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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FURIA DE REIS - P3 / George R. R. Martin
FURIA DE REIS - P3 / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

  • Talvez tema a pretensão do garoto, - A pretensão de um bastardo? Não, é outra coisa... Como é a aparência dessa criança? - Tem sete ou oito anos e traços agradáveis, com cabelos negros e olhos azuis-claros. Os visitantes achavam freqüentemente que fosse filho de Lorde Renly. - E Renly assemelhava-se a Robert - Catelyn teve um vislumbre de compreensão. - Stannis pretende exibir o bastardo do irmão perante o reino, para que os homens possam ver Robert no seu rosto e interrogar-se por que motivo não existe tal semelhança em Joffrey. - Isso teria tanta importância assim? - Aqueles que são favoráveis a Stannis vão chamar isso de uma prova. Aqueles que apoiam Joffrey dirão que não quer dizer nada - seus próprios filhos tinham neles mais Tully do que Stark, Arya era a única a mostrar muito de Ned nas feições. E Jon Snow, mas ele nunca foi meu. 422 Viu-se pensando na mãe de Jon, aquele sombrio amor secreto de que o marido nunca queria falar. Será que ela chora por Ned como eu? Ou será que o odiava por abandonar sua cama em favor da minha? Rezará pelo filho como rezo pelos meus? Eram pensamentos desconfortáveis e fúteis. Se Jon tivesse sido dado à luz por Ashara Dayne, de Tombastela, como alguns especulavam, a senhora estava havia muito morta; se não, Catelyn não tinha nenhuma pista quanto a quem poderia ser sua mãe ou onde estaria. E não fazia diferença. Ned agora estava morto, e seus amores e segredos tinham morrido com ele. Mesmo assim, sentiu-se uma vez mais impressionada pelo modo estranho como os homens se comportavam com seus bastardos. Ned sempre tinha protegido Jon ferozmente, e Sor Cortnay Penrose deu a vida por aquele Edric Storm, mas o bastardo de Roose Bolton significara menos para ele do que um de seus cães, julgando pelo tom estranhamente frio da carta que Edmure recebera dele ainda há menos de três dias. Escrevia que tinha atravessado o Tridente e marchava sobre Harrenhal conforme ordenado. "Um castelo forte, e com uma boa guarnição, mas Sua Graça irá possuí-lo, nem que para isso eu tenha de matar todas as almas que tem dentro.

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  • " Esperava que Sua Graça contrabalançasse com isso os crimes de seu filho bastardo que Sor Rodrik Cassei havia sentenciado à morte. "Um destino que ele sem dúvida mereceu" escrevera Bolton. "O sangue conspurcado é sempre traiçoeiro, e a natureza de Ramsay era dissimulada, ambiciosa e cruel. Considero-me aliviado por me ver livre dele. Os filhos legítimos que minha jovem esposa me prometeu nunca estariam a salvo enquanto ele vivesse." O som de passos apressados afastou os pensamentos mórbidos de sua cabeça. O escudeiro de Sor Desmond entrou apressado no aposento e se ajoelhou, ofegante. - Senhora... Lannister... do outro lado do rio. - Respire fundo, rapaz, e conte a história devagar. Ele fez o que lhe foi pedido. - Uma coluna de homens armados. Na outra margem do Ramo Vermelho. Levam um unicórnio roxo sob o leão de Lannister. Algum filho de Lorde Brax, Brax tinha vindo a Correrrio uma vez quando ela era jovem, a fim de propor o casamento de um de seus filhos com ela ou com Lysa, Perguntou a si mesma se seria esse mesmo filho quem estava ali agora, liderando o ataque. Sor Desmond contou-lhe, quando se juntou a ela nas ameias, que os Lannister tinham surgido do sudeste sob um esplendor de estandartes. - Alguns batedores, nada mais - assegurou-lhe. - A força principal da tropa de Lorde Tywin está muito para sul. Não corremos qualquer perigo aqui. Para sul do Ramo Vermelho, o terreno estendia-se aberto e plano. Da torre de vigia, Catelyn via quilômetros nessa direção. Mesmo assim, só o vau mais próximo se encontrava visível. Edmure tinha confiado a Lorde Jason Mallister sua defesa, bem como a dos três seguintes, em direção à nascente. Os cavaleiros Lannister andavam em círculos incertos perto da água, com estandartes carmins e prateados esvoaçando ao vento. - Não são mais de cinqüenta, senhora - estimou Sor Desmond. Catelyn viu os cavaleiros espalharem-se numa longa linha. Os homens de Lorde Jason esperaram por eles atrás de rochedos, tufos de mato e colinas. Um toque de trombeta fez os cavaleiros avançarem a passo lento, chapinhando na corrente. Por um momento fizeram um belo espetáculo, todos eles reluzentes armaduras e bandeiras tremulantes, com o sol relampejando nas pontas de suas lanças, - Agora - ela ouviu Brienne murmurar. 423 Era difícil distinguir o que estava se passando, mas os gritos dos cavalos pareciam altos mesmo aquela distância, e, sob o ruído dos animais, Catelyn ouviu o estrondo mais tênue de aço batendo em aço. Um estandarte desapareceu de repente quando seu portador foi derrubado, e pouco tempo depois o primeiro morto passava boiando pelas muralhas, trazido pela corrente, A essa altura, os Lannister tinham se retirado de modo desorganizado. Observou-os enquanto se reagrupavam, conferenciavam rapidamente e galopavam na direção de onde tinham vindo. Os homens nas muralhas gritaram-lhes provocações, embora já estivessem longe demais para ouvir. Sor Desmond deu uma palmada na barriga. - Gostaria que Lorde Hoster pudesse ter visto isso. Teria feito o senhor dançar. - Receio que os tempos de dança tenham terminado para o meu pai - disse Catelyn - , e esta luta está apenas começando. Os Lannister voltarão. Lorde Tywin tem duas vezes mais homens do que meu irmão. - Podia ter dez vezes mais que não importaria - Sor Desmond respondeu. - A margem ocidental do Ramo Vermelho é mais elevada do que a oriental, senhora, e bem arborizada, Nossos arqueiros têm boa cobertura, e campo aberto para as suas flechas... e se ocorrer alguma brecha, Edmure terá seus melhores cavaleiros na reserva, prontos para avançar para onde quer que sejam mais necessários. O rio vai retê-los. - Rezo para que tenha razão - Catelyn disse gravemente. Voltaram naquela noite. Catelyn tinha ordenado que a acordassem de imediato se o inimigo regressasse, e bem depois da meia-noite uma criada tocou suavemente em seu ombro, Catelyn sentou-se na hora: - O que foi? - E de novo o vau, senhora. Enrolada num roupão, Catelyn subiu ao telhado da fortaleza. Dali conseguia ver por cima das muralhas e o rio iluminado pela lua até o local onde a batalha se desenrolava com fúria. Os defensores tinham acendido fogueiras de vigia ao longo da margem, e os Lannister talvez tivessem julgado que os encontrariam cegos pela noite ou descuidados. Se tinham pensado assim, fora uma insanidade. A escuridão era, na melhor das hipóteses, um aliado incerto. Enquanto avançavam com água pelo peito, os homens enfiavam os pés em poços escondidos e caíam, enquanto outros tropeçavam em pedras ou feriam os pés nas estrepes escondidas. Os arqueiros dos Mallister atiraram uma tempestade de flechas incendiadas, silvando sobre o rio, estranhamente belas quando vistas de longe. Um homem, atingido uma dúzia de vezes, com as roupas ardendo, pôs-se a dançar e rodopiar com água na altura de seus joelhos, até que enfim caiu e foi arrastado pela corrente. Quando seu corpo passou oscilando por Correrrio, tanto o fogo como sua vida se tinham extinguido, Uma pequena vitória, pensou Catelyn quando a luta terminou e os inimigos sobreviventes voltaram a se fundir com a noite, mas ainda assim uma vitória. Enquanto desciam os degraus em espiral do torreão, Catelyn perguntou a Brienne o que pensava. - Aquilo foi apenas um leve toque de Lorde Tywin, senhora. Ele está sondando, em busca de um ponto fraco, uma travessia não defendida. Se não encontrar nenhuma, fechará os dedos num punho e tentará criá-la - Brienne encurvou os ombros. - Seria isso o que eu faria. Se estivesse no lugar dele - sua mão foi ao cabo da espada e deu-lhe uma pequena palmada, como que para se certificar de que ainda estava ali. E que os deuses nos ajudem nesse dia, pensou Catelyn. Mas não havia nada que pudesse fazer. Essa era a batalha de Edmure, lá fora, no rio; a sua tinha lugar ali, dentro do castelo. 424 Na manhã seguinte, enquanto tomava o desjejum, mandou chamar o idoso intendente do pai, Utherydes Wayn. - Mande um jarro de vinho a Sor Cleos Frey. Pretendo interrogá-lo em breve, e quero sua língua bem solta. - As suas ordens, senhora. Não muito tempo depois, um correio com a águia dos Mallister cosida no peito chegou com uma mensagem de Lorde Jason, falando de outra escaramuça e de outra vitória. Sor Flement Brax tentara forçar a travessia em outro vau, seis léguas para sul. Dessa vez, os Lannister encurtaram as lanças e avançaram pelo rio a pé, mas os arqueiros Mallister fizeram chover tiros de arco sobre seus escudos enquanto as balistas que Edmure montara na margem do rio atiravam pesados pedregulhos neles, a fim de quebrar a formação. - Deixaram uma dúzia de mortos na água, só dois chegaram aos baixios, onde tratamos deles ativamente - relatou o correio. Também falou de luta mais perto da nascente, onde Lorde Karyl Vance defendia os vaus. - Essas investidas também foram repelidas, com um custo severo para nossos inimigos. Talvez Edmure seja mais sábio do que eu pensava, pensou Catelyn. Todos os seus senhores viram sentido em seus planos de batalha, por que fui tão cega? Meu irmão não é o garotinho de que me lembro, tal como Robb não o é. Esperou até a noite antes de ir fazer sua visita a Sor Cleos Frey, pensando que quanto mais tempo se atrasasse, mais bêbado ele ficaria. Quando entrou na cela da torre, Sor Cleos caiu desajeitadamente sobre os joelhos. - Minha senhora, nada sabia de nenhuma fuga. O Duende disse que um Lannister tem de ter escolta de Lannister, juro pelos meus votos de cavaleiro... - Levante-se, sor - Catelyn sentou-se. - Eu sei que nenhum neto de Walder Frey seria um perjuro - a menos que servisse aos seus interesses. - Meu irmão disse-me que trouxe condições de paz. - Trouxe - Sor Cleos Frey pôs-se em pé cambaleando. Catelyn ficou contente por ver como estava instável. - Fale-me delas - ordenou. E foi o que ele fez. Quando terminou, Catelyn franziu a testa. Edmure tinha razão, aquelas não eram condições para nada, exceto... - O Lannister quer trocar Arya e Sansa pelo irmão? - Sim. Estava sentado no Trono de Ferro e jurou-o. - Perante testemunhas? - Perante a corte inteira, senhora. E os deuses também. Eu disse isso a Sor Edmure, mas ele me respondeu que não era possível, que Sua Graça Robb nunca consentiria. - Disse-lhe a verdade - Catelyn nem sequer podia dizer que Robb não tinha razão. Arya e Sansa eram crianças. O Regicida, vivo e livre, era um dos mais perigosos homens do reino. Essa estrada não levava a nenhuma parte. - Viu minhas filhas? São bem tratadas? Sor Cleos hesitou. - Eu... sim, pareciam... Anda à procura de uma mentira, compreendeu Catelyn, mas o vinho aturdiu seu entendimento. - Sor Cleos - disse com frieza - , perdeu o direito à proteção de sua bandeira de paz quando seus homens tentaram nos enganar. Se mentir para mim, será enforcado nas muralhas ao lado deles. Pode acreditar no que digo. Pergunto-lhe de novo... Viu minhas filhas? 425 A testa do homem estava úmida de suor. - Vi Sansa na audiência, no dia em que Tyrion me transmitiu seus termos. Estava muito bela, senhora. Talvez um... um pouco pálida. Como se estivesse fatigada. Sansa, mas não Arya. Isso podia querer dizer qualquer coisa. Arya sempre tinha sido mais difícil de domar. Talvez Cersei relutasse em exibi-la numa audiência pública, por temer o que pudesse dizer ou fazer. Podiam tê-la trancado, fora de vista. Ou podem tê-la matado. Catelyn afastou aquele pensamento. - Falou nos termos dele... mas é Cersei a Rainha Regente. - Tyrion falou por ambos. A rainha não estava lá. Segundo me disseram, estava indisposta naquele dia. - Curioso. A memória de Catelyn recuou àquela terrível viagem pelas Montanhas da Lua e ao modo como Tyrion Lannister tinha de algum modo seduzido aquele mercenário, levando-o a passar de seu serviço para o dele. O anão é muito mais esperto do que devia ser. Não conseguia imaginar como teria sobrevivido à estrada de altitude depois de Lysa expulsá-lo do Vale, mas não a surpreendia. Ao menos não participou do assassinato de Ned. E veio em minha defesa quando os homens dos clãs nos atacaram. Se pudesse confiar em sua palavra... Abriu as mãos para olhar as cicatrizes que tinha nos dedos. As marcas de seu punhal, lembrou a si mesma. Seu punhal, na mão do assassino que pagou para abrir a garganta de Bran. Se bem que o anão negasse isso, claro. Mesmo depois de Lysa tê-lo trancado em uma de suas celas do céu e ameaçado com a porta da lua, continuara a negar. - Ele mentiu - disse, pondo-se abruptamente de pé. - Os Lannister são todos mentirosos, e o anão é o pior de todos. O assassino estava armado com a faca dele. Sor Cleos ficou observando-a. - Eu não sei nada de nenhuma... - Você não sabe nada - concordou Catelyn, saindo majestosamente da cela. Brienne pôs-se ao seu lado, silenciosa. Para ela é mais simples, pensou, com uma ferroada de inveja. Nisso, era como um homem. Para os homens, a resposta era sempre a mesma, e nunca estava mais longe do que a espada mais próxima. Para uma mulher, uma mãe, o caminho era mais pedregoso e difícil de desvendar.
    Fez um jantar tardio no Grande Salão com a guarnição, a fim de lhes dar o encorajamento que fosse possível. Rymund, o Rimante, cantou ao longo de toda a refeição, poupando-lhe a necessidade de falar. Fechou com a canção que tinha escrito sobre a vitória de Robb em Cruzaboi. "E as estrelas da noite eram os olhos de seus lobos, e o próprio vento era a sua canção." Entre os versos, Rymund jogava a cabeça para trás e uivava, e, no final, metade do salão uivava com ele, até Desmond Grell, que tinha bebido uns bons copos. As vozes ressoaram nas vigas. Que tenham as suas cantigas, se isso lhes dá coragem, pensou Catelyn, brincando com o cálice de prata. - Havia sempre um cantor no Solar do Entardecer quando eu era menina - disse Brienne em voz baixa. - Aprendi todas as canções de cor. - Sansa fez o mesmo, embora poucos cantores decidissem fazer a longa viagem para o norte até Winterfell - mas eu lhe disse que haveria cantores na corte real. Disse-lhe que poderia ouvir música de todos os tipos, que seu pai encontraria algum mestre que a ensinasse a tocar harpa. Ah, deuses, perdoem-me... Brienne voltou a falar: 426 - Lembro-me de uma mulher... tinha vindo de um lugar qualquer do lado de lá do mar estreito. Nem sequer sei dizer em que língua cantou, mas sua voz era tão adorável quanto ela. Tinha olhos cor de ameixa e uma cintura tão fina que meu pai conseguia rodeá-la com as mãos. As mãos dele eram quase tão grandes quanto as minhas - fechou os seus dedos longos e grossos, como que para escondê-los. - Você cantava para o seu pai? - Catelyn quis saber. Brienne balançou a cabeça, de olhos fixos no tabuleiro como que para encontrar alguma resposta no molho da carne. - Para Lorde Renly? A moça corou: - Nunca, eu... o bobo dele às vezes fazia brincadeiras cruéis, e eu... - Um dia tem de cantar para mim. - Eu... por favor, não tenho o dom - Brienne afastou-se da mesa. - Perdoe-me, senhora. Tenho sua autorização para ir embora? Catelyn anuiu com a cabeça. A alta e deselegante garota deixou o salão com grandes passos, quase sem ser notada por entre os festejos. Que os deuses a acompanhem, pensou, voltando-se indiferentemente ao jantar. Foi três dias depois que o golpe de martelo que Brienne tinha previsto caiu, e passaram-se cinco dias antes de ouvirem falar dele. Catelyn estava sentada com o pai quando o mensageiro de Edmure chegou. A armadura do homem estava amassada, suas botas, poeirentas, e tinha um buraco irregular na capa, mas a expressão que trazia no rosto quando se ajoelhou foi o suficiente para lhe dizer que as notícias eram boas. - Vitória, senhora - entregou-lhe a carta de Edmure. A mão de Catelyn tremia enquanto quebrava o selo. Lorde Tywin tentara forçar a travessia numa dúzia de vaus diferentes, escrevia o irmão, mas todas as arremetidas tinham sido repelidas. Lorde Lefford tinha sido afogado, o cavaleiro Crakehall, conhecido como Javali Forte, capturado, Sor Addam Marbrand, três vezes forçado a recuar... Mas a batalha mais feroz fora travada no Moinho de Pedra, onde Sor Gregor Clegane liderara o assalto. Tantos de seus homens tinham caído que seus cavalos mortos ameaçaram represar o rio. No fim, a Montanha e um punhado de seus melhores homens conseguiram atingir a margem ocidental, mas Edmure atirara a reserva contra eles, e tinham se quebrado e recuado, ensangüentados e derrotados. O próprio Sor Gregor perdera o cavalo e se retirara cambaleando através do Ramo Vermelho, sangrando de uma dúzia de ferimentos, enquanto uma chuva de flechas e pedras caía ao seu redor. "Eles não atravessarão, Cat", rabiscara Edmure, "Lorde Tywin marcha para sudeste. Talvez seja uma simulação, ou uma retirada completa, não importa. Eles não atravessarão," Sor Desmond Grell ficou extasiado: - Ah, se eu estivesse com ele - disse o velho cavaleiro quando ela lhe leu a carta. - Onde está aquele palerma do Rymund? Há nisto uma canção, pelos deuses, e uma canção que até Edmure vai querer ouvir. O moinho que moeu a montanha, quase podia compor eu mesmo os versos, se possuísse o dom do cantor. - Não quero ouvir canções até que a luta termine - disse Catelyn, talvez de forma demasiado ríspida. Mas permitiu que Sor Desmond espalhasse a notícia, e concordou quando ele sugeriu abrir alguns barris em honra do Moinho de Pedra. O estado de espírito em Correrrio tinha andado tenso e tristonho; ficariam todos melhor com um pouco de bebida e esperança. 427 Nessa noite, o castelo ressoou com o ruído dos festejos, "Correrrio!", gritavam os plebeus, e "Tully! Tully!". Tinham chegado assustados e impotentes, e seu irmão os acolhera em circunstâncias em que a maior parte dos senhores teria trancado os portões. Suas vozes entravam pelas altas janelas e esgueiravam-se sob as pesadas portas de pau-brasil. Rymond tocou sua harpa, acompanhado por um par de percussionistas e um jovem com um conjunto de flautas de bambu. Catelyn ouviu risos de meninas, e a excitada tagarelice dos garotos inexperientes que o irmão lhe deixara fazendo as vezes de guarnição. Sons bons... e, no entanto, não a tocaram. Não conseguia partilhar a felicidade deles. No aposento privado do pai encontrou um pesado livro de mapas encadernado em couro, e o abriu nas terras fluviais. Seus olhos encontraram o trajeto do Ramo Vermelho e seguiram-no à luz tremeluzente de uma vela. Marchando para sudeste, pensou. Aquela altura, teriam sem dúvida atingido a nascente da Torrente da Água Negra, concluiu. Fechou o livro ainda mais intranquila do que antes. Os deuses tinham lhes dado vitória atrás de vitória. No Moinho de Pedra, em Cruzaboi, na Batalha dos Acampamentos, no Bosque dos Murmúrios... Mas se estamos ganhando, por que tenho tanto medo? 428 Bran Osom foi o mais tênue dos clincs, um raspar de aço em pedra. Levantou a cabeça das patas, escutando, farejando a noite. A chuva do anoitecer tinha despertado uma centena de cheiros adormecidos, tornando-os de novo maduros e fortes. Grama e espinheiros, amoras silvestres rachadas no chão, lama, minhocas, folhas apodrecendo, uma ratazana que se arrastava pelos arbustos. Detectou o odor negro e felpudo da pelagem do irmão e o forte e penetrante cheiro acobreado do esquilo que tinha matado. Outros esquilos deslocavam-se pelos galhos sobre a sua cabeça, cheirando a pelo molhado e a medo, raspando a casca das árvores com suas pequenas garras. O barulho soara um pouco como aquilo. Voltou a ouvi-lo, clinc, e raspar. Aquele som fê-lo levantar-se. As orelhas espetaram-se e a cauda se ergueu. Uivou, um grito longo, profundo e tremente, um uivo para acordar os adormecidos, mas as pilhas de rocha do homem estavam escuras e mortas. Uma noite parada e úmida, uma noite daquelas que empurram os homens para dentro de seus buracos. A chuva tinha parado, mas os homens ainda se escondiam da umidade, amontoados junto aos fogos em suas cavernas de pedra empilhada. O irmão chegou, deslizando por entre as árvores, deslocando-se quase tão silenciosamente como outro irmão de que tinha uma vaga lembrança, de muito tempo atrás, o que era branco com olhos de sangue. Os olhos deste eram lagoas de sombras, mas o pelo na parte de trás do pescoço estava eriçado. Também tinha ouvido os sons, e compreendia que significavam perigo. Dessa vez, o clinc e o raspar foram seguidos por um som de arrastar e pelas batidas rápidas e suaves de pés descalços em pedra. O vento trouxe a mais ligeira lufada de um cheiro de homem que não conhecia. Estranho. Perigo. Morte. Correu na direção do som, com o irmão correndo a seu lado. As tocas de pedra ergueram-se à frente deles, com paredes escorregadias e úmidas. Mostrou os dentes, mas o homem de rocha não ligou para ele. Um portão erguia-se até bem alto, com uma serpente de ferro preta enrolada em volta de barras e do umbral. Quando se atirou contra o portão, ele estremeceu e a serpente tiniu, deslizou e aguentou. Através das barras conseguia olhar pela longa cova de pedra que corria entre os muros até o campo pedregoso que ficava na outra ponta, mas não havia forma de passar. Podia forçar o focinho entre as barras, mas nada mais do que isso. Muitas tinham sido as vezes que o irmão tentara quebrar entre os dentes os ossos negros do portão, mas estes não se partiam. Tinham tentado escavar por baixo deles, mas havia aí grandes pedras planas, meio cobertas por terra e folhas caídas. Rosnando, começou a andar de um lado para o outro diante do portão, e depois atirou-se de novo contra ele. Moveu-se um pouco e o atingiu. Trancado, alguma coisa sussurrou. Acorrentado. 429 A voz que não ouvia, o odor sem cheiro. As outras passagens também estavam fechadas. Onde se abriam portas nos muros de rocha do homem, a madeira era grossa e forte. Não existia saída. Existe, disse o sussurro, e pareceu poder ver a sombra de uma grande árvore coberta de agulhas, nascendo inclinada da terra negra e elevando-se até dez vezes a altura de um homem. Mas, quando olhou em volta, não estava lá. Do outro lado do bosque sagrado, a árvore sentinela, rápido, rápido... Através das sombras da noite chegou um grito abafado, abruptamente interrompido. Depressa, muito depressa, rodopiou e saltou na direção das árvores, com folhas úmidas restolhando sob as patas, galhos chicoteando-o quando passava correndo por eles. Ouvia o irmão seguindo-o de perto. Mergulharam sob a árvore-coração e em torno da lagoa fria, através dos arbustos de amoras silvestres, sob um emaranhado de carvalhos, freixos e espinheiros, até o outro lado do bosque... e ali estava ela, a sombra que ele vislumbrara sem ver, a árvore inclinada apontada para os telhados. Sentinela, disse o pensamento. Lembrou-se então de como era escalá-la. Agulhas por todo o lado, arranhando seu rosto nu e caindo por sua nuca abaixo, seiva pegajosa nas mãos, o aguçado cheiro de pinheiro que exalava. Era uma árvore fácil para um garoto subir, inclinada como estava, torta, com os galhos tão próximos uns dos outros que quase faziam uma escada, levando até o telhado. Rosnando, farejou em volta da base da árvore, levantou uma perna e marcou-a com um jato de urina. Um galho baixo roçou em seu rosto, ele abocanhou-o, torcendo e puxando até que a madeira estalou e se quebrou. Tinha a boca cheia de agulhas e do sabor amargo da seiva. Sacudiu a cabeça e rosnou. O irmão sentou-se sobre os quartos traseiros e ergueu a voz num uivo ululante, uma canção negra de pesar. O caminho não era caminho algum. Eles não eram esquilos, nem crias de homem, não podiam serpentear pelos troncos de árvores acima, agarrando-se com suaves patas cor-de-rosa e pés desajeitados. Eram corredores, caçadores, vagabundos. Do outro lado da noite, para lá da pedra que os cercava, os cães acordaram e começaram a latir. Primeiro um, e logo outro, e depois todos, um grande clamor. Eles também tinham sentido aquilo; o cheiro de inimigos e medo. Uma fúria desesperada o preencheu, quente como a fome. Afastou-se do muro com um salto, e penetrou nas árvores com mais saltos, o pelo cinzento salpicado pelas sombras de galhos e folhas... e então virou-se e correu de volta. Os pés voaram, levantando folhas úmidas e agulhas de pinheiro, e por um momento era um caçador, e um grande veado fugia à sua frente, conseguia vê-lo, cheirá-lo, e correu em plena perseguição. O cheiro do medo fez seu coração trovejar e saliva escorrer por suas mandíbulas. Chegou à árvore inclinada em grandes passos e atirou-se pelo tronco acima, com as garras arranhando a casca em busca de apoio. Saltou para cima, para cima, dois saltos, três, quase sem parar, até se encontrar entre os galhos mais baixos. Ramos emaranharam-se em seus pés e chicotearam seus olhos, agulhas verde-acinzentadas espalharam-se quando abriu caminho por entre elas, mordendo-as. Foi forçado a diminuir o ritmo. Algo se prendeu ao seu pé e ele o libertou, rosnando. O tronco estreitou-se por baixo dele, e tornou-se mais íngreme, quase vertical, e úmido. A casca rasgava-se como pele quando tentava prender nela as garras. Estava a um terço do caminho, a metade, a mais da metade, o telhado estava quase ao seu alcance... e então pôs um pé na madeira molhada e sentiu-o escorregar em sua curvatura, e de repente estava deslizando, tropeçando. Uivou de medo e fúria, caindo, caindo, e contorceu-se enquanto o chão aproximava-se rapidamente, decidido a quebrá-lo... Então, Bran deu por si de novo na cama em seu solitário quarto da torre, emaranhado nas mantas, respirando com força. 430 -Verão - gritou. - Verão - seu ombro parecia doer, como se tivesse caído sobre ele, mas sabia que era apenas o fantasma do que o lobo estava sentindo. Jojen disse a verdade. Sou um lobisomem. Ouvia lá fora os tênues latidos de cães. O mar chegou. Flui sobre as muralhas, tal como Jojen viu. Bran agarrou a barra sobre sua cabeça e puxou-se, gritando por ajuda. Ninguém veio, e após um momento lembrou-se de que ninguém viria. Tinham tirado a guarda de sua porta. Sor Rodrik necessitara de todos os homens em idade de lutar em que pudesse pôr as mãos, e Winterfell fora deixado apenas com uma guarnição simbólica. Os outros tinham partido havia oito dias, seiscentos homens de Winterfell e dos castros mais próximos. Cley Cerwyn seguia com mais trezentos, para se juntar a eles durante a marcha, e Meistre Luwin mandara corvos à frente deles, convocando recrutas de Porto Branco, das terras acidentadas e até de lugares localizados nas profundezas da mata de lobos. Praça de Torrhen estava sob o ataque de um monstruoso chefe de guerra qualquer chamado Dagmer Boca Rachada. A Velha Ama dizia que ele não podia ser morto, que um dia um inimigo havia cortado sua cabeça ao meio com um machado, mas Dagmer era tão feroz que se limitara a unir de novo as duas metades, segurando-as até sarar. Poderia Dagmer ter ganhado? Praça de Torrhen ficava a muitos dias de viagem de Winterfell, mas, mesmo assim... Bran puxou-se para fora da cama, deslocando-se de barra em barra até chegar às janelas. Os dedos atrapalharam-se um pouco ao abrir as venezianas. O pátio estava vazio, e todas as janelas que conseguia ver estavam negras. Winterfell dormia. - Hodor! - gritou para baixo, o mais alto que pôde. Hodor estaria dormindo acima dos estábulos, mas se gritasse com força suficiente talvez ouvisse, ele ou alguém. - Hodor, vem depressa! Osha! Meera, Jojen, alguém! - Bran pôs as mãos em volta da boca. - HOOOOODOOOOOR! Mas quando a porta se abriu com estrondo atrás de si, o homem que entrou não era ninguém que ele conhecesse. Usava um justilho de couro com discos de ferro sobrepostos a ele, e trazia uma adaga numa mão e um machado preso às costas. - O que você quer? - Bran perguntou, com medo. - Este é o meu quarto. Saia daqui. Theon Greyjoy seguiu o homem para dentro do quarto. - Não vamos lhe fazer mal, Bran. - Theon? - Bran sentiu-se tonto de alívio. - Foi Robb que o enviou? Ele também está aqui? - Robb está longe. Não pode ajudá-lo agora. - Ajudar-me? - sentia-se confuso. - Não me assuste, Theon. - Agora sou Príncipe Theon. Somos ambos príncipes, Bran. Quem sonharia com tal coisa? Mas eu tomei seu castelo, meu príncipe. - Winterfell? - Bran sacudiu a cabeça. - Não, não podia fazer isso. - Deixe-nos, Werlag - o homem com a adaga se retirou. Theon sentou-se na cama. - Mandei quatro homens escalarem as muralhas com pequenos ganchos de abordagem e cordas, e eles abriram uma porta falsa para o resto entrar. Meus homens estão tratando dos seus agora mesmo. Garanto-lhe, Winterfell é meu. Bran não compreendia. - Mas você era protegido do pai. - E agora você e o seu irmão são meus protegidos. Assim que a luta acabar, meus homens vão reunir o resto do seu povo e levá-lo para o Grande Salão. Você e eu vamos falar com eles. Você vai lhes dizer que me rendeu Winterfell, e ordenar-lhes que sirvam e obedeçam ao seu novo senhor tal como faziam com o antigo. 431 - Não'farei isso - Bran respondeu. - Lutaremos contra você e vamos expulsá-lo. Nunca me endi, não pode me obrigar a dizer que fiz isso. - Isso não é uma brincadeira, Bran, portanto, não se faça de garotinho comigo, não tolerarei. O castelo é meu, mas essas pessoas ainda são suas. Se o príncipe quiser mantê-las a salvo, é bom que faça o que lhe é dito - levantou-se e se dirigiu à porta. - Alguém virá vesti-lo e levá-lo ao Grande Salão. Pense cuidadosamente no que quer dizer. A espera fez com que Bran se sentisse ainda mais impotente. Ficou sentado no banco da janela, olhando para torres escuras e muralhas negras como a sombra. Uma vez pensou ouvir gritos vindos de trás do Salão dos Guardas, e algo que podia ser sido o estrondo de espadas, mas não tinha as orelhas de Verão para escutar, nem seu focinho para cheirar. Acordado, continuo quebrado, mas quando durmo, quando sou o Verão, posso correr, lutar, escutar e cheirar. Esperava que Hodor viesse até ele, ou talvez uma das criadas, mas quando a porta voltou a se abrir, era Meistre Luwin trazendo uma vela. - Bran, você... sabe o que aconteceu? Foi-lhe dito? - o homem tinha a pele aberta por cima do olho esquerdo e corria sangue por esse lado de seu rosto. - Theon veio aqui. Disse que Winterfell agora era dele. O meistre apoiou a vela e limpou o sangue da bochecha. - Atravessaram o fosso a nado. Escalaram as muralhas com ganchos e cordas. Desceram molhados e pingando, de aço na mão - sentou-se na cadeira junto à porta, enquanto mais sangue escorria. - Alebelly estava no portão, surpreenderam-no no torreão e mataram-no. Haynead também está ferido. Tive tempo para enviar dois corvos antes de irromperem em meus aposentos. A ave para Porto Branco conseguiu escapar, mas abateram a outra com uma flecha - o meistre fitou as esteiras. - Sor Rodrik levou demasiados de nossos homens, mas eu sou tão culpado quanto ele. Nunca previ esse perigo, nunca... Jojen o previu, pensou Bran. - É melhor que me ajude a me vestir. - Sim, é verdade - na pesada arca reforçada com ferro que se encontrava aos pés da cama de Bran o meistre encontrou roupas de baixo, calções e uma túnica. - É o Stark em Winterfell, e o herdeiro de Robb. Tem de parecer principesco - juntos, vestiram-no de forma condizente com um senhor. - Theon quer que eu entregue o castelo - disse Bran enquanto o meistre prendia o manto com sua presilha favorita de prata e azeviche, em forma de cabeça de lobo.
    - Não há vergonha nisso. Um senhor deve proteger o seu povo. Lugares cruéis geram povos cruéis, Bran, lembre-se disso ao lidar com esses homens de ferro. O senhor seu pai fez o que pôde para amaciar Theon, mas temo que tenha sido pouco, e tarde demais. O homem de ferro que veio buscá-lo era atarracado, de tronco volumoso, com uma barba negra como carvão que cobria metade de seu peito. Carregou o rapaz com bastante facilidade, embora não parecesse contente com a tarefa. O quarto de Rickon ficava meia espiral mais abaixo. O garotinho de quatro anos estava rabugento por ter sido acordado. - Quero minha mãe. Quero minha mãe. E também o Cão Felpudo. - Sua mãe está longe, meu príncipe - Meistre Luwin puxou um roupão sobre a cabeça da criança. - Mas eu estou aqui, e Bran também - deu a mão a Rickon e levou-o para a rua. Embaixo, encontraram Meera e Jojen sendo tirados do quarto por um homem careca cuja lança era um metro mais alta do que ele. Quando Jojen olhou para Bran, seus olhos eram lagoas verdes cheias de tristeza. Outros homens de ferro tinham acordado os Frey. 432 - Seu irmão perdeu seu reino - disse o Pequeno Walder a Bran. - Agora não é nenhum príncipe, só um refém. - E você também - Jojen retrucou e eu, e todos nós. - Ninguém estava falando com você, papa-rãs. Um dos homens de ferro seguiu à frente deles, levando uma tocha, mas a chuva tinha recomeçado e rapidamente a apagou. Enquanto se apressavam em cruzar o pátio, conseguiam ouvir os lobos gigantes uivando no bosque sagrado. Espero que Verão não tenha se machucado ao cair da árvore. Theon Greyjoy estava sentado no cadeirão dos Stark. Tirara o manto. Sobre uma fina camisa de cota de malha usava uma capa negra ornamentada com a lula gigante dourada da sua Casa. As mãos pousavam nas cabeças de lobo esculpidas nas extremidades dos largos braços de pedra do cadeirão. - Theon está sentado na cadeira de Robb - disse Rickon, - Quieto, Rickon - Bran conseguia sentir a ameaça que os rodeava, mas seu irmão era jovem demais. Alguns archotes tinham sido acendidos e fogo ardia na lareira grande, mas a maior parte do salão permanecia nas trevas. Não havia lugar para sentar, com os bancos empilhados junto às paredes, e o pessoal do castelo estava em pé, em pequenos grupos, sem se atrever a falar. Viu a Velha Ama, abrindo e fechando a boca sem dentes. Hayhead foi trazido por dois dos outros guardas, com uma atadura manchada de sangue enrolada em volta do tronco nu. Poxy Tim chorava desconsoladamente, e Beth Cassei gritava de medo. - O que temos aqui? - perguntou Theon, referindo-se aos Reed e aos Frey. - Estes são protegidos da Senhora Catelyn, ambos com o nome de Walder Frey - explicou Meistre Luwin. - E este é Jojen Reed e a irmã Meera, filho e filha de Howland Reed da Atalaia da Água Cinzenta, que vieram renovar os votos de lealdade a Winterfell. - Alguns diriam que a hora foi mal escolhida - Theon replicou - , embora não para mim. Aqui estão e aqui ficarão - liberou o cadeirão. - Traga o príncipe para cá, Lorren - o homem da barba negra soltou Bran na pedra como se fosse um saco de aveia, Ainda havia pessoas sendo trazidas para o Grande Salão, incitadas com gritos e cabo de lanças, Gage e Osha vieram das cozinhas, manchados com a farinha da produção do pão matinal. Mikken, arrastaram entre pragas. Farlen entrou coxeando, lutando para apoiar Palia. O vestido dela tinha sido rasgado de cima a baixo; segurava-o com um punho fechado e caminhava como se cada passo fosse uma agonia. Septão Chayle correu para ajudar, mas um dos homens de ferro o jogou ao chão. O último homem a ser obrigado a cruzar as portas foi o prisioneiro Fedor, cujo mau cheiro o precedeu, acre e pungente. Bran sentiu o estômago revirar-se com o cheiro que ele exalava. - Encontramos este trancado numa cela de torre - anunciou o homem que o trazia, um jovem imberbe de cabelo ruivo e roupa encharcada, sem dúvida um daqueles que tinham atravessado o fosso a nado. - Diz que o chamam de Fedor. - Não sou capaz de imaginar por quê - Theon respondeu, sorrindo. - Cheira sempre assim tão mal, ou acabou agora mesmo de foder um porco? - Num fodi ninguém desde que me apanharam, senhor. Meu nome verdadeiro é Heke. Tava ao serviço do Bastardo do Forte do Pavor até que os Stark meteram uma flecha nas suas costas, como presente de casamento. Theon achou aquilo divertido. - Com quem foi que ele se casou? 433
    - Com a viúva de Hornwood, senhor. - Aquela velha? Estava cego? Tem umas tetas que são como odres de vinho vazios, secas e mirradas. - Ele num casou com ela pelas tetas, senhor. Os homens de ferro fecharam com estrondo as grandes portas ao fundo do salão. Do cadeirão, Bran conseguia ver cerca de vinte. Ele provavelmente deixou alguns guardas nos portões e no arsenal. Mesmo assim, não podiam ser mais do que trinta. Theon levantou as mãos para pedir silêncio, - Todos me conhecem.,, - Pois é, conhecemos como o saco de bosta fumegante que é! - gritou Mikken antes de o careca atingi-lo com a ponta romba da lança na barriga e depois bater em seu rosto com o cabo. O ferreiro caiu de joelhos e cuspiu um dente. - Mikken, fique quieto - Bran tentou soar austero e senhorial, como Robb quando dava uma ordem, mas foi traído pela voz e as palavras saíram num guincho estridente, - Escute seu pequeno fidalgo, Mikken - Theon alertou. - Tem mais juízo do que você. Um bom senhor protege o seu povo, recordou Bran a si mesmo. - Rendi Winterfell a Theon. - Mais alto, Bran. E chame-me de príncipe. Bran levantou a voz. - Entreguei Winterfell ao Príncipe Theon. Todos devem fazer o que ele ordenar. - O diabo que faço! - Mikken berrou novamente. Theon ignorou a explosão. - Meu pai pôs na cabeça a velha coroa de sal e rocha, e declarou-se Rei das Ilhas de Ferro. Reclama também o norte, por direito de conquista. São todos seus súditos. - Vá tomar no cu - Mikken limpou o sangue da boca. - Eu sirvo aos Stark, não a uma lula traiçoeira qualquer que... Aah - A ponta romba da lança atirou-o de cabeça contra o chão de pedra. - Os ferreiros têm braços fortes e cabeças fracas - Theon observou. - Mas se o resto de vocês me servir tão lealmente como serviram Ned Stark, vão me achar um senhor tão generoso como poderiam querer. Apoiado nas mãos e joelhos, Mikken cuspiu sangue. Por favor, não faça isso, desejou Bran, mas o ferreiro gritou: - Se acha que vai manter o norte com este bando ridículo de... O careca enfiou a ponta da lança na parte de trás do pescoço de Mikken. Aço deslizou através de carne e saiu por sua garganta com um jorro de sangue. Uma mulher gritou, e Meera envolveu Rickon nos braços. Foi em sangue que se afogou, pensou Bran, atordoado. No seu próprio sangue. - Quem mais tem alguma coisa a dizer? - Theon Greyjoy perguntou. - Hodor hodor hodor hodor - gritou Hodor, de olhos esbugalhados. - Alguém tenha a bondade de calar esse imbecil. Dois homens de ferro começaram a espancar Hodor com a parte de trás das lanças. O cavalariço caiu de joelhos, tentando se defender com as mãos. - Serei um senhor tão bom para vocês como Eddard Stark foi - Theon levantou a voz para ser ouvido sobre o som de madeira batendo em carne. - Mas, se me traírem, irão desejar não tê-lo feito. E não achem que os homens que aqui veem são todo o meu poder. Praça de Torrhen e Bosque Profundo também serão em breve nossos, e meu tio está subindo pela Lança de Sal para 434 capturar Fosso Cailin, Se Robb Stark conseguir esmagar os Lannister, pode reinar como Rei do Tridente daqui em diante, mas é a Casa Greyjoy quem possui o Norte agora. - Os senhores do Stark vão dar trabalho - gritou o homem chamado Fedor. - Aquele porco inchado de Porto Branco, por exemplo, e tamém os Umber e os Karstark. Vai precisar de homens. Liberte-me, e serei seu. Theon o avaliou por um momento. - E mais esperto do que perfumado, mas eu não conseguiria suportar o fedor. - Bom - disse Fedor - , podia me lavar um pouco. Se tivesse livre. - Um homem de raro bom-senso - Theon sorriu. - Dobre o joelho. Um dos homens de ferro entregou uma espada a Fedor, e ele a depositou aos pés de Theon e jurou obediência à Casa Greyjoy e ao Rei Balon. Bran não conseguia ver aquilo. O sonho verde estava se tornando realidade. - Senhor Greyjoy! - Osha avançou, passando ao lado do corpo de Mikken. - Também fui trazida para cá cativa. O senhor estava lá no dia em que fui capturada.
    Pensei que fosse uma amiga, pensou Bran, ferido. - Preciso de guerreiros - Theon declarou - , não de empregadinhas de cozinha. - Foi Robb Stark quem me pôs nas cozinhas. Durante quase um ano, tenho andado polindo panelas, raspando gordura e aquecendo as palhas para esse aí - ela lançou um olhar a Gage. - Estou farta. Volte a pôr uma lança em minha mão. - Tenho uma lança para você aqui mesmo - disse o careca que tinha matado Mikken, e agarrou a virilha, rindo. Osha enfiou o joelho ossudo entre suas pernas. - Guarde essa coisinha mole e rosa para si - arrancou a lança de suas mãos e usou o cabo para desequilibrá-lo. - Eu fico com a madeira e o ferro - o careca ficou se contorcendo no chão enquanto os outros corsários enchiam o ar com uma tempestade de gargalhadas. Theon riu com os outros. - Servirá - disse. - Fique com a lança; Stygg pode encontrar outra. Agora dobre o joelho e jure. Quando ninguém mais avançou para entrar ao seu serviço, foram mandados embora com um aviso para fazerem seu trabalho e não criarem problemas, A Hodor foi atribuída a tarefa de levar Bran de volta à cama. Sua aparência estava feia devido ao espancamento, com o nariz inchado e um olho fechado. - Hodor - soluçou por entre lábios rachados enquanto levantava Bran com enormes braços fortes e mãos ensangüentadas e o levava de volta através da chuva. 435 Arya -H á fantasmas, eu sei que há - Torta Quente estava amassando pão, com os braços cobertos de farinha até os cotovelos, - Pia viu alguma coisa na despensa ontem à noite. Arya soltou um ruído rude. Pia sempre via coisas na despensa. Normalmente, homens. - Dá uma torta? - ela pediu. - Você fez um tabuleiro inteiro. - Preciso de um tabuleiro inteiro. Sor Amory gosta delas. Arya odiava Sor Amory. - Vamos cuspir nelas. Torta Quente olhou nervosamente em volta. As cozinhas estavam cheias de sombras e ecos, mas os outros cozinheiros e ajudantes todos dormiam em suas cavernosas galerias por cima dos fornos. - Ele vai saber. - Não vai nada - Arya retrucou. - Não se sente o gosto do cuspe. - Se souber, é a mim que chicoteiam - Torta Quente interrompeu sua tarefa. - Você nem devia estar aqui. É noite cerrada. E era, mas Arya não se importava. Mesmo na noite cerrada, as cozinhas nunca estavam paradas; havia sempre alguém batendo massa para o pão matinal, mexendo uma caldeira com uma longa colher de pau, ou matando um porco para o bacon do café da manhã de Sor Amory. Naquela noite, era Torta Quente. - Se o Olho Vermelho acorda e não encontra você lá... - ele disse. - O Olho Vermelho nunca acorda - seu nome verdadeiro era Mebble, mas todo mundo o chamava assim por causa de seus olhos lacrimejantes - , depois de desmaiar não acorda mais - todas as manhãs, quebrava o jejum com cerveja. Todas as noites caía num sono ébrio depois do jantar, com cuspe cor de vinho escorrendo queixo abaixo. Arya esperava até ouvi-lo roncar, e depois esgueirava-se descalça pela escada dos criados, sem fazer mais ruído do que o rato que tinha sido. Não levava nem vela nem círio. Syrio dissera-lhe uma vez que a escuridão podia ser sua amiga, e tinha razão. Se tivesse a lua e as estrelas para iluminar seus passos, era o suficiente. - Aposto que podíamos fugir, e o Olho Vermelho sequer repararia que eu não estava mais lá ela disse a Torta Quente. - Eu não quero fugir. Isto aqui é melhor do que era na floresta. Não quero comer minhocas. Toma, espalha um pouco de farinha no tabuleiro. Arya inclinou a cabeça: - O que é isso? - O quê? Eu não... 436 - Escute com as orelhas, não com a boca. Aquilo foi uma trombeta de guerra. Dois sopros, não ouviu? E olha, aquilo são as correntes da porta levadiça, alguém está saindo ou entrando. Quer ir ver? - os portões de Harrenhal não tinham sido abertos desde a manhã em que Lorde Tywin marchara com a sua tropa.
    - Estou fazendo o pão matinal - Torta Quente protestou. - Seja como for, não gosto de quando está escuro, já lhe disse. - Eu vou. Depois conto para você. Dá uma torta? - Não. Ela surrupiou uma mesmo assim, e comeu-a enquanto saía. Estava recheada com pedacinhos de noz, fruta e queijo, com a crosta lascada e ainda quente do forno. Comer a torta de Sor Amory fez com que Arya se sentisse audaciosa. Pé descalço, pé seguro, pé ligeiro, cantarolou em surdina. Sou o fantasma em Harrenhal, A trombeta tinha arrancado o castelo do sono; homens saíam para o pátio a fim de ver o que causava a agitação. Arya juntou-se aos outros. Uma fila de carros de bois estrondeava sob a porta levadiça. Saque, ela compreendeu de imediato. Os cavaleiros que escoltavam os carros falavam uma confusão de estranhas línguas. Suas armaduras cintilavam, claras, ao luar, e Arya viu um par de cavalos com riscas pretas e brancas. Os Saltimbancos Sangrentos. Ela recuou um pouco mais para o interior das sombras, e ficou observando um enorme urso negro passar, engaiolado na parte de trás de uma carroça. Outros carros vinham carregados de pratarias, armas e escudos, sacos de farinha, galinhas, e engradados cheios de suínos aos guinchos e cães magros. Arya estava pensando no tempo que se passara desde a última vez que comeu uma fatia de porco assado quando viu o primeiro dos prisioneiros. Pela atitude e modo orgulhoso como mantinha a cabeça erguida, devia ter sido um senhor. Conseguia ver cota de malha cintilando por baixo de sua capa vermelha rasgada. A princípio, tomou-o por um Lannister, mas quando passou perto de um archote, viu que seu símbolo era um punho de prata, não um leão. Seus pulsos estavam bem atados, e uma corda passada em volta de um tornozelo prendia-o ao homem que vinha atrás, de modo que a coluna inteira tinha de arrastar os pés num passo hesitantemente sincronizado, Muitos dos prisioneiros estavam feridos. Se algum deles parasse, um dos cavaleiros aproximava-se a trote e lhe dava um gostinho do chicote para pô-lo de novo em movimento. Tentou calcular quantos prisioneiros haveria, mas perdeu a conta antes de chegar a cinqüenta. Havia pelo menos o dobro disso. Traziam a roupa manchada de lama e sangue, e à luz dos archotes era difícil distinguir todos os seus selos e símbolos, mas Arya reconheceu alguns dos que vislumbrou. Torres gêmeas. Esplendor. Homem ensangüentado. Machado de batalha. O machado de batalha é de Cerwyn, e o sol branco sobre negro é Karstark. São homens do norte. Homens de meu pai e de Robb. Não gostou de pensar no que isso podia significar. Os Saltimbancos Sangrentos começaram a desmontar. Cavalariços emergiram sonolentos da palha para cuidar de seus cavalos ensaboados. Um dos cavaleiros gritou por cerveja, O ruído trouxe Sor Amory Lorch até a galeria coberta acima do pátio, flanqueado por dois homens com tochas. Vargo Hoat, com seu elmo de cabra, refreou o cavalo por baixo dele. - Fenhor caftelão - disse o mercenário, com uma voz grossa e babosa, como se a língua fosse grande demais para sua boca. - O que é isso tudo, Hoat? - quis saber Sor Amory, franzindo a sobrancelha. - Cativof. Roofe Bolton resolveu atravefar o rio, maf meuf Bravof Companheirof fizeram a fua vanguarda em pedafinhof, Matamof muitof, e pusemof Bolton para correr. Efte é o feu fenhor comandante, Glover, e aquele atráf é For Aenyf Frey. 437 Com seus pequenos olhos de porco, Sor Amory Lorch fitou os cativos amarrados. Arya não achava que estivesse contente. Todo mundo no castelo sabia que ele e Vargo Hoat se odiavam. - Muito bem. Sor Cadwyn, leve esses homens para as masmorras. O prisioneiro vestido em cota de malha e com capa ergueu os olhos. - Foi-nos prometido tratamento honroso... - ele começou. - Filênfio! - gritou-lhe Vargo Hoat, espalhando perdigotos. Sor Amory dirigiu-se aos cativos. - O que Hoat lhes prometeu não quer dizer nada para mim. Lorde Tywin nomeou-me castelão de Harrenhal, e farei com vocês o que bem entender - ele gesticulou para os guardas. - A cela grande sob a Torre da Viúva deve ser suficiente para todos. Se alguém não quiser ir, é livre para morrer aqui. Enquanto seus homens pastoreavam os cativos com as pontas das lanças, Arya viu Olho Vermelho emergir da escada, piscando à luz dos archotes. Se a encontrasse desaparecida, gritaria e ameaçaria arrancar sua pele com chicotadas, mas ela não tinha medo. Ele não era Weese. Andava sempre ameaçando arrancar a pele deste ou daquele com chicotadas, mas ela nunca soube que tivesse realmente batido em alguém. Mesmo assim, seria melhor se não a visse. Olhou à sua volta. Os bois estavam sendo desprendidos dos carros, e estes eram descarregados, enquanto os Bravos Companheiros gritavam por bebida e os curiosos se reuniam em volta do urso enjaulado.
    Na confusão, não era difícil esgueirar-se sem ser vista. Regressou pelo caminho em que tinha vindo, desejando ficar fora de vista antes que alguém reparasse nela e pensasse em pô-la para trabalhar. Longe dos portões e dos estábulos, o grande castelo encontrava-se praticamente deserto. O som minguou atrás dela. Um vento rodopiante soprou, arrancando um grito agudo e trêmulo das rachaduras da Torre dos Lamentos. As folhas tinham começado a cair das árvores no bosque sagrado, e Arya conseguia ouvi-las em movimento através dos pátios desertos e entre os edifícios vazios, fazendo um tênue som de raspar quando o vento as arrastava sobre as pedras. Agora que Harrenhal estava de novo quase vazio, o som fazia ali coisas estranhas. Às vezes, as pedras pareciam beber o ruído, envolvendo os pátios numa manta de silêncio. Em outras, os ecos tinham vida própria, cada passo transformava-se na marcha de um fantasmagórico exército, e cada voz distante, num festim de fantasmas. Os sons estranhos eram uma das coisas que perturbavam Torta Quente, mas não Arya. Silenciosa como uma sombra, correu através do pátio intermediário, em volta da Torre do Terror e pelo interior das gaiolas vazias, onde se dizia que os espíritos de falcões mortos agitavam o ar com asas fantasmagóricas. Podia ir para onde quisesse. A guarnição não tinha mais de uma centena de homens, uma tropa tão pequena que se perdia em Harrenhal. O Salão das Cem Lareiras encontrava-se fechado, bem como muitos dos edifícios menores, e até a Torre dos Lamentos. Sor Amory Lorch residia nos aposentos do castelão na Pira do Rei, tão espaçosos como os de um senhor, e Arya e os outros criados tinham se mudado para os porões que ficavam por baixo, para que estivessem por perto. Enquanto Lorde Tywin tinha habitado o castelo, havia sempre um homem de armas querendo saber o que a levava a este ou aquele lugar. Mas, agora, restavam apenas cem homens para guardar mil portas, e ninguém parecia saber ou se importar com quem devia estar onde. Ao passar pelo arsenal, Arya ouviu o tinir de um martelo, Uma profunda luz cor de laranja brilhava através das grandes janelas. Escalou o telhado e olhou para baixo. Gendry martelava uma placa de peito. Quando trabalhava, nada existia para ele além do metal, dos foles e do fogo. 438 O martelo era parte de seu braço. Observou o jogo de músculos no peito dele e escutou a música de aço que produzia. E forte, pensou. Quando pegou nas tenazes de cabo longo para mergulhar a placa de peito na tina de temperar, Arya deslizou pela janela e saltou para o chão ao seu lado. Ele não pareceu surpreso por vê-la. - Devia estar na cama, menina - a placa de peito silvou como um gato quando a mergulhou em água fria. - O que foi aquele barulho todo? - Vargo Hoat voltou com prisioneiros. Vi seus símbolos. Há um Glover de Bosque Profundo, é um homem do meu pai. Os outros também, na sua maior parte - de súbito, Arya soube por que motivo os pés tinham-na levado até ali. - Tem de me ajudar a tirá-los daqui. Gendry soltou uma gargalhada: - E como é que fazemos isso? - Sor Amory os enviou para a masmorra. Aquela abaixo da Torre da Viúva, que é só uma cela grande. Podia abrir a porta com seu martelo... - Enquanto os guardas observam e fazem apostas a respeito de quantas pancadas vou precisar, talvez? Arya mordeu os lábios. - Teríamos de matar os guardas. - E como é que poderíamos fazer isso? - Talvez não haja muitos. - Se houver dois já é muito para nós. Não chegou a aprender nada naquela aldeia, não é? Se tentar fazer isso, Vargo Hoat corta suas mãos e seus pés, como costuma fazer - Gendry voltou a pegar nas tenazes. - Você tem medo, - Deixe-me em paz, pirralha. - Gendry, há uma centena de nortenhos. Talvez mais, não consegui contar todos. São tantos quanto os soldados de Sor Amory. Bem, sem contar com os Saltimbancos Sangrentos. Só temos de tirá-los de lá, Então, podemos tomar o castelo e fugir. - Bem, não é mais capaz de tirá-los de lá do que foi capaz de salvar Lommy - Gendry virou a placa de peito com as tenazes para observá-la cuidadosamente. - E se fugíssemos, para onde iríamos? - Para Winterfell - ela respondeu de imediato. - Eu contaria a minha mãe como você me ajudou e poderia ficar...
    - A senhora permitiria? Será que poderia ferrar os seus cavalos e fazer espadas para os seus irmãos fidalgos? Ele às vezes a irritava tanto, - Pare com isso! - Por que é que eu apostaria os pés em troca da possibilidade de suar em Winterfell em vez de em Harrenhal? Conhece o velho Ben Blackthumb? Veio para cá garoto. Foi ferreiro da Senhora Whent e do pai antes dela, do pai deste e até do Lorde Lothston, que possuía Harrenhal antes dos Whent. Agora é ferreiro do Lorde Tywin, e sabe o que ele diz? Uma espada é uma espada, um elmo é um elmo, e se puser a mão no fogo fica queimado, não importa a quem sirva. Lucan é um mestre bastante bom. Eu fico aqui. - Então a rainha vai pegá-lo. Ela não mandou homens de manto dourado atrás de Ben Blackthumbl - Talvez nem sequer era eu quem procuravam. 439 - Era, sim senhor, e você sabe disso. Você e' alguém, - Sou um aprendiz de ferreiro, e um dia pode ser que me torne um mestre armeiro... Se não fugir e perder os pés ou arranjar um jeito de me matarem - deu-lhe as costas, voltou a pegar o martelo e começou a martelar. As mãos de Arya enrolaram-se em punhos impotentes. - No próximo elmo que fizer, ponha orelhas de mula em vez de chifres de touro! - teve de fugir para não começar a bater nele. Ele provavelmente nem sentiria se eu batesse. Quando descobrirem quem é e cortarem sua estúpida cabeça de mula, vai se arrepender de não ter me ajudado. De resto, estava melhor sem ele. Fora por causa dele que tinha sido apanhada na aldeia. Mas pensar na aldeia fez Arya lembrar-se da marcha, e do armazém, e do Cócegas. Pensou no garotinho que tinha sido atingido no rosto pela maça, no estúpido velho Todo-por-Joffrey, em Lommy Mãos-Verdes. Fui uma ovelha, e depois um rato. Não podia fazer nada além de me esconder. Arya mordeu o lábio e tentou se lembrar do momento em que a coragem voltara, faqen me devolveu a bravura. De rato transformou-me em fantasma. Tinha andado evitando o lorathiano desde a morte de Weese. Chiswyck tinha sido fácil, qualquer um podia empurrar um homem de um muro, mas Weese criara aquela feia cadela malhada desde filhote, e só uma magia negra qualquer poderia fazer que o animal se voltasse contra ele. Yoren encontrou faqen numa cela negra, tal como Rorge e Dentadas, recordou, faqen fez algo de horrível, e Yoren sabia, era por isso que o mantinha acorrentado. Se o lorathiano fosse um feiticeiro, Rorge e Dentadas podiam ser demônios que tivesse conjurado de algum inferno, e não homens. Jaqen ainda lhe devia uma morte. Nas histórias da Velha Ama a respeito de homens a quem eram dados desejos mágicos por um grumequim, tinha de se ter cuidado especial com o terceiro desejo, porque era o último. Chiswyck e Weese não tinham sido muito importantes. A última morte tem de contar, dizia Arya a si mesma todas as noites quando sussurrava os nomes. Mas agora perguntava a si mesma se esta seria realmente a razão de sua hesitação. Enquanto pudesse matar com um sussurro, Arya não precisava ter medo de ninguém... mas depois de usar a última morte, seria de novo apenas um rato. Com Olho Vermelho acordado, não se atrevia a voltar para a cama. Sem saber onde mais se esconder, dirigiu-se ao bosque sagrado. Gostava do cheiro forte dos pinheiros e sentinelas, de sentir o mato e a terra entre os dedos dos pés, e do som que o vento fazia nas folhas. Um pequeno riacho meandrava lentamente pelo bosque, e havia um local onde a água tinha escavado o solo por baixo de uma árvore caída. Ali, sob madeira em apodrecimento e galhos torcidos e lascados, encontrou a espada que tinha escondido. Gendry era teimoso demais para lhe fabricar uma espada, portanto, ela mesma tinha feito uma, arrancando as cerdas de uma vassoura. A lâmina era muito mais leve do que devia ser, e não tinha um punho propriamente dito, mas Arya gostava da extremidade irregular e lascada. Sempre que tinha uma hora livre, esgueirava-se para lá e dedicava-se aos exercícios que Syrio tinha lhe ensinado, movendo-se descalça sobre as folhas caídas, golpeando galhos e lançando estocadas nas folhas. As vezes até subia nas árvores e dançava entre os ramos superiores, agarrando-se a eles com os dedos dos pés enquanto se deslocava para cá e para lá, vacilando um pouco menos a cada dia, à medida que o equilíbrio ia voltando. A noite era a melhor hora; nunca ninguém a incomodava à noite. Arya subiu. Lá em cima, no reino das folhas, desembainhou a espada e durante algum tempo esqueceu-se de todos, tanto de Sor Amory como dos Saltimbancos e dos homens do pai, 440 perdendo-se na sensação de madeira áspera debaixo das solas dos pés e no suich da espada cortando o ar. Um galho quebrado transformou-se em Joffrey. Bateu nele até que caísse. A rainha, Sor Ilyn, Sor Meryn e Cão de Caça eram apenas folhas, mas matou-os também, golpeando-os até se transformarem em tiras verdes e úmidas. Quando o braço se cansou, sentou-se num galho elevado para recuperar o fôlego com o ar frio e escuro, escutando os guinchos que os morcegos soltavam enquanto caçavam. Através das copas frondosas das árvores, conseguia ver os galhos brancos como ossos da árvore-coração. Daqui parece tal e qual a que há em Winterfell Se ao menos fosse a de Winterfell... então, quando descesse, estaria de novo em casa, e talvez encontrasse seu pai sentado sob o represeiro, onde sempre se sentava. Enfiando a espada no cinto, deslizou de galho em galho até voltar ao chão. A luz da lua pintava os ramos do represeiro de um branco prateado quando se encaminhou em sua direção, mas as folhas vermelhas de cinco pontas estavam enegrecidas pela noite. Arya encarou o rosto esculpido no tronco. Era terrível, com a boca retorcida e os olhos flamejantes e cheios de ódio. Seria aquele o aspecto de um deus? Poderiam os deuses ser feridos, como as pessoas? Devia rezar, pensou de repente. Arya ficou de joelhos. Não tinha certeza de como começar. Juntou as mãos. Ajudem-me, velhos deuses, rezou em silêncio. Ajudem-me a tirar aqueles homens da masmorra para podermos matar Sor Amory, e levem-me para casa, para Winterfell. Façam de mim uma dançarina de água e uma loba, e façam com que nunca mais tenha medo. Seria suficiente? Talvez devesse rezar em voz alta se quisesse que os velhos deuses ouvissem. Ou talvez por mais tempo. Recordava que às vezes o pai rezava durante muito tempo. Mas os velhos deuses nunca o ajudaram. Lembrar-se disso a deixou zangada. - Devia tê-lo salvado - ralhou com a árvore. - Ele rezava para você o tempo todo. Não me importa se me ajuda ou não. Não me parece que possa, mesmo se quisesse. - Não se faz troça dos deuses, menina. A voz a sobressaltou. Ficou de pé com um salto e puxou a espada de madeira. Jaqen Hghar estava tão imóvel na escuridão que parecia ser uma das árvores. - Um homem vem ouvir um nome, Um e dois, e depois vem o três. Um homem quer acabar. Arya apontou a ponta lascada ao chão. - Como é que sabia que eu estava aqui? - Um homem vê. Um homem ouve. Um homem sabe. Ela o olhou com suspeita. Teria sido enviado pelos deuses? - Como fez com que o cão matasse Weese? Conjurou Rorge e Dentadas do inferno? Jaqen Hghar é o seu nome verdadeiro? - Alguns homens têm muitos nomes. Doninha. Arry. Arya. Ela recuou até ficar encostada à árvore-coração. - Gendry contou? - Um homem sabe - ele repetiu. - Minha senhora de Stark. Talvez os deuses o tivessem enviado em resposta às suas preces. - Preciso que me ajude a tirar aqueles homens das masmorras. Aquele Glover e os outros, todos eles. Temos de matar os guardas e de alguma maneira abrir a cela... - Uma menina esquece - ele disse calmamente. - Dois já obteve, três eram devidos» Se um guarda tem de morrer, só tem de dizer seu nome. - Mas um guarda não será suficiente, temos de matar todos para abrir a cela - Arya mordeu o lábio com força para não chorar. - Quero que salve os nortenhos como o salvei. 441 Ele a olhou sem piedade, - Três vidas foram arrebatadas a um deus. Três vidas têm de ser pagas. Não se faz troça dos deuses - sua voz era de seda e aço, - Eu não trocei - Arya pensou por um momento, - O nome... posso dizer o nome de qualquer pessoa? E você irá matá-lo? Jaqen Hghar inclinou a cabeça. - Um homem já disse. - Qualquer pessoa? - repetiu. - Um homem, uma mulher, um bebê, ou Lorde Tywin, o Alto Septão ou seu pai? - O antepassado de um homem está morto há muito tempo, mas se vivesse, e se dissesse o seu nome, morreria às suas ordens. - Jura! - Arya dava uma ordem, - Jura pelos deuses. - Por todos os deuses do mar e do ar, e mesmo pelo do fogo, juro - Jaqen pousou uma mão na boca do represeiro. - Pelos sete novos deuses e pelos deuses antigos sem conta, juro.
    Ele jurou. - Mesmo se eu nomeasse o rei... - Diga o nome, e a morte virá. Amanhã, na volta da lua, de hoje a um ano, virá. Um homem não voa como um pássaro, mas um pé se move, e depois outro, e um dia um homem está lá, e um rei morre - ajoelhou-se ao lado dela, para que ficassem cara a cara, - Uma menina segreda, se tem medo de falar em voz alta. Segreda agora, E Joffrey? Arya encostou os lábios à sua orelha. - E Jaqen Hghar. Nem mesmo no celeiro em chamas, com paredes de fogo a rodeá-lo por todos os lados e ele acorrentado, tinha parecido tão perturbado como agora. - Uma menina... ela brinca. -Jurou. Os deuses ouviram-no jurar. - Os deuses ouviram - de repente surgiu uma faca na sua mão, com uma lâmina fina como o mindinho de Arya. Não saberia dizer se se destinava a ela ou a ele. - Uma menina irá chorar. Uma menina irá perder seu único amigo. - Você não é meu amigo. Um amigo ajudaria - afastou-se dele, apoiada nas pontas dos pés para o caso de ele arremessar a faca. - Eu nunca mataria um amigo. O sorriso de Jaqen surgiu e desapareceu. - Uma menina poderia... dizer então outro nome, se um amigo ajudasse? - Uma menina poderia. Se um amigo ajudasse. A faca desapareceu. - Vem. - Agora? - nunca pensou que ele fosse agir tão depressa. - Um homem ouve o murmúrio da areia numa ampulheta. Um homem não dormirá até que uma menina desdiga um certo nome. Já, criança malvada. Eu não sou uma criança malvada, pensou, sou um lobo gigante, e ojantasma em Harrenhal. Voltou a esconder o pau de vassoura em seu esconderijo e saiu do bosque sagrado atrás dele, Apesar da hora, Harrenhal agitava-se com uma vida irregular, A chegada de Vargo Hoat tinha destruído todas as rotinas. Carros de bois, bois e cavalos tinham desaparecido do pátio, mas a jaula do urso ainda se encontrava lá. Havia sido pendurada do arco da ponte que separava o 442 pátio exterior do interior, suspensa por pesadas correntes, a alguns centímetros do chão. Um anel de archotes banhava a área de luz. Alguns dos cavalariços estavam atirando pedras para fazer o urso rugir e rosnar. Do outro lado do pátio derramava-se luz pela porta do Salão das Casernas, acompanhada pelo ruído de canecas e por homens exigindo mais vinho. Uma dúzia de vozes começou a cantar uma canção numa língua gutural estranha aos ouvidos de Arya. Estão bebendo e comendo antes de irem dormir, compreendeu. Olho Vermelho deve ter mandado alguém me acordar para ajudar a servir. Ele saberá que não estou na cama. Mas provavelmente estaria ocupado servindo os Bravos Companheiros e os homens da guarnição de Sor Amory que tinham se juntado a eles. O barulho que estavam fazendo seria uma boa distração. - Esta noite os deuses famintos terão um banquete de sangue, se um homem fizer isso disse Jaqen. - Querida menina, bondosa e gentil. Desdiga um nome, e diga outro, e atire para longe esse sonho louco. - Não. - Que seja - ele parecia resignado. - A coisa será feita, mas uma menina tem de obedecer. Um homem não tem tempo para conversas. - Uma menina obedecerá - Arya concordou. - O que devo fazer? - Uma centena de homens têm fome, devem ser alimentados, o senhor exige caldo de carne quente. Uma menina tem de correr às cozinhas e dizer ao seu garoto das tortas. - Caldo de carne - ela repetiu, - Onde vai estar? - Uma menina vai ajudar a fazer caldo de carne e vai esperar nas cozinhas até que um homem venha até ela. Vá. Corra. Torta Quente estava tirando os pães do forno quando ela entrou de rompante na cozinha, mas já não estava sozinho. Tinham acordado os cozinheiros para alimentar Vargo Hoat e seus Saltimbancos Sangrentos. Criados levavam cestos cheios de pão e das tortas do Torta Quente, o cozinheiro-chefe cortava fatias de um presunto frio, assadores viravam coelhos enquanto as ajudantes de cozinha os pincelavam com mel, e mulheres cortavam cebolas e cenouras. - Que é que você quer, Doninha? - perguntou o cozinheiro-chefe quando a viu. - Caldo de carne - anunciou, - O senhor quer caldo de carne. Ele sacudiu a faca de trinchar na direção das caldeiras negras de ferro penduradas sobre as chamas. - O que você acha que é aquilo? Se bem que eu preferia mijar nele do que servi-lo àquele bode. Nem sequer deixa um homem ter uma noite de sono - o homem cuspiu. - Bom, não importa. Corra de volta e diga-lhe que não se pode apressar uma caldeira. - Ele me disse para esperar aqui até ficar pronto, - Então não fique na nossa frente. Ou, melhor ainda, torne-se útil. Corra à despensa; sua cabraria vai querer manteiga e queijo. Acorde Pia e diga-lhe que é melhor que seja rápida, por uma vez, se quiser ficar com os dois pés. Arya correu tão depressa quanto pôde. Pia estava acordada no sótão, gemendo por baixo de um dos Saltimbancos, mas enfiou-se bem depressa na roupa quando ouviu seu grito. Encheu seis cestos com potes de manteiga e grandes cunhas de queijo malcheiroso enrolado em pano. - Tome, ajude-me com isto - pediu a Arya. - Não posso. Mas é melhor que se apresse, senão Vargo Hoat corta seu pé - e fugiu antes que Pia pudesse agarrá-la. No caminho de volta, perguntou a si mesma por que motivo nenhum dos cativos tinha as mãos ou os pés cortados. Talvez Vargo Hoat tivesse medo de irritar Robb. Apesar de não parecer ser do tipo de homem que tenha medo seja de quem for. 443 Torta Quente mexia as caldeiras com uma longa colher de pau quando Arya retornou às cozinhas. Pegou uma segunda colher e pôs-se a ajudá-lo. Por um momento, pensou que talvez devesse lhe contar, mas depois lembrou-se da aldeia e decidiu não fazer isso. Ele só iria se render outra vez. Então ouviu o feio som da voz de Rorge. - Cozinheiro - gritou. - Vamos levar a merda do seu caldo - Arya largou a colher, receosa. Não lhe disse para trazê-los. Rorge usava o capacete de ferro, com a proteção que escondia parcialmente o nariz que lhe faltava, Jaqen e Dentadas entraram na cozinha atrás dele. - A merda do caldo ainda não está pronta - o cozinheiro respondeu, - Tem de ferver. Acabamos de despejar as cebolas lá dentro e... - Cale a matraca, senão lhe enfio um espeto rabo acima e pincelamos você durante uma volta ou duas. Eu disse caldo, e disse já. Silvando, Dentadas tirou do espeto um pedaço meio assado de coelho e o rasgou com os dentes pontiagudos enquanto mel escorria entre seus dedos. O cozinheiro aceitou a derrota, - Então levem a merda do caldo, mas se a cabra perguntar por que é que tem tão pouco gosto, digam-lhe. Dentadas lambeu a gordura e o mel dos dedos enquanto Jaqen Hghar calçava um par de luvas bem almofadadas, depois deu um segundo para Arya. - Uma doninha ajuda - o caldo estava fervendo e as caldeiras eram pesadas. Arya e Jaqen pegaram uma, Rorge transportou outra sozinho, e Dentadas agarrou mais duas, silvando de dor quando os pegadores queimaram suas mãos. Mesmo assim, não as deixou cair. Arrastaram as caldeiras para fora da cozinha e atravessaram o pátio com elas. Dois guardas tinham sido colocados à porta da Torre da Viúva. - O que é isto? - perguntou um deles para Rorge. - Um penico com mijo fervendo. Quer um pouco? Jaqen sorriu de forma apaziguadora. - Um prisioneiro também tem de comer. - Ninguém disse nada a respeito de... Arya o interrompeu. - E para eles, não para você. Com um gesto para passar, o segundo guarda disse-lhes: - Então levem para baixo. Depois de atravessar a porta, uma escada em espiral levava às masmorras. Rorge seguiu à frente, com Jaqen e Arya na retaguarda. - Uma menina vai ficar fora do nosso caminho. Os degraus terminavam numa galeria de pedra, úmida e fria, longa, sombria e sem janelas. Algumas tochas ardiam em arandelas na área mais próxima da escada, onde um grupo de guardas de Sor Amory estava sentado em volta de uma mesa de madeira cheia de marcas, conversando e jogando dominó. Pesadas barras de ferro separavam-nos do local onde os cativos se aglomeravam na escuridão, O cheiro do caldo de carne trouxe muitos deles para junto das barras. Arya contou oito guardas, que também cheiraram o caldo. - Esta é a criada mais feia que já vi - disse o capitão para Rorge. - O que há na caldeira?
    - Seu caralho e os ovos. Quer comer ou não? 444 Um dos guardas estava andando para lá e para cá, outro encontrava-se em pé junto às grades, e um terceiro, sentado no chão com as costas apoiadas na parede, mas a expectativa de comer tinha trazido todos para junto da mesa. - Já era mais que hora de nos alimentar. - Isto é cheiro de cebola? - E onde está o pão? - Porra, precisamos de tigelas, taças, colheres... - Não precisam, não - Rorge despejou o caldo pelando em cheio no rosto dos guardas. Jaqen Hghar fez o mesmo. Dentadas também atirou as caldeiras, fazendo-as girar por baixo dos braços para que rodopiassem masmorra afora, fazendo chover sopa. Uma delas atingiu o capitão nas têmporas quando ele tentou se levantar. Caiu como um saco de areia e ficou imóvel. Os outros gritavam de agonia, rezavam, ou tentavam escapar. Arya encostou-se à parede quando Rorge começou a cortar gargantas. Dentadas preferia agarrar os homens pela nuca e pelo queixo e quebrar seus pescoços com uma única torção das suas enormes mãos pálidas. Só um dos guardas conseguiu puxar uma lâmina. Jaqen afastou-se dançando de sua estocada, desembainhou a espada, encurralou o homem num canto com uma saraivada de golpes, e o matou com uma estocada no coração. O lorathiano trouxe a lâmina para Arya, ainda vermelha com sangue quente, e a limpou na parte da frente de sua roupa. - Uma menina deve ficar ensangüentada também. Isto é obra dela. A chave da cela pendia de um gancho na parede por cima da mesa. Rorge a pegou e abriu a cela. O primeiro homem a passar foi o senhor vestido com capa e cota de malha. - Muito bem. Sou Robett Glover. - Senhor - Jaqen fez-lhe uma reverência. Depois de libertados, os prisioneiros tiraram dos guardas mortos suas armas e correram degraus acima com aço na mão. Os outros aglomeraram-se, de mãos vazias, atrás deles. Subiram rápido e quase sem uma palavra. Nenhum deles parecia tão ferido como quando Vargo Hoat os fizera atravessar os portões de Harrenhal. - Usar a sopa foi engenhoso - o homem chamado Glover estava dizendo. - Não esperava por isso. Foi idéia de Lorde Hoat? Rorge desatou a rir. Riu tanto, que escorreu ranho do buraco onde antes estivera seu nariz. Dentadas sentou-se em cima de um dos mortos, segurando uma mão flácida enquanto roía os dedos. Ossos estalaram entre seus dentes. - Quem são vocês? - uma ruga surgiu entre as sobrancelhas de Robett Glover. - Não estavam com Hoat quando ele veio ao acampamento de Lorde Bolton. Pertencem aos Bravos Companheiros? Rorge limpou o ranho do queixo com as costas da mão: - Agora pertencemos. - Este homem tem a honra de ser Jaqen Hghar, antigamente da Cidade Livre de Lorath. Os descorteses companheiros desse homem chamam-se Rorge e Dentadas. Um senhor saberá qual deles é o Dentadas - indicou Arya com uma mão. - E ali... - Chamo-me Doninha - ela o interrompeu, antes que pudesse dizer quem realmente era. Não queria que seu nome fosse dito ali, ao alcance dos ouvidos de Rorge, Dentadas e todos aqueles homens que não conhecia. Viu que Glover não lhe dava importância. - Muito bem - ele disse. - Ponhamos fim a este assunto maldito. 445 Quando voltaram a subir a escada em caracol, encontraram os guardas da porta jazendo em poças de seu próprio sangue. Nortenhos corriam pelo pátio. Arya ouviu gritos. A Porta do Salão da Caserna abriu-se de rompante e um homem ferido saiu, cambaleando e gritando. Outros três correram atrás dele e silenciaram-no com lanças e espadas. Também se lutava em volta da guarita. Rorge e Dentadas correram com Glover, mas Jaqen Hghar ajoelhou ao lado de Arya. - Uma menina não compreende? - Compreendo, sim - ela respondeu, embora não fosse verdade, não por completo. O lorathiano deve ter visto isso em seu rosto. - Uma cabra não tem lealdade. Em breve um estandarte de lobo será erguido aqui, acho. Mas primeiro um homem quer ouvir desdizer certo nome. - Retiro o nome - Arya mordeu o lábio. - Ainda tenho uma terceira morte? - Uma menina é gananciosa - Jaqen tocou um dos guardas mortos e mostrou seus dedos ensangüentados.
