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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FUNERAL INADIÁVEL / Catherine Aird
FUNERAL INADIÁVEL / Catherine Aird

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

É frequente os homens serem mais apreciados precisamente quando são mais desgraçados...

Foram as pancadas na porta que acordaram Fenella Tindall.

Mas não as primeiras.

Da primeira vez, bateram quando estava tão profundamente mergulhada no sono, que não ouviu as pancadas. No seu sonho, não se encontrava em casa, em segurança, confortavelmente instalada no seu quarto de dormir, na aldeia inglesa de Cleete. Encontrava-se a muitos quilómetros de distância dali. No seu sonho, encontrava-se em Itália. Em Roma, mais exactamente. Descia a Via Venetto, com as duas crianças dos Trallanti.

E o seu sonho era como a vida real - a pequena e gorducha Nicola quase corria ao seu lado para conseguir acompanhá-la, com a mãozinha gorda a apertar fortemente a sua, enquanto Giovanni, mais velho e mais aventuroso, corria e saltava à frente delas.

Contudo, as pancadas na porta deviam ter começado a registar-se na sua mente, porque o seu sonho sofreu uma ligeira alteração.

Viu-se a gritar por Giovanni, dizendo-lhe que não se afastasse tanto sozinho. Tinha passado grande parte do seu tempo em Itália, junto dos Trallanti, a fazer precisamente isso. Duvidava que, com o tempo, alguém – fosse quem fosse - viesse a conseguir segurar Giovanni. O garoto já era, naquela altura, um rapazinho esbelto, de ancas estreitas, flexível como mercúrio. E um dia, também, não a muitos anos-luz de distância, a sua irmã Nícola, morena, de gestos lentos, quase insultantemente bela, haveria de quebrar alguns corações.

Não que isso fosse problema de Fenella. O seu problema tinha consistido em ensinar-lhes inglês. O italiano de Fenella era bom - fora isso que lhe conseguira o lugar, para começar-, mas tinha que falar sempre em inglês com as crianças. Era assim que desejava a sua mãe, a Principessa. Tinha sido para isso que a inglesa Miss Fenella Tindall de Cleete tinha ido para Itália. Para ensinar inglês aos pequenos Trallanti.

- De modo que seja a segunda língua deles, Miss Tindall - dissera a mãe, com firmeza. - É isso que eu quero. E mesmo isso já não era problema de Fenella. Tinha deixado de o ser. Pelo menos desde que regressara a Inglaterra...

As pancadas soaram de novo, e desta vez o som chegou ao quarto. O sonho italiano desvaneceu-se. A sua mente, encharcada em sono, esqueceu a Principessa e - da maneira infinitamente acomodatícia por que as coisas sucedem nos sonhos - ofereceu-lhe imediatamente uma associação ao ruído que vinha do exterior.

Estava a pregar qualquer coisa com um martelo - mas não sabia bem o quê. E com urgência...

Nessa altura, uma outra figura surgiu à margem do seu sonho. Um homem, desta vez. Não o conseguia ver muito nitidamente, mas, uma vez mais como só sucede nos sonhos, sabia, de certo modo, quem ele era. Giuseppe Mardoni... Tinha consciência da presença dele... baixo, moreno, insinuante - e à margem.

 

 

 

 

As pancadas voltaram a soar e ela aproximou-se um pouco mais do estado de vigília total. Perpassou-lhe pela mente um novo pensamento.

"Acorda Duncan, batendo-lhe à porta..."

Nessa altura, o som - o som real - fez-se ouvir de novo e todas as camadas do inconsciente foram arrancadas. Abriu os olhos, aceitou o mundo, e acordou finalmente. Os pequenos Trallanti, Macbeth e o insubstancial Giuseppe foram radicalmente banidos pelo presente.

E o presente consistia, aparentemente, em alguém que batia à porta da frente.

Fenella esforçou-se por sair da cama e pegou no roupão. Era um belo roupão - aquele que tinha trazido de Roma e do qual gostava muito... Deteve-se subitamente. Enquanto tacteava, em busca das chinelas de quarto, o seu olhar tinha caído no pequeno relógio colocado em cima da mesa-de-cabeceira.

Eram oito e meia.

Pestanejou. Não podia ser assim tão tarde. Não podiam ser oito e meia da manhã.

E o pequeno-almoço? E os preparativos para o pai ir trabalhar em Berebury? Estremeceu. Não era possível. Afinal era precisamente aquilo que não deveria acontecer nunca. Para isso tinha regressado de Itália. Para cuidar do pai. Não lhe parecia que naquela manhã estivesse a cumprir aquilo que se comprometera a fazer.

Abriu a porta do quarto e saiu a correr ao longo do patamar do andar superior. Chamou pelo pai, enquanto descia rapidamente as escadas para atender quem batia à porta. Apesar da pressa com que se movia, sentia uma vaga surpresa por não o ouvir ainda a deslocar-se pela casa. Não era nada próprio do pai dormir até tão tarde - quer ela o tivesse chamado ou não.

Era realmente à porta da frente que batiam. Novas pancadas acabaram definitivamente com as suas dúvidas a esse respeito.

Fenella abriu a porta.

- Não consegui que me ouvissem das traseiras - comunicou-lhe tranquilamente uma mulher baixa e gorda-, por isso dei a volta e vim bater à frente.

- Oh, é Mrs. Turvey! - Fenella afastou o cabelo que lhe caía sobre a testa. - Entre. Ainda bem que me acordou. Nenhum de nós tinha acordado ainda.

- Acontece a toda a gente, menina, uma vez por outra. - Mrs. Turvey vivia mais abaixo, na Cleete High Street, e trabalhava como mulher-a-dias para os Tindall. Algumas horas todas as manhãs.

- Não fazia ideia de que fosse tão tarde...

- Não me admirava nada que fosse por causa do calor - disse Mrs. Turvey, entrando. - Fez muito calor esta noite. Embora talvez a menina não tenha achado a temperatura assim tão alta, penso eu. Pelo menos depois de ter estado em Roma.

Fenella sorriu debilmente.

- Não. para mim era agradável. Tanto quanto me lembro.

- Estava acordada havia poucos minutos apenas, mas já lhe seria difícil recordar-se do que tinha sonhado.

- Esteve suficientemente quente para fazer qualquer pessoa dormir mais do que a conta, em Inglaterra, seja como for - voltou a afirmar Mrs. Turvey.

- É capaz de ter razão... o meu pai parece não ter acordado ainda - disse Fenella, voltando-se para subir a escada. - Acho melhor dar-lhe mais um grito, para o caso de ele não me ter ouvido descer.

- E eu vou já pôr a chaleira ao lume. - Mrs. Turvey dirigiu-se à cozinha. - Ele não pode ir-se embora sem ter metido qualquer coisa na boca. Mesmo que esteja atrasado.

Fenella deteve-se com um pé no primeiro degrau da escada, assaltada por um novo pensamento.

- Mrs. Turvey, e se ele saiu sem me acordar? Quem sabe se fez o seu próprio pequeno-almoço e se foi embora...

- Bem, seria a primeira vez que o fazia, não lhe parece? - respondeu Mrs. Turvey, com um certo sentido de humor. - Eu tinha que estar aqui às sete e meia em ponto, antes de a menina voltar, lá isso tinha. Todas as manhãs.

- Isso é verdade. - Fenella assentiu com um movimento da cabeça. Ninguém podia dizer que o seu pai fosse um homem dedicado aos trabalhos caseiros. Inteligente, eficiente no seu trabalho, um pai admirável e dedicado... tudo isso, sim. Mas caseiro, nunca.

Era esse o problema. Tinha sido por causa disso que ela tivera que regressar de Itália. Sentia-se perfeitamente feliz junto dos Trallanti, em Roma, mas o pai sentia-se solitário e triste em Inglaterra. Não tinha podido suportar a ideia de o saber condenado a uma existência solitária em Cleete...

- Mas é preciso ver uma coisa, miss - disse Mrs. Turvey, desdobrando rapidamente o avental que trouxera consigo -, se por acaso ele se decidiu a sair sozinho ao menos uma vez...

- O que é?

- Nesse caso saiu e fechou todas as portas atrás dele, o que é muito pouco provável que fizesse, sabendo, como sabia, que eu vinha para cá como faço sempre.

- Que parvoíce a minha - confessou Fenella. - Não tinha pensado nisso. - Voltou-se, subiu apressadamente as escadas que levavam ao andar de cima e correu pelo patamar até ao quarto do pai. Bateu na porta com os nós dos dedos.

Não obteve resposta. Bateu novamente.

- Já é terrivelmente tarde - gritou. - Acho que esta manhã adormecemos ambos.

Voltou a não ter resposta.

Agarrou no puxador e abriu a porta. Os cortinados do quarto continuavam corridos, impedindo a passagem da luz, mas o sol entrava com força suficiente para lhe permitir ver muito facilmente que a cama se encontrava vazia.

Não apenas vazia, mas ainda aberta.

Não havia vestígios do pai no quarto. E, mais importante ainda, não havia o mínimo sinal de que ele lá tivesse estado nessa noite. Tudo se encontrava exactamente como quando Fenella lá tinha estado, na tarde anterior, para correr os cortinados e abrir a cama.

Passou rapidamente o olhar uma segunda vez pelo quarto e regressou ao patamar, gritando para Mrs. Turvey:

- Ele desapareceu. - Engoliu em seco. - Pelo menos não está cá.

O superintendente da Polícia Leeyes colocou o problema da desaparição de Mr. Tindall de Cleete redondamente sobre a secretária do inspector C. D. Sloan (Christopher Dennis para a mulher e para os pais, "C. D." para os amigos) pouco depois da chegada daquele diligente oficial à Esquadra de Berebury, nessa manhã. - A manhã de quinta-feira. A quinta-feira depois da Quarta-Feira. Ninguém se iria esquecer da Quarta-Feira, dia 16 de Julho. Isso, pelo menos, foi uma das coisas que ajudou a Polícia. A quarta-feira 16 de Julho foi um dos dias mais quentes de que há memória no condado de Calleshire e ninguém se esqueceu disso durante longo tempo.

Tinha feito realmente muito calor. Não apenas aquele calor habitual que faz geralmente no Verão em Inglaterra; muito calor mesmo.

Os operários das fábricas de chocolates tiveram que ser mandados para casa, porque se tornava impossível trabalhar o chocolate. As vendas de gelados tinham subido com o mercúrio dos termómetros. A meio da tarde fazia tanto calor que - na área a sudeste do Condado de Calleshire - um homem gordo tinha assistido a um funeral em mangas de camisa.

Esta falta de respeito pelas conveniências indignou de tal forma um major-general reformado que o levou a escrever uma carta inflamada ao editor de um dos jornais locais - A Crónica de Calleford. A Polícia veio a lê-la mais tarde, num paciente esforço de reconstituição dos factos ocorridos no dia em questão.

A carta, como seria de prever, desencadeou uma enérgica troca de correspondência que só terminou - semanas mais tarde - com uma carta espirituosa de outro acompanhante do mesmo enterro, que declarou estar certo de que o falecido teria aceitado perfeitamente as mangas de camisa (de qualquer modo ia ser cremado) - e com uma nota seca do editor do jornal, declarando: "Considero esta troca de correspondência encerrada."

Na altura em que isto sucedeu, já toda a gente de Calleshire conhecia o nome de Richard Mallory Tindall.

O Departamento de Investigação Criminal da Divisão de Berebury, a cargo do inspector C. D. Sloan, era pequeno - visto que todos os casos de grande importância criminal eram apresentados à Central da Polícia do Condado de Calleshire, na cidade de Calleford. No entanto, cabiam-lhe - com grande pena de Sloan - todos os casos menores. Este, ao que parecia, era um caso menor.

- Um desaparecido - anunciou o superintendente Leeyes em tom breve, agitando na mão uma fina folha de papel.

- Parece que não foi a casa na noite passada.

- Não o censuro por isso, chefe - observou o inspector Sloan, passando um dedo entre o colarinho e o pescoço.

- Graças a Deus hoje está menos calor.

- A quinta-feira, como toda a gente - toda a gente mesmo - podia observar, estava mais fresca do que a quarta-feira, e todos se sentiam aliviados com isso. Até mesmo aqueles que tinham começado por se deliciar com o calor do dia anterior, com uma certa voluptuosidade atávica, tinham deixado de chafurdar nele, e à noite já estavam fartos. As noites quentes fizeram-se para os povos submediterrânicos, não para os Ingleses.

O superintendente Leeyes, que, em princípio, nunca admitia a existência de mudanças de temperatura, resmungou.

- Estava calor de mais para se dormir numa cama - prosseguiu Sloan com firmeza. - Eu próprio não me teria importado de ficar fora na noite passada, chefe, pensando bem.

Leeyes fitou-o.

- Supondo que ele também tivesse um desses ataques de loucura e decidisse ir a Kinnisport nadar ao luar ou qualquer outra fantasia do género, às escuras, nem as suas roupas nem o seu corpo apareceram...-fez uma pausa e acrescentou, num tom lúgubre: -... ainda.

- O homem não foi simplesmente a casa, chefe? - inquiriu o inspector Sloan. - Ah!... só isso?

O homem desaparecido - se é que tinha desaparecido - não era de modo algum o único problema colocado sobre a sua secretária. Como destroços na praia, arrastados pela maré, outros problemas ali tinham ido dar à costa, igualmente. Havia o caso do irritante afluxo de cartas anónimas em toda a aldeia de Constance Parva, que era preciso resolver - para não falar do misterioso comportamento do carro do município de Berebury. Aconteciam-lhe as coisas mais divertidas - e sempre quando o presidente da Câmara se encontrava dentro dele.

- Só isso - respondeu Leeyes secamente. - Não foi a casa.

- Mas isso não é um crime, chefe - aventurou-se a dizer o inspector Sloan. Porque, sendo o chefe titular do Departamento de Investigação Criminal, as Pessoas Desaparecidas não faziam geralmente parte da sua jurisdição..

- Não ir a casa, quero eu dizer.

- Bem sei que não é - retorquiu bruscamente Leeyes.

- Mas foi dado oficialmente como desaparecido, e não podemos limitar-nos a tomar nota e a esquecer o assunto, não lhe parece, Sloan?

- Não, chefe, mas...

- E com aquele seu amigo, o inspector Harpe, a arrebanhar toda a gente da corporação que seja capaz de agitar os braços (e até mesmo alguns que não são) para os seus malditos problemas de trânsito...

- Pois, chefe, mas...

- E note que um grupo de espantalhos era capaz de fazer o mesmo trabalho tão bem como eles estão a fazê-lo...

- Absolutamente, chefe - concordou Sloan com sinceridade. Os engarrafamentos de Berebury eram famosos em todo o condado... e constituíam um texto básico. Uma cidade de planeamento medieval, rodeada por um desenvolvimento urbano do século XX, como diziam os especialistas. A Polícia tinha uma classificação um pouco mais concisa para o assunto.

- O que quer dizer-observou Leeyes triunfante - que apenas restam o senhor e o sargento Gelven, que são os únicos que não andam por aí a caçar automobilistas.

- Sim, chefe - repetiu Sloan, notando subconscientemente que nem mesmo numa altura daquelas o Superintendente considerava digno de nota o seu assistente, o agente Crosby. Era exactamente o que Sloan sentia também. Crosby, o Atrasadinho, como todos lhe chamavam na esquadra...

O superintendente atirou a caneta para cima da secretária.

- Eis ao que se encontra reduzido o trabalho da Polícia, Sloan. A caça aos automobilistas. A lei e a ordem no trânsito. É tudo quanto interessa, hoje em dia. Nunca pensei que chegasse o dia em que...

O inspector Sloan pigarreou e tentou corajosamente voltar ao assunto em causa.

- Este tipo, chefe, como soubemos que ele tinha desaparecido?

- Quem? Oh!, o guarda

Hepple avisou-nos. Conhece-o, não conhece, Sloan? É ele que conserva tudo sossegadinho na área do Sul... Larking e arredores.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça, sem falar. O inspector-geral da Polícia de Sua Majestade talvez não definisse os deveres de um guarda provincial como "conservar tudo sossegadinho", mas essa frase resumia perfeitamente a situação para o superintendente Leeyes.

- Hepple está baseado em Larking - prosseguiu o superintendente-, como sabe, mas cobre igualmente a pequena aldeia de Cleete. E meia dúzia de outras - resmungou Leeyes. - Parece que foi até lá de bicicleta, esta manhã, para pregar um aviso na porta da igreja sobre os perigos dos moscardos...

Sioan não deixou transparecer qualquer expressão no rosto. Tinha lido algures que, na realidade, existia apenas meia dúzia de histórias realmente originais, em todo o mundo. Sabia que A Gata Borralheira era uma delas; a do filho do lenhador e da princesa era outra, e - recuando a um tempo antes de Esopo - havia a história eternamente fascinante do Rato do Campo e o Rato da Cidade.

Suspirou.

Ir de bicicleta até à igreja para fixar no pórtico um aviso sobre os perigos dos moscardos para os carneiros era algo que se encontrava tão longe da vida de um polícia citadino como do planeta Marte. E ainda por cima já atrasado, pensou Sloan subitamente. Podia estar a trabalhar na cidade, mas tinha sido criado no campo. Os carneiros tinham que ser vacinados mais cedo.

- No pórtico da igreja? - repetiu num tom inexpressivo.

- Exactamente. E foi aí que a mulher-a-dias do fulano o abordou com a história da desaparição do patrão.- O superintendente lançou uma olhadela à nota. - A mulher é uma tal Mrs. Turvey. Ao que parece foi até à casa dele esta manhã, às oito e meia, como todos os dias, e...

- Nem sinais do fulano?

- Exactamente - Leeyes resmungou de novo. - A cama nem mostrava sinais de ele lá ter dormido...

- Então isso não costuma acontecer - deduziu Sloan inteligentemente.

- Nunca aconteceu, ao que parece. Pelo menos sem que ele avisasse. É isso que está a preocupá-la. Sempre que se atrasa por algum motivo, ele avisa-as.

- As?

- Há uma filha. - O superintendente procurou o nome noutra folha de papel. - Tem um nome esquisito... Cá está. Fenella.

- Fenella. - O inspector Sloan anotou o nome na sua agenda. Numa página nova.

Cada caso tinha que começar por algum lado. Geralmente por um nome.

- Seja como for - prosseguiu Leeyes-, Hepple diz que Mrs. Turvey lhe relatou que, quando a Fenella viu que a cama do pai não mostrava sinais de ele lá ter dormido...

Sloan esforçou-se por se conservar sério. Realmente as coisas eram muito diferentes no campo.

-... chamou-a ao andar de cima e começaram ambas a procurá-lo. A filha não sabia que ele não estava em casa. Pensava que ele tivesse chegado depois de ela se ter deitado.

- Estou a ver, chefe. - Não estava a ver nada, mas havia de ver. A seu tempo.

- Isto quer dizer que o senhor terá de o encontrar, Sloan, quer queira quer não.

- Sim, chefe. - Sloan pigarreou e disse: - E quer ele queira quer não?

- O quê? Que está a dizer?

- Como podemos ter a certeza de que ele quer ser encontrado? - Isso poderia fazer uma grande diferença. Sloan não gostaria de se ver restituído ao seio de certas famílias que sabia que certas pessoas tinham.

- Porque não? - inquiriu o superintendente, que não era dado a requintes de sensibilidade quanto a relações familiares.

- Tal como eu disse há pouco, chefe, não é crime não passar uma noite em casa.

O superintendente Leeyes conservou o rosto absolutamente inexpressivo.

- Quero eu dizer, chefe - explanou o inspector pacientemente- que talvez ele tenha abandonado a mulher propositadamente e não queira que ela saiba onde ele está...

- Não - declarou Leeyes triunfante. - Ele não pensa nada disso porque não tem mulher.

- Compreendo, chefe.

- Foi o que disse o guarda Hepple. E ele sabe tudo sobre as pessoas, nesse aspecto.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça, para expressar a sua compreensão. Era isso que fazia de Hepple um bom polícia. Diz-se que a sabedoria faz a força. Era assim que o guarda Hepple, sozinho, conseguia manter tudo sossegadinho no seu pequeno território a sul de Berebury.

- Morreu há poucos meses - prosseguiu Leeyes. - Hepple diz que ele só tem uma filha. Fenella. Miss Fenella Tindall.

- Tindall? - exclamou Sloan subitamente, ao ouvir aquele apelido pela primeira vez. - Isso diz-me qualquer coisa. Chefe, o fulano terá, por acaso, alguma coisa a ver com aquela firma um tanto estranha que dá pelo nome de Struthers e Tindall?

Foi a vez de o superintendente acenar afirmativamente com a cabeça.

- Sabe a quem me refiro - apressou-se Sloan a prosseguir-, àquela gente que tem uma oficina perto de Wellgate, em Berebury, e que dá a si própria uma curiosa designação...

- Técnicos de Precisão, Investigação e Desenvolvimento- ajudou Leeyes.

- E que estão sempre a pedir protecção extra ao Inspector Tetley, sem quererem dizer-lhe contra quê.

- Tem tudo a ver com eles - disse Leeyes com simplicidade.- É esse mesmo Tindall.

- Oh, diabo!

- Exactamente.

 

 

Como a natureza foi desigual, colocando o coração das mulheres tanto acima, no seu lado esquerdo!

Muito mais movimentadas do que a Dower House em Cleete e muitíssimo mais barulhentas do que a Esquadra de Berebury, eram as oficinas da firma Struthers e Tindall, perto de Wellgate em Berebury. Tratava-se de um edifício longo e baixo, de um só piso, tão ordenado como uma colmeia. O perpétuo zumbido que se ouvia até mesmo do exterior tornava essa semelhança ainda maior. Tal semelhança, contudo, terminava à porta do laboratório. As abelhas guiam-se pelo instinto. Não fazem experiências.

Miss Hilda Holroyd, secretária particular de Mr. Richard Tindall, pousou o auscultador do telefone que tinha sobre a secretária, franzindo o sobrolho.

Ficou pensativa, por momentos, e depois ergueu-a e foi bater à porta da sala que servia simultaneamente de escritório e de laboratório ao ajudante de Mr. Tindall. Era ele Mr. Henry Pysden, director-geral delegado e chefe do departamento científico da firma.

Com relutância.

Mr. Pysden não fazia segredo de que detestava ser incomodado quando estava a trabalhar numa experiência, e ela já tinha ido falar duas vezes com ele, nessa manhã. Da primeira vez para lhe perguntar se tinha recebido algum recado de Mr. Tindall a dizer que não ia, e que pudesse, por qualquer motivo, não ter chegado às mãos dela.

Ele dissera-lhe que não.

Da segunda vez tinha sido para lhe perguntar se queria atender um visitante importuno, Mr. Gordon Cranswick, que tinha assomado à porta e dava sinais de não querer ser atendido apenas por ela.

Ele dissera-lhe que não.

E acrescentara:

- Se é por causa da última série de testes que fizemos para ele, diga-lhe que fale com Paul Blake ou com um dos metalurgistas. Se for por outro motivo, terá de esperar por Mr. Tindall, para falar com ele, quando chegar. Ou então marcar outra entrevista.

- Acabo de falar ao telefone com Mrs. Turvey, que está em Cleete - principiou ela, desta vez.

- Turvey? - A voz de Henry Pysden revelou incompreensão. Ergueu a cabeça (tinha uma forma de cúpula e era quase calva) e observou a secretária através das grossas lentes dos óculos. - Turvey? Não conheço ninguém com esse nome.

- Mrs. Turvey é a mulher-a-días de Mr. Tindall na Dower House - explicou Miss Holroyd pacientemente. - Disse-me que ele também não está em casa e que informou a Polícia do desaparecimento dele.

- Boa ideia - disse calarosamente o director-geral delegado.

Miss Holroyd tomou um ar desolado.

- Mas talvez lhe tenha sucedido qualquer coisa perfeitamente normal.

- Ou talvez não. - Henry Pysden tamborilou com a caneta sobre a secretária. - Eu não posso sair à procura dele, Miss Holroyd.

- Não, Mr. Pysden, claro que não.

- Além disso - o homem esboçou um débil sorriso - eles estão muito mais à altura de o fazer do que eu.

Ela sorriu-lhe também.

- Claro, Mr. Pysden.

E era verdade. Não valia a pena pôr o míope Mr. Pysden a procurar fosse o que fosse.

- Quando há peritos num determinado assunto - observou Mr. Pysden - devemos sempre ir ter com eles. É o que eu sempre aconselho às pessoas, Miss Holroyd.

- Sim, Mr. Pysden. - Miss Holroyd acenou afirmativamente com a cabeça. Era verdade. Tinha-o ouvido dizer aquilo inúmeras vezes aos clientes.

E, com a mesma frequência, tinha ouvido Mr. Tindall dizer precisamente o contrário aos mesmos clientes.

Para ele, as coisas funcionavam de modo diferente. Estava nitidamente do lado dos amadores.

- Um amador não tem a cabeça superpovoada de preconceitos académicos, Miss Holroyd - gostava Mr. Tindall de afirmar. - Não leu tudo o que já se escreveu sobre um determinado assunto. O amador vê o problema na sua forma mais pura e não lhe ocorre sequer que ele possa ser insolúvel.

- Ele deve estar prestes a aparecer, segundo espero - disse Henry Pysden, num tom despreocupado. - Se fosse a si, não me preocupava muito, Miss Holroyd. Ainda é muito cedo, bem vê.

- Mas isto não é nada de Mr. Tindall - insistiu ela.

- Ele ontem de manhã chegou tarde - observou Pysden.

- Por causa das obras da estrada.

- Então já vê...

Miss Holroyd abanou a cabeça.

- Não. As obras já acabaram. Eu informei-me.

- Não duvido! - exclamou Pysden.- Esquece-se alguma vez de alguma coisa, Miss Holroyd?

A expressão dela era austera.

- Não, se me for possível, Mr. Pysden.

- Não, claro que não - apressou-se ele a dizer, como que escondendo-se por detrás das lentes. - Tenho a certeza de que não. A propósito, Miss Holroyd, já que está aqui, importa-se de me dar o registo de patentes? Preciso dele para o contrato Galloway.

- Com certeza, Mr. Pysden. Penso que Mr. Blake esteja a trabalhar com ele esta manhã. Vou pedir-lhe que lho mande.

- Blake?-inquiriu bruscamente o director-geral delegado.- Que está ele a fazer com o registo de patentes?

Miss Holroyd franziu a testa.

- Julgo que está a trabalhar no caso da Harbleton Engineering.

- Não será da United Mellemetics?

- United Mellemetics? - Miss Holroyd olhou-o, surpreendida. - Ele não pode estar a trabalhar nesse caso. Não se recorda? O senhor ainda tem o dossier da United Mellemetics, Mr. Pysden.

Henry Pysden abanou a cabeça.

- Não, não o tenho, Miss Holroyd. Devolvi ontem de manhã o dossier e o relatório a Mr. Tindall. Quando tomámos o café juntos. Já não precisava deles.

- É estranho. - Miss Holroyd parecia desorientada.- Tenho a certeza de que o dossier não está no cofre-

Mr. Pysden fitou-a com espanto.

Ouviu-se um ligeiro tilintar quando Mrs. Turvey pousou o auscultador do telefone que se encontrava no salão da Dower House em Cleete. Depois a mulher correu para a cozinha.

Enquanto corria, gritou, muito aflita:

- O leite, Miss Fenella. Tire-o do lume antes que ferva.

- Já tirei - disse Fenella Tindall.

Estava sentada junto da mesa da cozinha, agarrando firmemente com ambas as mãos a chávena de café, ainda de roupão. Era o seu roupão italiano, em tons Renascentistas. O seu espírito, porém, não estava voltado para o que vestia. Olhou ansiosamente para a mulher-a-dias, que regressava à cozinha.

- Não era o meu pai ao telefone, pois não, Mrs. Turvey?

- Não, miss, infelizmente não era.

- Oh!...

- Era Miss Holroyd, a telefonar da oficina do seu pai. Queria saber porque é que ele ainda não tinha chegado esta manhã.

- Oh, meu Deus!

- Portanto ele não saiu mais cedo de casa - disse Mrs. Turvey. - Disso já podemos ter a certeza.

- Pois não.

- Eu também não achava que ele tivesse feito isso, para lhe falar com franqueza. O seu pai não é nada madrugador. Aliás nunca foi, desde que o conheço, pelo menos.

- Pois não - disse Fenella distraidamente, de sobrolho franzido. - E isso quer dizer que ele não passou aqui a noite.

O bondoso rosto quadrado de Mrs. Turvey revelou preocupação.

- Assim parece, miss, embora eu esteja certa de que não há motivos para ficar assim tão preocupada...

- Que lhe respondeu?

- Que ele não estava cá e que nos parecia que não tinha ficado aqui esta noite. Beba esse café, miss. Nunca nos devemos preocupar com o estômago vazio, que faz mal.

Obedientemente, Fenella bebeu um golo de café. E outro em seguida. Surpreendeu-a constatar que estava cheia de sede.

E desorientada.

Tinha regressado a casa havia tempo suficiente para saber que não era hábito do pai ficar fora durante a noite sem as avisar. Além disso, era um homem que apreciava a rotina; gostava de todas as coisas na altura própria e no lugar próprio. Aquele comportamento não era característico dele.

- Pobre Miss Holroyd - prosseguiu Mrs. Turvey. - Disse-me que está no escritório uma pessoa que marcou uma entrevista com o seu pai, e está a começar a ficar preocupada também.

- Ela resolve a situação - disse Fenella decididamente. - O meu pai diz sempre que Miss Holroyd é capaz de resolver qualquer situação.

- Pode ser que sim - disse Mrs. Turvey enigmaticamente.

Sem se deixar enganar, Fenella sorriu. Conhecia perfeitamente a situação de perpétua rivalidade que reinava entre Mrs. Turvey e Miss Holroyd, ambas ciumentas como Malbecco. Felizmente cada uma delas se sentia superior à outra - Mrs. Turvey porque tinha sido casada; Miss Holroyd porque tinha

estudos.

- Seja como for - disse Miss Turvey-, quem está lá é Mr. Gordon CranswicR. Ela pediu-me que lhe perguntasse, miss, se sabia alguma coisa a respeito dele...

Fenella abanou a cabeça.

- Ela estava a pensar que talvez se tivesse enganado - disse Mrs. Turvey - e Mr. Tindall tivesse dito a Mr. Cranswick que viesse encontrar-se com ele aqui em Cleete, e que era por isso que ele não tinha ido ao escritório hoje de manhã.

- Miss Holroyd nunca se engana - entoou Fenella. Era uma espécie de litania que tinha aprendido com o pai.

- Espero bem que não - respondeu Mrs. Turvey em tom de censura. - Seja como for, ela diz que Mr. Pysden está muito ocupado com as suas experiências programadas, e não pode ser ele a recebê-lo em vez do seu pai.

- Oh, meu Deus!

- E é uma pessoa importante, diz ela.

Fenella pousou a chávena do café e disse energicamente:

- Não estou a gostar nada de tudo isto.

- Então, miss, não diga isso. O seu pai deve estar a aparecer ou a telefonar-nos.

- Disse-lhe - inquiriu Fenella mais timidamente, com a cabeça pensativamente inclinada sobre a chávena - que tínhamos falado à Polícia?

Mrs. Turvey ocupava-se activamente do fogão.

- Bem, insinuei mais ou menos que, por acaso, tinha falado do caso a Mr. Hepple quando o tinha encontrado na estrada, ao ir atender o carteiro.

- Ela ficou zangada?

- Não propriamente zangada - respondeu Mrs. Turvey pensativamente -, mas surpreendida. - Endireitou-se. - No entanto, o que está feito, está feito e não pode ser desmanchado.

- Não. Quero dizer, sim. Parece-lhe que ele possa ter ido a Londres, ou coisa parecida?-Fenella afastou a chávena de café vazia e respondeu à sua própria pergunta: - Não, ele havia de telefonar-nos primeiro, não lhe parece?

Encolheu um ombro, num misto de ansiedade e irritação. Era absurdo conhecer tão mal os hábitos do seu próprio pai, mas quando se esteve tanto tempo longe de casa e só se regressou há tão pouco tempo...

- De qualquer forma, ele teria telefonado a Miss Holroyd - declarou Mrs. Turvey sagazmente - por causa daquele tal Mr. Cranswick que queria falar especialmente com ele. Não se esquecia dele, que o seu pai não é pessoa para isso. A menos que tivesse perdido a memória, ou coisa semelhante.

Fenella suspirou.

- Não consigo compreender nada do que está a passar-se. Não é nada dele, desaparecer assim, sem avisar ninguém.

A mente de Mrs. Turvey seguia agora um percurso muito diferente.

- Gostava que ele tivesse vestido aquela camisa lavada que deixei pronta ontem de manhã, miss. Engomei-a especialmente para ele a vestir.

- Sim, claro... - A roupa branca era uma das pontas da vida da Dower House que Fenella ainda não tinha tomado nas suas mãos.

- Não me agrada nada pensar que ele anda com a camisa que tinha, miss, esteja ele a fazer o que estiver - declarou voltando a sua atenção para o lava-louças. - E não foi por falta de recomendação, Miss Fenella. Disse-lho mais de uma dúzia de vezes...

- Eu sei - apressou-se Fenella a tranquilizá-la. Mrs. Turvey fungou.

- Ontem pareceu-me que ele não queria vestir-se bem de propósito. Até vestiu o fato velho.

- O cinzento. - Fenella também se lembrava disso.

- O cinzento, a que faltava um botão na manga esquerda - retorquiu Mrs. Turvey - e que eu tinha posto de lado para levar à lavandaria na sexta-feira. Não era para ele o vestir ontem de manhã. Nem sequer estava no quarto dele, miss. Eu tinha-o posto em cima daquela coisa no patamar a que a sua mãezinha dava um nome esquisito...

- A otomana.

- Otomana - repetiu Mrs. Turvey com ar de dúvida -, para que não ficasse esquecido, e enquanto o diabo esfrega um olho, ele vai e veste-o, - Eu sei.

- E quando eu lhe falei do assunto, ele pediu-me desculpa e disse-me que hoje vestia o outro. - Deitou água quente dentro do lava-louças.

- Eu ouvi-o. - Fenella empurrou a cadeira para trás e levou a chávena de café ao lava-louças. Acho que esta manhã não consigo engolir as torradas, Mrs. Turvey. Não tenho fome nenhuma.

A mulher-a-dias introduziu a chávena e o pires dentro do lava-louças cheio de água quente com sabão com um jeito experiente, e Fenella consultou o relógio.

- Mr. Osborne não lhe disse nada, miss?

- Pouca coisa - respondeu Fenella.

O pai tinha passado a noite anterior com George e Mareia Osborne em Berebury, porque ela ia sair com Giuseppe Mardoni, na última noite que ele ali passava antes de regressar a Itália. Ele tinha querido que ela saísse. Insistira muito, na verdade. Não queria que ela se enterrasse no campo para sempre. Tinham sido essas as suas palavras. Teria muito prazer, afirmara, em ir visitar os Osborne. Depois disso, talvez desse uma volta e fosse fazer companhia ao velho Walter Berry, durante uma ou duas horas.

Fenella tinha telefonado para a Escola Secundária de Berebury para falar com George Osborne, que era professor de Física, na altura em que os rapazes começavam a formar para a chamada da manhã.

- Só me disse - explicou Fenella a Mrs. Turvey - que ele lhe tinha dito que ia encontrar-se com alguém, antes de voltar para casa.

- Acha que seria com o velho Professor Berry, Miss?

Essa fora precisamente a pergunta que Fenella tinha feito a Osborne.

- Ele não me disse quem era - respondera o professor de Física.- Saiu da nossa casa por volta das dez e meia e estava bem, nessa altura. Se fosse a si, não me preocupava muito. Ele há-de aparecer. E já agora, Fenella...

- Diga.

- Quando ele aparecer, pode dar-lhe um recado meu?

- Claro.

- Diga-lhe que a Mareia achou o brinco, sim?

- George! Ela tinha perdido os brincos da tia-avó Edith? Os brincos de esmeraldas e diamantes?

- A herança da família Osborne - confirmou ele solenemente.- Pelo menos metade da herança. Um brinco, para ser mais preciso. Mas afinal não estava perdido. Ela voltou a encontrá-lo, graças a Deus. Na noite passada. Depois de ele sair. Diga-lhe isso, se faz favor... - Ela tinha então ouvido o sino da escola a tocar. - Agora tenho que ir. Telefone à Mareia, se quiser.

Fenella não tinha telefonado a Mareia. Era cedo de mais. Para a elegante Mareia Osborne o dia só começava por volta das onze horas, pelo menos.

E o mesmo sucedia em relação ao velho professor Berry. Entre a sua biblioteca e o tabuleiro de xadrez, nunca ia para a cama antes das primeiras horas da madrugada, e levantava-se igualmente tarde. A sua governanta queixava-se desse facto por toda a aldeia. Também não valia a pena telefonar-lhe ainda.

Em vez disso, Fenella consultou de novo o relógio e disse:

- Aquele polícia já deve ter tido tempo de telefonar para os hospitais, nesta altura.

- Deus a abençoe, miss, não vai pôr-se a pensar que ele esteja no hospital. Se o seu pai tivesse tido um acidente com aquele carro dele que eu não posso imaginar, nem por segundos, que tenha acontecido, porque não anda pelas estradas condutor mais prudente), com certeza que já sabíamos disso. Não há dois carros como aquele deste lado de Calleford.

Fenella conseguiu exibir um sorriso triste, compreendendo que Mrs. Turvey se estava a esforçar por lhe ser útil.

- Isso é verdade.

- E o que é mais importante... toda a gente sabe que o carro é dele. - A mulher-a-dias enxaguou vigorosamente o lava-louças.- Carros como o de Mr. Tindall não andam por aí aos pontapés.

Fenella começou a brincar com a borla na ponta do cordão que atava o roupão.

- É estranho, Mrs. Turvey, mas eu era capaz de jurar que o ouvi entrar na noite passada como de costume...

Mrs. Turvey abanou a cabeça.

- ... Eu estava na cama - insistiu Fenella. - Já estava em casa há cerca de uma hora e ainda estava naquela fase de sonolência. Sabe como é (meio a dormir, meio acordada) quando se tem a certeza de que se vai adormecer muito em breve, mas ainda não se começou a dormir...

- Eu sei, miss. - Mrs. Turvey tinha acabado de lavar a louça e estava a polir as torneiras do lava-louças.

- Bem, pareceu-me ter ouvido o carro dele na noite passada, como habitualmente. Sabe como ele tem sempre que meter uma mudança para fazer aquela curva apertada antes da garagem... não pode fazer a curva de outro modo, pelo menos com aquele carro...

- Aquele caminho não foi feito para carros.

- Pois não - concordou Fenella, concluindo que Mrs. Turvey, pelo menos, teria aprovado inteiramente as carrozzas puxadas por cavalos de Roma. - Bem, como o meu quarto fica daquele lado da casa...

- Não, miss. - Mrs. Turvey abanou a cabeça. – Não podia ter sido ele. Pelo menos na noite passada. A primeira coisa que eu procurei quando me disse que ele não estava no quarto foi a chave da garagem. O seu pai coloca-a sempre no gancho junto do portão do jardim logo que entra. Sempre. Nunca deixou de o fazer.

Fenella absteve-se de dizer que o pai também nunca tinha deixado de passar uma noite em casa.

- Eu estava mesmo à beira de adormecer - disse, em vez disso. - Lembro-me de ter pensado: "Oh!, ainda bem que ele já está em casa" e, depois, voltei-me para o outro lado e adormeci.

- A chave não está lá, miss. Isso deve ter sucedido na noite anterior.

Assentiu com a cabeça, insegura.

- Talvez. A menos que... - Fenella deteve-se subitamente, no meio da cozinha - a menos que ele tenha chegado até à garagem e depois tivesse sucedido alguma coisa.

- Oh, Miss Fenella!, com certeza que não. Fenella segurou a longa cauda do roupão.

- Vou lá ver.

- Espere por mim, miss. - Mrs. Turvey agarrou numa toalha com as mãos molhadas. - Espere por mim.

- Então venha. Depressa!

- Não vai à garagem vestida só com o... Fenella não lhe prestou atenção.

Abriu a porta das traseiras da Dower House e correu pelo relvado; as chinelas de quarto deixavam um leve rasto sobre a relva coberta de orvalho. Mrs. Turvey, um pouco ofegante, seguia-a de perto.

- Estão fechadas, miss - declarou Mrs. Turvey com manifesta surpresa.

- É estranho - concordou Fenella. - Estavam abertas. Eu própria as abri ontem à noite, enquanto estava à espera de que me viessem buscar.

Mrs. Turvey acenou afirmativamente com a cabeça, de modo aprovador.

- Não há nada que o seu pai mais deteste do que ter de sair do carro à noite para as abrir. Uma autêntica estopada, como ele diz.

Fenella avançou.

- Não abra essas portas - suplicou Mrs. Turvey, num tom de aflição. - Miss Fenella, largue essas portas. Deixe-me entrar primeiro.

Tarde de mais.

Fenella já tinha aberto as portas da garagem. Lá dentro havia um carro azul, comprido e baixo. Estava completamente vazio.

 

Simples acidente.

Dois factos conspiraram para atrasar o Inspector Sloan à saída da Esquadra de Berebury, nessa manhã, para se deslocar a Cleete.

O primeiro constituiu um grande desapontamento para ele.

Não ia poder levar consigo o sargento Gelven - o calmo, desembaraçado e extremamente seguro sargento Gelven. Quando Sloan o mandou chamar, constatou que o sargento Gelven tinha sido convocado - era esse o termo - para assistir a um julgamento no Tribunal de Calleford, a capital do Condado de Calleshire.

- Para servir de testemunha, senhor Inspector-informou Gelven pesarosamente-, num dos piores casos de perjúrio que se me tem deparado.

Sloan resmungou em voz alta.

- Lamento muito, senhor Inspector - disse o sargento.

- Nem sei para que é que eles se dão a este trabalho.! O réu não reconheceria qualquer ética, nem que a visse de frente, para já. Nem que ela se lhe deparasse na escada. Diz ele - acrescentou Gelven secamente - que não compreende o significado da acusação.

- Não me admira nada - disse Sloan, que conhecia o cavalheiro em questão. - Não me parece que o conheça, realmente. Já reparou, Gelven, que ele é capaz de estar a dizer a verdade?

- Até lhe pode cair um dente, por a dizer pela primeira vez, aposto - disse Gelven fervorosamente. - E apenas por acidente. O perjúrio não representa nada para ele.

- É mesmo uma vergonha de homem.

- Diz bem, senhor Inspector. Se precisasse de arranjar alguém que fosse cear com o diabo por si, era ele o homem certo para esse trabalho. Tirando isso, não serve para mais nada, tenho a certeza.

- Isso quer dizer que vou ter que levar o Crosby comigo - disse Sloan, amaldiçoando o perjuro entre dentes. Não lhe agradava nada ter que contentar-se com o agente Crosby em vez do sargento. Crosby era jovem, impudente, e constituía o perpétuo desespero de todos aqueles que tinham de lidar com ele na Esquadra de Berebury.

- Porque é que não está a ajudar o inspector Harpe no trânsito? - inquiriu Sloan com uma brusquidão pouco habitual nele, quando Crosby se apresentou. - Todos os outros lá estão.

- Não sei, senhor Inspector.

Sloan, que calculava o motivo, tinha-lhe dito que fosse tirar o carro da garagem.

- Vamos para o campo, Crosby.

- Quer dizer para a pasmaceira, senhor Inspector - replicara ele, em tom de reprovação.

