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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FUNDAÇÃO / Isaac Asimov
FUNDAÇÃO / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FUNDAÇÃO

 

OS PSICOHISTORIADORES

HARI SELDON -...nascido no ano de 11 988 da Era Galáctica, morreu no ano 12 069. As datas são geralmente apresentadas em termos da Era Fundacional, como o ano 79 é 1 E. F. Filho de pais da classe média em Helicon, setor de Arcturus (onde seu pai, conforme lenda de autenticidade duvidosa, cultivava tabaco, nas plantas hidropônicas do planeta), muito cedo mostrou a sua extraordinária propensão para a matemática. As piadas relacionadas com a sua habilidade são inúmeras, e algumas contraditórias. Com a idade de dois anos, dizem que...

...Sem dúvida, as suas maiores contribuições foram para o campo da psicohistória. Seldon encontrou este campo constituído por meia dúzia de vagos axiomas; quando o deixou, tornara-o uma profunda ciência estatística...

...A melhor autoridade para pormenores da sua vida, é a biografia escrita por GaalDornick que, quando jovem, encontrou Seldon dois anos antes da morte do grande matemático. A história do seu encontro...

Enciclopédia Galáctica*

 

* Todas as citações da Enciclopédia Galáctica aqui reproduzidas são extraídas da 116ª edição publicada em 1020 E. F. pela Empresa da Enciclopédia Galáctica, Ltda., Terminus, com autorização dos editores.

 

Chamava-se Gaal Dornick e era um simples provinciano que nunca vira Trantor. Isto é, não na realidade. Vira-o muitas vezes no supervídeo, e eventualmente nos enormes boletins noticiosos tridimensionais, cobrindo uma Coroação Imperial ou a abertura de um Conselho Galáctico Apesar de ter vivido toda a sua vida no mundo de Synax, que circulava ao redor de uma estrela nos confins do Deserto Azul, ele não estava desligado por completo da civilização. Naquela altura, lugar algum da Galáxia, o estava.

Havia quase 25.000.000 de planetas habitados na Galáxia e todos se submetiam ao Império cuja capital era Trantor. Seria o último meio século de tal existência.

Para Gaal, esta viagem era o indubitável clímax de sua vida de jovem sábio. Ele já estivera no espaço, de modo que a viagem, como viagem e nada mais, pouco significava.

É certo que anteriormente simplesmente viajara até o único satélite de Synax para obter dados sobre as mecânicas da queda do meteoro, necessários à sua dissertação, porém pensando que viagens seriam viagens, quer durassem um dia ou um ano.

Já se preparara para o salto através do Superespaço, fenômeno que não experimentaria todos os dias. O salto era e seria para todo o sempre, o único método prático para as viagens interestelares. As viagens através do espaço vulgarmente conhecidas não se davam a velocidade mais rápida do que a da luz (um pouco do conhecimento científico pertencente entre os poucos que resistiam á passagem do tempo desde o início da história da Humanidade), e que significaria anos de viagem entre os sistemas habitáveis mais próximos. Através do Superespaço, região impossível de imaginar, que não era espaço nem tempo, matéria ou energia, algo ou nada, poder-se-ia atravessar a Galáxia em toda a sua extensão no intervalo de dois segundos.

Gaal esperara o primeiro desses saltos com medo e, no entanto, nada sentira além dum sobressalto interno que desapareceu no mesmo instante. Foi tudo.

E depois disso, havia apenas a nave, grande e brilhante; o produto frio de 12.000 anos de progresso imperial; ele próprio, com seu diploma de matemática obtido recentemente e um convite do grande Hari Seldon para ir a Trantor, juntar-se ao vasto e um pouco misterioso Projeto Seldon.

O que Gaal esperava com ansiedade depois da desilusão do salto, era a primeira visão que teria de Trantor. Por isso nunca saía da sala de observação. As persianas de aço, retiradas das vigias, permitiam uma breve visão que ele aproveitava observando o brilho firme das estrelas, gozando a luminosidade de uma nebulosa, um conglomerado gigante de fogos-fátuos apanhados em movimento e imobilizados para sempre. Ou então a névoa azulada e fria de uma nebulosa gasosa, á distância de 5 anos-luz, estendendo-se para além da vigia como mancha de leite e dominando a sala com uma luz tênue, para desaparecer duas horas depois. A primeira aparição do sol de Trantor deu a impressão de um ponto duro e branco, quase perdido, e apenas reconhecido ao ser apontado pelo guia da nave. As estrelas avolumavam-se no centro Galáctico. Mas a cada salto, o sol brilhava mais intensamente ofuscando todas as demais luzes, empalidecendo-as.

Um oficial apareceu e disse: - A sala de observação ficará fechada durante o resto da viagem. - Preparem-se para a chegada.

Gaal seguiu-o, puxando pela manga do uniforme branco com o distintivo imperial: o sol e a nave interplanetária. - Seria possível deixar-me ficar? Gostaria de ver Trantor.

O oficial sorriu, e Gaal olhou embaraçado; lembrou-se sem razão de que falava com um sotaque provinciano.

O oficial respondeu: - Chegaremos a Trantor ao amanhecer.

- Quero vê-lo do espaço.

- Desculpe, mas é impossível. Se isto fosse um iate poderia fazê-lo, porém vamos aproximar-nos pelo lado do sol e você ficaria queimado e cego com os efeitos da radiação.

Gaal voltou-lhe as costas. O oficial ainda lhe disse que as visitas de turismo em Trantor eram baratas.

- Obrigado.

Era criancice sentir-se desiludido, mas sentir-se criança num homem é quase natural. Nunca tinha visto Trantor, grande como a vida, espalhado na sua imensidade e não desejava esperar.

 

A nave desceu entre ruídos. Ouvia-se o sussurro longínquo da atmosfera a ser cortada, resvalando ao longo do metal, o ruído contínuo dos condicionadores lutando contra o calor da fricção, e o ruído mais lento das máquinas desacelerando-se. Ouvia-se ainda o tumulto de homens e mulheres reunindo-se nas salas de desembarque, os guinchos dos guindastes levantando a bagagem, o correio e as mercadorias, do centro da nave.

Gaal sentiu que a nave já não tinha um movimento independente. A gravidade planetária tinha a supremacia. Milhares de passageiros aguardavam pacientemente.

A bagagem de Gaal era mínima. Ele parou defronte de um balcão onde suas malas foram rapidamente revistadas. O seu passaporte foi inspecionado e carimbado. Não lhe deram atenção.

Estava em Trantor! O ar parecia mais pesado, a gravidade maior aqui do que no local onde nascera. Pensou se se habituaria à imensidade.

O Edifício de Desembarque era enorme. O teto perdia-se nas alturas, e Gaal quase podia imaginar as nuvens formarem-se por baixo dele. A parede fronteira não se via; só funcionários, balcões e chão até se perder tudo na neblina.

O homem do balcão falou; o tom de sua voz era azedo: - Mexa-se, Dornick. – Gaal ainda lhe perguntou para onde, porém a única resposta foi um gesto apontando para os sinais suspensos no alto onde se podia ler: Táxis para todos os pontos.

Um indivíduo saiu do anonimato e parou no mesmo balcão em que Gaal parara. O homem fez-lhe um movimento de cabeça e o indivíduo retribuiu por sua vez e seguiu o jovem emigrante. Chegou mesmo na altura de ouvir para onde Gaal se dirigia.

Gaal encontrou-se defronte do anúncio Supervisor. O homem a quem o letreiro se referia nem sequer o olhou: - Para onde? - perguntou.

O jovem não tinha certeza, porém alguns segundos de hesitação significavam mais gente em fila atrás dele.

O Supervisor olhou-o desta vez. - Para onde?

Gaal não tinha muito dinheiro; respondeu descuidado: - Para um bom hotel.

O Supervisor não se impressionou. - São todos bons. Escolha um.

- O mais próximo, por favor.

O Supervisor apertou um botão. Um fio tênue de luz formou-se no chão, serpenteando entre outros de cores diferentes. Um bilhete luminoso foi-lhe apresentado.

O Supervisor pediu: - Um ponto doze.

Gaal procurou as moedas. - Para onde vou? - perguntou.

- Siga a luz. O bilhete continuará brilhando enquanto for na direção certa.

Gaal começou a andar. Havia centenas de pessoas seguindo suas rotas individuais, cruzando-se, apressadas em chegar aos seus destinos.

O seu caminho terminou. Um homem de uniforme azul e dourado, berrante, confeccionado com pasto-têxtil, levou-lhe as malas. - Direto para o Luxor - gritou.

O homem que seguia Gaal ouviu-o, e observou-o subindo em seu veículo.

O táxi subiu em linha reta. Gaal olhava tudo pela janela transparente, maravilhado com a sensação de voar dentro de uma estrutura fechada, agarrando-se instintivamente ao assento do motorista. A vastidão reduziu-se, e as pessoas tornaram-se formigas, dispersas em todas as direções. A cena restringiu-se ainda mais, e começou a desaparecer.

Em frente havia um paredão. Começava no meio de nada e terminava no meio de nada, longe do alcance dos olhos. Por todo ele apareciam as bocas dos túneis; o táxi lançou-se num deles, e logo desapareceu na escuridão. Durante curtos momentos, Gaal ficou pensando como é que seu motorista escolhera aquele túnel entre tantos.

Tudo era escuridão, brilhando apenas uma ou outra luz de sinalização. O ar parecia cheio de ruído de chuva.

Gaal inclinou-se para a frente, protegendo-se contra a desaceleração, na altura em que o táxi saía do túnel e subia para o nível do solo mais uma vez.

- Hotel Luxor - disse o motorista desnecessariamente depois de ajudar Gaal a transportar a bagagem; aceitou uma gorjeta, arranjou outro passageiro e partiu de novo.

Durante todo este tempo, nem uma única vez se viu o céu.

 

TRANTOR -...No início do décimo terceiro milênio, esta tendência atingiu o clímax. Como centro do Governo Imperial por centenas de gerações, e localizado como estava, nas regiões centrais da Galáxia, entre os mundos mais densamente povoados e tecnologicamente avançados de todo o sistema, não podia deixar de ser o mais rico e denso agrupamento de seres humanos que a Raça jamais vira.

Sua urbanização progrediu rapidamente até atingir o apogeu. Toda a superfície de Trantor, 100 milhões de quilômetros quadrados de extensão, formavam uma única cidade. A numerosa população mal ultrapassava os 40 bilhões e devotava-se quase inteiramente às necessidades administrativas do Império. Apesar disso não bastava para a complexa tarefa. (Deve lembrar-se que a impossibilidade de uma administração cuidada de todo o Império Galáctico, sob a direção pouco inspirada dos últimos imperadores, foi um fator considerável no Declínio.) Diariamente esquadras de navios (aos milhares) traziam os produtos de vinte mundos agrícolas para os mercados de Trantor...

A necessária dependência dos mundos exteriores, que asseguravam a sua manutenção, tornava Trantor cada vez mais vulnerável a conquista. No último milênio do Império a monotonia das numerosas revoltas fez com que os seus Imperadores se tornassem mais conscientes da realidade, de modo que a política imperial se tornou pouco mais do que uma teimosa proteção a sensível veia jugular de Trantor...

                        Enciclopédia Galáctica

 

Gaal não tinha absoluta certeza se o sol brilhava, se era dia ou noite. Tinha vergonha de perguntar. Todo o planeta parecia viver sob metal. A refeição, acabada de lhe ser servida, vinha rotulada de "almoço" porém havia planetas cujo horário dificilmente se adaptava às convenientes alterações do dia e da noite. A velocidade de rotações planetárias era variável e ele desconhecia os movimentos de Trantor.

De início seguira avidamente os letreiros que diziam "Solário", porém descobriu que este não passava de uma sala iluminada por radiação artificial. Deixou-se lá ficar alguns segundos, dirigindo-se a seguir para o átrio do hotel.

- Onde posso adquirir bilhetes para visitas de turismo? - perguntou ao empregado.

- Aqui.

- Quando é a partida?

- Perdeu uma agora mesmo; haverá outra amanhã; compre já o bilhete que eu lhe reservo o lugar.

O dia seguinte seria tarde demais; teria de estar breve na Universidade.

- Não há uma torre de observação, ou algo semelhante? - insistiu ainda. - Ao ar livre.

- Também posso vender-lhe um bilhete para lá, se quiser. O melhor é deixar-me ver como está o tempo. Apertando um botão ao lado, o empregado leu a corrente de palavras e números que surgiram no visor.

- Bom tempo. Pensando melhor, acho que estamos em época de seca –acrescentou ainda em tom de conversa. - Eu, por mim, nunca saio. A última vez que estive ao ar livre foi há três anos. Vê-se uma vez e pronto. - Tome o seu bilhete; há um elevador especial á retaguarda do edifício. É só tomá-lo.

O elevador era do último tipo e trabalhava por repulsão da gravidade. Gaal e outras pessoas entraram; o operador acionou uma chave, e quando o indicador da gravidade chegou ao zero ele sentiu-se suspenso no espaço; depois tornou a sentir um pouco do seu peso e no momento em que o elevador acelerava a subida gritou alarmado, ao sentir que os pés deixavam o chão, em virtude da aceleração.

- Meta os pés debaixo das guardas! Não sabe ler? - gritou-lhe o ascensorista irritado.

Os outros passageiros sorriam divertidos ao verem o seu esforço para de novo descer, agarrado á parede. Os pés de todos os passageiros estavam metidos em argolas de metal cromado que, em linhas paralelas, fixavam-se ao chão. Ele ignorara tal coisa ao entrar.

Sentiu uns dedos que o agarraram e o puxaram para baixo. Com um suspiro de alívio o jovem agradeceu; e o elevador parou finalmente.

Dirigiu-se para um terraço descoberto, iluminado por intensa luz branca, que o cegava; o homem que o ajudara a descer vinha atrás dele e entabulou conversa: - Sente-se, há muitos lugares.

- Também me parece. - Dirigiu-se para as cadeiras, mas parou antes de lá chegar.

- Se me der licença, irei até o parapeito, quero dar uma vista de olhos. O homem fez um gesto amigável e Gaal debruçou-se no parapeito, contemplando o panorama.

Não conseguia ver o solo que se perdia no meio das complexas construções. Não havia horizonte, para além das colunas metálicas em silhuetas, estendendo-se numa uniformidade cinzenta, e Gaal imaginou que todo o resto seria igual, na superfície daquele planeta. Quase não havia movimento - algumas aeronaves passavam vagarosas - mas o movimento de bilhões de seres sucedia algures, estava certo disso, debaixo da pele metálica daquele mundo.

Árvores não havia; nem relva, nem terra. Nenhuma espécie de vida além do homem. Em algum local, naquele mundo, pensou vagamente, situar-se-ia o palácio do Imperador, entre milhas de solo natural, entre verduras, rodeado de flores; uma pequena ilha no meio do oceano de aço... mas invisível agora a seus olhos. Talvez estivesse a muitos quilômetros. Não sabia.

A sua visita urgia. Suspirou ruidosamente, tomando finalmente consciência da sensação de estar em Trantor; no planeta central de toda a Galáxia, caldeirão borbulhante da raça humana. Não viu suas fraquezas; não viu as naves chegarem com os alimentos; não se apercebia da veia jugular que ligava fragilmente os quarenta bilhões de seres em Trantor, com o resto da Galáxia. Tinha apenas a consciência daquela obra grandiosa, da completa e quase desprezível conquista total de um mundo.

Quando se voltou, o seu olhar parecia vago. O amigo do elevador indicava-lhe uma cadeira a seu lado; Gaal sentou-se.

O homem sorriu. - Chamo-me Jerril. É a primeira vez que vem a Trantor?

- É.

- Já imaginava. Trantor abate as pessoas, especialmente as de temperamento poético. Veja só: os trantores nunca vêm até aqui; não gostam. Causa-lhes apatia.

- Apatia? - a propósito o meu nome é Gaal; porque apatia? - é um panorama magnífico.

- Questão de opinião. Se você tivesse nascido numa cela e crescido num corredor, trabalhando num cubículo, com férias numa varanda repleta de gente, ao sair para o ar livre, sem nada além do céu sobre si, talvez lhe desse um ataque de nervos. É regra obrigarem-se as crianças virem aqui, uma vez por ano, depois dos cinco anos. Não sei se lhes faz bem ou não; na realidade não lhes serve de nada porque não gozam de suficiente ar livre, e nas primeiras vezes gritam até o histerismo. Deviam começar assim que nascem a vir aqui uma vez por ano...

Continuou: - Claro que não tem importância. Que diferença faz se nunca saírem? Lá embaixo são felizes e governam o Império. A que altura pensa que estamos?

- Quinhentos metros? -inquiriu inocentemente. Jerril riu-se. - Não, vinte metros apenas.

- O quê? Mas o elevador levou...

- Bem sei. Porém a maior parte do tempo foi consumido desprendendo-se do nível do solo. É como um "iceberg", nove décimos estão invisíveis; estende-se mesmo até o oceano. Estamos tão baixo que podemos utilizar a diferença térmica entre o nível do solo e o subsolo, para nos dar toda a energia de que necessitamos. Já sabia?

- Não. Pensei que usassem geradores atômicos.

- Já os usamos, porém este método é mais barato.

- Compreende-se!

- Então que pensa de tudo isto? - Por momentos o ar bonacheirão desapareceu.

- Está de férias? A negócios? De passagem, não?

- Não é bem assim. Sempre tive vontade de ver Trantor mas o que aqui me trouxe, na verdade, foi um emprego

- Oh!

Gaal sentiu-se na obrigação de continuar a explicação. - Um emprego no projeto do Dr. Seldon, na Universidade de Trantor.

- Com Corvo Seldon?

- A pessoa a quem me refiro é Hari Seldon; Seldon, o psicohistoriador. Não conheço nenhum Corvo Seldon.

- É o mesmo. Corvo é alcunha; chamam-lhe assim porque ele prediz um fim desastroso.

- O quê? - Gaal estava seriamente surpreso.

- Não me diga que não sabia? - Jerril já não sorria. - Você vai trabalhar com ele e não sabe?

- Vou sim, mas estou alienado dessas coisas; sou matemático. Qual é o motivo dessa previsão? Que espécie de desastre?

- Não adivinha?

- Não faço a mínima idéia. Tenho lido escritos do Dr. Seldon e dos seus colaboradores, mas tão-somente sobre teoria matemática.

- Esses são os que ele publica.

Gaal começou a irritar-se. - Parece-me que vou até o meu quarto Foi um prazer conhecê-lo.

Jerril acenou-lhe num adeus indiferente.

Gaal encontrou no quarto um indivíduo que o esperava. Durante alguns segundos ficou tão surpreso que não conseguiu articular o inevitável - que faz aqui - que lhe aflorou aos lábios.

O homem levantou-se. Era velho, quase completamente calvo e coxeava. Os olhos eram vivos e azuis.

- Sou Hari Seldon - disse, e Gaal identificou mentalmente aquele rosto com o que tantas vezes vira nas telas.

 

PSICOHISTÓRIA -...Gaal Dornick empregando conceitos não matemáticos, relacionou e definiu a psicohistória com o ramo da matemática em relação às reações de grandes aglomerados humanos a estímulos econômicos e sociais...

...Subentendido em todas estas definições está o avocar-se que o aglomerado em questão está suficientemente desenvolvido para um tratamento estatístico válido. A dimensão necessária de tal aglomerado pode ser determinada pelo primeiro teorema de Seldon, que... É ainda imperativo que o aglomerado em si seja desconhecedor da análise psicohistorica a que se acha submetido, para que todas as suas reações tenham validade...

A base da psicohistória encontra-se no desenvolvimento das funções de Seldon, as quais exibem propriedades coerentes com tais forças econômicas e sociais, a medida em que...

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- Bom dia, doutor. Eu... - Gaal hesitou.

- Pensou que só nos encontraríamos amanha? Assim seria, se as circunstâncias o permitissem. Todavia se vamos aproveitar suas capacidades, devemos fazê-lo rapidamente. Torna-se cada vez mais difícil conseguir recrutas.

- Não o estou compreendendo, doutor.

- O senhor não esteve conversando com um homem na torre de observação?

- Sim, apenas sei que se chama Jerril.

- O nome nada representa. É um agente da Comissão de Segurança Pública. Seguiu-o desde que você desembarcou.

- Mas... por quê? Tudo isto me causa confusão.

- Ele não lhe disse nada a meu respeito?

Gaal hesitou - Referiu-se a você como "Corvo Seldon".

- Não lhe disse por quê?

- Disse-me que o senhor predizia uma catástrofe.

- É verdade. Trantor tem algum significado para você?

Todo mundo parecia muito interessado na sua opinião sobre Trantor desde que chegara. Gaal no entanto não se sentia capaz de responder senão com uma palavra: ''Glorioso!"

- A sua resposta é irrefletida. E a psicohistória?

- Não pensei aplicá-la no caso.

- É preferível aplicá-la.

- Antes de nossas relações chegarem ao fim, meu jovem amigo, terá que aprender a aplicar a psicohistória a todos os problemas por mais rotineiros que lhe possam parecer. Observe. Seldon tirou da algibeira o seu calculador. Dizia-se que até debaixo do travesseiro ele guardava um, para os momentos de insônia. O calculador estava consumido pelo uso; e os dedos de Seldon, gastos mais pela idade, acariciaram o rijo plástico que o guarnecia. Símbolos vermelhos saltaram da matéria cinzenta.

- Eis as atuais condições do Império.

- Parece-me que essa representação não está completa - disse Gaal finalmente.

- Não, não está completa - concordou Seldon. - Alegro-me que não aceite cegamente a minha palavra. Todavia isto é uma aproximação que serve bem para demonstrar a proposição. Acha aceitável?

- Sim, mas dependendo da minha verificação - Gaal estava decidido a evitar qualquer armadilha.

- Bom. Acrescente a tudo isto a probabilidade do assassinato do Imperador, revoltas dos vice-reis, o regresso periódico a crises de depressão econômica, o declínio da exploração dos planetas...

Parecia nunca mais chegar ao fim; para cada razão mencionada, novos símbolos surgiam, integrando-se na função básica que se expandia e mudava.

Gaal só o interrompeu uma única vez: - Não vejo a validade dessa transformação de valores.

Seldon repetiu-a, porém, mais lentamente.

- Isso é feito por meio de uma operação de valores sociais, proibida -interrompeu Gaal, outra vez.

- Bom. Você é rápido mas não o é suficientemente. Não é proibida nessa relação. Vou provar-lhe pelo método da expansão.

O processo era mais lento, mas ao final Gaal disse humildemente: - Obrigado, agora compreendo.

Seldon terminou: - Isto será Trantor daqui a cinco séculos. Qual é a sua interpretação? Ahn? - inclinou a cabeça e aguardou.

- Destruição total! - exclamou Gaal - Mas... é impossível. Trantor nunca esteve...

Seldon apoderara-se de uma excitação febril, intensa, pois apenas o seu corpo envelhecera com os anos. - Vamos, vamos, viu como eu obtive o resultado? Transforme os números em palavras. Esqueça por instantes o simbolismo.

Gaal interpretou: - À medida que a especialização em Trantor aumenta, mais vulnerável, mais indefesa se torna. Além disso, quanto mais se tornar um centro administrativo do Império, mais valiosa se torna como presa. A incerteza da sucessão imperial aumenta as lutas entre a nobreza e origina o desaparecimento da responsabilidade social.

- Basta! Que me diz da probabilidade numérica da destruição total em cinco séculos?

- Nada posso afirmar.

- Pode utilizar a diferenciação?

Gaal sentiu-se pressionado. Seldon não lhe entregava o calculador, porém o segurava ante os olhos. Seu cérebro trabalhava com fúria, e sentiu a testa cobrir-se de suor.

- 85% de probabilidades mais ou menos.

- Nada mau - disse Seldon olhando-o com afeto - o número exato é 92,5%.

- É então essa a razão do "Corvo". Nunca vi esses cálculos nas comunicações.

- Claro que não. É impublicável. Pensa que o Império expor-se-ia a tanto? Trata-se de uma simples demonstração de psicohistória, porém alguns dos resultados chegaram ao conhecimento da aristocracia... Seldon terminou com um gesto que explicava a sua inaptidão.

- Isso é mau.

- Não tanto assim; tudo foi devidamente calculado.

- E foi isso que os levou a investigar a minha pessoa?

- Tudo e todos relacionados com o meu projeto estão sob investigação.

- O senhor corre algum perigo?

- Sim. Há uma probabilidade de 1,7% de eu ser executado como traidor: contudo, essa probabilidade em nada altera o projeto. Também a levamos em conta. Bem, não pensemos nisso. Suponho que se encontrará comigo amanhã na Universidade?

- Sim - disse Gaal.

 

COMISSÃO DE SEGURANÇA PÚBLICA -...A aristocracia ascendeu ao poder após o assassinato do Imperador Cleon I, último da dinastia Entum. No seu conjunto, formaram um elemento de ordem durante os séculos de instabilidade e incerteza do Império. Sob o "controle" das grandes famílias dos Chen e Divart transformaram-se em instrumento cego para a manutenção do status-quo... Não foram totalmente destruídos como poder de Estado, a não ser depois da ascensão de Cleon II ao trono. O primeiro comissário chefe...

...Assim sendo, o princípio do fim desta comissão pode ser ligado ao julgamento do Dr. Hari Seldon, dois anos antes do início da Era Fundacional. Esse julgamento encontra-se gravado na biografia de Hari Seldon, feita por Gaal Dornick...

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Gaal não chegou a cumprir o prometido. Foi acordado na manhã seguinte pela campainha do comunicador. Respondeu, e a voz do empregado do hotel, um tanto sarcástica, informou-o de que se encontrava detido, sob ordens da Comissão de Segurança Pública.

Gaal correu para a porta, tão-só para descobrir que esta já não se abria. Só lhe restava vestir-se e aguardar.

Vieram buscá-lo e levaram-no para outro lugar, porém continuou detido. Submeteram-no a vários interrogatórios, sempre com a máxima delicadeza; tudo ultra civilizado. Explicou-lhes que era natural da província de Synax; que freqüentara tais e tais escolas e obtido o doutoramento em matemática, em tal e tal data. Pedira trabalho como colaborador do Dr. Seldon e fora aceito. Vezes sem conta deu estes pormenores, e vezes sem conta retornaram os seus inquisidores à questão de sua adesão ao Projeto Seldon. Como e quando ouvira ele mencionar tal projeto? Qual seria sua posição? Que instruções secretas recebera? De que constava o projeto Seldon?

Respondeu-lhes que não sabia. Não tinha quaisquer instruções secretas. Era um investigador, um matemático. Não tinha nenhum interesse em política.

Finalmente o delicado inquisidor perguntou: - Quando se dará a destruição de Trantor?

Gaal hesitou: - Por mim não posso lhe dizer.

- E falando por outrem?

- Não posso responder pelos outros. - Pensou ter respondido com demasiada veemência.

- Alguém já lhe falou de tal destruição; fixou uma data? - Perante a hesitação do jovem o inquisidor prosseguiu: - O senhor foi seguido, doutor. Estávamos à sua espera no porto, quando o senhor chegou; na torre de observação, enquanto aguardava sua entrevista; e é óbvio que seguimos toda sua conversa com o Dr. Seldon.

- Então já conhecem os seus pontos de vista sobre o assunto.

- Talvez, mas gostaríamos de ter a sua opinião.

- Ele é de opinião que Trantor será destruída dentro de cinco séculos.

- Provou-lho matematicamente?

- Sem dúvida! - respondeu em tom de desafio.

- O senhor decerto defende - ahn - a infalibilidade da matemática?

- Se o Dr. Seldon a aceita, é válida.

- Então, vamo-nos embora.

- Espere! Tenho direito a advogado. Exijo esse direito como cidadão do Império.

- Será atendido. E foi.

Foi um homem alto que logo após entrou, um homem cujo rosto parecia ser feito de linhas verticais e tão magro que se duvidava existir espaço suficiente para um sorriso.

Gaal levantou a cabeça. Tantas coisas lhe sucederam e estava em Trantor há trinta horas apenas.

O homem disse: - Sou Lors Avakim. O Dr. Seldon indicou-me para seu representante no Tribunal.

- Ah! Bem, então vejamos. Exijo um apelo imediato ao Imperador. Estou detido sem motivos. Estou inocente, qualquer que seja a acusação. Qualquer que seja! - Suas mãos não eram a representação empolada de suas palavras. - Deve me conseguir audiência com o Imperador, imediatamente.

Avakim espalhava cuidadosamente pelo chão o conteúdo de um envelope que sacara da algibeira; eram os impressos legais, tão finos que mais pareciam fitas; eram adotados pelo foro, por caberem numa minúscula cápsula, e serem assim esquivados a buscas. Havia, também, um gravador magnético.

Avakim olhou finalmente Gaal. - A comissão tem, é natural, um fonocaptor nesta sala, de maneira a ouvir o que dizemos. É contra a lei, contudo usá-lo-ão.

Gaal cerrou os dentes com força.

- Contudo - e Avakim sentou-se resolutamente - o gravador que coloquei sobre a mesa, um gravador vulgar na aparência, mas que trabalha muito bem, tem a propriedade extra de anular o fonocaptor por meio de uma irradiação estática. A comissão não o descobrirá tão breve.

- Então posso falar?

- Seguramente.

- Quero uma audiência com o Imperador.

Avakim sorriu com ironia, provando assim haver espaço no seu rosto para um sorriso amarelo; o rosto contraiu-se-lhe como que para arranjar esse espaço essencial. Disse apenas: - O senhor é da província.

- Acima de tudo sou um cidadão do Império, tanto quanto qualquer membro da Comissão de Segurança.

- Certamente. No entanto, como provinciano não entende a vida de Trantor, tal como é. Não há audiências com o Imperador.

- Então, ninguém há acima da Comissão? Não há outro processo?

- Nenhum. Não há recurso prático. Legalmente, claro que pode apelar ao Imperador, contudo não conseguiria uma audiência. O atual Imperador não é o Imperador da dinastia Entum. Trantor encontra-se em mãos das famílias aristocráticas de cujos membros se compõe a Comissão de Segurança. Um desenvolvimento já previsto pela psicohistória.

- Nesse caso, se o Dr. Seldon pode prever a história de Trantor num futuro de quinhentos anos...

- Quinhentos não, mire quinhentos.

- Sejam quinze mil. Por que não previu ele ontem os acontecimentos desta manhã, e não me avisou? Perdão, retiro o que disse. - Gaal sentou-se e descansou a cabeça nas palmas das mãos suadas. - Sei perfeitamente que a psicohistória é uma ciência estatística, e que não pode prever com segurança um futuro individual. O senhor compreenderá que me sinto um pouco transtornado.

- O senhor se engana. O Dr. Seldon era de opinião que o senhor seria detido esta manhã.

- O quê?

- Infelizmente é a verdade. A Comissão tem-se tornado cada vez mais hostil às suas atividades. Novos membros que vêm juntar-se ao grupo tiveram interferências cada vez maiores. Os gráficos indicam que, para conseguir a nossa finalidade, devia atingir-se o clímax agora. A Comissão movia-se vagarosamente demais, e o Dr. Seldon visitou-o ontem para forçá-los a aparecer. Nenhuma outra razão.

- Lastimo...

- Por favor, assim foi preciso. O senhor não foi escolhido, por qualquer razão pessoal. Deve compreender que os planos do Dr. Seldon, desenvolvidos matematicamente durante um período de dezoito anos, incluem todas as eventualidades de probabilidade significativa. Esta é uma delas. Fui aqui enviado unicamente para assegurar-lhe de que não há nada a temer. Tudo terminará bem. Quase certo para o projeto, e com probabilidades razoáveis para você.

- Quais são os números?

- Para o projeto mais de 99,9%.

- E para mim?

- A sua probabilidade é de 77,2%.

- Quer isso dizer que, em cada cinco das minhas possibilidades, há uma de ser condenado à prisão perpétua ou à execução?

- A última está abaixo de 1%.

- Cálculos sobre uma unidade não têm significado. Mande-me o Dr. Seldon.

- Infelizmente não posso. O Dr. Seldon também foi detido.

A porta foi violentamente aberta antes que Gaal pudesse sequer levantar-se. Entrou um guarda, dirigiu-se à mesa, apanhou o gravador, olhou-o por todos os lados e meteu-o no bolso.

Avakim interpelou-o calmamente: - Necessito desse instrumento.

- Ser-lhe-á dado um, Conselheiro, que não irradie um campo estático.

- Nesse caso a minha entrevista terminou.

Gaal viu-o sair e sentiu-se ainda mais só.

 

O julgamento (como Gaal o denominava, embora tivesse pouca analogia com a elaborada técnica jurídica que conhecia através dos livros) durou pouco tempo. Estava apenas no terceiro dia, e no entanto Gaal não conseguia retroceder, mentalmente, ao seu início.

Ele próprio fora pouco incomodado. O ódio concentrava-se em Seldon, sem que este se apresentasse perturbado. Para o jovem aquele homem representava o único ponto de apoio que lhe restava no mundo.

Os espectadores eram reunidos e escolhidos exclusivamente entre os barões do Império. A Imprensa e o público foram excluídos e duvidava-se que qualquer número significativo de estranhos tivesse sequer conhecimento do julgamento. A atmosfera era de visível hostilidade aos acusados.

Os cinco membros da Comissão de Segurança Pública estavam assentados atrás de sua mesa de juizes, como num trono. Trajavam-se de ouro e escarlate e de barretinas justas e brilhantes como porta-vozes estridentes de suas funções judiciais. Ao centro sentava-se o Comissário-Chefe Linge Chen. Gaal que nunca vira um Lorde tão poderoso, olhava-o fascinado. Chen, durante todo o processo, raramente falou. Deixou patente que o discurso estava abaixo de sua dignidade.

O advogado da Comissão consultou os seus apontamentos e o interrogatório continuou, com Seldon no banco dos réus.

P - Vejamos, Dr. Seldon: Quantos homens estão atualmente ligados ao projeto que o senhor dirige?

R - Cinqüenta matemáticos.

P - Incluindo o Dr. Gaal Dornick?

R - O Dr. Dornick é o qüinquagésimo primeiro.

P - Então há cinqüenta e um. Explore bem a sua memória Dr. Seldon. Talvez haja cinqüenta e dois ou cinqüenta e três? Ou talvez mais?

R - O Dr. Dornick ainda não se ligou formalmente â minha organização. Quando o fizer, teremos cinqüenta e um membros. Até lá serão cinqüenta, como já frisei.

P - Cinqüenta? Não serão aproximadamente 100.000?

R- 100.000 matemáticos? Não!

P - Não falei de matemáticos! Há ou não cem mil membros de todas as especialidades?

R - De todas as especialidades é possível que sua estimativa esteja correta.

P - É possível? Eu não pergunto, afirmo categoricamente que o é. Afirmo que o número de homens ligados ao seu projeto, Dr. Seldon, é de 98.572.

R - O senhor está incluindo nesse número mulheres e crianças.

P - (Levantando a voz) - 98.572 indivíduos, é essa a intenção da minha afirmação e creio que é indiscutível.

R - Nesse caso devo aceitá-la como exata.

P - (Consultando os apontamentos) - Deixemos por momentos esse caso, Dr. Seldon, e passemos a outro que já foi também debatido. Importa-se de repetir o que pensa sobre o futuro de Trantor?

R - Disse e repito que Trantor transformar-se-á em ruínas dentro dos próximos cinco séculos.

P - Não considera essa afirmação como deslealdade ao Estado?

R - Não, meu caro senhor. Verdades científicas permanecem além de lealdades ou deslealdades.

P - O senhor está ciente de que a sua afirmação representa uma verdade científica?

R - Absolutamente.

P - Em que é que se baseia?

R - Na prova matemática da psicohistória.

P - Pode provar que essa matemática é válida?

R - Apenas a outro matemático.

P - (Sorrindo) - O que o senhor proclama, então, é que a sua verdade é de natureza tão esotérica, que fica além das possibilidades de compreensão de um homem comum. Quer-me parecer que a verdade deve ser mais cristalina, menos misteriosa e mais aceita.

R - Para alguns cérebros ela não apresenta dificuldades. A parte física da transferência de energia, que é conhecida pelo nome de termodinâmica, tem-se apresentado clara e verdadeira através de todos os tempos, desde o homem das eras mitológicas e, mesmo assim, existem ainda pessoas, algumas das quais possivelmente aqui presentes, que seriam incapazes de representar um motor. E, no entanto, sua inteligência não deve ser por isso menosprezada. Duvido que os sábios Comissários...

A esta altura um dos Comissários inclinou-se para o advogado. Suas palavras eram ininteligíveis, porém o sibilar da voz era áspero. O advogado corou e interrompeu Seldon.

P - Não nos encontramos aqui para ouvir discursos, Dr. Seldon. Aceitamos sua exposição. Permita-me, no entanto, sugerir-lhe que suas previsões de desastre podem ter a intenção de abalar a confiança do povo no Governo Imperial de modo a atingir fins puramente pessoais. E que por mera previsão o senhor o espera conseguir tendo preparado para isso um exército de cem mil indivíduos.

R - Em primeiro lugar o caso não é esse. Se fosse uma investigação sumária mostrar-lhes-ia que pouco mais de 10.000 são pessoas de idade militar e que, mesmo assim, nenhuma dessas dez mil tem qualquer espécie de treino militar.

P - Atua o senhor como agente de outrem?

R - Não me encontro a soldo de qualquer homem ou potência, senhor advogado.

P - Age então desinteressadamente? Serve à Ciência?

R - Exato.

P - Vejamos então: pode o futuro ser alterado, Dr. Seldon?

R - A resposta é óbvia. Este Tribunal pode ir pelos ares dentro das próximas horas ou pode não ir. Se o fosse o futuro seria alterado, por pouco, mas sem dúvida alterado.

P - O senhor esgrime com palavras. Pode a história da raça humana ser alterada em sua totalidade?

R - Sim.

P - Facilmente?

R - Não. Com muitas dificuldades.

P - Porquê?

R - A trajetória de um planeta contém uma inércia enorme. Para ser alterada deve deparar-se-lhe algo com uma inércia proporcional. Deve haver o mesmo número de pessoas, ou se o número for menor, dar-lhe um longo prazo para a alteração. Compreende?

P - Creio que sim. Trantor não será destruída se um grande número de indivíduos se decidir a atuar nesse sentido.

R - Correto.

P - Mais ou menos cem mil pessoas.

R - Não. Esse número é excessivamente pequeno.

P - Com certeza?

R - Considere-se que Trantor tem uma população superior a quarenta bilhões. Considere-se, além disso, que o caminho que a levaria à destruição não pertence a Trantor "per si" mas ao Império em sua totalidade, e que o Império contém quase um quintilhão de seres humanos.

P - Perfeitamente. Então talvez cem mil pessoas possam alterar essa trajetória, se eles e os seus descendentes trabalharem com essa finalidade nos próximos quinhentos anos.

R - Temo que não. Quinhentos anos é curto prazo.

P - Ah! nesse caso, Dr. Seldon, podemos tirar a seguinte conclusão partindo de suas afirmações: o senhor reuniu 100.000 pessoas limitadas ao seu projeto; que esses mesmos indivíduos são suficientes para alterar a história de Trantor nos próximos quinhentos anos. Em outras palavras, não podem evitar a destruição de Trantor, façam o que fizerem.

R - Assim é, infelizmente.

P - Por outro lado esses cem mil indivíduos não têm em mente qualquer fim ilegal.

R - Exatamente.

P - (Vagarosamente) - Nesse caso, Dr. Seldon, preste atenção pois queremos uma resposta ponderada - qual é a finalidade desse grupo?

A voz do advogado tornara-se estridente. Preparara sua armadilha com habilidade, encurralando Seldon, cortando astutamente toda e qualquer possibilidade de uma resposta coerente.

Ouviu-se um sussurro no seio da assembléia que chegou mesmo até aos Comissários. Estes inclinaram-se uns para os outros, num movimento de ouro e escarlate. Só o chefe não se perturbou.

Hari Seldon não se moveu. Esperou que a febre se evaporasse.

R - Diminuir os efeitos dessa destruição.

P - Qual é o significado exato de sua resposta, Dr. Seldon?

R - A explicação é banal: a remota destruição de Trantor não é em si um acontecimento único no esquema do desenvolvimento da humanidade. Será antes o clímax de um complicado drama que teve início há séculos e que se acelera continuamente. Refiro-me, nobres senhores, ao declínio atual e conseqüente destruição do Império Galáctico.

O sussurro tornou-se um ruído. O advogado gritava.

P - O senhor declara abertamente - e foi interrompido pelos gritos de "Traição" que se elevava em coro das galerias. Lentamente o Chefe ergueu o martelo e deixou-o cair uma só vez. O som lembrou um gongo. Quando as vibrações cessaram, cessaram também as vozes coléricas da galeria. O advogado respirou fundo.

p _ (Teatralmente) - O senhor compreende, Dr. Seldon, que fala de um Império que se mantém há doze mil anos, através de todas as vicissitudes e que tem atrás dele a devoção e o amor de um quintilhão de seres humanos?

R - Estou bastante certo do estado atual do Império e da história que o precede. Com todo o respeito pela assistência reclamo um conhecimento muito mais vasto dessa história do que qualquer dos presentes.

P - E mesmo assim continua prevendo a ruína?

R - É uma previsão matemática, sem qualquer juízo moral. Pessoalmente lamento até o que está por vir. Mesmo que se admitisse que o Império fosse uma coisa má (e eu não o admito) o estado de anarquia que se seguiria á sua queda seria mil vezes pior. É contra esse estado de anarquia que eu pretendo lutar. A queda do Império é, meus senhores, um movimento contra o qual não será fácil lutar. É ditado por uma burocracia crescente, falta de iniciativa, congelamento de castas, excomunhão de curiosidade - centenas de outros fatores. Tem continuamente progredido de há séculos para cá, e apoderou-se demais da "massa humana" para poder parar.

P - Não é evidente para todos que o Império esteja tão forte como sempre?

R - A aparência de força está ao seu redor, parece ser duradoura. Contudo, senhor advogado, o tronco de uma árvore, até o momento em que a tempestade a parte em duas, tem toda a aparência de fortaleza. É essa tempestade que sopra neste momento através de todas as ramificações do Império. Escutem com os ouvidos da psicohistória e ouvi-la-ão ranger.

P - (Incerto) - Já dissemos, Dr. Seldon, que não nos encontramos aqui para...

R - (Com firmeza) - O Império se desmoronará com todo o bem que trouxe. O conhecimento acumulado através dos anos apodrecerá e a ordem que impôs desvanecer-se-á. Guerras interestelares não terão fim. A população entrará em decadência, os mundos dispersos perderão o contato com o corpo principal da Galáxia. - Assim ficarão.

P - (Uma voz sumida no meio do silêncio) - Para todo o sempre?

R - A mesma psicohistória que prevê a queda pode também transmitir certezas quanto ás idades de trevas que se seguirão. O Império, como se acabou de dizer, manteve-se ao longo de doze mil anos. As trevas que hão de vir durarão não doze mas, sim, trinta mil anos. Um segundo Império erguer-se-á mas entre ele e a nossa civilização haverá mil gerações sofrendo. Devemos lutar contra isso.

P - (Um tanto recomposto) - O senhor contradiz-se. Disse anteriormente que não podia evitar a destruição de Trantor. Daí presumivelmente a queda - a tal queda do Império.

R - E não digo agora que poderemos evitá-la. Mas não é ainda demasiado tarde para encurtar o interregno que se seguirá. É possível, meus senhores, diminuir a redução da anarquia para um milênio, se for permitido ao meu grupo atuar, agora. Encontramo-nos num momento delicado, a trajetória da enorme massa de acontecimentos pode ser desviada um pouco, só um pouco. Não será nada de grandioso mas pode ser suficiente para apagar vinte e nove mil anos de miséria dos livros de história da humanidade.

P - E como se propõe fazê-lo?

R - Salvaguardando os conhecimentos da raça. A soma do conhecimento humano está para além de um só indivíduo, de mil indivíduos até. Com a destruição da nossa estrutura social a Ciência fragmentar-se-á num milhão de pequenas partículas. Saber-se-á muito de pequenas facetas de um conhecimento total. Por si serão inúteis, fragmentos de usos e costumes não terão significado e não serão ultrapassados. Perder-se-ão através das gerações. Porém, se prepararmos agora um relatório completo de todo o conhecimento, nunca se perderá. As gerações vindouras constituir-se-ão sobre esses fundamentos sem a necessidade de redescobri-los. Mil anos farão o trabalho de trinta mil.

P - Tudo isto...

R - Todo o meu projeto: os meus trinta mil homens com as suas mulheres e filhos, estão-se dedicando á preparação da "Enciclopédia Galáctica". Não será terminada durante o meu tempo de vida. Não viverei sequer o tempo necessário para ver o seu início. Mas pela época da queda de Trantor estará completa e cópias desse trabalho estarão espalhadas por todas as bibliotecas da Galáxia.

O martelo do Comissário-Chefe voltou a soar. Hari Seldon deixou o banco e sentou-se tranqüilamente ao lado de Gaal. Sorriu e disse: - que tal achou a peça?

- O senhor não permitiu que os outros atores brilhassem. Mas o que sucederá agora?

- Farão um intervalo no julgamento e tentarão chegar a um acordo comigo em particular.

- Como sabe?

- Serei honesto com você, jovem. Não sei. - E Seldon sorriu. - Tudo depende do Comissário-Chefe. Tenho-o estudado durante anos. Tentei analisar suas reações, mas o senhor também conhece o risco da introdução de elementos vagos nas equações psicohistóricas. Mesmo assim tenho esperanças.

 

Avakim aproximou-se, baixou a cabeça num cumprimento a Gaal, e inclinou-se para murmurar ao ouvido de Seldon. Funcionários anunciaram o adiamento do julgamento, e os guardas levaram-nos separadamente.

A sessão do dia seguinte foi totalmente diferente. Hari Seldon e Gaal Dornick estavam a sós com os Comissários na ampla sala. Estavam todos juntos, sentados a uma só mesa, quase sem qualquer separação entre juizes e acusados. Foram-lhes mesmo oferecidos charutos de uma caixa de plástico caleidoscópico que parecia água corrente. Os olhos eram atraídos ao movimento apesar de os dedos demonstrarem ser a superfície firme e seca.

Seldon aceitou e Gaal recusou.

- O meu advogado não está presente - intimou Seldon.

