou a mudar, dessa vez parecendo mais rochoso. O céu era cada vez mais claro, agora com algumas nuvens tênues pairando através das estrelas. Eu não guiava mais tão depressa. Os pneus zumbiam, até que a estrada se tornou mais irregular, e passamos a ter solavancos ocasionais.

— Onde estamos? — perguntou Raven, depois que um solavanco mais violento sacudiu a caminhonete.

— Não sei. Não vi nenhuma placa nos últimos quilômetros. O que você acha, Crystal?

— Não tenho mais o mapa. Passamos pela última casa há cerca de vinte ou trinta minutos.

— Alguma coisa deve aparecer em breve — sugeri, como um raio de esperança.

Continuamos pela mesma paisagem monótona, sem encontrar nada diferente. Ao contrário, a paisagem se tornou ainda mais primitiva. Avistei cactos, e depois uma longa e escura linha de montanhas contornando o horizonte a oeste. Borboleta acordou quando passamos por outro trecho esburacado da estrada, a caminhonete tremendo toda.

— Estou com sede, Crystal — murmurou ela.

— Eu também, mas não vejo nenhum lugar em que possamos pedir um pouco de água — disse Raven. — Onde estamos?

Um novo tipo de medo começou a se expandir em meu estômago. Em nosso frenesi alucinado para escapar de Gordon Tooey, eu não prestara nenhuma atenção ao rumo que seguíamos. Agora, sem placas para nos dar qualquer indicação de nosso paradeiro ou para onde seguíamos, estávamos de fato perdidas. Parecia que só conseguíamos ir de mal a pior.

— É melhor acharmos o próximo sinal de vida, pararmos e descobrirmos onde estamos — sugeriu Crystal.

Acenei com a cabeça e continuei em frente, a estrada se revelando agora apenas um pouco melhor que um caminho de terra.

— Talvez devêssemos voltar, Brooke — disse Raven.

— Já percorremos uma longa distância desta estrada — respondi. — E não encontrei nenhum desvio.

— Me parece que esta estrada não leva a lugar nenhum — interveio Crystal, inclinando-se para a frente — Raven talvez tenha razão, Brooke.

Nossa ansiedade começava a entrar em ebulição. Todas nos inclinávamos para a frente agora, observando o caminho, à procura de qualquer sinal esperançoso. Dois coelhos atravessaram a estrada, as pernas parecendo molas. Os pneus rangiam agora sobre pequenas pedras.

— Acho que conseguimos... — murmurou Raven.

— Chegamos à lua. É o que isto aqui parece.

— É rocha derretida que aflorou à superfície da terra através de fendas ou fissuras — explicou Crystal. — Lava. Um lugar muito parecido com a superfície da lua.

— Obrigada — disse Raven, sarcástica. — Eu precisava mesmo dessa explicação.

— Parece com a lua porque ninguém vive aqui — comentou Borboleta.

Eu já não podia guiar tão depressa como antes. A estrada nos jogava de um lado para o outro.

— Isso é loucura, Brooke. Acho que devemos voltar e... — Raven parou de falar quando o motor falhou. — Oh, não! O que está acontecendo agora?

Olhei para o painel; era o que eu deveria ter feito antes de avançarmos tanto por aquela estrada. Em nossa pressa, nunca me ocorrera que poderíamos ficar sem gasolina.

— O tanque está vazio — balbuciei.

— Vazio? — repetiu Raven. — Estamos sem gasolina?

— É isso o que significa um tanque vazio — comentou Crystal, sarcástica.

— Brooke...

— Sinto muito, mas não me lembrei de olhar. Com todo aquele desespero...

— Ninguém a está culpando, Brooke — interrompeu Crystal, em tom brusco.

— O que devemos fazer agora? — gritou Raven. — Saltar e pedir carona?

A caminhonete andou mais um pouco até parar. Ninguém disse nada.

— Isto é uma estrada — declarei finalmente. — Tem de levar a algum lugar.

— E daí? — indagou Raven.

— E daí que podemos saltar e andar.

— Andar?

— Não temos muitas opções neste momento, não é?

— Estou com sede — lembrou Borboleta.

— Talvez seja melhor permanecer no carro e esperar que alguém passe — propôs Raven.

— Ninguém vai passar a esta hora, Raven — disse Crystal. — E pode haver algum lugar num ponto mais adiante da estrada. Brooke tem razão. Vamos saltar e andar.

— Está bem! — resmungou Raven.

Ela empurrou a porta e saltou. Fizemos a mesma coisa. Por um momento, ficamos todas paradas ali, no escuro, apenas com as estrelas sobre nossas cabeças. Havia claridade suficiente para divisar a estrada que se estendia à frente, como uma fita azul-escura longa e sinuosa, passando por cima da colina seguinte.

— Estamos em alguma espécie de deserto — comentou Crystal.

— Isso é ótimo — murmurou Raven. — Talvez possamos em breve ver uma miragem. E ainda por cima faz frio.

Ela passou os braços em torno do próprio corpo, para se esquentar.

— Vamos pegar nossas coisas — disse Crystal, referindo-se às fronhas com as roupas. — Podemos vestir mais alguma coisa para nos manter aquecidas.

Abri a traseira da caminhonete e procuramos camisetas extras entre as roupas. Borboleta trouxera o seu pequeno casaco rosa; seria a mais agasalhada. Crystal sugeriu que deixássemos todo o resto.

— Acho que não precisamos carregar tudo.

— Está bem — concordei. — Todas prontas?

— A natureza é meu lugar predileto para me perder — resmungou Raven.

Comecei a andar e elas me seguiram, Crystal e Borboleta logo atrás, Raven na retaguarda. A estrada não passava agora de cascalho e terra. Artemísias e pequenos cactos eram toda a vegetação que podíamos ver. O platô parecia se prolongar pela eternidade, as montanhas muito distantes. Subimos uma encosta e mais outra, quase nos arrastando. Falávamos pouco. Calculei que devia ser umas quatro horas da madrugada. A única coisa que me deixava um pouco animada era a visão do céu. Eu nunca o contemplara tão cheio de estrelas... com mais estrelas do que jamais vira antes.

Crystal começou a descrever algumas constelações, só para manter nossas mentes ocupadas. Raven reclamou que não podia vê-las e achou que Crystal inventava.

— Você precisa se concentrar um pouco, Raven — disse Crystal. — Não são difíceis de distinguir.

— Também vejo a Via-láctea — comentou Borboleta, o que a lembrou de um copo de leite gelado e como sentia sede.

Contornamos uma curva e descobrimos que a estrada seguia reta pelo que pareciam ser quilômetros e mais quilômetros. Havia uma série de blocos de rocha a direita, a algumas centenas de metros de distância. Afora isso, porém, tudo parecia um deserto, sem casas, sem nada.

— Podemos morrer aqui - resmungou Raven. - Foi uma idéia estúpida. Deveríamos ter ficado no carro.

— Não quero ter de voltar tudo de novo — disse Borboleta. — Você quer, Crystal?

— Ao chegarmos lá, provavelmente já teria amanhecido. Podemos muito bem descansar ali.

Crystal indicou os blocos de rocha. Concordei com a sugestão.

Talvez porque tivessem passado o dia inteiro expostas ao sol forte, as rochas estavam quentes ao contato. Encontramos um pequeno espaço plano entre dois blocos e nos sentamos. Quase no mesmo instante em que nos acomodamos, alguma coisa correu por cima do bloco à direita. Raven soltou um grito.

— O que foi aquilo?

— Parecia um rato saltador — disse Crystal, muito calma.

— Um rato? Por que há ratos? — resmungou Raven. — Não há barracos ou latas de lixo.

Crystal riu.

— É um tipo diferente de roedor, Raven. São parecidos com os camundongos silvestres.

— Pois eles que procurem outro lugar.

— Este é o habitat natural deles, não o nosso. Somos hóspedes aqui.

— Ah, somos hóspedes! Obrigada, obrigada, Crystal, mas prefiro ser hóspede na casa de pessoas.

— Eu também — murmurou Borboleta. — Eu gostaria de voltar à casa de Norman e Nana. Quando vivia com os Delorice, eu tinha avós, mas eles quase não apareciam e nunca me convidaram para dormir em sua casa. Acho que não gostavam de mim.

— É bem provável que não gostassem da idéia de uma neta adotada — comentou Crystal. — Não era por você. Não gostariam de ninguém que os pais adotivos levassem para casa.

— Tentei fazer com que gostassem de mim. Costumava dançar para eles. Mas nunca me convidaram para ir em sua casa.

A tristeza de Borboleta era tão grande, que resolvi interferir:

— Eles é que saíram perdendo, não você.

Nós quatro nos aconchegamos. Borboleta se enros-cou toda, e eu disse a ela que podia pôr a cabeça em meu colo, se quisesse. Ela queria. Raven sentou-se com os joelhos levantados, a cabeça baixa por um momento. Depois, soltou um suspiro profundo.

— Sempre seremos sozinhas — disse ela. — Não importa o que fizermos, o que tentarmos, sempre acabaremos assim, sozinhas.