O agente Crosby orgulhava-se de estar ao corrente de todas as expressões novas. Esse era um dos factores que o tornavam tão impopular na esquadra.

- Pasmaceira - repetiu. - é assim que agora se chama, senhor Inspector.

- Ai, sim? - tinha Sloan conseguido dizer entre dentes antes de Ir informar-se se constava alguma coisa sobre Richard Tindall.

Nada constava. No sentido policial, evidentemente.

No entanto, havia um incidente curioso registado no dia anterior. Curioso, dadas as circunstâncias.

De maneira geral, nada havia de invulgar no facto de alguém ir à esquadra queixar-se do caos verificado no trânsito. Havia sempre gente a apresentar queixas dessas. Especialmente nos últimos dias. O que era curioso era o facto de a pessoa que o tinha feito no dia anterior se chamar Richard Mallory Tindall.

Foi o inspector Harpe que o disse a Sloan.

- Foi tudo por causa do calor desgraçado que fez ontem - principiou ele tristemente. O inspector Harpe tinha o azar de ter a seu cargo a Divisão de Trânsito da Divisão de Berebury da Polícia do Condado de Calleshire. Toda a Força o conhecia pela alcunha de "Harry Contente", porque ninguém o tinha visto alguma vez sorrir. O inspector Harpe afirmava que até à data nada tinha havido na Divisão de Trânsito que o fizesse sorrir. - A mim, o calor incomoda-me, Sloan, mas é bom para o alcatrão.

- Para o alcatrão?

O inspector municipal decidiu alcatroar de novo a estrada para o Sul. Sabe qual é... aquela que vai daqui a Randall's Bridge.

- Eu sei. - Sloan inclinou a cabeça, Cleete fazia parte de um aglomerado de pequenas aldeias a partir desse ponto. As estradas que vinham de todas elas atravessavam o rio Calle na aldeia de Randall's Bridge.

- Bem, o dia de ontem poderá ter sido conveniente para alcatroar - grunhiu Harpe-, mas o idiota esqueceu-se de que hoje era dia de mercado aqui em Berebury.

- Oh, diabo!

- Caos - disse o encarregado do trânsito sucintamente. - Caos absoluto. E nenhuma daquelas pessoas que andavam a queixar-se do estado da estrada desde aquele nevão forte que tivemos em Fevereiro passado já se lembrava dos buracos que havia antes, enquanto esperava que passassem os rolos a vapor.

- Mais do que um?

- Dois - disse Harpe. - A dançar uma polca imponente, como disse esse tal Tindall, à frente e atrás do camião que espalhava o alcatrão.

- A zero milhas à hora - observou Sloan compreensivamente.

- E não só - gemeu Harpe. - Os sinalizadores criaram uma confusão dos diabos com as suas bandeiras. Sinalizadores!- Revirou os olhos expressivamente. - Talvez se chamassem assim, mas de estradas não percebiam nada. Um deles nunca tinha andado senão de bicicleta. O outro, ao que parece, adquire a mania do poder logo que se vê com uma bandeira vermelha na mão.

- Como é que descobriu isso tudo?

O inspector Harpe tomou um ar mais sombrio do que habitualmente.

- Andei a dar umas voltas com o inspector municipal, para lhe dizer a verdade. E perguntei-lhe onde é que ele tinha ido buscar aqueles homens. Disse-me que não conseguia arranjar gente em parte alguma, com a quantidade de polícias que nós recrutávamos.

- E depois, o que sucedeu?

- Aqueles dois tipos mostraram ambos as bandeiras verdes ao mesmo tempo.

Sloan sorriu-se para o colega.

- Não foi nada divertido, posso garantir-lhe, Sloan!

O carro do tal Tindall ficou entre os dois rolos que avançavam. Os condutores não conseguiam ouvir o que se passava (sabe a chinfrineira que eles fazem) e o capataz estava-se nas tintas, para mais com todo aquele alcatrão quente à sua frente.

- Não posso censurá-lo. E depois, o que sucedeu?

- Penso que Mr. Tindall se pôs praticamente de pé em cima da buzina, durante um tempo. Depois, segundo ele disse, no último momento, a inexorável gavota transformou-se num majestoso minuete.

Sloan fitou-o, espantado.

- Foi assim mesmo que ele disse - insistiu Harpe, cuja perfeita memória verbal tinha constituído uma preciosa ajuda para a sua carreira quando não passava de um jovem polícia. Como inspector encarregado do trânsito, só lhe servia para o manter acordado de noite. - O homem era cheio de palavras relativas à dança. Disse que depois disso os dois rolos se afastaram outra vez um do outro... porque toda a gente gosta de ver os pares separarem-se na pista de dança.

- Só faltava a vénia e o cumprimento - concordou Sloan.

- Depois veio até aqui para nos informar do que se estava a passar por lá - concluiu Harpe. - Uma bicha com duas milhas de comprimento do lado de Berebury. Como estaria do outro lado, nem me atrevo a pensar, sabendo que era dia de mercado, para mais.

- Como é que ele se queixou? - inquiriu Sloan com interesse. Segundo a sua experiência, isso dizia mais de um homem do que qualquer outra coisa.

- Mais desgostoso do que irritado - disse Harpe prontamente. - Achava que um dos nossos rapazes talvez pudesse acalmar um pouco as coisas. Não tinha dito nada aos sinalizadores, se é isso que quer saber.

Sloan concluiu ali mesmo que o desconhecido Mr. Tindall, possuía uma qualidade rara, o discernimento, quanto mais não fosse.

- Como era ele?

Harpe apertou um pouco os olhos, concentrando-se nas suas recordações.

- Pareceu-me um tipo decente. Alto, de meia-idade (sabe como é, com as têmporas um pouco grisalhas), mas muito activo. Dava gosto vê-lo entrar e sair do seu carrinho de luxo, muito mais facilmente do que eu o teria feito.- Harpe deu uma olhadela à sua figura corpulenta: gostava de constatar que o seu estômago e a sua silhueta continuavam a ser imponentes. - Um belo carro, no entanto, excepto para as entradas e saídas.

- Um desses, hem?

- Bem, devo dizer que não me agradava nada vê-lo esmagado como uma noz entre dois rolos, se ele fosse meu. Não é daqueles carros que oferecem nas embalagens de chá. De qualquer modo - Harpe regressou rapidamente às suas próprias preocupações-, não podia mandar o Jenkins porque estava retido por um rebanho de carneiros na estrada de Kinnisport, e o Bailey estava a ensinar os miúdos da escola a serem cidadãos responsáveis e conhecedores do trânsito no futuro (que Deus nos ajude a todos), por isso disse ao Appleton que fosse lá resolver as coisas. Foi uma pena, mas não tinha mais ninguém na altura. Estavam todos no mercado.

- Uma pena?

- Ele estava a tomar conta do cruzamento da estrada para Calleford. É sempre um sítio mau, em dias de mercado. Não me pareceu que fizesse grande diferença se aquilo ontem não fosse orientado.

Mas não foi esse o caso. Fez realmente diferença.

A obstrução da estrada de Cleete para Berebury e o engarrafamento no cruzamento de Calleford, nos arredores de Berebury-a estrada para Londres-, não passaram de dois pequenos detalhes que mais tarde iriam contribuir para a reconstituição de um quadro completo do dia em questão.

Sloan agradeceu a Harry Contente e seguiu o seu caminho.

Posteriormente não subsistiu qualquer dúvida, no espírito colectivo da Polícia, de que Richard Mallory Tindall, de Cleete, se encontrava vivo e de boa saúde, e livre de qualquer problema aparente às nove e um quarto da manhã do dia anterior - ou seja, da Quarta-Feira 16 de Julho.

Fenella Tindall tinha precisamente acabado de se vestir quando ouviu um carro virar para a entrada de Dower House. Dirigiu-se logo à porta da frente e abriu-a ela própria.

Na sua frente encontrava-se um homem bem vestido, que mudava o peso do corpo de um pé para o outro, mal ocultando a sua impaciência, quando ela abriu a porta.

- Mr. Tindall? - perguntou mal a viu. - É aqui que ele mora?

- É, sim. - O homem era totalmente desconhecido de Fenella. - Mas...

- Pode fazer o favor de lhe dizer que eu estou aqui?

- Quem...?

- Cranswick - disse o homem concisamente. Tudo nele era conciso: desde o corte de cabelo regulamentar até às polainas dos sapatos altamente brilhantes. Com uma rapidez de prestidigitador, entregou-lhe um cartão-de-visita gravado. "Gordon Cranswick - Cranswick (Processing) Limited".

Fenella recebeu o cartão que lhe era entregue.

- Lamento muito, Mr... hã... Cranswick. Sucede que ele não está cá e...

- Essa comigo não pega, fique sabendo. - Mr. Cranswick abanou a cabeça de um lado para o outro. - Para mim não serve. Não é desculpa que me convença. Neste momento, não. Bem vê, eu sei exactamente qual é a minha situação, desde ontem. Ele deve saber disso. E vai ter que me receber, quer queira quer não.

- Não pode - disse ela.

- Tenho que falar com ele - declarou Cranswick peremptoriamente. - É muito importante, minha senhora. Muito importante.

- Ele não está cá - repetiu Fenella.

- Então onde está?

- Não sei.

- Ora, deixe-se dessas. - Cranswick fitou-a com dureza. Era um homem forte, seguro de si próprio, com uma boca e um queixo que se podiam classificar como firmes. - Não ganha nada com esses jogos. Que se passa, afinal? Nós concordámos em que hoje podia saber-se tudo. Ele não costuma obrigar-me a esperar desta maneira.

- E também não costuma ficar uma noite fora de casa - retorquiu Fenella energicamente.

Gordon Cranswick deteve-se tão subitamente como se tivesse sido atingido por um golpe.

- Não veio a casa? Isso já é diferente. Porque é que ele não veio a casa? Onde é que ele esteve antes? Com quem esteve?

- Com amigos. Com o casal Osborne. Por acaso. Mas isso não tem nada a ver com...

- Depois disso - interrompeu ele apressadamente, pondo de parte a ideia dos amigos com um gesto de mão-, para onde é que ele foi depois?

- Não sei - declarou Fenella com firmeza. - Ainda não sei.

- Do que eu não estou a gostar nada, Miss Tindall (é Miss Tindall, não é?), é que o seu pai prometeu...

- Ele não ia faltar a uma promessa - apressou-se Fenella a observar. - Pode contar com isso.

- Eu tive que voltar ontem à cidade para falar com os nossos banqueiros e resolver uns assuntos com ele, mas ele prometeu receber-me hoje logo que eu pudesse aparecer.

- Nesse caso - disse Fenella com dignidade - tenho a certeza de que o receberá logo que puder.

Gordon Cranswíck mudou de posição sobre a soleira da porta da Dover House e começou a dizer, num tom mais pomposo:

- É para mim uma questão de considerável importância, Miss Tindall, falar com o seu pai o mais rapidamente possível.- Fez uma pausa, para dar mais efeito. - E devo dizer que isto é importante para si, também.

- Talvez - disse Fenella, desamparadamente. - Miss Holroyd, no escritório...

- A secretária dele? Já falei com ela. Também não me disse nada.

- Então Mr. Pysden - sugeriu Fenella.- É o delegado do meu pai.

- Eu sei. Estava demasiado ocupado para me receber - declarou Cranswick. - Não o censuro por isso. Não vai gostar da nova situação e penso que sabe disso. Nunca foi pessoa de que eu gostasse muito, esse Mr. Henry Pysden.

- Que nova situação, Mr. Cranswick?

- A Cranswick Processing apresentou uma oferta à Struthers e Tindall.

- Uma oferta? - Fenella estava visivelmente espantada.

- Pela firma do meu pai?

- Foi o que eu disse. E o que é mais, posso dizer-lhe que ela já foi aceite.

- Quando? - inquiriu Fenella debilmente.

- Ontem à tarde. Foi nessa altura que o seu pai concordou em vender-me a Struthers e Tindall. - Fez cair o punho direito sobre o esquerdo repetidas vezes, para obter maior ênfase: - Com - zás - todo - zás - o seu recheio.

 

Estou a caminho de estudar um longo silêncio.

Algum tempo depois de ter saído da Esquadra de Berebury, o inspector Sloan tinha poucos motivos para se sentir grato pelas obras feitas pelo inspector camarário na estrada.

O súbito estalejar das pedrinhas soltas à superfície da estrada que atingiam a parte inferior do carro da Polícia foi a única coisa que persuadiu o agente Crosby a reduzir a velocidade - e apenas parcialmente - durante toda a viagem para sul. Sloan ergueu o olhar e reparou que havia marcas da aplicação do alcatrão na estrada, efectuada no dia anterior.

Crosby retomou em breve a velocidade inicial.

Sloan afastou os olhos da estrada.

Guiar carros rápidos era a única coisa - realmente a única - que Crosby parecia fazer bem, mas podia estar enganado. Desastrosamente enganado.

- Cleete fica muito longe, senhor Inspector - observou, carregando ainda mais no acelerador.

- Eu trouxe contas para os nativos - respondeu Sloan, tensamente. - Cuidado com esse tractor.

- Há montes de espaço - disse Crosby descontraidamente.

Sloan baixou o vidro da janela e tentou olhar para a paisagem. Além disso entrava mais ar no carro. O dia ia estar quente como o anterior. As sebes passavam rapidamente.

-Não há assim tanta pressa - disse mais suavemente, permitindo ao seu espírito que se espraiasse na recordação das suas roseiras. Parecia-lhe que estavam a murchar um pouco, depois do calor que fizera na véspera. Junho tinha sido um desapontamento, do ponto de vista do tempo... e tinha vindo depois da mais atrasada e mais seca Primavera da última década. Por isso, só agora (em meados de Julho) as suas preciosas roseiras tinham começado a

florir. Andava a criar um exemplar verdadeiramente magnífico da Princesa Grace de Mónaco para levar à Exposição da Sociedade de Horticultura no sábado seguinte.

- Estamos a chegar a Cleete, senhor inspector. O que é que vimos procurar?

- Um homem.

- O que é que ele fez? - A visão de Crosfay da missão de um polícia era essencialmente simples.

- Desapareceu. - Sloan afastou o espírito, com certo esforço, das suas roseiras, e abriu a agenda.

- Talvez tenha sido raptado - sugeriu Crosby alegremente.- Como a filha do Duque de Calleshire que foi raptada por aquele "disc jockey" no ano passado. Lembra-se, senhor Inspector?

- Lembro-me - disse Sloan em tom repressivo. Ninguém que lesse os jornais de domingo poderia esquecer-se algum dia das antiguidades de Lady Anthea. Ou das gravuras que representavam o Castelo de Calle, com a ponte levadiça erguida e o portão baixado.

- Havia um resgate - recordou-lhe Crosby -, mas o Duque não queria pagar. Disse que podiam ficar com ela.

- Isso foi o dote - disse Sloan com firmeza - que o Duque não queria pagar. Se isto é um caso de resgate...

- Não é?

- Até agora nunca se falou em qualquer carta a exigi-lo.

- Isso não quer dizer nada, Inspector-disse o guarda jovialmente.

- Não?

- Se a família tiver recebido uma nota a exigir-lhe que deixe dez mil libras por baixo do carvalho atingido por um raio num cruzamento, pela calada da noite, não se segue que no-lo digam.

- Acha realmente que não? - perguntou Sloan sombriamente.- Pois deixe-me que lhe diga que não vão muito longe se o não fizerem.

- Então talvez seja suicídio.

- Não me mostraram ainda qualquer nota do suicídio - disse Sloan em tom austero.

Em sua opinião, os suicídios eram sempre acompanhados de notas, tão inevitavelmente como dois e dois serem quatro.

- Ainda há o rio em Randall's Bridge - recordou-lhe Crosby. - Fica apenas a três milhas de distância.

- E a linha do caminho-de-ferro - comentou Sloan, que não tinha vindo só a pensar em roseiras durante a viagem.

- Há muito por onde escolher, não há, senhor Inspector?

- Os suicidas têm sempre muito por onde escolher - disse Sloan em tom mordaz.

Crosby fez nova tentativa.

- Esse tipo, Inspector, é dos maus?

- Também ainda não sei. - Sloan agitou-se no lugar, irritado: Crosby via demasiados filmes de cow-boys e isso começava a notar-se. - Fiz uma investigação junto dos Cadastros antes de sairmos da esquadra...

Qual era a palavra que estava em moda no mundo dos negócios, naquela altura, para classificar as más informações? Havia uma frase própria. Informações Derrogativas.

Era isso.

- Não deu gozo, senhor Inspector?

- O Departamento de Cadastros não tem qualquer informação a respeito dele sob o nome de Tindall, se é isso que entende por gozo, Crosby.

O agente dignou-se travar junto de um cruzamento.

- Para que lado vamos, Inspector?

- Vamos para a Dower House- disse Sloan. - Hepple diz que dá logo nas vistas. Fica no meio da High Street, quase ao lado da igreja.

Não levaram muito tempo a encontrá-la.

Cleete era uma pequena aldeia - uma amálgama de vivendas, uma ou duas lojas, um espaço verde, um bar, uma garagem - tudo em volta da igreja. Podia-se ver a fina agulha da igreja, mal se entrava na aldeia. Depois de a localizar, foi muito fácil descobrir a Dower House.

Para além da Dower House e da igreja abria-se uma magnífica avenida ladeada por carvalhos, mas o inspector Sloan não penetrou nela para ver onde ia dar. A sua atenção tinha sido atraída por algo estacionado junto do portão da frente da Dower House.

Uma bicicleta da Polícia.

O Agente Crosby estacionou o carro junto dela, com um guinchar de pneus absolutamente desnecessário, e disse:

- Parece que a Esquadrilha Voadora nos levou a dianteira, afinal, Inspector.

- O guarda Hepple - deduziu o inspector Sloan. - Deve ter voltado atrás por qualquer motivo.

O guarda Hepple tinha efectivamente regressado à Dower House por um motivo. Dirigiu-se ao carro da Polícia com alívio evidente.

- É o carro de Mr. Tindall, senhor Inspector. Miss Tindall acaba de o encontrar na garagem. Telefonou-me para me dizer isso. Disse que pensava que nós devíamos saber que ele estava lá.

- É um ponto de vista - concordou Sloan.

Um homem e o seu carro não eram tão invisíveis como um homem e o seu cavalo, mas, com o tempo, acabariam por vir a sê-lo.

" - Macacos me mordam se eu sei o que hei-de concluir daí, senhor Inspector. - O guarda Hepple empurrou o boné para trás. - Para mim, não faz sentido. No entanto - acrescentou com sentido de justiça-, acho que devia ter ido dar uma olhadela à garagem eu próprio, antes de mais, mas quando a Ada Turvey me disse que a chave não estava no seu lugar habitual...

- Presumo - cortou Sloan - que da casa não se vê a porta da garagem.

Nunca tinha sido uma pessoa que gostasse de recriminações e, à medida que os anos passavam, constatava que cada vez se sentia menos inclinado para elas. Nunca serviam para nada. Essa era uma das coisas que a vida lhe tinha ensinado - mas, lamentavelmente, não ao superintendente Leeyes - até àquela altura. Só lastimava que fosse uma das últimas lições da vida.

- Não, senhor Inspector - respondeu Hepple, franzindo a testa. - Da casa não se vê. A garagem fica numa parte dos estábulos que foram convertidos, e, evidentemente, os estábulos ficavam sempre para o outro lado da casa, por causa do cheiro dos cavalos.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Não havia sombra de dúvida de que estavam mesmo no campo...

- Estive a ver o carro, senhor Inspector - prosseguiu Hepple. - As chaves ainda estão na ignição, e a chave da garagem de que me falou a Ada Turvey (aquela que está sempre pendurada no gancho junto do portão) ainda se encontra na fechadura da porta da garagem.

- Mais nada?

- Apareceu um cavalheiro a perguntar por ele. Ao que parece, um cavalheiro ligado aos negócios. Chamado Gordon Cranswick. Um fulano todo aprumado, sob todos os aspectos. Queria falar com Mr. Tindall a toda a pressa e não percebia porque não havia de falar com ele. Foi-se embora de carro tão depressa como chegou, disse Miss Tindall.

- Mas continua a não haver sinais do pai dela?

- Nem sombras, senhor Inspector. - Hepple abanou a cabeça. - Parece que se evaporou depois de chegar a casa e antes de se meter na cama, na noite passada - "Entre o estribo e o chão" - murmurou Sloan sugestivamente.

- Como diz, senhor Inspector? - perguntou. Sloan pigarreou.

- Entre a garagem e a casa.

- Exactamente, senhor Inspector-disse Hepple coçando o queixo. - Pelo menos, é o que parece.

- Exactamente - concordou Sloan. - Não podemos esquecer-nos de que as coisas nem sempre são como parecem.

Era um princípio que estava sempre a esforçar-se por instilar na mente do agente Crosby.

Teve esperanças de que ele estivesse a ouvi-los.

- Não consigo encontrá-lo no jardim, no entanto - prosseguiu Hepple obstinadamente-, Miss Fenella e Ada Turvey dizem que não o encontram dentro de casa, - Apontou com os ombros

para o edifício que se erguia por detrás dele. - Como pode ver, senhor Inspector, não é uma casa nada pequena.

Não, não era uma casa pequena. Sloan podia Constatá-lo perfeitamente. Contudo, era uma casa de belas proporções. Na verdade, só depois de a olhar uma segunda Vez, pôde aperceber-se de como era perfeita.

- É aquilo a que chamam Georgiano, senhor Inspector segundo me disseram - observou Hepple - por Causa das linhas rectas.

Sloan assentiu com um movimento da cabeça. Não havia nem uma curva nem um efeito Victoriano à vista de tudo - como costumam dizer os optimistas folhetos de propaganda dos agentes imobiliários - em perfeito estado de conservação.

Hepple descreveu um círculo com o braço.

- E um jardim verdadeiramente grande.

Sloan concordou com um grunhido. Não havia dúvidas quanto ao tamanho do parque. Seria difícil encontrar ali um pelotão, quanto mais um homem.

- Para aí uns oito mil metros quadrados, diria eu, senhor Inspector. Pelo menos. - Hepple observou o terreno com um olhar experiente. - E ele pode estar algures naquele pomar lá no fundo... em qualquer lado. Especialmente se tiver sido acometido de doença depois de voltar a casa ontem à noite.

O inspector Sloan não tinha tempo para eufemismos logo de manhã.

Olhou para o relógio e disse vivamente:

- Se tiver feito uma boa farra, é capaz de estar por aí a curti-la, em qualquer sítio. Ainda não é muito tarde.

- Não, senhor Inspector - disse o guarda Hepple, num tom igualmente firme. - Não era pessoa para beber a esse ponto.

Sloan ergueu rapidamente o olhar para ele, apercebendo-se de que tinha estado a curta distância de subestimar um guarda provincial; e isso nunca se deve fazer.

- Se ele fosse uma pessoa desse género, senhor Inspector´- prosseguiu Hepple muito seriamente-, eu não teria informado Berebury da sua desaparição. Ou, de qualquer forma, só muito mais tarde, senhor Inspector, quando tivesse a certeza absoluta.

- Compreendo - disse Sloan. E compreendia.

Juntamente com os moscardos, o pórtico da igreja e a bicicleta, vinham uma discriminação mais perfeita - e uma liberdade maior - do que a que era possível na cidade

Foi nessa altura que se abriu a porta da frente da Dower House. O inspector Sloan voltou a cabeça e viu uma rapariga- ou antes, uma jovem senhora - na entrada. Emoldu- rada pelas linhas clássicas do pórtico Georgiano. Ficou parada a olhar para os três polícias. Havia algo de inesperado no seu aspecto - algo quase estrangeiro. Sloan levou alguns momentos a perceber o que seria - mas depois compreendeu.

Era o seu modo de vestir.

Estava-se no pino do Verão em Inglaterra e aquela jovem vestia-se de castanho-escuro. Nem um tecido de seda às flores, nem um algodão de tom alegre, nem sequer um linho de tom pastel, como o que a sua mulher, Margaret, tinha envergado nesse dia. Castanho-escuro. Era um vestido simples, extremamente desguarnecido, sem um único adorno, além de um colar de contas brancas.

Surpreendeu-o constatar que o efeito era singularmente refrescante, naquele dia quente. Nos cabelos dela havia um vago tom de cobre, que o castanho do vestido parecia reproduzir. Um purista teria dito que a boca dela era demasiado grande para ser perfeita, mas Sloan não era um purista. Era um polícia. E estava de serviço.

Avançou para ela.

- Já encontrou o meu pai? - perguntou a jovem imediatamente.

Mal tinham entrado na Dówer House quando Mrs. Turvey apareceu no hall, quase a correr e a enxugar as mãos no avental.

- Está um cavalheiro ao telefone - disse - para falar com um tal inspector Sloan Diz que não consegue que lhe respondam do rádio do carro-patrulha, ou coisa parecida. Parece ter muita pressa, lá isso parece.

Não era um cavalheiro. Era o superintendente Leeyes.

- É o senhor, Sloan? Oiça, acabamos de receber uma mensagem de Randall's Bridge...

- O rio?

- O rio?

- Ou o caminho-de-ferro, chefe?

- De que está a falar, Sloan?

- Da mensagem, chefe.

- Estou a tentar dizer-lhe que veio da igreja.

- Da igreja?

- Foi o que eu disse, homem. Está uma data de gente a trabalhar lá. Estão a instalar o aquecimento, ou coisa no género. Um dos tipos olhou para dentro da torre da igreja e descobriu um homem.

- O nosso homem? - inquiriu Sloan, esforçando-se por se limitar aos pontos essenciais.

- Não sei. É melhor ir até lá para ver.

- Vivo ou morto, chefe?... Convinha saber.

- Morto. - A ligação telefónica produziu alguns estalos e enfraqueceu. - Absolutamente morto.

- Como foi, chefe? - perguntou Sloan. - Não estou a ouvi-lo bem...

Sobressaltou-se com o berro que saiu do auscultador. A interferência na linha telefónica tinha desaparecido tão depressa como aparecera.

- Esmagado - ribombou o superintendente Leeyes.

 

Esse engenho curioso, a tua branca mão.

Fosse qual fosse o recorde de tempo e distância que o agente Crosby tinha registado na viagem entre Randall's Bridge e Cleete, quebrou-o, sem dúvida, na viagem entre a Dower House e a igreja de Randall's Bridge.

Sloan agarrava-se ao assento de cada vez que Crosby descrevia uma curva. Tinham deixado o guarda Hepple em Cleete, com Fenella Tindall e Mrs. Turvey.

Sloan localizou facilmente a igreja de Randall's Bridge.

Situava-se numa pequena proeminência junto do rio, e a sua alta torre ficava bem à vista de toda a gente.

Crosby descreveu a última curva e deteve o carro da Polícia de um modo arrepiante mesmo atrás de um camião carregado de canos que se encontrava estacionado perto do portão de entrada. Sloan precipitou-se para fora do carro e atravessou o adro da igreja. Havia um pequeno aglomerado de homens em volta da porta da igreja. Reparou que todos vestiam fatos-macaco e alguns deles ainda tinham ferramentas nas mãos. Dois deles estavam debruçados sobre .um jovem que estava sentado na relva do adro, com o rosto esverdeado.

- Polícia - disse Sloan.

Um dos homens apontou com o polegar.

- O gajo ainda está lá dentro. Trouxemos o Billy cá para fora, para apanhar ar.

- Foi o Billy que o encontrou - disse outro.

Sloan não precisava de que lho dissessem. Já tinha visto antes aquele ar chocado e incrédulo. O ar de alguém que viu algo pouco agradável e que nem quer acreditar no que viu.

- A princípio não acreditei nele - disse um homem mais velho. - Julguei que estava a mangar connosco. O senhor sabe como são os aprendizes.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Se sabia. Não havia um único polícia que não soubesse como são os aprendizes.

Passou pelos homens e dirigiu-se à porta da igreja, com Crosby atrás. Não estava fechada à chave, mas encontrava-se semicerrada. Encostou-lhe o ombro e a grande porta de carvalho abriu-se. Penetrou na igreja. Pelo menos ali dentro estava fresco.

A primeira sensação que teve foi de aparente desordem por toda a parte. À segunda olhadela constatou que se tratava de um caos organizado - operários a trabalhar.

Havia canos e tábuas por toda a parte. Alguns dos bancos tinham sido afastados e os restantes encontravam-se cobertos com panos.

Havia mais dois homens de pé, junto da porta que dava para a torre da igreja.

- Polícia - voltou a dizer Sloan.- Inspector Sloan.

- Por aqui - disse um dos homens com voz abafada.

- É além.

- Houve um acidente horrível - disse o outro.

Sloan atravessou a nave ao encontro deles, ouvindo Crosby a trotar atrás dele, como a materialização de um segundo eu espectral.

- A porta não se consegue abrir mais do que uns cinco centímetros, Inspector, mas vê-se lá para dentro.- O mais baixo dos dois homens afastou-se da porta. - Espreite...

Sloan espreitou.

Crosby, que era mais alto, espreitou também, por cima do ombro de Sloan - e deixou escapar um assobio baixo e longo, absolutamente contrário ao seu treino policial de impassividade profissional.

O espectáculo que havia feito Billy, o aprendiz, tomar aquele tom esverdeado, era curioso.

Toda a base da torre da igreja parecia estar cheia de uma enorme quantidade de mármore estilhaçado. Havia uma grande variedade de pedaços de figuras brancas - além via-se um pé, aqui uma cabeça - amontoados no chão. Eram eles que impediam que a porta se abrisse mais do que alguns centímetros.

E havia também um braço que não era feito de mármore branco.

Estava envolto na manga de um fato de homem e saía debaixo do amontoado de pedras. A pele da mão estava pálida e sem sangue e, apesar da fraca iluminação, Sloan não tinha a mínima dúvida de que o seu dono estivesse morto.

Tal como o superintendente tinha dito.

Absolutamente morto.

Não era muito fácil ver qualquer outra coisa. Havia uma espécie de obscuridade eclesiástica no interior da torre.

- O interruptor fica lá dentro, calculo eu - disse.

- Fica - disse um dos homens. - Mas não servia de muito se lá chegássemos, não lhe parece? Olhe para ali.

Sloan olhou para cima. Por baixo de um quebra-luz de vidro estriado de estilo Victoriano pendia um casquilho vazio.

- Não há lâmpada.

- Pobre diabo - disse o homem mais baixo. Tinha um metro de carpinteiro a sair do bolso do casaco.

- Pelo menos - observou o outro - nunca soube o que o atingiu. Não podia ter sabido. - Este era mais velho e estava elegantemente vestido, com um casaco de tweed de estilo campestre.

Sloan pigarreou.

- Hã... algum dos senhores sabe por acaso o que foi que lhe caiu em cima?

- O Legado Fitton - responderam os dois homens em uníssono.

- Ah, pois!-disse Sloan.

Aquilo não servia para o Superintendente; não era resposta para ele. Tinha de arranjar coisa melhor para escrever no seu relatório.

- Ainda na semana passada o pusemos aqui, não foi, Mr. Knight?

- Exactamente, Bert- disse o homem mais velho, acenando com a cabeça. - Puseram-no aqui. O Bert Booth é o capataz, Inspector.

- Doze homens para o deslocar -confirmou Bert-, mas fizemos um bom trabalho.

- Primeiro cumprimos todas as formalidades necessárias, Inspector -garantiu-lhe o homem chamado Knight -, e só depois é que lhe mexemos. Obtivemos uma licença consistorial para o transportarmos, fizemos uma comunicação à Imprensa, e tudo o mais. Ainda bem que fizemos tudo isto. O arquidiácono caía sobre nós como uma tonelada de tijolos se...

Mr. Knight apercebeu-se de que a imagem não tinha sido das mais felizes e reduziu-se ao silêncio.

O inspector Sloan voltou-se para o agente Crosby.

- Faça vir aqui o mais depressa possível o Dr. Dabbe de Berebury... e Dyson e o pessoal das fotografias.

- Sim, senhor Inspector.

- E de caminho diga àquela malta que está à porta da igreja que se se afastarem um centímetro que seja do sítio onde estão, meto-os todos na cadeia, - Sim, senhor Inspector. - Crosby partiu a trote. Sloan voltou-se novamente para a estreita fenda que constituía a única visão possível da base do campanário. Era um pouco limitativa. Tinham que cingir-se àquilo a que os arqueólogos chamam uma observação antes da escavação. Olhou de novo para o braço. Não havia muito braço à vista, mas era o suficiente para lhe dizer o que queria saber.

Era um braço esquerdo.

Estava envolto na manga de um fato de homem - um fato cinzento - e, do sítio onde se encontrava, Sloan podia ver que faltava um botão na manga.

Fenella Tindall encontrava-se sentada na sua cadeira, muito direita, quando o guarda Hepple regressou do telefone, e as suas costas estavam tão rígidas como as da Principessa.

De certo modo, o toque do telefone tinha trazido uma sensação de alívio.

Tinha tentado sentar-se no jardim, enquanto o guarda Hepple se dedicava à exploração do pomar, mas descobrira que não conseguia fazê-lo. A casa parecia-lhe muito mais tranquilizante. Era certo que não havia mais ninguém dentro dela, para além de Mrs. Turvey e dela própria, mas era muito forte o impulso de percorrer novamente todas as divisões.

Tal como o seu desejo de gritar em voz alta pelo pai - de gritar por ele e de ficar à espera de uma resposta.

Voltou a cabeça quando Hepple regressou à sala.

- Era...? Hepple disse:

- O inspector, miss. Era um recado do inspector.

- Há notícias? - fitou-o ansiosamente. - Ele deu notícias?

- Nada definitivo, miss- contemporizou o polícia.- Nós informamo-la logo que haja alguma coisa em definitivo.

Fenellla descontraiu-se parcialmente.

- Então, o que...?

- Era acerca das roupas do seu pai, miss.

- Mas eu já lhe disse.

- Só para confirmar, mais nada.

- Ele vestia um fato cinzento, como eu disse.

- Um fato cinzento...

- Não era dos melhores - apressou-se a observar.- Mrs. Turvey diz que tinha uma nódoa de gordura na perna direita das calças. Isso ajuda em alguma coisa?

- Nem por isso, miss. - Hepple tossiu. E era verdade.

- Nesta fase, não - acrescentou com sinceridade.

- Era por isso que íamos mandar o fato à lavandaria, compreende?

Hepple consultou o seu bfoco de notas.

- Tinha-me dito qualquer coisa mais, miss, anteriormente...

- Faltava-lhe um botão.

- Onde?

- Na manga.

- Qual delas?

- A esquerda.

Hepple conservou os olhos postos no bloco.

- Por acaso não terá esse botão, miss? Talvez o guardasse para o pregar quando o fato voltasse da lavandaria...

Desapareceu um pouco de cor do rosto de Fenella, mas ela esforçou-se por conservar a firmeza da voz.

- O botão?

- Seria muito útil, miss, que o tivéssemos em nosso poder.

- Agora gostaria - comunicou o inspector Sloan a Mr. Knight - de dar uma olhadela ao exterior da torre.

- E aquele pobre tipo? - exclamou Bert Booth, o capataz.- Não vão tirá-lo dali?

- Como? - perguntou Sloan.

- Tenho lá fora uma data de homens. Como sabe. Eles podiam...

- Mesmo que eles se juntassem todos - disse Sloan - não conseguiríamos abrir esta porta. Deve haver meia tonelada de mármore encostada a ela.

Bert Booth coçou a cabeça.

- Isso é verdade, patrão. E a outra porta? A que dá para o adro?

O homem que dava pelo nome de Knight abanou a cabeça ao ouvi-lo.

- Não conseguia deslocar essa, Bert. Por muita força que fizesse. Pode-se ver daqui o que está encostado a ela.

- Caramba! - exclamou Bert Booth. - Mas então como diabo...?

- É isso mesmo - disse Sloan calmamente.

Mr. Knight olhou para Sloan.

- Mas Isso quer dizer, por certo, Inspector, que ninguém pôde ter saído da torre depois de isto suceder... que ele estava sozinho ali quando...- Calou-se.

- Pois quer - concordou Sloan. - É por isso mesmo que eu quero ir dar uma volta pelo lado de fora.

O calor do dia atingiu-o em cheio quando saiu da igreja, atrás de Mr. Knight e de Bert Booth.

Billy, o aprendiz, tinha um tom ligeiramente menos esverdeado.

- Podes contar-me agora o que sucedeu? - perguntou Sloan com gentileza.

O rapaz engoliu em seco.

- Eu estava só a espreitar, senhor inspector. Foi só isso. E depois vi aquele braço espetado. Não ia fazer nada de mal, quando lá fui.

- Claro que não.

- Palavra que não ia - insistiu o rapaz com sinceridade. - Quando vi que a porta não se abria mais que uns centímetros, espreitei para ver o que estava a entravá-la. A princípio não dei pelo braço, não sei se percebe.

- E depois, que fizeste? - Sloan não estava muito preocupado com o rapaz. Quem conta um conto, acrescenta um ponto. Ao fim da tarde, o seu relato já teria ultrapassado o da batalha de Agincourt... dele tendo sido retirados os efeitos causados tão naturalmente sobre o seu estômago e já esquecidas as náuseas. No dia seguinte seria um herói no seu pequeno círculo de amigos e conhecidos.

- Eu não toquei em nada.

- Excepto na maçaneta da porta. Billy ficou abatido.

- Tinha-me esquecido disso.

- Não podias saber - disse Sloan. - E depois?

- Fui a correr contar a Mr. Booth e ele mandou alguém avisar Mr. Knight.

Era Mr. Knight quem conduzia Sloan através do adro e em volta do campanário. Veio a saber que era um professor reformado e igualmente secretário do Conselho da Igreja Paroquial.

- Foi por isso que me mandaram chamar - explicou. - Eu vivo ao fundo da estrada. Cá estamos.

Sloan deteve-se e observou bem, pela primeira vez, o campanário da igreja. Era uma torre quadrada e tinha apenas o par de portas duplas que abria para o adro da igreja. Por cima do arco arredondado da porta existia uma pequena janela.

Bert Booth, o capataz, olhou para cima e abanou a cabeça.

- Não é suficientemente larga para alguém entrar por ali e ir abrir-nos a porta do outro lado. Nem sequer conseguiríamos enfiar o Billy por ali. Não é assim tão pequeno.

- Pois não - concordou Sloan. A janela pouco mais era do que uma fenda, destinada a dar luz e não a permitir o acesso: nem dava sequer para o aprendiz desempenhar o seu papel tradicional de se introduzir em espaços estreitos.

- Tipicamente saxónico - informou Mr. Knight, o professor.- A torre é toda de estilo saxónico, com excepção das ameias em cima.

- Ah, sim!? - disse Sloan delicadamente.

Se havia coisa que não interessasse ao superintendente Leeyes era a idade da torre.

- Talvez pudéssemos ver melhor com uma escada - disse Bert Booth, o capataz, de ideias mais práticas. Desapareceu de vista, contornando a torre pelo outro lado.

- Saxónica - repetiu Mr. Knight. - Construída na mesma época da primeira ponte deste rio. - Apontou para o rio que corria por detrás da igreja.

- Randall's Bridge (1)?- perguntou Sloan.

- Randalla, a Ponte Saxónica, mais precisamente.

 

(1) Ponte de Randall. (N. da T.)

 

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Não apreciava o pedantismo.

- Antes disso, havia um vau. Os Romanos serviram-se desse vau.

- Ah, sim!? - murmurou Sloan distraidamente.

Com que então os Romanos molhavam os pés e os Saxões não. É a isso que se chama progresso, não é? Ou será apenas história?

- Não conhecemos o local exacto do vau, Inspector. O leito do rio modificou-se desde essa altura. - Knight inclinou a cabeça na direcção do rio Calle, que corria lá em baixo. Um dos caminhos que partia do adro seguia na direcção do rio - Dois mil anos é muito tempo.

- Lá isso é - disse Sloan. O mesmo podia dizer de doze horas, num caso como aquele. Olhou para a torre.

Knight apontou:

- Podem ver-se as pedras longas e curtas em estilo saxónico, aos cantos. Está a vê-las, Inspector?

- Estou, sim senhor.

Efectivamente, Sloan não estava a observar as pedras saxónicas, mas tinha descoberto havia longo tempo que a única coisa a fazer com os estudiosos da antiguidade era deixá-los falar enquanto pensava em qualquer outra coisa. Naquele momento estava a pensar no cascalho que havia no exterior da porta da torre. Havia ali uma grande quantidade de marcas - a cerca de um metro e meio das portas e por baixo da janela.

- É uma característica saxónica vulgar - prosseguia o professor, muito satisfeito - colocar as pedras dos cantos altemadamente em posição horizontal e vertical.

- Não pise o cascalho nesse sítio, não se importa? Quero fazer umas fotografias.

- Só se encontram pedras assim durante o período saxónico.

- Pode-se sair pelo telhado?

- Do lado de dentro? Oh, sim, Inspector! Claro que se pode. É uma grande subida em volta dos sinos, mas pode ser feita por alguém que seja... hã... razoavelmente ágil. Já há muito tempo que lá não vou, mas a vista lá de cima é muito boa. Num dia límpido consegue ver-se Calleford.

Sloan olhou para as ameias no cimo da torre.

Uma vista sobre a morte dessa manhã? Era isso que se poderia ver?

Nem sequer sabia se a morte se tinha verificado nessa manhã, ainda...

- A que horas teria sido fechada a igreja? - perguntou abruptamente.

- Às onze horas, Inspector. Eu próprio a fechei exactamente às onze horas. Faço-o todas as noites. Quando levo a cadela a passear.

- Cadela? - Vivamente.

- Uma "spaniel". Tessa. Sloan inspirou profundamente.

- Que pena não ser uma cadela de caça.

- É uma boa cadela - protestou o proprietário do animal, num tom ofendido.

- Ela sabia que ele estava ali?

Knight franziu a testa.

- Agora que me falou disso, Inspector...

Sloan suspirou. Assim não valia tanto como uma observação espontânea. Sem ajudas, eis como deviam ser feitas as declarações.

-... realmente ela andou a cheirar por aqui. Na altura não prestei atenção.

- Aqui? Vieram por aqui?

- Viemos. Subimos a rua da aldeia e passámos pelo caminho que leva ao rio.

Sloan apontou para uma vivenda junto ao adro da igreja.

- Aquela é a sua casa?

- O quê? Oh, não! Aquela é a Vivenda Vésper. Vivem lá as duas Miss Metford, Eu vivo do outro lado. Naquela casa em frente do portão de entrada.

- Então porque vieram por este caminho?

Pela primeira vez o professor pareceu ficar sem palavras. Pigarreou diversas vezes.

- Eu... hã... fui até à "Mala Posta" beber uma cerveja e conversar um pouco.

- E abriu a porta esta manhã... a que horas?

- Às oito horas. Para os trabalhadores entrarem.

Ouviu-se um forte ruído de passos pesados do outro lado da torre e Bert Booth reapareceu. Trazia a escada.

- É curioso - exclamou subitamente Mr. Knight. - Onde encontrou essa escada, Bert?

- Estava deitada junto da parede. Acha que pode chegar à janela com isto, Inspector?

- Mas - insistiu o professor - essa escada não devia ter ficado cá fora.

- Não senhor, não devia. - Sloan não podia estar mais de acordo com ele. As escadas que ficam onde não devem constituem sempre um anátema para a Polícia.

- Fica sempre guardada na torre - insistiu Mr. Knight. - Sempre.

Bert Booth encolheu os ombros largos.