Um dos Comissários replicou: - Já não se trata de um julgamento, Dr. Seldon. Estamos aqui para discutir a segurança do Estado.

Linge Chen moveu-se - Eu falarei - e os outros Comissários encostaram-se preparados para ouvir. Ao redor de Chen formou-se um recinto de silêncio para o qual ele poderia deixar lançar suas palavras.

Gaal conteve a respiração. Chen, seco e rijo, mais velho na aparência do que o era de fato. Era, na realidade, o Imperador de toda a Galáxia. A criança que usava o título era apenas um símbolo forjado por Chen, e já não era o primeiro.

Chen abriu o discurso:

- Dr. Seldon, o senhor perturba a paz do Império. Ninguém que vive agora entre todas as estrelas da Galáxia estará vivo daqui a cem anos. Por que então preocuparmo-nos com acontecimentos que se desenrolarão daqui a quinhentos anos?

- Daqui a cinco anos nem eu estarei vivo - respondeu Seldon, e mesmo assim vive em mim essa preocupação. Chamem-na idealismo, chamem-na identificação de mim próprio com essa generalização mística que denominamos de "Homem".

- Não tento compreender o misticismo. Pode dar-me uma boa razão para eu não me ver livre de você, e de um futuro desnecessário e inconfortável de cinco séculos o qual nem sequer chegarei a vislumbrar, dando uma ordem para a sua execução imediata.

- Há uma semana - respondeu Seldon tranqüilo - poderia tê-lo feito e retido talvez uma probabilidade em dez de continuar vivo ao fim de um ano. Agora essa probabilidade quase se extinguiu; há uma em dez mil.

O suspiro barulhento dos comissários demonstrava bem o seu pouco à-vontade. Gaal sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe. Os olhos de Chen quase se cerraram.

- Como assim?

- A queda de Trantor - explicou Seldon - não pode ser detida seja qual for o esforço. Pode ser facilmente apressada, todavia. A história da interrupção do meu julgamento espalhar-se-á através de toda a Galáxia. A frustração dos meus planos para esclarecer o desastre convencerá o povo da ridícula promessa que o futuro contém para ele. Já recordam até as vidas dos seus avós com inveja. Verão que as revoluções políticas e a estagnação do comércio aumentarão. O sentimento predominante da Galáxia será então o de egoísmo. Os ambiciosos não esperarão e os inescrupulosos pouco terão a temer. Pela ação de cada um deles apressar-se-á a decadência dos mundos. Ordene a minha execução e Trantor cairá dentro de cinqüenta anos ao invés de quinhentos, e o senhor dentro de um ano.

- Essas são palavras concebidas para amedrontar crianças. Sua morte não é a única satisfação que teremos.

Sua mão ergueu-se dos papéis onde descansava.

- Diga-me, sua atividade será unicamente a da preparação dessa enciclopédia de que nos falou?

- E esse o meu objetivo.

- E haverá necessidade de que esse trabalho seja feito em Trantor?

- Trantor - meu senhor - possui a Biblioteca Imperial, assim como os recursos da Universidade.

- E se os senhores fossem colocados noutro ponto? Digamos, num planeta onde as pessoas e distrações de uma metrópole não interfeririam em suas contemplações, onde os seus homens possam devotar-se inteiramente ao seu trabalho? - não oferecerá isso qualquer vantagem?

- Vantagens mínimas talvez.

- Tal mundo foi escolhido para vocês. Pode trabalhar em paz, Doutor, com os seus cem mil colaboradores ao seu redor. A Galáxia saberá que o senhor trabalhará para evitar a Queda - sorriu e continuou. - Uma vez que eu não creia em muitas coisas não me é difícil descrer dessa Queda de modo a estar inteiramente convencido de que direi a verdade ao povo. Entretanto o senhor, Doutor, não preocupará Trantor, e a paz do Império perdurará.

- Qual foi o mundo escolhido?

- Chama-se, creio, Terminas. - Negligentemente o Supremo Lorde folheou os papéis sobre a mesa. - A alternativa é a pena de morte para o senhor e para todos os seus colaboradores. Deixo de lado suas ameaças. A oportunidade que tem para escolher entre a morte e o exílio consta de cinco minutos. O mundo para onde será levado é desabitado, porém habitável e pode ser moldado a satisfazer as necessidades de estudiosos. É um pouco só...

- Mas fica no extremo da Galáxia! - interrompeu Seldon.

- Como já frisei, é um pouco solitário. Será perfeito para as suas necessidades de concentração. Ainda lhe restam dois minutos.

- Precisamos de tempo para preparar tal viagem. Estão envolvidas vinte mil famílias.

- Ser-lhe-á dado o tempo necessário.

Seldon pensou durante um momento enquanto o último minuto expirava, e respondeu:

- Aceito o exílio.

O coração de Gaal quase parou. Via-se possuído de uma imensa alegria por ter escapado á morte. Contudo, no meio da sua satisfação encontrou ainda ocasião para ter pena de Seldon, pela derrota.

 

Por muito tempo ficaram silenciosos, enquanto o táxi corria vertiginosamente através dos quilômetros de túneis, dirigindo-se para a Universidade. Gaal foi o primeiro a falar.

- É verdade o que disse ao Comissário? Sua morte apressaria a queda?

- Nunca minto quanto a dados psicohistóricos, além de que nada me auxiliaria neste caso. Chen sabia que eu dizia a verdade. Ele é um político inteligente e os políticos, dada a própria natureza do seu trabalho, devem farejar a verdade.

- Então que necessidade teve de aceitar o exílio? - Seldon não respondeu.

Quando entraram na área da Universidade os músculos de Gaal relaxaram-se por completo.

Toda a Universidade se achava banhada de intensa luz; Gaal quase se esquecera de que existia o Sol. Não porque a Universidade se encontrasse sob céu aberto. Todos os edifícios se achavam cobertos por uma cúpula de vidro. Essa matéria era polarizada de maneira a poder-se olhar diretamente para a estrela da qual provinham as radiações da luz. Sua luz era refletida pelo vidro de modo a inundar tudo em redor.

Em si as estruturas da Universidade divergiam do tipo arquitetônico que predominava em Trantor. O brilho metálico era substituído por um branco tirante a marfim.

- Parece que os soldados já chegaram - disse Seldon.

- O quê? - Gaal olhou ao redor e não longe viu realmente a figura de uma sentinela.

Um oficial apresentou-se. - Qual dos senhores é o Dr. Seldon? - Após Seldon ter-se apresentado o oficial continuou: - Estivemos á sua espera. O senhor e todos os seus homens encontram-se, a partir deste momento, sob a lei marcial. Fui informado de que os senhores têm seis meses para preparar a partida para Terminus.

- Seis meses? - começou Gaal, porém calou-se ao sentir a leve pressão dos dedos de Seldon no seu braço.

- São essas as minhas ordens - repetiu o oficial.

Quando o militar se foi, Gaal virou-se para Seldon: - O que poderemos fazer em seis meses? Seria melhor que tivessem acabado conosco.

- Calma, calma. Vamos para o meu escritório.

O escritório não era muito grande, porém confortável.

Se lá tivessem colocado fonocaptores, ou qualquer outro instrumento de detecção, tudo quanto poderiam ouvir seria uma conversa banal de frases construídas ao acaso.

- Muito bem - disse Seldon pondo-se à vontade, seis meses são-nos suficientes.

- Não vejo como.

- Porque, meu rapaz, num plano como o nosso, as ações dos outros são condicionadas às nossas necessidades. Já não lhe disse que Chen esteve submetido a uma análise maior do que possivelmente qualquer outro homem em toda a história? O julgamento não começou antes das circunstâncias nos mostrarem que o desfecho nos seria favorável.

- Não me diga que fez com que?...

- ...Me exilassem para Terminus? Por que não? - Os seus dedos tatearam a mesa, e parte da parede à sua frente abriu-se.

- Ali dentro encontrará vários microfilmes - disse Seldon - retire o que estiver assinalado com a letra T.

Gaal esperou que Seldon ajustasse o filme ao projetor e este deu ao jovem um par de óculos. Gaal colocou-os e viu o filme desenrolar-se ante os seus olhos.

- Surpreendido? - perguntou-lhe Seldon.

- O senhor preparou há dois anos a partida?

- Dois anos e meio. Claro está que não tínhamos certeza de que seria Terminus o local escolhido mas baseamo-nos numa suposição e atuamos de acordo com ela.

- Por quê? Não seria tudo muito mais controlado aqui em Trantor?

- Porque, trabalhando em Terminus, teremos o apoio Imperial, sem causar o medo de fazer perigar a segurança do Imperador.

- Mas o senhor provocou esses temores para que o forçassem ao exílio? Não compreendo.

- Talvez porque vinte mil famílias não se deslocariam para longe de Trantor de livre vontade.

- Não percebo porque seriam forçados. Não quer explicar-se?

- Ainda não. Por ora satisfaça-se em saber que será estabelecido um refúgio científico em Terminus. E que será estabelecido um outro no extremo oposto da Galáxia, na Ponte das Estrelas, por exemplo. Ademais eu morrerei dentro em pouco e o senhor verá mais do que eu. Não, não, nada de pesar nem de amabilidade. Os meus médicos dizem-me que não viverei além de dois anos. Porém a finalidade de minha vida foi alcançada e que circunstâncias melhores pode um homem almejar para a sua morte?

- E depois que o senhor morrer?

- Haverá sucessores - talvez o senhor, Dr. Dornick. Esses sucessores estarão habilitados a aplicar o toque final no esquema dos acontecimentos. Anacreon será instigado â revolta no momento propício. Após isso, os acontecimentos suceder-se-ão por si mesmos.

- Não consigo entender.

- Compreenderá mais tarde. - O rosto de Seldon parecia um pouco cansado. A maioria partirá para Terminus porém alguns permanecerão. Será fácil conseguir. Quanto a mim - terminou num sussurro que Gaal quase não ouviu - estou no fim.

 

OS ENCICLOPÉDICOS

TERMINUS -...Sua localização (ver mapa) estava em desacordo com o importante papel que viria a desempenhar na História Galáctica e, no entanto, como muitos cronistas já o descreveram, inevitável. Localizado no limite extremo da espiralGaláctica, planeta único de um sol isolado, pobre de recursos e de valor econômico. Só foi povoado 500 anos após sua descoberta com a chegada dos Enciclopédicos...

Era inevitável que, com o aparecimento de uma nova geração, Terminus se tornasse algo mais de que um mero dependente dos psicohistoriadores de Trantor. Com a rebelião de Anacreon e a ascensão de Salvor Hardin ao poder, o primeiro da longa linha de...

Enciclopédia Galáctica

 

Lewis Pirenne trabalhava atarefado em sua mesa, num dos cantos da sala. O trabalho deveria ser coordenado e o esforço organizado. Os fios da teia deveriam ser desemaranhados.

Fazia cinqüenta anos. Cinqüenta anos para se estabelecerem e darem início á Fundação Enciclopédica Número Um, tornando-a uma unidade de trabalho sem obstáculos. Cinqüenta anos colhendo material. Cinqüenta anos de preparação.

Estava tudo pronto. Dentro de cinco anos viria à luz a publicação do primeiro volume do trabalho mais gigantesco até então concebido na Galáxia. Depois, com intervalos de dez anos, regularmente, volume após volume. Juntamente com eles apareciam suplementos, artigos especiais sobre assuntos de interesse mais atual, até que...

Pirenne remexeu-se inquieto, ao som surdo do vibrador de sua mesa. Já quase se esquecera da entrevista. Apertou o botão que abria a porta e pelo canto do olho observou a entrada da figura maciça de Salvor Hardin. Pirenne não ergueu o olhar.

Hardin sorriu para si. Tinha urgência mas não se ofendeu com o tratamento, aliás habitual para com todos os que interrompiam o trabalho de Pirenne. Afundou-se na poltrona, em frente da mesa e esperou.

A caneta de Pirenne arranhava o papel, correndo. Não se percebia qualquer outro som ou movimento.

Hardin tirou do bolso uma moeda de aço inoxidável e começou a atirá-la ao ar. A moeda captava os raios de luz que entravam no aposento e refletia-os na parede. Vezes sem conta os seus dedos fizeram a moeda saltar, enquanto os seus olhos preguiçosamente seguiam os movimentos da luz. O aço inoxidável constituía-se um bom material para cunhagem, num planeta onde qualquer metal em uso era importado.

Pirenne ergueu a cabeça e piscou os olhos. - Pare com isso!

- Ahn!

- Pare com essa brincadeira.

- Está bem. - Hardin guardou a moeda. - Quando estiver pronto, diga-me. Prometi estar de volta ao Conselho da Cidade, antes de ser posto à votação o plano para o novo aqueduto.

Pirenne suspirou e afastou-se da mesa. - Estou pronto. Espero simplesmente que não me venha aborrecer com assuntos da cidade. Trate você deles, por favor. A Enciclopédia toma-me todo o tempo.

- Já ouviu as últimas notícias? - perguntou Hardin, fleumático.

- Que notícias?

- As notícias que o nosso aparelho de ultra-ondas recebeu há duas horas. O Governador Real da Prefeitura de Anacreon assumiu o título de rei.

- E daí?

- Significa - respondeu Hardin - que nos encontramos isolados das regiões interiores do Império. Já esperávamos por isso, contudo não torna a situação mais confortável. Anacreon cruza-se diretamente com a última rota comercial que nos resta para Santanni, Trantor e Vega. De onde virá agora o nosso metal? Há seis meses que não passa um carregamento de aço ou alumínio e agora, com certeza, não passará exceto pelo favor do Rei de Anacreon.

Pirenne mascou impacientemente: - Obtenham-no através dele nesse caso.

- Como? Escute Pirenne: de acordo com a carta que esabeleceu esta Fundação o

Conselho Administrativo do Comitê Enciclopédico tem plenos poderes. A autoridade que me foi conferida como mandatário de Terminus basta talvez para eu me assoar e se o senhor assinar uma ordem dando autorização, para espirrar em seguida. Tudo depende do senhor e do seu Conselho. Peço-lhe, portanto, em nome da cidade, cuja existência depende do comércio com o resto da Galáxia, para autorizar uma reunião de emergência.

- Pare! Uma propaganda eleitoral no momento vem pouco a propósito. Veja Hardin: o Conselho Administrativo não proibiu o estabelecimento de um governo municipal em Terminus. Compreendemos a necessidade de tal governo, devido ao aumento de população desde a data do estabelecimento da Fundação, há cinqüenta anos, e pelo número de pessoas envolvidas em assuntos extra-enciclopédicos. Não quer isto dizer, contudo, que o primeiro e único objetivo da Fundação tenha deixado de ser a publicação de uma Enciclopédia definitiva, englobando todo o conhecimento humano. Somos uma instituição científica, senhor Hardin, mantida pelo Estado. Não podemos - não devemos - interferir na política local.

- Política local! Por ordem do Imperador, Pirenne, é uma questão vital. O planeta Terminus por si só não pode manter uma civilização mecanizada. Faltam-lhe os metais. Não tem vestígios de ferro, cobre ou alumínio em toda a sua superfície e pouco mais tem de qualquer outra coisa. Que pensa o senhor do que sucederá à Enciclopédia, se este rei fanfarrão de Anacreon se decidir a fazer-nos a vida cara?

- A nós? Esquece-se que estamos sob o "controle" direto do Imperador? Não fazemos parte da administração. Lembre-se disso! Somos parte integrante dos domínios Imperiais e ninguém nos toca. O Império protege o que é seu.

- E a revolta do Governador de Anacreon foi por acaso sufocada? E foi Anacreon o único? Pelo menos vinte das prefeituras exteriores da Galáxia, toda a periferia na realidade, iniciaram o mesmo sistema. Digo-lhe que estou pouco seguro do Império e da sua habilidade para nos proteger.

- Governadores Reais, Reis - qual é a diferença? O Império tem-se mantido através de várias políticas com homens diferentes procurando cada um seus interesses. Já se revoltaram outros Governadores, e já foram depostos Imperadores e mesmo assassinados alguns, antes disto. Mas que têm todas essas coisas a ver com o Império em si? Esqueça-se disso, Hardin, não é nada conosco. Somos em primeira e última análise - cientistas. O que nos preocupa é a Enciclopédia. E já, Hardin, antes que me esqueça.

- Sim?

- Veja lá esse seu jornal! - Pirenne estava colérico.

- O jornal da cidade de Terminus? Não é meu. É propriedade particular. Que fez ele?

- Há semanas que traz, na primeira página, o cabeçalho pedindo que, por ocasião do qüinquagésimo aniversário do estabelecimento da Fundação, seja declarado feriado oficial, com comemorações, devo dizer, bastante impróprias.

- E por que não? O relógio de rádio abre o Primeiro Cofre dentro de três meses. Considero esse dia como algo especial.

- Mas não para paradas idiotas Hardin. O Primeiro Cofre e sua abertura dizem respeito exclusivamente â Prefeitura. Tudo o que for importante será comunicado ao povo. Esta é a última palavra. Comunique-a ao jornal.

- Lamento muito, Pirenne, porém a Constituição da cidade garante uma coisa sem importância denominada liberdade de Imprensa.

- Talvez sim, porém a Prefeitura não a acata. Sou o representante do Imperador em Terminus, Hardin, e tenho plenos poderes.

A expressão de Hardin era a de um homem que procura dentro de si as últimas reservas de paciência. - A propósito de sua situação como representante do Imperador tenho uma última novidade a dar-lhe.

- A respeito de Anacreon? - A boca de Pirenne contraiu-se.

- Vai chegar um enviado especial mandado pelo Governo de Anacreon dentro de duas semanas.

- Um enviado? Aqui? Para quê?

Hardin levantou-se, empurrou a cadeira e olhou o admirado representante do poder imperial: - Adivinhe se é capaz. E foi-se embora - com desprezo.

 

Anselm-Haut-Rodric - "Haut" significando sangue nobre, vice-prefeito de Pluema e enviado extraordinário de Sua Alteza de Anacreon - e mais meia dúzia de títulos – foi esperado â sua chegada, por Salvor Hardin, com todo o ritual imposto por razões de Estado.

Com um breve sorriso e uma desculpa o vice-prefeito tirara a sua arma do coldre e entregara-a a Hardin. Este última retribuiu o cumprimento entregando a sua... que pedira emprestada para a ocasião. Amizade e boa vontade foram assim seladas e se Hardin descobriu qualquer volume suspeito nos bolsos de Haut Rodric calou-se prudentemente.

A solenidade que lhe foi prestada - precedida e flanqueada por uma conveniente nuvem de funcionários menores - seguiu sua marcha lenta e cerimoniosamente até o Largo da Enciclopédia, ovacionado na sua trajetória por uma multidão apropriada, com a devida quantidade de entusiasmo.

O vice-prefeito Anselm recebeu as ovações com a condescendência e indiferença de um nobre.

- Esta cidade é todo o seu mundo? - perguntou a Hardin. Hardin ergueu a voz de modo a ser ouvido acima do clamor.

- Somos um mundo novo, Excelência. Em nossa curta história poucos membros da nobreza visitaram o nosso pobre planeta. Daí o entusiasmo.

Parece que a "nobreza" não reconheceu a ironia. Pensativamente observou: - Cinqüenta anos - um-m-m! Deve haver por aqui muita terra inexplorada. Nunca pensaram dividi-la em propriedades?

- Por ora não há necessidade disso. Estamos extremamente centralizados. Somos obrigados a isso por causa da Enciclopédia. Algum dia talvez, quando a nossa população aumentar...

- Um mundo estranho; não existem camponeses.

Hardin refletiu que não era necessário ser-se muito inteligente para ver que "sua eminência" estava "tirando nabos da tigela". Replicou casualmente: - Não - nem nobres.

As sobrancelhas de Rodric arquearam-se: - E o seu chefe, o homem com quem me vou encontrar?

- O Dr. Pirenne? É o Diretor do Conselho, Administrativo - e representante pessoal do Imperador.

- Só Doutor? Nenhum outro título? Um sábio? E está acima da autoridade civil?

- Decerto - replicou Hardin com amabilidade. - Somos todos mais ou menos sábios. Na verdade somos mais uma Fundação científica do que um mundo sob o "controle" direto do Imperador.

Houve uma ligeira ênfase na última frase, que pareceu desconcertar o vice-prefeito. O resto do caminho até o Largo da Enciclopédia foi percorrido em silêncio.

Se Hardin se aborreceu com a tarde e com a noite que se seguiu, teve pelo menos a satisfação de compreender que Pirenne e Haut Rodric - tendo-se encontrado em meio a enfáticos protestos de ternura e consideração mútuas - se detestavam cada vez mais.

Haut Rodric assistiu de olhar vítreo â conferência do Dr. Pirenne, durante a "visita de inspeção ao Edifício da Enciclopédia". Com um sorriso abstrato mas delicado, ouviu o discurso enquanto passavam de armazém em armazém onde se guardavam os filmes de referência, e através das numerosas salas de projeção.

Só depois de ter descido e passado pelos departamentos de composição, edição, publicação e filmagem é que fez a primeira afirmação compreensiva.

- Tudo isto é muito interessante. Mas parece-me estranho passatempo para homens. Qual é a vantagem?

Hardin notou que Pirenne não encontrava nenhuma resposta, apesar da expressão de seu rosto ser bastante eloqüente.

O banquete da noite foi quase uma imagem perfeita dos acontecimentos da tarde, pois Haut Rodric monopolizava a conversa descrevendo - com pormenores técnicos e bastante graça - as suas proezas como comandante militar durante a recente guerra entre Anacreon e o vizinho e novo Reino de Smyrno. Os pormenores da história do vice-prefeito terminaram ao fim do jantar quando todos os funcionários de menor categoria já se tinham retirado. O último capítulo da descrição triunfante de naves e homens destruídos terminou quando Pirenne e Hardin o acompanharam até a varanda e se sentaram, absorvendo o ar quente da noite de verão.

- E agora - disse finalmente com jovialidade - a assuntos importantes.

- Por quem é - murmurou Hardin acendendo um longo charuto de tabaco de Vega - não restam muitos - refletiu inclinando a cadeira para trás.

A Galáxia estendia-se alta no céu com a sua forma nebulosa de horizonte a horizonte. As poucas estrelas que brilhavam naquela ponta do Universo eram comparativamente insignificantes.

- Claro está - disse o vice-prefeito - que todas as discussões formais, isto é, a assinatura de tratados e outros aborrecimentos desse gênero terão lugar perante o... como o denominam? O Conselho?

- Conselho Administrativo - replicou Pirenne friamente.

- Estranho nome! De qualquer modo fica para amanhã. Podemos desde já aclarar certos pormenores de homem para homem. De acordo?

- Plenamente - provocou Hardin.

- Tem havido algumas modificações na situação da Periferia, e o estado de seu planeta é um pouco incerto. Seria bastante conveniente se chegássemos a compreender-nos quanto a essa situação. A propósito, o senhor terá outro charuto desses?

Hardin ofereceu-lho com relutância.

Anselm Haut Rodric cheirou-o e imitou um som de prazer - tabaco de Vega! Onde o arranjou?

- Recebemos alguns no último carregamento. Pouco resta. Só o Espaço sabe quando receberemos mais.

- Pirenne carregou o semblante. Ele não fumava e detestava o cheiro.

- Entendamo-nos, Eminência: a sua missão é apenas elucidar a situação?

Haut Rodric anuiu através da fumarada.

- Nesse caso terminará depressa. A situação com respeito à Fundação Enciclopédica Número Um é o que sempre foi.

- Ah! E o que é que tem sido sempre?

- Isto apenas: uma instituição científica mantida pelo Estado e parte do domínio pessoal de sua Augusta Majestade o Imperador.

O vice-prefeito não parecia intimidado; soprou alguns anéis de fumo.

- Bela teoria, Dr. Pirenne. Imagino que o senhor possui Cartas com o Selo Imperial mas qual é a situação presentemente? Qual é a posição em relação a Smyrno? Não estão a mais de cinqüenta parsecs* da capital de Smyrno. E Konom e Daribow?

* Unidade de distância sideral equivalente a 3,26 anos-luz.

- Nada temos a ver com qualquer prefeitura, como parte integrante do Império...

- Já não são prefeituras - lembrou-lhe Haut Rodric - agora são reinos.

- Seja. Nada temos a ver com eles. Na nossa qualidade de instituição científica.

- Ciência! Ciência! - vociferou o outro. - Que diabo tem isso com o fato de que podemos ver Terminus ocupado por Smyrno a qualquer momento?

- E o Imperador?

Haut Rodric acalmou-se: - Bem, vejamos Dr. Pirenne: o senhor respeita a propriedade do Imperador e Anacreon também o faz; porém Smyrno talvez não. Lembre-se de que acabamos de assinar um tratado com o Imperador - apresentá-lo-ei amanhã a esse seu Conselho - que coloca sob nós a responsabilidade de manter a ordem dentro dos limites da Antiga Prefeitura de Anacreon por parte do Imperador. O nosso dever é patente, não é?

- Sim, sim, mas Terminus não faz parte da jurisdição de Anacreon.

- E Smyrno?

- Nem de Smyrno, nem de qualquer outra jurisdição.

- Smyrno sabe disso?

- Não me interessa o que Smyrno sabe!

- Mas interessa a nós. Terminamos neste momento uma guerra com ela e, no entanto, não recuperamos os dois sistemas estelares que nos foram roubados. O lugar que Terminus ocupa entre as duas nações é de caráter estratégico.

Hardin sentia-se cansado. Interrompeu: - Qual é a sua proposta, Eminência?

O vice-prefeito parecia agora disposto a fazer propostas um pouco mais concretas. - Parece-nos perfeitamente evidente que visto Terminus não ser capaz de se defender, Anacreon tomará essa tarefa á sua conta. Devem compreender que não desejamos interferir na administração interna.

Hardin grunhiu secamente.

- Cremos que seria melhor para todos se Anacreon estabelecesse uma base militar neste planeta.

- E isso seria tudo o que desejariam - uma base militar dentro do vasto território desocupado - e nada mais?

- Bom, claro, haveria a questão de manter as forças de proteção.

Hardin deixou que a cadeira assentasse sobre os quatro pés e inclinou-se para a frente. - Agora estamos chegando a qualquer coisa. Vamos pô-la em palavra. Terminus torna-se um protetorado e deve, portanto, pagar um tributo.

- Tributo não. Impostos. Protegemo-los e vocês pagam por isso.

Pirenne bateu na mesa com o punho cerrado. - Deixe-me falar, Hardin. Eminência, não dou meia moeda por Anacreon, Smyrno e todas as suas politiquices e guerras. Já lhe disse que Terminus é uma instituição livre de impostos e mantida pelo Estado.

- Mantida pelo Estado! Mas nós somos o Estado, Dr. Pirenne, e não iremos mantê-los.

Pirenne ergueu-se colérico. - Sou representante legal de...

-...Sua Augusta Majestade, o Imperador, ecoou Anselm Haut Rodric, azedamente – e eu sou o representante do Rei de Anacreon; Anacreon está um pouco mais próximo, Dr. Pirenne.

- Voltaremos ao que interesse - interrompeu Hardin - em que espécie aceitariam esses impostos, em mercadoria: trigo, batatas, vegetais, gado?

O vice-prefeito olhava-o admirado. - O quê! Para que precisamos nós disso! Queremos ouro, claro. Cromo ou vanádio seriam ainda melhores, isto é, se os tiverem em abundância.

Hardin riu-se: - Em abundância! Nem ferro temos. Ouro! Tome, olhe para as nossas moedas - atirou uma moeda ao enviado.

- De que é? Aço!

- Sim senhor.

- Não compreendo.

Terminus é um planeta praticamente sem metais. Os que temos são importados. Conseqüentemente, não temos ouro, e nada para pagar a não ser que aceitem em pagamento algumas toneladas de batatas.

- E a sua produção industrial?

- Sem metais, de que faríamos nossas máquinas?

Houve uma pausa e Pirenne tentou de novo: - Meus senhores, toda esta discussão é inútil. Terminus não é um planeta mas uma instituição científica empenhada em preparar uma grande enciclopédia. Pelo Espaço, os senhores não respeitam a Ciência?

Enciclopédias não ganham guerras. - Haut Rodric franziu o sobrolho. -Um mundo sem qualquer produção é praticamente vazio. Bem, pode pagar com terras,

- Que quer isso dizer?

- Este planeta está quase vazio e a terra é provavelmente fértil. Muitos nobres de Anacreon aceitariam um acréscimo as suas propriedades.

- O senhor tem a ousadia de propor?

- Não há necessidade de se alarmar tanto, Doutor. Há que cheguem para todos nós. Se lá chegarmos, e se o senhor colaborar, poderemos arranjar as coisas de modo que os senhores nada percam. Podem ser conferidos títulos e dadas garantias. Compreende-me?

Pirenne sibilou: - Obrigado!

Hardin disse, então, ingenuamente: - Poderia Anacreon fornecer-nos as devidas quantidades de plutônio para a nossa geradora de energia atômica? Temos apenas uma reserva mínima que em poucos anos se esgotará.

O silêncio que se seguiu durou alguns minutos. Quando Haut Rodric voltou a falar o seu tom de voz era bem diferente do que fora até então.

- Vocês têm energia atômica?

- Que tem isso de invulgar? A energia atômica tem cinqüenta mil anos de idade. Por que não havíamos de possuí-la? A não ser pela dificuldade de conseguir plutônio.

- Claro, claro. - O enviado fez mais uma pausa e acrescentou desconsolado: - bem, cavalheiros, continuaremos a nossa discussão amanhã. Por certo me desculparão.

Pirenne seguiu-o com o olhar e rangeu os dentes:

- Aquele asno estúpido é imperdoável!

Hardin interrompeu-o: - De modo algum. É um produto, do seu meio. Não entende muito além do: eu tenho uma arma e você não.

Pirenne virou-se para ele exasperado: - Que desejava o senhor dizer com aquele discurso de bases militares e de tributos? O senhor está doido?

- Dei-lhe corda para ele se enforcar. Afinal saiu-se com as verdadeiras intenções de Anacreon; a divisão de Terminus em propriedades. Não vou consentir que isso aconteça.

- O senhor não vai deixar? O senhor? E quem é o senhor? E posso já agora perguntar-lhe a intenção dessa idiotice sobre a energia atômica? Isso seria a melhor desculpa para fazer de nós um alvo militar.

- Sim - Hardin sorriu. - Um alvo militar do qual se devem afastar. Não é evidente a razão porque eu falei disso? Acontece que confirmou uma suspeita minha.

- Qual?

- Que Anacreon não tem energia atômica. Se a tivesse o nosso amigo compreenderia que o plutônio já não se utiliza nas geradoras de energia. Segue-se, portanto, que o resto da Prefeitura também não tem energia. Smyrno não a tem ou Anacreon não teria vencido a maioria das batalhas na recente guerra. Não é interessante?

- Bah! - Pirenne foi embora deixando Hardin ainda sorrindo. Este atirou fora o seu charuto e olhou a Galáxia que se estendia até o infinito. - De volta ao petróleo e ao carvão, hem? - murmurou ele, e o restante de seus pensamentos guardou-os para si.

 

Quando Hardin negou ser dono do jornal, disse apenas meia verdade. Fora ele o incentivador da campanha para incorporar Terminus numa municipalidade autônoma – e fora eleito presidente da Câmara de modo que não era surpreendente que, embora não houvesse uma única ação do jornal em seu nome, mais de sessenta por cento eram controlados por ele de maneira duvidosa.

Conseqüentemente, quando Hardin começou a sugerir a Pirenne que lhe fosse permitido assistir ás reuniões do Conselho Administrativo, não foi por coincidência que o jornal lançou-se numa campanha sugerindo o mesmo. E a primeira reunião, em massa, na história da Fundação realizou-se, pedindo representação da Cidade no governo nacional.

Eventualmente Pirenne capitulou, embora de mau humor.

Hardin, sentado ao fundo da mesa, especulava quanto á razão dos cientistas serem péssimos administradores. Talvez fosse por serem tão inflexíveis e pouco habituados a gente flexível.

Fosse como fosse, ali estavam Tomaz Sutt e Jord Fará á sua esquerda; Lundin Crast e Yate Fulham á sua direita. Pirenne estava sentado na cadeira da presidência. Conhecia-os bem a todos. Contudo, parecia ter adotado uma relativa pomposidade para a ocasião.

Hardin adormeceu através das formalidades iniciais, mas acordou na ocasião em que Pirenne bebia um pouco de água, á guisa de preparação, e começava :

- Sinto-me muito grato por poder informar aos membros do Conselho que, desde a nossa última reunião, recebi notícias de Lorde Dorwin, Chanceler do Império, dizendo que chegaria a Terminus dentro de duas semanas. E quase garantindo que nossas relações com Anacreon serão colocadas no devido lugar para nossa completa satisfação, logo que o Imperador seja informado do que se passa.

Sorriu e dirigiu-se a Hardin no extremo oposto da mesa. - Foram dadas informações ao jornal a este respeito.

Hardin sorriu baixinho. Parecia evidente que uma das razões de sua admissão ao sacrossanto era o desejo de Pirenne lhe fazer admirar aquela informação.

- Deixando de lado expressões vagas, que espera de Lorde Dorwin?

Tomaz Sutt respondeu. Tinha o mau hábito de se dirigir na terceira pessoa, quando no seus momentos de circunspecção.

- É evidente que o Prefeito Hardin é um cínico profissional. Não pode deixar de ver que o Imperador não permitiria a infração dos seus direitos pessoais.

- Por quê? Que faria ele no caso da infração?

Houve pela sala um movimento de irritação. Pirenne disse-lhe:

- O senhor está fora de ordem e - pensando bem - fazendo afirmações um tanto perigosas.

- Devo considerar isso como resposta?

- Sim, se não tem mais nada a dizer.

- Não tire conclusões. Gostaria de fazer uma pergunta. Além deste golpe diplomático - que pode ou não ter qualquer significado - fez-se algo de concreto para suster a ameaça de Anacreon?

Yate Fulham cofiou o seu bigode ruivo e medonho. - Vê aí uma ameaça?

- E o senhor não vê?

- Nenhuma. O Imperador...

- Grande Espaço! - Hardin aborrecia-se. - Que é isto? De vez em quando há alguém que diz "Imperador" ou "Império" como se fossem palavras mágicas. O Imperador está longe e tenho as minhas dúvidas quanto à importância que nos confere. E se se importar? Que pode ele fazer? O que havia da Armada Imperial por estas regiões está nas mãos dos quatro reinos, e Anacreon tem a sua parte. Teremos de lutar com armas, não com palavras!

- Compreendam bem a situação. Tivemos dois meses de graça especialmente por termos dado a Anacreon a idéia de que possuímos armas atômicas. Todos nós sabemos que isso é mentira. A energia atômica que temos é para fins pacíficos e não basta. Eles descobrirão a nossa mentira dentro de pouco tempo, e se acham que vão gostar de se verem enganados talvez vocês por seu lado se enganem.

- Meu caro senhor...

- Ainda não terminei. - Hardin ainda estava se aquecendo e gostava do efeito. – É muito bonito meter chanceleres no caso mas mais bonito seria ainda meia dúzia de canhões atômicos e as respectivas bombas. Já perdemos dois meses e talvez não tenhamos mais tempo a perder. Que se propõem fazer?

O nariz de Lundin Crast enrugou-se de irritação. - Se pretende propor a militarização da Fundação não quero ouvir mais nada. Marcaria nosso ingresso no campo da política. Nós, Senhor Presidente da Câmara, somos uma fundação científica e nada mais.

Sutt continuou: - Além disso não compreende que a fabricação de armamentos seria retirar homens - homens de valor - da Enciclopédia? Não pode ser feito, aconteça o que acontecer.

- De fato, primeiro a Enciclopédia - e sempre - concordou Pirenne.

Hardin gemeu mentalmente. O Conselho parecia sofrer de "Enciclopedite". Quando respondeu o seu tom era gélido: - Talvez não tenha ocorrido ao distinto Conselho que Terminus possa ter outros interesses além da Enciclopédia.

Pirenne replicou: - Não posso conceber, Hardin, que a Fundação tenha outros interesses.

- Não falei da Fundação. Falei de Terminus! Receio que não entendam bem a situação. Existe mais de um milhão de seres aqui dos quais os empregados na Enciclopédia não ultrapassam os cento e cinqüenta mil. Nascemos aqui, vivemos aqui. Comparada com as suas casas, quintas e fábricas, a Enciclopédia pouco significa. Queremos proteger tudo isso.

O barulho emudeceu-o.

- Acima de tudo a Enciclopédia - gritou Crast. - Temos uma missão a cumprir.

- Diabos levem a missão! - gritou-lhe Hardin por sua vez. - Há cinqüenta anos isso poderia ter valor, hoje não! Esta é uma nova geração!

- Nada tem a ver uma coisa com a outra - respondeu Pirenne. - Nós somos cientistas.

Hardin anteviu uma brecha e aproveitou-a: - Serão na verdade cientistas? Bela alucinação. Todo o seu grupo é o exemplo perfeito do que sucedeu â Galáxia durante milhares de anos. Que espécie de ciência é a de classificar e rotular o trabalho dos cientistas do último milênio? Já pensaram em ir para a frente, estender os limites desse conhecimento, melhorá-lo? Não! Sentem-se felizes na estagnação. Toda a Galáxia se sente feliz e se tem sentido ao longo de... só o Espaço o sabe. Eis o porquê das revoltas na Periferia, das interrupções de comunicações, das eternas guerras, da perda de energia atômica e retrocesso ao processo bárbaro da energia química. Se querem saber – gritou por fim - a Galáxia está se desintegrando.

Fez uma pausa e deixou-se cair na cadeira, não dando atenção a dois ou três membros que procuravam responder-lhe ao mesmo tempo.

Crast tomou a palavra: - Não sei o que espera conseguir através de suas afirmações histéricas. Nada de construtivo, com certeza. Peço, senhor Secretário, que as palavras do senhor Hardin sejam riscadas das minutas e a discussão seja resumida a partir de sua interrupção.

Jord Fará mexeu-se pela primeira vez. Até então tinha-se mantido fora da discussão, mesmo nos momentos de maior calor. Mas agora sua voz poderosa, pesada como o seu corpo de cem quilos, fez-se ouvir no seu tom mais baixo: - Não nos teríamos esquecido de nada?

- De quê? - perguntou Pirenne irritado.

- De que neste mês comemoramos o qüinquagésimo aniversário.

Fará tinha o costume de observar pormenores com grande agudeza.

- Que tem isso?

- É que nessa data - continuou Fará calmamente - o cofre de Hari Seldon abrir-se-á. Já consideraram o que poderá haver nesse cofre?

- Não sei. Questões de rotina. Talvez um discurso de parabéns, vulgar. Não acho que o cofre tenha qualquer significado, apesar do jornal - e olhou Hardin fixamente - ter querido dar-lhe. Fiz com que essa história terminasse.

- Ah - disse Fará - mas talvez tivesse feito mal. Não lhes parece um silêncio antes de prosseguir - que o cofre se vai abrir numa hora bastante conveniente?

- Num momento inconveniente, quer o senhor dizer - murmurou Fulham. – Temos outras coisas com que nos preocupar.

- Coisas mais importantes do que uma mensagem de Hari Seldon? Acho que não - Fará crescia cada vez mais - e Hardin olhou-o pensativo. Onde desejava ele chegar?

- De fato - continuou com ar radiante - parecem todos esquecidos que Seldon foi o maior psicólogo da nossa época e que foi o instituidor da nossa Fundação. Parece-me razoável que ele tenha aplicado a sua ciência para determinar o provável curso da história, deste futuro próximo. Se o fez, como me parece, repito, deve ter havido maneira de nos avisar de qualquer perigo e talvez apresente uma solução. A Enciclopédia era-lhe muito querida.

Prevalecia na sala uma aura de dúvida. Pirenne interrompeu: - Bem, não sei exatamente. A psicologia é uma grande ciência mas, de momento, não temos entre nós nenhum psicólogo, creio. Parece-me termos entrado em terreno pouco familiar.

Fará virou-se para Hardin: - O senhor não estudou psicologia com Alurin?

Hardin respondeu-lhe humildemente: - Sim, mas não cheguei a terminar os meus estudos. Cansei-me da teoria, queria ser engenheiro psicólogo, mas não tive quaisquer facilidades de modo que entrei no campo mais parecido - o da política. É quase o mesmo.

- Que pensa do cofre?

- Não sei o que dizer. - Hardin decidiu acautelar-se. Não voltou a falar durante o resto da reunião apesar de terem voltado á questão do Chanceler do Império. Nem sequer lhes deu atenção. Tinham-lhe apresentado um caminho desconhecido e tudo começava a tomar o seu devido lugar. Os ângulos iam-se desfazendo.

A psicologia era a chave. Disso estava certo.

Desesperadamente tentou recordar-se da teoria psicológica que aprendera - e daí compreender as coisas logo de início.

Um grande psicólogo como Seldon poderia desvendar as emoções e reações humanas o suficiente para poder prever com largueza o desenvolvimento histórico do futuro.

Isso significava...

 

Lorde Dorwin aspirava rape. Tinha o cabelo comprido, complicadamente encaracolado, ao qual juntava artificialmente suíças louras que acariciava com todo o carinho. Quando falava dava a impressão de dizer preciosidades acentuando bem todas as sílabas.

Naquele momento Hardin não tivera ainda tempo de apresentar mais razões para detestar o nobre Chanceler; o efeito fora imediato. Os gestos elegantes da mão que acompanhavam as palavras e a condescendência estudada que acompanhava a mais simples afirmação, tinham um efeito desolador sobre Hardin.

O problema atual era descobrir a nobre personalidade. Desaparecera com Pirenne meia hora antes - como quem se vaporizara.

Hardin estava seguro de que a sua ausência durante as discussões preliminares agradaria a Pirenne.

Pirenne fora visto naquele andar, portanto, tratava-se apenas de experimentar todas as portas. A meio caminho Hardin soltou uma exclamação de prazer e adentrou um gabinete meio escuro. A silhueta do intrincado penteado de Lorde Dorwin era uma realidade contra a tela iluminada.

Lorde Dorwin olhou-o e disse: - Ah, Hardin, sem dúvida nos procura. Ofereceu-lhe a caixa de rape, superembelezada, que Hardin recusou após o que Sua Dignidade aspirou uma pitada e sorriu graciosamente.

Pirenne carregou o cenho e Hardin permaneceu indiferente.

O único ruído a quebrar o silêncio que se seguiu foi o estalido da caixa de rape de Lorde Dorwin ao fechar-se. Depois de guardá-la iniciou:

- Grande proeza esta sua Enciclopédia, Hardin. Um feito indubitável que está a par dos mais sublimes acontecimentos de todos os tempos.

- A maioria de nós assim pensa, milorde. Um acontecimento que, no entanto, ainda não se concretizou totalmente.

- Do pouco que me foi dado ver da eficiência da sua Fundação nada temo a esse respeito. - E inclinou a cabeça para Pirenne que lhe correspondeu com uma delicada cortesia.

Uma festa amorosa, pensou Hardin. - Não me queixava da falta de eficiência, milorde, mas sim do excesso de eficiência da parte de Anacreon - apesar de essa atividade ser dirigida numa direção mais destrutiva.

- Ah, sim, Anacreon - um negligente movimento de mão - venho mesmo agora de lá. Profundamente bárbaro esse planeta. É absolutamente inconcebível que seres humanos possam viver aqui na periferia. A falta das condições mais elementares para a vida dum cavalheiro culto; a falta das mais fundamentais necessidades de conforto e conveniência, o completo desuso em que...

Hardin interrompeu-o secamente: - Os anacreonianos, infelizmente, possuem todos os requisitos elementares para a guerra e todas as necessidades básicas para a destruição.

- Apoiado, apoiado. - Lorde Dorwin parecia estar contrariado, talvez por ter sito tão rudemente interrompido. - Porém não devemos discutir esses assuntos agora. Sinto-me realmente bastante preocupado. Doutor Pirenne, não me mostra o segundo volume? Por favor.

As luzes apagaram-se por mais de meia hora e Hardin bem poderia estar em Anacreon por toda a atenção que lhe foi dispensada. O livro projetado na tela pouco sentido tinha para ele: nem sequer o tentou seguir. Mas Lorde Dorwin teve momentos em que parecia humanamente excitado. Durante esses breves instantes Hardin notou que o Chanceler esquecia sua pose.

Quando as luzes se acenderam novamente, Lorde Dorwin disse: - Maravilhoso, verdadeiramente maravilhoso. Sr. Hardin, o senhor não se interessa por arqueologia?

Hardin saiu de sua abstração: - Não, milorde, não posso dizer que esteja interessado. Sou um psicólogo por vocação inicial e político por decisão final.

- Ah, sem dúvida estudos interessantíssimos. Eu próprio - e serviu-se de enorme pitada de rape - me dedico à arqueologia, sabe?

- Ah sim?

- Sua Alteza - interrompeu Pirenne - é bastante conhecedor dessa matéria.

- Talvez, talvez - consentiu Sua Dignidade complacentemente. - Tenho feito um trabalho incansável nessa ciência. Realmente li muito. Li todo o Jardim, o Obijassi, o Kromuiel, enfim todos eles.

- Já os ouvi citados - disse Hardin - porém nunca os li.

- Mas deve fazê-lo qualquer dia, meu caro senhor. Seria amplamente recompensado. Creio que só para ver esta cópia de Lameth valeu a pensa esta viagem á Periferia. Acreditem ou não, falta-me esse autor na minha biblioteca. A propósito, Dr. Pirenne, o senhor não esqueceu sua promessa de revelar mais uma cópia para mim, antes de minha partida.

- Com todo o prazer.

- Lameth, devem saber - continuou o chanceler oficialmente - apresenta uma nova e interessante adição ao meu conhecimento prévio sobre a Questão da Origem.

- Que questão? - interrogou Hardin.

- A Questão da Origem. O lugar de origem da espécie humana. O senhor deve saber, com certeza, que se pensa que a raça humana ocupou inicialmente apenas um sistema planetário.

- Bem sei, bem sei.

- Ninguém sabe ao certo qual o sistema, encontra-se perdido nas brumas do passado. Existem, contudo, várias teorias. Sirius, dizem uns, outros insistem sobre Alfa Centauro, ou no Sol ou em Cyngi 61 - todos no setor de Sirius, como se vê.

- È que diz Lameth?

