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FUJITIVOS / Alexander Gordon Smith
FUJITIVOS / Alexander Gordon Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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EU SÓ QUERIA ESQUECER, DEIXAR TUDO PARA TRÁS. MAS FURNACE NÃO IA PERMITIR. EU ATÉ PODIA TER ENCONTRADO UM JEITO DE SAIR DA PRISÃO, MAS A PRISÃO AINDA ESTAVA GRAVADA EM MIM.

Os prisioneiros conseguem escapar e o caos se instala na cidade. As autoridades alertam a população sobre o risco de sair às ruas, e os números de emergência não estão funcionando. É cada um por si...
Enquanto tenta avisar o governo de que o diretor Cross e seu exército de ternos-pretos são os responsáveis pela destruição que está ocorrendo na cidade, Alex, Simon e Zê – novamente no subterrâneo da cidade – ficam cara a cara com um perigo muito mais assustador do que os cães e os ratos: um tipo de mutação que está se espalhando como peste, e uma simples mordida de um infectado pode contaminar qualquer um em segundos.
Ao mesmo tempo, uma voz na cabeça de Alex o coloca em dúvida: o que ele é, a quem o seu corpo pertence. Para descobrir, Alex precisará desafiar seu maior inimigo, o homem por trás de todo esse inferno: Alfredo Furnace.

 


 


FELIZ PARA SEMPRE

Adoraria poder dizer que a minha história acaba aqui.

Adoraria poder dizer que chegou a hora do meu felizes para sempre.

Porque devia ter sido assim, certo? Quero dizer, a gente tinha dado o fora. A gente tinha ido ao inferno e voltado, mas o importante é que a gente tinha voltado. Tínhamos rasgado o ventre da Penitenciária de Furnace, espalhado suas vísceras pelas ruas. Ela havia morrido, e a gente tinha nascido de novo e agora dava os primeiros passos num mundo que julgávamos ter perdido para sempre. Isso devia ser o fim de tudo. Só o que tínhamos que fazer era sair correndo e viver o resto da vida respirando ar puro e liberdade.

Mas será que uma história como a minha pode ter um final feliz?

Será que alguém como eu merece um final feliz?

Não havia muito tempo para olhar para trás enquanto corríamos através dos portões em ruínas, que nos guiavam até o brilho ofuscante do sol nascente. Porém eu não conseguia evitar. Mesmo quando o som das sirenes já ia se transformando no canto de pássaros, tudo o que tinha acontecido se repetia em minha mente. Eu só queria esquecer, deixar tudo para trás, fingir que aquilo nunca tinha acontecido. Mas Furnace não ia permitir. Eu até podia ter encontrado um jeito de sair da prisão, mas a prisão ainda estava gravada em meu íntimo, atada a cada pensamento, a cada lembrança.

Pensava em mim quando criança, andando por ruas iguais àquelas, tão obcecado com dinheiro que nem me importava com o fato de ser um ladrão, de ter me tornado violento. Via a mim mesmo e a Toby — um amigo de cujo rosto não consigo lembrar, mas de quem nunca vou esquecer — arrombando uma casa, na esperança de que fôssemos nos dar bem. Via nós dois encurralados pelos ternos-pretos, aqueles guardas brutamontes com seus cruéis olhos prateados. Eu os via dando um tiro na cabeça de Toby, do mesmo jeito que eu já tinha visto cem, mil vezes. Eu me via sendo capturado, acusado de tê-lo assassinado e condenado à prisão perpétua na Penitenciária de Furnace. Via isso tudo em tons de preto, cinza e vermelho, que pareciam chamar minha atenção muito mais do que o mundo no qual eu corria agora.

Os flashbacks continuavam vindo, fazendo minha visão sangrar em uma espécie de hemorragia. Parecia estar revivendo cada segundo do meu encarceramento — os primeiros dias, quando achava que a única maneira de fugir seria pulando do oitavo andar; Donovan, meu colega de cela, e meu melhor amigo, Zê, que me ajudaram a não enlouquecer; a espera à noite na cama, aguardando a vigília sangrenta passar, temendo que os Ofegantes me arrastassem para os túneis lá embaixo; depois, a descoberta da fenda na sala de escavação e como abrir caminho para a liberdade com uma explosão — só para sermos recapturados e encarcerados nas trevas da solitária.

Ali, com o peso do mundo em nossos ombros, descobrimos a verdade sobre Furnace — os experimentos que o diretor e os Ofegantes faziam com os garotos. Injetavam-lhes néctar, um líquido negro com flocos que pareciam galáxias em um universo de escuridão. Então os Ofegantes os abriam e os recosturavam de um jeito completamente diferente. Ainda não sei como funcionava o néctar. Mas, se desse certo, o garoto virava um superterno-preto, fortíssimo, capaz de sobreviver a ferimentos que matariam qualquer um. Não haveria lembrança nenhuma de quem você tinha sido, nenhuma memória do passado. Você virava um dos soldados do diretor. Era o que teria acontecido com Donovan, mas eu o matei — eu o libertei, antes que sua transformação se completasse.

Mas, o néctar não funcionava em todo mundo. Às vezes não tinha nenhum efeito, em outras, envenenava a alma da vítima, reduzindo-a a uma aberração com garras afiadas que ficava à espreita nos corredores, deleitando-se com sangue. Um rato.

No entanto isso não era o pior. Alguns prisioneiros não viravam nem ternos-pretos nem ratos. Tornavam-se outra coisa, algo que jamais deveria existir. O néctar os escolhia, inundando seus corpos e transformando-os em bestas enormes de fúria inimaginável, máquinas de matar conhecidas como vikings.

Não havia como afirmar o que você se tornaria com néctar dentro de si. Era o veneno do diretor que decidia seu destino.

Zê e eu ficamos na solitária por um tempo que pareceu uma eternidade, até que fomos resgatados por um garoto chamado Simon, que tinha conseguido fugir dos bisturis dos Ofegantes. Ele estava semitransformado em terno-preto, o tronco e um dos braços já bem musculosos, os olhos prateados, mas havia sido descartado antes do final do procedimento. Mais uma vez tentamos alcançar a liberdade — subindo pela chaminé do incinerador — e, mais uma vez, fracassamos. Dessa vez, caímos direto no colo do diretor.

O diretor. Eu podia ver seu rosto: toda vez que eu piscava, ele aparecia à minha frente, a boca retorcida naquele sorriso sem alma; os olhos, abismos negros que só prometiam dor. Ele tinha deixado os Ofegantes me abrir com seus instrumentos asquerosos e me encher com o veneno deles. Havia permitido que me estufassem com os músculos de outra pessoa; com a carne de outra pessoa. Tinha me dado olhos prateados e um terno-preto, e, por um instante — por um segundo único e horripilante —, quase me rendi a ele; quase o chamei de Pai, e a mim mesmo de soldado de Furnace...

Mas alguma coisa me impediu. Algo me mantivera humano. E, em vez de me transformar num deles, o diretor me dera a força de que eu precisava para buscar a liberdade uma última vez. Zê, Simon e eu abrimos caminho pelos túneis até voltarmos ao prédio principal da prisão. Os ternos-pretos não conseguiram nos deter, os cães mutantes sem pele tinham fugido com o rabo entre as pernas, os Ofegantes também não haviam sido bem-sucedidos, e mesmo o diretor já não tinha nenhum truque na manga.

Não, só uma pessoa tinha chegado perto de acabar com nosso sonho de liberdade. Alfredo Furnace em pessoa, o misterioso homem por trás dos mais sombrios segredos da prisão. Ele tinha mandado dois vikings atrás de nós, e eu só conseguira detê-los injetando em mim mesmo mais um pouco de néctar, o veneno do diretor. A batalha pode não ter custado a minha vida, mas me tirou tudo, exceto os últimos resquícios de sanidade. Agora o néctar é a única coisa que me mantém vivo, mas também fica tentando me transformar em um deles. É isso que acontece com as aberrações de Furnace — aberrações como eu.

Com a ajuda dos prisioneiros, arrombamos o portão e corremos para o mundo, centenas de nós, gritando e berrando enquanto inundávamos as ruas, esvaziando totalmente a prisão. Estávamos livres.

Isso devia ter bastado, não? Esse deveria ter sido o fim da minha história. Mas como poderia? Ainda agora consigo ouvir o som dos tiros enquanto a polícia começa a nos reunir, o vup-vup-vup das hélices dos helicópteros. Logo a cidade inteira estará cercada. Nós não fugimos da prisão; só mudamos para outra. E, ainda que existam inúmeros lugares para nos escondermos, não há para onde fugir.

Isso não é tudo. Alfredo Furnace está a caminho, o que significa que está trazendo seu exército. Posso ouvir a voz dele na minha cabeça, trazida pelo néctar, e sua fúria é quase suficiente para partir minha alma em duas. Sim, Furnace está vindo. Ele vai nos encontrar.

E, quando nos encontrar, vamos pagar muito caro.

Que final mais feliz.


LIBERDADE

Quando você está preso há tempo demais, a liberdade pode matá-lo.

É avassalador; parece uma represa se rompendo, um trilhão de galões de água gélida inundando sua cabeça, ameaçando destruir ou dar curto-circuito naquilo que resta da sua sanidade. Não consigo pensar em nenhum outro jeito de descrever isso. No momento em que comecei a correr para fora dos portões em ruínas de Furnace, meu cérebro ficou sobrecarregado, minha visão começou a embaçar, meus membros a ceder, minha voz a sumir. Tudo o que existia era aquele ímpeto repentino, um momento de emoção cega — metade pânico, metade euforia — que parecia forte o bastante para fazer meu coração parar.

Que maravilha, pensei, enquanto fazia força para me manter em pé, meu coração ressonando como um motor entupido, cada batida desesperada enviando um raio de dor pelo meu peito. Passei por tanta coisa para sair daqui, e, no instante em que saio, minha mente vem dizer que já chega.

Tropecei e senti mãos segurarem meus braços. Olhei para o lado, mas não consegui ver quem estava ali; minha visão tinha virado um oceano cinzento salpicado de faíscas. Fechei os olhos com força, obrigando-me a respirar fundo. Era difícil, como se meu corpo tivesse se esquecido de como desempenhar suas funções mais básicas, mas, assim que o ar chegou aos meus pulmões, voltei a distinguir as coisas.

— Meu Deus, Alex! — disse uma voz, os dedos apertando com força meu braço. — Achei que você estivesse mais em forma, levando em conta quanto correu lá dentro.

Deixei minha cabeça pender no peito, respirei fundo uma segunda vez, o que fez meu coração desacelerar, e uma terceira, que pareceu recolocar os ossos em seus devidos lugares nos meus braços e minhas pernas. Dessa vez, quando olhei, pude ver que Zê estava a meu lado, o rosto brilhando de suor, os olhos faiscando. Alguém me puxou do outro lado, e, ao virar-me, vi Simon com seu braço rudemente musculoso em volta do meu.

— Precisamos continuar se não quisermos acabar voltando pra lá — disse Simon. Ele pôs o pé na calçada, e, de súbito, veio-me a imagem do labirinto da Penitenciária de Furnace, muito abaixo do concreto, o vasto complexo que parecia um monstro enorme de dentes afiados erguendo-se das profundezas, a boca escancarada, pronta para engolir a cidade inteira. Balancei a cabeça para afastar aquela imagem, e o movimento me deu a impressão de que o mundo girava.

Uma silhueta borrada passou rapidamente por nós na estrada. O eco de sapatos pisoteando o chão vinha de ambos os lados. Dois outros prisioneiros corriam na calçada oposta. Era óbvio do que fugiam: o ar atrás de nós estava preenchido por sirenes, tantas que o som que faziam perdera sua ondulação e agora era um lamento constante e sem melodia. No céu avermelhado acima, três helicópteros vasculhavam as sombras que se encolhiam, os holofotes parecendo raios de prata contra o sol que ia surgindo no horizonte.

— Pronto? — perguntou Zê. — Sei que você passou por muita coisa, mas se a gente não se mexer... — Ele pareceu engasgar, só de pensar no que poderia acontecer.

Comecei a correr de novo, a mão de Zê no meu braço durante os primeiros passos. Passar por muita coisa? Ele não estava brincando. Meu corpo — meu novo corpo, aquele que o diretor tinha me dado — era uma colcha de retalhos de cicatrizes. Cada vez que eu me mexia, elas ameaçavam arrebentar, e eu imaginava aquela carne envenenada escapando da minha pele, os músculos perdendo a elasticidade. Era uma ideia desagradável. Era mesmo? Eu teria dado tudo para conseguir desfazer, com essa facilidade, todo o trabalho do diretor.

Só que aquele corpo em mutação fora o responsável por termos saído vivos de Furnace. Sem ele, eu não teria tido a menor chance contra os vikings. Aqueles monstros teriam estraçalhado todo mundo em Furnace, até a última alma. Eu podia odiar o fato de ter o corpo de um terno-preto, mas, sem ele, não teria corpo nenhum.

— Alguém sabe onde a gente está? — gritou Simon enquanto corria. — Algum de vocês conhece a cidade? Eu vivia em Carlton Heights, nunca estive aqui.

Tirei os olhos do asfalto para observar ao redor, ainda ofuscado pela luz pálida. À nossa esquerda havia uma espécie de armazém, com um logotipo enorme que era um desenho de uma caixa de papelão. Prédios parecidos enfileiravam-se dos dois lados da rua. Havia vielas escuras entre eles e cercas de arame farpado que guardavam a promessa de esconderijos além delas. Mas, se nos escondêssemos tão perto assim de Furnace, seríamos encontrados em minutos.

— Eu não morava na cidade — ofegou Zê. — Nossa casa ficava a quilômetros daqui. Uma pena. E você, Alex?

— Eu morava aqui — falei, tentando me orientar. — Mas do outro lado da cidade, no subúrbio, do outro lado do rio. Acho que nunca vim tanto para o sul.

Chegamos a um cruzamento, o sinal vermelho refletido nas poças d‘água no chão, como que insinuando que a rua estava prestes a entrar em erupção, como um vulcão. Apenas para sair da rua principal, dobramos numa viela estreita, nosso ritmo diminuindo à medida que todos lutávamos para respirar. Os prédios ali eram menores, em sua maioria lojas, trancadas durante a noite. Uma se destacava das demais, um aglomerado descomunal de plástico e concreto que se projetava contra o céu rosado como uma imensa lápide. Recuperei o fôlego, chocado por reconhecê-la.

— Conheço este lugar — disparei. — É o Shopping Edwards, não é?

— Sim — disse Simon, esfregando uma das sobrancelhas com a mão. — Acho que você tem razão. Quando eu era criança, vinha aqui o tempo todo. Não fazia ideia de que ficava a um passo de Furnace.

Eu também costumava ir até ali com meus pais uma vez por mês ou coisa assim. Era como um ritual de família. As lembranças me acertaram como um soco no estômago, o cheiro dos sanduíches e dos pretzels do Subway, o zum-zum-zum das pessoas, a promessa de presentes. Mentalmente, me dei um tapa no rosto. Ficar pensando naquelas memórias ia me matar. Aquela vida, minha antiga vida, já tinha acabado havia muito tempo.

Alguma coisa explodiu, um tiro, talvez, a algumas ruas dali. Diminuímos o passo, indo pé ante pé em direção às sombras que se formavam contra as paredes das lojas, e nos agachamos, imóveis. Tínhamos deixado Furnace havia apenas alguns minutos, mas o novo dia já estendia uma coberta de luz sobre a cidade. De início, a visão fora a melhor coisa que eu já havia testemunhado — eu achava que nunca veria outra vez o nascer do sol —, mas agora a natureza parecia conspirar com Furnace, e também com a polícia. Se o sol pode ver você, então todo mundo pode.

— A gente devia entrar — sussurrou Zê, indicando o shopping com a cabeça.

— Você só pode estar brincando — respondeu Simon. — Em dez minutos esse lugar vai estar lotado de policiais. A gente precisa se mandar, ir na direção do rio. Se conseguirmos chegar na cidade, a gente pode sumir, pegar um trem, roubar um carro ou sei lá, qualquer coisa que nos leve o mais longe possível de Furnace. Não vou ser pego porque me escondi num shopping logo ali na esquina.

— Simon tem razão — disse eu, querendo apenas descansar, mas desesperado para que nos distanciássemos o máximo possível da prisão. — A gente devia se separar; correr o máximo possível, antes de eles se organizarem.

— Não, não acho — disse Zê. — Na verdade, a gente precisa...

Ele foi interrompido por uma sirene que se destacou do coro. Congelamos uns contra os outros quando um carro do esquadrão passou zunindo pelo cruzamento pelo qual tínhamos acabado de passar, sumindo tão rápido quanto havia aparecido. Era bem provável que estivesse atrás dos presos que tínhamos visto antes, mas outros viriam, muitos, muitos mais.

— Precisamos sair da rua e bolar um plano — continuou Zê. — Lá dentro a gente consegue água e comida e pode tirar estes uniformes. Ficar andando por aí com esses farrapos de Furnace, com certeza vai nos fazer ser pegos. Além disso...

Zê me olhou de cima a baixo, e eu acompanhei seu olhar. Meu uniforme, que já se desfazia, estava rasgado em vários lugares, e era possível ver minha pele dilacerada.

— Além disso o quê?

— Você está praticamente pelado — disse Zê com o lampejo de um sorriso nos olhos. — A qualquer momento essa roupa vai se desfazer e você vai estar correndo nu pelas ruas.

Simon e eu começamos a rir, e precisei cobrir o nariz para conseguir me controlar. Era difícil; a emoção borbulhava em mim com tanta força que meus ombros se sacudiam e minhas costelas chiavam. Mesmo quando outro carro de polícia passou com seu lamento sonoro pelo cruzamento, indo tão rápido que, ao passar por uma lombada, quase saiu voando, eu ainda segurava o riso com a mão. É isso que a liberdade faz com você, como eu tinha dito. Você é capaz de ir rindo até o túmulo.

Simon enxugou os olhos e se virou para o shopping. Depois de alguns segundos, assentiu com a cabeça, em um gesto decidido.

— Ok — disse ele. — Mas é entrar e sair, certo? Não vou passar o dia olhando essas malditas lojas.

Essas palavras podiam ter saído da boca do meu pai — ele dizia algo parecido toda vez que minha mãe o arrastava para a cidade —, e isso me fez chorar de rir. Senti a mão de Zê sobre a minha, e pouco a pouco o momento de insanidade passou. Afastei-o e fiquei de pé, tomando a dianteira rumo ao enorme prédio e sussurrando por cima do ombro:

— Tudo bem, galera, vamos às compras.


NO RAIAR DO DIA

Os enormes portões da entrada principal do Shopping Edwards ainda estavam fechados, por isso seguimos em frente e viramos à esquerda na primeira esquina, contornando o shopping até chegarmos à entrada de carga. Além dela, o que se via era um breu total, e o jeito como os túneis serpenteavam sob a superfície me dava arrepios.

— E aí, pessoal? Isso os faz lembrar de algum lugar? — disse Zê com um risinho nervoso.

— Qual é, é só um shopping — respondi, tomando a dianteira. Meus olhos prateados atravessavam as sombras como se fossem uma lanterna, removendo camadas de trevas até encontrar uma via de serviço vazia que fazia uma curva para a esquerda. Caso seguíssemos em linha reta, chegaríamos ao estacionamento, mas fizemos a curva e fomos parar numa enorme área subterrânea de carga e descarga. Deixei meus olhos vagarem e percebi três conjuntos de portas duplas na parede do outro lado. Foi aí que notei as luzes vermelhas piscantes cravadas no teto.

— Estamos sendo observados — disse eu, apontando. — Câmeras de segurança.

— Melhor nem pensar nelas — disse Simon, dirigindo-se cautelosamente para as portas. Ele alcançou o muro baixo de uma das divisões de carga e começou a subir nele. — Estão apenas gravando; vão ver o vídeo só depois, quando já tivermos dado o fora daqui há muito tempo.

Como se para provar isso, mostrou o dedo médio para o teto, exibindo-o de um lado a outro por um segundo, antes de se agachar e estender a mão para Zê. Ele a aceitou, deixando-se puxar. Fui atrás com um salto desajeitado, meus músculos gritando enquanto me impeliam para a plataforma. Simon dirigiu-se para a porta mais próxima, tocando a maçaneta com cuidado.

— Ela não vai estar... — Foi só o que consegui falar antes que a porta se abrisse com um clique, enchendo de luz a área de carga. Simon virou-se e me lançou um sorriso enviesado.

— Meu irmão trabalhava num shopping lá em Carlton — disse. — Às vezes a gente entrava lá depois que as lojas fechavam. É a mesma coisa em todo lugar: as lojas estão todas trancadas, na frente e atrás, mas as áreas de acesso ficam sempre abertas. — Ele abriu a porta e entrou. — Ótimo para brincar de pega-pega.

Do outro lado havia um largo corredor de concreto com blocos vazados para ventilação, ladeado de portas de metal e iluminado por lâmpadas que deviam ser as mais brilhantes do universo. Tive de apertar os olhos enquanto corríamos por ali.

— Jogos de computador? — sugeriu Simon, lendo o nome das lojas pintado nas portas. — Não. Que tal livros? Ah, fala sério. Alex, você lembra se tinha alguma loja de departamentos por aqui?

Tinha. Outra lembrança vívida me alcançou — uma imensa loja que ocupava um canto do shopping, repleta de praticamente todo item que se podia imaginar. Meus pais sempre me deixavam passar dez minutos no departamento de brinquedos, mas raramente me compravam alguma coisa. Entreguei-me às lembranças do passado, percebendo, com tristeza, que conseguia reproduzir mentalmente cada centímetro daquela seção de brinquedos — os ursos de pelúcia em volta da caixa registradora, os conjuntos de mágica empilhados na prateleira em frente ao elevador, a enorme árvore de Natal que colocavam no andar de cima todo ano —, embora não pudesse me lembrar do rosto dos meus pais. Na minha cabeça, eles eram manequins sem feições que ficavam num canto obscuro da minha visão.

— Ei, Alex! — disse Simon, dando-me um tapinha nas costas. A lembrança sumiu, mas deixou um rastro abafado de dor no coração. — Você ainda está aí? E a loja de departamentos? Lembra?

— Sim — respondi. — Tem uma, sim. Não tenho a menor ideia de onde, desculpem. Vindo desse lado, está tudo invertido.

Simon murmurou alguma coisa e foi adiante, as lojas se exibindo para nós de ambos os lados — móveis, telefones, música e DVDs, roupas íntimas, remédios, doces. Cinco minutos depois de termos nos embrenhado naquele labirinto, a ponto de eu achar que nunca conseguiríamos achar o caminho de volta, chegamos a uma porta dupla onde se lia HARVEY‘S.

— É aqui! — disparei. — Harvey‘s, como o coelho daquele filme antigo!

Simon começou a passar os dedos pela lateral da porta da direita e encontrou um cabo espesso. Ele o arrancou da parede, e lascas de tinta caíram no chão.

— Não vai levar nem um segundo — disse ele, franzindo o rosto, concentrado. Usou a unha para cortar o isolamento, depois agarrou um dos cabos com seus dentes quebrados e o mordeu.

— Epa! — disse Zê. — Pirou?

Simon sacudiu a cabeça, mastigando o cabo como um cachorro raivoso, até que ele enfim cedeu. Com cuidado, afastou as pontas uma da outra e, em seguida, deixou o cabo pender da parede.

— Para trás — disse ele. Obedecemos, e Simon se arremessou contra as portas. Elas eram fortes, e, soltando o ar, ele caiu com o traseiro no chão. O riso de Zê ecoou pelo corredor, o som parecendo o de sininhos de vento.

Simon levantou-se com dificuldade e olhou para mim.

— Quer fazer as honras?

Enrijeci o tronco e corri em direção às portas, acertando-as bem no meio. Com um gemido agudo, que pareceu quase humano, a tranca se soltou e as portas se abriram. Avancei para as sombras, deslizando os pés na superfície lisa e quase perdendo o equilíbrio. No instante em que me virei, vi que Zê e Simon tinham me seguido e fechado a porta atrás de si. Simon tateou as paredes algumas vezes até encontrar os interruptores, ligando todos. Pouco a pouco, as luzes foram piscando e se acendendo, revelando outro corredor estreito, este ladeado de araras, caixas empilhadas e diversas outras coisas. Manequins sem perna e sem braço nos encaravam.

— Como você sabia como entrar? — perguntou Zê, despencando num sofá ainda embalado. Ele ergueu um dos pés, e notei que estava descalço, o pé coberto por uma camada de sangue. Aqueles sapatos da prisão não tinham grande utilidade no mundo exterior. Movimentei os dedos do pé dentro das botas que o diretor me dera, feliz por não tê-las jogado no fogo, tal como tinha feito com o terno preto.

— Moleza — respondeu Simon. — Já fiz isso milhões de vezes. Aqui fora eu não era nenhum anjinho, lembra? — Ele me olhou com cumplicidade. — Caramba, nenhum de nós era, não é?

— Pois é — respondi. — Vamos.

Abri caminho até o final do corredor, passando por um depósito parecido demais com as salas de Furnace para o meu gosto. Dei uma olhada ali dentro, talvez esperando que um rato pulasse da escuridão e cravasse os dentes na minha garganta. Virei-me antes que meus pensamentos pudessem trazer à vida aquela criatura.

— Ai, meu Deus, eu é que não vou entrar ali — surgiu a voz de Zê. Segui seu olhar até o elevador no fim do corredor, as portas abertas, como se nos chamasse. Ele era mais ou menos do mesmo tamanho do de Furnace, não o elevador principal, mas aquele que ligava a parte de baixo, dos presos, aos túneis sanguinários abaixo. Nessa, eu estava com Zê. Não tinha a menor vontade de andar de elevador de novo. Não conseguia confiar que não nos levaria para as entranhas do inferno.

Felizmente havia outra porta ao lado, na qual uma janelinha de vidro revelou uma escada. Passamos pela porta com passos largos e começamos a subir. Cada passo me parecia o último. Eu ficaria feliz se pudesse deitar bem ali no concreto frio e dormir por mil anos. Mal conseguia me lembrar da última vez que tinha descansado, uma eternidade atrás, em uma cama sob a superfície. Eu acabara de concluir o teste do diretor, ele havia me recebido em sua família e me chamado de filho. E eu dormira melhor do que em qualquer outro momento na minha vida.

Aquela ideia me deu um frio na espinha, então a expulsei da minha mente. Teria todo o tempo do mundo para dormir quando saíssemos da cidade. Agora precisava estar alerta. Mas o cansaço ainda se agarrava a mim como uma mortalha, entorpecendo meu corpo e minha mente, fazendo com que o mundo parecesse um sonho. E, por baixo da exaustão, a sensação de que eu era oco, vazio. Era quase como a sensação de fome, porém mais profunda, como se viesse do fundo do meu ser — como se minha alma estivesse faminta.

Percebi que meus pensamentos estavam próximos do delírio. Tentei afastá-los para poder me concentrar em colocar um pé na frente do outro. Subimos três andares antes de chegar a uma porta, que Zê abriu com um empurrão.

— Roupas femininas — disse ele. — Alguém se interessa?

Simon afastou Zê, passando pela porta e mantendo-a aberta para nós. Fiquei surpreso ao ver que a loja estava viva, as luzes acesas, os elevadores funcionando e o delicado som de música de shopping dando à cena uma atmosfera surreal. Eu me encolhi, talvez esperando ver clientes vasculhando as araras, e só então me dei conta de que Simon tinha ligado tudo ao chegarmos. Não havia sinal de relógio em lugar nenhum; eu não tinha a menor ideia de que horas eram, mas, considerando que o sol mal havia nascido, provavelmente ainda teríamos algumas horas antes que o shopping abrisse.

Não que ele fosse abrir naquele dia, pensei, levando em conta que o bairro inteiro estava repleto de fugitivos da prisão e de policiais armados.

— Vamos lá — disse Simon, começando a andar entre as mercadorias.

A Harvey‘s era imensa, cada andar parecendo um território sem fim dividido por vários displays com manequins e caixas para pagamento. Simon chegou à escada rolante mais próxima, perto da qual havia uma placa indicando o andar de cada departamento. Ele pressionou seu enorme dedo contra VESTUÁRIO MASCULINO.

— Vamos primeiro arranjar algo para vestir — disse, subindo os degraus em movimento.

— Não sei, mas acho que talvez isso aqui combine com você, Alex. — Virei-me e vi Zê segurando um enorme macacão de gestante azul coberto de girassóis com carinhas felizes. Ele o encostou no meu corpo e murmurou em tom de aprovação: — Provavelmente esta é a única coisa aqui que vai caber em você. Além disso, a sarja realmente realça a cor dos seus ferimentos.

Com uma cara feia, afastei o macacão.

— Você vai vestir isso pela cabeça se não tomar cuidado — rosnei, subindo na escada rolante. Ela nos levou ao segundo andar. À esquerda havia um oceano de tons de preto e cinza que se estendia até a parede do outro lado. À direita, uma pequena seção de itens esportivos, e atrás ficavam as TVs. Em volta delas, uma enorme parede de vidro que dava para o resto do shopping.

Simon deu um pulo de alegria ao ver a seção de roupas masculinas, mas Zê desviou do caminho, dirigindo-se para a janela. Fui atrás dele, entrando num pequeno café e olhando através do espesso vidro. Dois andares de lojas se apresentavam diante de nós, iluminados pelo fraco brilho das luzes noturnas do shopping. No térreo, avistei alguns carros e já imaginei a polícia saindo deles. Mas estavam tão imóveis e silenciosos quanto os manequins, e percebi que estavam ali em exibição.

— Parece que não estamos sozinhos — disse Zê. Fiz uma concha com a mão para afastar o brilho e, lançando o olhar através do meu próprio reflexo, vi um grupo de prisioneiros caminhando sobre o vidro estilhaçado da vitrine de uma loja de ferramentas no andar abaixo. Estavam longe demais para que eu os reconhecesse, mas cada um deles carregava algo semelhante a uma pistola. Não lembrava se havia uma loja de armas no shopping, mas a verdade é que as coisas tinham mudado muito desde que eu era criança.

— Talvez a gente devesse ter pensado nisso — disse Zê.

— É, claro — respondi, e meu hálito embaçou o vidro. — Ainda me lembro da última vez em que você tentou usar uma arma. Você quase nos matou!

— Cala a boca! — respondeu ele, franzindo a testa. Ele se virou, farejando o ar como um cachorro, e caminhou até uma vitrine lotada de doces. Com um grito de alegria, saltou para trás do balcão do café, pegou uma tortinha de chocolate e a enfiou inteira na boca. Saiu dali, depois deu meia-volta e pegou mais uma antes de seguir para o departamento de eletrônicos.

— Que maravilha — cantarolou ele de boca cheia. — Parece que a gente está, sei lá, no Despertar dos mortos. Já viu esse filme? O mundo inteiro fica cheio de zumbis, e aí um pessoal se tranca num shopping.

Eu me lembrava vagamente de ter assistido à versão mais recente, mas Zê já estava tagarelando antes mesmo de eu conseguir responder.

— É o lugar perfeito para se esconder. Comida, suprimentos, água, tudo o que você precisa. Um monte de filmes e outras coisas mais. TVs iguais a essas. Você nunca ficaria entediado. — Ele tinha chegado às TVs e começado a ligar uma por uma. A maioria só passava estática, imagens azuladas que deixavam o rosto de Zê ainda mais cinzento que o normal. — Cara, seria tão bom se fosse isso que estivesse acontecendo.

— Lamento ser o portador da má notícia, Zê — falei —, mas o que está perseguindo a gente é muito pior do que zumbis. E realmente não estamos com tempo pra ver nenhum filme.

Zê tinha parado de brincar com as TVs e agora estava ligando todos os aparelhos de DVD e sintonizadores de TV a cabo embaixo delas. Três das enormes telas ganharam vida, e o som repentino fez meu coração parar por um instante. Zê recuou um passo para admirar sua obra, engolindo a segunda tortinha. Nem me ofereceu um pedaço, e eu sabia por quê — da última vez que eu havia tentado ingerir alguma coisa, vomitara tudo. Mais uma lembrancinha do veneno do diretor. Jamais voltaria a comer um pedaço de chocolate.

— Você acha que isso é um filme? — disse ele, apontando para a tela mais próxima. Olhei e vi uma âncora de TV sentada a uma mesa, seu rosto uma máscara de seriedade. Atrás dela, na tela do estúdio, havia imagens aéreas ao vivo da Penitenciária de Furnace. No breve intervalo de tempo desde nossa fuga, o Forte Negro — edifício onde ficava a única entrada da prisão — fora tomado pelo fogo. Um lado inteiro agora estava banhado por chamas líquidas, a fumaça encobrindo as cruéis esculturas posicionadas sob sua abóbada, que lembrava a de uma catedral. Eu não estava certo se a destruição do interior tinha atingido o lado de fora ou se um dos prisioneiros havia iniciado o incêndio ao sair, mas me dei conta de que eu abria um sorriso enorme. Nada podia me deixar mais feliz do que ver aquele inferno arder.

Ainda mais sabendo que o diretor, os ternos-pretos e os Ofegantes, além dos ratos, ainda estavam lá embaixo, presos. Em silêncio, rezei para que todos morressem aos gritos.

Só que eu sabia que, cedo ou tarde, os malditos iam sair. O diretor e seu exército — sua força doentia de aberrações — tomariam as ruas. E Alfredo Furnace, também. Eu ainda era capaz de ouvir seu riso entranhado no veneno negro que circulava em minhas veias. Ele estava a caminho e trazia seus vikings com ele. Estavam todos indo para a cidade, estavam a caminho agora mesmo, e lá no fundo eu sabia que não vinham apenas para capturar um bando de fugitivos.

— Cara, a gente realmente destruiu aquele lugar — sussurrou Zê, e uma risada escapou de seu rosto contorcido.

Fiquei olhando a tela, perplexo demais com as chamas em pixels para conseguir responder. Era a prisão que estava em chamas agora, mas, quando Furnace chegasse à cidade, o caos se espalharia. E se espalharia por toda parte.

Não pude deixar de pensar que, quando ele chegasse, o mundo inteiro pegaria fogo.


TELEVISÃO

A fuga ocorreu pouco depois das cinco da manhã de hoje.

A voz pausada da âncora contrastava perfeitamente com as cenas de carnificina atrás dela. Zê e eu tínhamos nos sentado, apoiados contra uma pilastra, os olhos passando de um noticiário a outro. Em todos os canais, a única coisa transmitida era a notícia urgente de nossa fuga.

As autoridades isolaram a prisão e a área ao redor e teriam solicitado ao governo auxílio do exército para conter a fuga. Ainda não dispomos de uma declaração oficial da Penitenciária de Furnace sobre como, exatamente, a segurança da prisão foi rompida e quantos prisioneiros escaparam.

Na parte de baixo da tela havia um relógio digital que marcava 5h43 e informava a data. Era 23 de março. Eu não conseguia acreditar em quanto tempo tinha se passado, em quanto da minha vida havia sido roubado. Abaixo havia um letreiro em movimento. Eu o seguia enquanto escutava.

AS PESSOAS DA CIDADE DEVEM PERMANECER EM CASA, TRANCAR AS PORTAS E, SE POSSÍVEL, MANTER AS LUZES APAGADAS E AS CORTINAS FECHADAS. NÃO SE DEVE ABORDAR NEM CONFRONTAR OS PRISIONEIROS SOB QUAISQUER CIRCUNSTÂNCIAS. SE VOCÊ VIR UM PRISIONEIRO, OU ALGUÉM QUE SUSPEITE SER UM PRISIONEIRO, POR FAVOR, TELEFONE PARA O NÚMERO A SEGUIR. NOVAS INFORMAÇÕES SERÃO REPASSADAS ASSIM QUE AS TIVERMOS.

Zê parecia estar prestes a dormir — suas pálpebras estavam quase fechadas, e da boca manchada de chocolate escorria um fio de baba. Não podia culpá-lo. Não estávamos exatamente em segurança ali, mas pela primeira vez em muito tempo não tínhamos que correr para salvar nossa vida, nem lutar com unhas e dentes para continuar vivos. O shopping era a coisa mais próxima que tínhamos de uma casa, e a imobilidade que pairava sobre o lugar — a quietude, quase como a de uma igreja, apesar do blá-blá-blá das TVs e do zumbido constante da música — era nocauteante. Era tentador acreditar que podíamos fechar os olhos ali e acordar como homens livres. E era fácil esquecer que os eventos na tela aconteciam a apenas algumas ruas dali.

Voltei a prestar atenção na TV. Um repórter de meia-idade estava de pé no centro de uma rua, tentando, sem conseguir, não parecer nervoso, a prisão em chamas atrás dele. Havia policiais por toda parte, e achei ter visto vários prisioneiros sendo colocados numa van. A fumaça espessa, pontilhada de centelhas vermelhas e azuis, não me deixou ter certeza.

...supostamente a prisão mais segura do mundo. Mas a grande questão hoje é: como um grupo de prisioneiros adolescentes conseguiu vencer a segurança da Penitenciária de Furnace? Com a memória daquele que foi chamado de Verão do Massacre ainda fresca na mente da nação, não surpreende que as pessoas aqui estejam reagindo com raiva e angústia diante das notícias.

— Isso me lembra minha casa — disse Zê, enrolando as palavras.

— Você morava num shopping?

Zê ergueu a mão e me deu um tapa na perna.

— Não, sua besta. O noticiário. Eu costumava sentar com meus pais depois do jantar e assistir. Eles sempre colocavam um documentário ou alguma coisa assim. — Ele parou de falar, e por um instante achei que tivesse dormido de vez. Na TV, o repórter estava sendo afastado para o lado por um policial armado, uma mão com luva erguida para bloquear a filmagem. Tentei ver direito, mas minha visão perdia e recuperava o foco. Por uma fração de segundo, o repórter e o policial pareceram estar fora da tela, de pé, bem na minha frente, usando roupas floridas de gestante, e percebi que dera uma cochilada. Ergui a cabeça em um gesto repentino, sacudindo o corpo inteiro.

— Você acha que a gente vai conseguir ir pra casa? — perguntou Zê. A pergunta me surpreendeu, fazendo-me acordar um pouco.

— Quer saber o que eu acho mesmo? — falei. Ele assentiu com um aceno de cabeça, e só o desespero em seu rosto bastava para arrancar uma mentira da minha boca. Mas não havia como negar a verdade. — Zê, fala sério. Assim que a polícia terminar de vasculhar a área, vão verificar nossos endereços. Se for pra casa, vão pegar você antes que o dia comece. Isso eu garanto.

— Não se meus pais me esconderem — disse ele. — Ou se todos nós fugirmos juntos. Eles fariam isso, sei que fariam. Eles simplesmente entrariam no carro, e todos nós iríamos para algum lugar bom, um lugar afastado. Seus pais fariam a mesma coisa. Somos filhos deles.

Solucei, e o som foi meio riso, meio choro. Talvez não conseguisse me lembrar do rosto dos meus pais, mas não tinha me esquecido da maneira como haviam me condenado; do jeito como minha mãe tinha se afastado depois da audiência no tribunal; do modo como haviam me esquecido. Não tinha dúvida de que, se eu entrasse pela porta da cozinha, eles me receberiam com sorrisos nervosos e um telefonema sussurrado para a polícia. Zê pareceu ler minha mente.

— Bom, os meus iriam. Você pode vir também; eles iam gostar de você.

As últimas palavras foram ditas em um tom tão baixo que soaram quase irreconhecíveis. O queixo de Zê tombou lentamente até se encontrar com o peito, e sua respiração ficou mais pesada e constante.

— Vai sonhando, Zê — falei com suavidade. — Agora a gente não tem mais ninguém. — Ergui a mão e a apoiei em seu ombro, sacudindo-o de leve. Não podíamos nos dar ao luxo de dormir. A hora em que baixássemos a guarda seria a hora em que voltaríamos para as mãos do diretor.

— Zê — falei mais alto. — Zê, acorda.

Apertei-o com mais força, sentindo sua escápula abaixo da pele do ombro. Ela subia e descia a cada respiração, mas, depois de três ou quatro, parou, estremecendo levemente, até ficar completamente imóvel. Esperei que Zê inspirasse, meu coração na garganta, mas ele ficou ali recostado na pilastra, tão imóvel e calado quanto um cadáver. Fiquei de joelhos diante dele, as duas mãos em seus ombros, e o sacudi com força suficiente para fazer seus dentes baterem.

— Zê! — já tinha começado a gritar. — Meu Deus, acorda! Zê! Que foi?

Sua cabeça levantou-se, vacilante como a de um fantoche, os olhos fixos nos meus. Só que não eram os olhos de Zê; eram cavidades vazias em seu rosto. Não, vazias, não... estavam repletas de trevas, não apenas de sombras, mas de alguma coisa pesada e espessa que se agitava e transbordava dentro delas, como se fossem dois copos de petróleo. Olhei para Zê e tive a sensação de que toda a bondade do mundo tinha se esvaído. Era como cruzar o olhar com o do diretor, só que infinitamente pior. Não, aqueles olhos pertenciam a outra pessoa. A outra coisa. Algo inominavelmente maléfico. Não sei como foi que tive certeza, mas tive.

Aqueles olhos pertenciam a Alfredo Furnace.

— Alex — a coisa que um dia fora Zê gritou, as palavras explodindo do canal vermelho vivo que era sua garganta: — VOU PEGAR VOCÊ!

Então a coisa me pegou, sacudindo-me sem parar, minha cabeça batia contra a parede, meus dentes rangiam, e ela não parava de gritar meu nome, de novo e de novo...

— Alex! Alex, acorde!

Meus olhos se abriram, e por um instante tudo o que pude ver foram aqueles olhos viscosos de petróleo à minha frente. Pisquei, e as duas versões do rosto de Zê se sobrepuseram, como se ele usasse uma máscara barata de Halloween que tivesse saído do lugar. Pisquei outra vez, e o rosto dele voltou ao normal. Tinha uma expressão preocupada. Suas mãos estavam na gola da minha camisa, e ele me sacudia, com força suficiente para fazer minha cabeça bater na pilastra. Quando notou que eu tinha voltado a mim, me soltou, apoiando-se nos calcanhares.

— Por um instante achei que você tivesse batido as botas — disse.

Levantei-me com esforço, tentando afastar parte daquela confusão da minha cabeça. Podia ter só caído no sono; talvez aquela visão tivesse sido apenas um pesadelo. Mas eu sabia que não. Furnace estivera dentro da minha cabeça. De algum jeito, ele tinha vasculhado minha mente com seus dedos imundos e semeado seus pensamentos ali. Dei alguns tapas nas minhas bochechas, depois soltei dois bocejos, e a injeção de oxigênio em meu cérebro fez o recinto se iluminar.

— Cadê o Simon? — perguntei, sabendo que a única maneira de permanecer acordado era ficar de pé. — Melhor a gente ir andando.

Não esperei por uma resposta, arrastando os pés pela superfície lisa rumo à seção de roupas masculinas. Simon estava perdido nela, quase soterrado por uma pilha de roupas. Alisava a parte da frente de um casaco de marca com capuz.

— A seção para gordos fica logo ali — disse ele, tirando os olhos das dobras de algodão e acenando com a cabeça para o outro lado.

— Obrigado — resmunguei baixinho, esgueirando-me entre as araras lotadas de roupas. Minha mente ainda devia estar bem frágil, porque quase se fez em pedaços quando passei por um corredor e vi uma silhueta erguer-se ao meu lado. Virei e vi ali um terno-preto, trajando um macacão rasgado, mas com os olhos frios e prateados brilhando. Caí de costas numa mesa cheia de calças jeans, erguendo as mãos para me defender. O terno-preto fez a mesma coisa, e foi só quando acenei para ele e o enorme brutamontes imitou meus movimentos que reconheci meu reflexo.

Foi a primeira vez que olhei para mim desde a minha cirurgia. Claro que, lá no fundo, eu sabia o que o diretor tinha feito comigo. Sabia que ele havia me retalhado e me estufado com as carnes de outra pessoa, deixando-me maior, mais forte, mais rápido. Mas, quando me via em minha própria imaginação, ainda via a mim, o garoto franzino que eu era quando entrei na prisão.

Aquilo... Aquela coisa no espelho — o tronco enorme, os membros tão inchados que pareciam prestes a explodir, a pele riscada por veias negras, e aqueles olhos — era um monstro. Era a repulsiva criação de um Frankenstein, com hematomas e manchas em cada centímetro, as cicatrizes se entrecruzando como estradas num mapa. Não era eu. Não podia ser eu.

Mas era.

Rugi, o som vindo do meu estômago. Pus minhas mãos gigantescas diante do meu rosto para não enxergar as lágrimas e, em seguida, envergonhado, afastei-me depressa do espelho.

Foco, disse a mim mesmo. Você precisa ter foco, ou não vai sair dessa.

À frente havia uma prateleira repleta de calças de corrida cuidadosamente dobradas. Vasculhei o lugar, esfregando meus olhos embaçados até conseguir enxergar o tamanho. Peguei uma XXLL, jogando o resto no chão. Ficaram apertadas, mas dava para usar. Coisa de um minuto depois, estava com um enorme moletom com capuz e um par novinho de Nikes tamanho 46. Senti-me um pouco melhor sem meu uniforme de Furnace, mas ainda assim evitei os espelhos de corpo inteiro ao voltar para o departamento de eletrônicos.

Simon estava encostado na mesma pilastra onde eu estivera antes, experimentando um relógio de ouro que havia encontrado. Zê também vestia roupas novas — uma calça jeans e uma camiseta marrom. Usava um gorro preto e levava uma parca sobre os ombros. Ele revirou os olhos ao me ouvir chegando e sorriu ao ver meu moletom.

— Toque interessante — comentou. Enruguei a testa, olhei para baixo e vi uma carinha amarelo-fosforescente estampada em meu peito. Não consegui entender como não tinha reparado nela quando havia puxado o moletom da prateleira. Pensei em tirá-lo, mas não estava nem aí. Afinal, se você não pudesse usar uma carinha feliz quando tinha acabado de sair da prisão, quando poderia?

— Como estão as coisas lá fora? — perguntei, indicando os televisores com a cabeça.

— Mal — disse Zê. — Parece que o exército está vindo, e a guarda costeira também. Estão chamando todo mundo para nos pegar. Mas dá uma olhada nisso. — Ele apontou para uma televisão menor, que estava sintonizada na CNN. — Espera só um pouquinho... Olha.

Só recapitulando a última notícia, disse o âncora, o dedo pressionado contra o ouvido. Há relatos de que alguma espécie de... animal está à solta na cidade. Essas imagens feitas perto da prisão mostram algo que parece um cachorro bem grande... A imagem na tela mudou para uma tomada feita por uma câmera de segurança que mostrava uma coisa enorme e negra correndo para uma viela. A imagem ficou na tela por menos de um segundo, e estava granulada demais para mostrar qualquer detalhe além de quatro longas pernas. Porém eu sabia o que era, e não era nenhum cachorro, nem uma das feras sem pele do diretor.

— O viking — sussurrei, meus ferimentos parecendo latejar de maneira ainda mais dolorosa ao me lembrar da batalha que travara com ele, luta que quase havia me matado. Se aquela coisa estava à solta, então precisávamos ter cuidado; não conseguiria enfrentá-la outra vez, nem que estivesse ferida.

Procurei nos outros televisores mais informações sobre o viking, mas os outros canais só falavam sobre a fuga. Num deles, entrevistavam um político, um sujeito que parecia estar sonolento. Em outro mostravam uma planta de Furnace, que eu, só de olhar, sabia que estava completamente errada. Encarei a maior das televisões, que mostrava uma imagem aérea transmitida ao vivo de um dos helicópteros. Não dava para ver a prisão, só um monte de ruas estreitas e de lojas e outra construção que parecia bem maior que as demais. Havia um domo redondo de vidro no telhado, e um raio de luz subia dele como um sinalizador de emergência.

O helicóptero estava tão baixo que conseguíamos ver através do domo a loja abaixo e, nela, diversas televisões ligadas, em frente às quais três silhuetas se agachavam. Observei uma dessas figuras se virar e dar tchau, com um breve intervalo entre a ação de Zê e seu eco digital.

— Estamos na TV — disse ele enquanto todos olhávamos, sem acreditar, o vasto domo sobre nossas cabeças.

Então o vidro explodiu, e policiais armados desceram em cordas, como aranhas lançando-se para o ataque.


ENCONTRADOS

Eram quatro, a palavra SWAT estampava seus coletes à prova de bala, e tocaram o chão num piscar de olhos.

— Disparando!

Um dos policiais tirou uma granada do cinto e lançou-a em nossa direção. Ela rolou pelo piso como uma bola de beisebol, esbarrando num dos racks de TV e vindo parar a menos de um metro dos meus pés. Fechei os olhos, esperando que ela explodisse, que me fizesse em mil pedacinhos. Por um instante meu coração ficou leve, quando percebi que não teria mais que correr, nem me esconder. Era só deixar a vida ir embora e cair num confortável vácuo onde não haveria polícia, nem monstros, nem eu.

Mas ela não explodiu. Fez-se um clarão tão forte que penetrou minhas pálpebras e gravou-se no meu cérebro. Ao mesmo tempo, um estalo deu a impressão de ter feito papinha dos meus tímpanos. O mundo se desintegrou, girando furiosamente enquanto meus sentidos eram devastados. Tentei me mexer, mas era como correr dentro de um globo giratório — cada passo me levava para o vazio. Antes que me desse conta, senti que tinha batido contra alguma coisa, estatelando-me no chão.

À minha volta, quase inaudíveis acima do zunido em meus ouvidos, havia vozes. Reconheci os gritos de Zê e Simon, gritos desesperados. Para além deles estavam as ordens rosnadas da equipe da SWAT — “Entreguem-se já! Dirijam-se ao centro da loja! Mantenham as mãos visíveis o tempo todo! Usaremos força letal!” — e o som de armas sendo engatilhadas. Se eu não fizesse alguma coisa logo, em menos de um minuto seríamos algemados e levados de novo para trás das grades.

E, mesmo que não fôssemos levados de volta para as ruínas em chamas de Furnace, ainda assim seríamos prisioneiros do diretor outra vez. E eu preferia morrer a enfrentar sua fúria.

Forcei-me a abrir os olhos e vi um mundo manchado de fragmentos luminosos. Levantei-me, notando que tinha caído em cima de uma TV de tela plana. Inacreditavelmente ela ainda funcionava, mostrando uma imagem aérea que me deu a falsa impressão de estar sobrevoando a cidade. Sem pensar, ergui a enorme TV com as duas mãos, balançando-a como um enorme frisbee.

Não tive tempo de arquitetar plano nenhum, mas a sorte estava do meu lado. Os policiais já tinham saído da seção de roupas masculinas e vinham na direção dos eletrônicos. Usavam óculos de proteção com aquelas lentes esverdeadas, fazendo-os parecer robôs. Eles viram meu míssil improvisado tarde demais. Ele voou pela seção de roupas esportivas, acertando um dos policiais no peito e fazendo-o dar cambalhotas para trás.

Na fração de segundo que levou para o resto da equipe reagir, peguei outra televisão, arremessando-a na mesma direção. Os policiais se espalharam, um deles disparando uma rajada de sua submetralhadora, que reduziu um manequim ali perto a estilhaços de plástico. Lancei outra, só para garantir, a tela partindo-se num milhão de pedacinhos ao bater contra uma prateleira, e depois virei-me e fugi.

Não havia sinal de Simon, mas Zê se escondia atrás das televisões restantes. Peguei-o nos braços como um pai pegaria uma criança, apertando-o com força. Ele se agarrou a mim com todo o vigor dos seus braços franzinos, tentando não gritar enquanto corríamos para a janela que dava para o saguão principal. Atrás de mim, ouvia os disparos abafados de armas com silenciadores, como se alguém brincasse com plástico-bolha. Algo fervilhava atrás dos meus ouvidos, e, à frente, vi buracos se abrirem na janela.

— Vamos derrubá-lo! — gritou alguém, e de súbito, no momento em que a equipe da SWAT usou de toda a sua força, o ar ficou repleto de balas. Mas eu corria rápido demais para que me acertassem, e o mundo tinha se transformado em um borrão enquanto eu ziguezagueava entre as mesas do café, precipitando-me contra o vidro. No último instante fiz o que pude para curvar-me como uma bola, usando uma das mãos para proteger meu rosto, e meu corpo para proteger Zê.

— Alex, você não vai...! — foi tudo o que ele teve tempo de dizer antes do impacto. O vidro foi detonado quando o atravessamos. Senti meu estômago revirar enquanto caíamos, cercados por estilhaços brilhantes e multicoloridos que teriam sido um espetáculo bonito se não fossem tão letais. A janela ficava só um andar acima do primeiro piso, mas cambaleei ao despencar, deixando Zê escapar e cair na piscina de vidro que havia se formado à nossa volta. Segurei-o pelo colarinho, içando-o antes que ele pudesse começar a reclamar e arrastando-o pelo shopping. Não havia sinal dos prisioneiros que tínhamos visto antes.

— E agora? — gritou ele, ficando em pé e desvencilhando-se de mim. — Cadê o Simon?

Olhei de novo a janela, que agora não era mais do que uma enorme boca cheia de dentes de vidro quebrados. Uma figura surgiu, sua silhueta recortada pelas fortes luzes da loja, e de início achei que pudesse ser ele. Então a figura apoiou sua arma no rebordo e começou a disparar. Um segundo depois veio outra, o piso ao nosso redor subitamente repleto de buracos de bala. Recuei até as grades que protegiam a entrada da Harvey‘s, Zê bem atrás de mim. A equipe da SWAT não conseguia apontar suas armas para nós ali, mas nem por isso parou de tentar, uma cortina de chumbo caindo à nossa frente como uma cascata.

— A gente precisa ir lá pra baixo! — gritou Zê por cima do ruído. Ele não era tolo para apontar, teria perdido o dedo em segundos, mas acenou com a cabeça para a varanda que dava para o térreo do shopping.

— Pois é — respondi. Uma das balas ricocheteou numa extremidade de pedra e atravessou a janela a meu lado, deixando um buraco perfeito, do tamanho de uma moeda. Zê parecia prestes a falar quando alguma coisa grande e pesada caiu ao nosso lado, fazendo um estrondo. Para minha surpresa, era um dos membros da equipe da SWAT. O homem parecia ter caído de cabeça e não se mexia.

O som das metralhadoras continuava, mas os policiais agora dirigiam sua atenção para alguma coisa dentro do prédio. Ainda fumegante, uma metralhadora despencou no chão com um baque. Em seguida vieram óculos de proteção.

— O que foi isso? — perguntou Zê. — Vamos embora, vamos dar o fora daqui enquanto ainda dá.

Não discuti, dando um salto em direção ao chão. Ele estava destruído, e havia cartuchos de balas por toda parte, traiçoeiros, fazendo escorregar. Mas mantive o equilíbrio e corri até a proteção do balcão.

Atrás de nós, os tiros tinham parado, e, ao me virar, vi duas silhuetas lutando na janela. O braço enorme de uma envolvendo o pescoço da outra, o corpo curvado em arco, me fazendo lembrar do Corcunda de Notre Dame. Simon deu um empurrão no policial, e o homem saiu girando pelo ar e caiu sem vida ao lado do corpo do colega. Então ele saltou em meio ao vidro quebrado e aterrissou no chão, esfregando as mãos, satisfeito.

— Valeu pela ajuda, galera — disse ele. Reparei que havia sangue negro pingando de um ferimento em seu ombro e o avisei. Simon apenas deu de ombros. — Um desses porcos me acertou, mas acabei com eles.

— O que aconteceu? — perguntou Zê, estendendo um dedo curioso e cutucando a ferida de Simon. O garoto maior fez uma careta e afastou a mão de Zê.

— Eles estavam tão ocupados indo atrás de vocês que nem sequer me notaram — explicou, olhando a pele esticada e cheia de cicatrizes de seu braço mutante. — Sabe, eles não estão prontos para nós. Esses caras nunca viram nada parecido com a gente. Somos maiores e mais rápidos. Às vezes ser uma aberração tem um lado positivo.

Ele correu até onde estava a metralhadora, erguendo-a e mexendo nela até que o cartucho da munição se soltou. Deu uma olhada nas balas lá dentro e, em seguida, inseriu-o desajeitadamente no lugar, segurando a arma colada contra o peito.

— Vamos — disse. — Precisamos voltar para os corredores de serviço antes que mandem reforços; lá embaixo não vão conseguir encontrar a gente. A gente pode ir pelos fundos.

— Nada disso — falou Zê, balançando a cabeça. — Tem um jeito melhor.

Ele se dirigiu a uma escada rolante, descendo rápido pelos degraus imóveis. Eu não estava com a menor vontade de andar, por isso agarrei o corrimão e pulei por cima dele com toda a graciosidade que me era possível e aterrissando no térreo. Ouvi um grunhido abafado na hora em que Simon pousou ao meu lado, sua mão menor massageando o ferimento do ombro. Zê, por sua vez, saiu correndo do último degrau, indo até os carros em exposição na enorme praça na parte central do shopping. Eles estavam dispostos em volta de uma fonte em forma de flor, a água refletindo sua tranquila luminosidade nas superfícies prateadas e cintilantes, fazendo com que parecessem peixes.

