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A porta do corredor da escola abriu-se com violência. Hannès Rassiem passou diante das duas raparigas, sem as ver, com o seu largo passo elástico, da cena, e desapareceu na sala da aula, ao fundo do corredor, onde ardia a última labareda amarela e cantante do gás.
Foi seguido pelo barulho dos batentes, fechando-se: primeiro o grande ruído duro da pesada porta da entrada, depois o bater seco da porta da aula, acolchoada de verde. Um cheiro a água de Colónia, a cigarros e a fino sabonete inglês ficou uns instantes suspenso no ar, e isso fez sorrir as duas raparigas, inconscientemente. Estavam sentadas, de pernas pendentes, no parapeito da janela, e Dima admirava-se ao pensar na pequenez dos pés de Elisabete Kerckhoff, preguntando a si própria se, na verdade, se podia achar aquilo bonito. Sobre o ombro de Dima, a outra parecia olhar para fora, onde não se via mais nada além duma parede cinzenta, sem janelas. Na realidade, escutava o alvoroço que lhe fizera palpitar o coração quando Hannès Rassiem passara. Decorrido um momento, disse ironicamente:
- Ele está a engordar, não achas?
- Ora! Por isso é que é primeiro tenor. (1)
(1) No texto; Kammersãnger.
- E depois, já não é novo.
- Tu bem sabes, Elis, que beber e amar são duas coisas que engordam.
Voltando-se, Elis abanou tristemente a cabeça:
- Achas que ele abuse disso tudo, Dima ?
- Oh, sim ! A minha irmã sabe umas histórias a seu respeito. - assegurou Dima -No teatro, todos falam nelas, mas eu não posso contactas, pequena. Poderiam escandalizar-te.
E os seus dentes, duma impecável brancura, brilharam entre os lábios rijos e muito vermelhos.
- Fica sabendo, Dima, que as tuas histórias não excitam muito a minha curiosidade.
-Não?
- Não. - disse Elis com um doce sorriso nos olhos Penso a respeito dele coisas bem piores do que as bisbilhotices de teatro contadas por tua irmã, e isso diverte-me.
Olhavam agora as duas pela janela e os seus olhos nem viam que não havia ali senão uma parede cinzenta e um quadradinho de céu triste, posto como uma tampa sobre o pátio envidraçado.
No corredor, sempre sombrio, reinava um calor úmido; as chamas do gás cantarolavam mas não iluminavam, indo até ao fim do corredor, como pequenas bolas amarelas, trémulas, suspensas em linha ao mesmo fio. Os bancos, ao longo da parede, estavam povoados por um grupo colorido de raparigas que segredavam e pareciam terrivelmente excitadas. Durante esse tempo, as alunas que já tinham feito o primeiro ano do Conservatório, andavam dum lado para outro, pretensiosas, com vestidos extravagantes, comendo torradas. Sentada a um canto escuro, a sr.a Gibich, a vigilante, fazia tricot. No fim de cada carreira, lançava, por cima dos óculos, um olhar inquieto, procurando ver possíveis inconveniências. Em seguida, coçava a cabeça com a agulha, pois usava uma trança postiça e rígida, dum loiro acinzentado, que lhe envolvia a fronte e lhe irritava a pele.
- E ele agora está separado da Kouczowska! - disse Dima, como conclusão duma longa cadeia de pensamentos
- com certeza não foi por brincadeira que a deixou, Elis. Uma artista daquelas! Uma mulher tão bonita! E uma condessa autêntica!
Elis não respondeu. Era muito agradável estar ali sentada, a imaginar, sobre as fendas da parede cinzenta, quadros ricos e audaciosos: castelo; em lindos bosques e outros cujas escadas levavam até ao mar, prados imensos, nos quais se erguia um único ulmeiro; homens e mulheres, estas com longos vestidos de cauda, e três jovens que dançavam com véus. E outras também, deitadas, todas nuas, que não faziam mais do que esperar. Mas os homens traziam todos couraça e viseira descida, ou então tinham os braços nus, como Siegfried.
- Porque não vieste ontem ouvir o Siegfried? preguntou ela, voltando-se para o corredor.
- Não tinha dinheiro.
E, dizendo isto, Dima, meteu o lenço entre os dedos e pôs-se a despedaçá-lo. Os músculos das fontes endureceram.
- Vamos, anda, é a hora da lição.-disse por fim.
De todas as portas verdes, diante das quais passavam, saía música; as paredes, os sobrados, os tetos ressoavam ; mas as vozes eram o que, principalmente, dominava o conjunto: vozes humanas, vozes de flautas, de piano, de violinos, e também, vindo de qualquer parte, a grossa voz dum órgão.
- Escuta, é a Lukas que está a cantar, -disse Elis, parando em frente da porta.
-Sim, a preferida. Que talento! Mas nunca terá as notas de cabeça. - criticou Dima, de sobrancelhas franzidas, compondo a blusa, antes de abrir a porta.
- É como no dentista, não é? - notou Elis - A porta verde e sempre o mesmo medo.
- Medo ? Que tolice ! - respondeu Dima, e o seu longo corpo delgado aprumou se, como movido por uma mola, enquanto transpunha a porta do aposento claro.
Alto e decorativo, Hannès Rassiem estava encostado ao fogão, com a sua gravata impecável, Tendo as mãos
cruzadas atrás das costas, inclinava-se um pouco para a frente, de tal forma que os loiros cabelos lhe caiam para a cara. Ao piano, encontrava-se sentado Wilhelm Gelfius, o ensaiador, magro, feio, cheio de ironia; ao pé dele, uma bela rapariga loira cantava uma velha romanza italiana, simples e, ainda assim, difícil, cujas notas pareciam de vidro transparente. Rassiem mergulhara os seus olhos claros, encovados, de negras pupilas brilhantes nos da sua discípula e, com esse olhar, sustinha-lhe a voz. com um leve cumprimento, Dima passou diante dele. Então o professor abandonou a cantora, cujo canto enfraqueceu imediatamente. Elis notou um sorrizinho nos olhos da sua amiga; Rassiem, disse:
- A nota de cabeça foi má no piangi; coloque a voz mais alta e mais à frente: piangi, piangi. E, cantando a meia voz, pregou de novo os seus olhos nos da aluna Lukas. E logo ela cantou melhor.
Em seguida, foi a vez de Dima. Pôs a música no piano e os seus olhos, as suas mãos, o seu corpo retomaram o aspecto tenso e consciente que haviam tido à porta. Elis olhou-a, depois considerou as suas próprias mãos que pendiam sem vontade e tremiam ligeiramente. "Tu, querida Dima"-pensou ela, sentindo vontade de chorar, sem dúvida porque Dima era mais alta e possuía uma maravilhosa voz de soprano, ou então porque sabia o que queria, ou porque Hannès Rassiem se aproximara dela e lhe segurava na mão, enquanto cantava. Quando acabou, Dima foi cumprimentada.
- Mas precisa de fazer exercícios de respiração acrescentou Rassiem -para alargar mais daqui.- As suas longas mãos poisaram um instante nos ombros de Dima, depois desceram até ao peito; os seus olhos claros olhavam sem ver, enquanto media a largura do busto: procedia como profissional, no entanto, a sensação deste calor mole e são ficou lhe nas mãos. Quando Elis começou a cantar, ele olhava ainda para Dima e, pela primeira vez, pensava que ela era bonita, aquela grande Dima tão enérgica, a quem faltava ainda finura e acabamento, mas que era bonita, quási bela com os seus cabelos indisciplinados, os seus olhos orgulhosos, o seu rosto moreno
e a sua boca estranhamente dura. Elis, durante esse tempo, havia terminado, sem que ele percebesse que tinha cantado mal. E isso era desolador.
- Nunca me ouve, Dima! -disse ela, desanimada, quando desceram juntas a escada, atrás de Rassiem.
Mas Dima não respondeu.
- Não se constipem! - recomendou o tenor quando desembocaram no vestíbulo frio - E vão fazer os exercícios respiratórios, não é verdade ? - disse ainda, na rua, mergulhando os seus olhos nos de Dima, com um sorriso extraordinariamente familiar. Depois, estendeu a mão às duas e partiu rapidamente, no seu passo elástico que elas observaram, sorrindo, até que ele se foi tornando cada vez mais pequeno, e desapareceu.
- Pronto, acabou-se outra vez! - disse Elis, baixando a cabeça - E é preciso ainda esperar, esperar.
- Três dias, Elis! Poderemos conter-nos?
- Somos ridículas, bem sei. Mas vou dizer-te uma coisa: tu. tu tens. tu és ainda mais louca do que eu.
- Minha menina inteligente!-replicou Dima, rindo. Depois, de súbito, atirou ao ar a sua pasta das músicas e, num pequeno tremolo, pôs-se a gritar:
- Louca! Sim, maravilhosamente louca! E feliz, feliz!
Um senhor velhote, muito digno, que passava abrigado pelo seu guarda-chuva, sobressaltou-se e voltou-se, com ar melindrado. Atrás dele, Dima tornava a cantar:
- Exercícios de respiração, exercicios de respiração, exercicios de respiração!
- Adeus, imbecil, idiota, cabeça louca. - disse Elis
- Valha-te Deus!
Fazia um certo mal ver afastar-se essa querida, essa bem amada Dima, de cabeça alta, com os seus caracóis castanhos em redor da fronte. Fazia um certo mal pensar que ela voltava para casa e ia fazer exercícios de respiração, e gritava de alegria. Um céu cinzento estava suspenso sobre as coisas, o ar era pesado e havia um gosto a fumo e a ferrugem. Em todos os rostos, Elis via qualquer coisa de ordinário e de vulgar. Uma neve
derretida pôs-se a cair. "Tudo me parece velho e gasto. - pensou ela -Não é agradável de ver..
E passava, alheia, nervosa, doentia, entre os outros entes, com os seus grandes olhos que todas as coisas reais entristeciam; com a cabeça sempre um pouco inclinada, sobre um pescoço de criança, delgado e branco.
"Querida Dima, - pensava - gostaria de ser jovem como tu! Mas estou cansada, morta de cansaço." E sorriu ironicamente de si própria, murmurando: "Atitude! Sentimentalismo! Exagero! Pois, mesmo nos seus próprios pensamentos, via ainda umas gotas de mentira.
Elis tinha então dezassete anos.
II
Comprou para a mamã umas anémonas de cor viva mas, quando chegou ao umbral da porta, hesitou. Continuava a fazer frio; reinava um cheiro a velhice; uma angústia, um calafrio subia das escadas bem cuidadas. Elis atravessou rapidamente os enormes aposentos, em redor dos quais grandes móveis antigos se encontravam alinhados, como esperando um hóspede incomodativo.
Chegou à porta do quarto de sua mãe, parou ainda e pensou, cheia de ironia: "Parece que me detenho em frente de todas as portas, como se tivesse medo."
A doente viu-a chegar, com os seus olhos distantes, arrancando a custo a mãozita de entre a roupa.
- Flores ? -preguntou, esforçando-se por sorrir. Mas não tinha alegria. O seu pobre corpito enfermo extinguia-se devagar. Apenas os olhos viviam e estavam cheios de sofrimento: atrás das portadas azuis, uma sombra esperava já: era como que uma amiga familiar... Elis beijou a mão da mamã, depois disse que, na verdade, tinha hoje muito bom parecer, que com certeza estava sem dores, ou que, pelo menos, eram mais fracas e decerto não precisaria de morfina, Acrescentou que cantara bem e que até a tinham cumprimentado. E, dizendo isto, baixou os olhos.
-O pai está? Ele não descerá, hoje? - preguntou a mamã, corando um pouco - Ah! deixa. é melhor assim. - acrescentou.
Porque o professor Kerckhoff não suportava, não podia absolutamente suportar o ver sua mulher doente. Ficava todo o dia lá em cima, no seu atelier, no meio duma torrente estonteante e vibrante de luz, tendo diante de si, sobre um estrado, membros nus. Trabalhava. Não pensava em nada, apenas olhava, olhava e queria constantemente ter â mão em contacto com o barro frio, maleável e úmido. As suas obras multiplicavam-se, amontoavam-se em roda dele no vasto atelier, enchendo todos os cantos. Apinhavam-se também, cobertas de poeira, nos aposentos pegados, chegando até à escada. As personagens, de músculos fortes e tensos, exibiam-se; homens lutavam, caídos no chão, feridos, estorcendo-se, abraçando mulheres. Mães de grandes dimensões olhavam à sua volta, com os olhos convexos: tinham grandes seios duroS e ancas fortes. E, no entanto, todas essas obras só existiam em superfície, eram mórbidas e pouco expressivas.
Elis almoçou ao pé da mãe; depois subiu lentamente ao atelier do pai. Diante da porta imobilizou-se mais uma vez, com um ligeiro sorriso de desdém por si própria. Um guerreiro jazia nu, ao pé da entrada. Elis encostou-se à parede e, por trás das pestanas baixas, detalhou esse grande corpo: tinha ombros largos, ancas estreitas, longas e belas coxas, pernas nervosas.
Uma súbita vergonha invadiu a rapariga, o sangue subiu-lhe violentamente ao rosto; sob um fluxo mais rápido, a artéria bateu-lhe levemente na garganta. Deu meia volta e tornou a descer a escada com uma agitação extraordinária no sangue.
Através das frestas da persiana do quarto da mamã filtrava-se uma fraca luz verde, desenhando riscos no teto. A doente agitava regularmente a cabeça, da direita para a esquerda, gemendo:
- A morfina .
Elis pegou na seringa. Enquanto dava a injecção no braço fino e branco, sentiu como uma leve náusea,
uma embriaguez, uma vertigem, i Quantos pontinhos vermelhos ali havia já!
A mamã acalmou, as pálpebras fecharam-se-lhe.
- Obrigada, filha. - murmurou ela.
Elis contemplou o querido rosto, de onde, lentamente, a vida partia. Lia-se nele uma expressão de saciedade, uma saciedade horrível e pesada. Depois, a mamã adormeceu.
Por um longo corredor mergulhado em trevas, Elis voltou ao seu quarto, deu alguns passos dum lado para outro, sem finalidade. Sobre o piano, sorria o retrato de Rassiem. Parou em frente dele e o seu pensamento monologou ironicamente:
"Não te envaideças, isto não passa duma paixoneta. i Porque havias de ser tudo para mim? Um tenor, um ninguém, que será em breve um homem gordo! Um conquistador que anda atrás das mulheres, um beberrão! i Como podes imaginar que estou apaixonada por ti? Ridículo! É apenas porque, neste momento, tudo mais é tão vazio e isto tão doce."
Abriu o piano e começou os seus exercícios. Possuía uma linda voz, mas que facilmente se fatigava.
- Só o solfejo? -preguntou Elis, fitando, implorativa, os olhos do retrato.
"Bem. Está certo, só farei solfejo. mas apenas durante uma hora.
O retrato teve um sorriso aprovador e ela pòs-se a cantar. Mas era monótono vocalizar apenas em A, em E e em O. Era fatigante e triste. Era cinzento, velho, descolorido como o resto, e era preciso que não fosse assim. Lentamente, Elis mergulhou nos seus pensamentos, tirou, com indiferença, o caderno de música do piano e calou-se. Um crepúsculo prematuro espalhava-se pelo quarto, lançando sobre as coisas um véu de irrealidade e de mágica. Elis escutou-se a si própria. Lá fora, a neve batia nos vidros e isso tornava o silêncio interior ainda maior e cheio de tentação.
Pôs-se a cantar Schubert. Começou de cor, com a cabeça inclinada e os olhos cerrados. As mãos corriam molemente sobre as teclas familiares. Esse canto, na
obscuridade, era como que uma embriaguez proibida, de que ninguém suspeitava. De olhos fechados, enfronhou-se na sonoridade como numa floresta, sempre para a frente; as frases melódicas erravam, misturavam-se umas com as outras. Em breve, não houve mais palavras além duma só, sem cessar repetida: "Tu! Tu! Tu!"
Alguém bateu à porta. Elis estremeceu. Estava absolutamente escuro. Tinha cantado durante horas; Seu pai abriu, mas ficou entre portas, esperando um instante, acariciando com impaciência a madeira da ombreira. Depois teve um grito de angústia.
- Vais para o pé da mamã, quando ela acordar, Elis?
- Sim, pai.
- Eu. Elis. não posso, não posso ver aquilo.
- Não, pai, não, com certeza. - disse a filha.
Falava muito baixo, numa voz fraca, seca, recalcitrante. E, enquanto a porta voltava a fechar-se, mergulhou os olhos nos do retrato, suspirando em voz indistinta :
-Tornei a cantar tempo demais, vês, e enrouqueci de novo!
Havia lágrimas e como que angústia, nos seus olhos. Desceu, um pouco mais tarde, ao quarto da mãe, a qual se queixava dèbilmente, num meio sono, e instalou-se ali para velar a doente. De vigília no pequeno sofá Império, ao pé da janela, doía-lhe a cabeça e continuava a escutar para dentro de si própria. Havia lá coisas frescas que, pouco a pouco, à claridade verde do candeeiro da mesa de cabeceira, se desenvolviam entre os ruídos da noite. Muito tarde, os passos pesados do pai ressoaram na escada. Depois a casa calou-se no meio do ruído da chuva.
Elis tinha uma forte dor de cabeça. Aquilo começou por uma bola quente, muito grossa, que se esforçava por subir da cavidade da nuca até às fontes; a bola rolava, deslizava, recomeçando a sua ascensão. Depois, veio uma dor lancinante que lhe cerrou os dentes como num torno e que voltou, ao ritmo do sangue. A rapariga tremia, as mãos crispavam-se-lhe, era-lhe impossível abrir os maxilares; os pensamentos voltavam de novo
numa oscilação desesperante de sons, de melodias, de ritmos. Ficou muito tempo deitada, tendo uma profusão de verde e de negro e uma espécie de roda cor de laranja diante dos olhos fechados. Por fim, como a mamã dissesse qualquer coisa, ela retomou consciência e, num esforço, pôs-se em pé.
- Elis, sabes se. o papá. está em casa? -preguntou a enferma olhando-a, na luz verde.
- com certeza, mamã. Que queres ? Não te sentes bem ?
Depois, com receio:
- Tens frio?
Pois a mamã tinha um sorriso estranho, dir-se-ia que o horrível frémito já havia chegado.
- O pai não dorme, - balbuciou - ele não dorme, oiço-lhe os passos. Há muito tempo que o oiço. i Vai e vem, vai e vem, ora escuta!
Nas velhas paredes, a argamassa estalava. Um relógio pequeno apressou o seu tique-taque. Os olhos da mamã pediram para se abrir a janela.
- É preciso ir chamar o pai?
A mamã fez que sim com a cabeça, depois teve vergonha e corou.
Elis subiu a escada, onde reinava o silêncio, até ao atelier. A bola dolorosa continuava a rolar-lhe na cabeça. Uma baixa voz de sino soou em qualquer parte. Elis estremeceu em frente do guerreiro da entrada que, à chama vacilante da vela se animou e se estorceu. Sem barulho, abriu a porta, mas diante da torrente luminosa que vinha direita a ela, recuou. Toda branca, debaixo dum reflector, erguia-se em gesso a reprodução duma mulher morta. Ao pé dela, uma outra, mas viva: a mesma, em pedra. Um véu cobria-lhes as formas; aqui e além, cicatrizes profundas mostravam quanto o cinzel tinha que tirar ainda. O professor Kerckhoff encontrava-se sentado, de olhar erguido, contemplando as duas mulheres gigantescas. Nos seus olhos lia-se uma grande inquietação.
- Pai?-disse Elis, timidamente. Sentia-o bem perto naquele momento.
Ele agitou-se:
- Que foi ? Ela vai morrer, Elis ?
- Não me parece, mas quere ver-te, é preciso que
venhas.
- Sim? - preguntou, incerto -Eu vou. já vou.- E, ao pé da porta, numa hesitação:
- Como está ela, Elis ?
Apagou a luz, depois demorou-se, indeciso, no limiar da porta.
Pai -pensou ternamente Elis, iluminando-lhe a escada. Comovida, observava as suas largas mãos musculosas, cheias de pó branco, que se crispavam de apreensão. A mamã, quási inconsciente, sorriu quando ele entrou. Elis seguiu-o e, sem barulho, fechou a porta.
Então, velaram no quarto da doente, ao pé da janela. Velaram, espiaram e esperaram até de manhã que qualquer coisa diferente, nova, espantosa acontecesse. Mas a mamã não morreu ainda nessa noite.
III
Frãulein Sofia Dimatter, dançarina do corpo de baile da ópera, na terceira quadrilha, era uma criaturinha gorda, de tez e aspecto jovem, com brilhantes nas orelhas. Era a mãe de Dima. O pai, o conde Scheíbbs-Monti, ministro havia pouco tempo, era um senhor de certa idade, excessivamente correcto, a quem, uma vez por ano, ela ia visitar. Nessa ocasião, ele chamava-lhe cQuerida Menina" e, discretamente e sem barulho, oferecia-lhe cem coroas, que fraulain Sofia trazia para casa e juntava ao seu capital. Desse capital, falava-se muito nos discursos que Sofia fazia a Dima. Era composto de indemnizações feitas a Sofia, na mocidade, por alguns bons amigos e, repartido mais tarde entre as suas duas filhas, devia abrir-lhes uma carreira brilhante. Gustí Dimatter, a corista, era evidentemente beneficiada nesta combinação, pois seu pai, era simplesmente o sr. Kruschina que, de resto, não aceitava a paternidade e não se mostrava disposto a fazer fosse o que fosse em seu favor.
As Dimatter habitavam uma casa operária, das Freihaus edifício monstruoso e vetusto que, com os seus numerosos pátios, as suas escadas e os seus corredores, era só por si um universo de estreiteza e de falta de conforto.
O barulho do grande mercado quebrava-se de encontro
às suas paredes, onde se abrigava gente humilde que crescia, envelhecia e morria ali. Jardinzitos guarneciam com a sua frescura os recantos dos pátios batidos pelo sol; nos ângulos escuros ardiam lamparinas vermelhas diante de resignadas madonas. Havia mesmo uma capelinha onde Sofia ia muitas vezes orar com fervor.
Durante os dias pálidos de inverno, era ainda escuro quando, de manhã, Dima se levantava. Os pequenos vidros recortavam-se, nítidos e acinzentados, na escuridão do quarto e, logo atrás, havia o céu lívido sem estrelas. Dima escutava o grito das sereias que, longe, lá em baixo, em qualquer parte, chamavam para as fábricas. Havia entre elas vozes agudas e baixas, e uma, entre outras, que, diariamente, chegava no fim e lançava um grito estrídulo e rouco. A esta, Dima tinha-se, por brincadeira, habituado a chamar: Fráulein Lukas. Quando a voz se calava, isso indicava que eram quási horas de levantar. Dima- espreguiçava-se no seu leito quente, tirava um braço para o ar frio do aposento onde, lentamente, se infiltrava o dia. Ela nunca terá bonitas notas de cabeça" -pensava, desperta pelo grito da sereia. Depois tornava a fechar os olhos e procurava recordar o seu último sonho, em que havia um mar imenso e negro perdendo-se obliquamente num céu de teatro, pintado de vermelho. E ele, sim, Hannès Rassiem, entrava no seu sonho: murmurava qualquer coisa, qualquer coisa de incompreensível e que, no entanto, lhe dava prazer.
Mas o ruído do moinho do café chegava até ela, vindo da cozinha, de mistura com pedaços duma romanza boémia que cantava a criadita suja, enquanto o lume começava, na lareira, o seu alegre crepitar. Dum salto, Dima saía da cama e deixava o frio correr sobre ela, como água.
No quarto vizinho, Gusti tinha com sua mãe a questão matinal e diária, no decurso da qual fráulein Sofia, com uma grande energia, defendia a virtude. E tinha razões para o fazer.
- Quando uma rapariga não triunfa com os seus ganhos e arranja um amante por dinheiro, tem desculpa,
- dizia ela - mas quando não precisa e se dá simplesmente por amor, é uma desavergonhada.
Gusti, que estava apaixonada por um músico da orquestra, replicava categoricamente à moral materna. Sem a menor delicadeza, aludia ao sr. Kruschina, de quem Sofia também não tinha precisado.
-De resto, Edlinger vai casar comigo!-vociferava ela.
E a porta do quarto de Dima abria-se violentamente, deixando passar as duas mulheres.
- Macaca! Imbecil! - dizia a irada Gusti, olhando com ar desaprovador para Dima, que nada arrancava aos seus exercícios de ginástica.
- Deixa a Dima em paz! Ela, ao menos, sabe o que quere! - dizia a mãe.
Depois desapareciam na cozinha, para o pequeno almoço, durante o qual todos os dias se reconciliavam.
Dima interrompeu as flexões do corpo. Imóvel, fixou pensativamente a pequena chama da vela posta em cima da mesa.
"Que quero eu ? - pensava. E imagens deslizavam através da chama. Subir a um palco, afrontar as luzes tão brancas e tão violentas que cegam, i Sentar-se num banco, sob grinaldas de flores, iluminada por um luar inverosímil, e cantar! Ouvir gritos e aplausos. Respirar o odor das pinturas, dos cremes, dos bastidores viscosos. E também o cheiro familiar e extremamente perturbador do cigarro, da água de Colónia e do fino sabão inglês.
- Triunfar! - murmurou Dima entre os dentes cerrados - Chegar a tudo isto.
Depois, afastou todos os pensamentos supérfluos e dedicou-se, positiva e concentrada, aos seus exercícios de respiração.
Sofia voltou cedo do ensaio e falou sem descansar até ao regresso de Gusti, enquanto Dima, sentada, com um livro na frente, estudava a história da música. Fazendo isto, escutava com um ouvido, para o caso de o nome dele ser pronunciado. Estremeceu quando isso
aconteceu e as suas faces morenas carminaram-se lentamente.
- Esse Rassiem! Anda agora com a Herbert!-dizia
Sofia - Na verdade, não a compreendo. Uma bailarinazinha tão bonita! Podia arranjar um arquiduque. Mas não, isso sim, correm todas, como loucas, atrás deste tipo. Se algum dia uma filha minha se enamorasse dele, matava-a com as minhas próprias mãos!
- Enamorar se de Rassiem ? -preguntou Gusti que acabava de entrar, com a cabeça em desalinho, as faces coradas, um clarãozinho de culpabilidade nos olhos levemente olheirentos -Rassiem? -repetiu, atirando-se à sopa
- Não somos tão tolas, nem uma nem outra. Esse homem não convém. Um homem deve ser. como
deve ser.
O Edlinger!" -pensou Dima, com um sorriso. A criada, que acabava de trazer a carne, plantou-se, com toda a sua largura, entre a porta.
- O nosso novo padeiro, é um homem muito bem.
- disse ela, metendo se na conversa.
Gusti, que mergulhava a colher no prato, pôs-se a rir. No entanto, como mulher experiente, Sofia informava-se:
- Temos um padeiro que é bem? Que ar tem ele? Depois da refeição, Gusti veio para junto de Dima, para o quarto. Estendeu se em cima do velho canapé negro e ascético, de coberta lavável, e ficou longo tempo calada. Dima estava sentada ao pé da janela, cosendo uma fita verde, nova, num chapéu velho, pois Rassiem gostava dessa cor.
- O Edlinger. -disse Gusti com ansiedade, enquanto Dima olhava para ela - É claro, o Edlinger. - Reteve a respiração, depois saiu isto: - Deve escrever! hoje mesmo à Sofia.
Como fraulein Dimatter gostava de passar por irmã das filhas, chamavam-lhe sempre Sofia.
- E ele é muito bom. - acrescentou Gusti, radiante.
- Ah! sim, isso é verdade, Gusti. Então queres
casar com ele ? -Pois!
- É engraçado, - disse Dima - casar-se a gente com um homem, só porque ele é bom.
- Ora, que entendes tu disto? Primeiro, as raparigas como nós não têm facilidade em casar, e a Sofia tem razão: um namorico, sem mais nada de definitivo, é afinal uma porcaria.
- Talvez, e nós não precisamos disso, bem sei. Então vais entrar no famoso capital e comprar móveis insipidos, contraplacados; dirigirás a tua casa e serás a mulher do sr. Edlinger.
- A mulher do sr. Edlinger ! - repetiu Gusti, sonhadora, fechando os olhos.
- Ouve, Gusti. -disse Dima com calma, ajoelhando ao pé da irmã - Nunca desejaste outra coisa, qualquer coisa melhor? Dize ?
-Melhor? Como? Qualquer coisa melhor do que casar ? Ah ! eu gosto tanto dele !
Dima levantou bruscamente a cabeça, mergulhando a direito nos olhos de Gusti.
- Como isso soa bem ! - pensou alto. -Tu ainda não compreendes.
"O que é o amor ? É estar apaixonada ? - pensou Dima. E ainda: "Isso existe, realmente ? Não existe só no teatro? A menos que o sentimento que tenho por Rassiem . seja amor? Ah! não, é criancice e absurdo. Absurdo, apenas." - concluiu.
No entanto, o coração batia-lhe forte, tão forte. Então, pôs-se a cantar.
Às quatro horas, Dima e Elis juntaram-se debaixo das escadas da Ópera. Muita gente se encontrava já em frente da porta fechada pois, nessa noite, levavam Os Mestres Cantores. Os estudantes das aulas de regentes de orquestra, com sobretudos compridos e grandes botas, tinham tomado lugar mesmo à frente. Estava um frio de fazer chorar. O vento empurrava diante de si uma neve acinzentada, dura, que picava os olhos. Elis e Dima lutavam contra ela, de cabeça baixa, cambaleando ao longo da casa dos músicos, onde estavam expostos os retratos dos artistas. Pararam um instante,
por hábito, contemplando com olhos críticos esses rostos de cena, radiantes e enrugados, tendo todos, como é natural, um sorriso feliz.
- Olha, ele aqui parece-se absolutamente com toda a gente. - disse Elis com desagrado, indicando, com o queixo, um retrato de Rassiem.
- Oh! Não é muito diferente dos outros! Como querias tu que fosse o teu Rassiem ?
- Meu ? É muito mais o teu Rassiem do que o meu. Não é verdade?
- Não. - disse Dima, que não o queria confessar. Uma criaturinha de grandes olhos esfaimados, pôs-se
atrás delas na bicha. Tinha ouvido o nome.
- Rassiem . - disse - Hannès Rassiem ? - E deixou rolar as duas palavras pela língua como qualquer coisa muito doce - É o melhor de todos. É, na verdade, único.
Aprovar, depois contradizer; bater com os pés para os aquecer, assoprar nas mãos entorpecidas. Alguém fala da Kouczowska. Ela está absolutamente espantosa! i Infelizmente, não pôde viver com ele, que lhe batia! E ela enganava-o. Dois artistas assim! Isolda como ela não aparece outra, E tampouco um Tristão semelhante !
Estava mais quente. O pequeno grupo aumentava a olhos vistos. Às cinco horas, Wilhelm Gelfius, o ensaiador, chegou com as suas pernas que pareciam andas, trazendo uma grossa partitura debaixo do braço. Das algibeiras do leve sobretudo, trasbordavam livros. Pouco depois, ouviu-se o ruído de chaves e o velho guarda abriu as portas. Então, todos se comprimiram para entrar, voltaram a esquina a passos de gigante e acumularam-se, muito apertados, nos meandros das barreiras do interior.
Uf! Ali estava quente e bom. As chamas do gás silvavam, os fatos úmidos principiavam a secar exalando vapor e os ombros, os braços, as pernas, um pouco fatigados, encontrando-se, encostavam-se uns contra os outros em despreocupada vizinhança. Conheciam-se, havia simpatia entre eles a despeito de acaloradas discussões, dos debates de fazer arrepiar os cabelos - estavam unidos
por qualquer coisa indefinível. Trasbordavam de entusiasmo, havia uma febre, uma fome de arte, de música, de espectáculo; tinham todos de dezassete a vinte anos; ardiam de mocidade e, nessa noite, sentiam-se muito felizes, porque iam ouvir Os Mestres Cantores.
Às seis e meia abriram as bilheteiras. À frente, ouviram-se clamores crescentes que se transformavam em ameaças. As pessoas não podiam passar senão em bicha; atiravam-se, de expressão ansiosa, para a caixa e davam o dinheiro, antecipadamente preparado. Ouviam-se depois subir a escada, correndo, como se subissem duma vez três dos degraus baixos.
Dima, que fora uma filha da Ópera, tinha protecções e gozava do direito reservado à gente do teatro, de se empoleirar num corrimão de cobre que vedava a porta duma escada. Gelíius instalou-se confortàvelmente num degrau, sobre o qual uma lâmpada de socorro lançava o seu clarão dum vermelho pálido, e pôs-se a ler a sua partitura. Quanto a Elis, que tinha atrás de si um lugar sentado, não desejava ver nada, mas apenas ouvir.
A sala, muito iluminada, estava cheia. Em baixo, afinavam-se os instrumentos, misturando-se os sons. O lá agudo do oboé, flutuava sobre os arabescos confusos de sons. O motivo da fuga chegava, curto e ziguezagueado, não se sabia de onde. Elis pôs-se a rir porque as mãos lhe arrefeciam.
- Quando oiço os instrumentos e o pano a levantar-se, dá-me uma espécie de febre, Gelfius. - murmurou ela.
Este resmungou qualquer coisa incompreensível por cima da partitura que tinha aberto e que contemplava com um olhar encantado.
Durante esse tempo, Dima estava sentada, hirta e direita no seu corrimão, olhando ansiosamente para a sala movimentada. De repente, sentiu como que um choque; no mesmo instante a sala inteira pareceu deixar de respirar. Um curto murmúrio, um ruido imperceptível e depois o silêncio. Em baixo, o magro e pequeno director, ao mesmo tempo maestro, que era venerado, atravessava o grupo dos músicos, de cabeça para a frente. Tomou
posse do seu lugar, voltou-se rapidamente para as primeiras poltronas. Apagaram as luzes; os vidros dos
seus óculos cintilaram.
Então, na obscuridade, onde nem uma respiração se ouvia, o radioso dó maior, do primeiro andamento, subiu. Elis meteu a cabeça entre as mãos e embrenhou se nas misteriosas profundidades da música. Ouvir era para ela qualquer coisa de infinito, uma embriaguez à qual se abandonava inteiramente, em que mergulhava camba leante, entrechocando os joelhos e sentindo na garganta uma ardência estranha e doce que lhe fazia mal. Gelfius, em pequenos movimentos bruscos, dirigia ao mesmo tempo o maestro e tomava notas, irritando-se e entusiasmando se, de vez em quando. De súbito, ouviu Elis soltar um breve suspiro e estremecer. Foi antes do Fangeí an de Stolzing. A ansiedade com que ela esperava que soasse o timbre heróico da voz de Rassiem ? era quási dolorosa. Gelfius levantou os olhos da partitura e fitou-a. Sentia-se comovido ao ver as mãos tão pálidas e tão pequeninas da rapariga, nas quais a cabeça, onde a luz da lâmpada de alarme lançava doces reflexos, se ocultava com abandono. Em cima, Dima erguia-se, com o corpo tenso para ver, os olhos erguidos e atentos, os lábios tão cerrados que formavam um traço horizontal no seu rosto moreno, de rapaz.
O acto acabou com aplausos frenéticos. Elis, despertou com a luz, como com uma chicotada, e foi encontrar-se com Dima no corredor, entre gente que discutia e comia. Estava calada, sentindo se muito solitária. Dima, essa, sentia-se embalada por qualquer coisa de novo e de belo: o papel de Isolda! Ideia que espantaria Rassiem, Elis, Gelfius e a Lukas. Mas ela ainda o não podia dizer, era preciso trabalhá-lo. E, estirando os braços, pensava: Daqui até que eu cante o papel de
Isolda!"
De Hannès Rassiem, não disseram uma palavra. Nos últimos tempos, Dima tornara-se estranha e fechada, não querendo absolutamente admitir que já tivesse estado entusiasmada por
ele. Quanto a Elis, sentia vergonha de experimentar sozinha aquele sentimento que aumentava, aumentava sempre. Calaram-se um momento e ambas pensaram nele: pois hoje estava belo e jovem, verdadeiramente maravilhoso.
- Menina Kerckhoff, - disse abruptamente Wilhelm Gelfius, durante o intervalo seguinte - sabe o que é um acorde de quarte-sixte ?
- Não faço a mínima ideia.
- Já calculava. Vocês não querem saber da teoria. Vê se pela forma como ouve. Sabe como ouve? Como uma amadora, nem mais nem menos, como uma amadora ignorante e entusiasta.
- Ah! Gelfius, então as amadoras são muito felizes.
-Felizes. sem dúvida. talvez seja esse o seu caso. Mas imagina, meu Deus, imagina, -preguntou em voz estrangulada de emoção, tanto desejava convencer - que esta música, esta música -e apertou a partitura contra o coração - foi feita para a tornar feliz a si e às levianas da sua espécie?
-Não sou tão leviana como isso, Gelfius; não, porque, antes, faço a diligência por pensar muito. mas quando oiço a música, posso esquecer tantas coisas! A vida nem sempre é alegre para mim! Não.
Ficaram em silêncio. Elis pensou na sua casa, no pai, na mamã. Esquecer faz tão bem!" -murmurou e sentiu quanto aquilo poderia parecer injusto e exagerado.
- Ah! ah! é isto!-rebentou Gelfius, absolutamente encolerizado - Sabe o que é uma pessoa divertir-se dessa maneira com a música? É perder tempo, nem mais nem menos. Santo Deus! É preciso trabalhar! - Mudando de repente de tom e com insistência, disse:- Suplico-lhe, aprenda teoria, trabalhe. Aprenda a ciência da harmonia, é preciso ver mais claro em si mesma. Deixa-se andar e não devia abandonar-se assim. Estudo-a há muito tempo, há muito tempo, Elis. Quando canta, quando ouve, quando faz música. É um verdadeiro suicídio.
- Um suicídio?!- replicou Elis, sorrindo - Escute, Gelfius, esse pensamento não é assim tão terrível, o suicídio
pela música! Não é má ideia e creio que pode acontecer; a gente deixar-se levar, por exemplo, pela música de Tristão até morrer.
Apagaram-se as luzes. "Agora,-pensou Elis-vamos!" -e mergulhou a cabeça entre as palmas das mãos. Durante o acto, nem um segundo olhou para o palco: parecia-lhe que, na atmosfera, o motivo de Tristão deslizava; reminiscência que fazia frémitos, desejo melancólico de qualquer coisa .
Então, Elis ergueu a cabeça e um sorriso que planava estranho e como perdido, brincou nos seus olhos.
IV
Às três da manhã, Hannès Rassiem separou-se da pequena bailarina ruiva e voltou para casa, assobiando. O ar estava frio e seco. Um céu muito negro estendia-se sobre a cidade, salpicado de numerosas e luminosas estrelas. Rassiem tirou o chapéu e deixou o vento leve, penetrante, arrancar-lhe os cabelos da testa; era um alívio depois de todo o vinho bebido e das intermináveis e fatigantes carícias. E isso tirou-lhe do rosto o cheiro da rapariga.
"É preciso habituá-la a outro perfume, - pensou ele -um perfume menos doce, que irá melhor com os seus cabelos ruivos e os seus olhos vazios. É preciso qualquer coisa de mais amargo."
As narinas vibraram-lhe fracamente. "Também já não vale a pena."- concluiu, bocejando. Fatigara-se, poderia talvez dormir. Tanto melhor.
Passou todo o muro do parque de Schwarzenberg e notou a sua sombra, grande e alta, que caminhava a passo elástico, ao seu lado. Tinha os largos ombros descidos, o torso forte e o passo ágil, da cena. Brincou um pouco, levantou o braço num gesto decidido e pôs a mão na testa. A sombra fez o mesmo. Rassiem assobiou, contente, e dirigiu-se para o calmo bairro diplomático onde morava.
O criado dormia no vestíbulo; em toda a casa, a luz, acesa, estava à sua espera. Tinha um secreto receio de recolher de madrugada, de andar, de vela na mão, através dos aposentos. Porque, podia acontecer que ressaltasse, horrível, de qualquer espelho, um rosto lívido e flácido, de olhos orlados de negro, um rosto de homem embriagado, com múltiplos sulcos no queixo e nas fontes.
Porque Hannès Rassiem tinha mais de quarenta anos.
Sobre a mesa de cabeceira, estava uma carta de Londres. As mãos de Rassiem crisparam-se, os seus olhos tornaram-se agudos, todo o seu ser se concentrou para se tornar indiferente; a carta era da mulher de quem estava separado.
A Kouczowbka escrevia assim :
Meu querido amigo: Estou aqui, sentada entre as malas fechadas, num quarto de hotel forrado de papel insípido, capaz de me endoidecer. O comboio só parte daqui a duas horas. Isto é monótono, como não se pode imaginar senão em Londres, um verdadeiro domingo londrino. Não consegui obter nada quente para o meu lanche; não posso ir para a sala de leitura porque está lá um pobre rapaz que me adora com um ardor digno de qualquer coisa melhor. Por um capricho, fi-o ir para lá e agora, ai de mim! lá está á minha espera. Hoje, com a melhor vontade do mundo, não o posso ver - tem umas feições tão regulares que me desesperam.
Tive muito êxito aqui, mas não é divertido, sabes? Depois, isto continuará na América. Antes, canto em Bruxelas, Queres vir conversar um pouco comigo? Seria amável da tua parte."
A carta terminava por uma curiosa volutazinha que significava: Maria. E depois, em letras cerradas e ponteagudas, uma frase escrita à margem: Escuta. às vezes tenho tantas saudades de ti!."
Hannès Rassiem apertou os dentes a ponto de certa veia azul se lhe avolumar na testa como em resultado duma pancada. Deu volta à luz e estendeu-se uns instantes na noite silenciosa, amarrotando a carta entre as
mãos, sem pensar, O sangue batia-lhe nas fontes, fazendo dançar na penumbra círculos vermelhos, verde pálido e laranja forte, estrelas, curvas que se alongavam e se fundiam umas nas outras.
Depois, acudiu lhe a recordação duma voz, de finas mãos inteligentes e marfíneas; dum rosto de pálpebras pesadas sobre olhos negros e duma boca dolorosa que ria e se inclinava. Hannès Rassiem rompeu em soluços. Então, tudo se reduziu a uma espécie de veludo roxo, sedoso e ondulante .
No dia seguinte, tomou o comboio para Bruxelas.
Partiu ao meio-dia, fatigado, enervado pelas diligências maçadoras que tivera de fazer para conseguir licença. Doía lhe a cabeça, não retinha ideias. Sentou-se uns minutos no vagão-restaurante, tendo à sua frente um mau café e um licor que cheirava a sabão. Lá fora, a paisagem fugidia estava afogada numa chuva espessa, misturada de neve; lentamente, internava-se em colinas e em montanhas; lentamente, tornava-se rasa em planícies. O dia estendia-se até ao infinito sob o murmúrio rítmico do comboio. Chegou a noite e estendeu como que um véu sobre as coisas. Rassiem voltou para o seu compartimento, onde adormeceu profundamente, sem sonhos, acordando apenas em raros intervalos, por causa dum choque, do grito dum empregado, do clarão que os candeeiros duma estação lançavam no vagão.
Quando Hinnès Rassiem chegou a Bruxelas, a hora da abertura do teatro havia passado. Foi deixar a mala no hotel do costume.
- O quarto, perto de frau Kouczowska. - ordenou o impecável gerente.
-A senhora manifestou esse desejo ?-preguntou vivamente Rassiem, louco de alegria.
- Não. A senhora nem suspeita mesmo que o senhor chegou.
com surda irritação, Rassiem considerou aquele rosto profissional e impenetràvelmente amável. Assaltou o uma raiva surda. Por um instante, arrependeu-se de ter vindo. Voltar para trás, retomar o comboio, embriagar-se, não se deixar dominar pelo desgosto, não sofrer
como um ingénuo sem experiência, desesperadamente apaixonado .
Num movimento vivo, voltou costas ao empregado, ordenou que levassem rosas ao camarim da Kouczowska, com um cartão tendo apenas o seu nome. Depois, vestiu-se à pressa e fêz-se conduzir ao teatro.
Quando se instalou no seu camarote, estavam no
2º acto da Tosca. A Kouczowska, ajoelhada diante dum Scapia triste e rotineiro, erguia as mãos finas, rígidas como numa cãibra; o seu vestido de seda cingia lhe estreitamente o corpo. Roçagante, recebia as luzes da ribalta, a luz amarela das velas e refractava-a em cores opalinas.
Aquela Tosca sofria, sofria espantosamente, com os olhos, com as sobrancelhas, que não estavam pintadas, com a boca aberta e bem desenhada, com cada um dos seus membros finos que se curvavam e tremiam como debaixo dum chicote. Ao fundo do palco, Maria gemia e, na orquestra, subia, lúgubre, o barulho dos instrumentos de tortura, apertando cada vez mais a sua fronte.
De súbito, Rassiem olhou para as mãos, colocadas no parapeito do camarote; tinha os dedos crispados, as unhas profundamente enterradas no veludo cor de framboesa, Não pôde deixar de sorrir ao pensar que podia esquecer que tudo aquilo era apenas teatro! Mas também era porque existia uma mulher capaz de causar esse esquecimento, e ele amava essa mulher. No entanto, só obscuramente discernia tudo isto; ao seu pensamento faltava clareza. Então, abandonou se completamente, totalmente à cena, com a respiração suspensa, numa emoção que chegava ao íntimo de si próprio.
A luz e o descer do pano no final do acto, acordaram-no. Compôs a camisa engomada ao espelho do camarote, passou a mão pelos cabelos, arranjou uma expressão indiferente de homem de sociedade. E, pelas portas de ferro que conduziam ao palco e através de corredores pelos quais passava rapidamente gente pintada, foi ter ao camarim de sua mulher.
Entre as paredes brancas, a Kouczowska estava em pé
diante dum espelho alto, directamente sob luz crua das lâmpadas, e o seu rosto, voltado por cima do ombro para o marido sorria-lhe com as feições acentuadas da máscara. As rosas de Rassiem estavam colocadas sobre uma montanha de outras flores.
- Que amável surpresa! -disse ela - Que fazes tu em Bruxelas, Hannès?
Estendeu lhe a mão, enquanto uma criada pálida, de grandes olhos, lhe esfregava os braços com água de Colónia.
- É extraordinário encontrar-te aqui!
- Mas. tu não me escreveste a dizer que estarias hoje em Bruxelas e gostarias de me ver, Maria? É natural, portanto, que eu tenha vindo.
- Ah! Eu escrevi te isso ? Já não me lembrava.
- disse ela, distraída, desenhando, com a maior atenção, uns finos traços sombrios ao longo das narinas. E acrescentou, mais baixo -Julguei tê-lo somente desejado.
Calou se e sorriu, olhando-o. As pupilas de Rassiem fremiam. A mulher voltou se para o espelho. - Se achares uma cadeira livre, senta-te e fala. Tenho tempo. Como vives? Que contas? dize. estás contente comigo?
-Continuas maravilhosa! - exclamou Rassiem. Depois sentou se, obediente. Respirou o perfume familiar e perturbante da sua mulher, viu o corpo adorado inclinar-se para o espelho, esse corpo tão conhecido, tão rico, tão cheio de recordações em cada um dos seus gestos. Ouviu lhe a voz e o seu coração confrangeu-se num sofrimento, do qual poderia quási gozar como de qualquer coisa transcendente e desconhecida. Rolou entre os dedos um cigarro que não devia fumar ali, e encetou uma conversa correcta: coisas amáveis que contou sorrindo, com o rosto ausente e a boca cheia dum sabor amargo.
- É pena que já tenha a minha noite comprometida.-disse a Kouczowka-Vou cear depois do espectáculo com uma gente aborrecida. Era tão agradável estar só contigo! Mas não posso convidar-te a vir connosco, a nossa situação é tão delicada, não é verdade?
Ver-nos-emos mais tarde, amanhã, ao pequeno almoço, no hotel.
Rassiem fez um supremo esforço para se dominar. Viu o seu rosto impassível, no espelho, e ficou satisfeito consigo.
- É pena, - disse - amanhã já cá não estarei. O meu comboio parte às cinco da manhã. Sim, termina a licença, mas uma vez que já tens companhia.
A campainha tocou.
- De qualquer forma, - insistiu a Kouczowska ainda te vejo antes do fim do espectáculo, não é verdade ? Responde.
As suas mãos e os seus olhos tornaram-se febris.
- Agora vai te, é a hora da minha entrada em cena. Depois, sim? Adeus.
Ele poisou um instante as mãos em volta das de Maria: isso acalmava-a sempre antes de cantar. Uma vez mais os dedos finos e trémulos da diva se abrigaram nos seus.
- Isto faz bem, Hannès. mas vai, anda, agora vai. A porta fechou se atrás dele. Cá fora, parou um
instante, no corredor, com os punhos cerrados, aspirando o ar que lhe saía por entre os dentes. Um furor perigoso subia em si; teria gostado de rugir, de dar socos nas paredes, de agarrar na mulher pelos cabelos, atirá-la ao chão, pisá-la, sim, pisá-la.
Fugiu para o ar livre e acendeu um cigarro. A chuva escorria-lhe pela cara, as gotas martelavam na sua camisa engomada; e isso chamou o a si. Voltou ao camarote, sentou se, estúpido, sem poder seguir uma ideia, até acabar a ópera, rangendo os dentes várias vezes e tomando por fim, a resolução de não ver a mulher depois do espectáculo.
No final, ficou de gola levantada, com o chapéu alto enterrado, ao pé da saída dos artistas, oculto na sombra duma parede. Rapazes comprimiam-se à sua volta e tal excitação desagradou lhe: fazia lhe certo mal. Estremecendo de impaciência, um automóvel esperava a Kouczowka. No interior, violentamente iluminados, pesados lilases oscilavam nas jarras. De súbito,
os rapazes tornaram-se mais ruidosos; o seu francês desagradável, do norte, subiu em tonalidade: ela apareceu, profundamente metida nas suas peles. Um senhor magro, de certa idade, conduziu-a ao automóvel. Féz-se escuro lá dentro e tudo desapareceu numa nuvem de vapores de gasolina e de gritos e aplausos do povo.
Rassiem voltou ao hotel. Aí, pós o relógio na mesa, apagou todas as luzes salvo a da mesita de cabeceira, de quebra-luz azul; depois ficou longo tempo sentado, com a cabeça entre as mãos, o espírito perturbado por pensamentos que iam e vinham, pesados e desencorajantes como os das crianças.
Porque ele não era inteligente, Hannès Rassiem não. Não conhecia nada de si mesmo senão que era belo e célebre, que possuía uma linda voz e sabia cantar; verdadeiramente cantar, como os grandes cantores italíanos de outros tempos, embora fosse um cantor de Wagner, que sabia o que fazia. Saber cantar era a única coisa que lhe parecia ter importância. Tomava o resto sem se prender, vivia a vida como ela lhe vinha parar às mãos, com pequenas alegrias e bagatelas. Não muito feliz, talvez. Mas não sofrendo nem reflectindo. Somente uma coisa tinha importância para ele: o seu amor pela Kouczowska. Esse amor atormentava-o, fazia-lhe mal, perturbava-o profundamente e, por causa mesmo desse sofrimento, que era a única coisa que o fazia viver, estava indissoluvelmente ligado à mulher.
Mas isso não o sabia Hannès Rassiem .
Agora estava sentado, com a cabeça mergulhada nas mãos. Esperava que fosse dia para poder ir se embora. O relógio, em cima da mesa, fazia ouvir o seu tique-taque nervoso, rasgando em pequenos segundos apressados o tempo que, apesar de tudo, não avançava. Pensava que tinha viajado dois dias para falar a sua mulher durante cinco minutos e que, nesses cinco minutos, ela lhe tinha feito um mal horroroso. Via a, em imaginação, como ela devia estar agora, enquanto ele se encontrava ali, a sofrer. Ela ria, movendo-se num aposento claro, com a cabeça atirada para trás sobre os ombros nus, As pálpebras baixavam-se-lhe e beijava alguém.
Despedaçou o quadro, atirou-o para longe de si e levantou-se:
O tenor era mau."- Lembrou-se de repente deste facto, duma forma inesperada e isso fez lhe bem. Deitou-se em cima do divã e fechou os olhos: o grande dueto do segundo acto acudiu-lhe ao espírito, restos de ária ressurgiram, materializaram se. Depois tudo se misturou confusamente e Hannès Rassiem adormeceu.
Muito mais tarde, a porta abriu se devagarinho e a Kouczowska entrou em bicos de pés. Os seus pesados cabelos, acobreados, estavam soltos; um quimono azul caía lhe molemente sobre os ombros. Inclinou se para o adormecido e sorriu. Estava belo, a dormir, parecia uma criança grande. As suas longas pestanas sombreavam lhe as faces, imprimindo-lhe qualquer coisa de doce e enternecedor.
- Meu belo animal! - murmurou a Kouczowska, inclinada sobre ele, dominando se.
Ele ergueu os olhos e as mãos, perturbado no seu sonho. Então um ligeiro frémito apoderou se dela. Dominou-se ainda um segundo, depois, como fogo, muito amorosa, cobriu o de carícias. Atrás dos seus dentes cerrados, ele soltou um grito que pareceu ao mesmo tempo de júbilo e um soluço, de tal forma involuntário, que ela teve um frémito que conhecia e de que gostava.
- Tu és meu, tu . -murmurou, perdida, enquanto Hannès a puxava para junto de si.
Wilhelm Gelfius, o feio, estava sentado ao piano martelando acordes impacientes e sem seguimento. De vez em quando, lançava um olhar furtivo para Elisabete Kerckhoff que, de pé, junto da janela, com a testa encostada aos vidros, olhava para fora com os seus grandes olhos distantes, i Havia uma hora que esperavam Rassiem que não vinha, não vinha!. Um sol matinal, largo e claro, inundava o aposento; a poeira dançava, luminosa, na torrente.
Encostada ao fogão, fraulein Lukas falava em voz baixa e persuasiva com o barítono Lorm, que arqueava as sobrancelhas sem dizer palavra; ela tornara-se pálida nos últimos tempos, e tinha uma forma lassa e pesada de atirar os cabelos para trás e cruzar os braços na nuca. Muitas vezes parecia exausta de chorar.
Wilhelm Gelfius tinha o seu ar descontente, pensava por conta própria. Os seus olhos deslizavam através do aposento onde estavam sentadas as raparigas. Possuíam tôdas o mesmo olhar inquieto, estavam todas penteadas como Rassiem gostava: com os cabelos lisos em redor da cabeça.
Apenas Elis usava tranças por causa das suas dores de cabeça e da sua pesada cabeleira. Quanto a Dima, essa deixava os anéis castanhos, curtos e louros, vagabundearem sobre a nuca: não os podia domar. Prostrada a um canto, tapando os ouvidos, lia com olhos ávidos um livro que Elis lhe havia emprestado.
- Ainda não ? Ele ainda não vem ? - preguntou Gelfius por cima dos ombros, a Elis.
A criança estremeceu e esboçou um pobre sorriso:
- Não.
- éÊ a hora da lição de piano! -disse a pequena
Bach, que muitas vezes era inoportuna.
- O sr. Kammersãngere não me torna a apanhar.- resmungou o tenor Breitenstein.
Lorm, o brilhante barítono, disse, aliviado:
- De qualquer maneira, eu hoje não podia fazer
nada.
Houve risinhos e murmúrios e um pequeno grupo
de discípulos saiu.
- Vamos também? i com certeza ele já não vem,
Dima! - exclamou Elis.
Dima abanou a cabeça sem levantar os olhos do
livro.
- Vem com certeza. - disse.
Gelfius teve um riso trocista e fechou o piano.
- Você tem pressentimentos, Dimatter, hem ? Talvez a clarividência do amor? i Se vocês todas soubessem como são idiotas, com a vossa adoração! - gritou com exagerada rudeza.
Depois aproximou-se de Elis.
- Minha menina,-disse em voz baixa e persuasiva minha querida menina. está tão pálida, tenha cuidado
consigo.
De súbito, Dima fechou ruidosamente o livro e
gritou:
- Aí está ele! Aí está esse que tanto desejavam! E Rassiem entrou, de fato de viagem, coberto de
poeira, abatido, com os olhos encovados, nos quais as pupilas escuras borboleteavam.
- Perdão, minhas senhoras, - disse - mas acabo de
(1) Título que se dá aos cantores de primeiro plano.
chegar da estação. Tive de partir inesperadamente.
Que canta primeiro, fráulein Lukas? Faça favor: a ária
da Criação.
Fraulein Lukas afastou-se lentamente do fogão: --?Não posso. hoje não posso cantar, não estou
bem disposta. Desculpe-me, por favor.
- Bem, bem. A seguinte. Frãulein Dimatter.
As faces de Dima estavam febris e um pouco vermelhas quando se pôs a cantar. Os punhos cerrados tremiam ligeiramente. Era a grande ária de Fidelio, ela interpretou o ódio grandioso do começo, como uma demente. Cantava e Rassiem estava pesadamente sentado, com os olhos vagos, pestanejando, indiferente, não ouvindo, tamborilando impaciente com os dedos na coxa. De repente, levantou-se :
- Desculpem, mas hoje não posso suportar a lição. Estou fatigado, nervoso, é-me impossível ouvir.
Parando logo, Dima ficou um segundo petrificada. Sentia os lábios secos e a pele da cabeça fria como o gelo.
- Pois não, sr. Kammersánger. - disse em voz sumida. Depois, de súbito, pegando na música, rasgou-a ao meio, e atirou-a ao ar, de tal maneira que os pedaços espalharam-se pelo chão. Depois correu, de cabeça baixa, para a porta, que se fechou atrás dela com um estrondo furioso.
Elis, assombrada, olhou para Rassiem. Este não parecia nada zangado. Sem pressa, baixou-se para apanhar a música e ocultar ao mesmo tempo um sorriso de surpresa.
- Que dizes a isto? - preguntou lentamente a Gelfius -Tem temperamento, não? Uma verdadeira mulherzinha! Não quere ir acalmar a sua amiga, fràulein Kerckhoff?
Sem uma palavra, Elis saiu.
- Pequena tola! - gritou Gelfius para a porta que se fechava atrás dela.
Rassiem pôs-se a rir.
- Que doidas, estas pequenas! São ciumentas como o diabo. Parece que sentem quando a gente vem dos
braços duma mulher. Oh! aquela tem futuro. Meu Deus, sim, tem raça!
Elis encontrou Dima no corredor, sentada ao pé da janela, ocupada a arranhar furiosamente, com as unhas, um coração que certo dia havia desenhado na parede. Tinha agora um ar infeliz, esse coração, com o seu jacto de chamas e o seu grande H. R, que o enchia todo. As unhas de Dima arranhavam a parede como animaizinhos irritados. Os seus olhos brilhavam, úmidos.
- Estás a chorar ? - preguntou Elís.
- Bem sabes que nunca choro! Queria, mas não posso. De resto.
- Mas que foi que te disse, an ?
- Ah! não sei. Que ente desprezível! Sabes o que ele foi fazer a Bruxelas, não? Pois bem, foi encontrar-se com a Kouczowbka! Agora que estão separados, anda sempre a correr atrás dela.
- Devias talvez proibir-lho. - disse Elis, irónica, enquanto o coração se confrangia a ponto de lhe fazer doer.-A-propósito, Dima, ele agora sabe.
- Sabe! Sabe o quê?
- Ora. que. que o amas.
- Eu amo-o? Tu estás doida, Elis! -De súbito, Dima desatou a rir e deixou tombar as mãos.
- Que teimoso, que idiota, este coração! Não quere deixar-se arranhar!
E, tirando um lápis da carteira, a rapariga riscou o coração molestado.
- É proibido sujar as paredes! - gritou a sr.a Gibich. Cuidadosa, a vigilante coçou a testa com a agulha
de tricot. Efectivamente, sobre os vidros brancos, sobre as paredes amarelas, em toda a parte, havia uma multidão de corações, das formas mais diversas. Uns já consumidos, outros com chamas e atravessados por uma seta. Os frívolos estavam repartidos por casas com diferentes monogramas; outros, em fogo, tinham um nome único. O H. JR. repetia-se sem cessar, deixando supor o número de gerações de alunas que tinham, ali, fixado o seu amor. Elis e Dima sentaram-se, era a sua vez de falar.
- Isto de amar um cantor não faz sentido. - disse Elis com uma experiência precoce.
- E de mais a mais um tenor? Mas. amor? Não, não sabemos mesmo o que isso é! Estamos aqui sentadas diante duma janela, preguntando a nós próprias : o que é o amor? Eu creio que o amor não existe; os livros é que nos fazem acreditar nisso, mas é mentira. É tudo uma brincadeira.
Depois dum silêncio:
- A menos que nós estejamos realmente apaixonadas.
- Achas? - preguntou Elís. E, num murmúrio: Mas parece-te que isto seja o verdadeiro, o grande amor?