- Bom, ele parte de um caminho inteiramente diferente; tenta demonstrar que os restos arqueológicos no terceiro planeta do Sistema Arcturiano mostram que a humanidade existiu ali, antes de haver quaisquer indicações de viagens no espaço.

- E quer isso dizer que esse é o berço da humanidade?

- Talvez. Devo lê-lo de novo com atenção e pesar as provas antes de me pronunciar. Tem de se verificar o peso de suas observações.

Hardin conservou-se em silêncio durante alguns instantes. - Quando Lameth escreveu esse livro? - perguntou finalmente.

- Há mais ou menos trezentos anos. Claro está que se baseou principalmente nos trabalhos prévios de Gleen.

- Então por que perder tempo? Poderia ir a Arcturus e estudar por si mesmo os vestígios.

Lorde Dorwin ergueu as sobrancelhas e a tampa da caixa de rape ao mesmo tempo. Apressadamente aspirou a sua pitada. - Mas para quê?

- Para obter a informação em primeira mão, já se vê.

- Mas onde reside essa necessidade? Parece-me um método estranho e duvidoso de conseguir algo. Veja bem, tenho os trabalhos dos velhos mestres - os grandes arqueólogos do passado. Comparo-os uns com os outros, equilibro as discrepâncias - analiso as afirmações conflituosas - decido a probabilidade de correção de cada uma - e chego a uma conclusão. Esse é o método científico. Pelo menos, com ar condescendente, é assim que o vejo. Seria insofismável essa minha ida a Arcturus, ou ao Sol por exemplo, e andar ás voltas quando os velhos mestres já cobriram todo esse campo, com muito maior eficiência do que eu jamais poderia sonhar atingir.

Hardin murmurou delicadamente: - Estou vendo. Ele e os seus métodos científicos; não era de estranhar que a Galáxia se desintegrasse.

- Vamos, milorde - disse Pirenne - acho que é melhor voltarmos.

- Ah, sim, talvez.

Quando saíam, Hardin disse á queima-roupa: - Milorde, posso fazer uma pergunta?

Lorde Dorwin sorriu brandamente dando ênfase à sua resposta com um elegante movimento de mão: - Certamente, meu caro senhor, sinto prazer em ser-lhe prestável. Se há algo que possa fazer por você através do meu conhecimento.

- Não exatamente sobre arqueologia, milorde.

- Não?

- Trata-se do seguinte: o ano passado recebemos notícias aqui em Terminus sobre a explosão de uma geradora atômica no planeta V de Gama Andrômeda. Só chegou até nós um pequeno rumor sem quaisquer pormenores. Não poderia dizer-me com exatidão o que sucedeu?

Os lábios de Pirenne torceram-se. - Não compreendo a razão porque aborreceu Sua Dignidade com perguntas sem importância.

- Nada disso, Dr. Pirenne, não me aborrece nada, intercedeu o Chanceler. Não há muito que dizer sobre o caso. A geradora explodiu e foi uma catástrofe. Quer-me parecer que morreram vários milhões de pessoas e que pelo menos metade do planeta foi destruído. O Governo considerou seriamente a aplicação de rigorosas restrições quanto ao uso indiscriminado da energia atômica - apesar de não ser coisa que se torne pública.

- Compreendo - disse Hardin. - Que se passava com a geradora?

- Verdadeiramente não se sabe - replicou Lorde, Dorwin indiferentemente. Sofrera avarias havia alguns anos e o trabalho de reparação, assim como os materiais empregados eram de péssima qualidade. É bastante difícil, hoje em dia, encontrar-se quem compreenda os pormenores técnicos dos nossos sistemas de energia.

- Milorde compreende que os reinos independentes da Periferia desconheceram completamente o uso da energia atômica?

- Não me surpreende. Planetas bárbaros que são. - Oh, mas meu caro senhor, não lhes chame independentes. Não o são realmente. Os tratados que fizemos com eles são prova positiva disso. Continuam a aceitar a soberania do Império. Teriam de fazê-lo, ou não teríamos qualquer contato.

- Talvez seja assim. No entanto, todos têm considerável liberdade de ação.

- Creio que sim. Considerável mas pouco importante. O Império está muito melhor deixando a Periferia entregue aos seus próprios recursos, como mais ou menos acontece. Não nos servem para nada. São pouco civilizados.

- Já o foram no passado, Anacreon foi uma das mais ricas províncias exteriores. Poderia até comparar-se favoravelmente como Vega, segundo consta.

- Mas isso foi há um século, Hardin. Não se pode tirar conclusões. As coisas eram bem diferentes no passado. Já não somos os mesmos homens. Contudo, você persiste, Hardin. Já lhe disse que não desejo comentar esses assuntos hoje. O Dr. Pirenne já me tinha colocado de sobreaviso contra você. Disse-me que o senhor procuraria interrogar-me, porém eu sou uma raposa velha. Deixemos isso para a próxima oportunidade.

E pronto.

 

Esta era a segunda reunião do Conselho a que Hardin assistia, se se excluíssem todas as conversas não formais que tivera com os membros do Conselho e com o já longínquo Lorde Dorwin. Mesmo assim o Presidente da Câmara tinha uma idéia perfeitamente definida de que houvera pelo menos umas três reuniões para as quais jamais fora convidado. Parecia-lhe mesmo que nem para esta seria pedida a sua presença, não fosse o Ultimato.

Pelo menos parecia um Ultimato apesar de que uma leitura superficial do documento taquigrafado poderia levar a supô-lo uma amigável troca de amabilidades entre dois poderosos.

Hardin segurou-o de leve. Começava por um florido cumprimento de "Sua Poderosa Majestade", o Rei de Anacreon para o seu amigo e irmão, o Dr. Lewis Pirenne, Presidente do Conselho Administrativo da Fundação Enciclopédica Número Um, e terminava ainda mais colorido com um gigantesco selo multicor de esquisito simbolismo.

Era contudo um Ultimato.

Disse Hardin: - parece que não tivemos muito tempo afinal; só três meses. Embora pouco, gastamo-lo inutilmente. Dão-nos mais uma semana neste papel. Que faremos?

Pirenne estava agora preocupado. - Deve haver uma saída. É incrível que cheguem a extremos depois do que Lorde Dorwin nos assegurou a respeito da atitude do Imperador e do Império.

Hardin ergueu-se. - Estou vendo. Talvez o senhor tivesse a bondade de informar o Rei de Anacreon sobre esta alegada atitude.

- É verdade. Fi-lo depois de ter consultado o Conselho por voto, e de ter recebido consentimento unânime.

- Quando teve lugar essa votação?

Pirenne agarrou-se â sua dignidade. - Acho que não sou responsável perante o senhor, Sr. Hardin.

- Muito bem, não me satisfaz a resposta. Trata-se apenas de minha opinião, de que a sua diplomática comunicação sobre a valiosa contribuição de Lorde Dorwin foi a responsável por esta amigável nota. Doutro modo, poderia ter levado mais tempo, apesar de eu pensar que por muito mais tempo que nos dessem Terminus acabaria por estar condenada, dada a atitude do Conselho.

- E como chegou o senhor a tão notável conclusão? - perguntou Yate Fulham.

- Duma maneira simples. Requeri simplesmente o uso de um artigo há muito esquecido: o senso comum. Há um ramo do conhecimento humano denominado lógica simbólica que pode ser empregado para peneirar todas as inutilidades que rodeiam a linguagem humana.

- Que tem isso?

- Apliquei-a. Entre outras coisas apliquei-a neste documento. Para mim não era essencial mas acho que o posso explicar melhor a cinco físicos mais por símbolos do que por palavras.

Hardin espalhou cinco folhas de papel sobre a mesa. - Tenho a dizer-lhes que não fui eu o autor. Foi Muller Holk, da Divisão de Lógica, que assinou estas análises como podem verificar.

Pirenne inclinou-se sobre a mesa para ver melhor e Hardin continuou: -a mensagem de Anacreon era um problema naturalmente simples, pois os homens que a compuseram eram mais homens de ação do que de palavras. Pode-se resumir imediatamente em símbolos que, traduzidos por palavras, querem dizer: ou nos dão o que nós queremos dentro de uma semana, ou levam uma tunda e ficam na mesma, sem nada.

O silêncio permaneceu enquanto os cinco membros do Conselho verificaram os símbolos. Depois o Dr. Pirenne sentou-se e tossiu pouco â vontade.

- Não há nenhuma saída, não é verdade Dr. Pirenne?

- Parece que não há.

- Muito bem. - Hardin arrumou as folhas. - Agora perante vocês há uma cópia do tratado entre Anacreon e o Império - incidentalmente um tratado assinado pelo mesmo Lorde Dorwin que aqui esteve na semana passada - e junto está uma análise simbólica. - O tratado compunha-se de cinco folhas bem impressas e a análise de meia página, ou pouco menos.

- Como se pode ver, mais ou menos 90% do tratado não têm qualquer significado e podemos tirar de todo ele a seguinte conclusão, tão cheia de interesse: - Obrigações de Anacreon para com o Império: Nenhuma. - Poderes do Império sobre Anacreon: Nenhum.

Novamente os cinco seguiram ansiosamente o raciocínio exposto na análise, conferindo-a com o tratado e quando terminaram Pirenne ainda mais preocupado estava. - Parece estar tudo certo.

- Admite, então, que o tratado não passa de uma declaração de independência total da parte de Anacreon e o reconhecimento desse Estado por parte do Império?

- Assim parece.

- E supõe que Anacreon não o compreende, e que não anseia por dar ênfase a essa posição de independência, de modo a ressentir-se contra qualquer ameaça feita pelo Império? Particularmente, quando se torna óbvio que o Império nada pode fazer além de ameaçar, ou nunca teria consentido em sua independência.

- Então - interpelou Sutt - como interpretar as afirmações de Lorde Dorwin quanto ao apoio do Imperador? Pareciam - bem, pareciam satisfatórias.

Hardi recostou-se na cadeira. - Se querem saber, essa parte é a mais interessante de todas. Admito ter pensado que Sua Serenidade fosse o mais consumado burro que jamais vi em toda a minha vida - porém, afinal é um grande diplomata e um homem inteligente. Tomei a liberdade de gravar todas as suas palavras.

Houve um longo murmúrio e Pirenne abriu desmesuradamente os olhos, horrorizado.

- E depois? Compreendo muito bem que foi uma falta imperdoável e uma coisa que nenhum cavalheiro faria. Também se Sua Serenidade tivesse percebido, teríamos passado momentos bem desagradáveis. Contudo não aconteceu nada disso, portanto acabou-se. Peguei no disco, copiei-o e remeti-o também a Holk para análise.

- Onde está a análise? - perguntou Lundin Crast.

- Essa é a parte mais interessante como já lhe disse. Das três análises esta foi a mais difícil. Quando Holk, após dois dias de trabalho ininterrupto, conseguiu eliminar afirmações sem significado, palavras imprecisas, qualificações inúteis - enfim todo o lixo - descobriu que não havia mais nada. Eliminara tudo.

- Cavalheiros, Lorde Dorwin em cinco dias de discussão nada disse, e de tal modo que os senhores não deram pela coisa. Eis o que o seu precioso Império lhes assegurou.

Se Hardin tivesse colocado uma bomba na sala (de mau cheiro), a confusão não teria sido maior. Esperou pacientemente que a barafunda chegasse ao fim.

- De modo que - concluiu ele - quando enviaram ameaças, pois é a isso que se resumem com respeito à ação do Império contra Anacreon, estavam pura e simplesmente irritando um monarca que sabia muito bem o que poderia fazer. Naturalmente o seu "ego" pediria ação imediata, e o ultimato é o resultado final - o que me induz de volta á minha afirmação original: - temos uma semana; que faremos?

- Parece-me - ofereceu Sutt - que não temos alternativa se não deixar que Anacreon estabeleça suas bases militares, aqui em Terminus.

- De acordo - replicou Hardin - mas que faremos quanto a escorraçá-los daqui na primeira oportunidade?

O bigode de Yate Fulham tremia. - O senhor está decidido a que haja violência de qualquer modo!

- A violência - foi a resposta - é o último refúgio da incompetência. Na certeza, porém, de que não vou dar-lhes as boas-vindas, e toda a espécie de amabilidades.

- Mesmo assim, não gosto muito do seu método - insistiu Fulham. -É uma atitude perigosa; mais perigosa ainda, porque ultimamente uma grande parte da população parece responder calorosamente a todas as suas sugestões. Desde já lhe digo, Prefeito Hardin, que o Conselho não é de todo cego ás suas atividades.

Houve um murmúrio geral de aprovação. Hardin encolheu os ombros.

Fulham continuou: - Se ativasse o populacho a um ato de violência, seria suicídio puro - e nós não o permitiremos. A nossa atitude tem um único princípio básico, a Enciclopédia. O que se decida fazer, será feito ou não, de acordo com cautelas tomadas para segurança da Enciclopédia.

- Então os senhores chegam á conclusão que devemos continuar nossa intensa campanha de inércia?

- Já nos demonstrou que não podemos contar com o Império; como isso pode ser, não sei. Se for necessário transigir...

Hardin teve a sensação de pesadelo de correr sem chegar a parte alguma.

- Não pode haver transigência! Não conseguem ver o que está por trás dessa história de bases militares? Haut Rodric disse-nos o que Anacreon queria - anexação de terra e imposição do seu sistema econômico, baseado no feudalismo. O que resta ainda do nosso "bluff", pode forçá-los a moverem-se vagarosamente, porém o movimento é mais do que certo.

Na sua indignação, Hardin havia-se erguido, e todos os outros se ergueram com ele - todos, exceto Jord Fara.

Então Jord Fara falou: - Por favor, sentem-se todos. Já fomos bastante longe, penso eu. - Vamos, Hardin, esse ar furioso não conduz a nada; nenhum de nós cometeu traição.

- Disso terão de me convencer!

Fará sorriu com ar bondoso. - Estou certo de que não pretendeu dizer isso; deixem-me falar!

Os seus olhos estavam semicerrados, e o suor brilhava-lhe na pele do queixo.

- Parece-me não haver vantagem em esconder que o Conselho chegou à decisão de que a única solução para o problema de Anacreon se encontra no que nos será revelado, quando o Cofre for aberto daqui a seis dias.

- É essa a sua contribuição para o assunto?

- É.

- Se o entendo, devemos então continuar inertes, exceto aguardar serenamente e de boa fé, que o "Deus ex-machina" salte de dentro do Cofre.

- À exceção da sua fraseologia emotiva, é essa mais ou menos a idéia.

- Que falta de coragem! Na verdade, Dr. Fará, tal loucura é quase genial! Um cérebro inferior seria incapaz de concebê-la!

Fará novamente sorriu, indulgente. - O seu gosto irônico é muito bom, porém encontra-se fora de lugar. Deve lembrar-se de meu raciocínio acerca do Cofre, tal como exposto há três semanas.

- Lembro-me muito bem. - Não nego que não passava de uma idéia estúpida, do ponto de vista de lógica dedutiva. O senhor disse - interrompa-me quando eu me enganar – que Hari Seldon era o maior psicólogo do Sistema; daí, que ele poderia ter previsto o beco sem saída em que nos encontramos; finalmente, que poderia ter concebido o Cofre, como método de nos indicar a única saída.

- É essa a essência da idéia.

- Talvez então lhe agrade saber que dediquei parte dos meus pensamentos a esse assunto, nestas últimas semanas.

- Muito lisonjeiro; qual foi o resultado?

- Que a idéia necessita de um mínimo de senso comum.

- Por exemplo?

- Por exemplo, se este assunto de Anacreon foi previsto, por que não fomos nós colocados num planeta mais perto dos grandes centros da Galáxia? Já é do conhecimento comum que Seldon levou os Comissários de Trantor a estabelecer a Fundação em Terminus. Mas por quê? Por que pôr-nos aqui se já eram previstas as interrupções nas linhas de comunicações, o nosso isolamento do resto da Galáxia, a falta de metais em Terminus? Isso acima de tudo! Ou, se na verdade previu tudo, por que não avisou os primeiros colonizadores, de modo a que tivessem tempo de se prepararem, ao invés de esperarem pelo dia do juízo (como está sucedendo atualmente)?

- E não se esqueçam do seguinte: Mesmo que ele tenha previsto o problema naquela ocasião, isso não implica que nós não o possamos ver ago;a Bem analisadas as coisas, Hari Seldon não era um mago. Não existem truques para nos evadirmos de um dilema que ele tenha previsto, e nós não.

- Hardin, a verdade é que não conseguimos!

- Mas nem sequer tentaram! Primeiramente, recusaram-se a admitir a existência de uma ameaça! Depois depositam confiança cega no Imperador! Agora, transferiram-na para Hari Seldon! Confiem um pouco em vocês próprios!

Os seus punhos cerraram-se convulsivamente. - É quase doença - um reflexo condicionado que deixa de lado a independência de seus cérebros, quando se trata de se oporem á autoridade. Parece não haver dúvida no espírito de vocês, de que o Imperador é mais poderoso do que vocês, ou que Hari Seldon é mais sábio; não vêem que está tudo errado?

Ninguém se preocupou em lhe responder.

Hardin continuou: - Mas vocês não são os únicos. O Dr. Pirenne ouviu a dissertação de Lorde Dorwin sobre o que pensava que fosse a pesquisa científica. Lorde Dorwin acha que a única maneira de se ser um bom arqueólogo é ler todos os livros sobre a matéria - escritos por Homens que morreram há séculos. Acha ele que a única maneira de solucionar quebra-cabeças arqueológicos é avaliar duas autoridades da mesma matéria, que se oponham. Pirenne ouviu-o, e não fez qualquer objeção. Não conseguem ver o que há de errado nisso?

- E mais de metade de Terminus está na mesma. Sentamo-nos, e cogitamos sobre o grande Todo da Enciclopédia. Consideramos que a grande finalidade da ciência é a classificação de minúcias ultrapassadas; é importante sim, mas não haverá trabalho mais para além? Aqui na Periferia, a energia atômica perdeu-se. Em Gama Andrômeda, uma geradora explodiu, em virtude de péssima reparação, e o chanceler do Império queixa-se de que os técnicos são escassos. E a solução? Treinar novos contingentes? Não! Tornam a energia atômica ainda mais limitada.

- Não vêem que o mal se propaga por toda a Galáxia? E uma adoração do passado. É a deteriorização - a estagnação!

Olhou-os um por um enquanto eles, por seu turno, o olhavam fixamente.

Fara foi o primeiro a recompor-se: - A filosofia mística não nos vai ajudar. Sejamos, portanto, realistas. Poderá negar-se que Hari Seldon possa ter determinado a trajetória histórica do futuro por simples técnica psicológica?

- Claro que não ! - gritou-lhe Hardin. - Mas não podemos aguardar sua solução. Quando muito, ele pode indicar-nos o problema, mas quanto á sua solução, teremos nós de descobri-la; ele não o poderia fazer por nós.

Fulham interrompeu: - Onde quer chegar com esse... mostrar o problema?... Nós já conhecemos o problema!

Hardin voltou-se para ele. - Acha que sim? Parece-lhe que a única preocupação de Seldon tenha sido Anacreon? Eu, de minha parte, discordo! Afirmo, que nenhum de vocês tem a mínima noção do que está acontecendo!

- E o senhor? - interrogou Pirenne com alguma hostilidade.

- Acho que tenho! - Hardin levantou-se e afastou a cadeira; seu olhar estava frio e fixo. - Se algo de definido é o mau cheiro que tresanda de toda a situação, há qualquer coisa maior do que tudo isto. Que cada um de vocês se interrogue: - Por que não foi incluído um psicólogo entre a população primitiva da Fundação? O único foi Bor Alurin, e esse não ensinou aos seus discípulos mais do que os princípios básicos.

- Muito bem. Diga-nos por que.

- Talvez por que um psicólogo tivesse imediatamente dominado a situação – depressa demais para o gosto de Hari Seldon. Assim, temos caminhado ás cegas, visualizando aqui e ali névoas da verdade, e nada mais. Era isso que Hari Seldon desejava!

E terminou com uma gargalhada vitoriosa. - Bom-dia, meus senhores!

O silêncio que o seguiu até à porta foi quase triunfal.

 

Hardin mascava a ponta de seu charuto que estava apagado, porém o Prefeito da cidade de Terminus não o notava. Passara a noite anterior em claro, e tinha a sensação de que na noite seguinte sucederia o mesmo. Os seus olhos demonstravam-no bem.

- Julgo que é tudo - disse com ar cansado.

- Creio que sim - respondeu Yohan Lee. - Que tal parece?

- Nada mau. Tem de se ser imprudente, ou seja, não poderá haver hesitações. É necessário não lhes dar tempo para compreenderem a situação; uma vez na posição de comando, faça-o com naturalidade, como se fosse a única coisa que tivesse feito desde que nasceu, e eles obedecerão por instinto. É essa e essência do golpe.

- Se o Conselho se mostrar irresoluto...

- O Conselho? Não conte com ele! Depois de amanhã, a sua importância como fator preponderante em Terminus cessará de nada valerão.

Lee concordou silenciosamente. - Mesmo assim, parece incrível que nada tenham feito para fazer cessar nossa atividade. Tem a certeza de que nada sabem?

- Fara é o único que desconfia. Às vezes fico nervoso; Pirenne desconfia de mim, desde que fui eleito Prefeito, verdade seja dita, jamais algum deles teve a capacidade de compreender o que realmente se passava. Todo o seu treino é um fracasso. Estão seguros que o Imperador, por ser Imperador, é todo poderoso. E a mesma crença se aplica ao Conselho Administrativo que, por atuar em nome do Imperador, pensa que jamais deixará de estar numa posição de comando; sua incapacidade de reconhecer a possibilidade de revolta é a nossa melhor aliada.

Hardin levantou-se e foi beber água: - Como indivíduos não são maus, Lee, conquanto não se afastem muito de sua Enciclopédia e, depende de nós que eles ocupem esse lugar, futuramente. Quanto ao governarem Terminus, são de uma incompetência total. Bom, vai-se embora e comece a pôr as coisas em movimento; apetece-me ficar só. - Sentou-se de novo em sua mesa, e ficou olhando fixamente o copo de água. Pelo Espaço! Se na verdade conseguisse estar tão confiante como pretendia! Os Anacroneanos chegariam dentro de dois dias, e ele nada possuía além de vagas noções sobre a finalidade que Hari Seldon estabelecera, havia 50 anos. Nem sequer conhecia o suficiente de psicologia – seu treinamento fora curto, demasiado curto para tentar sequer adivinhar o que se teria passado no cérebro do maior pensador daquele século. Ah, mas se Fará tivesse razão; se fosse Anacreon o único problema que Hari Seldon previra; se a Enciclopédia fosse tudo o que ele se interessasse por conservar - qual seria então o preço daquele golpe de estado?

Encolheu os ombros, e bebeu o seu copo de água.

 

No Cofre, havia muito mais do que seis cadeiras, como se tivessem sido esperadas mais de seis pessoas. Hardin notou-o, e sentou-se pensativo e cansado a um canto, o mais longe possível dos outros cinco.

Os membros do Conselho pareceram não se importar muito com essa distribuição. Entre os cinco, falava-se em murmúrios, escapando-se de vez em quando algum monossílabo sibilante, seguido imediatamente de silêncio.

De todos eles, Jord Fara parecia o mais tranqüilo; tirara o seu relógio, e olhava o mostrador com ar sério.

Hardin, por seu turno, viu também as horas para concentrar em seguida a atenção sobre o cubículo de vidro - completamente vazio - que dominava metade da sala; era a única inconveniência daquela sala, pois não havia qualquer indicação de que, em determinado local, uma partícula de rádio se desfazia a caminho, no momento preciso em que um manipulo cairia, estabelecer-se-ia uma ligação e...

As luzes se apagaram! Não completamente, mas tão de repente que Hardin deu um salto. Volveu os olhos para as luzes do teto, admirado, e quando os baixou de novo, o cubículo envidraçado já não estava vazio.

Ocupava-o, agora, um homem - um homem numa cadeira de rodas!

Durante alguns instantes imperou o silêncio, porém o indivíduo fechou o livro que tinha sobre os joelhos, e as suas mãos acariciaram-no, a boca abriu-se-lhe num sorriso que lhe iluminou o rosto.

- Sou Hari Seldon. - Sua voz era calma, tranqüila.

Hardin quase se levantou para cumprimentá-lo, tão vivida era a imagem.

A voz continuou em tom de conversa: - Como vêem, estou preso a esta cadeira de rodas e não posso levantar-me para cumprimentá-los. Há alguns meses seus antepassados partiram para Terminus, e desde então minha doença obrigou-me a esta cadeira. Não consigo vê-los, de modo que não sei quantos de vocês aí estarão; de qualquer modo, esta reunião será conduzida de maneira pouco formal. Se houver alguém que esteja de pé, faça o favor de se sentar, e se quiserem fumar, não vejo inconveniente. Sorriu de leve e prosseguiu: porque me haveria de importar? Na realidade não estou aqui.

Hardin procurou um charuto, distraído.

Hari Seldon afastou de si o livro - como se o pusesse sobre qualquer mesa a seu lado - e o livro desapareceu.

- Há 50 anos que esta Fundação foi estabelecida - 50 anos em que todos os da Fundação ignoraram o fim para o qual trabalhavam; essa ignorância era imperiosa, porém agora deixou de sê-lo.

A Fundação Enciclopédica, para começar, é, e sempre foi, uma fraude!

Em redor de Hardin houve várias exclamações, todavia este nem sequer se virou para ver de onde partiam.

Hari Seldon continuava imperturbável como seria de esperar: - Uma fraude, no que respeita ao interesse que eu e todos os meus colegas temos, quanto à publicação dos volumes; é-nos total e completamente indiferente. Serviu a sua finalidade desde que, através dela, conseguimos do Imperador uma carta de autorização, os indivíduos, uma centena de milhar, de que necessitávamos para a organização do nosso plano, e conseguimos mantê-los ocupados enquanto os acontecimentos evoluíam, até que fosse demasiado tarde para recuarem.

- Nos 50 anos em que todos trabalharam neste projeto fraudulento -não há necessidade de amenizar as palavras - foi-lhes cortada a retirada, de modo a não terem alternativa senão prosseguirem com o plano que traçamos, e que é sumamente mais importante.

- Para esse fim, escolhemos este planeta e em tal hora para que, dentro de cinqüenta anos, os acontecimentos lhes toldassem toda a liberdade de ação. Daqui por diante, através dos séculos o caminho que seguirão é inevitável. Serão postos à prova por uma série de crises, do mesmo modo que agora encaram a primeira delas, e de cada vez a liberdade será tão restrita como agora, de modo a serem forçados a seguir ao longo de um caminho único. Esse caminho foi determinado pela psicologia - e por uma razão.

- Através dos anos a civilização Galáctica estacionou apesar de poucas pessoas o terem compreendido mas, agora finalmente, a Periferia rompe os vínculos e a unidade política do Império rompe-se também. Em alguma parte, nos cinqüenta anos que acabam de passar, os historiadores do futuro colocarão uma linha de arbítrio e dirão: aqui tem início a Queda do Império Galáctico.

- E terão razão apesar de serem poucos os que reconhecerão essa queda nos séculos mais próximos.

- Depois da queda surgirá inevitavelmente o barbarismo, um período que, segundo os nossos psicohistoriadores, sob circunstâncias vulgares durará trinta mil anos. Não podemos suster a Queda e não o desejamos fazer. A cultura do Império perdeu todo o valor e virilidade que já teve. Mas podemos, sem dúvida, encurtar o período de barbarismo que se lhes seguirá - encurtá-lo para mil anos.

- As irregularidades desse corte não poderemos explicar-lhes; pela mesma razão que não podíamos contar-lhes a verdade sobre a Fundação há cinqüenta anos. Pois que, se esses meandros lhes fossem desvendados poderia o meu plano falhar; sem dúvida teria falhado se nós tivéssemos desvendado o segredo da Enciclopédia mais cedo; porque então através do conhecimento a sua liberdade expandir-se-ia e o número de variáveis introduzidas aumentaria a tal ponto que a nossa psicologia não poderia controlá-la.

- Mas nada saberão, pois não existem psicólogos em Terminus e nunca existirão, à exceção de Alurin - e esse era dos nossos.

- 'No entanto, isto posso dizer-lhes: Terminus e a sua Fundação genuína, no outro extremo da Galáxia, são as sementes da Renascença e os futuros fundadores do Segundo Império Galáctico; é a semente que impulsionará Terminus para esse clímax.

- A crise que atualmente enfrentam é evidente, mais simples do que qualquer das que se seguirão. Reduzindo-a a questões básicas trata-se do seguinte. O seu planeta está desligado dos centros ainda civilizados da Galáxia e ameaçado pelos seus vizinhos poderosos. O seu é um mundo de cientistas rodeado de vastos tentáculos de barbarismo, que se expande cada vez mais. São uma ilha de energia atômica, num oceano cada vez mais vasto de uma energia mais primitiva. E, no entanto, são obrigados á inação pela falta de metais.

- Vejam, então, que forçados pelas circunstâncias serão forçados à ação. A natureza dessa ação - isto é, a solução do seu problema é evidente.

A imagem de Hari Seldon estendeu a mão e mais um vez apanhou o livro. Abriu-o e disse:

- Qualquer que seja o caminho que a sua história futura tome, devem incutir nos seus descendentes que o caminho já foi traçado e que, no fim, se encontra um novo e maior Império!

Os seus olhos voltaram-se para o livro e a sua figura desapareceu quando as luzes novamente se acenderam.

Hardin levantou o olhar para encontrar Pirenne de olhos esbugalhados e lábios trêmulos.

A voz do Diretor era firme mas sem tonalidade. - Ao que parece você tinha razão. Se quiser se encontrar conosco às seis horas o Conselho aceitará o seu parecer quanto ao próximo movimento.

Cada um deles veio estender-lhe a mão, antes de partir. Hardin sorriu de si para si. No fundo eram bastante sãos; eram suficientemente científicos para admitir que se tinham enganado mas era já um pouco tarde para eles.

Consultou o relógio. A esta hora tudo devia ter terminado. Os homens de Lee deviam ter tomado o poder e o Conselho já não daria ordens.

Os anacronianos chegariam no dia seguinte, porém isso pouca diferença faria. Dentro de seis meses também eles não dariam mais ordens.

Na realidade, como Hari Seldon adivinhara desde o dia em que Anselm Haut Rodric lhe revelara a falta de energia atômica em Anacreon - a solução da primeira crise era evidente.

Tão evidente que fazia pena.

 

OS PREFEITOS

OS QUATRO REINOS - Nome dado às divisões da Província de Anacreon que se separaram do Primeiro Império, nos primeiros anos da Era Fundacional, para formarem reinos independentes e de curta duração. O maior e mais poderoso deles era o próprio Anacreon, que de área...

...Sem dúvida, o mais interessante aspecto da história dos Quatro Reinos, é o da estranha sociedade imposta sobre eles durante a administração de Salvor Hardin...

Enciclopédia Galáctica

 

Uma deputação!

Embora tenha sido prevista por Salvor Hardin, não era essa previsão que a tornava mais agradável. Pelo contrário, a antecipação contrariava-o. Yohan Lee era partidário de medidas extremas. - Não entendo, Hardin, para que esta perda de tempo. Eles nada poderão fazer até à próxima eleição - legalmente - e isso nos dá quase um ano. Despache-os.

- Nunca aprendes Lee. Em quarenta anos que o conheço, você ainda não conseguiu aprender atacar pela retaguarda.

- Não é essa a minha maneira de lutar.

- Já sei! Suponho que essa seja a única razão porque confio em você. –Interrompeu para ir buscar um charuto. - Nossa jornada foi longa, desde o dia em que planejamos aquele golpe contra os Enciclopédicos. Estou ficando velho; sessenta e dois anos. Alguma vez você pensou na rapidez com que se passaram estes trinta anos?

- Eu tenho sessenta e seis e não me sinto velho.

- Lembre-se que não tenho a sua disposição. - Hardin aspirou lentamente a fumaça do charuto; há muito deixara de desejar o suave tabaco de Vega, que tanto lhe agradara na sua juventude. Esses dias em que o planeta Terminus traficava com todas as partes do Império Galáctico pertencia já à era para onde vão aqueles belos dias que fazem parte do passado. Para os mesmos tempos, caminhava já o Império Galáctico. Ficou imaginando quem seria o novo Imperador - se continuasse a existir Imperador - ou Império.

Espaço! Há trinta anos! Desde a interrupção das comunicações aqui no extremo limite da Galáxia, que todo o universo de Terminus consistira apenas no próprio Terminus e nos quatro reinos circunvizinhos.

Como os poderosos caíram! Reinos! No passado haviam sido prefeituras, todas parte da mesma província que, por sua vez, havia sido parte dum Estado, o qual por seu turno fora parte de um país, que por si fora parte do todo poderoso Império Galáctico.

E agora que o Império perdera o "controle" das partes mais afastadas da Galáxia, esses pequenos grupos de planetas tornavam-se reinos - com falsos reis e nobres, e guerras a propósito de tudo e de nada; vivendo de maneira patética, entre as ruínas do que fora parte duma civilização. Uma civilização que, pouco a pouco, ia se desintegrando. A energia atômica caía no esquecimento. A ciência confundida com a mitologia - até que surge a Fundação. A Fundação que Hari Seldon havia estabelecido em Terminus para esse fim.

Lee estava à janela, e a sua voz truncou o silêncio de Hardin. - Aí vêm eles, os cachorrinhos, num automóvel último modelo. - Deu alguns passos incertos pela sala, dirigiu-se à porta, e olhou para Hardin.

Hardin sorriu-lhe, e mandou-os sentar-se. - Já dei ordens para que me fossem trazidos aqui em cima.

- Para aqui? Para quê? Você lhes dá demasiada importância! /

- Por que dar importância a todas as formalidades de uma audiência oficial? Estou ficando velho demais para toda essa burocracia. Além disso, a adulação apresenta-se vantajosa quando se trata de jovens - especialmente se não existem compromissos. - piscou para ele. - Sente-se, Lee, e dê-me o seu apoio moral. Vou precisar dele contra este jovem Sermak.

- Esse Sermak - disse Lee gravemente - é perigoso. Tem os seus partidários, Hardin; não o menospreze.

- Foi coisa que nunca fiz - menosprezar um inimigo.

- Prendo-o! Pode acusá-lo de qualquer coisa.

Hardin não tomou conhecimento do último conselho. - Ei-los Lee. -Em resposta ao sinal, a porta abriu-se.

Entraram um a um; a deputação compunha-se de quatro, e Hardin indicou-lhes as cadeiras dispostas em semicírculo, em frente da sua mesa. Os jovens aguardaram que Hardin falasse.

Hardin ofereceu-lhes charutos da caixa que pertencera a Jord Fará, membro do antigo Conselho Administrativo, nos tempos da Enciclopédia. Era ainda um produto do Império, apesar dos charutos serem um produto local. Um por um, com solenidade, os quatro deputados aceitaram charutos, que acenderam como num ritual.

Sef Sermak era o segundo da direita, o mais novo do grupo - e o mais atraente, com o seu bigode louro bem aparado, e os seus olhos profundos de cor incerta. Os outros três, Hardin procurou desconhecê-los; eram todos vulgares. Concentrou toda a sua atenção sobre Sermak, o mesmo Sermak que, no seu primeiro mandato no Conselho da Cidade, deixara todo o corpo representante em pânico; e assim, foi a Sermak que ele se dirigiu:

- Estive particularmente interessado em vê-lo no mês passado. O seu ataque â política externa deste Governo foi maravilhoso.

O olhar de Sermak brilhou. - O seu interesse muito me honra. O ataque pode ter sido ou não eficiente, porém tinha suas razões.

- Talvez. As suas opiniões são pessoais, claro. Mesmo assim o senhor é um tanto quanto jovem.

Secamente: - É uma falha que todos nós apresentamos em dado período da vida. O senhor tornou-se Prefeito da Cidade, com menos dois anos do que eu.

O rapazinho raciocinava - pensou Hardin. - Suponho que me vem consultar sobre o assunto da política externa, que tanto pareceu aborrecê-lo, na Câmara Municipal. O senhor fala pelos seus três colegas, deverei ouvir cada um separadamente?

Houve uma rápida troca de olhares entre os quatro deputados; finalmente, foi Sermak quem começou: - Falo pelo povo de Terminus - um povo que atualmente não é sincera e honestamente representado, pelo conjunto de fantoches a que dão o nome de Conselho.

- Muito bem; por favor continua!

- Indo diretamente ao que interessa, trata-se do seguinte: Nós estamos descontentes...

- Quer referir-se ao povo, com esse Nós?

Sermak olhou-o com hostilidade, pressentindo uma armadilha, e respondeu friamente.

- Quero crer que os meus pontos de vista refletem os da maioria de Terminus; agrada-lhe essa definição?

- Uma afirmação dessas necessita de provas. Mas, por favor, prossiga. Estão descontentes?

- Sim, descontentes com a política que vem, há trinta anos, usurpando a Terminus toda possibilidade de defesa contra um ataque externo.

- Continue, continue!

- É bom que seja avisado antecipadamente pois que, em virtude dos fatos, decidimos formar um novo partido político, que defenda os interesses mais imediatos de Terminus, ao invés desse partido místico que apregoa um Império futuro. Vamos batalhar contra o senhor e contra todos os outros apaziguadores - e isso, bem depressa.

- A não ser que! Há sempre uma cláusula condicional.

- A cláusula, neste caso, nada significa; a não ser que se demitam imediatamente. Não peço uma mudança de política - não confio nos senhores; suas promessas de nada valem. A única coisa que aceitamos é a demissão.

- Sim senhor; é esse então o ultimato. É gentil de sua parte avisarem-me, todavia vou ignorar o aviso.

- Não o tome como um simples aviso, mas sim como uma declaração de princípios e de ação. O novo partido já está formado, e iniciará amanhã suas atividades oficiais. Não existe limite e nem o desejo para contemporização e, para falar com franqueza, foi unicamente por reconhecermos os seus serviços para com a nossa cidade, que decidimos dar-lhe esta saída. Jamais pensei que o senhor a aceitasse, contudo queira tranqüilizar minha consciência. A próxima eleição será uma maneira muito mais eficaz de forçá-los a pedir demissão.

Levantou-se, e os outros o imitaram.

Hardin ergueu o braço. - Um momento. Sentem-se!

Sef Sermak voltou a sentar-se, e Hardin, sorrindo por detrás de uma máscara de seriedade, adivinhou que o outro esperava desesperadamente uma contraproposta.

- Explique-se com fidelidade, qual a alteração que desejam na nossa política externa. Desejam que ataquemos imediatamente os Quatro Reinos?

- Não sugerimos nada desse gênero. A nossa proposta tende somente ao cessar de todo o apaziguamento. Toda sua administração política predominante foi a de auxílio científico aos Reinos. Ofereceu-lhes a energia atômica; ajudou a reconstrução de geradores por todos os territórios. Criou clínicas médicas, laboratórios de produtos químicos e fábricas.

- Quais são então as suas objeções?

- Tudo isso foi feito para que eles não nos atacassem. Com essas ofertas, foi-os comprando; é um caso de chantagem, e Terminus está quase sucumbido - com o resultado de estarmos agora à mercê desses bárbaros.

- Como?

- Porque lhes deu poder, armas, chegou ao ponto de lhes reparar as naves, de modo que eles se encontram hoje muito mais fortes do que o eram há trinta anos. As suas exigências aumentam diariamente, e com as armas que possuem, satisfarão de uma.vez por todas essas exigências, dominando Terminus pela força. Não é assim que a chantagem chega ao fim?

Hardin observava com um interesse, quase mórbido, o pequeno bigode louro de Sermak.

O outro sentia-se seguro de si, ou jamais falaria tanto. Não restava dúvida que suas afirmações refletiam as de uma grande parte da população.

Sua voz não traiu seus pensamentos, e foi quase negligentemente que Hardin inquiriu:

- Terminou?

- No momento, é tudo.

- Já reparou numa frase emoldurada que se encontra na parede, por detrás de mim? Então leia-a!

- A violência é o último refúgio dos incompetentes - riu-se. - Essa é uma filosofia de velhos.

- Apliquei-a quando tinha a sua idade, meu caro Conselheiro - e com êxito; por esse tempo o senhor ainda não havia nascido, mas é possível que lho tenham ensinado na escola.

Olhou Sermak atentamente, e continuou em tom comedido: - Quando Hari Seldon estabeleceu a Fundação, foi com a ostensiva finalidade de produzir uma grande Enciclopédia, e durante cinqüenta anos fizemos tudo isso, antes de conseguirmos descobrir o que ele na verdade almejava. Nessa época, já era tarde demais. Quando as comunicações com as regiões mais centrais do Império foram cortadas, descobrimo-nos num mundo de cientistas, concentrado numa única cidade, sem possuir indústrias, e cercados por reinos recém-formados e hostis, e em grande parte, bárbaros. Nós éramos uma ilha de energia atômica, num vasto oceano de barbarismo e, portanto, uma presa valiosa.

- Anacreon, atualmente o mais poderoso dos Quatro Reinos, exigiu e chegou a estabelecer uma base militar em Terminus, antes que os governadores da Cidade, os Enciclopedistas, compreendessem que essa ação antecedia a ocupação total de Terminus. Era assim que estavam as coisas antes de assumir o Governo. Que fariam os senhores em meu lugar?

Sermak encolheu os ombros. - A pergunta é acadêmica. Claro que eu já sei como o senhor agiu.

- Mesmo assim, permita-me repetir-lho: A tentação de reunir a pequena força de que dispúnhamos e combater, era grande. Era a solução mais simples, e a mais digna - mas, invariavelmente, a mais estúpida; era isso que vocês fariam com todo esse sermão de atacar primeiro. Ao invés, o que eu fiz, foi visitar os outros três reinos, um por um; apontei a cada um deles a desvantagem de deixar nas mãos de Anacreon o segredo da energia atômica; sugeri-lhes, então, que fizessem a única coisa que poderia ser feita em caso semelhante. Foi tudo. Um mês após as forças Anacreonianas terem desembarcado, o rei recebeu um ultimato de seus três vizinhos, e sete dias depois Anacreon deixava Terminus.

- Digam-se agora: onde estava a necessidade de violência?

O jovem conselheiro olhou para a ponta do seu charuto, pensativa-mente, antes de depositá-lo no cinzeiro. - Não consigo descobrir a analogia. A insulina consegue trazer de volta um diabético á normalidade, porém uma apendicite necessita de intervenção cirúrgica. Não há nada a fazer. Quando todas as outras coisas falham, o único recurso é esse último recurso a que o senhor se refere. Empurraram-nos para ele.

- Ah sim, novamente essa minha política de apaziguamento. Parece-me que ainda não conseguiu apreender as necessidades fundamentais de nossa posição. O nosso problema não se resolveu pura e simplesmente com a partida de Anacreon. Esse foi apenas o início. Os Quatro Reinos eram, mais que nunca, nossos inimigos, pois cada um deles desejava para si o uso exclusivo da energia atômica - e cada um deles se manteve afastado tão-só de receio dos outros três. Equilibramo-nos durante muito tempo na ponta de uma espada afiada, e o menor desvio em qualquer das direções... Se, por exemplo, um dos reinos se tornasse poderoso demais, ou se dois deles formassem uma aliança - entende?

- Decerto. Essa era a hora de começarmos a nos preparar para a guerra.

- Pelo contrário. Essa era a hora de evitarmos a guerra a todo o custo. Joguei-os uns contra os outros, e auxiliei cada um por seu turno. Ofereci-lhes ciência, comércio, educação e medicina científica. Tornei Terminus mais valioso como uma fonte de bem-estar do que como objetivo militar. Vem surtindo efeito há trinta anos para cá.

- Sim, mas foi forçado a prestar essas ofertas científicas, no meio do maior disfarce. - Fez disso quase uma religião, para não falar mesmo de uma verdadeira religião; surgiu uma hierarquia de sacerdotes, e um complicado ritual sem qualquer significado.

Hardin franziu a testa. - E que tem isso? Não vejo o que isso apresenta de importante para a nossa discussão. Comecei assim, porque alguns dos bárbaros olhavam a nossa ciência como uma espécie de magia, e assim foi mais fácil que eles a aceitassem nessa base. O sacerdócio criou-se a si mesmo, e se o ajudarmos, conseguiremos o nosso objetivo com um mínimo de resistência. É de pouco interesse, portanto, esse assunto.

- Mas esses sacerdotes têm a seu cargo os geradores de energia; acho que isso tem mesmo muito interesse.

- É verdade; mas também é verdade que fomos nós quem os treinamos. O conhecimento da matéria com que trabalham é empírico, e acreditam piamente em toda a mentira que os cerca.

- E se um deles conseguir romper esta máscara, e se tiver capacidade suficiente para pôr de parte o empirismo, o que é que impedirá de aprender as verdadeiras técnicas, e de se vender ao que melhor pague? A que alto preço pagaremos então esta nossa valorização?

- Há poucas possibilidades de que isso aconteça, Sermak. Não seja superficial. Os melhores homens nos planetas dos Quatro Reinos são para cá enviados, uma vez por ano, para serem educados no sacerdócio; e os melhores entre eles aqui ficam, como estudantes. Se acha que os demais, sem conhecimento prático das ciências mais elementares, ou pior ainda, com a aprendizagem deficiente que recebem todos os sacerdotes, podem penetrar de um salto nos segredos da energia atômica, da eletrônica, teorias de vibração, e não sei o que mais, então deixe-me dizer-lhe que tem uma idéia muito romântica e idiota sobre a ciência. É necessário ter-se um treino que dure uma vida inteira e um cérebro excelente para lá chegar.

Yohan Lee levantara-se durante o discurso, e deixara a sala. Voltara naquele instante, e quando Hardin acabou de falar, Lee inclinou-se para ele e murmurou-lhe algo ao ouvido; depois entregou-lhe um rolo de chumbo. Então retomou o seu lugar, com um olhar hostil a deputação.

Hardin acariciou o rolo, enquanto observava a deputação através das pálpebras semicerradas. Repentinamente, abriu-o com violência, e só Sermak teve o bom-senso de não dar uma rápida olhadela ao papel que de lá caiu.

- Resumindo, cavalheiros, o Governo é da opinião de que sabe muito bem o que está fazendo.

Lia enquanto falava. Havia várias linhas de código sem sentido, cobrindo a página, e três palavras curtas, rabiscadas a um canto, que compunham a mensagem. Absorveu o conteúdo de uma só vez, e atirou o papel no cinzeiro.