    - Aqui estão três, e ali, quatro, e mais oito estão mortos embaixo. A dívida está paga. - A dívida está paga - Arya concordou com relutância. Sentiu-se um pouco triste. Agora era de novo apenas um rato. - Um deus tem o que lhe é devido. E agora um homem deve morrer - um estranho sorriso tocou os lábios de Jaqen Hghar. - Morrer? - ela perguntou, confusa. O que ele queria dizer? - Mas eu desdisse o nome. Agora não precisa morrer. - Preciso. Meu tempo chegou ao fim - Jaqen passou uma mão sobre o rosto, da testa ao queixo, e por onde a mão passou ele mudou. As maçãs do rosto tornaram-se mais cheias, os olhos mais apertados; o nariz entortou-se, uma cicatriz surgiu na bochecha direita onde não havia nenhuma antes. E quando sacudiu a cabeça, seu longo cabelo liso, meio vermelho e meio branco, dissolveu-se para revelar um gorro de apertados caracóis negros. A boca de Arya escancarou-se: - Quem é você? - sussurrou, estupefata demais para sentir medo. - Como fez isso? E difícil? Ele sorriu, revelando um cintilante dente de ouro: - Não é mais difícil do que adotar um novo nome, se se souber como. - Mostre-me - ela exclamou. - Também quero fazer isso. - Se quiser aprender, tem de vir comigo. Arya ficou hesitante. - Para onde? - Para longe, para lá do mar estreito. - Não posso. Tenho que ir para casa. Para Winterfell. - Então temos de nos separar, pois também tenho deveres a cumprir - ele levantou sua mão e pôs uma pequena moeda em sua palma. - Tome. - O que é isto? - Uma moeda de grande valor. Arya mordeu-a. Era tão dura que só podia ser de ferro. - Vale o suficiente para comprar um cavalo? - Não se destina à compra de cavalos. - Então, para que serve? - Isso é o mesmo que perguntar para que serve a vida, para que serve a morte. Se chegar o dia em que quiser voltar a me encontrar, dê essa moeda a qualquer homem de Bravos e diga-lhe as seguintes palavras... vaiar morghulis. 446 - Vaiar morghulis - Arya repetiu, Não era difícil. Os dedos fecharam-se com força em volta da moeda. Do outro lado do pátio, ouvia homens morrendo. - Por favor, não vá Jaqen. - Jaqen está tão morto como Arry - ele falou em tom triste - , e eu tenho promessas a manter. Vaiar morghulis, Arya Stark. Diga de novo. - Vaiar morghulis - ela disse mais uma vez, e o estranho que usava a roupa de Jaqen fez-lhe uma reverência e afastou-se pela escuridão, com o manto tremulando. Ficou sozinha com os mortos. Eles mereceram morrer, disse a si mesma, lembrando-se de todos aqueles que Sor Amory Lorch tinha matado no castro junto ao lago. Os porões sob a Pira do Rei estavam vazios quando voltou para a cama de palha. Sussurrou os nomes para o travesseiro, e quando terminou, acrescentou "Vaiar morghulis", numa voz tênue e suave, perguntando a si mesma o que aquilo queria dizer. Ao chegar a alvorada, Olho Vermelho e os outros estavam de volta, todos, menos um rapaz que tinha sido morto durante a luta, por nenhum motivo que alguém pudesse desvendar. Olho Vermelho subiu sozinho para ver em que pé estavam as coisas à luz do dia, enquanto se queixava sem parar que seus velhos ossos não suportavam degraus. Quando voltou, disse-lhes que Harrenhal tinha sido tomado. - Aqueles Saltimbancos Sangrentos mataram alguns dos homens de Sor Amory nas camas, e os outros à mesa, depois de ficarem bem bêbados. O novo senhor estará aqui antes do dia terminar, com toda a sua tropa. E do norte selvagem, lá onde está a Muralha, e dizem que é um homem duro. Com este senhor ou aquele, continua a haver trabalho para fazer. Algum disparate, e arranco a pele de suas costas à chicotada - ele olhou para Arya quando disse aquilo, mas ela não lhe disse uma palavra sobre onde estivera na noite anterior. Durante toda a manhã, ela viu os Saltimbancos Sangrentos tirando dos mortos o que de valor possuíssem e arrastando os cadáveres para o Pátio das Lâminas, onde foi feita uma pira para se verem livres deles. Shagwell, o Bobo, cortou a cabeça de dois cavaleiros mortos e ficou pavoneando pelo castelo, segurando-as pelos cabelos, abanando-as e fazendo-as falar. "De que morreu?", perguntava uma cabeça. "De sopa quente de doninha", respondia a segunda. Arya foi posta para esfregar o sangue seco. Ninguém lhe disse uma palavra diferente do que era comum, mas de vez em quando reparava em alguém olhando-a de forma estranha. Robett Glover e os outros homens que tinham sido libertado devem ter falado a respeito do que acontecera na masmorra, e depois Shagwell e suas estúpidas cabeças falantes começaram com aquilo da sopa de doninha. Teria dito para ele se calar, mas tinha medo de fazê-lo. O bobo era meio louco, e Arya ouvira dizer que certa vez tinha matado um homem por não rir de uma de suas brincadeiras. É melhor que ele feche a boca, senão ponho-o na minha lista com os outros, pensou enquanto raspava uma mancha marrom-avermelhada, O sol já estava quase se pondo quando o novo senhor de Harrenhal chegou. Tinha um rosto simples, sem barba e comum, notável apenas por seus estranhos olhos claros. Sem ser gordo, magro ou musculoso, usava cota de malha negra e um manto cor-de-rosa com pintas. O símbolo em seu estandarte parecia um homem mergulhado em sangue. - De joelhos para receber o Senhor do Forte do Pavor! - gritou seu escudeiro, um garoto que não devia ser mais velho do que Arya, e Harrenhal se ajoelhou. Vargo Hoat adiantou-se: - Fenhor, Harrenhal éfeu. O senhor respondeu, mas em um tom de voz baixo demais para que Arya ouvisse. Robett Glover e Sor Aenys Frey, recém-banhados e vestidos com gibões e mantos limpos, foram se juntar 447 a eles. Após uma breve conversa, Sor Aenys levou-os até Rorge e Dentadas. Arya surpreendeu-se por vê-los ali ainda; de algum modo tinha esperado que desaparecessem quando Jaqen sumira. Ouviu o som áspero da voz de Rorge, mas não o que ele estava dizendo. Então Shagwell lançou-se sobre ela, arrastando-a pelo pátio afora. - Senhor, senhor - cantarolou, puxando-a pelo pulso - , está aqui a doninha que fez a sopa! - Largue-me - Arya gritou, libertando-se com uma torção do corpo, O senhor a olhou. Só os olhos se moveram; eram muito claros, da cor do gelo. - Quantos anos tem, filha? Ela teve de pensar por um momento para se lembrar. -Dez. - Dez, senhor - ele lhe lembrou. - Gosta de animais? - De alguns. Senhor. Um pequeno sorriso crispou seus lábios: - Mas de leões não, ao que parece. Nem de manticoras. Arya não sabia o que responder àquilo, então não disse nada, - Dizem-me que a chamam de Doninha, Isso não servirá. Que nome sua mãe lhe deu? Ela mordeu o lábio, em busca de outro nome. Lommy chamara-a Cabeça de Caroço, Sansa tinha usado Cara de Cavalo, e os homens do pai tinham-na alcunhado de Arya Debaixo dos Pés, mas não lhe parecia que algum desses fosse o tipo de nome que ele queria. - Nymeria. Só que me chamava de Nan. - Você vai me chamar de senhor quando falar comigo, Nan - disse o senhor brandamente. - E nova demais para ser um Bravo Companheiro, acho, e do sexo errado. Tem medo de sanguessugas, filha? - São só sanguessugas. Senhor. - Meu escudeiro poderia aprender alguma coisa com você, ao que parece. Sangramentos freqüentes são o segredo de uma vida longa. Um homem tem de se purgar do sangue ruim. Parece-me que servirá. Enquanto eu ficar em Harrenhal, Nan, será minha copeira e vai me servir à mesa e em meus aposentos. Dessa vez, sabia que não era boa idéia dizer-lhe que preferia trabalhar nos estábulos. - Sim, minha senhoria. Quero dizer, sua senhoria, O senhor sacudiu a mão. - Deixem-na apresentável - o homem ordenou, para ninguém em especial. - E assegurem-se de que ela aprenda a servir vinho sem derramar - virando as costas para ela, ergueu uma mão e disse: - Lorde Hoat, trate daquelas bandeiras por cima da guarita. Quatro Bravos Companheiros subiram até as ameias e arriaram o leão de Lannister e a manticora negra de Sor Amory. Em seu lugar içaram o homem esfolado do Forte do Pavor e o lobo gigante de Stark. E, nessa noite, uma pajem chamada Nan serviu vinho a Roose Bolton e Vargo Hoat, enquanto eles observavam da galeria os Bravos Companheiros que exibiam Sor Amory Lorch, nu, no pátio intermediário. Sor Amory suplicou, soluçou e agarrou-se às pernas de seus captores, até que Rorge o obrigou a largá-las e Shagwell o atirou com um pontapé para dentro do fosso do urso. O urso está todo de negro, pensou Arya. Tal como Yoren. Encheu a taça de Roose Bolton, e não derramou uma gota. 448 Daenerys Naquela cidade de esplendores, Dany tinha pensado que a Casa dos Imortais fosse a mais magnífica de todas, mas saiu do palanquim para contemplar uma ruína cinzenta e antiga. Longo e baixo, sem torres nem janelas, o edifício enrolava-se como uma serpente de pedra através de um bosque de árvores de casca negra, cujas folhas de um azul carregado constituíam a matéria-prima para a bebida mágica que os qartenos chamavam de sombra da tarde, Não havia outros edifícios por perto. Telhas negras cobriam o palácio, muitas das quais caídas ou quebradas; a argamassa entre as pedras estava seca e se desfazendo. Agora compreendia por que Xaro Xhoan Daxos o chamava de Palácio de Poeira. Até Drogon pareceu inquieto ao vê-lo. O dragão negro silvou, expelindo fumaça por entre seus dentes afiados. - Sangue do meu sangue - disse Jhogo em dothraki - , este é um lugar maligno, um covil de fantasmas e maegi. Vê como suga o sol da manhã? Vamos embora antes que nos sugue também. Sor Jorah Mormont ficou ao lado deles. - Que poder eles podem ter se vivem naquilo? - Escute a sabedoria dos que mais a amam - disse Xaro Xhoan Daxos, recostado dentro do palanquim. - Os magos são criaturas amargas que comem poeira e bebem das sombras. Nada lhes darão. Nada têm para dar. Aggo pousou uma mão no arakh. - Khaleesi, é dito que muitos entram no Palácio de Poeira, mas poucos de lá saem. - Ê dito - Jhogo concordou. - Somos sangue do seu sangue - Aggo continuou. - Juramos viver e morrer convosco. Deixe-nos entrar junto neste lugar escuro, para mantê-la a salvo do mal - Há lugares que até um khal tem de percorrer só - Dany respondeu, - Então leve-me - pediu Sor Jorah. - O risco... - A Rainha Daenerys deve entrar sozinha, ou não entrará - o mago Pyat Pree surgiu por entre as árvores. Esteve ali o tempo todo?, perguntou-se Dany. - Se virar as costas agora, as portas da sabedoria ficarão para sempre fechadas para ela. - Minha barca de prazer espera, mesmo agora - gritou Xaro Xhoan Daxos. - Afaste-se dessa loucura, oh, mais teimosa das rainhas. Tenho flautistas que acalmarão sua alma perturbada com bela música, e uma menininha cuja língua a fará suspirar e derreter. Sor Jorah Mormont deu ao príncipe mercador um olhar azedo: - Vossa Graça, lembre-se de Mirri Maz Duur. - Lembro-me - Dany respondeu, subitamente decidida. - Lembro-me de que tinha conhecimento. E era apenas uma maegi. 449 Pyat Pree deu um pequeno sorriso. - A criança fala tão sabiamente como uma velha. Dê-me o braço e deixe-me indicar-lhe o caminho. - Não sou nenhuma criança - mas, mesmo assim, Dany deu-lhe o braço. Sob as árvores negras estava mais escuro do que tinha imaginado, e o trajeto era mais longo. Embora o caminho parecesse seguir reto da rua até a porta do palácio, Pyat Pree logo fez uma curva. Quando o interrogou, o mago apenas disse: - A porta da frente leva à entrada, mas não leva nunca à saída. Escute as minhas palavras, minha rainha. A Casa dos Imortais não foi feita para mortais. Se dá valor à sua alma, tenha cuidado e faça exatamente o que eu lhe disser. - Farei o que disser - ela prometeu. - Quando entrar, vai se encontrar numa sala com quatro portas: aquela que atravessou e mais três. Escolha a da direita. Se chegar a uma escada, suba. Nunca desça e nunca escolha nenhuma porta a não ser a primeira à sua direita. - A porta à minha direita. Entendo. E quando sair, é o oposto? - De modo algum - Pyat Pree a alertou. - Entrar ou sair é a mesma coisa. Sempre para cima. Sempre a porta à sua direita. Outras portas podem se abrir para a senhora. Lá dentro, verá muitas coisas que a perturbarão. Visões adoráveis, e de horror, maravilhas e terrores. Imagens e sons de dias passados, dias por vir e outros que nunca aconteceram. Habitantes e servidores poderão falar com a senhora à medida que avançar. Responda-lhes, ou os ignore, como quiser, mas não entre em nenhuma sala até chegar à sala de audiências. - Compreendo. - Quando chegar à sala dos Imortais, seja paciente. Nossas pequenas vidas são para eles nada mais do que a batida de uma asa de mariposa. Escute com atenção, e grave cada palavra em seu coração. Quando chegaram à porta, uma boca alta e oval, aberta numa parede esculpida para se parecer com um rosto humano, o menor anão que Dany já tinha visto a esperava na soleira. Não era mais alto do que seu joelho, com a cara chupada e pontiaguda, semelhante a um focinho, mas trajava um delicado traje roxo e azul, e suas minúsculas mãos cor-de-rosa seguravam uma bandeja de prata. Nela pousava um esguio copo de cristal cheio de um líquido espesso e azul: sombra da tarde, o vinho dos magos. - Pegue-o e beba - disse-lhe Pyat Pree. - Vai deixar meus lábios azuis? - Um copo servirá apenas para destapar seus ouvidos e dissolver a membrana que cobre seus olhos, para que possa ver e ouvir as verdades que lhe serão mostradas. Dany levou o copo aos lábios. O gosto do primeiro gole era muito ruim, de tinta e carne estragada, mas quando o engoliu pareceu ganhar vida dentro de si. Conseguia sentir gavinhas espalhando-se por seu peito, como dedos de fogo enrolando-se no coração, e na língua ficou um sabor que era como mel, anis e creme, como leite materno e o sêmen de Drogo, como carne crua, sangue quente e ouro derretido. Era todos os sabores que já tinha experimentado e nenhum deles... e então o copo ficou vazio. - Agora pode entrar - disse o mago. Dany colocou o copo de volta no tabuleiro do criado e entrou. Viu-se num átrio de pedra com quatro portas, uma em cada parede. Sem sequer hesitar, dirigiu-se à porta da direita e a atravessou. A segunda sala era gêmea da primeira. De novo se 450 virou para a porta da direita. Quando a abriu, deparou-se com mais uma pequena antecâmara com quatro portas. Estou na presença defeitiçaria. A quarta sala já não era quadrada, mas oval, e tinha paredes de madeira comida pelas traças, em vez de paredes de pedra. No lugar de quatro, as passagens que dela saíam eram seis. Dany escolheu a da direita e penetrou num corredor longo, sombrio e de teto alto. Ao longo do lado direito havia uma fileira de archotes que ardiam com uma fumacenta luz alaranjada, mas as únicas portas estavam à sua esquerda. Drogon abriu grandes asas negras e bateu o ar parado. Voou seis metros antes de cair indignamente com um barulho surdo. Dany seguiu atrás dele. O tapete roído pelo mofo sob seus pés um dia tinha sido esplendorosamente colorido, e no tecido ainda se viam volutas de ouro, cintilando, quebradas, por entre o cinza desbotado e o verde manchado. O que restava servia para abafar seus passos, mas isso não era inteiramente bom. Dany conseguia ouvir sons dentro das paredes, um tênue ruído de corrida e arranhadas que a fez pensar em ratazanas. Drogon também os ouvia. A cabeça movia-se enquanto seguia os sons, e quando pararam soltou um grito irritado. Outros sons, ainda mais perturbadores, passavam através das portas fechadas. Uma delas estremeceu e soltou um estrondo, como se alguém estivesse tentando arrombá-la. De outra vinha um dissonante toque de flauta que fez o dragão abanar violentamente a cauda de um lado para o outro. Dany apressou-se em seguir adiante. Nem todas as portas estavam fechadas. Não vou olhar, disse Dany a si mesma, mas a tentação era forte demais. Numa sala, uma bela mulher estendia-se nua no chão enquanto quatro homenzinhos rastejavam por cima dela, Tinham caras pontiagudas de ratazana e mãozinhas cor-de-rosa, como o criado que lhe tinha trazido o copo de sombra da tarde. Um deles subia e descia entre as suas coxas. Outro atacava seus seios, mordendo seus mamilos com a boca úmida e vermelha, rasgando e mastigando. Mais à frente, viu um festim de cadáveres. Massacrados de forma selvagem, os convivas jaziam espalhados por cima de cadeiras viradas e mesas de montar estilhaçadas, estatelados em poças de sangue coagulando. Alguns tinham perdido membros, ou até a cabeça. Mãos cortadas seguravam taças ensangüentadas, colheres de pau, aves assadas, nacos de pão. Num trono acima deles, estava sentado um morto com cabeça de lobo. Usava uma coroa de ferro e segurava numa mão uma perna de cordeiro como um rei seguraria um cetro, e seus olhos seguiram Dany com um apelo mudo. Ela fugiu dele, mas só até a próxima porta aberta. Conheço esta sala, pensou. Lembrava-se daquelas grandes vigas de madeira e das faces de animais esculpidas que as adornavam. E ali, do lado de fora da janela, um limoeiro! Vê-lo fez o coração de Dany doer de saudade. É a casa da porta vermelha, a casa em Bravos. Assim que aquele pensamento atravessou seu espírito, Sor Willem entrou na casa, apoiando-se pesadamente em sua bengala. - Princesinha, aqui está - ele disse em sua voz áspera e bondosa. - Venha, venha até mim senhora, está em casa agora, está a salvo agora - sua grande mão enrugada estendeu-se para ela, suave como couro velho, e Dany quis pegá-la e beijá-la, desejou isso mais do que já tinha desejado qualquer outra coisa na vida. O pé avançou, e então pensou: Ele está morto, está morto, o querido velho urso, morreu há muito tempo. Recuou e fugiu. O longo corredor prolongava-se mais e mais, com uma infinidade de portas à esquerda, e nada além de archotes à direita. Passou correndo por mais portas do que conseguia contar, portas fechadas e abertas, portas de madeira e de ferro, portas esculpidas e portas simples, portas com maçanetas, portas com fechaduras e portas com aldravas. Drogon chicoteava suas costas, incentivando-a a avançar, e Dany correu até já não mais conseguir. 451 Por fim, um grande par de portas de bronze surgiu à sua esquerda, mais grandiosas do que as outras. Abriram-se quando se aproximou, e teve de parar e olhar. Para além delas estendia-se um cavernoso salão de pedra, o maior que alguma vez vira. Os crânios de dragões mortos miravam-na das paredes. Num trono elevado cheio de farpas, sentava-se um velho com ricos trajes, de olhos escuros e longos cabelos cinza-prateados. - Que ele seja rei de ossos esturricados e carne assada - disse para um homem que estava embaixo. - Que seja rei de cinzas - Drogon guinchou, enterrando as garras em seda e pele, mas o rei em seu trono não o ouviu, e Dany seguiu adiante. Seu primeiro pensamento, na vez seguinte em que parou, foi Viserys, mas um segundo olhar fez Dany mudar de idéia. O homem tinha os cabelos do irmão, mas era mais alto, e seus olhos eram de um tom escuro de índigo, e não lilases. - Aegon - ele disse para uma mulher que amamentava um recém-nascido numa grande cama de madeira. - Que nome seria melhor para um rei? - Fará uma canção para ele? - a mulher perguntou. - Ele já tem uma canção. E o príncipe que foi prometido, e é sua a canção de gelo e fogo - ergueu o olhar quando disse aquilo, e seus olhos encontraram os de Dany, e pareceu que a via ali em pé através da porta. - Terá de haver mais um - ele disse, embora Dany não soubesse dizer se estava falando para ela ou para a mulher na cama. - O dragão tem três cabeças - dirigiu-se ao banco da janela, pegou uma harpa e seus dedos correram com leveza sobre as cordas prateadas. Uma doce tristeza encheu o quarto enquanto homem, esposa e bebê se desvaneciam como a neblina da manhã, deixando para trás apenas a música a fim de apressá-la. Pareceu a Dany que tinha caminhado por mais uma hora antes que o longo corredor finalmente terminasse numa íngreme escada de pedra, que descia para a escuridão. Todas as portas, abertas ou fechadas, tinham surgido à sua esquerda. Dany olhou para trás. Percebeu, com um princípio de medo, que os archotes estavam se apagando. Eram talvez vinte os que ainda ardiam. No máximo trinta. Mais um se apagou enquanto observava, e a escuridão avançou um pouco mais pelo corredor, rastejando em sua direção. E, ao escutar, pareceu ouvir algo mais que se aproximava, avançando lenta e arrastadamente pelo tapete desbotado. O terror a dominou, Não podia voltar, e tinha medo de ficar ali, mas como poderia avançar? Não havia nenhuma porta à direita, e os degraus iam para baixo, não para cima. Mais um archote se apagou enquanto Dany ficou ali refletindo, e os sons tornaram-se levemente mais altos. O longo pescoço de Drogon desenrolou-se e o dragão abriu a boca para gritar, fazendo sair vapor por entre os dentes. Ele também ouve. Dany voltou a se virar para a parede vazia, mas nada havia lá. Será que há uma porta secreta, uma porta que não consigo ver? Outro archote se apagou. E outro. A primeira porta da direita, ele disse, sempre a primeira porta da direita. A primeira porta da direita... De repente ela entendeu... É a última porta da esquerda! Atirou-se através dela. Do outro lado havia uma pequena sala com quatro portas. Ela seguiu para a direita, e para a direita, e para a direita, e para a direita, e para a direita, e para a direita, e para a direita, até ficar tonta e de novo sem fôlego. Quando parou, deu por si em mais um aposento de pedra, frio e úmido... Mas, dessa vez, a porta que se abria em frente era redonda, esculpida como uma boca aberta, e Pyat Pree estava do lado de fora, na relva sob as árvores. - Será possível que os Imortais tenham terminado tão depressa o que tinham que tratar com a senhora? - ele perguntou, incrédulo, quando a viu. 452 - Táo depressa? - ela perguntou, confusa. - Caminhei durante horas, e ainda não os encontrei. - Seguiu um caminho errado. Venha, eu a levo - Pyat Pree estendeu a mão.
    Dany hesitou. Havia uma porta à sua direita, ainda fechada... - Não é por aí - disse firmemente Pyat Pree, com uma afetação de desaprovação nos lábios azuis. - Os Imortais não esperarão para sempre. - Nossas pequenas vidas são para eles nada mais do que a batida de uma asa de mariposa - Dany repetiu, recordando-se. - Criança teimosa. Ficará perdida e nunca será encontrada. Ela se afastou dele, virou-se para a porta à sua direita. - Não - Pyat Pree guinchou. - Não, a mim, venha a mim, a miiiiiiiiüim - seu rosto desmoronou para dentro, transformando-se em algo pálido e vermiforme. Dany deixou-o para trás, e seguiu em direção a uma escadaria. Começou a subir. Pouco tempo depois suas pernas doíam. Recordou que a Casa dos Imortais parecera não ter torres. Por fim, a escada abriu-se para um átrio. A direita, um conjunto de portas largas de madeira tinha sido escancarado. Eram feitas de ébano e represeiro, com os grãos pretos e brancos da madeira rodopiando e retorcendo-se em padrões estranhos e intricados. Eram muito belos, mas de algum modo assustadores. 0 sangue do dragão não deve ter medo. Dany proferiu uma prece rápida, suplicando coragem ao Guerreiro e força ao deus dos cavalos dos dothraki. Obrigou-se a avançar. Para além das portas encontrava-se um grande salão e um esplendor de feiticeiros. Alguns usavam suntuosas togas de arminho, veludo rubi e pano de ouro. Outros preferiam elaboradas armaduras guarnecidas de pedras preciosas, ou chapéus altos e pontiagudos, salpicados de estrelas. Havia mulheres entre eles, trajando vestidos de insuperável beleza. Raios de luz do sol penetravam por janelas de vitral, e o ar reverberava com a mais bela música que já tinha ouvido. Um homem régio, com ricos trajes, levantou-se ao vê-la, e sorriu: - Daenerys da Casa Targaryen, seja bem-vinda. Venha partilhar o alimento da eternidade. Nós somos os Imortais de Qarth. - Longamente a esperamos - disse uma mulher ao seu lado, vestida de rosa e de prata. O seio que deixara nu, à moda qartena, era tão perfeito como um seio podia ser. - Sabíamos que viria até nós - disse o rei feiticeiro. - Já sabíamos disso há mil anos, e temos estado todo esse tempo à espera. Enviamos o cometa para lhe mostrar o caminho. - Temos conhecimento a partilhar com você - disse um guerreiro com uma brilhante armadura esmeralda e armas mágicas para lhe dar. Ultrapassou todos os desafios. Venha agora sentar-se conosco, e todas as suas perguntas serão respondidas. Dany deu um passo em frente. Mas então Drogon saltou de cima de seu ombro. Voou para o topo da porta de ébano e represeiro, empoleirou-se aí e começou a morder a madeira esculpida. - Um animal com personalidade - riu um jovem bonito. - Devemos ensinar a língua secreta dos dragões a você? Venha, venha. Dany foi assaltada pela dúvida. A grande porta era tão pesada que foram necessárias todas as suas forças para deslocá-la, mas por fim começou a se mover. Atrás havia outra porta, escondida. Era de velha madeira cinza, lascada e simples... Mas estava à direita da porta por onde tinha entrado. Os feiticeiros chamavam-na com vozes mais doces do que canções. Dany fugiu deles, com Drogon voando de volta ao seu ombro. Atravessou a porta estreita, e entrou num aposento inundado de trevas. 453 Uma longa mesa de pedra enchia a sala. Por cima flutuava um coração humano, inchado e azul de podridão, mas ainda vivo. Batia, numa profunda e solene palpitação, e cada batida gerava um banho de luz cor de índigo. As silhuetas que rodeavam a mesa não eram mais do que sombras azuis. Enquanto Dany caminhava até a cadeira vazia na ponta da mesa, elas não se agitaram, nem falaram, nem se viraram para ela. Não havia nenhum som, a não ser o lento e profundo batimento do coração em putrefação. ... Mãe de dragões... soou uma voz, em parte sussurro, em parte gemido... dragões... dragões... dragões... ecoaram outras vozes nas sombras. Algumas eram masculinas e outras femininas. Uma falava com o timbre de uma criança. O coração flutuante pulsava entre as sombras e as trevas. Era difícil convocar a vontade de falar, recordar as palavras que tinha treinado com tanta assiduidade. - Sou Daenerys Filha da Tormenta, da Casa Targaryen, Rainha dos Sete Reinos de Westeros - vão me ouvir? Por que não se mexem? Sentou-se, fechando as mãos no colo. - Concedam-me seus conselhos, e falem-me com a sabedoria daqueles que conquistaram a morte. Através da névoa pintada de índigo conseguia distinguir os traços mirrados do Imortal sentado à sua direita, um homem muito, muito velho, enrugado e sem cabelo. Sua pele tinha um vivo tom violeta-azulado, os lábios e as unhas eram ainda mais azuis, tão escuros que eram quase negros.
    Até o branco dos olhos era azul. Fitavam, sem ver, a mulher antiga que se encontrava do lado oposto da mesa, cujo vestido de seda clara tinha apodrecido em seu corpo. Um seio murcho havia sido deixado nu, à moda qartena, e mostrava um pontiagudo mamilo azul, duro como couro. Ela não respira. Dany escutou o silêncio. Nenhum deles respira, e não se mexem, e aqueles olhos não veem nada. Será possível que os Imortais estejam mortos? A resposta foi um suspiro tão fino como um bigode de rato.... Nós vivemos... vivemos... vivemos... disse o suspiro. Uma miríade de outras vozes sussurraram ecos.... e sabemos... sabemos... sabemos... sabemos... - Vim em busca do dom da verdade - disse Dany. - No longo corredor, as coisas que vi... foram visões verdadeiras, ou mentiras? Coisas passadas ou coisas por vir? O que significavam? ... A forma das sombras... amanhãs ainda não feitos... beba da taça de gelo... beba da taça de fogo... ... Mãe de dragões... filha de três... - Três? - ela não compreendia. ... Três cabeças tem o dragão... gemeu o coro fantasmagórico dentro de sua cabeça, sem que nunca um lábio se movesse, nunca um sopro agitasse o ar azul e parado.... Mãe de dragões... filha da tormenta... Os sussurros se transformaram numa canção turbilhonante.... Três fogueiras tem de acender... uma pela vida, uma pela morte e uma pelo amor... Seu coração batia em uníssono com aquele que flutuava na sua frente, azul e putrefato.... Três montarias tem de montar... uma para o sexo, uma para o terror e uma para o amor... Percebeu que as vozes se tornavam mais sonoras, e parecia-lhe que seu coração abrandava, o mesmo acontecendo com a respiração... Três traições conhecerá... uma vez por sangue, uma vez por ouro e uma vez por amor... - Eu não... - sua voz não era mais do que um sussurro, quase tão tênue como os deles. O que se passava consigo mesma? - Eu não compreendo - disse, mais alto. Por que era tão difícil falar ali? - Ajudem-me. Mostrem-me. ... Ajudá-la... zombaram os suspiros.... Mostrar-lhe... Então fantasmas estremeceram através da névoa, imagens em índigo. Viserys gritou quando ouro derretido escorreu por sua cabeça e encheu sua boca. Um senhor alto, com pele de cobre 454 e cabelo louro-prateado, ergueu-se sob um estandarte com um garanhão fogoso, tendo uma cidade incendiada como fundo. Rubis escorreram como gotas de sangue do peito de um príncipe moribundo, e ele caiu de joelhos na água, e com o seu último suspiro murmurou um nome de mulher... Mãe de dragões, filha da morte... Brilhando como o pôr do sol, uma espada vermelha foi erguida na mão de um rei de olhos azuis que não projetava sombra. Um dragão de pano oscilou em mastros por cima de uma multidão exultante. De uma torre fumegante, um grande animal de pedra levantou voo, exalando fogo de sombras.... Mãe de dragões, matadora de mentiras,,. Sua prata trotou pela grama, dirigindo-se a um riacho sombrio sob um mar de estrelas. Um cadáver ergueu-se à proa de um navio, de olhos brilhantes na face morta, lábios cinzentos sorrindo tristemente. Uma flor azul cresceu de uma fenda numa muralha de gelo e encheu o ar de doçura... Mãe de dragões, noiva do fogo,,. E as visões vieram, cada vez mais rápidas, uma após a outra, até parecer que o próprio ar tinha ganhado vida. Sombras rodopiaram e dançaram dentro de uma tenda, elásticas e terríveis, Uma menininha correu descalça para uma grande casa com uma porta vermelha. Mirri Maz Duur guinchou entre as chamas, com um dragão irrompendo de sua testa. Atrás de um cavalo prateado, o cadáver ensangüentado de um homem nu foi arrastado aos solavancos. Um leão branco correu por pastos mais altos do que um homem. A sombra da Mãe das Montanhas, uma fileira de velhas nuas saiu de um grande lago e ajoelhou-se tremendo diante dela, com a cabeça cinzenta inclinada. Dez mil escravos ergueram mãos manchadas de sangue enquanto ela passava por eles a galope em sua prata, correndo como o vento. "Mãe!", gritaram. "Mãe, mãe!" Estendiam as mãos para ela, tocavam-na, puxavam seu manto, a barra de sua saia, seu pé, sua perna, seu seio. Desejavam-na, necessitavam dela, do fogo, da vida, e Dany arquejou e abriu os braços para se entregar a eles... Mas, então, asas negras esbofetearam sua cabeça, e um grito de fúria cortou o ar índigo, e de repente as visões desapareceram, rasgadas, e o arquejo de Dany transformou-se em horror. Os Imortais estavam em volta dela, azuis e frios, suspirando enquanto estendiam as mãos para ela, puxando, afagando, pegando em suas roupas, tocando nela com suas mãos secas e frias, enredando os dedos em seus cabelos. Todas as forças tinham abandonado seus membros, Não conseguia se mexer. Até seu coração tinha deixado de bater. Sentiu uma mão no seio nu, torcendo seu mamilo. Dentes encontraram a pele suave de sua garganta. Uma boca desceu sobre um olho, lambendo, sugando, mordendo...
    E então o índigo transformou-se em laranja, e os sussurros em gritos. Seu coração batia, rápido, as mãos e bocas haviam-na largado, calor lavava sua pele, e Dany piscou perante o súbito brilho. Empoleirado acima dela, o dragão abriu as asas e mordeu o terrível coração escuro, rasgando a carne putrefata em tiras, e quando sua cabeça foi para frente, fogo fluiu entre as maxilas abertas, quente e brilhante. Conseguia ouvir os guinchos dos Imortais enquanto ardiam, suas vozes agudas e frágeis como papel gritando em línguas havia muito desaparecidas. A carne deles era pergaminho que se desfazia, seus ossos, madeira seca ensopada em sebo. Dançaram enquanto as chamas os consumiam; cambalearam, estremeceram, saltaram e ergueram bem alto mãos em brasa, com os dedos brilhantes como tochas. Dany ficou de pé e investiu pelo meio deles. Eram leves como o ar, não mais do que cascas, e caíam com um toque. A sala inteira estava em chamas quando atingiu a porta. - Drogon - ela chamou, e ele voou através do fogo. Fora da sala, um longo corredor sombrio estendia-se serpenteando à sua frente, iluminado pelo brilho tremeluzente e alaranjado vindo de trás. Dany correu, em busca de uma porta, uma 455 porta à sua direita, uma porta à sua esquerda, qualquer porta, mas nada havia, só paredes tortuosas de pedra, e um pavimento que parecia se mover lentamente sob seus pés, contorcendo-se como que para fazê-la tropeçar. Manteve o equilíbrio e correu mais depressa, e de repente a porta estava bem na sua frente, uma porta que era como uma boca aberta. Quando surgiu à luz do sol, o brilho fez com que tropeçasse. Pyat Pree balbuciava numa língua desconhecida qualquer e saltava de um pé para o outro. Quando Dany olhou para trás, viu finas gavinhas de fumaça abrindo caminho através de fendas nas antigas paredes de pedra do Palácio de Poeira, e erguendo-se por entre as telhas negras do telhado. Uivando pragas, Pyat Pree puxou uma faca e dançou em sua direção, mas Drogon voou no seu rosto. Então, Dany ouviu o estalar do chicote de Jhogo, e nunca houve som que a alegrasse tanto. A faca voou para longe, e um instante mais tarde Rakharo atirava Pyat ao chão. Sor Jorah Mormont ajoelhou na relva fresca e verde ao lado dela e pôs o braço em volta de seu ombro. 456 Tyrion -Se morrer de forma estúpida, dou seu corpo de comer às cabras - ameaçou Tyrion quando o primeiro carregamento de Corvos de Pedra se afastou do cais. Shagga soltou uma gargalhada. - O Meio-Homem não tem cabras. - Vou arranjar algumas só para você. A alvorada rompia, e pálidas ondulações de luz cintilavam na superfície do rio, estilhaçando -se sob os mastros e voltando a se formar depois de o barco passar. Timett tinha levado seus Homens Queimados para o bosque do rei dois dias antes. Ontem, os Orelhas Negras e os Irmãos da Lua seguiram-no, hoje eram os Corvos de Pedra. - Faça o que fizer, não tente travar batalha - Tyrion o alertou. - Ataque os acampamentos e as colunas de abastecimento. Monte emboscadas para os batedores e pendure os corpos nas árvores diante da linha de marcha deles, dê a volta e abata quem ficar para trás. Quero ataques noturnos, tantos e tão súbitos que eles fiquem com medo de dormir... Shagga apoiou uma mão na cabeça de Tyrion. - Tudo isso aprendi de Dolf, filho de Holger, antes de minha barba ter crescido. E assim que se faz a guerra nas Montanhas da Lua. - O bosque do rei não é as Montanhas da Lua, e não estará lutando com Serpentes de Leite ou Cães Pintados. E ouça os guias que mando junto, eles conhecem essa floresta como você conhece suas montanhas. Escute seus conselhos, vão lhe ser úteis. - Shagga escutará os animais de estimação do Meio-Homem - prometeu solenemente o homem dos clãs. E então chegou o momento de levar o garrano para o barco. Tyrion ficou vendo-os se afastar da margem e, levados por varas, se dirigir para o centro da Água Negra. Sentiu uma estranha pontada na boca do estômago quando Shagga se desvaneceu na névoa da manhã. Ia se sentir nu sem seus homens dos clãs. Ainda tinha os homens contratados por Bronn, agora quase oitocentos, mas os mercenários eram notoriamente volúveis. Tyrion fizera o que podia para comprar uma lealdade continuada, prometendo a Bronn e a uma dúzia de seus melhores homens terras e graus de cavaleiro quando a batalha estivesse ganha. Tinham bebido seu vinho, rido de suas gracinhas e chamado uns aos outros de sor até ficarem todos cambaleando... Todos, menos o próprio Bronn, que tinha se limitado a sorrir aquele seu sorriso insolente e sombrio para depois dizer: - Eles matarão por esse grau de cavaleiro, mas nunca julgue que morrerão por ele.
    Tyrion não guardava tal ilusão. Os homens de manto dourado eram uma arma quase igualmente incerta. Seis mil homens na Patrulha da Cidade, graças a Cersei, mas só se podia confiar em um quarto deles. 457 - Há poucos que sejam claramente traidores, embora haja alguns, até sua aranha não encontrou todos - prevenira-o Bywater. - Mas há centenas que estão mais verdes do que a grama da primavera, homens que se alistaram para ter pão, cerveja e segurança. Ninguém gosta de parecer covarde aos olhos dos companheiros, e lutarão com bastante coragem no início, quando só houver trombetas de guerra e estandartes ao vento. Mas se a batalha parecer correr mal, eles vão quebrar, e vão quebrar feio. O primeiro homem a jogar fora a lança e fugir terá mais mil o seguindo. Certamente havia homens experientes na Patrulha da Cidade, o núcleo de dois mil que tinha obtido o manto dourado de Robert, e não de Cersei. Mas, mesmo esses... Lorde Tywin Lannister gostava de dizer que um vigia não era realmente um soldado. Quanto a cavaleiros, escudeiros e homens de armas, Tyrion não possuía mais do que trezentos. Em breve teria de testar a veracidade de outro dos ditados do pai: Um homem em uma muralha vale por dez à sua sombra, Bronn e a escolta esperavam na entrada do cais, no meio de um enxame de pedintes, rameiras passeando e mulheres de pescadores transportando pescado. As mulheres dos pescadores faziam mais negócio do que todos os outros juntos. Compradores rodeavam as barricas e as bancadas em bandos para regatear por caramujos, mariscos e lúcios. Sem outro tipo de comida chegando na cidade, o preço do peixe era dez vezes mais alto do que tinha sido antes da guerra, e continuava a subir. Os que tinham dinheiro vinham à margem do rio todas as manhãs e todas as noites, esperando levar para casa uma enguia ou um recipiente cheio de caranguejos vermelhos; os que não tinham esgueiravam-se entre as bancadas, na esperança de roubar, ou ficavam, lúgubres e desamparados, sob as muralhas. Os homens de manto dourado abriram caminho através da multidão, empurrando as pessoas para o lado com o cabo das lanças. Tyrion ignorou as pragas resmungadas o melhor que pôde. Um peixe aproximou-se voando, viscoso e podre. Aterrissou a seus pés e se desmachou. Passou bamboleante por cima dele e subiu na sela. Crianças com barrigas inchadas já lutavam pelos pedaços do peixe fedorento. Montado, passou o olhar ao longo da margem. Martelos ressoavam no ar da manhã enquanto carpinteiros enxameavam o Portão da Lama, projetando das ameias grades de madeira. Aquilo estava indo bem. Estava bastante menos satisfeito com o aglomerado de estruturas decrépitas que tinham sido deixadas crescer atrás dos cais, agarrando-se às muralhas da cidade como cracas no casco de um navio; cabanas para guardar apetrechos de pesca, casas de pasto, bordéis, bancas de mercadores, cervejarias, as choupanas onde as mais baratas das prostitutas abriam as pernas. Isso tem de desaparecer, de cima a baixo. Daquele jeito, Stannis praticamente não precisaria de escadas para assaltar as muralhas. Chamou Bronn para perto: - Reúna uma centena de homens e ateie fogo em tudo o que vê aqui, entre a margem do rio e as muralhas da cidade - fez um gesto com os dedos atarracados, abarcando toda a miséria da frente do rio. - Não quero ver nada em pé, entendeu? O mercenário moreno virou a cabeça, avaliando a tarefa. - Os sujeitos que são donos disso tudo não vão gostar muito. - Nunca imaginei que gostariam. Que seja; terão mais uma coisa sobre a qual amaldiçoar o maligno macaquinho demoníaco. - Alguns podem lutar. - Certifique-se de que percam. - O que fazemos com os que moram aqui? 458 - Dê-lhes um tempo razoável para que removam os pertences, e depois expulse-os. Tente não matar ninguém, não são eles o inimigo. E basta de estupros! Mantenha seus homens na linha. É uma ordem. - Eles são mercenários, não septões - Bronn respondeu. - A seguir vai me dizer que os quer sóbrios. - Mal não faria. Tyrion só desejava poder ter a mesma facilidade para tornar as muralhas da cidade duplamente mais altas e triplamente mais espessas. Embora talvez não importasse. Muralhas maciças e torres altas não tinham salvado Ponta Tempestade, nem Harrenhal, nem mesmo Winterfell. Lembrava-se de Winterfell como o tinha visto pela última vez. Não tão grotescamente enorme como Harrenhal, nem tão sólido ou inexpugnável ao olhar como Ponta Tempestade, mas havia uma grande força naquelas pedras, uma sensação de que dentro daquelas muralhas um homem poderia se sentir a salvo. A notícia da queda do castelo chegou como um choque dilacerante. - Os deuses dão com uma mão e tiram com a outra - resmungou em surdina quando Varys lhe contou. Tinham dado Harrenhal aos Stark e roubado Winterfell, uma troca deprimente. Sem dúvida devia estar se regozijando. Robb Stark teria agora de se dirigir para o norte, Se não fosse capaz de defender seu próprio lar, não era rei nenhum. Isso significava tempo para o oeste, para a Casa Lannister, e no entanto... Tyrion tinha apenas a mais vaga das memórias de Theon Greyjoy do tempo passado com os Stark. Um jovem imberbe, sempre sorrindo, habilidoso com um arco; era difícil imaginá-lo como Senhor de Winterfell. O Senhor de Winterfell tinha de ser sempre um Stark. Lembrava-se do bosque sagrado deles; as grandes árvores-sentinela armadas com suas agulhas verde-acinzentadas, os grandes carvalhos, os espinheiros, freixos e pinheiros-marciais, e, no centro, a árvore-coração, vertical como um gigante branco congelado no tempo. Quase conseguia cheirar o lugar, terroso e pensativo, o cheiro de séculos, e lembrava-se de como o bosque era escuro mesmo durante o dia. Aquele bosque era Winterfell Era o Norte. Nunca me senti tão deslocado, nunca me senti tanto um intruso indesejado, como quando caminhei por ali. Imaginou se os Greyjoy sentiriam o mesmo. O castelo até podia lhes pertencer, mas aquele bosque sagrado nunca. Nem dentro de um ano, dez ou cinqüenta. Tyrion Lannister levou o cavalo a passo lento na direção do Portão de Lama. Winterfell não é nada para você, lembrou-se, Fique contente pelo lugar ter caído, e preocupe-se com as suas muralhas. O portão encontrava-se aberto. Lá dentro, três grandes trabucos erguiam-se lado a lado na praça do mercado, espreitando por cima das ameias como três enormes aves. Seus braços lançadores tinham sido feitos com os troncos de antigos carvalhos, e eram ligados com ferro para evitar que se dividissem. Os homens de manto dourado tinham-nos apelidado de Três Rameiras, por irem dar a Lorde Stannis boas-vindas tão vigorosas. Pelo menos assim esperamos. Tyrion encostou as esporas no cavalo e atravessou o Portão da Lama a trote, enfrentando a maré humana. Depois de passar pelas Rameiras, a multidão tornou-se mais esparsa e a rua abriu-se à sua volta. O caminho de volta à Fortaleza Vermelha foi tranqüilo, mas na Torre da Mão encontrou uma dúzia de capitães mercadores irritados, à sua espera na sala de audiências, para protestar pela apreensão de seus navios. Ofereceu-lhes sinceras desculpas e prometeu compensações depois de a guerra acabar. Isso pouco contribuiu para apaziguá-los. - E se perder, senhor? - perguntou um bravosiano. - Nesse caso solicitem a compensação ao Rei Stannis. 459 Quando se livrou deles, os sinos estavam tocando, e Tyrion percebeu que chegaria atrasado ao empossamento. Bamboleou-se quase correndo através do pátio e forçou entrada na parte de trás do septo do castelo, no momento em que Joffrey prendia mantos de seda branca em volta dos ombros dos dois membros mais recentes da Guarda Real. O rito parecia requerer que todo mundo ficasse de pé e, por isso, tudo o que Tyrion viu foi uma muralha de traseiros corteses. Por outro lado, assim que o novo Alto Septão tivesse terminado de guiar os dois novos cavaleiros pelos votos solenes e de ungi-los em nome dos Sete, estaria bem posicionado para ser o primeiro a sair dali. Aprovava a escolha da irmã por Sor Balon Swann para tomar o lugar do falecido Preston Greenfield, Os Swann eram senhores da Marca, orgulhosos, poderosos e cautelosos. Alegando doença, Lorde Guilan Swann havia permanecido em seu castelo, sem participar da guerra, mas o filho mais velho acompanhara Renly, e agora Stannis, ao passo que Balon, o mais novo, servia em Porto Real. Se tivesse um terceiro filho, Tyrion suspeitava que estaria com Robb Stark. Talvez não fosse a atitude mais honrosa, mas mostrava bom-senso; fosse quem fosse que conquistasse o Trono de Ferro, os Swann pretendiam sobreviver. Além de ser bem-nascido, Sor Balon era valente, cortês e possuía habilidades marciais; bom com uma lança, melhor com uma maça de guerra, soberbo com o arco. Serviria com honra e coragem. Infelizmente, Tyrion não podia dizer o mesmo da segunda escolha de Cersei, Sor Osmund Kettleblack parecia bastante forte. Tinha um metro e noventa e oito, a maior parte de toda essa altura era de tendões e músculos, e o nariz adunco, as densas sobrancelhas e a barba castanha em forma de folha davam ao seu rosto um aspecto feroz, desde que não sorrisse. De baixo nascimento, não mais do que um pequeno cavaleiro, Kettleblack era completamente dependente de Cersei para sua ascensão social, o que era sem dúvida o motivo pelo qual a rainha o escolhera. - Sor Osmund é tão leal como corajoso - ela disse a Joffrey quando sugeriu seu nome. Infelizmente era verdade, O bom Sor Osmund andava vendendo os segredos dela a Bronn desde o dia em que a rainha o contratara, mas Tyrion não podia propriamente dizer isso a ela. Supunha que não devia se queixar, A nomeação dava-lhe outro ouvido próximo do rei, sem o conhecimento da irmã. E mesmo se Sor Osmund demonstrasse ser um completo covarde, não seria pior do que Sor Boros Blount, atualmente residindo numa masmorra em Rosby. Sor Boros escoltava Tommen e Lorde Gyles quando Sor Jacelyn Bywater e seus homens de manto dourado os surpreenderam, e havia entregado quem tinha a cargo com uma animação que teria enraivecido o velho Sor Barristan Selmy do mesmo modo como enfurecera Cersei; um cavaleiro da Guarda Real deveria morrer em defesa do rei e da família real. A irmã insistira para que Joffrey despojasse Blount do manto branco, por motivo de traição e covardia. E agora o substitui por outro homem igualmente oco. As rezas, votos e unções pareceram durar a manhã inteira. As pernas de Tyrion rapidamente começaram a doer. Mudou o peso de um pé para o outro, irrequieto. Viu que a Senhora Tanda estava várias fileiras acima, mas a filha não se encontrava com ela. Tivera alguma esperança de ter um vislumbre de Shae. Varys dizia que ela estava bem, mas Tyrion preferiria ver com seus próprios olhos, - E melhor aia de uma senhora do que ajudante de cozinha -Shae dissera quando Tyrion lhe contou o plano do eunuco. - Posso levar o cinto de flores de prata e o colar de ouro com diamantes negros que disse que se pareciam com meus olhos? Não os usarei, se disser que não devo. Por relutante que se sentisse em desapontá-la, Tyrion teve de ressaltar que embora a Senhora Tanda não fosse de modo algum uma mulher inteligente, até ela poderia se sentir curiosa se a criada de quarto da filha parecesse possuir mais jóias do que a filha. 460 - Escolha dois ou três vestidos, não mais - tinha lhe ordenado. - Boa lã, nada de seda, nada de samito, e nada de peles. O resto guardarei em meus aposentos para quando me visitar - não era a resposta que Shae queria, mas pelo menos ela estaria a salvo. Quando a investidura finalmente terminou, Joffrey marchou para o exterior entre Sor Balon e Sor Osmund, que ostentavam seus novos mantos brancos, enquanto Tyrion ficava para trocar algumas palavras com o novo Alto Septão (que tinha sido escolha sua, e era suficientemente sensato para saber quem punha o mel em seu pão). - Quero os deuses do nosso lado - Tyrion foi direto, sem papas na língua. - Diga-lhes que Stannis jurou queimar o Grande Septo de Baelor. - E é verdade, senhor? - perguntou o Alto Septão, um homem pequeno e arguto, com barba branca e fina e rosto chupado. Tyrion encolheu os ombros: - Pode ser. Stannis queimou o bosque sagrado em Ponta Tempestade como oferenda ao Senhor da Luz. Se foi capaz de ofender os deuses antigos, por que pouparia os novos? Diga-lhes isso. Diga-lhes que qualquer homem que pense em ajudar o usurpador trai tanto os deuses quanto seu legítimo rei. - Direi, senhor. E vou lhes ordenar também para que rezem pela saúde do rei e de sua Mão. Hallyne, o Piromante, esperava-o quando Tyrion voltou ao seu aposento privado, e Meistre Frenken havia trazido mensagens. Deixou o alquimista esperando um pouco mais enquanto lia o que os corvos lhe tinham trazido. Havia uma carta antiga de Doran Martell, prevenindo-o de que Ponta Tempestade caíra, e uma outra muito mais intrigante, proveniente de Balon Greyjoy em Pyke, que se intitulava Rei das Ilhas e do Norte, Convidava o Rei Joffrey a enviar um emissário às Ilhas de Ferro para estabelecer as fronteiras entre os dois reinos e discutir uma possível aliança. Tyrion leu a carta três vezes e deixou-a de lado. Os dracares de Lorde Balon teriam sido uma grande ajuda contra a frota que se aproximava vinda de Ponta Tempestade, mas encontravam-se a milhares de léguas de distância, do lado errado de Westeros, e Tyrion estava longe de ter certeza se queria ceder metade do reino. Talvez deva despejar esta no colo de Cersei, ou levá-la ao conselho. Só então recebeu Hallyne com as últimas contas dos alquimistas, - Isso não pode ser verdade - disse Tyrion enquanto lia atentamente os livros, - Quase treze mil frascos? Considera-me um tolo? Previno-o de que não vou pagar o ouro do rei por frascos vazios e jarros de esgoto selados com cera. - Não, não - Hallyne guinchou - , as somas são exatas, juro. Temos tido, hummm, grande fortuna, senhor Mão. Foi encontrado outro dos esconderijos de Lorde Rossart, mais de trezentos frascos. Sob o Fosso dos Dragões! Umas prostitutas tinham andado usando as ruínas para entreter seus fregueses, e um deles caiu num porão através de um pedaço de assoalho apodrecido. Quando apalpou os frascos, confundiu-os com vinho. Estava tão bêbado que quebrou o selo e bebeu um pouco.
    - Houve um príncipe que uma vez tentou fazer isso - Tyrion disse secamente. - Não vi nenhum dragão levantando voo sobre a cidade, portanto, parece que dessa vez também não deu certo - o Fosso dos Dragões, na colina de Rhaenys, estava abandonado havia um século e meio. Supunha que era um lugar tão bom como qualquer outro para armazenar fogovivo, e melhor do que a maioria, mas teria sido bom se o falecido Lorde Rossart tivesse dito a alguém. - Trezentos frascos, diz? Isso ainda não justifica esses totais. Está vários milhares de frascos acima das melhores estimativas que me entregou da última vez em que nos encontramos. 461 - Sim, sim, é verdade - Hallyne limpou o suor de sua pálida testa com a manga da toga negra e escarlate. - Temos trabalhado muito duramente, senhor Mão, hummm. - Isso sem dúvida explicaria por que motivo estão fazendo tanta quantidade extra de substância do que faziam antes - sorrindo, Tyrion encarou o piromante com seus olhos desiguais. - Se bem que me pergunto o porquê de só agora ter começado a trabalhar duramente. Hallyne tinha a tez de um cogumelo, então era difícil entender como poderia ficar ainda mais pálido, mas de alguma forma conseguiu. - Já trabalhávamos, senhor Mão, meus irmãos e eu temos trabalhado noite e dia desde o início, asseguro-lhe. E só que, hummm, fizemos tanta substância que nos tornamos, hummm, mais experimentados, digamos assim, e, além disso - o alquimista mexeu-se desconfortavelmente na cadeira - , certos feitiços, hummm, antigos segredos de nossa ordem, muito delicados, muito problemáticos, mas necessários se queremos que a substância seja, hummm, tudo aquilo que pode ser... Tyrion estava ficando impaciente, Sor Jacelyn Bywater provavelmente já estava ali, e o Mão de Ferro não gostava de esperar. - Sim, têm feitiços secretos; magnífico. O que há com eles? - Eles, hummm, parecem estar funcionando melhor do que antes - Hallyne exibiu um sorriso fraco. - Não lhe parece que haja dragões andando por aí, não é? - A menos que tenham encontrado um debaixo do Poço dos Dragões, não. Por quê? - Ah, perdão, estava só me lembrando de uma coisa que o velho Sábio Pollitor me disse uma vez, quando era acólito. Eu tinha perguntado por que motivo tantos de nossos feitiços pareciam, bem, não tão eficientes como os pergaminhos queriam nos fazer crer, e ele disse que era por que a magia tinha começado a desaparecer do mundo no dia em que o último dragão morreu, - Lamento desapontá-lo, mas não vi nenhum dragão. No entanto, reparei no Magistrado do Rei andando por aí. Se algum desses frutos que está me vendendo aparecer cheio com algo que não seja fogovivo, também irá reparar nele. Hallyne fugiu tão rapidamente que quase esbarrou em Sor Jacelyn... Não. Lorde Jacelyn, tinha de se lembrar disso. O Mão de Ferro foi misericordiosamente direto, como sempre. Tinha regressado de Rosby para entregar um grupo fresco de lanceiros recrutados nas propriedades de Lorde Gyles e reassumir o comando da Patrulha da Cidade. - Como está meu sobrinho? - Tyrion perguntou quando acabaram de discutir as defesas da cidade. - O Príncipe Tommen está com saúde e feliz, senhor. Adotou um corço que alguns de meus homens trouxeram de uma caçada. Diz que tinha um antigamente, mas que Joffrey o esfolou para fazer um justilho. Às vezes pergunta pela mãe, e começa com freqüência cartas para a Princesa Myrcella, mas parece nunca terminar nenhuma. Do irmão, no entanto, parece não ter saudade. - Fez preparativos adequados para ele, caso a batalha seja perdida? - Meus homens têm as instruções deles. - Que são? - Ordenou-me que não dissesse a ninguém, senhor. Aquilo fez Tyrion sorrir. - Agrada-me que tenha se lembrado - no caso de Porto Real cair, podia perfeitamente ser capturado vivo. Era melhor que não soubesse onde o herdeiro de Joffrey poderia ser encontrado. Varys surgiu não muito tempo depois de Lorde Jacelyn sair. - Os homens são criaturas tão infiéis - ele disse em tom de saudação. 462 Tyrion suspirou, - Quem é o traidor de hoje? O eunuco entregou-lhe um rolo. - Tanta vilania canta uma triste canção sobre o nosso tempo. Terá a honra morrido com os nossos pais? - Meu pai ainda não está morto - Tyrion examinou a lista. - Conheço alguns desses nomes.
    São homens ricos. Comerciantes, mercadores, artesãos. Por que conspirariam contra nós? - Parece que acreditam que Lorde Stannis deve ganhar, e querem partilhar de sua vitória. Chamam a si mesmos de Homens Chifrudos, por causa do veado coroado, - Alguém devia lhes dizer que Stannis mudou de símbolo. Assim, poderiam ser os Corações Quentes - mas não era assunto para piadas; parecia que aqueles Homens Chifrudos tinham armado várias centenas de seguidores, para capturar o Velho Portão quando a batalha estivesse próxima e deixar o inimigo entrar na cidade. Entre os nomes da lista estava o do mestre armeiro Salloreon, - Suponho que isso queira dizer que não terei aquele aterrorizador elmo com os cornos de demônio - queixou-se Tyrion enquanto rabiscava a ordem para a prisão do homem. 463 Theon N um instante estava dormindo, no seguinte tinha acordado. Kyra aninhava-se contra seu corpo, com um braço dobrado levemente sobre o dele, os seios roçando em suas costas. Conseguia ouvir sua respiração, suave e regular. O lençol estava emaranhado em volta deles. Era noite fechada. O quarto encontrava-se escuro e sossegado. 0 que foi? Será que ouvi alguma coisa? Alguém? O vento suspirava levemente contra as venezianas. Em algum lugar, a distância, ouviu os miados de uma gata no cio. Nada mais. Dorme, Greyjoy, disse a si mesmo. O castelo está em paz, e tem guardas em posição. Em sua porta, nos portões, no armeiro. Poderia ter atribuído aquilo a um pesadelo, mas não se lembrava de ter sonhado. Kyra tinha-o deixado exausto. Até Theon ter mandado buscá-la, vivera todos os seus dezoito anos na vila de Inverno sem nunca pôr os pés dentro das muralhas do castelo. Veio até ele úmida, ardente e flexível como uma doninha, e havia certo tempero inegável em foder uma moça qualquer de taberna na cama de Lorde Eddard Stark. Kyra murmurou sonolentamente quando Theon deslizou de debaixo de seu braço e se pôs em pé. Ainda havia algumas brasas incandescentes na lareira. Wex dormia no chão, aos pés da cama, enrolado dentro de seu manto e morto para o mundo. Nada se movia. Theon atravessou o quarto até a janela e escancarou as venezianas, A noite tocou-o com dedos frios, e a pele nua arrepiou-se. Encostou-se no parapeito de pedra e olhou para fora, para torres escuras, pátios vazios, céu negro e mais estrelas do que um homem poderia contar, mesmo se vivesse até os cem anos. Uma meia-lua flutuava acima da Torre do Sino e projetava seu reflexo na cobertura dos jardins de vidro. Não ouviu alertas nem vozes, nem sequer um passo. Está tudo bem, Greyjoy. Ouve o silêncio? Devia estar bêbado de alegria. Tomou Winterfell com menos de trinta homens, um feito digno de canções. Theon dirigiu-se de volta à cama. Iria fazer Kyra rolar sobre as costas e fodê-la de novo, isso deveria banir aqueles fantasmas. Os gemidos e risinhos dela seriam uma pausa bem-vinda naquele silêncio. Parou. Acostumara-se tanto aos uivos dos lobos gigantes que quase já não os ouvia... Mas uma parte dele, um instinto qualquer de caçador, tinha ouvido sua ausência. Urzen estava em pé junto à porta, fora do quarto, um homem vigoroso com um escudo redondo atirado sobre as costas. - Os lobos estão calados - disse-lhe Theon. - Vá ver o que estão fazendo, e volte logo - pensar nos lobos gigantes soltos o deixou nervoso. Lembrava-se do dia no bosque dos lobos em que os selvagens tinham atacado Bran. Verão e Vento Cinzento tinham-nos feito em pedaços. Quando cutucou Wex com a ponta da bota, o rapaz sentou-se e esfregou os olhos. - Verifique se Bran Stark e o irmão mais novo estão na cama. Depressa! 464 - Senhor? - Kyra chamou sonolentamente. - Durma, isto não lhe diz respeito - Theon serviu-se de uma taça de vinho e bebeu. Estava o todo tempo à escuta, esperando ouvir um uivo. Homens de menos, pensou amargamente. Tenho homens de menos. Se Asha não vier... Wex foi o mais rápido a voltar, balançando a cabeça de um lado para outro. Praguejando, Theon apanhou a túnica e os calções do lugar onde os tinha deixado cair no chão, na pressa de se atirar sobre Kyra. Sobre a túnica vestiu um justilho de couro com rebites de ferro, e prendeu uma espada e um punhal na cintura. O cabelo estava desordenado como a floresta, mas tinha preocupações maiores. Aquela altura, Urzen tinha retornado. - Os lobos estão desaparecidos. Theon disse a si mesmo que tinha de ser tão frio e cauteloso como Lorde Eddard. - Acorde o castelo - ordenou. - Reúna-os no pátio, todos, veremos quem falta. E diga a Lorren para fazer uma ronda pelos portões. Wex, comigo. Perguntou a si mesmo se Stygg já teria chegado a Bosque Profundo. O homem não era um cavaleiro tão bom como dizia ser; nenhum dos homens de ferro era grande coisa sobre a sela, mas já havia passado bastante tempo. Asha podia perfeitamente estar a caminho. E se souber que perdi os Stark... Não era bom pensar nisso. O quarto de Bran estava vazio, tal como o de Rickon, meia-volta de escada abaixo. Theon amaldiçoou-se. Devia ter colocado um guarda vigiando-os, mas tinha achado mais importante ter homens patrulhando as muralhas e protegendo os portões do que servindo de amas a um par de crianças, uma delas aleijada. Ouviu soluços lá fora quando as pessoas do castelo foram sendo arrancadas das camas e levadas para o pátio. Vou lhes dar motivos para soluçar. Usei-os com gentileza, e é assim que me pagam. Até tinha ordenado que dois de seus homens fossem chicoteados até sangrar, por terem violado a garota dos canis, para lhes mostrar que pretendia ser justo. Mas ainda me culpam pelo estupro. E pelo resto. Achava aquilo injusto. Mikken matara-se por causa da boca, tal como Benfred. Quanto a Chayle, tinha de oferecer alguém ao Deus Afogado, era o que seus homens esperavam. - Não o quero mal - tinha dito ao septão antes de atirarem-no ao poço mas você e os seus deuses já não têm lugar aqui - era de se pensar que os outros ficariam gratos por não ter escolhido um deles, mas não. Gostaria de saber quantos deles teriam feito parte daquela conspiração contra si. Urven regressou com Lorren Negro. - O Portão do Caçador - Lorren falou. - É melhor que venha ver. O Portão do Caçador estava convenientemente situado perto dos canis e das cozinhas, Abria-se diretamente para campos de cultivo e florestas, permitindo aos cavaleiros ir e vir sem terem de passar primeiro pela vila de Inverno, e por isso era o favorito dos grupos de caçadores. - Quem tinha a guarda aqui? - Theon quis saber, - Drennan e Squint. Drennan era um dos homens que tinha violado Palia. - Se deixaram os garotos fugir, juro que dessa vez arrancarei mais do que um pedaço de pele das costas deles. - Não vai ser preciso - Lorren Negro disse concisamente. E não era. Encontraram Squint flutuando no fosso, de barriga para baixo, com as entranhas boiando atrás dele como um ninho de serpentes brancas. Drennan jazia seminu na guarita, na 465 sala compacta onde se manobrava a ponte levadiça. Sua garganta tinha sido cortada de orelha a orelha. Uma túnica esfarrapada escondia as cicatrizes meio saradas de suas costas, mas suas botas estavam espalhadas pelo chão e os calções embaralhados em volta dos pés. Havia queijo numa pequena mesa perto da porta, ao lado de um jarro vazio, e duas taças. Theon pegou uma e cheirou as borras de vinho no fundo. - Squint estava lá em cima, nas ameias, não? - Sim - Lorren respondeu. Theon atirou a taça dentro da lareira. - Diria que Drennan estava puxando os calções para baixo para enfiar na mulher quando ela enfiou nele. Ao que parece, sua própria faca do queijo. Alguém vá buscar uma lança para pescar o outro idiota do fosso. O outro idiota estava num estado bastante pior do que Drennan. Quando Loren Negro o tirou da água, viram que um de seus braços tinha sido arrancado pelo cotovelo, faltava metade de seu pescoço, e havia um buraco irregular onde ficava o umbigo e a virilha. A lança rasgou suas tripas quando Lorren o puxou. O fedor era horrível. - Os lobos gigantes - Theon falou. - Os dois, ao que parece - enojado, voltou para a ponte levadiça. Winterfell era cercado por duas sólidas muralhas de granito, com um fosso largo entre ambas. A muralha exterior erguia-se a vinte e quatro metros de altura, e a interior a mais de trinta. Faltando-lhe homens, Theon tinha sido forçado a abandonar as defesas exteriores e a colocar os guardas ao longo das muralhas interiores, mais altas. Não se atrevera a correr o risco de tê-los do lado errado do fosso, caso o castelo se rebelasse contra ele. Devem ter sido dois ou mais, concluiu. Enquanto a mulher entretinha Drennan, os outros libertaram os lobos. Theon pediu uma tocha e subiu à frente dos outros os degraus que conduziam à muralha. Movia a chama baixa à sua frente de um lado para o outro, à procura de... Ali. No interior do parapeito, na larga ameia que separava dois grandes merlões maciços. - Sangue - ele anunciou. - Limpo sem cuidado. Suponho que a mulher tenha matado Drennan e descido a ponte levadiça. Squint ouviu o tinir das correntes, veio ver o que se passava e chegou até aqui. Empurraram o cadáver para o fosso através da ameia para não ser encontrado por outra sentinela. Urzen espreitou ao longo das muralhas. - Os outros torreões de vigia não estão longe. Vejo archotes ardendo... - Archotes, não guardas - disse Theon de mau humor. - Winterfell tem mais torreões do que eu tenho homens. - Quatro guardas no portão principal - disse Lorren Negro - , e cinco patrulhando as muralhas, além de Squint, Urzen retrucou: - Se ele tivesse tocado o berrante... Sou servido por idiotas. - Tente imaginar que quem estava aqui era você, Urzen. Está escuro e frio. Está há horas de sentinela, ansiando pelo fim de seu turno. Então, ouve um ruído e dirige-se ao portão, e de repente vê olhos no topo das escadas, brilhando, verdes e dourados, à luz do archote. Duas sombras correm para você mais depressa do que julgaria possível. Tem um vislumbre de dentes, começa a levantar a lança e eles esbarram em você e abrem sua barriga, rasgando o couro como se fosse pano para queijos - ele deu um forte empurrão em Urzen. - E agora está caído de costas, com as 466 entranhas se derramando, e um deles tem os dentes em volta de sua garganta - Theon agarrou o pescoço magro do homem, apertou os dedos e sorriu. - Diga lá, em que momento durante tudo isso você para para soprar a merda do berrante? - empurrou Urzen rudemente, atirando-o aos tropeções contra uma das paredes. O homem esfregou a garganta. Devia ter mandado matar aqueles animais no dia em que tomamos o castelo, pensou, zangado. Já os tinha visto matar, sabia como eram perigosos. - Temos de ir atrás deles - disse Lorren Negro. - No escuro, não - Theon não apreciava a idéia de perseguir lobos selvagens na floresta à noite; os caçadores podiam facilmente se transformar em caça. - Esperaremos pela luz do dia. Até lá, é melhor que vá ter uma conversa com meus leais súditos. No pátio, uma multidão inquieta de homens, mulheres e crianças tinha sido empurrada contra a muralha. A muitos não fora dado tempo para se vestirem; cobriam-se com mantas de lã, ou amontoavam-se nus sob mantos ou roupões. Uma dúzia de homens de ferro os rodeava, com tochas numa mão e armas na outra. O vento soprava em rajadas, e a oscilante luz alaranjada refletia-se de forma baça em elmos de aço, barbas espessas e olhos que não sorriam. Theon caminhou de um lado para o outro diante dos prisioneiros, estudando seus rostos. Todos lhe pareciam culpados. - Seis - Fedor surgiu atrás dele, cheirando a sabão, com o cabelo longo mexendo ao vento. - Os dois Stark, aquele rapaz dos pântanos e a irmã, o atrasado dos estábulos e a sua selvagem. Osha, Suspeitara dela desde o momento em que viu a segunda taça. Devia ter sabido que não era boa idéia confiar naquela mulher. E tão desnaturada como Asha. Até os nomes são parecidos. - Alguém deu uma olhada nos estábulos? - Aggar diz que não faltam cavalos. - A Dançarina continua na cocheira? - Dançarina? - Fedor franziu a testa. - Aggar diz que os cavalos estão todos lá. Só falta o atrasado. Então estão a pé. Era a melhor notícia que tinha ouvido desde que acordara. Bran estaria sentado no cesto às costas de Hodor, sem dúvida. Osha teria de carregar Rickon; suas pequenas pernas não o levariam longe por conta própria. Theon sentia-se confiante de que os teria novamente nas mãos em breve. - Bran e Rickon fugiram - disse às pessoas do castelo, observando seus olhos. - Quem sabe para onde foram? - ninguém respondeu. - Não podem ter escapado sem ajuda - Theon prosseguiu. - Sem alimentos, roupas, armas - trancara todas as espadas e machados de Winterfell, mas não havia dúvidas de que algumas lâminas tinham sido escondidas dele. - Quero o nome de todos os que os ajudaram. Todos aqueles que fingiram não ver - o único som era o do vento. - A primeira luz do dia, pretendo trazê-los de volta - enfiou os polegares no cinto da espada. - Preciso de caçadores. Quem quer uma boa pele de lobo quentinha para ajudar a passar o Inverno? Gage? - o cozinheiro sempre o saudara alegremente quando voltava da caça, perguntando se teria trazido alguma peça de primeira para a mesa, mas agora não tinha nada a dizer. Theon virou-se e caminhou para o outro lado, perscrutando os rostos em busca do mínimo indício de um conhecimento culposo. - A floresta não é lugar para um aleijado. E Rickon, novo como é, quanto tempo durará lá fora? Ama, pense em como ele deve estar assustado - a velha tinha tagarelado com ele durante dez anos, contando suas infindáveis histórias, mas agora olhava-o de boca aberta como se fosse um estranho. - Podia ter matado todos os seus homens e dado suas mulheres aos meus soldados para que fizessem com elas o que bem entendessem, mas, em vez disso, os protegi. 467 É esse o agradecimento que me dão? - Joseth, que cuidara de seus cavalos; Farlen, que lhe ensinara tudo o que sabia sobre cães de caça; Barth, a mulher do cervejeiro que tinha sido a sua primeira... nem um deles o encarava. Odeiam-me, compreendeu. Fedor aproximou-se: - Arranque suas peles - exortou, com os lábios grossos brilhando. - Lorde Bolton costumava dizer que um homem nu tem poucos segredos, mas um homem esfolado não tem nenhum. Theon sabia que o homem esfolado era o símbolo da Casa Bolton; muito tempo antes, alguns de seus senhores chegaram até a usar a pele de inimigos mortos como manto. Alguns Stark tinham terminado assim. Supostamente, tudo aquilo terminara havia mil anos, quando os Bolton dobraram os joelhos a Winterfell. Pelo menos é o que dizem, mas os velhos hábitos custam a morrer, como eu sei muito bem. - Não haverá esfolamentos no Norte enquanto eu governar Winterfell - disse Theon em voz alta. Sou sua única proteção contra gente como ele, quis gritar. Não podia ser tão claro, mas talvez alguns fossem suficientemente inteligentes para aprender a lição. O céu estava se tornando cinzento sobre as muralhas do castelo. A alvorada não devia estar distante. - Joseth, sele o Sorridente e um cavalo para você. Murch, Gariss, Poxy Tym, vocês vêm também - Murch e Gariss eram os melhores caçadores no castelo, e Tym era um bom arqueiro. - Aggar, Rednose, Gelmarr, Fedor, Wex - precisava dos seus para defender a retaguarda. - Farlen, vou querer cães de caça, e vou querê-lo para cuidar deles. O grisalho mestre dos canis cruzou os braços. - E por que eu me preocuparia em ir à caça de meus senhores legítimos, e ainda por cima crianças? Theon se aproximou. - Agora sou eu o seu senhor legítimo, e o homem que mantém Palia a salvo. Viu o desafio morrer nos olhos de Farlen. - Sim, senhor. Dando um passo para trás, Theon olhou em volta para ver quem mais poderia acrescentar. - Meistre Luwin - anunciou. - Eu não sei nada de caça. Não, mas não confio em você o suficiente para deixá-lo no castelo em minha ausência. - Então já é mais que hora de aprender. - Deixe-me ir também. Quero esse manto de pele de lobo - um garoto, que não era mais velho do que Bran, deu um passo adiante. Theon precisou de um momento para se lembrar dele. - J á cacei um monte de vezes - disse Walder Frey. - Veados vermelhos e alces, e atéjavalis. O primo riu dele. - Ele acompanhou o pai numa caçada ao javali, mas nunca o deixaram chegar perto do animal. Theon olhou o garoto com uma expressão de dúvida. - Venha se quiser, mas se não conseguir nos acompanhar, não pense que vou servir de ama-seca - voltou-se novamente para Lorren Negro. - Winterfell é seu na minha ausência. Se não voltarmos, faça com ele o que quiser - é melhor que isso os faça rezar pelo meu sucesso. Reuniram-se junto ao Portão do Caçador no momento em que os primeiros raios pálidos de sol roçaram o topo da Torre do Sino, com o hálito congelando no frio ar da manhã. Gelmarr se equipara com um machado de cabo longo, cujo alcance lhe permitiria atacar antes que os lobos 468 caíssem sobre ele. A lâmina era suficientemente pesada para matar com um único golpe. Aggar usava caneleiras de aço. Fedor chegou trazendo uma lança para javalis e uma sacola de lavadeira cheia até estourar com só os deuses sabiam o quê. Theon tinha seu arco; não precisava de mais nada. Uma vez salvara a vida de Bran com uma flecha. Esperava não ter de roubá-la com outra, mas, se precisasse, faria. Onze homens, dois garotos e uma dúzia de cães atravessaram o fosso. Para lá da muralha exterior, os rastros eram fáceis de ler no terreno macio; as pegadas dos lobos, o passo pesado de Hodor, as marcas menos profundas deixadas pelos pés dos dois Reed. Uma vez debaixo das árvores, o solo pedregoso e as folhas caídas tornavam o rastro mais difícil de ver, mas aí a cadela vermelha de Farlen já tinha o cheiro, O resto dos cães seguia logo atrás, com os de caça farejando e ladrando e um par de monstruosos mastins fechando a retaguarda. Seu tamanho e ferocidade poderiam fazer toda a diferença contra um lobo gigante encurralado. Teria pensado que Osha correria para sul, em busca de Sor Rodrik, mas os vestígios seguiam para norte-noroeste, em direção ao coração da mata de lobos. Theon não gostava nada daquilo. Seria uma amarga ironia se os Stark se dirigissem a Bosque Profundo e caíssem justamente nas mãos de Asha. Preferia vê-los mortos, pensou com amargura. E melhor ser visto como cruel do que como idiota. Filetes de névoa pálida abriam caminho por entre as árvores. Árvores-sentinela e pinheiros-marciais cresciam densos por ali, e não havia nada tão escuro e sombrio como uma floresta de vegetação perene. O terreno era irregular, e as agulhas caídas disfarçavam a fofura da turfa e tornavam o chão traiçoeiro para os cavalos, por isso eram obrigados a avançar devagar. Mas não tão devagar como um homem carregando um aleijado, ou uma vadia ossuda com um garoto de quatro anos nas costas. Disse a si mesmo para ser paciente. Teria todos eles nas mãos antes de o dia acabar, Meistre Luwin trotou até junto dele enquanto seguiam uma trilha de caça ao longo da borda de uma ravina: - Até agora, a caçada parece não se distinguir de andar a cavalo pela floresta, senhor. Theon sorriu. - Há semelhanças. Mas na caçada há sangue no fim. - Terá de ser assim? Essa fuga foi uma grande loucura, mas não será misericordioso? Aqueles que procuramos são seus irmãos adotivos. - Nenhum Stark, a não ser Robb, agiu fraternalmente comigo, mas Bran e Rickon têm mais valor para mim vivos do que mortos. - O mesmo se aplica aos Reed. Fosso Cailin fica no limite dos pântanos. Lorde Howland pode transformar a ocupação de seu tio numa visita ao inferno se decidir fazê-lo, mas enquanto você tiver os seus herdeiros, terá de segurar a mão. Theon não pensara naquilo. A bem da verdade, quase não tinha pensado nos homens de lama, além das vezes que olhou Meera e pensou se ainda seria donzela. - Pode ter razão. Vamos poupá-los se pudermos. - E também a Hodor, espero. O rapaz é um simplório, bem sabe. Faz o que lhe é dito. Quantas vezes cuidou do seu cavalo, ensaboou sua sela, poliu sua cota de malha? Hodor não era nada para ele. - Se não lutar conosco, vamos deixá-lo viver - Theon apontou um dedo para ele. - Mas se disser uma palavra acerca de poupar a selvagem, poderá morrer com ela. Prestou-me um juramento e cagou nele. O meistre inclinou a cabeça: 469 - Não arranjo desculpas para perjuros. Faça o que tiver de fazer. Agradeço-lhe a misericórdia. Misericórdia, pensou Theon quando Luwin ficou para trás. Eis uma maldita armadilha. Em excesso, e chamam-no de fraco, muito pouca e é monstruoso. Mas sabia que o meistre lhe tinha dado bons conselhos. Seu pai pensava apenas em termos de conquista, mas de que servia tomar um reino se não se conseguisse mantê-lo? A força e o medo só serviam até certo ponto. Uma pena que Ned Stark tivesse levado as filhas para o sul; de outro modo, Theon poderia ter solidificado a posse de Winterfell através do casamento com uma delas. E Sansa era uma coisinha bonita, e àquela altura era até provável que já estivesse pronta para dormir com um homem. Mas encontrava-se a mil léguas de distância, nas garras dos Lannister. Uma pena. A floresta tornou-se mais selvagem. Os pinheiros e árvores-sentinela deram lugar a enormes carvalhos escuros. Emaranhados de espinheiros escondiam ravinas e fendas traiçoeiras. Colinas pedregosas erguiam-se e desapareciam. Passaram pela cabana de um camponês, deserta e coberta de vegetação, e rodearam uma pedreira inundada onde as águas paradas tinham um reflexo cinza como aço. Quando os cães começaram a ladrar, Theon pensou que os fugitivos se encontravam por perto. Esporeou Sorridente e seguiu a trote, mas o que encontrou foi apenas a carcaça de um jovem alce... ou o que dela restava. Desmontou para examiná-la melhor. A morte era ainda recente e claramente obra de lobos. Os cães farejaram os arredores da carcaça, avidamente, e um dos mastins enterrou os dentes num quadril, mas Farlen o afastou aos gritos. Nenhuma parte deste animal foi cortada com uma faca, Theon percebeu. Os lobos comeram, mas os homens não. Mesmo que Osha não quisesse se arriscar a fazer uma fogueira, deveria ter cortado algumas fatias. Não fazia sentido deixar tanta carne boa apodrecer. - Farlen, tem certeza de que estamos no rastro certo? Não será possível que seus cães andem atrás dos lobos errados?
    - Minha cadela conhece o cheiro do Verão e do Felpudo bastante bem. - Espero que sim. Para o seu bem. Menos de uma hora mais tarde, o rastro desceu uma encosta na direção de um córrego lamacento, cheio pelas chuvas recentes. Foi ali que os cães perderam o cheiro. Farlen e Wex atravessaram o curso dagua com os cães e voltaram a sacudir as cabeças, enquanto os animais percorriam a outra margem para cima e para baixo, farejando. - Eles entraram na água, senhor, mas não estou vendo onde podem ter saído - disse o mestre dos canis. Theon desmontou e ajoelhou-se na margem do córrego. Mergulhou uma mão nele. A água estava fria. - Eles não devem ter ficado nesta água por muito tempo. Leve metade dos cães para baixo. Eu vou para cima... Wex bateu palmas ruidosamente. - O que foi? - Theon perguntou. O rapaz mudo apontou. O terreno junto à água encontrava-se encharcado e lamacento. Os vestígios que os lobos tinham deixado eram bastante evidentes. - Pegadas de lobo, oras. E daí? Wex enfiou o calcanhar na lama e mexeu o pé para um lado e para o outro, deixando um buraco profundo. 470 Joseth compreendeu. - Um homem do tamanho de Hodor devia ter deixado uma pegada profunda nesta lama - ele disse. - Ainda mais com o peso de um garoto nas costas. Mas as únicas pegadas de botas que há aqui são as nossas. Veja com os seus olhos. Consternado, Theon percebeu que era verdade. Os lobos tinham entrado sozinhos nas túrgidas águas marrons. - Osha deve ter seguido outro caminho lá para trás. Antes do alce, provavelmente. Enviou os lobos adiante sozinhos, na esperança de que os seguíssemos - virou-se para os caçadores. - Se vocês dois tiverem me enganado... - Só há um rastro, senhor, juro - Gariss disse defensivamente. - E os lobos gigantes nunca se separariam daqueles garotos. Não por muito tempo. £ verdade, Theon pensou. Verão e Cão Felpudo podiam ter se afastado para caçar, mas mais cedo ou mais tarde voltariam para junto de Bran e Rickon. - Gariss, Murch, levem quatro cães e voltem, encontrem o local onde os perdemos. Aggar, vigie-os, não quero truques. Farlen e eu seguiremos os lobos gigantes. Um sopro no berrante quando encontrar o rastro. Dois sopros se vir os animais. Depois de descobrirmos para onde foram, vão nos levar até seus donos. Levou Wex, o garoto Frey e Gynir Rednose para procurar a jusante. Ele e Wex seguiam a cavalo de um lado do córrego, Rednose e Walder Frey do outro, cada um com um par de cães de caça. Os lobos podiam ter saído do córrego em qualquer uma das margens. Theon ficou de olho atento em pegadas, rastros, galhos quebrados, qualquer pista que indicasse onde os lobos gigantes poderiam ter saído da água. Viu com bastante facilidade pegadas de veados, alces e texugos. Wex surpreendeu uma raposa bebendo do córrego, e Walder fez três coelhos saírem da vegetação rasteira e conseguiu atingir um deles com uma flecha. Viram marcas de garras no local em que um urso tinha rasgado a casca de uma grande bétula. Mas dos lobos gigantes não havia qualquer sinal. Um pouco mais adiante, dizia Theon a si mesmo. Para lá daquele carvalho, do outro lado daquela elevação, depois daquela curva no córrego, encontraremos algo lá. Continuou avançando muito tempo depois de saber que devia voltar, com uma crescente sensação de ansiedade roendo sua barriga. Era meio-dia quando virou com um puxão o cabresto de Sorridente e desistiu. De algum modo, Osha e os malditos garotos escapavam dele. Não devia ter sido possível, não a pé, carregando um aleijado e uma criança pequena. A cada hora que passava, a probabilidade de a fuga ser bem-sucedida aumentava. Se chegarem a uma aldeia... O povo do norte nunca renegaria os filhos de Ned Stark, irmãos de Robb. Teriam montarias para apressar sua viagem, e alimentos. Os homens lutariam pela honra de protegê-los. Todo o maldito norte se reuniria em torno deles. Os lobos seguiram para jusante, é tudo. Agarrou-se a essa idéia. Aquela cadela vermelha irá detectar o local onde saíram da água, e retomaremos seu encalço. Mas, quando se juntaram ao grupo de Farlen, bastou um olhar no rosto do mestre dos canis para deixar em cacos todas as esperanças de Theon: - Esses cães só prestam para uma luta com ursos - ele disse, zangado. - Bem que gostaria de ter um urso. - Os cães não têm culpa - Farlen ajoelhou-se entre um mastim e a sua preciosa cadela vermelha, com uma mão pousada em cada um dos animais. - A água corrente não guarda cheiros, senhor. 471 - Os lobos tiveram de sair do córrego em algum lugar. - Com certeza. Para cima ou para baixo. Se continuarmos, encontraremos esse lugar, mas, para que lado? - Nunca ouvi falar de nenhum lobo que subisse o leito de um córrego ao longo de milhas - Fedor interveio, - Um homem podia fazer isso. Se soubesse que vinham atrás dele, podia fazer isso. Mas um lobo? Mas Theon não tinha tanta certeza. Aqueles animais não eram como os outros lobos. Devia ter esfolado as malditas criaturas. A história foi a mesma quando se juntaram a Gariss, Murch e Aggar. O caçador recuara sobre seus passos até meio caminho de Winterfell sem encontrar nenhum sinal do lugar onde os Stark pudessem ter se separado dos lobos gigantes. Os cães de Farlen pareciam tão frustrados como seus donos, farejando desoladamente as árvores e as pedras, e mordendo-se irritadamente uns aos outros. Theon não se atrevia a admitir a derrota. - Voltaremos ao córrego. Vamos procurar novamente. Dessa vez iremos tão longe quanto for preciso. - Não conseguiremos encontrá-los - o garoto Frey disse de repente. - Pelo menos enquanto os papa-rãs estiverem com eles. Os homens de lama são traiçoeiros, não lutam como gente decente, escondem-se e usam flechas envenenadas. Nunca se deixam ver, mas eles nos veem. Aqueles que entram nos pântanos em busca deles se perdem, e nunca mais saem. Suas casas se mexem, até os castelos como a Atalaia da Água Cinzenta - lançou o olhar vago e nervoso ao verde que os cercava por todos os lados. - Podem estar ali agora mesmo, ouvindo tudo o que dizemos. Farlen riu para mostrar o que pensava daquela idéia. - Meus cães cheirariam qualquer coisa que estivesse naqueles arbustos. Cairiam em cima deles antes de você conseguir soltar um peido, rapaz. - Os papa-rãs não cheiram como homens - Frey insistiu. - Têm um fedor pantanoso, como rãs, árvores e água podre. Cresce musgo debaixo dos braços deles, em vez de pelos, e sobrevivem sem nada para comer além de lama, e respiram a água do pântano. Theon já se preparava para lhe dizer o que devia fazer com a fábula da ama de leite quando o Meistre Luwin interveio. - As histórias dizem que os cranogmanos se tornaram próximos dos filhos da floresta nos dias em que os videntes verdes tentaram fazer o martelo das águas cair sobre o Gargalo. Pode ser que possuam conhecimentos secretos. De repente a floresta pareceu ficar bem mais escura do que estava um momento antes, como se uma nuvem bloqueasse o sol. Uma coisa era ter um garoto bobo cuspindo bobeiras, mas esperava-se que os meistres fossem sábios. - Os únicos filhos de alguma coisa que me preocupam são Bran e Rickon - Theon respondeu, e ordenou: - De volta ao córrego. Já. Por um momento não lhe pareceu que fossem obedecer, mas, por fim, o velho hábito prevaleceu. Seguiram-no carrancudos, mas seguiram. O garoto Frey estava muito irrequieto como os coelhos que tinha espantado de manhã. Theon colocou homens em ambas as margens e seguiu a corrente. Cavalgaram ao longo de milhas, lenta e cuidadosamente, desmontando para levar os cavalos por terreno traiçoeiro, deixando que os cães bons de faro buscassem em cada arbusto. Onde uma árvore caída represava a corrente, os caçadores eram forçados a rodear uma lagoa profunda e verde, mas se os lobos gigantes tinham feito o mesmo, não deixaram nem pegadas nem rastros. 472 Parecia que os animais tinham ganhado o gosto por nadar. Quando pegá-los, terão toda a natação que conseguirem agüentar. Vou dar os dois ao Deus Afogado. Quando a floresta começou a escurecer, Theon Greyjoy soube que fora derrotado. Ou os cranogmanos realmente conheciam a magia dos filhos da floresta, ou então Osha os enganara com um truque qualquer dos selvagens. Obrigou-os a continuar até o crepúsculo, mas, quando a última luz se desvaneceu, Joseth finalmente ganhou coragem para dizer: - Isso é inútil, senhor. Vamos aleijar um cavalo ou quebrar uma perna.