— Falar desse jeito não vai nos adiantar coisa alguma agora, Raven — aconselhou Crystal.

Raven olhou para ela.

— Só por uma vez, Crystal, uma única vez, eu gostaria de ver você agir como um ser humano, não como uma espécie de computador em forma de pessoa. Não me diga que está sentada aqui, perdida em algum lugar do deserto, sem dinheiro, sem qualquer plano em sua brilhante cabeça, sem sentir um pouco de pena de si mesma... e sem estar muito assustada. Não me diga isso.

— Claro que não vou dizer — respondeu Crystal no mesmo instante. — Provavelmente estou mais assustada do que vocês. E mais deprimida. Mas não vejo qualquer utilidade em me lamentar e gemer.

— Pelo menos você põe para fora, Crystal — explicou Raven. — Pelo menos você deixa todo mundo saber que tem os mesmos sentimentos. Não acha que isso tem alguma utilidade?

Pela primeira vez em muito tempo, achei que Raven estava certa. E creio que Crystal também pensou assim. Ela permaneceu calada por um longo momento, antes de dizer:

— Está bem. Admito que estou com medo. Já tive medo muitas vezes. Lembro que fiquei apavorada logo depois daquele desastre de carro em que meus pais adotivos morreram, quando ninguém me queria. Os agentes do Estado foram me buscar, e lá estava eu, indo para outra instituição, para viver de novo no meio de estranhos. Uma parte de mim queria ter um ataque, quebrar tudo, chorar um rio. Mas não o fiz.

— Talvez devesse ter feito — comentou Raven.

— Tem razão. Talvez as pessoas tivessem me tratado com mais bondade. Talvez não seja tão ruim assim pedir simpatia e compreensão quando se precisa. Talvez eu nem sempre esteja certa.

Crystal parou de falar e recostou-se, as mãos atrás da cabeça. No mesmo instante removeu uma lágrima do rosto.

— Não precisa cair num berreiro agora — disse Raven. — Não é isso que estou pedindo.

Quase soltei uma risada.

— Nunca falei isso — continuou Crystal, olhando para o céu —, mas muitas vezes desejei ser mais parecida com você, Raven.

— Comigo?

— Isso mesmo. Vejo como é popular com os rapazes. Sei que é bonita. Algum dia alguém vai se apaixonar tanto por você que lhe dará tudo o que quiser. Vai receber as coisas numa bandeja de prata, Raven. Enquanto que eu terei de ganhar, trabalhando muito para conseguir. Não me importo com isso, mas seria uma mentirosa se não admitisse que do seu jeito é mais fácil.

Raven fitava-a através da escuridão.

— Não acha que eu gostaria de ser um pouco mais parecida com você, Crystal? Não acha que eu gostaria que as pessoas vissem além da minha aparência?

— Talvez possamos fundir-nos em uma só pessoa, dando uma à outra o que achamos que é positivo — comentou Crystal.

— Já fizemos isso — disse Raven.

Crystal fitou-a em silêncio por um momento, depois sentou-se e abraçou-a.

— Vou acabar vomitando se vocês duas começarem a se desmanchar em elogios mútuos — gracejei.

Elas riram.

— Ainda estou com sede — queixou-se Borboleta. O que nos fez rir de novo. Afaguei seus lindos cabelos. Raven cantarolou uma canção que sua mãe costumava lhe entoar quando era pequena. Borboleta fechou os olhos. Todas nos aconchegamos umas nas outras e também fechamos os olhos.

— Se descansarmos um pouco — murmurou Crystal —, a situação vai parecer mais esperançosa pela manhã.

— Ratos saltadores... — murmurou Raven.

Não pude deixar de sorrir. Trabalhei muito para tirar a corda do pulso e finalmente consegui. Depois fechei os olhos também, e logo adormeci.

Quando abri os olhos, imaginei que Raven tinha razão. Começaríamos a ver miragens em toda parte. Tornei a fechá-los e abri de novo, mas ele continuava ali, um homem na casa dos trinta anos, usando um chapéu de cau-bói, os cabelos presos num rabo-de-cavalo. Estava montado num lindo cavalo preto e branco, usando uma camisa azul-escura, colete ejeans. Também tinha uma pistola no coldre e um emblema no colete. Tinha a pele morena, e os olhos eram de um tom verde-esmeralda. Contemplava-nos calmamente, enquanto o cavalo mastigava o que devia ser com certeza a única vegetação em quilômetros ao redor. O animal bufou. Raven acordou, logo seguida por Crystal. Borboleta esfregou os olhos e sentou-se.

— Aquela caminhonete enguiçada lá atrás é de vocês? — perguntou o homem.

— Não está enguiçada — expliquei. — Ficou sem gasolina.

Ele balançou a cabeça e sorriu.

— Teriam de percorrer uns oitenta quilômetros a mais antes de saírem da reserva e encontrarem lojas e postos de gasolina.

— Reserva? — repetiu Crystal. O homem acenou com a cabeça.

— Não viram a placa?

— Não, senhor.

— Pois estão numa reserva dos navajos. Sou um Agente da Paz dos índios.

Borboleta chegou mais perto de mim. O homem percebeu seu medo.

— Quem são vocês, meninas?

— É uma longa história. Ele sorriu.

— Esta é a terra das longas histórias. Podem andar um pouco?

— Podemos.

— Ótimo. Sigam-me. — Ele olhou para Borboleta. — Gostaria de ir no cavalo comigo, pequena?

Ela começou a sacudir a cabeça, mas Crystal disse:

— Pode ir, Borboleta. Você está muito cansada.

— Pode montar. O Jake é um cavalo tão manso quanto um cavalo de brinquedo.

O homem desmontou e conduziu o cavalo até Borboleta.

— Faça um carinho nele. Não tenha medo.

Borboleta, ainda tímida, estendeu a mão para afagar o cavalo. O homem tirou do bolso um torrão de açúcar.

— Dê isso a ele, e Jake se tornará seu maior amigo.

O homem entregou-lhe o torrão de açúcar, e Borboleta começou a estendê-lo para o cavalo.

— Espere um instante — disse ele. — Estenda mão assim e deixe o açúcar na palma. Jake pegará com mais facilidade.

Borboleta seguiu as instruções. O cavalo pegou o torrão de açúcar, depois focinhou a mão estendida. Ela soltou uma risada.

— Está vendo? Já são grandes amigos. Vamos embora.

Ergueu-a para montar no cavalo. Borboleta fitou-nos com uma mistura de exultação e medo. O homem montou por sua vez e olhou para nós.

— Venham comigo.

Ele virou o cavalo e começou a contornar os blocos rochosos.

— Fomos presas por um índio? — murmurou Raven. — O que mais nos resta?

— Sermos escalpeladas — sugeriu Crystal.

— Não tem a menor graça! — exclamou Raven, correndo atrás de nós. — Absolutamente nenhuma, Crystal!

Logo depois da colina avistamos uma casa de rancho, um curral com cavalos, algumas galinhas num cercado, uma garagem e um estábulo. Era um oásis no deserto, um gramado extenso, algumas árvores cítricas por trás da casa, e o que parecia ser um riacho.

— Estávamos tão perto e não sabíamos disso... — murmurou Crystal.

O policial índio conversava com Borboleta, que acenava com a cabeça. Entregou as rédeas a ela, ensinou-a como fazer parar o cavalo, e a virá-lo para um lado e para o outro. A risada de Borboleta era tão revigorante quanto lhe seria um copo de água gelada.

Quando chegamos à casa do rancho, ele desmontou e ajudou Borboleta a descer.

— Meu nome é Tommy. Tommy Edwards. Só minha esposa e eu vivemos aqui. O nome dela é Anita. Por aqui, meninas.

Ele subiu os degraus na frente, atravessou a varanda para a porta. O aroma de alguma comida deliciosa nos envolveu no instante em que entramos na casa.

Tommy Edwards sorriu para nós.

— Ovos com bacon. Anita!

Nós quatro nos aconchegamos umas nas outras. Crystal tinha um pouco de terra na testa. Os cabelos de Raven estavam desgrenhados. Ainda usávamos três camisetas. Eu tinha certeza de que formávamos uma cena e tanto.

Anita Edwards veio da cozinha, enxugando as mãos num pano de prato. Vestia um macacão e uma camisa de algodão azul-clara. Os cabelos eram tão compridos e negros quanto os de Raven. Os olhos também eram escuros. As feições eram pequenas, o nariz e a boca tão perfeitos quanto os de qualquer outra mulher comum. Tinha malares salientes e a pele um pouco curtida. Apesar de não aparentar mais de trinta anos, havia algum sinal de velhice em seus olhos, uma expressão de cansaço e angústia. Contemplou-nos com o maior interesse e depois olhou para Tommy.

— Encontrei-as no meio das rochas. O carro enguiçou e elas tiveram de andar. Dormiram ali a noite passada. — Antes que a mulher pudesse perguntar, ele acrescentou: — Acho que se perderam. Não sabiam que estavam na reserva.