- Bem, agora não estava e não foi um dos meus rapazes que a tirou de lá. Nós não precisamos de escadas, Mr. Knight, como o senhor sabe. Para fazer este trabalho, não precisamos.

A escada não tinha altura suficiente para atingir o cimo da torre. Disso não havia dúvida. Ninguém a poderia ter utilizado para descer da torre. Mas tinha altura suficiente para chegar à abertura por cima da porta.

Bert Booth voltou-se para Sloan.

- Quer dar uma espreitadela pela janela ou não, Inspector?

- Mais tarde - disse Sloan. - Depois de termos feito um molde de cascalho.

- Ah!, então é isso? - disse o capataz. Sloan acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Eu sei que a morte tem dez mil portas diversas.

- Chefe, penso - principiou o inspector Sloan prudentemente - que talvez tenhamos encontrado Mr. Tindall.

Logo que o agente Crosby regressara à igreja, Sloan tinha entrado em comunicação com o superintendente Leeyes, ligando para a Esquadra de Berebury. Tinha-se servido das suas prioridades policiais. Estava a utilizar o telefone de Mr. Knight. O rádio do carro de Crosby não era suficientemente privado para este tipo de conversa. Enquanto fazia a ligação, Sloan ouvia o professor andar de um lado para o outro, na sala do lado, em companhia de Bert Booth, o capataz.

Booth estava à espera da sua vez de usar o telefone para avisar os patrões - uma firma de montagem de aquecimento central em Berebury - de que tinha havido aquilo a que ele chamava "um ligeiro impedimento". Isso não parecia incomodar muito os operários. Estavam a instalar-se para outra pausa para o chá - desta vez no adro da igreja. Sloan via-os, com as suas canecas, da janela da sala de estar de Mr. Knight.

Tinha deixado Crosby no interior da igreja. Embora não se lhe pudesse chamar propriamente um "polícia na cena do crime". A Crosby não.

Um grunhido seu conhecido no outro extremo da linha indicou-lhe que o superintendente estava a escutá-lo.

- Não podemos ter a certeza ainda, chefe, mas...

- Se não for ele, são coisas de mais - respondeu Leeyes energicamente. - Um desaparecido e um morto no mesmo dia na mesma Divisão. Isto não é Chicago.

- Pois não... - Hesitou.

- Bem, Sloan- ladrou o superintendente-, vai dizer-me o que sucedeu ou não vai?

- Não é assim tão fácil de dizer, chefe.

- Talvez não esteja "Escutando com a mamã" - disse Leeyes pesadamente - mas estou "Confortavelmente sentado".

Sloan respirou fundo.

- O caso é este, chefe. Estão a montar aquecimento central na igreja de Randall's Bridge...

- Para quê? - O superintendente, quanto mais não fosse, era uma pessoa realista.

- Alguém deixou dinheiro para o montar. Só para o aquecimento. E para nada mais. Um legado específico de um testamento...

Sloan ouviu o superintendente resmungar uma observação cínica entre dentes sobre seguros contra incêndios, mas não fez caso.

-... Um tipo lá nascido que fez fortuna - disse, para melhor esclarecimento - na Austrália.

- Sítio esquisito para montar aquecimento.

- Ele nunca se esqueceu do frio que passou na igreja quando era miúdo - disse Sloan, repetindo o que o secretário da igreja lhe dissera. - Fez uma bela fortuna com carneiros e lembrou-se de Randall's Bridge no seu testamento.

Leeyes resmungou.

- Continue.

- Para montar a canalização do aquecimento central foi preciso afastar uma escultura incrivelmente grande que estava na igreja... na nave sul. Era uma espécie de monumento...

- Era?

- Era - afirmou Sloan, recordando-se do braço. Havia algo de terrível naquele braço espetado daquele modo.

- Então?

- Representava uma viúva a chorar e dez crianças a lamentar a morte do pai. Sabe como são estas coisas, chefe.

- Sei. Muito deprimentes, por acaso - disse Leeyes. - Agora já não as permitem. E fazem muito bem.

- Esta chamava-se o Legado Fitton. Era o monumento funerário de um tal Mr. Fitton, recordando-o por...

- Eu já devia ter percebido - observou Leeyes-, por esses dez filhos...

- Os operários levaram-no para a torre da igreja na semana passada - apressou-se Sloan a dizer - para poderem continuar a montar a canalização. Em cima do pedestal. Que também tem uns metros de altura. A escultura encontrava-se em cima dele.

- Coisa pesada.

- Exactamente, chefe. Mal conseguiu passar pela porta.

- Fez uma pausa. - Receio bem que Mr. Tindall se encontre debaixo do que resta dela. E se não for ele, é outra pessoa qualquer...

- Que está igualmente morta - grunhiu Leeyes-, o que, do nosso ponto de vista...

- Exactamente, chefe. - O ponto de vista da Polícia não era tudo, mas era aquele que interessava a ambos.

- Essa escultura, Sloan...

- Diga, chefe.

- O que é que a segurava ao plinto?

- A gravidade, chefe. Tanto quanto pude observar, pelo menos.

- A gravidade. - Leeyes resmungou de novo. - Não é coisa com que se possa brincar, não acha?

- Não senhor.- Era verdade. Nem mesmo o superintendente podia brincar com a gravidade, - Bem, então essa coisa Fitton...

- Legado.

- Legado. Caiu ou foi empurrado? Sloan inspirou profundamente.

- Receio bem que não seja assim tão simples, chefe.

- Isso não foi - inquiriu Leeyes desconfiado - um daqueles suicídios complicados, Sloan, pois não? Não suporto essas coisas.

- Não me parece que seja, chefe. - Aquilo não parecia a Sloan um suicídio... nem sequer dos complicados. Pelo menos com o rio e a linha do caminho-de-ferro tão próximos, tão à mão, por assim dizer.

- A firma não estava a dar para o torto, por acaso?

- Pelo contrário, chefe, sob todos os aspectos. Disseram-me que há um fulano que chegou esta manhã a Cleete que jura que lhe disseram que a podia comprar ontem mesmo. E continua interessadíssimo, pelo que ouvi.

- Está mesmo?

Sloan ouviu aquilo a ser gravado na esquadra, e acrescentou:

- Chama-se Cranswick. Gordon Cranswick.

- Gordon Cranswick.

- Vamos ter que confirmar, evidentemente.

- Evidentemente.

- Não me parece, chefe - prosseguiu Sloan mais lentamente-, que quem está debaixo daquele mármore todo pudesse ter empurrado a coisa para cima de si próprio, ao mesmo tempo que se deitava de bruços debaixo dela. Não é fácil.

- De acordo.

- E sabemos que ele está voltado para baixo por causa da mão. - Sloan continuava a espantar-se com tudo o que se podia deduzir através de uma simples mão.

- Bem, então...

- Mas se foi empurrado, chefe...

- Continue.

- Há um porém.

- Pago para ver, Sloan.

- Se foi empurrado...

- Ande para a frente com isso, homem.

- Quem empurrou a coisa tem que estar ainda dentro do campanário.

- Diga lá isso outra vez, Sloan.

- Ninguém saiu daquela torre desde que a estátua caiu por cima do tipo. - Sloan deitou finalmente aquilo para fora. - Não podia ter saído.

- O quê?!

- Há meia tonelada de mármore encostada à porta do lado oposto... a que dá para o adro da igreja.

- A porta ocidental - disse Leeyes, surpreendentemente.

Sloan pestanejou.

- Exactamente, chefe.

- Serviços cívicos - explicou o superintendente entre parêntesis. - Tive que participar em muitos.

- Acredito, chefe. Bem, e há quase a mesma quantidade de mármore por detrás da porta que dá para o interior da igreja. - Ninguém - acrescentou cuidadosamente - poderia ter aberto qualquer das portas, depois da queda da estátua.

- E o telhado? - Leeyes agarrou-se à única alternativa que restava. - Como é o telhado?

- Há um alçapão que dá para o telhado - informou Sloan-, mas a porta lá de cima está sempre fechada... de qualquer modo, fica a grande altura, no exterior. Demasiado alto para permitir o uso de escadas. E o sacristão da igreja acaba de me mostrar a chave do alçapão... aqui, em casa dele.

Tinha Igualmente apresentado a Sloan a mulher, que era uma criatura sem graça e cheia de queixumes, explicando imediatamente a necessidade de trabalhos voluntários, de um cão que precisava de ser frequentemente levado a passear e de qualquer número de visitas à "Mala Posta".

Na noite anterior, tinha tido uma das suas habituais enxaquecas e retirara-se cedo para a cama. Não tinha visto nada nem ninguém. Quando tinha uma enxaqueca ia sempre directamente para a cama...

Sloan não ficou preocupado.

Quando estava junto da torre da igreja tinha reparado num certo movimento do cortinado de uma das janelas da vivenda próxima. A Vivenda Vésper, como Knight lhe tinha chamado. As pessoas que afastam as cortinas têm geralmente coisas para contar. Iria até lá logo que pudesse...

- Não posso verificar o telhado, ainda, chefe - disse -, porque também não posso ir lá, mas não há dúvida de que é alto de mais para qualquer escada normal e não há cordas penduradas nem qualquer coisa no género.

O superintendente grunhiu, irritado.

- Espero bem que não seja mais um daqueles mistérios do quarto fechado, Sloan. Também não os suporto.

Fenella Tindall teve mais dificuldade em conservar-se sentada e imóvel quando o guarda Hepple voltou do telefone pela segunda vez.

Tinha ficado com o botão que ela lhe dera, medira-o cuidadosamente, e depois tinha ido telefonar para Randàll's Bridge.

Era tudo quanto ela sabia.

Era tudo o que ele lhe tinha dito.

Inspirou profundamente, quando o guarda regressou à sala. - Então?

- Tem amigas aqui na aldeia, miss?

Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Abanou a cabeça, sem falar.

- Alguém que pudesse vir até cá - prosseguiu ele bondosamente- para ficar consigo.

- Não, ninguém. Bem vê, regressei há pouco tempo de Itália. Estive fora durante muito tempo.

- Um amigo do seu pai, então, talvez, miss? Uma pessoa que gostasse de ter junto de si...

Obedientemente, procurou lembrar-se de alguém, mas voltou a abanar a cabeça. Mareia Osborne era realmente amiga do pai, mas Fenella não simpatizava muito com ela. O encanto da mulher era demasiado frágil. George Osborne era boa pessoa, mas devia estar a dar aulas, naquela altura. E ainda havia o velho professor Berry, claro. Naquela altura já devia estar a pé. Mas não podia ver nele um apoio. A sua idade era demasiado avançada. E Miss Holroyd - dedicada, sólida e competente - já tinha suficientes problemas entre mãos, naquele momento.

O guarda Hepple estava a dizer qualquer coisa mais.

- Na noite passada saiu com um amigo, miss, segundo me disseram.

Fenella ergueu vivamente o olhar para ele. O guarda talvez parecesse apagado e lento mas...

- Era um amigo italiano - disse - chamado Giuseppe Mardoni. Mas já voltou para Itália. Partiu na noite passada. Depois de termos jantado. Ia apanhar um avião. Um voo nocturno.

Estava a falar de mais. Apercebia-se disso. Para atrasar o momento em que o polícia iria dizer-lhe aquilo que pretendia dizer-lhe.

Aquilo que ele tinha de dizer-lhe, mais tarde ou mais cedo.

- Como vê - disse-, estou sozinha.

- Bem vejo, miss. Bem, nesse caso...

- Julgo - disse Fenella com visível esforço - que será melhor que me diga já o que sabe.

Hepple disse-lhe.

Na altura em que o inspector Sloan regressou à igreja já tinham começado a chegar os verdadeiros peritos em mortes.

O agente Crosby podia julgar-se um bom volante, mas não chegava aos calcanhares do Dr. Dabbe. O médico patologista da Comissão de Gestão do Grupo Hospitalar Distrital e de Berebury era o mais rápido condutor do Condado de Callebury. Não havia dúvidas a esse respeito. Havia casos de homens corajosos que empalideciam quando ele lhes oferecia uma boleia. E constava que aqueles que incautamente aceitavam nunca mais voltavam a ser os mesmos. O deão de Calleford, um homem impecável, cuja fé era aparentemente tão firme como a de qualquer outra pessoa da sua diocese, tinha certa vez querido saltar do carro do Dr. Dabbe em movimento, desejando ter levado uma vida mais perfeita. O assistente do médico, Burns, que ia com ele para toda a parte, sofria do efeito de choque que o reduzira ao silêncio, e raramente falava.

Sloan cumprimentou Dabbe no interior da Igreja.

- Sinto muito, Doutor. Temos aqui um corpo para si, mas não podemos aproximar-nos dele. E só conseguimos ver-lhe um braço.

- Sem espada?

- N-não, Doutor.

Dabbe exibiu um sorriso sardónico.

- Estava a pensar na Excalibur.

- Não, Doutor. Sem espada. - Sloan esforçou-se por exibir um débil sorriso. O patologista era sempre assim. Tinha um sentido de humor macabro. - Por acaso o braço está estendido. Não está... hã... a brandir coisa alguma.

- Ah! - O Dr. Dabbe dirigiu-se à porta da torre. - E a mim só me é permitido espreitar por uma espécie de abertura para os leprosos, não é assim?

- Receio bem que assim seja. - Apologeticamente. - Mandaram buscar a Berebury equipamento pesado de soldadura. Vão tentar cortar deste lado os gonzos da porta. O Dr. Dabbe inclinou-se e espreitou para dentro da torre pela abertura da porta, enquanto Sloan e Crosby se desviavam para o lado e Burns se ocupava dos fios e das lâmpadas de arco voltaico.

- Ah! - exclamou de novo o patologista.- E também não está vestido de samito branco.

- É um fato cinzento - disse Sloan automaticamente.

- Estou a ver.

- Não há muito para ver, receio bem, Doutor. Só um braço.

- Oh, não sei!-disse o patologista descontraidamente.

- Já tive menos que ver.

- Este braço - principou Sloan. Uma vez despertadas as suas bizarras recordações, nunca mais se conseguia fazer parar o médico.

- Certa vez tive apenas uma orelha - disse Dabbe.

- Sem mais nada? - inquiriu Crosby, nitidamente fascinado.

- Só como uma nuvem - disse Dabbe poeticamente.

- Este braço, Doutor - interrompeu Sloan com maior firmeza. Não estava interessado em orelhas arrancadas.

- Aquela orelha estava...

Foi-lhes poupada a continuação por uma luz que subitamente se acendeu. Enquanto estavam a conversar, o sempre silencioso Burns, o assistente do médico, tinha ligado uma potente lanterna e tinha-a focado sobre o braço à vista. Esta iluminação mais do que substituía a lâmpada em falta. Logo que ficou pronta, o patologista - esquecido da sua história da orelha - espreitou pela porta parcialmente aberta é observou longamente o braço.

- É cabeludo, Sloan, portanto não pertence a um chinês.

- Não, Doutor. - Esse era o menor dos problemas de Sloan.

- Provavelmente é de facto de um homem. Esse aspecto nunca tinha preocupado Sloan. Dabbe sorriu.

- "O traje faz o monge", hem, Sloan? Nem sempre, agora já não. Mas o quarto dedo é maior do que o primeiro.

- Sim, Doutor.

Pelo canto do olho, Sloan viu Crosby olhar para as suas próprias mãos e ostentar o ar surpreendido de alguém que descobre que uma regra geral se aplica a si próprio tal como a todos os outros.

- Não é um filho da terra com as mãos cheias de calos - prosseguiu o patologista.

- Já o imaginava - disse Sloan.

- Mas serviu-se das mãos...

- Sim.

- Os músculos interdigitais estão bem desenvolvidos. Unhas bem tratadas...

Dabbe alterou ligeiramente a sua posição.

- Não há sinais de doenças que se manifestem nas mãos... não há encurvamento dos dedos, nem unhas côncavas. Não há manchas de nicotina.

Sloan tomou nota disso.

- E não passou o dia de ontem a tomar banhos de sol. Efectivamente eu diria que ele passava mais tempo dentro de casa que ao ar livre.

Isso conferia.

- Não tem anéis, nem relógio de pulso, nem cicatrizes - prosseguiu o patologista, nas suas observações. - Falta um botão na manga.

- Já sabemos tudo isso.

- Ah, sabem!? Dentro do vosso campo, evidentemente.

- Dabbe resmungou e espreitou ainda mais atentamente.

Ainda não lhe posso dizer a idade. A gordura subcutânea já começou a desaparecer das costas da mão. A pele já não parece ter a elasticidade que tinha. - Fez uma pausa. - Digamos que não é velho, nem novo...

- isso também confere - disse Sloan. Dabbe endireitou as costas.

- E não ficaria terrivelmente surpreendido, Sloan, se lhe dissesse que também não se trata de um deficiente mental. Tanto quanto posso ver daqui, a palma da mão tem as linhas regulamentares.

- Perfeitamente - murmurou Sloan. Viu Crosby olhar novamente para as mãos. Perguntou a si próprio se teria encontrado algum conforto nesse olhar.

- Causa da morte - prosseguiu o patologista em tom profissional-, não imediatamente determinável. Ferimentos por esmagamento, suponho, mas nestes casos nunca se pode dizer.

- Pois não, Doutor. - Sloan estava de acordo com ele nesse ponto: ponto por ponto. O mármore parecia suficiente para matar qualquer pessoa, mas nunca se sabia.

O Dr. Dabbe olhou uma última vez através da estreita abertura e depois endireitou-se de novo.

- Um caso clássico, poderá dizer-se, Sloan, da Morte a Grande Niveladora.

 

Vi-o, naquela altura, seguir o caminho de toda a carne.

Havia algo de desconcertante em falar ao telefone com uma pessoa totalmente desconhecida. A voz de um homem nunca nos diz tanto como o seu aspecto e os seus gestos. Sloan nunca tinha falado com o autor das cartas anônimas que Invadiam Constance Parva, mas apostava a sua reforma em como o detentor da pena era uma pessoa magra e angulosa; intransigente e de espírito mesquinho. Henry Pysden parecia-lhe apenas prudente.

- Ele saiu daqui um pouco antes das seis horas da tarde de ontem, Inspector. Como habitualmente fazia. Naturalmente receámos que algo lhe tivesse acontecido quando não voltou esta manhã. Não é coisa dele.

- Esta manhã esteve em Cleete um certo Mr. Cranswick, que também parecia esperar que ele aí fosse.

- Ah! - disse Pysden em tom pesaroso. - Infelizmente eu estava muito ocupado quando ele cá veio. Estava a fazer uma importante experiência com um factor tempo incorporado. Num material refractário. Magnésio da água do mar. Não podia abandonar a experiência e ele não podia esperar.

- Gostava de fazer-lhe uma pergunta sobre o vosso trabalho - disse Sloan. - O que faz a Struthers e Tindall?

Pysden hesitou.

- O que fazemos é um pouco difícil de descrever, e somos... hã... ah... hã... um pouco... como hei-de dizer... hã... reticentes quanto à natureza exacta do nosso trabalho.

- O sigilo será, evidentemente, respeitado na medida do possível - murmurou Sloan diplomaticamente -, mas temos que saber.

- Perfeitamente. Perfeitamente. Compreendo. - A voz do outro lado do fio telefónico pareceu subitamente apressar-se a falar. - Pode-se dizer... em resumo...

- Queira dizer. - Sloan estava absolutamente a favor da ideia. Sempre.

- Penso que Mr. Tindall não se importaria de que eu lhe dissesse que fazemos trabalhos de investigação e desenvolvimento para outras pessoas.

Sloan anotou.

- Só em certos campos, naturalmente, Inspector. E agora, quanto a Mr. Tindall...

- Investigação e desenvolvimento. Importa-se de me dizer o que isso significa?

A voz descontraiu-se um pouco.

- Claro que não. É natural que não saiba. Investigação e desenvolvimento, "I & D" como lhe chamamos, geralmente... é uma coisa que se faz na maior parte das grandes firmas, hoje em dia. Geralmente para se certificarem de que terão produtos vendáveis dentro de um espaço de cinco anos.

- Compreendo. Na Polícia era diferente.

As tendências do mercado do crime mudavam, evidentemente. Por vezes um determinado tipo de crime alcançava a dianteira - entrava em moda, podia-se dizer - enquanto outro recuava durante algum tempo. Mas a esquadra não se preocupava com a hipótese de ficar sem trabalho daí a cinco anos.

Ou a qualquer número de anos, vendo bem.

Por falta de os políticos descobrirem Utopia, evidentemente.

Ou de os cientistas descobrirem uma cura para o Pecado

Original.

Ou mais provavelmente - a chegada do milénio (1) às portas do Ministério do Interior, por assim dizer. Sloan também não achava que isso fosse provável. Henry Pysden continuava a falar. Tinha uma voz monótona, um pouco aflautada.

- O trabalho que fazemos pode abarcar quase tudo, evidentemente, mas as firmas mantêm-se geralmente dentro da sua própria linha de produção. Para poderem utilizar as

 

(1) Período de mil anos mencionado na Revelação em que Cristo reinará sobre a Terra. (N. da T.)

 

instalações que possuem, se possível. Isso poupa a aquisição de novas ferramentas... o que custa muito dinheiro.

- E onde é que entra exactamente a Struthers e Tindall?

- A Struthers e Tindall entra, Inspector, quando surge uma firma que não possui um departamento próprio de investigação e desenvolvimento. - Tossiu. - Quando uma dessas firmas necessita de fazer um trabalho específico (por exemplo, quando têm uma boa ideia mas não têm instalações para a desenvolver) nós fazemo-lo por eles. Ou... - A voz aflautada deteve-se.

- Ou... - insistiu Sloan.

Henry Pysden hesitou novamente.

- Ou quando têm qualquer coisa muito secreta sobre a qual desejam uma opinião.

- Mesmo que - inquiriu Sloan, ansioso por esclarecer pelo menos uma coisa por completo, naquele caso - tenham o seu próprio departamento de investigação e desenvolvimento?

-Por vezes.

- Porquê?

- Por muitos motivos - disse Pysden prudentemente. - Pode haver alguém dentro da firma em quem eles não... hã... ah... hã... não confiem absolutamente...

Sloan grunhiu interiormente. Isso era um aspecto que qualquer polícia compreenderia de caras. Até mesmo o agente Crosby seria capaz de descobrir isso sozinho.

- Ou podem achar - prosseguiu a voz cautelosa do lado de Berebury-, digamos, podem ter motivos para recear... que a sua própria segurança interna não seja suficientemente boa. Nesse caso vêm ter connosco.

Aquilo, decidiu Sloan, ia ser-lhe muito útil, tinha a certeza.

- Inspector, só temos aqui um problema...

- Como?

- Estamos um pouco preocupados por causa de um dos nossos relatórios confidenciais.

- Continue.

- Um dos nossos relatórios altamente confidenciais.-

Com ênfase.

- Que lhe sucedeu, Mr. Pysden?

- Não conseguimos encontrá-lo.

Miss Hilda Holroyd talvez não tivesse desejado, a princípio, que chamassem a Polícia. Mas, à medida que a manhã avançava, começou positivamente a sentir-se ansiosa pela sua chegada.

Estava a passar por um período atribulado. Além de ter que aturar o visitante de Mr. Tindall - Mr. Gordon Cranswick - que entrava e saía precipitadamente como um moscardo apressado - via o seu trabalho habitual a amontoar-se. Já tinha adiado as restantes entrevistas de Mr. Tindall marcadas para essa manhã.

- Por motivos pessoais urgentes - mentira elegantemente ao telefone, prometendo voltar a telefonar mais tarde.

Também já tinha aparado os problemas do chefe do Departamento de Testes que tinha problemas técnicos; evitado o jovem Mr. Blake, que parecia não ter que fazer; despachado dois jovens vendedores optimistas que pretendiam que a Struthers e Tindall adquirisse equipamento novo que reduziria a metade as suas despesas - pelo menos era o que eles diziam; e - o que era provavelmente o mais importante de tudo - tinha conseguido aplacar a encarregada da limpeza e do chá.

- Relatório? - Mrs. Perkins estava indignada. - Eu não vi relatório nenhum. - Era uma mulher pequena e enérgica, com um vigor de dez mulheres. Avançou pelo corredor fora, empunhando a vassoura. - E não toquei em coisa nenhuma.

- Não o conseguimos encontrar, Mrs. Perkins. De má vontade:

- Como era ele?

- Verde - disse Miss Holroyd. - é um dossier verde. Mrs. Perkins fungou.

- Eu nunca toco em nada que tenha coisas escritas por cima.

- Só tinha um número por fora, mais nada.

- São coisas escritas, não são? - disse Mrs. Perkins irrefutavelmente.

- Ontem ainda o tínhamos. - Miss Holroyd esforçava-se por acalmá-la. - É um dossier muito importante...

- Bem, eu não tinha nada a ver com isso.- Mrs. Perkins bateu com a vassoura no chão com uma força absolutamente desnecessária. - Mas se por acaso eu o vir praí...

- Muito obrigada.

- Já acabei, Mr. Pysden - disse a encarregada da limpeza de través.

- Óptimo - respondeu Miss Holroyd calarosamente, consciente de que, sendo fácil recrutar jovens e inteligentes cientistas, eram raras as mulheres da limpeza tão dignas de confiança como Mrs. Perkins.

- Ele nem deu por isso. - Mrs. Perkins fungou. - Estava colado àquela experiência. Se lhe dissesse que eu lá estive, ele não podia dizer que sim. Mr. Pysden é desses.

- Oh, Mr. Perkins, com certeza que não!

- Tinha a cabeça enfiada nos papéis - declarou Mrs. Perkins... até faz aflição. Não é como o jovem Mr. Blake. Sempre gostava de saber se ele faz alguma coisa.

- Tenho a certeza - interrompeu Miss Holroyd rapidamente- que a sala de Mr. Pysden está muito mais bonita e mais limpa depois de lá tér estado, seja como for.

- Bem - Mrs. Perkins parecia um pouco mais apaziguada-, está melhor do que estava. Isso posso dizer.

Pôs a vassoura em sentido, perpendicularmente, e disse magnanimamente: - Se eu por acaso vir esse tal dossier verde que perdeu, digo-lhe.

Mas nem sequer os olhos de Argos de Mrs. Perkins conseguiram descobrir o dossier da United Mellemetics nas instalações da firma Struthers e Tindall.

Miss Holroyd e Mr. Pysden reuniram-se novamente por causa disso.

- Tinha que ser logo o relatório da United Mellemetics - disse Henry Pysden sombriamente. - De todas as pessoas com quem eu preferia não ter que contactar, Sir Digby Wellow encontra-se muito perto do cimo da lista.

Miss Holroyd compreendia-o. Sir Digby Wellow era um dos industriais mais exuberantes do país. É capaz de matar as pessoas de tanto falar. Aventurou-se a perguntar:

- Era um relatório favorável?

- Não, não era - disse Henry Prysden.- É por isso que o caso é tão preocupante. Sir Digby enviou-no-lo porque pensava que poderia estar a suceder qualquer coisa estranha na United Mellemetics. - Ajeitou os óculos. - E, segundo Mr. Tindall, ele não estava enganado.

- Oh, meu Deus!

- é tudo muito aborrecido, Miss Holroyd.

- Nós nunca... hã... colocámos fora do lugar um relatório antes disto - disse ela. - Parece-lhe que... (talvez só desta vez) Mr. Tindall possa tê-lo levado para casa?

- Talvez. Mas não parece dele, no entanto. Nunca o fez. E é contra todas as regras.

Miss Holroyd suspirou.

- Tinha que ser precisamente no dia em que ele não está cá para lhe podermos perguntar. Francamente não sei o que devemos fazer agora.

- Eu sei - disse Henry Pysden com um ar sombrio.

- Ligue-me à United Mellemetics para Luston. Uma chamada pessoal para Sir Digby Wellow, por favor, Miss Holroyd.

Só um minuto depois de os operários terem acabado de cortar é que as pessoas em volta conseguiram ver alguma coisa. O clarão hostil do violento aquecimento tinha perturbado a visão de todos os que se encontravam na igreja sem óculos de protecção.

- Aí vem ela, camarada.

- Cuidado aí.

- Atenção desse lado, Joe.

Joe, aparentemente, estava com toda a atenção porque - muito lentamente - a grande porta de carvalho que dava acesso à torre do lado da igreja começou a deslocar-se. Mãos pressurosas agarraram-na e depositaram-na na nave. Atrás dela veio um pequeno chuveiro de pedaços de mármore.

Sloan tinha-se afastado, limitando-se a observar.

O mesmo fez o patologista, o Dr. Dabbe.

Os operários andavam de um lado para o outro na nave, assegurando-se de que a enorme porta se encontrava segura no local onde havia sido colocada. Devido a ilusão de óptica, parecia demasiado grande para a abertura que tinha deixado. Não tão fundo como um poço, nem tão largo como uma porta de igreja, pensou Sloan involuntariamente. Donde viria aquela frase? De sua mãe, provavelmente. Era perita em expressões antigas.

- Que mais quer que se faça agora, patrão?

- Mais nada, muito obrigado - disse Sloan, cujos olhos estavam novamente cravados no braço. Aquele braço solitário exercia um terrível fascínio. Saía do meio do entulho como o braço de um nadador que se afoga e pede auxílio.

Os soldadores tinham um ar aliviado e começaram a retirar dali as suas garrafas de oxigénio e acetileno. Sloan fez um sinal com o dedo e Dyson, o fotógrafo oficial da Polícia, e o seu assistente, Williams, aproximaram-se, com as máquinas em riste.

- Um acidente desagradável? - inquiriu Dyson alegremente. Nenhuma das fotografias que Dyson tirava tão profissionalmente podia ter beleza, mas ele não permitia que esse facto o deprimisse.

- Um incidente desagradável - corrigiu Sloan.

Dyson acenou afirmativamente com a cabeça e tirou a primeira fotografia. Depois da chama penetrante do maçarico, o flash da sua máquina parecia quase insignificante. Apontou com o polegar.

- Como é que ali o Fred ficou debaixo daquele montinho?

- Richard - respondeu Sloan automaticamente. - O nome dele é Richard.

Estava mais do que certo de que assim era.

- Não me parece - observou Dyson, que era incorrigível a ver sempre o lado bom das coisas - que ele tenha sabido o que lhe caiu em cima. Não é possível.

- Não. Agora o que eu quero - disse Sloan voltando ao trabalho - é umas fotografias da altura de mármore empilhado contra a porta de saída daquele lado. Aquela ali.

- A porta ocidental? - Dyson começou obedientemente a focar a máquina.

- A porta do caixão - observou o Dr. Dabbe, numa entrelinha macabra.

- E agora? - perguntou Dyson.

- Quero umas daquela janela lá em cima. A janela pequena por cima da porta - disse Sloan - do interior e do exterior.

- Por ali não podia passar ninguém, Inspector.

- Pois não - concordou Sloan-, mas foi aberta e a escada foi levada lá para fora para o fazer, atrevo-me a dizer.

Dysort satisfê-lo, apontando a máquina para cima e fotografando a pequena Janela, enquanto o seu assistente, Williams, montava um tripé na nave.

- Andou a ler Sherlock Holmes ultimamente, não andou, Inspector? - inquiriu com um rosto enganadoramente sério.

- Não - respondeu Sloan laconicamente. - Não andei. Porquê?

O fotógrafo apontou para a minúscula janela.

- Isto parece-se um bocado com "A Fita Mosqueada", não parece? Ninguém podia passar por aquela janela, não é assim? E ambas as portas estavam tapadas até aos olhos com bocados de mármore, de modo que ninguém podia passar por elas também.

- Até aí já nós chegámos - disse Sloan, embora não tivesse a certeza de que Crosby já tivesse chegado tão longe no seu raciocínio.

- Mas qualquer coisa derrubou aquilo por cima daquele desgraçado e depois pôs-se na alheta. Não parece lógico, pois não?

- Se - prometeu Sloan - se constatar que foi uma víbora indiana venenosa, eu aviso-o.

Era voz corrente entre a Polícia que Dyson poderia ter recebido bastantes promoções se tivesse o bom senso suficiente para ficar calado nas alturas devidas. Talvez isso fosse melhor, no entanto, do que o caso de Crosby, que até à data nunca tinha aberto a boca para dizer uma coisa de jeito.

- A menos que fosse para cima - prosseguiu o fotógrafo da Polícia logicamente, tirando algumas fotografias à estreita escada (mais larga do que um passadiço, na verdade) que circundava a torre e se perdia de vista algures entre os sinos.

- Se ele subiu - disse Sloan, seguindo-lhe o olhar-, gostava de saber como é que desceu depois. Aquilo é alto de mais para uma escada de mão e, sem ela, é uma boa queda. Não sei como se pode voltar para a terra de uma altura daquelas.

- Rapunzel - sugeriu o Dr. Dabbe, que ainda continuava à espera para poder examinar o morto.

- Homem-morcego - sugeriu Crosby, regressando de súbito finalmente à vida.

Sloan inspirou profundamente. Não podia repreender Crosby; pelo menos enquanto o médico também fizesse observações idiotas.

- Rapunzel? - disse, injectando na palavra uma quantidade suficiente de delicadeza para não fazer perigar as boas relações tradicionais entre a Polícia e a Medicina.

- Ao contrário, evidentemente - explicou o patologista. - Como deve recordar-se, Sloan, era uma donzela que o pai fechou numa torre.

- Ah, sim!? - Parecia-lhe uma excelente ideia. Se houvesse mais pais que fechassem as filhas em torres, talvez elas dessem menos trabalho e preocupações aos membros das forças policiais.

- Ela deixou crescer os cabelos - acrescentou o médico- e um cavaleiro de brilhante armadura trepou por eles.

Sloan ficou sufocado.

- Contos de Fadas de Grimm- disse o Dr. Dabbe gravemente.

- No caso do HomenvMorcego... - principiou Crosby.

Sloan caiu sobre ele.

- Se essa é a única sugestão que tem a fazer, agente... Parou, rangendo os dentes. Seria àquilo que se chamava o Conflito de Gerações? A diferença entre Rapunzel e o Homem-Morcego?

Parou, porque não valia a pena dizer mais. Sabia-o bem.

Suspirou. Precisava de mandar vir mais alguém para o ajudar. Para o ajudar mesmo. Não apenas o agente Crosby, a dois passos dele, com um ar aborrecido, a fazer sugestões absurdas, e um fotógrafo que era um investigador falhado.

- Essa senhora que deixou crescer os cabelos... - disse Dyson muito interessado.

- Se já acabou de fotografar essa escada, Dyson - replicou Sloan-, Crosby pode começar a verificar se há pegadas. Pode ser que se encontre qualquer coisa.

Seria uma perda de tempo. Sloan podia ver isso do lugar onde se encontrava. Os degraus estavam limpos de mais. Ou alguém os tinha limpo propositadamente, ou então alguém os conservava sempre assim.

Talvez a pessoa que dava corda ao relógio da igreja.

Ouvia lá em cima o maquinismo do relógio, a ganhar forças para bater o quarto de hora.

Houve mais alguns flashes, e depois Dyson recuou e disse:

- Cá dentro é tudo, Inspector. Depois volto para tirar umas fotografias de cima, quando tiverem acabado de tratar da escada.

Sloan assentiu com um gesto da cabeça e teve uma troca de olhares com o patologista, naquela altura já de luvas e bata.

Houve uma súbita mudança de atmosfera dentro da igreja quando o Dr. Dabbe avançou, agora totalmente absorvido pelo braço.

Começaram a patinhar por entre os pedaços de mármore até chegarem junto dele. Havia algo escrito num pedaço maior mesmo aos pés de Sloan. Baixou o olhar e leu. "Defunctae..."

Devia ter lido em voz alta porque o patologista, que finalmente tinha alcançado o braço, disse:

- Exactamente como o nosso homem, receio bem. Totalmente.

 

Conheço bem a triste desgraça.

A Dower House de Cleete não se encontrava mais vazia naquele momento do que tinha estado meia hora antes. Havia nela exactamente três pessoas. O mesmo número e as mesmas pessoas que lá estavam anteriormente. Fenella, Mrs. Turvey e o guarda Hepple.

Era certo que o guarda tinha ido para a cozinha conversar com Mrs. Turvey, mas a quantidade de pessoas dentro da casa continuava a ser a mesma.

Contudo, parecia mais vazia.

De certo modo, a presença de seu pai parecia tê-la abandonado.

Fenella não tinha apreendido por completo tudo quanto o guarda Hepple tentara dizer-lhe. Os seus ouvidos tinham-no escutado efectivamente - não havia maneira de não ouvir aquela fala lenta e gutural, com o sotaque de Calleshire- mas, de certo modo, a sua mente assombrada e desorientada não tinha conseguido captar as mensagens transmitidas pelos ouvidos. O seu cérebro era um aglomerado confuso de palavras sem nexo - escultura... esmagado... braço... botão... igreja.

Se ela tivesse novamente sete anos e estivesse numa festa infantil - não do tipo das festas que as crianças fazem actualmente, mas do tipo daquelas que ainda se faziam quando ela era pequena - todo aquele palavreado sinistro de Hepple teria sido transformado num hilariante jogo de enigmas.

Estátua - esmagado - braço - botão - igreja.

E alguém teria acrescentado, por sua vez, a Incongruidade máxima... pai. Depois haveria gargalhadas e todos se preparariam para começar o jogo seguinte. Ou então apareceria uma maternal e simpática dona de casa a distribuir limonada pelas crianças.

Deixou-se ficar sentada, muito quieta.

Aquilo não era um jogo.

E não haveria risos. Desta vez não. E por longo tempo.

No entanto a limonada ter-lhe-ia agradado. Sentia a boca seca e parecia-lhe que a língua aumentara de tamanho. Daí a pouco viriam trazer-lhe chá. O guarda tinha dito que sim. Para isso tinha ido até à cozinha.

Uma chávena de chá.

A panaceia da Polícia.

E para contar a Mrs. Turvey o que sucedera ao pai. Era simpático da parte dele. Ela não tinha querido - sentia que não podia - falar a Mrs. Turvey da estátua, e do braço e do botão.

Pelo menos Mr. Gordon Cranswick da Cranswfck (Processing) Limited, ou fosse lá o que fosse, Já saberia agora o motivo por que o pai não o tinha podido receber nessa manhã. Ela tinha sabido - sabia - que ele não era pessoa que não cumprisse as suas promessas. O seu pai não era assim.

Foi por o guarda Hepple estar na cozinha que Fenella atendeu o telefone primeiro. Ergueu o auscultador automaticamente, quase sem pensar, mal ele começou a tocar.

Uma profunda voz masculina perguntou por Richard Tindall.

- Não está - disse com voz pouco firme. - Quem fala?

- Onde está ele, então?

- Quem está a falar? - insistiu Fenella.

- Wellow - respondeu uma voz estentória, quase de basso profundo. - Digby Wellow da United Mellemetics de Luston.

- Oh!...

- Exijo falar com ele - comunicou o Interlocutor em tom magistral - logo que possível.

- Receio bem que não possa.

- Porque não?

- Sucedeu uma coisa - disse ela, desoladamente. - Sucedeu uma coisa horrível.

- O quê? - uivou uma voz subitamente angustiada no outro extremo da linha. - Diga-me o que foi.

Mas isso era algo que Fenella sentia que não era capaz de fazer. Ficou agarrada ao telefone, movendo os lábios sem emitir som algum, com as lágrimas a começarem a escorrer silenciosamente pelo rosto, enquanto tentava converter a sua tragédia em palavras. Estava a fazer a penosa descoberta - como tantas outras pessoas antes dela - de que absorver as más notícias era uma coisa: transmiti-las às outras pessoas era outra muito diferente. Talvez porque o facto de formular as palavras fosse, de certo modo, como que uma confirmação do pior...

Foi assim que o bondoso Hepple a foi encontrar quando voltou, um ou dois minutos depois, com a chávena de chá. Tirou-lhe o auscultador dos dedos inertes, encostou-o ao ouvido por um momento e, ouvindo apenas a campainha a tocar Ininterruptamente, pousou-o no descanso.

Quando Paul Blake telefonou dos escritórios da Struthers e Tindall, alguns minutos depois, para falar com Fenella, o guarda Hepple atendeu ele próprio a chamada.

Na torre da igreja, começaram - o Dr. Dabbe e o seu assistente, Burns, o inspector Sloan e o agente Crosby - a destapar o corpo ligado ao braço visível. Era um trabalho lento e fatigante, pois cada pedaço de mármore tinha que ser marcado e colocado na nave. Pouco a pouco, a figura esmagada começou a emergir sob os destroços do Legado

Fitton.

Por incrível que pareça, a operação não deixou de ter os seus momentos divertidos.

- Isto é um anjo, Inspector?

Sloan ergueu o olhar. Crosby estava a segurar numa criança de mármore, de formas arredondadas, que estaria intacta se não lhe faltasse um braço. O outro braço - incrivelmente gordo - parecia brincar com a lapela do agente.

Sloan soltou um suspiro de pura exasperação.

Crosby deu uma palmadinha amigável no mármore.

- Ou será um querubim?

- Nem uma coisa nem outra - disse Sloan laconicamente. - É uma das dez crianças dos Fitton. Agora dê-me uma ajuda, sim? Isto é muito pesado só para um.

Efectivamente foi precisa a cooperação dos quatro para retirarem de cima do corpo o mais pesado de todos os pedaços e colocá-lo no chão.

- Fracturas múltiplas, para começar - concluiu o Dr. Dabbe, que tinha finalmente alcançado o seu campo. - E um baço perfurado, penso eu.

Sloan aguardou. Para ele, o homem parecia mais uma boneca de trapos com o recheio retirado.

- Ela tinha a coluna quebrada, também - anunciou o o patologista, momentos depois.

- Quem? - perguntou Sloan, consideravelmente surpreendido.

- A viúva.

- Oh!-As rugas da sua testa desfizeram-se. - Mrs. Fitton.

O médico inclinou-se de novo sobre o corpo e Sloan teve oportunidade de olhar pela primeira vez com maior atenção para o interior da torre.

Era muito alta e abria-se directamente para os sinos. Mal os conseguia ver na sombra, cerca de vinte metros acima da sua cabeça. Havia diversas cordas suspensas do campanário. As que pertenciam aos sinos encontravam-se cuidadosamente amarradas à parede do lado oposto àquela onde a escultura tinha estado sobre o seu pedestal. Uma única corda prendia-as à parede junto de uma placa de latão.

Sloan escolheu cuidadosamente o seu caminho através dos destroços para ir ler a inscrição.

Para chamar o povo à Igreja a horas,

TOCAMOS

Quando há alegria e prazer no ar,

REPICAMOS

Quando o corpo se separa da Alma,

DOBRAMOS

- Bonito, não é? - disse Crosby por cima do seu ombro.

- Ele podia ter tocado um dos sinos - disse Sloan, olhando novamente para o corpo - se pensasse que havia perigo. Nada o impedia de ter feito isso.

Crosby disse:

- Portanto não estava preocupado.

- Pelo menos não com o Legado Fitton.

- Também se podia ter ido embora - acrescentou Crosby - se não se sentisse bem. A porta da torre não estava fechada, pois não, senhor Inspector?

- Entre as onze da noite passada e as oito desta manhã estava.

- Também não sabemos - disse Crosby, tomando um novo caminho - porque é que ele veio aqui.

- Há muita coisa que não sabemos ainda - recordou-lhe Sloan com um prazer sombrio.

O patologista endireitou-se.

- Mas há uma coisa que sabemos, Sloan.

- O que é, Doutor?

- Ele foi atingido duas vezes.

-Duas vezes?

- Uma vez para o porem Inconsciente, a segunda vez pela escultura. Foi isso que o matou. Depois disso não sangrou.