    - Joseth tem razão - Meistre Luwin concordou. - Atravessar a floresta tateando à luz das tochas não nos trará nenhum proveito. Theon sentia o gosto da bílis no fundo da garganta, e o estômago era um ninho de cobras que se entrelaçavam e mordiam umas às outras. Caso se arrastasse de volta a Winterfell de mãos vazias, o melhor que faria era, daí em diante, passar a se vestir de retalhos e usar um chapéu com pontas; o norte inteiro iria reconhecê-lo como um bobo. E quando meu pai souber, e Asha... - Senhor príncipe - Fedor fez o cavalo se aproximar. - Pode ser que os Stark não tenham vindo por aqui. Se eu fosse eles, iria pra norte e pra leste, talvez. Pros Umber. São bons homens dos Stark. Mas as terras deles ficam longe. Os garotos vão se abrigar em algum lugar mais perto. Talvez eu saiba onde. Theon olhou-o com suspeita. - Diga. - Conhece aquele velho moinho isolado no Água de Bolotas? Paramos lá quando eu tava sendo levado preso pra Winterfell. A mulher do moleiro vendeu forragem pros cavalos, enquanto aquele velho cavaleiro cacarejava com os fedelhos dela. Pode ser que os Stark estejam escondidos lá. Theon conhecia o moinho. Até se enrolara com a mulher do moleiro uma vez ou duas. Nada havia de especial no moinho ou nela. - Por que lá? Há uma dúzia de aldeias e castros a mesma distância. Divertimento brilhou naqueles olhos claros. - Por quê? Ora, isso não sei. Mas eles tão lá, tenho um pressentimento. Estava ficando farto das respostas dissimuladas do homem. Seus lábios parecem dois vermes 'odendo. - O que você está dizendo? Se me escondeu alguma coisa que sabia... - Senhor príncipe? - Fedor desmontou, e fez sinal a Theon para imitá-lo. Quando ficaram ambos apeados, abriu o saco de pano que trouxera de Winterfell. - Olhe aqui. Estava ficando difícil enxergar. Theon enfiou impacientemente a mão no saco, apalpando peles suaves e lã áspera. Uma ponta afiada furou sua pele, e seus dedos fecharam-se em torno de algo frio e duro. Tirou do saco um broche em forma de cabeça de lobo, de prata e azeviche. O entendimento veio na hora. Sua mão fechou-se num punho. - Gelmarr - disse, perguntando-se em quem poderia confiar. Em nenhum deles. - Aggar, Rednose. Conosco. O resto de vocês pode retornar a Winterfell com os cães. Não vou precisar mais deles. Agora sei onde se escondem Bran e Rickon. - Príncipe Theon - rogou Meistre Luwin - , vai se lembrar de sua promessa? Falou de misericórdia. - A misericórdia era para hoje de manhã - Theon respondeu. E melhor ser temido do que motivo de troça, - Antes de terem me irritado. 473 Jon Conseguiam ver a fogueira na noite, cintilando contra o flanco da montanha como uma estrela caída. Ardia mais vermelha do que as outras estrelas, e não tremeluzia, embora às vezes seu brilho se intensificasse, e outras, se reduzisse a não mais do que uma centelha distante, tênue e pouco luminosa. Oitocentos metros para a frente e seiscentos para cima, calculou Jon, e perfeitamente colocada para ver qualquer coisa que se mova no passo abaixo. - Vigias no Passo dos Guinchos - disse, com um tom de interrogação, o mais velho do grupo. Na primavera da juventude havia sido escudeiro de um rei, e os irmãos negros ainda o chamavam de Escudeiro Dalbridge. - Pergunto-me o que será que Mance Rayder teme. - Se ele soubesse que iam acender uma fogueira, teria esfolado os pobres coitados - disse Ebben, um homem calvo e atarracado, musculoso como um saco de pedras. - O fogo é vida aqui em cima - interveio Qhorin Meia-Mão - , mas também pode ser morte - obedecendo a ordens suas, não arriscaram chamas abertas desde que tinham penetrado nas montanhas. Comiam carne salgada fria, pão duro e queijo ainda mais duro, e dormiam vestidos e aninhados uns aos outros, debaixo de uma pilha de mantos e peles, gratos pelo calor dos companheiros. Aquilo trazia a Jon recordações de noites frias passadas havia muito tempo em Winterfell, quando dividia a cama com os irmãos. Aqueles homens também eram irmãos, embora a cama que partilhassem fosse de pedra e terra. - Devem ter um berrante - Cobra das Pedras observou. Meia-Mão respondeu:
    - Um berrante que não podem soprar, - Essa é uma escalada longa e dura para ser feita de noite - Ebben rebateu, enquanto espreitava a centelha distante por uma fenda entre os rochedos que os abrigavam. O céu apresentava-se sem nuvens, com as montanhas escarpadas erguendo-se negras sobre negro até os cumes, onde suas frias coroas de neve e gelo brilhavam palidamente ao luar, - E uma longa queda - disse Qhorin Meia-Mão. - Dois homens, acho. E provável que estejam dois lá em cima, vigiando por turnos. - Eu - o patrulheiro que chamavam Cobra das Pedras já mostrara ser o melhor escalador do grupo. Teria de ser ele. - E eu - Jon Snow se ofereceu. Qhorin Meia-Mão olhou-o. Jon ouvia os lamentos que o vento soltava ao atravessar oscilante o passo de altitude acima deles. Um dos garranos relinchou e escavou o solo pedregoso da cavidade onde tinham se abrigado. 474 - O lobo ficará conosco - disse Qhorin. - É demasiado fácil ver pelo branco ao luar - virou-se para Cobra das Pedras: - Quando a coisa estiver feita, atire para baixo um tição ardente. Subiremos quando o virmos cair. - Não há melhor momento para começar do que agora - Cobra das Pedras respondeu. Cada um levou um comprido rolo de corda. Cobra das Pedras levava também um saco de espigões de ferro, e um pequeno martelo com a cabeça enrolada em feltro espesso. Deixaram os garranos para trás, com os elmos, a cota de malha e Fantasma. Jon ajoelhou-se e deixou que o lobo gigante encostasse o focinho em seu rosto antes de se porem a caminho. - Fica - ele ordenou. - Eu venho te buscar. Cobra das Pedras foi na dianteira. Era um homem baixo e nervoso, com quase cinqüenta anos e de barba grisalha, mais forte do que parecia, e tinha os melhores olhos noturnos que Jon já vira. Naquela noite iria precisar deles. De dia, as montanhas eram azul-acinzentadas, pintadas de geada, mas assim que o sol desaparecia atrás dos picos irregulares tornavam-se negras. Agora, a lua nascente iluminara-as de branco e prata. Os irmãos negros moviam-se através de sombras negras por entre rochedos negros, abrindo caminho por uma trilha íngreme e sinuosa, enquanto seus hálitos se congelavam no ar negro. Jon sentia-se quase nu sem a cota de malha, mas não tinha saudades de seu peso. Aquele era um percurso duro e lento. Apressar-se ali era arriscar um tornozelo quebrado ou coisa pior. Cobra das Pedras parecia saber onde pôr os pés como que por instinto, mas Jon precisava ser mais cuidadoso no terreno rachado e irregular. Passo dos Guinchos era na verdade uma série de passos, um longo caminho sinuoso que subia em volta de uma sucessão de picos gelados esculpidos pelo vento, e descia por vales escondidos que raramente viam o sol. Fora seu companheiro, Jon não tinha vislumbrado uma alma viva desde que deixaram a floresta para trás e começaram a subir. As Presas de Gelo eram mais cruéis que qualquer outro lugar criado pelos deuses, e igualmente inimigas do homem. Ali em cima, o vento cortava como uma faca, e gritava estridentemente na noite como uma mãe chorando pelos filhos assassinados. As poucas árvores que se viam ali eram coisas atrofiadas e grotescas que nasciam, nas laterais de fendas e fissuras. Saliências de rocha debruçavam-se freqüentemente sobre a trilha, debruadas com pingentes de gelo, que a distância se assemelhavam a longos dentes brancos. Mas, mesmo assim, Jon Snow não se arrependia de ter vindo. Ali também havia maravilhas. Tinha visto a luz do sol refletida em quedas dagua estreitas e geladas que mergulhavam sobre as bordas de bruscos penhascos de pedra, e um prado de montanha cheio de flores silvestres de Outono, frentes frias azuis, brilhantes gelardentes escarlates e maciços de capim-dos-flautistas, castanho-avermelhados e dourados. Olhara para ravinas tão profundas e negras, parecendo-lhe seguro que terminariam num inferno qualquer, e atravessara, montado no garrano, uma ponte de pedra natural, corroída pelo vento, sem nada a não ser céu de um lado e do outro. Águias faziam ninhos nas alturas e desciam para caçar nos vales, voando sem esforço, aos círculos, apoiadas em grandes asas azul-acinzentadas que pareciam quase fazer parte do céu. Certo dia viu, inclusive, um gato-das-sombras perseguindo um carneiro, fluindo pela vertente da montanha como fumaça líquida até ficar pronto para saltar sobre a presa. Agora é a nossa vez de saltar sobre a presa. Gostaria de poder se mover de forma tão segura e silenciosa como aquele gato-das-sombras, e matar com igual rapidez. Trazia Garralonga emDainhada às costas, mas podia não ter espaço para usá-la, por isso também levava um punhal e uma adaga, para agir mais de perto, Eles também terão armas, e eu não trago armadura. Perguntou 475 a si mesmo quem se revelaria o gato-das-sombras no final da noite, e quem faria as vezes de carneiro. Durante um longo percurso mantiveram-se na trilha, seguindo suas curvas e contracurvas enquanto serpenteava ao longo do flanco da montanha para cima, sempre para cima. As vezes, a montanha dobrava-se sobre si mesma, fazendo-os perder a fogueira de vista, mas, mais cedo ou mais tarde, ela reaparecia, sempre. O caminho que Cobra das Pedras escolhera nunca teria servido para os cavalos. Em certos locais, Jon tinha de encostar as costas na pedra fria e avançar de lado como um caranguejo, centímetro por centímetro. A trilha era traiçoeira mesmo onde se alargava; havia fendas suficientemente grandes para engolir a perna de um homem, pedras soltas em que tropeçar, depressões onde a água se acumulava durante o dia e congelava à noite. Um passo e depois outro, disse Jon a si mesmo, Um passo e depois outro, e não cairei. Não tinha se barbeado desde que abandonara o Punho dos Primeiros Homens, e os pelos que tinha sobre o lábio ficaram rapidamente rígidos por causa do gelo, Com duas horas de subida, o vento enfureceu-se de tal maneira que tudo o que pôde fazer foi se agachar e agarrar-se à rocha, rezando para não ser arrancado da montanha. Um passo e depois outro, recomeçou quando a ventania abrandou. Um passo e depois outro, e não cairei. Em pouco tempo estavam a uma altitude tão grande que era melhor não pensar em olhar para baixo. Nada havia abaixo a não ser um negrume escancarado; nada havia acima além da lua e das estrelas. - A montanha é a sua mãe - tinha-lhe dito Cobra das Pedras durante uma subida mais fácil alguns dias antes. - Agarre-se a ela, encoste seu rosto nos peitos dela, e ela não o deixa cair - Jon brincara com aquilo, dizendo-lhe como sempre se perguntara quem seria sua mãe, mas que nunca tinha pensado encontrá-la nas Presas de Gelo. Agora não parecia tão divertido, longe disso. Um passo e depois outro, pensou, agarrando-se bem. A trilha estreita terminou abruptamente no local onde uma enorme saliência de granito negro se projetava do flanco da montanha. Depois do brilho do luar, sua sombra era tão negra que parecia terem entrado numa caverna. - A partir daqui é para cima - disse o patrulheiro em voz baixa. - Queremos atingir uma posição acima da deles - descalçou as luvas, enfiou-as no cinto, amarrou uma extremidade da corda na cintura e a outra em volta de Jon. - Siga-me quando a corda esticar - o patrulheiro não esperou resposta e seguiu caminho imediatamente, escalando com os dedos e os pés, mais depressa do que Jon acreditaria ser possível. A longa corda desenrolou-se lentamente. Jon observou-o bem, tomando nota do modo como subia e dos locais onde encontrava apoio para as mãos, e quando a última volta de cânhamo se desenrolou, tirou também as luvas e o seguiu, muito mais devagar. Cobra das Pedras tinha passado a corda em volta do espigão liso da rocha em que esperava, mas assim que Jon chegou junto dele, soltou-a e prosseguiu a escalada. Dessa vez, não havia nenhuma fenda conveniente no local que o fim da corda atingiu, por isso puxou o martelo com cabeça envolta em feltro e espetou profundamente um espigão em uma fenda da rocha com uma série de batidas suaves. Apesar de suaves, os sons ecoaram tão ruidosamente nas rochas que Jon estremeceu a cada martelada, certo de que os selvagens os ouviriam também. Quando o espigão ficou bem preso, Cobra das Pedras nele prendeu a corda, e Jon seguiu caminho. Chupe o peito da montanha, lembrou a si mesmo. Não olhe para baixo. Mantenha o peso acima dos pés. Não olhe para baixo. Olhe para a rocha à suajrente. Há um bom apoio para as mãos, sim. Não olhe para baixo. Posso recuperar o fôlego ali naquela saliência, tudo o que tenho afazer é chegar lá. Nunca olhar para baixo. 476 Uma vez seu pé escorregou quando transferia o peso para ele, e seu coração parou de bater, mas os deuses foram bondosos e não caiu. Conseguia sentir nos dedos a exsudação fria da rocha, mas não se atrevia a calçar as luvas; elas podiam escorregar, por mais apertadas que parecessem, com o tecido e o pelo deslocando-se entre a pele e a pedra, e lá em cima isso podia matá-lo. Sentia sua mão queimada perdendo a flexibilidade, e em pouco tempo ela começou a doer. Então, feriu o polegar, sem saber como, e depois disso deixou manchas de sangue onde quer que apoiasse a mão. Esperava ainda ter todos os dedos quando a escalada chegasse ao fim. Os dois continuaram a subir, a subir e a subir, sombras negras que rastejavam pela parede de rocha iluminada pelo luar. Qualquer pessoa que estivesse lá embaixo no passo poderia vê-los com facilidade, mas a montanha os escondia da vista dos selvagens junto à fogueira, No entanto, agora estavam perto deles, Jon conseguia sentir. Mesmo assim, não pensou nos inimigos que o esperavam, sem consciência de nada, a não ser do irmão que tinha em Winterfell. Bran adorava escalar. Gostaria de ter um décimo da coragem dele. A vertente era cortada a dois terços do caminho para cima por uma fissura curva de pedra gelada. Cobra das Pedras estendeu-lhe uma mão para ajudá-lo a subir. Tinha voltado a calçar as luvas, e Jon o imitou. O patrulheiro fez um sinal com a cabeça para a esquerda, e os dois rastejaram pela saliência ao longo de duzentos e cinqüenta metros, ou mais, até conseguirem ver o apagado clarão cor de laranja para lá da borda do penhasco. Os selvagens tinham acendido sua fogueira numa depressão pouco profunda que ficava por cima da parte mais estreita do passo, com uma queda livre em frente e rocha atrás para protegê-los da maior força do vento. Esse mesmo quebra-vento permitiu aos irmãos negros rastejar até poucos metros deles, arrastando-se, até ver logo abaixo os homens que tinham de matar. Um deles dormia, bem enrolado e enterrado sob um grande monte de peles. Jon não conseguia ver nada do homem, a não ser o cabelo, vermelho-vivo à luz da fogueira, O segundo estava sentado junto das chamas, alimentando-as com raminhos e galhos maiores, queixando-se do vento num tom lamuriento. O terceiro observava o passo, embora pouco houvesse para ver, só uma vasta bacia de trevas, rodeada pelas bordas nevadas das montanhas, Era este, o vigia, quem tinha o berrante. Três. Por um momento, Jon ficou sem saber o que fazer. Só devia haver dois. Mas um deles dormia. Mas, quer houvesse dois, três ou vinte, ainda assim tinha de fazer o que viera fazer. Cobra das Pedras tocou em seu braço, apontando para o selvagem que tinha o berrante. Jon indicou com a cabeça aquele que se encontrava junto ao fogo. Sentiu-se estranho ao escolher um homem para matar. Metade dos dias de sua vida tinha sido passada com espadas e escudos, era treinando para aquele momento. Teria Robb se sentido assim antes de sua primeira batalha?, perguntou a si mesmo, mas não houve tempo para refletir sobre essa questão. Cobra das Pedras moveu-se tão depressa como o animal que lhe tinha dado o apelido, saltando sobre os selvagens numa chuva de pedrinhas, Jon desembainhou Garralonga e o seguiu. Tudo pareceu acontecer num instante. Mais tarde, Jon admirou a coragem do selvagem, que antes estendeu a mão para o berrante de guerra do que para a lâmina. Conseguiu levá-lo aos lábios, mas, antes que pudesse soprar, Cobra das Pedras jogou o berrante para longe com um golpe de espada. O homem escolhido por Jon ficou em pé com um salto, arremessando um tição ardente em seu rosto. Conseguiu sentir o calor das chamas ao recuar, vacilante. Pelo canto do olho viu aquele que dormia se agitando, e compreendeu que tinha de acabar depressa com seu escolhido. Quando o tição voltou a ser agitado, investiu contra ele, brandindo a espada bastarda com ambas as mãos. O aço valiriano abriu caminho através de couro, peles, lã e carne, mas quando o selvagem 477 caiu, contorceu-se, arrancando a espada das mãos de Jon. No chão, aquele que dormia sentou-se debaixo das peles. Jon desembainhou a adaga, agarrando-o pelo cabelo e empurrando a ponta da sua faca até debaixo de seu queixo no momento em que ele... não, ela... A mão de Jon congelou no meio do movimento. - Uma garota. - Uma vigia - disse Cobra das Pedras. - Uma selvagem. Acabe com ela. Jon via o medo e o fogo nos olhos dela. Corria sangue por sua garganta branca, vindo do lugar onde a ponta da adaga perfurara sua pele. Um golpe, e acabou, disse a si mesmo. Estava tão próximo, que conseguia sentir o cheiro de cebola no hálito dela. Não é mais velha do que eu. Algo na garota fez Jon pensar em Arya, embora não se parecessem em nada. - Rende-se? - perguntou, dando à adaga uma meia-volta. E se não se render? - Rendo-me - as palavras dela fumegaram no ar frio. - Então é nossa prisioneira - Jon afastou a adaga da pele suave da sua garganta. - Qhorin não disse nada sobre capturar prisioneiros - Cobra das Pedras retrucou. - Não disse para não fazermos - Jon largou o cabelo da garota, e ela recuou, afastando-se deles. - E uma guerreira - Cobra das Pedras indicou com um gesto o machado de cabo longo que estava ao lado das peles de dormir dela. - Estava estendendo a mão para aquilo quando a agarrou. Dê meia oportunidade, e ela o enterra entre seus olhos. - Não lhe darei meia oportunidade - Jon chutou o machado para bem longe do alcance dela. - Tem um nome? - Ygritte - passou uma mão pela garganta, retirou-a ensangüentada, e ficou olhando aquela umidade. Embainhando a adaga, Jon libertou Garralonga do cadáver do homem que matara. - E minha prisioneira, Ygritte. - Dei-lhe o meu nome. - Sou Jon Snow. Ela estremeceu:
    - Um nome maligno. - Um nome de bastardo. Meu pai era Lorde Eddard Stark, de Winterfell. A moça olhou para ele desconfiada, mas Cobra das Pedras soltou uma pequena gargalhada mordaz. - E o prisioneiro quem tem de contar coisas, lembra? - o patrulheiro espetou um galho longo na fogueira. - Não que ela conte. Sei de selvagens que cuspiram a própria língua para não responder a perguntas - quando a extremidade do galho estava ardendo forte, ele deu dois passos e o atirou sobre o passo. O galho iluminado caiu rodopiando através da noite, até ficar fora de vista. - Devia queimar esses que matou - Ygritte falou. - Precisaria de uma fogueira maior para isso, e as fogueiras grandes ardem e fazem luzes brilhantes - Cobra das Pedras virou-se, perscrutando com os olhos a vastidão escura em busca de qualquer centelha de luz. - Há mais selvagens aqui perto, é isso? - Queime-os - a garota repetiu teimosamente - , senão pode ser que volte a precisar dessas espadas. Jon lembrou-se de Othor morto e de suas mãos frias e negras. 478 - Talvez devêssemos fazer o que ela diz. - Há outras maneiras - Cobra das Pedras ajoelhou junto ao homem que tinha matado, tirou seu manto, as botas, o cinto e a túnica, depois içou o corpo sobre o ombro magro e o levou para a borda do penhasco. Soltou um grunhido ao arremessá-lo, Um momento mais tarde, ouviram uma pancada úmida e pesada muito abaixo. Nesse momento o patrulheiro já tinha despido o segundo cadáver e arrastava-o pelos braços. Jon pegou os pés, e juntos atiraram o morto para o negrume da noite. Ygritte observou-os, e nada disse. Jon percebeu que a moça era mais velha do que tinha imaginado a princípio; talvez tivesse vinte anos, mas era baixa para a idade, com pernas arqueadas, cara redonda, mãos pequenas e um nariz achatado. Seu cabelo desgrenhado e vermelho felpudo, espetava-se em todas as direções. Ali acocorada, parecia gorducha, mas a maior parte daquele volume eram camadas de peles, lã e couro. Debaixo de tudo aquilo, podia ser tão magricela como Arya, - Mandaram-na para nos vigiar? - Jon perguntou. - A vocês, e a outros. Cobra das Pedras aqueceu as mãos sobre a fogueira: - O que nos espera para lá do passo? - O povo livre. - Quantos? - Centenas e milhares. Mais do que você jamais viu, corvo - ela sorriu. Tinha dentes tortos, mas muito brancos. Ela não sabe quantos. - Por que motivo vieram para cá? Ygritte caiu no silêncio, - O que há nas Presas de Gelo que seu rei possa querer? Não podem ficar aqui, não há comida. Ela olhou para o outro lado. - Pretendem marchar sobre a Muralha? Quando? Ela fitou as chamas como se não o ouvisse. - Sabe alguma coisa sobre meu tio, Benjen Stark? Ygritte o ignorou. Cobra das Pedras soltou uma gargalhada. - Se ela cuspir a língua, não diga que não avisei, Um rugido grave e ressoante ecoou, vindo das rochas. Gato-das-sombras, Jon soube de imediato. Ao se levantar ouviu outro, mais próximo. Puxou a espada e virou-se, à escuta. - Eles não vão nos incomodar - Ygritte disse. - Foi pelos mortos que vieram. Os gatos conseguem cheirar sangue a seis milhas de distância. Vão ficar perto dos corpos até terem comido o último bocado fibroso de carne e quebrado os ossos pra chegar ao tutano. Jon conseguia ouvir os sons que as feras faziam ao se alimentar ecoando nas rochas. Deu-lhe uma sensação incômoda. O calor do fogo o fez perceber como estava cansado até os ossos, mas não se atrevia a dormir. Tinha capturado uma prisioneira, e cabia-lhe guardá-la. - Eram seus parentes? Os dois que matamos? - Não mais do que você. - Eu? - Jon franziu o cenho. - O que quer dizer?
    - Disse que era o Bastardo de Winterfell. 479 - Sou. - Quem era a sua mãe? - Uma mulher qualquer. É o que a maioria delas é - alguém lhe tinha dito aquilo um dia. Não recordava quem, Ela voltou a sorrir, um relâmpago de dentes brancos. - E ela nunca lhe cantou a canção da rosa de Inverno? - Nunca conheci minha mãe. Nem soube de nenhuma canção que se parecesse com isso. - Foi Bael, o Bardo, que a fez - Ygritte explicou. - Foi Rei-para-lá-da-Muralha há muito tempo. Todo o povo livre conhece as canções dele, mas pode ser que no Sul não as cantem, - Winterfell não fica no Sul - Jon objetou. - Fica, sim. Tudo o que há abaixo da Muralha é Sul pra nós. Nunca tinha pensado naquilo daquela maneira. - Suponho que tudo dependa do ponto de vista. - Sim - Ygritte concordou. - Sempre depende. - Conte-me - pediu Jon. Iriam se passar horas até que Qhorin chegasse, e uma história podia ajudar a mantê-lo acordado. - Quero ouvir esse seu conto. - Pode ser que não goste muito dele. - Quero ouvi-lo assim mesmo. - Corajoso corvo preto - ela caçoou. - Bom, muito antes de ser rei do povo livre, Bael foi um grande corsário. Cobra das Pedras soltou uma fungadela. - O que você quer dizer é assassino, ladrão e estuprador. - Isso também depende do ponto de vista - Ygritte respondeu. - O Stark de Winterfell queria a cabeça de Bael, mas nunca conseguiu apanhá-lo, e o sabor do fracasso humilhava-o. Um dia, na sua amargura, disse que Bael era um covarde que só caía sobre os fracos, Quando essa notícia lhe chegou, Bael jurou dar uma lição ao lorde. Portanto, escalou a Muralha, desceu a estrada do rei, e entrou a pé em Winterfell, numa noite de Inverno, de harpa na mão, chamando a si mesmo de Sygerrik de Skagos, Sygerrik quer dizer "enganador" no Antigo Idioma, que os Primeiros Homens falavam e os gigantes continuam falando. No norte ou no sul, os cantores encontram sempre boas-vindas prontas, e então Bael comeu à mesa do próprio Lorde Stark e tocou para o senhor no seu cadeirão até passar metade da noite. Tocou as velhas canções, e as novas que ele tinha feito,* e tocou e cantou tão bem que, quando acabou, o senhor ofereceu-lhe a chance de dizer que recompensa queria. "Tudo o que peço é uma flor," respondeu Bael, "a flor mais bela que desabrocha nos jardins de Winterfell." Ora, acontece que as rosas de Inverno tinham acabado de desabrochar, e não há flor mais rara e preciosa. Por isso o Stark mandou homens aos jardins de vidro e ordenou que a mais bela das rosas de Inverno fosse cortada para pagar o cantor. E assim foi feito. Mas, ao chegar a manhã, o cantor tinha desaparecido... assim como a filha donzela de Lorde Brandon. Acharam sua cama vazia, só com a rosa azul-clara que Bael havia deixado no travesseiro onde ela antes apoiava a cabeça. Jon nunca tinha ouvido aquela história. - Qual dos Brandon seria? Brandon, o Construtor, viveu na Idade dos Heróis, milhares de anos antes de Bael. Houve Brandon, o Incendiário, e o pai, Brandon, o Construtor Naval, mas... - Este era Brandon, o Sem Filha - Ygritte respondeu em tom cortante. - Quer ouvir a história ou não? 480 Jon franziu a sobrancelha: - Continue. - Lorde Brandon não tinha mais filhos. Por ordens suas, os corvos negros voaram às centenas de seus castelos para o norte, mas não conseguiram encontrar sinal de Bael ou da donzela em lugar nenhum. Procuraram durante quase um ano, até que o senhor perdeu ânimo e ficou de cama, e parecia que a linhagem dos Stark estava no fim. Mas, uma noite, deitado e desejando morrer, Lorde Brandon ouviu o choro de uma criança. Seguiu o som e encontrou a filha de volta ao seu quarto, dormindo com um bebê no colo. - Bael a tinha trazido de volta? - Não. Tinham estado o tempo todo em Winterfell, escondidos com os mortos por baixo do castelo. A canção diz que a donzela amou tanto Bael que lhe deu à luz um filho... Se bem, que na verdade, todas as donzelas amam Bael nas canções que escreveu. Seja como for, o que é certo é que Bael deixou a criança como pagamento da rosa que tinha cortado sem pedir licença.
    E o garoto cresceu e se transformou no Lorde Stark seguinte. Portanto, aí está... Você tem em si o sangue de Bael, assim como eu. - Isso nunca aconteceu - Jon rebateu. Ela encolheu os ombros: - Pode ser que sim, pode ser que não, Mas é uma boa canção. Minha mãe costumava cantá-la para mim. Ela também era uma mulher, Jon Snow. Como a sua - esfregou a garganta onde a adaga dele a cortara. - A canção acaba quando encontram o bebê, mas há um fim mais sombrio para a história. Trinta anos depois, quando Bael era Rei-para-lá-da-Muralha e levou o povo livre para o sul, foi o jovem Lorde Stark que o enfrentou no Vau Gelado... E o matou, porque Bael não quis fazer mal ao seu próprio filho quando se encontraram de espada na mão. - Então, em vez disso, o filho matou o pai - Jon concluiu. - Sim, mas os deuses odeiam quem mata parentes, mesmo quando os matam sem saber. Quando Lorde Stark voltou da batalha e a mãe viu a cabeça de Bael na ponta de sua lança, atirou-se de uma torre por desgosto. O filho não sobreviveu muito tempo depois. Um dos senhores dele arrancou sua pele e a usou como manto. - O seu Bael era um mentiroso - disse-lhe Jon, agora com certeza. - Não - Ygritte respondeu - , mas a verdade de um bardo é diferente da sua ou da minha. Seja como for, pediu a história, e eu a contei - deu-lhe as costas, fechou os olhos e pareceu adormecer. A alvorada e Qhorin Meia-Mão chegaram juntos. As pedras negras tinham se tornado cinzentas e o céu oriental havia tomado um tom de índigo quando Cobra das Pedras vislumbrou os patrulheiros mais abaixo, abrindo um caminho sinuoso para cima, Jon acordou a prisioneira e a segurou pelo braço enquanto desciam para ir até eles. Felizmente, havia outro caminho para sair da montanha pelo norte e oeste, ao longo de trilhas muito mais suaves do que aquela que os levara até ali. Esperavam num desfiladeiro estreito quando os irmãos surgiram, levando os garranos junto. Fantasma correu para a frente ao sentir o primeiro odor dos três. Jon acocorou-se para deixar o lobo gigante fechar as mandíbulas em volta do pulso, puxando a mão para trás e para a frente, uma brincadeira deles. Mas, quando Fantasma olhou para cima, viu Ygritte olhando-o com olhos tão abertos e brancos como ovos de galinha. Qhorin Meia-Mão não fez comentários quando viu a prisioneira. - Havia três - disse-lhe Cobra das Pedras, e nada mais. - Passamos por dois - Ebben contou ou por aquilo que os gatos deixaram - deu um olhar azedo à moça, com uma evidente suspeita no rosto. 481 - Ela se rendeu - Jon sentiu-se compelido a dizer. O rosto de Qhorin estava impassível. - Sabe quem eu sou? - Qhorin Meia-Mão - a garota ao seu lado parecia uma criança, mas encarou-o ousadamente. - Diga-me a verdade. Se eu caísse nas mãos de sua gente e me rendesse, o que é que ganharia com isso? - Uma morte mais lenta. O grande patrulheiro olhou para Jon. - Não temos comida para lhe dar, nem podemos dispensar um homem para vigiá-la. - O caminho que temos adiante é perigoso, moça - disse o Escudeiro Dalbridge. - Um grito quando precisarmos de silêncio, e cada um de nós está condenado. Ebben puxou o punhal. - Um beijo de aço vai mantê-la quieta. Jon sentia a garganta áspera, Olhou-os, impotente. - Ela se rendeu a mim. - Então, tem de fazer o que deve ser feito - disse Qhorin Meia-Mão. - Pertence ao sangue de Winterfell, e é um homem da Patrulha da Noite - olhou para os outros. - Venham, irmãos. Vamos deixá-lo tratar disso. Será mais fácil para ele se não ficarmos vendo - e os levou pela trilha serpenteante e íngreme, na direção do pálido clarão cor-de-rosa do sol, onde este irrompia por uma fissura na montanha. Não se passou muito tempo até que Jon e Fantasma ficassem sozinhos com a moça selvagem. Pensou que Ygritte pudesse tentar fugir, mas ela se limitou a permanecer ali, à espera, olhando-o. - Nunca matou uma mulher, não é? - quando ele sacudiu a cabeça, ela disse: - Morremos da mesma maneira que os homens. Mas não tem de fazer isso. Mance o acolheria, eu sei que sim. Há caminhos secretos. Aqueles corvos nunca nos pegariam. - Eu sou tanto um corvo como eles - Jon respondeu.
    Ela anuiu com a cabeça, resignada: - Quem é que me queima depois? - Não posso. A fumaça pode ser vista. - E verdade - Ygritte encolheu os ombros. - Bom, há lugares piores do que a barriga de um gato-das-sombras. Jon puxou Garralonga por cima de um ombro: - Não tem medo? - Na noite passada tive - ela admitiu. - Mas agora o sol está no céu. - puxou o cabelo para o lado, a fim de descobrir o pescoço, e se ajoelhou na frente de Jon. - Dê um golpe bom e forte, corvo, senão, volto para assombrá-lo. Garralonga não era uma espada tão longa ou pesada como a Gelo do pai, mas era, mesmo assim, de aço valiriano. Tocou o gume da espada para marcar o local onde o golpe tinha de cair, e Ygritte estremeceu. - Isso é frio - ela disse. - Vai logo, de uma vez. Ergueu Garralonga por sobre a cabeça, apertando bem o punho com ambas as mãos. Um golpe, com todo meu peso posto nele. Pelo menos podia lhe dar uma morte rápida e limpa. Era filho de seu pai. Não era? Não era? 482 - Vai logo - ela o incitou, passado um momento. - Bastardo. Vai logo. Não posso ficar corajosa para sempre - quando o golpe não caiu, ela virou a cabeça e olhou para ele. Jon abaixou a espada, e murmurou:. -Vá. Ygritte o fitou. -Já - ele insistiu. - Antes que eu recupere o juízo. Vá, Ela foi. 483 Sansa Océu meridional estava negro de fumaça. Erguia-se, rodopiando, de uma centena de incêndios distantes, fazendo as estrelas desaparecerem com seus dedos de fuligem. Do outro lado da Torrente da Água Negra, uma linha de chamas ardia à noite, de horizonte a horizonte, enquanto, deste lado, o Duende havia incendiado toda a zona ribeirinha: docas e armazéns, casas e bordéis, tudo o que estivesse fora das muralhas da cidade. Mesmo na Fortaleza Vermelha o ar tinha gosto de cinzas. Quando Sansa se encontrou com Sor Dontos no sossego do Bosque Sagrado, ele perguntou se ela estivera chorando. - É só da fumaça - Sansa mentiu. - Parece que metade da mata do rei está ardendo. - Lorde Stannis quer obrigar os selvagens do Duende a sair da floresta com fumaça - Dontos oscilava enquanto falava, com uma mão no tronco de um castanheiro. Uma marca de vinho manchava o quadriculado vermelho e amarelo de sua túnica. - Matam seus batedores e atacam a coluna dos abastecimentos. E os selvagens também têm andado incendiando. O Duende disse à rainha que era melhor Stannis ensinar seus cavalos a comer cinzas, porque não iriam encontrar grama nenhuma. Eu o ouvi dizer isso. Como bobo, ouço todos os tipos de coisa que nunca ouvi quando era um cavaleiro. Eles falam como se eu não estivesse lá, e - aproximou-se, soprando o hálito avinhado bem em cheio no rosto dela - a Aranha paga em ouro por qualquer bagatela, Acho que o Rapaz Lua é dele há anos. Está bêbado outra vez. Chama a si mesmo de meu pobre Florian, e é o que é. Mas nada mais tenho. - E verdade que Lorde Stannis incendiou o bosque sagrado em Ponta Tempestade? Dontos confirmou com a cabeça: - Fez uma grande pira com as árvores como oferenda ao seu novo deus. A sacerdotisa vermelha o obrigou a fazer isso. Dizem que agora é ela quem o governa, no corpo e na alma. Jurou queimar também o Grande Septo de Baelor se tomar a cidade. - Que queime - quando Sansa tinha visto pela primeira vez o Grande Septo, com suas paredes de mármore e as sete torres de cristal, pensou que era o mais belo edifício do mundo, mas isso tinha sido antes de Joffrey decapitar seu pai em seus degraus. - Quero-o queimado. - Silêncio, menina, os deuses vão ouvi-la. - Por que hão de ouvir? Nunca ouvem minhas preces, - Ouvem, sim. Mandaram-me até você, não mandaram? Sansa pegou um pedaço de casca de uma árvore. Sentia-se tonta, quase febril.
    - Enviaram-no, mas o que fez? Prometeu me levar para casa, mas continuo aqui. Dontos deu palmadinhas em seu braço. 484 - Falei com um cerro homem que conheço, um bom amigo meu... e seu, senhora. Ele vai contratar um navio rápido para nos levar para um local seguro na hora certa. - A hora certa é agora - Sansa insistiu. - Antes que a luta comece, Eles esqueceram de mim. Eu sei que conseguiríamos escapar se tentássemos. - Menina, menina - Dontos sacudiu a cabeça. - Do castelo, sim, poderíamos, mas os portões da cidade estão mais guardados do que nunca, e o Duende até o rio fechou. Era verdade. Sansa nunca tinha visto a Torrente da Água Negra tão vazia. Todos os barcos que faziam a travessia tinham sido recolhidos à margem norte, e as galés mercantes, fugido ou sido confiscadas pelo Duende para serem preparadas para a batalha. Os únicos navios que estavam à vista eram as galés de guerra do rei. Remavam incessantemente para baixo e para cima no meio do rio, trocando nuvens de flechas com os arqueiros de Stannis na margem sul. Lorde Stannis propriamente dito ainda estava em movimento, mas sua vanguarda surgira havia duas noites durante a lua negra. Porto Real tinha acordado para uma paisagem cheia de suas tendas e estandartes. Sansa ouvira dizer que eram cinco mil homens, quase tantos quanto todos os mantos dourados da cidade. Hasteavam as maçãs verde ou vermelha da Casa Fossoway, a tartaruga de Estermont, e a raposa e flores de Florent, e seu comandante era Sor Guyard Morrigen, um famoso cavaleiro do sul que os homens agora chamavam de Guyard, o Verde. Seu estandarte exibia um corvo em voo, com as asas negras bem abertas contra um céu verde-tempestade. Mas eram as bandeiras amarelo-claras que preocupavam a cidade. Longas caudas esfarrapadas flutuavam atrás delas, como chamas tremeluzentes, e em vez do símbolo de um senhor, ostentavam o de um deus: o coração ardente do Senhor da Luz. - Quando Stannis chegar, terá dez vezes mais homens do que Joffrey, todos dizem isso Dontos apertou seu ombro. - O tamanho de sua tropa não importa, querida, desde que esteja do lado errado do rio, Stannis não pode atravessar sem navios. - Ele tem navios. Mais do que Joffrey, - E uma longa viagem desde Ponta Tempestade, a frota terá de dobrar o Gancho de Massey, atravessar a Goela e cruzar a Baía da Água Negra. Talvez os bons deuses enviem uma tempestade para varrê-los dos mares - ele deu um sorriso esperançoso. - Não é fácil, eu sei. Precisa ter paciência, menina. Quando meu amigo voltar à cidade, teremos o seu navio. Tenha fé no seu Florian, e tente não ter medo. Sansa cravou as unhas na palma da mão. Conseguia sentir o medo na barriga, torcendo e apertando, pior a cada dia que passava. Pesadelos sobre o dia em que a Princesa Myrcella tinha embarcado ainda perturbavam seu sono; sonhos escuros e sufocantes que a acordavam no meio da noite, lutando para respirar. Ouvia as pessoas gritando com ela, gritando sem palavras, como animais. Tinham-na empurrado, atirado dejetos nela, e tentado derrubá-la do cavalo, e teriam feito coisas piores se Cão de Caça não tivesse aberto caminho até junto dela. Tinham despedaçado o Alto Septão e esmagado a cabeça de Sor Aron com uma pedra. Tente não ter medo!, ele lhe dizia agora. A cidade inteira tinha medo. Sansa podia vê-lo das muralhas do castelo. As pessoas comuns se escondiam atrás de venezianas fechadas e portas trancadas, como se isso as mantivesse a salvo. Da última vez que Porto Real caíra, os Lannister tinham saqueado e violado as mulheres a seu bel-prazer, e tinham passado centenas na espada, apesar de a cidade ter aberto os portões. Daquela vez, o Duende pretendia lutar, e uma cidade que lutava não podia esperar qualquer tipo de misericórdia. Dontos continuava a tagarelar: 485 - Se eu ainda fosse um cavaleiro, teria de vestir uma armadura e juntar-me aos outros na guarnição das muralhas. Devia beijar os pés do Rei Joffrey e agradecer-lhe de todo o coração, - Se lhe agradecesse por ter feito de você um bobo, o transformaria de novo em cavaleiro - Sansa disse em tom ríspido. Dontos soltou um risinho: - A minha Jonquil é uma menina inteligente, não é? - Joffrey e a mãe dizem que sou burra. - Que digam. Está mais segura assim, doçura. Rainha Cersei, Duende, Lorde Varys e gente assim, todos se vigiam uns aos outros com uma atenção de falcões, e pagam a este e àquele para espiar o que os outros andam fazendo, mas ninguém se incomoda com a filha da Senhora Tanda, não é? - Dontos cobriu a boca para abafar um arroto. - Que os deuses a protejam, minha pequena Jonquil - estava ficando lacrimoso. O vinho tinha esse efeito nele. - Dê agora um beijinho no seu Florian. Um beijo para dar sorte - ele cambaleou na direção dela, Sansa esquivou-se de seus lábios úmidos, deu-lhe um leve beijo no rosto por barbear, e desejou-lhe boa noite. Precisou de todas as suas forças para não chorar. Andava chorando em excesso nos últimos tempos. Era impróprio, bem sabia, mas não parecia ser capaz de evitar; às vezes, as lágrimas chegavam por causa de uma besteira, e nada do que fizesse era capaz de retê-las. A ponte levadiça que levava à Fortaleza de Maegor não tinha guardas. O Duende havia transferido a maior parte dos homens de manto dourado para as muralhas da cidade, e os cavaleiros brancos da Guarda Real tinham deveres mais importantes do que ficar se preocupando com ela. Sansa podia ir aonde quisesse, desde que não tentasse sair do castelo, mas não havia lugar algum aonde quisesse ir. Passou por cima do fosso seco com seus cruéis espigões de ferro e subiu a estreita escada em caracol, mas quando chegou à porta de seu quarto, não suportou a idéia de entrar. Aquelas paredes faziam-na se sentir aprisionada; mesmo com a janela escancarada parecia não haver ar para respirar. Voltando para a escada, Sansa subiu. A fumaça escondia as estrelas e o fino crescente da lua, e assim o telhado encontrava-se escuro e pesado de sombras. Mas dali podia ver tudo: as altas torres e os grandes baluartes da Fortaleza Vermelha; o labirinto das ruas da cidade mais além; para sul e oeste corria o rio, negro; a baía para leste; as colunas de fumaça e fagulhas e incêndios. Incêndios por toda parte. Soldados rastejavam sobre as muralhas da cidade como formigas com archotes, e aglomeravam-se em tabiques que tinham brotado das muralhas. Embaixo, junto ao Portão da Lama, delineadas contra a fumaça que ascendia ao céu, conseguia distinguir a forma vaga das três enormes catapultas, as maiores que já se tinha visto, subindo uns bons seis metros acima da muralha. Mas nada daquilo a fazia sentir menos medo. Uma ferroada trespassou-a, tão forte que Sansa soluçou e se agarrou à barriga. Podia ter caído, mas uma sombra moveu-se de repente e dedos fortes agarraram seu braço e a equilibraram. Apoiou-se em um merlão, com os dedos arranhando a pedra áspera. - Largue-me - ela gritou. - Largue-me. - O passarinho pensa que tem asas, é? Ou será que quer acabar aleijada como aquele seu irmão? Sansa retorceu-se nas mãos dele. - Eu não ia cair. Foi só... surpreendeu-me, foi só isso. - O que quer dizer é que a assustei. E ainda assusto. 486 Ela inspirou profundamente para se acalmar. - Pensava que estava sozinha, eu... - afastou o olhar. - O passarinho ainda não suporta olhar para mim, não é? - Cão de Caça a largou. - Mas ficou bastante satisfeita em me ver quando a multidão a agarrou. Lembra-se? Sansa lembrava-se bem demais. Lembrava-se do modo como uivavam, da sensação do sangue escorrendo por seu rosto do local onde a pedra a atingira, e do fedor de alho no hálito do homem que tentara arrancá-la do cavalo. Ainda conseguia sentir a cruel pressão dos dedos em seu pulso quando tinha perdido o equilíbrio e começado a cair. Naquela altura, pensou que ia morrer, mas os dedos tinham se contorcido, todos de uma vez só, e o homem guinchara alto como um cavalo. Quando a mão dele caiu, outra, mais forte, puxou-a de volta para a sela. O homem com o bafo de alho estava no chão, com sangue jorrando do coto em que terminava o braço, mas havia outros por toda volta, e alguns tinham tacos na mão. Cão de Caça saltou sobre eles, com a espada transformada numa mancha de aço que deixava para trás uma névoa vermelha à medida que ia sendo brandida. Quando tinham saído correndo diante de seus olhos, Cão de Caça rira, com a terrível cara queimada transformada por um momento. Obrigou-se agora a olhar para aquele rosto, olhar realmente. Era uma cortesia, e uma senhora nunca podia se esquecer das cortesias. A pior parte não são as cicatrizes, nem sequer a maneira como a boca se retorce. São os olhos. Nunca tinha visto olhos tão cheios de ira. - Eu... eu devia ter ido ter convosco depois - ela disse, hesitantemente. - Para lhe agradecer, por... por me ter salvado... foi tão bravo. - Bravo? - a gargalhada dele era quase um rosnado. - Um cão não precisa de coragem para botar ratazanas para correr. Eram trinta contra um, e nem um homem entre eles se atreveu a me enfrentar. Sansa detestava a maneira como ele falava, sempre tão desagradável e zangado. - Assustar gente o alegra?
    - Não, o que me alegra é matar gente - sua boca retorceu-se. - Enrugue a cara quanto quiser, mas poupe-me dessa falsa piedade. E cria de um grande senhor. Não me diga que Lorde Eddard Stark de Winterfell nunca matou um homem. - Era o seu dever. Nunca gostou de fazê-lo. - Foi isso que lhe contou? - Clegane voltou a rir. - Seu pai mentiu. Matar é a melhor coisa que existe - puxou a espada. - Aqui está a sua verdade. Seu precioso pai descobriu-a nos degraus de Baelor. Senhor de Winterfell, Mão do Rei, Protetor do Norte, o poderoso Eddard Stark, de uma linhagem velha de oito mil anos... Mas a lâmina de Ilyn Payne atravessou seu pescoço mesmo assim, não foi? Lembra-se da dança que ele fez quando a cabeça saiu de cima de seus ombros? Sansa abraçou-se, subitamente cheia de frio. - Por que é sempre tão odioso? Eu estava agradecendo... - Como se eu fosse um desses verdadeiros cavaleiros de que gosta tanto, sim. Para que pensa que um cavaleiro serve, menina? Acha que basta receber favores das senhoras e ficar bem numa armadura dourada? Os cavaleiros servem para matar - encostou o gume da espada no pescoço dela, logo abaixo da orelha. Sansa conseguia sentir o fio do aço. - Matei meu primeiro homem aos doze anos. Perdi a conta dos que matei desde então. Grandes senhores com nomes antigos, homens ricos e gordos vestidos de veludo, cavaleiros inflados com suas honrarias como balões de ar, sim, e também mulheres e crianças... São todos carne, e eu sou o carniceiro. Que fiquem com as suas terras, os seus deuses e o seu ouro. Que fiquem com os seus sores - Sandor Clegane 487 cuspiu aos seus pés para mostrar o que pensava daquilo. - Desde que eu tenha isto - disse, afastando a espada da sua garganta - , não há homem na terra que tenha de temer. Exceto seu irmão, Sansa pensou, mas tinha juízo suficiente para não dizer isso em voz alta. Ele é um cão, como diz ser. Um cão meio louco e de temperamento ruim que morde qualquer mão que tente lhe fazer um agrado, e que ao mesmo tempo despedaçará qualquer homem que tente fazer mal aos seus donos. - Nem sequer os homens que estão do outro lado do rio? Os olhos de Clegane viraram-se para os incêndios distantes. - Todas estas chamas... - embainhou a espada. - Só covardes lutam com fogo. - Lorde Stannis não é nenhum covarde. - Também não é o homem que o irmão era. Robert nunca deixou que uma coisinha insignificante como um rio o parasse. - Que irá fazer quando ele atravessar? - Lutar. Matar. Talvez morrer. - Não tem medo? Os deuses podem enviá-lo para algum inferno terrível por todo o mal que já fez. - Que mal? - soltou uma gargalhada. - Que deuses? - Os deuses que fizeram todos nós. - Todos? - ele zombou. - Diga-me, passarinho, que tipo de deus faz um monstro como o Duende, ou uma idiota como a filha da Senhora Tanda? Se os deuses existirem, fizeram as ovelhas para que os lobos possam comer carneiro, e os fracos para os fortes brincarem com eles. - Os verdadeiros cavaleiros protegem os fracos. Ele fungou: - Os verdadeiros cavaleiros não são mais reais do que os deuses. Se não pode se proteger por conta própria, morra e saia do caminho daqueles que podem. É o aço afiado e os braços fortes que governam este mundo, e nunca acredite em outra coisa. Sansa afastou-se dele: - É horrível. - Sou honesto. É o mundo que é horrível. Agora voe, passarinho, estou farto de seus trinados. Sem palavras, Sansa fugiu. Tinha medo de Sandor Clegane... E, no entanto, uma parte de si desejava que Sor Dontos possuísse um pouco da ferocidade do Cão de Caça. Os deuses existem, disse a si mesma, e verdadeiros cavaleiros também. Tantas histórias não podem ser mentira. Naquela noite, Sansa voltou a sonhar com o tumulto. A multidão ergueu-se em volta dela, guinchando, um animal enlouquecido com mil caras. Para onde quer que se virasse, via faces retorcidas em máscaras monstruosas e desumanas. Chorou, e lhes disse que nunca lhes fizera nenhum mal, mas derrubaram-na do cavalo mesmo assim. "Não", chorou, "não, por favor, não, não", mas ninguém prestou atenção nela. Gritou por Sor Dontos, pelos irmãos, por seu pai e por sua loba, mortos, pelo galante Sor Loras, que certa vez lhe tinha dado uma rosa vermelha, mas nenhum deles veio. Chamou pelos heróis das canções, Florian, Sor Ryam Redwyne, Príncipe Aemon, Cavaleiro dos Dragões, mas nenhum a ouviu. Mulheres caíram sobre ela como doninhas, beliscando suas pernas e chutando-a na barriga; alguém bateu em seu rosto, e sentiu seus dentes quebrando-se. Então, viu o brilhante clarão do aço. A faca mergulhou em sua barriga e rasgou, e rasgou, e rasgou, até não restar nada da parte de baixo de seu corpo, além de tiras brilhantes e úmidas. 488 Quando acordou, a luz pálida da manhã entrava pela janela, mas sentia-se tão mal e dolorida como se não tivesse dormido nada. Havia alguma coisa pegajosa em suas coxas. Quando jogou a manta para trás e viu o sangue, tudo o que conseguiu imaginar foi que o sonho tinha de algum modo se transformado em realidade. Lembrava-se das facas dentro dela, torcendo-se e rasgando. Afastou-se, horrorizada, chutando os lençóis e caindo ao chão, sua respiração entrecortada, nua, ensangüentada e com medo. Mas ali, encolhida, apoiada nas mãos e nos joelhos, a compreensão veio. - Por favor, não - lamuriou-se Sansa - , por favor, não - não queria que aquilo lhe acontecesse, não agora, não ali, agora não, agora não, agora não, agora não. A loucura tomou conta dela. Levantando-se apoiada na coluna da cama, foi até a bacia e lavou-se, esfregando toda a matéria pegajosa até desaparecer. Quando terminou, a água estava cor-de-rosa devido ao sangue. Se as criadas de quarto vissem aquilo, saberiam. Então lembrou-se das roupas de cama. Correu para a cama e fitou horrorizada com a mancha vermelho-escura e a história que ela contava. Tudo em que conseguiu pensar foi que tinha de se ver livre daquilo, caso contrário elas veriam. Não podia deixar que vissem, senão iriam casá-la com Joffrey e obrigá-la a se deitar com ele. Pegando a faca, Sansa cortou o lençol, arrancando a mancha, Se me fizerem perguntas sobre o buraco, o que direi? Lágrimas correram pelo seu rosto. Arrancou o lençol rasgado da cama, e a manta manchada também. Vou ter de queimá-los. Fez uma bola com as provas, enfiou-a na lareira, ensopou-a com o azeite da lâmpada de cabeceira e pôs-lhe fogo. De repente, percebeu que o sangue tinha atravessado o lençol e manchado o colchão de penas. Enrolou-o também, mas era grande e pesado, difícil de mover. Sansa só conseguiu pôr metade no fogo. Estava de joelhos, lutando para enfiar o colchão nas chamas, enquanto uma espessa fumaça cinza redemoinhava em volta dela e enchia o quarto, quando a porta se abriu de rompante e ouviu a criada prender a respiração. Acabaram sendo necessárias três para afastá-la da lareira. E tudo foi em vão. A roupa de cama estava queimada, mas quando a levaram dali, tinha as coxas de novo ensangüentadas. Era como se seu próprio corpo a tivesse denunciado a Joffrey, hasteando uma bandeira do carmim Lannister para o mundo inteiro ver. Depois de apagarem o fogo, levaram o colchão de penas chamuscado, afastaram a maior parte da fumaça para fora do quarto e trouxeram uma banheira. Mulheres andaram para lá e para cá, murmurando e olhando-a de forma estranha. Encheram a banheira com água escaldando, banharam-na, lavaram seu cabelo e deram-lhe um pano para usar entre as pernas. Nessa altura, Sansa já estava calma, e envergonhada da loucura que a acometera. A fumaça tinha estragado a maior parte de suas roupas. Uma das mulheres saiu e voltou de lá com um vestido verde que era quase do seu tamanho. - Não é tão bonito quanto as suas coisas, mas deve servir - anunciou quando o enfiou pela cabeça de Sansa. - Seus sapatos não estragaram, portanto, pelo menos não terá de ir descalça à presença da rainha. Cersei Lannister estava tomando o desjejum quando Sansa foi introduzida em seu aposento privado. - Pode se sentar - a rainha disse atenciosamente. - Está com fome? - indicou a mesa com um gesto. Havia mingau de aveia, mel, leite, ovos cozidos e peixe frito e crocante. A visão da comida encheu Sansa de náuseas. Tinha um nó na barriga. - Não, obrigada, Vossa Graça. 489 - Náo a censuro. Entre Tyrion e Lorde Stannis, tudo o que como tem gosto de cinza. E agora também anda fazendo fogueiras. O que esperava conseguir? Sansa abaixou a cabeça: - O sangue assustou-me. - O sangue é o sinal de sua condição feminina. A Senhora Catelyn poderia tê-la preparado. Teve sua primeira floração, nada mais. Sansa nunca tinha se sentido menos florida. - A senhora minha mãe contou-me, mas eu... eu pensava que seria diferente.
    - Diferente como? - Não sei. Menos... menos sujo, e mais mágico. A Rainha Cersei riu. - Espere até dar à luz um filho, Sansa. A vida de uma mulher é nove partes de sujeira para uma de magia, deve aprender isso bem depressa... E as partes que parecem mágicas costumam se revelar as mais sujas de todas - ela bebeu um gole de leite. - Então agora é uma mulher. Será que faz a menor idéia do que isso significa? - Significa que agora estou em condições de me casar, de dormir com o rei - Sansa respondeu e de lhe dar filhos. A rainha deu um sorriso oblíquo: - Uma perspectiva que já não a seduz como antes, pelo que vejo. Não a censurarei por isso. Joffrey sempre foi difícil. Até no nascimento... Trabalhei um dia e meio para dá-lo à luz. Não imagina a dor, Sansa. Gritei tão alto que imaginei que Robert conseguiria me ouvir na mata do rei. - Sua Graça não estava com a senhora? - Robert? Robert estava na caça. Era esse o seu costume. Sempre que meu tempo se aproximava, meu real esposo fugia para o meio das árvores com seus caçadores e cães de caça. Quando regressava, presenteava-me com umas peles ou uma cabeça de veado, e eu o presenteava com um bebê. Não que eu quisesse que ele ficasse, veja bem. Tinha o Grande Meistre Pycelle e um exército de parteiras, e o meu irmão. Quando diziam a Jaime que não lhe seria permitido acompanhar os partos, ele sorria e perguntava quem iria mantê-lo do lado de fora. Temo que Joffrey não lhe mostre nenhuma devoção que se assemelhe a isso. Poderia agradecer à sua irmã por isso, se não estivesse morta. Ele nunca conseguiu esquecer aquele dia no Tridente, quando a viu envergonhá-lo, e por isso envergonha você como troco. Mas você é mais forte do que parece. Confio que sobreviva a um pouco de humilhação. Eu sobrevivi. Pode nunca amar o rei, mas amará seus filhos, - Eu amo Sua Graça de todo o coração - Sansa disse. A rainha suspirou: - E melhor que aprenda algumas mentiras novas, e depressa. Lorde Stannis não gostará dessa, garanto. - O novo Alto Septão disse que os deuses nunca permitirão que Lorde Stannis vença, pois Joffrey é o legítimo herdeiro. Um meio sorriso tremulou no rosto da rainha: - Filho e herdeiro legítimo de Robert. Embora Joff chorasse sempre que Robert o pegava. Sua Graça não gostava disso. Seus subordinados sempre balbuciaram alegremente para ele, e chuparam seu dedo quando o punha em suas bocas ilegítimas. Robert queria sorrisos e vivas, sempre, 490 e por isso ia para onde os encontrava, para junto dos amigos e das prostitutas. Robert queria ser amado. Meu irmão Tyrion sofre da mesma doença. Quer ser amada, Sansa? - Todo mundo quer ser amado. - Vejo que a floração não a deixou mais esperta. Sansa, permita-me partilhar com você um pouco de sabedoria feminina neste dia tão especial. O amor é veneno. Um doce veneno, sim, mas mata do mesmo jeito. 491 Jon Estava escuro no Passo dos Guinchos. Os grandes flancos de pedra das montanhas escondiam o sol durante a maior parte do dia, e eles avançavam pela sombra, com a respiração de homens e animais transformando-se em vapor no ar frio. Dedos gelados de água escorriam da neve que cobria o terreno mais elevado até pequenas poças congeladas que estalavam e se quebravam sob os cascos dos garranos. As vezes viam algumas ervas daninhas que lutavam para se enraizar em alguma fenda da rocha, ou uma mancha de liquens de cor clara, mas não havia grama e estavam agora acima das árvores. O caminho era tão íngreme quanto estreito, serpenteando sempre para cima. Onde o passo se apertava tanto que os cavaleiros tinham de seguir em fila indiana, o Escudeiro Dalbridge tomava a dianteira, examinando as alturas enquanto avançava, sempre com o arco ao alcance da mão. Dizia-se que ele tinha os olhos mais aguçados da Patrulha da Noite. Fantasma caminhava desassossegadamente ao lado de Jon. De vez em quando parava e se virava, de orelhas levantadas, como se ouvisse qualquer coisa atrás deles. Jon pensava que os gatos-das-sombras não atacariam homens vivos, desde que não estivessem famintos, mas mesmo assim desatou a bainha de Garralonga. Um arco de pedra cinza escavado pelo vento marcava o ponto mais elevado do passo. Naquele local, o caminho alargava-se ao começar a longa descida para o vale do Guadeleite. Qhorin decretou que descansariam ali até que as sombras voltassem a crescer. - As sombras são amigas de homens vestidos de preto - ele disse. Jon via sensatez naquilo. Seria agradável avançar com luz durante algum tempo, deixar que o brilhante sol da montanha embebesse seus mantos e afastasse o frio de seus ossos, mas não se atreviam. Onde havia três vigias podia haver outros, à espera de soar o alarme. Cobra das Pedras enrolou-se sob seu esfarrapado manto de peles e adormeceu quase de imediato. Jon dividiu sua carne salgada com Fantasma, enquanto Ebben e o Escudeiro Dalbridge alimentavam os cavalos. Qhorin Meia-Mão sentou-se com as costas apoiadas numa rocha, amolando a espada com movimentos longos e lentos, Jon observou o patrulheiro por alguns momentos, depois, reuniu coragem e se dirigiu a ele. - Senhor - disse - , nunca me perguntou como foi. Com a moça. - Eu não sou senhor nenhum, Jon Snow - Qhorin deslizou a pedra pelo aço com sua mão de dois dedos. - Ela disse que Mance me acolheria se eu fugisse com ela. - Disse a verdade. - Até disse que éramos parentes. Contou-me uma história... 492 - ... sobre Bael, o Bardo, e a rosa de Winterfell. Foi o que Cobra das Pedras me contou. Acontece que eu conheço a canção. Mance costumava cantá-la, antigamente, quando voltava de uma patrulha. Tinha paixão pela música dos selvagens. Sim, e também por suas mulheres. - Você o conheceu? - Todos nós o conhecemos - a voz de Qhorin era triste. Eram amigos além de irmãos, Jon compreendeu, e agora são inimigos jurados. - Por que foi que ele desertou? - Por uma mulher, dizem alguns. Outros dizem que foi por uma coroa - Qhorin testou o gume da espada com a base do polegar. - Gostava de mulheres, o velho Mance, e não era homem cujos joelhos se dobrassem facilmente, é verdade. Mas foi mais do que isso. Gostava mais da floresta do que da Muralha. Estava no seu sangue. Ele tinha nascido selvagem, levado ainda novo quando alguns corsários foram passados pela espada. Quando deixou a Torre Sombria, estava apenas voltando para casa. - Era um bom patrulheiro? - O melhor de todos nós - Meia-Mão respondeu e também o pior. Só palermas como Thoren Smallwood desprezam os selvagens. São tão corajosos como nós, Jon. Tão fortes, tão rápidos, tão inteligentes. Mas não têm disciplina. Chamam a si próprios de povo livre, e cada um se acha tão bom quanto um rei, e mais sábio do que um meistre. Mance era igual. Nunca aprendeu a obedecer. - Tal como eu - Jon disse em voz baixa. Os olhos argutos de Qhorin pareceram ver através dele. - Então, deixou-a ir? - não parecia nem um pouco surpreso. - Já sabia? - Sei agora. Diga-me por que a poupou. Era difícil colocar aquilo em palavras. - Meu pai nunca usou um carrasco. Dizia que devia aos homens que matava olhá-los nos olhos e ouvir suas últimas palavras. E quando olhei Ygritte nos olhos.,, - Jon fitou as mãos, desamparado, - Sei que era inimiga, mas não havia mal nela. - Não mais do que nos outros dois. - Era a vida deles ou a nossa - Jon retrucou. - Se nos tivessem visto, se tivessem tocado aquele berrante... - Os selvagens nos perseguiriam, e nos matariam, é verdade. - Mas agora é Cobra das Pedras quem tem o berrante, e ficamos com a faca e o machado de Ygritte. Ela vem atrás de nós, a pé, desarmada... - E não é provável que seja uma ameaça - Qhorin concordou. - Se tivesse necessitado dela morta, teria deixado a garota com Ebben, ou tratado eu mesmo do assunto. - Então, por que ordenou que eu o fizesse? - Não ordenei. Disse-lhe para fazer o que tinha de ser feito, e deixei que decidisse o que isso significava - Qhorin ficou de pé e voltou a enfiar a espada na bainha. - Quando quero uma montanha escalada, chamo Cobra das Pedras. Se tivesse de espetar uma flecha no olho de um inimigo qualquer do outro lado de um campo de batalha ventoso, chamaria o Escudeiro Dalbridge. Ebben pode fazer com que qualquer homem abra mão de seus segredos. Para liderar homens é preciso conhecê-los, Jon Snow. E eu conheço mais de você agora do que conhecia hoje de manhã. - E se a tivesse matado? - Jon quis saber. 493 - Ela estaria morta, e eu o conheceria melhor do que antes. Mas basta de conversa. Você devia estar dormindo. Temos léguas a percorrer e perigos a enfrentar. Vai precisar de suas forças. Jon achava que o sono náo viria facilmente, mas sabia que Meia-Mão tinha razão. Encontrou um lugar protegido do vento, por baixo de uma saliência de rocha, e tirou o manto para usá-lo como cobertor. - Fantasma - ele chamou. - Aqui, Junto - dormia sempre melhor com o grande lobo branco ao seu lado; havia conforto em seu cheiro, e um calor bem-vindo naquele hirsuto pelo claro. Daquela vez, no entanto, Fantasma limitou-se a olhar para ele. Depois, virou-se, rodeou os garranos, e num instante tinha desaparecido. Quer caçar, ele pensou. Talvez houvesse cabras naquelas montanhas. Os gatos-das-sombras tinham de viver de alguma coisa. - Vê se não tenta matar um gato - murmurou. Mesmo para um lobo gigante, isso seria perigoso. Puxou o manto por cima de si e estendeu-se sob a rocha. Quando fechou os olhos, sonhou com lobos gigantes. Havia cinco onde devia haver seis, e estavam espalhados, todos separados uns dos outros. Sentiu uma profunda sensação de vazio, de incompletude. A floresta era vasta e fria, e eles eram tão pequenos, tão perdidos. Os irmãos estavam longe, em algum lugar, e a irmã também, mas tinha perdido seus rastros. Sentou-se nos quartos traseiros e levantou a cabeça para o céu que escurecia, e seu choro ecoou pela floresta, um som longo, solitário e lamentoso. Enquanto o som morria, aguçou as orelhas, à escuta de uma resposta, mas o único ruído foi o suspiro da neve soprada pelo vento. Jon? O chamado veio de suas costas, mais baixo do que um sussurro, mas forte. Pode um grito ser silencioso? Virou a cabeça, em busca do irmão, de um vislumbre de uma silhueta esguia e cinzenta em movimento sob as árvores, mas nada havia, só... Um represeiro. Parecia ter brotado da rocha sólida, com as raízes brancas contorcendo-se de uma miríade de fissuras e rachaduras finas como fios de cabelo. A árvore era fina comparada com outros represeiros que tinha visto antes, pouco mais do que um broto, mas crescia diante de seus olhos, com os galhos engrossando à medida que se estendiam para o céu. Com prudência, deu a volta no tronco branco e liso até encontrar o rosto. Olhos vermelhos olhavam-no. Eram olhos ferozes, mas satisfeitos por vê-lo. O represeiro tinha o semblante do irmão. Teria o irmão sempre tido três olhos? Nem sempre, disse o grito silencioso. Antes do corvo náo tinha. Farejou a casca da árvore, tinha cheiro de lobo, árvore e garoto, mas por trás desses odores havia outros, o cheiro rico e marrom da terra tépida, e o duro e cinza da pedra, e algo mais, algo terrível. Morte, compreendeu. Estava cheirando a morte. Retraiu-se, com o pelo eriçado, e mostrou os dentes. Não tenha medo, eu gosto do escuro. Ninguém o vê, mas você vê todo mundo. Mas primeiro tem de abrir os olhos. Vê? Assim. E a árvore estendeu um galho e tocou nele. E de repente estava de volta nas montanhas, com as patas profundamente enterradas em neve soprada pelo vento, à beira de um grande precipício. A sua frente, o Passo dos Guinchos abria-se numa amplidão arejada, e um longo vale em forma de V espalhava-se abaixo como uma colcha, inundado por todas as cores de uma tarde de Outono. Uma vasta muralha azul-esbranquiçada encobria uma das extremidades do vale, espremida entre as montanhas como se as tivesse afastado com os ombros, e por um momento pensou que estava de volta a Castelo Negro. Então compreendeu que estava olhando para um rio de gelo com 494 mais de mil metros de altura. Na base desse resplandecente penhasco de gelo havia um grande lago, cujas profundas águas cor de cobalto refletiam os picos cobertos de neve que o rodeavam. Via agora que havia homens no vale; muitos, milhares deles, uma tropa enorme. Alguns faziam grandes buracos no terreno meio gelado, enquanto outros treinavam para a guerra. Observou uma multidão de cavaleiros investindo contra uma muralha de escudos, montados em cavalos que não eram maiores do que formigas. O som daquela batalha de mentira era um restolhar de folhas de aço, que flutuava, tênue, soprado pelo vento. O acampamento não tinha um plano; não viu valas, nem estacas afiadas, nem fileiras ordenadas de cavalos. Abrigos de terra improvisados e tendas de pele brotavam ao acaso por toda parte, como feridas de varíola na face na terra. Observou montes desordenados de feno, sentiu o cheiro de cabras e ovelhas, cavalos e porcos, cães em grande profusão. Fiapos de fumaça escura erguiam-se de um milhar de fogueiras de cozinha. Isso não é mais um exército do que é uma vila. E um monte de gente que se juntou. Do outro lado do grande lago, um dos montes se mexeu. Observou-o com mais atenção e viu que não era terra, mas uma coisa viva, um animal hirsuto e pesado, com uma serpente no lugar do nariz e presas maiores do que as do maior javali que alguma vez já viveu. E a coisa que o montava era também enorme, com uma silhueta errada, larga demais nas pernas e ancas para ser um homem. Então, uma súbita rajada de vento frio fez com que seu pelo se eriçasse, e o ar vibrou com o som de asas. Ao levantar os olhos para a montanha branca como gelo, uma sombra precipitou-se do céu. Um grito estridente cortou o ar. Vislumbrou pontas de asas azul-acinzentadas muito abertas, escondendo o sol... - Fantasma! - Jon gritou, sentando-se. Ainda sentia as garras, a dor. - Fantasma, aqui! Ebben apareceu, agarrou-o, e o sacudiu. - Silêncio! Quer fazer com que os selvagens caiam sobre nós? O que acontece contigo, rapaz? - Um sonho - disse Jon com uma voz débil. - Eu era o Fantasma, estava na borda de uma montanha olhando para baixo, para um rio congelado, e alguma coisa me atacou. Uma ave... uma águia, acho... O Escudeiro Dalbridge sorriu: - Nos meus sonhos são sempre mulheres bonitas. Gostaria de sonhar mais vezes. Qhorin aproximou-se: - Falou de um rio gelado? - O Guadeleite nasce num grande lago no sopé de um glaciar - informou Cobra das Pedras. - Havia uma árvore com o rosto do meu irmão. Os selvagens... eram milhares, mais do que eu pensava que pudesse existir. E gigantes montados em mamutes - julgando pelo modo como a luz havia mudado, Jon calculou ter dormido quatro ou cinco horas. Doíam sua cabeça e sua nuca, onde as garras tinham queimado o interior da carne. Mas isso foi no sonho. - Conte-me tudo aquilo de que se lembrar, do início ao fim - Qhorin Meia-Mão pediu. Jon ficou confuso. - Foi só um sonho. - Um sonho de lobo - disse Meia-Mão. - Craster disse ao Senhor Comandante que os selvagens estavam se reunindo na nascente do Guadeleite, Pode ser por isso que teve esse sonho. Ou pode ser que tenha visto aquilo que nos espera, algumas horas mais à frente. Conte. Jon sentiu-se meio tolo por falar daquelas coisas a Qhorin e aos outros patrulheiros, mas fez o que lhe era ordenado. No entanto, nenhum dos irmãos negros riu dele. Quando acabou, até o Escudeiro Dalbridge tinha perdido o sorriso. 495 - Troca-peles? - sugeriu Ebben em tom sombrio, olhando para Meia-Mão. Está falando da águia?, Jon perguntou a si mesmo. Ou de mim? O lugar dos troca-peles e wargs eram as histórias da Velha Ama, não o mundo onde tinha vivido toda a vida. Mas ali, naquela estranha e erma região de rocha e gelo, não era difícil acreditar. - Os ventos frios estão se levantando. Era o que Mormont temia. Benjen Stark também sentia isso. Os mortos caminham e as árvores voltaram a ter olhos. Por que deveríamos descrer de wargs e gigantes? - Isso quer dizer que os meus sonhos também são reais? - perguntou o Escudeiro Dalbridge. - Lorde Snow pode ficar com os seus mamutes, eu quero as minhas mulheres. - Servi na Patrulha quando homem e rapaz, e fui tão longe em patrulha como qualquer outro - Ebben voltou a falar. - Vi os ossos de gigantes, e ouvi muitas histórias estranhas, mas nada mais. Quero vê-los com meus próprios olhos. - Tome cuidado para que não o vejam, Ebben - Cobra das Pedras alertou-o. Fantasma não retornou antes de voltarem a se pôr em marcha. Nessa altura, as sombras já cobriam o fundo do passo, e o sol afundava-se rapidamente na direção dos recortados picos gêmeos da enorme montanha que os patrulheiros chamavam de Ponta de Forquilha. Se o sonho tiver sido real... Até a idéia assustava Jon. Seria possível que a águia tivesse machucado Fantasma? Poderia tê-lo atirado ao precipício? E o represeiro com o semblante do irmão, que tinha cheiro de morte e escuridão? O último raio de sol desapareceu atrás dos picos da Ponta de Forquilha. O ocaso encheu o Passo dos Guinchos. Pareceu ficar mais frio quase de imediato. Já não subiam. Na verdade, o terreno começava a descer, ainda que por enquanto não muito. Estava repleto de fendas, pedregulhos e pilhas de pedra caída. Em breve ficará escuro, e ainda não há sinal do Fantasma. Aquilo estava acabando com Jon, mas não se atrevia a gritar pelo lobo gigante como gostaria de fazer. Outras coisas também podiam estar à escuta. - Qhorin - chamou o Escudeiro Dalbridge em voz baixa. - Ali. Olha. A águia estava empoleirada num espinhaço de rocha muito acima deles, delineada contra o céu que escurecia. Vimos outras águias, Jon pensou. Aquela não precisa ser a que vi em meu sonho. Mesmo assim, Ebben queria atirar uma flecha nela, mas o escudeiro o impediu. - A ave está muito além do alcance do arco. - Não gosto de vê-la nos observando. O escudeiro encolheu os ombros. - Nem eu, mas você não vai impedi-la. Só vai desperdiçar uma boa flecha. Qhorin ficou parado, estudando a águia durante muito tempo. - Avançamos - ele disse por fim. Os patrulheiros reataram a descida. Fantasma, Jon quis gritar, cadê você? Preparava-se para seguir Qhorin e os outros quando vislumbrou um relâmpago branco entre dois pedregulhos. Um montículo de neve velha, pensou, até que a viu agitar-se. Saltou do cavalo na hora. No momento em que se ajoelhou, Fantasma levantou a cabeça. Seu pescoço cintilava, úmido, mas não soltou um som quando Jon tirou uma luva e o tocou. As garras tinham aberto um caminho sangrento através de pelo e carne, mas a ave não tinha sido capaz de quebrar seu pescoço, Qhorin Meia-Mão estava em pé junto a ele. - Como é que ele está? Como que em resposta, Fantasma levantou-se com dificuldade. 496 - O lobo é forte - o patrulheiro observou. - Ebben, água. Cobra das Pedras, o seu odre de vinho. Mantenha-o imóvel, Jon. Juntos, lavaram o sangue coagulado do pelo do lobo gigante. Fantasma sacudiu-se e mostrou os dentes quando Qhorin despejou o vinho nos irregulares ferimentos vermelhos que os golpes da águia lhe deixara, mas Jon o envolveu nos braços e murmurou palavras para acalmá-lo, e rapidamente o lobo sossegou. Quando rasgaram um pedaço do manto de Jon para cobrir suas feridas, a escuridão caíra por completo. Só uma poeira de estrelas permitia distinguir o negro do céu do negro da rocha. - Prosseguimos? - quis saber Cobra das Pedras. Qhorin dirigiu-se ao garrano. - Adiante não, para trás. - Para trás? - Jon foi pego de surpresa. - As águias têm olhos mais penetrantes do que os homens. Fomos vistos. Portanto, agora fugimos - Meia-Mão enrolou um longo cachecol negro em volta da cabeça e saltou para a sela. Os outros patrulheiros trocaram olhares, mas nenhum dos homens pensou em discutir. Um por um, todos montaram e viraram as montarias para casa. - Fantasma, vem - chamou Jon, e o lobo gigante o seguiu, uma sombra clara deslocando-se pela noite. Avançaram por toda a noite, tateando o caminho ao longo do passo retorcido e através das extensões de solo rachado. O vento foi se tornando mais forte. Por vezes, ficava tão escuro que desmontavam e seguiam a pé, cada um levando seu garrano pelas rédeas. Uma vez, Ebben sugeriu que algumas tochas poderiam servi-los bem, mas Qhorin disse: "Nada de fogo", e foi o fim da conversa. Chegaram à ponte de pedra do cume, e recomeçaram a descer. No meio das trevas, um gato-das-sombras gritou de fúria, com a voz reverberando nas pedras, fazendo parecer que uma dúzia de outros gatos estavam respondendo. Uma vez, Jon pensou ter visto um par de olhos cintilantes numa saliência acima dele, grandes como a lua cheia de Outono. Na hora negra que antecedia a alvorada, pararam para deixar que os cavalos bebessem, e os alimentaram com um punhado de aveia e um maço ou dois de feno. - Não estamos longe do local onde os selvagens morreram - Qhorin avisou. - Daqui, um homem poderia conter uma centena. O homem certo - e olhou para o Escudeiro Dalbridge. O escudeiro inclinou a cabeça: - Deixem-me todas as flechas de que possam dispor, irmãos - ele tocou no arco. - E deem uma maçã ao meu garrano quando chegar em casa. Ele merece, pobre animal. Ele vai ficar para morrer, Jon compreendeu. Qhorin apertou o antebraço do escudeiro com uma mão enluvada. - Se a águia descer para vê-lo melhor... - ... vai ganhar algumas penas novas.
    A última coisa que Jon viu do Escudeiro Dalbridge foram suas costas enquanto ele escalava o estreito caminho que levava às alturas. Quando a aurora veio, Jon olhou para um céu sem nuvens e viu um ponto em movimento através do azul. Ebben também o viu, e praguejou, mas Qhorin disse-lhe para ficar calado. - Escute. Jon prendeu a respiração e ouviu. Longe e atrás deles, o chamado de um berrante ecoou nas montanhas. - E agora eles vêm - Qhorin concluiu. 497 Tiryon Pod vestiu-o para a provação numa túnica de veludo molhado no carmesim dos Lannister e trouxe-lhe o colar de seu cargo. Tyrion deixou-o na mesa de cabeceira. A irmã não apreciava ser lembrada de que ele era a Mão do Rei, e ele não desejava inflamar ainda mais a relação entre ambos. Varys alcançou-o enquanto atravessava o pátio. - Senhor - disse o eunuco, um pouco ofegante. - E melhor que leia isto imediatamente - estendeulhe um pergaminho na sua suave mão branca. - Um relatório vindo do norte. - Boas ou más notícias? - Tyrion perguntou. - Não me compete julgar isso. Tyrion desenrolou o pergaminho. Teve de semicerrar os olhos para ler as palavras no pátio iluminado por archotes. - Que os deuses sejam bons - disse em voz baixa. - Os dois? - Temo que sim, senhor. É tão triste. Tão dolorosamente triste. E eles tão novos e inocentes. Tyrion recordou-se de como os lobos uivaram quando o garoto Stark caíra. Pergunto-me se estarão uivando agora. - Informou mais alguém? - Tyrion quis saber. - Ainda não, embora seja claro que eu tenha de fazer isso. Tyrion enrolou a carta. - Eu contarei a minha irmã - queria ver como ela receberia a notícia. Queria muito ver isso. A rainha estava especialmente bela naquela noite. Usava um vestido decotado de veludo, num tom profundo de verde que realçava a cor de seus olhos. Seus cabelos dourados caíam sobre seus ombros nus, e em volta da cintura usava um cinto trançado incrustado de esmeraldas. Tyrion esperou até ela ter se sentado e se servido de uma taça de vinho antes de pôr a carta em sua frente. Não disse uma palavra. Cersei olhou para ele, piscando de forma inocente, e tirou o pergaminho de sua mão. - Suponho que esteja satisfeita - ele disse enquanto a irmã lia. - Creio que queria o garoto Stark morto. Cersei fez uma expressão amargurada. - Foi Jaime quem o atirou daquela janela, não eu. Por amor, ele disse, como se isso me agradasse. Foi uma burrice, e perigosa, mas quando foi que seu querido irmão alguma vez parou para pensar? - O garoto os viu - Tyrion retrucou. - Era uma criança. Podia tê-lo levado ao silêncio assustando-o - ela olhou pensativa para a carta. - Por que tenho de agüentar acusações sempre que um Stark dá uma topada com o dedão do pé? Isso foi trabalho do Greyjoy, não tive nada a ver com o assunto. 498 - Esperemos que a Senhora Catelyn acredite nisso. Os olhos dela abriram-se mais. - Ela não... - ... mataria Jaime? Por que não? O que você faria se Joffrey e Tommen fossem assassinados? - Eu ainda tenho Sansa! - a rainha declarou. - Nós ainda temos Sansa - corrigiu-a Tyrion, - E é bom que a tratemos bem. Bom, e onde está esse jantar que me prometeu, querida irmã? A mesa de Cersei era saborosa, isso não podia ser negado. Começaram com uma sopa cremosa de castanhas, pão quente e crocante e verduras com maçãs e pinhões. Depois, veio uma torta de lampreia, pernil de porco com mel, cenouras amanteigadas, feijão branco com bacon, e cisne assado recheado de cogumelos e ostras. Tyrion foi extremamente cortês; ofereceu à irmã os melhores pedaços de todos os pratos, e assegurou-se de só comer o que ela comia. Não que realmente pensasse que ela o envenenaria, mas ser cuidadoso nunca fizera mal a ninguém. Tyrion podia ver que as notícias sobre os Stark tinham azedado Cersei. - Não tivemos notícias de Ponteamarga? - ela perguntou, ansiosa, enquanto espetava um pouco de maçã com a ponta do punhal e comia em pequenas e delicadas mordidas. - Nenhuma. - Nunca confiei no Mindinho. Por moedas suficientes, passará para o lado de Stannis num piscar de olhos, - Stannis Baratheon é honrado demais para comprar homens, Nem seria um senhor confortável para alguém como Petyr. Essa guerra criou alguns estranhos companheiros de cama, concordo, mas aqueles dois? Não. Enquanto ele cortava algumas fatias do pernil, Cersei disse: - Temos de agradecer o porco à Senhora Tanda. - Um sinal de amor? - Um suborno. Suplica autorização para voltar ao seu castelo. Quer a sua, e a minha. Suspeito que tema que você a prenda na estrada, como fez com Lorde Gyles. - Será que planeja partir na companhia do herdeiro do trono? - Tyrion serviu à irmã uma fatia de pernil e serviu-se de outra, - Preferia que ela ficasse. Se quiser se sentir segura, diga-lhe que traga a guarnição de Stokeworth. Tantos homens quantos tiver. - Se precisamos tanto assim de homens, por que mandou seus selvagens embora? - uma certa irritação insinuou-se na voz de Cersei. - Foi o melhor uso que podia lhes dar - Tyrion respondeu com sinceridade. - São guerreiros ferozes, mas não são soldados. Em batalha formal, a disciplina é mais importante do que a coragem. Já nos beneficiaram mais na mata do rei do que o teriam feito nas muralhas da cidade. Enquanto o cisne era servido, a rainha o interrogou a respeito da conspiração dos Homens Chifrudos. Parecia mais irritada do que temerosa. - Por que temos de ser atormentados com tantas traições? Que mal a Casa Lannister fez a esses desgraçados? - Nenhum, mas julgam estar do lado vencedor... O que faz com que sejam tão burros quanto traidores. - Tem certeza de que encontrou todos? - Varys diz que sim - o cisne estava temperado demais para o seu gosto. Uma linha surgiu na pálida testa branca de Cersei, entre aqueles adoráveis olhos. - Deposita confiança em excesso nesse eunuco. 499 - Ele serve-me bem. - Pelo menos é o que quer levá-lo a crer. Acha que é o único a quem ele murmura segredos? Dá a todos nós o bastante para nos convencer de que ficaríamos impotentes sem ele. Jogou o mesmo jogo comigo, logo depois de me casar com Robert. Durante anos estive convencida de que não tinha melhor amigo na corte, mas agora... - estudou seu rosto por um momento. - Ele diz que você pretende afastar Cão de Caça de Joffrey. Maldito Varys. - Preciso de Clegane para tarefas mais importantes. - Nada é mais importante do que a vida do rei. - A vida do rei não corre perigo. Joff terá o bravo Sor Osmund guardando-o, e também Meryn Trant - não prestam para mais nada. - Preciso de Balon Swann e do Cão de Caça para liderar surtidas, a fim de nos assegurarmos de que Stannis não obtenha um palmo de terra deste lado da Água Negra. - Jaime lideraria as surtidas em pessoa. - A partir de Correrrio? Isso seria uma surtida e tanto. - Joff é só um garoto. - Um garoto que quer participar dessa batalha, e por uma vez mostra algum bom-senso. Não pretendo colocá-lo no centro da luta, mas ele precisa ser visto. Os homens lutam com mais vigor por um rei que partilha de seus perigos do que por um que se esconde atrás das saias da mãe. - Ele tem treze anos, Tyrion. - Lembra-se de Jaime com treze anos? Se quer que o rapaz seja filho de seu pai, deixe-o desempenhar o papel. Joff usa a melhor armadura que o ouro pode comprar, e terá uma dúzia de mantos dourados à sua volta a qualquer momento. Se parecer que a cidade tem o menor perigo de cair, mandarei escoltá-lo imediatamente para a Fortaleza Vermelha. Pensara que aquilo a sossegaria, mas não encontrou sinal de prazer naqueles olhos verdes. - A cidade irá cair? - Não - mas, se cair, reze para que consigamos defender a Fortaleza Vermelha durante tempo suficiente para que o senhor nosso pai marche em nosso auxílio. - Já mentiu para mim antes, Tyrion.
    - Sempre por bons motivos, querida irmã. Desejo tanto quanto você a amizade entre nós. Decidi libertar Lorde Gyles - mantivera Gyles a salvo precisamente para aquele gesto. - Pode ter também de volta Sor Boros Blount. A boca da rainha apertou-se. - Sor Boros pode apodrecer em Rosby, mas Tommen... - ... fica onde está. Ele está mais seguro sob a proteção de Lorde Jacelyn do que jamais estaria com Lorde Gyles, Criados levaram o cisne, quase intocado. Cersei pediu os doces com um gesto. - Espero que goste de torta de amoras pretas. - Gosto de todos os tipos de torta. - Ah, sei disso há muito tempo. Sabe por que é que Varys é tão perigoso? - Agora é um jogo de adivinhas? Não. - Não tem pau. - Nem você - e não odeia esse fato, Cersei? - Talvez também seja perigosa. Você, por outro lado, é um idiota tão grande como qualquer outro homem. Esse verme tem entre as pernas metade de suas idéias. SOO Tyrion lambeu as migalhas dos dedos. Não gostava do sorriso da irmã. - Sim, e agora mesmo meu verme está pensando que talvez seja hora de me retirar. - Não está bem, irmão? - ela se inclinou para a frente, oferecendo-lhe uma boa visão da parte de cima dos seios. - De repente parece um pouco agitado. - Agitado? - Tyrion olhou de relance para a porta. Pensou ter ouvido qualquer coisa lá fora. Começava a se arrepender de ter vindo sozinho. - Nunca tinha mostrado grande interesse pelo meu pau. - Não é tanto o seu pau que me interessa, é mais aquilo em que o enfia, Não dependo do eunuco para tudo, como você. Tenho as minhas próprias formas de saber das coisas,., Especialmente de coisas que as pessoas não querem que eu saiba. - O que está tentando dizer? - Só isto... tenho a sua putinha. Tyrion estendeu a mão para a taça de vinho, ganhando um momento para reunir os pensamentos. - Achava que os homens eram mais do seu gosto. - É um tipinho tão engraçado. Diga, já se casou com esta? - quando o irmão não lhe deu resposta, ela riu e disse: - O pai ficará muito aliviado. Sentia a barriga como se estivesse cheia de enguias. Como ela teria encontrado Shae? Teria sido traído por Varys? Ou teriam todas as suas precauções sido desfeitas pela impaciência na noite em que havia cavalgado diretamente até a mansão? - Por que você se importaria com quem eu escolho para aquecer minha cama? - Um Lannister paga sempre as suas dívidas. Tem andado conspirando contra mim desde o dia em que chegou a Porto Real. Vendeu Myrcella, raptou Tommen, e agora planeja a morte de Joff. Quer vê-lo morto para poder governar através de Tommen. Bem, não posso dizer que a idéia não seja tentadora. - Isso é uma loucura, Cersei. Stannis estará aqui dentro de dias. Precisa de mim. - Para quê? O seu grande heroísmo em batalha? - Os mercenários de Bronn nunca lutarão sem mim - ele mentiu. - Ah, eu acho que lutarão. É o ouro que amam, não a sua esperteza de duende. Mas não tenha medo, eles não estarão sem você. Não direi que não pensei por diversas vezes em cortar sua garganta, mas Jaime nunca me perdoaria se fizesse isso. - E a rameira? - não queria tratá-la pelo nome. Se conseguir convencê-la de que Shae não significa nada para mim, talvez... - Será tratada com bastante gentileza, desde que nenhum mal aconteça aos meus filhos. Mas se Joff for morto, ou se Tommen cair nas mãos de nossos inimigos, sua putinha morrerá mais dolorosamente do que é capaz de imaginar. Ela realmente acredita que pretendo matar meu próprio sobrinho. - Os garotos estão em segurança - garantiu-lhe com uma voz cansada. - Pela bondade dos deuses, Cersei, eles pertencem ao meu próprio sangue! Por que tipo de homem me toma? - Por um pequeno e pervertido. Tyrion fitou as borras no fundo de sua taça de vinho. O que Jaime faria em meu lugar? Mataria a vaca, provavelmente, e se preocuparia depois com as conseqüências. Mas Tyrion não possuía espada dourada, nem a habilidade para manejá-la. Adorava a ira temerária do irmão, mas era o senhor seu pai que devia tentar usar como modelo. Pedra, devo ser pedra, devo ser um Rochedo Casterly, duro e inabalável. Se falhar nesse teste, é melhor procurar o circo de aberrações mais próximo. 501 - Pelo que sei, pode perfeitamente já tê-la matado. - Gostaria de vê-la? Pensei que sim - Cersei atravessou a sala e escancarou a pesada porta de carvalho. - Traga a vadia do meu irmão. Os irmãos de Sor Osmund, Osney e Osfryd, eram o retrato perfeito um do outro, homens altos, com nariz adunco, cabelos escuros e sorriso cruel. Ela pendia entre eles, de olhos muito abertos e brancos em seu rosto escuro. Escorria sangue de seu lábio aberto, e Tyrion conseguia ver hematomas através das roupas rasgadas. Suas mãos estavam atadas com cordas, e tinham-na amordaçado para que não falasse. - Disse que não seria machucada. - Ela lutou - ao contrário dos irmãos, Osney Kettleblack estava perfeitamente barbeado, e viam-se bem os arranhões no rosto despido de pelos. - Esta aqui tem garras como as de um gato-das-sombras. - Os hematomas somem - Cersei disse num tom entediado. - A vadia sobreviverá. Desde que Joff sobreviva. Tyrion quis rir dela. Teria sido tão bom, tão, mas tão bom, mas isso significaria entregar o jogo. Perdeu, Cersei, e os Kettleblack são idiotas ainda maiores do que Bronn dizia. Só precisava dizer as palavras. Em vez disso, olhou para a garota e disse: - Jura que a libertará depois da batalha? - Se libertar Tommen, sim. Tyrion ficou de pé: - Então fique com ela, mas mantenha-a em segurança. Se esses animais julgam que podem usá-la... Bem, querida irmã, deixe-me só reforçar que uma balança pende para os dois lados seu tom de voz era calmo, monocórdio, indiferente; tinha procurado a voz do pai, e a encontrou. - O que quer que lhe aconteça acontecerá também a Tommen, e isso inclui espancamentos e violações - se me considera tão monstruoso, desempenharei o papel para ela. Cersei não esperava aquilo: - Não se atreveria. Tyrion obrigou-se a sorrir, um sorriso lento e frio. Verde e negro, seus olhos riram dela. - Atrever? Vou fazê-lo em pessoa. A mão da irmã avançou sobre seu rosto, mas ele pegou seu pulso e o torceu, até ela gritar, Osfryd moveu-se em seu auxílio. - Mais um passo e quebro o braço dela - o anão o preveniu. O homem parou. - Lembra-se de quando lhe disse que não voltaria a me bater, Cersei? - atirou-a ao chão e virou-se para os Kettleblack: - Desamarrem-na, e tirem essa mordaça. A corda estava'tão apertada que tinha impedido seu sangue de chegar às mãos. A moça gritou de dor quando a circulação voltou. Tyrion massageou seus dedos suavemente até a sensibilidade voltar. - Querida - disse - , precisa ter coragem. Lamento que a tenham machucado. - Eu sei que me libertará, senhor. - Libertarei - ele prometeu, e Alayaya dobrou-se e lhe deu um beijo na testa. Seus lábios feridos deixaram uma mancha de sangue onde o tocaram. Um beijo ensangüentado é mais do que eu mereço, pensou Tyrion. Ela nunca teria sofrido se não fosse por minha causa. O sangue dela ainda o manchava quando olhou para a rainha. 502 - Nunca gostei de você, Cersei, mas era minha irmã, e nunca lhe fiz nenhum mal. Você acabou com isso. Vou feri-la por causa disto. Ainda não sei como, mas dê-me tempo. Chegará um dia em que você vai se achar a salvo e feliz, e de repente a alegria vai se transformar em cinzas na sua boca, e saberá que a dívida está paga. Na guerra, dissera-lhe o pai um dia, a batalha acaba no instante em que um exército cede e foge. Não importa que continuem a ser tão numerosos como eram no momento anterior, ainda com armas e armaduras; uma vez que fugiram à nossa frente, não retornarão para lutar. Aconteceu o mesmo com Cersei. - Sai! - foi toda a resposta que conseguiu encontrar. - Sai da minha vista! Tyrion fez uma reverência: - Então, boa noite, E tenha sonhos agradáveis. Dirigiu-se à Torre da Mão com mil pés de aço marchando através do seu crânio. Devia ter previsto isso da primeira vez em que me enfiei pela parte de trás do guarda-roupa de Chataya. Talvez não tivesse querido ver. Suas pernas doíam fortemente no fim da subida. Mandou Pod buscar um jarro de vinho e abriu caminho até o quarto. Shae estava sentada de pernas cruzadas na cama de dossel, vestida apenas com o pesado colar de ouro que se encurvava em volta de seus seios: uma corrente de mãos de ouro interligadas, cada uma agarrando a seguinte. Tyrion não a esperava: - O que está fazendo aqui? Rindo, ela afagou o colar. - Quis sentir mãos em meus peitinhos... Mas essas pequeninas mãos de ouro são frias. Por um momento Tyrion não soube o que dizer. Como podia lhe dizer que outra mulher recebera o espancamento que lhe era destinado, e bem podia morrer no seu lugar caso algum infortúnio de batalha caísse sobre Joffrey? Limpou o sangue de Alayaya da testa com a parte inferior da mão. - A Senhora Lollys... - Está dormindo. Dormir é tudo o que quer fazer, a grande vaca. Dorme e come. Às vezes adormece enquanto está comendo. A comida cai para dentro de sua manta e ela rola em cima, e tenho de limpá-la - fez uma cara enojada. - Tudo o que fizeram foi jodê-la. - A mãe diz que está doente. - Tem um bebê na barriga, é só isso. Tyrion olhou em volta. Tudo parecia estar como tinha deixado. - Como foi que entrou? Mostre-me a porta escondida. Ela encolheu os ombros: - Lorde Varys obrigou-me a usar um capuz. Não vi nada, a não ser... houve um lugar, consegui espiar o chão pela parte de baixo do capuz. Era todo de pedrinhas, sabe, daquelas que fazem um desenho? - Um mosaico? Shae anuiu: - Eram coloridas em vermelho e preto. Acho que a imagem era um dragão. Fora isso, estava tudo escuro. Descemos uma escada e andamos muito, até me deixar toda desorientada. Uma vez paramos para ele destrancar um portão de ferro. Raspei contra ele quando atravessamos. O dragão estava depois do portão. Depois, subimos outra escada, com um túnel no topo. Tive de me abaixar, e acho que Lorde Varys estava rastejando. 503 Tyrion fez uma ronda pelo quarto. Uma das arandelas parecia solta. Ficou nas pontas dos pés e tentou virá-la. Rodou lentamente, raspando contra a parede de pedra. Quando ficou de ponta-cabeça, o coto da vela caiu. As esteiras espalhadas pelo chão frio de pedra não pareciam mostrar nenhuma perturbação especial. - O senhor não quer se deitar comigo? - Shae perguntou. - Dentro de um momento - Tyrion escancarou o guarda-roupa, afastou as roupas e empurrou o painel do fundo. O que funcionava num bordel podia também funcionar num castelo... Mas não, a madeira era sólida e não cedia. Uma pedra junto ao banco da janela atraiu seu olhar, mas todos os seus empurrões e pancadas de nada serviram. Voltou para a cama frustrado e aborrecido. Shae desapertou seus cordões e atirou os braços em torno de seu pescoço. - Seus ombros estão duros como pedras - murmurou. - Depressa, quero senti-lo dentro de mim - mas quando as pernas dela se apertaram em volta de sua cintura, a virilidade o abandonou. Quando o sentiu amolecendo, Shae enfiou-se nos lençóis e colocou-o na boca, mas nem mesmo isso conseguiu despertá-lo. Após alguns momentos, ele fez Shae parar. - O que foi? - ela perguntou. Toda a doce inocência do mundo estava escrita ali, nas feições de seu jovem rosto. Inocência? Idiota, ela í uma prostituta, Cersei tinha razão, você pensa com o pau, idiota, idiota. - Vá dormir, querida - Tyrion disse, afagando seu cabelo. Mas muito depois de Shae ter seguido seu conselho, ele ainda estava acordado, com os dedos em taça em volta de um pequeno seio enquanto escutava o som de sua respiração. 504 Catelyn OGrande Salão de Correrrio era um lugar solitário para duas pessoas se sentarem para jantar.