Anita se adiantou. Tinha lábios cheios. Havia neles uma insinuação de sorriso afetuoso, mas era como se tudo tivesse de ser mantido sob um controle rígido, a aparência, as palavras, os sentimentos.

— Venham comigo e mostrarei onde podem se lavar — disse ela.

— Boa idéia. — Tommy fitou-nos com uma expressão mais oficial. — E depois tomaremos o café da manhã

— Por aqui.

Anita levou-nos através da casa. A cozinha era nos fundos, a sala à esquerda e os quartos à direita. Passamos também pelo que parecia ser um escritório. As paredes eram cobertas por objetos de artesanato do Oeste americano, lindas peles, mantos, máscaras rituais, armas de fogo, arcos e flechas. Tigelas e estatuetas espalhavam-se pelo chão. Havia arte nativa americana até no banheiro.

— Podem entrar — disse ela, enquanto ia buscar algumas toalhas.

— Obrigada — murmurei.

Ela nos entregou as toalhas e disse que fôssemos para a sala de jantar assim que acabássemos.

— Vou tomar um banho — disse Raven, olhando para o chuveiro, ansiosa.

— À vontade — falei.

Apenas lavei as mãos e o rosto, assim como Crystal e Borboleta. Fomos para a sala de jantar na frente, agora usando apenas uma camiseta. Anita já pusera mais quatro lugares à mesa.

— Sentem-se ali — disse ela, indicando as cadeiras nos lados da mesa. — Onde está a outra amiga?

— Resolveu tomar uma chuveirada — informei.

Anita alteou as sobrancelhas e chegou o mais perto possível de um sorriso ou risada. Tommy voltou antes de Raven sair do banheiro.

— Estou faminto como um urso — disse ele, piscando para nós.

Raven entrou, parecendo revigorada, os cabelos presos atrás da cabeça. Apontei sua cadeira e ela sentou-se no instante em que Anita trazia a travessa de ovos com bacon.

— Estão com fome, meninas? — perguntou Tommy.

— Estou mais faminta do que um urso — respondeu Raven.

Ele soltou uma risada.

— Por que não nos informam seus nomes agora? Foi o que fizemos. Enquanto isso, Anita despejou água em nossos copos.

— Não esperem por mim — disse ela, voltando à cozinha.

— Ouviram o que ela disse, meninas. Vamos comer. Tommy estendeu a travessa para Crystal, que murmurou:

— Obrigada.

Todas nós agradecemos ao nos servirmos. Anita finalmente sentou-se e comeu. Os movimentos eram mecânicos, ela parecia não sentir qualquer apetite. Quando já estávamos quase acabando, Tommy disse:

— Agora, meninas, podem contar como vieram parar aqui. De onde são?

Raven olhou para Crystal, que olhou para mim. Borboleta vinha observando Anita com interesse. Notei que ela também observava Borboleta, um pequeno sorriso insinuando-se em seus lábios.

— Vai acabar descobrindo de qualquer maneira, sr. Edwards. — Achei que era melhor contar tudo de uma vez. — Fugimos de um lar de adoção em Nova York, levando o carro do responsável. Fomos apanhadas anteontem.

Tommy recostou-se e olhou para Anita, que sacudiu a cabeça.

— Foram apanhadas, mas vieram para cá? Não estou entendendo.

— Nosso pai de adoção veio nos buscar. Mas estava mais interessado num pacote de cocaína que escondera sob o banco traseiro do carro do que em nós, que a encontramos por acaso e a jogamos fora. Ficamos com medo de dizer a ele. Fingimos que íamos levá-lo para o lugar em que enterráramos o pacote. Ontem à noite depois que ele nos levou para um motel, fugimos de novo. E de repente nos vimos sem gasolina.

— Ficamos apavoradas e queríamos apenas fugir para bem longe, sem prestar atenção para onde íamos — acrescentou Crystal.

— É uma história incrível — murmurou Tommy.

— Por que voltavam com ele? — perguntou Anita.

— Se não concordássemos em voltar com nosso pai de adoção, iríamos para a cadeia por roubar o carro e porque tivemos medo de nos separarem — explicou Raven.

— Somos irmãs — ressaltei. — Temos de permanecer juntas.

— Estamos sem nenhum dinheiro — disse Crystal. — Temos medo do que ele fará conosco, ainda mais agora.

— Entendo... — Tommy pensou por um momento. — Parece que temos uma situação complicada.

— Ele vai nos encontrar? — perguntou Borboleta.

— Não aqui. — Tommy olhou para Anita. — Vou dar alguns telefonemas.

Ela acenou com a cabeça.

— Posso ajudá-la com a louça? — perguntou Borboleta a Anita.

— Ahn... obrigada.

O rosto de Anita se iluminou com um sorriso genuíno. Borboleta começou a tirar a mesa. Tommy levantou-se e se retirou.

— Acho que vamos voltar para a cadeia — disse Raven, quando sentamos na sala de estar.

— O que mais podemos fazer? Ninguém nos quer, e voltar para Lakewood não é o que queremos. Estou cansada... — Crystal arriou ainda mais na cadeira. -" Cansada de tanto lutar.

— Que maravilha! — exclamou Raven.

Os olhos de Raven deslocaram-se para o console da lareira. Ela se levantou e foi dar uma olhada nas fotos que estavam lá. Continuei sentada, com a sensação de que poderia explodir em lágrimas a qualquer instante.

— Ei, eles têm uma filha! — disse Raven de repente. Ela levou a foto dos três para nos mostrar.

— Por favor, não mexam em meus retratos — disse Anita da porta.

— Oh, desculpe... — murmurou Raven. — Eu apenas admirava sua filha. Onde ela está? Dormindo?

Borboleta entrou e deu uma olhada na foto.

— Isso mesmo, dormindo — respondeu Anita, friamente. — Debaixo da terra.

Olhamos para ela, incapazes de dizer qualquer coisa. Anita percebeu que a notícia nos deixara entristecidas e abrandou um pouco.

— Quando a perdemos, ela tinha pouco mais de três anos. Completaria cinco anos no próximo mês. Tinha um problema com uma válvula do coração.

— Lamentamos muito, sra. Edwards — disse Crystal.

Anita tirou o retrato das mãos de Raven e contemplou-o por um momento.

— O nome dela era Annie, em homenagem à minha mãe. Agora estão juntas.

Ela pôs a foto de volta no consolo da lareira e virou-se para nos fitar, linhas profundas cortando sua testa, enquanto a dor da perda voltava.

— Um dia a luz se apaga em nossa vida. É como uma vela bruxuleando, até que de repente um vento sopra e fica apenas a escuridão.

Anita segurou as lágrimas e comprimiu os lábios. Depois, respirou fundo.

— Meu marido vai ajudá-las. Podem esperar aqui OU lá fora, fiquem à vontade.

E saiu.

— Ela é muito triste — comentou Raven.

— É mesmo; ela olhou para mim na cozinha e desatou a chorar — revelou Borboleta. — E depois me disse para deixar a louça ali e voltar para junto de minhas irmãs.

— Eu me sinto triste por ela — murmurou Raven. O ar ao nosso redor parecia opressivo demais para respirar.

— Vou sair — anunciei, levantando-me.

Lá fora, olhei ao redor e avistei um trator estacionado ao lado do estábulo, com a tampa do motor levantada. Havia ferramentas no chão. Curiosa, fui até lá. Parecia que Tommy Edwards estava trocando as velas. Vi que ele deixara o manual ao lado das ferramentas. Sentei no chão e estudei-o, pensando em Todd e na saudade que eu sentia.

— Há sempre alguma coisa para se fazer num rancho — disse Tommy, saindo da casa e se aproximando.

Larguei o manual e levantei-me apressada.

— Não tive a intenção de assustá-la, Brooke. Tive de entrar em contato com o escritório do FBI para falar sobre o carro de seu pai de adoção e tudo o que me contaram. O FBI deve tomar conhecimento de todos os crimes cometidos ou envolvendo as reservas índias. Fazemos o policiamento aqui, mas achei que era melhor falar com eles. Não quero que as outras meninas fiquem apavoradas por causa disso.

— Pode deixar que explicarei a elas.

— Vão examinar a caminhonete de alto a baixo, para verificar se resta alguma evidência. Também falei com o serviço de proteção à infância. Vão mandar alguém aqui mas demorará um pouco. A pessoa terá de vir de Albuquerque, pois eles estão com poucos funcionários.

— Não importa quanto tempo vai demorar. Acho que nenhuma de nós se importa.

Tommy começou a trabalhar no trator. Voltei para a casa, a fim de dar a notícia. Encontrei Raven saindo pela porta dos fundos.

— Qual é o problema? — perguntou Raven, ao ver minha expressão.

— Tommy me disse que teve de entrar em contato com o FBI.

— O FBI?

— Eles devem ser informados sobre qualquer crime nas reservas índias. Não é apenas por nossa causa.

— Não está preocupada, Brooke?

— Com o quê?

— Talvez nos prendam por não entregar a cocaína. Podemos ir para uma penitenciária federal.

— Duvido muito. Onde estão Crystal e Borboleta? Temos de contar a elas.