- Como é que...

- Ele sangrou da primeira vez - disse o médico sucintamente.- Ficou estendido de bruços. Pode ver-se que o sangue escorreu pelos lados da cabeça e aí secou. Parte dele caiu no chão. Posso confirmar-lhe isso já.

A cabeça de Crosby ergueu-se num desafio.

- Pela forma da gota-: disse o patologista, respondendo à pergunta não formulada. - Quando a distância é pequena, é possível determiná-la. A forma da gota varia com a altura de que caiu.

- E depois? - apressou-se a perguntar Sloan.

- Depois o mármore caiu todo por cima dele. Depois disso, nem todos os Cavalos do Rei nem todos os Homens do Rei conseguiam pô-lo bom de novo (1) - Quanto tempo depois? - Porque seria que os Contos de Fadas e as Canções Infantis tinham temas tão sinistros? Contos para crianças. Contos com os quais as crianças se criavam. Que importância tinha a violência que viam na televisão depois disso?

- Boa pergunta. - O patologista agitou um dos braços. - Vou ver o que posso fazer por si nesse aspecto. Ele foi atingido por detrás da primeira vez e de cima da segunda. Disso não há dúvida. - O Dr. Dabbe inclinou-se e ergueu o último pedaço de mármore do pescoço do morto e murmurou: - "Pélion sobre Ossa" (2).

Burns soltou uma gargalhada aguda, algo semelhante ao ladrido de uma foca.

Sloan, que nunca se sentia seguro quanto às piadas

 

(1) Palavras de uma canção Infantil inglesa. (Humpty Dumpty.) (N. da T.)

(2) Montes da Grécia. (N. da T.)

 

médicas do patologista, tornou a voltar a sua atenção para a parede da torre.

Era bastante vulgar. Além das cordas dos sinos, havia pequenos cartões emoldurados a comemorar antigos triunfos de toque de sinos - anéis da maratona de Double Norwich Court Bob Major e Treble Bob Maximus. Por cima deles, um quadro escuro e manchado pelo tempo comemorava um qualquer acto de caridade paroquial antigo.

Que Sloan visse, não havia mensagem alguma raspada nas paredes. Se a torre tinha sido uma prisão temporária, Richard Tindall não parecia ter-se apercebido desse facto ao ponto de escrever nas paredes.

Nem se via ali algo que se assemelhasse mesmo de longe a uma arma.

Disse-o.

- Ah!-observou o patologista com certo espírito.- Se não houve malícia premeditada, houve malícia depois do acto.

Sloan traduziu a frase para que Sloan a pudesse entender:

- Quem o feriu, levou consigo aquilo com que o atingiu. Dabbe observou a cabeça do homem.

- Qualquer coisa embotada e não muito grande, Sloan. Deve procurar um objecto assim.

Crosby, efectivamente, não estava a prestar grande atenção. Tinha encontrado um pequeno espelho e, inclinando-se, estava a ver-se nele.

- Se, agente - observou Sloan desagradavelmente -, a questão está em saber qual é o mais belo de todos...- Também já estava a entrar no hábito das histórias infantis, afinal.

- Penduraram-no muito abaixo, senhor Inspector - lamentou-se Crosby.

- À altura de um rapaz do coro com borbulhas - disse o Dr. Dabbe sem erguer o olhar. Nunca lhe escapava nada, àquele médico. - Ora, Sloan, quanto à hora da morte...

O patologista olhou para o relógio. Compelido pelo impulso interno que se verifica sempre que alguém olha para um relógio, Sloan também consultou o seu. Eram quase onze horas. A hora fez vibrar qualquer coisa dentro de si. Onze horas. Porque seriam importantes as onze horas daquele dia?

O presidente da Câmara.

Era isso. O presidente da Câmara ia sair da Câmara Municipal às onze horas dessa manhã. Para fazer qualquer coisa que lhe tinha parecido importante, até mesmo para a força policial. Sloan esforçou-se por visualizar a mensagem a que tinha dado apenas uma rápida olhadela, antes de partir à pressa para Cleete. Não era a Exposição de Floricultura. Sabia bem que essa teria lugar no sábado seguinte por causa da Princesa Grace. Se não era a Exposição de Floricultura, o que poderia ser então?...

Lembrou-se.

A Fonte Ornamental.

O presidente da Câmara ia até à nova Fonte Ornamental nessa manhã para a declarar inaugurada e cortar uma fita ou abrir uma torneira, ou coisa parecida. Bem, o presidente da Câmara teria que se arriscar nessa manhã com a ida à Fonte Ornamental.

- Por volta da meia-noite, penso eu - disse o patologista, interrompendo-lhe os pensamentos. - Com uma margem de uma hora para mais ou para menos. Até talvez lhe possa calcular o intervalo entre as duas pancadas. De qualquer modo, posteriormente posso dar-lhe o tempo com maior exactidão, depois do exame post-mortem. O tecido cerebral é o que se usa actualmente para determinar essas coisas.

- Não vai ser difícil de obter - sugeriu Crosby.

- Pensamos - interveio Sloan rapidamente - saber onde ele esteve ontem à noite... se a filha estiver a dizer a verdade e se ele for realmente Richard Tindall, evidentemente.

- Isso não é comigo, meu velho, dizer o nome dele.- O Dr. Dabbe começou a despir a bata. - O post-mortem dir-lhe-á praticamente todo o resto acerca do pobre homem (para nós não há segredos] menos o nome dele. Ainda não. Espero que, com o tempo, lá cheguemos. Quando os bebés forem marcados à nascença com um número do computador, que Deus nos ajude a todos. - Atirou a bata a Burns. - Por agora já acabei, Sloan. Fiz tudo o que podia. É todo seu.

Sloan não precisava de que ele lho dissesse. Olhou em volta, à procura de Crosby. O agente tinha passado por cima dos destroços para ir ver o pedestal.

- Crosby, o que é que...

- Descobri aqui mais umas meninas Fitton, senhor Inspector. Nos quatro cantos do pedestal. São um pouco mais crescidas do que as outras.

- Quem me dera que o fosse também - disse Sloan, exasperado. - Leia as letras pequenas.

- Oh, estou a ver, senhor Inspector! - Crosby olhou mais de perto e depois decifrou lentamente:-Temperança, Prudência, Justiça... Não consigo ler esta outra...

oh, sim!, Fortaleza.

- As quatro virtudes cardeais - disse o Dr. Dabbe, que tinha sido bem educado.

- Decerto não as podia conhecer, Crosby - disse Sloan, maldosamente.

O Dr. Dabbe mencionou uma virtude cardeal que o falecido Mr. Fitton, pai de dez filhos, não parecia ter possuído, mas o agente Crosby tinha, nessa altura, visto uma outra coisa. Inclinou-se sobre o fundo da parte posterior da pesada laje de mármore e apontou.

- O pedestal - disse o Dr. Dabbe, com uma voz subitamente fria. - Olhe para ali, Sloan.

Sloan avançou pára poder olhar.

- Atrás - disse o patologista.

- Cunhas - disse Sloan - Cunhas de ferro. As mais adequadas.

Mandou imediatamente Crosby perguntar a Bert Booth, o capataz, se os operários ali tinham colocado as cunhas. Não pensava que tivessem sido eles, no entanto.

- Para a inclinar para a frente - sugeriu Dabbe.

- Mas não de mais.

- Apenas o suficiente...

- Para que qualquer coisa pudesse facilmente derrubar a estátua - concluiu Sloan sombriamente.

- Mas o quê?

Uma busca completa ao soalho da torre, escrupulosamente executada, apenas pôs a descoberto pedaços de mármore e um fósforo usado. O fósforo estava debaixo de um pedaço de mármore mesmo no interior da porta ocidental e por baixo da pequena fenda que servia de janela.

Sloan achava que não era grande coisa.

 

Condena os homens à morte pela informação.

- Então? - ladrou o superintendente Leeyes ao telefone.

- É realmente o Richard Tindall, chefe.

- Era, é que devia dizer, Sloan.

- Claro, chefe. Desculpe.

- Então? - ladrou ele de novo.

- Estamos a fazer o que podemos - apressou-se Sloan a garantir-lhe-, mas havia todos aqueles corpos de mármore por cima do...

- Parece um estaleiro de demolições - disse Leeyes mais alegremente.

- Sim, chefe - disse Sloan inexpressivamente. Estava tudo muito bem para o superintendente, comodamente sentado no seu gabinete em Berebury. Não tinha tido que empilhar todo aquele mármore. O superintendente (como Hamlet) tinha-se elevado em relação à acção.

- Quem beneficia? - O ponto de vista policial do superintendente Leeyes era, à sua maneira, tão simplista como o de Crosby.

- Ainda não sei, chefe. - Pigarreou. -Há muita coisa que não sabemos.

Tinha dito a mesma coisa a Crosby.

- O que interessa - declarou o superintendente Leeyes - é que me diga qual é o seu problema.

Tinha certa vez frequentado um curso de gestão e tinha regressado permanentemente confuso quanto à finalidade e objectivos.

- Sim, chefe.

- Para que saiba o que está a fazer e porquê. Propósitos, era o que lhes tinham chamado no curso, mas ele tinha-se esquecido.

- Sim, chefe.

- Então - rosnou -, qual é o seu problema?

- Como é que o Legado Fitton caiu por cima de Tindall - disse Sloan imediatamente. Houve uma longa pausa. Depois:

- Não havia armadilhas por cima da porta, Sloan?

- Não, chefe. Eu verifiquei.

- Nada preso ao relógio?

- Nem sequer um cuco, chefe.

Uma voz disse em tom gelado e distante:

- Sabe perfeitamente o que eu quero dizer, Sloan. Quando os ponteiros chegaram (por exemplo) à meia-noite podiam ter despoletado qualquer coisa...

Durante um delicioso momento, Sloan brincou com a ideia de também falar da Gata Borralheira; mas decidiu não o fazer. Tinha que pensar na sua reforma.

- Não havia sinais nenhuns de qualquer coisa, chefe - disse, em vez disso.

Não havia na torre vestígios de coisa alguma fora do vulgar. A torre tinha parecido a Sloan igual a todas as outras torres de igreja que conhecia: um quadrado de arquitectura antiga com uma série de cordas de sinos penduradas no meio.

- E que tal um detonador por baixo da estátua, Sloan? Já tinha pensado nisso?

- Já, chefe. Procurámos vestígios de dispositivos explosivos. Marcas de queimaduras, etc. - O superintendente nunca desistia. Tinha que reconhecer isso.

Leeyes resmungou.

- E não há nada que prove que aquela maldita coisa tenha escorregado, suponho.

- O grupo que a transportou - disse Sloan prudentemente - não se recorda de ter posto quaisquer cunhas por baixo dela. Juraram-me que estava absolutamente firme quando a deixaram ali... mas também não iam dizer-me outra coisa, não lhe parece, chefe?

- Se tiverem juízo, não - rosnou Leeyes, que, quanto mais não fosse, era bastante realista em relação aos operários britânicos. - Agora não...

- Pois não, chefe. Agora não...

- Então o que é que nós temos, Sloan, que nos sirva de alguma coisa?

- Um - enumerou Sloan -, um morto, que pode ser Richard Tindall; dois, um relatório desaparecido, que pode ser importante ou não; três, uma história acerca da firma ter sido vendida ontem a um homem que apareceu e desapareceu outra vez...

- E?

- Alguns sinais de passos no cascalho no exterior da janela de fenda.

- Mais alguma coisa?

- Uma escada de mão fora do sítio. Não estava dentro da torre onde sempre costuma ficar. Estava estendida no exterior, e por detrás da esquina.

-É tudo?

- Havia um fósforo usado no chão da torre que poderá ou não ter qualquer coisa a ver com este caso.

- Vai precisar de mais do que isso, Sloan, para um júri.

- Sim, chefe, eu sei.

- E não leve muito tempo. Há aqui outra coisa à sua espera para quando voltar.

- O que é, chefe?

- Um sapato. Um sapato de mulher. Tamanho quarenta. Parcialmente usado... apenas o suficiente para se tornar desconfortável, mas não ao ponto de ser deitado fora.

- Só um?

- Só um - respondeu Leeyes. - O esquerdo. A questão está no sítio onde foi encontrado...

- Na margem do canal?

- No campo de golfe - retorquiu aquele mestre da estratégia parta (1) Sloan resmungou.

No caminho de regresso, depois de ter utilizado novamente o telefone de Mr. Knight, o inspector Sloan decidiu fazer um desvio para lá da torre da igreja e ir até à pequena vivenda que ficava em frente. De passagem notou que o cascalho do lado da porta ocidental onde encontrara marcas tinha sido coberto por Crosby. O mesmo sucedera com a escada que Bert Booth tinha encontrado algures por

 

(1) Os cavaleiros da antiga Partia costumavam disparar as suas flechas a cavalo, quando fingiam retirar-se. (N. do T.)

 

detrás da torre. Sloan não tinha esperanças, no entanto, de que a escada lhe proporcionasse impressões digitais úteis. As impressões digitais eram para os casos simples. Algo lhe dizia que aquele caso não ia ser dos simples.

A sua aproximação tinha sido observada. Mal tinha erguido a mão para o batente da porta da Vivenda Vésper quando esta se abriu subitamente.

- Faça favor? - disse alacremente uma pequena senhora gorducha.

Por detrás dela encontrava-se outra senhora pequena e gorducha.

Sloan explicou quem era. Elas também. - Sou Míss Ivy Metford - disse uma.

- Sou Miss Mabel Metford - disse a outra.

- Somos irmãs - disse desnecessariamente Miss Ivy.

- Dois tesouros não descobertos - intrometeu-se Míss Mabel.

- Sem dúvida - apressou-se Sloan a dizer. - Receio bem que... Receio que alguém tenha sido esmagado...

- Um ulmeiro? - sugeriu imediatamente Miss Ivy.

- Um ulmeiro? - repetiu Sloan desorientado. Aquilo era quase tão difícil como falar com o superintendente.

Miss Mabel acenou com a mão em direcção ao campanário e entoou:

- "O ulmeiro odeia o homem e espera..."

- Não foi um ulmeiro, minha senhora.

- Não foi um ulmeiro.- Acenaram ambas simultaneamente com a cabeça.

Sloan esforçou-se por se recompor.

- O que eu queria saber era se alguma das duas tinha visto alguém por aqui na noite passada ou esta madrugada.

As duas cabeças negaram simultaneamente.

- Ninguém?

- Só Mr. Knight, evidentemente.

- E a Tessa.

- Tessa?

- A cadela dele.

- Mais ninguém?

Miss Mabel inclinou a cabeça para um lado.

- Houve um pescador nocturno...

- Um pescador nocturno?

Miss Ivy explicou num tom bondoso:

- Um homem com uma cana de pesca que seguiu em direcção ao rio. Por volta das duas horas da madrugada.

A atmosfera de ansiedade existente na Dower House em Cleete tinha sido substituída por um ambiente de tristeza. Era agora uma casa invadida pelo silêncio. Hepple abriu a Sloan e Crosby a porta das traseiras, por onde eles entraram.

- é com Mrs. Turvey que eu quero falar primeiro - avisou Sloan.

Mas a mulher-a-dias baixa e entroncada que encontrou na cozinha da Dower House pouco mais pôde dizer-lhe do que sucedera a Mr. Tindall do que a filha deste.

- Inimigos? Claro que não. Não fazia mal a uma mosca. Era um cavalheiro muito simpático e sossegado, acredite, Inspector. Não incomodava ninguém.

- De verdade? - comentou Sloan, tomando notas. Ser sossegado podia ser uma boa recomendação para uma mulher-a-dias. Mas não necessariamente para um polícia. O último cavalheiro muito sossegado com quem Sloan lidara era um chantagista profissional.

Também não lhe parecia que o autor das cartas anónimas da aldeia de Constance Parva fosse uma pessoa muito exuberante.

- Muito sossegado - voltou a dizer Mrs. Turvey-, especialmente desde que a senhora tinha morrido, mas era de esperar que assim fosse, não é verdade?

Sloan tossiu discretamente e perguntou se havia quaisquer sinais de que Mr. Tindall fosse... hã... ou estivesse a pensar em casar-se de novo.

- Nenhuns - declarou Ada Turvey positivamente. - Sentia-se só. O que é perfeitamente natural. Via-se bem que ele se sentia solitário (qualquer pessoa via) e foi por isso que Miss Fenella regressou... mas nunca se interessou por mais ninguém. Depois da senhora, nunca mais.

- Ou de... hã... não propriamente casar-se outra vez... não sei se está a perceber-me.

Mrs. Turvey percebeu perfeitamente, e abanou a cabeça. -E preocupações? Ela abanou a cabeça.

- Que eu saiba, não, Inspector. Só Miss Fenella.

- Porquê?

- Preocupava-o pensar que não estava a fazer o que devia, deixando-a regressar de Itália só para se ocupar dele. Isso sei eu. Não lhe parecia bem que uma rapariga viesse enterrar-se na província sozinha. Ainda por cima sem a mãe, e tudo.

- Compreendo.

- Ela quis voltar para casa - disse Mrs. Turvey. - Ninguém conseguiu dissuadi-la. Era muito amiga do pai, lá isso era.

- E havia mais alguém? - perguntou Sloan. - A uma rapariga como ela não devem faltar admiradores. Ela disse-nos que tinha saído na noite de ontem.

- Esteve com um amigo italiano. Giu... Giu... qualquer coisa Mardbní, é o nome dele. Mr. Mardoni, em suma. Uma pessoa que ela conheceu na Itália. Esteve aqui alguns dias. Levou-a àquele restaurante italiano novo, que abriu há pouco. Depois voltou para Roma.

- Quando?

- Na noite passada. Um voo nocturno. Miss Fenella disse que chegava a casa por volta das dez e meia, para que esse Mr. Mardoni chegasse ao aeroporto a tempo.

- Há mais alguém - perguntou Sloan rotineiramente-, além desse amigo italiano?

Mrs. Turvey fungou e declarou que não lhe competia falar disso, mas que havia aquele Mr. Blake.

- Mr. Blake?

- Paul Blake. É um dos rapazes espertos das oficinas do patrão. Cientista prático ou coisa parecida, é o que ele diz que é. Anda a fazer olhinhos a Míss Fenella, lá isso anda, desde que ela voltou para casa.

Sloan tomou nota do nome.

- Se quer que lhe diga - disse Mrs. Turvey, fungando de novo-, o que esse rapaz anda a querer é fazer-se a um bom lugar.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Aquilo não o surpreendia absolutamente nada. Entre as diversas regras para alcançar o sucesso neste mundo, havia uma que se destacava muito acima das outras. Casar com a filha do patrão.

E a Bíblia nem sequer fala disso.

Pigarreou.

- Que pensava Mr. Tindall disso?

- Acho que não lhe agradava muito - respondeu imediatamente Mrs. Turvey-, mas tinha o bom senso suficiente para não tentar proibir Miss Fenella.

- Não é fácil impedi-la de fazer o que quer? - arriscou Sloan, pensando num par de olhos límpidos e num queixo finamente moldado.

- É muito senhora do seu nariz - confessou a mulher- a-dias.

- Mr. Tindall não tinha outros problemas de que tivesse conhecimento? - perguntou Sloan em tom formal. As filhas constituíam, afinal, preocupações normais para os pais. Geralmente não levavam os pais a sair de casa. Passava-se o contrário, efectivamente.

- Mardoni - repetiu o superintendente Leeyes, depois de ter soletrado o nome. - Signor Giuseppe Mardoni, um passageiro que regressou a Roma na noite passada.

- Ou hoje de manhã muito cedo.

- Vou pedir que verifiquem.

- Muito obrigado, chefe. - Compelido pelo dever, o Inspector Sloan ligava para a Esquadra de Berebury logo que tinha alguma coisa (por minúscula que fosse) a relatar. Embora isso nunca fosse suficientemente rápido para o seu superior.

- Falei com o director-geral de Mr. Tindall, chefe. Um tipo chamado Henry Pysden. Diz que está tudo bem nas oficinas.

- Isso não quer dizer nada.

- Excepto quanto à perda daquele relatório confidencial.

- Perderam-no?

- O relatório da United Mellemetics. Leeyes resmungou.

- É aquela firmazita de Sir Digby Wellow, não é? Em Luston. Aquele fulano que não consegue manter a boca fechada.

Se os encarregados altamente bem pagos e muito profissionais das Relações Públicas da United Mellemetics, cuja finalidade era manter a sua boa reputação diante do público, pudessem ouvir isto, teriam decerto desfalecido muito delicadamente. Eram todos homens muito delicados.

Sloan, contudo, sabia o que ele queria dizer. Passou adiante.

- Aliás, segundo a filha, parece que Mr. Tindall passou o dia de ontem muito normalmente. Aparentemente nada ocorreu fora do normal, de qualquer maneira. E os negócios parecem estar bem.

- Os negócios - disse Leeyes em sentido amplo - parecem muitas vezes estar bem quando não estão.

- Sim, chefe.

- Qual é o estilo de vida dele? - quis saber Leeyes. Sloan suspirou. O superintendente nunca mais fora o mesmo, desde que lera um livro sobre Sociologia.

- Hã... bom, chefe.

Devia ter sabido que aquela não era a resposta adequada. Nunca era, para a Sociologia.

- Explique-se, Sloan.

- Uma boa casa - disse, na defensiva-e um grande jardim. Tudo bem conservado.

- Ah!-declarou o superintendente em tom exortatório.

- Classe superior.

- Sim, chefe - disse Sloan, que considerava aquela expressão (segundo a Sociologia) um regresso injusto a uma linguagem passada. - Exactamente, chefe.

- Mais alguma coisa?

- O carro dele está em casa - disse Sloan prudentemente.

- Ele não ia a pé para Randall's Bridge - declarou Leeyes imediatamente. - Ninguém vai a pé para parte alguma, hoje em dia. É esse o problema do nosso sistema de viação. Se lhes pedirmos que estacionem os carros a cem metros do local para onde aquelas adoráveis criaturas pretendem ir, eles não o fazem.

O inspector Sloan suspirou. Uma vez lançado a cavalo no assunto, era uma tarefa delicada desmontar o superintendente da sua montada favorita.

- O carro de Mr. Tindall está aqui - disse ele com firmeza. - Arrumado na garagem, mas...

- Em breve toda a nossa raça deixará de saber andar... - Estava bem Instalado na sela, agora.

- Na garagem - repetiu Sloan. Aquilo lembrava uma justa: era preciso derrubá-lo da montada.

- Foi o que eu disse, Sloan. Ele teria que ir de carro, fosse para onde fosse.

- Nós encontrámo-lo em Randall's Bridge, chefe.

- O seu problema - retorquiu Leeyes energicamente - é não procurar pistas no lugar devido. Aquilo que deve fazer - acrescentou num francês atroz - é cherchez la femme.

Sloan pigarreou e disse deliberadàmente:

- Quer Mr. Tindall lá tenha arrumado o carro ou alguém mais o tenha feito por ele bem, eu não gostaria de ter que dizê-lo. Pelo menos nesta fase.

- O que foi, Sloan?

- O carro, chefe.

- O que há com o carro? Eu disse-lhe que procurasse uma mulher.

- Tenho a impressão de que Mr. Tindall não levou ele próprio o carro para a garagem.

- Porquê?

- Há um pedaço de tinta arrancado na porta do lado do condutor (na ponta extrema) quando foi aberta contra a parede...

- E?

- E uma minúscula lasca da mesma tinta na ferramenta de Jardinagem que estava pendurada na parede ao mesmo nível.

- Ah!

- Pois, chefe.

- Os velhos e bons princípios da permuta. - O superintendente quase parecia alegre. - Quando os objectos se tocam, deixam marcas uns nos outros. Não há nada que possa bater isto, hem?

- Não, chefe. - Respeitosamente.

- Fundamental, Sloan. A melhor regra para a detecção, se necessária. E com mais de um século de existência.

Sloan suspirou. Cem anos não seriam suficientes para conseguir expor todos os seus pontos de vista ao superintendente.

Pelo menos àquela velocidade média.

- Parece-me, chefe - disse com firmeza -, que, decididamente, quem levou aquele carro para a garagem o chegou uma fracção de nada a mais para o lado direito.

- A garagem é pequena?

- O carro é grande.

- Sloan, está a tentar dizer-me que afinal ele foi raptado?

- Não, chefe. Que eu saiba, não.

- Mas o carro foi lá posto na noite passada.

- Talvez não possamos provar que foi na noite passada - confessou Sloan. - Ainda não sei disso.

- Bem, então?

- Só sei que o carro se encontra exactamente no lugar devido para que aquela lasca de tinta tenha saído da última vez que a porta foi aberta.

- Pode-se saber quando não fomos nós a arrumar o nosso carro - declarou o superintendente em tom didáctico.

- Tal como se pode notar quando alguém usou a nossa melhor caneta.

- Sim, chefe - concordou Sloan-, mas conseguir que a filha ou a mulher-a-dias no-lo digam... Leeyes grunhiu.

- ... isso já é outra coisa - observou Sloan. - Não é a mesma coisa que... hã... usarem a nossa caneta, por assim dizer.

- Impressões digitais?

- Crosby está a tratar delas neste momento, chefe, e depois vamos até às instalações da Struthers e Tindall e falar com o casal Osborne, com quem ele passou a noite.

- Sloan tossiu. - Algum sinal de Mr. Cranswick, do seu lado, chefe?

- Ainda não. - Ou do outro sapato?

- Tudo o que apareceu até agora, Sloan, foi outra daquelas cartas anónimas de Constance Parva. Houve alguém que no-la trouxe. Agarrada com uma tenaz.

 

Esta cinzenta melancolia.

O agente Crosby tinha precisamente acabado de inspeccionar o carro de Richard Tindall quando Sloan regressou à garagem da Dower House.

- Então, encontrou alguma coisa?

Crosby era bom em carros, o que era óptimo.

- Há impressões digitais de Mr. Tindall por toda a parte, senhor Inspector. Iguais às da escova de cabelo que Miss Tindall nos deu para comparação. Mas... - inspirou fundo, para causar efeito.

- Mas o quê?

- Mas por cima delas há uma data de manchas de luvas. Senhor Inspector, a última pessoa que guiou esta coisa usava luvas... isso posso eu garantir.

Sloan resmungou.

- Observei tudo - disse Crosby. - O volante, a alavanca de mudanças, as chaves, o puxador da porta, o tejadilho...

- O tejadilho?

- Não se pode sair de um carrinho destes sem pôr a mão no tejadilho... mesmo por cima da porta do condutor. - Crosby dirígíu-se ansiosamente para o carro. - Quer que lhe mostre, senhor Inspector?

- Não - disse Sloan azedamente.

Os princípios de permuta já invocados pelo superintendente aplicavam-se ao condutor e ao carro da mesma maneira que ao carro e à parede da garagem. Os noventa quilos do agente Crosby deviam também deixar a sua marca e destruir quaisquer vestígios que ainda pudessem restar do último ocupante.

- Não se consegue o impulso necessário se não se fizer isso, senhor Inspector - insistiu Crosby -, por o carro ser tão baixo.

- Não sou assim tão velho, Crosby - retorquiu Sloan, consideravelmente exasperado-, ao ponto de me ter esquecido de como se entra num carro desses.

- Não, senhor Inspector. Claro que não, senhor Inspector. Peço desculpa, senhor Inspector. - Começou a tentar voltar ao seu tema principal. - Quanto ao resto, senhor Inspector, há apenas aquela marca na pintura. Parece muito recente. Tirei uma amostra do carro e outra da extremidade da alfaia agrícola que está na parede...

- Da quê, Crosby? - Sloan conseguiu encontrar dentro de si uns restos de paciência.

- Da pá, senhor Inspector.

- Foi o que me pareceu, a falar verdade. - O superintendente poderia chamar-lhe o que quisesse, mas no que se referia a agentes, as pás chamavam-se pás. E pronto.

- Tenho umas amostras prontas para os tipos do laboratório, senhor Inspector. - Crosby mostrou-lhe dois pacotes selados. - Eles poderão dizer-nos se se trata da mesma tinta.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça.

Não estava preocupado com os químicos forenses. As declarações deles eram tão seguras ou tão altamente técnicas que, de qualquer modo, o júri acreditava nelas. Aquilo com que tinha de preocupar-se era com as provas policiais - as provas que levavam os júris a decidir -, isto é,

quando decidiam com base nas provas - e dessas não lhe parecia que houvesse muitas, até à data.

Apenas um morto. Richard Mallory Tindall.

Se é que se tratava de Richard Tindall.

Nem mesmo disso tinha ainda a certeza absoluta.

Ficou por momentos a olhar para o longo e baixo carro azul. A posição do carro podia ser uma prova. Não tinha a certeza disso. A sua experiência dizia-lhe que carros daqueles costumavam ser estimados pelos seus proprietários - não descuidadamente raspados contra a parede. Mas um estranho não habituado a conduzi-lo, que o guardava numa garagem desconhecida numa noite escura, poderia não ter reparado que a pá estava ali pendurada: ou poderia ter avaliado mal o arco de abertura da porta larga do lado do condutor num carro de dois lugares.

Não era um grande ponto de partida. E não lhe agradava especialmente.

Exigia demasiadas locubrações prévias para o seu gosto. Um crime rápido era uma coisa: aquele tipo de cálculos era outra muito diferente.

Voltou à casa e procurou Fenella Tindall.

- E agora, miss, se pudesse dispensar-me um minuto...

- Queira dizer, Inspector.

- O seu pai guiava de luvas?

- Luvas? Com todo este calor?

- Sim, luvas. - Sloan conhecia alguns dos condutores de meia-idade que tinham carros rápidos. Gostavam de usar luvas especiais de condução em cabedal e linha, convencidos de que eram jovens pilotos de Le Mans.

A rapariga do vestido castanho abanou a cabeça, num jeito entorpecido.

- Não, Inspector. Só no Inverno. Quando fazia muito frio.

- Muito obrigado, miss. Foi o que eu pensei.

- E nem- sempre, nessa altura. Achava que era afectado.

Sloan também.

- Há uma outra coisa que gostaríamos de ter, miss. O nome e endereço do seu amigo italiano em Roma.

Fechou a sua agenda, depois de os ter anotado.

- Agora vou aos escritórios do seu pai, mas volto cá. O guarda Hepple fica consigo, entretanto. Está bem?

Fenella assentiu com a cabeça.

O carro da Polícia levou-os às instalações da firma Struthers e Tindall, em Berebury, a uma velocidade mais decorosa do que a utilizada até então. Era o agente Crosby quem guiava ainda, mas desta vez estava a pensar.

- É um caso esquisito, não é, senhor Inspector?

- Bem pode dizê-lo.

- Até parece que ele ficou ali parado à espera que o agredissem e depois à espera que aquela coisa enorme lhe caísse em cima, estendido no chão.

- Não havia sinais de luta - disse Sloan, que os tinha procurado. - Nem marcas de cordas nos pulsos ou nos tornozelos. Parece que ele foi lá de sua livre vontade, embora ainda não saibamos porquê.

- Seria um caso de masoquismo? Do género "Pára com isso que eu gosto"? - sugeriu o agente.

- No campanário de uma igreja? - O superintendente tinha dito cherchez la femme, também, não tinha?

- Um sítio escondido e tranquilo - disse Crosby na defensiva.

"Demasiado tranquilo", pensou Sloan. Era esse o problema da torre da igreja de Randall's Bridge. Nem mesmo na Vivenda Vésper se podia ouvir coisa alguma.

- Talvez - prosseguiu o agente esperançadamente - alguém lhe tenha enviado um recado.

- Penso bem que sim.

- Conhece o género, senhor Inspector - explanou ele.

- "Encontramo-nos no campanário à meia-noite". Uma coisa neste género.

- Escrita com sangue? - inquiriu Sloan jovialmente - e terminando com "Se faltares, sofrerás as consequências"?

- Exactamente, senhor Inspector. - Crosby fez um gesto ansioso com a mão.

- Tem que deixar de ver filmes tão maus - repreendeu-o o superior severamente, embora se recebessem todas as manhãs cartas ainda mais divertidas, na esquadra da Polícia. - Isto não é um melodrama victoriano.

- No entanto ele foi atraído para a morte, senhor Inspector, foi ou não foi? - disse Crosby em tom lamentoso.

- Sim, mas não vale a pena chorarmos - disse Sloan vivamente. Talvez aquilo fosse mais melodramático do que ele pensava. - Eu penso que ele foi até à igreja em companhia de alguém e o que temos a fazer é verificar...

Tarde de mais. Crosby já estava a seguir outra linha de pensamento.

- "Lá estava eu" - imitou ele, num pseudo-falsetto, muito agudo - "à espera na igreja..."

- Cuidado - avisou Sloan-, senão ainda o metem no coro da igreja. Com os rapazes.

Crosby ficou silencioso.

- Há outra coisa de que ainda não temos a certeza - disse Sloan, regressando ao seu resumo - e que é a maneira por que o falecido foi até à torre da igreja.

- De carro-disse Crosby, que nunca poderia imaginar outro meio de locomoção.

- Tinha partido às onze, se foi assim. O professor... aquele fulano que sabe de tudo...

- Mr. Knight - auxiliou-o Crosby.

- Esse. Não me falou de ter visto um carro estacionado junto da igreja na noite passada, quando levou a cadela a passear, pois não? E teria falado disso, sem dúvida, se o tivesse visto. Um carro estranho ter-lhe-ia despertado a atenção. Especialmente um carro da categoria do de Tindall.

- Outro carro, então?

- Ou o carro do morto estacionado noutro lugar. E tendo já partido às onze. Antes que Knight voltasse a passar por ali com a cadela.

O carro em que eles seguiam encontrava-se agora muito perto do Wellgate de Berebury. Sloan já conseguia avistar as instalações da Struthers e Tindall.

- é a próxima linha de investigação que deve seguir, Crosby. Haveria outro carro que pudesse ter estado estacionado em Randall's Bridge na noite passada? Ou o carro do .morto. E de caminho investigue a que horas o carro de Tindall saiu realmente de casa dos Osborne, e para onde foi depois, se conseguir.

- Sim, senhor Inspector.

- E a que horas voltou para Cleete.

- Sim, senhor Inspector.

- A rapariga disse que passava pouco das onze, mas pode ter-se enganado. - Havia uma outra coisa que gostaria de investigar: se Fenella Tindall estava a dizer a verdade. - E calcule a distância em tempo entre a casa dos Osborne e Randall's Bridge.

- Sim, senhor Inspector.

- E, Crosby...

- Diga, senhor inspector.

- Tempo da Polícia, não tempo Crosby.

- Sim, senhor Inspector.

- Hepple dir-lhe-á com quem deve falar. Ele deve saber quem terá condições de ter andado por fora em Cleete tão tarde.

- Tarde, senhor Inspector? As dez e meia?

- Essa - replicou Sloan habilmente - é a razão por que ao campo se chama "pasmaceira". Não sabia?

Mal atravessou a entrada da firma Struthers e Tindall, Sloan adquiriu imediatamente uma certeza. Se o superintendente Leeyes tinha razão ao dizer cherchez la femme, uma coisa era certa: a secretária pessoal de Mr. Tindall não era a femme. Tal como a maior parte das mulheres feias, não parecia ter a idade que tinha. Contudo, era detentora de uma voz agradável e profunda.

Pôs-se de pé, quando eles se apresentaram.

- É geralmente o inspector Tetley que vem cá, quando precisamos de alguma coisa. Basta telefonarmos... - Ele é da Prevenção Criminal - disse Sloan, também servidor do público. Fred Tetley ocupava-se da Prevenção Criminal da Divisão de Berebury e era o único optimista em plena forma. Era ele a pessoa que ia a todo o lado para recomendar que colocassem trancas aqui, parafusos além e campainhas de alarme em toda a parte.

E nem uma única dessas apreciáveis precauções tinha evitado a morte de Richard Tindall.

- Inspector, que notícias... - interrompeu-se quando um jovem de cabelos pretos e bem-parecido, vestindo uma bata branca, meteu a cabeça pela porta do seu gabinete. Agitava um monte de papéis numa das mãos.

- Desculpe, Miss Holroyd, mas não consigo encontrar Mr. Tindall em parte alguma e tenho aqui os resultados da armazenagem térmica que acabam de chegar dos Testes, para lhe entregar. Acabo de conferi-los.

- Eram para ontem, Mr. Blake - disse a secretária em tom de reprovação. - Mr. Tindall estava à espera deles.

- Sinto muito. - Mr. Blake tomou um ar contrito... não muito.

Um jovem realmente bem-parecido, concluiu Sloan, não tem grande prática de se mostrar envergonhado.

- E - acrescentou Miss Holroyd - Mr. Pysden quer o Registo de Patentes.

- Toda a gente quer o Registo de Patentes.

- O que toda a gente quer - observou Miss Holroyd severamente - é o dossier da United Mellemetics.

- Inocente. - O belo jovem agitou um braço no ar, enquanto recuava para a porta. - Já fiz há dias a parte dele que me competia.

Miss Holroyd voltou-se de novo para Sloan.

- Desculpe, Inspector. Estava a dizer...

O facto de ela aceitar as más notícias acerca de Richard Tindall com uma simples contenção da respiração e um leve empalidecer do rosto, não surpreendeu muito Sloan. A sua calma exterior era enganadora. Ele já o tinha aprendido havia muito. Miss Holroyd era provavelmente uma daquelas pessoas que recebiam sempre todas as notícias com calma aparente, por sistema. As boas secretárias são assim. Bem podia dar umas lições ao superintendente, que costumava trepar pelas paredes.

Quinhentos anos antes, ele teria sido uma daquelas pessoas que enforcavam o mensageiro que trazia más notícias, como medida automaticamente preliminar, antes de começar a enfrentar os factos.

- Acho melhor levá-los a Mr. Pysden directamente - disse ela gravemente, logo que Sloan terminou. - Pobre Fenella. Eu (nós receávamos que tivesse sucedido qualquer coisa má quando ele não veio esta manhã, como habitualmente] mas nunca uma coisa tão má.

Talvez, concluiu Sloan aprovadoramente, ela fosse uma daquelas pessoas que acreditavam que a maneira por que as notícias são recebidas torna diferente a qualidade dessas notícias.

Talvez tornasse. Sloan não o sabia dizer. Só sabia que o que sucedera a Richard Tindall não era coisa que pudesse ser relegada para a Quarta Divisão na classe das notícias, mesmo que fosse cuidadosamente banalizada. E não era exactamente matéria Insignificante, também.

Pelo menos, corrigiu-se, só podia ser boa notícia para uma pessoa. Se fosse assassínio, claro.

- Vamos precisar de saber o que fez Mr. Tindall ontem, miss.

- Evidentemente. - Voltou imediatamente a ser a secretária eficiente. - Ora deixe-me ver...

O dia anterior de Richard Mallory Tindall, do ponto de vista da sua secretária, revelou-se aparentemente sem acontecimentos especiais. Tinha chegado um pouco mais tarde por causa das obras na estrada, e tinha permanecido no seu gabinete até às onze e meia a fazer as suas cartas. E a começar a escrever um relatório.

- O relatório da United Mellemetics? - quis saber Sloan.

Miss Holroyd abanou a cabeça.

- Aquele que Mr. Pysden está a preparar agora. O Contrato Marling.

- E depois?

Tinha passado o resto da manhã a receber pessoas.

- Receber quem? - perguntou ele pacientemente. Miss Holroyd franziu a testa.

- Mr. Pysden, evidentemente. Teve a sua conferência diária com ele, enquanto tomavam café, como habitualmente. Foi nessa altura que Mr. Pysden lhe entregou o relatório da United Mellemetics. Aquele que não conseguimos encontrar.

- Não viu o que ele fez com ele?

- Eu não estava aqui.

- Continue. Quem mais recebeu Mr. Tindall?

- Mr. Blake. Acaba de o ver, Inspector. E depois o encarregado da oficina. Alguém dos Testes... oh!, e Mr. Hardy. é ele quem trata das Patentes e dos aspectos legais. Acho que foi tudo. O resto do tempo esteve a falar ao telefone. Depois foi dar uma volta às oficinas.

Sloan sacudiu a cabeça.

- Mais alguma coisa?

Aquilo era igual a qualquer manhã de qualquer homem de negócios em qualquer dia da semana.

- Que eu saiba, não, Inspector.

- E depois?

- Ao meio-dia foi almoçar.

- Onde? - perguntou Sloan, sempre alerta. Tinha algo de catecismo, aquele investigar do significado de cada coisa junto daquela mulher tranquila e compreensiva.

- Não sei. - Hesitou. - Ele não me disse.

- Ele costuma.. costumava fazê-lo? Miss Holroyd pareceu ficar desconcertada.

- Regra geral.

- Creio que poderemos descobri-lo facilmente, se for coisa importante. Qualquer pessoa se recordaria do carro dele.

- Ele não levou o carro - disse decididamente. - Ficou todo o dia debaixo da minha janela.

- Alguém o veio buscar? - sugeriu Sloan.

- Levou uma das carrinhas da firma. Aquela velha, de um só lugar.

Sloan tomou nota da matrícula. Procurá-la daria qualquer coisa útil para fazer a Crosby, quando tivesse acabado de falar com os Osborne: por exemplo, impedi-lo de estar sempre a pisar-lhe os calcanhares.

- Quando é que ele voltou?

- Estava aqui quando eu voltei do almoço. Antes das duas e um quarto, de qualquer modo.

Sloan anotou isto também. Uma pessoa podia ir a muito lado e voltar, numa carrinha, em mais de duas horas.

- E depois do almoço, miss.

- Mais telefonemas.

- Incluindo Mr. Cranswick?

Voltou a passar uma nuvem sobre o rosto dela.

- Que eu saiba, não. Embora... - comprimiu os lábios - ele tenha dito que falou com Mr. Tindall ontem. E isso, Inspector, foi tudo o que ele consentiu em dizer-me, antes de partir a toda a velocidade para Cleete.

- Gostaríamos de falar nós próprios com ele - disse Sloan com suavidade. - Estamos à procura dele.

Foi nessa altura que o telefone tocou. Era o superintendente Leeyes, que queria falar com Sloan.

- Tenho uma coisa para si - disse Leeyes. - Lembra se do tipo italiano que saiu com a filha na noite de ontem?

- Giuseppe Mardoni?

- Esse.

- Que se passa com ele, chefe?

- Não apanhou o avião. Confirmámos no aeroporto.

 

Afasta a tempestade.

- Por aqui, Inspector. - Miss Holroyd encaminhou-o por um corredor, em direcção a outro gabinete. - É aqui que está Mr. Pysden.

Sloan tomou consciência do zumbido persistente da maquinaria eléctrica logo que saíram do gabinete de Miss Holroyd.

Henry Pysden era a pessoa com quem Sloan tinha falado ao telefone, de Cleete, sem dúvida. A sua voz continuava a ser monótona e esganiçada. Constatou que se tratava de um homenzinho baixo, de meia-idade, de óculos com lentes grossas.

- Pobre Richard. - Acabou de escutar Sloan e depois tirou os óculos e limpou-os vigorosamente. - E pobre Fenella. Nunca pensei que chegasse um dia em que me sentisse feliz por Malsie estar morta.

- Malsie?

- A mulher dele. Na igreja, foi o que disse? Que diabo estaria ele a fazer lá?

- Não sei. - Era uma das muitas coisas que Sloan teria de descobrir: e depressa. Não tinha ido lá para ler um trecho da Bíblia durante a missa, disso estava certo.- Nesta fase, ainda não - terminou formalmente, em voz alta.