- E com isto - disse então - terminamos a nossa entrevista. Foi um prazer conhecê-los. Obrigado por terem vindo. - Apertou a mão de cada um deles cerimoniosamente e deixou-os sair.

Hardin já havia muito tempo que não ria; mas quando Sermak e os seus três silenciosos parceiros saíram do alcance da sua voz, ele riu-se e olhou divertido para Lee.

- Que tal achou desta falsa batalha?

Lee respondeu de mau humor: - Não estou bem certo, se aquele indivíduo estaria blefando. Trate-o com delicadeza, e talvez perca as próximas eleições, tal como ele o diz.

- É muito provável, muito provável se não acontecer nada antes.

- Certifique-se bem para que as coisas não aconteçam de maneira errada. Digo-lhe que este Sermak tem muitos partidários. Suponha que ele não se disponha a esperar até às eleições? Houve um momento em que você e eu conseguimos os nossos objetivos pela maneira mais violenta, apesar de toda sua publicidade contra a violência.

Hardin arqueou uma das sobrancelhas. - Você está muito pessimista, Lee. É singularmente contrariador, ou não falaria de violência. A nossa pequena revolução foi bem sucedida, sem a perda de uma única vida humana, lembra-se? Foi uma medida necessária, posta em ação no momento oportuno, e passou suavemente, sem dor, e quase sem esforço. Quanto a Sermak, o caso apresenta-se bem diferente. Você e eu, Lee, não somos os Enciclopédicos. Nós estamos preparados. Deixe os seus homens seguirem esses jovens, Lee, mas de uma maneira simpática. Não os deixe compreender que estão sendo seguidos - porém mantenha olhos bem abertos.

Lee riu-se, porém com um riso amarelo. - Julgava que eu iria esperar pelas suas ordens? Sermak e os seus partidários já estão sob vigilância há mais de um mês.

- Chegou primeiro, heim? Está bem; a propósito - acrescentou num tom mais moderado - o embaixador Verisof regressa a Terminus; espero que seja por pouco tempo.

Houve alguns minutos de silêncio, até que Lee o rompeu. - Era essa a mensagem? Os acontecimentos já estão se precipitando?

- Não sei. Não lhe posso dizer nada antes de ouvir o que Verisof tem para me contar. Pode ser que tenha razão. Bem analisadas as coisas, deve acontecer antes das eleições. Parece que você ficou levemente mortificado.

- É por não saber como é que as coisas vão suceder. A posição está elevada; talvez alta demais mesmo para você.

- Você também, Brutus? - murmurou Hardin. Depois, falando em voz alta: - Quer isso dizer que vai juntar-se ao Sermak?

Lee sorriu contrafeito. - Venceu mais uma vez. Vamos almoçar?

 

Havia muitas sátiras atribuídas a Hardin - sátiro conhecidíssimo - muitas das quais apócrifas. Afirma-se, no entanto, que em certa ocasião, disse: - Dá resultado ser-se sincero, especialmente se se tem a reputação de um homem sutil.

Poly Verisof servira-se daquele conselho mais de uma vez, pois estava já no décimo quarto ano de suas duplas funções em Anacreon -funções que o faziam às vezes pular como se tivesse os pés nus sobre brasas.

Para o povo de Anacreon ele representava o sumo-sacerdote, representante direto da Fundação o que, para aqueles "bárbaros", era o nó do mistério, e o centro físico da religião que criara - com a ajuda de Hardin - nas três décadas anteriores. Como tal, dispensavam-lhe homenagens que se tornaram horrivelmente fatigantes, pois desprezava, em seu íntimo, o ritual do qual se tornara centro.

Mas para o Rei de Anacreon - o antigo, e o jovem que ocupava naquele momento o trono - ele era o embaixador de uma força que devia, ao mesmo tempo, ser temida e invejada.

Ao todo, era um trabalho difícil, e a sua primeira viagem a Terminus, num período de três anos, apesar do incidente perturbador que a tornara necessária, revestia-se da natureza de um feriado.

E desde que não era a primeira vez que deveria viajar em absoluto segredo, mais uma vez fez uso da sátira de Hardin sobre o evidente.

Pôs os trajes civis - em si um feriado - e embarcou numa nave de passageiros, para a Fundação, em segunda classe. Uma vez em Terminus, fez o seu trajeto através da multidão na estação de desembarque, e ligou para o Palácio do Governo, de um visifone público.

- O meu nome é Jan Smite. Tenho visita marcada com o Prefeito, esta tarde.

A eficiente jovem de voz monótona, do outro lado da linha, fez nova ligação, trocou algumas palavras rapidamente, e respondeu a Verisof, num tom de voz automático:

- O Prefeito Hardin recebê-lo-á dentro de meia hora, e desligou o aparelho.

A partir daí, o embaixador em Anacreon comprou a última edição do jornal da cidade de Terminus, casualmente dirigiu-se ao Parque do Palácio, e leu calmamente página por página todo o jornal, enquanto esperava. Ao fim de meia hora, meteu o jornal debaixo do braço, entrou no Palácio e apresentou-se na antecâmara. Através de todo este processo não foi reconhecido; contudo sua presença era tão imperiosa que ninguém lhe deu a mínima atenção.

Hardin olhou-o e sorriu. - Aceita um charuto? Que tal a viagem?

Verisof aceitou o charuto. - Interessante. Havia um sacerdote na cabina ao lado da minha, que se dirigia para cá, a fim de fazer um curso especial de preparação de sintéticos radioativos - para o tratamento de câncer.

- Mas com certeza não lhes chamou sintéticos radioativos!

- Acho que não. Para ele, era Alimento Sagrado.

O Prefeito sorriu. - Continue.

- Travou uma discussão teológica comigo e fez todo o possível por me arrancar ao meu sórdido materialismo.

- E não chegou a reconhecer o sumo-sacerdote?

- Sem a minha túnica escarlate? Além disso, era Smyrniano. Apesar de tudo, foi uma experiência interessante. É extraordinário, Hardin, como a religião da ciência criou raízes. Escrevi um ensaio sobre o assunto - para meu prazer; não serviria para ser publicado. Tratando do problema sociologicamente parece que quando o velho Império começou a desfazer-se, poderia considerar-se que a ciência como ciência falhara nestes mundos exteriores. Para ser novamente aceita, teria de se apresentar sob um disfarce - e foi precisamente o que sucedeu. É uma beleza (de inferir), especialmente com a ajuda da lógica simbólica.

- Interessante! - O Prefeito pôs os braços por detrás da nuca, e disse repentinamente: - Comece a falar-me da situação em Anacreon.

O embaixador tirou o charuto da boca. - As coisas parecem caminhar mal.

- De outro modo não se encontraria aqui.

- Com certeza que não. Eis a posição. O homem-chave em Anacreon é o Príncipe Regente Wienis. É o tio do Rei Leopoldo.

- Bem sei, porém Leopoldo atingirá a maioridade no ano que vem, segundo me consta. Fará dezesseis anos em fevereiro próximo, penso.

- Sim. - Uma pausa, para depois acrescentar. - Se estiver vivo. O pai do rei morreu em circunstâncias muito suspeitas. Um dardo no peito durante uma caçada; pensaram que foi um acidente.

- Parece lembrar-me de Wienis quando estive em Anacreon, na hora em que os expulsamos de Terminus. Foi antes do seu tempo. Deixe-me ver. Se me lembro bem, era um jovem extremamente moreno, cabelo preto, e com um defeito na vista direita. Tinha o nariz adunco duma maneira engraçada.

- É o mesmo. O defeito e o nariz adunco, ainda lá estão, porém o cabelo agora está branco. É um indivíduo que joga sujo. Felizmente para nós, é o idiota mais egocêntrico de todo o planeta. Julga-se diabolicamente esperto, o que torna a sua loucura ainda mais visível.

- Geralmente, assim é.

- A sua idéia de partir um ovo anda na escala da explosão atômica. Testemunha-o o imposto sobre a propriedade do Templo, que ele tentou impor sobre nós, quando o velho rei morreu há dois anos. Lembra-se?

Hardin acenou pensativamente, e depois sorriu. - Os sacerdotes causaram um enorme burburinho.

- Conseguíamos ouvi-los em Lucreza. Desde então tem sido mais cuidadoso, mas mesmo assim gosta de fazer as coisas pelo lado mais difícil. De algum modo, é pena; sua autoconfiança é ilimitada.

- Provavelmente, uma supercompensação para um complexo de inferioridade. Geralmente os filhos mais novos dos reis sofrem esse mal.

- É o mesmo. Tenho a impressão que ele até espuma pela boca quando pensa em atacar a Fundação. Nem se dá o trabalho de ocultá-lo. A verdade é que sob o ponto de vista militar, ele está apto a fazê-lo e sair-se bem da empresa. O velho rei criou uma esplêndida marinha, e o próprio Wienis não dormiu nestes últimos dois anos. A princípio o imposto sobre o Templo destinava-se a aumentar o armamento, e como isso não deu resultado, já por duas vezes aumentou o imposto de renda.

- Não há revolta?

- Nada de importância. Obediência â autoridade foi o texto de todos os discursos no reino durante anos. Não que Wienis se mostrasse grato pelo favor.

- Pano de fundo eu tenho. Agora conte-me o que aconteceu.

- Há duas semanas, uma nave mercante de Anacreon descobriu a carcaça de um cruzador de batalha da antiga Frota Imperial. Deve ter andado vagando pelo espaço há pelo menos três séculos.

Os olhos de Hardin brilharam de interesse. - Já me haviam falado nisso. O Conselho de Navegação enviou-me uma petição, pedindo que lhes fornecesse a nave para fins de estudo. Segundo me disseram, está em boas condições.

- Em condições demasiado boas - respondeu Verisof secamente. -Quando Wienis recebeu, na semana passada, a sua sugestão de que a nave deveria ser entregue à Fundação, quase teve ataques.

- Ainda não obtive uma resposta dele.

- Nem obterá - a não ser com canhões, segundo ele pensa. Veio ver-me no dia em que deixei Anacreon, e pediu-me para que a Fundação deixasse o cruzador em condições de combate, antes de o entregarem definitivamente à Frota de Anacreon. Teve a audácia de me dizer que a sua nota da semana passada indicava um plano da Fundação para atacar Anacreon. Disse-me que uma recusa de reparar o cruzador seria uma confirmação de suas suspeitas; disse-me que medidas para as defesa de Anacreon iriam ser imediatamente tomadas. As suas palavras exatas são: Forçarem-no a tomar medidas. É por isso que estou aqui.

- Claro que ele espera uma recusa, e seria uma perfeita desculpa - a seu ver - para um ataque imediato.

- Estou vendo, Verisof. Bem, temos pelo menos seis meses, de modo que mande reparar a nave e ofereça-lho com os meus cumprimentos. Ponha-lhe o nome de Wienis, como sinal de nossa estima e afeto.

- Suponho que essa seja a única saída lógica, Hardin, todavia, estou preocupado.

- Com que?

- Afinal, trata-se de um cruzador! Naquele tempo sabia-se construir. A capacidade cúbica é de meia vez a de toda a Frota de Anacreon. Possui detonadores atômicos capazes de destruir um planeta e uma couraça que podia suportar um raio-Q, sem perigo de permitir radiação. E demasiado bom, Hardin.

- Superficial, Verisof, superficial. Nós sabemos muito bem que o armamento que ele atualmente possui chegava para derrotar Terminus, muito antes de podermos reparar o cruzador para nosso uso. Que importa, se lhe dermos também o cruzador? Sabe muito bem que nunca chegaremos a uma guerra.

- Suponho que sim; mas Hardin...

- Então? Por que pára? Continue.

- Escute! Isto já não é bem da minha alçada mas, enfim, tenho lido o jornal, e... - Colocou o jornal sobre a mesa, e indicou a primeira página.

- Que vem a ser isto?

Hardin leu em voz alta: - Um grupo de Conselheiros formam um novo partido político.

- É o que diz; mas o que há por detrás de tudo isso? O senhor está muito mais em contato com assuntos internos do que eu, mas, aqui neste artigo atacam-no de todas as maneiras menos com a violência física. São fortes?

- Bastante! Possivelmente passarão a controlar o Conselho, depois das próximas eleições.

- Não antes? - Verisof olhou Hardin de soslaio. - Há outros métodos de conseguir "controle", além das eleições.

- Confunde-nos com Wienis?

- Não; mas a reparação da nave levará meses e a única coisa certa depois de feita a entrega é um ataque. A nossa cessão será tomada como sinal de fraqueza e a adição do cruzador á Frota de Anacreon dobrará sua força. Ele vai atacar, tão certo como eu ser sumo-sacerdote. Por que dar mais oportunidades? Ou revela o plano da campanha ao Conselho, ou força Anacreon imediatamente á capitulação!

- Usar de força a esta altura? Antes de surgir a crise? É a única coisa que não devo fazer. Existem Hari Seldon e o Plano!

Verisof hesitou e depois murmurou: - Tem então a certeza de que existe um plano?

- Não há nenhuma dúvida. Eu estava presente por ocasião da abertura do Cofre e a gravação de Seldon revelou-o.

- Não é a isso que eu me quero referir, Hardin; contudo não consigo perceber como é que se pode catalogar a História com uma antecipação de mil anos. Talvez Hari Seldon tivesse exagerado. - E perante o sorriso sarcástico de Hardin, continuou: - Você sabe muito bem que a psicologia não é o meu forte.

- Exatamente. Não é de nenhum de nós. É verdade que eu recebi um certo estudo, embora elementar, na minha juventude - o suficiente para saber do que é capaz a psicologia, ainda que não saiba explorar todas as suas possibilidades. Não há dúvida de que Seldon fez mesmo o que programou fazer. A Fundação, como ele diz, foi estabelecida como uma espécie de refúgio científico - um meio pelo qual dever-se-ia conservar a ciência e a cultura do Império moribundo através de séculos de barbarismo que já começaram para que seja reafirmada num segundo Império.

Verisof concordou, embora com alguma dúvida. - Todos sabem que é assim que tudo se deveria passar. Mas será justo arriscarmo-nos tanto? Deveremos arriscar o presente por um futuro incerto?

- Somos obrigados - porque o futuro não é incerto. Foi calculado por Seldon. Cada crise na nossa História foi calculada e assinalada no mapa, dependendo em certa medida do êxito na resolução da crise anterior. Esta é tão-só a segunda crise e só o Espaço sabe que terrível efeito poderia ter o menor desvio.

- É uma especulação um tanto ou quanto vaga.

- Não! Hari Seldon disse, quando da abertura do Cofre, que com cada crise a nossa liberdade de ação se mostraria tão reduzida que só restaria um caminho.

- De modo a manter-nos num corredor?

- Para evitar desvios, sim; porém enquanto houver mais de um caminho a seguir, a crise não chegou. Devemos deixar que os acontecimentos se sucedam por si, e é isso que eu vou fazer.

Verisof não respondeu. Mordiscou o lábio inferior num silêncio embaraçado. Já no ano anterior Hardin discutira com ele o problema - o verdadeiro problema: a maneira de resolver as preparações hostis de Anacreon. E só porque ele, Verisof, falara contra o apaziguamento.

Hardin parecia seguir os pensamentos do seu embaixador. - Seria preferível que eu nunca lhe tivesse falado nisto.

- O que o leva a dizer isso? - perguntou Verisof surpreso.

- Porque agora há seis pessoas que o conheceram - você e eu, os outros quatro embaixadores, Yohan Lee - que têm uma vaga noção do que está por acontecer, e temo que a idéia de Seldon fosse o segredo absoluto!

- Por quê?

- Porque mesmo a avançada psicologia de Seldon deve ter os seus limites. Não poderia jamais cobrir muitas variáveis independentes. Com características individuais jamais ele poderia trabalhar. Do mesmo modo que você nunca poderia aplicar a teoria cinética dos gases a moléculas individuais. Ele trabalhava com multidões, populações de planetas que não possuem um conhecimento antecipado dos resultados de suas ações.

- Receio não compreender.

- Que posso eu fazer? Não tenho conhecimentos psicológicos suficientes para explicar cientificamente o que acabo de dizer. Mas pelo menos uma coisa você sabe: não há psicólogos experientes em Terminus, nem textos matemáticos nos livros de ciências. É evidente que Seldon não desejava que alguém conhecesse antecipadamente os acontecimentos; queria-nos cegos -e tinha razão - de acordo com as leis da psicologia das multidões.

- Como já lhe disse uma vez nunca soube para onde nos encaminhávamos quando expulsei os Anacreonianos. A minha idéia era manter um equilíbrio de poderes e nada mais. Foi só mais tarde que me pareceu ver um esquema dos acontecimentos. - Fiz todo o possível para não atuar de acordo com esse conhecimento. Interferência alteraria completamente o Plano.

Verisof concordou pensativo. - Já ouvi argumentos quase tão complicados como esses nos templos em Anacreon. Como espera descobrir o momento adequado para atuar?

- Já o descobri. Você próprio já admitiu que, uma vez reparado o cruzador, nada há que faça com que Wienis deixe de nos atacar. Não haverá então opção.

- Muito bem. Isso é tudo quanto ao aspecto externo. Deve admitir agora que as próximas eleições verão um novo e hostil Conselho que forçará a ação contra Anacreon. Aí também há opção.

- Sim.

- Assim que desaparecerem todas as opções é porque a crise chegou. Mesmo assim preocupa-me.

Fez uma pausa e Verisof esperou. Vagarosamente, quase com relutância, Hardin continuou: - Tenho a idéia - só uma noção - de que as pressões interna e externa foram planejadas para chegarem simultaneamente. Atualmente poucos meses há de diferença. Wienis provavelmente atacará antes da Primavera e as eleições serão realizadas daqui a um ano.

- Parece então não ter importância.

- Não sei. Pode ser devido a qualquer erro de cálculo ou talvez pelo fato de eu saber demais. Eu tentei jamais deixar que o meu conhecimento influenciasse minhas ações mas sei lá o que se teria passado. E qual o efeito desta discrepância? Há contudo uma coisa que já decidi.

- O que é?

- Quando a crise se apresentar, irei a Anacreon. Quero estar lá. Agora chega, Verisof. Está ficando tarde. Vamos sair e gastar a noite. Quero divertir-me.

- Divirta-se aqui. Não quero que me reconheçam ou já sabe o que este novo partido, desses seus preciosos Conselheiros, diria. Peça um conhaque.

Hardin pediu - mas não demasiado.

 

Nos tempos idos quando o Império Galáctico abraçava toda a Galáxia e Anacreon fora a mais rica de todas as Prefeituras da Periferia, mais do que um Imperador visitara o Palácio do vice-rei em grande gala. E nenhum deles partira sem deixar de experimentar sua habilidade na caça ao Nyak, um pássaro que bem poderia ser considerado uma fortaleza emplumada.

A fama de Anacreon decaíra com o decorrer dos tempos. O Palácio do vice-rei era uma massa em ruínas, á exceção da parte restaurada pela Fundação. Além disso, nenhum Imperador visitava Anacreon havia pelo menos duzentos anos.

Porém a caça ao Nyak continuava a ser desporto real e boa pontaria com arma de dardos continuava a ser a grande qualificação dos reis de Anacreon.

Leopoldo I, Rei de Anacreon - como falsamente se intitulava - Senhor dos Domínios Externos apesar de não ter ainda dezesseis anos, já havia provado sua habilidade. Abatera o seu primeiro Nyak com menos de treze anos; o seu décimo sexto caíra na primeira semana após a subida ao trono. Voltava agora do seu quadragésimo sexto.

- Serão cinqüenta antes de atingir a maioridade - exultava - querem apostar?

Mas cortesãos não fazem apostas quanto á habilidade do Rei. Há sempre o perigo mortal de se ganhar. Como ninguém topasse, o Rei foi mudar de roupa, exultante.

- Leopoldo!

O rei parou ao som da única voz que o faria parar. Virou-se de má vontade.

Wienis achava-se â entrada do seu quarto e olhava furioso o seu sobrinho.

- Mande-os embora - impacientemente - livre-se deles.

O rei fez um sinal e os dois camareiros curvaram-se, e voltaram a descer as escadas.

Leopoldo entrou no quarto do tio.

Wienis observou atentamente o traje de caça do sobrinho.

- Logo você deverá atender assuntos mais importantes do que a caça ao Nyak.

Voltou as costas e caminhou para a sua mesa. Desde que envelhecera para a caça antipatizara-se com tal desporto.

Leopoldo compreendia muito bem a atitude antipática de seu tio e não foi, por isso, sem malícia que começou entusiasticamente: - Devia ter ido conosco hoje, tio. Conseguimos descobrir um dos selvagens de Samia que era um autêntico monstro. Verdadeiramente desportivo. Perseguimo-lo durante duas horas dentro de uma área de cento e vinte quilômetros. Pus-me do lado do Sul - e fez todos os movimentos como se cavalgasse ainda o aerociclo - e atirei-me em mergulho. Apanhei-o debaixo da asa esquerda, o que o enraiveceu. Esperei que ele voltasse a mergulhar e, quando o fez, estava á curta distância, e então...

- Leopoldo!

- Bom! Apanhei-o.

- Estou certo disso. Quer ouvir-me agora?

O rei encolheu os ombros e apanhou uma castanha de Lera que comeu, carrancudo. Não se atrevia a encarar o tio.

Wienis começou sem qualquer preâmbulo: - Visitei hoje a nave.

- Que nave?

- Há só uma nave. A NAVE. A que a Fundação está reparando para a nossa Frota. O antigo cruzador imperial. Fui suficientemente claro?

- Ah! - esse? Como vê tinha razão ao dizer-lhe que a Fundação o repararia se o pedíssemos. É exagero essa sua história de eles nos pretenderem atacar. Se o quisessem para que reparariam a nave? Não faz sentido.

- Leopoldo, você é um idiota!

O rei, que acabara de comer a castanha, corou.

- Vamos ver - a sua ira era quase ridícula - acho que não me deve tratar dessa maneira. Esquece-se que dentro de dois meses atingirei a maioridade.

- Sim, e está em boas condições para assumir as funções reais. Se gastasse metade do tempo em que caça com problemas de administração, eu deixaria a regência imediatamente e com a consciência tranqüila.

- Não me interessa. Nada tem a ver com o caso. O fato é que, apesar de ser regente e meu tio sou eu o rei e você o meu súdito. Não me deveria chamar de idiota e não devia sentar-se na minha presença; não me pediu autorização. Acho que é melhor tomar cuidado - ou tomarei providências imediatas.

O olhar de Wienis estava frio: - Posso dirigir-me a você como Vossa Majestade?

- Pode.

- Muito bem. Vossa Majestade é um idiota.

Os olhos escuros do regente lançavam chispas e o jovem rei sentou-se devagar como que lentamente empurrado. Durante um instante o rosto do regente assumiu um ar de sardônica satisfação, mas logo desapareceu. Os seus lábios grossos abriram-se num sorriso e a sua mão caiu sobre o ombro do rei.

- Não se importe, Leopoldo; jamais deveria falar-lhe daquela maneira. Por vezes, no entanto, torna-se difícil um comportamento com propriedade, quando a pressão dos acontecimentos é tal que - compreende? - Se as palavras eram de conciliação o olhar não se amenizara.

Leopoldo respondeu incerto: - Os assuntos de Estado são tremendamente difíceis. - Pensou, não sem apreensão, se iria ouvir um sermão de pormenores sem significado, sobre o comércio do ano com Smyrno, ou a disputa latente sobre os mundos do Corredor Vermelho.

Wienis falou-lhe outra vez: - Meu rapaz, pensei dizer-lhe isto mais cedo e talvez o devesse ter feito, porém sei que o seu espírito jovem se impacienta com os pormenores áridos da diplomacia.

Leopoldo concordou: - Tem toda a razão.

O tio interrompeu-o com firmeza: - Contudo, atingirá a maioridade dentro de dois meses. Além disso, na época difícil que vamos atravessar você tomará uma parte ativa. Daqui por diante será o rei.

De novo Leopoldo concordou, porém sua expressão era de total incompreensão.

- Vai haver guerra, Leopoldo.

- Guerra! Mas não foi assinada a paz com Smyrno?

- Não é nada com Smyrno, é com a própria Fundação.

- Mas eles concordaram em reparar a nave. O tio disse. As cordas vocais paralisaram-se-lhe ao ver a expressão de seu tio.

- Leopoldo - o tom amistoso desapareceu - devemos falar de homem para homem. Vai haver guerra com a Fundação, que a nave seja reparada ou não; muito mais depressa na verdade em virtude de a nave ser reparada. A Fundação é a fonte do poder. Toda a grandeza de Anacreon, todas as suas naves e cidades, o seu povo e comércio dependem das migalhas que lhes deixe a Fundação. Recordo ainda o tempo em que as cidades de Anacreon eram aquecidas a carvão e combustíveis líquidos. Passemos adiante, nunca poderá imaginar o que isso representava.

- Parece-nos - sugeriu o rei humildemente - que deveríamos estar gratos.

- Gratos! - rugiu Wienis. - Gratos pela miséria que nos resta enquanto que para eles guardam sabe o Espaço o que! - e com que finalidade em mente? Para que um dia possam governar toda a Galáxia?

Sua mão pousou sobre o joelho do jovem e os olhos semicerram-se-lhe. - Leopoldo, você é o Rei de Anacreon. Os seus descendentes e os descendentes, por seu turno, podem vir a ser senhores do Universo - se você tiver o poder que a Fundação guarda só para si!

- Há razão no que me diz. - O olhar brilhou-lhe e empertigou-se na cadeira. – Que direito têm de guardar as coisas só para eles? Não é justo. Anacreon também significa algo.

- Enfim você começa a compreender. E agora, meu rapaz, que fazer se Smyrno decide atacar a Fundação antes de nós e auferir assim todas as vantagens? Quanto tempo pensa que passaria antes de nos tomarmos seus vassalos? Quanto tempo manteria você o trono?

Leopoldo começou a excitar-se. - Pelo Espaço! Tem razão. Devemos ser os primeiros a atacar. É preciso defendermo-nos.

O sorriso de Wienis aumentou ligeiramente. - Além disso, uma vez no princípio do reinado de seu avô, Anacreon chegou a estabelecer uma base militar no planeta da Fundação, Terminus - uma base de importância vital para nossa defesa. Fomos obrigados a abandonar essa base, como resultado das maquinações do cabecilha da Fundação, um sujeito esperto, um estudioso, sem um pingo de sangue nobre nas veias. Compreende, Leopoldo? O seu avô foi humilhado por esse plebeu. Lembro-me bem dele! Pouco mais velho era do que eu quando veio a Anacreon, com o seu sorriso diabólico e cérebro igual ao do próprio demônio - e com o poder dos outros três reinos a apoiarem-no, unidos e em covarde aliança, contra a grandeza de Anacreon.

- Por Seldon! - A sua face congestionou-se e os olhos adquiriram o brilho da embriaguez. - Se eu fosse o meu avô mesmo assim teria lutado.

- Não, Leopoldo. Nós decidimos esperar - lavar a honra em melhor oportunidade. Era a esperança de seu pai antes de sua morte prematura, que ele a... bem, bem... – Wienis virou-se por um momento como que para controlar sua emoção. - Era o meu irmão; mesmo assim se o seu filho fosse...

- Não deixarei de apoiá-lo. Já decidi. É natural que seja Anacreon que destrua esse ninho de víboras e imediatamente.

- Imediatamente não. Primeiro devemos esperar que acabem os reparos do cruzador. O fato de aceitarem reparar a nave prova que nos temem. Os idiotas tentam aplacar-nos mas não vamos desviar-nos do nosso caminho, não é verdade?

O punho de Leopoldo abateu-se sobre a mesa.

- Enquanto eu for Rei de Anacreon isso não acontecerá.

- Além disso devemos esperar a chegada de Salvor Hardin.

- Salvor Hardin! - O rei espantou-se tanto que o seu rosto tomou o ar habitual, que fora substituído por linhas duras durante alguns minutos.

- Sim, Leopoldo. O chefe da Fundação em pessoa virá a Anacreon por ocasião de seu aniversário - provavelmente para nos acalmar com palavras doces. - Mas nada o salvará.

- Salvor Hardin! - O nome fora quase murmurado.

- Tem medo do nome? E esse mesmo, Salvor Hardin, que por ocasião de sua última visita nos obrigou a arrastar-nos no pó. Não se esqueça desse insulto á casa real. Ainda por cima partindo de um plebeu, um rato de esgoto.

- Não, não tenho medo. Não devo ter. Não terei. Pagar-lhe-emos com juros - porém... temo-o um bocado.

O regente levantou-se: - Medo? De que? De que, meu jovem. As palavras morreram-lhe nos lábios.

- Seria uma blasfêmia atacar a Fundação. Quero dizer - fez uma pausa.

- Continue.

Leopoldo sentia-se confuso. - Quero dizer, se existisse na verdade um Espírito Galáctico, talvez ele - ahm! - não gostasse. Não acha?

- Não acho nada - foi a resposta. Wienis sentou-se e a boca torceu-se-lhe num sorriso esquisito. - É com essa história do Espírito Galáctico que enche a cabeça? É o que faz educá-lo com liberalidade. Vejo que tem dado ouvidos a Verisof.

- Explicou-me bastan...

- Acerca do Espírito Galáctico?

- Sim.

- Minha imberbe criança! Verisof ainda acredita nessa fantochada menos do que eu, e eu não lhe dou qualquer crédito. Quantas vezes já lhe inculcaram essas idiotices? E quantas vezes já lhe disseram que tudo isso não são mais do que idiotices?

- Eu sei, porém Verisof afirma.

- Quero que o Verisof seja excomungado. É disparate.

Houve um curto silêncio de rebeldia, até que Leopoldo se recompôs:

- Toda gente acredita nesses disparates, no entanto... Quero dizer, a respeito do profeta Hari Seldon e como ele fez da Fundação uma divulgadora de suas ordens para que num dia muito remoto haja um regresso ao Paraíso Terrestre. E como quem desobedece aos seus mandamentos será destruído por toda a eternidade. Acreditam. Já presidi aos festivais e sei que acreditam.

- Sim, eles acreditam, mas nós não. E pode agradecer que assim seja, pois de acordo com toda essa palhaçada, você é o Rei por direito divino - portanto, você mesmo é semidivino. Muito a propósito. Elimine todas as possibilidades de revolta e assegure cega obediência em tudo. Eis a razão porque deve tomar parte ativa ao ordenar a guerra contra a Fundação. Eu sou apenas regente e bastante humano. Você é o Rei e para eles um semideus.

- Suponho que na realidade não o sou.

- Na realidade não o é - veio a réplica carregada de ironia - mas é para toda gente menos para a gente da Fundação. Compreende? Para todos menos os da Fundação. Uma vez que eles forem destruídos, quem o poderá negar? Pense nisso! - E depois disso seremos nós que operaremos as geradoras dos templos e as naves que voam sem tripulantes, e o alimento sagrado que cura o câncer e todo o resto?

- Verisof disse-me que os únicos que poderiam fazê-lo seriam os que fossem abençoados pelo espírito.

- Verisof disse! Fique comigo, Leopoldo, e não se preocupe com eles. Juntos reconstruiremos um Império - não unicamente o reino de Anacreon - mas outro que compreende os bilhões de sóis da Galáxia. Não será isso melhor do que todo esse palavreado sobre o Paraíso Terrestre?

- Sim.

- Verisof pode prometer-lhe mais?

- Não.

- Muito bem. - A sua voz tornou-se autoritária. - Posso, nesse caso, considerar este assunto como encerrado?

Esperava por uma resposta - e continuou: - Vá-se embora. Descerei mais tarde. Só uma coisa, Leopoldo.

O jovem voltou-se à entrada da porta.

Wienis estava sorridente, porém o olhar mantinha-se firme. - Tenha você cuidado com essas caçadas ao Nyak. Desde o infeliz acidente que vitimou seu pai tenho sempre estranhos pressentimentos quanto a você. No meio da confusão com dardos cruzando-se no ar nunca se está seguro. Fará tudo que eu disser no que respeita à Fundação, não é verdade?

Os olhos de Leopoldo abriram-se de espanto, porém deixaram de fitar o tio - sim, decerto.

- Bem! - observou a figura do sobrinho que se distanciava e voltou para a mesa.

Os pensamentos de Leopoldo ao abandonar a câmara estavam sombrios e cheios de temores. Talvez o melhor fosse derrotar a Fundação e ganhar o poder de que Wienis falava. Contudo, depois quando a guerra terminasse e ele estivesse seguro no trono... tornou-se consciente do fato de que Wienis e os seus dois arrogantes filhos eram, em linha direta, pretendentes ao trono.

Mas ele era Rei. E os reis podiam condenar á morte.

Mesmo tios e primos.

 

A seguir a Sermak, Lewis Bort era o mais ativo na colheita de elementos dissidentes que se fundiam agora no barulhento Partido de Ação. Não fizera, no entanto, parte da deputação que visitara Hardin no ano anterior. Não era por falta de merecimento; pelo contrário. Estivera presente na capital de Anacreon nessa data.

Tinha-a visitado como simples cidadão. Não viu qualquer oficial e não fez nada de importância. Entreteve-se a bisbilhotar nos cantos mais obscuros do planeta.

Voltou a Terminus numa tarde de Inverno e uma hora depois sentava-se á mesa de Sermak.

Suas primeiras palavras não foram calculadas para melhorar a atmosfera de unia reunião já consideravelmente deprimida pelo anoitecer.

- Temo - disse - que a nossa opinião se defina em fraseologia melo dramática como uma "Causa Perdida".

- Acha que sim? - perguntou Sermak, sombrio.

- Já ultrapassou tudo o que se possa pensar, Sermak. Não há espaço para qualquer outra opinião.

- Os armamentos - iniciou Dokor Walto, um tanto ou quanto oficioso, porém Bort interrompeu-o.

- Esqueça isso, é uma história antiga. - Deixou o olhar percorrer todo o círculo. - Refiro-me ao povo. Admito que a minha idéia inicial tenha sido a de tentarmos fomentar uma revolta no palácio e de instalar como rei alguém mais favorável â Fundação. Era uma boa idéia e ainda o é. A única coisa que falha é a impossibilidade de concretizá-la. O grande Salvor Hardin fez tudo para isso.

- Apresente-nos todos os pormenores, Bort - interrompeu Sermak.

- Pormenores! Não há pormenores a serem apresentados! Pensam que é assim simples? Trata-se de toda a situação política de Anacreon. E de toda religião estabelecida pela Fundação. Dá resultado!

- É necessário ver-se para se poder acreditar. Tudo o que aqui se pode ver é um enorme colégio devotado á preparação de sacerdotes e, de vez em quando, num canto obscuro da cidade, um espetáculo especialmente preparado para os fiéis que vêm em romaria. Sobre nós não tem qualquer espécie de efeito. Mas em Anacreon...

Lem Tarki cofiou a barba bem cuidada, e pigarreou. - Que espécie de religião é? Hardin sempre disse que tudo isso não passava de uma diversão criada para que a nossa ciência fosse aceita sem grandes complicações. Lembra-se, Sermak, do que ele nos disse no dia...

- As explicações de Hardin - lembrou-lhe Sermak - não têm qualquer valor objetivo. Mas diz-nos que espécie de religião é, Bort?

- Etnicamente é perfeita. Pouco varia das muitas filosofias do antigo Império. Altos padrões de moralidade e tudo o mais. Desse ponto de vista nada há a criticar-se. A religião é uma das grandes influências civilizadoras da História, e nesse aspecto, aceita-se perfeitamente.

- Tudo isso nós sabemos - interrompeu Sermak impacientemente. -Entre diretamente no que interessa.

- A religião que a Fundação criou e ajudou foi concebida em linhas estritamente autoritárias. O sacerdócio tem todo o "controle" dos instrumentos científicos que oferecemos a Anacreon, porém só aprenderam a utilização desses mesmos instrumentos de uma forma empírica. Acreditam piamente nessa religião, e no valor espiritual do poder que controlam. Por exemplo: há aproximadamente dois meses, um idiota qualquer resolveu mexer na geradora instalada no Templo de Tessaki - uma das maiores. Claro que fez com que explodissem uns cinco quarteirões. Foi considerado uma vingança divina, mesmo pelos sacerdotes.

- Recordo-me. Os jornais trouxeram uma reportagem da história. Não sei é a que ponto quer chegar.

- Então ouça. O sacerdócio forma uma hierarquia, no cume da qual se encontra o Rei. Este é considerado uma espécie de Deus menor. É monarca absoluto, por direito divino, e o povo, e mesmo os sacerdotes, acreditam que assim seja. Não se pode derrubar um rei assim. Estão vendo?

- Só um momento - Walto interrompeu nesta altura. - Que queria dizer com essa observação, de ser Hardin o causador de tudo? Onde é que ele entra na história?

Bort olhou com amargura o seu interlocutor. - A Fundação tem mantido toda esta ilusão com assiduidade. Demos todo o nosso apoio científico por detrás dessa mentira. Não se dá um único festival que o rei não presida, cercado por uma aura radioativa, que lhe banha de luz o corpo, formando uma coroa sobre a cabeça. Quem quer que lhe toque, fica severamente queimado. Pode mover-se de um lado para o outro através da atmosfera, em momentos cruciais, supõe-se que por inspiração do espírito divino. Pode encher o templo de luz, com um simples gesto. Não têm fim os truques que são empregados em seu benefício; e até os sacerdotes acreditam neles, embora eles próprios operem os mecanismos que os desencadeiam.

- Mau! - observou Sermak mordendo o lábio.

- Sinto-me capaz de chorar como a fonte do Parque do Palácio, ao pensar na oportunidade que perdemos. Considerem a situação há trinta anos, quando Hardin salvou a Fundação do domínio de Anacreon. - Na ocasião, o povo não fazia a mínima idéia de que o Império se encontrava em decadência. Cuidaram de quase todos os seus assuntos desde a revolta de Zeônia, mas mesmo depois de rompidas as comunicações e o velho pirata, avô de Leopoldo, ter-se proclamado Rei, nunca chegaram a compreender que o velho Império se desfizera.

- Se o Imperador quisesse, poderia ter retomado o "controle" apenas com dois cruzadores, e com a ajuda da revolução que teria estourado. E nós, nós poderíamos ter feito o mesmo; mas não. Em vez disso, Hardin estabeleceu a adoração dos monarcas. Pessoalmente, não compreendo. Por quê?

- O que faz Verisof? - inquiriu Jaim Orsy. - Houve tempo em que ele foi um Acionista fanático. Que faz ele lá? Também está cego?

- Não sei. Para eles é o sumo-sacerdote. Pelo que sei, atua como conselheiro técnico dos sacerdotes. Mas é um testa-de-ferro.

Fez-se silêncio ao redor da mesa, e todos olharam para Sermak. O jovem chefe do Partido roia nervosamente uma unha; por fim disse em voz alta: - Não me cheira bem!

Mais uma vez olhou para todos os que cercavam a mesa, e disse energicamente : - Hardin não é nenhum parvo.

- Pois parece ser - retorquiu Bort.

- Nunca! Há qualquer coisa que não está correta. Cortar o nosso próprio pescoço tão completa e irremediavelmente requereria uma estupidez sem tamanho. Muito mais do que Hardin poderia jamais possuir, se fosse idiota, o que desde já tenho de negar. Por outro lado a criação de uma religião que não permitisse discórdias internas; por outro lado, armar Anacreon com todas as armas necessárias a uma guerra. Não consigo vislumbrar nada.

- Admito que o assunto seja um tanto ou quanto obscuro, porém os fatos falam por si. Que mais podemos pensar?

- É traição. Está a soldo deles! - exclamou Walto.

Mas Sermak sacudiu a cabeça, impaciente. - Também não se trata disso. Todo este negócio é anormal e sem significado. Diga-me, Bort, ouviu falar num cruzador de batalha, que a Fundação deve reparar, para depois ser usado pela Frota de Anacreon?

- Cruzador de batalha?

- Um antigo cruzador imperial.

- Não; mas isso não quer dizer nada. Os portos são santuários completamente vedados ao público. Nunca se ouve dizer nada sobre a Armada.

- Têm escapado rumores. Alguns membros do Partido já levantaram a questão no Conselho. Hardin nunca o negou. Os seus partidários falaram de difamadores e deixaram a coisa passar em branco. Pode ser que tenha qualquer significado.

- É da mesma espécie que o resto. Se for verdade será loucura. Mas não seria jamais pior do que o resto.

- Suponho que Hardin não tenha em reserva qualquer arma secreta. Isso pode...

- Tem sim. Uma enorme caixa de surpresas da qual, no momento oportuno, sairá um diabo que irá assustar o velho Wienis, até â loucura. A Fundação bem pode encomendar a sua alma se estiver lidando com armas secretas.

- Bem. A questão resume-se nisto: quanto tempo temos ainda?

- É uma boa pergunta. Mas não a faça a mim, que não sei como responder-lhe. A Imprensa de Anacreon nem sequer menciona o nome da Fundação. Nesta altura vem repleta de manifestações que se aproximam, e mais nada. Leopoldo atinge a maioridade na semana que vem.

- Temos então alguns meses; pode ser que nos dê tempo.

- Não dá tempo para nada. Já lhes disse que o Rei é como um Deus. Supõe talvez que ele tenha de fazer discursos de propaganda para que o povo se excite? Supõe, talvez, que ele nos tem de acusar de tentativa de agressão, e todos os demais truques emocionais?

- Quando chegar o momento de atacar, Leopoldo dará uma ordem, e todo o povo lutará. Só isto. Pode ser que ele dê essa ordem amanhã, pelo que sabemos; e vocês podem encher isso de tabaco e fumá-lo.

Todos tentaram falar ao mesmo tempo, e o punho de Sermak abatia-se sobre a mesa, pedindo silêncio, quando a porta abriu e Levi Norast entrou correndo. Subiu as escadas em dois saltos, deixando atrás de si um rasto de neve.

- Vejam bem isso! - gritou, atirando um jornal para cima da mesa. -Os visores não transmitem outra coisa.

O jornal foi aberto e cinco cabeças debruçaram-se sobre ele.

- Grande Espaço! Ele vai a Anacreon! A Anacreon!

- É traição! Walto deve ter razão. Hardin vendeu-nos e vai agora receber o preço que estipulou - chiou Tarki.

Sermak ergueu-se. - Não temos tempo a perder. Vou pedir ao Conselho, amanha, que Hardin seja julgado. E se isso falhar...

 

A neve parara de cair, porém o solo gelado dificultava a marcha do carro, através das ruas desertas. A madrugada estava fria, não só no sentido poético, como no sentido bastante literal - e mesmo no estado turbulento da política da Fundação, ninguém, quer Acionista ou pró-Hardin, se atrevia a sair à rua e iniciar suas atividades naquela hora da manhã.

Yohan Lee não gostava disso, e o seus resmungos tornavam-se cada vez mais audíveis. - Vai parecer muito mal, Hardin. Irão dizer que você fugiu.

- Deixe-os dizer o que quiserem. Quero ir a Anacreon, e quero fazê-lo sem qualquer alarde. Por agora basta, Lee.

Hardin encostou-se no assento estofado do carro bem aquecido, contudo havia qualquer coisa de frígido naquele manto branco que se estendia pelas ruas, mesmo visto através do vidro, que o aborrecia.

- Um dia, quando pudermos, criaremos nós as condições atmosféricas de Terminus. Pode muito bem ser feito.

- Por mim, gostaria de ver outras coisas feitas antes disso. Por exemplo, o condicionamento de Sermak. Uma bela cela, seca, a vinte graus centígrados durante o ano inteiro, é o que ele está pedindo.

- A partir daí é que eu realmente passava a ter necessidade de um guarda-costas. – E olhou para dois dos homens de Lee, sentados ao lado do motorista, olhos firmes percorrendo as ruas vazias, mãos nas armas prontas a disparar.

- Não resta dúvida de que você está querendo começar uma guerra civil.

- Quero? Há muita lenha na fogueira, não havendo necessidade de mais um pouco; essa lhe digo eu. Primeiro: Sermak levantou vôo ontem, na reunião do Conselho, e pediu sua exoneração e conseqüente julgamento.

- Tinha todo o direito de fazê-lo; além disso sua moção foi derrotada por 206 votos contra 184.

- Uma maioria de vinte e dois, quando tínhamos contado com um mínimo de sessenta. Não negue que não vale a pena.

- Foi um erro - admitiu Hardin.

- Está bem. Segundo: depois da votação, os cinqüenta e nove membros do Partido Acionista abandonaram a reunião.

Hardin calou-se, e Lee continuou: - E em terceiro lugar, antes de sair, Sermak gritou que você era um traidor e que ia a Anacreon para receber as trinta peças de prata; que é a maioria da Câmara, ao recusar o voto para sua exoneração, participara da traição e que o nome do seu partido não era em vão Acionista. Que tal lhe parece?

- Alarde, suponho eu.

- E agora foge ao nascer do dia como um criminoso. Deve encará-los, Hardin, - e se for obrigado, declare a lei marcial!

- A violência é ultimo refúgio...

-...dos incompetentes. Bolas!

- Está bem, veremos. Agora, ouça-me com atenção, Lee: há trinta anos o Cofre abriu-se e no qüinquagésimo aniversário do início da Fundação, apareceu uma gravação de Hari Seldon para nos dar uma primeira idéia do que realmente se passava.

- Bem me recordo - Lee recordava-se com um meio sorriso. - Foi no dia em que tomamos conta do Governo.

- É verdade. Foi na época de nossa primeira crise. Esta é a nossa segunda - e daqui a três semanas será o octogésimo aniversário da Fundação. Não lhe parece significativo?

- Acha que ele vai voltar?

- Ainda não terminei. Seldon nunca falou em voltar, compreende, mas parece-me coerente com todo o seu plano. Fez sempre o possível para nos manter na ignorância. Nem há qualquer maneira de se poder afirmar que o fecho do Cofre esteja preparando para se tornar a abrir - a não ser que o desmanchássemos e, provavelmente, estará preparado para se destruir se o tentássemos. Tenho lá estado em todos os aniversários, desde a primeira aparição para o que desse e viesse. Ele nunca apareceu mas esta é a primeira vez, desde então, em que há uma verdadeira crise.

- Então ele virá.

- Talvez. Não sei. Contudo, a questão é esta: na sessão do Conselho de hoje, depois de anunciar que eu parti para Anacreon, anunciará também que, no próximo dia catorze de março, haverá mais uma gravação de Hari Seldon que contém uma mensagem de maior importância, com respeito à crise recente e concluída com êxito. É muito importante, Lee. Não diga mais nada, não obstante as perguntas que fizerem.