— Gostei — disse Simon, passando a mão por cima do capô do carro mais próximo, um SUV compacto. — Agora só precisamos de um instrutor de direção.

— Você é que precisa — disse Zê. Ele andou até um painel do outro lado da fonte, e, ao segui-lo, eu o vi chutando um cadeado. Ele me dirigiu um olhar suplicante, e então agarrei as portas trancadas, forçando-as até se abrirem, como se fossem feitas de papel-alumínio. Atrás delas havia dezenas de chaves penduradas. Zê escolheu uma e apontou para trás de si, apertando o botão do controle remoto. Um hatch pequeno respondeu, fazendo um bipe baixinho e piscando os faróis. Ele fez menção de se dirigir a ele, mas o impedi.

— Nisso aí, a gente não vai andar nem um metro se começarem a atirar — falei. Apontei para um enorme 4×4 que estava ali perto, com um quebra-mato acoplado ao capô, prometendo um motor monstruoso sob ele. — A gente devia levar o Humvee.

— Amém — acrescentou Simon. — E eu vou na frente.

— De jeito nenhum — reclamei, enquanto Zê procurava a chave, o ar vibrante com o canto artificial de pássaros.

— Foi mal, Alex. Mas quem pede primeiro para ir na frente, vai... Certo, Zê?

Zê escolheu uma chave e a apertou, e o Humvee respondeu com o rosnado nada sutil de sua buzina. Ele olhou para mim e assentiu com um aceno de cabeça.

— Lamento, mas é verdade — respondeu. — Existem poucas regras nesta vida que não podem ser quebradas, mas a de quem pede primeiro pra ir na frente não é uma delas. Você vai atrás.

Fui bufando até o carro, abri com força a porta de trás e me joguei no banco de couro. Zê pulou no banco do motorista, e Simon se sentou ao lado dele com um sorriso esnobe. Não sei por que agíamos feito crianças. Quero dizer, o shopping estava cercado de policiais armados, e agora éramos oficialmente assassinos de policiais. Mas ainda estávamos vivos e, agora, também motorizados. Na visão geral das coisas, a situação não era nem de longe tão ruim quanto poderia ser.

Zê apertou o botão de ignição, e o carro ganhou vida com um rugido. A fera era automática, e ele mexeu a alavanca até ela parar em drive. Depois, segurou o volante com tanta força que as juntas dos dedos ficaram brancas e sentou-se ereto para ver por cima do enorme painel. Não posso dizer que isso me encheu de confiança.

— Tem certeza de que consegue dirigir isso? — perguntei enquanto ele colocava o motor para funcionar, o carro indo lentamente para a frente. Por instinto, coloquei o cinto de segurança.

— Tá tranquilo — disse ele. — Confia em mim. Foi por isso que eu fui parar em Furnace, lembra?

— Lembro, mas você disse que armaram pra te culpar pelo atropelamento daquela velha — disse Simon.

— Pois é, armaram pra mim — respondeu Zê, e o carro passou a andar vagarosamente, parando e continuando enquanto ele se entendia com o acelerador. — Nunca matei ninguém. Mas já fui preso algumas vezes porque lesepei uns carros para dar umas voltas. Foi assim que deram credibilidade ao caso. — Ele olhou minha expressão confusa pelo retrovisor. — Lesepei, do verbo lesepar. Levar sem permissão. Roubei uns carros por aí. Nada de mais, só uma coisinha aqui e ali. A gente ia passear com eles de noite em um parque perto da minha casa.

— E eu aqui achando que você era todo bonzinho — falei. A ideia de Zê cometendo qualquer tipo de crime me deixava perplexo. Ele se limitou a abrir um sorriso.

— Como Simon falou, nenhum de nós era um anjinho.

Ele pisou fundo, os pneus deslizando no piso liso e aderindo à superfície à medida que acelerávamos rumo aos portões do shopping e do exército de policiais que nos aguardava do lado de fora.


PERSEGUIÇÃO

Em nenhum momento Zê tirou o pé do acelerador, e, na hora em que chegamos ao fim do pátio, o velocímetro indicava que estávamos a mais de cem quilômetros por hora. Senti-me pressionado contra o couro de cheiro forte do banco, como se estivesse numa montanha-russa, meu estômago dando voltas, me fazendo querer ter tido tempo de usar o banheiro da Harvey‘s. As lojas passavam tão rápido que eu não conseguia ler seus nomes, as vitrines se confundindo numa longa fila de manequins borrados e faixas coloridas. Não era o maior shopping do mundo, e eu sabia que, àquela velocidade, logo, logo não teríamos mais por onde andar.

— Sabe aonde estamos indo? — perguntei, mas minhas palavras se perderam em meio ao rugido do motor e aos “opas” entusiasmados de Simon. Ele não tinha nem se dado ao trabalho de colocar o cinto de segurança e estava inclinado para a frente, batendo no painel, incentivando Zê a mandar ver. A metralhadora ainda estava firmemente presa à sua mão, e eu torcia para que ele, empolgado, não apertasse o gatilho acidentalmente.

Olhei entre eles e vi a larga rampa de acesso que subia em direção à entrada principal do shopping. As portas de vidro eram reforçadas com portões de aço, as barras de metal brilhando em matizes de azul e vermelho dos Deus sabe quantos policiais estacionados do lado de fora. Zê, porém, não deu nenhum sinal de notar esse alerta piscante. No retrovisor, seu rosto era pura determinação, e, ao chegarmos à rampa, senti a velocidade do carro aumentar.

— Zê! Diminui aí! — gritei enquanto os portões aumentavam de tamanho à nossa frente, fechando-se sobre nós como uma armadilha para ursos. — Caram...

Acertamos o portão a 110 por hora, e o resultado foi catastrófico. Portões de aço são feitos para deter ladrões, e a velocidade do Humvee fez com que ele passasse por eles como uma faca cortando a manteiga. O portão inteiro foi arrancado, ficando sobre o capô do carro enquanto arrebentávamos as portas de vidro e chegávamos à rua. Os dois airbags da frente inflaram, enchendo o interior de pó branco. Simon foi acertado pelo airbag, e seu nariz começou a sangrar. O cinto de segurança de Zê, por outro lado, protegeu-o dos ferimentos; ele abaixou o airbag e em nenhum momento tirou o pé do acelerador, mesmo sem conseguir ver nada pelo para-brisa.

— Esquerda! — gritei, lembrando de como era a rua. — Vire à esquerda.

Zê girou o volante com força suficiente para fazer o carro inclinar-se para um dos lados. Por um instante achei que fôssemos capotar, mas Zê virou uma das mãos rapidamente e o jipe voltou ao solo. O portão de aço ainda estava preso ao capô, e centelhas furiosas surgiram sobre ele na hora em que a polícia começou a disparar. Abaixei-me, recitando uma prece atrás da outra enquanto as janelas laterais se estilhaçavam e o ar frio inundava o carro.

Batemos em alguma coisa, e fui jogado contra o banco da frente. Mais tiros, gritos e o som crescente das sirenes. Então Zê voltou a acelerar, e um estrondo seco abaixo de mim anunciou que um dos pneus tinha furado. Balas estilhaçaram o vidro traseiro, o ruído dando a impressão de que vespas zangadas investiam contra o estofamento e o teto do carro. O Humvee girou de um modo desesperador, mas depois se estabilizou, afastando-se tão rápido que pensei ter deixado as vísceras lá no shopping. Só quando o barulho dos tiros diminuiu foi que ousei me levantar.

— Todo mundo bem? — perguntei. Os dois se mexiam. Zê com a cabeça para fora da janela, tentando enxergar além do portão de ferro, e Simon chutando o para-brisa para tirá-lo dali. Com um rugido abafado, o vidro alvejado enfim cedeu. Os pés de Simon, agora calçados com os tênis, o quebraram em grandes pedaços antes de conseguir alcançar o portão. Ele resistiu por um momento, mas em seguida o vento o tomou e o portão quicou no teto do veículo, indo parar na pista atrás de nós. Zê colocou a cabeça dentro do carro, o cabelo desgrenhado e as bochechas vermelhas por causa do vento, e em seguida virou-se e sorriu para nós dois.

— Isso foi... — essas foram as únicas palavras que Zê parecia capaz de dizer. Ele voltou a olhar para a rua, chegando a uma esquina e virando à esquerda.

— ...muito louco — concluí para ele. Arrisquei-me a olhar para trás e notei um brilho azul e vermelho se aproximando. — Não estamos sozinhos. Por que será que estão mandando a polícia toda atrás de nós?

— Porque fomos os únicos presos burros o suficiente para anunciar nosso esconderijo para o mundo inteiro — esclareceu Simon.

Zê tentou olhar pelo retrovisor, mas ele tinha sido estilhaçado por uma bala. Lançou então um olhar por sobre o ombro, mas Simon o fez virar para a frente.

— Você fique de olho na pista, Dick Vigarista — falou, lançando um olhar para o vidro traseiro. — O Muttley e eu cuidamos do que vier atrás.

Ele passou desajeitadamente entre os assentos dianteiros e veio se posicionar a meu lado, ajoelhando sobre o couro e apoiando a metralhadora na janela. Atrás de nós um carro de polícia se aproximava com rapidez, a sirene acesa e duas carrancas visíveis em meio às luzes. O Humvee deu outra guinada, e nossos perseguidores desapareceram ao virarmos numa esquina. Viramos outra vez, tão de repente que quase esmaguei Simon. Ele me afastou, sem tirar, nem por um instante, os olhos da estrada.

— Você agora é o copiloto — rosnou.

Tirei o cinto e me esgueirei pelos assentos até sentar ao lado de Zê. Ventava tanto ali na frente que tive de apertar os olhos até quase fechá-los, só para impedir que ficassem marejados. No borrão diante de mim, avistei uma rua vazia, exatamente como aquela que tínhamos deixado.

— Sabe aonde a gente está indo? — perguntei.

— Que nada — respondeu Zê, os dentes cerrados. — Só quero fugir deles. Se segura. — Sem diminuir a velocidade, ele conduziu o enorme carro por uma viela, faíscas voando das portas por causa do atrito com os tijolos. Logo à frente havia uma cerca com cadeado, que o carro arrebentou como se ela nem estivesse ali, chegando com um solavanco a uma rua mais larga. Zê pisou fundo no freio e girou o volante para evitar colidir com um caminhão de leite que estava estacionado, mas não conseguiu, acertando-o na traseira e fazendo o caminhão girar duas vezes, espalhando leite semidesnatado ao derrapar pela pista até acertar de lado um poste, emitindo um baque surdo.

— Opa — disse Zê, acelerando pela contramão. Havia mais trânsito ali, basicamente vans de entrega que buzinavam e subiam desesperadamente na calçada para evitar uma batida. Um caminhão de lixo não queria se mexer, e Zê xingou o motorista, passando por cima do canteiro central e indo para a outra mão.

— Algum sinal dos...?

Ele nem precisou terminar. Um carro de polícia zuniu por uma rua à nossa frente, fazendo lixeiras voarem na hora em que freou, cantando os pneus. As janelas estavam abaixadas e de uma delas saiu um revólver, o cano brilhando a cada tiro. Nós três nos abaixamos quase ao mesmo tempo, as balas tilintando musicalmente ao acertar o carro.

— Dá um jeito nesses caras! — gritou Zê, mas Simon já atirava pela janela traseira. Havia um segundo carro de polícia nos seguindo, e um terceiro depois dele. Tinham dado certa distância para evitar ser atingidos, mas não iam nos deixar ir embora.

— Bandidos adiante — disse Zê, e ouvi outro disparo à nossa frente. Zê jogou o Humvee contra o carro da polícia, que saiu girando por cima do canteiro central. O motor rugiu, tossindo de modo preocupante antes de se acalmar. Eu já tinha jogado videogames o bastante para saber que havia um limite para quanto se podia detonar um carro até que ele pegasse fogo e explodisse.

— Pisa fundo! — gritei. — Leva a gente pra algum lugar seguro. Precisamos despistar esses caras e nos livrar deste negócio.

— O que você acha que estou tentando fazer, hein, gênio? — retrucou ele, contornando uma caminhonete com força suficiente para fazer o veículo trepidar antes de chegar a 130 quilômetros por hora. — Só não dá pra fugir dos olhos que estão no céu.

Olhei pela janela quebrada e vi um helicóptero acima de nós, pairando tão baixo que eu conseguia ver o logotipo da polícia na sua lateral. Quase ri, lembrando das vezes em que tinha visto perseguições de carros como aquela na televisão, os imbecis que achavam que podiam se esconder de um helicóptero equipado com câmeras infravermelhas. Provavelmente eu estava na TV agora, aparecendo no noticiário. Não que alguém fosse me reconhecer com meu novo rosto e meus olhos prateados.

— Alguém tem alguma ideia sensacional pra sugerir? — perguntou Zê.

Passamos a toda por um cruzamento, e logo adiante na pista, à esquerda, pude ver de relance o rio. Mesmo com o sol já totalmente acima do horizonte, ele parecia uma cicatriz escura na cidade, à sombra dos arranha-céus comerciais de ambos os lados. Ele desapareceu atrás de um prédio depois de uma fração de segundo, porém deixou sua marca em minha visão.

— Podíamos seguir nadando — falei. — Ou achar um barco. A costa fica muito longe? A gente consegue chegar lá.

Zê balançou a cabeça, furando um sinal vermelho e fazendo um coral de pneus cantarolar atrás de nós. Os dois carros de polícia ainda estavam colados na nossa traseira como sombras, e eu não tinha ouvido Simon disparar mais nenhum tiro. Provavelmente havia ficado sem munição, e cedo ou tarde a polícia ia perceber.

— Iríamos congelar — disse ele. — A essa hora do dia, a temperatura da água está perto de zero. Deus me livre!

Outros três carros de polícia vieram rugindo de trás de um quarteirão de arranha-céus e pararam com um tranco à nossa frente, os policiais saindo depressa e disparando de trás das portas abertas. Alguma coisa passou queimando pelo meu pescoço e gritei ao me agachar, sentindo o carro inclinar na hora em que Zê virou à esquerda. Havia plástico explodindo, faíscas saindo do painel. Percebi que conseguia ver a rua através dos diversos buracos na lateral do carro: uma dezena de rostos furiosos passando rápido enquanto deixávamos os policiais para trás.

Fechei os olhos, tentando pensar na época em que ia ali com meus pais — outro mundo, outra vida. A gente nunca ia de carro, porque o trânsito na ponte era sempre ruim, principalmente nos fins de semana. Algumas vezes vínhamos de ônibus, mas minha condução favorita sempre tinha sido...

— O metrô — falei. — Tem uma estação de metrô perto daqui, tenho certeza.

Zê virava a cabeça de um lado para o outro, procurando desesperadamente algum lugar para ir. O carro seguia mais devagar enquanto passava por uma rua estreita. O rio agora estava mais perto, a cidade visível do outro lado, seus vastos arranha-céus reluzindo ao sol que acabara de nascer. Ele deu uma guinada à direita, subindo na calçada e passando por um jardim. Atrás, as viaturas tinham acabado de virar a esquina, pintando de vermelho e azul o mundo à sua volta.

— Com a gente à solta, o metrô não vai estar funcionando — disse Zê, guiando com delicadeza o 4×4 alguns degraus abaixo e depois acelerando ao chegar numa passagem de pedestres. Assim que os policiais sumiram de vista, ele virou à esquerda, mal conseguindo fazer o veículo passar por outra viela. Ficamos ali, os prédios erguendo-se dos dois lados e protegendo-nos do helicóptero. Havia um silêncio falsamente tranquilo. Eu queria que Zê desligasse o motor. Talvez os policiais não nos vissem, talvez passassem direto. Mas ele acelerou, indo na direção da luz no fim da viela.

— Podemos nos esconder lá embaixo — continuei. — Nos túneis. Se os trens não estiverem funcionando, talvez a gente consiga andar.

— O Alex tem razão — disse Simon. Ele tinha largado a metralhadora no banco e pressionava a mão contra a ferida no ombro. — A gente precisa sair da rua.

Zê o encarou como se estivesse prestes a contestar, mas era óbvio que ele não tinha nenhuma ideia melhor.

— Certo, melhor do que nada. Você sabe onde fica a estação mais próxima?

— Tem uma ali perto do rio — falei. — É só achar a ponte que você vai ver.

Zê concordou com a cabeça e pisou fundo, o carro arrancando da viela rumo à larga avenida que corria paralela à água. Havia carros ali, mas pareciam abandonados, com as portas abertas e os motores ainda em funcionamento. Um caminhão tinha batido contra a lateral de um pequeno prédio comercial, no qual um incêndio furioso espalhava-se com rapidez. Voltei minha atenção para a rua, vendo a ponte à minha frente. Havia pelo menos uma dúzia delas que cruzavam o rio em vários pontos da cidade, mas eu reconhecia aquela pela irregularidade da tinta branca e vermelha que decorava os arcos. Àquela distância do centro da cidade, tudo era meio decadente.

Um lamento se fez ouvir no instante em que as viaturas surgiram atrás de nós, mas as sirenes foram encobertas por um súbito rugido que inundou o 4×4. O veículo balançava com as rajadas de vento, e pelo para-brisa quebrado vi um helicóptero sair de trás dos quiosques e das pequenas lojas que ladeavam a margem do rio. Não era o helicóptero da polícia; era laranja, da guarda costeira. A porta principal estava aberta, e por ela vi um rifle calibre .50, que provavelmente era usado para abater barcos de contrabando. Ele estava apontado direto para nós.

— Ah, não — grunhi, sentindo meu sangue gelar. Com um latido, a arma disparou, um hálito de fogo soprando do cano. Zê tentou desviar, mas o movimento foi muito lento, e as balas abriram caminho pela dianteira do carro, fazendo o capô sair voando. Começou a sair fumaça das vísceras dilaceradas do carro. — Mais rápido!

— Estou pisando fundo! — ele gritou em resposta. — O maldito motor já era.

O carro estava indo mais devagar, tossindo e cuspindo feito um velho. Zê pisava e repisava no acelerador, mas continuávamos nos arrastando. Olhei o velocímetro cair de cem para noventa, enquanto os carros da polícia iam se aproximando.

— Acabou? — gritou Simon, a boca tão perto do meu ouvido que tomei um susto. Ele estava inclinado entre nós, e sua enorme mão apontava uma placa a uns cem metros. Apertei os olhos, por causa da luz do sol, e vi escadas que levavam para o subterrâneo. Meus olhos voltaram para o velocímetro. Já estávamos a setenta quilômetros por hora, e a velocidade continuava caindo rapidamente, mas talvez conseguíssemos chegar.

— Parem o veículo imediatamente ou vamos atirar! — ordenou uma voz amplificada do helicóptero. Ignorei-a. Com o carro naquele estado, tinha certeza de que os freios não iam funcionar se Zê tentasse usá-los. Ele dirigia em direção ao metrô, inclinado para a frente no banco, como se tentasse ele mesmo empurrar o carro. Estávamos a cinquenta por hora, os pneus furados nos retardando, mas a entrada da estação estava a poucos metros. Zê conduziu o carro em direção à calçada, para nos levar direto pela entrada, e foi aí que o motor deu seu último gemido mecânico e morreu de vez.

— Preparem-se para correr — disse ele, a mão já na porta. O carro acertou o meio-fio, e por um segundo achei que sua inércia fosse nos lançar escada abaixo, mas ele balançou um pouco e parou. Eu já ia abrir minha porta, mas Simon gritou e olhei para trás. Carros de polícia vinham a toda em nossa direção. Dois pararam, mas um continuou, acelerando o tempo todo. Por trás do para-brisa eu conseguia distinguir um rosto retorcido pela fúria. O veículo nos acertou com força, fazendo o Humvee estremecer.

Fui jogado contra o painel, o airbag vazio pendendo inutilmente a meus pés. Mas Zê foi rápido, girando o volante e nos levando pela entrada da estação e descendo os degraus. Tudo estava inclinado para a frente, e o corpo de Simon me esmagava contra o porta-luvas. Atrás de nós, ouvi outra vez o barulho do rifle da guarda costeira. Dessa vez reagimos instantaneamente, o terror ejetando-nos daqueles bancos pelo para-brisa e por cima do motor fervente enquanto uma saraivada de balas dilacerava a carcaça do carro.

Começamos a correr, dando uns vinte passos antes de o Humvee explodir. O calor foi canalizado pela passagem, e uma lufada de fogo nos acertou com força, derrubando-nos no chão, mas ela perdeu força após praticamente um segundo. Não que nunca tivéssemos presenciado uma explosão. Minhas sobrancelhas ainda não haviam crescido desde a última.

Não me levantei de imediato, só virei o corpo e olhei a carcaça em chamas. Ela preenchia perfeitamente as escadas do metrô, uma barragem que manteria a polícia do lado de fora até que o caminhão dos bombeiros chegasse. Deixei minha cabeça encostar no chão frio, olhando um cartaz de Coca-Cola por um tempo que pareceu uma eternidade, até que senti a mão de Zê puxando meu capuz e vi que ele e Simon estavam de pé. Eles me ajudaram a levantar; em seguida, com o calor do carro em chamas ainda agarrado às nossas costas, seguimos estação adentro.


METRÔ

Era difícil de acreditar, mas ali estávamos nós de novo: debaixo da terra.

Caminhamos pela passagem de pedestres que levava à estação do metrô, o piso descendo pouco a pouco, conduzindo às vísceras da terra. Tudo estava deserto por ali, e nossa única companhia eram o eco gentil de nossos pés contra o solo e os olhares congelados dos pôsteres desbotados que forravam as paredes. Sabia que estávamos livres — por ora, pelo menos —, mas, a cada passo que nos afastava da entrada e da superfície, eu sentia aumentar em mim a sensação de que estávamos sendo levados de volta a Furnace.

Era como estar debaixo d‘água, no fundo de um lago negro, tentando alcançar a superfície. Toda vez que achávamos que veríamos a luz do dia, acabávamos sugados de volta para baixo, sem conseguir respirar. Olhei para o túnel, para as sombras que se aglomeravam ali, e minhas vísceras gritavam para que eu desse meia-volta, para que permanecesse na luz.

Claro que a parte lógica da minha mente sabia que as linhas de trem não passariam nem perto das entranhas de Furnace. A prisão ficava muito mais no fundo, cerca de um quilômetro e meio abaixo de nós. Mas eu conseguia sentir seu toque em minha pele. E, à medida que percorríamos nosso exaustivo caminho rumo à escuridão, sentíamos como se estivéssemos nos lançando de novo aos portões do inferno.

Viramos numa lateral e chegamos à bilheteria. Em todas as outras vezes que estive ali, o lugar estava lotado, com gente por toda parte, pessoas apressadas, empurrando-se e se xingando. Agora estava tudo vazio, e o silêncio dava nos nervos, chegava a pesar, como se o tivéssemos flagrado fazendo algo que não devia. As máquinas de bilhetes piscavam para nós, sobressaltadas, e, acima, uma das lâmpadas fluorescentes acendia e apagava.

Destituída de vida, a estação parecia irreal, como se fosse apenas um cenário, e outra ideia insana passou pela minha cabeça. E se fosse um cenário? E se aquilo fosse só uma das piadas sem graça do diretor, um de seus testes sádicos? Deixar-nos pensar que tínhamos fugido, que tínhamos conseguido, só para revelar que aquele mundo era invenção dele; que era um imenso teatro de crueldade, bem nas profundezas de Furnace. A qualquer instante ele sairia da penumbra com seus ternos-pretos e seus cães, uivando de alegria enquanto nos jogava de volta para as mãos dos Ofegantes. Será que realmente tínhamos estado ao ar livre? Aquele sol era mesmo o verdadeiro sol? Naquele momento, minha mente estava destruída demais para dar uma resposta objetiva.

— Alguém tem dinheiro para comprar o bilhete? — perguntou Zê, cujo sussurro era quase ensurdecedor naquele silêncio. O som reverberou no corredor, quicando nas paredes de azulejo e na superfície de concreto antes de se retirar, causando arrepios em meus braços. Zê batia nos bolsos vazios de sua calça jeans. — Estou meio sem grana no momento.

Andamos pelo saguão até chegarmos à catraca, e Zê se deteve na máquina de venda automática. Ele a chutou diversas vezes, e na quinta tentativa o vidro se estilhaçou. Pondo as mãos ali dentro, tirou um punhado de Kit Kats e uma garrafa de Coca. Depois pegou uma água com gás e me deu. Não tinha me dado conta da sede que estava sentindo até abrir a tampa e deixar a água fresca deslizar pela minha boca. Ela escorreu pela minha garganta, parecendo levar embora um pouco do cansaço, um pouco do medo. Joguei a garrafa vazia para o lado e peguei outra, tomando quatro seguidas e depois soltando o arroto mais alto e mais longo que já havia soltado na vida — foi tão impressionante que Simon teve um sobressalto.

— Calma aí, tigrão — disse. — Ou você vai virar do avesso arrotando assim.

Eu ri. Beber aquela água tinha sido ótimo. Elevou de novo meu nível de energia, mas não fez nada com o enorme buraco no meu estômago, aquela fome terrível, insuportável, que fazia com que eu me sentisse um homem oco. Lembrei daquilo que Simon tinha me dito, na prisão, sobre o meu apetite. Sentia fome porque meu corpo estava ficando sem néctar. Se eu não arrumasse um jeito de viver sem o veneno do diretor, estaria condenado ou a morrer ou a virar uma fera sanguinária, matando qualquer coisa que me aparecesse pela frente.

Não era exatamente o futuro pelo qual eu esperava.

— Tudo bem? — disse Simon.

— Tudo, tudo. — Assenti, balançando a cabeça.

Zê tinha se aproximado de um mapa das linhas. Passava a mão por aquele emaranhado de fios coloridos e parou num ponto chamado Whitesmith Lane — o mesmo nome que aparecia nas paredes de azulejo da estação. Estávamos na parte de baixo do mapa, a cinco estações do fim da linha.

— Se formos nessa direção, talvez a gente consiga chegar em Hollenbeck — disse Zê, passando o dedo pelo fio azul até sair do quadro. Tinha minhas dúvidas de que nossa fuga seria tão simples assim, mas a ideia era agradável. Ele usou o mesmo dedo para coçar o nariz antes de colocá-lo de volta onde tinha começado. — O problema é que é isso que eles estão esperando. Eles sabem que tem alguém aqui embaixo tentando chegar aos limites da cidade, por isso eu acho que essas estações vão estar cheias de policiais.

Ao lado do mapa havia um painel eletrônico que mostrava a situação de cada linha. Para minha surpresa, todas elas, exceto aquela em que nos encontrávamos, estavam funcionando, mas com uma advertência: grandes atrasos.

— E aí, o que a gente faz?

— Pois é — disse Zê, balançando a cabeça. — Estou achando... E só achando mesmo, pessoal, que eles não esperam que a gente vá para o norte. É arriscado demais, tem gente demais. Somos fugitivos; precisamos de sombras, de trevas. Pelo menos é isso que eles pensam. Se a gente for para a cidade, vai ter polícia pra todo lado, mas também vai ter uma multidão, milhares de pessoas.

— Podemos sumir — disse eu.

— Podemos sumir — confirmou Zê. — Não tem lugar melhor pra isso do que o centro da cidade. — Ele se virou outra vez para o mapa. — Então a gente pega os trilhos e vai para o norte. Duas paradas. Acho que dá alguns poucos quilômetros. Chegamos a Twofields e pegamos a Linha 11: com ela, a gente consegue passar pelo centro e sair do outro lado.

— Mas é um monte de estações pra gente passar — disse Simon. — E se fizerem buscas nos trens?

— Se a gente vir a polícia, muda de trem — respondeu Zê. — Se os policiais estiverem correndo, passamos rápido no meio deles. Se não pararmos, uma hora vai dar pra sair da cidade. Se conseguirmos sair em alguma das estações ali — ele indicou a parte de cima do mapa —, a gente vai se dar bem. Não vai ter muita polícia na parte norte; eles não acreditam que alguém consiga chegar tão longe.

— E se tiver... — Simon bateu seu punho enorme contra o pequeno, depois fez uma careta e segurou o ombro.

— Você vai gemer e grunhir até eles pedirem desculpas e deixarem a gente passar? — concluí. Ele rosnou alguma coisa indecifrável, afastando a mão para examinar a mancha de sangue negro na palma. Minha expressão ficou séria. — Tem certeza de que está tudo bem?

— Eu vou sobreviver — respondeu ele com um sorriso fraco. — Eu boto um gesso quando a gente sair da cidade. Agora vamos.

Tomando impulso, ele correu até a catraca mais próxima e saltou sobre ela, Zê e eu logo atrás. Fomos meio hesitantes até alcançar outra passagem e, depois, chegamos às escadas rolantes. Comecei a descer uma delas correndo, mas Simon subiu na superfície que separava duas das escadas e começou a escorregar, parecia um surfista em uma onda. Soltava risinhos enquanto deslizava. Perdeu o equilíbrio em algum lugar perto do final e bateu os pés no piso abaixo.

— Sempre quis fazer isso! — gritou na nossa direção, assim que recuperou o equilíbrio. Saí da escada e me dirigi a uma das duas entradas em forma de arco nas paredes. A placa ao lado dela dizia DIREÇÃO NORTE e mostrava um mapa das paradas. Fomos andando e nos vimos numa plataforma vazia. Era congelante ali; um vento frio vinha rasgando de um dos lados do túnel e saía pelo outro, e a sensação era muito agradável. Não parecia em nada o fedor abafado do hálito de Furnace. Era uma corrente fresca, que nos levaria à liberdade.

O painel eletrônico acima de nós dizia NÃO HÁ TRENS, mas não precisávamos de trem nenhum. Zê olhou para os dois lados antes de descer até a via.

— Não chegue nem perto desse trilho — disse ele, apontando o terceiro trilho, que era diferente dos outros, mais alto e com apoios amarelos. Simon e eu nos sentamos na beirada da plataforma e pulamos juntos, fazendo o que podíamos para ignorar o cheiro de óleo e urina que se prendeu à nossa garganta. — Se encostar nele, só por um instante, vai voar para longe desses sapatos novos. Uma vez eu vi um programa sobre as pessoas que tinham morrido aqui embaixo. Um troço horrível.

Podia ouvir um zumbido no ar, um gemido baixinho em meus ouvidos e o leve gosto metálico que a gente sente quando está perto de alguma coisa com uma enorme carga elétrica. A última vez que eu tinha sentido aquilo havia sido no meu primeiro dia em Furnace, quando estava no complexo eletrificado conhecido como Churrasco. Não era uma lembrança agradável.

— E não importa a vontade que tenha — disse Zê ao começar a andar pelos trilhos, mantendo uma mão apoiada na parede para manter o equilíbrio —, e é com você, Alex, que estou falando, você mesmo, que acabou de tomar cinco litros de água, não faça xixi. Tinha um cara no programa que tentou mijar e, bem... não preciso dizer que esse não seria um bom jeito de morrer. — Ele fez um horripilante som de explosão, e fiquei contente por não poder ver onde estavam suas mãos.

Apressamos o passo, entrando no túnel que ficava ao lado direito da estação. Estava escuro ali, mas minha visão aprimorada fez o que devia fazer, isolando as sombras e focando a linha que se estendia até desaparecer. Mas não era só eu que tinha olhos prateados no túnel — diminutos pontinhos piscantes nos observavam de baixo dos trilhos, acompanhados de risinhos esganiçados, como o som de unhas arranhando um quadro-negro.

Ratos, pensei comigo, sentindo um arrepio. Não me importava com aqueles peludos — a pior coisa que podia acontecer ali era ficar com cocô de rato nos sapatos —, mas a visão daqueles olhos demoníacos à frente me fazia pensar nos túneis subterrâneos de Furnace, nas horrendas criações do diretor que tinham o mesmo nome — aquelas que tinham dado errado, as criaturas que um dia haviam sido garotos, mas que agora eram aberrações sem alma com garras ásperas e dentes afiados, que desejavam seus banquetes de sangue...

— Talvez seja melhor você ir na frente, Alex — sugeriu Zê, interrompendo meus pensamentos. — Não consigo enxergar nada aqui.

— Claro — falei, passando entre Simon e Zê, meu coração disparando na hora em que tropecei e quase me estatelei no trilho da morte. Tive a sensação, com o nariz quase batendo na parede, de que o túnel zombava da minha cara. Então voltei a andar o mais rápido que ousei, o final do túnel sempre à mesma distância à frente.

Em certo momento, a luz da plataforma foi ficando mais fraca, desaparecendo por completo depois. Estávamos todos acostumados à escuridão e mantínhamos a respiração contida e a boca fechada, para deixar que nossos ouvidos nos guiassem. Havia ruídos ali embaixo, não só o clique de pés com garras contra o concreto, mas também do vento que passava por nós, e gemidos distantes que soavam como monstros, mas que eu sabia serem apenas trens. Toda vez que eu ouvia aqueles freios quase morria de susto, imaginando luzes se acendendo à nossa frente enquanto vinte toneladas de aço maciço rasgavam tudo diante de si. Se isso acontecesse, se a linha voltasse a funcionar, a gente já era.

E, depois de ter visto o sol outra vez, a pior coisa em que conseguia pensar era ser um fantasma preso naqueles túneis, tão perto da luz do dia e, mesmo assim, de volta ao mundo subterrâneo. Rangi os dentes com tanta força que senti dor; apertei o passo. Devíamos ter andado quase um quilômetro. A próxima estação não devia estar longe.

Mas estava. Contei as batidas do meu coração, três a cada segundo, chegando a mil, depois dois mil e quase cinco mil, antes que eu vislumbrasse alguma coisa no fim do túnel. Fomos tropeçando naquela direção, piscando à medida que a luz ia ficando mais forte. Demos uma olhada na plataforma — nas paredes, estava escrito COLLIER‘S POINT — e, a princípio, achei que estivesse deserta. Então reparei nos cadáveres. Dois usavam coletes à prova de balas, dois estavam com uniformes da prisão e o último tinha sido deixado só de cueca, revelando os buracos de bala na carne pálida.

Havia ruídos também. O som de passos distantes ecoando no corredor em forma de arco ao nosso lado e o chiado de um riso seco, próximo demais para que ficássemos tranquilos.

— Obviamente não fomos os primeiros a ter essa ideia — sussurrou Zê.

Seguimos rapidamente pela plataforma e entramos no túnel do outro lado. Mesmo minha visão superpoderosa tinha dificuldade para decodificar a penumbra, e eu me apoiava com firmeza contra a parede para não correr o risco de tombar para a morte. Coisas pequeninas ficavam surgindo embaixo dos meus pés, e demorei um pouco para perceber que provavelmente eram crânios de ratos, enfraquecidos pela ação do tempo. O cheiro também era de uma podridão ancestral. Fazia-me lembrar, mais do que tudo, do hálito do diretor: um odor de decadência, de corpos pulverizados e pútridos. E era difícil não imaginar que estávamos descendo por sua garganta.

— Vocês ouviram isso? — perguntou Simon, suas palavras fazendo meus ossos gelar. Tentei acalmar meu coração, endireitando a cabeça para ver se capturava o que ele tinha ouvido. Ainda havia um distante e assustador gemido de freios, junto com o eco de nossos passos e o zumbido constante do trilho eletrificado. Mas, além disso, não conseguia distinguir mais nada. — Tive a impressão de ouvir gritos — continuou. — Provavelmente foi minha...

Ele parou, e dessa vez eu também ouvi: um som abafado que poderia ter sido o estalo de um cano. Estava longe demais para saber. Seguimos tão disfarçadamente quanto possível, andando juntos, até que outra vez o breu do túnel começou a se desfazer — um brilho distante começando a crescer como a aurora, um semicírculo de uma cansada luz amarelada libertando-se da noite. Ela aumentava com nossa aproximação, assim como os ruídos. Simon estava certo: eram gritos.

— O que a gente faz agora? — perguntei a Zê enquanto nos arrastávamos para a plataforma de Twofields. Estava deserta, mas com certeza havia vozes atravessando as portas, ecoando pelos frios azulejos, dando a impressão de estarem bem à nossa frente. Como se fossem de fantasmas.

— Deixa pra lá — disse Simon. — Vamos pra próxima estação.

— Mas essa é a nossa — respondeu Zê. — É aqui que trocaremos de trem. A Linha Elizabeth fica do outro lado daqueles portões. Se a gente for em frente, vamos precisar andar cinco ou seis estações até a próxima, para pegar a... Não lembro qual linha passa lá na frente, mas ela vai nos levar na direção errada. Tenho certeza.

Outro grito rasgou a passagem arqueada do túnel, dessa vez, por alguma razão, muito mais inquietante do que os outros. Era um riso, agudo e insano. Olhei para Simon, depois para Zê, encarando cada um deles com a mesma relutância.

— Pode ser pior ainda se a gente prosseguir — disse eu.

— Certo, resolvido — respondeu Zê, colocando as mãos na plataforma e, desajeitadamente, içando-se para cima dela. Ele se pôs de pé, limpando as mãos no jeans. — Um protege o outro, como sempre.

— Como sempre — falei, esperando Simon subir, hesitante, até que ele saltou para a plataforma. Os ruídos podiam estar ainda mais altos ali em cima, mas era bom ter voltado à claridade. Fomos com cuidado até a saída mais próxima, e ao olhar para dentro da passagem avistamos uma cena que poderia ter saído de um filme de guerra.

A primeira coisa que notei foi a cor. Os azulejos perfeitamente brancos tinham sido tingidos de vermelho, dando ao lugar a aparência de um necrotério de hospital. Era tão vívido que não parecia real. Havia outros corpos, caídos e dilacerados, olhos sem vida encarando as escadas rolantes à nossa esquerda, como se perguntassem a si mesmos por que não tinham conseguido subi-las. Esses cadáveres eram uma mescla, exatamente como da última vez — talvez três ou quatro uniformes de Furnace e também um certo número de uniformes da polícia e da SWAT. O cheiro de sangue estava mais fresco ali, e o gosto de pólvora se agarrava à minha garganta como fumaça de cigarro.

— Meu Deus — sussurrou Simon. — O que aconteceu?

— Gangues — respondeu Zê. — Os Caveiras, ou os Cinquenta e Nove. Ou vai ver estão trabalhando juntos agora.

As palavras de Zê fizeram com que uma ideia explodisse em minha cabeça, tão forte e avassaladora que quase caí para trás. Comecei a balançar a cabeça, tentando negar a revelação, mas não conseguia. A verdade estava ali, bem na minha frente. Não podia acreditar que nunca tivesse pensado nisso antes, mas posso afirmar com sinceridade que não tinha me ocorrido até então. Estava tão concentrado em fugir, em recuperar a liberdade, que havia ficado cego para as consequências dos meus atos; cego para o verdadeiro pesadelo.

Estávamos livres, mas todos os prisioneiros de Furnace também estavam, ou pelo menos aqueles que haviam sobrevivido. E, para cada garoto como eu, que tinha sido incriminado, havia dez, vinte, talvez cem que eram culpados de seus crimes — assassinatos, incêndios, espancamentos e coisas piores. Aqueles mesmos assassinos frios que tinham sido responsáveis pelo Verão do Massacre, as mesmas gangues brutais que haviam tingido as ruas de vermelho, estavam em liberdade.

Estavam todos livres, e a culpa era minha.

— Por aqui — disse Zê, conduzindo-nos na direção das vozes.

Fiz o que pude para ignorar a náusea e afastar a culpa, seguindo-o com a cabeça pesada e o coração ainda mais. Placas nos mostravam o caminho para a Linha Elizabeth, e fomos seguindo-as, descendo uma escada enorme e cruzando um túnel estreito lotado de pequenas pegadas vermelhas. Ao fim dele havia uma escada que dava para a plataforma. Essa era mais larga; havia quiosques embutidos nas paredes de azulejos verdes. A penumbra dançava e brincava nos estandes vazios como num teatro de sombras. Detivemo-nos petrificados no alto da escada, sabendo que precisávamos descer, mas sem conseguir avançar para o primeiro degrau.

— Deus do céu, quando é que a gente vai ter uma folga? — murmurou Simon.

— É só ignorar — falei. — O que quer que esteja lá embaixo, o que quer que seja, a gente ignora, que vão ignorar a gente também.

— Ou talvez a gente possa só esperar — disse Zê. — Logo eles vão embora, com certeza. E a gente não quer confusão.

A ideia era tentadora, mas eu sabia que esperar não ia adiantar nada. A confusão sempre dava o seu jeitinho de vir atrás da gente.


EMBOSCADA

Descemos lentamente os degraus, os músculos retesados, prontos para nos defender. Não sabíamos o que encontraríamos ali embaixo, mas, se tínhamos aprendido alguma coisa, era sempre esperar pelo pior.

Zê foi na frente, mas, quando chegou ao final, parou e fez um gesto para que eu continuasse.

— Não quero machucá-los muito — sussurrou com um sorriso nervoso, flexionando seu bíceps inexistente. Eu não estava a fim de rir e logo tomei a dianteira na plataforma. Os ruídos estavam ainda mais altos ali embaixo, mas a larga escadaria bloqueava nossa visão. Só o estranho teatro de sombras continuava na parede, um desfile de membros fantasmas e peitorais alongados.

— Esquece — uma voz destacou-se da cacofonia, mais alta que as outras. — Você viu aquelas coisas lá. Se quer morrer pode ir, mermão, mas eu num vô junto.

As vozes aumentaram o tom, uma dúzia de pessoas discutindo. Fiquei surpreso ao ouvir uma voz feminina, um som que não ouvia desde que tinha ido para Furnace e que, de início, não consegui reconhecer. Andamos cuidadosamente pela escada, e a outra metade da plataforma despontou. A primeira coisa que vi foram três prisioneiros em macacões rasgados, dois contra uma parede, e outro — um Caveira — andando de um lado para o outro, segurando com firmeza um rifle. Ele apontou-o para o outro lado da plataforma, mirando alguma coisa que não estava visível, o dedo já no gatilho.

— Mandei vocês ficarem de bico fechado — disse em tom de desespero, a voz débil. — Isso não tem nada a ver com vocês.

Dei mais alguns passos, erguendo os braços para o ar e pigarreando de leve. O prisioneiro com a arma se virou e acabou atirando, a bala voou e arrancou um pedaço de concreto do teto. O som pareceu sobressaltá-lo tanto quanto aos demais, e ele quase largou a arma. Piscava furiosamente, parecendo nos reconhecer, mas isso na verdade só o deixou ainda mais desconfiado.

— O que você está fazendo aqui? — gritou ele. Os outros prisioneiros tinham se desencostado da parede e se afastavam.

— Parece um deles — disse um garoto pequeno e louro. — Atira.

— Epa — disse eu, erguendo ainda mais os braços. — Estamos do lado de vocês. Não queremos confusão, ok?

O Caveira me olhou por cima do rifle, usando a mão livre para secar o suor do nariz. Piscou e depois abaixou um pouco a arma.

— Foi você — disse ele. — Você libertou a gente. — Concordei com um aceno de cabeça, e seu rosto de repente se abriu num sorriso torto. — Que maravilha ver você! Estão sozinhos?

Assenti de novo, deixando meus braços pender ao lado do corpo enquanto contornava a escada. Havia um pequeno grupo de pessoas agachadas no canto da plataforma — dois homens de meia-idade com ternos e pastas, um cara com colete fluorescente de segurança e uma menina mais ou menos da minha idade. Estavam todos olhando para o chão, os olhos arregalados, mortos de medo. Todos, menos a menina. Ela me olhou com uma raiva tão intensa que precisei desviar os olhos.

— Todo cuidado é pouco — disse o Caveira, apontando a arma para o chão. — Você viu o que está acontecendo lá em cima?

— Polícia pra todo lado — respondeu Zê, passando à minha frente e acenando sem grande entusiasmo para o grupo. — Quase pegaram a gente.

O Caveira bufou, mas foi o garoto louro que falou:

— Nem tô falando da polícia — disse ele. — Vocês não viram mais nada? Não ouviram nada esquisito?

— Tipo o quê?

— Tipo aquelas coisas lá da prisão — falou o Caveira. — Aqueles monstros. Um veio pra cima de nós e começou... Começou a... — Ele deixou as palavras sumirem, engolindo em seco.

— Vikings? — perguntei. — Aqueles de Furnace?

Os três prisioneiros balançaram a cabeça em negativa.

— Nunca tinha visto um desses antes — disse o Caveira.

— Esquece isso — falou Simon, nervoso e engolindo em seco. — A gente só veio aqui pegar um trem. Para o norte; vai ter menos polícia lá.

— Bom plano, chefe. — O Caveira deu de ombros, olhando os trilhos. — Só que aqui vocês não vão pegar trem nenhum.

— E por quê? — perguntei. O Caveira não respondeu, só se virou para o túnel na extremidade da plataforma. Já ia perguntar de novo quando fui interrompido por um ganido baixinho seguido de um ruído abafado. O som aumentou de volume, acompanhado por uma luz que se expandia na escuridão do túnel em forma de arco. Ela foi aumentando e aumentando, até se tornar um par de faróis que rasgavam a passagem, vindo a toda velocidade em nossa direção. O trem passou tão rápido que me tirou o fôlego, sugado por outro túnel, como se tivesse sido tragado.

— Por isso — disse o Caveira. — Se quiser tentar entrar num desses trens, fique à vontade. Eles passam mais ou menos de cinco em cinco minutos, mas não param, não pra gente.

— Devem ter isolado tudo — disse Zê em voz baixa. — Essa área toda. Os trens não vão parar aqui, nem nas estações mais próximas. — Ele soltou um palavrão, batendo um dos pés no chão. — E como deixaram os trens em movimento, a gente não pode nem andar pelos trilhos.

— E agora, o que é que a gente faz? — perguntou Simon. — Vai para a rua? Quem sabe já não estamos longe o suficiente?

— Que nada — disse o Caveira. — Também não dá pra sair. As saídas estão todas interditadas, a gente tentou. Tem polícia lá fora; vão atirar assim que você aparecer.

— E por que eles não entram? — perguntou Zê, dirigindo-se a mim. — Detonando tudo?

— Eles já têm muito o que fazer nas ruas — disse o Caveira. — Tem algum negócio bem esquisito lá em cima; os prisioneiros estão na maior selvageria.

— Está espantado com isso? — perguntou Zê. — É a primeira vez que eles têm liberdade em muito tempo, é claro que vão pirar.

— Não foi isso que eu quis dizer — continuou o garoto. — Eles agem como selvagens, estão feito bichos. Não parecem mais gente.

— Você viu os corpos? — perguntou o garoto louro. — Policiais mortos, despedaçados, mas os prisioneiros não estão armados. Parecem cachorros com raiva, sei lá. Estão arrancando os pedaços uns dos outros e também dos policiais.

— Ratos? — perguntou Zê, olhando para mim. — Como eles conseguiram sair tão rápido?

— Não importa — respondi, confuso. Os ratos tinham sido trancados nos túneis abaixo de Furnace, junto com o diretor. Não havia como terem conseguido sair tão rápido. Olhei para o Caveira. — Qual é o seu plano? Como vamos sair daqui?

— Era disso que a gente estava falando ainda agora — ele respondeu. — Não temos mais nenhuma ideia. Mas, agora que vocês chegaram, podem nos dizer o que fazer, não é?

— Vocês precisam se entregar — disse uma voz no canto. Voltei os olhos para a garota, o rosto dela retorcido pela raiva. Seus punhos estavam cerrados, e ela parecia capaz de enfrentar a todos nós sozinha, se quisesse. — Antes que seja tarde demais.

— Vamos considerar sua sugestão — disse o lourinho com um sorriso tímido.

Ela fez cara feia para ele e parecia estar prestes a dizer outra coisa quando um som irrompeu atrás de nós — a mesma risadinha esganiçada que tínhamos ouvido antes, como unhas arranhando um quadro-negro. O Caveira apontou seu rifle para a escada, seu rosto uma máscara de medo.

— Eles nos acharam — sibilou. — Vocês trouxeram eles pra cá.

— Quem? — perguntou Zê, postando-se atrás de mim. — O que tem lá?

De repente, o ar ficou mais rarefeito, sendo invadido por um trovão que inundou a plataforma na hora em que outro trem irrompeu pelos trilhos, parecendo levar todo o oxigênio antes de desaparecer com um gemido. O riso voltou, misturando-se aos ecos do trem numa serenata de pesadelo. Foi seguido por baques surdos de pés descalços acima, alguma coisa grande que vinha em nossa direção.

Senti a adrenalina em minhas veias, o néctar entrando em ação. Sabia o que iria acontecer: ele faria minha mente nublar, me deixaria mais forte e mais rápido, capaz de fazer coisas terríveis. Mas também tentaria me fazer esquecer quem eu era. Me transformaria num monstro.

— Prepare-se — me ouvi dizendo, as palavras saindo em um grunhido vibrante. — Aí vem...

Alguma coisa saltou do alto da escada, uma figura negra e brutal caiu tão rápido que não parecia ser mais que um borrão. Os presos gritaram de medo, afastando-se quando o vulto imenso rolou pelo piso, aproximando-se de nós. O Caveira disparou seu rifle, a bala passando longe e abrindo um buraco na vitrine de um café, mas a figura continuou vindo, seus membros como lâminas talhando o ar, ameaçando fazer picadinho de todos nós.

Lancei-me sobre ela, mas mal tinha dado alguns passos quando ela parou, dando alguns saltos-mortais desajeitados e escorregando, até parar numa poça do próprio sangue negro, os longos membros pendendo inutilmente a seu lado. Vi seu rosto e a reconheci de imediato. A criatura era exatamente como eu lembrava: rígida e cheia de cicatrizes, como se tivesse sido talhada, um dos olhos, pura prata derretida; o outro, perdido no enorme ferimento que eu tinha causado em seu crânio mutilado.

Era o viking, negro feito um besouro, que eu tinha enfrentado na prisão.

E estava morto.

— Achei que você tinha dito... — comecei a falar.

Houve outra irrupção de riso infantil acima de nós, e em seguida algo enorme pulou por cima do corrimão do alto da escada e pisoteou a plataforma com força suficiente para criar uma teia de rachaduras no concreto. Todos recuaram, e, para além deles, vi uma criatura agachada, nada além de uma bola de músculos torturados.

Então ela se endireitou, o corpo se desenrolando e ganhando uma altura inacreditável — superando-me em cerca de um metro. A distância, poderia ser confundida com um humano — a carne de um rosa tão escuro que se assemelhava a pele bronzeada, braços e pernas inchados mas proporcionais e o tronco coberto por uma malha de cicatrizes, trajando apenas um short cinza desbotado.

Mas, quanto mais eu estudava a criatura, mais percebia que, ainda que um dia ela tivesse sido humana, agora era algo muito pior. Suas mãos eram enormes, grandes demais para os braços, estufadas e em formato de clavas. Havia algo de errado com seus ossos, eles eram protuberantes, como se usasse uma blindagem por baixo da carne. E, por baixo da pele, era possível ver seus músculos se movendo, como se houvesse serpentes ali dentro, tentando, desesperadas, achar uma maneira de sair.

O rosto, porém, era seu traço mais horripilante. Não por ser desfigurado ou por parecer estranhamente alienígena, mas porque era o de uma criança — inchado, sim, e repleto de hematomas, mas ainda assim o de uma criança de uns nove, dez anos. Ele virava sobre aqueles ombros gigantescos, exibindo um enorme sorriso infantil, tão permanente que poderia ter sido pintado. O néctar pingava daquele sorriso como se uma torneira tivesse sido aberta dentro de sua boca, vertendo o líquido pela frente do corpo e deixando um rastro nos azulejos.

O viking nos estudou com olhos de um cinza-metálico tão reluzente quanto o de uma arma. Ao meu lado, o Caveira disparou de novo, a bala fazendo um estrondo no peito da criatura, com força suficiente para fazê-la cambalear. O viking olhou para o ferimento, mais com curiosidade do que motivado por qualquer sinal de dor, e a pele em volta do rombo passou a pulsar em tons enegrecidos, revelando uma rede de veias. Em segundos, foi cicatrizado sob uma esponja de néctar, o viking flexionando os músculos grotescos e encarando-me com aquele sorriso de manequim.

Ele riu, um som que dançou pela minha espinha. Não havia calor nenhum naquele riso, nenhuma simpatia, só loucura e crueldade.

— Corram! — gritei, mas, antes que a palavra tivesse saído da minha boca, o viking já havia se mexido, vencendo um quarto da plataforma com um salto. Com um gemido de prazer, ele tirou Zê do caminho, lançando-o aos trilhos lá embaixo enquanto colocava a outra mão em torno de meu pescoço. Senti meus músculos se esticarem a ponto de quase se partirem quando ele me ergueu do chão, notando apenas parcialmente que Simon estava preso na outra mão.

O viking nos levou para perto de seu rosto, sua mandíbula distendendo-se de um modo inacreditável, como uma cobra prestes a devorar sua presa. Seu rosto inteiro pareceu esticar-se com o movimento, os olhos descendo à medida que a pele embaixo deles era puxada para baixo, as bochechas quase se rasgando com o esforço. Dentro de sua boca havia blocos serrilhados de esmalte podre que um dia haviam sido dentes, e seu hálito tinha o cheiro do ossuário de Furnace, como se ele fosse nos tragar para a morte.

Então ele se inclinou para a frente e afundou aqueles dentes no meu pescoço.

Minha visão faiscou, explosões negras lentamente apagaram a criatura e a plataforma do meu campo de visão. O viking afastou seus dentes, e a última coisa que vi foram seus olhos, de um prata pálido, cheios de lágrimas negras.

Depois, a escuridão me engoliu.


VISÕES

A primeira coisa que percebi foi que estava suspenso em pleno ar, a cerca de cem metros ou mais acima do solo. E a primeira coisa que vi foi um prédio.

Ele se erguia de uma cidade em chamas, desenhando uma silhueta num céu tão nublado e escuro que poderia ter sido feito de ônix. A fumaça desenhava espirais contra a noite que se aproximava, e naqueles caracóis eu via imagens — corpos retorcidos que invadiam as ruas abaixo, saltando sem o menor esforço de um telhado a outro, agachando-se em cantos escuros para roer seus banquetes ocultos. Toda vez que tentava focalizar alguma dessas imagens ela desaparecia, virando fumaça outra vez.

O prédio também pegava fogo, e a fumaça jorrava das janelas como cachoeiras de ponta-cabeça. Estudei a construção, tentando lembrar onde já a tinha visto. Era um prédio de escritórios, parecido com todos os outros — um túmulo de concreto e vidro que se erguia a quarenta ou cinquenta andares acima do inferno a seus pés. Coroando a estrutura havia um pináculo de quatro lados, como uma pirâmide, muito embora, contra o esfumaçado céu vermelho-sangue, ele mais parecesse uma pira.

Tentei respirar, porém o ar quente, sem oxigênio, encheu meus pulmões. Fiz força, mas não conseguia me mover. Em algum lugar atrás da ilusão da cidade, eu ainda conseguia ver a criatura que me segurava, aparecendo e desaparecendo cada vez que eu piscava. Retorci meu corpo, tentando encontrar um jeito de fugir das garras do viking, mas, mesmo que conseguisse, as chamas abaixo de mim estendiam-se em todas as direções, como se o mundo inteiro estivesse ardendo.

É, sim, disse alguém, a voz tão alta e tão próxima que me deu a impressão de que a própria cidade moribunda estava falando. O mundo inteiro é um inferno. Ele vai arder até toda a nação sucumbir; até todos os nossos adversários terem morrido; até as pessoas enxergarem a verdadeira luz.

O prédio à frente ia ficando maior, crescendo a partir de sua cama de fogo. Não, não ficava maior; ficava mais próximo, atraindo-nos em sua direção com uma espécie de gravidade malévola. Na hora em que a voz falou, o edifício ficou mais brilhante, as janelas perto do topo ganharam vida e reluziram com uma luz amarelada e doentia. Eu ainda estava longe demais para entender o que havia ali dentro, mas conseguia distinguir silhuetas deformadas e alucinadas como aquelas que vislumbrara em meio à fumaça lá embaixo. Lutei contra as garras, mas era inútil, e fui sendo levado para cima, até o pináculo do prédio.

— O que você quer? — gritei, mas tudo o que saiu foi um gemido asfixiado pela fumaça.

Você sabe o que eu quero, respondeu a voz. Ela era distorcida, composta pelo rugido das chamas e pelo estalar de ossos se quebrando, mas eu sabia quem era. Não havia como confundir o tom de voz de Alfredo Furnace, repleto de poder, mas com um toque de insanidade. Nós lhe mostramos, o diretor Cross e eu. Nós lhe mostramos o que o futuro traria. E aqui está: um mundo em chamas e uma nova raça, pronta para surgir das cinzas.

