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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FÚRIA DAS VINHAS / Francisco Moita Flores
FÚRIA DAS VINHAS / Francisco Moita Flores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Este romance recupera factos e histórias que Francisco Moita Flores não incluiu na serie que escreveu para a RTP com o título A Ferreirinha. Narra a epopeia da luta contra a filoxera, uma praga que, na segunda metade do século XIX, ia destruindo definitivamente as vinhas do Douro. O autor criou um bacharel detective – Vespúcio Ortigão – que, na Régua, persegue um serial killer, confrontando-se com o medo, com as superstições, com as crenças do Portugal Antigo que, temente a Deus e ao Demónio, estremecia perante o flagelo da praga e dos crimes. E uma ficção, é certo, mas também um retalho de vida feita de muitos caminhos que a memória vai aconchegando conforme pode.






Recortado no horizonte, sentado sobre as patas traseiras no cimo da escarpa, o lobo levantou o focinho aos céus. Soltou um uivo de mau agoiro que se dissolveu nos silvos da ventania rasgada pelas arestas afiadas dos penhascos que apertavam o Rio. Soprava de nortada, gelado e rijo, em vagas alteradas, vergando o que restava das videiras, encarquilhadas e retorcidas, roídas na alma e na seiva pela fúria da praga que ainda há pouco chegara, vinda das encostas do Peso e do Pinhão. Corria matando vinhas inteiras, transformando encostas em cemitérios de ruína a perder de vista. Ninguém sabia como chegara esta praga de morte. Ninguém sabia quando partiria, e os vinhedos, que, naquela altura do ano, deveriam ter a cor verde das margens alcantiladas do Rio, mirravam pela força desta peste que esmagava o Douro. E o céu estava escuro de nuvens prenhes de água.
O lobo tomou a uivar. De súbito, uma faísca iluminou os picos da outra banda, para os lados de Carrazeda, e o estampido formidável do trovão ribombou ao longo de todo o vale. As cepas moribundas estremeceram e o lobo levantou-se, atento, orelhas arrebitadas, mas apenas o vendaval chiava pelas faldas das montanhas. Um segundo trovão explodiu grave e metálico e, por instantes, o vento parou. O lobo olhou em volta, ainda desconfiado, e aproximou-se do cadáver da rapariga que jazia seminua, braços e pernas abertos ao céu, sobre o píncaro da fraga. A blusa estava aberta, seios desnudados e pernas descobertas, enquanto a saia esvoaçava a cada rajada mais forte.
O animal abriu as narinas para melhor perceber o enorme buraco aberto no abdómen por onde regurgitava um pedaço de intestino.
Não deveria ter mais de quinze anos e os cabelos negros, longos, espalhavam-se, desordenados, pelo rochedo. Farejou a enorme mancha de sangue que encharcava a roupa da morta e se espraiava, coalhado, pelo chão. Estendeu a pata direita sobre o peito do cadáver e, por duas vezes, tentou puxá-lo, rasgando-lhe a carne.
Foi então que um trovão, num estoiro infernal, calou a terra de medo, silenciando a fúria do Douro, as cepas mirradas estremeceram cm estertores e a urze pulou de sobressalto. A seguir, como se uma legião de diabos corresse sobre as nuvens negras, o som desandou em tropel a caminho de Barca d’Alva.
Foi o anúncio da tempestade. A chuva chegou cm cascatas. O céu abriu-se, definitivo, varrendo as serranias e, pelos socalcos das vinhas, a água engrossou, turbulenta, em direc– ção aos barrancos que emborcavam na ribeira das Fomeiras ou, mais abaixo, na Carrapatosa. A terra desvanecia-se aos estrondos das explosões que rasgavam os céus e raios de mil miríades transformavam a paisagem numa visão do Inferno.
A água lavara o sangue do cadáver sobre a rocha e o lobo não gostou da violência da bátega. Encolheu-sc com o rabo entre as pernas. Ainda ensaiou sacudir-se num estranho bailado, agitando o corpo, mas o resultado não foi o melhor. A chuva cada vez mais feroz varreu-lhe o lombo, picou-lhe as orelhas e escorreu, abundante, pelas patas. Um par de trovões estralejou mesmo por cima do rochedo onde a fera e o cadáver se encontravam e o lobo, assustado, desistiu da refeição. Correu rápido até um mato de estevas altas que dali se avistava e desapareceu.
As nuvens desabaram brutais sobre os píncaros das serranias, o dia empalideceu em tons de cinzento-escuro como se a noite tivesse chegado pela hora do meio-dia e quem agora olhasse o cadáver desnudado da rapariga, em tons de mármore, já não veria um pingo de sangue. Fora levado pela força da tormenta.
Lá longe, nas goelas da Valeira, o Douro rugia de dor, entalado no garrote das montanhas. Os sons tonitruantes vindos dos céus e do Rio lembravam a fúria inaudita de Deus quando soltou os demónios pela Terra para castigar a venalidade dos ímpios e a devassidão dos incautos. O povo das terras quentes tinha razão. Quando o Douro se entregava assim à raiva das tempestades era sinal de que o diabo andava à solta, faminto de sangue e morte pelas cumeadas do Marão.
D. Antónia aproximou-se da janela. O rosto fechado denunciava as preocupações que a dominavam. Lá fora o vendaval dobrava as cidreiras que ladeavam a Quinta tio Porto e o Douro corria veloz, esmagando as margens. Nada que lhe causasse espanto. Carregava mil memórias do Rio, de todos os dias, da alegria à tragédia. Não era a tempestade que lhe turvava o olhar. Era a praga. Voltou-se lentamente para o marido.
– Esta chuva vai dar cabo do que faltava. Não fica uma uva nas cepas.
– Há muito tempo que não vinha trovoada em Agosto.
Deixou-se cair no canapé. O vestido negro fazia-a ainda
mais franzina, embora não se reconhecessem os setenta e tal anos intensamente vividos.
– Que vai ser desta gente, Francisco? Parece que Deus nos voltou as costas ou que nos quer castigar pelos pecados dos outros.
Francisco Silva dorres sorriu, condescendente.
– A filoxera não é uma praga vinda dos céus.
– Então veio das profundezas do Inferno!
Ergueu-se e havia irritação na voz de Antónia Ferreira. A silhueta magra recortada na luz discreta da sala empertigou-se ainda mais.
– Há anos que vivemos nesta loucura. Morrem as vinhas, morrem as cepas, morrem os bacelos, morre gente esfomeada por todo este vale abaixo e, como se não bastasse tanto luto, tragédia tão grande, chegam estas trovoadas para destruir as uvas que restam. Raios!
Deu um murro na mesa e a sala iluminou-se por instantes para logo ser sacudida pela violência do trovão.
Ficaram os dois em silêncio e a chuva forte parecia ter dedos que tamborilavam contra os vidros das janelas. Francisco fez um gesto de desalento.
– Estou cansado desta luta. Temos tentado tudo, mas o malvado do insecto resiste a todos os tratamentos. Centenas de contos em enxofre, centenas de contos em sulfureto, para nada. As vinhas acima do Corgo são mortórios atrás de mor– tórios. Nem uma parra, nem um bago de uva. Os vinhedos do rio Torto acabaram e a destruição alastra pelo Tua. Não sei o que fazer, Antónia. Ninguém sabe o que há-de fazer. Parece que chegámos ao fim dos tempos.
– Destruídos por um insecto? Nunca! – O grito de Fer– reirinha chamou a atenção da criada, que entrou pressurosa.
– Precisa de alguma coisa, minha senhora?
– Não, nada. Estou a falar com o meu marido. Sai daqui!
Voltou-se para Silva Torres.
– Nunca, Francisco! Não vou permitir que um insecto, um insecto ordinário e vulgar, destrua o trabalho de tanta gente, aquilo que tantos homens e mulheres fizeram por esta terra. Há demasiado sofrimento espalhado pelas encostas do Rio, são milhões de pedras e de canseiras que fazem a história dos nossos vinhos. E tantos mortos, Francisco! E tanta vida feita e desfeita para que este chão fizesse sentido. Juro-te por Deus. Não vou deixar que um reles insecto continue a destruir as vinhas e a roer-nos a alma. Antes de matar o Douro, tem de dar cabo de mim.
Saiu determinada. Furiosa. Talvez por isso não tenha percebido o cansaço e a palidez no rosto de Silva Torres. Na verdade, o desalento do homem que ajudara a construir o império dos Ferreira era apenas um sintoma da doença que há muito tempo lhe roía a saúde, tão persistente como a filoxera que roía a alma das cepas.
Dizia-se que tudo começara nas Gouvinhas. Pelo menos foi a conclusão a que chegou a primeira comissão designada pelo Governo, e presidida por Rodrigo Morais Soares, depois de terem estudado a praga em dezenas de quintas de Sabrosa a São João da Pesqueira. O dono da Quinta dos Montes importara vinha americana, que chegara contaminada com a filoxera. Conforme se foi adaptando às condições naturais do Alto Douro, multiplicou-se e expandiu-se pelas terras vizinhas, cercando a Galafura, galgando o rio Ceira e atingindo o Castedo.
Nos inícios de 1872, uma década depois da chegada da filoxera, a devastação crescia, correndo agora pelas margens do vinho do Porto. Valença e Ventozelo, Sarzedinho e por aí acima ao longo do rio Torto, o exército de parasitas sugava o tutano das vinhas e o garrote de miséria asfixiava de fome lugares e aldeias inteiras. A morte partira do Corgo e ameaçava agora os vinhedos do Tua.
É verdade que a maior parte do grande império da Ferreirinha , feito de quintas e vinhedos avulsos, ainda pouco fora tocado pelo dedo do demónio. Mas era preciso conhecê-la para se perceber a raiva que lhe ia no peito. E no peito albergava-se o Douro inteiro. Ali, na Régua, ainda menina, calcando os passos do pai, José Bernardo, aprendeu que, mais do que na riqueza abastada da família, tinha a sua fonte maior na generosidade.
– A fortuna não se mede pelos hectares de vinha nem pelas pipas de vinho – costumava dizer José Bernardo. – Não fará sentido e desaparecerá se os homens que as tratam não tiverem um pingo de esperança!
Quando o pai morreu, tinha Antónia quarenta e dois anos, ouviu de Guilhermino de Barros, no discurso fúnebre que este então proferiu, a mensagem que ela continuara pela vida fora: «Não fez derramar lágrimas como os heróis e conquistadores – estancou-as. Que o digam os milhares de pobres a quem socorria.» E bem sabia como era verdade aquilo que se proclamava diante da sepultura do homem que mais amou.
Agora, trinta anos depois desse dia, a morte chegava ao sangue da sua terra sob a forma de insccto.
Silva Torres entrou. Sabia que a mulher se refugiava sempre naquele quarto e ficava defronte da janela a olhar as ribanceiras da Quinta do Seixo e o Rio, que em vagas descia, vindo do Pinhão a caminho da Régua, quando os problemas tumultuavam no seu peito sem solução à vista. Aproximou-se e afagou-lhe o ombro.
– Estás bem?
– Estou. Respondeu com secura.
– Tenho de partir. Esperam-me em Vila Real para um encontro com os nossos deputados.
– Eu sei.
– Dali vou para o Porto. A gente da Clode & Baker espera-me por causa das encomendas para Inglaterra.
– Francisco...
– Sim?
– Desculpa-me por ter sido áspera. É com a vida que estou zangada.
– Não estarás a ser injusta?
– Dói-me tanto a tragédia que nos calhou. Há tanta miséria por este vale...
Francisco sorriu, condescendente.
– Sempre viveste com força os problemas dos outros e sempre te admirei por isso. Não é agora, que estamos a ficar velhos, que te vou pedir que mudes de feitio.
– E estou preocupada contigo. Vejo-te demasiado abatido, triste.
– E apenas cansaço. Estou bem.
Antónia aproximou-se do marido, agarrou-lhe as mãos e olhou-o com ternura.
– Não sei como seria a minha vida sem ti.
Silva Torres sorriu.
– Teria sido igual ou melhor ainda. És a cepa mais rija que o Douro pôs cá fora. O rochedo mais firme do Marão.
O rosto dela iluminou-se.
– Sou demasiado fraca e pequenina para ser aquilo que tu dizes. Até me chamam a Ferreirinha.
Riu divertido.
– Está enganada, dona Antónia Adelaide. O povo chama– te Ferreirinha porque te ama e sabe que te preocupas como se fosses a mãe de toda a gente. Vou indo.
Beijou-lhe a testa. Antónia abraçou-o e ficou aconchegada no seu peito.
– Tem cuidado contigo. Estou preocupada com a tua saúde.
Abraçou-a com força e gargalhou:
– Estou demasiado velho para também quereres ser minha mãe! – Mudou de tom para avisar: – Amanhã almoço com o visconde de Vila Maior, a quem o Governo nomeou para a nova comissão que está a tratar da praga. Se tiver boas notícias, mando alguém avisar-te.
Francisco saiu e Antónia voltou à janela para o ver partir pela alameda da Quinta do Porto acima. A chuva parara e a terra lavada do aguaceiro despertava, quente, devolvendo o calor que recebera durante todo o Verão.
Silva Torres era o seu segundo marido. Tinham casado em Londres, quando fugira com a filha Maria da Assunção, para não se submeter aos caprichos do duque de Saldanha. Desde então, fora o companheiro e amigo com quem contara para transformar a empresa A. A. Ferreira numa das mais poderosas fortunas do reino.
A criada bateu à porta.
– Minha senhora.
– O que foi, Maria?
– O senhor António Claro acabou de chegar.
Olhou-a, surpreendida.
– O António Claro? Aqui?
Saiu apressada. O administrador dos escritórios no Porto era um homem corpulento, de olhos negros, serenos, e voz grave. Tirava a capa quando Antónia Ferreira entrou na sala.
– Como está, senhora dona Antónia?
– Que aconteceu, António? Passou-se alguma coisa com o meu filho?
– Não, acho que não. Não vejo o senhor António Bernardo há algumas semanas. Dizem-me que está em Paris.
Fez um gesto de irritação.
– Era melhor que cuidasse da sua vida em vez de andar em passeatas. Mas, para teres vindo do Porto, alguma coisa aconteceu.
António Claro pôs em cima da mesa vários exemplares do jornal do Porto e do Arquivo Rural.
– As notícias que chegam da Régua puseram Vila Nova de Gaia e a Rua dos Ingleses em pé de guerra.
– Por causa da praga.
– Não se fala de outra coisa.
Antónia folheou os jornais. Sucediam-se as notícias sobre a filoxera e a ruína dos vinhedos do Corgo. Levantou o olhar para o seu homem de confiança.
– Os exportadores querem baixar os preços?!
– Não sei como vamos aguentar, dona Antónia.
– Não permitindo que façam chantagem connosco. Se baixarem os preços, os desgraçados que estão com a corda na garganta vão ficar na ruína completa.
– O problema é outro. Se ninguém encontrar uma cura para esta praga, não faltará muito tempo para que o Douro seja um enorme mortório donde não sai um almude de vinho.
– Não aceito esse destino.
– Oxalá pudéssemos evitá-lo, senhora.
Antónia Ferreira ficou em silêncio. O sol entrava agora pela janela e as araucárias brilhavam. O chilreio da passa– rada anunciava o fim da tempestade e o Verão retomava o caminho pelos campos. Só o Rio estava mais grosso e forte do que era habitual nesta época do ano.
Fora também num dia semelhante àquele, depois de uma trovoada, que de Paris chegou a notícia da morte do seu primeiro marido, com as entranhas carcomidas pela sífilis. O conde de Bonfim telegrafara informando Antónia, que, em vez de chorar, sentiu desprezo por quem consumira a vida inteira até aos trinta e dois anos. António Bernardo Ferreira esbanjara dinheiro e prazeres vivendo a festa dos sentidos até aos limites das forças. Nunca deixou de acreditar que a morte do marido e primo começou no dia em que abandonou a Régua para tomar a cidade do Porto por sua mãe legítima. Trocou a alma pelo vício, a memória dos afec– tos mais limpos pela vertigem da futilidade.
Agora, depois de outras trovoadas, da cidade que o matara chegavam notícias dos mercadores ingleses que queriam assassinar a sua raiz.
– Se baixarem os preços, vai ser o fim. O Douro não pode lutar contra a praga e a especulação ao mesmo tempo.
António Claro abriu os braços num gesto de vencido.
– Acho que está na hora de salvarmos os dedos porque não vamos conseguir ficar com os anéis.
– O que queres dizer com isso?
– Por mais que lhe custe, é capaz de ter chegado a hora de vender as suas quintas. Pelo menos aquelas que estão doentes. Os preços de compra estão a baixar e irão baixar ainda mais conforme a filoxera for avançando por essas encostas fora. As reservas de vinho que temos chegam e sobram para ganhar tempo até que a praga se vá embora.
Antónia não conseguiu responder logo. Deixou-se cair, pensativa, numa cadeira. Há muitos anos que António Claro era um dos seus homens de maior confiança, o amigo dedicado e fiel com quem podia partilhar todas as angústias da vida.
– Não há outro caminho?
– Talvez haja, mas não o conheço.
Pegou num dos folhetos que ele trouxera da cidade. O Novo Flagelo das Vinhas – Philoxera Vastatrix. Assinava-o José Duarte de Oliveira Júnior. Desde miúda, quando acompanhava o pai pelas vinhas das Nogueiras, de Travassos, do Vesúvio, que a aflição com as pragas era aflição de todos os anos. Sobretudo o oídio e o míldio. Depois de muitas batalhas, a calda de enxofre tornara-se remédio milagroso que, se não acabava com as doenças, pelo menos espantava-as durante algum tempo. Mas agora era diferente. O maldito bicho instalava-se nas cepas, multiplicando-se por milhões que entravam como legiões, destruindo hectares e hectares de vinhedos. Ali mesmo, na Quinta do Porto, a comissão científica nomeada pelo Governo fazia experiências com inúmeros antídotos: cal, cloreto de potássio, adubos de todas as qualidades tinham sido testados. O sulfureto de carbono parecia ser a arma mais potente contra tão formidável inimigo, mas não chegava. O insecto era a maldição dos infernos.
Por fim, Antónia Ferreira falou para António Claro.
– Cada quinta que comprámos valeu tanto sacrifício que pensar em vender alguma delas é como se arrancasse um pedaço de mim, e sei que quem as comprar vai despedir os nossos caseiros e as famílias a quem damos trabalho.
– É o que está a acontecer por todo o lado. A ruína dos campos está a trazer fome a muita casa. Por mais que lhe custe, tem de tomar uma decisão. Quanto mais tarde vendermos, pior será.
– Vamos fazer assim, António Claro. Regressas ao Porto. O meu marido foi para Vila Real e depois vai ter contigo. Eu vou visitar as nossas quintas mais doentes e, a seguir, encontramo-nos todos para decidirmos o futuro da nossa casa.
O administrador inquietou-se.
– A senhora vai sozinha por esse Rio acima?
– Qual é o problema? Achas que estou assim tão velha?
– Não, quer dizer, os caminhos são perigosos e há bandos de ladrões por todo o lado.
– Não tenho medo de ladrões. Amanhã cedo parto para Vargelas. Vai! Se Deus nos ajudar, havemos de dar cabo desta maldita praga.
António Claro fez um cumprimento e saiu. D. Antónia ainda não sabia, mas multidões de homens e mulheres, de Santa Marta de Penaguião até Lamego, dos lugares de Sa– brosa, de Vilarinho de Cotas e Casal de Loivos até Desejosa e Santo Aleixo, não tinham dúvidas de que o fim do mundo estava perto e a filoxera era o seu anúncio final. Deus cansara-se. O Inferno estava a chegar à Terra.
Não admirava, a quem soubesse, a multiplicação das mezinhas, benzeduras, encomendações e feitiços em cada pedaço de chão ocupado pela filoxera. Porque, sabiam os povos, habitados pelas memórias vindas do fundo dos tempos, que na hora da aflição é preciso suplicar a Deus, invocar santos e espíritos para que a ruindade que cheira a morte seja banida dos destinos marcados na palma de cada mão. E como repetia o Morto-Vivo, o bruxo mais conhecido daquelas paragens, a filoxera mais não era do que a praga apocalíptica ditada pelo império do demónio. Não eram apenas as cepas que morriam. A torça cio matarrico vencia a vontade divina. E não havia outra explicação. Os mortórios de vinhedos eram a premonição que anunciava o fim dos tempos e a chegada do reino dos mortos.
O regedor de São João da Pesqueira, Luís Morgado, fez um gesto de contrariedade quando viu chegar, em passo apressado, Vespúcio Ortigão. Era um dos oito filhos do cónego Gregório, de Tabuaço, e ficara-se pelo mundo só com uma tia quando o velho foi a enterrar, pois a mãe, a governanta, há muito que tinha ido, com os pulmões desfeitos pela tuberculose. O padre João Matias, de Linhares de Ansiães, matara– lhe a fome e, porque o moço era vivo com uma raposa, apresentou-o à Ferreirinha gabando-lhe as qualidades. A lavradora, por piedade, pagou-lhe os estudos.
Partira para Coimbra onde cursara Direito, na ressaca da tumultuosa geração que agitara de forma definitiva a academia coimbrã. Antero de Quental, Teófilo Braga, Eça de Queirós, José Falcão, entre outros, foram nomes que conheceu pelas lembranças que deixaram. Quando os colegas mais velhos evocavam estes estudantes, associavam a sua acção às maiores farras, aos grandes despiques intelectuais, ao afrontamento das autoridades académicas e políticas. As acções da Sociedade do Raio contra o reitor Basílio Pinto, ainda que tivessem passado quase dez anos, perpetuaram-se no meio universitário a que se associava sempre a grande rebelião estudantil que abandonou Coimbra, asilando-se no Porto, num movimento de protesto contra o Governo do duque de Loulé.
Contava-se que Antero de Quental zurzira, num artigo inflamado, sem apelo nem agravo, António Feliciano de Castilho, que, naquele tempo, era considerado o príncipe dos poetas românticos. Camilo Castelo Branco, amigo e admirador do poeta, não gostou. Com a acidez empolgada do seu talento literário, publicou um texto onde deixava Antero de rastos. A resposta do irreverente poeta-estudante, que acabara de publicar as Odes Modernas, não foi com a pena mas com a espada. Meteu-se no primeiro comboio que passou em Coimbra e foi por aí acima disposto a resolver a contenda intelectual à espadeirada.
O povo estudantil levantou-se em peso para apoiar o seu herói. Sabia-se que Ramalho Ortigão ainda tentara dissuadi– lo, mas em vão. Na refrega, feriu o autor do Amor de Perdição e Coimbra recebeu-o transformado em mito.
Vespúcio Ortigão ouvia todas estas histórias com devota admiração. Procurava acompanhar aquilo que faziam – quase todos viviam agora em Lisboa ou no Porto – e foi com grande curiosidade que seguiu as Conferências do Casino Lisbonense e o tumulto com que foram suspensas pelo duque d’Ávila, então presidente do Ministério. A oração produzida por Antero chegou-lhe às mãos. A Causa da Decadência dos Povos Peninsulares foi um documento que leu e releu. Gostaria de ter escrito aquilo. Sobretudo espantava-o a forma como o autor pensava. E apaixonou-se pelos livros. Um amor que parecia eterno. Terminou o curso no ano em que outro dos heróis desse tempo, Eça de Queirós, publicou O Crime do Padre Amaro. A beleza literária, a coragem do escritor, que do modo mais impiedoso desnudava as falsas virtudes eclesiais, decidiu Vespúcio. O reino estava podre, precisava de mudança, e ele estaria com todos aqueles que a quisessem fazer.
Regressou bacharel, mas doido. Pelo menos assim o julgavam os tendei ros e comerciantes da região da Régua. Vespúcio Ortigão era excessivamente magro e, por ser muito alto, parecia, ao caminhar, que estava sempre na iminência de cair.
Chegou perto do grupo de homens que rodeava o cadáver da rapariga, espreitou atento e proclamou:
– Está morta.
O regedor, impaciente e agastado, respondeu, cortante.
– Se veio aqui para nos dar essa novidade perdeu os seus passos. Toda a gente já percebeu que a cachopa está morta.
– Muito bem! – concluiu, solene.
Foi um dos caseiros do Vesúvio quem descobrira o corpo da rapariga e correu a avisar o senhor António Sousa, administrador da quinta e sobrinho da Ferreirinha. Vieram outros homens, depois de mandar a notícia a São João da Pesqueira, e o regedor tomara conta do caso. Nenhum dos presentes a conhecia. Não era das redondezas e a autoridade concluiu, judiciosa:
– Deve ser mais uma vadia das terras quentes à procura de esmola e que se perdeu por aqui. Os lobos deram cabo dela.
O bacharel não se conteve.
– Os lobos?
– Não vê os arranhões no peito da moça? Aquilo é pata de lobo. O buraco na barriga com as tripas de fora foi o que conseguiram comer e, se não a comeram toda, foi porque alguma coisa os assustou.
À sentença do regedor alguns dos presentes recordaram outras histórias de lobos e presas indefesas pela serra fora. Luís Morgado voltou as costas com desprezo ao rapaz e dirigiu-se a António Sousa.
– Vossa Senhoria podia fazer-me um grande favor? Dispensa-me uma das suas parelhas de bois para transportar na carreta o corpo desta infeliz? Vou enterrá-la na vala do cemitério da vila.
O administrador do Vesúvio assentiu. Deu instruções a um dos trabalhadores presentes. Vespúcio voltou a intrometer-se.
– Vai mandar a rapariga para a vala comum e acabou-se? E se não foram os lobos que a mataram?
O regedor olhou-o com desprezo, enquanto se preparava para montar o cavalo.
– Por causa desta história tenho o negócio fechado desde o almoço. Não tenho vagar para aturar as suas maluquices.
Picou as esporas no cavalo e partiu a trote. Era barbeiro, miguelista dos quatro costados e regedor por recusa de todos a quem o cargo fora oferecido. E homem de verdades feitas. Embirrava solenemente com o filho do falecido cónego de Trancoso e usava amiúde o argumento demolidor: «Conheço-o desde rapaz. Passava fome de cão tinhoso. A Ferreirinha pagou-lhe os estudos e chega aqui armado em doutor. E o que dá a velha ser uma mãos-largas. Se o dinheiro que gastou com ele tivesse vindo à minha mão, teria levado melhor sorte. Um cão tinhoso!»
Vespúcio tinha, de facto, mudado muito desde o tempo em que o barbeiro o recordava andrajoso, melancólico, estendendo a mão à esmola. Os antigos militantes da Sociedade do Raio, mesmo ignorando que ele existia, tinham-lhe alterado o pensar e o agir. Estudara c lera, muito para além daquilo que o seu curso exigia. E a cada livro, a cada texto que encontrava, vindos de outros autores estrangeiros e nacionais, abria novos caminhos ao seu próprio caminho. Por razão da sua formação universitária, atraía-o o crime e a solução mal resolvida pelo direito criminal, que transformava cada tribunal numa casa de injustiça. Voltaire, um dos seus escritores predilectos, desfazia por completo a justiça trancesa. Nas Cartas Persas, levantou os problemas que Vespúcio Ortigão encontrava na instância judiciária portuguesa. A prova que ali se apresentava, assente em testemunhas que a maioria das vezes não tinham mais nada para dizer do que grandes tiradas mais ou menos morais, deprimia-o. No final de cada julgamento ficava com a terrível sensação de que não se fizera justiça. Entre muitos, chegaram-lhe às mãos os livros de mistério de Gaboriau e Edgar Alan Poe. Maravilhara-se com os feitos do fantástico Vidocq. Mas o verdadeiro problema não era resolvido por estes escritores: a descoberta de um caminho coerente que unisse o crime ao criminoso de forma tão óbvia que ao juiz não pudesse resultar dúvida sobre o verdadeiro culpado. A lógica tinha de ser a argamassa desse caminho. A emergência de um nexo de causas que demonstrava que tal indivíduo cometera detenni– nado crime sem a dependência do testemunho ou, melhor ainda, sem a necessidade quase asfixiante de uma confissão. Foi a lógica que o encaminhou para Aristóteles e para os silogismos. Ora o reconhecimento silogístico atirou-o de braços abertos para o regaço da ciência que, naquele tempo, acreditava piamente no determinismo lógico. Foi assim que leu o Catecismo Positivista como se fosse uma bíblia, embre– nhou-se em Emile Littré e decorou textos inteiros de Teófilo Braga.
Devemos reconhecer que era literatura a mais para a pacata vila da Régua. E agora, no caso concreto, para o regedor da Pesqueira. Uma derrocada de muitos saberes sobre a verdade conseguida a custo de lendas e provérbios do barbeiro-regedor.
Rapidamente ganhou a fama de doido. E o aspecto desengonçado do corpo não ajudava a contrariar a sentença ditada pelas autoridades das redondezas. Os cabelos encaracolados, louros e abastados misturavam-se numa barba hirsuta e pouco cuidada.
Vespúcio olhou o cadáver com curiosidade, enquanto dois homens procuravam paus para fazer uma padiola. Lera Bichat, o precursor da tanatologia moderna, e as suas magistrais conclusões sobre as causas de morte dos cadáveres que dissecou. Com Balthazar conseguiu perceber a minúcia do ofício de médico-legista e algumas autópsias a que assistira no teatro anatómico da Faculdade de Medicina de Coimbra forneceram-lhe os conhecimentos básicos que agora exercitava.
As roupas que a infeliz rapariga tinha vestidas não condiziam com a conclusão de vadia retirada pelo regedor. A saia era de lã grossa azul e usava corpete com espartilho, sinal de que os pais não eram mendigos. Assim como os botins de cabedal castanho com fivelas douradas. Quem tem dinheiro para comprar roupa daquela por certo que não sabia o que era a fome. Chamaram-lhe a atenção os arranhões e golpes que mostrava no braço direito e, ao aproximar-se um pouco mais, percebeu que segurava um tufo de cabelos pretos na mão esquerda. Um sorriso brilhou no seu rosto. Aqueles cabelos não eram de um lobo. Apressado, tirou o lenço do colete e recolheu-os. Foi então que observou com maior cuidado a ferida que abria o abdómen. Fora da barriga estava um bom pedaço de intestino delgado. Anotou mentalmente os bordos do ferimento e ficou quieto, pensativo, a olhar o corpo marmóreo. Era evidente que sangrara bastante, mas não se viam sinais de hemorragia. A chuva deveria ter lavado o sangue.
Os homens que faziam a padiola observavam-no de longe, desconfiados. Só alguém sem juízo anda em volta de um morto a farejar como um cão. Entretanto, aproximava-se a parelha de bois puxando a carroça. Os jornaleiros chegaram com a padiola improvisada e Vespúcio ofereceu-se.
– Eu ajudo.
Enquanto os outros seguravam o corpo, o bacharel meteu as mãos por debaixo da nuca do cadáver. Sorriu novamente ao sentir os ossos da cabeça cedendo ao toque, e quando largou o corpo tinha sinais de sangue na ponta dos dedos.
O cortejo partiu e o rapaz ficou a vê-lo afastar-se. Foi então que, não escondendo a excitação, se colocou de joelhos, gatinhando como uma criança, olhos colados ao chão. Afas– tou-se um pouco e viu as patas do lobo marcadas na terra húmida. Não ficou entusiasmado. Apenas confirmava o que ele já sabia. O animal estivera junto ao corpo e afastara-se por razões desconhecidas. As marcas dirigiam-se para o matagal que começava um pouco mais adiante. Desinteressou-se. Tomou a vasculhar o terreno com redobrada atenção até que reparou num arbusto esmagado mesmo junto à raiz. Ao lado, encontrou a marca de uma pata de um cavalo ou de um burro. Por instantes ainda admitiu que fosse do cavalo do regedor, mas não era possível. Ele viera e regressara a São João da Pesqueira e os sinais, que um pouco mais abaixo eram bem visíveis, dirigiam-se ao Rio. Seguiu-os durante mais algum tempo até que chegou a um carreiro onde se confundiam com as patas de outros animais que por ali passavam na faina agrícola.
Passeou o olhar pelo vale, procurando adivinhar para onde se dirigira a cavalgadura. A direita, no fundo, era Arnozelo. Mas também poderia ter ido a caminho de Vale de Figueiras e por aí passar a Salvador do Mundo ou chegar ao cachão da Valeira. Desistiu da adivinhação. Entusiasmado com as descobertas que fizera, meteu-se ao caminho. Precisava de ter uma conversa com o pároco de São João da Pesqueira antes que o regedor fizesse mais disparates.
A notícia do achado macabro correu célere pelas redondezas e muitos foram aqueles que correram a pôr coleiras de pregos nos cães e a recolher os rebanhos com medo dos lobos que andavam a comer pessoas pelas cumeadas das serranias.
Num mundo fechado numa teia de crenças e superstições, qualquer sinal de alarme é verdade aceite e ditada por um poder transcendente. Não se admirava o jovem advogado da vaga de medo cuspida pela autoridade do barbeiro. Cada comunidade era um mundo fechado sobre si, que as montanhas separavam de outros mundos, ao mesmo tempo que retinham a história, permitindo que o velho tempo medieval resistisse às arremetidas da racionalidade. O lobo representava, pois, uma das materializações do demónio, que no fantástico lobisomem tinha a sua expressão mais radical. Era a fera que anunciava o poder da fome, quando se acercava das povoações roubando ovelhas, cães, cabras, ladrão de riqueza e afectos, e falava com o Maligno através de uivos lancinantes que obrigavam à repetição por três vezes do sinal-da-cruz. Através dos seus olhos de fogo qualquer mortal podia ver o olhar do Inferno c sabia-se que se juntava em grandes alcateias para celebrar a partida das almas para a profundeza do fogo eterno. O destino inevitável da rapariga morta, roubada à vida pela fera do mal, fora encaminhada para gáudio e prazer do seu negro Senhor.
O padre Simões deu um pulo quando ouviu o que o bacharel lhe pedia.
– Isso é uma heresia! Como vos atreveis?
– Porquê, senhor padre? Em que página da Bíblia diz que fazer uma autópsia é uma heresia?
O sacerdote levantou-se da secretária da sacristia e foi apressado espreitar à porta, não fosse alguém ouvir aquela conversa. Vespúcio não desarmou.
– Tenho a certeza de que assassinaram a rapariga. Nada do que encontrei no local tem a ver com um ataque de lobos.
– Santo Deus!
– Esmagaram-lhe a base do crânio e rasgaram-lhe o abdómen com uma faca.
– Santa Maria!
– E quem a matou levou-a de burro ou de cavalo para o sítio onde morreu.
– Que Todos os Santos nos valham!
– Se não for autopsiada, as autoridades não vão saber que houve um crime. O nosso regedor já decidiu que foram os lobos e não há nada a fazer.
– Mas se ele o diz alguma razão terá. Sempre é o regedor.
– Na verdade, pelo menos um lobo esteve perto da rapariga, mas já estava morta.
– Como é que tendes a certeza do que estais a dizer? Vós não estáveis lá.
– O animal arranhou-lhe o peito com a pata, mas não sangrou. É sinal de que já estava morta. Os cadáveres não sangram.
Padre Simões limpou a testa transpirada. A narrativa do causídico era tão segura, tão estranha, que acreditou por instantes no que ele lhe dizia. De súbito, fez um gesto rápido com a cabeça.
– Não. Não podeis saber essas coisas todas. Não é verdade e, se for, em vez de estarmos aqui a conversar, devíeis acompanhar-me ao confessionário.
– Eu? Mas porquê?
– Porque das duas, uma: ou a inditosa foi morta pelos lobos ou vós...
O padre hesitou. A suspeita que lhe ia na cabeça assustava-o e Vespúcio, percebendo a aflição, desatou a rir às gargalhadas. O corpo desconjuntava-se a cada solavanco do riso. O interlocutor não gostou. Contrastavam no físico e na postura. O pároco, rechonchudo, baixo e rosáceo, ainda mais opaco pela negritude da batina, tinha um ar pomposo, enquanto Vespúcio lembrava um espanador retorcido que chocalhava sem cessar. Quando, por fim, acalmou a risada, assegurou:
– Não posso ser suspeito deste crime.
– O quê?
– Quem matou a rapariga é esquerdino. Não é o meu caso.
O padre Simões era minhoto. A infância fora passada em Pevidém e o pai, capador de porcos, conseguira, por influência cie certo conde de Arouca, enfiá-lo no seminário de Braga. Ciciava as palavras de tal forma que parecia uni-las com a ajuda da letra x.
– Seja como for, seja como tor. Um corpo que faleceu é pertença de Deus. Feri-lo é pecado e pecado mortal.
– Feri-lo até matá-lo não será pecado maior?
– Não interessa. Ao falecer, o defunto encontra-se com o Senhor para ser julgado pelos seus pecados. Sagrado é sagrado, meu filho, e, no que diz respeito aos problemas do céu, os homens devem obedecer.
A voz beata, sincopada e ciciada do sacerdote começava a enervar o excitado interlocutor. Ainda por cima tratava-o com um paternalismo excessivo, pois eram os dois da mesma idade.
Vespúcio engrossou a voz.
– Padre Simões, antes de proceder ao enterro convença o regedor a chamar o cirurgião de Lamego. O senhor corre o risco de se tomar cúmplice de um crime.
– Deus me livre.
– Padre, o regedor vai armar uma confusão pior do que a Maria da Fonte. A moça que morreu não é nenhuma vadia. Ou muito me engano ou é filha de gente abastada.
– Como é que tivestes conhecimento desse facto?
– Usa botas de boa qualidade, roupas caras e o corpo está bem nutrido. Não conheço mendigo nem vadio com este aspecto.
– Pode ser uma ladra.
Fechou o livro de registos da paróquia com irritação.
– Esta conversa não faz sentido. Aqui, na casa de Deus, até pode ser pecado.
Não havia nada a fazer. O prior era casmurro e Vespúcio apenas teimoso. Sabia, porque também lera Brouardel, que, numa autópsia feita com rigor, o cadáver conta coisas sobre o criminoso que são mais verdadeiras e claras do que uma qualquer confissão. E, no caso que o preocupava, o exame médico-legal poderia explicar a razão que levou o autor do assassínio a csventrar a rapariga e que instrumento lhe esmagara o occipital. Não tinha dúvidas de que fora a agressão na cabeça que provocara a morte e, por isso, não fazia sentido o enorme ferimento no abdómen. Além deste problema por resolver, outras interrogações se lhe colocavam sem uma resposta coerente. O local ermo para onde a vítima fora transportada. As marcas das patas do cavalo ou do burro eram mais profundas na subida do que na descida, sinal de que ia mais pesado, sendo evidente que carregava a vítima e o algoz.
Porém, não seria ali na sacristia, frente àquele padre tri– dentino, cicioso, temeroso a um Deus que julgava cruel e servil para com a autoridade civil, que resolveria as suas inquietações.
– O senhor padre ainda se vai arrepender por não me ter ajudado – foi o melhor que arranjou para se despedir. Mas o outro disparou, prosélito.
– Só me arrependo dos pecados que possa cometer. Pecados veniais, claro, porque, graças ao Senhor, não sou tentado ao pecado mortal.
Não se conteve.
– Passou anos no seminário a estudar latim, filosofia, teologia. Como é possível não perceber que o mundo está a mudar, que a própria Igreja está a mudar?
– O caminho da salvação é o mesmo há dois mil anos. Nunca mudará.
– Há muito que o conhecimento teológico foi ultrapassado pelo empirismo e, sobretudo, pela ciência. E na ciência que reside a alma da verdade.
Padre Simões olhou-o com desprezo.
– Quem pensa assim não só é pecador como, pelo menos, tem uma costela republicana. A ciência, como lhe chamais, é uma criação diabólica que abre o caminho à heresia.
– Pedir a autópsia de um cadáver não é uma heresia.
– Porque não conheceis as Sagradas Escrituras. Se lerdes o Levítico, vereis o que Deus disse a Moisés: Não vos voltareis para os necromantes nem consultareis os adivinhos, pois eles vos contaminariam. – Suspirou, desalentado, e lamentou-se: – Para que estou a citar o Santo Livro a quem o despreza, meu bom Deus?
Vespúcio sorriu e, como se utilizasse a espada vingadora, retaliou:
– Eu, a sabedoria, moro com a sagacidade e possuo o conhe– cimento da reflexão. Detesto o orgulho e a soberba. Eu possuo o conselho e a prudência, são minhas a inteligência e a fortaleza.
O pároco ficou surpreendido.
– Que estais a dizer?
– Falo da sabedoria. Procure no Livro dos Provérbios e encontrá-la-á. É capaz de lhe dar algum jeito. Com a vossa licença, senhor padre.
Saiu deixando o outro boquiaberto. Quando se recompôs tirou uma Bíblia da gaveta da secretária e folheou-a até encontrar a citação que o ímpio fizera. E teve um estremecimento de medo. Já ouvira contar, numa ceia na casa do padre Simeão, em Lamego, que estes livres-pensadores usavam as Sagradas Escrituras para renegar Deus em missas negras onde exaltavam o demónio. O seu interlocutor era mação! Só podia ser. Pertencia a essa seita daninha que destruíra o reino, em 1820, e transformara o rei num criado menor do parlamento. Pois não eram malvados maçónicos Fernandes Tomás e os Cabrais, o Saldanha e o Braamcamp, Passos Manuel e, até, segundo se dizia, o vendilhão do Pedro IV?! Persignou-se três vezes e tomou uma decisão. Ficaria de olho nele, enquanto permanecesse na Pesqueira, para descobrir até onde chegava o seu comportamento herético.
Indiferente a estas preocupações, Vespúcio entrou em casa da tia, impaciente, à procura de papel e de uma pena na balbúrdia de livros que trouxera da Régua. Precisava de anotar tudo o que havia recolhido e de guardar em local seguro os cabelos que tirara da mão do cadáver.
Escrevia, febril, quando entrou Ana Maria, a rapariga que tratava da casa. Ficou a vê-lo, incapaz de o interromper. Já o conhecia de outras visitas para lhe entender os seus estados de espírito. Sabia que, se o incomodasse, haveria descompostura pela certa. Ficava absorto, os cabelos encaracolados caídos sobre o rosto, o olhar iluminado. Quando tinalmcnte reparou nela, saltou como uma avestruz desengonçada, pegou-a pela cintura e desatou a dançar por cima dos livros.
– Estou feliz, Ana Maria. Finalmente!
A jovem acompanhou-o por instantes, contendo o riso, mas revelando espanto pelo entusiasmo do homem.
– Que vos aconteceu? Recebestes boas notícias?
– A melhor das notícias, Ana Maria. Mataram uma rapariga a caminho de Vargelas.
Parou embasbacada.
– E isso c uma boa notícia?
– A melhor de todas. Um verdadeiro enigma para cu resolver. Acho que até vou prolongar as férias. Ai vou, vou.
– Jesus, Santa Maria!
Vespúcio deu-lhe uma palmada amigável.
– Não estás a perceber. Claro que a morte de alguém não é boa notícia. Mas descobrir uma verdade escondida é o melhor dos passatempos.
Ana Maria recuou até à porta. Por instantes acreditou no que lhe diziam os vizinhos. O sobrinho da patroa não tinha os alqueires bem medidos. Mas ele não reparou na retracçào da empregada.
– A sua tia disse-me que chega de Vilarouco dos Azeites fora de horas. Por isso, fiz-lhe um caldo de couves e recolhi as galinhas na capoeira por causa dos lobos.
– Recolheste as galinhas?
– Corre na vila que andam lobos por perto e até já mataram uma pessoa. Vou-me embora, que quero estar em casa antes de anoitecer.
A empregada saiu e Vespúcio fez um gesto de desespero. O regedor pusera a correr as suas conclusões precipitadas e agora havia um exército de pessoas assustadas pela serra, protegendo-se das alcateias de fantasia.
Enrolou um cigarro de mortalha e serviu-se de vinho. Deixou-se cair numa cadeira folheando os apontamentos. Estava num beco sem saída. A informação de que dispunha precisava de mais respostas. Donde seria a rapariga? Quem seria a família? Teria sido violada? E aquele rasgão na harriga quando já estava morta ou moribunda? A inexistência de sangue tinha explicação. A forte chuvada que acompanhou a trovoada fizera uma limpeza completa do cadáver e da terra. A rigidez cadavérica estava a desaparecer, o que confirmava a sua convicção de que tudo acontecera durante a noite. Deixou o caderno. Vespúcio sentia-se perdido e sozinho.
A vila vivia inquieta com o avanço da praga. Surgiam pelas ruas ranchos de homens pedindo esmola e pão por amor de Deus e não havia grande esperança de trabalho para as vindimas que se aproximavam. Muitos lavradores tinham vendido ou abandonado as quintas, outros haviam partido para o Porto ou para o Brasil e sobravam velhos e crianças sem um sonho nem um prato de caldo para poderem viver. Sobrevivia-se apenas.
Decidiu-se. Iria até ao cemitério. Se não tivessem ainda atirado com o corpo para a vala comum, talvez ainda pudesse descobrir mais algum indício que lhe tivesse escapado.
A rua subia, íngreme, em direcção à praça. O sapateiro, sentado à porta da loja, martelava entusiasmado na sola de uma bota. Cumprimentaram-se. O sapateiro quis meter conversa, mas Vespúcio afastou-se cm passo largo. Queria aproveitar o que restava do dia. A praça estava deserta, contra o que era usual, e percebeu o medo. O desgraçado do regedor pusera o povo em polvorosa com a história dos lobos.
Ao dobrar a esquina para tomar a estrada ouviu algo de estranho. Parou para perceber o que se passava. Gritos! Alguém gritava para os lados do cemitério. Acelerou a marcha, mas não se conteve. A ansiedade fê-lo correr. Aqueles gritos de choro só podiam querer dizer uma coisa. A lamília da rapariga tinha-a descoberto.
A primeira pessoa que viu à porta, do lado de fora, foi o regedor. Apeteceu-lhe dar-lhe um murro. Duas carruagens atreladas a parelhas de cavalos esperavam um pouco mais adiante, e foi com algum desprezo vaidoso que despejou o azedume sobre o barbeiro.
– Com que então uma vadia das terras quentes?!
Respondeu-lhe um resmungo arrogante.
– Não é, mas poderia ser.
Espreitou para o interior do campo santo. Junto ao montão de terra da vala comum encontravam-se três homens e uma mulher que, de joelhos, pranteavam a rapariga. Voltou-se para o regedor.
– Donde vêm?
– De Covas do Douro. O pai é administrador de uma quinta da Ferreirinha.
Abriu a boca de espanto.
– De Covas do Douro? Mas isso é para lá de Pinhão!
– Não sei, nem me interessa. Para vir de tão longe é porque a rapariga não estava no seu juízo. – E acrescentou, irónico, olhando o contendor: – Mais uma maluca. Cada terra tem o seu.
Não o ouvia. Covas do Douro era do outro lado do Rio e, mesmo pelos carreiros, tinham percorrido três a quatro léguas. Um dos homens, o mais novo, aproximou-se pesaroso. O regedor, temeroso da língua do bacharel, afastou-se discreto. Vespúcio aproveitou a oportunidade.
– Coitada da criança. E da família?
– Sou tio.
– As minhas condolências.
– Obrigado. O senhor é autoridade?
– Não, não. Sou advogado. Não percebo como é que a menina veio parar tão longe de casa.
– Ninguém sabe. Desapareceu no meio da tarde de ontem.
– Ela tinha algum burro ou algum cavalo?
O homem meneou a cabeça. Suspirou fundo.
– Os lobos estão cada vez piores. A semana passada fizeram o mesmo em Vilarinho dos Freires.
Vespúcio redobrou a atenção.
– Outra moça?
– Mais ou menos da idade da minha sobrinha. Também lhe comeram a barriga.
Sentiu um arrepio pelo corpo.
Se alguma dúvida ainda houvesse, a notícia que acabava de receber desfazia-a por completo. 'Andava um assassino à solta que se escondia por detrás das explicações que a natureza sugeria como critérios de verdade.
As gentes do Douro conviviam naturalmente com a morte violenta e abrupta que decorria das brigas entre homens com a emoção alterada pelo álcool. Os sentidos em chamas, as navalhas na mão e o exorcismo da raiva na posse do corpo do outro com a lâmina enterrada até às profundezas das entranhas. As tabernas desde tempos imemoriais que eram um dos palcos privilegiados do prazer e da morte. O vinho possuía essa dimensão exacerbada da tragédia. Mas Vespúcio sabia que essa morte não atemorizava ninguém. Era conhecimento antigo, vizinha com quem se trocam saudações ainda que com a frieza das coisas ruins. Também o assassínio que lavava a honra era morte que não atemorizava. Era hem recebida, e até socialmente exigida, para que o ofendido pudesse tomar a impor o respeito que o grupo lhe entregara como património. Matar a mulher adultera, se possível matar quem a desencaminhara, era dever social e não restava pedaço de culpa para quem assim salvasse a honra da ignomínia.
Porém, os crimes que Vespúcio supunha não viviam na ordem social da sua terra e, por tal razão, sem explicação que não fosse a da determinação sobrenatural.
Pensou em telegrafar para o Porto, alertar os governadores civis de Lamego e de Vila Real, mas reconheceu que pouco tinha para contrapor à verdade oficial e convicção popular de que tudo se devia à voracidade dos lobos. Quando a fome se instala na casa dos homens, não é difícil imaginar feras esfaimadas.
Decidiu que, no dia seguinte, partiria para o Pinhão. Nada o prendia a São João da Pesqueira. Tornara-se um hábito, desde que regressara de Coimbra e abrira escritório na Régua, visitar durante o Verão os poucos amigos que lhe restavam. A tia Mariana era uma dessas visitas regulares. Tinha um orgulho especial no sobrinho e Vespúcio gostava dela. Costumava passar duas semanas em São João da Pesqueira, mas o caso impunha uma interrupção das férias.
A tia Mariana saíra bem cedo para Valongo dos Azeites com a devota obrigação de ir benzer duas vitelas recém-nascidas dos seus compadres João e Emília dos Morgados. Amizade velha que se consagrava nos rituais da ben– zedura.
– O meu João não quer mais ninguém por perto dos animais! – justificava-se Emília repetidamente quando lhe pedia o favor. – Quando é a comadre a benzer não há maleita que entre nos animais. O ano passado pedimos à comadre Joana da Ervedosa, pois não queríamos estar sempre a abusar da comadre, e foi uma dor de alma. Foram-se embora duas borregas da noite para o dia.
A tia ficou chocada com a partida do sobrinho.
– Vais-te embora porque eu passei o dia fora?
Abraçou-a com ternura.
– Ó minha querida tia, rainha das benzeduras, princesa dos espanta-espíritos, não é nada disso. Mandaram-me recado de que um cliente precisa de mim por causa de uma escritura. Tenho de partir de madrugada.
O desapontamento da velhota era evidente. Porém, Vespúcio decidira inventar aquela mentira piedosa, pois, se lhe contasse que perseguia um assassino que arrancava as vísceras das vítimas, a tia resistiria à ideia, já que, também ela, quando soube da notícia, aceitara com bondade a explicação do barbeiro. Além de que não a queria assustar e, depois de muitos beijos, de algumas lágrimas, de muitas promessas de que se alimentaria em condições, que deixaria de embirrar com os senhores padres, que não falaria daquelas coisas esquisitas que aprendera lá em Coimbra e as pessoas não entendiam, que iria escolher namorada porque precisava de alguém que tratasse dele, a tia conformou-se com a despedida precipitada.
Quem subir ao alto de Vargelas ficará com a certeza de que chegou ao ponto mais belo do céu. O Douro visto daquele píncaro é o Paraíso prometido em todas as lições de catequese. E grandiosamente belo! As montanhas entrelaçam-se, magníficas, para, de repente, se escancararem em vales matizados com toda a paleta de verdes e castanhos que Deus inventou. E, pelas encostas, as quintas vão pintalgando de branco o silêncio majestoso por onde o Rio serpenteia. Ao longe, os penhascos da Valeira surgem com a altivez das leras. Rígidos, tensos, tenazes ameaçadoras, sentinelas do Alto Douro. Carrazeda de Ansiães é um minúsculo presépio enxertado nos cinzentos prateados das montanhas c, lá bem no fundo, a Senhora da Ribeira assinala o ponto do Rio que se abre para a Quinta do Vesúvio, a pérola mais formosa que um anjo anichou em acasalamento perfeito.
D. Antónia olhava este esplendor do céu como se fosse a primeira vez. O sobrinho iazia-lhe o relatório da situação. A praga ainda não chegara àquelas bandas. Um ou outro foco de oídio que a calda de enxofre ajudava a atacar e as vinhas estavam carregadas. Adivinhava-se boa colheita, se as trovoadas não voltassem. Porém, a ameaça crescia. A praga já passara o cachão da Valeira, em volta do rio Torto não havia uma única cepa viva e a gente dos lugares e das quintas mortas, derrotadas pela força dos insectos, morria devagarinho vencida pela fome ou fugia daquela terra amaldiçoada. A filoxera já matara a esperança entre o Corgo e o Tua. Agora crescia na margem esquerda do Rio. Até os lobos andavam de cabeça perdida.
– Os lobos? – perguntou D. Antónia sem perceber.
– Mataram uma rapariga aqui perto e comeram-lhe um pedaço da barriga. O pessoal anda todo em sobressalto.
A Ferreirinha encolheu os ombros.
– Fracos lobos esses que deixam uma presa para trás comendo apenas um pedaço da barriga. São menos ferozes do que a filoxera, que devora tudo e deixa milhares de ventres com fome. Tenho pensado muito na desgraça que nos está a acontecer e tomei uma decisão que quero partilhar com os meus colaboradores mais chegados. Quero que viajes comigo para o Porto, onde nos vamos reunir para discutir esta tragédia.
– Com certeza, minha tia.
– Pedi ao doutor Azevedo Leite que nos encontrássemos hoje no Vesúvio. F melhor que nos ponhamos a caminho para não o fazer esperar.
Azevedo Leite, para além de proprietário vinhateiro, era um estudioso multifacetado. Percorria com desembaraço os caminhos da botânica, da história, da antropologia. Erudito e experimentalista, procedera a longos estudos e experiências para combater as pragas e, segundo ela sabia, fora mais longe do que qualquer outro, até do que as comissões científicas nomeadas pelo Governo, na procura de soluções contra a filoxera.
Partiram. Rapidamente alcançaram o castelo de Numão e meteram pelo carreiro abaixo, deixando Amozelo à esquerda em direcção ao Vesúvio. Era estranho ver a charrete puxada pela parelha de cavalos, dominada pela figura do cocheiro que os conduzia e, quase um pontinho negro, a Ferreirinha, minguada, sentada nas traseiras. Os cabelos branqueavam, mas o lenço negro escondia-os. Do veículo apenas sobressaía o nariz adunco e firme e os olhos intensamente negros que, interessados, iam examinando as cepas que debruavam a estrada. O Vesúvio descobria-se agora por detrás das colinas doces junto ao Rio e veio-lhe à memória o seu tio António Bernardo. Fora ele que há mais de cinquenta anos comprara aquela bela quinta ao conde da Lapa e, através dela, conseguira romper os limites impostos pela Junta da Companhia à região demarcada do vinho do Porto. Fora uma luta grande contra os privilégios e os interesses dos proprietários vinhateiros abaixo da Valeira e vencera-a com a mesma arma que colocara a empresa A. A. Ferreira no topo do império vitivinícola – a qualidade.
António Bernardo construíra uma das mais belas propriedades do Douro e a casa que ali edificara, a rasar a margem do Rio, remetia a quem a olhasse para o mundo fantástico dos contos de fadas. Ao pequeno cais que a servia estava acostado o rabelo que os haveria de levar no dia seguinte ao Porto, e os barqueiros, ao verem surgir a Ferreirinha, correram a saudá-la com sinais de respeito e afecto. Conhecia-os todos pelos nomes. Quis saber das mulheres, perguntou- -lhes pelos filhos e recordaram histórias de outros tempos.
A conversa fez-lhe desaparecer da testa as linhas vincadas das preocupações e foi com um sorriso de satisfação que entrou no pátio do Vesúvio.
Ao longe, Inácia, viúva do antigo feitor da Quinta do Mileu, observava-a com desprezo. Odiava-a há muitos anos e o ódio crescia cada vez que Antónia Ferreira se cruzava com ela, altiva, sem lhe conceder a retribuição do mesmo sentimento. Pura e simplesmente ignorava-a e Inácia alimentava o ódio contra ela nesse desprezo. Era raiva velha, ainda do tempo em que, jovens, corpos rijos e apetitosos, eram donas de um segredo: tinham partilhado o mesmo homem.
António Bernardo Ferreira, o primeiro marido da proprietária, crescera com sangue quente e cio a embebedar-lhe os sentidos. Não lhe chegava o casamento para lhe sossegar as ânsias do corpo. Na Régua todos lhe conheciam a fama, a mesma que gozava no Porto, nos meios aristocráticos e intelectuais onde se movimentava.
Não passara um mês sobre a boda dos dois primos quando aconteceu a primeira vez. Foi na adega da Quinta de Travassos. O marido de Inácia era, então, o guarda do armazém e nessa noite tinham acabado de cear sobre o tampo da pipa que lhes servia de mesa. Sentiu o cheiro a perfume antes de lhe ver a silhueta à luz da candeia de azeite e Inácia sentiu calor nas faces. Nessa tarde, cruzara-se com o patrão no pátio da quinta e gostou do olhar penetrante e guloso com que a olhou. Fê-la sentir-se bela e, se ele a desejava, mostrou– lhe no sorriso que também o queria para si.
António Bernardo Ferreira sentou-se familiarmente à mesa, dando atenção ao caseiro, perguntando por vinhos, as esperanças na próxima colheita, as novidades da região. Corria o ano de 1834. O pesadelo da guerra civil tinha chegado ao fim com o exílio de D. Miguel e a rendição do marechal Azevedo Lemos acordada em Évora Monte. Porém, D. Pedro não tivera tempo para saborear a vitória. Morreu quatro meses depois e do pranto sobre a sua morte contava ao casal, que escutava como se fosse um conto passado num reino longínquo, no outro lado do mundo. E bebiam e quanto mais bebiam maior era o desejo de Inácia devorada pelo calor das palavras do patrão, que, discretamente, lhe afagava a perna encostada à dele. O álcool cansou o marido, que bocejava e resistia cada vez menos à força das pálpebras que teimavam em fechar-se. E, de repente, adormeceu. O patrão, sorrindo de cio, pegou na mão da mulher e conduziu-a em silêncio para a escuridão das pipas da adega. Abraçaram-se com volúpia e Inácia inebriou-se no perfume. O corpo do seu homem, que ressonava a poucos metros, cheirava sempre a azedo. Puxou-a com força contra si e, quando a penetrou, fechou-lhe a boca com uma das mãos, abafando o grito rouco que ela soltou. Entregava-se-lhe com a energia das fêmeas férteis e famintas.