Lee olhou-o. - Eles acreditarão em mim?

- Não importa. Criará confusão e é isso que eu quero. Entre o pensarem se é verdade ou não, e o que eu quero dizer se não for - decidirão adiar toda e qualquer ação até depois de catorze de março. Estarei de volta muito antes disso.

Lee parecia cheio de dúvidas. - Mas esse "concluído com êxito" é mentira!

- É mentira, mas serve. Eis-nos no porto!

A nave que os esperava aparecia como uma sombra de névoa; Hardin marchou pela neve e, à entrada, voltou-se com a mão estendida.

- Adeus, Lee. Detesto deixá-lo nesta caldeira, mas não confio em mais ninguém. Cuidado, não salte para dentro do fogo.

- Não se preocupe. Basta o calor da caldeira.,Obedeço às suas ordens. - Deu um passo atrás e a porta fechou-se.

 

Salvor Hardin não se dirigiu imediatamente ao planeta Anacreon. Só chegou na véspera da coroação, tendo visitado oito dos sistemas estelares principais, parando só o tempo suficiente para conferenciar com os representantes locais da Fundação.

A viagem deixou-o opressivo e atônito quanto à vastidão do reino. Era como se fosse nada, um ponto comparado com a vastidão incomensurável do Império Galáctico, do qual fora, havia muito, uma parte bem distinta; mas para alguém cujos hábitos de pensamento tivessem sido criados â volta de um único planeta, um pensamento já formado, por si só, a área e a população de Anacreon seriam causa para admiração.

Seguindo de perto as fronteiras da antiga Prefeitura de Anacreon, abraçava vinte e cinco sistemas estelares, seis dos quais tinham pelo menos um planeta habitado. A população de dezenove bilhões, ainda que menor do que nos dias gloriosos do Império, aumentava rapidamente com o aumento de desenvolvimento científico criado pela Fundação.

E foi só então que Hardin compreendeu a grandiosidade dessa tarefa. Naqueles trinta anos só o mundo que formava a capital se desenvolvera. As províncias exteriores possuíam ainda imensas vastidões onde a energia atômica não fora re-introduzida. Mesmo o progresso que fora conseguido podia ter-se tornado impossível se não fosse pelas relíquias deixadas pelo desaparecimento do Império.

Quando Hardin chegou â capital, encontrou todo o comércio paralisado. Nas províncias exteriores ainda havia festas; mas aqui, no planeta Anacreon, não havia um único indivíduo que deixasse de tomar parte nas cerimônias religiosas que anunciavam a chegada da maioridade do seu Rei-deus, Leopoldo.

Hardin conseguira roubar apenas meia hora ao arrasado Verisof, antes daquele seu embaixador ser forçado a correr para um outro festival religioso. Mas, aquela meia hora fora bem aproveitada, e Hardin satisfeito preparou-se para o fogo de artifício daquela noite.

No todo, atuava como um observador, pois não tinha estômago para as tarefas religiosas que teria de enfrentar caso se tornasse conhecida a sua identidade. Assim, quando o salão de baile do palácio se encheu de uma multidão brilhante composta da mais alta nobreza, ele viu-se encostado, quase totalmente ignorado.

Fora apresentado a Leopoldo no meio de muita gente, e a uma distância segura, pois o rei ficava â parte numa grandiosidade solitária e impressionante, cercado pelo brilho mortal de uma aura radioativa. E em menos de uma hora, esse mesmo rei sentar-se-ia sobre um trono maciço feito de uma liga de ródio-irídio com incrustações de pedras preciosas, e então o trono subiria majestosamente, permanecendo suspenso no ar, atravessando depois o espaço que o separava da janela na qual os olhos da multidão plebéia estavam colados; quando vissem o seu rei, gritariam até a histeria. O trono não seria tão maciço, claro está, se não contivesse um motor atômico.

Já passava das onze. Hardin impacientava-se e punha-se nas pontas dos pés, para melhor poder ver. Resistiu ao impulso de subir em uma cadeira, até que por fim viu Wienis que, através da multidão, se dirigia para ele, e descontraiu-se. Wienis avançava lentamente. Quase a cada passo, tinha de parar para dirigir uma palavra amável a um nobre cujo avô teria ajudado o avô de Leopoldo a conquistar o reino, tendo daí recebido o seu título e um ducado.

Finalmente, conseguiu ultrapassar o último par do reino, e chegar até Hardin. A boca torceu-se-lhe num quase sorriso, e os olhos, debaixo das sobrancelhas grisalhas, brilharam-lhe de satisfação.

- Meu caro Hardin - disse em voz baixa - deve estar tremendamente aborrecido, para se recusar a revelar a sua identidade.

- Nada disso, Alteza. Tudo isto é extremamente interessante. Em Terminus não temos nada que se lhe compare.

- Não duvido. Importava-se de vir até ao meu quarto para podermos conversar mais à vontade?

- Com prazer.

De braços dados, subiram os dois ao andar superior, e mais de uma duquesa levantou o "lorgnon", surpreendida, meditando sobre a identidade do aparentemente insignificante estranho, a quem o regente concedia tal honra.

Na câmara de Wienis, Hardin acomodou-se confortavelmente e aceitou com um murmúrio de gratidão o cálice de licor que o regente lhe ofereceu.

- Vinho de Locris, Hardin - disse Wienis - das adegas reais. O genuíno com duzentos anos. Foi preparado ainda antes da Revolução de Zeônia.

- Uma bebida verdadeiramente real - concordou Hardin delicadamente. - À saúde de Leopoldo I, Rei de Anacreon.

Beberam, e Wienis acrescentou, aproveitando uma pausa - e dentro de pouco tempo Imperador da Periferia, e mais além, quem sabe? Talvez a Galáxia volte a unir-se um dia.

- Sem dúvida. Será Anacreon um traço de união?

- Por que não? Com a ajuda da Fundação, a nossa superioridade científica sobre o resto da Periferia seria indiscutível.

Hardin pôs de parte o cálice vazio e disse: - Está bem, à exceção de que a Fundação se comprometeu a auxiliar qualquer nação que lhe peça auxílio científico. Devido aos altos ideais do nosso governo, e à grande finalidade moral do nosso fundador, Hari Seldon, não podemos mostrar favoritismo. Não pode ser evitado Alteza.

O sorriso de Wienis aumentou. - O Espírito Galáctico, para usar o rifão popular, ajuda aqueles que por si se ajudam. Acredito sinceramente que a Fundação, de vontade própria, nunca colaboraria.

- Não quero chegar a tanto. Reparamos para Anacreon o cruzador Imperial, apesar da minha administração de navegação o querer para si para estudos.

- Para estudo! - O Regente repetiu aquelas últimas palavras com ironia. - Sim, mas não o reparariam se eu não tivesse ameaçado com guerra.

- Não estou muito certo disso.

- Estou eu. A ameaça sempre se manteve.

- E continua a manter-se?

- Agora é tarde demais para falarmos de ameaças. - Wienis lançara um rápido olhar ao relógio sobre a sua mesa. - Você, Hardin, já esteve uma vez antes em Anacreon, não esteve? Éramos os dois jovens, então. Mesmo assim, já tínhamos maneiras diferentes de ver as coisas. Você é o que se chama um homem de paz, não é verdade?

- Suponho bem que sim. Pelo menos considero a violência como um meio pouco econômico de atingir um fim. Há sempre melhores substitutos, embora por vezes sejam menos diretos.

- Já ouvi o seu famoso dito: - A violência é o último refúgio dos incompetentes. - E no entanto - o Regente cocou uma orelha, afetando abstração - não me considero exatamente incompetente.

Hardin aquiesceu com delicadeza, e não respondeu.

- E apesar disso - continuou Wienis - sempre acreditei na ação direta. Acredito no abrir caminho para determinado objetivo e segui-lo direto. Tenho ganho muito com esse processo, e espero lucrar ainda mais.

- Eu sei - interrompeu Hardin. - Creio que está abrindo um caminho para você e para os seus descendentes, que conduz diretamente ao trono, considerando a recente e infeliz morte do pai do Rei - seu irmão mais velho - e o estado precário de saúde do próprio Rei. Não está muito bem de saúde, não é?

Wienis acusou o impacto, e a sua voz tornou-se mais áspera. - Talvez seja aconselhável evitar certos assuntos, Hardin. Talvez se considere privilegiado, como Prefeito de Terminus, de fazer algumas observações, mas se é essa a sua idéia, deixe-a de lado. Não me amedronto com palavras. Tem sido minha filosofia que todas as dificuldades desaparecem quando enfrentadas com coragem, e até hoje não dei as costas a nenhuma.

- Não duvido. A que dificuldade especial se recusa a dar as costas neste momento?

- A dificuldade de convencer a Fundação a colaborar. A sua política de paz levou-o a cometer sérios erros, simplesmente por ter menosprezado a ousadia do seu adversário. Nem todos têm tanto medo da ação direta como você.

- Dê-me um exemplo - sugeriu Hardin.

- Você, por exemplo, veio a Anacreon sozinho, e veio até á minha câmara sozinho.

Hardin olhou á sua volta. - E que tem isso?

- Nada - respondeu o Regente - exceto que lá fora há cinco policiais bem armados, e prontos para atirar. Acho que não deve tornar a sair, Hardin.

As sobrancelhas do Prefeito arquearam-se interrogativamente. Não tenho qualquer desejo imediato de partir. Tem assim tanto medo de mim?

- Não tenho medo nenhum. Talvez isto seja uma maneira de o impressionar com a minha determinação. Posso denominar de uma atitude?

- Denomine-a do que quiser - disse Hardin indiferente. - Não vou incomodar-me por causa deste incidente, não obstante os nomes que lhe dê.

- Estou certo de que essa atitude mudará com o tempo. Contudo ainda outro erro, Hardin, e um erro grave. Parece que o planeta Terminus está completamente indefeso.

- Naturalmente. Que temos nós a temer? Não ameaçamos os interesses de ninguém e servimos a todos.

- Enquanto se mantiveram indefesos, amavelmente ajudaram a armarmo-nos, auxiliando-nos especialmente na reconstrução da Armada, uma grande Armada. Falando com sinceridade, agora com a doação do cruzador imperial tornou-se invencível.

- Alteza, está perdendo o seu tempo. - Hardin fez menção de se levantar. - Se quiser declarar guerra, e está amavelmente informando-me do fato, quer ter a gentileza de permitir que eu entre em contato com o meu Governo, imediatamente.

- Sente-se, Hardin. Não estou declarando guerra, e você não vai entrar em contato com o seu Governo, de qualquer forma. Quando a guerra for declarada - não declarada Hardin, mas feita - a Fundação será informada disso a tempo, pelas explosões atômicas da Armada de Anacreon, sob a chefia do meu próprio filho, a bordo da nave Almirante Wienis, outrora cruzador da Armada Imperial.

- E quando irá tudo isso acontecer?

- Se está verdadeiramente interessado, as naves deixaram Anacreon há precisamente cinqüenta minutos, às onze, e o primeiro tiro será disparado assim que avistem Terminus, o que deve acontecer amanhã à tarde. Pode, portanto, considerar-se prisioneiro de guerra.

- É precisamente assim que me considero, Alteza; mas para falar a verdade, sinto-me um pouco desiludido.

- É tudo quanto me tem a dizer?

- Julguei que no momento da coroação - â meia-noite - seria a hora lógica de pôr a esquadra em movimento. Evidentemente que, se quer começar a guerra ainda como Regente, está bem. Seria mais dramático, da outra maneira.

O Regente olhou-o fixamente. - Pelo Espaço! De que é que o senhor está falando?

- Não compreende? - A voz de Hardin estava calma. - Eu tinha preparado minha contra-ofensiva para a meia-noite.

Wienis ergueu-se da cadeira. - Está blefando. Não há qualquer contra-ofensiva. Se conta com o apoio dos outros reinos, o melhor é perder as esperanças. As Armadas deles todas juntas não bastam para enfrentar a nossa.

- Já sei, e não tenciono disparar um único tiro. Simplesmente, há uma semana que dei ordens para que Anacreon, hoje à meia-noite, ficasse sob interdição.

- Interdição?

- Se não compreende, deixe-me explicar-lhe em poucas palavras: quer dizer que, á meia-noite, todos os sacerdotes em Anacreon estarão em greve, a não ser que eu ordene o contrário. Mas não posso fazê-lo porque me encontro prisioneiro; não o faria mesmo que pudesse! - Inclinou-se para o seu interlocutor, e continuou animadamente: - Não compreende, alteza, que atacar a Fundação é o maior sacrilégio que se pode cometer?

Wienis procurava controlar-se. - Não diga isso a mim, Hardin; conserve essas mentiras para as multidões.

- Meu caro Wienis, mas para quem £ que julga que eu faço estas coisas? Há pelo menos um quarto de hora que, em cada templo de Anacreon, há uma multidão ouvindo as exortações dos sacerdotes sobre esse mesmo assunto. Não há um único indivíduo em todo o planeta que, a esta hora, não saiba já que o seu Governo se lançou num ataque vicioso e sem qualquer provocação, contra o centro de sua religião. Faltam apenas quatro minutos para a meia-noite; o melhor que tem a fazer é ir para o salão e observar o desenrolar dos acontecimentos. Eu estarei seguro aqui, com cinco guardas á porta. - Recostou-se na cadeira, serviu-se de mais um cálice de vinho de Locris, e ficou a olhar para o teto, numa atitude de grande indiferença.

Wienis atroou o ar com uma praga, e correu para fora do quarto.

O silêncio caíra sobre a nobreza no salão, enquanto abriam caminho até o trono. Leopoldo estava sentado lá, braços apoiados, cabeça erguida, rosto imóvel. Os enormes candeeiros tinham abrandado a sua luz, e as pequenas luzes multicolores das lâmpadas atômicas, que ponteavam o teto, faziam com que a auréola, que cercava o rei, mais se avolumasse, formando uma coroa de fogo sobre sua cabeça.

Wienis parou no alto das escadas. Ninguém o viu; todos os olhares estavam dirigidos para o trono. Ficou onde se encontrava; cerrou os punhos e esperou; daquela vez, Hardin nada ganharia com o seu blefe.

Naquele momento o trono moveu-se. Sem ruído subiu e pairou no ar. A três palmos do chão ia avançando lentamente para a enorme janela.

Ao som do sino que anunciava a meia-noite parou defronte da janela e a auréola do rei morreu.

Durante um segundo o rei não se moveu, rosto contraído de surpresa, sem a sua luz, um ser meramente humano; o trono vacilou e tombou no chão, com estrondo, enquanto todas as luzes do palácio se apagaram.

Através da confusão que se seguiu ouviu-se a voz poderosa de Wienis, pedindo archotes.

De uma maneira ou outra a sala foi-se lentamente iluminando com os gigantescos archotes que serviram na procissão da Coroação.

Para o salão corriam os guardas com archotes verdes, vermelhos e azuis á luz dos quais se viam rostos amedrontados.

- Não há mal nenhum - gritou Wienis. - Mantenham os seus lugares. A energia voltará dentro de momentos.

Voltou-se para o Capitão da Guarda que o esperava em posição de sentido. - Que se passa, capitão?

- Alteza, o palácio está cercado pelo povo da cidade.

- Que querem.eles?

- Vem à frente um sacerdote que foi identificado como sendo o sumo-sacerdote Poly Verisof. Pede a libertação imediata do prefeito Salvor Hardin e o cessar da guerra contra a Fundação. - O relato foi feito numa voz incolor, mas os olhos demonstravam bem o seu pouco á vontade.

- Se algum desses malditos tentar ultrapassar os portões, mate-o. Nada mais por enquanto. Deixe-os gritar. Amanhã ajustaremos contas.

O salão estava mais uma vez iluminado. Wienis correu para o trono e pôs Leopoldo, pálido e amedrontado, de pé.

- Venha comigo. Olhou uma vez mais para a janela. A cidade estava às escuras. Da rua subiam os gritos confusos da multidão. Só do lado direito onde ficava o templo de Argolid havia luz. Soltou uma praga e arrastou consigo o rei.

Wienis entrou nos seus aposentos como um furacão, seguido pelos cinco guardas.

Leopoldo seguiu-o de olhos amedrontados, incapaz de proferir palavra.

- Hardin - disse Wienis com voz rouca - você joga com forças superiores às suas. O prefeito ignorou Wienis. À luz pálida da lâmpada atômica que ardia a seu lado manteve-se sentado, um sorriso de ironia vincando-lhe o rosto.

- Bom dia, Majestade - disse a Leopoldo. - Quero cumprimentá-lo pela sua coroação.

- Hardin - gritou mais uma vez Wienis - ordene aos sacerdotes que voltem às suas tarefas.

- Ordene você - Wienis - e veja para quem são superiores as forças. Neste momento não há uma única máquina em movimento em Anacreon. Não brilha uma única luz, a não ser nos Templos. Não há uma gota de água exceto nos Templos. Na parte fria do planeta não há calor, exceto nos Templos. Nos hospitais não aceitam mais doentes e os geradores estão fechados. As naves estão impossibilitadas de se mover. Se não estiver gostando da situação, Wienis, ordene aos sacerdotes que voltem ao trabalho. Eu não o faço.

- Pelo Espaço, Hardin, é o que vou fazer. Se isto for o fim que seja. Veremos se os seus sacerdotes são mais fortes do que. o exército. Esta noite todos os templos do planeta estarão sob guarda.

- Muito bem, mas como é que vão ser transmitidas as ordens? Todas as linhas de comunicação no planeta estão interrompidas. O rádio não funciona, a televisão não funciona, e o serviço de ultra-ondas também não. Para ser franco, o único comunicador que funciona em todo o planeta - fora dos Templos, está claro - é o televisor deste quarto e mesmo esse só o arranjei para a recepção..

Hardin continuou perante o emudecimento de Wienis:

- Pode mandar o seu exército forçar a entrada do Templo de Argolid a fim de se pôr em contato com o resto do planeta, através do aparelho de ondas que lá existe. Mas se o fizer esse seu contingente será massacrado e então quem protegerá o palácio e a sua vida, Wienis?

- Podemos resistir, demônio; pelo menos por hoje. Deixe que a multidão urre, e que a energia morra, porém nós havemos de resistir. E quando chegarem as notícias de que a sua Fundação foi tomada, essa sua preciosa turba descobrirá sobre que vácuo assenta a sua religião para a seguir escorraçar os seus sacerdotes e atacá-los. Dou-lhe até amanhã á tarde, Hardin que pode fazer parar a energia em todo o Anacreon, mas nada poderá fazer para impedir a minha Armada. - A sua voz era agora de exultação.

- Vão a caminho, Hardin, com o grande cruzador que você mesmo mandou reparar – á cabeça.

Hardin replicou prontamente: - Sim, o cruzador que eu mesmo mandei reparar - mas a meu modo. Diga-me, Wienis: já ouviu falar numa cadeia de ultra-ondas? Vejo que não. Dentro de aproximadamente dois minutos poderá ver qual o efeito.

O televisor vibrou, e ele emendou: - Não, em dois segundos Sente-se Wienis, e ouça.

 

Theo Aporat era um dos mais categorizados sacerdotes de Anacreon. Era-lhe devida sua nomeação como sacerdote-chefe da nave almirante Wienis. Contudo não era simplesmente uma questão de honra ou de primazia. Ele conhecia bem a nave, pois trabalhara na sua reparação sob as ordens dos homens santos da Fundação. Ele mesmo colaborara quando estes sábios instalaram um aparelho tão sagrado que nunca fora colocado antes em qual quer outra nave. Fora reservado para aquela unidade colossal – a cadeia de ultra-ondas. Não sem de espantar que se sentisse mal quanto ao fim a que se destinava aquela nave. Jamais acreditara no que lhe dissera Verisof - que a nave era um veículo do mal, que suas armas se voltariam contra a Fundação; que se voltariam contra essa mesma Fundação onde ele fora educado na juventude e da qual provinham todas as bênçãos.

Mas agora já não podia duvidar depois do que o almirante lhe dissera.

Como podia o rei, descendente de Deus, permitir um ato tão abominável? Seria o rei culpado? Não seria antes uma ação daquele amaldiçoado Regente Wienis, sem conhecimento do rei. E fora o filho do próprio Wienis, almirante da nave que lhe dissera há cinco minutos:

- Atente para as suas bênçãos e ao descanso das almas, sacerdote, que eu atento para a minha nave.

Aporat teve um sorriso de maldade. Atenderia às bênçãos, mas também ás maldições; e esse príncipe Lefkin, depressa cantaria uma outra ária.

Naquele momento entrara na sala das comunicações gerais. O seu acólito acompanhava-o, e os oficiais da guarda não lhes deram maior importância. O sacerdote-chefe tinha entrada franca em todas as partes da nave.

- Feche a porta - ordenou Aporat, olhando em seguida o seu cronômetro. – Faltavam cinco minutos para as doze. Tudo fora bem planejado.

Com movimentos rápidos, ele moveu todas as pequenas alavancas que abriam as comunicações de modo que, em toda a imensa nave, se vissem e ouvissem sua imagem e sua voz.

- Soldados da nave real Wienis! Ouçam! É o sacerdote quem lhes fala! Sua voz vibrou de extremo a extremo da nave.

- A nave destina-se a um sacrifício. Sem o saber estão atuando de modo a condenar a alma de vocês à eterna frigidez do Espaço! Ouçam! É intenção do almirante levar esta nave até à Fundação, e ali reduzir a pó a fonte de todas as bênçãos, de modo a submetê-la à sua vontade pecaminosa. E desde que é essa a sua intenção, eu, em nome do Espírito Galáctico, demito-o do seu comando, pois não há comando onde for retirada a bênção do Espírito. Nem mesmo o divino rei poderá reinar sem o seu consentimento.

A sua voz assumiu um som cavo, enquanto o acólito o escutava com veneração e os dois oficiais com temor crescente. - E por esta nave se destinar a uma tarefa demoníaca, dela é também retirada a bênção do Espírito.

Levantou os braços, e, perante os mil televisores de toda a nave, os soldados acovardaram-se enquanto que a imagem do sacerdote prosseguia na sua exortação:

- Em nome do Espírito Galáctico e do seu profeta Hari Seldon, e dos seus intérpretes, os santos homens da Fundação, amaldiçôo esta nave. Que os seus televisores fiquem sem imagem. Que suas hélices, como os lemes, se paralisem. Que suas armas, como punhos, percam sua função. Que os seus motores como um coração, cessem de bater. Que suas comunicações, como a sua voz, emudeçam. Que os seus ventiladores, como sua

respiração, desapareçam. Que suas luzes, como a sua alma, se percam no nada. Em nome do Espírito Galáctico assim amaldiçôo esta nave.

Com a sua última palavra, ao bater a última badalada da meia-noite, a mão de alguém, á distância de milhares de anos-luz, no Templo de Argolid, abriu a cadeia de ultra-ondas que, transmitida a velocidade instantânea, abriu outra, controlando assim toda a nave.

E a nave morreu!

Pois é característica principal da religião da ciência, todas as coisas proclamadas poderem ser concretizadas, e maldições como as de Aporat poderem na realidade ser mortais.

Aporat viu a escuridão descer sobre a nave e o cessar imediato do distante ruído dos motores superatômicos. Naquele momento exultou, e da algibeira de sua túnica retirou uma lâmpada que inundou de luz toda a sala.

Olhou os dois soldados que, embora fossem corajosos, torciam-se de joelhos, no extremo de um terror mortal. - Reverência, salve as nossas almas. Somos pobres homens ignorantes dos crimes dos nossos chefes - gemeu um.

- Sigam-me - disse Aporat com severidade. - Ainda não perdeu sua alma.

A nave era um turbilhão de escuridão na qual o terror era quase palpável. Os soldados seguiam onde quer que Aporat aparecesse seguido da sua luz, tentando tocar a sua túnica, pedindo misericórdia.

A sua resposta era sempre a mesma: - Sigam-me!

Encontrou o príncipe Lefkin tentando abrir caminho no meio da escuridão e clamando por luzes. O almirante olhou o sacerdote com ódio.

- Eia! - Lefkin herdara os olhos azuis de sua mãe, mas todas as outras características o denunciariam como filho de seu pai. - Qual é o significado de suas ações traidoras? Devolva a energia â nave; aqui quem manda sou eu.

- Jamais!

Lefkin olhou à sua volta. - Prendam esse homem ou, pelo Espaço, mandarei matar todos os homens que aqui se encontram. - Fez uma pausa e depois gritou: - É o almirante que ordena. Prendam-no!

Depois perdendo completamente a cabeça: - Deixam-se enganar por este palhaço? Sentem covardia perante uma religião composta de nuvens e de raios de lua! Este homem é um impostor e esse Espírito Galáctico de que fala é uma fraude da imaginação com o fim de...

Aporat interrompeu-o furiosamente. - Prendam o blasfemador! Escutam-no com perigo das vossas almas.

E de supetão o nobre almirante caiu agarrado por dezenas de soldados.

- Tragam-no e sigam-me.

Aporat voltou-se, e com Lefkin arrastado, regressou á sala de comunicações. Ali mandou pôr o ex-comandante perante o único televisor que trabalhava.

- Ordena ao resto da Armada que prepare o seu regresso a Anacreon. E Lefkin desgrenhado, batido e sangrando, meio inconsciente assim fez.

- E agora - continuou Aporat com firmeza - que estamos em contato com Anacreon, fale como eu lhe ordeno.

Lefkin fez um gesto negativo, e a multidão de soldados rosnou.

- Fale! Comece: a Armada de Anacreon... Lefkin começou a falar.

 

Reinava um silêncio total nos aposentos de Wienis, quando a imagem do príncipe Lefkin apareceu no televisor. Houve uma exclamação de espanto do Regente, ao ver o uniforme esfarrapado do seu filho, deixando-se em seguida cair numa cadeira com o rosto contraído de surpresa e apreensão.

Hardin escutou atentamente, mãos cruzadas sobre os joelhos, enquanto o Rei Leopoldo se encolhia no canto mais escuro da sala, aterrorizado. Mesmo os guardas tinham perdido toda a postura tradicional, e amontoavam-se junto â porta olhando furtivamente a imagem no televisor.

Lefkin falava com voz cansada e relutante, fazendo freqüentes pausas como se estivesse sendo obrigado.

- A Armada de Anacreon... consciente da natureza da sua missão... e recusando ser parte... de esse abominável sacrilégio... regressa a Anacreon... dando o seguinte ultimato... a esses pecadores blasfemos... que se atreveriam a usar força profana... contra a Fundação... fonte de todas as bênçãos... e contra o Espírito Galáctico. Cessem imediatamente toda a guerra contra... a verdadeira fé... e garantam-nos de maneira a satisfazer a nossa Armada... representada pelo nosso... sacerdote Theo Aporat... que tal guerra nunca será no futuro... retomada, e que - houve aqui uma longa pausa para depois continuar - e que o ex-príncipe Regente Wienis... seja aprisionado... e julgado perante um tribunal eclesiástico... pelos seus crimes. Caso contrário, a Armada Real... ao regressar a Anacreon, reduzirá p palácio a pó... e tomará quaisquer outras medidas... que lhe pareçam necessárias... para destruir esse ninho de pecadores...

A voz terminou com um soluço, a imagem desapareceu da tela.

Os dedos de Hardin acariciaram a lâmpada atômica e a sua luz foi diminuindo até o regente, rei e guardas não serem mais do que sombras; e pela primeira vez se viu a auréola que cercava Hardin.

Era menos brilhante do que a feérica luz que envolvera o rei, e menos espetacular, menos impressionante, mas mais útil e efetiva.

A voz de Hardin era ligeiramente sarcástica ao dirigir-se ao mesmo Wienis que uma hora antes o tinha declarado prisioneiro de guerra, e a Terminus no ponto de destruição, e que agora não passava de uma sombra, aniquilado e silencioso.

- Há uma antiga fábula - disse Hardin - talvez tão antiga quanto a humanidade, pois que os mais antigos arquivos que a contêm são meras cópias de outras ainda mais antigas, que talvez interesse:

- Um cavalo, tendo como inimigo um ferocíssimo lobo, vivia em temor permanente pela sua vida. Tendo chegado ao desespero, ocorreu-lhe a idéia de procurar um aliado forte. Assim aproximou-se de um homem e ofereceu-lhe aliança, frisando que o lobo também era inimigo do homem. O homem aceitou a aliança e prometeu matar o lobo imediatamente, se o seu novo aliado permitisse a utilização da sua maior rapidez. O cavalo aceitou e permitiu ao homem que lhe colocasse um freio e uma sela. O homem então montou-o, caçou o lobo e matou-o.

- O cavalo contente, agradeceu ao homem e disse: Agora que o nosso inimigo está morto, tire-me este freio e sela, e devolva-me a liberdade.

- O homem riu-se e respondeu: - Não me diga isso. Vá andando. E aplicou-lhe as esporas.

O silêncio continuava. A sombra que era Wienis não se moveu.

Hardin continuou então tranqüilamente. - Espero que compreenda a analogia. Na sua ansiedade pela dominação total dos seus povos, os reis dos Quatro Reinos aceitaram a religião da ciência que os tornava divinos; e essa mesma religião da ciência era o seu freio e sela, pois deixava o sangue desse poder nas mãos dos sacerdotes - que recebiam ordens nossas e não de vocês. Vocês mataram o lobo, mas não conseguiram livrar-se do...

Wienis pôs-se de pé num salto, olhar enlouquecido, a voz incoerente. - De você eu me livrarei. Não escapará. Não me importa que nos matem a todos, que destruam tudo, mas você não escapará!

- Guardas! Matem aquele diabo! Matem-no! Matem-no!

Hardin deu uma volta na cadeira de maneira a poder encarar os guardas, e sorriu. Houve um que lhe apontou a arma, para logo baixá-la. Os outros nem sequer se moveram.

Salvor Hardin, cercado por uma tênue auréola, sorrindo de modo tão confiante, perante quem se desfizera todo o poderio de Anacreon, era demais para eles.

Com uma praga Wienis correu para o guarda mais próximo, arrancou-lhe a arma da mão e, apontando-a para Hardin, acionou o gatilho.

O feixe de energia foi absorvido pelo campo magnético que envolvia Hardin, e neutralizado. Wienis continuava a acionar o gatilho, rindo como um louco.

Hardin continuava sorridente; no seu canto, Leopoldo cobria os olhos e gemia.

Por fim, com um grito de desespero, Wienis apontou a arma contra ele próprio, e caiu fulminado no chão.

O rosto de Hardin contraiu-se, e ele murmurou: - Até o fim, um homem de ação direta. O último refúgio!

 

O Cofre estava cheio de gente; o número ultrapassava a sua capacidade.

Salvor Hardin comparou mentalmente esta assistência, com a anterior que esperara a primeira aparição de Hari Seldon, havia trinta anos. Haviam sido apenas seis, os cinco velhos Enciclopédicos, e ele próprio. Fora naquele mesmo dia que ele e Yohan Lee tinham decidido agir.

Agora tudo era diferente sob todos os aspectos. O Conselho da Cidade, em sua totalidade, esperava a aparição de Seldon. Ele próprio continuava a ser o Prefeito, agora todo-poderoso, e desde a queda de Anacreon, muito popular. Quando regressava de Anacreon, com a notícia da morte de Wienis, e dos novos tratados assinados com o atemorizado Leopoldo, fora recebido com um unânime voto de confiança. Quando isto foi seguido em ordem sucessiva, por outros tratados semelhantes, assinados pelos outros três reinos - tratados tais que davam à Fundação plenos poderes a fim de que o caso de Anacreon não fosse repetido - formaram-se procissões em todas as ruas de Terminus.

Nem o nome de Hari Seldon fora jamais tão exaltado.

Tal popularidade ele sentira depois da primeira crise.

Do outro lado da sala, Sef Sermak e Lewis Bort discutiam animadamente, pois os recentes acontecimentos pareciam ter esfriado o seu entusiasmo. Tinham aderido ao voto de confiança, e feito discursos em público, proclamando o seu erro, desculpando-se de certas frases pouco condizentes que tinham empregado em debates anteriores, argumentando que tinham simplesmente seguido o que lhes ditara o seu juízo e a sua consciência - para logo em seguida se lançarem numa nova campanha Acionista. Yohan Lee puxou pela manga de Hardin, e apontou significativamente para o relógio.

Hardin levantou a cabeça. - Olá, Lee. Ainda está contra mim? Que há desta vez?

- Dentro de cinco minutos estará na hora.

- Acho que sim. Da outra vez apareceu à tarde.

- E se ele não vier?

- Quando é que vai parar com essas suas dúvidas? Se não vier, acabou-se.

- Se isto falhar, estaremos metidos em mais outra encrenca. Sem o apoio de Seldon para o que você acabou de fazer, Sermak ficará livre para poder recomeçar. Ele é partidário da anexação dos Quatro Reinos, e expansão imediata da Fundação - pela força se necessário. Já iniciou até a sua campanha.

- Um homem que coma fogo uma vez, deverá comê-lo sempre, mesmo que para isso o tenha de acender. E você deve ter preocupações, mesmo que tenha de matar-se para as arranjar.

Lee teria respondido se não fossem as luzes começarem, naquele momento, a se apagar; levantou o braço para apontar o cubículo de vidro que dominava a sala, e deixou-se cair numa cadeira com um suspiro.

O próprio Hardin endireitou-se, â vista da figura que enchia agora o cubículo – um homem numa cadeira de rodas! Só ele, de todos os presentes, se recordava do dia, passado há décadas, em' que a mesma figura havia aparecido pela primeira vez; o homem da cadeira de rodas, desde então, não tinha envelhecido, enquanto que ele...

O homem inclinou-se para a frente, mãos acariciando um livro sobre os joelhos.

- Sou Hari Seldon! - A voz era meiga.

Quase não se ouvia a respiração dos presentes, e Seldon continuou em tom de conversa: - Esta é a segunda vez que aqui me encontro. Claro que não sei se algum dos presentes aqui estava da primeira vez. Na verdade não tenho poderes para dizer, por sentido de percepção, se alguém se encontra nesta sala, mas isso não importa. Se a segunda crise foi superada com êxito, devem estar aqui; não há qualquer outra possibilidade. Se não estiver ninguém, quer dizer que a segunda crise foi demasiado pesada para as suas forças.

- Duvido, porque os meus cálculos indicam uma possibilidade de noventa e oito ponto quatro por cento, de não haver qualquer desvio do Plano, nos primeiros oitenta anos.

- De acordo com os nossos cálculos, dominam agora os reinos bárbaros que circundam a Fundação. Como da primeira crise, conseguiram-no através do uso do Equilíbrio do Poder, da segunda, venceram pela aplicação do Poder Espiritual contra o Poder Temporal.

- Contudo, não quero que se tornem demasiado confiantes. Não é meu sistema dar-lhes qualquer conhecimento antecipado, através destas gravações, mas posso indicar-lhes com segurança que, o que agora conseguiram, foi unicamente um novo equilíbrio – equilíbrio esse que melhora consideravelmente a posição de vocês. O Poder Espiritual, conquanto seja suficiente para se defender dos ataques do Temporal, não é suficiente para, por sua vez, atacar. Por causa do crescimento de uma força oponente conhecida como Regionalismo ou Nacionalismo, o Poder Espiritual não pode prevalecer. Estou certo de que nada disto seja novidade para vocês.

- Devem perdoar-me por lhes falar de maneira imprecisa. Os termos que emprego são, quando muito, meras aproximações, mas nenhum de vocês está habilitado a compreender a verdadeira simbologia da psicohistória, e assim devo me esforçar.

- Neste caso, a Fundação está no início do caminho que levará a fundação de um novo Império. Os reinos circunvizinhos são ainda demasiado fortes em comparação com vocês. Fora deles há ainda uma vasta selva de barbarismo, que se estende por toda a Galáxia. Dentro desses limites, ainda existe o que resta do Império Galáctico - que apesar de decadente e debilitado, é ainda muito poderoso.

Nesta altura, Hari Seldon levantou o livro e abriu-o. O seu rosto tornou-se solene. – E nunca se esqueçam de que há oitenta anos foi estabelecida uma outra Fundação, do outro lado da Galáxia, na Ponte das Estrelas. Estarão sempre lá para serem avaliados. Cavalheiros, estendem-se á sua frente novecentos e vinte anos do Plano. O problema é de vocês. Resolvam-no!

Os olhos baixaram-se-lhe para o livro e a sua imagem desapareceu, enquanto que as luzes voltavam. Na confusão de vozes que irrompeu, Lee inclinou-se para Hardin e segredou: - Ele não disse quando voltaria.

Hardin retorquiu: - Bem sei - mas confio que não volte, antes que você e eu estejamos confortavelmente mortos!

 

OS COMERCIANTES

COMERCIANTES -... na vanguarda da propagação política da Fundação estavam os Comerciantes, alcançando com os seus tentáculos as mais remotas distâncias da Periferia. Meses, e mesmo anos, passavam-se entre as suas idas e vindas a Terminus; muitas das vezes suas naves não passavam de improvisados barcos quase primitivos; sua honestidade não era exemplar; a sua audácia...

Através de tudo, forjaram um Império mais duradouro do que o pseudo religiosismo despótico dos Quatro Reinos...

Histórias sem conta de suas figuras solitárias, adotivas, meio sisudas meio brincalhonas, de um conceito extraído de um dos epigramas de Salvor Hardin (Nunca permitam que o sentido de moralidade impeça de fazer o que é justo!), são passadas de geração em geração. E difícil estabelecer quais das histórias são verídicas e quais são lendas. Provavelmente não há nenhuma que não tenha sofrido deturpação...

Enciclopédia Galáctica

Limmar Ponyets estava ensaboado quando a chamada chegou ao seu receptor – uma situação um tanto ou quanto ridícula, mesmo no espaço da Periferia Galáctica.

Por sorte, a parte de uma nave mercante privativa, que não é destinada â arrumação de mercadorias, é extremamente pequena; tanto que o chuveiro se encontrava a poucos centímetros do painel de "controle". Ponyets ouviu claramente o ruído do receptor.

A escorrer sabão e pragas, correu até o aparelho para ajustar o fone, de modo que três horas mais tarde uma outra nave parava ao lado da sua, e um jovem sorridente atravessava o espaço entre as duas, através do tubo de ar, estendido entre as naves.

Ponyets puxou sua melhor cadeira, enquanto ele próprio se sentava no banco de comando.

- Que andou fazendo, Gorm? Você vem me perseguindo desde a Fundação?

Les Gorm puxou um cigarro e abanou a cabeça com ar decidido. - Eu? nem por sombras. Fui o tolo que caiu na asneira de aterrar em Glyptal IV, no dia seguinte ao da chegada do correio; de modo que me mandaram correr atrás de você, com isto.

A pequena esfera brilhante mudou de mãos, e Gorm ajuntou: - É confidencial. Super secreto. Não pode ser confiado aos transmissores e tudo o mais. É o que depreendo. Pelo menos é um estojo pessoal, e ninguém além de você poderá abri-lo.

Ponyets olhou o estojo com desgosto. - Isso vejo eu. Até hoje ainda não ouvi falar de um único destes que trouxesse boas notícias.

O estojo abriu-se na sua mão, e dele saiu uma fita transparente que se desenrolou. Os olhos correram pela mensagem, pois quando a última parte da fita se desenrolava, já a primeira amarelecia e encarquilhava. Em minuto e meio tornara-se negra, e começava já a desintegrar-se, molécula por molécula.

Ponyets exclamou: - Oh, Galáxia!

Les Gorm interpelou-o sossegadamente: - Posso ajudar ou é demasiado secreto?

- Posso dizer-lhe desde que pertence â Agremiação. Devo ir a Askone.

- Por quê?

- Aprisionaram um comerciante. Guarde segredo.

A expressão de Gorm alterou-se. - Preso. Mas isso é contra a Convenção.

- Também a interferência na política local o é.

- Então foi isso que ele fez? - Gorm meditou. - Quem é ele? Alguém que eu conheça?

- Não! - Pelo tom de voz de Ponyets, Gorm perceber que não devia fazer mais perguntas.

Ponyets levantou-se, e olhou pensativo para fora da vigia; murmurou coisas vagas e fortes contra a parte da Galáxia que podia dali ser avistada, e por fim disse em voz alta: - Mas que grande enrascada! Ainda por cima minha quota está em atraso.

Fez-se luz no intelecto de Gorm. - Hei, amigo! Askone é área interditada.

- É verdade. Não se pode vender nem um canivete em Askone. Não compram aparelhagem atômica de qualquer espécie. Atrasado como estou, não sei o que acontecerá se tiver de ir lá.

- Não há alguma maneira de poder livrar-se?

Ponyets abanou a cabeça. - Conheço o indivíduo em questão. Não se pode abandonar um amigo. Nada a fazer. Estou nas mãos do Espírito Galáctico, e sigo com alegria o caminho que ele me indica.

Gorm fez uma careta.

O outro olhou-o e riu-se. - Esqueci-me. Nunca leu o "Livro do Espírito", não é?

- Nem sequer ouvi falar nele.

- Teria sim, se tivesse tido preparação religiosa.

- Preparação religiosa? Para o sacerdócio. - Gorm estava profundamente chocado.

- Receio que sim. E o meu segredo vergonhoso e secreto. Acho no entanto que constitui um problema sério demais para os Reverendos. Expulsaram-se, por razões suficientes para que a Fundação se encarregasse de me dar uma educação mais vulgar. Olhe lá, o melhor é eu ir-me embora. Como vai a sua quota deste ano?

- Gorm apagou o cigarro e ajeitou o boné. - A minha última carga já vai seguindo. Acho que tudo vai pelo melhor.

- Homem de sorte! - Minutos depois de Gorm ter saído, ainda ele estava entregue às suas meditações.

Então Eskel Gorov estava em Askone - e na prisão!

Era mau! Na verdade era muito mais delicado do que parecia. Uma coisa era contar a um jovem inexperiente uma versão diluída do negócio de modo a satisfazer-lhe a curiosidade: outra coisa era encarar a verdade.

Limmar Ponyets era uma das poucas pessoas a saber que Eskel Gorov não era sequer um comerciante, mas sim uma coisa muito diferente: um agente da Fundação!

 

Duas semanas passadas! Duas semanas perdidas.

Uma semana para chegar a Askone, em cujos extremos limites tinham aparecido vigilantes naves de guerra vindas ao seu encontro em números cada vez maiores. Qualquer que fosse o seu sistema de detecção, trabalhava - e bem.

Puseram-se ao seu lado, sem um sinal, mantendo a distância, colocando-o em direção ao centro de Askone.

Ponyets poderia ter resolvido a situação caso tivesse desejado, pois aquelas naves nem sequer eram verdadeiras naves de guerra, mas sim naves de cruzeiro do tempo do Império, e sem armas atômicas eram impotentes. Porém Eskel Gorov estava prisioneiro em suas mãos, e Gorov não era de perder. Os askonianos deviam-no saber.

Depois mais outra semana - uma semana caminhando um caminho fatigante entre nuvens de oficiais subalternos que formavam a barreira entre o Grão-mestre e o mundo. Cada insignificante subsecretário tinha de ser aplacado, para que essa assinatura figurasse no papel que lhe dava direito a ver o oficial imediatamente superior.

Pela primeira vez os seus papéis de comerciante eram inúteis.

Agora, por fim, o Grão-mestre encontrava-se do outro lado daquela porta dourada, flanqueada por guardas - e duas semanas tinham-se passado.

Gorov continuava prisioneiro, e a carga de Ponyets apodrecia inútil, no porão da nave.

O Grão-mestre era um homem baixo; um homem pequeno que começava a perder o cabelo, e com um rosto cheio de rugas, cujo corpo parecia não poder suportar a enorme gola de peles que trazia â volta do pescoço.

A um sinal dele, a linha de homens armados abriu-se para dar passagem a Ponyets, até â Cadeira de Estado.

- Não diga nada! - exclamou o Grão-mestre, e os lábios de Ponyets que se preparavam para formular palavras, fecharam-se.

- Isso mesmo. Não tolero conversas inúteis. Não me pode ameaçar, e a adulação está fora de ocasião. Nem há qualquer espaço para queixumes. Já perdi a conta das vezes que os avisamos, de que as suas máquinas diabólicas não têm lugar em Askone.

- Senhor, não há qualquer tentativa para inocentar o comerciante em questão. Não é política dos comerciantes introduzirem-'se onde não são chamados. Mas a Galáxia é grande, e uma fronteira foi ultrapassada sem querer. Trata-se de um engano deplorável.

- Decerto deplorável! Mas será engano? O pessoal de Glyptal bombardeia-me com pedidos de negociações desde que este homem foi feito prisioneiro. Por eles fui informado, e por várias vezes, de sua chegada. Parece-me uma campanha de salvamento bem organizada. Parece ter sido tudo bem antecipado - em demasia, para que haja enganos, deploráveis ou não.

Os olhos do askoniano estavam repletos de ironia. Continuou: - E vocês, comerciantes, voando como borboletas de mundo para mundo, serão tão loucos quanto os seus direitos, que pensam poder aterrar em Askone, no seu mundo maior, no centro do seu sistema, e depois considerá-lo como um engano de demarcação de limites? Vamos, vamos; decerto que não.

Ponyets sentiu-se desanimar, mas não o mostrou. - Se foi feita alguma tentativa para negociar, foi contra os regulamentos mais estritos da nossa Agremiação.

- Tão contrários que, talvez, o seu colega o pague com a vida.

O comerciante sentiu convulsões no estômago. Ali parecia não haver qualquer irresolução. - A morte, venerando senhor, é um fenômeno tão irrevogável, que para ele deve haver qualquer opção.

Houve uma pausa antes de vir a resposta cautelosa. - Já ouvi dizer que a Fundação era rica.

- Rica? Decerto! Mas a nossa riqueza encontra-se precisamente naquilo que recusam. As nossas mercadorias atômicas valem...

- As suas mercadorias não têm valor, pois que lhes falta a bênção ancestral. São objetos amaldiçoados, por estarem sob interdição ancestral. - As palavras eram firmes como uma fórmula recitada.

As pálpebras do Grão-mestre semicerraram-se, e ele disse significativamente: - Não têm mais nada de valor?

O comerciante não lhes apreendeu o significado. - Não entendo! Que querem?