- Pobre Richard. - De novo. Pysden tinha-se obviamente decidido pelo Livro das Lamentações. - Mas Randall's Bridge nem sequer é a igreja dele. Cleete é que era a paróquia dele, embora eu não saiba se era homem de Ir muito à igreja. Não - apressou-se a acrescentar - que não fosse um bom homem. Não poderia encontrar pessoa melhor, Inspector. E eu tenho obrigação de o saber. Há muitos anos que estou com ele. Mais tempo do que a maior parte dos outros.

- Não, senhor, tenho a certeza. - Sloan pigarreou propositadamente: as obséquias verbais teriam que esperar. - Deve compreender que vamos ter que fazer amplas investigações.

- Naturalmente.

- Sobre ele. E sobre o vosso trabalho aqui. Pysden franziu o sobrolho.

- Não sei se estou em posição de lhes dizer muito acerca do nosso trabalho. Bem vê, Struthers e Tindall garantem o sigilo. E o sigilo absoluto. Tudo isso faz parte do nosso serviço. Se houver alguma fuga, teremos que cobrir o prejuízo. Receio bem - acrescentou apologeticamente - que tenhamos sido, de certo modo, um fardo para o inspector Tetley, desde que viemos para aqui.

- Faz tudo parte do nosso serviço - murmurou Sloan, ironicamente.

- É por isso que vêm ter connosco as pessoas que sentem (que receiam) que podem ter motivos para recear... que a sua própria segurança não seja boa.

- Como a United Mellemetics?

- Sir Digby Wellow está... hã... muito aborrecido - disse Pysden. - E nós também. Nunca nos sucedeu que um relatório desaparecesse... hã... do seu lugar, pois não Miss Holroyd? Nunca.

- Nunca, Mr. Pysden. Até agora - acrescentou consciensiosamente.

- Não sei o que Richard irá... oh, meu Deus! - Pysden inspirou profundamente. - Custa um bocado a habituarmo-nos, não custa? A que ele não vai estar aqui para lhe falarmos do assunto. - A morte é assim mesmo. E agora, quanto ao relatório da United Mellemetics...

- Era muito importante. - Pysden tinha um ar preocupado. - Não tenho dúvidas quanto a isso.

- Espionagem industrial? - arriscou Sloan Inteligentemente.

- Está sempre a acontecer. - Pysden implicou tacitamente o seu acordo, e depois voltou-se para olhar para um grande relógio de parede, antes de voltar a fitar, com os seus olhos míopes, os dois polícias. De certo modo, as grossas lentes dos óculos serviam para velar qualquer expressão do seu rosto. "Se", pensou Sloan sombriamente, "os olhos são a janela da alma, os óculos de Henry Pysden constituíam um cortinado muito eficiente." - É de esperar, realmente, Inspector, se pensarmos na quantidade de dinheiro aplicado actualmente em firmas dessa dimensão.

- Faz certa diferença. - Sloan gostaria de saber qual seria a situação em que o dinheiro não fizesse diferença.

Ainda não conseguira saber.

- Ia fazer uma grande diferença para a United Mellemetics, de qualquer modo - disse Pysden. - Por isso Sir Digby veio ter connosco.

- Não estava satisfeito com alguma coisa?

- Pode dizê-lo. - Pysden olhou novamente para o relógio. - Ou o discernimento de alguém estava a ficar confuso, ou passava-se ali qualquer coisa de estranho. Pelo menos, foi o que Richard me disse ontem. Eu não conheço bem os detalhes. Note que nem sempre é tão fácil como se pensa decidir qual é a hipótese a considerar. É difícil sermos completamente independentes nas nossas conclusões, quando o sucesso ou o insucesso de um departamento da firma depende delas. Poderia - terminou moderadamente - ser isso.

"Era um ponto de vista", pensou Sloan, "que o inspector Harpe da Divisão de Trânsito teria apreciado." Nunca se ganhava, no Trânsito. E ninguém tinha jamais uma opinião independente. Quem guiava um carro, nem pensar.

- Ou - prosseguiu Pysden- pode dar-se o caso de, uma vez por outra, um tipo ir até ao extremo oposto e esquecer-se de que as firmas comerciais não são faculdades de investigação universitária. Acontece muito disso. Na Polícia também.

Mais ou menos de três em três meses quase trepavam pelas paredes. Teóricos, funcionários da estatística, psicólogos, criminologistas, penologistas- todos vinham à Esquadra de Berebury com a regularidade das monções. E eram quase tão úteis como elas.

- O que as firmas geralmente pretendem de nós - disse Pysden pesadamente -, é uma avaliação prévia do mercado. Isso é coisa para nós, evidentemente. Tem que ser.

Sloan assentiu com um movimento da cabeça. Quanto a ele, a avaliação do mercado devia ser coisa para muito mais entidades, até. Como o sistema prisional de avaliações. Ou o custo dos departamentos de intercâmbio dentro de uma ou duas gerações.

- Mas o que Sir Digby queria - disse o director-delegado - era uma opinião sobre o trabalho de um empregado.

- Se se tratava de mau discernimento ou de má-fé?

- Exactamente. - Pysdem soltou um longo suspiro.- Exactamente. É sempre um bocado complicado, bem vê, quando é alguém do nosso próprio ofício que pode ser o... hã... o vilão. Temos que ter realmente muito cuidado.

Também sabiam disso na Polícia, sem que fosse preciso dizerem-no. Um guarda indigno era a pior das dores de cabeça.

Dizia-se que o chefe da Polícia tinha qualquer coisa a esse respeito em latim, pregada sobre o espelho de fazer a barba. Alguém que tinha estado em sua casa tinha copiado a frase e esta tinha-se gradualmente filtrado através da Polícia.

Quis custodiei ipsos custodes, dizia a frase.

Um dos cadetes da Polícia, recém-saído da escola e muito pretensioso, além disso, tinha-a traduzido como "Quem guarda os guardas".

- E qual das hipóteses era? - perguntou Sloan ao director-geral.

- Receio bem que fosse má-fé. Pelo menos - explicou - foi o que Richard me disse ontem. - Não havia dúvida de que Pysden estava a observar o relógio. Os ponteiros aproximavam-se agora das onze e meia. - Não conheço todos os pormenores.

- Também trabalham para outras firmas.

- Efectivamente.

- Terei de saber para quais.

- E eu precisarei de autorizações para lhe dar os seus nomes, Inspector. Bem vê, são todos trabalhos secretos. Por vezes apenas o presidente de uma determinada firma sabe que estamos a trabalhar para ela.

- É o caso da United Mellemetics?

- Duvido muito - disse Pysden secamente - que Sir Digby tenha exprimido as suas suspeitas a qualquer outra pessoa.

Foram Interrompidos por uma campainha que soou no outro extremo do laboratório. Soava Junto de uma complicada estrutura de fios, válvulas, vidro e metal. Henry Pysden dirigiu-se imediatamente para ela e fez algumas leituras num termómetro e dois pequenos quadrantes. Anotou-as num gráfico e perfurou um registador de tempo. Um cilindro semelhante a um barógrafo avançou com um minúsculo sobressalto e Sloan constatou que aquele era o último de uma longa série de registos, todos cuidadosamente marcados.

- Desculpe, Inspector - disse Pysden por cima do ombro, ocupando-se do aparelho-, mas isto não pode esperar. É uma experiência ligada ao registo de tempos. Tenho que fazer isto de seis em seis horas durante uma semana.

- Pouca sorte. Pysden fez uma careta.

- É apenas trabalho, suponho eu. Simplesmente o meu dia começa mais cedo, às cinco e meia.

- Tem que estar aqui a essa hora?

- Não, não. Eu durmo aqui. Tenho um saco de dormir. Com um registo às onze e meia e outro às cinco e meia, não me restava tempo para dormir se não fizesse assim.

Pysden estava agora de costas para eles e inclinado para a frente, totalmente absorvido em qualquer coisa que a Sloan parecia um torno de vidro.

- Parece ser coisa muito importante.

- E é, Inspector, pode crer. Posso dizer que é o trabalho mais importante que a Struthers e Tindall fez até agora. Leva cerca de vinte minutos de cada vez e não posso atrasá-lo sem dar cabo da experiência por completo.

- Evidentemente. - Sloan ergueu-se para sair.

- É melhor perguntar à Fenella detalhes sobre os outros negócios. Penso que ela passará agora a ter o controlo da Struthers e Tindall.

A tarefa que coubera ao agente Crosby tinha consistido em entrevistar os Osborne.

Não foi uma visita feliz.

As más notícias - levadas por um mensageiro ainda mais rápido que o próprio Crosby - já tinham chegado a casa dos Osborne. Era uma habitação limpa e bem arrumada, modestamente próspera, situada numa boa área residencial de Berebury, perto do parque. Se Crosby fosse mais velho e mais experiente, teria reconhecido um daqueles casais sem filhos, em que um dos cônjuges faz de criança. Neste caso, era a mulher. A lacrimosa Mrs. Mareia Osborne encontrava-se prostrada sobre o sofá. Uma vizinha prestável tentava confortá-la.

Em vão.

- Coitado do Richard - repetia Mrs. Osborne, vezes sem conta.

- Então, então - implorava a vizinha, com pouca eficácia.

- Coitado do Richard - gemia Mrs. Osborne. Crosby conservou-se bastante afastado do sofá. As mulheres muito bem vestidas já o assustavam suficientemente quando não estavam a chorar: as mulheres de meia-idade armadas em rapariguinhas aterrorizavam-no em qualquer altura.

Preferia que as pernas de Mrs. Osborne não se encontrassem tão em evidência.

Preferia ter voltado às rondas. Ao menos com um bando armado de navalhas, sabia com que contar.

- Quero o George - gritou Mareia Osborne.

O agente Crosby, cujo primeiro nome era William, sentiu-se muito aliviado.

Onde está o George? - perguntou. A vizinha disse:

- Não sei, meu filho. É hora de almoço na escola e eles acham que ele não está lá.

- Porque é que ele não está lá?

- Ele ontem também não estava lá à hora do almoço - disse Mareia Osborne em tom petulante. - Quero-o aqui. Agora mesmo.

- Sim, querida. - A vizinha (uma mulher resoluta), não tendo conseguido administrar-lhe conforto espiritual nem fazer aparecer George Osborne, deitou qualquer coisa num copo e ordenou-lhe: - Beba isto.

- Coitado do Richard - disse Mareia Osborne mecanicamente, emborcando o conteúdo do copo com surpreendente rapidez. - Ainda esteve aqui na noite passada. Sentado naquela cadeira.

Mesmerizados, todos olharam para a cadeira vazia junto do sofá.

- Na noite passada...-principiou Crosby, sabendo que era preciso interessar-se devidamente pela noite anterior.

- Ainda na noite passada - ecoou ela tristemente, voltando-se para Crosby. - Nem parece possível, pois não?

- Pois não, minha senhora - disse Crosby desajeitadamente.- A que horas é que ele se foi embora?

Richard Tindall, informou ela entre lágrimas, tinha saído de casa dos Osborne em qualquer altura antes das dez e meia. Foi tão vaga a esse respeito como em relação à hora a que ele chegara. Por volta das sete, parecia-lhe. As dez horas alguém tinha telefonado para Tindall e pedira para falar com ele. Tindall tinha-se ido embora pouco depois disso. Não, não tinha reconhecido a voz, só podia dizer que era de homem. Negócios, tinha sido a única explicação que Richard dera. Nada mais.

- Tomou uma bebida minúscula antes do jantar.- Olhou para Crosby por entre as lágrimas. Era um olhar predatório.

O que quer que a vizinha tinha dado a beber a Mareia Osborne não tinha sido minúsculo. Ela emitiu um leve soluço. Crosby reparou que os pés-de-galinha em volta dos olhos também estremeceram, a acompanhar o soluço. Tanto quanto lhes permitia a considerável quantidade de maquilhagem que os cobria.

- E depois, minha senhora? - Pigarreou. - Estamos a investigar onde esteve toda a gente na noite passada.

Ela baixou as pálpebras.

- Na cama.

Não devia ter sido Crosby a corar: mas foi.

- A visita de Mr. Tindall foi de carácter social, penso eu, não foi, minha senhora?

Mareia Osborne voltou os grandes olhos límpidos para ele e abriu-os muito.

- Não, senhor Agente. Veio por causa da invenção de George. Vai ser um grande sucesso. Richard trouxe-nos essa notícia na noite passada. - Engoliu em seco e recomeçou:- Coitado do Richard...

Crosby pôs-se em fuga.

Sloan tinha uma lista na mão - arrancada ao prudente Hervy Pysden ao abrigo da recém-nascida autoridade de Fenella - uma lista dos clientes da Struthers e Tindall.

Só não tinha detalhes das experiências da United Melle-meties.

De regresso ao seu gabinete, Miss Holroyd estava a explicar-lhe porquê.

- Faz parte do nosso sistema, Inspector. Reunimos sempre todos os papéis relacionados com uma experiência ou projecto de um cliente e devolvemo-los ao cliente juntamente com o nosso relatório. Assim não temos problemas de segurança com os dossiers antigos-. Já é difícil com aqueles com que estamos a trabalhar.

- Até mesmo os rascunhos? - perguntou Sloan esperançadamente.

- Todos os cálculos (certos ou errados) têm que voltar para o cliente.

- E quanto ao relatório da United Mellemetics - Inquiriu Sloan, agarrando-se à última palha. - Quem o escreveu?

- Ninguém. Pelo menos... - Miss Holroyd franziu o sobrolho -... eu não o escrevi e sou eu quem geralmente dactilografa todos os relatórios muito confidenciais. Mr. Tindall deve ter decidido não fazer um relatório por escrito. Às vezes faz isso.

- Porquê?

Miss Holroyd esboçou um gesto no ar.-Extra-segurança, talvez. De qualquer modo, nem sempre entregamos relatórios por escrito. Podem ser muito delicados, compreende, neste ramo.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Todos os polícias sabiam disso. E aprendiam-no cedo. No seu ramo.

Da pior maneira.

- As vezes - explicou a secretária -, Mr. Tindall limita-se a falar com as pessoas interessadas. Assim...- Hesitou.

- Continue.

- Um presidente poderá decidir servir-se apenas daquilo que lhe interessa num relatório verbal. Pedaços daqui e de além.

- Sem ressentimentos, hem?

- Exactamente. - Assentiu com um gesto da cabeça.- E dessa maneira também não pode ser pressionado a actuar. Nem então nem depois.

- Inteligente.

- Os presidentes das companhias - observou Miss Holroyd com indiferença - são-no geralmente.

Sloan estava de acordo com ela, nesse ponto. Qualquer pessoa podia ser um especialista. O problema estava em controlar os especialistas.

Miss Holroyd tossiu.

- E também há outra vantagem, Inspector.

- Continue.

- Por vezes, quando não há nada escrito...

- Sim.

- As ideias e opiniões que expressamos podem ser consideradas como emitidas pelo próprio presidente.

- Não elaboradas pela Struthers e Tindall?

- Já aconteceu.

- O presidente da United Mellemetics (Sir Digby Wel-low) é um desses?

- Penso - disse Miss Hilda Holroyd com grande tacto - que um relatório verbal seria muito mais conveniente para Sir Digby.

- Mas tanto quanto sabe, ele não recebeu nenhum?

- Não. - Hesitou novamente. - Ele é que poderia responder-lhe.

- Não está na United Mellemetics. - Sloan apontou para o telefone sobre a secretária dela. - Acabo de lhe telefonar daí.

Uma conversa com Sir Digby Wellow da United Mellemetics era uma das prioridades da lista de Sloan e Sir Digby Wellow tinha saído da fábrica da United Mellemetics em Luston havia exactamente meia hora, para um destino desconhecido.

 

Os corpos desamparados de homens por enterrar.

O agente Crosby atravessou lentamente o adro da igreja de Randall's Bridge. Os operários tinham regressado a Berebury. Tinham sido substituídos por um grupo de polícias fardados sob o comando do sargento Wharton. Andavam à procura de pistas por todo o adro da igreja. E no interior da igreja: mas não no campanário. O campanário, tinha decretado o inspector Sloan, devia ser rigorosamente posto de parte até ele chegar.

Crosby tinha cuidadosamente registado o tempo da viagem desde a casa dos Osborne até Randall's Bridge e agora dirigia-se à Vivenda Vésper, para visitar as duas Misses Metford.

Ainda não tinha batido quando a porta se abriu subitamente. Seguiu Miss Mabel até ao interior da casa, roçando-se pelas frondes de um feto, na minúscula entrada.

- Tenha cuidado - disse Miss Ivy severamente.

- Era da mãe - disse Miss Mabel.

- Há quarenta anos que o conservamos - acrescentou

Miss Ivy.

Crosby encolheu-se para o outro lado e foi embater numa mesa de bambu sobre a qual se encontrava uma aspidistra.

- Para a sala - apressou-se a decretar Miss Mabel.

- Por aqui - disse Miss Ivy.

- Na noite passada... - disse Crosby.

- O pobre homem da torre...

- Acabam de o levar...

- Numa carrinha preta.

- Nós vimo-lo partir.

- Todo tapado.

- Nós vemos tudo daqui.

- Viram alguma coisa na noite passada? - disse Crosby, com grande astúcia. - Carros, por exemplo?

Miss Ivy inclinou a cabeça para o lado.

- Ver, não vimos.

- Ouviram?

- Ouvimos um, mana, não foi?

Miss Mabel acenou afirmativamente com a cabeça.-

Ouvimos.

- Quando foi?

- Por volta das dez e meia - disse Miss Ivy.

- Vinte para as onze - disse Miss Mabel.

- Subiu até ao portão da Igreja e parou aí durante . algum tempo - disse Míss Ivy.

- Quanto tempo?

- Uns dez minutos - disse Miss Mabel.

- Quinze - disse Miss Ivy.

- Viram alguém?

As duas cabeças sacudiram-se como uma só.

- Estava escuro de mais - disse Miss Ivy.

- E longe de mais - disse Miss Mabel.

- Mas ouviram-no - insistiu Crosby, olhando de uma Irmã para a outra. Aquilo era pior que Wimbledon.

- Ouvimos - exclamaram.

- Especialmente quando se foi embora - disse Miss ivy.

- Fez um ruído esquisito, nessa altura - disse Miss Mabel.

- Esquisito? - Crosby sentia a cabeça como um vaivém. Estava sentado numa cadeira de braços que tinha uma cobertura debruada com renda de bilros, que lhe fazia cócegas de cada vez que movia a cabeça. Receber declarações não costumava ser assim.

- Mais forte - disse Miss Ivy.

- Geralmente não ouvimos os carros quando vão - explicou Miss Mabel.

- Quando vão?

- Só quando vêm - acrescentou Miss Ivy. - Ouvimo-los vir por causa da subida até ao portão da igreja.

- É íngreme - explicou Miss Mabel.

- Quando vão... - disse Miss Ivy.

- Quando vão... - ajudou Crosby.

- Vão geralmente sem fazer barulho - disse Miss Ivy, fora da sua vez.

- A descer - disse Miss Mabel.

- Para casa - ordenou o inspector Sloan, quando saíram finalmente das instalações da Struthers e Tíndall.

O agente Crosby fez arrancar o carro da Polícia e saiu através dos portões, incorporando-se na fila principal de trânsito.

- E devagar - acrescentou Sloan, instalando-se melhor no lugar da frente e abrindo a sua agenda.

- Devagar, senhor Inspector?

- Foi o que eu disse, Crosby. Significa - acrescentou sarcasticamente- "o contrário de depressa".

Um cone de silêncio ofendido envolveu a área do assento do condutor. Era quase visível.

- Há mais pessoas - recordou-lhe Sloan - mortas por motoristas que por assassinos.

- Sim, senhor Inspector. - Crosby contornou a alta velocidade um triângulo mandado instalar havia pouco tempo, a instâncias do inspector Harpe, com o único propósito de abrandar a velocidade dos carros.

- Além disso - Sloan curvou os ombros para a frente - quero pensar.

Não se pode dizer que fossem umas amendes honorables (1) exactamente notáveis, mas o "Sim, senhor Inspector" obediente de Crosby soou desta vez com a inflexão devida.

"Por certo", pensou Sloan com um pressentimento, "o espaço de uma curta viagem de carro - por muito normal que fosse - não iria bastar para ordenar os seus pensamentos por forma a poder tê-los prontos para o superintendente Leeyes."

Havia algumas coisas, contudo, que podiam ser preparadas.

- A carrinha da firma, Crosby. Ontem à hora do almoço. O agente deu uma palmadinha amigável no microfone do carro.

- Enviei uma mensagem. Pedi a quem a viu que nos informe.

 

(1) Pedido de desculpa honroso. (N. do T.)

 

- A todo o Calleshire?

- A todos os carros, senhor Inspector. Depois do meio-dia de ontem.

- Isso foi o que Miss Holroyd disse - recordou-lhe Sloan. - Foi o que ela disse. Nós não sabemos.

Era aquela a maneira por que um polícia devia pensar. A maneira que queria ensinar àquele polícia ainda verde.

Era uma coisa que já estava enraizada nele, como dizia a sua mulher, Margaret. Num trabalho de investigação devia-se raciocinar mais ou menos como se se estivesse a atravessar um pântano, procurando sempre constatar se o terreno é firme antes de se dar um passo.

Não sabia ainda se aquilo que Miss Holroyd - ou qualquer outra pessoa relacionada com aquele caso, na verdade- dissera em terreno firme ou não. Era cedo de mais para o saber, embora já tivessem sido ditas coisas que faziam soar uma campainha de alarme. Teria que as separar.

- É tudo, senhor Inspector? - perguntou Crosby prestavelmente, descrevendo um perigoso percurso para se meter entre um autocarro do Condado de Callebury e um camião de mudanças.

- O Registo de Companhias - disse Sloan quando voltou a respirar de novo. - Assim já teremos o relacionamento passado da Struthers e Tindall com a Cranswick Processing e com toda essa gente para quem eles trabalham.

- Especialmente a United Mellemetics.

- Especialmente a United Mellemetics - concordou Sloan, consultando a lista. - Cá está a Punnett Tooling, também, e a Harbleton Engineering e Marlam's...

- Nunca ouvi falar dessa.

- E a Stress Engineering.

- Também não.

- E a Leake e Leake? - Sloan franziu a testa. - O nome não me é estranho.

- Carrinhas, senhor Inspector. Têm carrinhas. Montes delas. Pequenas e verdes. Vêem-se por toda a parte.- Crosby deu à frase a entoação que daria se estivesse a falar de duendes.

- Oh, essas! Já sei. - Sloan voltou à sua lista. - Osborne é o último.

- George Osborne - disse Crosby. - Deve ser por causa do invento dele. Vai ser um grande sucesso. Disse Tindall.

- Mrs. Osborne disse que Richard Tindall o tinha dito - recordou-lhe Sloan pacientemente. - Quantas vezes tenho de lhe dizer que não é a mesma coisa?

Crosby não respondeu. Parecia ocupado em fazer voltar o carro para a Bell Street. Estavam a aproximar-se da esquadra.

Sloan continuava agarrado à sua agenda.

- E agora, Crosby - prosseguiu como se estivesse a encorajar um aluno-, o que é que devemos fazer a seguir?

- Comer, senhor Inspector - respondeu o aluno imediatamente. - é altura de pensar no estômago.

Sloan fechou a agenda bruscamente. Realmente não sabia para onde ia a Polícia.

- Sim, Inspector - concordou uma voz ao telefone, falando da morgue para a esquadra. Tinham recebido o corpo enviado da igreja.

Sim, tinham feito uma lista do conteúdo dos seus bolsos. Tinham-no feito imediatamente porque o Dr. Dabbe queria trabalhar e eles sabiam - toda a gente sabia - como era o Dr. Dabbe quando estava com pressa.

O que tinham encontrado? O habitual.

O que era o habitual?

Alguns trocos - não muitos. Chaves - as chaves da casa, pelo aspecto que tinham.

Chaves do carro?

Não havia chaves do carro.

Pois lenços. Um rapaz sensato.

- Um quê?

Um rapaz sensato. Um lenço para usar e outro para guardar.

- Mais alguma coisa? - inquiriu Sloan com voz estrangulada.

Absolutamente nada fora do vulgar. Uma carteira, evidentemente. Com algum dinheiro. Os cartões comerciais com o nome de Richard Mallory Tindall, se é que isso tinha alguma utilidade para o inspector.

- Tinha? Óptimo.

- Mais alguma coisa na carteira? Um recibo da Adamson de Londres. Da joalharia Adamson?

A voz ao telefone da morgue indicou-lhe um endereço famoso numa rua bem conhecida de Londres.

Sloan inspirou fundo. A Adamson era fornecedora das cabeças coroadas que ainda restavam no mundo e dos seus sucessores em matéria de fortuna - cheiks enriquecidos pelo petróleo, negociantes de imobiliárias, estrelas em voga, vencedores de lotarias.

- Referente a quê? - perguntou.

Adamson não vendia bijutarias, evidentemente. Toda a gente sabia disso. Nem sequer imitações. Para a Adamson tinha que ser tudo do bom - fosse o que fosse. Com a Adamson, se uma coisa parecia de ouro, era mesmo de ouro.

Um par de pregadores de diamantes e esmeraldas, leu o homem da morgue, feitos por encomenda, segundo um desenho fornecido.

- Qual - perguntou Sloan com crescente ansiedade - era a data do recibo?

15 de Julho.

Terça-feira. O dia antes de ontem.

- Mais alguma coisa?

Sim, havia uma daquelas coisas esquisitas que parecem uma régua pequena, mas não são - oh!, uma régua de cálculo?

Era assim que se chamava? Pois, era uma dessas. E uma caneta e um lápis, e uma pequena agenda.

O inspector gostaria que mandassem tudo aquilo imediatamente para a esquadra. Certo. Vamos tratar disso. Era tudo? Bem, não havia mais nada. Nada mesmo?

Nada. O inspector teria alguma coisa especial na Ideia, para além daqueles pregadores?

Uma caixa de fósforos?, ecoou a voz. Pelo seu tom descrente os fósforos pareciam coisa tão rara como os pregadores de diamantes e esmeraldas. Não, nada disso. Nem sequer um isqueiro.

Um homem precisa de comer.

Mesmo que seja um polícia.

As guinadas da fome tinham finalmente levado o inspector Sloan a concordar com a admirável sugestão feita pelo agente Crosby, que tinha mitigado o seu próprio apetite alguns minutos antes.

E um investigador tem que investigar.

Mesmo que esteja com fome.

Sloan estava a tentar virilmente fazer ambas as coisas ao mesmo tempo: entalando o auscultador do telefone entre a orelha e o ombro, com uma caneta numa mão e uma sanduíche de carne na outra.

- Um par de pregadores de esmeraldas e diamantes - disse pouco nitidamente, quando conseguiu a ligação para Londres. - Encomendados através do vosso Mr. Lee.

Algures num escritório de fofas carpetes no West End de Londres, da firma Adamson, Joalheiros da Coroa, Mr. Lee foi chamado ao telefone.

- Um bonito par de pregadores, Inspector - principiou Mr. Lee prudentemente.

- Gostaria que me falasse deles - disse Sloan. Também gostaria de ouvir falar do dossier da United

Mellemetics. E muita coisa mais acerca de um italiano chamado Giuseppe Mardoni.

- São de esmeraldas, Inspector. Mr. Tindall especificou esmeraldas na sua carta. Com diamantes, se fosse possível.

- Mr. Lee conseguiu fazer com que os diamantes parecessem apenas um contrapeso.

- Esmeraldas com diamantes - ruminou Sloan, dando mais uma dentada na sanduíche enquanto podia.

- A moda agora é a mistura de pedras - disse Mr. Lee.

- Já não é como dantes.

- Ah, sim!? - Sloan perguntou a si próprio se deveria ter sabido disso.

Seria o tipo de coisa que todo o bom investigador sabia? Não havia limite para essas coisas. Não era Sherlock Holmes que afirmava que todo o bom investigador devia saber distinguir setenta e cinco variedades de perfume?

Ou seriam cinquenta e sete?

Sherlock Holmes tinha resolvido o seu mistério do quarto fechado descobrindo uma víbora indiana venenosa dentro de casa.

Sloan não tinha essa sorte.

- Até ali.

- Esmeraldas com diamantes - repetiu.

- Exactamente, Inspector. Para condizer com uns brincos victorianos de esmeraldas e diamantes.

- Que tipo de pregadores eram?

- Deixe-me ver, inspector... como é que hei-de descrever-lhos? Por acaso não os tem aí à mão?

- Não - disse Sloan laconicamente. - Não tenho.

- Bem, nesse caso... - Mr. Lee fez uma pausa. - Eram compostos por diamantes e esmeraldas em cabochão...

- Cabochão?

- Polidos, não facetados nem esculpidos.

- Certo - murmurou entre a carne e o pão. - Já anotei.

- Aglomerados de esmeraldas e diamantes em cabochão...

"Parecia ser uma coisa bonita", pensou Sloan, enquanto anotava. Tentou imaginar a sua mulher, Margaret, com uns pregadores assim. Achou refrescante evocar a imagem dela a meio do dia e demorou-se nesse pensamento enquanto Mr. Lee continuava.

- Desculpe. - Apologeticamente.- Importa-se de repetir, por favor?

- Os aglomerados - repetiu Mr. Lee com o entusiasmo esotérico do perito - eram levemente graduados e cada um deles estava seguro e separado do outro por um pequeno engaste de diamantes.

- Engaste? - inquiriu Sloan.

- A base horizontal de um diamante quando cortado em brilhante - disse o perito. - Bastou-nos comparar com os brincos, Inspector. Não foi um trabalho difícil, na verdade. Tínhamos por onde copiar. Mr. Tindall enviou-nos um deles e trabalhámos com base nele e depois devolvemos o brinco juntamente com os dois pregadores.

- Quando?

Ouviu-se um restolhar de papéis que acompanhou a mastigação de Sloan. - Segundo o nosso livro, Inspector, foi tudo despachado há dois dias.

- Na terça-feira.

- Exactamente. Mr. Tindall falava de uma data na sua carta. - Mr. Lee da Adamson deixou escapar uma discreta tosse profissional. - Creio que se tratava do aniversário de uma senhora.

Sloan empurrou a descrição para Crosby que acabava de chegar. O agente trazia na mão uma mensagem que vinha do superintendente Leeyes.

- É acerca daquele G. Mardoni, senhor Inspector.- Crosby entregou-lhe cuidadosamente a fina folha de papel. A direcção administrativa da Polícia economizava na qualidade do papel e gastava-se muito tempo e fita adesiva para o remendar. - Confirma-se que ele estava reservado para um voo directo para Roma com partida do aeroporto de Londres à uma e meia desta madrugada.

- E não o apanhou?

- Não se apresentou nem no terminal nem no aeroporto, senhor Inspector. - Crosby deu mais uma olhadela à mensagem.- Diz aqui que estão a tentar descobrir se alguém com esse nome seguiu num voo posterior.

- Ou G. Mardoni usando qualquer outro nome - disse Sloan, pegando no telefone e ligando para a Dower House, em Cleete.

 

Sinto um frio eterno.

- Eu, Inspector? - ecoou Fenella, tão descrente como o assistente da morgue. - À frente da Struthers e Tindall? Oh, claro que não! Nem pensar. Nunca poderia... Nem consigo pensar como deve ser.

Sloan conservou o auscultador no ouvido, enquanto ela se esforçava por pensar como devia ser.

- Eu não poderia... - repetiu ela com voz trémula.

- Não sei qual é a parte do Struthers, miss. - Era surpreendente a perfeição que se conseguia ao entrevistar as pessoas.

- Lembro-me de que o meu pai adquiriu acções que lhe permitiam o controlo, quando o velho Mr. Struthers morreu. As duas filhas dele ainda possuem uma parte, ao que sei, mas não é grande.

- Aquilo a que chamam uma participação minoritária? - sugeriu Sloan prestavelmente.

- Exactamente, Inspector. Recebem dividendos e coisas no género. - Ainda tinha um ar perturbado. - Eu não posso mandar na companhia, no entanto, Inspector. Não pode ser toda minha. Não faz sentido.

- A sua mãe tinha acções?

- Sim, mas... como é isso?... oh, compreendo... sim. Sim, tinha. E deixou-mas.

- Se herdar também as acções do seu pai, miss, estou a ver que poderá muito bem ser a accionista maioritária.

- Oh, meu Deus!...

- Voltando à noite passada, miss... Quando é que Mr.

Mardoni a deixou?

- Antes das dez e meia. Trouxe-me a casa e depois foi-se embora. Tinha que apanhar o avião.

- Ele tinha carro?

- Alugou um enquanto esteve aqui. Tinha combinado deixá-lo no aeroporto. Pode fazer-se isso.

Sloan anotou o nome da firma que alugara o automóvel, e perguntou:

- Quando é que ele veio para Inglaterra?

- Na quinta-feira passada. Tinha negócios em Londres, segundo me disse. É engenheiro de construção civil.

O inspector anotou todos os pormenores que ela lhe dava. Teriam que ser confirmados, evidentemente. Tudo teria que ser confirmado. Era isso o que significava ser polícia. Confirmar, reconfirmar e voltar a confirmar.

Fenella Tindall, proprietária substituta, não pusera objecção alguma a que o inspector Sloan conhecesse os nomes de todos os clientes da firma, apesar das precauções de Henry Pysden.

- Volto brevemente a Randall's Bridge, miss - disse Sloan obliquamente.

- Não há pressa - replicou ela tristemente -, pois não? Agora já não há.

E não havia. Do ponto de vista dela. O pai já estava morto. Tudo estaria parado em Cleete. Não era perseguida por fúrias como o superintendente Leeyes e o Dr. Dabbe e os fotógrafos da Polícia - todos a solicitarem a sua atenção ao mesmo tempo.

E por detrás deles estariam os cães uivadores da Imprensa.

- Mas receio que precisemos de si, miss... que tenhamos de pedir-lhe que vá ver... para dizer se...

- Compreendo, Inspector. - A sua voz soou quase áspera, de tão tensamente controlada. - Estarei aqui quando precisar de mim.

- Terá de ser na morgue de Berebury.

- Eu não vou fugir.

- Mandamos um carro buscá-la.

- Obrigada. Sloan pigarreou:

- Já vai a caminho.

- Agora?

- O Dr. Dabbe... não se pode dar ao luxo de perder tempo, miss. Pelo menos num caso destes.

- Não. - Ouviu-se a respiração dela terminar num suspiro longo e desencorajado. - Claro que não.

- Miss...

- Diga.

- Há uma outra coisa.

- Faça favor, Inspector.

- Importa-se de me dizer quando faz anos?

- Em Março - respondeu ela imediatamente. - Em vinte e nove de Março.

- O seu pai deu-lhe uma oferta nessa altura?

- Oh, sim! Ele não ia esquecer-se.

- Muito obrigado, miss. - Tentou outra aproximação.- Tem, por acaso, uns brincos de esmeraldas e diamantes?

- Não, Inspector. - Não, tão prontamente.

- E a sua mãe tinha?

Desta vez ouviu-a reter a respiração.

- Que eu saiba, não.

Logo que desligou o telefone, após a conversa com Sloan, Fenella Tindall marcou o número da Escola Secundária Masculina de Berebury e mandou chamar Mr. Osborne.

- Não está cá. - Respondeu-lhe uma voz gutural de um aluno, após uma longa espera. - É a hora do almoço. Não está cá ninguém.

- Onde é que ele está?

- Saiu.

- Tem a certeza?

- O carro dele não está cá - replicou a voz esganiçada.

- Isso não quer dizer nada - observou Fenella asperamente.

- Ele está de volta às duas - informou o rapaz com toda a confiança dos jovens. - Vai dar-nos uma lição sobre massas e volumes. - A sua voz deu um salto de centauro para a virilidade. - Quer deixar recado?

- Sim, por favor - disse Fenella Tindall.

O superintendente Leeyes estava num dos seus dias de torre de marfim.

Sloan já os conhecia há muito.

O chefe da Polícia, que tinha sido educado em colégios caros, e que também conhecia muito bem o superintendente, chamava-lhes aristotélicos.

Sloan, que tinha passado apenas pela escola primária e pela preparatória, só sabia que o superintendente queria que a sua actuação fosse nos bastidores. E que tudo ficasse acabado num só dia.

Dentro de uma rotação do Sol, como teria dito o chefe da Polícia, seguindo Aristóteles.

- Tudo a correr bem, Sloan? - perguntou Leeyes vivamente.

- Temos um pedido geral de localização de uma carrinha e um par de pregadores de diamantes e esmeraldas.

- Pregadores de esmeraldas? Sloan falou-lhe das jóias.

- Ah! Com que então chegou aos factos básicos. Sloan aceitou a observação respeitosamente.

- Assassínio - inquiriu o superintendente - por causa de um par de pregadores de esmeraldas e diamantes?

- Ainda há o caso do dossier da United Mellemetics que desapareceu, chefe.

Leeyes replicou bruscamente:

- Não me diga que há alguma coisa que o nosso extraordinário Sir Digby Wellow não consegue resolver.

- Parece que sim, chefe, e agora ele também desapareceu.

- O quê?!

- A firma dele não sabe onde ele pára - corrigiu Sloan.

- Então temos esse tal Cranswick e o Wellow, que lhe escorregaram ambos por entre os dedos... - O superintendente gostava de ficar por cima.

- Há meia dúzia de firmas com trabalhos secretos entregues à Struthers e Tindall, e, por acaso, a United Mellemetics é uma delas, chefe.

O superintendente Leeyes fitou-o, desconfiado. - Essa gente, Sloan (a Struthers e Tindall) não está a trabalhar para o Ministério da Guerra, pois não?

Agora era Ministério da Defesa. Mas tinha sido Ministério da Guerra, e Ministério da Guerra continuaria a ser para o superintendente Leeyes.

- Que eu saiba não, chefe.

- Por alguma coisa devemos estar gratos, afinal.

- Sim, chefe. - Sloan estava de acordo com ele nesse ponto. Totalmente.

O último recontro do superintendente Leeyes com os Serviços de Segurança tinha passado a fazer parte dos anais da Polícia de Berebury. Tinha sido um caso memorável.

O superintendente tinha reclamado direitos territoriais com toda a veemência de um tordo na época do acasalamento e os homens da Segurança tinham finalmente tido que se retirar, protestando entre dentes, para as suas reuniões misteriosas.

- E há aquela história esquisita da venda da Struthers e Tindall, chefe. À Cranswick Processing.

- Hum.

- A rapariga herda.

- Rei morto, rei posto - disse Leeyes brutalmente.- Ou, neste caso, Princesa Coroada, julgou eu.

- Ela diz que não sabia da venda da parte do pai à

Cranswick Processing.

- Todos eles dizem que não sabem nada de nada.- Leeyes apontou para os papéis que tinha sobre a secretária. - Ainda não há notícias do namorado dela.

- De quem?

- Daquele mafioso. Macarroni, ou lá como é que se chama.

- Giuseppe Mardoni - disse Sloan com um suspiro.

Aquilo, pelo menos, tinha que acontecer.

- Não gosto do tipo, Sloan - disse Leeyes, de modo igualmente inevitável.

- Não, chefe. - Sloan nunca tinha imaginado que ele gostasse.

Xenofobia, o teu nome é Leeyes: toda a Polícia de Berebury o sabia. E que o superintendente pertencia àquela escola de pensamento que dizia "Há nevoeiro no Canal, o Continente está isolado".

Se houvesse um túnel no canal, onde começariam os nativos, então?

- Os tipos do aeroporto dizem que estão a fazer o possível-disse Leeyes, procurando entre os papéis do seu cesto de entradas - e temos estado a insistir com a Secção de Chegadas de Roma. Também não há nada da parte deles.

- Portanto só sabemos - disse Sloan com justiça - que ele não apanhou o avião.

O superintendente não tinha tempo para avaliações imparciais.

- Foi às duas horas, não foi, que aquelas duas mulheres viram alguém no adro da igreja?

- É o que elas dizem.

- E não temos testemunhas de que a rapariga voltou para casa quando ela diz que voltou.

- Não, chefe.

Leeyes reclinou-se na cadeira.

- Estamos sempre a voltar à filha, não estamos?

- A filha, chefe?

- Ouviu o que eu disse, Sloan - replicou o superintendente irritado. - Presumivelmente, ela fica a ganhar mais do que qualquer outra pessoa, não fica?

- Penso que sim, chefe - disse Sloan -, mas nesta fase...

- E aquelas jóias caras não eram para ela?

- Aparentemente, não.

- Talvez não lhe agradasse a ideia de serem para outra pessoa.

- Mesmo assim, chefe...

- E depois temos aquele fulano estrangeiro.

Sloan imaginara que aquilo havia de voltar à conversa outra vez.

- Talvez - disse Leeyes - o pai dela não gostasse da Ideia de se casarem. A maior parte dos pais não gostaria.

- Um toque de "Oh, meu querido pai!", quer o senhor dizer, chefe? - disse Sloan rapidamente.

Era Margaret, a sua mulher, que apreciava ópera, e que comprava e tocava os discos. Mas Sloan escutava-os.

- O que eu quero dizer-explicou Leeyes generalizando - é que setenta por cento de todos os assassínios são problemas familiares.

- Mas não filhas, chefe - protestou Sloan. - As filhas geralmente não...

O superintendente fez um gesto majestoso com o braço.

- Houve aquela na América, Sloan. Não se esqueça dela. Matou o pai. E a madrasta. Não me lembro do nome dela.

- Lizzie Borden - ajudou Sloan debilmente, embora não de propósito.

Era nova para Fenella a ideia de que poderia encontrar-se à frente da Struthers e Tindall a partir de agora.

Ficou parada junto do telefone e, conscienciosamente, dedicou-se a pensar no assunto. Ela era dona da Struthers e Tindall. Struthers e Tindall. Qualquer coisa que a impedisse de pensar num par de pregadores de esmeraldas e diamantes e num pai morto.

Quanto mais pensava no assunto, mais se sentia predisposta a aceitar a situação.

Struthers e Tindall.

Aquele polícia - devia ter sido o mais tranquilo que parecia encarregado do caso, quem falara com ela ao telefone, não o mais jovem dos braços desajeitados - tinha muita pena deste, porque parecia ter uma inclinação para ser pisado mesmo quando não estava a fazer nada - aquele outro polícia - o primeiro - podia ter razão, no fundo. Talvez ela fosse de facto proprietária de mais acções da Struthers e Tindall que qualquer outra pessoa.

Se herdasse as acções do pai, claro.

Pregadores de esmeraldas e diamantes.

Tinham finalmente conseguido penetrar nos seus pensamentos- abrindo caminho através da sua mente dominada pela infelicidade, como um visitante barulhento, e afastando todos os outros pensamentos com que tinha estado a esforçar-se por encher o espírito, a fim de não lhes permitir a entrada.

Pregadores de esmeraldas e diamantes.

Ele nem sequer era, disse a si própria, do género de pessoas que compram jóias. Mesmo quando a sua mãe era viva. Não podia tê-lo conhecido durante toda a sua vida, por assim dizer, nem saber uma coisa dessas. Se, concluiu dolorosamente, ele tinha comprado jóias com esmeraldas e diamantes para outra pessoa, bem poderia igualmente ter deixado a Dower House e as suas acções da Struthers e Tindall a...

Não conseguia parar de pensar naquilo, pronto.

Custava-lhe a crer que pudesse sobrepor aqueles pensamentos a todas as outras notícias da manhã.

Como desejava estar de novo em Roma!

Lá tudo tomava sempre umas proporções tão grandiosas - especialmente a tragédia - que os seus pequenos problemas adquiririam a sua relativa proporção, se lá estivesse. Tinha a certeza disso. Colocados ao pé do Coliseu e da sua história terrível, todos os problemas da família Tindall tomariam uma pequena proporção e não passariam de pequenas dificuldades locais.