António Bernardo Ferreira ficou encantado com a alegria sôfrega da rapariga e, quando regressava à quinta, encontrava o pretexto para saciá-la, saciando-se. C) marido percebeu, mas decidiu não afrontar o patrão. Realizou a vingança bebendo mais e mais. E nem mesmo quando já se sabia que António Bernardo Ferreira estava sifilítico Inácia deixou de o esperar com a mesma fúria de desejo daquela primeira vez.
O ódio chegou depois, quando o marido morreu despedaçado pela sífilis que ela lhe entregara como oferta do amante e, passadas algumas semanas, este também morria tragado pela doença. A gente das redondezas, que sabia dos amores interditos de Inácia, afastou-se. Os homens fugiram. Até os cães ladravam à sua passagem. Era a sifilítica que matava quem lhe tocasse. E o que era estranho, e a mulher só encontrava explicação de um mau-olhado encomendado pela patroa, é que, consumindo as duas do mesmo homem, a Ferreirinha tornara-se viúva mas cheia de vida, enquanto ela fora esconjurada pela sorte e o corpo mirrava carcomido pela doença. Inácia partiu por uns íongos dez anos com a jura de que um dia se vingaria da semente da morte que a habitaria para sempre. Tomou-se devota, procurou saber de todas as regras encomendadas por São Cipriano, aprendeu mezinhas para convocar espíritos, todas as noites rezava a Deus, outras vezes ao diabo, suplicando energias para a hora da desíorra, e quando regressou era bruxa.
Deixara que corresse o boato de que a filoxera chegara por sua intercessão e que o Douro só ressuscitaria no dia em que a sua inimiga desaparecesse da face da Terra. E eram muitos os aflitos que acreditavam na premonição, cansados da fome e da praga.
O Dr. Azevedo Duarte explicou a D. Antónia os resultados das suas experiências. Era elegante no trato e cristalino nas convicções.
– Era capaz de jurar, dona Antónia. Não existe outra salvação.
A mulher levantou-se, serviu-se do seu vinho de estimação, vindo da colheita de 1851, c tomou a encher o cálice do seu interlocutor.
– Para lhe falar com franqueza é essa a minha ideia. Só com porta-enxertos robustos será possível conter o insecto.
– A minha vinha é prova do que discutimos. Está esplêndida.
– E o vinho?
O cientista não percebeu a pergunta.
– Como diz?
– É a grande dúvida que levanta a minha gente. Usando a vinha americana como porta-enxertos não irá alterar as qualidades das nossas castas?
Meneou a cabeça negativamente.
– Na última vindima fiz vinho de bastardo e malvasia. Fiz vinho de cada uma das castas e experimentei a junção de ambas. Os resultados foram excelentes. Este ano vou colher pela primeira vez as castas more to e alvaralhão e vou repetir o mesmo método.
– Todas enxertadas?
– Todas.
Antónia Ferreira confiava no saber e na seriedade de Azevedo Duarte. Ainda por cima conheciam-se há muitos anos e, ao longo do tempo, fora apreciando as suas qualidades de pesquisador, sempre apaixonado pela novidade e disposto a aprender. Embora fossem quase da mesma idade, a curiosidade juvenil que ele mantinha era um predicado que a fascinava.
– Deixa-me provar as suas próximas experiências?
– A minha casa é sua, dona Antónia.
– Obrigada. Sabe que pode sempre contar com a minha estima. Seja como for, mesmo que este seja o caminho, esperam-nos dias muito difíceis. Mudar hábitos numa terra que tem mais temor dos bruxedos do que de Deus não vai ser fácil.
Na testa de Azevedo Duarte surgiram rugas preocupadas.
– É uma tarefa impossível, dona Antónia. Mesmo para uma casa como a sua, mesmo contando com o talento do vosso esposo e meu amigo Francisco, não é possível transformar em produção de grande escala, vinha enxertada. A nossa gente desconhece a técnica. Para fazer o que fiz foi necessário ir buscar dois enxertadores galegos. E depois existe o problema da poda.
D. Antónia fez um gesto de discórdia.
– Não é tanto a aprendizagem da técnica que me preocupa.
– Seriam necessárias centenas e centenas de enxertadores, minha senhora!
– O problema é mais grave do que imagina, doutor Azevedo. Não sou uma estudiosa como o meu amigo, mas quando penso na vinha americana e no fim da filoxera vem– me à cabeça a Maria da Fonte.
Não conseguiu deixar de rir.
– A Maria da Fonte? Uma revolta?
– Quando o Mouzinho da Silveira c o Rodrigo da Fonseca Magalhães decidiram que os mortos não continuariam a ser enterrados nas igrejas, mas num cemitério público, rebentou a revolução.
– Lembro-me bem desses tristes dias.
– Foi a nossa família que mandou construir o cemitério da Régua para dar o exemplo e evitar banhos de sangue. Acompanhei esse problema de peno. A verdade, meu caro doutor Azevedo, é que os levantamentos populares que se deram um pouco por todo o lado tiveram uma causa mais profunda. E não foi política. Essa multidão de desgraçados que se levantou nem sabe o que são liberais, nem regeneradores, não sabe nada dessas patranhas. Mouzinho da Silveira atingiu-os, com essa medida, nas suas afeições e memórias mais antigas. Foi como se lhes tivesse tirado o sentido de orientação, como se lhes tivesse roubado um pedaço do mundo que conheciam como definitivo. Os ministros liberais retiraram ao povo uma das suas verdades eternas: os mortos enterram-se nas igrejas. Foi assim durante séculos, que razão haveria para deixar de ser?
– O problema da higiene, da necessária...
D. Antónia interrompeu-o bruscamente.
– Não utilize os argumentos que apenas pequenos grupos entendem. Quer lá o povo saber dessa preocupação com a higiene, da organização das cidades, da separação dos poderes! O problema está no coração e não na cabeça, meu caro amigo.
Respirou fundo e proclamou com gravidade:
– No dia em que dissermos às gentes do Douro que acabou a mergulhia dos barbados e, a partir desse momento, vai começar a enxertia, estamos a fazer o mesmo que o Mouzinho da Silveira e o Rodrigo da Fonseca Magalhães. Roubamos-lhes um pedaço da verdade em que acreditamos todos há séculos e há séculos que existem pragas.
Ficaram ambos em silêncio. O Dr. Azevedo Duarte nunca olhara a questão por aquela perspectiva e, agora, percebia melhor as preocupações da amiga.
– Tem razão. E mais complicado ainda. Seja como for, nunca haveria condições, a não ser para prosseguir estas experiências num punhado de quintas.
D. Antónia sorriu.
– O meu tio e sogro, que Deus tenha em descanso, costumava dizer que a única coisa impossível de vencer é a morte.
Não conseguiu evitar o tom jocoso no comentário.
– Não me está a dizer que, se for necessário, vai ser o Mouzinho da Silveira da filoxera.
Respondeu evasiva:
– O problema dele era o destino dos mortos. O nosso é exactamente ao contrário. Transformar campos mortos pela praga em campos vivos e de fartura.
– Não há dúvidas. Vai mesmo para a guerra.
– Vamos ver, meu caro, vamos ver. Rezemos para que o pouco tempo que nos resta seja suficiente para tomarmos uma decisão acertada.
Despediram-se. Antónia Adelaide acompanhou-o até ao barco que o levaria para a outra margem. Ficou a vê-lo afastar-se e a saborear o calor ameno do entardecer, o qual entregava à paisagem uma atmosfera de serena calma.
Não se apercebeu da figura hiita de Inácia que, a meio da encosta do Vesúvio, sobre um tronco rodeado de velas, aguardava de cutelo na mão o momento em que desapareceria no horizonte o último raio de sol. Entredentes rememorava uma prece invocando São Jerónimo, o santo das tempestades, para que enviasse sobre aquela encosta uma trovoada de insectos que comesse todas as cepas até ao tutano da sua vida. Deu-se o ocaso e o cutelo baixou, rápido, degolando de um só golpe o pescoço de uma galinha, cujo coração não parou de imediato. A ave ainda bateu as asas e espichou sangue em volta do círculo de velas. Inácia procurou saber, com ansiedade, se o sangue assim derramado não saltava para além da circunferência que os pequenos círios desenhavam na terra. O resultado pareceu satisfazê-la, pois ergueu os olhos ao céu com um sorriso de gratidão enquanto se benzia. Esperou que os cotos ardessem até ao fim e, quando os viu com o pavio apagado, fez uma cruz dentro do círculo e partiu pelo monte acima, na altura em que Antónia Adelaide ceava na companhia do sobrinho, escutando com maior minúcia a história da rapariga que fora comida pelos lobos.
Vespúcio estava desiludido. A sua precipitada viagem fora um desastre. Não encontrara as respostas que esperava obter. A família ainda chorava inconformada a morte da jovem, mas não sabia nada de especial. O pai pouco tinha para contar para além da enorme tristeza que transportava. Era homem do campo, mãos grossas habituadas a trabalho duro, de poucas palavras.
Que fora um caçador, seu compadre, quem a encontrara. O João dos Rafeiros. Que a família soube quando um grupo de homens a trouxera para casa e nem queria ver o sítio onde a infeliz acabara os seus dias. Que sabia que a filha tinha um buraco na barriga e que nos dias seguintes o seu compadre matara dois lobos perto do local onde a encontraram. E não conseguiu dizer mais nada. Os olhos avermelhados anunciavam um choro que não era capaz de mostrar a estranhos e voltou-lhe as costas definitivamente.
Era pouco. Precisava saber onde parava o João dos Rafeiros. Indicaram-lhe uma cabana com uma cerca à volta e onde estava uma mão-cheia de cães, à entrada do Pesinho. Saltou para o cavalo e meteu-se a caminho. Conhecia o local e não era mais do que uma légua de distância. Ao aproximar– se do casebre, reparou num rapaz alto, bem constituído, de larto cabelo preto, que distribuía comida a uma enorme matilha de cães. Deixou de prestar atenção à tarefa quando viu o cavaleiro que para ali se dirigia. Saiu da cerca e foi de braços cruzados e queixo levantado em ar de desafio que esperou o visitante.
– Santas tardes. É aqui que mora o senhor João dos Rafeiros?
– Quem é que pergunta por ele? – A voz grossa e autoritária estava cheia de desconfiança.
– O meu nome é Vespúcio Ortigão e sou advogado na Régua. Gostava de lhe fazer umas perguntas sobre uma rapariga que os lobos mataram há já alguns tempos.
Olhou-o de alto a baixo. A figura desajeitada do causídico pareceu-lhe inofensiva e relaxou.
– Fui eu quem a encontrou.
– Já estava morta?
– Mais do que morta. Tinha as tripas à mostra. Foram os meus cães que deram com ela.
– Os lobos são danados quando estão esfomeados.
– Pois são. Mas olhe que estes parecem não passar muita fome. Matei dois e eram uns belos animais. I lá muito tempo que não os apanhava tão fortes.
Era fanfarrão. Percebia-se que gostava de contar as suas façanhas.
– Vai para dois anos matei outro para os lados de Pro– vesende, mas não era coisa que se comparasse.
– Admiro a sua coragem. São poucos os homens que enfrentam feras com esse desassombro.
O elogio caiu bem a João dos Rafeiros e a língua soltou-se.
– Cá para mim a rapariga tinha para aí rapaz que falava com ela às escondidas do pai. Combinou encontro e perdeu-se no matagal. Os lobos não a queriam comer. Assustaram– se e atacaram. E pronto! Se fosse por fome, não sobraria tanto da moça. Tinha aí uma ferida de palmo abaixo do umbigo. Mais nadinha.
– Nem arranhões, nem outras dentadas?
– Nadinha.
Depois Vespúcio aproximou-se, cúmplice, com ar de velhaco.
– E não foi coberta?
– Não – o caçador baixou a voz: – Levantei-lhe as saias para ver as partes. Estava tudo em ordem e a blusinha abotoada. Perdeu-se, foi o que foi.
– Não reparou se havia muito sangue?
Olhou para o outro com curiosidade.
– Porque é que me pergunta isso?
– Sei lá. Uma ferida de palmo até chegar aos intestinos deve deitar sangue até fartar.
– Mas não. Nadinha. Ao princípio achei estranho, mas depois pensei. A cachopa morreu de papo para o ar. O sangue a escorrer era para dentro do corpo e não para fora, não é verdade? Que era uma ferida de palmo, lá isso era. Assim de um lado ao outro.
Fora morta noutro local e transportada para onde o João dos Rafeiros a encontrou, pensou Vespúcio.
– Desculpe-me, é a última pergunta. Por acaso não reparou se havia sinais de patas de cavalo ou de burro no sítio onde a encontrou?
Ficou parado, o olhar vazio, enquanto parecia procurar lembrar-se. Por fim, meneou a cabeça.
– Nadinha.
Não havia muito mais [rara perguntar. Era falador e atrevido, mas não era homem para grandes pormenores. À laia de despedida, o bacharel ainda perguntou:
– E a caça dá para viver?
Encolheu os ombros.
– Ao menos não se morre de fome e um homem não tem patrões sempre a quererem pôr-nos a albarda em cima.
– Já vi que não gosta de ser mandado.
– Nadinha. Os cães é que nasceram para ser mandados.
Vespúcio sorriu. Foi então que reparou que o caçador aparava uma cana com um canivete e empunhava-o na mão esquerda.
O coração deu-lhe um baque. A rapariga de Vargelas fora morta por um esquerdino. Vespúcio olhou para os cães.
– Tem aí uns belos animais. Eles não lhe assustam o burro?
Olhou-o desconfiado.
– Qual burro?
– Não me diga que anda por esses montes sem um animal para o ajudar.
– Chegam-me os cães e as pernas. Não tenho vida para alimentar mais bocas.
O bacharel sorriu. Levou a mão ao chapéu.
– Obrigado pelo seu tempo.
E partiu. Descia a encosta embrenhado nas suas cogitações quando reparou que, com uma pata atada a uma corda que terminava numa estaca, um burro pastava. Não esperava encontrar ali o animal e observou em volta à procura dos limites da propriedade. Quando olhou para o sítio donde viera, percebeu que João dos Rafeiros o vigiava. Ao sentir-se descoberto, afastou-se, desaparecendo de imediato por detrás do morro.
O coração voltou a bater descompassadamente. Apeteceu-lhe voltar para trás e tornar a interrogar o caçador, mas compreendeu que seria inútil. Apenas ia amedrontá-lo ou, pior ainda, a reagir com violência à interpelação. Foi então que outra ideia o deixou indisposto. Fora de uma negligência injustificável não ter recolhido as pegadas do animal que encontrara junto do primeiro cadáver.
Quando se afastou o suficiente para não ser visto, fez entrar o cavalo num pequeno grupo de carvalhos que ladeava a estrada e prendeu-o de fonna a escondê-lo de alguém que passasse. Sentou-se no chão, procurando arrumar as ideias que lhe estavam a pôr a cabeça em turbilhão.
A primeira conclusão é que o João dos Rafeiros mentira. Tinha ocultado deliberadamente ser possuidor de um burro. A segunda conclusão é que o homem era esquerdino. Veio-lhe à cabeça Aristóteles. Se a primeira rapariga fora morta por alguém com as habilidades concentradas na mão esquerda e que a levara para o alto de Vargelas carregando-a num burro; se a segunda vítima fora encontrada pelo esquerdino João dos Rafeiros que, por razões desconhecidas, não lhe quis dizer que possuía o asno que vira ligado a uma estaca, logo, o caçador era o suspeito ideal.
Este exercício de lógica satisfaria qualquer apaniguado do determinismo. Bastava encontrar autoridade, fosse regedor, chefe da guarda ou juiz que acreditasse na sua tese – o que não era o caso – e João dos Rafeiros estava preso e condenado. Para compor a decisão do tribunal bastavam, depois, três ou quatro testemunhas que garantissem não o ter visto nos locais habituais na noite do primeiro crime porque, quanto ao segundo, toda a gente sabia, e ele próprio admitiu, que encontrara o cadáver.
Anoitecia. Devido ao alcantilado das margens, naquela zona do Douro, a noite não cai sobre a terra. Produz-se o estranho fenómeno de escurecer a partir do Rio em direcçao ao céu e ainda existem centelhas de luz solar acima do recorte das serranias e já é escuro de breu na baixa encosta. Foi então que Vespúcio saiu do esconderijo. Não tinha gesso nem cal para colher um molde perfeito, mas junto aos carvalhos o solo era de barro húmido. Arrancou com as mãos um bocado e embebeu-o com mais água do seu cantil tornando-o pastoso, quase liquefeito. Foi então que percebeu não ter recipiente para transportar a calda. Hesitou por alguns momentos até que tomou uma decisão cara. Utilizaria o seu chapéu de lona. Um pequeno sacrifício em defesa da ciência, pois, embora não fosse o seu único chapéu, era o mais recente, comprado a um tendeiro da Régua.
O burro afastou-se tranquilamente quando se apercebeu da sua aproximação, e a lua cheia, que, entretanto, resplandecia naquele céu de Agosto, deixava perceber os sinais das patas como se fosse dia. Verteu cautelosamente o líquido pegajoso através da aba do chapéu nos sinais das patas dianteiras e traseiras deixadas pelo animal e sentou-se à espera. Estava convencido de que o barro depositado sobre o xisto aquecido durante o dia secaria rapidamente. Apeteceu-lhe ir vigiar o caçador, mas conteve-se. O burro poderia destruir-lhe os moldes. Distraiu-se a contar as estrelas que iam surgindo no céu. Era um dos seus truques quando queria afastar um pensamento obsessivo. A Estrela da Tarde cintilava de prata. Ainda não se descortinava a Estrela Polar, mas aos poucos a Estrada de Santiago começava a despertar e a Cassiopeia já se adivinhava, bruxuleante, como se fosse uma faísca de relâmpago a saltar da Via Láctea.
Sentiu a necessidade de voltar a São João da Pesqueira à procura das patas que descobrira em direcção ao Rio, mas cavalgara todo o dia e o cavalo tinha feito umas boas léguas. Doía-lhe o corpo, o animal estava extenuado e ainda tinha de regressar à Régua, o que significava quase duas léguas de viagem. Talvez se aventurasse no dia seguinte. Não tornara a chover e com alguma sorte as marcas continuariam intac– tas.
Tal como pensara, o barro secou depressa. Com cautela descolou-o das marcas e acomodou as suas preciosas provas no alforge. Precisava de examinar tudo à luz do dia com mais cuidado. E partiu a caminho de casa.
Vespúcio não tinha grande clientela. A maior parte das pessoas que precisavam dos seus serviços – lavradores, proprietários, homens de negócios – desconfiava dele. A alegria excessiva, o olhar sempre carregado de ironia, o corpo de extrema magreza e os dois metros de altura faziam lembrar os espantalhos espalhados pelos vinhedos para assustar os pardais gulosos de uvas. E depois era a língua! Falava de coisas tão estranhas, levantava problemas tão extravagantes, entremeados com gargalhadas, que ninguém entendia.
Restava-lhe meia dúzia de clientes. O suficiente para viver com modéstia e, o que era mais importante para ele, ter tempo para se dedicar aos seus estudos, experiências e divagações das quais retirava o prazer de viver. E não tinha mais de três amigos que o escutavam com tolerância. Um deles, de longa data, era o padre João Matias, que ocupava mais tempo a cuidar das vinhas do que no pastoreio das almas.
Encontraram-se na madrugada do dia seguinte. Saíra o sacerdote da missa das seis e embarcaram os dois no comboio. O padre não acreditava naquilo que ouvia.
– Ó desgraçada criatura! Levantas-te de madrugada para ires a Vargelas fazer um molde da pata de um burro?
– E qual é o mal?
– Mal não há nenhum, mas maluquice há em demasia. Uma pata de burro!? E pode saber-se para que vais tu nessa diligência?
Vespúcio riu, bem-disposto. Encolheu os ombros antes de lhe responder.
– Depois falamos. Quando lhe contar, nem vai acreditar.
De súbito, mudou de expressão.
– Estou muito zangado com o seu colega da Pesqueira. Muito zangado mesmo.
O padre tentou adivinhar.
– O padre Simões deu-te uma reprimenda a conselho da tua tia.
– Chamou-me herege.
– Vespúcio, tu às vezes dizes coisas que, enfim... tu sabes o que eu penso das tuas ideias. Mas conheço-te há muitos anos, sei que não és mau rapaz.
– É um ignorante.
Sobressaltou-se.
– Eu?
– Não, o seu colega. É por causa de padres como ele que a Igreja tem cada vez mais inimigos. Aquela figura redonda e atomatada não é apenas um descendente directo do Concílio de Trento. Ele é o Concílio de Trento!
O sacerdote desatou a rir da imagem que o rapaz usou. Conhecia bem o padre Simões e sabia que era miudinho e escrupuloso na sua vocação.
– O que é que ele te fez, homem de Deus?
– Não quis convencer o palerma do regedor a pedir uma autópsia a uma rapariga que apareceu morta. Uma simples autópsia!
Ouviu-se um apito seguido de um espirro exalado pelo vapor da locomotiva, a carruagem soluçou e o comboio deslizou devagar, suavemente, em direcção ao Pinhão. Durante todo este tempo, o padre ficou de boca aberta de espanto. Sentia-se como se tivesse levado uma pedrada.
– Uma autópsia? Essa coisa de abrir o corpo de alguém que morreu, não é?
– Claro! – respondeu Vespúcio com naturalidade.
– E fez muito bem! – reagiu, indignado, o padre e acusou: – Isso não é conversa de gente com juízo.
– Padre Matias, não repita o discurso daquele tomate bíblico. O senhor é um homem inteligente.
– É por ser inteligente que te digo que és doido.
– Pronto! Lá vem o discurso contra a ciência.
– Filho, a ciência, a filosofia, essas coisas que contas do tal Darwin são assuntos que podem ser discutidos em universidades, em academias de sábios onde toda a gente se entende. Embora me custe a admitir que se abra um morto, sou capaz de aceitar que uma ou outra operação dessas possa ser feita para os futuros médicos e cirurgiões aprenderem a curar maleitas, mas fora das escolas médico-cirúrgicas nem pensar.
– No fundo, no fundo, está a dizer de outra maneira o mesmo que disse aquela abóbora de batina. Discuta-se tudo, fale-se de tudo, mas à porta fechada. Afastem essas heresias do bom povo, humilde e crente, que não precisa nada dessas conversas.
O comboio continuava vagaroso ao longo da margem do Rio. Os olhos experimentados de João Matias perceberam que as vinhas do Seixo tinham sido apanhadas pela praga.
– A tua ciência será coisa boa para o povo no dia em que destruir a filoxera.
– Tem dúvidas de que esse dia chegará?
O padre respondeu, melancólico.
– Tenho uma certeza. Se não vier remédio a propósito, estas encostas não passarão de enormes mortórios pelo Rio acima e a miséria vai matar as almas que restam.
Vespúcio Ortigão virou a cabeça para onde o padre João Matias olhava com tristeza. Viam-se centenas de cepas encarquilhadas, mortas, negras como carvão, num tempo em que as vinhas saudáveis estão cobertas de folhas e cachos suculentos.
Sabia da angústia que reinava no vale. As conversas nas vendas e nas tabernas junto ao cais eram dominadas pela filoxera. Andasse por onde andasse, as historietas do dia acabavam sempre nas discussões, e aflições, resultantes da devastação levada a cabo pela praga. Vespúcio costumava dizer que gostava de vinho, mas detestava as vinhas.
– Os vinhedos são grilhetas brutais que aprisionam os homens ao sofrimento. Trabalhar nestas serras é contra a dignidade humana.
As vezes reconhecia o exagero quando, corno agora, contemplava a magnífica encosta toda modificada à custa de suor e braço rijo.
– A Ferreirinha deve estar preocupada com esta tragédia! – comentou por fim.
– Se está! Ela e o marido têm feito o impossível para dar cabo destes malditos bichos. Mas tudo tem sido em vão.
– Tenho pena. Há muito tempo que não a visito.
– Podes aproveitar a viagem. Vamos encontrar-nos no Pinhão. Se a conversa correr bem, talvez lhe venda a colheita deste ano.
Concordou com satisfação. Fora graças à Ferreirinha que pudera estudar, descobrir o mundo fantástico que agora habitava. Se não fosse ela, pensou, talvez hoje não passasse de mais um daqueles desgraçados, presos à fome, agarrados às cepas, gemendo dores, carregando sobre os ombros pesos de uvas superiores ao seu próprio peso.
Ferreirinha cumprimentou-o com visível satisfação. Achava graça ao bacharel desengonçado e divertia-se com as suas ideias extravagantes. Gostava de provocá-lo.
– Vieram juntos da Régua? – perguntou.
O padre João Matias respondeu:
– E foi o nosso Vespúcio que quis cumprimentá-la.
– Fez muito bem. E conseguiste convencer o padre João da teoria do inglês que defende que nós descendemos do macaco?
A resposta foi pronta.
– O nosso padre ainda não chegou ao patamar da luz que lhe permitirá compreender essa grande descoberta. Continua a viver na idade das trevas.
O sacerdote elevou os olhos ao céu num pedido de desculpas e, sem deixar a boa disposição dos outros, retorquiu:
– O bacharel fala muito, mas acerta pouco. Imagine, dona Antónia, que vai a caminho de Vargelas à procura da pata de um burro.
Olhou os dois, desconfiada, e o padre repetiu:
– Acredite. Uma pata de burro.
Vespúcio resolveu a dúvida, esclarecendo:
– E verdade.
D. Antónia estava acompanhada do sobrinho, pois viajavam juntos para o Porto. Embora contendo o riso, António Sousa avisou o bacharel compridão.
– Cuidado que andam lobos lá pelos altos. Há três dias mataram uma cachopa.
O padre João atalhou.
– Não se preocupe. Se lhe aparecer algum lobo pela frente, o nosso Vespúcio conta-lhe a história de que somos todos filhos de macacos e, portanto, irmãos. O lobo vai ajudá-lo a descobrir a pata do burro.
Riram todos e, como se estivesse vencido, o bacharel, coçando os espessos e compridos caracóis, retribuiu o chiste.
– Falta-lhe andar muito para ser um padre completo. Não foi São Francisco quem divulgou a ideia de que, sendo todos os seres vivos filhos de Deus, até os lobos são nossos irmãos? Onde está a sua costela franciscana? – E com ironia felina rematou: – Não tem vergonha de ser tão herege como o seu colega atomatado da Pesqueira? Claro que falarei com o lobo. A minha humildade franciscana permite-me que lhe diga, vem comigo, meu irmão. Sei que te acusam de coisas que não fizeste por isso ajuda-me a ilibar-te procurando comigo a pata do burro que diverte tanto o nosso padre Matias. E desculpa-o por não ser um bom cristão.
Despediu-se com um sorriso mariola e um curto acenar de mão, deixando os presentes pregados ao chão. Foi António Sousa quem conseguiu falar em primeiro lugar.
– É doido, não é?
– Varrido! – confirmou o padre. – Deu-me cabo do juízo a viagem inteira porque o padre Simões, da Pesqueira, não intercedeu para que se fizesse uma autópsia.
– Devia ser à rapariga que os lobos mataram. Ele apareceu quando descobrimos o corpo. Pôs a cabeça do regedor a andar à volta.
D. Antónia calou-se. Empertigada e pensativa. Por fim, falou, como se pensasse em voz alta.
– A pata de um burro? Uma autópsia? T lá mesmo a certeza de que foi um lobo que matou a miúda?
– Pelo menos foi o que disse o regedor e eu próprio vi o arranhão que o animal lhe fez no peito.
Não estava tão segura. Embora não concordasse com as loucuras de Vespúcio Ortigão, considerava-o muito inteligente. Alguma coisa de anormal se passava para ele estar tão envolvido naquela história. Fosse como fosse, decidiu esquecer o assunto e passar adiante. E virando-se para o padre, perguntou:
– Vamos falar de negócios?
O plano de Vespúcio bateu certo. Um dos seus clientes era um tal Ezequiel, que começara a vida como tanoeiro e agora tinha uma das maiores fábricas de pipas da região, instalada no Pinhão. Emprestou-lhe um dos seus cavalos. Tomando o caminho pela Quinta das Carvalhas em direcção a Roriz, Vespúcio meteu-se por carreiros que encontravam o caminho até Nagozelo, onde comeu qualquer coisa para confortar a barriga e pôs o cavalo a trote até Vale de Figueiras. Daí foi a passo sempre a subir para Vargelas.
Pulou de alegria quando percebeu que continuavam bem desenhadas no solo as patas do animal que carregara o cadáver da rapariga. Retirou o gesso do alforge, preparou a mistura com água e fez o molde das duas mais visíveis. Eram da mão direita e da pata esquerda do asno.
Quando acomodou o seu trabalho e se preparava para regressar é que se deu conta da enorme distância que percorrera. Não chegaria ao Pinhão a não ser noite alta e admitiu com humildade que, embora não fosse medroso, tão grande caminhada o atemorizava um pouco. Decidiu regressar pela Pesqueira. Dormiria na casa da tia e, com a alvorada, partiria para devolver o cavalo ao seu cliente.
Anoitecia quando entrou na povoação e, para seu desagrado, a primeira pessoa com quem se cruzou foi com o padre Simões. O pároco baixou a cabeça para não o cumprimentar e persignou-se com o sinal-da-cruz como que expurgando da alma aquela visão do diabo.
Colérico, saltou do cavalo e afrontou o clérigo:
– Que é lá isso? Tenho cara de Belzebu?
O padre, vermelho de medo, gritou:
– Vade retro! Vade retro!
E agarrou a batina com as duas mãos para fugir mais à vontade do monstro desajeitado que o interpelava. Ainda não recuperara do choque ditado pelo histerismo do padre atomatado, como Vespúcio o rotulara, e já outra figura que lhe deixara poucas saudades tocava no seu ombro. Era o barbeiro-regedor.
– Outra vez por cá? A sua tia disse-nos que partiu à pressa.
– Qual é o seu problema? É proibido vir à Pesqueira?
– Não, não.
A autoridade procurava as melhores palavras para lhe explicar o que lhe queria dizer. Por fim, desabafou:
– Se nunca falasse, era o visitante mais bem-vindo a esta terra. Não há ninguém que não goste da sua tia e o senhor pode estar certo de que receberia a mesma estima.
– Mas de boca fechada! – frisou Vespúcio.
– Exactamente. O senhor doutor nem imagina o sarilho que me arranjou com essa história do assassínio. Assustou as pessoas.
– E o senhor não as assustou quando lhes disse que foram os lobos?
– Talvez. Mas dos lobos sabemos defender-nos, enquanto de um assassino misterioso ninguém sabe como o fazer.
Ia responder-lhe à letra, mas ficou-se. Contra a sua vontade era obrigado a admitir que o homem tinha razão. Fora desastrado na forma como abordara a questão. Saber-se que alguém desconhecido andava pelos montes matando a eito jovens fêmeas significaria juntar mais medo ao universo de medos em que todos se moviam. Apaziguou o regedor.
– Tem razão, foi um disparate aquilo que disse. Prometo– lhe que não volto a tocar no assunto. Seja como for, parto de madrugada e não incomodo mais ninguém.
Pegou no cavalo pela rédea e, a pé, dirigiu-se à casa da tia. O outro chamou-o.
– Doutor Vespúcio!
– Sim?!
– Deu-me razão só por dar ou continua a pensar que houve um crime?
Ainda hesitou, mas o seu prazer na provocação foi maior.
– Um, não. Já lá vão dois!
O regedor ficou perplexo a vê-lo afastar-se. Definitivamente ele não regulava bem.
O conflito de Vespúcio crescera depois de reflectir nas palavras do outro. A utopia que o habitava não podia conviver com a necessidade de esconder a verdade. Era exacta– mente o contrário. Pô-la a nu e interpelá-la persistentemente até que se revelasse em toda a plenitude. Tinha Edmond Locard como um dos seus faróis mais brilhantes para iluminar este percurso espinhoso. Para o grande mestre, a descoberta de um crime jamais resultaria da barafunda de intenções em que se transformavam os grandes julgamentos. Réus insultados, interrogados impiedosamente, gemendo ao peso dos ferros que os prendiam como se fossem feras enfiadas num circo, onde se declaravam intenções e em que sobrenadava a retórica dos arautos da defesa e da acusação. Raramente, no final de um julgamento, se comentava a prova apresentada. A grande discussão era invariavelmente sobre quem teria falado melhor, sobre a posição defendida pelos principais jornais. A curiosidade obsessiva do bacharel tornara-o num excelente coleccionador. Embora surgido em 1864, quando nem ainda descobrira o seu caminho, conseguira a colecção completa do Diário de Notícias, assim como do Primeiro de Janeiro, que aparecera nas bancas quatro anos mais tarde. Não eram os únicos periódicos da sua enorme colecção, mas, numa pesquisa que ainda há pouco fizera nos dois diários, descobrira que nenhum réu antecipadamente condenado nos jornais tinha destino diferente na barra do tribunal. A única excepção a esta regra era o caso de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido e, mesmo assim, o par amoroso salvara-se graças à tremenda contenda que se abriu entre vários periódicos, cada qual defendendo o seu partido.
Edmond Locard pusera o dedo na ferida num artigo que lhe chegara às mãos, publicado nos Archives de Médécine I^egale de Lyon, Desgraçada justiça que precisa da confissão de um réu para se cumprir. A confissão permite tudo. Até a legitimação da tortura, pois, se não confessar a bem, o réu deverá confessar à força para que esse depoimento, verdadeiro ou falso, seja a almofada tranquila onde repousa a hipocrisia do tribunal.
Tocara-o profundamente esta afirmação do reputado médico. Porém, propusera um enigma terrível. Como demonstrar que determinado indivíduo cometera um crime prescindindo da confissão e caso não existissem testemunhas?
Era o problema que tinha entre mãos. Não havia uma única testemunha, o assassino não se mostrara para confessar os crimes e as autoridades conformavam-se com a verdade que a vida lhes ensinara ao longo dos séculos. Os lobos eram autores confessos, sem necessidade de julgamento, daquelas mortes. E Vespúcio insistia na sua teimosia: os lobos estavam inocentes.
Porém, esta confiança enfrentou um tropeção quando chegou à sua casa na Régua. Os moldes das marcas não se ajustavam. As patas do burro do João dos Rateiros eram mais pequenas. Os cascos não coincidiam. Então porque lhe mentira o caçador? Nem queria colocar a hipótese de existirem dois assassinos. Não era possível que a invul– garidade dos ferimentos de ambas as vítimas fosse decidida por duas pessoas diferentes em locais tão distantes. Talvez existissem outras razões para explicar as mentiras, embora o facto de João ser esquerdino o continuasse a inquietar.
Andou pela sala desarrumada tempo sem fim, fervilhando de hipóteses, de perguntas, na procura de respostas. Precisava de recomeçar tudo desde o início, sobretudo, de partilhar as suas preocupações. Para além do padre Matias, só o Crisóstomo, o mestre-escola, e o velho Paixão da Costa tinham paciência para lhe ouvir as convicções e extravagâncias. Embora a Ferreirinha mostrasse agrado em falar com ele, sabia que a mulher não tinha feitio para charadas e mistérios. Do que ela gostava mesmo era de uma boa conversa. Àquela hora da tarde, o padre Matias devia estar a passar pelas brasas e o Crisóstomo, armado da Cartilha Maternal de João de Deus, a ensinar as primeiras letras à pequenada. Decidiu-se pelo velho demente. Saiu de casa e dirigiu-se ao Rio. O Ti Paixão da Costa já chegara aos noventa anos. Combatera os franceses, fora um dos sobreviventes do desastre das barças e, quando estava lúcido, revelava uma memória prodigiosa.
Todos os dias, desde que estivesse bom tempo, caminhava apoiado na bengala, curvado e trôpego, até ao cais e ficava sentado, cachimbo apagado na boca desdentada, apreciando a actividade dos batéis, dos barcos, dos rabelos, até ao anoitecer. Vespúcio foi encontrá-lo na sua posição favorita.
As mãos apoiadas na bengala, o queixo repousando sobre as mãos e o olhar, ainda vivo, apreciando a vida no Rio.
Sentou-se ao lado do velho sem abrir a boca e Paixão da Costa não lhe ligou. Continuou atento ao Douro.
Um rabelo, dos grandes, acostava, carregado de caixotes, e os homens precipitavam-se com redobradas cautelas, apertando os cabos, enovelando o cordame para que o encosto ao cais fosse suave.
– Traz vidro. Garrafões de vidro! – disse o velho. – E sempre o mesmo cuidado para que não se partam.
Vespúcio olhou, distraído, para a faina e meteu o indicador no nariz, massajando a pequena dor de um pêlo arrancado. Paixão da Costa, sem olhar para ele, gritou:
– Não tires macacos do nariz!
Vespúcio deu um salto no banco, apanhado de surpresa pelo grito do velho.
– Não estou a tirar macacos.
– Tinhas o dedo no nariz. És um macacoso.
O bacharel não conseguia recuperar da surpresa. Observava-o espantado.
– Como é que sabe? Nem estava a olhar para mim.
– Tens a mania que és um investigador, mas não passas de um macacoso. Não preciso de olhar para ti para saber que és porco. Estavas a tirar macacos do nariz.
Não estava a gostar do início da conversa. O velho grasnava como uma pega, ralhando com ele. Foi então que reparou no reflexo dos dois na água do Rio. Sorriu bem-dis– posto.
– Viu o que eu estava a fazer no espelho da água.
– Macacoso!
Resolveu não lhe responder. Se fosse por esse caminho, sabia que Paixão de Costa repetiria até à exaustão: «Macacoso!»
Deixou-se ficar em silêncio sentado ao lado do velho rezingão. Era frequente ouvir gracejos de quem passava, quando estava com Paixão da Costa. O Vespúcio comprido e estreito como um pampilho, e o outro corcovado, com o pescoço encravado nos ombros, mais parecia um corvo ali poisado. Por diferentes razões, a fama de ambos era idêntica. «Não são malucos, mas que não têm os cinco sentidos, lá isso!», rematava o padre João, sempre que era obrigado a defendê-los dos avanços das beatas, que desconfiavam do par assim íormado, por vezes horas a lio olhando o Rio, sem uma palavra, absortos nos seus pensamentos ou nas suas memórias.
– Estou preocupado, Ti Paixão da Costa. Anda por aí um bandido a matar raparigas.
– Eu sei.
– Sabe? – perguntou o bacharel, outra vez surpreendido.
– É o maricas do Beresiord. Se o morcão do rei não tivesse fugido para o Brasil, esse calhordas não mandava aqui. O Manuel Fernandes Tomás é que vai pô-lo na ordem.
Vespúcio suspirou. O velho delirava.
– Oiça, isso aconteceu há sessenta anos. Eu estou a falar de hoje, agora.
– Tás maluco? Eu não sou assim tão velho. Foi há dez anos no máximo.
Tomaram ao silêncio. O rabelo estava devidamente amarrado e os homens carregavam, com cautela, enormes caixas cm ripas de madeira. Efectivamente eram garrafões de vidro para transporte de aguardente.
– Lembra-se de algum caso de pessoas aqui da região terem sido comidas por lobos?
– Eu já comi carne de lobo. E de raposa. São ásperas!
Paixão da Costa fez uma careta.
– E lobos matarem pessoas?
– Houve um caso há muitos anos. Antes do tonto do dom Miguel andar por aí a fazer disparates. Ainda os franceses não tinham metido cá o nariz.
– Ti Paixão da Costa, as invasões francesas foram antes de Dom Miguel chegar ao trono.
– Não interessa. Eu até fui ver. Foi por cima das Nogueiras, em Godim. Um pastor desapareceu e os lobos levaram duas ovelhas. Nesse ano a fome até gania. Um rapaz encontrou o pastor morto. Veio dar a notícia e ninguém ligou. Como o homem não aparecia, dois ou três dias depois lá foi um grupo de gente ao sítio que o rapaz dissera. Só encontraram as botas e o chapéu. Os lobos resolveram o problema do funeral.
Enquanto falava, o cachimbo subia e descia à velocidade com que o queixo desdentado libertava as palavras. Vespúcio sabia distinguir quando Ti Paixão da Costa delirava ou falava com discernimento. Aquilo que acabara de contar fazia sentido.
– Mataram-nas e tiraram-lhes pedaços de intestino abrindo– lhes a barriga.
O velho soltou um risinho miudinho.
– Fiz o mesmo a uma mão-cheia de franceses. Espetava– lhes a baioneta até não haver mais. E o Beresford merecia o mesmo. Só que nunca o apanhei a jeito.
O silêncio voltou. Descendo o Rio, aproximava-se um rabelo da Ferreirinha. Paixão da Costa seguiu-o com atenção. Por fim, sentenciou:
– Vem do Vesúvio. Leva vinho para Gaia.
Tantos anos sentado naquele posto de vigia, tinha aprendido as manobras e as cargas que cruzavam as águas. Vespú– cio, de braços cruzados, não ouvia nem via o que se passava. O problema essencial ainda não o conseguira identificar. O móbil do crime. Era o ensinamento que Balthazar, o eminente cientista forense francês, colocava no topo das perguntas a responder perante um crime.
O ancião pareceu adivinhar-lhe os pensamentos e perguntou:
– O animal que matou as cachopas desonrou-as?
Fez um gesto de contrariedade. Veio-lhe à memória o tonto do regedor e o padre atomatado. Se o cadáver que ele viu tivesse sido autopsiado pelo menos saberia se houvera ou não violação.
A falta de resposta do companheiro levou Paixão da Costa a concluir:
– Ou é um tarado que procura abusar das moças ou arranca-lhes as tripas para outros trabalhos.
Olhou-o sem entender onde queria chegar. Estaria outra vez a delirar?
– Que conversa é essa, Ti Paixão da Costa?
– Bruxaria.
Não lhe passara tal ideia pela cabeça. Associava essas práticas a tempos idos, quando as fogueiras da Inquisição crepitavam em tenebrosos autos-de-fé.
– Há muitas bruxas na Régua?
– Por todo o lado. A Eugenia do Falcoeiro é uma delas. Mora na minha rua. E minha amiga! Deus me livre de uma bruxa se zangar comigo. Fazia uma encomendação e despachava-me em menos de um ai!
As benzeduras que a sua tia distribuía freio gado em torno da Pesqueira vieram-lhe à ideia. Recordava-se, quando era criança, de um homem com nariz de águia e de cor tão pálida que assustava por parecer que estava morto, e que por esse motivo ganhara a alcunha do Morto-Vivo. Os rapazes, incluindo Vespúcio, fugiam dele a sete pés, com medo de que os levasse para o Inferno. Dizia-se que fazia bruxedos pelas aldeias que pareciam milagres, e só não chamavam milagres aos prodígios do Morto-Vivo porque os padres pregavam contra ele. Os padres!
Levantou-se num ápice. Precisava de falar urgentemente com o padre João Matias. Despediu-se do velho Paixão da Costa, que continuava a olhar o Rio, observando um barco que se aproximava apinhado de jornaleiros, e afastou-se apressado. Ainda o ouviu comentar:
– O pessoal que trabalha na Quinta da Portela hoje regressa mais cedo.
Encontrou o padre João Matias na sacristia. Estava a retirar os paramentos em tons de roxo, quando Vespúcio Ortigão entrou como um furacão. O sacerdote deu um salto.
– Que modos são esses, Vespúcio? Pregaste-me cá um susto.
– Desculpe-me. Não sabia que estava a desfardar-se.
– Fui fazer um funeral. Que aconteceu para estares tão transtornado?
Em vez de responder, sentou-se numa cadeira, cruzando as pernas de tal maneira que ficaram estranhamente enroladas uma na outra. O sacerdote ajeitou a batina, foi guardar o livro onde registara o óbito e serviu-se de água do cântaro. Voltou a repetir.
– Não me queres dizer o que se passa?
– Fale-me de bruxaria.
O padre João engasgou-se com a água.
– O quê?
– Conte-me tudo o que sabe sobre bruxas, bruxos e bruxedos.
Sentou-se, cambaleante. O rapaz tinha o condão de o desconcertar.
– Vespúcio, se ainda não deste conta, deixa-me explicar melhor. Eu sou padre. Não percebo nada de bruxaria, nem de bruxas, nem dessas heresias.
Com uma serenidade quase impassível, o bacharel censurou-o.
– Mas devia saber. Faz parte de uma instituição que queimou centenas delas.
O sacerdote não gostou da ironia. Foi com alguma impaciência que tornou a perguntar:
– Estou atrasado. Ainda preciso de passar pelas vinhas antes da última missa. Fartei-me de andar por causa do funeral, doem-me os joanetes, posso saber o que aconteceu para entrares pela sacristia dentro com essa conversa tonta?
– Quantos bruxos ou bruxas há nas redondezas? – retorquiu, evitando a pergunta do outro.
– Não sei.
– Não sabe? Claro que sabe.
Suspirou fundo. Não só lhe desagradava o tema, como não conseguia perceber o súbito interesse de Vespúcio por bruxos e bruxarias. No entanto, tinha a certeza de que não se livraria dele enquanto não desse informação a contento.
– São muitas. Existem ntais bruxas do que padres.
Fez contas de cabeça e surpreendeu-se.
– Se é como diz, é uma legião delas.
– Espalhadas por todos os sítios que possas imaginar.
Era uma dificuldade acrescida. Não conseguiria falar com tanta gente. Decidiu-sc por outra pergunta.
– Só mais uma, e deixo-o em paz. Conhece algum bruxedo que precise de um pedaço de intestino de rapariga nova?
O padre estava tão cansado que nem fez considerações sobre aquilo que o outro questionava.
– Não.
– De certeza?
– Juro-te, por Deus!
Levantou-se, desenrolando as pernas como se fossem um saca-rolhas. À porta da sacristia parou. Voltou-se para o pároco:
– Agora é que é mesmo a última pergunta. Quem é a pessoa que me pode informar mais sobre coisas de bruxaria?
– Eu não sei como aceito discutir estes assuntos contigo. Às vezes dou comigo a pensar que estou tão maluco como tu.
Vespúcio piscou-lhe o olho com um sorriso matreiro.
– Porque o meu pai foi padre e, por isso, sou em carne e osso a evidência das suas fraquezas e das de todos os seus colegas. Quem é que sabe de bruxedo?
– Dizem que a Efigénia do Falcoeiro é entendida nessas coisas. Estás satisfeito? Pronto, agora deixa-me em paz!
Correu a dar um abraço ao sacerdote e exclamou:
– De facto, o senhor é o homem ntais santo que conheço. Deus proteja o maior salvador de almas da Régua e das redondezas!
E saiu a correr da sacristia. O padre João Matias, de tão desorientado, tornou a sentar-se e exclamou:
– Este rapaz dá comigo em doido. Já nem sei o que tinha para fazer!
Vespúcio conhecia a vizinha do Ti Paixão da Costa e, agora, recordava-se de algumas conversas que corriam nas tabernas acerca dos enormes poderes da mulher. Porém, habituara-se a repudiar esse tipo de superstição com grandes comícios, ajudados pelo álcool e que deixavam prostradas as clientelas, que dissolviam as amarguras em infinitas camadas de vinho.
Que haveria de chegar o dia cm que não haveria necessidade de Deus. Que lessem Rénan, ao menos passassem os olhos por Reinach. Para não lalar de Marx.
– O tempo velho chegou ao fim, meus senhores. E, quer queiram quer não, será o bisturi, serão a proveta e o tubo de ensaio as armas que o vão destruir de vez. Da ciência resultará a verdade absoluta e, no dia em que tudo for explicado e compreendido, não haverá lugar para a crença. A religião extinguir-se-á como as brasas de uma lareira que não foi alimentada. Haverá aqui alguém que tenha dúvidas?
Respondia-lhe a indiferença de almocreves e barqueiros, de pastores, tanoeiros e estivadores. Não percebiam uma única palavra do que ele dizia e emborcavam mais vinho, dedicando atenção às preocupações de todos os dias. () avanço da filoxera, as novas quintas atacadas pela praga, a labuta da Ferreirinha contra o insecto. Aliás, quase todos trabalhavam para ela.
Naquele tempo, as ruas e vielas da Régua cheiravam a vinho e a azedo e os mortórios que se sucediam pelos socalcos das encostas não favoreciam o afastamento de Deus que o bacharel profetizava.
Ainda nesse mesmo dia procurou Efigénia do Falcoeiro, mas teve uma contrariedade. Não estava. Talvez chegasse daí a uma semana, pois fora ao Porto visitar uma filha. Precisava de esperar, mas a agitação que sentia não o deixava descansar. Depois de muito pensar, decidiu embebedar-se para afogar a impotência.
Juntaram-se na casa da Foz. Tinham terminado a ceia e D. Antónia mandou servir os licores. Durante a refeição expôs a situação que se vivia na região. Mostrou os locais por onde avançava a praga, enumerou os estragos produzidos nas quintas onde procurava comprar novos vinhedos que permitissem manter a produção a bom ritmo e, por fim, relatou a conversa que tivera com o Dr. Azevedo Duarte, na Quinta do Vesúvio. Quando terminou, pediu a António Claro que fizesse o balanço dos vinhos em armazém e da actividade comercial.
O administrador foi exaustivo. Apesar da violência da praga, a empresa aguentara bem o embate. Não só aumentara o património em terra, como as reservas de vinho tinham crescido. Entre os armazéns espalhados pelo Douro e Gaia ascendiam a mais de dez mil pipas. Era uma fortuna formidável! E, mau grado a especulação com os preços, a rede de distribuição alargara-se. Para além de Inglaterra, a França abrira-se, encantada com as qualidades dos vinhos da Fer– reira, e o mesmo se passava na Alemanha.
A seguir falou Silva Torres. Descreveu os resultados das aplicações financeiras, dos investimentos nos bancos nacionais e títulos franceses e ingleses, as mais-valias provenientes da Companhia dos Tabacos, os investimentos em imóveis, sobretudo, no Palácio do Calhariz, em Lisboa, assim como a compra de prédios e armazéns no Porto, em Gaia, Vila Real. Os activos diversificados aumentavam consideravelmente a robustez da A. A. Ferreira. Depois explicou as negociações em torno da exportação, a confusão política sobre a aceitação de vinho fora da região demarcada, os esforços que fizera, através dos deputados que elegera por Vila Real, para satisfazer a seu favor as decisões do Governo c, finalmente, informou que para o combate à praga a Fazenda iria apoiar financeiramente uma fábrica de sulfureto de carbono na região.
D. Antónia não deixou de notar o cansaço do marido enquanto falava. E a preocupação revelou-se na gravidade da expressão do rosto. A conversa generalizou-se. Mesmo com a ajuda de centenas de toneladas de adubos espalhadas pelas vinhas de todas as quintas, quando o insecto chegava não havia cepa que resistisse. António Bernardo falou pouco. A meio da noite pediu para sair. Havia sido convocado para uma reunião na Associação Portuense a que não podia faltar. A mãe não resistiu a chamar-lhe a atenção.
– Vais sair no meio de uma conversa tão importante para todos nós?
Respondeu-lhe enfadado.
– Mãe, não sei há quantos anos que oiço falar da filoxera e da tragédia que provoca no Douro. Afinal de contas, depois do que ouvi hoje, essa tal filoxera foi a melhor coisa que nos aconteceu. Estamos cada vez mais ricos! Portanto, confesso que não vejo motivos para tanta preocupação. Com a vossa licença.
E saiu. D. Antónia Ferreira disfarçou a irritação. Além de que estava preocupada com Francisco Silva Torres. Vigiava-o enquanto a discussão se desenrolava e tomara uma decisão. No dia seguinte, seria visto por um médico, custasse o que custasse.
Silva Torres era o rosto urbano da energia rural de D. Antónia. Inteligente, ponderado, fora o homem de confiança do seu primeiro marido. Durante a longa viuvez servira-a com uma lealdade sem limites e, depois de casarem, revelou em toda a plenitude a perspicácia para o negócio e para a realização de bons investimentos. Respeitado em Lisboa, escutado quase com reverência na praça financeira do Porto, nunca abandonara a mulher na luta para salvar o Douro das destruições provocadas pela filoxera.
Quando a reunião terminou e estavam os dois sozinhos, Antónia fechou a porta do salão e falou-lhe com gravidade.
– Agora, vamos discutir o assunto mais importante de todos aqueles que foram falados esta noite.
Silva Torres endireitou-se no canapé, de semblante franzido.
– É grave?
– É. A tua saúde.
Descontraiu-se outra vez.
-Já te disse que não estou doente. É apenas cansaço. Tu sabes como temos trabalhado nos últimos tempos.
– Amanhã vou chamar um médico para te ver.
A expressão de contrariedade respondeu por ele.
– Não faças essa cara. Amanhã quero que um médico te veja!
Agarrou-a pelas mãos e puxou-a para perto de si.
– Sabes do que estamos os dois a precisar?
– De umas férias. Dizes sempre o mesmo, mas não descansas um minuto.
– Juro! Amanhã mesmo peço no escritório que nos reservem uma viagem para Sampetersburgo com escala em Paris. Quinze dias! Aceitas?
Agradou-lhe a ideia. O comboio agora ligava as principais cidades do reino até aos confins da Ásia. Seria muito mais confortável do que os vapores aos solavancos por esses mares fora.
– Um mês! – emendou D. Antónia.
– Pois que seja um mês. Só viajar, passear e descansar.
Afagou com doçura o rosto do marido e teimou:
– Vamos viajar e amanhã vais ser visto por um médico.
Desatou a rir.
– És a mulher mais teimosa que alguma vez conheci.
– Porque gosto de ti. Porque me fazes muita falta. Porque não saberia o que fazer sem a tua companhia ao meu lado.
Abraçaram-se comovidos. Silva Torres afagou-lhe os cabelos.
– Fizemos uma grande caminhada juntos.
– Graças a Deus!
– Mas tu é que és a minha alma, a minha energia. És uma dádiva divina, Antónia Adelaide Ferreira!
Beijou-o e encostou-se ao peito dele.
– Estamos a ficar velhos, Francisco Silva Torres. – Fechou os olhos e sorriu: – Vou gostar de fazer essa viagem a Sam– petersburgo e a Paris. Os meus filhos falam tanto dessas cidades e eu só conheço Londres. Bem dizem eles que não passo de uma camponesa.
Silva Torres beijou-lhe a testa.
– Então és a camponesa mais admirada e respeitada por esse mundo fora. Tens garrafas com o teu nome espalhadas por todos os cantos da Terra.
– Não vale a pena continuares com essa adulação. A questão principal é outra. Amanhã posso chamar o médico para te ver?
– Podes. Aceito para te fazer a vontade porque te vai dizer o que eu te disse. Estou apenas cansado.
– Que diga isso. Ao menos ficarei mais tranquila, ou– vindo-o da boca dele.
– Mas de tarde. De manhã cedo tenho uma reunião em Gaia com os Sandeman que anda a ser adiada há quase dois meses.
– Que seja de tarde. Mas de amanhã não passa. Eu própria tratarei de tudo.
Mal sabiam os dois que acabavam de ter a última conversa das suas vidas. Pela manhã, Silva Torres saiu de casa em direcção a Gaia. A dor no braço e no peito que sentia há alguns dias era mais forte. Agradeceu mentalmente à mulher a decisão de ser visto por um clínico, mas quando chegou aos escritórios a dor era tão forte que o corpo estava encharcado de suores frios. Sentiu que cambaleava e a última imagem que fixou foi a de António Claro a correr assustado na sua direcção. Quando segurou o patrão, e velho amigo, já não havia nada a fazer. Estava morto.
D. Antónia recebeu a notícia como se tivesse levado um coice no peito. Encolheu-se, cerrou os punhos com força e não disse uma palavra. A empregada, lavada em lágrimas, quis ampará-la, mas num gesto firme afastou-a.
– Deixa-me. Quero ficar sozinha.
E correu para a capela da residência. A cidade estremeceu com a notícia e, em Lisboa, o Parlamento e o Senado protestaram grandes orações de pesar. Silva Torres tomara– se numa referência dos empresários de sucesso da Regeneração e foi com mágoa no coração que Fontes Pereira de Melo evocou publicamente o amigo que acabara de perder.
Passou a noite sentada na capela, hirta, o olhar pregado no altar-mor. Quisera ficar sozinha. Era um hábito antigo. Quando a mágoa era funda, rasgando as entranhas e sangrando lágrimas, rezava, desfiando o longo rosário de ónix rendilhado a prata. Nas orações exorcizava as mágoas e as memórias. A figura esguia de D. Antónia parecia sumir-se naquele canto da capela e já raiava o dia quando o padre João Matias, amigo de longa data e confidente das maiores amarguras, se atreveu a romper o silêncio.
Aproximou-se devagar e sentou-se ao lado dela. Não rejeitou a presença, mas continuou a olhar o Cristo crucificado, imóvel e frio. O padre abordou-a com doçura:
– Como está, minha boa amiga?
– Zangada com Deus!
– Compreendo a sua mágoa, mas os desígnios do Senhor são insondáveis! – E continuou, consolador: – Tenho a certeza de que a alma do senhor Francisco Silva Torres está neste momento ao lado de Deus Pai a velar por nós.
– Estará. Mas perdi o meu melhor amigo e, com setenta anos, a minha vida perdeu o sentido.
O sacerdote meneou a cabeça e sorriu, condescendente.
– Não diga isso. Tem os seus lilhos, os seus netos e milhares e milhares de homens e mulheres por esse Douro acima que a amam e veneram como se fosse a mãe de toda a gente.
O rosto crispou-se em revolta.
– Então porque é que, com tanto afecto à minha volta, tenho um deserto no coração?
– Porque está a sofrer. Reze comigo. Vai ver que se sentirá melhor.
– Seria uma oração impura. Tenho o peito cheio de raiva, de indignação, de mágoa.
– Não existem orações impuras. Falar com Deus é sempre um acto piedoso.
Ficou em silêncio. Da rua vinham os primeiros sons da madrugada. Vozes de pessoas a caminho do trabalho, as primeiras carretas e os gritos dos boieiros dirigindo-se ao Rio.
– Tem razão. Eu rezo consigo.
Ninguém lhe viu uma lágrima no rosto durante o funeral, onde esteve em peso toda a aristocracia do Porto, representantes das casas inglesas, homens destacados da política e uma multidão de gente simples que, de cabeça descoberta e recolhidos em tristeza, se despediam do homem que durante décadas fora o amparo e o conforto de milhares de famílias.
Decidiu partir para a Régua no dia seguinte. A cidade do Porto não era um albergue amigo. Significava apenas um local de negócios, um porto de escala, mas nunca um abrigo. O Douro era o ventre materno que a aconchegava no colo quando sofria ou era feliz. D. Antónia sabia. Ninguém é feliz para sempre. A felicidade é uma pontuação, não é uma frase. E só a pode sentir no auge das emoções quem sofreu intensamente. A sua vida, a vida de todos os mortais, era feita desta transitoriedade onde o único valor absoluto é a morte. Como agora acontecera com a partida de Silva Torres. E se a dor lhe apertava o coração, pressentia que era preciso encontrar força no corpo já envelhecido para vislumbrar um sentido para os dias que ainda lhe faltavam viver.