— Borboleta voltou à cozinha para ajudar Anita. É curioso como ela não fica inibida com Anita. Talvez seja porque sente pena dela. Crystal diz que Borboleta é atraída para a tristeza de outras pessoas como a mariposa para uma chama.

Sorri.

— Acho que é verdade.

Ouvimos a porta do estábulo ser aberta. Viramos para avistar Tommy saindo com um palomino. O cavalo mancava da perna direita posterior.

— Como vocês estão? — gritou ele.

— Estamos bem — respondi. Raven e eu nos aproximamos.

— O que aconteceu com seu cavalo?

— É uma égua. Pisou num buraco de roedor. O veterinário diz que vai ficar boa, mas precisa fazer pelo menos meia hora de exercício duas vezes por dia. — Ele olhou para Raven. — Acha que pode fazer isso?

— Fazer o quê?

— Apenas andar com Pony Tail num círculo.

- Eu?

Raven olhou para mim e depois para Tommy.

— Isso mesmo. Ela é mansinha.

Ele estendeu as rédeas para Raven, que as pegou e olhou para a égua e depois para mim, antes de começar a andar, com uma expressão de medo e excitamento. A égua seguiu-a, obediente.

— Mantenha esse ritmo! — gritou Tommy. Raven acenou com a cabeça e continuou a andar, parecendo mais orgulhosa do que em qualquer outra ocasião.

— Eu disse a Tommy que ia explicar a Borboleta sobre o FBI — informei a Raven, quando ela passou perto de mim.

Tornei a me encaminhar para a casa. Ao me aproximar, Crystal saiu pela porta da frente com um livro na mão. Ela me viu, sorriu com curiosidade, olhou para Raven.

— Borboleta está bem?

— Muito bem. Anita está lhe mostrando como trabalhar em seu tear.

— Tenho más notícias, Crystal. Tommy ligou para o FBI. Não podia deixar de fazê-lo.

Crystal acenou com a cabeça, como quem já esperava por isso.

— Sabia que ele tinha de comunicar o caso. Antes que pudéssemos entrar para conversar com Borboleta, avistamos um carro se aproximando à distância. Provavelmente o representante do serviço de proteção à infância, pensei. Era um carro azul-escuro, e dois homens de terno saltaram para conversar com Tommy. Ele virou-se e chamou nós duas. Raven continuava a andar com a égua em círculos, e Borboleta estava lá dentro com Anita.

— Brooke, Crystal, estes são os agentes especiais Wilkins e Milton, do FBI. Querem conversar com vocês sobre seu pai de adoção e o que encontraram no carro dele.

— Claro — respondi. — Mas Raven deve participar também da conversa.

Tommy pegou a égua, e Raven veio se juntar a nós na varanda. Relatamos tudo aos agentes do FBI, a fuga da Lakewood House, como encontráramos a cocaína, onde a jogáramos fora, o que acontecera depois. Tommy voltou para a varanda depois de levar Pony Tail para a baia.

— Nosso técnico de laboratório encontrou os resíduos de cocaína — informou o agente Wilkins a Tommy. — As meninas estão dizendo a verdade. O que fará com elas?

— Entrei em contato com o serviço de proteção à infância e eles mandarão um representante.

— Está certo. Mas queremos ser informados do paradeiro delas.

Observamos os dois homens do FBI se afastarem.

— Fizeram o que era certo, meninas — comentou Tommy.

— Lá está Borboleta — disse Raven, olhando para o galinheiro.

Ela caminhava em nossa direção, num excitamento evidente, Anita ao seu lado, carregando um cesto.

— Peguei os ovos! — gritou ela. — Eu mesma! É preciso empurrar um pouco as galinhas, mas elas não bicam!

Havia uma expressão diferente no rosto de Anita. Era como se tivesse despertado de um sonho. Os olhos pareciam mais brilhantes, os lábios mais suaves, mais dispostos a se contraírem num sorriso.

— Vamos fazer um bolo — anunciou ela.

— Vou ajudar — declarou Borboleta. — Certo, Anita?

— Certo. Almoçaremos dentro de meia hora. — Ela olhou para o marido. — Estará aqui?

— Claro. Talvez depois eu leve as meninas para um pequeno passeio nos cavalos.

— Se elas quiserem... — murmurou Anita.

— Montar a cavalo? — disse Crystal. — Não sei montar.

— Ora, Crystal, não venha com essa! — disse Raven. — Se eu posso, você também pode.

— Desde quando sabe montar? — indagou Crystal.

— Posso montar sem qualquer problema. — Raven olhou para Tommy. — Não posso?

— Claro que pode.

— Posso ir também? — indagou Borboleta. Tommy olhou para Anita.

— Pode, sim. Tommy vai selar a Princesa para você.

Anita encaminhou-se para a casa. Borboleta seguiu-a, apressada. Percebi pela expressão de Tommy que alguma coisa significativa fora dita.

— Qual é a Princesa? — indaguei, olhando para o curral.

— A pônei. Era de Annie, nossa filha. Ninguém mais a montou desde que Annie... desde que Annie morreu.

Ele fez uma pausa, para depois acrescentar, com um espanto evidente:

— Incrível! Anita jamais admitiu essa possibilidade... pelo menos até hoje.

 

                     O lar, finalmente

— Vamos fazer um piquenique! — anunciou Borboleta, excitada, quando entramos na casa.

— Não é exatamente um piquenique — explicou Anita, da porta da cozinha. — Apenas almoçaremos no pátio lá atrás, onde temos mesas de piquenique.

— Podemos ajudar? — indagou Raven.

— Tudo do que precisamos está no balcão da cozinha — informou Anita. — Borboleta vai lhes mostrar.

Orgulhosa por ter recebido um papel de liderança, Borboleta levou-nos até os pratos e talheres, os jogos americanos, limonada fresca, pão feito em casa e condimentos. Cada uma se serviu como quis após Borboleta nos indicar a mesa.

O pátio nos fundos da casa oferecia um cenário maravilhoso para se comer. Dali se podia avistar as montanhas. Notamos que os picos continuavam cobertos de neve. O riacho passava perto, a água borbulhan-do bastante alto para que ouvíssemos. Anita saiu da casa, acompanhada por Tommy. Carregava uma panela de barro grande, que pôs na mesa. Sentamos. Tommy parecia muito satisfeito.

— Devo agradecer a vocês, meninas, por ter a minha sopa predileta no almoço.

— Faço esta sopa muitas vezes, Tommy Edwards — disse Anita.

Ela pegou a concha e começou a servir a sopa nas tigelas.

— O cheiro é delicioso — comentou Raven. — o que é?

— Sopa de galinha, abacate e limão tortilla — informou Anita, servindo a si mesma e sentando-se.

— Saborosa como sempre — murmurou Tommy, depois da primeira colherada.

— Está uma delícia — comentei, com sinceridade.

— Ajudei a preparar! — informou Borboleta, radiante. — Não foi, Anita?

Ela olhou para Borboleta e sorriu.

— Janet cortou e fritou as tortillas.

— A tortilla é uma comida índia, não é? — perguntou Raven.

— Do sudoeste, mexicana — informou Tommy. — Todos partilhamos suas origens.

— Vocês dois são navajos de sangue puro? — indagou Crystal.

Anita olhou para Tommy, que sorriu e disse:

— Há controvérsias a respeito.

— Li sobre os navajos naquele livro de vocês — continuou Crystal. — A tribo é dividida em mais de cinqüenta clãs. Achei interessante que a descendência seja traçada pela linha feminina.

— Isso mesmo — confirmou Tommy. — Somos os primeiros libertadores femininos autênticos.

— Também são a segunda maior tribo de índios dos Estados Unidos — acrescentou Crystal.

— Crystal é uma estudante fanática — comentou Raven. — Basta lhe dar um dia e ela saberá mais a seu respeito do que você próprio jamais soube.

— Acontece que não gosto de desperdiçar tempo — disse Crystal, na defensiva. — Por isso, leio.

— Sinto-me lisonjeado por você querer saber mais a nosso respeito — declarou Tommy. — E provavelmente saberá em breve mais do que eu.

— Com toda certeza — acrescentou Anita. Tommy fitou-a e sorriu. Anita pareceu se dar conta de que fizera um comentário engraçado e baixou os olhos no mesmo instante. Era como uma vela tentando se acender de novo. Cada vez que havia uma pequena centelha de esperança, ela se apressava em sufocá-la com o sentimento de culpa.

— Esta região pode não ser rica em gás ou petróleo, mas para mim é rica em outras coisas — comentou Tommy.

— Sempre me interessei pelos nativos americanos - disse Crystal. — Acha que o vento é espiritual?

— Creio que há alguma coisa de espiritual em toda a natureza — respondeu Tommy. — Quanto mais a pessoa se afasta da natureza, mais se afasta do que é espiritual. É por isso que vivemos aqui.

— Adorei este lugar! — exclamou Borboleta.

Ela dava a impressão de que havia algo prestes a explodir em seu coração de tanto alvoroço. Todos ficaram em silêncio. Foi nesse momento que o telefone tocou.