Suspirou.

Talvez pudessem parecer assuntos insignificantes diante do cenário da história de Roma, mas naquele momento enchiam o seu horizonte. Do que ela precisava naquele momento era de receita da Principessa Trallanti - um dia no Fórum. Era o que a Principessa receitava sempre a quem se encontrava extenuado ou demasiado envolvido pelos problemas deste mundo.

- Um dia no Fórum, Miss Tindall, tira a força ao presente- costumava ela dizer, no seu inglês impecável.- Constatei que nunca deixa de restaurar aquilo a que os Franceses chamam o sang-froid. Creio que não têm uma expressão para isso.

Era mesmo característico da Principessa servir-se de uma língua e compensar as suas deficiências com outra - nenhuma delas sendo a sua.

Fenella tinha rapidamente admitido as falhas da língua inglesa. Na verdade, os garotos tinham a expressão que a Principessa procurava. Chamavam-lhe "ficar nas calmas". Não tinha contado isso à Principessa. Embora os Trallanti fossem ambos mais internacionais que qualquer outro membro do "jet set", ainda não se tinham adaptado à juventude do mundo.

A Principessa tinha toda a razão.

Era disso que Fenella precisava.

Um dia no Fórum...

- Miss Tindall, gostaria...

Tinha passado um desses dias no Fórum com Giuseppe Mardoni.

- "Chame-lhe um feriado romano" - dissera ele persuasivamente. Era muito persuasivo.

Um longo e fresco dia de Primavera sob um límpido céu romano com as flores a irromper pelos interstícios das pedras estaladas; um dia passado a vaguear de uma colunada inconsequente para outra. Era isso o que se pretendia, evidentemente. Eram extremamente inconsequentes, aquelas pedras, agora - mas outrora... Ah!, outrora tinham sido importantes - e a posição exacta de cada uma delas tinha consequências para alguém.

E hoje - hoje as pedras eram apenas semelhantes às ruínas que se vêem por toda a parte e pouco mais importantes do que elas...

- Miss Tindall. - A voz soou muito mais firme desta vez. - Gostaria de falar consigo.

Voltou-se.

Mr. Gordon Cranswick estava junto de si. Não fazia ideia do tempo que ele estivera à espera.

 

Continuo a perseguir-te.

Os diversos cursos de instrução frequentados pelo superintendente Leeyes tinham deixado cicatrizes tão profundas que teriam assombrado os instrutores altamente idóneos que lhos ministraram, se o tivessem sabido.

Como um caracol pegajoso, o superintendente deixava atrás de si um rasto de conceitos imperfeitamente assimilados: não só indicava os sítios por onde ele passava, como constituía um incómodo para os incautos. O último curso a que ele tinha assistido - sobre gestão comercial - não constituía uma excepção a esta regra infeliz.

Que as ideias sofisticadas dos grandes negócios - neste caso "gestão por objectivos" (objectivos: comerciais) pudessem estar relacionadas com a força policial (objectivos: lei e ordem) era um facto duvidoso. Naturalmente, os organizadores do curso, bem capazes de incluir potenciais chefes da Polícia, não faziam cavalo de batalha desse ponto.

Como o ponto forte da sua conversa recaía nas formas de medição, viam-se - de vez em quando - a braços com dificuldades. A medição do sucesso comercial exige apenas capacidade de contar. A experiência policial nem sempre confirmava tal facto. Como qualquer Secretaria do Interior sabe, a medição do socesso do trabalho policial exige uma judiciosa mistura de fé, esperança e caridade.

Tinha havido um outro aspecto do curso de gestão que muito tinha agradado aos professores. Era a chamada análise crítica do percurso, e tinha impressionado profundamente o superintendente Leeyes.

Tinha tentado explicá-lo a Sloan.

- É uma grande ideia. Estuda-se a ordem devida para cada coisa antes de se começar a fazer seja o que for.

Sloan tinha prestado alguma atenção. O superintendente era dado a instituir novas ideias na esquadra sem avisar ninguém, e não era mau estar preparado.

- Assim - continuou Leeyes cheio de entusiasmo-, não se perde tempo a percorrer outra vez o mesmo caminho.

Sloan tinha sido moderado na sua reacção. Nada era assim tão simples.

- O que nos resta - explicara o entusiasta - é decidir o que é preciso fazer, e depois estudar a melhor ordem para o fazer.

Sloan pousou o auscultador no descanso depois de falar com Fenella Tindall, e tentou fazer precisamente isso. Não era fácil. Aquilo que poderia passar por boa organização numa fábrica de bolachas, talvez não fosse o melhor curso de acção numa caça ao assassino.

Havia um par de pregadores de esmeraldas e diamantes inexplicáveis - um par de pregadores de esmeraldas e diamantes que, afinal, não tinham constituído um presente de aniversário para Fenella Tindall. E, se o recibo que tinha no bolso fosse de fiar, a última pessoa em poder de quem tinham estado era Richard Mallory Tindall.

Havia um relatório secreto sobre a United Mellemetics sobre o qual se podia dizer mais ou menos o mesmo. Inexplicável e em poder de Richard Mallory Tindall.

Havia um cavalheiro italiano desconhecido - e não se poderia, pensou Sloan contrariado, encontrar uma frase mais sinistra que aquela. Ele e a sua mulher, Margaret, eram conscienciosos visitantes de museus e galerias de arte. "Um cavalheiro italiano desconhecido" parecia-lhe o título de um quadro do Renascimento. De qualquer modo, fosse ele quem fosse, tinha sido suficientemente descuidado para perder o avião na noite anterior - a noite em que Richard Tindall morrera. Sloan ainda não sabia ao certo se deveria ou não preocupar-se com Giuseppe Mardoni.

Havia - ou antes não havia - Gordon Cranswick, curioso pela sua ansiedade em comprar a Struthers e Tindall o mais rapidamente possível - uma ansiedade que parecia datar apenas da tarde do dia anterior. Mr. Gordon Cranswick teria que... - Sloan desenterrou outra frase frequentemente ouvida e proveniente do curso de gestão do superintendente-... Mr. Cranswick teria nitidamente que ser estudado em profundidade.

Sir Digby Wellow era outra personalidade que se encontrava numa espécie de limbo inatingível. Ninguém da sua firma sabia onde ele se encontrava e a Polícia de Luston também não o encontrava. Sloan estava muito interessado em falar com Sir Digby Wellow.

Havia Paul Blake, o jovem bem-parecido que não tinha em ordem o trabalho do dia anterior. Era aquele que, segundo tinha dito Mrs. Turvey, estava de olho na grande oportunidade. Sloan recordou a si próprio, azedamente, que isso não se poderia propriamente considerar uma característica puramente criminosa.

Havia um homem chamado Charles Osborne, que naquele momento não conseguia encontrar e que também não tinha estado presente à hora do almoço do dia anterior.

E havia Fenella Tindall que, se não sabia a quem se destinavam os pregadores de esmeraldas e diamantes - ou ele, Sloan, nascido e criado em Calleshire, era holandês.

E na aldeia de Constante Parva havia alguém que nada tinha a ver com o falecido Richard Mallory Tindall, e que, naquele momento, estava a mergulhar a pena em vitríolo puro, para consternação de toda a gente, mas especialmente das pessoas sensíveis.

O presidente da Câmara - Sloan endireitou os ombros inconscientemente - pelo menos sabia onde entrava o presidente da Câmara e os seus pequenos problemas, em qualquer análise crítica de percurso, destinada a explicar a súbita desaparição de Richard Tindall.

E depois havia o próprio Richard Tindall, assassinado por alguém na torre da igreja, e cujo fim solitário havia sido maquinado pela calada da noite.

Sloan deteve-se para apreciar a situação. Maquinado.

Pensando bem, seria preciso um técnico, talvez um engenheiro, para dispor o legado Fitton em tal posição que ele pudesse cair sobre Richard Tindall a uma determinada hora e num determinado local - quando estava estendido perto dele - numa altura em que não estava ninguém lá para o empurrar.

Anotou a ideia e depois pôs em acção o seu plano de campanha.

Fenella sobressaltou-se.

- Gostaria de ter uma conversa consigo, Miss Tindall.

- Tenho que ir à morgue, Mr. Cranswick. - Pelo menos agora ele era menos peremptório.

- Oh, compreendo!... - Fez uma pausa e depois um gesto com a mão. - Sinto muito o que... hã... o que sucedeu.

Ela retesou-se.

Era outra das coisas que tinha de suportar. Os pêsames. Não estava bem certa de conseguir aguentá-los, para além de tudo o que já tinha suportado.

Uma frase de Shakespeare veio-lhe à mente sem ser invocada. Algo apropriado, evidentemente. Ele era sempre apropriado. Nisso consistia o seu génio. Como era o verso?

Ninguém me fale de consolo.

Surpreendida, constatou que devia tê-lo dito em voz alta.

Gordon Cranswick também pareceu ficar surpreendido.

- Hã... certo. Certo. Peço desculpa. Só posso ser um Intruso, numa hora destas... - Parecia aguardar qualquer coisa, mas Fenella nada mais disse, de modo que ele apressou-se a prosseguir. - Numa situação normal, acredite, não viria incomodá-la. Deve estar a perguntar a si própria porquê...

Fenella inclinou a cabeça num gesto que, segundo esperava, parecesse revelar um interesse polido.

- É por causa da firma do seu pai, Miss Tindall.

- Queira dizer.

- Acho que deve ficar a saber que ontem à tarde ele me disse que afinal ma venderia.

- Afinal?

O homem pigarreou de forma portentosa.

- A Cranswick Processing está interessada na Struthers e Tindall há algum tempo. Andávamos a sondá-la.

Aquilo soava-lhe, pensou Fenella um pouco desvairadamente, como um casamento à italiana.

- Era um movimento natural nesta fase do nosso desenvolvimento - disse Gordon Cranswick, sem se aperceber do caminho que seguiam os pensamentos dela.

(Tal e qual um casamento à italiana, concluiu Fenella.)

- O meu Conselho apoiava-me, evidentemente. [Com os pais e tudo.)

- Aconselhámo-nos sobre os aspectos financeiros, naturalmente.

(Também faziam isso nos casamentos italianos. Em primeiro lugar. Naturalmente.)

- E as perspectivas a longo prazo pareciam-nos boas.

(Não se começavam as negociações em Itália a menos que eles pudessem ser felizes no futuro.)

- E já tínhamos (pela nossa parte, pelo menos) estudado as ramificações de qualquer... hã... união.

(Os sogros.)

- E os nossos solicitadores estavam preparados para, em qualquer altura, se reunirem com a Struthers e Tindall.

(O intermediário honesto?)

- Parece - prosseguiu Cranswick convictamente - que os resultados seriam mutuamente vantajosos.

Fenella assentiu com um gesto da cabeça.

As pessoas falavam sempre em vantagens mútuas quando, no fundo, queriam dizer que sairiam beneficiadas e não lhes interessava nada se os outros sairiam ou não.

- Repare - acrescentou o homem de negócios, prudentemente- que a Cranswick Processing tem alguns compromissos anteriores que teriam de ser tomados em consideração.

(Num contrato de casamento à italiana seriam as contas do médico do tio-avô Mauro.)

- E estou certo de que a Struthers e Tindall também os terá.

(E, quanto à outra família, o primo Luigi que não era muito certo da cabeça.)

- Evidentemente - Gordon Cranswick inclinou a cabeça Inquisitivamente -, talvez não sejamos os únicos em campo.

(Na Itália era costume verificar primeiro se haveria outros pretendentes.)

- isso torna as coisas diferentes, evidentemente. (Na Itália também.)

Apercebeu-se então de que Gordon Cranswick a fitava, desta vez, como se aguardasse uma resposta positiva.

- Hã... peço desculpa. - Principiou. - Estava a pensar noutra coisa. Estava o senhor a dizer que tinha sido combinado um casamento...

Gordon Cranswick cravou os olhos nela.

- Estava a falar de uma tomada de posse, Miss Tindall. Da Struthers e Tindall.

- Pois era. Tem razão. - Controlou-se. - O meu pai não me tinha falado da hipótese, Mr. Cranswick, de vender a Struthers e Tindall fosse a quem fosse.

No dia anterior talvez tivesse.tido energia emocional para se sentir magoada e irritada por causa disso. Mas ontem estava muito, muito longe de hoje - mais longe do que ela teria pensado ser possível -, mais longe do que a distância entre o Palazzo Trallanti em Roma e a Dower House de Cleete. O seu espírito abarcava com grande facilidade essa diferença no espaço. Hoje - o hoje que estava tão longe de ontem em tempo-, hoje constatava que não podia gastar mais sentimentos.

- Ele disse-me sempre que não - respondeu-lhe francamente o homem de negócios - até ontem à tarde. Depois mudou de ideias e disse-me que assinava hoje o contrato. Deve ter sido praticamente a última coisa que ele fez antes de... antes de...

- Não foi - disse Fenella severamente, com um par de pregadores de esmeraldas e diamantes a atravessar-lhe de novo o espírito.

- Oh? De qualquer modo, é por isso que estou aqui. E agora - prosseguiu cortesmente -, preciso de saber com quem devo tratar. Compreende a situação, não compreende, Miss Tindall?

As mãos de Fenella subiram até ao colar de contas brancas. Como continuava a citação? Havia uma passagem depois daquelas palavras sobre o consolo, que se recordava de ter de aprender também.

Havia muito tempo, numa outra existência, quando não tinha cuidados. Numa sala de aula caiada, aí tinha aprendido, com uma professora que - compreendia-o agora - provavelmente não era tão ressequida como lhe parecia - quando toda a aula se encontrava tão longe da vida e tão amimada como as jovens abelhas-rainhas numa colmeia.

As aulas sobre Shakespeare faziam parte de algo irrelevante a que se chamava Cultura Geral.

Ouviu um súbito guinchar de pneus sobre o caminho de cascalho. Fenella espreitou pela janela e viu o guarda Hepple sair para cumprimentar outro polícia. E havia uma mulher-polícia sentada ao lado do condutor.

Talvez, pensou Fenella, apreciar Shakespeare - o homem - constituísse uma fase do desenvolvimento de toda a gente. Na altura em que ele se tornava importante, tinha-se deixado de ser jovem e inocente.

Aquela peça - em que se falava da falta de consolo - chamava-se O Rei Ricardo II. Tudo estava agora a voltar-lhe à memória. Podia ouvir de novo a voz da professora de inglês, enquanto as palavras se precipitavam na sua mente e o resto da citação lhe veio à memória. Vamos escolher os executores e falar de testamentos.

A certa altura, o guarda Hepple veio anunciar-lhe que tinha chegado o carro para a levar à morgue - e encontrou Gordon Cranswick ali.

E quando Gordon Cranswick insistiu, regressando um pouco ao seu tom anterior:

- Eu quero comprar a companhia, Miss Tindall. Já. E não aceito uma resposta negativa. O seu pai disse que ma vendia e tanto me basta.

- Mas, Mr. Cranswick - disse ela-, como é que eu sei isso?

A busca - à maneira da Polícia - às instalações da Struthers e Tindall no Wellgate de Berebury estava a ser efectuada pelo sargento Wharton, um corpulento homem de meia-idade. A sua equipa tinha vindo da igreja de Randall's Bridge.

Não era diferente de outras buscas efectuadas noutros lugares.

Quando terminou, o sargento Wharton olhou desapai-xonadamente para a colheita de coisas incongruentes que tinham sido encontradas.

Como a matéria de leitura de um dos técnicos do Departamento de Testes que, aparentemente, se interessava por noções de musculação. Wharton observou o homem de alto a baixo e concluiu que não serviria para a Polícia, pelo menos antes de muito mais assinaturas da revista.

Ou a pequena tablete de chocolate que Miss Holroyd guardava numa gaveta com a clara inscrição de "Papel Químico".

Ou o problema de palavras cruzadas - quase resolvido - encontrado numa outra secretária.

Parte daquelas coisas interessava-o.

Como os livros sobre os quais se sentara o contabilista, como um veado acossado. Wharton tinha-os confiscado, apesar disso - sem ficar indevidamente impressionado. Segundo a sua experiência, os contabilistas tinham tendência para defender com a vida números que toda a gente poderia consultar quando da publicação das folhas de balanço: e seria preciso outro contabilista para constatar se havia alguma coisa a esconder ou se aquele comportamento não passava de um hábito.

A fotocópia interessava-o.

Era de uma das patentes da Struthers e Tindall e tinha sido cuidadosamente dobrada e introduzida na lista telefónica do gabinete de Paul Blake. O sargento Wharton felicitou o seu homem por a ter encontrado.

E Paul Blake, apesar dos seus protestos veementes, sabia daquilo.

Exagero de tom, pensou Wharton.

A experiência em que Henry Pysden estava a trabalhar interessava-o. Era sobre o magnésio da água do mar, ou pelo menos era o que ele dizia. Wharton seguiu as suas instruções e anotou o número do modelo e o nome do fabricante da máquina de registo do tempo ligado ao aparelho. E havia aqueles trocos que o paquete tinha metido na algibeira. Mas, segundo ele insistia, só o tinha feito por precaução, visto que havia por ali tantos polícias.

- Deixa-te disso, rapaz - dissera Wharton com dignidade-, ou pego numa lupa e vou esquadrinhar aquela motorizada que está lá fora. É tua, segundo presumo?

O rapaz tinha empalidecido e ficado reduzido ao silêncio e Wharton prosseguira majestosamente o seu caminho.

O encarregado dos Testes ficou sem fala perante a interrupção dos trabalhos, mas mostrou-se loquaz acerca da Polícia, do calor, da United Mellemetics...

Wharton começou a espremê-lo em relação à United Mellemetics.

- Ele - o encarregado - não percebia a causa de tanta preocupação. Tinha feito algumas experiências, com base em instruções pormenorizadas de Mr. Tindall, na semana anterior. Estavam relacionadas com a resistência de tubos, a sua força de tracção, testes de ductilidade sob determinadas condições específicas - coisas desse género. Os testes tinham sido devidamente efectuados e os resultados tinham sido enviados a Mr. Tindall.

Só voltara a ouvir falar do assunto nessa manhã quando Mr. Pysden tinha aparecido a dizer que alguém tinha perdido o dossier. Tinha sido pouco antes de receberem as tristes notícias acerca de Mr. Tindall. Bom, ele, o encarregado, tinha realmente devolvido o material ao pobre Mr. Tindall; mas agora ele não podia confirmar, pois não?

Quando?

Na véspera, de manhã. O encarregado não hesitou. Na quarta-feira. Tinha posto todos os trabalhos e resultados na secretária de Mr. Tindall, lá isso tinha, e ele próprio o fizera, e se havia alguém que dissesse o contrário, que viesse dizer-lho na cara.

Wharton, instruído por Sloan, perguntou em que fase Paul Blake tinha verificado os cálculos.

O encarregado tomou uma expressão que poderia ser reconhecida em todo o mundo como a de qualquer subalterno experiente a quem foi dada uma oportunidade de comentar a eficiência ou incapacidade de um jovem superior. Quase chegou a torná-la, na verdade, mas a prudência sobrepôs-se, erguendo a cabeça cuidadosamente.

- Mr. Paul Blake - disse distintamente - veio aos Testes na segunda-feira e conferiu os nossos cálculos, e também alguns que o próprio Mr. Tindall tinha feito.

O sargento Wharton olhou para o encarregado de homem para homem.

- Tudo bem por lá, segundo presumo.

- Senão, eu gostaria de saber porquê - disse o encarregado tranquilamente.

O sargento Wharton voltou ao gabinete de Henry Pys-den.

Uma coisa se tornara evidente através da busca.

A United Mellemetics até podia não existir, a avaliar pelos vestígios físicos que deixara na Struthers e Tindall.

Pegou na sua agenda e disse a Henry Pysden:

- Vou começar por si, se não se importa. Preciso de saber onde se encontrava exactamente entre as dez e meia da noite passada e as duas horas da madrugada de hoje.

 

Que jazia em total entorpecimento.

Fenella Tindall não estava preocupada com o estômago. Pelo menos do modo por que se preocupara o agente Crosby.

No seu caso, a hora do almoço tinha chegado e passado sem ser marcada nem pela fome nem pela alimentação. Se sentia alguma coisa, era apenas um ligeiro enjoo.

Devia ser do choiro dos anti-sépticos na morgue.

Já se tinha esquecido por completo da viagem desde a Dower House em Cleete até à morgue da Polícia em Berebury. Tinha feito o percurso em silêncio, ao lado de uma mulher-polícia experiente que achara mais conveniente não tentar distraí-la com palavras amáveis.

E tinha entrado na morgue envolta numa tal aura de incredulidade que era como se se encontrasse no exterior de si própria - olhando desapaixonadamente para uma rapariga magra, de cabelos cor de cobre, que envergava um vestido castanho e usava um colar de contas brancas, e que saía do carro e se dirigia para a porta. Poderia ter sido qualquer outra pessoa - que não Fenella Tindall-, de tal modo se sentia desligada de si própria.

O assistente da morgue disse-lhe:

- Por aqui, miss - num tom absolutamente terra-a-terra. Fenella seguiu-o.

Quando o fez, um jovem alto e bem-parecido saiu de trás do portal.

A mulher-polícia, impassível, viu-o colocar-se ao lado de Fenella.

- Paul! - Fenella deteve-se. - Foi muito amável em vir cá.

Paul Blake fez um gesto desajeitado com uma das mãos e, com a outra, dirigiu-a suavemente ao longo do corredor, atrás do assistente da morgue.

- Sinto muito tudo isto - disse. - Achei que devia aparecer.

A figura do assistente da morgue, na sua bata branca, desapareceu através de uma passagem e penetrou na porta que se lhe seguia. O cheiro a desinfectante tornou-se subitamente mais forte, invadindo tudo à frente deles, enquanto o seguiam.

- Oh!... - Fenella cedeu a uma momentânea sensação de angústia, ao olhar para a figura coberta por lençóis brancos.

Paul Blake colocou-se por detrás de Fenella e murmurou:

- Não demora mais de um minuto.

- Agora, miss - o homem baixou a voz-, se quiser fazer o favor de ver...

Não precisava de ter-se preocupado em falar em voz mais baixa. De qualquer modo Fenella não estava a ouvi-lo. Estava a pensar noutra coisa.

Em Itália.

Tinha visto a morte lá, mas tudo era diferente. Não clínico e anti-séptico como ali. Nada de coberturas brancas e limpas que, enganadoramente, sugeriam a vida e não a morte. Em Itália, a morte era negra e medieval. Os homens próximos dela - a Misericórdia - estavam vestidos com longas túnicas negras e usavam capuzes que apenas lhes descobriam os olhos. Era um trajo que vinha dos tempos da peste.

Olhou para o rosto que o assistente da morgue lhe mostrava e assentiu com um gesto da cabeça.

- É o meu pai.

Quase lhe apetecia dizer que era o avô, o homem que tinha visto - a morte tinha acrescentado uma geração ao rosto do seu pai.

- Richard Mallory Tindall - disse numa voz tão firme quanto conseguiu.

- Podemos ir-nos embora agora - disse Paul Blake.

Na realidade, o rosto para o qual Fenella não queria olhar era o do assistente da morgue.

Percebia agora o motivo por que aqueles homens da Misericórdia - a Irmandade da Misericórdia - usavam a cara tapada, mostrando apenas os olhos. Assim, as pessoas enlutadas não viam qualquer rosto em volta do falecido - nenhum rosto que ficasse associado para sempre a momentos como aquele. Assim ter-lhe-ia sido poupada a recordação do assistente da morgue encaminhando-os, com a sua voz estrídula, de regresso ao pequeno escritório.

- Só mais uma coisa, miss, e depois acabámos. A pequena questão dos despojos dele.

Ela estremeceu involuntariamente ao ouvi-lo, e depois recordou-se.

Os mortos não tinham pertences, tinham despojos.

Apercebeu-se de que ele estava a pedir-lhe que identificasse alguns objectos colocados numa fila ordenada em cima de uma mesa. Havia alguns trocos, as chaves de casa, uma carteira, algumas notas, uma régua de cálculo, uma caneta e um lápis, dois lenços...

- Assine aqui, miss, declarando que estes objectos eram dele.

Esboçou um leve movimento de recuo diante do impresso que lhe estendiam.

- Não está tudo aqui. Falta a agenda dele. É pequena, de cabedal. Fui eu que lha dei. Andava sempre com ela.

Sempre.

O assistente da morgue emitiu um ruído de sucção.

- Foi para o inspector, miss. Ele queria que lha mandássemos com muita urgência,

O agente Crosby pegou na agenda - devidamente observada quanto a impressões digitais - e entregou-a ao inspector Sloan.

Sloan pegou no pequeno livro de capa de cabedal e abriu-o na quarta-feira, dia 16 de Julho.

Era o dia anterior àquele em que se encontravam.

Teria sido apenas no dia anterior?

O seu olhar desviou-se involuntariamente para o sábado, 19 de Julho. Tinha essa data gravada no espírito.

O Dia da Exposição.

Olhou através da janela da esquadra e suspirou. O sol forte iria fazer desabrochar cedo de mais a sua Princesa Grace de Mónaco. Era uma rosa perfeita, evidentemente, mas se aquele calor persistisse, iria ser uma rosa perfeita na sexta-feira, não no sábado.

- Se está à procura da quarta-feira, senhor Inspector... - Crosby começava a ficar inquieto.

Sloan desviou o olhar de novo para a página da esquerda. Havia apenas um registo no pequeno espaço oblongo correspondente à data. Era muito breve.

Dizia: "G. 12.30."

- Isto vai ajudar-nos muito, Crosby. G... - disse, pensativamente-... G de Giuseppe. que lhe parece?

O superintendente, tinha a certeza, estava a apostar forte em Fenella.

- Ou G de Gordon? - contrapôs Crosby inteligentemente. - É o nome daquele tal Cranswick, não é?

- Ou G de Osborne?- disse Sloan.

- G de Osborne, senhor Inspector?

- George Osborne. Aquele que tem a mulher e um invento.

- Oh! -Crosby baixou de tom. - Tinha-me esquecido desse.

- Um bom polícia - recordou-lhe Sloan - não se pode esquecer de nada.

- Pois não, senhor Inspector.

- Nunca.

- Nunca, senhor Inspector.

Sloan pousou a agenda e aproximou-se da parede, onde estava pendurado um mapa de Calleshire em grande escala. Crosby foi juntar-se-lhe.

- Sabemos, senhor Inspector - disse ansiosamente-, que ele saiu do escritório ao meio-dia.

- Miss Holroyd disse que ele saiu - murmurou Sloan, sem que ele lhe prestasse atenção-, o que não é exactamente a mesma coisa.

- Isso dá-lhe meia hora - prosseguiu Crosby, sem perceber a observação.

- Quinze milhas em estrada - disse Sloan.

- Vinte, senhor Inspector. De certeza.

- Numa carrinha velha - recordou-lhe Sloan. - Não num carro da Polícia bem afinado com um Crosby ao volante.

- Quinze, então - acedeu Crosby.

- Portanto, onde é que isso nos leva? Não os levava muito longe.

Maomé tinha decidido ir até à montanha. O guarda Hepple tinha sido muito persuasivo. Por alguma razão ele dominava a arte da vida tranquila. E a primeira regra para uma vida tranquila é conseguir que tudo se passe noutro sítio. Em qualquer outro sítio.

Foi assim que Mr. Gordon Cranswick se encontrou a ser entrevistado pelo inspector Sloan na Esquadra da Polícia de Berebury. Neste caso "ser entrevistado" era uma espécie de eufemismo. Por vezes parecia que a bota estava no pé errado.

Mr. Gordon Cranswick, Presidente e Director-Geral da Cranswick (Processing) Limited, não só estava firmemente instalado num dos cadeirões do gabinete de Sloan, como também fazia questão de demonstrar que só sairia dali se fosse ele a tomar a decisão de se ir embora. Estava, efectivamente, muito ocupado em demonstrar que, quando Mr. Gordon Cranswick estava presente, era Mr. Gordon Cranswick quem tomava as decisões, com ou sem inspectores da Polícia à sua volta.

- Então, o que é que temos, afinal? - inquiriu, mal pôs os olhos em Sloan.

- A morte de Richard Tindall - disse Sloan suavemente. Perguntou então a Cranswick o que o tinha levado a

Cleete.

- O que é que me levou? Tindall, evidentemente. Bom, a Struthers e Tindall, para ser mais exacto.

- A firma e não o homem?

- É na firma que eu estou interessado. Literalmente. Já há bastante tempo, é exactamente aquilo de que a Cranswick precisa... o tipo de negócios deles apoiariam perfeitamente o nosso tipo de negócios.

- Que é...? - inquiriu Sloan.

- O processamento. - Fez um gesto com a mão. - Oh!, eu sei que processamento encobre uma multidão de pecados, mas no caso da Cranswick significa que pegamos numa patente pertencente a um cliente e fazemos imensa coisa a partir dela.

Sloan ficou em guarda:

- Imensa coisa?

- Desenvolvimento, produção e venda. A Struthers e Tindall encarrega-se dos testes iniciais.

- E assim completar-se-iam ambas muito bem. Cranswick acenou vigorosamente com a cabeça.

- Apercebemo-nos disso quando fizemos a conta ao que estávamos a pagar-lhes pelos seus estudos de viabilidade, etc.

- E então?

- Então decidi comprá-los. - Cranswick recostou-se na cadeira. - Não posso dizer que tenha sido fácil.

- Sim?

- A princípio Tindall não estava muito interessado em vender, mas depois a mulher dele morreu, e as coisas modificaram-se um pouco.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Era de esperar.

- E depois disso - o homem de negócios agitou-se irritavelmente na sua cadeira - apareceu outra coisa.

- O que foi?

- Outro comprador.

- Quem?

- Tindall não me quis dizer. Disse-me apenas que tinha tido outra oferta melhor que a minha.

- Acreditou nele? Cranswick encolheu os ombros.

- Porque não? Podia sempre prová-lo se o deixasse ficar com o outro, desde que eu o quisesse.

- Mas não queria?

- Não. Eu queria a Struthers e Tindall e sabia que teria de pagar por ela. É uma boa firma, bem vê. Sólida. E não ia ficar com ela por duas cantigas.

- Então havia mais quem a quisesse.

- E muito, devo dizer, pelo que estavam dispostos a oferecer. Contudo eu achei que se ela valia isso para eles, também o valia para mim.

- Certo - disse Sloan. As pessoas escreviam livros sobre economia política, mas, no final, as decisões resultavam de factos comezinhos como aquele, independentemente do que os mestres diziam. - E no final a sua oferta foi a melhor?

- Não - disse Gordon Cranswick inesperadamente-, não foi. Eles (quem quer que fossem) estavam dispostos a oferecer mais que eu.

- Mas...

- Mas - disse ele pesadamente - Tindall já não estava disposto a vender-lhes a firma. Disse que tinha descoberto qualquer coisa sobre os métodos deles de que não gostava e que, se a minha oferta ainda estivesse de pé, a aceitava.

- Quando?

- Na terça-feira à tarde.

- Onde?

- Ah! - Gordon Cranswick inclinou-se para a frente.- Foi assim. Ele telefonou-me de uma cabina e sugeriu uma reunião sossegada num sítio simples onde ninguém nos conhecesse.

- Ao meio-dia e meia de ontem?

- Exactamente. Na "Toca do Dick". É um café de camionistas a meio da estrada de Calleford, a caminho de Luston.

- Nós conhecemo-lo - disse Sloan. Todos os polícias conheciam os cafés de camionistas da sua área.

- Por acaso - disse Sloan, um pouco surpreendido - a comida era bastante boa.

- Tem de ser - disse Sloan -, senão os clientes votam com as rodas.

- O quê? Oh, sim, evidentemente!... Bom, foi aí que Richard Tindall me disse que estava decidido a pôr os outros de parte e vender-me a firma pela minha última oferta e nas condições que eu impunha.

- Que condições?

- Eu não queria ficar com as mãos atadas por causa de qualquer estúpido acordo que me obrigasse a conservar pessoal. Eu sempre dirigi a Cranswick à minha maneira e se o pessoal da Struthers e Tindall não estivesse satisfeito, teria que ir-se embora.

- Quanto a essas outras pessoas que queriam comprar a firma, ele não lhe disse quem eram nem quais eram os métodos de que não gostava?

Cranswick franziu a testa.

- Não propriamente, mas disse-me que não me preocupasse. Ia tratar com eles antes de sair, - E depois?

- Depois fui à cidade falar com os meus banqueiros e solicitadores e consegui voltar aqui logo de manhã para assinar o contrato.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça e dispôs a agenda numa posição um pouco mais proeminente.

- E agora, se não se importa, diga-me onde se encontrava entre as dez e meia da noite passada e as duas horas da madrugada de hoje...

A chamada telefónica que Sloan recebeu a seguir veio da morgue.

O Dr. Dabbe estava pronto para o atender. Tratando-se do Dr. Dabbe devia estar pronto e à espera.

- Já iniciei parte do trabalho de fundo, Sloan. Aquele sangue no chão, por exemplo, era realmente do Tindall. Escorreu enquanto ele estava estendido no chão. Enquanto estava vivo, evidentemente. Não houve mais sangue depois da queda da estátua. Foi ela que o matou.

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça.

- Calculo que ele tenha sido agredido a um metro ou dois da escultura (talvez na soleira da porta] e depois arrastado pelo chão até ficar praticamente junto da escultura. Quanto àquilo com que foi agredido...

- Continue.

- Os rebordos da ferida estavam mal definidos mas, fosse o que fosse, foi suficiente para o pôr K. O., desculpe, para o pôr inconsciente... tenho que falar com cuidado com gente como vocês...

Sloan sorriu. Havia o inglês, o inglês da Polícia e os termos médicos, e ninguém sabia isso melhor que o patologista.

-... por exemplo, uma meia velha cheia de areia... vou procurar grãos de areia, agora. E o golpe foi certeiro.

- Só um?

O patologista assentiu com um gesto da cabeça.

- E por detrás.

- Uma arma - observou Sloan - vinha a calhar.

- Nada melhor junto do júri - concordou o médico. - E agora, Sloan, acho que lhe interessaria uma aritmética mental que tenho estado a fazer. Álgebra, na verdade.

- Oh, sim, Doutor!-Sloan foi prudente na sua reacção, desta vez. Trabalho da Polícia era uma coisa. Álgebra era outra muito diferente.

- Pode resolver-se qualquer equação, desde que se conheçam os valores, evidentemente. - Sim, Doutor. - Concordou com bastante prontidão.

- Podem resolver-se algumas com uma incógnita.

- Estou certo que sim, Doutor.

- E podem resolver-se algumas com duas ou mais incógnitas.

- Podem, Doutor?

- A nossa equação, Sloan - disse o patologista, apontando com a mão para o monte de papéis em que Burns, o seu assistente, estava a trabalhar-, refere-se à hora da morte de Richard Mallory Tindall.

- Óptimo.

- Os factores que conhecemos são aquilo que o falecido comeu às sete e meia de ontem...

Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Aquilo não era propriamente uma aritmética ofuscante.

-... confirmado por Mrs. Mareia Osborne, além de uma bebida, a hora a que ele a tomou e o tamanho da bebida. - O Dr. Dabbe arqueou as sobrancelhas apreciativamente. - A propósito de comida, a nossa Mrs. Osborne é um bom prato, não acha?

- Não sei, Doutor - disse Sloan com certa rigidez.- Mandei lá o meu agente.

- Pouca sorte. Contudo, terá de lá voltar, penso eu. O marido dela ainda não apareceu em casa durante a hora do almoço, sabia?

- Sabia.

- Desculpe. Esqueci-me que tinha fechado a caça aos suspeitos. São todos vossos, evidentemente. Onde estava eu?

- A fazer uma equação.

- Oh, sim! O alimento mais o tempo passado depois da sua ingestão, equacionados com o estado da digestão do morto, dá-nos a hora da morte. - O Dr. Dabbe pôs-se a brincar com um lápis. - E se isso não bastar, temos o estado do tecido cerebral. É sempre bastante bom.

- Sempre?

- Dados esses factores - disse o patologista, ignorando a observação-, bastava-me trabalhar com o estômago e o cérebro e uma ou duas outras coisas, e registar os dados, e é canja.

- A sua equação?

- Exactamente. Fica-se muito pertinho da hora da morte. Sloan voltou as páginas da sua agenda até chegar ao registo da conversa com as duas solteironas na Vivenda Vésper, perto do adro da igreja.

- Eu estaria muito longe, Doutor, se dissesse que foi por volta das duas horas da madrugada?

- Estaria - respondeu o Dr. Dabbe placidamente. - Muito longe.

- Muito?

- A duas horas e meia de distância. Dê-me esses papéis, Burns.

Sloan fitou-o.

- Duas horas e meia? Quer dizer que a calcula...

- Segundo a minha equação - disse o patologista, ainda amavelmente-, que o Burns acaba de conferir, e que estou pronto a apresentar em tribunal, calculo a hora da morte muito perto das onze e meia da noite passada.

- Perto a que ponto? - inquiriu Sloan.

- Perto como o diabo - disse o patologista graficamente.

 

Ele suspeitou de mim erradamente.

Havia um tom queixoso na voz do agente Crosby.

- O que eu não compreendo, senhor Inspector, é porque é que o tipo que fez aquilo...

- Diga. - Era curioso, reflectiu Sloan, notar como a palavra "assassínio" se atravessava na garganta. Ninguém a utilizava a menos que fosse indispensável. Nem mesmo Crosby.

Nem mesmo agora que tinha sido abolida a condenação à morte... e havia a condenação por toda a vida para a substituir. Ou antes, a condenação a um quarto de vida. Já não se lhe podia chamar vida...

Sloan forçou-se a deixar de pensar em condenações. Ficava demasiado deprimido. Havia muito que tinham deixado de falar a esse respeito, na esquadra.

- Que quer dizer, Crosby?

- Porque é que ele não o agrediu com um pouco mais de força da primeira vez?

- Não sei.

- Portanto, o que o tipo fez, senhor Inspector, foi preparar as coisas de modo que aquele enorme pedaço de pedra caísse enquanto Tindall estava estendido ao comprido no sítio mais apropriado, por baixo dele?

- Foi isso mesmo, Crosby.

Afinal talvez houvesse algo de louvável naquela maneira simplista de abordar o problema.

- Portanto - disse Crosby, preparandb-se para voltar à direita-, é apenas um caso de como e quem, não é assim, senhor Inspector?

- Não esforce tanto a cabeça.

- Oh!, e porquê? - acrescentou o agente, com seriedade.

- Falando estritamente - emendou-o Sloan com Justiça, fazendo desaparecer a nota de sarcasmo tão rapidamente quanto a tinha convocado-, suponho que não é preciso saber porquê.

- Não é?

- Mas - acrescentou sardonicamente - o júri gosta de saber.

Sloan recordou-se do corpo sem sangue, esmagado no soalho da torre da igreja e perguntou a si próprio até que ponto iria ser necessário descobrir o motivo daquilo para se compreender o que sucedera. Afastou a imagem imediatamente.

Estava certo de que, entre eles, os cínicos e os psiquiatras seriam capazes de explicar tudo. Era um polícia e já devia saber isso, naquela altura.

O agente estava a falar de novo.

- Ficamos a saber quem, não acha, senhor Inspector, se soubermos porquê?

- Espero bem que sim, Crosby - respondeu pesadamente.- Sem dúvida que espero que sim.

Havia sempre essa hipótese. Talvez, afinal, o rapaz estivesse a aprender qualquer coisa. Sloan coçou o queixo e olhou para as suas notas.

Não constituíam grande ajuda. Eram tão fracas como uma âncora espanhola.

- Por este andar - acrescentou num tom pessimista - vamos ter que pedir a quem o fez que nos dê uma ideia de como o fez, quando o apanharmos.

- Pois, senhor Inspector.

- Porque - já sem falar no porquê -, macacos me mordam, se eu percebo como é que se consegue que uma estátua caia sem estar lá ninguém para a empurrar.

- A janelinha - sugeriu Crosby, muito prestável.

- A janelinha - concordou Sloan. - Aí já nós chegámos.- Alguém encostou aquela escada de mão à parede e enfiou qualquer coisa pela janela que fez cair o legado Fitton do pedestal e depois levou o carro do morto para Cleete.

- Mas não foi o pescador nocturno às duas horas desta madrugada.

- Aproximadamente às dez para as onze - disse Sloan incisivamente - esteve lá alguém a fazer qualquer coisa e já se tinha ido embora às onze, a acreditarmos no testemunho do professor e daquelas duas mulheres malucas, e a vítima morreu aproximadamente às onze e meia...

Teriam que acreditar piamente no Dr. Dabbe - por muito inconveniente que isso fosse - porque toda a gente acreditaria.

- ...quando Gordon Cranswick estava a tomar uma bebida no quarto do seu hotel em Londres, Paul Blake estava aconchegado na sua cama. em casa, Mrs. Osborne aconchegada na cama com Mr. Osborne, o que não constitui prova, e Henry Pysden no seu saco de dormir no laboratório, depois de fazer a sua parte da experiência...

- E de Sir Digby Wellow, Giuseppe Mardoni e Fenella Tindall, não se sabe nada - terminou Crosby.

Sloan olhou para ele com desagrado. Crosby estava cada dia mais parecido com o superintendente.

- Há um ou dois acontecimentos interessantes nas últimas quarenta e oito horas da vida de Richard Tindall, Crosby, que, segundo espero, talvez não tenham escapado inteiramente à sua observação.

- A perda do tal dossier - disse ele imediatamente.- O da United Mellemetics.

- A aquisição - disse Sloan - de um par de pregadores de esmeraldas e diamantes.

- E-interveio Crosby - a decisão dele de vender a firma à Cranswick Processing.

- Além da descoberta de que alguém estava a tentar comprar a firma por métodos que lhe desagradavam. Alguém mais.

- Isso e o facto de se deixar matar - acrescentou Crosby com simplicidade.

Sloan abandonou a via de pensamentos que estava a seguir.

- Não nos podemos esquecer disso, pois não?

Os dois relatórios seguintes referiam-se ambos ao italiano, Giuseppe Mardoni.

Um vinha de Londres.

A Polícia Metropolitana tinha, conforme solicitado, investigado junto da firma que alugara o carro de que ele se tinha servido em Inglaterra. Diziam que o veículo tinha sido devolvido, conforme acordado, no aeroporto. A hora da verificação tinha sido às três horas da madrugada.

O segundo vinha do inspector Harpe e pedia a Sloan que aparecesse, quando passasse por perto do Departamento de Trânsito.

- Talvez esteja a fazê-lo perder tempo - principiou o inspector com característico pessimismo-, mas achei que lhe interessaria conhecer o que dois dos meus rapazes da patrulha descobriram sobre quarta-feira à noite.

- Interessa-me.

- Estavam a conversar um pouco com os tipos da garagem aberta toda a noite na estrada de Calleford... mantêm-se sempre em boas relações com eles.

Era bom que os informadores voluntários da Polícia, que pensavam que o trânsito podia estar separado do trabalho policial, soubessem disso. Esqueciam-se de que o homem é actualmente um animal motorizado.

- A garagem recebeu uma chamada de um cavalheiro estrangeiro na noite passada.

- Recebeu? - reagiu Sloan, alerta. - Que horas eram, posso saber? Eles lembravam-se?

- Claro que se lembravam - disse Harpe ofendido. - Eram mais ou menos onze e meia. Dizem que o tipo estava muito agitado. Por causa de um furo.