    Profundas sombras decoravam as paredes. Um dos archotes tinha se apagado, deixando apenas três. Catelyn fitava sua taça de vinho. A safra tinha gosto aguado e amargo. Brienne estava sentada na sua frente. Entre ambas, o cadeirão do pai encontrava-se tão vazio como o resto do salão. Até os criados tinham desaparecido. Ela lhes tinha dado licença para se juntarem à celebração. As paredes da fortaleza eram espessas, mas mesmo assim conseguiam ouvir os sons abafados dos festejos vindos do pátio lá fora. Sor Desmond tinha trazido vinte barris da adega, e o povo celebrava o iminente regresso de Edmure e a conquista do Despenhadeiro por Robb, erguendo cornos de cerveja escura. Não posso censurá-los, pensou Catelyn. Eles não sabem. E, se soubessem, por que haveriam de se importar? Nunca conheceram meus filhos. Nunca viram Bran escalando, com o coração na boca, orgulho e terror tão misturados que pareciam um só sentimento, nunca o ouviram rir, nunca sorriram ao ver Rickon tentar com toda a força ser como os irmãos mais velhos. Fitou o jantar que tinha diante de si: truta enrolada em bacon, salada de nabo, funcho vermelho e capim-doce, ervilhas, cebolas e pão quente. Brienne comia metodicamente, como se o jantar fosse outra tarefa a cumprir. Tornei-me uma mulher amarga, Catelyn pensou. Não retiro nenhuma satisfação da comida ou da bebida, e as canções e 05 risos transformaram-se em estranhos que são suspeitos para mim. Sou uma criatura de dor, pó e amargas saudades. Há um vazio dentro de mim onde um dia tive o coração. O ruído que a outra mulher fazia ao comer tinha se tornado intolerável para ela. - Brienne, não sou uma boa companhia. Vá se juntar aos festejos, se quiser. Beba um corno de cerveja e dance ao som da harpa de Rymund. - Não fui feita para festejos, senhora - as grandes mãos da jovem partiram um naco de pão preto, Brienne encarou os pedaços como se tivesse se esquecido do que eram. - Se ordenar, eu... Catelyn conseguia sentir seu desconforto. - Só pensei que poderia apreciar uma companhia mais feliz do que a minha. - Estou bastante satisfeita - a garota usou o pão para recolher um pouco da gordura do bacon em que a truta tinha sido frita. - Chegou outra ave hoje de manhã - Catelyn não sabia por que tinha dito aquilo, - O meistre acordou-me imediatamente. Foi um ato cumpridor, mas não gentil. Não foi nada gentil - não quisera contar a Brienne. Ninguém sabia além dela e de Meistre Vyman, e tinha a intenção de manter as coisas assim até... até... 505 Até o quê? Mulher tola, será que guardar um segredo no coração o torna menos verdadeiro? Se nunca contar, nunca falar dele, vai se tornar apenas um sonho, menos do que um sonho, um pesadelo parcialmente recordado? Ah, se ao menos os deuses pudessem ser bons assim. - São notícias de Porto Real? - Brienne perguntou. - Bem gostaria que fossem. A ave veio do Castelo Cerwyn, de Sor Rodrik, meu castelão asas escuras, palavras escuras. - Reuniu o poderio que pôde e vai marchar contra Winterfell, a fim de retomar o castelo - como tudo aquilo parecia pouco importante. - Mas disse... escreveu... contou-me, ele... - Senhora, o que é? São notícias de seus filhos? Aquela era uma pergunta tão simples; que bom seria se a resposta pudesse ser igualmente simples. Quando Catelyn tentou falar, as palavras ficaram presas em sua garganta. - Não tenho nenhum filho, a não ser Robb - conseguiu proferir aquelas palavras terríveis sem um soluço, e pelo menos por isso sentiu-se contente. Brienne olhou-a com horror. - Senhora? - Bran e Rickon tentaram escapar, mas foram capturados num moinho na Água de Bolotas. Theon Greyjoy pendurou a cabeça deles nas muralhas de Winterfell. Theon Greyjoy, que comeu à minha mesa desde que era um garoto de dez anos - já disse, que os deuses me perdoem, já disse tudo, e transformei-o em verdade. O rosto de Brienne era um borrão de água. A moça estendeu a mão por sobre a mesa, mas seus dedos não chegaram aos de Catelyn, como se julgasse que o toque não seria bem-vindo. - Eu... não há palavras, senhora. Minha boa senhora. Seus filhos, eles... eles estão agora com os deuses. - Será que estão? - Catelyn questionou com voz cortante. - Que deus deixaria que isso acontecesse? Rickon era só um bebê. Como poderia merecer uma morte assim? E Bran... Quando abandonei o norte, ele ainda não tinha aberto os olhos desde a queda. Tive de partir antes de ele acordar. Agora não poderei voltar para ele, ou voltar a ouvi-lo rir - mostrou a Brienne as palmas das mãos, os dedos. - Estas cicatrizes... Mandaram um homem cortar a garganta de Bran enquanto dormia. Teria morrido naquele momento, e eu com ele, mas o lobo de Bran rasgou a garganta do homem - aquilo deu-lhe um momento de pausa. - Suponho que Theon também tenha matado os lobos. Deve ter matado, de outro modo... Eu tinha certeza de que os garotos estariam a salvo enquanto os lobos gigantes estivessem com eles. Como Robb, com seu Vento Cinzento. Mas minhas filhas agora não têm lobos. A mudança abrupta de assunto deixou Brienne desconcertada. - Suas filhas... - Sansa, com três anos, já era uma senhora, sempre cortês e ansiosa por agradar. Nada amava mais do que histórias sobre valentes cavaleiros. Os homens diziam que se parecia comigo, mas vê-se que quando crescer se tornará uma mulher muito mais bela do que eu alguma vez fui. Eu freqüentemente fazia sua aia se retirar para poder escovar seus cabelos. Tinha cabelos ruivos, mais claros do que os meus, e tão espessos e suaves... o vermelho neles capturava a luz das tochas e brilhava como cobre. E Arya, bem... Os visitantes de Ned confundiam-na com freqüência com um ajudante de estrebaria se chegassem ao pátio sem ser anunciados. Arya era uma provação, há que dizê-lo. Meio garoto, meio cria de lobo. Bastava proibir-lhe alguma coisa, e isso tornava-se logo o maior desejo de seu coração. Possuía a face longa de Ned, e um cabelo castanho que andava sempre como se um pássaro tivesse nele feito um ninho. Dessisti de tentar fazer dela uma 506 senhora. Colecionava machucados como as outras meninas colecionam bonecas, e era capaz de dizer qualquer coisa que lhe viesse à cabeça. Acho que também deve estar morta - quando proferiu aquelas palavras, foi como se uma mão gigantesca apertasse seu peito. - Quero-os todos mortos, Brienne. Primeiro Theon Greyjoy, depois Jaime Lannister, Cersei e o Duende, todos, todos. Mas as minhas meninas... as minhas meninas vão... - A rainha... ela também tem uma garotinha - disse Brienne, embaraçada. - E também filhos, da mesma idade dos seus. Quando souber, talvez... talvez se apiede e... - Envie-me as filhas incólumes? - Catelyn deu um sorriso triste. - Há em você uma doce inocência, filha. Seria bom... Mas não acontecerá. Robb vingará os irmãos. O gelo pode matar tão bem como o fogo. Gelo era a espada de Ned. Aço valiriano, marcado com as ondulações de um milhar de dobras, tão afiado que eu tinha medo de tocar nela. A lâmina de Robb, comparada com Gelo, é embotada como uma clava. Temo que não vá ser fácil para ele cortar a cabeça de Theon. Os Stark não usam carrascos. Ned sempre disse que o homem que dita a sentença deve manejar a lâmina, embora nunca tenha obtido nenhum prazer desse dever, Mas eu obteria, ah, sim - fitou as mãos cobertas de cicatrizes, abriu-as e as fechou, e então ergueu lentamente os olhos. - Mandei-lhe vinho. - Vinho? - Brienne estava perdida. - A Robb? Ou... a Theon Greyjoy? - Ao Regicida - a manobra tinha lhe servido bem com Cleos Frey. Espero que tenha sede, Jaime. Espero que tenha a garganta seca e apertada, - Gostaria que viesse comigo. - Estou às suas ordens, senhora. - Ótimo - Catelyn levantou-se de forma abrupta. - Fique, termine a refeição em paz. Vou mandar buscá-la mais tarde. A meia-noite. - Tão tarde, senhora? - As masmorras não têm janelas. Lá embaixo uma hora é muito igual a outra, e para mim todas as horas são meia-noite - seus passos ressoaram de forma oca quando abandonou o salão. Enquanto subia até o aposento privado de Lorde Hoster, conseguia ouvi-los lá fora, gritando "Tully!" e"Uma taça! Uma taça para o bravo jovem senhor!". Meu pai não está morto, quis gritar-lhes. Meus filhos estão mortos, mas meu pai ainda vive, seus malditos, e ainda é o seu senhor. Lorde Hoster estava profundamente adormecido. - Bebeu uma taça de vinho de sonhos há não muito tempo, senhora - disse Meistre Vyman. - Para as dores. Não saberá que está aqui. - Não tem importância - Catelyn respondeu. Está mais morto do que vivo, mas mais vivo do que os meus pobres e filhos queridos. - Senhora, há alguma coisa que possa fazer pela senhora? Uma poção para dormir, talvez? - Obrigada, Meistre, mas não. Não irei afastar o pesar com o sono. Bran e Rickon merecem mais de mim. Vá e junte-se à festa, eu farei companhia ao meu pai por algum tempo. - Como quiser, senhora - Vyman fez uma reverência e a deixou. Lorde Hoster estava deitado de costas, com a boca aberta, a respiração transformada num tênue suspiro sibilante. Uma mão caía da borda do colchão, uma coisa pálida, frágil e descarnada, mas que estava morna quando Catelyn a tocou. Entrelaçou seus dedos nos dele e os fechou. Não importa a força com que o segure, não sou capaz de mantê-lo aqui, pensou tristemente. Largue-o. Mas os dedos não pareciam ser capazes de se abrir.
    - Não tenho ninguém com quem falar, pai - disse-lhe. - Rezo, mas os deuses não respondem - deu um leve beijo em sua mão. A pele estava morna, com veias azuis ramificando-se como rios sob a pele pálida e translúcida. Lá fora, os grandes rios fluíam, o Ramo Vermelho e o Pedregoso, e 507 fluiriam para sempre, mas não seria assim com os rios na mão do pai. Muito em breve aquela corrente pararia. - Na noite passada sonhei com aquele dia em que Lysa e eu nos perdemos quando voltávamos de Guardamar. Lembra? Aquele estranho nevoeiro chegou e nós nos afastamos do resto do grupo. Tudo estava cinza, e eu não conseguia ver um palmo à frente do focinho do cavalo. Perdemos a estrada. Os galhos das árvores eram como longos braços magros que se estendiam para nos agarrar quando passávamos por eles, Lysa começou a chorar, e quando eu gritei, o nevoeiro pareceu engolir o som. Mas Petyr sabia onde estávamos, voltou e nos encontrou... Mas agora não há ninguém que me encontre, não é? Dessa vez tenho de encontrar o nosso caminho, e é difícil, muito difícil. O lema dos Stark não sai da minha cabeça. O Inverno chegou, pai. Para mim. Para mim. Robb tem agora de lutar contra os Greyjoy e contra os Lannister. E para quêr Por um chapéu de ouro e uma cadeira de ferro? Certamente a terra já sangrou o suficiente. Quero as minhas meninas de volta, quero que Robb deponha a espada e escolha uma filha modesta de Walder Frey que o faça feliz e lhe dê filhos. Quero ter Bran e Rickon de volta, quero... - Catelyn deixou a cabeça pender. - Quero - disse uma vez mais, e então ficou sem palavras. Após algum tempo, a vela oscilou e se apagou. O luar inclinou-se por entre as ripas das venezianas, depositando barras pálidas e prateadas no rosto do pai. Conseguia ouvir o suave murmúrio de sua respiração laboriosa, o infindável correr das águas, os tênues acordes de uma canção de amor qualquer que vinham do pátio, tão tristes e doces. - Amei uma donzela ruiva como o Outono - cantava Rymund - com o pôr do sol nos cabelos, Catelyn não chegou a reparar no momento em que a cantoria havia terminado. Tinham se passado horas, mas pareceu apenas um momento antes que Brienne surgisse à porta. - Senhora - ela a chamou em voz baixa. - A meia-noite chegou. A meia-noite chegou, pai, pensou, e tenho de cumprir o meu dever. Largou sua mão. O carcereiro era um homenzinho furtivo com veias rompidas no nariz. Encontraram-no debruçado sobre uma caneca de cerveja e os restos de um empadão de pombo, mais do que um pouco bêbado. Olhou-as de esguelha, desconfiado. - Peço-lhe perdão, senhora, mas Lorde Edmure diz que ninguém deve visitar o Regicida sem um escrito dele, fechado com o selo. - Lorde Edmure? Será que meu pai morreu sem que ninguém tenha me dito nada? O carcereiro passou a língua pelos lábios. - Não, senhora, que eu saiba não. - Ou abre a cela ou vem comigo ao aposento privado de Lorde Hoster contar-lhe por que motivo achou adequado me desafiar. Os olhos do homem baixaram: - Como a senhora quiser - as chaves estavam acorrentadas ao cinto de couro com rebites que cingia sua cintura. Resmungou enquanto procurava, até encontrar aquela que servia na porta da cela do Regicida. - Volte para a sua cerveja, deixe-nos - ordenou Catelyn. Uma lâmpada de azeite pendia de um gancho, no teto baixo. Catelyn pegou-a e avivou a chama. - Brienne, certifique-se de que eu não seja incomodada. Anuindo com a cabeça, Brienne tomou posição à porta da cela, descansando a mão no botão do punho da espada. - A senhora chamará se precisar de mim. Catelyn abriu a pesada porta de madeira e ferro com o ombro e entrou na escuridão malcheirosa. Aquelas eram as tripas de Correrrio, e o cheiro correspondia à descrição. Palha velha 508 estalava sob os pés. As paredes estavam descoloridas por manchas de salitre. Por entre as pedras conseguia ouvir a tênue corrente do Pedregoso. A luz da lâmpada revelou um balde transbordando de fezes em um canto e uma forma amontoada em outro, O jarro de vinho encontrava-se junto da porta, intacto. Lá se vai a manobra. Suponho que deva me sentir grata por o carcereiro não ter bebido o vinho. Jaime ergueu as mãos para cobrir o rosto, fazendo tinir as correntes que prendiam seus pulsos. - Senhora Stark - disse, numa voz rouca pelo desuso. - Temo não me encontrar em condições de recebê-la. - Olhe para mim, sor.
    - A luz fere meus olhos. Um momento, por favor - Jaime Lannister não tivera permissão de usar uma navalha desde a noite em que fora capturado no Bosque dos Murmúrios, e uma barba hirsuta cobria seu rosto, antes tão semelhante ao da rainha. Cintilando, dourada, à luz da lâmpada, a barba fazia-o parecer um grande animal amarelo qualquer, magnífico, mesmo acorrentado. O cabelo por lavar caía sobre seus ombros em cordões e nós, as roupas apodreciam em seu corpo, o rosto estava pálido e desolado... E, mesmo assim, o poder e a beleza do homem ainda eram visíveis. - Vejo que não teve gosto pelo vinho que lhe enviei. - Uma generosidade súbita assim pareceu-me um pouco suspeita. - Posso mandar que cortem sua cabeça a qualquer momento. Por que motivo precisaria envenená-lo? - A morte pelo veneno pode parecer natural, É mais difícil defender que minha cabeça simplesmente caiu - lançou do chão um olhar de viés, com os olhos verdes como os de um gato acostumando-se lentamente à luz. - Convidaria a senhora a se sentar, mas seu irmão se esqueceu de me fornecer uma cadeira. - Posso ficar bastante bem em pé. - Pode? Devo dizer que está com um aspecto horrível. Embora talvez seja apenas a luz que há aqui - ele estava agrilhoado nos pulsos e nos tornozelos, com cada algema presa às outras por correntes, de forma que nem era capaz de ficar em pé nem de se deitar confortavelmente. As correntes dos tornozelos estavam presas à parede. - Minhas pulseiras são suficientemente pesadas para a senhora, ou veio acrescentar mais algumas? Eu as chocalho lindamente, se quiser. - Foi você quem provocou isto - lembrou-lhe. - Oferecemos o conforto de uma cela de torre adequada ao seu nascimento e posição. Pagou-nos tentando escapar. - Uma cela é uma cela. Há algumas sob Rochedo Casterly que fazem com que esta pareça um jardim ensolarado. Um dia talvez mostre-as à senhora. Se está intimidado, sabe esconder bem, Catelyn pensou. - Um homem acorrentado pelos pés e pelas mãos devia ter na boca uma língua mais cortês, sor. Não vim aqui para ser ameaçada. - Não? Então decerto que foi para obter prazer de mim? Dizem que as viúvas se cansam das suas camas vazias. Nós, na Guarda Real, juramos nunca casar, mas suponho que ainda poderia servi-la se for isso o que lhe faz falta. Sirva-nos um pouco daquele vinho e tire esse vestido, e veremos se estou em condições. Catelyn encarou-o com repugnância. Será que já houve algum dia homem mais belo e vil do que este? - Se dissesse isso ao alcance dos ouvidos do meu filho, ele o mataria. 509 - Só se eu estivesse usando estas coisas - Jaime fez as correntes que o prendiam chocalhar. - Ambos sabemos que o rapaz tem medo de me enfrentar em combate singular. - Meu filho pode ser novo, mas se o toma por um tolo, está tristemente enganado... E parece -me que não era tão rápido em lançar desafios quando ainda possuía um exército atrás de si. - Os antigos Reis do Inverno também se escondiam atrás das saias das mães? - Estou ficando farta disto, sor. Há coisas que tenho de saber. - Por que haveria de lhe dizer qualquer coisa? - Para salvar a sua vida. - Acha que temo a morte? - aquilo pareceu diverti-lo. - Deveria. Seus crimes devem lhe ter conquistado um lugar de sofrimento no mais profundo dos sete infernos, se os deuses forem justos, - Que deuses são esses, Senhora Catelyn? As árvores a que seu esposo rezava? Como foi que o serviram quando minha irmã cortou sua cabeça? - Jaime soltou um risinho. - Se existirem deuses, por que o mundo está tão cheio de dor e injustiça? - Por causa de homens como você. - Não há homens como eu. Só existo eu. Não há nada aqui além de arrogância e orgulho, e da coragem vazia de um louco. Estou desperdiçando fôlego com esse homem. Se alguma vez existiu uma centelha de honra nele, está morta há muito tempo. - Se não quer falar comigo, assim seja. Beba o vinho ou urine nele, sor, não faz diferença para mim. A mão dela já se encontrava sobre a maçaneta quando ele disse: - Senhora Catelyn - Catelyn voltou-se, esperou. - As coisas enferrujam nesta umidade. Até a cortesia de um homem. Fique, e conseguirá as suas respostas... Por um preço. Ele não tem vergonha.
    - Cativos não estabelecem preço. - Ah, irá achar o meu bastante modesto. Seu carcereiro não me diz nada a não ser vis mentiras, e sequer consegue mantê-las em pé, Um dia diz que Cersei foi esfolada, e no seguinte, que foi meu pai. Responda às minhas perguntas, e eu responderei às suas. - Com a verdade? - Ah, o que quer é a verdade? Tenha cuidado, senhora. Tyrion fala que as pessoas dizem freqüentemente ter fome de verdade, mas raramente gostam do sabor quando ela lhes é servida. - Sou suficientemente forte para ouvir qualquer coisa que achar por bem dizer. - Nesse caso, como quiser. Mas primeiro, por bondade... o vinho. Minha garganta está em carne viva. Catelyn pendurou a lâmpada na porta e deslocou a taça e o jarro para mais perto dele. Jaime bochechou com o vinho antes de engolir. - Azedo e péssimo - disse - , mas serve - encostou as costas na parede, puxou os joelhos para o peito e a fitou. - Sua primeira pergunta, Senhora Catelyn? Sem saber durante quanto tempo aquele jogo poderia se prolongar, Catelyn não perdeu tempo. - É pai de Joffrey? - Nunca perguntaria isso se não soubesse a resposta. - Quero ouvi-la de sua boca. Ele encolheu os ombros. 510 - Joffrey é meu. Assim como o resto da descendência de Cersei, suponho. - Admite ser amante de sua irmã? - Sempre amei minha irmã, e deve-me duas respostas. Minha família continua viva? - Disseram-me que Sor Stafford Lannister foi morto em Cruzaboi. Jaime mostrou-se impassível. - Minha irmã chamava-o de Tio Palerma. São Cersei e Tyrion que me importam. Tal como o senhor meu pai. - Estão vivos, os três - mas não por muito tempo, se os deuses forem bons, Jaime bebeu um pouco mais de vinho. - Faça a pergunta seguinte. Catelyn tinha perguntado a si mesma se ele se atreveria a responder à pergunta seguinte com algo diferente de uma mentira. - Como foi que meu filho Bran caiu? - Atirei-o de uma janela. O modo tranqüilo como disse aquilo deixou-a sem voz por um instante. Se tivesse uma faca, mataria esse Lannister agora, pensou, até que se lembrou das meninas. Sua garganta se contraiu enquanto dizia: - É um cavaleiro, prestou juramento de defender os fracos e inocentes. - Ele era bastante fraco, mas talvez não tão inocente assim. Estava nos espiando. - Bran não espiaria. - Então, culpe esses seus preciosos deuses, que trouxeram o garoto até a nossa janela e lhe deram um vislumbre de algo que nunca devia ter visto. - Culpar os deuses? - ela disse, incrédula. - A mão que o atirou era sua, Queria que ele morresse. As correntes de Jaime tiniram suavemente, - Raramente atiro crianças das torres para que sua saúde melhore. Sim, queria que morresse. - E quando não morreu, sabia que estava em mais perigo do que nunca, e, então, deu à sua marionete um saco de prata para se assegurar de que Bran nunca despertaria. - Eu fiz isso, é? - Jaime levantou a taça e bebeu um longo trago. - Não vou negar que falamos disso, mas a senhora estava com o garoto de dia e de noite, seu meistre e Lorde Eddard visitavam-no freqüentemente, e havia guardas, e até aqueles malditos lobos selvagens... Teria sido necessário cortar caminho através de metade de Winterfell. E para que me incomodar, se o garoto parecia morrer por conta própria? - Se mentir para mim, esta sessão chega ao fim - Catelyn estendeu as mãos, para lhe mostrar os dedos e as palmas. - O homem que veio cortar a garganta de Bran deixou-me estas cicatrizes. Jura que não desempenhou nenhum papel em seu envio? - Sobre a minha honra de Lannister. - Sua honra de Lannister vale menos do que isto - Catelyn derrubou o balde de dejetos com um pontapé. Uma lama marrom e malcheirosa espalhou-se pelo chão da cela, empapando a palha, Jaime Lannister afastou-se do derramamento o mais que as correntes permitiam, - Posso de fato ter merda no lugar de honra, não o nego, mas nunca na vida contratei alguém para matar por mim. Acredite no que quiser, Senhora Stark, mas se quisesse o seu Bran morto, o teria matado pessoalmente. Que os deuses sejam misericordiosos, ele está falando a verdade. 511 - Se não enviou o assassino, foi sua irmã que o fez. - Se isso tivesse acontecido, eu saberia. Cersei não tem segredos para mim. - Então foi o Duende. - Tyrion é tão inocente como o seu Bran. Ele não andava escalando em volta das janelas de ninguém, espiando. - Então, por que o assassino tinha o punhal dele? - Que punhal era esse? - Era deste tamanho - ela disse, afastando as mãos - , simples, mas bem-feito, com uma lâmina de aço valiriano e um cabo de osso de dragão. Seu irmão o ganhou de Lorde Baelish no torneio no dia do nome do Príncipe Joffrey. O Lannister serviu-se de vinho, bebeu, serviu-se de novo e fitou a taça. - Este vinho parece melhorar à medida que o bebo. Imagine. Acho que recordo desse punhal, agora que o descreve. Diz que ele o ganhou? Como? - Apostando em você na justa contra o Cavaleiro das Flores - quando ouviu suas próprias palavras, Catelyn soube que tinha se enganado. - Não... Teria sido o contrário? - Tyrion sempre me apoiou nas liças - Jaime disse - , mas nesse dia Sor Loras derrubou-me do cavalo. Pouca sorte. Encarei o rapaz com ligeireza em excesso, mas não importa. Seja o que for que meu irmão tenha apostado, perdeu... Mas esse punhal realmente mudou de mãos, lembro-me agora. Robert mostrou-me nessa noite, no banquete. Sua Graça adorava pôr sal em minhas feridas, especialmente quando estava bêbado. E quando é que não estava? Catelyn lembrou-se de que Tyrion Lannister havia dito algo muito semelhante enquanto atravessavam as Montanhas da Lua. Recusara-se a crer nele. Petyr jurara que as coisas tinham sido diferentes. O Petyr que fora quase um irmão, que a amara tanto que tinha lutado em duelo por sua mão... E, no entanto, se Jaime e Tyrion contavam a mesma história, qual seria o significado disso? Os irmãos não tinham se encontrado desde a partida de Winterfell, mais de um ano antes. - Está tentando me enganar? - havia ali, em algum lugar, uma armadilha. - Já admiti ter atirado seu precioso diabrete por uma janela, o que ganharia se mentisse a respeito dessa faca? - ele emborcou outra taça de vinho. - Acredite no que quiser, já passou o tempo em que me preocupava com o que as pessoas dizem de mim. E é a minha vez. Os irmãos de Robert puseram-se em campo? - Sim. - Eis uma resposta avara. Dê-me mais do que isso, senão sua próxima resposta será igualmente pobre. - Stannis marcha contra Porto Real - ela disse de má vontade. - Renly está morto, assassinado em Ponteamarga pelo irmão, através de alguma arte negra que não compreendo. - E uma pena. Gostava bastante de Renly, se bem que Stannis seja uma história bem diferente. Qual lado os Tyrell escolheram? - A princípio, o de Renly. Agora não sei dizer. - Seu garoto deve andar se sentindo solitário. - Robb fez dezesseis anos há alguns dias... E um homem-feito, e um rei. Venceu todas as batalhas que travou. Segundo as últimas notícias que recebemos, conquistou o Despenhadeiro aos ocidentais. - Ainda não se defrontou com meu pai, não é? - Quando o fizer, vai derrotá-lo, Como fez convosco. - Pegou-me desprevenido. Um truque de covarde. 512 - Atreve-se a falar de truques? Seu irmão Tyrion enviou-nos assassinos vestidos de enviados, sob uma bandeira de paz. - Se fosse um de seus filhos nesta cela, os irmãos dele não fariam o mesmo? Meu filho não tem irmãos, pensou Catelyn, mas não dividiria sua dor com uma criatura como aquela. Jaime bebeu mais um pouco de vinho. - O que é a vida de um irmão quando a honra está em causa, hã? - outro gole. - Tyrion é suficientemente inteligente para compreender que seu filho nunca consentirá em libertar-me mediante resgate. Catelyn não podia negá-lo. - Os vassalos de Robb prefeririam vê-lo morto. Em particular Rickard Karstark. Matou dois de seus filhos no Bosque dos Murmúrios. - Eram os dois com o esplendor branco? - Jaime encolheu os ombros. - A bem da verdade, quem eu estava tentando matar era o seu filho. Os outros entraram em meu caminho. Matei-os numa luta justa, no calor da batalha. Qualquer outro cavaleiro teria feito a mesma coisa. - Como é possível que se considere ainda um cavaleiro, depois de ter posto de lado todos os votos que jurou? Jaime estendeu a mão para o jarro, a fim de voltar a encher a taça. - Tantos votos... Obrigam-nos a jurar e voltar a jurar. Defender o rei. Obedecer ao rei. Guardar seus segredos. Fazer o que ele nos pedir. Nossa vida pela dele. Além de obedecer ao nosso pai. Amar a nossa irmã. Proteger os inocentes. Defender os fracos. Respeitar os deuses. Obedecer às leis. É demais. Faça o que fizer, é preciso pôr de lado um voto ou outro - bebeu um bom trago de vinho e fechou os olhos por um instante, encostando a cabeça na mancha de salitre da parede. - Fui o homem mais novo a usar o manto branco na história. - E o mais novo a trair tudo o que o manto simbolizava, Regicida. - Regicida - ele pronunciou com cuidado. - E que rei ele era! - ergueu a taça: - A Aerys Targaryen, o Segundo do Seu Nome, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território. E à espada que abriu sua garganta. Uma espada dourada, sabe? Até que o sangue dele correu vermelho pela lâmina. São essas as cores Lannister, vermelho e dourado. Enquanto ele ria, Catelyn compreendeu que o vinho fizera seu trabalho; Jaime tinha bebido a maior parte do jarro e estava bêbado. - Só um homem como você se sentiria orgulhoso de um ato desses. - J á lhe disse que não há homens como eu. Responda-me o seguinte, Senhora Stark... Seu Ned alguma vez lhe contou o modo como o pai dele morreu? Ou o irmão? - Estrangularam Brandon enquanto o pai observava, e depois mataram também Lorde Rickard - uma história feia, e velha, de dezesseis anos. Por que ele estaria falando dela agora? - Sim, mataram, mas como? - A corda ou o machado, suponho. Jaime bebeu um gole, limpou a boca: - Não há dúvida de que Ned desejou poupá-la. Sua doce e jovem noiva, ainda que não fosse propriamente donzela. Bem, queria a verdade. Perguntou-me. Fizemos um acordo, nada posso lhe negar. Pergunte. - O que está morto, morto está - não quero saber disso. - Brandon era diferente do irmão, não era? Tinha sangue nas veias, e não água fria. Era mais parecido comigo. 513 - Brandon não se parecia em nada com você. - Se você diz. Você e ele iam se casar. - Ele vinha a caminho de Correrrio quando... - estranho como contar aquilo ainda fazia sua garganta apertar-se, depois de todos aqueles anos. - ... Quando ouviu notícias de Lyanna e se dirigiu a Porto Real. Foi um ato precipitado - lembrava-se de como o pai tinha se enfurecido quando as notícias foram trazidas a Correrrio. O pateta galante, assim ele chamara Brandon. Jaime serviu-se da última meia taça de vinho. - Ele entrou a cavalo na Fortaleza Vermelha com alguns companheiros, desafiando aos gritos o Príncipe Rhaegar a sair e morrer. Mas Rhaegar não estava lá. Aerys mandou os guardas prenderem-nos a todos, acusados de planejar o assassinato do filho. Os outros eram também filhos de senhores, parece-me. - Ethan Glover era escudeiro de Brandon - Catelyn disse. - Foi o único sobrevivente. Os outros eram Joffrey Mallister, Kyle Royce e Elbert Arryn, sobrinho e herdeiro de Jon Arryn - era estranho como ainda se lembrava dos nomes, depois de tantos anos. - Aerys acusou-os de traição e convocou os pais à corte para responder à acusação, mantendo os filhos como reféns. Quando chegaram, mandou assassiná-los sem julgamento. Tanto os pais como os filhos. - Houve julgamento. De certo modo. Lorde Rickard exigiu o julgamento por combate, e o rei concedeu-lhe o pedido. O Stark armou-se como se fosse para a batalha, pensando que iria travar um duelo com um membro da Guarda Real. Talvez eu. Em vez disso, levaram-no para a sala do trono e suspenderam-no das vigas enquanto dois dos piromantes de Aerys acendiam uma fogueira por baixo dele. O rei disse-lhe que o campeão da Casa Targaryen era o fogo. Portanto, tudo o que Lorde Rickard tinha de fazer para provar que era inocente de traição era... bem, não arder. Depois de atearem fogo, Brandon foi trazido. Vinha com as mãos acorrentadas atrás das costas e trazia, em volta do pescoço, um cordão de couro molhado e ligado a um dispositivo que o rei trouxera de Tyrosh. Mas as pernas tinham sido deixadas livres, e a espada fora depositada bem longe de seu alcance. Os piromantes assaram Lorde Rickard lentamente, abafando e atiçando o fogo com cuidado, para obter um calor bom e uniforme. A primeira coisa a se incendiar foi seu manto, depois foi a capa, e em breve não usava nada a não ser metal e cinzas. Em seguida iria começar a arder, prometeu Aerys... A menos que o filho conseguisse libertá-lo. Brandon tentou, mas quanto mais se esforçava, mais o cordão se apertava em torno de sua garganta. No fim, estrangulou-se a si próprio. Quanto a Lorde Rickard, o aço de sua placa de peito ficou cor de cereja antes do fim, e o ouro das esporas derreteu e pingou na fogueira. Eu permaneci em pé, na base do Trono de Ferro com minha armadura e manto brancos, enchendo a cabeça com pensamentos sobre Cersei. Depois daquilo, o próprio Gerold Hightower chamou-me de lado e me disse: "Fez o voto de defender o rei, não de julgá-lo". O Touro Branco era assim, leal até o fim e um homem melhor do que eu, todos concordam. - Aerys... - Catelyn sentia o sabor de bílis no fundo da garganta. A história era tão hedionda que suspeitava ter de ser verdadeira. - Aerys era louco, todo o reino sabia disso, mas se quer que acredite que o matou para vingar Brandon Stark... - Não afirmei nada disso. Os Stark não eram nada para mim. Mas digo que me parece mais do que bizarro que seja amado por uma pessoa por uma gentileza que nunca fiz e injuriado por tantas por meu melhor ato, Na coroação de Robert, fui obrigado a ajoelhar-me aos pés reais ao lado do Grande Meistre Pycelle e de Varys, o eunuco, para que ele pudesse perdoar os nossos crimes antes de nos tomar ao seu serviço. Quanto ao seu Ned, ele devia ter beijado a mão que matou Aerys, mas preferiu desprezar o rabo que encontrou sentado no trono de Robert. Penso que 514 Ned Stark amava mais Robert do que alguma vez amou o irmão ou o pai... ou até você, senhora. Nunca foi infiel para com Robert, não é? - Jaime soltou uma gargalhada de bêbado. - Então, Senhora Stark, não acha tudo isso terrivelmente divertido? - Não há nada que lhe diga respeito que eu ache divertido, Regicida. - De novo esse nome. Acho que no fim não foderei a senhora, Mindinho a possuiu primeiro, não foi? Nunca como do tabuleiro de outro homem. Além disso, não tem nem metade da beleza de minha irmã - o sorriso dele cortava. - Nunca me deitei com outra mulher que não Cersei. A minha maneira, fui mais fiel do que seu Ned. Pobre, velho, morto Ned. Quem tem então agora merda no lugar da honra, pergunto-lhe? Qual era o nome daquele bastardo de que ele foi pai? Catelyn deu um passo para trás. - Brienne. - Não, não era esse - Jaime Lannister virou o jarro de boca para baixo. Um fiozinho de vinho correu sobre seu queixo, brilhante como sangue. - Snow, era isso. Um nome tão branco... como os lindos mantos que nos dão na Guarda Real quando juramos nossos lindos juramentos. Brienne abriu a porta e entrou na cela. - Chamou, senhora? - Dê-me sua espada - Catelyn estendeu a mão. SIS Theon Océu era uma sombra de nuvens, a floresta estava morta e congelada. Raízes agarravam-se aos pés de Theon enquanto ele corria, e galhos nus chicoteavam seu rosto, deixando-lhe finas riscas de sangue. Caiu, descuidado, sem fôlego, fazendo pingentes de gele se despedaçar à sua frente. Misericórdia, soluçou. Atrás ouviu-se um uivo arrepiante que congelou seu sangue. Misericórdia, misericórdia. Quando olhou de relance por sobre o ombro, viu-os aproximando-se, grandes lobos do tamanho de cavalos com cabeça de crianças pequenas. Ah, misericórdia, misericórdia. De suas bocas pingava sangue negro como breu, queimando buracos na neve onde caía. Cada passo os trazia para mais perto. Theon tentou correr mais depressa, mas as pernas não queriam obedecê-lo. Todas as árvores tinham rostos, e riam dele, riam, e o uivo voltou a ser ouvido. Conseguia sentir o cheiro do hálito quente das feras que o perseguiam, um fedor de enxofre e decomposição. Eles estão mortos, mortos, eu os vi mortos, tentou gritar, eu vi a cabeça deles mergulhadas em alcatrão, mas, quando abriu a boca, só um gemido soou, e então algo o tocou e ele se virou, gritando... lançando a mão ao punhal que mantinha junto à cama e conseguindo apenas arremessá-lo ao chão. Wex dançou para longe dele. Fedor estava atrás do muro, com sua cabeça iluminada por baixo pela vela que transportava. - O que é? - Theon gritou. Misericórdia. - O que querem? Por que estão no meu quarto? Por quêí - Senhor meu príncipe - disse Fedor sua irmã chegou a Winterfell. Pediu para o informarmos imediatamente se ela chegasse. - Já era mais que hora - ele resmungou, passando os dedos pelos cabelos. Começara a temer que Asha pretendesse abandoná-lo ao seu destino. Misericórdia. Olhou de relance pela janela, onde a primeira vaga luz da aurora começava a roçar as torres de Winterfell. - Onde ela está? - Lorren a levou, e aos seus homens, para o Grande Salão, para quebrarem o jejum. Vai recebê-la agora? - Sim - Theon afastou as mantas. O fogo tinha se transformado em brasas. - Wex, água quente - não podia deixar que Asha o visse desgrenhado e ensopado em suor. Lobos com rosto de criança... Estremeceu. - Feche as venezianas - parecia-lhe que o quarto estava tão frio como o sonho da floresta. Nos últimos tempos, todos os seus sonhos tinham sido frios, e cada um mais hediondo do que o anterior. Na noite passada tinha sonhado que estava de volta ao moinho, de joelhos, vestindo os mortos. Os membros já estavam enrijecendo, e pareciam resistir teimosamente enquanto ele se atrapalhava com dedos meio gelados, puxando calções e dando nós, enfiando pés duros que 516 não se dobravam em botas forradas com peles, afivelando um cinto de couro cravejado de rebites em volta de uma cintura que não era maior do que o vão entre suas mãos juntas. - Nunca quis isso - disse-lhes enquanto trabalhava. - Eles não me deram outra escolha - os cadáveres não responderam, ficaram apenas mais frios e mais pesados. Na noite anterior tinha sido a mulher do moleiro. Theon esquecera seu nome, mas lembrava-se de seu corpo, seios macios como almofadas e estrias na barriga, do modo como arranhava suas costas quando a fodia. Na noite passada, no sonho, ela esteve de novo em sua cama, mas dessa vez tinha dentes em cima e embaixo, e rasgou sua garganta ao mesmo tempo que lhe arrancava o membro. Era uma loucura. Também a vira morrer. Gelmarr abatera-a com um golpe de machado enquanto ela gritava com Theon por misericórdia. Deixe-me, mulher. Foi ele, não eu, quem a matou. E ele também está morto. Pelo menos Gelmarr não assombrava o sono de Theon. O sonho tinha se afastado quando Wex regressou com a água. Theon lavou o suor e o sono do corpo e levou um tempo vestindo-se. Asha deixara-o à espera por bastante tempo; agora era sua vez. Escolheu uma túnica de cetim com riscas pretas e douradas e um belo justilho de couro com tachões de prata... e só então se lembrou de que sua maldita irmã depositava mais valor nas lâminas do que na beleza. Praguejando, arrancou a roupa e voltou a se vestir de feltro de lã negra e cota de malha. Em volta da cintura afivelou espada e punhal, lembrando-se da noite em que ela o tinha humilhado à mesa do pai. Seu querido bebê de peito, sim. Pois bem, também tenho uma faca, e sei usá-la. Por último, colocou a coroa na cabeça, um aro de ferro frio, estreito como um dedo, cravejado de pesados fragmentos de diamante negro e pepitas de ouro. Era disforme e feia, mas nada havia a fazer. Mikken estava enterrado no cemitério, e o novo ferreiro era capaz de fazer pouco mais do que pregos e ferraduras. Theon consolou-se, recordando a si mesmo de que era apenas uma coroa de príncipe. Teria coisa muito melhor quando fosse coroado rei. A porta, Fedor esperava com Urzen e Kromm. Theon juntou-se a ele. Naqueles dias, levava guardas consigo onde quer que fosse, até à latrina. Winterfell queria vê-lo morto. Na mesma noite em que voltaram do Água de Bolotas, Gelmarr, o Cruel, caiu alguns degraus e quebrou a coluna. No dia seguinte, Aggar apareceu com a garganta cortada de um lado a outro. Gynir Rednose tinha se tornado tão cauteloso que evitava o vinho, passara a dormir de cota de malha longa, touca e elmo, e adotara o mais barulhento cão que tinha encontrado nos canis, para que o avisasse caso alguém tentasse se esgueirar até o local onde dormia. Mesmo assim, uma manhã o castelo tinha acordado ao som dos latidos desenfreados do pequeno cão. Encontraram o cachorro correndo em volta do poço, e Rednose boiando nele, afogado. Theon não podia deixar os assassinatos impunes. Farlen era um suspeito tão provável como qualquer outro. Tinha montado um julgamento, declarado o homem culpado e condenado-o à morte. Mas até isso havia corrido mal. Ao se ajoelhar junto ao cepo, o mestre dos canis dissera: - O senhor Eddard cuidava sempre de suas mortes. Theon tivera de empunhar ele próprio o machado para não parecer um fracote. Como suava, o cabo virou em suas mãos ao brandi-lo, e o primeiro golpe atingira Farlen entre os ombros. Foram necessários mais três golpes para cortar todos aqueles ossos e músculos e separar a cabeça do corpo, e depois Theon ficou mal, recordando todas as vezes que tinham se sentado à mesa, diante de uma taça de hidromel, conversando sobre cães e caça. Não tive escolha, quis gritar ao cadáver. Os homens de ferro não sabem guardar segredos, tinham de morrer, e alguém precisava arcar com a culpa. Só desejava tê-lo matado de forma mais limpa, Ned Stark nunca precisara de mais do que um único golpe para decapitar um homem. 517 Os assassinatos pararam após a morte de Farlen, mas mesmo assim seus homens continuaram mal-humorados e ansiosos. - Não temem nenhum inimigo em batalha aberta - Lorren Negro lhe dissera mas é diferente viver entre inimigos, sem nunca saber se a lavadeira quer beijá-lo ou matá-lo, ou se o criado está enchendo sua taça com cerveja ou veneno. O melhor que faríamos era sair deste lugar. - Eu sou o Príncipe de Winterfell! - Theon gritara. - Este é o meu domínio, nenhum homem me arrancará daqui. Não, e mulher nenhuma também. Asha. Era obra dela. Minha querida irmã, que os Outros a enrabem com uma espada. Queria vê-lo morto, para poder roubar seu lugar como herdeiro do pai. Era por isso que o deixara ali definhando, ignorando as ordens urgentes que lhe enviara. Foi encontrá-la no cadeirão dos Stark, desfazendo um capão com os dedos. O salão ressoava com as vozes de seus homens, compartilhando histórias com os de Theon enquanto bebiam juntos. Eram tão barulhentos que sua entrada quase passou despercebida. - Onde estão os outros? - perguntou Fedor. Não havia mais de cinqüenta homens nas mesas de montar, e a maior parte eram seus. O Grande Salão de Winterfell poderia ter acomodado dez vezes esse número. - Isto é a companhia toda, senhor príncipe. - Toda... Quantos homens ela trouxe? - Pelas minhas contas, vinte. Theon Greyjoy encaminhou-se a passos largos para onde a irmã estava instalada. Asha ria de qualquer coisa que um de seus homens tinha dito, mas parou quando o viu aproximar-se. - Ora, é o Príncipe de Winterfell - atirou um osso a um dos cães que andavam farejando pelo salão. Por baixo daquele bico de falcão que tinha como nariz, sua boca larga retorceu-se num sorriso de zombaria. - Ou será o Príncipe dos Tolos? - A inveja cai mal a uma donzela. Asha chupou gordura dos dedos. Uma madeixa de cabelo negro caiu sobre seus olhos. Seus homens gritavam por pão e bacon. Faziam bastante barulho, por poucos que fossem. - Inveja, Theon? - Que outro nome lhe daria? Com trinta homens capturei Winterfell numa noite. Você precisou de mil e de uma volta de lua para tomar Bosque Profundo. - Bem, não sou um grande guerreiro como você, irmão - tragou meio corno de cerveja e limpou a boca com as costas da mão. - Vi as cabeças por cima de seus portões. Diga-me a verdade, qual deles deu mais trabalho na luta, o aleijado ou o bebê? Theon sentiu o sangue afluindo ao seu rosto. Não se regozijava mais com aquelas cabeças do que se regozijara com a exibição dos corpos decapitados das crianças perante o castelo. A Velha Ama tinha ficado imóvel, abrindo e fechando, sem um som, sua boca mole e desdentada, e Farlen atirara-se a Theon, rosnando como um de seus cães. Urzen e Cadwyl foram forçados a espancá-lo com os cabos das lanças até o deixarem sem sentidos. Como cheguei a esse ponto?, lembrava-se de ter pensado enquanto se mantinha em pé sobre os corpos cobertos de moscas. Só Meistre Luwin tolerara se aproximar. Com um rosto de pedra, o pequeno homem cinzento pedira licença para costurar a cabeça dos garotos ao corpo, para poderem ser sepultados nas criptas subterrâneas, com os outros mortos dos Stark. - Não - dissera-lhe Theon. - Nas criptas, não. - Mas por que, senhor? Certamente que já não podem lhe fazer mal. E lá é o lugar deles. Todos os ossos dos Stark... 518 - Eu disse não. Precisava das cabeças para a muralha, mas queimara os corpos decapitados naquele mesmo dia, vestidos com suas belas roupas. Depois, ajoelhou-se entre os ossos e cinzas para recuperar uma escória de prata derretida e azeviche rachado, tudo o que restava do broche em forma de cabeça de lobo que antes pertencera a Bran. Ainda a tinha consigo. - Tratei Bran e Rickon com generosidade - disse à irmã. - Foram eles que chamaram a si seu destino, - Tal como todos fazemos, irmãozinho. Theon tinha a paciência no fim. - Como espera que eu defenda Winterfell se me traz apenas vinte homens? - Dez - Asha corrigiu, - Os outros voltam comigo. Não vai querer que sua querida irmã enfrente os perigos da floresta sem uma escolta, não é? Há lobos gigantes patrulhando a escuridão - desenrolou-se de dentro do grande cadeirão de pedra e ficou em pé. - Venha, vamos para algum lugar onde possamos conversar com mais privacidade. Theon sabia que ela tinha razão, mas amargurava-o que tivesse sido ela a tomar essa decisão. Nunca devia ter vindo ao salão, compreendeu tardiamente. Devia ter ordenado que ela fosse trazida até mim, Mas agora era tarde demais para isso. Theon não tinha escolha a não ser levar Asha ao aposento privado de Ned Stark. Lá, diante das cinzas de um fogo morto, exclamou: - Dagmer perdeu a luta em Praça de Torrhen. - O velho castelão abriu uma brecha em sua muralha de escudos, sim - disse Asha com voz calma - O que esperava? Esse Sor Rodrik conhece intimamente o terreno, e Boca Rachada não, e muitos dos nortenhos estavam a cavalo. Aos homens de ferro falta a disciplina para agüentar um ataque de cavalaria protegida por armaduras. Dagmer sobreviveu, seja grato por isso. Está levando os sobreviventes de volta à Costa Pedregosa. Ela sabe mais do que eu, Theon percebeu. E isso só o deixou mais zangado. - A vitória deu a Leobald Tallhart coragem para sair da proteção de suas muralhas e ir se juntar a Sor Rodrik. E recebi relatos que afirmam que Lorde Manderly enviou uma dúzia de barcaças rio acima, atulhadas de cavaleiros, cavalos de guerra e máquinas de cerco. Os Umber também reúnem homens para lá do Rio Ultimo. Terei um exército aos meus portões antes do virar da lua, e você me traz só dez homens? - Não tinha de ter trazido nenhum. - Eu ordenei... - O pai ordenou-me que tomasse Bosque Profundo - ela o interrompeu. - Não me disse nada sobre ter de ir salvar meu irmão mais novo. - Que se dane Bosque Profundo. E um penico de madeira em cima de um monte. Winterfell é o coração do território, mas, como posso defendê-lo sem uma guarnição? - Podia ter pensado nisso antes de tomá-lo. Oh, foi coisa esperta, admito. Se ao menos tivesse tido o bom-senso de arrasar o castelo e levar os dois principezinhos de volta a Pyke como reféns, podia ter ganhado a guerra com um golpe. - Gostaria disso, não é verdade? De ver minha presa reduzida a cinzas e escombros. - Sua presa vai ser a sua perdição. As lulas gigantes levantam-se do mar, Theon, ou será que se esqueceu disso durante os anos em que passou entre os lobos? Nossa força está nos dracares. Meu penico de madeira fica suficientemente perto do mar para que abastecimentos e homens novos cheguem sempre que forem necessários. Mas Winterfell está a centenas de léguas para o 519 interior, rodeado de florestas, montes e castros, e castelos hostis. E agora, cada homem em mil léguas ao redor é seu inimigo, não se iluda. Certificou-se disso quando colocou aquelas cabeças em sua guarita - Asha sacudiu a cabeça. - Como pôde ser tão burro? Crianças... - Eles me desafiaram! - Theon gritou no rosto dela. - E, além disso, foi sangue por sangue, dois filhos de Eddard Stark em troca de Rodrik e Maron - as palavras jorraram sem pensar, mas Theon soube de imediato que o pai aprovaria. - Dei descanso aos fantasmas de meus irmãos. - De nossos irmãos - recordou-lhe Asha, com um meio sorriso que sugeria que dava um bom desconto àquela conversa de vingança. - Trouxe os fantasmas deles de Pyke, mano? E eu que pensava que só assombravam o pai. - Desde quando as donzelas compreendem a necessidade de vingança de um homem? - mesmo se o pai não gostasse de receber Winterfell de presente, tinha de aprovar que Theon vingasse os irmãos. Asha segurou uma gargalhada com uma fungadela. - Já passou por sua cabeça que esse Sor Rodrik pode bem alimentar a mesma necessidade viril? E sangue do meu sangue, Theon, independentemente do que seja além disso. Por amor à mãe que nos teve, volte comigo para Bosque Profundo. Entregue Winterfell ao archote e se retire enquanto ainda pode. - Não - Theon ajustou a coroa. - Tomei este castelo, e pretendo mantê-lo. A irmã o olhou durante muito tempo. - Então vai mantê-lo durante o resto de sua vida - ela suspirou. - Eu digo que isso cheira a loucura, mas o que sabe uma tímida donzela dessas coisas? - já na porta, dirigiu-lhe um último sorriso zombeteiro. - Acho que devia saber que essa é a coroa mais feia que já vi. Foi você que fez? Deixou-o furioso, e não permaneceu no castelo mais do que o tempo necessário para dar de comer e beber aos cavalos. Metade dos homens que trouxera voltaram com ela, como avisara, atravessando o mesmo Portão do Caçador que Bran e Rickon tinham usado para a fuga. Theon os viu partir da muralha. Enquanto a irmã desaparecia na névoa da mata de lobos, deu por si interrogando-se sobre o motivo por que não a tinha escutado e partido com ela. - Ela foi embora, é? - Fedor estava junto ao seu lado. Theon não o ouvira chegar, e também não sentira o seu cheiro. Não era capaz de imaginar alguém que quisesse ver menos. Sentia-se desconfortável vendo o homem andar por aí, respirando, com tudo o que sabia. Devia ter mandado matá-lo depois de ele ter cuidado dos outros, refletiu, mas a idéia o deixava nervoso. Por improvável que parecesse, Fedor sabia ler e escrever, e possuía suficiente astúcia servil para ter escondido um relato do que tinham feito. - Senhor príncipe, com a sua licença, não tá certo que ela o abandone. E dez homens, isso não vai adiantar, nem de longe. - Estou bem consciente disso - ele respondeu. E Asha também está. - Bom, pode ser que possa ajudá-lo. Dê-me um cavalo e um saco de moedas e talvez lhe arranje uns tipos bons. Theon estreitou os olhos. - Quantos? - Pode ser que uns cem. Ou duzentos. Talvez mais - Fedor sorriu, com os olhos claros cintilando. - Nasci aqui pro norte. Conheço muito homem, e muito homem conhece Fedor. Duzentos homens não eram um exército, mas não seriam necessários milhares para defender um castelo tão forte como Winterfell. Desde que fossem capazes de aprender qual das pontas da lança matava, podiam fazer a diferença. 520 - Faça isso que diz, e não vai me achar ingrato, Pode dizer que recompensa quer. - Bom, senhor, não tenho mulher desde que estava com Lorde Ramsay, Tô de olho naquela Palia, e ouvi dizer que ela já teve com um homem, então.., Tinha ido longe demais com Fedor para recuar agora, - Duzentos homens e ela é sua. Mas, um homem a menos, e pode voltar a foder porcos. Fedor partiu antes do pôr do sol, levando um saco da prata dos Stark e a última das esperanças de Theon. O mais certo é que não volte a ver o maldito homem, pensou amargamente, mas, mesmo assim, o risco tinha de ser corrido. Nessa noite sonhou com o banquete que Ned Stark tinha organizado quando o Rei Robert veio a Winterfell. O salão ressoava com música e risos, embora os ventos frios estivessem subindo lá fora. A princípio era tudo vinho e carne assada, e Theon trocava gracejos, admirava as criadas e passava um tempo agradável... Até reparar que a sala estava ficando mais escura. A música já não parecia tão alegre; ouviu dissonâncias e estranhos silêncios, e notas que pairavam, sangrando, no ar. De repente, o vinho amargou em sua boca, e quando ergueu os olhos da taça viu que estava jantando com os mortos. O Rei Robert estava sentado com as tripas derramadas sobre a mesa, saídas do grande rasgo que tinha na barriga, e Lorde Eddard encontrava-se ao seu lado, sem cabeça. Cadáveres ocupavam os bancos, embaixo, com carne marrom-acinzentada desprendendo-se dos ossos ao erguerem as taças para brindar, e vermes rastejando para dentro e para fora dos buracos que tinham sido seus olhos. Conhecia todos; Jory Cassei e o Gordo Tom, Porther, Cayn e Hullen, o mestre dos cavalos, e todos os outros que tinham partido para Porto Real para nunca regressar. Mikken e Chayle estavam juntos, um pingando sangue, e o outro, água, Benfred Tallhart e as suas Bravas Lebres enchiam a maior parte de uma mesa, A mulher do moleiro também estava lá, e Farlen, e até o selvagem que Theon matou na mata de lobos no dia em que salvara a vida de Bran. Mas havia outros, com rostos que nunca conhecera em vida, rostos que vira apenas em pedra. A esbelta e triste moça que usava uma coroa de rosas azuis-claras e um vestido branco salpicado de sangue coagulado só podia ser Lyanna. O irmão Brandon encontrava-se em pé ao seu lado, e o pai de ambos, Lorde Rickard, logo atrás. Ao longo das paredes, figuras entrevistas deslocavam-se por entre as sombras, vultos pálidos com longos rostos severos. Vê-los fez Theon estremecer de um medo afiado como uma faca. E então as altas portas abriram-se com estrondo, e uma gélida rajada soprou pelo salão, e Robb saiu, a pé, da noite. Vento Cinzento vinha ao seu lado, com os olhos em fúria, e homem e lobo sangravam de meia centena de feridas cruéis. Theon acordou com um grito, assustando Wex de tal maneira que o rapaz fugiu nu do quarto. Quando os guardas irromperam no quarto, de espada na mão, ordenou-lhes que trouxessem o meistre. Quando Luwin chegou, desgrenhado e sonolento, uma taça de vinho tinha firmado as mãos de Theon, e ele sentia-se envergonhado de seu pânico. - Um sonho - murmurou - , não passou de um sonho. Não quis dizer nada. - Nada - concordou solenemente Luwin. Deixou-lhe uma poção para dormir, mas Theon despejou-a pelo poço da latrina no momento em que o meistre saiu. Luwin era meistre, mas também homem, e o homem não tinha qualquer simpatia por ele. Quer que eu durma, sim... que durma para nunca mais acordar. Gostaria disso tanto quanto Asha, Mandou chamar Kyra, fechou a porta com um pontapé, subiu nela e fodeu a criada com uma fúria que nunca soube que existisse em si. Quando acabou, ela soluçava, com o pescoço e os seios cobertos de hematomas e marcas de mordidas. Theon empurrou-a para fora da cama e atirou-lhe uma manta. 521 - Fora. Mas, mesmo então, não conseguiu dormir. Ao chegar a alvorada, vestiu-se, saiu e foi caminhar ao longo das muralhas exteriores. O vento vivo de Outono que rodopiava através das ameias deixou seu rosto vermelho e feriu seus olhos. Observou a floresta enquanto ela passava de cinzenta a verde, à medida que a luz se infiltrava através das árvores silenciosas. A esquerda viam-se o topo de torres por cima da muralha interior, com os telhados dourados pelo sol nascente. As folhas vermelhas do represeiro eram um clarão de chamas na vastidão verde. A árvore de Ned Stark, pensou, e a floresta dos Stark, o castelo dos Stark, a espada dos Stark, os deuses dos Stark. Este é o lugar deles, não meu. Sou um Greyjoy de Pyke, nascido para pintar uma lula gigante no meu escudo e velejar pelo grande mar salgado. Devia ter ido com Asha. Nos espigões de ferro sobre a guarita, as cabeças aguardavam. Theon fitou-as em silêncio enquanto o vento puxava seu manto com pequenas mãos fantasmagóricas. Os filhos do moleiro tinham a mesma idade de Bran e de Rickon, semelhantes no tamanho e na cor, e depois que Fedor arrancou a pele de seus rostos e mergulhou as cabeças em alcatrão, era fácil encontrar traços familiares naqueles deformados pedaços de carne a apodrecer. As pessoas eram tão burras. Se tivéssemos dito que eram cabeças de carneiro, teriam visto cornos. 522 Sansa Tlinham passado a manhã inteira cantando no septo, desde que a primeira notícia de velas inimigas havia chegado ao castelo. O som de suas vozes combinava-se com os relinchos dos cavalos, o tinir do aço e os gemidos das dobradiças dos grandes portões de bronze, para criar uma música estranha e assustadora. No septo cantam pela misericórdia da Mãe, mas nas muralhas é ao Guerreiro que oram, e todos em silêncio. Lembrou-se de como Septã Mordane costumava dizer-lhes que o Guerreiro e a Mãe eram apenas duas faces do mesmo grande deus. Mas se há apenas um, qual das preces será ouvida? Sor Meryn Trant segurava o sangüíneo baio para Joffrey montar. Tanto o cavalo como o rapaz usavam malha dourada e armadura esmaltada carmesim, com leões dourados condizentes nas cabeças. A pálida luz do sol relampejava nos dourados e vermelhos sempre que Joff se mexia. Brilhante, reluzente e vazio, Sansa pensou. O Duende estava montado num garanhão vermelho, armado de modo mais simples do que o rei, num equipamento de batalha que fazia com que parecesse um garotinho vestido com a roupa do pai. Mas nada havia de infantil no machado de batalha preso sob o escudo. Sor Mandon Moore seguia a seu lado, com aço branco brilhante como gelo. Quando Tyrion a viu, virou o cavalo na sua direção. - Senhora Sansa - chamou de cima da sela - , certamente minha irmã lhe pediu para se juntar às outras senhoras de elevado nascimento em Maegor? - Pediu, senhor, mas Rei Joffrey mandou me chamar para me despedir dele. Também pretendo visitar o septo, para rezar. - Não perguntarei por quem - a boca dele torceu-se de forma estranha; se aquilo era um sorriso, era o mais estranho que já vira. - Este dia pode mudar tudo. Quer para você quer para a Casa Lannister. Devia tê-la mandado embora com Tommen, agora penso nisso. Mesmo assim, deverá estar suficientemente segura em Maegor, desde que... - Sansa! - o grito juvenil ressoou no pátio; Joffrey a tinha visto. - Sansa, aqui! Chama-me como se estivesse chamando um cão, pensou. - Sua Graça precisa de você - Tyrion Lannister observou. - Voltaremos a conversar depois da batalha, se os deuses o permitirem. Sansa abriu caminho através de uma fileira de lanceiros com mantos dourados enquanto Joffrey lhe fazia sinais para que se aproximasse. - Haverá uma batalha em breve, é o que todos dizem. - Que os deuses tenham misericórdia por todos nós, - Meu tio é quem precisará de misericórdia, mas não lhe darei nenhuma - Joffrey puxou a espada. O botão era um rubi esculpido como um coração, incrustado entre as mandíbulas de um 523 leão. Três sulcos estavam profundamente entalhados na lâmina. - Minha nova lâmina, Devoradora de Corações. Sansa recordou que ele um dia possuíra uma espada chamada Dente de Leão. Arya a tirara dele e a jogara em um rio. Espero que Stannis faça o mesmo com esta. - Está lindamente trabalhada, Vossa Graça. - Abençoe meu aço com um beijo - abaixou a lâmina até ela. - Vá lá, beije-a. Nunca tinha soado tanto como um garotinho estúpido. Sansa encostou os lábios no metal, pensando que preferiria beijar tantas espadas quantas fosse preciso a beijar Joffrey. Mas o gesto pareceu agradar-lhe. Embainhou a lâmina com um floreio. - Vai beijá-la de novo quando eu voltar, e vai saborear o sangue do meu tio. Só se algum dos membros da Guarda Real matá-lo por você. Três das Espadas Brancas iriam com Joffrey e com o tio: Sor Meryn, Sor Mandon e Sor Osmund Kettleblack. - Vai liderar seus cavaleiros na batalha? - Sansa perguntou, esperançosa. - Eu queria, mas meu tio, o Duende, diz que meu tio Stannis nunca atravessará o rio. Mas comandarei as Três Rameiras. Tratarei pessoalmente dos traidores - a perspectiva fazia Joff sorrir. Seus gordos lábios cor-de-rosa faziam-no sempre parecer mal-humorado. Sansa gostava disso antes, mas agora enchia-a de náuseas. - Dizem que meu irmão Robb vai sempre para o centro das lutas - ela disse, com ousadia. - Embora seja mais velho do que Vossa Graça, com certeza, Um homem-feito. Aquilo fez Joffrey franzir o cenho: - Lidarei com seu irmão depois que acabar com o traidor do meu tio. Vou estripá-lo com a Devoradora de Corações, você verá - virou o cavalo e o esporeou na direção do portão. Sor Meryn e Sor Osmund ficaram à sua direita e à esquerda, seguidos pelos homens de manto dourado em filas de quatro. Duende e Sor Mandon Moore fecharam a retaguarda. Os guardas acompanharam sua saída com gritos e vivas. Depois de o último sair, uma súbita quietude abateu-se sobre o pátio, como a calmaria que antecede uma tempestade. No meio do silêncio, os cantos puxaram-na, Sansa virou-se para o septo. Dois cavalariços seguiram-na, bem como um dos guardas cujo turno tinha terminado. Outros seguiram também, mais atrás. Sansa nunca tinha visto o septo tão cheio de gente, nem tão brilhantemente iluminado; grandes feixes de luz do sol com as cores do arco-íris derramavam-se através dos cristais nas altas janelas, e velas ardiam por todo o lado, pequenas chamas que cintilavam como estrelas. O altar da Mãe e o do Guerreiro nadavam em luz, mas Ferreiro, Velha, Donzela e Pai tinham também seus adoradores, e até havia algumas chamas dançando por baixo da face meio humana do Estranho,.. Pois, o que seria Stannis Baratheon se não o Estranho vindo para julgá-los? Sansa visitou cada um dos Sete, na ordem, acendendo uma vela em cada altar, e depois encontrou para si um lugar nos bancos entre uma velha lavadeira encarquilhada e um menino que não devia ser mais velho do que Rickon, vestido com a boa túnica de linho de um filho de cavaleiro. A mão da velha era ossuda e endurecida pelos calos, a do garoto, pequena e suave, mas era bom ter alguém a quem se agarrar. O ar encontrava-se quente e pesado, cheirando a incenso e suor, beijado pelos cristais e brilhante das velas; respirá-lo deixava-a tonta. Conhecia o hino; a mãe tinha lhe ensinado uma vez, havia muito tempo, em Winterfell. Juntou sua voz às dos outros. 524 Gentil Mãe, de clemência fonte, nossos filhos livre da disputa, pare espadas, pare flechas, deixe-os ver um melhor dia. Gentil Mãe, das mulheres força, ajude nossas filhas nesta luta, acalme a ira, dome a fúria, ensine a todos outra via. Vindas de toda a cidade, milhares de pessoas tinham se amontoado no Grande Septo de Baelor na Colina de Visenya, e estavam também cantando, com vozes que se expandiam pela cidade, atravessavam o rio e subiam ao céu. Decerto que os deuses têm de nos ouvir, ela pensou. Sansa conhecia a maior parte dos hinos, e acompanhou o melhor que pôde aqueles que não conhecia. Cantou com velhos criados grisalhos e jovens esposas ansiosas, com criadas e soldados, cozinheiros e falcoeiros, cavaleiros e tratantes, escudeiros, cozinheiros e amas de leite. Cantou com aqueles que se encontravam dentro das muralhas do castelo e com os de fora, cantou com toda a cidade. Cantou por misericórdia, tanto pelos vivos como pelos mortos, por Bran, Rickon e Robb, pela irmã Arya e pelo irmão bastardo Jon Snow, lá longe na Muralha. Cantou pela mãe e pelo pai, pelo avô, Lorde Hoster, e pelo tio, Edmure Tully, pela amiga Jeyne Poole, pelo velho e bêbado Rei Robert, pela Septã Mordane, por Sor Dontos, Jory Cassei e pelo Meistre Luwin, por todos os bravos cavaleiros e soldados que morreriam hoje, e pelas crianças e as viúvas que por eles chorariam, e, por fim, ao terminar, até cantou por Tyrion, o Duende, e pelo Cão de Caça, Ele não é um verdadeiro cavaleiro, mas mesmo assim salvou-me, disse à Mãe. Salve-o se puder, e suavize a raiva que tem dentro de si. Mas, quando o septão subiu bem alto e evocou os deuses para defenderem e protegerem seu legítimo e nobre rei, Sansa ficou em pé. As naves laterais estavam repletas de gente. Teve de abrir caminho aos empurrões enquanto o septão apelava ao Ferreiro para dar força à espada e ao escudo de Joffrey, ao Guerreiro para lhe dar coragem, ao Pai para defendê-lo naquela emergência. Que sua espada se parta e o escudo se estilhace, pensou Sansa friamente enquanto atravessava as portas à força, que a coragem lhe falte e todos os homens o abandonem. Alguns guardas patrulhavam as ameias da guarita, mas, fora isso, o castelo parecia vazio. Sansa parou e escutou. A grande distância, conseguia ouvir os sons da batalha. As cantorias quase os afogavam, mas eles estavam lá caso se tivesse ouvidos para ouvir: o profundo gemido das trompas de guerra, os rangidos e estrondos abafados das catapultas arremessando pedras, as pancadas na água e os sons de coisas que se estilhaçavam, o crepitar de piche em chamas, e o trum das balistas lançando seus dardos com um metro de comprimento e ponta de ferro... E por baixo de tudo isso, os gritos de homens morrendo, Era outro tipo de canção, uma canção terrível. Sansa puxou o capuz de seu manto sobre as orelhas, e apressou-se na direção da Fortaleza de Maegor, o castelo dentro do castelo onde a rainha garantira que todos estariam a salvo. Ao chegar à ponte levadiça encontrou a Senhora Tanda e as duas filhas. Falyse chegara do Castelo Stokeworth no dia anterior com um pequeno contingente de soldados. Estava tentando convencer a irmã a entrar na ponte, mas Lollys agarrava-se à aia, soluçando: - Eu não quero ir, não quero ir, não quero ir. - A batalha começou - disse a Senhora Tanda numa voz frágil. 525 - Náo quero ir, não quero ir. Sansa não tinha nenhuma forma de evitá-las. Saudou-as com cortesia. - Posso ajudar? A Senhora Tanda corou de vergonha. - Não, minha senhora, mas agradecemos a simpatia. Deve perdoar a minha filha, ela não tem estado bem. - Não quero ir - Lollys agarrava-se à aia, uma moça esbelta e bonita com cabelo curto e escuro que parecia não ter desejo maior do que atirar a patroa ao fosso seco, em direção àqueles espigões de ferro. - Por favor, por favor, não quero ir. Sansa falou-lhe com suavidade. - Estaremos todas triplamente protegidas lá dentro, e vai haver comida e bebida e também canções. Lollys olhou-a de boca aberta. Tinha olhos castanhos e opacos que pareciam estar sempre úmidos de lágrimas. - Não quero ir. - Mas tem de ir - disse a irmã Falyse em tom cortante. - E acabou. Shae, ajude-me - agarraram cada uma num cotovelo e, juntas, levaram Lollys pela ponte, meio arrastada, meio carregada. Sansa seguiu-as com a mãe. - Ela tem estado doente - disse a Senhora Tanda. Se um bebê pode ser chamado de doença, pensou Sansa. Que Lollys estava esperando uma criança era um mexerico comum. Os dois guardas à porta usavam os elmos coroados por leões e o manto carmesim da Casa Lannister, mas Sansa sabia que eram apenas mercenários disfarçados. Outro encontrava-se sentado na base da escada... um verdadeiro guarda estaria em pé, não sentado num degrau com a alabarda em cima dos joelhos... mas levantou-se quando as viu e abriu a porta para deixá-las entrar.
    O Salão de Baile da Rainha não tinha um décimo do tamanho do Grande Salão do castelo, mas mesmo assim havia lugar para cem pessoas, e compensava em graça o que lhe faltava em espaço. Havia espelhos de prata batida junto a cada arandela, e assim os archotes ardiam com o dobro da luminosidade; as paredes eram recobertas com painéis de madeira ricamente esculpida, e esteiras com um cheiro agradável cobriam o chão, Da galeria vinham as alegres toadas de flautas e rabecas. Uma fileira de janelas arqueadas corria ao longo da parede sul, mas tinham sido fechadas com tecido pesado. Espessas cortinas de veludo não admitiam nem um fio de luz, e abafariam quer o som das preces, quer o da guerra. Não importa, Sansa pensou. A guerra está conosco. Quase todas as mulheres bem-nascidas da cidade estavam sentadas às longas mesas de montar, na companhia de um punhado de velhos e garotinhos. As mulheres eram esposas, filhas, mães e irmãs. Seus homens tinham ido lutar contra Lorde Stannis. Muitos não retornariam. O ar estava pesado com o conhecimento desse fato. Na qualidade de prometida de Joffrey, Sansa tinha direito ao lugar de honra à direita da rainha. Estava subindo ao estrado quando viu o homem em pé, nas sombras, junto à parede do fundo. Usava uma longa camisa de cota de malha negra e oleada, e segurava a espada à sua frente; a espada do pai, Gelo, quase tão alta quanto ele. A ponta descansava no chão, e os dedos duros e ossudos do homem enrolavam-se em volta da guarda, de ambos os lados do cabo. Sansa ficou com a respiração presa na garganta, Sor Ilyn Payne pareceu sentir seu olhar. Virou para ela o rosto magro e devastado pela varíola. - O que ele está fazendo aqui? - perguntou a Osfryd Kettleblack. Era ele o capitão da nova guarda de manto vermelho da rainha. 526 Osfryd sorriu. - Sua Graça espera ter necessidade dele antes de a noite acabar. Sor Ilyn era o Magistrado do Rei. Havia só um serviço para o qual podia ser necessário. De quem é a cabeça que ela deseja? - Levantem-se por Sua Graça, Cersei da Casa Lannister, Rainha Regente e Protetora do Território - gritou o intendente real. O vestido de Cersei era uma neve de linho, branco como o manto da Guarda Real. As longas mangas pendentes mostravam um forro de cetim dourado. Um grande volume de cabelo dourado caía sobre seus ombros nus em espessos caracóis. Em volta do esbelto pescoço pendia um cordão de diamantes e esmeraldas. O branco fazia-a parecer estranhamente inocente, quase com um ar de donzela, mas havia pontas de cor em suas faces. - Sentem-se - disse a rainha depois de ocupar seu lugar no estrado e sejam bem-vindos - Osfryd Kettleblack segurou sua cadeira; um pajem desempenhou o mesmo serviço a Sansa. - Parece pálida, Sansa - Cersei observou. - Sua flor vermelha ainda floresce? - Sim. - Que apropriado. Os homens sangrarão lá fora, e você aqui - a rainha fez sinal para que o primeiro prato fosse servido, - Por que Sor Ilyn está aqui? - Sansa quis saber. A rainha olhou de relance o carrasco mudo, - Para lidar com a traição, e para nos defender se for necessário, Ele foi um cavaleiro antes de ser carrasco - apontou com a colher para o fundo do salão, onde as altas portas de madeira tinham sido fechadas e trancadas. - Quando os machados arrombarem aquelas portas, poderá ficar contente por ele estar aqui. Ficaria mais contente se fosse Cão de Caça, Sansa pensou. Por mais desagradável que Sandor Clegane fosse, não achava que ele deixaria que algum mal lhe acontecesse. - Seus guardas não nos protegerão? - E quem nos protegerá dos meus guardas? - a rainha deu a Osfryd um olhar de soslaio. - Mercenários leais são tão raros como rameiras virgens. Se a batalha for perdida, meus guardas tropeçarão naqueles mantos carmesim na pressa de arrancá-los. Roubarão o que puderem e fugirão, com os criados, lavadeiras e cavalariços, todos procurando salvar suas inúteis peles. Tem alguma idéia do que acontece quando uma cidade é saqueada, Sansa? Não, não pode ter, não é? Tudo o que sabe da vida aprendeu com os cantores, e há uma escassez muito grande de boas canções de saque. - Verdadeiros cavaleiros nunca fariam mal a mulheres e crianças - as palavras soaram-lhe ocas logo no momento em que as proferia. - Verdadeiros cavaleiros - a rainha parecia achar aquilo maravilhosamente divertido. - Não há dúvida de que tem razão. Portanto, por que é que não se limita a comer seu caldo como uma boa menina e esperar que Symeon Olhos de Estrela e o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, venham salvá-la, querida? Tenho certeza de que já não faltará muito tempo.