— Vou atender — disse Tommy, levantando-se e entrando na casa apressado.

— Você tem trajes índios? — perguntou Raven a Anita.

— Trajes? Tenho, sim... acho que se pode chamar assim. Talvez você queira ver. Eu lhe mostrarei depois do almoço. Minha mãe fez para mim há muito tempo. Acho que pode caber em você.

— É mesmo?

Os olhos de Raven se encheram de excitamento. Anita sorriu. Era como se o seu rosto descongelasse lentamente.

— Era do serviço de proteção à infância — informou Tommy, ao voltar.

— Já estão a caminho? — perguntei, desolada.

— Não. Não poderão vir hoje. Pediram que eu as levasse ao xerife, para que sejam despachadas para Albuquerque.

— Despachadas? — repetiu Anita, antes que pudéssemos reagir. — O que elas são? Mercadorias?

— Eu disse que as meninas podiam passar a noite aqui. — Fitou Anita e esperou. — É possível?

— Claro — respondeu ela. — Nem precisava perguntar.

Com lágrimas nos olhos, ela se ergueu e começou a levar as coisas para a casa. Borboleta também se levantou no instante seguinte, pondo-se a recolher tigelas e pratos. Quando estava com os braços cheios, ela seguiu Anita para a cozinha. Tommy continuou sentado e disse, falando devagar, em voz baixa:

— Anita não tem passado bem desde a morte de Annie. Há ocasiões em que não consegue parar de chorar. Em certos momentos ela se torna tão retraída que sinto que não está mais aqui. Não fiquem aborrecidas com ela.

— Claro que não! — exclamei.

— Nunca! — acrescentou Raven.

— Compreendemos o que significa perder alguém que se ama — murmurou Crystal.

Tommy sorriu.

— Sei disso, meninas. Vamos até o curral para selar alguns cavalos. Posso lhes mostrar uma parte da reserva antes de partirem.

— Não podemos ir no jipe? — suplicou Crystal.

— Não é a mesma coisa. Vão querer sentir como é, ter uma experiência autêntica. — Tommy sorriu de novo. — Não está querendo aprender tudo sobre nós?

O rosto de Crystal murchou.

— Pare de se preocupar — acrescentou Tommy. — Vai se sair muito bem. Eu lhe darei o Cavalo Sem Nome.

— Sem nome? — repetiu Crystal. — Por que ele não tem um nome?

— Nunca fica quieto por tempo suficiente para que possamos fazê-lo entender um nome.

— O quê?

Todo mundo riu. Levantamo-nos e ajudamos a levar o resto das coisas para a casa. Mais tarde, Anita saiu para observar Tommy selar os cavalos para nós e a pônei para Borboleta. Ele começou com uma pequena preleção sobre equitação.

— Seus cavalos seguirão o meu. São treinados para fazer isso. Portanto, não se preocupem. O importante é nunca entrar em pânico, nunca transmitir medo ao animal. Ele vai sentir e ficará nervoso. Você é quem está no controle.

Tommy ajudou Borboleta a montar na pônei. Ela parecia ter sido instalada num trono. Nunca a víramos tão radiante e feliz. Quando tornei a olhar para Anita, ela estava parada de braços cruzados, contemplando a cena com um pequeno sorriso.

Tommy lhe gritou alguma coisa numa língua que não entendíamos. Ela sacudiu a cabeça.

— Tome cuidado com elas, policial Tommy Edwards — advertiu Anita.

Ele soltou uma risada.

— Muito bem, meninas, façam o que eu mandei.

Cutucamos os cavalos com a parte de trás dos sapatos. Eles partiram atrás de Tommy. Todas nos sacudíamos. Crystal se segurava como se sua vida dependesse daquilo.

— Tommy disse para não segurar na sela — lembrou Raven.

— Sei o que ele disse! — resmungou Crystal.

Ela prendeu a respiração, fechou os olhos e continuou parecendo apavorada, enquanto seguíamos na direção das montanhas. Nem em nossos devaneios mais delirantes poderíamos nos imaginar cavalgando, com um nativo americano navajo nos mostrando seu mundo de maravilhas naturais.

Apesar de seus medos, Crystal gostou do passeio tanto quanto as outras. Ela e Tommy conversaram sobre pedras e animais, o deserto e o povo navajo. Raven era uma amazona natural e Borboleta dava a impressão de que poderia atravessar toda a eternidade na pônei. Não fomos muito longe, mas assim nos pareceu. Paramos para descansar no meio do passeio. Tommy aproveitou-para nos fazer mais perguntas sobre nossa vida em Lakewood. Crystal explicou por que nos sentíamos encurraladas. Foi quando Tommy revelou que também fora adotado.

— Mas ainda fiquei na família — disse ele. — Fui adotado por meus tios.

— O que aconteceu com seu pai e sua mãe? — perguntou Raven.

— Fui um filho ilegítimo. Meu pai nunca me reconheceu, e os pais de minha mãe ficaram transtornados. Talvez tenham percebido o sorriso de Anita quando me perguntaram se eu era um navajo de sangue puro. Houve quem achasse que eu não era. Mas creio que o mais importante é o que você tem no coração. Isso dirá às pessoas quem você realmente é. Todo o resto é superficial. Tenho certeza de que entendem o que isso significa.

— Se não entendêssemos, Crystal se apressaria em explicar — comentou Raven.

Tommy soltou uma risada.

— Vocês têm um tipo diferente de sinal de sela, meninas. É o que deriva de viajarem juntas. — Ele fez uma pausa. — Mas aposto que lutariam como um puma acuado se alguém tentasse separá-las.

— É verdade — murmurei.

Ele balançou a cabeça, com ar de tristeza.

— A posição do sol indica que já são três e meia. É melhor voltarmos. Tenho algumas tarefas para realizar e uma pequena patrulha a fazer antes do jantar.

Montamos e começamos a voltar, observando o sol alcançar o topo das montanhas. As sombras tornaram-se mais longas em alguns pontos, povoando as fendas e os vales com uma suave escuridão. Um falcão voou pelo céu por cima de nós, num largo círculo. Tommy informou que o falcão podia avistar um rato-do-deserto mesmo daquela altura.

Aquele lugar era um mundo estranho e maravilhoso, pensei. Por algum tempo, fizera com que esquecêssemos nossos sonhos. Raven não falara em se tornar uma cantora famosa, Crystal não mencionara a escola, e eu parara de fantasiar o encontro com minha mãe verdadeira.

Anita nos esperava quando voltamos. Pensávamos que bastava desmontar e não haveria mais problemas, mas Tommy explicou que tínhamos de andar com os cavalos por mais algum tempo. Também quis que o ajudássemos a tirar os arreios.

— Você tem de cuidar bem das coisas que ama por aqui ou não as terá por muito tempo — disse ele.

— Às vezes nem isso ajuda — comentou Anita.

Os olhos dos dois se encontraram por um momento. Tommy desviou o rosto. Borboleta pediu para voltar à casa com ela, a fim de poder se lavar e ajudar no preparo do jantar.

— Também vou arrumar as camas — acrescentou Anita.

Depois que elas se afastaram, perguntei a Tommy:

— Não foi possível fazer nada por Annie?

— Tentamos tudo. Nós a levamos para o maior hospital para ser operada. Mas seu coração era pequeno demais. Anita ficou com medo de ter outra criança. Acha que nascerá com o mesmo defeito ou outro parecido. Ela é mais supersticiosa do que eu.

— Há meios de examinar o feto enquanto se desenvolve, para se determinar se tem algum problema — explicou Crystal.

Ele sorriu.

— Há um toque de tambor diferente no coração de Anita agora. Talvez possa mudar em breve.

Depois que terminamos de cuidar dos cavalos, entramos na casa para nos lavar. Anita arrumara os dois quartos de hóspedes para nós. Numa das camas havia um lindo vestido de couro de gamo, decorado com contas turquesas. Ela disse a Raven para experimentá-lo. Tive de admitir que Raven ficou fantástica. Foi o que todos acharam.

— Talvez você também tenha sangue navajo — comentou Tommy, rindo.

Raven perguntou se poderia usar o vestido no jantar. Anita permitiu. Antes do jantar, Borboleta perguntou a Anita sobre os tambores que estavam num recanto da sala de estar. Para espanto de Tommy e prazer nosso, Anita tocou um tambor e entoou um canto navajo de moer milho. Sua voz era profunda e rica. Pude sentir sua herança, orgulhosa e viva, ainda vibrando no coração machucado. Tommy mostrou a Borboleta alguns passos de uma dança cerimonial. Em poucos segundos ela já dava os passos tão bem quanto ele, se não melhor. Anita riu de verdade, o som rachando as camadas da gélida tristeza que haviam coberto as paredes daquela casa por tanto tempo.

Para o jantar, Anita preparara, com Borboleta ao seu lado na cozinha, fajitas de galinha, com arroz e feijão. Era um banquete mexicano, como nunca havíamos experimentado antes.

— Meu estômago agradece por vocês terem se perdido na reserva, meninas — declarou Tommy.

— Tommy Edwards, vou escalpelá-lo se fizer essas meninas pensarem que não cozinho para você nos outros dias!