Pensei no tempo que passei nos túneis subterrâneos da prisão, quando o diretor me transformava num de seus soldados, num terno-preto. Ele tinha falado de uma guerra, de um Dia do Juízo em que os fortes destruiriam os fracos de uma vez por todas; uma nova Pátria, que duraria dez mil anos. Estive prestes a tomar parte nela, com o néctar tendo expulsado todo o bom senso do meu cérebro e meu corpo sendo dilacerado e reconstruído. Tinha quase reclamado meu lugar nesse mundo novo, entregando-me a Furnace e à sua legião.

E você ainda pode fazer isso, prosseguiu a voz, lendo meus pensamentos. Você me traiu, mas também traiu a si mesmo. Vai negar a si mesmo um papel num mundo nascido da força, um mundo vitorioso? Olhe, Alex, e veja o que o aguarda se atender a meu chamado.

Olhei para baixo, observando a fumaça se agitar como um oceano em meio aos prédios em chamas. As silhuetas eram mais distintas agora, fileiras e fileiras de soldados sem rosto marchando pela rua, andando como patos na direção do edifício. Seus corpos eram estufados, os músculos prestes a estourar a pele, e os olhos, cortantes lâminas prateadas que perfuravam a muralha de fumaça diante deles. Tudo naquela força sugeria poder, determinação, vitória, e senti a emoção se forçando para fora do meu estômago.

Não é melhor ser um soldado no novo mundo em vez de um cadáver no velho?, continuou Furnace. Você continua a me surpreender, Alex. Você lutou com coragem. É o tipo de soldado capaz de transformar esse mundinho ridículo em algo maravilhoso. Você é o tipo de soldado capaz de ser meu braço direito. E preciso mesmo de um novo comandante, Alex, porque o diretor, meu velho amigo, me decepcionou. Não se pode esperar que um homem que não consegue manter sua casa em ordem tenha um telhado sobre a cabeça.

O pequeno prazer que senti ao ouvi-lo insultar o diretor sumiu quase com a mesma rapidez com que apareceu. Eu queria gritar com ele, dizer-lhe que eu nunca me juntaria a seu exército, mas não conseguia encontrar forças. Ou será que era outra coisa? Meu estômago ainda tinha um nó, minha cabeça zumbia, e eu sabia que não era de medo. Era empolgação o que eu sentia, aquela mesma agitação assustadora de quando o diretor tinha me mostrado como seria esmagar meus inimigos com o calcanhar, quebrar seus ossos e deixar cadáveres incendiados por onde passasse. Era o poder, puro e simples, e era boa a sensação que ele me proporcionava.

Não podia haver ainda muito néctar dentro de mim, mas o pouco que havia tinha começado a martelar dentro das minhas veias, escurecendo meu sangue e impregnando de violência meus pensamentos. Tentei lutar contra ele, mas, à medida que me imaginava irrompendo ruas afora, com o mundo inteiro de joelhos e implorando misericórdia, via-me abrindo um sorriso enorme, um rugido escapando da minha garganta.

Veja-os chorar, Alex, disse Furnace, sua voz emanando como se fosse a pulsação do edifício. Veja-os implorar. Agora sou o novo imperador deles, e você é o novo príncipe.

Subitamente percebi onde eu tinha visto aquela torre — na cidade, claro, seu pináculo destacando-se contra o céu e reproduzido em inúmeros pôsteres e cartões-postais.

Estávamos mais perto do prédio agora, e pelas janelas eu vislumbrava o que tinha lá dentro. Em cada cômodo havia uma sala de operação, decorada com sangue e lotada de Ofegantes. As criaturas respiravam pelas máscaras de gás, rasgando carne com dedos imundos e guinchando de prazer. Não sei quantas janelas havia — dezenas, talvez centenas —, mas eram todas retratos de morte e decadência, dos quais Furnace tirava mais soldados para seu exército de aberrações.

Fique do meu lado ou estará contra mim, disse ele enquanto nos aproximávamos inevitavelmente. Essa visão é a verdade do mundo. Sua atitude irresponsável na prisão me obrigou a lançar minhas cartas um pouco antes do que eu queria, mas não importa. Talvez você tenha me feito um favor, garoto, me obrigando a agir agora. Ele riu, e o martelar de sua risada insana fez as chamas arderem com ferocidade ainda maior. Talvez, quando as últimas cidades sucumbirem e as pessoas me aceitarem, eu vá até agradecer a você por ter me dado a oportunidade de lançar as bases do novo mundo agora. Sim, Alex, por sua causa a guerra começa nesta manhã. O futuro começa hoje. Olhe para ele, Alex, e me diga de que lado você prefere estar. Olhe bem e faça sua escolha.

Meus pulmões estavam vazios, gritando por ar, mas, mesmo que não estivessem, eu não poderia ter dado uma resposta a Furnace. Estávamos quase no pináculo, e, à medida que nos aproximávamos, vi outro pesadelo surgir da fumaça, da névoa reluzente de calor. Uma criatura se agarrava ao telhado inclinado com mãos que mais pareciam lâminas, maior do que qualquer viking, seu corpo estranhamente deformado, como se os membros tivessem sido esticados em uma roda da tortura, a pele brilhando com o néctar que pulsava em suas veias. E os olhos... Aquelas luas gêmeas irradiavam um poder e uma força que perfuravam tudo; brilhavam como sinalizadores, como fachos irmãos de um farol, apagando as chamas e expulsando a fumaça até que a cidade luziu como se renascida e o céu se tornou azul.

Furnace. Alfredo Furnace. Tinha de ser ele.

A criatura uivou, um lamento alto o bastante para fazer estremecer os joelhos do universo. Então começou a rir, um ruído que virou um canto de pássaro sobre o paraíso recém-nascido sob meus pés.

Olhe só, Alex. Faça sua escolha.

Mas eu não conseguia, nem no instante em que o ar inundou de novo meus pulmões, nem mesmo quando recobrei os sentidos. Não podia dar uma resposta, porque naquele momento eu não conhecia a verdade, não conseguia fazer uma escolha.

Sinceramente, não sabia que lado eu escolheria.


NÉCTAR

A visão da cidade começou a se desfazer, dissolvendo-se de novo em realidade, como açúcar dentro do chá, embora a realidade não fosse muito melhor do que tinha sido a ilusão. Pisquei para afastar as lágrimas dos olhos e enxergar o viking que estava bem na minha frente, o rosto de marionete a centímetros do meu, seus dedos envolvendo meu pescoço. Ele me dava um sorriso largo, os lábios tão abertos que pareciam ter sido costurados daquele jeito, o néctar ainda escorrendo por entre eles. Então, com outra risada infantil, a criatura me soltou.

Caí como uma pedra, de costas, e arquejei um pulmão inteiro de ar viciado. Levei as mãos à garganta, sentindo o sulco das marcas de mordidas ali. Não havia sangue, o néctar tinha resolvido isso, mas um dos lados do meu pescoço e rosto coçava loucamente, como se alguém estivesse passando um espanador de pó dentro de cada veia.

Simon estava ao meu lado, as costas arqueadas de dor. Toda a parte superior do meu corpo latejava, como se eu tivesse sido cozinhado vivo nas chamas da alucinação, mas de algum modo encontrei forças para sentar e me concentrar no que acontecia ao redor.

O viking parecia ter nos esquecido por completo. Ele saltava pela plataforma, correndo como um orangotango em direção aos prisioneiros em fuga. Ele os alcançou em segundos, balançando os punhos de clava num arco horizontal e lançando o garoto louro e seu amigo calado para longe. Ambos rolaram pela beirada da plataforma como bonecos de pano, acompanhados pelo som de ossos se quebrando.

A visão deles nos trilhos me fez lembrar de Zê. Avancei pelo concreto de joelhos. Espreitando pela extremidade, vi uma silhueta imóvel ali embaixo. A parte inferior de seu rosto era uma máscara de sangue, mas os olhos azul-claros evidenciavam que era Zê. Eles estavam abertos, mas não piscavam.

Zê devia ter acertado o trilho eletrificado. Eu sabia. Por um segundo não senti nada, mas de repente um clarão de luz branca surgiu no centro da minha cabeça, expandindo-se quente e rápido como uma supernova. Ele, não! gritei por dentro. Ele, não! Zê não. ZÊ NÃO! A cada súplica, o brilho da supernova diminuía — era o néctar anestesiando as emoções, como era de esperar, matando a tristeza do mesmo jeito que matava a dor física. Baixei a guarda, querendo que o veneno me dominasse, pedindo por isso, para que eu não precisasse lidar com a verdade que estava diante de mim: um corpo quebrado caído nos trilhos.

Um corpo que se mexia.

— Vai ficar ajoelhado aí o dia todo — veio um sussurro, tão forçado que parecia de alguém sem fôlego —, ou será que você pode me dar uma ajudinha?

As palavras expulsaram o néctar da minha cabeça, deixando-me com nada além de um latejar agoniante e ofuscante, tão profundo que parecia ter estado sempre ali. Mas, mais do que isso, senti alegria. A sensação era tão vigorosa que lágrimas aglomeraram-se em meus olhos. Boquiaberto e de olhos arregalados, encarei Zê, e minha expressão deve ter sido esquisita, porque ele riu.

— Meu Deus, Alex, fecha essa boca, senão você vai babar em cima de mim — disse ele, olhando o trilho a seu lado, aquele que por apenas um fio de cabelo não tinha acertado.

Olhei para o lado, só para ter certeza de que o viking não havia mudado de ideia. Ele tinha prendido o Caveira contra uma parede, as mãos enormes segurando-o dos dois lados para impedi-lo de fugir. Não que ele fosse a algum lugar. Estava encolhido, como uma bola, os braços pendendo inutilmente dos dois lados, o rosto já branco na expectativa do ataque do monstro.

Ouvi um ganido distante, um chacoalhar nos trilhos. O ar tremeu, como se estivesse com medo da bala de metal e vidro que vinha a toda naquela direção. Sem perder nem mais um segundo, desci até fosso e peguei Zê pelos braços.

— Ai, droga — disse ele, enquanto eu o içava. Olhei na mesma direção que ele e vi que o túnel estava ficando mais claro, que dois faróis se tornavam maiores a uma velocidade assustadora. Empurrei Zê em direção à plataforma, porém seu pé ficou preso no trilho e ele gritou de dor. Acabei soltando-o, e ele escorregou de novo para o fosso. Peguei-o pela nuca, usando minhas últimas forças para lançá-lo para cima, bem na hora em que o trem explodia no túnel. Agachei-me. A mera velocidade do motor que se aproximava quase era suficiente para me fazer cair morto de medo. Num piscar de olhos ele tinha me alcançado, e, na hora em que saltei para me salvar, vi o rosto do condutor, a centímetros de distância, petrificado numa expressão de pânico.

Quase consegui, noventa por cento de mim estava sobre a plataforma. Mas o trem ia rápido demais e acertou minhas pernas a setenta quilômetros por hora. Comecei a rodar feito um pião, o mundo sumindo enquanto eu, girando sem parar, me chocava contra o pé da escada. Mesmo depois de ter parado, o mundo continuava a girar, como se meu cérebro fosse um giroscópio sob ameaça de jamais se acalmar. Fechei os olhos com força, tendo a sensação de que estava numa montanha-russa em algum parque de diversões, ameaçando vomitar, ainda que estivesse de estômago vazio.

Em meio à confusão ouvi o viking, com sua risada de gelar a espinha, e me obriguei a olhá-lo. A fera estava do outro lado, ainda que minha visão estivesse girando tanto que eu mal conseguia dizer em que lado da plataforma eu estava. A criatura agora estava com o Caveira entre as protuberantes palmas de suas mãos, e por um bizarro instante achei que ela estivesse beijando o garoto. Depois me dei conta de que aquele abraço era uma cena muito pior.

O viking tinha as mandíbulas travadas em volta da garganta do menino, os dentes serrilhados cravados em sua carne. Havia sangue escorrendo pelo macacão de prisioneiro do garoto, mas, mesmo de onde eu estava, caído, conseguia ver que era negro, e não vermelho. O néctar respingava no chão, formando uma poça debaixo da aberração e sua presa. Pode ter sido só minha imaginação, mas parecia diferente do néctar que eu tinha visto em Furnace, do veneno que o diretor tinha inserido em mim. Os flocos coloridos não eram prateados, mas vermelhos, como fragmentos de rubi.

— Está vendo aquilo? — perguntou Simon, e percebi que estava ajoelhado a meu lado, uma das mãos no meu ombro. Zê rastejava em nossa direção, a força pouco a pouco retornando a seus membros, mas seu rosto continuava pálido como uma folha de papel. — O que ele está fazendo?

— Se alimentando — falei, sabendo que não era verdade.

— Você consegue andar? — perguntou Simon. Fiz que sim com a cabeça, mas, para ser sincero, não tinha certeza de que conseguiria me mexer. Minhas pernas pareciam uma borracha esticada além da conta, embora não tivesse dor nenhuma, apenas aquela coceira enfurecedora. — A gente precisa sair daqui antes que aquela coisa acabe o que está fazendo, seja lá o que for.

Com um som de sucção que me fez pensar num pé sendo levantado da lama, o viking tirou os dentes do pescoço do garoto. O ferimento que havia deixado era negro como piche, um anel de orifícios irregulares que se estendiam da orelha ao ombro, lembrando uma mordida de tubarão. O néctar de flocos vermelhos ainda pingava, mas parecia tanto descer quanto subir. Pisquei sem acreditar, apertando os olhos para ver, em meio às sombras, que ele na verdade não escorria do pescoço do garoto. Ele se espalhava por baixo de sua pele e irradiava para fora, como canais de água suja sob o gelo.

Era isso que o viking tinha feito comigo? Não, ele tinha me mordido, mas não bombeado néctar pelo meu corpo inteiro; não desse jeito. Eu teria sentido.

O Caveira, ainda preso pelo viking, começou a tremer, o corpo todo sendo sacudido por espasmos tão violentos que achei que ele fosse se desfazer em mil pedaços. Suas veias pulsavam com o néctar dentro delas, parecendo uma teia de linhas negras que lentamente se espalhava por seu rosto e por baixo do macacão. Ele estrebuchou por mais um instante e em seguida arqueou-se, soltando um uivo desesperado e ensurdecedor na direção do teto. Seus olhos se abriram num estalo, e pude ver que eram poços negros, tão profundos e escuros que se assemelhavam a covas ocas no rosto.

O grito que o Caveira emitiu pareceu durar para sempre, invadindo a plataforma com um ruído límpido. Então sua cabeça inclinou-se, os olhos cravados em mim. Encarei aquelas órbitas das quais lágrimas de nanquim rolavam, o sangue negro vazando de seu nariz e juntando-se ao fluido que era expulso da boca. Parecia ter recebido tanto néctar que agora ele abria fendas em sua pele, vertendo-o de cada poro.

O viking riu, depois içou o Caveira por cima do ombro como se o garoto não fosse nada além de um saco de carne. Com um único salto, lançou-se escada acima, sem nem sequer olhar para nós ao agachar-se e tomar impulso para subir, pousando no último degrau.

Deteve-se ali um instante, como que para se orientar, e, ao fazer isso, o Caveira ergueu a cabeça e olhou escada abaixo com olhos de sangue negro. Pude ver o tecido de seu macacão esticar-se e rasgar-se à medida que os membros cresciam, os dedos inchando falange por falange, como salsichas superestufadas, contaminadas com ovos de mosca. Seu rosto também estava quase irreconhecível, inchado como o de um cadáver.

Mas, mesmo que o garoto tivesse sido desfigurado além da possibilidade de conserto; mesmo que seu rosto tivesse começado a se retorcer e se fender como madeira velha, não dava para negar que sua expressão ainda jazia ali. Os olhos, negros como estavam, tinham fome. E sua boca estava retorcida para cima em uma careta ensandecida, os lábios para a frente, os dedos reluzindo contra o néctar.

Ele sorria.


ALIMENTAÇÃO

Ficamos sentados ao pé da escada por muito depois de o ruído dos passos do viking ter desaparecido; muito tempo depois de termos ouvido o último eco de sua sinistra risada infantil sumir em meio ao caminho acima de nossas cabeças. Ficamos sentados ali em silêncio, tentando entender o que tínhamos visto, tentando fazer com que essa nova e bizarra reviravolta entrasse em nossa cabeça.

A plataforma estava mergulhada em um silêncio mortal. Não havia nenhum sinal de vida dos outros dois presos que tinham sido jogados nos trilhos. Zê tinha tido sorte, e agradeci por isso em silêncio. Era hora de termos um pouco de sorte. A menina de expressão furiosa espiava para fora da porta do café, mas não havia sinal dos outros que estavam com ela.

— A gente devia dar o fora daqui — disse Zê. Ele estava sentado no primeiro degrau, esfregando a perna direita. Seu jeans novo estava rasgado, mas não vi sangue nenhum ali, só uma mancha roxa que se espalhava pela panturrilha.

— E ir pra onde? — perguntei, com dificuldade em achar forças para abrir a boca. Meu pescoço ardia furiosamente no lugar da mordida, como se eu tivesse rolado em urtigas. A sensação migrava para o braço direito, a pele sensível ao toque.

Ninguém respondeu. O que poderiam dizer? Se Furnace tinha mandado seus vikings, aberrações como aquela que haviam acabado de passar por ali, atrás de nós, não estaríamos seguros em lugar nenhum. Que droga! Ninguém estaria seguro com aquelas coisas à solta. Pensei na minha visão, na imagem da cidade em chamas, tentando compreender as palavras de Furnace. O que ele tinha dito mesmo?

— A guerra começa nesta manhã — sussurrou Simon, como se lesse meu pensamento. Olhei para ele, que me olhou de volta quase com vergonha.

— Você viu também? — perguntei.

— Viu o quê? — disse Zê, enquanto Simon fazia que sim com a cabeça. — O que foi que eu perdi?

— Confie em mim — disse Simon. — Você não ia querer fazer parte desse clube. — Ele olhou escada acima, depois para mim. — Acha que o que ele disse é verdade? Sobre a cidade, sobre a guerra?

— Ei, vocês dois! — gritou Zê.

— Tivemos uma visão — expliquei. — Era Alfredo Furnace, falando com a gente. Não sei bem o quê.

— O néctar — interrompeu Simon. — Acho que ele fala com a gente por meio do néctar.

— Parece que ele está aqui, dentro da minha cabeça — falei. — Parece que está bem aqui dentro, gritando. Não é possível, mas é o que parece. E parece também que ele pode enfiar os dedos no meu cérebro e me obrigar a fazer qualquer coisa que queira.

— Só que ele não pode, não é? — disse Zê. — Do contrário, já teria te matado. Teria feito você cometer suicídio ou sei lá o quê. Ele pode até falar com você, mas não pode controlá-lo.

— Certo — respondi entre dentes, sem estar convencido.

— Mesmo assim, o que foi que você viu? — perguntou Zê.

— A cidade em chamas — disse Simon. — Cheia de monstros. Você viu aquele maluco na torre, bem lá em cima?

— Vi — respondi, revendo a fera que uivava para as ruas abaixo, com cara de quem estava pronta para destruir o mundo tijolo por tijolo, osso por osso. — Era Furnace, não era? Aquele, sim, era um sujeito demoníaco.

— Não posso discordar de você — continuou Simon. — Se eu nunca mais precisar ficar cara a cara com ele, pra mim já é suficiente. — Ele se virou para Zê. — Ele disse que era culpa nossa as criaturas dele estarem à solta; culpa nossa ter que começar a guerra dele hoje.

— Guerra? — repetiu Zê. — Isso não faz o menor sentido. A menos que ele esteja declarando guerra contra nós, os prisioneiros.

Tentei reexaminar minha alucinação, mas ela se fragmentava como um sonho, pouco a pouco sendo deletada pela minha consciência. Talvez Zê tivesse razão, talvez fosse disso que Furnace falava — de uma guerra contra os garotos que tinham fugido de sua instituição. Devia ser isso, não? Minha cabeça ainda girava, e senti meu corpo cedendo à gravidade, deitando-se na escada. Tentei sentar, mas simplesmente não tinha mais forças. A sensação era de que todos os meus ossos haviam sido roubados.

— Ele veio com aquela conversa de sempre — continuei, esforçando-me para encontrar energia suficiente para respirar. — Disse que perdoaria a gente se nos entregássemos, que a gente podia ajudá-lo a lutar, que podíamos ser o braço direito dele, blá-blá-blá. Pelo menos ele estava detonando o diretor. Isso valeu a pena. Acho que aquele idiota do Cross deve ter se metido em encrenca.

Olhei para Simon e percebi que ele tinha ficado ainda mais pálido. Ele me dirigiu um olhar, rápido demais para que eu percebesse a expressão em seus olhos.

— Ele não... — começou ele, mas depois parou, virou-se e ficou olhando a parede. Ignorei-o, sentindo meu pescoço virar geleia, enquanto minha cabeça despencava no piso rachado dos degraus. Se eu pudesse descansar um pouquinho ali, talvez ficasse bem. Ou talvez, quem sabe, meu corpo tivesse enfim ficado sem energia. Talvez não fosse tão ruim se tudo terminasse ali, pensei. Ao menos era um lugar calmo; ao menos eu estava com meus amigos. Fechei os olhos.

— Furnace disse mais alguma coisa? — perguntou Zê, me dando um sobressalto.

— Acho que não — respondi, mal conseguindo articular o que dizia e cansado demais para lembrar.

— A torre — disse Simon. — A torre em que a fera estava.

— Que tipo de torre? — indagou Zê.

Vi Simon dar de ombros antes de dizer:

— Um prédio comercial na cidade. Deve ser dele. Um monte de coisas doentias acontecendo lá dentro.

Havia mais, contudo fiquei fora do ar, meus pensamentos sendo cobertos por um agradável cobertor de escuridão e quietude. A queimação no pescoço e no braço tinha se assentado em uma pulsação profunda que zumbia e acompanhava as batidas do meu coração. Não sei quanto tempo passou até sentir mãos em mim, sacudindo-me com força. Tentei abrir os olhos mas não consegui, o súbito terror da paralisia transformando meu sangue em água gelada. Lutei contra as garras do sono e enfim consegui abrir as pálpebras. Mas isso era praticamente tudo o que eu conseguia fazer.

— Você parece péssimo — disse Zê.

— É o néctar — respondeu Simon. — Está acabando.

— E se acabar, o que acontece?

— Coisas desagradáveis — disse Simon. — Já vi isso acontecer com os ratos lá em Furnace. Se o néctar acaba, tudo de ruim que aconteceu, todos os ferimentos e ossos quebrados, vem logo cobrar a conta. E o Alex aqui já apanhou até quase morrer sei lá quantas vezes. Se ele ficar sem néctar, vai morrer.

Tentei falar alguma coisa, mas minhas palavras ainda estavam trancafiadas pelo cansaço. Em algum momento da conversa, meus olhos se fecharam de novo, sem que eu sequer percebesse. Dessa vez, a escuridão não tinha nada de reconfortante. Era como estar sendo enterrado vivo.

— E aí, o que a gente faz? — perguntou Zê, a voz salpicada de desespero. Percebi que ele estava com a mão na minha cabeça, e a sensação daquele toque era muito boa. — Tenho certeza de que ainda não vendem milk-shake de néctar por aí. O que a gente faz?

— Uma coisa nojenta — disse Simon. Ouvi o arrastar de pés quando ele saiu, logo seguido por um som que poderia ter sido uma garra de lagosta sendo arrancada do lugar — uma nojenta sinfonia de estalos, sons de sucção e rosnados.

— De jeito nenhum — falou Zê. — Isso é totalmente errado. Errado, errado, errado.

— Pois é, mas a gente não tem escolha — respondeu Simon. Ouvi-o engolir algo, depois engasgar e, em seguida, engolir de novo. — Se ele não tomar um pouco de néctar, vai morrer. Se não agora, em breve. Quero dizer, olhe só pra ele.

Percebi que Simon estava de pé à minha frente e senti uma coisa pingar no meu pescoço, fazendo cócegas na pele ao escorrer por baixo do capuz.

— Abre bem — disse Simon. Fiz o que ele mandava, sentindo outra gota cair no meu pescoço enquanto ele segurava alguma coisa em cima da minha cabeça. A gota seguinte do líquido acertou minha língua, trazendo consigo o pior gosto que já sentira — era como se toda a comida numa geladeira tivesse ficado lá por anos até ficar coberta de mofo e virar uma pasta putrefata; algo como uma maçaroca líquida de leite azedo e empedrado misturado com carne cheia de larvas. Senti a garganta fechar, o estômago revirar, mas Simon manteve minha boca aberta com uma das mãos e continuou despejando o que quer que fosse que tinha na outra.

Engoli, apenas para não engasgar. No instante em que fiz isso, o gosto nojento foi esquecido, pois meu cérebro reconheceu o que era aquela substância. Minha pulsação aumentou um pouco, martelando em meus ouvidos. Ainda que meus olhos estivessem fechados, minha visão ficou mais escura, pequeninas fagulhas de luz dourada acendendo como estrelas cadentes contra a noite.

Era néctar. De algum modo, Simon estava me dando néctar.

O líquido viscoso acertou meu estômago como se tivesse vida e inteligência próprias, sabendo exatamente aonde ir. Parecia estar se canalizando de imediato por vísceras e artérias, enchendo-as de energia e trazendo meus músculos exaustos de volta à vida. O ferimento em meu pescoço ardia intensamente, mas de modo vigoroso, não dolorido. A sensação pareceu descer por meu braço direito, indo até os dedos, como se as veias tivessem sido esticadas e estufadas para reter o máximo possível de veneno.

Engoli com mais força, ansiando pelo líquido que me enchia a boca, como se aquele fosse meu primeiro copo d‘água depois de um mês no deserto. Não me importava com o gosto; só queria mais — ele me preenchia como um combustível, meu corpo como um motor subitamente ligado e pronto para se mover.

Sentei direito, sufocando um rugido, e abri os olhos para ver, através das veias negras e pulsantes da minha retina, um braço amputado sobre minha cabeça. Reconheci o garoto que o segurava, mas todas as lembranças eram secundárias devido à necessidade de néctar. Parti para cima dele, agarrando o braço e apertando meu rosto contra as veias gotejantes, sugando o néctar com deleite. Em segundos o braço secou, e, com outro grito gutural, fiquei de pé, saltando sobre o cadáver do viking negro como um besouro e rasgando sua carapaça.

Em algum ponto daquele frenesi, ouvi uma voz me dizendo para ir mais devagar, para não beber demais. Não sabia se era outra pessoa ou se era eu, aquele mesmo pensamento interior que tinha preservado minha sanidade na prisão. Ignorei, sugando o veneno da cavidade dilacerada da criatura embaixo de mim, enchendo a barriga de néctar. A fome enfurecedora que havia sentido por um tempo que parecera eterno estava pouco a pouco sendo saciada, cada célula do meu corpo passando de uma casca seca e inútil a um recipiente repleto de força.

Afastei a cara do cadáver e deixei minha boca cheia de baba escancarada. Um ruído escapou de mim, um rugido que saiu por vontade própria. Ergui o viking morto, agora leve como uma toalha, usando as duas mãos para rasgá-lo ao meio. Joguei longe os pedaços ensanguentados, voltando-me para a plataforma a fim de encontrar algo em que pudesse testar minhas forças, algo mais para destruir. O néctar gritava dentro de mim, jorrando pelo meu cérebro e ganindo uma única palavra a cada pulsação: matar, matar, matar. E, acima de tudo isso, havia um riso ressoando em minha cabeça, uma gargalhada grave e profunda que eu sabia pertencer a Alfredo Furnace.

Você fez sua escolha, dizia ele, o néctar levando sua voz para os confins mais profundos da minha alma, as palavras carregadas por uma onda de júbilo. Elas pareciam brotar em visões, em imagens que floresciam plenamente — eu à frente de um exército, despejando violência sobre o mundo; eu num combate ferrenho com alguém que parecia o diretor, mas que não poderia ser ele. O que quer que você faça a partir deste momento, qualquer caminho que decida tomar, já fez sua escolha.

Tapei os ouvidos com as mãos, mas não adiantou nada. Furnace uivava como se tivesse aberto meu crânio e entrado lá dentro. O néctar continuava correndo, curando minhas feridas, transformando meus músculos em pedra, deixando meus pensamentos em pedaços, como pratos de porcelana. Procurei os fragmentos, tentando permanecer são, mas tudo o que conseguia ouvir era aquele riso sem fim, como um trovão, e aquela mesma ordem incansável para matar.

Se obedecesse, talvez aquilo fizesse a loucura passar.

Vasculhei a plataforma, avistando dois rostos que conhecia e ao mesmo tempo me eram desconhecidos. Não valiam meu tempo. Virando-me, vi a menina espreitando da porta do café.

Ela serviria.

Não sabia mais o que fazia quando cruzei a plataforma em três passadas gigantescas, tendo já a patética criatura sob mim. Ela me ouviu chegando, ergueu-se rápido e levantou as mãos para proteger o rosto. Os olhos dela me encaravam com raiva, ainda desafiadores, sem ceder.

Você queria ajudá-la, lembra? Você queria salvá-la.

Mais vozes na minha cabeça, ainda lutando entre si, uma contradizendo a outra. E o único modo de expulsá-las era fazer aquela escolha, tirar uma vida. Levantei as mãos, pronto para torcer o pescoço da garota como o de uma galinha, para acabar com aquilo de uma vez por todas. Mas ela ainda me enfrentava com aquele olhar, dois pontos perfurantes de luz branca que me mantinham afastado com a firmeza de uma mão no meu peito.

Ela está te olhando como se você fosse um deles, mas você não é um deles, Alex, você não é um deles. Você não é...

Tapei a cara com as mãos, as vozes misturando-se num coro insano. Gritei contra as palmas, quase sem notar que havia palavras no meu grito:

— Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu?

Ergui meu punho outra vez, sabendo que bastaria um simples movimento e a menina morreria. Então Furnace teria razão, minha escolha teria sido feita. Não precisaria mais lutar. Perto de mim surgiu um som de explosão enquanto um trem voava pelo túnel. O ruído ensurdecedor foi a última gota. Movi-me rápido, mais rápido do que jamais tinha me movido, virando-me e gritando enquanto meu punho descia como a lâmina de uma guilhotina, movido para o chão pela força do néctar, por seu torturante desejo de destruir.

O trem já tinha quase ido embora, mas consegui pegar o final dele, meu punho atravessando o vidro da última janela no último vagão, a força do golpe tão forte que reduziu o material a estilhaços, arrancando um pedaço do caixilho de metal. O impacto me deu a sensação de ter arrancado meu braço, sendo arrastado pelos calcanhares pela plataforma. Mas era o trem que vacilava, os vagões balançando uns contra os outros com vigor suficiente para arrancá-lo dos trilhos.

Com um guincho de arrebentar os ouvidos, ele acelerou pelo outro túnel, a plataforma mergulhando em silêncio. Caí de joelhos, acariciando o pulso, a canção bate-estaca do néctar começando a desaparecer, saciada por ora, deixando-me sozinho com meus gemidos e o eco sem fim da satisfação sussurrante dele.

Você fez sua escolha.


LUCY

Demorei um pouco até perceber que alguém falava.

Nadei para fora do transe, libertando-me do oceano de ideias sombrias em que me afogava. Não sei quanto tempo fazia desde que eu tinha me alimentado; os últimos minutos — talvez horas — para mim eram só uma névoa. Minha mão coçava furiosamente e concentrando-me nela, vi cacos de vidro no meio dos dedos manchados com um sangue negro e viscoso. Os ferimentos estavam quase curados; o néctar tapava os rombos na minha pele rasgada, suturando-a.

Mas havia algo mais. Minha mão parecia ter crescido, inchado tanto que a pele estava estufada e com um tom feio de preto-arroxeado. Aliás, não era só minha mão, mas meu braço inteiro. Fui apalpando-o por debaixo da manga do casaco, percorrendo toda a carne saliente, até chegar à marca da mordida no meu pescoço. Ela pulsava a cada batida do meu coração, e, quando tirei a mão de lá, meus dedos estavam manchados de néctar.

Pouco a pouco, o resto do mundo assentou-se, ficando mais imóvel e mais nítido, como se eu tivesse passado algum tempo olhando um reflexo numa poça agitada. Estava ajoelhado na extremidade da plataforma, os ratos correndo de um lado para o outro lá embaixo, farejando, curiosos, as poças de líquido escuro que eu havia deixado entre os trilhos. Minha cabeça zunia, quase alto o bastante para abafar as palavras atrás de mim.

Movi a cabeça lentamente para olhar por cima do ombro, tomando consciência de que meu corpo parecia mole. Não havia dor, isso o néctar garantia, mas havia outra coisa, uma sensação prazerosa que saía do meu pescoço, passava pela minha espinha e terminava no quadril. Tentei lembrar o que tinha acontecido, e me veio uma imagem súbita de mim mesmo levantando o punho contra alguma coisa.

Contra uma garota?

À medida que meus olhos foram distinguindo as silhuetas à minha volta, vi, aliviado, que a garota estava ali, sentada num banco contra a parede da escada, a cabeça contra o peito, as mãos brincando com um pequeno medalhão prateado que ela trazia pendurado no pescoço. Zê estava ao lado dela, ainda que estivesse desconfortavelmente sentado na extremidade oposta, deixando o máximo de espaço entre eles. Simon andava de um lado para o outro na frente deles, todos os vestígios de dor do ferimento no ombro tendo aparentemente ido embora. Provavelmente também tinha consumido algum néctar. Não muito: só o bastante para fechar a ferida.

Foi Simon quem me notou primeiro. Ele franziu o rosto quando nosso olhar se cruzou, e o corpo dele se enrijeceu. Então, quando notou que eu tinha recuperado os sentidos, relaxou.

— Bem-vindo de volta — disse ele.

Ao ouvir suas palavras, tanto Zê quanto a menina me olharam, e o rosto dela se contorceu numa expressão de terror. Ela escondeu o colar dentro da roupa e em seguida se ajeitou no banco, trazendo os joelhos ao peito. Os olhos dela ainda pareciam assombrados, embora desafiadores, intensos.

— Não deixe ele chegar perto de mim — silvou. — Nem pensem em deixar ele chegar perto de mim.

— A gente já disse — começou Zê, mas a menina interrompeu-o.

— Não estou nem aí se ele é seu amigo ou não. É um psicopata. Está me ouvindo? Um psicopata!

Desviei o olhar porque fui tomado pela tontura. Girei o corpo e, arrastando os pés, me afastei dos trilhos. A garota começou a protestar, e eu ergui as mãos, me rendendo.

— Tudo bem — disse eu, a voz vibrante. — Não vou chegar perto de você. Desculpe. Desculpe por tê-la assustado.

— Assustado? — ela repetiu. — Você quase me matou!

— Só que, em vez disso, ele decidiu socar um trem em movimento — falou Zê, erguendo uma das sobrancelhas. — Não sei muito bem o que dizer disso. E o seu braço?

— Está bem — disse eu, as palavras dele trazendo a lembrança. Arranquei um dos cacos de vidro da carne macia entre minhas falanges. Ele caiu no chão com um tilintar melodioso, seguido de uma única gota de sangue negro. — Eu soquei mesmo um trem em movimento.

— O néctar provoca esse tipo de coisa — explicou Simon. — Você acaba fazendo coisas beeeeeem doidas. Mas foi melhor do que ter morrido, eu acho. E você lutou, você voltou a si.

— Quase não consegui — respondi. Toda vez que eu tomava uma nova dose de néctar, pendia um pouco mais para o outro lado. Isso já tinha acontecido na prisão, quando havia enfrentado aqueles dois primeiros vikings. E dessa vez tinha sido pior. Meu Deus, eu quase havia afundado o crânio de uma garota inocente! Quantas vezes mais eu teria de tomar néctar para permanecer vivo? E o que aconteceria quando não conseguisse voltar a mim? Pertenceria ao diretor e a Alfredo Furnace para sempre.

Simon estava errado; isso não era melhor do que ter morrido.

— Bom, vamos esquecer o que aconteceu — falou Zê. — Você acordou e recuperou sua força. Vai precisar dela. Todos nós vamos precisar dela.

Assenti com a cabeça e em seguida acenei em agradecimento para Simon. Apesar de tudo, era provável que ele tivesse salvado minha vida ao me dar néctar. Eu estava nas últimas. E era verdade que havia recuperado minhas forças. Levantei, o corpo inteiro cantarolando, tomado pela sensação de que era capaz de qualquer coisa.

A menina pareceu se encolher ainda mais no banco, por isso recuei alguns passos, deixando as mãos penderem ao lado do corpo. Não tinha muita certeza do que dizer e duvidava que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para ficar bem com ela depois do que tinha acontecido, então decidi me contentar só com uma tentativa desajeitada de sorriso.

— Bem, esse é o Alex — disse Zê. — Alex, deixe eu te apresentar a Lucy.

— Achei que você fosse estar a quilômetros daqui agora — falei.

Lucy esfregou os olhos, manchando as bochechas com maquiagem, o cabelo escuro caindo em mechas desarrumadas sobre o rosto, dando-lhe uma aparência de gótica. Ela usava jeans e um blazer azul sobre uma camiseta do Led Zeppelin, com um par de tênis gastos nos pés. De perto, e livre das garras malévolas do néctar, percebi que ela era mais velha do que eu havia pensado a princípio, tendo talvez dezesseis ou dezessete anos.

— Está brincando? — disse ela. — Com aquelas... aquelas coisas lá em cima? Sem mencionar todos aqueles seus colegas do presídio.

— Não somos como eles — disse Zê. — Eu falei pra você.

— Sei, vocês são todos inocentes. — Lucy soltou um riso sem graça. — Estavam só passando pelo lugar e aí foram jogados em Furnace. Vocês são todos bandidos, ladrões e assassinos; nem venham fingir que não. Meu pai era policial, sabia? Ele teria mandado vocês todos de volta pra lá antes que tivessem dado três inspiradas de ar puro.

Quis saber o quanto tinham contado a ela, e verbalizei o pensamento.

— O suficiente — respondeu Simon. — Você ficou caído lá uns bons vinte minutos.

— Você falou dos vikings? Dos experimentos?

A garota resmungou, fazendo pouco-caso da história que tinha ouvido. Mas era um pouco difícil não acreditar, considerando as evidências; e, pelo jeito como ela direcionava o olhar cansado para o chão e como seus lábios se apertavam, eu podia ver que ela achava cada vez mais difícil não acreditar.

— Contei tudinho — respondeu Zê. — Acho que ela não acreditou em mim. Mas também não faz muita diferença. Ela só acredita vendo.

— Impossível — retrucou ela. — Você não... não pode fazer uma coisa dessas. Ninguém pode resolver transformar um... um...

Ela deu uma olhada rápida para mim e desistiu, mordendo o lábio.

— Também contei tudo sobre você — continuou Zê. — Que não é culpa sua ser desse jeito... Você sabe... todo remendado e tudo o mais. Não é culpa sua você parecer o irmão mais feio do Shrek.

— Obrigado — murmurei.

Lucy levantou a cabeça, e deve ter visto algo humano em meus olhos — ou talvez tenha sido a carinha sorridente estampada no meu moletom —, porque suas pernas relaxaram e ela deixou os pés penderem para a superfície da plataforma. Reclinou-se para a frente, pousando os cotovelos nos joelhos, os dedos espalhando mais maquiagem pelos traços delicados do rosto.

— É verdade isso tudo? — perguntou ela, encarando os ferimentos no meu pescoço, rosto e ao redor dos olhos prateados. — Isso tudo que ele falou, de terem feito você em pedaços e juntado tudo de novo?

— Acha que eu nasci assim? — perguntei, desconfortável diante de sua postura inquisidora. Saí pela tangente, levantando a mão e fingindo coçar a testa, deixando-a mais tempo ali do que o necessário. — Na verdade, nada disso importa. Já é passado. Agora a gente só precisa pensar em um jeito de dar o fora daqui, desta cidade.

— O negócio lá em cima está bem complicado — disse Zê, levantando do banco e alisando com as mãos o jeans rasgado. — Lucy falou que as principais estradas foram fechadas, e também as estações de trem das principais linhas.

— Mandaram a gente ficar em casa — disse ela. — Estava em todos os noticiários. Mas quase ninguém acreditou que a situação estivesse tão ruim como diziam. Eu não podia faltar no trabalho; precisava do dinheiro. Acho que a maior parte das pessoas pensou a mesma coisa. A gente achou que a polícia ia conseguir controlar as coisas, que havia segurança suficiente. — Ela resmungou de novo, dessa vez de desgosto. — Parece que eu errei feio, não é?

— A cidade inteira está cercada — murmurou Simon, dando um chute numa pedra imaginária. — Não adianta. Dá na mesma ficar aqui, esperando para ser preso.

Até a cidade começar a arder em chamas, pensei, dando de ombros.

— Não passa nenhum trem desde aquele que você tentou esmagar — disse Zê. — Acho que perceberam que era perigoso demais; que tinha gente nos trilhos.

— Então os túneis estão vazios? — perguntei. Todos deram de ombros.

— Talvez sim, talvez não — respondeu Zê. — Eu é que não quero estar no meio dos trilhos e descobrir que os trens só estão um pouco atrasados.

— Mas o que faremos, então? — perguntei. — Não tiveram nenhuma ideia genial enquanto eu estava desacordado? Caramba. Pago vocês pra quê?

Ao ouvir isso, a garota sorriu — uma mínima contorção num canto de sua boca, que sumiu uma fração de segundo depois, mas mesmo assim foi um sorriso.

— Bom, o meu salário, você pode cortar — rebateu Zê —, porque não pensei em nada. Até onde sei, a gente pode arriscar continuar seguindo pelos túneis na direção norte até achar uma estação mais vazia ou...

— Mais vazia do que esta vai ser meio impossível — interrompeu Simon, correndo o olhar pela plataforma deserta.

— Você me entendeu — continuou Zê. — Ou a gente tenta isso, arrisca um trem e vai parar exatamente na mesma posição, quase um quilômetro mais próximo do centro da cidade, ou...

— Ou...? — Simon e eu perguntamos ao mesmo tempo.

— Ou a gente vai pra superfície agora e vê como está a situação lá em cima. — Ele olhou com ansiedade para a escada, contendo um suspiro. — Se tiver polícia lá em cima, imagino que teremos briga pela frente. Mas eles também podem estar ocupados com outras coisas. De repente, a gente consegue passar pelas ruas.

— E aí o quê? — perguntei. — Roubaremos outro carro e seremos metralhados por outro helicóptero?

Os ombros de Zê subiram e desceram em resignação.

— Imagino que a gente corra esse risco — disse. — Mas a outra alternativa é ficar aqui e esperar a encrenca vir atrás da gente, seja a polícia ou mais uma daquelas aberrações de Furnace.

— Ótimo — falei. — Então a gente pode ou ser atropelado por um trem, ou tomar um tiro da polícia, ou ser comido por um gorila mutante com cara de criança. Meu Deus, quantas alternativas maravilhosas.

— É muito melhor vocês tentarem voltar pra superfície — disse Lucy. — Se isso tudo o que estão dizendo for verdade, e não acredito nem por um segundo que seja, mas se pelo menos uma parte disso for, então vocês deviam se entregar e deixar a justiça resolver o problema.

Simon apontou um dedo para a menina, a cara fechada.

— Como você acha que a gente veio parar aqui? — ele perguntou. — Nunca mais vou voltar pra Furnace. Prefiro morrer.

Eu também preferia, mas Lucy não deixava de ter certa razão. Se os vikings estavam lá em cima, se as pessoas os tinham visto, havia uma chance de que acreditassem em nós. No mínimo ficaríamos numa prisão normal, com janelas, televisões e outros luxos desse tipo, e teriam de investigar o que estava acontecendo. Não podiam meter a gente de volta numa prisão em chamas. Não; as coisas haviam mudado desde a noite passada. O mundo talvez nos ouvisse.

Fiz menção de expressar meus pensamentos quando uma onda de dor invadiu meu pescoço, uma espécie de câimbra que retorceu meus músculos até o braço. Apertei e massageei a área com a mão sem ferimentos, sentindo o tecido cicatrizado sob a pele se retorcer e pulsar, como se houvesse algo vivo ali embaixo. Algo que vivia e crescia.

— Que foi? — perguntou Simon, notando meu desconforto. Balancei a cabeça, a dor já sumindo.

— Ela mordeu você, não foi? — perguntou Zê. — Aquela coisa. Tirou um pedaço do seu pescoço.

— Não importa — respondi. — Já enfrentei coisa pior. Vamos lá, qual é o plano?

Zê e Simon se entreolharam, e aí Zê começou a falar:

— Vamos só botar a cabeça pra fora. Não por muito tempo, e só pra ver o que está acontecendo. Se as ruas estiverem cheias, a gente tenta os túneis. O que acha? De um jeito ou de outro, estaremos indo pela cidade.

Assenti com a cabeça, olhando para Simon. Ele me lançou um olhar intenso, esfregou o nariz com o dorso da mão, depois balançou a cabeça em um indício de que não gostava nada da ideia mas iria tentar.

— Só que é você quem vai botar a cabeça pra fora primeiro — disse ele a Zê, pegando-o pela nuca. — Assim, se sua cara estourar, não preciso mostrar a minha.

— Feito — respondeu Zê, começando a subir os degraus com um suspiro cansado. Simon foi atrás, e eu olhei para Lucy.

— E você? — perguntei. — Vai ficar aqui esperando a polícia?

A garota olhou ao redor desconfortavelmente e depois ficou de pé, ajeitando a camiseta e subindo a escada.

— Enlouqueceu? — murmurou ela. — Aquela coisa pode voltar a qualquer hora. De jeito nenhum, senhor Psicopata, eu vou com vocês.


AS RUAS LÁ EM CIMA

Deveríamos ter chegado à superfície em uns cinco minutos, mas demoramos três vezes mais.

Fomos devagar, parando a cada esquina para ter certeza de que a barra estava limpa, prendendo o fôlego cada vez que ouvíamos o mais leve ruído nas passagens. A última coisa que queríamos era esbarrar num viking no meio de sua refeição, ou entrar em algum lugar e levar uma rajada de balas de uma equipe excessivamente zelosa da SWAT.

No alto dos degraus da plataforma, seguimos um rastro de sangue negro que levava às escadas rolantes. A linha continuava por uma das três escadas em movimento, um sinal macabro que nos indicava a saída da estação Twofields. Peguei a outra escada que subia, sem a menor vontade de chegar perto daquela coisa, mesmo sabendo que era néctar, o mesmo lodo que alimentava meus músculos, que movia meu coração.

— Alguém sabe onde vamos sair? — perguntou Simon enquanto andávamos lentamente pelo andar de cima.

— Twofields — disse Zê, sem ajudar em nada com a informação. Ele notou que olhávamos para ele e acrescentou: — Bem, acho que é aqui que fica a zona financeira. Bancos, esse tipo de coisa. Nunca andei por aqui, foi mal.

— Aqui fica a catedral, não o banco — disse Lucy. Saí da escada com um pulo, examinando o saguão à frente, sem ver nenhum sinal de vida além do mesmo rastro de sangue. Simon veio atrás, depois Zê, e Lucy ainda falava quando pôs os pés, com todo o cuidado, no piso. — A catedral de São Martinho, vocês não conhecem? Os bancos ficam do outro lado do rio, o Morgan Heath e o Central. Por quê? Estão pensando em assaltar algum?

— Já falei... — começou Zê, mas nem teve chance de terminar.

— Eu sei, eu sei — disse Lucy, erguendo as mãos. — Vocês são todos inocentes, jamais sonhariam em roubar um banco.

— Bom, o Simon, sim — acrescentou Zê, quase em tom de desculpas. — Ele costumava roubar.

— Nossa, obrigado por contar pra todo mundo — murmurou Simon enquanto partíamos saguão adentro. Ali também estava deserto, ainda que houvesse mais indícios de violência: faixas escarlate numa pilastra, decorando um mapa do metrô. Ao passarmos pelo local, não pude deixar de pensar que a cidade inteira parecia estar encharcada de sangue. Ele vertia para o chão, pingando como uma ferida aberta, o que significava que era recente. Levei o dedo aos lábios para que todos ficassem quietos, e subimos os poucos degraus que levavam ao saguão principal.

— Meu pai do céu! — exclamou Zê assim que viu a entrada da estação. — O que aconteceu aqui?

Twofields parecia ter sido atingida por um míssil. As várias pilastras espalhadas pelo lugar e as portas principais tinham desabado e virado pó, o teto pendia como uma tenda de lona. Todos os bancos estavam de ponta-cabeça, um deles atravessando a porta de vidro de uma Marks and Spencer‘s. As lâmpadas compridas do teto tinham sido tingidas de preto, dando ao cenário uma luminosidade estranha e funesta que me lembrava a enfermaria de Furnace.

— Meu Deus! — gemeu Lucy, a mão na boca. — Meu Deus, o que está acontecendo? O que há de errado com vocês?

Zê fez menção de nos defender de novo, tentando tranquilizar Lucy ao pousar a mão em seu ombro, mas tudo o que conseguiu foi afastá-la. Deixei os dois e andei cuidadosamente pelo piso pegajoso, passando pelas catracas e contornando o local. Havia um barulho ali, um leve sussurro, e também uma luz oscilante, como se alguém se mexesse sem parar na penumbra. Juntei as mãos, rezando para não encontrar o viking que tinha causado toda aquela destruição.

Para meu alívio, o som e a luz vinham de uma televisão. Ela pendia precariamente de seu suporte na parede, um fio de alguma substância vermelha gotejando sobre a tela, dando a impressão de ser a única coisa que a impedia de desabar no chão. O aparelho estava quase mudo, mas nem era necessário som. As imagens contavam a história sem o menor esforço, aparecendo e sumindo atrás de um jornalista de rosto pálido.

— O negócio parece ruim — comentou Simon às minhas costas. — Será que é de verdade?

Achei a pergunta idiota, mas consegui entender por que Simon a fizera. Eu já tinha visto aquela cidade sendo atacada centenas de vezes — explodida em filmes, invadida em jogos de computador, ardendo na tela do cinema —, então para mim era fácil acreditar que o que acontecia à minha frente era um faz de conta, nada além de atores e efeitos especiais. Só que não era assim que funcionava o noticiário.

Não, aquelas imagens eram mesmo reais. Estavam acontecendo em tempo real, ali do lado de fora da estação. Um prédio em chamas — aparentemente residencial, com rostos enegrecidos pela fumaça gritando de janelas vinte andares acima do chão; bloqueios em cada via de saída da cidade; pontes fechadas por viaturas de polícia; e... o que era aquilo, um tanque? Também a imagem tremida e embaçada de uma criatura enorme e musculosa escalando uma parede feito King Kong, sumindo por uma janela com seu olhar brilhante e prateado, um sorriso insano estampado no rosto; vistas aéreas da cidade que eram semelhantes demais à minha alucinação anterior — pilares de fumaça subindo de três ou quatro grandes incêndios, tingindo o céu azul; câmeras de rua mostrando gangues de prisioneiros enlouquecidos; e a imagem que, eu sabia, se tornaria um símbolo, aquela que veríamos por toda parte: uma menina de cinco ou seis anos chorando inclinada sobre um cadáver de olhos esbugalhados, provavelmente sua mãe, enquanto um inferno ardia atrás dela e soldados com roupas camufladas tentavam arrastá-la para um lugar seguro.

FUGA DA PRISÃO COLOCA A CIDADE SOB AMEAÇA, dizia a manchete abaixo do âncora, o maior eufemismo que eu já tinha visto. Mais abaixo, a barra de texto corria sem parar, avisando as pessoas de fora que se afastassem da cidade e as que estavam nela que trancassem as portas e começassem a rezar. A POLÍCIA ADVERTE: PODE VIR UM NOVO “VERÃO DO MASSACRE”. E o mais sinistro de tudo era um alerta piscante que informava: TODAS AS LINHAS DE EMERGÊNCIA FORAM SUSPENSAS.

Quando os serviços de emergência param de funcionar, você se dá conta de como a situação é grave.

— Não é possível — soluçou Lucy. Ela estava com a mão na boca, parecendo tanto dez anos mais velha quanto dez anos mais nova do que quando a vira pela primeira vez. Havia afundado a cabeça no ombro de Zê e, dessa vez, não protestou quando ele colocou o braço em volta do seu ombro. Ele também tinha os olhos marejados. As lágrimas rolavam pelas bochechas da garota, deixando rastros sinuosos na camada de pó acumulada em seu rosto.

— Isso não pode estar acontecendo! — Os protestos abafados de Lucy eram o acompanhamento perfeito para as imagens na tela, uma trilha sonora de tristeza e desesperança que sangrava em nossos ouvidos enquanto observávamos os relatos chegarem, a contagem de cadáveres aumentar a cada segundo, a ameaça desconhecida se esgueirar sobre a cidade. Então a imagem mudou.

— Olha lá o canalha — disse Simon, a voz grave e ameaçadora. Na tela havia uma estrada, e nela caminhões do exército rugindo enquanto invadiam a cidade. Via-se um bloqueio policial na saída da estrada, mas a barreira estava aberta, os caminhões passando sob o olhar de diversos outros soldados camuflados e...

Meu coração quase parou.

Era ele. O diretor.

Estava cercado por robustos ternos-pretos, seu terno cinza elegante como nunca, o cabelo perfeitamente penteado. Não havia sinal dos ferimentos que havia sofrido durante nossa fuga. Poderia ser qualquer pessoa, um homem comum de meia-idade que houvesse aparecido para ver o espetáculo. Só que mesmo ali, do outro lado da cidade, não mais que uma diminuta figura na tela da TV, ainda assim ele irradiava poder. Sua imponência fazia os soldados ao redor se curvar e baixar os olhos, e seu rosto, que parecia de couro — como se tivesse uma máscara putrefata bem esticada sobre o crânio —, dava a impressão de dominar a imagem inteira.

— Prendam ele, seus idiotas! — gritou Simon. — Vamos, vocês querem saber quem está por trás disso tudo. Ele está bem aí, embaixo desse nariz inútil de vocês!

Mas a polícia e os soldados não davam nenhum sinal de que fariam isso. Conversavam com ele, parecendo prestar atenção em cada palavra. Ele moveu seu braço longo e fino, e três homens uniformizados sumiram de cena, às pressas.

A câmera aumentou o zoom na hora em que mais veículos cruzaram a ponte, dessa vez parecendo ser a mistura de um caminhão com um tanque, a esteira rasgando o asfalto. A imagem do diretor ficou maior na tela, dando a impressão de que ia atravessar o vidro e entrar na estação. Antes que eu percebesse o que fazia, recuei alguns passos. Mesmo que o tivéssemos derrotado, mesmo que tivéssemos fugido da prisão, aquele homem ainda me assustava, e muito.

Eu me recompus, estudando a expressão dele. Parecia mortalmente sério ao se dirigir aos homens e às mulheres ao seu redor; talvez até furioso. Mas, logo antes de sair do enquadramento da câmera, um segundo antes de desaparecer, ele virou seu rosto retorcido para a câmera e sorriu, num súbito lampejo malévolo que sumiu antes mesmo que eu tivesse certeza de que ele tinha aparecido. Mas tinha aparecido; ficou gravado nas minhas retinas, seu rosto de joão-bobo talhado no osso, surgindo em negativo toda vez que fechava os olhos.

— Vamos — falei, desesperado para me afastar. — Quanto mais tempo a gente ficar aqui, menos chances temos de sair vivos.

Demos as costas para a TV e fomos arrastando os pés para a saída. Um último lance de escadas levou-nos à entrada principal, ensombrecida pela fumaça que se espalhava e serpenteava do outro lado. Estava tão escuro lá fora que, por um instante, imaginei a cidade inteira tragada e sob a superfície, uma porção de rocha maciça crescendo acima e selando-nos para sempre nesse túmulo. Tive de fechar os olhos e literalmente sacudir a imagem da minha cabeça, dando um passo porta afora e vendo lascas de céu azul através do denso nevoeiro.

— A barra parece limpa — disse Zê entre uma tossidela e outra. Não sei como ele tinha concluído isso, porque a visibilidade estava reduzida a talvez uns trinta metros. A rua lá fora tinha carros enfileirados, e todos pareciam abandonados. Os prédios eram todos de lojas e escritórios, e o incêndio era em um deles mais adiante. Estava tomado, as chamas lambendo portas e janelas como se zombassem do fato de que não havia ninguém ali para apagá-las. As paredes explodiam, enchendo a rua de estilhaços letais de vidro e tijolos. Diversos alarmes soavam nas lojas e nos carros, impondo-se no ambiente como um insano coro matinal.

Levantei o capuz para cobrir a boca e evitar a fumaça, mas mesmo assim sentia dedos sujos se esticarem pelos meus pulmões. Era como estar de volta ao incinerador da Penitenciária de Furnace, e tossi com tanta força que achei que fosse vomitar.

— Pra que lado? — ofeguei.

— Pra longe daquilo — respondeu Zê, apontando o prédio em chamas.