- Ora, Elis, o amor.
Dima pegou na palavra como que na ponta dos dedos.
- Nós andamos tolas, com o nosso famoso Hannès Rassiem que já começa a engordar e é um verdadeiro canalha e. é quanto sabemos a respeito dele: em suma, não o conhecemos.
Elis inclinou a cabeça com ar pensativo, depois animando-se, pôs-se a falar; muito depressa ao princípio, depois mais lentamente, enquanto um leve rubor lhe subia às faces.
- Sim. Ele vai engordar e é possivelmente um canalha. E talvez também seja idiota. Mas como canta bem! À noite, vou ouvi-lo à Ópera, e é tudo quanto desejo. É belo e nobre, é tudo quanto é possível ser se de mais elevado. Durante todo o dia estou à espera da noite. - Ela abriu os olhos distantes e imensos - Que tenho eu então, Dima, que tenho eu ? - preguntou, muito baixo. - Quando o oiço cantar, sou tão feliz, tão feliz que tudo me é indiferente. Penso nele dia e noite, não posso evitá-lo. Então isto não é amor?
Dima olhou para a sua amiga e, de súbito, teve vergonha:
- São tolices - disse - Tu estás um pouco entusiasmada, mas. o amor!
- Entusiasmada ? Sim, naturalmente. Mas não te rias, Dima. Eu não sei nada a respeito dele, mas não desejo conhecê-lo melhor. Se o conhecesse melhor,
Díma, se o conhecesse.-disse Elis, ansiosa - talvez não o pudesse amar. Parecer-me-ia vulgar, estúpido e detestável como todos os outros. Mas está longe, longe, e posso concentrar nele todos os meus sonhos. E então isto nào é amor?
Ficaram um longo momento silenciosas, depois Dima escondeu a cara entre as mãos porque sentia uma grande vergonha e disse, baixo:
- Eu também o amo. Mas de outra forma. Tu não podes compreender. Gostava de o ter todo nu, sim, todo nu! Atrai-me duma forma incrível. Tudo o que vem dele se transforma em felicidade. Quando me dá a mão, ou então quando, em casa, penso: "Ele tocou na minha música! Ele! Aquele a quem amo. É maravilhoso."
Fráulein Lukas atravessou o corredor e veio encostar-se ao pé delas. Díma nem a viu; dizia docemente:
-Tem umas lindas mãos, não tem? -E depois dum silêncio: - Parece-me que era capaz de morrer se ele mo pedisse.
- Que é, que é o amor ? - preguntou Elis, abstracta, olhando pela janela.
Então a Lukas inclinou se toda para elas:
- Falam como cegas, - disse - como crianças. O amor! É uma coisa bem diversa. Amar é querer beijar, estreitar, acariciar constantemente, é como estar esfaimado e morrer de espera. Sabem o que isso é? E falam vocês de amor!
Elis estremeceu:
- Já. beijou. alguém ? - interrogou com os seus grandes olhos sonhadores.
- Alguém! - murmurou a outra, pensativa e horrivelmente triste. Depois, voltou-se e foi-se embora, em passo pesado, ao longo do corredor.
Dima viu-a partir com extrema atenção.
- Achas. que será ele ? - preguntou. Calaram-se. Elis disse, arrepiada:
- Tenho frio. Afastemo- nos da janela.
Minutos depois, Hannès Rassiem saiu da aula com Gelfius e parou junto das duas raparigas.
- Perdôe-me a lição perdida, menina Dimatter. disse com um sorrizinho familiar -Se lhe convier, podemos recuperá-la amanhã. Quere ir a minha casa às cinco horas ?
VI
Em fevereiro, a Kouczowska mandou de Nova-Iorque um horrível bilhete-postal ilustrado, que dizia apenas isto: "Mil saudades -Maria Kouczowska. E o pior é que nada mais tinha a dizer.
"É como se ela me fizesse a graça dum autógrafo - pensou Rassiem, amargamente. E deitou o bilhete ao lume, onde se encarquilhou, se torceu e consumiu. Uma construção com altas torres lutou longo tempo. Depois as chamazinhas entraram-lhe pelas janelas, inflamou-se e ficou reduzido a cinzas.
Então, sem saber o motivo, começou para Rassiem, a partir dessa noite, uma época desagradável.
Principiou assim: estava descontente com a sua voz, muito descontente. Depois do segundo acto do Tannhauser, na Ópera, meteu-se no camarim e começou a chorar desesperadamente, sem nenhum constrangimento, como uma criança. Sentia-se acabado, completamente acabado. Foi chamado o professor Bayer, médico do teatro: sorriu, por trás dos óculos. Primeiro empregou todos os meios de sugestão que já havia aplicado a inúmeras vedetas; depois, dissolveu, com calma, uma solução de brometo num copo e obrigou Rassiem a beber várias taças de champanhe. com um atraso de cinco minutos, pôde começar o terceiro acto. Rassiem cantou-o esplendidamente.
Nessa noite, atirou os sapatos à cabeça da sua dançarina ruiva e deitou-a mesmo para fora do quarto, porque o perfume dela o enervava. Depois partiu por uns dias para a sua casa de Rodaun, onde se fechou a pensar. Compreendia, e isso era infinitamente doloroso, que tinha a voz em péssimas condições, que já não era tenor mas barítono, e que lhe era absolutamente necessário recomeçar a aprender. Visto isso, voltou a Viena e recomeçou a estudar o recitativo da Quimera dos Mestres Cantores. Ao fim de três dias, estava completamente áfono. O professor Bayer veio, examinou-lhe as cordas vocais inflamadas e prescreveu repoiso absoluto.
Rassiem enrolou ao pescoço um imenso lenço de seda branca e desculpou se para o Lobengrin.
Na Ópera, todos os lugares estavam antecipadamente tomados; foi preciso pedir a um artista de Munique para o substituir, e muitos afirmaram que ele era melhor do que Rassiem. O público aplaudiu; nas galerias houve brigas e gritos; um espectador levou uma bofetada. Todo o curso de Rassiem estava de pé, como uma parede, assobiando. Quanto ao próprio Kammersãnger, encontrava-se, à guisa de consolação, instalado com todos os pontífices da casa, no fundo dum camarote onde, com ar moribundo, apertava as mãos como um hidrófobo.
Depois do espectáculo, foi ao Tabaran e divertiu-se com amargo desespero.
De manhã, lembrou-se, de repente, que havia dez dias que se esquecia de dar lições no Conservatório: enviou parte de doente. Logo a seguir, sentiu se um pouco mais sereno e mandou pedir à Dima, à Elis e â Lukas para irem a sua casa, em três noites diferentes. Depois, reflectindo, rasgou o cartão destinado à Lukas.
As duas raparigas foram, como havia já acontecido muitas vezes. Elis, tímida, delicada e um pouco enternecida, porque ele se encontrava doente. Dima, com os seus olhos ávidos, uma boca hermética e punhos cerrados, constantemente na defensiva contra o luxo que a rodeava e contra os olhos e as mãos de Rassiem que, devido à sua presença, perdiam um pouco a calma.
Todos os dias, ao crepúsculo, uma delas vinha cantar
um momento e, sem o saber, fazer passar ao tenor a pior hora do dia -aquela em que tinha medo da obscuridade e dos seus próprios pensamentos. Nessa época, Dima e Elis evitavam-se, não falavam quando estavam juntas, pois não queriam referir-se ao seu segredo e, cada uma, considerava-se privilegiada. À noite, Rassiem ia a um ou outro restaurante nocturno, e bebia, pois, desde que atravessava a sua má época, nada podia ter para ele importância .
Bebia cerveja para adormecer, champanhe para pensava com um leve suspiro -poder estar um pouco mais alegre, Borgonha para se acalmar; Cointreau, de manhã, quando começava a sentir dores de cabeça e, para acabar, café: dez, doze chávenas de café muito forte que lhe punham nas mãos um arrepio muito agradável, uma sensação de frio nas costas e muito brilhantes as pupilas irisadas.
Então, caía pesadamente na cama e dormia até à tarde. Uma hora na companhia de Elis ou de Dima. hora que, molemente, decaía no crepúsculo, com um pouco de música, de palavras pronunciadas a meia voz e contactos curtos e fortuitos, hora que era agradavelmente tépida, cheia dum leve aroma e duma ternura trémula, misturada com pequenos frémitos.
Depois, era outra vez a noite, sempre a noite, com luzes e barulho, paragens em numerosos estabelecimentos nocturnos. Aí, podia mergulhar o seu nervosismo e a sua inquietação no ruído geral, onde desapareciam como num rio. Podia embriagar-se de perfume, de vinhos, de risos de mulheres. Podia gritar, bater em cima das mesas, dar palmadas em ombros nus; podia enterrar os dentes numa nuca, trocar, num quarto qualquer, carícias com qualquer cortezã e ficar depois fatigado, indiferente a tudo. As coisas pareciam cobertas por um véu; eflúvios de vinho, eco de palavras flutuavam no ar -tudo parecia distante e aquecia, ao mesmo tempo. Ilusão! Não seria, - afogado no mesmo sonho-sempre o mesmo quarto, o mesmo espelho, o mesmo móvel de peluche desbotada, sempre a mesma luz velada de vermelho, sempre a mesma mulher?
Estonteado, podia, de manhã, numa sala cheia e sobreaquecida, levantar-se do seu lugar, encostar-se, cambaleante, a uma mesa e cantar o recitativo do Graal, enquanto perto os violinos gemiam uma dança da moda. Os assistentes aplaudiam; pareciam mascarados. choviam rosas que caíam, frescas, sobre a sua fronte. Depois encontrava-se, de súbito, ao ar livre; em seguida, metido num automóvel entre desconhecidos que o tratavam por tu. O cheiro forte da gasolina picava os olhos, fazia bem; depois, de novo, uma outra sala, mais copos, música e risos. Uma criatura inclinava-se sobre uma taça, em que nadavam pétalas de violetas. Por fim, o dia surgia: lento, pálido e antipático.
Emergia com grossas nuvens, através dos vidros dum café e obstinava-se em não aclarar. Mas os pequenos candeeiros de mesa e os grandes, velados de verde, sobre os bilhares, também já não iluminavam e estavam pestanejantes, exaustos. Criados pálidos traziam, de má vontade, café e licores. A senhora arruivada, do bufete, dormia com a cabeça inclinada sobre prateleiras, onde se encontravam as porções de açúcar; dum reclamo de champanhe, saía uma mulher verde que se parecia com alguém. E, muito perto, na sala de jogo, uma velha fazia turbilhonar a poeira, pondo as cadeiras em cima das mesas, onde, de pés para o ar, pareciam implorar tristemente o teto. Tilintavam fichas em taças de níquel. Rassiem saia subitamente do seu torpor: os amigos tinham partido, deixando-o só. Levantava se e via, num espelho, o colarinho sujo e amarrotado, da camisa. Então, sentia vergonha.
No princípio de Março, pôde recomeçar a cantar. Foi uma alegria "monstra no teatro. O galinheiro cotisou-se para lhe oferecer uma enorme coroa de loiros, ornada de fitas, tendo escrito em letras doiradas a frase "Louvor e agradecimento". Rassiem arrastou a dez vezes diante do proscénio.
Na manhã seguinte, Gelfius apareceu. Tornava-se necessário estudar agora o Parsifal, para Bayreuth. No vestíbulo, o ensaiador separou-se do seu imenso guarda-chuva;
Berger, o criado de quarto, abriu uma porta, e ele, num expressivo piscar de olhos, preguntou:
- Então, Berger ?
- O sr. Kammersànger ainda dorme, mas, se me é permitida uma opinião, o sr. Kammersànger parece já estar livre da porcaria. Esta noite, à uma hora, já tínhamos regressado. Só bebemos uma garrafa de vinho e desta vez, não trouxemos mulher nenhuma.
- Bem, muito bem.- notou Gelfius. E entrou, com chapéu e sobretudo, no quarto do tenor, com grande desespero de Berger.
Encontrou Rassíem ainda a dormir. O pijama estava aberto sobre o vasto peito que inchava, ao respirar. O pescoço nu, as pestanas baixas, os cabelos ondulados sobre a testa, tudo isto era tão jovem e tão belo que Gelfius não pôde deixar de sorrir.
Pensativo, imóvel sobre as suas longas pernas magras, olhou para aquele grande corpo.
"Uma bela criatura . capaz de coisas nobres. É preciso perdoar-lhe muita coisa."-pensou, num acesso súbito de fraqueza de coração, que o encolerizou.
Rassiem acordou e preguntou imediatamente:
- Que tal cantei ontem?
- Cantou - disse Gelfius, erguendo o índex acusador e enfático - quási como um toiro doente.
Aborrecido, Rassiem soltou um profundo suspiro. Berger trouxe o pequeno almoço e os jornais. Depois, de os ter lido, o rosto do tenor desenrugou-se a olhos vistos.
- Imbecil! - disse - Nunca vê nada! Tive um êxito enorme! É possível que tenha cantado lamentavelmente, mas ainda muito bem para o público.
- Mesmo assim, Rassiem, seja prudente com a sua voz; muitas vezes tenho medo, por si.
- Eu também tenho um grande medo!- murmurou Rassiem tão subitamente e tão sinceramente acabrunhado que Gelfius calou se.
No quarto de banho, Berger produzia pequenas cascatas ressoantes de ruídos rápidos.
Rassiem desapareceu em pijama por trás dum
reposteiro. Aí, pôs-se a defender a sua interpretação do Parsifal. Era realmente muito pessoal a interpretação que dava a esse papel. Depois de discutirem, ficaram de acordo. Mas Gelfius, que tinha sido mandado para desempenhar qualquer missão muito diferente, brincava com a tesoira e as limas, com ar embaraçado e contrariado. Mas decidiu se:
- Que aconteceu com a Lukas ? - preguntou - Responda, Rassiem. Que lhe fez você ?
- Ah ! Meu Deus, sim . a Lukas. que quer ?. aborrece-me. nada mais. Foi choramingar para junto de si, não ?
- Não. Mas está mudada. Na verdade, que tem ela?
- Pregunte-o ao Lortn, o discípulo de Tarnopol. Anda atrás dela. Deve saber melhor que ninguém.
- Lorm ? bom. Mas eu não compreendo nada. Essa pequena tinha, na verdade, uma inclinação por si e agora atira-se para os braços desse provinciano? Ela tem a cara inchada de chorar, anda com os saltos cambados, os vestidos com nódoas, não se frisa. Não haverá nada a fazer, Rassiem ?
- Oiça,-replicou o outro, debaixo do chuveiro, gritando enquanto a água jorrava - oiça, é muito simples. Ela gostava de mim e eu fui amável com ela.- ouvindo isto, Berger teve um sorriso significativo, enquanto Gelfius tamborilava furiosamente no toucador - Mas depois ela tornou-se pretensiosa, não me largava. enfim, era ciumenta. Quando a gente beija uma rapariga destas, ela julga logo que lhe pertencemos de pés e mãos atadas. Por fim, aborreci me e disse-lhe com certa clareza o que pensava; então ela deixou-me em paz. Além disso, está um bocado gorda. - continuou, pensativamente -e depois as suas notas de cabeça são tão desagradáveis.
Gelfius reprimiu um sorriso:
- E que significa a ligação dela com o Lorm?
- Ah! -disse Rassiem olhando, interessado, para a forma como Berger lhe massava as coxas - certas raparigas são como velas; um homem acende-as, depois, elas ardem, ardem por todos.
- Quando se trata de canto ou de mulheres, você
torna-se quási espirituoso, Rassiem! Outra coisa: e a bailarina ruiva? Essa também já passou?
- Essa?-segredou misteriosamente Rassiem-essa. bebia! Bebia, acredite. E depois, já não gostava dela.
Gelíius, desta vez, desatou a rir.
- Agora, tanto quanto alcança o meu conhecimento dos homens, presumo que é a vez da Dímatter? -interrogou, procurando o olhar de Rassiem.
- Uma linda rapariga! Raça e talento. Sim, interessa-me. Tem um encanto especial, qualquer coisa de selvagem.
- E fazer-lhe mal, - preguntou prudentemente Gel fius -prejudicá-la, não é coisa que o faça deter?
- Prejudicá-la? Porquê ? Pelo contrário, a pequena está muito apaixonada, até deve ficar contente. Depois de ter um homem, pela primeira vez, você vai ver como ela fica bela e amadurecida! Eu conheço aquele tipo de mulheres. Depois, é preciso que assim seja. É me impossível estudar com ela a Valkiria ou a Izolda enquanto for apenas uma rapariguinha magra e tola. Deixe-a viver alguma coisa; então tornar-se á alguém.
- Sim ? Parece-lhe? - exclamou Gelfius.
Depois dum silêncio, inquiriu com esforço e como que obrigado:
- E que lhe parece a outra, a pálida, a menina Kerckhoff?
- Essa é engraçadinha. - replicou Rassiem, simplesmente - Dessa garota gosto como duma criança. É tão fina, tão diferente das outras! Já a tive cá duas ou três vezes. Senti me bem com ela: acalma agradavelmente. Deixei-a cantar as suas mais doces melodias: Schubert, Wolf, Cornelius, isso torna-a interessante. Sabe, é muito curiosa. Não me arriscaria a aproximar me demais, não, não me arriscaria. É engraçada, não é? Tem uns olhos grandes, de criança, e torna se logo tão tímida!
- Sim?! -disse Gelfius, sentindo se aliviado e intimamente satisfeito.
Aproximando se da janela, pôs-se a tamborilar, assobiando uma marcha de Schubert, a bela, a alegre, em sol, aquela em que o menor e o maior se alternam tão maravilhosamente,
que parecem sombras de nuvens passando, por intervalos, sobre prados inundados de luz.
A coisa aconteceu numa tarde de abril. Nuvens amarelas, iluminadas de través, espessas como animais lentos, flutuavam no céu e pareciam pendurar se nas árvores. Dima foi a casa de Rassiem. Sobre os muros do parque de Schwarzenberg surgiam os cimos das árvores pesadas e silenciosas. Um botão, caído de certa macieira florida que se recortava, em tom de rosa pálida, sobre o céu amarelo, chegava, adormecido, pregado à blusa de seda branca que Dima pedira emprestada a Gusti. A rapariga obliquou na rua de Rassiem; as coisas pareciam reter a respiração, uma súbita obscuridade envolveu os telhados.
O tenor atravessava uma nova crise; a voz não lhe agradava. Bebia e fumava desmedidamente. E jogava. Agora estava estendido na chaise-longue e tinha medo de si próprio. O tempo enervava-o. Quando Dima entrou, ele estendeu, no ar, a mão em cujos dedos se viam as veias azuis. Tremia constantemente.
- Chegue aqui, Dima! Olhe: que nervos. Muito fumo. E este tempo!
- Vai haver tempestade, é a primeira nesta primavera, sr. Kammersánger.
- Sim.- disse ele mais sereno - Tempestade! Então tem que ficar ao pé de mim à espera que passe, não é verdade, Dima ?
E, pueril:
- Eu estou tão só e tenho tanto medo da trovoada!
- Medo! O senhor!
- Sim, medo.
Disse-o muito depressa e Dima teve que acreditar. Foi até ao piano, folheou a partitura que lá estava pronta para ela: Tristão e Isolda.
Rassiem olhou para ela, considerando-a com um sorriso que a enfurecia; sentia gelar a pele da cabeça e os lábios tornarem-se secos. Ele continuou a sorrir, mergulhando o seu olhar nos olhos da rapariga, enquanto escurecia cada vez mais.
- Assim, está bem. -disse de repente, sentando-se ao piano - Agora vamos. Comecemos pela Isolda.
E Dima pôs-se a cantar.
Rassiem escutava atento, enquanto acompanhava. Verificava quanto aquela voz era bela e opulenta e como era bem dotada aquela rapariguita principiante. "Há de vencer.-pensava - Será uma grande vedeta". Bruscamente, o pensamento da Kouczowska, que já não tinha muita voz, acudiu-lhe ao espírito. Tivera um timbre vivo e maravilhosamente quente, como esta pequena Dima, a noviça. "Daqui a pouco acaba"-pensou. E, do fundo do coração: "Então, voltarás para mim, Maria."
Dima calou-se. Rassiem continuava a ouvir-se a si mesmo. E disse, depois dum silêncio:
- Sabe o que me pareceu ? Era tão belo que pensei na Kouc.
Dima sentiu uma opressão rápida e olhou para o chão, com a garganta estranhamente apertada. Cedendo ao seu entusiasmo, inclinou-se sobre a mão de Rassiem e beijou-lha.
- Que lábios tão quentes! -disse ele, sentindo também uma leve pressão de dentes - Tu ? -preguntou, incerto.
Ela deu um salto para trás; ele contemplou-a com o rosto subitamente transformado.
- Como está crescida!-acrescentou. E acariciou-a com o olhar, da cabeça aos pés: a nuca, morena e coberta de suor; os ombros, sobre os quais, a seda branca e lisa lançava reflexos; os seios, jovens, de pequenos bicos marcados ; os braços, delgados e nervosos, apertados contra as ancas, numa espécie de defesa.
- Crescida e bela! - exclamou Hannès Rassiem. Baixando a cabeça, a rapariga repeliu-o sem esperar
mais.
- O senhor não deve falar-me assim: não quero ouvir nada disso que tem dito já mil vezes. Isso é violentar.
- Não, Dima, consola-te, não és bela, absolutamente nada bela,
E, muito inclinado para ela, acrescentou:
- Mas hás de sê-lo um dia: serás maravilhosa, mais tarde . quando .
Ela não quis preguntar, mas os seus olhos fizeram-no, muito abertos e sombrios, com um receio hesitante nas suas profundezas. Quando ?.
- Quando se tornar uma mulher, uma mulher, Dima. Quando conhecer o amor, a paixão, quando souber o que é um beijo. Ainda não o sabe, Dima, pois não?
- Não. - disse ela, e a voz faltou-lhe - Não quero, não quero.
Ele cingiu a, sentiu esse corpo que tremia, que se defendia e uma violenta doçura entrou-lhe no sangue:
- Vai te embora!- ralhou em voz rouca.
E voltando para a chaise longue, que ficava na outra extremidade do aposento, atirou-se para cima, crispando os dedos.
- Não; fica, não te toco. A tempestade vem aí, fica ao pé de mim, queres?
Permaneceu deitado, mas continuou a olhá-la, sem poder tirar os olhos dela. Calaram-se. O céu escurecia mais. A umidade do ar era como um torno que os apertasse intoleràvelmente.
Ouvia-se, no aposento contíguo, o tique-taque forte e nítido do relógio. Um lindo tique-taque rápido, vinha também do relógio de Rassiem, de tal forma o silêncio era profundo. Deixando cair os braços, Dima dirigiu, por sua vez, os olhos para o homem que não fazia um único movimento, e a fitava, apenas. Havia nas suas pupilas qualquer coisa como um sofrimento, tinha afronte úmida e perlada de suor. Lentamente, levantou o lábio superior, descobrindo os dentes Parecia um animal.
-Tu. -murmurou, enrouquecido.
Dima continuava de pé, tentando lutar contra esses olhos, esses lábios, essa voz que enfraquecia.
- Anda, Dima, anda, vem, vem.
Ele continuou ainda assim um segundo, no crepúsculo alaranjado; a primeira rajada de vento veio bater contra a janela; a poeira saltava para os vidros. Um relâmpago. Então, Dima atirou-se para Rassiem,
como atraída por um imã. Ele mal se mexeu, continuou deitado, ergueu simplesmente os braços, puxou Dima contra si e apoderou se-lhe da boca. Primeiro foi como um jacto de chamas, com ardentes riscos e rodas em movimento, diante dos olhos fechados da rapariga. Uma dor horrível devorava-lhe o peito; aquela boca, aspirando sobre a sua, era insuportável; tomava tudo: a respiração, a vida e todo o sentimento; envolvia-a como num frenético turbilhão. Agulhas de gelo ao longo da nuca e nas costas. Vertigens. Podia precipitar-se naquele beijo e abandonar-se, completamente.
Sentiu então os cabelos do homem entre as suas mãos, os dedos úmidos fincados no seu pescoço, o corpo duro e forte que, contra ela, tremia; ouviu a sua respiração ardente e uma voz estranha, - a voz dela - que gaguejava qualquer coisa. Rebentou um trovão e Dima despertou, sobressaltada de susto, desprendendo-se. Levantou se, olhando na obscuridade: o granizo flagelava os vidros, um ruído atravessava a rua.
- Que é? -murmurou com os lábios nervosos, batendo ligeiramente os dentes.
- Um beijo, Dima, nada mais. Um beijo. E uma tempestade. Tenho medo de mim mesmo. Dize. i é assim tão forte, um beijo? O primeiro?
Ele inclinou se diante dos seus olhos:
- Dima! O primeiro? É verdade? Como ela se calasse, palpitante:
- Tu és ainda mais diferente do que eu julgava, mais selvagem, mais decidida. Tu nem sabes como és, Dima.
As suas mãos apoderaram-se de novo dela e da sua bôca; saiu desse abraço com os membros pesados, a parecerem lhe novos, estranhos. O braço de Rassiem estava quente, assim encostado a ela.
- O que tem mais raça em ti é esta linha de ancas.
- disse o tenor, deslizando a mão ao longo dela, até abaixo - Belo corpo!
A sala estava mais clara, agora. Dima viu a sua imagem no alto espelho e não se reconheceu; aproximou-se lentamente, encostou-se toda contra o vidro e fitou curiosamente os seus olhos. Então, pôs-se a rir:
"O meu corpo ?" - pensou, admirada. De repente, compreendeu a palavra e a sua sonoridade, como se a tivesse acometido uma vertigem: corpo. corpo. Atravessou o aposento e pôs-se a andar dum lado para outro; levantou os braços e percebeu subitamente que aquilo era belo, esse movimento do peito para cima, em direcção às pontas dos dedos, que estendia no ar. Sentia-se toda inteira: a nuca, os seios, os joelhos estreitos que vacilavam ainda. E teve medo: "Esta sou eu?"
- Que olhos, minha filha ! Estás zangada comigo ?
"Zangada? -pensou Dima - Porquê?" -Um frémitozinho de receio insinuava-se nela.
Rassiem acendeu um cigarro, deu alguns passos ao longo da sala. Abriu uma janela. De fora, vinha o ar fresco e puro que há depois da chuva, um cheiro amargo e verde a jardins úmidos e a primavera.
- Agora está melhor. - declarou, aspirando uma lufada de ar- Você quere tomar chá comigo, Dima?
Ela estremeceu, ouvindo o você, depois serenou e disse tranquilamente:
- Não, muito obrigada, agora tenho de me ir embora.
Pôs o chapéu. Quando se viu, de braços erguidos, diante do espelho, não pôde deixar de ter vergonha, tanto esse movimento - que ele seguia com os olhos parecia nu. Ele aproximou-se por trás, tomou-a nos braços - a boca de Dima esperava - mas só a beijou no pescoço, nas veias que palpitavam. Bruscamente deixou-a, afastando-a de si.
- Vai-te, vai-te. - disse em voz abafada. E como ela ficasse interdita, repetiu:-Vai depressa, senão.
Ela viu os largos ombros tremerem, as mãos crisparem-se nervosamente na tampa do piano, enquanto se dirigia para a porta. As últimas palavras do homem causaram-lhe um arrepio, um arrepio doce e angustioso, duma novidade espantosa.
Hannès Rassiem ficou ainda em pé um instante. Pegou noutro cigarro e dirigiu-se para a janela, por onde entrava um puro ar fresco e úmido. Espreguiçou-se e suspirou. Podia ver, em baixo, Dima transpor o portal da
casa, os seus longos membros delgados, maravilhosamente distendidos, a cabeça inclinada como nunca tivera dantes. No entanto, debaixo do braço, ela levava, bem segura, a partitura de Tristão e Isolda.
Apesar de tudo, não a esqueceu !" - pensou Rassiem, rindo.
Seguiu a complacentemente com os olhos, sentindo a excitação agradável que lhe corria pelo sangue.
Dima foi até à esquina; parou, teve uma hesitação. Queria pensar e não podia. Diante dos cartazes colori dos dos muros do parque de Schwarzenberg ficou como pregado ao chão, de olhar perdido. Um vento mais leve agitava agora as árvores; por cima do muro, algumas gotas claras, que perlavam as flores, tombavam, frescas, sobre os ombros da rapariga. Ela examinou a seda branca da sua blusa, que se tornava transparente nos sítios molhados.
"Foi com esta blusa.- murmurou. E logo a seguir: "Nunca mais a darei à Gusti.
Mais tarde, na frescura da noite, entrou em casa. Pareceu lhe que, havia anos, não via aqueles corredores sinuosos nem os pátios. Uma acácia ergueu-se ali, pela primeira vez, inclinando se sobre a capela. Uma lamparina vermelha ardia diante da Madona extática, enegrecida pelo tempo. Da penumbra dum corredor, destacou-se um par enlaçado. Dima sorriu, cheia de experiência.
Sentada em volta da mesa redonda, toda a família estava ocupada na refeição da noite.
O sr. Edlinger, o noivo, mastigava, com as faces vermelhas e largas, apertando a mão de Gusti por baixo da mesa.
- Não molhaste a minha blusa, ao menos ? - preguntou vivamente Gusti. logo que a irmã apareceu.
A Sofia parecia também muito excitada.
- Não. quero dizer. um pouco. mas não se estragou . - disse Dima.
Fitou com um olhar vazio o prato que lhe estendiam e que continha sempre a mesma coisa; salchichas
com molho de vinagre rodeadas por melancólicos pedacinhos de cebola, ovos e pão com manteiga. jÉ ridículo que possa existir semelhante coisa !" - pensou Dima.
- Que tal a arte. linda cunhada ? -disse o sr. Edlinger que conseguia, enfim, falar.
Gusti interrompeu:
- Se queres queijo, Eduardo, a criada vai comprar. com ar preocupado, Sofia aproximou se do par, em
bicos de pés.
- Mais um pouco de salchichas? Ainda ficaram tantas na travessa, sr. Edlinger?
- Fanny! - chamou Gusti, enérgica - Vai comprar vinte kreuzer de queijo. Aqui tens o dinheiro, sou eu que pago.
Zangada, Sofia voltou ao romance que tinha aberto ao lado do prato. O sr. Edlinger sentiu se lisonjeado, olhou interrogativamente Gusti, e provisoriamente engorgitou todo o resto das salchichas.
- Ao menos, em casa, tira a blusa!-clamou Gusti, olhando a irmã, com desconfiança.
Que necessidade tinha ela de mostrar uma cara tão arrogante? De comer tão correctamente com a ponta dos dedos e de lançar olhares trocistas para a mastigação e deglutição do sr. Edlinger?
- Porque me olhas assim? Anda, corre, vai tirar a blusa ! E já! - vociferou Gusti, irritada.
Sofia levantou a cabeça do seu romance e disse:
- Gusti, sabes que não suporto esse tom odinário. Ela tinha por costume dizer odinário.
A criada chegou, indiferente, arrastando os pés, e pôs o queijo, embrulhado ainda, diante do sr. Edlinger, cujo rosto se iluminou.
- Aqui tem os vinte e cinco kreuzer de troco. - disse ela a Gusti.
- E porquê vinte e cinco kreuzer ? - cortou Sofia, inquieta. - O queijo custa vinte, deram-lhe cinquenta, restam trinta!
Guti disse, com distinção:
- Deixa lá isso, Sofia.
- Não! - e Sofia pôs o indicador redondo sobre a
linha que estava a ler - Mas afinal, que quer isto dizer? Parece me que tenho o direito de falar? Cinquenta kreuzer são cinquenta kreuzer; custam muito a ganhar, não é verdade, sr. Edlinger?
- com certeza!opinou este, complacente-Os honorários dum músico, por exemplo: um gulden e vinte, por noite, E olhe que ainda é preciso tomar o eléctrico para ir e voltar, dez kreuzer para pequenas despesas, um copo de cerveja, uma ou duas sanduíches de presunto, e agora pregunto eu: que fica?!
- De acordo, sr. Edlinger. Por consequência, Fanny, onde estão os cinco kreuzer?
- O merceeiro cortou um pouco mais e isso é que fez os vinte e cinco kreuzer.
- Já estás descansada.-disse Gusti -Pode ir, Fanny. É bom, Eduardo ?
E passou-lhe ternamente a mão pelos cabelos, atrás das orelhas, enquanto Sofia, discretamente, mergulhava no seu livro.
- Um bocadinho de queijo por vinte e cinco kreuzer! - disse ela, tristemente, um momento depois, voltando a pensar naquela despesa extraordinária.
Na cozinha, a criada cantarolava, em voz arrastada, a sua eterna canção boémia. O enamorado par, sempre enlaçado, retirou se para um sofá. Um leve cheiro a cebolas e a petróleo flutuava no aposento. Dima olhou à sua volta e, pela primeira vez, notou a horrível pintura das paredes, o mau gosto dos móveis, os pequenos panos de croché, brancos e estúpidos. Aqui, jarras pobres e sem flores, fotografias nas paredes; além, pratos pretensamente decorativos, leques japoneses, de papel.
- É encantadora, a vida de família! - disse ela em voz alta, agarrando na sua música.
O sr. Edlinger, estendido no sofá, fumando um charuto, tentou estabelecer conversa:
- Posso saber o que estuda de bonito?
- Também, por vinte e cinco kreuzer, é evidente que ela não podia trazer um quilo de queijo! -murmurou Gusti, a quem este problema por solucionar acudia constantemente
- O pedaço também não era assim tão pequeno; até ficou um bocadinho.
- Vês? -disse Sofia - Eu já sabia que ficava; mas tu queres sempre armar em generosa.
- Tristão e Isolda. - atirou, entretanto, Dima, como única resposta.
E, abrindo o libreto, olhou para as notas que surgiam como flores, que soavam aos seus ouvidos e se davam em pasto aos seus olhos.
- Tristão! - exclamou o sr. Edlinger cheio de respeito-Isso é que é uma ópera! Pode dizer-se que a orquestra transpira, nessas noites .
VII
Foi o sr. Silberling, um violinistasito de cabelos pretos, da classe dos professores que, por fim, se apaixonou por fraulein Lukas e lho confessou, duma forma demasiadamente expressiva. Ele tinha umas horríveis mãos, úmídas e cinzentas. Foi a ele que, numa das salas de espera, ela deu uma bofetada, que o fez soltar um grito horroroso, revolucionando a casa toda, até à clarabóia. De cada andar, desciam a quatro e quatro os empregados de serviço: o sr. Pietsch, o bedel, o sr. Reindl, vivo, habituado aos usos mundanos, o velho e digno sr. Keller, que possuía duas condecorações, além do privilégio de vender torradas. A sr.a Gibich debruçou-se no corrimão da escada, muito excitada, quásí entristecida por o acidente não se ter passado no seu corredor. O intendente do Conservatório chegou, com as suas pernas de cegonha, trazendo, com ar importante, debaixo do braço, uma pasta vazia. Uma velha que esperava na sala pegada, pedia, assustada, que pusessem de futuro uma porta envidraçada que permitisse ver quem entrava. Assim, estas coisas não poderiam acontecer e o decoro seria respeitado.
Em pé, no meio da casa, o sr. Silberling berrava e as suas mãos, cinzentas e úmidas, berravam também.
- Não, não, não, não consinto que esta mulher me toque, esta donzela, esta. Ah! não!
A Lukas deixara pender os braços com indiferença, ou antes, com extrema lassidão. Calou se, muito pálida.
O caso chegou ao director e ficou entre as paredes verdes da chancelaria. Tornou-se uma coisa misteriosa, da qual só se falava em voz baixa. O sr Lorm, o barítono de Tarnopol foi convocado; os dois alunos compositores, Rebner e Haucke, também foram, o pianista Eisenfeld, de grandes mãos, e até o trombeta Kohl, cuja existência tranquila foi notada pela primeira vez. Nos corredores da escola, segredava-se mesmo o nome de Rassiem; no entanto, a Lukas tinha afastado toda a possibilidade de fazer chegar até ele os interrogatórios. A escola indemnizou-a do dinheiro a que tinha direito e ela desapareceu.
- A desavergonhada ! Foi bem feito ! - dizia, raivoso, o barítono Lorm, encostando-se contra a janela da aula, com a expressão e a atitude dum conde Luna Quem podia esperar uma coisa destas! Tendo-se deitado com metade do Conservatório!
- Que vai ela fazer agora? - preguntou Gelfius.
- Arranjou um contrato para Neustadt, nos arredores. Isso dar-lhe á o golpe de misericórdia. Não há lá senão soldados, compreende?
Dima e Elís ouviam com olhos espantados, sentindo um grande desprezo pela colega. No entanto, no fundo do seu pensamento, um receio estranho, indefinido, atormentava-as e dava-lhes que pensar.
- Como é possível uma coisa destas? -preguntou Elis, no vácuo-Não se dava por nada, ela era como todas nós.
- Pensar que se apertou a mão a uma mulher assim !
- disse Dima -Como pode uma rapariga chegar a isto!
A estas palavras, Gelfius olhou para Dima, abriu a boca, tornou a fechá-la e aproximou se do piano, furioso. Em seguida, Rassiem chegou e Dima estremeceu até às suas fibras mais secretas.
Depois de certa tarde, havia um silêncio e uma espectativa entre eles; uma faísca nos olhos, um tremor nas mãos, que se procuravam secretamente, e se acariciavam. Dima não o tornara a visitar. No entanto, quando estavam
um minuto sós na aula ou no corredor, Hannès Rassiem puxava a rapariga para si e beijava-a. Ela vagueava pelas ruas, sentia-se fatigada e melancólica: dormia e cantava mal. Mas ele estava presente, dia e noite, no seu pensamento - e esperava.
Em consequência da desaparição da Lukas, havia uma falha no programa da próxima festa teatral e as alunas, com o coração aos pulos, estavam ansiosas por saber quem seria escolhida para a substituir. Rassiem passeava pela sala da aula, olhando as raparigas, uma após outra. A pequena Bach, que não tinha nenhum talento, fizera, cheia de esperança, uns caracóizinhos. Grete Wied, a contralto, apertava, provocante, contra o estômago, os cadernos de música. Dima continuava sentada, com as unhas enterradas no rebordo da cadeira: tinha os lábios cerrados e tremia.
Por fim, Rassiem considerou os seus longos dedos e, negligentemente, indicou a eleita.
- A menina Kerckhoff quere fazer o favor de substituir.
- Eu ? Eu subs. - gaguejou ela, desorientada - Eu ? Será possível? com a minha vozinha?
Beijaria de boa vontade a mão de Rassiem, mas como não o podia fazer, ficou de pé, olhando-o e repetindo :
- vou tentar um grande esforço, quero que tudo corra muito bem.
A aula estava de mau humor; apenas Gelfius ria em surdina, com a sua barba indisciplinada. Acompanhou tão bem as melodias de Elis, que parecia fazer escorrer oiro das suas largas mãos de pianista. A sr.a Gibích, a quem Elis, depois da lição, contou o facto, aprovou também, coçando complacentemente a testa. Mas Dima ficou estranhamente aborrecida e não lhe estendeu a mão, à despedida.
- Estás zangada? - preguntou Elis, um pouco aflita. Dima não respondeu; mordiscou as articulações dos
dedos e saiu. Depois, foi esperar Ressiem no vestíbulo de sua casa. Passado muito tempo, ele chegou, assobiando,
de chapéu para trás, acompanhado pelo seu cheiro a água de Colónia, cigarros e fino sabão inglês.
Erguendo as sobrancelhas, disse:
-Que foi?
Mas Dima não podia falar.
- Porquê ? - começou ela, e teve de apertar a boca com as mãos para não gritar.
- Porque é a Kerckhoff que canta ?
- Mas porque, por agora, você não pode fazer nada. Não vamos trocar censuras, não ? Ainda não está em forma, Dima, e isto não pode continuar assim.
Ela baixou a cabeça; a luz que vinha de cima, da escada, brincou, sôbre a sua nuca mate e dum castanho doirado. Ele puxou-a violentamente para si.
- Minha filha. espero te.
Depois deixou-a e ela foi se embora com os olhos ardentes, os membros fatigados, com pensamentos novos que se cruzavam como vidros de cores berrantes.
Entretanto, Elis voltou para casa por umas ruas que lhe pareciam agora claras e notáveis. Mesmo no vestíbulo escuro e frio tinha deslizado um pouco de sol, como esquecido ali. Elis entrou no quarto da mamã, cuja janela aberta se encontrava enquadrada por largos cortinados barrigudos, encostou a cabeça contra a mãozinha da doente, sobre a coberta de seda e disse, muito baixo, que estava muito, muito contente e aflitivamente comovida.
Nesse mesmo dia, mandou chamar a costureira e encomendou lhe um vestido branco, de seda, com largas mangas muito soltas, e um cinto doirado debaixo do peito.
- Romântico ! - disse a costureira - Na verdade, muito romântico!
Pôs o desenho, que Elis tinha preparado, junto dos olhos e afastou-o depois:
- Nenhuma guarnição ? -preguntou, ofendida -Ao menos um laço na cinta! Não? Nada? Como um saco ?
Embrulhou o Mundo da Moda e o Chique para Raparigas e foi-se embora.
- Ao menos um bordado na gola ? - gritou ainda, com a porta fechada. Mas a sua pequena cliente mostrou-se inabalável.
Na lição seguinte, Elis apresentou o seu programa. Rassiem passou as mãos pelos cabelos e disse :
- Ridículo! O Tocador de Sanfona. Na Aldeia. O Poste indicador, - cada romanza mais triste do que a a outra! Porque não a Viagem de Inverno ? Uma rapariga assim ! Uma criatura tão moça e tão luminosa.
"Tenor!" -pensou Dima, que estava sentada amargamente a um canto, Elis também o pensava.
- Vai cantar o Cravo Silvestre, - ordenou Rassiem
- vai-lhe muito bem a si e aos seus olhos. E apertou com a mão quente o rostozinho inclinado. Fraca, ela cedeu e consentiu em cantar também: Aquele que conhece a tristeza; mas do seu Poste indicador não abdicou. Depois, confiou a Dima:
- Que tolices aquele homem diz! Imagina que me impressiona, o sr. Kammersánger!
Depois, ambas riram, com um rizinho de raparigas irónicas, que nem uma nem outra julgavam reciprocamente sincero.
O dia da grande festa teatral chegou depressa. De pé, em frente do espelho, transida de emoção, Elis contemplava-se, vestida com a sua toilette branca, as longas tranças castanhas e a cabeça lisa como sempre.
- Afectada! -censurou severamente à seca imagem. Mas esta pôs-se a sorrir, curvou lentamente para trás a cabeça e o seu delgado pescoço branco. Era forçoso concordar que parecia uma princezinha de conto de fadas.
A tímida claridade dum dia de primavera flutuava nas ruas; diante da portinhola dum automóvel pessoas e coisas passavam, à pressa, sem se interessarem por ela; tudo parecia perturbado, como num sonho.
Por fim, na sua frente, o Conservatório, e nas mãos inábeis e trémulas que pagavam ao motorista, a música. Aqui, a escada com as chamas amareladas do gás; lá em baixo, o foyer dos artistas e o pequeno
sr. ReindI, atarefado, e que lhe tirou o casaco, como se fosse uma prima- donna.
- Mêdo?-preguntou muito alto alguém a um canto, quando o seu vestido branco apareceu.
Elis fez um esforço para despertar e ver claro: era a sr.a Mertens, do curso de professorado de piano que, de óculos no nariz, estava sentada em frente do piano de cauda, tocando escalas. Em face do grande espelho e envergando uma péssima casaca, o sr. Silberling, com as cinzentas mãos, fazia um caracol no cabelo. O sr. ReindI colocou delicadamente nas mãos de Elis um programa, no qual as letras azuis se misturavam, imprecisas, umas com as outras. O seu nome vinha ali. Vazia de pensamentos, olhou através duma atmosfera vacilante que formava vagas, como acontece, no verão, sobre os prados quentes. Ao mesmo tempo tinha muito frio.
- Também têm medo ? - preguntou ela, não sabia para onde, na direcção de duas grandes manchas brancas que nadavam no turbilhão e anunciavam que iam cantar juntas o dueto de Brahms.
- Não muito, mas sinto-me mal! - respondeu alguém.
Uma das manchas aproximou-se e deformou-se num vestido rígido, por cima do qual se encontrava empoleirada uma pequena cabeça espantada.
Ao piano, a professora Mertens fazia grande barulho com acordes de sétima, diminuídos. Disse como pessoa habituada:
- Isso passa no palco; só se tem medo antes.
- Medo! Medo porquê? -confirmou o sr, Silberling pondo um pouco de saliva no caracol do cabelo. i A gente que lá está sentada percebe alguma coisa? Portanto!.
- O principal é que tenha calor. - recomendou ReindI - Não pare de fazer movimentos.
Mas Elis sentia-se aturdida e não via nada; os dentes batiam lhe com tanta força que até tinha vergonha. Então, Gelfius chegou. Estendeu a Elis uma larga mão quente à qual ela se agarrou como uma náufraga.
O sr. ReindI levou uma cadeira para a cena e, durante
momentos, um ligeiro calor veio da sala pelas portas abertas; depois, inexorável, a campainha fez-se ouvir.
- Coragem! - disse Gelfius. E levou consigo as raparigas para o dueto de Brahms.
- Se eu, ao menos, pudesse dominar-me . Pelo amor de Deus, se eu pudesse. - repetiu ainda, desesperadamente, uma delas, à porta.
Lá fora, ouviu-se um borborinho. Depois, fêz-se silêncio. Duas vozes débeis elevaram-se. Elis pôs-se à janela: tinha frio, muito frio .
De súbito, Hannès Rassiem fez a sua entrada no foyer; o sr. Reindl apressou-se a ajudá-lo a tirar o sobretudo. As alunas cumprimentaram-no. Ele aproximou se de Elis e pegou lhe nas mãos. Todo aquele lugar ficou imediatamente cheio dele, do seu andar elástico, da sua bela voz alegre, dos seus olhos claros. Ria e Elis sentia o sangue rico e quente afluir-lhe ao coração e às faces.
- Mas vejam-me esta pequena! Está simplesmente encantadora! - disse ele, empurrando-a para diante do espelho - Uma cara tão linda deve, com certeza, fazer sucesso, não é verdade? Só é preciso não ter medo.
Meteu o braço no de Elis e conduziu-a pela porta forrada de verde, para o estreito salão de espera que separava a sala, do foyer dos artistas. Em cena, as duas raparigas de Brahms terminavam o dueto coroado por fracos aplausos. O sr. Reindl corria, à pressa, dum lado para outro; o ruído quente lá de baixo entrou de novo, pois o sr. Silberling, certo da vitória, subia os degraus do palco. O sr. Reindl fechou, devagar, a porta atrás de si.
- Depois é a sua vez, menina Kerckhof. -anunciou.
- Tem frio ? Sente a garganta seca ? - inquiriu Rassiem, acariciando-lhe as faces e puxando-a para si, pondo-lhe o braço sobre os ombros - Agora vou fazer passar à minha filhinha a febre da ribalta. - disse ele. E conservou-a, durante uns minutos, quente e calma, apertada contra si.
Então, tudo se calou e, lá fora, no silêncio, os sons
do violino estenderam-se sobre eles como uma fina rede de oiro. Fechando os olhos, Elis sentia-se inundada por grande claridade. A ventura daqueles minutos envolvia-a numa espécie de vaga gigante: prolongaram-se ainda um pouco, um poucochinho.
Os sons do violino amplificaram-se sobre um forte e foi o fim. Rassiem, depois duma última pressão, deixou Elis partir. O sr. Silberling saiu da cena, mas para logo tornar a voltar. Os aplausos caíram como uma chuva de temporal; com expressão encantada e a cara coberta de suor, ele agradeceu, atirando o cabelo para trás, sorrindo com ar vencedor.
- Menina Kerckhof, se faz favor - pediu o sr. Reindl. Tudo se perdeu num turbilhão de gente, de luzes e de portas.
- Gelfius não está? Gelíius?-preguntou ela, numa pobre voz enfraquecida.
- Vamos, coragem ! - incitaram de qualquer parte.
- Como ela está pálida! - disse alguém. E outra pessoa gritou:
- Esqueceu-se da música. Nunca se deve esquecer a música.
- Ela canta de cor. - ouviu dizer a Gelfius. A porta da sala foi aberta, à sua frente.
- De cor, muito bem! - disse uma voz atrás.
Um empurrãozinho de Gelfius colocou-a em frente da ribalta. Ele resmungou:
- E Quanto tempo vais esperar à porta ?
"Em cada porta. - pensou ela, confusamente, e pôs-se a sorrir.
Agora, já estava em cena.
Fracos bravos chegaram até si. Fez uma vénia, sem saber o que fazia; depois, da massa ondulante de baixo não chegou mais do que uma estranha crepitação. Então Gelfius preludiou e fèz-se silêncio.
"Parece um canteiro de flores, - notou Elis - um canteiro de flores ao vento."
Mas já estava a cantar.
Na primeira fila, via-se o director, reflectindo na calva breves reflexos do lustre suspenso sobre ele.
"Só aquele que conhece a dor pode saber quanto sofro." Dima estará cá? oh! meu Deus, no que penso, é preciso que me domine: "sozinha e separada de toda a alegria." E Rassiem? Onde estás tu ? Tu ? Tu ? - De súbito, ouviu a sua própria voz, pequena e solitária, atravessando a grande sala. "Respirei mal"-pensou, tentando concentrar-se. Justamente debaixo dos seus olhos uma velha muito feia estava sentada sem ouvir nada e olhando para as unhas com ar de censura. "É preciso que ela preste atenção"-decidiu Elis e, respirando mais profundamente, cantou mais forte.
Ah! aquele que me adora e me conhece está longe." Era lá também que estava Rassiem, em pé, no prommoir ao fundo, encostado a uma coluna, com ar descontente. Sinto-me mal, vamos, olha para mim.
E a canção acabou.
Aplaudiram um pouco; cabeças, em baixo,oscilavam, pareciam pálidas, sob a luz; faziam ouvir um ruído que dava vontade de desmaiar. Elis olhou para a seda mole das mangas, que fazia vagas e tremia.
Ao princípio do segundo número, logo às primeiras notas, o seu coração entusiasmou se; um véu verde cobriu a sala. A criança baixou a cabeça, enterrou se inteiramente em si própria; apoderou-se dela uma leve embriaguez como muitas vezes, em casa, quando cantava na escuridão e ninguém a ouvia.
Surpreendido, Rassiem inclinou-se; uma voz sem sonoridade alguma, uma voz a desfalecer, começou:
Que me importam as estradas por onde os outros caminham?
Rassiem enrugou a testa: Que significava aquilo ? A voz não ressoava: estava exausta no último grau.
Procura me caminhos ocultos através dos rochedos abruptos l"
Neste ponto, Elis levantou a cabeça, com os olhos muito abertos e que não viam nada. Qualquer coisa de imperceptível perpassou pela sala; todos os ruídos cessaram diante daquela voz que se elevava agora, deixando crescer, na sua expressão, um sentimento de profunda solidão. Extinguiu-se um instante, como muito
cansada, depois recomeçou, com desespero. Em seguida, entrou com uma estranha calma, na conclusão inexorável:
Diante dos meus olhos ergue-se um poste, imutável sob o meu olhar.
"Um caminho devo seguir, donde até agora alguém jamais voltou. donde alguém até agora, jamais, jamais voltou.
Gelfius estava ao piano, com os lábios cerrados, as mãos sustendo o acompanhamento das palavras de Elis. Este final começava por uma longa dissonância, tornando-se cada vez mais estreita, insistindo sobre uma única nota e, já no fim, lançava subitamente dois opulentos compassos de consolação, à guisa de doce epílogo.
Elis estava em pé no meio do palco, com a cabeça muito inclinada, olhando sem ver. O seu rosto tornara-se muito pálido, mostrava uma lassidão, uma dor imensa. A sala calou-se ainda um instante, tomou fôlego, depois rebentaram os aplausos surpreendentes, incompreensíveis. O director, na primeira fila, limpava, com um grande lenço, a cabeça calva e reluzente, dizendo muito alto:
- Que talento! Que expressão! Que inteligência! E é quási uma criança! Parece incrível!
Rassiem avançou lentamente pela coxia central até ao pé do palco e fixou os seus olhos claros nas pupilas negras de Elis. Qualquer coisa quente acariciou-lhe a mão: Dima encontrava-se ali sentada, pálida, como que febril, tensa, a rebentar.
Encostou contra ele os braços nus e ardentes como se o quisesse reter. Ele respondeu fracamente a essa pressão e passou. Elis viu o sentar-se atrás do director; acordou então, sorriu e começou o Cravo Silvestre. Cantou muito baixo, timidamente, puerilmente, numa voz ligeiramente velada, Mas as reflexões finais eram tão tristes e cheias de pensamentos! Dir-se-ia que um mistério ocultava ainda qualquer coisa de insondável.
É verdade que tu deves sofrer isto?" E, nas últimas notas, transparecia a dúvida: "Rosíein auf der Heiden. Os seus olhos faziam uma pregunta.
Aplaudiram muito, alguns entusiastas chegaram a
gritar "bravo!" Achavam Elis cheia de talento e muito bonita.
- Se bem que. -dizia o director pensativo, quando os aplausos acalmaram - se bem que ela não tenha positivamente voz nenhuma. Deus sabe como ela consegue manobrá-la tão bem.
Algumas raparigas do curso de piano acharam-na ridícula com aquele vestido e aquelas tranças. E que esquisita maneira de cantar! Absolutamente sem voz!
- É porque a não tem.-disse a pequena Bach. Greta Wied insinuou :
- Foi com os olhos que ela conseguiu isto. i Vocês viram como ela fazia, a toleirona! o sol foi muito mal colocado.
Depois foram ao foyer dos artistas felicitá-la.
Elis estava de pé, com um vago sorriso nos lábios, tendo na mão dois miseráveis cravos brancos, desfolhados, que Gelfius misteriosamente arranjara e lhe havia dado sem pronunciar uma palavra. Era, à sua maneira, um grande cumprimento, e isso comoveu tanto Elis que quási chorou. Muitas pessoas a rodearam e lhe falaram; as colegas depuseram-lhe nas faces beijos úmidos. Agora que tudo acabara, ela estremecia e tinha dores de cabeça; tomou a um desejo violento de ver a luz do quarto da mamã, o seu roupão, a chaise longue, na qual passava, num meio sono, as noites de vela à doente.
-Ela está fatigada, deixem-na tranquila.-disse Gelfius, que olhara muito para o seu rosto pálido - Vão para a sala ouvir tocar a Mertens, isso lhes ensinará o que é ritmo.
- O Poste foi bem.-disse ele, quando ficaram sósPrincipalmente no fim: À morte ninguém foge."
- Ao suicídio. - disse Elis.
-Ao suicídio? Porquê? Como lhe dá essa interpretação? - preguntou ele.
- Pressinto-o; sei, simplesmente.-disse ela. E fixou o olhar na luz que inundava de branco o seu rosto.
Gelfius deu um acorde no piano.
-A primeira melodia foi muito apagada, porquê?
- Bem sabe que a maior parte das vezes canto mal.
Apenas quando estou só e me sinto um pouco abalada é que canto desta maneira.
Sonhadora, calou se e depois disse, tremendo um pouco:
- Mas como é que hoje, diante de toda a gente, na verdade, não sei. Agora até me parece uma vergonha ter-me dado assim em espectáculo.
A porta fechou-se, ruidosa. Rassiem entrou, barulhento, com as mãos calorosamente estendidas, excitado e feliz com o êxito da sua aluna.
Dima deslizou atrás dele e, sem dizer palavra, ficou em pé junto à janela, com olhos de febre e mordendo os lábios até fazer sangue.
- Minha filha, minha filhinha adorada, que alegria me deste! - dizia Rassiem, apertando fortemente as mãos de Elis.
Puxou-a contra si, pô-la entre os joelhos como a uma criança:
-Deus sabe o que se esconde ainda nesta cabecinha ? - preguntou - Vamos, olhe para mim, minha princezinha feiticeira, É preciso que eu veja, pelo menos uma vez, os seus olhos de perto! Quem sabe quantas surpresas eles ocultam, lá no fundo!
Levantou os olhos para ela, para aquela que estava de pé na sua frente, e que, lentamente, inclinava a cabeça e o olhava, olhava, calada.
Dima continuava encostada à janela, Gelfmsao piano: lá fora, tocavam Chopin. Rassiem conservou as mãos de Elis apertadas, os olhos fixos nos seus olhos e, insensivelmente, o seu sorriso morreu numa estranha seriedade.
O barulho dum vidro partido, rebentou, de súbito. Levantaram-se bruscamente.
- Perdão. - disse Dima - Fui uma desastrada !
Tinha batido com o punho no vidro e agora ali estava de pé, trémula, com a mão ainda crispada, enquanto no braço nu e moreno um largo fio de sangue, corria.
À noite, Elis estava sentada no seu quarto, mergulhada numa melodia de Hugo Wolf, quando a criada veio dizer-lhe que a senhora estava acordada.
- Sim ? - disse Elís-Vou já. - e tornou a mergulhar na música.
Mas a criada ficou à espera:
- Menina, menina Elisabete, ela está tão esquisita, tão alegre!
- Como?-e Elis levantou-se bruscamente-Alegre! A mamã?
E foi, à pressa, ao quarto da doente. No corredor, a luz estava já meio baixa, o que causava tristeza; os grandes e velhos armários lá permaneciam imóveis na semi-penumbra de profundas sombras negras. Pareciam sem cor apesar das flores pintadas.
A mamã estava no quarto, sozinha, e falava muito alto, muito depressa, rindo de vez em quando.
Elis estremeceu; apurou o ouvido e ficou um minuto, um longo minuto, à porta, antes de entrar.
Sim. A mamã lá estava deitada, ria com os olhos brilhantes de febre; as suas mãos agitadas viajavam circularmente sobre a coberta, como brancos animaizinhos acorrentados.
- Não o conheceste ? - dizia a doente com uma voz estranhamente cortante e pueril - Não conheceste o velho tio Pedro? Ah! como ele era engraçado! Então não te lembras? Ana Maria. i Como nos rimos quando éramos pequenas! Quando ele, um dia, chegou a cavalo, com o seu grande chapéu de sol,aberto. -ela ria, e o seu riso parecia de vidro - Lembras-te como o Eduardo o imitava? i Só tinha um ano mais do que tu, e morreu tão novo!
Calou-se, pareceu reflectir, olhou para Elis com insistência.
- Não.-disse tristemente - Elis! És tu, Elis! Confundi-te com teu . parecia-me que minha irmã e meu irmão estavam aí, mas não; é a Lise. - disse ela, admirada.
Os seus olhos despertaram um pouco e tornaram-se ternos, enquanto as pequenas mãos continuavam a procurar alguma coisa.
-O doutor!-murmurou Elis à criada que saiu rápida e silenciosamente.
- Mãe! -disse Elis, tentando captar essas mãos impacientes, que continuavam a mover-se, em círculo.
- O prado das framboesas, ao pé do rio, ao sol quente . E havia lá serpentes. Ih!.- disse muito alto a doente - Ih! Serpentes! No verão, a Betty teve um filho; eu não percebi nada: era do cocheiro. Horrí vel! Não, eu não percebi nada.
Elis sentou se ao pé da cama sem desviar os olhos da mamã que, lentamente, se tornara irreconhecível, com sombras azuis nas asas do nariz. Ela escutava, atenta, a voz da mamã, a voz desconhecida duma menina correndo no prado, que ria e não sabia nada.
"Isto agora começa, é a morte que chega!" - pensou a rapariga.
- Então o papá enforcou se. - dizia a enferma. E voltou a rir, com o seu riso de vidro. - Era engraçado, estava enforcado na cavalariça e ninguém queria cortar a corda.
- Quem se enforcou, mamã? - preguntou Elis, ofegante.
- O nosso papá, Ana Maria! Tu ficaste petrificada, na cocheira, e meteste os cinco dedos na boca, espantada. Então o João cortou a corda, o João, aquele que fez o filho à Betty, lembras te?
- O avô. ele mesmo.? Mamã? Nunca ouvi dizer.
- O avô ?-preguntou a mãe, fechando os olhos distantes e perturbados - Quem está aí? Quem é? Tu, Elis? -disse mais serena - Elis, sim, não sabias? Tem havido tantos, na família. Os Reinhard nunca foram muito sensatos. Tu também não és, minha pobre, minha pequena Lísel querida .
Depois teve um horrível sorriso de clarividência :
- Actualmente tens apenas dezassete anos! -disse, enquanto o coração de Elis se confrangia dolorosamente
- Que será de ti mais tarde? Tu és tão exaltada, tão frágil! Tens sempre dores de cabeça! Sim, agora tens dezassete anos. A mim, tudo me começou logo que casei. Depois do primeiro filho, sabes? Estava horroroso, depois da sua morte! Pst!