Ele riu e ergueu os braços.

— Estou brincando, meninas... e podem ter certeza de que ela cumpriria a ameaça!

Era extraordinária a diferença no clima ao café da manhã e agora no jantar. Estávamos todos mais relaxados. Fora um dia maravilhoso, surpreendentemente feliz. O telefone tocou outra vez, antes de acabarmos de tirar a mesa. Tommy voltou para nos informar que o FBI encontrara Gordon Tooey.

— Ele voltou para Nova York — informou Tommy, lançando um olhar para Anita.

— E o resto? — perguntou ela.

— Havia alguém muito zangado com ele. Não precisam mais se preocupar com a possibilidade de Gordon Tooey vir atrás de vocês, meninas, nunca mais.

Apesar do nosso medo e aversão a Gordon, a notícia era chocante. Trocamos olhares, sentindo um aperto no coração.

— Louise deverá perder o lar de adoção — comentou Crystal.

— É mais do que provável — concordou Tommy. — Não podem deixar de revogar sua licença. Há uma grande necessidade de lares de adoção em todo o país e esse problema é cada vez maior.

— Para onde vão nos mandar agora? — especulou Raven.

O clima descontraído e feliz antes predominante se dissipou como fumaça, substituído por um ambiente pesado, sem sorrisos, de movimentos lentos e mecânicos. Raven decidiu tirar o vestido de índia. Depois, foi se juntar a Crystal e a mim na varanda. Borboleta ainda ajudava Anita a arrumar tudo.

— Para onde quer que nos mandem, não será por muito tempo — comentou Crystal. — Assim que completarmos dezoito anos, teremos de cuidar de nós mesmas. Eu irei para a universidade. Talvez você vá viver com Todd, Brooke.

— Não sei. Não nos falamos desde aquele dia. É provável que ele já tenha me esquecido.

— Não, se sentia realmente alguma coisa por você — disse Raven. — Ainda vou tentar fazer carreira no show business. Não me importa o que tiver de fazer. Trabalharei como garçonete, faxineira, qualquer coisa, até conseguir minha grande oportunidade. E se isso nunca acontecer, irei morar com você e Todd.

— Parem de se intrometer na minha vida, vocês duas — protestei. — Também tenho coisas para fazer antes de sossegar. Ainda tenciono ir à Califórnia.

— Como vai fazer para encontrá-la? — perguntou Crystal.

Virei-me para ela.

— Como sabe o que quero fazer?

— Já deixou escapar muitas insinuações a respeito, Brooke. E hoje em dia é mais fácil encontrar alguém do que no passado. Talvez você consiga.

Ela se inclinou e segurei sua mão. Peguei também a de Raven. Ficamos sentadas, com as estrelas cintilan-do por cima de nós no céu do deserto. Em algum lugar, a distância, ouvimos um uivo estranho. Crystal disse que era um coiote.

— Ela está certa — confirmou Tommy, saindo das sombras. Não sabíamos há quanto tempo ele estava ali.

— Como conhece o som, Crystal?

— Consta de um software que usei quando fiz um trabalho para o curso de ciências.

— Sua escola é, sem dúvida, diferente da escola em que estudei.

— A que horas vamos partir amanhã? — perguntei.

— Logo depois do desjejum, devemos levá-las para o escritório do xerife, em Gallup. É ali que o pessoal da proteção à infância de Albuquerque irá buscá-las. Vocês são maravilhosas. Tenho certeza de que se sairão bem em qualquer lugar.

Ficamos em silêncio.

— Estou cansado — acrescentou Tommy. — Sempre levantamos com o sol por aqui. Até amanhã.

— Boa-noite, Tommy — murmurei. Continuamos sentadas por mais algum tempo, até decidirmos que também nos sentíamos muito cansadas. As camas eram bastante confortáveis, os quartos revestidos com painéis de carvalho amarelo, os móveis ao estilo do sudoeste. O ar noturno era fresco, propício para um sono agradável, só que nenhuma de nós teve facilidade para desligar a ansiedade. Antes que Raven e eu sequer tentássemos dormir, Crystal veio nos dizer que Borboleta se comportava de uma maneira estranha.

— Ela não quer falar — informou Crystal. — Está toda enroscada na cama.

— Todas nós estamos exaustas — disse Raven. — Você tinha razão. É extenuante fugir, e também um esforço demasiado para uma garota frágil como Borboleta.

— Anita deu para ela um autêntico colar índio. Borboleta colocou-o para dormir.

— Isso é ótimo — murmurei. — Anita é muito mais simpática do que eu pensei a princípio.

— Todas as pessoas que conhecemos parecem magoadas de um jeito ou de outro — comentou Crystal.

Era uma dessas declarações profundamente filosóficas que ela era capaz de plantar em minha mente e deixar ali, para crescer por conta própria.

Crystal voltou a seu quarto. Raven e eu permanecemos caladas, nem mesmo desejamos boa-noite uma para a outra. Ela virou-se e adormeceu antes de mim. Passei algum tempo escutando o vento e vi uma pequena nuvem passar sob o quarto de lua. Acabei fechando os olhos e mergulhei no sono. Só acordei quando meu corpo foi vigorosamente sacudido. Abri os olhos no mesmo instante. Deparei com Crystal ao lado da cama, em pânico.

— Ela está catatônica de novo, pior do que jamais vi! Depressa, Brooke!

Saltei da cama e acordamos Raven. Era como despertar os mortos. Mas quando ela soube qual era o problema, ficou logo alerta. Fomos cercar Borboleta. Como Crystal descrevera, ela se contraíra toda, as pernas dobradas contra a barriga, os braços virados para dentro, as mãos se apertando como garras, os olhos comprimidos, os lábios grudados, um filete de saliva escorrendo do canto direito. Parecia até que nem respirava. Um ímpeto de pânico apertou meu coração.

— Oh, Crystal, nunca a vi assim antes! O rosto está pálido demais, os lábios cada vez mais roxos...

Crystal balançou a cabeça.

— Seu estado é mesmo terrível.

Demos as mãos e encostamos a cabeça em Borboleta. Crystal iniciou o cântico.

— Somos irmãs. Sempre seremos irmãs. Nada pode nos magoar enquanto permanecermos juntas.

Raven e eu a acompanhamos. Nossas vozes foram se tornando mais e mais desesperadas ao encerrarmos um coro sem que houvesse qualquer alteração.

— Crystal!

— Vamos continuar tentando.

Entoamos o cântico ainda mais alto, o desespero se acumulando em nossas vozes.

— O que está acontecendo? — indagou Anita da porta.

Paramos no mesmo instante. Borboleta continuava catatônica. Anita entrou no quarto e olhou para ela.

— O que está acontecendo? — perguntou outra vez.

— Ela fica assim às vezes — explicou Crystal. — É um problema emocional. Sempre conseguimos ajudá-la, juntando-nos e entoando nosso cântico. Mas agora não está dando certo.

— Oh, Deus! — exclamou Anita. — Ela está fazendo parar o próprio coração, a respiração! Tommy! TOMMY!

Ele veio correndo para o quarto. Assim que viu Borboleta e ouviu a explicação, pegou-a no colo e disse:

— Vamos levá-la para o hospital.

— Depressa, Tommy! — gritou Anita.

Fomos para o jipe. Anita segurou Borboleta no colo, enquanto nós três nos apertávamos atrás. Tommy partiu aos solavancos pela estrada de terra. Mesmo assim, Borboleta continuou com os olhos fechados. Anita embalava-a e beijava sua testa. Afagava seus cabelos, apertava-a com força. Nós três trocávamos olhares, todas pensando a mesma coisa. Se Borboleta morresse, seria porque decidíramos fugir. De cabeça baixa, rezamos de mãos dadas. O jipe sacudia-se todo, enquanto Tommy acelerava o máximo possível.

E de repente, milagrosamente para nós, Borboleta gemeu. Anita multiplicou os beijos, murmúrios e gestos de conforto. Embalou-a mais e mais, sempre chamando-a, até que Borboleta abriu os olhos. A cor retornou a seu rosto.

— Ela está melhor, Tommy — anunciou Anita, rindo através das lágrimas. — Ela está melhor.

— Apesar disso, convém levá-la ao hospital.

No entanto, ao chegarmos, Borboleta já se encontrava plenamente alerta. Até entrou andando no pronto-socorro, segurando a mão de Anita. Nós três esperamos com Tommy no saguão, enquanto Anita a levava para a sala de exames.

— Esta foi a primeira vez que não conseguimos trazê-la de volta — lembrou-nos Crystal. — Foi Anita quem conseguiu.

Tommy arregalou os olhos, balançou a cabeça. Quase uma hora depois Anita veio nos dizer que Borboleta passava bem.

— Todos os sinais vitais são bons. O médico acha que a crise foi causada por um choque psicológico, o que não significa que não é grave. Ela precisa de muito cuidado e carinho. — Anita disse isso mais para o marido do que para nós. — E ela não terá isso no lugar para onde vai, Tommy.

Ele se limitou a acenar com a cabeça.