Recolheu-se na Quinta das Nogueiras e, nessa noite, quando entrou no quarto e viu sobre a cama o capote que o marido ali deixara pela última vez, pegou-lhe, afagou-o com ternura, abraçou-o com a força do último abraço, libertando as lágrimas do pranto que só o colo materno sossega.
A Régua vestiu-se de luto pelo luto da Ferreirinha. O povo sofria com ela e estremecia de preocupações. Corria o boato de que desistira. A morte do marido, o cansaço, a idade tinham levado a patroa a desistir. O filho, António Bernardo, ia tomar conta dos negócios da família. Era o fim da esperança. A luta contra a praga, modificando por completo as margens do Douro, ia chegar ao Hm. Ninguém acreditava que António Bernardo fosse capaz, que tivesse na alma a paixão, que fosse o comandante da revolução que sua mãe realizara. O passado, cheio de futilidade e preguiça, perseguia-o e um exército, mesmo que seja de pedintes esfomeados, é capaz de mover montanhas se acreditar em quem o comanda.
Não era o caso. Num dos armazéns da Régua, Francisco Correia partilhava estas preocupações com António Claro, que viera do Porto, preocupado com a falta da patroa.
António cofiava o bigode com gravidade.
– É um problema, Francisco. Um problema!
– Há uma semana que está enfiada na Quinta das Nogueiras sem falar com ninguém. Só a Mariana chega perto dela e, mesmo assim, para se afligir. Disse-mc que passa os dias fechada no quarto e mal toca na comida.
– E tu? Tentaste falar com ela?
– Por duas vezes. E das duas vezes fui corrido.
António Claro fez um gesto de impaciência.
– Não podemos continuar assim por muito mais tempo. Os nossos clientes ingleses estão inquietos, os bancos preocupados, a desorientação é completa em Gaia.
– Por aqui é um desalento que faz chorar as pedras. Ainda por cima corre a notícia de que o senhor António Bernardo vai ficar à frente de tudo isto.
– É natural. Mas, se conheço a patroa como julgo conhecer, mesmo que ela abandone o trabalho e se retire para descansar, há-de inventar solução melhor.
– A filha...
– É pior a emenda que o soneto. Há-de ser o que ela quiser!... – E mudou de tom. – Seja como for, vou às Nogueiras. Não vim do Porto até aqui para nem ao menos tentar saber como ela está. Depois dou notícias, Francisco. Fica com Deus.
E saiu. Percebeu o silêncio que alastrava pelas ruas. Mesmo dos rabelos que chegavam e partiam do cais não chegavam os gritos habituais dos barqueiros e dos estivadores, e António Claro entrou na quinta ainda mais preocupado. Mariana recebeu-o com ar triste.
– Senhor António Claro.
– Deus te salve, minha filha. Podes dizer à senhora que eu estou aqui?
– Está no quarto. Tenho ordens para dizer que não recebe ninguém.
– Seja como for. Diz-lhe que vim do Porto de propósito para falar com ela.
A rapariga hesitou, mas, por fim, dirigiu-se para o interior. Passados alguns instantes regressou animada.
– A senhora vai recebê-lo. Pode ir para o escritório. Graças a Deus! Eu já pensava que ela tinha perdido a fala.
António entrou. Da porta interior surgiu a Ferreirinha. Estava pálida e parecia mais magra e pequenina. No entanto, os gestos eram firmes.
– Como estás, António?
– Bem, graças a Deus. E a senhora?
– Para aqui estou.
Sentou-se e fez-lhe sinal para que se sentasse. Como vestia sempre de preto, não se notavam sinais de luto. Apenas tristeza e um desalento protundo.
– Há algum problema no Porto?
– No Porto está tudo bem. Vim saber da senhora.
– Sinto-me vencida, António Claro, e faltam-me forças para vencer este abalo.
– Foi uma grande perda a morte do Francisco. Mas a senhora é mais forte do que a dor.
Suspirou.
– Não sei. Não sei. Esta solidão que me rodeia, a sensação de que estou só, dia e noite, está a dar cabo de mim.
– Os seus filhos não vieram visitá-la?
Os olhos fixaram-se, duros, no tapete de Arraiolos que cobria o chão do escritório.
– Os meus filhos chegarão no dia em que for lido o testamento do meu marido. São dois abutres esfomeados à espera de dinheiro. A mãe não existe. Quanto mais depressa morrer, melhor. É a maneira de poderem destruir tudo o que a família conquistou ao longo de cem anos.
– Está a ser injusta. Podem não ter muita cabeça para os negócios, mas gostam de si.
Travara verdadeiras guerras com os filhos. António Bernardo gastara várias fortunas com negócios ruinosos, mais interessado na vida mundana, nas festas e nas mulheres. Maria da Assunção, com doze filhos e um marido deslumbrado, conseguira destruir a fortuna que recebera, herdada pelo conde da Azambuja, em palácios, viagens e frivolidades. Não fosse D. Antónia a pagar a educação dos netos, por certo, morreriam de fome.
– Vou contar-te um segredo. O meu casamento com o Francisco foi um acto de soberba.
– Perdão?
– É como te disse. Estimava-o, é certo. Ao serviço do meu primeiro marido mostrara-se um homem sério e dedicado, mas eu não o amava. Estávamos em Londres, eu fugira com a minha filha das loucuras do duque de Saldanha e tinha consciência de que estar sozinha me deixava à mercê da alcateia de feras que são esses mediadores das casas inglesas, da chantagem e especulação de todos os clientes e proprietários.
Parou para tomar fôlego e continuou:
– Vivemos num tempo em que ser mulher não é a melhor coisa do mundo. Nem direito ao nome nos dão e não queria ser conhecida pela viúva de António Bernardo Ferreira. As viúvas perdem o direito ao nome, António Claro. A viúva de fulano, a viúva de sicrano.
– É o costume.
– Mas eu não queria perder o meu nome. Antónia Adelaide Ferreira! Porque Antónia Adelaide Ferreira tinha um sonho, um sonho que herdei do meu pai e do meu tio. Era um sonho com nome próprio que tem o Douro no coração. O segredo da nossa casa, António Claro, foi termos posto a qualidade dos nossos vinhos acima de outro interesse, e o melhor vinho só pode sair de boas vinhas, e só são boas se forem cuidadas, trabalhadas com paixão. É por isso que quem trabalha para nós tem de ser bem tratado, respeitado, acarinhado, porque só assim sente a alegria de amar os vinhedos de que cuida.
António Claro interrompeu-a.
– Deve dar graças a Deus. A mulher com nome próprio, Antónia Adelaide Ferreira, é uma das raras mortais que deu corpo aos seus sonhos.
– Não estão realizados. Não vencemos a guerra contra a filoxera e o Francisco era o bom senso, a determinação neste combate. Com o andar dos anos aprendi a amá-lo. E agora olho para o lado e sinto um enorme vazio, a solidão mais absoluta, a falta de vontade definitiva. Como posso neste estado realizar o sonho de Antónia Adelaide Ferreira?
– Chame o seu filho para junto de si. Com a sua ajuda e conselho ele pode ser o herdeiro da sua obra.
– O António Bernardo não ama esta terra. Perdeu o sentido do amor por frequentar tanto bordel. Quantas vezes já tentei, António? Quantas discussões?
O administrador dos escritórios do Porto não respondeu.
D. Antónia tinha razão, ele sabia por experiência das muitas vezes que lhe pagara dívidas, sem que a mãe soubesse, do desinteresse de António Bernardo pelo trabalho árduo das quintas.
– Que posso fazer pela senhora?
– Nada, meu amigo. Preciso de tempo para me habituar ao meu desgosto, para me encontrar no meio da desorientação em que agora vivo. Até lá, confio em ti e no Francisco Correia para levarem esta barca por diante.
António Claro saiu assustado da Quinta das Nogueiras. I lá mais de quarenta anos que acompanhava a Ferreirinha e nunca a vira tão prostrada, tão indefesa. Ela, que era o poço de energia quando todos desanimavam. Assim fora ao longo dos últimos oito anos de luta terrível contra a filoxera. Conseguira resistir, teimar, levantar o Douro em peso para enfrentar o flagelo, e agora era um ser minúsculo, uma mulher indefesa, assustada, cercada na sua própria solidão.
Os dias passavam, arrastados. No Porto, especuladores e oportunistas de toda a ordem aproximavam-se aos magotes de António Bernardo, adulando o em breve herdeiro do império dos Ferreira da Régua. Vivia rodeado de uma numerosa corte conhecedora das suas fraquezas e de garras afiadas para a imensa fortuna acumulada. Ainda por cima, era certo que Francisco Silva Torres legara todos os seus bens à esposa e aos seus herdeiros. Na Régua, no Pinhão, no Douro superior, milhares de proprietários, lavradores, caseiros, trabalhadores dos lugares e aldeias das encostas, das terras quentes, viviam angustiados a incerteza do futuro.
Enquanto o drama se desenrolava, D. Antónia rezava e meditava. De olhar perdido pelas margens do Rio, observava, nostálgica, os rabelos carregados de pipas a caminho de Gaia.
Mariana animava-a quanto podia. Ralhava com a madrinha. Obrigava-a a comer. Quando a sentia demasiado tempo presa ao quarto, invadia-o sem pedir licença, enfiando o braço no braço de D. Antónia e passeava com ela, pelo jardim das Nogueiras, contando-lhe as notícias da vila e as cos– cuvilhices da serra. A intriga que dominava a vizinhança era um artigo publicado pelo Dr. Vespúcio Ortigão, acusando os regedores de mentir ao povo, pois não tinham sido os lobos que haviam morto as raparigas entre Pinhão e Varge– las, mas um assassino que andava à solta e tranquilo com a despreocupação das autoridades.
Numa dessas noites, a Ferreirinha teve um pesadelo. Via– se sentada no terraço da Quinta do Porto, acima do Pinhão. Os montes à sua frente eram negros e fumegantes e o Rio era breu no qual boiavam cadáveres de carvalhos, cepas mortas, e o céu estava carregado, vermelho de sangue. E ela, sentada na cadeira, queria correr para salvar o que pudesse das garras do Inferno, mas uma força invisível e transcendente segurava-a ao lugar, obrigando-a a ser testemunha do domínio dos diabos à solta pelo vale. Uma angústia tempestuosa apertava-lhe o peito e era absurda a quietude em torno da cadeira donde olhava a hecatombe de morte enovelada em remoinhos de cinza e vento que subiam e desciam à sua frente entrecortados por gritos de horror e gargalhadas metálicas. Um insecto enorme, dez vezes maior do que Vale de Meão, emergia no meio do apocalipse, devorando casas e homens, regurgitando esqueletos e ossadas, que lançava no Rio feito de carvão fumegante.
Acordou sobressaltada. Ofegava e transpirava abundantemente. Levantou-se, bebeu um copo de água, aliviada por ter saído do pesadelo, e, com o coração ainda descompassado, dirigiu-se à janela. Já amanhecera e o Rio cintilava aos primeiros raios de sol que anunciavam o dia.
A afilhada acendia o borralho na cozinha e sobressaltou -se com os gritos.
– Mariana! Mariana!
Correu ao quarto da madrinha.
– Sim, minha senhora.
– Manda alguém chamar o Francisco Correia, digam-lhe que o quero ver antes do almoço.
Mariana saiu a correr. Percebeu na voz da velha senhora que ela regressara ao mundo dos vivos e, aos setenta e dois anos, tornara a erguer-se dos escombros do desgosto. Francisco acorreu ansioso e foi com alegria que ouviu as ordens da patroa. A energia antiga regressara.
– Telegrafa para Gaia e para o Porto. Quero que venham aqui os meus filhos, tu, o António Claro, os feitores das quintas e todos aqueles que tratam dos nossos negócios no estrangeiro.
– Com certeza, senhora.
– Ah! Traz-me os livros com o registo das reservas de vinho que temos na Régua e manda alguém pôr calda de enxofre na cabeça da vinha aqui das Nogueiras. Está a entrar oídio e ninguém liga.
Francisco Correia sorriu.
– Vou tratar de tudo, dona Antónia.
– Estás a rir do quê? Achas graça termos oídio na vinha?
– Não, não. Com a sua licença.
O administrador saiu e, resmungando, dirigiu-se ao escritório.
– Distraídos! Se não fosse eu andar em cima das coisas, havia de ser bonito.
Antónia Ferreira não tinha noção do que representava para a gente da Régua e por todo o Douro. Não percebera que a sua paixão pela terra era uma força arrebatadora que não estava ao alcance de um vulgar proprietário de quintas.
Maior do que o poder sobre os milhares de hectares que detinha era a formidável fé de todos aqueles que dela se aproximavam.
Os filhos foram os primeiros a chegar. Maria da Assunção abraçou-a, afectuosa, e o conde da Azambuja, indisfarçavelmente mentiroso, beijou-lhe a mão.
– Obrigada por terem vindo.
– Os pedidos da minha querida sogra são ordens!
António Bernardo beijou-lhe a fronte.
– Sua bênção, minha mãe. Precisa que eu faça alguma coisa?
– Recebam por mim os outros convidados, que devem estar a chegar. Estou a terminar umas notas para a reunião que vamos ter.
Dirigiu-se para o escritório. Quando a viu desaparecer, Maria da Assunção comentou entre dentes.
– Está muito doce, não está?
O marido, eufórico, reagiu excitado.
– Completamente rendida. Viram como está magra e pálida? A morte do Silva Torres venceu-a! – E abraçando António Bernardo: – Prepare-se que hoje vai ser um grande dia para si. Vai assumir o comando desta grande nau. Parabéns, António Bernardo! Há muito que merecia este lugar.
Este sorriu sem esconder alguma vaidade, mas baixou a voz quando respondeu:
– Cuidado com o tom em que fala, Augusto Pedro. A minha mãe está em toda a parte.
– Seja como for, o desgosto venceu-a. Mete-se pelos olhos.
Maria da Assunção aproximou-se.
– Vais contar connosco. Nem eu nem o Augusto temos paciência para estes negócios de vinhas e de vinhos. Mas precisamos de uma boa renda. A miséria que a mãe nos dá não chega para nada.
– E temos as hipotecas dos palácios para pagar.
António Bernardo interrompeu-os.
– Não é momento para termos essa conversa. Apesar da vossa euforia, ainda não estou seguro dos propósitos dela.
Enquanto os herdeiros discutiam os seus projectos futuros, num cubículo da Associação Comercial um grupo de deputados regeneradores, até aí fiéis a Silva Torres, iniciava uma discussão que mais não era do que a primeira réplica das decisões que, à mesma hora, estavam a ser tomadas na Régua. E o ambiente era de evidente nervosismo. Eram três. Distintos e ar respeitável. Quem os olhasse não podia imaginar o teor sórdido da discussão.
– Meus senhores, convoquei esta reunião porque temos de discutir a nossa vida.
– Com certeza, com certeza.
– Com a morte do senhor Silva Torres, ficámos sem patrono. Eu fui eleito por Vila Real, duas vezes, graças à sua influência.
– Eu também. Duas vezes.
– A velha Antónia chamou à Régua todos os seus homens de confiança e exigiu a presença dos filhos. Vai entregar os destinos da sua casa ao Ferreirinha.
– Vai ser o fim.
– Claro que é o fim.
– Posso falar-vos com toda a franqueza? Eu acho que chegou a altura de mudarmos de patrono.
– Já?
– Não vale a pena sermos cínicos. A casa Ferreira vai entrar em crise. A dona Antónia está velha e ferida de morte com a perda do Silva Torres. Vai entregar os negócios ao filho e o tipo não quer saber de nós para nada. Desde que tenha vinho e mulheres, a política não lhe interessa. Em suma: vamos para o desemprego.
– Não será bem assim. Temos o partido, temos os valores que defendemos.
– Está a brincar com coisas sérias, senhor deputado. O Partido Progressista está a governar e o Anselmo Braamcamp vai aguentar-se. Fomos respeitados enquanto oposição graças ao Silva Torres. Mas agora acabou-se. Qual partido, quais valores?! Olhe que não é por aí que se vai segurar em São Bento.
– Ó senhor deputado!
– É como lhe conto. Diga-me: se o nosso benfeitor ainda estivesse vivo e decidisse mudar de partido, o senhor dizia-lhe que não?
– Pois, quer dizer...
– Está a ver? Não tem resposta.
O que estivera calado durante a discussão, atreveu-se a sugerir:
– E se esperássemos pelo resultado da reunião que está a decorrer na Régua? Já imaginaram se a velha não desiste e continua à frente do negócio?
– Se fosse essa a intenção, não chamaria os filhos e todo o seu estado-maior à Quinta das Nogueiras. É como vos digo. Ou arranjamos rapidamente um novo patrono ou, rnais cedo ou mais tarde, somos corridos a pontapé do Parlamento. Qual é a vossa decisão?
Ficará por saber. Nesse momento, D. Antónia sentava-se diante do grupo que tinha convocado. António Claro estava grave. O conde da Azambuja não conseguia esconder a ansiedade mau grado as cotoveladas que a esposa lhe dava, procurando contê-lo. O ambiente era tenso, quase solene. Ajeitou os documentos que tinha nas mãos, olhou-os um a um e começou a falar.
– Não é novidade para nenhum de vós que fiquei muito magoada com a morte do meu marido. Sofri e sofro com essa grande perda. Foi o fim de uma viagem com muitos anos de caminho andado. Mas é assim a vida! – Suspirou e percebeu-se que dominava a emoção. Recomeçou o discurso: – Se bem que não fosse um homem das minhas simpatias, chegou a hora de fazer como o marquês de Pombal. Enterrar os mortos e cuidar dos vivos. De modo que são estas as minhas vontades.
Abriu os papéis que tinha à sua frente. O silêncio era total e nenhum dos presentes se movia, atenção centrada nos seus gestos e palavras.
– O António Claro continuará à frente do escritório tio Porto e das adegas e amiazéns de Gaia, e o Francisco nos escritórios da Régua. Os feitores das quintas devem obediência ao Francisco e o António continuará com os nossos clientes ingleses. E vamos explorar com maior intensidade os mercados da América e da Europa. Finalmente, não mudaremos em nada o que se decidiu na luta contra a filoxera. É o combate da minha vida. E é tudo. Se não houver dúvidas, vamos ao trabalho.
Um murmúrio de alívio atravessou a sala, porém António Bernardo, lívido, não conseguiu deixar de perguntar:
– Senhora minha mãe, quem vai ficar à frente desta enorme canseira?
A resposta teve determinação e ironia.
– Eu! Os ossos todas as noites ralham comigo, a vista já não é a mesma de outros tempos, mas a cabeça continua boa e de saúde. Fizeste-me essa pergunta, porquê? Tinhas alguém em vista?
Atabalhoou-se com os nervos.
– Não, quer dizer, não. Perguntei por perguntar.
– Então, vamos ao trabalho.
A reunião terminara. Os semblantes carregados de há pouco tinham agora sorrisos. A Ferreirinha ressuscitava com a determinação de sempre. O padre Matias, que, entretanto, resolvera convidar-se, cumprimentou-a.
– Uma sábia decisão, sim senhor. Estava muito preocupado convosco.
– Não sei se é sábia, senhor padre. Mas era a única.
No meio do tumulto das despedidas, o conde da Azam– buja, desesperado, embirrava com Maria da Assunção.
– Tens de meter juízo na cabeça da tua mãe. Está demente, isto só pode ser demência.
– Controla-te, Augusto Pedro. Estás a dar nas vistas.
– E a nossa vida, Maria da Assunção? Estamos na miséria.
– Quando toda a gente sair, vamos falar com ela. Por favor, cala-te!
A notícia correu como um rastilho de pólvora. Nessa noite, ninguém teve medo dos lobos esfaimados nem se lembrou da filoxera. Ffouve festa nas ruas da Régua e os mais crentes juntaram-se na igreja para rezar uma novena para que Deus guardasse por muitos anos a Ferreirinha.
Na Quinta cias Nogueiras a ceia correu taciturna. Apenas D. Antónia, que parecia ter recuperado o seu proverbial apetite, trincava, entusiasmada, a vitela estufada que a Ma– riana preparara. Foi Maria da Assunção quem abriu as hostilidades.
– A mãe hoje foi injusta com o mano. Devia descansar e deixar que ele tomasse a responsabilidade das nossas coisas.
Olhou a filha com ironia.
– Folgo muito em vos ver tão amigos. Têm passado a vida a brigar um com o outro. E bom saber que fizeram as pazes.
António Bernardo não conseguiu conter a cólera que o dominava desde o encontro da tarde.
– Será possível que a mãe não tenha o mínimo de confiança em mim? Porque é que insiste em humilhar-me diante seja de quem for, tratando-mc como se fosse uma criança?
– Tu não queres que eu te responda, pois não?
– Não vale a pena. Vou ouvir o sermão que oiço há vinte anos. Sou um gastador, um paspalho, não sei gerir nada. Enfim, a conversa de sempre.
O conde da Azambuja decidiu acorrer em defesa do cunhado.
– É uma conversa injusta, porque o António Bernardo mudou imenso. Especialmente desde que enviuvou. Aliás, hoje toda a gente sabe que, se havia alguém gastador, era a Antónia Plácido. Não era ele, coitado!
D. Antónia, furiosa, atirou o guardanapo para cima da mesa.
– O senhor cale-se que já não consigo ouvi-lo. Como é que pode acusar uma infeliz que Deus levou e já não se pode defender das suas mentiras?
A filha quis apaziguar a discussão.
– Por favor, minha mãe. O Augusto Pedro não disse nada de especial.
– Não me faças zangar ainda mais, Maria da Assunção. Vocês não querem que eu vos recorde o que tem sido a vossa vida. Já se esqueceram do que tizeram e, sobretudo, do que não fizeram? O vosso padrasto passou anos e anos a tentar refazer as vossas vidas encharcadas de dívidas e calotes, enquanto eu já perdi a conta aos anos que vos pago mesadas de príncipe para não fazerem nada.
– Mãe!
– Exactamente. Prefiro pagar-vos para que não façam nada, porque entregar-vos seja o que for para vocês administrarem é a certeza de que vai ser destruído. Preciso de continuar?
António Bernardo levantou-se.
– Já sabia que a conversa ia acabar assim. Para a senhora, os seus filhos não passam de dois incapazes.
– Eu volto a repetir. Preciso de continuar? Querem que vos recorde o estendal de falências, de hipotecas, de letras protestadas, de dívidas que nunca têm fim? – Levantou-se lenta– mente da mesa e rematou, pausada: – Rezem para que Deus me dê muitos anos de vida e saúde. Até lá continuarão a ser inúteis, mas não morrerão de fome. Porque, no dia em que eu vos faltar, nem todos os anjos do céu vos salvarão da desgraça.
Parou à saída da sala.
– Acabemos de vez com esta discussão sobre negócios. Nunca nos entenderemos. Gostava que ficassem comigo alguns dias porque tenho muitas saudades vossas.
Quando desapareceu, o conde da Azambuja deu um murro na mesa e agarrou a cabeça com as mãos, desesperado.
– E vim eu de Lisboa para este buraco no quinto dos infernos para nada.
António Bernardo encostou-se à la-reira.
– Não há nada a fazer. A mãe é feita de ferro e tem a firmeza da pedra! – Tirou o relógio de bolso e consultou as horas. – Vou-me embora. Ainda tenho tempo para apanhar o último comboio para o Porto.
D. Antónia soube da partida do filho na manhã seguinte quando chegou à cozinha. Era bem cedo e Mariana carregava duas malas de viagem. Ficou assustada.
– A minha filha também se vai embora?
– Já estão na sala preparados para sair.
Correu, trôpega, para a salinha de costura. Maria da Assunção calçava as luvas.
– Vocês vão-se embora?
– Nós não a queremos incomodar, minha mãe. Afinal de contas não passamos de uns incapazes.
Quase implorou clemência.
– Por favor, não me façam isto. Estão a confundir as coisas, filha. A minha única preocupação é proteger-vos.
O conde da Azambuja enfiou a cartola na cabeça e respondeu secamente.
– Não estamos a confundir nada. A senhora foi perfeitamente clara.
– Mas estava a falar de trabalho. Eu gosto tanto de vos ter ao pé de mim.
– Não pode ser, mãe. Tenho muita coisa para fazer em Lisboa. Adeus.
Beijou-a rapidamente e a charrete partiu. D. Antónia ficou a vê-los desaparecer ao fundo da alameda e os seus olhos tinham lágrimas.
– Vou ficar outra vez sozinha e nem são capazes de perceber quanto gosto deles.
Mariana consolou-a.
– Eles voltam, senhora. Os filhos voltam sempre.
Endireitou o busto, engoliu as lágrimas, cerrou os lábios e dirigiu-se ao escritório. Havia muito trabalho para fazer.
Vespúcio Ortigão decidiu que chegara o momento de ir às Nogueiras apresentar condolências à Ferreirinha. linha passado quase um mês sobre a morte de Silva Torres e sabia que ela regressara à faina depois de umas semanas de luto.
Quando entrou na quinta a primeira pessoa que o abordou foi Damásio, o cocheiro de D. Antónia, que o avisou de dedo em riste:
– Tu não vás moer o juízo da patroa com essa maluquice de crimes e facadas.
– O Ti Damásio?!
– É como te digo. Ela passou mal, agora está a endireitar-se, mas tem canseiras de sobra.
O bacharel começou a impacientar-se com o cocheiro.
– Posso ou não falar com a senhora dona Antónia?
Damásio olhou-o de alto a baixo com desdém.
– É o que eu digo. O mal dela é dar importância a qualquer um. Até aos doidos varridos.
Vespúcio sempre embirrara com o criado de confiança da Ferreirinha. Quando era criança, andarilho esfomeado, pedindo esmola por amor de Deus por todos os lugares da serra, Damásio enxotava-o sempre cada vez que procurava aproximar-se dela. Uma vez ainda o ameaçara com o chicote e Vespúcio nunca mais lhe perdoou. A fome dá chicotadas suficientes para que ainda lhe queiram dar mais. Talvez porque lhe tivesse acudido este pedaço de memória, resolveu desafiá-lo.
– Embirra comigo, porquê? Que mal lhe fiz para me falar como se eu fosse um bandido? Embora me conheça desde cachopo não acha que chegou a altura de me tratar por senhor doutor?
Damásio embatucou com a saraivada de perguntas.
– Não é nada disso! – titubeou, envergonhado.
– Alguma coisa tem de ser, Ti Damásio. Tratou-me sempre como se eu fosse um perigoso salteador. Fiz-lhe algum mal?
O ataque frontal do bacharel deixou-o arrumado. Resmungou uma série de palavras incompreensíveis e procurou afastar-se, mas o rapaz segurou-o pelo braço.
– Não fuja. O senhor não sai daqui sem falar comigo de homem para homem.
A firmeza de Vespúcio intimidou-o. Baixou a cabeça, casmurro, mas não foi capaz de reagir. Por fim, envergonhado, murmurou.
– És capaz de ter razão. O problema não é contigo. Foi uma coisa que o abade de Trancoso fez.
– O abade era o meu pai. Não tenha medo de usar as palavras certas.
– Ou isso! – aceitou. – O teu pai fez muito mal à minha irmã. Desgraçou-lhe a vida.
Fitou Damásio com surpresa. O abade tinha sido um autêntico predador. Nem se podia comparar ao padre Amaro, que Eça de Queirós colocara em Leiria a viver um amor sem limites. O pai deveria ter sido o exemplo vivo do pecado, da luxúria. Na verdade, conhecia filhos de outros padres. O Crisóstomo, o mestre-escola, era filho de um pároco da zona de Mirandela e, em Coimbra, tivera um colega, o Teo– tónio, fruto de um sacerdote alentejano. Porém, qualquer deles resultava de relações estáveis e duradouras, o pecadi– lho que por todo o reino era persistente, embora tolerado. Porém, o seu pai abade fora um autêntico carniceiro.
– Onde é que pára a sua irmã? – perguntou, apaziguador.
– Fugiu daqui com a vergonha do pecado e acabou na Rua Escura, no Porto. A doença dos pulmões levou a desgraçada há cinco anos.
Ficaram os dois em silêncio. A mágoa de Damásio embebeu as palavras comovidas de Vespúcio.
– Tenho muita pena do que lhe aconteceu. Mas meta nessa cabeça que não tenho culpa nenhuma dos disparates do abade de Trancoso. Eu próprio sou um dos seus disparates.
O cocheiro assentiu com um aceno de cabeça.
– Desculpe-me – era a primeira vez que não o tratava por tu mas quando soube o que aconteceu jurei que o havia de esganar com as minhas próprias mãos. Mas Deus ou o diabo levaram-no antes de eu dar cabo dele.
Vespúcio conseguira sobreviver aos traumas de ser filho da quebra de um juramento sagrado. Quando era mais novo, alguns rapazes zombavam da sua ascendência, mas a fome era mais forte. Mais tarde, quando começou a descobrir a sexualidade, a vivência na comunidade universitária tornara esse episódio fundador da sua vida num motivo de divertimento e em argumento sólido nas suas investidas doutrinárias e retóricas contra o poder da Igreja.
– Quero que saiba que tenho pena do que aconteceu à sua irmã e que tenho estima por si.
Estendeu-lhe a mão. Damásio ainda hesitou, mas por fim retribuiu e cumprimentaram-se com firmeza. Acabara de escapar a mais uma dívida que o pai lhe legara.
Teve de esperar na sala para onde o conduziu Mariana. A empregada informou-o de que a patroa estava a terminar uma conversa com o senhor Francisco Correia.
Sentou-se, mas não teve tempo para se instalar. Uma porta abriu-se e saiu Francisco Correia com um molho de papéis debaixo do braço. Cumprimentou-o, apressado.
– Deus o salve, doutor Vespúcio.
– Como está, senhor Francisco?
– Cheio de pressa. Até mais ver.
O administrador desapareceu em passo rápido e surgiu a Ferreirinha. Estava mais magra e o sorriso era triste. Vespúcio correu para ela.
– Senhora dona Antónia.
Ia beijar-lhe a mão, mas ela retirou-a.
– Quero um beijo a sério.
Vespúcio sorriu, beijou-lhe as taces e, impetuoso, abraçou-a com emoção.
– Quis vir dizer-lhe que fiquei muito triste pelo que lhe aconteceu. O senhor Francisco Torres era um grande homem e um grande amigo.
– Obrigado, Vespúcio. Ele também gostava muito de ti.
– Não vim mais cedo porque percebi que a senhora não estaria com muita paciência.
Sorriu melancólica.
– Não têm sido dias fáceis, não. Queres cear comigo?
Gesticulou, desajeitado.
– Vou incomodá-la.
– Pelo contrário. Fico contente por ter alguém com quem dar à língua, sem me lembrar da porcaria da praga que nos anda a pôr a cabeça em água. – E, maliciosa, acrescentou: – Além de que quero ouvir da tua boca essa história dos crimes e dos lobos.
Ficou contente. Finalmente encontrava alguém que mostrava interesse no seu caso.
Mariana serviu a ceia no salão. As noites vinham mais frias, anunciando a chegada do Inverno para breve. Na lareira crepitava o lume que aquecia suavemente os dois convivas.
Vespúcio não parou de falar enquanto comeu a sopa. Contou os pormenores do caso, indignou-se quando evocou os problemas que lhe punham no caminho. Fez uma excep– ção para elogiar o cabrito no forno. Relatou, entusiasmado, a conversa com o João dos Rafeiros, falou nos moldes das patas de burro e nos cabelos do assassino, que tinha guardado em lugar secreto. Irritou-sc com a perseguição e matança de lobos, mas conseguiu erguer os olhos ao céu num agradecimento, encantado quando atacou o leite-creme.
D. Antónia acompanhava-o. Entusiasmada com a ceia e interessada na narrativa. De vez em quando, fazia uma pergunta e calava-se logo a seguir, deixando o convidado discorrer sobre o assunto.
Fora o padre Matias quem lho levara há muitos anos, andrajoso, já com aquele aspecto de galgo esquálido, sublinhando a inteligência do rapaz. (instara logo dele e dispôs-se a ajudá-lo a estudar até onde ele pudesse chegar. Agora ali estava o bacharel, tão desajeitado como no primeiro dia em que o vira, a discorrer apaixonado e de forma inteligente sobre os casos que alarmavam as populações. Deu por si a lamentar o facto de se cruzar tão poucas vezes com o rapaz. A excentricidade dele divertia-a. A sensibilidade culta, mas desorganizada, fascinava-a.
Terminou a sua história no momento em que Mariana lhes servia os cálices de Porto.
– E é isto, senhora dona Antónia. Como é possível que ninguém veja aquilo que se mete pelos olhos dentro?! Como?
Tentou acender um charuto que a empregada lhe ofereceu. Engasgou-se com o fumo. Tossiu, o corpo contorceu-se como se fosse uma lampreia e dos olhos esbugalhados saltaram lágrimas descontroladas. Bebeu dois goles de água e apagou o diabo do charuto que o ia matando.
– É forte! – comentou ainda de voz aflita, e puxou do lenço para limpar as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
D. Antónia permanecia cm silêncio. Procurava mentalmente alinhar as peças principais da longa explanação do jovem advogado. Por fim, acenou com a cabeça, num gesto comedido a que se habituara para não lhe caírem os óculos.
– És capaz de ter razão. Nunca acreditei nessa palermice dos lobos. Mesmo no Inverno, quando a fome os empurra para os povoados, não recordo nenhuma história de pessoas devoradas por eles. Uma ovelha, uma cabra, vá que não vá.
– Ainda por cima são raparigas muito jovens – comentou Vespúcio.
Ferreirinha soltou uma gargalhada.
– Ao menos são lobos de fino paladar. Só comem carne tenra. Eu estou a salvo. Já sou uma carcaça velha e dura.
Riram os dois e Vespúcio foi cortês.
– Está cheia de vida e saúde, com a graça de Deus.
– Obrigada pelo elogio, mas já são setenta e seis! – Respirou fundo e falou como se estivesse sozinha: – setenta e seis anos de histórias, de lutas, de guerras sem descanso. É isso. Acho que vivi toda a vida em guerra. Contra as pragas, contra os homens, muitas vezes contra o diabo e algumas vezes contra Deus. – E rematou com ironia: – Mas nunca contra os lobos...
– Em guerra contra Deus, não acredito. A senhora sempre foi muito religiosa.
Condescendeu ao comentário do rapaz.
– Guerra, guerra, não direi. Mas algumas vezes foi preciso bater-lhe o pé.
Tornaram a rir. Quando estava bem-disposta possuía um sentido de humor agudo.
– Até com um marechal tive de lutar. Marechal e duque ao mesmo tempo. E também um bom estupor.
– O duque de Saldanha.
– Esse palerma.
Vespúcio conhecia a história através do primo, nesse tempo director do Periódico dos Pobres, do Porto, e que tomara o partido dela contra o Saldanha. A brincadeira saiu– lhes cara. Ao seu primo, porque perdeu a acção judicial que o duque pôs contra ele, e a D. Antónia, obrigando-a a um exílio de dois anos em Inglaterra.
O duque decidiu contratar o casamento do seu filho com Maria da Assunção, então apenas com onze anos. D. Antónia era, na altura, viúva do primeiro marido, António Bernardo Ferreira II, e estava na força da vida com quarenta e dois anos. Chegaram-lhe petições por vários emissários. Uma delas do abade de Seixo de Ansiães. Recusou sempre. Que a filha ainda era demasiado nova para um contrato que a obrigaria a casar com um rapaz, pouco mais velho do que ela, mas com o mesmo juízo. Saldanha insistiu. Porque não a conhecia, mandou oferecer-lhe o título de condessa do Vesúvio e a viúva zangou-se a sério. Desprezava a choldra da burguesia liberal, que comprava títulos de barões, de condes, de viscondes como se dali viesse a salvação da alma. Também não nutria admiração especial por Saldanha. Considerava-o um vaidoso, um aventureiro a quem muitos agra-deciam a Regeneração, mas que para ela não passava de um militar sem cabeça.
– Vira-se para onde está voltado o vento. Se hoje é presidente do Governo não é coisa que abone em seu favor. Só mostra a miséria moral a que chegou o reino.
Não só recusou atender os seus pedidos, como o provocava com desdém. Era de mais para o vencedor do cerco do Porto. Conforme o boato que correra na Associação Portuense, através do filho João Carlos, conde de Saldanha, comprou a traição de António Bernardo, filho da Ferreirinha, com a promessa de uma comenda. E numa noite, os dois juntos, mais a alma danada do abade e outros amigos, pagaram os favores da quadrilha dos Marçais de Foz Côa, embarcaram nas Bateiras em direcção à Quinta de Travassos para raptarem a pretendida, que aí pernoitava com a mãe.
D. Antónia foi alertada pelos caseiros e fugiu com Maria da Assunção antes que os assaltantes tomassem posições. Escondeu-se em Lamego, mas o escândalo era grande. O poderoso duque jamais aceitaria os caprichos e a teimosia da mulher. Esta chamou os seus homens de confiança e informou-os da sua decisão.
– Não estou disposta a vergar-me à vontade do louco do Saldanha nem às birras do pateta do filho. Esta história já foi longe de mais e vou acabar com ela.
Joaquim Correia, pai de Francisco, concordou.
– Na Régua não se fala de outra coisa. O povo está todo por si. Se ele quer guerra, vamos para a guerra.
– É exactamente para evitar uma guerra civil que me vou embora. Ainda hoje parto para Inglaterra com a minha filha.
Não queriam acreditar no que ouviam. Um dos presentes avisou-a:
– Não cometa essa loucura. Faz um movimento para sair do reino e mandam-na prender.
– Quando eles quiserem saber de mim e da minha filha já estaremos bem longe com a ajuda de Deus.
Durante semanas, a discussão pública do caso apaixonou a imprensa. Fugiram por Espanha disfarçadas de camponesas e o marechal-duque-guerreiro, herói de muitas batalhas desde o tempo das invasões francesas, ficou de orgulho desfeito pela iorça da teimosia da viúva de António Bernardo Ferreira II.
Vespúcio serviu-se outra vez do Porto. Entre as suas deambulações sobre a conversa com D. Antónia e o conhecimento que possuía das gentes do Douro havia um abismo tal que nem o Cachão da Valeira lhe era comparável. Ela era a razão prática numa terra dominada por crenças. Antónia Ferreira trabalhava por objectivos, colocava cada um em determinado sítio do seu horizonte temporal e batalhava sem cessar até os cumprir. Todos os outros, desde o mais humilde jornaleiro até aos proprietários de maior fortuna, circunscreviam a sua labuta à vitória imediata, mesmo que a longo prazo fosse uma derrota sem retorno. Era esta a razão, tinha ele a certeza, que marcava a luta contra a praga. Ela pressentia a ameaça e reagia plantando novas vinhas, não permitindo que cada mortório fosse uma derrota definitiva. A maior parte dos outros vinhateiros ajoelhava-se perante o flagelo. Lamentavam a sua sorte porque outro entendimento que fosse para lá do fatalismo de um destino exterior às suas forças não fazia sentido. Faltava-lhes essa razão prática que fintava a filoxera, que umas vezes se propunha a atacá-la de caras e que noutros momentos ditava a fuga em frente.
– A senhora é uma mistura de espírito kantiano com o pragmatismo positivista. Ainda por cima associa a este casamento uma intuição perfeita.
A mulher olhou-o, desconfiada.
– Tu não me estás a insultar, pois não?
Riu-se divertido.
– Estava apenas a reflectir sobre as grandezas e misérias do nosso Rio. Sabe que hoje, cm Lisboa, se discutem assuntos como a república, o socialismo como se fosse a coisa mais natural do mundo?
– Discussões de quem tem pouco para fazer e por isso se entretém a falar desses filósofos de quem tanto gostas. Não percebo nada disso.
– É esse o seu grande mistério. Não percebe mas pratica. Conheço vários republicanos que gostariam de ter uma pessoa como a senhora nas suas fileiras.
– Mas não queria eu. Não é com a política que se faz em Lisboa que as vinhas produzem e o vinho se vende. Pelo contrário. Desde que me conheço que são um empecilho. Impostos, tarifas, taxas, sem que daí advenha algum benefício. Bem lutou o meu falecido marido contra essa canalha. Quando se sentiam muito apertados a única coisa que lhes vinha à cabeça é fazerem de nós condes ou viscondes. Parvoíces! Ele ainda aceitou ser par do reino, mas fartou-se. Falavam, falavam e não saía nada de jeito. Um bando de poltrões.
– Está a ver? Parece um republicano a discursar.
– E o que tu queres ouvir. Não percebo nada dessas coisas. Das muitas lições que a vida me deu, houve algumas que nunca esqueci. São essas que guiarão os meus passos até que Deus me leve e, se queres apanhar o teu assassino de raparigas, não esqueças a primeira delas: perseverança. Não desistir porque nos acode o medo, não ficar quieto à espera do que Deus nos dá.
– O meu criminoso, como a senhora lhe chamou, brinca com a minha perseverança. Assassinou duas desgraçadas e anda por aí, alegre e contente, até que lhe apeteça matar outra vez.
– E a tua filoxera.
– Como?
– Cada um de nós tem o seu inimigo. Tal como tu não desistes de encontrar esse homem também eu jurei que não descansarei enquanto a maldita praga não deixar de matar as nossas vinhas.
Ficaram os dois em silêncio, saboreando o licor, os olhos pregados nos desenhos mágicos produzidos pelas chamas da lareira, cada um mergulhado nos seus pensamentos. Por fim, Vespúcio perguntou:
– A senhora já alguma vez consultou uma bruxa?
– Deus me livre! – respondeu secamente.
– Talvez não me tivesse explicado bem. Acredita em bruxedos?
– São pessoas sem juízo. Tu tens fama de maluco, mas quem anda nessa vida é que está completamente doido.
O silêncio regressou outra vez. As chamas crepitavam com maior agitação. Lá fora levantou-se o vento, que descia pela chaminé soprando o fogo.
– Preciso de falar com a Efigénia do Falcoeiro.
D. Antónia olhou-o sem acreditar.
– Um rapaz que tem estudado tanto, que sabe mais do que nós todos juntos, precisa de ir à bruxa da Efigénia?
Respondeu sem deixar de fixar as labaredas.
– Ou estou muito enganado ou as mortes das raparigas só podem ter uma de duas causas: ou um bandido sem escrúpulos que abusou delas e, para que não se soubesse, assassinou-as, ou...
– O quê?
Como se não a tivesse escutado, rematou:
– Se não é um violador, o caso tem que ver com bruxaria.
– Bruxaria?!
Ferreirinha colocou o copo em cima da mesa e, intrigada, voltou-se para ele.
– Que conversa tonta é essa?
– Não vejo outra explicação para o que está a acontecer – respondeu gravemente, e acrescentou: – Só alguém com tuna finalidade muito determinada rasga o ventre das vítimas para lhes tirar um pedaço de intestino. Ora para que serve um pedaço de tripa de um ser humano? Só para essas práticas de bruxaria. Não pode ser outra coisa.
Ferreirinha ficou embasbacada com a audácia do pensamento de Vespúcio. Tentou procurar outras explicações, mas todas iam ao encontro da ideia do interlocutor.
– Não. Ninguém faria uma coisa dessas!
– Como pode ter tanta certeza?
– Porque é uma coisa terrível. Já basta a amargura que vai por aí com tanta fome, com o tifo, a tuberculose e a maldita filoxera a dar cabo de nós todos.
– Tenho pena, dona Antónia. A sua argumentação não serve de nada.
– Não é possível! Não conheço ninguém tão malvado que seja capaz de um bruxedo tão cruel.
– É por isso mesmo que quero falar com a Etigénia do Falcoeiro.
A velha senhora encolheu os ombros com indiferença.
– É uma infeliz, coitada. Somos da mesma idade e conheço-a desde criança. O marido morreu ainda novo e a única filha casou com um rapaz do Porto. Meteu-se nisso porque se encafuou em coisas da Igreja e convenceu-se de que é uma beata santificada. Não passa de uma infeliz.
– Pode saber coisas que nem a senhora nem eu sabemos. Confesso que também não percebo nada de bruxas e feiticeiros.
Vespúcio percebeu que a conversa estava a incomodar a anfitriã. Abriu os braços num gesto bem-disposto e brincou com a situação.
– Ainda há outra hipótese!
– Qual? – perguntou, desconfiada.
– Eu estou mesmo maluco e, na realidade, são os lobos que andam a fazer estas maldades. Talvez seja a explicação mais simples e a única verdadeira.
Riram e, de súbito, ela ficou tensa. Atormentava-a outro criminoso. D. Antónia desabafou as suas preocupações com a praga, a diminuição das vindimas, a aflição com a pobreza infinita do Douro e a ameaça de maior miséria.
Vespúcio reparou que mal falara do recente falecimento do marido e ficou satisfeito. A força do carácter da mulher não lhe permitia que ficasse presa a um passado que não podia modificar. Empurrava-a para o futuro com a mesma implacável detenninação com que chegara ali.
Era já tarde quando se despediram. A Rcgua dormia a sono solto quando Vespúcio abriu a porta da sua residência. Parou com um estremecimento. Algures, do alto da serra, dois lobos soltavam uivos que chegavam em sons ténues à povoação. Fosse como fosse, não estariam muito longe. Fechou a porta inquieto com a dúvida que o assaltou. Seriam aqueles os assassinos que procurava?
Efígénia do Falcoeiro era uma velha carcaça com cara de mocho que, quando falava, lembrava um corvo a grasnar e, se soltava uma risada, era tão gutural que imitava o piar das corujas. A marreca em curva apertada duplicava a corcova do velho Paixão da Costa e coxeava seriamente da perna esquerda, sobre a qual apoiava constantemente a mão. Ao vê-la, Vespúcio eliminou-a de imediato como suspeita porque, fossem quais fossem os seus poderes, jamais aquela criatura seria capaz de montar um burro e muito menos carregá-lo com um cadáver e andar, léguas e léguas, por encostas tão retorcidas como as suas costas.
A velha bruxa indicou-lhe uma cadeira à frente da mesa de pé-de-galo. A vestimenta era extravagante e contrastava fortemente com a pequena sala onde se encontrava. Tinha uma camisola azul-brilhante decorada a quartos crescentes e minguantes cercados de estrelas prateadas, e a saia, vermelha garrida, apresentava na parte da frente uma cobra enrolada mordendo a cauda. Parecia fazer parte da companhia de saltimbancos que visitava a Régua por altura da feira.
A casa estava decorada com crucifixos, imagens de Cristo e uma mão-cheia de santos que Vespúcio não foi capaz de identificar. Sob cada um dos objectos imperava a luz de uma vela e a conversa começou mal. Efígénia remirou a figura de Vespúcio, alta e escanzelada, as pernas ensarilhadas como ele sabia fazer quando se sentava, os olhos negros enormes e melancólicos cercados de pêlos louros aos caracóis, e exclamou, surpreendida:
– És muito feio, com a graça de Deus.
Ele nem pensou que precisava da sua ajuda e retorquiu:
– A senhora também é muito feia, sem a graça de ninguém.
A rapidez da resposta fê-la levantar a cabeça olhando-o com mais atenção. Desatou a rir e o rapaz não teve dúvidas de que imitava o piar das corujas e, para desanuviar o ambiente, riu também.
– És o advogado novo, filho do abade de Trancoso.
– Sou. Conheceu o meu pai?
– Então não conheci! – E o riso de coruja voltou. – Era o diabo de saias. A tua mãe entrou-lhe em casa como gover– nanta e ao fim de um ano já estava prenha. Saíste tu e mais não sei quantos para além da dúzia que fez em ninho alheio. Parecia um cuco, o raio do homem! – E terminou com alguma nostalgia: – Era valente para a função. Não houve abade que cobrisse tanta fêmea como o raio do teu pai.
Vespúcio estava deslumbrado com Efigénia e provocou-a.
– Pelos vistos também tratou de si.
– Homem malvado. Era alto, mas não comprido como tu, moreno e falava, ai como ele falava quando subia ao púlpito! Na sua boca, a palavra de Deus era a palavra do diabo. Só podia ser. As mulheres amoleciam, enlevadas, e depois o mariola escolhia lá do alto. Punha aqueles olhos negros em cima de uma, embora filiasse para toda a igreja, e, era certo, ou ainda nesse dia ou no dia seguinte punha-se em cima dela. Não tinha piedade, o raio do abade! Foi por isso que morreu tão novo. Deu demasiadas vezes o passo maior do que a pema.
Tinha uma vaga ideia do pai. Era o mais novo de seis irmãos e Vespúcio deveria andar nos cinco anos quando ele morreu. Recordava-se de um homem alto, vestido de negro, que os visitava com frequência e que ele e os irmãos tinham instruções para tratar por senhor abade.
– Ainda bem que se divertiu com ele. Ao menos haja alguém que se divirta nesta terra onde toda a gente se lamenta, reza e chora!
– Lá nisso tens razão. Deus não tem sido muito nosso amigo, não!
A velha Efigénia coçava a comichão que lhe moía a marreca roçando-se no espaldar da cadeira. Vespúcio deu por si a imaginar como se deitaria ela de costas. Era impossível. Se deitasse a cabeça no travesseiro, as pernas teriam de ficar espetadas no ar. Se optasse pela posição contrária, ficaria sentada na cama.
– Não foi para falarmos da vida aventurosa do teu pai que vieste aqui. Desconfio de que foi mais por causa da tua vida. A tua namorada fez-te alguma?
– Não tenho namorada.
Olhou-o, desconfiada.
– Com essa idade ainda não tens mulher?
– Hei-de arranjar, hei-de arranjar – precipitou-se na resposta antes que começasse o sermão com missa cantada que tão bem conhecia da boca da tia.
– Vim aqui porque preciso da sua ajuda para um trabalho que tenho em mãos.
– Alguém que te anda a fazer mal.
– Não. Ninguém me faz mal a não ser o Ti Paixão da Costa, que troca as conversas que tenho com ele.
– Quando era novo também era um bom mariola. Mas agora já não diz coisa com coisa.
– Bom, vamos direitos ao assunto. Conhece ou sabe de alguma mezinha, ou bruxaria, que para dar resultado precisa de um pedaço de tripa de rapariga virgem com quinze, dezasseis anos?
Pela primeira vez se mostrou deveras surpreendida.
– Iripas?
– Intestino, um bocado de intestino.
A expressão fechou-se, procurando no baú dos seus segredos, mistérios e poções uma receita que precisasse desse ingrediente. Ainda parecia mais feia.
Vespúcio estava convencido de que ela usava aquela indumentária, que lhe sobressaía as formas terrivelmente retorcidas, para impressionar os clientes.
Por fim, começou a menear a cabeça cada vez com mais firmeza, até que proclamou:
– Não!
– Tem a certeza?
– Absoluta. Há sessenta anos que a minha vida é esta missão ao serviço dos outros e nunca ouvi falar de tal coisa.
– Então não existe bruxedo que precise dessa matéria.
– No que respeita a tripas, há quem use as das galinhas. Também existe um trabalho com tripas de coelho. Ah!, e também com as do porco. Mas com o bofe...
De repente assumiu uma expressão severa. Vespúcio reparou.
– Há mais alguma coisa?
– Quem usa essas precisões não é gente de bem. É para bruxaria negra. – E perguntou, desconfiada: – Para que queres saber tu destas coisas? Ninguém que esteja bem com Deus procura essas porcarias do Maligno! – E benzeu-se três vezes.
A curiosidade de Vespúcio não parava de aumentar.
– Isso quer dizer que existem bruxas boas e bruxas más?
Efigénia foi ríspida na resposta.
– Eu não sou bruxa!
– Ai, não? – perguntou com ingenuidade e a velha acalmou-se.
– Sou apenas uma simples criatura que Deus escolheu para ajudar quem precisa, quem tem problemas complicados para resolver. Bruxaria é outra coisa e fica a saber que é maior e bem mais perigosa.
Vespúcio estava surpreendido. Efigénia era inteligente, possuía uma cultura incomparavelmente superior à esmagadora maioria dos habitantes da Régua e falava com fluência. A resposta às suas perplexidades chegou a seguir.
– Aprendi a ler e a escrever sozinha. O meu pai, que Deus haja, nunca se interessou que os filhos soubessem ler. Mas eu aprendi sem a ajuda de ninguém!
Havia vaidade nas suas palavras. Vespúcio não quis interromper-lhe o entusiasmo.
– Li muito e aprendi muito. E a maior das lições que recebi é que tudo aquilo que Deus nos ensinou deve ser posto ao serviço dos outros, do seu bem. Percebeste agora?
– Mais ou menos. Não é bruxa mas faz coisas que as pessoas acham que são bruxedos.
Encolheu os ombros com indiferença.
– Quero lá saber o que os outros dizem. Aqui sentada a esta mesa já fiz bem a muita gente.
Foi então que reparou que a mesa de pé-de-galo tinha marcados símbolos a toda a volta. Eram os signos do Zodíaco. Pensou em voz alta:
– Fala com almas do outro mundo.
– Que através de mim falam com os seus entes queridos e não há maior alegria do que conduzir uma alma penada para a protecção do Senhor, nosso Pai.
Instintivamente olhou em volta. O ambiente, decorado com símbolos religiosos e iluminado a velas, produzia uma atmosfera intimidadora que facilmente induziria à sugestão dos mais aflitos.
– Era capaz de me pôr a falar com o meu pai?
– Não. Tu não és crente. Como diz a Sagrada Escritura, só os que acreditam se salvam. E vejo no teu olhar desconfiado que não te salvarás. Mostra-me a tua mão.
Estendeu-lhe a mão comprida e ossuda. Pegou-lhe na ponta dos dedos e ficou em silêncio a observar a palma da mão. O que via, ou ha, não a entusiasmava sobremaneira.
– Não vais ser rico, mas ao menos não sofrerás de grandes problemas de saúde a não ser de dores nas costas. Talvez possas vir a ter um filho, mas nunca mais do que dois. Não tens o sangue do teu pai! – Os olhos continuavam a percorrer as grandes e pequenas linhas da palma da mão e continuou a récita: – Um dia vais partir para viveres numa grande cidade e aí morrerás e, pelo que vejo, vai ser de morte ruim. Mas, enfim, vais ter uma vida longa. Essa morte só acontecerá quando fores velho.
Fixou a atenção intrigada num aspecto particular do exame que estava a realizar:
– E estranho! – comentou por fim. – A tua linha da sabedoria é muito forte e vai crescendo confonne a idade. – Lar– gou-lhe a mão com um gesto céptico e rematou: – Essa não percebo, mas enfim!, não passo de uma simples pecadora.
Julgava ter impressionado o interlocutor e desatou a falar de mezinhas que produziam resultados contra as dores nas costas, mostrou-lhe uma pedra branca, que o advogado percebeu ser calcite, que afastava os maus-olhados, umas ervas que cheiravam a rosmaninho e que quebravam os quebrantos.
Enquanto Efigénia ia revelando os mistérios da sua função, Vespúcio, que deixara de a ouvir, voltava ao seu enigma. Se vísceras de seres humanos não eram utilizadas nos rituais de magia negra, outra razão deveria existir para explicar os golpes nos ventres das raparigas. Porque nem era um ferimento de morte imediata. Constava em qualquer livro de medicina legal que eram considerados golpes letais todos os que fossem desferidos acima do diafragma. Estremeceu quando a velha lhe tocou no ombro.
– Estás a ouvir-me?
– Sim, claro. Até tenho mais duas perguntas para lhe fazer. Conhece alguma ou algum desses bruxos maus que preparam maldades contra as pessoas?
Efigénia não percebeu.
– Maldades, como?
– Ao ponto de matar.
Benzeu-se três vezes e fez uns sinais estranhos pela casa que Vespúcio entendeu serem de purificação.
– O pior de todos é o Morto-Vivo.
Vespúcio deu um salto na cadeira.
– O Morto-Vivo?! Mas esse homem ainda é vivo? Conheci-o quando era cachopo e já era velho.
Efigénia sorriu, condescendente.
– Foram os teus olhos de menino que te enganaram. Quando somos pequenos, os mais velhos parecem-nos sempre mais velhos. O Morto-Vivo deve andar pelos setenta e poucos anos. Vive no outro lado do Rio, numa casa à entrada de Rio Bom.
– E existem mais?
– É muito conhecida pela maldade a bruxa de Canelas. Dizem que tem mesmo um pacto com o demónio celebrado no dia em que este anda à solta. Parece que num dia vinte e quatro de Agosto, há mais de vinte anos, apareceu toda despida sobre uma rocha com o corpo coberto de sangue. Caía uma trovoada que iluminava toda a serra e muita gente viu o Maldito em forma de bode em cima dela. Ninguém teve coragem para o enfrentar e o bandido possuiu-a enquanto babava sangue sobre o seu corpo. Desde então ficou com poderes capazes de destruir o mundo.
Não conseguindo esconder a vaidade, desabafou:
– Aqui, neste cantinho onde estás, salvei muita gente das maldades que essa bruxa lhes lançou. Se tens amor à vida, não te aproximes dela.
Vespúcio tomava notas. A conversa interessava-lhe agora mais do que nunca e recapitulou:
– Temos o Morto-Vivo, a bruxa de Canelas. Há mais?
– Podes encontrar a Viúva Negra da Folgosa.
– Viúva Negra é nome de aranha.
– Só a vi uma vez e, nesse dia, para ficar limpa do olhar dela precisei de rezar dois terços e fazer uma encomendação a São Sebastião, o meu santo protector. Nasceu da barriga do Inferno, digo-to eu.
– E quais são as bruxarias que ela faz? Usa tripas dos animais?
Efigénia do Falcoeiro estava pálida. Aquela conversa, que entrecortava com benzeduras e molhando os dedos em água que Vespúcio presumiu ser benta e que atirava sobre os seus objectos, pusera-a pouco à vontade.
– Coisas que só o diabo sabe fazer.
– Porque é que diz isso?
Tornou a benzer-se. Olhou para uma imagem de Cristo como se pedisse licença e segredou:
– Os cemitérios estão cheios de infelizes que ela encomendou. A maior parte das almas penadas que descem sobre esta mesa pedindo protecção e descanso eterno são produto da sua malvadez. Dizem que não há noite nenhuma que não vá a um cemitério atiçar o sono dos justos e preparar bruxedos para que outros se juntem aos que já lá estão.
– A Viúva Negra?!
– Essa mesma. Não foi uma, nem duas pessoas sérias, tementes a Deus, que me disseram que sabem de fonte certa que foi ela quem, há muitos anos, lançou a praga do oídio contra as vinhas para fazer mal à Ferreirinha. E como ela resistiu, por raiva, encomendou a maldição que deu origem ao desastre do Cachão da Valeira. A Ferreirinha salvou-se, mas o barão e a cozinheira foram engolidos pelo Rio.
Vespúcio ficou impressionado com o relato de Efigénia.
– Então quer dizer que foi a Viúva Negra quem mandou a praga da filoxera.
– Por acaso não. Diz-se que foi a Inácia do Mileu, que é ruim como as cobras e odeia a Ferreirinha de morte.
– É outra bruxa?