Chamou a mama, muito alto, e a febre voltou a submergi-la.
- Não queria ter mais, tudo é tão cruel e tão feio. E tu. tu. sofri muito para te deitar ao mundo, Elis. sofri muito! i Amei muito o teu papá, sim, mais do que a ti! i Não me queres mal por isso, Elis? E, no entanto, ele foi muito infeliz comigo. Neste momento ele está lá em cima a trabalhar, Elis, não é verdade, que está lá em cima a trabalhar ?
- Sim, mãe.
- É preciso que ele não desça, prometes-mo? Só quando tudo acabar. Acabar.- disse ela, e soltou um suspiro profundo que lhe arrancou do peito um estertor horrível e completamente novo.
A filha engoliu um soluço.
- Elis,- continuou a mamã, muito baixo -sofro ao pensar nisto: a nossa casa está doente. As paredes, os móveis, tudo é doente e velho. Nunca reparaste? Diz a Bíblia que existem casas atacadas pela lepra. A lepra! Ai! -gritou a moribunda em voz tão alta e tão veemente que Elis, aflita, agarrou-lhe as pequenas mãos, e reteve-lhas, prisioneiras. Então, tremendo, a mamã aproximou, a custo, as mãos dos olhos. Fitou-as com um olhar perscrutador e eloquente, como se fosse um objecto estranho e notável.
- Ah! sim! Então acabou-se! - disse ela calmamente e como se tivesse visto isso nas suas pequenas mãos diáfanas e transformadas. O seu rosto afinou-se, de súbito. Voltou um pouco a cabeça; depois, fechando os olhos, calou-se.
Mais tarde veio o médico. Tomou-lhe o pulso, ergueu-lhe as pálpebras transparentes e descobriu lhe os olhos dum azul escuro, aflitivo. Estavam vitreos, moribundos. Escutou lhe a respiração que se exalava, regular e rápida, e, baixo, prudentemente, dirigiu-se a Elis:
- É a libertação. - disse. E, por um instante, pôs a mão, consoladora e desagradàvelmente quente, nos ombros de Elis.-Os pulmões estão engorgitados; amanhã o coração enfraquecerá. - E não terminou a frase. Depois acrescentou:
- Agora só temos que esperar. É inútil a morfina; a doente está sem conhecimento e já não sofre. Se acontecer seja o que for. estou em casa. - E dirigiu-se para a porta.
E, na escada:
- Ela sofreu durante três anos!
com froixa delicadeza, ergueu o feltro claro e desceu os degraus lisos, gastos pelo uso. Elis viu-o partir, absorta. Havia agora dentro dela um vácuo, ardente e seco. De repente, compreendeu: "Agora, a mamã estava quási a morrer." Pareceu lhe que tinha gritado, de tal modo este pensamento era agudo e forte. A mamã encontrava-se deitada, como sempre, com os olhos fechados no seu rostozinho afilado e rejuvenescido. A pele estava tão lisa e esticada que reluzia, verde, ao clarão do candeeiro da mesa de cabeceira. A respiração sibilava, rápida, acompanhada por um fraco estertor.
- Menina ? Menina Elisabete ? - interrogou a criada olhando para Elis, com os olhos muito abertos, cheios de lágrimas. E, colocando o avental branco em frente da cara, pôs-se a chorar, com grandes soluços infantis. "Chorar? -pensava Elis, admirada - chorar? Como é simples!" E acariciou, distraída, os ombros sacudidos da criada.
- vou ter com o papá. - disse, maquinalmente. Na nuca começava-lhe um grande barulho doloroso;
ardia lhe a garganta, que se comprimia de angústia.
Tinham-se esquecido de iluminar a escada. O céu nocturno penetrava no interior por pequenas janelas; estava vermelho, inflamado, dir-se-ia que tinha febre. As mãos de Elis tatearam ao longo do mármore frio do guerreiro moribundo, em frente do atelier. Os músculos de pedra incharam fortemente sob as suas mãos; ela soltou um profundo suspiro, para despertar. Parecia-lhe que dormia e que passeava a sonhar, pois acontecia-lhe muitas vezes, em pesadelos, as suas mãos sentirem esse corpo forte.
Depois, abriu devagarinho a porta do atelier e uma torrente de luz branca precipitou-se para ela. As esculturas da primeira sala ergueram-se, imensas, brancas e mudas.
O pai não estava. Brilhante, a lâmpada em arco de mil velas ardia no teto; havia neste aposento uma brancura que fustigava. Na segunda sala, a água duma torneira gotejava, monótona e lenta; um grande esboço envolto em panos úmidos estava em pé, uniforme, no meio do aposento. Ali, o silêncio era tão profundo, tão espesso que, passando através da porta cinzenta, a respiração do papá se tornava perceptível. Em passos leves, Elis foi até ao reposteiro, que levantou com precaução. Era um pequeno aposento cheio duma misturada de almofadas, de peles e de mantas. Em cima duma mesa baixa, chávenas de chá, vazias, estavam colocadas entre cinzeiros e grandes pilhas de livros. Uma luz, rústicamente velada por papel de embrulho, azul, sobrecarregava a mesa, lançando um raio circular no centro da froixa obscuridade. Sob a luz do candeeiro, toda branca, uma folha de papel, na qual tinha sido desenhado, em várias tentativas, um ombro de mulher: um forte ombro musculoso, encostado a qualquer coisa; um ombro que devia carregar qualquer fardo pesado. A mão do pai estava poisada, inerte e coberta de poeira, ao pé do desenho. Atirado para trás, na cadeira, dormia com o queixo virado para o teto. Havia também poeira nos seus cabelos e na barba; nas fontes, as veias, as veias azuis moviam-se como serpentes.
Elis olhou para ele. Nesse momento, pareceu-lhe que podia talvez chorar. Vagarosamente, retirou-se, deixou cair o reposteiro e retomou o caminho por onde viera, cheia de sono como depois dum grande esforço, entre as silhuetas mudas das duas salas e da escada sombria, até abaixo. Atrás duma parede, a argamassa chiava; sem isso, a casa ficaria estranhamente silenciosa e sossegada, pois faltavam os gritos e os gemidos habituais da mamã durante a noite.
Em baixo, Elis sentou-se ao pé da cama da mãe; sentia uma dor de cabeça tão grande que lhe parecia poder chegar para o mundo inteiro. A respiração da doente era muito fraca : lutava, lutava, lutava. Tinha as pálpebras azuis, diáfanas, meio abertas. Pela fenda,
viam-se os olhos que já estavam mortos, mas as mãos, inquietas, continuavam os seus círculos na coberta. Viviam ainda, embora se tornassem cada vez mais pequenas e irreconhecíveis. A um canto, perto do fogão, estava sentada a criada, com a cara vermelha de ter chorado muito. Lutava contra o sono; a cabeça pendia-lhe de vez em quando. Então, acordava bruscamente e tremia como um animal.
- Vá dormir; - disse Elis - eu fico aqui.
- Não tem medo, menina Elisabete ? - murmurou ela - Eu tenho tanto medo, tanto medo !
- Não. - reflectiu Elis, lentamente - E de quê? Na verdade, aquilo parecia-lhe muito familiar. - Nunca pensou. na morte ?-preguntou, muito baixo.
- Não, menina.
- Não, naturalmente, não . - disse Elis. E um instante depois:
- Na verdade, eu não tenho medo dela. - e isto soava como se. preguntasse qualquer coisa.
Então ficou só, e horas confusas passaram, parecendo curvar-se e deslizar lentamente através do quarto. Mais tarde, a manhã surgiu, uma suave manhã dum verde-pálido, fresca e cheirando a verdura, e que fazia despertar entrando, como um sopro, pela janela aberta.
Cambaleante, Elis levantou-se para apagar a luz. Um pequeno murmúrio enternecedor subiu do jardim, calou se e voltou a adormecer. Uma estrela brilhava ainda no céu, suspensa, verde e baixa, sobre o telhado e o jardim. O parapeito da janela estava molhado. Elis passou as mãos por essa úmida frescura. Estava aniquilada, vencida pelas suas dores de cabeça, horríveis. Lentamente, lá fora, o verde empalideceu; um sol avermelhado ergueu-se no céu. Elis ficou muito tempo à janela, a olhar: na casa, em baixo, batiam portas. Deu uma hora. Cheia dum susto horrível, Elis voltou-se e viu, dirigidos para ela, os olhos da doente, muito abertos, conscientes, imensos.
- Mamã! Mamã! Reconheces- me ? - gritou, atirando-se para a cama, desesperada, exaltada ao mais alto grau, olhando esses olhos que a fixavam, tão clarividentes,
tão cheios de conhecimento - Mamã, que queres tu dizer ?
Mas a mamã não disse nada. Justamente, com lentidão, duas grossas lágrimas correram dos seus olhos azuis ao longo do rostozinho transfigurado, onde Elis, ternamente, as secou com um beijo. Mas quando levantou a cabeça, os olhos da mamã tinham voltado a semi-cerrar-se, alquebrados, e as pequenas mãos permaneciam agora tranquilas e começavam a morrer. No entanto, a respiração lutou ainda muitas horas. Ouvia-se constantemente, às portas, um murmúrio; mas ninguém entrava. O pai também não. À tarde, enquanto estava quente e calmo, ouvia-se lá em cima o som do seu martelo batendo e o barulho surdo da pedra caindo no chão. Elis continuou a olhar para a cama da mamã e perdeu, pouco a pouco, a consciência do que se passava. O doutor veio e não soube dizer nada: faltava lhe a família a chorar, sequiosa de consolação, acumulada em redor do leito.
Cada palavra proferida ali, naquele quarto vazio, silencioso, à criança pálida e muda ali sentada, sem lágrimas, sorrindo docemente e cambaleando, cada palavra parecia repercutir nas paredes, ressoar muito forte, e ser falsa.
O médico fez uns movimentos sacudidos, como um fantoche, olhou maquinalmente para o relógio e disse:
- Chega até à noite, quando muito.
Ouvindo isto, Elis sorriu e ele retirou-se, espantado, não sabendo que fazer.
Então, Elis começou a esperar. À noite, o céu tinha uma cor rosada, o ar era fresco e leve, com um cheiro de lilazes nos cortinados brancos. A mamã levantou imperceptivelmente a cabeça. Como fios delgados, umas gotas de suor corriam-lhe da boca sobre as faces. A respiração extinguiu se . Nada mais.
Elis pegou na mão da mamã e esperou ainda. Então, como nada acontecesse, deixou-a cair. A mão enterrou-se pesadamente no lençol como uma coisa, um objecto estranho. A criança soltou um suspiro, passou a mão pela testa que dores loucas atravessavam e abriu a
porta, devagar. Atravessou o corredor onde encontrou os criados, que a interrogavam com o olhar, segredando.
- Acabou-se!- disse ela, era voz seca -Mas não entrem, vou buscar meu pai.
Lá em cima, à porta do atelier, encostou a cabeça, um instante, contra o frio braço de pedra do guerreiro; do interior, vinham sons de marteladas. Elis hesitou um longo momento, depois empurrou a porta. A lâmpada de mil velas ardia, branca e violenta; o pai, de casaco sujo pela poeira branca, brandia o martelo e lançava-o com toda a força contra um poderoso bloco; a sua testa estava muito alta, muito branca, coberta de grossas gotas de suor. Tomada de súbita vertigem, Elis dirigiu se para ele através de toda aquela brancura sonoramente martelada. Parecia-lhe passar uma estreita ponte que não levava a margem alguma. O pai só a viu quando se encontrava muito perto. Levantou a cabeça. Pequenos estilhaços de mármore estavam ainda presos aos seus cabelos e à sua barba. Olhou para Elis que, singularmente hirta e solene, ficou em frente dele, sem poder falar. Então, o martelo caiu pesadamente no chão.
- Já vou, já vou.- disse, e a sua voz parecia distraída.
À porta, hesitou:
- Como. como está ela?-preguntou, sem respirar.
- com bom aspecto e calma, pai.
- Foi. doloroso ?
- Não. - disse Elis - Não foi, na verdade, não foi
absolutamente nada, pai.
Ele manipulava barro e gesso.
- O melhor é tirar só a máscara. - disse, maquinalmente.
E lá foi, branco e delgado, entre todas aquelas silhuetas alvas, mudas e demasiado vigorosas.
À porta, parou para dizer em voz baixa :
- Agora é que ela nos deixou sós, não é verdade ? Elis olhou para as espáduas estranhamente altas do
escultor, depois foi para o seu quarto onde pôde chorar um pouco. Mas as dores de cabeça tornaram-se insuportáveis.
Quando, como um autómato, ela foi até ao toucador buscar água de Colónia, a caixa das ampolas de morfina, para as injecções da mamã, veio-lhe ter às mãos. Olhou as pequenas coisas de vidro, redondas e transparentes, deitadas sobre algodão e rectilineamente alinhadas como soldadinhos. "Mais ninguém precisa disto. - pensou quási imediatamente - É uma forma de me desembaraçar das dores de cabeça."
Estremeceu um pouco e o coração bateu-lhe, fortemente, quando sentiu a seringa. Pensou, de súbito, na irmã de sua mãe, que se tornara morfinómana e que tinha morrido duma morte miserável; nunca haviam falado nisso senão com palavras veladas.
- Morfinómana . - disse Elis ao espelho, e teve um fraco sorriso que lhe era frequente, quando tinha cantado muito.
Quebrou a ampola, encheu a seringa, levantou a manga: era pouco fácil dar a injecção só com uma mão, com a mão que tanto tremia. Fixou a agulha, picou sob a pele, empurrou a seringa e formou se uma elevação. Depois, estendeu-se na chaise-longue.
O coração batia lhe com muita força, depois acalmou; ela ouviu muito bem o seu bater surdo. Depois, todos os barulhos se afastaram; o relógio também já não fazia ouvir o seu tique-taque. Sentiu uma violenta dor de coração, que desapareceu como uma nuvem. As dores de cabeça tornaram se rígidas e pareceu-lhe que se frigorificavam. Depois, sentiu se inchar, voar, muito leve, muito alto, mais alto ainda, absolutamente sem peso, nada, nada.
E adormeceu.
Foi acordada por uma súbita pancada na porta, por passos, vozes, um alvoroço pouco habitual que enchia a casa e passava através das paredes. Sentia-se mole e aniquilada, com a sensação de ter a cabeça vazia, como calcinada. Sentia a língua seca como um espesso pedaço de madeira, numa boca ardente. Sentia as mãos úmidas e uma extraordinária sensação de inchaço; os pensamentos enrolavam-se em nós como um grande verme.
Era já dia claro; a luz do sol misturava-se à luz amarela do candeeiro. Elis levantou-se. Estendeu, com dificuldade, um braço pesado e preguiçoso e voltou-se. Sobre a mesa estava a seringa com os bocados de ampola quebrada.
- Nunca mais, nunca mais!-disse Elis, surdamente.
E arrumou tudo longe dela. Mal podia andar; afligia-a uma sede horrível. Dirigiu-se pelo corredor para a sala de banho. Sob o jacto violento da água, voltou um pouco a si; de rosto virado para cima, bebeu, com a boca aberta, a frescura que corria em ondas.
A rapariga tirou do velho armário camponês, do corredor, o vestido da crisma; era amplo, longo e negro; empalidecia-a e envelhecia-a, ao mesmo tempo, dando aos seus cabelos um brilho novo. Depois subiu até à porta de seu pai. No interior, tudo permanecia mudo. Desandou o puxador e viu que a porta se encontrava fechada à chave. Esperou um pouco, acariciou maquinalmente os membros lisos do guerreiro caído. Um sentimento de abandono sem limites apoderava-se dela enquanto ali estava em pé, diante da porta fechada, acariciando uma figura de pedra. Como no interior nada se movesse, desceu a escada e saiu.
Em baixo, levantou os olhos para a casa cuja fachada, dum tom cinzento-escuro estava cheia de ornamentos de estilo antigo. O vestíbulo exalava até lá fora o seu álgido sopro.
Doente, leprosa." - dissera a mamã. Mas a casa permanecia ainda de pé e a mamã tinha morrido.
Elis saiu da sombra da rua para a ardente claridade do dia, saltou para um automóvel e ordenou, sem reflectir :
- A Schonbrunn!
Um raio de claro sol do meio-dia estava poisado sobre todas as coisas; as pessoas andavam com passo ligeiro, cheio de alegria. Todos os sons pareciam muito fortes, todas as cores muito vivas. Mais longe, viam-se pequenos jardins, em frente das casas. Das suas roseiras, dos seus canteiros, saíam murmúrios que faziam mal. A praça do castelo estendia-se, monstruosamente grande;
as fontes projectavam uma cintilação brilhante. Nas alamedas, recortavam-se algumas sombras frias e muito negras; por trás delas, o ar ondulava, irisando se como vidro; os canteiros de flores alongavam-se, desmedidamente; as flores vermelhas eram como um grito. Pequenos entes negros iam e vinham pelas alamedas muito verdes, muito estreitas, semeadas de brancas figuras de pedra que se perdiam em perspectivas ridículas. Um jacto de água produzia grande barulho; membros de mármore, efeminados e claros, tintos de verde por cima, sobrepunham-se e fundiam-se como nuvens. Uma gruta atraía, sombria, luxuriante, com cachos de pedra, e sons de flautas e guitarras.
Aí, podia-se ficar sentado muito tempo, sozinho, miseravelmente, de espírito vazio. Havia silêncio, catadupas de água, vozes de pássaros. Podia uma pessoa entregar-se aos seus pensamentos, aos seus desejos, aos seus sonhos. Sentia um desgosto, uma grande lassidão de si própria e das coisas reais. Mesmo a música, a lançava numa indiferente embriaguez. Gelfius, que parecia perceber qualquer coisa a esse respeito, tinha-lhe chamado diletantismo e cabotinismo. A mamã estava morta e ela não a pudera chorar; tinha ficado quási desiludida diante da morte. Havia-se injectado com morfina e por isso partira sozinha e triste. E tinha apenas dezassete anos!
Elis aproximou-se do lagozinho, no qual a foca vivia feliz, trazendo à superfície o seu rosto ponteagudo, girando sobre si mesma e deslocando-se.
O seu ventre branco brilhava através da água, deitava-se sobre uma pedra, ao sol e ria, ria. Elis compreendia isso perfeitamente.
Aí, os seus pensamentos deram um salto para regressarem dolorosamente ao velho tema. Tinha apenas dezassete anos e, no entanto, todas as coisas lhe pareciam caducas e gastas. Parecia-lhe conhecer tudo e ver através de tudo. Sabia uma coisa apenas. a grande coisa, extraordinária e esperada. a que se revestia ainda de cor, de som e de novidade: o amor.
De súbito, sentiu um olhar pesar sobre ela e
os seus pensamentos, um olhar cheio de pena arcaica e de desprezo pelas coisas. Lançou os olhos à sua volta e viu que tinha ido dar ao pavilhão dos macacos, diante dum chimpanzé fêmea que apertava contra o peito um pobre macaquinho e olhava na sua frente com uma expressão de profunda tristeza. Elis teve um sorriso lento e compreensivo.
Um criado entrou na jaula, féz estalar os dedos e tratou afectuosamente o chimpanzé. Mas esta nem o olhou; fitava sempre e exclusivamente o filhito.
- Tem quatro semanas,-explicou o homem, sem dificuldade - mas não viverá muito tempo; ficam todos tuberculosos. Ela tem cada ano um filho, e ainda não resistiu nenhum. Por isso, agora está triste, a Gretel, Um animal assim e tem mais sentimento do que muita gente! - dizia em alto alemão Em pêndunlo (sentimental).
Elis deu-lhe uma coroa. A macaca tinha sempre, sempre os olhos fixos. E, diante desse olhar de animal, Elis conseguiu enfim chorar.
Desde manhã que Hannès Rassíem estava levado de todos os diabos. Corria como o vento pelas estradas do arrabalde, deixando atrás do seu automóvel uma nuvem de poeira e cheiro a óleo queimado. Agora buzinava, raivoso, repetidamente. Furioso, acabou por passar à frente da pequena silhueta negra que avançava em zigue-zague pela estrada, sem querer ceder o lugar.
- Elis! - gritou ele, descontente e estupefacto, quando o carro parou - Que aconteceu, pequena? Está embriagada e anda a passear por aqui em pleno dia?
Elis fitou o com os seus olhos enormes e hesitantes e pensou, vagamente satisfeita : "Procurei-te - tinha que te encontrar."
- Estou cansada. - disse ela, agarrando se à carrosserie cinzenta.
Rassiem considerou aquele rostozinho estranhamente desfigurado, o vestido poeirento, e qualquer coisa de quente nasceu em si, que lhe fez bem.
- Venha. Está com mau parecer. Não se sente bem?
-Não.
- vou levá-la a casa.
Saltando do carro, ajudou a subir a leve criança. -Oh! não, para casa não! Isso é que nunca, para casa não!
-Ora vamos, que aconteceu? Elis, que tem?
- Nada. -disse ela -É que a minha mamã morreu. Rassiem, comovido, pôs as mãos em roda do rosto
de Elis. Não achava que dizer, mas tinha as mãos quentes.
- É muito bom.-disse a rapariga, depois dum silêncio - E beijou ternamente, com extraordinária simplicidade e inocência, uma das mãos dele. Muito fatigada, cambaleou.
"Que hei-de fazer então?"-pensou Rassiem, lançando um olhar desesperado sobre as longas paredes amarelas e baixas dos edifícios fronteiros, os castanheiros do caminho e os rails dos eléctricos. Estava para ali desconcertado, com o seu carro e a sua febre de velocidade, tendo aquela pequena coisa desamparada a seu lado. Ela agarrava se com as duas mãos à sua mão e isso era maravilhosamente doce.
- Quer vir comigo para a minha casa de Rodaun? Sim. Elis queria.
Pôs o carro em andamento e partiu, rolando mais lentamente do que antes, pois não acreditava que Elis pudesse suportar uma corrida rápida. Fechando os olhos, ela abandonou-se ao ar fresco e vivo, que lhe acariciava o rosto. No entanto, quando, passado um momento, Rassiem se voltou para ela, viu que dormia. Então conduziu ainda mais lentamente e sentiu-se um pouco ridículo.
Em Rodaun, Berger, o criado, tratava das flores, em frente da casa, andando pelo jardim com as suas pernas tortas. Quando ouviu o ruído do motor, abriu, apressado, o portão, correu para a garagem, muito excitado, e reapareceu por fim.
Berger era uma síntese de pequenas explosões de servilismo e de zelo, uma explosão acendia outra - uma sonora cadeia de ocupações ficava assim realizada,
O automóvel parou, Rassiem apeou se, inclinou-se sobre Elis, tocou-lhe devagarinho. Ela mal despertou, murmurou qualquer coisa incompreensível, como uma criança, com os olhos fechados, e continuou a dormir enquanto punha os braços em roda do pescoço de Rassiem, encostando ternamente a cabeça ao seu ombro. Ele sorriu, admirado e enternecido, e levou-a para casa.
Berger, que nunca se admirava de coisa alguma, arranjou confortàvelmente as grandes almofadas de seda multicor, empurrou para junto delas uma poltrona de baloiço, com os cigarros de Rassiem. Quanto à garrafa de conhaque, pô-la fora do alcance das mãos do seu amo. Logo a seguir, ouviu-se o chuveiro da casa de banho; como Rassiem não aparecesse, a água parou ao fim dum momento, e Berger fez calar todos os ruídos provocados pelo seu zelo.
Rassiem via Elis dormir; tinha o ar duma criança com a boquinha delicada e as longas pestanas escuras. De vez em quando, tremia como um animal adormecido e, entre as sobrancelhas, formava-se uma rugazinha, dolorosa e tensa.
- Berger? -chamou Rassiem, a meia voz. O criado apareceu. - Berger, ela não é adorável ?
Berger manifestou que estava de acordo.
- Morreu lhe a mãe.-disse pensativamente quando acordar, vai chorar. Que vamos fazer dela?
- Devemos consolá-la, - insinuou Berger - e depois devemos dar lhe vinho velho; ela não parece estar bem.
- Sim, Berger, traz vinho e deixa te ficar próximo. Então, permaneceu muito tempo sentado, inclinado
sôbre Elis, e sentia-se maravilhosamente calmo pela doçura do seu hálito e pela sua mão de criança, quente de sono, que tinha agarrado e sentia vibrar, em sonho. E pensando em Maria, que estava tão longe, Deus sabia onde, fazendo tolices e não dando notícias, ele pensava também em Dima e na sede de a possuir que o assaltava com frequência.
Um tremor mais forte correu sobre a fronte de Elis, que abriu para ele os grandes olhos cheios de sonho e
recuperou os sentidos, sorrindo deliciosamente, quando sentiu o rosto dele próximo do seu.
- Quando eu era garoto, - disse imediatamente Rassiem, como se não devesse esquecer-se de dizer aquilo - quando eu era rapazinho, encontrei uma vez um esquilo doente. Já não podia subir às árvores. Levei-o para casa; ele deixava-se tratar passivamente, e não era nada tímido. Era tão engraçadinho quando dormia! com a cabeça inclinada, a cauda entre as patas, parecia uma criança. Meu pai impacientava-se com o pobre animalzinho, mas eu gostava de o ter. Era então um garotinho.
- Sim,-disse Elis-um garotinho, é singular, não é verdade? Nunca imaginei que o senhor também tivesse sido um garotinho. pequeno. Pequeno - disse ela ao fim dum momento, fechando os olhos - e loiro.
- A gente esquece completamente estas coisas. Depois, de repente, elas reaparecem, o seu perfume volta, folhagem úmida estendida ao sol e que seca lentamente e fica quente. Ah! Tolices.
Interrompeu se, pegando noutro cigarro.
- E que foi feito do pequeno esquilo?
- Ah! sim. Foi-se embora. Fugiu da cocheira. Tinha-lhe feito lá uma pequena toca e um dia fugiu.
- Fugiu! - repetiu ela.
Rassiem indignou-se: Elis podia muito bem imaginar diante da toca vazia, o garotinho loiro que não compreendia a ingratidão do bicho. Ela ria, gentilmente :
- Onde aconteceu isso? Na Dinamarca?
- Na Dinamarca, sim, foi na Dinamarca. - disse ele.
E pôs-se lentamente a contar a sua infância, enquanto as mãos seguravam as de Elis e a acalmavam, acalmando-se a si próprio.
Elis olhou-o, observando as velhas coisas que saíam dele. Ele esforçava-se um pouco para as fazer brilhar e apresentava-lhas, para que ela não chorasse e não pensasse na mamã. Admirou as suas longas pestanas que lhe sombreavam as faces e pensou: "Tu és bom!
Um pátio de tejolos estendia-se com paredes brancas,
vigas sombrias, panncaux recortados e primitivas esculturas de madeira. O teto era vermelho, não vermelho claro, como os tetos de telhas o são muitas vezes, mas escuro e, dos lados, coberto de erva. E havia também um relógio de sol e cães, deitados pelo pátio, que se chamavam Thora, Troll e Gent. Este era um fox-terrier, esguio, branco, com uma graciosa mancha preta no olho esquerdo. Mais tarde, tiveram que o abater a tiro, porque ia caçar sozinho e trazia galinhas que arrastava até casa e depunha na cozinha, justamente aos pés da sr.a Thorsten.
Da mãe não havia senão uma campa, com muitas inscrições, onde ninguém queria ir levar flores. E havia um pai que usava grandes botas e andava a cavalo através dos campos. Uma vez, era ainda muito pequeno, esperava-o, à noite, ao pé da porta. Então, ele chegou, a cavalo, parecendo sair do sol que mergulhava ao longe, imenso e vermelho.
E havia uma igreja, pequena e toda de madeira; os sinos soavam até muito longe, no campo, sobre o dique e até ao Sund (). Imediatamente atrás da casa, começava a floresta de vidoeiros, a mais maravilhosa que se possa imaginar. Encontrava-se cheia de faisões, perdizes e pequenos cogumelos vermelhos que cheiravam bem à terra, como mais nada no mundo. E havia cavalos, muitos cavalos.
Nesse momento, Berger apareceu à porta fazendo um pequeno ruído delicado, e, respeitosamente, disse:
- Devíamos dar-lhe a beber vinho velho e preguntar lhe se não quere comer qualquer coisa; e depois devíamos engraxar-lhe os sapatos porque estão muito sujos.
Inclinou se, numa perfeita mesura, e deitou o vinho. Elis riu. e disse, admirada:
- Tenho uma fome de lobo. Há muito tempo que não como, parece me que há dois dias.
Berger desapareceu, enquanto o diabo esfrega um
(1) Estreito entre Seeland e a Noruega.
olho, fazendo um ruído horrível e como que picado pela tarântula.
- É extraordinário! - disse Rassiem - Há anos que não falava disto a ninguém, a ninguém! No teatro esquece-se tudo. Mas a ti, gostaria de contar recordações, tu ouves tão bem e tão tranquilamente! Só falo para os teus olhos, a gente encontra-se, na verdade, a si próprio nestas velhas coisas simples.
A rapariga sentiu uma grande, uma penetrante doçura com esse elogio. Teve de reter a respiração, era como uma embriaguez profunda e calma. Rassiem pôs-se diante do espelho e olhoU-se. Sim. Já tinha mais de quarenta anos. Quarenta anos! Um velho actor! Ela na Dinamarca, havia ainda .a casa, a igreja, os campos e a floresta, a doca e os cavalos. E os meninos loiros são sempre os mesmos. Devia ter um filho. "Sabes que perdi um filho?"-disse ele no espelho, à sua imagem, que tinha rugas nas fontes e sulcos debaixo dos olhos.
Voltou se, admirado, para Elis. como se fosse a rapariga que fizesse nascer nele esses pensamentos novos, estranhamente ardentes. Isto devia vir do facto dela ser tão criança, tão terna e ter tanta necessidade de protecção. Estava deitada como um animalzinho quente e tímido.
- Agora tens que deixar limpar o calçado, senão o Berger zanga se. - disse ele.
E pôs-se a desatar os sapatos cobertos de poeira, enquanto Elis, inconscientemente, tirava o casaco.
- Oh! Santo Deus, como estão frios. e como são pequeninos!--disse ele, agarrando os pés delgados, cobertos de finas meias, como passarinhos gelados. Depois, levou os à boca e tentou aquecê-los com o bafo.
- Está servido! -anunciou Berger -Na varanda. Agarrou nos sapatos poeirentos e desapareceu, contente.
Risonho, Rassiem pegou em Elis, ergueu-a nos braços e levou-a para a varanda.
A rapariga não se moveu. Ele deixou-a deslizar lentamente ao longo de si e cair numa profunda poltrona. E esse calor sem peso era-lhe tão doce, tão querido, tão sedutor, que ele beijou muito ternamente, com toda a
precaução, a boquinha fina. Era fresca, infantil, inocente. No entanto, os olhos da rapariga fecharam-se enquanto ele a beijava.
Berger tinha-se deixado levar a uma tal ostentação de cristais e pratas que tudo aquilo lançava sobre a mesa raios de luz, brilhantes como facas.
Mesmo junto à varanda, um castanheiro floria, cheio de sombra e de zumbidos de abelhas, emitindo sons semelhantes a sinos longínquos, acompanhados dum cheiro a primavera. Elis julgava viver um sonho. Mais nada lhe parecia impossível, desde que Hannès Rassiem lhe tinha dito "tu" e a beijara.
- Em que pensas, minha pequena, com esses olhos tão grandes?
- Sou feliz!-disse Elis, muito baixo, poisando o garfo e a faca.
Estava maravilhada.
- Creio que nunca fui tão feliz. Tudo é tão novo! Depois deitou-a na rede que se baloiçava no jardim, entre os vidoeiros. Sobre ela estendia-se a sua folhagem fina, trémula, e para além um céu redondo, branco como vidro leitoso, semelhante a um açucareiro de estilo antigo.
- Sabes o que tenho desejado muita vez, Elis? Ver uma vez os teus cabelos soltos. -disse Rassiem, brincando com as pesadas tranças - Posso ?
E desentrançou o cabelo, tomou-o entre as mãos, deixou-o escorregar, molemente, ondulante, e escondeu nele o rosto: um cheiro jovem e acre desprendia-se da cabeleira. E, de novo, a sua terra lhe veio à memória, com os bosques de vidoeiros e os prados imensos.
- É preciso que venhas visitar-me muitas vezes, nem sabes o bem que me fazes. Quero que me contes como vive uma rapariguinha como tu e onde aprendes o que cantas. Às vezes é tão extraordinário.
- Hoje não quero contar nada. - disse Elis, preguiçosa-Hoje quero estar absolutamente tranquila, e ouvir-me a mim própria, a minha voz interior, Há dentro de mim tantas coisas difusas!
E a rede, docemente, baloiçava. Todas as vezes que, roçando pelo ombro de Rassiem, Elis voltava a oscilar, isso era para ela como uma carícia. O sol projectava círculos a verde e oiro ao longo dos troncos dos vidoeiros.
Elis pensava :
"Enfim, enfim esta coisa nova, a mais maravilhosa do mundo: o amor! É duma tal meiguice que faz chorar; faz mal, perturba todos os pensamentos.
"Poderei morrer por ele, consentir em tudo, em tudo. Ele ama-me. Agora tudo vai tornar se agradável. Deverei beijar lhe a mão? Ou a madeixa loira, na testa? A boca, a boca, não. Sim. também a boca. mas muito devagarinho .
"Pobre Dima! Ela não sabe o que é estar apaixonada, i É tão belo, tão bom, tão doce! Brutal, diz ela. Pobre Dima, é porque tem medo.
"Sim, porque é muito forte. Forte.
"Tudo é maravilhoso, maravilhoso. Rosas vermelhas, rosas vermelhas, muito escuras nos meus cabelos .
"Um sonho! É verdade. Um dia chega em que se vive de sonhos. Tudo. Um dia sabe se tudo. Agora o sol brilha-me nos olhos . tão quente . Parece um beijo . seu, sobre os olhos. E tudo é vermelho. No verão, irei para os campos de papoilas vermelhas. vermelhas. irei. passearei. tudo volta, tudo se apaga . feliz. mamã. feliz como nunca .
Elis adormeceu. Duas làgrimazinhas brilhantes ficaram, enternecedoras, entre as pestanas. Hannès Rassiem olhava para o céu, enquanto fumava um cigarro.
VIII
Pela Pentecostes, uma grande vaga de calor caiu sobre a região. Rassiem, em trajo branco, de ténis, estava sentado numa poltrona pintada de encarnado, no jardim de sua casa. O sol lançava um punhado de pequenas manchas amarelas sobre a relva. Flores de castanheiro caam, sem barulho; um pintasilgo cantava. O mundo era bom, calmo, como que dominical.
Então, o correio veio e estendeu lhe uma carta por cima da grade do jardim.
"Meu querido, - escrevia a Kouczowska - estive recentemente na Ópera, a ouvir o Tannhauser, e achei te maravilhoso. Quis visitar-te e dizer te isto de viva voz, mas diversas coisas não mo consentiram. Podes calcular que não vim de Boston a Viena unicamente para te ouvir cantar. Não. Foi por uma razão ao mesmo tempo triste e ridícula: há na minha voz qualquer coisa que não anda bem. Excesso de trabalho, creio eu. Tive que recusar um concerto. Não podia mais, Hannès, não podia absolutamente mais. Fui consultar médicos, estive numa casa de saúde; mas todos falam tão pouco claramente! Então vim a Viena, porque precisava do nosso velho professor Bayer e dos seus óculos, por trás dos quais não se lhe pode ver os olhos, e da sua voz cordial e tranquilizadora, que diz: "Isso não é nada, minha filha, tem que descansar dois dias e a constipação
passará. É uma vulgar constipação." Era isto ou qualquer coisa parecida que eu queria ouvir. Estou em Viena, sim, Hannès - e também preciso duma coisa: sentir as tuas mãos, que conseguem ser tão boas, tão calmantes quando és gentil, quero dizer, quando não bebes e não fazes tolices.
Venho pois, de ouvir o Tannhauser e fiquei contente contigo (apenas aquela May com Elisabete não dá grande coisa). Depois da representação, quis ir ter contigo, pois estava muito só, mas a garganta ardia-me atrozmente por causa da horrível poeira de Viena e do vento e eu estava de mau humor e fatigada. Na manhã seguinte, fui ter com o Bayer. Auscultou-me, tornou a auscultar e meteu me na boca instrumentos de vidro, até me dar a ideia de eu ser um número de music hàll. Depois disse diferentes frases. Deve haver qualquer coisa estragada nas minhas cordas vocais, Hannès. Desta vez, gostaria bem de ter visto os seus olhos através dos vidros dos óculos, pois uma coisa é certa: não se trata de constipação vulgar. Bayer prescreveu: repoiso, repoiso, repoiso. "Quando isto estiver melhor, nós poderemos, no outono, cantar a Isolda - disse ele. E agora aqui estou, pensando sem cessar: "Quando irá isto melhorar, Hannès? Mas se não melhorar? Que acontecerá então?"
"Bem. Queria pedir-te desculpa por ter deixado Viena sem te ter visto. Naquele dia não me era possível ver ninguém que tivesse uma voz sã. Em princípio, queria instalar-me em Florença, mas saltei do comboio em Verona e sentei-me um momento sob os blocos de mármore, brancos e tépidos, do velho pequeno Theatrum Romanum (lembras-te?) Olhei o forte e o rio, em baixo, preguntando a mim mesma como poderia viver, durante tantos meses, sem cantar. Depois, lembrei-me que já pudera fazer isso uma vez, durante a nossa primeira estadia na Punta San Vigilio. É verdade, Hannès. i Nesse momento, Deus sabe que não pensava nem um momento no teatro, mas apenas em ti! Penso agora muito nesse tempo e isso parece-me estranho.
Sim. Agora habito, de novo, nesta casa solitária, sozinha no meio de ciprestes, de campos de oliveiras dum tom cinzento pálido e de figueiras nodosas. A noite, oiço o lago de Garde bater contra as muralhas. Vejo grandes veleiros deslizarem diante da casa, ao romper da aurora, quando não posso dormir -e isso acontece com frequência. Durante o dia fico deitada no sofá, sob a loggiu; esforço-me por não pensar em nada e olho para a água do lago. Nos dias claros, apercebo, do outro lado, uma vaga mancha do Saio e do Gardone. O velho Carlo continua a servir os vinhos aqui e sempre tão solene como um mestre de cerimónias. Fala muitas vezes de ti: Che bel signore, ah! che bel signore!
À tarde traz me fruta, as últimas laranjas, as primeiras cerejas, e põe nas sobre o largo parapeito do terraço. Mais tarde, os pequenos lagartos saem à procura das moscas. Na "Stella", lá em baixo, o lago esfrega-se e lambe secas.
como um animal. De noite, é verde como veneno, outras vezes é como cobre e largo, largo e sem margens. Então, chega outra vez a noite e eu fico muito tempo nua na loggia a estiraçar-me, no ar sedoso - lembras-te que lhe chamavas assim? E isso agrada-me, o ar sedoso.
Tenho muitas vezes a impressão que tu vais sair dum instante para outro do quarto escuro, vir até mim e prender-me nos teus braços, erguer-me, levar-me como dantes.
Está tudo como antigamente. A metade do dia, estou para aqui sem pensar em nada, esquecendo tudo quanto existiu de então para cá; os meus pecados e os teus, até que estremeço e tudo me acode, até as últimas palavras do Bayer: "quando isto estiver melhor". Quando, Hannès, quando ?
Dois dias mais tarde :
"Acabo de reler esta carta e vejo que ela é vergonhosamente sentimental. Vê no que a gente se torna quando vive um mês sem teatro, na solidão. Descuida-se a toilette da alma, esquecemo-nos de frisar o coração, anda-se sem máscara, como se a vida não fosse uma eterna mascarada.
Por felicidade, meu querido, tu não és grande psicólogo e não tens muita imaginação. Poderás, portanto, receber esta carta. Queria apenas dizer-te que me parece que a minha voz melhora; decididamente, o repoiso faz-me bem. Não deves, por causa de algumas frases afectuosas, chegar a julgar, Deus sabe o quê! ou a lastimar me; isso parecer me ia mal, e por preço algum deves vir ter comigo. Não quero. Se bem que aqui pense em ti como não me acontecia há muito tempo."
- Sim.- disse Rassiem em voz alta, quando acabou
- Então . é assim!
Reflectiu, percorreu outra vez a carta. Os seus olhos tornaram-se vagos. Depois, dobrou-a cuidadosamente, enquanto as suas pupilas aumentavam, muito negras, dentro dos olhos claros.
- Berger, o carro, já!
Berger acorreu, apressado, sobre as pernas tortas. Desceu a galope os degraus da varanda, abanou a cabeça quando viu o rosto transtornado de Rassiem. Depois desapareceu, correndo pelo jardim, e abriu com ruído a porta da garagem. No lago, Rassiem colheu água nas palmas das mãos e esfregou com esse frescor o rosto onde os músculos jogavam. Berger deu-lhe o seu casaco de viagem. Num abrir e fechar de olhos, sentou-se no carro, com o volante entre as mãos, enquanto o automóvel estremecia, impaciente como um animal.
Para a frente!
O portão do jardim surgiu primeiro, depois as pequenas casas metidas nas profundezas verdes, as acácias e os postes telegráficos da grande estrada. O olhar fixo, corria sempre em frente, não pensando senão no caminho que o carro, glutonamente, engolia.
Quando parou numa ruazinha verde, na frente da casa do professor Biver, as mãos de Rassiem tremeram. Tomou alento e tocou; a porta do jardim abriu-se sem barulho, um pequeno terrier correu até lá, parou surpreendido e farejou. Aqui tudo estava calmo; Rassiem limpou a poeira da cara.
- Rassiem! Meu rapaz!- gritou Bayer que estava debaixo dum pinheiro tendo diante de si uma taça de
mel amarelo, um grande ramo de flores e uma pilha de livros castanhos.
- Rassíem, que podes tu querer de mim num domingo de Pentecostes? Um certificado de rouquidão? Impossibilidade absoluta de cantar ? Posso dar-to todos os dias, se quiseres.
-A minha mulher!-disse Rassiem, oprimido-A minha mulher!
- Ah! sim, a tua mulher! Alarmou-te a tua mulher? Escreveu-te a dizer que estava pior?
- Não sei nada. Ela mesma não sabe, é por isso que venho, porque preciso de saber, preciso de saber.
O professor Bayer ergueu a cabeça. Os vidros dos seus óculos, batidos pelo sol, faiscaram.
- Ah! sim. Isso sim. Queres então saber? Mas ficarás mais adiantado se te disser um nome em latim, pois mais não posso. é segredo profissional. Chega? Não?
- Ela poderá cantar ainda? Só isto: poderá cantar?
- Sim, sim. bom. - disse Bayer, com lentidão -De momento, de momento, compreendes, ela não pode cantar; é evidente. Se essa mulher tivesse ainda uma nota na garganta, não ficaria metida nesse buraco de Garde esquecida de Deus e do mundo, sem teatro, sem vestidos e sem apaixonados. Não, de momento, cantar não pode. Claro que não.
- Bayer. -disse Rassiem em voz insistente - Peço-te fala francamente, ela poderá ainda cantar? Ou acabou? Diz-mo, preciso de saber.
- E porquê, se não sou indiscreto ?
Rassiem calou-se e sorriu, com um sorriso lento que começava nos olhos, que o tornava penetrável e mais novo e apagava do seu rosto várias coisas más, como se elas nunca tivessem existido.
O professor observou esse sorriso; então tirou os óculos para os limpar e descobriu dois olhos azuis escuros, muito benévolos.
- É que. se ela não puder mais cantar, se tudo acabar sob o ponto de vista do teatro, talvez as coisas tenham concerto . - disse Rassiem a esses olhos.
- Tu esperas ainda, Rassiem ? Sim? Esperas sempre ?
- Nunca deixei de esperar. - disse ele, tapando o rosto com as mãos.
Calaram-se e as abelhas zumbiram sobre a erva.
- Sim. Vamos ter paciência até ao outono a ver se aquilo vai. As cordas vocais estão arrasadas, compreendes ? De momento, temos que as deixar repoisar, depois tentaremos a electricidade. Se não der resultado, Rassiem. i parece-te que tu, justamente tu, serás bastante forte para ajudares esta mulher a suportar semelhante coisa?
- Parece-me que sim. -disse Rassiem.
Tirou a carta, releu-a pensativamente; depois, respirando, voltou a metê-la na algibeira.
- Não posso mostrar-te o que ela escreveu. conhece-la, não é verdade? Esconde-se sempre. Ela diz que eu não sou um grande psicólogo, mas o que oculta. compreendo-o talvez melhor do que ela mesma. Sei muito bem quando uma mulher me pertence; nesse campo, nunca me engano. Minha mulher! A minha Maria !
- Desejo-o, Rassiem. Receio pela Kouczowska se lhe acontecer alguma desgraça à voz. De momento, é preciso esperar.
- Então esperarei também. - disse Rassiem. E estendeu as pernas, poisou as luvas sobre a mesa, atirou a cabeça para trás e olhou para o céu, como se quisesse, desde então, começar a esperar.
Bayer sorriu, mas calou-se. Sons de sinos chegaram, não se sabendo de onde, cortando o silêncio. De súbito, Rassiem viu diante de si a casa rústica sobre a Punta, descortinando-se além rígidos ciprestes, com rochas que saíam direitas do mar. Imaginou tão fortemente o desassossego das primeiras noites que meteu as mãos no pano da mesa. Maria encontrava-se ali, toda nua, delgada, prateada e, atrás dela o céu estava lindo, estendia se como um vestido roxo. Terna, juvenil Maria! Ela erguia os braços.
Rassiem ergueu se com o rosto pálido, onde todos os músculos palpitavam.
- Adeus! - disse - Tenho de me ir embora.
- Assim tão subitamente? Para onde?
- Muito longe, muito longe .
Uma febre de impaciência apoderou se dele. À porta do jardim, ficou imóvel:
- Bayer, - disse - ela não me falou nisso: estará só?
- com certeza, Rassiem, já há muito tempo que ela passa só através o mundo. E tu? Tu não suportas vê-la desgraçada, não é? Pois pensas, às vezes, em alguém que não em ti próprio? Não és completamente egoísta ? - preguntou Bayer, mas ficou com a sua pregunta em suspenso.
Na nuvem de poeira que o carro levantou, ao partir, Rassiem fugiu para longe, preso duma febre que lhe gritava: para a frente, mais para além, mais para além. Não ter mais nada em que pensar do que na curva próxima e na estrada branca que subia, se inclinava e se recurvava, nas casas que corriam, nas árvores, nos postes telegráficos, nos marcos quilométricos, nas aldeias poisadas em colinas cobertas de vinhedos, e em outras que, largas e achatadas, se estendiam pela planície. Longe, lá em baixo, erguia-se para o céu a torre duma igreja, no cimo da qual brilhava uma cruz doirada. Um bosque juntava se a outro bosque, o ar estava quente e seco e cheirava a resina e a gasolina.
Ao crepúsculo, Rassiem encontrava-se sentado no terraço dum Café perto de Semering, fitando, com olhos saudosos e melancólicos, o cimo das montanhas, donde soprava um vento branco e frio. Existia ainda muita neve nos calmos píncaros, tingidos de vermelho pelo sol. Ao fundo dos vales, já caia sombra; os véus das nuvens planavam sobre as florestas.
Àquela hora, Maria contemplava o mar.
Rassiem bebeu café, uma grande quantidade de café e conhaque. As pessoas que o rodeavam, consideravam no como a um animal raro, olhavam lhe para as mãos, cheias de poeira e que tremiam. Sentia-se excitado e febril, pensando: é a minha má época que volta.
Tornou para o carro, retomou o caminho do regresso. O clarão dos faróis avançava, largo e brilhante, sobre o
caminho, onde havia marcas de rodas e montões de pedras que saíam, por um segundo, do escuro, entrando na claridade dos faróis do carro, fundindo-se e sendo devorados.
Quando se apeou em frente da sua vivenda, sentia uma moedeira nos ombros. Tirou o relógio, junto aos faróis, e murmurou: Duas horas e dezasseis minutos. Andei bem. No entanto, a fadiga não lhe acalmara a febre. A casa estava às escuras e ele resmungou com tanta força no vestíbulo não iluminado que o velho relógio respondeu com um eco metálico e surdo. Berger desceu os degraus, acendeu a luz, correu para a casa de banho, para o quarto de dormir e daí para a sala de jantar, mostrando um verdadeiro trasbordamento de zelo doméstico.
Rassiem seguia a sua actividade, de cara sombria, andando a grandes passos sonoros através da casa. Pássando diante do urso estendido em frente do fogão, atirou-lhe tal pontapé ,no focinho, que o crânio cheio de cicatrizes produziu um som cavo. Mergulhou as duas mãos nos cabelos, depois deixou-as cair, sem coragem. Por fim, pegou na chave do escritório e subiu a escada de madeira que ia do vestíbulo aos quartos de cama. Os degraus rangeram; em cima reinava uma obscuridade muda. Abriu o quarto da Maria, acendeu o candeeirinho da mesa de cabeceira. Então, ficou ali olhando à sua volta.
Lá fora, diante das janelas, os cimos das árvores tinham feito sempre aquele mesmo barulho durante a noite; de madrugada, vozes de passarinhos subiam do jardim. Ah! o perfume dos castanheiros e o perfume de Maria. Ele está acordado, inclina-se sobre ela, que dorme encostada ao seu ombro, rodeada pelo seu braço. Oh! amor. amor. amor. i A quietação que sai da sua respiração profunda! Depois, vem a claridade e surge um novo dia.
Berger perscrutou o rosto pensativo, sombrio, de pálpebras vermelhas, com que Rassiem veio lá de cima: sem barulho, pôs as garrafas e os copos na mesa. O tenor deixou-se cair pesadamente na vasta poltrona de
coiro e começou a beber. O relógio continuou no seu curso, falando de quarto em quarto de hora, mas nenhum véu veio cobrir as velhas coisas e os velhos pensamentos. À noite, Rassiem agarrou numa garrafa e atirou a à parede. os estilhaços de vidro ressoaram no chão, o vinho correu, alastrou, vermelho, vermelho escuro.
Um dia, Dima, a sua aluna, tinha batido numa vidraça, por ciúme. Os estilhaços haviam-se espalhado então, ao longo do seu braço nu e moreno. E essa boca dura, altiva, como cedia sob o beijo! Tornava-se fraca; tinha o sabor dum belo fruto estranho, essa boca.
Erguendo-se, Rassiem foi ao escritório.
"Dima - escreveu ele - parto amanhã para Viena e espero-te; espero-te, Dima. Agora, já não posso passar sem ti. Preciso que venhas. Espero te."
- Berger!- gritou -É preciso ir deitar isto ao correio, imediatamente. Berger levantou a gola e foi-se embora, com as suas pernas tortas, sob uma bátega de água fria. A caixa mais próxima ficava longe e Berger, durante o caminho, proferia, nas ruas escuras e nas sebes úmidas, um amargo monólogo.
A carta foi recolhida na manhã seguinte por um correio consciencioso, timbrada e expedida para Viena. Foi entregue no Conservatório, onde o porteiro a deu a Dima quando ela voltou, pela primeira vez, depois das férias de Pentecostes, à lição de teoria. Ela reconheceu a letra indomável e trémula. Leu. Então, vestiu a blusa de seda branca e foi a casa de Hannès Rassiem.
IX
Fràulein Sofia Dimatter ergueu os olhos para o relógio e suspirou, abanando a cabeça: as grandes argolas das suas pequenas orelhas fizeram um fino ruído. O relógio tossiu para aclarar a voz e anunciou, depois duma pausa cheia de efeito, que era meia-noite.
As janelas estavam abertas sobre a noite quente e luarenta, de verão. O doce perfume da acácia penetrava fortemente no estreito aposento.
As duas raparigas ainda não tinham chegado.
Sofia fez uma boquinha redonda e zangada, depois, os dedos trabalhadores e atentos voltaram à sua ocupação. Diante dela, estava aberto um grande álbum de folhas doiradas e brilhantes, ricamente coberto de peluche encarnada. Ao lado, havia um boião de cola e um pacote de recortes de jornais: as críticas sobre a Dimatter, no papel de Aida, quando da representação no Conservatório.
Sofia folheou o álbum, sorrindo. Na primeira página, lia-se, em grandes letras cheias de ênfase: "Recordações". Na segunda página já se encontravam colados três artigos, um pouco amarelecidos, de caracteres levemente apagados, sublinhados a tinta vermelha. As datas estavam escritas ao lado. Referiam se um pouco - ou antes, consideràvelmente a tempos remotos.
Eram as críticas sobre a própria Sofia. com um encantamento mudo, relia as três frases sublinhadas.
"A dança das pequenas sogras, executada por oito graciosas bailarinas, agradou particularmente."
Depois isto:
A linda Valsa das Andorinhas foi dançada por doze galantes bailarinas, com trajes deliciosos."
E, por fim:
"Deve ser feita uma menção especial a uma tirolesa, a quatro encantadoras japonesas e a um par húngaro."
As encantadoras japonesas estavam sublinhadas duas vezes. Tratava-se da "Fada das Bonecas" que ainda fazia parte do reportório: ela representava ainda uma japonesa, era ainda encantadora, e aplausos sublinhavam sempre a técnica fulminante de pontas que era ostentada nesse bailado. com um suspiro, Sofia separou-se dos testemunhos impressos dos seus êxitos e, armada dum lápis encarnado, voltou se para as críticas de Dima.
Aí, notou que não se tratava de oito senhoras" nem de doze senhoras" mas de Dima Dimatter, com todas as letras, representando uma só pessoa. O lápis vermelho deslizava, procurando ao longo das linhas, encontrando frases tão entusiásticas que Sofia, reclinada para trás, orgulhosa, tomava fôlego e repetia-as a meia voz. Diziam nesses artigos que era uma estrela em via de subir, ainda não amadurecida talvez, mas cheia de maravilhosas promessas.
Um crítico severo e, no entanto, muito fino, deixava entender que um talento real e cheio de futuro, embora ainda impregnado de infantil acanhamento, acabava de se revelar. Outro falava em termos simples e sóbrios duma excelente figura de cena, de dons vocais notáveis e duma representação racional, dando direito às mais belas esperanças. Os círculos competentes diziam não se dever perder de vista tal rapariga.
Sofia tinha agora acabado de colar. Releu mais uma vez as críticas isoladas, tão cheias de valor, e na passagem da "excelente figura" os seus pensamentos evadiram-se formando pequenos círculos, de que sua filha constituía o centro.
"Dima tornou-se tão linda nestes últimos tempos! i É verdade, uma verdadeira flor desabrochada! Aumentou oito quilos e toda ela está muito mais nutrida; os ombros já não são ossudos e tem o busto redondo. Agora pode decotar-se mais. Tem a cara do conde, mas as formas são minhas."
E, complacentemente, observou os seus braços brancos e redondos, à clara luz do candeeiro. Sim, ainda tinha os seus êxitos, embora andasse perto dos quarenta. Em Paris, as mulheres conservam-se novas até aos cinquenta anos e mais e encontram sempre apaixonados. Mas. em Viena também! Havia, por exemplo, o sr. Polnar, um belo húngaro, imponente e nobre, que procurava no corpo de baile uma ligação para a sua categoria, e tinha deixado prender o coração nas redondezas de Sofia. Sim, mas. ela ia pensar.
Voltou aos seus recortes.
- Vejamos, - disse - "os círculos competentes ." Então? Isto significava que Rassiem se interessava pela rapariga, unicamente como professor - é inútil dizê-lo: ele tinha-o afirmado ultimamente a Sofia para acalmar o seu inquieto coração de mãe, quando, durante o Trovador foira, por acaso, ao pé dele, nos bastidores. Havia também o conde, seu pai, que mais tarde podia fazer muito por ela; mas antes de mais nada, havia o grande empresário Blaulich, que a ouvira no Conservatório, com muita atenção.
O sr. Blaulich! Um pequeno rei no mundo do teatro, constantemente à caça de talentos, cheio de mil ocupações, nervoso, sempre esfalfado e prestes a partir em viagem. Ora esse homem ilustre manifestara o desejo de passar uma noite na companhia de Hannès Rassiem e da Dimatter. E era por isso que Sofia velava nessa noite, em casa, olhando constantemente para o relógio que, depois de tossicar um pouco, anunciou uma hora da manhã. Suspirou, pois nem Rassiem, nem Blaulich tinham boa fama.
Um pouco mais tarde ouviu se à porta um ruído abafado, depois o riscar de fósforos, e por fim Dima apareceu no espelho da entrada, iluminada por uma vela.
Um pouco pálida, com os cabelos em desordem, os olhos muito grandes e muito negros no rosto branco, parecia comovida. Trazia um vestido de seda amarela, quási elegante, mas um pouco amarrotado, que caía molemente ao longo dela, com reflexos no peito e nos ombros. Um casaco de seda clara escorregou até ao chão e Dima deixou-o preguiçosamente cair. Ficou de pé, com a vela na mão, vendo-se ao espelho.
- Fatigada! - murmurou ela - Oh! quanto!
- Dima! - chamou a mãe, do interior. Sobressaltou se.
- Sim, Sofia. Boa noite, Sofia. - gritou sem parar.
- Vem cá! Que estás a fazer ?
Dima apanhou o casaco, perscrutou mais uma vez o seu rosto, e com a mão alisou os cabelos.
No quarto, Sofia fazia barulho com um candeeiro.
- Ah! Sofia, peço te, não acendas a luz. estou atrozmente fatigada, vou já deitar-me. -disse Dima, envergonhada e violenta.
- Porque ficaste até tão tarde ? Já estava em cuidado. Que ar é esse ? Amarrotada. Assustada.
- Vim depressa.
- E é o meu casaco bom que tu arrastas pelo chão? Espera que já torno a emprestar-te as minhas coisas! Ah! mas o vestido está roto!
- O que é que está roto ? - preguntou Dima, aflita - "Para que representar, - pensou depois, numa súbita lassidão-ela bem vê, deve com certeza ver."
- Ali, em baixo, na renda!
- Estava escuro na escada, e pisei-a, Sofia. Sim, foi com certeza na escada .
De súbito, Sofia foi acometida de ternura, quando viu a filha, olhando, contrita, para a orla rasgada do vestido. Puxou a contra si, na borda da cama.
- Ora! Deixa lá, a renda cose-se. Diz-me qualquer coisa, anda. Conta. Onde comeste? Blaulich foi amável contigo? Que te disse? Quere ocupar-se do teu futuro? Fala, anda!
Dima reuniu a custo os seus pensamentos.
- Jantámos no Grande Hotel, muito bem, e também bebemos champanhe, Blaulich é asqueroso, tem uma forma de olhar! E tem umas mãos horríveis, cheias de pêlos! Depressa se tornaria incómodo, se Rassiem não estivesse lá.
- Oh! esse também não é nenhum santo! Tudo pode acontecer quando se deixa ir uma rapariga como tu, com dois indivíduos daqueles. Enfim, é quási inevitável! É mesmo necessário. - concluiu ela para si Ao menos propôs-te algum emprego?
- Ofereceu-me, no outono, um contrato para Praga.
- E ordenado?
- Quatro mil, para começar; mas Rassiem não me quere deixar ir. Quere por força que eu estude mais um ano. Estarei muito mais habilitada e poderei conseguir qualquer coisa melhor.
- Eu acho que já sabes o bastante. E se isso basta a Blaulich e aos críticos, pode bastar também a Rassiem. Já não é nada mau.
- Ah! Sofia, não, não sei nada. Não vês como eu me atormento com a ísolda? E não há maneira de isto sair bem, não há maneira.
Os pensamentos de Dima voltaram-se para esse primeiro acto tão difícil, cheio de palavras impossíveis de analisar, de palavras que tinham certamente um significado oculto que não lhe queriam revelar. Depois, aquela dor era tão grande que, com toda a boa vontade, não se conseguia atingi-la; e essa obscuridade, esse desejo de morrer que Dima não percebia .
- Não consigo compreender se Tristão ama Isolda desde o princípio ou só depois da beberagem.- disse ela, distraída.
E Sofia, sem se ocupar com o resto, concluiu, no meio do monólogo:
- Para Praga ? Rassiem tem razão. Praga não presta. Em Praga são verdadeiros boémios.
- Pois claro: são verdadeiros boémios.- disse Dima, rindo.
Alegre, olhou para o rostozinho redondo e infantil da Sofia.
Mãe!-pensou subitamente, tomada por uma secreta ternura - Minha tola mãezinha!"
- Agora vou deitar-me, estou tonta de sono. Boa noite, Sofia.
- Dorme bem. Boa noite. Amanhã contar-me-ás tudo.
Mas Dima continuava em pé à porta, e ficava, ficava.
- Que mais queres?