    527 Davos A Baía da Água Negra estava encrespada, cheia de cristas de onda por todo lado. O Betba Negra acompanhava a maré cheia, com a vela rangendo e estalando a cada mudança de vento. O Espectro e o Senhora Marya navegavam a seu lado, com não mais de 20 metros entre os cascos. Seus filhos sabiam manter um alinhamento. Davos orgulhava-se disso. Por sobre o mar soaram cornos de guerra, profundos gemidos guturais semelhantes aos chamamentos de monstruosas serpentes, repetidos de navio para navio. - Arriar a vela - ordenou Davos. - Desmontar o mastro. Remadores aos remos - seu filho Matthos transmitiu as ordens. O convés do Betha Negra agitou-se quando os tripulantes correram para desempenhar suas tarefas, abrindo caminho através de soldados que pareciam ficar sempre no caminho, onde quer que estivessem. Sor Imry tinha decretado que entrariam no rio só a remo, a fim de não expor as velas às balistas e catapultas de fogo das muralhas de Porto Real. Davos distinguia o Fúria bem afastado, para sudeste, as velas cintilando em dourado enquanto eram arriadas, com o veado coroado de Baratheon pintado na tela. Stannis Baratheon tinha comandado o assalto a Pedra do Dragão do convés daquele navio, dezesseis anos antes, mas daquela vez escolhera acompanhar o exército, confiando o Fúria e o comando da frota ao irmão da mulher, Sor Imry, que tinha passado para a sua causa em Ponta Tempestade com Lorde Alester e todos os outros Florent. Davos conhecia Fúria tão bem quanto seus próprios navios. Por cima de seus trezentos remos havia um convés dedicado completamente a balistas, e no convés superior tinha montadas, à frente e atrás, catapultas suficientemente grandes para arremessar barris de piche em chamas. Um navio formidável, e também muito rápido, embora Sor Imry o tivesse atulhado da proa à popa com cavaleiros em armaduras e homens de armas, o que teve seu custo em termos de rapidez. Os cornos de guerra voltaram a soar, ordens à deriva, vindas do Fúria. Davos sentiu um formigamento nas pontas cortadas dos dedos. - Remos ao mar - gritou. - Formar fileiras - uma centena de pás mergulhou na água no momento em que o tambor do mestre dos remadores começou a soar. O som era como o batimento de um grande coração lento, e os remos moviam-se a cada batida, cem homens puxando como um só. Asas de madeira tinham também brotado do Espectro e do Senhora Marya. As três galés mantiveram o mesmo ritmo, agitando a água com as pás. - Cruzeiro lento - gritou Davos. O navio de casco prateado de Lorde Velaryon, Orgulho de Derivamarca, tinha se deslocado para sua posição a bombordo do Espectro, e o Ousada Gargalhada aproximava-se rapidamente, mas o Bruxa só agora baixava os remos, e o Cavalo-Marinho ainda 528 lutava para desmontar o mastro. Davos olhou para a popa. Sim, ali, muito ao sul, aquilo só podia ser o Peixe-Espada, atrasado como sempre. Era um navio de duzentos remos e possuía o maior esporão da frota, se bem que Davos nutrisse severas dúvidas a respeito de seu capitão. Conseguia ouvir soldados gritando incentivos uns aos outros através da água. Tinham sido pouco mais do que lastro desde Ponta Tempestade, e estavam ansiosos por atirar-se sobre o inimigo, confiantes na vitória. Nisso, estavam em uníssono com seu almirante, o Senhor Capitão Supremo Sor Imry Florent. Três dias antes Sor Imry convocara todos os seus capitães para um conselho de guerra a bordo do Fúria, enquanto a frota permanecia ancorada na foz do Guaquevai, a fim de lhes comunicar seus planos. A Davos e aos filhos tinha sido atribuído um lugar na segunda linha de batalha, na perigosa ala de estibordo. - Um lugar de honra - declarara Allard, bastante contente com a oportunidade de demonstrar seu valor. - Um lugar de perigo - ressaltara o pai. Os filhos tinham-lhe lançado olhares compadecidos, até mesmo o jovem Maric. O Cavaleiro das Cebolas transformou-se numa velha, era. o que os ouvia pensar, ainda tem coração de contrabandista. Bem, a última parte era bastante verdadeira, e não pediria desculpa por isso. Seaworth possuía sonoridade nobre, mas no seu âmago ainda era Davos da Baixada das Pulgas, tornando à sua casa, à sua cidade erguida sobre as suas três grandes colinas. Sabia mais de navios, velas e costas que qualquer outro homem nos Sete Reinos, e tinha participado do seu quinhão de lutas desesperadas, espada contra espada, num convés molhado. Mas àquele tipo de batalha chegava virgem, nervoso e amedrontado. Os contrabandistas não fazem soar cornos de guerra nem erguem estandartes. Quando cheiram perigo, içam as velas e fogem à frente do vento. Se tivesse sido ele o almirante, teria feito tudo de outra forma. Para começar, teria enviado um punhado de seus navios mais rápidos rio acima, a fim de sondar aquilo que os esperava, em vez de atacar imprudentemente. Quando fizera essa sugestão a Sor Imry, o Senhor Capitão Supremo agradeceu cortesmente, mas seus olhos não tinham se mostrado tão delicados. Quem é esse covarde de baixo nascimento?, perguntavam seus olhos. Será aquele que comprou o grau de cavaleiro com uma cebola? Com quatro vezes mais navios do que o rei rapaz, Sor Imry não via motivos para cautelas ou táticas de engano. Organizara a frota em dez linhas de batalha, cada uma com vinte navios. As primeiras duas subiriam o rio para dar batalha e destruir a pequena frota de Joffrey, ou "os brinquedos do rapaz", como Sor Imry os chamava, para diversão dos senhores seus capitães. Aquelas que viriam atrás desembarcariam companhias de arqueiros e lanceiros sob as muralhas da cidade, e só então se juntariam à batalha no rio. Os navios menores e mais lentos da retaguarda transbordariam a parte principal da tropa de Stannis a partir da margem sul, protegidos por Salladhor Saan e seus lisenos, que permaneceriam na baía para o caso de os Lannister possuírem outros navios escondidos ao longo da costa, preparados para cair sobre a retaguarda da frota de Stannis. Para ser justo, havia motivos para a pressa de Sor Imry. Os ventos não os tinham tratado com gentileza na viagem de Ponta Tempestade. Tinham perdido duas cocas nos rochedos da Baía dos Naufrágios, no mesmo dia em que zarparam, uma péssima maneira de começar. Uma das galés de Myr fora a pique nos Estreitos de Tarth, e uma tempestade assolara-os ao entrarem na Goela, espalhando a frota por metade do Mar Estreito. Todos os navios, exceto doze, tinham por fim se reagrupado atrás da ponta abrigada do Gancho de Massey, nas águas mais calmas da Baía da Água Negra, mas não antes de perderem um tempo considerável. 529 Stannis devia ter chegado à Torrente vários dias antes. A estrada do rei seguia reto de Ponta Tempestade a Porto Real, uma rota muito mais curta do que por mar, e a maior parte de sua tropa estava a cavalo; quase vinte mil cavaleiros, cavalaria leve e cavaleiros livres, o involuntário legado de Renly ao irmão. Teriam feito um bom tempo, mas cavalos de batalha couraçados e lanças de três metros e meio pouco adiantariam contra as águas profundas da Torrente da Água Negra e as altas muralhas de pedra da cidade. Stannis estaria acampado com seus senhores na margem sul do rio, sem dúvida fervendo de impaciência e perguntando-se o que Sor Imry teria feito de sua frota. Ao largo do Rochedo do Badejo, dois dias antes, tinham avistado meia dúzia de esquifes de pesca. Os pescadores tinham fugido ao vê-los, mas um por um foram alcançados e abordados. - Uma colherada de vitória é a coisa certa para sossegar o estômago antes da batalha - Sor Imry declarara satisfeito. - Deixa os homens famintos por doses maiores. Mas Davos se interessara mais pelo que os cativos tinham a dizer a respeito das defesas de Porto Real. O anão andara atarefado construindo uma espécie de dique flutuante para fechar a foz do rio, embora os pescadores diferissem quanto à obra ter sido concluída ou não. Deu por si desejando que sim. Se o rio lhes estivesse vedado, Sor Imry não teria alternativa a não ser parar e avaliar a situação. O mar estava cheio de sons: gritos e chamados, cornos de guerra, tambores e trinados de flauta, o bater da madeira na água à medida que milhares de remos se erguiam e caíam. - Manter a linha - Davos gritou. Uma rajada de vento puxou seu velho manto verde. Um justilho de couro fervido e um elmo redondo que tinha aos pés eram sua única armadura. Acreditava que, no mar, o aço pesado era mais capaz de tirar a vida de um homem do que de salvá-la. Sor Imry e os outros capitães de elevado nascimento não partilhavam de seu ponto de vista; cintilavam enquanto percorriam os respectivos conveses. O Bruxa e o Cavalo-Marinho tinham agora deslizado para os seus lugares, bem como o Garra Vermelha de Lorde Celtigar atrás deles. A estibordo do Senhora Marya de Allard encontravam-se as três galés que Stannis capturara do infeliz Lorde Sunglass, Piedade, Prece e Devoção, com os conveses repletos de arqueiros. Até o Peixe-Espada se aproximava, avançando pesadamente, aos balanços, através de um mar que engrossava, impulsionado tanto por velas como por remos. Um navio de tantos remos deveria ser muito mais rápido, Davos refletiu, desaprovando. É aquele esporão que transporta, é grande demais, o navio não tem equilíbrio. O vento soprava em rajadas do sul, mas para navios que avançavam a remo não importava. Avançariam na maré cheia, mas os Lannister teriam a seu favor a corrente do rio, e a Torrente da Água Negra corria forte e rápida onde encontrava o mar. O primeiro choque iria inevitavelmente favorecer o inimigo. Somos loucos por confrontá-los na Água Negra, Davos pensou. Em qualquer encontro em mar aberto, as linhas de batalha da frota envolveriam a frota inimiga por ambos os flancos, empurrando-a para dentro, para sua destruição. Mas, no rio, o número e peso dos navios de Sor Imry seriam prejudiciais. Não podiam fazer mais de vinte navios avançarem lado a lado, para não se arriscarem a emaranhar os remos e a colidir uns com os outros. Para lá da fileira de navios de guerra, Davos conseguia ver a Fortaleza Vermelha no topo da Colina de Aegon, escura contra um céu cor de limão, com a foz da Torrente abrindo-se por baixo. Do outro lado do rio, a margem sul estava negra de homens e cavalos, agitando-se como formigas irritadas ao vislumbrarem os navios que se aproximavam. Stannis devia ter mantido seus homens ocupados construindo jangadas e fazendo flechas, mas mesmo assim a espera teria sido difícil de suportar. Soaram trombetas entre eles, minúsculas e metálicas, rapidamente engolidas pelo 530 rugido de um milhar de gritos. Davos fechou a mão deformada em volta da bolsa que continha os ossos de seus dedos e articulou uma prece silenciosa, pedindo sorte. O próprio Fúria constituiria o centro da primeira linha de batalha, flanqueado por Lorde Stejfion e Veado do Mar, ambos com duzentos remos. Nas alas de bombordo e estibordo dispunham-se os navios de cem remos: Senhora Harra, Peixe Brilhante, Lorde que Ri, Demônio do Mar, Honra Chifruda, Jenna Esfarrapada, Tridente Três, Espada Ligeira, Princesa Rhaenys, Focinho de Cão, Cetro, Fiel, Gralha Vermelha, Rainha Alysanne, Gato, Corajoso e Perdição de Dragão, Em todas as popas flutuava o coração flamejante do Senhor da Luz, vermelho, amarelo e laranja. Atrás de Davos e dos filhos vinha outra linha de navios de cem remos comandados por cavaleiros e capitães senhoriais, e depois o contingente de Myr, navios menores e mais lentos, nenhum deles com mais de oitenta remos. Mais para trás viriam os navios a vela, os galeões e as grandes e pesadas cocas, e, por fim, Salladhor Saan, em sua orgulhosa Valiriana, uma altaneira galé de trezentos remos, acompanhada pelo resto de suas galés com seu característico casco rajado. O extravagante principezinho liseno não ficara contente quando lhe foi atribuída a retaguarda, mas era claro que Sor Imry não confiava nele mais do que Stannis. Queixas demais e conversas demais a respeito do ouro que lhe era devido. Mesmo assim, Davos lamentava. Salladhor Saan era um velho pirata cheio de recursos, e sua tripulação era composta por marinheiros natos, destemidos em batalha. Eram desperdiçados na retaguarda, Auuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, O chamado espalhou-se por sobre a espuma do mar e os remos agitados, vindo do castelo de proa do Fúria: Sor Imry fazia soar o toque de atacar. Auuuuuuuuuuuuuuuuuuu, auuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, Peixe-Espada tinha enfim se reunido à linha, embora ainda tivesse a vela desfraldada. - Cruzeiro rápido - ladrou Davos. O tambor começou a soar mais depressa, e as remadas aceleraram, com as pás dos remos cortando a água, splash-suoch, splash-suoch, splash-suoch, No convés, soldados batiam com as espadas nos escudos, enquanto arqueiros encordoavam os arcos em silêncio e tiravam a primeira flecha das aljavas que traziam à cintura. As galés da primeira linha de batalha obscureciam sua vista, e Davos percorreu o convés em busca de uma posição melhor. Não viu nenhum sinal de um dique; a foz do rio estava aberta, como que à espera de engolir a todos. Exceto... Em seus tempos de contrabandista, Davos brincava com freqüência dizendo que conhecia a margem de Porto Real bem melhor do que as costas de suas mãos, pois não tinha passado uma boa parte da vida entrando e saindo às escondidas das costas das mãos. As torres atarracadas de pedra nova e bruta que se erguiam de frente uma para a outra na foz da Água Negra podiam não querer dizer nada para Sor Imry Florent, mas para ele era como se dois dedos extras tivessem brotado dos nós de seus dedos. Protegendo os olhos do sol que vinha do oeste, observou mais de perto essas torres. Eram pequenas demais para conter uma grande guarnição. A da margem norte tinha sido construída contra a falésia onde a Fortaleza Vermelha se empoleirava, carrancuda; sua irmã da margem sul tinha a base dentro dagua. Escavaram um fosso na margem, compreendeu de imediato. Isso tornaria a torre muito difícil de assaltar; os atacantes teriam de atravessar a água a vau ou construir uma ponte sobre o estreito canal. Stannis havia colocado arqueiros embaixo para disparar contra os defensores sempre que algum fosse suficientemente imprudente para erguer a cabeça acima das ameias, mas, fora isso, não tinha se incomodado. Algo cintilava embaixo, onde a água escura redemoinhava em torno da base da torre. Era a luz do sol refulgindo em aço, e isso disse a Davos Seaworth tudo o que precisava saber. Uma barragem de corrente... e, no entanto, eles não fecharam o rio contra nós. Por quê? 531 Também podia fazer uma suposição quanto a isso, mas não houve tempo para refletir sobre a questão. Surgiu um grito vindo dos navios em frente, e os cornos de guerra voltaram a soar: o inimigo encontrava-se diante da frota. Por entre os remos brilhantes do Cetro e do Fiel, Davos viu uma estreita linha de galés atravessada no rio, com o sol cintilando na tinta dourada que distinguia seus cascos. Conhecia aqueles navios tão bem quanto os seus. Quando era contrabandista, sentia-se sempre mais seguro sabendo se a vela no horizonte assinalava um navio rápido ou lento, e se o seu capitão era um jovem faminto de glória ou um velho nos últimos dias de serviço. Auuuuuuuuuuuuuuuuuu, berraram os cornos de guerra. - Velocidade de batalha - Davos gritou. A bombordo e estibordo ouviu Dale e Allard darem a mesma ordem. Tambores começaram a bater furiosamente, remos erguiam-se e caíam, e o Betha Negra correu em frente. Quando olhou de relance o Espectro, Dale fez uma saudação. O Peixe-Espada estava de novo se atrasando, rebolando-se na esteira dos navios menores de ambos os lados; fora isso, a linha seguia reta como uma muralha de escudos. O rio que parecera tão estreito a distância alargava-se agora como um mar, mas a cidade também se tornara gigantesca. Debruçada, mal-humorada, da Colina de Aegon, a Fortaleza Vermelha dominava as vias de aproximação. Suas ameias coroadas de ferro, sólidas torres e espessas muralhas vermelhas davam-lhe o aspecto de um animal feroz arqueando o dorso sobre o rio e as ruas. As falésias sobre as quais se acocorava eram abruptas e rochosas, manchadas de liquens e árvores deformadas e espinhosas. A frota teria de passar sob o castelo para atingir o porto e a cidade que ficavam mais adiante. A primeira linha encontrava-se agora no rio, mas as galés inimigas recuavam. Querem nos atrair. Querem nossos navios amontoados, apertados, sem ter como contornar seus flancos... e com aquela represa atrás de nós. Percorreu o convés, projetando o pescoço para melhor observar a frota de Joffrey. Viu que os brinquedos do garoto incluíam o imponente Graça dos Deuses, o velho e lento Príncipe Aemon, o Senhora de Seda e seu irmão, Vergonha da Senhora, Vento Vivo, Portorrealense, Veado Branco, o Lança, Flor do Mar. Mas, onde estava o Estrela Leonina? Onde estava o belo Senhora Lyanna que o Rei Robert batizara em honra da donzela que amara e perdera? E onde estava o Martelo do Rei Robertí Era a maior galé de guerra da frota real, com quatrocentos remos, o único dos navios de guerra que o jovem rei possuía capaz de se sobrepor ao Fúria, Deveria constituir o coração de qualquer defesa. Davos sentiu o sabor de uma armadilha, mas não viu sinal de inimigos aproximando-se por trás, só a grande frota de Stannis Baratheon em suas fileiras ordenadas, estendendo-se até o horizonte aquático. Será que erguerão a corrente e nos cortarão ao meio? Não via de que serviria isso. Os navios deixados na baía ainda poderiam desembarcar homens ao norte da cidade; uma travessia mais lenta, mas mais segura. Um bando de tremeluzentes pássaros cor de laranja levantou voo do castelo, vinte ou trinta; potes de piche em chamas, voando em arco sobre o rio, trazendo atrás de si fios de chamas. As águas comeram a maior parte, mas alguns encontraram os conveses de galés na primeira linha de batalha, espalhando chamas onde se estilhaçavam. Havia homens de armas numa agitação frenética no convés do Rainha Alysanne, e era possível ver fumaça subindo de três locais diferentes na Perdição de Dragão, que estava mais perto da margem. Então, já um segundo bando vinha a caminho, e também caíam flechas, assobiando, provenientes dos ninhos de arqueiros salpicados no alto das torres. Um soldado tropeçou na amurada do Gato, caiu sobre os remos e afundou. O primeiro homem a morrer hoje, Davos pensou, mas não será o último. 532 No topo das ameias da Fortaleza Vermelha flutuavam os estandartes do rei rapaz: o veado coroado de Baratheon no seu fundo dourado, o leão de Lannister sobre carmim. Mais potes de piche chegaram voando. Davos ouviu homens gritar quando o fogo se espalhou sobre o Corajoso. Os remadores da galé estavam a salvo embaixo, protegidos dos projéteis pelo meio convés que os abrigava, mas os homens de armas aglomerados em cima não tinham tanta sorte. A ala a estibordo estava apanhando com todo o embate, tal como receara. Em breve será a nossa vez, recordou-se, preocupado. O Betha Negra estava bem ao alcance dos potes de fogo, o sexto navio a partir da margem norte. A estibordo, tinha apenas o Senhora Marya de Allard, o deselegante Peixe-Espada - agora tão atrasado que se encontrava mais próximo da terceira linha do que da segunda - e Piedade, Prece e Devoção, que precisariam de toda a intervenção divina que pudessem reunir no local vulnerável em que estavam. Quando a segunda linha passou pelas torres gêmeas, Davos olhou-as melhor. Conseguia ver três elos de uma enorme corrente serpenteando de um buraco que não era maior do que a cabeça de um homem e desaparecendo na água. As torres tinham uma única porta, colocada a uns seis metros do chão. Arqueiros no telhado da torre norte estavam disparando sobre o Prece e o Devoção. Os arqueiros no Devoção responderam, e Davos ouviu um homem gritar quando as flechas o encontraram. - Meu capitão - Matthos, seu filho, estava ao seu lado. - O seu elmo - Davos o pegou com ambas as mãos e o colocou na cabeça. O elmo não tinha viseira; detestava ter a visão restringida. Então os potes de piche já choviam ao redor deles. Viu um estilhaçar-se no convés do Senhora Marya, mas a tripulação de Allard o apagou rapidamente. A bombordo, soaram cornos de guerra no Orgulho de Derivamarca. Os remos faziam jorros de água voar a cada remada. O dardo de um metro de comprimento de uma balista caiu a cerca de meio metro de Matthos e afundou-se na madeira do convés, com um ruído abafado. Em frente, a primeira linha encontrava-se ao alcance dos arcos do inimigo; enxames de flecha voaram entre os navios, silvando como serpentes. Ao sul da Água Negra, Davos viu homens arrastando grosseiras jangadas para a água enquanto fileiras e colunas se formavam sob mil estandartes esvoaçantes. O coração flamejante estava por toda parte, embora o minúsculo veado negro aprisionado nas chamas fosse pequeno demais para se ver. Devíamos ter hasteado o veado coroado, pensou. O veado era o símbolo do Rei Robert, a cidade rejubilaria ao vê-lo. Esse estandarte de um estranho só serve para colocar os homens contra nós. Não conseguia observar o coração flamejante sem pensar na sombra que Melisandre tinha parido na escuridão por baixo de Ponta Tempestade. Pelo menos lutamos essa batalha à luz, com as armas de homens honestos, disse a si mesmo. A mulher vermelha e seus filhos escuros não tomariam parte nela. Stannis a enviara para Pedra do Dragão com o sobrinho bastardo, Edric Storm. Seus capitães e vassalos tinham insistido que um campo de batalha não era lugar para uma mulher. Só os homens da rainha tinham manifestado opinião diferente, e não com grande vigor. Mesmo assim, o rei se mostrara propenso a não lhes dar ouvidos, até que Lorde Bryce Caron disse: - Vossa Graça, se a feiticeira estiver conosco, depois da batalha os homens dirão que a vitória foi dela, não sua. Dirão que deve a coroa aos seus feitiços - isso havia mudado a maré. O próprio Davos mantivera a boca fechada durante a discussão, mas, a bem da verdade, não ficou triste por vê-la longe. Não queria nada com Melisandre ou seu deus. A estibordo, o Devoção aproximou-se da margem, estendendo uma prancha. Arqueiros correram para os baixios, deixando os arcos bem levantados sobre as cabeças, a fim de manter as cordas secas. Subiram para o terreno seco na estreita faixa sob a falésia. Começaram a cair pedras 533 vindas do castelo, aterrissando no meio deles, e também flechas e lanças, mas o ângulo era inclinado e os projéteis pareceram causar poucos danos. O Prece acostou vinte metros na direção da nascente e o Piedade estava se dirigindo para a margem quando os defensores chegaram pela margem do rio, com os cascos de seus cavalos de guerra fazendo espirrar água dos baixios. Os cavaleiros caíram sobre os arqueiros como lobos sobre galinhas, empurrando-os de novo para os navios e o rio antes que muitos deles conseguissem sequer colocar uma flecha no arco. Homens de armas correram para defendê-los com lanças e machados, e em três segundos a cena transformou-se num caos encharcado de sangue. Davos reconheceu o elmo em forma de cabeça de cão do Cão de Caça. Um manto branco pendia de seus ombros enquanto levava o cavalo pela prancha até o convés do Prece, abatendo qualquer um que por acaso se pusesse ao seu alcance. Para lá do castelo, Porto Real erguia-se em suas colinas por trás das muralhas que a rodeavam. A zona ribeirinha era uma devastação enegrecida; os Lannister tinham queimado tudo, retirando-se para dentro do Portão da Lama. Os mastros carbonizados de velhos navios afundados ocupavam os baixios, impedindo o acesso aos longos cais de pedra. Não teremos desembarque ali. Conseguia ver o topo de três enormes trabucos atrás do Portão da Lama. Lá em cima, na Colina de Visenya, a luz do sol refulgia nas sete torres de cristal do Grande Septo de Baelor. Davos não viu as partes entrarem em choque, mas ouviu; um grande estrondo lacerante quando duas galés colidiram. Não soube dizer quais. Outro impacto ecoou sobre a água um instante mais tarde, e logo um terceiro. Sob o grito da madeira estilhaçando-se, ouviu o profundo trumtump da catapulta dianteira do Fúria, O Veado do Mar abriu em duas uma das galés de Joffrey, mas o Focinho de Cão ardia e o Rainha Alysanne encontrava-se preso entre o Senhora de Seda e o Vergonha da Senhora, com a tripulação lutando com os inimigos de amurada a amurada. Bem em frente, Davos viu o Portorrealense do inimigo introduzindo-se entre o Fiel e o Cetro. O primeiro tirou os remos de estibordo do caminho antes do impacto, mas os remos de bombordo do Cetro partiram-se como gravetos quando o Portorrealense varreu seu costado. - Atirar - Davos ordenou, e seus arqueiros lançaram uma fulminante chuva de flechas sobre a água. Viu o capitão do Portorrealense cair e tentou se lembrar do nome do homem. Em terra, os braços dos grandes trabucos ergueram-se, um, dois, três, e uma centena de pedras subiu bem alto no céu amarelo. Cada uma era tão grande quanto a cabeça de um homem; quando caíram, jogaram para o alto grandes jorros de água, atravessaram pranchas de carvalho e transformaram homens vivos em ossos, polpa e cartilagem. Por toda a largura do rio, a primeira linha lutava. Âncoras foram arremessadas, espigões de ferro penetraram em cascos de madeira, homens saltaram sobre embarcações adversárias, grupos de flechas cruzaram-se na fumaça que pairava no ar, sussurrando, e homens morreram.,, Mas, até agora, nenhum dos seus. O Betha Negra avançou rio acima, com o som do tambor do mestre dos remadores trovejando na cabeça do capitão enquanto procurava uma boa vítima para o esporão do navio. O Rainha Alysanne estava encurralado entre dois navios de guerra Lannister, os três unidos por ganchos e cordas. - Velocidade de abalroamento! - Davos gritou. As batidas de tambor fundiram-se num longo martelar febril, e o Betha Negra voou, tornando a água branca como leite ao se abrir para sua proa. Allard tinha visto a mesma oportunidade; o Senhora Marya corria ao lado deles. A primeira linha havia se transformado numa confusão de lutas separadas. Os três navios enleados cresceram à frente do Betha, virando-se, com os conveses transformados num caos vermelho de homens que se golpeavam uns aos outros com espadas e 534 machados. Um poucomais, suplicou Davos Seaworth ao Guerreiro,faça-o rodar um pouco mais, mostre-me seu flanco. O guerreiro devia estar ouvindo. Betha Negra e Senhora Marya colidiram com o costado do Vergonha da Senhora a um instante de intervalo um do outro, golpeando sua proa e sua popa com tanta força que homens foram atirados do convés do Senhora de Seda, três navios depois. Davos quase cortou a língua quando seus dentes se entrechocaram. Cuspiu sangue. Da próxima vez feche a boca, imbecil. Quarenta anos no mar, e aquela havia sido a primeira vez que abalroara outro navio. Seus arqueiros estavam disparando flechas à vontade. - Recuar - ele ordenou. Quando o Betha Negra reverteu o movimento dos remos, o rio penetrou no buraco estilhaçado que se formara, e o Vergonha da Senhora desfez-se diante de seus olhos, despejando dezenas de homens no rio. Alguns dos vivos nadaram; alguns dos mortos boiaram; aqueles vestidos de cota de malha pesada ou placa de aço afundaram, tanto os vivos como os mortos. As súplicas de homens que se afogavam ecoaram em seus ouvidos. Um relâmpago verde chamou sua atenção, em frente e para bombordo, e um ninho de serpentes esmeralda que se contorciam subiu, ardendo e silvando, da popa do Rainha Alysanne. Um instante depois, Davos ouviu o terrível grito de"Fogovivo!". Fez uma careta. Piche em chamas era uma coisa, fogovivo, outra bem diferente. Coisa maligna, e praticamente impossível de extinguir. Se for abafado sob um manto, este incendeia-se; se bater num respingo com a palma da mão, a mão toda fica em chamas. "Mije em fogovivo, e seu pau queima", gostavam de dizer os velhos marinheiros. Em todo caso, Sor Imry prevenira-os de que era provável que viessem a experimentar um pouco da vil substância dos alquimistas. Felizmente, restavam poucos verdadeiros piromantes. Ficarão rapidamente sem fogovivo, assegurara-lhes Sor Imry. Davos disparou ordens; os remos de um dos lados do navio o empurraram para a frente enquanto os do outro o puxavam para trás, e a galé virou-se. O Senhora Marya também tinha se libertado, ainda bem; o fogo espalhava-se pelo Rainha Alysanne, e seus inimigos, mais depressa do que Davos teria acreditado ser possível. Homens engrinaldados de chamas verdes saltavam na água, com guinchos que nada tinham de humano. Nas muralhas de Porto Real, catapultas de fogo vomitavam morte, e os grandes trabucos por trás do Portão da Lama atiravam pedregulhos. Um, do tamanho de um boi, caiu entre o Betha Negra e o Espectro, fazendo ambos os navios oscilar e ensopando todos os homens que se encontravam nos conveses. Outro, não muito menor, atingiu o Ousada Gargalhada. A galé de Velaryon explodiu como um brinquedo de criança derrubado de uma torre, espalhando lascas tão longas como o braço de um homem. Através da fumaça negra e do rodopiante fogo verde, Davos vislumbrou um grupo de pequenos barcos descendo o rio: uma confusão de balsas e catraias, barcaças, esquifes, botes e cascos que pareciam podres demais para flutuar. Aquilo fedia a desespero; madeira à deriva não podia virar a maré de uma batalha, só atrapalharia. Percebeu que as linhas de batalha se encontravam irremediavelmente embaraçadas. A bombordo, Lorde Stejfon, Jenna Esfarrapada e Espada Ligeira tinham conseguido passar pelas linhas inimigas e avançavam rio acima. Mas a ala de estibordo estava envolvida numa dura luta, e o centro tinha se estilhaçado sob as pedras daqueles trabucos, com alguns capitães virando para jusante e outros guinando para bombordo, tudo para escapar da chuva esmagadora. O Fúria virara a catapulta dianteira para disparar na direção da cidade, mas faltava-lhe alcance; os barris de piche despedaçavam-se sob as muralhas. O Ceíro perdera a maior parte de seus remos, e o Fiel havia sido abalroado e começava a adernar. Davos fez o Betha Negra avançar por entre esses dois navios e deu um golpe de raspão na ornamentada, esculpida e 535 dourada barcaça de prazer da Rainha Cersei, agora carregada de soldados em vez de guloseimas. A colisão atirou uma dúzia ao rio, onde os arqueiros do Betha alvejaram os homens enquanto estes tentavam se manter na superfície. O grito de Matthos alertou-o para o perigo vindo de bombordo; uma das galés Lannister aproximava-se para tentar abalroar. - Força para estibordo - Davos gritou. Seus homens usaram os remos para se libertarem da barcaça, enquanto outros viravam a galé para que a proa enfrentasse a investida do Veado Branco. Por um momento temeu ter sido lento demais e estar prestes a afundar, mas a correnteza ajudou a virar o Betha Negra, e quando o impacto chegou, foi apenas um golpe de través, com os dois cascos raspando um no outro e ambos os navios perdendo remos. Um pedaço irregular de madeira voou perto de sua cabeça, afiado como uma lança. Davos estremeceu: - A abordagem! - gritou. Arpões foram lançados. Desembainhou a espada e saltou a amurada à frente de seus homens. A tripulação do Veado Branco enfrentou-os na amurada, mas os homens de armas do Betha Negra caíram sobre eles numa ruidosa maré de aço. Davos abriu caminho lutando através da confusão, em busca do outro capitão, mas o homem já estava morto quando chegou até ele. Enquanto estava em pé por cima do cadáver, alguém o apanhou por trás com um machado, mas o elmo desviou o golpe e seu crânio ficou ressoando, em vez de ter sido rachado. Tonto, a única coisa que conseguiu fazer foi rolar. Seu atacante investiu aos gritos. Davos agarrou a espada com ambas as mãos e enfiou a ponta na barriga do homem. Um dos membros da sua tripulação o ajudou a ficar em pé. - Meu capitão, o Veado é nosso - Davos viu que era verdade. A maior parte dos inimigos estava morta, moribunda ou rendida. Tirou o elmo, limpou sangue do rosto e dirigiu-se de volta ao seu navio, pondo o pé com cuidado em pranchas escorregadias com vísceras humanas. Matthos estendeu uma mão para ajudá-lo a transpor a amurada. Durante esses poucos instantes, o Betha Negra e o Veado Branco foram o olho calmo no centro do furacão. Rainha Alysanne e Senhora de Seda, ainda presos um ao outro, eram um inferno verde à deriva, descendo o rio e arrastando pedaços do Vergonha da Senhora, Uma das galés de Myr tinha colidido com eles e agora também estava em chamas. O Gato recebia homens do Corajoso, que afundava rapidamente. O capitão do Perdição de Dragão enfiara-o entre dois cais, rasgando o fundo; a tripulação saltava para terra com os arqueiros e homens de armas, se juntando ao assalto às muralhas. O Gralha Vermelha, abalroado, ia adernando devagar. O Veado do Mar lutava ao mesmo tempo contra o fogo e a abordagem, mas o coração flamejante fora erguido sobre o Homem Leal de Joffrey. O Fúria, com a orgulhosa proa esmagada por um pedregulho, travava batalha com o Graça dos Deuses. Davos viu o Orgulho de Derivamarca de Lorde Velaryon arremeter entre duas das barcaças dos Lannister, virando uma delas e pondo fogo na outra com flechas incendiárias. Na margem sul, cavaleiros levavam as montarias para o interior das cocas e algumas das galés menores já se encontravam em plena travessia, repletas de homens de armas. Tinham de abrir caminho com cuidado por entre navios que afundavam e manchas de fogovivo que seguiam ao sabor da corrente. Toda a frota do Rei Stannis estava agora no rio, à exceção dos lisenos de Salladhor Saan. Em pouco tempo teriam controle da Água Negra. Sor Imry terá a sua vitória, Davos pensou, e Stannis atravessará o rio com a sua tropa, mas, benditos sejam os deuses, a que custo... - Meu capitão! - Matthos tocou em seu ombro. Era o Peixe-Espada, com as duas fileiras de remos subindo e descendo. Não chegara a baixar as velas, e um pouco do piche ardente incendiara seu cordame. As chamas espalharam-se enquanto 536 Davos observava, rastejando por cordas e velas, até que o navio ficou encimado por uma cabeça de chamas amarelas. Seu desajeitado esporão de ferro, com a forma do peixe que dera nome ao navio, abria a superfície da água à sua frente. Bem adiante, à deriva em sua direção e virando-se para lhe apresentar um alvo gordo e tentador, encontrava-se um dos cascos dos Lannister, flutuando baixo na água. Sangue verde escoava lentamente por entre as pranchas. Quando viu aquilo, o coração de Davos Seaworth parou de bater. - Não - disse. - Não, NÃÃÃÃÃÃÃÃO! - com o rugir e estrondear da batalha, ninguém o ouviu além de Matthos. O capitão do Peixe-Espada certamente não, decidido como estava a finalmente abalroar qualquer coisa com a sua desajeitada e gorda espada. O Peixe-Espada passou para velocidade de batalha. Davos ergueu a mão mutilada e apertou a bolsa de couro que continha os ossos de seus dedos. Com um estrondo de madeira moída, despedaçada, rasgada, o Peixe-Espada partiu em dois o casco apodrecido. O velho barco estourou como uma fruta apodrecida, mas nenhuma fruta gritaria aquele esmagador grito de madeira. Davos viu verde jorrando de um milhar de frascos quebrados dentro do casco, veneno escorrendo das entranhas de um animal moribundo, cintilando, brilhando, espalhando-se pela superfície do rio... - Recuar - ele rugiu. - Fora, tirem-nos daqui, recuar, recuar! - as cordas dos arpões foram cortadas, e Davos sentiu o convés se mover sob seus pés quando o Betha Negra se libertou do Veado Branco. Seus remos deslizaram para a água. Então, Davos ouviu um curto e penetrante uuf como se alguém tivesse soprado ao seu ouvido. Meio segundo depois chegou o rugido. O convés desapareceu sob seus pés, e água negra bateu em seu rosto, enchendo-lhe o nariz e a boca. Estava sufocando, afogando-se. Incerto de qual das direções era a que levava para cima, Davos lutou contra o rio num pânico cego até de repente romper a superfície. Cuspiu água, inspirou ar, agarrou-se ao pedaço de entulho mais próximo e segurou-se bem. O Peixe-Espada e o casco tinham desaparecido, corpos enegrecidos flutuavam para jusante ao seu lado, bem como homens sufocados que se agarravam a pedaços de madeira fumegante. Com quinze metros de altura, um demônio turbilhonante de chamas verdes dançava sobre o rio, Tinha uma dúzia de mãos, em cada uma trazia um chicote, e o que quer que tocassem rompia em chamas. Davos viu o Betha Negra ardendo, e também o Veado Branco e o Homem Leal, que o flanqueavam. Piedade, Gato, Corajoso, Cetro, Gralha Vermelha, Bruxa, Fiel, Fúria, todos tinham se incendiado, Portorrealense e Graça dos Deuses também, o demônio estava comendo os seus. O brilhante Orgulho de Derivamarca de Lorde Velaryon estava tentando desviar, mas o demônio passou um dedo preguiçoso por seus remos prateados, e eles incendiaram-se como outros tantos círios. Por um instante, o navio pareceu estar batendo o rio com duas fileiras de longos e brilhantes archotes. Nesse momento a correnteza já o tinha preso em seus dentes, fazendo-o girar e girar. Deu um pontapé para evitar uma mancha flutuante de fogovivo. Meus filhos, pensou Davos, mas não havia maneira de procurá-los no meio do trovejante caos. Outro casco pesado de fogovivo incendiou-se atrás dele. Água Negra parecia ferver no seu leito, e mastros ardendo, homens ardendo e pedaços de navios quebrados enchiam o ar. Estou sendo levado para a baía. Ali não seria tão ruim; devia ser capaz de chegar à costa, era um bom nadador. As galés de Salladhor Saan estariam também na baía. Sor Imry ordenara-lhes que ficassem longe... E então a correnteza voltou a virá-lo, e Davos viu o que o esperava a jusante. 537 A corrente. Que os deuses nos salvem, eles içaram a corrente. Onde o rio se alargava para a Baía da Água Negra, a barragem estendia-se esticada, não mais do que uns setenta ou oitenta centímetros acima da água. Já uma dúzia de galés tinha colidido com ela, e a correnteza do rio empurrava outras para o mesmo local. Quase todas estavam em chamas, e as demais estariam em breve. Davos conseguiu distinguir os cascos listrados dos navios de Salladhor Saan para lá da barragem, mas sabia que nunca os alcançaria. Uma muralha de aço em brasa, madeira ardendo e rodopiantes chamas verdes estendia-se à sua frente. A foz da Torrente da Água Negra transformara-se na boca do inferno. 538 Tyrion Imóvel como uma gárgula, Tyrion Lannister apoiava-se num joelho, no topo de um merlão. Para lá do Portão da Lama e da ruína que outrora fora o mercado de peixe e os cais, o próprio rio parecia ter se incendiado. Metade da frota de Stannis estava em chamas, bem como a maior parte da de Joffrey. O beijo do fogovivo transformava orgulhosos navios em piras funerárias e homens em tochas vivas. Rumo à foz, tanto plebeus como capitães de elevado nascimento conseguiam ver a quente morte verde rodopiar na direção de jangadas, galeões e balsas, conduzida pela corrente da Água Negra. Os longos remos brancos das galés de Myr relampejavam como patas de centopeias enlouquecidas lutando para se virar, mas não valia a pena. As centopeias não tinham para onde fugir. Uma dúzia de grandes incêndios enfurecia-se sob as muralhas da cidade, onde barris de piche ardente tinham explodido, mas o fogovivo reduzia-os a simples velas numa casa em chamas, flâmulas laranja e escarlate que tremulavam sem significado diante do holocausto jade. As nuvens baixas capturavam a cor do rio em chamas e cobriam o céu em tons mutantes de verde de uma beleza fantasmagórica. Uma beleza terrível. Como fogo de dragão, Tyrion perguntou a si mesmo se Aegon, o Conquistador, teria se sentido assim quando voou sobre seu Campo de Fogo. O vento quente ergueu seu manto carmim e bateu em seu rosto nu, mas não podia desviar os olhos. Estava vagamente consciente dos homens de manto dourado dando vivas nas grades. Não tinha voz para se juntar a eles. Aquilo era uma meia vitória. Não será suficiente. Viu outro dos cascos que tinha recheado com os instáveis frutos do Rei Aerys ser envolvido pelas chamas famintas. Do rio jorrou uma fonte de jade ardente, uma explosão tão brilhante que teve de proteger os olhos. Plumas de fogo com dez e doze metros de altura dançaram sobre as águas, estalando e silvando. Por alguns momentos, os gritos silenciaram. Havia centenas de homens na água, afogando-se, queimando ou fazendo um pouco de ambas as coisas. Ouve-os gritando, Stannis? Vê-os ardendo? Isto é tanto obra sua como minha. Tyrion sabia que em algum lugar, naquela efervescente massa de homens ao sul da Água Negra, Stannis também observava. Nunca possuíra a sede de batalha do irmão Robert. Estaria dando ordens a partir da retaguarda, da reserva, bem ao modo que Lorde Tywin Lannister costumava fazer. Gostasse ou não, agora estava sentado num cavalo de batalha, vestido de armadura reluzente, com a coroa na cabeça. Uma coroa de ouro vermelho, segundo Varys diz, com as pontas emjorma de chamas. - Os meus navios - a voz de Joffrey falhou ao gritar do adarve, onde se amontoava com os guardas atrás das ameias. O anel dourado da condição régia adornava seu elmo de batalha. - Meu Portorrealense está queimando, e o Rainha Cersei, e o Homem Leal. Olhem, aquele ali é o Flor do Mar - apontou com a sua nova espada para onde as chamas verdes lambiam o casco dourado do 539 navio e subiam por seus remos. O capitão virara-o para a foz, mas não suficientemente depressa para fugir do fogovivo. Tyrion sabia que o navio estava condenado. Não havia outra maneira. Se não tivéssemos ido ao seu encontro, Stannis teria percebido a armadilha. Uma flecha podia ser apontada, e uma lança também, e até uma pedra lançada por uma catapulta, mas o fogovivo possuía vontade própria. Uma vez libertado, estava para lá do controle de meros homens. - Não se podia evitar - ele disse ao sobrinho. - Nossa frota estava condenada de qualquer modo. Mesmo de cima do merlão, era pequeno demais para ver por sobre as ameias, então tinha mandado que o levantassem, chamas, fumaça e caos da batalha tornavam-lhe impossível ver o que se passava a jusante, à sombra do castelo, mas vira-o mil vezes com o olho da mente. Bronn teria posto os bois em movimento no instante em que o navio almirante de Stannis passasse sob a Fortaleza Vermelha; a corrente era pesada ao extremo, e só se conseguia movimentar os grandes guinchos lentamente, rangendo e ribombando. Quando a primeira cintilação do metal fosse vista debaixo da água, toda a frota do usurpador já teria passado. Os elos emergiriam pingando, alguns brilhando de lama, elo atrás de elo atrás de elo, até que toda a grande corrente se retesasse. Rei Stannis teria então levado sua frota para a Água Negra, mas dela não sairia. Mesmo assim, alguns dos navios estavam escapando. A correnteza de um rio era uma coisa intricada, e o fogovivo não estava se espalhando de forma tão uniforme como Tyrion esperara. O canal principal encontrava-se todo em chamas, mas muitos dos homens de Myr tinham se dirigido para a margem sul, e parecia que escapariam incólumes, e pelo menos oito navios haviam atracado sob as muralhas da cidade. Atracado ou encalhado, vai dar na mesma, puseram homens em terra. Pior, uma boa parte da ala sul das duas primeiras linhas de batalha do inimigo estava muito além do inferno quando os cascos estouraram em chamas. Stannis ficaria com trinta ou quarenta galés, num cálculo por alto; mais do que as necessárias para atravessar o rio com a tropa inteira, depois de recuperarem a coragem. Isso podia levar algum tempo; até os mais bravos ficariam com receio depois de verem o fogovivo consumir cerca de mil de seus companheiros. Hallyne dizia que às vezes a substância ardia tão quente que a carne derretia como sebo. Mas, mesmo assim... Tyrion não tinha ilusões quanto aos seus homens. Se a batalha parecer correr mal, eles vão fraquejar, e vão fraquejar mesmo, prevenira-o Jacelyn Bywater; portanto, a única maneira de vencer era assegurando-se de que a batalha se mantivesse promissora, do princípio ao fim. Via formas escuras em movimento através das ruínas carbonizadas dos cais na zona ribeirinha. É tempo de fazer outra surtida, pensou. Os homens nunca estavam tão vulneráveis comc logo após cambalearem até a terra firme. Não podia dar ao inimigo tempo de se organizar na margem norte. Desceu do merlão. - Diga a Lorde Jacelyn que temos inimigos na zona ribeirinha - Tyrion disse a um dos mensageiros que lhe fora atribuído por Bywater, e a outro; - Leve meus cumprimentos a Sor Arneld e peça-lhe para virar as Rameiras trinta graus para oeste - o ângulo permitiria que disparassem para mais adiante, mesmo que não chegassem tão longe na água. - Minha mãe prometeu que eu podia ficar com as Rameiras - Joffrey protestou. Tyrion sentiuse incomodado ao ver que o rei voltara a levantar o visor do elmo. Com certeza o rarpaz estava assando dentro de todo aquele aço pesado... mas a última coisa de que precisava era que uma flecha perdida espetasse um dos olhos do sobrinho. 540 Fechou seu visor com estrondo. - Mantenha isso fechado, Vossa Graça; sua querida pessoa é preciosa para todos nós - e também não vai querer estragar essa linda carinha. - As Rameiras são suas - não havia hora tão boa como aquela; atirar mais frascos de fogovivo contra navios queimando parecia não fazer sentido. Joff tinha os Homens Chifrudos amarrados, nus, no pátio abaixo, com chifres de veado presos à cabeça. Quando foram trazidos diante do Trono de Ferro para o julgamento, ele prometera mandá-los a Stannis. Um homem não era tão pesado como um pedregulho ou um barril de piche em chamas, e podia ser atirado bem mais longe. Alguns dos homens de manto dourado tinham apostado se os traidores voariam ou não até a outra margem da Água Negra. - Rápido, Vossa Graça - disse a Joffrey. - Em breve precisaremos dos trabucos para arremessar pedras. Nem mesmo o fogovivo arde para sempre. Joffrey apressou-se na direção das Rameiras, feliz, escoltado por Sor Meryn, mas Tyrion segurou o pulso de Sor Osmund antes que também seguisse o rei. - Aconteça o que acontecer, mantenha-o a salvo, e lá embaixo, entendido? - Às suas ordens - Sor Osmund sorriu amigavelmente. Tyrion prevenira Trant e Kettleblack sobre o que lhes aconteceria se algum mal acontecesse ao rei. E Joffrey tinha uma dúzia de veteranos de manto dourado à espera aos pés das escadas. Estou protegendo seu maldito bastardo o melhor que posso, Cersei, pensou amargamente. Veja se faz o mesmo com Alayaya, Assim que Joffrey foi embora, um mensageiro correu esbaforido escada acima. - Senhor, depressa! - caiu sobre um joelho. - Desembarcaram homens no terreiro dos torneios, centenas! Trazem um aríete até o Portão do Rei. Tyrion praguejou e dirigiu-se aos degraus com um bamboleio gingado. Podrick Payne esperava embaixo com os cavalos. Galopou pela Rua do Rio, com Pod e Sor Mandon Moore logo atrás. As casas fechadas estavam banhadas em sombras verdes, mas não havia tráfego interpondo-se no caminho deles; Tyrion ordenara que as ruas fossem mantidas desimpedidas para que os defensores pudessem se mover rapidamente de um portão para outro. Mesmo assim, quando chegaram ao Portão do Rei, ouviu um trovejante estrondo de madeira batendo em madeira, informando-lhe que o aríete já tinha sido posto em ação. O ranger das grandes dobradiças soava como os gemidos de um gigante moribundo. A praça do portão estava repleta de feridos, mas viu também fileiras de cavalos, nem todos feridos, e mercenários e mantos dourados em quantidade suficiente para formar uma coluna forte. - Em formação! - Tyrion gritou enquanto saltava para o chão. O portão moveu-se sob o impacto de outro golpe. - Quem comanda aqui? Vão sair. - Não - uma sombra separou-se da obscuridade da muralha para se transformar num homem alto de armadura cinza-escura. Sandor Clegane arrancou o elmo com ambas as mãos e deixou-o cair no chão. O aço estava chamuscado e amassado, e a orelha esquerda do cão rosnador tinha sido arrancada, Um golpe por cima de um dos olhos pintara com uma camada de sangue as velhas cicatrizes de queimadura do Cão de Caça, mascarando metade de seu rosto, - Sim - Tyrion o enfrentou. A respiração de Clegane era irregular. - Que se foda a saída. E você. Um mercenário pôs-se ao seu lado. - J á estivemos lá fora. Três vezes. Metade dos nossos homens estão mortos ou feridos. Fogovivo explodindo por todo lado, cavalos gritando como homens e homens como cavalos... 541 - Pensou que o contratamos para lutar num torneio? Devo trazer-lhe um bom copo de leite gelado e uma tigela de framboesas? Não? Então monte a merda do cavalo. Você também, Cão. O sangue no rosto de Clegane cintilava, vermelho, mas seus olhos mostravam o branco. Puxou a espada. Ele tem medo, Tyrion percebeu, chocado. Cão de Caça está assustado. Enfim, tentou explicar a situação: - Eles trouxeram um aríete para o portão, podem ouvi-los, temos de dispersá-los... - Abra os portões. Quando correrem para dentro, cerquem e matem todos.
    Cão de Caça espetou a ponta da espada no chão e apoiou-se no botão, balançando. - Perdi metade de meus homens. Cavalos também. Não vou levar mais para dentro daquele fogo. Sor Mandon Moore ficou ao lado de Tyrion, imaculado em seu alvo aço esmaltado. - A Mão do Rei ordena. - Que se dane a Mão do Rei - onde o rosto do Cão de Caça não estava pegajoso de sangue, mostrava-se pálido como leite. - Que alguém me arranje uma bebida - um oficial de manto dourado entregou-lhe uma taça. Clegane bebeu um gole, cuspiu o líquido, atirou a taça para longe. - Água? Que se foda a sua água. Traga-me vinho. E um morto em pé. Tyrion agora via isso. O ferimento, o fogo... está acabado, tenho de encontrar outro, mas quem? Sor Mandon? Olhou os homens e compreendeu que não serviriam. O medo de Clegane abalara-os. Sem um líder, também recusariam, e Sor Mandon... um homem perigoso, Jaime tinha dito, sim, mas não um homem que outros seguissem. A distância Tyrion ouviu outro grande estrondo. Por sobre as muralhas, o céu que escurecia estava inundado de camadas de luz laranja e verde. Quanto tempo o portão agüentaria? Isso é uma loucura, pensou, mas, mais vale a loucura do que a derrota. A derrota é morte e vergonha. - Muito bem, eu liderarei a surtida. Se achava que isso envergonharia Cão de Caça, levando-o a voltar a uma atitude valorosa, enganou-se. Clegane limitou-se a rir: - Você? Tyrion via a incredulidade nos rostos deles. - Eu. Sor Mandon levará o estandarte do rei. Pod, o meu elmo - o rapaz obedeceu correndo. Cão de Caça apoiou-se naquela espada entalhada e manchada de sangue e o encarou com aqueles seus grandes olhos brancos. Sor Mandon ajudou Tyrion a montar de novo. - Formar! - Tyrion gritou. Seu grande garanhão vermelho usava focinheira e testeira. Seda carmesim envolvia seus quartos traseiros, por cima de uma cota de malha. A sela elevada era dourada. Podrick Payne entregou-lhe o elmo e o escudo, feito de pesado carvalho enfeitado com uma mão dourada sobre fundo vermelho, rodeada por pequenos leões dourados. Levou o cavalo a descrever um círculo, observando a pequena força de homens. Só um punhado tinha respondido à sua ordem, não mais de vinte. Montavam seus cavalos com olhos tão brancos como os do Cão de Caça. Olhou com desprezo para os outros, os cavaleiros e mercenários que tinham acompanhado Clegane. - Dizem que sou meio homem - Tyrion disse. - O que isso faz de vocês? Aquilo os envergonhou bastante. Um cavaleiro montou, sem elmo, e veio juntar-se aos outros. Seguiu-se um par de mercenários. Depois mais homens. O Portão do Rei voltou a estremecer. Poucos momentos depois, o tamanho da força de Tyrion havia duplicado. Tinha encurralado os homens. Se eu lutar, terão de fazer o mesmo, senão são menos do que anões. 542 - Não me ouvirão gritar o nome de Joffrey - disse-lhes. - Tampouco me ouvirão gritar por Rochedo Casterly. É a sua cidade que Stannis pretende saquear, e aquele portão que tenta derrubar é o seu. Portanto, venham comigo e matem o filho da puta! - Tyrion desembainhou o machado, fez o garanhão rodar, e trotou na direção da porta de surtida. Achava que o seguiam, mas não se atreveu a olhar. 543 S a n s a Os archotes cintilavam brilhantemente no metal martelado das arandelas das paredes, enchendo o Salão de Baile da Rainha com uma luz prateada. Mas ainda havia escuridão ali. Sansa via-a nos olhos claros de Sor Ilyn Payne, que estava em pé junto à porta dos fundos, imóvel como pedra, sem ingerir nem comida nem bebida. Ouvia-a na torturante tosse de Lorde Gyles e na voz segredada de Osney Kettleblack quando entrava para trazer as notícias a Cersei. Sansa terminava seu caldo de carne quando ele entrou da primeira vez, pelos fundos. Viu-o de relance conversando com o irmão Osfryd. Então, ele subiu ao estrado e se ajoelhou ao lado do cadeirão, cheirando a cavalo, com quatro longos arranhões na face cobertos por crostas de sangue, e com um cabelo que caía abaixo do colarinho e sobre os olhos. Apesar de todo o segredo, Sansa não pôde evitar ouvir suas palavras. - As frotas estão travando batalha. Alguns arqueiros chegaram à margem, mas Cão de Caça os destroçou, Vossa Graça. Seu irmão está içando a corrente, ouvi o sinal. Alguns bêbados na Baixada das Pulgas andam arrombando portas e entrando nas casas pelas janelas. Lorde Bywater enviou os mantos dourados para lidar com eles. O Septo de Baelor está apinhado, com todo mundo rezando. - E o meu filho? - O rei foi a Baelor para obter a bênção do Alto Septão. Agora patrulha as muralhas com a Mão, dizendo aos homens para terem coragem, levantando o moral, por assim dizer. Cersei acenou ao pajem por outra taça de vinho, uma safra de ouro da Árvore, frutada e rica. A rainha estava bebendo muito, mas o vinho só parecia torná-la mais bela; tinha as faces coradas, e nos olhos, um calor brilhante e febril ao ver o salão. Olhos dejogovivo, Sansa pensou. Músicos tocaram, malabaristas fizeram malabarismos. O Rapaz Lua cambaleou pelo salão sobre pernas de pau, caçoando de todo mundo, enquanto Sor Dontos perseguia criadas montado em seu cavalo de cabo de vassoura. Os convidados riam, mas eram risos sem alegria, o tipo de riso que pode se transformar em soluços em meio segundo. Têm os corpos aqui, mas os pensamentos estão nas muralhas da cidade, e os corações também. Depois do caldo foi servida uma salada de maçãs, nozes e passas. Em qualquer outra altura, poderia ter sido um prato saboroso, mas naquela noite toda a comida trazia um gosto de medo. Sansa não era a única sem apetite no salão. Lorde Gyles tossia mais do que comia; Lollys Stokeworth estava sentada, encurvada e tremendo; e a jovem noiva de um dos cavaleiros de Sor Lancei desatou a chorar incontrolavelmente. A rainha ordenou ao Meistre Frenken que a pusesse na cama com uma taça de vinho dos sonhos.
    - Lágrimas - Cersei disse a Sansa em tom de escárnio enquanto a mulher era levada do salão. - A senhora minha mãe costumava chamá-las de arma da mulher. A arma do homem é uma espada, E isso diz tudo o que temos de saber, não é verdade? - Mas os homens têm de ser muito corajosos - Sansa retrucou. - Para sair a cavalo e enfrentar espadas e machados, com todos tentando matá-los... - Jaime disse-me um dia que só se sentia realmente vivo em batalha e na cama - levantou a taça e bebeu um longo trago. Não tinha tocado na salada. - Preferiria enfrentar qualquer número de espadas a ficar aqui assim, impotente, fingindo desfrutar da companhia desse bando de galinhas assustadas. - Convidou-os a vir, Vossa Graça. - Há certas coisas que se esperam de uma rainha. Serão esperadas de você, se vier a se casar com JofFrey. E melhor que aprenda - a rainha estudou as esposas, filhas e mães que enchiam os bancos. - Em si mesmas, as galinhas não são nada, mas seus gaios são importantes por um motivo ou por outro, e alguns poderão sobreviver a essa batalha. Portanto, compete-me dar às suas mulheres minha proteção. Se o miserável anão do meu irmão conseguir de algum modo vencer, elas voltarão aos seus maridos e pais cheias de histórias sobre como fui brava, como minha coragem as inspirou e melhorou seus ânimos, como não duvidei de nossa vitória nem sequer por um momento. - E se o castelo cair? - Gostaria que isso acontecesse, não é verdade? - Cersei não esperou uma negativa. - Se não for traída por meus próprios guardas, talvez consiga agüentar aqui durante algum tempo. Então poderei ir até as muralhas e oferecer, em pessoa, a rendição a Lorde Stannis. Isso vai nos poupar do pior. Mas se a Fortaleza de Maegor cair antes que Stannis consiga chegar à cidade... diria que, nesse caso, a maior parte de minhas convidadas deve se preparar para uma pitada de estupro. E não se deve excluir a mutilação, a tortura e o assassinato em tempos como este, Sansa estava horrorizada: - Mas são mulheres, desarmadas e de alto nascimento. - Seu nascimento as protege - Cersei admitiu - , embora não tanto quanto possa pensar. Cada uma vale um bom resgate, mas depois da loucura da batalha, os soldados parecem muitas vezes preferir a carne ao dinheiro. Mesmo assim, um escudo dourado é melhor do que nenhum. Lá fora, nas ruas, as mulheres não serão tratadas, nem de perto, com tanta ternura. Nem as nossas criadas, Coisinhas bonitas como aquela criada da Senhora Tanda podem estar reservadas para uma noite animada, mas não pense que as velhas, as enfermas e as feias serão poupadas. Bebida suficiente pode fazer com que lavadeiras cegas e criadoras de porcos fedorentas pareçam tão agradáveis quanto você, querida. - Eu? - Tente não soar tanto como um rato, Sansa. Agora é uma mulher, esqueceu-se? E prometida ao meu primogênito - a rainha bebericou de seu vinho, - Se estivesse qualquer outro aos portões, podia ter esperança de seduzi-lo. Mas esse homem é Stannis Baratheon. Teria mais esperança de seduzir seu cavalo - reparou na expressão de Sansa e soltou uma gargalhada. - Choquei -a, senhora? - aproximou-se. - Sua tolinha. As lágrimas não são a única arma de uma mulher. Tem outra entre as pernas, e é melhor que aprenda a usá-la. Irá descobrir que os homens usam as espadas com bastante desprendimento. Ambos os tipos de espada. Sansa foi poupada da necessidade de responder quando os dois Kettleblack reentraram no salão. Sor Osmund e os irmãos tinham se transformado em grandes favoritos no castelo; estavam sempre prontos com um sorriso e um gracejo, e davam-se tão bem com palafreneiros e caçadores como com cavaleiros e escudeiros. Segundo diziam os mexericos, era com as criadas que se davam melhor. Nos últimos tempos, Sor Osmund tinha tomado o lugar de Sandor Clegane ao lado de Joffrey, e Sansa ouvira as mulheres no poço das lavagens dizerem que ele era tão forte como o Cão de Caça, só que mais jovem e mais rápido. Se assim era, perguntava a si mesma por que nunca tinha ouvido falar daqueles Kettleblack antes de Sor Osmund ser nomeado para a Guarda Real. Osney era todo sorrisos quando se ajoelhou ao lado da rainha. - Os cascos incendiaram-se, Vossa Graça. Toda a Água Negra está inundada de fogovivo. Há uma centena de navios ardendo, talvez mais. - E o meu filho? - Está no Portão da Lama com a Mão e a Guarda Real, Vossa Graça, Já falou com os arqueiros nas paliçadas e deu-lhes alguns conselhos sobre o manuseio de uma besta, deu sim. Todos dizem que é um rapaz reto e bravo. - É bom que permaneça um rapaz reto e vivo - Cersei virou-se para o irmão de Osney, Osfryd, que era mais alto, mais severo, e usava um bigode preto e pendente. - Sim? Osfryd colocara um meio elmo de aço sobre seu longo cabelo negro, e a expressão em seu rosto era sombria. - Vossa Graça - disse em voz baixa - , os rapazes apanharam um palafreneiro e duas criadas tentando escapulir por uma porta falsa com três dos cavalos do rei. - Os primeiros traidores da noite - a rainha disse - , mas temo que não serão os últimos. Mande Sor Ilyn cuidar deles, e coloque suas cabeças em espigões à porta dos estábulos como aviso - enquanto os irmãos saíam, virou-se para Sansa: - Outra lição que devia aprender, se tem esperança de se sentar no trono ao lado de meu filho. Se for branda numa noite como esta, terá traição estourando por toda a sua volta, como cogumelos depois de uma chuva forte. A única maneira de manter seu povo leal é assegurando-se de que a temem mais do que ao inimigo. - Vou me lembrar, Vossa Graça - Sansa respondeu, se bem que sempre tivesse ouvido dizer que o amor era um caminho mais seguro para a lealdade do povo do que o medo. Se chegar a ser uma rainha, farei com que me amem. Empadões de pata de siri seguiram-se à salada. Depois veio carneiro assado com alho-poró e cenoura, servido em tabuleiros de casca de pão. Lollys comeu depressa demais, ficou enjoada e vomitou por cima de si e da irmã. Lorde Gyles tossiu, bebeu, tossiu, bebeu e desmaiou. A rainha fitou com repugnância o local onde ele jazia, com o rosto enfiado no tabuleiro e a mão numa poça de vinho. - Os deuses deviam estar loucos para desperdiçar virilidade em homens como ele; e eu devia estar louca quando exigi sua libertação. Osfryd Kettleblack regressou, fazendo rodopiar o manto carmim. - Há povo juntando-se na praça, Vossa Graça, pedindo refúgio no castelo. Não é uma multidão, são comerciantes ricos e gente assim. - Ordene-lhes que voltem às suas casas - disse a rainha. - Se não forem, ordene que seus besteiros matem alguns. Nada de surtidas; não quero os portões abertos por nenhum motivo. - Às suas ordens - ele fez uma reverência e saiu. O rosto da rainha mostrava-se duro e irritado. - Bem que eu gostaria de levar uma espada aos seus pescoços pessoalmente - a voz de Cersei começava a ficar mole. - Quando pequenos, Jaime e eu éramos tão parecidos que até nosso pai não nos conseguia distinguir. Às vezes, para fazer graça, vestíamos a roupa um do outro e passávamos um dia inteiro como o outro. Mas, mesmo assim, quando deram a Jaime a primeira espada, não havia nenhuma para mim. "O que eu ganho?", lembro-me de ter perguntado. Éramos tão parecidos que nunca entendi por que nos tratavam de forma tão diferente. Jaime aprendeu a lutar com espadas, lanças e maças, enquanto eu fui ensinada a sorrir, cantar e agradar. Ele era herdeiro de Rochedo Casterly, enquanto eu estava destinada a ser vendida a um estranho qualquer como se fosse um cavalo, para ser montada sempre que meu novo dono quisesse, espancada sempre que ele desejasse, e, com o tempo, posta de lado em favor de uma potra mais nova. O destino de Jaime seria a glória e o poder, enquanto o meu era o parto e o sangue da lua. - Mas foi rainha de todos os Sete Reinos - Sansa lhe disse. - Quando se trata de espadas, uma rainha é só uma mulher, no fim das contas - a taça de vinho de Cersei estava vazia. Um pajem fez tenção de voltar a enchê-la, mas ela se virou e sacudiu a cabeça. - Mais não. Tenho de manter a cabeça limpa. O último prato foi queijo de cabra servido com maçãs cozidas. O odor da canela encheu o salão no momento em que Osney Kettleblack entrou para ir se ajoelhar mais uma vez entre as duas. - Vossa Graça - murmurou. - Stannis desembarcou homens no terreiro dos torneios, e há mais atravessando o rio. O Portão da Lama está sob ataque, e trouxeram um aríete até o Portão do Rei. O Duende saiu para repeli-los. - Isso vai enchê-los de medo - a rainha disse secamente. - Não levou Joff, espero. - Não, Vossa Graça, o rei está com o meu irmão nas Rameiras, atirando Homens Chifrudos ao rio. - Com o Portão da Lama sendo assaltado? Loucura. Diga a Sor Osmund que eu o quero aqui imediatamente, é perigoso demais. Traga-o de volta ao castelo. - O Duende disse... - É o que eu digo que devia lhe interessar - os olhos de Cersei estreitaram-se. - Seu irmão fará o que lhe é dito, caso contrário tratarei de que seja ele a liderar a próxima surtida, e você irá com ele. Depois de os pratos terem sido levados, muitos dos convidados pediram licença para ir ao septo. Cersei concedeu-lhes o pedido com benevolência. A Senhora Tanda e as filhas estavam entre os que partiram. Para os que ficaram, foi trazido um cantor, a fim de encher o salão com a doce música da harpa vertical, Cantou sobre Jonquil e Florian, sobre o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão e seu amor pela rainha do irmão, sobre os dez mil navios de Nymeria. Eram belas canções, mas terrivelmente tristes. Várias das mulheres começaram a chorar, e Sansa sentiu que seus olhos também se umedeciam. - Muito bem, querida - a rainha inclinou-se para mais perto. - Vai querer treinar essas lágrimas. Vai precisar delas para o Rei Stannis. Sansa mexeu-se nervosamente na cadeira. - Vossa Graça? - Oh, poupe-me de suas cortesias ocas. As coisas devem ter chegado a uma dificuldade desesperadora lá fora se precisam que um anão os lidere, portanto, pode perfeitamente tirar a máscara. Sei tudo sobre as suas traiçõezinhas no bosque sagrado. - O bosque sagrado? - não olhe para Sor Dontos, não olhe, não olhe, disse Sansa a si mesma. Ela não sabe, ninguém sabe, Dontos prometeu, meu Florian nunca me decepcionaria. - Não cometi nenhuma traição. Só visito o bosque sagrado para rezar.
    - Por Stannis. Ou pelo seu irmão, dá na mesma. Por que outro motivo procuraria os deuses de seu pai? Reza pela nossa derrota. Do que chamaria isso se não for traição? - Rezo por Joffrey - ela insistiu nervosamente. - Por quê? Por causa da gentileza com que a trata? - a rainha tirou um jarro de vinho doce de ameixa de uma criada que passava e encheu a taça de Sansa. - Beba - ordenou friamente. - Talvez lhe dê coragem para lidar com a verdade, para variar. Sansa levou a taça aos lábios e bebeu um pequeno gole. O vinho era enjoativamente doce, mas muito forte. - Pode fazer melhor do que isso - Cersei a desafiou. - Esvazie a taça, Sansa. É a sua rainha que ordena. Sansa quase quis vomitar, mas esvaziou a taça, emborcando o espesso vinho doce até ficar com a cabeça flutuando. - Mais? - Cersei perguntou. - Não. Por favor. A rainha pareceu aborrecida: - Quando perguntou há pouco acerca de Sor Ilyn, menti para você. Quer ouvir a verdade, Sansa? Quer saber o motivo real de sua presença aqui? Sansa não se atreveu a responder, mas não importava. A rainha ergueu uma mão e chamou, sem esperar resposta. Sansa nem sequer tinha visto Sor Ilyn regressar ao salão, mas de repente ali estava, saindo das sombras por trás do estrado, silencioso como um gato. Trazia Gelo desembainhada. Sansa recordou que o pai limpava sempre a lâmina no bosque sagrado depois de cortar a cabeça de um homem, mas Sor Ilyn não era tão exigente. Havia sangue secando no aço ondulado, já com o vermelho transformando-se em marrom. - Diga à Senhora Sansa por que o mantenho junto a nós - a rainha ordenou. Sor Ilyn abriu a boca e emitiu um chocalhar sufocado. Seu rosto marcado pelas bexigas não tinha expressão. - Ele diz que está aqui por nós - disse a rainha. - Stannis pode tomar a cidade e pode capturar o trono, mas eu não tolerarei que me julgue. Não pretendo que nos capture vivas. - Nos? - Ouviu o que eu disse. Portanto, talvez seja melhor voltar a rezar, Sansa, e por outro resultado. Os Stark não obterão nenhuma alegria da queda da Casa Lannister, prometo - estendeu a mão e tocou o cabelo de Sansa, afastando-o delicadamente de seu pescoço.
    Ty r i o n A fenda do elmo limitava a visão de Tyrion àquilo que se encontrava na sua frente, mas quando virou a cabeça, viu três galés encalhadas no terreiro dos torneios, e uma quarta, maior do que as outras no meio do rio, ao largo, atirando barris de piche em chamas com uma catapulta. - Cunha! - ordenou Tyrion enquanto os homens fluíam da porta de surtida. Formaram-se em ponta de seta consigo à frente. Sor Mandon Moore ocupou o lugar à sua direita, com as chamas tremeluzindo no esmalte branco de sua armadura e os olhos mortos brilhando sem paixão de dentro do elmo. Montava um cavalo negro como carvão, todo ajaezado de branco, com o escudo de um branco puro da Guarda Real preso ao braço. A esquerda, Tyrion ficou surpreso por ver Podrick Payne com uma espada na mão: - É novo demais. Volte. - Sou o seu escudeiro, senhor. Tyrion não tinha tempo para discussões. - Nesse caso, venha comigo, Fique por perto - pôs o cavalo em movimento. Avançaram com os joelhos tocando-se, seguindo a linha das muralhas. O estandarte de Joffrey flutuava, carmim e dourado, da lança transportada por Sor Mandon, com o veado e o leão dançando, de casco dado com a pata. De passo evoluíram para trote, fazendo um largo contorno na base da torre. Flechas dardejaram das muralhas da cidade enquanto pedras rodopiavam e caíam do céu, com estrondo, cegamente, em terra e água, aço e carne. Em frente, surgiu o Portão do Rei e diversos soldados que lutavam com um enorme aríete, uma estaca de carvalho negro com uma cabeça de ferro. Arqueiros vindos dos navios rodeavam-nos, disparando flechas contra quaisquer defensores que surgissem nas muralhas da guarita. - Lanças - Tyrion ordenou, e passou a meio galope.
    O chão estava encharcado e escorregadio, feito em partes iguais de lama e sangue. Seu garanhão tropeçou num cadáver, tentou se equilibrar com os cascos escorregando e batendo a terra, e, por um instante, Tyrion temeu que a investida terminasse consigo caindo da sela antes mesmo de atingir o inimigo. Mas, de algum modo tanto ele como o cavalo lograram manter o equilíbrio. Sob o portão, homens viravam-se, tentando apressadamente se reforçar para o choque. Tyrion ergueu o machado e gritou: "Porto Real!", Outras vozes acompanharam seu grito, e agora a ponta da seta voava, um longo grito de aço e seda, cascos revolvendo a terra e lâminas afiadas beijadas pelo fogo, Sor Mandon baixou a ponta de sua lança no último instante possível, e enfiou o estandarte de Joffrey no peito de um homem com um justilho cheio de rebites, erguendo-o no ar antes de a haste se partir. A frente de Tyrion surgiu um cavaleiro cuja capa mostrava uma raposa espreitando de dentro de um anel de flores. Seu primeiro pensamento foi Florent, mas Mandon, agora sem capacete, veio logo atrás. Atingiu o homem no rosto com todo o peso do machado, do braço e do cavalo, arrancando metade de sua cabeça. O choque do impacto adormeceu seu ombro. Shagga riria de mim, pensou, continuando a avançar. Uma lança fez um ruído surdo em seu escudo. Pod galopava ao seu lado, golpeando todos os inimigos por que passavam. Indistintamente, ouviu aclamações vindas dos homens nas muralhas. O aríete caiu com estrondo na lama, esquecido num instante quando os homens que o manejavam fugiram ou se viraram para lutar. Tyrion atropelou um arqueiro, abriu um lanceiro do ombro à axila, desviou de um golpe dado por um elmo com um peixe-espada no topo. Junto ao aríete, seu grande cavalo vermelho empinou-se, mas o garanhão negro saltou suavemente sobre o obstáculo, e Sor Mandon passou rapidamente por ele, morte envolta em seda branca como a neve. A espada do cavaleiro cortava membros, rachava cabeças, quebrava escudos em dois... embora fossem bem poucos os inimigos que tinham conseguido atravessar o rio com os escudos intactos. Tyrion obrigou a montaria a saltar sobre o aríete. Os inimigos fugiam. Moveu a cabeça da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, mas não viu sinal de Podrick Payne. Uma flecha tilintou de encontro à maçã de seu rosto, não acertando a fenda para os olhos por dois centímetros. O solavanco de medo que deu quase o derrubou do cavalo. Se é para ficar aqui parado como um cepo, seria melhor pintar um alvo na placa de peito. Pôs o cavalo de novo em movimento, trotando por cima e em volta de uma confusão de cadáveres. Próximo à foz, a Água Negra estava obstruída com os cascos de galés incendiadas. Manchas de fogovivo ainda flutuavam na água, lançando plumas de fogo verde, rodopiando a até seis metros de altura. Tinham dispersado os homens do aríete, mas Tyrion viu que se lutava em toda a margem do rio. Os homens de Sor Balon Swann, provavelmente, ou os de Lancei, tentavam empurrar os inimigos de volta para a água, à medida que saltavam para a terra vindos dos navios que ardiam. - Vamos para o Portão da Lama - ordenou. Sor Mandon gritou: - O Portão da Lama! - e estouraram de novo em galope. "Porto Real!", gritavam seus homens desencontradamente, e também "Meio Homem! Meio Homem!", Perguntou a si mesmo quem lhes teria ensinado aquilo. Através do aço e do almofadado do elmo conseguia ouvir gritos angustiados, o faminto crepitar das chamas, os estrondos arrepiantes dos cornos de guerra e o sopros metálicos das trombetas. Havia fogo por todo lado. Que os deuses sejam bons. Não admira que Cão de Caça estivesse assustado. O que ele teme são as chamas... Um enorme estrondo ressoou pela Água Negra quando um pedregulho do tamanho de um cavalo acertou em cheio, a meio navio, uma das galés. Nossa ou deles? Através dos cordões de fumaça não conseguia distingui-la. Sua cunha tinha desaparecido; cada homem era agora sua própria batalha. Devia ter voltado, Tyrion pensou, avançando. O machado pesava em seu punho. Um punhado de homens ainda o seguia, os outros estavam mortos ou tinham fugido. Teve de lutar com o garanhão para manter a cabeça do animal apontada a leste. O grande cavalo de batalha não gostava mais de fogo do que Sandor Clegane, mas era mais fácil intimidar o animal. Homens saíam do rio rastejando, queimados e ensangüentados, tossindo água, cambaleando, a maioria morrendo. Levou sua tropa por entre eles, dando mortes mais rápidas e mais limpas aos que ainda tinham forças para se manter em pé. A guerra reduziu-se ao tamanho da fenda para os olhos. Cavaleiros com o dobro de seu tamanho fugiam dele, ou ficavam no mesmo lugar e morriam. Pareciam coisas pequenas e assustadas. - Lannister! - gritou, matando. Seu braço estava vermelho até o cotovelo, cintilando à luz que vinha do rio. Quando o cavalo voltou a se empinar, brandiu o machado para as estrelas e ouviu-as gritar "Meio Homem! Meio Homem!". Tyrion sentia-se bêbado. A febre de batalha. Nunca pensara experimentá-la em pessoa, embora Jaime lhe tivesse falado dela com bastante freqüência. Como o tempo parecia desfocar e se tornar mais lento, e até parar, como o passado e o futuro desapareciam até nada haver além do instante, como o medo fugia, e o pensamento fugia, e até o corpo fugia. - Nessa altura não sente as feridas ou a dor nas costas por causa do peso da armadura, ou o suor que escorre para os seus olhos. Deixa de sentir, deixa de pensar, deixa de ser você, só existe a luta, o inimigo, este homem, e logo o seguinte, e o outro, e o outro, e sabe que eles têm medo e estão cansados, mas você não, você está vivo, e a morte está por todo lado a sua volta, mas as espadas deles movem-se tão devagar que pode dançar por entre elas, rindo.
    A febre de batalha. Sou meio homem e estou bêbado de morticínio, que me matem se conseguirem! E tentaram. Outro lanceiro correu para ele. Tyrion cortou a ponta da lança, depois a mão, depois o braço, trotando em círculos à sua volta, Um arqueiro, sem arco, atirou-se sobre ele com uma flecha na mão, segurando-a como se fosse uma faca, O corcel de batalha escoiceou a coxa do homem, fazendo-o estatelar-se, e Tyrion soltou uma gargalhada roufenha. Passou por um estandarte enfiado na lama, um dos corações em chamas de Stannis, e cortou a haste em duas, com um golpe de machado. Um cavaleiro ergueu-se vindo de lugar nenhum, lançando-lhe estocadas no escudo com a espada longa de duas mãos que brandia, uma e outra vez, até que alguém enfiou uma adaga por baixo do seu braço. Um dos homens de Tyrion, talvez. Não chegou a vê-lo. - Rendo-me, sor - gritou outro cavaleiro, mais adiante ao longo do rio. - Rendo-me. Sor cavaleiro, rendo-me a você. O meu penhor, tome, tome - o homem estava deitado numa poça de água negra, oferecendo uma manopla articulada em sinal de submissão. Tyrion teve de se inclinar para aceitá-la. Quando o fez, um frasco de fogovivo explodiu por cima de sua cabeça, borrifando chamas verdes. No súbito relâmpago de luz, viu que a poça não era negra, mas vermelha, A manopla ainda tinha a mão do homem lá dentro. Atirou-a de volta. - Rendo-me - soluçou o homem, sem esperança, sem amparo. Tyrion recuou. Um homem de armas agarrou o freio de seu cavalo e atacou o rosto de Tyrion com um punhal. Este afastou a lâmina e enterrou o machado na nuca do homem. Enquanto libertava a arma, um clarão branco surgiu no limite do seu raio de visão. Tyrion virou-se, pensando encontrar de novo Sor Mandon Moore a seu lado, mas aquele era outro cavaleiro branco. Sor Balon Swann usava a mesma armadura, mas os jaezes de seu cavalo ostentavam os cisnes branco e negro em batalha da sua Casa. É mais um cavaleiro malhado do que branco, pensou Tyrion estupidamente. Cada centímetro de Sor Balon estava respingado de sangue e manchado de fumaça. Ergueu a maça para apontar para a foz. Pedaços de osso e cérebro agarravam-se à cabeça da arma. - Senhor, olhe. Tyrion virou o cavalo para espreitar ao longo da Água Negra. A corrente ainda fluía, negra e forte, por baixo, mas a superfície estava turva de sangue e chamas. O céu mostrava-se vermelho, laranja e de um verde berrante. - O que é? - ele perguntou, E então viu. Homens de armas revestidos de aço saltavam de uma galé quebrada que tinha se esmagado contra um cais. Tantos, de onde vêm? Semicerrando os olhos para a fumaça e o brilho intenso do fogo, Tyrion seguiu o caminho deles até o rio. Estavam ali aglomeradas vinte galés, ou talvez mais, era difícil contar. Tinham os remos cruzados, os cascos presos uns aos outros com cordas de abordagem, empaladas nos esporões umas das outras, emaranhadas em teias de cordame caído. Um grande casco flutuava, virado ao contrário, entre dois navios menores. Navios naufragados, mas tão apertados uns contra os outros que era possível saltar de um convés para o seguinte e assim atravessar a Água Negra. Centenas dos mais ousados dos homens de Stannis Baratheon estavam fazendo exatamente isso. Tyrion viu um grande idiota de um cavaleiro tentando atravessar a cavalo, obrigando um animal aterrorizado a saltar sobre amuradas e remos, a atravessar conveses inclinados, escorregadios de sangue e crepitando de fogo verde. Fizemos-lhes uma maldita ponte, pensou, consternado. Partes da ponte estavam se afundando, outras encontravam-se em chamas, e toda ela estalava, movia-se e parecia prestes a se esfrangalhar a qualquer momento, mas isso não parecia pará-los. - Aqueles homens possuem bravura - disse a Sor Balon com admiração. - Vamos matá-los. Levou-os através dos fogos que pingavam chamas, da fuligem e das cinzas da margem do rio, percorrendo um longo cais de pedra com seus homens e os de Sor Balon atrás de si, Sor Mandon juntou-se a eles com o escudo transformado numa ruína meio estilhaçada. Fumaça e fagulhas rodopiavam no ar, e o inimigo quebrou antes mesmo da investida, atirando-se de volta ao rio, derrubando outros homens que tentavam subir. A base da ponte era uma galé inimiga meio afundada, com Perdição de Dragão pintado na proa, e o fundo rasgado por um dos cascos afundados que Tyrion dispusera entre os cais. Um lanceiro ostentando o símbolo do caranguejo vermelho da Casa Celtigar espetou a ponta de sua arma no peito do cavalo de Balon Swann antes de o cavaleiro conseguir desmontar, fazendo-o cair da sela. Tyrion golpeou a cabeça do homem ao passar por ele num instante, e então era tarde demais para puxar as rédeas. Seu garanhão saltou da extremidade do cais por cima de uma amurada despedaçada, caindo com um chap e um grito em água na altura dos tornozelos. O machado de Tyrion saltou, rodopiando, seguido pelo próprio Tyrion, e o convés ergueu-se para lhe dar uma pancada úmida. Seguiu-se uma loucura. Seu cavalo tinha quebrado uma perna e soltava guinchos horríveis. De algum modo, conseguiu desembainhar o punhal e cortar a garganta da pobre criatura, O sangue jorrou numa fonte escarlate, ensopando seus braços e seu peito. Recuperou o uso das pernas e pôs-se em pé, apoiando-se na amurada, e de repente estava lutando, cambaleando e espirrando água ao longo de conveses tortos e inundados. Caíam homens sobre ele. Matou alguns, feriu outros, e alguns fugiram, mas sempre havia mais. Perdeu a faca e ganhou uma lança quebrada, não saberia dizer como. Agarrou-a e lançou estocadas, guinchando pragas. Homens fugiam dele, e ele corria atrás deles, saltando pelas amuradas para o navio seguinte e depois para o próximo. Suas duas sombras brancas acompanhavam-no sempre; Balon Swann e Mandon Moore, belos em suas armaduras claras. Rodeados por um círculo de lanceiros de Valeryon, lutaram costas contra costas; tornaram a batalha tão graciosa como uma dança. As mortes de Tyrion eram coisas desajeitadas. Apunhalou um homem no rim quando estava de costas para ele, e agarrou outro pela perna, atirando-o de cabeça ao rio. Flechas passaram silvando por sua cabeça e chocalharam em sua armadura; uma alojou-se entre o ombro e a placa de peito, mas nem a sentiu. Um homem nu caiu do céu e aterrissou no convés, estourando como um melão atirado de uma torre. Salpicos de seu sangue atravessaram a fenda do elmo de Tyrion. Pedras começaram a cair verticalmente, atravessando com estrondo os conveses e esmagando homens, até que a ponte inteira estremeceu e torceu-se violentamente sob seus pés, fazendo-o cair de lado. De repente, o rio jorrava para dentro de seu elmo. Arrancou-o e rastejou pelo convés adernado até ficar com a água apenas pelo pescoço. Gemidos enchiam o ar, como os gritos de morte de uma enorme fera. O navio, teve tempo de pensar, o navio está prestes a se libertar dos outros. As galés quebradas estavam se separando, a ponte desconjuntava-se. Assim que compreendeu aquilo, Tyrion ouviu um súbito crac, sonoro como um trovão, o convés inclinou-se sob seu corpo e voltou a deslizar para dentro da água. O adernamento era tão pronunciado que teve de subir, içando-se centímetro a centímetro por uma corda rompida. Pelo canto do olho, viu o casco ao qual estiveram presos derivando ao sabor da corrente, rodando lentamente enquanto homens saltavam por cima de sua amurada. Alguns usavam o coração flamejante de Stannis, outros, o veado e o leão de Joffrey, outros, símbolos diferentes, mas isso parecia não importar. Havia incêndios ardendo para todos os lados, Para um dos lados, desenrolava-se uma furiosa batalha, uma grande confusão de brilhantes estandartes ondulando sobre um mar de homens em luta, muralhas de escudos formando-se e quebrando-se, cavaleiros montados furando pela multidão, poeira, lama, sangue e fumaça. Do outro lado, a Fortaleza Vermelha pairava, alta, sobre a sua colina, cuspindo fogo. Mas estavam nos lugares errados. Por um momento, Tyrion pensou que estivesse enlouquecendo, que Stannis e o castelo tinham trocado de lugar. Como foi que Stannis conseguiu atravessar para a margem norte? Tardiamente, compreendeu que o convés girava, e de algum modo tinha se virado ao contrário, de forma que castelo e batalha tinham trocado de lado. Batalha, que batalha? Se Stannis não fez a travessia, com quem está lutando? Tyrion estava cansado demais para dar sentido àquilo. Seu ombro doía horrivelmente, e quando ergueu a mão para esfregá-lo, viu a flecha e lembrou-se. Tenho de sair desse navio. A jusante nada havia a não ser uma muralha de fogo, e se o navio naufragado se libertasse, a corrente o levaria bem na direção dela. Alguém chamou pelo seu nome, um grito que soou fraco por entre o rumor da batalha. Tyrion tentou responder. - Aqui! Aqui, estou aqui, ajudem-me! - sua voz soava tão débil que quase não conseguia ouvi-la. Puxou-se para cima do convés inclinado e agarrou-se à amurada. O casco bateu na galé seguinte e foi rebatido com tal violência, que Tyrion quase foi atirado à água. Para onde tinham ido todas as suas forças? Tudo o que pôde fazer foi se segurar. - SENHOR! PEGUE NA MINHA MÃO! SENHOR TYRION! Ali, no convés do navio seguinte, do outro lado de um abismo de água negra que se alargava, estava Sor Mandon Moore, com a mão estendida. Fogos amarelo e verde cintilavam no branco de sua armadura, e sua manopla articulada estava pegajosa de sangue, mas Tyrion tentou alcançá-la mesmo assim, desejando que seus braços fossem mais longos, Foi apenas no último instante, quando os dedos já se roçavam por sobre a água, que uma pequena dúvida se imiscuiu em seu espírito... Sor Mandon estendia sua mão esquerda, por que... Teria sido por isso que recuara, ou teria visto a espada, no fim das contas? Nunca saberia. A ponta deu o golpe logo abaixo de seus olhos, e sentiu seu toque frio e duro, e em seguida uma dor intensa. Sua cabeça virou-se, como se tivesse sido esbofeteado. O choque da água fria foi uma segunda bofetada, mais brusca do que a primeira. Buscou algo a que se agarrar, sabendo que uma vez afundado não era provável que voltasse à superfície. De algum modo, sua mão encontrou a extremidade estilhaçada de um remo quebrado. Agarrando-se com força a ela, como um amante desesperado, subiu centímetro por centímetro. Tinha os olhos cheios de água, a boca cheia de sangue e a cabeça latejava horrivelmente. Que os deuses me deem forças para chegar ao convés... Nada mais existia, só o remo, a água e o convés. Por fim, rolou de lado e deixou-se cair de costas, sem fôlego e exausto. Bolas de chamas verdes e cor de laranja crepitaram por cima de sua cabeça, deixando traços entre as estrelas. Teve um momento para pensar em como aquilo era bonito, até que Sor Mandon bloqueou sua vista. O cavaleiro era uma sombra de aço branco, com um brilho escuro nos olhos dentro do elmo. Tyrion não tinha mais forças do que uma boneca de pano. Sor Mandon encostou a ponta da espada à sua garganta e fechou ambas as mãos em torno da espada. E, de repente, guinou para a esquerda, caindo sobre a amurada. A madeira quebrou-se, e Sor Mandon Moore desapareceu com um grito e uma pancada na água. Um instante depois, os cascos voltaram a colidir, com tanta força que o convés pareceu saltar. E então alguém estava de joelhos por cima dele. - Jaime? - coaxou, quase sufocado pelo sangue que enchia sua boca. Quem, além do irmão, o salvaria? - Fique quieto senhor, está muito ferido - uma voz de garoto, isso não faz sentido, Tyrion pensou. Soava quase como a de Pod. Sansa
    Quando Sor Lancei Lannister disse à rainha que a batalha estava perdida, ela virou a taça de vinho vazia que tinha nas mãos e disse: - Vá dizer isso ao meu irmão, sor - sua voz soava distante, como se a notícia não lhe interessasse grandemente. - Seu irmão provavelmente está morto - a capa de Sor Lancei estava empapada com o sangue que fluía por baixo de seu braço. Quando entrou no salão, sua visão levou alguns dos convidados a gritar. - Achamos que ele estava na ponte de barcos quando ela se desfez. Também é provável que Sor Mandon tenha perecido, e ninguém consegue encontrar Cão de Caça, Malditos sejam os deuses, Cersei, por que ordenou que trouxessem Joffrey para o castelo? Os homens de manto dourado estão jogando fora as lanças e fugindo, às centenas. Quando viram o rei partir, perderam toda a coragem. A Água Negra inteira está inundada de navios quebrados, fogo e cadáveres, mas podíamos ter agüentado se... Osney Kettleblack aproximou-se, empurrando-o. - Batalha-se agora nas duas margens do rio, Vossa Graça. Pode ser que alguns dos senhores de Stannis estejam lutando uns contra os outros, ninguém tem certeza, há uma grande confusão lá fora. Cão de Caça sumiu, ninguém sabe para onde foi, e Sor Balon se retirou para o interior da cidade. A margem do rio é deles. Estão outra vez usando o aríete contra o Portão do Rei, e Sor Lancei tem razão, seus homens estão desertando das muralhas e matando seus próprios oficiais. Há uma multidão junto ao Portão de Ferro e ao Portão dos Deuses, lutando para sair, e a Baixada das Pulgas é um grande tumulto de bêbados. Que os deuses sejam bons, Sansa pensou, está acontecendo, Joffrey perdeu a cabeça e eu também, Olhou em volta à procura de Sor Ilyn, mas o magistrado do rei não foi visto em parte alguma. Mas consigo senti-lo. Ele está perto. Não escaparei dele, ele vai cortar minha cabeça. Estranhamente calma, a rainha virou-se para o irmão de Osney, Osfryd. - Ice a ponte levadiça e tranque as portas. Ninguém entra ou sai de Maegor sem a minha autorização. - E as mulheres que saíram para rezar? - Elas escolheram abandonar minha proteção. Que rezem, talvez os deuses as defendam. Onde está meu filho? - Na guarita do castelo. Quis comandar os besteiros. Há uma multidão aos gritos lá fora, metade composta por homens de manto dourado que vieram com ele quando abandonamos o Portão da Lama. - Traga-o para dentro de Maegor. Já. - Não! - Lancei estava tão zangado que se esqueceu de manter a voz baixa. Cabeças viraram-se para o grupo enquanto ele gritava: - Voltará a acontecer o mesmo que no Portão da Lama. Deixe-o onde está, ele é o rei... - Ele é meu filho - Cersei Lannister ficou de pé. - Diz ser também um Lannister, primo, então, mostre-o. Osfryd, por que está aqui? Já quer dizer hoje. Osfryd Kettleblack saiu correndo do salão, e o irmão foi com ele. Muitos dos convidados também deixaram o lugar às pressas. Algumas das mulheres choravam, outras rezavam. Outras limitaram-se a permanecer sentadas à mesa, e pediram mais vinho. - Cersei - Sor Lancei suplicou se perdermos o castelo, Joffrey será morto mesmo assim, sabe disso. Deixe-o ficar, eu o mantenho junto a mim, juro... - Saia da minha frente - Cersei atirou a palma da mão aberta contra a ferida do primo. Sor Lancei gritou de dor, e quase desmaiou no momento em que a rainha saiu apressadamente da sala. A Sansa, não deu sequer um rápido olhar. Ela se esqueceu de mim. Sor Ilyn vai me matar, e ela nem pensará no assunto. - Oh, deuses - lamuriou-se uma velha. - Estamos perdidos, a batalha está perdida, ela fugiu. Várias crianças choravam. Eles sentem o cheiro do medo. Sansa viu-se sozinha no estrado. Deveria ficar ali, ou seria melhor correr atrás da rainha e suplicar pela sua vida? Não saberia dizer por que motivo se levantou, mas foi o que fez. - Não tenham medo - disse-lhes em voz alta. - A rainha içou a ponte levadiça. Este é o local mais seguro da cidade. Tem as paredes espessas, o fosso, os espigões... - O que aconteceu? - quis saber uma mulher que Sansa conhecia vagamente, esposa de um fidalgo menor. - O que foi que Osney disse? O rei está ferido, a cidade caiu? - Conte-nos - alguém gritou. Uma mulher perguntou pelo pai e outra, pelo filho. Sansa ergueu as mãos, pedindo silêncio. - Joffrey voltou para o castelo. Não está ferido, Ainda estão lutando, é tudo o que sei, estão lutando com bravura. A rainha retornará em breve - a última parte era mentira, mas tinha de acalmá-los. Reparou nos bobos em pé sob a galeria. - Rapaz Lua, faça-nos rir. O Rapaz Lua fez uma pirueta e rodopiou para cima de uma mesa. Agarrou quatro taças de vinho e começou a fazer malabarismos com elas. De vez em quando, uma caía e acertava sua cabeça. Algumas risadas nervosas ressoaram no salão. Sansa foi até Sor Lancei e se ajoelhou ao seu lado. O ferimento voltara a sangrar no local em que a rainha tinha acertado. - Loucura - ele arquejou. - Deuses, o Duende tinha razão, tinha razão... - Ajudem-no - ordenou Sansa a dois dos criados. Um deles limitou-se a olhá-la e fugiu, com o jarro de vinho e tudo. Outros criados também saíam do salão, mas ela não podia impedi-lo. Juntos, Sansa e um criado puseram o cavaleiro ferido em pé. - Leve-o ao Meistre Frenken - Lancei era um deles, mas de algum modo ainda não conseguia desejar que morresse. Sou branda, fraca e burra, tal como Joffrey diz. Devia estar matando-o, não ajudando. A luz dos archotes começou a diminuir de intensidade, e um ou dois se apagaram. Ninguém se preocupou em substituí-los. Cersei não retornou. Sor Dontos subiu ao estrado enquanto todos os olhos estavam postos no outro bobo. - Volte para o seu quarto, doce Jonquil - sussurrou, - Tranque-se, ficará mais segura lá. Eu irei encontrá-la depois que a batalha terminar. Alguém irá me encontrar, pensou Sansa, mas será você, ou Sor Ilyn? Por um momento de loucura pensou em suplicar a Dontos que a defendesse. Ele também tinha sido cavaleiro, treinado com a espada e com juramento prestado de defender os fracos. Não. Ele não tem nem a coragem nem a perícia necessárias. Só o estaria matando também. Precisou de todas as suas forças para sair lentamente do Salão de Baile da Rainha, quando, na verdade, queria correr. Ao chegar aos degraus, realmente correu, para cima e em círculos, até ficar sem fôlego e tonta. Um dos guardas esbarrou nela na escada. Uma taça de vinho cravejada de pedras preciosas e um par de candelabros de prata derramaram-se do manto carmesim em que ele os embrulhara e caíram com estrondo pelos degraus. O homem correu atrás dos objetos, deixando de prestar atenção em Sansa assim que concluiu que ela não tentaria roubar seu saque. O quarto estava negro como breu. Sansa trancou a porta e dirigiu-se, tateando, até a janela. Quando puxou as cortinas para trás, ficou com a respiração presa na garganta. O céu meridional estava num turbilhão de cores incandescentes e em constante transformação, reflexo dos grandes incêndios que ardiam embaixo. Sinistras marés verdes moviam-se contra as nuvens mais baixas, e lagoas de luz laranja espalhavam-se pelo céu. Os vermelhos e amarelos das chamas comuns guerreavam contra os esmeraldas e jades do fogovivo, com cada cor relampejando e logo perdendo força, gerando exércitos de sombras de breve existência, que morriam um instante mais tarde. Alvoradas verdes davam lugar a crepúsculos laranjas em meio segundo. O próprio ar cheirava a queimado, como uma caldeira de sopa às vezes cheirava quando era deixada tempo demais ao fogo e toda a sopa evaporava. Fagulhas pairavam no ar noturno como enxames de vaga-lumes. Sansa afastou-se da janela, retirando-se para a segurança de sua cama. Vou dormir, disse a si mesma, e quando acordar será um novo dia, e o céu estará de novo azul A batalha estará acabada e alguém me dirá se vou viver ou morrer. - Lady - lamuriou-se em voz baixa, perguntando-se se voltaria a encontrar sua loba quando morresse. Então, algo se agitou atrás dela, e uma mão saiu da escuridão e agarrou seu pulso. Sansa abriu a boca para gritar, mas outra mão prendeu seu rosto, asfixiando-a. Os dedos eram ásperos e cheios de calos, e estavam pegajosos de sangue. - Passarinho. Sabia que você viria - a voz era um ruído bêbado. Lá fora, uma lança rodopiante de luz jade saltou para as estrelas, enchendo o quarto com um clarão verde. Viu-o por um momento, todo negro e verde, com o sangue no rosto escuro como alcatrão, os olhos brilhando como os de um cão no súbito clarão. Então, a luz sumiu e ele se transformou apenas numa sombra pesada com um manto branco manchado. - Se gritar, mato-a. Acredite - tirou a mão de sua boca. A respiração de Sansa estava entrecortada. Cão de Caça tinha posto um jarro de vinho na mesa de cabeceira. Bebeu um longo trago. - Não quer perguntar quem está vencendo a batalha, passarinho? - Quem? - ela aquiesceu, demasiado assustada para contrariá-lo. Cão de Caça soltou uma gargalhada. - Só sei quem perdeu. Eu. Está mais bêbado do que jamais o vi. Estava dormindo na minha cama. O que quer aqui? - Que foi que perdeu? - Tudo - a metade queimada de seu rosto era uma máscara de sangue seco. - Maldito anão. Devia tê-lo matado. Há anos. - Dizem que está morto. - Morto? Não. Que se dane. Não o quero morto - atirou o jarro vazio para o lado. - Quero -o queimado, Se os deuses forem bons, hão de queimá-lo, mas não vou estar aqui para ver. Vou embora. - Embora? - ela tentou se libertar, mas a mão dele era de ferro. - O passarinho repete tudo o que ouve. Embora, sim. - Para onde vai? - Para longe daqui. Para longe dos incêndios. Acho que sairei pelo Portão de Ferro. Para algum lugar, qualquer lugar, para o norte. - Não sairá - Sansa o avisou. - A rainha fechou Maegor e os portões da cidade também estão fechados. - Para mim, não. Tenho o manto branco. E tenho isto - deu pancadinhas no botão da espada. - O homem que tentar me parar é um homem morto. A menos que esteja ardendo - soltou um riso amargo. - Por que veio até aqui? - Prometeu-me uma canção, passarinho. Já se esqueceu? Sansa não sabia o que ele queria dizer. Não podia cantar para ele naquele momento, ali, com o céu num turbilhão de fogo e homens morrendo às centenas e aos milhares.