O askoniano abriu os braços. - O senhor pede-me que troque de lugar, e que lhe exponha os meus desejos. Acho que não. O seu estimado colega tem de ser castigado da maneira prescrita pelo código de Askone: a morte pelo gás. Somos um povo justo. O camponês mais pobre em caso semelhante não sofreria menos. Eu próprio não sofreria castigo menor.

- Veneradíssimo, ser-me-ia permitido falar com o prisioneiro?

- A lei de Askone não permite comunicação com um homem condenado.

Mentalmente, Ponyets tentou pela última vez. - Veneradíssimo, posso pedir-lhe ao menos que tenha piedade da alma dele? Durante todo o tempo em que sua vida esteve em perigo, esteve separado da consolação espiritual. Mesmo agora, encara a perspectiva de não estar preparado para ser recebido no seio do Espírito Onipotente.

O Grão-mestre olhou-o desconfiado. - O senhor é um dos Curadores da Alma?

Ponyets deixou pender a cabeça com ar de humildade. - Para isso fui preparado. Nas expansões vazias do Espaço os comerciantes têm necessidade de homens como eu, que cuidem do outro lado desta vida de comércio e perseguição de tantos prazeres mundanos.

- Todo o homem devia ter a alma preparada para ir ao encontro dos espíritos ancestrais; no entanto nunca acreditei que vocês, comerciantes, fossem crentes.

 

Eskel Gorov mexeu-se na cama, quando Limmar Ponyets entrou pela porta fortemente reforçada. Quando aquela se fechou barulhentamente, Gorov acordou sobressaltado.

- Ponyets! Mandaram você!

- Pura coincidência, ou então trabalho do meu malévolo demônio pessoal. Primeiro: arruma encrencas em Askone; segundo: meu roteiro de vendas leva-me á distância de 150 parsecs do sistema onde se dão os acontecimentos englobados pela primeira parte; terceiro:já trabalhamos em conjunto e a Administração sabe-o muito bem. Veja bem se não é tudo certo e bom. A resposta é mais que simples.

- Cuidado! Deve haver alguém à escuta. Você tem por acaso um distorcionador?

Ponyets apontou para o bracelete que lhe ornamentava o pulso, e Gorov descontraiu-se.

Ponyets olhou ao redor. A cela estava nua e era ampla, bem iluminada e não havia nenhum mau cheiro. - Nada mal. Tratam-no como a um príncipe.

- Como conseguiu chegar até aqui? Estou nesta prisão solitária há quase duas semanas.

- Desde que cheguei. Parece-me que aquele passarão que manda aqui tem os seus pontos fracos. Inclina-se para palavras meigas, de modo que usei um truque que deu resultado: eis-me na qualidade de seu conselheiro espiritual. Bem depressa mandaria degolá-lo, sem que isso o preocupasse, porém o destino desconhecido dessa sua problemática alma, preocupa-o. É um pouco de psicologia empírica. Um comerciante deve saber um pouco de tudo.

Gorov sorria com ironia. - A verdade é que você freqüentou um seminário maior. Está bem, Ponyets; estou contente por terem me enviado você. Porém o Grão-mestre não está unicamente interessado na minha alma. Ele falou-lhe de resgate?

- Deu uma leve sugestão. Também ameaçou com a morte pelo gás. Joguei na certeza e evitei alguma armadilha. Trata-se então duma extorsão? Que deseja ele?

- Ouro.

- Ouro? O próprio metal? Para que o quer ele?

- É o seu negócio.

- Onde é que conseguirei ouro?

- Onde puder. Ouça-me que isto é importante. Nada me acontecerá, enquanto sua senhoria tiver cheiro de ouro no nariz. Prometa-lhe todo o ouro que ele quiser. Depois volte â Fundação, se for necessário, para o arranjar. Quando eu estiver livre, seremos escoltados até fora do sistema, e então separar-nos-emos.

- Para depois voltar e tentar novamente.

- A minha missão é vender aparelhos atômicos em Askone.

- Mas eles o apanham outra vez antes de ter tempo de fazer o que quer que seja. Já sabe disso.

- Não sei de nada; mesmo que o saiba, não importa.

- Na segunda vez matá-lo-ão. Gorov encolheu os ombros.

- Se devo negociar com o Grão-mestre, quero conhecer toda a história. Até agora andei ás cegas, de modo que as poucas coisas que disse iam deixando sua veneradíssima pessoa fora de si.

- É muito simples. A única maneira que temos de aumentar a segurança da Fundação aqui na Periferia, é formar um império comercial controlado pela religião. Somos ainda demasiado fracos para forçar um controle político. É tudo o que podemos fazer para segurar os Quatro Reinos.

- Até aqui compreendo. E qualquer sistema que não aceite aparelhos atômicos não pode ser colocado sob "controle" religioso.

- E pode tornar-se um foco de independência e hostilidade.

- Basta de teorias. O que é que impede a venda? Religião? O Grão-mestre deu-o a entender.

- É uma forma de adoração ancestral. A sua tradição fala de um passado mau do qual foram salvos por heróis anônimos e virtuosos. Compara-se ao período anárquico de há um século, quando as tropas imperiais foram expulsas, e foi estabelecido um governo independente. Todo progresso é identificado com o regime imperial do qual se lembram com horror.

- Mas têm umas lindas naves que me identificaram a distância. Cheira-me ali energia atômica.

- Essas naves devem ser restos do Império. Provavelmente com motores atômicos. O que têm, guardam. O caso é que não querem renovar e que sua economia interna é não-atômica. É isso que devemos modificar.

- Como é que o faremos?

- Quebrando a resistência em determinado ponto. Falando com sinceridade, se conseguirmos vender um canivete com campo magnético a um nobre, seria de seu interesse forçar leis que o autorizassem a usá-lo. Parece estúpido, contudo é psicologia pura. Realizar vendas estratégicas em pontos estratégicos seria criar uma facção pró-atômica na corte.

- E mandaram-no para esse fim, enquanto que eu estou aqui simplesmente para resgatá-lo e partir, ficando você entretanto tentando. Não acha que está ao contrário?

- De que maneira?

- Ouça - disse Ponyets repentinamente exasperado. - Você é um diplomata, não um negociante, e denominá-lo comerciante não faz com que o seja. Trata-se de um assunto para alguém que faça das vendas a sua vida - e eu aqui, com uma carga inteira apodrecendo, e com uma quota que, neste ritmo, nunca chegarei a preencher.

- Quer dizer que vai arriscar a sua vida numa coisa que não lhe diz respeito?

- Quer dizer com essa que se trata de uma questão de patriotismo, e que os comerciantes não são patrióticos.

- São até, notoriamente, contrários a essas coisas. Os pioneiros nunca o são.

- Está bem, de acordo. Não ando pelo espaço para salvar a Fundação ou qualquer coisa semelhante. Procuro ganhar dinheiro, e esta é uma boa oportunidade. Se posso ajudar a Fundação ao mesmo tempo, tanto melhor. E já arrisquei a minha vida por muito menos.

Ponyets levantou-se e Gorov fez o mesmo. - Que vai fazer?

O comerciante riu-se - Gorov, por enquanto ainda não sei. Mas se o ponto crucial do assunto é efetuar uma venda, sou o homem ideal. Geralmente não sou de muita conversa, mas há uma coisa de que me orgulho : até hoje ainda não deixei de preencher a quota.

A porta abriu-se quase instantaneamente, após ele ter batido, e dois guardas puseram-se a seu lado.

 

- Um espetáculo! - disse o Grão-mestre com frieza. Acomodou-se em suas vestes de pele, e a sua mão fina segurou o bastão de ferro que lhe servia de bengala.

- E ouro, reverendo.

- E ouro - concordou o Grão-mestre com ar descuidado.

Ponyets pôs a caixa no chão, e abriu-a com toda a aparência de confiança de que dispôs na ocasião. Sentiu-se só perante a hostilidade universal; do mesmo modo que se sentira no espaço, no primeiro ano. O semicírculo de conselheiros barbudos que o observavam, impressionaram-no desagradavelmente. Entre eles estava Pherl, o favorito que se sentava ao lado do Grão-mestre, e que olhava o comerciante com visível hostilidade. Ponyets tinha-lhe sido apresentado, e tendo percebido nele um inimigo, desde logo o marcou como sua primeira vítima.

Fora do salão, uma pequena multidão aguardava os acontecimentos. Ponyets estava isolado de sua nave, sem armas, preparado para subornar; Gorov continuava como refém.

Fez os ajustes finais naquela monstruosidade que lhe tinha custado uma semana de sacrifícios, e rezou de novo para que a sonda de chumbo-quartzo agüentasse.

- O que é? - perguntou o Grão-mestre.

- Isto é um pequeno aparelho que eu próprio construí.

- Isso é evidente, mas não é a informação que eu quero. É alguma das abominações da magia negra do seu mundo?

- É de natureza atômica - admitiu Ponyets com gravidade - mas não é necessário que qualquer um lhe toque, ou tenha algo a ver com ele. E só para mim, e se contiver coisas abomináveis, serei eu o contaminado.

O Grão-mestre tinha levantado a bengala de ferro para a máquina numa atitude ameaçadora, enquanto os seus lábios se moviam numa invocação de purificação. O conselheiro de rosto magro, que se sentava a seu lado, inclinou a cabeça e segredou-lhe ao ouvido.

- E qual é a ligação entre esse seu aparelho demoníaco e o ouro que salvará a vida do seu conterrâneo?

- Com esta máquina posso transformar o ferro que deitam fora em ouro de melhor qualidade. É o único mecanismo inventado pelo homem que pode fazer do ferro, o ferro feio, veneradíssimo, de que é feita a cadeira onde você se senta e as paredes deste edifício, ouro maciço, brilhante e pesado.

- Transmutação? Houve loucos que se dizem capazes dessa habilidade; todos pagaram pelo sacrilégio.

- Conseguiram-no alguma vez?

- Não. - O Grão-mestre parecia divertir-se. - Êxito em produzir ouro tem sido um crime que traz o seu próprio veneno. É a tentativa mais o falhar, que são fatais. Tome! Veja o que pode fazer com a minha bengala.

- O meu modelo é pequeno e a sua bengala demasiado comprida.

- Randel, as suas fivelas. Depressa homem; pagar-lhas-ei em dobro se for preciso.

As fivelas passaram de mão em mão, até chegarem ao Grão-mestre, que lhes tomou o peso e depois as atirou para o chão.

Ponyets apanhou-as, e perante o cilindro colocou-a de maneira que não pudesse falhar; era absolutamente necessário ser bem sucedido.

O transmutador cacarejou durante uns dez minutos enquanto o cheiro de ozone penetrava a atmosfera. Os cortesãos recuavam, murmurando, e novamente Pherl falou ao ouvido do Grão-mestre, sem que este se movesse.

E as fivelas transformaram-se em ouro.

Ponyets apresentou-as ao Grão-mestre com um murmúrio de delicadeza. O velho hesitou e, por fim, fez um gesto de repulsa. O seu olhar fixou-se sobre o transmutador.

Ponyets disse rapidamente: - Cavalheiros, isto é ouro. Ouro por dentro e por fora. Podem sujeitá-lo a todas as provas físicas e químicas que conhecerem, se quiserem comprovar alguma coisa. Não pode ser diferenciado do ouro natural. Qualquer ferro pode ser transmudado desta maneira. Não haverá interferência de ferrugem, nem uma quantidade moderada de ligas metálicas.

No entanto, foi o ouro que brilhava na palma de sua mão, que argumentou por ele.

Quando o Grão-mestre estendeu por fim a mão, Pherl interveio. - Reverendo, o ouro é de uma fonte pecaminosa.

- Da lama pode nascer uma rosa - disse Ponyets, rapidamente. - No comércio com os seus vizinhos, há muitos materiais que devem ser comprados, materiais de toda espécie, e tenho certeza de que não vão inquirir se a fonte desse material é ou não ortodoxa. Não vou oferecer-lhes a máquina, mas sim o ouro.

- Reverendo, não aceite o ouro feito de ferro aqui na sua presença; isto é uma afronta aos seus antepassados.

- Contudo, ouro é ouro, Pherl, você é demasiado rígido. - No entanto recolheu a mão estendida.

- Reverendo, você é a sabedoria personificada. Considere - desistir de um pagão não é perder nada perante os antepassados, enquanto que com o ouro que você receber em troca, poderá decorar o lugar onde descansam os seus espíritos. E mesmo que o ouro fosse o mal em si, tal mal desapareceria uma vez que o metal fosse usado para um fim piedoso.

- Pelos ossos do meu avô - foi a resposta veemente do velho. - Pherl, que me diz você deste jovem. A sua afirmação é válida. É tão válida como as palavras dos meus antepassados.

- Assim pareceria - respondeu Pherl - que a sua validade não seja uma traição do Espírito do Mal.

- Ainda faço melhor - continuou Ponyets. - Que o ouro seja guardado como refém. Coloquem-no sobre o altar dos seus antepassados e prendam-me durante trinta dias. Se ao fim desse tempo não houver sinal de ira, se não se der algum desastre, decerto seria prova de que a oferta foi aceita. Que mais posso oferecer-lhes?

E quando o Grão-mestre se ergueu procurando a desaprovação, não houve um único homem que não estivesse de acordo. Até o próprio Pherl concordou.

Ponyets sorriu enquanto meditava quanto á utilidade de uma educação religiosa.

 

Outra semana se passou antes que se conseguisse um encontro com Pherl. Ponyets sentiu a tensão, mas não se preocupou; já estava habituado. Saíra dos limites da cidade sob guarda. Encontrava-se agora sob guarda na vila de Pherl. Não havia nada a fazer senão aceitar as coisas tal como sucediam.

Pherl, fora do círculo dos Conselheiros parecia mais alto e mais jovem. Nem parecia o mesmo sem os trajes de cerimônia.

- Você é um homem estranho; não fez nada nesta última semana, e em especial nestas últimas duas horas, além de insinuar que eu necessito de ouro. Parece-me estranho trabalho, o seu, pois quem não precisa de ouro? Por que não dá mais um passo?

- Não é o ouro simplesmente. Não, ouro só de nada vale. É tudo o que está por trás.

- O que poderá estar por detrás do ouro? Não me diga que me vai fazer outra estúpida demonstração?

- Estúpida? - disse Ponyets com desagrado.

- Definitivamente. Mas a estupidez, estou certo, foi propositada. Poderia ter avisado o Venerável, se tivesse tido a certeza dos motivos. Se eu fosse você teria feito o ouro a bordo de minha nave, e oferecê-lo-ia depois. O espetáculo que nos deu, e o antagonismo que daí resultou, poderiam bem ter sido dispensados.

- É verdade - admitiu Ponyets - mas desde que fui eu, arrisquei o antagonismo para poder chamar sua atenção.

- Só por isso? - Pherl não fez qualquer esforço para esconder o seu desprezo. - Dá para desconfiar que a proposta dos trinta dias de prova foi na esperança de modificar essa atenção para algo de mais substancial. Porém se o ouro provar ser impuro?

- Quando o juízo dessa pureza ou impureza depende daqueles que estão diretamente interessados...

Pherl parecia ao mesmo tempo surpreso e satisfeito com a resposta do outro.

- Um ponto sensato. Diga-me, agora, por que esse desejo de chamar a minha atenção?

- Assim farei. No curto espaço de tempo que tenho aqui estado, observei alguns fatos úteis, que lhe dizem respeito, mas que me interessam. Por exemplo, você é jovem, demasiado jovem para membro do Conselho, e mesmo de uma família relativamente nova.

- Critica a minha família?

- De maneira alguma. Os seus antepassados são grandes e santos; todos o admitirão. Mas haverá quem diga que não é um membro de uma das Cinco Tribos.

Pherl recostou-se.

- Com todo o respeito aos que estão envolvidos - e não procurou sequer esconder 9 seu veneno - as Cinco Tribos, como dizem, esgotaram suas forças e afinaram o sangue. Nem cinqüenta membros das Tribos estão vivos. Ademais, há aqueles que não desejam ver ninguém fora das Tribos como Grão-mestre. E um favorito tão jovem está bem apto a criar inimizades entre os grandes do Estado, segundo se diz. A idade do Grão-mestre vai aumentando, e a sua proteção não ultrapassará sua morte, quando será um inimigo que interprete as palavras do seu Espírito.

- Ouve demais para um estrangeiro. Tais orelhas deveriam ser cortadas.

- Pode decidir-se isso mais tarde.

- Deixe-me antecipar. Vai-me oferecer poder e riqueza, por meio dessas malditas máquinas que traz a bordo de sua nave?

- Suponha que sim. Qual seria a sua objeção? Apenas pessoal quanto ao bem e mal?

Pherl abanou a cabeça: - Ouça, meu caro Estrangeiro, não é nada disso. Sua opinião sobre nós nesse seu agnosticismo pagão é o que é, contudo não sou totalmente escravo da nossa mitologia, apesar de assim parecer. Sou um homem educado e culto. Toda a profundidade dos nossos costumes religiosos, mais no sentido ritual que ético, foi elaborada para as massas.

- Qual é então a sua objeção?

- Precisamente isso: as massas. Talvez eu estivesse interessado em negociar com você, porém suas pequenas máquinas, para serem úteis, devem ser usadas. Como poderia eu adquirir riquezas, digamos, se eu tivesse de usar um barbeador elétrico no maior dos segredos? Mesmo que o meu queixo estivesse mais limpo, como é que eu seria rico? E como é que eu evitaria a câmara de gás, ou uma revolta, se fosse apanhado usando tal coisa?

- Claro que tem razão. A única solução seria educando seu povo no uso de materiais atômicos, para conveniência deles, e para seu lucro substancial. Seria um trabalho de titãs, não o nego, porém o pagamento seria ainda mais titânico. Porém neste momento, a preocupação é sua e não minha, pois eu não ofereço, nem lâmina nem faca, nem triturador mecânico de lixo.

- O que é que oferece?

- Ouro puro. Pode ficar com a máquina que eu demonstrei na semana passada.

- O transmutador? - Pherl levantou-se e o seu rosto contraiu-se.

- Exatamente. O fornecimento de ouro será igual ao fornecimento de ferro. Imagino que isso basta para suprir todas as dificuldades. Basta mesmo para o lugar mais alto do planeta, a despeito da pouca idade e dos inimigos. E é seguro.

- Como?

- O segredo é a única essência do seu uso; o mesmo segredo do qual falou em relação aos produtos atômicos. Pode enterrar o transmutador na cela mais profunda da maior fortaleza, ou na sua propriedade mais longínqua, e mesmo assim trar-lhe-á fortuna instantânea. E o ouro que compra e não a máquina, e o ouro não traz a marca de fabricação, pois não pode ser distinguido da criação natural.

- E quem operará a máquina?

- Você mesmo. Não precisa mais do que cinco minutos de treino. Posso montá-la quando quiser.

- E em troca?

- Bem - Ponyets tornou-se cuidadoso - o preço é elevado, porém esta é a minha vida. Digamos, por essa valiosa máquina, o equivalente a 30 centímetros cúbicos de ouro, em ferro fundido. Afianço-lhe - disse Ponyets corando - que pode reaver o preço, em menos de duas horas.

- Verdade, e dentro de uma hora, depois de se ter ido embora, a minha máquina poderia estar reduzida a pó. Preciso de uma garantia.

- Tem a minha palavra.

- Boa garantia. Mas a sua presença seria ainda melhor. Prometo pagar-lhe uma semana depois da entrega em condições.

- Impossível.

- Impossível? Quando já incorreu na pena de morte, só pelo fato de me ter oferecido algo para compra? A única alternativa é a minha palavra de que amanhã, à noite, caso não aceite, estará na câmara de gás.

A face do comerciante mantinha-se impassível. - Leva-me vantagem, e não é justo. Pelo menos poderá dar a sua palavra por escrito?

- E tornar-me também um cúmplice? Não senhor! - Pherl sorria satisfeito. – Não senhor! Só um de nós é que é tolo.

Por fim o comerciante disse com voz apagada: - Estamos de acordo, então.

 

Gorov foi solto ao trigésimo dia, e 250 quilos do mais puro ouro tomaram o seu lugar.

Com ele, foi retirada a interdição que pairava sobre a sua nave.

Na jornada que os fazia sair do sistema de Askone, tal como quando haviam entrado, as naves daquele planeta escoltaram-nos.

Ponyets observou o ponto que, à distância, era a nave de Gorov, enquanto a voz do amigo rompia o silêncio, pelo amplificador etérico.

Dizia ele: - Mas não era isso o que se pretendia, Ponyets. Um transmutador não serve. A propósito, onde é que o arranjou?

- Eu o construí. Na realidade não serve para nada. O consumo é proibitivo em escala maior; caso contrário, a Fundação não teria de percorrer toda a Galáxia â procura de metais pesados. Foi um truque; de qualquer modo, até eu fiquei impressionado.

- Mas esse truque não valeu de nada.

- Tirou-o de enrascadas.

- Isso pouco importa. Terei de voltar, assim que nos virmos livres da escolta.

- Por quê?

- Você mesmo o explicou a esse político seu amigo. O transmutador foi um meio para atingir um fim, mas sem qualquer valor em si; que ele comprava o ouro e não a máquina. Foi boa psicologia, mas...

- Mas o que?

- Mas o que nós pretendemos é vender-lhes uma máquina qus tenha valor em si; algo que eles queiram usar abertamente; algo que os faça pender para as técnicas atômicas como uma vantagem.

- Percebo tudo isso muito bem. Já me explicou uma vez antes. Mas repare só no que advém da minha venda. Enquanto o transmutador durar, Pherl cunhará ouro, ouro suficiente para comprar as próximas eleições. O atual Grão-mestre não deve viver muito tempo.

- Está contando com a gratidão?

- Não! Conto mas é com um interesse inteligente. Um transmutador consegue uma eleição para ele; outros mecanismos...

- Não! Não! A sua premissa é falsa. Não é ao transmutador que ele vai dar crédito, mas sim ao ouro. É isso que eu estou tentando dizer-lhe.

Ponyets sorriu, e ajeitou-se confortavelmente, pensando que já pusera o outro â prova, o tempo suficiente.

- Tão depressa não, Gorov. Ainda não terminei. Existem outras máquinas, também, envolvidas no assunto.

Houve uma pausa e depois Gorov perguntava cauteloso:

- Que outras máquinas?

- Vê aquela escolta?

- Vejo. Agora explique-me que outras máquinas são.

- Se me deixar. Aquela é a armada particular de Pherl. O velho fez-lhe a honra de lha conceder. Para onde pensa que nos levam? Às suas minas no exterior de Askone. Ouça! Já lhe dissera que estava nisto para ganhar dinheiro e não para salvar mundos. Vendi aquele transmutador por nada. Nada, exceto o risco da câmara de gás, mas isso não preenche uma quota.

- Voltemos ao assunto das minas.

- As minas vêm com os lucros. Vamos encher-nos de zinco, Gorov. Zinco até lotar esta nave e a sua. Vou descer com Pherl para receber enquanto você fica por cama e me cobre com todas as armas que tiver, no caso de Pherl não ser digno de crédito. Esse zinco é o meu lucro.

- Pelo transmutador?

- Por todo o carregamento de produtos atômicos. Preço a dobrar à semelhança de bônus. Admito que o roubei, porém devo me defender.

- Importa-se de explicar?

- É tudo tão evidente, Gorov. Aquele idiota pensava que ia me enganar, porque a sua palavra vale mais do que a minha para o Grão-mestre. Levou o transmutador e incorreu na pena capital. Em qualquer situação podia acusar -me e desculpar-se.

- Isso é evidente.

- Pois é, mas Pherl nunca ouvira falar de um microfilmador. Gorov de repente começou a rir.

- Pois é. Ele ficou pensando que estava na mó de cima, e no dia seguinte eu levei o microfilmador no meio da aparelhagem, de modo que o apanhei com a boca na botija, operando o transmutador.

- E mostrou-lhe o resultado?

- Mostrei-lhe dois dias depois. A princípio não quis acreditar, mas quando eu lhe disse que tinha tudo preparado para uma transmissão na praça principal da cidade, o pobre idiota caiu de joelhos. E fez tudo quanto eu pedi.

- E tinha na verdade qualquer coisa preparada?

- Não tem qualquer importância. Fechou o negócio. Comprou tudo quanto eu tinha, e tudo quanto você tinha, em troca de zinco. Naquele momento acho que eu era capaz de tudo. Vou dar-lhe uma cópia do contrato antes de descer, como precaução.

- Mas, irá ele usar os produtos? Feriu-lhe o "ego".

- Por que não? É a única maneira de cobrir as perdas, e se conseguir ganhar dinheiro, salvará o seu orgulho. Será o próximo Grão-mestre, e o melhor homem que poderíamos ter a nosso favor.

- Não haja dúvida de que foi uma ótima venda - disse Gorov - porém você tem uma técnica de vendas muito pouco honesta. Não é de admirar que o tenham expulsado do seminário. Não tem o mínimo sentido de moralidade?

- Já sabe o que Salvor Hardin disse a respeito da moral?

 

OS PRÍNCIPES MERCADORES

 

COMERCIANTES -... Com inevitabilidade psicohistórica, o "controle" econômico da Fundação aumentou. Os comerciantes tornaram-se ricos, e com a riqueza veio o poder...

Esquece-se freqüentemente que Hober Mallow começou sua carreira como um comerciante vulgar. Porém nunca se esquece que terminou a sua vida como o primeiro dos Príncipes Mercadores...

Enciclopédia Galáctica

 

Jorane Sutt uniu as palmas das mãos e disse: - Está tudo muito confuso. Para falar a verdade - e isto na maior das confidencias - pode ser uma das crises Seldon.

O homem que o encarava procurou um cigarro nos bolsos do curto casaco Smymiano.

- Não creio muito nisso, Sutt. Como regra geral, todos os políticos começam a gritar por uma crise, quando chega a época das decisões.

Sutt não pôde deixar de sorrir. - Não estou procurando votos nesta altura, Mallow. Estamos frente a frente com armas atômicas e não sabemos a sua proveniência.

Hober Mallow, de Smyrno, Mestre Comerciante, continuou indiferentemente fumando o seu cigarro. - Continue. Se tem mais alguma coisa a dizer, diga-o agora. - Mallow nunca cometia o erro de ser delicado em demasia, em especial com um homem da Fundação.

Sutt apontou o mapa tridimensional que se achava sobre a mesa. Quando ajustou a alavanca de controle, meia dúzia de sistema estelares foram assinalados em luz vermelha.

- Ali - indicou calmamente - é a República Koreliana.

O comerciante anuiu. - Já estive lá. É um buraco pestilento. Embora tenha o nome de República, é sempre um indivíduo da família Argo que é eleito Comodoro, cada vez que há eleições. E se houver alguém que não goste, o melhor que tem a fazer é calar-se. - Torceu a boca e repetiu: -Já estive lá.

- Mas o senhor voltou, o que nem sempre acontece com muitos. Três naves mercantes invioláveis, sob as cláusulas da Convenção, desapareceram no território da República, no ano passado. E todas essas naves estavam armadas com explosivos nucleares e convencionais e defendidos por campos magnéticos.

- Quais foram as últimas notícias dessas naves?

- Relatórios rotineiros. Nada mais.

- E que diz Korell?

Sutt replicou com ar irônico: - Não houve maneira de saber. A Fundação, através da Periferia, é temida pelo seu poder. Pensa o senhor que íamos perder essas naves e depois pedir que nos fossem restituídas?

- Bem, então diga-me o que deseja de mim?

Jorane Sutt não se deu ao luxo de se zangar. Como secretário do Prefeito, adquirira muita paciência.

Metodicamente respondeu: - Espere um momento. Como vê, três naves perdidas no mesmo setor durante um ano, não pode ser acidental, e a energia atômica só pode ser conquistada com energia atômica. O problema ressalta automaticamente: se Korell tem armas atômicas, onde é que as adquire?

- E onde é?

- Há duas opções: ou os korelianos as fabricam...

- Impossível!

- Concordo! A outra, é que estamos sendo traídos.

- Acha que sim? - O tom de voz de Mallow era monótono.

O secretário disse calmamente: - Não há nada de milagroso na possibilidade. Desde que os Quatro Reinos aceitaram a Convenção da Fundação, tivemos de lidar com grandes grupos de população dissidente, em cada uma dessas nações. Cada um desses reinos tem os seus pretendentes e os seus nobres que não conseguem, por muito que se esforcem, gostar da Fundação. Talvez algum deles tenha começado a agir.

Mallow ficara vermelho. - Há algo de especial que me queira dizer a mim? Eu sou Smyrniano.

- Eu sei. O senhor nasceu em Smyrno, uma parte dos Quatro Reinos. O senhor só pode ser considerado da Fundação única e exclusivamente pela educação. Por nascimento será sempre um estrangeiro. Com toda a probabilidade o seu avô deveria ser barão no tempo das guerras de Anacreon e Loris, e as propriedades de família foram anexadas, quando Sef Sermak fez a redistribuição das terras.

- Não! Pelo Espaço Negro, não! O meu avô era um pobre trabalhador que morreu trabalhando no carvão, com um salário miserável, antes da chegada da Fundação. Não devo nada ao velho regime. Mas nasci em Smyrno e não devo me envergonhar disso. As suas sugestões de traição á Fundação não vão fazer com que me comece a babar de medo. E agora, ou dê-me ordens ou faça as suas acusações, mas decida-se.

- Meu caro Mestre, pessoalmente não me interessa que seu pai tenha sido rei de Smyrno, ou o maior mendigo do planeta. Aceitei aquela rima para que o senhor visse que eu não me interesso por essas coisas. O senhor é Smyrniano. Conhece os estrangeiros. É um comerciante, e dos melhores. Já foi a Korell e conhece os korelianos. É lá que deverá ir.

Mallow respirou fundo. - Como espião?

- Não. Como comerciante, mas com os olhos bem abertos. Se conseguir descobrir a proveniência das armas.. Devo lembrar-lhe que duas das naves perdidas tinham tripulações smyrnianas.

- Quando deverei partir?

- Logo que a sua nave estiver pronta.

- Então, dentro de seis dias.

- Partirá então. No almirantado ser-lhe-ão fornecidos todos os pormenores.

- Muito bem. - O comerciante levantou-se, cumprimentou e saiu. Sutt esperou que ele desaparecesse, e depois esfregou as mãos, como para lhes restaurar a circulação; depois encolheu os ombros e entrou no gabinete do prefeito.

O prefeito fechou o visor e recostou-se na cadeira.

- Que tal o acha, Sutt?

- Pode ser que esteja fingindo - respondeu Sutt, e o seu olhar perdeu-se na distância.

 

Ao anoitecer do mesmo dia, no apartamento de Jorane Sutt, situado no vigésimo primeiro andar do Edifício Hardin, Publis Manlio tomava vagarosamente o seu cálice de vinho.

Era esse mesmo Publis Manlio que tinha a seu cargo duas das mais importantes tarefas da Fundação. Era Ministro dos Negócios Externos do gabinete Municipal, e para todos outros planetas, à exceção da Fundação, era também Primaz do Templo, Mestre do Alimento Sagrado, Mestre dos Templos, etc, numa profusão de sílabas confusas, porém sonantes.

Dizia ele: - Mas o Prefeito concordou com o envio desse comerciante. É um ponto a considerar.

- E pouco. Não nos apresenta nada de imediato. Todo este assunto é o mais cru dos estratagemas, desde que não possamos antecipar qual seja seu objetivo. É como que deitar uma corda, tendo esperanças que na ponta da mesma haja um laço.

- Verdade. E esse Mallow é um indivíduo capaz. Que acontece, se não conseguimos enganá-lo?

- E um risco que teremos de correr. Se houver traição, são os homens capazes que estarão envolvidos. Se não, é-nos necessário um homem capaz para que consiga descobrir a verdade. Além disso, Mallow estará sob vigilância. Vamos, o seu cálice está vazio.

- Obrigado. Não quero mais.

Sutt encheu o cálice e respeitou o silêncio do outro. Qualquer que fosse o conteúdo desse silêncio, ele foi repentinamente quebrado, numa explosão. - Sutt, que é que você tem em mente?

- O seguinte, Manlio. Estamos em plena crise Seldon.

- Como o sabe? Seldon tornou a aparecer no Cofre?

- Não foi preciso tanto. Raciocine. Desde que o Império Galáctico abandonou a Periferia, e nos deixou entregues a nós mesmos, nunca tivemos um oponente que possuísse energia atômica. Pela primeira vez encontramos um; por si, isso já é bastante significativo, mas ainda há mais. Pela primeira vez em setenta anos enfrentamos uma crise política. A sincronização das duas crises, interna e externa, faz com que não haja qualquer dúvida.

Os olhos de Manlio semicerraram-se. - Mesmo assim não basta. Até agora houve duas crises Seldon, e dessas duas vezes a Fundação esteve em perigo de ser exterminada. Não pode haver terceira crise, sem que exista esse perigo.

- O perigo está próximo. Qualquer idiota pode reconhecer uma crise quando ela aparece; a verdadeira função do Estado é destruí-la ainda no embrião. O nosso caminho histórico foi planejado antecipadamente. Sabemos que Hari Seldon estabeleceu as probabilidades históricas desse futuro. Sabemos que algum dia havemos de reconstituir o que foi o Império Galáctico. Sabemos que isso levará aproximadamente mil anos. Sabemos também, que nesse espaço de tempo teremos de encarar certas crises definidas. A primeira crise veio cinqüenta anos após o estabelecimento da Fundação, e a segunda trinta anos depois da primeira. Após a última já se passaram quase setenta e cinco anos; já é tempo, Manlio.

Manlio esfregou o nariz, ainda não totalmente convencido. - E o senhor já elaborou os seus planos para encarar essa crise? Sutt aquiesceu.

- E eu - acrescentou Manlio, - tenho uma parte nesses planos?

Sutt de novo lhe disse que sim. - Antes de nos preocuparmos com uma ameaça externa, de natureza atômica, temos de arrumar a nossa própria casa. Esses comerciantes...

- Ah! - o primaz abriu completamente os olhos, desta vez.

- Não há dúvida que esses comerciantes nos são úteis, mas tornaram-se demasiadamente fortes, incontroláveis. São estrangeiros, educados fora da religião. De um lado, damos-lhes conhecimentos e por outro não controlamos as suas atividades.

- E se descobrirmos que há traição?

- Se o conseguíssemos, ação direta e suficiente, seria imediatamente tomada. Mas isso não tem qualquer significado. Mesmo se a traição não existisse entre eles, formariam sempre um elemento incerto na nossa sociedade, Não estariam ligados a nós por patriotismo ou descendência comum, nem mesmo por respeito religioso. Debaixo de sua chefia, as províncias exteriores, as quais desde o tempo de Hardin nos olham como o Planeta Sagrado, podiam separar-se de nós.

- Vejo a doença, mas não a cura...

- A cura deve vir rapidamente, antes que esta nova crise seja declaradamente aguda. Se tivermos de lutar contra armas atômicas, no exterior, e com a dissensão, no interior, as forças, dividindo-se, seriam menores. - Sutt baixou o copo que tinha na mão. - Essa é a sua tarefa.

- Minha?

- Eu, por mim, não posso fazê-lo. A minha posição não tem o apoio legislativo.

- Mas o prefeito...

- Impossível. A sua personalidade é inteiramente negativa. Só é enérgico quando se trata de fugir de responsabilidades. Mas se se formasse um novo partido que fizesse perigar a sua reeleição, talvez ele se deixasse levar.

- Mas Sutt, eu não sou um político profissional.

- Deixe isso a meu cargo. Quem sabe, Manlio? Desde o tempo de Hardin que o lugar de Prefeito e Primaz não pertencem a uma só pessoa. Mas talvez isso aconteça agora... se a sua tarefa for bem desempenhada.

 

Do outro lado da cidade, num subúrbio menos luxuoso, Hober Mallow mantinha a sua segunda entrevista daquele dia. Já muito que esperava, e naquele momento disse cuidadosamente: - Sim, já ouvi falar das suas campanhas, para que seja admitida representação direta dos comerciantes, no Conselho. Mas por que eu, Twer?

Jaim Twer, solicitado ou não, lembraria sempre a qualquer pessoa que pertencera ao primeiro grupo de estrangeiros a ser educado religiosamente pela Fundação, abriu-se num sorriso.

- Eu sei o que estou fazendo. Lembre-se quando eu o conheci, no ant> passado?

- No Congresso dos Comerciantes?.

- Certo. Foi você o secretário do Congresso; você os teve â sua mercê. Além disso, as massas pertencentes â Fundação também escutam você. Tem o que se chama charme... ou pelo menos, boa publicidade de suas aventuras, o que vem a dar no mesmo.

- Está tudo muito bem; mas por que é que só se lembraram agora?

- Porque agora é que surgiu a nossa oportunidade. Sabe que o Secretário da Educação pediu demissão? Ainda não é do conhecimento público, porém em breve será.

- Como é que sabe?

- Isso... não importa. - A sua mão fez um gesto de desprendimento. -É assim. O Partido Acionista está cindindo-se, podemos pô-lo fora de combate agora, se levantarmos a questão de igualdade de direitos para os comerciantes; ou antes, democracia pro... e anti...

Mallow olhou com atenção as suas mãos grossas. - Peço imensa desculpa, Twer, porém devo partir em negócios, na semana que vem. Escolha outro. Twer interrogou-o: - Negócios? Que espécie de negócios?

- Muito supersecretos. Prioridade extra. Falei com o secretário do Prefeito, e todas essas coisas.

- Sutt, a Víbora? - Jaim Twer ia-se excitando. - É um truque. Esse bandido quer é ver-se livre de você, Mallow...

- Espere lá! - A mão de Mallow caiu sobre o punho cerrado do outro.

- Não se enerve. Se for um truque, eu ajustarei as contas com esse senhor, quando voltar. Se não for, a tal víbora estará nas nossas mãos. Ouça, vamos enfrentar uma crise Seldon.

Mallow esperou pela reação, mas esta não chegou a vir. Twer simplesmente o olhou surpreso. - O que vem a ser isso?

- Pela Galáxia! - Mallow explodiu. - Que diabo andou fazendo enquanto esteve na escola? Qual é o significado dessa pergunta idiota?

O outro interrompeu: - Se quiser ter a bondade de explicar...

Houve uma longa pausa. - Eu explico: - As sobrancelhas de Mallow franziram-se, e ele falou pausadamente: - Quando o Império Galáctico começou a decair, e quando os limites da Galáxia caíram no barbarismo e se perderam, Hari Seldon e o seu grupo de psicólogos fundaram uma colônia, a Fundação, aqui, onde a desordem era maior, para que pudéssemos incubar a arte, a ciência e a técnica, e formar mais tarde o núcleo do Segundo Império.

- Ah sim, sim...

- Ainda não terminei - disse o comerciante com frieza. - O curso futuro da Fundação foi determinado de acordo com a ciência da psicohistória, então desenvolvida em grande escala, e preparadas as condições, de modo a forçar uma série de crises que nos obrigassem ao longo da rota preestabelecida para um Império futuro, mais rapidamente. Cada crise, cada crise Seldon, marca uma época da nossa História. Aproximamo-nos agora de mais uma - a terceira.

- Claro que me devia ter lembrado. Já faz muito tempo que saí da escola... há mais tempo do que você.

- Suponho que sim. Esqueça o que lhe disse. O que importa é que vou ser enviado para o centro dessa crise. Não há maneira de poder dizer o que acontecerá entretanto, nem quando voltarei, e as eleições para o Conselho realizam-se todos os anos.

Twer olhou-o. - Está na pista de alguma coisa?

- Não.

- Tem algum plano definido?

- Nem sequer penso nisso.

- Bem...

- Nada bem; Hardin disse uma vez: Para se conseguir êxito, não é suficiente fazer planos. Deve improvisar-se também. Eu vou improvisar.

Twer abanou com a cabeça, duvidoso, e ficaram os dois de pé olhando um para o outro.

Mallow disse repentinamente: - Por que não vem comigo? Não fique tão espantado, homem! Você já foi comerciante, antes de decidir que havia mais ação na política. Pelo menos foi o que me disseram.

- Para onde vai? Diga-me apenas isso.

- Para os lados do Aglomerado de Whassalia. Não posso fornecer mais pormenores, antes de partir. Que diz?

- Supõe que Sutt não me queira perder de vista?

- Não é provável. Se está ansioso por se ver livre de mim, também não se importará com você. Além disso, tenho o direito de escolher a minha tripulação. Levo quem desejar.

Havia um brilho estranho nos olhos do homem mais velho. - Está bem, vou. Será a minha primeira viagem, em três anos.

Mallow apertou-lhe calorosamente a mão. - Bem! Muito bom! E agora tenho de ir buscar os demais rapazes. Sabe onde está amarrada a "Estrela", não sabe? Apareça amanhã. Adeus.

 

Korell é um fenômeno que se repete continuamente na História: uma república cujo presidente tem todos os atributos dos monarcas absolutos, menos o titulo. Gozava pois do vulgar despotismo, sem a restrição dessas duas influências moderadoras, que geralmente se encontram nas verdadeiras monarquias: honra real e etiqueta palaciana.

Materialmente, o seu nível era baixo. Passados eram os dias do Império Galáctico, sem outros testemunhos além dos monumentos silenciosos e das estruturas em ruínas. O dia da Fundação não havia ainda chegado - e na determinação do seu Governador, o comodoro Asper Argo, com as estritas leis que regiam os comerciantes e proibição de todos os missionários - e nunca chegaria.

O porto em si era decrépito, e a tripulação do "Estrela" estava ciente desse fato. Os hangares continham uma atmosfera irrespirável, e Jaim Twer bem o sentia, enquanto jogava o seu jogo de solitário.

Hober Mallow observou pensativamente: - Há aqui bom material para comércio. – Ia olhando tranqüilamente pela vigia. Até então nada mais se podia dizer a propósito de Korell. A viagem fora vazia de acontecimentos. As naves que compunham o esquadrão de intercepção, que os havia esperado, eram todas pequenas, velhas relíquias de glórias passadas. Tinham-se mantido á distância, receosos, e continuavam a manter-se já fazia uma semana, enquanto que o pedido de Mallow ao Governo local para que lhe fosse concedida uma audiência, continuava sem resposta.

Mallow repetiu: - Boa oportunidade para comércio, aqui. Pode até denominar-lhe território virgem.

Jaim Twer olhou-o impaciente, e pôs de lado as cartas. - Que tenciona fazer, Mallow? A tripulação já murmura, os oficiais preocupam-se, e eu já começo a pensar se...

- A pensar o que?

- A pensar a respeito da situação, e a seu respeito. Que estamos nós fazendo?

- Estamos à espera.

O velho comerciante grunhiu e fez-se vermelho. - Você está andando às cegas, Mallow. Há uma guarda à volta do porto, e há naves no espaço por cima de nós. Suponha que eles se preparam para nos atacar.

- E tinham desperdiçado uma semana.

- Talvez estejam à espera de reforços. O olhar de Twer era severo. Mallow sentou-se abruptamente. - Sim; já pensei nisso. É uma bela enrascada que se apresenta. Primeiro, chegamos até aqui sem qualquer dificuldade. Talvez isto não queira dizer nada, pois só três navios, das muitas centenas que por aqui passaram no ano-passado, se perderam. A percentagem é baixa. Talvez isso queira também dizer que o número de naves equipadas com armas atômicas, que eles possuem, seja pequeno, e que não se queiram expor, até melhorar o potencial.

- Mas também poderia significar que, afinal, eles não possuem energia atômica. Ou talvez a tenham e a escondam, com medo que nós descubramos qualquer coisa. Uma coisa é assaltar naves mercantes de armamento leve; outra é tentar algo contra o enviado extraordinário da Fundação, quando o simples fato da sua presença possa querer dizer que a Fundação começa a suspeitar de qualquer coisa.

- Combine isto com...

- Um momento Mallow, um momento. - Twer levantou as mãos. -Você está me afogando com palavras. Onde é que pretende chegar? Não importam as entrelinhas.

- Tem de ser, ou não poderá compreender, Twer. Estamos ambos à espera. Eles não sabem o que eu estou fazendo aqui, e eu por minha vez não sei o que eles preparam lá fora. Mas estou em posição mais fraca, porque sou um só, ao passo que eles são um mundo inteiro - talvez possuidores de energia atômica. Não posso fraquejar, ou estarei perdido. Com certeza este jogo é perigoso; nada me diz a não ser que haja um buraco no solo à nossa espera. Mas já sabíamos isso desde o início. Que mais podemos fazer?

- Eu não... O que é que se passa agora?

Mallow olhou, e sintonizou o visor; na tela apareceu o rosto do sargento de serviço.

- Diga, sargento.

- Perdão. Os homens permitiram a entrada de um missionário da Fundação.

- Um que? - A face de Mallow tornou-se lívida.

- Um missionário. Necessita de hospitalização...

- Haverá muitos mais a necessitarem do mesmo, por causa disto. Ordene aos homens que se dirijam para as estações de combate.

A sala da tripulação estava quase vazia. Cinco minutos depois da ordem, mesmo os homens que não estavam de serviço, achavam-se a postos. A grande virtude naquelas regiões anárquicas da Periferia era a velocidade e a rapidez; a tripulação de um mestre comerciante não tinha rival.

Mallow entrou, e mirou o missionário por todos os lados. Depois o seu olhar encontrou o do tenente Tinter, que pouco â vontade se moveu para um dos lados, e depois apanhou o sargento da guarda, Demen, cuja figura sólida protegia o outro.

O mestre comerciante virou-se para Twer, e fez uma pausa, refletindo: -Twer, reúna os oficiais aqui, mas com bastante calma, exceto os coordenadores e o calculador de trajetórias. Os homens devem manter suas posições, até segunda ordem.

Houve um intervalo de cinco minutos, no qual Mallow abriu as portas dos lavabos, espreitou por detrás do bar, dos cortinados, e correu as grossas cortinas que ocultavam as vigias. Por meio minuto chegou a sair da sala, e quando voltou, vinha cantarolando, distraído.

Os oficiais começaram a entrar. Twer foi o último a entrar, e fechou a porta silenciosamente atrás de si.

Mallow disse calmamente: - Primeiro, quem deixou este homem entrar sem minha autorização?

O sargento de serviço adiantou-se um passo. Todos os olhos se viraram para ele. - Perdão, senhor. Não era uma questão de quem. Era como se fosse por acordo tácito. Ele era um dos nossos, pode dizer-se, enquanto que estes estrangeiros por aqui...