- Sofia. estás zangada por eu. por eu ter entrado tão tarde ?
- Um pouco, mas agora vai dormir!
E a sua cara redonda desapareceu entre as almofadas. Hesitante, Dima disse ainda:
- Não fiques zangada, peço-te. - E muito, muito baixo, para não a incomodar:
- Mamã.
Sofia não ouviu a última palavra, no entanto, disse:
- Se queres que te beije, vem cá! -Não.
E Dima, envergonhada, fechou depressa a porta. O gosto de outros beijos, de beijos muito selvagens estava ainda nos seus lábios.
Entretanto, atrás da porta que se fechou, Sofia fazia ouvir um sombrio epílogo:
- Quando a Gusri entrar, podes dizer-lhe que é uma porca e uma odinária.
Dima encolheu os ombros e riu, baixinho. A sua cama de rapariga, muito estreita, ao pé da parede, parecia fria sob a coberta de pano dum branco cru; dir se-ia quási sentir frio na noite quente, pesada com um aroma de acácia. Dima meteu as faces brilhantes entre as almofadas.
- É bom! - murmurou.
Um arrepio correu lhe ao longo das costas e todas as recordações perturbadores das últimas semanas, lhe acudiram, alvoroçando-lhe o sangue.
Despiu-se, errou pelo quarto, em pantufas; aproximou-se da janela, respirou profundamente. Depois, toda nua, alta e delgada, pôs-se diante do espelho. Numa caricia orgulhosa e sem vergonha, rodeou com as mãos os seios onde as veias azuis corriam e palpitavam, e, de
olhos fechados, julgou sentir outras mãos febris, fortes, adoradas.
De súbito, Gusti bateu à porta da entrada e, imediatamente a seguir, à do quarto.
Deslizando na cama, Dima apagou a vela. O quadrado da porta iluminou-se com o clarão duma lâmpada eléctrica.
Gusti preguntou, cautelosamente:
- Dima, já cá estás ? -Já.
- Há muito tempo ?
- Não.
Gusti apontou com o queixo para a porta de Sofia:
- Está a dormir? Zangou-se?
- Disse-me para te dizer que és uma porca e uma odinária.
Gusti pôs-se a rir e veio com a lâmpada ao pé da cama de Dima. Estava bonita, vestida de claro, com os olhos brilhantes e úmidos e os gestos abandonados, duma estranha indolência. Um leve cheiro a vinho, a perfume e a volúpia exalava-se do tecido fino.
- Diz-me, rasgaste o vestido ?-preguntou Dima muito baixo, e um leve rubor coloriu lhe o rosto pálido Gusti, Gusti, o teu vestido está roto .
- Oh! - disse Gusti, aflita - prendeu-se a qualquer coisa, na estação. Estava cheia a deitar por fora. i A gente prende se com tanta facilidade !.
com um sorriso, Dima olhou-a de frente. Num impulso, Gusti lançou-se para ela e murmurou:
- Daqui a quinze dias estamos casados. Mas tu, Dima. dize: o teu vestido não está também . roto ?
- Que queres dizer com isso? -murmurou Dima, fracamente.
Tinha os dedos poisados sobre o pescoço da irmã, que inchava, delicado e tépido.
- Eu vi-te, Dima, esta noite, com ele. Subiste para o automóvel e tomaram a direcção do parque Schwarzenberg. para a sua casa.
"Agora acabou se tudo." - pensou Dima, tomada de vertigem, com a garganta seca.
Entretanto, Gusti chegou-se mais a ela e murmurou :
- Agora, já sabes o que é. Sentes te feliz? Dima calou se. "Feliz? - pensava - Primeiro foi
apenas desapontamento e dor. Seria só aquilo ? Mas, uma noite, enquanto estava deitada, chorando lágrimas ardentes, interrogou se e acordou com uma certeza. Depois veio uma febre, uma fome, uma plenitude que fazia mal."
- Feliz? - repetiu ela - Sabe-se lá nunca!
- Se Sofia soubesse! - disse Gusti - As raparigas honestas! A virtude, as estrelas que não precisam disto, hem ?
- Ah! Gusti, não fales assim. é que não conpreendes.
- Compreendo muito bem, Dima. Amar é amar. É sempre a mesma coisa, quer se trate dum grande tenor ou dum simples violinista de orquestra. Edlinger, ao menos, é um homem como deve ser! -afirmou ela.
- Sim, é, e desejo te toda a felicidade possível, mas o vosso como deve ser aborrece-me. As vossas coisas mesquinhas, já não posso com elas! -disse Dima, entre os dentes cerrados. E, embora falasse baixo, era como se gritasse - O quartinho e a criada porca e as salchichas diárias com vinagre e cebolas. Isto não é mundo, não é o meu mundo, não quero mais! Quero sair disto, subir, quero. quero. quero apoderar-me da vida, gozá-la, sentir como é rica e bela e grande, muito grande!
Ergueu os dois braços no ar e agarrou com força qualquer coisa que aproximou de si, sem encontrar palavras para a definir. Gusti sacudia a cabeça, pesarosa e vexada:
- Bem, seja. Eu não te trairei. Sê feliz como esperas, mas acredita-me, isso nunca acaba bem, o fim é sempre mau. Uma vez passado o amor ficarás sem nada.
Dima continuava a apertar contra si, nas mãos crispadas, qualquer coisa: ele e com ele toda essa vida rica, sedutora e ardente.
- O amor não passará! -disse ela-Quero que o amor não passe. este amor .
- Ora! Ora! Deixa me rir! - interrompeu GustiNão passa? Tu não queres? E logo com Rassiem cujas ligações não duram mais de seis meses!
Dima entristeceu:
- Uma ligação? Mas isto não será uma ligação!
- Então o quê? Estão noivos? Imaginas que o belo sr. Rassiem quer casar contigo?
- Talvez. - replicou Dima, em voz muito clara, muito sonora. Talvez queira casar comigo. Se eu quiser, se quiser realmente, levo-o a isso, com certeza.
Gusti abriu a boca, depois calou-se, acabrunhada. A irmã declarou:
- Ele é meu e hei-de guardá-lo; pertence-me como nunca até hoje pertenceu a ninguém !
- Ah! Eu conheço essas histórias!
- Não são histórias. - afirmou Dima.
E, com uma emoção que lhe apertou dolorosamente o peito, ela ouviu a sua voz, essa voz embriagadora e quente murmurar:
Pertenço te como nunca pertenci a mulher nenhuma, salvo a uma, a uma só."
Não! Não era mentira, e ela evocava os raros momentos em que a sombra duma mulher se metia entre ambos, fugitiva, inacessível como um apelo distante. Imediatamente se apagava o sorriso, o abraço quebrava-se, a frase interrompia-se, o gesto ficava em meio. pois uma recordação passava diante dele, deixando-o triste e de mau humor.
- Quero tê-lo bem apertado. guardá-lo . -murmurou.
- Posso preguntar como o conseguirás ? Tens al guma receita extraordinária ? - inquiriu Gusti.
- com certeza; recebia a dele próprio, e não a esquecerei nunca: não amar demasiado, não se abandonar inteiramente. Quem ama demais, perde. - disse ela, pondo as mãos crispadas sobre a colcha.
Gusti pensou nas possibilidades de aplicação desta máxima.
- É bom de dizer! -murmurou pouco convencida
- Não amar demasiado? Como se pode evitar isso?
Dima tirou da mesa de cabeceira a partitura do Tristão, que estava próxima.
- com a ajuda disto. Trabalhar, quando o resto nos estiver a subir à cabeça. E pronto. Acabou-se.
E a sua mão afastava para longe de si o amor e a tristeza, a louca embriaguez - todas as coisas perturbadoras, ternas e dolorosas que se chamam : a vida.
- Olha, Gusti, ando a aprender o primeiro acto e não há maneira, não há maneira.
- Começa pelo segundo! -aconselhou Gusti, distraída, porque Dima tinha acordado nela uma multidão de pensamentos extraordinários.
i Esta rapariguita obstinada, estava a vencer aquele homem! Então, os enormes ordenados do tenor seriam dela, mais o automóvel e a casa de campo. E ela seria apenas, a seu lado, uma sr.a Edlinger, uma pessoa insignificante, uma corista, uma filha do sr. Kruschina.
- Boa noite. - disse, com indiferença, e uma certa resignação -Se imaginas poder triunfar, desejo-te boa sorte.
Mas os olhos de Dima estavam absortos; os pensamentos pairavam longe, muito longe .
Apagada a vela caiu o silêncio. O cheiro da acácia flutuava pesadamente na noite clara. O desejo da presença querida voltava, lancinante, intensificado a cada novo contacto. "Escuta, meu coração, é o segundo acto que começa. Durante muito tempo, muito, Isolda ouviu soar a longa chamada da trombeta, o apelo que ela não queria ouvir. É a folhagem, a fonte, não pode ser a trombeta, pois o desejo da presença querida é insuportável. insuportável a criada, insuportáveis os conselhos, as hesitações, o receio desta alma fiel.
A noite azul tornava-se a cada instante "irreparável". Oh! esse facho que arde sempre, sempre, sempre, no qual o amor sobe, cresce, trasborda como um oceano de chamas. "Vem, Vem tu, mesmo que te chames a morte! Vim, noite! Rindo, eu não temo apagar o facho, mesmo que seja o facho da minha vida."
Nesse instante, Isolda inclinava a cabeça para trás, muito para trás."
Gusti ouviu, no sobrado, o ruído de pés nus no quarto de Dima.
- Dima, que estás a fazer?
Uma voz febril respondeu :
-Ponho o despertador para as sete horas; amanhã tenho que trabalhar muito na Isolda.
X
No dia três de julho, às quatro horas da tarde, foi dada a última lição. Às cinco horas, o concerto final devia começar. Levemente excitadas, vestidas de branco, acabrunhadas pelo calor, as alunas estavam sentadas em fila, ao longo das paredes. Os cortinados verdes, pendiam, imóveis e mudos, nas janelas abertas, diante das quais o cheiro forte de asfalto quente se erguia como uma parede; mais longe, a igreja de São Carlos elevava as suas colunas e as suas cúpulas num céu de infinito azul.
Rassiem passeava pela classe, em traje branco de tennis e improvisava qualquer coisa como um discurso de despedida: conselhos previdentes para as alunas que deviam voltar no outono, inúmeras regras de conduta para as que partiam agora para os pequenos teatros da província, onde começavam a vida prática.
- Nada de complacências; é preciso não acreditar nos colegas, são todos uns malandrins. Menina Bach, todos os dias, exercícios de staccato. Lorm, não gaguejar, não gaguejar e mandar-me todas as críticas!
Lorm fez uma profunda vénia. Ia para longe, para vale. Ninguém podia imaginar onde isso ficava. Devia cantar hoje, no concerto final, o prólogo dos Palhaços e vestira uma casaca que tinha comprado por sete guldcn e que, visivelmente, pertencera a um cavaleiro.
- Menina Wied, poupe a sua voz, e dose-a bem. Sim, não dê tudo logo no primeiro acto. Vocalize diariamente sobre o "i" e faça exercícios de respiração. E principalmente, vocês todos: estudem, estudem, estudem! Todas as manhãs, exercícios de respiração; todos os dias, exercícios de dicção e solfejo. Vejam como a Dimatter aprendeu durante este ano! Simplesmente porque obedeceu. Para si, isso não serve, menina Kerckhof. Tem que repoisar um tempo, senão o seu catarro nunca mais se cura. Tem cantado muito nestes últimos meses, é preciso que a sua vòzínha se restabeleça, não é verdade?
Ergueu o rosto de Elis: os cantos da boca tremiam um pouco, mas os olhos sorriam, muito abertos e confiantes.
Gelfius, que estava ao piano, com os cabelos emaranhados, tocou umas notas.
- Sr. Breitenstem, o senhor vai para Almeitz; tenha cuidado com as mulheres bonitas, quando lá estiver. É tenor, acautele-se. Não beba e não fume muito. Nada de aventuras femhininas! Só vivendo regradamente se conserva a voz.
Ouvindo isto, Gelfius pôs-se a rir, de tal forma divertido, que todos fizeram coro. Rassiem olhou para os alunos, interrompeu-se e continuou depois, com dignidade:
-Ainda tenho de ir à chancelaria; entretanto, digo adeus a todos. Daqui a pouco, tratem de se portar bem.
E, já à porta, atirou:
- Menina Dimatter, depois do concerto, preciso falar- lhe.
- Sim, sr. Kammersánger.
A porta bateu atrás dele, pondo fim à última lição. Apenas o cheiro a água de Colónia, a cigarros e sabão inglês ficou ainda suspenso no ar.
Gelfius fez dois acordes: Bum! Bum! como nas velhas óperas para terminar o recitativo, antes do princípio da cena culminante da ária principal. E isso tocou singularmente o coração de todos aqueles que partiam a cumprir o primeiro contrato. Bum! Bum! Acabou se! Eis que começava outra coisa completamente diversa,
Gelfius fechou enèrgicamente o piano.
-Assim, pois, meus filhos,- disse ele-despeçam se desta sala bendita onde tudo cheira a Rassiem; mas não chorem, não quero ver lágrimas!
Dima foi a primeira a sair, alta e bela com o seu vestido amarelo, quási elegante; e os olhos seguiram na. Em último lugar, atrás de Gelius, vinha Elis que parou à porta, invadida por uma estranha e forte emoção. Depois, não pôde deixar de se voltar ainda uma vez para rever os mínimos pormenores da sala e impregnar-se deles. "Adeus cortinados verdes, carteiras castanhas alinhadas ao longo das paredes, globo verde da lâmpada. Regulamento negro e branco da chancelaria, ao pé da porta; grande e cómodo fogão, velho piano cansado pelo uso, adeus!" Nas paredes, havia rachas semelhantes a rostos que, muita vez, tinha observado enquanto cantava. O corredor da escola estava silencioso e sombrio, como estranho. Frau Gibich fazia um embrulho com a sua eterna meia.
-Sabe o que eu noto, menina Kerckhoff? - disse Gelfius - Parece que está à espera de qualquer coisa, parando assim, a cada porta.
Elis ergueu vivamente a cabeça:
- Observou isso, Gelfius? É extraordinário!
- É com certeza muito mal educado preguntar a alguém o que pensa, é como se dissessem: [Despe-te, por favor, e põe-te nu!" embora no fundo isso fosse menos desonesto. No entanto, gostaria de saber no que pensava ainda agora, à porta?
- Meu Deus. Gelfius, em que é que a gente pensa? É tão difícil explicar. Dizia comigo: a bela igreja de São Carlos,-os cortinados verdes -o teclado do piano com a sua desafinação -é ali que, no inverno, se vê o reflexo do fogão quando o gás está aceso -é ali que Rassiem fica quando fala. E também: em gosto destas paredes.
O pianista esperou, enquanto ela procurava ainda reunir pensamentos. Ao fim dum momento, acrescentou:
- E afinal, não, Gelfius. No fundo, aqui tem o que eu pensei: Adeus sala da aula, quem sabe se te tornarei a ver !."
- Mas conta, no entanto, voltar à escola para o ano, menina Elis.
- Sim,-disse ela, incerta -continuar o meu curso, Gelfius, mas está a gente segura de qualquer coisa?
Gelfius calou se.
- Queria também agradecer-lhe as suas lindas flores,
- acrescentou ela - dão me sempre tanto prazer!
Terrivelmente embaraçado, Gelfius tentou escapar-se:
- Que flores ? Não sei. E agradecer . Mas que exagero!
Os seus cabelos pareciam eriçar-se enquanto ele se tornava castanho-escuro, o que era a sua maneira de corar.
Efectivamente, depois da morte da mamã, ela tinha recebido um ramo de cravos muito pobres que só podiam ser de Gelfius, e desde então, encontrava frequentemente no seu caminho essas miseráveis flores, atadas com uma guita, embrulhadas num papel de jornal, úmido, e que muito a sensibilizavam, Gelfius comprava-as a uma velha maneta que estava, acocorada, à esquina duma rua, e era-lhe muito difícil fazê-las chegar, sem ser notado nem visto, às mãos de Eli. Intimidado, o pianista concluiu :
- Falemos de outra coisa. Que faz este verão?
- Não sei ainda, mas há muito que queria manifestar lhe um desejo. i Não poderá ir visitar-me, de vez em quando? Estou muito só; o papá trabalha, a mamã morreu, ninguém nos visita. A Dima tornou se completamente indiferente, inacessível. Não devo cantar, i Quanto a Rassiem, é tão caprichoso!.
- Que há com Rassiem ?
- Oh !. Muitas vezes ele está contente e é amável, e então, julgo que gosta de mim. Posso então cantar de alegria um dia inteiro; depois, fica tão distante que me magoa. Ele representa tanto para mim !.
- Eu sei. - disse Gelfius simplesmente.
- Então, não saio da minha velha casa e fico a olhar para as paredes. Não tenho ninguém, estou muito só.
O rosto de Gelfius tornou-se ainda mais escuro.
- Sim, então, se realmente precisa de alguém, com certeza, nesse caso, permitir-me-ei. com prazer. - disse Acanhadamente - Mas eu não sou distinto, não fico
bem na sua linda casa. Não, menina Kerckhoff, é preciso que lhe confesse uma coisa; toquei piano, durante anos, num cabaret de noite, muito ordinário, conpreende? Ah! não, eu não sou um homem elegante! Tive muitos desgostos.
- Gostaria de ter um amigo. - disse Elis, delicadamente, pegando-lhe na mão - Irá, não é verdade? Dá-me a sua palavra?
Gelfius fez que sim com a cabeça e retirou vivamente a mão que meteu na algibeira do sobretudo onde tinha encafuada uma brochura de Nietzsche e a Antígona, de Sófocles.
- Faço o que posso; -disse ele perturbado - vou aprendendo, aperfeiçoando-me.
Uma multidão ruidosa comprimia-se contra o espelho da entrada. A sr.a Gibich trazia, sobre a trança postiça, um absurdo chapeuzinho de cerimónia; as pequenas dos coros acotovelavam-se, martirizando as fivelas dos cintos e arrastavam os seus vestidos brancos. Dima, silenciosa, estava encostada à janela e repetia, mentalmente, a grande ária do béron que devia cantar daí a pouco, O seu olhar caiu sobre um coração incrustado na parede, tendo dentro um belo H. R. O meu coração!-pensou ela, sorrindo, divertida e enternecida - Ainda há seis meses era o meu coração, e agora.
- Fica realmente mais um ano na escola? -preguntou perto dela a pequena Bach, pela terceira vez Que tolice!
Sim, todos o afirmavam. A sr.a Gibich também era dessa opinião, i Quem melhor do que a Dimatter, a estrela da escola, podia arranjar contrato ?
- Você é a melhor cantora da casa.
- Deixem-na em paz, ela lá tem as suas razões particulares.-insinuou o tenor Breitenstein, dando um jeito impertinente à gravata.
- Rassiem é da opinião que devo continuar a aprender, que ainda não sei o bastante.
- Oh ! Oh! tome cautela, não lhe peça ele demais. À porta do corredor apareceu o bedel. Agitou a
pasta vazia e gritou:
- Os senhores e as senhoras dos coros para o foyer pequeno, por favor. Os solistas, para o foyer dos artistas.
O corredor esvaziou-se. Então, apareceu o sr. Pietsch, o factotum, que fechou à chave a longa fila de salas mudas.
- Tu cantas, Elis ? - preguntou Dima, na escada.
- Não, estou dispensada; ando rouca há quinze dias. Tenho cantado muito, i Não sei resistir muito tempo e às vezes isso transporta-me a tal ponto!
- Criança! -disse Dima, rodeando com os braços os ombros de Elis.
E havia uma pregunta na sua entonação. Elis sentia-se feliz e reconfortada com a reaproximação súbita da sua amiga, tão estranhamente mudada.
- Tornaste-te bonita, minha filha, e mais mulher. Lembras-te como chorámos no ano passado no concerto final porque íamos passar todo o verão sem ver Rassiem ?
-Sim, e eu não tinha lenço, o que me obrigou a refrear a minha dor.
- Que fazes este verão ?
- Este verão. - Dima abriu muito os braços quero primeiro ser feliz e depois aprender a Isolda. Mas talvez a ordem seja alterada. - e riu-se.
- Escuta, Dima, se por acaso não começares já a estudar, ou se já souberes tudo e a felicidade te deixar um instante livre, vais ver-me, sim? Pode acontecer, não é verdade?
As raparigas fitaram se nos olhos. Os de Elis tornaram-se lentamente sombrios e sérios, e Dima baixou os seus. Ao chegar à porta do foyer dos artistas, inclinou-se vivamente e beijou a amiga. Esta ficou muito tempo parada no mesmo lugar, sentindo, depois, com as sobrancelhas franzidas e levemente aflita, o ardor extraordinário desses lábios que também tinham mudado.
Quando Elis tomou lugar na galeria, a sala já se encontrava cheia de gente, que cumprimentava com a cabeça, gesticulando.
Os vestidos claros, de verão, faziam da orquestra um canteiro florido donde subia um ruído e um calor ondulante.
Cariátides, de braços cruzados, sustentavam os camarotes, contemplando beatifkamente os seus seios doirados; raios de sol perdiam-se nos tubos do órgão.
As primeiras filas estavam reservadas para a direcção e para os professores; via se um bom número de dignas calvas e barbas decorativas sobre negras casacas de cerimónia. Espalhadas pelo meio deles, estavam as velhas professoras que regiam os cursos secundários. O director trazia um colarinho muito alto e suava abundantemente. Atrás dele, Russiem encontrava-se encostado à sua poltrona: tinha o ar dum loiro adolescente entre tão respeitáveis pessoas. Precedido pelo bedel da escola, o branco coro de senhoras fez a sua entrada e foi colocado como uma coroa sobre o estrado. Atrás, tendo na mão a batuta, o sr. Pietsch emergia, à cabeça da orquestra que, assim que se instalou e a despeito de todas as interdições, fez ouvir um fraco lá de oboé que uma espessa nuvem de quintas dos violinos arranhados, seguiu imediatamente; o piano, de queixadas abertas, ria com todos os seus dentes amarelos.
De súbito, sem que alguém o pudesse esperar, o órgão pôs se a roncar sozinho, longamente, com a sua voz baixa, Os programas agitaram-se com frenesim enquanto o ruído da sala aumentava e, antes que alguém o percebesse, estava se em plena Passacaglia de Bach.
Em qualquer parte, invisível aos olhos do público, estava um rapaz que punha em movimento, da forma mais monótona e mais académica do mundo, todos esses sons, cujo conjunto parecia absolutamente incoerente. O público impacientou-se e pôs-se a segredar. No primeiro camarote, viu se o crânio grotesco de Blaulich ; corria o boato de que o director da Ópera também lá se encontrava. E tão inopinadamente como tinha começado, o órgão parou de roncar, jjá se imaginava que este roncar durasse sempre! A sala ficou muda e embaraçada enquanto um rapaz de óculos, igualmente embaraçado, se afastou, fazendo cumprimentos em que ninguém reparava.
Eis que aparecia agora a longa fila retardatária dos críticos que tomaram assento, em ar irónico, nos seus lugares. Um disse em voz muito alta:
- É a octogésima quarta vez que oiço o concerto de Mendelssohn, nesta época.
Era verdade.
Enquanto o sr. Reindl e o sr. Pietsch se agitavam febrilmente, enquanto o director tomava cerimoniosamente posse do lugar de regente da orquestra, o sr. Silberling apareceu. Afinou o violino com as mãos cinzentas e seguras, colou o caracol mais um pouco e atirou se desesperadamente ao concerto de Mendelssohn.
O corpo do professor meneava complacentemente a cabeça pois o artista conhecia bem o seu ofício; o diretor agitava-se, a orquestra acompanhava, forte mas justamente. Seguiram-se quentes aplausos. Depois, o sr. Lorm avançou, calçando sensacionais luvas brancas como um cantor já "vedeta"; a música tremia-lhe nas mãos. Gaguejou tanto, tanto, que Rassiem, quási arrancou os cabelos, desesperado. Entretanto, os críticos notaram que tinha voz e uma boa técnica de respiração. E as colegas femininas, excitadas, aplaudiram de todo o coração : i ele era tão galante com os seus olhos negros e as luvas brancas!
Por fim, a Dimatter apareceu e a sala calou-se logo. Avançou no palco, alta, bela, resplandecente de juventude; os seus caracóis negros fremiam em redor do rosto moreno; a boca, altiva, era vermelha-escura, como uma ferida. Enquanto a orquestra tocava o prelúdio do Obéron, o seu olhar procurou discretamente Rassiem. Então, cravou firmemente os seus olhos nos olhos dele e cantou. Havia uma tal riqueza naquela voz, um tal esplendor, uma tal força de expressão e de paixão, que as dignas calvas e as grandes barbas se agitaram; quanto aos críticos, despertaram e puseram-se a ouvir. No primeiro camarote, o sr. Blaulich, parecia muito contente e fazia uma boquinha ponteaguda como para provar um vinho, conservando-o na língua.
Em baixo, Rassiem estava sentado, com o busto inclinado para a frente: esquecera quanto o rodeava, e contemplava a sua amante com os olhos deslumbrados. Quando terminou, foi um verdadeiro júbilo na sala. Ela sorriu, com um sorriso novo, consciente; havia no seu
andar, qualquer coisa da força domada dum nobre animal. Bravos entusiásticos chamaram na muitas vezes à cena.
O que veio depois, era dum interesse secundário: o trombeta Kohl tocava uma fantasia; estava horrivelmente perturbado e engoliu um cio agudo, mas não fez mal porque ninguém ouvia.
Quatro indivíduos pálidos como espectros, apareceram depois a cantar o quarteto do Rigoletto, sem desviarem o olhar do maestro. Mas então o sr. Pietsch e o sr. Reindl ajudaram o director a descer do estrado. O coro, todo vestido de branco, agitou se e sob a direcção do discípulo compositor Rebner, entoou a sua composição premiada: O Dilúvio.
Primeiro, foi assim como uma chuva no campo; depois, como um prelúdio das Waífetrtas, e, finalmente, um grande grito de angústia subiu do coro, um grito que pareceu durar catorze dias como o verdadeiro dilúvio; depois, passou. A pomba levantou voo com o seu ramo de oliveira, em reminiscências do Lofeengrin -e estava terminado o concerto. Estava muito calor na sala, o oiro das cariátides parecia pálido, como velado.
A distribuição solene dos certificados e dos prémios devia seguir-se; mas quando um senhor vetusto e choramingas se levantou para discursar, certa parte do público, aflita, saiu da sala.
Elis esperou um instante nos corredores dos camarotes, na esperança de encontrar Rassiem. O orador, no estrado, fazia ouvir um tartamudear monótono, com uma entonação triste; em qualquer parte, bateu uma porta. Um emppregado diligenciou, com o seu "schiu", manter o silêncio. Rassiem passou a correr.
- Quero fugir à apoteose final e solene. - disse ele à rapariga, em voz baixa, descendo o corredor obscuro que ia dar ao foyer dos artistas.
- Menina Dimatter, um momento, se faz favor. disse à porta, depois de olhar para o aposento, que trasbordava de alunos que o vinham cumprimentar.
Quando Dima chegou cá fora, ele lançou rápida e furtivamente os olhos à sua volta e puxou a para uma sala vazia e um pouco escura, onde, pelas gelosias baixas,
a luz do sol deslizava em manchas interceptadas. Tudo era calmo.
Dima, olhou o de baixo a cima e riu se, com o seu riso novo, onde se misturava o orgulho e a consciência do seu valor.
- Sim? Tu? - preguntou num murmúrio. Puxou-a, com brusquidão, para si e enterrou-lhe os dentes no pescoço.
- Sim, sim . -murmurou ele, sufocado -És minha. Gosto de ti, gosto loucamente de ti.
Ela sentiu tremerem-lhe os braços, viu lhe o delírio nos olhos e fechou os seus. Então, da igreja de São. Carlos, veio o som dum sino. Dima desprendeu-se.
- Vem gente. É preciso ter .juizo, meu querido. Mas as suas mãos agarravam-se-lhe aos braços e os
olhos desvairavam.
- Anda, vamos! Acompanha-me, ficarei hoje em Viena. É preciso que fiquemos juntos, hoje. Sim ? Suplico te. suplico-te.
E como via um sorriso lento e negativo a subir aos olhos da sua amante, continuou:
- Entristeço, aborreço me mortalmente longe de ti, estou doido, Toda a noite penso em ti, ó meu amor, sempre, sempre! j Não me digas que não, vem ficar hoje comigo!
Balbuciava e as suas mãos, quentes e febris, deslizavam pelos braços da rapariga.
- i Não me obrigues a mendigar desta forma, Dima ! Ela pensou: "É bem meu, completamente meu!"
E deitou a cabeça para trás.
- Não, Hannès, não deves mendigar. Bem sabes que, quando não quero, tudo é inútil.
E como, sob um novo abraço, ela se sentia ardente e fraca, mudou de conversa:
- Dize, amor, cantei bem?
- Vem para casa. Lá te direi, vem, anda depressa, antes que venha gente.
- Não! Não quero!
- Anda, não sejas má! Farei tudo que te apetecer. Iremos de carro ao Prater. Ou então para longe, muito
para longe, onde não houver o mínimo ruído. Ou então comigo para Rodaun. Vamos trabalhar na holda. Não, amor, não te tocarei se não quiseres. Mas hoje, não me deixes só, estou doido, tive tantas, tantas saudades tuas!.
- É verdade ? Pensas em mim ? Bem. Isso é melhor do que tudo. Não, Hannès, vou voltar ajuizadamente para casa e tu também
Sem querer, Rassiem mostrou se despeitado,
- Tens prazer em me atormentar, és fria, és calculista. E procedes mal. É preciso que te suplique sempre, que fique esfomeado. Sentes que preciso de ti e é por isso que tomas essa atitude. Mas não continues muito tempo com esse jogo, pois bem sabes que há outras mulheres. Um dia acabo com tudo, verás.
A porta fechou se atrás dele. Dima deu um passo impetuoso para o seguir, mas deixou se ficar. Crispou nervosamente as mãos, cujas articulações estavam hirtas e enterrou os dentes nos lábios, cujo tom vermelho-vivo empalideceu lentamente.
- Não, não. - murmurou. E foi como um soluço.
Fora, uma segunda porta bateu, ao fechar-se.
Tinha-se ido embora. No entanto, amanhã voltaria mais ardente ainda, mais acorrentado. Os seus membros distenderam-se; ardiam-lhe os olhos e doía-lhe o coração devido ao grande domínio exercido sobre si própria.
Pensou: "Ir para casa, deitar me, não pensar nele, ler um livro." Elis emprestara-lhe um, ultimamente: Á opinião de Wagner sobre Tristão e Izolda. Muito teria ali que aprender.
O seu pensamento libertou-se de Rassiem e mergulhou na noite azul-jacinto de Tristão que era preciso desvendar e que ocultava tão difíceis problemas.
Na escada, onde estava uma quantidade de pessoas endomingadas, qualquer coisa tépida e desagradável tocou-lhe na nuca, um hálito aproximou-se dela, um i rosto avermelhado debruçou-se sobre o seu.
- Saíste-te muito bem, minha pequena. Realmente
muito bem. Falei com o director da Ópera, féz-me muitos cumprimentos a teu respeito. Toma sentido, tens muitas probabilidades, mas precisas de ir primeiro até à província para tomares o jeito do ofício, i Afinal que pensas acerca de Praga? Lugar de segunda ordem mas é já uma boa estreia. Então estamos de acordo ?
- Depende do sr. Rassiem, sr. Blaulich, ele quere que eu estude mais um ano.
- Ah, sim ? com que então, o Rassiem ? Olha que é um malandro. Enquanto a sua ligação contigo durar, proteger-te-á; depois, ora, ora!. dá te um pontapé sem querer saber mais de ti para nada.
O moreno rosto da rapariga ficou branco; sentiu um gosto amargo na boca.
- Mas como pode o senhor imaginar.?
- Mas, minha filha, ele seria um imbecil se não tivesse nada contigo. E tu? Gostas assim tanto dele? É um belo rapaz, sem dúvida, e sabe levar as mulheres. Mas nós também não somos para deitar fora. Também temos as nossas qualidades, as nossas influências e podemos fazer alguma coisa por ti. Vamos, pensa na minha proposta para Praga e se precisares de alguma coisa não hesites, vem ter comigo. Percebes ? Todos os meses venho para o Grande Hotel.
Beliscou-lhe a nuca; satisfeito, lançou lhe uma vulgar piscadela de olhos e desapareceu. Dima sacudiu-se, tentando desembaraçar-se daquele contacto morno e pegajoso. E saiu do Conservatório.
Em baixo, na sua frente, Elis caminhava, negra e só, atrás das outras raparigas vestidas de claro; de cabeça inclinada, virava agora a esquina.
E Dima pensou: "É tão calma, tão pura, tão criança
ainda!"
Quando chegou à esquina lançou para o extremo da rua um olhar investigador e viu, então, Rassiem correndo atrás de Elis para a apanhar. Teve um sobressalto, corou, fechou os punhos, depois obrigou-se dolorosamente a sorrir. Murmurou:
- Amua como uma criança, mas não devo ceder, agora menos do que nunca.
E dando rapidamente meia volta, entrou em casa.
Já o sol estava a desaparecer por trás dos prédios. Elis caminhava lentamente, dominada pelo seu desejo de não chorar, de não chorar na rua. E isto porque o ano lectivo acabara sem um adeus, sem a esperança de o tornar a ver, sem nada. Dois meses alongavam se já na sua frente, incolores como um pedaço de linhagem e já estava cheia de saudades das suas mãos. Sim, principalmente das suas mãos. No entanto, ele tinha-a beijado havia apenas um mês. Agora procedia como um estranho, exactamente como se nada se tivesse passado.
"Julguei que me tivesses amor!" -dizia o coração desconsolado e triste da rapariga.
De repente, ouviu o chamá-la em voz baixa e as lágrimas subiram lhe aos olhos, consoladoras, sem que fosse possível retê-las.
- Que menina tão feia! Ousares deixar-me sem um adeus, sem me dizeres onde vais este ano!
"Tu!" Dizia "tu", portanto não esquecera.
- Sim, agora baixas os olhos e tens vergonha. Um senhor de idade, um professor. e trata-lo assim desta
maneira!
Inclinou-se para ela:
- Olha para mim, Elis, tenho fome de ver os teus olhos, minha filha. Diz uma palavra, anda.
Mas Elis não podia falar; um grande rio de lágrimas obstruía-lhe a garganta. No entanto, sorriu e olhou-o, embevecida.
- Calma, minha pequenina! Em todos há tempestades, afinal. Tu acalmas-me, tornas me bom. Gostaria de te ter junto de mim quando os meus maus períodos chegam.
"Sim, meu amor, - pensava Elis, soluçando - colocarei as minhas mãos no teu coração e tu acalmarás."
- Hoje. Hoje é preciso que fiques comigo, Elis, senão farei muitas tolices. Queres ajudar-me?
-Quero.
- Bem. Então até já me sinto melhor. Tu não és como as outras. Estava com medo da noite de hoje e
vejo agora que vai ser uma bela noite; vamos fazer qualquer coisa elevada. Hum, mas o que há de ser?
- Não sei. Poderíamos continuar a andar. Eu gosto.
- Sim. E daqui a uma hora estaremos nos Favoritos onde é medonho, onde não há senão casas de operários e tabernas onde se bebem schnaps. Não. Vamos para o carro, queres?
- Oh, se quero!
- Vamos dar um belo passeio, jantaremos fora e ficaremos satisfeitos. Está uma linda noite!
Ele agarrava se a ela; pareceu a Elis que o céu era todo de oiro, que o ar cintilava, irradiando felicidade. Berger estava à espera, com o carro. Depois de ter interrogado o rosto de Rassiem, sentou se ao volante e partiram lentamente.
O ar fresco acariciava-os, as pessoas passavam-lhes pelos olhos como manchas de cor que pareciam rosadas, no crepúsculo; as ruas zumbiam. Rassiem estava encostado ao canto, calado. No momento de pegar num cigarro, Elis viu que os seus dedos tremiam nervosamente. Tímida, deixou escorregar a sua mão para o estofo, depois, aproximou-a pouco a pouco, colocando-a sobre a dele, que tinha as veias inchadas. Desviou os pensamentos que o entristeciam e disse:
- Então, minha filha ? Pequena mãozinha, querida mãozinha, que queres tu?
- Então . então . - disse Elis. Uma carícia regular como o ritmo da sua respiração, aflorava-lhe os dedos.
- Como sabes acalmar. E que bem isso me faz! Deitou fora o cigarro e abandonou lhe as duas mãos
que, lentamente, se imobilizaram. Serenas, ficaram sobre os joelhos da Elisabete.
- Era assim que eu acalmava a minha mãe doente. Seguiu-se um silêncio; as ruas tornaram se menos
ruidosas e as casas mais pequenas. Aqui e além, velhas árvores passavam acima dos telhados avermelhados. Rassiem baixou a cabeça e, pouco depois, levantou-a, Em voz imperceptível, murmurou:
- E tu, sempre tu, minha Maria .
Via a Punta de São Vigílio diante dele e aquela que vagueava por lá, esperando que a perdida voz lhe voltasse. Aquela que, todas as noites, se conservava nua, no ar sedoso; a que o fazia sofrer e que sofria também .
Dominou-se.
- Onde estamos ?
- Em Dobling. Olhe para as lindas moradias; aqui está um castelo da época de Maria Teresa; assemelha-se à nossa casa mas o jardim é mais bonito; estende-se com as suas duas torres laterais para o prado. E aqui cheira bem a verão e a saúde, Oh! nada cheira tão bem como a terra!.
-Tens razão, Elis, e queres saber? Vamos ainda para mais longe, depois deitar-nos-emos na terra e enterraremos a cabeça na erva. Há quanto tempo eu não faço isto!
- Não? Nem mesmo no seu jardim? Eu consigo ficar assim estendida durante horas. E então, canto: ó terra querida. ó querida terra.
- Gostas assim tanto da terra ?
- Há uma história chinesa onde alguém se despede da vida, dizendo: "Não gosei a felicidade neste mundo. vou para a minha querida terra."
- Ora, ora. Tolices, minha filha. Como és sentimental e exagerada! E histórias chinesas! Como podes chegar a tais requintes? Não, afinal não passas duma rapariguinha precoce; és um fruto que está demasiado maduro para a tua idade.
- Sim, fui sempre precoce e sentimental e a mamã explicou-me donde isso vinha. Na nossa família, houve muitos artistas. O meu bisavô era organista. O meu avô, era o célebre Kerckhoff, cujas paisagens se encontram expostas no Museu. Meu pai é escultor e sabe fazer muitas outras coisas-eu não passo duma rapariguita precoce e sensível. Gosto da cor, gosto muito, ando sempre esfaimada de cor. e também de música. Não posso deixar de chorar, quando em Schubert o tom passa de maior para menor. Quando ouvi o Tristão, pela primeira vez, caí doente. É verdade, absolutamente
doente, com médico, febre e tudo. Fiquei três dias na cama, quási morta. Mas como era belo! Eu só tenho medo das coisas reais.
- Ah, cala te, pequena! - disse Rassiem, distraído. E, como não compreendera uma palavra do monólogo de Elis, passou, consolador e terno, um braço em redor dos seus ombros.
Atravessaram a cidade de Heiligen, passaram em frente de casas brancas com jardins em que glicínias luxuriantes se abriam, perto da velha igreja, cujas estreitas torres se aguçavam para o céu. Apareceram, em seguida, as ruas aldeãs de Grinzing e Nussdorf. Subia o calor das cavalariças. Brincavam crianças. De qualquer parte, vinha uma frágil voz de sino de aldeia, errando através da noite; dos pequenos jardins de Heurigen evolavam-se sons de violino. Por fim, desenhou-se a margem do Danúbio; o rio estendia-se, majestoso e largo, com um derradeiro reflexo nacarado a cintilar sobre as vagas lentas. Às vezes, recortava-se a proa dum vapor, estampando a sua silhueta negra no céu de amarelados tons. Dos prados movimentados e envoltos na noite, da outra margem, chegava um sopro fresco e puro.
A pequena aldeia de Kahlenberg desdobrava-se, toda cinzenta, espalhada em redor da sua graciosa igreja; enterradas no meio das vinhas e dos campos, as casitas pareciam querer subir para o alto da colina. Sob janelas veladas, dir-se-ia que as luzes estavam a fazer sinais na escuridão.
O carro parou.
Um pouco mais tarde, encontravam-se sentados, muito alegres, num jardinzinho de hospedaria. As pessoas apresentavam rostos claros e francos; tudo parecia belo. Os castanheiros hostilizavam-nos com pequenos frutos cheios de picos; um cão de caça, amarelo, farejou e veio colocar a cabeça sobre os joelhos de Elis. Um rapaz apresentou uma rede cheia de agitados peixes prateados, afim de que escolhessem aqueles que desejariam comer, fritos. Sob a mesa, Rassiem apertava na sua a mão de Elis, que parecia calma e contente. Tudo aquilo tomava uma grande importância e parecia novo: era
preciso viver aqueles momentos para depois poder recordar .
Ela falava muito e ria-se com delicadeza. com o espírito agradavelmente sereno, Rassiem olhava para o lindo rosto da criança cujo vestido preto o fazia parecer ainda mais branco; era tão graciosa aquela pequena, e nem sabia o bem que lhe fazia. Podia, sem se fatigar, ouvir a voz carinhosa e levemente palpitante, que dizia:
- Nunca o mundo foi tão lindo como hoje!
Sem sofrer muito, podia pensar na mulher, na pálida mulher de cabelos ruivos que, naquele momento, se encontrava sentada na logia, contemplando o lago de Garde, que estava, talvez, a tentar cantar apesar de ter a voz doente e que não queria, de modo nenhum, escrever a dizer como aquilo corria .
Podia apertar, por baixo da mesa, a mão da criança porque isso acalmava e porque pertencia às praxes habituais duma excursão vespertina. Podia quási esquecer a morena, a dominante, aquela que chegava como um furacão e deitava tudo abaixo, aquela que, no fundo, triunfava sempre. Podia obrigar a beber a Elis e divertir-se com isso: os seus olhos cintilavam e ia perdendo o domínio sobre si próprio.
De repente, passou-lhe pela cabeça uma ideia bizarra. Pegando nas duas mãos da rapariga, puxou-a para si e preguntou lhe, muito perto da sua boca:
- Gostas de mim ?
Ela calou-se, mas o seu lábio superior tremia de medo, como acontece com as crianças quando têm vontade de chorar Tinha os olhos cheios de lágrimas.
"Claro! É sempre a mesma coisa, - pensou o alemão - essa é graciosa e delicada."
Entretanto, a noite caiu e uma lua delgada e pálida apareceu no céu.
- Agora vamos partir para os campos; deitar-nos-emos na querida terra e respira la- emos profundamente, queres ?
De mãos dadas, subiram os estreitos caminhos da colina que, imperceptivelmente, deslizavam para os vinhedos.
Longe, lá em baixo, alguém tocava trombeta e do bosque da colina vinha um leve eco. Ouviam-se vozes na noite.
- Há sempre música por aqui, quer seja num chifre de animal ou numa canção. Ouve!
Detiveram-se numa planície prateada de lua. Uma fonte murmurava docemente, como que tonta de sono; véus brancos estavam dispostos sobre as vinhas.
- Aqui ? - preguntou Rassiem.
Deitando-se na erva, puxou, ternamente, Elis para si.
- E agora, que vamos fazer?
- Vamos escutar a noite e ouvir a terra.
- Sim.- disse ele, feliz, procurando-lhe a boca que era mole como uma flor caída. Ficaram assim durante muito tempo, de boca na boca, silenciosos. A igreja mandou para o ar o som do seu sino; a lua resplandecia, o Danúbio continuava a sua caminhada pelo vale. A trombeta calou se.
Respiravam normalmente, deitados na terra plena de seiva, inundados pela vida dos campos, das montanhas, dos bosques e dos animais.
- Em que pensas, querida ?
- Contemplo o céu e penso: sempre, sempre, sempre .
- Olha para mim, Elis, e diz uma palavra.
- Tu !. - murmurou ela.
No entanto, quando mais tarde se sentaram no carro, Hannès Rassiem achou-se um pouco ridículo por apenas ter obtido dela um beijo.
XI
Gusti Dimatter casou na igreja de São Paulo, com grande profusão de mirtos (1) e de lágrimas. Foi belo e solene. As colegas dos coros cantaram uma estrondosa avè-maria; quatro trombones sopraram em honra do noivo uma marcha nupcial. Sofia soluçava.
Os noivos possuíam uma pequena casa luxuosamente mobilada graças ao "capital". Dima recebeu, como prenda de despedida, a blusa de seda branca.
Ao cabo de dois dias, Sofia pôs termo à sua comoção. Ruborizada, anunciou a Dima que tinha sido convidada para casa duma amiga, duma camarada, para o campo, lá para a Hungria. enquanto apalpava, no bolso, uma carta do sr. de Polnar, o homem importante e fidalgo de Budapeste. Fanny, a criada suja, também declarou, fungando sempre, que tinha de ir para casa da mãe, que estava doente, E depois de dois dias duma extravagante trapalhada de malas, cálices de bemdictine e duma desordenada actividade, Dima encontrou se sozinha em casa, onde flutuava uma frescura de verão e um cheiro a batalha - munida de algum dinheiro e de muitas recomendações enérgicas sobre a virtude e a protecção de frau Edlinger.
(1) Na Alemanha, o mirto substitui a flor de laranjeira.
Ao princípio, andou impaciente, por entre os móveis cobertos com as loussas cinzentas, folheou uma partitura, tocou, no piano, algumas notas que ressoaram estridulamente no aposento sem tapetes. Durante uma longa noite, o desesperante desejo de ver Rassiem cresceu nela como um mar. Na manhã seguinte, afastou para longe todos os pensamentos importunos e entregou-se à liberdade. Sacudindo as rédeas entre as quais se enervava, mandou-lhe um telegrama: Vem.
Nessa mesma noite ele veio buscá-la de carro e levou-a para Rodaun.
Agora era verão. Os dias começavam cedo com o pipilar das aves que vinha do jardim. Um clarão azulado apontava primeiro através dos cortinados; lentamente, ia iluminando o quarto. Em frente da cama estava pendurada uma cópia do "Júpiter e Juno de Corrégio; na semi-claridade da aurora, Dima viu a mulher tornar-se mais leve e voar para as nuvens. A cabeça da rapariga repoisava agora no ombro de Rassiem, a sua respiração tinha a mesma cadência da dela. Em cima da mesa, uma taça com frutos perfumados, destacava-se na sombra.
Tirando preguiçosamente o braço da cama, Dima passou a mão quente sobre a pele fresca dos damascos. Os cimos das árvores, em frente das janelas, segredavam um pouco; o sino da igrejinha já batera quatro horas da manhã.
Era a hora a que os amantes adormeciam.
Muito tarde, Hannès Rassiem acordou, num frémito que se comunicou ao corpo de Dima, apesar de estar ainda adormecida.
Ele afastou a roupa e, de olhos cemi-cerrados, contemplou a sua amante; nos joelhos, nos seios, nos ombros. A pele mate tinha reflexos de marfim; as ancas delgadas eram uma obra-prima de bronze e os braços estavam cruzados por finas veias.
Dima era muito bela.
Inclinou se; ela acordou e com os olhos fechados, puxou Rassiem para si. Um sol morno enchia já
o quarto. Juno resplandecia na luz. Roupa interior jazia em desordem no chão, entre hastes de jasmim quási murchas que espalhavam um cheiro capitoso. Na varanda, em baixo, a loiça do pequeno almoço entrechocava se com um lindo som de porcelana.
Dima espreguiçou se, sentiu-se forte, de boa saúde, atravessada por um sangue quente, e começou, rindo, o seu dia.
Por brincadeira, Rassiem encostou um damasco contra a testa, onde uma leve dorzinha se fazia sentir.
A estação ia extremamente calmosa. O ar abafado vacilava um pouco, dando às coisas contornos ondulantes, pondo no céu manchas verdes. No prado, planava um zumbido. As mãos que se uniam, estavam quentes, secas, esfaimadas; tudo parecia nu, corpóreo e cheio de sedução. As horas ardiam como fachos, acendendo-se umas às outras numa longa cadeia: horas da manhã em que Dima ficava, depois do banho, diante do espelho, comparando o seu corpo moreno com os membros claros de Rassiem; outras, em que, tal como uma figura de bronze, ficava deitada no rebordo de pedra, da piscina, numa calma beatitude, olhando os reflexos claros da água que corria sobre ela. Depois, as longas horas na rede, no prado, estendida sobre a pele de urso do hall; as horas durante as quais, estreitamente abraçados um ao outro, rolavam loucamente, percorrendo, de automóvel, o campo; aquelas em que bebiam vinho, rindo, excitados; e as silenciosas, calmas, em que ficavam sentados na varanda, ao crepúsculo fresco. E por fim, as horas da noite sob um céu roxo constelado; e ainda sob a luz alaranjada do quarto de dormir. Todas essas horas ardiam como fachos. Ocultava se em cada uma a embriaguez que podia surgir a todo o instante, como um animal.
Quando Rassiem se sentia fatigado, pegava, meditabundo, na chave do quarto de Maria e sentava se por longo tempo entre os móveis encantadores e floridos que conservavam, como em recordação, um leve perfume. Sentava-se de olhar fixo, com o espírito armado contra Dima, que não devia transpor a porta daquele
aposento. Ouvia-a cantar, em baixo. Andava a estudar a Isolda. O segundo acto tomava forma a olhos vistos, pois, em todo este delírio, ela não esquecia um único dia o seu trabalho.
Hannès Rassiem ficava em cima no quarto de sua mulher: fumava, olhava distraídamente e, sem querer, prestava atenção ao canto. Durante certos minutos odiava Dima, pois o seu amor era daqueles que podem arder como uma chicotada. No entanto, tinha-a em si, no seu sangue, sentia-se cheio desse abrasamento e como sequioso dele, pois a sua amante era talentosa e nova e Hannès Rassiem tinha já mais de quarenta anos.
Em baixo, na sala de música, Dima deixou cair as mãos do teclado e, de olhos febris, calou-se. Escutava o silêncio da casa. como custava lutar contra uma sombra ! Ele estava sempre lá em cima, naquele quarto fechado à chave, interdito, cheio de recordações que não deviam reviver. Despeitada, mordiscou desesperadamente os punhos cerrados; à sua volta, o ar parecia vermelho e fremente. com grande estrondo, fechou o piano e levantou-se. Berger apareceu, em bicos de pés, com um dedo na boca.
- Que foi ?
-Schiu!. se faz favor, minha senhora. Pelo amor de Deus não faça barulho. Música, sim ; barulho, não. Nós estamos sentados há mais de duas horas lá em cima e se nos zangamos, é perigoso. Deve tramar-se qualquer coisa.
Em voz clara e desdenhosa, Dima replicou:
- Ah! Está bem, eu subo. vou eu fazer descer o sr. Kammersánger.
E saiu da sala.
Num gesto de terror, Berger ergueu para o céu as mãos implorantes e desesperadas, mas a escada rangia já sob os passos da jovem. Uma pancada seca soou na porta de cima.
com a cabeça metida na seda fresca da colcha, Rassiem estava ajoelhado diante da cama de sua mulher. Sentia-se doente, fatigado, descoroçoado, sem voz. Choraria de boa vontade, gostaria de mergulhar na sentimentalidade,
diluir em lágrimas o calor seco, o desejo exigente do seu sangue. Embebia-se das recordações desse quarto como se tomasse um medicamento. Quando bateram, ficou sem fazer um movimento, depois, soltou uma risada de cólera. Dima não tinha o direito de entrar naquele quarto! Após um momento de espera, não se ouviu mais nada. Depois tornaram a bater.
- Fora daqui! Vai-te! Quero paz, paz, paz! gritou ele, melindrado.
Então Dima, abriu violentamente a porta. Irritado, gelado de furor, ele encarou a fixamente com ar de censura, depois deu um salto até à porta, batendo no ar com os braços.
- Fora!-gritou, e a sua voz ressoou-Fora! Como te atreves ? Tomas então todas as liberdades ? Não deves entrar aqui, ouves? Não deves, não deves! Já não te posso ver, estou farto de ti! Vai-te, vai-te, aborreces-me .
Berrava como um insensato, um selvagem. Sob o lábio superior, levantado, os dentes brilharam, descobertos, como num animal cheio de cólera.
Estupefacta, Dima olhou-o, e o seu sorriso sedutor petrificou-se-lhe nos lábios. Frémitos percorriam lhe a pele como num ataque. Deu, sem querer, uns passos inconscientes no quarto. Então, ele correu sobre ela e bateu lhe, bateu lhe sem olhar onde.
Ela soltou um grito breve, pôs as mãos diante da cara e fugiu, cambaleante. Como através dum véu, Rassiem viu-a descer a escada, aos tombos. Então, desesperado, começou a chorar.
Chorou durante muito tempo, como uma criança, com lágrimas sinceras e grandes soluços. Abandonou-se à dor e ficou aliviado. Chorou, porque isso lhe fazia bem, sem estar certo do motivo. Chorou por causa de Dima, de Maria, de si próprio, por causa da sua vida agitada que exigia todos os dias mais forte embriaguez e lhe deixava sempre as mãos vazias, chorou porque era mau e exaltado, porque bebia, porque desejava Dima, porque lhe tinha batido; pelo facto da Kouczowska guardar silêncio, por, durante o último Crepúsculo dos Deuses,
lhe ter falhado o dó agudo. Por fim, adormeceu atravessado na cama de sua mulher.
Quando acordou, o quarto estava mergulhado numa penumbra azul; um murmúrio de água corria diante das janelas. Da varanda, um raio claro, caía no jardim, fazendo brilhar os arbustos, sob a chuva. Um cheiro acre a feno úmido e couves, subia. Hannès Rassiem sentiu-se livre, leve e bom. Agora ia lá abaixo, pedir perdão a Díma.
Desceu, tateando a escada, às escuras, e encontrou-se no hall obscuro e mudo. Em casa, nenhum barulho, apenas gotas que caíam, metálicas, sobre o telhado da varanda. Fora, uma luz ardia. Estava servida uma refeição, viam-se garrafas de vinho, luzidias. Rassiem tocou. Berger apareceu com solas de feltro e, com um rosto compadecido, avançou para ele.
Onde estava a menina? Tinha se ido embora. O quê? Que queria dizer aquilo: ir-se embora. Sim, havia um momento. Partira, pronto, mais nada.
Então, ela tinha-se ido embora? Nem mais nem menos! i Vestida de musselina vermelha, cor de púrpura e de pés nus, como num baile de máscaras ?
Ò Berger explicou:
- A senhora, numa pressa febril, vestiu-se, fez um embrulho de jornal com as suas coisas e levou também a partitura do Tristão, do sr. Kammersãnger, por onde costumava estudar, e foi-se embora. Não pelo caminho da estação, não. Desceu a estrada.
- bom, - disse Rassiem - está bem. Pode servir. Comeu sem dizer palavra, assobiando apenas, com
força, durante os intervalos do serviço. Berger olhava-o discretamente, e andava evolucionando à sua volta. Rassiem bebia febrilmente.
- Ela chorou?-preguntou, ao fim dum quarto de hora.
- Não.
Servindo o queijo, Berger continuou:
- Mas tinha mau parecer e parecia abstracta.
- Não lhe preguntei nada.
Berger fez uma reverência e desapareceu, deixando
Rassiem com as garrafas de vinho . e os seus pensamentos. Eles não eram -ai dele! -nem profundos, nem alegres; no entanto, davam uma sede ardente de álcool, de tabaco forte, de barulho, de perfumes violentos. Durante metade da noite, Berger ouvia-lhe os passos, entrecortados de assobios e de barulho de copos e de garrafas. Mais tarde, uma valsa foi tocada no piano a um compasso doido; em seguida, a água correu na casa de banho. Mais tarde ainda, Rassiem pôs se a cantar o recitativo do Graal, depois a ária dos Palhaços que terminou com um riso estranhamente semelhante a um soluço e que lhe causou arrepios. Às três da manhã, entre muitos véus e nuvens, desceu ao seu quarto.
No chão, o vermelho do vestido atirado por Dima, acolheu-o, gritando. Por baixo, cadeias de oiro enrolavam-se como serpentes; saía de tudo um cheiro amargo. Hannès Rassiem inclinou-se e encontrou, perto, as luvas de Dima, luvas da rapariga, duma seda ordinária, cuidadosamente cosidas, e isso emocionou-o muito. Despiu-se, apagou a luz do candeeiro amarelo e atirou-se para a cama impregnada do cheiro da sua amante, que lembrava o aroma agridoce do tomilho. De súbito, veio-lhe uma indizível necessidade de ser bom para ela, de a apertar ternamente nos braços, de ouvir a sua respiração, de sentir, como um fruto luxuriante, a sua boca na sombra. Lá fora, os pássaros começavam o seu dia. O quarto clareava lentamente. Inclinada para trás, Juno avançava para as nuvens. Rassiem adormeceu com o rosto empalidecido pelo aborrecimento, onde, sob os olhos e no queixo, pequenas rugas flácidas se desenhavam.
Durante os três dias que se seguiram, Dima recebeu, em cada distribuição, uma carta de Hannès Rassiem. Pegou na primeira com um leve tremor nas mãos e leu-a com os olhos que ardiam por ter passado uma noite sem sonhos e sem dormir. No entanto, quando chegou a segunda, e outras a seguir, sempre mais numerosas, um sorriso duro e misterioso instalou se lhe nos lábios.
Eram cartas loucas, desesperadas, nas quais as palavras escritas sem qualquer senso comum, se cruzavam
umas com as outras, como ébrias. Pedidos de perdão, lamentos, censuras, brutalidades, puerilidades e, no meio de tudo isso, estas palavras cem vezes repetidas: "Amo-te, Dima, e depois, um estribilho: "Não posso viver sem ti!"
Dima não respondeu. Errava entre os móveis da casa fria, roendo os dedos até fazer sangue. Para acabar, atirou-se ao terceiro acto do Tristão. Isso ajudava-a um pouco. A morte de amor tomava uma forma e um sentido. A futura vedeta fazia gestos em frente do espelho, atirando se sobre o imaginário cadáver do bem amado, erguendo ao aras mãos que repeliam. O seu rosto aprendia a imobilizar-se numa expressão petrificada, com os olhos muito abertos e vazios, numa horrorosa máscara de dor. Foi então que lhe veio a explicação, a explicação da morte. Sentada ao piano, ela cantava, debatendo se durante horas sobre um ponto de respiração, sobre uma vogal que não queria deixar-se dominar. Ficou de joelhos com os olhos ávidos diante das páginas da partitura, hesitando em confiar àquela música o seu segredo. Deitava-se, de pálpebras fechadas, e conseguia imaginar como Isolda andava, se mantinha de pé, deixava cair os braços e erguia a taça, Repoisava sob tudo isto, como sob uma delgada coberta, a lembrança de Hannès Rassiem. Era um tormento mal dissimulado, uma espectativa que se debatia nela.
Ao quarto dia, tocaram freneticamente a campainha. O seu timbre, enfraquecido pelo tempo, abriu uma passagem aguda através do silêncio dos últimos dias. Dima soltou um grande suspiro; o seu rosto adoçou se, os músculos das fontes distenderam-se e foi abrir a porta.
Fora, acalorado, pálido, poeirento, estava Rassiem, com os cabelos em desordem, vestindo um casaco de desporto. Correu sem dizer palavra para o vestíbulo obscuro, caiu aos pés da rapariga, enlaçou-lhe com os braços os joelhos, que ela sentia enfraquecer contra a sua vontade. Sob o império dum enervamento horrível, as mãos do tenor tremeram. Gaguejava palavras incompreensíveis, com a cabeça, infantil e apaixonadamente metida no vestido da sua amante. Dima olhava com olhos
extraordinários e distantes, no escuro, enquanto que, sem saber, as suas mãos acariciavam a cabeça de Rassiem.
- És meu ? - murmurou ela.
Ele abraçou-lhe tão fortemente os joelhos que ela vacilou. Qualquer coisa como um soluço veio como resposta:
- Inteiramente. Sou teu inteiramente.
Ela inclinou-se, ergueu-o, arrastou-o para o seu quarto e ali deixou-o cair com lassidão sobre o canapé. Ele pegou-lhe nas mãos, aproximou-lhas dos lábios, beijou-lhas mil vezes enquanto murmurava ternuras sem fim.
- Tu bateste-me! - disse Dima, esforçando-Se por lhe ver os olhos.
- É porque tu me enlouqueces, porque te amo demais, demais; porque não posso suportar estar assim em teu poder, i Não nos devemos abandonar desta forma, amar tanto!
Dima ria, com os dentes descobertos, num riso profundo, muito baixo, que o fez estremecer.