– Bruxa e maluca. Tem a maldição de urinar sífilis da mais pura espalhando a doença onde a sua maldade entende.
Ficou em silêncio, revendo os seus apontamentos. Precisava de tempo para digerir as histórias fantásticas que a amiga do Ti Paixão da Costa lhe contava. Perguntou-lhe:
– Há mais?
Pensou por alguns momentos e, por fim, respondeu:
– Esses são os piores. 1 lá ainda muita gente que faz um ou outro trabalho, mas não têm ruindade para coisas que metam morte.
Reviu a lista. O Morto-Vivo, a bruxa das Canelas, a Viúva Negra e a Inácia do Mileu pareciam ser, no entender de Efigénia, os terríveis representantes do Maligno no Douro.
– Diga-me outra coisa, dona Efigénia. Das quatro pessoas que me falou, duas delas odeiam a Ferreirinha. E as outras?
Sorriu à descoberta tio rapaz. Era esperto, sim senhor.
– A Ferreirinha é a mais amada e a mais odiada das almas que vivem aqui.
– Mas porquê? Dá trabalho a tanta gente, está sempre disposta a ajudar quem precisa, tem salvo mil desgraçados de morrer de fome, infelizes que com a sua grande ajuda recuperaram a esperança.
– Ora aí está! – exclamou triunfante, e esclareceu: – Para compreenderes estes malvados tens de pensar ao contrário. Quem lhes paga não é movido por boas intenções. Não é da igualha das pessoas que me procuram ou procuram outros que trabalham como eu. Quem me visita tenta salvar-se de um desgosto, de um espírito ruim, de uma doença. Não está preocupado com os outros ou com a sua felicidade.
– Quer dizer que são pagos para fazer bruxaria.
Efigénia negou com um gesto rasgado.
– Comigo, não. Deus deu-me os dons que entendeu, mas não foi para que fizesse fortuna. São de Deus, não são meus. Se alguém quiser dar alguma coisa pelas alminhas que o faça longe das minhas vistas. Está um cesto à entrada onde podem deixar lembranças, mas cobrar, Deus me livre. Mas essa gente, não. Tem um pacto com o diabo.
A velha sentia-se confortável naquela posição de professora de um advogado que não entendia nada do mundo dos espíritos. Afinal de contas, agora que o observava melhor, não o achava tão feio como parecera ao início.
– Diga-me mais uma coisa, dona Efigénia. Alguma destas pessoas de quem me falou tem um burro?
Não estava à espera da pergunta tão fora da sua especialidade.
– Um burro?!
– E verdade.
Fez um gesto displicente enquanto procurava lembrar-se.
– Não sei. O Morto-Vivo antigamente tinha um burro, depois passou a montar um cavalo e, agora, anda de charrete desde que é rico. A Viúva Negra já a vi de burro. Se é dela ou não... – e encolheu os ombros indicando que não sabia.
A conversa com a velha encorcovada deixou-o encantado. Abria-se uma porta para um mundo fantástico, polvilhado de mistérios insondáveis, por onde corriam crenças como rios tormentosos tão cheios de incertezas e medos em que a euforia optimista de Vespúcio era apenas uma pedra de gelo. A sua sede de lucidez, a procura infinita da racionalidade para encontrar um sentido para a existência, os poemas de Antero de Quental, o pragmatismo de Teófilo Braga, a dialéctica de 1 legel, o pessimismo activo de 1 Iartmann, os romances de Eça ou de Ramalho, Balthazar e Locard pertenciam ao caminho da razão que construíra pedra a pedra, que elegera como o chão da sua alma. Aquela tarde na companhia da Efigénia, pensava Vespúcio, provocara-lhe o mesmo tipo de experiência que seguramente vivera Cristóvão Colombo quando descobriu o Mundo Novo. Quatrocentos anos depois descobria o Mundo Velho. Habitado por fantasmas e superstições, marcado por fogueiras purificadoras, autos-de-fé e mil tormentos, e gritos de dor, e gritos de suplica, e gritos e mais gritos, como se o inferno de Dante ganhasse a sua verdadeira dimensão na procissão de inquietações que passavam sobre a mesa de pé-de-galo da Efigénia.
Tornou ao banco do Ti Paixão da Costa. Entardecia. O Douro começava a ganhar o tom cinzento das encostas sombrias e o velho, queixo firme na bengala, sentinela da Régua, quedava-se em silêncio. O bacharel, mergulhado em cogitações desencontradas, ficou imóvel, com aqueles olhos grandes e descaídos de cão velho, fixados algures no Rio.
Por fim, perguntou:
– Ti Paixão da Costa, conhece o Morto-Vivo?
Antes de responder, o velho cuspiu três vezes.
– É um macacoso!
– Lembro-me dele quando era cachopo. Fazia bruxaria.
– Um bicho ruim. Tem pacto com o Maligno. E rapaz para os seus oitenta anos, nasceu ruim e, se um dia morrer, há-de morrer ruim.
– Se morrer? – perguntou Vespúcio, desconfiado de que Paixão da Costa recomeçara o seu delírio.
– Quem se promete ao diabo fica-lhe nas garras para sempre. Na vida e na morte. Macacoso de uma figa.
Vespúcio ouvia e decidia ao mesmo tempo. O Morto-Vivo era demasiado velho para matar as raparigas, carregá-las para cima de um burro e levá-las por esses montes fora. Fez um gesto de contrariedade quando se recordou de Brouardel. O caminho para descobrir um crime deve começar pela procura das soluções mais simples. Embora estivesse esfomeado de conhecer os territórios da bruxaria em que Efigénia o iniciara, tinha de reconhecer que a explicação menos complicada seguia por outro lado. Duas jovens, frescas e apetitosas, desnudadas e abandonadas em locais isolados, conduzia naturalmente para admitir que se tratava de crimes sexuais.
O criminoso possuía-as e calava-as, para sempre, à paulada e por esfaqueamento. Era a solução mais simples e o João dos Rafeiros voltou-lhe à memória. Jovem, forte, altivo, e sobretudo solitário. Para além de lhe ter mentido. E verdade que os moldes das patas dos burros não encaixavam. Mas escondera-lhe o facto de possuir o animal. Teria outro motivo?
Se o tonto do regedor da Pesqueira tivesse pedido a autópsia, se o atomatado padre Simões o tivesse ajudado a cumprir esse acto tão reclamado por Bichat, para que o cadáver contasse uma história de vida e de morte, não existiriam as dúvidas que agora o assaltavam. Teria a certeza de que houvera violação.
De súbito, acudiu-lhe um pensamento estranho. Precisava de outro assassínio. Duvidava de que uma nova morte, nas mesmas circunstâncias, fosse, mais uma vez, atribuída à fome dos lobos e, por certo, teria oportunidade de obter uma resposta às perguntas que lhe roubavam a tranquilidade.
– A culpa é da praga! – monologou o velho Paixão da Costa. – A praga vai levar-nos todos para o fundo do Inferno.
Delirava. Uma brisa fresca soprava pelo Rio acima e no cais, com a chegada da noite, a agitação esmorecera. Vespúcio ergueu-se do banco.
– Está a arrefecer, Ti Paixão da Costa. Vamos. Eu acompanho-o até casa.
Ajudou-o a pôr-se em pé. Quem olhasse o par que se afastava vagarosamente, com as silhuetas recortadas na noite ainda difusa, não deixaria de se surpreender pelo contraste. Vespúcio, lombriga retorcida, enorme, de pés à banda, e o ancião, dobrado pelos rins, sem chegar à cintura do outro, remoendo em voz baixa: «Macacoso!» Os mais crédulos seriam capazes de jurar que se tratava de uma visão de duas almas do outro mundo.
Vespúcio Ortigão não conseguiu dormir nessa noite. Vagueou por alguns dos livros predilectos, passou os olhos pelos jornais, mas as notícias repetiam-se. O negócio da partilha da África austral entre ingleses e alemães, com Portugal a defender-se da ameaça com a divulgação de grandes viagens ao centro daquele continente não o interessavam sobremaneira. A angústia agudizara-se.
O que lhe faltava, aquilo que não encontrava nos clássicos que o fascinavam pelo crime, era a existência de um método, de um catecismo que servisse de guia quer para a acção, quer para o pensar. Conhecia as vitórias e as derrotas da ciência no que respeitava a estas preocupações. O desastre estrondoso de Francis Galton, cunhado de Darwin, e tão seu admirador quanto Vespúcio, que, ao procurar demonstrar que todos os seres da mesma família possuíam idênticas impressões digitais, encheu de munições os paióis de todos os adversários e inimigos do autor da teoria da selecção natural. O erro de Galton fizera surgir novas hipóteses de novos cientistas. Alphonse Bertillon era um dos seus favoritos. Assim como Vucevitch. Transformaram o falhanço de Galton numa vitória estimulante. Afinal não existiria ninguém no mundo com o mesmo registo dactiloscópico.
Reiss avançara, por outro lado, com estudos impressionantes sobre a balística e a óptica forense e até Edmond Locard fixara o axioma da permuta de indícios: «Um criminoso deixa no local do crime sinais de identificação da sua pessoa e transporta consigo sinais do local onde praticou o crime.»
Assaltavam-no as descobertas destes cientistas, mas não eram suficientes para estabelecer uma regra. A filosofia, que apostava todo o entusiasmo no determinismo e fundava as bases do novo conhecimento científico, demonstrava evidências, mas caía no bocejo da dedução sem ânimo para ir mais além. Tinha a clara consciência de que faltava um passo, apenas um passo, para chegar ao corredor por onde avançaria um processo de descoberta de crimes sem margem para a dúvida.
Aproximou-se da janela do quarto. Os olhos vermelhos da insónia perceberam que o dia estava a nascer. Barças puxadas das margens por parelhas de bois subiam o Rio carregadas de adubo. Desde que a filoxera se instalara no Douro que era frequente ver cargas de produtos químicos pelo Rio acima. Sorriu melancólico quando monologou:
– A ciência química chega à terra de bruxedos por causa da praga.
A Ferreirinha veio-lhe à memória. A grande combatente contra a filoxera, a mulher que mudara a face do Douro com inteligência e bravura, desgraçadamente não se interessava pela ciência do crime.
De súbito, apercebeu-se de que algumas pessoas passavam a correr na direcção do hospital. Intrigou-o aquela precipitação, abriu a janela e perguntou o que se passava.
– Os lobos mataram a filha do Pataia, para os lados de Canelas.
Deu um salto. Vestiu-se como um furacão com o coração descompassado. Aquela poderia ser a sua última oportunidade para destruir a estúpida crença de que os lobos eram os assassinos de todas as aflições, e correu para o hospital.
Uma pequena multidão de vizinhos consolava a mãe de Rosa, o nome da rapariga, que gritava desesperada o seu pranto. Vespúcio não ligou ao ajuntamento e entrou no hospital. Tinha de falar com o médico. Precisava que o cadáver fosse autopsiado e não duvidava de que o clínico não iria opor as resistências do maldito regedor da Pesqueira.
Porém, quando caminhava pelo corredor reparou que a minúscula sala que servia de morgue tinha a porta encostada. Hesitou mas não viu ninguém e, decidido, entrou. O cubículo tinha uma mesa de pedra com dois bancos corridos e uma porta que abria para a rua. Era aí que se aglomeravam as pessoas que manifestavam pesar aos pais de Rosa. O pequeno espaço apenas senda para colocar os corpos antes de serem velados nas suas residências e havia pouco cuidado perante a ruína das paredes e o lixo acumulado no chão.
A rapariga era mais nova do que as outras. Pelo menos parecia, talvez por ser excessivamente magra. Pegou-lhe no braço e não conseguiu levantá-lo. Estava em rigidez cadavérica, sinal de que não morrera há muito tempo. O crime consumara-se nessa noite. As roupas encontravam-se desalinhadas e a camisa era uma grande nódoa de sangue que servira de tampão ao enorme ferimento que surgia abaixo do umbigo, rasgando em profundidade os músculos da barriga. Não se conseguiam ver as vísceras devido ao sangue coalhado. Apressado ainda fez outro exame. Levantou-lhe as saias. As pernas e a zona genital estavam desnudadas e não viu qualquer vestígio de sangue. A seguir, rápido, apalpou-lhe a cabeça e sentiu que por detrás da orelha, no parietal direito, existia um afundamento.
Não precisava de saber mais nada. O médico haveria de responder às muitas questões que lhe trepidavam na cabeça. Abandonou o local com cautela e procurou o clínico. Rece– beu-o um homem forte, barba grisalha, e que já vivera mais de sessenta anos. Era o Dr. Guimarães, que escutou, num silêncio surpreendido, a história que Vespúcio Ortigão lhe narrava, excitado, gesticulando abundantemente, levantando-se e sentando-se no banco que o médico lhe oferecera para a conversa. Narrou o que vira na Pesqueira, voltou a indignar-se com o regedor, protestou mais uma vez contra o padre Simões, o clérigo atomatado como insistia em chamar-lhe, descreveu as diligências junto do João dos Rafeiros. Ofegava quando terminou e, finalmente, se sentou em frente ao médico. Os olhos brilhavam de excitação.
– Então, senhor doutor? Percebeu como é importante autopsiar a vítima?
O outro não respondeu. Levantou-se e, em silêncio absorto, dirigiu-se até à outra ponta da sala. Cheirava a desinfectante e Vespúcio não deixou de reparar na marquesa de metal que se encontrava no centro da sala. Guimarães não lhe resolvia a ansiedade. Continuava de cabeça baixa. Pensativo.
Vespúcio não conseguiu conter-se por mais tempo.
– Por favor, senhor doutor, diga-me qualquer coisa. Parecia envergonhado quando falou.
– Não posso ajudá-lo.
O bacharel ergueu-se, indignado.
– Como?
– É verdade. Mesmo que tenha razão, do que eu duvido, nunca fiz uma autópsia. Pior do que isso, nunca vi.
– Não está a falar a sério.
– Nunca vi. Nem conheço os gestos técnicos para realizar uma operação dessa natureza.
Vespúcio não queria acreditar naquilo que ouvia. O homem estava a fugir-lhe com a desculpa mais disparatada. Comentou com secura:
– Ao menos podia responder-me com a mesma sinceridade com que lhe falei e dizer-me que não quer autopsiar a rapariga.
O médico sorriu benevolente.
– Acredite em mim. Quando cursei medicina, já lá vão mais de trinta anos, não se abriam cadáveres para estudar. Conheço da imprensa médica que recebo que, cada vez mais, a medicina prática reclama corpos para estudar anatomia e outras disciplinas. Conheço os trabalhos de Bichat, de Balthazar, de Brouardel de que me falou. Seja como for, ainda hoje, quer na Faculdade de Medicina quer nas escolas médico-cirúrgicas, são raros esses exames periciais.
– Mas eu vi em Coimbra. Vi duas e cursava Direito.
– Teve sorte. Ainda agora sei que não se fazem mais de dez, doze autópsias por ano nessas escolas. Imagine, meu caro, aquilo que se passa no resto do reino.
Não esperava por aquela. Nem encontrava palavras para dar sentido à revolta. O médico simpatizava com ele. Divertia-o a figura desajeitada de Vespúcio, a exuberância dos seus juízos, o invulgar conhecimento de que dispunha num meio como a Régua. Já se cruzara com ele na povoação, mas evitara falar-lhe. Acreditava na voz corrente que o dava como maluco, mas, ao ouvi-lo, penitenciava-se do seu juízo prévio sobre o bacharel.
Vespúcio agitou os enormes braços esquálidos num amplo gesto de desalento e proclamou, vencido.
– O assassino vai continuar a matar, tendo os lobos por desculpa. É o fim! É o fim!
– Peço-lhe desculpa pela minha ignorância.
Parecia sincero na sua confissão. Vespúcio reagiu.
– Ao menos pode confirmar se a rapariga foi violada?
A pergunta apanhou-o de surpresa.
– Posso. Quer dizer, acho que sou capaz.
– É fácil, não é?
– Mais ou menos.
Impacientou-se.
– Doutor, é apenas com um toque.
– Não. O toque apenas nos diz se é ou não virgem. Para que tenha a certeza de que foi violada preciso de fazer um esfregaço para lhe descobrir sémen. Infelizmente este hospital não tem microscópio.
Voltou à indignação.
– Mas é hoje o mais poderoso instrumento clínico. Pas– teur entregou-lhe a dignidade que merecia e...
O médico desatou a rir, bem-disposto.
– De facto, o senhor habita um outro mundo. A ciência que tanto o fascina, as descobertas que estão a sacudir os países europeus ainda não subiram o Douro em nenhum rabelo, e já vivi o suficiente para lhe assegurar que passarão muitos anos até chegarem à Régua. Vivemos no fim do mundo, meu caro.
O médico exasperava-o.
– Isto é de doidos.
O outro decidiu apaziguar-lhe o transtorno.
– Eu vou veriíicar se a miúda é ou não virgem. A família já aí está para lhe fazer o funeral.
Quando o médico saiu, caiu outra vez no banco sem forças. Sentia-se deprimido. Afinal, construíra a sua mundividência a partir de projecções do saber que esbarravam nos quotidianos entorpecidos pela inércia do tempo feito de muitas idades. Ali, naquele microcosmo habitado por gente ameaçada pela fome e pela filoxera, crente no poder da bruxaria e habitada pelos medos de muitos séculos, submetia-se sem inquietação à perpétua rotina herdada das gerações antigas. O medo obturava qualquer orifício por onde pudesse emergir um novo tempo. Q socialismo de Proudhon, o experimentalismo de Claude Bernard, a euforia republicana que soprava de Espanha nem tocavam este magma vagaroso, pesado, que conglomerava a história como um rochedo inexpugnável.
O médico regressou. Encontrou um Vespúcio cabisbaixo e vencido.
– A garota é virgem e não tem qualquer sinal de agressão sexual.
Ao menos a derrota não era tão absoluta. O clínico confirmava aquilo que o seu olhar curioso verificara na breve visita à morgue.
– Obrigado pela sua atenção.
Não foi capaz de dizer mais nada. Saiu cabisbaixo e sentia-se incapaz de prosseguir a sua aventura criminalística. A força da imutabilidade era maior e bem mais poderosa do que a sua fé no poder da ciência. Agora admitia com triste ironia que esse poder não passava de um fogo-fátuo. Uma festa de elites pensantes que desconheciam por completo a imobilidade do tempo. Veio-lhe à memória o discurso de Antero de Quental nas Conferências do Casino. Talvez fosse o único que percebera há muito o drama que o amargurava. A decadência do reino era indissociável do profundo e endémico atraso social e cultural que persistia em glorificar o império do medo e da superstição. E Vespúcio que julgara Antero um pessimista quando o lera! E ali estava preso dos mesmos traumas que serviam de diagnóstico ao poeta-filó– sofo.
Decidiu embebedar-se. Ao menos que celebrasse a sua derrota, que era ao mesmo tempo a vitória do Portugal viscoso, sujo e ignorante denunciado nas Causas da Decadênáa dos Povos Peninsulares.
Quando se sentou ao lado do Ti Paixão da Costa já emborcava da segunda garrafa. O ancião estava de olhos postos num rabelo que, de falda toda aberta, subia o Douro.
– A Ferreirinha vai para a Quinta do Porto.
Aquelas afirmações do velho, às quais dava a certeza absoluta, irritavam-no.
– Você está a inventar.
– Vai para a Quinta do Porto.
– Você não passa de um velho retorcido que não sabe nada.
– Vai para a Quinta do Porto.
– Porquê? Como é que você sabe?
– Porque sei.
– Não sabe nada. Ninguém sabe nada. Não vale a pena o esforço de tanta gente para que se saiba mais. É inútil. Nada muda. Se mudasse à velocidade do pensamento, estávamos à beira do paraíso. Sabe que não há um microscópio no hospital? Os cientistas de França, do Reino Unido, de todo o mundo civilizado entraram no mundo invisível dos micróbios. Descobrem bactérias, vírus, bacilos, começam a perceber que a doença não é castigo de Deus, que a morte não é um destino que não pode ser confrontado, e o nosso médico nem sabe fazer uma autópsia. Somos a vergonha do mundo. Vendo bem, não saímos da idade das trevas. Tirando o Fontes Pereira de Melo, que faz estradas e caminho-de-ferro, estamos nessa idade.
Levou a garrafa à boca e bebeu generosamente. Paixão da Costa continuava a seguir a embarcação que subia lentamente, aproveitando o vento que soprava. Impassível. Tinha sido boieiro toda a vida e conhecia todas as escarpas, carreiros e caminhos. Até que a espinha cedeu de vez, cada vez mais dobrado ao peso das dores e da idade e, aos oitenta anos, abandonou os destinos da serra e dos vinhedos. Há dezasseis anos que esperava a morte naquele banco junto ao Rio. Por fim, falou:
– Estás bêbado.
– Apetecia-mc desaparecer. A minha vida não faz sentido.
– Estás bêbado.
– Sabe que o pessoal acha que sou maluco?
– Claro que és doido. E bêbado.
Suspirou num lamento.
– Eu sei que não foram os lobos que mataram estas raparigas.
– Não sabes nada.
– O Ti Paixão da Costa hoje quer embirrar comigo.
– Um homem que acredita que a Terra é redonda não está bom da cabeça. É o teu caso. Depois passas o tempo a falar de coisas esquisitas que ninguém entende e emborcas almudes de vinho. Tens sorte em dizerem que és maluco.
Riu-se com amargura.
– Sorte?!
– Se dissesses o que dizes quando eu era rapaz, a Inquisição apanhava-te por bruxaria.
– Não diga disparates. Eu não acredito em bruxas.
– E é preciso acreditar para ser? Estás bêbado.
Tornou ao mutismo de sempre. Paixão da Costa não
gostava de falar. Passara a vida em conversa com os bois. Os homens eram complicados, maldosos. Não os entendia. E muito menos percebia Vespúcio, embora gostasse dele. Afinal, era a única pessoa que o procurava.
– Tens razão. Estou bêbado. Vou para casa dormir.
Mas não se levantou do banco. As pálpebras cada vez mais pesadas, o amolecimento do corpo, inibiam-lhe a vontade. Às tantas começou a pender sobre o apoio do assento, o corpo esguio guindava para a esquerda, o braço esquerdo caiu até ao chão e o longo cabelo desmoronou-se. Parecia que o velho Paixão da Costa estava sentado ao lado de um chorão.
– O barco da Ferreirinha já não se vê.
Vespúcio já não o ouviu. Dormia profundamente.
O Douro rugia. D. Antónia aproximou-se da janela, observando a força das águas, castanhas, grossas, engolindo as margens. Ia veloz e bruto em direcção à Régua. A chuva fustigava as encostas e os regatos, normalmente mirrados, eram cordas de água a correr violentas até ao Rio.
Damásio entrou em casa com a roupa toda encharcada. Aproximou-se da lareira que crepitava no centro do salão.
– A chuva vem tão fria que até faz doer os ossos.
– Trazes notícias da inundação na Régua?
-Já entrou pelas casas. Os armazéns e as adegas estão alagados, mas não há novidades de cuidado. O Francisco Cor– reia conhece as manhas do Rio e pôs a salvo o que devia antes de a cheia chegar. Não sei se com este temporal vai dar para irmos onde a senhora desejava.
– Não vamos. Fica para amanhã.
– Precisa alguma coisa de mim?
– Não.
Percebeu que a patroa estava melancólica. Era o seu criado e cocheiro de confiança há demasiado tempo para lhe conhecer todas as mudanças de comportamento.
– Vou à cavalariça tratar dos animais.
Saiu. D. Antónia tornou a observar a fúria das águas. Desde menina que as cheias do Douro a fascinavam. A velocidade e o tumulto das águas, a violência com que rebentavam e levavam no turbilhão os limites que os homens julgavam poder impor-lhes. Por vezes, passava rápida uma árvore arrancada pela raiz, logo a seguir o cadáver de um animal apanhado, por distraeção, nas garras da cheia e depois, pernadas partidas, restos das colheitas e mais outra árvore inteira que girava veloz na pressa das águas.
Em dias como este, o Cachão da Valeira, entalado entre os penhascos mais rudes da serrania, assemelhava-se àquilo que deveriam ser as portas do Inferno. As águas furiosas produziam estampidos ao embaterem violentas nos rochedos e o barulho ensurdecedor ouvia-se a grande distância, fazendo estremecer a terra e assustando quem ouvia aquele estertor rouco e profundo que mais parecia gritos das almas do outro mundo.
Sempre que lhe vinha à memória o Cachão da Valeira, trazia sempre agarrado o dia da tragédia. Do barco despedaçado contra os rochedos, dos gritos de aflição, da sua própria aflição, enovelada nas águas. E os mortos. Naquele dia perdera dois amigos: o barão de Forrester e a Gertrudes, a sua cozinheira de estimação. E julgara perder a filha, engolida na voracidade furiosa do Cachão.
Agora eram outras mães que estavam a perder as filhas por causa da fúria assassina de um louco. Ou de uma louca. Caso Vespúcio Ortigão, que agora vigiava de perto a Viúva Negra e a Inácia do Mileu, tivesse razão.
Naquele ano em que a morte se revelara com toda a brutalidade, tudo começou com a decisão, dela e do marido, de passarem alguns dias de descanso na Quinta do Vesúvio.
Maria da Assunção escrevera a dizer que ia ao encontro deles porque queria que D. Antónia visse o neto, que na altura tinha cinco meses. Silva Torres convidara amigos da região. Entre eles estavam o barão de Forrester e o juiz de Foz Côa. Porém, os dias aprazíveis que D. Antónia esperava foram transtornados por sucessivos conflitos e incidentes que julgara, tempos depois, serem o prenúncio da tragédia que se aproximava.
A alegria com a chegada da filha, do marido, o petulante conde da Azambuja, trazendo-lhe o neto, fora desvanecida pouco tempo depois, quando Maria da Assunção a chamara em privado ao escritório. Tinha um assunto de extrema urgência para lhe falar.
D. Antónia nem queria acreditar.
– Espera lá. Vocês acabam de chegar, mal consegui ver o meu neto, temos a sala cheia de convidados e a primeira notícia que recebo é que tu e o teu marido estão sem dinheiro?!
– Porque estamos muito aflitos, minha mãe.
Não conseguiu encontrar palavras para exprimir a estupe– facção. Haviam casado há cerca de dois anos, arrecadando uma fortuna enorme, quer da herança que pertencia a Maria da Assunção, quer do legado oferecido pelo duque de Loulé, pai do conde da Azambuja.
– O que é que vocês fizeram ao dinheiro das rendas das quintas e da venda dos vinhos?
– Temos muitas despesas.
– Cortem nas despesas. Aquilo que recebem por ano dava para alimentar cinquenta famílias. Como é possível que não chegue?
– A mãe não quer perceber! A vida em Lisboa não é como aqui. O meu marido é da família do rei, temos um estatuto a defender.
– Se vos custa tanto a defender esse estatuto, abandonem Lisboa e venham viver para o Douro.
– Por amor de Deus! Não imagina o Augusto Pedro a viver nestas brenhas.
Dominou a irritação e respondeu-lhe com a contenção possível.
– Nem te respondo. Vamos acabar por aqui. Temos convidados à nossa espera e sobre as vossas misérias falamos depois.
– Isso quer dizer...
– Quer dizer que falamos depois!
Tornou a evocar Vespúcio Ortigão, o filho do abade de Trancoso e um pouco mais novo do que António Bernardo. Não seria natural que uma criança que aprendera o mundo de mão estendida à esmola, marcado pela fome, castigado pela solidão, quisesse, agora que era advogado, aproveitar a oportunidade para se vingar das maldades antigas que a vida lhe fizera? E, no entanto, era o exemplo do desprendimento, procurando o seu caminho para a felicidade mergulhado em livros esquisitos, à descoberta de uma sociedade mais justa para todos. Admirava essa fome de equidade que determinava os actos e os comportamentos extravagantes com que proclamava a República, que delirava com o socialismo ou, de repente, o embrenhava na descoberta do tal método que permitiria descobrir e condenar todos os criminosos do mundo.
Acompanhava-a essa mágoa. Quer António Bernardo, quer a filha não pensavam noutra coisa que não fosse esbanjar dinheiro, festas e vaidades fúteis. E a vida que ambos desperdiçavam, sem qualquer finalidade que não fosse o prazer efémero, tornara-se num conflito permanente com o carácter ascético de D. Antónia.
Aos dezassete anos, António Bernardo casara clandestinamente com Antónia Plácido depois de ter corrompido o abade de Vitória, que consagrou o matrimónio sem a publicação dos banhos. Exigira a herança que lhe cabia e nas partilhas acusou a mãe de o ter roubado. Antónia Ferreira reagiu com severidade e a relação entre ambos degradou-se desastradamente. Passados alguns meses, fugia com a filha para Londres escapando ao assédio, carregado de soberba, que lhe era movido pelo duque de Saldanha para contratualizar o casamento do filho com Maria da Assunção. Quando regressou, dois anos depois, António Bernardo estava arruinado. As quintas hipotecadas, as reservas de vinhos penhoradas e um monte de dívidas, que só a paciência e a habilidade de Silva Torres conseguira resolver.
Agora, era a filha que trilhava os mesmos passos do irmão. E, neste caso, mais grave. Enquanto Antónia Plácido era uma mulher de gostos sóbrios, o genro era um peralvilho preguiçoso, que passava os dias a babar vaidade por pertencer à família real. «Uns inúteis!», como costumava D. Antónia desabafar quando tinha notícias dos gastos extraordinários em festas e viagens.
Ainda não se recompusera da primeira discussão e já crescia o segundo motivo de irritação. O genro, com um descaramento de embasbacar, cortejava a Laurinha, a neta da D. Rosalina, uma velha amiga da Ferreirinha que viera de Carrazeda. Com a sogra a dois passos, galanteava:
– É a pérola mais bela, o sorriso mais doce que alguma vez os meus olhos viram.
A miúda sorria, envergonhada.
– O senhor conde está a fazer-me corar.
Não teria mais de dezasseis anos. Era trigueira, robusta e escutava com evidente desvanecimento as palavras envolventes do conde.
D. Antónia quis acreditar que era ela própria que estava a entender mal o cavalheirismo do genro e procurou concentrar-se na conversa que Silva Torres e o barão de Forrester mantinham sobre a política comercial das casas exportadoras de vinho do Porto. O escocês tinha uma paixão de alma pelo Douro. Cartografara-o. Era um dos temas que mais o seduziam como motivo de inspiração para a sua pintura – era um pintor razoável – e tinha pouco apreço pelos negociantes ingleses. A pressão que exerciam constantemente sobre os preços, para comprar em baixa, mantinha os lavradores sempre no limite da sobrevivência. Eram poucos aqueles que conseguiam resistir ao garrote do negociante, que retirava grandes proventos nas compras em baixa, que fazia em Gaia, e na colocação dos vinhos em alta, na praça de Londres e noutros mercados europeus. A casa A. A. Fer– reira era uma das excepções a esta regra e as enormes reservas que possuía conseguiram sempre pô-la a salvo da especulação dos mediadores.
– Um bando de abutres esfaimados! – afirmava convictamente Forrester, enquanto observava o cálice que tinha nas mãos com a última dádiva do Vesúvio. O vinho chispava em mil miríades através das paredes de cristal e libertava odores que eram uma miscelânea de malmequeres, de pétalas de rosa, de amendoeiras em flor, misturados numa fantasia mágica que, ao sentir-se na boca, convencia, quem o bebia, de que estava num banquete de deuses.
– Divino. Absolutamente divino!
As más-línguas inventavam histórias espúrias entre o barão de Forrester e a Ferreirinha e, na praça do Porto, os bufarinheiros ingleses misturavam-lhe picante e outras especiarias insidiosas. Que eram amantes. Que a devoção do barão pelo Douro era o disfarce para os encontros clandestinos perante a tolerância servil de Silva Torres. Cada vez que a casa Ferreira dava um murro na mesa e declarava: «Não vendo por esse preço!», maior era o alarido em torno dos prazeres da carne a que ela se dedicava com o escocês, faminta de sexo devido às longas ausências do marido.
Na realidade, existia uma profunda amizade e admiração recíproca entre Forrester, D. Antónia e Silva Torres. Amizade que se revelou útil em vários negócios políticos do marido da Ferreirinha, admiração e cumplicidade devido à paixão comum da proprietária e do barão: o Douro.
Discutiam agora, acalorados, os destinos internacionais do vinho quando reparou que o conde da Azambuja se escapava discretamente para o escritório seguido pela rapariga. O coração acelerou. Ali mesmo, à sua frente, mostrava-se uma das razões para a ruína do casal: a leviandade.
Discretamente seguiu-os. Abriu a porta e o entusiasmo do conde não a ouviu. Abraçava Laurinha, beijando-a com sofreguidão enquanto lhe procurava levantar as saias. Tossiu. O galã deu um salto de corça e o rubor transformou-o num tomate. A sogra fuzilou-o com o olhar.
– Laurinha, vai para perto da tua avó.
A miúda saiu a correr. Augusto Pedro esbracejava em pânico.
– Isto é um mal-entendido. Quer dizer, eu amo a Maria da Assunção e... a senhora compreende, eu...
Atalhou com rispidez.
– Não faça de mim parva, senhor conde.
– Ó minha senhora, mas...
– Não diga nada. Tudo o que disser não explica o que eu vi.
Por instantes imperou um silêncio rude entre ambos.
Deixou-se cair numa cadeira, o rosto escondido nas mãos.
– Peço-lhe por tudo que não diga nada à Maria da Assunção. Eu juro que nunca mais voltará a acontecer.
– Não seja mentiroso, jurando em vão. Vá ter com os nossos convidados e faça os possíveis para disfarçar a sua indignidade. Não lhe vai ser difícil. O senhor é um mestre na arte de representar. Todos os dias faz de conta que é um grande senhor quando não passa de uma criaturinha mais reles do que qualquer dos plebeus que despreza.
Saiu cambaleante. Observava o genro e, espontaneamente, associava-o à imagem do seu primeiro marido e do filho. A vida dissoluta, a procura incessante da aventura e do prazer, devassando-lhe o carácter num mundanismo tão absoluto que a ideia da regra, até as de ordem moral, se havia dissipado.
O primeiro marido chegara ao limite. A sífilis era para D. Antónia uma doença da moralidade. Afastara-se dele definitivamente quando soube do mal que padecia. Não representava apenas falta de respeito por ela e pelo compromisso matrimonial. Era, sobretudo, uma traição aos sonhos dos avós, dos pais, enraizados numa fidelidade total à fertilidade da terra. Respeitou, recatada, a doença, curvou-se, magoada, quando chegou a sua morte, mas não perdoou. O Douro jamais poderia ser traído.
De António Bernardo as notícias que lhe chegavam do Porto reproduziam os passos herdados do pai, mas com sinais de desagregação ainda maiores.
A sua vida era um caldo de loucura, de tão irresponsável, e mal sabia D. Antónia que, naquele preciso momento, num prostíbulo do Porto, encostado aos seios nus de uma mulher, com a cabeça vazia pelo turbilhão do álcool, monologava as suas desventuras.
– Sou uma nódoa, sabes? Um inútil. Tenho passado a vida a fazer de conta.
Soltou uma gargalhada demente e prosseguiu:
– Faço de conta que sou rico e, se não fosse a minha mãe, morria de fome! – Pegou na garrafa e emborcou dois goles. Arrotou. – Faço de conta que sou sério. Ainda hoje discuti com a minha mulher porque ela acha que não tenho juízo e tive de me zangar para que percebesse que casou com um homem sério.
Tornou a gargalhar. Agora histérico:
– Tão sério que estou enfiado nesta cama contigo.
De súbito, sentou-se. A cabeça pendulava.
– Sei lá se sou sério. Talvez não passe de um vadio. Um vadio com sorte. Falido, mas com sorte. Sei lá se tenho sorte. A única certeza que tenho é que estou bêbado. Estás a ouvir, minha puta? Estou bêbado.
Deixou cair a cabeça, deprimido, num lamento:
– Que puta de sorte a minha!
Sintetizava, na demência do álcool, aquilo que a lucidez da sobriedade toldava. Um percurso feito de derrotas, de preguiça, de falências, mas de festa, de alegria esfuziante, de fome do prazer absoluto. Exactamente o percurso da irmã e que D. Antónia, no dia seguinte, tinha à sua frente quando foi confrontada com o pacote de papéis com dívidas que Maria da Assunção lhe apresentou. Soltava exclamações indignadas a cada folha.
– Meu Deus, vocês gastaram uma fortuna!
– É a casa, os convidados. Eu não sei como o dinheiro desaparece – desculpava-se a rapariga.
– Claro que sabes, Maria da Assunção. Trinta e cinco vestidos. Compraste trinta e cinco vestidos em Paris?! E o teu marido... um, dois, três... seis, sete... dez pares de sapatos!
– Não se enerve. Oiça-me, por favor.
– O que é que tu queres que eu oiça? As contas falam por si. Vestidos, joias, sapatos. Nem que vivas cem anos consegues usar a roupa que compraste em Paris, mais aquela que compraste em Itália, mais a outra de Sampetersburgo. E ainda por cima vens dizer-me que estás grávida outra vez. Vais ter dois filhos no mesmo ano. A fazeres crianças a esta velocidade como é que ainda tens tempo para comprares roupa para as alturas em que não estás grávida?
Fechou o pacote dos papéis com rispidez. Maria da Assunção fez beicinho.
– Pronto, já disse tudo? E agora vai ou não ajudar-nos?
– Vou pensar.
– Mãe, pela sua saúde!
– O teu marido já pediu ajuda ao duque de Loulé?
Respondeu com uma explosão indignada.
– O meu sogro é um cretino.
– Não sei se é cretino ou se é esperto.
Levantou-se.
– Hoje, o Damásio leva o bebé e a ama na minha caleche para a Régua. Vocês vão comigo no barco. Vamos ver o que se pode fazer quando falarmos com o Francisco Correia.
Embarcaram depois de almoço. Chovera na semana antes de chegarem ao Vesúvio e o Rio ia um pouco rijo. O barão de Forrester, que o conhecia a palmo, propôs-se conduzir o barco. Embarcaram a cozinheira, o juiz de Foz Côa, que precisava de ir ao Porto, Silva Torres e D. Antónia, Maria da Assunção, o conde da Azambuja e a tripulação do rabelo.
O Douro está cheio de pequenas traições ao longo do leito. Rápidos, remoinhos, correntes estranhas que empurram os barcos para as margens. Com maestria, o barão segurava-o no meio das correntes e remoinhos. Um pouco adiante ouvia-se o barulho ameaçador do Cachão da Valeira. Era sempre um momento de sobressalto porque as águas aumentam de velocidade, saltam em cachões, rodopiam em remoinhos que se desfazem, violentos, contra os rochedos. A envergadura dos penhascos não deixa entrar o sol e o ambiente toma-se sombrio, assustador, quando o impulso das águas as faz cabriolar em cascatas velozes, correndo com estrondo.
Ninguém sabe como aconteceu tal era a velocidade do barco. Apenas o grito do barão e imediatamente o estampido formidável contra os soberbos rochedos, desfazendo a embarcação em pedaços. Arrastados pelas águas alucinadas, presos à vida na luta final que o instinto de sobrevivência faz nascer nas entranhas de quem olha, mas só vê as garras da morte, foram expulsos pelo Rio com a mesma violência com que os quisera tragar.
D. Antónia rebolou sobre a margem esquerda e não teve tempo para celebrar a alegria da salvação, pois passava por ela Maria da Assunção. Apanhou a filha com as garras da fêmea que protege a cria e puxou-a para a margem. Estava viva e abraçou-a com dupla alegria. Um pouco mais abaixo, Silva Torres saía da água amparando o conde. Só então tiveram oportunidade de gritar a aflição.
– E a Gertrudes? Não vejo a Gertrudes.
Na outra margem, o juiz de Foz Côa arrastava-se, exausto, e vários tripulantes tinham-se deixado cair no chão, ofegantes do combate contra a morte. D. Antónia, desgrenhada, gestos alucinados, procurava Gertrudes. Os segundos fugiram, os minutos correram, o Rio rugia veloz e o grito estridente que soltou continha toda a angústia amordaçada.
– Gertrudes! Gertrudes!
Em vez da fiel cozinheira, respondeu-lhe o grito de aflição de Silva Torres.
– Forrester! Forrester!
Corria pela margem, indiferente aos rasgões na carne que as silvas provocavam. Espreitou nos salgueiros, abriu juncos, olhava ao longe procurando o amigo.
– Forrester! Forrester!
Maria da Assunção chorava abraçada ao marido, que tiritava de medo, e D. Antónia regressou à água. O Rio engrossava com as suas lágrimas grossas e do fundo da alma soltou um grito, que era rugido e, sendo chamamento, já era pranto.
– Gertrudes!
Apenas lhes respondeu o ronco rouco do Douro, a desenvencilhar-se do Cachão da Valeira.
Durante dias a fio, mandaram dezenas de homens sondar as margens e os precipícios. O regresso ao fim de cada noite, de ombros caídos e silêncios tristes, colocava mais uma pedra na convicção de que a morte os levara.
Já ninguém acreditava noutro fim e D. Antónia teimava inconformada.
– Amanhã, voltam outra vez e gritem a chamar pela Gertrudes e pelo barão. Podem estar feridos, perdidos, qualquer coisa.
Os homens tornavam a partir pela madrugada, certos do final que a patroa não queria aceitar, e regressavam tão tristes quanto no dia anterior. Foi o marido quem a chamou à razão.
– Antónia, chegou a hora de acreditar na verdade. A Gertrudes e o barão morreram.
Ficou em silêncio durante muito tempo. Não quis cear, de olhos postos no Rio que desaparecia lentamente conforme caía a noite. Silva Torres aproximou-se dela e afagou– lhe os ombros.
– Por favor, Antónia. Custa-me tanto ver-te assim. É preciso reagir e darmos graças a Deus por nos termos salvo.
Acenou afirmativamente.
– Eu sei. Mas o barão e a Gertrudes morreram e é preciso fazer tudo para confortar as famílias. O único consolo que lhes podemos dar nesta hora é encontrar os corpos.
– Só quando o Rio decidir.
Beijou-lhe os cabelos. Também ele sofria pela perda de dois amigos. D. Antónia falou com os olhos postos no negro da noite. Parecia que esperava vê-los surgir em direcção à claridade.
– A Gertrudes deixa cinco filhos pequeninos.
Silva Torres não respondeu.
– O Rio, que é tão generoso, cometeu uma grande maldade.
– Já morreu muita gente no Cachão da Valeira.
Antónia quis saber do marido de Gertrudes.
– Como está o Rafael?
– Desfeito, coitado. Tenho ido visitá-lo todos os dias.
– Pede-lhe que venha falar comigo – e com a voz embargada rematou: – E chorar comigo.
– Amanhã trago-o aqui.
Enquanto os dois conversavam na varanda, o conde da Azambuja discutia com Maria da Assunção.
– Tens de falar com a tua mãe. Sem falta! Estou farto de estar enfiado nesta maldita quinta. Ela que te dê o dinheiro para ainda amanhã irmos para Lisboa.
– Por favor, Augusto Pedro. Não volto a falar com a minha mãe sobre dívidas enquanto ela estiver assim. Não vês como está prostrada?
Encolheu os ombros com desprezo.
– O que queres que se faça? Morreram, estão mortos. Estamos nós vivos. Teria sido pior se fosse ao contrário. Estou farto disto. Amanhã, sem falta, falas com ela.
Tinha medo de fechar os olhos para dormir. As imagens do Rio a despedaçar o rabelo e a engoli-los, voraz, revisitavam-na. Passava horas à espera de que o sono vencesse a visão, fazendo esforços para manter os olhos abertos. A notícia correu o reino e as fábulas aproveitaram o húmus da tragédia para nele fortificar a fantasia. O barão fora ao fundo porque tinha barras de ouro à volta da cintura. A Fcrreiri– nha salvara-se por causa da roda da saia que a fizera girar como uma boneca de corda até à margem. Que ali estava a prova de que eram amantes. Tinham passado juntos uma temporada na Quinta do Vesúvio na companhia da cozinheira, que lhes fazia fartos manjares. Que fora um castigo de Deus por ser adultera. A canalha, como D. Antónia chamava à preguiçosa aristocracia portuense, comprazia-se na intriga e transformava cada boato numa verdade absoluta.
Bebia café. A filha e o genro tomavam o pequeno-almoço quando Rafael entrou no salão trazido pela empregada. Correu a abraçá-lo, emocionada.
– Ó Rafael, tenho tanta pena do que aconteceu. Perdoa– me.
– Não há nada a perdoar, senhora. Foi Deus quem decidiu levar a minha Gertrudes naquela hora.
– Que posso fazer por ti? Eu não vou deixar que fiques com o fardo de criar cinco filhos sem a ajuda da tua mulher.
– É uma aflição, senhora dona Antónia.
– Nem sou capaz de imaginar o que sentes. – A voz ganhou firmeza. – Seja como for, enquanto eu for viva, nem tu nem os teus filhos se afligirão com necessidades. Vou falar com o Francisco Correia para que trate de tudo como deve.
– Deus lhe pague a bondade, minha senhora.
– Não agradeças. É a minha obrigação. Estimava a tua mulher como se fosse da minha família.
Rafael apertou os lábios para dominar a emoção. Ela também estava comovida quando o viu sair, curvado pela força do sofrimento.
O conde da Azambuja não se conteve perante aquela cena de cumplicidade dramática e decidiu ser irónico.
– E espantosa a generosidade da minha sogra para com estranhos à família e tão indiferente cm relação às preocupações daqueles que são do seu sangue.
Voltou-se para ele sem perceber o comentário.
– O que é que o senhor está a dizer?
– Que a sua filha está cansada de insistir com a senhora para que nos ajude a resolver alguns problemas financeiros e nem uma resposta nos deu. E agora entra por aqui este miserável e desfaz-se em generosidade.
Um vulcão de cólera explodiu-lhe no peito. Avançou para o genro e cravou as unhas no tampo da mesa. O conde encolheu-se, julgando que ia ser agredido. D. Antónia gritou-lhe, marcando bem as palavras:
– Não se atreva! Não se atreva a ofender aqueles que vivem e morrem para lhe alimentar os vícios.
Maria da Assunção, assustada com a fúria da mãe, procurou apaziguá-la.
– Mãe, por favor...
– Cala-te! Quem trabalha para a nossa casa, quem nos aumenta a fortuna, são muitos homens e mulheres iguais ao Rafael. São centenas, milhares! Humildes, pobres, mas é a Deus e a eles que devemos agradecer aquilo que somos e aquilo que temos. Quem assim se dá, nunca irá sentir falta de generosidade da minha parte. Percebeu?
Perante a desorientação do conde, rugiu.
– Eu estou a perguntar-lhe se percebeu?
Atabalhoado, redarguiu:
– Sim, pois. Claro...
– Então, não se atreva, nunca mais, a questionar o que dou a quem precisa. Nunca mais! Porque, desgraçadamente, vocês só sabem receber e nem sabem o que é a alegria de dar.
Olhou-o com desdém e concluiu:
– Afinal de contas, são bem mais pobres do que o Rafael.
Tinham passado tantos anos desde esses dias ainda tão presentes que D. Antónia julgava existir um estranho sortilégio que permitia organizar o tempo em muitos calendários de memória. Não era somente uma sucessão de dias, de meses, de anos. Podia juntar memórias envelhecidas a outras recentes, organizando a temporalidade dos factos conforme a cadeia de emoções que as ligavam. Maria da Assunção, nessa altura grávida do segundo filho, acabara por parir doze crianças. Mentalmente começou a organizar os passos desse outro calendário feito de recordações felizes onde o rosto dos netos desfilava com a evocação da doçura dos actos inocentes, uma sucessão de fotografias já arroladas pelo tempo que convocava. O José Maria, que sorria velhaco quando fazia uma diabrura; a Francisca, olhos grandes, estupefactos, ao seu colo, atenta às histórias da Branca de Neve; a Maria do Carmo, a correr atrás das galinhas para que lhe dessem um ovo; o Nuno Bernardo, que tinha o estranho jeito de chupar o polegar, tímido, a observar com atenção a faina das vindimas; o deslumbramento da Maria Luísa olhando fascinada os frescos, os candelabros, os quadros e os móveis da sua casa no Porto. Sorriu, enternecida, recordando a conversa que tivera no último encontro ainda não havia três meses. A neta já tinha quinze anos e apanhou-a a dormitar no salão. Acordou sobressaltada.
– Quem está aí?
– Sou eu, avó.
– Maria Luísa! A avó passou pelas brasas. Coisa de gente velha.
Sentou-se no chão e encostou o rosto ao colo de D. Antónia.
– Gosto de andar por esta casa. E como se percorresse caminhos do passado.
– Tens razão. Uma casa vale pelas memórias que conserva, nas marcas que deixa nas paredes, nos cheiros, nos fantasmas.
– Fantasmas, avó? Está a assustar-me.
Sorriu. Afagou-lhe o cabelo, numa carícia doce.
– Esta casa, minha querida, é mágica porque está cheia de vida, das muitas vidas que passaram por aqui. O teu avô, a tua mãe quando era menina, o teu tio, vocês todos. Foram deixando marcas, sinais que transformaram este espaço num livro de contos. Ora os contos não passam de sonhos. Tudo o que vês é habitado pelos muitos sonhos que aqui foram vividos.
Maria Luísa segurou-lhe a mão. Levantou os olhos para o quadro com o retrato do avô na parede em frente. Estremeceu.
– Ao ouvi-la falar assim fico arrepiada.
A velha senhora, divertida, respondeu.
– Isso quer dizer que os antigos sonhos estão a passar pelo teu corpo e tu estás a deixar parte dos teus nesta casa, marcando-a com a tua presença. Sabes o que às vezes costumo fazer? Fecho os olhos, fico em silêncio e oiço os passos, as vozes, os risos de todos aqueles que por aqui andaram e construíram os seus anseios de destino. Queres experimentar agora?
Hesitou.
– Não sei. Acho que tenho medo.
Abraçou-a com animação.
– Vá lá. Ficamos assim agarradinhas uma à outra. Só precisas de te concentrar e fechar os olhos.
Ficaram as duas de olhos fechados. O silêncio apenas era beliscado pelos gritos, que ali chegavam murmurados, dos outros netos a brincarem no jardim. D. Antónia sussurrou, divertida:
– Estou a ver um cavaleiro garboso, num cavalo branco, a galopar direito a nós. Parece um príncipe e os cabelos são negros e brilham!
– Usa espada? – perguntou-lhe a neta, fechando os olhos ainda com mais força.
– Uma espada de prata e uma coroa de ouro na cabeça. Ah! Chama por ti, Maria Luísa.
Excitada com a visão, exclamou:
– Então, é ele!
Abriram os olhos e abraçou a avó.
– É ele?
– O cavaleiro andante com que sonho muitas noites. De certeza que o viu, avó?
Apertou-a com mais ternura e comentou com ironia.
– Pois é. Já és uma mulherzinha. E natural que comecem a surgir cavaleiros nos teus sonhos.
– Mas viu? A sério?
Riu, bem-disposta, e respondeu-lhe docemente.
– Estás a ver? Esta casa, agora, ainda tem mais vida. O teu cavaleiro andante passou por aqui.
Damásio tomou a entrar, interrompendo-lhe os pensamentos.
– A água levou os viveiros da vinha americana da Quinta da Boavista.
Ficou surpreendida.
– Subiu tão alto?
– Não levou tudo. Mas entrou na parte baixa e destruiu mais ou menos um acre.
Suspirou, contrariada. A chuva amainava, mas o Rio ainda subiria mais alguns palmos, transportando ao mar a bátega que caíra pelas montanhas arriba do Pinhão. Se ao menos o temporal levasse a filoxera, como arrancava árvores e vidas, talvez valesse a pena deixar o Douro à solta, perdoar-lhe a loucura furiosa, para que acabasse de vez com o maldito insecto. Entretanto, levantara-se a nortada e o vento zunia com maior violência, assobiando nas chaminés da casa. Mandou Damásio embora. O tempo estava perdido para o trabalho e ela sentia-se cansada. O dia cinzento desabando em água; a conversa inquietante com o padre João Matias sobre as investigações de Vespúcio; a certeza, cada vez maior, de andar alguém a matar crianças para saciar crenças demoníacas e a ameaça de que o temporal continuaria pela noite fora fizeram-na tomar outras decisões. Não aceitava que a adversidade do tempo lhe transformasse o dia numa inutilidade. Chamou a empregada. Pediu-lhe que trouxesse o saco de marmelos que no dia anterior colhera em Ventozelo. Iriam passar a tarde a fazer marmelada.
Todos os dias chegavam más notícias. A devastação da morte avançava inexoravelmente pelos campos. Aldeias e lugares inteiros tremiam de fome e desespero. A filoxera destruía as vinhas e multiplicava o desemprego. Já chegara a Mesão Frio, galgara o Tua, passara Fiolhal e Rebolonga, subira até ao cachão da Rapa e há muito que deixara para trás a Valeira, enquanto, na margem esquerda, se estendia por Penajóia, indo a Vardigem e Santo Andrião, desfizera o Seixo, Ventozelo, entrara por Vargelas e ameaçava o Vesú– vio. A vida morria em volta do Douro. As poucas uvas que sobravam à peste transformavam-se, no lagar, numa água escura e azeda. Por outro lado, se os insectos devoravam as entranhas das encostas dos vinhos, o efeito da desgraça chegava longe: aos povos das terras quentes de Meda e Castelo Rodrigo, às gentes das serras de São Domingos e do Postiço, e ao outro lado da fronteira, a Mieza, Perena, La Zarga de Pumareda, donde vinham, em tempo de vindima, multidões de ranchos para arrecadar o pecúlio que os defendia dos meses ainda mais pobres da invernia.
Até o Douro entristecia. As dezenas de rabelos que subiam e desciam o Rio no transporte das pipas para Gaia, na carga de mercadorias, adubos para a Régua, acostavam, monótonos e vazios, aos cais ribeirinhos, e a praga continuava, arrogante e intocável, distribuindo com deleite vicioso a morte e a miséria.
No Porto, em Lisboa, anunciava-se o fim do vinho do Porto. O mundo político apresentava contra a filoxera discursos de boa retórica. As comissões que designava para estudar o assunto produziam extensos relatórios, literariamente magníficos, mas sem uma única arma que derrotasse o insecto.
O vinho mirrava em Gaia e as casas exportadoras, pressentindo as aflições dos proprietários, baixavam os preços das pipas, impunham a ruína e lucros inauditos na revenda em Inglaterra. As exportações para a América e para o Brasil caíram, as discussões sobre o fim da região demarcada ganhavam cada vez mais adeptos e, no auge da decadência, compravam-se, em Gaia, zurrapas clandestinas oriundas dos cantos mais obscuros do reino.
Na Quinta de Travassos, D. Antónia acabara de ver as contas que António Claro lhe apresentara. Ficou em silêncio, olhar perdido nas encostas mortas que se estendiam à sua frente.
– Sabes o que mais me dói? E ver tantos mortórios como se os campos fossem um enorme cemitério.
– É uma grande tragédia – respondeu o administrador.
– E dói-me tanto a tristeza e a falta de esperança que vai por essa serra acima.
– Tem salvo muita gente, minha senhora. Pagou as dívidas de muitos, comprou as terras de outros, emprestou dinheiro aos mais chegados. Se não fosse a senhora, a desgraça era muito maior.
Encolheu os ombros com indiferença.
– O que fiz não passa de uma gota de água de esperança neste mar de miséria. Não é com a caridade que o Douro se salva. É com trabalho, com uma guerra sem quartel contra esta maldição!
Levantou-se, decidida.
– Temos de ganhar esta guerra, António. Custe o que custar. Nem que seja até ao último real da fortuna da minha família.
– Sabe que conta com todos nós para o que for necessário.
– Não tenho outra solução. Por cada cepa que morre, morre um pedaço de mim. E não é assim que ambiciono morrer, roída por um insecto. Vamos dar cabo dele. Juro-te por Deus!
– Mas como? Os nossos barbados são fracos, não aguentam o ataque dos insectos. Gastámos fortunas em sulfureto de carbono, em cal, em adubo.
D. Antónia meneou a cabeça.
– O sulfureto atrasa a doença, mas não dá cabo dela. Ou arranjamos cepas mais fortes, que resistam ao ataque da filoxera, ou não nos salvamos.
António Claro conhecia-a bem de mais e percebeu que ela tomara decisões que sabia difíceis.
– Quer dizer-me alguma coisa, dona Antónia?
Ela hesitou. Uma expressão de preocupação marcou-lhe o rosto. Não era uma ideia nova. Tinham sido muitas horas, muitos meses a matutar sobre o mesmo assunto.
– Isto só lá vai com uma revolução completa. Uma revolução em que precisamos de pôr os nossos vizinhos, os nossos caseiros, os nossos jornaleiros, a trabalharem e a pensarem de forma diferente.
– Não estou a percebê-la, dona Antónia. A pensar como?
– Os nossos barbados não aguentam a praga. Mesmo os bacelos, sem ajuda, não resistem. O único caminho é multiplicar viveiros de vinha americana, fazer com ela porta-enxertos e enxertar-lhes os bacelos das nossas castas.
António Claro remexeu-se, perturbado, e o incómodo dele pareceu ter feito crescer o entusiasmo da mulher.
– Eu sei que a nossa gente não está habituada. Há séculos que as nossas vinhas nascem da mergulhia. Eu sei que a enxertia obriga a mudar a surriba, obriga à poda, obriga a outros trabalhos que ninguém sabe fazer. Mas eu vi, António Claro. Eu vi as experiências que a comissão do Governo fez na nossa Quinta do Porto, eu própria mandei repetir essas experiências na Quinta da Boavista e falei muito com o doutor Azevedo Leite. Mostrou-me as vinhas que montou com os porta-enxertos americanos, na Quinta de Vale Figueiras, e dão resultado. A praga não consegue destruir as cepas, não consegue entrar-lhes, e o sulfureto trata do resto. As uvas crescem gordas, sumarentas. Não existe outro caminho, António Claro. O doutor Azevedo Leite encontrou a solução do problema.
O administrador deu alguns passos com evidente agitação. Estava habituado às grandes decisões da patroa, mas, desta vez, tal como ela dissera, propunha uma revolução.
– Não sei, minha senhora. Com o doutor Azevedo Leite resulta porque a vinha é pequena, faz o serviço com três ou quatro enxertadores. Para as nossas propriedades precisamos de centenas de homens.
– Ensinamo-los.
– Precisamos de centenas, talvez milhares, de jornaleiros que saibam podar.
– Ensinamo-los.
– Eles vão resistir, senhora. Sempre trabalharam da mesma maneira.
– Eu sei.
Exasperava-o a determinação dela.
– E quem os ensinai1
– Trago gente das nossas terras de Torres Vedras. As vinhas daquela região, de Torres Vedras ao Cartaxo, do Bom– barral a Santarém, são feitas por enxertia.
– Não sei, minha senhora, não sei.
Não sabia como demovê-la daquela ideia e suspirou.