Mallow interrompeu-lhe o discurso: - Simpatizo com os seus sentimentos, sargento, e compreendo-o. Estes homens estavam sob o seu comando?

- Sim, senhor.

- Quando tudo isto terminar, quero-os detidos nas suas cabinas durante uma semana. O senhor, sargento, está afastado de todos os deveres de supervisão, pelo mesmo espaço de tempo. Compreendido?

O rosto do sargento não se alterou, mas houve um perceptível descair de ombros. Disse secamente: - Sim, senhor.

- Podem retirar-se. Voltem aos seus postos de combate. - A porta fechou-se atrás deles, e o pandemônio começou.

Twer intrometeu-se. - Por que o castigo, Mallow? Sabe muito bem que os korelianos matam os missionários que aprisionam.

- Qualquer decisão contra as minhas ordens é má por si só, não importando quantos pontos favoráveis haja, para tal ação. Ninguém devia entrar ou sair desta nave, sem autorização.

O tenente Tinter murmurou revoltado. - Sete dias sem ação. Não se pode manter a disciplina dessa maneira.

As palavras de Mallow pareciam um balde de água gelada. - Eu posso. Não há qualquer mérito na disciplina, debaixo de circunstâncias normais. Exijo-a em face da morte, ou então é inútil. Onde está esse missionário? Tragam-no aqui á minha frente.

O comerciante sentou-se, enquanto que a figura envolvida por uma capa vermelha era cuidadosamente encaminhada para a frente.

- Como se chama, reverendo?

- Ahm? -. Todo o corpo do missionário virou-se para Mallow. Os seus olhos estavam indecisos, e havia ferimento numa das têmporas. Ele ainda não falara nem fizera qualquer movimento, durante todo o tempo que durara o interregno.

- O seu nome, reverendo?

O missionário repentinamente criou vida. Os seus braços tomaram uma atitude de abraçar todos os que se encontravam no aposento. - Meu filho... meus filhos. Que possam estar sempre nos braços protetores do Espírito Galáctico!

Twer adiantou-se, e disse em voz rouca: - O homem está doente. Levem-no para a cama. Ordene que o levem e que cuidem dele. O homem está magoado.

O braço musculoso de Mallow empurrou-o para trás. - Não interfira, Twer, ou terei de mandá-lo para fora da sala. O seu nome, reverendo?

As mãos do missionário juntaram-se em atitude de súplica. - Como homens civilizados, salvem-se da ira dos selvagens. Salvem-se desses brutos que me perseguem e que afligiriam o Espírito Galáctico com os seus crimes. Eu sou Jord Parma, de Anacreon; fui educado pela Fundação; pela própria Fundação, meus filhos. Sou um sacerdote do Espírito, iniciado em todos os seus mistérios, e vim aqui enviado pela voz da minha consciência. Sofri nas mãos daqueles a quem o Espírito não iluminou. Na medida em que sois filhos do Espírito, e em nome desse mesmo Espírito, peço que me salvem.

Uma voz interrompeu-os, vinda da caixa do alarme de emergência:

- Unidades inimigas á vista! Pedem-se instruções!

Todos os olhares se viraram automaticamente para o alto-falante.

Mallow soltou uma praga. Correu para o fone e ordenou: - Mantenham a vigilância! É tudo! - e desligou.

Dirigiu-se para as vigias e abrindo os cortinados, espreitou para fora.

Unidades inimigas! Vários milhares delas, personificadas por uma multidão de korelianos. Aquela multidão estendia-se de extremo a extremo da nave e á luz dos archotes de magnésio, os que vinham á frente aproximavam-se cada vez mais.

- Tinter! - O comerciante não se voltou, contudo a parte de trás do seu pescoço estava vermelha. - Ponha o alto-falante externo a funcionar, e veja o que eles desejam. Pergunte-lhes se trazem com eles um representante da lei. Não faça promessas nem ameaças, ou juro que o mato.

Tinter virou-se e saiu.

Mallow sentiu uma mão rija no seu braço, e fez um movimento brusco para se libertar.

Era Twer. A voz era como um assobio de cólera ao ouvido de Mallow. - Mallow, você deve ficar com este homem. Não há outro meio de manter a decência e a honra. Pertence à Fundação, e de qualquer forma... é um sacerdote. Esses selvagens lá fora... Está me ouvindo?

- Ouço-o muito bem, Twer. - O tom de Mallow era incisivo. - Tenho mais que fazer aqui além de guardar missionários. Farei o que apetecer, e por Seldon e toda a Galáxia, se tentar impedir-me, estrangulo-o. Não se meta no meu caminho, Twer, ou não viverá mais.

Voltou-se, e passou pelo outro. - Reverendo Parma! Já sabia que, de acordo com as convenções, nenhum missionário pode entrar no território de Korell?

O missionário tremia. - Não posso deixar de ir onde o Espírito me leva, meu filho. Se estes seres que vivem na escuridão recusam a luz, não será mais uma prova de que necessitam dela?

- Não é isso que está em jogo, reverendo. O senhor está aqui contra as ordens da Fundação e de Korell. De acordo com a lei, não posso protegê-lo.

As mãos do missionário elevaram-se de novo. O seu ar vago de há pouco desaparecera completamente. Lá fora, o alto-falante exterior da nave lançava sua voz metálica e rouca contra a turba, cujo murmúrio de revolta podia ser ouvido. O som punha-o a tremer.

- Ouve-os? Por que me fala de lei, a mim? De lei feita pelos homens? Existem leis mais altas. Não foi o Espírito Galáctico que disse: - Não deve ficar impávido diante da mágoa do teu semelhante? E não disse também: - Como fizer para com os humildes e ofendidos, assim lhe farão? Não tem uma nave? Não tem armas? E não tem por trás de você a Fundação? E á sua volta não está o Espírito que rege todo o Universo? - Fez uma pausa para respirar.

Naquele momento a voz externa do "Estrela" cessou, e Tinter voltou, com o olhar perturbado.

- Fale!

- Senhor. Eles querem que lhes entreguemos a pessoa de Jord Parma.

- Senão...?

- Há várias ameaças. É difícil interpretá-las todas. Há tantos... e parecem na verdade encolerizados. Há alguém entre eles que diz governar o distrito, e ter poderes judiciais, porém não há dúvida que não é ele quem manda, neste momento.

- Com poderes ou não, ele representa a lei. Diga-lhes que se esse governador, ou polícia, ou o que quer que seja, se aproximar sozinho da nave, ser-lhe-á entregue a pessoa de Jord Parma.

Apareceu uma pistola na sua mão. - Não sei o que é insubordinação. Jamais a enfrentei. Mas se aqui houver alguém que pensa que me pode ensinar dar-lhe-ei em troca o meu antídoto.

A pistola moveu-se num semicírculo, até parar em frente de Twer. Com um grande esforço os punhos do velho comerciante descontraíram-se, e o rosto assumiu um aspecto normal. A sua respiração era ruidosamente expelida pela narinas.

Tinter saiu e cinco minutos depois uma figura atarracada saiu do meio da multidão.

Aproximou-se da nave, com evidentes sinais de temor e apreensão. Por duas vezes se virou a meio caminho, e por duas vezes as ameaças daquele monstro de muitas cabeças, fizeram-no avançar novamente.

- Muito bem. - Mallow fez um gesto curto com o cano da pistola, que continuava a apontar. - Grun e Upshur, levem-no para fora.

O missionário gritou. Levantou os braços, e os dedos rígidos estenderam-se, enquanto que as mangas do seu hábito descobriam os braços finos sulcados de veias. Houve uma luz que iluminou momentaneamente todo o aposento. Mallow pestanejou, e de novo fez o sinal que mandava retirar o missionário.

A voz do sacerdote soou de novo, enquanto lutava em vão para se desfazer das mãos que o agarravam. - Amaldiçoado seja o traidor que abandona o seu semelhante ao mal e à morte. Ensurdecidos sejam os ouvidos que são surdos ao rogo do indefeso. Cegos sejam os olhos que não vêem a inocência. Negra para todo o sempre seja a alma que se consorcia com as trevas...

Twer tapou os ouvidos com as mãos.

Mallow guardou a pistola. - Dispersem-se, e voltem para as respectivas estações. Mantenham vigilância até seis horas depois da multidão se dispersar. Plantões duplos durante as quarenta e oito horas seguintes. Novas instruções ser-lhes-ão dadas depois. Twer, venha comigo.

Encontraram-se sós nos aposentos privativos de Mallow. Mallow indicou uma cadeira e Twer sentou-se. O seu enorme corpo parecia ter encolhido.

Mallow olhou-o com ironia. - Twer, parece que esses dois anos de política fizeram-no esquecer os hábitos dos comerciantes. Lembre-se de que posso ser muito democrático na Fundação, porém só pela tirania posso governar a minha nave como quero. Nunca saquei uma arma para os meus homens, e não teria de o fazer desta vez, se você não tivesse desobedecido a ordem.

- Twer, não tem qualquer posição oficial, mas encontra-se aqui a meu convite, e toda a cortesia lhe será devida... em particular. Contudo, daqui por diante, à frente dos meus homens eu sou "senhor", e não "Mallow". E quando eu der uma ordem, terá de andar mais depressa do que o mais baixo dos recrutas, ou ponho-o a ferros com uma rapidez que você nem sequer imagina. Entendido?

O "leader" do Partido engoliu em seco. Com relutância, disse:

- As minhas desculpas.

- Aceitas. Aperta-me a mão?

Os dedos frios de Twer foram engolidos pela enorme mão de Mallow. Twer disse: - Minhas intenções eram ótimas. É difícil mandar um homem para a morte. Esse governador covarde não poderá protegê-lo. E um assassinato.

- Não posso evitá-lo. Francamente, o incidente não cheirava muito bem. Observou?

- O que?

- Este porto encontra-se numa zona longe da cidade. Repentinamente um missionário se evade. De onde vem? Vem para cá. Coincidência? Junta-se enorme multidão. De donde vem? A cidade mais próxima, de tamanho razoável, deve ficar pelo menos a uns cem quilômetros. No entanto eles chegam dentro de meia hora. Como?

- Como? - ecoou Twer.

- Bem, e se o missionário tivesse sido trazido para cá e posto em liberdade para servir de isca. O nosso reverendo Jord Parma estava consideravelmente confuso. Parecia não ter tido tempo para ordenar as idéias.

- Maus tratos...

- Talvez! E talvez a idéia tenha sido meterem-nos a defender cavalheirescamente o homem. Ele estava aqui contra as leis da Fundação e de Korell. Se eu o mantivesse aqui, seria um ato de guerra contra Korell, e a Fundação não teria direito legal para nos defender.

- Isso... isso é ir longe demais.

O alto-falante cortou a resposta de Mallow. - Foi recebida uma comunicação oficial, senhor.

- Envie-me imediatamente!

O envelope brilhante chegou quase imediatamente. Mallow abriu-o e abriu a folha que ele continha. Esfregou a folha entre o indicador e o polegar apreciativamente. - Diretamente da capital. Escrito no papel timbrado do próprio comodoro.

Leu-o de um só relance e observou: - Com que então era ir longe demais?

Atirou a folha para Twer e continuou: - Meia hora após termos reenviado o missionário, recebemos finalmente um delicado convite para aparecermos na augusta presença do comodoro... depois de sete dias de espera. Acho que passamos na prova que nos foi imposta.

 

Comodoro Asper era um homem do povo, por aclamação. O que lhe restava de seus cabelos grisalhos, caía-lhe atrás sobre os ombros; a camisa que vestia necessitava de limpeza, e além de tudo o mais tinha um defeito de dicção.

- Aqui não há ostentação, comerciante Mallow. Não há falsos espetáculos. Em mim, vê antes de mais nada o primeiro cidadão do Estado. É o que Comodoro significa, e esse é o único título que possuo.

Parecia extraordinariamente satisfeito com tudo. - Para ser franco, considero esse fator como sendo o de maior importância nas relações entre Korell e a sua nação. Compreendo que vocês gozam da mesma bênção republicana que nós.

- Exatamente, comodoro - Mallow fez uma nota mental do fato. - É um fator que eu considero o principal nas relações de paz e de amizade existentes entre os nossos dois governos.

- Paz! Ah! - A grande barba branca do comodoro acompanhava suas caretas sentimentais. - Acho que não há duas pessoas na Periferia que tenham tão perto do coração o mesmo ideal de paz que eu tenho. Posso afirmar, sem receio de mentir, que desde que sucedi a meu pai na chefia do Estado, a paz nunca foi violada. Talvez eu não devesse dizer o que sou, mas contaram-me que o meu povo me chama Asper, o Bem-amado.

Mallow deixou que os seus olhos passeassem sobre o jardim bem arranjado onde os homens da guarda passeavam com as suas armas de feitios estranhos, talvez para protegerem o amado comodoro. Seria compreensível. Mas as altas e fortes muralhas que cercavam o palácio tinham sido reforçadas havia pouco tempo - estranha ocupação para um Bem-amado.

- Felizmente o é, comodoro. Os déspotas e monarcas dos mundos circunvizinhos que não têm a bênção de uma administração iluminada muitas vezes não possuem qualidades que podem tornar um governante Bem-amado.

- Tais como? - Havia uma nota de cuidado na voz do comodoro.

- Tais como a preocupação pelo bem do seu povo. Por outro lado, Vossa Excelência não pode deixar de compreender.

O comodoro manteve os olhos no chão enquanto passeavam e as suas mãos afagavam-se uma à outra.

Mallow continuou serenamente: - Até agora, o comércio entre as nossas duas nações tem sofrido em virtude das restrições impostas pelo seu Governo sobre os nossos comerciantes. Decerto já se lhe tornou aparente que comércio ilimitado...

- Comércio livre! - sussurrou o comodoro.

- Seja comércio livre. Deve compreender que traria benefício a ambas as partes. Há coisas que os senhores têm e que nós queremos, e vice-versa. Só poderá trazer crescente prosperidade. Um presidente com uma administração tão digna de nota, um amigo do povo... posso dizer... um membro do povo... não precisa de que eu me entenda sobre a matéria. Não insultarei a sua inteligência, elaborando.

- Verdade! Eu mesmo já o vi. Mas que quer: o seu povo ás vezes é tão difícil. Estou a favor de todo o comércio que a nossa economia possa suportar, mas não nos seus termos. Não sou aqui o único a pôr e a dispor. Sou o mais humilde criado deste meu povo. O meu povo não quer um comércio que força a aceitação do vermelho e dourado.

Mallow endireitou-se. - Uma religião compulsória?

- Com efeito assim tem sido. Decerto se lembra do caso de Askone, já lá vão vinte anos. Primeiro, venderam alguns dos seus produtos e depois o seu povo pediu completa liberdade para o trabalho missionário, de modo que toda a aparelhagem funcionasse devidamente; que fossem erguidos Templos da Saúde; depois foi o estabelecimento de escolas religiosas; direitos autônomos para todos os oficiais da religião, e com que resultado? Askone é agora um membro do grande sistema da Fundação, e o Grão-mestre nem pode considerar como suas as roupas íntimas que usa. Não, não; a dignidade de um povo independente nunca poderia permiti-lo.

- Mas eu não sugiro nada do que me fala - disse Mallow.

- Não?

- Não. Eu sou um Mestre Comerciante. A minha religião é o dinheiro. Toda esta fantochada de sacerdotes e de religião me aborrece, e fico contente de saber que o senhor também jamais a aceitará. Torna-o mais no meu tipo de personalidade.

O comodoro riu-se com um riso agudo. - Bem dito! A Fundação já me devia ter mandado um homem como o senhor antes.

Apoiou uma mão amigável sobre o enorme ombro de Mallow. - Homem, até agora você me falou de coisas que não são obrigatórias; fale-me agora das que são.

- O que na verdade há, é que o senhor ficará cheio de riquezas.

- Ah, sim? Mas para que quero eu riquezas? A verdadeira fortuna é ter-se o amor do seu povo, e isso eu já tenho.

- Pode ter as duas coisas, pois é possível colher amor com uma das mãos, e ouro com a outra.

- Isso, meu jovem amigo, seria um fenômeno que eu gostaria de observar, se fosse possível. Como poderá ser conseguido?

- Oh, de várias maneiras. A dificuldade está no escolher entre elas. Deixe-me ver; bem, os artigos de luxo, por exemplo. Este objeto que aqui tenho...

Mallow tirou do bolso uma corrente dourada, de metal polido. - Isto, por exemplo.

- O que é?

- Tem de ser demonstrado. Pode-me apresentar uma garota? Uma qualquer. E um espelho alto, também.

- Bom, bom; entremos então em casa.

O comodoro referia-se ao lugar onde vivia, como uma casa. O populacho indubitavelmente chamá-la-ia um palácio. Para o olhar direto de Hober Mallow parecia uma fortaleza. Estava construída numa colina que dominava a capital. As paredes eram grossas e reforçadas. Todos os caminhos que levavam até lá eram guardados, e a sua arquitetura estava preparada para a defesa. Precisamente o tipo arquitetônico conveniente para Asper, o Bem-amado. Uma moça jovem passava perto deles. Ela cumprimentou o comodoro, que disse: - Esta é uma das damas da comodora. Servirá?

- Perfeitamente.

O comodoro observou atentamente, enquanto Mallow prendia a corrente em volta da cintura da jovem. Depois deu um passo atrás.

- É só isso?

- Por favor, corra as cortinas. Jovem, há um pequeno botão perto do fecho. É capaz de girá-lo? Não vai fazer-lhe nenhum mal.

A moça assim fez, deu um profundo suspiro de surpresa, olhou para as mãos e soltou uma exclamação.

Partindo da sua cintura, a moça foi envolvida por uma luminosidade de cor variante, que lhe formava uma coroa de fogo por cima da cabeça. Era como se alguém tivesse arrancado do céu um aurora boreal e a tivesse soldado numa capa.

A moça parou em frente do espelho e mirou-se nele fascinada.

- Tome isto. - Mallow deu-lhe um colar de cristais escuros. - Ponha-o em volta do pescoço.

A jovem dama assim fez, e cada pedra que entrava no campo de radiação parecia transformar-se numa labareda de ouro e carmim.

- Que pensa disto? - perguntou-lhe Mallow. A jovem não respondeu, mas nos seus olhos havia fascinação; o comodoro fez um gesto e, relutante, ela girou de novo o botão, e a glória morreu. Ela foi-se... com uma recordação.

- É para si, comodoro, como presente para a comodora. Considere-o como um pequeno presente da parte da Fundação.

O comodoro avaliou o peso da corrente e do colar. - Como é que é feito?

Mallow encolheu os ombros. - Isso é uma pergunta para os nossos técnicos. Mas funcionará para você sem... repito... sem qualquer auxílio dos sacerdotes.

- Analisando bem a coisa, não passa de uma bugiganga feminina. Não compreendo donde viria o tal lucro.

- Dão-se bailes, recepções, banquetes... essa espécie de coisas?

- Claro!

- Compreende o que as mulheres pagarão por essa espécie de jóias? Pelo menos dez mil créditos.

O comodoro soltou uma exclamação de surpresa.

- E já que a unidade de energia deste adorno não dura mais do que seis meses, haverá necessidade freqüente de substituição. Agora, poderemos ceder-lhe a quantidade que quiser, ao preço equivalente de mil créditos de ferro fundido. Há um lucro de novecentos por cento para você.

O comodoro parecia estar extremamente preocupado com cálculos mentais. – Pela Galáxia, como as velhas damas vão brigar por isto! Não vou pôr à disposição delas um grande fornecimento, de forma a deixá-las fazer as ofertas. Claro que não as deixaria saber que sou eu pessoalmente.

Disse Mallow: - Posso explicar-lhe como se manobra uma corporação, como testa de ferro. Depois, mais para diante, podemos fornecer-lhes a nossa linha completa de aparelhos domésticos. Temos fornos e fogões que cozinham a carne mais dura, em dois minutos; facas que não necessitam de ser afiadas. Temos uma pequena máquina de lavar, que lava uma enorme quantidade de roupa automaticamente; máquinas de lavar louça, aspiradores, enceradeiras, produtos de iluminação... enfim, tudo quanto desejar. Pense como vai aumentar sua popularidade, tornando todas estas maravilhas acessíveis ao seu povo. Pense no lucro incalculável que vem beneficiar o seu Governo. O público pagará o que o senhor pedir, e não há qualquer necessidade que saibam quanto é que paga por sua vez. E lembre-se, também, que nenhum destes produtos necessita da supervisão sacerdotal. Todos se sentirão imensamente felizes.

- A exceção de você próprio. Qual é o seu ganho?

- O que todo o comerciante ganha, pelas leis da Fundação. Os meus homens e eu recebemos metade de todos os lucros. Se o senhor me comprar tudo o que eu tenho para lhe vender, não se preocupe, que ambos nos sairemos bem da nossa empresa. Muito bem, mesmo.

O comodoro entregava-se ás suas cogitações. - Qual é a forma de pagamento que pediu? Ferro?

- Ferro, carvão e bauxita. Também tabaco, especiarias, magnésio e polpa de madeira. Não lhe peço nada que o senhor não tenha em abundância.

- Parece-me aceitável.

- Acho que sim. Outra coisa: posso também reabastecer de acessórios as suas fábricas?

- Como?

- Veja, por exemplo, o caso de suas fundições de aço. Tenho pequenas invenções que reduziriam os custos de produção, em noventa e nove por cento. Podia dar cinqüenta por cento aos fabricantes, e ainda guardar quase outro tanto para você. Podia mostrar-lhe precisamente o que quero dizer, aqui na cidade. Não demoraria muito tempo.

- Tudo isso é possível, comerciante Mallow. Mas só amanhã. Quer dar-nos o prazer de jantar esta noite conosco?

- Os meus homens... - começou Mallow dizendo...

- Que venham todos - tornou o comodoro expansivo. - Uma união amigável das nossas duas nações. Dar-nos-á oportunidade de discutirmos um pouco mais este assunto. Com uma única condição: é de não haver qualquer discussão religiosa. Não pense que isto será uma brecha de entrada aos missionários.

- Comodoro, dou-lhe a minha palavra de honra que a religião comeria todos os meus lucros.

- Então por ora basta. Vou mandá-lo escoltar até à sua nave.

 

A comodora era muito mais jovem do que o seu marido. O seu rosto era pálido e frio, e os cabelos negros eram presos na nuca.

Sua voz estava cheia de irritação. - Já terminou, meu nobre marido? De todo? Suponho que agora já posso ir para o jardim.

- Não há necessidade de dramatizar, minha querida Lícia. Aquele jovem é nosso convidado para o jantar desta noite, e pode falar com ele tudo o que desejar, e mesmo divertir-se com as coisas que eu vou dizer. Temos de arranjar lugar para os seus homens. Espero que não sejam muitos.

- Provavelmente são uns comilões, e você gemerá durante duas noites seguidas, quando vir a despesa.

- Talvez não. Apesar de sua opinião, o jantar deve ser farto.

- Com que então você se torna amigo desses bárbaros. Talvez fosse por isso que não consentiu que ouvisse sua conversa. Talvez se prepare para atraiçoar o meu pai.

- De forma alguma.

- Espera que eu acredite em você? E fui eu sacrificada com este casamento. Poderia ter escolhido um homem muito melhor do que você, mesmo entre a ralé do meu mundo nativo.

- Talvez a senhora deseja voltar para o seu mundo; mas para eu poder reter a parte do vosso corpo que melhor conheço, como recordação, teria de mandar cortar-lhe a língua, antes de deixá-la partir. E para melhorar um pouco a sua beleza, cortar-lhe-ia também as pontas do nariz e das orelhas.

- Não terias coragem para isso, meu velho. O meu pai mandaria pulverizar sua nação-brinquedo. De qualquer maneira, ele poderia fazê-lo, se eu lhe dissesse que você está negociando com esses bárbaros.

- Não há necessidade de ameaças. Terá oportunidade de interrogar aquele homem, à noite. Entretanto, "madame", é favor não soltar a língua.

- Às suas ordens?

- Tome lá este presente e cale-se.

Depois de lhe ter colocado os adornos, foi o próprio comodoro que acionou o botão. A comodora teve uma exclamação de surpresa, tocou ao de leve no colar, e ficou fascinada.

O comodoro esfregou as mãos com satisfação. - Pode usá-lo esta noite... haverá mais, donde esse veio. Agora cale a boca.

A comodora calou-se.

 

Jaim Twer estava pouco á vontade. - Por que está de cara torcida? Hober Mallow saiu do transe. - A minha cara está torcida? Não devia estar.

- Alguma coisa deve ter acontecido ontem... quero dizer... além da festa. Há enrascadas, não há Mallow?

- Enrascadas? Não! Pelo contrário. Preparei-me para atirar o meu corpo contra uma porta supostamente fechada, e encontrei-a já aberta. Deixam-nos entrar nesta fundição com demasiada facilidade.

- Suspeita de alguma armadilha?

- Por amor de Seldon, não seja melodramático! Esta entrada simples quer dizer que não há nada para ver.

- Energia atômica? Parece não haver qualquer indício de política atômica, em Korell. Seria muito difícil esconder uma coisa dessas.

- Não, se estiver no início, Twer, e se for aplicada a uma economia de guerra. Só a encontraria nos estaleiros e nas fundições.

- De modo que se não encontrarmos...

- É porque nada têm... ou porque nada querem mostrar. Atire uma moeda ao ar e adivinhe.

Twer abanou a cabeça. - Gostaria de ter estado ontem com você.

- Também eu. Não tenho qualquer objeção ao apoio moral. Infelizmente foi o comodoro quem ditou os termos do encontro, e não eu. Parece-me que já está lá fora o carro que nos há de escoltar até a fundição. Está com os aparelhos?

- Todos eles.

 

A fundição era ampla, com o cheiro que nenhuma quantidade de reparações lhe poderia jamais tirar. Naquele momento estava vazia, e o silêncio não era natural, como não era hábito ser visitada pelo comodoro e pela sua Corte.

Mallow pegou numa folha de aço e colocou-a nos suportes. Depois pegou no instrumento que Twer lhe entregava.

- Este instrumento é perigoso, tal como uma serra; é tudo questão de não deixar apanhar os dedos.

Ao dizer estas palavras, deixou que a ponta corresse ao longo da folha, que imediatamente ficou cortada em duas partes.

Os espectadores deram um salto, e Mallow riu-se. - O comprimento do corte pode ser ajustado até um centésimo de polegada. Desde que seja determinada a espessura da folha com exatidão, pode fazer-se um corte de qualquer tamanho.

E apanhando aquele instrumento começou a aparar o aço.

- Querem, no entanto, diminuir a espessura de uma folha? Temos uma plaina do mesmo tipo. Ou broca? O princípio é sempre o mesmo.

Agora, amontoavam-se todos em semicírculo, como se estivessem vendo um espetáculo de magia, um ato de variedades, ao invés de uma simples demonstração. As mais altas patentes do Governo empurravam-se umas às outras, para melhor poderem ver as habilidades de Mallow com a broca atômica.

- Uma última demonstração. Tragam-me dois pedaços de tubo de aço. Um dos dignitários foi buscar dois pedaços de tubo.

Mallow, de um só golpe, cortou ambas as extremidades de um e de outro, e depois uniu-os. Os dois pedaços formavam um só, sem necessidade de blocos ou de juntas ou alisamento.

Mallow olhou o seu grupo de espectadores, ia proferir mais umas palavras, porém de repente parou. A base do seu estômago parecia ter ficado repentinamente gelada.

A guarda pessoal do comodoro, no meio da excitação geral, tinha-se aproximado do grupo na primeira fila e, pela primeira vez, Mallow teve de ver as estranhas armas que usavam à cintura.

Eram armas atômicas, disso não tinha nenhuma dúvida; mas o mais importante era o distintivo que via estampado na coronha dessas armas.

A Nave e o Sol! A mesma Nave e o Sol de que todos os livros de História falavam, como sendo o distintivo do Império Galáctico.

Mallow continuou a falar, a despeito dos seus funestos pensamentos. Quando achou que a lengalenga era suficiente, parou.

De qualquer maneira já tinha o que queria. O distintivo que via naquelas coronhas era a finalidade de sua viagem.

O Império! Os pensamentos redemoinhavam. Tinham passado cento e cinqüenta anos, mas o Império continuava a existir, em qualquer ponto da Galáxia. E começava de novo a emergir na Periferia. Mallow sorriu.

 

A "Estrela" estava no espaço havia dois dias, quando Hober Mallow, na sua cabina, entregou ao tenente Drawt um envelope, um rolo de microfilme, e um esferóide prateado.

- Daqui a uma hora o senhor assumirá o comando da "Estrela", até â minha volta... ou para sempre.

Drawt fez menção de se levantar, mas Mallow não o deixou.

- Fique quieto e ouça! O envelope contém a posição exata do planeta para onde deve se dirigir. Uma vez ali, deverá aguardar dois meses por mim. Se a Fundação descobrir o seu paradeiro antes desses dois meses, o microfilme é o meu relatório desta viagem. Contudo, - a sua voz tomou um tom sóbrio - se eu não regressar ao fim desses dois meses, e se as naves da Fundação não descobrirem o seu pouso, deve dirigir-se para o planeta Terminus, e entregar a cápsula como relatório. Compreendeu?

- Muito bem, senhor.

- Em nenhum momento, está o senhor ou qualquer outro oficial, autorizado a ampliar o meu relatório.

- E se formos interrogados?

- É como se não soubessem de nada.

- Muito bem.

A entrevista terminou e, cinqüenta minutos depois, uma nave salva-vidas largava da "Estrela".

 

Onum Barr era demasiado velho para ter medo. Desde as últimas perturbações que ele vivia sozinho, nos limites da sua terra, com os livros que conseguira salvar das ruínas. Não havia nada que receasse perder, nem mesmo o que restava de sua vida, de modo que enfrentou o estranho sem qualquer temor.

- A sua porta estava aberta - explicou o estranho.

O seu acento era ríspido, e Barr não deixou de notar a arma que trazia à cintura. Na obscuridade do pequeno compartimento o velho não deixou de ver o brilho do campo magnético que rodeava o homem.

- Não há motivos para conservá-la fechada. Deseja alguma coisa de mim?

- Sim. - O estranho não se moveu do meio do compartimento. - A sua casa é a única nestas redondezas?

- É um local ermo, mas há uma cidade para leste. Posso mostrar-lhe o caminho.

- Dentro de pouco tempo. Posso sentar-me?

- Se as cadeiras o agüentarem. - Também as cadeiras eram velhas; relíquias de uma juventude melhor.

- Chamo-me Hober Mallow. Sou de uma província longínqua.

Barr assentou e sorriu. - Sua língua já o acusou há muito. Sou Onum Barr de Siwena... e já fui cidadão do Império.

- Então Siwena é aqui. Só me consegui guiar por mapas antigos.

- Deveriam ser na verdade muito antigos, para que a posição das estrelas se tivesse alterado.

Barr deixou-se ficar quieto, enquanto que o olhar do outro se desvanecia nos seus pensamentos. Notou que o escudo magnético desaparecera do redor do estranho, e admitiu de si para si, que a sua pessoa já não parecia formidável, nem para estranhos... nem mesmo aos seus inimigos.

- A minha casa é pobre e os meus recursos escassos. Posso dividir com você o que tenho, se o seu estômago conseguir agüentar pão negro e milho seco.

Mallow abanou a cabeça. - Não; já comi e não posso demorar-me. Tudo o que necessito são as direções para o centro do Governo.

- Isso é fácil, e a minha pobreza não aumenta com isso. Refere-se à capital do planeta, ou ao Setor Imperial?

O estranho olhou-o interessado. - Não são a mesma coisa? Estou em Siwena, ou não?

O velho patrício confirmou com um sinal de cabeça, vagaroso. - Siwena sim, mas não mais a capital do Setor Normânico. Parece que ao fim e ao cabo, o seu velho mapa o enganou. As estrelas podem-se manter durante séculos, mas as fronteiras políticas não são demasiado elásticas.

- É pena que assim seja. A nova capital fica muito longe?

- Fica em Orsha II. O seu mapa guiá-lo-á; quanto tempo tem?

- Cento e cinqüenta anos.

- Assim tão velho? A História tem dado muitas voltas desde então. Sabe alguma coisa disso?

Mallow abanou a cabeça, em sinal negativo.

- E feliz. Foi um período mau para as províncias, â exceção do reinado de Stannel VI, e ele já morreu há cinqüenta anos. Desde então, não se tem passado de ruínas e de revoltas, revoltas e ruínas. Barr imaginou se ainda seria capaz de conversar. A vida neste confim era solitária, e pouca oportunidade havia de falar com outros homens.

- Ruína? Parece que a província está empobrecida.

- Talvez não completamente. Os recursos físicos de vinte e cinco planetas de primeira grandeza levam muito tempo a serem esgotados. Comparado, no entanto, com a prosperidade do século passado, caminhamos para a decadência... e não há qualquer sinal de que cesse. Por que está assim tão interessado em tudo isto? É jovem, e o seu olhar brilha.

- Sou um comerciante daquelas bandas... dos confins da Galáxia. Descobri alguns mapas antigos e vim à procura de novos mercados. Naturalmente, conversas de províncias empobrecidas preocupam-me. Não se pode procurar dinheiro onde ele não existe. Que tal está Siwena?

- Não sei dizer; talvez ainda sirva. Mas você, um comerciante? Parece mais um homem de ação. A sua mão está sempre perto da arma, e há cicatrizes no seu rosto.

- Da região de onde venho não há lei. Lutas e cicatrizes fazem parte da vida de um comerciante. Mas a luta só é boa quando tem por objetivo o dinheiro, mas se eu puder obtê-lo sem esforço, muito melhor. Valerá ainda a pena lutar pelo que aqui ainda há? Lutas sou perito em descobrir.

- Seria na verdade fácil. Aliste-se no que resta das "Estrelas Vermelhas" de Wiscard. Não sei, no entanto, se se deva chamar a esses indivíduos de lutadores ou piratas. Podia também juntar-se ao nosso gracioso vice-rei... por direito de assassínio, pilhagem e rapina. - O rosto do ancião afogueou-se.

- Não fala do vice-rei com muita simpatia. E se eu fosse um de seus espiões?

- E se for? Que pode levar? - O seu braço descarnado fez um gesto largo que abrangeu toda a mansão arruinada.

- A sua vida.

- Seria fácil tirar-ma. Já está comigo há demasiado tempo. Porém você não é um dos homens do vice-rei, ou o meu instinto de autoconservação não me deixaria falar.

- Como sabe?

- Parece que suspeita. Vamos; aposto em como pensa que eu estou tentando falar contra o Governo. Não! Eu já ultrapassei a política.

- Quem a ultrapassou? As palavras que usou para descrever o vice-rei... quais foram... assassínio, pilhagem, tudo isso. Não me pareceu muito objetivo. Não me pareceu que tivesse deixado a política.

O velho encolheu os ombros. - As recordações magoam, quando vêem repentinamente. Ouça! Julgue por você. Quando Siwena era capital provincial, era eu membro dó Senado provincial. A minha família era antiga e venerada. Um dos meus avós, foi... Não, isso não importa. Glórias passadas são alimento pobre.

- Deduzo que houve uma guerra civil, ou revolução.

O semblante de Barr tornou-se carregado. - As guerras civis naquela época eram crônicas, porém Siwena tinha-se mantido aparte. Sob a égide de Stanell VI, quase que reconquistou sua antiga prosperidade, mas seguiram-se-lhe imperadores fracos, e imperadores fracos significam vice-reis fortes, até que o nosso último vice-rei... Wiscard, cujos restos ainda hoje se dedicam â pirataria entre as "Estrelas Vermelhas"... decidiu tentar apoderar-se da Púrpura Imperial. Não foi o primeiro a tentar, e se tivesse sido bem sucedido não seria desde já o primeiro. Porém falhou. Quando o almirante do Imperador se aproximou da província á testa duma esquadra, a própria Siwena se rebelou contra o vice-rei rebelde.

- Por favor, continue! - Mallow estava tenso, esperando ouvir a continuação da história.

- Obrigado. É bondade de sua parte incentivar um velho. Revoltaram-se! Ou talvez deva dizer, rebelamo-nos, pois eu fui um dos responsáveis. Wiscard deixou Siwena à nossa frente; o planeta e com ele a província foram abertos ao almirante, com todos os gestos de lealdade possíveis para com o Imperador. Por que o fizemos, não sei. Talvez nos sentíssemos leais ao símbolo, ainda que não à pessoa do Imperador. Talvez temêssemos o horror dum cerco.

- E então?

- Parece que mesmo assim o almirante não ficou satisfeito. Queria a glória de conquistar uma província rebelde, e os seus homens queriam a pilhagem que tal conquista acarretaria. De modo que, enquanto o povo se juntava nas praças de todas as cidades, aclamando o Imperador e o seu almirante, este mandou ocupar todos os armazéns, e depois mandou executar a população com descargas atômicas.

- Sob que pretexto?

- Sob o pretexto de que a população se revoltara contra o seu vice-rei, abençoado pelo Imperador. E o almirante tornou-se o novo vice-rei, após um mês de massacres, pilhagem e de toda a espécie de horrores concebíveis. Eu tinha seis filhos. Cinco morreram... de maneiras diversas. Tinha uma filha. Espero que ela tenha morrido, eventualmente. Eu escapei por ser velho. Vim para cá, demasiado velho para causar preocupações ao nosso novo vice-rei. Não me deixaram nada, porque eu ajudei a expulsar um Governador rebelde, e roubei assim um almirante de sua glória.

- E o seu sexto filho?

- Esse. - Barr sorriu forçado. - Esse está seguro, pois juntou-se às forças do almirante, sob um nome falso. É artilheiro na frota pessoal do vice-rei. Não, nada do que está pensando; não é um filho desnaturado. Ele visita-me quando pode, e traz-me o que pode. É ele que me mantém vivo. Um dia virá em que o nosso vitorioso almirante encontrará a morte, e o meu filho será o seu carrasco.

- E diz tudo isso a um estranho? Faz perigar a vida do filho.

- Não. Estou ajudando-o, introduzindo um novo inimigo. E fosse eu amigo do vice-rei, como sou seu inimigo, aconselhá-lo-ia a encher o espaço de naves, até o extremo limite da Galáxia.

- Lá, não há naves?

- Encontrou alguma por acaso? Algum guarda o interrogou? Sendo as naves poucas para guardar as outras províncias, que também estão cheias de sua parte de intrigas e iniqüidades, não se pode dispensar nenhuma para guardar os limites bárbaros. Nenhum perigo jamais nos ameaçou, dos confins da Galáxia... até você chegar.

- Eu? Eu não represento perigo.

- Haverá outros que o seguirão.

- Não o compreendo.

- Escute! - a voz do ancião era febril. - Conheci-o quando entrou. Tinha um campo magnético à volta do seu corpo quando o vi entrar.

- É verdade. Tinha.

- Bem. Havia uma falha, porém você não o sabia. Ainda há coisas de que eu me lembro, embora hoje em dia seja decadente alguém dedicar-se ao estudo. Os acontecimentos precipitam-se, e quem não souber lutar contra a corrente, como eu, é arrastado. Contudo já fui um estudioso, e sei que em toda a história da energia atômica nunca foi inventado um campo magnético portátil. As que temos são enormes, capazes de proteger uma cidade, e uma nave, jamais um só indivíduo.

- E que se pode deduzir?

- Há histórias que conseguem atravessar o espaço. Os caminhos por onde passam são estranhos, e cada vez se tornam mais distorcidos... mas quando eu era um jovem, apareceu uma nave com estrangeiros que não conheciam os nossos costumes, e não sabiam dizer de onde vinham. Falaram de magos, nos confins da Galáxia; magos que brilhavam no escuro, que voavam pelo espaço sem qualquer ajuda, e a quem as armas não conseguiam atingir.

- Rimo-nos; ri-me também. Esqueci-me disso até hoje. Mas você também brilha na escuridão e se eu tivesse uma arma tenho a certeza de que não o molestaria... Diz-me: também pode voar pelo espaço, do mesmo modo que se encontra aí sentado?

Mallow respondeu calmamente: - Não percebo onde quer chegar.

- Essa resposta basta-me. Não interrogo os meus hóspedes. Porém se na verdade existem tais magos e se você for um deles, não resta dúvida que o seguirão. Tudo irá bem. Necessitamos de sangue novo. Mas também se dá o caso contrário; o nosso vice-rei também sonha, como Wiscard.

- Também anda atrás da coroa do Imperador?

- O meu filho ouve algumas histórias. Na corte pessoal do vice-rei é inevitável, e ele conta-me. O nosso almirante não recusaria a Coroa se lha oferecessem, porém mantém um caminho de retirada. Conta-se de que se o golpe para se apoderar na coroa falhar, ele tem planos para formar um novo Império, nos territórios Bárbaros. Já se diz, embora eu não o afirme, que até deu em casamento uma das suas filhas a um rei sem importância, de um daqueles reinos desconhecidos da enorme Periferia.

- Se se der ouvidos a todas as histórias...

- Eu sei; mas há muitas mais. Eu sou velho e digo disparates; mas que diz você? - E os seus olhos cansados penetravam fundo.

O comerciante considerou. - Não digo nada, mas gostaria de lhe perguntar uma coisa. Siwena tem energia atômica? Espere um pouco: - que tem conhecimentos aplicados nesse campo, já sei. O que quero saber é se têm geradoras intactas, ou se durante a revolta foram destruídas?

- Destruídas! Não! Metade do planeta desapareceria antes que fosse permitida a destruição da mais insignificante geradora. São irreparáveis, e a principal fonte de energia da armada. Temos a maior e melhor geradora, fora de Trantor.

- Que teria eu de fazer se quisesse ver uma dessas estações?

- Nada! -exclamou Barr decidido. - Não poderia aproximar-se de qualquer centro militar, sem que fosse instantaneamente morto. Nem você, nem ninguém. Siwena ainda não recuperou os direitos civis.

- Quer dizer que todas as estações centrais estão sob guarda da milícia?

- Não. Há as subestações urbanas, as que fornecem energia para a iluminação e aquecimento das casas, funcionamento de veículos, etc. Mas são quase a mesma coisa. São controladas pelos técnicos.

- Quem são eles?

- Um grupo especializado que supervisiona as geradoras. Essa honra é hereditária, sendo os mais jovens iniciados desde muito cedo, como aprendizes. Uma estrita consciência do dever, e tudo o mais. Só um técnico poderia entrar numa estação.

- Estou entendendo.

- Não quero dizer que não haja casos onde os técnicos não possam ser comprados. Nos dias em que nós temos nove imperadores em cinqüenta anos, e que sete deles são assassinados... quando o menor dos capitães aspira â usurpação da vice-realeza, e os vice-reis ao Império, suponho que um técnico seja suscetível de ser comprado. Mas seria necessário muito dinheiro, e eu não tenho nenhum. Você tem?

- Dinheiro? Não! Mas nem sempre é preciso dinheiro para comprar uma pessoa.

- Mesmo sendo o dinheiro, o poder que pode comprar todas as outras coisas?

- Há mesmo muitas coisas que o dinheiro não consegue comprar. E agora, se me disser qual é a cidade mais próxima que tenha uma dessas geradoras, agradeço-lhe.

- Espere! Onde vai correndo? Você vem aqui e eu não lhe faço perguntas. Na cidade, onde os habitantes são ainda apelidados de rebeldes, seria interrogado pelo primeiro guarda que passasse em serviço, e visse as suas roupas ou ouvisse a sua voz.

Levantou-se, e de um canto escuro dum velho armário, tirou um folheto. - O meu passaporte... falsificado. Foi com ele que eu consegui fugir.

Pôs o folheto nas mãos de Mallow, e fechou sobre ele a mão. - A descrição não lhe serve, mas se o brandir, há grandes possibilidades de que não olhem com muita atenção.

- Mas você... você fica sem ele.

- Que importa. Mais uma precaução a tomar. Não fale demais! O seu sotaque é uma barbaridade, suas palavras estranhas, e de vez em quando deixa escapar arcaísmos surpreendentes. Quanto menos falar, menos suspeitas levantará. Agora, vou dizer-lhe qual o caminho a tomar para a cidade.

Cinco minutos depois, Mallow havia sumido.

Voltou a olhar uma só vez, por um momento, antes de partir definitivamente. Quando Onum Barr saiu para o jardim, na manhã seguinte, encontrou a seus pés um pequeno caixote, contendo provisões; provisões, como seria natural encontrar-se a bordo de uma nave; eram estranhas no sabor e na preparação.

Mas eram boas, e durariam muito tempo.

 

O técnico era um homem atarracado, com a pele esticada e brilhante de gordura. O seu cabelo era ralo, e através dele via-se o crânio luzidio. Os anéis que lhe adornavam os dedos eram pesados e grossos, as roupas perfumadas, e era o primeiro homem que Mallow via naquele planeta, que não tinha ar esfomeado.

- Vamos meu homem, depressa. Tenho assuntos importantes à minha espera. Parece um estrangeiro... - observou de perto as vestes estranhas de Mallow, e o seu olhar estava carregado de suspeitas.

- Não sou destas redondezas - respondeu Mallow calmamente - mas isso não importa. Tive a honra e o prazer de lhe enviar um pequeno presente, ontem...

O homem prestou-lhe atenção. - Recebi-o ontem. Interessante. Há de ser útil.

- Tenho outros presentes, e todos mais interessantes. Muito diferentes do que lhe enviei ontem.

O homem calou-se por um momento, pensativo - parece-me adivinhar o curso que vai tomar a nossa entrevista; já aconteceu outras vezes. Vai julgar dar-me alguns presentes sem qualquer importância, o que julgar ser suficiente para corromper a alma dum técnico. E sei muito bem o que quer em troca. Houve muitos outros que tiverem a mesma idéia brilhante. Quer ser adotado pela nossa irmandade. Quer que lhe seja ensinado o segredo da energia atômica, e o cuidado para com os maquinismos. Vocês, cães de Siwena... e a sua roupa de corte estranho deve ser usado para sua segurança... pensam que podem escapar ao castigo que lhes aplicamos diariamente, e que merecem, entrando para a nossa sociedade, para que sejam por ela protegidos.

Mallow ia começar a falar, mas a voz do técnico elevou-se. - E agora desapareça antes que dê o seu nome ao Protetor da Cidade. Pensa que atraiçoaria assim toda a confiança depositada em mim? Os traidores siweneses que me precederam talvez o tivessem feito. Mas agora nós somos diferentes. Maravilho-me de como não o mato imediatamente, eu mesmo, com minhas próprias mãos.