- Já sei, disseste-mo uma vez, logo ao princípio. disse ela em voz estranhamente cantante.
"Aquele que mais ama é o que perde". iAmas-me tu mais do que eu a ti? Ele desprendeu-se:
- Ser-te-ei fiel.-disse.
- E o quarto? i O quarto onde estás como um rei Barba Azul pronto a matar qualquer mulher que ouse vê-lo ?
Ele calou-se, altivo e desconfiado.
- Que queres agora, que vai ser agora, Hannès?
- É a ti que eu quero. Não posso já viver sem ti. Dima pegou-lhe na cabeça com as duas mãos e
inclinou o rosto para o dele.
- com uma condição. - murmurou, pondo a boca junto dos seus olhos.
Esse bafo quente e puro tirou-lhe toda a consciência de si próprio.
- O que quiseres. - disse, como num sonho.
- O quarto fica aberto e tu dar-me-ás a chave. exigiu numa voz quási imperceptível.
Ele calou se. A boca de Dima procurou a sua, pequenas chamas frias como gelo percorreram-lhe o sangue,
- Sim. - murmurou ele, fracamente.
com um grito curto, involuntário, ela pegou-lhe na mão e beijou lha.
- Amo-te mais do que tu pensas, mais do que podes compreender, e quero guardar-te!-disse, de súbito, muito fatigada.
No pátio acenderam os candeeiros que lançaram um pouco de luz no quarto escuro. Em baixo, o automóvel esperava, impaciente e nervoso.
- Vem! - disse Rassiem.
Dima olhou à sua volta, agarrou à pressa nalguns pequenos objectos e meteu a partitura debaixo do braço.
- Sabes, aprendi já a morte de amor. - disse ela, na escada.
O céu estendia-se sobre eles, ainda claro e sem estrelas. Apesar disso, as ruas eram como vales sombrios; poeira e miasmas flutuavam como uma nuvem no ar quente, atirando as casas para um segundo plano. Ao clarão vivo dos faróis do carro, Rassiem viu como o rosto de Dima se tornara pálido, magro e duro, durante esses três dias. Sob os seus olhos, duas curvas avermelhadas se haviam desenhado sobre a brancura das faces.
- Minha pequenina, choraste ?
- Eu não posso nunca chorar, mesmo quando sofro tanto que julgo abafar. Apenas os olhos me ardem e me dói a garganta e isto é pior do que chorar.
- Fiz-te mal. - disse Rassiem, e repetiu baixo, admirado: - Fiz-te mal!
Era uma coisa inédita ele poder compreendê-lo.
De repente, acelerou. O automóvel lançou-se e passou como um vendaval, pelas ruas tranquilas dos arredores. Apertada contra ele, Dima sorria, num ar inconsciente. Parecia-lhe rolar através de ruas de sonho, com uma pálida lua de teatro seguindo a sua corrida por cima dela, com ar e nuvens debaixo das rodas Fechou os olhos, perdeu a noção do tempo e do peso; caminhava sem fim através duma efervescência, onde múltiplas cores se juntavam, para um ar quente e acessível
que, como uma suave mão, lhe afastava os cabelos das fontes.
Pararam. Dima olhou, perturbada, à sua volta. Encontrou de novo o reflexo do candeeiro da varanda sobre o prado e o bosque em redor, um pouco de luar reflectindo-Se nos lagos, e, lá em cima, nos cimos das tílias, o clarão que descia do quadrado alaranjado do quarto de dormir. Sentiu-se aliviada, levada por sobre os degraus; um esgalho de vinha selvagem bateu-lhe no rosto, lábios quentes e trémulos poisaram sobre as suas pálpebras cerradas.
Nessa noite, a sombra esbateu se. Nessa noite pareceu, pela primeira vez, a Hannès Rassiem, que podia esquecer sua mulher.
Seguiram-se dias de encanto e deslumbramento.
Dima passava através das horas com movimentos lentos e olhos doces, i Pela primeira vez, era enfim o amor, o grande, o verdadeiro amor! Sentia-se terna, calma, abandonada. As suas mãos aprenderam a acariciar, a dar paz. Rassiem ajoelhava diante dela, de rosto rejuvenescido, irradiando dignidade amorosa e calor. Berger corria pela casa, contorcionava-se em movimentos sucessivos, com o seu zelo de servir. Ao longo das paredes trepavam rosas, espalhando um perfume mais forte do que noutro tempo. O repuxo cintilava ao sol; as cores, os cheiros e os sons tinham aumentado, numa exaltação de vida. Os dias passavam, em véus prateados, as noites ardiam, infinitas, cheias de estrelas.
Nos braços de Hannès Rassiem, com a cabeça sobre o seu peito, Dima preguntava muitas vezes:
-Pode ser-se assim tão feliz? É possível tanta felicidade? Quanto tempo vai isto durar?
E ele murmurava, de olhos fechados, sem reflectir:
- Sempre, sempre!
A boca de Dima contorcia-se um pouco. "Sempre é longo, sempre não existe."- pensava, com um leve ardor no peito. No entanto, não dizia nada.
Dima olhava para Hannès Rassiem, lia o seu pensamento. Nunca mais voltara lá acima. Também nunca lá fora com ela, Hesitavam muitas vezes, de mãos dadas,
no limiar. No entanto, sem trocar palavra, afastavam-se. Uma noite, a luz ainda estava acesa quando ele passou com a amante ao colo, a cabeça dela inclinada no seu ombro. com os olhos semi-cerrados, ela viu a sua imagem reflectida no espelho de dentro. Rassiem também a viu e os seus lábios descolaram-se dos cabelos dela.
com um amargor na garganta, Dima pensou: "Viverás tu no espelho, sombra?"
Muitas vezes, sozinha, punha-se toda nua em frente daquele espelho e, ardente, desejava: "Gostava que ele chegasse agora e fosse meu em frente deste espelho, neste quarto."
Tal desejo permanecia nela como uma sede latente, dolorosa, que tornava os seus beijos mais escaldantes, as suas carícias mais violentas, e deixava sempre um resto de desejo insaciado.
Certo dia, reinava em casa um silêncio profundo. Nos campos, pesava o calor do meio-dia. O ar ondulava, as rosas espalhavam um perfume quási fanado, como o do vinho velho. Rassiem tinha ouvido Dima cantar mais cedo que de costume. Um silêncio súbito seguiu se; desceu a procurá-la. O jardim calava-se. Chegou até ele um riso leve e baixo, vindo da direcção do lago. Dima estava ali, sem o ver, nua, doirada, com todo o corpo voltado para o jacto, que recebia com o seu sorriso estranho. Numa carícia orgulhosa, tinha as mãos em redor dos seios, que reluziam sob a água, como bronze.
Nesse instante, Hannès Rassiem sentiu o seu amor por Dima abrasá-lo com tanta força que se assustou. Em gesto inconsciente, pôs as mãos em frente dos olhos, como um cego. Ela viu o, soltou um grito rouco e surdo, e fugiu, descalça. Quis agarrá-la mas ela atirou-lhe água com as mãos. Então correu, em sua perseguição, através do prado, ao longo do jardim, através da casa. O riso, espantosamente aliciante, ressoava ora aqui, ora ali, agora no vestíbulo, depois na escada. Rassiem seguiu-a até ao quarto; sim, era lá que o esperava, em pé, sob o raio de sol que atravessava o aposento. Viu-lhe a imagem reproduzida no espelho: a sua carne resplandecia, transparente.
Ele agarrou, ela lutou; os seus olhos de mulher tornaram-se profundos, sombrios, sérios, enquanto que, nos do homem subia esse desejo grave que ela confiava e amava acima de tudo. Deixou se tombar e puxou-o contra si, numa espécie de vertigem infinita.
- Agora pertences-me, és meu, bem meu!-balbuciou, com os olhos perdidos nos dele.
As cores do quarto idolatrado desapareceram num turbilhão de vermelho e de roxo; o acre cheiro a tomilho, de Dima, misturou-se a outro, fraco e doce como uma recordação. "Pobre sombra, sombra morta!" cantava uma voz dentro dela, enquanto se entregava.
No começo de agosto, Hannès Rassiem recebeu um telegrama e, sem um adeus, sem uma palavra de explicação, partiu subitamente em viagem.
SEGUNDA PARTE
I
O calor estava suspenso sobre Merano; o céu, quási branco, absorvia as linhas abruptas das montanhas que nadavam na sua claridade. Sobre a esplanada, os bancos desertos, apresentavam um verde tom poeirento. Em baixo, a água fremia como se milhões de lagartos prateados se tivessem fundido uns nos outros. Â parte sul das casas voltava para o sol a alvura estonteante das suas paredes e das suas varandas. Na velha cidade, as pessoas juntavam se debaixo das arcadas, que guardavam um pouco a frescura das pedras.
Num quarto do hotel, cujas cortinas corridas deixavam entrar um pouco de luz verde, Hannès Rassiem sentara-se em frente do professor Bayer que, em voz baixa, se dirigia a ele. Rassiem estava pálido, parecia exausto, inquieto. Nas sobrancelhas claras, a poeira da viagem do caminho de ferro estava ainda colada. As mãos impacientes, de veias claras, brincavam com o estojo dos óculos de Bayer que tinham encontrado sobre a mesa. Ouviam-se passos discretos, vindos do aposento pegado.
- Não compreendo nada do que aconteceu . que significa tudo isto, Byer? Que entendes tu por doente ? Gravemente doente ? Bayer, é realmente grave ? O teu telegrama era estúpido e nebuloso; fazia medo. A
gente pregunta a si próprio o que será. i Não posso realmente ir ter com ela ? - preguntou Rassiem.
- Calma, calma! Está agora a dormir, está quieto, não faças tanto barulho. vou contar-te tudo devagar. Gravemente doente? Não sei, são nervos, os seus nervos estão exacerbados. Vamos ver o que é possível fazer. Mas comecemos pelo princípio. Tu sabes que ela se instalou em Punta de São Vigílio para se restabelecer, e que passava melhor. Um dia pensou que talvez pudesse tentar cantar; sentou se ao velho piano e. acredita: conseguiu-o. O aposento é pequeno, com boas condições acústicas, - de resto, tu conhece-lo -a voz ressoou maravilhosamente. Depois, telegrafou ao seu velho Bayer que estava nos Dolomitas. "Tudo corre bem, parto amanhã, estarei domingo em Misurina. bom; parto para Misurina. Espero três dias, uma semana, e nada de Kouczowska. "Continua a ser a mesma, sempre um pouco louca, esta Kouczowska!" -pensei-Ao sétimo dia chega de Bozen um telegrama que andara atrás de mim através de todos os Dolomitas: "A sr.a Kouczowska gravemente doente, não sei que fazer. Helena Muckenbauer." Quem podia ser Helena Muckenbauer? - preguntei.
- Madalena, - interrompeu maquinalmente Rassiem.
- Exactamente, Madalena. Parto logo para Bozen e encontro a Kouczowska com febre, delirando. numa palavra, num estado lamentável. Madalena Muckenbauer estava alagada em lágrimas, o meu colega passeava no vestíbulo sem saber para que santo apelar, pois a senhora não deixava ninguém aproximar se do leito e repetia apenas: "Hannès! Hannès!" e com isto, mil outras coisas, em todas as línguas do mundo, até em dinamarquês.
- Sim, sim, dantes ensinei lhe três palavras. Há muito tempo.
- Sim, Rassiem, eu conheço essas três palavras. Ela di-las todas muitas vezes, muitas: podem compreender-se sem dicionário, apenas pela intonação.
Rassiem mergulhou o rosto entre as mãos.
- Continua, continua.
- Telegrafo-te e tento em seguida saber o que se
passara. A senhora tinha saído de Punta, tinha encontrado em Reva umas pessoas conhecidas, e, bruscamente, havia mudado de itinerário para ir com todo esse grupo para Milão a uma grande festa que dava a condessa Triangi. Apareceu lá com o maravilhoso vestido verde-prata e não tardou que lhe pedissem para cantar -Oh! um trecho apenas, uma àriazinha somente
- de tal forma que, para ser agradável, cantou. Aí, deve ter-se passado qualquer coisa aborrecida quanto à voz. faltam pormenores a este respeito, mas Madalena conta que a senhora voltou a casa desnorteada, que de noite, na ocasião de se fazer pentear, se fartou de chorar e não dormiu nada. Na manhã seguinte, a nossa querida Kouczowska foi consultar o professor Cechi,-tu sabes, aquele que trata todos os artistas do Scala - mostrou-lhe, sem dizer palavra, as suas pobres cordas vocais arruinadas, e aconteceu que esse idiota não a reconheceu! Disse-lhe simplesmente: A sua garganta está pronta. Nunca mais poderá cantar. - É um caso absolutamente sem esperança?-preguntou ela -"Oh! absolutamente"-disse o médico, acompanhando-a à porta, cerimoniosamente. Esta história tem um grande papel no delírio da nossa doente. São estas as informações que eu tenho. Voltou ao hotel como morta, mandou fazer as malas à pressa e fugiu no primeiro comboio. Em Bozen, tinha uma paragem duma hora. A Kouczowska deixou a Madalena, saiu a correr, e esta, durante esse tempo, ficou na estação com a bagagem. Aqui há uma falha. Deve ter caído na rua, em qualquer parte, sem sentidos, e ter sido transportada numa ambulância. Madalena esperou, era já noite alta quando foi ao posto da polícia. Informaram na e acabou por encontrar a senhora, indo depois as duas para um hotel. Entretanto, a Kouczowska era tomada por uma forte febre nervosa: o dono do hotel foi grosseiro, então Madalena mandou me um telegrama e eu vim imediatamente, de automóvel. Depois, convidei e conduzi a nossa amiga e a sua dama de companhia para aqui, onde é tudo confortável e calmo. E pronto: é neste ponto da história que nos encontramos hoje.
- E agora ? - preguntou Rassiem.
- Ah! agora. - disse Baver, tirando lentamente os óculos - agora ela dorme há catorze horas; é por assim dizer o fim da crise. Quando acordar, a febre terá descido e voltará a si. Então, virá o mais duro, e será preciso que tu a ajudes.
-Eu?
- Sim, naturalmente. Tu. Ela ama-te, a ti! É sempre por ti que chama.
O velho lançou sobre Rassiem um olhar rápido, intenso e penetrante.
- Disseste-me um dia, ainda não há muito tempo, que te sentias bastante forte para a ajudar; continua a ser assim ?
- Houve certas coisas depois. - murmurou Hannès, consternado.
O turbilhão das últimas semanas ergueu-se nele, como uma nuvem.
- Estou mortalmente cansado, queria dormir, dormir, dormir. - disse em voz extraordinariamente alta e cantante.
Bayer levantou a cabeça, pôs solidamente os óculos no nariz e fitou Rassiem.
- De momento, não se trata de ti. - disse rapidamente.
E, após um silêncio, acrescentou com mais doçura:
- Tornaste a fazer tolices? Sim? Bebeste? Que se passou? Oh! mundo estúpido, como tu atormentas estes dois entes!
Rassiem não o ouvia: tinha a cabeça metida entre as mãos. interrogava o fundo da sua alma e os ombros tremiam-lhe. No quarto ao lado, podia agora ouvir-se uma voz fraca, cheia de sonho.
- Está a acordar. já acordou. -disse Bayer, apreensivo-Vou para junto dela. Entretanto, toma um banho, refresca-te. Toma brometo para acalmares as mãos, anda! Eu virei buscar-te daqui a um momento.
Uma porta abriu se e fechou-se sem barulho: quando Rassiem se voltou, Bayer tinha saído. Só então notou o tom claro dos móveis no aposento quente, tinto de
verde pelo crepúsculo. Aproximou-se da janela; pelas fendas das gelosias fechadas, viu uma varanda com poltronas e palmeiras hirtas. De muito perto, chegava uma voz fraca e um leve cheiro a medicamentos.
"Já uma vez na minha vida isto aconteceu.-disse ele, sonhador - Sim, eu conheço isto: um quarto quente, palmeiras em frente da janela e, perto, a Maria deitada, doente ; esperemos o que vai dizer o médico. Tudo isto já eu vivi - já o conheço."
E, de repente, veio-lhe a lembrança do que estava bem oculto na sua memória :
"No Rio, quando o nosso filho morreu, foi exactamente como hoje. O nosso filho - nosso filho ? Como era ele ? Ah! não sei. Era ainda tão pequenino! Não suportou o clima; para mim, não teve grande importância o facto dele morrer, mas a Maria esteve doente de desgosto, considerava-se responsável pela sua morte .
Viu-se no espelho, verde na penumbra verde e teve medo.
Foi quando tudo começou a correr mal, sim, foi o princípio. E agora ?"
Pegou maquinalmente no copo, contendo o brometo.
-Devia poder esquecer-se o que existe "entre" murmurou ele, voltado para a porta fechada.
Debaixo do chuveiro da sala de banho, o estado vago e sonambulesco em que se encontrava desapareceu um pouco. Sentiu, quando tornou a vestir-se, os cabelos molhados caírem-lhe para a cara e isso deu-lhe uma sensação de frescura e remoçamento. No entanto, quando se encontrou no outro aposento o ar estava pesado, espesso e dificilmente respirável. Olhou para as paredes nuas e viu, com leve arrepio, que a porta do quarto de Maria estava aberta; deu um passo hesitante. Do outro lado, reinava o silêncio. Bayer e o médico pareciam ter desaparecido.
A Kouczcwska encontrava se deitada, de pálpebras cerradas. A mão pendia-lhe num gesto de lassidão infinita, sobre as almofadas coloridas de verde; o seu cabelo acobreado caía pesadamente. Ela não fez um movimento, mas murmurou; "Enfim
A sua cabecita estreita pareceu a Rassiem estranha; um bloco de gelo rodeava-lhe o coração. Aproximou se cautelosamente, não sabendo que dizer, pegou prudentemente na mão que pendia e beijou-a; primeiro no pulso, depois na palma veiada de azul. Em seguida, sentou se na borda da cama e esperou.
A Kouczowska ergueu a custo, segundo parecia, as pálpebras roxas, e descobriu os olhos claros de pupila negra, a boca marcada por duas rugas de fadiga, as mãos trémulas que brincavam molemente com a coberta da cama.
- Ajuda-me! - disse em voz quási imperceptível. Ele inclinou-se desastradamente e preguntou:
- Que posso fazer? Que queres, Maria ?
O olhar da doente tornou-se fixo e disse quási alto:
-Sabes que tudo acabou para mim?
Rassiem teve um leve sobressalto. Então, ela tentou sorrir. Era o sorriso duma grande senhora que, em sociedade, se domina. E era tão comovedor, tão desesperado o sorriso do pobre rosto emagrecido, que uma onda de calor inundou Rassiem. Encostou a testa à pequena mão flácida e misturou as suas lágrimas às lágrimas de sua mulher.
Numa das noites seguintes, à hora em que Maria dormia, Rassiem estava sentado na varanda, diante do delgado raio de luz projectado pelo candeeiro, olhando vagamente para uma folha de papel em branco. Tratava-se de escrever a Dima. Reflectiu longamente, soltou um enorme suspiro e começou: "Minha querida" mas não foi mais longe. Uma borboleta volteava, com um ruído de asas, em redor da luz. Rassiem olhou o insecto, pegou num cigarro, considerou a caneta, levantou-se e pôs se a andar cautelosamente, porque Maria estava a dormir. Graças a Deus, dormia e começava lentamente a melhorar.
Tomou de novo alento, aproximou-se resolutamente da mesa e escreveu ainda: "Perdoa-me." Mas assim que as palavras ficaram escritas, alongando-se em oblíquo para o canto da folha, pareceram-lhe estúpidas.
a folha branca esperava, essa página. Encheu-o o papel e deitou o fora.
pensou em Dima, atormentou-se por não achar dela uma recordação, uma palavra que o tivesse impressionado como o fizera, para sempre, um sorriso da Maria. Mas a rapariga estava apagada; tinha sido apenas uma presença, uma imagem num espelho, um reflexo na fonte, o som duma voz. Os olhos de Rassiem velaram-se, meteu a fronte entre as mãos e afastou-se da mesa, para a escuridão. Em baixo, os telhados da cidade, colocados uns sobre os outros, exalavam os seus fumos. Suspensas no céu, as estrelas cintilavam. Pesava uma opressão sobre as coisas e sobre Rassiem. Em cima da mesa, na claridade, a folha branca esperava. "Querida, perdoa-me . dizia essa página. Encheu-o uma súbita cólera. Amarrotou o papel e deitou o fora. O papel rolou sobre um telhado e colou-se a uma goteira, saltando bruscamente no ar e desaparecendo na incerteza da viela estreita e sombria.
Alguém riu. Rassiem voltou-se, nervoso e contrariado. Bayer estava de pé na claridade da porta, e os seus olhos riam maliciosamente por detrás dos óculos.
-Então? Porque ris? Há quanto tempo me espias? i Qual é o motivo da tua hilariedade?
- Vamos, vamos, Rassiem, meu rapaz, não sejas tão susceptível, tão pronto a exaltar-te. Abusamos outra vez dos nervos, não é verdade, sr. Kammersânger?
Bayer deixou-se cair numa poltrona de vime, que rangia, e disse, em tom severo:
- Senta-te e ouve. Rassiem apagou o candeeiro.
- Esta luz é fatigante, faz mal à cabeça.- murmurou.
- Mal à cabeça? É justamente disso que quero falar-te. Temos então dores de cabeça, nervos à flor da pele, tremor de mãos? É isto?
O artista não respondeu.
- Rassiem, ali, naquele quarto, está deitada uma mulher, um pobre ser infeliz que sofreu horrível provação, que tem constantemente os olhos em ti e que suplica: "Ajuda-me, só tu o podes fazer." Talvez não o diga francamente, porque é muito orgulhosa. Observo a muitas vezes: cerra os dentes, crispa os punhos para não chorar, não chora . mas olha-te, Rassiem. E tu andas
inquieto. dir-se-ia que lhe queres fugir e fugir de ti próprio. É, na realidade, tudo de quanto és capaz?
Uma luz azul e incerta desceu do céu pesado e reflectiu se um instante nos vidros dos óculos que se voltavam, interrogativos, para Rassiem. Este estava sentado na obscuridade. Lamentou-se:
- Ah! não me atormentes. não sei, não sei nada. Tenho a impressão de que me caiu uma tábua no crânio. Tenho a cabeça e os olhos absolutamente vazios, como queimados no interior. Deixa me em paz, deixem-me vocês todos, vocês todos!.- gritou, de súbito, fazendo com as mãos um gesto de defesa.
- Rassiem, - preguntou Bayer em voz baixa - reflectiste alguma vez no que possa ser isto de perder a voz? i O que estas palavras significam para as pessoas da vossa profissão? Não? Então, peço te, entra em ti próprio e faz penetrar esta ideia no fundo da tua cabeça. Concebe-a durante cinco minutos. Sim? Fazes isso?
Houve um instante de silêncio. Rassiem tinha posto as mãos diante do rosto. Bayer debruçou se sobre a sua cabeça inclinada.
- Compreendes agora ? Podes imaginar o que seja ?
- Não.- murmurou Rassiem - Não posso.
- Mas tu também podes perder a voz! -disse o médico, com energia.
Houve um longo minuto de espera. Rassiem olhava para dentro de si próprio.
-Hannès, é preciso que recomeces a tua vida desde o princípio. É preciso que digas a ti mesmo: "Basta! Doutra forma, tudo irá mal para ti. -disse Bayer, sobre a cabeça inclinada - É a tua mulher que está ali deitada, a tua mulher que está em risco de naufragar. Mostra que és homem e salva este pobre náufrago e a ti mesmo da lama em que vocês caíram.
- Voltar atrás? Recomeçar? Mas como, Bayer? Há tantas coisas entre nós! O teatro, o mundo, histórias extravagantes, dela e minhas. Actualmente, tu não sabes donde eu venho, Bayer. Além disso, ando no meu mau período.
- Pois bem: aluguei-lhes em São Leonardo uma
casa, uma linda casa na margem dum bosque, com figueiras, pessegueiros, castanheiros, uma ramada e uma velha fia(1) que trata da casa. Amanhã, a Kouczowtka será empacotada e expedida para lá: instalem-se ambos, muito tranquilos. Bem precisam!
- E depois?
- Depois? - disse Bayer - Preguntas-mo, Hannès?
Não amas tanto a tua mulher ?
Rassiem, desesperado, fixou os olhos no rosto de Bayer. Num turbilhão desencadeado, as últimas semanas ressuscitaram : Dima, as rosas, o vinho. Dias ardentes, noites escaldantes. Imagem num espelho. Acabou-se. Uma leve vertigem ficou para trás, um pedaço de fadiga e de aborrecimento na cabeça, o vazio no coração.
- Não sei. - murmurou Rassiem.
O médico tirou bruscamente os óculos e fixou o homem cujo olhar incerto ia para as nuvens suspensas sobre as montanhas. Madalena apareceu à porta, sem
barulho, anunciando:
- A senhora acaba de acordar. Chama o sr. Kammersânger.
- Está acordada? De noite e tão tarde? -respondeu ele. O tom das suas palavras mostrava que tinha o espírito distraído.
A Kouczowska estava na cama com o corpo inclinado para a frente; o reflexo do candeeiro da mesa de cabeceira nimbava-lhe o rosto. Estendia impacientemente os braços para a porta, pela qual Rassiem devia entrar.
(1) Tia. Maneira familiar alemã de achar uma pessoa simpática.
II
A casa estava situada fora da aldeia, muito longe da estrada que conduzia à montanha. Castanheiros estendiam as suas ramadas sombrias sobre o telhado achatado, donde as glicínias, caindo em cascatas azuis, se misturavam com a folhagem da vinha e das árvores de fruto que cresciam junto dos muros.
- É belo! - disse a Kouczowska assim que o carro parou . Teve um leve movimento de recuo quando Rassiem quis tirá-la para fora do carro.
- A Madalena ajuda-me. Agora estou melhor. Madalena tinha sido mandada adiante para instalar
tudo mais comodamente. Estava agora na pequena escada, sob a parreira. Perto dela, uma mulher ossuda, em severo traje de viuvez fazia frios cumprimentos, apresentando-se aos viajantes: era a camponesa, e a companhia ficaria, com certeza, satisfeita com a sua hospitalidade.
Havia primeiro um compartimento com um grande fogão de faiança verde e um banco em redor; a um canto imagens de santos; ardia uma lamparina. Sobre a mesa, um enorme pão saloio estava colocado sobre um prato pintado com manteiga. com uma faca, a mulher traçou uma cruz sobre o pão e partiu-o: tinha um cheiro forte e pouco tranquilizador. A Kouczowska
olhou com espanto a enorme fatia; quanto a Rassiem, trincou-a de bom humor e pôs-se a rir.
Madalena preparara para a sua ama um belo quarto claro com sobrado de pinho: flores campestres, encarnadas e azuis emergiam de jarras de barro; um baú de pinho, enfeitado com muita prata e cristal, fazia as vezes de toucador; na larga cama, viam-se cobertas de seda junto de almofadas de quadrados vermelhos. Um armário gigante, pintado à antiga, mostrava rosas e corações em todas as faces, salvo na porta onde se encontrava esculpido, com arte, um pesado castelo. Na parede, via-se uma pequena pia de água benta, de bronze.
Tal como uma boneca leve e fina, garridamente vestida, a Kouczowska andava à volta de todas essas coisas simples e sorriu lhes amavelmente.
- É belo!-disse ela - prodigiosamente primitivo, mas belo! Isto tem estilo e nobreza. E quando a gente está habituada a ver toda a gente tão artificial.
O seu rosto sombreou-se, de súbito. Um véu estendeu-se diante dos seus olhos e a frase ficou por concluir.
- Estou cansada; - disse - vou-me deitar; só tenho um desejo: deitar me e dormir. A Madalena vai ficar ao pé de mim. Não, obrigada, Hannés, não preciso de ti. Tu podes sair, vai.
Rassiem puxou a porta atrás de si e encontrou-se no seu quarto. Lançou um olhar para fora, viu as ramadas pesadas dos pessegueiros, o céu próximo onde as primeiras estrelas subiam devagar.
"Ela dificilmente esquecerá. se o conseguir. - pensou- Será preciso que a ajude? Meu Deus, meu Deus, como?"
Mais tarde, acendeu um cigarro. Saiu para defronte da casa, depois embrenhou-se pelo bosque dentro, que conduzia para o poente. A atmosfera estava fresca e forte, quási palpável. Trazia consigo o débil som dum sino, acompanhado pelo cheiro amargo de madeira queimada e por um pouco da umidade perfumada dos campos.
Rassiem, deitou fora o cigarro. A sua mão, que ?deslizava sobre a folhagem, tocou no orvalho; na aldeia,
em baixo, distinguiam se, aqui e além, luzinhas atrás de cortinas vermelhas; ouviam se ruídos de cadeias, da cocheira vinha um som de patadas; ouvia se o ruído secreto duma fonte. Tudo se tornou silencioso. Rassiem entrou em casa e adormeceu, num sono pesado e sem sonhos .
Nos primeiros dias, a Kouczowska sentiu-se muito fatigada e muito fraca; mal podia andar. A maior parte do tempo permanecia numa chaise longue, debaixo da trepadeira que guarnecia quási todo um lado da casa. Tinha diante dos olhos, pedaços de vinha, um bocado de prado sobre o qual um voo confuso de borboletas brancas ondulava sem cessar, depois um bosque de pinheiros e castanheiros. Rassiem andava pela casa em bicos de pés, mas a madeira estalava de seca, fortemente, sob o seu passo elástico.
Ouviam-no andar no quarto, ir à janela onde os cravos floriam, subindo em molhadas, voltados para o sul. Aparecia, de vez em quando, na alameda de folhagem, longe, no prado, e por fim lá em baixo, na orla do bosque. Prudentemente, traçava largos círculos em redor da Maria, cujos olhos cemi cerrados pareciam não o ver.
Às vezes, parava um instante, olhando cheio de espectativa e de emoção na direcção de sua mulher; depois, voltava a desaparecer. Quando já tinha partido, ela sorria um pouco, com o seu sorriso lasso e contrafeito sobre o qual havia um véu. Certo dia, ele apareceu com uma almofada de quadrados vermelhos debaixo do braço. Aproximou se a pequenos passos hesitantes. Maria não pôde deixar de rir.
- Vens muito cauteloso. Pareces um elefante bebé, aos quadrados. Que queres fazer?
Ele pôs lhe a almofada atrás das costas. Depois ficou em pé, junto dela, tentando encetar conversa.
- O ar está bom. - disse.
- Sim, muito bom.
-Muito bom. Também achas? Vai fazer-te bem? -Assim o espero.
- Daqui a dias. - disse cie num tom muito alegre Daqui a dias estarás óptima, com certeza. Então, faremos um pouco de alpinismo, iremos para os altos Jauífren, queres? Porás o teu vestido de viagem, o verde.
Maria fez que sim com a cabeça, mas os cantos da boca contraíram-se lhe.
- O teu vestido é muito chique. De onde o mandaste vir? De Paris ?-tentou continuar Rassiem.
- Não sei. De Turim, parece-me. Isso tem tão pouca importância.
Ele calou-se, desorientado. Passado um momento, pegou-lhe na mão, que ela tinha crispado dolorosamente e beijou lhe delicadamente as veias azuis. A mão tornou a cair sem vontade alguma quando ele a deixou livre. As pálpebras da Maria baixaram se para que se não pudesse ver o que se passava nos seus olhos. Rassiem posse a mordiscar uma haste da vinha; depois, tendo perdido subitamente todo o entusiasmo, começou a passear pela alameda e desapareceu.
Durante a refeição, todas as conversas morreram. O barulho da loiça parecia exagerado, nesse silêncio cheio de embaraço Em pé, com gastos severos, a camponesa presidia: era preciso comer tudo. De vez em quando, Rassiem tentava contar qualquer coisa. Maria escutava delicadamente, como se estivesse à mesa com muita gente. Depois, de forma quási imponderável, assaltada de momento por um pensamento qualquer, deixava de dominar o seu rosto que se fechava de novo. Madalena, enquanto servia, levantava os olhos meigos e expressivos para prevenir Rassiem que se sobressaltava então e se punha a gaguejar, caindo da sua frase como duma montanha. E voltavam a ficar calados.
- Perdão. - dizia a Kouczowska - Os meus nervos estão num estado ridículo. Desculpa me. Tornei me uma péssima conversadora. Vamos, continua; i como vai isso da Wafeyrta?
Depois da refeição, Hannès Rassiem saía, furioso, para o bosque, onde fazia a si próprio amargas censuras.
" Sou um verdadeiro hipopótamo. - pensava - Sim, espezinho-a como um hipopótamo. Que maldita imbecilidade
me obriga a falar sempre de canto e de teatro diante dela? Que figura de animal, sem compreensão e sem ternura, faço eu? è Será porque já a não amo?"
Esta frase obrigava-o a parar, pondo as mãos diante dos olhos e apurando o ouvido para se escutar atentamente a si próprio.
- Não. - dizia a um rochedo que o olhava como um rosto -Não é o verdadeiro amor e ela sente-o. Amo-a, sim, mas não com o verdadeiro amor. Por isso é que ela está tão fechada, e se afasta sempre. Já não é como dantes.
"Antes", nos seus pensamentos, era antes da introdução de Dima na sua vida. "Dima jovem, esplendorosa, ardente! Porque não me hei de aborrecer de ti, porque é a tua lembrança tão confusa, tão distante, como se tivesse apenas sonhado? Som duma voz, imagem, Dima?"
Durante esse tempo, Maria Kouczowska estava sentada debaixo da trepadeira. Madalena segurava um espelho diante do rosto emagrecido. A artista, ao reflexo da luz verde, via os seus olhos cavados, a testa, os cantos da boca, onde se cruzavam pequenas rugas e um pobre sorriso aparecia.
- Acabou-se! - disse a Kouczowska - Acabou-se ! Acabou-se a voz, a beleza, a mocidade! E que grande cansaço! Acabou se! Que pensará ele disto, Madalena?
- A senhora, daqui a pouco, ficará outra vez bonita e com saúde. Não deve estar sempre a pensar na mesma coisa, deve pensar em coisas alegres.
- Sim.- respondeu Maria, tapando o espelho com as duas mãos - Vamos pensar em coisas alegres. Mas em quê, Madalena?
- O sr. Kammersánger envelheceu desde que veio a Bruxelas. A senhora não reparou?
- Também envelheceu? Sim, é verdade, Madalena, com certeza, acho que também envelheceu.
- Eu queria dizer, minha senhora que, principal mente, ele mudou, não sei explicar como. mas parece outro.
- Mudado ? Sim. - disse a Kouczowska, pensativa. E depois dum silêncio:
- Vai, agora quero dormir. "Mudado.-pensou ela-está outro. Duas novas rugas em redor da boca. Não são rugas de actor, não, são rugas dolorosas, um pouco atormentadas. Já não é tão caprichoso, tão egoísta. Está mais velho. Já não é tão sedutor. Sedutor como dantes, já não é. Dir-se ia que começou a pensar, ou então a viver realmente. Gostaria de o ouvir cantar, Terá a sua voz enfraquecido também?"
"Enfraquecida também, também" - pensava ela. E logo lágrimas de desespero subiram-lhe aos olhos, ardentes. "Vamos, coragem!"-disse Kouczowska à sua imagem reflectida no espelho, que segurava contra os olhos. Conter-se, não deixar transparecer nada, a ele não, a ele não! "Ele já não te ama"-diziam os seus olhos aos olhos negros do espelho. Então, deixou cair as mãos sobre os joelhos e ali ficaram como pequenos cadáveres pálidos e hirtos. ?
Mas, três dias mais tarde, enquanto Hannès Rassiem, em baixo, se preparava para almoçar só, de mau humor como sempre, encontrou Maria que tinha vestido o seu fato verde.
- bom dia, Hannès. - disse ela em voz clara, e o seu sorriso era imperioso - Queres tentar levar-me hoje ao bosque?
Ela pareceu-lhe um pouco corada e as faces dele tornaram-se quentes também.
- Como és gentil e corajosa, Maria! Estou muito, muito contente, sabes?
- Bem. Madalena vai preparar-se para ir connosco. -Madalena? Para que precisas da Madalena? Acho
a sua presença completamente inútil.
- Ela poderá talvez levar a rede.
- Tens medo de mim? Foges-me sempre. Que quer isto dizer, Maria ? Eu posso bem levar a rede e a ti também se necessário for.
Maria mordeu os lábios e partiram. Madalena viu-os afastarem-se juntos com os seus olhos doces e dedicados,
enquanto eles subiam a encosta: à frente, delgada e escura, no sol, a Kouczowska, muito direita, com os braços estranhamente tensos e colados ao corpo; o cabelo acobreado lançando reflexos de oiro vermelho. Atrás, com uma erva entre os dentes, ia Rassiem, arrastando a rede a passos lentos, a custo medidos. No rebordo do bosque, Maria parou para respirar um pouco. O estreito caminho insinuava-se, sombreado, no interior do bosque.
- Fatigada ?
- Não, é apenas falta de hábito. Era daqui que eu te via sempre sair quando estava deitada debaixo da trepadeira.
- Vias-me, realmente? - preguntou Rassiem inundado de inexprimível alegria - Vem, dá-me a tua mão, aqui é preciso que te conduza.
Entraram, em silêncio, na sombra estreita. O solo estalava, seco, sob os seus passos. Nos castanheiros sombrios havia um zumbido. De muito alto, filtrava-se um pouco de azul, com o reflexo amarelo do sol. O caminho era agora a subir, pequenos rochedos aproximavam-se uns dos outros. Hannès Rassiem puxou Maria contra si, ela parou, tomando fôlego.
- É belo! - disse ele, em voz baixa.
Olhou lhe para o rosto levantado, podia ver-lhe o sangue correr sob a pele fina. Olhou para aquela boca e para aqueles olhos. Um sorriso espalhou-se pela fisionomia do tenor.
- Oh! sim, é belo! - repetiu ela - Há tanto tempo que não estou numa verdadeira floresta!
- As verdadeiras florestas são as da Dinamarca: pinheiros, vidoeiros. um dia iremos lá, queres?
Ela abanou um pouco a cabeça e calou se. "Um dia, - pensou - ele disse isto tão levianamente ! Quando será este um dia ?" E, receosa: iImaginará que, a datar de hoje, iremos viver juntos ?" Olhou-o, espiando-o, mas estava ocupado com outra coisa. Diante deles, estendia-se uma clareira coberta pela folhagem clara das amoreiras bravas.
Ao centro, um grupo de vidoeiros, lentos e baixos,
baloiçava-se no ar doirado. Ele pendurou a rede, levantou Maria num impulso e pô-la sob os arbustos.
- Aqui, vais poder repoisar. Está se como em casa.
- disse, com a respiração um pouco curta, quando voltou a colocá-la no chão.
Ela olhou-o, notando-lhe as gotazinhas de suor que lhe perlavam a fronte e reparou ainda no leve tremor dos seus braços estendidos.
- Estou mais pesada ou mais leve, desde. ?
Não terminou. Calaram-se por um momento, pensando ambos em Bruxelas, na última noite que haviam passado juntos. Como aquilo estava longe!.
- Já estamos velhos!-disse ela ao fim dum instante. E era a nota final duma longa cadeia de pensamentos.
Mas Rassiem insurgiu se misteriosamente, pensando: "Não, não quero ser velho e também é preciso que não envelheças. E se as minhas mãos tremem, é unicamente por embaraço, por tu te portares como uma estranha e eu não ousar tocar-te."
A rede oscilava. Das giestas saía um passarinho que corria em larga espiral para o céu. Ia agora muito alto, pequena gota negra no vasto azul. Então ficaram muito alegres.
- Uma cotovia!-disse Rassiem, quási com ternura
- Sim, olha, é uma cotovia! Já viste uma cotovia, Maria ?
- Nunca, e tu ?
- Eu, muitas vezes. Quando era pequeno, dava-me isso tanto prazer! Ouve-la? Ouve Ia? Primeiro sobe, sobe; depois, quando está lá em cima, a sua beatitude estala: então, canta, canta, canta. Ouve-la?
Uma sombra passava, dum lado para outro. Um véu cobriu o rosto de Maria.
- Não, nada. - disse, enquanto ele lhe pegava na mão -Nada. Isto quási, quási me faz mal! Tu podes falar. Vá, fala-me ainda da cotovia; ela sobe, canta, é feliz! Sim, oiço a, é curioso: oiço uma cotovia pela primeira vez. Diz me mais qualquer coisa, Rassiem; OU antes, explica-me de onde provêm as duas rugas que
tens aos lados da boca. São novas, naturalmente não sabes; dão te um ar fatigado; gosto delas. Diz-me como as arranjaste.
O coração de Rassiem pôs se a bater violentamente.
- Não. - disse ele, hesitante - Que te posso contar? Estou cansado de trabalho; um pouco nervoso, apenas. Mas nada tenho a contar te. Quando reflito agora, vejo que nada tenho a dizer-te. Estou aqui com as mãos vazias. Não ficou mais nada senão. as rugas.
Entrou um pouco em si mesmo, depois preguntou, angustiado:
- Diz me, é verdade que tenho rugas ?
Mas, no dia seguinte, quando retomaram os seus lugares debaixo dos vidoeiros, Hannès Rassiem falou de Dima. Contou tudo. A Kouczowka ouviu, deitada na rede, com os olhos fechados, a boca tremendo fracamente. Não disse uma palavra. Quando Rassiem acabou, incerto, numa espécie de interrogação, reabriu então os olhos como para preguntar: É tudo?" Mas disse apenas:
- Escuta, a cotovia volta a cantar!
Então, no meio de todo aquele esplendor que vinha do céu azul, ele pôs a cabeça nos joelhos da mulher e murmurou:
- Maria!
Depois deste episódio, enquanto, pela tarde. Maria se encontrava estendida debaixo da trepadeira e Rassiem se embrenhava no coração da floresta, acontecia lhe ter menos vezes vontade de chorar. Ficava ali, de olhos muito abertos, com o ar de alguém que teve sede durante muito tempo e bebeu por fim. Tantas coisas davam felicidade! As gavinhas da vinha, tremendo ao sol, as uvas inchadas, transportadas como pedras preciosas. Os raios de sol agarravam-na como mãos quentes; a dança dos mosquitos, na luz, palmas inclinadas pelo vento, perfumes violentos, de verão, saindo, ardentes, dos prados, tudo isto vivia e insuflava vida.
Tempo depois, ela recebeu a visita dum minúsculo "Qualquer coisa, de cabeça loira, envergando um fatinho
vermelho, berrante, que surgiu um dia, de gatinhas, dum canto da casa. Curioso, pôs se dificilmente em pé, gritando, e, pautadamente, deu uns passos à frente.
- bom dia! -disse a Kouczowska, admirada -Quem és tu? Anda, vem cá, animalzinho!
O "Qualquer coisa" deixou se cair pesadamente sobre as mãos, levantou as perninhas desajeitadas e pôs-se a caminho para lhe ir fazer companhia. Quando chegou em frente dos pés de Maria, emitiu no seu calão uns sons incompreensíveis mas amigáveis, e meteu ternamente a carita nos braços que se estendiam para ele. Ela pô-lo no colo, onde ele se instalou sem cerimónia, confiante, palrando com entusiasmo, agitando os membros redondos e vivos. Emanava um calor do seu pequeno corpo, um calor doce, estranho e familiar ao mesmo tempo. Mãos impacientes tocaram o rosto da convalescente; ela agarrou-as ternamente, como se fossem flores.
-Lindas mãos, -disse -lindos dedinhos, que procuram? Pequenito, como te chamas? Chamas te Wolfgang?
E, de súbito, lágrimas inesperadas perlaram os seus olhos.
- És tu, Wolfgang? Tu vives?-preguntou, quási sem voz.
- Mamã. - respondeu o pequeno, e a cabecinha redonda bateu contra o peito de Maria, com intenção de adormecer.
A Kouczowska ficou na mesma posição, imóvel e silenciosa. Conservava baixas as pesadas pálpebras, e havia nela como que vergonha. Depois, sentiu se feliz; uma quente felicidade palpitou-lhe quási debaixo da pele.
À noite, informou-se junto de Madalena, acerca da criança; chamava-se Leonardo, e era filho natural da filha da camponesa, criada da estalagem de Merano.
- Não tem interesse. - disse a Kouczowka, desiludida.
No entanto, às escondidas, conservava em segredo a criança ao pé de si, brincando com ela debaixo da trepadeira.
Quando Rassiem voltava da floresta, encontrava-a mudada; no seu rosto, havia um brilho novo.
Continuava a ser verão; todavia um vapor outonal flutuava já sobre as coisas. As uvas caíam pesadamente; a sua polpa escurecia todos os dias. No centro das espaldeiras que rodeavam a casa, ofertavam-se pêssegos cor de carmim; nas clareiras dos bosques, os muros luziam como laca negra. O ar estava velado de azul. Certo dia, um fio branco trazido pelo vento, agarrou-se ao braço de Maria.
- Um cabelo da Virgem! ()-disse ela.
Rassiem, que caminhava junto dela, nos prados, acariciou-lhe docemente a mão:
- Sim, um cabelo de Maria.
com esse nada ela corou, pôs a mão na do marido e gostou de dizer:
- Como estás queimado! Estás óptimo de saúde. Ele conservou lhe a mão, apertada:
- E tu, Maria ? Olha para mim.
Pararam, olhando-se em silêncio, depois continuaram
o seu caminho. Muito tempo depois, ele acrescentou:
- Sim, tens boa cara, os olhos claros. E o que impressiona, Maria, é que te tornaste muito mais simples, compreendes? Não sei explicar-me de outra forma.
Dantes, nunca podia compreender-te, era-me impossível ver através de ti! Tudo era complicado, inesperado; acontecia sempre o que eu não esperava. Nunca sabia se estavas contente ou triste. Foste sempre dissimulada. Não querias que eu te compreendesse. Mas agora.
- Agora, Hannès!
-Agora, tornaste-te bela.-disse ele, de forma imprevista - Maravilhosa e encantadora, Maria. Só é preciso que aprendas a falar comigo a respeito de certa coisa.
-Qual?
(1) Em alemão: Altweibersommer: Verão de S. Martinho. Literalmente: outono da mulher. Ou então: cabelo da Virgem.
-A Madalena disse-me: "a senhora chora muitas vezes, de noite. Oiço-a soluçar."
- Mandas me espiar pela Madalena?
- Não, espiar não. Gosto apenas de saber como te sentes, desejaria saber o que te desgosta.
- Não sabes? É preciso ainda falar no assunto ? disse ela em voz estranhamente rouca-Não, tu não sabes, tu não podes compreender nunca o estado em que se encontra um outro ente: deixa-me Hannès, só te conheces a ti próprio.
A boca, que tremia, tornou-se altiva. Ela fechou-se de novo.
- Maria, julgava-te mais perspicaz, Não compreendes o que há entre nós dois? Tudo mudou desde as férias, tudo mudou e é melhor assim. Mas tu escondes te, fechas te à chave e eu fico no exterior, não podendo pronunciar a palavra que quero. Maria!
- Volto para casa. - disse ela, amável e um pouco nervosa - Sinto me fatigada, desejo ficar só.
Rassiem, com o rosto pálido, afastou se para lhe deixar o caminho livre. Durante a refeição da noite, falaram do tempo. Rassiem fumou numerosos cigarros; na manhã seguinte, empreendeu uma excursão à montanha, deixando, durante umas horas, Maria sozinha em casa. Quando voltou, encontrou a inexplicavelmente mudada, gentil, quási radiante. Perplexo, fechou se no seu quarto, muito atormentado. Quando desceu, o dia baixava já. Maria estava sentada em frente da casa; poisou sobre ele um olhar distraído, ardente e ávido ao mesmo tempo. Ele estremeceu, pois já conhecia esse olhar.
- Maria, por acaso cantaste ? - preguntou precipitadamente.
Ela sobressaltou-se, passando a mão pelo rosto. Dir-se ia que punha uma máscara.
- Se cantei ? Infelizmente já não posso cantar! Não. Li.
Ele agarrou a mão que pendia segurando um livro
- a peça dum jovem autor.
- É assim tão absorvente ? - preguntou, desconfiado.
- Talvez. De resto, parece-me que não estou distraída nem absorvida, Hannès.
- Mas os teus olhos, dize?
- Ah! peço te, não faças pesquisas psicológicas. Vem para junto de mim. Madalena vai trazer-te chá e leite. Sim, também podes fumar.
Ele sentou-se, impaciente, observando-a enquanto ela servia o chá. Tinha se tornado distante: era a Kouczowska da alta sociedade. Ninguém a podia penetrar. Conversou, sorriu, com o seu sorriso delicado de grande dama, ofereceu lhe o chá e os bolos com essa graça que ele conhecia havia muito. Reparou que Maria lhe fazia pela terceira vez a mesma pregunta e sobressaltou se.
- Não te parece que esse papel numa peça de teatro seria mil vezes mais interessante do que a Carmen e a Nedda? Criar o que há lá dentro! Representar. i Que homem, aquele que escreveu isto!
- Deve ser uma grande estopada. -disse ele, brusco, olhando para o ar.
Ela aproximou se, subitamente. A colher de chá teve, durante um segundo, um férreo tilintar; passava se qualquer coisa de absolutamente insólito. Efectivamente, dum canto da casa, uma espécie de menino encarnado e feliz surgia, soltando gritos de júbilo. Rolou o mais depressa que pôde ao encontro deles.
- Mamã! - gritou a criança esforçando se por se erguer nas perninhas nuas e gordas, até aos joelhos da Kouczowka. Ela corou violentamente, e, por um minuto, simulou indiferença. mas a pequena cabeça estava já junto do seu pescoço e as mãozitas dirigiam-se lhe para o rosto para a acariciarem. Hannès Rassiem poisou a chávena do chá, ergueu as sobrancelhas e preguntou, completamente abismado:
- Que. que é isto ?
- É. é o Lenzchen. Faz parte da casa. Não sei o que ele me quere, é isso que pregunto a mim mesma.
- Mas ele já te conhece muito bem. É tão familiar. Como foi isto?
-Ah! sim, ele conhece-me bem, com certeza que
me conhece. Mas eu pregunto como. "Vá, Lenzchen, vai ter com a avó."
Lenzchen não queria. Sentia se muito feliz! A camponesa apareceu, pegou na criança e levou rapidamente para casa aquele fardozinho soluçante que parecia mergulhado num grande desespero; depois, voltou, toda confusa:
- É porque a senhora é muito boa, brinca tanto com ele! i As crianças percebem logo quem gosta delas. iO Lenzchen considera a senhora como sua mãe! Queiram desculpar.
E desapareceu.
- Sim senhor, sim senhor! - disse Rassiem reacendendo o cigarro que se tinha apagado depois da aparição de Lenzchen.
- Porque me olhas dessa maneira ? - preguntou a Kouczowka.
Hannès Rassiem tinha os olhos muito abertos. Deixaram de falar.
À noite, depois da refeição, Rassiem deu o seu passeio habitual; seguiu a estrada que subia e onde as luzes vermelhas de São Leonardo cintilavam. Caminhava lentamente, profundamente absorvido nos seus pensamentos que lhe punham nos lábios um riso profundo e silencioso, É este o teu segredo - pensava ele -tinhas os olhos úmidos, por isto! Maria, minha querida mulher, minha nova mulher! Como agora te conheço: tu, os teus olhos, e o que significa a tua boca quando treme."
A bruma subia dos campos. Deu meia volta, como se o empurrassem, ou se tivesse asas. Depois parou e riu interiormente. Em seguida, seguiu o seu caminho, correu, correu, rindo sempre, até casa. O quarto da Maria tinha a janela aberta e projectava uma luz vacilante sobre o jardim. Ouviu-se o som duma voz. Ele aproximou-se com precaução, subiu a uma grade e espreitou para o interior.
No quarto, Madalena estava de pé, escovando a pesada cabeleira de Maria. Uma vela reflectia-se em qualquer parte, projectando a sua luz agitada num estreito círculo.
- E porque não há-de poder ser ? - preguntou a Kouczowska, mais à sua imagem no espelho do que à criada de quarto. - Sempre fui boa actriz, não é verdade? É o principal. Para isso, a minha voz deve bastar, Não achas que deve bastar, Madalena?
- com certeza. De resto, a sua voz tem muita prática.
- Não, não. Tenho muito que aprender, tudo a reaprender. Não basta tornar-me actriz, é necessário ser perfeita. É preciso que, ao ouvirem-me, digam logo: Esta é a Kouczowska! Sim, quero triunfar em tudo e contra tudo!
Endireitou se com a cabeça inclinada para trás.
- Quero-o! É preciso que isto aconteça.- disse ela. Hannès Rassiem sentiu uma dolorosa mordedura,
por um instante; como em sonhos, pareceu-lhe que era Dima quem falava naquele quarto: Dima - a esfaimada de glória!
- Esta peça interessa-me.-continuou a actriz -São muito meigas, estas mulheres; no entanto, trazem em si um destino. Desde a primeira cena que isto se pressente. Depois, basta desenrolar o filme. E é tão verdadeiro! Na Ópera, sabes, é tudo convencional, a gente fica fria. Representar é isto!
Os seus olhos tornaram-se ausentes e distantes. Pegou no livro.
- Já sei o primeiro acto, creio que não está mal. Depois espreguiçou se, como que aliviada, e deixou
pender a cabeça.
"Ó Deus, voltar ao teatro, tornar a ver-me em cena, voltar a representar! Não posso viver sem isto!"
Rassiem saltou do muro e fugiu. O ar fresco, da noite, bateu-lhe no rosto, que uma cólera surda avermelhava. Estava tão furioso que agarrava as árvores pelos troncos e as sacudia, arrancando ervas do chão. Endireitou se, brandindo os punhos acima da cabeça.
Sentiu uma dor cruciante no coração, correu, como se fugisse, afastando-se da aldeia. A meio do caminho, parou, tomou alento, olhou para o céu, onde as estrelas se moviam sobre ele e murmurou : Pobre ! Pobre!
Pobre ! Depois, impulsivamente, voltou para trás e encontrou se em frente de casa, encostado à parede.
Maria estava agora estendida na cama, com os braços cruzados atrás da cabeça, olhando para o teto. Declamava qualquer coisa, achava, sem dúvida, que não estava bem, pois repetia claramente, articulando com cuidado. Depois recomeçava, fraquejando ainda para o fim. E mais, e ainda mais. Bruscamente, o seu rosto tomou uma expressão diferente, porque Madalena entrou com um copo de leite.
- Está bem, Madalena. Boa noite. O sr. Kammersánger já entrou?
- Ainda não.
- Obrigada, vai-te deitar.
Madalena saiu. Maria ficou ainda estendida, por um momento. De súbito, ergueu-se, pôs estranhamente as mãos em cruz sobre o peito, como para o auscultar. Rassiem fitava-a, com o olhar fixo e os lábios secos depois, todo o seu corpo ficou hirto: a Kouczowka cantava!
Vagarosamente, prudentemente, agarrou no tom-a nota era um pouco enrouquecida e dura, como se uma voz estranha estivesse junto da sua. Então, alargou o peito e deixou a nota crescer, crescer: durante um segundo, vibrou tão forte como um raio. Depois rachou, acabou se. A Kouczowska cerrou os punhos, com os olhos febris, mas recomeçou a nota, tornou a recomeçar, mais uma vez, mais uma.
Rassiem sofria uma dor nunca vivida. Enterrou as unhas na parede, o que produziu um som triste e arrepiante. Caiu caliça, que se esfarelou sobre uma moita.
com um movimento de rins, saltou pela janela e encontrou se, de pé, em frente da mulher. Fez no ar, com os braços, uns movimentos desordenados, tentou recuperar a respiração, depois gritou tudo o que o abafava:
- Proíbo-te de cantar, - clamou - ouviste ? Proíbo te, proíbo te! É preciso que não cantes, não, não, não! Não consinto que te tornes actriz. Não consinto! já não tens nada a fazer no teatro! É preciso que sejas
minha mulher, vê se compreendes isto: minha mulher Não, tu não compreendes . Não sabes o que é uma mulher. Estragaste toda a minha vida com a tua ambição, com a tua arte maldita, maldita! Pertences a toda a gente, menos a mim! A mim, nunca! Tens me feito sofrer, Maria Como tu me tens feito sofrer! Tornaste me tão ciumento que desejava encher-te de pancada. Quando eu tinha por ti loucos entusiasmos, era então que te tornavas indiferente. A condessa Kouczowska, a célebre Kouczowska !
Fazer caretas!. iOh! sim, eu também as posso fazer, representar uma comédia! i Mas não o faço nem contigo, nem com a última das mulheres! com todos, eu sou eu. Mas em face de ti, sou um inferior, tenho sido muita vez como que um belo criado com o qual não se conversa mas com quem, depois do teatro, se dorme numa cama. Maria, amei-te tanto! tanto . tanto!. Não me imponhas a tua vida de teatro, não. antes matar-te!
Grosseiro ? Não, não sou grosseiro. Toda a gente me olha com censura e diz: "Rassiem? É um malandro, um tipo reles, um bêbedo. Maria, - acredita-me finalmente - não é verdade, eu não sou mau! Apenas tu não soubeste reter-me, nunca foste minha mulher. Podias ter feito tudo de mim! Vê só nestes últimos tempos. Tenho bebido? Tenho olhado para outras mulheres? Tenho cometido acções ordinárias ? Afastei de mim tudo, tudo, o teatro, a cidade, a Dima. Dima! E esta, tinha sido muito para mim. muito, Maria. Ando à tua volta em bicos de pés, esperando sempre que voltes para mim. E, deixa que te diga a verdade: quando perdeste a voz, eu fiquei contente, sim, contente! Pensava: Agora, Maria, vais pertencer-me, vais ser minha mulher, vais ser verdadeiramente minha mulher; vais ajudar-me quando vierem as minhas crises, pois tu não sabes como isto é. uma verdadeira doença, Qualquer bailarinazita pode ajudar-me, qualquer prostituta, nas minhas horas más, mas tu não! Tu és fria, altiva, impiedosa, tu não queres saber de mim. No entanto, lembra-te! Eu não fui sempre assim. Ao princípio, recordas-te? Que grande
garoto simples e estúpido eu era! Meu Deus, como fui feliz quando te possuí! Incrivelmente, puerilmente feliz ! Tu também, tu também, Maria ! Pensa nos nossos primeiros tempos: Itália, Paris, a América!
E quando nasceu o nosso filho, lembras-te? Mas já tu não eras minha mulher. Puseste-te a cantar como uma insensata, levaste o nosso filho para o Brasil, para um mau clima. Então, tudo correu mal, foi então que, com todas as tuas complicações, os teus requintes, estragaste a nossa vida. Compreensão, com certeza que a tens, e também podes fazer mal com a tua compreensão, como com uma faca. Mas ajudar, não. Bater-te, eis só o que eu queria: bater-te!
E ainda ultimamente, eu julgava que tudo ia correr bem. tenho sido tão delicado, tão gentil, o mais delicado que podia ser! Sentia que tu tinhas um segredo, matei a cabeça para o adivinhar, atormentei o espírito. pois não sou tão inteligente como tu. Sabes o que eu, pobre idiota, imaginei? Esta noite, corri como um louco pela estrada, rindo e chorando ao mesmo tempo: "É um filho o que ela quere, um filho!" Imbecil que sou, três vezes idiota! Eu pensava: "Agora tudo há-de correr bem!" E encontrei-te na cama a tentar cantar! com a sua voz quebrada, a senhora queria cantar!! A senhora quere tornar-se actriz. Sempre o maldito teatro metido na cabeça, sempre essa miserável cena, os vestiários mal cheirosos, o ciúme odioso das colegas, os adoradores, de cuja boca trasbordam louvores: eis do que tu precisas, é isso o teu mundo! O nosso mundo! Entretanto, há florestas que se estendem, campos e um céu puro, mas isso esquece-se! Pois bem, Maria, não, acabou-se o teatro! Quero ajudar-te, quero apertar-te muito contra mim, guardar-te e ter um filho! Não voltas ao palco, senão mato-te, mato te.
Ele pegou-lhe pelos ombros e sacudiu-a: o suor perlava-lhe o rosto dum branco de mármore. Sentia-se aliviado e teria gostado de clamar, durante horas, o seu nervosismo; era para ele como um banho numa torrente impetuosa e aniquilado". De repente, viu contra a sua
face, à chama fortemente agitada da vela prestes a apagar-se, o rosto pálido de Maria, transformado, encantado... Sentiu, de repente, nas mãos, o doce calor dos seus ombros. Uma vertigem tumultuosa apoderou-se dele, sentiu enfraquecerem-se-lhe os joelhos...
- Não me olhes assim, assim não!... Oh! como tu me olhas, Maria! Fiz-te mal ?-murmurou ele, aflito, com a garganta cerrada.