- Tinha que apanhar um avião - observou Sloan distraidamente. - Disse que foi um furo?

- Qualquer coisa num pneu. A garagem não fez a reparação. Limitaram-se a trocar o pneu. Colocaram o sobresselente e o homem pôs-se a caminho.

Sloan consultou as suas notas.

- Ele não sabia mudar o pneu? Pensei que ele fosse engenheiro de qualquer coisa... ou, não! Engenheiro de construção civil.

- Não tinha luz para mudar o pneu - disse Harpe.- Não levava lanterna.

Sloan suspirou.

- E onde se passou tudo isso?

O inspector Harpe revirou os olhos expressivamente.

- Precisava de perguntar, Sloan? Foi naquele sítio onde aplicaram o alcatrão de manhã, na estrada de Berebury para Randall's Bridge. É sempre assim quando o Condado decide arranjar as estradas. Furos e pára-brisas estilhaçados durante vários dias. Só problemas.

Sloan acenou rapidamente com a cabeça. Harry Contente não era o único com problemas. Nada mais fácil de inventar que um furo. Alguém da Metropolitana ia ter de passar pela firma alugadora de carros no aeroporto para confirmar se o furo tinha realmente ocorrido ou não passava de um álibi muito conveniente.

- Onze e meia - disse ele - e Fenella Tindall diz que ele a deixou às dez e meia em Cleete. Gostava de saber como ele passou aquela hora.

- Posso dizer-lhe onde - ajudou Harpe. - A caminhar pela estrada de Berebury, na escuridão, em busca de uma cabina telefónica. Estava a umas três milhas de qualquer sítio.

- Não podia arranjar uma boleia?

- Aquela estrada não é propriamente Picadilly Circus depois de escurecer, não lhe parece, Sloan? Seja como for, quem vai dar uma boleia a um estranho àquela hora da noite? Quem sabe se ele se parece com Sweeney Todd?

- Talvez mais com Machiavelli. - Sloan suspirou. Nenhum dos dois sabia como ele era realmente, embora não houvesse coisa que mais desejasse naquele momento do que conhecer Giuseppe Mardoni.- E depois teve que descobrir a quem telefonar.

- Havia uma espécie de manual no carro, com endereços, etc.

- Então ele sabe ler e falar inglês.

- Parece que sim.

- Já calculava. - Sloan acrescentou uma anotação à sua agenda.

Talvez Giuseppe Mardoni se tivesse tornado um pouco menos nebuloso naquele momento, mas ainda continuava na sombra. Toda a gente daquele caso parecia igualmente fora do seu alcance.

Giuseppe Mardoni.

George Osborne.

Sir Digby Wellow.

Pelo menos Gordon Cranswick era agora mais substancial do que antes. Contudo, só Deus sabia para onde teria ido, naquele momento. Para Luston, provavelmente, pensou Sloan sombriamente, para fazer uma oferta à United Mellemetics. Não podiam conservá-lo na esquadra, por muito que o superintendente o desejasse. E Cranswick decerto sabia disso.

- Talvez os tipos do aeroporto tenham qualquer coisa - disse Harry Contente. - Há sempre uma possibilidade.

Mas daquele Jeremias nunca conseguia consolo algum.

- Torna-se difícil, não é? - concordou Harpe, com um jeito melancólico da cabeça. - Como vai andando o caso do Tindall?

- Eu só queria ter - observou Sloan com entusiasmo - uma ideia de como se pode matar um homem sem se estar presente. Meia hora depois de se ter partido.

- Não o deixaram morrer à fome, pois não? - perguntou o inspector de viação com interesse. - Li uma vez um livro sobre um milionário fechado num ginásio com imensa comida. Morreu de fome. Era um grande mistério. O que aqueles indianos fizeram foi içar a cama do tipo uns quinze metros, com roldanas, e depois descê-la outra vez quando ele morreu.

A reacção do superintendente às notícias sobre Mardoni foi imediata, previsível e não desprovida de satisfação.

- Cumplicidade, Sloan. Eu sempre lho disse.

- Hã... com quem. chefe?

- Com a rapariga, evidentemente. Ela leva o carro até Cleete. Ele fica para trás, no adro da igreja, e empurra qualquer coisa pela janela e depois põe-se a caminho do aeroporto.

- E o passeio às duas da madrugada? Andava alguém por ali, chefe.

- Um pescador. Como disseram as duas velhotas. Sloan não disse ao superintendente Leeyes que já tinha mandado Crosby falar com os pescadores da área. Ambos os grupos - O Clube de Água Doce de Calleshire e a Sociedade de Pesca do Rio Calle -para saber se teriam programado concursos nocturnos de pescaria. Ou se sabiam se algum dos seus membros tinha ido pescar às duas da madrugada na quinta-feira.

Nada poderia surpreendê-lo, no que se referia a pescadores. Nada. E não desejava que um dos seus casos pusesse em causa o ciclo de vida das carpas.

Pensando bem, o facto de saber quando fechava a época da pesca ao peixe graúdo não estava longe de Sherlock Holmes e das suas setenta e cinco variedades de perfumes.

- E os outros álibis? - inquiriu Leeyes.

- O de Henry Pysden é o único de ferro forjado. Os dos outros são um pouco... hã... circunstanciais, chefe. Mesmo o de Sir Digby Wellow.

Tinha sido uma conversa um pouco delicada.

E não tinha sido para isso que ele entrara para a Polícia.

Telefonar a uma lady nobre que nunca tinha visto, para lhe perguntar se ela tinha passado a noite com o marido, enquanto Crosby ia tratar de descobrir a vida privada das trutas.

A voz de Lady Wellow era gelada.

- Ouvi-o ressonar de vez em quando, Inspector. Através da parede.

- Hã... sim, claro, minha senhora... hã... milady.

- Temos quartos separados. O meu marido gosta de colchões rijos... por causa da coluna, compreende. Eu gosto dos macios.

Sloan tinha marcado com o lápis o ritmo de uns versos antigos.

Jack Sprat não podia comer gorduras

A mulher dele não comia carnes magras.

Porque seria que encontrava canções infantis em toda a parte para onde se voltava, naquele dia?

Não que houvesse alguma coisa de infantil no tom de Lady Wellow. Era irónico, desinteressado.

- Está a querer dizer-me, Inspector - perguntara ela-, que Sir Digby passou a noite em qualquer outro lado?

- Não, milady.

E assim, entre ambos, como se pode ver, Limitavam-se a lamber o prato vazio.

- Só queria ter a certeza de que ele passou a noite em Luston.

- Compreendo. Resmungou quando descalçou os sapatos. Faz sempre isso. Também o ouvi resmungar.

- Quando?

- Por volta da meia-noite.

Aquilo também não constituía uma prova, evidentemente. Pelo menos por enquanto. Embora brevemente pudesse constituir. Se os reformadores conseguissem o que pretendiam.

Quando um marido pudesse testemunhar contra a mulher e vice-versa.

Quando não se conseguisse distinguir o Juízo Criminal do Juízo Matrimonial.

Não sabia se aquilo seria ou não um golpe para o Movimento Feminista.

O superintendente tinha recomeçado. Tinha uma folha de papel na mão.

- Os tipos da grafologia dizem que estas cartas de Constance Parva são todas escritas pela mesma pessoa.

- Até agora - disse Sloan. - Mas não vai continuar assim por muito tempo.

Não havia coisa mais contagiosa que uma pena envenenada. Uma vez lançado o contágio, toda a gente contraía a doença. Os números anteriores multiplicar-se-iam. Pálidas imitações - e outras não tão pálidas - circulariam pela aldeia, dentro em breve, espalhando sementes tão depressa como a Erva-de-Santo-Estêvão.

- E quanto àquele sapato, Sloan...

- O do campo de golfe?

- Encontraram o par.

- Onde?

- Por detrás do quarto campo.

- Mas nada mais?

- Ainda não - disse Leeyes em tom agoirento.

As duas mensagens seguintes eram ambas para o inspector Sloan.

Ambas se referiam ao café de camionistas nos arredores de Berebury perto do cruzamento das estradas de Luston e Calleford. Chamavam-lhe simplesmente Dick e todos os condutores de veículos pesados da metade ocidental do condado o utilizavam. O seu parque de estacionamento mal alisado e cheio de buracos era o único local, em muitas milhas, onde havia espaço que chegava e sobrava para uma dúzia de camiões e seus reboques.

A primeira era um relatório de um dos condutores do carro-patrulha do inspector Harpe. Tinha reparado numa pequena carrinha cinzenta estacionada no parque do Dick no dia anterior. A carrinha correspondia à descrição feita pela rádio às treze horas. Tinha-a avistado no parque do café à hora do almoço no dia anterior, por volta do meio-dia e meia.

A segunda mensagem não foi expressa em termos tão oficiais.

Veio do próprio Dick.

Numa voz rouca e apressada.

- Um tipo - disse ele - dentro de um carro, no parque. Toda a gente julgava que tinha sido um ataque cardíaco Até descobrirem o buraco que tinha na nuca.

 

Os diamantes são as pedras de maior valor. Diz-se que passaram pelas mãos da maior parte dos joalheiros.

Ao atravessar o parque de estacionamento do Café para Camionistas do Dick, Sloan constatou que era um excelente lugar para cometer um assassínio.

Os gigantescos reboques articulados encobriam convenientemente o automóvel dentro do qual se encontrava o homem morto e só quem passasse perto poderia avistá-lo. Estava estacionado bastante longe, na parte de trás, a seguir a dois reboques Continental que aguardavam partida para a Roménia.

Tinham sido os condutores romenos que tinham reparado no condutor caído sobre o volante e - para seu eterno crédito - tinham chamado a atenção para ele.

- Tomem nota das matrículas deles - ordenou Sloan automaticamente - e das outras todas. Ninguém sai daqui sem eu dizer.

Desta vez tinha ajuda.

Dois dos homens do inspector Harpe, cujo carro-patrulha nunca andava muito longe daquele troço da estrada principal, estavam lá, para o caso de serem precisos. Tomaram nota de todas as matrículas e fizeram parar toda a gente que procurava escapar-se do café. Naquele momento parecia que - em vez de quererem partir - todos tinham decidido ficar no Dick.

Todos se encontravam aglomerados em volta de um grande carro preto.

- Aparecem cá de todos os tipos - disse Dick, o proprietário. Estava a referir-se à opulência do carro, com os seus cromados brilhantes. - Não há mais sítios onde se possa comer e estacionar, milhas em redor.

- Ele tinha estado lá dentro? - perguntou Sloan. O dono do café abanou a cabeça.

- Que eu visse, não.

O morto estava caído por cima do volante, com o queixo duplo derramado por cima do colarinho apertado, e o rosto de um branco doentio. Sloan deu a volta ao carro e espreitou através do pára-brisas. Nem mesmo os seus melhores amigos teriam reconhecido aquele homem, de momento - com os olhos vidrados muito abertos sem nada ver e o maxilar inferior descaído.

Sloan não o reconheceu, pelo menos.

No entanto, o carro tinha matrícula de Calleshire.

- Crosby, anote a matrícula e descubra a quem pertence este carro.

Voltou-se para a multidão que cercava o carro.

- Alguém viu alguma coisa?

Ninguém respondeu. Uma ou duas pessoas no extremo do parque começaram a dirigir-se para o café.

- Alguém reparou há quanto tempo este carro está aqui?

Esta pergunta foi mais produtiva.

Um motorista e o seu ajudante, com fortes pronúncias do Yorkshire, não o tinham visto quando tinham rebocado a sua carga gigantesca para o átrio.

- Há coisa de meia hora, deve ter sido isso, camarada. Pelo menos. Talvez um pouco mais. Aquele ali é o nosso.- Apontou para um camião carregado. Fundições Hobbleth-waite. O carro não 'tava lá nessa altura.

A hora da chegada deles foi confirmada pelo próprio Dick.

- Duas tartes com ervilhas, não foi, rapazes? Eles acenaram afirmativamente com as cabeças.

- Tínhamos acabado de comer, quando ouvimos dizer que tinha acontecido qualquer coisa lá fora.

- Não há serviço mais rápido em nenhuma estrada do Calleshire - disse orgulhosamente o proprietário do café. - Ninguém espera muito tempo pela comida no Dick. Sloan interrompeu o anúncio.

- Alguém reparou em qualquer outro carro particular no parque?

Ninguém tinha reparado.

Crosby voltou de enviar a mensagem pela rádio sobre a matrícula do carro e Sloan fez regressar o seu auditório ao café, com a ajuda dos dois homens do inspector Harpe.

Depois voltou-se para Crosby.

- Então?

- Atingido em cheio na nuca, senhor Inspector. - Crosby inclinou-se para a frente, para espreitar. - Não há arma à vista.

- Vamos já procurá-la. Mais alguma coisa? Crosby olhou de novo.

- Ele foi atingido aqui, senhor Inspector? Dentro do carro?

- É o que parece. - Sloan olhou para o enorme carro que tinha tudo: até espaço para dançar. Ou para usar uma arma.

- Podiam tê-lo feito do banco de trás, senhor Inspector. Há espaço suficiente aqui para disparar.

- Mais alguma coisa?

- Não foi há muito tempo? - sugeriu o agente, hesitante.- O motor ainda está um pouco quente.

- Não é a única coisa quente - disse Sloan. O sol aquecia cada vez mais.

- Não se vê mais nada - declarou Crosby.

"- É pena - disse Sloan. Esperava que o famoso princípio do intercâmbio do superintendente ainda se mantivesse.

- E não há sinais de luta.

- Alguém que ele conhecia, talvez.

Ambos os polícias estavam ainda a olhar para o morto, quando o rádio do carro dos polícias começou a transmitir.

- Foxtrot Delta um seis, Foxtrot Delta um seis... Crosby foi até ao carro e respondeu.

A voz da rapariga ao microfone da Central da Polícia em Calleford ecoou através do pátio do café.

- Foxtrot Delta um seis... o número do carro referido na vossa consulta feita às catorze e trinta e sete...

Sloan escutou impacientemente. A hora e o número eram a única coisa que interessava à Central do Condado. Isso e fazer um registo de tudo.

A voz da rapariga continuou a soar monotonamente, indiferente aos seus pensamentos:

- Está registado em nome da firma United Mellemetics Limited, Fábrica Jubilee, Luston, Calleshire.

Fenella perguntava a si própria como é que poderia ter pensado antes que a Dower House lhe parecia vazia. Não era nada que se comparasse com o que sentia agora.

O mesmo carro da Polícia que a levara à morgue tinha-a trazido de volta a Cleete. Era inevitável, calculava, que a rota deles passasse por Randall's Bridge. Todas as estradas para sul atravessavam o rio ali. Não havia outro caminho. Mesmo assim, ela teria preferido que eles não tivessem passado por aquela torre quadrada e cinzenta. Nem sequer pela igreja de Randall's Bridge.

Abanou levemente a cabeça. Sabia a resposta para isso. Alguém lho tinha dito. O inspector. Lembrava-se agora. Tinha sido quando ela ainda pensava em termos de acidente.

Não tinha sido um acidente, dissera-lhe ele, não dissera?

Quando ela lhe perguntara porque é que a estátua não tinha simplesmente deslizado.

Muito bondosamente, ele tinha-lhe explicado que as esculturas pesadas não deslizam sozinhas às onze e meia da noite nos campanários das igrejas, que podem estar ou não fechados à chave - e só deslizam com facilidade se lhes tiverem colocado cunhas por baixo dos pedestais, para lhes facilitar a queda.

Os seus passos ecoaram pela casa, quando a atravessou de novo. A sua primeira ideia foi abrir algumas janelas. Bastava uma hora com elas fechadas para que a casa adquirisse um ar abafado, como se estivesse encerrada. A mulher-polícia tinha-se oferecido para ficar com ela, mas Fenella declinara o oferecimento. Mrs. Turvey também tinha ido para casa. Tinha que dar de comer ao marido, mas voltaria. Fenella sabia-o.

A casa parecia-lhe tão vazia que Fenella começou a achar a sensação opressiva. Decidiu ir até ao jardim. Os jardins nunca pareciam tão vazios como as casas. Não havia por toda a parte objectos que recordavam pessoas que já lá não estavam.

Começou a passear de um lado para o outro, procurando um lugar para se sentar. Havia demasiado sol para ficar nos lugares habituais. Além disso, o facto de viver em Itália tinha-a condicionado a procurar a sombra, não o sol.

Riu-se. Quem poderia pensar que uma tão curta estada em Itália lhe teria deixado uma impressão tão forte?

Ia voltar lá. Não imediatamente. Quando tudo estivesse resolvido ali, em Cleete. Quando a Polícia tivesse chegado ao fundo do que tinha sucedido.

Quando tivessem descoberto a verdade nua e crua.

Certa vez tinha perguntado a si própria porque se diria a verdade nua, mas tinha sido antes de ter viajado para norte até Florença com a Principessa Trallanti e os filhos.

A Principessa tinha observado como ela apreciava Florença, absorvida pelos seus antigos telhados vermelhos, as igrejas em preto e branco, as esculturas e os quadros, antes de dizer, no seu inglês seco e exacto:

- Toda a gente, Miss Tindall, é ou florentina ou romana de coração. Uma coisa ou outra. Nunca ambas. Nem sequer o Signor Mardoni.

Esta última observação devia-se ao facto de as frequentes visitas de Giuseppe Mardoni, romano até às pontas dos dedos, ao Palazzo Trallanti já terem sido notadas até mesmo pela Principessa.

Por muito que Fenella amasse Roma, teria preferido ser florentina.

- Sucede isso à maior parte dos ingleses - tinha dito a Principessa, sem se surpreender.

Tinha sido nessa visita a Florença que tinha visto a Verdade Nua. Num quadro da Galeria Uffizi. Um Botticelli.

O quadro não se chamava Verdade. Chamava-se Calúnia.

Representava um tribunal mítico, com um juiz entro-nado. Simplesmente este juiz encontrava-se sentado entre duas figuras que representavam a Suspeita e a Ignorância. Duas outras figuras - a Malevolência e a Calúnia - arrastavam uma figura nua - a Verdade - até ao juiz. A Duplicidade e a Fraude tentavam adornar a Verdade, enquanto uma figura sombria - velha e vestida de luto profundo - chamada Penitência - as olhava.

- São todas mulheres - recordou-se de dizer, quase gaguejando, à Principessa.

Mas aquela nobre mundana nada tinha visto de extraordinário nesse facto.

Nem sequer no trajo lutuoso da Penitência.

- Mas ela tem um aspecto tão... macilento - insistiu Fenella.

- É ainda muito jovem, Miss Tindall. - A Principessa ergueu uma das mãos, enluvada apesar do calor. - Com o tempo verá o que a penitência faz às pessoas.

Fenella descobriu uma boa sombra debaixo de uma velha faia e instalou-se aí. Do sítio onde se encontrava via a fachada da casa e achou que era um sítio tão bom como qualquer outro para viver enquanto pensava no que havia de fazer. O pai ainda tinha algumas primas - seria preciso avisá-las - e às tias também - as irmãs da sua mãe...

Ouviu um carro subir pelo caminho que levava à casa e, do local onde se encontrava, sob as árvores, viu um homem sair e dirigir-se à porta da frente. Pareceu-lhe que ele tocava à campainha e depois recuava e fazia um gesto qualquer com as mãos à sua frente.

Deixou-se ficar onde estava.

Como não obtivesse resposta ao segundo toque, o homem saiu do caminho de cascalho e, colocando-se em cima da relva, repetiu o gesto anterior.

Fenella ficou subitamente imóvel.

O que ele estava a fazer era tirar fotografias. A Imprensa. Devia ser da Imprensa. Um jornalista.

Ficou a vê-lo dar a volta à casa, sempre a tirar fotografias. O homem não a viu, no entanto, encolhida contra o tronco da faia, e acabou por voltar ao carro e partir.

Devia ter decorrido cerca de meia hora quando um outro carro se dirigiu à Dower House. Nessa altura levantou-se e dirigiu-se para ele. Tinha reconhecido a mulher que saíra do carro. Só conhecia uma única mulher capaz de sair para um passeio no campo, a meio de uma tarde tão quente, durante uma vaga de calor, tão incrivelmente bem vestida.

Mareia Osborne.

Fenella atravessou o relvado enquanto Mareia caminhava cuidadosamente por cima do cascalho em direcção à porta. Fenella quase sorriu. O cascalho era miúdo, mas sem dúvida os sapatos de Mareia não serviam para andar sobre superfícies mais ásperas do que as carpetas. Eram sempre desse tipo.

- Fenella! Uh!

Mareia tinha-a visto finalmente e afastou-se da entrada da casa e do cascalho doloroso, dirigindo-se para a relva.

Agora que se encontrava mais perto dela, Fenella pôde observar melhor todo o esplendor da sua toilette. Mareia Osborne vestia um fato de seda cinzenta com reflexos verdes que era muito, muito elegante. A mala de mão, as luvas e os sapatos condiziam com o tom verde do fato de uma maneira que deveria ter exigido muitos dias de cuidadosa procura. Todo o conjunto era rematado por um chapéu de abas largas, cujo modelo assegurava em absoluto que nem um único raio de sol iria estragar a preciosa pele de Mareia.

Foi o chapéu de abas largas que, à primeira vista, não permitiu que Fenella reparasse nos brincos. Fenella nunca acharia próprio usar brincos à hora do chá, mas não a surpreendia particularmente que Mareia os usasse. Mareia era assim mesmo. E os seus brincos, herdados da tia-avó Edith, eram frequentemente expostos ao ar.

Quase tinha chegado junto de Fenella - não tendo feito muito bem à relva com os saltos dos seus sapatos - quando Fenella a pôde observar ainda melhor.

E o que viu provocou-lhe um calafrio na espinha.

Além dos brincos, Mareia trazia um par de pregadores a condizer.

Eram inegavelmente de esmeraldas e diamantes.

 

Estou armado contra a infelicidade.

- Quem? - uivou o superintendente Leeyes. De qualquer modo, nunca tinha sido homem para contar até dez.

- Sir Digby Wellow - repetiu Sloan.

Estava cansado de mencionar aquele nome. Já o tinha dito e repetido vezes sem conta e toda a gente reagia com chocada incredulidade. Naquele momento já tinha partido de Luston um grupo de homens incrédulos, só para confirmar o facto.

Sloan não tinha tido qualquer dúvida. Desde que tinha ouvido a quem pertencia o carro estacionado junto do Café do Dick, e feito alguns cálculos. Sir Digby Wellow devia ter saído de Luston pouco antes de Sloan ter tentado falar com ele pelo telefone.

- Wellow da United Mellemetics? - perguntou Leeyes. Tinha recebido aquela notícia depois de regressar da sua sessão semanal com o presidente da Comissão de Vigilância.- Aquele cujo dossier secreto desapareceu da Struthers e Tindall?

- Esse mesmo - disse Sloan, acrescentando decididamente: - E foi assassinado também.

- Esse dossier, então... - principiou o superintendente, muito agitado.

- Continua desaparecido. - Sloan completou a frase por ele. - Struthers e Tindall viraram tudo do avesso e não conseguiram encontrá-lo. Mandei revistar todo o edifício como deve ser e o sargento Wharton também não conseguiu descobri-lo.

- Mas o que é que ele continha, homem? É isso que interessa. - Esgrimir com o presidente da Comissão de Vigilância deixava sempre o superintendente irascível. O efeito que isso causava no presidente não sabia Sloan qual era.

- Sei tanto a esse respeito - retorquiu Sloan calmamente - como o senhor. Ou como qualquer outra pessoa, chefe, pensando bem. Como já lhe disse, toda a papelada (até os rascunhos) é guardada no dossier e enviada ao cliente. E a Struthers e Tindall não guarda registos. Isso também faz parte do contrato, ao que parece.

- Alguém deve ter trabalhado nele, Sloan.

- Paul Blake e o próprio Richard Tindall.

- Então...

- Blake diz que se limitou a conferir alguns cálculos que Tindall tinha feito sobre os coeficientes de expansão.

- A United Mellemetics deve saber - disse Leeyes.

- Não, não sabe - contrariou Sloan, que tinha tido uma longa conversa telefónica com um desorientado presidente-delegado da United Mellemetics. Edward Foster tinha parecido a Sloan uma pessoa sobre a qual o comando tinha sido lançado à força. A menos que tivesse ficado assim por causa de ter trabalhado perpetuamente à sombra do enérgico Sir Digby Wellow.

- Mas...

- A United Mellemetics nem sequer sabia que Sir Digby tinha levado um dos seus problemas à Struthers e Tindall, chefe. Podia ser qualquer assunto, disse-me o Foster.

- Ele deve saber o tipo de trabalho que estão a fazer, Sloan. - O superintendente Leeyes sabia sempre o que se passava nos seus domínios.

Sloan consultou a sua agenda.

- Foster diz que acabam de criar um novo instrumento para controlar a capacidade de uma fonte de energia solar para fornecer corrente aplicada para protecção catódica de "pipelines" subterrâneos.

- Uma boa coisa -disse Leeyes cordialmente -para quem souber do que se trata.

- E outro - prosseguiu Sloan - para medir a taxa de corrosão interna dos canos.

O superintendente respirou fundo e reduziu rapidamente a situação ao nível policial.

- Sir Digby Wellow envia um problema desconhecido à Struthers e Tindall e Richard Tindall aparece assassinado daquela maneira estranha.

Sloan concordou.

- Depois o dossier sobre esse problema desconhecido desaparece.

- Sim, chefe. - Aquilo também era verdade.

- Depois - declarou Leeyes de modo Incontroverso -, Sir Digby também é assassinado.

- Sim, chefe.

Também não se podia negar aquele facto. O Dr. Dabbe tinha lá ido e dito a mesma coisa sobre o corpo que se encontrava no pátio do Café de Dick.

E tinha murmurado qualquer coisa sobre a ferida. O patologista não estava disposto a comprometer-se nesta fase, mas os dois ferimentos na cabeça tinham muito em comum. - Alguém marcou um encontro ali - prosseguiu Leeyes. - Tudo premeditado, penso eu.

- Penso que sim - disse Sloan prudentemente. - Foi também lá que Tindall teve o encontro com Gordon Cranswick ontem.

- Depois do que - observou Leeyes rapidamente - voltou a Berebury, tendo dito ao tal Cranswick que estava pronto a vender a Struthers e Tindall à Cranswick Processing?

- É o que diz o Cranswick, chefe. É o que diz o Cranswick.

Desta vez, quando regressou ao seu gabinete, havia apenas uma folha de papel sobre a secretária de Sloan.

Era a análise crítica de percurso levemente esfarrapada que tinha traçado nessa manhã depois de encontrar o corpo de Richard Tindall na igreja de Randall's Bridge.

Olhou para ela durante um longo momento e depois pô-la tranquilamente de parte.

As análises críticas de percurso não tomavam em conta presidentes subitamente mortos nos carros das suas companhias nos pátios de bons restaurantes para camionistas.

Depois teve um segundo pensamento.

Podia dar-lhe o mesmo destino dos gráficos de distribuição normal que tanto tinham intrigado o superintendente Leeyes no mês anterior. Deu-lhe um piparote que a fez deslizar pela secretária e cair no cesto dos papéis, mandou vir Crosby e um carro, e pôs mãos à obra.

- Primeiro Luston, Crosby. A Fábrica Jubilee da United Mellemetics. E depois novamente à Struthers e Tindall. Tem mais notícias do Café do Dick?

- Ainda lá estão a recolher declarações, senhor Inspector.

- Arrange-lhes umas fotografias também. Mostre-lhes uma de cada um deles.

- De cada um deles?

- De todos - repetiu Sloan fatigadamente. - Do presidente da Câmara também, se quiser. De Paul Blake, Gordon Cranswick, Henry Pysden, do Osborne, daquele italiano (a Interpol arranja-lhe uma fotografia dele) e de Sir Digby, evidentemente.

- De Sir Digby, senhor Inspector? Toda a gente já o viu no café.

- Não tinha o mesmo aspecto que tinha ontem - recordou-lhe Sloan sombriamente. - Hoje nem a própria mãe o reconheceria.

- Pois não, senhor Inspector.

"Nem Lady Wellow", pensou Sloan, tomando nota.

Sir Digby não iria resmungar ao descalçar-se nessa noite. Alguém teria que ir falar com ela. Rapidamente.

Crosby levou o carro até à grande rotunda nos arredores de Berebury e meteu-se à estrada que levava a Luston.

Havia um outro assunto na mente de Sloan.

- Pôs alguém a vigiar aquelas duas velhotas da Vivenda Vésper, Crosby?

- Sim, senhor Inspector. Como me mandou. Uma vigia sem dar nas vistas.

- Penso que são testemunhas materiais - disse Sloan. - Embora não me agrade particularmente tê-las no tribunal para o Conselho de Defesa se divertir à custa delas.

- Não, senhor Inspector. - Crosby meteu uma mudança.

- E alguém que foi capaz de matar Richard Tindall e Sir Digby Wellow seria capaz de as matar sem pestanejar. A sangue-frio.

Sloan coçou o queixo, lembrando-se de qualquer coisa. Ele também assistia a conferências. Não com tanta frequência como o superintendente, mas de vez em quando. Na linha das suas funções. Numa delas tinha ouvido o conferencista dizer qualquer coisa sobre o modo por que um homem matava...

- Mas, senhor Inspector - disse Crosby, interrompendo-lhe os pensamentos-, o que elas viram foi às duas horas da madrugada. O Dr. Dabbe diz que Richard Tindall foi morto às onze e meia da noite passada.

- O Dr. Dabbe - disse Sloan concisamente - só tem que fazer um relatório das suas conclusões. O senhor e eu, Crosby, também temos que fazer uma pequena coisa, chamada resolver o caso... o que é completamente diferente.

- Sim, senhor Inspector.

Blinkov tinha sido o nome que o conferencista citara. Sloan recordava-se dele porque metade da assistência tinha julgado que o conferencista estava a gozar com eles. Blinkov o Russo. Primo de Inoff o Vermelho, tinha sugerido ironicamente um jogador de bilhar.

Blinkov, se bem se recordava, tinha defendido a ideia de que as pessoas rudes matavam rudemente, e as de temperamento refinado e delicado procuravam a maneira de fazer o trabalho de uma maneira requintada e delicada.

E os cientistas cientificamente?

Sloan olhou para o seu livro de notas.

- Já reparou, Crosby, que todos estes homens com quem temos estado a lidar têm qualquer coisa em comum?

- Não, senhor Inspector.

Sloan suspirou. Pelo menos Crosby nunca fingia saber o que não sabia. Talvez, de certo modo, isso fosse uma coisa pela qual se podia sentir grato.

- São todos tipos inteligentes, agente, só isso. - O seu espírito voltou à torre da igreja. - Tipos muito inteligentes, pode-se mesmo dizer.

Crosby concordou com isto.

- Foi uma maneira inteligente de matar uma pessoa, aquilo em Randall's Bridge, senhor inspector. Fazer com que aquela estátua caísse por cima do pobre diabo sem estar lá para a empurrar.

- É bem verdade. - Sloan passou o dedo pela lista e perguntou a si mesmo o que é que Blinkov teria feito com ela. - Henry Pysden e Paul Blake são investigadores científicos. Disso sabemos nós. E George Osborne é professor de Física na Escola Preparatória. Quem está lá para o vigiar quando ele aparecer, a propósito?

- Appleton, senhor Inspector.

- Óptimo. - Sloan regressou à sua lista. - Gordon • Cranswick e Sir Digby Wellow têm, presumivelmente, conhecimentos técnicos, visto que são directores de firmas científicas.

Fez uma pausa.

A lógica exigia que cortasse o falecido Sir Digby Wellow de quaisquer listas que fizesse agora. Mas os conhecimentos científicos dele podiam constituir um factor.

Encolheu os ombros.

Era muito bom para o Dr. Dabbe despejar-lhe todo aquele disparate de factores e equações. Neste caso ele ainda não sabia o que era um factor ou não era. E não se podiam fazer equações sem conhecer os coeficientes.

- Depois temos o...

Crosby viu uma mulher dirigir-se para a passadeira dos peões e acelerou para chegar antes dela. Sloan fechou os olhos.

- Depois temos o italiano - repetiu. Um dia alguém iria escrever ao Secretário do Interior a falar da maneira por que era conduzido aquele carro da Polícia. - Até ele é engenheiro.

- Estradas - disse Crosby-, é nisso que eles são bons, não é, senhor Inspector?

- Engenheiro civil. Foi isso que a rapariga disse que ele era.

- É estradas, não é, senhor Inspector? - disse Crosby.

- É - concordou Sloan, fatigadamente. Decididamente faltava qualquer coisa ao agente Crosby para ser caixa de ressonância.

- Isso-observou Crosby despreocupadamente- deixa de fora o presidente da Câmara, não é assim?

Sloan fechou a agenda.

- Penso que sim, Crosby. Penso que sim.

- Ele vende roupas para homem.

Fenella Tindall serviu o chá a Mareia Osborne.

Levaram-na para junto da faia, porque Fenella achava a casa muito abafada e tudo aquilo para que olhava, dentro dela, lhe lembrava o pai. Àquela hora do dia pouco mais fresco estava no jardim, mas à sombra da faia parecia melhor.

- Só tem que dizer-me que me vá embora - insistia Mareia de vez em quando - se preferir estar sozinha.

- Claro que não - respondia Fenella debilmente. Mareia desejava ficar. Qualquer pessoa" poderia vê-lo com os olhos fechados.

- E diga-me, se houver alguma coisa que queira fazer. Fenella agradeceu-lhe com a devida gravidade.

Era mais fácil do que explicar-lhe que nada mais queria além de paz e tranquilidade e uma oportunidade de chorar o pai decentemente e em particular. E de o chorar sem se preocupar com esmeraldas e diamantes ou com o destino de uma pequena firma familiar, que, sem saber como, lhe tinha caído no colo da noite para o dia.

- Açúcar? - Porém, dado que a vida era assim mesmo, Fenella serviu-se de mais chá.

Chá era uma coisa sem a qual não tinha aprendido a viver em Itália. As inúmeras chávenas de café pequenas, bebidas durante o dia, não substituíam o chá.

- Não posso, minha querida. Não posso mesmo - disse Mareia Osborne, dando uma palmadinha na sua cintura de vespa. - Engorda-me muito.

Fenella conservou um sorriso mecânico nos lábios. Isso, segundo pensava, também era mais fácil do que modificar a sua reacção perante as coisas que Mareia ia dizendo. Um véu - um véu negro - era aquilo que estava a fazer-lhe falta. Assim bastar-lhe-ia acenar afirmativamente ou abanar a cabeça conforme lhe apetecesse. Isso conservaria Mareia Osborne satisfeita.

- E ele estava tão vivo e tão bem na noite passada - ia dizendo Mareia, com um ar de espanto. - Estava tão satisfeito por a patente de George ter passado, como se fosse dele mesmo. Estavam ambos tão excitados como dois rapazinhos.

Fenella acenou afirmativamente com a cabeça. O seu pai tinha sido um homem íntegro - de espírito generoso e sempre pronto a partilhar as alegrias e os desgostos dos outros.

Reparou que o lábio inferior de Mareia tremia.

- Vamos todos sentir tanto a falta dele, Fenella. Coitado do Richard!

Mas o centro do pequeno universo de Mareia Osborne continuava a ser Mareia Osborne e, inexoravelmente, todos os acontecimentos tinham que ser observados nessa perspectiva.

- Tinha que acontecer precisamente hoje e estragar tudo -disse ela.

- Hoje? - inquiriu Fenella, sem compreender. Mareia Osborne desistiu de se esforçar por impedir que o lábio inferior tremesse e disse, lacrimosa:

- É o dia dos meus anos.

Começou a procurar algo dentro da mala e, na mesma altura, o telefone dentro de Dower House começou a tocar.

- Eu tenho um lenço a mais - ofereceu Fenella, pondo-se de pé para ir a casa atender o telefone.

- Não, não é isso. - Mareia tirou finalmente qualquer coisa de dentro da mala. - É isto.

Fenella olhou. Era uma pequena caixa com o nome Adamson em cima. Mareia apontou para o par de pregadores de esmeraldas e diamantes.

- Foi uma surpresa adorável - disse Mareia num tom chocado. - Teria sido absolutamente perfeita se não fosse... a outra coisa.

- Uma surpresa adorável - repetiu Fenella inexpressívamente.

- Condizem perfeitamente com os meus brincos. Eles (o George e o seu pai) tiraram um, sem eu saber (nem sequer imaginei) para o enviar à Adamson, para modelo. E eu a julgar que tinha perdido um dos brincos da tia-avó Edith, o que me deixou absolutamente desfeita.

O telefone continuava a tocar à distância. Mareia fungou de maneira audível.

- De qualquer modo eu vinha mostrar-lhos. São o meu presente de aniversário do George. O seu pai tratou de tudo por ele, convencido de que a patente ia ser concedida e seria uma grande surpresa. Não são lindos? Fenella... Que se passa consigo? Fenella, pare já de rir, por favor...

 

Isso é um conselho terrivelmente bom.

Seguindo o percurso devido, o carro da Polícia, com o agente Crosby ao volante, infiltrava-se nos arredores da cidade industrial de Luston. O tipo de trânsito tinha-se modificado e, em vez de tractores, viam-se agora reboques articulados e pesados camiões, mas Crosby ia abrindo caminho. Descobriram a Fábrica Jubilee da United Melle-metics numa parte da cidade ainda mais industrial do que o resto.

Não restavam dúvidas sobre a origem do nome Jubilee (1) dado à fábrica. Por muito modernos que fossem os seus métodos, o edifício da United Mellemetics era puramente dos Sessenta Gloriosos Anos. E não era apenas o estilo arquitectónico - Neogótico Imperial Victoriano - que o situava naquela época. A filosofia do reinado de Sua Falecida Majestade também estava bem patente. Apenas nos tempos da Velha Rainha teria aquele sentimento - expresso em mau latim - Labore et Profitas [2) - sido tão conspicuamente gravado na pedra por cima da entrada em arco.

Sloan encontrou muita gente a torcer aflitivamente as mãos, de um modo pouco victoriano, nos gabinetes directivos.

- Efectivamente, chefe - informou o superintendente pelo telefone-, toda a firma anda às voltas como uma galinha à qual tivessem cortado o pescoço.

Leeyes resmungou.

- Não me parece que tenha alguma vez ocorrido a alguém aqui que Sir Digby podia morrer.

- Um dos Imortais, hem?

 

(1) Jubileu. (N. da T.)

(2) Trabalho e lucro. (N. da T.)

 

- Bem, chamavam-lhe Deus. Pelo menos foi o que me disseram. Por detrás das costas dele, é claro.

- Ah, sim!? Bem, e qual deles o detestava suficientemente para o matar? Sabe dizer-mo?

Mas Sloan não tinha podido responder a essa pergunta. Pelo que conseguia deduzir, Sir Digby tinha sido um daqueles monstros sagrados, que não inspiram propriamente antipatia mas puro cansaço. - Eles não pretendem comprar também a Struthers e Tindall, pois não? - perguntou o superintendente.

- Não mo disseram.

- Se pretenderem, têm dois rivais.

- Dois?

- O seu amigo Gordon Cranswick não é o único que anda atrás da firma.

- Como? - perguntou Sloan, alerta.

- Uma firma qualquer, de nome Hallworthy, também a quer comprar. Telefonaram de Birmingham à filha do Tindall para lhe dizer isso. Fizeram-lhe uma oferta. Disseram-lhe que andavam atrás da firma há algum tempo. E ela telefonou-nos.

- Birmingham? Leeyes enfureceu-se.

- Sloan, precisa de repetir tudo o que eu digo?

- Estava a pensar, chefe - apressou-se ele a dizer-, que Birmingham fica muito longe de Berebury.

- Eu sei.

- Demasiado longe para essa gente... como disse que eles se chamavam?

- Hallworthy. A Hallworthy Small Motors Company, de Birmingham.

- Demasiado longe para terem ouvido falar da morte de Richard Tindall de maneira normal. - Sloan consultou o relógio. - A notícia não foi a tempo do noticiário da uma e os jornais da tarde só dificilmente a trarão já, se é que já saíram, o que duvido muito.

- E então?

- Alguém se deu ao trabalho de dizer-lhes especialmente.

- Ah!-disse Leeyes-, um desmancha-prazeres?

- Parece-me mais um espião disfarçado - disse Sloan moderadamente. - Mas isso é interessante. Muito interessante. Tindall disse ao Cranswick que não gostava dos métodos dos outros. Talvez esses sejam os outros e o espião seja aquilo de que Tindall não gostava. E foi por isso que ofereceu a firma à Cranswick Processing.

- E o que é que - inquiriu Leeyes pesadamente - a Cranswick Processing e a Hallworthy Small Motors têm a ver com a United Mellemetics?

- Não sei. Leeyes resmungou.

- Bem, em face do que tem sucedido, se eu fosse presidente de qualquer das companhias não passava por baixo de escadas. Quem é que está à testa da United Mellemetics, nesta altura?

- O director-delegado, um tipo chamado Edward Foster, embora não se possa dizer - acrescentou Sloan em tom de dúvida - que esteja propriamente à testa.

O pobre Edward Foster tinha-lhe parecido um homem que fazia um esforço corajoso para aguentar um barco sem leme.

- O Conselho - estava Edward Foster sempre a dizer a Sloan. - O Conselho. Pedi uma reunião do Conselho. Para decidir o que se há-de fazer. Precisamos de uma reunião do Conselho de Administração.

Sloan estava menos optimista. Não lhe parecia que o Conselho soubesse o que havia a fazer sem Sir Digby melhor que a própria fábrica.

- Se o meu agente pudesse começar a ver os papéis de Sir Digby, chefe, para o caso de haver qualquer referência à Struthers e Tindall, isso talvez nos desse uma pista... - Crosby também poderia ficar atento simultaneamente a qualquer referência à Cranswick Processing e à Hallworthy Small Motors, mas Sloan não falou desse facto a Edward Foster.

- Absolutamente. Ande para diante. - Foster passou a mão distraidamente pelo cabelo. - Nós também já lhes demos uma rápida olhadela, sem encontrarmos nada. Isso não me surpreende... e não prova nada, de qualquer modo. Sir Digby nunca escrevia nada, se lhe fosse possível. Não se pode dizer que fosse homem de burocracias.

Os grandes magnatas, segundo Sloan sabia, raramente o eram.

- Ou de confiar nas pessoas - acrescentou tristemente o delegado de Sir Digby.

- Portanto - disse Sloan a Crosby ao levá-lo ao gabinete de Sir Digby-, não há grandes esperanças de encontrar qualquer coisa útil. Parece que o patrão conservava o jogo sempre bem escondido. Não posso dizer - acrescentou- que o censuro por isso. Foster não me parece propriamente pessoa em quem se pudesse apoiar.

Essa era uma coisa que não sucedia na Polícia. Não havia gente a minar a autoridade de cada um. Desde o momento em que se vestia o uniforme. Ficava-se realmente só, nesse momento, quer se gostasse quer não. Sós, com a nossa agenda e o Nome da Lei.

Crosby ainda estava a pensar em Edward Foster, director-delegado.

- Talvez nunca tivesse tido uma hipótese, senhor Inspector. Com um fulano como Sir Digby sempre em cima dele. Pelo que tenho ouvido, preferia o Tindall.

- Pysden pareceu-me bem capaz de tratar sozinho das coisas - concordou Sloan. Abriu a porta do gabinete de Sir Digby. Era luxuoso.

Crosby olhou também em volta, observando o gabinete do falecido presidente.

- Bem, uma coisa posso eu dizer, senhor Inspector. Vale mais ser uma pulguinha no nosso próprio tapete, do que um pulgão no tapete de outra pessoa.