Tínhamos dado três passos para longe das portas da estação quando um policial saiu correndo de trás de um caminhão abandonado. Ele logo nos notou, erguendo sua arma e a apontando para nós com mãos trêmulas. Era impossível avaliar sua reação, porque uma máscara de gás cobria-lhe o rosto, e só dava para ver um par de olhos arregalados. Ergui as mãos acima da cabeça instintivamente, na esperança de que ele não reparasse nos músculos e tendões retorcidos em meu braço direito. Zê e Simon também ergueram os braços, mas Lucy começou a correr na direção dele.

— Graças a Deus! — ouvi-a dizer enquanto seguia pela rua. O policial viu-a se aproximar e apontou a arma para ela.

— Pare! — gritou. Lucy desacelerou e começou a andar, mantendo as mãos à frente.

— Não sou um deles, sou inocente, uma cidadã; preciso de ajuda.

O policial desviou o olhar para nós, mas manteve a arma apontada para Lucy. Dava para sentir Simon ficando tenso ao meu lado, e sabia que, assim que ele visse uma oportunidade, estaria do outro lado da rua, de punhos a postos.

— Falei pra parar — rosnou o policial para Lucy. — Estou avisando. Mais um passo e...

Ele não terminou a frase. Por trás da máscara, seus olhos piscavam furiosamente, e julguei reconhecer sua expressão. Estava em choque.

— Lucy — disse eu —, recue, ele não pode ajudar você.

Lucy me ignorou, dando mais alguns passos. Podia ouvi-la suplicar, pedindo que a levasse com ele, que nos prendesse, só para tirá-la das ruas. Mas ele não prestava atenção, observando-nos como um coelho prestes a ser atropelado por um caminhão. Ouvi sons abafados e percebi que ele falava; que havia um fluxo de palavras contido pela máscara de gás. De onde estava, tive a impressão de ser uma prece.

— Vamos lá — sussurrou Zê. — Vamos embora.

Começamos a andar pela rua, dando passos curtos e lentos, para não alarmar o policial. Ele virou a arma para nós, e os murmúrios cessaram de súbito.

— Não posso deixar vocês irem. — Foi só isso que ele disse, e a arma tremia.

Lucy agora chorava, estendendo as mãos para ele, os dedos entrelaçados. Ali por perto uma sirene soou, mas era quase inaudível contra os lamentos e o rugido constante do fogo. E também havia outra coisa: o tamborilar de pés correndo naquela direção, cada vez mais alto, mais rápido, acompanhado de sons roucos de respiração. Arrisquei-me a olhar para a rua, mas não consegui ver nada além de fumaça.

Alguém deu um grito, um ruído que poderia ter sido um ganido de dor ou um urro de entusiasmo. O policial voltou-se nessa direção, os olhos piscando com ainda mais fúria atrás dos reflexos de seu visor, como se, abrindo e fechando, abrindo e fechando, as pálpebras pudessem apagar a loucura à sua frente. Ele ergueu a arma, apontou-a para os sons, mas não havia nada lá além de uma cortina de fumaça retroiluminada por tons de laranja e vermelho. O grito veio de novo, seguido por outro, e dessa vez não houve dúvida de que eram gritos de alegria, como sons de macacos.

O policial olhou para Lucy, os olhos se iluminando em um sorriso triste, um olhar tão repleto de calor e empatia que quase partiu meu coração.

— Desculpe — disse ele. — Que Deus ajude você.

Então ele virou a arma para a própria cabeça e puxou o gatilho. O tiro ecoou entre os prédios, sendo envolvido depois pela fumaça, e, antes que o policial atingisse o chão, duas silhuetas saltaram do manto de trevas, os olhos negros injetados de sangue, esbugalhados e repletos de raiva, irrompendo em nossa direção.


VELHOS AMIGOS

De início achei que fossem vikings, os corpos musculosos e disformes, como se tivessem sido esculpidos em gesso por uma criança. O néctar pingava de seus olhos e lábios — exatamente como o garoto na estação —, fazendo-os parecer aqueles estranhos mímicos de rua que pintam o rosto para dar a impressão de que estão chorando. Só que aquelas coisas não estavam chorando. As bocas retorciam-se em sorrisos, os grandes dentes à mostra, as línguas com veias negras lambendo a baba que lhes escorria pelo queixo. E, nas profundezas sem alma daqueles olhos de nanquim, não se via nada além de deleite.

Mas não eram vikings. Como poderiam ser? Usavam macacões de prisioneiros, rasgados em torno do peitoral e sob os membros protuberantes, manchados com sangue fresco e quase seco, porém inconfundível. O rosto deles, ainda que inchado, não tinha nenhuma cicatriz, nenhum ponto. Não; não podiam ser vikings, porque eram prisioneiros exatamente como nós, que tínhamos acabado de fugir.

Não podiam ser vikings porque eu conhecia um deles. Seu nome era Bodie. Tinha falado com ele não mais que algumas horas atrás, logo antes de encontrarmos a liberdade no poço do elevador. Naquele momento ele era um garoto, não a fera selvagem e cheia de baba que saltava pelo asfalto quente rápido demais para um ser humano, as mãos como garras apontadas para nossas gargantas, os olhos prometendo não apenas violência, mas uma morte dolorosa e sangrenta.

Não tive tempo de chamá-lo pelo nome antes que ele pulasse no capô de um carro e voasse pelo ar fumacento. Ele caiu em cima de mim com um baque, fazendo-nos rolar pelo chão até um muro, ele por cima, as garras dilacerando minha pele, cortando, arranhando. Sua cabeça precipitou-se para a frente, os dentes se cerraram, e percebi que ele tentava me morder. O néctar tomou conta de mim, fazendo-me agir sem pensar. Desferi um soco, e meu punho acertou a cabeça de Bodie. Ele foi para trás, mas não pareceu sentir dor, esgueirando-se para a frente de novo, pronto para atacar.

Claro que ele não sentiu dor. Levando em conta a quantidade de néctar que saía de seus ouvidos e suas narinas e vertia de seus poros, ele estava repleto da substância. Consegui colocar um braço entre mim e ele, afastando-o logo antes que seus dentes atingissem o objetivo.

— Bodie! — gritei, empurrando-o para longe. Ele cambaleou, mas encontrou apoio, lançando-se de novo contra mim. Seus olhos não tinham mais nenhuma parte branca, eram poços negros, como os olhos de um demônio, ferozes e cheios de algo que não era exatamente raiva nem deleite, mas uma espécie de mistura doentia das duas coisas. O néctar pingava da boca aberta, e, ao esguichar em minha pele, percebi nele flocos vermelhos reluzindo como lava derretida. Ele praticamente vomitava aquele negócio, tanto que minhas roupas ficaram encharcadas, uma poça negra e cintilante espalhando-se sob nós.

Ele se inclinou de novo, e dessa vez joguei a cabeça para a frente, acertando-o bem no nariz, que se quebrou com um estalo. Ele, porém, não pareceu perceber o golpe. Ataquei de novo, luzes fortes explodindo em meu campo de visão, e mais uma vez, agora com mais força, lançando-o para trás. Ajoelhei-me, segurando a cabeça dele com as duas mãos e mantendo-a tão imóvel quanto possível. Ele tinha espasmos e tremedeiras enquanto eu o segurava, o corpo tomado por um ataque epilético.

— Bodie — chamei. — Bodie, pare! Sou eu, Alex.

Para além da cabeça de Bodie, vi que Simon e Zê lutavam com outro prisioneiro. Não havia sinal de Lucy. Bodie enfiava as unhas na minha garganta, as mandíbulas abrindo e fechando como as de uma piranha, e a língua, uma sanguessuga negra, precipitava-se para fora, lambendo seus lábios a cada tentativa de uma mordida. Podia sentir a adrenalina correndo em mim, trazendo o néctar com ela, nublando meus pensamentos e sentidos. Se não acabasse logo com aquilo, seria de novo engolfado por ela, e não havia garantias de que conseguiria encontrar o caminho de volta à superfície.

— Última chance! — bradei, o coração na garganta, batendo rápido o suficiente para explodir. — Bodie, se você está aí, é melhor falar comigo.

Ele sacudiu o corpo forte o bastante para tirar do lugar uma das minhas mãos, jogando-se contra mim. Agarrei-o de novo, e, com um jato de emoção fervilhando no estômago, jorrando de minha boca num lamento de pesar e raiva, torci seu pescoço o mais forte que consegui. A cabeça dele virou quase 180 graus, mas ele não desistiu de lutar. As mãos se sacudiam, os dedos curvados assemelhando-se a lâminas de uma colheitadeira, sempre buscando minha garganta, mesmo que ele não conseguisse me ver.

Afastei-me e observei pelo que deve ter sido meio minuto ele lutando pela própria vida na rua, seu corpo uma máquina quebrada movida a néctar, o veneno recusando-se a ceder o controle, mesmo quando o veículo esfriava e enrijecia. Enfim ele se aquietou, os olhos desanuviando-se como se a tempestade tivesse passado. Bodie encarou sem ver a fumaça que espiralava acima dele, as lascas de luminosidade do dia alojadas no reflexo vítreo de seu olhar.

Lembrei de Zê e Simon e olhei para o outro lado da rua. Os dois estavam na calçada, inclinados sobre o outro prisioneiro, chutando e socando seu corpo, ainda que ele não desse mais sinal de vida. Zê escorregou para o concreto. Os nós de seus dedos estavam negros. Ele me olhou, uma expressão de total desespero estampada no rosto.

De algum ponto mais distante da rua veio um grito abafado, seguido de uma buzina. Enxuguei as lágrimas dos olhos — que não tinham sido causadas apenas pela fumaça —, levantei-me e ajudei Simon a erguer-se quando passei por ele, correndo para longe do prédio em chamas.

À medida que nos afastávamos, o horizonte adiante ficava mais limpo, emergindo do ar em chamas como a imagem de uma TV que acabou de ser ligada. Havia outro prisioneiro raivoso sobre o capô de um pequeno carro vermelho, usando uma espingarda como bastão na tentativa de quebrar o para-brisa. Estava dando certo; uma teia de rachaduras se espalhava pelo vidro, e do outro lado eu conseguia ver o rosto de Lucy. Ela apertou a buzina outra vez, como se o som pudesse afastar seu agressor, mas ele apenas se inclinou sobre o vidro, a arma descendo de novo e, mais uma vez, num frenesi assustador.

Simon foi o primeiro a agir, aproximando-se de outro carro e arrancando o para-choque, que usou para acertar as pernas do prisioneiro. O golpe foi forte o bastante para fazê-lo virar de ponta-cabeça num círculo completo. O prisioneiro pousou quase perfeitamente no capô, como um acrobata, porém acabou perdendo o equilíbrio e caiu para trás, os braços se agitando. Simon golpeou-o de novo, mas o prisioneiro desviou do percurso da arma, deslizando para fora do capô e lançando-se sobre Simon, braços e pernas envolvendo-o, os dentes indo direto na jugular.

Escorreguei por cima do capô, agarrando o garoto pelo colarinho. Sob sua pele, notei veias negras pulsando, e havia porções de néctar flocado em rubi ali, que tinham exalado de seus poros. Arranquei-o de cima de Simon, jogando-o contra um muro. Ouviu-se um estalo, como o de uma explosão de um balão cheio d‘água, e algo sob o macacão do garoto estourou. O néctar passou a verter dele como se uma torneira tivesse sido aberta, o bizarro inchaço dos membros começando a diminuir, como um saco de papel deixado na chuva. Ele parecia se dissolver. E também ficava mais fraco, os pulmões em agonia tornando-se mais lentos.

Ouvi o motor de um carro ganhar vida, rugindo ao meu lado. Os faróis do carro vermelho se acenderam, e, com uma passagem de marcha, ele se precipitou para a frente, em rápida aceleração, avançando para o meio-fio e esmagando o prisioneiro na parede. Ele caiu sobre o capô esfumaçado com um espasmo violento, ficando imóvel depois.

Durante aquilo que pareceu uma eternidade ficamos em silêncio, tentando recuperar o fôlego. Então Lucy abriu a porta do carro, deixando-a balançar nas dobradiças, o vidro quebrado tilintando no para-brisa e nas janelas laterais. O airbag tinha disparado, e a garota estava coberta de pó branco, parecendo um fantasma.

— Ele morreu? — perguntou ela.

— Eu diria que sim — respondeu Zê.

Ele se aproximou do carro e ofereceu a mão a Lucy. Ela a encarou por um instante, como se não tivesse certeza do que era, depois pegou-a e permitiu que Zê a ajudasse a sair.

Simon estava inclinado sobre o capô, mexendo no prisioneiro morto com o pé.

— Que droga de monstros são essas coisas? — perguntou. — Eles se parecem muito com a gente, quero dizer, comigo e com você, Alex. Só que não entraram na faca. O que é impossível.

— Estão cheios de néctar — acrescentei. — Mas não é o mesmo néctar que a gente tomou em Furnace.

— Tem flocos vermelhos — disse Simon, colocando o dedo numa poça daquela sujeira e estudando-a sob a esfumaçada luz do sol. — É como se, não sei... esse troço fosse superforte, ou algo assim, e pudesse transformar as pessoas imediatamente.

— Pois é — respondi. — Aquele que me atacou era o Bodie.

— Bodie? — repetiu Zê, deixando os cantos da boca se curvarem. — Sério?

Assenti com a cabeça, e ficamos em silêncio por cerca de um minuto. Bodie era um Caveira, mas muito gente boa. Tinha nos ajudado a sair da prisão. Vê-lo reduzido a um bicho sem alma, cheio de veneno e totalmente voltado para a destruição, havia sido devastador. Zê deu mais uma olhada no cadáver em cima do capô e, em seguida, lançou um olhar para mim. Parecia prestes a dizer alguma coisa, mas, em vez disso, franziu o rosto e se aproximou.

— Você está bem? — perguntou. — Essa mordida no seu pescoço está horrível.

Levei a mão até onde a criatura na estação tinha me ferido com seus dentes. Não doía — claro que não —, mas mesmo assim fiquei chateado. Era outra cicatriz que ia me lembrar para sempre do que havia enfrentado, e do que tinha me transformado. Zê aproximou seu rosto do meu, examinando o ferimento.

— Estou vendo — disse ele. — Estou vendo néctar na sua pele.

Não fiquei surpreso. Era isso que o néctar fazia: percorria suas veias, cicatrizando feridas e curando a pele dilacerada. Mas era óbvio que Zê havia notado mais alguma coisa. Ele andou até o carro vermelho, estendeu o braço para dentro e arrancou o retrovisor do lugar.

— Olha só — disse ele, entregando-me o espelho. Peguei-o, olhando com relutância para o vidro. O ferimento era pior do que eu pensava, mas tinha mais. Coágulos de néctar estavam agrupados em volta dele, banhados em saliva ressecada. Limpei meu pescoço, mas quando fiz isso vi aqueles finos rastros se moverem, aproximando-se da marca da mordida. Pisquei, tentando focar a visão, e novamente vi pequenas porções de néctar flocado de vermelho desafiando a gravidade e subindo pelo meu pescoço. Com um rosnado passei a manga ali, esfregando cada vestígio de néctar e depois jogando o espelho no chão.

— Que droga está acontecendo? — perguntei, minha pele pinicando só de pensar no que tinha visto. — O néctar não faz isso.

Zê olhou para o espelho quebrado e depois, de novo, para o prisioneiro morto, cuja pele pendia em dobras frouxas, destituída do fluido que a havia inflado.

— Não tenho tanta certeza — disse ele baixinho. — Mas parece que esses garotos, esses prisioneiros, foram infectados pelo néctar.

— Infectados? — disse Simon, aproximando-se de Zê. Lucy estava ali também, ouvindo a conversa com cara de quem acabou de acordar do pior pesadelo e descobriu que ele era real.

— É, infectados — repetiu ele. — Foi por isso que o viking no metrô levou o garoto em vez de matá-lo.

— Quer dizer, para poder soltá-lo aqui? Para que ele infectasse outros?

Zê concordou com a cabeça.

— Os vikings enchem os garotos de néctar, transformam eles em psicopatas, e esses prisioneiros infectados fazem a mesma coisa com as novas vítimas. Aquele rato com certeza estava tentando me morder.

Lembrei-me da maneira como Bodie tentou afundar seus dentes em mim, com néctar vertendo boca afora.

— Não acho que isso tudo seja uma invasão — continuou Zê.

— Então o que é? — perguntou Lucy.

Zê olhou mais uma vez para o meu ferimento, limpando os olhos cansados com o dorso de uma das mãos.

— Acho que é uma peste.


A CATEDRAL DE
SÃO MARTINHO

Ficamos encarando Zê como se ele tivesse enlouquecido; como se tivesse subitamente explodido por causa da tensão. Simon chegou a esboçar um sorriso, balançando a cabeça como quem se recusa a aceitar o que ouve.

— Você perdeu a cabeça, meu caro Zê — disse ele, percorrendo o corpo com as mãos, procurando ferimentos, marcas de mordidas. — O néctar não funciona desse jeito. Ele não é contagioso.

— Não? — perguntou Zê. Ele andou até o carro em que Lucy estava, olhando a arma que o prisioneiro havia usado para quebrar o para-brisa. Fez menção de pegá-la, mas obviamente pensou melhor e se virou para nós. — Como você sabe?

— Dã... — respondeu Simon, fazendo um gesto para seu braço gigante e disforme.

— Mas olhe só o Alex — disse Zê. — Ele está mudando.

Ergui o braço direito. Meus músculos agora estavam tão grandes que a manga do moletom tinha rasgado. Parecia haver alguma coisa se mexendo embaixo da minha pele, vermes negros que surgiam e sumiam antes que eu conseguisse entender o que eram. Mas não sentia dor. Na verdade, sentia-me mais forte do que nunca. Tinha a sensação de que podia enfrentar cada aberração de Furnace só com aquele braço inflado.

— Não importa o que está acontecendo — comecei, trazendo o braço para o peito. Zê me interrompeu:

— Não importa? — perguntou ele, arqueando uma das sobrancelhas. — Olhe em volta, Alex, e me diga se não importa que a cidade esteja tomada por... por sei lá o quê que Bodie tenha virado.

Fiz o que ele sugeriu, não que eu conseguisse enxergar muito com o mar de fumaça ao nosso redor. Ela havia ficado mais espessa, encobrindo tudo, exceto um halo alaranjado e opaco logo acima da linha do horizonte. Senti fumaça presa no fundo da minha garganta, queimando feito ácido, e expeli uma bola de cuspe negro.

— Ele era um rato — disse Simon, e Zê assentiu. Eu não achava. Quer dizer, como Bodie poderia ter se transformado em um rato sem nenhuma cirurgia, sem passar dias na enfermaria, na sala de testes, perdendo lentamente a sanidade enquanto o veneno do diretor funcionava? Agora, porém, não era hora para discussão. O incêndio atrás de nós se espalhava com rapidez, e não havia nem sinal dos serviços de emergência. Se não saíssemos dali logo, iríamos virar churrasco.

Podia ouvir mais gritos ali por perto, guinchos quase cantarolados de ameaçador deleite, disseminados pelo ar imundo. Se Zê tivesse razão e aquilo fosse mesmo uma peste, as ruas seriam tomadas por aqueles monstros.

Mas ele não tinha razão, tinha?

Pensei no novo néctar, nos olhos escarlate de inseto que nadavam dentro dele, no modo como parecia rastejar pelo meu ferimento, como se tivesse vida, e fui tomado por um estremecimento tão forte que quase perdi o equilíbrio.

— E agora? — perguntou Lucy. Ela estava recostada no carro, os braços cruzados sobre o peito e o queixo quase pousado neles. Falava com uma voz monocórdica, como um robô, um tom que reconheci de Furnace; era a voz que se usava quando seu cérebro entrava no modo de sobrevivência, desligando tudo, exceto o mínimo indispensável.

— Vamos continuar — sugeri. — Para o norte, acho. A gente deve prosseguir com o plano e dar o fora daqui. Se seguirmos em frente, vamos ter alguma ideia.

Não era o melhor plano do mundo, mas ninguém tinha um melhor. Com todos suspirando de cansaço e dando de ombros, partimos rua afora, blusas puxadas até a boca para evitar a fumaça. Poderíamos ter pego um carro, havia vários ao redor — demais, até; a rua estava repleta de veículos abandonados, como se tivessem sido colocados ali como obstáculos. Mas seria mais rápido a pé, e até que não demoramos tanto, considerando que tínhamos de parar o tempo todo enquanto aqueles gritos sem fim surgiam e desapareciam de entre os prédios.

A cada passo a fumaça ficava mais fina, e sua sensação corrosiva, mais fraca. Eu examinava as lojas e os escritórios que surgiam da bruma — uma agência de viagens, duas casas de apostas, uma empresa de informática, uma casa de penhores, uma farmácia de manipulação — e me perguntava se seria melhor procurar abrigo. Mas era boa a sensação de estar em movimento, mesmo que não soubéssemos para onde íamos ou o que nos aguardava. Cada passo nos levava para mais longe da Penitenciária de Furnace.

Algum tempo depois chegamos a um cruzamento, os semáforos mudando de vermelho para verde e de verde para vermelho, controlando o tráfego inexistente. Havia veículos ali também, um esportivo amarelo-vômito enterrado na lateral de uma van branca, o para-brisa quebrado, sem motorista.

À frente havia o que parecia ser mais um incêndio, ardendo dos dois lados da rua, espalhando-se para um pequeno parque entre prédios de escritórios, as árvores assemelhando-se a mãos incandescentes suplicando aos céus. Parecia haver silhuetas em meio às chamas, figuras dançando entre os troncos, como se participassem de alguma cerimônia pagã esquisita. Tinha de ser uma ilusão, mas fiquei absolutamente aterrorizado e afastei-me, apenas para ver algo que me assustou um milhão de vezes mais.

À minha esquerda havia outra rua, uma avenida mais larga com flores plantadas no canteiro central e carros abandonados ao longo dela. Estendia-se em um declive, indo até o centro da cidade, em direção aos distantes arranha-céus plantados como sentinelas. E, entre eles, estava o monólito de vidro negro com seu pináculo, o mesmo que eu vira no meu pesadelo.

Meus ouvidos começaram a zunir, e por um instante pude jurar que aquele prédio me procurava, como uma pupila gigante vasculhando a cidade. O zumbido ficou mais intenso, intolerável, como uma britadeira perfurando meu cérebro.

E de repente a paisagem diante de mim mudou, os outros prédios começaram a desabar lentamente, transformando-se em uma nuvem de detritos, como se estivessem sendo demolidos, a cidade reluzindo, avermelhada, enquanto as fundações de aço de cada prédio começavam a derreter, as cinzas incandescentes chovendo para cima, em direção ao céu negro. Tudo o que sobrou foi a torre, e, empoleirada no trono, em seu telhado inclinado, havia uma criatura monstruosa e implacável que uivava em meio às chamas, clamando vitória sobre o mundo.

Então pisquei, e a rua voltou ao normal, com uma aparência inquestionavelmente celestial se comparada à visão. Engoli em seco e meus ouvidos desentupiram, o zumbido desfazendo-se em silêncio. Olhei para os lados e vi os olhos de Zê cravados em mim, mas ele não disse nada. Se àquela altura não estava acostumado a meus momentos esporádicos de loucura, jamais iria se acostumar. Apontei rua abaixo, na direção da cidade, mas foi Simon quem explicou:

— Furnace — disse ele.

— A prisão? — perguntou Lucy.

— Não — respondeu Simon. — O homem. É lá que ele está, naquela torre. — E passou a explicar o que nós dois tínhamos visto.

— Neste caso, meus amigos, sugiro irmos por esse lado — disse Zê, partindo para o lado oposto, que nos levaria para longe da cidade, para longe da torre.

— Essa é a direção errada — disse Simon atrás dele. — Por aí você está indo para o leste.

— Não importa — respondeu Zê. — Dar de cara com a polícia é a menor das nossas preocupações agora. A cidade inteira é uma armadilha mortal. É melhor darmos o fora daqui enquanto ainda dá.

Ele tinha razão, e fiquei contente de virar as costas para o arranha-céu, mesmo que imaginasse poder sentir suas janelas abismais perfurando minha cabeça, verificando onde eu estava, rastreando cada passo meu. Fiz o que pude para ignorar a sensação, concentrando-me na estrada à frente.

Depois de cerca de cem metros, a rua se dividiu em duas. A maior estava fechada por blocos de concreto, com uma van da polícia estacionada atrás deles. A porta do veículo estava aberta, e em seu interior consegui distinguir as cortantes irrupções estáticas de um rádio. Demos um passo à frente, receosos, até que os sons confusos começaram a fazer sentido.

— ...precisamos de apoio imediatamente. Dez-zero-zero, dez-vinte-e-quatro, repito, estamos sendo atacados...

O policial soltou um palavrão e ouvi tiros, o barulho alto demais para a rua vazia em que estávamos. Mais palavrões, e em seguida um bipe ensurdecedor quando o rádio foi cortado. Quase instantaneamente veio mais uma transmissão, dessa vez uma mulher:

— ...de toda parte, não sei... não consigo... — Gritos, e em seguida um uivo alto o bastante para fazer as caixas de som da van vibrar. — O que é isso? Dez... Dez... Ah, que se dane. Apenas venham logo para o Conselho da Cidade; eles estão por toda parte!

Havia mais, só que já andávamos de novo, tomando a via menor, ligeiramente inclinada à esquerda. Tinha mais fumaça ali, que começava com uma bruma fina, a cerca de um metro do chão, ficando rapidamente mais espessa à medida que nos aproximávamos de um carro em chamas. Passamos bem longe dele, temendo que pudesse explodir de repente, e seguimos, apressados, pelo pior trecho de fumaça, vendo uma silhueta crescer à nossa frente. Era enorme e emergia da escuridão como um navio petroleiro aproximando-se para atracar num porto enevoado. Enxuguei as lágrimas dos olhos, e a silhueta assumiu o formato de uma cúpula redonda, que reconheci.

— A catedral de São Martinho — falei, em meio a tossidelas. Já tinha estado ali uma vez, anos atrás, num passeio da escola: as lembranças eram de pedra fria, bancos desconfortáveis e de ter batido num garoto chamado Andrew Spargg na escuridão atrás das pilastras, até que ele me desse o dinheiro que tinha trazido para comprar um suvenir. Senti meu rosto arder, perguntando-me, não pela primeira vez, nem pela última, se eu merecia mesmo ser salvo daquele pesadelo; se não devia apenas ter ficado em Furnace e aceitado minha punição por ter sido quem fui.

A enorme construção barroca ficava no meio de uma praça de paralelepípedos, deserta à exceção do exército de pombos, aglomerado em seu centro, que arrulhava, curioso, para nós. Passamos a cruzá-la, e tínhamos dado uma dúzia de passos quando ouvimos alguém chamar. Congelamos, esperando o pior, mas não havia maldade naquela voz, nenhuma ameaça, só preocupação.

— Por aqui — sibilou a voz, seu sussurro ecoando pelo terreno livre. — Rápido!

A frente da catedral era uma escultura de colunas, fazendo-me pensar numa casinha de palitos de fósforos. Era difícil distinguir algo na escuridão atrás delas, mas, ao observar com mais atenção, consegui discernir uma figura de preto ali de pé, acenando para nós.

— O que será que ele quer? — perguntou Simon. Do nada, uma resposta me surgiu à mente: confusão, mas fiquei calado. A figura deu um passo além de uma das colunas, olhando, inquieta, para a esquerda e para a direita, antes de fazer um gesto ainda mais incisivo para nós. Vi o colarinho branco e percebi que era um padre.

— Ei, garotos, vocês precisam sair das ruas! — gritou. — Não estão sabendo? Venham, aqui vocês são bem-vindos. Estarão seguros na Casa do Senhor. Venham, rezem conosco.

— Esse cara não tem a menor noção... — disse Simon, mas Lucy já corria pela praça sem nem olhar para trás.

— A gente devia ir até lá — disse Zê, observando-a. — É mais seguro do que aqui fora, não é?

— Mas a gente precisa sair da cidade — falei, ainda que não pudesse negar que uma chance de descansar era tentadora. No mais, aqueles sons insistentes ainda vinham de cima dos telhados, urros e grunhidos agudos que me deixavam à beira de um ataque de nervos. Não faria mal nenhum ficar abrigado por uma hora e ter uma ideia melhor do que estava acontecendo.

— Vamos — disse Zê. — Parece seguro mesmo.

— Sei. Até parece que é só com isso que você está preocupado — respondeu Simon com um sorriso malicioso, indo logo atrás. Ele fez voz de falsete, colocando as mãos no coração: — Oh, Lucy, espere por mim, vou proteger você.

Zê virou-se e fez cara feia, o sangue subindo-lhe ao rosto. E, sem que nós mesmos acreditássemos, estávamos todos rindo quando adentramos as portas em formato de ogiva da catedral de São Martinho.


A CASA DE DEUS

A catedral era tão fria e escura quanto eu me lembrava.

O sacerdote — um homem baixo e magro, com cabelo grisalho e barba perfeitamente aparados — conduziu-nos por um pequeno saguão até a nave central da catedral, murmurando no caminho. Lucy estava sob o braço dele, chorando em silêncio, os ombros sacudindo em espasmos.

O interior da catedral mais parecia uma caverna, os imensos vitrais estavam escurecidos, a fumaça do lado de fora parecendo cortinas velhas que só permitiam a passagem de um fiapo de luz suja. Havia duas fileiras de pilastras, uma de cada lado da construção, e, entre elas, filas e filas de bancos de madeira, que faziam meu traseiro ficar anestesiado só de olhar para eles. Sentadas nesses bancos, envoltas em sombras poeirentas, havia algumas pessoas, todas de costas para nós. Algumas inclinavam-se para a frente nos bancos, certamente em oração, ao passo que outras sussurravam.

Reparei que um grupo maior estava aglomerado em torno de alguma coisa no chão do corredor principal, uma figura pequena que eu não conseguia identificar direito. Algumas se viraram ao ouvir nossos passos, o rosto cheio de medo.

— Encontrei mais alguns — falou o padre, sua voz imediatamente engolida pelo imenso espaço, como se a catedral exigisse nosso silêncio. A ideia deixou meus braços arrepiados.

Ele se virou para nós, piscando na escuridão, o sorriso de repente parecendo nervoso. Eu sabia por quê. Nossas roupas cobriam a maior parte das cicatrizes — exceto pelo meu braço enorme —, mas meus olhos e os de Simon deviam estar reluzindo com um forte tom de prata à meia-luz que entrava pela cúpula. Ele engoliu em seco, erguendo a cabeça e apertando Lucy com mais força contra o peito.

— Vocês são filhos de Deus? — perguntou ele. Quase caí na gargalhada, porém consegui me segurar. O ar estava denso por causa do incenso, e o cheiro estava me deixando sonolento, repousando sobre minhas pálpebras e empurrando-as para baixo. — Vocês podem descansar aqui, se forem. Todos os do Seu rebanho são bem-vindos.

Olhei Simon, sem saber o que dizer. Por sorte, Zê interferiu:

— E vi a besta — disse ele, a catedral transformando seu grito num sussurro. — E, ahn... os reis da terra, e os seus exércitos reunidos, para fazerem guerra.

O rosto do padre se abriu, e ele nos estendeu umas das mãos que envolviam Lucy, como o Papa teria feito com seus fiéis. Lancei um olhar para Zê, e ele retribuiu com um sorriso envergonhado. Nem precisava me explicar que tinha ouvido aquilo num dos documentários que costumava ver com os pais.

— Apocalipse, capítulo dezenove, versículo dezenove. — O padre ficou radiante. — Você é bem-vindo, meu filho. Vocês são todos bem-vindos. Venham rezar conosco.

Ele nos levou em direção ao grupo de pessoas. Contei sete e, à medida que me aproximava, percebi que a silhueta no chão era a oitava. Uma criança que gemia baixinho, contorcendo-se numa cama improvisada, coberta por um mar de casacos. Seu rosto tinha um tom doentio de amarelo e estava imundo, com linhas escuras, como uma pintura de guerra, estendendo-se do pescoço à testa.

— Sentem-se onde quiserem — disse o padre, deixando Lucy num banco. Ela colocou a cabeça entre as mãos, encarando a Bíblia na prateleira à sua frente, o corpo balançando de leve para a frente e para trás. — Quanto mais vozes tivermos, melhor Ele vai nos ouvir.

— Tudo bem com ele? — perguntou Zê, indicando com a cabeça o garoto no chão.

— Não sei — respondeu um rapaz de terno. Estava ajoelhado ao lado do menino, segurando a mão dele com as suas, e ergueu o olhar para nós através de um espesso par de óculos. Reparei que o garoto usava um suéter verde. Não parecia um prisioneiro. — Chamamos uma ambulância.

— Boa sorte — disse alguém. Uma mulher, três fileiras adiante, virou o rosto por cima do ombro, olhando-nos com intensidade. Reparei que ela usava chapéu e uniforme e por um instante achei que fosse policial, antes de perceber que devia ser apenas uma segurança. — Está no rádio: as linhas de emergência caíram. Estamos por conta própria.

— Temos Deus — interrompeu o padre, mas a mulher dispensou o comentário dele com um gesto de mão impaciente, voltando a atenção para o altar. Os outros adultos, um misto de homens e mulheres, a maioria mais velhos, na faixa entre quarenta e cinquenta, andavam desconfortavelmente enquanto o garoto se contorcia e gemia abaixo deles. Fiz uma contagem rápida. No total, éramos dezoito.

— Como estão as coisas lá fora? — perguntou o homem de óculos. — Viram algo?

— Vimos muita coisa — respondeu Simon. — Ela tem razão, não tem polícia na rua. — Tentei não pensar no policial que tínhamos visto colocando uma arma na cabeça e estourando os próprios miolos. Com certeza não tínhamos visto ambulância nenhuma.

— O que aconteceu com ele? — insistiu Zê, abrindo caminho pela pequena multidão e ajoelhando ao lado do garoto.

— Não tenho certeza — respondeu o homem de óculos. — Eu estava a caminho do trabalho quando tudo começou. Ele estava na rua Slate, logo depois de uma esquina. Havia sangue por toda parte; achei que estivesse morto. — Sua voz tornou-se um sussurro. — O sangue era dos pais dele, que tinham... que tinham... — A voz ficou entalada na garganta, e achei que ele fosse vomitar. — Não consegui ligar para o número de emergência, então trouxe ele aqui. Está vivo mas ferido, em estado grave.

Ele estendeu a mão, retirando o casaco marrom de lã que cobria o pescoço do garoto, e senti meu coração descendo até os pés. Havia ali uma marca de mordida, inconfundível mesmo à luz pálida da catedral. Podia distinguir a marca dos dentes, furos que se estendiam da escápula à traqueia, ornados com manchas arroxeadas. E aquilo que achei que fosse sujeira era algo ainda pior. Aquelas trilhas negras eram néctar, pulsando sob a pele dele, espalhando-se por seu corpo. O garoto parecia ficar ansioso sob nossos olhares e tentava esconder-se ainda mais em sua cama improvisada.

— Ah, meu Deus — disse Zê, ganhando um olhar enviesado do padre. — Ele foi mordido.

— Mordido? — perguntaram diversos adultos ao mesmo tempo. O homem de óculos concluiu: — Pelo quê?

Zê ignorou a pergunta, levantando-se e se aproximando de mim e de Simon.

— Estou dizendo — continuou ele, mais baixo que antes, inclinando-se para que ninguém além de nós o ouvisse. — É uma peste, e está se espalhando. Se você for mordido, vira um deles.

— Fala sério, Zê — respondeu Simon. — A gente não está falando de zumbis. Isso é loucura.

— Com licença — disse o padre, dando um passo mais para perto. — Você sabe de alguma coisa? Qualquer informação seria útil neste momento.

Ficamos calados, sem saber o que dizer. Mas Lucy parecia estar acordando de seu devaneio, observando-nos através de olhos que refletiam o mosaico de luz dos vitrais.

— Eles vieram da prisão — ela murmurou. — São fugitivos. Eles sabem o que está acontecendo.

O padre recuou, apoiando-se em um banco para não cair. Diversos adultos também recuaram um passo, alguns chegando a soltar gritos exagerados de aflição. O restante pareceu estar se preparando para uma luta, com olhos sem brilho e punhos brancos por causa da força que faziam para mantê-los fechados.

— É verdade? — perguntou o padre, fazendo o sinal da cruz sobre as vestes. — Vocês são de Furnace?

Fiz que sim com a cabeça, preparando-me para correr. Francamente, não achava que aquele bando de coroas fosse ficar contra nós, mas sabia como eram as pessoas. Você tira as coisas que elas acham normais, e elas logo enlouquecem. É como tirar as fundações de uma casa e vê-la desabar. Se a gente pensar bem, somos todos insanos, só não temos consciência disso. Até a hora em que ganhamos um empurrãozinho na direção errada.

— Mas eles são gente boa — continuou Lucy, percebendo a tensão cada vez maior. Ela olhou para Zê e ofereceu-lhe um esboço de sorriso que quase o fez levitar. — Parecem ser do bem. Pra falar a verdade, eles me salvaram. Eu estaria morta agora se eles não tivessem aparecido. E esses três parecem saber o que está acontecendo, por mais maluco que pareça. Vocês deveriam ouvir o que eles têm a dizer.

O grupo deu a impressão de relaxar, ainda que os corpos tenham permanecido rígidos, as bocas, um pouco mais do que fendas. O padre se recompôs, alisando a batina e olhando para Zê.

— É verdade? — perguntou ele. — Vocês sabem o que está acontecendo?

Zê balançou a cabeça.

— Não tudo, nem perto disso — respondeu. — Vou contar o que a gente sabe, mas primeiro o mais importante. — Ele apontou o garoto no chão. — Vocês precisam amarrar ele, e amarrar muito bem.


PAUSA PARA O
BANHEIRO

Achei que enfrentaríamos uma revolta de primeira grandeza. No instante em que Zê deu sua ordem, o homem de óculos ficou de pé, os punhos se fechando.

— Nem ouse tocar nele — avisou o homem, a voz tão grave e rouca que soou demoníaca. Seus olhos também estavam reluzentes, de um jeito que me fez pensar no demônio. Só que eu já tinha estado no inferno; conhecia demônios de verdade. — Juro que...

Ele não terminou. Não precisava. Sua linguagem corporal falou por si só. Zê levantou a mão, pedindo que o ouvissem.

— Não estou dizendo para feri-lo — disse ele, a voz calma. — Mas, acreditem, se ele foi mordido, vai acontecer uma coisa com ele. Ele vai... — Zê olhou para Simon e depois para mim, implorando ajuda.

— Ele vai virar um monstro — disse Lucy, levantando-se e apoiando-se na extremidade de madeira do banco. — Tem uma coisa nele... Como é que vocês chamam mesmo?

— Néctar — falou Zê.

— Néctar — repetiu Lucy, agachando-se perto do garoto. As pessoas do grupo protestavam; os que estavam sentados começaram a vir para o corredor ouvir nossa conversa. Lucy falava um tom acima das observações sussurradas entre eles. — Sou enfermeira. Bom, estou estudando para ser. Não teria acreditado se não tivesse visto, se uma pessoa exatamente como ele não tivesse tentado me matar. Mas é verdade. Se esse tal de néctar está no sangue dele, ele vai se tornar um monstro. Vai ficar agressivo, virar uma fera. Vai perder a cabeça.

— Olha — disse o homem —, eu não sei quem você é, mas o que está dizendo não faz sentido. Ele está em choque, tem um ferimento sério no pescoço e precisa de repouso, calor e água. Vocês não podem amarrá-lo. Eu proíbo.

— Pode proibir quanto quiser — respondeu Lucy. — Se não prenderem o garoto, eu vou embora daqui. Se quer mesmo saber a verdade, bote a cara pra fora e veja o que está acontecendo. Tem garotos por aí que... — Ela parou um instante para estender a mão e pressioná-la contra a bochecha do garoto. — Tem algo acontecendo com alguns garotos por aí. Eles estão arrasando a cidade.

— Comece do início — sugeriu o padre. — Por favor.

— Tem certeza? — perguntou Zê. — É uma longa história.

— Pelo que vejo, ainda vamos ter que esperar muito até que alguém venha nos resgatar — respondeu o padre.

Zê abriu a boca, mas, antes que ele pudesse dizer algo, interrompi:

— Posso usar o banheiro? — perguntei. O padre fez que sim com a cabeça, apontando para trás de si.

— Ali, descendo os degraus para a cripta. — Agradeci e o ouvi gritar: — Por favor, não roube nada da lojinha, nem da cantina!

— Também preciso ir! — gritou Simon, trotando para me alcançar. Zê tentou dizer algo para nós, mas o grupo o havia cercado e insistia para que continuasse. Deixamos ele ali, espremendo-nos entre os últimos retardatários e seguindo pela nave até o grande espaço aberto sob a cúpula.

Olhei para cima enquanto andávamos, mas o teto em formato de ogiva perdia-se na penumbra. Era fácil acreditar que havia criaturas ali, com seus rostos de gárgula, agarrando-se às calhas, prontas para despencar lá de cima e se alimentar, por isso baixei a cabeça, concentrando-me no chão. Demoramos um pouco até achar a entrada da cripta, e, quando achamos, senti a garganta fechar.

— De novo no subterrâneo — disse eu, enquanto Simon se abaixava para passar pelo arco de pedra e caminhava pela estreita escada em espiral. Ele soltou um riso sem nenhum traço de humor, deixando uma das mãos no pilar do centro da escada enquanto ia à frente. Embrenhamo-nos cada vez mais, a escada tortuosa parecendo descer indefinidamente. Mas, bem na hora em que a claustrofobia passou a me dominar, chegamos a um corredor iluminado e arejado. À esquerda havia duas portas, marcadas com as palavras HOMENS e MULHERES.

Simon foi para o masculino, abrindo a porta para mim. Havia dois mictórios e ocupei um, surpreso quando ele se espremeu ao meu lado.

— Hum... — falei, subitamente envergonhado.

— Quer que eu use o cubículo? — perguntou ele ao começar a urinar, dando um sorrisinho de lado. — Tarde demais. Vamos lá, não fique tímido. A menos... — Ele se inclinou, chegando ainda mais perto. — O diretor não experimentou com o seu “você sabe o quê”, experimentou?

— Não! — retruquei, a mera ideia acabando com qualquer esperança que eu tivesse de me aliviar. Esperei Simon terminar antes de tentar relaxar, o som da torneira aberta ajudando um pouco.

— Uau — disse Simon. — Água quente. Lembra disso?

Pus as mãos debaixo da torneira, a sensação da água quente na minha pele trazendo memórias demais — chuveiradas em casa depois do futebol, lavar os pratos depois do jantar. O sentimento de perda foi tão avassalador que meu rosto se contraiu, com força suficiente para doer. Simon devia ter reparado, porque se afastou com uma expressão de desconforto, mas então pensou melhor e me deu dois tapinhas no ombro.

— Vamos — disse ele. — O coitado do Zê deve estar precisando de ajuda. Você sabe como ele fica quando está estressado.

Voltamos pela escada em espiral, começando a subir, mas, depois de mais ou menos uma dezena de passos, Simon parou e virou o rosto para mim.

— Alex — ele sussurrou —, como foi que o negócio ficou ruim assim tão rápido?

As paredes de pedra nos comprimiam, prendendo-nos numa bolha de escuridão que nos dava a sensação de proteção, não de ameaça.

— Não sei — respondi.

— É que... — Simon parecia engasgar com as próprias palavras. — Como foi que Furnace conseguiu trazer seu exército para a cidade assim tão rápido? Quero dizer, os capangas dele estavam aqui quase na mesma hora em que a gente saiu.

— Ele sabia da nossa fuga — concluí, e Simon deu um tropeção. — O diretor contou pra ele. Lembra do telefonema? Foi por isso que Furnace mandou aqueles dois vikings para a prisão; foi assim que ele teve tempo de preparar o resto.

Simon parecia inseguro e precisou de um empurrãozinho meu para soltar o que ainda estava pensando.

— É mais do que isso. Na visão, lá no metrô, ele disse que tínhamos obrigado ele a iniciar sua guerra hoje, certo?

Fiz que sim, tentando não pensar no que eu tinha visto depois de o viking me morder, naquilo que Alfredo Furnace me dissera. Simon arrastou o pé no chão, desconfortável, e em seguida me encarou.

— Essa fuga, a gente aqui fora. Não foi um golpe para o Furnace. Era exatamente o que ele queria. E não acho que a gente tenha fugido... — Ele deixou a frase no ar, e de repente o silêncio no fosso da escada foi substituído pelo rugido de pulsação nos meus ouvidos, assim que percebi o que ele queria dizer: — Acho que ele deixou a gente sair.

— Impossível! — bradei, balançando a cabeça e lembrando de tudo o que a gente tinha enfrentado para abrir caminho em nossa fuga da prisão. Não havia como Furnace ter planejado tudo aquilo. — Por que ele nos deixaria sair, só pra tentar nos capturar de novo?

— Ele não está tentando nos capturar — disse Simon. — A polícia com certeza está, mas Furnace está tentando nos transformar. Ele quer a gente aqui fora, destruindo o mundo.

Eu ainda balançava a cabeça, mas era só olhar para as ruas da cidade para concluir qual era a verdade.

— Não — grunhi, empurrando Simon para o lado e quase tropeçando nos degraus. — Impossível. Estamos errados. Furnace é louco. Perdeu a cabeça. Os dois perderam, ele e o diretor. Mas o exército está aqui agora. Vão dar um jeito nisso. Nós só precisamos continuar vivos.

— Mas eles não sabem o que vão enfrentar — disse Simon. — Se Furnace encheu a cidade de vikings; se os ratos dele estão tomando as ruas, infectando a todos com suas mordidas, o exército vai cair numa emboscada. Os soldados vão ser devorados aqui.

Não acho que ele estivesse falando literalmente, mas sei que nós dois tínhamos a mesma imagem na cabeça. Simon tinha razão. Os ratos — esses dessa nova geração — eram velozes e furiosos, e aparentemente seu número só aumentava. Atacavam sem piedade, sem hesitação, e as vítimas que não morriam tinham uma bela chance de se transformar em aberrações sanguinárias. Pensei no rosto daqueles soldados que tínhamos visto na televisão, em como alguns deles pareciam jovens. Não sabia como o néctar funcionava, apenas que o diretor tinha me dito que os adultos não conseguiam suportá-lo. Mas qual era a idade de corte? Dezesseis? Dezoito? Vinte?

— Ter vindo pra cá foi um erro — disse Simon, ao atravessarmos o arco que dava para a nave central da igreja. — A cidade vai estar tomada; não vai ter onde a gente se esconder. Devíamos pegar o Zê e a Lucy e sair daqui antes que...

— Ninguém vai sair daqui! — As palavras foram cuspidas das sombras, e ambos franzimos o rosto. O padre estava ali, banhado em trevas. — Nosso único plano é a oração; nossa única escapatória é Deus. Estamos no Armagedom, a última batalha do bem contra o mal antes do Dia do Juízo. Precisamos crer, meus filhos. E precisamos de sacrifício. Ah, sim. Precisamos de sacrifício.

Troquei um olhar com Simon enquanto andávamos rumo à porta, um olhar que ecoou em suas sobrancelhas franzidas. Lá fora era o inferno, mas dentro da catedral uma tempestade se formava. Dava para sentir.

E eu não estava gostando.

Nem um pouco.


ENCRENCA

Agora estava mais escuro na catedral, e precisei de um minuto para entender o porquê: as imensas portas frontais do prédio, aquelas pelas quais tínhamos entrado, estavam fechadas. Havia correntes em volta dos puxadores, e cadeados que combinavam mais com uma masmorra medieval.

— Acho que não vamos poder sair — sussurrei para Simon, que vinha em meu encalço. O padre estava logo atrás, os olhos parecendo sóis ardentes no momento em que dobrou o último corredor. Reparei que a faixa branca de seu colarinho tinha se afrouxado, dobrada como uma gravata-borboleta defeituosa.

— Juntem-se ao rebanho — disse ele, e era uma ordem, não havia a menor dúvida. Qualquer sinal da afabilidade e do zelo que havia demonstrado ao chegarmos já tinha sumido. Ele nos conduziu pela área livre sob a cúpula, de volta aos seus fiéis. Eles estavam aglomerados e ainda mais apinhados agora, observando nossa aproximação com expressões distintas, todas ilegíveis diante da escuridão cada vez maior.

O garoto não tinha sido tirado dali, mas fiquei aliviado por ver que um de seus braços fora preso à perna de um banco por uma algema de plástico. A segurança estava diante dele, uma das mãos gorduchas pousada sobre a arma no coldre. O homem de óculos estava de novo ajoelhado, segurando a cabeça do garoto e lançando um olhar furioso para Zê, que estava sentado algumas fileiras atrás, com Lucy ao lado. Fui direto falar com Zê, pedindo licença enquanto passava em meio ao grupo.

— Obrigado — disparou ele, curvando para a frente. — Vocês me deixaram aqui contando a história sozinho!

— A gente só teria piorado tudo! — respondi. — Você fala bem. Além disso — cutuquei-o —, tinha a Lucy aqui pra te ajudar.

O cotovelo dele me cutucou de volta com força, nas costelas, mas ele não conseguiu esconder completamente o sorriso enquanto se recostava de novo no banco. O padre estava de pé perto do altar e se ajoelhou com tanta veemência que deu a impressão de estar prestes a fazer exercícios aeróbicos. Suas preces abafadas flutuavam até nós, palavras truncadas que não significavam nada para mim.

— Eles acreditaram em você? — perguntou Simon.

Zê estudou o grupo, em seguida olhou para Lucy.

— Não tenho a menor ideia — ela respondeu por ele. — Eu mesma tenho dificuldade para acreditar em tudo o que vocês falaram, mesmo tendo visto aquelas coisas.

— Bem, existe uma bela chance de que eles a vejam em primeira mão também — falei, apontando com a cabeça para o garoto no chão. O rosto dele estava ficando mais escuro, como uma flor morta apodrecendo ao sol. — Como ele está?

— Piorando a cada segundo — respondeu Zê.

Senti um hálito quente na nuca e, virando-me, vi a segurança. Ela era baixinha e atarracada, a expressão ameaçadora, embora tivesse um traço de afeto no olhar.

— Está melhor? — perguntou ela. Demorei um instante para perceber que ela falava de nossa ida ao banheiro, e assenti com a cabeça. — Que bom, porque estou com uma sensação de que as coisas vão ficar meio esquisitas. — Ela se inclinou para a frente, sussurrando em tom conspiratório: — Aquele homem não é padre.

— Sério? — perguntei, talvez mais alto do que devia.

— É o zelador — continuou a segurança. — Às vezes eu faço a segurança da igreja no turno da noite; já o vi por aqui, mas de macacão e carregando um rodo. Se for pra levar a sério o que ele fala na sala dos funcionários, é um cara radical e inflexível, um pirado que só fala na Bíblia. O bispo costuma vir nessa hora, mas alguma coisa me diz que hoje ele não virá. Ele mora no palácio; jamais vai conseguir atravessar a cidade, não agora.

— Então, o que é que ele está fazendo? — perguntou Zê, encarando o homem de batina preta. A guarda jogou os vigorosos ombros para trás, ficou de pé e massageou a lombar com as duas mãos.

— Não faço ideia, e é isso que me preocupa. Ele começou a falar desse negócio de Armagedom, Apocalipse, ou sei lá o quê. O problema é que esses aí — ela fez um gesto apontando com as mãos os fiéis espalhados pela igreja — são todos uns beatos loucos, e ele está botando minhoca na cabeça deles. A maioria veio aqui pra rezar logo cedo no domingo; as portas da catedral nunca ficam trancadas.

— Mas agora estão.

Ela fez que sim, o queixo dobrando de tamanho.

— A gente ouviu uns barulhos lá fora enquanto vocês estavam se resolvendo no banheiro. Não sei o que era, mas parecia que era hora do lanche no zoológico. — Ela mexia no coldre, abrindo-o e fechando-o com um pequeno estalo. — Também vi um negócio lá na praça. Parecia... Bem, sei lá o que aquilo parecia.

— Um viking — concluiu Zê. — Deve ter sido um dos que vimos em Twofields.

— Concordamos que seria melhor trancarmos tudo — disse a guarda. — Se o que você falou é verdade, lá fora só deve ter encrenca. — Ela olhou na direção do padre, que continuava prostrado no altar. — E aqui dentro também, se quer mesmo minha opinião. Sei que estavam na prisão, mas vocês parecem gente boa. Eu mesma nunca fui a favor daquela maldita penitenciária. Só tomem cuidado, hein? Pra mim, não tem lugar mais perigoso do que uma igreja na véspera do Fim dos Tempos. Ainda mais se as pessoas acham que você está do lado errado.

Uma sombra flutuou sobre os bancos, uma silhueta feita de luz e cor que foi do altar ao portão num piscar de olhos. Todas as cabeças dentro da catedral se ergueram a tempo de ver o vulto passar pelos vitrais, sumindo rápido o bastante para não deixar nada além do barulho de pés contra o piso e um uivo agudo que sumiu no silêncio.

— Acha que eles sabem que estamos aqui? — perguntou Simon. Ninguém respondeu, mas eu achava que não. Se aquelas aberrações tivessem alguma ideia de que havia corações humanos bombeando sangue quente na catedral, chegariam num instante. Provavelmente estavam só usando o prédio como ponto de vigia. Se ficássemos quietos, talvez nos deixassem em paz.

Mas, do jeito que as coisas pareciam estar indo, ficar em paz não era uma opção.

— Agora não é hora de conversa! — bradou o padre-zelador do altar, as mãos erguidas bem alto, suplicando ao teto invisível da catedral. — Agora é hora de oração. Clamemos ao Senhor para que nos leve em Seus braços, para que nos proteja da Grande Tribulação. Juntos vamos oferecer-Lhe um sinal de nossa fé; juntos ascenderemos a Seu reino.

— Não vou ascender ao reino de ninguém — murmurou Simon.

Mas a maior parte do grupo estava sentada nos bancos ou de joelhos no corredor central, as bocas sincronizadas com a do padre enquanto ele recitava alguma parte da Bíblia. Sua voz ia ficando mais esganiçada a cada verso, com gotículas de cuspe voando da boca, os olhos ainda mais e mais arregalados, sem piscar. Ouvi um arranhar acima de nós, como se algo corresse pelo telhado com rapidez.

O garoto no chão piorava a cada segundo. Ele começou a tossir, e o homem de óculos ergueu a cabeça dele bem na hora em que uma torrente de líquido negro irrompeu de sua boca. Ela se espalhou pelos ladrilhos irregulares, parecendo agitar-se e contorcer-se como uma poça repleta de besouros, os flocos vermelhos cintilando. A garganta do garoto havia inchado e ficado do tamanho da sua cabeça, e a respiração estava rouca e ofegante. As mãos também estavam maiores, projetando-se da pilha de casacos como luvas de borracha cheias de piche. Ele teve um espasmo, forte o bastante para puxar o banco em sua direção. A algema de plástico cortou seu braço estufado, fazendo fluir mais um filete de néctar.

— Será que você pode afrouxar isso? — perguntou o homem de óculos, mas a segurança apenas balançou a cabeça em negativa. Não se podia culpá-la. Aqueles bancos eram pesadíssimos, e era necessária uma força descomunal para movimentar um deles.

Outra silhueta pousou no beiral da janela, escorregando um instante enquanto tentava se equilibrar. Alguém na catedral gritou, mas uma mão abafou o som antes que ele realmente saísse. Ficamos todos ali, tão imóveis quanto as estátuas ao redor, até que, com um rugido gutural, a silhueta se lançasse do beiral de volta para a rua.

Quase imediatamente, as orações esganiçadas recomeçaram, ensurdecedoras depois do silêncio.

— Os dois foram jogados vivos no lago de fogo que arde com enxofre!

— Ei! — silvou a segurança, disparando a interjeição contra o padre. Ele não deu o menor sinal de ouvi-la, gritando com ainda mais força enquanto falava de um cavaleiro branco e uma espada dourada. Ela tentou outra vez, agora mais alto: — Ei, você aí! Cala a boca um instante, ou essas coisas vão ouvir a gente!

O padre continuou falando, cada sentença concluída com um coro de “améns” de seu rebanho. O zum-zum das vozes crescia como uma maré, enchendo a catedral de um ruído límpido, ameaçando transbordar das janelas para as ruas lá fora.

— Pare! — continuou a segurança, a própria voz dela agora alta demais. — Pare, por favor. Você é só o varredor, pelo amor de Deus!

Ao ouvir isso, os olhos do homem — tão grandes, tão imóveis que poderiam ter pertencido a um cadáver — giraram em suas órbitas secas, fixos na mulher. Não havia expressão em seu rosto, mas, pela maneira como os músculos do maxilar dançavam e os tendões do pescoço se evidenciavam, pude perceber a fúria da insanidade e do delírio prestes a explodir.