Insensivelmente, ela puxou-o para a cama. A cabeça de Hannès bateu na madeira. Então, as mãos e os lábios de Maria colaram-se-lhe às fontes e aos cabelos. Ela pronunciou sobre ele palavras em voz baixa, palavras que não compreendeu, puxou-o contra si e ele ouviu a sua própria voz, estranha, muito distante, murmurando num transporte de felicidade, vertiginoso, aliviante: "Tu pertences me, pertences-me, esperava-te, a ti só, só a ti, sê enfim minha mulher...
A vela apagou-se, tremendo. Diante da janela baloiçavam-se ramos e estrelas.
- Agora tudo está arranjado. - dizia Maria - Sim, agora tudo vai correr bem. Vamos, enfim, ser felizes...
Era como um soluço, como uma grande, grande alegria, como uma libertação..
III
Certa manhã, cedo, apresentou-se um homenzinho que parecia talhado em madeira. com formidável respeito, anunciou que estava em depósito uma carta registada, na aldeia, para o senhor. Era preciso que o senhor a fosse procurar ao correio, que levasse um papel provando que era o senhor mesmo, e então, receberia a carta.
- No correio ? - preguntou Rassiem, preocupado Uma carta registada? Como? Ninguém sabe a minha direcção! Como pode alguém escrever-me ?
- Talvez Bayer!
- com certeza Bayer, o bom Bayer. Naturalmente quere pregar-me algum sermão, esse belo rapaz. Mas eu já não preciso de sermões. Proibi-lhe que me escrevesse: não irei buscar a carta. Não falemos mais nisso.
- Mas. sim. Talvez.
-Não quero, de modo nenhum, receber a carta. Seja quem for que venha ou me escreva. Não posso ler tudo que apetece escrever àqueles a quem proibi de o fazer. Portanto.
Maria lançou sobre ele um olhar profundo:
- Estás a brincar, Hannès,- disse ela, sorrindo com
calma.
-Eu? E porquê? Talvez tenha medo. Nós somos
tão felizes, querida, que tudo me atemoriza. Nada deve entrar aqui. É preciso que nem venha uma carta, Maria, nem mesmo uma carta. De facto, pode ser da Ópera. - acrescentou, depois de reflectir.
- Da Ópera. - repetiu Maria em voz muito clara; não era preciso que ele notasse como isto era custoso de dizer. "Para que serve vendar os olhos,- pensou ela, de súbito -o mundo está diante da nossa porta e espera!"
Rassiem passou a manhã entre o jardim e o bosque, como de costume; somente falou mais e deitou fora muitos cigarros meio fumados. Um pouco antes da refeição apareceu vestido, de chapéu e bengala, na sala de baixo, e disse num tom que afectava indiferença:
- Ainda assim, sempre vou buscar essa interessante missiva.
A Kouczowska sorriu, mas os olhos velaram-se-lhe sem querer; ensombraram-se mesmo quando ele deixou cair sobre si o portão do jardim .
O caminho estendia-se, branco e cheio de sol. Já as pequenas andorinhas se juntavam nos fios telegráficos. os pensamentos de Rassiem confundiam-se, ardentes e dolorosos, A carta era de Dima, tinha a certeza! Só uma mulher apaixonada pode descobrir alguém que se esconde, jEla descobrir-me-á mesmo debaixo da terra, escavando, essa garota. Devia ter-lho proibido. Devia ter-lhe escrito. Mas escrito o quê? Isto não se escreve."
A pequena aldeia brilhante de alvura, alongava-se sob o sol do meiodia. Cavalos nus pastavam por trás duma sebe, muitos dormitavam sob as suas redes vermelhas cujas campainhas tilintavam. Um braço de ferro forjado, mantinha, à maneira de tabuleta, uma trombeta de postilhão, por cima da larga porta da hospedaria. Ao lado, uma placa apagada, falava de sociedade de jogos, de venda de tabaco e selos, de estação de correio e telégrafo. Um barómetro com a temperatura do ano anterior via-se colado sobre uma porta que estava fechada à chave. Apareceu um garoto que convenceu Hannès Rassiem a entrar na sala da estalagem.
- O empregado do correio chega às duas horas; até lá a estação fica fechada. O senhor quererá beber vinho?
- Até às duas horas, meu rapaz? Mas, minha mulher espera-me. -disse Rassiem, nervoso.
O rapaz deixou-o só, sem responder. Uma semi-claridade fresca e áspera penetrava pelas janelas rodeadas de heras; sobre a mesa de madeira enegreciam velhas nódoas, antigos círculos deixados pelos copos; reinava ali uma atmosfera de adega e de vinho. Na parede, estava pendurada uma guitarra; um piano dormia sob uma cabeça de cabrito montês e espalhava o aborrecimento da imobilidade e da solidão.
Rassiem olhou-o, com cólera, voltou-lhe as costas, depois sentiu se discretamente atraído para ele. Desconfiado, examinou-o de lado, teve um riso breve pois não parecia que tinha medo? E dava já um primeiro acorde. O piano gemeu um pouco, uma sacudidela abalou lhe os velhos ossos, o pedal gemeu também e, lentamente, a coisa pôs se em marcha. Sem dar por isso, principiou em dó maior, depois, amavelmente prestou-se a algumas passagens falsas para chegar a qualquer coisa de semelhante aos Mestres Cantores, e imediatamente, com ar despreocupado, afastou se depressa. Rassiem, de pé, acariciava as teclas com indiferença sem olhar para o piano:
"No lar tranquilo ()- disse, de súbito, o instrumento, claramente, mas sem insistir. Depois recomeçou, encorajado :
"No lar tranquilo, Pelo inverno."
"Parece-me que este velho caixote está baixo uma terça. -pensou Rassiem -Nunca isto foi um fá sustenido."
Concentrou a voz na garganta, tocou primeiro sem cantar; depois, muito baixo, começou:
"No lar tranquilo, pelo inverno. Naturalmente!
(1) Am stitten Herd, zur Winiersztit.
Está baixo quási dois tons! vou tentar transportar, "No lar tranquilo, pelo inverno". Agora está bem. Quando a minha casa e o meu coração estão cobertos de neve. Não, é impossível cantar piano, quando não se faz nada há dois meses. Para a frente, vou largar a voz, de resto, ninguém me ouve. Meu Deus, como estou mal disposto! - Quando a minha casa e o meu coração estão cobertos de neve".
O relógio suspirou, depois um cuco saiu, olhando para a direita e para a esquerda, soltando o seu apelo: Cúcú! Rassiem encontrava se sentado ao piano, cantando forte, falando e resmungando entretanto. Quando, ao fim de um quarto de hora, o cuco reapareceu, Rassiem estava inclinado para a frente, com o ouvido atento, repetindo sempre a mesma nota em voz ensurdecida sobre o a e o U. Os seus olhos eram os dum caçador. À uma hora a cadeira estava caída diante do piano e Rassiem andava dum lado para outro, injuriando-se. Desta vez, o cuco ficou muito tempo fora para ouvir o relógio que tocava uma linda áriazinha.
"Burro que tu és,-pensava Rassiem - que parece agora a tua voz? O repoiso fez-te bem, é certo, duma forma geral, mas serás capaz de cantar ? De resto, tens outra coisa na cabeça que não seja greda? Ainda sabes colocar a voz? Como? Quê? Tu, assassino de Wagner, meu animal!"
Aí, o cuco teve de voltar para a sua pequena casa, embora muitas outras coisas acontecessem. Às duas horas menos um quarto, Rassiem estava de novo ao piano, desta vez absolutamente instalado, e cantava, nem muito baixo nem muito alto: "No lar tranquilo.
Às duas horas, o rapaz anunciou a chegada do funcionário e pôs um novo copo de vinho diante de Rassiem. Este, arrancado ao seu trabalho, balbuciou qualquer coisa, levantou-se e fez o nó da gravata. Bebeu o vinho dum trago, resmungando contra si próprio; tinha sede como um amador, a garganta estava fatigada e seca. Cego pelo sol, cambaleou pelo pátio até ao correio. No último segundo, enquanto o empregado enfiava a mão calosa na saca dos registos, o peito de
Rassiem encheu-se de ruídos. A mão saiu e estendeu-lhe, com mil cerimónias, um grande pacote de envelope amarelo. Rassiem lançou um olhar sobre a direcção e soltou um profundo suspiro, ao mesmo tempo de alívio e de horrível decepção. O seu nome, seguido do seu título, estava ali na letra inimitável e reconhecível entre todas, do seu criado de quarto, Berger, em curvas das mais harmoniosas. Apalpou os rebordos do embrulho que parecia conter uma partitura de música: um novo papel? As palpitações de coração recomeçaram. Depois, pensou de súbito que Maria o esperava havia horas, e através do calor abrasador do pesado dia, retomou o caminho o mais depressa que pôde. Quási sem fôlego, atingiu o monte, deixando a aldeia quente atrás de si. Entre as árvores de fruto, semeadas pela colina, além onde a encosta descia de novo para o próximo vale, uma delgada figura branca surgiu, encostada ao azul do céu. E Rassiem galgou o último bocado de caminho a passo de gigante.
- .Maria!
-Meu Deus, como te demoraste! Julguei que não voltarias. -disse, sorridente, apoiando-se ao seu braço Que fizeste durante tanto tempo? Que trouxeste do correio ?
- Nada de importante. - disse ele com a consciência pouco tranquila - Música ou qualquer coisa parecida. Veremos isso daqui a pouco, se quiseres.
- Música ? com muito gosto. - disse Maria amavelmente enquanto se lhe comprimia a garganta.
Depois da refeição, o embrulho amarelo fez a sua aparição na varanda. Maria olhou para as mãos de Rassiem que queriam absolutamente ocultar o seu nervosismo; mas acabaram por fazer saltar os cordéis e os lacres, rasgando impacientemente a última parte do embrulho. O papel protestou por um som de lamento e caiu no chão. Em cima da mesa jazia a velha partitura, tantas vezes folheada, do Tristão e Isolda. Surgiram algumas cartas que Rassiem apanhou num movimento rápido e espontâneo e pós ao pé de si. "Nenhuma de Dima, Deus louvado! Nenhuma de Dima!"
- Traído - disse Maria. Docemente, docemente, acariciou as páginas, enquanto os seus olhos e a sua boca começavam a sofrer.-Sim. é o Tristão.
- Deixa essa velha partitura, Maria, peço-te, deixa. Não quero que nada de teatro entre aqui. Não deve ser. vê te ao espelho. não, não deve ser.
- Que há a respeito do Trisãão, Hannès ? Lê as tuas cartas. Quem te escreve ?
E como ele lhe lançasse um olhar incerto e singular:
- Perdoa se fui indiscreta. Não queria. não pensei.
- Maria! Temos ainda segredos? Vamos! Esta é de Berger, atenção!
"A Sua Muito Alta Excelência, o Muito Ilustre sr. Kammersãnger" escrevia Berger, e as suas maiúsculas eram, na verdade, obras primas de caligrafia.
"Como não me deu a honra de me confiar a sua estimada direcção, preguntei-a hoje mesmo ao sr. professor Bayer, que lhe manda lembranças e pede para lhe dizer que não devemos tornar a cair na bebida e em outras ignomínias, que devemos repoisar e beber leite; então, tudo correrá bem, e ele beija respeitosamente a mão à senhora,
A menina, ou por outra a muito digna fraulein Dima, veio várias vezes cá a casa preguntar pelo sr. Kammersãnger. No entanto, muito delicadamente, não lhe forneci nenhuma informação. Assim, ela ficava na rua, diante do jardim, onde eu a via de noite, na obscuridade, quando ia fechar a grade. Na casa de banho, o chuveiro escangalhou-se e um dia inundou tudo; então teve que ser consertado. Veio algum correio e o sr. Gelfius escolheu o que lhe devia ser enviado. Ele também me informou, em resposta a uma pregunta minha, que a menina tinha levado a partitura do Tristão. Hoje ela chegou-me às mãos por intermédio do sr. Gelfius com o pedido de a fazer seguir até ao sr. Kammersànger. As roseiras floriram pela segunda vez, mas pouco. Terminando, permita-me que beije respeitosamente a mão
da senhora; a cozinheira ficou doida de contente quando lhe dei parte da minha conversa com o sr. professor Bayer e ambos estivemos de acordo sobre a grande felicidade que será para nós ver voltar tudo à boa ordem. Por isso, já fiz todas as limpezas e tenho a grande honra de me assinar. Muito dedicado a V. Ex.a
Berger
P, S. A caixa da caracterização está quási vazia; mando-a completar pelo cabeleireiro?"
- Então -disse Rassiem profundamente divertido não é um tipo? Que estilo! Que rodeios elegantes! Ninguém o poderia imitar. Ah! agora, o Gelfius. Que quere ele com a sua música?
"Querido incomparável!
Terá V. sido engolido pelo Nibelheim? Ou terá sido o diabo que o levou? Quem o pode ter tragado, para a gente não saber nada a seu respeito?
Ouvi dizer que, quando regressar de férias, vai ter muito que fazer com a nova interpretação do Tristão. Como sou para si uma verdadeira mãe, pensei e descobri que tem, no terceiro acto, passagens absolutamente deploráveis que é preciso estudar a fundo se não quere ser censurado diante do director. Porque me parece que as coisas se vão complicar com ele. Numa palavra, amigo, "a bebida, a bebida, a terrível bebida continua, não é verdade?" Consegui, depois de gastar muitas palavras, obter a partitura da Dimatter, que parece muito, muito infeliz. Disse-me que, durante as últimas semanas tem trabalhado bastante na Izolda. Não, a cara dela não me agrada e ainda menos a maneira como ela passeia por toda a parte com a sua partitura, com todas as anotações. É por isso que eu prefiro, sobre o assunto, recolher-me a um silêncio discreto.
Passei um verão muito agradável a nadar no Danúbio, a tocar muito Bach; depois reli Edda e trabalhei também em qualquer coisa de que não vale a pena falar ainda. Visitei muitas vezes a sua aluna Kerckhoff e seu
pai: fizemos música e aprendi o que é a atmosfera duma boa casa. A propósito, ela encarregou-me de o cumprimentar, mas parece-me que o desejou fazer pessoalmente, pela vista de olhos que deitei ao seu correio. Havia lá também cartas de agências, ofertas de vinho e coisas parecidas, que não me pareceu oportuno fazer remeter para o seu misterioso retiro.
Deve ter lido nos jornais (a menos que esteja em Espanha - Deus sabe onde? - ou em qualquer parte distante e inacessível, et caetera) que "o Conservatório abre as suas portas em 12 de setembro" - o que é uma linda frase que deve ter feito suar bastante o secretário.
A Ópera começa a 18 de agosto com o Fidélio. S. que canta o papel de Floreston, irá com certeza, melhor que você. Oh! Mestre! Mestre sublime! Não dá um salto ao pensar nisto?
É assim que lhe deseja excelentes férias o seu
Gelfius,"
Rassiem voltou a carta entre os dedos, releu algumas passagens e atirou-a para cima da mesa.
- Insípido! - disse ele - O seu espírito é estúpido e de mau gosto, E que inépcia de me mandar a partitura! Porquê? Porque ouviu falar duma nova interpretação! Porque a tirou ele à pequena? Que quere que eu faça aqui com a partitura? i E este ridículo gracejo a propósito do Fidélio! É então a dezoito . Meu Deus, já a primeira representação!
Enquanto lia, Maria olhava-o com extraordinária acuidade; as suas pálpebras e a cabeça inclinavam-se cada vez mais.
- Maria !-preguntou Rassiem, aflito - Que foi? Tens alguma coisa ?
- É infantil, - murmurou ela - infantil. Não é nada, apenas esse velho mundo tão esquecido que ressurge. Não tínhamos pensado mais nesses dois bons rapazes : Berger e Gelfius! Oh! sim, Gelfius! E a cozinheira está contente! E as agências escrevem-te! E
as pequenas continuam a andar atrás de ti! E depois Tristão! Fidêlio! Sim . (Olha em silêncio as suas mãos postas lassamente sobre os joelhos). Depois essa Dima que espera, de noite, na rua, que estuda tanto, que anda com mau parecer. Posso imaginá-la; vejo-a melhor que pelas tuas descrições. Ela fica o dia inteiro na rua, fixando a casa, na esperança de te ver, talvez. Depois, informa-se junto de Berger que delicadamente não lhe dá nenhuma informação. Volta em seguida ao seu lugar e olha até à noite, até que seja noite, até que Berger feche o portão. e ele vê-a ainda. Então, desesperada, vai para casa e estuda a Isolda. Tem voz?
- Sim. A mais bela voz que conheço.
- A mais bela. - disse a Kouczowska.
A artista estava sentada. Muda, considerava as mãos lassas. Isto fazia-lhe cruelmente mal. Mas não, não queria chorar, tinha prometido ser corajosa, não pensar no teatro nem no canto, não ter mais desejos não, nunca mais .
- Se, ao menos, não tivesse as mãos tão vazias! murmurou ela.
Rassiem sobressaltou-se, olhou-lhe para os olhos e ajoelhou vivamente ao pé dela.
- Maria! Ora vamos, Maria! Serás tu ciumenta ? No entanto, nunca o foste!
"Talvez dantes o tivesse escondido, - pensava ela - era rica ; agora, tenho as mãos tão vazias!"
E Rassiem continuou, querendo convencê-la:
- Quanto à pequena, tu sabes, não é verdade, está acabado tudo quanto houve entre mim e ela. Meu Deus, que estranhas ideias vais buscar! Ela espera em frente da casa e olha. pois bem, que espere, se isso lhe dá prazer. Podes imaginá-la? É curioso. eu, vês tu, não posso, não, é verdade, eu não posso.
Fechou os olhos um instante, e de súbito, Dima surgiu. "Dima, há tanto tempo esquecida -tu estás aqui de pé sobre o rebordo do lago, morena e preciosa como um bronze, tão perto, tão distinta que as mãos sentem o teu calor."
- Ela não te escreve ?
- Não. Esta não escreve. É dura e desdenhosa. Vamos, esqueçamo-la. Olha, aqui está qualquer coisa da pequena Elis. É tão gentil, esta é uma verdadeira criança, sabes ? . Atenção, é com certeza uma autêntica carta de colegial. Pronto, isto afasta ideias tolas. Vê como é engraçado : ela começa absolutament sem preâmbulos, vai direita ao assunto.
Escrevo-te todas as noites, longas, longas cartas; depois queimo-as. São sempre muito longas e tenho vergonha. Escrevo na incerteza, sei apenas que. Penso então num quadro, vejo então uma criança, uma mulher nua e acorrentada; ao pé dela está um cavaleiro de viseira baixa. Não sei de quem é este quadro, mas persegue-me há muito tempo. Ainda aqui está, agora; tenho a impressão de estar nua, mas tu fechaste a tua viseira e eu não sei de ti. Só isto: amas-me? Então, volto a pensar na noite de Idhlenberg e lembra-me tudo, tudo, tudo. E queria cantar a toda a voz: sim, sim, sim!
Vais ainda chamar me pequena romântica e tornar a ser o sr. Kammensánger, o sr. professor, o célebre Rassiem - numa palavra: um senhor estranho. E eu tenho vergonha porque os meus pensamentos dizem: tu. Não te zangues: pois na verdade beijaste-me.
Desde que a mamã morreu, a nossa casa grita de silêncio. Sim, não posso exprimir-me doutra forma. Estou muito só. Apenas tenho por companhia os meus pensamentos, os meus sonhos, as minhas recordações e tudo leva sempre o mesmo caminho. Ah! como é monótono! Comprei uma planta de Viena e marquei a vermelho todas as ruas por onde passei contigo. É uma multidão! E o grande, tão grande passeio à aldeia de Kahlenberg que revejo sem cessar, sem cessar, recordando ainda o mais pequeno pormenor! Tu também, dize?!
É o que de mais belo vivi até agora-e, no entanto, tenho daqui a pouco dezoito anos.
Agora vou escrever seriamente. O meu catarro vai um pouco melhor, recomeço também a cantar, com prudência, pois assim que abuso um pouco, a rouquidão volta. Qelfius trabalha alguma coisa comigo, ele é meu
amigo: eu sou amável para ele porque me fala muito de ti. É rude, certamente, e estranho, mas gosto dele porque te é muito fiel e fortemente dedicado. Contou-me a sua horrível mocidade, e como o ajudaste a salvar-se, e diz que tu és um bom homem apesar da má reputação que tens. Isto deu-me prazer.
Apodera se de mim, às vezes, um medo horrível que eu analiso assim: tenho cá dentro não sei o quê, é preciso que um dia aconteça qualquer coisa de terrível, parece que me perdi num bosque, num estranho bosque de sonhos. Deixei-me arrastar para muito longe porque me aborrecia e porque pensava procurar qualquer coisa. Esqueci o quê?. Fico deitada, durante horas, no jardim ou no quarto e. então, o sonho e a realidade parecem confundir-se. Principalmente quando me dói a cabeça e, a este respeito, sou realmente bem dotada.
Dima veio visitar-me. Pediu notícias tuas. Não a podia fitar nos olhos, fiz todo o possível para que não adivinhasse o que há entre nós. Ela conhece-me muito bem; naturalmente, teria preferido lançar-lhe os braços ao pescoço e dizer-lhe: É a mim que ele ama, a mim, a mim!
A nossa casa está tão calma, que o pai ofereceu-me um cãozinho todo patas e orelhas. Gelfius foi o padrinho. Chama-se Conde Pocci () porque nos representa verdadeiras cenas de Guignol. Gosto imenso dele.
Meu pai não deixa entrar ninguém no seu atelier, porque executa agora um trabalho para a mamã, uma pedra tumular. Às vezes, desce a tomar chá no meu quarto. Ele viu a Dima e disse que gostaria de a esculpir nua a cavalo, com um arco dirigido para um alvo. O arco e a silhueta deviam ter a mesma linha. Era belo como ele descrevia, mas creio que, se o executasse, ficaria também incompleto. Parece-me que é muito infeliz; as suas obras são sempre muito grandes, e, não sei porque, fazem-nos mal. Tal como Dima é, o pai não a pode realizar, receio-o bem: eu também não poderia,
(1) Espécie de polichinelo italiano.
Não pude dizer a Dima onde estavas. Ela queria preguntar te qualquer coisa por causa da Isolda: trabalha muito nela e parece esgotada. Já vai no terceiro acto.
Eu também não sei onde estás e imagino-te distante, no infinito. i Esqueceste-me, a mim e à aldeiazinha de Kahlenberg? Não, não, estas coisas não se esquecem! Consegui descobrir a marca dos teus cigarros, e agora fumo um pouco: cheiram tanto a ti! Mas é preciso que Gelfius não saiba. Se eu tivesse um pouco menos deste horrível medo.
Aqui onde está um borrão, foi o Conde Pocci que pôs a pata: ele apresenta as suas desculpas."
Maria poisou delicadamente a carta no colo e lançou um olhar perscrutador para o rosto de Hannès Rassiem que, inclinado sobre o seu ombro, tinha lido com ela.
- Que quantidade de tolices!-disse, desconcertado - Não compreendo patavina; que romanesca ridícula! Mas que caos de frases! E trata-me por tu! Mas porquê? Compreendes alguma coisa? Meu Deus, que criança.
- Sim, creio que compreendo muito bem . Que fizeste com ela ? Não se trata duma criança. Esta carta é uma verdadeira carta de amor, Hannès.
- O que fiz? Mas nada, absolutamente nada. Que imagina esta pequena? Diz "amas me?" "na verdade, beijaste-me." com a melhor boa vontade do mundo, não consigo lembrar-me, E que quere ela dizer com o seu eterno Kahlenberg ? Um dia levei a pequena comigo, a dar um passeiozito e fui amável. Mas elas são todas parecidas. Olha que esta. Mas deixa que a garota se iluda, se isso lhe dá prazer.
Agarrou na última carta que estava em cima da mesa.
- Da Ópera,-disse ele, vivamente-sim, é da Ópera.
- Ah! E então, Hannès?
- O prolongamento da licença está concedida até quinze de Setembro. Vejamos, vejamos, não restam mesmo três semanas, pois, provavelmente, começa nesse momento a nova interpretação do Tristão. Tenho já, a
dezasseis, um ensaio. É preciso preparar-me, Podemos partir para Viena dentro de três ou quatro dias, não é verdade? Assim, estarei fresco e pronto para o ensaio. Que pena não termos aqui piano!.
Calou-se, de súbito, mas os olhos da Maria estavam cheios de angústia e de lágrimas.
- Bem, bem.- murmurou ele, embaraçado, acariciando-lhe os ombros-Que aconteceu? Dize!
- Nada, nada. Tem somente paciência. -murmurou ela, fazendo um esforço para serenar.
Mas a vontade recusou-se lhe, lançou os dois braços sobre a mesa e rebentou em soluços abafados que se contorciam, subindo dolorosamente, crispando-se como numa crise nervosa.
- Não posso, não posso, não posso . - gaguejou confusamente - Vá, deixa-me só.
Madalena apareceu, como se apenas estivesse à espera disto. Rassiem fugiu, contrariado, atirando ao chão uma cadeira. Correu, através dos campos, direito à aldeia e passou a tarde toda ao piano, na estalagem do correio. O cuco ouviu coisas espantosas.
Quando Hannès Rassiem voltou a casa, fatigado, aliviado, contente por ter cantado, a noite tinha já aprisionado a alameda de folhagem num fio doirado. Maria estava sentada, com o pequeno Lenzchen ao colo. Rassiem parou, a olhá-la. Ela não o viu: tinha a cabeça inclinada para a criança adormecida e os seus olhos, a sua boca, as suas mãos, permaneciam calmas e tranquilas. com um braço, ela sustinha o pequeno corpo e a sua pobre voz doente cantarolava docemente uma velha canção de embalar:
Nas montanhas canta o vento E Maria embala o filho Embala-o nas brancas mãos E não precisa de berço, ó, ó, ó, ó, ó.
Hannès Rassiem afastou-se furtivamente. No meio da noite, despertou e viu, à claridade incerta da lua, que
Maria estava ainda acordada, com os olhos muito abertos, estendida a seu lado, com um sorriso atento e tranquilo.
- Em que pensas, querida? Que escutas ?-preguntou ternamente. E como não obtivesse resposta:
- Eu sei. - disse ele.
Sempre com o seu sorriso, ela abanou lentamente a cabeça. Ele puxou-a para si, encostou-lhe o rosto contra o coração e murmurou:
- Que escutas em ti mesma? E ouves aquilo que ainda não nasceu? Sem dúvida o desejas tão ardentemente como eu. É preciso que ele seja loiro e que se chame Wolfgang. e que não morra.
Ele viu os olhos da Maria brilharem na calma noite azul, e tudo corria bem.
IV
No entanto, nos dias que se seguiram, uma mudança se operava em Rassiem. Havia nele uma voz que, sem cessar, lhe repetia que em Maria tudo tinha retomado o seu curso normal, que os teatros haviam reaberto as suas portas enquanto o tenor Rassiem continuava ali a sua nova vida, isolada do mundo. E esta voz falava sempre mais alto e atormentava-o tanto mais quanto era interdito falar a esse respeito com a esposa.
Um leve nervosismo que aumentava dia a dia, apoderou-se dele. Madalena erguia os olhos meigos e pensava: cCá está outra vez o diabo à solta". E a Kouczowska pensava a mesma coisa.
Insensivelmente, Rassiem começou a fumar mais; depois principiou a beber café sem leite; em seguida a dormir mal e os seus sonhos eram tão agitados que acordava sobressaltado, a tremer, e coberto de suores. E tratava-se sempre de acidentes no palco, nesse bem amado palco da Ópera que, noite após noite, lhe aparecia com todos os seus detalhes familiares, para o tentar. Ora representava o Tannhauser e notava, em plena acção vocal, que vestia um fato de tennis, ou então era uma ópera da qual não conhecia absolutamente nada, de que nunca tinha ouvido falar: agarrava-se desesperadamente ao buraco do ponto, lançando olhares aflitos para os
corredores, à procura do contra-regra. Em qualquer parte, o director da orquestra, baixinho, tocava, ao longe, uma música absolutamente desconhecida. E o director gritava: Mas é o Tristão, então você não conhece o Tristão? Das poltronas de orquestra surgiam cabeças, uma multidão de cabeças trocistas, que faziam caretas. Desciam também das galerias, e fixavam os olhos sobre ele. E esforçava-se por cantar, mesmo assim. Mas ei-lo envergando o fato do rei Maike e usando uma longa barba. E estava desesperado porque era preciso que ele cantasse no tom baixo e não conseguia articular um som. Alguém dizia: Vocalize, vocalize sobre o U, mas apenas sobre o U."
Um dia, Madalena trouxe para casa um certo rumor que levou a Kouczowska, depois de a ouvir, a erguer as mãos cansadas e a apertá-las fortemente uma contra a outra. Em seguida, vestiu o seu fato de viagem, verde, e, na sombra da noite, desceu à aldeia. Fontes ocultas murmuravam ; nos campos, o feno encontrava se amontoado em altas medas, fumos azuis e calmos saíam dos telhados. Maria chegou à estalagem do correio - indicaram-lhe o fundo do pátio - e ficou muito tempo em frente da janela. No interior, Hannès Rassiem estava sentado: cantava o Tristão. A Kouczowska ficou ali, obrigando-se a ouvir; aquilo fazia-lhe mal, um mal de fazer gritar, e no entanto, menos do que ela supunha. Era bom tornar a ouvir o Tristão.
Não sabia quanto estava pálida assim que abriu a porta. Rassiem, arrancado bruscamente do crepúsculo de amor do segundo acto, voltou se, com os olhos abertos de surpresa, balbuciando coisas indistintas.
- Há muito tempo que te estou a ouvir. Como tu cantas bem, Hannès; muito bem! Há tanto tempo que não te ouvia! Mas porque te escondes ?
Dolorosamente, ele endireitou-se, arranjou o colarinho e a gravata, e afastou os cabelos da testa.
- Não sei, tinha medo de ti, Maria. E, não me queiras mal, eu precisava de recomeçar a cantar, não podia mais.
- Sim,- disse ela docemente - não podias mais. Eu compreendo, oh! sim, compreendo. Não tenhas receio, Hannès, sou muito corajosa. Não duvidas?
Caminhavam na noite, lentamente, descendo.
Hannès Rassiem considerou o rosto calmo de Maria, puxou a contra o seio e, caminhando a passo igual, ousou falar-lhe do futuro próximo. Ela ouviu calmamente, com a boca contraindo-se, por vezes, um pouco, mas não disse nada. Sentia o braço do marido cingindo lhe fortemente os ombros e pensava: "isto há de ir, há de ir.
Agosto chegou ao fim; a 8 de setembro, começavam os ensaios. Ele partiria para Viena, antes, com a maior parte da bagagem. Aí, mandaria preparar tudo para receber Maria, que só chegava depois, com Madalena. Ela não veria as pessoas que não gostava de ver, nem ouviria uma palavra que lhe pudesse lembrar o teatro, nem o canto, a não ser que ela própria quisesse. Estava bem assim ?
Maria apenas aprovava com a cabeça. Olhava a casa fracamente iluminada que surgia da penumbra e, inopinadamente, acudiu lhe uma frase da carta de Elis: "Foi o que, até agora, vivi de melhor". "Sim, - pensou ela - isto foi o melhor, agora vem o resto, o tempo duro, é preciso preparar-me corajosamente."
A 1 de setembro, Rassiem partiu para Viena.
À porta do jardim, enquanto o carro esperava na estrada, Maria pôs se a chorar. As suas lágrimas, os seus beijos eram novos, apaixonados como nunca Rassiem conhecera nela. A 3 de setembro, Maria devia seguir.
Ressiem chegou tarde, à sua casa que lhe oferecia um aspecto estranho. Berger estava à porta, tossicando, tussicando. Quanto à cozinheira, pôs-se simplesmente a chorar quando soube que a senhora viria em seguida. Ressiem tomou um banho e atirou se para cima da cama. No meio da noite as surdas pancadas dum relógio acordaram no. Saiu do sono, estremecendo: tinha sonhado com Dima.
Durante dois dias, com o maior zelo, Berger trabalhou na casa. Embora tudo estivesse já limpo e espanejado,
novas cascatas de água, de sabão e de actividade foram vazadas em todos os aposentos.
Homens de cheiro activo vieram e mudaram o lugar aos quadros, pois tudo devia ficar "como nós estaVamos habituados"-dizia Berger. Uma mulher a dias encerou e esfregou, agitando se loucamente, rebuscando os cantos. Depois as superfícies brilhantes foram cobertas por tapetes. Por fim, um véu do pior gosto foi estendido ao alto para gritar Boas vindas!" Encheram-se de flores todas as jarras, flores outonais do jardim, rosas delicadas inclinando as finas cabeças. Rassiem andava, comovido, no meio daquela agitação e daquela limpeza; sentia uma sensação curiosa, não sabia porquê.
Por fim, a noite tão esperada chegou. Foi com o automóvel à estação, com muita antecedência. Lançou um olhar para a sala de espera: as cadeiras, de tristes cores, encostavam-se às paredes como pessoas de luto numa cerimónia fúnebre. No cartaz, recomendava se o uso da água de Eachinger. Rassiem sentou-se no terraço do bufete, tranzido de emoção. Por fim, chegou a hora do comboio. O cais estava vazio e pouco iluminado. Longe, lá em baixo, e luzes de cor distinguiam-se na poeira. As pessoas pareciam pálidas e como que enregeladas.
O sinal ouviu se. De súbito, Rassiem sentiu a alegria estalar em si, apertá-lo nas mãos e na garganta.
O comboio parou, projectou vapor e pessoas para o cais. Dos compartimentos de primeira classe poucos passageiros desciam. Um velhote passou, depois uma senhora, em seguida um carregador, cuja bagagem tocou nas pernas de Rassiem. Depois. mais nada. O seu coração parecia rebentar. Os compartimentos estavam vazios, a multidão acabava de passar. Correu ao longo do comboio, examinando cada vagão. nada! Um empregado aproximou se:
- É favor sair, senhor, vamos fechar.
- Como, fechar ? - preguntou - Mas eu espero alguém, espero minha mulher.
-A senhora perdeu o comboio, com certeza,-respondeu o homem, delicadamente.
Ressiem caiu em si, deu uma gorjeta e desapareceu.
Maria não tinha vindo! Maria não tinha vindo!
Ao pé do automóvel, Berger esperava, numa atitude incomparável. Desmoronou se como se fosse de barro, quando Ressiem lhe disse em voz rouca:
- Vamos. A senhora não veio !
Em casa, ardiam todas as luzes. Todas as luzes! Em cima da mesa, alegremente decorada, estava colocada uma carta. A mão de Rassiem voou para a agarrar.
"Meu querido - escrevia a Kouczowska, com letras que vacilavam - não posso ir, não posso ir de maneira nenhuma. Não posso viver ao pé de ti, de mãos vazias, no mundo que mais amo -que mais amei -de tal forma, que nem posso explicar. É-me impossível ir para esse mundo febril e de sonho, de canto, de êxito e de trabalho, devendo conservar-me como alguém que, da rua, olha por uma janela. Tem paciência; não poderei, enquanto tiver as mãos vazias.
Tem paciência! Pensa na noite em que estiveste mais perto de mim do que nunca. Espero. Quando adquirir a certeza de ter um filho, irei para ti. Então, tudo correrá bem. De outra maneira, não. Perdoa me. Agradeço-te o verão; foi bom. Tem paciência. Dificilmente te descreveria o estado em que me encontro.
Rassiem pegou com as duas mãos no balde do champanhe, ergueu o e atirou o ao chão. As garrafas tilintaram, o vidro crepitou, a água correu pelo chão. Ele riu. Riu ainda quando, lá em cima, no quarto de Maria, bateu com os punhos no espelho. Mas depois, quando todos os quadros, um a um, ficaram feitos em estilhaços, chorou!.
TERCEIRA PARTE
I
Gelfius desceu à pressa do lago superior dos jardins Schwarzenberg Cantarolava, durante o caminho, uma pequena melodia que, divertidamente, ritmava. Seguia se em períodos regulares de seis compassos, muito mais alegres do que os períodos académicos, sempre monótonos, de oito. O oboé devia principiar só, depois um contraponto mais ligeiro, mais onduloso, seguido de duas flautas e, por fim, um cornetim misturava se ao concerto para lhe dar a sua nota um pouco romântica. Entretanto, os violinos descarregavam as suas síncopes teimosas.
Elis estava ali. Sentada na pequena leitaria, olhava, desconfiada, para um copo de leite meio bebido posto à sua frente. Antes mesmo de a cumprimentar, Gelfius disse:
- A minha terceira frase está pronta!
- Ah! Gelfius! Que alegria! E vai tocar-ma? Hoje? Ou depois? Depois. - repetiu ela mais lentamente, e Gelfius esboçou um sorriso.
- Palpitações? - preguntou ele.
-Sim. É estúpido, não é verdade? Mas esperei tanto durante o verão todo, tanto! Agora acabou se, sim, agora vão recomeçar as aulas, Dizer que vou. que vou tornar a ver Rassiem, hoje! Daqui a pouco está na hora, não?
Gelfius tirou dum bolso os seus cravos brancos, soprou os, sacudiu os sem que o seu aspecto amarrotado melhorasse, e pô-los em cima da mesa.
- Como me amima, Gelfius! Sempre as mais lindas flores! Dizem muito bem com o meu vestido. Olhe como as minhas mãos tremem. Meu Deus, estou absolutamente louca de alegria, absolutamente. Ainda não está na hora?
Pôs as flores ao peito. Gelfius olhou-lhe para a cabeça inclinada.
- É preciso primeiro acabar de beber o leite, minha menina. - disse ele.
Elis ergueu os olhos, demorando se a vê-lo sorrir, e estremeceu ligeiramente, ao notar uma leve tristeza naqueles olhos que pareciam saber muitas coisas.
- Como é bom, Gelfius! Desde que a mamã morreu, é a única pessoa que cuida de mim, por causa do leite e. de tudo mais. Mas agora vamos, sim?
Era um belo dia de outono. Ligeiros véus flutuavam no ar. Na superfície sombria e espelhante do lago, folhas amarelas vogavam suavemente entre os calmos cisnes negros.
- Elis, - disse Gelfius - as aulas vão recomeçar, consinta que lhe peça uma promessa.
- O quê, Gelfius ?
- Não. Nada. Deixe, não faça caso, não é possível prometer uma coisa destas. Deixe as coisas correrem.
Atravessaram a imensa praça do Castelo e caminharam ao longo da igreja de São Carlos. As cúpulas verdes lançavam os seus apelos para as trindades, pois eram quási cinco horas. À esquina do Conservatório, encontraram-se com Dima que esperava, estranhamente encostada à parede. Calçava finas luvas de pelica branca - o que Elis notou imediatamente-que abotoava e desabotoava sem cessar, num movimento maquinal.
- Dima! Até que enfim ! Parece que te escondes! Como vais? E a Isolda?
-Ah! Elis, esconder-me de ti! Como era possível?
Que queres dizer ? - preguntou vivamente Dima - Sabes se Rassiem vem? Já falou com ele, elíius?
- Não. Até pensei que você estivesse melhor informada sobre o nosso Incomparável. Há semanas que nenhum olhar mortal o contempla. Mas hoje temos fundadas esperanças de o ver. De resto, como é costume dizer-se, consultemos o cartaz. Sim, está cá o seu nome.
As paredes resplandeciam, sumptuosamente decoradas por cartazes cor de laranja que designavam uma multidão de instrumentos, de classes, de profissões, de nomes e de datas.
-Sim, sim! Está indicado ali!-disse Elis, apontando o papel.
Efectivamente, podia ler-se: "Os exames eliminatórios, para a classe de Rassiem, efectuar-se-ão a dezasseis de setembro, das cinco às seis."
- Parece São Tomé, o incrédulo, metendo o dedo na ferida do Senhor, menina Dimatter. - disse Gelfius. Mas Dima não ouvia, continuava a abotoar as finas luvas brancas, olhando vagamente por sobre o ombro para a esquina do edifício. ? O seu rosto estava diferente e cansado; fundas olheiras sulcavam-lhe os olhos apaixonados.
-Anda, Dima, está na hora.- disse Elis, apressada. Mas, num movimento brusco e inesperado, Dima deu meia volta e afastou se, correndo.
- Mas. que quer isto dizer ? - preguntou Elis, admirada.
elíius pegou-lhe no braço e puxou-a para a porta principal.
- Deixe-a, Elis. Ela não está realmente com boa cara. Aconteceu-me um dia - sabe, no tempo em que eu tocava no Tohu-Boku - observar alguém que jogara e perdera a sua última moeda. Tinha os mesmos olhos, os mesmos lábios. Deixe-a.
- Que lhe parece isto? -preguntou Elis olhando lhe, aflita, para a boca; depois, corou lentamente e calou se.
Estavam agora diante das famosas portas abertas que haviam dado origem a entusiásticos artigos de jornal,
No meio dum grande bòrborinho, duma mistura extraordinária de gravatas, - pertencendo às mais esquisitas individualidades -de feminilidades coloridas como flores e de penteados impressionantes, tudo se via ali, O porteiro vestia a sua libré de botões areados de fresco; por trás daquele maciço decorativo, o longo vestíbulo frio, do edifício, abria-se e perdia-se em negras perspectivas.
No entanto, as paredes, as queridas paredes, haviam afastado para longe o silêncio das férias, e ressoavam, graças aos sons dos órgãos e dos violinos, e às vozes humanas. Os criados ao serviço da escola surgiram, zelosos, de todos os cantos, de cara digna mas alegre, pois, durante os últimos dias do concurso, tinham recebido muitas gorjetas de mães aflitas e concorrentes em suores frios. Os corredores e os degraus da escada trasbordavam de alunos que não tinham nada que fazer, mas que queriam estar ali, por todo o preço. Sentada no seu lugar habitual ao pé da janela sombria, a sr.a Gibich fazia tricot coçando a trança postiça, e gritando:
- Senhores! É favor não falarem com as senhoras! Minhas senhoras, queiram sentar se noutro banco!
A caça aos maus costumes mostrava se hoje particularmente encarniçada.
No rés do chão, diante da pequena sala de exame, juntavam se os novos, olhando-se mutuamente. Erravam muito excitados, formidavelmente excitados. O sr Reindl girava dum lado para outro, espalhando à sua volta bondade e esperança.
Os membros da direcção e os examinadores atravessaram a multidão em passo digno, acompanhados por segredos e olhares ansiosos. Todas as vezes que a porta se abria diante dum deles, via se, no interior, o canto duma solene mesa verde e, por cima, um nariz ameaçador, desmedido, o nariz branco pertencente a um busto de Wagner.
Gelfius saiu, um instante, da sala de exame e disse a Elis:
-Rassiem ainda não está. Ninguém sabe se vem ou não. Parece que tem o telefone de casa desligado.
- O primeiro dos senhores, se faz favor.-chamou o sr. Reindl, e uma silhueta cambaleante desapareceu atrás de Gelfius no caixilho da porta.
De súbito, ouviram se acordes ressoar no interior e ao mesmo tempo o som duma voz humana, singularmente inábil e forçada, mas de grande sonoridade. Numa confusão de perfumes extravagantes e duvidosos, Elis abriu caminho para o vestíbulo mais fresco onde, maquinalmente, ficou de pé, com o olhar fixo na tabela de serviço. "Pude sofrer um interminável verão - pensava - mas se não o vejo hoje, não posso mais, acabou se!"
O ruído dum motor ouviu-se à porta, um cheiro a gasolina invadiu o interior, o porteiro abriu a portinhola do automóvel: passos elásticos subiram os degraus da entrada, cabelos loiros sobre um rosto queimado pelo sol, largos ombros um pouco curvados. Tomada de vertigem, Elis estendeu o rosto e as mãos, como para uma fonte. A porta, vestida de verde, caiu sobre ele. ficou só o perfume da água de Colónia, do cigarro, do sabonete de marca inglesa. E uma felicidade forte, infinita, ardente, incrível.
Como uma sonâmbula, Elis dirigiu se para a porta de saída; aí, qualquer coisa de quente, de impaciente, acariciou lhe o ombro; voltou se e encontrou na sua frente um par de olhos grandes, infantis, pertencentes a uma das novas.
- Viu o! - murmurou esta, misteriosamente-Viu-o? É ele, é Rassiem, não é verdade ?
- Sim, é ele. - respondeu Elis, e admirou-se de verificar que era bem verdade, que toda a espectativa havia passado.
- É espantoso, absolutamente espantoso. - disse a nova aluna e os seus olhos resplandeciam com um fogo quási doentio no seu magro rosto insignificante.
- É ele, o seu professor, não é? Conheço-a, tenho a visto muitas vezes na quarta galeria, lá em cima, a si e à alta, bonita, aquela que anda dum lado para outro, lá fora, em frente da porta.
- A minha amiga ainda está lá fora ? - preguntou
Elis, calma - Sim, agora lembro me de si, tenho-a visto na Ópera.
- Tinha tantos ciúmes de si porque estudava com ele! Mas agora também vou fazer o mesmo. A senhora que me dá lições diz que eu tenho muita voz, embora toda a gente ache que sou pequena de mais para o palco. Que lhe parece? Talvez não fique mal de todo? Não acha? Se não for admitida hoje a exame, antes quero morrer! - disse a rapariga.
E tornou se mais pequena ainda. Elis olhou-a, depois sorriu com indulgência.
- Ri se? Sim, bem sei o que pensa. Julga que não se morre assim tão facilmente.-murmurou a jovem com um movimento de cabeça -Sim, sim, pode-se morrer depressa.
Elis contraíu-se. "Irmãzinha."- pensou. Mas o sr. Reindl surgiu e empurrou a pequena para a sala de exame.
Elis resolveu se a ir buscar Dima, mais misteriosa, mais distante do que nunca, e que andava a rondar o Conservatório.
Nas ruas, um crepúsculo carregado de nevoeiro começava a estender-se; os nichos das paredes enchiam-se de sombras profundas. Parecia que silhuetas deslizavam pelos cantos. Elis assobiou o velho sinal, mas não obteve resposta. Contornando o edifício, viu apenas um acendedor de candeeiros que andava em roda dos bicos, produzindo fracas luzes que não iluminavam, formando apenas círculos brancos no seio da bruma. No vestíbulo, também já ardiam luzes quando Elis regressou, e isso lembrou lhe singularmente o inverno, quando voltava da lição, rouca por haver cantado. Muito distintamente, viu diante de si, no espaço, o gesto com que Rassiem acendia agora o seu primeiro cigarro. Deram seis horas. Diante da porta da sala do concurso, o ar estava quente e espesso.
- Por fim, tudo correu bem. Aceitaram-me!-exclamou o rapaz de cabelos dum negro azulado, que lembrava o barítono Lorm, e avançava com segurança e verdadeiros passos de cena, atrás do sr. Reindl.
A pequena nova, cujos olhos ardiam quási dolorosamente de excitação, encontrava-se ali.
-Estava à sua espera.- disse, faltando lhe a voz
- Também fui aceite. É assunto arrumado. Um estúpido dum homenzinho careca ainda se fartou de dizer que eu era muito pequena, mas ele, ele! elogiou me. Disse:-"Uma linda voz de coloratur? Mas dará uma boa criadinha de Ópera. Uma linda voz de coloratur.
- foram as suas próprias palavras. Esperava-a para lhe anunciar o meu triunfo. Parece-me que já a conheço há muito tempo. Ainda não me apresentei: chamo-me Hartwig, Eva Haruvig. Talento para uma criadinha, não creio que tenha ainda, mas ele mo dará, vai ver! i Ele deve ser espantoso como professor, espantoso! - repetiu, apertando a mão de Elis - Você também anda pelo beiço por ele, eu bem tenho visto, na Ópera. Não é verdade? Oh! não tem mal nenhum; bem se sabe que é brincadeira. A gente ilude-se com isso, não é verdade?
- Sin. - disse Elis, monossilábica.
"Se tu soubesses. -pensava -ele beijou-me. Ele beijou me! Não é brincadeira, nem sonho."
Furando a multidão dos concorrentes, o sr. Reindl correu a abrir as portas. De cara vitoriosa, o rapaz negro azulado saiu da sala, transpirando muito; tinha cantado bem. No interior, ouvia se um rumor de cadeiras. O director apareceu; curvando-se diante dele, o mordomo da escola acompanhava-o, levando lhe a pasta cheia. Depois, o secretario geral saiu e, com ele, os veneráveis examinadores e membros da direcção. Por fim, Rassiem apareceu. À porta, ao pé de Gelfius, acendeu um cigarro. Elis viu imediatamente que o seu rosto não era o da primavera. Ficou petrificada, muda, não sabendo que as suas mãos estendidas para ele falavam tão alto.
- Elis. - disse Rassiem; e estava contente, sim, via-se que estava realmente contente - Como vai isso ? Que fez durante o verão? Ah, é verdade, escreveu me. Desculpe, mas sou um mau correspondente. Pensei que em breve conversariamos, A lição é na terça feira. Minhas filhas, senhores, - repetiu, voltando se para os novos, que
formavam um círculo respeitoso à sua volta-a lição é na terça feira à tarde, na sala dez. Não é? Adeus.
Entretanto, conservava a mão de Elis; depois puxou a na direcção de Gelfius, que esperava à porta.
- Cresceu, Elis. Está agora uma verdadeira senhora! Acabou se a menina: aqui, está agora a senhorinha Elisabete Kerckhoff. ()-disse ele, gracejando. Mas parecia preocupado; tinha um novo gesto na sua longa mão: o de apagar da fronte qualquer coisa que, apesar disso, lá permanecia obstinadamente.
Gelfius olhava-o, de revés. Sob a pele tostada do sol havia uma certa fadiga, sim, e outra coisa ainda: idade.
- Está filósofo. - disse o pianista - Parece, até, que reflectiu sobre qualquer coisa. Mas isso não pode ser o seu caso, querido tenor, personificação suprema da inconsciência.
A palavra tenor arrancou Rassiem à sua preocupação; era como o grito de troça que os seus pensamentos esperavam.
- Tenor! Parèce-me, Gelfius, que já não sou tenor. Não, na verdade, digo-lhe isto confidencialmente. e pegando lhe no braço, falou lhe em segredo: os agudos já não eram os mesmos: fracos, fracos.- De resto, você mesmo o notará. amanhã trabalharemos o Tristão.
- Ah ! Lá vem a Dima ! - gritou Elis. Rassiem levantou vivamente a cabeça.
- Onde? -disse ele.
- Não. A rua está vazia. Enganei-me. Já a procurei ainda agora; está tão esquisita! Pareceu-me, dentro do nevoeiro. vê, Ia dobrar a esquina.
Gelfius olhou para Rassiem.
- Virá na têrça feira ? - preguntou lentamente o tenor - Que tempo! Que noite admirável! A gente nem sabe o que há-de fazer. Até temos vontade de nos deitarmos para morrer, i Que fazem vocês agora, meus filhos ?
- Gelfius vai lá a casa tocar a sinfonia que compôs
(1) Abreviação de "pianíssimo".
este verão. Posso dizer isto, Gelfius? É tão bonita, sr. Kammersánger! Conheço uma grande parte e. só eu a conheço, não é?
- Vocês são amigos ?
Gelfius não respondeu nada. Apenas lançou um olhar suplicante para Elis.
- Sim, somos amigos. - disse ela.
- Tem razão; Gelfius é um excelente amigo. Não és, meu velho? Então vai levá-lo para casa e ele vai tocar para si, Elis?
- Sim. - respondeu ela.
E, contendo a respiração, fitou os olhos de Hannès Rassiem, que eram ingénuos e tristes -sim, lia-se neles a tristeza.
- É clara a sua casa ? -É.
- E quente ?
- Sim, quente também. Depois servirei o chá, o pai descerá para ouvir o Gelfius tocar e contar muitas coisas de Paris, de Roma e delia Robbia, e outras ainda.
- Ah! Elis.-implorou Rassiem, juntando inconscientemente as mãos-Leva-me. Vai fazer-me bem, eu sou muito infeliz. É uma noite em que, com certeza, só farei tolices. Leva-me contigo, ajuda-me um pouco. Está ai o meu carro. Não posso mais estar só.
Gelfius teve um olhar rápido e surpreendido quando ouviu Ressiem tratar Elis por tw. Mas foi coisa passageira. Berger abriu a porta do carro. O coração de Elis batia, com força. "Que felicidade -pensava ela, sem cessar - que felicidade, que felicidade ."
Fora, na rua envolta em nevoeiro, a pequena Eva Hartwig, imóvel, viu o automóvel afastar-se. E quando se voltou vivamente para se ir embora, pois já não podia ver mais nada, a figura de Dima surgiu ao pé dela, sombra alta e elegante, na bruma. A jovem levantou a cabeça para o céu, como para o interrogar:
-Terá, realmente, terminado tudo?-murmurou.
Quando Gelfius acabou de tocar a sua sinfonia, os auditores ficaram um instante silenciosos. Elis, com os
olhos brilhantes, escutava ainda a vibração poderosa das ultimas notas do tema principal. O leitmotiv tinha sustentado lutas e aventuras sem nome. atravessado amarguras e amores; agora, no explendor dum mi maior dos mais brilhantes, exprimia vitória. Entre as mãos do professor Kerckhof estalava a folha de papel, sobre a qual tinha desenhado o rosto erguido de Elis. Rassiem arrancou dos ombros qualquer coisa que lhe pesava e disse:
- Que o leve o diabo, Gelfius! Onde foi buscar isso ? É belo!
Elis levantou-se para preparar o chá, na biblioteca ao lado. Conde Pocci, o cãozinho, foi ter com ela, saltitando.
- Olhe para esta criança.-disse o professor Kerckhoff
- Veja o que a sua música fez dela, como está hoje vibrante! Nunca a tinha visto assim, com tão íntima alegria. Ignorava que a minha filhinha fosse tão sensível !
Elis voltou-se, e, na realidade, os seus olhos resplandeciam duma felicidade quási dolorosa, tão enervada parecia. O seu olhar voou rapidamente do retrato cheio de afectação do seu convidado, colocado sobre o piano, para o próprio Rassiem que olhava timidamente um Rassiem diverso, encostado à janela e, tristemente, mergulhando os olhos na noite. Na biblioteca próxima, a fervura da água, para o chá, ouvia-se. Um candeeiro espalhava uma luz fraca, de tom lilás, pelo aposento, onde, aqui e além, as letras de oiro duma encadernação brilhavam. As cabeças brancas, dos mármores, emergiam da sombra.
"Aqui estás tu sentado,-dizia Gelfius, a si mesmo és recebido nesta casa, tu, o Wilhelm Gelfius, filho natural de mãe desconhecida, pobre infeliz, tocador de piano num bordel. num lugar tão selecto e tão belo. Estás aqui sentado, compuseste uma sinfonia e amas a mais fina, a mais terna rapariguinha do mundo. Ama-la com um amor infeliz, como diriam os imbecis que não sabem o que é amor, pois poder amar é sempre uma felicidade.
- Tem as mãos queimadas. - disse Elís, corando, quando Rassiem pegou na chávena.
-Onde esteve este verão? À beira- mar ? -preguntou Kerckhof.
- No Tirol. - respondeu rapidamente Rassiem. Gelfius viu os cravos brancos tremerem mais fortemente no vestido de Elis.
- Fez algumas excursões a pé ?
- Não, realmente não fiz. Precisava de tratar os nervos, carecia muito de repoiso.
- Ah! Sempre o mesmo! -exclamou Gelfius-Era tempo. Nada de bebida nem de mulheres? Nada de porcarias? Isso faz bem, não é verdade? Porque.
Parou, espantado, olhando desesperadamente e com censura para a colherita de chá que tinha na mão, depois para Elis, depois para Rassiem que não pôde deixar de rir.
- Peço desculpa, sou um verdadeiro idiota. - con tinuou ele a meia voz.
Kerckhoff bateu-lhe no ombro e tentou mudar de conversa.
- Caro Gelfius, há-de explicar-me certas coisas da sua sinfonia. Não entendo nada de música; quando é boa sinto-a, é Mas porquê, por exemplo, o motivo da segunda frase? Quer tornar a tocar?
Gelfius levantou-se e, de súbito, Elis encontrou-se horrivelmente só com Rassiem, na biblioteca,
- Mais uma chávena de chá ? - tentou ela dizer, enquanto sentia a cabeça andar à roda.
- Não, obrigado. Posso fumar ?
- com certeza. Tenho alguns cigarros da sua marca.
- Oh! é muito amável. Obrigado.
- Como é extraordinário, não acha ? -O quê, Elis?
- Mas. estar aqui. esta noite. Posso - podia tocar-lhe na mão. Ela está aí, bem perto. E, no entanto, tudo está tão mudado, tão diferente!
- Porque estou de visita, uma visita de apresentação. E depois, a pequena Elis é para mim tão nova como dona de casa que eu quási devia dizer: "Minha Senhora.
- murmurou ele, acautelado e amável, enquanto a sua mão se continuava a esforçar por apagar qualquer coisa da fronte.
No aposento vizinho, Gelfius tocava o tema melancólico da segunda frase. Levantando-se, Elis observou Hannès Rassiem. As suas pálpebras pareciam pisadas, estavam ligeiramente avermelhadas nos rebordos; na boca tinha duas rugas de fadiga; no queixo, rugas moles desenhavam se.
Ela preguntou muito baixo:
- Estás fatigado ?
Disse apenas que sim com a cabeça; ela ajoelhou-se ao pé dele, pegou lhe na mão e colocou a sua cara na palma. Ele segurava a como um fruto, e então enterneceu se, sentiu se esfomeado de consolação.
- Que foi que te fatigou tanto e tornou os teus olhos tão tristes, dize?
- Esperei, Elis, Deus sabe o que eu esperei! Sabes o que é esperar?
- Oh! se sei!-e os lábios e o coração arderam-lhe, ao preguntar : - Onde estiveste tanto tempo ?
- Não posso falar nisso.
- Como Tannhauser? Em Venusberg?-pensou ela ingenuamente, e disse-o alto, inconscientemente.
- Não, Elis, não estive em Venusberg. Estive ao pé da minha mulher.
Ela estremeceu, como tocada por qualquer coisa afiada, cortante, que lhe fez chegar as lágrimas aos olhos.
- Ela esteve tão doente, Elis, tão doente!
- E agora, está melhor ?
- Agora não sei nada dela. Nada.
Ao lado, a segunda frase musical chegava ao fim: tornava se mais vagarosa, embriagadora de melancolia nas últimas variações hesitantes, atormentadas, de dolorosas dissonâncias.
-Deixa-me a tua mão.- implorou Hannès Rassiem
- Faz-me bem.
Puxou a mão fina para ele e pô-la sobre a testa e sobre os olhos. O silêncio foi completo; então, Elis sentiu os ombros do homem erguerem-se, e os seus
dedos trémulos encontraram lágrimas. E enquanto, profundamente perturbada, lhe colava os lábios aos cabelos, ele murmurou fracamente:
- Mamãzinha . mamãzinha .
O piano calou-se; o professor Kerckhoff murmurou qualquer coisa, e a voz de Gelíius, mais doce que de costume, respondeu lhe. Então, as argolas dos reposteiros tilintaram, a luz espalhou-se sobre o sobrado e Gelfius chamou:
- Rassiem! Sr. Kammersánger! São quási nove horas! Vamos ficar aqui eternamente?
- Sim, sempre. - murmurou Rassiem, puerilmente, e meteu o rosto na sombra onde, furtivamente, limpou os olhos.
com ar distraído, o professor Kerckhoff estava de pé, à porta, pensando: Devia fazer um adolescente curvado para a terra, cavando uma funda cova. Mas isto é apenas um quadro e não uma forma. Gelfius guardou um instante, na sua, a mão de Elís que nunca lhe tinha parecido tão pequena e tão lânguida como hoje.
Na rua, o nevoeiro rastejava com um animal mal doso. Berger esperava no carro, sob o miserável reflexo dum candeeiro.
- Cá estamos, são só nove horas. Que vamos fazer agora, Berger? Que vamos fazer nesta longa noite? preguntou Rassiem.
Berger abriu a boca, esperando uma ordem.
- Vamos para Rodaun, dormir. - insinuou Gelfius, empurrando Rassiem para o automóvel - E com um nevoeiro destes, vamos calados.
- Não, não, não, para Rodaun, não! Lá não, no quarto não! -gemeu Rassiem e a palavra negativa, três vezes repetida, parecia desesperada.
Agarrou fortemente Gelfius.
- Não me deixes só, principalmente, não me deixes só. E, sobretudo, em casa.
- Mas então ?
-Para qualquer sítio, Berger! Avante, para qualquer sitio! Onde haja gente e luz. Vamos divertir-nos.
É preciso ir, Gelfius, é preciso: aniquilou-me completamente com a sua música; agora, ajude me.