Depois, Tommy decidiu nos levar para tomar o café da manhã numa lanchonete ali perto. Só que ninguém tinha fome. Deixamos mais no prato do que pusemos no estômago. A viagem de volta ao rancho foi mais vagarosa, mais quieta. Ao chegarmos, arrumamos as poucas coisas que tínhamos, e ficamos esperando que Tommy nos levasse para o gabinete do xerife.

— Anita me deu o vestido — murmurou Raven, mostrando o traje de pele de gamo. — Disse que me pertence porque fica muito bem em mim. Tommy e Anita foram muito bons para nós. Fico contente que a gasolina tenha acabado aqui, Brooke.

— Eu também.

Chegou a hora de partir. Anita decidiu nos acompanhar e sentou-se na frente com Borboleta. A assistente social nos esperava no gabinete do xerife. Era uma mulher simpática, em torno dos quarenta anos, cabelos castanho-escuros, crespos. Foi se isolar numa sala com Tommy e Anita, para tratar dos detalhes. Passaram um bocado de tempo lá dentro. Pude ver, através do vidro, que a mulher, sra. Wilson, falava ao telefone. Conversou mais um pouco com Tommy e Anita. Depois, Tommy saiu sozinho.

— Vai demorar mais um pouco — avisou ele.

— Para onde vão nos levar? — perguntei.

— Ainda não ficou decidido, mas tudo indica que voltarão para Nova York. Não se preocupem... não será para a Lakewood House. — Ele fez uma pausa. — A sra. Wilson gostaria de falar com Janet.

Borboleta, que ficara de cabeça baixa durante a maior parte do tempo, levantou os olhos, surpresa.

— Não tem problema? — perguntou Tommy. Borboleta olhou para Crystal, que acenou com a cabeça. Tommy pegou a mão dela e levou-a para a sala. Depois voltou e convidou-nos para tomar um sorvete.

— Temos uma máquina de sorvete antiga aqui. Fomos para uma drugstore com a máquina de sorvete antiga e reservados no fundo.

— O que está acontecendo? — sussurrei para Crystal.

Ela deu de ombros e indagou:

— Qual é a novidade de ficar esperando por causa de detalhes burocráticos, Brooke?

Tommy nos trouxe os sorvetes e sentamos num reservado vermelho, com botões cromados.

— Cada vez que venho aqui, tenho a sensação de que voltei ao passado numa máquina do tempo — comentou ele.

— O lugar é simpático — admitiu Raven, olhando ao redor.

— Vocês passaram por muitas coisas juntas, não é mesmo? Foram anos, pelo que sei.

— É verdade — confirmou Crystal. — Houve ocasiões em que torcíamos para que nos separassem e levassem cada uma para um lar maravilhoso. No entanto, à medida que os anos foram passando, compreendemos que seria cada vez menos provável.

Ela relatou a Tommy a oportunidade mais recente que Borboleta tivera de ser adotada e como Louise a sabotara

Ele sacudiu a cabeça.

— É muito triste quando as pessoas são cruéis com as crianças. Preciso perguntar uma coisa a vocês. Pelo pouco tempo que nos conhecemos, sei que Borboleta nunca faria qualquer coisa sem a aprovação de todas. Perguntamos à sra. Wilson se podíamos ficar com ela, como seus tutores provisórios, para depois adotá-la como nossa filha.

— Pediram isso? — balbuciou Raven.

— O que ela disse? — acrescentou Crystal.

— Está descobrindo o que tem de ser feito, mas há uma boa possibilidade. O que vocês acham?

Ninguém disse nada por um momento.

— Ficaríamos muito felizes por ela — disse Crystal finalmente. — De qualquer forma, Tommy, não continuaremos juntas por mais tempo. Completaremos dezoito anos em breve e sairemos do sistema. Borboleta merece encontrar um lar cheio de amor antes que isso aconteça.

— São muito generosas, meninas. Eu gostaria de poder ficar com todas, mas isso seria muito difícil de conseguir. Além do mais, tenho a impressão de que preferem um lugar com mais ação: uma oportunidade melhor de educação para você, Crystal, um lugar em que possa se realizar como cantora, Raven, e já sei que Brooke fala muito em ir para a Califórnia... e está ansiosa para encontrar um certo rapaz. Talvez você deva até ligar para ele agora.

Tommy tirou um punhado de moedas do bolso e acrescentou:

— Não seria bom avisá-lo de que você está bem? Olhei para as moedas, como se fossem pepitas de ouro, e depois para o telefone público.

— Ligue logo — exortou Raven.

Não esperei por mais insistência. Levantei-me numa fração de segundo. Todd atendeu o telefone ao primeiro toque da campainha.

— Por acaso eu me encontrava no escritório — disse ele. — Onde você está?

Contei tudo o que era possível espremer em dois minutos e depois prometi-lhe que tornaria a telefonar assim que soubesse para onde eu ia.

— Onde quer que esteja, Brooke, eu irei até você. Vou sentir muita saudade.

— Eu também.

Todos tinham sorrisos tolos quando voltei à mesa.

— E então? — indagou Raven.

— Betty Lou só está esperando a informação do local.

Raven soltou uma risada. Crystal sorriu e me abraçou.

— Obrigada, Tommy — murmurei.

— Eu é que agradeço, meninas. Vocês me ajudaram a ter de volta minha Anita. Não se enganem quanto a isso. Precisamos de Borboleta mais do que ela precisa de nós.

Ele tinha lágrimas nos olhos. Nós também.

Borboleta nos esperava quando voltamos. Tommy foi para a sala com Anita e a sra. Wilson, para continuarem a conversar. Papéis eram despachados por aparelhos de fax. O processo começara.

— Anita quer que eu fique com ela — anunciou Borboleta para nós.

— Já sabemos, Borboleta — disse Crystal. — É maravilhoso, se também quiser. Você quer?

— Quero, sim... mas não quero deixar vocês.

— Não pense que não tornaremos a vê-la — declarou Raven, procurando confortá-la.

— Assim que pudermos, viremos visitá-la — acrescentou Crystal. — Tommy já nos convidou.

— É mesmo?

— É, sim — confirmei. Borboleta sorriu.

— Vou cuidar da pônei pessoalmente. Todas rimos e a abraçamos.

Tommy, Anita e a sra. Wilson finalmente saíram da sala. Fora tudo acertado. Borboleta poderia ficar no rancho enquanto eram cumpridas as formalidades.

— E nós? — perguntou Crystal.

— Vou levá-las para Albuquerque, onde ficarão alojadas até voltarem para Nova York. Tenho certeza de que irão para um bom lugar quando chegarem lá.

Crystal não riu, mas lançou para a sra. Wilson um dos seus olhares de "Não diga besteira!", o que arrancou um sorriso meu e de Raven.

Nós a seguimos para o carro. Raven decidiu sentar na frente. Crystal e eu fomos para o banco traseiro. Antes, abraçamos e beijamos Borboleta mais uma vez. Depois, abraçamos e beijamos Tommy e Anita.

— Assim que for possível, providenciaremos para que vocês nos visitem — prometeu Tommy.

— Seria ótimo — respondi. — Crystal mal pode esperar para montar a cavalo de novo.

Tommy riu. Anita segurava a mão de Borboleta, que apertava seus dedos, as duas dando a impressão de que haviam encontrado razões para continuar vivendo, amando e apreciando tudo o que era bom e belo neste mundo.

Partimos no carro da sra. Wilson, em silêncio.

Eu pensava em minha mãe verdadeira e qual seria a sensação de segurar sua mão. Perguntei-me o que Raven e Crystal estariam pensando. Desejei que fosse em alguma coisa boa. Percorrêramos um longo caminho para acalentar pensamentos tristes. O céu à nossa frente parecia mais azul do que o normal. O fato de Borboleta ter encontrado um novo lar nos proporcionava uma esperança renovada.

Podíamos e deveríamos estar otimistas? Ousaríamos nos sentir assim?

Subitamente, sem aviso, Crystal inclinou-se e pegou minha mão. Olhamos uma para a outra e sorrimos.

— Ela não parecia feliz? — indagou Crystal.

— E muito — disse Raven.

Ela virou-se para trás, as lágrimas escorrendo pelas faces. Pegou nossas mãos.

— Somos irmãs — começou Crystal.

— Sempre seremos irmãs — acrescentamos Raven e eu.

— As Orfãteiras! — exclamamos ao mesmo tempo. E nossos risos ressoaram pela estrada que nos levava a novas promessas e a um novo futuro.

 

Todd e eu voamos de nossa nova casa no Illinois para Albuquerque. Raven veio de Los Angeles, onde acabara de assinar um contrato para seu primeiro CD e ganhara um pequeno papel num filme. Crystal fora aceita em Harvard num programa de bolsas de estudo especiais. Ela trabalhava na biblioteca, o que lhe proporcionava um pequeno rendimento adicional. Combinamos que nos encontraríamos no aeroporto e alugaríamos um carro juntas. Nunca deixáramos de manter contato. Crystal gostava de escrever longas cartas. Eu guardava todas as que recebia, dizendo a Todd que um dia seriam valiosas. Eram muito bem escritas, detalhadas, proporcionando-me a sensação de que me encontrava a seu lado, aprendendo, experimentando a vida universitária. Raven rabiscava linhas em cartões-postais, mas na maioria das vezes preferia telefonar; e eu fazia a mesma coisa. Todas telefonávamos para Borboleta, até mesmo Crystal, porque o som de sua voz era importante para nós, assim como nossas vozes para ela.