— Não — disse ele. — Sou mais que isso. Sou um servo de Deus, chamado aqui hoje para conduzir o rebanho Dele ao novo mundo. Ele me nomeou seu mensageiro terreno, e por mim todos vocês serão salvos.

— Meu Deus, quem esse maluco te lembra? — perguntou Simon. Era verdade. O que ele estava dizendo agora poderia ter saído direto da boca do próprio Alfredo Furnace, sem toda aquela conversa religiosa, claro. O padre voltou seu olhar lunático para nós.

— Nem todos podem ser salvos — ele revelou, a voz aguda e sem firmeza, como a de uma criança. — O Dia do Juízo Final está chegando; o Senhor está nos testando, pois só os mais fiéis passarão pelo Vale da Morte.

— Ele nem sabe do que está falando — disse Zê. — Você pode dar um jeito nele, que tal?

— Posso, sim — respondeu Simon, arrastando-se para a beirada do banco. O padre apontou para nós com seu dedo ossudo.

— Ele está nos testando com esses demônios! — gritou ele. — Os filhos do demo que hoje mesmo se libertaram das entranhas do inferno. Eles não são parte do Seu rebanho; não foram destinados ao Reino da Luz. Vamos prendê-los, meus filhos. Porque só derrotando as legiões da Besta seremos considerados dignos.

— Ai, caramba! — disse Zê, apoiando-se no banco da frente para ficar de pé. — Lá vamos nós de novo.

— Você é maluco! — gritei para a multidão. — Não somos demônios. Somos garotos, iguais aos filhos de vocês!

Porém, meus olhos prateados deviam ter uma aparência bem profana na tênue luz da catedral, porque as pessoas já se levantavam, vindo pelo corredor. Cerrei os punhos. Não queria ferir um bando de aposentados, mas, agora que as portas estavam fechadas, não havia nenhum outro lugar para ir.

A promessa de violência ativou o néctar dentro de mim, meu corpo se transformou num motor prestes a ser posto em movimento. Eu lutava contra aquilo, respirando fundo, tentando ficar calmo, mas veias negras já pulsavam no canto dos meus olhos, o bom senso e o autocontrole ficando de lado à medida que o veneno guiava meus pensamentos rumo ao homicídio.

Fechei os olhos com força, o contorno da enorme cruz no altar gravado na minha retina. Ele não sumia, mas se expandia contra o fundo de minhas pálpebras, metamorfoseando-se de um crucifixo naquilo que parecia uma torre. Sim, era uma torre. Assumia a forma de um negativo fotográfico sendo revelado: janelas, portas e um pináculo lentamente surgindo. E, em volta da torre, a noite parecia tremular, centelhas dançando como se o mundo estivesse em chamas.

Demônios?, disse uma voz, aquele mesmo sussurro de força ancestral, de abalar a Terra. Alfredo Furnace, outra vez na minha cabeça. Mostre a ele a verdade. Mostre a ele que você não é uma criatura do deus dele, nem do demônio dele. Mostre que você é obra do homem, a criação de um gênio, um dos soldados da Pátria que agora reclama esta era para si.

Percebi que resmungava, cada palavra alargando um pouco mais a fenda no meu crânio. Abri os olhos e vi a carne do meu braço começar a estufar ainda mais, o néctar que assolava minha mente também devastava meu corpo.

— Não — murmurei, o veneno subindo até minha garganta, até minha boca, quase me sufocando. Cuspi um bocado, sem me importar com a trajetória do dejeto. A imagem ainda estava lá, a torre sobreposta à realidade como uma transparência. E eu a vi de novo, aquela criatura empoleirada no pináculo, uma fera que poderia ser um demônio, ou talvez um deus, uivando para as chamas, preparando-se para lançar um verdadeiro pesadelo sobre o mundo.

Vamos, Alex, mostre a esse homem ridículo seu futuro. Será que as palavras estavam vindo da criatura que eu via, aquele gigante de carne retorcida? Será que aquela coisa realmente era Alfredo Furnace? Era impossível dizer. Pegue-o pela garganta e mostre-lhe a verdadeira religião — não uma divindade benevolente, mas uma nova raça.

Outro som saiu da minha boca, agora mais um rugido do que um resmungo. Senti meu novo braço coçar e arranquei a manga rasgada do moletom, para poder enfiar os dedos na pele inchada de secreção. Ela estava assando, tão quente que parecia ter colocado a mão numa grelha. Afastei-a, meu rosto se franzindo numa careta de pura confusão.

— Vejam o verdadeiro corpo deles! — cuspiu o padre, apontando meu braço, quase dando um pulinho no altar. — São demônios. Toma teu filho, Isaque, ofereça-o em holocausto. Assim está escrito, e assim será. Queimem-nos e conquistem seu lugar ao lado Dele.

— Mais um passo, e vou estourar os miolos de vocês! — gritou a segurança. Seu revólver estava fora do coldre, e ela tremia tanto que mais parecia estar num trem-fantasma de parque de diversões. O grupo deve ter percebido o medo dela, porque a maioria continuou a avançar: homens e mulheres que até o dia anterior provavelmente eram pais amorosos, que aninhavam seus netinhos, mas agora traziam aquele brilho psicótico no olhar. — Para trás, estou avisando!

Vi um homem atrás dela — de paletó de tweed, cabelos brancos —, mas não percebi sua intenção até que fosse tarde demais. No instante em que ele ergueu o candelabro eu já corria, saltando por sobre um banco e estendendo a mão para bloquear o golpe. Fui lento demais, o imenso candelabro de prata bateu na cabeça da guarda, seu quepe despencou. Ela tombou como um pino de boliche, uma expressão de surpresa que era quase cômica estampada no rosto. O homem tirou a arma da mão dela antes que fosse ao chão. Ele me viu chegando e apertou o gatilho, o tiro zunindo por cima da minha cabeça. Caí de joelhos com as mãos erguidas, rendendo-me. Àquela distância, se ele disparasse de novo, não iria errar.

Durante os poucos segundos que o som do disparo demorou para desaparecer, ninguém se mexeu. Então o padre veio do altar, silvando suas ordens por entre um sorriso idiota.

— Porém, chegou a hora de agir. Vamos honrá-Lo, Senhor. Vamos sacrificar em Seu nome.

Ele ergueu as mãos para os céus, a espuma transbordando dos cantos de sua boca.

— Vamos queimá-los.


SACRIFÍCIO

Nunca achei que fosse haver um momento em que iria querer estar de volta em Furnace.

Mas, ao ajoelhar no chão e observar aquele grupo se aproximar, o medo e o desespero transformando aqueles rostos em máscaras cruéis, ao encarar o homem que mantinha uma arma apontada para mim, sabendo que ele me mataria a um simples movimento, eu me vi querendo exatamente isso.

Não que eu fosse estar mais seguro na prisão. Claro que não — aqueles homens e mulheres eram só isto: homens e mulheres. Eram mais fracos do que eu, mais lentos do que eu. Não eram nem de longe tão perigosos quanto os ratos e os vikings à espreita nos túneis que ficavam sob a área dos prisioneiros em geral. Não eram nem de longe tão maléficos quanto os Ofegantes com suas lâminas imundas. E todos teriam saído correndo, ou caído mortos, vitimados por um ataque do coração, se tivessem apenas visto o diretor.

Não, era outra coisa que me fazia rezar para estar em Furnace, rezar para estar de volta em minha cela. Porque lá, em um lugar tão profundo que grito nenhum jamais chegaria à superfície, eu tinha a lembrança do mundo como um local em que coisas boas poderiam acontecer. Ainda que houvéssemos sido enterrados vivos, conseguia imaginar a vida aqui em cima, as pessoas cuidando da própria vida, sorrindo, alegres. Mesmo que houvesse um pequeno canto da Terra apodrecendo em loucura e derramamento de sangue, a vida ainda prosseguia acima de nós, ela sempre prosseguiria.

Agora, porém, não havia lugar seguro. Não havia mais sorrisos aqui em cima, nem alegria. O núcleo funesto tinha se espalhado para fora, infectando tudo. Isso tinha acontecido havia apenas algumas horas e aquelas pessoas já estavam destruídas, sem possibilidade de conserto. Tinham tido um vislumbre do inferno do outro lado da janela, e a sanidade delas havia se partido ao meio, como um galho seco. E não conheciam sequer metade da história, não ainda. O que será que fariam quando enfim saíssem da catedral e vissem as ruas tingidas de vermelho, os monstros que transformavam a cidade em pó de ossos?

Subitamente me dei conta de quanto isso seria fácil para Alfredo Furnace, se o que ele dissera era mesmo verdade. Tudo que ele tinha de fazer era acabar com esta cidade, e o câncer do medo se espalharia. O mundo desabaria por conta própria.

— Prendam-nos! — ordenou o padre, avançando alguns passos. Ele se aproximou do garoto no chão, o rosto do menino parecendo ter sido grosseiramente talhado em mogno, coágulos como nós de madeira vertendo seiva negra. O homem de óculos acocorou-se sobre ele, olhando-nos com cara de quem pedia desculpas. Conhecia aquele olhar: o olhar que dizia que estava do nosso lado, porém temeroso demais para fazer qualquer coisa. Eu mesmo já havia exibido aquele olhar várias vezes. — Tragam as lamparinas.

Simon rosnou e avançou na direção do padre, mas o velho de paletó de tweed ergueu a arma para o teto e disparou de novo. Ouvi a bala ricochetear no piso, lascas chovendo sobre os bancos.

O garoto no chão reagiu ao tiro, os olhos abrindo-se de repente, poços sem fundo nem cor. Ele encarava o teto, os lábios se afastando e revelando dentes manchados, as costas se arqueando como se estivesse com muita dor.

O cano fumegante virou-se para Simon, imobilizando-o de imediato. Estávamos todos de pé no corredor central, o homem armado mais perto das portas, o resto do grupo aglomerado atrás do padre, e nós quatro entre eles.

— O tempo é curto — disse o padre. — Precisamos exorcizar os espíritos desse garoto, matando aqueles que produziram a possessão.

— Isso não vai ser necessário — explicou Zê, a voz trêmula. — Não somos demônios.

— Você e a garota podem ficar de fora — disse o padre. — Os olhos de vocês não brilham com a luz do demônio. A alma de vocês pode ser salva.

Zê fez menção de responder, mas Lucy pegou-o pelo braço, afastando-o das pessoas. Ele olhou para mim, os braços erguidos, articulando com os lábios: O que é que eu faço? Balancei a cabeça, avisando-o para ficar de fora. Então Simon e eu nos entreolhamos. Deixem-nos chegar perto o suficiente, aí acabamos com eles. Fechamos nossa posição, ficando ombro a ombro, como já havíamos feito tantas vezes.

Uma senhora mais idosa tinha corrido até o altar para pegar uma lamparina cerimonial. Ela voltou com a lamparina, entregando-a ao padre. Ele se aproximou, primeiro a dez passos de distância, depois a cinco, antes de se deter por completo. Fez o sinal da cruz sobre o peito, beijando a base do polegar. O tempo todo fazia movimentos circulares com a lamparina na mão, o óleo chapinhando lá dentro.

— Não faria isso se fosse você — disse eu. — Tenho certeza de que Deus não acha muito bonito matar garotos.

— Acho que você nunca leu o Antigo Testamento — murmurou Zê.

— Vocês não são crianças — continuou o padre, os olhos tão arregalados que pareciam prestes a pular de seu rosto.

— Eles não são crianças! — gritou alguém atrás dele. O modo como eles agiam me lembrava, mais do que qualquer outra coisa, os detentos na prisão, a mentalidade de manada que se espalhava como fogo na grama seca, devorando o bom senso e a razão. Naquele momento, aquelas pessoas eram animais. Tinham seu líder e o seguiriam ao ápice da loucura, porque assim era mais seguro do que tomar uma posição por si só.

— Calma — disse uma voz atrás do grupo. Reconheci o homem de óculos, suas palavras sumindo em meio a um profundo grunhido de dor, como se fosse de um animal ferido. — Ei, pessoal, acho que ele está acordando. Alguém pode me ajudar aqui?

Porém, todos os olhos estavam voltados para nós. Recuei, sentindo o cano quente da arma espetar meu pescoço. Quando olhei, outra pessoa tinha pegado uma vela, um homem pequeno, mais novo que o restante, colocando-a bem perto do peito com as duas mãos, como se fosse uma cruz para afastar vampiros.

— Senhor, dai-me forças — lamentou o padre. — Coloque em mim Sua mão e me dê a coragem de fazer o que deve ser feito. Aceite este sacrifício; confie que mataremos esses demônios em Seu nome.

Ele girou a tampa da lamparina e ergueu-a, gotas de óleo escorrendo por seu braço. Parte do grupo se afastou, recuperando o senso de realidade.

— Espere aí — disse uma mulher que estava mais atrás. — Você não vai realmente fazer isso, vai?

E, ao fundo, inspirando piedade, o mesmo gemido do garoto no chão, cada vez mais alto, mais profundo.

— Ele está acordando, eu acho. Alguém pode ajudar aqui?

Simon se inclinou para mim, e um sussurro escapou de seus lábios:

— Você pega a arma, eu fico com o padre.

Eu mal tinha registrado o que ele dissera, quando se lançou à frente, correndo. Senti a pressão da arma deixando meu pescoço e desferi um golpe com o braço direito, com toda a força. Tive sorte: meu ombro acertou o revólver bem na hora em que o homem puxou o gatilho. A bala passou longe, atingindo alguém no grupo e jogando todos sobre um dos bancos. Uma névoa de sangue jorrou, pintando os rostos ao redor, mas nem prestei atenção. Girei meu corpo inteiro, levando o punho com força para a cara do atirador. Provavelmente ele nunca tinha levado um soco na vida, muito menos de alguém com a força de um terno-preto, e o impacto nocauteou-o por completo.

No momento em que me virei, a catedral tinha se tornado uma confusão. Simon e o padre lutavam, a lamparina entre eles. Simon podia ser mais alto e mais largo que o padre, mas o sujeito tinha uma força de psicopata. O óleo caía por toda parte, reluzindo, azulado e esverdeado, contra as roupas deles. A maior parte do grupo agora recuava, a realidade abrindo caminho através de seus olhos arregalados e temerosos. Contudo, dois ou três faziam o que podiam para ajudar o padre, socando Simon na cabeça e no pescoço, tentando derrubá-lo. Zê correu ao longo de um dos bancos, seguindo na direção do confronto, e eu fiz o mesmo.

O homem com a vela chegou antes de nós.

Ele a segurou com a mão estendida por um instante, o rosto enrugado devido ao pânico. Então, com um grito que era quase um sussurro, ele a deixou cair das mãos. Ela não atingiu Simon, a chama praticamente se apagando em seu trajeto para o solo, mas pousou numa poça de óleo e rugiu, vibrante. O fogo, como uma mão se erguendo do piso, envolveu tanto Simon quanto o padre em um abraço. Mesmo com as chamas ao redor eles continuaram lutando, o padre recusando-se a soltar a lamparina, apesar de ela ter se tornado o centro do incêndio.

— Simon! — gritei, ignorando o calor crescente enquanto me aproximava dele. Dei um soco na furiosa labareda, sentindo-a conectar-se com o padre. Ele cambaleou para trás, a lâmpada agora como que soldada às suas mãos. As chamas o tinham envolvido por completo, e ele titubeava na direção do altar, caindo nos degraus. Contorceu-se por um instante, depois ficou imóvel. O fogo, faminto ainda, passou a consumir o carpete, chegando à toalha do altar e às tapeçarias que o cercavam.

— Alex, me ajuda! — pediu Zê, e obriguei meus olhos a abandonar a imagem do cadáver que se consumia para vê-lo arrancando os casacos do garoto no chão. Simon estava ajoelhado, batendo nas chamas em suas roupas. Mas o óleo queimava rápido, manchando seus dedos, estendendo línguas de fogo por seu pescoço e rosto.

Zê deu-lhe um empurrão, e ele caiu de costas, estatelando-se no chão. Em seguida, precipitou-se sobre Simon, batendo casacos por todo o corpo em chamas.

— Pegue esses! — gritou ele, e fiz o que ele mandou, ficando de cócoras a seu lado e batendo casacos contra as chamas. As mãos de Zê eram um borrão enquanto ele as movimentava para apagar o fogo, que foi reduzido a bolsos chamuscados e fumegantes, soltando um pouquinho de fumaça. Ele desabou em cima de Simon, nós três praticamente expelindo o pulmão por conta da tosse e arfando bastante.

Examinei o grupo, esperando o próximo ataque, mas, sem o messias e com uma parte do abrigo em chamas, ninguém sequer me olhava diretamente. A maioria tinha caído contra os bancos, vomitando e chorando, e todas as outras coisas que você faz quando percebe que virou um monstro. Eu devia saber como era. Já tinha estado naquela posição.

O homem de óculos fazia o que podia para segurar o garoto, mas os tremores dele tinham ficado bem piores. O corpo do garoto se agitava de um lado para outro, cada movimento causando um guincho da madeira toda vez que o banco era arrastado sobre o piso. Ele gemia, um som horrendo que me fazia pensar num animal recém-nascido. E, olhando o garoto, era isso mesmo que ele parecia. Retorcia-se contra o braço do homem como um bebê gigante, mordendo o ar, arranhando inutilmente a algema de plástico, babando rios de líquido negro.

— O que é que a gente faz? — perguntou o homem. — O que há de errado com ele?

Eu sabia exatamente o que havia de errado. Ele tinha acordado, atiçado pelo néctar que se agitava dentro dele, pelo cheiro de carne queimando, de sangue derramado, pelos gritos de dor. Eu sabia, porque o néctar dentro de mim também estava em chamas, fervilhando em minhas veias. Senti o ferimento do pescoço latejar, como se houvesse alguma coisa viva ali. Meu braço sofreu um espasmo, a pele inchou, e deixei-o colado ao corpo como se isso fosse impedi-lo de se expandir ainda mais.

— Afaste-se — falei para o homem de óculos. Ele não discutiu, afastando a cabeça do garoto de seu joelho e indo embora. Um espasmo abalou o corpo do menino, as bolhas de seu rosto fendido explodiram, os olhos de inseto sem piscar. Então ele abriu a boca de um modo jamais imaginado e soltou um grito de aflição.

Já era tarde demais quando percebi o que era aquele grito. Era um pedido de ajuda, como o som de um filhote chamando a mãe. Instantes depois as janelas escureceram, silhuetas começaram a bater contra os vitrais, e eu me dei conta de que seu chamado havia sido atendido.

Tínhamos sido encontrados.


INVASÃO

Eles vieram pela janela, velozes e cheios de vontade, liderados pelo mesmo viking que eu tinha visto na estação Twofields. Ele enfiou sua cara gorda e sorridente de bebê pelo vitral, soltando aquela mesma risada de gelar a espinha. Em seguida, despencou pelos mais ou menos dez metros que o separavam do chão, arrebentando um banco e espalhando Bíblias como se fossem folhas de árvores.

Uma janela partiu-se do outro lado da catedral, e duas silhuetas irromperram no cenário angélico, aparentemente sem reparar que o vidro lhes rasgara a pele. A julgar pela quantidade de néctar que escorria deles, que descia pelas paredes, aquelas feridas cicatrizariam antes que eles chegassem ao chão. Os dois eram prisioneiros que tinham virado ratos, os macacões esfarrapados a ponto de estarem quase irreconhecíveis, os rostos escurecidos pelo fluido que corria sob sua pele. Um deles já estava com antebraços enormes, lembrando os do Popeye. Ele nos mostrou os dentes, ladrando como um cão, depois precipitou-se no ar, pousando desajeitado e se estatelando de lado. O segundo veio logo depois, correndo de quatro na direção do incêndio, como se fosse a primeira vez que visse um.

O único som que eu conseguia ouvir, por mais inacreditável que fosse, era de risos. Um dos homens no grupo ria sozinho enquanto olhava os acontecimentos se desenrolar. Os demais ficaram ali parados, prendendo o fôlego, como se pela força da vontade coletiva fossem impedir aquilo de ser real. Percebi que eu fazia o mesmo, torcendo para que, se ficasse parado e quieto o bastante, aquele viking e sua prole nos deixassem em paz.

Quem dera.

O viking avançou primeiro, trepando num banco, andando de quatro. Farejou o ar, obviamente sentindo o cheiro do garoto, e trotou na direção dele. O homem de óculos estava sentado no chão, entre o garoto e o viking. Arrastou-se para trás, os óculos pendurados em uma só orelha, as mãos para cima.

— Eu só estava tentando ajudá-lo — disse. — Por favor, eu não...

O viking ergueu o homem em seus braços enormes e jogou-o para o outro lado da catedral. Ele colidiu com uma pilastra com um baque assustador e sumiu em meio às sombras abaixo de um banco. Foi mais o som do que a visão, acho, que subitamente impeliu todos a agir. Onde antes havia imobilidade, agora havia o caos. As pessoas corriam, nenhuma escolhendo a mesma direção da outra.

Uma mulher esbarrou em mim ao disparar para o portão principal. Ela deu cinco passos antes que um dos vikings a pegasse, pulando pelo corredor sul e cortando caminho entre os bancos. Ele saltou nas costas dela, os dentes alojados em sua garganta, levando os dois a desabar no chão.

Senti uma mão no meu braço e me encolhi, antes de perceber que era Zê.

— Vamos sair daqui — disse ele, aceitando o próprio conselho e correndo em paralelo a um banco na direção do corredor norte, com Lucy em seu encalço. Simon seguiu-os imediatamente, sem olhar para trás.

Assisti ao segundo rato derrubar mais um membro do grupo, o homem que tinha segurado a vela. A fera não parou para o banquete, mas deu um salto, abatendo outra vítima com um grito gorgolejante de deleite. Alguém deu um soco no prisioneiro raivoso. O soco resultou num estalo, mas a criatura não deu o menor sinal de ter sentido coisa alguma, usando uma das mãos para afastar o punho e a outra para agarrar a garganta do homem. Atrás de todo esse cenário havia um fundo de chamas fumacentas, já que o altar continuava queimando, o fogo de algum modo subindo pelas paredes de pedra em busca de combustível, encontrando as antigas vigas de madeira.

— Alex! — gritou Zê do outro lado da catedral. — Vamos!

Permaneci imóvel, observando o viking inclinar-se sobre o garoto no chão. Não que ainda fosse um garoto. Não havia restado nada da antiga criança naquela massa inchada de tumores enegrecidos que lutava para se libertar da algema de plástico. Com uma ternura surpreendente, o viking agarrou a mão da criança e puxou-a, arrebentando o plástico. Depois colocou o garoto de pé, empurrando-o com o focinho, do mesmo jeito que um bicho faria com seu filhote antes de ele dar os primeiros passos.

Para ser honesto, aquela foi a coisa mais assustadora que eu já tinha visto.

O garoto — o rato — deu um passo hesitante para a frente e, em seguida, reparou em alguém se escondendo atrás de uma coluna. Moveu-se desajeitadamente, mas rápido, muito rápido, percorrendo mais de dez metros num segundo. E ele sabia exatamente o que fazer com sua presa, furando-a com precisão absoluta.

— Meu Deus, será que você não vai se mexer? — disse uma voz do meu lado. Simon tinha voltado para me buscar, puxando-me furiosamente pelo moletom. Um lado de seu rosto estava chamuscado e enegrecido, mas ele não parecia sentir muita dor. — Você já viu tudo isso, vamos dar o fora daqui!

Mesmo assim, não me mexi. O viking ergueu a cabeça, estudando-me do outro lado do corredor, e em seguida começou a se mover, pisando nos corpos ainda quentes pelo caminho.

— Dane-se você — disse Simon, recuando uma segunda vez. — Quer morrer, pode ficar aqui e morrer.

E era exatamente por isso que eu não me mexia, percebi.

Porque não ia morrer.

O viking aproximou-se e, ao se endireitar, atingiu sua altura máxima — um metro ou mais acima da minha cabeça. Ele me pegou pela garganta, do mesmo jeito que tinha feito antes, virando a cabeça de um lado para o outro, como se tentasse dar uma boa olhada em mim. Mas não precisava.

Porque sabia quem eu era. O que eu era.

Com outra risadinha infantil, ele me soltou. Então deu as costas para mim, vasculhando a catedral em busca de novas vítimas. Num acesso de raiva, o néctar explodiu em minha cabeça, disparando tantas sinapses que o tempo pareceu desacelerar — o fogo ardendo, os ratos se mexendo, as pessoas gritando, tudo em câmera lenta, como um filme cujo projetor estivesse ficando sem energia.

— Nem ouse! — ouvi-me dizer enquanto olhava o viking ir embora. — Nem ouse!

Corri para a frente, empurrando as costas do viking com toda a força que eu tinha. Ele se curvou, usando os membros dianteiros para se apoiar. Mas tudo o que fez foi girar a cabeça por cima do ombro e silvar para mim. Ouvi um tiro vindo de algum lugar na catedral, mas o ignorei, minha raiva fazendo minha cabeça inflar, minha visão entrar e sair de foco. Isso foi de longe a pior coisa que poderia ter acontecido, pior até do que eu ser feito em pedaços, ser comido vivo.

O viking não me matou porque eu era parte de sua família; porque conseguia sentir em mim a mesma força vital que corria dentro de si; porque tínhamos o mesmo pai, e aquele homem queria manter nós dois vivos.

Ele não me matou porque eu era um deles.

— Eu não sou! — gritei, pegando o mesmo candelabro que tinha sido usado para derrubar a segurança. — Não sou um de vocês. Não sou igual a vocês!

E na minha cabeça, do nada, veio a voz dele — de Alfredo Furnace, em parte um sussurro, em parte um grito: Mas será.

Ergui o pesado candelabro, uma sólida barra de prata que devia pesar tanto quanto um cano de chumbo, e, com o néctar forçando um grito de guerra para fora de mim, acertei-o nas costas do viking. Ele desabou para a frente, caindo de cara no chão. Mas não ficou assim por muito tempo, levantando-se com rapidez e recuperando sua altura. Dessa vez o olhar que me lançou foi mais assustador, mas mesmo assim ele não me atacou.

Ouvi outro tiro e, ao me virar, vi Zê disparando o revólver. Havia um rato morto a seus pés, o corpo se contorcendo em espasmos. Outro teve o bom senso de agachar-se atrás de um banco, a madeira lascando-se com o tiro de Zê. O viking soltou um guincho gorgolejante ao recuar, e os dois ratos restantes pularam dos respectivos esconderijos, seguindo-o na direção da janela quebrada. Ele os içou parede acima e lhes deu apoio para passar pelo vitral quebrado, saltando depois e abrindo caminho pelo ar livre. Ele só olhou para trás uma vez, e, na hora em que o olhar dele cruzou com o meu, ouvi aquela voz, reverberando na minha cabeça como se os sinos da catedral estivessem tocando.

Mas será.


VISTA LIVRE

Assim que o viking foi embora, Zê, Simon e Lucy voltaram para a nave central. Lucy me olhava com um misto de medo e suspeita, e reparei que meus amigos faziam exatamente a mesma coisa. Sentei num banco, olhando para meu braço direito, os tendões saltados pulsando com néctar. Ele tinha inchado tanto que poderia pertencer a um gorila. A coceira da mordida espalhava-se pelo meu peito e minha barriga, chegando até a perna direita, mas não ousei olhar embaixo da roupa para ver o que estava acontecendo.

Zê aproximou-se e sentou ao meu lado, a cabeça entre as mãos. Demorei um instante para perceber que ele estava chorando.

— Isso nunca vai terminar, não é? — disse ele, secando o rosto com a manga. Passei meu braço bom por cima dos ombros dele, sentindo-os se sacudir. Antes que percebesse, eu também chorava. A fúria e a frustração de Zê tinham me contagiado. Ele deu um soco no banco à frente, os punhos fininhos não causando nenhum dano. — Nunca vai terminar. Não logo.

Queria tranquilizá-lo, acalmá-lo, mas o que poderia dizer?

— Vai terminar bem rápido se a gente não sair daqui logo — disse Simon, indicando o fogo com a cabeça. Toda a parte leste da catedral estava em chamas, o fogo alimentado pela corrente de ar que entrava pelos vitrais quebrados. Uma espessa camada de fumaça pairava logo acima de nossas cabeças, enchendo a cúpula e descendo a uma velocidade constante. Fiquei grato a ela ao enxugar os olhos, botando no ar quente a culpa pelas minhas lágrimas.

— Por que ele não te matou? — perguntou Zê, encarando-me com olhos avermelhados. — Ele nem tentou. O que foi aquilo?

— Talvez ele tenha tido uma crise de consciência — respondi, arriscando um sorriso. — Ou, de repente, decidiu virar pacifista.

— Deve ser. Ele foi mesmo superdelicado com todo mundo — retrucou Zê. O olhar dele se desviou para Lucy, que ia de corpo em corpo. Quero dizer, os corpos que não tinham sido arrasados a ponto de ficar irreconhecíveis. — Algum sobrevivente?

— Todos mortos — disse Lucy, a mão pousando na garganta de uma mulher por um momento antes que ela balançasse a cabeça. — Deus do céu, eles mataram todo mundo. — Ela se levantou, lançando para mim um olhar tão fulminante que seria capaz de me matar. — Está vendo o que eles fizeram? Os seus amigos? Mataram todo mundo!

— Não mataram ela — respondeu Simon, indicando a segurança com a cabeça, que olhava o teto sem piscar. — Quem matou ela foram os seus amigos.

Lucy virou o rosto irado para ele, e Zê se levantou, as lágrimas aparentemente esquecidas enquanto andava entre os dois como um juiz. Ela me olhou de novo, enfurecida.

— Aquela coisa tratou você como se fosse irmão dela.

— Olha só pra mim — silvei em resposta. — A cada instante eu fico mais parecido com aquelas coisas. Logo vou estar muito mais parecido com elas do que com vocês. Aos olhos dela, eu sou um irmão.

— Mas os ratos perto do metrô, eles atacaram você — disse Simon.

— Aqueles lá não passam de animais — respondi. — São ferozes. Atacam tudo, até uns aos outros. — Antes eu achava que os vikings também eram assassinos desmiolados, só que eram algo bem pior. Possuíam inteligência; não inteligência humana, mas eram espertos o suficiente para distinguir amigos de inimigos. Espertos o bastante para seguir ordens. — Acho que Furnace quer que eu fique vivo por alguma razão — prossegui. — Talvez ele queira todos nós vivos. Só não sei o porquê.

— Provavelmente para poder nos matar ele mesmo — disse Simon. E, ainda que eu soubesse que essa explicação era simples demais, assenti em concordância.

— Vamos esquecer isso — disse Zê, engolindo em seco. — Não faz sentido tentar entender o que está acontecendo quando nenhum de nós tem a menor ideia. — Virou-se para as portas da catedral, ainda fechadas por correntes, e depois olhou para a janela, o fogo agora lambendo o parapeito. As chamas também tinham chegado à primeira fileira de bancos, devorando-os com gosto. Ele partiu para o corredor norte, tomando Lucy pelo braço. — Vamos, acho que precisamos de ar puro.

Não me levantei imediatamente. Uma parte de mim queria apenas ficar ali até que as chamas me consumissem. Com certeza devia haver alguma regra que dizia que, se você morresse dentro de uma catedral, iria para algum lugar bom depois. Não que eu acreditasse em céu nem nada disso, mas o inferno eu tinha visto — o inferno ficava bem ali fora da catedral e vinha se espalhando depressa —, e qualquer lugar devia ser melhor que aquilo. Meu braço latejava, a sensação passando para os meus dedos, o néctar cantarolando dentro de mim. Estava mudando de novo. E se minhas suspeitas estivessem certas; se meus piores temores estivessem se tornando realidade, então seria muito melhor morrer queimado ali do que descobrir no que eu estava me transformando.

Mas, se eu era parte do plano de Furnace, talvez pudesse achar um jeito de detê-lo. Talvez pudesse encontrar uma cura para aquilo. Com relutância, ao sentir o calor se aproximando, levantei do banco e segui meus amigos.

Zê passou por sob um arco e chegou a uma antessala, atravessando-a e chegando a outra escada em espiral, que subia. Começou a escalá-la rapidamente.

— Hã... Zê? — perguntei — Sei que eu não devia questionar o seu bom senso, mas não costuma ser má ideia subir quando se está dentro de um prédio em chamas?

— Você tem razão, Alex — disse ele, e devia estar se sentindo melhor, porque seu riso de exaustão ecoou pela escada, vivificado pelas pedras. — Você não devia questionar meu bom senso.

Parecíamos estar dando voltas havia uma eternidade, minha cabeça ficando tonta com a rotação e o esforço. Num determinado momento, passamos por outro arco, que levava a trevas cheias de fumaça, mas Zê o ignorou, subindo incansavelmente. Não sei quanto tempo demorou até a luz do sol começar a alcançar a escada, e depois de mais três voltas chegamos a uma ampla sacada.

— Caramba — falei, a cabeça ainda rodando, meus olhos quase cerrados contra a luz ofuscante. Avistei a alta cúpula da catedral à minha direita, e, à minha esquerda, uma balaustrada de pedra que se estendia pelo comprimento da varanda. Era tão alta quanto eu, e janelas tinham sido colocadas em intervalos regulares, e através delas, banhada em ouro, dava para ver a cidade. Pisquei até estar acostumado com o brilho, em seguida, caminhei até um dos garotos.

— Venham — chamou Zê, apoiando as mãos na pedra e lançando o corpo para cima. — No telhado a gente vai encontrar escadas de emergência. A vista também é melhor daqui.

— Como você sabe? — perguntou Lucy, enfim aceitando a mão de Zê, embora hesitante.

— Está dizendo que nunca veio aqui com a escola? — perguntou ele enquanto a puxava para o beiral. — A gente arrumava muita confusão quando subia aqui. Tínhamos que ficar na escola depois da aula durante uma semana. Mas valia a pena.

Olhei para Simon e nós dois demos de ombros, pulando sem esforço para onde ele estava. Era de pedra maciça e largo, o que era um alívio. Mesmo assim, a mera distância até o telhado da catedral lá embaixo bastava para fazer meu estômago revirar e meus ouvidos zunir. Segurei-me nas pedras com força, tentando não fazer uma careta. Simon estava com uma cor estranha, e reparei que seus olhos estavam fechados.

— Tudo bem? — perguntei.

— Não estou acostumado com altura — grunhiu ele.

Nem eu. Tinha ficado tanto tempo sob a superfície que estar ali no alto nem parecia real. Ver a cidade descortinando-se diante de mim, uma tapeçaria de ruas e prédios cujas menores nuances ganhavam vida sob o sol, fez com que eu abrisse um sorriso tão largo que meu rosto doeu. Conseguia enxergar por quilômetros adiante, até as colinas distantes que ficavam perto dos subúrbios. A sensação de estar nas alturas — quase tão acima do solo quanto um dia estive abaixo dele — fez meu coração cantarolar. Era algo tão forte que demorei algum tempo para entender o que estava vendo.

A princípio, achei que estava tendo outra alucinação, Alfredo Furnace enchendo minha cabeça com visões assustadoras. Mas aquilo não era um pesadelo inspirado pelo néctar.

O brilho dourado não vinha do sol, mas de milhares de incêndios. A cidade inteira estava em chamas.

— Impossível — disse Zê. — Seria muita loucura.

Pilares de fumaça erguiam-se de todas as direções, fazendo a cidade parecer outra catedral, cujo vasto teto era sustentado por colunas enegrecidas. O pior incêndio acontecia perto do rio, onde um quarteirão inteiro de prédios de escritórios estava sendo consumido pelo fogo. Não havia sinal de caminhões de bombeiros ali, as chamas ardendo livres, espalhando-se rápido com o vento. Havia outro incêndio de grandes proporções mais perto, próximo de onde, achava eu, ficava a biblioteca da cidade. Por sorte, a fumaça dali tinha se aglomerado em um dossel carbonizado, bloqueando a vista do centro, escondendo os arranha-céus.

— Por que isso está acontecendo? — perguntou Lucy, o rosto uma máscara de calma, a voz trêmula. — Por que o governo não está fazendo nada?

Parecia que as autoridades haviam feito o que podiam para conter a situação. Dava para ver pelo menos cinco ou seis helicópteros pairando acima das ruas, pássaros militares equipados com armas e rádios. E dali de cima eu conseguia distinguir a algazarra de caminhões e de ordens sendo vociferadas lá embaixo. Havia tiros também, muitos, cada disparo estilhaçando a impressão surreal de tranquilidade e distanciamento que sentíamos ali em cima, empoleirados no teto do mundo.

Havia, porém, um limite para o que era possível fazer. Armas eram inúteis contra uma fera de pele enrijecida e músculos encrespados em cujas veias corria néctar. Você podia dar cem tiros num viking, e ele provavelmente se levantaria e continuaria vindo em sua direção.

E os ratos, esses novos, devia haver centenas deles. Não sei quantos prisioneiros tinham sido pegos e transformados, mas, pelo que já tínhamos visto, as ruas estavam repletas de aberrações que um dia haviam sido garotos.

— Devíamos ser gratos pelo simples fato de hoje ser domingo — disse Zê. — E por ser tão cedo. Imagine se hoje fosse dia de compras, na hora do almoço... A cidade estaria repleta.

— Imagine se tivesse aula... — acrescentou Lucy, fazendo-nos estremecer.

Ouvimos um disparo bem perto e esticamos o pescoço por cima do prédio principal da catedral, avistando um bando de soldados que avançavam pela praça, protegendo-se atrás de um jipe blindado. Eles disparavam contra uma figura de macacão branco que se lançou contra uma vitrine e desapareceu dentro da loja. A fachada do estabelecimento virou pó com o impacto das balas, e observamos os soldados cercarem o prédio e lançarem uma granada flashbang antes de adentrarem a vitrine, continuando a perseguição.

— A gente devia descer — disse Lucy. — Eles vão conseguir levar a gente pra algum lugar seguro, não vão?

Errado. Segundos depois, um dos soldados voou vitrine afora, rolando pelo chão e expelindo um jato fulgurante de sangue. Ele arrancou uma granada do cinto e jogou-a lá dentro, aparentemente esquecendo-se do resto de seu pelotão. Ouviu-se um estouro abafado, que destruiu o que restava das vidraças. Observamos, em parte aturdidos, em parte horrorizados, o rato emergir da poeira e, com um salto felino, precipitar-se sobre o soldado e começar seu trabalho com indomada ferocidade.

— Deus do céu! — exclamou Zê.

O jipe blindado acelerou, o rato ocupado demais com sua refeição para reparar. O para-choque do carro devia ter batido na criatura a uns sessenta quilômetros por hora, carregando-a pela praça e desaparecendo ao longe sob o telhado da catedral. Todos ouvimos uma pancada e, depois disso, nada além do rugido das chamas.

— Precisamos sair da cidade — continuou Zê. Ele dirigiu o olhar para o horizonte, e segui a linha descrita por seu olhar. Demorei um pouco para entender do que se tratava, mas assim que o fiz me senti tão fraco e tonto que quase despenquei do beiral.

A distância, do outro lado do rio, atrás de um aglomerado de altos prédios residenciais — um dos quais também estava soltando fumaça —, depois do parque cujo lago serpenteante cintilava à luz da manhã, rumo às colinas, ficava minha casa. Não conseguia ver muito dali, claro. As casas eram um borrão cinzento, como a espuma de uma onda perto do imenso oceano da cidade. Mas ela ficava ali, em algum lugar, a casa em que eu tinha crescido, a casa em que meus pais moravam. Se eu tivesse uma luneta e um pouco mais de tempo, teria conseguido localizá-la.

Perguntei-me se eles estariam ali, sentados no gasto sofá de veludo verde na sala de estar, vendo o noticiário na pequenina televisão que mamãe tinha ganhado numa rifa de Natal. Perguntei-me se achavam que eu estaria tentando voltar para casa, tentando encontrá-los. E naquele instante não desejei fazer outra coisa senão isto: ir para casa, sentar-me entre os pés deles no carpete poeirento, como fizera tantas vezes quando criança, meu pai alisando meu cabelo e me dando leves chutes carinhosos com os chinelos. Eles tinham me acusado e me abandonado, assim como todos os outros, mas eu era capaz de perdoá-los. Naquele momento, iria perdoá-los.

— Alex? — A voz de Zê infiltrou-se em minha emoção, e a realidade voltou a ganhar foco. — O que acha?

— Hã? — perguntei, sem saber o que eu tinha perdido.

— A gente desce até o jipe — repetiu Lucy. — Tenta chegar a Meriton; lá tem uma delegacia, enorme. Meu pai trabalhava lá. Fica a uns dois, três quilômetros daqui, mas é na saída da cidade.

— E o jipe vai ter um rádio — acrescentou Zê. — A gente pode contar pra alguém o que está acontecendo. Não faz mal tentar.

Assenti com a cabeça, mas minha mente ainda estava em outro lugar. Imaginei minha casa, meus pais; só que agora via a peste se espalhando, os vikings arrasando minha rua, conduzindo ratos como o flautista de Hamelin, arrebentando as portas, dilacerando as pessoas nas casas, banqueteando-se com os cadáveres quentes, disseminando o néctar entre as crianças, seu contingente aumentando o tempo todo, com porções cada vez maiores do mundo em decadência sob suas garras sanguinárias.

O vento soprou, dividindo a coluna de fumaça que subia da biblioteca, e por uma fração de segundo vi o arranha-céu do outro lado, o monólito negro cujo topo piramidal parecia acenar em meio à cintilante névoa quente. Pensei na mensagem de Furnace, em seu convite para fazer parte de seu grostesco exército. A coceira no meu braço ficou mais intensa com essa ideia, e grudei-o outra vez ao peito, sentindo a pele arder e estufar, lentamente se transformando, virando outra coisa.

— Alex? — Zê insistiu.

— Certo, parece um bom plano — falei, quando percebi que todos esperavam minha resposta. — Vocês três vão para Meriton.

— Você não vai com a gente? — perguntou Simon.

— Não — respondi. — Preciso fazer outra coisa.

Olhei a cortina de fumaça curar o próprio ferimento, bloqueando o campo de visão outra vez. Mas do outro lado dela a torre continuava no lugar. Ainda me esperava. E, quando voltei a falar, era com ela que eu conversava:

— De um jeito ou de outro, vou acabar com isso.


EQUIPE DE RESGATE

Começaram a discutir comigo, como eu sabia que fariam. Mas suas palavras foram abafadas pelo repentino ruído de rotores de helicópteros, o estrondo aumentando num crescente enervante enquanto duas máquinas passavam por nós, uma de cada lado da cúpula da catedral. Pusemos a mão na cabeça, o turbilhão ameaçando nos lançar para o vazio. Lucy gritou, sobressaltando-se com um pulo e se agachando contra a parede abaulada, o rosto enterrado nas mãos.

O helicóptero à nossa direita mergulhou para o chão, na porta lateral aberta, um soldado em traje de camuflagem manejando uma metralhadora. Ele a virou para a catedral, faíscas saindo do cano na hora em que disparou em algo que não conseguíamos enxergar. A estrutura de pedra pareceu gemer, o calor atravessando as telhas, como se a fúria do incêndio lá dentro tivesse trazido esse antigo Golias de madeira e pedra de volta à vida.

O outro helicóptero permaneceu lá no alto, a metralhadora mirando os telhados dos prédios ao redor, um rosto de capacete visível no interior escuro. Zê ficou de pé, balançando os braços e pedindo ajuda. Era uma má ideia, mas não tive tempo de lhe dizer isso antes que o atirador nos visse, girando o cano de calibre .50 em nossa direção e disparando uma torrente de chumbo. A balaustrada à direita fez-se em pedaços, balas marcando a cúpula, bombardeando-nos com fragmentos de pedra. Cambaleei para trás, puxando Simon comigo, nós dois caindo desajeitados de costas.

— Pare de atirar! — gritou Zê, mantendo sua posição. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade mas que provavelmente não durou mais que um segundo, o atirador devia ter percebido seu equívoco. A arma ficou em silêncio, e de repente o helicóptero deu um mergulho em direção à rua. Zê xingou, proferindo palavrões para o soldado que tinha tentado nos matar. — Estamos do lado de vocês! — gritou. — Leve a gente junto!

Não havia como o ouvirem. Fui até a fenda aberta pelas balas, apoiando-me numa coluna de pedra fraturada para ver os dois helicópteros pairando a cerca de vinte metros acima da praça. Agora os dois atiravam contra a base da catedral, contra o lugar em que o jipe tinha batido, ainda que não desse para ver o que estava acontecendo.

— Cuidado! — gritou Zê.

Alguma coisa se movia pelo telhado da catedral abaixo de nós, os pés procurando apoio, fazendo telhas voar em todas as direções. Reconheci o rosto de bebê do viking enquanto ele se precipitava à frente, de quatro, rumo aos helicópteros.

Ele saltou do telhado, acertando a cauda do primeiro e fazendo com que ele tombasse vigorosamente para um lado. O viking escorregou um pouco, mas continuou firme. Desferiu um golpe com uma perna, acertando o rotor da cauda e fazendo-o cair, destruindo parte de uma loja lá embaixo. O helicóptero passou a girar, e o viking usou as garras para se mover pela fuselagem e entrar na aeronave. O atirador caiu, já em pedaços, e o helicóptero arremeteu em nossa direção, as hélices golpeando a cúpula da catedral a metros de onde estávamos.

Com um ruído de trituração ensurdecedor, o rotor se soltou, e o helicóptero caiu rapidamente. O viking se lançou da porta, agarrando uma calha de metal na lateral do prédio, sem parar sequer para tomar fôlego antes de saltar para longe de nosso campo de visão. Então o helicóptero tombou, suas hélices em movimento arrastando-o pela praça e, enfim, pelas lojas do outro lado, onde ele desapareceu numa bola de fogo.

O segundo helicóptero subia, mas estava perto demais da catedral. O viking fez exatamente a mesma coisa com ele, lançando-se pelo ar enquanto a máquina passava a seu lado.

Dessa vez, porém, o piloto sabia o que esperar. O helicóptero inclinou-se no último instante, desviando na direção do viking em voo. A criatura agitou-se, tentando desesperadamente mudar de rumo. Mas não havia nada que pudesse fazer, e seu corpo foi de encontro às hélices e explodiu numa névoa negra. O que restou da criatura voou pelos telhados de um modo surpreendentemente gracioso, caindo longe do campo de visão, a ruas de distância. Uma chuva de sangue negro respingou na praça abaixo.

— Amém! — gritou Simon, que tinha corrido até o meu lado, seu braço em volta da minha cintura para poder se inclinar sobre o beiral. Ele deu um soco no ar com a outra mão.

No entanto, o helicóptero também tinha sido danificado. Ouvi o lamento do motor, a fumaça saindo do exaustor. Ele lutava, pendendo acentuadamente para um lado e depois se inclinando de novo na direção da catedral. Mesmo dali de cima eu ouvia o bipe constante do alarme enquanto ele começava a descer em espiral rumo à rua. O piloto conseguiu mantê-lo na rota, pousando com um baque ao lado dos cadáveres dos soldados. O motor foi desligado, o rugido sendo silenciado à medida que os rotores diminuíam.

— Vamos! — gritou Zê. Ele descia por uma escada enferrujada presa a uma das imensas colunas que cercavam a cúpula. — Essa é nossa chance.

— Nossa chance de quê? — perguntei, esperando Lucy ir atrás dele antes de segui-los, dizendo a mim mesmo para não olhar para baixo, porém sem muito sucesso. O telhado inclinado não estava tão abaixo de nós, e chegamos a ele em menos de um minuto. Zê foi até a extremidade, hesitante, examinando a parede antes de passar com um solavanco para outra escada, presa no ângulo reto da quina do prédio. Ele sumiu, depois Lucy, Simon me passando com um “licença” murmurado.

Dei uma olhada e, ao perceber que estávamos a cerca de dois andares do solo, decidi dispensar a escada. Subi a parede abaulada, escorregando sem o menor esforço até uma saliência entre o telhado e a praça. Em seguida, pulei dali e pousei a tempo de dar um oi a Zê lá no chão. Ele me olhou perplexo quando desceu da escada e me encontrou à sua espera.

— Sem pressa — disse eu, olhando um relógio de pulso imaginário.

— Exibido — respondeu ele, ajudando Lucy a se equilibrar de um jeito que era um pouquinho mais carinhoso que o necessário. Abri para ele um sorrisinho de cumplicidade antes de ela se virar, e ele fez uma careta para mim, as bochechas reluzindo.

O braço norte da catedral em forma de cruz estava entre nós e o helicóptero, mas havia indícios da batalha por toda parte. Do outro lado da rua estava a fileira de lojas que tinham sido dizimadas — os destroços do primeiro helicóptero havia muito desaparecidos debaixo de um cobertor de chamas. O calor pairava sobre a praça inteira, forte o suficiente para fazer algumas das árvores entrar em combustão espontânea. E por toda parte havia nódoas negras, onde o sangue do viking tinha chovido, reluzindo à luz do fogo como óleo respingado.

Percebi que Zê tinha outra vez tomado a dianteira, já contornando a parede de pedra da catedral. Alcancei-o bem na hora em que ia dobrar a esquina e vi o outro helicóptero descansando no pavimento entre a praça e a rua. Ele tinha esmagado um banco de madeira e uma lata de lixo, balançando-se sem equilíbrio enquanto os rotores diminuíam. O piloto estava na porta olhando o motor, cujo ruído abafou nossa aproximação até estarmos na metade da praça. Assim que reparou em nós, o atirador girou a metralhadora em nossa direção, o dedo no gatilho.

— Parem! — gritou, sobressaltando o piloto. Este pulou para dentro do helicóptero, arrancando o revólver do coldre. Nós quatro paramos, mas Zê deu mais um passo à frente, as mãos erguidas.

— Somos humanos — disse ele, e as palavras que escolheu fizeram a situação parecer ainda mais surreal do que antes. — Somos humanos, como vocês. Não atirem.

— No chão! — gritou o piloto, na verdade pilota, uma moça com cabelo castanho cortado bem rente à cabeça. — Afastem os braços e as pernas. Já! Não vou repetir.

Fizemos o que ela mandou, apoiados na pedra fria e úmida enquanto a pilota aproximava-se cuidadosamente e nos apalpava. Ela me deixou por último, cutucando meu braço inchado com seu revólver. O cano saiu molhado, uma faixa de fluido transparente, como saliva, entre a arma dela e a minha pele. Esperei até que ela recuasse antes de baixar a manga rasgada o máximo que podia, subitamente envergonhado.

— Podem levantar — disse ela. — Menos você.

Não precisei olhar para ela para saber que era comigo que falava. Observei Zê, Lucy e Simon ficarem de pé, limpando-se com as mãos. A pilota colocou o revólver no coldre e apoiou as mãos no quadril, mas o atirador do helicóptero em nenhum instante tirou o olho de nós.

— Identifiquem-se! — ordenou ela.

— Zê Hatcher — respondeu Zê. — Estes são Simon Royo-Flores e Alex Sawyer, e Lucy... Desculpe, Lucy, não sei seu sobrenome.

— Wells — disse ela. — Você precisa nos ajudar. Tem coisas à solta por aí; fomos atacados.

— Sim, vocês e todo mundo aqui na cidade, docinho — disse a pilota. Ela olhou para mim. — O que é que há com esse seu braço? Ele parece infectado. Pra mim, parece muito com uma dessas coisas.

— Não estou infectado — respondi, sem saber se estava mentindo ou não. — Sou do bem, juro. Sou um de vocês.

Eu também não sabia se isso era mentira, mas a pilota pareceu se acalmar.

— Certo, certo. Sou a capitã Annabel Atilio. Companhia D, Primeiro Batalhão de Defesa do Interior. Por que não me explicam o que estão fazendo aqui fora?

Assim que ela falou, uma salva de guinchos irrompeu do rugido constante do fogo, descendo pela rua e ecoando pelas paredes da catedral. A pilota ficou séria, olhando para a fumaça que bloqueava o caminho de volta à cidade.

— Esperem um pouco — disse ela. — O helicóptero já era. Vamos arrumar um carro, e vocês me contam tudo quando estivermos em movimento.


EM TERRA

A capitã Atilio nos levou até o jipe que tínhamos visto antes. Ele estava perto da catedral, cercado por fragmentos de pedra e restos do rato que esmagara ali. Parecia um Hummer pintado de bege, com placas de metal pregadas nas janelas. Havia uma nuvem cinza subindo do capô, parecendo mais vapor que fumaça.

— M-ATV — disse Atilio. — Projetado para resistir a minas terrestres, então deve estar tudo certo com ele. — Ela sacou a arma, segurando-a em uma das mãos enquanto tentava forçar a porta. Deu certo trabalho, mas enfim ela a abriu, e o corpo de um soldado escorregou para fora. Atilio tentou sentir sua pulsação, mas balançou a cabeça. — Que droga. Roke, vem cá e traz a metralhadora. E vocês aí, no banco de trás.

Fizemos o que ela mandou, abrindo a porta de trás e pulando no interior escuro. Nós quatro ficamos meio apertados no banco, mas demos um jeito, olhando pelas janelas, que pareciam vigias, e vendo o atirador trazer a arma pela praça, uma cauda bronze de munição varrendo o chão atrás dele. Ele subiu na torre do teto e montou a metralhadora.

— Ei, galera!— gritou ele para baixo, sorrindo para Lucy. — Finjam que não estou aqui.

— Ok — disse Atilio ao subir no banco do motorista e ligar o motor. — Vamos botar esse bicho na rua. — Ela tirou o rádio de mão do console. — Contato cinco, aqui é Aéreo trinta e dois, estão ouvindo?

Uma voz soterrada por muita estática sussurrou dos alto-falantes. Não conseguia entender o que ela dizia, mas a capitã, obviamente, sim.

— Nossa posição é em terra, senhor — relatou ela. — Uma coisa nos tirou do ar. O Aéreo catorze também, morto em combate. O que o senhor precisa que a gente faça?

A voz grunhiu ordens feitas de números e palavras em código, e não muito além disso.

— Entendido, comandante — disse Atilio. — Estou com alguns civis; vou deixá-los na ESP da rua Pear.

Ela aguardou a confirmação e depois colocou o rádio no console, engatando com força a marcha a ré e pisando fundo. O poderoso motor tirou o jipe da parede, o veículo dando um solavanco ao passar por cima do rato. O câmbio rosnou enquanto ela lutava para encontrar a primeira marcha, e então o jipe partiu praça afora.

— Aonde vamos? — perguntei.

— A gente precisa ir para Meriton — interrompeu Lucy. — A delegacia de polícia, lá vamos estar em segurança.

— Está brincando? — falou Atilio. — Meriton já era, tudo naquela área já era.

— Já era? — perguntou Lucy. — O que você quer dizer?

— Quero dizer que já era, que acabou. Não viram os incêndios? — Atilio conduziu o jipe pela calçada e depois para o asfalto, acelerando em direção à fumaça. Ela viu pelo retrovisor quando todos nós assentimos. — Eles atacaram as delegacias primeiro, horas atrás. Meriton, Raymond, até lá pro norte, em Colette.

— Eles? — soltei, sem acreditar direito no que ouvia, e, ainda que soubesse a resposta, acrescentei: — Eles quem?

— A gente não sabe — respondeu ela enquanto o dia virava noite, a fumaça se aconchegando contra as janelinhas, entrando pelo teto aberto. Acima de nós, o atirador tossia. Atilio apertou um botão e os faróis se acenderam, contribuindo bem pouco para clarear a névoa. — Tudo começou com a fuga da prisão, mas o que está acontecendo é maior que isso. Tem criaturas por aí, feito animais, só que não parecem nenhum animal que eu já tenha visto. Elas são grandes, rápidas, selvagens, e não morrem quando você atira nelas.

Abri a boca para tentar explicar, mas por alguma razão Zê pôs a mão no meu braço, balançando ligeiramente a cabeça em uma negativa. Atilio desviou de um carro em chamas. Era aquele pelo qual tínhamos passado antes.

— Recebemos o telefonema por volta das seis da manhã — continuou ela. — Ordens para ficar de prontidão. Àquela altura, os hospitais já estavam lotados de policiais e os serviços de emergência tinham entrado em colapso. O Primeiro Batalhão está posicionado fora da cidade. Na verdade, somos um esquadrão antiterrorismo, prontos para entrar em ação se alguma coisa ruim acontecer.

— Muito pior do que isso não fica — acrescentou o atirador, girando a metralhadora para cobrir a estrada à frente.

— Nem me fale — disse Atilio. — Meia hora depois daquilo, a gente recebeu sinal verde: podem ir. Nossas ordens eram para atirar, limpar as ruas. Até aí tudo bem, enquanto a gente achava que só ia atirar em prisioneiros.

Zê abriu a boca para protestar, mas depois, claro, achou melhor não.

A fumaça dissipou-se diante do para-brisa, revelando que a estrada à frente estava completamente interditada pelo que parecia ser um prédio desabado — tijolos, telhas e móveis por toda parte, sendo consumidos pelo fogo. Atilio praguejou, engatou a ré, deu meia-volta e retomou o caminho pelo qual tínhamos vindo.