- Aniquilei o? Sério?preguntou Gelfius, apertando com calorosa ternura a partitura contra si.
- E agora, naturalmente, vamo-nos embebedar para
retemperar as forças?
- Deixe-me sossegado, Gelfius. Não fale, isto vai
mal, terrivelmente, abominàvelmente mal.
Gelfius lançou um olhar para o rosto de Rassiem, no qual os músculos se moviam singularmente, e subiu para o carro sem dizer palavra. "Vai ter uma noite má!"-pensou Berger, pondo se rapidamente a caminho.
Na bruma, pessoas, casas, luzes, diluíam-se como em água; no entanto, o céu, lá em cima, estava frio e claro. O automóvel parou em frente dum restaurante. Rassiem arrastou se para fora do carro, agarrando se ao braço de Gelfius: este tinha traçado à sua volta como que uma parede de vidro, atrás da qual estava ele só com a sua música; fora disso, desejava imenso mostrar se camarada. Através da espessa fumarada dos cigarros, caíram sobre a mesa habitual da Ópera; rostos cortados de rugas ergueram-se, contrabaixos cheios de cordialidade mugiram, brandiran-se copos. Um criado murmurou ao ouvido uma série apetecível de manjares. O barítono contou uma história bastante ordinária em dialecto boémio. No fim da mesa, estava um jornalista engelhado, negro e amarrotado: encantado, escrevia no seu bloco, algumas observações para a rubrica: "Atrás dos bastidores. Um contra regra fixava o teto, com olhar triste, e demolia o director, com palavras irreparáveis. Uns divertiam-se, acrescentando qualquer dichote; depois atiraram o cadáver para debaixo da mesa, Rassiem esvaziou uma garrafa e riu, instintivamente Em qualquer parte, falava-se da nova interpretação do Tristão. Então ele levantou se, agarrou Gelfius pelos braços como se prendesse um homem e saiu. Eram onze horas.
-Café sem leite. - gritou a Berger que gelava no
nevoeiro.
No Café, encostadas pelos cantos, havia mulheres de
rostos pálidos, sob os cabelos cuidadosamente penteados. Voltavam-se languidamente para Rassiem. Outras, estavam tão pintadas que pareciam azuladas. Homens de letras sustentavam discursos intermináveis e profundos, absorvendo ovos em copos que pareciam cálices de tulipas. Ao lado, os burgueses jogavam as cartas. Sob uma varanda, estava sentado um poeta, segurando um colar de pérolas multicores nas mãos moles e, com os olhos tristes como os dum cão doente, observava as pessoas. Rassiem bebeu conhaque. Gelfius falou de excursões nas altas montanhas, gelos imensos, brancos, azuis, frios e puros como um dó maior, mas ele via pelos olhos de Rassiem e pelas suas mãos, que aquilo não servia para nada. Depois jogaram o xadrés. Rassiem deslocou algumas figuras, sem razão, depois afastou as, misturando-as raivosamente. Já tinha bebido quatro copos de conhaque. No cartaz, uma mulher nua olhava o com um sorriso mau. Pagaram, enquanto os ponteiros direitos, do relógio, indicavam meia noite. Berger observou o patrão com insistência, antes de pôr o motor em marcha, depois conduziu o às Arcadas.
Numa viela toda em recantos, baloiçava-se uma lanterna; um porteiro cintilante abria a porta. No interior era tudo branco, vermelho e doirado. Violinos gemiam, chorando; muito longe, uma criatura forte cantava uma canção, batendo as mãos com uma alegria exagerada. Aquilo cheirava a vinho, a mulheres nuas, a flores, a cigarros. Faziam um barulho horrível; rebentavam risos sem se darem ao trabalho de parecer sinceros. Rassiem mandou vir champanhe e, pouco a pouco, passou do seu mutismo a uma prolixidade ruidosa. Ao som da sua voz, voltaram se cabeças, reconhecendo-o. Voaram flores sobre ele. Gelfius cruzou as mãos sobre a partitura e olhou para o pequeno estrado onde os músicos trabalhavam; o seu olhar parou sobre o dorso do pianista, um dorso curvado, vestido com um fraque lustroso. Em toda a sua figura, lia se uma infinita resignação: os ombros erguiam-se ao ritmo da música popular: "Míaía. Míata" "Meu igual, meu irmão!" pensou Gelfius e, num movimento espontâneo, avançou
na direcção de Rassiem, por cima da mesa, a sua larga mão de pianista.
- Há muito tempo que não vinha aqui! Lembra se como me tirou de cá, Rassiem? Sim, foi aqui que eu vivi, aqui que, noite após noite, tocava: e as mulheres passavam-me sanduiches do caviar que já não queriam, e eu era miserável, Rassiem, miserável.
Hannès pensava: Não quererás ajudar me tu, com essa cabeça desgrenhada, as algibeiras cheias de livros, e a tua partitura?" E as pupilas aumentavam, vacilantes, nos seus olhos claros que tinham chorado muito.
- É preciso a gente pensar, Rassiem, que não nos devemos nunca considerar perdidos. Quanto mais não seja, temo-nos ainda a nós próprios; sim, no fundo, temo nos sempre a nós. É isto que eu digo: já ali estive sentado, é verdade, mas a minha música já existia em mim. - e, com as mãos, bateu na partitura - Que a gente seja feliz ou sofra, é indiferente, contanto que isso ajude a obra. A obra, Rassiem, a grande obra. o trabalho, é tudo. Não é verdade que, apesar de tudo, temo nos a nós próprios?
Tocava se uma dança, Espanholas, de cores garridas, apareceram na estreita sala e agitaram se em selvagens ademanes entre as mesas, diante dos espectadores.
- Um tango. - disse Rassiem - Bravo, um tango! Gelfius continuou a falar.
- Lembro-me exactamente da noite em que o vi aqui pela primeira vez. Estava bêbedo como um cacho, tinha uma rapariga ao colo, regava-lhe o peito com champanhe e cantava.
- .o recitativo do Graal. - murmurou Rassiem.
- Sim, o recitativo do Graal. Era tão puro, tão puro, Rassiem! Depois, chorou.
- Oh! olhe, - murmurou Rassiem -olhe: as pessoas estão cor de cinza nesta sala; vejo tudo, tudo cinzento. É horrível.
-Amanhã trabalharemos no Tristão, Rassiem, -disse Gclfius.
Uma dançarina encostou-se ao ombro do tenor e pegou lhe no copo.
- Dá me de beber. - pediu ela, acariciando-lhe o rosto com a mão delicadamente perfumada.
Ele agarrou-lhe o braço e olhou-a em pleno rosto, com uma curiosidade extraordinária.
- Então, que é? Não me reconheces? Não? Eu não te esqueci. Tu não és dos que se esquecem facilmente. Ofereces me de beber?
- Porque está tão desesperada, menina? -preguntou Hannès Rassiem. Estaria a sonhar? Viu se como num espelho, inclinado sobre um rosto pintado: era agora apenas um loiro rapaz de vinte anos que fora pela primeira vez a Copenhague.
- Bêbedo, absolutamente bêbedo! - disse a dançarina, interrogando Gelfius com o olhar e, de súbito, reconheceu o:
- Mas. és tu? O músico? És realmente tu? Que chique estás! í Que tem o nosso belo Kammereãnger, que lhe falta ?
G lfius considerou o rosto transtornado de Rassiem e encolheu os ombros.
- Ah! vai-te embora, deixa-o empaz! Entretanto, Rassiem conservava apertado o braço da mulher e puxou-a para si.
- Dá-me, dá me, - murmurou ele - tenho fome, dá me o que desejo; dá-me, pois estou cansado. Para que não pense, para que possa dormir. Dormir!- disse com melancolia.
Depois, dirigindo-se apenas aos olhos da dançarina:
- Dize, tens um filho?
Ela recuou bruscamente, mais ferida pelo tom do que pela pregunta:
-Está bêbedo! Que quere de mim? Que lhe fiz eu ? -gritou e a sua voz era alta e penetrante - com certeza que tenho um filho! Quem é que não tem filhos? Mas que lhe fiz eu? Que quere de mim?
Então apoiou a cabeça na mesa e rompeu em soluços histéricos.
- Que lhe fiz eu? - repetia sem cessar,
Rassiem olhou a.
- Meretriz! - exclamou ele, muito alto.
Depois levantou se, e a sua mão, tateando, derrubou a garrafa de champanhe. Gelfius pôs a sua partitura em segurança e, através da espessa atmosfera cortada de risos e de gritos, abriu caminho para a saída. Berger estava sentado fora da sala, ao pé da mulher do vestiário. Dormia.
- Estou embriagado? Não. - disse Rassiem, com olhos receosos -Nem sequer posso embriagar me. É coisa que já não posso fazer e por causa da Maria. Maria.
Gelfius fechou o carro e disse a Berger:
- Para a casa de Viena. Amanhã, às dez, venho ensaiar o Tristão.
Depois foi se embora, com a partitura debaixo do braço, inacessível no seu mutismo como atrás duma parede de vidro. As ruas estavam calmas e vazias. Gelfius levantou os olhos: as casas pareciam amontoar-se, infinitamente pequenas, enquanto que, lá em cima, na noite cristalina, as estrelas planavam sem limites.
Arrasado. Rassiem caiu na cama e dormiu, pela primeira vez, ao fim de cinco dias. Caiu no sono como se cai num poço, num negrume absoluto, sem margens, sem sonhos, sem fim. No entanto, quando emergiu, o ar úmido da manhã entrava pela janela; tinha as pestanas molhadas, o coração aliviado, como se o tivesse esvaziado a chorar durante a sua inconsciência. O quarto estava escuro e duma nudez estival, as janelas, sem cortinados, abriam se como olhos sem pálpebras. Semelhantes a pequenos frades mendicantes amarelos, as cadeiras cobertas encostavam se contra a mesa, num quarto vizinho. Pela porta entreaberta, alguém poderia entrar, trazendo más notícias.
Rissiem suspirou dificilmente e voltou a mergulhar no sono. Caminhava num campo, o campo dos seus sonhos, que já conhecia, e estava horrorosamente fatigado. Cavalos negros saiam do bosque próximo. Caia um fino granizo dum azul de aço que parecia uma avalanche
de agulhas, batendo lhe dolorosamente nos olhos. Soou um tiro e ele pensou: "Pronto, é o suicídio! Ela matou se!" Agora, um firmamento de arcos íris arredondava se em cúpula sôbre o campo; um calor inexprimível, doce e claro, penetrava o. Estava deitado, com a cabeça tranquilamente apoiada a uma almofada de tomilho, e, distante, uma mulher avançava no campo, bela e nua, dizendo: "Adeus, minha mocidade, adeus!" Ele estendeu os braços e agarrou a puxando a de longe contra si, quente e desejável. Reconheceu-lhe os membros e o cheiro a tomilho. Segurava Dima nos braços, Dima deitada sobre o seu peito, que chorava como se nunca mais pudesse parar. Ele tinha as mãos cruzadas em redor dos seus ombros e ficou assim, sem se mexer, ainda num meio sono, ouvindo lhe os soluços com um estranho sentimento de volúpia : "Choras enfim, insensível, choras finalmente sobre mim!" -pensava.
- Onde estiveste tanto tempo? Onde estiveste. tanto tempo? - murmurou Dima quando pôde recobrar a voz, exactamente como Elis lho tinha preguntado Onde estiveste tanto tempo?
- Ao pé da minha mulher, Dima; ela está doente.
- Ao pé dela! - repetiu Dima, e toda a doçura se apagou do seu belo rosto -Porque não me escreveste?
-Tu também não, Dima, porquê?
- Eu não corro atrás de ninguém. - disse ela, endireitando se.
Ele olhou a: agora que ela se encontrava presente, sentiu se poderosamente impressionado ao ver como estava radiosa, bela, forte e maravilhosamente jovem. Os seus olhos guardavam ainda o reflexo das lágrimas; ela parecia nova e diversa.
- Como é bom que estejas aqui; como é bom, bom, bom . - disse.
Ela sentiu até que ponto ele era sincero e não preguntou mais nada.
- Que fizeste este verão, conta ? - exigiu. Imediatamente as mãos de Dima voltaram a crispar-se, e respondeu:
-Não tenho nada, absolutamente nada a contar.
É verdade - pensava ela - não se conta isto: o receio, o receio mortal, inexprimível, de te ter perdido. As noites que passavam como debaixo de chicotadas. O ciúme ardendo como sal sobre uma ferida aberta. Pensamentos que corriam como loucos. orgulho e desespero . orgulho e desespero. Não, nada tenho a contar."
- Estudei a Isolda ; - disse ela - o segundo e o terceiro acto. E esperei, preguntando a mim própria, se tu virias. Ontem vi-te, passaste de automóvel junto de mim. Hoje, não podia mais. Hoje, não podia suportar mais, tinha que vir para ti.
Ela olhou o e teve um riso profundo e baixo.
- As tuas pestanas, querido, os teus ombros, as tuas mãos. Queria dormir ao pé de ti. - murmurou, fatigada.
- Mas tens os cabelos úmidos e a roupa também.
- disse Rissiem com uma irreflexão singular, enquanto um fosso se abria entre eles.
- Chove. Esperei muito tempo lá fora, em frente da casa, muito tempo .
Depois, com um gesto impetuoso, ela exigiu:
- É preciso que me beijes .
Sou novo, - pensou ele, ao contacto desses lábios que tomavam posse de si e de todo o seu sangue - sou novo, novo, novo!" No entanto, durante o segundo seguinte, notou, com horror, que ficava diante de si próprio, observando a sua própria atitude. Pela primeira vez na sua vida, Hannès Rassiem teve a sensação de proceder mal para com sua mulher, E largou Dima.
- Pobre! - disse ele, invadido duma trasbordante piedade, tomando ternamente o rosto da rapariga entre as mãos - Pobre! Perdoa-me!
Ela não o compreendeu; no entanto, enterrou sem dizer nada, todo o sofrimento do verão passado e respondeu:
- Agora tudo está bem. Sim, tudo vai bem, agora.
Estas palavras, já pronunciadas por outra, ergueram-se como uma sombra, no quarto: quebraram a ternura nas mãos de Rassiem,
Da sala de música, o fino som dum relógio rolou:
- Tenho que me levantar. - disse ele, de súbito, nervoso - Gelfius vem às dez horas para ensaiar o Tristão.
- Tristão!
Rassiem lançou sobre ela um olhar rápido: o apelo era insistente e parecia uma prece.
- Tu. podes ficar, podes ensaiar o segundo acto comigo. Enquanto esperas, vai para o piano e faz um pouco de exercício. Agrada-te?
Dima agarrou lhe vivamente na mão e beijou-lha; havia nesse gesto uma mistura de amor, de humildade, de ilusão colegial e de orgulho que inundou Rassiem de calor:
- Minha Isolda! - disse ele e, imediatamente se sentiu furioso, Aquilo cheirava a cabotinismo.
Meia hora mais tarde, Gelfius apareceu na sala de música. Ficou admirado ao ver Dima, mas disse com o ar mais cândido do mundo:
- Chove horrorosamente; pareço o BasíliodoBarfóro! Depois, brandiu energicamente o chapéu e o guarda-chuva que projectou pingos em todos os sentidos.
- Homem!-disse Rassiem, aborrecido - Faze o favor, duma vez para sempre, de não entrar numa sala com todo esse arsenal. Tens uns modos positivamente deploráveis.
Gelfius, triste e envergonhado, levou o guarda-chuva para fora. com a mão esquerda, que mergulhou, em busca de socorro, na algibeira do sobretudo, encontrou um livro de prosa de Lessing e um opúsculo de Brentano que lhe deram consolação e amparo. Quando tornou a ver Dima, estava de pé junto ao piano e o seu corpo parecia um arco tenso.
- A menina Dimatter ensaia connosco, vamos cantar.-disse Rassiem, e atirou fora o cigarro -Eu. hum!. não estou com voz, ainda é muito cedo, sinto-me fati gado. Bato apenas o compasso.
E, maquinalmente, voltou ao gesto de passar a mão pela testa. Extraordinariamente despertos e atentos, os olhos de Dima mergulharam nos de Hannès Rassiem que,
cobardemente, se desviaram. Isto durou um segundo, mas, durante este segundo, eles enfrentaram-se como dois inimigos. Então, Gelfius curvou as costas e fez ondular o véu de Isolda.
Rassiem meteu a mão na algibeira do casaco e começou indolentemente a contar:
- . dois. um . dois. isolda!. A voz de Dima subiu como uma chama:
- Tristão! Meu amado!
Pareceu a Rassiem que passava dum corredor frio e escuro como uma cave para um ardente calor de verão; qualquer coisa se abriu em si. Respirou profundamente e deixou-se transportar, subir! Abandonou se, ele e a sua voz, e lançaram se no amor eterno do canto de Rameau, como sobre asas.
Ao fim duma hora, terminaram.
- Então? - preguntou Gelfius, fulminando Rassiem com o olhar - Julguei que já não tinha voz. Mas parece-me que não foi mal!
- Sim . - concordou Rassiem.
Estendido sobre o canapé, ele estava duma palidez aflitiva: os cabelos loiros pendiam lhe sôbre a testa.
- Sim. - disse ainda com certa incerteza e olhando para as mãos com ar preocupado.
- Mais um pedaço do último acto ? Você está tão bem! Sim ?
- Não, obrigado. Estou farto. Mas a pequena . gostaria muito de ouvir o fim, menina Dimatter, se quiser? Vamos a isso, se faz favor.
Dima fechou os olhos: imediatamente a visão familiar de Isolda surgiu diante dela. Era assim que caminhava, as mãos torcendo se no vácuo, contemplando o cadáver do bem amado, numa dor inexprimível. Era assim que ela morria.
- Santo Deus! Santo Deus! - disse Gelfius, muito tempo depois de Dima ter acabado.
Rassiem olhou a e murmurou:
- Bem. Muito bem.
Ela deu uns passos sob o seu olhar, como que inundada
de sol. pôs-se diante do espelho e sorriu à sua imagem, subitamente tímida e perturbada. O teclado do piano fechou-se com um ruído seco, cortando ao meio o silêncio.
- Lá fora, o sol brilha; a chuva já acabou. Se eu fosse a si, Rassiem, agarrava no carro e punha me a rolar sempre em frente, no mundo lavado de fresco. Ontem não estava com boa disposição, amanhã tem de cantar o Eleazar. Pelo amor de Deus, saia da cidade. De contrário, tudo correrá mal!
Gelfíus foi buscar o guarda-chuva e o casaco, repetindo, insistente:
- Lembre se que tem o Eleazar amanhã.
E desapareceu, com os cabelos em desalinho. Dima, de olhar perdido, estava de pé, em frente da janela.
-Sim, o sol voltou a brilhar. -disse ela, enquanto os seus pensamentos tomavam outro caminho.
- Aprendeste muito este verão, minha filha. É incrível!
- Sim, muito. Mas não ainda o bastante. O primeiro acto não está bem, não posso chegar onde quero. Sei-o musicalmente, tecnicamente, mas mais nada. Ainda não o tenho; existe ainda uma barreira que não transpus. E nisso tu não podes ajudar-me, sr. Kammerânger.
Interrompeu-se, corando levemente; os seus pensamentos tomaram dois caminhos diferentes :
-De resto, onde se aprende isso? com lições? Na escola ?
- Sim, como e onde? Sim, como? - repetiu ele, enquanto a sua mão se movia, sem destino, diante da testa-Ah! deixemos agora isso. Hoje está agradável, trouxeste-me hoje um belo dia. Vamos rolar por Sutnmering. onde o ar das montanhas é tão bom e tão leve. Às vezes tenho dificuldade em respirar, sim, dificuldade.
com os seus dedos curvos, Dima fez um gesto como se quisesse enlaçar qualquer coisa, agarrá-la: mas era inacessível e os dedos fecharam se sobre o vácuo. Berger teve que tirar rapidamente o carro da garagem.
-Fecha a casa e vai esperar-me a Rodaun!-ordenou o patrão,
Berger dobrou-se ao meio, numa mesura. Então, eles partiram à frente, ao sol, atravessando um ar de cheiro úmido e doirado, sob o céu onde as nuvens flutuavam como bandeiras raspadas, estendidas.
com o olhar aguçado, Rassiem lançou se sobre a estrada que rolava ao seu encontro. Dima, junto dele, observava-lhe o rosto de que só via o perfil, com a madeixa loira sobre a testa; do lado direito, uma ruga que descia dos olhos à boca. junto dos lábios exercitados, vincava-lhe a expressão humana, singularmente perturbadora.
"És tu,-pensou ela-tu!" Comparava esse rosto com o que, em muitos dos seus sonhos, lhe aparecera, selvagem, terno, apaixonado, sempre trasbordante de amor, trasbordante de amor. Ela disse: iOlha para o bosque, como é belo!" Depois: "Olha a igrejinha." E mais longe: "Vamos a andar bem." E enquanto dizia isto, ela pensava, sem cessar: "Chega-te para mim, sê tu, não posso mais. Tu!" E pensava ainda: "Há um espaço vazio entre nós." E depois: Nunca o encontrei tão triste, tão mortalmente triste!" Ria alto, indicando a paisagem móvel e, desesperada, mentia.
- Está lindo, hoje, não achas? Tu estás ao pé de mim, eu amo-te, sou feliz.
Hannès Rassíem passou o braço livre em redor dela. Rolaram através do campo, aperrados um contra o outro, como dantes. Sentaram-se no terraço do Sommering, as suas mãos buscaram-se, como dantes. Diziam palavras de amor, como dantes. Mas pareciam fantoches a representar um velho papel. Toda a sua ternura estava ligada a fios suspensos no ar. No bosque, o outono penetrava insidiosamente como um velho curvado que procura as últimas flores e as leva consigo. Pareceu a Dima que uma antiga ferida invisível voltava a sangrar, enquanto que, lentamente, o automóvel descia de novo o vale, no crepúsculo.
- Que foi, Dima ? Estás tão branca ? Tornas te, de segundo a segundo, mais pálida. Estás doente ? Querida, vem cá, amo-te! Eis ressuscitada a velha palavra! E meteu-a debaixo
do casaco, acariciando-lhe o cabelo. Durante o espaço dum minuto, tudo correu bem.
- Não é nada, Hannès. São tolices, com certeza. Esperei muito tempo e pensei sempre: Se o tiver outra vez, tudo será tão belo! Incrivelmente, infinitamente belo!" E agora tudo me parece pouco, Não te posso prender, não te posso segurar! No entanto, o teu coração bate. Diz me que.é criancice .
Ele beijou a, brincando, como se beija uma criança.
- Louquinha querida !-murmurou, e o carro continuou a deslizar pelo vale, na noite que caía.
Aninhada no braço de Rassiem, Dima lançou um olhar ensombrado sobre as nuvens que se acumulavam em vagas informes sobre os Matten e começavam a tornar se alterosas como o mar.
"Como pudeste fugir assim?" queixava-se o seu coração. De repente, apareceu Isolda, no barco, fechada na sua dor secreta e amarga, estorcendo as mãos, aprisionada num resto de pensamentos: amando, esperando, orgulhosa e desesperada .
Ouviu-se uma detonação. Rassiem soltou uma praga, o carro deu um salto, rodou sobre si próprio sem poder parar, depois recebeu o choque. Dima foi bater duramente em qualquer parte.
- Pronto! -disse Rassiem-Só nos faltava este aborrecimento. Numa descida destas rebenta um pneu! E não temos outra roda. É lindo!
- Onde estamos ?-preguntou Dima, aturdida, vendo em roda do carro, luzes que obrigavam a piscar os olhos.
- Diabo! Que vamos fazer? Encontramo-nos em Payerboch; tu estavas a dormir, não ? E agora vem aí uma tempestade de todos os diabos. Meu Deus! Meu Deus!
Dima saiu do carro e pôs se a rir. Rassiem bateu, com cómico desespero, no pneu doente. O céu vazava se sobre a terra, num barulho que aumentava. Em breve, as ruas, os carros, os casacos, ficaram luzidios de umidade. Em frente do fraco clarão dos faróis, distinguia se um ponto na obscuridade, como um amalgamado de casas, subindo em zigue-zague pelo alto da colina. Do outro lado da rua, uns curiosos abrigavam-se debaixo
dum velho castanheiro. Atrás duma barreira, havia mesas de hotel: dois criados, com a cabeça coberta com aventais brancos, debatiam-se sob a chuva, para salvar da inundação umas toalhas listradas de vermelho e uns copos de cerveja. Rassiem praguejou em vários idiomas e Dima ria, ria, divertida com isto. Por fim, saiu alguém da estalagem, e aconselhou-os:
- Em Zwirstnger há uma estação do Automóvel Clube; o pequeno pode correr e vai lá pedir informações. Se, entretanto, os senhores quiserem dar se ao incómodo de entrar no restaurante. Também temos concerto.
- Bem, bem. Pelo amor de Deus, entra, filha! O ar está úmido. Os de Zwirsinger vêm examinar isto. O menos que nos pode acontecer é passarmos a noite aqui, não é verdade?
De súbito, a noite tomou um rosto benévolo e alegre. Pelas janelas iluminadas, a estalagem lançava um olhar sobre o jardim molhado; as ventoinhas roncavam, ofertando, como que a brincar, um ar úmido que ondulava em frente da lanterna da entrada. Na porta, os cartazes anunciavam uma grande festa artística, com o concurso de celebridades teatrais, de primeira ordem. A sala, cheia, estava quente e ruidosa. Entre os burgueses das ilustres comunas de Payerboch e de Reíchenau, encontravam se sentados, exageradamente vestidos à moda do campo os últimos hóspedes de verão. O fumo acumulava-se, em camadas densas, sob o teto.
No meio de súbito e espantado silêncio, Dima e Rassiem avançaram pela estreita passagem até à mesa onde ficava o pequeno estrado. Aí, havia ainda um lugar. Um letreiro indicava: "Primeiras cadeiras de orquestra", e havia copos para vinho, dispostos numa mesa que convidava a abancar. Rassiem olhou com ar triste para o casaco molhado, e apalpou a garganta, dizendo:
- Contanto que amanhã não esteja rouco! Queira Deus que tudo corra bem. Oxalá, oxalá não esteja já tomado.
Aspirou o ar pelo nariz, bateu no estômago e tentou umas notas: "Mi-mi-mi, dó dó mi!" Vai bem. "Tenho frio nos pés, e tu?" E encomendou vinho quente. Um homem gordo estava de pé no estrado, soprando com toda a força dos seus pulmões numa corneta que dava trémulos sentimentais. Não deixou de produzir o seu efeito e enquanto, azul e inchado, descia os degraus, aplausos e barulho de pés acompanhavam no.
com o espírito estranhamente embaraçado e pesado, Dima considerava, sorrindo com ar ausente, as paredes, as volutas de fumo, os rostos obscurecidos; bebia vinho quente e conservava apertada, por baixo da mesa, a mão de Rassiem.
Este sentia nisso qualquer coisa de doloroso; no entanto tinha uma sensação extraordinária de felicidade ao esconder assim os dedos nos de Dima. Bruscamente, ela sentiu a mão abandonada, como que atirada fora e ouviu Rassiem dizer : "Que demónio ! Que demónio ! e ainda uma vez: Que demónio!" No mesmo instante, o piano fez ouvir a sua voz, tentando abrir caminho no meio da confusão de murmúrios e ruídos diversos. Dima ergueu a cabeça e, lentamente, corou.
Lá em cima, no estrado, a Lukas acabava de aparecer. E o facto dela cantar ali, daquela maneira, movendo assim os ombros, acordava em Dima uma vergonha imprecisa. A Lukas tinha engordado, estava mesmo gorda de mais, a sua carne já não parecia nova: desbotara. O seu vestido, incrivelmente elegante e rico, era guarnecido por uma renda cara mas amarrotada, mole, cinzenta, como se a tivesse arrastado muito por salas fumarentas; também já não era da última moda e via se que fora comprado em saldo. Os cabelos da cantora estavam mais loiros, quási ruivos, e frisados em múltiplos caracolinhos. A Lukas sorriu, descobrindo os dentes, para conquistar a sala, e entoou uma canção dolente.
-Meu Deus! No que ela se tornou.-murmurou Dima.
Rassiem rolava nervosamente uma bola de pão entre os dedos.
- Está sem voz, - disse ele, em surdina - o médio
está arruinado, já não existe, i O belo material vocal, a bela voz, tudo completamente quebrado!
- Como é triste! - disse Dima, singularmente perturbada - Como isto soa tristemente: quebrado.
- Não notas? O salto começa no já; aí dá-se uma grande falha, faltam-lhe os médios. e os agudos nunca foram extraordinários. Ora escuta !
Rassiem estava todo entregue àquilo: a Lukas distendia os músculos do pescoço, que inchava, tomando um fôlego formidável e, de repente, saía uma nota aguda, acre e penetrante.
O público, encantado, rompeu em aplausos. Ela agradecia com os olhos, com os lábios e com uma espécie de baloiçar do busto meio nu, enquanto o piano preludiava a canção imediata.
De súbito, uma perturbação extraordinária e evidente leu-se no seu rosto, o canto enfraqueceu e só dificilmente recomeçou. A Lukas tinha-os visto aos dois, cá em baixo.
Os seus olhos correram de Rassiem para Dima e fitaram-nos como agulhas. Dima sorriu timidamente e aplaudiu. Rassiem, contristado, não podia estar quieto.
- Ah! não, é-me impossível ouvir mais.- disse ele, enquanto a Lukas começava a ária de Elisabete - Não posso mais, vou ver como está o carro, - e saiu da sala em bicos de pés, seguido por movimentos de cabeça, reprovadores, do auditório.
As expressões da Lukas tornaram-se singularmente dolorosas, retirou o olhar de Dima, para seguir Rassiem através da multidão, até à mesa do maitre dhôtel na parede do fundo, até o ver desaparecer atrás do reposteiro vermelho, da saída. Então, as suas mãos tremeram ao longo do vestido usado, com uma expressão tão forte, de desespero, que Dima estremeceu. A melodia terminou razoavelmente e, durante os aplausos que se seguiram, a cantora veio direita á mesa de Dima.
- Porque é que ele saiu? - preguntou, sem mais preâmbulos.
- Tinha que ir ver o automóvel. - disse Dima, fazendo um movimento para lhe estender a mão.
- Ah! sim, o automóvel! Tinha medo de não lhe ter agradado. Fiz um tal esforço sobre mim própria! Na verdade, é uma tolice, já não sou uma menina do Conservatório!
- Foi muito bem. - tentou Dima, não sabendo que dizer.
- O quê ? Ah! sim, o agudo que tenho agora, não é? Como vê, pode muito bem aprender-se qualquer coisa sem aulas de canto! i Talvez imagine que a vida me corre mal ? Mas não, minha querida, estou muito contente, muito! Existem flores, vestidos. Em Wiener, Neustadt, vive-se muito bem. Agora, provavelmente, vou partir para Troppau; um dos meus amigos foi lá colocado, um engenheiro, rapaz encantador. Tem relações e manda-me ir.
- Muito bem. - disse Dima, encorajante.
A Lukas olhou vagamente na sua frente. Nas mesas, em redor, tinham parado de comer e de beber e observavam com curiosidade as duas mulheres.
- Então ele foi ver o carro? Sim, naturalmente: é
o seu cavalo de batalha. Oh! eu conheço isso! Vieram em passeio de automóvel ? Muito bem, mas tenha cuidado em que não vá tão longe como foi comigo. Se soubesse como ele nos abandona! Ah! mas é preciso a gente refazer se depressa. Quando me lembro! Não desejo o que sofri à minha maior inimiga. E sabe como isso começou? Tolamente, em passeatas de automóvel : um passeio aqui, uma festazita ali, um pouco de vida elegante, uns beijos, um pouco de amor! Ah! caramba!
- Não compreendo, querida amiga, não é assim .
- balbuciou Dima, sentindo os lábios secos.
- Mas sim, é exactamente assim que acontece e depois larga! Trata-nos como cães. - disse a Lukas, cuidando cada vez menos a sua linguagem - Depois, a gente prende-se, não pode esquecer-se dele e tornamo-nos umas palermas, sem voz e sem contrato. Porcarias. porcarias. é tudo quanto se ganha com o "primeiro amor".
- Não sei. - balbuciou Dima, penalizada, sem saber que tinha empalidecido.
- Vamos, vamos, não faça cerimónia. Divirta-se, aproveite. e cumprimentos ao sr. Kammersànger.
Em pé, sob a lanterna da entrada, Rassiem distribuía gorjetas. O carro esperava, atrás dum véu raiado de chuva. Dima tremia, apesar de ter as faces quentes.
- Agora, para casa, o mais depressa possível, oxalá tudo corra bem. - disse Rassiem - Oxalá eu não tenha enrouquecido. Mi, mi, mi. - E partiram.
Dima notou, ao clarão dos faróis, uma grande ruga na testa do seu amigo e calou-se, receosa. Nuvens ameaçadoras e baixas estavam suspensas no ar; havia vento e uma chuva fria. As luzes reflectiam-se na areia molhada.
- Uma bela excursão! Foi agradabilíssimo ! -resmungou Rassiem -E que horrível frio!
Dima chegou-se a ele, respirando sobre o seu ombro como se fosse um vidro protector e, na verdade, esse calor melhorava-o um pouco.
-Não te aflijas, filha,-disse, encostando-se mais a ela -andamos bem, daqui a uma hora chegamos a Rodaun. Depois, lá está quente.
- Tu, sim, mas eu tenho que ir ainda para Viena, esperam-me em casa. í Que pensaria a Sofia se eu passasse a noite fora?! Ralhava comigo. Dize, levas-me a Viena, por favor?
- Não sejas ridícula. - cortou ele, furioso.
- Como queres tu que te leve ainda a Viena? Que ideia é essa? Tu ficas em Rodaun, está entendido, Sempre essa eterna e estúpida comédia da tua família!
- Mas a Sofia .
- Então que tem a Sofia? Farei tudo para a tranquilizar. No corpo de baile não se é tão intransigente com estas coisas.
Assim rolaram em silêncio, através da noite espessa, apenas com o clarão branco dos faróis diante deles. Ao longo do bosque, as árvores destacavam-se na sombra como entes solitários e retiravam-se, em seguida, para o escuro. Ali, já estava mais quente. Depois veio a planície, descoberta como uma imensa tábua negra, atravessada por uma brisa gelada, onde os olmeiros
se curvavam, sob a rajada. Rassiem espirrou duas vezes e a corrida continuou, mais louca, mais silenciosa, para casa.
Berger, que encontraram adormecido à entrada, recebeu durante o primeiro minuto tantas ordens que se pôs a turbilhonar em todos os sentidos, rolando do alto das escadas como numa vista de cinema e desencadeando uma torrente de ruídos diversos.
- Um banho muito quente! Não; primeiro, vinho a ferver e aquecer o meu pijama! As pantufas! Uma infusão de tília! Aspirina! Uma botija na cama! Preparar também o quarto de hóspedes.
Rassiem andava no vestíbulo, dum lado para outro, com os cabelos loiros muito úmidos, volitando, cantando notas soltas, a meia voz, batendo na garganta e no peito, dizendo ao mesmo tempo frases entrecortadas
a Dima que, tranzida, molhada até aos ossos, se encolhia
ao pé da chaminé apagada.
-Desculpas, sim? Mas, neste momento, a minha
voz é o mais importante. A, a, a, a, vou tentar uma cura de transpiração, mi, mi, mi, os agudos ainda estão bem. Berger, vou fazer uma inalação! Não tens frio, filha? Se eu amanhã estiver doente, o meu amável colega apanhará o meu papel. Há muito tempo que ele anda à volta do Eleazar. A gente nova quere devorar tudo ao mesmo tempo: "Recha, ah Gott dich einst (1), G-o o í-í." Vês? Ouves? "Got£ dich einst zur Tochter mir gegeben" ().
- O banho está pronto. - anunciou Berger, descendo a escada - Depois, vamo-nos meter na cama e transpiraremos como é preciso.
- Bem, bem. Traz-me a infusão de tília, quando eu estiver deitado. Boa noite, filha, não ficas zangada, pois não? Primeiro, a voz. Oh! como tens os lábios frios. Vai depressa para a cama! Boa noite!
-Nós deitamo-nos no quarto de visitas.-preveniu
(1) Recha quando Deus, um dia.
(2) Te deu a mim por filha.
Berger, plantando se com as suas pernas tortas diante de Dima. - Temos já a cama quente.
- Sim, muito obrigada. Está muito bem. Parece-me que também estou com um pouco de febre. Tudo me parece tào extraordinário que me sinto perturbada.
Os seus dentes batiam com força, mas ela sentia que aquilo lhe vinha dos nervos, que estendia em redor da sua cabeça uma teia dolorosa. Assim que se deitou, deixou de tremer. No entanto, ficou ainda muito tempo acordada, olhando a lâmpada revestida de vermelho e escutando os ruídos dominantes da casa. Aqui, era o Berger que corria e se apressava, devorado de zelo; além, era Rassiem gritando no outro quarto a pedir uma compressa; a água corria na banheira, perdendo se em glus-glus. Mais tarde, foi o barulho duma colher de café; Berger andava em bicos de pés; ouviu-se o ruído seco dum interruptor eléctrico. O relógio da entrada fez ouvir o seu ruído surdo. Depois, não houve mais que o murmúrio da chuva e o canto das árvores vergadas pelo vento.
"Amanhã tudo será diferente"-pensou ela, enquanto, de punhos cerrados, adormecia.
Acordou fresca, com o espírito bem disposto, tendo a impressão de sentir deslizar pelas mãos qualquer coisa de infinitamente doce e feliz. Sonho? Desejo? No quarto estava fresco; a brincar, esfregou a planta dos pés na superfície fria do sobrado, lançando um olhar para o jardim. O céu estendia-se, rígido e muito azul, sobre a folhagem um pouco amarelecida das árvores; o sol tinha um sorriso tímido, o chão das alamedas estava úmido e escuro por causa das chuvas da noite. Marginando, floresciam os asteres, de cores vivas. Quando ela saiu do quarto de banho, Berger apareceu com os seus sapatos silenciosos.
- Chut, chut, ainda estamos a dormir. Não devemos ser acordados por nada deste mundo. Andamos há muitos dias insensatos, atiramos as botas à cabeça das pessoas, como nunca. E se ainda por cima enrouquecemos!
- Sim, sim, tem razão. - disse Dima, altiva,
Depois, lentamente, com precaução, abriu a porta e, avançando para a cama de Rassiem, pôs se a olhá-lo: a sombra das pestanas, os cabelos loiros, as longas mãos de raça, estendidas sobre a coberta, que, nervosamente, estremeciam em sonhos. Inclinou-se sobre ele; então, viu também os dois novos sulcos de fadiga e de sofrimento em redor da sua boca. Um violento sentimento de calor fez lhe subir as lágrimas aos olhos e como beijasse levemente a mão do adormecido, sentiu um amor novo, maior, mais terno, nascer em si. No seu sonho, ele fez um gesto para a agarrar, murmurando: "Tu", e continuou candidamente o sono.
com um sorriso misterioso, Dima desceu ao jardim. Em baixo, Berger cortava flores para a mesa do almoço.
- Já não há rosas?
- Há ainda algumas, das amarelas, ao pé do lago; já não são muito bonitas.
E como Dima se dirigisse para esse lado:
- Mas não as devemos cortar, é preciso deixá-las para o caso de serem precisas, disse o senhor.
"Para mim ?"- pensou Dima e continuou a sorrir. Em casa, uma campainha chamou. Berger correu para o interior e o coração de Dima pôs-se a bater tumultuosamente: "Ontem foi um mau dia, mas hoje vai renascer a felicidade. Amo-o tanto!"-pensava o pobre coração; uma espécie de gérmen terno palpitava nele enchendo-o de vida e de calor. "Que dirá a Sofia ? - pensava Dima. "Ah! tolices, tudo tolices, uma só coisa tem importância, uma só."
O portão do gradeamento branco do jardim bateu, ao fechar-se. Uma senhora acabava de entrar. Devia conhecer o mecanismo secreto da fechadura. Vestia um simples fato verde, muito distinto. Sob a aba do chapéu, resplandeciam dois grandes olhos, lindamente sombreados; tinha uma boca bastante grande, orgulhosamente grossa. com uma graça especial, deu alguns passos na alameda, ergueu a mão, notavelmente estreita, enluvada de cinzento-claro e disse a meia voz, muito delicadamente e não sem embaraço:
- Desculpe-me. bom dia . desculpe-me. Meu
marido. o sr. Rassiem está em casa ? Parece-lhe que o incomodo?
A senhora sorria, tímida e cordialmente, e disse ainda:
- Desculpe-me, peço-lhe. bom dia .
Depois, transpôs os degraus da varanda e desapareceu dentro de casa. Petrificada ao pé das rosas amarelas, Dima viu a afastar-se. Um instante mais tarde, notou que o sangue lhe corria sobre a mão, porque tinha apertado uma haste coberta de espinhos. No entanto, não lhe doía.
Ao fim dum lapso de tempo, impossível de definir, uma espécie de boneca grotesca rolou até ao jardim, cujas árvores se haviam tornado roxas movimentando-se como animais. Aquilo parecia ser Berger a tirar o carro da garagem.
Mais tarde, apareceu Rassiem conduzindo a mulher, ajudando-a a descer os degraus da varanda. A sua fronte pálida, resplandecia como nácar, os seus olhos cantavam, moços e azuis como nunca. Uma expressão risonha, que Dima não conhecia, estendera-se sobre o seu rosto e ela sentia que a mão que apertava a outra, estremecia de felicidade. Passou pela rapariga sem a ver; a senhora sorriu-lhe timidamente, gentilmente, como se houvesse entre elas um misterioso entendimento.
Ele passou e não a viu.
E Dima só conhecia em sonhos um gesto comparável ao gesto deferente e terno com que Rassiem ajudava sua mulher a subir para o carro.
II
Era em outubro, de tarde. Elis tinha cantado na penumbra a ponto de perder a respiração; agora era completamente noite. Inclinou a cabeça quente e dolorida contra o vidro da janela. A garganta ardia-lhe. Lá fora, as árvores pareciam erguer-se, estranhamente imóveis. Ouvia-se no silêncio a caliça caindo atrás das paredes e os passos do escultor que, lá em cima, no atelier, continuavam o seu perpétuo vaivém.
"Meu Deus, como estou fatigada!"- pensou Elis, depois. Mas ainda tenho que preparar para Gelfius o meu exercício de harmonia. Os acordes de quarta-sexta."
O pequeno candeeiro da secretária dava uma luz pálida; o caderno de música jazia ali, com caracteres aflitivamente direitos, tão desesperantes como mornas ruas de arrabalde. O acorde de quarta-sexta em dó maior estava plantado no meio da rua, um pouco cur vado para a frente: parecia um homenzinho de fato antigo, com pernas longas e um busto ridiculamente curto, vestindo uma pequena casaca incolor.
Mas aquele em fá maior estava vestido de veludo roxo; podia-se fazer dele um acorde em bemol: então o homenzinho inclinava a cabeça, tão profundamente e de maneira tão desolada que parecia querer chorar. E
agora Elis estava farta do seu trabalho. Mergulhada um pouco em si mesma, sorria misteriosamente, tirando da gaveta um papel que leu com uma alegria singularmente perturbada e um pouco envergonhada, pois Elis tinha composto ultimamente uma poesia, uma coisa estranhamente nua e miserável que titubeava e coxeava e a que ela queria ternamente. i Era tão consolador poder pôr em palavras os seus tormentos! E leu:
São tão estranhas as minhas noites
Desde que tu me beijaste.
De todas devo calar
Mas tu não deves falar
De quanto se passa em mim.
No meu leito flutua um pesado luar; Então, aperto os dentes, fortemente, Cinjo nos braços a almofada. Estremeço. E é assim que eu adormeço.
Ontem chorei
Quando a manhã na janela surgiu, Cinzenta, parecia envergonhada De quanto eu sonhara alucinada.
Faltava lhe o fim. Elis não o encontrava. Fixou um instante o clarão do candeeiro, depois escreveu no papel: dezoito anos.
Mas, de súbito, aproximaram-se passos, a porta foi bruscamente empurrada e Dima entrou. Deu dois passos impetuosos e incertos, cambaleou, caiu na chaise longue e rompeu em soluços estranhos, semelhantes a gritos de animal. Meteu o punho entre os dentes, mordeu-o, soluçando desesperadamente. O seu rosto estava cor de cinza, vermelho em redor dos olhos. Não trazia chapéu.
- Dima, pelo amor de Deus! Que aconteceu? preguntou Elis fracamente, sentindo-se cambalear.
Deixou se deslizar sobre o tapete, junto de Dima, chorando também lágrimas ardentes, tomando em seus braços a pobre desolada que tremia violentamente e disse, para a acalmar, palavras sem sentido. Era horroroso ou vir Dima soluçar assim.
Então, compreendeu duas ou três palavras que a outra repetia sem cessar, como gritos:
- Acabou-se, acabou-se. Acabou-se!
- Que foi que se acabou, querida? Sê gentil, acalma te, fala! Que foi que se acabou?
- Tudo, tudo! Acabou-se isto entre mim e Rassiem. Acabou-se!
- Isto ? -repetiu Elis, lentamente.
De súbito, compreendeu; as suas mãos tornaram-se hirtas e gélidas, os lábios também. Dima pôs-se de pé, meteu todos os dedos entre os dentes como se quisesse quebrar os soluços na boca. Conseguiu-o. Soltou um profundo suspiro, depois gritou, fora de si:
- Acabou-se, acabou-se! Compreendes isto? Não é difícil compreender. Acabou-se! É possível que acabe com a existência, que dê um tiro. mas primeiro mato-o a ele. A ele primeiro, juro-o. O amor: este amor! Não, tu não sabes o que é o amor. De repente, acaba-se, pronto. Passou! É possível, isto? Não devia ser assim! Ah! posso bem ir-me embora, rebentar! Dão-me um pontapé! Eu? Mas que sou eu? Rebaixei-me tanto! Mendiguei, Elis, sim, mendiguei! Beijei-lhe as mãos: iPelo amor de Deus, deixa-me ficar junto de ti, serei o que tu quiseres, tua amante, tua criada, a última das criaturas, mas conserva me ao pé de ti! Principalmente, não me escorraces!" Pois não! Escorraçou-me como a um cão! Só tenho uma coisa a fazer: matar-me! Mas a ele também, a ele também, miserável, canalha, ignóbil indivíduo! Ele volta para a mulher, entendes? Volta para a mulher e vai ter um filho! O porco arranjou lhe um garoto, esteve com ela este verão! Este verão! - gritou gemendo, com as lágrimas a correr em ondas. - Elis, tu não sabes, não, o que foi este verão, este amor sem limites, sem medida! E ele deixa-me para voltar para a mulher, que vai ter um filho!
- Este verão ? - murmurou Elis, sufocada. - De que maneira tu falas, Dima !
- Não é bonito, hem ? Não, eu também não sou bela, é verdade, já o disse. Estou na lama, na rua, toda a gente me pode possuir, sim, toda a gente, seja quem for! Que me pode isso importar? Quanto mais baixo descer, melhor. até é bom. Oh!Elis. Elis.-exclamou subitamente, mais calma - quando penso no que fui ainda há um ano! Tão orgulhosa, tão pura, não pensando senão em trabalhar e em triunfar! Ah! ele não me apanhou facilmente, não, acredita-me! Até que ponto pude defender-me contra ele, contra mim própria! Depois, como assim não podia ser, abandonei-me, dei-me, dei-me inteiramente. Agora nada resta de mim: vazio, vazio e porcaria. Não posso cantar, desagrada-me, o meu futuro acabou, já não existe, acabou-se! Já lá vão três semanas depois disto. Corro dum lado para outro como uma louca. O que faço. não, não vem de mim, porque é indigno o que faço. Na verdade, isto não devia ser. Então isto parece meu? Pois bem, tenho ido todos os dias a casa dele, Elis, e supliquei-lhe. Primeiro não, primeiro gritei, injuriei-o, feri-o, não podia crer que fosse verdade. Porque, enfim, é a mim que ele pertence. Amo-o, amo-o! Como pôde ele deixar de amar-me? Talvez eu não o tenha amado bastante! Quando tudo acabou, compreendi o que é amar. Então, continuei a baixar-me, sempre, cada vez mais. De noite, ficava diante da casa. Oh! essas noites! Essas noites! Imagina, Elis. tu estás ali, fitas a janela iluminada, a que tem cortinados cor de laranja, onde as sombras passam e tornam a passar, e olhas e sabes o que acontece no interior; depois, é a escuridão. Oh!-disse ela sucumbida - podia agora tornar-me uma Ortrude, uma Ortrude! Sei o que é ser devorada pelo sofrimento, estrebuchar na sombra quando o ciúme nos rói, enquanto, lá dentro, eles se divertem, Se, ao menos, pudesse deixar de o amar [-murmurou em voz quebrada, com um soluço desgarrado. - Mas não posso, e isso é o pior. Não posso. Sigo-o dia e noite, na rua, no teatro, por toda a parte e suplico-lhe : i Guarda-me ao pé de ti, não posso pertencer a outro, não posso renunciar a
ti! Como poderei renunciar a ele ? Tenho o de tal modo no sangue; só cortando-me as veias ele poderá sair. Para acabar, Elis, ele mandou-me pôr fora pelos criados. Sim, a mim! Quem sou eu agora? No entanto, fui altiva e pura, mais que qualquer outra! Mas ele quis seduzir-me a todo o custo! E, enquanto entre nós tudo era amor inefável, amor incrível, único, ele pôde ir-se embora, deixar-me, voltar para a mulher e. e arranjar-lhe um filho! Oh! Elis, e dizer que não se pode saber nunca o que a outra pessoa pensa! i Dizer que estou tão cruelmente só, bloqueada em mim própria! Quando estava fechada nos seus braços, ele traía me com os seus pensamentos. Julgava-me no Paraíso e, durante todo esse tempo, só estive deitada na lama.
- Sim. - disse Elis, de súbito.
E foi a única palavra que pronunciou.
Dima aproximou o rosto dos olhos de Elis. Ela estremeceu; foi como se acordasse.
- Que olhos os teus! Como estão fixos! - exclamou, aflita- Meti-te medo? Isto tinha que sair, compreendes? Era preciso que o dissesse a alguém. Agora tudo vai melhor. Se, ao menos, não houvesse noites! A noite, tudo volta, de novo.
Levantaram-se. Agarrando-se à parede, Elis viu uma forma branca que saía do espelho em frente e tinha, como um espectro, buracos em vez de olhos. Era ela própria. com um gritinho, caiu ao chão, desmaiada. Dima teve uma curta exclamação; levou os punhos à boca, depois, deixou os cair. Uma luz forte parecia bater-lhe nos olhos e murmurava num sorriso desvairado:
- Tu? Também ? -E saiu dali como perseguida por uma matilha.
Puxou a porta atrás de si com tanta força que o sobrado tremeu. Ao mesmo tempo, o martelo pôs se a ressoar lá em cima, no atelier, e Elis voltou a si. Abriu os olhos: o ruído tomava a forma dum pequeno anão verde e louco que se acocorava aos cantos escuros da casa e lhe dizia: "Sobretudo, não pensar! Sobretudo, não pensar!" Não era um anão, era o acorde diminuído de sétima em dó sustenido, vestido de verde-claro e corcunda:
dançava como um insensato, e fazia uma horrível pantomina na sombra.
Elis arrastou-se até ao escritório, encheu com os dedos trémulos a seringa de morfina e enterrou profundamente a agulha sob a pele azulada.
III
Na Ópera, davam, pela primeira vez, a nova interpretação do Trístão e Isolda. Sofia Dimatter tinha licença nessa noite e o sr. Edlinger arranjara também a estar livre; quanto à sr.a Gusti Edlinger, o seu estado exigia que a dispensassem ainda algum tempo das suas obrigações teatrais. Tinham comido rins grelhados; estavam sentados e contentes, embora um pouco aborrecidos pela ausência de Dima. O cheiro quente e agradável da cebola e do charuto do sr. Edlinger flutuava no aposento.
- Uma noite tão confortável. - disse - tão confortável, não é para desdenhar. Só falta um bocado de queijo e um copinho de vinho.
- Não precisas de queijo. - cortou a sr.a Edlinger, dissipado os seus sonhos - i Não és nenhum barão, meu caro!
Estava sentada atrás do candeeiro, cujo vidro enegrecia, fazendo uma pequena coizinha de malha. Começava já a ter uma papeira e a parecer-se com a Sofia.
- Faz primeiro as faixas e os cueiros, Gusti, é a primeira coisa a fazer. - dizia a mãe, estendendo-se com interesse sobre a mesa - É indispensável! Trouxe-as sempre bem apertadas a vocês, por isso têm tão bom corpo.
- Primeiro, não é higiénico, e depois, é inútil, i O meu filho nunca porá isso!
Sem querer, a mostarda subiu ao nariz de Sofia; havia semanas que esta luta recomeçava sem cessar.
- Ah! sim, imaginas que sabes criar crianças melhor do que eu! É claro! Não se pregunta nada às pessoas experientes. Vocês são muito mais competentes. Vocês sabem tudo melhor. Mas que acontece depois? Sim, é o que eu pregunto!
Os brincos tilintaram-lhe. Para mudar de assunto, frau Edlinger inclinou-se e disse-lhe, misteriosamente, ao ouvido:
- Onde estará ela ainda? Hem? Onde?
-Ah! Que me interessa isso? Não quero cuidar de mais nada. Porca, odinária! i Se a gente soubesse ao menos o que ela tem no corpo! Santo Deus!
- Ainda assim, custa vê-la andar a correr por toda a parte, há um mês. Na verdade, parece louca. Esse Rassiem! As,amantes que ele tem tido, o porcalhão.
- Até condessas, acredita. Mas o que eu disse e mantenho, é isto: ele seduziu a, Ele seduziu uma pobre rapariguinha inocente, uma inocente! Meu Deus! i Se isso fosse levado ao tribunal era o bom e o bonito, sou eu que o digo! Mas tudo isto não evita que Dima seja uma desavergonhada. A estúpida! E com quem? Um conde, ela poderia arranjar um barão, um príncipe! Mas isso sim, apaixona-se por esse velho tonto que está sem voz!
O Sr. Edlinger murmurou coisas para acalmar, o que encolerizou ainda mais Sofia.
- Um velho tonto que está sem voz! Já disse e é tudo quanto tenho a dizer. - berrou ela, batendo na mesa - É velho e canta cada vez pior! E foi com um tipo desses que a minha filha perdeu a virtude, a minha bela inocentinha! Mas, no fim de contas, de quem é a culpa? Da Gusti. Sim, é preciso que o saibas!
- Minha? Minha a culpa? Ah! sim senhor! E porquê? Parece-me que posso preguntar porquê.
- Claro que sim, por tua culpa, com certeza.
Quem é que a ajudou, nas suas mentiras, durante todo o verão ?
- Ela disse-me que ele casava, com certeza, com ela. Sendo assim, a gente não devia impedir, i Já tem acontecido, não é verdade, conseguir-se assim uma situação? E depois, minha querida Sofia, não fui eu quem esteve este verão com uma amiga na Hungria, entendes? Não fui eu. Não fui eu quem partiu de trem. Era muito mais justo que chamasses a ti a responsabilidade. Oh, Jesus Maria, mas que tem ela ?
Sofia tinha estendido os dois braços em cima da mesa, cheia de pratos, mesmo em cima dos restos do rim; encostara a cabeça à toalha e soluçava como uma criança. Havia nela tanta dor e abandono, que as lágrimas vieram aos olhos do sensível sr. Edlinger. Embaraçado, sacudiu uma garrafa vazia, de cerveja, e disse: - Cerveja, também já não há.-depois fez a sua,mulher um sermão de reprimenda sobre o que dissera a Sofia.
- Pronto, imaginemos que não disse nada. Não tive má intenção. Anda cá, Sofia, acaba com isso, fazes-me mal.
Pouco a pouco, palavras incompreensíveis vieram ao cimo da onda de lágrimas:
- Se soubessem, meus filhos, tenho-me arreliado tanto! É verdade, tenho um desgosto tão grande! Atormento-me de tal maneira! - soluçou, e grossas lágrimas transparentes desceram lhe até às comissuras dos lábios, onde as lambeu na passagem.
A porta do patamar fechou-se. Sofia assoou-se depressa e conteve-se.
Frau Edlinger disse: -Silêncio -e pôs-se a trabalhar. O sr. Edlinger fumou com força. E Dima entrou.
Avançou, com as mãos molemente penduradas, um sorriso singular, ao mesmo tempo apaixonado e vencido, nos lábios, e grandes olheiras vermelhas. Todo o seu rosto parecia estar sob o reflexo duma chama. Sem um olhar, como uma sonâmbula, atravessou o aposento a passos apressados e dirigiu-se para o quarto.
- A condessa Pumsti! - notou fraw Edlinger, a meia voz - nem se digna dar os bons dias.
- Onde estiveste até tão tarde ? - preguntou Sofia, severa.
- Na Ópera, fui ver o Tristão. - disse Dima, olhando em redor, com olhos cegos.
Isto causou impressão.
- Quê? Que ouço eu?- vociferou Sofia, em alto alemão, numa violenta indignação-Na Ópera? Ver o Tristão? Quando esse indivíduo canta? Ainda não estás farta dele? Já não há orgulho em ti, desavergonhada? Carne vil! Queres então acabar num hospital?
Dima teve um sorriso impenetrável e, sem uma palavra, fechou a porta atrás de si.
No quarto fazia frio e estava escuro; acendendo a luz, viu que as suas mãos tremiam, o coração batia também, perturbado como por uma tempestade, devastado por uma espécie de torrente. Parecia-lhe que, antes desta noite, nunca tinha ouvido música nem sabia o que era teatro, nunca, antes de ter visto esse Tristão, essa representação, tendo, ao princípio, uma angústia, um pesado sofrimento, depois, a própria beatitude do segundo acto, a gloriosa libertação, e por fim a morte, na paisagem lilás. Então o teatro fazia uma pessoa esquecer-se de si própria, voltar para casa e sentir uma espécie de volúpia na desgraça?! Estendeu-se e, com os olhos ardentes fitava o vácuo; a noite que passara correu mais uma vez diante dela e o seu coração gelado palpitou. Depois, deixando correr as lágrimas, murmurou para o travesseiro: "Terá o teatro esse poder? Nesse caso, amanhã, recomeçarei a cantar."
Era muito tarde quando Sofia, em camisa de noite, apareceu junto da cama de Dima, dizendo:
-Ainda choras? Naturalmente. Agora vais chorar a noite inteira. Vamos, filha, acaba com isso, não posso ouvir-te mais!
Dima não respondeu; apenas as suas pálpebras fechadas palpitaram dolorosamente e, sob as pestanas, lágrimas calmas e claras lhe correram sobre as faces. Isso
deu-lhe ao rosto uma expressão tão pouco habitual, de doçura, que a mãe, vivamente comovida, sentou-se na borda da cama e pôs-se a acariciar-lhe os caracóis negros, úmidos de lágrimas.
- Vamos, filha, não te aflijas assim! Por causa dum homem! Acredita-me: eles não valem isso: são todos iguais! Só mais tarde é que a gente vê que não fazem diferença uns dos outros. E é pena, tanta lágrima chorada; acredita-me, filha! Eu sei o que são essas coisas. Mas lá pagar, deve ele; é preciso que pague. Já lhe escrevi. Ele ganha muito bem. É seu dever indemnizar-te, é preciso que te dê um capital; com isso, compramos-te vestidos. É preciso que ele pague!
Só então viu o rosto de Dima, pálido e descomposto, avançando para ela com os dentes â mostra, enquanto crispava as mãos na coberta, como animais prestes a saltar.
A rapariga soltou um grito que a petrificou:
- Vai te! Vai-te! Senão, bato-te. bato-te!.
- Mas eu julguei que fazia bem. -disse Sofia. Mas não o disse alto; apenas o pensou, no fundo de
si mesma e contemplou a sua incompreensível filha que, apunhalada por uma nova dor, soltava gemidos surdos, mordendo os punhos. Depois, Dima acalmou pouco a pouco, meteu a cabeça no braço dobrado e teve um lamento:
- Mãe.
E havia uma tristeza tão amarga no seu tom, que Sofia compreendeu, num relâmpago, quanto este apelo era superior a ela; deslizou, sem barulho, do quarto, como um animalzinho, ajoelhou em frente da Madona de porcelana branca e azul, e rezou com toda a sua alma. A camisa de noite, caía-lhe em redor do pescoço redondo, e grandes suspiros agitavam-na; tinha os cabelos apertados numa grotesca trança, e o rosto, sobre o qual as lágrimas corriam, tornou-se, de súbito, o duma pobre velha:
- Santa Maria, Mãe de Deus, bendito é o fruto do Vosso ventre. Vinde em auxílio da minha pobre filha, hoje e sempre, Santa Maria, por toda a eternidade.