- Deu em filósofo, hem?- disse Sloan mordazmente.

Havia muito trabalho - trabalho policial - a fazer na United Mellemetics, mas Sloan decidiu deixá-lo para outros. Havia um grande número de investigadores ligados à Divisão de Luston. Eles podiam recolher declarações, anotar quem tinha andado a fazer o quê e onde, às horas importantes, e informá-lo quando conseguissem alguma coisa.

Se conseguissem.

Crosby não tinha encontrado qualquer referência à Struthers e Tindall em todo o gabinete de Sir Digby Wellow.

- Nem à Cranswick Processing ou à Hallworthy Small Motors, senhor Inspector. - O agente sentou-se ao volante do carro da Polícia e ligou o rádio, num movimento automático.- Não sei para onde vamos agora.

- A Struthers e Tindall. Foi aí que tudo começou.- Deteve-se ao começar a ouvir uma mensagem pela rádio, e depois descontraiu-se de novo.

- No Cisne Branco, Calleford - disse laconicamente a voz feminina. - Problemas...

Algures na Divisão de Calleford, um carro sairia da sua rota e iria acabar com os problemas no Cisne Branco.

- Não são os únicos a ter problemas - observou Crosby, dando uma palmadinha afectuosa no receptor do rádio.- E nós, minha querida Doris? Problemas? Temos dois crimes, uma batalha pelo poder e trabalho sujo na United Mellemetics, para começar.

- Só desapareceu o dossier deles - disse Sloan. - Apenas isso. Ainda não sabemos o que continha.

- Mas é lógico, senhor Inspector...

- Não, não é, Crosby. Não fale de lógica. - Se havia uma palavra que não gostava de ouvir pronunciar em vão era aquela. - Ainda não.

- Diga então, senhor Inspector.

- Tudo o que sabemos actualmente sobre o dossier da United Mellemetics é aquilo que nos disseram sobre ele e isso não constitui prova.

O rádio tinha recomeçado a transmitir. - Chamada para três noves - disse a voz feminina.- Acidente com feridos ao fundo de Kinnisport Hill. A BAC vai a caminho...

Devia ser a Brigada de Ambulâncias de Calleshire, na sua habitual corrida com os rapazes da Polícia para ver quem chegava primeiro ao local.

- Contudo, há uma coisa que temos - disse Sloan em tom marcial.- Uma coisa que temos sempre.

- O que é, senhor Inspector?

- O velho ditado que diz que os crimes são geralmente cometidos por quem beneficia deles.

Crosby franziu o sobrolho.

- A filha?

- Entre outros.

- Bravo Delta Um Três - interrompeu a rádio, muito a propósito. - Bravo Delta Um Três deverá ir ao número catorze de Hart Crescent, em Luston. Uma doméstica.

- Ela não é a única a beneficiar. Há outros. Tem de aver.

- O italiano? - sugeriu Crosby prontamente.

Sloan suspirou. Tinha tido razão quanto a Crosby e ao superintendente. Pensavam ambos da mesma maneira.

- Talvez sim. Talvez não - disse. - Ia haver grandes Mudanças, e as mudanças nem sempre agradam a toda a gente. - Fez um gesto com o braço. - Dá para os dois lados. Há sempre quem ganhe e quem perca com elas.

- Então - disse o agente-, voltámos ao ponto de partida, não voltámos?

- Só que - observou Sloan azedamente - em vez de um morto, agora temos dois. - Era difícil saber se Crosby estava a tentar ajudá-lo ou não. - E nem toda a gente consideraria isso um progresso.

Os jornais teriam pano para mangas no dia seguinte: especialmente se os jornalistas apanhassem o superintendente Leeyes com uma disposição combativa, aquecido por alguns rounds com o presidente da Comissão de Vigilância.

- Mas - disse Crosby pensativamente-, se o Dr. Dabbe tiver tanta razão como pensa que tem...

O advogado de Acusação e o advogado de Defesa discutiriam esse ponto no tribunal - e talvez dessem uma outra redacção a essa ideia - mas pouco melhor.

-... nesse caso, senhor Inspector, só temos um tipo com um álibi à prova de bala, não é assim?

- Henry Pysden - disse Sloan -, que estava a fazer registos na sua maquineta em Berebury na altura em que o doutor diz que Richard Tindall morreu. O sargento Wharton está a verificar o álibi da máquina registadora do tempo.

- O que nos deixa uma data de gente sem álibi - concluiu Crosby.

O rádio voltou subitamente à vida de novo.

- Um membro do público - disse Doris, a transmissora- agrediu o polícia de trânsito Número Cinco na High Street em Berebury.

- Um dia matam aquele homem - prognosticou Sloan - e só espero não ter que ser eu a prender alguém por o fazer.

- Junto do semáforo - indicou Doris.

- Quando não é culpa dos outros - observou Crosby em tom sombrio - tem que ser de um polícia.

- Está um pouco descontrolado - comunicou Doris ao circuito de rádio, informalmente.

Sloan decidiu apoiar a Polícia.

- Nós somos pau para toda a obra, Crosby, e convém que se habitue à ideia. Só há outro trabalho que se assemelha ao nosso...

- Qual, senhor Inspector?

- O de uma dona de casa. Nunca está acabado.

- O Número Cinco também não está muito feliz - acrescentou Doris, calculando que o Número Cinco tivesse desligado enquanto lidava com o turbulento membo do público.

- Agora - disse Sloan -, quanto à Hallworthy Small Motors de Birmingham. O que precisamos de saber é qual é a ligação deles com a Struthers e Tindall.

Sloan e Crosby estavam tão absorvidos no estudo das probabilidades que nem ouviram o Quartel-General do Condado da primeira vez que os chamaram.

- Foxtrot Delta Um Seis. Foxtrot Delta Um Seis - repetiu Doris pacientemente. - O inspector Sloan está nesse carro? Responda, Foxtrot Delta Um Seis. O guarda Hepple queria falar consigo em Randall's Bridge. Pensa que deverá ter uma conversa com o encarregado do campanário.

A figura mirrada que o esperava na nave, à porta do campanário, na igreja de Randall's Bridge, não pareceu a Sloan encarregado de coisa alguma. Tinha as costas curvadas e um rosto pergarninhado e chamava-se Nathan Styles.

- Este aqui apanhou-me a almoçar - disse, apontando o guarda Hepple com um dedo acusador.

- Ah, sim!? - disse Sloan. - E então?

- Andei por aqui a fazer umas buscas, como o Ernie me tinha pedido.

- E o que é que descobriu? Com que então o primeiro nome do precioso Hepole era Ernest?

- Não havia grandes estragos por aqui.

Sloan acenou afirmativamente.

- Foi o que Mr. Knight nos disse esta manhã. Nathan Styles pôs de parte o sacristão, com um jeito do ombro.

- Ele não é sineiro.

- Os sinos? -disse Sloan. - Há alguma coisa errada com os sinos?

Nathan Styles sacudiu a cabeça grisalha.

- Não, não é isso.

- Então?

- Há uma corda a mais.

- O quê?!

- Uma a mais.

- Onde?

- Pendurada no meio. - Styles dirigiu-se à torre da igreja. Estava mais limpa do que antes.

Sloan seguiu-o e olhou para cima, seguindo o veio central da alta torre.

Nathan Styles apontou para o alto com um dedo nodoso e não muito limpo.

- Além. Aquela fininha.

Sloan viu aquilo a que ele se referia.

Havia qualquer coisa muito fina, pendurada ao meio. Não era uma corda. Do sítio onde se encontrava, parecia-lhe um cordel.

Talvez linha de pesca.

Era preta e praticamente invisível. Sloan olhou de novo para Nathan Styles. Devia ter uma vista muito apurada.

E conhecer bem o seu campanário.

- Se não acredita em mim - disse o velho com voz rascante- pode chamar o Charlie Horton. Ele diz-lhe o mesmo. Aquilo não 'tava ali quando a gente tocou os sinos no domingo.

- Acredito que não - concordou Sloan com voz suave.

- Não penso nem por um momento que estivesse. Nem que tivessem tido a vossa noite de treino esta semana.

- Esta semana, não - concordou Styles. - Na sexta-feira é que ensaiamos.

- É um grande comprimento de fio.

- Vinte e um metros - disse o velho imediatamente. - A gente compra as cordas a metro, por isso é que eu sei. As cordas estão caras, isso posso eu dizer-lhe.

Sloan espreitou para o espaço escuro.

- Está longe de mais e demasiado escuro para se perceber como foi preso.

Nathan Styles encolheu o ombro.

- Eu cá dizia que está amarrado a uma das traves dos sinos.

- Vamos ter que ir lá acima para ver bem. - Sloan I voltou-se para Crosby e Hepple. - Parece que vem a (direito para baixo.

- Quer que eu suba à torre, senhor Inspector - ofereceu-se Hepple-, para ver se descubro qualquer coisa lá em cima?

- Ainda não. - Sloan fez um aceno com a mão. - Mais tarde. Há uma pequena experiência que eu gostaria que nos fizessem, primeiro. O senhor, Hepple, vá até lá fora procure aquela escada de mão, e depois suba até àquela janelinha, do lado de fora. E o senhor, Crosby, vá procurar aquele fio até à janela.

Hepple saiu da torre. Crosby dirigiu-se à igreja e reapareceu momentos depois com o bastão do curador da igreja.

- Isto serve, senhor Inspector?

Sloan suspirou. Encontrando-se a justiça, no seu ponto de vista, muito pouco atrás da piedade e um pouco à frente do asseio, pensava que teria de servir.

Pegou no bastão e ergueu-o até ao fio. Com a cabeça lisa do bastão, mostrou a Crosby como orientá-lo até à pequena janela por cima da porta de saída da torre.

Enquanto o fazia, viu aparecer o rosto do guarda Hepple na janela.

Crosby continuou a avançar na direcção de Hepple.

Hepple estendeu a mão através da fenda e agarrou o fio.

- Chega à janela, senhor Inspector-informou Crosby por cima do ombro. - Mesmo à justa.

- Era o que eu esperava - disse o inspector Sloan.

 

A prosperidade enfeitiça os homens.

Foi o sargento Wharton quem telefonou aos fabricantes do aparelho registador de tempo que Henry Pysden estava a usar na sua experiência.

Ficaram vagamente ofendidos com as suas perguntas. - Mas nós garantimos que o mecanismo é exacto, Sargento. É para isso que ele foi criado. É um daqueles sistemas que exige a perfuração de um cartão e uma assinatura pessoal.

- Porquê? - quis saber Wharton.

- Para provar que as leituras da experiência foram efectuadas à hora devida e pela pessoa devida.

- E isso tem importância? O homem pigarreou.

- Em certos tipos de experiência de grande exactidão, reduz-se grande parte da margem de erro se uma única pessoa fizer todas as leituras. Reduz o elemento de interpretação pessoal a um só, não lhe parece?

O sargento Wharton pensava que sim.

- É muito importante neste caso - disse a voz. - Pelo menos é o que nos foi dito quando nos pediram que o montássemos.

- Ah, sim!? - disse Wharton, interessado.

- A Struthers e Tindall confirmou primeiro connosco... para verificar se era à prova de falsificações.

Wharton tossiu.

- E é?

- Cem por cento - respondeu o empregado do fabricante, sem hesitações. - Tem selos duplos com um bónus incorporado, muito popular junto dos polícias.

- Compro-lhe um - disse o sargento Wharton.

- Nós colocamos os selos e damos a garantia, e podemos saber se alguém mexeu neles... embora ninguém o possa fazer.

- Cinto e suspensórios - observou Wharton, que estava tão gordo que não precisava nem de uma coisa nem de outra.

- E botões também, se quiser, Sargento. Aqui não deixamos nada ao acaso.

O agente Crosby tinha uma objecção a fazer.

Estava a olhar na direcção do pedestal de mármore.

- Mesmo assim não chegava ao legado Fitton, senhor Inspector. Tenho a certeza. Está alto de mais.

- No entanto podia oscilar facilmente - disse Hepple do seu poleiro no exterior da janela. - Daqui vê-se bem. Com as cordas dos sinos recolhidas da maneira por que estão, teria um percurso livre.

Sloan acenou vivamente com a cabeça.

- Hepple, pode dizer-me o que sucedeu à ponta do fio?

Hepple observou a ponta que tinha na mão.

- Foi cortada, senhor Inspector, digo eu.

- Não foi queimada?

O fio teria que ser submetido a uma comparação ao microscópio no Laboratório Forense, mas ainda existia uma coisa a que se chamava vista desarmada. Chamava-se-lhe exame microscópico, mas ele não poria isso no seu relatório. O superintendente era sensível a palavras compridas.

E o fósforo queimado continuava a não ter explicação.

O superintendente Leeyes também não tinha tempo para factos sem explicação.

- Não, senhor Inspector - dizia Hepple.- Vê-se bem que foi cortado. Não está chamuscado. Podia ter sido com uma tesoura ou com uma faca. Qualquer dessas coisas.

Havia outra coisa que o microscópio podia fazer por eles. Dizer-lhes se um peso suspenso no fio tinha distendido as fibras. Nunca se sabia, hoje em dia, o que os microscópios eram capazes de dizer.

- Ah!-soou de novo a voz esganiçada de Nathan Styles. - Não é o comprimento que tem agora qu'importa, não é? É o comprimento que tinha antes de o terem cortado.

- Exactamente, Mr. Styles - disse Sloan. Crosby não deveria precisar de que um rústico lhe explicasse as coisas. - Pode ter tido o comprimento suficiente, antes de ser cortado, para atirar c'a estátua pra fora do pedestal.

- Mas para que haviam de cortá-lo? - perguntou Crosby teimosamente. - Porque não haviam de deixá-lo ficar?

- Porque dava logo nas vistas - disse o velho sineiro imediatamente. - Não está a ver isso, meu rapaz? É lógico.

- Havia uma boa possibilidade - disse Sloan - de não darmos pelo fio ou não sabermos para que servia.

- Continuamos a não saber como aquilo foi feito - insistiu Crosby obstinadamente.

- Pois continuamos.

- O tipo podia ter apontado à escultura daqui - observou Hepple da sua janela. - Tenho uma boa visão daqui.

- Não a teria, às escuras - disse Sloan.

- Havia aquele fósforo... - observou Crosby. Sloan encheu o peito de ar.

- Só há uma coisa que sabemos efectivamente...

- O quê, senhor Inspector?

- A hora a que o fio foi cortado e retirado aquilo que nele se encontrava pendurado.

- Não, não sabemos, senhor Inspector. - Depois a sua expressão mudou. - Oh, sim, sabemos! - exclamou excitado.- Sabemos. As duas horas desta madrugada.

- Exactamente.

- Pelo pescador nocturno que as duas velhotas, as Metford, disseram que tinham visto.

- As manas Metford? Duas autênticas cacatuas - observou Nathan Styles, em tom de conversa. - Especialmente a Ivy.

Hepple, ainda na janela, inclinou o boné para trás.

- E quem seria o pescador nocturno, senhor Inspector, pode-se saber?

- Foi para isto que ele precisou da cana - interrompeu Crosby muito agitado, balouçando o bastão de um modo que decerto o vigário nunca havia imaginado. - Não poderia alcançá-lo da janela de outro modo e sabemos que ele não podia entrar pelas portas, não sabemos?

- Que cana? - inquiriu Hepple desorientado.

- Uma cana de pesca, Hepple-explicou Sloan gentilmente. - Para agarrar a ponta do fio. Agora sabemos porque precisava ele de uma cana comprida. Para fisgar o fio e levar o que ele tinha pendurado na ponta.

- Ah! - disse Nathan Styles, entrando no espírito da conversa. - Que nessa altura devia estar no meio da torre, não era?

- Pois devia - concordou Sloan.

- Mesmo por baixo da trave do sino - disse o homenzinho. - Efeito da gravidade.

Sloan assentiu com um gesto da cabeça. Tinha sido o superintendente quem dissera que não se podia brincar com a gravidade, não tinha?

Anos antes.

Ou nessa manhã.

Parecia tudo o mesmo para Sloan, naquele momento.

- Uma cana de pesca servia perfeitamente - declarou Hepple lentamente, medindo a distância até ao meio do campanário com o olhar.

- Suponho - disse Crosby em tom de dúvida - que o fio já tivesse deixado de balançar nessa altura.

- Penso - disse Sloan suavemente - que podemos aceitar que já tivesse parado.

Crosby coçou a cabeça.

- Quer dizer que acha que foi por isso que ele esperou até essa hora?

- Acho.

- Ele sabia?

- Penso - disse Sloan pesadamente - que ele calculou o tempo. Tal como calculou tudo o resto. - Ergueu o olhar para a janela. - Muito bem, Hepple, agora pode descer.

Hepple largou o fio e retirou o braço da fenda. O seu rosto desapareceu, quando começou a descer a escada. O fio - mesmo sem nada na ponta - caiu para o meio da torre e depois, como um pêndulo, girou, descrevendo um arco, em direcção à porta oposta, a que dava para a nave e para a igreja.

Sloan deteve-se.

- Crosby, viu aquilo?

- Não, senhor Inspector. O quê, senhor Inspector?

- O fio, homem.

- O que é que ele tem, senhor Inspector?

- Crosby, somos uns idiotas.

- Sim, senhor Inspector.

- Não notou nada na forma por que o fio caiu daquela janela?

- Não, senhor Inspector.

- Dirigiu-se para a porta, Crosby. Para a porta. Não para o pedestal. Não está a perceber? A janela e a escultura não estão em linha, pois não?

- Não, senhor Inspector.

- Então como é que uma coisa presa ao fio, apontada da janela, no escuro, foi atingir o legado Fitton?

- Eu cá não sei - disse Crosby, concordando. Ouviu-se uma súbita gargalhada cacarejante do velho

Nathan Styles.

- Um respeitável mistério, hem?

- Não precisa de me explicar como funcionam os pêndulos, Sloan - disse o superintendente Leeyes agastado.

- Sei tudo sobre Galileu.

- Galileu, chefe?

- Aquele fulano que atirou duas coisas do cimo da Torre Inclinada de Pisa para ver qual chegava primeiro ao chão. Eu estive lá. - O superintendente e a mulher tinham estado certa vez em Itália, numa excursão, e nunca permitiam que esse facto fosse esquecido na esquadra.- Descobriu os pêndulos.

- E o que é que ele descobriu, chefe? Leeyes agitou a mão gorda.

- A rotação do pêndulo dura sempre exactamente o mesmo tempo, quer seja longa ou curta.

- Relógios - disse Sloan subitamente.

- Coisas desse género - concordou Leeyes. - Mandaram-no para a prisão por causa disso.

- Por descobrir?

- Oh, sim! - disse o superintendente com ar majestoso.

- Acharam que ele era perigoso. Tinha uma data de ideias novas.

- Estou a ver, chefe. Má rês.

Sloan até à data nunca tinha contribuído para mandar gente para a prisão, excepto por ter ideias antigas - algumas delas muito antigas mesmo. Do tempo de Caim e Abel.

Algumas ainda mais antigas até, pensando bem...

Tinha mandado Crosby levá-lo novamente até à Esquadra de Berebury, depois de saírem de Randall's Bridge. E tinha feito bem. Tinha uma série de mensagens à sua espera.

A gente do aeroporto de Londres tinha localizado um passageiro chamado G. Mardoni que tinha apanhado um avião para o Aeroporto de Schiphol, na Holanda, mais ou menos uma hora depois de ter partido o voo para Roma em que estava registado.

A mensagem seguinte tinha sido ainda mais útil e Sloan levara-a ao superintendente Leeyes.

Era da Guardiã de Pubblica Sicurezza de Roma. Tinham localizado Giuseppe Mardoni à saída de um voo holandês e tinham-no seguido até ao seu apartamento perto do Castel San Angelo, onde se encontrava detido. Agradeciam que os prezados amigos da Polizia Inglesa dissessem o que queriam que fizessem com ele.

- É melhor acusar isto rapidamente, Sloan - ordenou o superintendente Leeyes, cujo conhecimento da história italiana era nebuloso (mas cujo famoso périplo de férias tinha incluído Roma) -, antes que o atirem ao Tibre.

- Sim, chefe.

- Chegou mais alguma coisa?

- Detalhes sobre as duas patentes. Aquela que o homem do sargento Wharton descobriu no gabinete de Blake é antiga... registada em nome de Jonah Bernard Struthers antes da guerra. A outra é a de George Osborne e está datada de ontem, tal como eles disseram. - Tinham acontecido coisas de mais no dia anterior, para o gosto de Sloan.

- O Appieton continua a vigiar Osborne, segundo espero.

- Continua.

- Mais alguma coisa?

- A ligação com a Hallworthy Small Motors. Alguém agiu rapidamente.

- Ah!... - O superintendente espreguiçou-se de um modo positivamente felino.

- Paul Blake.

Leeyes esfregou as mãos.

- Blake, hem?

- A Hallworthy Small Motors foi o seu penúltimo emprego.

- Ah, sim!? - disse Leeyes suavemente, revelando ainda mais o seu jeito de gato que apanhou um rato.

- A última firma para a qual ele trabalhou foi comprada pela Hallworthy há um ano.

Leeyes lançou-se ao ataque.

- Depois veio para a Struthers e Tindall e a Hallworthy tentou comprar a Struthers e Tindall?

- Podia ser. Mas o Tindall não quis vender. Pelo menos não queria vender ao candidato que fazia a oferta mais alta.

- E então matam o Tindall...

- Tindall foi morto, chefe, mas não sabemos exactamente como nem porquê, ainda.

- Então para que é essa história toda dos pêndulos? Sloan abanou a cabeça.

- Não me parece que fosse um pêndulo que o fizesse, necessariamente. A estátua não estava alinhada com a janela.

- Bem - disse o superintendente, recostando-se na cadeira, confortavelmente -, sabendo que não existem pêndulos excêntricos, talvez fosse melhor ir-se embora e pensar melhor no assunto, não lhe parece?

Enquanto seguia pelo corredor em direcção ao seu gabinete, Sloan sentiu subitamente um arrepio percorrer-lhe a espinha.

Depois ergueu a cabeça.

Existia um pêndulo excêntrico! Ele tinha-o visto. Algures num museu. Ele e Margaret. Tinha qualquer coisa a ver com o facto de a gravidade da terra o puxar para um lado, ou coisa parecida.

Mas só se o fio fosse suficientemente longo.

Suficientemente longo?

Uns vinte ou vinte e cinco metros. Era uma coisa nesse género.

"Vinte e um metros!", sussurrou uma voz no cérebro de Sloan.

O inspector Harpe passou por ele, em passos largos, mas Sloan nem o viu.

Estava a voltar-lhe tudo à memória.

Se bem se lembrava, a única coisa de que aquele pêndulo especial precisava era de uma longa queda e um início suave de rotação e meia hora depois encontrava-se fora do seu curso. Atraído pela gravidade da terra.

O início suave era importante. Também se recordava disso. Tinha que ser libertado muito cuidadosamente. Nada de esticões ou empurrões, ou coisas no género. Efectivamente recordava-se de ter visto, em companhia de Margaret, o homem do museu pô-lo ém funcionamento queimando o fio que o fixava, com um fósforo.

Queimando-o com um fósforo.

Um fósforo.

Um fósforo perfeitamente vulgar.

- Crosby!-A porta do seu gabinete abriu-se subitamente.

- Senhor Inspector?

- Ligue-me à Polícia Metropolitana. Rapidamente.

- Sim, senhor inspector. - Enquanto pegava no telefone, o agente entregou mais duas mensagens a Sloan.

- Há aqui qualquer coisa do agente Appleton, senhor Inspector. George Osborne saiu da Escola Secundária de Berebury e ele pensa que se dirige a Cleete.

- É da Metropolitana? - perguntou Sloan ao telefone.

- A outra - insistiu Crosby, imperturbável - é da Polícia de Luston. Descobriram qualquer coisa útil em relação à United Mellemetics.

- Metropolitana? - disse Sloan com urgência na voz.

- Oiçam, quero que mandem alguém a um museu fazer-me uma coisa. Sim, isso mesmo. Um museu. E depois quero que me arranjem uma pessoa que me possa explicar uma patente, uma patente antiga...

 

Cometi um acto secreto que desejo que o mundo nunca venha a conhecer.

O Dr. Dabbe estava ao telefone, ainda preocupado com o falecido Sir Digby Wellow.

- Não posso adiantar muito mais ao que lhe disse no parque de estacionamento, Sloan, excepto que as coronárias dele não eram coisa que valesse a pena falar. Ainda iam dar para mais uns almoços de negócios e uns discursos públicos, mas não muitos, se isso pode servir de consolo a Lady Wellow. Quanto ao ferimento...

- Continue.

- É igual em todos os aspectos reconhecíveis - disse o patologista, com as palavras medidas que costumava usar no tribunal - ao que foi infligido a Richard Tindall. A única variação encontra-se no grau de força utilizado. Tudo aponta para que se trate da mesma arma. O que foi, Sloan...? Por acaso já sabe alguma coisa a esse respeito?

- Pêndulo de Foucault - disse Sloan com segurança.

A Polícia Metropolitana já lhe tinha telefonado de Londres. Tinham ido ao museu fazer o que ele pedira.

- Ora deixe-me pensar... - O patologista fez uma pausa. - O Pêndulo de Foucault. Não é aquele utilizado para demonstrar a rotação da Terra sobre o seu próprio eixo?

- É esse mesmo - disse Sloan.

Explicar o assunto ao superintendente Leeyes não ia ser assim tão simples.

Ou a Crosby.

Talvez nem sequer tentasse.

Talvez se limitasse a incluir a explicação no relatório para o superintendente e contasse com o facto de Crosby nem querer saber.

- Já me lembro. - O interesse do Dr. Dabbe animou-se rapidamente. - Na realidade o movimento do pêndulo continua a ser igual...

- Galileu - interrompeu Sloan. O superintendente havia de gostar de o ouvir.

-... e é a terra que se move, mas, evidentemente, não parece ser assim.

- Pois não.

A sua voz mudou de tom.

- Diga-me cá, Sloan, descobriu alguma coisa?

- Talvez - respondeu Sloan moderadamente. - Isto explica o fósforo apagado que encontrámos. Não conseguia metê-lo em coisa alguma.

- Como?

- Para demonstrar o Pêndulo de Foucault, é preciso pô-lo em movimento com muito cuidado. É aí que reside todo o segredo. Sem movimentos bruscos. Isso consegue-se prendendo aquilo que está na ponta (por exemplo, uma esfera de metal, qualquer coisa pesada, em suma) a um ponto de fixação.

- Digamos, as barras de uma pequena janela - disse o Dr. Dabbe causticamente.

- Serviam perfeitamente - concordou Sloan.

Já havia um homem do Laboratório Forense local a caminho da igreja de Randall's Bridge com o tipo de lente de aumentar com que Sherlock Holmes teria sonhado. Ia observar as barras de metal da janela. Nunca se sabia que marcas elas poderiam apresentar.

Dyson, o fotógrafo da Polícia, também estava a caminho da igreja. Tinha recebido instruções de Sloan para fotografar um fio preto suspenso de uma viga dos sinos.

- Fio preto, Inspector - tinha ele repetido. - Deve estar a gozar comigo. Isso não sorri nem que a gente lhe peça, nem sequer acede a olhar para o passarinho.

- Tenho motivos para pensar - tinha-lhe dito Sloan austeramente - que foi um instrumento de morte.

- Olha! - exclamou o incorrigível Dyson, em tom de fingido desapontamento. - E eu que estava a apostar num orangotango...

- O que geralmente se faz para pôr em movimento o Pêndulo de Foucault- continuou Sloan a dizer ao patologista - é queimar o fio que o prende para dar origem à rotação.

- é verdade - concordou Dabbe. - Tinha-me esquecido dessa parte.

- Quem o pôs em movimento foi assim que as coisas correram) deve ter deixado cair o fósforo, enquanto estava com o braço estendido através da janela.

- O Pêndulo de Foucault leva tempo, bem sabe, Sloan. Não sai imediatamente da posição. Não me recordo dos detalhes... não é o meu campo, afinal. Qualquer coisa como um grau em cada cinco minutos?

- Doze graus numa hora, Doutor, em Londres. - Sloan repetia fielmente o que o homem do museu tinha dito ao homem da Metropolitana.- Foi a questão do tempo que me pôs na pista.

- O tempo? O que tem o tempo a ver com isto?

- Penso que o nosso vilão precisava de tempo. É essa a única explicação que faz sentido. Caso contrário, para quê matar Tindall onde o fez... para não dizer do modo por que o fez? E porque não matá-lo logo, quando o agrediu pela primeira vez?

- Bom ponto, Sloan. Sir Digby foi morto logo.

- O motivo habitual - disse Sloan - para se precisar de tempo é o estabelecimento de um álibi.

Mas o patologista ainda estava a pensar no pêndulo.

- Seria um belo cálculo, Sloan. Tomavam-se os doze graus por hora mais o comprimento do pêndulo e a sua primeira rotação e penso que seria preciso conhecer o peso daquilo que foi colocado na extremidade. O que é que pensa que fosse, a propósito?

- Qualquer coisa pesada - disse Sloan. - Precisava de pesar pelo menos uns quinze quilos.

O museu também tinha dado essa informação à Metropolitana.

- Depois - disse Dabbe ainda mais energicamente-, teria que se calcular a inclinação da estátua, de modo que a primeira pancada do peso do pêndulo a derrubasse...

Sloan pigarreou.

- Pense, Doutor, que tinha dito que dispondo de factores suficientes, poderia resolver qualquer equação.

- Acertou - exclamou o patologista, deliciado. - Acertou em cheio. Diga-me mais coisas.

Sloan pousou o auscultador do telefone e apanhou qualquer coisa da secretária.

- Vamos, Crosby. Agora não podemos perder tempo.

- Para Cleete, senhor Inspector?

- Claro que não - disse Sloan combativamente, avançando em grandes passadas pelo corredor. - Tanto mais que já sabemos que aqueles pregadores de esmeraldas e diamantes eram para Mrs. Osborne.

O agente disse, tímida mas persistentemente:

- Para onde vamos, senhor Inspector?

- Para a Struthers e Tindall, evidentemente. Para onde queria ir?

Aquilo que Sloan tinha levado da sua secretária era um mandado de captura por assassínio.

Depois de o ter executado, postou-se em frente da secretária de Richard Tindall, no gabinete de Richard Tindall. A sua esquerda encontrava-se Miss Hilda Holroyd, Paul Blake e Gordon Cranswick. A sua direita, tendo sido apressadamente convocados de Cleete, Fenella Tindall e George e Mareia Osborne.

Sloan apontou para a secretária de Richard Tindall e disse:

- Secretária grande, homem grande. - Depois fez um gesto com a mão, na direcção do corredor que levava ao gabinete de Henry Pysden. - Secretária grande, homem pequeno.

Falava metaforicamente.

Todos o sabiam.

Henry Pysden tinha lutado como um tigre quando o prenderam. Foi necessária toda a força maciça do sargento Wharton, aliada ao peso de Crosby, para o levarem dali.

- Tudo começou - disse Sloan - quando uma patente antiga pertencente à Struthers e Tindall se tornou importante para um novo processo de fabrico.

- Valia mais comprar a firma - disse o proprietário da Cranswick Processing descaradamente - do que pagar uma royalty de cada vez que usássemos a patente da Struthers e Tindall.

- A Hallworthy Small Motors pensava o mesmo - disse imperturbavelmente Sloan - e foram um pouco mais longe do que o senhor. Introduziram Mr. Blake na firma, para descobrir o que se podia fazer para facilitar a venda.

Paul Blake tornou-se desconfortavelmente vermelho. Fenella Tindall, cujo rosto perdera toda a cor, voltou-se para ele:

- Com que então não passava de um espião, hem?

- Contudo - apressou-se a intervir Sloan - nem a Hallworthy nem a Cranswick Processing estavam na disposição de garantir a manutenção dos postos de trabalho e essa foi a sentença de morte de Richard Tindall. Descobriu que Paul Blake era um agente da Hallworthy, não gostou desses métodos, e decidiu-se a favor da Cranswick.

- Mas porquê? - perguntou Mareia Osborne.- Porque é que ele queria vender?

Sloan pigarreou.

- A mulher dele tinha morrido e julgo que adivinhava que ia também ficar sem a filha, muito em breve.

- Eu? - disse Fenella, enquanto lhe apareciam duas manchas rosadas nas faces.

- O vento soprava para os lados da Itália - disse George Osborne, falando pela primeira vez. Tinha um rosto magro e inteligente e, até ali, tinha estado a escutar atentamente o que diziam. - Não é verdade, Inspector?

E foi a vez de Fenella se ruborizar.

- Se herdasse a firma, miss, havia muito boas possibilidades de Henry Pysden ficar ou, pelo menos, negociar a nova venda.

George Osborne agitou-se um pouco.

- Inspector, não estou a ver onde é que a United Mellemetics entra em tudo isto.

- Não entra. De modo algum. Penso que iríamos constatar que nada havia de errado com o dossier da United Mellemetics.

- Então e o pobre do Sir Digby Wellow? - pergunta Mareia Osborne.

- Receio bem, Mrs. Osborne, que ele tenha morrido por motivos de... - Sloan procurou a palavra exacta.

George Osborne forneceu-lha:

- Verosimilhança.

- Muito provavelmente, Mr. Osborne.

- O dossier, no entanto... - disse Miss Holroyd, a secretária perfeita. - Não percebo o que sucedeu ao dossier, Inspector.

- Desapareceu, mas isso, segundo penso, foi apenas porque Henry Pysden o levou. Julgo que neste momento esteja no rio. A ideia veio-me de si, miss.

- De mim? - disse Miss Holroyd.

- Disse-me que não estava presente quando Pysden me disse que o tinha entregue a Mr. Tindall ontem. Quando voltei a pensar em tudo o que dizia respeito ao dossier, concluí que todas as chamadas informações misteriosas acerca dele apenas provinham de Henry Pysden.

Miss Holroyd franziu a testa.

- Mas ele disse que Mr. Tindall tinha dito...

- Simplesmente, estava a inventar - observou Sloan. - O encarregado da oficina e Mr. Blake - olhou com desagrado para o jovem cientista - consideraram o trabalho que nele tinham feito como simples rotina, de modo que voltei a investigar para o caso de aquilo não passar de uma manobra de diversão.

- E era? - Fenella começou a ficar pouco a pouco mais animada.

- Quer dizer que ele matou o desgraçado do Sir Digby Wellow só para... para... para dar um certo colorido ao assassínio do meu pai?

- Para fazer recair as suspeitas sobre a United Mellemetics, de qualquer modo, miss.

- Como é possível?! - exclamou ela.

- E a cópia da patente no gabinete de Mr. Blake, Inspector?- O espírito ordenado de Miss Holroyd tinha descoberto uma ponta solta.

- Outra manobra de diversão. Embora nessa fase, evidentemente - observou Sloan jovialmente-, deixasse Mr. Blake sujeito à acusação de um duplo assassínio. Paul Blake começou a gaguejar.

- C... c... co... como é isso?

Foi Gordon Cranswick, o homem de negócios, que lhe respondeu.

- Tindall podia tê-lo descoberto, meu rapaz, e você poderia tê-lo morto para o calar.

Naquele momento Paul Blake perdera toda a sua elegância.

- Eu não era capaz...

- Nós sabemos que não era - disse Gordon Cranswick bruscamente - mas o Inspector não podia ter uma certeza nessa altura.

- Nessa altura, não podia - concordou Sloan suavemente.

- Quando, então? - inquiriu o jovem cientista violentamente.

Sloan pigarreou.

- Quando comecei a pensar nos álibis em relação ao assassínio de Richard Tindall...

- Eu não tinha - retorquiu Blake imediatamente.

- Eu sei. - Sloan assentiu com um movimento da cabeça.- Ninguém tinha um álibi, excepto Henry Pysden, e, por estranho que pareça, era à prova de bala. Uma assinatura ligada a uma máquina duplamente selada.

- Segurança máxima - observou Gordon Cranswick na linguagem do Lloyds.

- Boa de mais - sugeriu George Osborne, de modo mais perceptível.

- Realmente de mais - concordou Sloan. - Infelizmente a venda da firma à Cranswick jogou a favor dele.

- Como? - inquiriu o presidente e director-geral da Cranswick Processing Limited.

- Julgo que as reuniões conspiratórias.o sigilo exagerado, as mensagens crípticas, etc, tudo isso faz parte integrante desse género de negociações.

- É prática corrente - garantiu-lhe prontamente o homem de negócios.

- Era de esperar que isso desse uma certa credibilidade a qualquer mensagem de que Henry Pysden se servisse para atrair Richard Tindall à torre da igreja, àquela hora da noite.

- O telefonema - disse Mareia Osborne, arquejante.

- Não foi acerca da Cranswick Processing, Inspector - disse Gordon Cranswick.

- Não foi. - Sloan tossiu. - No entanto não creio errar muito se sugerir que se Pysden tivesse dito que Sir Digby Wellow queria encontrar-se com ele naquele sítio e àquela hora Richard Tindall teria acreditado nele.

- Aquele palhaço...-principiou Cranswick, mas depois, recordando-se de que o outro também estava morto, recaiu no silêncio.

- O que era preciso era que a mensagem fosse crível quando Henry Pysden a transmitiu. Só isso. Nada mais. Podia ter imaginado o que quisesse. A partir daí, o caminho era plano.

- Gostava de saber como ele o fez - disse Fenella Tindall com firmeza - e depois queria ir para casa.

- Volta connosco - disse George Osborne num tom natural, que não admitia réplicas.

Mareia Osborne apoiou-o com um gesto da cabeça. As suas jóias de esmeraldas e diamantes também não estavam no seu ambiente, na Struthers e Tindall.

Sloan não se importava. Agora já não.

Inspirou profundamente e principiou:

- Havia um factor importante que era do conhecimento comum...

-... e que era, chefe, as obras que estavam a ser feitas na igreja de Randall's Bridge. - Sloan teve que repetir tudo ao superintendente, de regresso à esquadra. - Tiveram que anunciar a deslocação do legado Fitton (o sacristão disse-no-lo) para obterem uma licença para todas as alterações a fazer na igreja. Leeyes grunhiu.

- E era razoável que Pysden pensasse - prosseguiu Sloan com voz suave - que um patologista conseguiria determinar a hora da morte de Tindall com relativa exactidão. Estão a ficar cada vez mais exactos.

Leeyes grunhiu de novo.

- Por isso, em qualquer altura depois das Vésperas, no domingo, Pysden prende o seu pêndulo, faz os cálculos de modo a que embata na estátua às onze e meia, e depois, na noite passada (o dia anterior àquele em que Tindall vai assinar o contrato), Pysden dá-lhe o recado de que Gordon Cranswick ou Sir Digby ou Gengis Khan quer falar com ele na torre da igreja de Randall's Bridge... ou outra história do mesmo género. Isto é outro ponto contra ele. A propósito, chefe...

- O quê? - perguntou Leeyes inutilmente.

- Aquele tipo de recado deve ter vindo de alguém como Pysden em quem Tindall realmente confiava, se não ele não teria ido. Imagine se eu ia à torre de uma igreja à meia-noite.

- Se eu lhe pedisse que fosse - disse Leeyes intencionalmente- presumo que iria.

- Naturalmente - apressou-se Sloan a dizer. - Evidentemente, chefe. Assim, Pysden espera por ele no campanário, abate-o e põe o pêndulo em movimento.

- Sórdido.

- Pysden leva o carro de Tindall para a garagem em Cleete... que é o único sítio onde ele não ia causar comentários, vai buscar o seu próprio carro que provavelmente deixou algures em Cleete (o Hepple está a investigar isso neste momento) e depois volta à pressa para as instalações de Berebury, para estabelecer o seu álibi. Tem meia hora e tudo corre perfeitamente.

- Hummmmm!

- Só lhe falta voltar lá para ir buscar o peso de chumbo. - Sloan tossiu. - E assassinar Sir Digby foi... há... só para disfarçar.

- Outra premeditação?

- Uma brincadeira de crianças. Bastava que Pysden falasse em haver qualquer coisa estranha no dossier da United Mellemetics para que Sir Digby fosse encontrar-se com ele em qualquer parte.

- E o italiano? - disse Leeyes resolutamente. - Tudo aquilo que diz quanto aos proveitos a tirar também se aplica a ele.

- A visita dele foi inesperada - disse Sloan. - Mrs. Turvey, a mulher-a-dias de Cleete disse-nos isso. E este crime foi... hã... premeditado.

- Eu sempre disse - proclamou o superintendente - que não podia brincar com a gravidade.

- De qualquer modo, chefe - disse Sloan apressadamente-, às duas horas desta madrugada Giuseppe Mardoni estava no aeroporto... não a recuperar um peso de chumbo do pêndulo numa igreja, com uma cana de pesca.

- A rapariga podia ter feito isso - sugeriu Leeyes, mas com pouca convicção.

- Ela vai vender a firma ao Cranswick, depois de se ter aconselhado sobre o valor daquela patente antiga.

Foi o agente Crosby que veio interrompê-los.

- Ainda não há notícias acerca daqueles sapatos do campo de golfe, senhor Inspector, mas há duas cartas anónimas mais, vindas de Cullingoak. - Sorriu. - Por acaso aquela que fala da mulher do vigário é muito boa.

O rosto do superintendente tornou um colérico tom arroxeado.

Crosby não reparou. Prosseguiu, dizendo:

- E o secretário municipal está ao telefone. Acham que desta vez foi açúcar que puseram no depósito de gasolina do carro do presidente da Câmara...

- Que vai ele alegar? - perguntou o Dr. Dabbe, com um ligeiro interesse.

- Ouvi dizer que a Defesa contratou um psiquiatra - disse Sloan.

- Essa já não pega - observou o patologista Jovialmente.- Os psiquiatras e as habilidades com bicicletas já passaram de moda.

Sloan ergueu uma sobrancelha, olhando de modo trocista para o patologista.

- O facto de se ter visto na infância qualquer coisa sórdida num barracão já não é o motivo por que se matam velhinhas, afinal?

- Receio bem que já não.

- Então - inquiriu prudentemente o inspector Sloan, antigo polícia de giro-, o que é que vai entrar em moda?

- Uma nova versão do pecado original, meu velho.

- Não existe.

- Oh, sim, existe! Chama-se Bioquímica.

- O que é isso?

- Cromossomas, para começar. E muita coisa mais. Sloan deteve-se um pouco, para pensar.

- Isso é melhor ou pior? O patologista riu-se.

- Pior, Sloan. Muito pior. Ninguém pode discutir com um bioquímico.

O agente Crosby colocou o último dossier de declarações sobre a secretária de Sloan.

- É tudo, senhor Inspector. Incluindo o recibo da

Adamson.

- Crosby...

- Diga, senhor Inspector.

- Crosby, por acaso reparou em alguma coisa fora do vulgar na casa dos Osborne, quando esteve lá?

- Não, senhor Inspector. - Resposta imediata.

- Na parte de cima da lareira - sugeriu Sloan com forçada paciência. - Não reparou em qualquer coisa em cima da lareira?

Crosby apertou os olhos, para pensar.

- Não, senhor Inspector.

- Não viu cartões de parabéns? - Era quase uma súplica.

- Oh, sim, senhor Inspector! Uma data deles...-A sua voz tremeu. - Bem bonitos, por sinal.

- Crosby - disse Sloan, deixando escapar um longo suspiro-, já que não consegue ser um bom exemplo, ao menos poderá servir com uma terrível advertência.

 

 

                                                                  Catherine Aird

 

 

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