— Fique firme aí, Roke! — ordenou. — Parece que tem alguma coisa errada.

— Sim, senhor... senhora — veio a resposta dele, abafada pelo vento com a aceleração do jipe. Atilio virou à esquerda no primeiro cruzamento a que chegamos, acelerando pela rua antes de virar de novo à esquerda. A pista ali era mais estreita, mas estava mais limpa, e eu conseguia enxergar com clareza até mesmo o centro da cidade. Acima de nós houve um estrondo no instante em que outro helicóptero sobrevoou as ruas, desaparecendo rumo aos distantes arranha-céus.

— Sorte deles, que raiva — murmurou a capitã. — Detesto ficar em terra.

— Com licença — perguntou Lucy, inclinando-se para a frente. — Mas pra onde é que estamos indo? A senhora não devia estar indo na outra direção, levando a gente para um lugar seguro?

— Foi mal, garota — disse Atilio, o rosto no espelho exibindo uma genuína expressão de preocupação. — Temos nossas ordens, e resgatar civis não faz parte delas. Ainda bem que hoje é domingo e não tem muita gente na cidade. Mas isso está se espalhando, e rápido. Já tivemos relatos de tumultos até o estuário, e se passarem desse ponto não vamos mais conseguir contê-los. É que nem um sangramento, sacou? Você precisa fechar a artéria. Do contrário, acabou.

— Então pra onde é que a senhora está levando a gente? — insistiu Lucy, enxugando as lágrimas dos olhos.

— Ao lugar seguro mais próximo em que consigo pensar — respondeu Atilio. — A maior parte do Batalhão está espalhada, esquadrinhando a cidade, e a polícia foi levada para os arredores para impedir que o pânico se instale; quero dizer, os policiais que ainda estão vivos. Mas a gente não está sozinho nessa. Um monte de ESPs foram chamadas, e sei com certeza que estão estacionadas por aqui. Elas têm um acampamento neste lugar, e acho que essa é a melhor chance de vocês.

— ESPs? — perguntei.

— Empresas de segurança privada — explicou Atilio, o jipe acelerando enquanto descia uma colina. — Na minha época de treinamento, a gente chamava eles de mercs, ou mercenários, mas essa palavra não é mais usada. Eles são soldados, só que não trabalham para o governo. Eles... ah, droga, peraí.

Olhei para fora da janela e vi que estávamos chegando a um cruzamento. Ali havia menos fumaça, e eu conseguia distinguir um café na esquina; ao lado dele, uma confeitaria. Teria sido uma cena perfeitamente normal, não fossem os dois tanques que vinham ruidosamente da rua à nossa esquerda, o asfalto prestes a ser despedaçado sob o rangido de suas esteiras. Atilio buzinou e manobrou o jipe entre eles, fazendo uma saudação pela janela. Se alguém ali dentro a viu, não deu sinal nenhum desse fato, as máquinas enormes deslizando para fora do campo de visão, atrás de uma kebaberia.

— Esta cidade vai virar pó antes que o dia acabe — disse ela assim que o ribombar desapareceu. — E aí, garotos, o que vocês estavam fazendo no telhado da catedral, pra início de conversa?

— Nos escondendo — disse Zê. — Estávamos na rua e vimos o que estava acontecendo. Parecia o melhor lugar pra gente se abrigar.

— E por que vocês estavam no centro financeiro meia hora depois do amanhecer numa manhã de domingo? — perguntou ela, ainda que eu pudesse dizer, pela maneira como olhava para nós pelo retrovisor, que já sabia a resposta.

— Acreditaria se disséssemos que estávamos fazendo turismo? — arriscou Zê, sem convencer muito com seu tom.

A capitã Atilio concordou com a cabeça.

— Sim, claro, e agora vocês estão na carruagem da rainha, e o Roke ali em cima é o valete dela. Você não é um valete, Roke?

— Se sou, estou usando o traje errado! — gritou ele.

— Vocês não são turistas — disse ela. — Já vi muitos olhos de prisioneiros nessa vida. Não fiquem assim assustados; alguns garotos fugitivos são a menor das minhas preocupações neste momento. Agora, quanto menos menores virmos destruindo aço com socos e arrancando cabeças com os dentes, melhor. — Ela se virou no assento, olhando meu braço. — Se bem que a Inteligência vai querer dar uma boa olhada em você com esse tronco de árvore aí.

— A Inteligência? — perguntei e, por alguma razão, me vi pensando nos Ofegantes com suas lâminas malévolas.

— Não se preocupe — disse Atilio. — A Inteligência militar está instalada a doze quilômetros daqui. Não podemos levá-los até lá. Vamos deixá-los com os mercenários, e aí voltaremos para o combate.

— Então vocês não têm a menor ideia do que está acontecendo? — perguntou Zê, inclinando-se entre os assentos. Atilio balançou a cabeça em uma negativa e soltou uma risada pesarosa.

— Garoto, eu não tenho a menor ideia. Só sei que aqui tem coisas que fazem a al-Qaeda parecer um bando de coelhinhos e nossas ordens são para atirar e matar. Até que me digam outra coisa, eu aperto o gatilho primeiro e pergunto jamais. Bem-vindo à vida na frente de batalha.

Não sei se ela continuou a falar, porque de repente tive a sensação de que o céu acima de mim se abria, emitindo um ruído como se fosse o fim do mundo. Não sabia o que era, até que um cartucho veio parar no meu colo, maior que o meu dedão e vermelho de tão quente. Afastei-o, sentindo outros caírem, uma chuva de metal incandescente enquanto Roke disparava a metralhadora. Levei as mãos aos ouvidos, sentindo o jipe girar subitamente para a direita, despegando-me do banco ao passar por uma lombada com um baque seco. Acima de mim, Roke girou a arma, alvejando o lugar por onde tínhamos passado.

— Viu aquilo? — gritou, enquanto Atilio corrigia a direção do veículo. — Caramba, era maior que um cavalo!

— Acertou? — perguntou a capitã.

— Acertei uns doze tiros — respondeu ele. — Mas o bicho simplesmente saltou para um telhado. Acho que ainda está lá.

Ele rosnou, frustrado, puxando de novo o gatilho. Olhei pelo vidro traseiro, vendo as balas enormes furando paredes aleatoriamente, arrancando fragmentos de tijolos, transformando janelas em pó. Em seguida ele parou, cuspindo alguns palavrões de primeira qualidade.

— Está piorando — disse Atilio. — Parece que tem um ninho dessas coisas em algum lugar por aqui.

— Acho que a gente sabe onde é — disse eu. Atilio olhou-me pelo retrovisor. Fiz menção de explicar, mas ela me interrompeu.

— Guarde isso para o comandante — ela respondeu. — Os mercenários montaram um centro de comando numa galeria da rua Pear. A gente está quase lá. Vou pedir para eles levarem vocês até o quartel-general, para tirarem vocês da cidade. Eles vão querer falar com vocês, ainda mais se tiverem alguma ideia, mesmo remota, do que está acontecendo.

— Pegue a próxima à direita! — Roke gritou para baixo. — A rua à frente está interditada; use a rua Freeman, depois corte por trás.

Atilio seguiu as instruções dele e o carro virou à direita, passando rápido por uma rua estreita, antes de derrapar à esquerda em uma barreira e virar num estacionamento. Ele não cabia exatamente no espaço horizontal; voavam centelhas nas laterais, e o som era parecido com o de unhas arranhando um quadro-negro.

— Opa — disse Atilio. — Que bom que esse carro não é meu. Cadê os caras, aliás?

— Estão sentados lá em cima chorando feito bebezinhos, provavelmente — sugeriu Roke com uma risadinha.

— Não esse pessoal — disse Atilio, conduzindo o jipe cuidadosamente pela primeira rampa. — Pelo que ouvi falar, esse grupo é formado por assassinos sem coração, fortes à beça e aprimorados cirurgicamente.

O carro ribombou pelo estacionamento vazio, virando na rampa seguinte. Ela olhou no espelho o suficiente para ver o nervosismo evidente em nosso rosto.

— Não se preocupem, esses caras podem ser imundos e falar muito palavrão, mas normalmente não fazem mal nenhum. A gente chama eles de Irmãos Cara de Pau. Vão entender por que quando virem o que todos vestem.

Mais uma rampa, e nós comprimidos um contra o outro em mais uma curva.

— Não deixem que sejam inconvenientes com vocês, certo? Eles podem ser freelancers, mas estão respondendo ao meu chefe, e não tenham medo de lembrá-los disso. Além disso...

Ela parou por um tempo suficiente para dirigir o jipe até uma outra rampa.

— Alguma coisa me diz que vocês vão se sentir muito à vontade com eles, julgando por esses seus olhos.

Subimos a última rampa e voltamos à ofuscante luz do sol, e, na hora em que a ficha caiu, já era tarde demais. O jipe ganiu ao frear, e diversas silhuetas corpulentas se aproximaram, uma delas abrindo minha porta, o peito balançando com um riso seco. Um par de olhos prateados como os de um gato perscrutou a escuridão do carro, um sorriso afiadíssimo cortando seu rosto.

— Ora, ora. Vejam só o que temos aqui.

Então ele me pegou pelo braço com seu punho de aço, algo que eu esperava nunca mais sentir de novo, arrancando-me do jipe e me colocando diante do olhar frio e cruel de uma dúzia de sorridentes ternos-pretos.


ESPS

Tinham me algemado antes mesmo que eu conseguisse perceber o que estava acontecendo, o aço frio contra meus punhos, meu braço direito tão inchado que a algema quase não fechou. Senti a pancada de uma bota na minha perna, fazendo-me desabar de joelhos, e em seguida o inconfundível anel de metal de um cano de arma no meu pescoço, empurrando minha testa contra a enorme roda dianteira do jipe. Um segundo ou dois, foi esse o tempo que levaram para me prender de novo, o riso fumacento sibilando pelo telhado do estacionamento como se o prédio também estivesse tomado pela manifestação do inferno.

— Ei, o que pensa que está fazendo? — A capitã Atilio apareceu de trás do capô, o dedo apontado para o terno-preto acima de mim. — Solta ele, você não tem autoridade para...

— São eles! — ouvi Zê gritando dentro do carro, batendo na janelinha. — Capitã, eles são os responsáveis.

— Cala a boca, garoto! — gritou Atilio. — Quero silêncio. Você, preciso do seu nome e da sua patente, e quero ver seu comandante agora mesmo.

O jipe já tinha conhecido dias melhores, mas eu ainda conseguia ver, refletida na calota, a cena que se passava atrás de mim. Havia pelo menos meia dúzia de figuras ali. Eu queria acreditar que era o metal avariado que distorcia o vulto dos homens; que eles não eram os Golias musculosos de olhos prateados reluzindo ao sol. Mas eu reconhecia os soldados de Furnace quando os via, quando os ouvia.

A única diferença entre os guardas da prisão e esse grupo era que alguns destes usavam braçadeiras vermelhas com um brasão na forma de um círculo branco com uma figura negra. Examinei o reflexo borrado, me dando conta após um instante que o brasão era o logo de Furnace: três círculos dispostos em um triângulo, um ponto no meio de cada um e linhas finas unindo-os.

— Temos toda a autoridade de que precisamos — grunhiu aquele que tinha me jogado contra o carro. Ele não usava a faixa vermelha. — Esses aí são prisioneiros em fuga, propriedade da Penitenciária de Furnace. Se quiser ver os documentos, temos pilhas e pilhas deles lá na torre. — Ouvi o tom de voz mudar. — Você, algeme todos eles e telefone para o diretor Cross; avise a ele quem está de volta.

A simples menção ao nome do diretor fez meu estômago revirar, e com ele veio o néctar, chamado à ação por meu coração palpitante. Uma flor negra começou a brotar em minha visão, a realidade descascando-se como pele morta, expondo nada além de nervos vibrantes sob ela. O terno-preto deve ter sentido alguma coisa, porque a pressão atrás da minha cabeça ficou mais forte.

Em algum lugar atrás de mim ouvi o bipe de um rádio, um terno-preto falando baixo demais para que eu entendesse o que ele dizia.

— Capitã Atilio, por favor. — A voz de Zê de novo. — Não dê ouvidos a eles. Eles são os responsáveis por isso tudo. São eles que estão tentando tomar a cidade. Por favor, não nos deixe aqui.

Outra dupla de ternos-pretos se aproximou, e ouvi um tumulto dentro do jipe, berros, gritos e xingamentos, todos disparados num coro indecifrável. Pouco a pouco, cada voz foi ficando mais distinta à medida que Simon, Zê e Lucy foram trazidos para a luz do dia, contorcendo-se inutilmente contra os punhos gigantes que os seguravam.

A porta do carro foi fechada com força, e senti alguém me pegar pelas pernas. Fui arrastado de cara no chão, algemas foram colocadas nos meus pés e, depois, acorrentadas às que prendiam meus pulsos. Lutei contra isso, mas, mesmo com a raiva crescendo dentro de mim, o néctar correndo para os meus músculos, não conseguia me mexer direito. Eu só conseguia me contorcer, minhas mãos e meus pés dolorosamente atados enquanto descansava a cabeça contra a roda. Ao menos agora eu conseguia ver o que estava acontecendo.

— Escute, não estou nem aí se esses garotos são prisioneiros ou civis! — gritou Atilio, marchando até o primeiro terno-preto e olhando-o direto nos olhos, ainda que sua cabeça só chegasse ao peito dele. Então ela efetivamente o empurrou, o que me fez respeitá-la mais do que a qualquer outra pessoa que já tivesse conhecido. — Você não tem o direito de tratá-los dessa maneira. Ia deixar esses garotos com vocês porque achei que tinha de cuidar de coisas mais importantes. Mas vou levá-los comigo.

Ela virou para o semicírculo de ternos-pretos que tinha se formado em volta de nós — os das extremidades usavam braçadeiras, mas os mais próximos de mim estavam sem — e, em seguida, apontou para aqueles que seguravam meus amigos.

— Estou dando uma ordem: soltem esses garotos!

Ninguém se mexeu; só se ouviram risadinhas vindas de uma dúzia de lábios sorridentes. O som me deu vontade de vomitar, inundando minha cabeça de memórias — a noite em que fui preso, quando os ternos-pretos mataram Toby; as inúmeras vezes que eles nos tinham ameaçado em Furnace; e o meu próprio riso sem alma quando eu quase, mas quase mesmo, tinha me tornado um deles.

— Capitã... — comecei, querendo avisá-la; querendo dizer a ela para se mandar antes que o negócio ficasse feio. Mas minhas palavras foram sufocadas por um punho que, como um martelo, golpeou meu maxilar. Estrelas negras explodiram em supernovas, mergulhando o estacionamento numa noite súbita. Aquelas trevas pulsaram dos meus olhos para a minha cabeça, o néctar implorando para tomar o controle. Deixe-me em liberdade e poderemos matá-los, ele parecia estar dizendo, cada palavra chutando para longe um pouco mais da minha sanidade. Podemos matar todos eles. Balancei a cabeça, gritando em silêncio para afastar essas palavras. Não podia me entregar ao néctar. Outra vez, não.

— Basta! — ouvi Atilio gritar e, na hora em que minha visão ganhou foco, reparei que ela tinha sacado o revólver, mirando-o nos ternos-pretos. Ouviu-se um ruído vindo do jipe, e tive esperanças de que Roke ainda estivesse lá em cima. Os vikings talvez fossem à prova de balas, mas os ternos-pretos não iam durar muito contra uma metralhadora repleta de balas que perfurariam blindagens. — Garotos, entrem no jipe. Roke, se algum desses monstrinhos da ESP mover um dedo, você sabe o que fazer.

O primeiro terno-preto, aquele que tinha me algemado, virou para o guarda que estava no rádio, esperando alguma manifestação. Ela veio segundos depois, na forma de um aceno de cabeça.

— Capitã — disse o terno-preto, virando-se de novo para Atilio, ainda com aquele sorriso insano —, temo não poder permitir que faça isso.

Tinha movimento nos fundos do estacionamento, onde algumas vans pretas estavam estacionadas. Os detalhes cromados dos automóveis brilhavam ao sol e não me deixavam distinguir exatamente o que estava acontecendo, mas ouvi um trepidante rosnado vindo daquela direção, e dois ternos-pretos libertaram-se da manada e andaram até lá.

— Ei, pode parar aí onde está! — gritou Atilio para eles. — Não pense que não vou atirar em vocês pelas costas, seus mercenários. — Quando a ignoraram, ela se voltou para o primeiro. — Você vai ficar encrencado até o pescoço quando meu comandante souber disso. Agora vou lhe dar uma última chance. Solte os garotos. Não estou nem aí para a quem eles pertencem, cara, eles vão comigo.

— Ah, mas isso não tem nada a ver com a quem eles pertencem — disse o terno-preto, seus dentes e olhos cintilando. — A questão é o que eles sabem.

— O que eles sabem? — perguntou Atilio, e pela primeira vez vi a arma dela tremer. — O que isso significa exatamente?

— Nem ouse — disse outro guarda, esse usando a braçadeira. Ele deu um passo à frente, erguendo o indicador para o terno-preto que falava. — Bico fechado.

O primeiro terno-preto ignorou-o. No fundo do estacionamento, os dois homens lutavam com as portas da van, mas eu sabia que eles não eram os responsáveis pela maneira como o veículo balançava.

— Significa que eles estão certos, capitã — sibilou o terno-preto através de seu sorriso. — Somos nós os responsáveis pelo que está acontecendo. Estamos tomando...

Atilio nem sequer hesitou. Apertou o gatilho, e o terno-preto caiu para trás, com uma expressão de surpresa, a mão presa ao peito e ao buraco redondo que tinha sido aberto através da camisa. Ela mandou mais duas balas, uma a menos de um centímetro da primeira, a outra acertando a testa do terno-preto. A cabeça dele tombou para trás, e ele desabou no chão em meio a espasmos.

Não consegui registrar direito tudo o que aconteceu em seguida; foi rápido demais. Outro terno-preto ergueu uma espingarda e disparou, Atilio saindo do caminho ou sendo alvejada pelo disparo. Simon deu uma cabeçada de costas na cara do terno-preto atrás dele, juntando as mãos como uma clava para tentar acabar com ele, mas errando e caindo no chão como uma árvore decepada. Roke abriu fogo com a metralhadora, disparando por toda parte, passando por cima da cabeça de todos, e o tempo todo eu o ouvia gritando:

— Meu Deus, quem são esses caras? O que são esses caras?

Quatro silhuetas vinham chegando do estacionamento, seus dentes parecendo vidro quebrado, os corpos sem pele brilhando em vermelho e azul sob a intensa luz solar. E aqueles olhos, como duas moedas de prata, prometendo nada além de dor.

— Cães! — ouvi-me gritando enquanto os bichos do diretor se precipitavam, com tanta saliva jorrando das mandíbulas que os dentes pareciam surfar. Meu temor subitamente virou pânico, e eu me contorcia contra minhas correntes, sentindo-as cortar minha pele enquanto eu lutava contra o metal.

Roke devia ter recuperado a sanidade, porque o rastro de fogo acertou dois ternos-pretos e fez com que o cão da frente explodisse em sangue. Os outros três, porém, pularam nele num piscar de olhos, saltando sobre os ternos-pretos e sobre mim antes de pousar no jipe, tão rápido e com tanta força que ele foi jogado no chão. Teve tempo, porém, de soltar um grito, tão repleto de desespero que nem pareceu humano, e a seguir não houve nada além do horripilante som de carne sendo dilacerada.

Eles viriam atrás de mim em seguida, e foi esse pensamento que me motivou. Cerrei os dentes, forçando as algemas com toda a força que eu tinha. As argolas eram resistentes; haviam sido projetadas para pessoas com a minha força; mas a corrente que ligava meus braços e pés obviamente não era. Conseguia senti-la se esticando nas minhas costas, e, com um tilintar, um dos elos se rompeu. Passei as mãos sob meus pés e me levantei, veias negras pulsando nos meus olhos.

— Peguem ele! — berrou um dos ternos-pretos, apontando para mim.

Dois ternos-pretos se lançaram contra mim, mas um deles voou para trás antes de chegar perto o suficiente, um círculo perfeito aberto na testa. Olhei para trás e vi a capitã Atilio deitada numa poça de sangue, ao lado do capô do jipe, o rosto se contorcendo de dor enquanto ela disparava as últimas balas do revólver. O tiro errou o segundo terno-preto, mas conseguiu atrair a atenção dele por tempo suficiente para que eu o atacasse.

Agachei-me e me lancei sobre ele, envolvendo seu pescoço com minhas mãos algemadas e puxando-o em minha direção, usando toda a minha força para dar uma cabeçada em seu nariz. Ele caiu no chão se contorcendo. Não consegui manter o equilíbrio e, durante a queda, posicionei meu joelho contra o pescoço do terno-preto. Ouviu-se um estalo formidável, e em seguida ele ficou imóvel.

Atilio levantou-se, mesmo com o restante dos ternos-pretos abrindo fogo. Agachou-se com rapidez atrás do capô e foi até a porta do passageiro, saltando lá dentro. Vi-a tirar o rádio do console. Um dos ternos-pretos moveu-se para detê-la, contornando o jipe tão rápido que parecia apenas um borrão negro sob a luz do sol. Mas não foi ágil o bastante.

— SOS, SOS, SOS. Sob ataque da ESP na rua Pear. Repito, ESP hostil. SOS, S...

A voz de Atilio calou-se e foi substituída pela estática do rádio. Senti braços em mim, um terno-preto colocando-me em pé e me dando um soco no estômago, só por garantia. Quando meus olhos pararam de lacrimejar, vi que Simon também tinha sido capturado e que Zê e Lucy estavam presos com firmeza pela garganta. Dois dos cães ainda se banqueteavam com os restos de Roke, os focinhos ensanguentados levantando-se uma vez ou outra para farejar o ar. O terceiro tinha conseguido entrar no jipe, uivando com sua garganta gorgolejante. Um último tiro, de partir o coração, ecoou de dentro do automóvel, seguido das últimas e indecifráveis palavras de Atilio. Depois, só silêncio.

Os guardas que Atilio tinha matado não iriam mais a lugar nenhum, tampouco aquele cujo pescoço eu tinha quebrado. Só um dos ternos-pretos derrubados tentava se levantar, ele e os demais me encarando intensamente, o sorriso sumindo do rosto. Lancei para eles meu sorriso, alimentado pelo néctar. Deviam ter aprendido a não me subestimar lá na prisão.

— E agora? — perguntei. — Vocês não podem me matar. O chefe de vocês me quer vivo.

Os ternos-pretos que não usavam braçadeira começaram a rir daquele jeito irritante que lhes era característico. Os demais pareciam desconfortáveis, embora eu não tivesse a menor ideia do porquê. Percebi que um deles estava no rádio, ouvindo com atenção alguém do outro lado. Lembrei-me das palavras de Furnace, de seu convite para a torre. Eles não iam me matar; isso era impossível quando o mestre, o criador deles, esperava que eu fizesse minha escolha; quando esperava que eu escolhesse o lado em que lutaria. Pelo menos, era nisso que eu apostava.

— Ei, Sawyer — disse o terno-preto com o rádio. — É pra você.

Ele se aproximou, estendendo o rádio para que eu pudesse ouvir a voz do outro lado. Ela saiu arranhando o alto-falante como cascalho, assustadoramente familiar.

— Eu avisei você — disse o diretor, cada palavra uma pontada em meus ouvidos. — Avisei que sua traição custaria caro. Olha só o que fez. Veja a destruição que você causou à sua própria cidade. E isso é só o começo. Esta é a sua punição: saber para sempre que foi o responsável pelo fim do mundo.

— Pois é, não é mesmo? — falei, meu coração batendo com tanta força que conseguia senti-lo nas minhas palavras. — E, quando estiver deitado na mesa de cirurgia sendo feito em retalhos pelos seus monstros, vou lamentar meu erro. Vamos lá, Cross, já ouvi isso tudo antes.

Do rádio veio uma explosão de estática, que deve ter sido uma risada.

— Ah, não, Sawyer, nada disso, nada disso — falou o diretor, e, mesmo sem vê-lo, soube que aquele sorriso de cadáver estampava seu rosto. — O doutor Furnace pode querer você vivo, mas eu, não. Já perdi tempo demais com você. Dê mais uma olhada na cidade, Alex; dê mais uma olhada no mundo que criou. Porque vai ser a última vez que você vai vê-lo.

O terno-preto afastou o rádio, mas não antes que eu ouvisse as últimas palavras do diretor:

— Mate-os! — disse. — Todos eles.


MUTAÇÃO

Achei que fossem me atormentar um pouco, esfregando na minha cara a inevitabilidade de minha morte, como sempre faziam, movidos pelo doentio senso de humor que todos os ternos-pretos possuíam.

Eu estava errado.

O terno-preto mais próximo ergueu sua espingarda, apontou para meu peito e, sem uma palavra ou risadinha, puxou o gatilho.

O mundo se desfez, virando um borrão de céu, concreto e ternos-pretos dissolvidos numa espiral nauseante. Percebi que estava em pleno ar e, por um instante, perguntei-me se tinha conseguido me livrar daquele corpo grotesco, se aquele punhado de chumbo, de algum modo, me libertara da maldição do diretor, deixando meu espírito pairar em liberdade à luz do sol.

Então caí no chão, minha carne me envolvendo ainda mais apertado do que antes. E dessa vez havia dor, não a coceira do néctar, mas uma dor atroz, como se um ralador de queijo estivesse sendo esfregado no interior do meu peito. Tentei levantar a mão, sentir o ferimento que a espingarda tinha aberto, mas nada parecia funcionar. Não tinha controle do meu corpo. Era o capitão de um navio que afundava, meu corpo lentamente imergindo nas profundezas sem que eu pudesse fazer nada a respeito.

Ouvi mais um tiro, o rosnado de cachorros, um grito. Era Zê que eu ouvia gritando “não” de novo e de novo, a plenos pulmões? Ou era um terno-preto?

Afundei nas ondas da inconsciência, o mundo desaparecendo por um segundo, talvez uma hora. Lutei contra aquilo, tentei manter minha cabeça acima da escuridão. A dor em meu peito pulsava com força, e foi por genuína força de vontade que consegui abrir os olhos. A luz do sol foi fazendo seu caminho entre eles, e para além do ofuscamento consegui enxergar o que tinham feito comigo.

Meu braço — aquele que estava em mutação — tinha levado a pior no tiro. Havia sido praticamente arrancado. Só havia um naco de osso no ombro e alguns fios de tendões retorcidos conectando-o ao corpo. O membro estava sobre meu peito, escondendo outro buraco do qual jorrava um sangue sujo. O impacto devia ter arrebentado minhas algemas, porque não vi mais nenhuma. Gritei em silêncio, meus pulmões recusando-se a emprestar o precioso ar ao meu medo, à minha descrença. O néctar jorrava da artéria dilacerada em meu braço, formando uma poça embaixo de mim, gotejando no concreto cozido pelo sol.

Mas era aquilo mesmo? Pisquei diante da luz, tentando entender o que estava vendo. O néctar era bombeado para fora do meu corpo, mas não se espalhava. Parecia ter formado uma teia negra entre as duas metades do meu braço, como se uma aranha estivesse dando duro ali. A pele do meu membro arruinado se refazia, inchando em vez de encolher, quase como se respirasse por conta própria.

E, dentro do néctar, eu via fragmentos de fogo, flocos vermelhos que ardiam sob o sol matinal ao lado dos flocos dourados.

— Vamos deixá-los para os cachorros — ouvi um terno-preto bradar, seguido de mais gritos. E depois outra voz, com certeza a de um terno-preto, mandando alguém parar. Os guardas começaram a discutir, mas eu não conseguia entender o que diziam. Não conseguia entender o que estava acontecendo ali, meus olhos recusando-se a focar qualquer coisa que não fosse meu ferimento. Era como se cada recurso individual do meu corpo estivesse sendo desviado para meu braço, o néctar fazendo o que podia para tapar uma ferida que deveria ter sido fatal.

A teia se retorcia em fios mais grossos, que formavam nós, como se um par de mãos invisíveis a manipulasse. O líquido negro agora tinha coberto meu braço inteiro, dos dedos até os ossos expostos do ombro. Ele parecia ter queimado até esturricar, só que a sensação era refrescante, como se uma brisa soprasse contra minha pele. Pouco a pouco, incrivelmente, a dor diminuía, voltando a ser aquela coceira enfurecedora e impossível de abrandar que eu conhecia tão bem.

Ouvi um terno-preto soltar um palavrão, uma silhueta negra erguendo-se acima de mim, lançando o mundo nas sombras.

— Vamos lá, acabe com ele. E dessa vez faça direito.

— Não, o doutor Furnace proibiu. Saia daqui. É uma ordem!

— Que se danem as suas ordens!

Ouvi o ruído da espingarda em movimento, o cheiro acre de pólvora espetando minhas narinas. Pisquei duas vezes, o mundo lentamente recuperando sua forma e revelando o cano fumegante da arma, como um buraco negro em minha visão.

Movi-me antes mesmo de perceber, meu braço ferido e enegrecido erguendo-se do meu peito e batendo na arma bem na hora em que o terno-preto puxou o gatilho. Claro que ele não esperava que eu me mexesse, porque a arma caiu ruidosamente de suas mãos e o tiro que ele disparou abriu um buraco no concreto a centímetros da minha cabeça, fazendo com que meu ouvido mergulhasse em silêncio.

O terno-preto curvou-se para pegar a espingarda, mas o mesmo braço — aquele que tinha sido quase dividido em dois, que não devia ser nada além de um pedaço de carne no chão do estacionamento — se moveu e o agarrou pelo pescoço. Observei, em parte horrorizado, em parte fascinado, fios de néctar saindo do meu punho como caudas de escorpião, precipitando-se para a frente e furando a garganta do terno-preto. Ele tentou se afastar, mas o néctar não deixava, a garra se prendendo à sua carne, alojando-se ali até que seus olhos perdessem a cor, mudando de prata para chumbo.

Eu não sabia o que estava acontecendo. Nem queria. Tudo o que sabia era que a força se espalhava novamente pelo meu corpo; que a insaciável sede de sangue provocada pelo néctar estava assumindo o comando. Meu braço parecia ter vida própria, jogando o cadáver do terno-preto para um lado e despejando néctar no chão.

Levantei-me, e dessa vez, quando estiquei a perna, as algemas que prendiam meus tornozelos se partiram, como se fossem feitas de seda. Enquanto um lado da minha cabeça zumbia, o outro estava imerso em silêncio, fazendo com que me sentisse ainda mais desequilibrado. O mundo parecia ter ficado lento de novo, os ternos-pretos arrastando-se em minha direção como marionetes desajeitadas, disparando tiros que estavam longe demais para causar qualquer dano. Em algum momento dessa confusão, reparei que Zê, Simon e Lucy corriam para a rampa que levava ao andar de baixo do estacionamento.

E, ao lado deles... havia dois ternos-pretos em combate?

Outro deles puxava um cão de dentro de um jipe do exército, gritando. Ainda que não conseguisse ouvi-lo, pude ler seus lábios: Vá matá-lo, garoto. Mas o cachorro não queria nem saber; seu olhar recusava-se a cruzar com o meu, o corpo se encolhendo, o rabo entre as pernas. Observei-o voltar-se contra o terno-preto, cravando os dentes em seu braço e em seguida recuando, as orelhas achatadas contra a cabeça. Os outros dois ternos-pretos seguiam o movimento com olhares nervosos, e eu não podia culpá-los.

Eu estava em mutação, e bem rápida.

Meu braço parecia ter dobrado de tamanho durante os segundos que levei para ficar em pé, pendendo do meu ombro como um galho quebrado. Meus dedos agora iam até abaixo dos meus joelhos, ainda cobertos de néctar, cristalizados com reluzentes galáxias vermelhas, mas de algum modo sendo fundidos numa lâmina de ônix. Tentei movê-los, separá-los, agitá-los, qualquer coisa. Mas estavam grudados.

— Não! — me ouvi gritar, batendo no meu braço com a outra mão, a boa. Teria sido melhor se o membro mutante tivesse sido amputado; melhor passar o resto da vida só com um braço do que me transformar em um deles.

Um terno-preto apareceu de repente diante de mim. Hesitei, mas outra vez meu braço sabia o que fazer: o néctar dentro de mim o operava automaticamente. Ele se torceu para trás e em seguida se projetou para a frente como uma lança, meus dedos rasgando a barriga do terno-preto. Sua boca se abriu em surpresa, e ele olhou meu braço dentro de suas entranhas, chegando até o ombro. Ele o segurou, balançando a cabeça, sem acreditar.

Com um rosnado de esforço girei meu corpo, lançando o terno-preto para bem longe. Ele deslizou do meu braço, caindo e rolando pelo piso, escorregando até parar de lado, a luz do sol passando pelo buraco em seu tronco. Vê-lo ali, saber o que eu tinha feito — tudo isso era um peso para os meus pensamentos, uma pressão que afastava tudo o mais. Rosnei, o ruído pulsando garganta acima, e sorri.

Não!, gritei de novo, mas dessa vez apenas na minha cabeça, um som perdido num mar crescente de néctar. Examinei o estacionamento, vendo os ternos-pretos se aproximarem, os olhos repletos de medo. Naquele momento eram apenas carne, já morta, ainda que não soubessem disso.

Nenhum deles podia me enfrentar. Era impossível me deter.

Fui para cima do terno-preto mais próximo, quando ouvi o som do trovão acima da minha cabeça. Uma sombra lançou-se sobre o espaço e, virando-me um pouco, vi um helicóptero pairando próximo à extremidade do prédio. Ouviu-se um chiado, como o de uma cobra, e quatro mísseis deslizaram dos lançadores, dois de cada lado, vindo direto para nós. Três passaram por cima da minha cabeça, e ataquei o quarto, conseguindo afastá-lo como se fosse uma mosca. Ele partiu numa tangente, acertando as vans do outro lado e detonando-as na forma de uma bola de fogo do tamanho de uma casa. O solo estremeceu quando os outros três mísseis encontraram seu alvo, um punhado de calor e estrondo catapultando-me sobre o concreto.

Alguma coisa interrompia o fluxo do néctar, e percebi que era medo. O ar estava em chamas, trazendo uma dor excruciante a cada inspiração. Por todo lado havia calor e fumaça e, acima, o zumbido incansável do helicóptero. Mais um chiado, outros dois rastros brancos cortando o céu e causando outra onda de destruição. As chamas à minha volta dançavam, curvando-se e despejando-se, como se eu estivesse nadando num oceano incendiado. Se eu não me mexesse imediatamente, seria queimado vivo.

Mas não havia para onde ir.

Entrei em pânico, protegendo o rosto com meu enorme braço. Teria que sair correndo em meio às chamas. Não conseguia sequer manter os olhos abertos, o calor os ressecava. Estava quente a ponto de os meus cílios quase pegarem fogo.

Passei a correr, mantendo os olhos fechados, uma das mãos erguida à frente. Bati em alguma coisa macia, que saiu voando. Em seguida tudo ficou branco, uma luz tão ofuscante que parecia ecoar até em meus ouvidos. Meus tênis começaram a grudar, derretendo no concreto, mas continuei correndo, sem respirar, sem olhar, sem sentir, só jogando um pé na frente do outro.

Bati numa parede, e o impacto me jogou por sobre ela. Comecei a cair. Acertei algo sólido, rápido demais para ser a rua abaixo. Arrisquei abrir os olhos, para descobrir que tinha aterrissado na rampa. As chamas haviam tomado conta das minhas roupas, queimando a carinha sorridente no que tinha restado do meu moletom, e eu as apaguei com as mãos assim que fiquei em pé.

Acima de mim, por uma abertura, notei que o céu ardia e segui rampa abaixo até a gloriosa escuridão do andar inferior. Saltei a barreira do andar de baixo e continuei descendo, andar por andar, até que a carnificina se tornasse um mero murmúrio acima de mim. Oito andares depois, estava de volta ao solo maciço, as luzes do estacionamento agora apagadas e uma chuva constante de pó gotejando das calhas de aço.

Encostei-me na parede, o corpo exausto, meu braço tão pesado que parecia ter sido estufado com pedras. A aparência, aliás, era mesmo esta: a pele esticada pelos músculos expandidos, roçando arestas afiadas que só podiam ser ossos. Feixes bizarros de néctar saíam do meu punho, ondulantes como plantas marinhas. O braço era um caos só, e eu queria apenas achar um serrote e me livrar dele, cortá-lo antes que o que quer que estivesse dentro dele começasse a se espalhar. O que a capitã Atilio tinha dito mesmo sobre a peste na cidade? Que ela era como uma artéria aberta; você tinha de conter o fluxo antes que ela esvaziasse. Dentro de mim era a mesma coisa. Se não detivesse aquilo agora, seria tarde demais. Eu viraria um deles.

Viraria um viking.

Desde o instante em que meu braço começara a crescer tinha suspeitado disso, mas essa era a primeira vez que admitia aquilo para mim mesmo. Não havia como negar. O ferimento da mordida, a infecção, o néctar de flocos vermelhos que de algum modo se espalhava dentro de mim. Eu estava em mutação. O membro amarrado que pendia do meu ombro poderia tranquilamente ter pertencido ao viking que havia enfrentado na prisão, uma arma de cor preto-besouro que cabia bem em algum pesadelo, mas não em mim.

Fui distraído pelo som de uma porta se abrindo mais adiante no estacionamento. Três silhuetas conhecidas saíram dela, examinando as sombras antes de partir correndo rumo à entrada ensolarada. Abaixei-me e me ocultei na escuridão. Era melhor que não me vissem. Teriam mais chances de sobreviver se eu não estivesse com eles.

Mas acho que, depois que você passou por tanta coisa com alguém, quando foi ao inferno e voltou com essa pessoa, quando passou pelo pior que existe no mundo e riu junto, mesmo quando a morte está bem ali na esquina, você cria um laço com ela, um elo que não pode existir e, no entanto, existe mesmo assim. Porque, no momento em que subiam, sumindo no borrão dourado do dia, uma das figuras parou e se virou devagar.

— Alex? — chamou Zê, os olhos esquadrinhando o estacionamento e enfim me encontrando. Encolhi-me ainda mais contra o concreto úmido, mas no instante seguinte ele estava ali, banhando-me com um sorriso enorme. Simon apareceu ao lado dele, o sorriso menos largo, mas igualmente bem-vindo. — Vamos — disse Zê, oferecendo-me a mão. Não a aceitei, e ele me puxou pelo braço transformado, gemendo diante da temperatura quente dele, mas ainda assim sem desistir. Simon o ajudou.

— Que bom que agora eu não sou o único que pesa mais de um lado — disse Simon. — Você está começando a fazer com que me sinta quase uma pessoa normal.

Juntos eles me ajudaram a levantar, Simon colocando meu braço sobre os ombros dele, para me ajudar a suportar meu próprio peso.

— Precisamos dar o fora daqui — disse Zê enquanto nos arrastávamos para a frente, parecendo competidores numa bizarra corrida de três pernas. Lucy nos esperava perto de uma pilastra, olhando-me de um modo ainda mais desconfortável que antes. — Se o exército vir você assim, transformado, vai explodi-lo em pedaços rapidinho.

Já estávamos a meio caminho da rampa de entrada quando a porta da escada abriu de novo. Dessa vez foi um terno-preto que desabou dela, a braçadeira vermelha amarrotada em volta do cotovelo. Ele tossia enquanto abria caminho em direção à luz, tão aliviado por estar ali que nem reparou em nós.

— Vamos sair daqui — falei, desvencilhando-me de Simon e lançando um olhar zangado para o terno-preto que se esforçava para subir a rampa. — Mas tem uma pessoa com quem quero ter uma conversinha primeiro.


INFORMAÇÕES

Dez minutos depois eu estava sentado numa pequena lanchonete a três ruas dali, olhando o movimento através das vitrines engorduradas enquanto mais um comboio de jipes passava. Aquele era o segundo que víamos desde que tínhamos deixado o estacionamento. Todos dirigiam-se para a cidade, mais e mais carne para o banquete dos vikings e dos ratos.

Zê estava ocupado, bloqueando a porta dos fundos da lanchonete que tínhamos arrombado, e Lucy mexia no celular, batendo-o contra o balcão várias vezes, frustrada. Simon estava agachado no chão, ao lado de um terno-preto inconsciente. Nós o havíamos amarrado com os fios dos eletrodomésticos.

A saída do estacionamento não tinha apresentado nenhuma dificuldade. O terno-preto nem me ouviu chegando, o que não me surpreendeu, considerando o número de queimaduras que cobriam seu couro cabeludo nu. Um único golpe com o meu novo braço foi suficiente, e em seguida o coloquei por cima do ombro e segui Zê, que nos guiou para a rua.

Os helicópteros — três — estavam ocupados bombardeando os andares superiores do estacionamento com mais mísseis incendiários, e a fumaça era espessa demais para que reparassem em nós. Havia tropas em terra também, uma longa fila de caminhões, tanques e a infantaria, todos vindos do oeste. Tínhamos seguido na direção oposta sem sermos vistos, em meio aos destroços da cidade, parando enfim quando o terno-preto começou a pesar demais.

— Bom, isso não vai manter afastado ninguém que queira realmente entrar — veio a voz de Zê. — Mas duvido que alguém repare que arrombamos a tranca. Ele já acordou? — Afastei-me da vitrine e vi Zê andar em meio a algumas poucas mesas que ocupavam o espaço do tamanho de uma sala de estar, descendo os olhos para o terno-preto que roncava de leve. — Acho que não. Você deve ter acertado ele em cheio.

— Que droga! — gritou Lucy, jogando o telefone contra a parede. — Todo número que eu tento só faz bipe, bipe, bipe.

Ela colocou a mão dentro da gola da camiseta e tirou o pequeno medalhão de prata que usava. O objeto cintilou entre seus dedos, a coisa mais luminosa do ambiente.

— E daqui, pra onde a gente vai? — continuou ela, agora sem raiva na voz, só exaustão e desespero. Encostou os cotovelos no balcão, deixando a cabeça pender nas mãos. — Quero ir pra casa. Não quero mais ficar aqui. Não posso nem ligar pra minha mãe pra dizer que estou bem. — Ela chorava com as mãos no rosto, sem soltar o medalhão.

— Foi ela que te deu esse medalhão? — perguntei. Ela o olhou por um instante, como se nunca o tivesse visto, e em seguida me encarou.

— O que você tem a ver com isso? — disparou ela.

— Desculpe — disse eu, erguendo as mãos. — Só queria demonstrar interesse.

— Bom, não precisa — ela respondeu, escondendo o medalhão e debruçando-se outra vez sobre o balcão.

Zê passou o braço pelos ombros dela.

— Vai ficar tudo bem, Lucy — falou ele. — Sei que vai. As coisas podem parecer ruins agora, mas...

Ele ficou sem palavras.

— Puxa, obrigado pelo consolo, Zê — disse Simon. — Estou me sentindo muito melhor agora.

Ri, e a sensação foi boa. Até Lucy abriu um sorriso. Mas Zê tinha razão; as coisas poderiam ser piores. Eu tinha sofrido algumas queimaduras ao correr pelo fogo, mas fora isso meu corpo parecia ter se curado por completo. A embriaguez do néctar tinha se dissipado durante o tempo que levamos para andar até ali, deixando-me apenas com a sensação desagradável de uma dor de cabeça.

Zê pegou um saleiro, examinando-o como se ele fosse dar alguma pista sobre como sair da cidade.

— Então, para onde é que a gente vai? — perguntou ele, cutucando o terno-preto com o pé. Ele tinha tirado a braçadeira do guarda para olhá-la melhor, o inconfundível logotipo de Furnace sobre o fundo vermelho parecendo mais do que nunca uma suástica. — E por que a gente arrastou esse paspalho pra cá?

— Pra tirar informações dele — respondi.

— Você acha que ele conhece algum caminho seguro para fora da cidade? — perguntou Lucy.

Fiz que não com a cabeça. Não era isso que eu tinha em mente. Zê colocou o saleiro de volta no lugar e indicou meu braço com a cabeça.

— Dói? — perguntou. Levantei a mão, os dedos ainda unidos pelo néctar, moldados numa ponta letal que parecia afiada e dura como uma pedra lascada. Aquela forma parecia bem distante do que tinha sido minha mão, o braço agora duas vezes maior do que antes, com nós e cicatrizes feito madeira velha. Balancei a cabeça de novo. Não doía, não fisicamente, pelo menos.

Um rosnado veio do chão. O ronco do terno-preto havia se tornado um gemido.

— Aí vem ele — disse Simon, colocando-se de joelhos, pronto para segurar o guarda caso fosse necessário. Os olhos do terno-preto abriram com um tremor e, na escuridão da loja, não pareciam nem um pouco prateados, e sim azul-claros — os olhos de uma criança. Então vi as lembranças inundar de novo o rosto do terno-preto, e de repente seu olhar ganhou ferocidade, um fogo gélido retornando a suas pupilas. Ele lutou para se levantar, mas só conseguiu chutar uma das mesas pelo salão, as cordas firmes enquanto ele se agitava pelo chão como um peixe fora d‘água. Simon pressionou as duas mãos contra seu peito até o homem parar de se contorcer.

— Vocês vão pagar por isso quando me encontrarem — rosnou o terno-preto, encarando-nos um por um. — E vai ser um pagamento dolorido.

— Ninguém vai encontrar você — respondi. — Pelo menos, não inteiro.

Levantei o braço, exibindo a lâmina em que minha mão tinha se transformado, e o semblante dele pareceu se derreter.

— Você sabe o que está acontecendo comigo — disse eu, a frase uma afirmação em vez de uma pergunta. Ele olhou meu braço e fez que sim com a cabeça. Seu cabelo tinha sido consumido pelo fogo, os restos chamuscados parecendo uma touca ondulante em sua cabeça. — O que virá em seguida?

— Ah, logo, logo você vai descobrir — disse o terno-preto, sorrindo em seguida. — Assim que estiver fazendo seus amigos aqui em mil pedacinhos.

Simon o atacou, dando um tapa na cara do terno-preto. O guarda cuspiu um bocado de sangue antes de se virar para mim de novo.

— Você não pode fugir. Não pode se esconder. Tem sangue de viking nadando em suas veias traidoras. Você não pode nem tirar a própria vida. — Ele riu, e o som preencheu o pequeno espaço. — Porque o néctar vai fazer você voltar. Ele nunca vai deixá-lo.

O guarda começou a tossir. Cuspe flocado de negro era lançado para cima.

— Como é que o néctar faz isso? — perguntei, a raiva aumentando, alimentada por medo e confusão. — Como posso estar virando um deles? Não faz sentido. O diretor nunca falou nada sobre isso.

— O diretor? — cuspiu o terno-preto, a voz dele um riso ofegante. — Não, aquele traste inútil não sabe nem de metade da história. O Cross pode achar que está no comando, mas só obedecemos a um homem, e não é a ele. O que você está vendo agora é novo, é algo que Furnace estava guardando em segredo. Já reparou na diferença? Esse néctar vem com flocos vermelhos. É cem vezes mais poderoso do que aquela aguinha mansa que ele dá para o diretor Cross brincar. Esse néctar foi projetado para fazer muito mais do que transformar um bando de prisioneiros ridículos em guardas.

— A gente já sabe. Está se espalhando feito uma peste — disse Zê.

O terno-preto voltou seu olhar para ele.

— Ah, é pior — falou. — Muito pior. — Ele virou seu sorriso impiedoso para mim. — Especialmente pra você, Sawyer.

— O que eu tenho de tão especial? — perguntei. — Por que Furnace quer que eu permaneça vivo? Por que os vikings dele não tentaram me matar?

O terno-preto deu de ombros.

— A única pessoa que pode responder isso é o Furnace — disse ele. — Ele quer você para alguma coisa, e, acredite em mim, não vai ser nada de que você vá gostar. Se quer saber minha opinião, é porque você passou a perna no Cross, e nunca ninguém tinha conseguido fazer isso antes. Você criou inimigos poderosos. — Ele tossiu sangue na lapela do paletó. — Para mim, Furnace quer acabar com você pessoalmente, com toda a calma.

Recostei-me, dando um soco de frustração na parede. As respostas do terno-preto só tinham servido para me deixar ainda mais confuso.

Zê tentou outra estratégia.

— Não é tarde demais — disse ele ao terno-preto. — Você ainda pode ser quem era, fazer alguma coisa pra acabar com isso. Sei que por dentro você é só um garoto, igual a nós. Sei o que o diretor fez com você lá em Furnace. Ajude a gente a sair daqui, e falaremos em sua defesa. Você vai ter imunidade. Pode até ganhar um prêmio. Pode ter sua vida antiga de volta.

Os olhos do terno-preto se arregalaram, e ele começou a rir de novo, o som reverberando como tosse seca.

— Acha que eu venho da prisão? — perguntou ele. — Daquele buraco?

Olhei para Zê e em seguida para Simon, todos nós igualmente confusos. O terno-preto viu nossa expressão e cuspiu outra risada.

— Vocês realmente não têm ideia, não é mesmo? Estão na pior e nem têm ideia. A prisão era só parte do negócio. Um projeto paralelo, para deixar Cross ocupado, para deixar aquelas mãos intrometidas dele fora do caminho. Só a ralé vem de lá, os espécimes inferiores. — Ele cuspiu esse último comentário olhando para mim. — Nós, nós somos os puros-sangues, criados por Furnace em pessoa. Só nós podemos usar a divisa. — A mão dele dirigiu-se quase automaticamente para o braço, para o lugar onde ficava a braçadeira.

Fiquei ali sentado, boquiaberto, sem conseguir acreditar no que ouvia. Sempre tinha achado que a prisão, a Penitenciária de Furnace, era o quartel-general dos planos de Furnace, e durante todo esse tempo ela não tinha sido nada além de uma distração.

— Então você é de onde? — perguntei. — O que você era?

— O que eu era? Não era nada — respondeu o terno-preto. — O que eu sou é um soldado do novo mundo. Vamos queimar este país inteiro, e nosso fogo vai se espalhar. Quando terminarmos com o plano, não vai mais haver fraqueza no mundo. Só força, só poder.

Eu já tinha ouvido esse discurso da boca do diretor, na prisão, e da boca do próprio Furnace, martelado no meu crânio por meio do néctar nas minhas veias.

— Mas onde você foi feito? — perguntei, dando um passo à frente e direcionando minha mão mutante para sua garganta. — Onde você foi transformado?

— Na torre. — A resposta veio de Simon, e não do guarda. — Na torre. Lembra da visão? Aposto com você que foi lá que esse verme foi criado.

— E é lá que Furnace está — acrescentei. — Certo?

O terno-preto limitou-se a me dar um sorriso sarcástico. Essa era a confirmação de que eu precisava. Imaginei o arranha-céu que tinha aparecido na minha visão, os horrores que tinha visto através das janelas, o modo como ele ficava no meio da cidade em chamas, como um trono no centro do inferno, e a fera que uivava no pináculo, observando seu novo reino nascer.

— Não importa — disse o terno-preto. — Você não pode detê-lo. Não agora. Nada mais pode detê-lo.

— Nesse caso, talvez você não se importe em me dizer uma coisa — falei. Inclinei-me para o terno-preto, apertei meus novos dedos contra sua traqueia e sibilei: — Como a gente faz pra entrar lá?


HAMBÚRGUERES

— Se você for até a torre, vai morrer — disse Zê, muito depois de o eco de minhas palavras ter desaparecido.

— Já morri — retruquei, balançando o braço deformado diante dele. O vírus dentro de mim, se é que era isso que aquilo era, já se espalhava. Podia senti-lo no meu pescoço, nos tendões que se expandiam, algo crescendo sob minha pele feito um tumor, tornando difícil para mim virar a cabeça para o lado direito. — Olhe pra mim, Zê, eu já morri. O que mais posso fazer?

— Vir conosco — respondeu ele. — Sair da cidade, encontrar o centro de comando de que a capitã Atilio falou. Ela disse que lá estava a Inteligência, cientistas. Eles vão conseguir ajudar você.

Ao ouvir isso, o terno-preto soltou uma risada abafada. Fiz o que pude para ignorá-lo.

— E se não conseguirem? — perguntei. E não acrescentei: E se eles decidirem que querem me abrir todo, examinar cada pedacinho meu para descobrir por que estou em mutação, para botar as mãos no néctar?

Zê deu de ombros.

— Melhor do que se entregar pra ele. Furnace consegue entrar na sua cabeça estando do outro lado da cidade; o que acha que ele vai fazer quando você estiver bem debaixo do nariz dele? Como sabe que não vai ficar sob o controle dele assim que chegar na torre?

— Porque eu sou mais forte — respondi, mas não consegui olhá-lo nos olhos enquanto falava. Era isso que me preocupava, mais do que tudo. Chegar à torre e cair no feitiço de Furnace. Tinha receio de que aquela empolgação de revirar as entranhas que sentia quando ouvia a voz dele, algo que certamente tinha a ver com o néctar, não comigo, ficasse forte demais. Balancei a cabeça para afastar meus medos. — Isso que você falou não vai acontecer. Vou encontrar Furnace, e vou matá-lo.

— Homens melhores que você já tentaram — interrompeu o terno-preto. — Você não vai nem chegar perto dele.

— Ah, é? Bem, vamos ver — cuspi em resposta, sentindo-me mais criança do que nunca. — Agora me diga o que a gente quer saber. Como a gente faz pra chegar na torre?

— A gente? — soltou Zê, olhando para Simon. Mas nem prestei atenção, concentrando-me no murmúrio abafado do riso do terno-preto.

— De mim, você não precisa de nada — ele acabou dizendo. — Você é um de nós, pode ir e vir quando quiser. A torre agora é sua casa; uma delas, ao menos. Quer saber como entrar? É só atravessar a porta da frente.

E talvez tenha sido essa a verdadeira razão para o que quase fiz em seguida. Não que quiséssemos informações; não que achássemos que ele escondia alguma coisa. Mas como ele falou essas últimas palavras deliciado, sem que aquele sorrisinho convencido jamais saísse de seus lábios, eu o odiei por isso.

Cheguei a ligar a chapa e arrastar o terno-preto para a cozinha minúscula. E quase o queimei; cheguei bem perto disso. Não foi culpa do néctar dessa vez, ainda que ele se precipitasse, agitado, diante da ideia do que estava por vir. Não; cada pessoa do planeta traz dentro de si a escuridão, soterrada tão fundo que você só sabe que ela está lá quando seu mundo está perto do fim. Ah, mas que ela está lá, está. Sempre está.

Mas não fiz isso. Não conseguiria. Se o tivesse queimado, se tivesse pressionado o rosto do terno-preto contra o metal incandescente, tudo teria acabado. E eu jamais encontraria o caminho de volta.

E, no final, nem precisei. Ele devia ter sentido a raiva fervilhando dentro de mim, porque nos contou tudo de que precisávamos saber.

Depois ficou deitado ao lado da chapa fumegante, largado no chão, sem sorrisinhos nem risadinhas. Nós quatro sentamos nas cadeiras do outro lado do balcão, ouvindo o som dos tiros e de helicópteros do outro lado da cidade.

— Acha que ele está dizendo a verdade? — perguntou Simon.

Fiz que sim com a cabeça, recordando a maneira como o terno-preto tinha berrado as palavras para nós quando o seguramos perto da chapa, o calor subindo contra as queimaduras que ele já tinha ganhado no estacionamento. Segundo ele, havia túneis sob a torre, projetados para o transporte discreto de equipamentos e espécimes. Nenhum dos túneis ia longe — nenhum dava na prisão tampouco, o que era um alívio —, e a maioria era ligada a lojas nas ruas próximas. Ele nos deu o local de uma conexão direta com o porão da torre, uma funerária a cerca de um quilômetro e meio a leste.

Provavelmente ele estava certo. Provavelmente eu poderia ter entrado pela porta da frente da torre. Afinal, Furnace havia me convidado. Ele me esperava. Mas era esse o problema. Para termos alguma chance de vencer aquela batalha, tínhamos de surpreendê-lo. Tínhamos de entrar na torre e derrubá-la antes que ele imaginasse que estávamos ali.

— De um jeito ou de outro, precisamos tentar — disse eu. — Não temos escolha.

— Temos escolha, sim — respondeu Lucy, levantando a cabeça do ombro de Zê e encarando-me com aqueles olhos intensos dela. — Temos um milhão de escolhas.

Encarei-a em resposta, mas meu olhar estava cheio de tristeza.

— Pois é — sussurrei. — Você tem escolha. Você e Zê. Vocês dois são normais, podem voltar pra vida de vocês. — Olhei para Simon, seu braço ainda descomunal, mas nem de longe tanto quanto o meu. Ele podia dizer que aquilo era resultado de um acidente bizarro, de uma doença de infância, e talvez um dia ele mesmo viesse a acreditar nisso se tivesse a sorte de esquecer a verdade. — Você também — continuei. — Pode sair da cidade, sair do país, e vai estar livre. Você tem todas as escolhas do mundo.