– Isto parece um castigo de Deus!
D. Antónia atalhou, severa.
– Não é nada! Deus não poderia enviar-nos uma praga porque é infinitamente bom e misericordioso. O problema não está no céu, mas aqui, na Terra, e é aqui que precisamos de resolvê-lo.
António Claro ficou em silêncio, cabeça baixa, curvado na cadeira, com os cotovelos apoiados nas pernas. D. Antónia olhou-o de alto a baixo.
– Não concordas com isto?
– Aquilo que a senhora está a dizer é uma obra sem Hm. E há outra coisa.
– Qual é?
– Apesar dos mortórios, das feridas que a filoxera tem provocado nas nossas vinhas, a casa tem aumentado a riqueza. Os nossos vinhos vendem-se melhor do que nunca. Alargámos algumas quintas, comprámos outras, fizemos vinha em terras onde a praga não chegou. Cada vez são mais as casas inglesas que querem os nossos vinhos. Já lá vai o tempo em que só a Clode & Baker e a Cockburn Smiths eram os nossos únicos clientes. A Buder, a Sandeman, a Croft, sei lá quantos mais, não nos largam o escritório do Porto fazendo mais e mais encomendas.
– A nossa fortuna é arrancada do meio da morte. Somos uma espécie de cogumelo que cresce mais quanto maior for a podridão à sua volta.
– Não diga isso, dona Antónia! Sabe que os nossos vinhos são dos melhores do mundo. Temos ganho grandes prémios por essa Europa fora. Até na América.
Sorriu. Puxou de uma cadeira e sentou-se ao lado de António Claro.
– Tens razão. Mas a tua razão não é a minha razão de ser.
Empertigou-se sem perceber a patroa.
– Não é? Mas a senhora tem sido uma escrava desta obra que o seu pai e o seu tio lhe deixaram.
– Não compreendeste o que te disse. Olha à tua volta. Repara nestas montanhas que nascem do Rio. A Régua ali em baixo. Repara nas casinhas espalhadas pelas encostas. Repara naquele rabelo que vai a descer o Rio com a vela a todo o pano.
O homem acompanhava com o olhar o braço esticado de D. Antónia a apontar a paisagem.
– Olha ali a estrada que desce de Lamego, castanho-clara, e a quantidade de verdes que vai por aí fora. E as pedras, António Claro, os milhões de pedras amontoadas por essa encosta acima para fazer os socalcos. Quantos milhões de homens, ao longo destes séculos, carregaram, puxaram, ras-garam as unhas e os dedos para construir vinhedos atrás de vinhedos? Ninguém sabe. Mas esquece o sofrimento que valeu a conquista de cada metro destas montanhas. Esquece o sacrifício, a fome de tantos e a morte de muitos, e olha apenas o vale, as curvas do Rio, as cores e as casinhas. É lindo, não é?
– É lindo! – exclamou António Claro, embevecido. De repente, dava consigo a pensar que a preocupação dos negócios nunca o deixara olhar para o Douro com os olhos que ela agora lhe ensinava. E repetiu: – É lindo!
D. Antónia passeava o olhar pela paisagem. Ele não reparou, mas estava comovida. Tinhas duas lágrimas a bailar e reprimiu-as a custo.
– Não há no mundo maravilha igual, António Claro. Deus não pode ter criado este tesouro na Terra e, a seguir, enviar-lhe uma praga para o destruir.
Ficaram os dois em silêncio. Ouvia-se o chocalho de uma junta de bois a puxar uma carreta e do Rio chegavam gritos e risos dos barqueiros de um rabelo que se aproximava da Régua.
– Eu sou isto que vês, António Claro. Cada pedra, cada cor, cada grito dos boieiros, cada carreiro, cada vinhedo que vês e ouves aprendi-os no berço e pela mão do meu pai quando era criança. Isto tudo que vês à tua volta não é da nossa empresa, mas é da minha vida. Foi aqui que cresci, que envelheci, que um dia vou morrer. Sabes bem o que diz de mim a gente rica do Porto. Chama-me a campónia e julga que me ofende. Não sabem que é assim que me sinto, que é aqui, e só aqui, que consigo ser feliz. Cada uma destas encostas, cada um dos regatos que por elas correm, conheço-os, gosto de ouvi-los todos os dias, são a parte de mim que faz a outra parte, o meu corpo sentir-se vivo e com vontade de lutar. E por isso que te digo que sou isto tudo que vês à tua volta.
António Claro assentiu com a cabeça. De mãos atrás das costas dirigiu-se ao varandim e o vale que descia até ao Rio era magnífico. Dois chorões ladeavam a varanda e, entre ambos, a folhagem das araucárias murmurava, doce. Tornou a assentir com a cabeça. Na verdade, D. Antónia raramente saía do Douro. Possuía palácios no Porto, em Vila Real, em Lisboa. Casas de luxo que não envergonhariam um rei, mas ela várias vezes mostrara o desprezo pela sua sumptuosidade que tantos lhe invejavam. Compreendia agora melhor onde aquela figurinha rija, com a energia de vendaval, se alimentava. De uma raiz funda que a prendia com força à memória do próprio Rio e das montanhas. D. Antónia observava os gestos e as emoções do velho amigo e administrador.
– Diz-me, António Claro. É justo que a minha velhice, e a morte que não faltará muito para me vir buscar, leve consigo este ninho feito pela mão de Deus? E justo que a morte leve tudo aquilo que tanta gente construiu durante tantos séculos?
Ele voltou-se para D. Antónia.
– Para armarmos a revolução que quer levar por diante, os primeiros que temos de convencer são os outros proprietários.
O rosto dela iluminou-se num sorriso. Sabia que, se o velho e fiel amigo estivesse a seu lado, haveria de cumprir o seu sonho. Agarrou-lhe as mãos, emocionada.
– Não sei como hei-de agradecer o teu apoio.
– Não diga isso, minha senhora. Eu é que agradeço a Deus o privilégio de ter colocado a minha vida na mesma estrada em que pôs a dona Antónia.
Cortou a comoção, recuperando a determinação habitual.
– Vou convidá-los para esta noite se encontrarem comigo nas Nogueiras.
– Eu explico a situação ao Francisco e vamos preparar uma reunião com os feitores, os mestres das adegas e os caseiros.
António Claro tornou a duvidar.
– E se não convencer os outros proprietários esta noite?
– Arrastamo-los à força.
– Perdão?
– Arrancamos nós com a enxertia e mostramos-lhes a força da nossa razão.
– Não há dúvidas. E mesmo uma revolução.
As preocupações do administrador eram fundamentadas. Não é possível dizer a um malmequer de pétalas brancas que as transforme, de cor vermelha, e se reveja nelas. O Douro deu, durante décadas, milhões de litros de vinho, ofereceu trabalho e sustento, não precisando os homens de outra ciência que não fosse a que lhes foi legada pelos pais, pelos avós, pelos pais e avós dos seus antepassados. Uma ciência simples e banal, saber herdado e imutável, que a terra generosamente aceitava, retribuindo com a mesma simplicidade com que era tratada. Galileu comera o pão que o diabo amassou por ousar desmentir uma dessas verdades eternas. A Maria da Fonte levantara, armados de forquilhas e varapaus, multidões em defesa dos seculares enterramentos nas igrejas. Mesmo perante a ruína mortal dos vinhedos, Antónia Adelaide Ferreira não poderia esperar, na sua primeira homilia, levar consigo uma procissão de crentes. Porém, quem acredita na força da razão não espera que lhe responda a força sem razão, e este foi o seu erro.
No salão estavam cerca de vinte proprietários vinhateiros. Alguns vieram de Fumego e do Pinhão. Porém, ainda ela não acabara de expor todas as suas reflexões sobre a enxertia e já um murmúrio crescente de desaprovação atravessava a sala.
– Não pode ser.
– Isto não é a solução.
– É o resto da nossa perdição.
– A praga foi ditada por um bruxedo.
Levantou-se da cadeira para se fazer ouvir no meio da confusão.
– Deus deu-me voz para falar e ouvidos para ouvir. Quem não sabe escutar, diz palavras sem sentido. Deixam-me dizer tudo o que tenho para vos contar?
O silêncio regressou devagar.
– Eu também não acreditava. Pensava como vocês. Mas aprendi à força. As vinhas do doutor Azevedo Leite já vão para cinco anos e a filoxera não as matou. A comissão do Governo enxertou os nossos bacelos em vinha americana e o insecto não entrou. Eu própria, a conselho de um grupo de lentes da Universidade de Coimbra, fiz muitos testes na Boavista e resultaram.
Fez um compasso de espera e rematou:
– Ou vamos todos por aqui ou, meus caros vizinhos, daqui por mais alguns anos, e não serão muitos, a nossa região não passará de um mortório não só de vinhas, mas de toda a gente. Um imenso cemitério.
Um dos homens, Alexandre Caídas, de Lamego, e seu velho amigo, levantou-se.
– Não me leve a mal, dona Antónia. As nossas famílias estimam-se há tempo de mais para que fique zangada comigo. Mas eu não vou nessa. A senhora é uma mulher de fé. Acredita nos cientistas. E eu, quanto a fé, só em Deus. Desejo-lhe boa sorte, mas não conte comigo. Com a vossa licença que o caminho para casa ainda é comprido.
E saiu. Porém, o mote estava dado. O dono das vinhas por baixo da Ervedosa fez o mesmo juízo.
– Tenha paciência, mas não vou estragar o que resta das minhas vinhas com experiências. Isso é bom para uma casa rica como a sua. Para mim não dá.
E todos seguiram os mesmos passos.
Ao final da noite, restavam na sala, a Ferreirinha, António Claro e Francisco Correia. Não conseguia esconder a desolação.
– Vocês ouviram os homens?
António Claro contemporizou.
– Estão assustados. Têm medo de perder o pouco que lhes resta.
Francisco Correia não segurava as pernas, hesitante.
– É um problema, um problema!
– Qual é a tua dúvida, Francisco?
– Para lhe falar com franqueza, estou com um pé de um lado e um pé no outro.
– Fala claro, homem de Deus.
– Não percebo nada dessas experiências que a senhora falou e conheço os lavradores que daqui saíram. Ciente séria que trabalha com afinco.
– Também os conheço e sou amiga deles.
– O problema de todos e de que nenhum falou é este: e se a enxertia estraga o vinho?
– Como é que pode estragá-lo? A casta está nos bacelos.
– Mas mete-se-lhe sangue americano.
D. Antónia controlou um sorriso e respondeu com firmeza.
– Juro-te que o sangue americano, como tu lhe chamas, não vai estragar as uvas.
Francisco não se conformava.

– Como é que pode ter tanta certeza?
– Porque sinto, Francisco. E o único caminho para acabar com esta desgraça.
Ele levantou os braços num gesto de vencido.
– Seja o que Deus quiser. Eu já estou por tudo. Hoje soube que a filoxera destruiu mais uma quinta da sua filha. Vargelas está cheia da praga. Não se passa um dia em que não cheguem notícias destas. Portanto, se é com vinha americana, vamos a ela.
António Claro confortou-o.
– Chegou a um ponto que pior não pode ficar.
A Ferreirinha interveio na conversa.
– Não vale a pena lamúrias. Já que ninguém se atreve, vamos avançar sozinhos. Não há tempo para mais esperas e medos. Dos medos, tratam as bruxas. Nós tratamos das vinhas. Amanhã vamos começar pela Boavista. Aproveitam-se os porta-enxertos que já temos e vamos fazer viveiros de vinha americana. Vamos passo a passo, vinha a vinha. Vamos limpar os mortórios, mudar a surriba, dar-lhes força com adubo. Tenho a certeza de que vamos ganhar.
Foi um trabalho penoso. Do Sul chegaram mais enxer-ta– dores, que procuravam ensinar as novas técnicas aos caseiros. A nova plantação parecia que fazia girar os antigos vinhedos, alinhando-os no Rio, alargando as fiadas c os espaços para ser possível podar. Os homens não acreditavam nos saberes que chegavam do Ribatejo e resistiam a aprender.
Francisco Correia percebeu que estavam na iminência de tudo se perder quando procurou a patroa.
– Vai ser uma carga de trabalhos, minha senhora. Corre o descontentamento pelas nossas quintas. Os homens não acreditam.
Reagiu, irritada.
– Eles têm de acreditar!
– Assim não vamos lá. A bruxaria tem feito pior às vinhas do que a praga. Estão convencidos de que tudo isto é obra de um mau-olhado, do trabalho encomendado em favor do diabo.
– Quem pensa assim é ignorante.
Francisco Correia censurou-a.
– A senhora sabe que são poucos aqueles que sabem assinar o nome. Os que sabem ler e escrever contam-se pelos dedos. A nossa gente não é só pobre. Tem a ingenuidade dos simples.
– E o que achas que devemos fazer?
– Se a senhora lhes falasse como sabe, puxando-os à razão, talvez a coisa melhorasse.
– Chama-os todos. Eu falo com eles. Não podemos deixar-nos vencer, Francisco. Ou ganhamos este desafio ou será a desgraça de toda a gente.
– Eu sei.
– Pede ao António Claro que venha. Prepara o encontro no Pinhão, na Quinta do Porto.
Ficara nervosa com a notícia. Sabia que muitos proprietários estavam a espalhar a descrença contra a solução que assumira, que alguns enxertadores vindos do Bombarral e do Cartaxo tinham sido agredidos e enxovalhados, acusados de virem para destruir o que restava dos vinhedos e, perante o avanço destruidor da praga, multiplicavam-se benzeduras, as bruxas corriam de quinta em quinta, excomungando almas penadas e espíritos do mal, inventavam-se mezinhas, debruavam-se vinhedos com crucifixos e pelas igrejas repetiam-se novenas e terços suplicando a piedade de Deus. E, se todos os dias se confirmava a inutilidade de tanta devoção e trabalho de feiticeiro, conforme a filoxera alastrava, para ampliar a magnitude do medo, a tuberculose varria as aldeias e as vilas, e o tifo regressara numa epidemia feroz que atulhava os hospitais e dava trabalho sem fim aos coveiros de todos os cemitérios das redondezas.
Neste ambiente de desnorte completo, inventar um novo método de produzir vinhedos não trazia nem esperança nem alento. Apenas receio de aumentar a fome da morte que se instalara no Douro.
Eram mais de cem homens e mulheres indignados e ruidosos que esperavam a patroa na adega da Quinta do Porto. Nem a autoridade de António Claro os conseguia calar.
Deu um berro.
– São capazes de esperar, sossegados, que chegue a patroa?
O barulho baixou, mas não parou.
– Estão de tal maneira zangados que não sei se é boa ideia a dona Antónia vir aqui.
– Era o que faltava. Quem lhe faltar ao respeito, mato-o!
De repente, fez-se silêncio.
À porta da adega estava a Ferreirinha. Olhou-os nos olhos, sem abrir a boca, e caminhou na direcção do numeroso grupo que, de imediato, abriu alas para que ela passasse.
No silêncio sepulcral apenas se recortava o ligeiro murmúrio do arrastar do seu vestido negro e longo.
Quando se voltou para os enfrentar, reparou que era demasiado pequena. Não conseguia ver os que estavam mais atrás e ela queria vê-los.
Aproximou-se de uma pipa e, sem fazer caso dos setenta e oito anos, empoleirou-se nela sem pedir auxílio. Foi o Francisco Correia quem acorreu a ajudá-la.
Segurou-se e percorreu lentamente a plateia que tinha à sua frente.
– Sei o que muitos de vocês estão a pensar agora. Desde o tempo dos vossos pais, desde os tempos dos nossos avós, que as vinhas são plantadas da mesma maneira e sempre deram fartura e trabalho para todos. Ii isto que estão a pensar, não é?
Responderam mais acenos de assentimento do que palavras e ela continuou.
– Desgraça mais ruim do que a filoxera nunca estas terras conheceram. Todas as outras que vieram antes não se comparam à maldade que nos calhou em sorte viver. – E diri– gindo-se a um caseiro: – Rodrigo, ainda te lembras de quantos baldes de calda de enxofre carregámos os dois para dar cabo do míldio que atacou a Quinta do Seixo? – O caseiro baixou a cabeça, com um sorriso envergonhado, e a Ferreirinha voltou-se para o outro lado. – E tu, Timóteo, ainda te lembras das noites e dos dias que passámos em claro lutando contra o oídio que parecia destruir a Quinta de Travassos?
Tornou a olhá-los com firmeza.
– Vocês conhecem-me. A maior parte daqueles que aqui se encontram, vi-os nascer. A maior parte está a meu lado há mais de trinta, quarenta anos. Vivemos muitas festas e chorámos juntos quando a desgraça bateu à porta de cada um de nós.
Esboçou um sorriso nostálgico e havia ternura na sua voz.
– É já grande o caminho que fizemos lado a lado.
Depois tornou-se firme.
– A filoxera prepara-se para ser a maior desgraça que nos aconteceu e desconfio de que a maldita nos faça verter lágrimas mais dolorosas do que aquelas que já chorámos. As vinhas que restam estão a morrer, as cepas estão moribundas. Para trás existe um rasto triste de morte e nunca como agora nos foi pedida tanta coragem. Se queremos salvar o Douro, salvar as nossas vidas, as vidas dos nossos filhos, temos de aprender a enxertar e a podar. Precisamos de transformar cada mortório em socalcos novos, com vinhas fortes e rijas que não sejam esmagadas pela praga e nos tragam a fartura de volta. Que ninguém tenha dúvidas de que a vitória da filoxera vai ser a nossa morte! – A voz estava alterada com a fúria e foi um grito que soltou: – E, raios! Eu desafio o primeiro que disser que há um transmontano ou um beirão de gema que tenha medo de a enfrentar. Não há outro caminho. Ou salvamos as vinhas ou morremos todos. O Douro está a morrer e somos nós quem tem a obrigação de salvá-lo.
Pérolas de suor entregavam-lhe ao rosto um brilho especial. Os olhos negros flamejavam e terminou o discurso.
– Quem não quiser atirar-se à praga com a mesma raiva que trago dentro de mim, que saia daqui. Não lhe levo a mal por isso. Mas quem continuar tem de perceber que ficamos todos juntos para o melhor e para o pior. Alguém quer falar?
Um murmúrio envergonhado atravessou a assistência e Francisco Correia disfarçava a profunda emoção que o dominava. Por fim, do grupo avançou o homem que ela tratara por Timóteo.
– Acho que falo por todos. Temos a certeza de que a senhora quer o melhor para a gente. Sempre esteve ao nosso lado quando precisámos. Não é agora que a vamos deixar sozinha.
Baixou a cabeça como se estivesse a medir as palavras que queria dizer.
– Falou tla morte que se aproxima. Ela que venha. Se Deus o entender, morreremos todos consigo. Ajude-nos a salvar a terra dos nossos pais, a terra que por força tem de ser dos nossos filhos.
A assistência sublinhou em surdina a fala do Timóteo e a Ferreirinha, com a voz embargada de emoção, respondeu com doçura.
– Vamos trabalhar. Vamos dar cabo da filoxera e dar nova vida à vinha. Uma boa noite para todos.
A turba exaltada e insurrecta que chegara à Quinta do Porto saía, agora, decidida e valente.
Francisco Correia suspirou de alívio.
– Só a patroa os amansava. Antes de a senhora chegar, pensei... eu sei lá o que pensei.
Desceu, ligeira, da pipa e disse para António Claro:
– Não há tempo a perder. Amanhã de manhã partes para Torres Vedras, vais ao Bombarral, ao Cartaxo, a Alpiarça, seja onde for, e traz mais enxertadores. Os melhores que encontrares. Quero saber quantas vinhas estão mortas, quantas estão a ser atacadas. Vamos alargar os campos de plantação, recuperar terras há muito não usadas e multiplicar os viveiros de bacelos e de vinha americana. Se a filoxera ataca com força, é com força ainda maior que vamos responder.
António Claro avisou-a:
– Não me leve a mal. Sabe que vai gastar uma fortuna para fazer esse esforço. E gastá-la sem ter a certeza de que vamos ganhar.
Encarou-o com firmeza.
– Para salvar a minha terra, eu gastava o meu próprio sangue.
Nessa noite não pregou o olho. Sabia que podia contar com a sua gente e seria uma questão de tempo. Quando os outros lavradores vissem os resultados, render-se-iam e as encostas da Régua e do Pinhão, as margens do Corgo e do Tua, do rio Torto, tornariam aos seus tempos de menina. Esplêndidos e belos, generosos e fartos. O pai veio-lhe à memória e deu por si, de olhos abertos na escuridão, espreitando as estrelas. Talvez ele estivesse a vigiar-lhe os passos naqueles dias tão dolorosamente difíceis. Quis adivinhá-lo sentado na estrela mais brilhante, a rir no jeito dele, acompanhando cada gargalhada com uma palmada no joelho. Fora através dos seus olhos que a Ferreirinha aprendera as lendas, as histórias, umas verdadeiras, outras de inventar, que cercavam o Douro. Passados tantos anos ainda recordava as narrativas fantásticas sobre a invasão das tropas de Napo– leão, a fuga do rei D. João para o Brasil. E o pai de arma em punho dcfendendo-a, e à mãe, durante a guerra civil. Sabia que, se estivesse vivo, ficaria ao seu lado na labuta contra a praga. Assim como o Francisco Silva Torres, que deveria estar aconchegado na mesma estrela onde vivia o pai. E o barão de Forrester, e o seu tio, e o seu primeiro marido. Deu consigo a pensar na enorme procissão de mortos que habitava a sua memória e comoveu-se de saudade. Precisava tanto de todos eles, agora, pois que o inimigo, embora com o tamanho de um pequeno insecto, tinha a força do Inferno.
Amanhecia. Lá fora, ouviu a voz de Damásio à conversa com alguém que passava. O sono já não chegaria e decidiu levantar-se. Espreitou à janela e foi com surpresa que percebeu quem falava com o seu criado. Era o filho. António Bernardo acabava de chegar.
Vestiu-se à pressa. Aquela visita madrugadora trazia, de certeza, notícias urgentes.
Entrou na sala à pressa, apertando o roupão e tacteando a mesa à procura dos óculos. No mesmo momento, chegou o filho.
– António Bernardo?! Aconteceu alguma coisa? Estás bem?
– Está tudo bem, minha mãe.
Abraçou-a longamentc. Depois afastou-a para a observar melhor.
– A senhora está na mesma. Agora usa óculos?
– Parvoíces do médico. Diz que tenho cataratas, l inha tantas saudades tuas. Bem podias visitar-me mais vezes. E os meus netos?
– Estão valentes.
– Ao menos podias deixá-los vir para cá. Eles gostam tanto de estar aqui.
– Quando a escola terminar. Primeiro estão os estudos e só depois a paródia.
Condescendeu.
– Lá nisso concordo contigo. – E com alguma ironia rematou: – Enquanto estudarem revelam mais juízo do que o pai.
– Pronto, pronto, não vamos começar a recordar os meus pecados.
– Tens razão. Estou tão contente de te ver que estão todos perdoados.
– Vim assim sem avisar porque trago grandes notícias.
– Ainda bem. No meio de tantas aflições, faz-nos falta uma boa notícia.
Fez uma pausa, aumentando a expectativa da mãe.
– Sua Majestade pediu-me um favor.
– O rei? A ti?
– Quer dizer, não falou directamente comigo. Enviou um emissário.
– Ah!
O entusiasmo de D. Antónia arrefeceu. Conhecia as mensagens do monarca. Ou era para lhe pedir um palácio emprestado, numa das suas visitas faustosas, ou estava interessado numas garrafas de vinho de uma qualquer colheita que lhe agradou.
– Mãe, o rei quer, o rei pede-lhe, que a senhora aceite o título de condessa do Vesúvio.
A notícia empertigou-a.
– Outra vez? Que mal fiz eu a Deus para não haver rei que não me queira fazer condessa à força?!
António Bernardo não conseguia esconder a excitação e a vaidade que sentia pelo convite. Habituara-se a viver nesse mundo que endeusava símbolos e mitificava os adornos. E o título de conde era um magnífico adorno.
– Tem de compreender que é o símbolo desta região. E respeitada por todos. Portugueses, ingleses. Todos! Até os seus adversários.
Fez um gesto de enfado.
– Filho, ainda é tão cedo para uma conversa destas sem tom nem som. Anda, vamos tomar o pequeno-almoço juntos.
Arrastou-o até à mesa que a empregada pusera na varanda sobre o Rio.
– Está um belo dia, não está? Vá, come. Não sei o que te dão de comer pelos sítios onde andas que estás magrinho como um pau de virar tripas.
E começou a comer com apetite. António Bernardo tornou à conversa.
– Afinal de contas o que é que o título de condessa lhe pode trazer de mal? Não aquece nem arrefece e o Senhor Dom Luís fica satisfeito. Não há necessidade nenhuma de criar conflitos com Sua Majestade! – E, sibilino, rematou: – E acabavam-se alguns rumores que correm por aí.
Pousou a chávena de café.
– Rumores? Quais rumores?
– Já se comentava à boca pequena sobre o falecido Silva Torres. Foi nomeado par do reino e mal pôs os pés no Senado.
– E fez muito bem. Não tinha tempo para aturar idiotas. Mas não respondeste. Que rumores é que corriam sobre o Francisco e agora sobre mim?
– Que puxa para os republicanos. Se aceitasse o título, acabava a má-língua.
Antónia Ferreira não conteve a gargalhada divertida.
– Republicanos?! O Francisco? Eu?
– Pelo menos é o que se fala na cidade.
– É o mal das cidades. Estão cheias de preguiçosos. Como não são capazes de trabalhar, uns parasitas, entretêm-se a inventar mentiras uns sobre os outros. Não te rales, filho, que a mãe também não se preocupa. Se acham que sou republicana, deixa-os falar. A compota de amora é muito boa, não é? Veio da nossa Quinta do Vesúvio. Queres mais café?
António Bernardo tinha perdido a boa disposição. Era evidente que não estava disposta a aceitar a prenda do rei.
– Deixe de fugir à conversa que aqui me trouxe. Não se pode dizer não ao rei como se tratássemos com uma pessoa vulgar.
Fez que não percebeu a irritação dele e, enquanto se servia de mais compota, perguntou-lhe com a maior naturalidade:
– António Bernardo, quantas das tuas quintas foram atacadas pela filoxera?
– Não é da filoxera que estamos a falar.
– Mas devia ser. Sabes porquê? Porque está a matar as nossas vinhas e são as vinhas que nos dão de comer e não esses títulos de condes, viscondes, marqueses e outras inutilidades iguais.
– A mãe não quer compreender.
Sorriu com marotice.
– Faço um jogo contigo. Diz-me quantas das tuas quintas foram atacadas pela filoxera c eu aceito essa coisa de ser condessa.
Estava seriamente irritado.
– Não estamos a jogar no clube. Além de que é a senhora quem administra os meus bens.
– Coisa que não seria necessária se, em vez de te preocupares com essas vaidades dos títulos, te preocupasses com a tua vida. Além de que os anos já me pesam, filho. Bem podias ajudar-me.
Atirou com o guardanapo fora.
– É sempre a mesma coisa. Sempre! O filho sem préstimo, o filho malandro.
Estava tão contente por tê-lo ali que fugiu à discussão.
– Não me entendas mal. Vamos esclarecer isto de uma vez por todas. O Governo, desde que me conheço, nunca se preocupou com esta região. Trocou sempre tudo. Quando devia defender a zona demarcada, abriu-a a todos os piratas, quando a devia abrir, como é agora o caso para nos salvar da praga, quer fechá-la. A única coisa que lhe interessa é surripiar impostos e o banana do rei, deste e dos outros, nunca abriu a boca para nos defender. Como é agora o caso. A praga está a destruir o Douro, toda a ajuda que viesse era agradecida e o que é que o rei faz? Quer fazer-me condessa! Achas que isto é coisa de gente com juízo?
Deixou-se escorregar pela cadeira. Estava amuado. Era um sonho que o acompanhava desde jovem. Esta era a segunda vez que via a oportunidade fugir-lhe entre os dedos. Porém, embora fosse um grande golpe no seu capricho, não podia deixar de reconhecer alguma razão no refilanço da mãe. Os jornais do Porto diziam o mesmo. O Governo tinha desistido do Douro, aceitando a vitória da filoxera.
– Então, o que é que eu mando dizer ao rei? – perguntou já sem esperança.
– Diz-lhe que nos mande porta-enxertos de vinha americana. Precisamos deles como de pão para a boca.
Afagou o rosto de António Bernardo com ternura.
– Estou tão contente por te ver. A tua irmã tem dado notícias?
Encolheu os ombros.
– Está por Lisboa. Acho que está bem.
– Há tanto tempo que não a vejo, santo Deus! Um dia destes, esqueço o que tenho a fazer e vou a Lisboa. Passo meses sem ver os meus netos. Meses!
António Bernardo não pôde deixar de sorrir.
– Chego aqui todo satisfeito, para lhe oferecer um título que ninguém recusaria em todo o reino, e a mãe troca as voltas à conversa e passa o tempo a discutir a filoxera e as saudades dos netos.
Ficou séria e respondeu com sinceridade.
– Falei-te das coisas que amo mais na vida. Os meus filhos, os meus netos, as nossas vinhas.
Beijou a mão da mãe.
– Eu sei. Ai, dona Antónia, dona Antónia. Deixa-me sempre sem saber se hei-dc abraçá-la com força, ou se hei-de dar-lhe uns açoites nesse seu mau feitio.
A voz saiu-lhe com humildade comovida.
– Desta vez, bem te poderias decidir por um abraço com força.
Abraçou-a e ela ficou de olhos cerrados, encostada longamente ao peito do filho.
Aparentemente, Vespúcio desinteressou-se dos factos que lhe tinham dominado a atenção nos últimos meses. O artigo que publicara no Periódico dos Pobres, ainda antes do aparecimento do terceiro cadáver, não merecera das autoridades judiciárias mais do que gargalhadas de escárnio. Até parecia, nas iniciativas estimuladas nas populações, que respondiam com desprezo às suas preocupações. Organizaram-se inúmeras batidas aos lobos. Conforme a área em que cada animal era abatido confirmava-se a convicção de ser exactamente aquele o principal suspeito da morte desta ou daquela vítima. Tal como se lamentou a Ti Paixão da Costa, a ignorância somava mais vítimas às vítimas, dizimando alcateias inteiras.
– Somos muito mais os herdeiros do passado velho e tenebroso do que das grandes vitórias do nosso passado recente e, até, do nosso presente. O medo dessa gente não é o lobo, mas o que ele representa.
– Estás bêbado outra vez.
– Procuram caçar o diabo, Ti Paixão da Costa. 1 lá séculos que o lobo é a imagem da malvadez, da brutalidade, a ameaça da fome, das epidemias, da morte. Sabe porque é que o diabo é coxo? Porque no momento em que criou o lobo este mordeu-lhe o pé.
O velho encolheu os ombros com naturalidade.
– Essa história é antiga. Toda a gente sabe que foi assim. E quando aparecem juntos vêm avisar que se aproxima a fome ou uma guerra. E um animal ruim! Para não falar dos lobisomens. O diabo entra no corpo de um desgraçado qualquer e nunca mais o abandona desde que tenha sangue para se alimentar.
– E se eu lhe dissesse que, em vez de um produto do diabo, o lobo é o fundador da nossa civilização? Foi graças a uma fêmea que cresceram Remo e Rómulo, que construíram a cidade de Roma. Na Grécia, foi um lobo que ajudou Apoio, o deus solar, a nascer. No Egipto era um deus-lobo que conduzia a barca de Rá, o deus-Sol. E o senhor sabe que os antigos guerreiros germânicos comiam carne de lobo para ganhar a sua força, a sua valentia, para as grandes batalhas?
Ti Paixão da Costa deu-se ao trabalho de desviar os olhos do Rio, e observá-lo de soslaio. Depois tornou a meter o cachimbo na boca fixando o cais.
– Estás bêbado. O lobo é o diabo.
Desistiu. Não deixava de ser paradoxal que a mezinha encontrada para punir a morte não fosse outra coisa que a morte de animais inocentes. Recordava, com ironia, os textos exaltados de Voltaire aplaudindo Portugal por ter sido pioneiro na abolição da pena de morte. O francês desconhecia por completo o enorme abismo que separa uma lei da substância da própria vida.
Começou a sair cada vez menos e a beber com mais frequência. Ainda tivera alguns rebates de agitação histriónica quando Antero de Quental, um dos seus grandes ídolos, liderou por algum tempo a Liga Patriótica do Norte como reacção ao Ultimatum e, passados meses, ao saber da insurreição de 31 de Janeiro, no Porto, proclamando a República. Mas rapidamente regressou ao mutismo e enclausuramento. Raramente saía de casa. Apenas para tratar dos assuntos de algum cliente ou para se deslocar ao Porto, donde regressava algum tempo depois com sacos cheios de livros.
Foi numa dessas ausências que aconteceu a quarta tragédia. Era filha de um tanoeiro que trabalhava nos armazéns da Ferreirinha, na Régua. Tinham-na encontrado na mata a menos de uma légua da povoação. Quando Vespúcio soube do que acontecera não mostrou grande entusiasmo. Apenas procurou saber onde fora localizada e quem era a família, tomando a encerrar-se em casa.
Crisóstomo, o mestre-escola, procurou, preocupado, o padre João Matias. Apanhou-o nas vindimas. Não parou de colher cachos, enquanto o outro confessava as suas inquietações.
– Passa-se alguma coisa estranha com o Vespúcio, senhor padre.
– Com o nosso Vespúcio tudo foi, é e será estranho! – proclamou, enquanto cortava outro cacho que apresentou com orgulho: – Belas uvas, hã? Queres comer?
O mestre-escola recusou com delicadeza e recomeçou:
– Fui à procura dele por causa de umas conversas que ouvi. Não me abriu a porta.
– Que conversas?
– Passa o dia fechado em casa, mas o Manei da taberna perto da estação contou-me que uns homens estavam a falar que o viram numa noite destas a saltar o muro do cemitério.
O padre parou a faina, de sobrolho franzido.
– Tu estás a falar a sério?
– É por isso que vim falar com o senhor padre. Vejo-o pouco, mas tenho consideração por ele. Talvez abra a porta ao senhor. Sei que são amigos.
O sacerdote suspirou.
– Aquele rapaz podia ter uma vida tão bonita, mas a cabeça não o ajuda. A cabeça e as leituras.
Deixou outra vez a vindima para voltar a perguntar:
– O que foi ele fazer ao cemitério durante a noite?
Crisóstomo encolheu os ombros.
– O pessoal desconfia de que anda na bruxaria.
Tornou a sobressaltar-se.
– O Vespúcio? Não. Não acredito! – Subitamente ficou inquieto. Viera-lhe ao espírito uma suspeita macabra e informou o mestre-escola. – Vai descansado. Ainda hoje vou falar com ele.
Já não retirou da vindima o prazer que usufruía na recolha dos frutos depois de um ano de canseiras. Ainda por cima quando aquela fora a única das suas três vinhas que continuava a escapar da filoxera ano após ano. Porém, também já tinha estranhado a sua ausência. Embora não fosse frequentador regular da igreja, Vespúcio costumava aparecer com alguma regularidade para os seus debates extravagantes sobre assuntos que, por vezes, deixavam o padre com a cabeça à volta.
Só lhe abriu a porta depois de ter batido insistentemente e ameaçado que a arrombaria se continuasse com a teimosia de a manter fechada.
Finalmente entreabriu-a. Tinha o cabelo mais desgrenhado do que o habitual e os enormes olhos de vitelo pareciam que lhe caíam das órbitas. Estava bêbado.
– É proibido estar na minha casa? Não me apetecer falar com ninguém?
O padre João Matias reagiu com a voz alterada.
– Deixas-me entrar ou entro à força? Por tua causa fiquei hoje com a vindima a meio e, por isso, não saio daqui enquanto não falar contigo. Abre-me a porta, Vespúcio!
Baixou a cabeça e os cabelos esconderam o rosto por completo. Finalmente deu passagem ao velho amigo.
Este teve a sensação de que entrou no caos. Livros espalhados pelo chão, empilhados sobre cadeiras, misturavam-se com dezenas de garrafas vazias. Na cozinha vislumbravam-se pratos com restos de comida e cheirava a azedo.
– O que é que aconteceu aqui? A Rosa não tem vindo arranjar-te a casa?
– Pu-la a andar. Só me empata a vida com o barulho que faz.
– Isto precisa de ar.
Decidido, foi abrir as três janelas e, ao passar pelo quarto, percebeu que a cama estava feita, os lençóis alinhados, a roupa dohrada.
– Onde é que tens dormido?
– Aqui.
No meio da barafunda dos livros estavam duas mantas enroladas sem jeito. O padre tomou a olhar em volta e depois para Vespúcio, que, naquele pequeno espaço, ainda parecia mais alto e magro. Um autêntico eucalipto ressequido. Com o pé afastou algumas garrafas e ia tirar uma resma de livros que estavam numa cadeira quando o outro, aflito, gritou:
– Não toque aí!
Vespúcio despejou outra cadeira que estava a um canto e ofereceu-a ao pároco. Sentou-se. Fitou-o com firmeza e disse:
– És capaz de te sentares para eu poder falar contigo? Nesta posição ainda apanho um torcicolo de olhar para cima.
Fez o seu gesto característico com as mãos. Com o pé desviou mais alguns livros e deixou-se escorregar pelo chão até ficar sentado junto ao padre vinhateiro. A Babilónia bíblica não seria muito diferente daquilo que estava perante os seus olhos, a confusão absoluta do espaço. Ao passar os olhos por alguns dos títulos descobriu, impressionado, que vários eram estrangeiros. Pegou num volume assinado por um tal Pedro Ciruelo sobre Reprovación de las supesticiones y hechizerias. Por baixo deste, com muitas anotações à margem, encontrou outro, de um Fréderic Spee, intitulado Apuis aux criminalistes sur le abus qui se glissent dans le proces de sorcellerie. Dédié aux magistrais d’Allemagne. Livre très nécessaire en le temps y à tous juges, conseillers, confesseurs, inquisi– leurs, advocats et mcme aux médicins, par le P.N.S.J. Théologien Romain. Depois viu duas Bíblias, pegou no Crime do Padre Amaro e largou-o como se lhe tivesse queimado os dedos. Agarrou, com espanto, a Suma Theologica, de São Tomás de Aquino, que escondia a Practica de Exorcistas e Ministros da Igreja, de Manuel Rodrigues Martins. Datava de 1718. E sucediam-se livros, recortes de jornais, revistas, numa desordem labiríntica que desnorteou o padre João Matias.
– O que é isto, Vespúcio? O que se passa aqui, Santo Deus?!
– É o que vê. São livros.
– E que livros! Versam exorcismo, magia, feitiços. – Sem encontrar as palavras apropriadas, exclamou: – Coisas de pecado!
Vespúcio desatou a rir e respondeu com ironia:
– Para que tudo fique completo, chame os esbirros da Inquisição e mande prender-me.
– Deixa-te de parvoíces. Sabes tão bem como eu que o Santo Ofício há muito que não exerce funções. Ninguém te vê. O Crisóstomo veio à tua procura e nem lhe abriste a porta. Corre o boato de que visitas o cemitério durante a noite. Venho encontrar-te nesta balbúrdia de livros, garrafas, papéis. Afinal de contas, o que é isto?
Vespúcio meteu os dedos pelos cabelos, como se os penteasse, e ficou agarrado à nuca.
– Não entendo o seu espanto quando deveria ser eu o animal espantado.
– Perdão?
– Padre João Matias, nos últimos cinco anos foram assassinadas seis raparigas com idades entre os quinze e os dezassete anos.
Fez um gesto de impaciência.
– Lá vens tu com os malfadados crimes. Mesmo que tivesses razão, foram quatro c não seis.
– Seis! – E com a mão bateu num molho de jornais. – Pesquisei mais para trás e há mais uma rapariga que morreu da mesma maneira há três anos e outra há cinco anos. Seis vítimas humanas, para além de algumas dezenas de lobos infelizes.
– Mas toda a gente sabe o que se passa. As próprias autoridades fazem apelos para haver mais cautelas com os lobos.
De súbito, enfureceu-se e deu um murro nos jornais.
– Não me fale do que toda a gente sabe. Não me fale dos conselhos das autoridades. Não se esconda por detrás da ignorância, não a defenda, nem a aceite. Pelo menos, nesta casa!
João Matias embatucou perante a fúria de Vespúcio. Era evidente que estava ébrio. O bacharel levantou-se do chão, com um gesto descontrolado inclinou uma cadeira, deixando cair a pilha de livros, puxou-a para junto do padre e sentou-se com o rosto a um palmo do rosto do outro. Cheirava a vinho.
– Olhe para mim. Estou com um copo a mais, mas não estou bêbado. Olhe para mim e oiça-me em nome do Deus, que invoca por tudo e por nada.
Passou as costas da mão pela boca, afagou a longa barba e começou a falar.
– Nunca perguntou qual a razão que leva os lobos a matar apenas raparigas ainda donzelas? Qual é a protecção especial que têm os rapazes, os homens, as mulheres, as velhas e os velhos, para não haver um único caso de morte entre esta gente toda? Apenas raparigas e virgens. Será que os lobos distinguem pelo faro as virgens das desfloradas? Que porcaria de lobos vive nestas serranias que não comem as pessoas que caçam? Seis cadáveres inteirinhos, sem um bocado de carne a menos, a não ser um buraco na barriga? Que lobos de merda são estes que matam, fazem o mesmo rasgão na mesma zona do abdómen das infelizes, petiscam um bocado de tripas e vão-se embora, desinteressados de uma boa refeição?
– Estás a dizer palavrões.
– Deixe os meus palavrões em paz que é fraco pecado que o seu Deus vai perdoar. Agora o seu pecado é muito mais grave e tem de receitar a si próprio uma dura penitência.
– Eu? Não fiz mal nenhum.
– Fez e grande. Nunca perguntou e devia ter perguntado. Porque é que todas as mortas desapareceram em noite de lua cheia?
– Como é que tu sabes?
– Porque perguntei, fui consultar um calendário lunar e lá estava a resposta. Porque é que nenhuma das vítimas fugiu dos lobos? Era natural, não era? Vê a fera e foge gritando por ajuda. Porque é que todas morreram de um ferimento que não é mortal? Qualquer médico, mesmo estes paspalhos que aqui temos, sabe que golpes letais acontecem do diafragma para cima? Com aquele golpe na barriga, depois de o lobo fugir, qualquer delas tentaria procurar ajuda, deixando atrás de si um rasto de sangue. Mas não. Um rasgão na barriga e, pronto, morrem.
O padre começava a ficar inquieto. Vespúcio não estava tão bêbado como supusera e sugeriu:
– Talvez as matassem de outra maneira.
– Ora aí está. Acaba de fazer o seu primeiro juízo lúcido dos últimos dez anos. Foram mortas com uma violenta pancada na cabeça. Eu próprio apalpei a cabeça de duas das vítimas e tinham o parietal direito e o occipital esmagados. Uma pancada, com um ferro ou com um pau, pelas costas. Quase jurava que todas foram mortas sem se aperceberem da presença do assassino até ao ataque final.
Puxou de uma garrafa, emborcou dois goles de vinho e ofereceu ao sacerdote, que aceitou c bebeu com evidente neivosismo. Era claro que não encontrava resposta para as perguntas do bacharel.
– E, agora, a última pergunta. Alguém conhece no reino, ou mesmo em todo o mundo, um lobo que consiga empunhar um pau ou um ferro e desferir uma pancada assassina nas suas presas? – Sorriu, velhaco, e acrescentou: – Agora é que é mesmo a última pergunta. Sou eu que estou doido ou é o seu rebanho de almas crédulas e medrosas que vai perdendo as suas donzelas às mãos de um assassino e continua a matar lobos apenas para alimentar a própria ignorância?
O padre levantou-se. Tropeçou nos livros e só estacou do desequilíbrio no meio da cozinha. Soltou um palavrão e da sala ouviu Vespúcio.
– Não diga palavrões.
Seria possível? As histórias sobre os ataques de lobos a rebanhos, mesmo a uma ou outra vaca isolada, faziam parte da história das serranias. Desde criança que as ouvia e ainda recordava, antes de ir para o seminário, como o seu pai conseguira enganar uma raposa que se servia com irritante persistência do galinheiro. E da mãe a benzer-se nas noites de invernia, quando os lobos uivavam muito próximo das povoações, esfomeados. Também conhecia narrativas de cadáveres de vagabundos que morriam pela serra e que as alcateias devoravam. E reconhecia o medo que inspiravam. Até ele os temia. Porém, as perguntas de Vespúcio faziam sentido e concordava que nunca pensara muito sobre os casos que tinham acontecido recentemente, porque os aceitara como a vida natural da própria serra, pejada de riscos, de ameaças, que iam dos precipícios às alcateias. Das seis vítimas que o outro relatara apenas fizera um funeral. As outras mortes ocorreram noutras paróquias e este argumento aliviou-lhe a angústia. Não relacionara os vários eventos, porque só os conhecia de ouvir dizer. Deu um pulo com o susto que apanhou quando ouviu nas suas costas a voz de Vespúcio:
– As perguntas não acabaram.
– Assustaste-me.
– É um bom começo. Aquilo que está a acontecer deve assustar-nos. Não são os lobos, o demónio e essas vulgaridades que devem meter-nos medo, mas o assassino que anda à solta.
– E quem poderá fazer uma coisa destas, Santo Deus?
A voz de Vespúcio ganhou tons graves.
– Alguém tão terrível que se esconde entre nós e que possivelmente até frequenta a sua igreja. Alguém tão brutal e impiedoso que lhe é indiferente a vida de inocentes. Alguém que não mata por um móbil terreno, mas por um acto de fé.
João Matias afastou-se indignado.
– Esses actos são contra a fé!
– Contra a sua fé, padre.
– Não te percebo outra vez.
– Quem está a matar as cachopas não o faz para roubar nem para as violar.
– E então?
– Confesso que cometi um erro grave. Há muito tempo que tinha a certeza das razões que determinavam os assassínios, mas fui enganado pelos meus próprios olhos. O ferimento no baixo-ventre não tem a ver com vísceras. Não é nenhum pedaço de intestino em particular que a fera procura.
O sacerdote estava aturdido. Não queria acreditar que tinha de acreditar no que o rapaz dizia, e perguntou a medo:
– Procura o quê?
– Sangue.
Benzeu-se por três vezes. Por três vezes beijou o crucifixo que tinha ao peito e por três vezes fez o sinal-da-cruz em direcção à sala, à cozinha e ao quarto de Vespúcio Ortigão. Só depois perguntou:
– Tens a certeza?
– Sangue dos órgãos genitais. Do sítio donde surgem as regras menstruais. O sangue ideal para as práticas de magia negra. O sangue do ódio e da morte.
-Jesus, Maria Santíssima! – E voltou a persignar-se por três vezes. – Quando vieste falar comigo sobre bruxas era por causa de tudo isto.
A exaltação regressou. Vespúcio começou a discorrer sobre as suas teorias enquanto andava, e rodopiava, pela cozinha, desengonçado, delirante.
– Não há outra explicação. Seja qual for o lado por onde peguemos no problema vamos dar sempre ao mesmo. Alguém que faz magia negra precisa desse sangue. Não pode ser outro. Porque nada tem a ver com o líquido, mas com a sua verdade simbólica. E o valor simbólico que está em causa!
O padre ainda tentou protestar.
– Mas sempre foi entendido como fonte de vida. É nele que habita a nossa alma, foi pelo sangue que Jesus Cristo nos redimiu dos pecados. – E citou São João: – Em verdade, em verdade vos digo: quem come da minha carne e bebe do meu sangue terá a vida eterna. É o líquido redentor que nos garante a salvação.
Vespúcio retorquiu:
– Citou o Evangelho de São João, mas não vê o sinal da impureza que devemos procurar. Consulte a Bíblia, mas no Antigo Testamento. No Levitico.
Procurou precipitadamente uma Bíblia entre a montanha de livros, folheou até encontrar o que pretendia e leu:
– Alguém que se aproxima da mulher durante o fluxo menstrual ficará impuro como ela durante sete dias e, durante este tempo, ficará impuro tudo em que possa tocar. – Fechou o livro e acrescentou solene: – E aqui que está a chave que nos permite compreender os crimes. A procura do sangue impuro, a herança malévola com que Eva foi sentenciada por ter cometido o pecado original e que foi transmitida a todas as mulheres do mundo. Já Aristóteles avisava para as cautelas a tomar perante uma fêmea durante o período de impureza e tenho por aí, registada em vários tratados e prescrições, a eficaz utilização do sangue das regras para poções e mezinhas mágicas. Nada disto é novidade, padre João.
Deixou-sc escorregar lentamente pela parede, até ficar de cócoras fixado algures num ponto da parede oposta. Pensativo e preocupado. O padre abanava-se com umas folhas de papel e não deixava de repetir:
– Que posso eu fazer, Santo Deus? Que posso eu fazer? – De repente, voltou-se para Vespúcio: – Se precisa do sangue das regras, porque não o procura quando é solto pelo corpo da mulher?
– Esse é o verdadeiro mistério. Porquê? Precisará da impureza pura?
– O quê?
– Precisará das regras de uma virgem no seu estado de maior pureza? Quando o puro ainda não é impuro? Este é o verdadeiro mistério! E, ao mesmo tempo, o nosso drama. São Tomás de Aquino não tinha razão. No nosso caso, não conseguimos descobrir o autor de tamanho prodígio, apreendendo pelo olhar, pelas feições, pelo comportamento. Está entre nós, sem que o possamos conhecer.
O padre mostrava que estava embaraçado com qualquer preocupação que tinha medo de levantar. Pôs-se de cócoras ao lado do outro c perguntou entre dentes:
– E as bruxas? As tuas visitas noctumas ao cemitério, quer dizer, andas a vigiar algumas em particular?
– Duas. A Viúva Negra e a Inácia.
Baixou ainda mais o tom de voz.
– Vão ao cemitério durante a noite?
Acenou afirmativamente. De vez em quando.
– E o Morto-Vivo?
– Está demasiado velho. E demente. O Ti Paixão da Costa tem a cabeça mais sadia do que o Morto-Vivo.
O pároco estava deprimido. Muitas vezes ao longo dos últimos anos rezara o mea culpa por ter negligenciado os seus estudos e reflexões eclesiais. A paixão pelas vinhas, as encantatórias experiências vinícolas, as preocupações com a filoxera, o prazer do negócio do vinho, há muito que haviam substituído a exigência ensinada no seminário sobre a necessidade de impor a palavra divina contra as antigas crenças e superstições e, sobretudo, contra as novas ideias de republicanos e livres-pensadores. Com excepção da missa das seis da manhã, à qual nunca falhara, mesmo quando o tifo e a febre-amarela tinham varrido a região, era vulgar atrasar-se para baptismo ou funeral. Bastava que uma boa conversa sobre vinho estivesse no auge.
Culpava-se pela popularidade das bruxas entre o seu rebanho e, de certa forma, sempre afastara as teorias de Vespúcio Ortigão, porque a confirmação comprovaria a sua incompetência como pastor de almas. E agora não lhe restava outro caminho do que admitir que o filho do cónego de Trancoso estava carregado de razão. Ele que pregara contra os lobos! Que desacreditara o seu protegido, receoso do seu espírito livre e apaixonado por tudo quanto chegava de novo, fossem ideias, fossem projectos. Tinha de reconhecer que o outro conhecia melhor a Vul– gata do que ele.
Por fim, Vespúcio rasgou o silêncio que vestia os pensamentos de cada um.
– O facto de a Viúva Negra e de a Inácia visitarem o cemitério durante a noite não faz delas assassinas.
O padre irritou-se.
– Claro que é uma dessas desavergonhadas. Quem não respeita um campo santo não tem respeito por ninguém. Esteja vivo ou esteja morto!
Encolheu os ombros, indiferente à cólera do sacerdote.
– Procuram pequenos ossos na vala comum.
– É uma devassidão! Um sacrilégio!
– Deixe-se de gritos indignados. Não tem razão. Sabe melhor do que eu que a verdadeira ignomínia, o grande sacrilégio, é que, cinquenta anos depois de terem surgido os novos cemitérios, a vala comum continua a existir. Como pode o senhor padre ficar tão revoltado por persistirem as bruxas depois de ter findado a Inquisição, se a vala comum é a persistência das antigas práticas funerárias nas igrejas?
– São coisas completamente diferentes. Não procures confundir-me!
– Confuso estou eu – suspirou Vespúcio, procurando não desviar a conversa da sua obsessão. – Segundo São Tomás de Aquino, a superstição assenta em quatro pilares fundamentais, todos eles violadores do primeiro mandamento. Amarás a Deus acima de todas as coisas e as bruxas idolatram o demónio. Através da idolatria provocam malefícios, fazem magia negra, ousam adivinhar o futuro e manipulá-lo. Admitamos que tudo isto é possível. Que as poções da Viúva Negra, utilizando ossos humanos moídos juntamente com os ossos de outros animais, têm propriedades malditas. Admitamos que as galinhas degoladas pela Inácia, tirando-lhes o coração que trespassa com alfinetes, em cima de certas sepulturas produzem os efeitos desejados sobre as almas penadas. Podemos daqui concluir que são assassinas?
O sacerdote olhava-o boquiaberto e Vespúcio continuou.
– Não creio. Embora tenha de admitir que são duas das principais suspeitas. Eu segui-as de perto. Têm energia, são mulheres determinadas e acreditam nos poderes que julgam possuir. E as duas odeiam a Ferreirinha.
O padre João Matias tropeçava de surpresa em surpresa.
– A senhora dona Antónia? Mas o que é que ela tem a ver com isto tudo?
– Não sei. Porém, todas as vítimas eram filhas de famílias que trabalham para ela, os cadáveres foram todos encontrados nas suas propriedades. A Inácia odeia-a por ser sifilí– tica. Foi amante do primeiro marido da Ferreirinha, que lhe pegou a doença. A Viúva Negra viveu um grande amor por Silva Torres, mas ele não correspondeu, acabando por casar em segundas núpcias com a nossa amiga.
– Como é que tu sabes tudo isso, virgem do céu?
Vespúcio sorriu.
– As tabernas são melhores centros de notícias do que qualquer jornal. Não se arme em ingénuo, padre João. Conhece estas histórias melhor do que eu.
– Pouco importa que eu saiba. Agora uma coisa é certa. Não quero ver a dona Antónia metida nesta tragédia cheia de pactos diabólicos, de ruindade e malvadez.
– Uma coisa é não querer ver, outra coisa é a existência dos factos. É claro que, desgarrados, não têm importância nem grande significado. A Ferreirinha é a maior proprietária da região, tem mais gente a trabalhar para ela do que qualquer outra empresa. E natural que haja maior probabilidade de ser entre a sua gente que surge o maior número de vítimas. Mas todas as vítimas? Ainda por cima quando as duas principais suspeitas a odeiam tão profundamente? São coincidências a mais.
– Onde queres chegar, Vespúcio Ortigão?
– Não me faça essa pergunta, senhor padre. Não sei onde vou chegar, nem sei se chegarei a qualquer ponto. E apenas informação. Como se fosse um tear. Temos muitos fios de lã, a razão é o tear e, confesso, não sou capaz de organizar as fiadas de forma a fazer um casaco.
A conversa chegara ao fim. Pelo menos, Vespúcio parecia mais sóbrio e o padre mais preocupado.
– Por mais que me custe, tenho de admitir que tens razão. – E desabafou: – Nunca me passou pela cabeça que pudesse andar um monstro à solta. Não bastam as mágoas que temos de suportar, as epidemias, as pragas, como agora há um assassino entre nós. Que posso fazer para te ajudar?
– Pelo menos convença a canalha a não matar mais lobos. Estão inocentes e não têm nada a ver com o diabo. Ao menos dê cabo dessa maldita crença.
– Eu vou tratar disso. Juro por Deus.
João Matias saiu e Vespúcio continuou de cócoras, meditabundo. Sentia-se perdido no labirinto enovelado da informação que recolhera e que, fosse qual fosse a maneira como a organizava, não fazia sentido. Ainda por cima tinha a sensação de que dispunha de material suficiente para resolver o enigma. Se estivesse a escrever um livro, era fácil dar-lhe um remate final. Gaboriau resolvia os problemas com rápidos silogismos. É o escritor que comanda a sua própria narrativa e é-lhe indiferente que as suas conclusões estejam ou não sustentadas. O mesmo acontecia nos julgamentos em que participava. Pouco importava a demonstração lógica da verdade vivida, pois que a satisfação colectiva perante qualquer confissão, e já assistira a confissões demenciais, era suficiente para que o tribunal dormisse tranquilo com a pena que decretava. E, se a confissão fosse débil, uma dúzia de testemunhos resolvia a contenda no mesmo sentido. Alexandre Dumas, em O Conde de Monte Cristo, ou Victor Hugo, em Os Miseráveis, puseram a nu os tribunais fantoches que fundavam as decisões na advocacia retórica. Tinha consciência de que esses romances pertenciam à galeria de indignações onde se filiava a de Balthazar ou Bertillon, que, por via da ciência, procuravam construir um tipo de prova tão objec– tiva e material que não houvesse possibilidade de ser questionada por discursos contaminados pela vingança ou pela subjectiva habilidade retórica.
O problema essencial de Vespúcio era combinar as duas formas de conhecer. Um processo de investigação que organizasse de forma coesa os testemunhos que registara com os elementos que fora recolhendo ao longo da sua pesquisa. Sabia que se movia num terreno perigoso. Se apresentasse o caso num tribunal que não acreditasse na história dos lobos, tinha a certeza de que, se indicasse a Viúva Negra como o epílogo do seu esforço, a bruxa seria condenada. Se optasse por apresentar a Inácia do Mileu, não lhe restavam grandes dúvidas de que a condenariam com igual prazer. Não era apenas a possibilidade de sentenciar um inocente que o amargurava – vergonha que escandalizava os pensadores mais avançados de toda a Europa, que lia com sofreguidão -. mas a continuação dos erros judiciários, como sublinhava Emile Zola a propósito do caso Dreyfus, que agitava a França e apaixonava a opinião pública estrangeira, transformara os tribunais em verdadeiros açougues, lançando o descrédito e o opróbrio sobre a realização do bem supremo da Justiça.
Agonizava dentro do seu labirinto de certezas, que mais não eram do que a multiplicação de dúvidas. E cansado, com os braços em torno das pernas e a cabeça encostada aos joelhos, deixou-se dormir.