    - Não posso - ela respondeu. - Largue-me. Está me assustando. - Tudo a assusta. Olhe para mim. Olhe para mim. O sangue tapava o pior de suas cicatrizes, mas os olhos estavam brancos, dilatados e aterrorizadores. O canto queimado de sua boca torceu-se e voltou a se torcer. Sansa conseguia cheirá-lo; um fedor de suor, vinho amargo e vômito seco, e, por cima de tudo, o cheiro nauseabundo de sangue, sangue, sangue. - Podia mantê-la a salvo - ele disse com sua voz áspera. - Todos têm medo de mim. Ninguém voltaria a lhe fazer mal, caso contrário, eu os mataria - puxou-a para mais perto, e por um momento ela pensou que pretendesse beijá-la. Era forte demais para resistir. Fechou os olhos, desejando que se apressasse, mas nada aconteceu. - Ainda não suporta olhar, não é? - ouviu-o dizer. Torceu seu braço com força, fazendo-a virar-se e atirando-a na cama. - Eu quero essa canção. Falou de Florian e Jonquil - tinha o punhal desembainhado, apontado à sua garganta. - Cante, passarinho. Cante por sua pequena vida. Sansa tinha a garganta seca e apertada de medo, e todas as canções que aprendera tinham fugido de sua cabeça. Por favor, não me mate, quis gritar, por favor, não. Conseguia senti-lo virando a ponta, empurrando-a de encontro à sua garganta, e quase voltou a fechar os olhos, mas então lembrou-se. Não era sobre Florian e Jonquil, mas era uma canção. A voz soou fraca, fina e trêmula aos seus ouvidos. Gentil Mãe, de clemência fonte, nossos filhos livre da disputa, pare espadas, pare flechas, deixe-os ver um melhor dia. Gentil Mãe, das mulheres força, ajude nossas filhas nesta luta, acalme a ira, dome a fúria, ensine a todos outra via. Tinha se esquecido dos outros versos. Quando a voz se desvaneceu, temeu que ele pudesse matá-la, mas após um momento Cão de Caça tirou a lâmina de sua garganta, sem uma palavra. Um instinto qualquer fez Sansa levantar a mão e pousá-la no rosto dele. O quarto estava escuro demais para que o visse, mas sentiu o sangue pegajoso e uma umidade que não era sangue. - Passarinho - ele voltou a falar, com a voz dura e áspera como aço riscando pedra. Então, levantou-se da cama. Sansa ouviu pano rasgando-se, seguido pelo som mais suave de passos que se afastavam. Quando se arrastou para fora da cama, longos momentos mais tarde, estava só. Encontrou o manto dele no chão, muito torcido, com a lã branca manchada de sangue e fogo. A essa altura, o céu lá fora estava mais escuro, apenas com alguns pálidos fantasmas verdes dançando diante das estrelas. Soprava um vento gelado, fazendo as venezianas baterem. Sansa sentiu frio. Sacudiu o manto rasgado e enrolou-se debaixo dele no chão, tremendo. Não saberia dizer quanto tempo ficou ali, mas, depois de um longo intervalo, ouviu um sino tocar, longe, do outro lado da cidade. O som era um ressoar profundo de bronze, tornando-se mais rápido a cada badalada. Sansa perguntava a si mesma o que aquilo poderia querer dizer, quando um segundo sino se juntou a ele, e um terceiro, vozes que chamavam por sobre as colinas e os vales, os becos e as torres, até chegarem a todos os cantos de Porto Real. Afastou o manto e foi até a janela. O primeiro tênue sinal da alvorada era visível a leste, e os sinos da Fortaleza Vermelha estavam agora soando, juntando-se ao crescente rio de som que jorrava das sete torres de cristal do Grande Septo de Baelor. Sansa lembrou-se de que tinham feito repicar os sinos quando Rei Robert morrera, mas o toque que ouvia agora era diferente, não um lento e doloroso repique de morte, e sim um trovão de alegria. Conseguia ouvir também homens gritando nas ruas, só podiam ser aclamações. Foi Sor Dontos quem lhe trouxe a notícia. Entrou cambaleando pela porta aberta, envolveu-a em seus braços flácidos e a rodopiou pelo quarto, gritando com tanta incoerência que Sansa não entendeu uma palavra. Estava tão bêbado como Cão de Caça, mas nele a bebedeira era feliz e dançante, Sansa estava sem fôlego e tonta quando ele a largou. - O que se passa? - agarrou-se a uma das colunas da cama. - Que aconteceu? Diga-me! - Acabou! Acabou! Acabou! A cidade está salva. Lorde Stannis morreu, Lorde Stannis fugiu, ninguém sabe, ninguém se importa, sua tropa está desfeita, o perigo passou. Massacrado, desbaratado ou mudado de lado, segundo dizem. Ah, os brilhantes estandartes! Os estandartes, Jonquil, os estandartes! Tem vinho? Devíamos beber a este dia, ah, sim. Quer dizer que está em segurança, entende? - Diga-me o que aconteceu! - Sansa o sacudiu. Sor Dontos riu e saltou de uma perna para a outra, por pouco não caindo. - Chegaram atravessando as cinzas enquanto o rio estava ardendo. O rio. Stannis estava enfiado no rio até o pescoço, e apanharam-no pela retaguarda. Ah, ser de novo um cavaleiro, ter participado! Segundo dizem, seus homens quase não lutaram. Alguns fugiram, mas houve mais que se renderam e mudaram de lado, gritando por Lorde Renly! O que Stannis deve ter pensado quando ouviu aquilo! Eu soube por Osney Kettleblack, que soube por Sor Osmund, mas Sor Balon está agora de volta e seus homens dizem o mesmo, e os mantos dourados também. Estamos salvos, querida! Subiram a estrada das rosas e vieram pela margem do rio, atravessando todos os campos que Stannis tinha queimado, fazendo as cinzas voarem em volta de suas botas e deixando o exército inteiro cinza. Mas, oh!, os estandartes devem ter permanecido brilhantes, a rosa dourada, o leão dourado e todos os outros, as árvores dos Marbrand e dos Rowan, o caçador de Tarly, as uvas dos Redwyne e a folha da Senhora Oakheart. Todos os homens do oeste, todo o poderio de Jardim de Cima e de Rochedo Casterly! O próprio Lorde Tywin comandava a ala direita na margem norte do rio, com Randyll Tarly comandando o centro e Mace Tyrell a ala esquerda, mas foi a vanguarda que venceu a luta. Mergulharam na tropa de Stannis como uma lança numa abóbora, com todos os homens uivando como um demônio vestido de aço. E sabe quem comandava a vanguarda? Sabe? Sabe? Sabe? - Robb? - era esperar muito, mas,., - Foi Lorde Renly! Lorde Renly em sua armadura verde, com os incêndios rebrilhando em seus chifres dourados! Lorde Renly com sua grande lança na mão! Dizem que foi ele próprio quem matou Sor Guyard Morrigen em combate singular, bem como uma dúzia de outros cavaleiros. Foi Renly, foi Renly, foi Renly! Oh!, os estandartes, querida Sansa! Oh, ser um cavaleiro! Daeneys Estava tomando o desjejum, uma tigela de sopa fria de camarão e caqui, quando Irri lhe trouxe um vestido qarteno, uma arejada confecção de samito cor de marfim com um padrão de pequenas pérolas, - Leve isso - Dany falou. - As docas não são lugar para adornos de senhora. Se os homens de leite a consideravam uma selvagem assim tão grande, iria se vestir de acordo com o papel que lhe cabia. Quando se dirigiu ao estábulo, usava calças desbotadas de sedareia e sandálias de erva trançada. Seus pequenos seios moviam-se livremente sob um colete dothraki pintado, e uma adaga curva pendia de seu cinto de medalhões, Jhiqui tinha entrançado seu cabelo à moda dothraki e prendido uma sineta de prata na ponta da trança. - Não conquistei nenhuma vitória - tentou dizer à aia quando a sineta tilintou baixinho. Jhiqui discordou, - Queimou os maegi na sua casa de poeira e enviou suas almas para o inferno. Essa vitória foi de Drogon, não minha, Dany quis dizer, mas segurou a língua. Os dothraki iriam estimá-la mais com algumas sinetas no cabelo. Tilintou ao montar a égua prateada, e de novo a cada passo, mas nem Sor Jorah nem seus companheiros de sangue mencionaram o fato. Para defender seu povo e os dragões em sua ausência, escolheu Rakharo, Jhogo e Aggo seguiriam com ela até a costa. Deixaram os palácios de mármore e fragrantes jardins para trás e abriram caminho através de uma parte mais pobre da cidade, onde modestas casas de tijolo viravam paredes cegas para a rua. Havia menos cavalos e camelos à vista, e uma completa ausência de palanquins, mas as ruas estavam apinhadas de crianças, pedintes e cães esquálidos da cor da areia. Homens pálidos com saias poeirentas de linho viam-nos passar sob soleiras arqueadas. Eles sabem quem eu sou e não gostam de mim, Dany via isso no modo como a olhavam. Sor Jorah teria preferido enfiá-la em seu palanquim, escondida em segurança atrás de cortinas de seda, mas Dany recusou. Tinha passado tempo demais reclinada em almofadas de cetim, deixando que bois a transportassem para cá e para lá. Quando montava a cavalo, pelo menos sentia que estava indo para algum lado. Não era por escolha própria que procurava a costa. Estava de novo em fuga. Toda sua vida tinha sido uma longa fuga, ao que parecia. Começara a fugir ainda no ventre da mãe, e nunca parou. Quantas vezes tinha se esgueirado com Viserys na calada da noite, não mais do que um passo à frente dos assassinos contratados do Usurpador? Mas era fugir ou morrer. Xaro soube que Pyat Pree andava reunindo os magos sobreviventes para fazer o mal cair sobre ela. Dany riu quando ele lhe contou isso. - Não foi você quem me disse que os feiticeiros não eram mais do que velhos soldados, gabando-se vaidosamente de feitos esquecidos e capacidades perdidas? Xaro fez uma expressão de desconforto: - E assim era naquele momento. Mas, agora? Não tenho tanta certeza. Dizem que as velas de vidro estão ardendo na casa de Urrathon, o Caminhante da Noite, velas que não ardiam havia cem anos. Erva dos fantasmas cresce no Jardim de Gehane, foram vistas tartarugas fantasmagóricas levando mensagens entre as casas sem janelas na Via dos Magos, e todos os ratos da cidade andam cortando a cauda com os dentes. A esposa de Mathos Mallarawan, que um dia caçoou da pesada toga de um mago roída pelas traças, enlouqueceu e recusa-se a usar qualquer tipo de roupa. Até sedas recém-lavadas fazem-na sentir que um milhar de insetos andam rastejando sobre sua pele. E Sybassion Cego, o Comedor de Olhos, voltou a ver, ou pelo menos é o que os escravos dele juram. Um homem tem de refletir - ele suspirou. - Vivemos tempos estranhos em Qarth. E os tempos estranhos são ruins para o comércio. Magoa-me dizê-lo, mas talvez fosse melhor se abandonasse Qarth por completo, e quanto mais depressa, melhor - Xaro afagara seus dedos tranquilizadoramente. - Mas não tem de ir só, Teve visões sombrias no Palácio de Poeira, mas Xaro sonhou sonhos mais luminosos. Vejo-a deitada, feliz, com um filho ao peito. Navegue comigo em torno do Mar de Jade, e ainda podemos tornar o sonho realidade! Não é tarde demais. Dê-me um filho, minha doce canção de alegria! 0 que você quer pedir é que lhe dê um dragão. - Não casarei com o senhor, Xaro. A expressão dele tornou-se fria ao ouvir aquilo.
    - Então parta. - Para onde? - Para algum lugar longe daqui. Bem, talvez fosse tempo de fazer isso. O povo de seu khalasar acolhera bem a possibilidade de se recuperar da devastação do deserto vermelho, mas agora que estava de novo forte e repousado, começava a se tornar indisciplinado. Os dothraki não estavam acostumados a ficar por muito tempo no mesmo lugar. Eram guerreiros, não um povo feito para as cidades. Talvez tivesse permanecido em Qarth tempo demais, seduzida por seus confortos e belezas. Parecia-lhe que era uma cidade que prometia sempre mais do que dava, e sua recepção ali tinha se tornado amarga depois de a Casa dos Imortais ruir numa grande nuvem de fumaça e chamas. De repente, os qartenos lembraram-se de que os dragões eram perigosos. Já não rivalizavam uns com os outros para lhe dar presentes. Em vez disso, a Irmandade Turmalina pedira abertamente sua expulsão, e a Antiga Guilda das Especiarias, sua morte. Xaro não conseguiu mais do que impedir que os Treze se juntassem a eles. Mas para onde hei de ir? Sor Jorah propusera que viajassem mais para leste, para longe dos inimigos que tinham nos Sete Reinos. Seus companheiros de sangue prefeririam retornar ao seu grande mar de erva, mesmo que isso significasse voltar a enfrentar o deserto vermelho. A própria Dany brincara com a idéia de se instalar em Vaes Tolorro até que seus dragões se tornassem grandes e fortes. Mas tinha o coração cheio de dúvidas. Sentia que cada uma daquelas opções era de algum modo errada... E mesmo quando decidisse o lugar para onde ir, a questão de como chegar lá permaneceria um problema. Sabia agora que Xaro Xhoan Daxos não lhe prestaria nenhuma ajuda. Apesar de todas as suas declarações de devoção, o mercador jogava seu próprio jogo, à semelhança de Pyat Pree. Na noite em que lhe disse para partir, Dany tinha lhe suplicado um último favor. - Um exército? Ê isso? - Xaro perguntou. - Uma caldeira de ouro? Uma galé, talvez? Dany corou. Odiava pechinchar. - Sim, um navio. Os olhos de Xaro cintilaram com um brilho tão intenso como o das jóias que trazia no nariz. - Eu sou um mercador, Khaleesi, Portanto, talvez devêssemos não voltar a falar de presentear, e sim de comerciar. Por um de seus dragões, obterá dez dos melhores navios de minha frota. Só tem de proferir uma doce palavra. - Não - ela disse. - Infelizmente - soluçou Xaro - não era essa a palavra a que me referia. - Pediria a uma mãe que vendesse os filhos? - E por que não? Podem sempre fazer mais. As mães vendem os filhos todos os dias. - A Mãe de Dragões não. - Nem mesmo por vinte navios? - Nem por cem. A boca dele retorceu-se. - Não possuo cem. Mas você tem três dragões. Dê-me um, em troca de toda a minha bondade. Ainda ficará com dois, e com trinta navios. Trinta navios seriam suficientes para desembarcar um pequeno exército na costa de Westeros, Mas eu não tenho um pequeno exército, - Quantos navios possui, Xaro? - Oitenta e três, sem contar a minha barca do prazer. - E os seus colegas nos Treze? - Entre todos, talvez mil. - E a Guilda das Especiarias e a Irmandade Turmalina? - Suas insignificantes frotas não têm importância. - Mesmo assim, conte-me. - Mil e duzentos ou mil e trezentos da Guilda, não mais de oitocentos da Irmandade. - E os asshai'i, os bravosianos, os homens das Ilhas do Verão, os ibbeneses e todos os outros povos que navegam pelo grande mar salgado, quantos navios possuem? Todos juntos? - Muitos e mais ainda - ele respondeu com um ar irritado. - O que importa? - Estou tentando estabelecer um preço para um dos três dragões vivos que há no mundo - Dany sorriu docemente. - Parece-me que um terço de todos os navios do mundo seria um preço justo. As lágrimas de Xaro correram por seu rosto, de ambos os lados do nariz incrustado de jóias. - Não a alertei para que não entrasse no Palácio de Poeira? Era precisamente isso que temia. Os sussurros dos magos deixaram-na tão louca quanto a esposa de Mallarawan, Um terço de todos os navios do mundo? Pah. Pah, digo eu. Pah, Dany não voltou a vê-lo. Seu senescal trazia-lhe mensagens, cada uma mais fria do que a anterior. Que tinha de abandonar a sua casa. Que estava farto de alimentá-la e ao seu povo. Exigia a devolução de seus presentes, os quais Dany teria aceitado de má-fé. Seu único consolo era que pelo menos tivera o grande bom-senso de não se casar com ele. Os magos segredaram sobre três traições... uma por sangue, uma por ouro e uma por amor. Sem dúvida, a primeira traidora tinha sido Mirri Maz Duur, que assassinara Khal Drogo e seu filho por nascer, para vingar seu povo. Poderiam Pyat Pree e Xaro Xhoan Daxos ser o segundo e o terceiro traidor? Não lhe parecia. O que Pyat fizera não foi por ouro, e Xaro nunca a amara de verdade. As ruas ficaram mais vazias quando passaram por um bairro dedicado a sombrios armazéns de pedra. Aggo seguiu à frente ejhogo atrás, deixando Sor Jorah Mormont a seu lado. A sineta retinia baixinho e Dany reparou que seus pensamentos voltavam de quando em quando ao Palácio de Poeira, do mesmo modo que a língua volta ao espaço deixado vago por um dente a menos. Filha de três, tinham-na chamado, filha da morte, matadora de mentiras, noiva do fogo. Tantos três. Três fogos, três montarias a montar, três traições. - O dragão tem três cabeças - suspirou. - Sabe o que isso quer dizer, Jorah? - Vossa Graça? O símbolo da Casa Targaryen é um dragão de três cabeças, vermelho sobre fundo negro. - Eu sei. Mas não existem dragões de três cabeças. - As três cabeças eram Aegon e as irmãs. - Visenya e Rhaenys - ela recordou. - Descendo de Aegon e Rhaenys através de Aenys, seu filho, e de Jaehaerys, seu neto. - Lábios azuis só dizem mentiras, não foi o que Xaro disse? Por que se importa com o que os magos sussurraram? Agora sabe que tudo o que queriam era sugar sua vida. - Talvez - ela disse relutante. - Mas as coisas que vi... - Um homem morto na proa de um navio, uma rosa azul, um banquete de sangue... O que significam essas coisas, Khaleesi? Falou de um dragão de pantomimeiro. O que é um dragão de pantomimeiro, diga-me? - Um dragão de pano montado em varas - Dany explicou. - Os pantomimeiros usam-nos em seus espetáculos, para dar aos heróis algo com que lutar. Sor Jorah franziu a testa. Dany não conseguia abandonar o assunto. - E sua a canção de gelo e fogo, disse meu irmão. Tenho certeza de que era meu irmão, Não Viserys, Rhaegar. Tinha uma harpa com cordas de prata. O franzir de testa de Sor Jorah aprofundou-se tanto que as sobrancelhas se juntaram. - O Príncipe Rhaegar tocava uma harpa assim - ele anuiu. - Viu-o? Ela confirmou com a cabeça. - Havia uma mulher numa cama, com um bebê no peito. Meu irmão disse que o bebê era o príncipe que havia sido profetizado e falou à mulher para chamá-lo Aegon. - O Príncipe Aegon era herdeiro de Rhaegar, filho de Elia de Dorne - disse Sor Jorah. - Mas se era ele o príncipe da profecia, esta foi quebrada com o seu crânio, quando os Lannister atiraram sua cabeça contra uma parede. - Eu me lembro - a voz dela soou triste. - Também assassinaram a filha de Rhaegar, a princesinha. Chamava-se Rhaenys, como a irmã de Aegon. Não havia uma Visenya, mas ele disse que o dragão tem três cabeças. O que é a canção de gelo e fogo? - Não é nenhuma canção que eu tenha ouvido. - Fui encontrar os magos esperando respostas, mas em vez disso deixaram-me com uma centena de novas perguntas. Àquela altura já havia de novo pessoas nas ruas. - Abram alas - gritava Aggo, enquanto Jhogo farejava o ar com uma expressão de suspeita. - Estou sentindo o cheiro, Khaleesi - ele gritou. - A água venenosa - os dothrakis desconfiavam do mar e de tudo o que se movesse nele. Água que um cavalo não podia beber era água com que não queriam lidar. Aprenderão, sentenciou Dany. Enfrentei o mar deles com Khal Drogo. Agora eles podem enfrentar o meu. 564 Qarth era um dos grandes portos do mundo, com longos cais abrigados que eram uma profusão de cores, sons e estranhos cheiros. Tabernas, armazéns e antros de jogo alinhavam-se ao longo das ruas, ao lado de bordéis baratos e aos templos de deuses peculiares. Batedores de carteira, assassinos, vendedores de feitiços e cambistas misturavam-se em todas as multidões. A margem era um grande mercado, onde a compra e a venda prosseguiam de dia e de noite, e bens podiam ser obtidos por uma fração do que custariam na feira, se não se fizesse perguntas sobre sua origem. Velhos encarquilhados, encurvados como corcundas, vendiam águas aromatizadas e leite de cabra, armazenados em cântaros de cerâmica vidrada que traziam presos aos ombros. Marinheiros de meia centena de nações vagueavam por entre as bancas, bebendo licores temperados e trocando piadas em línguas de estranhas sonoridades. O ar cheirava a sal e a peixe frito, a alcatrão quente e a mel, a incenso, óleo e esperma. Aggo deu a um moleque uma moeda de cobre por um espeto de ratos assados com mel, que foi mordiscando enquanto avançavam. Jhogo comprou uma porção de grandes cerejas brancas. Em outro local, viram belos punhais de bronze à venda, lulas secas e ônix esculpido, um potente elixir mágico feito de leite de virgem e de sombra da tarde, até ovos de dragão que se pareciam, de forma suspeita, com pedras pintadas. Enquanto passavam pelos longos cais de pedra reservados aos navios dos Treze, Dany viu arcas de açafrão, olíbano e pimenta sendo descarregadas do ornamentado Beijo Cinábrio de Xaro. A seu lado, barris de vinho e fardos de folhamarga e de peles listradas eram rolados pela prancha acima até a Noiva de Blau, que devia zarpar na maré da noite. Mais à frente, reunira-se uma multidão em volta da galé da Guilda, Resplendor Solar, a fim de licitar escravos. Era bem sabido que o lugar mais econômico para comprar um escravo era logo à saída do navio, e as bandeiras que flutuavam em seus mastros proclamavam que o Resplendor Solar tinha acabado de chegar de Astapor, na Baía dos Escravos. Dany não obteria ajuda dos Treze, da Irmandade Turmalina ou da Antiga Guilda das Especiarias. Avançou com a sua prata ao longo de várias milhas dos cais, docas e armazéns das três associações, até a ponta mais distante do porto em forma de ferradura, onde era permitida a ancoragem dos navios provenientes das Ilhas do Verão, Westeros e das Nove Cidades Livres. Desmontou junto a uma arena de apostas, onde um basilisco fazia em pedaços um grande cão vermelho, no centro de um ruidoso anel de marinheiros. - Aggo, Jhogo, guardem os cavalos enquanto Sor Jorah e eu falamos com os capitães. - Às suas ordens, Khaleesi. Vamos vigiá-los daqui. Era bom voltar a ouvir homens falando valiriano, e até o Idioma Comum, Dany pensou enquanto se aproximavam do primeiro navio. Marinheiros, estivadores e mercadores abriram passagem quando ela se aproximava, sem saber o que pensar daquela menina magra, de cabelos louro-prateados, que se vestia à moda dothraki e caminhava com um cavaleiro ao seu lado. Apesar do calor do dia, Sor Jorah vestia sua capa de lã verde sobre uma cota de malha, com o urso negro de Mormont cosido no peito. Mas nem a beleza dela nem o tamanho e a força dele teriam utilidade no trato com os homens de cujos navios precisavam. - Pede passagem para uma centena de homens dothraki, todos os seus cavalos, você, este cavaleiro e três dragões? - perguntou o capitão da grande coca Amigo Ardente, antes de se afastar, rindo. Quando disse a um liseno, no Trombeteiro, que era Daenerys Nascida da Tormenta, Rainha dos Sete Reinos, ele lhe deu um olhar inexpressivo e disse: 565 - Bem, e eu sou o Lorde Tywin Lannister e cago ouro todas as noites. O mestre de carga da gaié de Myr, Espírito de Seda, opinou que os dragões eram perigosos demais no mar, onde qualquer fiapo de chama podia incendiar o cordame. O dono da Barriga de Lorde Faro arriscava os dragões, mas não os dothraki. - Não quero nenhum desses selvagens sem deus na minha Barriga, não, não. Os dois irmãos que capitaneavam os navios gêmeos Mercúrio e Galgo mostraram-se compreensivos e convidaram-nos a entrar na cabine para tomar um copo de tinto da Arvore. Foram tão corteses que Dany se sentiu esperançosa durante algum tempo, mas, por fim, o preço que pediram estava muito além de suas possibilidades, e talvez estivesse além até das de Xaro. Petto Beliscão e Donzela de Olhos Negros eram pequenos demais para as suas necessidades; Bravo dirigia-se para o Mar de Jade, e Magíster Manolo quase não parecia capaz de navegar. Enquanto se dirigiam ao cais seguinte, Sor Jorah pôs a mão na parte de baixo das costas de Dany. - Vossa Graça. Está sendo seguida. Não, não se vire - guiou-a com gentileza até a bancada de um vendedor de latões. - Isto é um trabalho notável, minha rainha - proclamou em voz alta, erguendo uma grande bandeja para que ela a inspecionasse. - Vê como brilha ao sol? O latão estava muito polido. Dany conseguia ver nele o seu rosto... e quando Sor jorah o inclinou para a direita, conseguiu ver atrás de si. - Vejo um homem gordo mulato e outro mais velho com um bastão. Qual deles é? - Os dois - Sor Jorah respondeu. - Vêm nos seguindo desde que deixamos para trás o Mercúrio, As ondulações no latão esticavam os dois estranhos de forma bizarra, fazendo com que um dos homens parecesse alto e muito magro e o outro imensamente atarracado e gordo. - Um latão excelente, grande senhora - exclamou o mercador. - Brilhante como o sol! E para a Mãe de Dragões, são só trinta honras. A bandeja não valia mais do que três. - Onde estão os meus guardas? - Dany quis saber. - Este homem está tentando me assaltar! - dirigindo-se a Jorah, abaixou a voz e falou no Idioma Comum: - Podem não me querer mal. Os homens olham as mulheres desde o início dos tempos, talvez não seja mais do que isso. O vendedor de latões ignorou os sussurros. - Trinta? Eu disse trinta? Que tolo sou. O preço é vinte honras. - Nem todo o latão desta bancada vale vinte honras - disse-lhe Dany enquanto estudava os reflexos. O velho tinha um aspecto que lembrava Westeros, e o de pele escura devia pesar cento e vinte quilos. O Usurpador ofereceu uma senhoria ao homem que me matasse, e esses dois estão longe de casa. Ou serão criaturas dos magos, tentando me pegar desprevenida? - Dez, Khaleesi, por ser tão bela. Use-o como espelho. Só um latão assim tão bom pode captar tamanha beleza, - Podia servir para levar dejetos. Se a jogasse fora, eu poderia recolhê-la, desde que não tivesse de me dobrar. Mas pagar por ela? - Dany colocou a bandeja em suas mãos. - Os vermes rastejaram por seu nariz acima e comeram seu cérebro. - Oito honras - o homem gritou. - Minhas esposas vão me bater e me chamar de idiota, mas em suas mãos sou uma criança desamparada. Vá, oito, é menos do que o seu valor. - Para que preciso de latão baço quando Xaro Xhoan Daxos me alimenta de pratos de ouro? - ao virar-se para se afastar, Dany deixou que seu olhar passasse sobre os estranhos, O mulato 566 era quase tão gordo quanto parecera na bandeja, com uma cintilante cabeça calva e o rosto liso de um eunuco. Trazia um longo arakh curvo enfiado na seda amarela manchada pelo suor de sua faixa de cintura. Acima da seda, estava nu, à exceção de um colete absurdamente minúsculo com tachões de ferro. Velhas cicatrizes entrecruzavam-se em seus braços grossos como troncos de árvores, peito e barriga enormes, numa cor mais clara do que a de sua pele cor de avelã. O outro homem usava um manto de viajante feito de lã crua, com o capuz atirado para trás.
    Longos cabelos brancos caíam sobre seus ombros, e uma barba branca e sedosa cobria a metade inferior do seu rosto. Apoiava o peso num bastão de madeira dura tão alto quanto ele. Só tolos me fitariam tão abertamente se me pretendessem algum mal Mesmo assim, podia ser prudente voltar para onde estavam Jhogo e Aggo. - O velho não usa espada - disse a Jorah no Idioma Comum enquanto o afastava da banca. O vendedor de latão veio aos saltos atrás deles. - Cinco honras, por cinco é sua, estava destinada à senhora. Sor Jorah disse: - Um bastão de madeira rija pode quebrar um crânio tão bem como qualquer maça. - Quatro! Eu sei que a quer! - o homem dançou na frente deles, dando corridinhas para trás enquanto enfiava a bandeja no rosto deles. - Seguem-nos? - Levante isso um pouco mais - disse o cavaleiro ao mercador. - Sim. O velho finge ver a mercadoria da banca de um oleiro, mas o mulato só tem olhos para a senhora. - Duas honras! Duas! Duas! - o mercador arquejava pesadamente com o esforço de correr para trás. - Pague-lhe antes que se mate - disse Dany a Sor Jorah, perguntando a si mesma o que ia fazer com uma enorme bandeja de latão. Virou-se para trás enquanto ele procurava as moedas, pretendendo pôr fim àquela farsa. O sangue do dragão não seria pastoreado através da feira por um velho e um eunuco gordo. Um qarteno entrou em seu caminho: - Mãe de Dragões, para você - ajoelhou-se e apresentou-lhe uma caixa de jóias. Dany aceitou-a quase por reflexo. A caixa era de madeira entalhada, com tampa de madrepérola embutida de jaspe e calcedônia. - É muito gentil - abriu-a. Lá dentro encontrava-se um cintilante escaravelho verde esculpido em ônix e esmeralda. Lindo, pensou. Isso ajudará a pagar nossa passagem. Enquanto estendia a mão para dentro da caixa o homem disse: - Lamento tanto - mas ela quase não o ouviu. O escaravelho desenrolou-se com um silvo. Dany viu de relance uma maligna cara negra, quase humana, e uma cauda arqueada pingando veneno... E então a caixa voou de suas mãos, feita em pedaços, rodopiando. Uma dor súbita fê-la torcer os dedos. Enquanto gritava e agarrava a mão, o mercador de latão soltou um guincho, uma mulher gritou, e de súbito os qartenos gritavam e empurravam-se uns aos outros. Sor Jorah passou por ela, dando-lhe um encontrão, e Dany caiu sobre um joelho, voltando a ouvir o silvo. O velho espetou o bastão no chão, Aggo chegou a cavalo pelo meio da banca de um vendedor de ovos e saltou da sela, o chicote de Jhogo estalou por cima de sua cabeça, Sor Jorah atingiu o eunuco na cabeça com a bandeja de latão, marinheiros, prostitutas e mercadores estavam fugindo, gritando ou fazendo ambas as coisas... - Vossa Graça, mil perdões - o velho se ajoelhou. - Está morto. Quebrei sua mão? Ela fechou os dedos, tremendo: - Parece que não. - Tive de atirá-lo para longe - começou o homem, mas os companheiros de sangue de Dany caíram sobre ele antes de poder terminar. Aggo chutou seu bastão para longe e Jhogo agarrou-o pelos ombros, forçou-o a se ajoelhar e picou sua garganta com um punhal. - Khaleesi, vimos que ele a atacou. Quer ver a cor de seu sangue? - Soltem-no - Dany ficou em pé. - Olhem para a ponta de seu bastão, sangue do meu sangue - Sor Jorah tinha sido atirado ao chão pelo eunuco. Ela pôs-se entre eles quando o arakh e a espada longa saltaram relampejando das respectivas bainhas. - Guardem seu aço! Parem com isso! - Vossa Graça? - Mormont baixou a espada não mais do que dois centímetros. - Estes homens atacaram-na. - Estavam me defendendo - Dany bateu com a mão para sacudir a dor dos dedos. - Foi o outro, o qarteno - quando olhou em volta, o homem tinha desaparecido. - Era um Homem Pesaroso. Havia uma manticora naquela caixa de jóias que ele me deu. Este homem arrancou-a da minha mão - o mercador de latão ainda rolava pelo chão. Dany foi até ele e o ajudou a ficar em pé. - Foi picado? - Não, minha boa senhora - ele respondeu, tremendo caso contrário estaria morto. Mas aquilo tocou-me, aiiiii, quando caiu da caixa aterrissou no meu braço - Dany via que o homem tinha se urinado, e não era para menos. Deu-lhe uma moeda de prata pelos problemas que tinha lhe causado e o mandou embora antes de se voltar para o velho com a barba branca. - A quem devo eu a minha vida? - Nada me deve, Vossa Graça. Chamo-me Arstan, embora Belwas tenha me apelidado de Barba Branca na viagem para aqui - apesar de Jhogo tê-lo soltado, permanecia apoiado num joelho. Aggo apanhou o bastão, virou-o, praguejou em voz baixa em dothraki, limpou os restos da manticora numa pedra, e o entregou ao homem. - E quem é Belwas? - Dany quis saber. O enorme eunuco mulato avançou, pavoneando-se, embainhando o arakh. - Belwas sou eu. Chamam-me Belwas, o Forte, nas arenas de luta de Meereen. Nunca perdi - deu uma palmada na barriga, coberta de cicatrizes. - Deixo todos os homens me ferirem uma vez antes de matá-los. Conte os golpes, e saberá quantos homens Belwas, o Forte, matou.
    Dany não precisava contar as cicatrizes; com um rápido olhar dava para ver que eram muitas. - E por que está aqui, Belwas, o Forte? - De Meereen fui vendido a Qohor, e depois a Pentos, e ao homem gordo com um fedor doce no cabelo. Foi ele quem enviou Belwas, o Forte, de volta por mar, e o velho Barba Branca para servi-lo. O homem gordo com um fedor doce no cabelo... - Illyrio? - Dany disse. - Foram enviados pelo Magíster Illyrio? - Fomos, Vossa Graça - respondeu o velho Barba Branca, - O Magíster suplica a bondade de sua indulgência por nos enviar em seu lugar, mas já não pode montar a cavalo como podia quando jovem, e a viagem por mar perturba sua digestão - antes falava no valiriano das Cidades Livres, mas agora tinha mudado para o Idioma Comum. - Lamento se lhe causamos alarme. Para falar a verdade, não estávamos certos, esperávamos alguém mais... mais... 568 - Régio? - Dany riu. Não havia trazido nenhum dragão consigo, e seu vestuário dificilmente podia ser considerado próprio de uma rainha. - Fala bem o Idioma Comum, Arstan. Vem de Westeros? - Venho. Nasci na Marca de Dorne, Vossa Graça. Quando rapaz fui escudeiro de um cavaleiro ao serviço de Lorde Swann - segurava o grande bastão verticalmente a seu lado como uma lança à espera de um estandarte. - Agora sou escudeiro de Belwas. - E um pouco velho para isso, não? - Sor Jorah avançara através da multidão até tomar posição ao lado de Dany, segurando desajeitadamente a bandeja de latão debaixo do braço. A dura cabeça de Belwas deixara-a bastante amassada. - Mas não velho demais para servir meu suserano, Lorde Mormont. - Também me conhece? - Vi-o lutar uma ou duas vezes. Em Lanisporto, onde quase derrubou o Regicida. E em Pyke, lá também. Não se lembra, Lorde Mormont? Sor Jorah franziu a sobrancelha. - Seu rosto parece-me familiar, mas havia centenas de homens em Lanisporto e milhares em Pyke. E eu não sou lorde. A Ilha dos Ursos foi tirada de mim. Não sou mais do que um cavaleiro. - Um cavaleiro da minha Guarda Real - Dany tomou seu braço. - E meu amigo fiel e bom conselheiro - estudou o rosto de Arstan. Possuía uma grande dignidade, uma força calma que lhe agradava. - Levante-se, Arstan Barba Branca. Seja bem-vindo, Belwas, o Forte. Já conhecem Sor Jorah. Ko Aggo e Ko Jhogo são sangue do meu sangue. Cruzaram comigo o deserto vermelho e viram nascer os meus dragões. - Rapazes dos cavalos - Belwas deu um sorriso cheio de dentes e de intervalos entre eles. - Belwas matou muitos rapazes dos cavalos nas arenas de luta. Tilintam quando morrem. O arakh de Aggo saltou para sua mão. - Nunca matei um homem gordo e marrom. Belwas será o primeiro. - Embainhe o seu aço, sangue do meu sangue - Dany pediu - , este homem vem para me servir. Belwas, irá conceder o máximo respeito ao meu povo, caso contrário, deixará meu serviço mais cedo do que gostaria, e com mais cicatrizes do que quando chegou, O sorriso cheio de intervalos desvaneceu-se da larga cara escura do gigante, substituído por uma carranca confusa. Ao que parecia, não era freqüente que os homens ameaçassem Belwas, e ainda menos meninas com um terço do seu tamanho. Dany deu um sorriso, para remover um pouco da dureza da reprimenda. - E agora digam-me, o que Magíster Illyrio quer de mim para enviá-los de Pentos até aqui? - Quer dragões - disse Belwas rudemente - , e a menina que os faz. Ele a quer. - Belwas diz a verdade, Vossa Graça - Arstan confirmou. - Foi-nos dito que a encontrássemos e a levássemos de volta a Pentos. Os Sete Reinos precisam da senhora. Robert, o Usurpador, está morto, e o reino sangra. Quando zarpamos de Pentos havia quatro reis no país, e nenhuma justiça em parte alguma. A alegria floresceu em seu coração, mas Dany manteve-a afastada do rosto. - Tenho três dragões, e mais de cem pessoas no meu khalasar, com todos os seus bens e cavalos. - Não importa - Belwas trovejou. - Levamos todos. O homem gordo contrata três navios para a sua pequena rainha de cabelo prateado. 569 - Assim é, Vossa Graça - Arstan Barba Branca confirmou. - A grande coca Saduleon está atracada na extremidade do cais, e as galés Sol de Verão e Logro de Joso estão ancoradas do outro lado do quebra-mar. Três cabeças tem o dragão, pensou Dany, curiosa. - Direi ao meu povo que se prepare para partir de imediato. Mas os navios que me levarem para casa têm de ostentar nomes diferentes. - Como quiser - Arstan concordou, - Que nomes prefere? - Vhagar - disse-lhe Daenerys. - Meraxes. E Balerion. Pinte os nomes nos cascos em letras douradas com um metro de altura, Arstan. Quero que todos os homens que os virem saibam que os dragões regressaram. 570 A r y a
    As cabeças tinham sido mergulhadas em alcatrão a fim de abrandar o apodrecimento. Todas as manhãs, quando Arya se dirigia ao poço para tirar água fresca para a bacia de Roose Bolton, tinha de passar por baixo delas. Estavam viradas para fora, por isso nunca via os rostos, mas gostava de fingir que uma delas pertencia a Joffrey. Tentava imaginar como sua cara bonita ficaria mergulhada em alcatrão. Se eu fosse um corvo, podia pousar nela e arrancar à bicada seus estúpidos lábios gordos e mal-humorados. Nunca faltava público para as cabeças. As gralhas pretas voavam em círculos por cima da guarita, em roufenha rudeza, e disputavam nas muralhas por cada olho, guinchando e crocitando umas às outras e levantando voo sempre que uma sentinela passava pelas ameias. Às vezes os corvos do meistre também juntavam-se ao festim, descendo da colônia em grandes asas negras. Quando os corvos chegavam, as gralhas afastavam-se, retornando no momento em que as aves maiores partiam. Será que os corvos se lembram do Meistre Tothmure?, perguntou Arya a si mesma. Estarão tristes por ele? Quando lhe gritam quorc, será que se interrogam por que é que ele não responde? Talvez os mortos soubessem falar com eles em alguma língua secreta que os vivos não eram capazes de ouvir. Tothmure tinha sido sentenciado ao machado por enviar aves para Rochedo Casterly e Porto Real na noite em que Harrenhal caíra; o armeiro Lucan por fazer armas para os Lannister; a Governanta Harra por dizer ao pessoal da Senhora Whent para servi-los; o intendente por dar a Lorde Tywin as chaves do cofre do tesouro. O cozinheiro fora poupado (alguns diziam que por ter feito a sopa de doninha), mas tinham sido construídas armações para prender a bonita Pia e as outras mulheres que tinham partilhado os seus préstimos com soldados Lannister. Nuas e raspadas, foram deixadas no pátio intermediário ao lado da arena dos ursos, para o uso de qualquer homem que as quisesse. Três homens de armas Frey estavam usando-as naquela manhã quando Arya se dirigiu ao poço. Tentou não olhar, mas conseguia ouvir os homens rindo. O balde era muito pesado depois de cheio. Estava se virando para levá-lo para a Pira do Rei quando a Governanta Amabel pegou em seu braço. A água derramou-se sobre as pernas de Amabel. - Fez isso de propósito - a mulher guinchou. - O que é que você quer? - Arya torceu-se, tentando se soltar. Amabel andava meio louca desde que tinham cortado a cabeça de Harra. - Está vendo aquilo? - apontou para o outro lado do pátio, para Pia. - Quando este nortenho cair, você vai estar onde ela está. - Largue-me - Arya tentou se libertar puxando, mas Amabel limitou-se a fechar melhor os dedos. 571 - Ele também vai cair, Harrenhal acaba por puxar todos para baixo. Lorde Tywin agora ganhou, vai marchar de volta com todo seu poder, e depois será a vez dele de punir os desleais. E não pense que ele não saberá o que você fez! - a velha soltou uma gargalhada, - Posso até também eu dar uma também, a Harra tinha uma velha vassoura, vou guardá-la para você. O cabo está quebrado e cheio de lascas... Arya girou o balde. O peso da água fez com que se virasse em suas mãos, e não atingiu Amabel na cabeça como quis, mas a mulher a soltou mesmo assim quando a água a ensopou. - Nunca me toque - Arya gritou - , senão mato-a. Vá embora. Encharcada, a Governanta Amabel balançou um dedo fino na direção do homem esfolado no peito da túnica de Arya. - Acha que está segura com esse homenzinho sangrento em suas tetas, mas não está! Os Lannister vêm aí. Vai ver o que acontece quando chegarem aqui. Três quartos da água tinham se derramado no chão, e Arya teve de voltar ao poço. Se contasse a Lorde Bolton o que ela disse, a cabeça dela estaria ao lado da de Harra antes de cair a noite, pensou enquanto puxava o balde, Mas não o faria. Uma vez, quando só estavam lá metade das cabeças, Gendry surpreendera Arya olhando para elas. - Admirando o seu trabalho? - ele perguntara. Ela sabia que ele estava zangado porque gostava de Lucan, mas mesmo assim não era justo. - É trabalho de Walton Pernas-dAço - ela disse em tom defensivo. - E dos Saltimbancos, e de Lorde Bolton. - E quem nos trouxe todos eles? Você e a sua sopa de doninha. Arya esmurrou-lhe o braço. - Era só caldo quente de carne. Você também odiava Sor Amory. - Odeio mais esses tipos. Sor Amory lutava por seu senhor, mas os Saltimbancos são mercenários e vira-casacas. Metade nem sequer sabe falar o Idioma Comum. O Septão Utt gosta de garotinhos, Qyburn faz magia negra, e seu amigo Dentadas come gente. O pior era que nem podia dizer que ele não tinha razão. Os Bravos Companheiros cuidavam da maior parte do abastecimento de Harrenhal, e Roose Bolton atribuíra-lhes a tarefa de exterminar homens dos Lannister. Vargo Hoat dividira-os em quatro bandos, para visitar o máximo possível de aldeias. Ele próprio liderava o grupo maior, e tinha dado os outros aos seus capitães mais confiáveis. Arya ouvira Rorge rindo sobre a maneira que Lorde Vargo tinha de encontrar traidores. Tudo o que fazia era retornar aos locais que visitara antes sob o estandarte de Lorde Tywin e apanhar aqueles que o tinham ajudado. Muitos tinham sido comprados com prata dos Lannister, e era também freqüente que os Saltimbancos regressassem com sacos de moedas além dos cestos de cabeças. - Uma adivinha! - gritava jovialmente Shagwell, - Se a cabra de Lorde Bolton come os homens que alimentaram a cabra de Lorde Lannister, quantas cabras há? - Uma - tinha dito Arya quando ele lhe perguntara. - Ora, aí está uma doninha esperta que nem uma cabra! - falou o bobo com um risinho abafado. Rorge e Dentadas eram tão maus quanto os outros. Sempre que Lorde Bolton fazia uma refeição com a guarnição, Arya via-os lá, entre os soldados. Dentadas exalava um fedor de queijo podre, e os Bravos Companheiros obrigavam-no a se sentar ao fundo da mesa, onde podia grunhir e silvar para si próprio e dilacerar a carne com os dedos e os dentes. Farejava Arya quando ela passava, mas era Rorge quem mais a assustava. Sentava-se junto ao Fiel Ursywck, mas ela sentia seus olhos percorrendo seu corpo enquanto estava cuidando de suas tarefas. As vezes desejava ter partido para lá do mar estreito com Jaqen Hghar. Ainda tinha a estúpida moeda que ele lhe dera, um pedaço de ferro que não era maior do que um centavo, e estava enferrujado na borda. De um lado tinha coisas escritas, estranhas palavras que ela não conseguia ler. O outro mostrava uma cabeça de homem, mas tão desgastada que todos os seus traços tinham desaparecido. Ele disse que esta moeda era de grande valor, mas isso provavelmente também foi uma mentira, como seu nome e até sua aparência. Aquele pensamento deixou-a tão zangada que jogou a moeda fora, mas uma hora depois sentiu-se mal e foi à procura dela, mesmo que não valesse nada. Pensava na moeda enquanto atravessava o Pátio das Lâminas, lutando com o peso da água no balde. - Nan - chamou uma voz. - Ponha esse balde no chão e venha me ajudar. Elmar Frey não era mais velho do que ela, e ainda por cima era baixo para a idade. Tinha rolado um barril de areia pela pedra irregular e seu rosto estava vermelho de exaustão. Arya foi ajudá-lo. Juntos, empurraram o barril até a muralha e de novo para trás, e depois puseram-no de pé. Arya ouviu a areia lá dentro movendo-se de um lado para o outro quando Elmar abriu o tampo e tirou para fora um camisão. - Acha que está suficientemente limpo? - na qualidade de escudeiro de Roose Bolton, era sua responsabilidade manter a cota de malha do seu senhor tinindo de limpo. - Tem de sacudir a areia. Ainda há pontos de ferrugem. Está vendo? - ela apontou. - E melhor fazer tudo mais uma vez. - Faça você - Elmar podia ser amigável quando precisava de ajuda, mas depois lembrava-se sempre de que era um escudeiro e ela apenas uma criada. Gostava de se gabar de ser filho do Senhor da Travessia, não um sobrinho, bastardo ou neto, mas um filho legítimo, e de que, por causa disso, ia se casar com uma princesa. Arya não se interessava por sua preciosa princesa, e não gostava que lhe desse ordens. - Tenho de levar água ao senhor para a bacia. Ele está no quarto sendo sangrado. Não com as sanguessugas normais, pretas, mas com as grandes e claras. Os olhos de Elmar ficaram do tamanho de ovos cozidos. As sanguessugas aterrorizavam-no, especialmente as grandes e claras que pareciam geleia até se encherem de sangue. - Tinha me esquecido, você é magricela demais para empurrar um barril tão pesado. - Tinha me esquecido, você é burro - Arya pegou o balde. - Talvez também devesse ser sangrado. No Gargalo há sanguessugas do tamanho de porcos - e deixou-o lá com seu barril. O quarto do senhor estava cheio de gente quando entrou. Qyburn encontrava-se presente, bem como o severo Walton com seu camisão e grevas, além de uma dúzia de Frey, todos eles irmãos, meios-irmãos e primos. Roose Bolton estava na cama, nu. Sanguessugas aderiam à parte de dentro de seus braços e pernas e espalhavam-se por seu peito pálido, longas coisas translúcidas que se tornavam de um cor-de-rosa cintilante quando se alimentavam. Bolton não prestava mais atenção nelas do que em Arya. - Não podemos permitir que Lorde Tywin nos encurrale aqui em Harrenhal - Sor Aenys Frey estava dizendo enquanto Arya enchia a bacia de banho. Um homem grisalho, gigantesco e curvado para a frente, com olhos aguados e avermelhados e enormes mãos nodosas, Sor Aenys trouxera mil e quinhentas espadas Frey para Harrenhal, mas parecia freqüentemente incapaz de comandar até os próprios irmãos. - O castelo é tão grande que precisa de um exército para defendê-lo, e uma vez cercados não podemos alimentar um exército. Nem podemos ter esperança de armazenar suprimentos suficientes. O campo está transformado em cinzas, as aldeias foram entregues aos lobos, a colheita foi queimada ou roubada, O Outono está aí, mas não há comida em armazém e nada a ser plantado. Vivemos da pilhagem, e se os Lannister nos negarem isso, ficaremos reduzidos a ratazanas e couro de sapatos em uma volta de lua. - Não pretendo ser cercado aqui - a voz de Roose Bolton era tão baixa que os homens tinham de se esforçar para ouvi-lo, por isso seus aposentos estavam sempre estranhamente silenciosos. - Então, qual é o plano? - quis saber Sor Jared Frey, que era magro, estava perdendo cabelo e tinha o rosto marcado pelas espinhas. - Estará Edmure Tully tão ébrio com sua vitória que pensa em dar batalha a Lorde Tywin em campo aberto? Se fizer isso, ganhará, pensou Arya. Ganhará como no Ramo Vermelho, vocês vão ver. Sem que reparassem nela, foi até junto a Qyburn. - Lorde Tywin está a muitas léguas daqui - Bolton disse calmamente. - Ainda tem muitos assuntos a resolver em Porto Real. Não marchará sobre Harrenhal tão depressa. Sor Aenys sacudiu teimosamente a cabeça: - Não conhece os Lannister tão bem como nós, senhor. Rei Stannis também pensou que Lorde Tywin estivesse a mil léguas de distância, e isso acabou com ele. O homem pálido na cama deu um tênue sorriso enquanto as sanguessugas se alimentavam de seu sangue. - Eu não sou homem para ser acabado, sor. - Mesmo se Correrrio reunir todas as suas forças e o Jovem Lobo regressar do oeste, como podemos esperar igualar os números que Lorde Tywin pode enviar contra nós? Quando vier, chegará com muito mais poder do que o que comandava no Ramo Verde. Recordo-lhe que Jardim de Cima se juntou à causa de Joffrey! - Não me esqueci disso. - Já fui prisioneiro de Lorde Tywin - disse Sor Hosteen, um homem rude com rosto quadrado, do qual se dizia que era o mais forte dos Frey. - Não tenho qualquer desejo de voltar a desfrutar da hospitalidade dos Lannister. Sor Harys Haigh, que era Frey pelo lado da mãe, concordou vigorosamente com a cabeça. - Se Lorde Tywin conseguiu derrotar um homem experiente como Stannis Baratheon, que chance tem nosso rei rapaz contra ele? - olhou para os irmãos e primos à sua volta, em busca de apoio, e vários dentre eles resmungaram em concordância, - Alguém precisa ter a coragem de dizer isso - disse Sor Hosteen. - A guerra está perdida. Alguém tem de fazer com que o Rei Robb compreenda. Roose Bolton estudou-o com olhos claros. - Sua Graça derrotou os Lannister todas as vezes que os enfrentou em batalha. - Ele perdeu o norte - insistiu Hosteen Frey. - Ele perdeu Winterfelll Seus irmãos estão mortos... Por um momento, Arya esqueceu-se de respirar. Mortos? Bran e Rickon, mortos? O que ele quer dizer? O que ele quer dizer sobre Winterfell? Joffrey nunca poderia ter tomado Winterfell, nunca, Robb nunca permitiria. Então lembrou-se de que Robb não estava em Winterfell. Estava longe, no oeste, e Bran era aleijado e Rickon tinha só quatro anos. Precisou de todas as suas forças para permanecer imóvel e silenciosa, como Syrio Forel lhe ensinara, para ficar ali como uma parte da mobília. Sentiu lágrimas juntando-se em seus olhos, e afastou-as à força, Não é verdade, não pode ser verdade, é só uma mentira dos Lannister. - Se Stannis tivesse ganhado, tudo poderia ter sido diferente - disse melancolicamente Ronel Rivers. Era um dos bastardos de Lorde Walder. - Stannis perdeu - disse sem meias-palavras Sor Hosteen. - Desejar que tivesse sido de outro modo não fará com que tenha sido. Rei Robb tem de fazer a paz com os Lannister. Precisa pôr a coroa de lado e dobrar o joelho, por menos que goste da idéia. - E quem lhe dirá tal coisa? - Roose Bolton sorriu. - É ótimo ter tantos irmãos valentes nestes tempos conturbados. Refletirei sobre tudo o que disseram. Seu sorriso era uma despedida. Os Frey fizeram suas cortesias e saíram, arrastando os pés, deixando apenas Qyburn, Walton Pernas-d'Aço e Arya. Lorde Bolton a chamou. - Já sangrei o suficiente. Nan, pode remover as sanguessugas. - Imediatamente, senhor - era melhor nunca obrigar Roose Bolton a pedir duas vezes. Arya queria lhe perguntar o que Sor Hosteen quisera dizer a respeito de Winterfell, mas não se atrevia. Perguntarei a Elmar, pensou. Elmar vai me contar. As sanguessugas contorceram-se suavemente entre seus dedos enquanto as arrancava com cuidado da pele do senhor, com os corpos pálidos úmidos ao toque e dilatados devido ao sangue. São só sanguessugas, lembrou a si mesma. Se fechasse a mão, as esmagaria entre os dedos. - Há uma carta da senhora sua esposa - Qyburn tirou um rolo de pergaminho da manga. Embora usasse vestes de meistre, não havia corrente em volta de seu pescoço; segredava-se que a teria perdido por envolver-se com necromancia. - Pode lê-la - Bolton respondeu. A Senhora Walda escrevia das Gêmeas quase todos os dias, mas as cartas eram sempre iguais: "Rezo por você de manhã, à tarde e à noite, meu querido senhor... e conto os dias até que volte a dividir a minha cama. Regresse para mim em breve, e darei muitos filhos legítimos para tomar o lugar de seu querido Domeric e governar o Forte do Pavor depois do senhor". Arya imaginava um bebê cor-de-rosa e rechonchudo num berço, coberto de sanguessugas rosadas e rechonchudas. Levou a Lorde Bolton um pano úmido para limpar seu corpo mole e sem pelos. - Enviarei uma carta - disse ele ao homem que antes fora meistre. - A Senhora Walda? - A Sor Helman Tallhart. Um mensageiro de Sor Helman chegara havia dois dias. Os homens de Tallhart tinham tomado o castelo dos Darry, aceitando a rendição de sua guarnição Lannister após um breve cerco. - Diga-lhe para passar a espada nos cativos e as tochas no castelo, por ordem do rei. Depois deverá juntar forças com Robett Glover e avançar para leste em direção a Valdocaso. As terras lá são ricas, e quase não foram tocadas pela guerra. E tempo de saborearem um pouco dela. Glover perdeu um castelo, e Tallhart, um filho. Que levem a sua vingança até Valdocaso. - Prepararei a mensagem para o seu selo, senhor. Arya ficou contente por ouvir dizer que o castelo dos Darry seria incendiado. Foi para lá que a tinham levado quando a apanharam após sua luta com Joffrey, e foi lá que a rainha obrigara o pai a matar o lobo de Sansa. Merece arder. Mas desejava que Robett Glover e Sor Helman Tallhart voltassem a Harrenhal; tinham-se posto em marcha depressa demais, antes de ela conseguir decidir se poderia lhes confiar seu segredo ou não.
    - Hoje irei à caça - anunciou Roose Bolton enquanto Qyburn o ajudava a vestir um justilho acolchoado. - Será seguro, senhor? - Qyburn perguntou. - Há apenas três dias, os homens do Septão Utt foram atacados por lobos. Entraram bem no acampamento, a menos de cinco metros da fogueira, e mataram dois cavalos. - São lobos que pretendo caçar. Quase não consigo dormir à noite com os uivos - Bolton afivelou o cinto, ajustando a posição da espada e do punhal. - Dizem que antigamente os lobos gigantes vagueavam pelo norte em grandes matilhas de cem ou mais animais, e não temiam nem homens nem mamutes, mas isso foi há muito tempo e em outras terras. É estranho ver os lobos comuns do sul tão ousados. - Tempos terríveis geram coisas terríveis, senhor. Bolton mostrou os dentes em algo que poderia ter sido um sorriso. - Serão estes tempos tão terríveis assim, meistre? - O verão acabou, e há quatro reis no reino. - Um rei pode ser terrível, mas quatro? - encolheu os ombros. - Nan, meu manto de peles - Arya trouxe-lhe. - Meus aposentos estarão limpos e arrumados quando voltar - disse a ela enquanto o prendia. - E trate da carta da Senhora Walda. - Será como diz, senhor. O lorde e o meistre saíram do quarto sem sequer lhe dar uma olhada por cima do ombro. Depois de saírem, Arya pegou a carta e a levou para a lareira, mexendo as toras com um atiçador, para voltar a despertar as chamas. Observou o pergaminho torcer-se, enegrecer e incendiar-se. Se os Lannister fizeram mal a Bran e a Rickon, Robb vai matá-los todos. Nunca dobrará o joelho, nunca, nunca, nunca. Não tem medo de nenhum deles. Anéis de cinzas flutuaram pela chaminé acima. Arya agachou-se junto ao fogo, vendo-os subir através de um véu de lágrimas quentes. Se Winterfell está mesmo perdido, será esta a minha casa agora? Ainda serei Arya, ou só Nan, a criada, para todo o sempre? Passou as horas seguintes cuidando dos aposentos do senhor. Varreu para fora as antigas esteiras e espalhou pelo chão novas e bem cheirosas, acendeu um novo fogo na lareira, trocou os lençóis e amaciou o colchão de penas, esvaziou os penicos pelo alçapão da latrina e esfregou-os, levou uma braçada de roupa suja às lavadeiras e trouxe da cozinha uma tigela de peras frescas de Outono. Quando acabou de limpar o quarto de dormir, desceu meio lance de escadas para fazer o mesmo com o grande aposento privado, uma frugal sala cheia de correntes de ar, tão grande quanto os salões de muitos dos castelos menores. As velas estavam reduzidas a tocos, então Arya as substituiu. Sob as janelas havia uma enorme mesa de carvalho onde o senhor escrevia suas cartas. Arrumou os livros, e ordenou as penas, tintas e cera para os selos. Uma grande e esfarrapada pele de ovelha estava atirada sobre os papéis. Arya tinha começado a enrolá-la quando as cores chamaram sua atenção: o azul de lagos e rios, os pontos vermelhos onde se encontravam castelos e cidades, o verde dos bosques. Em vez de enrolá-la, abriu-a. AS TERRAS DO TRIDENTE, dizia a ornamentada inscrição por baixo do mapa. O desenho mostrava tudo, desde o Gargalo à Torrente da Água Negra. AH está Harrenhal no topo do grande lago, compreendeu, mas onde fica Correrrio? Então viu. Não é tão longe assim... A tarde ainda ia curta quando terminou, e Arya dirigiu-se ao bosque sagrado. Seus deveres eram mais leves como copeira de Lorde Bolton do que tinham sido com Weese ou até com Olho Vermelho, embora exigissem que se vestisse como um pajem e lavasse mais do que gostaria. Os caçadores ainda levariam horas para retornar, então, tinha um pouco de tempo para seu trabalho com a Agulha. Golpeou folhas de bétula até que a ponta lascada do pau de vassoura quebrado ficou verde e pegajosa. - Sor Gregor - murmurava. - Dunsen, Polliver, Raff, o Querido - rodopiou, saltou e se equilibrou nas pontas dos pés, precipitando-se para cá e para lá, fazendo voar pinhas. - Cócegas - proferiu de uma vez - , Cão de Caça - disse da vez seguinte. - Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei - o tronco de um carvalho ergueu-se na sua frente, e ela atirou-lhe estocadas, atingindo-o com a ponta, rosnando: - Joffrey, Joffrey, Joffrey - tinha os braços e as pernas salpicados pela luz do sol e pelas sombras das folhas. Uma película de suor cobria sua pele quando finalmente fez uma pausa. O calcanhar do pé direito estava ensangüentado onde o esfolara, por isso apoiou-se num pé só em frente à árvore-coração e ergueu a espada numa saudação. - Vaiar morghulis disse aos velhos deuses do norte. Gostava do som que as palavras tinham quando as dizia. Enquanto Arya atravessava o pátio até a casa de banhos, viu um corvo que descia aos círculos para a colônia, e perguntou-se de onde ele tinha vindo e que mensagem transportava. De repente é de Robb, e chegou para dizer que não é verdade o que dizem de Bran e Rickon, Mordeu o lábio, esperando que assim fosse. Se eu tivesse asas, poderia voar para Winterfell e ver com meus olhos. E se fosse verdade, voaria para longe, voaria para lá da lua e das estrelas brilhantes, e veria todas as coisas das histórias da Velha Ama, dragões e monstros marinhos e o Titã de Bravos, e talvez nunca mais voltasse, a não ser que quisesse. O grupo dos caçadores regressou perto do cair da noite com nove lobos mortos. Sete eram adultos, grandes animais cinza-acastanhados, selvagens e poderosos, com os beiços arreganhados sobre longos dentes amarelos, por causa dos rosnidos de morte. Mas os outros dois eram apenas filhotes. Lorde Bolton ordenou que as peles fossem costuradas para fazer uma manta para sua cama. - As crias ainda têm aquela pele suave, senhor - destacou um de seus homens. - Podem dar um bom par de luvas para sua senhoria.
    Bolton olhou de relance as bandeiras que flutuavam por cima das torres da guarita, - Como os Stark costumam nos lembrar, o Inverno está chegando. Mande fazê-las - quando viu Arya olhando, disse: - Nan, quero um jarro de vinho quente condimentado, resfriei-me na floresta. Trate de que não esfrie. Desejo jantar sozinho. Pão de cevada, manteiga e javali. - Imediatamente, senhor - aquilo era sempre a melhor coisa a dizer. Torta Quente estava fazendo bolinhos de aveia quando ela entrou na cozinha. Três outros cozinheiros tiravam as espinhas de peixes, enquanto um assador virava um javali sobre as chamas. - O senhor quer o jantar, e vinho quente condimentado para empurrá-lo para baixo - Arya anunciou - , e não o quer frio - um dos cozinheiros lavou as mãos, pegou uma chaleira e encheu-a com um tinto denso e doce. Torta Quente recebeu ordens de esmagar as especiarias lá dentro enquanto o vinho aquecia. Arya foi ajudar. - Eu sei fazer isso - ele disse, carrancudo. - Não preciso que me mostre como condimentar vinho. Também me odeia, ou então tem medo de mim. Afastou-se, mais triste do que zangada. Quando a comida ficou pronta, os cozinheiros cobriram-na com uma tampa de prata e envolveram o jarro numa toalha espessa para mantê-lo quente. Lá fora caía o crepúsculo. Nas muralhas, os corvos resmungavam em volta das cabeças como cortesãos em torno de um rei. Um dos guardas vigiava a porta para a Pira do Rei. - Espero que isso não seja sopa de doninha - ele gracejou. Roose Bolton estava sentado perto da lareira, lendo um grande livro encadernado em couro, quando ela entrou. - Acenda umas velas - ordenou-lhe enquanto virava uma página. - Está ficando escuro aqui. Arya apoiou a comida perto dele e fez o que lhe era pedido, enchendo a sala de luz tremeluzente e cheiro de cravos. Bolton virou mais algumas páginas com o dedo, fechou o livro e o colocou cuidadosamente no fogo. Ficou vendo as chamas consumindo-o, olhos claros brilhando com a luz refletida. O velho couro seco incendiou-se com um uucb, e as páginas amarelas agitaram-se enquanto ardiam, como se algum fantasma as estivesse lendo. - Não terei mais necessidade de você esta noite - disse, sem nunca olhá-la. Ela devia ter ido embora, silenciosa como um rato, mas algo a segurou. - Senhor, leva-me junto quando abandonar Harrenhal? Ele virou-se para encará-la, e a expressão que seu rosto tomou foi como se o jantar tivesse acabado de lhe dirigir a palavra. - Dei-lhe licença para me interrogar, Nan? - Não, senhor - Arya abaixou os olhos. - Então não devia ter falado. Devia? - Não, senhor. Por um momento ele pareceu divertido. - Vou responder, só dessa vez. Pretendo deixar Harrenhal para Lorde Vargo quando regressar ao norte. Você ficará aqui com ele. - Mas eu não... - ela começou. Bolton a interrompeu. - Não estou habituado a ser interrogado por criados, Nan. Terei de mandar cortar sua língua? Arya sabia que ele podia fazer aquilo com a mesma facilidade com que outro homem bateria num cão. - Não, senhor. - Então não ouvirei nem mais uma palavra vinda de você? - Não, senhor. - Então vá embora. Esquecerei essa insolência, Arya foi, mas não para a cama. Quando saiu para a escuridão do pátio, o guarda à porta acenou para ela e disse: - Vem aí uma tempestade. Sente o cheiro no ar? - o vento soprava em rajadas, as chamas saíam rodopiando dos archotes montados no topo das muralhas ao lado das fileiras de cabeças. A caminho do bosque sagrado, passou pela Torre dos Lamentos, onde outrora tinha vivido aterrorizada por Weese. Os Frey tinham-na tomado para si desde a queda de Harrenhal. Conseguia ouvir as vozes iradas que saíam por uma janela, muitos homens falando e discutindo ao mesmo tempo. Elmar estava sentado nos degraus lá fora, sozinho. - O que houve? - perguntou-lhe Arya quando viu as lágrimas brilhando em seu rosto. - A minha princesa - ele soluçou. - Aenys diz que fomos desonrados. Chegou uma ave das Gêmeas. O senhor meu pai diz que terei de me casar com outra pessoa ou tornar-me septão. Uma estúpida princesa, Arya pensou, isso não é nada por que valha a pena chorar. - Meus irmãos podem estar mortos - ela confidenciou. Elmar deu-lhe um olhar de desprezo. - Ninguém se importa com os irmãos de uma criada. Foi difícil não bater nele quando disse aquilo. - Espero que sua princesa morra - ela devolveu, e fugiu antes que ele conseguisse agarrá-la. No bosque sagrado, encontrou a espada de cabo de vassoura onde a deixara e levou-a para junto da árvore-coração. Então, ajoelhou-se. Folhas vermelhas restolharam. Olhos vermelhos espreitaram seu íntimo. Os olhos dos deuses. - Digam-me o que fazer, deuses - rezou. Por um longo momento não se ouviu nenhum som além do vento, da água e do ranger de folhas e galhos. E então, de muito, muito longe, para lá do bosque sagrado e das torres assombradas e das imensas muralhas de pedra de Harrenhal, de algum lugar no mundo, veio o longo uivo solitário de um lobo. A pele de Arya arrepiou-se, e por um instante sentiu-se tonta. Então, muito tenuamente, pareceu que ouvia a voz do pai. - Quando as neves caem e os ventos brancos sopram, o lobo solitário morre, mas a matilha sobrevive - ele disse. - Mas não há matilha - ela sussurrou ao represeiro. Bran e Rickon estavam mortos, os Lannister tinham Sansa, Jon tinha ido para a Muralha. - Já nem sequer sou eu, sou Nan. - Você é Arya de Winterfell, filha do Norte. Disse-me que podia ser forte. Tem o sangue do lobo. - O sangue do lobo - Arya agora lembrava-se. - Serei tão forte como Robb, foi o que disse que seria - inspirou profundamente, depois ergueu o cabo de vassoura com ambas as mãos e abaixou-o contra o joelho. Quebrou-se com um sonoro crac e ela atirou os pedaços fora. Sou um lobo gigante, e acabaram-se os dentes de madeira. Naquela noite ficou na cama estreita sobre a palha, que lhe dava comichão, escutando as vozes dos vivos e dos mortos que sussurravam e discutiam enquanto esperava que a lua nascesse. Já não confiava em outras vozes. Conseguia ouvir o som de sua respiração, e também os lobos, agora uma grande matilha. Estão mais perto do que aquele que ouvi no bosque sagrado, pensou. Estão chamando por mim. Por fim, saiu de debaixo da manta, enfiou-se numa túnica e desceu as escadas, devagar e descalça. Roose Bolton era um homem cauteloso, e a entrada da Pira do Rei era guardada dia e noite, por isso teve de se esgueirar por uma estreita janela da cave. O pátio encontrava-se silencioso, e o grande castelo estava perdido em sonhos assombrados. Por cima, o vento entoava hinos fúnebres na Torre dos Lamentos. Na forja encontrou os fogos apagados e as portas fechadas e trancadas. Entrou por uma janela, como já havia feito uma vez. Gendry dividia um colchão com outros dois aprendizes de ferreiro. Ficou acocorada no sótão durante bastante tempo até que os olhos se ajustassem à escuridão o suficiente para ter certeza de que ele era o da ponta. Então pôs uma mão em sua boca e o beliscou. Os olhos dele se abriram. Não podia ter estado profundamente adormecido. - Por favor - sussurrou. Tirou a mão de sua boca e apontou. Por um momento não lhe pareceu que ele tivesse entendido, mas depois Gendry saiu de debaixo das mantas. Nu, atravessou a sala em silêncio, enfiou-se numa larga túnica de tecido grosseiro e desceu do sótão atrás dela. Os outros rapazes não se moveram. - O que você quer agora? - Gendry perguntou numa voz baixa e zangada. - Uma espada. - O Polegar Preto mantém todas as lâminas trancadas, já lhe disse mais de cem vezes. E para o Senhor Sanguessuga? - Para mim. Quebre o cadeado com o martelo. - Se fizer isso, quebram-me a mão - ele resmungou. - Ou pior. - Não se fugir comigo. - Se fugir, eles vão apanhá-la e matá-la. - Com você farão pior. Lorde Bolton vai dar Harrenhal aos Saltimbancos Sangrentos, foi ele que me disse. Gendry afastou os cabelos dos olhos. - E então? Ela o olhou nos olhos, destemida. - E então que, quando Vargo Hoat for o senhor, vai cortar os pés de todos os criados para evitar que fujam. Dos ferreiros também. - Isso é só uma história - ele disse em tom de escárnio. - Não, é verdade, ouvi Lorde Vargo dizê-lo - Arya mentiu. - Vai cortar um pé de todo mundo. O esquerdo. Vá às cozinhas e acorde Torta Quente, ele fará o que você disser. Vamos precisar de pão, bolinhos de aveia ou qualquer coisa dessas. Arranje as espadas, eu cuido dos cavalos. Encontramo-nos perto da porta falsa na muralha oriental, atrás da Torre dos Fantasmas. Nunca ninguém lá vai. - Conheço esse portão. Está guardado, como todos os outros. - E daí? Não se esquece das espadas? - Não disse que ia. - Não. Mas se for, não se esquece das espadas? Ele franziu o cenho: - Não - respondeu, por fim - , acho que não vou me esquecer. Arya voltou à Pira do Rei da mesma maneira que tinha saído, e esgueirou-se pela escada em caracol acima com os ouvidos à escuta de passos. Em sua cela, despiu-se por completo e vestiu-se com cuidado, duas camadas de roupa de baixo, meias quentes e a sua túnica mais limpa. Era uma farda de Lorde Bolton. Tinha seu símbolo cosido ao peito, o homem esfolado do Forte do Pavor. Amarrou os sapatos, envolveu os ombros magros num manto de lã e o atou por baixo da garganta. Silenciosa como uma sombra, voltou a descer a escada. Junto ao aposento privado do senhor, fez uma pausa para escutar à porta, abrindo-a lentamente quando só ouviu silêncio. O mapa de pele de ovelha estava sobre a mesa, ao lado dos restos do jantar de Lorde Bolton. Enrolou-o bem e o enfiou no cinto. Ele tinha deixado o punhal sobre a mesa, e ela também o pegou, para o caso de Gendry perder a coragem.
    Um cavalo relinchou baixinho quando Arya entrou silenciosamente nos estábulos escurecidos. Todos os palafreneiros dormiam. Cutucou um deles com a ponta do pé até que se sentou, grogue, e disse: - Ahn? Quê? - Lorde Bolton quer três cavalos selados e ajaezados. O rapaz pôs-se em pé, sacudindo palha dos cabelos: - Hã? A essa hora? Cavalos, você diz? - piscou os olhos ao ver o símbolo na túnica dela. - Pra que é que ele quer cavalos no escuro? - Lorde Bolton não tem o hábito de ser interrogado por criados - e cruzou os braços. O cavalariço ainda olhava para o homem esfolado. Sabia o que queria dizer. - Falou em três? - Um, dois, três. Cavalos de caça. Rápidos e de patas seguras - Arya o ajudou com os freios e as selas, para que o rapaz não precisasse acordar nenhum dos outros. Esperava que não o machucassem depois, mas sabia que era provável que o fizessem. Levar os cavalos através do castelo era a pior parte. Permaneceu na sombra da muralha exterior sempre que pôde, para que as sentinelas em suas rondas nas ameias, lá em cima, tivessem de olhar quase diretamente para baixo a fim de vê-la. E se virem, qual o problema? Sou a copeira do senhor. Estava uma noite gelada de Outono. Nuvens vinham do leste, sopradas pelo vento, escondendo as estrelas, e a Torre dos Lamentos gritava lugubremente a cada rajada. Cheira a chuva. Arya não sabia se isso seria bom ou ruim para a fuga. Ninguém a viu, e ela não viu ninguém, só um gato cinza e branco que caminhava ao longo do topo do muro do bosque sagrado. Parou e bufou para ela, despertando memórias da Fortaleza Vermelha, do pai e de Syrio Forel. - Podia pegá-lo se quisesse - disse-lhe em voz baixa - , mas tenho de ir, gato - o bicho voltou a silvar e fugiu. A Torre dos Fantasmas era a mais arruinada das cinco imensas torres de Harrenhal. Erguia-se, escura e desolada, atrás dos restos de um septo em ruínas onde apenas ratazanas vinham rezar havia quase trezentos anos. Foi ali que esperou para ver se Gendry e Torta Quente viriam. Pareceu que tinha esperado muito tempo. Os cavalos mordiscaram o mato que crescia entre as pedras rachadas enquanto as nuvens engoliam as últimas estrelas. Arya tirou o punhal e o afiou, para manter as mãos ocupadas. Longos movimentos suaves, como Syrio lhe ensinara. O som a acalmou. Ouviu-os chegando muito antes de vê-los. Torta Quente respirava pesadamente, e uma vez tropeçou no escuro, esfolou a canela e praguejou suficientemente alto para acordar metade de Harrenhal. Gendry era mais silencioso, mas as espadas que trazia tilintavam umas nas outras com seus movimentos. - Estou aqui - ficou em pé. - Fiquem quietos, senão vão ouvi-los. Os rapazes abriram caminho por cima de pedras caídas até onde ela estava. Arya viu que Gendry vestia uma cota de malha oleada sob o manto, e tinha seu martelo de ferreiro a tiracolo. O rosto vermelho e redondo do Torta Quente espreitava por debaixo de um capuz. Trazia um saco de pão pendurado na mão direita e um grande queijo debaixo do braço esquerdo. - Há um guarda naquela saída - Gendry disse em voz baixa. - Eu disse que haveria. - Fiquem aqui com os cavalos - Arya avisou. - Eu me livro dele. Venham depressa quando eu chamar. Gendry concordou. Torta Quente disse: - Pie como uma coruja quando quiser que a gente vá. - Não sou uma coruja - Arya protestou. - Sou um lobo. Uivarei. Sozinha, deslizou pela sombra da Torre dos Fantasmas. Caminhou depressa, para se manter à frente de seu medo, e foi como se Syrio Forel caminhasse a seu lado, e também Yoren, Jaqen Hghar e Jon Snow, Não tinha levado a espada que Gendry lhe trouxera, ainda não. Para aquilo o punhal seria melhor. Era bom e afiado. Aquela pequena porta era o menor dos portões de Harrenhal, uma porta estreita de robusto carvalho, cravejada de tachões de ferro e colocada num ângulo da muralha por baixo de uma torre defensiva. Só um homem estava destacado para guardá-la, mas sabia que também haveria sentinelas na torre, e outras por perto, patrulhando as muralhas. Acontecesse o que acontecesse, tinha de ser silenciosa como uma sombra. Ele não pode gritar. Algumas gotas de chuva tinham começado a cair. Sentiu uma atingi-la na testa e escorrer lentamente pelo nariz. Não fez nenhum esforço para se esconder; em vez disso, aproximou-se do guarda abertamente, como se tivesse sido o próprio Lorde Bolton a enviá-la, O homem a viu chegando, curioso sobre o que poderia trazer um pajem ali naquela hora escura, Quando se aproximou, viu que era um nortenho, muito alto e magro, aconchegado num esfarrapado manto de peles. Isso era ruim. Podia ter sido capaz de enganar um Frey ou um dos Bravos Companheiros, mas os homens do Forte do Pavor tinham servido Roose Bolton a vida inteira e conheciam-no melhor do que ela. Se lhe disser que sou Arya Stark e lhe ordenar que se afaste... Não, não se atrevia. Ele era nortenho, mas não um homem de Winterfell. Pertencia a Roose Bolton. Quando chegou até ele, puxou o manto para trás de modo que ele pudesse ver o homem esfolado em seu peito. - Lorde Bolton mandou-me aqui. - A essa hora? Para quê? Conseguia ver o brilho do aço sob as peles, e não sabia se era suficientemente forte para enfiar a ponta do punhal através da cota de malha. A garganta, tem que ser na garganta, mas ele é alto demais, nunca a alcançarei. Por um momento, não soube o que dizer. Por um momento, voltou a ser uma garotinha, assustada, e a chuva que caía em seu rosto teve gosto de lágrimas. - Disse-me para dar a todos os seus guardas uma moeda de prata, pelos seus bons serviços - as palavras pareceram sair de parte alguma. - Prata, você diz? - não acreditava nela, mas queria acreditar; afinal de contas, prata era prata. - Então me dê. Os dedos de Arya enterraram-se na túnica e saíram agarrando a moeda que Jaqen lhe dera. No escuro, o ferro podia passar por prata sem brilho. Estendeu a mão... e deixou a moeda cair de seus dedos. Amaldiçoando-a em voz baixa, o homem pôs-se de joelhos para procurar a moeda na terra, tateando, e ali estava seu pescoço, bem à frente dela. Arya puxou o punhal e passou-o por sua garganta, suavemente como a seda do verão. O sangue cobriu suas mãos num jorro quente, e ele tentou gritar, mas também tinha sangue na boca. - Vaiar morghulis - Arya sussurrou enquanto o homem morria. Quando ele parou de se mexer, pegou a moeda. Fora das muralhas de Harrenhal, um lobo soltou um longo e sonoro uivo. Ela ergueu a tranca, colocou-a de lado, e abriu a pesada porta de carvalho. Quando Torta Quente e Gendry chegaram com os cavalos, a chuva estava caindo com força. - Matou? - Torta Quente arquejou. - O que você achava que eu ia fazer? - tinha os dedos pegajosos de sangue, e o cheiro estava deixando a égua espantadiça. Não importa, pensou, saltando para a sela. A chuva voltará a deixá-las limpas. Sansa A sala do trono era um mar de jóias, peles e tecidos brilhantes. Senhores e senhoras enchiam o fundo da sala e aglomeravam-se por baixo das grandes janelas, empurrando-se como vendedores de peixe numa doca. Aqueles que habitavam a corte de Joffrey tinham procurado superar uns aos outros naquele dia. Jalabhar Xho estava coberto de penas,* uma plumagem táo fantástica e extravagante que parecia prestes a levantar voo. A coroa de cristal do Alto Septão disparava arcos-íris pelo ar a cada movimento de sua cabeça. À mesa do conselho, a Rainha Cersei cintilava num vestido de fios de ouro, com cortes de veludo bordo, enquanto, ao seu lado, Varys se agitava e sorria afetadamente dentro de brocado lilás. O Rapaz Lua e Sor Dontos usavam novos trajes multicolores, limpos como uma manhã de primavera. Até a Senhora Tanda e as filhas pareciam bonitas em vestidos de seda que combinavam turquesa e penas, e Lorde Gyles tossia para dentro de um quadrado de seda escarlate debruado de renda dourada. Rei Joffrey sentava-se acima de todos eles, entre as lâminas e farpas do Trono de Ferro. Vestia samito carmim, com o manto negro incrustado de rubis, e, na cabeça, trazia sua pesada coroa de ouro. Abrindo caminho através de uma multidão de cavaleiros, escudeiros e ricos cidadãos, Sansa chegou à frente da galeria precisamente quando o estrondo das trombetas anunciou a entrada de Lorde Tywin Lannister. Ele atravessou o salão montado no cavalo de guerra e desmontou perante o Trono de Ferro. Sansa nunca tinha visto uma armadura assim; toda de lustroso aço vermelho com arabescos e ornamentos de ouro nele embutidos. Os medalhões eram resplendores, o leão rugindo que coroava seu elmo tinha olhos de rubi, e uma leoa em cada ombro prendia um manto de fios de ouro tão longo e pesado que envolvia os quartos traseiros de seu cavalo. Até a armadura do cavalo era dourada, e os jaezes, de brilhante seda carmesim brasonada com o leão de Lannister. O Senhor de Rochedo Casterly fazia uma figura tão impressionante que foi um choque quando seu corcel despejou um monte de esterco bem na base do trono. Joffrey teve de rodeá-lo com cuidado quando desceu para abraçar o avô e proclamá-lo Salvador da Cidade. Sansa cobriu a boca para esconder um sorriso nervoso. Joff fez do pedido do avô para assumir o governo do reino um grande espetáculo e Lorde Tywin aceitou solenemente a responsabilidade, "até que Vossa Graça seja maior de idade". Então, escudeiros tiraram sua armadura e Joff prendeu em torno de seu pescoço o colar da Mão. Lorde Tywin ocupou um lugar ao lado da rainha, na mesa do conselho. Depois de o corcel ter sido levado e sua "homenagem" removida, Cersei fez sinal para que as cerimônias prosseguissem. Uma fanfarra de trombetas de bronze saudou cada um dos heróis no momento em que atravessavam as grandes portas de carvalho. Arautos gritavam seus nomes e feitos para que todos ouvissem, e os nobres senhores e as bem-nascidas senhoras aplaudiam tão vigorosamente como assassinos numa rinha de gaios. Um lugar de honra foi dado a Mace Tyrell, o Senhor de Jardim de Cima, um homem outrora forte que havia engordado, mas que ainda era bonito. Os filhos entraram atrás dele; Sor Loras e o irmão mais velho, Sor Garlan, o Galante. Os três vestiam-se de forma semelhante, de veludo verde forrado de zibelina. O rei desceu do trono uma vez mais para saudá-los, uma grande honra. Prendeu, em volta do pescoço de cada um, uma corrente de rosas trabalhadas em ouro mole e amarelo, da qual pendia um disco de ouro com o leão dos Lannister realçado com rubis. - As rosas apoiam o leão, assim como o poder de Jardim de Cima apoia o reino - proclamou Joffrey. - Se houver alguma mercê que me queira pedir, peça-a, e será sua.