— Se é que vai sobrar algum mundo — disse Zê, enxugando os olhos antes de encontrar os meus.

— Pois é — falei. — Isso aqui não é um ataque terrorista. Não é um dia de caos, um mês de luto e, depois, vida normal. É uma invasão. Uma guerra. Está acontecendo agora mesmo, ali, naquelas ruas. E não vai terminar hoje. Pode não terminar nunca.

Todos olharam para mim, e eu quase podia ler o que se passava na cabeça deles: Mas essa luta não é nossa; vamos deixá-la para as Forças Armadas. Não tem nada que a gente possa fazer. Ninguém falou aquelas palavras em voz alta, porém. Não acreditavam nelas de verdade.

— E todos vimos o que está acontecendo — falei. — Na catedral. Vocês viram com que rapidez aquelas pessoas passaram de gente normal a malucos ensandecidos. Esse tipo de coisa vai acontecer por toda parte. Esta cidade, o planeta inteiro, vai se destruir antes que ele tenha a chance de fazer isso.

Eu me atrapalhava com o discurso, as palavras se perdendo antes mesmo de eu começar a falar. Mais do que nunca, quis que Donovan estivesse ali. Ele teria sido capaz de unir todo mundo com algumas piadas e aquele sorriso que ele tinha. A cidade inteira o seguiria até a torre, todos segurando tochas. Mas Donovan estava morto.

— E aí? — perguntou Simon. — Vai entrar lá e simplesmente pedir a Furnace que se entregue sem fazer confusão?

Levantei-me, passando a mão boa pela cabeça. Ao afastá-la, reparei em um punhado de cabelo preso entre meus dedos; eles se soltavam da minha cabeça como grama morta. Pensar em Donovan trouxe de volta memórias agridoces, e lembrei que eu tinha deixado a chapa ligada, e a pequena lanchonete agora estava quente feito uma sauna. Apenas dez minutos atrás eu havia planejado usá-lo para tortura, mas naquele momento tive uma ideia melhor.

— Alex? — gritou Simon enquanto eu dava a volta no balcão e ia para a cozinha. — Aonde é que você vai?

— Estou só cumprindo a promessa que fiz a um amigo — falei.

Os hambúrgueres estavam no freezer, envolvidos em papel-manteiga. Tirei cinco, lançando-os por cima do terno-preto e jogando-os na grelha.

— Quer um? — perguntei, mas ele nem levantou os olhos. Não que fosse capaz de comer alguma coisa sólida. Ele, como eu, estava cheio de néctar. Comida de verdade só o faria vomitar. Imediatamente, o cheiro de carne cozinhando crepitou pelo ar, e deve ter atiçado os outros, porque, depois de alguns segundos, eles apareceram na porta da cozinha.

— Você está cozinhando? — perguntou Zê. — Como consegue sentir fome?

Ele, porém, lambia os lábios enquanto falava, as palavras praticamente úmidas de saliva. Tirei uma espátula de um vidro vazio de maionese ao lado da grelha e virei cada um dos hambúrgueres, respirando aquele ar como se fosse oxigênio.

— Posso anotar os pedidos? — perguntei, exibindo um sorriso. — Pode ser nossa última ceia.

— Por quê? Está pensando em envenenar a gente com esses hambúrgueres? — perguntou Lucy, olhando minha mão cheia de sangue seco. Fiz cara feia para ela.

— Alguém viu pão por aí? — perguntei, virando outra vez os hambúrgueres. Zê apareceu com um saco de pães com gergelim, rasgando-o ao meio e colocando quatro no balcão. Fiquei mexendo a cabeça na direção dele até ele entender aonde eu queria chegar, e ele pegou mais um. — Também tem queijo — falei. — Na geladeira, se alguém quiser.

Eles queriam, e eu cuidadosamente ajeitei as fatias sobre os hambúrgueres que já escureciam, aguardando que o queijo começasse a derreter antes de tirá-los um a um do metal e colocá-los nos pães.

— Voilá! — disse, e mesmo que me fosse possível comer duvido que conseguisse forçar qualquer comida a passar pelo nó na minha garganta. Olhei o teto e além dele, onde esperava que meu antigo companheiro de cela estivesse, refestelando-se ao sol. — Esses são pra você, Donovan. Cara, como eu queria que você estivesse aqui pra dividi-los com a gente.

Zê e Simon ficaram calados, os olhos parecendo de vidro na hora em que entreguei os hambúrgueres a eles. Ofereci um a Lucy, mas, a princípio, ela balançou a cabeça.

— Sou vegetariana — começou ela. Então pegou um. — Ah, que se dane, estou morta de fome. Quem é Donovan?

— Era um amigo — disse eu. — É um amigo, ainda que não esteja mais aqui com a gente. É ele a razão de estarmos aqui, de certa maneira. É por causa dele que a gente segue adiante. — Ergui o quinto hambúrguer para o céu, como num brinde. Não tinha bacon nem cebolas, mas acho que ele teria gostado. — Sim, é pra você. — Em seguida, coloquei o hambúrguer cuidadosamente no balcão. Não tinha muita certeza do que fazer com aquilo. Já tinha visto meu pai celebrar amigos mortos derramando uísque no jardim, mas parecia meio idiota jogar um hambúrguer no chão.

Zê, Simon e Lucy repetiram meu brinde, e então todos nós comemos. Não vou conseguir colocar em palavras quanto o hambúrguer estava gostoso e, ainda que tivesse prometido a mim mesmo que não engoliria nada, não consegui me segurar. Dei três bocadas enormes antes que meu corpo reagisse, como eu sabia que reagiria, e corri para a pia, botando tudo para fora.

— Que horrível! — gritou Lucy. — O que você colocou nesses hambúrgueres?

Começamos a rir, com tanta força que precisei me segurar na pia para não cair no chão. Era isso que eu queria dizer quando falei que Donovan era a razão de estarmos ali. O simples fato de pensar nele já me fazia sorrir.

— Vocês são pirados — disse Lucy, e, quando ergui os olhos, vi que ela sorria, mais com os olhos do que com a boca, mas sorria mesmo, abertamente. Zê dava risadinhas e comia ao mesmo tempo, fazendo força para não engasgar. Ele colocou na boca o último pedaço de hambúrguer e, em seguida, indicou com a cabeça o que sobrara no balcão.

— Acha que Donovan se importaria? — perguntou ele, esperançoso. Fiz que sim com a cabeça.

— Acho que ele acabaria com você — respondi. — Mas depois provavelmente te daria o sanduíche.

Zê então pegou-o de supetão, dando a maior mordida que já vi. Espremi as últimas risadas e enxuguei a boca.

— Sabe, se Donovan estivesse aqui, ele saberia o que fazer — falei. — Ele nos levaria direto para aquela torre e mataria Furnace sozinho.

— Está de brincadeira? — disse Zê com a boca cheia. — Donovan? Ele já teria dado no pé, deixando a bagunça pra gente limpar.

— É verdade. Acho que ele faria isso mesmo — admiti, e todos começamos a rir de novo, até Lucy. — Não, sério, acho que ele saberia o que fazer. E acho que ele faria a coisa certa.

— Ok, ok. Parabéns, você nos fez sentir culpados, e agora somos todos ouvidos. — Ele me encarou, subitamente sério. — Então diz aí: qual é o plano?


DISPERSAR

Eu não tinha plano nenhum. Claro que não. Eu não era um general, nem era muito inteligente. Era só um garoto que queria se vingar. Eu queria matar Alfredo Furnace. Alfredo Furnace estava na torre. Então precisávamos ir até lá. Pronto, eis minha estratégia.

Ela foi recebida por três expressões que estavam longe de se mostrar impressionadas. Zê enfiou o resto do hambúrguer de Donovan na boca, engolindo-o sem mastigar.

— Melhor ter certeza de que esse terno-preto não vai contar pra todo mundo o que você acabou de dizer — balbuciou, limpando os lábios com a blusa. — Porque seria uma pena ver esse plano maravilhoso dar errado.

Sarcasmo. Exatamente o que eu precisava.

— Mas, falando sério — disse Lucy —, se esse é todo o seu plano, então vou dar o fora. Isso aí é como andar em direção ao túmulo.

Ficamos calados, o crepitar dos restos de carne na chapa como som de fundo. Tentei colocar os pensamentos em ordem, inventar alguma coisa melhor, mas simplesmente não conseguia. Não porque eles estivessem caóticos demais. Na verdade, eles estavam exageradamente tranquilos, isso sim. Sentia-me um navio encalhado por causa da ausência de vento e ondas, sem conseguir criar nenhum plano. Toda vez que tentava juntar a com b, não dava em nada.

— Ok — continuou Lucy, vendo minha dificuldade. Ela brincava outra vez com o medalhão, deslizando-o ao longo da correntinha em um gesto nervoso. — Sei que não é da minha conta, mas escutem só, é isso que eu acho que vocês deveriam fazer.

Todos ouvimos enquanto ela explicava, nos aproximando dela a cada palavra. Ela demorou quase um minuto para explicar tudo. E preciso admitir que o plano dela era melhor que o meu.

— Isso significa que a gente vai ter que se separar — disse Zê quando Lucy terminou. — Tem certeza de que é uma boa ideia? Eu não queria ficar sozinho por aí.

— Você não vai estar sozinho — respondeu Lucy.

Zê ergueu a mão como que pedindo desculpas.

— Foi mal, eu quis dizer sem Alex e Simon. Eles já salvaram minha vida algumas vezes.

— Não — disse eu. — A Lucy tem razão. Se ficarmos juntos e alguma coisa acontecer, já era. Desse jeito, se ao menos um de nós... — Por alguma razão, não consegui concluir, ainda que a pausa parecesse ter mais peso do que a palavra. — Bom, ainda teremos uma chance.

— Uma chance bem pequena, minúscula — falou Simon. — Eu não apostaria na gente.

Nem eu, mas isso não impediu que um estranho otimismo tomasse o ambiente. Ele estava em cada piscar de olhos e na delicadeza de cada sorriso.

— Não se esqueçam — disse eu a Zê e a Lucy, olhando o relógio na parede da cozinha. Ele tinha formato de galinha, duas perninhas finas balançando sob ele e uma cabeça com olhos esbugalhados encarando-nos, alarmada. O gorduroso ponteiro em seu peito nos informava que era quase meio-dia. Parecia impossível, total e completamente impossível que apenas oito horas antes estivéssemos na Penitenciária de Furnace. Que apenas vinte e quatro horas antes eu fosse um terno-preto prestes a fazer o último teste do diretor. Eram imagens de outra época, de outra vida. — Não se esqueçam: duas da tarde.

— Duas da tarde — disse Zê. — Tem certeza de que é tempo suficiente?

— Se eu não tiver saído de lá até as duas, é porque estou morto — falei. — Ou coisa pior.

Zê concordou com a cabeça. Não parecia muito seguro, mas não disse nada.

— Então é isso? — falou, a voz tão tensa que quase não saiu. Ele tossiu e em seguida estendeu a mão. Fui apertá-la, esquecendo meus dedos de lâmina e quase arrancando seu olho. Ele trocou a mão direita pela esquerda e a apertei, percebendo que era a primeira vez que eu fazia isso. A mão dele estava quente; era pequena, mas forte. Não queria soltá-la nunca mais.

— A gente se vê de novo do outro lado — disse Simon, colocando sua mão gigante sobre as nossas e apertando. Lucy ficou de lado nos observando, e achei que havia um brilho verdadeiro de afeto em seus olhos. Ela percebeu que eu a encarava e me deu um sorriso.

— Do outro lado do quê? — perguntei a Simon, arqueando as sobrancelhas. — Da morte?

— Não — disse ele. — Não foi isso que eu quis dizer. Quis dizer o outro lado disto, o outro lado do plano.

Rimos juntos, baixinho dessa vez, porque talvez não tivéssemos outra chance. Olhamos nossas mãos, ainda unidas, sem que ninguém tivesse vontade de se desvencilhar.

— Todos por um — disse Zê. E isso resolveu. Simon afastou a mão, balançando-a no ar.

— Ah, meu Deus, não me venham de novo com esse papo de mosqueteiros — resmungou ele. — Já ouvi bastante disso na prisão. Vamos lá, acabar logo com isso.

Retirei minha mão e a de Zê caiu, batendo contra seu quadril. Notei as faixas brancas contra sua pele nos lugares em que eu havia pressionado os dedos. Não tinha percebido a força com que eu o segurava.

— E ele? Essas cordas não vão detê-lo quando ele recuperar a força — comentou Simon, apontando com a cabeça para o terno-preto. O guarda se virou para nós, um lampejo de preocupação perpassando seus olhos prateados.

— Deixe ele aí — sugeri. — Mesmo que consiga sair daqui, não tem muito que ele possa fazer. Isso tudo vai acabar daqui a algumas horas, de um jeito ou de outro.

— Vai acabar pra você — rosnou, sem muita convicção, o terno-preto.

— Pois é — disse eu. — Isso é o que você diz.

Virei as costas para ele e saí da cozinha, passando por um corredor pequeno e escuro que ia dar na porta dos fundos. Zê tinha empilhado um monte de caixas na frente dela, e começamos a afastá-las para liberar a passagem. Abri um pouco a porta, para ver o pátio por onde tínhamos entrado, ainda deserto. Cheiro de comida podre vinha das latas de lixo enfileiradas contra a parede, mas ainda mais avassalador que isso era a constante exalação de fumaça quente. A céu aberto, o som de tiros e helicópteros sobressaiu, tornando real tudo o que estávamos prestes a fazer. Real até demais.

— Cuidado — preveni Zê. — Evitem as vias principais e, se virem qualquer coisa andando que não esteja usando bege nem marrom, então...

— Eu sei, eu sei — interrompeu ele. — Ficaremos bem; vamos achá-los.

— E nada de namoricos no meio do caminho — acrescentou Simon. As bochechas de Zê ficaram coradas, e as de Lucy também. A boca da garota se entreabriu como se estivesse prestes a protestar, mas pareceu ter achado melhor não dizer nada. Perguntei-me se eles conseguiriam superar essa situação, se isso os uniria ainda mais. Imaginei os dois dali a dez anos, ou vinte, casados, vivendo a quilômetros daquele lugar. Perguntei-me se contariam aos filhos histórias a meu respeito, a respeito do que tinha acontecido na prisão. Esperava que sim.

— Cuidado — repeti.

Zê assentiu com a cabeça e em seguida pegou a mão de Lucy; os dois partiram. Não estavam muito longe quando Lucy resolveu se desvencilhar da mão dele e correr em minha direção, as mãos na nuca. Uma coisa reluziu na hora em que ela a soltou: o medalhão. Ela o estendeu entre nós. Examinei-o enquanto girava hipnoticamente, vendo a imagem de um homem carregando outro nos ombros.

— É uma medalha de São Cristóvão — disse ela timidamente. — Foi meu pai quem me deu. Ele era policial, contei pra você. — Ela fez uma pausa, olhando para um ponto indefinido, como se não tivesse muita certeza do que fazia. Em seguida, colocou a corrente em minha mão boa e pressionou a prata quente contra minha pele. Entrelaçou sua mão na minha enquanto falava, os dedos pequeninos contra os meus. — Ele foi um dos policiais mortos naquele verão, o Verão do Massacre. Nunca pegaram os membros da gangue que fez aquilo, ou talvez tenham pego, não sei. Nunca ninguém foi a julgamento por aquele horror, pelo menos. É por isso que... É por isso que eu venho agindo desse jeito. — Ela apertou minha mão com mais força. — Detestava vocês todos, muito. Detestava cada prisioneiro daquele lugar. Mas acho que não devia. E preciso agradecer a vocês por isso.

— Pelo quê? — perguntei, genuinamente confuso.

— Não sei — respondeu ela. — Não sei explicar mesmo. Acho que estava cansada de sentir tanto ódio. — Ela soltou minha mão e recuou um passo. — Não é um presente, é um empréstimo. São Cristóvão é o padroeiro dos viajantes, então você deve levá-lo com você.

Comecei a protestar, como ela provavelmente sabia que eu faria.

— Não é um presente — repetiu ela. — Ele é importante demais pra mim. Você me devolve quando tiver matado aquele homem; quando as coisas tiverem voltado ao normal, está bem?

— Vou devolver.

— Prometa — pediu ela delicadamente. E percebi que era uma promessa de não apenas devolver o medalhão, mas de também fazer as coisas voltarem ao normal. Era uma promessa que duvidava poder cumprir, mas a fiz mesmo assim.

— Prometo — falei. Ela fez um gesto com a cabeça e depois voltou lentamente para onde estava Zê, o par agora apressado para deixar o pátio. Zê tinha abaixado a cabeça, o que o deixava ainda mais baixinho do que era. Naquele momento, dava a impressão de que não sobreviveria um minuto dentro daquele novo playground de Furnace. Quase fui atrás dele, mas Simon me pegou pelo braço. Ele já me conhecia muito bem.

— O plano é bom — disse ele. — Vai funcionar.

Melhor que funcione mesmo, pensei. Não tinha a menor esperança de prender o medalhão em volta do pescoço com minhas mãos daquele jeito; em vez disso, guardei a correntinha no bolso.

Zê já tinha sumido de vista, e sem mais palavras Simon e eu nos viramos e corremos para o lado oposto.

* * *

Se as coisas lá fora estavam ruins antes, agora encontravam-se mil vezes pior. No fim da viela tivemos de fazer uma pausa, escondendo-nos nas sombras enquanto um grupo de pessoas passava. Devia haver umas trinta, homens e mulheres, jovens e velhos, as roupas manchadas e em farrapos. Os dois homens que lideravam o bando brandiam barras de ferro, o metal manchado com algo que devia ser ferrugem.

Poderíamos ter saído. Estávamos todos do mesmo lado, afinal. Mas vi o terror nos olhos deles e também a violência, tão feroz que praticamente transbordava, e sabia que teriam nos jogado contra o concreto antes que conseguíssemos dizer uma única palavra. Não havia nenhum padre autodeclarado à frente deles dessa vez, mas pessoas assustadas tornam-se tolas. Esperamos que chegassem a uma rua mais adiante, antes de sairmos e partirmos na direção oposta, rumo aos reluzentes e distantes arranha-céus.

Ao redor havia a trilha sonora da guerra, uma cacofonia sem fim de explosões, tiros, gritos e coisa pior levados por uma brisa quente que não sabia mais para onde ir. Ela soprava pelas ruas em todas as direções, carregando pedaços de roupas e uma fina névoa rosa que logo manchou nossas roupas e nossa pele, reunindo-se nos vazios de nossos olhos e fazendo-nos derramar lágrimas em nome do sangue de outras pessoas.

Num determinado ponto, enquanto atravessávamos um cruzamento que levava ladeira abaixo rumo ao centro da cidade, um avião gemeu acima de nossas cabeças, tão baixo que me deu a impressão de poder levantar a mão e tocá-lo. Vi os mísseis aglomerados sob as asas e rezei para que Zê chegasse aonde estava indo; para que pudesse completar sua parte do plano.

Simon soltou um palavrão, tirando-me do meu devaneio a tempo de ver um caminhão do exército à frente. Havia cadáveres dentro, mas nada que eu conseguisse enxergar direito. Ouvi Simon respirar fundo, segurando o ar enquanto pulava na caçamba e tirava um cinturão com granadas de um dos corpos. Pegou mais, três no total, antes de saltar de volta ao chão.

— Pode ser útil — disse ele, ajeitando os cinturões em volta do ombro.

Continuamos, em silêncio, e, ainda que eu não acreditasse em Deus, arrisquei uma prece enquanto passávamos por aquele caminhão, o gotejar constante de sangue da porta da caçamba como o tique-taque de um relógio. Não sabia dizer se a prece era para os soldados mortos ou para mim.

O terno-preto tinha dito que a funerária ficava numa transversal da estrada High Court e não estava mentindo. Corremos pelo asfalto rachado da estrada principal, passando pelo cadáver de um viking — uma aberração tamanho família cujo tronco cheio de banha tinha sido espalhado pela rua como um manjar rosa e negro —, por lojas, todas chamativas, até chegarmos a um prédio pintado de preto. a. goldburn e filhos era o que estava escrito em bronze desbotado, as janelas escurecidas para que não fosse possível ver o lado de dentro.

Estávamos agora muito mais perto do centro, e, ainda que ali os prédios fossem grandes, os arranha-céus erguiam-se acima deles. Não conseguia distinguir aquele para o qual nos dirigíamos, mas era quase capaz de senti-lo, como se ele estivesse se escondendo atrás dos outros, esperando para dar o bote. Imaginei o túnel escavado abaixo das ruas, um portal que dava para o coração das trevas, e quis que Zê tivesse ficado com minha parte e eu com a dele.

Não vi nenhuma maneira de entrar pelos fundos, tampouco Simon, e, com um grito abafado, ele partiu para cima da porta dianteira, arrombando-a em meio a uma tempestade de farpas. Corremos para dentro, momentaneamente cegos pelas trevas, enquanto fazíamos o que podíamos para recolocar a porta arrombada em suas dobradiças. Havia um cheiro estranho ali, uma mistura de produtos químicos, e aquele inconfundível gosto de morte, que se enterrou no fundo de minha garganta. Não era algo surpreendente, na verdade, considerando para que aquele lugar era usado. Ficamos perto da porta, sem sequer respirar, para ver se ouvíamos alguma coisa. Mas eu sabia que estava tudo vazio. Anos arrombando casas tinham me dado o talento de compreender a imobilidade.

— Por aqui — disse Simon, e nossa visão se aguçou. Passamos por uma porta com uma cortina pesada, por uma sala de espera impecável e por um balcão de mogno. Escadas levavam ao porão, e paramos no alto delas, inclinando-nos um sobre o outro para buscar apoio.

— De novo no subterrâneo — disse Simon, estremecendo. — Você aguenta?

Fiz que sim com a cabeça, tentando ignorar a claustrofobia que se estendia sobre minha cabeça como um capuz sombrio.

— Uma última vez — disse eu, partindo escada abaixo. — Uma última vez.


FALANDO COM
OS MORTOS

Eu já tinha estado numa funerária antes, anos atrás, quando minha avó faleceu. Mas nunca havia visitado os bastidores. Em cima, carpetes grossos, veludos espessos e muito silêncio. Embaixo, exatamente o contrário: superfícies duras de aço, piso de lajotas brancas, cada passo que dávamos parecendo ecoar por muito mais tempo do que deveria. Sobretudo aquilo me lembrava as salas de cirurgia de Furnace, o que não me surpreendeu nem um pouco, na verdade, considerando os donos do lugar.

— Ainda acho que ele estava brincando com a gente — disse Simon na hora em que entramos no porão. Era uma sala grande, com três enormes mesas de aço tomando a maior parte do espaço. Só uma estava ocupada, o corpo coberto com um lençol branco limpíssimo. — O terno-preto. Acho que ele estava só inventando um monte de coisas; não acho que nada daquilo seja verdade.

— Bom, logo vamos descobrir — respondi, ouvindo o eco de minhas palavras murmuradas. — Vamos logo, este lugar está me deixando aterrorizado.

Apressamo-nos pela sala, indo para a única porta existente. Ao passarmos pelo cadáver, porém, jurei ter visto o lençol se mexer. Derrapei ao parar, enquanto Simon disparava na minha frente. Examinei o lençol, agora novamente imóvel. Estava mesmo? Dei mais um passo adiante, convencido de que o tecido se mexia para cima e para baixo, quase imperceptivelmente, como se o que quer que estivesse embaixo respirasse.

O medo oprimia meu peito com garras de aço, mas não consegui me conter. Estendi minha mão boa, enroscando meus dedos no tecido. A sensação era fria e úmida, e por um instante me perguntei se não havia sido aquilo que tinha me pegado, e não o contrário.

Então puxei.

O lençol era pesado, mas saiu como seda, flutuando pelo ar frio e ondulando com delicadeza sobre si mesmo em dobras macias e graciosas até parar no chão. Embaixo, o cadáver estava imóvel, sem respirar. Como poderia estar respirando? Seu tórax era um cesto de costelas vazio, exceto pelas sombras. Era o corpo de um garoto, tão emaciado que já parecia um esqueleto. Olhei os membros magricelas, o pescoço descarnado, e no instante em que cheguei ao rosto sabia o que veria.

O cadáver era eu.

Mal me reconheci, o garoto que eu tinha sido antes de o diretor iniciar os procedimentos cirúrgicos. Senti minhas pernas bambas e me agarrei à mesa para impedir minha própria queda.

— Não pode ser — falei, as palavras sem encontrar direito o caminho para fora de minha boca. Mas o cadáver ouviu, porque seus olhos se abriram, límpidos e úmidos enquanto me estudavam.

E então seus finos lábios se separaram, e ele falou com uma voz que também era a minha, mas cem vezes mais alta, tão potente que mais a senti do que a escutei. Ela surgiu como uma onda de choque, despedaçando os vidros enfileirados sobre as prateleiras, mandando pelos ares os reluzentes instrumentos cirúrgicos, fazendo o teto ceder e chover pó.

— Tentar se esconder de mim é como tentar se esconder de si mesmo! — gritou ele, alto o bastante para abrir fendas nas paredes. — Sei tudo o que você sabe, porque moro dentro de você; corro nas suas veias. — O mundo estremeceu, desintegrou-se, o solo desabando num vazio de fumaça espiralada e chamas furiosas. Parecia estar sendo tragado por um furacão. — Você não pode se esconder de mim, Alex, e não pode se esconder da verdade. Depois que faz a escolha, não existe volta.

E, num lampejo de loucura, vi aquilo de novo: a cidade, a torre se erguendo acima de mim e dele, a mesma criatura triunfante sobre o pináculo — um monstro corpulento uivando para seu reino arruinado, para seus súditos despedaçados.

— Não existe volta — contou-me meu cadáver.

Afastei-me cambaleando, a vertigem fazendo minha cabeça girar enquanto o porão da funerária subitamente reapareceu diante dos meus olhos — as paredes inteiras, os vidros das prateleiras onde estavam quando chegamos e as mesas de aço vazias. Todas. Havia braços em mim, os de Simon, trazendo-me para mais perto dele enquanto tentava me acalmar, meu corpo se sacudindo com violência, as granadas tilintando umas contra as outras.

Parei, escorregando de costas contra a parede, meu coração batendo tão rápido e tão forte que era quase uma única pulsação contínua. Sussurrei um palavrão, e mais um, e outro, e cada vez ele parecia desacelerar um pouco minha pulsação, até que se cadenciou com minha voz — ainda rápido, porém não mais fora de controle.

— Quer me dizer o que foi isso? — perguntou Simon, seu rosto muitos tons mais pálido do que o habitual. — Você acabou de ter um troço.

Comecei a falar, mas percebi que só dizia besteira. Então respirei fundo para me recompor e recomecei:

— Furnace — disse eu. — Achei que tinha visto... — Não me dei ao trabalho de continuar. O pesadelo, ou alucinação, ou o que quer que aquilo tivesse sido, já havia se desintegrado como uma escultura de areia na metade superior de uma ampulheta. — Acho que ele sabe que estamos a caminho.

— Como? — perguntou Simon. — Como é possível que ele saiba isso?

Olhei meu braço, flexionando os estranhos feixes de néctar que subiam da carne negra como algas suspensas na maré.

— É o néctar — falei. — Não sei como; parece que ele faz parte de mim ou algo assim. Parte de nós. Ele sabe o que estamos tentando fazer. Sabe que vamos matá-lo. — Fiz uma pausa, imaginando aquela fera, uma monstruosidade que fazia até o maior viking parecer um brinquedinho de criança, empoleirada em sua torre, em seu trono, acima de um mar de fogo. Aquele era mesmo Furnace? Se fosse, se fosse aquilo que esperava por nós, não teríamos a menor chance. — Que vamos tentar matá-lo — me corrigi.

— Você quer continuar? — perguntou Simon, estendendo a mão. — Ainda dá tempo de voltar; a gente ainda pode sair da cidade.

Estendi a mão e agarrei a dele, deixando-o me ajudar a levantar. Lancei um olhar nervoso para a mesa a meu lado. Não havia nada nela além de reflexos distorcidos numa superfície polida. Não havia sequer um lençol no chão, e me perguntei como Furnace conseguia deixar suas visões tão reais.

— De verdade, ainda dá tempo — disse Simon. — Não demora nem um minuto pra gente voltar pra rua e tentar sair da cidade. Se Zê fizer a parte dele, a gente não precisa nem ir até a torre.

Respirei ruidosamente e em seguida fui para a porta, aquela que, esperava eu, ia dar nos túneis. Simon tinha razão: se Zê conseguisse, não faria diferença se nossa parte do plano seria cumprida ou não. Mas Furnace não era a única razão pela qual eu precisava ir até a torre.

Talvez ela fosse o lugar onde iria encontrar respostas, pensei comigo mesmo ao abrir a porta com meu braço mutante e atravessá-la. Mais importante: talvez fosse o lugar onde iria encontrar uma cura.

Do outro lado da porta havia um pequeno corredor que levava além de um incinerador. Era menor que o de Furnace, mas a visão dele — e também seu cheiro, aquele resíduo inesquecível de cinzas — não ajudava em nada a náusea que revirava dentro de mim. Passamos por ele, dando uma olhada num depósito lotado de equipamentos médicos, antes de chegarmos a uma grande porta dupla que delimitava o fim do corredor. Simon pegou os puxadores, e quando os pesados portais de aço se abriram revelaram outra escadaria, que dava para o nada.

Havia interruptores nas paredes, mas não nos importamos com a luz. Tanto Simon quanto eu tínhamos visão de sentinela, nossos olhos prateados esquadrinhando as trevas enquanto descíamos. Deixamos abertas as portas atrás de nós, só para o caso de termos de sair dali rapidamente. A escada deu quatro voltas antes de chegarmos ao fundo, o ar frio e úmido. Estávamos num corredor longo e reto — largo o suficiente para passar uma maca, percebi —, e fiquei grato pelas paredes serem feitas de concreto, e não de pedra. As lâmpadas, acesas, ficavam embutidas no teto e se estendiam a distância, tão longe que me faziam pensar numa estrada de ponta-cabeça.

— Então eles transportavam cadáveres por aqui? — perguntou Simon enquanto retomávamos nossa marcha, as palavras sussurradas seguindo como batedores no percurso à frente. — Que canalhas!

Fazia sentido. Se a torre tinha alguma semelhança com a prisão, se realmente faziam experimentos ali também, precisavam de algum lugar para o descarte dos corpos. Uma funerária era a solução perfeita.

— Você tinha alguma ideia? — continuou Simon. — De que faziam isso fora de Furnace? — Balancei a cabeça em negativa, mantendo os olhos bem abertos, fixos no fim do túnel, que simplesmente não surgia. — E se o que o terno-preto falou for verdade? — continuou Simon. — E se a prisão for só parte de algo maior? E se houver lugares pelo país inteiro, pelo mundo, cuspindo ratos, vikings e ternos-pretos?

— Então estamos completa e verdadeiramente encrencados.

Simon resmungou, içando os cinturões com granadas por cima do ombro. Houve uma mudança de luminosidade à frente, e, à medida que nos aproximamos, fui percebendo que era um cruzamento. Nosso túnel continuava adiante, mas outro começava à direita. Parei, fechando os olhos e tentando me orientar. Levei um tempo para entender qual lado estava à minha frente.

— Aquele ali deve levar para o centro — falei, apontando o túnel que seguia para a direita.

— E aquele? — perguntou Simon.

— Provavelmente vai dar em mais um prédio deles — imaginei. — Uma academia de ginástica, sei lá.

— Ou quem sabe uma loja de ternos — disse Simon, soltando uma risada pelo nariz. — Aposto que eles têm algumas.

Viramos à direita, tentando ouvir algo além dos passos, querendo distinguir quaisquer sons adiante. Mas o que havia ali era um silêncio mortal, profundo demais para ser maculado pelo caos ensurdecedor das ruas acima de nossas cabeças. Perguntei-me se Furnace teria deixado um viking para nós, uma armadilha ou um teste, ainda mais porque ele sabia que estávamos a caminho. Mas não havia sinal de vida além de nossa própria, e custosa, respiração.

Passamos por outros dois cruzamentos, túneis estendendo-se em todas as direções sem a menor pista de aonde iam dar. Seguimos em frente, imaginando a cidade passando acima de nós, fazendo o possível para visualizar onde estávamos. Estava convicto, porém, de que seguíamos o caminho certo. O túnel inclinava-se para baixo, como se fosse dar no inferno.

Havia um último cruzamento, um único túnel que dava uma guinada de quarenta e cinco graus em relação ao túnel principal, e menos de dois minutos depois chegamos a uma porta. Estava destrancada, levando a um lance de degraus de concreto idêntico àquele sob a funerária.

— Não estou gostando nada disso — disse Simon. — Está quieto demais.

— Mas é melhor do que o Zê tagarelando sem parar, não é? — sussurrei.

— Não é disso que estou falando — disse ele. — Bem, isso não vai dar em nada. — E suas palavras me trouxeram uma lembrança: o dia, ou a noite, em que tentamos escalar a torre da penitenciária. Só tínhamos percorrido uma pequena parte do caminho quando chegamos a um ninho de ratos e fomos obrigados a voltar. E por alguma razão, bem naquele momento, eu sabia que, se nós dois fôssemos juntos por aquela escada, algo parecido aconteceria. Não sei como; pode chamar de instinto, ou de sorte. Ou talvez só de loucura.

— Olha só — disse eu a Simon. — Preciso que siga em frente. — Ele começou a contra-argumentar, mas não deixei. — Se Zê não conseguir, preciso que você faça a parte dele. Use as granadas, dê um jeito.

— Aonde você vai? — perguntou Simon. — Ao bar, por acaso?

— Não — respondi. Ia explicar, mas Simon foi mais rápido.

— Ele falou que estava te esperando, não foi? — disse ele. — No metrô, quando falou com você. Disse que estava esperando você fazer sua escolha.

Assenti com a cabeça, sabendo que Simon havia tido a mesma visão em Twofields.

— Ele disse que você poderia ser o soldado dele, o braço direito dele? — Outra vez assenti. Ele mordeu o lábio, sem ter certeza de que queria prosseguir, mas depois de um ou dois segundos acrescentou: — Pra mim, não. Não ouvi isso.

— Como assim? — perguntei, franzindo o rosto.

— Furnace não falou que me queria. Ele disse que era tarde demais pra mim, que eu não tinha lugar no futuro. Falou que, se eu ajudar você, vou morrer. — Ele fez uma pausa. — Alex, ele disse que, cedo ou tarde, você vai me matar.

— Fala sério, Simon — retruquei. — Você sabe que isso jamais aconteceria, nem em um milhão de anos.

Porém, ambos olhávamos, nervosos, para o meu braço, para aquela lâmina de ônix.

— Ele quer você aqui, Alex — disse Simon. — É só isso que estou dizendo. Então seja muito, mas muito cuidadoso mesmo. Me diz uma coisa: aonde você está indo?

Inclinei-me para a frente e dei um abraço em Simon, apertando-o com firmeza por um segundo antes de soltá-lo. Ele não protestou; só ficou ali, perplexo.

— Vou fazer o que Furnace quer que eu faça — respondi, voltando para o cruzamento anterior. — Vou entrar pela porta da frente.


A TORRE

Olhei para trás uma vez, logo antes de virar no túnel. Simon estava metade dentro, metade fora da porta, os cinturões com granadas pendurados relaxadamente sobre o ombro. Acenei, mas ele não acenou em resposta. Não fez nada, só olhou. Me perguntei se ele iria adiante ou se apenas voltaria pelo caminho por onde tínhamos vindo, passando pela funerária e chegando às ruas. Não o culparia se fizesse isso.

O túnel era curto, mas ainda havia tempo suficiente para as perguntas se acumularem. Por que eu tinha deixado Simon? Por que planejava me entregar, pronto para aceitar o que quer que Furnace e o diretor pudessem ter planejado para mim?

Talvez Furnace estivesse controlando minhas ações do mesmo jeito que controlava minhas visões. Afinal, ele conseguia revirar meus pensamentos, mostrar-me coisas que pareciam reais. Com certeza alguém com o poder de fazer isso poderia forçar outra pessoa a obedecer às suas vontades. Mas tinha minhas dúvidas. Se fosse esse o caso, então por que ele não tinha nos impedido de fugir de Furnace? Por que não tinha simplesmente me feito matar meus amigos e, em seguida, me matar?

Não, o que eu estava fazendo agora era minha escolha — minha e de ninguém mais. E acho que era por isso que eu queria estar sozinho. Desse jeito, não seria responsável pela vida de ninguém. Seria apenas eu contra qualquer porcaria que o destino tivesse para jogar em cima de mim. Lutaria contra Furnace; daria tudo o que tinha. Mas, quando ele me matasse — e lá no fundo eu não conseguia enxergar outro desfecho —, pelo menos não mataria meus amigos também. Era um jeito sombrio de pensar, mas não havia outra maneira de explicar. O que eu queria, mais do que tudo, era um fim. De um jeito ou de outro, sairia daquela situação.

O túnel terminou, depois de cerca de cem metros, em outra porta dupla. Mexi no puxador e ela se abriu, balançando e me apresentando uma escada. No topo ficava o porão pequeno e atulhado de um escritório, com pilhas de papel para xerox enfileiradas contra as paredes cheias de mofo, a mobília juntando poeira num canto. Passei pela bagunça e encontrei mais escadas, indo parar num corredor igualmente lúgubre, também abandonado — parecia mais a casa de alguém do que um escritório. Uma breve caminhada depois, e estava na porta da frente. Apertei a tranca eletrônica e, quando virei a maçaneta, ela se abriu.

O escritório era um entre muitos numa pequena rua que dava para uma praça. Não sabia onde estava, mas um rápido exame pelos prédios contra o céu deixou a resposta dolorosamente clara. Havia arranha-céus em todas as direções nessa parte da cidade, erguendo-se como tumbas. E o dele era o mais próximo. De onde eu estava, ali embaixo, parecia imenso, furando o céu com sua torre negra. As paredes eram tão escuras que o vidro parecia rocha, a estrutura inteira mais um antigo totem do que um moderno arranha-céu.

Exatamente como na minha visão.

Fiquei parado no meio-fio por um tempo que pareceu eterno ouvindo os tiros, agora tão distantes que poderia ter sido alguém estourando plástico-bolha. Perguntei-me aonde Simon estaria, e foi esse pensamento que me despertou da minha paralisia. Fui andando pela rua até chegar à primeira grande via, uma ampla avenida repleta de árvores que passava bem em frente à entrada da torre.

Não havia nenhum sinal de vida ali, mas corri mesmo assim, ficando do lado sombreado da rua. Só desacelerei quando cheguei à vasta praça aberta que cercava a torre. Uma figura enorme e pesada encontrava-se no meio do espaço aberto, na frente das portas, e precisei de um momento para me dar conta de que era uma estátua de bronze.

A curiosidade, mais que qualquer outra coisa, fez com que me aproximasse. Era a escultura de um homem, entre quarenta e cinquenta anos, trajando terno e usando óculos. Parecia um sujeito comum, bigode e barba perfeitamente aparados, as mãos entrelaçadas atrás das costas, talvez um pouco magro demais. Na placa não havia nome, só uma frase: O MEDO LIBERTA.

— Alfredo Furnace — falei, minha voz amplificada contra o silêncio. O homem não parecia nem um pouco a criatura da minha visão, mas por outro lado eu também não parecia nada com o garoto que um dia tinha sido. O néctar fazia isso com você. Fiquei tentado a arrancar a estátua dali e jogá-la na rua, mas não o fiz. A área estava vazia, não havia guardas nem vikings à vista, tampouco o som de metal sendo destruído para denunciar sua presença. Decidi me limitar a uma ameaça, olhando o homem bem no olho e dizendo: — Você não me pega.

A estátua não respondeu, e segui adiante com uma sensação de vitória.

À frente estavam as portas da torre, quatro delas lado a lado na entrada do prédio; tinham o tamanho de uma casa. A da direita estava aberta. Não havia ternos-pretos de guarda, nenhum viking pendurado na entrada, pronto para fazer em pedacinhos qualquer intruso — só aquele portal negro que parecia me convidar para entrar. No entanto, eu podia sentir que estava sendo observado. Sabia disso pela maneira como minha pele reagia, a carne das minhas costas e dos meus braços parecendo estar coberta de insetos. Estremeci ao subir o pequeno lance de escada que levava às portas, tentando afastar o medo do meu semblante.

Não que eu pudesse esconder alguma coisa de Furnace. Se ele conseguia enxergar o que se passava dentro da minha cabeça, com certeza era do seu conhecimento que, apesar da minha calma exterior, eu estava na verdade pirando de tão nervoso.

As portas pareciam ficar maiores à medida que me aproximava, e eu podia sentir o peso do vidro e do concreto sobre minha cabeça. O prédio cortava a luz do sol e fazia o mundo mergulhar em trevas. Era como estar no subterrâneo de novo, o mundo sobre os meus ombros, me empurrando para baixo.

E essa não era a única coisa que me fazia recordar a Penitenciária de Furnace. Ao chegar às portas — duas placas enormes de bronze contra a parede —, vi um painel acima delas. De início achei que ele dizia CULPADOS, como o que encimava a entrada da prisão. Mas esse dizia SALVOS. Recuei, observando os outros três painéis acima das portas à minha esquerda.

— ELES-ESTÃO-TODOS-SALVOS — li em voz alta, as palavras me fazendo lembrar daquelas escritas na mesa do diretor, com imagens dos garotos que tinham sido retalhados e transformados em aberrações. — Salvos coisa nenhuma — murmurei. Fui até a porta e, ainda que estivesse aberta, não conseguia ver o que havia do lado de dentro, como se, ao cruzar aquele limiar, eu fosse também atravessar um portal, entrando em outro mundo. Foi o sangue-frio, mais do que qualquer outra coisa, que me devolveu a fala, as palavras que haviam ficado emudecidas pelo puro e avassalador tamanho do prédio. — Vamos lá, então, sua aberração doentia. Vamos resolver isso logo.

Ergui o braço, forçando o néctar a se agitar, ganhando energia como o motor de um jato, fazendo meu corpo cantarolar. Flexionei os dedos, as lâminas fazendo barulho como uma tesoura enquanto abria e fechava. E aqueles dedos a mais, os bizarros fios de néctar, dançavam para a frente e para trás como se estivessem empolgados.

E deviam estar mesmo. O que vinha em seguida seria uma luta até a morte.

Não olhei para trás. Estava assustado demais para isso. Se tivesse dado só mais uma olhada na luz do sol, no glorioso dia às minhas costas, talvez tivesse perdido a coragem; talvez tivesse simplesmente fugido. Mantive a cabeça erguida, minhas mandíbulas tão cerradas que meus dentes pareciam prestes a sair do lugar, o braço estendido como uma espada, tremendo enquanto fatiava as sombras da soleira da porta, abrindo a escuridão no momento em que dei o primeiro passo para dentro.

Do lado de fora da torre o mundo parecia abandonado, como se alguém o houvesse virado de cabeça para baixo e despejado todos para fora dele.

Na fria penumbra do interior, a história era outra.

Ouvi os ternos-pretos antes mesmo de vê-los, aquele mesmo riso maldoso e profundo me recebendo no instante em que entrei. Meus olhos prateados ardiam, varrendo as sombras e distinguindo um vasto saguão apoiado por pilastras. Bem à frente havia uma mesa de recepção, e atrás dela três guardas, todos segurando espingardas e usando as mesmas braçadeiras vermelhas que tinha visto antes — o logotipo branco de Furnace parecendo o objeto mais brilhante daquele ambiente. Aqueles eram os soldados de Furnace, não do diretor.

Havia mais silhuetas à esquerda e à direita, perto das pilastras, as armas mirando em mim. Meu corpo se enrijeceu, pronto para a luta, mas eles não deram sinal de que iam me atacar. O que eu tinha esperado? Afinal de contas, eu era um deles, como me dissera o terno-preto naquela lanchonete.

— Então — disse um dos guardas atrás da mesa — você veio.

— Sabíamos que viria — disse outro, as vozes pulsando pelo saguão, reverberando de tal forma pelo mármore do piso e das paredes que não soava real. Aquilo tudo parecia um sonho.

— Sabíamos que faria essa escolha — disse o primeiro guarda, e em seguida todos riram, o som fazendo o néctar fervilhar dentro de mim.

— Vou matá-lo! — gritei, mas minhas palavras não tiveram nenhum eco, caindo mortas aos pés dos ternos-pretos e soando estranhamente ocas. Mais risos, e em seguida o primeiro terno-preto ergueu a arma, usando-a para apontá-la para trás.

— Nós sabemos — disse ele. — Ele está aqui, no último andar. À sua espera. Não vai conseguir chegar à cobertura sem a chave do elevador, então pode ir até o quinquagésimo andar e subir de escada a partir dali.

— Furnace? — perguntei, imaginando quando a armadilha se revelaria, quando os guardas começariam a atirar. Mas eles não mostravam nenhum traço de tensão, recostados contra as pilastras ou apoiados na mesa de recepção como se fosse dia de folga. — Vocês sabem que eles estão a caminho! — praticamente cuspi, o medo transformando-se em raiva. — O exército. Agora eles sabem que vocês estão por trás disso.

O terno-preto deu de ombros e sacudiu a arma, fazendo um gesto para os elevadores atrás da mesa.

— Ele está esperando — repetiu. — Cobertura.

Comecei a andar, nem que fosse só para me afastar daquele pesadelo cada vez mais intenso. Passei longe da mesa, ainda com receio dos ternos-pretos com seus olhos reluzentes. Sentia-me como um antílope andando na ponta dos pés entre um bando de leões, sabendo que a qualquer instante vai sentir dentes na garganta. Porém o ataque não veio.

Havia seis elevadores, três de cada lado do saguão. E, na parede entre eles, outra escultura de bronze — dessa vez não uma estátua, mas uma imagem bidimensional fixada no mármore. Ela mostrava um exército de ternos-pretos em marcha, todos usando braçadeiras, fileira atrás de fileira, estendendo-se até uma cidade resplandecente. O soldado à frente tinha uma bandeira, aquele mesmo emblema dos três círculos unidos por linhas, e seu rosto mostrava tanto orgulho que senti uma centelha de empolgação revirar-se dentro de mim.

Desviei bruscamente o olhar da escultura, virando-me para trás e observando os ternos-pretos — os reais — ao lado da mesa, todos me encarando. Eles sabem, pensei, vendo o reconhecimento no rosto de cada um. Eles sabem como me sinto.

Corri, quase tropeçando, até o único elevador aberto, apertando o botão para fechar as portas. Mas elas não se fecharam tão rápido a ponto de calar o trovão de risos que me perseguiu, nem as últimas palavras de um terno-preto que surgiu logo antes de elas se encontrarem. Palavras ditas com sinceridade. Palavras nas quais não conseguia realmente acreditar.

— Boa sorte, Alex.


JARDIM DE PEDRA

Havia botões ao lado da porta, círculos de bronze com as letras SS no de baixo e C no de cima, com os números dos andares entre eles. SS significava subsolo, e C, cobertura, e ao lado deles havia um buraco de chave. Quase coloquei meu dedo no cinquenta, mas achei melhor não. Em vez disso apertei o número quarenta e cinco. Sinceramente, não sabia o que esperava por mim lá em cima. Talvez, se eu descesse antes, teria uma ideia melhor do que estava dentro da torre; talvez tivesse mais chances de pegar Furnace de surpresa.

Senti algo atrás de mim e, ao me virar, vi meu reflexo retribuindo meu olhar nas paredes espelhadas do elevador.

Meu estômago revirou na hora em que o elevador começou sua jornada, produzindo nada mais que um delicado zumbido ao subir pela espinha da torre. Enquanto ele se movia, aproveitei para me examinar, sentindo a bílis se alvoroçar outra vez enquanto tentava entender o que havia acontecido comigo. Meu braço direito estava grosso como uma perna, com nós de músculos e repleto de veias. Ainda estava coberto de néctar, brilhando tão negro quanto um besouro visto à luz da lua. Quando eu o agitava de um lado para o outro, ele se movia com força inegável, minha mão cortando o ar com um chiado e fazendo o elevador balançar.

O vírus tinha se espalhado mais do que eu me permitira acreditar. Meu pescoço era agora um caos de manchas arroxeadas e bolhas, a pele em dobras grossas, fazendo-me lembrar dos fungos que às vezes você vê crescendo no tronco das árvores. O lado direito do meu rosto estava tão inchado que eu estava quase irreconhecível. Quase. Em algum lugar ali, além do inchaço, além das cicatrizes, além do olhar prateado, conseguia enxergar a mim mesmo, o menino que um dia eu fora. Mas não havia sobrado quase nada dele, fora ou dentro de mim.

Havia um mostrador acima da porta do elevador e o observei, reparando que estava quase na metade do caminho, subindo bem rápido. Ergui o moletom — o tecido já tão chamuscado e esfarrapado que por pouco não se desfez ao toque — e olhei o que havia embaixo. Não tinha quase mais pele nenhuma na minha barriga e no meu peito, só uma extensão encaroçada de couro com bolhas que parecia ter sido colocada sobre uma grelha a carvão. Cutuquei-a com os dedos da minha mão boa. Parecia kevlar.

Fui tomado de pânico; quis mais do que tudo arrancar a pele daquele impostor, me esfolar até os ossos, só para não precisar sentir seu toque imundo. Mas fechei os olhos, segurei o apoio de mão do elevador e tentei respirar — inspirar, expirar; inspirar, expirar — tão profundamente quanto possível, até a crise passar. Senti o elevador desacelerar, um suave toque sonoro anunciando a chegada ao quadragésimo quinto andar. Esperei até ouvir as portas se separarem antes de abrir os olhos e virar, meu coração tamborilando na garganta quando abandonei a segurança do elevador e avancei pela torre desconhecida.

Eu estava num corredor pouco iluminado e acarpetado. Poderia passar por qualquer prédio de escritórios em qualquer cidade, não fossem as fendas que cobriam as paredes brancas, crateras e ravinas escavadas no gesso, e em certo ponto um buraco. O piso estava manchado com pegadas negras. Não havia duas iguais, e nenhuma era humana.

Virei à esquerda, indo na direção do buraco na parede. A luz do sol o atravessava. Havia poeira suspensa no rastro dourado, flocos de luz que me lembravam as galáxias espiraladas no néctar — no néctar do diretor, o néctar antigo, aquele que agora parecia familiar, quase saudável. Passei a mão pelo feixe de luz, espalhando as partículas. Então coloquei o rosto no buraco para espiar.

Gaiolas. Uma sala enorme cheia delas. Todas vazias.

Andei um pouco mais, dirigindo-me a uma porta. Era de puro aço, com pelo menos trinta centímetros de espessura, e estava fora das dobradiças, fazendo-me recordar da porta da abóbada nas entranhas de Furnace. O metal estava arranhado, exatamente como o da outra, e pela mesma razão.

Imaginei a sequência de acontecimentos: as gaiolas abertas, ratos ou vikings, ou o que quer que tivesse ficado trancado ali, disparando para fora, arrebentando a porta como se fosse papel, irrompendo pelos corredores, escada abaixo e até as ruas lá fora. Quantos? Cem? Mil? Haviam estado ali o tempo todo, só esperando a ordem de Furnace, aguardando a guerra começar.

Não era de espantar que a cidade tivesse sucumbido de forma tão drástica e com tanta rapidez.

Andei pelo resto do corredor; havia mais uma dúzia de salas como aquela, todas vazias. Enfim encontrei a porta para a escada, arrancada das dobradiças. No fosso havia corpos — ratos, dois, os pescoços esticados como se fossem figuras de massinha, os olhos prateados abertos num retrato de seus últimos instantes. Supus que tivessem sucumbido em meio ao caos, pisoteados por mil pés. Ainda que provavelmente estivessem mortos havia horas, conseguia ver o calor emanando deles, transformando o ar numa névoa onírica que pairava acima, apontando o caminho.

Saltei os degraus, virando em certo ponto e em seguida fazendo um contorno para chegar ao andar seguinte. Uma olhadela pela porta me dizia tudo o que eu precisava saber — mais salas, mais gaiolas —, e no quadragésimo sétimo era a mesma coisa, o caos ainda maior. Cheguei ao andar seguinte esperando ver a mesma coisa, mas, quando abri caminho pelo corredor, concluí que não devia ter baixado a guarda.

Havia um Ofegante ali, a menos de três metros de distância. Só que, por alguma razão, ele era diferente daqueles que eu vira na prisão. Era careca, a pele tinha a cor e a textura de mingau rançoso, os olhos pareciam passas enterradas bem fundo na carne de seu rosto, mas sua máscara de gás não estava permanentemente costurada, além de brilhar como se fosse novíssima. As roupas também não davam nenhum sinal de decadência, como se tivessem sido vestidas pela primeira vez naquela manhã. Ele usava a mesma braçadeira que os ternos-pretos, a insígnia característica por cima do casaco de couro, que deixava o canalha muito parecido com um oficial da Gestapo.

Reparei nisso tudo em menos de um segundo, e em seguida o terror me dominou. Eu podia ser maior que os Ofegantes agora, mais forte, mas eles ainda me assustavam. Só de olhar aquela aberração, senti de novo a dor da cirurgia, o modo como tinham costurado meu corpo enquanto esfacelavam minha mente. Cambaleei, quase perdendo o equilíbrio no alto da escada, antes de reparar que o Ofegante também recuava, afastando-se pelo corredor tão rápido que corria o risco de tropeçar nos próprios pés.

Está com medo, percebi, e fiquei eletrizado pelo prazer sádico dessa constatação. Está com medo de mim.

Persegui-o, mais por curiosidade do que por qualquer outra razão. Nunca tinha visto um Ofegante demonstrar qualquer tipo de emoção — exceto pânico, na vez em que Zê, Simon e eu matamos um na enfermaria. Ele colidiu com a parede, dando aqueles passos hesitantes de passarinho, os pequenos olhos piscando, ou melhor, tentando piscar — as pálpebras eram como as de uma vítima de queimaduras, enrugadas demais para cobrir as pupilas negras abaixo.

Ele alcançou a primeira porta e caiu através dela. Literalmente caiu, desabando de costas com tanta força que as botas ficaram para cima. Ri, não pude evitar, o ruído alimentado não por humor, mas por descrença, raiva e pela doce e doentia ideia de vingança. Corri pela porta, pronto para dar um golpe de misericórdia na criatura. Eu estava tão determinado a matá-lo que não reparei nas outras figuras até que fosse quase tarde demais.

A porta dava para uma sala enorme, maior do que a enfermaria de Furnace mas arrumada de maneira parecida, com camas enfileiradas. As janelas ali tinham sido tão escurecidas que praticamente nenhuma luz natural conseguia adentrar. Lâmpadas avermelhadas pendiam do teto, e sob seu brilho infernal a sala parecia contorcer-se, agitar-se e se revirar.

Ofegantes. Dezenas deles.

A criatura aos meus pés rastejou para longe, de costas, aproximando-se de seus irmãos, que a levantaram e a ampararam. Todos olharam para mim com aqueles temíveis olhos de inseto, o ruído coletivo da respiração ofegante quase ensurdecedor, alguns soltando até mesmo aqueles guinchos guturais que me davam tanto medo em Furnace. O pior, porém, era o incessante pisca-pisca dos olhos que me encaravam, um som tão constante e úmido que era como o de um líquido. Recuei para fora da sala, o barulho quase demais para aguentar, fazendo a torre girar em volta de mim, fazendo o piso e o teto trocarem de lugar.

Não fazia sentido. Nada daquilo fazia sentido.

Recuei para a escada enquanto ainda podia, não sem antes notar as outras portas lado a lado no corredor, a luz avermelhada transbordando e aquele mesmo coro horrendo e infinito de respiração ofegante. Corri, subindo os degraus o mais rápido que pude, passando de andar para andar, parando apenas ao ver COBERTURA escrito ao lado da porta. Bati contra ela, sugando o ar que parecia destituído de oxigênio, meras exalações frias e mortas de Ofegantes.

E agora?, minha mente gritou para mim. E agora?

Eu não tinha resposta, e minha frustração era um turbilhão dentro de mim, tornando-se raiva, depois ira e em seguida fúria genuína, que me levou por entre aquelas portas, para os braços de Alfredo Furnace.

Não sei o que esperava encontrar ali em cima, no último andar da torre de Furnace, mas não era aquilo.

Não havia corredores, nem uma profusão de salas e saguões repletos de gaiolas e Ofegantes. Havia apenas um único espaço cobrindo quase todo o andar, a escada e o fosso do elevador bem no meio dele. Um piso nu de carvalho estendia-se em todas as direções até paredes de vidro vermelho que se erguiam direto rumo ao teto, a uns dez metros acima. A luz do sol derramava-se por essas janelas, transformando-se numa luz cor de sangue tão espessa e densa que dava a sensação de que poderia me asfixiar nela.