Borboleta estava prestes a terminar o curso superior. Dentro de um mês se tornaria assistente social. Ela queria usar a experiência de sua vida para ajudar os jovens.

Já nos encontráramos duas vezes antes, mas quase um ano e meio transcorrera desde a última visita. Pouco mais de um ano depois de Borboleta começar a viver com Tommy e Anita, esta engravidara. Nascera um menino, a quem deram o nome de Steven. Foi logo substituído pelo apelido de Popeye, porque ele adorava espinafre e tinha braços muito fortes para um bebê. Era tudo o que Annie não fora, ou seja, uma criança saudável. A superstição fora desfeita. Sabíamos também que Anita estava convencida de que fora por causa da energia positiva que Borboleta incutira na vida do casal.

Todd e eu fomos os primeiros a chegar. Estávamos esperando, quando o avião de Raven pousou e ela passou pelo portão. Tornara-se mais histriônica do que nunca, tão exuberante quanto podia, usando um vestido amarelo decotado e sensual, exibindo os lindos cabelos lisos, os saltos altos ressoando no chão. Ao que parecia, ela fizera o maior sucesso com um dos tripulantes que viera no mesmo vôo, que chegou a suplicar que mudasse sua passagem, a fim de viajar com ela em seu vôo de volta para Los Angeles.

— Brooke! — gritou ela ao me ver.

Raven correu para os abraços, e nos enlaçamos e giramos, como adolescentes.

— Oi, Todd.

Ela deu-lhe um beijo algo fervoroso, que o surpreendeu tanto quanto a mim. Depois, segurando meus braços, acrescentou:

— Você está maravilhosa, Brooke. Pensei que a essa altura iria encontrá-la gorda e grávida.

— Ainda não estamos preparados para isso, Raven. Foi o que eu disse em nossa última conversa. Resolvemos ampliar a oficina e fazer alinhamento de direção.

— Ah, é isso mesmo, alinhamento de direção. Também alinhei meus dentes. — Ela passou os braços pelos nossos. — É muito importante manter a aparência o melhor possível. Não importa o que digam; a verdade é que sempre procuram os melhores rostos e os melhores corpos. O talento é secundário... não que eu não trabalhe o meu talento.

— Parabéns pelo contrato com a gravadora.

— Venho trabalhando nisso noite e dia. Apresentei-me num pequeno nightclub em Hollywood. Foi assim que arrumei o papel no filme. Quanto tempo vai levar para Crystal chegar? Detesto esperar. É tudo o que faço hoje em dia.

Todd consultou seu relógio.

— Mais trinta minutos. Fomos tomar um café.

— Dá para acreditar que nossa pequena Borboleta vai se formar na universidade? — indagou Raven, quando sentamos a uma mesa.

— Por que não? — perguntei.

— Ora, Brooke, você sempre foi muito... muito realista.

Ela soltou uma risada. Fez uma pausa e contemplou-nos por um momento.

— Fico contente por você estar feliz, Brooke. Espero um dia encontrar alguém que me deixe tão feliz assim.

— Vai encontrar, Raven, se realmente quiser. Ela sorriu, arrematando com uma gargalhada.

— Tem razão, se eu realmente quiser. Não posso pensar nisso agora. Estou no show business.

Raven pôs-se a contar histórias de Hollywood, falando tão depressa e com tanta ansiedade, que senti que tentava desesperadamente me convencer de estar feliz com as decisões que tomara. Finalmente chegou a hora de receber Crystal no portão de chegada. Ela foi uma das dez primeiras pessoas a desembarcar, carregando uma pasta com as matérias que precisava estudar. Não parecia muito diferente, ainda se descuidando dos cabelos, sem maquilagem, nem mesmo batom, e usando óculos de lentes grossas.

Em seguida aos abraços e beijos, Todd foi providenciar o carro. Pouco depois, estávamos a caminho do rancho, como passáramos a nos referir à propriedade.

— Talvez eu me especialize em psiquiatria — comentou Crystal.

— Por que não estou surpresa? — gracejou Raven. — Você vivia analisando todo mundo. Pode muito bem ganhar dinheiro com isso.

Todd riu. Ao perceber que tinha uma audiência atenta, Raven continuou com suas piadas. Crystal e eu trocamos um olhar e sorrimos. Apesar de nossa idade e da passagem do tempo, ainda nos comportávamos como as Orfãteiras, juntando nossas mãos sempre que podíamos.

Borboleta saiu correndo pela porta da frente no instante em que o carro parou. Só se tornara sete centímetros mais alta, mas seu rosto amadurecera, junto com o corpo gracioso. Todas nos abraçamos como se estivéssemos prestes a enfrentar o mal outra vez. Tommy e Anita saíram, ela com o filho no colo. Entramos na casa, Todd e Tommy carregando as malas.

Pensei que nunca ficaríamos sem assunto para trocar entre nós. Éramos impelidas por uma necessidade de revelar às outras todos os eventos importantes e significativos em nossas vidas, por mais irrelevantes que pudessem parecer para as outras pessoas. A conversa se prolongou pelo almoço, até que chegou o momento de Borboleta se preparar para a cerimônia de formatura. Todas nos aprontamos. Raven surpreendeu ao aparecer com o vestido de índia feito pela mãe de Anita.

— Vai mesmo usá-lo? — perguntei. Raven olhou para Anita.

— Eu teria o maior orgulho de usá-lo, se Anita não se importar.

— Claro que não me importo. Você fica ainda mais linda nesse vestido, Raven.

Era tudo que Raven precisava ouvir. O vestido teria de ser arrancado à força de seu corpo depois do elogio. Entramos em nosso carro e seguimos Tommy, Anita, Borboleta e o pequeno Steven até a escola. Tudo fora preparado para uma cerimônia ao ar livre. Comentei que sentia um frio no estômago por Borboleta. Crystal admitiu a mesma coisa.

— Você está nervosa, Crystal? — disse Raven. — Não imagina o que é ficar nervosa... se nunca se preparou para uma audição.

— Isto é a mesma coisa que uma audição — disse Crystal, os olhos fixos em Raven.

— Tem toda razão.

Raven acalmou-se quando a música começou, os formandos avançando pelo corredor em direção ao palco. Os cachos dourados de nossa pequena Borboleta eram deslumbrantes sob o chapéu. Olhei para Anita e Tommy, de mãos dadas, os rostos radiantes de orgulho.

Quando o nome de Borboleta foi chamado, aplaudimos com entusiasmo. Os olhos do pequeno Steven exibiam um brilho divertido. Anita fez com que ele acenasse para o palco. Borboleta fitou-nos, com um sorriso radiante.

Ela não tivera mais nenhum ataque desde que passara a viver com Tommy e Anita. Era sem dúvida uma flor transplantada para um solo fértil, saudável e forte, desenvolvendo-se para realizar todo o seu potencial.

Acho que o mesmo acontecia com todas nós agora, até mesmo com Raven, que, com certeza, encontraria seu caminho para alguma felicidade. Todos na audiência aplaudiram quando a turma inteira recebeu seus diplomas.

Olhei ao redor para os felizes pais e mães, irmãs e irmãos, parentes e amigos.

Há muito tempo, por motivos diversos, nossos pais e mães nos haviam doado, por assim dizer, a um sistema impessoal, condenando-nos à busca interminável de uma nova família. Tentamos de tudo. Mantivemos a esperança e rezamos. Mas demorara muito para Borboleta, e nunca chegara a acontecer para Raven, Crystal e para mim. Mas acabamos descobrindo que, durante a própria busca, encontráramos uma família: encontráramos a nós mesmas.

Por um exato momento, no gramado de uma escola no sudoeste americano, a quilômetros e quilômetros do lugar em que começáramos, nós nos juntamos mais uma vez. Comprimimos nossos próprios corpos, abraçadas, e repelimos as trevas.

Certa ocasião, quando Crystal e eu ficáramos sozinhas à noite, olhando por uma janela da Lakewood House, ela dissera:

— Eu costumava sonhar com a mãe que jamais conheci. Ela não tinha rosto, é claro. No sonho estou sempre apertando sua mão, enquanto ela sempre tenta se desvencilhar. Eu me esforço ao máximo para segurá-la, mas finalmente tenho de largar. Sofro a sensação de que estou caindo. E é nesse momento que acordo.

Ela virou-se para mim e sorriu.

— Sempre me senti assim, mesmo com meus pais adotivos. Mas depois fui trazida para cá, nós quatro nos encontramos e, de repente... parei de cair, Brooke.

"Eu também", pensei.

Sabia que ela tinha razão, mesmo naquele tempo.

 

                                                                                V. C. Andrews 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"VT" Séries