    É agora, Sansa pensou. - Vossa Graça - disse Sor Loras peço a honra de servir em sua Guarda Real, a fim de defendê-lo de seus inimigos. Joffrey pôs o Cavaleiro das Flores em pé e lhe deu um beijo no rosto. - Dito e feito, irmão. Lorde Tyrell inclinou a cabeça: - Não há maior prazer do que servir à Graça Real. Se fosse considerado digno de integrar seu real conselho, não encontraria ninguém mais leal ou fiel. Joff pousou uma mão no ombro de Lorde Tyrell e o beijou quando se pôs em pé. - Seu desejo é concedido. Sor Garlan Tyrell, cinco anos mais velho do que Sor Loras, era uma versão mais alta e barbuda do irmão mais novo e famoso. Era mais largo de peito e ombros, e embora seu rosto fosse bastante agradável, faltava-lhe a surpreendente beleza de Sor Loras. - Vossa Graça - disse Garlan, quando o rei se aproximou dele - , tenho uma irmã donzela, Margaery, o encanto de nossa Casa. Era casada com Renly Baratheon, como sabe, mas Lorde Renly partiu para a guerra antes de o casamento poder ser consumado, e portanto continua inocente, Margaery tem ouvido histórias sobre a sua sabedoria, coragem e cavalheirismo, e tem amado o senhor a distância. Suplico-lhe que mande chamá-la, a fim de tomar sua mão em casamento e ligar sua Casa à minha para toda a eternidade. Rei Joffrey fingiu surpresa: - Sor Garlan, a beleza de sua irmã é famosa por todos os Sete Reinos, mas estou prometido a outra. Um rei deve manter a sua palavra. A Rainha Cersei levantou-se num farfalhar de saias: - Vossa Graça, na opinião de seu pequeno conselho, não seria nem próprio nem sensato que se casasse com a filha de um homem decapitado por traição, uma garota cujo irmão se encontra em rebelião aberta contra o trono neste exato momento. Senhor, seus conselheiros suplicam-lhe, para o bem de nosso reino, que ponha Sansa Stark de lado. A Senhora Margaery será para o senhor uma rainha muito mais adequada. Como uma matilha de cães treinados, os senhores e as senhoras no salão começaram a gritar seu júbilo. "Margaery", gritavam; "Dê-nos Margaery!" e"Nada de rainhas traidoras! Tyrell! Tyrell!". Joffrey levantou uma mão. - Gostaria de ceder aos desejos de meu povo, mãe, mas fiz um voto sagrado. O Alto Septão deu um passo à frente. - Vossa Graça, os deuses consideram a promessa de casamento um ato solene, mas seu pai, o Rei Robert, de abençoada memória, fez esse pacto antes de os Stark de Winterfell revelarem sua falsidade. Os crimes deles contra o reino libertaram-no de quaisquer promessas que possa ter feito. No que diz respeito à Fé, não existe nenhum contrato de casamento válido entre o senhor e Sansa Stark, Um tumulto de aclamações encheu a sala do trono, e gritos de "Margaery, Margaery" irromperam por todos os lados. Sansa inclinou-se para a frente, agarrando com força o parapeito de madeira da galeria. Sabia o que se seguiria, mas ainda temia o que Joffrey pudesse dizer, temia que ele recusasse libertá-la mesmo agora, quando todo o seu reino dependia disso. Sentia-se como se estivesse de volta aos degraus de mármore na frente do Grande Septo de Baelor, à espera de que o príncipe concedesse misericórdia a seu pai, e em vez disso o ouviu ordenar a Ilyn Payne que cortasse sua cabeça. Por favor, rezou com fervor, façam com que ele o diga, façam com que ele o diga. Lorde Tywin fitava o neto. Joff deu-lhe um olhar mal-humorado, arrastou os pés, e ajudou Sor Garlan Tyrell a se levantar. - Os deuses são bons. Estou livre para seguir o meu coração. Casarei com a sua querida irmã, e com alegria, sor - beijou o rosto barbudo de Sor Garlan, enquanto vivas se erguiam em torno deles. Sansa sentiu a cabeça curiosamente leve. Estou livre. Sentia olhos postos nela. Não devo sorrir, lembrou a si mesma. A rainha prevenira-a; sentisse o que sentisse, a expressão que mostrasse ao mundo devia parecer perturbada. - Não aceitarei que meu filho seja humilhado - Cersei dissera. - Está me ouvindo? - Sim. Mas se não vou ser rainha, o que será de mim? - Isso terá de ser decidido. Por enquanto, ficará aqui na corte, como nossa protegida. - Quero ir para casa. Aquilo irritou a rainha. - A essa altura já devia ter aprendido que nenhum de nós consegue o que quer. Mas eu consegui, pensou Sansa. Estou livre de Joffrey. Não terei de beijá-lo, nem de lhe entregar minha virgindade, nem de lhe dar filhos. Que Margaery Tyrell fique com tudo isso, pobre garota. Quando a explosão de júbilo se atenuou, o Senhor de Jardim de Cima já ocupara um lugar à mesa do conselho, e os filhos tinham se juntado aos outros cavaleiros e fidalgos debaixo das janelas. Sansa tentou parecer desamparada e abandonada enquanto outros heróis da Batalha da Água Negra eram chamados a fim de receber as suas recompensas. Paxter Redwyne, Senhor da Árvore, marchou ao longo do salão flanqueado pelos dois filhos, Horror e Babeiro, com o primeiro coxeando de um ferimento recebido na batalha. Depois, veio Lorde Mathis Rowan vestindo um gibão branco como a neve, com uma grande árvore bordada em fios de ouro no peito; Lorde Randyll Tarly, magro e perdendo os cabelos, com uma grande espada amarrada às costas numa bainha incrustada de jóias; Sor Kevan Lannister, um homem atarracado com pouco cabelo e uma barba bem aparada; Sor Addam Marbrand, de cabelos acobreados que caíam sobre seus ombros; os grandes senhores do ocidente Lydden, Crakehall e Brax. A seguir, vieram quatro homens de nascimento inferior que tinham se distinguido na luta: o cavaleiro zarolho Sor Philip Foote, que matara Lorde Bryce Caron em combate singular; o cavaleiro livre Lothor Brune, que abrira caminho através de meia centena de homens de armas Fossoway para capturar Sor Jon da maçã verde e matar Sor Bryan e Sor Edwyd da vermelha, ganhando assim o apelido de Lothor Papa-Maçãs; Willit, um homem de armas grisalho a serviço de Sor Harys Swyft, que puxara seu senhor de debaixo do cavalo moribundo e o defendera contra uma dúzia de inimigos; e um escudeiro de rosto liso chamado Josmyn Peckledon, que matara dois cavaleiros, ferira um terceiro e capturara mais dois, embora não pudesse ter mais do que catorze anos. Willit foi trazido numa liteira, devido à gravidade de seus ferimentos. Sor Kevan tinha se sentado ao lado do irmão, Lorde Tywin. Quando os arautos terminaram de anunciar os feitos dos heróis, levantou-se: - E desejo de Sua Graça que esses bons homens sejam recompensados por seu valor. Por seu decreto, Sor Philip será de hoje em diante Lorde Philip da Casa Foote, e para ele irão todas as terras, direitos e rendimentos da Casa Caron. Lothor Brune será elevado ao estatuto de cavaleiro e lhe serão atribuídas terras e fortaleza nas terras fluviais, após o fim da guerra. Para Josmyn Peckledon irá uma espada e uma armadura, o direito de escolher qualquer cavalo de guerra dos estábulos reais e um grau de cavaleiro quando se tornar maior de idade. E, por fim, para Morgado Willit, uma lança com haste reforçada em prata, um camisão de cota de malha recém-forjada e um elmo completo com viseira. Além disso, seus filhos serão recebidos ao serviço da Casa Lannister em Rochedo Casterly, o mais velho como escudeiro e o mais novo como pajem, com a hipótese de avançarem para cavaleiros se servirem bem e com lealdade. A Mão do Rei e o pequeno conselho consentem com tudo isso. Os capitães dos navios de guerra reais Vento Vivo, Príncipe Aemon e Seta do Rio foram honrados em seguida, em conjunto com alguns oficiais inferiores do Graça dos Deuses, Lança, Senhora de Seda e Cabeça de Carneiro. Até onde Sansa sabia, seu feito principal tinha sido sobreviver à batalha no rio, um feito de que bem poucos podiam se gabar. Hallyne, o Piromante, e os mestres da Guilda dos Alquimistas também receberam os agradecimentos do rei, e Hallyne foi elevado ao título de lorde, embora Sansa notasse que nem terras nem castelo acompanhavam o título, o que fazia com que o alquimista não fosse um lorde mais verdadeiro do que Varys. Sem dúvida, a mais significativa senhoria foi atribuída a Sor Lancei Lannister. Joffrey premiou-o com as terras, castelo e direitos da Casa Darry, cujo último jovem senhor perecera durante a luta nas terras fluviais, "sem deixar herdeiros legítimos de sangue Darry legal, mas apenas um primo bastardo". Sor Lancei não apareceu para aceitar o título; dizia-se que seus ferimentos podiam lhe custar o braço ou até a vida. Dizia-se também que o Duende estava à beira da morte, por conta de um terrível golpe na cabeça. Quando o arauto chamou "Lorde Petyr Baelish", ele avançou, vestido em tons de rosa e ameixa, com um padrão de tejos no manto. Sansa conseguiu vê-lo sorrir ao se ajoelhar perante o Trono de Ferro. Parece tão satisfeito. Não ouvira dizer que Mindinho tivesse feito alguma coisa especialmente heróica durante a batalha, mas parecia que seria recompensado mesmo assim. Sor Kevan voltou a se levantar: - É desejo da Graça Real que seu leal conselheiro Petyr Baelish seja recompensado pelos fiéis serviços prestados à coroa e ao reino. Que se saiba que a Lorde Baelish é atribuído o castelo de Harrenhal com todas as suas terras e rendimentos, para dele fazer sua sede e governar de hoje em diante como Senhor Supremo do Tridente. Petyr Baelish e seus filhos e netos deterão e usufruirão dessas honrarias até o fim dos tempos, e todos os senhores do Tridente vão lhe prestar homenagem como seu suserano de direito. A Mão do Rei e o pequeno conselho consentem. De joelhos, Mindinho ergueu os olhos para o Rei Joffrey: - Agradeço-lhe humildemente, Vossa Graça. Suponho que isso queira dizer que terei de tratar de arranjar alguns filhos e netos. Joffrey riu, e a corte o acompanhou. Senhor Supremo do Tridente, pensou Sansa, e também Senhor de Harrenhal. Não compreendia por que motivo estaria tão feliz com aquilo; as honrarias eram tão ocas quanto o título dado a Hallyne, o Piromante. Harrenhal estava amaldiçoado, todos sabiam disso, e os Lannister nem sequer controlavam o castelo no momento. Além disso, os senhores do Tridente estavam juramentados a Correrrio, à Casa Tully e ao Rei no Norte; nunca aceitariam Mindinho como suserano. A menos que sejam obrigados. A menos que meu irmão, meu tio e meu avô sejam todos derrubados e mortos. A idéia a deixou ansiosa, mas disse a si mesma que estava sendo tola. Robb ganhou deles sempre. Também ganhará de Lorde Baelish, se for preciso. Naquele dia foram armados mais de seiscentos novos cavaleiros. Tinham mantido vigília no Grande Septo de Baelor ao longo de toda a noite, e de manhã atravessaram a cidade descalços, a fim de demonstrar que tinham corações humildes. Agora avançavam vestidos com camisões de lã crua, a fim de serem nomeados pela Guarda Real. Levou muito tempo, pois apenas três dos Irmãos da Espada Branca se encontravam disponíveis para armá-los. Mandon Moore tinha perecido na batalha, Cão de Caça desaparecera, Aerys Oakheart encontrava-se em Dorne com a Princesa Myrcella, e Jaime Lannister era cativo de Robb, de modo que a Guarda Real ficara reduzida a Balon Swann, Meryn Trant e Osmund Kettleblack. Depois de armado cavaleiro, cada um dos homens se levantava, afivelava o cinto da espada e ia se colocar sob as janelas. Alguns tinham os pés ensangüentados da caminhada pela cidade, mas a Sansa pareciam, mesmo assim, altivos e orgulhosos.
    Quando por fim todos os novos cavaleiros receberam os seus títulos, a multidão no salão já estava impaciente; e ninguém mais do que Joffrey. Alguns dos que ocupavam a galeria tinham começado a sair discretamente, mas os notáveis lá embaixo estavam encurralados, impossibilitados de sair sem a licença do rei. Julgando pelo modo como se agitava no Trono de Ferro, Joff a teria dado de boa vontade, mas o trabalho do dia estava longe de terminar. Pois agora a moeda virava-se ao contrário, e os cativos foram introduzidos no salão. Também havia grandes senhores e nobres cavaleiros naquele grupo: o velho e azedo Lorde Celtigar, o Caranguejo Vermelho; Sor Bonifer, o Bom; Lorde Estermont, ainda mais velho do que Celtigar; Lorde Varner, que claudicou ao longo do salão sobre um joelho estilhaçado, mas recusou qualquer ajuda; Sor Mark Mullendore, com o rosto cinzento e o braço esquerdo desaparecido até o cotovelo; o feroz Ronnet Vermelho do Poleiro do Grifo; Sor Dermont da Mata de Chuva; Lorde Willum e os filhos Josua e Elyas; Sor Jon Fossoway; Sor Timon, a Espada Raspada; Aurane, o bastardo de Derivamarca; Lorde Staedmon, chamado de Amigo das Moedas; e centenas de outros. Aqueles que tinham mudado de campo durante a batalha só precisavam jurar lealdade a Joffrey, mas os que lutaram por Stannis até o amargo fim eram obrigados a falar. As palavras que dissessem decidiam seus destinos. Se suplicassem perdão por suas traições e prometessem servir lealmente daí em diante, Joffrey os acolhia de volta à paz do rei e restituía-lhes todas as terras e direitos. Mas um punhado permaneceu desafiador, - Não pense que isso acabou, garoto - alertou um deles, filho bastardo de algum Florent. - O Senhor da Luz protege o Rei Stannis, hoje e sempre. Nem todas as suas espadas e artimanhas vão salvá-lo quando sua hora chegar, - A sua hora chegou agora mesmo - Joffrey chamou com um gesto Sor Ilyn Payne para levar o homem lá para fora e cortar sua cabeça. Mas, assim que foi arrastado para fora do salão, um cavaleiro de porte solene, com um coração flamejante na capa, gritou: - Stannis é o legítimo rei! Ê um monstro que se senta no Trono de Ferro, uma abominação nascida do incesto! - Silêncio - Sor Kevan Lannister bradou. Em vez de se calar, o cavaleiro levantou a voz ainda mais. - Joffrey é o verme negro que corrói o coração do reino! Seu pai foi o negrume e a mãe foi a morte! Destruam-no antes que os corrompa a todos! Destruam-nos a todos, a rainha rameira e o rei verme, o anão vil e a aranha dos segredos, as falsas flores. Salvem-se! - um dos homens de manto dourado atirou o homem ao chão, mas ele continuou a gritar. - O fogo purificador virá! Rei Stannis regressará! Joffrey pôs-se em pé: - O rei sou eu! Matem-no! Matem-no já! Ordeno-o - fez um movimento brusco com a mão, num gesto furioso... e guinchou de dor quando o braço roçou num dos afiados dentes de metal que o rodeavam. O brilhante samito carmesim de sua manga tomou um tom mais escuro de vermelho quando o sangue o empapou. - Mãe! - o menino gemeu. Com todos os olhos postos no rei, de algum modo o homem no chão conseguiu arrancar uma lança de um dos homens de manto dourado e usou-a para se pôr de novo em pé. - O trono renega-o! - gritou. - Ele não é rei coisa nenhuma! Cersei correu para o trono, mas Lorde Tywin permaneceu imóvel como pedra. Teve apenas de erguer um dedo, e Sor Meryn Trant avançou com a espada desembainhada. O fim foi rápido e mortal. Os homens de manto dourado seguraram o cavaleiro pelos braços. - Rei coisa nenhuma! - ele voltou a gritar quando Sor Meryn espetou a ponta da espada em seu peito. Joff caiu nos braços da mãe. Três meistres aproximaram-se correndo para levá-lo pela porta do rei. Então, todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Quando os homens de manto dourado arrastaram o morto para fora do salão, deixaram um rastro brilhante de sangue no chão de pedra. Lorde Baelish afagou a barba enquanto Varys lhe segredava ao ouvido. Será que vão nos mandar embora agora?, perguntou Sansa a si mesma. Ainda havia vinte cativos à espera, mas quem poderia dizer se seria para jurar lealdade ou gritar xingamentos? Lorde Tywin ficou em pé: - Prosseguimos - disse numa voz clara e forte que silenciou os murmúrios. - Aqueles que desejarem pedir perdão por suas traições podem fazê-lo. Não teremos mais loucuras - deslocou-se até o Trono de Ferro e sentou-se num degrau, a um mero metro do chão. A luz do lado de fora das janelas já desaparecia quando a sessão chegou ao fim. Sansa sentiu-se exausta ao descer da galeria. Gostaria de saber qual a gravidade do corte de Joffrey. Dizem que o Trono de Ferro pode ser perigosamente cruel para aqueles que não estão destinados a se sentar nele. De volta à segurança de seus aposentos, abraçou uma almofada contra o rosto e abafou um guincho de alegria. Oh, pela bondade dos deuses, ele fez isso, ele pôs-me de lado na frente de todos. Quando uma criada lhe trouxe o jantar, quase a beijou. Havia pão quente e manteiga recém-batida, uma espessa sopa de carne de vaca, capão e cenouras, e pêssegos mergulhados em mel, Até a comida tem gosto melhor, pensou. Ao chegar a noite, pôs um manto e dirigiu-se ao bosque sagrado. Sor Osmund Kettleblack guardava a ponte levadiça em sua armadura branca. Sansa fez seu melhor para parecer infeliz quando lhe deu boa-noite. Pela maneira como ele a olhou, não ficou certa de ter sido totalmente convincente. Dontos a esperava ao luar folhoso.
    - Por que essa cara tão triste? - perguntou-lhe Sansa alegremente. - Você estava lá, ouviu. Joff pôs-me de lado, acabou comigo, ele... Dontos pegou em sua mão. - Oh, Jonquil, minha pobre Jonquil, não compreende. Acabou com você? Mal começou. Sansa sentiu seu coração apertado. - O que quer dizer? - A rainha nunca a deixará partir, nunca. E uma refém demasiado valiosa. E Joffrey... Querida, ele ainda é o rei, Se a quiser em sua cama, vai tê-la, só que agora serão bastardos que plantará em seu ventre, e não filhos legítimos. - Não - Sansa deu um arquejo, chocada, - Ele deixou-me ir, ele... Sor Dontos deu-lhe um beijo baboso na orelha. - Seja brava. Jurei levá-la para casa, e agora posso fazer isso. O dia foi escolhido. - Quando? - Sansa quis saber. - Quando partimos? - Na noite do casamento de Joffrey. Depois do banquete. Tudo o que é necessário já foi combinado. A Fortaleza Vermelha estará cheia de desconhecidos. Metade da corte estará bêbada e a outra metade estará ajudando Joffrey a se deitar com sua noiva. Durante um pequeno momento, você será esquecida, e a confusão será nossa amiga. - O casamento não acontecerá antes de uma volta de lua. Margaery Tyrell está em Jardim de Cima, só agora mandaram buscá-la. - Esperamos tanto tempo, tenha um pouco mais de paciência. Tenho aqui algo para você Sor Dontos apalpou a bolsa e tirou de lá uma teia de aranha prateada, suspendendo-a com seus dedos grossos. Era uma rede para os cabelos feita de prata fina, com cordões tão finos e delicados que a rede pareceu não pesar mais do que um sopro quando Sansa a pegou. Pequenas pedras preciosas estavam embutidas nos locais em que dois cordões se cruzavam, tão escuras que bebiam o luar. - Que pedras são estas? - Ametistas negras de Asshai. Do tipo mais raro, um profundo púrpura verdadeiro à luz do dia. - E muito lindo - disse Sansa, e pensou: É de um navio que preciso, não de uma rede para o cabelo. - Mais lindo do que julga, querida menina. E que essa rede é mágica. O que a segura é a justiça. Vingança pelo seu pai - Dontos inclinou-se e voltou a beijá-la. - E a sua casa que está aí. Th e o n Meistre Luwin veio até ele quando os primeiros batedores foram vistos perto das muralhas: - Senhor príncipe, tem de se render. Theon fitou a travessa de bolos de aveia, mel e morcela que tinham lhe trazido para o desjejum. Outra noite sem dormir havia deixado seus nervos à flor da pele, e bastava olhar a comida para se sentir nauseado. - Não houve resposta de meu tio? - Nenhuma - o meistre respondeu. - Nem de seu pai em Pyke. - Envie mais aves. - De nada servirá. Quando as aves chegarem,,. - Envie-as! - Theon atirou a travessa de comida para longe com um movimento do braço, puxou as mantas e saiu da cama de Ned Stark, nu e zangado. - Ou será que quer me ver morto? É isso, Luwin? Quero a verdade. O pequeno homem cinzento não mostrou medo: - A minha ordem serve. - Sim, mas quem? - O reino, e Winterfell. Theon, um dia ensinei-lhe as somas e as letras, história e a arte da guerra. E poderia ter-lhe ensinado mais, se tivesse vontade de ouvir. Não direi que tenho um grande apreço por você, não, mas também não posso odiá-lo. Mesmo se odiasse, enquanto for senhor de Winterfell estou obrigado pelo juramento que prestei a lhe dar conselhos. Por isso, agora aconselho-o a se render. Theon abaixou-se para apanhar um manto que estava amontoado no chão, sacudiu-lhe a palha e o colocou sobre os ombros. Um fogo, quero um fogo, e roupa limpa. Onde está Wex? Não irei para a tumba com a roupa suja. - Não tem esperança de agüentar aqui - prosseguiu o meistre. - Se o senhor seu pai pretendesse enviar ajuda, a essa altura já o teria feito. É o Gargalo que lhe interessa. A batalha pelo Norte será travada entre as ruínas de Fosso Cailin. - Talvez seja assim - Theon respondeu. - E enquanto eu controlar Winterfell, Sor Rodrik e os senhores dos Stark não podem marchar para o sul a fim de surpreender meu tio pela retaguarda - não sou tão inocente nas artes da guerra como você pensa, velho. - Tenho alimentos suficientes para agüentar um ano de cerco, se necessário. - Não haverá cerco. Eles talvez passem um dia ou dois construindo escadas e atando ganchos na ponta de cordas. Mas em breve saltarão por cima de suas muralhas por cem lugares ao mesmo tempo. Poderá ser capaz de defender a fortaleza interna durante algum tempo, mas uma hora o castelo cairá. Faria melhor se abrisse os portões e pedisse... - ... misericórdia? Eu sei que tipo de misericórdia têm para mim. - Há uma maneira. - Eu sou um homem de ferro - lembrou-lhe Theon, - Tenho as minhas próprias maneiras.
    Que escolha me deixaram? Não, não responda, já ouvi o bastante de seus conselhos. Vá enviar essas aves como ordenei, e diga a Lorren que quero falar com ele. E chame também Wex. Quero minha cota de malha areada e a guarnição reunida no pátio. Por um momento pensou que o meistre o desobedeceria, mas, por fim, Luwin fez uma reverência rígida: - As suas ordens. Compunham um grupo pateticamente pequeno; os homens de ferro eram poucos, o pátio, grande. - Os nortenhos estarão aqui antes do cair da noite - Theon lhes disse. - Sor Rodrik Cassei e todos os senhores que atenderam ao seu chamado. Não fugirei deles. Tomei este castelo e pretendo mantê-lo, viver ou morrer como Príncipe de Winterfell. Mas não ordenarei a nenhum homem que morra por mim. Se partirem agora, antes que a força principal de Sor Rodrik chegue, ainda têm uma chance de ganhar a liberdade - desembainhou a espada e desenhou uma linha na terra. - Aqueles que quiserem ficar e lutar, deem um passo à frente. Ninguém falou. Os homens ficaram parados, dentro de suas cotas de malha, peles e couro fervido, imóveis como se fossem feitos de pedra. Alguns trocaram olhares. Urzen arrastou os pés. Dykk Harlaw puxou um escarro e cuspiu. Um dedo de vento passou pelos longos cabelos claros de Endehar. Theon sentiu-se como se estivesse se afogando. Por que estou surpreso?, pensou tristemente. O pai abandonara-o, bem como os tios, a irmã, e até aquela maldita criatura do Fedor. Por que seus homens iriam se mostrar mais leais? Nada havia a dizer, nada a fazer. Só podia ficar ali sob as grandes muralhas cinzentas e o céu duro e branco, de espada na mão, à espera, à espera... Wex foi o primeiro a atravessar a linha. Três passos rápidos e ficou ao lado de Theon, de ombros caídos. Envergonhado pelo rapaz, Lorren Negro o seguiu, todo carrancudo. - Quem mais? - Theon perguntou. Rolfe Vermelho avançou. Kromm. Werlag. Tymor e os irmãos. Ulf, o Doente. Harrag Ladrão de Ovelhas. Quatro Harlaw e dois Botley. Kenned, a Baleia, foi o último. Ao todo dezessete. Urzen estava entre os que não se moveram, e também Stygg, e todos os dez homens que Asha trouxera de Bosque Profundo. - Então partam - disse-lhes Theon. - Corram para junto de minha irmã. Não tenho dúvida de que ela dará boas-vindas a todos. Stygg teve pelo menos a delicadeza de parecer envergonhado. Os outros foram embora sem uma palavra, Theon virou-se para os dezessete que ficaram. - De volta às muralhas. Se os deuses nos pouparem, vou me lembrar de cada um de vocês. Lorren Negro ficou depois de os outros irem para os seus postos. - O povo do castelo vai se voltar contra nós assim que a luta começar. - Eu sei. O que quer que eu faça? - Abata-os - Lorren respondeu. - A todos. Theon balançou a cabeça. - O laço está pronto? - Está. Planeja usá-lo? - Conhece maneira melhor? - Sim. Pego meu machado, fico naquela ponte levadiça e deixo-os vir contra mim. Um de cada vez, dois, três, não importa. Ninguém atravessará o fosso enquanto eu continuar respirando. Ele quer morrer, Theon pensou. Não é a vitória que pretende, é um fim que mereça uma canção. - Usaremos o laço. - As suas ordens - Lorren respondeu, com desprezo nos olhos. Wex ajudou-o a se vestir para a batalha. Sob a túnica negra e a capa dourada tinha um camisão de cota de malha bem oleada, e, por baixo de tudo, levava uma camada de rígido couro fervido. Depois de armado e couraçado, Theon subiu a torre de vigia que se erguia no ângulo onde as muralhas leste e sul se juntavam, a fim de dar uma olhada em seu destino. Os nortenhos estavam se espalhando para cercar o castelo. Era difícil avaliar seu número. Pelo menos mil; talvez o dobro desse valor. Contra dezessete. Tinham trazido catapultas e balistas. Não viu torres de cerco trovejando na estrada do rei, mas havia madeira suficiente na mata de lobos para construir tantas quantas quisessem, Theon estudou os estandartes dos atacantes pelo tubo de lentes de Myr de Meistre Luwin. O machado de batalha dos Cerwyn ondulava corajosamente onde quer que seus olhos caíssem, e também havia árvores Tallhart, e tritões do Porto Branco. Menos comuns eram os símbolos de Flint e Karstark. Aqui e ali até viu o alce dos Hornwood. Mas nenhum Glover. Asha tratou deles, nenhum Bolton do Forte do Pavor, nenhum Umber viajou desde a sombra da Muralha. Não que fossem necessários. Não demorou muito até que o rapaz Cley Cerwyn aparecesse nos portões com uma bandeira de paz numa grande haste, para anunciar que Sor Rodrik Cassei desejava negociar com Theon Vira-Casaca. Vira-casaca, O nome era amargo como bílis. Lembrou-se de que fora a Pyke a fim de liderar os dracares do pai contra Lanisporto. - Sairei em breve - gritou para baixo. - Sozinho. Lorren Negro desaprovou. - Só o sangue pode lavar o sangue - declarou. - Os cavaleiros podem cumprir as tréguas com outros cavaleiros, mas não são tão cautelosos com a sua honra quando lidam com aqueles a quem consideram foras da lei. Theon irritou-se.
    - Eu sou o Príncipe de Winterfell e herdeiro das Ilhas de Ferro. Trate de ir buscar a garota e fazer o que lhe disse. Lorren Negro deu-lhe um olhar assassino. - Sim, Príncipe. Também se virou contra mim, Theon compreendeu. Nos últimos tempos parecia-lhe que as próprias pedras de Winterfell tinham se virado contra ele. Se morrer, morrerei sem amigos e abandonado. Assim, o que lhe restava além de sobreviver? Dirigiu-se a cavalo até a guarita, com a coroa na cabeça. Uma mulher estava tirando água de um poço, e Gage, o cozinheiro, observava da porta da cozinha. Eles escondiam o ódio por trás de olhares carrancudos e caras vazias como ardósia, mas conseguia senti-lo mesmo assim. Quando a ponte levadiça foi descida, um vento gelado suspirou pelo fosso. O toque do vento fez Theon estremecer. É o frio, nada mais, disse a si mesmo, um estremecimento, não um tremor. Até os bravos estremecem. E avançou para os dentes desse vento, sob a porta levadiça, sobre a ponte levadiça. O portão exterior abriu-se para deixá-lo passar. Ao emergir sob as muralhas, podia sentir os garotos observando, com as órbitas vazias onde antes tinham tido os olhos. Sor Rodrik esperava no mercado, montado em seu cavalo castrado malhado. Ao seu lado, o lobo gigante de Stark ondulava, preso a um pau transportado pelo jovem Cley Cerwyn. Estavam sós na praça, embora Theon visse arqueiros nos telhados das casas que os rodeavam, lanceiros à direita e à esquerda, uma fileira de cavaleiros montados sob o tritão e o tridente da Casa Manderly. Todos eles querem me ver morto. Alguns eram rapazes com os quais tinha bebido, jogado dados e até procurado prostitutas, mas isso não o salvaria se caísse nas mãos deles. - Sor Rodrik - Theon parou a montaria. - Entristece-me que nos encontremos como inimigos. - Minha tristeza é ter de esperar algum tempo para enforcá-lo - o velho cavaleiro cuspiu no terreno lamacento. - Theon Vira-Casaca. - Sou um Greyjoy de Pyke. O manto com que meu pai me envolveu quando bebê mostrava uma lula gigante, não um lobo. - Foi protegido dos Stark durante dez anos, - Eu chamo isso de refém e prisioneiro. - Então talvez Lorde Eddard devesse tê-lo mantido acorrentado a uma parede de masmorra. Em vez disso, criou-o juntamente com seus próprios filhos, os garotinhos meigos que você massacrou, e eu, para minha eterna vergonha, treinei-o nas artes da guerra. Bem gostaria de ter enfiado uma espada em sua barriga em vez de tê-la posto em suas mãos. - Saí para negociar, não para suportar os seus insultos. Diga o que tem a dizer, velho. O que quer de mim? - Duas coisas. Winterfell e a sua vida. Ordene aos seus homens que abram os portões e deponham as armas. Aqueles que não assassinaram crianças ficarão livres para ir embora, mas você ficará preso, à espera da justiça do Rei Robb. Que os deuses se apiedem de você quando ele regressar. - Robb não voltará a ver Winterfell - Theon garantiu. - Vai se quebrar contra Fosso Cailin, como aconteceu com todos os exércitos do sul nos últimos dez mil anos. Nós possuímos o norte agora, sor. - Você possui três castelos - Sor Rodrik replicou. - E pretendo retomar este, Vira-Casaca. Theon ignorou aquilo, - Eis os meus termos. Têm até o cair da noite para dispersar. Àqueles que jurarem lealdade a Balon Greyjoy como seu rei e a mim como Príncipe de Winterfell terão confirmados os direitos e propriedades, e não sofrerão nenhum mal. Aqueles que nos desafiarem serão destruídos. O jovem Cerwyn estava incrédulo: - Está louco, Greyjoy? Sor Rodrik sacudiu a cabeça: - Só vaidoso, moço. Temo que Theon Greyjoy sempre tenha tido uma imagem muito grandiosa de si mesmo - o velho brandiu um dedo em seu rosto. - Que não passe por sua cabeça que eu preciso esperar que Robb abra caminho até o Gargalo para lidar com gente como você. Tenho comigo quase dois mil homens... E se o que se diz é verdade, você não tem mais do que cinqüenta. Na verdade, são dezessete. Theon forçou-se a sorrir. - Tenho algo melhor do que homens - e ergueu um punho sobre a cabeça, o sinal que dissera a Lorren Negro para esperar. Tinha as muralhas de Winterfell às suas costas, mas Sor Rodrik estava exatamente de frente para elas, e não podia deixar de ver. Theon observou seu rosto. Quando o queixo tremeu sob aquelas rígidas suíças brancas, soube precisamente o que o velho estava vendo. Ele não está surpreso, pensou com tristeza, mas o medo está lá. - Isso é uma covardia - Sor Rodrik exclamou. - Usar uma criança assim... isso é desprezível. - Ah, eu sei - Theon respondeu. - E um prato que eu próprio provei, ou será que se esqueceu? Tinha dez anos quando fui levado da casa de meu pai, para assegurar que ele não voltaria a se rebelar. - Não é a mesma coisa! O rosto de Theon permaneceu impassível. - O laço que eu usava não era feito de corda de cânhamo, isso é verdade, mas senti-o mesmo assim. E esfolou-me, Sor Rodrik, esfolou-me até me deixar em carne viva - nunca tinha chegado a compreender isso por completo até aquele momento, mas quando as palavras se derramaram de sua boca, viu a verdade que continham. - Nenhum mal jamais foi feito a você. - E nenhum mal será feito a Beth, desde que o sor... Sor Rodrik não lhe deu oportunidade de terminar. - Víbora - declarou o cavaleiro, com o rosto vermelho de raiva sob aquelas suíças brancas. Dei-lhe a chance de salvar seus homens e morrer com um pequeno fiapo de honra, Vira-Casaca. Devia saber que era pedir demais a um assassino de crianças - a mão caiu sobre o punho da espada. - Devia abatê-lo aqui e agora, e pôr fim às suas mentiras e falsidades. Pelos deuses, devia fazê-lo. Theon não temia um velho trêmulo, mas aqueles arqueiros que o observavam e aquela fileira de cavaleiros eram outra coisa. Se as espadas saíssem das bainhas, suas chances de voltar vivo ao castelo eram poucas, ou nenhuma. - Se repudiar seu juramento e me matar, verá sua pequena Beth morrer estrangulada na ponta de uma corda. Os nós dos dedos de Sor Rodrik estavam brancos, mas, após um momento tirou a mão do punho da espada, - Vivi realmente tempo demais. - Não irei discordar, sor. Aceitará meus termos? - Tenho um dever a cumprir para com a Senhora Catelyn e a Casa Stark. - E a sua Casa? Beth é a última de seu sangue. O velho cavaleiro endireitou-se: - Ofereço-me para o lugar de minha filha. Liberte-a e me tome como refém. Certamente o castelão de Winterfell vale mais do que uma criança. - Para mim, não - um gesto valente, velho, mas não sou tão tolo assim. - E aposto que nem para Lorde Manderly ou Leobald Tallhart - sua velha pele não tem mais valor para eles do que a de qualquer outro homem. - Não, vou manter a garota... e a salvo, desde que faça o que lhe ordenei. A vida dela está em suas mãos. - Pela bondade dos deuses, lheon, como pode fazer isto? Sabe que tenho de atacar, jurei.,. - Se essa tropa ainda estiver em armas perante meu portão quando o sol se puser, Beth será enforcada - Theon afirmou. - Outro refém vai segui-la para o túmulo à primeira luz da aurora, e outro ao pôr do sol. Cada alvorada e cada ocaso significarão uma morte, até que vá embora. Não me faltam reféns - não esperou por uma resposta; em vez disso, deu a volta com Sorridente e voltou ao castelo. A princípio seguiu lentamente, mas a idéia de ter aqueles arqueiros nas costas rapidamente o levou a um meio galope. As pequenas cabeças viram-no chegar, do alto de seus espigões, com rostos alcatroados e esfolados que ficavam maiores a cada metro; entre elas estava Beth Cassei, com uma corda em volta do pescoço, chorando. Theon esporeou Sorridente e rompeu a um galope duro. Os cascos do cavalo tamborilaram na ponte levadiça como batidas de tambor. Desmontou no pátio e entregou as rédeas a Wex: - Talvez os detenha - disse a Lorren Negro. - Vamos saber ao pôr do sol. Leva a menina para dentro até então, e mantenha-a em algum lugar seguro - sob as camadas de couro, aço e lã, estava coberto de suor. - Preciso de uma taça de vinho. Uma tina de vinho seria ainda melhor. Um fogo fora aceso no quarto de Ned Stark. Theon sentou-se a seu lado e encheu uma taça com um tinto encorpado das caves do castelo, um vinho tão amargo quanto seu estado de espírito, Eles vão atacar, pensou sombriamente, fitando as chamas. Sor Rodrik ama a filha, mas não ê por isso que deixa de ser o castelão, e acima de tudo um cavaleiro. Se fosse Theon quem estivesse com um laço em volta do pescoço e Lorde Balon comandando o exército lá fora, os cornos de guerra já teriam soado para o ataque, não tinha dúvida. Devia agradecer aos deuses por Sor Rodrik não ser um homem de ferro. Os homens das terras verdes eram feitos de material mais mole, embora não estivesse certo de que se revelaria suficientemente mole. Se não, se apesar de tudo o velho desse a ordem para assaltar o castelo, Winterfell cairia. Theon não tinha ilusões a esse respeito. Os seus dezessete podiam matar três, quatro, cinco vezes esse número de homens, mas no fim seriam derrotados. Theon fitou as chamas por cima da borda de sua taça de vinho, matutando sobre a injustiça de tudo aquilo. - Cavalguei ao lado de Robb Stark no Bosque dos Murmúrios - resmungou. Naquela noite estivera assustado, mas não como agora. Uma coisa era partir para a batalha rodeado de amigos, outra era perecer-se só e desprezado. Misericórdia, pensou, infeliz. Quando o vinho não lhe trouxe alívio, Theon mandou que Wex fosse lhe buscar o arco e dirigiu-se até o velho pátio interior, Ficou ali, disparando flecha atrás de flecha contra os alvos até ficar com os ombros doendo e os dedos ensangüentados, fazendo apenas as pausas necessárias para arrancar as flechas dos alvos para outra série. Salvei a vida de Bran com este arco, lembrou a si mesmo. Bem que gostaria de poder salvar a minha. Mulheres vinham até o poço, mas não ficavam; fosse o que fosse que viam no rosto de Theon, aquilo mandava-as rapidamente embora. Atrás dele erguia-se a torre quebrada, com o topo tão irregular como uma coroa, no local onde, havia muito tempo, o incêndio derrubara os andares superiores. A medida que o sol se movia, a sombra da torre movia-se também, alongando-se gradualmente, um braço negro que se estendia para Theon Greyjoy. Quando o sol tocou o poço, já tinha sido agarrado. Se enforcar a garota, os nortenhos atacarão de imediato, pensou no momento em que disparava uma flecha. Se não a enforcar, saberão que minhas ameaças são vazias. Colocou outra flecha no arco. Não há nenhuma saída, nenhuma. - Se tivesse cem arqueiros tão bons como você, poderia ter uma chance de defender o castelo - disse uma voz suave atrás dele. Quando se virou, Meistre Luwin estava ali. - Vá embora - Theon o enxotou. - Já estou farto de seus conselhos. - E da vida? Também está farto dela, senhor meu príncipe? Theon ergueu o arco. - Mais uma palavra e enfio esta flecha em seu coração. - Não faria isso. Theon retesou o arco, puxando as penas cinzentas de ganso até a face. - Quer fazer uma aposta? - Sou sua última esperança, Theon. Não tenho esperança, pensou. Mas abaixou o arco um centímetro e disse: - Não fugirei. - Não falo em fugir. Vista o negro. - A Patrulha da Noite? - Theon deixou o arco relaxar-se lentamente e apontou a flecha para o chão. - Sor Rodrik serviu a Casa Stark a vida inteira, e a Casa Stark sempre foi amiga da Patrulha. Ele não lhe negará isso. Abra os portões, deponha as armas, aceite as condições dele, e ele terá de deixá-lo vestir o negro. Um irmão da Patrulha da Noite. Significava um não a uma coroa, a filhos, a uma esposa... mas significava vida, e vida com honra. O irmão do próprio Ned Stark tinha escolhido a Patrulha, e Jon Snow também. Não me faltam roupas pretas, uma vez arrancadas as lulas gigantes. Até meu cavalo é preto. Podia subir bastante na patrulha... chefe dos patrulheiros, provavelmente até Senhor Comandante. Que Asha fique com as malditas ilhas, são tão monótonas quanto ela. Se servisse em Atalaialeste, poderia comandar meu próprio navio, e há boa caça para lá da Muralha. Quanto a mulheres, que mulher selvagem não quereria um príncipe em sua cama? Um sorriso lento perpassou-lhe pelo rosto. Um manto negro não pode ser virado. Seria tão bom como qualquer homem... - PRÍNCIPE THEON! - o súbito grito estilhaçou seu sonho acordado, Kromm atravessava o pátio a trote. - Os nortenhos... Sentiu uma súbita e doentia sensação de terror. - É o ataque? Meistre Luwin pegou em seu braço. - Ainda há tempo. Levante uma bandeira de paz... - Eles estão lutando - disse Kromm com urgência. - Chegaram mais homens, centenas deles, e a princípio pareceram ir se juntar aos outros. Mas agora caíram sobre eles! - É Asha? - teria ela vindo salvá-lo, afinal? Mas Kromm sacudiu a cabeça, - Não, estou dizendo que estes são nortenhos. Com um homem sangrento nas bandeiras. O homem esfolado do Forte do Pavor. Theon lembrou-se de que Fedor tinha pertencido ao Bastardo de Bolton antes de sua captura. Era difícil acreditar que uma vil criatura como ele conseguiria fazer com que os Bolton mudassem de lealdade, mas nada mais fazia sentido. - Quero ver isso com meus próprios olhos - Theon disse e correu. Meistre Luwin seguiu-o. Quando chegaram às ameias, havia homens mortos e cavalos moribundos espalhados pela praça do mercado junto aos portões do castelo. Não viu linhas de batalha, apenas um caos rodopiante de estandartes e lâminas. Gritos e berros ressoavam no ar frio de Outono. Sor Rodrik parecia ter a vantagem do número, mas os homens do Forte do Pavor eram mais bem dirigidos, e tinham pegado os outros desprevenidos. Theon observou-os investir, dar meia-volta e investir novamente, fazendo em pedaços sangrentos a força mais numerosa, a cada vez que esta tentava formar entre as casas. Conseguia ouvir o estrondo que as cabeças de machado de ferro faziam ao cair sobre escudos de carvalho, por cima dos aterrorizados brados de um cavalo estropiado. Viu que a estalagem estava ardendo. Lorren Negro surgiu ao seu lado e permaneceu em silêncio durante algum tempo. O sol estava baixo, a oeste, pintando os campos e as casas com um clarão vermelho. Um grito fraco e vacilante de dor pairou sobre as muralhas, e um berrante soou para lá das casas em chamas. Theon viu um homem ferido arrastar-se dolorosamente pelo chão, manchando a terra com o sangue de sua vida enquanto lutava para atingir o poço que ficava no centro da praça do mercado. Morreu antes de chegar lá. Usava um justilho de couro e um meio elmo cônico, mas não ostentava nenhum símbolo que mostrasse de que lado tinha lutado. Os corvos chegaram na penumbra azul, com as primeiras estrelas da noite. - Os dothrakis acreditam que as estrelas são espíritos dos mortos com valor - disse Theon. Meistre Luwin havia lhe contado isso muito tempo antes. - Dothrakis? - Os senhores dos cavalos do outro lado do mar estreito. - Ah. Esses - Lorren Negro fez uma expressão carrancuda por baixo da barba. - Os selvagens acreditam em todo tipo de bobagens. A medida que a noite ficava mais escura e a fumaça se espalhava, tornava-se difícil distinguir o que estava acontecendo lá embaixo, mas o clamor do aço foi gradualmente diminuindo até se silenciar, e os gritos e berrantes deram lugar a gemidos e choros de partir o coração. Por fim, uma coluna de homens a cavalo apareceu, saída da fumaça que pairava no ar. A cabeça vinha um cavaleiro com uma armadura escura. Seu elmo arredondado brilhava num vermelho lúgubre, e um manto rosa-claro caía de seus ombros. Parou o cavalo junto ao portão principal, e um de seus homens gritou para que o castelo se abrisse. - São amigos ou inimigos? - berrou-lhes Lorren Negro. - Traria um inimigo tão bons presentes? - O Elmo Vermelho fez um sinal com a mão, e três cadáveres foram despejados à frente dos portões. Um archote foi brandido por cima dos corpos, para que os defensores no topo das muralhas pudessem ver o rosto dos mortos. - O velho castelão - disse Lorren Negro, - Com Leobald Tallhart e Cley Cerwyn - o jovem senhor fora atingido no olho por uma flecha, e Sor Rodrik perdera o braço esquerdo, do cotovelo para baixo. Meistre Luwin soltou um grito inarticulado de consternação, virou as costas às ameias e caiu de joelhos, vomitando. - O grande porco Manderly foi covarde demais para sair de Porto Branco, caso contrário também o teríamos trazido - gritou o Elmo Vermelho. Estou salvo, Theon pensou. Então por que se sentia tão vazio? Aquilo era uma vitória, uma doce vitória, o salvamento por que tinha rezado. Olhou de relance para Meistre Luwin. E pensar como estive perto de me render e de vestir o negro... - Abram os portões aos nossos amigos - talvez naquela noite Theon dormisse sem temer o que os sonhos pudessem trazer. Os homens do Forte do Pavor ultrapassaram o fosso e os portões interiores. Theon desceu com Lorren Negro e Meistre Luwin para recebê-los no pátio. Flâmulas vermelho-claras flutuavam nas extremidades de algumas lanças, mas eram muitos mais os que traziam machados de batalha, espadas longas e escudos meio cortados em lascas. - Quantos homens perdeu? - perguntou Theon ao Elmo Vermelho enquanto ele desmontava. - Vinte ou trinta - a luz dos archotes cintilou no esmalte rachado de sua viseira. O elmo e o gorjal tinham sido concebidos para tomar a forma do rosto e dos ombros de um homem, sem pele e ensangüentado, com a boca aberta num silencioso uivo de angústia. - Sor Rodrik tinha uma vantagem de cinco contra um. - Sim, mas julgava-nos amigos. Um erro comum. Quando o velho tolo me deu a mão, em vez de pegá-la, cortei metade de seu braço. Depois deixei que visse minha cara - o homem pôs ambas as mãos no elmo e levantou-o de sua cabeça, segurando-o debaixo do braço. - Fedor - Theon o reconheceu, inquieto. Onde um criado foi arranjar uma armadura tão boa? O homem riu: - O desgraçado está morto - aproximou-se. - Culpa da moça. Se ela não tivesse fugido para tão longe, o cavalo dele não teria se aleijado e podíamos ter conseguido fugir. Dei-lhe a minha quando vi os cavaleiros do topo da colina. A essa altura já tinha acabado com ela, e ele gostava de ter a sua vez quando ainda estavam quentes. Tive de puxá-lo de cima dela e de meter a minha roupa nas mãos dele... Botas de pele de vitelo e gibão de veludo, cinto de espada gravado em prata, até o meu manto de zibelina. Corra para o Forte do Pavor, eu disse, traga toda a ajuda que conseguir. Leve o meu cavalo, é mais rápido, e tome, use o anel que meu pai me deu, para que eles saibam que vai de minha parte. Ele bem sabia que não era boa idéia questionar-me. Quando espetaram aquela flecha nas costas dele, eu já tinha me besuntado com a porcaria da moça e vestido os farrapos dele. Podiam ter me enforcado mesmo assim, mas foi a única chance que vi - esfregou a boca com as costas da mão. - E agora, meu querido príncipe, houve uma mulher que me foi prometida se lhe trouxesse duzentos homens. Bem, trouxe três vezes mais homens do que isso, e nada de garotos inexperientes ou camponeses, mas sim a própria guarnição de meu pai. Theon tinha dado sua palavra. Aquela não era hora de vacilar. Pague a sua recompensa de carne e lide com ele mais tarde. - Harrag - disse vá aos canis e traga Palia para o...? - Ramsay - havia um sorriso em seus lábios gordos, mas nenhum naqueles olhos claros. - Minha esposa chamava-me Snow antes de comer os dedos, mas eu digo Bolton - o sorriso coalhou. - Então, oferece-me uma garota dos canis por meus bons serviços, é assim que as coisas são? Havia um tom na voz dele que não agradou mais a Theon do que o modo insolente como os homens do Forte do Pavor o olhavam. - Foi ela a prometida, - Cheira a bosta de cão. Acontece que já tive maus cheiros bastantes. Acho que em vez dela vou ficar com a sua aquecedora de cama. Como se chama? Kyra? - Está louco? - Theon rebateu, irritado. - Mando... O tabefe do Bastardo acertou-lhe em cheio, e o malar estilhaçou-se com um nauseante som de trituração sob o aço articulado. O mundo desapareceu num bramido vermelho de dor. Algum tempo depois, Theon deu por si no chão. Rolou sobre o estômago e engoliu uma golfada de sangue. Fechem os portões!, tentou gritar, mas era tarde demais. Os homens do Forte do Pavor tinham abatido Rolfe Vermelho e Kenned, e entravam mais, um rio de cotas de malha e espadas afiadas. Seus ouvidos ressoavam, e estava rodeado de horror, Lorren Negro tinha a espada na mão, mas já havia quatro homens atacando-o. Viu Ulf cair com um dardo de besta espetado na barriga enquanto corria para o Grande Salão. Meistre Luwin estava tentando alcançá-lo quando um cavaleiro montado num cavalo de guerra enfiou uma lança entre os seus ombros, e depois deu a volta para atropelá-lo. Outro homem girou um archote por cima da cabeça e depois atirou-o para cima do telhado de sapé dos estábulos. - Poupem os Frey - estava gritando o Bastardo enquanto as chamas se erguiam com um rugido - , e queimem o resto. Queimem, queimem tudo. A última coisa que Theon Greyjoy viu foi Sorridente saindo aos coices dos estábulos que ardiam, com a crina em chamas, relinchando, empinando-se... Tyrion Sonhou com um teto de pedra rachada e com cheiro de sangue, de merda e de carne queimada. O ar estava cheio de fumaça acre. Em toda a volta, os homens gemiam ou choramingavam, e de tempos em tempos um grito trespassava o ar, espesso de dor. Quando tentou se mover, descobriu que tinha emporcalhado a roupa de cama. A fumaça que havia no ar trazia-lhe lágrimas aos olhos. Estou chorando? Não podia deixar que o pai visse. Era um Lannister de Rochedo Casterly. Um leão, tenho de ser um leão, viver como leão, morrer como leão. Mas doía tanto... Fraco demais para gemer, deixou-se ficar no meio de seus próprios excrementos e fechou os olhos. Ali perto alguém amaldiçoava os deuses numa voz pesada e monótona. Escutou as blasfêmias e perguntou a si mesmo se estaria morrendo. Passado algum tempo, a sala desvaneceu-se. Deu por si fora da cidade, caminhando por um mundo sem cor. Corvos atravessavam um céu cinzento apoiados em grandes asas negras, enquanto gralhas pretas saltavam de cima de seus banquetes em nuvens furiosas onde quer que seus passos o levassem. Larvas brancas escavavam túneis em putrefação negra. Os lobos eram cinzentos, e as irmãs silenciosas também e, juntos, arrancavam a carne dos mortos em batalha. Havia cadáveres espalhados por todo o terreno dos torneios. O sol era uma moeda quente e branca, brilhando sobre o rio cinzento que corria em torno dos ossos carbonizados de navios afundados. Das piras dos mortos subiam colunas negras de fumaça e cinzas incandescentes e brancas. Obra minha, pensou Tyrion Lannister. Morreram às minhas ordens. A princípio não havia qualquer som no mundo, mas após algum tempo começou a ouvir as vozes dos mortos, baixas e terríveis. Choravam e gemiam, suplicavam um fim para a dor, gritavam por ajuda e pelas mães. Tyrion nunca conhecera a sua. Queria Shae, mas ela não estava lá. Caminhou sozinho por entre sombras cinzentas, tentando recordar... As irmãs silenciosas estavam despindo as armaduras e as roupas dos mortos. Todas as tintas brilhantes tinham desbotado nos mantos dos caídos; estavam vestidos em tons de branco e cinza, e seu sangue negro formava crostas. Observou seus corpos nus serem içados pelos braços e pelas pernas, e transportados, balançando, até as piras, para se juntarem aos companheiros. Metal e tecido eram atirados em uma carroça de madeira branca, puxada por dois grandes cavalos pretos. Tantos mortos, tantos, tantos mortos. Seus cadáveres pendiam, flácidos, seus rostos estavam frouxos, ou rígidos, ou inchados de gás, irreconhecíveis, só vagamente humanos. As vestes que as irmãs tiravam deles eram decoradas com corações negros, leões cinzentos, flores mortas e veados claros e fantasmagóricos. As armaduras estavam todas amassadas e rachadas, as cotas de malhas, despedaçadas, quebradas, fendidas. Por que matei todos? Antes soubera-o, mas de algum modo tinha esquecido. Podia ter perguntado a uma das irmãs silenciosas, mas, quando tentou falar, descobriu que não tinha boca. Uma pele lisa e contínua cobria seus dentes. A descoberta o aterrorizou, Como i^tsSL poderia viver sem boca? Desatou a correr. A cidade não estava longe. Estaria seguro dentro da cidade, longe de todos aqueles mortos. Seu lugar não era com eles. Não tinha boca, mas ainda era um homem vivo. Não, um leão, um leão, e vivo, Mas quando chegou às muralhas da cidade, os portões lhe tinham sido cerrados. Estava escuro quando voltou a acordar. A princípio não viu nada, mas após algum tempo a vaga silhueta de uma cama surgiu à sua volta. As cortinas encontravam-se fechadas, mas via as formas de colunas esculpidas e o côncavo do dossel de veludo por cima da cabeça. Por baixo de seu corpo estendia-se a suavidade complacente de um colchão de penas, e o travesseiro que tinha sob a cabeça era de penugem de ganso. A minha cama, estou na minha cama, no meu quarto. Com as cortinas fechadas, fazia calor sob a grande pilha de peles e cobertores que o cobria. Estava suando. Febre, pensou hesitantemente. Sentia-se muito fraco, e a dor foi como uma punhalada quando lutou para levantar a mão. Desistiu do esforço. A cabeça parecia-lhe enorme, do tamanho da cama, pesada demais para erguê-la do travesseiro. Quase não sentia o corpo. Como vim parar aqui? Tentou se lembrar. A batalha voltou à sua memória aos pedaços. A luta ao longo do rio, o cavaleiro que tinha oferecido a manopla, a ponte de navios... Sor Mandon. Viu os olhos mortos e vazios, a mão estendida, o fogo verde que brilhava no aço esmaltado de branco. O medo varreu-o numa corrente fria; sob os lençóis, sentiu a bexiga esvaziando-se. Teria gritado, se tivesse boca. Não, isso foi no sonho, pensou, com a cabeça a latejar. Socorro, alguém me ajude. Jaime, Shae, mãe, alguém... Tysha... Ninguém ouviu. Ninguém veio. Sozinho no escuro, caiu num sono com cheiro de urina. Sonhou que a irmã estava em pé junto à cama, com o senhor seu pai ao lado, de sobrancelhas franzidas. Tinha de ser um sonho, pois Lorde Tywin estava a mil léguas de distância, lutando com Robb Stark no ocidente. Outros também iam e vinham. Varys olhou-o e suspirou, mas Mindinho proferiu uma frase de efeito. Maldito bastardo traiçoeiro, pensou venenosamente Tyrion, nós o mandamos para Ponteamarga e ele nunca voltou. Às vezes ouvia-os conversando uns com os outros, mas não compreendia o que diziam. As vozes zumbiam em seus ouvidos como vespas abafadas por feltro espesso. Queria perguntar se tinham ganhado a batalha. Devemos ter ganhado, caso contrário eu seria uma cabeça espetada em algum lugar num espigão. Se estou vivo, ganhamos. Não sabia o que mais o satisfazia: a vitória, ou o fato de ter sido capaz de deduzi-la. A inteligência retornava-lhe, por mais lentamente que fosse. Isso era bom. A inteligência era tudo o que possuía. Da vez seguinte que acordou, as cortinas tinham sido puxadas e Podrick Payne estava junto a ele com uma vela, Quando viu Tyrion abrir os olhos, foi embora correndo. Não, não vá, ajude-me, ajude, tentou gritar, mas o melhor que conseguiu foi um gemido abafado. Não tenho boca. Levou uma mão ao rosto, com dor e hesitação em cada movimento. Os dedos acharam um pano rijo onde deviam ter encontrado pele, lábios, dentes, Linho. A parte inferior de seu rosto estava coberta por uma atadura apertada, a máscara de um emplastro endurecido com buracos para respirar e se alimentar. Pouco depois, Pod reapareceu. Dessa vez trazia um estranho consigo, um meistre de corrente e toga. - Senhor, deve ficar imóvel - murmurou o homem. - Está gravemente ferido. Fará grande mal a si mesmo caso se mova. Tem sede? Conseguiu fazer um aceno desajeitado com a cabeça. O meistre inseriu um funil curvo de cobre no buraco de alimentação por cima de sua boca e despejou-lhe um fiozinho lento de líquido garganta abaixo. Tyrion engoliu, quase sem saborear. Tarde demais, compreendeu que o líquido era leite da papoula. Quando o meistre tirou o funil de sua boca, já percorria a espiral de volta ao sono. Daquela vez sonhou que estava num banquete, um banquete de vitória num grande salão qualquer, Tinha um lugar elevado no estrado, e os homens levantavam as taças e saudavam-no como herói. Marillion estava lá, o cantor que tinha atravessado com ele as Montanhas da Lua. Tocava a harpa e cantava sobre os ousados feitos do Duende. Até o pai sorria com aprovação. Quando a canção terminou, Jaime levantou-se da cadeira, ordenou que Tyrion se ajoelhasse, e tocou-lhe, primeiro num ombro e depois no outro, com a sua espada dourada, e voltou a ficar de pé como cavaleiro. Shae estava à espera para abraçá-lo. Pegou-o pela mão, rindo e brincando, chamando-o de seu gigante de Lannister. Acordou na escuridão de um quarto frio e vazio. As cortinas tinham sido de novo cerradas. Sentia que algo estava errado, revirado, embora não soubesse dizer o quê. Estava de novo só. Afastando as mantas, tentou se sentar, mas a dor era excessiva e rapidamente cedeu, com a respiração irregular. O rosto era o de menos. Seu lado direito era uma única dor enorme, e uma punhalada de dor trespassava seu peito sempre que erguia o braço. O que me aconteceu? Até a batalha parecia quase um sonho quando tentava recordá-la. Fui ferido com mais gravidade do que pensava. Sor Mandon... A memória o assustou, mas Tyrion obrigou-se a suportá-la, a revirá-la na cabeça, a olhar bem para ela. Ele tentou me matar, não há dúvida. Essa parte não foi um sonho. Ele teria me cortado em dois se Pod não tivesse... Pod, onde está Pod? Rangendo os dentes, agarrou as cortinas da cama e as puxou. Estas soltaram-se do dossel e caíram, metade sobre as esteiras e metade sobre ele. Mesmo aquele pequeno esforço o deixou tonto. O quarto rodopiou ao seu redor, todo ele paredes nuas e sombras escuras, com uma única janela estreita. Viu uma arca que lhe pertencia, uma pilha desarrumada de suas roupas, e sua armadura desgastada. Este não é o meu quarto, compreendeu. Nem sequer é a Torre da Mão. Alguém o mudara. Seu grito de raiva soou como um gemido abafado. Mudaram-me para cá para morrer, pensou enquanto desistia da luta e voltava a fechar os olhos. O quarto estava úmido e frio, e ele ardia. Sonhou com um lugar melhor, uma pequena e aconchegante casa perto do mar do poente. As paredes eram tortas e rachadas e o chão era feito de terra batida, mas ali sentia-se sempre quente, mesmo quando deixavam o fogo da lareira extinguir-se. Ela costumava caçoar de mim por causa disso, recordou. Eu nunca me lembrava de alimentar o fogo, isso sempre tinha sido tarefa de um criado."Não temos criados", lembrava-me ela, e eu dizia:"Tem a mim, eu sou seu criado", e ela dizia: "Um criado preguiçoso. O que fazem com os criados preguiçosos em Rochedo Casterly, senhor?", e eu lhe dizia: "Beijam-nos". Isso sempre a fazia rir."Não fazem nada disso. Aposto que os espancam", ela dizia, mas eu insistia: "Não, beijam-nos, exatamente assim", e mostrava-lhe como. "Beijam seus dedos primeiro, um a um, e beijam seus pulsos, sim, e na parte de dentro dos cotovelos. Depois beijam suas orelhas engraçadas, todos os nossos criados têm orelhas engraçadas. Pare de rir! E beijam suas bochechas e beijam seus narizes com o altinho que eles têm, aí, assim, assim mesmo, e beijam suas lindas testas e os cabelos e os lábios, e as... mmmm... bocas... assim..." Passavam horas beijando-se, e dias inteiros sem fazer mais nada do que ficar refestelados na cama, escutando as ondas, e tocando-se. O corpo dela era para ele uma maravilha, e ela parecia encontrar prazer no dele. E às vezes cantava para ele. Amei uma donzela linda como o verão, com luz do sol nos cabelos. - Amo você, Tyrion - sussurrava antes de irem dormir, à noite. - Amo seus lábios. Amo sua voz, e as palavras que me diz, e o modo gentil como me trata. Amo seu rosto. - Meu rosto? - Sim. Sim. Amo as suas mãos, e a maneira como me toca. O seu pau, amo seu pau, amo senti-lo dentro de mim. - Ele também a ama, senhora. - Adoro dizer seu nome. Tyrion Lannister, Combina com o meu. O Lannister não, a outra parte. Tyrion e Tysha. Tysha e Tyrion. Tyrion. Senhor Tyrion... Mentiras, pensou, tudo fingido, tudo por ouro, ela era uma puta, a puta de Jaime, o presente de Jaime, a minha senhora de mentira. O rosto dela pareceu se desvanecer, dissolvendo-se por trás de um véu de lágrimas, mas mesmo depois de ter sumido, ainda conseguia ouvir o tênue e longínquo som de sua voz, chamando seu nome.
    - ... Senhor, consegue me ouvir? Senhor? Tyrion? Senhor? Senhor? Através de uma névoa de sono de papoula, viu um rosto liso e cor-de-rosa inclinado sobre ele. Encontrava-se de volta ao quarto úmido com os reposteiros de cama rasgados, e o rosto não estava certo, não era o dela, era redondo demais, rodeado por uma barba castanha. - Sente sede, senhor? Tenho o seu leite, o seu bom leite. Não deve lutar, não, não tente se mover, precisa de seu descanso - tinha o funil de cobre numa mão úmida e cor-de-rosa e um frasco na outra. Quando o homem se inclinou para mais perto, os dedos de Tyrion enfiaram-se sob a sua corrente de muitos metais, agarraram-na, e puxaram. O meistre deixou o frasco cair, derramando leite de papoula por toda a manta. Tyrion torceu até ver os elos enterrarem-se na pele do gordo pescoço do homem. - Mais. Não - coaxou, com uma voz tão rouca que nem teve certeza de ter falado. Mas parecia que sim, pois o meistre respondeu com uma voz estrangulada. - Largue-me, por favor, senhor... precisa do seu leite, a dor... a corrente, não, largue, não... O rosto cor-de-rosa estava começando a ficar roxo quando Tyrion largou o homem. O meistre recuou, sugando ar. Sua garganta enrubescida ostentava profundas estrias brancas nos locais que os elos tinham pressionado. Os olhos dele também estavam brancos. Tyrion levou uma mão até o rosto e fez um gesto de rasgar sobre a máscara endurecida. E outra vez. E outra. - O senhor... quer as ataduras tiradas, é isso? - o meistre disse por fim. - Mas eu não devo... isso seria... seria muito insensato, senhor. Ainda não está curado, a rainha ficaria... A menção à irmã fez Tyrion rosnar. Então é um dos seus? Apontou um dedo ao meistre e depois enrolou a mão num punho, esmagando, sufocando, uma promessa, a menos que o palerma fizesse o que lhe pedia. Felizmente, ele compreendeu. - Eu... farei o que o senhor ordena, com certeza, mas... isso é insensato, os seus ferimentos... - Faça. Isso - daquela vez sua voz soou mais alto. Com uma reverência, o homem saiu do quarto, retornando poucos momentos depois com uma longa faca com uma esguia lâmina serrilhada, uma bacia de água, uma pilha de panos macios, e vários frascos. A essa altura Tyrion já conseguira puxar-se para trás alguns centímetros, e estava meio sentado, apoiado no travesseiro. O meistre pediu-lhe para ficar muito quieto enquanto enfiava a ponta da faca sob seu queixo, por baixo da máscara. Um deslize de mão aqui, e Cersei vai se ver livre de mim, pensou. Sentia a lâmina cortando o linho endurecido, centímetros acima de sua garganta. Felizmente aquele homem mole e cor-de-rosa não era uma das mais corajosas criaturas da irmã. Um momento mais tarde, sentiu o ar frio no rosto. Também havia dor, mas fez o melhor que pôde para ignorá-la. O meistre jogou as ataduras fora, ainda endurecidas pela poção. - Fique quieto agora, tenho de lavar o ferimento - o toque dele era suave, a água, morna e calmante. O ferimento, pensou Tyrion, relembrando um súbito relâmpago de prata brilhante que tinha parecido passar bem por baixo dos olhos. - E provável que isso arda um pouco - preveniu o meistre enquanto umedecia um pano com vinho que cheirava a ervas esmagadas. Fez mais do que arder. Traçou uma linha de fogo ao longo de todo o rosto de Tyrion, e retorceu um atiçador em brasa por seu nariz acima. Seus dedos engalfinharam-se nos lençóis e prendeu a respiração, mas de algum modo conseguiu não gritar. O meistre cacarejava como uma galinha velha. - Teria sido mais sensato deixar a máscara no lugar até a pele estar unida, senhor. Mesmo assim, o ferimento parece limpo, ótimo, ótimo. Quando o encontramos no porão, entre os mortos e os moribundos, estava com os ferimentos imundos. Uma das costelas quebrada, sem dúvida pode senti-la, talvez por causa do golpe de alguma maça, ou de uma queda, é difícil dizer. E tinha uma flecha espetada no braço, aí onde se une ao ombro. Esse ferimento mostrava sinais de gangrena, e durante algum tempo temi que pudesse perder o braço, mas nós o tratamos com vinho fervente e larvas, e agora parece estar sarando bem... - Nome - Tyrion disse num sopro. - Nome, O meistre pestanejou: - Ora, é Tyrion Lannister, senhor. Irmão da rainha. Lembra-se da batalha? As vezes, por causa de ferimentos na cabeça... - Seu nome - sentia a garganta arranhada, e a língua esquecera-se de como dar forma às palavras. - Eu sou o Meistre Ballabar. - Ballabar - repetiu Tyrion. - Traga. Espelho. - Senhor - o meistre hesitou - , eu não o aconselho... isso poderia ser, ah, insensato, por assim dizer... o seu ferimento... - Traga-o - teve de repetir. Sentia a boca presa e dolorida, como se um murro tivesse cortado seu lábio. - E bebida. Vinho. Papoula não. O meistre levantou-se, corado, e correu para fora. Regressou com um jarro de vinho ambarino e um pequeno espelho prateado com uma ornamentada moldura dourada. Sentando-se à beira da cama, colocou vinho na taça até a metade e encostou-a aos lábios inchados de Tyrion. O fio de líquido desceu fresco, embora Tyrion quase não conseguisse saboreá-lo. - Mais - disse quando a taça ficou vazia, Meistre Ballabar voltou a enchê-la. Quando terminou de beber a segunda taça, Tyrion Lannister sentiu-se suficientemente forte para encarar seu rosto. Virou o espelho e ficou sem saber se ria ou chorava. O golpe era longo e retorcido, começando logo abaixo do olho esquerdo e terminando no lado direito do maxilar. Três quartos do seu nariz tinham desaparecido, bem como um pedaço do lábio. Alguém havia costurado a carne rasgada com tripa de gato, e os pontos desajeitados ainda estavam postos por cima da linha de carne viva, vermelha e parcialmente sarada. - Lindo - coaxou, atirando o espelho para o lado. Agora lembrava-se. A ponte de barcos, Sor Mandon Moore, uma mão, uma espada que vinha contra seu rosto. Se eu não tivesse recuado, aquele golpe teria arrancado o topo da minha cabeça. Jaime sempre dissera que Sor Mandon era o mais perigoso dos homens da Guarda Real, porque seus olhos mortos e vazios não davam nenhuma pista de suas intenções, Nunca devia ter confiado em nenhum deles. Sabia que Sor Meryn e Sor Boros pertenciam à irmã, e mais tarde Sor Osmund, mas permitira-se acreditar que os outros não tinham sido completamente perdidos pela honra. Cersei deve lhe ter pago para se assegurar de que eu nunca voltaria da batalha. Por que outro motivo teria feito aquilo? Nunca fiz a Sor Mandon nenhum mal, que eu saiba, Tyrion tocou o rosto, puxando a carne esponjosa com dedos grossos e desastrados. Outro presente de minha querida irmã. O meistre estava em pé ao lado da cama, como um ganso prestes a levantar voo. - Senhor, aí, aí ficará provavelmente uma cicatriz. - Provavelmente? - sua fungadela de riso transformou-se numa crispação de dor. Haveria uma cicatriz, com toda certeza. E também não era provável que seu nariz voltasse a crescer em tempo algum. Não que seu rosto alguma vez tivesse sido digno de ser olhado. - Ensine-me... a não... brincar com... machados - sentiu o sorriso apertado. - Onde... estamos? Que... que lugar? - doía-lhe falar, mas Tyrion tinha estado demasiado tempo em silêncio. - Ah, está na Fortaleza de Maegor, senhor. Um aposento acima do Salão de Baile da Rainha. Sua Graça queria tê-lo por perto, para que pudesse vigiá-lo pessoalmente. Aposto que sim. - Leve-me de volta - ordenou Tyrion. - Minha cama. Meus aposentos - onde terei os meus homens à minha volta, e também meu meistre, se conseguir encontrar algum em quem possa confiar. - Os seus... senhor, isso não será possível. A Mão do Rei instalou-se em seus antigos aposentos. - Eu... SOM... Mão do Rei - estava ficando exausto do esforço para falar, e confuso pelo que estava ouvindo. Meistre Ballabar pareceu desolado. - Não, senhor, eu... você foi ferido, esteve perto da morte. O senhor seu pai assume agora esses deveres. Lorde Tywin, ele... - Aqui? - Desde a noite da batalha. Lorde Tywin salvou-nos a todos. O povo diz que foi o fantasma do Rei Renly, mas homens mais sensatos sabem quem foi. Foi seu pai e Lorde Tyrell, com o Cavaleiro das Flores e Lorde Mindinho. Avançaram através das cinzas e apanharam o usurpador Stannis pela retaguarda. Foi uma grande vitória, e agora Lorde Tywin instalou-se na Torre da Mão a fim de ajudar Sua Graça a colocar o reino nos eixos, graças aos deuses. - Graças aos deuses - Tyrion repetiu em voz surda, O maldito do pai e o maldito do Mindinho e o fantasma de Renly? - Quero... - o que eu quero? Não podia dizer ao rosado Ballabar para ir lhe buscar Shae. Quem podia mandar buscar, em quem podia confiar? Varys? Bronn? Sor Jacelyn? Meu escudeiro, concluiu. - Pod Payne - era Pod quem estava na ponte de barcos, o rapaz salvou minha vida, - O garoto? O garoto estranho? - Garoto estranho. Podrick. Payne. Vá. Traga-o. - As suas ordens, senhor - Meistre Ballabar inclinou a cabeça e apressou-se a sair. Tyrion conseguia sentir as forças desaparecendo enquanto esperava. Perguntou a si mesmo quanto tempo teria passado ali, dormindo. Cersei gostaria de me ver dormindo para sempre, mas não serei assim tão prestativo. Podrick Payne entrou no quarto tão tímido como um rato. - Senhor? - arrastou-se para perto da cama. Como é possível que um garoto tão ousado em batalha se mostre tão assustado num quarto de doente?, perguntou-se Tyrion. - Pretendia ficar com o senhor, mas o meistre mandou-me embora. - Mande-o embora. Escute-me. Falar é difícil. Preciso de vinho dos sonhos. Vinho dos sonhos, não leite da papoula. Vá até Frenken. Frenken, não Ballabar. Observe-o fazendo o vinho. Traga-o aqui - Pod lançou um olhar furtivo ao rosto de Tyrion, e no mesmo instante desviou os olhos. Bem, não posso culpá-lo por isso. - Quero - prosseguiu Tyrion - os meus. Guardas. Bronn. Onde está Bronn? - Fizeram dele um cavaleiro. Até franzir a testa doía. - Procure-o. Traga-o aqui. - Às suas ordens Senhor. Bronn. Tyrion pegou no pulso do rapaz: - Sor Mandon? Podrick estremeceu: - Eu n-não queria m-m-m-m... - Morto? Tem certeza? Morto? Ele mexeu os pés, acanhado: - Afogado.
    - Ótimo. Nada diga. Dele. De mim. Nada de nada. Nada. Quando o escudeiro saiu, as últimas forças de Tyrion tinham também desaparecido. Deixou-se cair e fechou os olhos. Talvez voltasse a sonhar com Tysha. Pergunto-me o que ela acharia do meu rosto agora, pensou amargamente. Jon Quando Qhorin Meia-Mão lhe disse para ir à procura de vegetação rasteira para uma fogueira, Jon soube que o fim estava próximo. Será bom voltar a me sentir quente, mesmo que seja por pouco tempo, disse a si mesmo enquanto cortava galhos nus do tronco de uma árvore morta. Fantasma sentou-se sobre os quartos traseiros, observando, silencioso como sempre. Será que ele uivará por mim quando eu morrer, como o lobo de Bran uivou quando ele caiu?, interrogou-se Jon. Cão Felpudo uivará, lá longe em Winterfell e Vento Cinzento, e Nymeria, onde quer que estejam? A lua subia por trás de uma montanha e o sol baixava por trás de outra quando Jon fez saltar centelhas da pederneira e do punhal, até, por fim, conseguir um fiapo de fumaça. Qhorin aproximou-se e parou em pé ao lado dele quando a primeira chama se ergueu, tremeluzente, das aparas de casca de árvore e agulhas de pinheiro mortas e secas que reunira. - Tímida como uma donzela em sua noite de núpcias - disse o grande patrulheiro numa voz suave - , e quase tão bela. Às vezes, um homem se esquece de como uma chama pode ser bonita. Ele não era um homem de quem se esperasse que falasse de donzelas e noites de núpcias. Até onde Jon sabia, Qhorin tinha passado toda sua vida na Patrulha, Terá ele alguma vez amado uma donzela ou se casado? Não podia perguntar. Em vez disso, atiçou o fogo. Quando a fogueira começou a crepitar, descalçou as luvas rígidas para aquecer as mãos, e suspirou, perguntando a si mesmo se um beijo alguma vez tinha tido um sabor tão bom. O calor espalhou-se por seus dedos como manteiga derretendo. Meia-Mão largou-se no chão e se instalou de pernas cruzadas junto à fogueira, com a luz tremeluzente brincando nos planos duros de seu rosto. Dos cinco patrulheiros que tinham fugido do Passo dos Guinchos só restavam eles, os dois na vastidão selvagem azul-acinzentada das Presas de Gelo. A princípio, Jon acalentara a esperança de que o Escudeiro Dalbridge conseguisse manter os selvagens engarrafados no passo. Mas quando ouviram o chamado de um berrante distante, todos souberam que o escudeiro tinha caído. Mais tarde viram a águia voando ao fim da tarde, apoiada em grandes asas azuis-acinzentadas, e Cobra das Pedras pegou o arco, mas a ave voou para fora de seu alcance antes mesmo que conseguisse prender a corda. Ebben escarrou e resmungou sombriamente acerca de wargs e troca-peles. Vislumbraram a águia outras duas vezes no dia seguinte, e ouviram o berrante atrás deles ecoando nas montanhas. A cada vez que soava parecia um pouco mais sonoro, um pouco mais próximo. Quando a noite caiu, Meia-Mão disse a Ebben para levar o garrano do escudeiro e o seu e cavalgar a toda pressa para leste em busca de Mormont, pelo caminho por onde tinham vindo. Os outros despistariam os perseguidores. - Envie Jon - sugerira Ebben. - Ele cavalga tão depressa como eu. - Jon tem um papel diferente a desempenhar. - Ele ainda é meio criança. - Não - Qhorin dissera ele é um homem da Patrulha da Noite. Quando a lua nasceu, Ebben separou-se deles. Cobra das Pedras seguiu para leste com ele durante algum tempo, e depois voltou pelo mesmo caminho para apagar o rastro, e os três que restaram partiram para sudoeste. Depois disso, os dias e as noites tornaram-se indistintos. Dormiam nas selas e paravam apenas o tempo suficiente para alimentar e dar de beber aos garranos, após o que voltavam a montar. Avançavam sobre rocha nua, através de sombrias florestas de pinho e acumulações de neve antiga, sobre cumeadas geladas e cruzando rios rasos que não tinham nome. Às vezes, Qhorin ou Cobra das Pedras voltavam para obscurecer os rastros, mas era um gesto fútil. Eram vigiados. A cada alvorada e a cada ocaso viam a águia pairando entre os picos, não mais do que um ponto na vastidão do céu. Escalavam uma pequena cumeada entre dois picos cobertos de neve quando um gato-das-sombras saltou rosnando de sua toca, a menos de dez metros deles. A fera estava esquálida e meio morta de fome, mas vê-la deixou a égua do Cobra das Pedras em pânico; empinou-se e fugiu, e antes que o patrulheiro conseguisse voltar a controlá-la, ela tinha tropeçado na íngreme encosta e quebrado uma perna. Fantasma alimentou-se bem naquele dia, e Qhorin insistiu que os patrulheiros misturassem um pouco do sangue do garrano em seus mingaus de aveia para lhes dar forças. O sabor daquele horrível mingau quase sufocou Jon, mas forçou-se a engoli-lo. Cortaram uma dúzia de fatias de carne crua e fibrosa cada um, para irem mascando pelo caminho, e deixaram o resto para os gatos-das-sombras. Não era uma possibilidade dois homens montarem num só cavalo. Cobra das Pedras ofereceu-se para ficar à espera dos perseguidores e surpreendê-los quando chegassem. Talvez conseguisse levar alguns consigo para o inferno. Qhorin recusou.
    - Se algum homem na Patrulha da Noite consegue atravessar as Presas de Gelo sozinho e a pé é você, irmão. Pode subir montanhas que um cavalo tem de rodear. Dirija-se ao Punho. Diga a Mormont o que Jon viu, e como. Diga-lhe que os antigos poderes estão despertando, que enfrenta gigantes, wargs e coisas piores. Diga-lhe que as árvores têm de novo olhos. Ele não tem nenhuma chance, pensou Jon enquanto observava Cobra das Pedras desaparecer sobre uma cumeada coberta de neve, um minúsculo bicho preto rastejando por uma vastidão enrugada e branca. Depois disso, cada noite pareceu mais fria do que a anterior, e também mais solitária. Fantasma nem sempre seguia com eles, mas também nunca estava longe. Mesmo quando separados, Jon sentia sua proximidade. Estava contente por isso, Meia-Mão não era o mais sociável dos homens. A longa trança grisalha de Qhorin balançava lentamente com os movimentos do cavalo. Era freqüente avançarem durante horas sem que uma palavra fosse proferida, ouvindo-se apenas o suave raspar de ferraduras em pedra e o lamento fúnebre do vento, que soprava continuamente pelas alturas. Quando dormia, não sonhava; nem com lobos, nem com os irmãos, nem com nada. Nem os sonhos conseguem viver aqui, dizia a si mesmo. - Sua espada está afiada, Jon Snow? - perguntou Qhorin Meia-Mão por sobre o fogo tremeluzente. - Minha espada é de aço valiriano. Foi o Velho Urso quem me deu. - Lembra-se das palavras do seu juramento? - Sim - não eram palavras de que um homem se esquecesse facilmente. Uma vez proferidas, nunca poderiam ser desditas. Mudava-lhes a vida para sempre. - Volte a dizê-las comigo, Jon Snow. - Se é isso o que quer - suas vozes juntaram-se numa só, sob a lua nascente, enquanto Fantasma escutava e as próprias montanhas serviam de testemunha. - A noite chega, e agora começa a minha vigia. Não terminará até a minha morte. Não tomarei esposa, não possuirei terras, não gerarei filhos. Não usarei coroas e não conquistarei glórias. Viverei e morrerei no meu posto. Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que defende os reinos dos homens. Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da Noite, por esta noite e por todas as noites que estão para vir. Quando terminaram, não se ouviu nenhum som além do tênue crepitar das chamas e de um distante suspiro de vento. Jon abriu e fechou seus dedos queimados, agartando-se bem às palavras em sua mente, rezando para que os deuses do pai lhe dessem forças para morrer com bravura quando sua hora chegasse. Agora não faltaria muito tempo. Os garranos estavam perto do fim de suas forças. Jon suspeitava que a montaria de Qhorin não duraria mais um dia. As chamas já ardiam pouco a essa altura, o calor atenuava-se. - A fogueira irá se apagar em breve - Qhorin disse - , mas se a Muralha alguma vez cair, todas as fogueiras se apagarão. Nada havia que Jon pudesse responder àquilo. Apenas anuiu com a cabeça. - Ainda poderemos escapar deles - disse o patrulheiro. - Ou não. - Não tenho medo de morrer - era só meia mentira. - Pode não ser tão fácil assim, Jon. Não compreendeu. - O que você quer dizer? - Se formos capturados, tem de se render. - Render-me? - Jon pestanejou, incrédulo. Os selvagens não faziam prisioneiros entre os homens que chamavam de corvos. Matavam-nos, a menos que... - Eles só poupam perjuros àqueles que se juntam a eles, como Mance Rayder. - E como você. - Não - sacudiu a cabeça. - Nunca. Não farei isso. - Fará. Eu ordeno que faça isso. - Ordenai Mas... - Nossa honra não tem mais significado do que nossa vida, desde que o reino fique em segurança. E um homem da Patrulha da Noite? - Sim, mas... - Não há mas nem meio mas, Jon Snow. Ou é ou não é. Jon endireitou as costas. - Sou. - Então, escute-me. Se formos capturados, passará para o lado deles, como a garota selvagem que capturou aquela vez sugeriu. Podem exigir que faça o manto em tiras, que lhes preste um juramento sobre a tumba do seu pai, que amaldiçoe os irmãos e o Senhor Comandante. Não pode se recusar, seja o que for que lhe seja solicitado. Faça o que lhe pedirem... Mas, no seu âmago, lembre-se sempre de quem e do que é. Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles, durante o tempo que for preciso. E observe, - O quê? - Jon quis saber. - Bem que gostaria de saber - Qhorin respondeu. - Seu lobo viu aquelas escavações no vale do Guadeleite. O que procuravam eles, num lugar tão ermo e distante? Terão encontrado? E isso que tem de investigar, antes de voltar para junto de Lorde Mormont e de seus irmãos. É este o dever que deposito em você, Jon Snow. - Farei como diz - disse Jon com relutância. - Mas... você vai lhes dizer, não é verdade? Pelo menos ao Velho Urso? Vai lhe dizer que nunca quebrei meus votos. Qhorin Meia-Mão fitou-o por sobre o fogo, com os olhos perdidos em lagoas de sombras.