O padre João Matias saiu, cambaleante, da casa de Vespúcio Ortigão. Precisava de acalmar, de organizar as ideias que o tempestuoso bacharel pusera em desalinho. Cami-nhou, sem escolher o rumo, em tlirecção ao Rio e o ar fresco soube-lhe bem quando lhe lavou o rosto. Afastou-se do movimento do cais e seguiu pela margem, cabisbaixo, mãos cruzadas atrás das costas. As dúvidas tinham-se dissipado e, agora, era ele que não compreendia as hesitações do outro. Tudo encaixava. Ele bem sabia as raivas, os rancores, que viviam no coração daquelas duas mulheres. Segredos que não podia partilhar com Vespúcio, pois estavam a coberto do pacto sagrado determinado pelo confessionário. Obrigara-as a severas penitências, admoestara-as com veemência, ordenara-lhes, várias vezes, que parassem com rituais diabólicos, e da sua severidade pastoral só resultara a pior das consequências. Quer a Inácia quer a Viúva Negra desapareceram da igreja. Corriam, agora, à solta por campos e cemitérios, exorcizando maus-olhados, esconjurando malefícios, proclamando não observâncias. À solta, ao serviço do Maldito.
Caminhava tão absorto que estremeceu quando ouviu uma voz interpelá-lo:
– Grande conversa em que vai com os seus botões!
Era o Dr. Guimarães, o médico, que se entretinha armado de uma cana de pesca.
– Peço-lhe desculpa. Não o vi.
– Sinal de grandes preocupações, pois sou bem gordo para me tomar invisível – gracejou.
– Diz bem. Grandes apoquentações. E a pescaria como vai?
– Ou são os peixes que estão zangados comigo ou alguém me atirou um mau-olhado. Até agora, nada.
Não estava nada preocupado com o pouco entusiasmo das carpas e dos barbos pelo isco. A pesca era um hábito. Quando o hospital não o obrigava, ao fim de tarde, quem quisesse saber dele procurava-o naquele recanto do Rio.
– Como vai a vindima, senhor padre?
– Chegou ao fim com a graça de Deus. Pouca uva, mas grada. A praga levou a maior parte do vinhedo, mas aquele que sobrou portou-se bem.
O Dr. Guimarães soltou uma gargalhada bem-disposta.
– A vossa praga é como as nossas epidemias. Agora anda um foco de cólera em Vila Real.
O clínico vinha de uma família de vinhateiros de Erve– dosa do Douro. A filoxera levara-lhes tudo há meia dúzia de anos e o pai acabara por escolher o suicídio entre a decisão de fuga para o Brasil ou enfrentar os credores, enquanto a mãe não resistira à tragédia e alguns meses depois finara-se. Dizia-se que tinha desistido de viver.
– É uma situação cada vez mais complicada e não se vê uma solução à vista!
– Cada um tem o seu calvário. O senhor padre tem pouco vinho, eu fiquei sem aqueles que amava.
A bóia era uma rolha. Puxou a linha para mudar o isco e continuou:
– Já viu? Comem as minhocas e não querem saber do anzol. Os peixes estão cada vez mais espertalhões.
O padre sorriu. Gostava do médico. Era um homem de vida simples, nunca casara e repartia-se entre o hospital e a pesca com raras escapadelas até às tabernas. Uma vida solitária como a sua. E como a de Vespúcio.
– Diga-me uma coisa, doutor. Conhece uma mulher que dá pelo nome de Inácia do Mileu?
– A bruxa?
– Há quem diga que tem pacto com o diabo.
– É capaz de ter. É sifdítica há mais de quarenta anos e quando a epidemia de tifo a apanhou despachou as febres numa semana. Eoi a única vez que a vi no hospital. Rija que nem uma cepa, o raio da mulher. É capaz de ter o diabo no corpo, lá nisso o povo tem razão.
João Matias ficou em silêncio por momentos. Observava o outro enfiando a minhoca pelo bico do anzol.
– E a Viúva Negra?
– Essa tem os humores às avessas. O humor bilioso envenenou-lhe o corpo.
Subitamente parou o que estava a fazer e olhou intrigado para o sacerdote.
– Anda a perseguir as bruxas? A Inquisição está de volta?
– Se quer saber o que penso, acho que nunca devia ter partido.
O Dr. Guimarães soltou uma gargalhada.
– Olhe que tinha de acender muitas fogueiras para fazer arder a multidão que anda por essas aldeias fora. As bruxas são uma verdadeira praga.
O padre sorriu timidamente e despediu-se do pescador com uma palmada no ombro. Refrescava. Pressentiu que o Inverno chegaria mais cedo do que o habitual e decidiu ir para casa. A govemanta já deveria ter o caldo pronto e os pés começavam a ficar dormentes do frio. As últimas palavras do médico ficaram a tinir-lhe nos ouvidos. Haveria outra bruxa de quem o Vespúcio desconfiava e não lhe contara ? Acelerou o passo. O vento estava cada vez mais gelado.
Passou mal a noite, com pesadelos. Acordou várias vezes. No sono agitado cruzavam-se a terrível conversa de Vespúcio Ortigão com aquilo que teria de discutir com D. Antónia no dia seguinte, depois da missa das seis, a propósito da venda da sua produção de uvas à empresaria.
Acordou definitivamente às cinco da manhã, como era hábito, e ouviu o bater forte da chuva no telhado. Afinal, o vento forte que chegara na tarde anterior anunciava as primeiras águas outonais.
– Temos o dia feito. A água vem a cântaros – informou-o a govemanta, enquanto lhe servia o café e o presunto. – Parece o dilúvio.
– Ao menos deixou-nos fazer a vindima.
O som surdo da água e do vento ecoava na igreja onde os poucos fiéis tiveram o atrevimento de se deslocar. Crepitava pelas ruas, fustigava as acácias do adro do templo e estendia-se como uma cortina translúcida que apagava os contornos das casas.
Quando o temporal se instalava com aquela violência, sabia-se que o Douro se exaltava e não demoraria muito a saltar das margens, primeiro irreverente, depois violento.
A missa foi mais rápida do que era usual e teve um gesto de contrariedade. A D. Antónia estava na Quinta do Porto.
Eram quase duas léguas a cavalo debaixo daquele aguaceiro.
Ainda hesitou, mas o apelo do negócio foi mais forte. Embrulhou-se na capa, aparelhou o cavalo e meteu-se ao caminho. A água corria farta pelos regatos, arrastando terras, folhas secas das videiras, fustigando os socalcos com força.
Chegou encharcado até aos ossos e Mariana correu a buscar-lhe uma toalha enquanto se abrigava junto à lareira.
– É uma chuvada das tais. E vem fria! – exclamou enquanto procurava o calor do fogo.
– Podíamos ter-nos encontrado noutro dia. Não está tempo para andar por esses carreiros – respondeu-lhe D. Antó– nia, com alguma censura.
– Compromissos são compromissos. C) tratado era para hoje e aqui estou. – Esfregava com força a toalha na cabeça e no pescoço. – E não me posso demorar. Tenho de fazer um baptismo esta tarde.
– Ó senhor padre!? Vai meter-se outra vez ao caminho?
– Deus não me perdoaria a falta! – suspirou com amargura e lamentou-se: – Sabe-se lá por quantas faltas tenho de pedir perdão. Bom, vamos ao que interessa? Ontem mandei– lhe os papéis com a pesagem da uva.
– Vou buscá-los ao escritório.
D. Antónia foi para o interior c João Matias aproveitou para levantar a batina aproximando-se da lareira para secar mais depressa. A evaporação da água da vestimenta do padre dava a impressão de que estava a fumegar. Quando ela entrou com os papéis, antecipou a conversa, orgulhoso.
– A senhora dona Antónia leva as melhores uvas que as cepas deram este ano. Até o Francisco Correia ficou de boca aberta.
Ela sorriu, maliciosa.
– Não me vem pedir mais dinheiro para além do combinado!?
– A palavra comprometida não se volta a cara. Mas que é coisa da melhor, lá isso é.
– O senhor sabe que também não lha comprava se fosse ruim.
Sentaram-se a fazer contas. Não demoraram muito tempo. A mulher escreveu pelo seu punho uma nota de crédito e entregou-lha.
– Com esta nota de crédito, procure o Francisco Correia quando chegar à Régua e ele paga-lhe.
Dobrou o papel em quatro partes, abriu um botão da batina e guardou-o na bolsa interior. Era visível a sua satisfação.
– Leva boa uva. Boa uva mesmo.
À sua satisfação respondeu a melancolia de D. Antónia.
– É um ano muito mau. São poucas as vinhas com saúde. A maior parte da uva não dá mais do que água suja. Uma tristeza!
Concordou com gravidade.
– Tem razão. Assim é a desgraça que por aí vai.
Aproximou-se outra vez da lareira. O hábito secava rapidamente e o sacerdote sentia-se cada vez mais confortável. Aqueceu as mãos e a conversa do dia anterior veio-lhe à memória. Perguntou com cautela:
– Tem visto o nosso Vespúcio Ortigão?
– Há muito tempo que não me visita. Está doente?
– Graças a Deus, não. Continua com aquele seu jeito desequilibrado.
– E atrás do seu assassino de virgens?
Voltou-se para ela com curiosidade.
-Já sabia?
– Falou-me nessa história na última vez que o vi, nas Nogueiras. Já morreu outra miúda depois dessa conversa.
– Duas.
– Está a falar a sério?
Assentiu com um gesto da cabeça. Olhava para as chamas fixamente.
– Falei com ele. Há muito tempo que me castigava os ouvidos. Que os lobos não tinham nada a ver com aquilo que se passava, e eu, desconfiado da sua excentricidade, re-cusava-me a escutá-lo. Mas ontem... – interrompeu a frase e, voltando-se para a Ferreirinha, afirmou: – Pode pensar que estou maluco, mas acredito que anda um assassino por aí.
– Também acredito – respondeu D. Antónia com gravidade.
– Acredita?
– Desde que o Vespúcio me contou. Ele é espertíssimo.
– Ele e a senhora são as duas maiores inteligências que o Douro viu nascer.
– Não exagere, senhor padre. Não passo de uma velha que toda a vida labutou com as forças que Deus me deu. O Vespúcio tem um dom especial. Vê para além do que qualquer mortal consegue ver.
– É verdade.
– Hoje não é um advogado rico porque não quer. Gosta de viver como lhe apetece – e não conseguiu deixar de soltar uma risada quando rematou: – E depois aquele seu aspecto. Parece um choupo desengonçado com cabelos desgrenhados.
Riram os dois.
– Sabe que o seu maior confidente é o Ti Paixão da Costa?
– Tem quase cem anos e está muito acabado. Trabalhou com o meu avô, com o meu pai e ainda trabalhou para mim.
– É esse mesmo. Passa horas sentado junto dele no cais.
– Imagino o que esses dois conversam.
Tomaram a rir. A chuva não dava sinais de abrandar. D. Antónia pôs mais lenha na lareira e o padre João Matias informou.
– Pensa que matam as raparigas para fazer bruxedos. Desconfia da Inácia e da Viúva Negra.
Foi evidente a crispação da velha senhora. Ficou hirta, lábios apertados. Por fim, exclamou:
– Duas infelizes.
Quer uma quer outra tinham cruzado a sua vida há muitos anos. Quando soube que a Inácia se deixara subjugar pelo poder sedutor do seu primeiro marido, em vez de sentir despeito, teve vontade de a salvar. O tempo do desespero, da amargura, do amor-próprio ferido pela infidelidade de António Bernardo II, ficara para trás, lavado pelas lágrimas que então derramou. Soubera, desde logo, que a cidade do Porto ia ser a perdição do seu casamento. O fascínio do esposo pela vida mundana, a fome imensa de mulheres e aventuras predestinavam o pior. E, tal como fez durante a vida, antes de ser confrontada com a ameaça que a cercava partiu decidida, disposta a resolvê-la. Abandonou a cidade, deixando o marido viver as suas paixões, e refugiou-se no Douro. Na casa da tia e sogra, como se regressasse ao colo protector que lhe dava força para saborear cada dia da sua vida. E o destino acabou por se cumprir. Os prazeres dissolutos de António Bernardo II tiveram sentença clínica: «O senhor apanhou sífilis.»
A condenação, que anos mais tarde o mataria, distri– buíra-a, destemido, pelas mulheres que continuou a possuir, pois que a doença não lhe levara a fome de sexo. Inácia caíra nas teias da desgraça construída com o sémen podre do marido. E se teve momentos em que lhe apeteceu chegar à mulher e dizer-lhe: «Foge dele, que te mata!», também entendia que Inácia merecia a penitência por ser adultera e violar as leis de Deus. Quando soube que o marido da rapariga morrera sifilítico compreendeu que a justiça divina agia em nome dos sacramentos. Passados alguns meses falecia o pai dos seus filhos. Caía sobre Inácia a pior das maldições. Um dedo invisível mostrava-a a toda a gente como distribuidora da morte.
Quanto à Viúva Negra, o caso era diferente. Filha de um caseiro da Quinta das Nogueiras, quando chegou o tempo dos apetites da carne empolgou-se numa paixão obsessiva por Francisco Silva Torres. Perseguia-o, vigiava-o, surgia-lhe nos sítios mais invulgares. Francisco era mais velho do que o pai da rapariga e administrador dos Ferreira. Um dia chamou-a para lhe pregar uma descompostura, mas ela não quis saber. A obsessão demente que a dominava continuou. Nem depois dos castigos que o pai lhe impôs, quando Silva Torres, cansado dos disparates da cachopa, se lhe queixou, diminuíram a fome que não encontrava sentido noutro homem. Quando, vários anos mais tarde, D. Antónia chegou de Londres casada com o administrador, mergulhou em doença profunda que nem médico nem mezinha arrancavam do torpor que a prostrou. Salvou-a o Morto-Vivo com uma encomendação que, segundo explicou à família, se não fosse feita com todo o cuidado a poderia levar à morte. Mandou vir areia de dois rios, misturou-a no chão do quarto da rapariga, enquanto fazia uma oração numa língua estranha, aspergiu a areia por três vezes com água benta e colocou um Cristo ao contrário com três velas em redor. Pediu à mãe que por três dias ninguém mexesse em nada do que ele fizera a não ser que as velas se apagassem, pois tal situação poderia ser a morte. Que voltaria ao terceiro dia, pois tinha de jejuar esse tempo para poder quebrar o feitiço. Dizem que durante os três dias os pássaros desapareceram do quintal, que um corvo negro grasnou sem parar e que pelo telhado saía um fumo azulado denunciando a luta com o espírito que revolvia a mulher. Ao terceiro dia, o Morto-Vivo regressou. Mandou o pai ficar por fora e só regressar ao pôr do Sol e ordenou à mãe que tendesse massa para fazer pão. Entrou no quarto e pediu que lhe preparassem água quente, e só então explicou à mãe os terríveis trabalhos para os quais precisava da sua ajuda. Que um dos piores demónios do Inferno tomara conta das entranhas da filha e para a libertar de tanto sofrimento, quer ele, quer a mãe, tinham de sofrer por ela, tornando-se segredo que os acompanharia na vida e na morte. Aterrada, assentiu a tudo o que o Morto-Vivo lhe propunha e assim fizeram. Despiram a possuída pelo demónio e, enquanto o bruxo lhe limpou o corpo nu com a água aquecida, recitava uma oração. A seguir, despiu-se e a mãe procedeu de igual forma, esfregando-lhe o corpo, enquanto ele continuava a murmurar a prece e a velha rezava um padre-nosso. Deitou-se sobre a rapariga e pediu à mãe que trouxesse um pequeno púcaro. E possuiu-a. A rapariga soltou um grito estridente quando o sentiu entrar e depois abraçou-o com tanta força que lhe arranhou as costas. E gemia enquanto o Morto-Vivo continuava a recitar, penetrando-a cada vez com mais violência, e ela gemia e gritava até que o mágico fez o sinal-da-cruz e a mãe acorreu com o púcaro para onde ele ejaculou.
Tornaram a limpar o corpo nu da enfeitiçada, que agora se revelava mais dócil. Era preciso proceder assim durante uma hora e o Morto-Vivo tornou a penetrá-la e, mais uma vez, ela gemeu, gritou e, quando ele tornou a ejacular no púcaro que a mãe lhe oferecia, a moça contorcia-se em espasmos que, dizia ele, era o espírito a despegar-se-lhe das entranhas.
Orientou a mãe para que misturasse o sémen assim recolhido na massa do pão que deveria cozer sem queimar e que a doente comeria durante três dias, rezando um padre-nosso de seguida. Assim se fez.
Na verdade, passados esses três dias melhorou. Saiu da cama e pediu que a mãe lhe arranjasse roupa de luto. Dizia– se que o Morto-Vivo a libertara do espírito maldito que a possuía, mas que, em contrapartida, a tornara serva de Lúci– fer. Visitava-a todos os sábados e dizia quem ouvira que, quando os dois se fechavam para misteriosos serviços ao Maldito, os berros que o Bode soltava faziam estremecer as terras em volta.
Passaram a chamar-lhe a Viúva Negra e quando se deslocava a qualquer residência já se sabia que ali morava alguém que pedia um mau-olhado ou outra encomendação contra um inimigo.
Isto era o que se dizia, embora a Ferreirinha não soubesse se era ou não verdade. Desde então, nunca mais a Viúva Negra procurou Silva Torres, e os mais crentes no poder da bruxa jamais acreditaram que ele tivesse morrido do coração, como disseram os médicos, mas da maldição que ela lhe havia deitado.
O padre João Matias foi buscar a capa que já estava seca e preparou-se para partir.
D. Antónia acompanhou-o à porta. O temporal estava mais forte.
– Diga ao Vespúcio que quero falar com ele quando o tempo amainar. Estou preocupada com essa história da morte das raparigas.
– Fique descansada que lho direi. Vou indo antes que o Rio suba mais do que deve.
– Vamos ter cheia de certeza. Vá com cuidado, padre João.
– Deus a abençoe, dona Antónia.
E meteu-se à estrada, desaparecendo, sob a cortina de água, do olhar da Ferreirinha.
Soube da notícia pelo Journal de Médecine de Paris. Um dos seus ídolos, Edmond Locard, escrevia, entusiasmado, sobre um tal Shcrlock Holmes. Percebeu que era uma personagem de ficção criada por um médico escocês, chamado Conan Doyle, que publicara, em Londres, um livro policial que sacudira de entusiasmo a burguesia inglesa. Agora traduzido em francês, empolgava o público parisiense. E até mesmo o cientista, que não hesitava em afirmar que Sher– lock Holmes estava a fazer mais pela formação do espírito de investigação em todas as esquadras de polícia do que o esforço conjunto de todos os cientistas forenses das últimas duas décadas.
Ficou desnorteado. Precisava de ler o mais depressa possível esse romance que Locard punha acima da ciência. O primeiro impulso foi partir para o Porto e apanhar o primeiro comboio para Paris, mas desistiu logo de seguida, pois não tinha dinheiro para semelhante viagem. Iria a Lisboa. Na capital havia, por certo, alguém que tinha o livro de Conan Doyle. Ainda começou a meter roupa numa mala, porém, desistiu. Não conhecia ninguém que se interessasse por estes problemas do crime como ele os entendia. Júlio de Matos atacava a questão pelo lado do alienismo, Silva Amado estava mais preocupado com a tanatologia clínica c Câmara Pestana, o homem do microscópio, dedicava-se ao mundo fantástico dos vírus e bacilos, nada entusiasmado com a análise de vestígios criminais.
Um anúncio! Colocaria anúncios nos jornais de Lisboa e Porto a dizer que pagaria o dobro do preço de capa a quem possuísse o livro. Mas era uma ideia disparatada. Nada lhe garantia que o dinheiro gasto nos anúncios teria o efeito desejado.
Começou a perder a paciência consigo próprio. A confiança que depositava em Edmond Locard dava-lhe a certeza de que o tal Sherlock Holmes poderia ajudá-lo no impasse angustiante que arrastava há anos. Verificara todos os comportamentos da Viúva Negra, vigiara como um talcão os passos da Inácia, vasculhara ate ao fundo dos tempos o passado do velho Morto-Vivo, pesquisara todo o género de encantamentos e malefícios, para continuar a esbarrar contra o muro sem porta por onde pudesse entrar e demonstrar, sem sombra de dúvida, que esta ou aquela pessoa andava a matar virgens.
De repente, teve uma ideia que o fez saltar. Nem se lembrou de colocar o chapéu na cabeça e saiu a correr de casa como se fosse perseguido por uma alcateia. As pessoas que circulavam na rua saltavam para o lado com medo que Ves– púcio as atropelasse naquela corrida que prenunciava desgraça ou demência.
Mas reconheciam o bacharel e continuavam o seu caminho, tranquilas, pois que não se tratava de aflição. Era mais um disparate do maluco.
Entrou como um furacão nos escritórios da Ferreirinha, na Régua, tomando de sobressalto aqueles que ali labutavam, e Francisco Correia, que dava instruções a dois tanoeiros, deixou a conversa a meio, apressando o passo em direcção a Vespúcio.
– Senhor doutor! ?
Estava tão ofegante da corrida que tinha dificuldade em articular as palavras e Francisco Correia correu a buscar um banco onde o desgraçado se sentou.
– Está bem, senhor doutor?
– Preciso de um favor seu, Francisco. Um favor de vida ou de morte.
Suplicou quando conseguiu articular as primeiras palavras. O outro, aflito, avançou logo:
– O que necessitar de mim.
– Preciso de um livro.
Francisco Correia deu um passo atrás, desconfiado. Nunca ligara muito ao que comentavam a respeito do advogado, mas aquela era forte.
– Não temos, senhor doutor. Como sabe, negociamos em uvas e vinho.
– Entendeu-me mal, Francisco. Sei que tem telégrafo e preciso, como de pão para a boca, de mandar vir de Paris este livro. – Tirou da algibeira o artigo de Edmond Locard. – A livraria está aqui, mesmo em baixo, c não vejo forma de o ter comigo com urgência a não ser que o encomende por telégrafo. Eu pago. Não tenho muito dinheiro, mas pago.
Menos desconfiado, mas ainda de pé atrás, perguntou:
– Mas para quê tanta urgência, homem de Deus? Algum caso em tribunal?
Vespúcio meneou a cabeça negativamente. Levantou-se do banco, agarrou Francisco pelos dois braços, curvando os joelhos para ficar olhos nos olhos com o interlocutor, e sussurrou:
– Nesse livro pode estar a solução do caso das raparigas assassinadas.
O outro recuou dois passos, embasbacado.
– Tem a certeza?
– Quase. Necessito de o ler o mais depressa possível. Estendeu decididamente a mão para apanhar o papel.
– Dê-me o nome da livraria que eu trato disso. Vou pedir a um dos nossos representantes em Paris que o vá comprar imediatamente e o mande rapidamente. Daqui a uma semana está cá.
O bacharel entregou-lhe o papel, hesitante.
– Há um problema. Tenho de lhe pagar o telégrafo, o transporte e o livro em duas ou três vezes! – E abriu os braços com um sorriso desajeitado: – O dinheiro não abunda na minha carteira.
– Não se preocupe. Se este livro é tão importante para resolver esse caso, a dona Antónia oferece-lho. Eu sei como ela anda preocupada com essa história dos diabos.
Na verdade, crescia entre a população a dúvida quanto à maldade dos lobos. O padre João Matias, movido pelo rebate de consciência, aproveitara uma dúzia de homilias para exortar à clemência para com os pobres animais que também eram o produto da vontade de Deus. Embora fugisse à procura de outras explicações para a morte das donzelas, sempre ia adiantando que, sendo insondáveis os caminhos do Senhor, outra causa haveria para que se compreendessem as tragédias que tinham acontecido.
Fora o suficiente para alastrar o boato. Efigénia do Fal– coeiro deitou cartas a vários clientes e a carta da morte surgia sempre associada a um grande poder que conduzia à mão criminosa. Ora, pelas serranias e encostas do Douro, o único grande poder que comandava a fome, as pragas e a morte era só um: o poder do demónio. E o boato ganhou maior força e segurança quando Inácia, depois de degolar três galinhas, espetando três alfinetes no coração de cada uma, fez sobre eles o sinal-da-cruz ao contrário e, depois de dizer umas palavras imperceptíveis, dos três corações escorreram três fios de sangue.
– Era o que eu pensava. Já me tinha sido mostrado numa visão, mas eu nem quis acreditar.
As duas alcoviteiras que a procuraram, fascinadas pela magia da velha, bebiam-lhe as palavras.
– É ela outra vez.
– Ela, quem? – perguntaram à uma.
– A única pessoa que, no Douro, não passou fome. Que usou as pragas que ela própria lançou para desgraçar os mais fracos e ser cada vez mais poderosa. A única pessoa que enriquece com a morte das vinhas, que matou dois maridos para se tornar ainda mais forte! – E rematou em desfalecimento: – A única pessoa com poder suficiente para negociar um pacto de morte com o diabo de forma a levar-nos a todos para as profundezas do Inferno.
Dito isto, desmaiou em transe. Os olhos revirados, espumando da boca, enquanto o corpo se sacudia pelo chão. As duas alcoviteiras, aterradas, abraçaram-se uma à outra. Por fim, Inácia soltou um grito agudo e sentou-se. Com os olhos esbugalhados, as mãos em cruz sobre o peito, proclamou, solene:
– É mesmo ela. Acabo de a ver de braço dado com o Maldito!
Não foi preciso pronunciar o nome. Daí a alguns dias já corria a notícia de que a Ferreirinha tinha pacto com o diabo e se transformava em lobo para levar a tragédia de casa em casa. Que Belzebu lhe exigia cada vez mais sangue para que a fortuna crescesse e o poder sobre os campos c sobre os pobres fosse cada vez maior. A Inácia do Mileu, que toda a gente sabia que fizera o bruxedo para lançar a praga da filoxera para destruir a Ferreirinha, trabalhava nas suas cartas com maior afinco, pois que defrontava a aliança entre a sua inimiga de sempre e o demónio.
A história fantástica que agora circulava tinha alguma coisa de verdade.
Havia um estranho destino vivido pela Ferreirinha e a sua empresa. As pragas que tanto odiava e contra as quais se empenhara de alma e coração, em vez de ruína, reforçavam o seu poder e influência no Douro. Durante a longa luta contra o oídio, na década de sessenta, o património cresceu em largas passadas. As quintas da Quebrada e do Santinho, de Caídas de Moledo e Lourentim, de Negrilhos e Bau, dos Arciprestes e Arnozelo, do Mileu e dos Piscais, eram sinais da construção de um vasto domínio que incluía casais e vinhedos, armazéns e pinhais, olivais e hortas, prédios c palácios que iam do Porto ao Vesúvio, passavam por Murça e Vila Real e chegavam a Lamego. Em 1869, com a lei de 28 de Agosto, que procedia à desamortização dos baldios, Silva Torres adquirira grandes extensões de terrenos a baixo custo pelo Douro acima.
Foi a estratégia na luta contra o oídio: aplicações abundantes de calda de enxofre e a procura contínua de novos vinhedos não afectados pela praga. O mesmo plano de negócios que estava a usar contra a filoxera.
As quintas de Vale Bom e Vale da Pia, do Lodeiro e do Cristelo, do Pego e da Coelheira, para além de vinhedos adjacentes a outras que já possuía, aumentavam o grosso património, ao qual não fora estranha a intervenção meticulosa e atenta do marido. A ele se devia a compra dos quarenta lotes de baldios do Vale do Meão, arrematados por 8 473 365 réis.
Atacava a praga e, ao mesmo tempo, fugia dela explorando quintas e vinhedos cada vez mais no sentido da nascente do Rio, cm direcção a Espanha, e esta táctica de guerrilha com a maldita filoxera, mantendo a elevada qualidade dos vinhos, permitia a expansão do comércio internacional, quer por iniciativa própria, quer através das várias empresas exportadoras inglesas.
O esforço de replantação nos porta-enxertos de vinha americana começava a dar os primeiros sinais de resistência vitoriosa. Disto mesmo lhe dava conta Francisco Correia.
– Tinha os meus receios, mas parece que a coisa vai. O bicho não lhes entra de forma nenhuma.
– É cedo para cantar vitória, Francisco.
– A verdade é que as cepas crescem sem medo da praga. Isto vai, dona Antónia. Isto vai.
– Os nossos vizinhos têm procurado saber dos nossos trabalhos?
Francisco sorriu matreiro.
– À socapa.
– O quê?
– Procuram saber pelos caseiros. Como não quer a coisa, vão falando com a nossa gente, conversas à volta do assunto, a curiosidade vai aumentando e a má-língua já não tem a mesma força.
A Ferreirinha pensava o mesmo. A desconfiança era menor e, por outro lado, os homens estavam a habituar-se com facilidade à enxertia. As primeiras podas correram melhor do que se esperava. De qualquer forma, a desorientação mantinha-se, com proprietários vendendo a eito, assustados, salvando o que restava antes de perder tudo. O desemprego continuava a esmagar as populações e a fome mandava.
– Ainda há muito caminho para andar, Francisco. Precisamos que todos os proprietários vizinhos sigam os nossos passos.
– Também acho. Maldita praga! Se fosse de gafanhotos até parecia a maldição de Deus sobre o Egipto.
– Mas esta vamos vencê-la. Cada dia que passa, cada mês que se vai, maior é a certeza que tenho de que vamos dar cabo dela.
Francisco Correia mudou de conversa.
– Agora a novidade é a nova ponte de Gaia para o Porto. Os barqueiros não falam de outra coisa. A senhora devia sair daqui e ir visitar a obra. E uma coisa danada. Dizem que é toda de ferro. Que vai gente de todo o lado só para ver.
Encolheu os ombros com indiferença.
– É uma obra importante. Quando puder, vou. – O semblante retomou nova cor quando tornou a falar. – Importante, importante, é a outra obra que acompanho semana a semana.
– A linha do Douro.
– Quando chegar a Barca d’Alva, então verás o que vamos fazer com a filoxera.
Olhou-a intrigado.
– Dizem que para o ano que vem está pronta. A senhora tem alguma coisa em mente?
Foi evasiva na resposta.
– Vamos ver. Vamos ver.
Francisco Correia levantou a mão num gesto como se uma ideia antiga tivesse ressurgido.
– Já me esquecia outra vez. Há mais ou menos uma semana, o doutor Vespúcio Ortigão entrou pelo nosso escritório como se fosse um ciclone. Apanhei um susto dos diabos com o raio da criatura.
D. Antónia soltou uma gargalhada.
– Conheço-lhe o estilo. É um desajeitado.
– Pediu-me que telegrafasse para Paris porque precisava de um livro.
D. Antónia fez uma careta.
– Um livro?
– Exactamente. Um livro especial que o ajudaria a resolver o mistério da morte das raparigas.
– Que livro será esse? – perguntou, intrigada.
Francisco encolheu os ombros.
– Não sei. Queria pagar a despesa em prestações, pois não tem dinheiro. Disse-lhe que não. Tomei a liberdade de lho oferecer em seu nome.
– Fizeste bem. E o livro já chegou?
Francisco fez um gesto de alívio, olhando para o céu.
– Graças a Deus! Chegou hoje. Não se tem passado dia em que não me entre pelas portas adentro sempre com a mesma pergunta: «Já chegou?» Eu até tenho afeição por ele, mas houve momentos em que me apeteceu esganá-lo.
Riu com prazer. Conhecia a sofreguidão de Vespúcio, a permanente ansiedade, os gestos alucinados, para perceber a aflição do seu administrador. Até era capaz de o imaginar agora a devorar as páginas do livro misterioso, enfiado em qualquer buraco, pedindo a todos os anjos do céu que não o perturbassem.
Tinha inteira razão. Vespúcio escapara-se com o livro, abraçando-o com tanta força que mais parecia guardar um tesouro de pedras preciosas. Correu para casa. A primeira coisa que fez foi procurar um papel e escrever: «Por deveres profissionais estou ausente em Lamego até amanhã ao fim da tarde.» Pregou o papel na porta e trancou-se por dentro. Todos aqueles que o procuravam, sabiam ler. Sentou-se comodamente para atacar o livro com a certeza de que não seria interrompido. Agora, entregava-se ao deleite. Retardava o início da leitura gozando os instantes em que afagava a lombada, corria as páginas com os dedos, testava a grama– gem do papel. Tomou a levantar-se. Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto e um cálice. Gozava os preliminares como se estivesse nos braços de uma mulher há muito desejada. Descalçou as botas, despiu o casaco e bebericou um pouco. Já não conseguia aguentar mais. Começou a ler. Era um tal doutor Watson, companheiro do detective, quem relatava os feitos de Sherlock Holmes. Não pôde evitar um sorriso. Watson estava bem longe do polémico Dr. Guimarães, mais preocupado com os humores, os miasmas e a pesca do que com o valor redentor da ciência. Por fim, a concentração era total. Embora dominasse o francês, lia com cuidado para entender claramente o que o Dr. Watson narrava.
Não muito longe dali, D. Antónia matutava, intrigada, na história que Francisco lhe contara. Amanhã, pediria à Mariana que levasse um bilhete ao Vespúcio, convidando-o para almoçarem e ouvi-lo dissertar sobre o livro prodigioso que agora a intrigava. Ao registar no calendário o almoço com o bacharel, o coração deu-lhe um baque. Fazia onze anos que a sua nora, Antónia Plácido, morrera, levada pela tuberculose. E, de repente, sentiu saudades dela e do filho António Bernardo, de quem não recebia notícias há muito tempo.
Antónia Plácido não tinha sido muito feliz. Estava para celebrar quarenta anos quando Deus a chamou. António Bernardo não se contentava com a vida aventureira que o tomara na figura mais conhecida do Porto. Depois de a irmã da mulher, Ana Plácido, ter abandonado o marido para ir viver com o escritor Camilo Castelo Branco, o Ferreirinha elegera o célebre casal como seus inimigos de estimação. Com a ajuda do beatério burguês portuense, moveu influências, intrigou e manipulou de forma a meter na cadeia os dois amantes. Quer Ana Plácido quer Camilo, depois de andarem a monte, aguardaram na Cadeia da Relação do Porto o julgamento, que não passou de uma farsa montada pelo ex-marido da detida, com a ajuda de António Bernardo e do seu séquito de alcoviteiros.
Acabaram absolvidos e, não podendo descarregar a fúria em cima do par romântico, descarregava-a em Antónia Plácido.
Foram dias de grande tormenta e D. Antónia teve de intervir.
– Chega de embirrares com a tua mulher. Ela não tem culpa dos disparates que a irmã fez.
– São iguais! São do mesmo sangue!
– Não digas asneiras, António Bernardo.
– É uma vergonha.
– Vergonha é tu meteres o nariz onde não és chamado. Acaba de vez com essa loucura de perseguires o Camilo e a tua cunhada. Era bem melhor que ocupasses o teu tempo a trabalhar em vez de andares metido com esse grupo de vadios bem vestidos, armados em defensores da moral pública.
– Está aqui está a dizer-me que aprova o que a minha cunhada fez.
– Não sejas tonto. Mas muito mal vai a moral pública quando precisa de ser defendida por homens como tu, que têm feito da vida um disparate sem fim. Jogo, mulheres, dívidas. És tu quem prega a moral? Ganha juízo e respeita a tua mulher, se fazes favor!
– Já acabou o discurso? Posso agora ficar em paz?
– Tenho notícias de que voltas a embirrar com a Antónia por essas causas malucas e vais ver se não venho da Régua para te meter na ordem.
– Mãe, não comece outra vez.
– É como te digo. Continuas armado em criança e trato-te como uma criança. Falo com o António Claro e a tua mesada pára já este mês.
– Mãe?!
– Será aquilo que ouviste, ó defensor da moral pública.
Perdera a conta às discussões que tivera com o filho.
E sempre pela mesma razão: a incapacidade dele para ser responsável. Porém, com a idade cansou-se de brigas. Graças à habilidade de Silva Torres, liquidaram-se pela última vez dívidas, hipotecas, penhoras e obrigou António Bernardo e Maria da Assunção a um compromisso. D. Antónia administrava todos os bens da família e, em contrapartida, pagava a cada um deles uma mesada fixa que lhes permitia vida folgada. Mais tarde, haveria de estender as mesadas aos netos, acabando de vez com as intervenções desastradas de ambos no mundo dos negócios.
Decidiu-se. Na semana seguinte, iria ao Porto visitar o filho. E já agora ver a Ponte D. Luís, de que toda a gente falava. E não partiu imediatamente porque queria primeiro falar com Vespúcio. Estava preocupada com as investigações do bacharel em volta dos crimes que iam acontecendo pelo vale e queria ouvi-lo sobre o livro que viera de Paris. Às vezes tinha conversas de doido. Os livros davam-lhe volta ao miolo. Dizia coisas sem sentido para, a seguir, dissertar sobre assuntos com uma lucidez que a impressionava. E agora parecia estar carregado de razão.
Recordava-se do tempo dos bandos logo a seguir à guerra civil, do Zé do Telhado, dos Marçais, que matavam para roubar. Porém, já não havia notícias dessas alcateias de homens violentos. E, segundo o rapaz, não seria um bando, mas um assassino de jovens de quinze, dezasseis anos. Se ele tivesse razão, as seis raparigas tinham sido mortas por um indivíduo desequilibrado. E todas com o ventre aberto. Porém, a inquietação maior da Ferreirinha é que todos os crimes estavam a ser cometidos nas suas propriedades, como se um inimigo mortal fosse seguindo os seus próprios passos.
Anoiteceu. Enquanto, nas Nogueiras, a Ferreirinha ajudava Mariana a acender os candeeiros, em casa de Vespúcio duas lamparinas de azeite iluminavam as páginas que lia com sofreguidão. Por vezes, levantava os olhos e ficava a meditar sobre aquilo que acabava de ler. Percebeu logo, desde o início, que a história escrita por Conan Doyle era pouco relevante perante aquilo que procurava e, aos poucos, ia descobrindo o que Locard queria dizer quando exaltou a ficção como poderoso instrumento para servir a ciência. Sucediam-se as páginas e os raciocínios de Sherlock Holmes eram subversivos. Falava em nome da ciência e renegava-a a cada passo. Declamava odes apoteóticas à dedução, mas não a usava na proporção da oratória. E era completamente analfabeto em medicina legal. Percebia-se que desprezava os cadáveres. Avançava por impulsos, por vezes magistrais, causando o espanto do Dr. Watson e arrepiando Vespúcio. Foi com surpresa que descobriu que Sher– lock Holmes sabia muito menos de dactiloscopia do que Bertillon e as suas dissertações sobre caligrafia estavam muito aquém dos conhecimentos demonstrados por Crépieux– Jamin. Porém, sendo evidente o vasto conhecimento sobre várias matérias, e que faziam a delícia de Watson, a verdade é que o estado de desenvolvimento da ciência estava muito mais avançado do que as verdades proferidas vaidosamente por Sherlock Holmes. E mentia descaradamente quando autoproclamava a sua arte como a ciência da exactidão. Avançava e recuava. Tratava probabilidades. A experiência não era um objectivo na sua acção. Não passava de um mero adjectivo. Mas também era esse desprezo pela verdade cientificamente testada que permitia que raciocinasse de maneira f ulgurante, liberto da grilheta da lei.
Era evidente que Conan Doyle lera o clássico de Locard. O Manuel de Technique Policière estava plasmado no texto da narrativa. A descoberta do nexo da causalidade entre crime e criminoso seguia os ensinamentos do mestre. Procurar vestígios, organizá-los num discurso coerente através da reconstrução minuciosa da história dos factos para, de seguida, imputar-lhes a qualidade de indícios quando estabelecia a partir deles a relação com o suspeito. Sherlock Holmes iludia o seu biógrafo e, por ele, iludia o leitor desprevenido. Falava de prova judiciária. Uma ilusão! Tal como ensinara Locard, a prova está estabelecida no momento em que sobre o indício recai a legitimidade do direito processual penal. E Sherlock Holmes assaltava casas sem mandado de busca, interrogava suspeitos sem lhes garantir direito a assessoria de defesa, surripiava vestígios que, às escondidas das autoridades, tratava no seu laboratório particular. Pensava como um detective e agia como um fora-da-lei.
Quando terminou o livro, tinha estas conclusões como definitivas. Ficou quieto, tenso, a refazer a história que acabara de ler e a primeira evidência era chocante. O detective Sherlock Holmes, de Conan Doyle, era a reprodução invertida do inspector Javert, de Victor Hugo, na perseguição obsessiva a Jean Valjean. Enquanto o inglês demonstrava o crime sem a necessidade da confissão, o francês perseguia a sua presa depois dos testemunhos perversos da gente apostada na destruição de Valjean. Os pontos de partida eram opostos, mas os percursos de Holmes e Javert coincidiam. Os meios utilizados por qualquer deles, debatidos no tribunal da equidade que pulsava nos sonhos dos homens justos, seriam desfeitos pelo exercício do direito que mandava obrigação de respeito às liberdades individuais.
Portanto, era ponto assente: Sherlock Holmes trabalhava sobre vestígios e indícios. A prova judiciária não existia como preocupação nos seus processos de trabalho.
Foi uma grande surpresa para Vespúcio. E, sendo certo que não representava um avanço no conhecimento científico, no que respeitava ao mundo forense, que raio de razão levava Locard a louvar o herói de Conan Doyle?
Decidiu reler do início o livro que tanto intrigou Francisco Correia. Deitou mais azeite nas candeias, foi buscar um cacho de uvas para a ceia e mergulhou novamente na novela. Agora lia mais rápido, já de boa vizinhança com a gramática da linguagem.
Na rua, as vozes dos passantes foram diminuindo aos poucos, conforme a noite avançava, e, por fim, o silêncio absoluto envolveu a Régua. As poucas candeias acesas assinalavam os rabelos no Rio e apenas o ladrar de um ou outro cão rasgava o sossego calmo da noite.
Tomou a encontrar os mesmos erros, a menear a cabeça, desiludido, perante as debilidades do detective. O saber era esparso, de almanaque. Porém, aos poucos, foi ficando mais inquieto. Prestava, agora, mais atenção à forma como raciocinava, ao modo como organizava os vestígios de forma a transformá-los em indícios. Vespúcio despia-se vagarosamente das categorias de saber que lhe forneciam os enganos deliberados do detective. E começou a despertar, comovido, para a mesma comoção que entusiasmara Locard, enquanto uma alegria infinita lhe aquecia com doçura o coração. Pois claro! Ali estava escondido o segredo por detrás das grandes tiradas retóricas do narcísico detective. As últimas páginas deslizaram sem sobressalto, tranquilas e leves sob o olhar do ansioso advogado, agora prenhe de felicidade. Afinal, as dificuldades de todos os cientistas estavam resolvidas na inversão do próprio processo de conhecimento. Bastava recusar à investigação criminal o estatuto de ciência. Era tão simples quanto isto. E não era um método. Shcrlock Holmes mostrava cruelmente esta evidência. Era uma convergência de métodos associados ao empirismo c geminados com o conhecimento profundo das relações entre os homens. A investigação criminal tornava, assim, a ciência impossível, mas que o saber científico podia catapultar para horizontes sem limite.
É claro que, numa época dominada pela euforia científica, que tinha em Vespúcio um fervoroso adepto, a proposta de Sherlock Holmes era uma provocação, para não dizer um vexame. Mas um vexame justo para os arautos da crença de que seria possível ao Homem atingir a Verdade Absoluta. Auguste Comte, Marx e todos os seguidores mais ou menos radicais da euforia científica eram antecipadamente vencidos pela explosão criativa do engenhoso detective. Lombroso podia arrumar as suas experiências megalómanas sobre o assassino nato e nem Lacassague, imbuído da sociologia comtiana, de inspiração darwinista, poderia chegar a resultados que se consolidassem por séculos. Porque a vida, os comportamentos humanos, como os entendia Sherlock Holmes, o mundo das emoções, das paixões exacerbadas, o mundo que produzia, e reproduzia, o amor e o ódio, o sofrimento e a alegria, o cinismo e o despertar da violência, era construído sobre a lei e sobre a entropia, em partes iguais, sem outro caminho alternativo. Não havia lei científica que predeterminasse a imaginação.
– É tudo tão simples. A investigação criminal não é nada mais do que o conhecimento da própria vida – proclamou enquanto se espreguiçava, indolente e tranquilo.
Conan Doyíe libertara o silogismo, no que respeitava à descoberta do crime, da conclusão inevitável. Como se liberta um sorriso sem uma razão precedente ou uma lágrima sem necessidade de sofrimento antecipado.
Pelas frinchas da janela da cozinha entrava o sol. Deu consigo surpreendido pela noite ter passado tão depressa e abriu as guardas de par em par. Estava um dia luminoso. O cais fervilhava de bulício e reparou no Ti Paixão da Costa, enroscado na corcova, firme no cajado, a caminhar para o seu poiso habitual.
Decidiu ir ao mata-bicho para retemperar forças. Estava tão bem-disposto que iria gozar o sol da manhã na companhia do velho, para lhe contar as suas reflexões. E verdade que Ti Paixão da Costa não o percebia. Mas também não o aborrecia e dava-lhe a aparente segurança de estar acompanhado.
Saía de casa para cumprir o plano desenhado à janela da cozinha quando reparou que Mariana, a empregada da Fer– reirinha, vinha ao seu encontro para dizer-lhe que a patroa o convidava para almoçar e falarem sobre o livro que viera de Paris.
Assentiu de imediato. D. Antónia era melhor interlocutora do que o velho Paixão da Costa. Disse a Mariana que não faltaria.
Vespúcio chegou, eufórico, às Nogueiras. Ainda não tinham terminado a refeição quando lhe pôs o livro em cima da mesa e exclamou excitado e solene.
– O segredo está aqui.
D. Antónia olhou o livro com desconfiança.
– Aqui?
– Há anos que procuro esta porta, com a certeza de que existia, e não há regedor, nem comandante da guarda, nem procurador, nem juiz que acredite em mim. Agora, aqui está. A Inglaterra está em pé de guerra e com razão!
A velha senhora aproximou-se do livro. Era de um tal Conan Doyle e tinha por título Um Estudo em Vermelho. Meneou a cabeça com pessimismo.
– Não conheço.
– Sherlock Holmes, diz-lhe alguma coisa?
Tornou a menear a cabeça.
– Não. Conheço muitos ingleses, mas nenhum tem esse nome.
– Minha boa senhora, não me está a entender. Sherlock Holmes não é um inglês de carne e osso. E uma personagem criada pelo autor deste livro e o herói desta história.
D. Antónia estava cada vez mais intrigada. A ideia de que o bacharel lia de mais, e por isso mesmo treslia, começava a fazer sentido.
– E qual é a relação entre este tal Sherlock Holmes e as miúdas mortas aqui no Douro? A tua conversa não faz sentido e é por seres assim, baralhando botas e perdigotas, que não te levam a sério.
– Mas a senhora leva-me a sério! – afirmou convicto. – E isso basta-me.
Olhou-o, surpreendida. Ia contraditá-lo, dizer-lhe que achava graça aos seus devaneios, porém preferiu calar-se. Vespúcio Ortigão estava desejoso de falar.
– Este livro deu-me o móbil do crime e a hipótese de solução. A senhora leia. À primeira vista, o que aí se conta é completamente diferente do caso que tenho entre mãos, mas o método é o mesmo. E aplicando o método, como faz Sherlock Holmes, tudo muda de figura. O meu erro foi acreditar na dedução pura e simples. É a grande talha do sistema positivista. A grande falha. Não há o determinismo perfeito. Não existe! Funciona como modelo teórico, mas não resolve o problema essencial do conhecimento científico. É preciso ir mais longe. É evidente que Conan Doyle não é positivista. Um escritor, por mais que transfigure as suas personagens, não se liberta delas. Porque quem escreve é o húmus que produz caracteres e, por essa mesma razão, está em constante reprodução das suas crenças e fundamentos vivenciais.
Escutava-o, embasbacada. O rapaz gesticulava, sentava– se, levantava-se, andava de um lado para o outro num frenesim estonteante. E contradizia o silêncio de D. Antónia.
– Tenha paciência, mas não é positivista! – E o rosto iluminou-se num sorriso convencido. – Ainda por cima está sempre a repetir que a dedução é a sua ciência. Sabe porquê? Quer esconder-se. Quem lê, por mera ilusão, vai-se convencendo de que o método é o dedutivo, até porque o detective está sempre a repeti-lo, mas não é verdade. E uma fantasia, uma cortina de fumo para conduzir o leitor. Quer dizer, é e não é. Exactamente ao contrário de Shakespeare. O drama hamlctiano é cartesiano, é uma disjunção, é o problema recorrente da filosofia alemã. Mas aqui é cartesiano e conjuntivo. Está a perceber? Em vez de se questionar na duplicidade antagónica do to be or not to be, Sherlock Holmes é o indeterminismo em estado puro.
D. Antónia começou a bater o pé. Era o seu sinal de impaciência. Lá fora, pelas encostas das quintas, centenas de homens lutavam contra a praga, e ela escutava, decepcionada, a demência do jovem causídico.
– Vespúcio, não fiques zangado comigo, mas, apesar da idade, não sou uma avozinha que passa o tempo a fazer renda. Tenho grandes responsabilidades sobre os outros. Preciso de ir trabalhar.
Foi como se tivesse levado um murro no estômago. Ficou especado no meio da sala.
– Desculpe-me. Sou muito confuso, não sou? – E acrescentou humilde: – É o meu pior defeito.
– Não te preocupes. Gosto muito que me venhas visitar.
Levantou-se da mesa num sinal claro de que a conversa
terminara. Vespúcio, sem esconder o desânimo, ainda perguntou:
– Quer ficar com o livro?
Fez-lhe uma festa no ombro.
– Tenho pouco tempo para ler, filho. Ainda por cima as cataratas não ajudam nada.
Era definitivamente o fim da conversa. Preparou-se para sair. Porém, parou à porta e avisou-a:
– Não lhe disse uma coisa importante.
– O quê?
– O assassino quer atingi-la. Precisa das vítimas, mas quer colar cada um dos crimes à sua vida. E uma pessoa que anda a deixar sinais de ódio contra a senhora ou contra aquilo que a senhora representa.
D. Antónia ficou paralisada de espanto.
– O quê?
– É cada vez mais claro. O próximo crime vai acontecer numa das suas quintas em Dezembro, durante o solstício. De certeza, é noite de lua cheia. Até breve, dona Antónia.
– Espera, espera. Não te vás embora.
Vespúcio voltou para o interior.
– És capaz de me explicar como tens tanta certeza do que estás a dizer?
O bacharel sorriu, sem conseguir esconder alguma vaidade.
– Tudo bate certo. O criminoso que se esconde por detrás do seu segredo é uma pessoa implacável, dominada por um ódio terrível contra a senhora, e inteligente, muito inteligente.
– Meu Deus, estás a assustar-me.
– Inteligente e cruel, mas não tenha medo. Ele não a quer matar. O grande objectivo é fazê-la sofrer, marcá-la com um ferrete, com os sinais da morte, que a persiga até ao fim dos seus dias. Ii a mim que ele quer.
Era evidente a inquietação da mulher. A conversa de Vespúcio Ortigão, embora o levasse ao delírio do entusiasmo, estava a preocupá-la seriamente.
– A ti?
– Percebeu que teria de haver alguém que mediasse a relação entre os trágicos acontecimentos e a senhora. Os primeiros três crimes não levantaram qualquer suspeita. A ignorância que varre esta terra atribuía as culpas aos lobos. Tenho a certeza de que o assassino esperava que fosse a senhora a desconfiar dessa explicação. Mas a praga da filoxera tem– na mantido demasiado ocupada, a situação é complicada e toda a gente sabe o que tem labutado para vencer o maldito insecto.
– Ainda não respondeste à minha pergunta. O que quer esse animal de ti?
Vespúcio não escondeu de novo a vaidade quando respondeu:
– Como não conseguiu atrair a sua atenção, levou um cadáver até junto de mim. Sabia que eu não me conformaria com a história dos lobos e que começaria a fazer perguntas. E de tanto perguntar chegaria até si.
– Levou-te um cadáver? – perguntou, incrédula.
– O quarto. Aquele que apareceu em Vargelas. Eu estava de férias na casa da minha tia e sabia que eu acorreria ao local onde estava a rapariga morta. Bem se entalou com essa provocação.
D. Antónia não estava habituada a estas conversas. As suas preocupações, paixões, trabalhos, viveram sempre longe dos assuntos que fascinavam Vespúcio. Irritava-a a violência. Vira com os seus próprios olhos a brutalidade da guerra civil, escutara de seu pai as maiores barbaridades cometidas pelos franceses, para que de tudo aquilo que ouvira e vira pudesse guardar alguma memória agradável.
– Há pouco tempo, o padre João Matias falou-me do caso. Disse-me que desconfias da Inácia do Mileu e da Viúva Negra.
– Sou muito estúpido, não sou?
– Quer dizer que já não desconfias? – perguntou sem perceber Vespúcio.
– Não sei.
– E o livro? Estavas tão entusiasmado com o livro que o pediste de Paris!
– Por acaso estou. Ensinou-me coisas importantes. Eu posso explicar. O assassino vai matar outra vez. No solstício de Inverno.
Interrompeu-o rapidamente.
– Não quero saber desses discursos complicados que fazes, sem parares para tomar fôlego. Disseste-me que vai tornar a matar no solstício de Dezembro.
– Ao longo destes seis anos cometeu os assassínios no solstício de Verão ou no solstício de Inverno. Os cadáveres apareceram sempre numa das suas quintas, as últimas são todas de famílias que trabalham para a senhora.
– Mas essas desgraças não têm acontecido de seis em seis meses.
– Pois não. Mas o bandido não vai deixar de aproveitar esta oportunidade, agora que já pouca gente acredita na história dos lobos.
D. Antónia estava impressionada. Sempre se movera em territórios de que conhecia os trilhos e aquela loucura não tinha nada a ver com o seu mundo de canseiras.
– O que posso fazer para te ajudar?
– Nada.
– Nada? – perguntou, indignada. – Um assassino sem escrúpulos anda a matar filhas dos meus caseiros, das famílias que trabalham para mim, e tu dizes-me que não devo fazer nada?!
– Enquanto a senhora não se manifestar, quem provoca estes terríveis acontecimentos ficará na dúvida se está ou não a atingi-la. A maneira de me ajudar é não mostrar que sabe aquilo que lhe contei. Acredite em mim, por favor.
Ficou em silêncio. Fazia sentido o que dizia Vespúcio Ortigão.
– Muito bem. Vou fazer como queres. Mas, se for preciso, falo com o governador civil, com a guarda, com o juiz, para que apanhem esse animal.
– Seria um grande disparate, dona Antónia. Bastava sentir-se acossado e nunca mais saberíamos quem é – proclamou com gravidade, e perguntou: – O Francisco Correia sabe quantos caseiros e jornaleiros trabalham para a senhora com filhas entre os quinze e os dezassete anos?
– Sabe. Mas são centenas de pessoas.
– Seja como for. Se me quer ajudar, fale com ele para que me forneça uma lista. E que não abra a boca seja com quem for. Talvez seja possível salvar a próxima infeliz.
– Eu falo com ele ainda hoje. Amanhã terás a tua lista.
– Obrigado, dona Antónia. Ah!, e obrigado por me ter oferecido o livro do Conan Doyle.
– Para acabar com aquilo que me contaste, era capaz de te oferecer tudo o que tenho!
Não conseguia esconder a irritação. Como era possível tanta maldade? Deus era testemunha de como passara a vida preocupada em não maltratar ninguém e todas as populações ribeirinhas e das terras quentes sabiam que não voltava as costas à generosidade. Sentia, por isso, uma revolta surda contra quem a queria maltratar de maneira tão cruel, e da cabeça não lhe saía a Viúva Negra.
Das poucas vezes que se cruzaram, já depois da morte de Silva Torres, percebera o ódio no olhar da bruxa. Era ela. Só podia ser ela. Fosse como fosse, decidiu aceitar o conselho de Vespúcio Ortigão. Sentia-se bem com Deus. A longa vida que já percorrera era testemunho da sua dedicação a todos que com ela conviveram, e não iria estragar a sua tranquilidade por causa de uma tonta malvada. Ainda por cima tinha confiança na inteligência e determinação do bacharel.
O almoço estava esquecido quando Mariana anunciou que chegara o engenheiro Andrade.
Cumprimentaram-se e via-se que o homem, baixinho e magro, com um olhar cintilante, estava fascinado por se encontrar junto da mais famosa empresária do reino.
– O senhor está aqui comigo porque pedi ao meu administrador António Claro que me arranjasse o melhor engenheiro que houvesse no Porto. Ele escolheu-o.
O homem ruborizou-se. Não esperava aquele cumprimento e fez uma ligeira vénia de agradecimento.
– É para mim uma honra poder servi-la, minha senhora.
– Obrigada. Antes de continuarmos, devo dizer-lhe que esta conversa tem de ser mantida em segredo entre os dois até eu tomar uma decisão.
– Dou-lhe a minha palavra de honra.
– Muito bem. Quando se caminha para os oitenta anos já restam poucos sonhos. Mas eu tenho um que gostaria de realizar antes que Deus me leve e para que lhe dê corpo preciso da sua ajuda.
Parou por uns segundos. Ajustou os óculos e levantou-se, firmando-se na bengala.
– Já ouviu falar no Vale de Meão?
O engenheiro Andrade meneou a cabeça.
– Não conheço.
– Irá hoje conhecê-lo comigo. São terras que possuo por cima da Quinta do Vesúvio, terras selvagens que eu gostaria de domesticar. Mas antes preciso do seu conselho, dos seus estudos e, caso o entenda, dos seus projectos para levar por diante esta obrigação. Aceita o desafio?
– Ó minha senhora! Como pode fazer-me essa pergunta? Não conheço ninguém no reino que não quisesse estar agora no meu lugar. Conte com o meu silêncio e com a minha dedicação.
– Muito bem. Então vamos lá.
As coisas não estavam a correr de feição a Vespúcio Orti– gão. Começou por sentir um frio agudo nos músculos e nas articulações e uma ligeira irritação na garganta. A tosse era profunda e descontrolada. Passou duas noites de grande agitação febril, que ora o fazia transpirar abundantemente, ora o obrigava a embrulhar-se em mantas tiritando de frio. Ao terceiro dia concluiu que a gripe não lhe passaria com as canecas de leite a ferver com a aguardente prescrita pela moça que agora lhe tratava da casa e da roupa. Ainda experimentou, a conselho de Ti Paixão da Costa, esfregar o peito com azeite quente, porém a febre não abrandava, a tosse era cada vez mais funda, o corpo cada vez mais alquebrado.
Foi Crisóstomo quem o convenceu, depois de um ataque de tosse que o deixou desfalecido.
– Tens de ir ao hospital. Eu já nem sei se apenas padeces de gripe.
– Achas que estou tuberculoso.
– Também não. Mas que deves estar à porta de uma pneumonia, não tenho muitas dúvidas. Vamos ao hospital.
– Para quê? O nosso doutor Argan vai fazer-me uma sangria e receitar-me a mezinha do Ti Paixão da Costa.
Vespúcio tratava o médico-pescador Guimarães pelo nome da célebre personagem criada por Molière.
– Chegou outro médico. Um cirurgião ainda novo e que não tem nada a ver com o teu doutor Argan. Se apanhas uma pneumonia, é o diabo.
Contrafeito, acabou por se decidir. As duas breves conversas que mantivera com o Guimarães não lhe auguravam um saber curativo que o libertasse daquela maldita gripe. É que nem era capaz de pensar em condições. A cabeça, devido à febre, parecia que tinha um baloiço que ia e vinha, ia e vinha, sem conseguir concentrar-se.