O vidro colorido saturava o espaço de sombras, mas eu conseguia distinguir silhuetas contra as quatro paredes, salteadas de maneira aparentemente aleatória pela sala. Demorei um pouco para perceber que eram árvores, talvez catorze ou quinze. Prendi o fôlego, tentando ouvir qualquer sinal de vida, mas, tirando o meu pulso acelerado, só havia silêncio.

Dei um passo à frente, indo até a árvore mais próxima, meu braço estendido, pronto para atacar a primeira coisa que se mexesse. Mas aquelas silhuetas escuras permaneceram imóveis, como se fossem talhadas em pedra.

E era exatamente isso que eram, como percebi quando cheguei perto o suficiente para tocá-las: um jardim de pedra. Não havia nada mais ali — ao menos nada que eu conseguisse distinguir na sombria penumbra avermelhada —, nenhuma mobília, nenhum equipamento, o piso dominado exclusivamente por aquelas bizarras decorações.

Fui até a árvore seguinte, seu tronco nodoso e retorcido fazendo-me lembrar o corpo dos vikings. Não havia folhas nas esculturas, só galhos vazios apontando para cima, como uma floresta de braços magricelas atados uns aos outros numa teia de tendões e ossos que cobriam quase completamente o teto. Estendi a mão e toquei a pedra, tão quente quanto pele humana e pulsando quase como se tivesse um coração. Sabia que era minha imaginação, mas mesmo assim aquilo me assustava.

Nem tanto, porém, quanto o que viria depois.

Cruzei a sala na diagonal, chegando à árvore seguinte. Quase deixei-a de lado, achando que era igual às outras, até ver o que estava pregado ao tronco.

Era um corpo. Um homem totalmente nu, sua intimidade preservada por um faixa de entranhas que se derramavam de sua barriga. A casca da árvore estava ferida e enegrecida, como se tivesse pegado fogo. E o homem também parecia queimado. Contudo, seu rosto estava estranhamente sereno, fitando a cobertura com a expressão de um pai amoroso que observa o filho dormir. Examinei a figura. De perto, notei que ele era muito mais jovem do que eu tinha pensado a princípio, não muito mais que um garoto, um pouco mais velho que eu. Mas eu tinha visto aquele rosto antes, uma versão mais envelhecida dele, na estátua de bronze na frente da torre. Sabia quem era aquela pessoa.

Alfredo Furnace.

— O que você é? — articulei, sem emitir nenhum som. A escultura tinha sido talhada com detalhes tão precisos que era impossível acreditar que era de pedra. Esperava que o rosto girasse em minha direção, que a boca se abrisse. E eu queria isso. Porque talvez a verdade estivesse ali. Talvez ali eu encontrasse minha cura. Não sei se acreditava realmente nisso. Acho que acreditava. Homens desesperados acreditam em qualquer coisa.

E eu tinha razão. Havia respostas ali. Só que não eram do jeito que eu esperava.

— Isso foi há muito tempo.

A voz não tinha vindo da escultura, mas das sombras encharcadas de sangue à minha direita. O choque foi tão grande que desabei, caindo de costas como um tijolo. Estendi minha mão boa para me apoiar na árvore e a usei para me levantar.

Uma silhueta mexia-se do outro lado da sala, oculta por uma árvore. Vasculhei a escuridão com os olhos, tentando entender o que estava vendo, mas a luz era espessa demais, densa demais.

— Muito, muito tempo atrás — continuou a voz, um sussurro seco e familiar que tinha mais força do que deveria. Ela foi acompanhada de um ruído que foi em parte rosnado, em parte ronronado. A silhueta pareceu se arquear para cima, seus membros longos e serrilhados projetando-se dela.

Era a criatura da minha visão, eu sabia. A fera que uivava da torre. Era ele.

— Furnace — falei, a voz sem firmeza, mas intensa. Era isso, pensei, sentindo o néctar nublar meus pensamentos, sabendo que dessa vez teria de me entregar a ele sem pensar nas consequências.

Houve o chiado abafado de um riso, seguido por duas palmas, e com um estalo alto e um gemido elétrico as luzes se acenderam. Protegi os olhos do brilho, dando-lhes um segundo para se ajustarem antes de piscar diante da cena à minha frente. A primeira coisa que notei foi que a criatura não tinha nada a ver com a da minha visão.

Era um viking, maior que qualquer outro que eu já tivesse visto. Tinha três, talvez quatro metros de altura, o corpo quase da cor do aço, estriado e sulcado como se tivesse sido passado por um triturador e costurado novamente. Uma mão enorme estava pousada na árvore a seu lado, garras como as de um pássaro embutidas na pedra maciça. Sua cabeça era grande demais para os ombros laminados, tão pesada que não parecia capaz de se manter ereta. E o rosto era o de uma criancinha, o néctar escorrendo de seus lábios e derramando-se no piso. O que quer que fosse aquela coisa, não era Furnace.

Nem o homem de pé à frente dela, cujos olhos eram poços impenetráveis que pareciam sugar a luz ao redor, atraindo tudo para o buraco negro de seu coração. Aquilo não era Furnace de jeito nenhum.

Era o diretor.


NOVA GERAÇÃO

— Você! — cuspi, a fúria flamejando diante do fato de ter o diretor à minha frente, e não seu senhor.

Examinei a sala, procurando Alfredo Furnace, mas, tirando o viking, o diretor era a única coisa viva ali. Ele usava o mesmo terno impecável de sempre, os sapatos engraxados, o cabelo imaculadamente penteado. Seu rosto ainda um couro esticado demais sobre um crânio exageradamente anguloso, como um esqueleto usando uma máscara de Halloween. E, enquanto tentava encará-lo, percebi que ainda não conseguia.

— Onde ele está? — perguntei, ainda que o enorme espaço parecesse engolir minha voz. — Onde está Furnace?

Os lábios finos e úmidos do diretor crisparam-se sobre os dentes, e ele riu seu riso sádico. O ruído escorregou para dentro dos meus ouvidos, revirando meus pensamentos, e de súbito me vi dentro da prisão, outra vez dentro da Penitenciária de Furnace. As lembranças me acertaram como um soco no estômago: na primeira vez que eu tinha visto o diretor ele dissera, com aquele mesmo sorriso de tubarão, que desobedecer às suas regras faria de nossa vida um inferno na Terra; mirando-nos fixamente pela tela acima do elevador, uma constante ameaça de dor e castigos; seu rosto demoníaco abrindo um sorriso escancarado enquanto os Ofegantes levavam Donovan.

E nos túneis abaixo do complexo, quando tentou me transformar num terno-preto — o jeito como quase tinha se tornado meu novo pai, um patriarca de imenso poder e força que havia me prometido o mundo.

Balancei a cabeça para tentar afastar essas lembranças, sentindo a sala rodar. Eu havia enfrentado o diretor e o vencera. Ele não era nada, só uma casca vazia do que fora na prisão, certo? Não esperava vê-lo outra vez, não mesmo. E tinha imaginado que, mesmo que nossos caminhos se cruzassem, eu o esmagaria, assim como já o fizera. Mas, agora que ele estava diante de mim, irradiando aquela mesma aura inegável de fria crueldade, seus olhos poças negras de ódio que espiralavam como vórtices em seu rosto, não tinha tanta certeza assim. Aquele era um homem cuja tendência para a chacina era tão natural quanto respirar.

E o pior de tudo é que ele conseguia sentir meu pânico crescente.

Ele riu, dando um passo à frente. O viking fez menção de segui-lo, mas estacou, agitado. Reparei que suas mãos e seus pés estavam presos por enormes grilhões. Ele soltou mais um rosnado gutural que no final tornou-se um lamento, como o de um cão preso chamando o dono. Contudo, seu rosto infantil voltava-se para baixo, olhando as amarras com uma comovente expressão humana de tristeza e confusão.

— Você nunca vai encontrar Furnace! — bradou o diretor, avançando para mim a passos tranquilos. — Por que um homem poderoso como ele se dignaria a encontrar um fracassado covarde e mutante como você? Ele não está nem perto daqui, não vem aqui há anos. Não; ele atraiu você apenas por uma razão: para que eu pudesse acabar com sua vida miserável de uma vez por todas.

Senti meu coração bater depressa, o néctar ganhando força dentro de mim. O diretor observou a árvore de pedra atrás da qual eu tentava me esconder, e por um instante a expressão em seu rosto mudou de raiva para temor reverencial.

— Você reconhece ele, o menino talhado? — perguntou o diretor, apontando com a cabeça para a escultura ao meu lado. — Foi aí que tudo começou, muitos anos atrás. Um garoto abandonado para morrer num jardim. Um garoto que não morreu. Um garoto que virou um homem chamado Alfredo Furnace.

— Diga-me onde ele está — falei, o néctar transformando minhas palavras no estrondo grave e perigoso de uma tempestade iminente. O diretor deteve-se, mantendo-se onde estava, a meio caminho entre mim e o viking. Eu não era capaz de interpretar sua expressão, mas havia emoção nela, perceptível na maneira como ele cerrava os dentes, no modo como seus tendões sobressaíam como arame sob a pele do pescoço.

— Eu também era apenas um garoto quando o doutor Furnace me salvou — prosseguiu o diretor. — Quando ele me tirou da lama e do sangue da batalha. Mas ele viu algo em mim. Viu grandeza. Foi por isso que fez de mim seu general. Tudo o que fizemos, fizemos juntos. Eu precisava dele, é verdade, mas ele também precisava de mim. Ainda precisa. Ele vai sempre precisar de mim.

O diretor agora cuspia. Aquela máscara de pele escorregava, e eu quase podia ver a raiva atrás dela, incandescente e letal. Ele estendeu um dedo longo e ossudo na direção da minha cara.

— Íamos declarar essa guerra juntos. Eu ia ser o braço direito dele, e esmagaríamos este mundo como se fôssemos um só. Nós nos tornaríamos deuses.

— E o que mudou? — perguntei.

O diretor deu mais um passo pesado à frente, a raiva crescendo a cada instante.

— Você! Você arruinou tudo! — ele gritou, o dedo agora apontado para o meu coração, não perto o suficiente para eu tocá-lo. — Eu lhe ofereci a salvação, mas você decidiu me apunhalar pelas costas numa tentativa ridícula de ganhar a liberdade. Agora ele acha que eu sou um fracassado. Sabe o que ele me disse? Que um homem que não consegue manter sua casa em ordem não merece um telhado sobre a cabeça. Um homem que não consegue manter sua casa em ordem? Eu cuidei daquela prisão por anos. Eu projetei aquele lugar, mandei construí-lo. Era o meu projeto. Sem ele, Furnace nem sequer teria o exército dele.

— Não foi isso que eu ouvi — respondi, lembrando o que o terno-preto tinha dito. — Ouvi dizer que você ficou preso lá com a gente porque ele sabia que você era um inútil. Ouvi dizer que ele lhe deu a prisão porque queria você fora do caminho dele. Foi aqui em cima que o verdadeiro exército foi criado. Lá embaixo, em Furnace — olhei para mim mesmo, para meu corpo assimétrico —, você não conseguiu nem me transformar num terno-preto. Nem isso você conseguiu fazer direito.

O diretor ficou boquiaberto, crostas de espuma branca ressecadas nos lábios. A escuridão em torno dos seus olhos pareceu se dissipar por um instante, escorrendo como água de banho suja, e aqueles dois olhos azuis e sem força apenas piscaram para mim, completamente surpresos. Não sei quantos anos tinha o diretor, nem havia quantos o néctar o mantinha vivo, mas naquele instante parecia uma criança, como o garoto que tinha sido tirado da lama.

— Como ousa? — disse ele por fim. Sua voz era baixa agora, pouco mais que um sussurro. — Você não tem ideia de quem eu sou e do que posso fazer.

— Eu sei exatamente quem você é — respondi, com o máximo de calma que consegui. — Você é um garoto que cometeu o erro de achar que era um homem, um valentão estúpido o bastante para acreditar que estava no comando, um covarde que foi abandonado pelo próprio exército. Você é um nada, Cross. Não é ninguém. Alfredo Furnace não está aqui para ajudá-lo; ele já esqueceu você completamente. — Ergui o braço, a lâmina dos meus dedos apontando direto para ele. — E você vai morrer, agora mesmo.

Ataquei, socando a árvore ao meu lado com toda a força que eu tinha. Meus dedos furaram a pedra com um estalo que fez meus ouvidos zumbir, o tronco explodindo em pó e detritos. Com um lamento, a metade superior caiu, pesada o bastante para abrir uma cratera no chão. O diretor devia ter visto o néctar funcionando dentro de mim, o brilho assassino em meu olhar, porque cambaleou para trás, tateando em busca das correntes que prendiam o viking.

Eu não me importava. Agora o néctar cantarolava, sua inegável força correndo dentro de mim. Que o diretor soltasse o bichinho dele. Eu já tinha matado vikings antes. Enfrentaria esse e em seguida voltaria minha ira contra ele.

Mas o diretor não soltou as correntes da criatura. Em vez disso, tirou uma faca do bolso do paletó, uma lâmina cruel e curva que reluzia na luz escarlate que vinha da janela.

— Você foi mordido, não foi? — perguntou enquanto brincava com a faca, revirando-a entre os dedos. — É por isso que está se transformando. Você foi pego por algum desses da nova geração.

— Nova geração? — perguntei. Senti a fúria do néctar dentro de mim começar a se dissipar, anestesiado pela confusão. O diretor sorriu para mim, os olhos outra vez sombrios, ilegíveis.

— Ah, você acha que sabe tanto, mas está tão confuso quanto os outros. Você tem razão; Furnace estava construindo um exército fora da prisão. Aqui, e em outros lugares também. Ele trabalhava em um novo néctar, um projeto aprimorado. — Pensei no néctar que eu tinha visto desde a fuga, nas galáxias vermelho-sangue que espiralavam dentro dele e no modo como podia transformar um ser humano num rato ou coisa pior, em questão de minutos. — Ele estava usando esse néctar para criar a próxima geração de soldados.

Cross desceu a faca sobre o braço do viking, seu cotovelo no mesmo nível que a cabeça do diretor. O som foi clinque, clinque, como se ele tivesse batido a lâmina contra uma armadura.

— Eles são maiores e mais fortes do que aqueles que já tínhamos. Mas não é isso que os torna especiais. O grande trunfo dessa geração é que eles geram os próprios filhos. O novo néctar só precisa encontrar um hospedeiro para começar a operar imediatamente. Nada de cirurgia, nada de horas sem fim de lavagem cerebral; só uma mordidinha, e o exército nasce. Você foi mordido, Sawyer. Mas não foi escolhido.

— Escolhido? — repeti, sentindo-me um idiota, mas desesperado para entender a verdade.

— O viking só deu início à sua transição; ele só fez a bola começar a rolar. Não encheu você de néctar como deveria, do contrário você já seria um deles. Não, ele não escolheu você, e me pergunto por quê.

Lembrei do viking que se banqueteara com o prisioneiro no metrô, o néctar jorrando para dentro do ferimento do garoto, saturando-o de veneno. Ele tinha me mordido também, mas não havia me injetado seu veneno, só um bocado de saliva envenenada. Mas eu tinha bebido um monte de néctar depois, daquele viking preto feito um besouro, não tinha?

— Primeira geração — respondeu o diretor, pegando meus pensamentos no ar. — Aqueles vikings foram os últimos da velha guarda, já ultrapassados. Na veia deles corre o néctar original, o mesmo que corre nas suas. Mera água em comparação com o novo milagre do doutor Furnace. — Ele ergueu os olhos para a criatura a seu lado, o rosto cheio de temor reverencial. — Todos os que são escolhidos juntam-se às fileiras da nova geração, uma leva de soldados que vão crescer, crescer e crescer, até todos serem membros ou se perderem.

— Uma peste — disse eu, lembrando o termo usado por Zê.

O diretor ergueu a cabeça, como se refletisse.

— Um conceito interessante — respondeu —, mas muito errado. Não se trata de uma doença. Mas sim de evolução.

— As autoridades vão conter essa peste! — cuspi em resposta, sentindo a força do néctar diminuir cada vez mais, afastada pela incerteza. — Ela não vai sair da cidade.

O enorme sorriso do diretor retorceu-se com ainda mais firmeza, agora mais perto das extremidades de seu rosto.

— Cidade? Que cidade? — disse ele. — Basta olhar pela janela para ver a extensão dessa devastação, e em questão de horas. O mundo está desabando, Sawyer. Ninguém, exceto nós, pode juntar de novo os pedaços. E, quando o fizermos, vai haver uma só Pátria, e nada além de força. E eu estarei lá como braço direito dele. Ninguém mais. Está me ouvindo? Ninguém mais.

Num clarão de repentina compreensão, percebi por que o diretor estava com medo. Ele tinha cometido um erro: havia deixado Alfredo Furnace zangado ao permitir que presos fugissem de sua prisão. Agora corria o risco de perder seu papel como deus do novo mundo, e também o de ser substituído como braço direito de seu senhor.

E com esse conhecimento veio outra revelação, infinitamente mais aterrorizante: o diretor acreditava que poderia ser substituído por mim.

Era insano, tão insano que cuspi um resmungo sobressaltado numa tentativa de riso, mas era verdade. Como poderia não ser? Era por isso que eu tinha sido guiado até a torre pelas visões de Furnace; por isso os ternos-pretos lá embaixo não tinham me detido; por isso o diretor me enfrentava quase completamente sozinho, sem seu exército e seus cães. Porque essa era sua única chance de provar que podia colocar a casa em ordem de novo, de mostrar a Furnace que era digno de confiança. Ele tinha de me matar, ou perderia tudo.

Saber isso me fez avançar contra ele, mas o diretor ergueu a faca em defensiva. Parei. Não sei por quê — instinto, acho. Eu tinha ficado tanto tempo na prisão que a visão de uma faca bastava para que eu quisesse fugir. Era um mecanismo de fuga, já estava no meu sangue. Talvez se não tivesse vacilado, talvez se tivesse partido para cima dele, as coisas teriam sido diferentes. A vida é assim, acho. Você nunca tem certeza de nada.

— O novo néctar é inteligente — disse o diretor, estendendo a mão para baixo e abrindo com um estalo o fecho dos grilhões que prendiam a garra esquerda do viking. As correntes caíram no piso, e a criatura bramiu de alívio. Ela desferiu um golpe com sua mão livre, acertando a árvore mais próxima e fazendo um galho voar. O pedaço de árvore acertou uma janela, quebrando o espesso vidro e deixando entrar uma nesga de ofuscante luz dourada. Tão acima das ruas, o vento era intenso, e a sala subitamente ganhou vida com seu uivo, como se houvesse um exército de demônios do lado de fora fazendo o mundo em pedaços.

Acho que não estava mesmo muito longe da verdade.

— Esses flocos vermelhos acrescentam algo que você quase poderia chamar de inteligência — prosseguiu o diretor. — O néctar não está... vivo, não como você e eu estamos. Mas ele tem consciência. Ele percebe tudo o que precisa sobre o hospedeiro; usa cada recurso disponível para facilitar a transformação. É realmente algo notável.

Avancei mais um passo em direção ao diretor, mas o viking se colocou entre nós, seus olhos infantis jamais deixando os meus. Fechou os punhos, as garras farpadas reluzindo. O diretor o havia contornado, soltando o último grilhão. Esperei a criatura me atacar, mas ela ficou obedientemente ali, aguardando a ordem.

Ordem essa que nunca vinha.

— Se você é humano, o novo néctar muda você. — O diretor ergueu a faca, parecendo estudar o próprio reflexo no aço polido. — Você vira uma fera que só pensa em destruição e nada mais. Mas, quando você já tem o néctar velho dentro de você... é aí que as coisas ficam interessantes. — Ele olhou para mim por cima da lâmina. — Veja você, por exemplo. Tinha o velho néctar aí dentro desde a prisão, e está em mutação. De modo lento, claro, mas inevitável. No entanto, sua transformação estava no início. A mordida que recebeu levou um vestígio de néctar para o seu sistema, como a vanguarda de uma força invasora. Passou a preparar suas células, a transformar você. Com mais do novo néctar, a transformação teria sido mais rápida, e muito mais... — Ele fez uma pausa, e seus olhos pareceram se tornar vítreos, como se imaginasse algo assombroso — ...muito mais dramática. Sim, é quando se acrescenta o novo néctar ao antigo que a verdadeira força da criação do doutor Furnace se evidencia. E isso que estou lhe dizendo é um fato, Sawyer. Não existe ninguém no mundo, exceto o doutor Furnace, que tenha devorado mais do néctar original do que eu. Eu consumo o néctar desde garoto.

— Mas você ainda é... — comecei.

— Se ainda sou humano? — interrompeu ele, seu sorriso se alargando ainda mais. — É porque fui acostumado a ele desde pequeno. O doutor Furnace me criou como um filho, não como um dos seus soldados, um dos seus bichinhos. Eu nunca passei por cirurgia. Nunca precisei. A cirurgia só é necessária quando é preciso que a transformação aconteça rapidamente. Mas, comigo, meu pai adotivo teve anos, décadas. Posso parecer humano, mas não sou. — Pensei em todas as vezes que tentei encarar o diretor, em todas as vezes que meu olhar foi repelido. O que ele dizia podia não fazer sentido, mas eu sabia que era verdade. — Nada além do néctar corre em mim agora, o néctar original, e ele vem esperando o dia de hoje. Tudo de que ele precisa é uma dose da nova arma do doutor Furnace.

O diretor estendeu a mão, tomando o queixo do viking e puxando sua cabeça para perto de si. Parecia quase o abraço de um casal, como se o diretor estivesse prestes a beijá-lo. Em vez disso, ele guiou a boca úmida da fera para o próprio pescoço.

Com um choque, percebi o que ele ia fazer e o que aconteceria se ele o fizesse. Dessa vez o néctar logo inundou minha mente, como se as paredes de minha sanidade tivessem rachado, o veneno sendo levado até elas pelas batidas do meu coração e a compreensão de que estava indo além do que devia.

— Morda — sussurrou ele, e observei horrorizado a criatura abrir a boca e afundar seus dentes na carne da garganta do diretor. O homem hesitou, tendo um brevíssimo instante de pânico antes de o néctar inundar a ferida, e em seguida ele ria, praticamente uivando enquanto segurava a cabeça do viking no lugar. Segundos depois ele a afastou, e a mandíbula da criatura escorregou para a liberdade com o grunhido de sucção de um desentupidor de cozinha.

— Estou pronto para assumir meu lugar no novo reino! — gritou o diretor, falando não comigo, mas com a sala. Bolhas de néctar brotavam de seus lábios a cada palavra.

Ele pressionou a mão contra ferida, a pele ali já endurecendo. Em seguida, mergulhou a faca na lateral do corpo do viking — bem na cavidade carnuda de suas axilas, o néctar com seus flocos de rubi vertendo para o piso. O viking ergueu a cabeça e uivou para o teto, mas não se mexeu nem tentou fugir. Ficou ali pacientemente, como uma mãe alimentando os filhotes, o rosto do diretor mergulhado embaixo do seu braço enquanto sugava furiosamente o veneno.

Ele tinha razão. Ninguém no mundo tinha consumido mais do veneno de Furnace do que ele. O novo néctar o acertaria com força, como um martelo de forja, e seu corpo estava pronto para isso.

Parti para cima dele, sabendo que tinha de afastá-lo do viking antes que ele começasse a se transformar. Mas, quando ele tirou o rosto da ferida, a boca escancarada demais, veias negras já salientes sob a pele, soube que não havia nada que eu pudesse fazer para detê-lo.

Era tarde demais.


VINGANÇA

Parti para cima do diretor, sabendo que se fosse rápido o suficiente poderia matá-lo enquanto ainda estivesse em mutação, antes que atingisse sua força máxima. A lâmina da minha mão reluzia na luz escarlate como se já estivesse coberta de sangue, os feixes de néctar achatados contra minha pele enquanto me preparava para lançar a arma viva no peito do diretor.

O viking foi mais ágil. Ele me viu chegando e usou uma das mãos para tirar o diretor do caminho e a outra para segurar meu braço. Podia estar com menos veneno que de costume, mas ainda era monstruosamente forte, agarrando-me com tanta força que achei que meus ossos fossem quebrar. Ele me examinou com aqueles olhos infantis, inclinando a cabeça da maneira que uma criança de cinco anos faria antes de esmagar um besouro. Depois girou o corpo, arrancando-me do chão e fazendo-me rolar pela sala.

Enterrei minha lâmina no piso, detendo-me a tempo de ver o viking quicando em minha direção. Lancei-me contra a aberração em movimento, batendo de frente com ela. Alguma coisa estalou, mas não tive certeza se era dentro dele ou de mim. Sua força era maior, e ele me jogou para trás, esmagando-me contra a parede do elevador. Um punho envolveu minha garganta, o outro foi contra minha cabeça. Tudo o que consegui foi desviar, a garra curva enterrando-se diretamente no gesso e no concreto, amassando a caixa de metal do elevador.

Ataquei com meu braço mutante, buscando a ferida na lateral de seu corpo. A criatura compreendeu o que eu pretendia fazer, soltando-me e me batendo forte o bastante para que eu deslizasse pelo piso até esbarrar em uma das árvores. Mal tinha recuperado o equilíbrio e ela estava atrás de mim de novo, espirais de saliva negra escorrendo de sua boca aberta enquanto se preparava para o bote.

O néctar dentro de mim reagiu, sua fria inteligência dirigindo minhas mãos para a árvore ao meu lado e arrancando um dos galhos do tamanho de um homem. Não sei quanto pesava aquele naco de pedra, mas mesmo assim eu o girei com muita facilidade, como se fosse feito de plástico, mirando no viking. O pedaço de pedra acertou o rosto da criatura, explodindo em mil pedaços e fazendo-a voltar em cambalhotas para o lugar de onde tinha vindo, girando de ponta-cabeça meia dúzia de vezes antes de parar.

O viking gemia baixinho, segurando a cabeça com a mão ossuda, o outro braço quebrado e mole abaixo de si. Ele tentou levantar, o corpo vitimado por tremores, mas não conseguiu. Num instante eu estava do outro lado da sala, e com um grito de fúria enfiei meu braço mutante no ferimento em seu corpo.

O braço ganhou profundidade, como uma faca em um frango cozido, e o enterrei ali até o cotovelo. Sentia o néctar operando dentro dele, pulsando contra os meus dedos enquanto corria para remendar os órgãos arrebentados do viking, os músculos dilacerados. Então aqueles tentáculos no meu pulso começaram a girar cada vez mais rápido, como lâminas dentro de um liquidificador, até que tudo o que tivesse restado dentro do peito da criatura fosse sopa.

Ouvi um estrondo atrás de mim. Não queria ver o que me esperava ali. Mas não tive escolha. Fiquei de pé, sacudindo as entranhas presas em meu braço, e virei-me para enfrentar o diretor.

Não sei, de verdade, o que esperava ver ali. Achei que talvez ele fosse crescer, a carne inchando grotescamente como a de um viking, irreconhecível. Mas ele não parecia ter mudado tanto.

Ou tinha? Eu estava tendo dificuldades para focalizá-lo, como se seu corpo estivesse cercado por uma densa névoa. Não, parecia mais que a luz não se aderia a ele, escorregando para longe e deixando um mosaico distorcido e oscilante de escuridão, quase como se eu o visse através de um vidro colorido. Pisquei, vendo o mesmo terno, o mesmo rosto, só que diferentes. As pernas e os braços pareciam longos demais, o corpo estranhamente estendido, como uma sombra de fim de tarde. Meu senso de perspectiva estava confuso — era impossível dizer se ele estava do mesmo tamanho e perto ou se estava muito mais alto e distante.

A dor veio como uma bola de fogo no meio da minha cabeça, um ruído límpido que parecia ser o riso do diretor. E, de repente, ele estava bem ali na minha frente, erguendo-se acima de mim, o corpo inteiro tremulando como se estivesse sendo projetado em pleno ar. Podia ver o néctar pulsando sob sua pele. Havia tanto veneno em suas veias que dava a impressão de que moscas se mexiam embaixo de sua pele.

Lancei minha mão de lâmina para o peito do diretor, mas seu corpo pareceu desviar-se num piscar de olhos. Ele ainda ria, aquele chiado sem fim. Das sombras cintilantes distingui dois olhos, moedinhas negras que me perfuravam com um deleite tão malévolo que fiquei sem ar.

— Tenho pena de você, garoto — disse o diretor, cada sílaba uma martelada. — Você poderia ter ficado conosco, ajudado a anunciar a Pátria. — Outra vez sua forma mutante pareceu inchar no espaço diante dos meus olhos, e outra vez meu golpe desajeitado acertou meramente o ar. Uma faca de medo atravessou o néctar, conduzidas a mim pelas palavras do diretor: — Agora, depois de tudo isso, você vai morrer.

Não o vi se mexer, mas algo trincou minhas costelas, e o mundo se desfez. Saí voando, lascando um dossel de galhos de pedra antes de acertar a parede do elevador com força suficiente para rachá-la. Levantei-me do chão, sacudindo o pó de gesso e me preparando para revidar. Só que o diretor tinha sumido.

— Está vendo? — Sua voz parecia vir do nada, impossível de localizar. — Está vendo como agora consigo manter minha casa em ordem? Girei ao redor de mim mesmo, a respiração presa na garganta, meu coração batendo tão forte que minha pulsação parecia reverberar na sala inteira. Não conseguia ver o diretor em lugar nenhum.

— Está vendo? — repetiu ele. Olhei, febril, para o lado, tentando definir o que havia na penumbra em meio às árvores. Aquilo era ele? Aquele brilho de escuridão? — Está vendo? — E dessa vez as palavras eram um sussurro despejado bem no meu ouvido. Virei-me tarde demais, vendo seu rosto sorridente tão perto que estava quase grudado no meu, a respiração dele como um pano pútrido estendido sobre minha boca. Antes que eu reagisse ele me golpeou de novo, lançando-me pela sala como se eu tivesse sido disparado por um canhão. Fui rolando e colidi com mais uma árvore de pedra, deixando um rastro de pó e detritos, e dessa vez, mesmo através do alvoroço do néctar, havia dor.

Ergui-me com dificuldade, completamente zonzo, na esperança de que minha lâmina pudesse acertá-lo. Mas de novo ele parecia ter virado um fantasma. Concentrei-me no néctar para ter forças, mas ele parecia estar diminuindo, como se até ele estivesse com medo daquilo em que o diretor havia se tornado. Rugi, mais de medo que de raiva, e em seguida comecei a correr — se eu conseguisse chegar à escada, pelo menos ele não teria onde se esconder.

— Acho que não vai dar certo — o diretor irrompeu à minha frente, seu sorriso doentio parecendo suspenso como o crescente amarelo da lua. Senti uma mão em volta do meu pescoço, erguendo-me do chão, puxando-me de volta. Debati-me contra ela, mas, sem ar nos pulmões, meus golpes foram ficando ridículos, como os de uma criança. — Não há como fugir! — prosseguiu o diretor, cuspindo as palavras na minha direção. Seus passos ficaram mais e mais rápidos, meu corpo balançando de seu punho como um boneco de pano. — Nunca mais. Não para você.

Senti a janela atrás de mim, o instinto me forçando a colocar a cabeça contra o peito da melhor maneira que conseguisse, apesar da mão do diretor ali. Ele me fez atravessá-la diretamente com um golpe, e subitamente eu estava suspenso a cinquenta e um andares acima do solo, apenas sua mão evitando que eu me estatelasse nas ruas lá embaixo. Mesmo que o vento uivasse em meus ouvidos, ainda podia ouvir o riso dele, incansável, infinito. Tentei alcançar a parede com os pés, mas não havia nada em que me apoiar; tentei respirar, porém minha traqueia estava esmagada. Meu cérebro disparava centelhas negras que feriam minha visão, o corpo inteiro gritando.

O rosto do diretor estava emoldurado pelo vidro quebrado da janela, ainda humano, mas de algum modo não humano. A boca estava larga demais, seus olhos haviam ficado do tamanho de enormes moedas e a carne de couro de seu rosto parecia estar caindo, como se enfim estivesse se livrando da máscara que tinha usado por tanto tempo. Vi minhas mãos — aquela que era a minha de sempre e a de lâmina de ônix — batendo sem força contra o braço que me segurava. O diretor apenas ficou me olhando com seu sorriso de pesadelo, aquele que tanto me assustara na prisão, só que agora era um milhão de vezes pior.

Perguntei-me como podia ter pensado que o derrotaria.

Mas você pode derrotá-lo. As palavras cortaram o vento e o chiado seco dos risinhos do diretor, tão límpidas que achei que tivessem vindo de mim. Você deve fazer isso.

Os dedos do diretor se fecharam com mais força ainda, comprimindo minha garganta. A visão em um de meus olhos estremeceu, como a imagem de uma televisão com problemas de sinal, antes de sumir por completo.

Ouvi um som vibrante, como uma máquina cujas engrenagens emperraram, tão alto que parecia estar vindo de toda parte à minha volta. Só eu sabia que o som estava dentro da minha cabeça. Eu agonizava.

— E pensar que você realmente acreditou que fosse mais forte do que eu — disse o diretor. — Mas você é só um garoto. Sempre foi só um garoto.

Você é mais do que isso, disse a voz. Minha voz? Uma tentativa derradeira do meu cérebro de me manter vivo? Olhe só pra você. Olhe o que você se tornou. O que ainda está se tornando. Você é muito mais do que a criança que foi um dia.

A alucinação que eu tinha visto na funerária fulgurou diante dos meus olhos, meu corpo do jeito que era antes de os Ofegantes usarem seus bisturis em mim — fraco, ridículo. Eu era mais do que aquilo, muito mais.

— Últimas palavras? — perguntou o diretor. — O doutor Furnace está vendo, você sabe. Está ouvindo. Tem alguma última mensagem?

Mesmo que houvesse palavras, não havia ar para alimentá-las. E no entanto, em algum lugar dentro da minha mente, a voz falou de novo. Diga-lhe, disse ela, um sussurro alto como uma bomba. Diga-lhe que seu tempo acabou.

Abri a boca, cuspindo sangue na manga do diretor, meus pulmões em chamas. Parei de resistir, deixando meus braços penderem ao lado do corpo. Seu sorriso pareceu se ampliar, como se tivesse se esticado bem para fora dos limites de seu rosto.

— Seu... — articulei, as palavras sem nenhum som. O diretor inclinou a cabeça, e senti sua mão relaxar, permitindo que um fiapo de ar entrasse em meus pulmões para alimentar minhas últimas palavras: o último presente do diretor para mim. — Seu tempo... — chiei, um arquejo hesitante enquanto lutava para concluir — ...acabou.

Seus lábios comprimiram-se, afastando o sorriso lunático para longe, mas os olhos insanos cintilaram.

— Quem mandou você dizer isso? — perguntou ele. Não respondi, ainda que soubesse. A voz na minha cabeça era dele. De Alfredo Furnace. E eu vi o entendimento surgir na expressão do diretor no instante em que ela se pronunciou de novo.

Agora mate-o.

O diretor abriu a mão, meu estômago revirando no momento em que a gravidade me capturou. Desferi um golpe, minha mão de lâmina deslizando para dentro do ombro do diretor. Pude sentir os tentáculos de néctar se alargarem como os dentes de um gancho, firmando meu braço em sua carne e em seus ossos, retardando minha queda. Por um segundo achei que ambos fôssemos cair, mas então o diretor se apoiou contra o parapeito, o rosto deformado pelo esforço de nos manter firmes.

— Não! — gritou ele. — Você não pode fazer isso comigo!

Ele estendeu a mão, socando-me, mas minha mão era como aço. Com um grito de ódio, ele pegou minha cabeça e me arrastou de volta para a torre. O néctar respondeu, os feixes se achatando e permitindo que eu arrancasse minha lâmina. Lancei-a de novo, sentindo-a revirar dentro da barriga do diretor com um som que parecia o de tesouras cortando carne. Num piscar de olhos eu o tinha golpeado mais duas vezes, um rio de néctar de flocos vermelhos derramando-se de cada ferimento. Seu corpo estava ficando mais fraco, mais lento, à medida que sua força vital era drenada, deixando de cintilar e tornando-se mais sólido. Ele estava ficando mais humano.

— Não vou permitir — disse ele num murmúrio. Senti a pressão em minha cabeça aumentar, esmagando-a, forçando-me para o chão. Ele jogou seu corpo em cima de mim, uma massa de vísceras pendendo dos ferimentos na barriga, pulsando em negro. Logo estava me batendo, de novo e de novo, seus golpes inacreditavelmente rápidos e fortes, socando-me contra o piso, o tempo todo gritando as mesmas palavras: — Não vou permitir! Não vou permitir!

Ele se afastou de mim tempo suficiente para arrancar um galho de pedra de uma das árvores. Antes que eu conseguisse encontrar forças para levantar, ele já estava de pé à minha frente, segurando-o acima da cabeça, como uma espada. Não parou de falar; apenas lançou-o contra meu peito. Senti as costelas se partirem, os órgãos sendo afastados para o lado pela tora de pedra antes que ela furasse o chão, empalando-me como um inseto numa coleção.

Gritei e, olhando para baixo, vi o néctar derramando-se para fora de mim — uma poça de líquido escuro, com flocos dourados, espalhando-se sob minhas costas —, como ratos desertando de um navio naufragado.

Enfiei a mão no braço do diretor, em seu peito, em seu rosto, mas ele nem se mexeu. Golpeei mais forte, sabendo que era inútil, sabendo que eu estava prestes a morrer, que o último som que ouviria seria a risada gutural do diretor.

— Alex!

Perguntei-me se tinha imaginado aquele grito. Meu cérebro acendia e apagava, o ambiente sendo trocado pelo cenário de minha infância, por cenas da prisão, acontecimentos aparentemente aleatórios da minha vida espalhados pela realidade enquanto as sinapses no meu cérebro disparavam em falso. Mas o diretor obviamente ouviu também, porque seu rosto dilacerado virou-se de súbito, aqueles olhos mais do que arregalados piscando furiosamente para uma figura do outro lado da sala.

Simon, o rosto vermelho e todo suado após ter subido a escada.

Ataquei de novo, pegando o diretor logo abaixo da garganta. Ele cambaleou para trás, as mãos no pescoço, e com outro grito de dor peguei o galho de pedra e puxei. Estava incrustado nas tábuas de carvalho, mas eu tinha força suficiente só para arrancá-lo, deslizando-o para fora do meu peito e usando-o como uma bengala para ficar de pé.

— Alex, pelo amor de Deus, você está bem? — perguntou Simon, congelado em seu lugar, uma expressão de descrença no rosto. Não podia culpá-lo. O diretor e eu, transformados em aberrações, espancados quase até a inconsciência, derramando néctar por toda parte, devíamos ser a própria imagem do inferno na Terra.

O diretor rosnou para Simon, o ferimento no pescoço já cicatrizado por uma camada reluzente de néctar. Em seguida voltou a atenção para mim. Mas não antes de eu ver Simon começar a correr, os cinturões de granadas tilintando em volta do ombro e um dos explosivos em sua mão.

Comecei a correr também, nós dois convergindo para a aberração de terno no meio da cobertura. O diretor atacou, e eu me agachei, mergulhando minha lâmina em sua barriga outra vez, o braço dentro dele até o ombro. Ouvi-o arquejar, sentindo seus dedos em mim enquanto lutava para me afastar. Mas ele tinha problemas mais graves. Olhei para cima e vi Simon trepando nas costas do diretor, seu braço balançando como o de um jogador de basquete enquanto encestava a granada na enorme boca ensanguentada e escancarada do homem.

O diretor tossiu, tentando cuspir o explosivo. Empurrei Simon para longe, com toda a força que eu tinha, fazendo com que ele deslizasse girando pelo chão. Então apertei minha mão boa contra os lábios do diretor, segurando a granada ali, rezando para que tudo acabasse rápido, rezando para que nós dois morrêssemos.

O diretor teve tempo de dar um único, gorgolejante, rugido. Então a granada detonou.

A explosão arrancou um lado inteiro de seu rosto, as bochechas e um dos olhos voando para fora numa explosão úmida. Tive tempo de perceber que tinha perdido meu braço bom, enquanto o diretor cambaleava para trás, as mãos sobre a cabeça dilacerada, o olho remanescente encarando-me sem acreditar.

Mas ele não estava morto. Nem perto disso.

Manquitolei pelo piso atrás dele. O mundo desaparecia com rapidez, como um jogo de computador desligado em pleno funcionamento. Eu estava morrendo. Havia ferimentos demais, até mesmo para o néctar. Quero dizer, para o néctar antigo. Só havia um jeito de acabar com aquilo. Só havia um jeito de derrotá-lo e só um jeito de me salvar.

O diretor bateu contra os restos de uma árvore e tombou no chão. Alcancei-o num segundo, jogando-me em seu peito.

Sua boca era um caos, mas eu o vi ali, o néctar. Ele cintilava para mim, em meio aos pedaços de carne restantes em sua garganta, bombeando pelas artérias que já começavam a se remendar, pequeninos olhos escarlate quase pedindo que os consumisse. Não esperei mais. Não podia esperar. Podia sentir a vida se esvaindo de mim, esguichando do toco do meu braço, dos buracos simétricos na frente e atrás do meu peito. Se não agisse rápido, o diretor iria se recuperar e acabaria com todos nós. Tinha de ser agora.

Inclinei-me para a frente, colocando meus lábios contra o rosto dilacerado do diretor.

E comecei a beber.


PERDIDO DE VEZ

Era como engolir fogo líquido. Como se eu fosse um motor que estivesse prestes a morrer, mas de repente ficasse cheio de combustível. O néctar descia por minha garganta, aplacando uma sede violenta de cada célula do meu corpo que tinha passado despercebida. Nem pensei no horror do que eu fazia, no fato de que almoçava sangue do pescoço aberto do diretor — sangue que ele, por sua vez, tinha sugado de um viking. Apenas bebi, deixando o néctar me nutrir da cabeça aos pés; bebi até ter a sensação de que meu corpo inteiro queimava, dando-me a impressão de poder derrubar aquela torre com um único golpe; bebi até minha visão voltar, captando cada mínima coisa em seus perfeitos detalhes; bebi até meus pulmões gritarem por ar e meu estômago dar a impressão de que estava prestes a se romper.

O diretor se contorcia embaixo de mim, e finquei meu braço direito em seu ombro para ancorá-lo no lugar. Sua única reação foi um gemido débil e úmido. Ele já era. Eu o tinha sugado. Era seu fim. E ele também sabia disso, seus movimentos ficando cada vez menos urgentes à medida que a força vital vertia de seu organismo.

— Alex, por favor, pare.

Pude ouvir a voz atrás de mim, o garoto chamado Simon, mas não dei importância. Não dei importância a nada além de banquetear-me, sentindo meu corpo se reconstruir, feixes de néctar correndo pelas veias e artérias do meu braço arrebentado, dos buracos no tórax, de outros incontáveis ferimentos, cicatrizando a carne e trazendo-a de volta à existência. Não tinha ideia de que tal poder pudesse existir; nenhuma ideia de que eu poderia possuir tamanha força.

Eu era invencível, indestrutível, imortal.

Levantei a cabeça e inalei um ar grosseiro que fedia a sangue e néctar. O único olho do diretor piscou para mim, cheio de fúria e medo, e abri um sorriso para ele, mais parecido com uma careta, o néctar subindo com força do meu estômago e explodindo de mim num riso gutural e impossível de conter. Ouvi a maneira como ele soava no ambiente, tão distante de qualquer outro som humano quanto possível. E adorei. Por que ser um humano quando era possível ser tão mais?

O diretor deve ter sentido meu poder, porque tentou se desvencilhar de mim uma última vez. Arqueou o corpo, derrubando-me. Rolei pelo chão, e ele começou a se jogar de um lado para o outro, tentando levantar. Fiquei ali parado, olhando o que restou do meu braço que tinha sido arrancado pela granada. O néctar havia formado uma segunda lâmina, mais curta, que se prolongava do meu cotovelo, como uma lança talhada numa vara queimada. Ele ainda operava ali, pequeninas antenas esticando-se da ponta como plantas, tecendo em conjunto para produzir um novo braço para mim.

E também operava no restante do meu corpo. Minha pele brilhava do mesmo jeito que a do diretor tinha brilhado, como que envolta em sombras. E não era só isso. Parecia que o mundo corria em câmera lenta e que cada movimento que eu fazia era mais rápido que o próprio tempo.

— Alex? — aquela voz infantil atrás de mim, Simon. — Vamos, não temos mais muito tempo. Zê está a caminho agora. Lembra?

Virei a cabeça e vi atrás de mim aquele garoto, batendo com o dedo no relógio, mas não queria perder tempo falando com ele. Ele também já tinha estado sob a influência do néctar e ganhado um braço inchado e repleto de músculos. Mas era o néctar antigo, que o abandonara. Ele não havia sido digno dele. Sibilei em sua direção, refestelando-me na maneira como ele cambaleou para trás, o medo iluminando seu rosto.

— O que aconteceu? — perguntou ele. — O que você fez?

Desviei o olhar, entediado com aquelas palavras. Com um rosnado, o diretor enfim conseguiu ficar de pé, oscilando sem muito equilíbrio enquanto virava para me encarar. Não sei como ele ainda estava vivo, considerando que sua cabeça fora praticamente virada do avesso. Mas de algum modo ele se arrastou na minha direção, ganhando velocidade e energia, um punho para trás, pronto para o golpe.

Mantive minha posição, socando minha mão direita no ombro do diretor outra vez, antes de acertar a esquerda em suas costelas. Ambas entraram fundo, e ele me estapeou, num esforço para afastá-las. Porém, sem o néctar, seus golpes não tinham nem de longe a mesma força de antes.

Com mais um riso uivado, torci meu corpo e girei os braços, levantando o diretor do chão e jogando-o pelo ar. Ele rodopiou lenta, quase preguiçosamente, rumo ao elevador que dividia pela metade a cobertura, caindo com um baque que resultou numa explosão de gesso.

— Dane-se tudo isso — disse o garoto chamado Simon, recuando para a porta que levava para a escada. — Se você está aí dentro, é melhor sair dessa logo. — Ele deu mais uma olhada em mim, esperando um instante antes de balançar a cabeça. — Adeus, Alex — disse. Em seguida ele se foi, o som de passos na escada pouco a pouco saindo do alcance dos meus ouvidos.

Andei até o diretor, seu corpo rijo deitado numa poça de sangue negro. Ainda tentava se levantar, mas não havia néctar suficiente nele para remendar seu corpo quebrado e dilacerado. Ele me viu chegando e tentou cuspir em mim, a fraca bola de saliva suja chegando apenas até o queixo devastado.

Isso é pelo que você fez comigo, eu quis dizer, só que as palavras não saíram. Tudo o que saiu dos meus lábios foi um vago resmungo. Talvez porque eu soubesse que aquelas palavras eram uma mentira. Na verdade, eu tinha que agradecer ao diretor por tudo. Ele fizera de mim essa criatura de puro fogo, de poder absoluto. Sem ele, eu seria só mais outro garoto ridículo preso nos confins do mundo.

Seria mesmo? Lutei contra a nuvem negra que cobria minha mente, tentando arrancar qualquer pensamento que não fosse homicida. Mas minhas lembranças tinham se espalhado como pássaros diante de uma nuvem de tempestade, perdidas na escuridão.

Enfiei a lâmina da minha mão nas costas do diretor, as fibras de néctar expandindo-se dentro de sua pele, agindo como uma mão. Arrastei-o contornando o fosso do elevador, rumo à escada, chutando-o pelos degraus abaixo, andar depois de andar, até que ele rolou e parou contra a parede na qual havia um “48” escrito.

Ele parecia saber o que havia nesse andar, porque tentou rastejar para longe, efetivamente tentando se jogar pelos degraus abaixo. Não permiti, erguendo-o como uma enguia num anzol e empurrando-o para a porta. Ele caiu através dela, arrancando-a de suas dobradiças e aterrissando na parede oposta.

O ruído encheu o corredor com um som de trovão, disseminando-se rápido no ambiente e em seguida sumindo. Segundos depois a torre inteira pareceu estremecer, o piso dividindo-se em dois, uma parte cedendo e ficando ao menos meio metro abaixo da outra, uma rede de rachaduras espalhando-se pelas paredes e pelo teto. Ignorei tudo aquilo, empurrando o diretor para a frente, até chegarmos à primeira porta.

A sala ainda estava escura, mergulhada em luz avermelhada. E também ainda estava cheia. Os Ofegantes recuaram para um canto quando o diretor tropeçou porta adentro, a respiração e os guinchos aumentando num crescendo. O diretor perdeu o equilíbrio, estatelando-se à frente, derrubando uma das camas da enfermaria ao desabar no chão. Um carrinho de equipamento cirúrgico foi rodando até os Ofegantes, deixando cair algumas peças de metal em seu trajeto.

Aquele barulho outra vez, o céu se rasgando. O prédio balançou, dessa vez com mais força, as janelas da sala se despedaçando a tempo de eu ver um caça zunir do lado de fora, inclinando-se graciosamente para a direita e para longe do campo de visão, já despojado de seus mísseis. Nas profundezas da minha memória, sabia o que estava acontecendo. Sabia que o plano daquela garota, Lucy, tinha dado certo — que ela e... Zê, era esse o nome dele, que eles tinham encontrado apoio, tinham explicado o que estava acontecendo — e que a torre agora estava sob ataque.

Graças à capitã Atilio, o exército já sabia que os ternos-pretos eram inimigos, que Furnace lutava contra as Forças Armadas, e isso deve ter tornado a história de Zê mais fácil de engolir. Sinceramente, não tinha acreditado que as autoridades fossem mesmo derrubar um prédio inteiro, mas as coisas ali estavam catastróficas o bastante para que táticas mais drásticas entrassem em ação. No desespero, você faz o que não faria normalmente, como se diz por aí. E não havia dúvida do que era preciso fazer agora.

Mas eu não estava nem aí. Não mais.

De algum modo o diretor conseguiu virar-se, arrastando-se de costas contra uma cama e erguendo as pernas na defensiva. Olhou-me com aquele olho de ciclope e só depois pareceu reparar nos Ofegantes. Eles também o tinham visto. Aproximavam-se agora, os rostos mascarados, mas de algum modo vibrantes de curiosidade. Um foi direto até ele, um bisturi preso na mão enluvada. O diretor atacou, derrubando a criatura. Mas isso pareceu gastar suas últimas energias, e ele caiu de lado, sugando o ar em ásperos arquejos.

Lenta, mas implacavelmente, o restante dos Ofegantes se aproximou, dezenas deles, alguns segurando lâminas cirúrgicas, outros, instrumentos curiosos, alguns apenas flexionando os dedos, como se mal pudessem esperar para começar a trabalhar.

E trabalhar foi exatamente o que fizeram. Não sei se sabiam que aquele era o diretor; se, de algum modo, aproveitavam para se vingar do papel que ele desempenhara na terrível existência deles. Ou talvez apenas tivessem sentido seu medo, sua fraqueza, e isso os tivesse enfurecido.

Qualquer que fosse a razão, partiram para cima dele como moscas sobre um cadáver, os jalecos negros voando como asas, com aquela respiração ofegante e eterna zumbindo e enchendo a sala.

O diretor tentou uma última vez derrubá-los, mas eram muitos. Vi seu olho esquadrinhar os agressores, ficando cada vez mais esbugalhado e com um brilho insano. E logo antes de desaparecer totalmente ele se fixou em mim, com uma expressão de horror genuíno e absoluto.

Então, com um grito final e desesperado, desapareceu debaixo deles.

Observei enquanto aguentei, até que houvesse pedaços demais para contar. Depois virei e atravessei a sala, voltando ao corredor. Havia fumaça ali, suspensa sobre a superfície como uma bruma, e também havia um alarme soando. Corri de volta para a escada, olhando entre os corrimões e vendo um incêndio furioso lá embaixo.

Sem outra escolha, subi a escada até a cobertura. Assustado eu não estava, o néctar cuidava disso, mas um leve tremor de pânico começava a surgir enquanto eu me imaginava preso dentro da torre. Comecei a cruzar o piso na hora em que outro avião cortou os ares, tão perto que o resto dos vidros ali em cima estilhaçou-se com seu rastro ensurdecedor, uma luz dourada inundando o espaço.

A torre estremeceu, soltando um grunhido tão profundo e tão alto que foi quase subsônico, mais uma sensação que um som. Ele me fez pensar em uma enorme criatura marinha gritando nas profundezas do oceano. Não havia mais escadas ali, mas havia o telhado. Talvez lá em cima houvesse um jeito. E, se não houvesse, pelo menos teria uma ideia melhor do que estava acontecendo.

Corri até a janela mais próxima, tropeçando quando ouvi o som de outro míssil rasgando a torre mais embaixo. A cobertura já começava a se encher de fumaça, a brisa das janelas pouco ajudando para desanuviá-la. Outra vez o piso oscilou, baixando cerca de um metro ou mais, a vista do lado de fora balançando como o horizonte num mar tempestuoso, com tanta violência que meu estômago revirava.

Agarrei uma árvore de pedra para me dar apoio, enquanto outro caça berrava do lado de fora. O fogo vinha lambendo as fendas no chão, enroscando-se até o teto e dominando o local. Alcancei a janela, os caixilhos de pedra descendo à medida que as fundações da torre desabavam. Pus a cabeça para fora, a vista do solo bloqueada por cortinas de fumaça negra como piche que jorrava das janelas da torre inteira, como néctar sangrando de um corpo. Ela se agarrava ao meu corpo, aos meus pulmões, e, inclinando a cabeça para cima, vi o alçapão do telhado sobre minha cabeça.

Não tinha mais mãos propriamente ditas, mas lancei meus dedos laminados contra as paredes, impulsionando-me para cima. A inclinação era íngreme, e estava escorregadio, mas consegui empoleirar-me à sombra do imenso pináculo negro no topo do prédio.

O avião voltava, reluzindo à luz do sol ao inclinar-se lateralmente. Quando se endireitou, duas faixas brancas silvaram de sob suas asas, golpeando a torre embaixo de mim com tanta força que quase fui arremessado para o vazio. O volume do estrondo aumentou quando o avião passou, mais fumaça agitando-se.

Arrastei-me para o telhado, sentindo o calor através das pedras. E não era só a torre que estava em chamas. À minha volta a cidade inteira ardia, incêndios devorando quarteirões e bairros inteiros, estendendo-se a perder de vista.

Olhei as ruas e vi silhuetas ali, distantes demais para que pudesse enxergá-las com clareza, figuras indistintas que passavam pela fumaça, que subiam em destroços. Havia soldados também, exércitos enfrentando-se nas avenidas e nas praças da cidade. Vi tanques, helicópteros, homens e mulheres em roupas de camuflagem atirando em fileiras de ternos-pretos em marcha, tudo tão longe e, no entanto, tão nítido.

Você fez sua escolha, disse uma voz na minha cabeça. A voz dele. Sabia que seria assim. Você matou meu general, um homem que falhou em seu dever, e tomou o lugar dele ao meu lado. Sei que você vai manter a casa em ordem; você provou isso diversas vezes, meu filho.

— Eu não escolhi isso! — gritei, minha voz sendo afastada pelo vento, carregada acima da cidade. — Não era isso que eu queria.

Não?, perguntou Furnace, sua voz mais alta até mesmo do que o estalido das pedras superaquecidas. Isto não é exatamente o que você queria? Eu mostrei a você seu futuro, e mesmo assim você veio.

— Eu não tinha entendido — respondi. — Você me enganou.

E mesmo assim o néctar bramia, olhando a carnificina a meus pés, e gritava para fazer parte dela. Não podia negar a sensação que ele me causava.

Este é seu mundo agora, prosseguiu Furnace. Vou me juntar a você, e vamos celebrar juntos, vamos assistir lado a lado ao surgimento da nova Pátria. Esta é sua escolha, Alex. Este é seu destino.

Tudo aquilo era demais, um furacão de medo, empolgação e raiva devastando minha cabeça. Suguei praticamente um universo de ar fumacento e em seguida o expirei com um uivo que vinha do centro de meu ser, um uivo que parecia ter feito a cidade estremecer, caindo de joelhos. Eu me vi como as pessoas nas ruas me veriam, uma criatura de força inigualável, de poder imbatível.

Vi a fera da minha visão.

Vi a mim mesmo.

— Não terminou ainda — rosnei quando meus pulmões se encheram de novo. — Vou matar você. Prometo. Ainda não terminou.

Ah, quanto a isso você está certo, respondeu Furnace. Não terminou. É apenas o começo.

— Vou matar você — repeti. Dessa vez, Furnace apenas riu, um som que reduziu o inferno abaixo de mim a um sussurro. E senti minha fúria crescer, tomando emprestada a força do néctar. Então fiz uma promessa ali mesmo.

Encontraria Alfredo Furnace — e o mataria.

E, se o mundo tentasse me impedir, então que Deus o ajudasse, porque eu o arrebentaria. Eu o veria arder.

Não, não tinha terminado. De jeito nenhum.

Meu reinado de terror estava apenas começando.

 

 

                                                   Alexander Gordon Smith         

 

 

 

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