    - Quando voltar a vê-lo. Juro - indicou a fogueira com um gesto. - Mais madeira. Quero-a luminosa e quente. Jon foi cortar mais galhos, partindo cada um em dois antes de atirá-lo às chamas. A árvore estava morta havia muito tempo, mas parecia voltar à vida no fogo, despertando dançarinas ardentes em cada bocado de madeira que rodopiava e volteava em seus brilhantes vestidos em tons de amarelo, vermelho e laranja. - Basta - Qhorin disse abruptamente. - Agora cavalgamos. - Cavalgamos? - estava escuro para lá do fogo, e a noite estava fria. - Cavalgamos para onde? - Para trás - Qhorin montou uma vez mais seu fatigado garrano. - A fogueira vai fazê-los passar por nós, espero eu. Venha, irmão. Jon voltou a calçar as luvas e subiu o capuz. Até os cavalos pareciam relutantes em abandonar a fogueira. O sol tinha desaparecido havia muito, e só restava o frio brilho prateado da meia-lua para iluminar o caminho pelo terreno traiçoeiro que se estendia atrás deles. Não sabia o que Qhorin tinha em mente, mas talvez fosse uma chance. Esperava que sim. Não quero fazer papel de perjuro, mesmo que tenha bons motivos. Avançaram com cautela, deslocando-se tão silenciosamente como homens e cavalos eram capazes, voltando a seguir seus passos até chegarem à desembocadura de um estreito desfiladeiro onde um pequeno riacho gelado emergia entre duas montanhas. Jon lembrou-se do lugar. Tinham dado água aos cavalos ali antes de o sol se pôr. - A água está congelando - Qhorin observou enquanto virava para o lado. - Se não fosse isso, seguiríamos pelo leito do riacho. Mas se quebrarmos o gelo, eles devem reparar. Mantenha-se perto dos penhascos. Meia milha adiante há uma curva que nos esconderá - o homem disse e entrou no desfiladeiro. Jon lançou um último olhar melancólico à fogueira distante e o seguiu. Quanto mais avançavam, mais as escarpas se apertavam de ambos os lados. Seguiram o fio de água iluminado pelo luar na direção da nascente. Pingentes cobriam as margens pedregosas, mas Jon ainda ouvia o som da água corrente sob a fina crosta sólida. Uma grande confusão de rochas caídas bloqueou o caminho deles a meia subida, onde uma seção do penhasco tinha tombado, mas os pequenos garranos de patas seguras foram capazes de escolher um percurso através dela. Adiante, as faces dos penhascos apertavam-se vivamente e o riacho os levou à base de uma alta e tortuosa queda dagua. O ar estava cheio de névoa, como se fosse o hálito de um imenso animal frio. As águas que caíam brilhavam, prateadas, ao luar. Jon olhou em volta, consternado. Não há saída, Ele e Qhorin talvez conseguissem subir os penhascos, mas não com os cavalos. Não lhe parecia que durassem muito tempo apeados. - Agora, depressa - ordenou Meia-Mão. O grande homem montado no pequeno cavalo avançou por cima das pedras escorregadias de gelo, em direção à cortina de água, e desapareceu. Quando não reapareceu, Jon esporeou o cavalo e foi atrás dele. Seu garrano fez o possível para não avançar. A água que caía esbofeteou-os com punhos gelados, e o choque do frio pareceu interromper a respiração de Jon. E então viu-se do outro lado; ensopado e tremendo, mas do outro lado. A fenda na rocha quase não era suficiente para que homem e cavalo passassem, mas adiante as paredes abriam-se e o solo tornava-se arenoso. Jon sentiu a água congelando em sua barba. Fantasma irrompeu através da queda dagua numa pressa feroz, sacudiu gotículas do pelo, farejou desconfiadamente a escuridão, e depois ergueu uma pata contra uma parede de rocha. Qhorin já tinha desmontado, Jon fez o mesmo. - Sabia que este lugar estava aqui? - Quando não era mais velho do que você, ouvi um irmão contar como tinha seguido um gato-das-sombras através desta cascata - tirou a sela do cavalo, depois o freio e os arreios, e passou os dedos pela crina hirsuta. - Há um caminho através do coração da montanha. Quando chegar a alvorada, se eles não tiverem nos encontrado, avançamos. O primeiro turno é meu, irmão Qhorin sentou-se na areia, de costas apoiadas na parede, não mais do que uma vaga forma negra na escuridão da gruta. Sobre o estrondo da água caindo, Jon ouviu o som suave do aço roçando em couro, que só podia querer dizer que Meia-Mão tinha desembainhado a espada. Jon tirou o manto molhado, mas o ar ali estava demasiado úmido e frio para se despir mais. Fantasma espreguiçou-se a seu lado e lambeu sua luva antes de se enrolar para dormir. Jon sentiu-se contente pelo calor do animal. Perguntou a si mesmo se a fogueira ainda arderia lá fora, ou se já teria se apagado. Se a Muralha alguma vez cair, todas as fogueiras se apagarão, A luz brilhava através da cortina de água que caía e criava uma faixa pálida e tremeluzente na areia, mas algum tempo depois também isso se desvaneceu e escureceu. O sono chegou, por fim, e com ele vieram pesadelos. Sonhou com castelos ardendo e mortos erguendo-se, desassossegados, das sepulturas. Ainda estava escuro quando Qhorin o acordou. Enquanto Meia-Mão dormia, Jon ficou sentado com as costas apoiadas na parede da caverna, escutando a água e esperando a alvorada. Ao romper do dia, roeram um pedaço meio congelado de carne de cavalo cada um, após o que voltaram a selar os garranos, e prenderam os mantos negros em volta dos ombros. Durante seu turno, Meia-Mão tinha feito meia dúzia de tochas, empapando fardos de musgo seco com o óleo que transportava no alforje. Agora, acendia o primeiro e indicava o caminho pela escuridão, segurando a pálida chama à sua frente. Jon seguiu-o com os cavalos. O caminho pedregoso torcia-se em curvas, primeiro descia, depois subia, e depois voltava a descer com maior inclinação. Em certos lugares estreitava-se tanto, que era difícil convencer os garranos de que conseguiriam se espremer através da abertura. Quando sairmos, teremos despistado os selvagens, Jon disse a si mesmo à medida que avançavam, Nem uma águia consegue ver através de rocha sólida. Vamos tê-los despistado, cavalgaremos duramente na direção do Punho, e contaremos ao Velho Urso tudo o que sabemos. Mas, quando voltaram a emergir à luz, horas mais tarde, a águia estava à espera deles, empoleirada numa árvore morta, trinta metros acima. Fantasma subiu os rochedos aos saltos atrás dela, mas a ave bateu as asas e levantou voo. A boca de Qhorin apertou-se ao seguir o voo com os olhos. - Este é um lugar tão bom quanto outro qualquer para enfrentar o inimigo - declarou, - A saída da caverna defende-nos de cima, e não podem ficar atrás de nós sem atravessarem a montanha. Sua espada está afiada, Jon Snow? - Sim - ele respondeu. - Vamos alimentar os cavalos. Serviram-nos com bravura, pobres animais. Jon deu ao garrano o resto da aveia e afagou sua crina hirsuta, enquanto Fantasma passeava inquieto por entre as rochas. Calçou melhor as luvas e exercitou os dedos queimados. Sou o escudo que defende os reinos dos homens. Um berrante ecoou pelas montanhas, e, um momento mais tarde, Jon ouviu os latidos de cães. - Estarão aqui em breve - anunciou Qhorin. - Mantenha o lobo sob controle. - Fantasma, aqui - Jon chamou. O lobo gigante voltou relutantemente para junto dele, com a cauda erguida rigidamente atrás de si. Os selvagens surgiram por sobre uma crista a menos de um quilômetro dali. Os cães de caça corriam à sua frente, animais cinza-amarronzados que não paravam de rosnar, com mais do que um pouco de lobo no sangue. - Quieto - Jon murmurou. - Fica - por cima de sua cabeça, ouviu o rumor de asas. A águia pousou num afloramento rochoso e soltou um grito de triunfo. Os caçadores aproximaram-se cuidadosamente, talvez por temerem flechas. Jon contou catorze, com oito cães. Seus grandes escudos redondos eram feitos de peles esticadas por cima de vime trançado e pintadas com crânios. Cerca da metade escondia os rostos atrás de elmos grosseiros de madeira e couro fervido. Em ambas as alas, arqueiros encaixaram flechas nas cordas de pequenos arcos de madeira e chifre, mas não dispararam. Os outros pareciam estar armados com lanças e marretas. Um deles trazia um machado de pedra lascada. Usavam apenas os pedaços de armadura que tinham pilhado de patrulheiros mortos ou roubado durante ataques. Os selvagens não mineravam nem fundiam minério, e havia poucos ferreiros e ainda menos forjas a norte da Muralha. Qhorin desembainhou a espada. A história sobre como tinha treinado para lutar com a mão esquerda depois de perder metade da direita fazia parte de sua lenda; dizia-se que, agora, manejava melhor uma lâmina do que alguma vez manejara antes de ficar mutilado. Jon colocou-se ao lado do grande patrulheiro, ombro com ombro, e tirou Garralonga da bainha. Apesar do frio do ar, suor caía sobre seus olhos. Os caçadores pararam dez metros abaixo da abertura da caverna. O chefe aproximou-se sozinho, montando um animal que se parecia mais com uma cabra do que com um cavalo pela maneira segura como escalava a encosta irregular. Enquanto homem e montaria se aproximavam, Jon ouvia-os chocalhar; ambos traziam armaduras feitas de ossos. Ossos de corvos, ovelhas, cabras, auroques e alces, os grandes ossos dos mamutes peludos... e também ossos humanos. - Camisa de Chocalho - chamou Qhorin para baixo, gelidamente educado. - Para corvos, sou o Senhor dos Ossos - o elmo do cavaleiro tinha sido feito do crânio quebrado de um gigante, e garras de urso tinham sido costuradas ao couro fervido ao longo dos braços. Qhorin fungou: - Não vejo senhor nenhum. Só um cão vestido de ossos de galinha, que chocalha quando monta a cavalo. O selvagem silvou de fúria, e a montaria empinou-se. Ele realmente chocalhava, Jon ouvia-o; os ossos estavam unidos de forma folgada, e batiam uns nos outros ruidosamente quando se movia. - São seus ossos que vão chocalhar em breve, Meia-Mão. Vou arrancar a carne de seus ossos com uma fervura e fazer uma camisa de suas costelas. Vou esculpir seus dentes para lançar runas, e comer mingau de aveia no seu crânio. - Se quer meus ossos, venha buscá-los. Mas, isso, o Camisa de Chocalho parecia relutante em fazer. A vantagem numérica pouco queria dizer no confinamento dos rochedos em que os irmãos negros tinham se posicionado; para arrancá-los de dentro da gruta, os selvagens teriam de atacar dois a dois. Mas outro membro da companhia de selvagens veio a cavalo até junto do Camisa de Chocalho, uma das guerreiras que chamavam de esposas de lanças. - Somos catorze contra dois, corvos, e oito cães para o seu lobo - gritou. - Lutando ou fugindo, serão nossos. - Mostre-lhes - ordenou Camisa de Chocalho. A mulher enfiou a mão num saco manchado de sangue e tirou de lá um troféu. Ebben era calvo como um ovo, por isso ela segurou a cabeça por uma orelha. - Morreu bravamente - ela disse. - Mas morreu - disse o Camisa de Chocalho - , tal como vocês - libertou o machado de guerra, brandindo-o por cima da cabeça. Era de bom aço, com uma cintilação maligna em ambas as lâminas; Ebben nunca fora homem de negligenciar suas armas. Os outros selvagens avançaram a seu lado, gritando provocações. Alguns escolheram Jon como alvo de sua troça. - Esse lobo é seu, rapaz? - gritou uma jovem magricela, preparando um malho de pedra.
    - Vai ser o meu manto antes do pôr do sol - do outro lado da fileira, outra esposa de lanças abriu suas peles esfarrapadas para mostrar a Jon os seios pesados e brancos. - O bebê quer a mamãe? Anda, chupa isto aqui, rapaz - os cães também ladravam. - Eles querem nos envergonhar até cometermos uma loucura - Qhorin deu a Jon um olhar forte, - Lembre-se de suas ordens. - Talvez tenhamos de tirar os corvos da toca - berrou Camisa de Chocalho por sobre o clamor. - Depene-os! - Não! - a palavra jorrou dos lábios de Jon antes que os arqueiros pudessem disparar. Deu dois rápidos passos em frente: - Rendemo-nos! - Preveniram-me de que o sangue de bastardo era covarde - ouviu Qhorin Meia-Mão dizer friamente atrás dele. - Vejo que é verdade. Corre para os seus novos mestres, covarde. Corando, Jon desceu a vertente até onde Camisa de Chocalho se encontrava montado. O selvagem fitou-o através dos buracos para os olhos que tinha no elmo e disse: - O povo livre não tem préstimo para covardes. - Ele não é nenhum covarde - uma das arqueiras tirou seu elmo de pele de ovelha cosida e sacudiu uma cabeça cheia de hirsutos cabelos ruivos. - Este é o bastardo de Winterfell que me poupou. Deixe-o viver. Jon olhou Ygritte nos olhos e ficou sem palavras. - Que morra - insistiu o Senhor dos Ossos. - A gralha preta é um pássaro cheio de truques. Não confio nele. Num rochedo acima deles, a águia bateu as asas e fendeu o ar com um grito de fúria. - A ave odeia você, Jon Snow - Ygritte disse. - E com boas razões. Era um homem antes de tê-lo matado. - Eu não sabia - Jon respondeu com sinceridade, tentando se lembrar do rosto do homem que tinha matado no passo. - Disse-me que Mance me acolheria. - E vai acolher - Ygritte assentiu. - Mance não está aqui - rugiu Camisa de Chocalho. - Ragwyle, estripe-o. A grande esposa das lanças estreitou os olhos e disse: - Se o corvo quiser se juntar ao povo livre, que mostre sua perícia e prove que é sincero. - Farei o que quer que me peçam - as palavras custaram a vir, mas Jon as proferiu. A armadura de ossos do Camisa de Chocalho ruidosamente chocalhou enquanto ele ria: - Então, mate o Meia-Mão, bastardo. - Como se fosse capaz - Qhorin parecia desafiá-lo. - Vire-se, Snow, e morra. Então, a espada de Qhorin caía sobre ele e de algum modo Garralonga saltou para pará-la. A força do impacto quase arrancou a espada bastarda da mão de Jon, e fê-lo cambalear para trás. Não pode se recusar, seja o que for que lhe seja solicitado. Segurou a espada com as duas mãos, com rapidez suficiente para dar um golpe, mas o grande patrulheiro o desviou com uma desdenhosa facilidade. Andaram para trás e para a frente, com os mantos negros rodopiando, a rapidez do jovem contra a força selvagem dos golpes da mão esquerda de Qhorin. A espada do Meia-Mão parecia estar em todos os lados ao mesmo tempo, chovendo sobre ele vinda de um lado e logo do outro, empurrando-o para onde queria, mantendo-o desequilibrado. Jon já sentia os braços ficando dormentes. Mesmo quando os dentes do Fantasma se fecharam com selvageria em volta da barriga da perna do patrulheiro, de algum modo Qhorin manteve-se de pé. Mas, nesse instante, ao virar-se, surgiu a abertura. Jon firmou-se e girou. O patrulheiro inclinava-se para fora do seu alcance, e por um instante pareceu que o golpe de Jon não o tinha tocado. Então surgiu uma cadeia de lágrimas vermelhas na garganta do grande homem, brilhantes como um colar de rubis, o sangue jorrou, e Qhorin Meia-Mão tombou. O focinho do Fantasma pingava sangue, mas só a ponta da lâmina bastarda se encontrava manchada, no último centímetro. Jon puxou o lobo gigante para longe do cadáver e ajoelhou com um braço em volta dele. A luz já se desvanecia nos olhos de Qhorin. - ... afiada - ele disse, erguendo os dedos estropiados. Então sua mão caiu, e ele partiu, Ele sabia, Jon pensou, entorpecido. Ele sabia o que me pediriam. Pensou então em Samwell Tarly, em Grenn e no Edd Doloroso, em Pyp e no Sapo, lá longe, em Castelo Negro. Teria perdido todos, teria perdido Bran, Rickon e Robb? Quem era agora? O que era? - Ponha-o em pé - mãos rudes puxaram-no. Jon não resistiu. - Tem nome? Ygritte respondeu por ele. - Chama-se Jon Snow. E do sangue de Eddard Stark, de Winterfell. Ragwyle soltou uma gargalhada. - Quem teria imaginado? Qhorin Meia-Mão morto por um filho torto de um fidalguinho qualquer. - Estripe-o - ordenou Camisa de Chocalho, ainda montado. A águia voou até ele e empoleirou-se em cima do seu elmo ossudo, guinchando. - Ele se rendeu - Ygritte lembrou-lhes. - Sim, e matou o irmão - disse um homem baixo e modesto com um meio elmo de ferro carcomido pela ferrugem. Camisa de Chocalho aproximou-se, com os ossos chocalhando. - O lobo fez o trabalho por ele. Foi feito porcamente. A morte do Meia-Mão devia ter sido minha. - Todos vimos como estava se coçando para tratar dela - zombou Ragwyle. - Ele é um troca-peles - disse o Senhor dos Ossos - , e um corvo. Não gosto dele.
    - Pode ser que seja um troca-peles - Ygritte rebateu - , mas isso nunca nos assustou - outros gritaram, concordando. Por trás dos orifícios para os olhos de seu crânio amarelecido, o olhar de Camisa de Chocalho era maligno, mas cedeu de má vontade. Esta é mesmo uma gente livre, pensou Jon. Queimaram Qhorin Meia-Mão onde tinha caído, numa pira feita de agulhas de pinheiro, vegetação rasteira e galhos quebrados. Parte da madeira ainda estava verde, e queimou de forma lenta e fumacenta, fazendo subir uma pluma negra até o brilhante azul profundo do céu. Mais tarde, Camisa de Chocalho reclamou alguns ossos carbonizados, enquanto os outros jogavam dados pelo equipamento do patrulheiro. Ygritte ganhou seu manto. - Vamos voltar pelo Passo dos Guinchos? - perguntou-lhe Jon, Não sabia se seria capaz de voltar a enfrentar essas altitudes, ou se o garrano sobreviveria a uma segunda travessia. - Não - ela respondeu. - Não há nada atrás de nós - o olhar que ela lhe lançou era triste. A essa altura Mance já desceu bastante do curso do Guadeleite, e marcha sobre a sua Muralha. Bran A s cinzas caíam como uma suave neve cinzenta. Caminhou por agulhas secas e folhas marrons, até o limite da floresta onde os pinheiros cresciam esparsos. Para lá dos campos abertos, via as grandes pilhas de pedra na forma de homens, hirtas contra o turbilhão das chamas. O vento soprava quente e enriquecido pelo cheiro de sangue e carne queimada, tão forte que começou a salivar. Mas, áo mesmo tempo que um cheiro os puxava, outros os mantinham afastados. Farejou a fumaça que pairava no ar. Homens, muitos homens, muitos cavalos, e fogo, fogo, fogo. Não havia cheiro mais perigoso, nem mesmo o cheiro duro e frio do ferro, o material das garras do homem e da pele-dura. A fumaça e as cinzas enevoavam seus olhos, e no céu viu uma grande serpente alada cujo rugido era um rio de chamas. Descobriu os dentes, mas a serpente desapareceu. Por trás das colinas, grandes incêndios comiam as estrelas. Os incêndios crepitaram ao longo de toda a noite, e a dada altura ouviu-se um grande rugido e um estrondo que fez a terra saltar sob suas patas. Cães ladraram e ganiram, e cavalos relincharam de terror. Uivos trementes perfuraram a noite; os uivos da matilha humana, gemidos de medo e gritos selvagens, risos e berros. Não havia animal mais barulhento do que o homem. Levantou as orelhas e escutou, e seu irmão rosnou a cada som que ouvia. Caminharam sob as árvores enquanto um vento cheirando a pinheiro soprava cinzas e fagulhas pelo céu. Com o tempo, as chamas começaram a se atenuar, e depois desapareceram. O sol nasceu cinzento e fumacento naquela manhã. Só então deixou as árvores, atravessando lentamente os campos. O irmão o seguia, atraído pelo cheiro do sangue e da morte. Caminharam em silêncio pelas tocas que os homens tinham construído de madeira, mato e lama. Muitas estavam queimadas, e tinham ruído, outras estavam como antes. Mas não viram ou cheiraram um homem vivo em parte alguma. Corvos cobriam os cadáveres como mantas e saltavam para o ar, gritando, quando ele e o irmão se aproximavam. Os cães selvagens escapuliam para fora de seu caminho. A sombra das grandes colinas cinzentas, um cavalo morria ruidosamente, lutando para se pôr em pé sobre uma pata quebrada e gritando quando caía. O irmão o rodeou, e então rasgou sua garganta enquanto o cavalo escoiceava debilmente e revirava os olhos. Quando se aproximou da carcaça, o irmão tentou mordê-lo e achatou as orelhas sobre o crânio, ele desferiu uma patada e mordeu sua perna. Lutaram sobre a relva, a terra e as cinzas que caíam do céu, ao lado do cavalo morto, até que o irmão rolou sobre as costas em submissão, com a cauda entre as pernas. Mais uma mordida na garganta virada para cima; e então comeu, e deixou que o irmão comesse e limpasse com a língua o sangue que manchara seus pelos negros. A essa altura, já se sentia atraído pelo lugar escuro, a casa dos sussurros onde todos os homens eram cegos. Conseguia sentir os dedos frios dessa casa em seu corpo. Seu cheiro de pedra era um sussurro que entrava por seu focinho. Lutou contra a atração. Não gostava da escuridão. Era lobo. Era caçador e matador, e seu lugar era junto dos irmãos e irmãs no âmago da floresta, correndo, livre, sob um céu estrelado. Sentou-se sobre os quartos traseiros, ergueu a cabeça e uivou. Não irei, gritou. Sou lobo, não irei, Mas, apesar disso, a escuridão aprofundou-se até cobrir seus olhos, encher seu focinho e tapar suas orelhas, e ele deixou de enxergar, cheirar, ouvir ou correr, e as colinas cinzentas desapareceram, o cavalo morto desapareceu, o irmão desapareceu, e tudo ficou preto e parado, e preto e frio, e preto e morto, e preto... - Bran - sussurrava suavemente uma voz. - Bran, volta. Volta agora, Bran. Bran,,. Fechou o terceiro olho e abriu os outros dois, os dois olhos antigos, os dois olhos cegos, No lugar escuro, todos os homens eram cegos. Mas alguém o segurava. Sentia braços à sua volta, o calor de um corpo aconchegado ao dele. Ouvia Hodor cantando "Hodor, hodor, hodor" em voz baixa, para si mesmo. - Bran? - era a voz de Meera. - Estava se debatendo, fazendo ruídos terríveis. O que viu? - Winterfell - sentia a língua estranha e grossa dentro da boca. Um dia, quando regressar, já não saberei falar. - Era Winterfell. O castelo estava coberto de chamas. Havia cheiros de cavalo e de aço e de sangue. Mataram todo mundo, Meera. Sentiu a mão dela no rosto, afagando seu cabelo para trás. - Está todo suado - a menina disse. - Precisa de uma bebida? - Uma bebida - ele concordou. Ela levou-lhe um odre aos lábios, e Bran engoliu tão depressa que a água escorreu pelo canto da sua boca. Estava sempre fraco e sedento quando voltava. E também com fome. Lembrou-se do cavalo moribundo, do sabor do sangue na boca, do cheiro da carne queimada no ar da manhã. - Quanto tempo? - Três dias - Jojen respondeu. O rapaz tinha se aproximado em pés silenciosos, ou talvez tivesse estado sempre ali; naquele mundo cego e negro, Bran não saberia dizer. - Tivemos medo por você. - Estava com Verão - Bran lembrou. - Tempo demais. Vai se matar de fome. Meera pôs um pouco de água em sua garganta, e besuntamos sua boca com mel, mas não é o suficiente. - Eu comi - Bran respondeu. - Caçamos um alce e tivemos de afastar um gato-das-árvores que tentou roubá-lo - o gato era marrom e amarelado, só com metade do tamanho dos lobos gigantes, mas feroz. Recordou-se do seu cheiro almiscarado e do modo como lhes rugira do galho do carvalho. - O lobo comeu - Jojen o corrigiu. - Você não. Tenha cuidado, Bran. Lembre-se de quem é. Lembrava-se bem demais de quem era; Bran, o garoto, Bran, o aleijado. É melhor ser Bran, o lobisomem. Seria de admirar que preferisse sonhar seus sonhos de Verão, seus sonhos de lobo? Ali, na escuridão frígida e úmida da tumba, seu terceiro olho finalmente abrira-se. Conseguia alcançar Verão sempre que quisesse, e uma vez tinha até mesmo tocado Fantasma e falado com Jon. Embora talvez tivesse apenas sonhado que o fizera. Não era capaz de compreender por que motivo Jojen estava agora sempre tentando puxá-lo para trás. Bran usou a força dos braços para se sentar, - Tenho de dizer a Osha o que vi. Ela está aqui? Onde foi? A própria selvagem respondeu: - A lugar nenhum, senhor. Já me fartei de tropeçar no escuro - Bran ouviu o raspar de um calcanhar na pedra, virou a cabeça para o som, mas não viu nada. Achou que conseguia cheirá-la, mas não tinha certeza. Todos fediam igual, e não tinha o nariz do Verão para distingui-los uns dos outros. - Ontem à noite mijei no pé de um rei - Osha continuou. - Ou de repente foi esta manhã, quem sabe? Estava dormindo, mas agora não estou - todos eles dormiam muito, não só Bran. Nada mais havia a fazer. Dormir, comer e voltar a dormir, e às vezes conversar um pouco... mas não demais, e só em murmúrios, por uma questão de segurança. Osha teria gostado mais se não falassem, mas não havia maneira de aquietar Rickon ou de impedir Hodor de murmurar incansavelmente "Hodor, hodor, hodor" para si mesmo. - Osha - Bran voltou a falar. - Vi Winterfell ardendo - à esquerda, ouvia o tênue som da respiração de Rickon. - Um sonho - Osha respondeu. - Um sonho de lobo. Também o cheirei. Nada cheira como o fogo, ou o sangue. - O sangue de quem? - De homens, cavalos, cães, todo mundo. Temos de ir ver. - Esta minha pele magricela aqui é a única que tenho - Osha retrucou. - Se aquele príncipe das lulas me apanha, arrancam-na de minhas costas com um chicote. A mão de Meera encontrou a de Bran na escuridão e apertou seus dedos. - Eu vou, se tiver medo. Bran ouviu dedos apalpando couro, seguido de som de aço batendo em pederneira. E mais uma vez. Voou uma fagulha, pegou. Osha soprou suavemente. Uma longa chama pálida despertou, esticando-se como uma menina nas pontas dos pés, O rosto de Osha flutuou por cima dela. Tocou a chama com a ponta de um archote. Bran teve de semicerrar os olhos quando o piche começou a arder, enchendo o mundo com um clarão laranja. A luz acordou Rickon, que se sentou, bocejando, Quando as sombras se moveram, pareceu por um instante que os mortos também estavam se levantando. Lyanna e Brandon, Lorde Rickard Stark, seu pai, Lorde Edwyle, pai deste, Lorde Willam e o irmão Artos, o Implacável, Lorde Donnor, Lorde Beron e Lorde Rodwell, Lorde Jonnel, com um olho só, Lorde Barth, Lorde Brandon e Lorde Cregan, que tinha lutado contra o Cavaleiro do Dragão. Sentavam-se em cadeirões de pedra com lobos de pedra aos pés. Era para lá que iam quando o calor se escoava de seu corpo; aquele era o escuro salão dos mortos, onde os vivos temiam entrar. E, junto à abertura da tumba vazia que esperava por Lorde Eddard Stark, sob seu majestoso retrato de granito, os seis fugitivos aninhavam-se em volta de seu pequeno montinho de pão, água e carne-seca. - Agora pouco resta - resmungou Osha enquanto olhava pestanejando as reservas do grupo. - Seja como for, não tarda que tenha de subir, senão ficamos reduzidos a comer o Hodor. - Hodor - disse Hodor, sorrindo para ela. - É dia ou noite lá em cima? - Osha quis saber. - Perdi a conta dessas coisas. - É dia - disse-lhe Bran - , mas está escuro por causa de toda aquela fumaça. - O senhor tem certeza? Sem mover seu corpo aleijado, projetou-se mesmo assim, e por um instante viu duas imagens. Ali estava Osha, segurando o archote, e Meera, Jojen e Hodor, e a dupla fileira de grandes pilares de granito e senhores havia muito mortos atrás deles, que se prolongavam pela escuridão adentro... Mas também lá estava Winterfell, cinza da fumaça que pairava no ar, com os enormes portões de carvalho e ferro calcinados e torcidos, a ponte levadiça caída num novelo de correntes quebradas e pranchas de madeira desaparecidas. Cadáveres boiavam no fosso, ilhas para os corvos. - Com certeza - ele declarou. Osha pensou no assunto por um momento, - Então vou arriscar uma olhadela. Quero todos logo atrás de mim. Meera, traga o cesto de Bran. - Vamos para casa? - Rickon perguntou em voz excitada. - Quero o meu cavalo. E quero bolos de maçã, manteiga e mel, e o Felpudo. Vamos para onde está o Felpudo? - Sim - Bran prometeu -, mas tem de ficar quieto. Meera atou o cesto de vime às costas de Hodor e ajudou a pôr Bran lá dentro, enfiando as pernas inúteis nos buracos. Sentia um estranho frio na barriga. Sabia o que os esperava lá em cima, mas isso não fazia o medo desaparecer. Ao partirem, Bran virou-se para dar um último olhar ao pai, e pareceu-lhe que havia uma tristeza nos olhos de Lorde Eddard, como se não quisesse que eles partissem. Temos de partir, pensou .Já é tempo. Osha levava sua longa lança de carvalho numa mão e o archote na outra. Uma espada nua pendia de suas costas, uma das últimas a ostentar a marca de Mikken, Forjara-a para a sepultura do Lorde Eddard, para deixar seu fantasma em descanso. Mas com Mikken morto e os homens de ferro de guarda no arsenal, era difícil resistir a bom aço, mesmo se implicasse assaltar uma tumba. Meera tinha ficado com a lâmina de Lorde Rickard, apesar de se queixar de seu peso. Bran ficou com a do seu homônimo, a espada feita para o tio que nunca conhecera. Sabia que não seria muito útil numa luta, mas mesmo assim sentia-se bem com a arma na mão. Mas era só um jogo, e Bran bem o sabia. Seus passos ecoaram pelas cavernosas criptas. As sombras atrás deles engoliram o pai, enquanto as que estavam à frente se retiravam para revelar outras estátuas; aqueles já não eram lordes, mas sim os antigos Reis do Norte. Na testa, ostentavam coroas de pedra. Torrhen Stark, o Rei que Ajoelhou; Edwyn, o Rei da Primavera; Theon Stark, o Lobo Faminto; Brandon, o Incendiário; e Brandon, o Construtor Naval. Jorah ejonos; Brandon, o Mau; Walton, o Rei da Lua; Edderion, o Noivo; Eyron; Benjen, o Doce; e Benjen, o Amargo; Rei Edrick Barba de Neve. Seus rostos eram severos e fortes, e alguns deles tinham feito coisas terríveis, mas todos eram Stark, e Bran conhecia todas as suas histórias. Nunca temera as criptas; eram parte do seu lar e de quem era, e sempre soube que um dia também jazeria ali. Mas agora não tinha tanta certeza. Se subir, será que algum dia voltarei a descer? Para onde irei quando morrer? - Esperem - Osha os alertou, quando chegaram à escada espiral feita em pedra, que subia até a superfície e descia para os níveis inferiores, onde reis ainda mais antigos se sentavam em seus tronos escuros. Ela entregou o archote a Meera, - Eu subo tateando - durante algum tempo ouviram o som de seus passos, que foram se tornando cada vez menos audíveis, até desaparecerem por completo. - Hodor - o gigante disse nervosamente. Bran tinha dito a si mesmo uma centena de vezes como detestava esconder-se lá embaixo, no escuro, como queria voltar a ver o sol, atravessar a cavalo o vento e a chuva. Mas agora que o momento se aproximava, tinha medo. Sentira-se seguro na escuridão; quando sequer se conseguia encontrar a própria mão na frente do rosto, era fácil acreditar que nenhum inimigo seria alguma vez capaz de encontrá-los. E os senhores de pedra tinham lhe dado coragem. Mesmo quando não podia vê-los, sabia que estavam ali. Pareceu demorar muito tempo até voltarem a ouvir alguma coisa. Bran começava a temer que algo tivesse acontecido a Osha. O irmão não parava quieto. - Quero ir para casal - Rickon disse em voz alta. Hodor inclinou a cabeça e disse: - Hodor - e então ouviram de novo o som de passos, aumentando de volume, e alguns minutos depois Osha emergiu para a luz, com uma expressão sombria. - Alguma coisa está bloqueando a porta. Não consigo movê-la. - Hodor consegue mover qualquer coisa - Bran lembrou. Osha deu ao enorme cavalariço um olhar avaliador: - Talvez consiga. Então venham daí. Os degraus eram estreitos, e tinham de subir em fila única. Osha ia à frente. Atrás vinha Hodor, com Bran bem agachado às suas costas, para não bater a cabeça no teto. Meera seguia-os com o archote, e Jojen fechava a retaguarda, levando Rickon pela mão. Subiram, dando voltas e mais voltas. Bran achou que agora conseguia cheirar a fumaça, mas talvez fosse apenas o archote. A porta das criptas era feita de pau-ferro. Era velha e pesada, e fazia certo ângulo com o chão. Só uma pessoa tinha acesso a ela de cada vez. Osha tentou uma vez mais ao chegar lá, mas Bran viu que a porta não se movia. - Deixe Hodor tentar. Tiveram primeiro de tirar Bran do cesto, para não ser esmagado. Meera agachou-se ao seu lado nos degraus, com um braço protetor sobre seus ombros, enquanto Osha e Hodor trocavam de lugar. - Abra a porta, Hodor - Bran pediu. O enorme cavalariço pôs ambas as mãos na porta, empurrou e soltou um grunhido. - Hodor? - deu um murro na madeira, ela nem sequer balançou. - Hodor. - Use as costas - Bran sugeriu. - E as pernas. Virando-se, Hodor posicionou as costas na madeira e empurrou. De novo. De novo. - Hodor! - o gigante encostou um pé em um degrau mais elevado para ficar dobrado sob a inclinação da porta e tentou erguer-se. Daquela vez a madeira gemeu e estalou. - Hodor! - o outro pé subiu um degrau, e Hodor abriu as pernas, firmou-se bem, e endireitou-se. Ficou com o rosto vermelho, e Bran viu os tendões de seu pescoço retesando-se enquanto ele fazia força contra o peso que tinha em cima. - Hodor hodor hodor hodor hodor HODOR! - de cima veio um estrondo surdo. E então, subitamente, a porta saltou e uma réstia de luz do dia caiu sobre o rosto de Bran, cegando-o por um momento. Outro empurrão trouxe o som de pedra movendo-se, e então o caminho ficou aberto. Osha empurrou a lança através da porta e deslizou para fora atrás dela, e Rickon esgueirou-se por entre as pernas de Meera para segui-la. Hodor abriu completamente a porta e saiu para a superfície. Os Reed tiveram de carregar Bran nos últimos degraus. O céu apresentava-se cinza-claro, e fumaça redemoinhava por todo lado. Estavam à sombra da Primeira Fortaleza, ou do que dela restava. Um dos lados do edifício tinha se desligado do resto e ruíra. Pedras e gárgulas estilhaçadas estavam espalhadas pelo pátio. Caíram hem onde eu caí, Bran pensou quando as viu. Algumas das gárgulas tinham se quebrado em tantos pedaços que perguntou a si mesmo como teria sobrevivido. Ali perto, um punhado de corvos bicava um cadáver esmagado sob as pedras caídas, mas o homem jazia de barriga para baixo, e Bran não conseguiu identificá-lo. A Primeira Fortaleza não era usada havia muitas centenas de anos, mas agora era uma casca mais vazia do que nunca. Os pisos tinham ardido no interior, bem como todas as vigas. Onde a parede caíra, era possível ver o interior de todos os quartos, e até a latrina. Mas, por trás, a torre quebrada ainda se erguia, tão queimada como antes. Jojen Reed tossiu por causa da fumaça. - Leve-me para casa! - Rickon insistiu. - Eu quero ir para casal - Hodor descreveu um círculo, batendo com os pés no chão. - Hodor - lamuriou-se em voz baixa. Os seis juntavam-se uns aos outros, com ruína e morte por toda volta. - Fizemos barulho suficiente para acordar um dragão - Osha disse - , mas ninguém veio, O castelo está morto e queimado, bem como Bran sonhou, mas era melhor... - interrompeu-se de súbito ao ouvir um som atrás deles, e girou sobre si mesma, com a lança preparada. Duas esguias formas escuras emergiram por detrás da torre quebrada, caminhando lentamente através dos detritos. Rickon soltou um grito feliz de "Felpudo!", e o gigante lobo negro aproximou-se dele aos saltos. Verão avançou mais devagar, esfregou a cabeça no braço de Bran, e lambeu-lhe o rosto. - Devíamos partir - Jojen os interrompeu. - Tanta morte atrairá outros lobos, além de Verão e Cão Felpudo, e nem todos terão quatro patas. - Sim, e depressa - Osha concordou. - Mas precisamos de comida, e alguém pode ter sobrevivido a isto. Fiquem juntos. Meera, continue com o escudo levantado e guarde nossas costas. Levaram o resto da manhã fazendo um lento circuito pelo castelo. As grandes muralhas de granito resistiam, enegrecidas aqui e ali pelo fogo, mas, fora isso, intocadas. Dentro delas tudo era morte e destruição. As portas do Grande Salão estavam carbonizadas e em brasa, e, lá dentro, as traves tinham cedido e o teto inteiro despedaçara-se no chão. As vidraças verdes e amarelas dos jardins de vidro estavam em cacos, com árvores, frutos e flores arrancados ou deixados expostos para morrer. Dos estábulos, feitos de madeira e sapé, nada restava além de cinzas, brasas e cavalos mortos. Bran pensou em sua Dançarina e teve vontade de chorar. Havia um lago fumegante e raso sob a Torre da Biblioteca, e água quente jorrava de uma rachadura numa das paredes. A ponte entre a Torre Sineira e a colônia de corvos tinha ruído sobre o pátio, embaixo, e o torreão do Meistre Luwin desaparecera. Viram um clarão vermelho brilhar através das estreitas janelas do porão sob a Grande Fortaleza, e um segundo incêndio ainda ardendo num dos armazéns. A medida que avançavam, Osha foi chamando em voz baixa através da fumaça que era soprada pelo vento, mas ninguém respondeu. Viram um cão atacando um cadáver, mas o animal fugiu quando sentiu o cheiro dos lobos gigantes; os outros cães tinham sido mortos nos canis. Os corvos do meistre mostravam-se atenciosos para com alguns dos cadáveres, enquanto os da torre quebrada tratavam de outros. Bran reconheceu Poxy Tym, apesar de alguém ter cortado seu rosto com uma machadada. Um cadáver carbonizado, caído à porta do esqueleto em cinzas do septo da mãe, estava sentado com os braços erguidos e as mãos cerradas em punhos duros e negros, como se pretendesse esmurrar quem quer que se atrevesse a se aproximar dele. - Se os deuses forem bons - disse Osha numa voz baixa e zangada - , os Outros vão levar quem fez este trabalho. - Foi Theon - Bran falou num tom escuro. - Não. Veja - a selvagem apontou com a lança para o outro lado do pátio. - Aquele é um de seus homens de ferro. E ali está outro. E aquele é o cavalo de guerra do Greyjoy, está vendo? O preto com as flechas espetadas nele - avançou por entre os mortos, franzindo o cenho. - E ali está Lorren Negro - tinha sido golpeado de tal maneira que a barba parecia agora ter uma cor marrom-avermelhada. - Levou uns tantos com ele - Com o pé, Osha virou um dos outros cadáveres. - Aqui está um símbolo. Um homenzinho, todo encarnado. - O homem esfolado do Forte do Pavor - Bran confirmou. Verão uivou e afastou-se correndo. - O bosque sagrado - Meera Reed correu atrás do lobo gigante, com o escudo e o tridente na mão. Os outros seguiram-na, abrindo caminho por entre fumaça e pedras caídas. O ar estava mais limpo sob as árvores. Alguns pinheiros nos limites do bosque tinham ficado chamuscados, mas, mais para o interior, o solo úmido e a madeira verde tinham derrotado as chamas. - Há poder num bosque vivo - Jojen Reed disse, quase como se soubesse o que Bran estava pensando - , um poder tão forte quanto o fogo. Na margem da lagoa negra, sob o abrigo da árvore-coração, Meistre Luwin jazia de bruços na terra. Um rastro de sangue serpenteava pelas folhas úmidas sobre as quais se arrastara. Verão encontrava-se a seu lado, e, a princípio, Bran pensou que o meistre estava morto, mas quando Meera lhe tocou na garganta, ele gemeu. - Hodor? - disse Hodor em tom fúnebre. - Hodor? Com delicadeza, viraram Luwin de costas. Tinha olhos e cabelos cinzentos, e um dia suas vestes também tinham sido cinzentas, mas agora estavam mais escuras onde o sangue as ensopara. - Bran - ele disse em voz baixa quando o viu sentado bem alto nas costas de Hodor. - E Rickon também - sorriu. - Os deuses são bons. Eu sabia... - Sabia? - Bran perguntou, com voz incerta. - A s pernas, conseguia-se ver... a roupa servia-lhe, mas os músculos nas pernas... pobre moço... - tossiu, e sangue veio de seu interior. - Desapareceram... na floresta... mas como? - Não chegamos a ir - Bran respondeu. - Bem, fomos só até o limite da floresta, e depois voltamos. Mandei os lobos em frente para deixar um rastro, mas nos escondemos na sepultura do meu pai. - As criptas - Luwin soltou um risinho, com uma espuma ensangüentada nos lábios. Quando o meistre tentou se mover, soltou um vivo arquejo de dor. Lágrimas encheram os olhos de Bran. Quando um homem estava ferido, era levado a um meistre, mas o que se podia fazer quando era o meistre quem estava ferido? - Vamos ter de fazer uma liteira para levá-lo - Osha disse. - Não vale a pena - Luwin respondeu. - Estou morrendo, mulher. - Não pode - Rickon quase gritou, zangado. - Não, não pode - ao seu lado, Cão Felpudo mostrou os dentes e rosnou. O meistre sorriu. - Caladinho, filho, eu sou muito mais velho do que você. Posso... morrer se quiser. - Hodor, para baixo - Bran pediu. Hodor se ajoelhou ao lado do meistre. - Escute - Luwin se dirigiu a Osha - , os príncipes... herdeiros de Robb. Não,., juntos, não... está ouvindo? A selvagem apoiou-se na lança. - Sim. E mais seguro separados. Mas levá-los para onde? Tinha pensado que talvez aqueles Cerwyn... Meistre Luwin balançou a cabeça, embora fosse fácil ver que o esforço lhe era penoso. - O rapaz Cerwyn está morto. Sor Rodrik, Leobald Tallhart, a Senhora Hornwood... todos mortos. Bosque Profundo caiu, Fosso Cailin, em breve a Praça de Torrhen. Homens de ferro na Costa Pedregosa, E a leste o Bastardo de Bolton. - Então, para onde? - Osha perguntou. - Porto Branco... os Umber... não sei... guerra por todo lado... cada homem contra o vizinho, e o Inverno chegando... que loucura, que negra loucura... - Meistre Luwin ergueu uma mão e agarrou o braço de Bran, fechando os dedos com uma força desesperada. - Tem de ser forte agora. Forte. - Serei - Bran prometeu, embora fosse difícil. Sor Rodrik morto, e também Meistre Luwin, todos, todos... - Ótimo - o meistre respondeu, - Um bom rapaz. O filho... o filho do seu pai, Bran. Agora vá. Osha fitou o represeiro, a face vermelha esculpida no tronco branco. - E deixá-lo para os deuses? - Peço... - o meistre engoliu em seco, arfando. - ... um... um pouco de água, e... outro favor. Se pudesse... - Sim - ela se virou para Meera. - Leve os garotos. Jojen e Meera levaram Rickon entre os dois. Hodor os seguiu. Ramos baixos chicoteavam o rosto de Bran enquanto avançavam por entre as árvores, e as folhas limpavam as lágrimas. Osha juntou-se a eles no pátio alguns momentos mais tarde. Não disse uma palavra sobre Meistre Luwin. - Hodor tem de ficar com Bran, para ser as suas pernas - disse a selvagem com vivacidade, - Eu levo Rickon comigo. - Nós vamos com Bran - Jojen Reed falou. - Bem, achei que fossem - Osha respondeu. - Acho que vou experimentar o Portão Leste e seguir a estrada do rei a maior parte do tempo. - Nós vamos pelo Portão do Caçador - Meera avisou. - Hodor - Hodor concordou. Pararam primeiro nas cozinhas. Osha encontrou alguns pães queimados que ainda podiam ser comidos, e até um frango assado frio, que partiu ao meio. Meera desenterrou um jarro de mel e uma grande saca de maçãs. Já na parte de fora, despediram-se. Rickon começou a soluçar e agarrou-se à perna de Hodor, até que Osha lhe deu uma pancada com a extremidade romba da lança. Ele, então, seguiu-a com bastante rapidez. Cão Felpudo foi atrás deles. A última coisa que Bran viu dos três foi a cauda do lobo gigante que desaparecia atrás da torre quebrada. A porta levadiça de ferro, que fechava o Portão do Caçador, fora torcida pelo fogo de tal modo que não podia ser elevada mais do que trinta centímetros, Tiveram de se espremer por baixo dos espigões, um por um. - Vamos encontrar o senhor seu pai? - Bran perguntou enquanto atravessavam a ponte levadiça entre as muralhas - Para a Atalaia da Água Cinzenta? Meera olhou para o irmão em busca de uma resposta. - Nosso caminho é para o norte - Jojen respondeu. No limite da mata de lobos, Bran virou-se no cesto para um último vislumbre do castelo que tinha sido sua vida. Farrapos de fumaça ainda se erguiam para o céu cinzento, mas não mais do que poderia ter saído das chaminés de Winterfell numa tarde fria de Outono. Manchas de fuligem marcavam alguns dos lançadores de flechas, e aqui e ali via-se uma fenda ou um merlão faltando na muralha exterior, mas parecia muito pouco aquela distância. Para lá da muralha, os topos das fortalezas e torres ainda se erguiam como tinham se erguido ao longo de centenas de anos, e era difícil reconhecer que o castelo tivesse sido saqueado, queimado e tudo o mais. A pedra é forte, disse Bran a si mesmo, as raízes das árvores são profundas, e debaixo do solo os Reis do Inverno ocupam seus tronos. Desde que essas coisas permanecessem, Winterfell permaneceria. Não estava morto, apenas quebrado. Como eu, pensou. Também não estou morto.

  • APÊNDICE OS REIS E SUAS CORTES

  • O Rei no Trono de Ferro
    JOFFREY BARATHEON, o Primeiro do Seu Nome, um rapaz de treze anos, filho mais velho do Rei Robert i Baratheon e da Rainha Cersei, da Casa Lannister, - sua mãe, RAINHA CERSEI, Rainha Regente e Protetora do Reino, - sua irmã, PRINCESA MYRCELLA, uma menina de nove anos, - seu irmão, PRÍNCIPE TOMMEN, um garoto de oito anos, herdeiro do Trono de Ferro, - seus tios paternos: - STANNIS BARATHEON, Senhor de Pedra do Dragão, autoproclamado Rei Stannis Primeiro, - {RENLY BARATHEON}, Senhor de Ponta Tempestade, autoproclamado Rei Renly Primeiro, - seus tios maternos: - SOR JAIME LANNISTER, chamado REGICIDA, Senhor Comandante da Guarda Real, cativo em Correrrio, - TYRION LANNISTER, chamado DUENDE, Mão do Rei interino, - o escudeiro de Tyrion, PODRICK PAYNE, - os guardas e espadas ao serviço de Tyrion: - BRONN, um mercenário, de cabelos e coração negros, - SHAGGA, FILHO DE DOLF, dos Corvos de Pedra, - TIMETT, FILHO DE TIMETT, dos Homens Queimados, - CHELLA, FILHA DE CHEYK, dos Orelhas Negras, - CRAWN, FILHO DE CALOR, dos Irmãos da Lua, - a concubina de Tyrion, SHAE, uma seguidora de acampamentos de dezoito anos, - seu pequeno conselho: - GRANDE MEISTRE PYCELLE, - LORDE PETYR BAELISH, chamado MINDINHO, mestre da moeda, - LORDE JANOS SLYNT, comandante da Patrulha da Cidade de Porto Real (os "homens de manto dourado"), - VARYS, um eunuco, chamado ARANHA, mestre dos segredos, - sua Guarda Real: - SOR JAIME LANNISTER, chamado REGICIDA, Senhor Comandante, cativo em Correrrio, - SANDOR CLEGANE, chamado CÃO DE CAÇA, - SOR BOROS BLOUNT, - SOR MERYN TRANT, - SOR ARYS OAKHEART, - SOR PRESTON GREENFIELD, - SOR MANDON MOORE, - sua corte e servidores: - SOR ILYN PAYNE, o Magistrado do Rei, um carrasco, - VYLARR, capitão dos guardas Lannister em Porto Real (os "homens de manto vermelho"), - SOR LANCEL LANNISTER, ex-escudeiro do Rei Robert, recentemente armado cavaleiro, - TYREK LANNISTER, ex-escudeiro do Rei Robert, - SOR ARON SANTAGAR, mestre de armas, - SOR BALON SWANN, segundo filho do Lorde Guilan Swann de Pedrelmo, - SENHORA ERMESANDE HAYFORD, Um bebê d e peitO, - SOR DONTOS HOLLARD, chamado o VERMELHO, um bêbado, - JALABHAR XHO, um príncipe exilado das Ilhas do Verão, - RAPAZ LUA, um bobo, - SENHORA TANDA STOKEWORTH, - PALYSE, sua filha mais velha, - LOLLYS, sua filha mais nova, uma donzela de trinta e três anos, - LORDE GYLES ROSBY, - SOR HORAS REDWYNE e seu irmão gêmeo, SOR HOBBER REDWYNE, filhos do Senhor da Arvore, - o povo de Porto Real: - a Patrulha da Cidade (os "homens de manto dourado"): - JANOS SLYNT, Senhor de Harrenhal, Senhor Comandante, - MORROS, seu filho mais velho e herdeiro, - ALLAR DEEM, sargento-chefe de Slynt, - SOR JACELYN BYWATER, chamado MÃO DE FERRO, capitão do Portão do Rio, - HALLYNE, O PIROMANTE, um sábio da Guilda dos Alquimistas, - CHATAYA, dona de um bordel de luxo, - ALAYAYA, DANCY, MAREI, algumas de suas moças, - TOBHO MOTT, mestre armeiro, - SALLOREON, mestre armeiro, - PANÇA DE FERRO, ferreiro, - LOTHAR BRUNE, cavaleiro livre, - SOR OSMUND KETTLEBLACK, cavaleiro menor de má reputação, - OSFRYD e OSNEY KETTLEBLACK, seus irmãos, - SYMON LÍNGUA DE PRATA, cantor, A bandeira do Rei Joffrey ostenta o veado coroado dos Baratheon, negro sobre dourado, e o leão dos Lannister, dourado sobre carmesim, combatente.
    O Rei do mar Estreito
    STANNIS BARATHEON, o Primeiro de Seu Nome, o mais velho dos irmãos do {Rei Robert}, anteriormente Senhor de Pedra do Dragão, segundo filho do Lorde Steffon Baratheon e da Senhora Cassana da Casa Estermont, - sua esposa, SENHORA SELYSE, da Casa Florent, - SHIREEN, sua única filha, uma menina de dez anos, - seu tio e primos: - SOR LOMAS ESTERMONT, tio, - seu filho, SOR ANDREW ESTERMONT, primo, - sua corte e servidores: - MEISTRE CRESSEN, curandeiro e tutor, um velho,
    - MEISTRE PYLOS, seu jovem sucessor, - SEPTÃO BARRE, - SOR AXELL FLORENT, castelão de Pedra do Dragão e tio da Rainha Selyse, - CARA-MALHADA, um bobo louco, - SENHORA MELISANDRE DE ASSHAI, chamada a MULHER VERMELHA, sacerdotisa de Rhllor, o Coração de Fogo, - SOR DAVOS SEAWORTH, chamado o CAVALEIRO DAS CEBOLAS e às vezes MÃO-CURTA, antigo contrabandista, capitão do Betha Negra, - sua esposa MARYA, filha de um carpinteiro, - seus sete filhos: - DALE, capitão do Espectro, - ALLARD, capitão do Senhora Marya, - MATTHOS, imediato do Betha Negra, - MARIC, mestre dos remadores do Fúria, - DEVAN, escudeiro do Rei Stannis, - STANNIS, um garoto de nove anos, - STEFFON, um garoto de seis anos, - BRYEN FARRING, escudeiro do Rei Stannis, - os senhores seus vassalos e espadas juramentadas, - ARDRIAN CELTIGAR, Senhor da Ilha da Garra, um velho, - MONFORD VELARYON, Senhor das Marés e Mestre de Derivamarca, - DURAM BAR EMMON, Senhor de Ponta Afiada, um rapaz de catorze anos, - GUNCER SUNGLASS, Senhor do Canal de Portodoce, - SOR HUBARD RAMBTON, - SALLADHOR SAAN, da Cidade Livre de Lys, chamado PRÍNCIPE DO MAR ESTREITO, - MOROSH DE MYR, um almirante mercenário. Rei Stannis escolheu como símbolo o coração em chamas do Senhor da Luz, um coração vermelho rodeado por chamas cor de laranja sobre um fundo amarelo-vivo. No interior do coração encontra-se retratado o veado coroado da Casa Baratheon, de negro.
    O Rei em Jardim de Cima
    {RENLY BARATHEON}, O Primeiro de Seu Nome, o mais novo dos irmáos do Rei Robert, anteriormente Senhor de Ponta Tempestade, terceiro filho de Lorde Steffon Baratheon e da Senhora Cassana, da Casa Estermont, - sua nova noiva, SENHORA MARGAERY, da Casa Tyrell, uma donzela de quinze anos, - seu tio e primos: - SOR ELDON ESTERMONT, t i o - o filho de Sor Eldon, SOR AEMON ESTERMONT, um primo, - o filho de Sor Aemon, SOR ALYN ESTERMONT, - os senhores seus vassalos: - MACE TYRELL, Senhor de Jardim de Cima e Mão do Rei, - RANDYLL TARLY, Senhor de Monte Chifre, - MATHIS ROWAN, Senhor de Bosquedouro, - BRYCE CARON, Senhor da Marca, - SHYRA ERROL, Senhora de Solar de Montefeno, - ARWYN OAKHEART, Senhor da Fortaleza de Águas Claras, - LORDE SELWYN DE TARTH, chamado ESTRELA DA TARDE, - LEYTON HIGHTOWER, Voz de Vilavelha, Senhor do Porto, - LORDE STEFFON VARNER, - sua Guarda Arco-íris: - SOR LORAS TYRELL, O Cavaleiro das Flores, Senhor Comandante, - LORDE BRYCE CARON, O Laranja, - SOR GUYARD MORRIGEN, O Verde, - SOR PARMEN CRANE, O ROXO, - SOR ROBAR ROYCE, O Vermelho, - SOR EMMON CUY, o Amarelo, - BRIENNE DE TARTH, a Azul, também chamada BRIENNE, A BELEZA, filha de Lorde Selwyn, a Estrela da Tarde,
    - seus cavaleiros e espadas juramentadas: - SOR CORTNAY PENROSE, castelão de Ponta Tempestade, - o protegido de Sor Cortnay, EDRIC STORM, um filho bastardo do Rei Robert e da Senhora Delena, da Casa Florent, - SOR DONNEL SWANN, herdeiro de Pedrelmo, - SOR JON FOSSOWAY, dos Fossoway da maçã verde, - SOR BRYAN FOSSOWAY, SOR TANTON FOSSOWAY e SOR EDWYD FOSSOWAY, dos Fossoway da maçã vermelha, - SOR COLEN DE LAGOAS VERDES, - SOR MARK MULLENDORE, - RONNET VERMELHO, o Cavaleiro de Poleiro do Grifo, - o pessoal de sua casa, - MEISTRE JURNE, conselheiro, curandeiro e tutor. A bandeira do Rei Renly é o veado coroado da Casa Baratheon de Ponta Tempestade, negro sobre fundo dourado, a mesma usada pelo irmão, o Rei Robert.
    O Rei do Norte
    ROBB STARK, Senhor de Winterfell e Rei no Norte, filho mais velho de {Ned Stark}, Senhor de Winterfell, e da Senhora Catelyn, da Casa Tully, um rapaz de quinze anos, - seu lobo gigante, VENTO CINZENTO, - sua mãe, SENHORA CATELYN, da Casa Tully, - seus irmãos: - PRINCESA SANSA, uma donzela de doze anos, - a loba gigante de Sansa {LADY}, morta no Castelo de Darry, - PRINCESA ARYA, uma menina de dez anos, - a loba gigante de Arya, NYMERIA, afastada um ano antes, - PRÍNCIPE BRANDON, chamado Bran, herdeiro de Winterfell e do Norte, um garoto de oito anos, - o lobo gigante de Bran, VERÃO, - PRÍNCIPE RICKON, um garoto de quatro anos, - o lobo gigante de Rickon, CÃO FELPUDO, - seu meio-irmão, JON SNOW, um bastardo de quinze anos, membro da Patrulha da Noite, - o lobo gigante de Jon, FANTASMA, - seus tios e tias: - {BRANDON STARK}, O irmão mais velho de Lorde Eddard, assassinado por ordem de Aerys n Targaryen, - BENJEN STARK, o irmão mais novo de Lorde Eddard, um homem da Patrulha da Noite, perdido para lá da Muralha, - LYSA ARRYN, a irmã mais nova da Senhora Catelyn, viúva de {Lorde Jon Arryn}, senhora do Ninho da Águia, - SOR EDMURE TULLY, irmão mais novo da Senhora Catelyn, herdeiro de Correrrio, - SOR BRYNDEN TULLY, chamado PEIXE NEGRO, tio da Senhora Catelyn, - as espadas a ele juramentadas e os companheiros de batalha: - THEON GREYJOY, protegido de Lorde Eddard, herdeiro de Pyke e das Ilhas de Ferro, - HALLIS MOLLEN, capitão dos guardas de Winterfell, - JACKS, QUENT, SHADD, guardas sob o comando de Mollen, - PATREK MALLISTER, herdeiro de Guardamar, - DACEY MORMONT, filha mais velha da Senhora Maege e herdeira da Ilha dos Ursos, - J O N UMBER, chamado PEQUENO-JON, - ROBIN FLINT, SOR PERWYN FREY, LUCAS BLACKWOOD - seu escudeiro, OLYVAR FREY, de dezoito anos, - seu pessoal em Correrrio: - MEISTRE VYMAN, conselheiro, curandeiro e tutor, - SOR DESMOND GRELL, mestre de armas, - SOR ROBIN RYGER, capitão da guarda, - UTHERYDES WAYN, intendente de Correrrio, - RYMUND, O RIMADOR, cantor, - seu pessoal em Winterfell: - MEISTRE LUWIN, conselheiro, curandeiro e tutor, - SOR RODRIK CASSEL, mestre de armas, - BETH, sua jovem filha, - WALDER FREY, chamado GRANDE WALDER, protegido da Senhora Catelyn, com oito anos, - WALDER FREY, chamado PEQUENO WALDER, protegido da Senhora Catelyn, também com oito anos, - SEPTÃO CHAYLE, guardião do septo e da biblioteca do castelo, - JOSETH, mestre dos cavalos, - BANDY e SHYRA, suas filhas gêmeas, - FARLEN, mestre do canil, - PALLA, aprendiz do canil, - VELHA AMA, contadora de histórias, antiga ama de leite, - HODOR, seu bisneto, um cavalariço simplório, - GAGE, O cozinheiro, - NABO, uma latrineira e ajudante de cozinha, - OSHA, uma selvagem, aprisionada no bosque de lobos, trabalhando como servente de cozinha, - MIKKEN, ferreiro e armeiro, - HAYHEAD, SKITTRICK, POXY TYM e ALEBELLY, guardas, - CALON, TOM, filhos de guardas, - os senhores seus vassalos e comandantes: - (com Robb em Correrrio) - JON UMBER, chamado o GRANDE-JON, - RICKARD KARSTARK, Senhor de Karhold, - GALBART GLOVER, de Bosque Profundo, - MAEGE MORMONT, Senhora da Ilha dos Ursos, - SOR STEVRON FREY, filho mais velho do Lorde Walder Frey e herdeiro das Gêmeas, - o filho mais velho de Sor Stevron, SOR RYMAN FREY, - o filho de Sor Ryman, WALDER NEGRO FREY, - MARTYN RIVERS, filho bastardo de Lorde Walder Frey, - (com a tropa de Roose Bolton, nas Gêmeas) - ROOSE BOLTON, Senhor do Forte do Pavor, comandando a maior parte da tropa do Norte, - ROBETT GLOVER, de Bosque Profundo, - WALDER FREY, Senhor da Travessia, - SOR HELMAN TALLHART, de Praça deTorrhen, - SOR AENYS FREY, - (prisioneiros de Lorde Tywin Lannister) - LORDE MEDGER CERWYN, - HARRION KARSTARK, único filho sobrevivente de Lorde Rickard, - SOR WYLIS MANDERLY, herdeiro de Porto Branco, - SOR JARED FREY, SOR HOSTEEN FREY, SOR DANWELL FREY e seu meio-irmão bastardo, RONEL RIVERS, - (em campo, ou em seus castelos) - LYMAN DARRY, um garoto de oito anos, - SHELLA WHENT, Senhora de Harrenhal, despojada de seu castelo por Lorde Tywin Lannister, - JASON MALLISTER, Senhor de Guardamar, - JONOS BRACKEN, Senhor de Barreira de Pedra, - TYTOS BLACKWOOD, Senhor de Corvarbor - SOR KARYL VANCE,
    - SOR MARQ PIPER, - SOR HALMON PAEGE, - os senhores seus vassalos e castelões no norte: - WYMAN MANDERLY, Senhor de Porto Branco, - HOWLAND REED, da Atalaia da Água Cinzenta, um cranogmano, - a filha de Howland, MEERA, uma donzela de quinze anos, - o filho de Howland, JOJEN, um rapaz de treze anos, - SENHORA DONELLA HORNWOOD, uma viúva e mãe de luto, - CLEY CERWYN, herdeiro de Lorde Medger, um rapaz de catorze anos, - LEOBALD TALLHART, irmão mais novo de Sor Helman, castelão em Praça de Torrhen, - a esposa de Leobald, BERENA, da Casa Hornwood, - o filho de Leobald, BRANDON, um rapaz de catorze anos, - o filho de Leobald, BEREN, um garoto de dez anos, - o filho de Sor Helman, BENFRED, herdeiro de Praça de Torrhen, - a filha de Sor Helman, EDDARA, uma donzela de nove anos, - SENHORA SYBELLE, esposa de Robett Glover, governando Bosque Profundo em sua ausência, - o filho de Robett, GAWEN, de três anos, herdeiro do Bosque Profundo, - a filha de Robett, ERENA, um bebê de um ano, - LARENCE SNOW, um filho bastardo de Lorde Hornwood, com doze anos, protegido de Galbart Glover, - MORS CROWFOOD e HOTHER TERROR-DAS-RAMEIRAS, da Casa Umber, tios do Grande-Jon, - SENHORA LYESSA FLINT, mãe de Robin, - ONDREW LOCKE, Senhor de Castelovelho, um velho. A bandeira do Rei no Norte permanece igual à que foi durante milhares de anos: o lobo gigante cinza dos Stark de Winterfell correndo por um campo branco de gelo.
    A Rainha no Outro Lado do Mar
    DAENERYS TARGARYEN, chamada Daenerys Filha da Tormenta, a Náo Queimada, Mãe de Dragões, Khaleesi dos Dothraki e Primeira do Seu Nome, única filha sobrevivente do Rei Aerys u Targaryen e de sua irmã/esposa, a Rainha Rhaella, uma viúva com catorze anos, - seus dragões recém-nascidos, DROGON, VISERION, RHAEGAL, - seus irmãos: - {RHAEGAR}, Príncipe de Pedra do Dragão e herdeiro do Trono de Ferro, morto pelo Rei Robert no Tridente, - {RHAENYS}, filha de Rhaegar e de Elia de Dorne, assassinada durante o Saque de Porto Real, - {AEGON}, filho de Rhaegar e de Elia de Dorne, assassinado durante o Saque de Porto Real, - {VISERYS}, autoproclamado Rei Viserys, o Terceiro do Seu Nome, chamado o REI PEDINTE, morto em Vaes Dothrak pelas mãos de Khal Drogo, - seu esposo {DROGO}, um khal dos dothraki, morto por ferimentos não curados, - {RHAEGO}, filho natimorto de Daenerys e Khal Drogo, morto no ventre por Mirri Maz Duur, - sua Guarda Real: - SOR JORAH MORMONT, um cavaleiro exilado, antes Senhor da Ilha dos Ursos, - JHOGO, ko e companheiro de sangue, o chicote, - AGGO, ko e companheiro de sangue, o arco, - RAKHARO, ko t companheiro de sangue, o arakh, - suas aias:
    - IRRI, uma moça dothraki, - JHIQUI, uma moça dothraki, - DOREAH, uma escrava lisena, ex-prostituta, - os três investigadores: - XARO XHOAN DAXOS, um príncipe mercador de Qarth, - PYAT PREE, um mago de Qarth, - QUAITHE, uma umbromante mascarada de Asshai, - ILLYRIO MOPATIS, um magíster da Cidade Livre de Pentos, que arranjou o casamento de Daenerys com Khal Drogo e conspirou para que Viserys recuperasse o Trono de Ferro. A bandeira dos Targaryen é a de Aegon, o Conquistador, que conquistou seis dos Sete Reinos, fundou a dinastia e fez o Trono de Ferro com as espadas dos inimigos conquistados: um dragão de três cabeças, vermelho sobre fundo negro.
    OUTRAS CASAS, GRANDES E PEQUENAS
    Casa Arryn
    A Casa Arryn não declarou apoio a nenhum dos pretendentes rivais no início da guerra, e reteve suas forças a fim de proteger o Ninho da Águia e o Vale de Arryn. O selo dos Arryn é a lua e o falcão, em branco, sobre fundo azul-celeste. O lema dos Arryn é: Tão Alto Como a Honra. ROBERT ARRYN, Senhor do Ninho da Águia, Defensor do Vale, protetor do Leste, um garoto de saúde frágil de oito anos, - sua mãe, SENHORA LYSA, da Casa Tully, terceira esposa e viúva de {Lorde Jon Arryn}, falecido Mão do Rei, e irmã de Catelyn Stark, - o pessoal de sua casa: - MEISTRE COLEMON, conselheiro, curandeiro e tutor, - SOR MARWYN BELMORE, capitão da guarda, - MORD, um carcereiro brutal, - MARILLION, um jovem cantor, - os senhores seus vassalos, pretendentes e servidores: - LORDE YOHN ROYCE, chamado BRONZE YOHN, - o filho mais velho de Yohn, SOR ANDAR, - o segundo filho de Lorde Yohn, SOR ROBAR, a serviço do Rei Renly, chamado Robar, o Vermelho, da Guarda Arco-íris, - o filho mais novo de Lorde Yohn {SOR WAYMAN}, um homem da Patrulha da Noite, perdido para lá da Muralha,
    - LORDE NESTOR ROYCE, primo de Lorde Yohn, Supremo Intendente do Vale, - o filho e herdeiro de Lorde Nestor, SOR ALBAR, - a filha de Lorde Nestor, MYRANDA, - MYA STONE, uma moça bastarda ao seu serviço, filha do Rei Robert, - SOR LYN CORBRAY, pretendente da Senhora Lysa, - MYCHEL REDFORT, seu escudeiro, - SENHORA ANYA WAYNWOOD, - o filho mais velho e herdeiro da Senhora Anya, SOR MORTON, pretendente da Senhora Lysa, - o segundo filho da Senhora Anya, SOR DONNEL, Cavaleiro do Portão, - LORDE EON HUNTER, Senhor de Solar de Longarco, um velho, pretendente da Senhora Lysa.
    Casa Florent Os Florent da Fortaleza de Águas Claras são vassalos de Jardim de Cima e seguiram os Tyrell na proclamação do Rei Renly. No entanto, mantiveram também um pé no outro campo, uma vez que a rainha de Stannis é uma Florent, e o tio dela é castelão de Pedra do Dragão. O selo da Casa Florent exibe uma cabeça de raposa rodeada por um círculo de flores. ALESTER FLORENT, Senhor de Águas Claras, - sua esposa, SENHORA MELARA, da Casa Crane, - seus filhos: - ALEKYNE, herdeiro de Águas Claras, - MELESSA, casada com Lorde Randyll Tarly, - RHEA, casada com Lorde Leyton Hightower, - os irmãos: - SOR AXELL, castelão em Pedra do Dragão, - {SOR RYAM}, morto ao cair de um cavalo, - a filha de Sor Ryam, RAINHA SELYSE, casada com o Rei Stannis, - o filho mais velho e herdeiro de Sor Ryam, SOR IMRY, - o segundo filho de Sor Ryam, SOR ERREN, - SOR COLIN, - a filha de Sor Colin, DELENA, casada com SOR HOSMAN NORCROSS, - o filho de Delena, EDRIC STORM, um bastardo do Rei Robert, - o filho de Delena, ALESTER NORCROSS, - o filho de Delena, RENLY NORCROSS, - o filho de Colin, MEISTRE OMER, a serviço em Carvalho Velho, - o filho de Colin, MERRELL, um escudeiro na Árvore, - sua irmã, RYLENE, casada com Sor Rycherd Crane. 640
    Casa Frey Poderosos, ricos e numerosos, os Frey são vassalos da Casa Tully, com as espadas juramentadas a serviço de Correrrio, mas nem sempre foram diligentes em desempenhar seu dever. Quando Robert Baratheon enfrentou Rhaegar Targaryen no Tridente, os Frey só chegaram depois da batalha terminada, e daí em diante Lorde Hoster Tully chamava sempre Lorde Walder de "o Atrasado Lorde Frey". Lorde Frey só concordou em apoiar a causa do Rei no Norte depois de Robb
    Stark concordar com um noivado, prometendo desposar uma de suas filhas ou netas após o fim da guerra. Lorde Walder conheceu noventa e um dias do seu nome, mas foi recentemente que tomou sua oitava esposa, uma moça setenta anos mais jovem que ele. Diz-se dele que é o único senhor dos Sete Reinos que poderia tirar um exército dos calções. WALDER FREY, Senhor da Travessia, - da sua primeira esposa {SENHORA PERRA}, da Casa Royce: - SOR STEVRON, herdeiro das Gêmeas, - c. {Corenna Swann, morta de uma doença debilitante}, - o filho mais velho de Stevron, SOR RYMAN, - o filho de Ryman, EDWYN, casado com Janyce Hunter, - a filha de Edwyn, WALDA, uma menina de oito anos, - o filho de Ryman, WALDER, chamado WALDER NEGRO, - o filho de Ryman, PETYR, chamado PETYR ESPINHA, - c. Mylenda Caron, - a filha de Petyr, PERRA, uma menina de cinco anos, - c. {Jeyne Lydden, morta numa queda de cavalo}, - o filho de Stevron, AEGON, um idiota chamado GUIZO, - a filha de Stevron {MAEGELLE}, morta após o parto, - c. Sor Dafyn Vance, - a filha de Maegelle, MARIANNE, uma donzela, - o filho de Maegelle, WALDER VANCE, um escudeiro, - o filho de Maegelle, PATREK VANCE, - c. {Marsella Waynwood}, morta após o parto - o filho de Stevron, WALTON, com Deana Hardyng, - o filho de Walton, STEFFON, chamado o DOCE, - a filha de Walton, WALDA, chamada BELA WALDA, - o filho de Walton, BRYAN, um escudeiro, - SOR EMMON, C. Genna, da Casa Lannister, - o filho de Emmon, SOR CLEOS, c. Jeyne Darry, - o filho de Cleos, TYWIN, um escudeiro de onze anos, - o filho de Cleos, WILLEM, um pajem em Cinzamarca, - o filho de Emmon, SOR LYONEL, C. Melesa Crakehall, - o filho de Emmon, TION, um escudeiro cativo em Correrrio, - o filho de Emmon, WALDER, chamado WALDER VERMELHO, um pajem em Rochedo Casterly, - SOR AENYS, C. {Tyana Wylde}, morta após o parto, - o filho de Aenys, AEGON NASCIDO-EM-SANGUE, um fora da lei, - o filho de Aenys, RHAEGAR, c. Jeyne Beesbury, - o filho de Rhaegar, ROBERT, um rapaz de treze anos, - a filha de Rhaegar, WALDA, uma menina de dez anos, chamada WALDA BRANCA, - o filho de Rhaegar, JONOS, um garoto de oito anos, - PERRIANE, c. Sor Laslyn Haigh, - o filho de Perriane, SOR HARYS HAIGH, - o filho de Harys, WALDER HAIGH, um garoto de quatro anos, - o filho de Perriane, SOR DONNEL HAIGH, - o filho de Perriane, ALYN HAIGH, um escudeiro, - de sua segunda esposa {SENHORA CYRENNA}, da Casa Swann: - SOR JARED, seu filho mais velho, c. {Alys Frey}, - o filho de Jared, SOR TYTOS, C. Zhoe Blanetree, - a filha de Tytos, ZIA, uma donzela de catorze anos, - o filho de Tytos, ZACHERY, um rapaz de doze anos, em treino no Septo de Vilavelha, - a filha de Jared, KYRA, C. Sor Garse Goodbrook, - o filho de Kyra, WALDER GOODBROOK, um garoto de nove anos, - a filha de Kyra, JEYNE GOODBROOK, com seis anos, - SEPTÃO LUCEON, a serviço no Grande Septo de Baelor em Porto Real, - da sua terceira esposa {SENHORA AMAREI}, da Casa Crakehall: - SOR HOSTEEN, seu filho mais velho, c. Bellena Hawick, - o filho de Hosteen, SOR ARWOOD, C. Ryella Royce, - a filha de Arwood, RYELLA, uma menina de cinco anos, - os filhos gêmeos de Arwood, ANDROW e ALYN, com três anos, - SENHORA LYTHENE, C. Lorde Lucias Vypren, - a filha de Lythene, ELIANA, C. Sor Jon Wylde, - o filho de Elyana, RICKARD WYLDE, de quatro anos, - o filho de Lythene, SOR DAMON VYPREN, - SYMOND, c. Betharios de Bravos,
    - o filho de Symond, ALESANDER, um cantor, - a filha de Symond, ALYX, uma donzela de dezessete anos, - o filho de Symond, BRADAMAR, um rapaz de dez anos, criado em Bravos como protegido de Oro Tendyris, um mercador dessa cidade, - SOR DANWELL, c. Wynafrei Whent, - {muitos natimortos e abortos} - MERRETT, c. Mariya Darry, - a filha de Merrett, AMEREI, chamada AMI, uma viúva de dezesseis anos, c. {Sor Pate do Ramo Azul}, - a filha de Merrett, WALDA, chamada WALDA GORDA, uma donzela de quinze anos, - a filha de Merrett, MARISSA, uma donzela de treze anos, - o filho de Merrett, WALDER, chamado PEQUENO WALDER, um garoto de oito anos, criado em Winterfell como protegido da Senhora Catelyn Stark, - {SOR GEREMY}, morto afogado, c. Carolei Waynwood, - o filho de Geremy, SANDOR, um rapaz de doze anos, escudeiro de Sor Donnel Waynwood, - a filha de Geremy, CYNTHEA, uma menina de nove anos, protegida da Senhora Anya Waynwood, - SOR RAYMUND, C. Beony Beesbury, - o filho de Raymund, ROBERT, de dezesseis anos, em treino na Cidadela em Vilavelha, - o filho de Raymund, MALWYN, de quinze anos, aprendiz de um alquimista em Lys, - as filhas gêmeas de Raymund, SERRA e SARRA, donzelas de catorze anos, - a filha de Raymund, CERSEI, de seis anos, chamada PEQUENA ABELHA, - de sua quarta esposa {SENHORA ALYSSA}, da Casa Blackwood: - LOTHAR, seu filho mais velho, chamado LOTHAR COXO, C. Leonella Lefford, - a filha de Lothar, TYSANE, uma menina de sete anos, - a filha de Lothar, WALDA, uma menina de quatro anos, - a filha de Lothar, EMBERLEI, uma menina de dois anos, - SOR JAMMOS, c. Sallei Paege, - o filho de Jammos, WALDER, chamado GRANDE WALDER, um garoto de oito anos criado em Winterfell como protegido da Senhora Catelyn Stark, - os filhos gêmeos de Jammos, DICKON e MATHIS, com cinco anos, - SOR WHALEN, C. Sylwa Paege, - o filho de Whalen, HOSTER, um rapaz de doze anos, escudeiro de Sor Damon Paege, - a filha de Whalen, MERIANNE, chamada MERRY, uma moça de onze anos, - SENHORA MORYA, C. Flement Brax, - o filho de Morya, ROBERT BRAX, de nove anos, criado em Rochedo Casterly como pajem, - o filho de Morya, WALDER BRAX, um garoto de seis anos, - o filho de Morya, JON BRAX, um bebê de três anos, - TYTA, chamada TYTA, A DONZELA, uma donzela de vinte e nove anos, - de sua quinta esposa {SENHORA SARYA}, da Casa Whent: - nenhuma prole, - de sua sexta esposa {SENHORA BETHANY}, da Casa Rosby: - SOR PERWYN, seu filho mais velho, - SOR BENFREY, c, Jyanna Frey, uma prima, - a filha de Benfrey, DELLA, chamada DELLA SURDA, uma menina de três anos, - o filho de Benfrey, OSMUND, um garoto de dois anos, - MEISTRE WILLAMEN, a serviço em Solar de Longarco, - OLYVAR, um escudeiro a serviço de Robb Stark, - ROSLIN, uma donzela de dezesseis anos, - de sua sétima esposa {SENHORA ANNARA}, da Casa Farring: - ARWYN, uma donzela de catorze anos, - WENDEL, O filho mais velho, um rapaz de treze anos, criado em Guardamar como pajem, - COLMAR, prometido à Fé, com onze anos, - WALTYR, chamado TYR, um garoto de dez anos, - ELMAR, prometido a Arya Stark, um garoto de nove anos, - SHIREI, uma menina de seis anos, - sua oitava esposa, SENHORA JOYEUSE, da Casa Erenford, - ainda sem prole, - filhos naturais de Lorde Walder, de mães diversas, - WALDER RIVERS, chamado WALDER BASTARDO, - o filho de Walder Bastardo, SOR AEMON RIVERS, - a filha de Walder Bastardo, WALDA RIVERS,
    - MEISTRE MELWYS, a serviço em Rosby, - JEYNE RIVERS, MARTYN RIVERS, RYGER RIVERS, RONEL RIVERS, MELLARA RIVERS e outros.
    Casa Greyjoy Balon Greyjoy, Senhor das Ilhas de Ferro, liderou no passado uma rebelião contra o Trono de Ferro, subjugada pelo Rei Robert e por Lorde Eddard Stark, Embora seu filho Theon, criado em Winterfell, fosse um dos apoiadores e mais próximos companheiros de Robb Stark, Lorde Balon não se juntou aos homens do norte quando marcharam para as terras fluviais. O selo dos Greyjoy é uma gigante lula dourada em fundo negro. Seu lema é Nós Não Semeamos. BALON GREYJOY, Senhor das Ilhas de Ferro, Rei do Sal e da Rocha, Filho do Vento Marinho, Senhor Ceifeiro de Pyke, capitão da Grande Lula Gigante, - sua esposa, SENHORA ALANNYS, da Casa Harlaw, - seus filhos: - {RODRIK}, morto em Guardamar durante a Rebelião Greyjoy, - {MARON}, morto em Pyke durante a Rebelião Greyjoy, - ASHA, capitã do Vento Negro, - THEON, protegido de Lorde Eddard Stark em Winterfell, - seus irmãos: - EURON, chamado OLHO DE CORVO, capitão do Silêncio, um fora da lei, pirata e corsário, - VICTARION, Senhor Capitão da Frota de Ferro, mestre do Vitória de Ferro, - AERON, chamado CABELO MOLHADO, um sacerdote do Deus Afogado, - seu pessoal em Pyke: - DAGMER, chamado BOCA RACHADA, mestre de armas, capitão do Bebedor de Espuma, - MEISTRE WENDAMYR, curandeiro e conselheiro, - HELYA, governanta do castelo, - pessoas de Fidalporto: - SIGRIN, um carpinteiro naval, - os senhores seus vassalos: - LORDE BOTLEY, de Fidalporto, - LORDE WYNCH, de Bosque de Ferro, - LORDE HARLAW, de Harlaw, - STONEHOUSE, de Velha Wyk, - DRUMM, de Velha Wyk, - GOODBROTHER, de Velha Wyk, - GOODBROTHER, de Grande Wyk, - LORDE MERLYN, de Grande Wyk, 645 - SPARR, de Grande Wyk, - LORDE BLACKTYDE, de Pretamare, - LORDE SALTCLIFFE, de Salésia, - LORDE SUNDERLY, de Salésia.
    Casa Lannister Os Lannister de Rochedo Casterly permanecem como o principal apoio da pretensão do Rei Joffrey ao Trono de Ferro. Seu selo é um leão dourado em fundo carmim. O lema Lannister é
    Ouça-me Rugir.' TYWIN LANNISTER, Senhor de Rochedo Casterly, Protetor do Oeste, Escudo de Lanisporto e Mão do Rei, no comando da tropa Lannister em Harrenhal, - sua esposa, {SENHORA JOANNA}, uma prima, morta durante o parto, - seus filhos: - SOR JAIME, chamado REGICIDA, Protetor do Leste e Senhor Comandante da Guarda Real, irmão gêmeo da Rainha Cersei, - RAINHA CERSEI, viúva do Rei Robert, gêmea de Jaime, Rainha Regente e Protetora do Território, - TYRION, chamado DUENDE, um anão, - seus irmãos: - SOR KEVAN, seu irmão mais velho, - a esposa de Sor Kevan, DORNA, da Casa Swyft, - o pai da Senhora Dorna, SOR HARYS SWYFT, - seus filhos: - SOR LANCEL, antigo escudeiro do Rei Robert, feito cavaleiro após a morte do soberano, - WILLEM, gêmeo de Martyn, um escudeiro, feito cativo no Bosque dos Murmúrios, - MARTYN, gêmeo de Willem, um escudeiro, - JANEI, uma menina de dois anos, - GENNA, sua irmã, casada com Sor Emmon Frey, - o filho de Genna, SOR CLEOS FREY, feito cativo no Bosque dos Murmúrios, - o filho de Genna, TION FREY, um escudeiro, feito cativo no Bosque dos Murmúrios, - {SOR TYGETT}, seu segundo irmão, morto de varíola, - a viúva de Tygett, DARLESSA, da Casa Marbrand, - o filho de Tygett, TYREK, escudeiro do rei, - {GERION}, seu irmão mais novo, perdido no mar, - a filha bastarda de Gerion, JOY, com onze anos, - seu primo, SOR STAFFORD LANNISTER, irmão da falecida Senhora Joanna, - as filhas de Sor Stafford, CERENNA e MYRIELLE, 647 - o filho de Sor Stafford, SOR DAVEN, - os senhores seus vassalos, capitães e comandantes: - SOR ADDAM MARBRAND, herdeiro de Cinzamarca, comandante dos batedores de Lorde Tywin, - SOR GREGOR CLEGANE, a Montanha Que Cavalga, - POLLIVER, CHISWYCK, RAFF, O QUERIDO, DUNSEN t CÓCEGAS, s o l d a d o s a o Seu serviço, - LORDE LEO LEFFORD, - SOR AMORY LORCH, um capitão dos destacamentos logísticos, - LEWIS LYDDEN, Senhor de Toca Funda, - GAWEN WESTERLING, Senhor do Despenhadeiro, feito cativo no Bosque dos Murmúrios e mantido em Guardamar, - SOR ROBERT BRAX e O i r m ã o , SOR FLEMENT BRAX, - SOR FORLEY PRESTER, do Dente Dourado, - VARGO HOAT, da Cidade Livre de Qohor, capitão da companhia de mercenários chamada Bravos Companheiros, - MEISTRE CREYLEN, seu conselheiro.
    Casa Martell
    DORNE foi o último dos Sete Reinos a jurar lealdade ao Trono de Ferro. Tanto o sangue como os costumes e a história distinguem os homens de Dorne dos outros reinos. Quando estourou a guerra de sucessão, o Príncipe de Dorne manteve o silêncio e não participou. O estandarte Martell é um sol vermelho trespassado por uma lança dourada. Seu lema é Insubmissos, Não Curvados, Não Quebrados.
    DORAN NYMEROS MARTELL, Senhor de Lançassolar, Príncipe de Dorne, - sua esposa, MELLARIO, da Cidade Livre de Norvos, - seus filhos: - PRINCESA ARIANNE, a filha mais velha, herdeira de Lançassolar, - PRÍNCIPE QUENTYN, o filho mais velho, - PRÍNCIPE TRYSTANE, O filho mais novo, - seus irmãos: - sua irmã, {PRINCESA ELIA}, casada com o Príncipe Rhaegar Targaryen, morta durante o Saque de Porto Real, - a filha de Elia {PRINCESA RHAENYS}, uma menininha assassinada durante o Saque de Porto Real, - o filho de Elia {PRÍNCIPE AEGON}, um bebê, morto durante o Saque de Porto Real, - seu irmão, PRÍNCIPE OBERYN, O Víbora Negra, - o pessoal de sua casa: - AREO HOTAH, um mercenário norvoshi, capitão dos guardas, - MEISTRE CALEOTTE, conselheiro, curandeiro e tutor, - os senhores seus vassalos: - EDRIC DAYNE, Senhor de Tombastela. As principais casas vassalas de Lançassolar incluem: Jordayne, Santagar, Allyrion, Toland, Yronwood, Wyl, Fowler e Dayne.
    Casa Tyrell
    Lorde Tyrell de Jardim de Cima declarou seu apoio ao Rei Renly após o casamento dele com a filha Margaery, e trouxe a maior parte de seus principais vassalos para a causa de Renly. O símbolo dos Tyrell é uma rosa dourada em campo verde-relva. Seu lema é: Crescendo Fortes. MACE TYRELL, Senhor de Jardim de Cima, Protetor do Sul, Defensor das Marcas, Supremo Marechal da Campina e Mão do Rei, - sua esposa, SENHORA ALERIE, da Casa Hightower de Vilavelha, - seus filhos: - WILLAS, o mais velho, herdeiro de Jardim de Cima, - SOR GARLAN, chamado GALANTE, O segundo, - SOR LORAS, O CAVALEIRO DAS FLORES, o mais novo, Senhor Comandante da Guarda Arco-íris, - MARGAERY, sua filha, uma donzela de quinze anos, recentemente casada com Renly Baratheon, - sua mãe viúva, a SENHORA OLENNA, da Casa Redwyne, chamada RAINHA DOS ESPINHOS, - suas irmãs: - MINA, casada com Lorde Paxter Redwyne, Senhor da Árvore, - seus filhos: - SOR HORAS REDWYNE, gêmeo de Hobber, escarnecido como Horror, - SOR HOBBER REDWYNE, gêmeo de Horas, escarnecido como Babeiro, - DESMERA REDWYNE, uma donzela de dezesseis anos, - JANNA, casada com Sor Jon Fossoway, - seus tios:
    - GARTH, chamado o GROSSO, Senhor Senescal de Jardim de Cima, - seus filhos bastardos, GARSE e GARRETT FLOWERS, - SOR MORYN, Senhor Comandante da Patrulha da Cidade de Vilavelha, - MEISTRE GORMON, um erudito da Cidadela, - o pessoal de sua casa: - MEISTRE LOMYS, conselheiro, curandeiro e tutor, - IGON VYRWELL, capitão da guarda, - SOR VORTIMER CRANE, mestre de armas, - BOSSAS-DE-MANTEIGA, bobo, enormemente gordo.
    Os Homens da Patrulha da Noite
    A Patrulha da Noite protege o reino, e jurou náo tomar parte em guerras civis e competições pelo trono. Tradicionalmente, em épocas de rebelião, honram todos os reis e não obedecem a nenhum. Em Castelo Negro JEOR MORMONT, Senhor Comandante da Patrulha da Noite, chamado VELHO URSO, - seu intendente e escudeiro, JON SNOW, bastardo de Winterfell, chamado LORDE SNOW, - o gigante lobo branco de Jon, FANTASMA, - MEISTRE AEMON (TARGARYEN), conselheiro e curandeiro, - SAMWELL TARLY e CLYDAS, seus intendentes, - BENJEN STARK, Primeiro Patrulheiro, desaparecido para lá da Muralha, - THOREN SMALLWOOD, patrulheiro chefe, - JARMEN BUCKWELL, patrulheiro chefe, - SOR OTTYN WYTHERS, SOR ALADALE WYNCH, GRENN, PYPAR, MATTHAR, ELRON, LARK, chamado HOMEM DAS IRMÃS, patrulheiros, - OTHELL YARWYCK, Primeiro Construtor, - HALDER, ALBETT, construtores, - BOWEN MARSH, Senhor Intendente, - CHETT, intendente e tratador de cães, - EDDISON TOLETT, chamado EDD DOLOROSO, um escudeiro severo, - SEPTÃO CELLADAR, um devoto ébrio, - SOR ENDREW TARTH, mestre de armas, - irmãos de Castelo Negro: - DONAL NOYE, armeiro e ferreiro, sem um braço, - HOBB TRÊS DEDOS, cozinheiro, - JEREN, RAST, CUGEN, recrutas ainda em treinamento, - CONWY, GUEREN, "corvos errantes", recrutadores que recolhem rapazes órfãos e criminosos para a Muralha, - YOREN, chefe dos "corvos errantes", - PRAED, CUTJACK, WOTH, REYSEN, QYLE, recrutas a caminho da Muralha, - KOSS, GERREN, DOBBER, KURZ, DENTADAS, RORGE, JAQEN HGHAR, criminosos a caminho da Muralha, - LOMMY MÃOS-VERDES, GENDRY, TARBER, TORTA QUENTE, ARRY, rapazes Órfãos a caminho da Muralha. Em Atalaialeste do Mar COTTER PYKE, Comandante, Atalaialeste, - SOR ALLISER THORNE, mestre de armas, - irmãos de Atalaialeste: - DAREON, intendente e cantor. Na Torre Sombria SOR DENYS MALLISTER, Comandante, Torre Sombria, - QHORIN, chamado MEIA-MÃO, patrulheiro-chefe, - EBBEN, COBRA DAS PEDRAS, patrulheiros.

 

 

                                                                  George R. R. Martin

 

 

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