O novo cirurgião não estava de serviço e Vespúcio não fugiu da sala porque Crisóstomo o obrigou, sempre a ameaçá– lo com a pneumonia fatal.
O Dr. Guimarães agiu conforme o previsto. Espreitou-lhe os olhos, pediu-lhe que mostrasse a língua e, a seguir, cruzou os braços, observando o aspecto de Vespúcio com atenção. Depois de algum tempo nesta postura silenciosa, mandou-o tirar a camisa e encostou o ouvido ao peito. Fez o mesmo gesto contra as costas e sentou-se à frente dele.
– Há um desequilíbrio completo no sistema de humores. A cor da língua e dos olhos revela que a bílis amarela alterou profundamente o seu equilíbrio orgânico. Os sinais de gripe que sente não são mais do que o reflexo deste desequilíbrio com natural gravidade nos pulmões. Nestas circunstâncias,
0 espírito vital fraqueja por falta de ar na mistura que tem lugar no ventrículo esquerdo.
Vespúcio suspirou, deprimido, e comentou com ironia:
– Aí está uma lição perfeita que resulta do casamento de Hipócrates com Galeno.
Guimarães olhou-o surpreendido. Não esperava aquele comentário vindo de um bacharel em Direito. Ia responder, mas resolveu calar-se, apenas informando laconicamente:
– Vou fazer-lhe uma sangria.
Vespúcio encolheu os ombros meneando a cabeça em ar de censura para Crisóstomo. O médico ao menos não se decidira pela purga. Guimarães aproximou-se com a lanceta e um balde e perguntou:
– Prefere no braço ou no pé?
Estendeu-lhe o braço e observou com evidente surpresa o trabalho do seu Argan, que, enquanto procedia ao acto, não parava de recitar:
– Embora no seu caso tenha de haver cautela. Esta gripe pode também surgir como um sinal de Morbus litteratorum.
Foi Crisóstomo quem perguntou:
– O quê?
– Uma doença que ataca pessoas que estudam ou escrevem em excesso. Os humores precipitam-se, o espírito descontrola-se e os órgãos perdem a vitalidade. Foi a doença que vitimou Pascal, que antecipou a morte de Mozart e de muitos outros iluminados. E uma doença que é um castigo directo porque quem se apaixona pelo saber até aos limites da cegueira e não cumpre o respeito que merecem dias santos e festas de guarda, absorvido pelo entusiasmo que mais não é do que o sintoma maior da doença.
Vespúcio olhava-o sem pestanejar. Quando terminou a sangria, o médico tornou à dissertação escolástica sobre os padecimentos do bacharel, mas este já não o ouvia. Estava longe dali, preso às suas reflexões e lamentando o tempo perdido com a febre e a tosse. Nem agradeceu as recomendações do Dr. Guimarães quando bruscamente lhe voltou as costas e saiu do hospital. Crisóstomo não percebeu a dureza do amigo. Quando chegaram à rua, comentou:
– Não deves ter sido o doente mais cordial que o doutor Guimarães viu hoje.
– É um charlatão.
– Disparate. É nosso médico há mais de trinta anos.
– Nem que fosse há sessenta! E pura ignorância, meu caro, pura ignorância. Aquele arrazoado de palavras com que demonstrou erudição é repetido há mais de mil anos. Laennec divulgou o uso do estetoscópio há mais de meio século e o doutor Guimarães continua a escutar de ouvido. Desde Claude Bernard que o experimentalismo tomou conta da medicina e este tipo nem sabe, ou não quer saber, que é nos pulmões que se dão as trocas gasosas entre o ar e o sangue. Até a sangria é uma prática clínica requentada.
Conforme falava, a irritação ia crescendo até que um ataque de tosse interrompeu o desabafo. Teve de parar, pois ficou a ofegar do esforço. Encostou-se à parede e suplicou:
– Vai procurar o novo cirurgião. Talvez seja capaz de me ajudar.
Estava pálido. Só os olhos brilhantes da febre ressaltavam no estado de mortificação geral em que se encontrava.
O amigo deixou-o em casa e foi procurar o novo clínico, e Vespúcio, talvez pelo delírio da febre, ficou a vociferar, sozinho, na sala.
– Sou um tonto! Um tonto!
Folheava livros, procurava precipitadamente entre os papéis enquanto repetia:
– Um tonto. Sou um tonto!
Foi neste frenesim que Crisóstomo e o Dr. Guilherme o encontraram. O jovem cirurgião ficou impressionado com a figura do advogado. A magreza excessiva, a altura desmedida, os cabelos em cascatas de caracóis, entre os quais brilhavam dois olhos enormes, deu-lhe vontade de rir. E não se conteve quando Vespúcio Ortigão lhe falou, ameaçador:
– Pedi ao meu amigo que o senhor me viesse ajudar. Preciso de ficar sem febre e sem tosse, dispenso qualquer dissertação a repetir Hipócrates ou a manipular o vitalismo de Galeno. Foi o que o seu colega me fez.
O outro respondeu com bonomia.
– Não se preocupe, doutor Vespúcio. Não sou médico. Apenas um simples cirurgião. – E acrescentou: – Posso auscultá-lo?
Vespúcio olhou-o, surpreendido, e exclamou, exultante:
– Finalmente encontro alguém que utiliza um estetoscópio!
Saber que o cirurgião usava um instrumento que era objecto de tanto elogio pela comunidade científica submeteu-o incondicionalmente. Guilherme examinou-o em silêncio. Pediu-lhe que respirasse fundo, que tossisse, que sustivesse a respiração e quem o conhecia não acreditava. Nem uma ironia, nem um comentário. Nem uma palavra!
Pegou-lhe no pulso e contou as pulsações. Tirou uma espátula da maleta, enfiou-lha na boca e ordenou-lhe que dissesse «ah» e, a seguir, socorreu-se de um termómetro para lhe medir a febre. Colocou-lho na virilha e esperou algum tempo em silêncio. Foi o bacharel quem, encantado, perguntou:
– É um termómetro, não é?
Acenou afirmativamente.
– O calor do corpo aquece a ponta de metal, dilatando por simpatia o mercúrio. Vai indicar-nos a febre do doente.
Vespúcio estava encantado. Finalmente a ciência chegara à Régua pela mão de um jovem cirurgião. Materializava-se à sua frente, em carne e osso, o primeiro exemplar da espécie humana que dominava técnicas que, até ali, só conhecia por notícias. Depois do livro de Conan Doyle, testemunhava com regozijo a presença do futuro.
– Trinta e oito! – informou o cirurgião após observar o termómetro. – Está febril, mas não corre perigo.
– Não?!
– A partir dos quarenta graus é que a situação se complica. Tem de baixar até aos trinta e sete. – E concluiu com naturalidade: – É uma gripe.
O doente estava rendido.
– E a tosse?
– A tosse ajuda a expectorar. O que nos deve preocupar é a febre. É sinal de uma infecção causada por um microrganismo. Quando a febre se for embora, quer dizer que o bichinho morreu e param as excreções que lhe sufocam os brônquios. Vou deixar-lhe um xarope feito com suco de figueira-da-índia e mel que o vai ajudar a atirar cá para fora com esses fluidos. Mantenha o corpo fresco. Tome um banho, se sentir que está quente em excesso, e evite mudanças de temperatura. Daqui por uns dias já está bom!
Apeteceu-lhe abraçar o cirurgião, mas conteve-sc. Todo o azedume que crescera dentro de si com a retórica do especulativo Guimarães desaparecera sem deixar rasto.
– Até que enfim encontro um verdadeiro médico, um autêntico homem da ciência!
Guilherme sorriu, modesto.
– Não passo de um simples cirurgião! -E gracejou: – Sou o herdeiro mais apurado de uma enorme família de barbeiros que me antecedeu durante séculos. – E com evidente sarcasmo rematou: – Na verdade é muito melhor herança do que dos meus colegas médicos. Descendem directamente de bruxos e feiticeiros.
Era simpático. Vencida a timidez inicial, revelou-se um bom conversador. Quando partiu com Crisóstomo, que insistiu em o acompanhar, Vespúcio era o mais feliz dos homens à face da Terra. Acabava de ter a prova de que tinha razão. Sempre tivera razão e antecipou o prazer de que ia desfrutar quando apanhasse a jeito o padre João Matias com todos os seus receios teológicos em face do mundo novo que despertava com a recente organização das formas de conhecimento.
Nem sentiu que fosse sacrifício passar alguns dias fechado em casa. Teria tempo para estudar a lista que Francisco Correia lhe enviara das famílias com filhas donzelas. A conversa com o cirurgião redobrava a confiança que recuperara depois de ler Conan Doyle. Tinha a certeza de que estava próximo do fim do mistério. E como se já não sentisse a febre, atirou-se à lista com a alma aconchegada pelo reconhecimento das suas certezas. Para que nada faltasse para se sentir feliz, precisava apenas de uma coisa: que a República chegasse depressa. Então, tudo estaria certo e conforme.
Apeteceu-lhe enviar um bilhete à Ferreirinha, informando-a de que tudo estava a correr bem, mas desistiu. O padre João contara-lhe que ela andava metida em grandes trabalhos por causa da filoxera. Falaria com D. Antónia quando pudesse sair de casa. Sem febre. De súbito, deu consigo a pensar nela. Que trabalhos seriam aqueles de que lhe falara o sacerdote? Há mais de uma década que era o rosto e a força, que se erguia na imensidão do Douro, da luta contra a praga. Dia e noite, sem um sinal de cansaço. Ela era, de facto, sem ter passado pelas faculdades, a mais iluminada razão experimental do reino. Ao seu lado, o idiota do erudito Guimarães não passava de estrume retórico.
Vespúcio nem sequer imaginava que, nesse preciso momento, a sua velha amiga vivia um bulício idêntico ao dele. E discutia com o seu Dr. Argan.
Francisco Correia percebeu, quando chegou à Quinta de Travassos, que a patroa estava agitada. Discutia com o seu velho criado Damásio. Com o avanço da idade, tornara-se mais quezilenta nas coisas simples do quotidiano. E o criado, que envelhecera com ela, conseguira ultrapassar o limite da cortesia que os restantes colaboradores mantinham com a patroa.
Damásio protestava.
– Como é que a senhora quer que eu saiba onde meteu a sombrinha? Não a larga, anda com essa coisa por todo o lado, mesmo que não chova, e eu agora é que devia saber onde a meteu?!
– Não fazes nada de jeito. Sabes qual é o teu problema? Estás velho. Velho e tonto.
– Sou dois anos mais novo que a senhora. Se eu estou velho...
– O que é que tu queres dizer com isso? Que estou maluca?
– Estou a dizer-lhe que a última vez que vi a sombrinha foi na sua mão. Não a terá deixado no escritório? Ontem, quando chegou, meteu-se lá a fazer contas.
– Ponho-a sempre no bengaleiro. Tenho a certeza de que a pus no bengaleiro.
Do interior surgiu uma criada que trazia a sombrinha.
– Está aqui, minha senhora.
– Onde é que a encontraste?
– Estava no escritório.
Damásio sorriu, satisfeito com a vitória.
– Era o que eu dizia. Não sabe onde põe as coisas e depois a culpa é sempre minha.
– Pois claro que é tua. Não fazes nada de jeito.
– Pronto, eu já sabia. Vá lá, onde é que vamos hoje?
– A lado nenhum. Preciso de falar com o Francisco.
Foi para o interior. Francisco Correia, que observava, divertido, a discussão, meteu-se com o outro.
– Com que então andas a esconder a sombrinha da patroa!
– Nem me fale, senhor Francisco. Quando acorda com os azeites põe-me a cabeça em água.
Na verdade, D. Antónia estava excitada. Para quem a conhecesse, percebia logo a brevidade dos gestos, a pressa no andar, a agitação do olhar. O corpo, pequenino e frágil, ganhava uma inusitada energia e a voz tons graves.
Francisco Correia entrou, cauteloso, na conversa.
– Já vi que está zangada.
– Aqueíe Damásio não faz coisa com jeito. Tenho de tomar conta dele como se fosse meu filho.
O responsável pelo escritório da Régua sorriu, matreiro.
– Se bem a conheço, a causa dessa irritação toda não é o Damásio.
Foi o sinal para desabafar.
– Estou farta das explicações do Luís Casal e das desculpas que inventa para não receber as rendas de Vale de Meão. Não há cão nem gato que não entre por ali dentro para caçar, para levar rebanho, roubar cortiça, para fazer do que é nosso o que quer e entende.
– É um hábito velho, senhora. Aquelas terras eram antigos baldios de Foz Côa.
– Sem proveito nem para o corpo nem para a alma e que o meu falecido marido comprou. Acabou-se o arrendamento. Tenho passado dias inteiros a andar por ali.
Francisco indignou-se.
– Mas o Meão é coisa brava, cheia de mato e fragas perigosas! A senhora não tem idade para se meter sozinha nessas aventuras. É muito perigoso.
A voz alterou-se.
– Também tu? O que é que vocês querem que eu faça? Que fique enfiada em casa quando há tanta coisa para fazer?!
– Precisa de algumas cautelas. Na sua idade é preciso ter algumas cautelas.
– Chega de conversas sobre a minha idade. Todos os dias alguém me lembra a idade. Podemos falar de coisas sérias?
Abriu uma planta de Vale de Meão sobre a secretaria, centrou os óculos com o dedo indicador para melhor perceber os sinais e os desenhos cartografados. Encheu o peito de ar, respirando com força, e mostrou-a ao seu colaborador.
– Vou fazer desta terra a melhor quinta de vinha de todo o Douro. Uma quinta onde a filoxera nunca chegará ou, pelo menos, vai ter muita dificuldade em vencer.
Francisco Correia ficou tenso. O velho Damásio era capaz de ter razão: a patroa estava a variar do juízo.
– E como é que a senhora vai fazer umas coisas dessas? Estes baldios são muito maiores do que meia dúzia das nossas maiores quintas todas somadas.
– Porque vamos usar bacelos em vez de barbados e não haverá um único que não seja enxertado em cepa americana. Francisco, quero meter lá quatrocentos milheiros de cepas e pôr o Vale de Meão a produzir mil pipas de vinho por ano.
Cambaleou. Era evidente a determinação de D. Antónia. Quando falava com aquele fulgor que lhe iluminava o rosto, sabia que arrastaria tudo à sua frente.
– As vinhas acima do Corgo, e até do Cachão, estão destruídas pela praga. Faltam terrenos para plantar novos vinhedos e os custos de tal trabalho seriam enormes. Não é o caso em Vale de Meão.
– Não leve a mal o que lhe vou dizer. Desista dessa ideia, pela sua rica saúde. Só o esforço que vai ser necessário para desmatar tanta terra é o cabo dos trabalhos.
– Quantos homens julgas que são necessários para fazer a desmatação?
– Pelos menos uns trezentos.
– Então contrata trezentos.
– Ó minha senhora, as coisas não se fazem assim.
Olhou-o, empertigada.
– Que conversa é essa, Francisco Correia?
– A senhora não me deixa pensar. Nem respirar. Mexer no Vale de Meão é atentar contra Deus.
– Não digas disparates.
– Dona Ántónia, está a falar de uma terra que só produziu mato, onde as cabras pastam a comida mais ruim que qualquer chão pode dar. Só cobras, lagartos. Os lobos uivam naquele matagal perdido para lá do fim do mundo. Não é empresa para as forças de qualquer pessoa, muito menos para uma senhora com a sua idade.
Ela deu um murro na mesa.
– Não te admito que voltes a falar da minha idade. Estou farta dessa lengalenga. A idade está no coração, na cabeça. E o meu coração e a minha cabeça dizem-me que este é o caminho que devemos fazer.
– Desculpe-me, não queria ofendê-la.
D. Antónia sentou-se. Olhou o mapa outra vez. Percebia as preocupações de Francisco Correia, mas sentia força suficiente para levar por diante o seu projecto.
– Também te peço desculpa. Não devia ter gritado. Vamos chamar o António Claro. Quero que vejam os desenhos que encomendei a um engenheiro da minha confiança e vamos em frente. Não há cobra, nem lobo, nem matagal que me meta medo.
– Digo ao seu filho para estar presente nesse encontro?
Encolheu os ombros. O desprezo que António Bernardo
tinha pelo Douro magoava-a. Nem a viuvez precoce o aproximara da mãe, mantendo-se afastado da guerra contra a praga que, nos últimos anos, quase destruíra a região demarcada do vinho do Porto. A gorda mesada que recebia mensalmente deixava-o livre de compromissos e vivia num mundo de fadas, longe do fragor dos grandes desafios.
– Se ele quiser estar presente, que venha.
Em 1877, Francisco Silva Torres, aproveitando os baixos preços com que foram colocados no mercado os terrenos baldios de Foz Côa, comprara o Vale de Meão. Era uma terra imensa que se estendia para lá do Vesúvio, feita de encostas íngremes que se dissolviam numa planície suave até ao Rio. A doçura desta ondulação de terrenos junto à margem esquerda, com forte exposição solar, resguardada dos temporais pela grandiosidade dos penhascos envolventes, convenceu Antónia Ferreira a construir ali a sua nova quinta. Não era uma aventura cega. Naquela região, até Foz Côa e para lá de Barca d’Alva, tinham surgido grandes vinhedos, produzindo óptimos vinhos. A própria Quinta do Vesúvio, feita pelo seu tio, era um dos exemplos do talento daqueles solos para vinhos de primeira qualidade. E se hesitava muito, se por vezes acreditava que não havia remédio para suster a filoxera, os resultados da enxertia dos bacelos em vinha americana, que aumentavam a resistência das cepas, quase indiferentes aos ataques da maldita praga, tinham-na convencido a desafiar de uma vez por todas aquela maldição dos infernos.
A reunião correu melhor do que esperava. D. Antónia não sabia dos muitos avisos que Francisco Correia fizera a António Claro para que não lhe falasse da idade e o engenheiro era um homem competente. Mostrou-lhes um primeiro desenho da futura quinta do Vale de Meão. As vinhas surgiam organizadas com o recurso a fiadas de arames que lhes garantiam uma disposição geométrica para melhor acesso de trabalhadores no tratamento, na poda, nas vindimas. A disposição das cepas, apoiadas por carreiros de xisto, confluía em estradas mais amplas, que facilitavam o transporte das uvas para os lagares. A parte superior da encosta seria povoada de oliveiras e amendoeiras e, nos montes mais altos, fiadas de pinheiros resistentes às invernias. Estavam distribuídas as construções, a casa, a adega, os armazéns, os abrigos para os jornaleiros. Às tantas, ela interrompeu o engenheiro.
– Falta o hospital.
O engenheiro olhou-a, surpreendido.
– A senhora quer construir um hospital?
– Não tenho outro remédio.
– Mas é uma fortuna!
Olhou-o nos olhos e com firmeza respondeu:
– A riqueza de uma família não é ter muitos palácios, muitas adegas, muitas quintas, grandes reservas de vinho. A grande fortuna é ter tudo isso e homens para tratar de todos esses bens. De pouco me serve preocupar-me com a saúde da terra e não me preocupar com a saúde dos homens.
– Mesmo assim...
– Oiça-me até ao fim! A terra tratamo-la com sulfuretos, com adubos. Os homens precisam de médicos, de drogas da botica. De nada vale esta quinta se não tiver um armazém para guardar os adubos que dão saúde aos solos ou não tiver um hospital que cuide de quem os espalha pelas vinhas.
O engenheiro não respondeu. D. Antónia apontou para um ponto do mapa.
– É aqui que vamos começar a plantar. É o sítio da Barca Velha. O vinho que daqui sair pode ser serv ido à mesa dos deuses.
António Claro coçou a barba. Era um tique que ela já lhe conhecia. Estava entusiasmado com aquilo que via.
– Vai ser uma obra para gigantes.
-Já fomos obrigados a ser gigantes muitas vezes. Não é a primeira vez e, se Deus quiser, não será a última. E tu, António Bernardo, não tens nada para dizer?
Estivera calado todo o tempo. Achava aquilo um disparate. Qualquer pessoa normal que chegasse aos setenta e oito anos, e com o pecúlio amealhado, procuraria gozar os anos de vida que ainda lhe restavam. Mas a mãe era ao contrário de toda a gente que ele conhecia. Nem valia a pena protestar.
– Isso é tudo muito bonito, mas depois o que vai fazer do vinho? Se encher as mil pipas que tem na cabeça, não chegam os rabelos para levar daqui uma carga desse tamanho.
D. Antónia esboçou um sorriso manhoso.
– Aí é que tu te enganas. O vinho sairá de comboio.
Ficaram todos surpreendidos com a resposta. António
Bernardo falou pelo grupo.
– Como é que faz isso? A linha férrea só chega ao Vesúvio.
– Por enquanto, por enquanto. Quando a obra estiver pronta já chegará ao Pocinho.
– Tem a certeza?
Levantou a mão, estendendo o dedo mindinho, e respondeu, misteriosa.
– É este dedo. Tem um jeito danado para saber certas coisas.
A verdade é que D. Antónia Ferreira, após o falecimento de Silva Torres, nunca perdera a teia de contactos e influências que ele meticulosamente montara em Lisboa. E, mesmo quando alguns dos antigos colaboradores tinham saído da vida política ou morrido, outros chegaram dispostos a ficar nas boas graças da poderosa proprietária. Fontes Pereira de Melo avisara-a de que fora aprovada pelo Governo a continuidade da linha do Douro até Barca d’Alva. Conseguiu manobrar para que fosse construída a estação do Pocinho e, a partir daí, decidiu realizar a obra do Vale de Meão. A devastação provocada pela liloxera obrigava à procura de outras manchas vitícolas e, ainda que esta se encontrasse fora da região demarcada, decidiu desafiar o destino. Há muitos anos, o tio fizera o mesmo com a Quinta do Vesúvio e também mostrara qual o caminho para romper com a resistência à novidade: a qualidade do vinho. Era o emblema de sempre da sua casa agrícola. Com ele derrotaria os adversários.
O problema de Vespúcio Ortigão era idêntico ao da Ferreirinha. Apenas os adversários eram diferentes. Vencera o primeiro. A gripe fugiu, derrotada pela prescrição do Dr. Guilherme. Durante os quatro dias que se mantivera em cativeiro voluntário folheara dezenas de vezes a enorme lista de nomes que Francisco Correia lhe entregara. D. Antónia dava trabalho a uma verdadeira multidão! Examinou-a, página a página, quinta a quinta, família a família. Sabia que o assassino, ou a assassina, matava seguindo uma ordem interior que ainda não descobrira. Porém, afastou essa preocupação. Necessitava de descobrir se tinha alguma hipótese de evitar o próximo crime.
Começou por riscar todos os casais que não tinham filhos. A seguir, desprezou as famílias cujos filhos eram rapazes. Ainda hesitou, mas não havia outra solução. Ou a sua hipótese era verdadeira, e o criminoso procuraria apenas raparigas, ou teria de avaliar tudo desde o princípio. Apagou aqueles que tinham filhos com idades inferiores a doze anos e fez contas.
Sobravam quinze famílias com donzelas em idades de se tornarem vítimas. Apreciou o trabalho do administrador da Ferreirinha. A lista continha as idades e os nomes de toda a gente. Porém, a listagem meticulosa não era fonte de animação. Não conseguiria escolher com seriedade entre as quinze virgens. Viviam dentro do círculo onde Vespúcio assinalara os seis homicídios. Não existia qualquer sinal particular que vinculasse qualquer das quinze à probabilidade de um destino trágico.
Abandonou os papéis, vencido. Não conseguiria convencer a autoridade a montar vigilância a quinze raparigas, apresentando como provas os moldes das patas de um burro e meia dúzia de cabelos que encontrara na mão de um dos cadáveres. Entre os livros procurou a lista das vítimas. A Elvira morrera na Quinta do Seixo. A Rosa era a cachopa que encontrara em Vargelas. A Francisca tinha sido a primeira e encontrara a notícia num jornal. Ainda havia uma Isabel, uma Eulália e uma outra Rosa.
Eram nomes vulgares. Assim como os nomes dos pais. Ainda por cima, o assassino não desenhara nenhum percurso geográfico. Os crimes não tinham uma ordem. Sucediam-se em ziguezague. Se a mão que andava a matar com tanta crueldade as jovens fosse a pessoa de quem ele suspeitava no mais absoluto segredo, era forçoso que houvesse coerência lógica naquele amontoado de tragédias.
Desistiu. Haveria de regressar ao problema mais tarde. Procurou os moldes das patas do animal recolhidos em Vargelas. Eram grandes. E se não fosse um burro, mas um cavalo? Abrigou-se e desceu ao pequeno estábulo onde se encontrava o seu cavalo. Preparou a mistela de gesso e água e fez o molde. A comparação ainda complicou mais a situação. Era demasiado grande em relação à do animal do criminoso.
Subitamente, fez-se luz no seu espírito. Não era cavalo nem burro. Tinha de ser uma mula. Como é que não pensara nisto mais cedo? Havia cometido um dos erros que Sherlock Holmes não perdoava. Tinha tomado a aparência por uma verdade absoluta.
Com o coração a bater descompassadamente, decidiu-se. Não sentia febre, o corpo ganhara força, a energia triplicara com esta descoberta. Arrumou o gesso e um cantil com água no alforge, vestiu o casaco, ainda hesitou se haveria de levar o cajado que decorava a parede da sala, mas desistiu, e saiu.
Durante três dias e três noites ninguém soube onde parava Vespúcio Ortigão. Ao segundo dia, o mestre-escola, que ia visitá-lo para saber da saúde, deu o alarme. Talvez tivesse piorado e procurou-o no hospital. Cruzou-se com o Dr. Guimarães, que saía naquele instante armado dos apetrechos de pesca. Perguntou-lhe por Vespúcio, contando-lhe as razões da sua preocupação. O médico pensou por instantes, recordando os doentes do dia, e meneou a cabeça.
– Não o vi. Falou com o cirurgião? Talvez ele o possa ajudar.
Agradeceu. Guimarães sorriu com deferência e comentou:
– O meu amigo e o doutor Vespúcio perdem o tempo em filosofias complicadas. Se fossem comigo à pesca, divertiam-se mais.
– Não sei pescar, senhor doutor.
– Eu ensino-vos a enganar os peixes! – e partiu entusiasmado.
Crisóstomo observou-o por instantes, com simpatia. Uma alma feliz que Vespúcio odiava por causa dos furores científicos e medicina prática. O amigo nunca haveria de perceber que, para o Dr. Guimarães, não havia tratado de medicina que lhe desse o prazer que retirava de uma boa luta com um barbo ou com uma carpa.
Encontrou o Dr. Guilherme, que lhe repetiu aquilo que o outro dissera. Fora visitar Vespúcio há dois dias e encontrara-o curado. Talvez tivesse saído da Régua por causa de algum julgamento ou nas suas investigações sobre os crimes fantásticos que há tanto tempo perseguia.
Crisóstomo desabafou:
– Sou amigo dele há não sei quantos anos e, embora seja mais velho do que eu, preocupa-me como se fosse um cachopo.
– Vive nas nuvens – comentou Guilherme -, mas é de uma inteligência fulminante.
Concordaram os dois. Uma freira aproximou-se, pedindo a intervenção do cirurgião junto de um doente, e o mestre-escola abandonou o hospital. Guilherme tinha razão. No dia seguinte ou depois, apareceria com mais uma das teorias carregadas de filosofia e política para tornar a pôr em pé os cabelos ao padre João Matias.
Na verdade, apareceu no dia seguinte. Os olhos faiscavam de entusiasmo e aconchegava o alforge contra o corpo como se transportasse uma pedra preciosa. Fechou-se com tranca na porta e do saco retirou o molde com a pata do animal. Comparou-a minuciosamente com o velho molde e ficou em êxtase.
– Alma maldita! Até a marca da ferradura é igual. Ao menos que não fizesse sofrer a mula que lhe serve de ajuda em crimes tão terríveis.
Agora não tinha dúvidas, embora soubesse que não era suficiente. Para Sherlock Holnies, o mistério estava desvendado. Chegara o momento de Conan Doyle pô-lo, narcísico, perante uma assembleia de polícias estúpidos, fazendo a demonstração circense. Era pouco para Vespúcio. Não procurava apenas apanhar a alma danada que matava as infelizes criaturas. Queria que a sua experiência jamais violasse a lei que Holmes desprezava e, sobretudo, desejava apontar o dedo no momento em que não tosse necessária a confissão. Assumia essa crença, recebida de Locard, como a promessa de futuro: a verdadeira investigação criminal aconteceria no momento em que a demonstração lógica da prática de um crime poderia ser imputada a um criminoso. Sem haver necessidade da confissão e, por conseguinte, banindo qualquer prática de tortura física ou psicológica. Uma sucessão de provas materiais onde testemunhos e confissões passavam apenas a ser contributo complementar.
Mais tarde ainda recordava aquele momento. Fora a palavra sucessão que lhe abrira o caminho para explicar o mistério que há tanto tempo o atormentava. Correu à procura das listas com os nomes das vítimas e os nomes fornecidos por Francisco Correia.
Em frenesim, começou a colocar por ordem os crimes. A Francisca, a Elvira, a Rosa, a segunda Rosa, a Eulália e a Isabel. Era evidente! Na lista do administrador procurou entre as quinze possíveis vítimas. O dedo parou na filha de um pastor da Quinta da Boavista que se chamava Rosália. Maravilhado com a descoberta, exclamou: «Vai ser esta!»
Mentalmente consultou o calendário. Faltavam quase dois meses para o solstício e um vento de impaciência fê-lo estremecer. Eram muitos dias de espera. No entanto, era pouco tempo para chegar à Régua o instrumento necessário para que a demonstração da relação entre os crimes e quem os cometera fosse total. Só existia uma pessoa que o podia ajudar. Guardou todas as provas em lugar seguro, voltou a trancar a porta e dirigiu-se em passo estugado para a Quinta das Nogueiras. Foi recebido por uma desilusão. A empregada informou-o de que, devido ao começo próximo das obras em Vale de Meão, a senhora D. Antónia pernoitava na Quinta do Vesúvio e ficaria por lá durante algum tempo.
A contrariedade fê-lo irritar-se com a energia da velha amiga. Apesar da idade não parava de um lado para o outro. Não interessava! Apanharia o próximo comboio e procurá– la-ia no Vesúvio. E saiu a correr das Nogueiras, a caminho da estação.
Quando saltou para o apeadeiro já a noite ia longa. Atravessou o túnel por debaixo da via-férrea e um vulto saiu-lhe ao caminho, apontando-lhe uma espingarda. Berrou:
– Quem vem lá?
Era um dos caseiros de vigia à quinta.
– Tenha calma. Sou um amigo. Diga à senhora dona Antónia que está aqui o advogado Vespúcio Ortigão. li um assunto muito urgente.
Junto ao caseiro já estavam mais um homem c uma mulher armados de varapaus. Sem deixar de lhe apontar a arma, disse à mulher:
– Avisa a senhora de que está aqui um qualquer coisa Ortigão.
– Vespúcio! – corrigiu o bacharel.
– Ou isso. Mas daí não se mexe até à minha ordem, senão leva chumbo.
A mulher afastou-se a correr c Vespúcio implorou a todos os deuses dos céus e da terra que a Ferreirinha não estivesse a dormir. O outro, de quem apenas descortinava a sombra, era bem capaz de matá-lo.
Suspirou de alívio quando viu D. Antónia surgir na varanda da casa empunhando uma candeia. Procurava-o na escuridão.
– Vespúcio. És tu?
– É verdade, dona Antónia. Trago um assunto de vida ou de morte para falar com a senhora.
– Meu Deus! Deixem-no passar. É um amigo.
Os modos dos dois camponeses transformaram-se por milagre. Baixaram as armas e descobriram as cabeças em sinal de respeito. Galgou as escadas e beijou a mão da velha senhora.
– Desculpe esta loucura, mas precisava de falar ainda hoje consigo.
– Entra, estás a assustar-me.
Entraram no salão e Vespúcio apressou-se a tranquilizá-la.
– Não existe razão para se assustar. Se alguma razão existe, é para comemorar.
– O quê?
Fez o intervalo de tempo para dar mais ênfase à declaração e disse:
– Dona Antónia, sei quem matou as raparigas.
Esta deixou-se cair no canapé.
– Tens a certeza?
– Absoluta. E sei quem vai ser a próxima vítima.
A velha patroa abria e fechava a boca sem conseguir articular as palavras. Vespúcio aproveitou o silêncio para continuar.
– Vamos apanhá-lo. Sei o dia, a hora e o sítio onde irá atacar.
– Onde?
– No dia do solstício, quando cair a noite, na Quinta da Boavista.
– Que Deus tenha piedade de nós.
– Quero apanhar a criatura em flagrante delito, mas posso falhar. Para que não fuja preciso de mais dois favores da senhora.
– Já te disse que, para acabar com este horror, pedes o que for preciso.
– Tem de falar com o juiz da Régua para que me oiça e ajude.
– Conta comigo.
– E preciso que ofereça um microscópio ao hospital para fazer exames médicos e ajudar-nos num exame forense sobre cabelos. Não conheço mais ninguém com dinheiro para comprar um aparelho tão caro.
– Um microscópio? Se faz assim tanta falta, eu ofereço. Mas que raio de exames são esses?
Ajoelhou e tornou a beijar-lhe a mão, emocionado.
– Obrigado. Mil vezes obrigado. Não só vai ajudar a ciência, como vai parar a vida criminosa da pessoa mais malvada que o diabo alguma vez pôs no Douro.
– Posso saber quem é? – perguntou de forma a terminar de vez com os agradecimentos.
– Perdoe-me não lhe dizer o nome enquanto não estiver terminada esta grande diligência, mas vou contar-lhe toda a história.
Falou durante quase uma hora, explicou detalhes que ela já ouvira, acrescentou outros. Por fim, descreveu como conseguira os moldes com as patas da mula e como os homicídios assinavam o nome dela. Mostrou-lhe os papéis.
– Se juntar a primeira letra do nome de cada uma das jovens, verificará que está uma palavra em construção.
D. Antónia começou a juntar e leu: FERREI...
– Ferrei.perguntou sem perceber. – Vem de ferrador e da ferra do gado?
– Não. Vem de Ferreira ou Ferreirinha. A próxima letra é um «r». A filha do seu pastor da Boavista chama-se Rosália. É a próxima vítima.
– Meu Deus! Eu conheço-a desde menina. Fui sua madrinha de baptismo.
– Haveremos de salvá-la.
– Escondemo-la.
Vespúcio sorriu, satisfeito.
– Esperaria por outra vítima cujo nome começasse pela mesma letra. Talvez estivesse um ou dois anos sem matar, mas continuaria a sua terrível gramática. Eu tenho um plano. Sei que não vai falhar. Acabamos com esta brutalidade e salvamos a cachopa.
A Ferreirinha nunca fora mulher de grandes dúvidas. Levantou-se, determinada, e decidiu.
– Faça-se como tu entenderes. Tiveste o mérito de, sozinho, lutando contra todos, chegares até aqui. Confio em ti para terminares o que tanto te custou a desvendar.
– Obrigado pela confiança, dona Antónia – agradeceu, humilde e comovido.
– Amanhã telegrafarei para o Porto, para que António Claro encomende o microscópio. Quanto ao juiz, falarei quando regressar à Régua. Temos tempo. Ainda faltam dois meses para o solstício e sou precisa aqui. Os trabalhos em Vale de Meão estão numa altura em que não os posso abandonar. E agora vamos descansar. A empregada vai arranjar– te o quarto de hóspedes. Quando acordares, já não estarei aqui, pois vou sair às cinco da manhã. Se quiseres ficar, a casa é tua. Tornaremos a falar ao fim da tarde.
– Não posso, infelizmente. Com esta aventura em que me meti, atrasei alguns negócios dos meus clientes. Parto de manhã. Dona Antónia...
– Sim?
– Este segredo não pode ser repartido com mais ninguém, a não ser com o padre João Matias e o juiz.
– Não te preocupes. A vida ensinou-me a guardar grandes segredos. Muitos deles serão enterrados comigo quando chegar a minha hora. Boa noite, Vespúcio.
– Boa noite, dona Antónia.
Desapareceu com o candeeiro na mão a iluminar-lhe o caminho. Vespúcio chegou ao quarto e deixou-se cair na cama. Há muito tempo que não sentia uma tranquilidade tão grande. E deixou-se adormecer profundamente.
A obra arrancou. Centenas de jornaleiros vindos de Foz Côa, das terras quentes até Castelo Rodrigo, muitos pobres vindos da Galiza, atacaram o Vale de Meão. Parelhas de bois, de mulas e arados de ferro fundo abriam, pela primeira vez, as entranhas virgens daquele velho baldio. O monstro resistia, sólido e arrogante, às investidas das picaretas, dos formões, das alavancas, à força braçal que, de sol a sol, devastava a esteva, arrancava a urze, deixando pedaços de vida em cada granito esventrado, em cada manto de xisto revolvido. Uma multidão de jornaleiros dormia, exausta, em granjeios improvisados, pestilento dos odores dos corpos torturados.
Francisco Correia dirigia os trabalhos. D. Antónia aparecia quase todos os dias e a fúria dos homens multiplicava-se quando a viam chegar, decidida, chamando a atenção para pormenores que ficavam esquecidos no ardor da labuta. O Sol testemunhava o esforço e redobrava-o, dardejando forte a multidão que acometia, entusiasmada, contra os matagais com raízes seculares que pareciam mergulhar até ao útero da montanha.
Deu brado a saga do desfloramento do Vale de Meão. Os mais incrédulos acreditavam na demência da proprietária. Muitos vinhateiros, vencidos pela força da praga, temiam o empreendimento, vendo nele o corolário da sua ruína definitiva. Existiam outros que, assustados pelo génio da velha, acreditavam na condenação definitiva das suas vinhas, incapazes de competir, no que respeitava aos preços, com o gigante que agora se preparava para nascer. Porém, a multidão de pobres venerava a quinta que agora nascia. Era promessa de mais trabalho, a garantia de menos fome e o reconhecimento de que a Ferreirinha era a alma de um povo inteiro que não se vergava a arrancar cada pedaço de broa do chão que os via nascer e que os veria morrer.
Foi então que chegou a notícia. D. Antónia leu e Francisco Correia percebeu logo que chegara uma tempestade em forma de telegrama.
– O Governo quer impedir-me de plantar vinha em Vale de Meão por estar fora da área demarcada. Os intriguistas foram espernear para Lisboa.
Passou o papel a Francisco Correia, que reagiu indignado.
– Isto é uma loucura!
– É uma pulhice. E a canalha preguiçosa a envenenar os paspalhos da política para prejudicar quem trabalha. Mas isto não fica assim.
Levantou-se, decidida, em direcção ao quarto.
– O que é que a senhora vai fazer?
– Chama o Damásio para me levar à estação. Vou no primeiro comboio que partir para o Porto. E telegrafa ao governador civil e ao António Claro. Que vão ter a minha casa, pois já não chego a horas de falar com o coirao do governador em hora de expediente.
Francisco, embora habituado ao temperamento da patroa, ficava sempre atarantado com a rapidez das decisões.
– E vai agora? Sozinha? Não quer que eu a acompanhe?
– Não preciso de damas de companhia para enfrentar um poltrão.
Partiu, furiosa. A sua vida tinha uma história paralela para contar. Uma história de homens despeitados cuja função, acreditava ela, era colocarem-lhe armadilhas nos caminhos que decidia desbravar. Fora assim na luta contra o oídio. Voltara a sê-lo quando enfrentou as casas exportadoras, recusando baixar os preços do vinho. Resistiram como se fossem a quadrilha do Zé do Telhado quando declarou guerra à filoxera. Como costumava dizer Silva Torres, ao referir-se à classe dirigente e ao ambiente burguês do Porto e de Lisboa, Portugal era o único reino católico onde a inveja deixara de ser pecado e, por mistério insondável, transformara-se em virtude que se cultivava nos salões da alta sociedade comezinha.
D. Antónia não sabia conviver com a inveja nem com a intriga. Deixavam-na colérica e os seus ataques de fúria não escolhiam destinatário. Com o mesmo à-vontade zurzia o mais simples dos seus jornaleiros ou um par do reino.
Não admirava, pois, que no Porto, onde já a esperavam o governador civil e António Claro, o representante do Governo não escondesse o nervosismo. Andava de um lado para outro numa aflição que esperava piedade.
– Como é que vou explicar à dona Antónia que não tenho nada a ver com esses malditos telegramas? Eu nem sequer sabia que existia essa quinta do Vale do Meio.
– Do Vale de Meão – rectificou António Claro.
– Ou isso. E a prova de que estou inocente é que estou aqui. Recebi o recado e vim. Podia ter dito, não vou. A senhora que venha ao Governo Civil, que eu recebo-a. Mas eu vim. Porque estou inocente. Ainda por cima essa área não é da minha competência. Ela deveria ter ido falar com o meu colega de Vila Real.
Parou o vaivém pela sala e perguntou:
– Ela estará muito zangada?
António Claro, divertido com o medo da autoridade, carregou-lhe o resto.
– Bem-disposta é que a dona Antónia não deve vir.
Ainda ficou mais aflito.
– Mas isso não é justo. Não é justo! O senhor António Claro conhece-me bem, sabe do meu respeito por esta família. Em tempos, cheguei a apoiar o senhor Silva Torres quando andávamos com os regeneradores.
– Embora vossa excelência tenha mudado para os progressistas.
– Bem, isso foi depois.
– E agora é outra vez regenerador.
– Um erro. Nem sabe como estou arrependido. Seja como for, não sou visto nem achado nesse telegrama. Eu juro. Juro pelo que há de mais sagrado.
Nesse mesmo momento, Antónia Ferreira entrou na sala. Trazia o telegrama na mão.
Cumprimentou secamente.
– Boa noite.
Ao ver a figura austera, transbordante de cólera, o governador civil perdeu as estribeiras.
– Estou inocente, minha senhora. Inocente. Estava exac– tamente a explicar ao seu administrador que...
Ferreirinha cortou com secura os protestos.
– Cale-se, homem! Cale-se!
– Pronto, eu calo-me. Mas a senhora sabe que sempre teve em mim um criado que não...
– Oiça o que lhe vou dizer e oiça com atenção cada uma das palavras.
Tinha um jeito estranho de não transformar a ira em exaltação. Baixava o tom de voz, procurava o olhar do contendor e as palavras brotavam secas, sincopadas.
– Eu não sei nem quero saber se o senhor tem alguma coisa a ver com este telegrama. Não me interessa saber quem foi aquele que intrigou contra mim junto do Governo. Mas o senhor vai sair daqui direito ao primeiro telégrafo que encontrar e vai informar o parvalhão do Governo que emitiu esta ordem de que parto amanhã para a Régua, no comboio das dez.
– Mas, minha senhora, já é noite avançada!
Parecia que não o tinha ouvido.
– E se eu partir para a Régua sem que esta ordem tenha sido suspensa, o senhor, os seus colegas, o seu Governo, vão ver cair-lhes em cima uma tempestade que nunca imaginaram!
– Pela sua rica saúde!
– Faço um pé-de-vento de Barca d Alva à Régua, de Vila Real a Lamego, e trago comigo até ao Porto milhares de pobres famintos fartos da política do seu Governo, fartos de aturar malandros como o senhor e os seus colegas, que não há exército que nos vença, pois eu virei à frente deles. Percebeu?
Transpirava. As mãos tremiam-lhe quando recebeu o telegrama das mãos de D. Antónia.
– Eu faço tudo, mas guerra não.
– Guerra, sim. E grande! Porque não nos podem roubar duas vezes. Roubam-nos o direito de tratar das terras para produzirem riqueza e trabalho para toda a gente. E, depois, roubam-nos com os impostos sobre o nosso esforço para alimentar a sua preguiça e a dos seus amigos da política.
– Se ao menos a senhora me desse todo o dia de amanhã. A esta hora vai ser um bico-de-obra.
– Dou-lhe a noite inteira. Amanhã às dez horas quero a resposta. Tenha uma boa noite, senhor governador civil.
Saiu atarantado. António Claro não conseguiu suster o riso.
– Levou uma coça mestra.
– Foi pequena. Devia-lhe ter dado com um pau naquele lombo preguiçoso.
Não contiveram o riso. Por fim, António Claro perguntou-lhe:
– A senhora não vai fazer o que disse. Não vai invadir o Porto.
– Tu não sabes o que eu sou capaz de fazer quando sinto que a injustiça chega por maldade de gente que despreza o valor do trabalho. Temos mais de quatrocentas pessoas a labutarem no Vale de Meão. Quando a quinta estiver pronta, podemos dar trabalho a mais de mil, e estes políticos, movidos pela inveja, têm o atrevimento de tratar-nos como se fôssemos parasitas iguais a eles!? Que nem pensem ou não me chame Antónia Adelaide Ferreira.
O administrador não respondeu. Ficou a observá-la por instantes. A energia das palavras contradizia o cansaço que lhe inundava o rosto. As olheiras cavadas, o corpo curvado, eram sinais evidentes de que o esforço despendido provocava crescentes danos no corpo já envelhecido. Fosse como fosse, era um milagre da natureza, um prodígio inexplicável, ver aquela senhora, que caminhava para os oitenta anos, a brotar uma energia tão formidável como a nascente cristalina de um rio. Na realidade, pareciam ter razão aqueles que acreditavam que ela era o Douro, uma personagem mítica que possuía no temperamento o génio do Rio que transportava no coração, umas vezes doce, por largo tempo sereno e afável, para, de súbito, irromper forte e violento nos cachões e regressar à tranquilidade generosa, sendo dádiva e alegria.
– Não seria prudente ir descansar um pouco enquanto o nosso governador civil trabalha?
– Tens razão. Sinto os ossos zangados comigo de tanta canseira.
– Até amanhã, minha senhora.
Saiu, trôpega, da sala. A expressão de António Claro tornou-se grave. Trabalhava com ela há tantos anos que não sabia quantos. Aprendera a seguir a sua intuição rica para os negócios, estivera ao seu lado em todas as batalhas contra as pragas e, ao vê-la assim tão indefesa e tão cansada, não podia deixar de pensar qual seria o futuro do imenso império que haviam construído quando chegasse a sua hora. Nenhum dos filhos seria capaz de segurar o leme daquela pesada nau com a maestria da mãe, dos avós ou, até mesmo, dos bisavós. Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos que lhe trabalhavam o espírito. Agora, aquilo que importava era salvar a obra do Vale de Meão e, para que tal acontecesse, tinha de acreditar que o medo do governador civil iria fazer milagres durante a noite.
Acabava de romper o Sol em Gaia e António Claro organizava uma encomenda de trezentas pipas que iam embarcar para Inglaterra. Um grupo de homens rebolava-as pelo cais na direcção de um vapor que estava acostado. O cais de Gaia, em frentes aos armazéns da A. A. Ferreira, ficara coalhado de pipas marcadas conforme a data da produção e o tipo de vinho. A agitação dos estivadores era febril.
Foi então que reparou no governador civil, que vinha ao seu encontro. A roupa desalinhada e a palidez denunciavam a insónia.
– Bom dia, senhor governador.
– Bom dia.
– Vossa excelência madrugou.
– Madruguei, é como quem diz. Ainda não preguei olho. Olhe a minha roupa. Nem as botas descalcei. Mas, enfim, consegui resolver o problema. Não há guerra!
– Perdão?
– Foi o que lhe disse. Não há guerra.
Recuperara a compostura petulante e pomposa. Comentou, sarcástico:
– Afinal de contas, a sua patroa é pessoa de ferver em pouca água. Não havia razão nenhuma para ela tratar tão mal o Governo e os políticos em geral. È preciso respeito, não é? A verdade é que tudo não passou de um engano.
António Claro olhou-o, desconfiado.
– Um engano? Eu próprio li o telegrama e era bem claro.
O outro teimou, recalcitrante.
– Mas foi um engano infeliz. Já chegou aos vossos escritórios do Porto e da Régua um pedido de desculpas do Ministério e a explicação de que tudo não passou de uma distracção de um funcionário.
– Ainda bem. E o senhor governador o que deseja fazer? Vai dar essas explicações à senhora dona Antónia ou encarrega-me de o fazer?
– Eu? Deus me livre. Com o mau génio que tem, ainda acabava por me bater. Deus me livre! Diga-lhe o senhor. Ah, e que fique bem claro que eu não fiz isto por ter medo dela. Cumpre-me zelar pela paz e foi esta a minha preocupação. Para guerras, já nos chegou a guerra civil. Tenha um bom dia.
– Um bom dia a vossa excelência.
Ficou a ver o peralvilho a afastar-se por entre o mar de pipas. Uma mão no bolso do colete, uma bengala na outra, nem olhava os estivadores que com ele se cruzavam, descobrindo a cabeça numa vénia reverenciai. Era, de facto, um político, pensou António Claro. E o verdadeiro drama da política portuguesa era esse mesmo. Estava inundada de pessoas vazias de ideias, sem qualquer sentido de servir, tão vaidosas e medrosas como aquele fanfarrão bem vestido.
Antónia aconchegou-se no xaile. Encostou a testa à janela da carruagem, olhos fixos no Rio que corria ao lado. Estava contente. Agora ninguém pararia a obra da sua vida. Duas crianças desnudadas chapinhavam na água junto à margem e fizeram-na evocar os netos. Uma névoa de saudade toldou-lhe o olhar. Era uma dor endémica a saudade dos netos e várias vezes corria a Lisboa ou obrigava-se a ficar no Porto para, ao vê-los, curar a dor da solidão em afagos e brincadeiras que a tornavam também criança. Quem visse aquela velhota, resplandecente de felicidade, a brincar à cabra-cega ou às escondidas, não podia acreditar que tinha forças capazes de vergar montanhas. E governos, como era agora o caso.
Encostou a cabeça e fechou os olhos. Com o bambolear monocórdico do comboio começou a dormitar e o revisor, que passava, reconheceu-a. Hesitou se havia de a acordar para lhe pedir o bilhete. Esboçou um sorriso e continuou o seu serviço, deixando-a em paz. Também ele, que Ferreiri– nha apenas conhecia das viagens entre o Porto e a Régua, lhe estava grato. Quando à filha foi diagnosticada uma fraqueza nos pulmões, fora D. Antónia quem, numa viagem em que ele se queixava das suas aflições a outros passageiros, o chamara e lhe indicou o Dr. Queirós, encarregando-se de todas as despesas. Nem o nome dele sabia. Só muitos meses mais tarde, quando, com a menina curada, ele lhe trouxe de presente um bordado que ela própria fizera, para agradecer tão grande bondade. Soube, então, que ele se chamava Vicente.
A conversa com o juiz foi longa. O cartão de D. Antónia a solicitar os bons-ofícios do magistrado predispuseram-no a ouvir o bacharel. Diga-se que foi necessário armar-se de toda a paciência. Conhecia-o de três ou quatro julgamentos e as confusões que Vespúcio Ortigão criara com a sua argumentação barroca tinham levado o caos ao tribunal. Só de vê-lo o juiz ficava nervoso. Mas, agora, o assunto era grave e suportado pelas preocupações da Ferreirinha.
Quando Vespúcio terminou a exposição, o outro estava branco. Nunca imaginara que semelhantes atrocidades pudessem ter acontecido na sua comarca.
– O que pensa fazer? – perguntou, incapaz de raciocinar.
– É a grande oportunidade de mostrarmos ao reino e ao mundo que não precisamos de confissão para provar a culpabilidade de um criminoso.
Instintivamente esboçou um esgar de contrariedade.
– E como pensa fazer tal prodígio?
– Confie em mim. Garanto a vossa excelência que o conseguirei sem qualquer esforço. Aquilo que me faltava, para fazer o que digo, já cá está. O microscópio chegou ontem ao hospital da Régua.
O juiz desistiu de procurar entender. Não fosse o bilhete que estava em cima da sua secretária e há muito tempo que aquela audiência teria terminado.
– Vamos apanhá-lo em flagrante delito. O magistrado saltou na cadeira.
– Tem a certeza?
– Digamos que tenho quase a certeza absoluta. Porém, preciso de mais um favor de vossa excelência. Não posso montar a armadilha com guardas desta comarca. Bastava uma palavra e o boato nem precisaria de rastilho. Vossa excelência tem de requisitar forças a Vila Real. Pelo menos dois homens.
– Eu trato dessa questão. Mas há um pequeno pormenor que tem de ficar esclarecido. Estou a ouvi-lo e ajudá-lo de coração aberto porque a senhora dona Antónia Ferreira me pediu. No entanto, se esta história estranha sobre bruxedos e feitiçaria for mais uma das suas loucuras, aconselho-o a sair da Régua o mais depressa possível. Enquanto aqui estiver, vou fazer-lhe a vida negra e só descansarei quando der cabo de si.
– Fico muito grato a vossa excelência.
O juiz não percebeu se o outro falava a sério ou se ironizava da ameaça. Olhou-o de alto a baixo e, com visível desprezo, comentou:
– Não descubro uma única razão para que uma mulher com a grandeza da senhora dona Antónia consiga ter admiração por si.
– Nem eu, excelência. Nem eu!
Saiu aos pulos do tribunal. Perante a iminência de resolver o caso pouco lhe importavam os insultos do magistrado. A única coisa que valia era construir aquilo que Sherlock Holmes era incapaz de fazer. Pegar nos vestígios, interpretá-los e transformá-los num discurso coerente que permitisse a sua promoção a indícios, estabelecendo os respectivos nexos de causalidade com o criminoso. Era este o trabalho de detective que Holmes executava na perfeição, porém, Vespúcio queria ir mais longe. Desejava cumprir definitivamente os ensinamentos do seu mestre Locard, e conseguir, como se fosse o cântico dos cânticos, transformar os indícios em prova judiciária. Sem violações da lei, sem abusar de nenhum tios deveres de autoridade e, acima de tudo, sem necessidade de uma confissão. A realização do sonho perfeito!
Quase um século de debate, de discussões apaixonadas, de descobertas infinitas que, caso tivesse razão, poderiam ter na próxima noite o seu corolário redentor.
Era isto que explicava, com entusiasmo incontido, a Ti Paixão da Costa.
– Amanhã vou mostrar-lhes que chegou ao fim a idade das trevas. Vamos mergulhar no fundo da História. Séculos e séculos de tortura, de flagelações, de confissões ditadas a medo por legiões de inocentes. E assim mesmo, Ti Paixão da Costa. Amanhã acabará a necessidade de verdugos.
– Amanhã é sábado! – respondeu-lhe o ancião.
– É só isso que tem para dizer? Não percebeu?
– Amanhã é dia de lua cheia.
– Estou a falar de coisas muito sérias! – replicou, agastado.
– Pois é. Se Deus quiser, acho que faço noventa e oito anos para a semana. Ou noventa e nove. Sei que é no dia de Natal.
Desistiu. E deu consigo a penitenciar-se por ficar irritado com o velhote. Pôs-lhe o braço sobre os ombros e apertou-o com afecto.
– Dia de Natal vem almoçar comigo. Quero que toda a gente saiba que o meu maior amigo faz noventa e oito anos.
– Ou noventa e nove, não sei bem.
– E apanhamos uma bebedeira de caixão à cova.
O cachimbo riu na boca desdentada de Ti Paixão da Costa em tremeliques rápidos. Com o queixo, apontou um rabelo que começava a subir o Rio.
– Aquele vai para o Meão. A Ferreirinha meteu-se em grandes trabalhos.
-Já ouvi dizer.
Estava demasiado excitado para continuar aquela conversa mole. Levantou-se do banco e as pernas pareciam um saca-rolhas a desenrolar. Tinha muito que fazer antes que chegasse a noite desejada. Despediu-se do companheiro e já se afastava quando o ouviu chamar:
– Vespúcio!
– Diga.
– És a primeira pessoa que, nos últimos vinte anos, quer almoçar comigo no dia de Natal.
Olhou o ancião com ternura e estugou o passo. Queria ir à Quinta da Boavista e regressar à Régua antes de anoitecer. Ti Paixão da Costa continuou a seguir o rabelo e comentou:
– Noventa e oito ou noventa e nove. Quando o século começou tinha doze anos. Não sei bem!
Comeu o farnel, montado no cavalo que seguia a trote pelo carreiro. Avistou lá bem no alto a Quinta do Porto e presumiu que depressa chegaria à Boavista. As cepas estavam nuas, mas enroscadas, como se se defendessem do frio do Inverno. Deu consigo a pensar que não sabia nada sobre a praga de que tanto se falava. Os vinhedos estariam desfolhados por doença ou porque não era altura de terem parras? A pergunta embaraçou-o. Descobriu, subitamente, que não sabia nada sobre a sua própria terra. Conhecia a filosofia de Hegel, a teoria política de Teófilo Braga, exaltava-se com as descobertas de Pasteur e de Brouardel e não sabia quando é que um vinhedo deveria estar coberto de verde. Vespúcio Ortigão desatou a rir da sua ignorância. De nada lhe valiam os tratados e os romances, os poemas e ensaios que devorava durante horas infinitas, para conhecer a sua própria raiz. Reflectia, assim, sobre o seu analfabetismo vitícola, quando reparou num pastor que vigiava um rebanho de ovelhas um pouco acima da vereda por onde seguia. Gritou-lhe:
– Santas tardes! Sabe onde posso encontrar um caseiro da Boavista chamado Manuel Ventura?
– Sou eu – respondeu-lhe o pastor.
Chegara ao seu destino. Saltou do cavalo e dirigiu-se ao homem.
– Chamo-me Vespúcio Ortigão e sou advogado na Régua. Tem uma filha com dezasseis, dezassete anos?
– É a minha Rosália. Porquê?
Compôs um ar grave, olhou em volta como se temesse que alguém ouvisse, e disse:
– Precisamos de ter uma conversa muito séria, senhor Ventura.
– A minha rapariga fez algum mal?
– Não. Mas temos de acertar umas coisas, se não quer que façam mal à sua Rosália.
E começou a explicar ao que ia, com palavras simples e controlando a emoção. A história era extraordinária. Era claro que o pastor ora se espantava, ora desconfiava do que o bacharel estava a narrar, e Vespúcio, no fim da conversa, ficou com a impressão de que o outro não acreditou no discurso fantástico que acabara de ouvir.
Fixou o olhar nos pés nus por longo tempo que pareceu uma eternidade ao causídico. Por fim, condescendeu.
– Já desconfiava desses lobos que matavam as moças e nem por uma vez me vieram às ovelhas. Mas também não sei se aquilo que me conta é ou não verdade.
– Dou-lhe a minha palavra de honra. As autoridades estão avisadas.
– Que estejam. A vida ensinou-me a desconfiar das autoridades. Podem tudo e não dão nada.
Começava a ficar inquieto com as dúvidas do homem e, se ele não participasse na armadilha que tinha engendrado, bem se podia escapar a presa que tanto desejava apanhar.
– Mas se a patroa Ferreirinha está a par de tudo, mesmo que seja estranho o que acaba de dizer, faço o que for preciso. Sou capaz de furar de ponta a ponta quem quiser fazer mal à minha rapariga!