Mallow sorriu. Todo o discurso não passava duma artificialidade de tom e conteúdo, de modo que toda a indignação se transformava numa farsa.

O comerciante olhou bem humorado para as duas mãos gorduchas que o seu interlocutor havia nomeado como possíveis carrascos imediatos, e disse: - Sua Sabedoria engana-se em três pontos. Primeiro: não sou nenhum dos homens do vice-rei, enviado para provar a sua honestidade. Segundo: o meu presente é tal que nem o Imperador em toda a sua grandeza jamais possuirá outro igual. Terceiro: o que eu desejo em troca é muito pouco; um nada.

- Isso você o diz! - Sua voz tomou um tom de sarcasmo. - Que doação imperial é essa, que o seu poder deseja dar-me? Algo que o Imperador não tem?

Mallow levantou-se e empurrou a cadeira para o lado. - Esperei três dias para falar com Sua Sabedoria, porém a demonstração não demorará mais do que três minutos. Se o senhor puxar essa arma cuja coronha vejo perto de sua mão...

- Eh?

-...e atirasse sobre mim, ficava-lhe muito agradecido.

- O que?

- Se eu morrer, pode declarar à Polícia que eu tentei suborná-lo. Receberá elogios. Se eu não morrer, poderá guardar o meu escudo.

Pela primeira vez o técnico tomou consciência da fraca luminosidade que envolvia o seu visitante. Olhando o suspeito, sacou da sua arma, apontou e acionou o gatilho.

A linha dirigida ao coração de Mallow desviou-se. Enquanto o olhar de paciência de Mallow não se alterava, a carga atômica atirada contra ele desfazia-se no ar.

A arma do técnico tombou para o chão, com um ruído seco.

- O Imperador terá um escudo magnético individual? Você pode tê-lo.

- É técnico?

- Não.

- Então... onde conseguiu isto?

- Que lhe importa? Quer? - Uma corrente pequena caiu sobre a mesa. - Aí a tem.

O técnico apanhou-a, e segurou-a com nervosismo. - Está completa?

- Completa.

- De onde vem a energia?

O dedo de Mallow apontou para uma das esferas que compunham a corrente.

O rosto do técnico, ao olhar para Mallow, estava congestionado. -Senhor: há vinte anos que sou técnico de grau superior, e estudei sob a supervisão do grande Bler, da Universidade de Trantor. Se possuir charlatanice suficiente para me dizer que uma esfera do tamanho de uma noz contém uma geradora atômica, levo-o perante o Protetor, em menos de um minuto.

- Explique-o então, se quiser. Eu lhe afirmo que está completo.

O técnico pôs a corrente à volta da cintura, e seguindo os gestos de Mallow, apertou a esfera. A radioatividade que o envolvia atenuou-se. Sua arma levantou-se, porém ele parecia hesitar ainda. Quando disparou  contra si mesmo, o fogo bateu-lhe na mão e saltou, sem produzir qualquer efeito.

Ele virou-se. - E se agora eu o matasse, e ficasse com o escudo?

- Experimente! - disse Mallow. - Pensa que lhe dei a última amostra? - E também ele se deixou envolver completamente pela luz.

O técnico riu nervosamente. - E que vem a ser esse nada que deseja em troca?

- Quero ver suas geradoras.

- Saiba que isso é proibido. Significa sermos os dois lançados no espaço, se nos apanham...

- Não quero tocar-lhes nem experimentá-las de qualquer forma. Quero simplesmente vê-las de longe.

- E se eu não permitir?

- Fique com o seu escudo, e eu fico com as outras coisas. Por exemplo, uma arma especialmente desenhada para atravessar esse campo magnético.

Os olhos do técnico olharam ao redor. - Venha comigo.

 

A casa do técnico era um pequeno edifício de dois andares, no exterior da imensidão cubicular e sem janelas que dominava o centro da cidade. Mallow passou de um para o outro, através de um túnel, e viu-se na atmosfera carregada de ozone, da sala de "controle" da geradora.

Durante quinze minutos seguiu silencioso o seu guia. Os seus olhos não perdiam o mais insignificante pormenor, mas os seus dedos nada tocavam. -Já viu o suficiente? Neste caso não poderia confiar nos meus ajudantes.

- Já alguma vez confiou? - perguntou Mallow com sarcasmo. - Já vi tudo.

Voltaram ao escritório, e Mallow disse pensativo: - E tudo isto está em suas mãos?

- Tudo.

- E mantém tudo isto em ordem de bom funcionamento?

- Assim é.

- E se houver alguma avaria?

O técnico meneou a cabeça com indignação. - Não há avarias. Foram construídas para durar uma eternidade.

- Uma eternidade é muito tempo. Suponha você...

- Não é científico supor casos sem uma finalidade em vista.

- Está bem. Suponha que eu agora disparasse de modo a inutilizar uma das parte vitais? Suponho que estes maquinismos não são imunes a forças atômicas. Que fariam perante uma avaria vital?

- Então - gritou o técnico furioso - você morreria.

- Isso eu já sei. Mas que fariam á geradora? Poderiam repará-la?

- Já conseguiu o que queria; agora vá-se embora! Já não lhe devo nada! Mallow cumprimentou-o e saiu.

Dois dias depois estava de volta à base onde a "Estrela" o esperava, para regressar ao planeta Terminus.

E dois dias depois o escudo que Mallow oferecera ao técnico deixou de funcionar, e nunca mais funcionou apesar de todas as suas maldições.

 

Mallow descansava pela primeira vez em seis meses. Estava deitado de costas no alpendre da sua nova casa, tomando um banho de sol. Os braços estavam estirados, mas os músculos repousavam.

O homem que se encontrava ao seu lado, acendeu um charuto, e colocou-lho entre os dentes, acendendo em seguida outro para si. - Deve ter trabalhado demais. Talvez precise de um longo repouso.

- Talvez sim, Jael, mas prefiro descansar numa cadeira da sala do Conselho. Porque na verdade eu vou conquistar esse lugar e quem vai me ajudar será você.

Ankor Jael arqueou as sobrancelhas. - Como é que eu entro nisto?

- Já entrou. Primeiro, porque é um velho político. Segundo, porque o expulsaram do seu lugar no gabinete, e quem o fez foi Jorane Sutt, o mesmo que não quer ver a mim no gabinete. Não acha que tenho grande oportunidade, não?

- Nem por isso - concordou o ex-Ministro da Educação. - Você é de Smyrno.

- Isso não é impedimento legal. Fui educado pela Fundação.

- Vamos mais devagar. Desde quando é que o preconceito reconhece a lei? Que diz Jaim Twer?

- Ele já falou em me pôr no Conselho, há mais de um ano, mas eu já o ultrapassei. De qualquer maneira, ele não o teria conseguido. Não tem tino suficiente. É vulgar, e força demasiado as coisas... para dar uma expressão de caráter negativo, unicamente. Vou dar um golpe e precisarei de você.

- Jorane Sutt é o político mais esperto que há no planeta, e vai ser o seu principal oponente. Não vou dizer que conseguirei superá-lo em esperteza. De qualquer modo, não deixe de pensar que ele vai lutar muito, e com jogo sujo.

- Eu tenho dinheiro.

- Isso já é uma ajuda. Mas é preciso muito para comprar o preconceito... de você ser de Smyrno.

- Mas eu tenho muito.

- Vou ver o que se pode fazer. Mas depois não me venha dizer que eu é que tive a culpa. Quem é?

Mallow pensou um pouco e disse: - O próprio Jorane Sutt, se não me engano. Vem cedo, mas eu compreendo; ando fugindo dele há quase um mês. Vá para a sala aqui ao lado, e ouça a conversa.

Empurrou o membro do Conselho para fora da sala, e cobriu-se com um roupão de seda. A luz solar sintética voltou ao normal.

O secretário do Prefeito entrou aprumado, enquanto um mordomo fechava a porta atrás dele.

Mallow apertou o cinto e disse: - Escolha uma cadeira, Sutt.

Sutt mostrou um sorriso. - Se me disser quais as suas condições, podemos entrar em acordo, imediatamente.

- Que condições?

- Não sejamos ingênuos. Por exemplo: que fez em Korell? O seu relatório foi incompleto.

- Já lho dei há meses; na ocasião o senhor ficou satisfeito.

- Sim, mas desde então a sua atitude tem-se tornado significativa. Sabemos muito bem o que anda fazendo, Mallow. Sabemos com certeza, quantas fábricas está montando; com que pressa o faz; e quanto lhe custa. E este palácio que tem aqui, que lhe importou em mais do que o meu salário de um ano; e a forma como tem aliciado as camadas mais altas da Fundação.

- E assim? Além de provar que tem espiões muito capazes, nada mais prova.

- Mostra que possui dinheiro que não possuía há um ano. E isso pode mostrar muita coisa... que se tenha passado em Korell, sem nosso conhecimento. De onde lhe vem todo esse dinheiro?

- Meu caro Sutt! O senhor na verdade não espera que eu lhe diga!

- Não.

- Bem me parecia; é por isso mesmo que lhe vou dizer: vem direitinho dos cofres do comodoro de Korell.

Sutt pestanejou.

- Infelizmente para você o dinheiro é legítimo. Sou um Mestre Comerciante, e troquei várias bugigangas por cobre e ferro fundido. Cinqüenta por cento do lucro é meu, pelo contrato que tenho com a Fundação. O resto desse dinheiro vai para o Estado ao fim do ano, quando todos os bons cidadãos pagam os seus impostos de rendimento.

- Não houve qualquer menção de um acordo comercial no seu relatório.

- Também não menciona o que é que eu comi no meu almoço, daquele dia, ou o nome da minha atual amante, ou qualquer outro pormenor irrelevante. Fui enviado para manter os olhos bem abertos... assim o disse o senhor. Nunca os fechei. Desejava saber o que tinha acontecido às naves mercantes da Fundação, apreendidas. A verdade é que nunca ouvi falar nelas. Queria saber se Korell tinha energia atômica. O meu relatório fala das armas atômicas em poder da guarda pessoal do comodoro. Não vi qualquer outro sinal. As armas que vi são relíquias do antigo Império, e pode ser que nem sequer funcionem.

- Que eu saiba, cumpri todas as instruções, e sou um agente livre. Pela lei da Fundação, um Mestre Comerciante pode abrir novos mercados onde puder, e receberá metade de todos os lucros que haja. Quais são as suas objeções?

Sutt deixou que os seus olhos fitassem a parede, e respondeu com calma. - É costume de todos os comerciantes expandirem a religião com o seu comércio.

- Sou responsável perante a lei, e não perante os costumes.

- Há momentos em que os costumes podem ser leis mais elevadas.

- Apele então para o tribunal.

- Além de tudo o senhor é um smyrniano. Parece que a educação e a religião não conseguiram apagar esse traço do seu sangue. Ouça e entenda: - Isto está além dos mercados e do dinheiro; temos perante nós a ciência do grande Hari Seldon que nos afirma que de nós depende um futuro Império, e que do caminho que lá leva jamais poderemos sair. A religião que temos é o nosso grande meio para atingir esse fim. Com ela, dominamos os Quatro Reinos, quando eles já se preparavam para nos esmagar. É a melhor maneira de poder controlar homens e mundos. A razão do desenvolvimento do comércio foi para introduzir e divulgar esta religião mais rapidamente, e para nos certificarmos que a introdução das novas técnicas e de novos sistemas de economia se achariam debaixo do nosso "controle" absoluto.

- Conheço, a teoria na íntegra - interrompeu-o Mallow.

- Sim? Não esperava tanto. Então vê claramente que a sua tentativa de comércio, pelo comércio em si, a produção em massa de aparelhos sem qualquer valor, que poderão.afetar superficialmente a economia universal, a subversão da política interestelar, ao deus do lucro, o divórcio da energia atômica da nossa religião... pode simplesmente terminar com a queda e negação de uma política que teve êxito durante um século.

- E já era tempo - respondeu Mallow indiferente - no caso de uma política ultrapassada, perigosa e impossível. Embora o seu êxito tenha sido completo nos Quatro Reinos, poucos outros planetas da Periferia a aceitaram. No momento em que nos apoderamos do "controle" dos Reinos, só a Galáxia sabe, quantos exilados puderam levar a história de como Salvor Hardin usou o sacerdócio e a superstição popular para destronar a independência e poder dos monarcas seculares. E se isso por si não bastasse, o caso de Askone, há duas décadas, o demonstraria. Não existe um único rei na Periferia que não preferisse cometer suicídio, antes de permitir a entrada de um sacerdote no seu território. Não proponho forçar Korell ou qualquer outro mundo a aceitar seja o que for que não queiram. Não, Sutt. Se a energia atômica os torna perigosos, uma amizade sincera através do comércio será muitas vezes melhor do que uma regência insegura, baseada numa odiada supremacia de um poder espiritual estranho, o qual, uma vez que fraqueje, não poderá deixar atrás de si nada mais substancial do que temor e ódio imortais.

- Muito bem analisado! - disse Sutt cinicamente. - De modo que, voltando ao original ponto de partida da discussão, quais sãos as suas condições? O que quer para trocar as suas idéias pelas minhas?

- Pensa que minhas convicções são para venda?

- Por que não? Não é esse o seu negócio, comprar e vender?

- Só com lucro. Pode oferecer-me mais do que eu estou ganhando?

- Poderia levar três quartos dos seus lucros, ao invés da metade. Mallow riu-se. – Uma bela oferta. Porém seria um décimo daquilo que atualmente posso ganhar. Não tem nada melhor?

- Poderia ter um lugar no Conselho.

- Tê-lo-ei assim que o desejar.

Sutt, com um movimento brusco, cerrou o punho. - Pode também ter um período de prisão. De vinte anos, se eu levar minha idéia avante. Veja o lucro que há nisso.

- Nenhum, a não ser que consiga preencher essa ameaça.

- Um julgamento por assassinato.

- Assassinato de quem?

- De um sacerdote de Anacreon ao serviço da Fundação.

- E quais são as provas?

O secretário do Prefeito inclinou-se para a frente. - Mallow, não estou blefando. As preliminares acabaram. Tenho só de assinar um papel para que o caso seja levado ao tribunal imediatamente. Você abandonou um cidadão da Fundação à morte e tortura nas mãos de uma turba estrangeira, e tem só cinco segundos para se livrar do castigo que merece. Por mim era melhor que se decidisse ao contrário, pois seria muito mais seguro como inimigo destruído do que como amigo convertido á força.

- Assim seja, então. Faça o seu desejo.

- Bom! Era o Prefeito que desejava tentar um meio-termo e não eu. Seja testemunha de que não tentei demasiado.

Abriu a porta e saiu.

Mallow olhou Ankor Jael que regressava á sala.

- Você o ouviu?

- Desde que conheço aquela "cobra", nunca o vi tão zangado.

- Que conclui daí?

- A política de domínio através do poder espiritual é sua idéia fixa; mas se bem me parece, sua finalidade não é tão espiritual como diz. Foi por esta mesma razão que eu fui expulso do gabinete.

- Não precisava dizer-me. Que pensa que ele quer?

- Ele não é estúpido, de modo que deve ser a bancarrota de nossa política religiosa, que não nos traz qualquer conquista há mais de setenta anos. Portanto, ele utiliza-a para fins puramente pessoais.

- Qualquer dogma baseado na fé e no emocionalismo é uma arma perigosa para ser utilizada contra os outros, pois nunca se terá a certeza de que esse fogo não se virará contra nós. Há cem anos que apoiamos um ritual e uma mitologia que se vai tornando venerada e tradicional... e imóvel. Parece que não está mais sob o nosso "controle".

- Como? Não pare; quero sua opinião.

- Suponha que um homem ambicioso use o poder da religião contra nós, ao invés de a nosso favor.

- Quer dizer que Sutt...

- Claro que é Sutt. Suponha que ele consiga imobilizar as várias hierarquias dos planetas sob nosso domínio, e atirá-las contra a Fundação em nome da religião ortodoxa, que possibilidades teríamos? Postando-se á cabeça dos religiosos, poderia declarar guerra à heresia, representada por você, e tornar-se eventualmente rei. Foi Hardin que disse: Uma arma atômica é boa, contudo aponta para os dois lados.

- Bom, Jael: meta-me no Conselho, para eu poder combatê-lo.

- Talvez não. Que história foi essa de deixar um sacerdote ser morto? Não é verdade, é?

- É verdade! - exclamou Mallow descuidado.

- Ele tem provas?

- Deve tê-las! Jaim Twer era agente dele, embora nenhum dos dois suspeitasse que eu o soubesse. E Jaim Twer foi testemunha ocular.

- Isso é mau!

- Mau? Que há de mau nisso? O sacerdote estava no planeta, ilegalmente, de acordo com as próprias leis da Fundação. Foi utilizado pelo Governo de Korell, como isca, involuntariamente ou não. Por todas as leis do senso-comum, eu só tinha uma atitude a tomar... e essa ação estava dentro da lei. Se ele me levar a julgamento, cobrir-se-á de ridículo.

Jael de novo meneou a cabeça. - Não Mallow, você não está vendo bem a questão. Já lhe tinha dito que o jogo dele é sujo. Ele não quer condená-lo, pois sabe muito bem que não pode fazê-lo; mas quer arruinar o seu crédito junto ao povo. Ouviu o que ele disse? Que ás vezes o costume é mais elevado do que a lei? Pode sair do julgamento, livre como um passarinho, mas se o povo pensar que você abandonou um sacerdote, toda a sua popularidade desaparecerá. Todos admitirão que agiu como devia ter agido, que foi mesmo sensato. Mas aos seus olhos, será um bruto e um monstro. Nunca seria eleito para o Conselho. Poderia até perder o seu título de Mestre Comerciante, se a sua cidadania lhe fosse retirada por voto. Não nasceu em Terminus, sabe? Que pensa que Sutt quer?

- E então!

- Meu rapaz, farei por você o que puder, porém você está numa enrascada séria.

 

A Câmara do Conselho estava literalmente cheia, no quarto dia do julgamento de Hober Mallow, Mestre Comerciante. O único conselheiro ausente devia maldizer a cabeça partida que não o deixava estar presente. As galerias estavam lotadas daqueles espectadores de perseverança diabólica que tinham conseguido entrar. Os que não tiveram tanta sorte enchiam a praça acompanhando pelos visores trimensionais.

Ankor Jael atravessou toda aquela multidão com a ajuda de um policial, e por fim chegou ao lado de Hober Mallow.

Mallow respirou aliviado. - Foi por pouco! Já conseguiu?

- Tome lá. É tudo quanto pediu.

- Bom. Como está o povo lá fora?

- Estão furiosos. Nunca deveria ter permitido um julgamento público.

- Mas eu não quis impedir.

- Fala-se de lincharem você. E nos planetas exteriores, os homens de Publis Manlio...

- Queria falar-lhe sobre isso, Jael. Ele está jogando a Hierarquia contra mim, não está?

- Se está! A coisa mais bem planejada que eu tenho visto. Como Ministro do Exterior, toma conta do caso sob o ponto da lei interestelar, para a acusação. Como Sumo-Sacerdote e Primaz da Igreja, açula as hordas fanáticas...

- Esqueça-se disso. Lembre-se da citação que me fez, de Hardin? Agora é que eles vão ter a prova de que ele tinha razão.

O Prefeito tomava naquele momento o seu lugar, e os conselheiros levantavam-se em sinal de respeito.

- Hoje é a minha vez. Sente-se e divirta-se - sussurrou Mallow.

O processo teve início e quinze minutos após, Mallow atravessou a sala no meio dum zumbido hostil. Em Terminus e em todos os outros planetas exteriores, aquele rosto aparecia ante os olhos dos telespectadores.

- Para poupar tempo, admito a verdade de todas as acusações que me foram imputadas. A história do sacerdote e da multidão é exata em todos os pormenores.

Mallow esperou que o silêncio voltasse à sala.

- Contudo o quadro que as suas descrições apresentam não chega a ser completo. Peço autorização para dar esse fecho, porém á minha maneira. Peço a indulgência se minha história de início parecer irrelevante.

- Começarei por onde começou a acusação: no dia em que conheci Jorane Sutt e Jaim Twer. Já sabem o que aconteceu nesses encontros, pois as conversas já foram descritas; a essa descrição nada tenho a acrescentar... exceto o que pensei nesse dia.

- Os meus pensamentos eram suspeitos, pois os acontecimentos daquele dia foram estranhos. Considerem: duas pessoas que eu mal conheço fazem-me propostas extraordinárias. Uma foi o secretário do Prefeito que me propôs o trabalho de agente, cuja natureza confidencial e importância já foi exposta. A outra, chefe de um partido político, pede-me para me candidatar ao Conselho.

- Naturalmente procurei os motivos que pudessem levá-las a fazer tais propostas, e pareceram-me óbvias. Sutt não confiava em mim. Talvez pensasse que eu vendesse armas atômicas ao inimigo, e que planejava qualquer revolta. Talvez ele tivesse analisado a manobra; de qualquer modo, acho que necessitava de uma pessoa de sua confiança, ao meu lado; esta última hipótese não me ocorreu antes de Jaim Twer ter entrado em cena, mais tarde.

- Considerem: Twer apresentou-se como um comerciante que se dedicava á política, e eu não conhecia qualquer pormenor da sua carreira de comércio, apesar do meu conhecimento nesse campo ser bastante vasto. Depois, apesar de Twer se vangloriar de uma educação da Fundação, jamais ouvira falar duma Crise Seldon.

Hober Mallow esperou que o impacto de suas palavras alcançasse o objetivo, e foi premiado pela primeira vez com a atenção da galeria. Só os habitantes de Terminus o ouviram, pois os dos planetas exteriores só teriam versões censuradas de acordo com a religião. Não saberiam nada de uma Crise Seldon. No entanto, haveria outras coisas que eles não perderiam.

- Quem poderá aqui dizer que um homem educado pela Fundação ignore este fato? Há apenas um tipo de educação Fundacional que exclui toda e qualquer menção de história planejada e que só se refere a Seldon como um espírito mítico...

- Desde aquele instante, fiquei sabendo quem era Jaim Twer. Soube que ele estava sob as ordens religiosas e que talvez fosse até um sacerdote; e que durante os três anos em que se fizera passar por líder de um partido político, estivera a soldo de Jorane Sutt e jamais fora comerciante.

- Naquele momento andei ás cegas. Não sabia quais as idéias de Sutt quanto á minha pessoa; e como ele me parecia querer dar corda, eu decidi também dar-lhe um pouco da minha. Compreendi que Twer deveria acompanhar-me na minha viagem, como agente não-oficial de Jorane Sutt. Se ele não fosse haveria outras maneiras, e essas, talvez eu não percebesse a tempo. Um inimigo conhecido é relativamente inofensivo. Convidei Twer a acompanhar-me e ele aceitou.

- Isto, senhores jurados, explica-lhes duas coisas: Primeiro: que Twer não é um amigo meu que depõe contra mim ditado pela sua consciência. É um espião fazendo um trabalho pelo qual foi pago. Segundo: explica a minha atitude quando, pela primeira vez, apareceu o sacerdote, que me acusam de ter mandado matar... uma atitude até agora desconhecida, por não ter sido mencionada.

Um sussurro percorreu a sala mais uma vez. Mallow pigarreou, para aclarar a voz.

- Não quero descrever o que senti quando soube que tínhamos a bordo um refugiado. Nem quero me lembrar. O principal foi a incerteza. De momento, pareceu-me uma manobra de Sutt. Senti-me completamente desarmado.

- Só havia uma coisa a fazer: desfazer-me de Twer durante cinco minutos. De modo que mandei os meus oficiais levá-lo. Na sua ausência montei um gravador visual, de modo que o que acontecesse pudesse ficar para estudo futuro. Isto foi na esperança de que aquilo que me confundia naquele momento se tornasse cristalino no futuro.

- Já voltei o gravador umas cinqüenta vezes, desde então. Tenho-o aqui comigo, neste momento, e vou repetir a tarefa aqui perante o tribunal, pela qüinquagésima vez.

O Prefeito bateu o martelo pedindo silêncio na sala. Todos se aglomeraram para melhor poderem ver. O próprio Sutt fez um sinal ao Sumo-sacerdote que, nervoso, olhava Mallow com olhar expressivo.

O centro da sala foi desocupado, e as luzes apagadas. Ankor Jael ajustou o projetor, uma cena saltou na tela, ao vivo, em cor e três dimensões.

Havia um missionário, aniquilado e confuso, entre o sargento e o tenente. A imagem de Mallow esperava pacientemente, enquanto os homens entravam um a um. Twer vinha à retaguarda.

Toda a cena foi revivida, palavra por palavra, gesto por gesto. O reverendo Jord Parma fez o apelo. Mallow sacou a arma e o missionário foi arrastado de braços erguidos numa maldição final, e de novo um pequeno relâmpago. A cena findou-se com os oficiais horrorizados e Twer com as mãos sobre as orelhas, enquanto Mallow guardava a arma.

As luzes acenderam-se novamente; Mallow, agora o Mallow em carne e osso, recomeçou a sua narração.

- O incidente, como vêem, é precisamente como a acusação o descreveu... superficialmente. Em breve o explicarei. Toda a emoção de Twer durante o que se passou mostra evidentemente uma educação sacerdotal.

- Foi nesse mesmo dia que eu apontei algumas incoerências no ocorrido, ao próprio Twer. Perguntei-lhe de onde viria um missionário, para aparecer assim no meio de uma região quase deserta. Claro que a acusação não deu qualquer relevância a tais fatos.

- Outros fatos a considerar: o missionário em Korell, desafiando tanto as leis korelianas como as da própria Fundação, exibe-se numa vestimenta muito distinta e nova. Há ali qualquer coisa que não está certa. Na hora, sugeri que o missionário fosse um cúmplice do comodoro, para nos forçar a um ato de violência, de agressão, para em seguida poder destruir a nossa nave, da própria missão de que fora incumbida, para salvar um só homem que, finalmente, seria também destruído como a nave onde se encontrava. As palavras "honra" e "dignidade" aqui não fazem sentido.

- Por qualquer razão estranha a acusação esqueceu-se do reverendo Parma, como indivíduo. Não nos apresentaram qualquer antecedente. As incoerências de que falei explicam a razão. As duas coisas estão ligadas.

- A acusação não forneceu pormenores quanto a Jord Parma, porque não pode. A cena que viram, parecia-lhes falseada, porque na verdade o era. Jamais existiu Jord Parma. Todo este julgamento é a maior farsa jamais forjada, por causa de um problema que nunca existiu.

Mais uma vez teve de esperar que o silêncio reinasse de novo.

- Vou exibir-lhes a ampliação de uma fotografia imóvel. Ela falará por si. Mais uma vez apareceu na tela a figura de Jord Parma, dedos entrelaçados, braços erguidos, mangas caídas até o meio dos braços. Agora, da mão do missionário surgia um brilho que havia sido como um relâmpago,

na passagem anterior.

- Mantenham a vista naquela luz que ele tem na mão. Amplie a cena, Jael.

O instantâneo cresceu rapidamente. Toda a figura foi eliminada da tela, até ficar apenas a mão.

A luz transformara-se numa série de letras pequenas, porém distintas: PSK.

- Aquilo é uma espécie de tatuagem. Sob a luz vulgar é invisível, mas ao contato com os raios ultravioleta... É um método de identificação secreta, um tanto ou quanto ingênuo, mas nem por isso deixa de funcionar em Korell, onde é difícil encontrar raios ultravioleta. Mesmo na nossa nave, a detecção é acidental. Talvez algum de vocês já se tenha lembrado do possível significado daquelas três letras. Jord Parma fez um trabalho magnífico. Não sei onde aprendeu. No entanto, PSK quer dizer: "POLÍCIA SECRETA DE KORELL".

- Posso também usar de prova colateral, que posso apresentar ao Conselho, se me for pedido; trouxe essas provas de Korell. E onde está agora o caso da acusação? Já fizeram e refizeram a sugestão monstruosa de que eu deveria ter lutado pelo missionário, com sacrifício da minha nave, e de mim, em honra da Fundação.

- E por um impostor?

- Deveria eu tê-lo feito, por um agente secreto de Korell, disfarçado em trajes e linguagem de sacerdote, provavelmente emprestados por algum exilado de Anacreon? Deixar-me-iam Jorane Sutt e Publis Manlio cair numa estúpida e odiosa armadilha...

A sua voz perdeu-se no meio do tumulto da multidão que gritava. Sentiu-se elevado no espaço e carregado aos ombros de muitos indivíduos. Pela janela aberta ainda pôde ver a torrente de homens que corria pela praça ao seu encontro.

Mallow procurou Ankor Jael, pois era impossível distinguir um único rosto no meio de tanta gente. Depressa, porém, se tornou consciente de um cântico, a princípio baixinho, mas que pouco a pouco ia aumentando, numa pulsação de loucura:

- VIVA MALLOW! VIVA MALLOW! VIVA MALLOW!

 

Ankor Jael olhou para Mallow com o rosto cansado. Os dois últimos dias haviam sido cansativos.

- Mallow, você deu um belo espetáculo, mas não o estrague querendo saltar alto demais. Não pode estar falando a sério quando fala em ser candidato à Prefeitura. O entusiasmo das massas é uma grande força, porém conhecidamente variável.

- Exatamente! Temos de fomentá-lo! O único modo de fazê-lo é continuar o espetáculo.

- Então, que quer agora?

- Quero que Sutt e Manlio sejam presos.

- O que?

- Exatamente o que acaba de ouvir. O Prefeito que os mande prender! Não me interessam as ameaças que você faça. Eu controlo a multidão... pelo menos hoje. Ele não se atreverá a enfrentá-la.

- Mas com que acusação?

- Acusações evidentes. Eles incitaram os sacerdotes dos outros planetas a tomarem partido nas lutas da Fundação. Isto é ilegal. Perigo para o Estado. Não me interessa condená-los. Deixe-os fora de circulação, até eu ser Prefeito.

- Mas as eleições só se realizarão daqui a seis meses.

- Não é demais! Eu tomaria conta do Governo pela força, se fosse obrigado, da mesma maneira que Salvor Hardin o fez há cem anos. Vem aí uma crise, e eu terei de ser Prefeito e Sacerdote ao mesmo tempo.

- Afinal, vai ser Korell?

- Claro! Vão declarar guerra eventualmente, apesar de eu crer que vão levar ainda um par de anos.

- Com armas atômicas?

- Que pensa você? Que essas naves da Fundação foram postas fora de combate com pistolas de pressão de ar? Eles recebem as naves do próprio Império! Ainda lá está! Aqui na Periferia, já desapareceu, mas no centro da Galáxia continua bem vivo. Ao menor movimento em falso, pode ser que os tenhamos em cima de nós. É por isso que eu devo conjugar os dois cargos. Sou o único homem capaz de combater a crise.

- Como? Que vai fazer?

- Nada!

- Só isso? - Jael sorriu, incerto.

- Quando eu mandar nesta Fundação, o que vou fazer, é: nada. Cem por cento de nada. Este é o segredo desta crise.

 

Asper Argo, o Bem-amado, comodoro de Korell, recebeu sua mulher de mau humor. Para ela, não era aplicado o seu cognome, e ele bem o sabia.

Ela dirigiu-se a ele com voz untuosa como o seu cabelo e fria como os seus olhos. - Devo compreender que o meu gracioso senhor chegou a uma conclusão quanto ao destino da Fundação.

- Ah sim? E que coisas mais abarca a sua compreensão?

- Já chega, meu nobre marido. Teve mais uma das suas vacilantes consultas com os seus conselheiros. Uma manada que, perante o desprazer de meu pai, não faz outra coisa senão apertar contra os seios os fabulosos lucros.

- E qual é a fonte, minha querida, da qual a sua maravilhosa compreensão deduz todas estas coisas?

- Se eu lhe dissesse, a minha fonte seria um cadáver e não uma fonte.

- Como sempre, será o que desejar. Quanto ao desprazer do seu pai, ele recusa-se a fornecer-nos mais naves.

- Mais naves! Mas você já tem- cinco. E já lhe foi prometida uma sexta.

- Foi-me prometida o ano passado.

- Mas só uma delas pode destruir completamente a Fundação. Uma única!

- Não poderia atacar o seu planeta, mesmo que tivesse uma dúzia de naves.

- E por quanto tempo conseguiriam manter-se se o seu comércio fosse destruído, e as suas cargas de brinquedos e de lixo reduzidas a pó?

- O lixo custa dinheiro. Muito dinheiro.

- Mas se você fosse o senhor da Fundação, não teria tudo o que ela contém? Teria também o respeito e a gratidão de meu pai, que vale mais do que tudo que a Fundação lhe possa dar. Passaram-se três anos desde que esses bárbaros vieram por aqui com o seu espetáculo. Basta!

- Minha querida! Estou ficando velho e cansado! Falta-me paciência para aturar essa sua afiada língua. Diz saber o que eu decidi. Acabou-se; há guerra entre Korell e a Fundação.

- Até que enfim você usou de sabedoria, embora tenha sido apenas na velhice. E agora, quando for o senhor daquela província, terá algum peso no Império. Por um lado, poderemos deixar este mundo bárbaro, e vivermos na corte do vice-rei.

Ela foi-se com um sorriso, uma das mãos na anca. O cabelo brilhava no escuro.

O comodoro esperou, e disse depois, para a porta já fechada, com ódio: - Quando eu for senhor do que você chama aquela província, talvez eu seja suficientemente respeitável para poder passar sem a arrogância do pai, e sem a língua da filha. Inteiramente sem eles.

 

O tenente da "Nebulosa" olhava horrorizado pelo visor.

- Galáxias Galopantes! - devia ter sido um grito, mas saiu só um murmúrio. - O que é aquilo?

Era uma nave. Como uma baleia ao lado de um peixe de aquário. No seu costado, brilhava o distintivo do Império. Todos os alarmas da nave trabalhavam histericamente.

Ordens foram transmitidas. A "Nebulosa" preparou-se para fugir, caso pudesse... enquanto da sala das comunicações partia uma mensagem para a Fundação. Repetidamente! Parcialmente um pedido de socorro, principalmente um aviso de perigo.

 

Hober Mallow arrastou os pés e folheou os relatórios. Os dois anos na Prefeitura, tinham-no tornado mais brando, mais paciente... mas não o haviam feito gostar de relatórios de governo, nem da linguagem oficial em que se achavam escritos.

- Quantas naves conseguiram aprisionar?

- Quatro no solo. Duas não dão sinal. Todas as outras estão de volta, e sem segurança. Devíamos ter feito melhor.

Não ouvindo qualquer resposta. Mallow levantou a cabeça. - Preocupa-o alguma coisa?

- Gostaria de que Sutt viesse até aqui.

- E vamos ouvir outro sermão sobre a pequena fonte dos nossos afazeres.

- Não, não vamos; você é teimoso. Pode ser que você tenha todo o plano do exterior, perfeitamente arranjado, mas o interno está muito longe disso.

- Não é essa sua função? Para que o nomeei então, Ministro da Educação e Propaganda?

- Ao que parece, para me arranjar uma morte prematura, pois não me presta qualquer colaboração. Durante todo o ano passado gritei para que tivesse cuidado com Sutt e os seus partidários. O que lhe acontecerá se Sutt forçar uma eleição especial, e o expulsar?

- Não sei.

- E o seu discurso de ontem à noite praticamente garantiu a eleição a Sutt. Havia alguma necessidade de ser assim tão franco?

- O que eu fiz foi desviar a chuva da horta de Sutt.

- Não pela maneira como o fez. Diz que tinha previsto tudo, e não explica qual a razão de seu comércio com Korell durante três anos, com vantagem para eles. O seu único plano de batalha é retirar-se sem dar combate. Abandona todos os setores comerciais que estejam perto de Korell, e declara assim um empate. Não promete uma ofensiva, nem sequer num futuro próximo ou longínquo. Que quer que eu faça com tamanha porcaria?

- Bem sei que não tem qualquer promessa de aventura.

- Não há sequer um apelo às massas.

- É praticamente a mesma coisa.

- Acorde enquanto é tempo, Mallow. Você tem duas opções: ou dá ao povo um política externa dinâmica, ou faça uma aliança com Sutt.

- Se falhei na primeira, experimentemos a segunda. Sutt acaba de chegar.

Sutt e Mallow não se encontravam desde o dia do julgamento, dois anos atrás.

Nenhum deles achou o outro mudado, exceto no que dizia respeito às posições que ocupavam atualmente, e que eram diversas das de então.

Sutt tomou o seu lugar sem um cumprimento.

Mallow ofereceu um charuto e disse: - Jael fica conosco. Ele deseja acima de tudo uma aliança, e poderá servir de intermediário, no caso dos espíritos se exaltarem demasiado.

- Uma aliança será de toda a conveniência para você. Em dada ocasião pedi para que expusesse as condições. Suponho que agora os papéis se invertam.

- Sua suposição é lógica.

- Então estas são as minhas condições: Deve trocar todas estas novidades de política pelo comércio e voltar à velha e sã política dos nossos antepassados.

- Refere-se â conquista pela religião?

- Exatamente.

- Nada menos?

- Nada.

Mallow sorveu o fumo lentamente, e a ponta de charuto ficou vermelha. - No tempo de Hardin a conquista pela religião era nova e radical, e homens como você se opunham a ela. Agora está experimentada e sugada, tudo o que um Jorane Sutt acharia bem aceitar. Porém, diga-me: como pensa tirar-nos desta enrascada?

- De sua enrascada. Eu nada tenho a ver com isso.

- Considere minha pergunta modificada.

- O indicado é uma ofensiva em larga escala. O empate com que parece contentar-se é fatal. Será uma confissão de fraqueza aos outros mundos da Periferia, para quem a aparência de força é vital. Cairiam todos em cima de nós. Devia compreender isso. Você é de Smyrno, não é?

- Se conseguir derrotar Korell, como vai se haver com o Império? -Mallow decidiu ignorar a pergunta de Sutt.

- Os seus relatórios sobre a visita a Siwena são bastante completos. O vice-rei do setor Normânico quer criar a dissensão na Periferia, para seu proveito pessoal. Não vai arriscar tudo contra um extremo da Galáxia, quando tem cinqüenta vizinhos hostis e um imperador contra quem quer rebelar-se. Faço uso de suas palavras.

- Talvez arrisque, Sutt, se achar que somos suficientemente perigosos. E vai pensá-lo se destruirmos Korell, com um ataque direto. "Teremos de ser muito mais sutis.

- Como, por exemplo?

- Sutt, dar-lhe-ei uma oportunidade. Não tenho necessidade de você mas posso utilizá-lo. De modo que vou dizer-lhe o que se passa, e depois pode escolher entre formar comigo um gabinete, ou continua sendo mártir apodrecendo numa cela.

- Já tentou uma vez.

- Não com muita vontade. O momento oportuno acaba de chegar. Ouça! - Quando cheguei a Korell, comprei o comodoro com as brincadeiras que todo comerciante traz em estoque. De início, quis apenas entrar numa fundição. Não tinha qualquer outro plano, e nesse fui bem sucedido Obtive o que quis. Mas foi só depois de minha visita ao Império que compreendi que podem desenvolver as relações comerciais existentes, e torná-las uma nova arma.

- O que nós estamos atravessando é uma Crise Seldon, Sutt, e essas crises não são resolvidas por esforços individuais, mas sim por forças de origem histórica. Hari Seldon quando planejou o futuro curso da História não contou com heroísmos, mas sim com economia e sociologia. De modo que as crises têm de ser resolvidas pelos meios disponíveis na hora em que se sucedem. - No momento o comércio!

Sutt assumiu um ar irônico. - Não quero parecer pouco inteligente, porém seu argumento não me demonstra nada.

- Depressa achará o contrário. Considere que até à data o poder do comércio tenha sido menosprezado. Pensou-se que era necessário haver sacerdotes controlados por nós, para tornar esse comércio uma arma poderosa. Não é nada disso, e esta é a minha contribuição para a situação da Galáxia. Comércio sem sacerdotes! Só comércio! Simplificando as coisas, Korell está agora em guerra conosco. Conseqüentemente, o nosso comércio com essa república parou. Mas a verdade é que de há três anos para cá a vida desse planeta tem sido mais e mais baseada em produtos atômicos, que nós introduzimos, e que só nós poderemos continuar a manter. Que pensa que irá acontecer quando as pequenas geradoras atômicas começarem a deixar de funcionar, e todos os aparelhos começarem a parar?

- As aplicações domésticas pequenas serão as primeiras. Depois de meio ano de guerra, a faca atômica de uma dona de casa deixa de funcionar. O aquecedor deixará de aquecer, depois a máquina de lavar, a seguir o seu fogão. Que acontecerá?

Sutt disse com calma: - Nada! Durante a guerra o povo espera condições de emergência.

- Verdade. São capazes de mandar os seus filhos morrerem da maneira mais horrível. Manterão a moral sob violentos bombardeios, e se tiverem de viver de pão seco e água suja, enterrados em subterrâneos, também o farão. Mas é difícil agüentar as pequenas coisas que não se espera. Por isso é que vai haver um empate, a lamentar, sem mortos nem feridos.

- Haverá uma faca que não corte, um fogão que não cozinhe, etc, etc. O povo acabará por se revoltar.

- É nisso que põe suas esperanças? Uma revolta das donas de casa? Que saiam todas para a rua, gritando: " Dêem-nos as nossas máquinas atômicas!"

- Não é isso. Espero, no entanto, um fundo de descontentamento, que será transmitido a figuras proeminentes, mais tarde.

- E quem serão esses personagens mais importantes?

- Todos os industriais de Korell. As máquinas também começarão a parar, depois de dois anos. As indústrias que se metamorfosearam, graças aos nossos produtos atômicos, encontrar-se-ão repentinamente arruinadas. Nada funcionará.

- As fábricas já funcionavam antes de você aparecer por lá.

- Mas não lucravam a décima parte. Quanto tempo pensa que se manterá o comodoro com os industriais e os financistas contra ele? E o tempo que levará a transformação?

- Durante o tempo que quiser. Isto é: se lhe ocorrer pedir geradoras atômicas ao Império.

- Você se perde, Sutt, tal como o comodoro se perde. Não entendeu nada. O Império nada pode repor. O Império sempre calculou as coisas em grande escala; mas para as pequenas coisas não tem qualquer remédio. As suas geradoras são gigantescas.

- Mas nós e a nossa pequena Fundação, quase sem recursos metálicos, tivemos de lutar contra a economia da grande produção. As nossas geradoras tiveram de ser concebidas em proporções minúsculas, porque não tínhamos metal. Tivemos de descobrir novos métodos e técnicas que o Império não pôde seguir, por não poder fazer qualquer avanço científico.

- Com todas as armas, não conseguiram uma arma que protegesse um só indivíduo. Os seus motores são enormes, ao passo que os nossos cabem numa única sala. £ quando eu disse a um dos seus especialistas que um pedaço de chumbo do tamanho de uma noz poderia conter uma geradora atômica, ele quase se engasgou. Nem eles compreendem os seus próprios colossos. Teriam de encontrar uma máquina no caso de se estragar um pequeno parafuso.

- Toda esta guerra é uma luta entre estes dois sistemas: O Império e a Fundação. Entre o grande e o pequeno. Nós compramos os outros povos com coisas úteis no dia a dia, ao passo que as coisas que o Império oferecer só servem para a guerra. Um rei ou um comodoro pode pegar em armas e fazer a guerra. Todos os governadores, através da História, esqueceram-se do bem-estar do seu povo, por uma coisa denominada a glória da conquista. Mas Asper Argo não resistirá á depressão econômica que avassalará o seu país dentro de dois anos.

Sutt foi até â janela, pensou contemplando o anoitecer, e depois virando-se para Mallow, disse: - Não! Você não é o homem.

- Não acredita em mim?

- Não confio em você. Fala bem demais. Já me enganou antes, e não há razão para que não me engane novamente. Tudo o que diz tem pelo menos três significados. – E continuou.

- Supondo que você era um traidor. Todas as suas ações seriam precisamente as que agora pratica. Forçaria a Fundação à inatividade.

- Não haverá então aliança?

- Você deve sair: de boa vontade ou pela violência.

- Eu bem que o avisei!

- E eu o aviso por meu turno. Se me mandar prender, mandarei espalhar a verdade sobre sua pessoa. Toda a Fundação se unirá contra o domínio de um estrangeiro e eles têm consciência do destino que nenhum smyrniano pode ter - e isso o destruirá.

Mallow virou-se para os guardas e disse calmamente: - Levem-no. Está preso.

- É a sua última oportunidade.

Cinco minutos depois Jael disse:

- Você arrumou um mártir para a causa.

- Este não é o Sutt que eu conhecia. Está cego.

- Mais perigoso ainda.

- Mais perigoso? Disparate! Perdeu todo o poder de raciocínio.

- Tem demasiada confiança, Mallow. Ignora a possibilidade de uma revolta popular.

Mallow olhou-o. - De uma vez para sempre, Jael, não há possibilidade de uma rebelião do povo.

- Está demasiado seguro de si mesmo.

- Estou seguro da validade de resolução das Crises Seldon, interna e externamente. Houve coisas que não disse a Sutt. Ele tentou controlar a Fundação através das forças religiosas, como controlava o mundo externo, mas falhou... o que é um sinal seguro de que o "controle" religioso chegou ao fim.

- O "controle" econômico é diferente. E foi Salvor Hardin quem disse que uma arma aponta para dois lados ao mesmo tempo. Nós dependemos dos mundos exteriores na mesma medida em que eles dependem de nós.

- Não há uma única linha de produção que eu não controle. Onde a propaganda de Sutt vingar, a prosperidade morrerá; onde falhar, continuará a prosperidade.

- Pelo mesmo fator que me leva a crer que Korell não se revoltará contra a prosperidade, assim também creio que nós também não nos revoltaremos.

- Você nos transformará em Comerciantes e Príncipes Mercadores. O que acontecerá no futuro?

- O futuro não me pertence. Seldon deve tê-lo previsto. Deverão vir outras coisas, quando o poder econômico deixar de ser eficaz, como agora o deixou de ser a religião. Os meus sucessores que resolvam esses novos problemas como eu resolvi este hoje.

 

KORELL -...E assim depois de três anos de guerra, que nunca foi combatida, a República de Korell rendeu-se incondicionalmente e Hober Mallow tomou o seu lugar ao lado de Hari Seldon e Salvor Hardin nos corações dos habitantes da Fundação.

Enciclopédia Galáctica

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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