Uma onda de alegria invadiu Vespúcio. Agora tinha a certeza de que tudo ia dar certo. Explicou ao pastor aquilo que era preciso fazer, repetiu várias vezes até o outro perceber e recomeçou até que achou que estava tudo claro.
– Compreendeu tudo o que lhe disse?
– Pode ir vossa senhoria descansado que não me esqueço de nada.
– Pelas alminhas, não conte a ninguém esta conversa. Amanhã, fala com a sua filha e diz-lhe o que têm de fazer, mas sem a assustar. Tudo tem de parecer natural.
– Assim será! – respondeu solenemente.
Regressou à Régua, satisfeito. O pastor era desconfiado, mas esperto. Plavcria de cumprir à risca a missão que lhe destinara. Agora só faltava mais uma diligência para tudo estar preparado. Dirigiu-se à casa do padre João Matias. Anoitecera quando largou o cavalo e bateu à porta do sacerdote. Apanhou-o a cear.
– Chegaste mesmo a horas. Queres cear?
– Como qualquer coisa.
A governanta trouxe-lhe um prato e Vespúcio serviu-se do caldo.
– Um caldo de couves para aconchegar! – celebrou o padre.
– Está muito bom!
A governanta sorriu com o cumprimento e foi para o interior.
O padre João Matias adiantou-se na conversa.
– Falei com o doutor juiz e disse-me que está tudo tratado.
– Quase tudo. Falei com o pai da Rosália c concordou em ajudar-me.
– Disseste quase tudo.
– Disse.
– O que é que falta?
– Aquilo que preciso que o senhor padre faça.
– Eu? – perguntou surpreendido.
– É a única pessoa de conliança que conheço para se disfarçar de mulher.
Q padre engasgou-se com a sopa. Vermelho pela força da tosse, perguntou, indignado:
– Que conversa é a tua, Vespúcio?
Sem deixar de engolir o caldo, este respondeu com naturalidade:
– Pensei no Crisóstomo, mas é casado e tem filhos para sustentar. Eu não posso disfarçar-me porque sou demasiado alto e o nosso diabo desconfiava. O senhor padre tem a medida certa. Ainda por cima, se alguma coisa correr mal e vier a morrer, não deixa ninguém em aflição.
Soltou um berro indignado:
– Vespúcio!
Ao que o bacharel retorquiu com ironia:
– Se fosse o meu pai, o abade de Trancoso, não lhe podia pedir o mesmo. Tinha pelo menos seis filhos para criar. Já viu como é bom ser um padre virtuoso?
João Matias ficou lívido. Afastou a malga com um gesto de enfado.
– Perdi o apetite.
– O pai da cachopa vai arranjar-me roupa dela. – Falava como se o sacerdote estivesse de acordo e continuou, indiferente: – O senhor disfarça-se. Rosália sai de casa ao lusco-fusco. Vai andar por ali de forma que seja vista. Quando ficar mais escuro entra no curral das ovelhas, onde o senhor estará escondido. O sinal para sair é dado pelo Manuel Ventura, que gritará: «Rosália, vai buscar as ovelhas.» E aí o senhor padre sai, desce a encosta em direcção aos animais. Tenho a certeza de que vai ser atacado quando chegar ao vale. É aí que entro eu em cena com os dois guardas.
O padre levantou-se, irritado, atirando com o guardanapo para cima da mesa.
– Não acredito no que estou a ouvir. Não acredito! Tu enlouqueceste de vez, Vespúcio Ortigão?
– Porquê? – perguntou ingenuamente.
– Entras na minha casa, pedes-me que me vista de mulher e contas, enquanto comes o meu presunto, que vou ser atacado, possivelmente morto? – E gritou novamente: – Pára de comer que estou a falar contigo!
– Não percebo a sua irritação. É padre, tem obrigações de ajuda ao próximo que mais ninguém possui, sei que deseja que a onda de crimes pare de vez, tem o corpo parecido com o da rapariga. Estou a pedir-lhe alguma coisa que não seja do seu interesse realizar?
– Já imaginaste se alguém me vê vestido de mulher?
– Ao longe, a sua batina são saias.
– Mas é uma batina. Um hábito sagrado!
Não resistiu à ironia.
– A sua ira contra mim é a prova do aforismo de que o hábito não faz o monge. Cristo morreu por todos nós. Eu estou apenas a pedir-lhe que se vista de mulher para que uma das suas almas não morra.
– Posso eu morrer e também sou uma alma do Senhor.
– Não vai morrer porque eu não deixo. Mas, se tal acontecer, será uma glória para si quando a sua alma entrar no Reino dos Céus.
– Deixa-te de ironias.
– Posso comer mais um bocado de presunto? É magnífico.
O sacerdote deixou-se cair na cadeira. Olhava Vespúcio e meneava a cabeça, incrédulo com a situação. De repente, deu um murro na mesa.
– Raios!
E tornou a levantar-se. Vespúcio serviu-se de mais vinho, emborcou-o com entusiasmo e aplaudiu.
– Belo vinho! E da sua vindima?
O padre João Matias não lhe respondeu. Agora estava de cabeça encostada à parede como se meditasse. Por fim, voltou-se para o bacharel.
– Muito bem. Vou fazer o que me pedes. Mas, se tudo isto não passou de mais uma das tuas loucuras, esquece que eu existo.
Sorriu satisfeito.
– Hoje é a segunda vez que alguém me diz o mesmo. Embora o nosso juiz tivesse sido um bocadinho mais bruto.
Levantou-se. Limpou a boca à manga da camisa e bebeu o resto do vinho.
– Então estamos combinados. Amanhã, antes do pôr do Sol, encontramo-nos na Boavista. Obrigado pela ceia, santas noites.
E saiu. O padre João Matias estava sem forças. Nem conseguiu responder. Só uma preocupação agora o obcecava. Tinha de falar com o velho padre Augusto. Queria confes– sar-se antes de morrer. Sabia que era a única forma de ser recebido no céu e descansar tranquilo no esplendor da luz perpétua. Com esta preocupação foi para o quarto. Em vez do terço que rezava todas as noites, foi buscar um rosário. Antecipava a penitência que o padre Augusto haveria de lhe prescrever e, simultaneamente, suplicava a Deus que não o levasse tão depressa.
Vespúcio não dormiu. Nem chegou a ser insónia. Apenas não lhe apetecia dormir. Tinha necessidade de gozar cada minuto do encontro com o monstro terrível que nos últimos anos destruíra brutalmente a vida de seis infelizes. Passou os olhos por um ou outro livro, passeou pela casa, espreitou durante muito tempo pela janela, procurando adivinhar quantas candeias estavam acesas no cais.
O Douro dormia abrigado do frio e a Lua, no céu limpo, anunciava a chegada da sua fase de maior esplendor. Seria no dia seguinte. Recordou uma gravura que viu algures, onde uma bruxa, montada numa vassoura, voava pelos ares, percebendo-se, em sombra chinesa, o seu voo para o caminho de um malefício.
Não duvidava, nem por um instante, de que tudo iria correr conforme o previsto. Sabia que estava na cabeça da pessoa que preparava os crimes. Sherlock Holmes dera-lhe a lição decisiva. Era essencial pensar o que um criminoso pensou para decidir, e consumar, um crime. E ao olhar a Lua em véspera de solstício era com indistarçável orgulho que relembrava o momento em que penetrou no âmago da magia mais cruel de todas as narrativas de feitiçaria que estudara.
Amanhecia quando pancadas fortes na porta sobressaltaram Vespúcio. Foi abrir. O padre João Matias entrou, desabrido.
– A Viúva Negra esteve na missa das seis.
Vespúcio soltou uma gargalhada.
– Deve ter ido roubar água benta.
– Não brinques. Estou demasiado nervoso com tudo isto.
– É desnecessário. Nem o seu nervosismo resolve a visita da bruxa à sua igreja, nem a água benta resolve o problema da bruxa.
De súbito, o padre parou.
– Vespúcio, tens a certeza do que planeaste?
– Não falhará um único pormenor.
A serenidade do advogado apaziguou-o.
– Deus te oiça. Deus te oiça!
Vespúcio Ortigão agarrou-lhe os dois braços e enfrentou-o com uma sobriedade que não era habitual.
– Se não duvida de Deus, não duvide da Razão. Está a viver um momento divino. Não tenha medo de que o seu Deus se revele através da desarticulação racional de um crime. É um imperativo bíblico. Não matarás! Como pode licar inseguro quando nos preparamos para cumprir um mandamento com esta importância?
Ergueu os olhos para o céu e respondeu:
– Que o Altíssimo nos proteja. Até logo. O padre Augusto está à minha espera.
E saiu tão apressado quanto entrou. Vespúcio preparou-se para a operação. Retirou da parede um enorme cajado de carvalho que lhe enfeitava a casa desde que, há cerca de uma dezena de anos, o comprara na feira de Lamego. O cabo fora modelado por um estranho artesão que desenhara um grupo de sinais hieroglíficos que lhe haviam causado admiração. Tomou-lhe o peso. Embora fosse um desconcertante objecto de adorno era, na verdade, uma arma poderosa. Munido do instrumento, partiu. Ia encontrar-se com os guardas vindos de Vila Real para montar a armadilha.
Explicou-lhes vezes sem conta como tinham de proceder. Escolheu o esconderijo de cada um entre os salgueiros que inundavam o vale, recomendou mil vezes que não fizessem barulho, e informou até ao cansaço que só deviam agir ao seu sinal.
Estavam já escondidos quando viu passar o padre João Matias a caminho da Boavista. Antecipara-se à hora marcada e Vespúcio Ortigão respirou de alívio. Foi, então, que percebeu o coração. Batia, desenfreado. Quase acreditava que o som era mais forte do que o barulho do Douro a correr mais abaixo.
O Sol caía no horizonte por detrás das montanhas, quando ouviu um barulho estranho. Apurou o ouvido e não teve dúvidas de que se tratava das patas de um animal a caminhar a passo por entre a vegetação. A mão criminosa estava perto e aconchegou-se com força contra a rocha que lhe servia de camuflagem. Quem montava a besta não estaria a mais de dez metros de distância.
Nesse momento, o tempo transformou-se num paradoxo. Pareceu-lhe que cada minuto se eternizava e que, ao mesmo tempo, se desvanecia num suspiro. Olhou para o alto, viu Rosália perto de casa e teve a percepção de que quem vigiava, um pouco mais adiante, se escondeu. Estavam ambos entre a rapariga e o rebanho de ovelhas que chocalhava na outra encosta, onde naquele momento desaparecia o último raio de Sol e a noite começava a entrar, determinada. Segurou o cajado com mais força. Estava na hora.
Parecia que o pastor ouvira o seu pensamento e gritou:
– Rosália, vai recolher as ovelhas.
Instantes depois um vulto de mulher começou a descer a encosta. Sentiu os passos do inimigo à sua frente, preparando-se para anunciar a morte, e saiu do esconderijo, silencioso como uma serpente, em direcção à presa. Depois foi todo o tempo de um relâmpago. A sombra à sua frente ergueu o varapau assassino, Vespúcio saltou e com o cajado desferiu dois golpes. A arma assassina caiu ao chão e a sombra, soltando um grito, caiu também.
– Apanhei-o! – gritou Vespúcio. E os dois guardas surgiram do negro, de armas apontadas ao assassino.
O padre João Matias aproximou-se e já viu Vespúcio montado no bandido, que jazia, esquadrinhando-lhe os bolsos. Acorreu o pastor com uma candeia e iluminou o grupo. Vinha alvoroçado.
– Agarrou-o?
Quando a luz iluminou o rosto do vencido, o padre esqueceu-se do pudor devido às roupetas femininas que envergava e exclamou, aterrado.
– Doutor Guimarães! ?
Respondeu-lhe Vespúcio, exibindo um bisturi.
– Aqui está o criminoso. Era com isto que rasgava o ventre das raparigas.
O médico, atordoado, não resistiu às manápulas dos guardas, que o arrastavam até ao local onde estavam escondidos os cavalos, e o sacerdote tornou a exclamar, atónito:
– O Doutor Guimarães! Quem havia de dizer?
– Eu! – respondeu Vespúcio com humildade. – Há muito tempo que sabia que era ele.
– Mas como?
Não resistiu a gozar aquele momento de glória.
– Convide-me para comer o resto do seu presunto e para beber o vinho que tem escondido na sua adega. Ao segundo copo não resisto e confesso.
– Mereces tudo, Vespúcio. Deus te proteja.
– E o senhor vá despir essa farpela antes que Deus se envergonhe da sua figura. Eu não tinha razão. Faz uma rapariga mais feia do que o diabo.
O pastor abraçou-o, agradeceu de mãos postas ao céu, quis oferecer-lhe o pouco que tinha de seu. O homem, no seu infinito reconhecimento por lhe terem salvo a filha, não os deixava partir sem lhes dar fosse o que fosse. Começou por, esforçadamente, querer que levassem uma ovelha cada um. Acabou com um copo de vinho. Era tarde e tinham de regressar à Régua.
Para Vespúcio a tensão dos acontecimentos desse dia convertera-se em fome. Ao padre João Matias, em alegria. Tinha para si que fora um testemunho da providência divina a salvação de Rosália, e estava decidido. Nas próximas homilias, iria apresentar Vespúcio como a mão justiceira de Deus.
– O senhor padre é o exemplo vivo da nossa tragédia nacional. É o oito ou o oitenta.
O sacerdote desatou a rir.
– Uma afirmação dessas vinda da tua boca é para rir, sim senhor. Se alguém tem fama de maluco por causa dos excessos, não sou eu.
– No entanto, ontem à noite ameaçou-me de excomunhão, hoje quer anunciar a minha beatificação.
Comiam com apetite. A governanta tinha preparado vitela assada no forno.
– Quando amanhã se souber, vai ser um escândalo. Como descobriste que era o Guimarães? Conheço-o há trinta anos e, tirando o vício da pesca, parecia-me um anjinho. Não era grande médico, lá isso não era, que o pessoal em grande aflição demandava Vila Real. Mas assassino?!
Vespúcio Ortigão tomou a repetir o assado.
– Está uma delícia! – E respondeu: – Deixe-me corrigi-lo. O doutor Guimarães não é um mau médico. E um velho médico.
– Como?
– Um herdeiro da antiga medicina retórica. Um ignorante e, ao mesmo tempo, um vigarista. Comecei a desconfiar desde quando lhe pedi que fizesse a autópsia de uma das raparigas. Respondeu-me que não sabia. Talvez desconheça a técnica, mas conhece cirurgia e não pode deixar de saber anatomia em profundidade. Era muito difícil que uma bruxa, como a Viúva Negra ou a Inácia, provocasse incisões tão precisas que atingissem à primeira os ovários das vítimas. Ainda por cima é esquerdino. Ora todos os cortes incidiam da direita para a esquerda. Um dextro não deixaria um vestígio com esta particularidade. O doutor Guimarães é o produto acabado dos nossos médicos dos tempos antigos. Uma mistura de curandeiro, mágico e adivinho. Ainda segue o empirismo rudimentar de Hipócrates e acredita no vitaíismo de Galeno. Sobretudo, Galeno fez um esforço interpretativo no sentido de articular o princípio vital com a legitimação divina da vida.
Fez uma pausa. Depois enfrentou o padre João Matias com gravidade:
– A verdade é que o experimentalismo moderno e os avanços da anatomia e da anatomia patológica revelam uma terrível verdade. Nenhum bisturi até hoje encontrou um pedaço de alma. É o seu drama, meu caro. Existe um abismo terrível entre o seu conhecimento teológico e o conhecimento científico. A grande síntese entre a irracionalidade das crenças e a racionalidade objectiva está por fazer. Nem Descartes, nem Pascal, nem o nosso Kant, nem o seu amado São Tomás de Aquino conseguiram a perfeição. – Soltou uma gargalhada e concluiu: – Até porque o determinismo positivista não é mais do que uma crença. Processos mágicos a que o laboratório dá legitimidade.

O padre bebericava enquanto o ouvia. Quando terminou a vitela, respondeu-lhe à letra.
– Essa erudição toda provoca-me indigestão. Como é que soubeste que o velhaco do Guimarães era o assassino?
– Tive a certeza quando me fez uma sangria. Executou-a na perfeição utilizando a lanceta com a mão esquerda. Então, descobri que tinha sido um estúpido. Andei à procura da pata de um asno. Fui a Vargelas com o molde que recolhi das patas do burro do João dos Rafeiros e percebi que a marca era maior. Comecei a procurar o bruxo que utilizasse cavalo. Só o Morto-Vivo usa um para puxar a charrete, mas não era possível ser ele. Até que resolvi fazer moldes das patas do meu cavalo para comparar com as marcas deixadas pelo animal do assassino. Eram maiores! Ou era um burro grande ou um cavalo mais pequeno do que o meu. Levei semanas para descobrir. Tinha de ser uma mula e, depois de vigiar o Guimarães durante algum tempo, é que descobri que andava de mula. Recolhi o molde um dia que ele foi ao Pesinho. Encaixava na perfeição. Até a ferradura partida.
– Foi preciso paciência de santo! – exclamou o padre João Matias.
– Quando vi o cadáver de Vargelas, tinha cabelos na mão. Só podiam ser do assassino. Entreguei-os ao juiz para os comparar com os cabelos do Guimarães. Graças ao microscópio oferecido pela dona Antónia, tenho a certeza de que são iguais aos do bandido.
O padre estava estupefacto com a narrativa. Levantou-se e foi buscar mais vinho. Encheu as duas canecas e tornou a sentar-se.
– E abria a barriga das mulheres com que fim? Se as matava à paulada...
– Precisava de sangue para as suas mezinhas. Sangue puro de uma virgem, sangue recolhido antes de apodrecer e de sair do corpo durante as regras. E uma antiga mezinha utilizada por feiticeiros celtas. Misturado com sangue de galinha e massa de trigo benzida, depois de cozido faz um pão que cura doenças de barriga e dá força às mulheres que não conseguem ter filhos. Dissolvido em água benta, deixa os campos estéreis. Guimarães acreditava que podia espalhar a morte por todas as terras do Douro e o alastramento da praga confirmou os seus poderes mágicos.
– A sério? – O sacerdote esbugalhou os olhos.
– Estou a falar de bruxaria, senhor padre. De um saber irracional e ilógico. Sei lá se faz bem. Se quer a minha opinião, não faz bem nem mal. O Guimarães acredita nestas mezinhas com a mesma fé com que acredita nas purgas, nas sangrias e nas tisanas. É um saber velho, vindo do fundo dos séculos e que levou à fogueira muitos desgraçados que vivem na mesma fé curandeira do doutor Guimarães. – E concluiu com ironia: – Só que o Guimarães é bruxo com diploma. Formou-se em medicina.
O padre começava a perceber a ideia do bacharel e acei– tava-a com reservas.
– Não sei. Não existe mezinha que possa resultar violando o mandamento que diz: não matarás! Só pode ser obra do diabo.
– A diferença é que a antiga poção celta, corrigida pelos bruxos medievais, era recolhida dos cadáveres de virgens que morriam de morte natural e o bandido matava por ódio.
– Se ele mal conhecia as vítimas, como é que as podia odiar?
– Ódio à senhora dona Antónia Ferrcira.
– É impossível? A dona Antónia é uma santa. Ajuda toda a gente. Não! Nessa não acredito.
– Sendo assim, acabou-se a história.
O padre ainda acorreu, apressado.
– Espera. Quero saber o resto.
Porém, Vespúcio Ortigão já estava exausto. Passara uma noite sem dormir e o vinho entorpecia-o cada vez mais. Acenou negativamente, bocejou e respondeu sarcástico:
– Vossa Senhoria está novamente a esquecer os ensinamentos de Cristo e a tomar-se num homem de pouca fé. – E recitou: – Em verdade, em verdade vos digo que só aqueles que acreditam acederão à minha verdade. E agora vou dormir. O seu vinho podia substituir o clorofórmio das cirurgias. Deixa qualquer infeliz como eu sem sentir o corpo.
Fez o sinal-da-cruz, benzendo o padre, e rematou:
– Uma santa noite. Que Deus lhe guarde o sono, porque hoje portou-se bem. Embora tivesse ficado uma mulher muito feia!
Saiu, deixando o padre embasbacado. Ainda quis responder, mas desistiu. Vespúcio tinha o condão de o desorientar. Também abriu desmesuradamente a boca e, de repente, percebeu que se sentia muito cansado. Relembrou o outro a benzê-lo e foi com um sorriso bem-disposto que foi deitar-se. Podia, na realidade, dormir em paz. Tinha ajudado a salvar uma vida.
A notícia da prisão do Dr. Guimarães fez estremecer o Douro. Afinal de contas, não era Inácia do Mileu quem espalhava a filoxera, mas sim o médico, que, por artes mágicas, lançara o feitiço que fazia aumentar os mortórios, secar as cepas e trazer a fome. O espanto associou-se à indignação e, do baú já enferrujado das memórias antigas, saíram os exorcismos e castigos contra o filho de Satanás. Uma multidão de camponeses arruinados e de pobres famintos juntou– se para queimar o feiticeiro. Toda a gente sabia que o fogo purificaria o Maldito e com a sua morte os campos saíam limpos do padecimento a que estavam condenados por malefício tão terrível. Foi preciso reforçar a guarda e, mesmo assim, só disparos para o ar e muitas bastonadas impiedosas conseguiram dispersar a massa humana que reclamava o auto-de-fé.
Vespúcio Ortigão confirmava as suas piores certezas. O Portugal velho, medievo, embrutecido pelo medo, perpetuado por costumes atávicos, sobrevivia, pujante de força, às revoluções do pensamento, às vitórias liberais, às descobertas científicas, como se fosse um magma poderoso e lento, senhor incontestado e absoluto das terras e dos rios, das vilas e aldeias, dos lugares e das quintas, de todas as almas hesitantes entre o anúncio da bondade divina e da maldição temerosa do inferno. O velho reino apenas era beliscado pela oratória republicana, pela euforia socialista, ou pela insurreição anarquista. Continuava voluntariamente sujeito às grilhetas da ignorância que procura afastar a morte, invocando- -a como acontecimento regenerado. Teriam de passar séculos para que o esforço de Cristóstomo, o mestre-escola, com a ajuda da Cartilha Maternal, fizesse despontar alguma luz no tenebroso mundo de medos onde habitava aquela gente, que, ante os seus olhos, reclamava o fogo purificador para o Dr. Guimarães expiar, e se libertar, do seu pacto diabólico e ganhar na morte a tranquilidade dos justos.
Afastou-se, melancólico. Aquela insurreição a que os guardas procuravam pôr cobro a todo o custo representava a pedra tumular que se baixava e fechava a vitória que obtivera em nome do progresso e da ciência. Foi sentar-se no costumeiro banco das lamentações, ao lado de Ti Paixão da Costa.
– Estou triste, Ti Paixão da Costa. De nada valeu o esforço para louvar o tempo novo.
– Já sei que prendeste o bruxo do Guimarães.
– Salvei algumas vidas, mas desenterrei os demónios do passado. Querem queimá-lo.
O velho riu.
– Esse passado que falas c o nosso presente.
Olhou-o intrigado. O velho senil acabara de sintetizar o tumulto da amargura que lhe doía na alma.
– É verdade. Todo o passado é o nosso presente. É por isso que estou aqui. Sou presente e amanhã faço noventa e oito ou noventa c nove anos de passado. Não sei bem.
Ficou em silêncio. Compreendia agora melhor a luta titânica que a Ferreirinha travava há mais de uma década contra a filoxera. O combate tenaz para substituir os processos de plantio das vinhas, da mergulhia para a enxertia, era um combate cuja dimensão só agora entendia em toda a plenitude. Não era apenas um esforço técnico, um golpe contra os insectos. Utilizava o presente para modificar o passado e, claro!, ninguém devia admirar-se ao perceber que a multidão que queria queimar o Dr. Guimarães era a mesma que entrou em insurreição quando a Ferreirinha decidiu alterar os processos de cultivo. A velha era sabida. Percebera tudo há muito tempo, sem necessitar de pilhas de livros e do testemunho dos sábios que Vespúcio idolatrava. Era o motivo por que naquela tarde, nas Nogueiras, quando o bacharel lhe confidenciava as suas preocupações, lhe aconselhou perseverança. Perseverança era a arma para vencer a imensa nuvem de escuridão que não permitia que o presente iluminasse o passado.
O dia estava frio. O comboio apitou, anunciando o arranque da viagem para o Porto. Pela zona ribeirinha passavam estivadores fugidios, como sombras a esconderem-se do frio. Deu uma palmada amigável no ombro de Ti Paixão da Costa.
– Amanhã almoçamos os dois para celebrarmos o seu aniversário.
– São noventa e oito ou noventa e nove, não sei.
Apetecia-lhe ver a Ferreirinha. Tinha a obrigação de lhe dar algumas respostas. Fora a primeira pessoa a admitir que as suspeitas dele eram fundamentadas e, ainda, contribuíra para que fizesse a sua demonstração científica. Oferecera o microscópio que iria permitir a comparação dos cabelos.
Recebeu-o no jardim e era evidente a ansiedade da velha senhora.
– Ainda bem que vieste! – exclamou com alívio. – Estava de partida para o Vale de Meão quando soube da notícia. Ia mandar o Damásio à tua procura. Que loucura foi esta, Ves– púcio? O assassino é o doutor Guimarães? Tens a certeza?
– A certeza absoluta, dona Antónia.
– Mas como, santo Deus? Conheci os pais dele. Era sua amiga. Vi-o crescer. O que se passou na cabeça daquele rapaz?
– É doente, dona Antónia. Um psicopata. Alguém que o ódio cegou. Odio contra todos e, sobretudo, contra si.
– Porquê? Eu nunca lhe fiz mal.
– Ficou com as vinhas que eram da família. Atribuiu-lhe a responsabilidade pela morte dos pais quando ficaram na ruína.
D. Antónia desesperava. Foi com os olhos coalhados de lágrimas que respondeu, indignada.
– E falso. É tudo falso.
– Eu sei.
– As propriedades iam à praça por causa das dívidas e por metade do preço. Falei com o meu marido, porque tive pena deles. O pai do Guimarães brincou comigo, nesta mesma quinta, quando éramos crianças. A proposta que lhe fizemos foi emprestar-lhe dinheiro sem juros, para que pudesse pagar as dívidas sem que o tribunal lhe levasse o ganha-pão. Não quis. Lembro-me de ele ter dito que o filho se formara em medicina e a vida já não contava. Estava num estado de mortificação tão grande que percebi que tinha desistido de viver. Pedi ao Francisco Silva Torres que lhe comprássemos as vinhas. Pagou-se-lhe acima do valor real. Saldaram-se as dívidas aos credores e sobrou dinheiro para que tivessem uma velhice com dignidade. Fiz mal? Mereço tanto ódio por ter sido generosa para com um velho amigo?
Ajudou-a a sentar-se num dos fontanários do belo jardim.
– Ele não pode perceber o seu gesto altruísta. Relacionou a morte dos pais com a venda das propriedades e não separou as duas coisas. A revolta e a raiva associadas ao luto transformaram-se em obsessão. Daí à doença foi um passo. A senhora era o alvo do sofrimento que teimava em não se libertar. Decidiu vingar-se. Quis que experimentasse o mesmo sofrimento que o dilacerava. Daí as mortes das filhas dos seus caseiros e a preparação de poções mágicas para ajudar a filoxera a alastrar. Sabia que, por cada mortório que a praga fazia, aumentava a sua dor, pois toda a gente sabe como ama os vinhedos e como tem lutado contra a filoxera.
– Tudo isto parece um pesadelo, santo Deus!
– Sei que é o espírito mais generoso e dedicado que vive neste Rio e nestas montanhas. É a grande amiga de toda a gente e é inteligente para conseguir perdoar-lhe. A senhora não fez nada de mal e quando pensar no pesadelo, como lhe chama, não ignore que o doutor Guimarães é um alienado. Um doente.
– Que raio de doença é essa que o leva a fazer mal a inocentes?
– Não sei. Ninguém sabe. As doenças da razão ainda estão por esclarecer. Um médico francês fez alguns estudos e experiências. Chamava-se Charcot. Até o nosso poeta Antero de Quental foi a Paris consultá-lo. Mas não é conhecimento seguro. Li há bem pouco tempo que um outro médico está a fazer alguns avanços neste domínio. É um tal Freud, mas ainda é cedo para saber se as suas reflexões são ou não para levar a sério.
D. Antónia ficou em silêncio. As mãos apoiadas na bengala e o olhar fixo na araucária que estava à sua frente. Vespúcio lembrou-se de Ti Paixão da Costa. Aquela era a posição favorita do velho no banco à beira do Rio.
Nesse momento, rompeu pelo jardim o padre João Matias. Quase corria, excitado com as novidades.
– Os cabelos que encontraste na mão da infeliz que estava em Vargelas pertencem ao doutor Guimarães. O juiz não teve dúvidas em mantê-lo preso e vai mandá-lo para a cadeia da Relação antes que o povo faça justiça pelas próprias mãos.
– E o Guimarães confessou? – perguntou Vespúcio, sem conter a ansiedade.
O padre conhecia as grandes utopias que moviam o entusiasmo do amigo e não escondeu o prazer que tinha na resposta.
– Não, não confessou.
Vespúcio esqueceu-se de que estava junto de D. Antónia e desatou aos saltos.
– É isto! É isto!
Abraçou o padre, abraçou a amiga, dançou, esticou os braços e gritava:
– É isto!
Ferreirinha olhava, intrigada.
– Qual é a razão desta alegria?
– Acho que Vespúcio está a celebrar uma vitória. Derrotou Sherlock Holmes.
– Senhor padre! Também ficou doente da cabeça?!
Vespúcio Ortigão não deixou o outro responder.
– Uma grande vitória, senhora. Mas não é minha. É de Edmond Locard. É a vitória da investigação criminal e o fim dos julgamentos sem justiça. A confissão tornou-se numa bagatela, apenas um apêndice, perante o desfilar das provas materiais.
– E qual foi a derrota desse tal Sherlock Holmes que tanto admiras? – perguntou, desconfiada.
– E admiro. Foi graças a ele e à senhora que resolvi o mistério. Mas não foi preciso violar a lei e Sherlock Holmes despreza a norma. É esta a vitória. A investigação criminal é possível! Um dia deixará de ser uma experiência feita por um bacharel sem préstimo e será o grande cabouco da Justiça.
A Ferreirinha não conseguiu conter o riso.
– O que estás a dizer é capaz de ser uma coisa bonita, mas não percebo nada, nem tão-pouco aquilo que possa ter feito para me enfiares nessa vitória que te pôs aos pulos.
– Ofereceu o microscópio. Sem ele não seria possível comparar os cabelos. – E sem diminuir o entusiasmo proclamou: – Chegará o dia em que os polícias deixarão de usar espingardas e estarão armados de microscópios, de provetas, de lunetas, de máquinas para fazer retratos e de bisturis de dissecação de cadáveres. Daqui por um século volto a falar com a senhora sobre isto e vai ter de admitir que tenho razão.
O delírio de Vespúcio pôs a Ferreirinha e o padre João Matias bem-dispostos. O sacerdote adiantou-se.
– Daqui a um século já não estaremos cá.
– Quem é que lhe disse?
– Não é preciso que alguém o diga. Ninguém vive tanto tempo.
– A propensão do senhor padre para o disparate faz com que duvide se é mesmo padre. Não é o senhor que garante que a morte não existe?
– Mas falo da morte da alma.
– A morte não existe. A verdade é que a vida continua enquanto estivermos vivos na memória daqueles que nos recordarão por esses séculos fora. Sc não fosse tão anti-repu– blicano e lesse o Teófilo Braga, sabia desse céu que existe na memória dos vivos.
Voltando-se para D. Antónia, informou-a, bem-disposto:
– E a senhora, que diz que não é republicana, mas que despreza reis, acredite em mim, que o padre João Matias é um homem de pouca fé. Daqui por cem, duzentos anos, a Ferreirinha do Douro continuará viva, pois habitará a memória dos homens.
– Devias ir consultar esse tal Charcot ou esse Freud de quem falas. A tua cabeça, por vezes, não é de gente com juízo. Ficou encantado com a resposta que lhe veio à mente.
– Tem razão. Os meus delírios às vezes assustam-me, mas há uma mezinha mágica que os cura. Ainda por cima é a senhora quem a possui! – E com candura forçada perguntou: – Não tem por aí um miserável cálice que seja de uma qualquer das suas colheitas especiais?
Depois da surpresa, D. Antónia segurou-se à bengala e levantou-se.
– Tens razão. Vamos abrir uma garrafa especial que o momento é especial. Continuo sem perceber os teus discursos, mas acabaram-se os crimes. Merece celebração.
– A senhora é a melhor médica do mundo. O padre João Matias não bebe porque é pessoa de muito juízo.
O sacerdote deu-lhe uma cotovelada e Vespúcio, divertido, piscou-lhe o olho com uma careta. E seguiram a Ferreirinha até à garrafa encantada, cheia dos mistérios mágicos tio vinho. Mas esses não preocupavam Vespúcio. Celebrava-os como uma dádiva divina.
Vale de Meão modificava-se a olhos vistos. O vetusto e sóbrio monte parecia donzela enfeitada de cores garridas. Ao longo da comprida estrada que se abria entre os vinhedos, fiadas de amoreiras sugeriam uma parada de soldados alinhados, sentinelas eternas das cepas que cresciam viçosas. No cimo, dos tons verdes sobressaíam as flores das amendoeiras, enquanto o olival corria, arrumado e de saúde, até aos pinheirais que povoavam todo o cabeço.
O empreendimento, que para muitos era a loucura de uma velha senil, transfigurava-se num prodígio. E, lá em baixo, o Douro era a testemunha do milagre que desabrochava.
As primeiras pipas saíram do sítio da Barca Velha. O vinho tinha o corpo e a alma carregados dos mil mistérios e segredos que o Vale de Meão guardara, silenciosamente monástico, desde o início dos tempos. Não andaria longe da verdade a exclamação de Francisco Correia quando, com ele, lavou a boca peia primeira vez.
– É um milagre divino. Foi este o vinho que Jesus distribuiu pelos apóstolos durante a Ultima Ceia.
A Ferreirinha tinha cumprido o sonho. Derrotara a filoxera. Uma guerra feita de muitas batalhas e repartida por tanta gente que chegara e partira. E o vinho, que agora bebia com os seus fiéis companheiros de muitos anos, era mais precioso, pois guardava uma memória prenhe de afectos. Estava presente o marido. O prudente Francisco Silva Torres, que tanto se empenhara, e apoiara, quando a praga chegou e iniciou o caminho da devastação. Também passava por aquele vinho a paixão do barão de Forrester. Sabia que ficaria comovido ao provar a preciosidade que o Douro, que lhe inundava o coração escocês, oferecia com tanta generosidade. O padre João Matias, que Deus chamara para junto de si já ia para três anos. O sacerdote de fraca teologia, mas de olhar arguto para as videiras, estaria no céu a brindar com o paladar da alma. Vespúcio Ortigão, depois da refrega para salvar as suas ideias e apanhar um criminoso, cansara-se do marasmo. A partida de Ti Paixão da Costa e do padre deixaram-no mais só, e a fome de saber fê-lo partir. Da última vez que recebera notícias dele, escrevia-lhe de Paris, fascinado com os seus poetas e combates políticos. Prometia regressar um dia, mas tardava. Também os filhos estavam naquela vitória e, sobretudo, os netos já adultos, multiplicando-se em bisnetos que lhe enchiam o coração de ternura.
D. Antónia envelhecia entre as encostas do seu Rio com a mesma tranquilidade inquieta dos vinhos nos cascos de carvalho. E agora, que pensava mais amiúde na morte, sentia-se confiante. A praga não destruiria a sua terra, aquele pedaço de paraíso cravado nas montanhas fundas habitadas pelos espíritos do vinho.
Chegou o mês de Março e o Sol, ainda morno, anunciava a Primavera. As encostas do Douro acordavam aos poucos das razias invernosas, cresciam malmequeres e as amendoeiras abriam-se em flores, brancas umas, outras de um rosa suave. As cepas espreguiçavam-se. Já apareciam os nódulos onde se adivinhavam para breve as primeiras folhas. Havia muitas andorinhas, procurando em voos rasantes pequenos insectos.
D. Antónia tinha chegado aos oitenta e quatro anos. Vivia em permanente conflito com os óculos que o médico lhe receitara por causa das cataratas. O andar era mais hesitante, porém o corpo franzino, sempre de negro, mantinha o porte digno de outrora. O velho Damásio, companheiro de tantos anos, queixava-se da rabugice dela e, por vezes, discutiam acalorados, imputando um ao outro esquecimentos de coisas fúteis. Viajava sem cessar e, desde que o caminho-de-ferro chegara ao Vesúvio, corria o Douro de cima a baixo, com entusiasmo. Agora, andava em cuidados com a construção da igreja do Cruzeiro e com as obras do hospital da Régua. No entanto, a grande paixão do momento era o Grande Hotel das Caídas de Moledo, que começara há quatro anos e agora se erguia, altivo e moderno, às portas da Régua. Ainda lhe sobrava tempo para visitar enfermos e famílias amarradas à fome por invalidez ou doença, e a todos ajudava com a gravidade de quem olha pelos seus.
Percebeu, naquele dia, que alguma coisa de estranho estava a acontecer. Entrava nas Nogueiras, no cupê conduzido pelo Damásio, quando ao longe viu Francisco Correia a esbracejar com um papel numa das mãos.
– Que se passa, homem de Deus? Pareces um macaco aos saltos.
– Boas notícias, minha senhora. Vai ter visitas importantes.
Fez um gesto agastado.
– O rei outra vez, não!
– Não é o rei. É a sua neta Maria do Canno, que vem de
Itália para a visitar.
O rosto iluminou-se.
– A Maria do Carmo?
– Leia a senhora. Leia.
Pegou, trémula, no telegrama. A neta casara com um conde italiano da casa Zilieri e há anos que vivia em Itália.
– Santa Maria! Deus ouviu as minhas preces.
Apertou o papel contra o peito e ergueu os olhos ao céu
agradecida. Os netos eram o mundo mais doce da sua vida. Depois de todas as brigas a propósito de dinheiro e partilhas, resolvidas com generosas mesadas, quer para o filho António Bernardo, quer para a filha, e também para os netos. Agora, apaziguados os fervores da cobiça, a família aproximara-se.
Chegavam no dia seguinte. D. Antónia rejuvenesceu naquele instante. Era preciso ir buscar flores, alindar o melhor quarto da casa, abrir as janelas para entrar sol, limpar e envernizar as mobílias, mandar buscar um cabrito, matar algumas das galinhas mais gordas, que a neta adorava canja de galinha, ah!, deixar recado no Grande Hotel para que guardassem uma lampreia fresca. E as compotas do Meão, assim como os enchidos e os presuntos de Soutelo.
Francisco Correia ouvia, divertido, quando Damásio a interrompeu.
– Vai haver casamento?
– Que conversa é essa, Damásio?
– A senhora está a pedir comida para um exército e só chegam duas pessoas.
– Mas são os meus netos! – refilou.
– É verdade. Mas são só mais duas bocas.
Ficou arreliada com o reparo.
– Agora já nem comida posso comprar. Não há nada que eu faça em que vocês não se metam.
– Ó senhora! Em vez de ficar contente com a chegada dos seus netos vai ficar rabugenta?
Voltou-se de dedo em riste para o velho Damásio.
– Tu é que estás rabugento. Não fazes nada do que te digo. Vá, vamos despachar que quero tudo em ordem para receber os meus netos! – Parou de repente, e com um sorriso mariola rematou: – E as minhas bisnetas, que ainda não conheço.
Subiu as escadas, ligeira, entusiasmada, dando ordens a eito. O Francisco comentou para o Damásio:
– Não lhe pesam os anos. Olha como se mexe.
– Está esperta que nem uma raposa e enfadonha como um mosquito. Culpa-me de tudo. Que não vejo os buracos da estrada, que é por minha causa que usa óculos, que, quando ponho o cavalo a galope, quero matá-la. É um fado.
– Não te queixes, Damásio. Sempre teve estima por ti, ajudou a tua mulher na doença até que Deus a levou, pagou os estudos aos teus filhos. Que queres mais?
Damásio não respondeu logo.
– Você sabe que estas coisas que digo são da boca para fora. Se amanhã chegasse a hora dela, e Deus deixasse, era eu quem me oferecia para ir no seu lugar. Devo-lhe tudo. – Fez uma careta bem-disposta e rematou: – A verdade é que também já estou velho e rabugento.
Era possivelmente uma das explicações essenciais para compreender as várias dezenas de quintas que possuía no Douro, as treze mil pipas que hoje guardava entre a Régua e Gaia, as dezenas de milhares de garrafas com os melhores e mais raros vinhos, o imenso património de prédios e palacetes espalhados pelo país, a imensa fortuna em dinheiro e títulos do tesouro acumulada nos bancos nacionais e estrangeiros. A aliança feita de afectos e lealdade com os seus mais directos colaboradores ao longo de décadas. Uma família alargada que repartia a fortuna e o desespero, que vivia em conjunto os dias da esperança e os negros dias da desventura.
Não conseguiu dormir nessa noite. Levantou-se para verificar se os lençóis de linho, onde iria dormir a neta, eram mesmo aqueles que certa vez comprara a uma bordadeira de Lamego. Depois, temeu que a cozinheira não tivesse temperado a carne de porco de véspera. Na verdade, o verdadeiro anseio de D. Antónia tinha a ver com a sua constante fome de afecto. Passara a vida sendo mãe daquela terra imensa, mas sempre só. Ou quase sempre. Os filhos haviam-lhe dado essa fortuna. Netos, bisnetos, e a avó desvelada: em vez de abraços, recebia cartas, em vez de beijos, telegramas de saudade. E, agora, chegava a neta que partira para mais longe, a mais tema, que regressava à raiz do sangue cheia dos tão desejados abraços e beijos, a cal e o cimento do amor. Maria do Carmo já teria os seus trinta anos, pelas contas de D. Antónia, e não era a mais velha. Sabia que era mãe de duas filhas gémeas com seis anos. E depois misturava tudo. As idades e os nomes, pouco importava. Todos lhe chamavam avó e a palavra soava-lhe a mel crestado, feito do ouro mais desejado das colmeias.
A comitiva que chegou foi uma surpresa. Para além da neta e do marido, o conde de Zilieri, e das gémeas, viera também a filha, Maria da Assunção, o inenarrável conde da Azambuja e mais quatro netos.
A Quinta das Nogueiras estremeceu de alegria e Antónia Ferreira, cercada por abraços, era seguramente a mulher mais feliz do mundo.
– Estou tão contente por terem vindo.
Maria do Carmo ficou enleada, emocionada, nos braços da avó.
– Que saudades suas, minha querida avó.
– Maria do Carmo, cresceste tanto!
Deu uma gargalhada divertida.
– Já tenho trinta anos. Nos últimos dez anos não devo ter crescido um milímetro.
Também riu, comovida.
– São os meus olhos, minha filha. Continuo a ver-vos todos pequeninos. Até a tua mãe ainda a vejo menina.
Maria da Assunção abraçou-a.
– Trouxe-lhe um rebanho de netos. A Maria Luísa, o José Maria...
E a velha, espantada, exclamava:
– Meu Deus! A Maria Luísa, o José Maria...
– Este é o António José... é a seguir à Francisca...
– E o número, filha? Qual é o número?
– É o número três, minha mãe!...
Havia decorado a idade dos netos pela ordem de nascimento.
– O número três. Então é o António José. Estás um homem. Dá-me um abraço grande.
Na quinta deixou de se ouvir o habitual chilreio dos pardais e dos melros que vinham comer às macieiras c elevou-se uma tempestade de gritos, correrias e gargalhadas. A velha mansão parecia rejuvenescer.
Maria do Carmo reparou na tosse seca da avó.
– Uma bronquite velha como eu. O médico diz que há-de morrer no dia em que eu me for embora de vez.
E voltou-se, encantada, para uma das gémeas que lhe trazia flores.
Decidiu-se que iriam almoçar a Caídas de Moledo, no Grande Hotel. As lampreias estavam à espera, acabadinhas de sair do Rio, e era indisfarçável a alegria da velha, desejosa de mostrar a família a toda a gente.
O dia estava fresco. Partiram nas caleches, no meio de uma grande gritaria. Maria da Assunção ainda sugeriu:
– A mãe devia ir mais abrigada. Está frio.
-Já pareces o Damásio a ralhar comigo. Eu estou bem.
O almoço correu animado e o conde Zilieri ficou encantado com o vinho do Vale de Meão.
– Esse é feito de umas uvas que estão num vale com muito sol conhecido pelo sítio da Barca Velha. Amanhã ou depois iremos lá de comboio. Vão levar para Itália as garrafas que quiserem.
D. Antónia só comeu lampreia, mas toda a gente arranjou força para provar a vitela no forno. As travessas de arroz– doce da sobremesa foram a alegria geral da pequenada.
De súbito, quando se levantavam da mesa, D. Antónia cambaleou, ficou pálida e com a testa perlada de suores frios.
Seguraram-na. Maria da Assunção ficou assustada.
– O que tem, minha mãe?
– Não é nada. Uma ligeira tontura. Já passou.
– Vamos para casa e eu vou chamar um médico.
Reagiu teimosa.
– Não. Os médicos são a pior raça do mundo. Mesmo quando estamos de saúde, inventam-nos doenças.
Maria do Carmo insistiu.
– Seja como for, o médico deve vê-la.
Ia outra vez reclamar, mas veio outra tontura. Tiveram de a ajudar a subir para o eupê, enquanto o velho Damásio segurava o cavalo e barafustava.
– Estou farto de lhe dizer, mas não me liga. Há mais de um mês que anda com essa tosse e zanga-se comigo quando lhe falo do doutor.
Tinha recuperado outra vez e atirou-se ao cocheiro.
– Não comeces. Isto é uma ligeira indisposição. Deve ter sido a lampreia que me caiu mal.
Partiram para a Quinta das Nogueiras. Quando chegaram, a palidez era mais acentuada. Maria do Carmo pôs a mão na testa da avó. Ardia em febre.
– A avó está a arder em febre.
– Mãe, chega de se armar em forte. Vai para a cama até chegar o médico! – decidiu, peremptória, Maria da Assunção. E, voltando-se para Damásio, gritou: – Corre à Régua e traz um médico o mais depressa possível.
Nem tentou resistir. As pernas fraquejavam e o corpo recusava-se a estar de pé. Apenas se lamentava.
– Vejam a minha vida. Acontece-me isto no dia em que me chega a família. Os meus bisnetos vão julgar que a avó é piegas.
O médico não se fez esperar. Examinou-a com todo o cuidado, fez-lhe uma sangria e pediu a Maria da Assunção que lhe preparasse uma tisana de limão c mel.
– A sangria vai baixar-lhe a febre e a tisana acalma essa tosse. Vai ficar uma moça nova.
Agarrou-lhe o braço e enfrentou-o com o olhar penetrante dos grandes desafios.
– Deixe-se de caridades falsas, doutor Lourenço.
– Como?
– É grave?
O médico ficou desarmado. Deixou-se cair numa cadeira.
– Estou muito preocupado, senhora dona Antónia.
– É o fim?
– Tem uma pneumonia aguda e o coração... – interrompeu a frase.
Foi ela que a concluiu.
– Quer dizer que é o fim.
– Sou médico, não sou Deus. Só Ele é que sabe do dia e hora de cada um...
D. Antónia ficou pensativa por alguns momentos.
– Vivi oitenta e quatro anos e passou tudo tão depressa.
– A vida é um sopro.
Respirou fundo e o peito arfava. Um sorriso cansado assomou-lhe ao rosto.
– Vou partir no mês de Março. Lá fora, dentro de pouco tempo, as videiras irão ficar cheias de folhas verdejantes.
– É verdade.
– E eu sou a cepa velha, mirrada e seca, que não resistiu ao Inverno.
Lourenço afagou-lhe a mão com ternura.
– Aconteça o que acontecer, pode dar graças a Deus. A sua vida foi uma vinha farta e de boa uva.
Tornou a sorrir.
– Tem razão. Obrigada pela sua sinceridade, doutor Lourenço.
O médico beijou-lhe a mão, emocionado.
– Eu é que lhe agradeço. Talvez a senhora não se recorde, mas devo-lhe a profissão que tenho. Foi a dona Antónia quem pagou os meus estudos no Porto.
– Não sabia. Paguei os estudos a tanta gente.
– Por mais anos que viva nunca mais a vou esquecer. Eu volto mais tarde.
Pegou na maleta para sair e não denunciar as lágrimas que lhe corriam pela face. A Ferreirinha chamou-o.
– Doutor Lourenço!
– Diga, dona Antónia.
– Quando voltar, repare se já se vêem nas cepas os rebentos das folhinhas verdes.
Assentiu com um sorriso comovido.
– Prometo-lhe.
– Quero morrer sabendo que o vinho está a nascer.
Na sala todos esperavam o médico. A notícia soubera-se. Alguns caseiros também tinham chegado. Entre eles Francisco Correia. Maria da Assunção foi ter com a mãe, levando a tisana que entretanto preparara.
Foi Maria do Carmo quem o interpelou, ansiosa.
– Então, doutor, é grave?
– Muito grave.
O conde da Azambuja impacientou-se.
– Grave, mas grave como?
– A vossa sogra está com uma pneumonia muito forte e um coração muito débil.
O número três, o António José, ia perguntar mas teve medo da resposta.
– Isso quer dizer que a minha avó...
– Quer dizer que devem rezar por ela. Quando se souber que a Ferreirinha está doente erguer-se-ão pelo Douro milhares de preces. Talvez Deus oiça e tenha piedade de nós.
Maria do Carmo era a mais aflita.
– Mas então não há nada que possamos fazer? Talvez levá-la para o Porto?
– Não ia aguentar a viagem. Com a vossa licença. Passarei por cá antes do anoitecer.
Deixou uma assembleia acabrunhada. Encolhido a um canto, o velho Damásio chorava em silêncio, sem vergonha das lágrimas, e Maria da Assunção não precisou de perguntar nada quando entrou na sala. Abraçou um dos filhos, que soluçava, e disse para Francisco Correia:
– A minha mãe quer falar contigo a sós.
Francisco entrou no quarto, evitando fazer barulho. A Ferreirinha ergueu a mão.
– Anda. Vem sentar-te aqui ao pé de mim.
Aproximou-se. O administrador não sabia como dominar a angústia. As pernas tremiam.
– Então, dona Antónia, deixou-se ir abaixo. Vai ver que depois de uns dias de cama vai arribar.
– Toda a vida caminhámos lado a lado. Foi uma longa caminhada e nunca mentimos um ao outro. Não é agora que vamos começar. Está a chegar a minha hora, Francisco. E preciso de um favor maior do que todos aqueles que te pedi ao longo da nossa vida inteira.
– Diga-me o que precisa e pode estar certa de que o farei.
– Vais telegrafar ao António Claro e ao meu filho para que venham depressa. Quero que todos escutem o meu testamento. Tu e o António são os meus testamenteiros.
Não percebeu o alcance do que a patroa lhe dizia e interpelou-a.
– Testamenteiros?
Tinha dificuldade em respirar. O corpo tremia e o peito soltava soluços desencontrados.
– Faz depressa o que te digo. Não sei se vou ter tempo de tratar das coisas que têm de ser tratadas. Jura, Francisco. Jura por ti e pelo António Claro, sobre a Bíblia que aí está. Se eu não tiver tempo, mesmo que sejam muitas as pressões que façam sobre vocês, vão cumprir o meu testamento tal como eu decidi.
– Juro, dona Antónia!... Juro por Deus e pela minha honra.
– Vai agora, antes que seja tarde de mais.
Os campanários das igrejas tocavam a rebate e nos ecos dos sinos, pelo vale acima, correndo sobre as encostas e pelas cristãs das cumeadas, espalhava-se a notícia até aos lugares e aldeias mais escondidas. E o povo saiu à rua num clamor de preces, suplicando a Deus e a todos os anjos que não lhes roubassem a mãe que lhes deu pão quando tinham fome, que lhes deu o sentido à vida quando só sobravam lamentos. Calaram-se os pardais pelos vinhedos, pelos matos os lobos acoitaram-se, conforme subia o murmúrio cias orações desencontradas.
E o Douro corria em sossego, quase em silêncio, e as águas transformavam-se em lágrimas límpidas ao passarem em frente da Quinta das Nogueiras.
A velha rainha morria devagar, no colo das serras mais bravias, a quem ensinara a ser ventre farto de uva.
E os sinos repetiam-se em prantos de saudade. A Ferreiri– nha ia partir para nunca mais voltar.
No quarto estavam presentes todos os interessados no testamento. António Bernardo não se mostrava resignado.
– Oiça, minha mãe. A senhora não nos pode fazer uma coisa destas. Confiar os nossos bens à guarda do António Claro e do Francisco Correia é um absurdo. Eu e a Maria da Assunção não precisamos de estranhos para gerir aquilo que nos vai deixar.
Teve força para um sorriso.
– Precisam, meus filhos. Deus não vos deu cabeça que vos ensinasse a construir. A minha decisão foi ditada pelo vosso bem. Porque vocês e os meus netos são as pessoas que mais amo.
Um ataque de tosse fê-la parar, cansada. Levantou a mão indicando que tinha mais qualquer coisa para dizer. Ficaram todos suspensos.
– Há outra coisa! – disse por fim. – Se algum de vocês contestar o testamento em tribunal depois da minha morte, perde imediatamente o direito sobre a herança que vos deixo.
Maria da Assunção apressou-se a responder.
– Claro que ninguém contestará o testamento. Não é verdade, Augusto Pedro?
O conde precipitou-se a jurar.
– Claro, claro. Deus nos livre. Os seus desejos são ordens. Deus nos livre!
António Bernardo suspirou.
– Se é assim que a senhora quer, assim será.
Ficavam ricos, com mesadas e pensões vitalícias que lhes permitiriam vida de luxo até ao fim das suas vidas. O essendal da empresa estaria sob a administração dos seus colaboradores de sempre e ainda restava uma fortuna imensa que distribuía por amigos leais, obras de assistência e religiosas. A Ferreirinha despedia-se com a mesma postura que dela fizera a rainha do Douro. Justa durante a vida. Justa na hora da morte.
Nessa noite, as capelas e as igrejas da Régua ao Meão, de Sabrosa a São João da Pesqueira, não fecharam as portas. Uma legião de pobres e ricos, de almocreves e boieiros, tanoeiros e feitores, barqueiros e jornaleiros, e até gente sem rumo nem sorte, mendigos e pedintes, doentes e homens sãos, ajoelhou em pranto do coração pela saúde da sua Ferreirinha. E na Quinta das Nogueira ninguém dormia.
António Bernardo observava o sono agitado da mãe. Depois de tanto conflito e incompreensão, como se tivesse sido tocado por força divina, percebia tarde de mais a grandeza da mulher que o gerara. Pegou-lhe na mão esquálida, beijou-a, e falou-lhe como se rezasse.
– Ficou tanta coisa por dizer, minha mãe. Nunca fui capaz de lhe agradecer o seu amor tão inteiro, nem tive talento para lhe mostrar como gostava de si. Como vou viver sem a sua força? Como é que vou viver sem a sua alma enorme a proteger os meus passos? Vou ter tantas saudades suas, minha querida mãe.
Beijou-lhe docemente a mão e sobre ela caíram duas lágrimas quentes. D. Antónia voltou o rosto para ele e, com um sorriso minguado, sussurrou:
– Serás sempre o meu menino.
O dia nasceu triste. Um nevoeiro vindo do Marão cobria o vale e uma brisa fresca soprava de Barca d’ Alva. Ao portão da Quinta das Nogueiras juntara-se um mar de gente aflita, querendo saber notícias. O representante do Papa, em Lisboa, enviara um telegrama de rápidas melhoras e a própria rainha D. Amélia quis saber do seu estado de saúde.
Por entre a multidão destacava-se pela altura um homem de cabelo desgrenhado, que vestia um fato de bom corte. Vespúcio Ortigão viera de férias, mas chegara tarde de mais para lhe contar das novas paixões. Era dos poucos entre as centenas de pessoas que não rezava. O olhar embaciado de lágrimas, mas um sorriso no rosto. Continuava a acreditar, como lhe ensinara Teófilo Braga, que a sua velha amiga estaria viva durante séculos, porque não morreria na memória dos homens.
O Rio não tinha movimento. Os rabelos acostados não partiam, querendo os barqueiros saber se havia algum sinal de esperança. As igrejas continuavam coalhadas de orações suplicando piedade.
Maria da Assunção aconchegou-lhe os lençóis. Eram evidentes no seu rosto os sinais de insónia. Tinha os olhos vermelhos das lágrimas. A voz da Ferreirinha já era somente um fio.
– Os meus netos?
– O António Bernardo foi mostrar-lhes as vinhas. Quer que vá chamá-los?
– Não. É bom que as conheçam cepa a cepa. Pode ser que aprendam a amá-las.
– A mãe não devia falar. Precisa de descansar.
– Descansarei depois. Vou fazer uma viagem sem fim e espero que no céu haja um rio do tamanho do Douro.
– Não fale assim, por favor. – E, para a animar, informou: – O doutor Lourenço deixou um recado para si. Já existem olhinhos de folhagem nas videiras.
Sorriu e havia uma centelha de felicidade no rosto.
– Foram o grande amor da minha vida. E elas sabiam, pois falavam comigo.
– O grande amor? O quê?
– As vinhas, o Douro, foram o grande amor da minha vida.
Parecia que delirava. Maria da Assunção aproximou-se
mais, afagando-lhe as mãos. A voz saía-lhe sussurrada, num murmúrio.
– Quando o vento vem do norte, as folhas das videiras mexem-se e falam... falam da terra e das mãos dos homens que as ajudaram a criar as uvas... e as uvas são filhas das videiras e dos nossos afectos... É este o segredo do vinho do Porto!... E eu amei as minhas vinhas com a mesma força com que amei os meus filhos.
Maria da Assunção limpou as lágrimas e acariciou-lhe o rosto.
– Eu sei. É a melhor mãe do mundo.
Uma lágrima caía, tortuosa, pelas rugas da face.
– Estou cansada. Lê-me um pouco da Bíblia. Quero falar com Deus.
Maria da Assunção abriu o livro e começou a ler. Mas vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade. Lá fora, dois pardais assustaram-se com o voo rasante de uma águia-real, de plumagem negra, que descia, rápida, sobre a Quinta das Nogueiras. Pois tais são os adoradores que o Pai procura. Os pardais aconchegaram-se escondidos entre as folhas da laranjeira, e a águia negra começou a ganhar altura, voando na direcção dos céus. Deus é espírito e aqueles que O amam devem adorá-Lo em espírito e verdade.
E a Ferreirinha fechou os olhos para sempre.

 

 

                                                                  Francisco Moita Flores

 

 

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