Alta noite, Dima caiu num meio sono que reuniu Isolda, o barco e Tristão. Não Rassiem, mas Tristão. Quando acordou, o dia pareceu-lhe mais brilhante que os das últimas semanas. Viu o rosto no espelho, apertou os maxilares e inundou-se de água fria durante um quarto de hora; depois fêz ginástica até sentir calor e lhe doerem os músculos, habituados ao trabalho. E, enquanto fazia os exercícios de respiração há tanto abandonados, invadia-a uma sensação rude e amarga, de convalescença.
A casa ficou silenciosa. Sofia tinha-se tornado invisível. De punhos cerrados, Dima foi para o piano e, quando se pôs a cantar, fremia como se, dum salto, saltasse dum ponto alto para insondável abismo. Queria tornar a estudar o primeiro acto do Tristão e a sua vontade tornava-se tensa, a estalar. Ficava sempre um resto, qualquer coisa de não preenchido, de invencível, e um fogo sombrio, uma sede de vencer ardia nos seus olhos quando, muito mais tarde, a campainha irrompeu bruscamente na solidão. De espírito preocupado foi abrir. e teve um sobressalto quando a Kouczowska
entrou.
- bom dia. - disse esta, timidamente - Estava a cantar ? Incomodo-a ?
- Não, nada. - balbuciou Dima, com a garganta cerrada. E ficou ali, absolutamente desamparada.
A Kouczowska pegou-lhe na mão; o seu contacto causava uma sensação particular de grande distinção e
de raça.
- Desejei muito conhecê-la, menina Dimatter, disse ela - e aqui estou hoje. Meu marido não sabe, ainda está a dormir. Ficou horrivelmente fatigado depois do Tristão.
- Esteve maravilhoso, ontem .
- Sim ? Esteve maravilhoso ? Não sei. Há muito tempo que não vou ao teatro, há muito tempo. -disse a Kouczowska fitando Dima com os seus olhos sombreados. Como ela é nova, Senhor Deus, como é admiravelmente nova! - pensou.
- Em que posso servi-la, minha senhora ? - preguntou ela, maquinalmente, indicando num gesto natural o canapé de oleado.
- Não, não posso conversar assim, Dima. Não suporto o convencional. não posso. - disse a Kouczowska com um olhar quási humilde -Era absolutamente preciso vir ter consigo, isto atormentou-me muito. O seu pensamento segue-me por toda a parte. que pensa ela, porque sofre, porque fica em frente das nossas janelas ? Não, Dima, - disse vivamente - isso não deve fazer, por si, isso não! Oh! eu sei o que é ficar na escuridão, diante dumas janelas iluminadas .
Dima corou lentamente; levantou, pela primeira vez, as pálpebras e olhou a Kouczowska, de frente. Os olhos já conhecia, os cabelos também, a boca, as mãos. Tudo isto lhe era estranhamente familiar. Era assim que seria o seu filho. "Como este rosto está cerrado, devastado pelas lágrimas!" -pensou a Kouczowska, e alto, ternamente, disse:
-Meu marido fala tanto de si! Estima-a muito, Dima. Ele diz que vai ter a mais linda voz que jamais ouviu e isso enche-me de ciúmes.
- Sim ? - preguntou desastradamente Dima. E a Kouczowska continuou, depressa:
- Há uma coisa que quero dizer-lhe: não esteja zangada comigo. Sofre muito por minha causa, eu sei, e faz-me muita pena, mas não posso nada contra isso. Está a olhar para mim e a pensar, com certeza, que tudo me corre bem, que possuo tudo, que me banho em raios de sol! Oh! Dima, querida Dima; pense apenas nisto: perdi a voz! já não sou a Kouczowska, já não posso mais cantar, não sou nada! Perdi o meu universo inteiro! Só me ficou o homem. Não deve ter ciúmes de mim. Oh! -acrescentou ela, mais baixo: - cantar ainda com voz a Isolda! Por isso daria tudo, tudo.
"O filho também ?" -interrogou o pensamento de Dima: e a Kouczowska respondeu, o que a fez estremecer :
- O filho também ? Não sei. Só depois dele nascer saberei, quando o tiver nos meus braços; talvez um
filho seja mais, sim, penso muitas vezes que será superior a tudo.- murmurou mais para si própria do que para Dima, apertando as mãos contra o corpo no qual, precisamente, a criança fazia o primeiro movimento-iGostaria tanto de a ajudar, Dima, tanto! Mas as palavras são apenas uma coisa miserável. Soa a oco quando lhe digo: as dores são úteis, são necessárias. É preciso viver a dor. A vida seria apenas uma meia vida, sem sofrimento, e nós devemos ser-lhe reconhecidas. De outra forma, não seriamos artistas. Recebemos as amarguras como um dom, compete nos depois fazer delas qualquer coisa. É preciso passar por elas e transformá-las. É preciso!
Os olhos das duas mulheres encontraram-se e, cada uma, leu isto no olhar da outra, como num espelho: a dura renúncia. Calaram-se por muito tempo, depois Dima inclinou a cabeça sobre as mãos e a voz de Maria elevou-se:
- É nova, pode cantar, e já teve a sua bela, a sua grande provação .
- Não, - murmurou Dima - não, não, isto atirou-me para a lama, isto não é nem grande, nem belo. Uma ligação, nada mais. Nem sequer uma nobre recordação.
- Sim, Dima, sim, viveu alguma coisa de belo e o que foi ardentemente vivido não pode apagar-se nem extinguir-se, nunca se perde. Pelo contrário, é preciso ser reconhecido e dizer que sim à vida. A vida é uma coisa magnifica!
Dima sorriu, um pouco convencida, um pouco incrédula. No entanto, bem no seu intimo, pressentia que era assim.
- Estou convencida que, bem no fundo de si própria, sente isto, não é verdade ?
- Mas se eu desci tão baixo! É preciso sair disto. Se me quisesse ajudar. perdi a confiança em mim. Se, ao menos, pudesse recuperar a confiança em mim! Mas tudo parece juntar-se afim de me atirar para a lama. Minha própria mãe escreveu-lhe a exigir que ele pagasse para me recompensar. Imagine que horror! Aqui tem a minha bela recordação, é isto!
- Trouxe-lhe a carta, Dima. Ele ainda não a leu.
E pueril, é preciso não tomar a sério uma coisa destas, não é verdade? Criança, criança.-disse a Kouczowska enquanto um soluço convulsivo fugia do peito de Dima. Segurou-lhe os pulsos: de novo, os seus dedos eram tão finos e tão apertados que não se lhe podia resistir.
- E a confiança em si"! Outra tolice! Deve ter lido isso em qualquer parte. É preciso não empregar as grandes frases: "perder a confiança em si!" Meu Deus, pregunto a mim própria onde está a confiança em mim!
- Mas ele feriu-me!
- Bem sabe que ele é tolo.
Dima ergueu vivamente os olhos e, de súbito, não pôde deixar de rir, pois a exclamação da Maria era veemente e convencida.
- Ele é tão ingénuo,-disse ela-ingénuo como uma criança, apesar de ter quási quarenta e cinco anos.
- Quarenta . e cinco ?
- Por acaso comeu alguns? Bem vê como é pueril! E ainda fala de confiança em si! Se soubesse, minha filha, como é bela e maravilhosamente nova! Faz mal olhar para si, faz-me mal.
Desviou os olhos, procurando os desenhos pobres e sem gosto do papel da parede; mas pararam o seu curso assim que deram com a música no piano.
- Isolda ! - disse ela - Cantava quando cheguei; é preciso que eu aprenda a ouvir, é muito duro para mim. Não tornei à Ópera, é-me ainda impossível.
Calou-se, depois, e como sem querer, suplicou:
- Cante, Dima, cante você. O primeiro acto, ande. é preciso que me habitue. vou acompanhá-la.
-Ainda não sei o primeiro acto; não consigo apanhá-lo e isso atormenta-me. E depois. há muito tempo que não canto.-murmurou Dima enquanto que já estava junto ao piano.
A Kouczowska viu o seu olhar concentrar-se e sentiu um ardor no coração. Sim, uma febre parecida estendia-se-lhe às mãos, aos olhos e aos lábios quando se agitaram para cantar.
Sabe da minha vergonha, tul-entoava ela, em vOZ rouca. E num trémulo apaixonado:
Sabe da minha vergonha, tu, vê onde ela me levou" (1) entoou a voz de Dima, lançando-se com toda a força no canto, que cintilou como uma espada desembainhada.
Os olhos de Maria velaram-se, os lábios tremeram-lhe um pouco. A voz de Dima brilhava, vitoriosa, lançando-se, impetuosa e inexperiente, ao assalto do recitativo. As mãos de Maria corriam sobre o teclado, indicando o caminho, insistindo em certas frases que haviam ficado escuras, sobre modalidades imprevistas e pondo sombras sobre outras, no conjunto muito brilhantes. Às vezes interrompia, dizendo baixo:
- Não, isso interpretá-lo-ia de outra forma, exprimi -lo-ia assim.
E a sua voz comovedora, doente, partida, fazia sair uma frase que metamorfoseava o resto. Dima olhava-a, esfaimada, parecia-lhe que a Maria ia à sua frente, através de subterrâneos escuros, levando um archote. Muitas vezes, quási se assustava, tão perto sentia Isolda. Via agora que Maria chorava baixinho, enquanto os seus dedos continuavam a percorrer o teclado e a sua voz mostrava novos caminhos. De súbito, Dima não pôde continuar a cantar; expontâneamente, lançou se aos pés dela, tirou-lhe as mãos do teclado e levou-as aos lábios.
- Vamos, vamos. - murmurou esta, acariciando a negra cabeça encaracolada agitada pelos soluços que, num movimento impetuoso e infantil, se encostara aos seus joelhos - Vamos, somos ambas ridículas. Estamos as duas a chorar! Estamos a fazer tolices.
Ouviu-se um fraco ruído. Qualquer coisa se moveu no buraco da fechadura. Dima serenou, a Kouczowska conservou lhe as mãos apertadas até acalmarem. Depois, Maria levantou-se:
- Tenho qualquer coisa a dizer-lhe, foi de resto para isso que vim aqui. Ontem, depois da representação, caiu em cima da May um pedaço do cenário. A pancada foi má. Na próxima semana, tornam a levar o Tristão
(1) Erjuhrest du metne Schmach, nun horc, was sie mir schuj, [Tristão. Texto alemão).
e ela não poderá cantar. Meu marido contou-me isso e eu disse: "Conheço uma Isolda que seria muito boa: a Dimatter." Era isso que queria dizer-lhe, Não gostaria de cantar a Isolda, na Ópera? Eu pensei: "Sempre é uma finalidade! Isto pode ajudá-la a erguer-se acima de muitas coisas. Se eu pudesse fazer isso ao menos uma vez."
- Pensou que. eu? Mas não serei capaz, ainda não sei o bastante. É impossível!-disse Dima, afastando para longe a ideia - Impossível. Eu, uma principiante! Isso não se faz, nunca se fez.
- Justamente por isso, Dima! Em toda a minha vida não fiz mais do que realizar o que nunca se fez. Se quere falar com o director, meu marido pode recomendá-la, fá-lo-á com muito prazer.
- Obrigada.-disse secamente Dima, enquanto a garganta se lhe apertava - Obrigada. Dele não quero absolutamente nada. É preciso que eu triunfe sozinha .
- Está bem, Dima, está muito bem. Tem razão, a gente é sempre só e deve, sozinha, tirar-se de dificuldades. O mais duro vem de nós próprios e cada um vive como numa ilha, acredite-me. - disse a Kouczowska.
E Dima leu nos seus olhos, cheios de triste experiência, e acreditou a.
- Agora tenho de me ir embora.-disse Maria, pois o barulho na fechadura tornava-se cada vez mais significativo - Desejo lhe. oh! desejo-lhe tudo quanto perdi, Dima. E não pense mal de nós.
Quando Dima se encontrou só no seu quarto, no ar ondulavam ainda palavras, sons e esperanças. Fechou os olhos: a sensação duma felicidade nova inundava-a até à epiderme. Sofia entrou prudentemente, deu meia volta com um ar critico. Então Dima, dum pulo, enfiou o casaco e saiu para fora de casa.
Errou através das ruas, como cega; depois,bruscamente, no espaço dum relâmpago, teve a visão do primeiro acto. Agora tinha-o, sentia-o em si como uma febre. Frase a frase, ele crescia; os gestos tomavam
forma, os quadros também e as inflexões. Correu, correu até ao Prater, encontrou-se, de súbito, debaixo de uma velha árvore, em pé e cantando, depois outra vez abatida, num banco, soluçando, com os lábios trémulos e crispados. Passou pelas lojas de estores baixos, berrantes e de cores vivas, pronunciando esta frase: "Deixo cair a espada."
Comprou duas maçãs a um vendedor ambulante, comeu-as encostada a uma parede, pensando na forma de erguer a taça. "Sim, rodeando-a estreitamente com as duas mãos, solenemente, e muito alto."
O delírio durou três dias, e então, a Isolda ficou pronta. Dima encontrou o seu rosto no espelho e achou-o novo e amadurecido. A ligação com Rassiem causava-lhe agora o efeito de qualquer coisa que se vê pelo buraco dum pano de teatro: era pequeno, irreal e distante. Sorriu, admirada, pensando que as últimas noites se tinham passado sem essa fome atormentada dele, dos seus braços, dos seus lábios, e, aliviada, respirou profundamente.
Entretanto, Maria tinha aceso nela um fogo que, longe de se acalmar, aumentava constantemente. Muitas vezes, durante esses dias, ficava imóvel, ouvindo-se a si própria. Pela centésima vez, os seus pensamentos voltaram à sugestão da Kouczowska e sorria, incrédula, repetindo: "Impossível!" Os jornais contavam o acidente da cantora May e as suas consequências. A próxima representação do Tristão era momentaneamente adiada.
Dima levou uma semana a rever todo o seu repertório, a realizar todos os papéis sob uma nova visão. Em casa, deixavam-na em paz; Sofia deslizava à sua volta, contristada; já não falava no capital. Depois, veio o período horrível em que reabriram todas as feridas, em que os mesmos sofrimentos voltaram. As noites queimavam como carvões ardentes, os dias eram apenas uma cadeia louca de pensamentos e de sofrimento. "Trabalhar, trabalhar" - gemia o coração esfaimado de Dima. Faltavam-lhe cinco dias para apurar o trecho difícil de Beethoven: Ah! pérfido que não tinha conseguido dominar antes, e ao qual voltou, de mãos vazias. Pelos jornais,
podia seguir-se o estado de May que havia lamentavelmente piorado, em consequência duma infecção, o que era perigoso e prolongado. Tinha vindo de Dresde uma Leonore e não agradara.
Então, a determinação de Dima, tomou definitivamente forma e o que aconteceu nos dias seguintes, parecia o declínio duma doença, uma convalescença durante a qual todos os venenos se dissolvem; tal como um arco tenso, a sua vontade era dirigida para um fim único: cantar na Ópera! Os acontecimentos do dia, só chegavam até ela como através dum véu. As coisas secundárias esquecia-as, não as deixando subsistir na sua alma.
Um dia, enluvada de branco, informou-se acerca do sr. Blaulich junto do importante porteiro do Grande Hotel. Sentou-se num sofá entre dois estreantes trémulos de apreensão e uma artista de opereta, fatigada, num impessoal quarto de hotel. Os papéis da parede reproduziam um desenho confuso de cebolas, e aquilo também cheirava a cebola, pois o sr. Blaulich tinha comido no quarto. Ele saiu da sala vizinha, estendeu-lhe dois dedos da mão viscosa e fê-la entrar consigo. Encontrou-se encostada a um piano, um rapaz que parecia uma aranha acompanhava-a, e cantava a morte de amor. Falou, viu a cara de gnomo de Blaulich fazer caretas, reflectir, tornar a fazer caretas.
- Impossível. - disse ele - Vai para Graz, minha filha, em Graz poderei ajudar-te. Mas não me fales de semelhante idiotice! Cantar na Ópera de Viena! Endoideceste, não? Ou terás protecções? Quem? És aparentada com alguém bem colocado? Tens figura para isso, hem!.
- O conde Scheibbs-Monti, o ministro, é meu pai.- disse Dima.
Blaulich foi até à janela e assobiou uma àriazinha.
- Vem amanhã cear comigo, voltaremos a conversar. - disse ele, rápido, sem parecer ligar grande importância ao facto.
Dima viu-se no vidro duma montra: alta, delgada, de cabeça altiva e cabelos revoltos, contidos na medida do possível, simplesmente vestida, mas bem. O contínuo do ministério, honrou-a com profundos cumprimentos. Ela mandou o seu cartão ao ministro, durante as horas de recepção e ele consentiu em recebê-la, aborrecido mas com certa curiosidade. Quando ela se apresentou, notou que estava quási tão alta como ele, e disse: "Querida menina, em que posso ser-lhe útil?" E considerou, surpreendido, a linha firme da sua boca, o seu nariz direito, cheio de raça, que fremia, a harmonia de toda a sua pessoa. Não tem absolutamente nada da mãe!" -pensou. Dima falou num tom sereno e calmo, com uma voz a que a emoção tinha dado mais facilidade ainda. Nem por um segundo pensava que aquela Excelência era seu pai; era um senhor de espírito superior, fino, um pouco fatigado, que podia, que devia ajudá-la. Enquanto falava, tinha descalçado as luvas; agora a sua mão estava poisada no braço do fauteuil, direito e nobre, de estilo Império. O ministro olhou para essa mão, e depois para a sua: eram como irmão e irmã. Longas, magras, nervosas, ligeiramente inchadas na primeira falange, com fortes veias, correndo sob a pele morena; as unhas eram abauladas e duma beleza perfeita; a meio do polegar, pai e filha tinham ambos o mesmo sinal avermelhado.
Sua Excelência levantou-se, prometeu todo o auxílio possível junto do director e da intendência. À porta, pegou-lhe na mão e beijou-a num movimento que não era absolutamente cheio de domínio. Dima agradeceu em tom frio e, a passos largos, afastou-se.
Depois, à noite, esteve na companhia do sr. Blaulich, que comeu muito, bebeu muito, fumou muito e lhe colou em redor da nuca e nas ancas as mãos quentes e úmidas, enviando-lhe a respiração para o rosto. Malicioso, exigiu um beijo antes da soirée e o resto depois. À sobremesa ela assinou um contrato que a ligaria por cinco anos à agência Blaulich. De vez em quando, empurrava, com asco, por debaixo da mesa, o joelho insistente do
empresário, pensando, para se reconfortar: "Daqui a pouco estou lá fora." E, triunfante: "Cantarei na Ópera!"
Depois, Dima esperou num longo corredor crepuscular que conduzia à chancelaria da Ópera e pôs-se a admirar, para matar o tempo, as estampas e retratos de algumas celebridades mortas. Várias portas davam para essa passagem; um ar familiar, com cheiro a bafio, flutuava. Um empregado chamou pelo seu nome; o coração bateu lhe. Encontrou-se num aposento claro em frente de dois olhos perscrutadores e todavia distraídos que a observavam. Uma voz extraordinariamente sonora e profunda falou-lhe, seca ao princípio, depois ligeiramente admirada, depois mais quente e dominadora.
Ela devia fazer a sua prova de canto na quarta feira seguinte. Trabalhou todo o seu papel, recomeçou, recomeçou de novo. De noite, acordava, pensando: "Rassiem? Como ele está longe!" Sorria, tão inatacável se encontrava nesses dias.
Foi à Ópera por um dia claro; o vermelho dos carros eléctricos gritava, ao sol. Sem a ver, Sofia saía da igreja e, sobre os saltos altos, pôs-se a andar à sua frente em passinhos rápidos. No teatro, escondeu-se atrás duma coluna, ao pé da entrada das bailarinas; daí, podia ver a filha. Dima avançou, cheia de confiança, acompanhada por um empregado que, depois de a ter cumprimentado amavelmente, a encaminhou através das escadas que conduziam à direcção, o porteiro telefonou para a chancelaria, dizendo que a senhora que vinha ensaiar já lá estava; soaram campainhas através do edifício. Atrás de Dima chegaram, de mau humor, dois regentes de orquestra ; atravessaram juntos um corredor de pedra no qual os passos ecoavam, depois andaram ao longo da casa dos acessórios. Por fim, o palco surgiu diante deles, largo e vasto, até ao infinito; a ribalta projectava uma pálida luz. Ao fundo, uma perspectiva pintada representava o oceano. Ciprestes e um céu azul estavam suspensos. Ao lado, um piano; com ar aborrecido, um dos regentes de orquestra apresentou-se à rapariga e travou
conversa com outro senhor. Na escuridão da sala de espectáculo rangeu uma poltrona. Subiram vozes. A ponte reservada à direcção foi lançada sobre a orquestra; alguém passou, correndo. Lustres desciam pesadamente, como morcegos adormecidos. Dima olhou à sua volta, considerando a perspectiva, o buraco do ponto e respirou profundamente esse ar amargo que cheirava a pintura e a cola, e a pessoas a transpirar. Sorria para o teto do teatro muito azul, para as luzes vermelhas da ribalta, que lhe eram familiares desde a infância, e o seu coração sentiu-se livre, livre, como em sua casa. O maestro martelou algumas notas no piano; de baixo, subiu a bela voz profunda do director:
- Que deseja cantar, menina ?
- De preferência: Ah, pérfido! Ouviu-se um murmúrio de admiração.
- Não temos isso à mão.- declarou o empregado que estava junto ao piano.
- Uma ária tão fora do vulgar! - disse um dos regentes de orquestra, mal humorado - A ária do Fidélio podia servir.
- Vão imediatamente buscar a partitura. - ordenou o director.
Em baixo, o murmúrio não cessava. O maestro subiu da sala de espectáculo e pôs-se sobre a caixa do ponto, olhando Dima com atenção.
- Está comovida, menina ?
- Não.
- Não? É corajosa, muito corajosa. E essa ária é difícil, não seria melhor qualquer outra? Enfim, aqui está a música.
Dima cantou. Primeiro, a sua voz pareceu subir, pequena e solitária, através da sala imensa, i Como era longe, infinitamente longe até às galerias!. Dima levantou os olhos, procurando na escuridão distante, lá no fundo, lá em cima, descobrir o lugar habitual, na quarta fila, à esquerda da segunda coluna. Cantava e parecia-lhe que todo esse calor, esse encanto de sonoridade que tinha vivido, caíam de novo sobre ela. Sentia fortemente a sua própria presença nesse grande palco muito
amado que, noite após noite, lhe tinha dado tanta beleza. Veio-lhe um impulso violento de agradecer agora tudo quanto tinha recebido. E foi assim que cantou.
Quando terminou, um murmúrio se espalhou pela sala. Alguém gritou:
- Acendam!
Tal como uma chicotada violenta, que, lá de baixo, lhe caísse na cara, uma iluminação que cegava envolveu-a. Assim tinha sido em sonhos, assim tinha sido na sua infância; esta luz e esse cheiro e o teto azul. e essa escuridão povoada de cabeças que escutavam e aplaudiam à entrada em cena. Alguém pediu uma ária de Tristão e Isolda, do primeiro acto. Uma voz amarga e cortante, a do maestro Brangánens estalou, em palavras desagradáveis.
- Isto é mau, é mau, consentir semelhante coisa! E Dima, de punhos cerrados, cheia de ansiedade, sentiu-se transportada de alegria, ao ouvir:
- Mas sim, vamos, menina, agora, qualquer coisa do Tristão.
Dima subiu os degraus do Conservatório. Vestia a
sua velha blusa branca e apertava a partitura contra o coração que batia. batia.
Na aula, a lição seguia o seu curso habitual. Rassiem andava dum lado para outro, com o seu passo elástico, as mãos atrás das costas.
Gelfius acompanhava, magro, irónico, despenteado. Em pé, ao piano, a pequena Hartwig, de olhos ardentes, cantava os exercícios de staccato; e cantava-os francamente mal. Entretanto, Rassiem não a olhava, nem tanbem à pequena Bach que lançava ao tenor olhares eloquentes. Na igreja de Santa Clara davam onze horas.
A porta abriu-se e Dima entrou.
- bom dia - disse ela, tranquilamente.
Rassiem lançou lhe um olhar desconcertado, Ela vem fazer-me uma cena!" - pensou e aproximou-se de Gelfius. Mas Dima disse simplesmente:
- Venho pedir-lhe para cantar mais uma vez o papel
de Isolda. Canto na próxima semana na Ópera, sr. Kammersánger.
Um indefinível sorriso, cheio de orgulho e de cansaço brilhava nos seus olhos. Sem poder pronunciar uma palavra, Rassiem ficou de boca aberta: i estava realmente a fazer uma figura ridícula!.
IV
Elis acordou cedo, como que atirada para o dia que principiava, e pensou imediatamente: "É hoje.
O coração fatigado doía-lhe um pouco. Ficou um momento estendida, com os olhos muito abertos, e lançou um olhar alterado através do quarto. Era extraordinário ver assim a manhã enquanto alvorecia: depois, mais tarde, começou a avivar com uma luz mais clara, acariciando ao princípio os contornos dos móveis, depois fazendo-os entrar também na realidade. Era extraordinário admirar o mundo quando se sabia que, depois dessa manhã, não haveria mais nada.
A casa estava silenciosa e atenta. Conde Pocci, o cãozinho, calara-se: estava morto. Tivera uma pneumonía e o veterinário tinha-lhe dado injecções. com fria curiosidade profissional, Elis assistira ao caso: não fora nada, um tremor apenas - depois ficou hirto e acabou. com a mamã tinha acontecido o mesmo.
Ficou muito tempo em frente do grande espelho, olhando o seu branco corpo de criança. Agradou lhe. Acariciou os ombros e as pontas dos seios pequenos, frescos como flores, e falou à sua imagem, para a consolar:
- Acalma-te. Não te aflijas. Daqui a pouco, terá acabado essa tristeza e o resto também.
A imagem do espelho sorriu com confiança e pareceu ter frio. Mais tarde, Elis foi ao jardim, acariciou as folhas e a terra, e disse:
- Vamos, nada de sermos sentimentais! Não queremos nada que seja de mau gosto! Arranjámos tudo tão bem!
Entretanto, a terra e a folhagem viviam uma vida intensa e ficavam indiferentes. Elis sentia dores de cabeça, mas ria-se disso; os seus pensamentos andavam agradavelmente ocupados e havia quatro dias que não tomava morfina. Pensava: "É impossível que a gente possa lembrar-se, depois, do estado de espírito em que se encontrava antes, tendo a cabeça tão confusa."
- Não, com certeza não. - disse ela, alto. E sorriu. Sentia uma fome extraordinária de contemplar todas as coisas, de as tocar, de conversar com elas. Viviam, estavam como nunca, coloridas, nesse dia; parecia a Elis que devia notar tudo com grande exactidão. Lá fora, caia uma neve mole, cheia de água. Corriam gotas ao longo das janelas, deixando atrás delas traços transparentes e trémulos, Quem sabe se não havia qualquer sentido nos seus caminhos, nos seus cruzamentos e nas suas junções? Não, aquilo não tinha nenhum sentido.
Uma gota deslizou levemente até ao fim do vidro; outra foi-lhe no encalço para a encontrar; uniram-se um segundo e depois separaram-se. Uma, redonda e pesada, rolou para mais longe, à frente. A outra acabou num zigue-zague fatigado, disforme, e desapareceu imperceptivelmente sem ter atingido qualquer fim.
"É assim." - pensou Elis.
Tudo o que ela pensava, dizia e fazia, parecia estranhamente irreal, e, no entanto, tudo lhe agradava. Uma obscura intermitência jazia, cheia de mistério, sob todos os factos actuais.
"Hoje, hoje, hoje!"
Foi ao escritório verificar, mais uma vez, os seus preparativos. Lá estava o frasco cheio de morfina que brilhava, inerte e prateada. Tinham sido precisas semanas para que, com a ajuda de velhas receitas para a
mamã, pudesse reunir esta grande quantidade." Não forneciam tudo duma vez e tinha sido necessário empregar várias subtilezas. Mas agora aquilo bastava plenamente! Ao lado, estava o testamento, que releu, não sem orgulho:
"Parto, porque estou cansada. A vida é de tal maneira, que nós devíamos ter vergonha dela. Não quero mais ver-me metida nisto. Não tenho outra razão. Os meus livros e as minhas músicas, são para Gelfius, o meu colar fica para Dima, se ela quiser. À Eva Hartwig, da primeira classe de preparatórios, deixo o retrato que está em cima do piano. Peço a meu pai que não se aflija. Isto não é nada."
Estava simples e bem dito. Fechou o envelope e escreveu, em grandes letras: "Para abrir depois da minha morte."
Pronto. Agora, o bilhete do camarote para essa
noite. Lá estava um bilhetinho encarnado. "Primeira ordem, nº 9." De olhos fechados, Elis imaginou a Ópera, dolorosamente presente, bem iluminada, cheia de gente; nas galerias, uma grande confusão de cabeças. Depois, era o silêncio e a obscuridade. Apenas sobre a orquestra bailava um reflexo verde. Ouvia-se o prelúdio do Tristão. Uma estreante, uma rapariga maravilhosamente dotada, cantava Isolda. No palco, aparecia Tristão: era um tenor não muito novo, de péssima reputação. Ambos haviam tido uma ligação, que terminara. Na décima terceira fila, que era a reservada aos artistas, a mulher dele assistia, com as mãos cruzadas sobre o seio, numa atitude de posse e de satisfação. A música corria como oiro, sangue e púrpura. A música era um esplendor! Num camarote, um camarote novo, uma linda mulher nova, havia adormecido: afastava-se de tudo aquilo.
As outras que se batessem, que se ferissem pelas coisas incompreensíveis e tão ordinárias da vida! A jovem trazia um vestido branco, uma pérola ao pescoço, pendurada dum fino fio, e adormecera.
"Ah! tenho que levar comigo um cartão de visita com a minha morada, doutra forma podiam conduzir-me
para qualquer desagradável hospital. Que dirá Gelfius, o meu querido Gelfius ? Que vão dizer os jornais ? Sem dúvida, qualquer coisa parecida com isto: "Uma linda morte! Na verdade, é muito original isto: ouvir o Tristão e morrer! Que pensará ele? Talvez depois me leve ao vestiário - ao vestiário - e o médico do teatro diga: "Acabou-se."
"Ele há-de atirar-se para a porta, gritando: "Elis l Minha bem amada! Perdoa-me!" E cairá de joelhoS beijando-me as mãos e a boca. Sim, a boca também" como da outra vez."
Elis levantou-se dum salto e teve um lindo sorrisO: "Já não sinto mais nada,-pensou-de tal forma tenho o coração cansado."
Mas o seu coração pronunciou qualquer coisa e ela estremeceu: "Na verdade isto deve ser assim?" "Sim, deve ser."
"Mas porquê, dize, porquê?"
"Porquê?" - pensou Elis, e lágrimas ardentes subiram-lhe aos olhos. ? "Porquê?" Era melhor não se inter"rogar. Não pensar. Não seguir mais por caminho já percorrido. "Está decidido, estou pronta. Estive sempre pronta, afinal: disse sempre não à vida e sim à morte!"
"Morrer ?-disse o seu coração-que palavra terrível!"
"Mas não, a gente não morre. Pode tornar-se árvore, um pouco de terra perfumada, uma asa de borboleta. Por toda a eternidade! Não discutamos."
A criada chegou, trazendo um recado. O sr. professor mandava dizer que não descia para comer porque tinha de trabalhar; a menina ficaria só.
Só ? bom. Como se se pudesse estar senão só "No entanto, gostaria de o ver ainda uma vez."
Elis comeu um pouco, depois queimou o seu diário, os seus versos e algumas flores secas. Ah! gostaria de ter flores: rosas e narcisos. Vestiu-se e errou pela cidade, levada aqui e além por uma curiosidade estranha, uma espécie de fome. As pessoas passavam com caras cinzentas, aflitas, sem máscara. Como eram pobres, cómicas
e estúpidas! Não acudiria a ninguém a ideia simples e natural de desaparecer?
As montras eram belas e interessantes; a moda mudava, voltaria em breve à linha direita, Império. Quando o luto da mamã acabasse, poderia fazer um vestido Império azul turquesa enfeitado com rendas prateadas .
Mas não. Já não podia.
Olha ! A Viagem à Itália encadernada em coiro castanho : um belo presente de Natal para Gelfius! Ah! tolice, tolice, tolice, apenas: hoje, hoje, hoje.
Quando Elis voltou a casa com os seus narcisos, Gelfius estava sentado ao piano, tocando Bach.
-Que aconteceu, Elis?-preguntou vivamente quando lhe viu a cara.
- O quê ? Que quere dizer ? bom dia, Gelfius, não aconteceu nada de mau.
- É que está tão pálida, Elis! Que foi ? Sempre a mesma coisa?
- Estou realmente pálida ? Isso aborrece-me. Queria. gostaria hoje, de não estar mais pálida que de costume, Que foi que o trouxe cá ?
- Tenho qualquer coisa a anunciar-lhe. Mas para isso, Elis, preciso de lhe ver uma cara alegre. Peço-lhe.
- É verdade ? Pois aqui me tem a rir. De resto, estou de bom humor, Gelfius, garanto-lhe.
- Os Filarmónicos aceitaram a minha sinfonia para a tocarem no concerto; - disse ele, quási estrangulado de felicidade - Elis, a Sociedade Filarmónica!
- Oh! Gelfius, mas é maravilhoso! Está aberto o seu caminho. Você, a Dima, e a toda a gente. Pregunto a mim própria que espécie de pessoas vocês são para que tudo lhes corra tão bem.
- E você? Continua sempre nas nuvens?
- Oh! não. Também para mim tudo corre bem. pelo menos. assim o espero. Mas não falemos de mim. Como foi que isso da sinfonia se resolveu tão depressa?
Gelfius tamborilou um pouco sobre os joelhos:
- Para encurtar razões: foi Rassiem que me ajudou, -Ele?
- Ele é bom. - disse Gelfius, simplesmente.
Elis abanou negativamente a cabeça e a boca crispou-se-lhe.
-Elis, minha filha, fale francamente por uma vez. Que te fez ele? Fez-te mal? Diz o que tens no coração. Contas sempre metade das coisas e depois choras ou ris. Ele fez te mal ?
Ela pós as mãos diante da cara e murmurou:
- Beijou-me. e não me tinha amor! As últimas palavras foram ininteligíveis.
Caía a noite. Gelfius abanou a cabeça e reflectiu. Depois, com um sorriso atento, pairando no seu rosto feio, tocou umas notas hesitantes, no piano. Um suspiro de tristeza, um desejo de qualquer coisa: o motivo do Tristão.
- Vai hoje à Ópera, Elis ? Nas galerias há enorme excitação, é uma noite decisiva para a Dimatter. Vai ?
- Talvez.
- Tem estudado as suas lições de harmonia?
Elis riu francamente. "Que pregunta grotesca."
- pensou, sinceramente admirada. Lições de harmonia, hoje!
De súbito, acometeu-a um louco receio:
- O tempo passa. já é noite. Que horas são ? Gelfius viu o relógio à fraca claridade que se insinuava pela janela.
- Cinco e meia.
A mão de Elis pôs-se a tremer:
- Parece-me que é melhor agora ir-se embora, Gelfius. Tenho que fazer. É tempo de nos despedirmos.
- Naturalmente. - murmurou ele, desconcertado -Sempre as minhas más maneiras! Esquecia-me de reparar que estou a ser importuno. Adeus.
- Adeus. - disse Elis, agarrando-se ainda um instante à sua grande mão quente - Adeus!
Jorraram-lhe as lágrimas, sem querer. Era ridículo e imprevisto. Agora a casa estava inteiramente na obscuridade, os cantos eram como veludo negro. Gelfius ouvia a respiração de Elis que chegava até ele, curta e contida. Acariciou delicadamente as faces que não
podia ver e sentiu-lhe as lágrimas, Como a amava, a amava, a amava!
- Elis, - murmurou - não chores; não chores por causa disso. É uma criancice, acredita-me, uma criancice. É tolo e ridículo. Não queres ser ridícula, pois não ? Como pode uma coisa destas desanimar-te a tal ponto ? Já não cantas, falas como se sonhasses! Acorda, Elis, acorda! Passas o tempo a sonhar quando justamente a vida começa, a verdadeira vida, a que reserva bem poucos momentos gloriosos, que é dura, mas à qual devemos ser reconhecidos. acredita-me, Elis.
Ela franziu as sobrancelhas: ele não a podia ver na sombra. Sentiu as mãos de Gelfius sobre a cabeça e essas largas mãos fremiam duma forma inesperada.
- Eu sei. - disse em voz rouca e ininteligível - Eu sei tudo isso. Calma, calma. Não diga nada. Apenas adeus. Adeus!
- Adeus. - respondeu depois dum silêncio, a voz dele, perto da porta que se fechou, fazendo ranger devagarinho a fechadura.
- Obrigada. - murmurou Elis, na sombra.
Depois acendeu a luz. Estava na hora. Sim, estava na hora. Sentia a pele arrepiada como sob um frio glacial; no entanto, o quarto estava muito quente. Vestiu-se, com movimentos rápidos e secos, invadida por um vago desejo de dormir através do qual qualquer coisa de agudo se elevava de vez em quando, como um apelo. Não era pior do que a febre do palco. Na luz verde, o espelho reflectia o vestido branco e o rosto pálido. Princesa de sonho, princezinha de sonho, onde vais tu agora ? Para casa. para a tua Pátria, para a tua mãe. Os marcos indicadores erguiam-se em todos os caminhos - se ao menos tivesse a paz da alma e um trabalho, talvez conseguisse encontrar gosto por qualquer coisa ? Não, isso não. Ah! os narcisos. Naquele momento, Dima, devia estar muito excitada. As luvas, a morfina, o cartão de visita, algum dinheiro. Pronto. Apagou a luz.
Pelo amor de Deus. pelo amor de Deus .
Uma vertigem horrível apoderou-se dela; um terror
atroz, uma angústia que lhe despedaçava o peito, O coração batia como um doido, derrubando tudo à sua volta. Agarrava-se a todas as coisas do mundo e gritava: Morrer não! Morrer não! Morrer não!" O quarto enchia-se de silvos e de visões ondulantes, iluminadas de amarelo. depois, tudo passou. com as pernas fracas e o espírito absolutamente vazio, Elis saiu e fechou as portas atrás de si.
A escada estava escura. No entanto, lá em cima, saindo da porta do atelier do Pai, um raio estreito de luz iluminava a. O Pai apareceu, inclinado sobre o corri mão, chamando:
-Elis!
-Pai!
- Vais ao teatro, minha filha ? Não queres antes subir? Gostaria de te mostrar uma coisa.
- Sim, pai.
Caminhou pesadamente, entre as silhuetas brancas; à sua frente,-viu o dorso curvado do escultor que parecia fatigado.
Na última sala, sob a claridade ofuscante do reflector, erguia-se um bloco gigantesco. Um homem de músculos inchados encostava-se com a cabeça e o ombro contra esse bloco até ao esgotamento: era uma empresa desesperada querer arredar tal obstáculo.
- O nosso túmulo está pronto. Que tal achas? disse o professor Kerckhoff, interrogando ardentemente os olhos, sem expressão, da filha.
- Está bem, pai.
O silêncio do atelier era pesado. Ao lado, podia ouvir-se uma gota de água caindo, por intervalos regulares. Todas as estátuas estavam em pé, de olhar fixo.
- É pesado. deve oprimir quem está deitado por baixo. -disse Elis depois dum longo momento, como sonhando alto.
E, como em sonho, deu meia volta e saiu. A sua mão deslizou na mão do Pai, depois sobre a madeira da porta, sobre o belo corpo frio do guerreiro, sobre o redondo do corrimão da escada, sobre a maçaneta de ferro da porta de entrada que caiu, lentamente, atrás dela.
Assim que se sentiu entre as altas paredes vermelhas do seu camarote, o teatro escureceu e a representação começou. Elis ouvia com certa dificuldade: a música chegava-lhe de longe, de muito longe. Pelo menos, parecia-lhe. Desejava abandonar-se, como de costume, e não podia. Sentia-se fatigada, tremia, estava cheia de dores de cabeça. Fixou o olhar sobre um ponto qualquer, uma claridade, a luz duma lâmpada de alarme. O prelúdio chegou, rígido, até ela; as dores afroixaram um pouco. Então, ergueu-se o pano.
Um amarelo alaranjado pesava, perigoso, incrível; uma faixa escura, flutuante, olhando-a como olhos; uma voz solitária sobre o oceano:
Filha de Erin,
Eis que Isolda parte para longe,
Filha de Erin,
Doce e cruel criança .
Dima? Não. Isolda!
Rija. Delgada. Jovem. A boca é como uma pedra; os cabelos loiros, em ondas pesadas, em pesadas tranças em redor do rosto duro:
? Quem ousa insultarme ?
E mais calma, cada palavra rompendo dolorosamente os lábios fechados:
Brangaine. Dize: onde estamos?"
O teatro mal respira. Elis inclina-se muito para a frente. "Vem a mim, doce embriaguez, embriaguez ardente e perigosa. Vem a mím, música que entonteces e endoidas, e tornas todo o irreal ainda mais escuro e a vida impossível. Como Dima pode cantar! É incrível como ela pode cantar! Não tem vergonha, nem medo; é livre, ergue-se no meio das coisas da vida! Entrega-se toda ao exterior! Olha, aprendeu comigo, fui eu que lhe ensinei esta forma de deixar cair as mãos.
Traz o cofre. é lá que está escondido o veneno."
O veneno! Não terei esquecido a morfina ? Agora, agora, agora.?
Abre, abre completamente."
As bandeirolas flutuam ao vento. Tristào, de pé, i impassível, ao leme, nem levanta os olhos.
Elís deixa molemente cair sobre os joelhos, a mãoque aperta o frasco da morfina e entrega-se à música. A ópera continua. O sofrimento de Isolda exacerba-se: loucura, desafio e finalmente, a resolução suprema. A equipagem do barco canta : há terra, próximo. E Tristão, o Tristão triste e fechado, prepara-se para beber a expiação.
Elis acorda sentindo uma dor aguda, pois os dois, lá em baixo, vacilam e fundem-se num beijo que parece eterno. Isolda? Não, Dima. Dima e ele. Aquilo choca ! Oh! como choca ! Aquele beijo nunca mais acabará ? O teatro freme, vibra. O acto acaba : luz. Batem palmas. Não, a vida não é como a ópera; Deus seja louvado! Mas esta Dimatter - forçoso é confessá-lo tem talento! Que voz ! E que figura ! Uma intensa personalidade! Não pode haver dúvida de que seja aparentada com o ministro, esse senhor de idade que ocupa o camarote do Jockey Club e que aplaude sonhadoramente.
Mas não, tolices. Ela é simplesmente a última amante de Rassiem. Ah! Ah! por isso mostrava tanta paixão!
De qualquer forma, aquele abraço tinha sido comovedor. Rassiem - sim, certamente - era um bom cantor e, principalmente, decorativo. Quanto à voz?. Chut! Atenção, a mulher está ali atrás, aquela mulher ruiva, interessante. Também foi uma cantora célebre. Sim, mas há muito tempo. O ministro continuava a aplaudir: então podia ser que. sim? Algumas colegazitas batiam palmas, com expressões açucaradas, nos camarins dos artistas. Sofia e frau Edlinger, sentadas na orquestra, choravam de alegria. O sr. Edlinger corria dum lado para outro no fosso da orquestra: suava, agarrando os colegas por um botão da casaca e falava-lhes cara a cara, com veemência. O sr. Blaulich, no seu camarote, estava satisfeito, assobiando uma ária, qualquer coisa como uma paródia do motivo da tristeza.
Na quarta galeria, entretanto, havia agitação e ruído,
Todos estavam encantados, devorados de ciúme; levantavam-se, com o entusiasmo. Zangavam-se, aplaudiam, aplaudiam mais e mais: "Viva a Dimatter!" E ainda: "Viva a Dimatter! Havia bofetadas. A classe de Rassiem, de pé, como uma horda, agrupava-se em torno de Gelfius, berrando: "Bravo Rassiem, bravo!" A Hartwig pavoneava-se, radiante e pequena, no antigo lugar de Dima e fazia um discurso: iA quem deve a Dimatter a técnica? A expressão? A representação? Tudo, de resto. A quem? A Rassiem. Viva Rassiem e viva Rassiem e mais uma vez, viva Rassiem!."
Elis ficou sentada, fechada no camarote, olhando toda aquela massa viva, negra e colorida ali, na orquestra, por baixo dela, e também lá em cima, nos balcões. A humanidade era cómica, muito cómica. Agitava-se, gritava e vivia. O lustre lançava reflexos semelhantes a facas afiadas .
Isto não me irá fazer sofrer ? i Não poderá causar coisas horrorosas, dores de estômago, náuseas? Não, não, o dicionário diz que ."
Silêncio. Noite. Segundo acto.
Milhares de estrelas sobem por cima dum jardim cuidado. Ouve-se uma corneta, ao longe, ao longe. A terra respira, falam a folhagem e a fonte. O facho arde. O facho ilumina.
O facho ilumina!
"Noite, oh! noite que só duas coisas conheces: uma, a tristeza, a outra o fim.
Dois entes amam-se. É assim, quando dois entes se amam. Dois entes tombam sobre a terra. Dois entes fundem-se com o mundo, num só.
Não acordar, não acordar nunca!
É assim, morrer! Uma alegria imensa e sem fim. Não acordar mais. Uma claridade surge da música e, como um relâmpago, ilumina todos os recantos da alma.
Não acordar mais! Não acordar mais!.
Para vós, humanos, lá em baixo, a manhã virá; para mim, nunca mais. Não acordar! Porque tremem as minhas mãos com tanta violência? O copo bate nos dentes, os maxilares estão rígidos, como congelados,
Não posso. Ó meu Deus, meu Deus! Senhor bem amado, não posso. Ajuda-me, mamã, mamã! Tremo tanto! Ajuda-me! Cobarde! Engole. Amargo. amargo. amargo. Nuvens. frio. mamã. a porta abre-se, sinos. tocam. tocam. tocam."
Acabou-se.
Hannès Rassiem arrastou a Dima à frente do pano, mais uma vez. Do outro lado, a sala cheia de luzes, estava em rumor; gritos, barulhos, vinham desabar sobre a ribalta. Entre o palco e o público, o fosso da orquestra, obscuro, deserto, rapidamente esvaziado, tal como fera morta, negra e estendida. Estava um calor ardente.
Por trás do pano, estendia-se o palco já menos iluminado, rodeado de cortinados poeirentos. Sem barulho, os homens transportavam os cenários para os bastidores; o pano de fundo com as paredes do Castelo, foi pelos ares, descobrindo a profundeza nua do palco onde coisas tapadas com panos amarelos, se amontoavam como animais. Díma sentia até que ponto tremia a mão de Rassiem, úmida de suor, que segurava a sua. Toda a noite as mãos do tenor, todo o seu corpo, atormentado pelo medo, haviam tido esse tremor. Depois do último descer do pano, deixou, num gesto exausto, cair a mão de Dima.
- Que êxito! - disse, sem entoação.
- Parece-me que o senhor esteve maravilhoso. - respondeu Dima, risonha e febril, erguendo os olhos para ele.
Viu então que o rosto do artista se transformava estranhamente sob a pintura, deixando-se cair lamentavelmente. E, de súbito, sentiu lágrimas nos olhos. Era apenas isto, Rassiem, esse homem indiferente, estranho, esse velho comediante que tremia diante do público, cujos cabelos, molhados de suor, pendiam pela testa pintada, cuja respiração era tão ofegante e difícil, esse homem fatigado que acabavam de envolver num casaco e que saía da cena, arrastando os pés?
A sua sombra, grande e disforme, deslizava atrás dele no sobrado. Um bombeiro veio com uma pequena, lanterna: pôs o vácuo sobre a vasta cena muda.
Acabara-se.
Então Dima foi sentar-se no camarim e deixou que lhe tirassem o vestido e a cabeleira. A velha costureira contou-lhe, que mesmo em criança já tinha talento. No coro das crianças, da Carmen, ia sempre à frente com um pequeno estandarte, depois, no Evangilemann cantara em voz clara e pura, como uma avezinha. E agora fora o êxito, e que êxito! Que alegria para as duas manas! E para o sr. Kammersánger! Pois era ele o professor da menina! O sr. Kammersánger tinha estado maravilhoso hoje, principalmente na representação, i Sim, a concorrência dos novos estimula !
- E dizer que a menina tem apenas vinte anos! Onde aprendeu tanto? Que forma de representar! Que expressão! Lembra a Kouczowska, que foi a melhor Isolda.
Agradavelmente confusa, Dima ouvia esta tagarelice. O sangue, rico e quente, corria-lhe nas veias. Bateram. Sofia e frau Edlínger entraram, encostando-se à parede, com ar acanhado.
Sofia pôs um ovo cru em cima da mesa.
- É o que há de melhor para a voz. - murmurou, olhando à sua volta. Estava bonito, aquilo, decorado com poltronas, espelhos altos, reposteiros. No vestiário do coro e do baile era muito diferente.
- Os meus cumprimentos pelo teu êxito.- disse a irmã Edlinger, e pôs-se a chorar- Queres que te ajude a vestir? - preguntou apressadamente.
Sofia acariciava humildemente o braço de Dima. O sr. Blaulich mandou um cartão, dizendo que esperava a Dimatter no Grande Hotel, para cear.
- Chique! - disse Dima - Vamos beber champanhe! Meu Deus! É preciso que beba hoje. De resto, já me sinto embriagada, não sei sequer onde estou. Enquanto espero, vão ter com ele e digam-lhe que lhe mando cumprimentos.
- Ele não nos convidou . Quem sabe se lhe convém que eu esteja lá. - disse Sofia, ingénua.
Dima pòs-se a rir, mas logo se tornou séria.
- Já saí uma vez só com ele. Segunda ? Ah! não! Para a frente! Abra a marcha, velha guardiã, espera, deixa que te beije. e a ti também, Gusti, e a ti também, velha e boa criatura do vestiário! É verdade, estou louca! - gritou ela, soltando grandes gritos de alegria e dançando em frente do espelho da mesa de toilette - Sò agora o compreendo: cantei! Venci! Venci! Venci!
A família saiu, com os olhos cheios de lágrimas. Sofia agarrou no ovo cru que tinha levado. Enquanto Dima se calçava, qualquer coisa de pesado caiu lhe no coração: no segundo acto, a sua respiração tinha enfraquecido um pouco. tinha ainda tanto que aprender!
Bateram de novo; a porta foi cautelosamente aberta e Rassiem entrou:
- "É expressamente proibida a entrada nos camarins das senhoras ao pessoal masculino. Parágrafo quinto do regulamento. - disse gravemente, pondo-se em frente do espelho. A costureira riu. Rassiem agarrou-a, deu-lhe um beijo no nariz e cantou:
- "Deixe-nos condessa, vá, deixe-nos sós! Trálálá! A porta fechou se; então, o silêncio caiu. Num
movimento inconsciente, Dima apertou muito o vestido contra si.
- Dima. - disse Hannès Rassiem em voz pouco firme.
Ela olhou-o. Como tinha mudado! Já não era Tristão, mas um velho actor fatigado.
- Hannès!
Os seus olhos estavam claros, com grandes pupilas negras, os cabelos loiros muito escovados para trás, as mãos pareciam frescas e calmas. Cheirava a água de Colónia e a fino sabão inglês.
- Hannès!
- Eu. Ah!. Exprimo-me mal. Estás zan. Não, dá-me simplesmente a tua amizade. Não tive má intenção. mas já não posso fazer nada .
Ela olhou-o: lentamente, as lágrimas subiram-lhe aos olhos ao mesmo tempo que um sorriso, por tanta puerilidade. Ela calou-se. muito tempo, quási um minuto. Todo o ano surgiu, espalhando-se no camarim
em imagens mudas e sugestivas. Riqueza, amargura e novamente riqueza.
Ela fez somente que sim com a cabeça.
- Obrigado. - murmurou ele impetuosamente, atirando-se-lhe sobre as mãos.
Havia afectação neste movimento.
- Obrigada a ti também. - murmurou Dima numa voz imperceptivel sobre o pescoço inclinado para ela. Baixou a cabeça, apaixonadamente atraída.
- Não, não, acabou-se.
Vociferações enrouquecidas soaram no corredor:
- Tristão! Meu querido! Rassiem, onde se esconde você, com todos os demónios?
- Aqui. - gritou Rassiem, aliviado : tinha medo do silêncio e não encontrava mais nada para dizer. Gelfius apareceu e fez uma profunda reverência.
- A senhora sua esposa espera-o na escada, Quanto tempo vai isto durar ainda? É preciso não lhe pedir muito. Ah! a prima-dona!-disse ele com muito mais calma e um vigoroso aperto de mão.
- Bem, muito bem, Dimatter.
O alfaiate esperava à porta e ajudou Rassiem a vestir o sobretudo quente. Gelfius enrolou-lhe uma grossa écharpe em roda do pescoço. Rassiem pôs um lenço diante da boca. Em pé, na escada estreita, Maria gritou-lhe :
- Não fales, Hannès. Cuidado. Lá fora o ar está frio e úmido.
Então, viu a Dima que descia os degraus atrás dele e surgia diante dela. Maria tinha perdido um pouco da sua graça e da sua leveza. Da porta exterior do teatro, chegavam exclamações surdas; logo à saída Rassiem foi metido no seu automóvel. Maria poisou as suas mãos finas e firmes em redor do rosto de Dima, aproximou-o do seu e beijou-a na boca (). Separaram-se, estranhamente felizes e comovidas, sem haver pronunciado uma palavra.
() Em certos países da Europa o beijo na boca não é chocante entre parentes e amigos.
Houve uma paragem de carros, à porta; aos bravos, misturou-se o som penetrante dum apito. O carro-ambulância avançou rapidamente na avenida e parou em frente da casa do porteiro. Apareceram cabeças à luz dos faróis, ouviram se chamadas, seguidas de vozes e gestos. No meio dum silêncio mortal, um sombrio fardo foi trazido misteriosamente.
Que foi ? Que se passou ? Um acidente ? Um desmaio? Sim, foi uma senhora que não se sentiu bem no seu camarote.
- Vêem, vocês cantaram tão mal os dois, que até as pessoas desmaiaram! - disse Gelíius.
Berger, reverente, tirou o boné diante de Dima, e o carro penetrou lentamente no nevoeiro.
V
O céu estava azul, dum azul ridículo, como o de uma pintura a óleo do golfo de Nápoles. Erguiam-se ciprestes direitos e negros, sob o sol. Nos vestígios de pegadas que se notavam em redor do túmulo, tinham-se formado crostas redondas, de gelo; novas marcas de passos, misturavam-se em todos os sentidos na terra escura, cor de barro.
As pàzadas que atiravam para a cova eram duras e geladas, batiam fortemente e sem ternura, contra o caixão. Pessoas vestidas de preto esperavam, apressadas e irresolutas, em redor da campa. Nenhuma queria ser a primeira. Uma rapariguinha de grandes olhos espantados, soltava gritinhos nervosos. Ao pé de fráulein Hartwig, encontrava-se o sr. Kammersánger Rassiem, que tinha oferecido uma grande coroa e assistira de chapéu alto e luvas pretas, à cerimónia fúnebre: as lágrimas corriam-lhe pela cara, como a uma criança. Atrás, estava Gelfius, tremendo, acabrunhado por ter vestido um impermeável beige claro, lançando olhares furiosos ao padre untuoso que pronunciara uma oração fúnebre e insípida. Dima, a quem ele apertava a mão, sentia como estava sacudido por uma tormenta interior.
Por fim, o professor Kerckhoff voltou-se, olhou com um sorriso desesperado para as mãos e as cabeças e dirígiu-se,
delgado e mergulhado em si próprio, para a saída. Aí, os carros esperavam. Dos pesados cavalos saía uma nuvem para o ar, purificado pelo gelo; os cocheiros tinham caras vermelhas e alegres.
- Gelfius?- procurou o professor Kerckhof, incerto, olhando, com olhos piscos, fatigado pela vigília, o sol que pintava de amarelo os muros do cemitério -Gelfius?
- Estou aqui. - respondeu Gelfius maquinalmente, como respondendo a uma ordem.
- É preciso que tenha a grande bondade de vir um dia a nossa casa. Há lá livros e música. Não compreendo . a pequena. deixou-me só em casa. Há lá livros e músicas que lhe pertencem. Havia também um testamento, sim, qualquer coisa de muito ingénuo, um testamento escrito num estranho papel: uma página de caderno de escola, sabe, com linhas azuis! Uma página pautada a azul, como duma colegialsita! Incompreensível! Incompreensível!-murmurou, sacudindo a cabeça.
Tinha ainda colado aos cabelos das fontes um pouco de barro escuro.
- É necessário que venha, sinto-me tão só em casa! Estou a fazer o esboço dum novo monumento para o mausoléu. É preciso que o veja. A pequena - ela disse-me adeus e eu não compreendi -a pequena achou o monumento pesado. que devia pesar. Agora concebi outro. Senão, que havia eu de fazer durante as noites? O trabalho é ainda a única coisa, não é verdade, Gelfius ? É completamente diferente de todas as minhas obras: uma criança muito delicada, muito frágil, deitada no chão, e que estende as duas mãos e bebe. Acha que ela gostaria? -preguntou, levantando o rosto acabado -Você conheceu-a melhor do que eu . acha que gostaria ? Eu não a conhecia nada, a minha filha, a minha pequena Lise.
-Número quatro!-gritou um cocheiro-Por aqui, senhores e senhoras. Número quatro, está aqui o seu carro.
- É preciso que venha, Gelfius. Estou tão só em casa. é preciso que venha ver o que eu estou a fazer
e tocar-me qualquer coisa. Sim, temos ainda o trabalho. - disse Kerckhoff, em voz baixa.
E, absolutamente sucumbido, deixou-se empurrar para o carro.
-Por favor, os senhores e as senhoras que vão para o Conservatório de Música!-gritaram, e punhos zelosos puseram Gelfius, à viva força, num assento do trem negro.
Lá dentro, caiu sobre Rassiem; atrás dele, Dima foi igualmente empurrada para o interior. Então, tombando para um lado e para outro, com estalidos de matraca, o carro pôs-se em marcha, através do mundo frio e claro que rodeava o cemitério.
Iam calados. Passavam campos dum branco-azulado, onde a semente germinava sob a neve cheia de sol. Cabanas, casas, lojas, pessoas, crianças, cães; uma igreja, um pequeno mercado sarapintado, uma caserna, tudo quanto pertencia à vida de cada dia.
-Posso fumar? -preguntou Rassiem, sem esperar resposta.
Dima não podia desviar os olhos das mãos de Gelfius, aprisionadas nas luvas de algodão preto, tão ridículas, e que apertavam convulsivamente uns cravos brancos amarfanhados, que a faziam sentir uma tristeza misturada de cólera. Ele seguiu o olhar da rapariga, descobriu os cravos e pensou: "Esqueci-me de lhe dar as minhas flores". E atirou-as fora, pela portinhola. Dima viu-as cair, olhou as ruas inundadas de sol, cheias de gente, de sons, de árvores, plenas de misteriosa espectativa. Sob a pelagem lisa dos cavalos, os músculos moviam-se, nobremente. Numa espécie de sentimento trasbordante, ela contemplava tudo isso: a abóbada do céu transparente e azul, que ondulava lá em cima, e, também, o vapor que subia do excremento doirado dos cavalos, na calçada: o mundo respirava ao ritmo do seu sangue. Um impulso de felicidade fê-la erguer os braços, como asas, e gritar:
-Sim, sim, a vida é um encantamento. A vida é maravilhosa.
"Aqui, ouvem-se as trombetas."-pensou Gelfius, que
compunha, à cadência do carro, uma marcha fúnebre onde se incorporava uma melodia melancólica em ré menor.
Atravessaram arredores. O carro oscilava sobre as ruas mal calcetadas. As portinholas, de vidros baixos. batiam, como que enraivecidas.
-A minha pequena Elis está morta! -disse Gelfius, de súbito, no meio do barulho.
E, embora não tivesse percebido uma palavra, Rassiem saiu do seu torpor ao grito de Dima e pôs-se a chorar.
- Você bem sabe, Rassiem, porque é que ela está morta.
- Quê? -gritou Rassiem no meio do barulho -Eu? Não sei. nem posso mesmo compreender semelhante coisa.
- Não, - disse Gelfius, em voz baixa - ele não com preende nada. Observei o, observei o sempre, não sabia nada, não compreendia nada. Tem sorte! Ele trouxe uma coroa: "Repoisa em paz". Chora. Senhor! i Então porque está a chorar outra vez?- rugiu, de repente.
- Era tão galante!-soluçou Rassiem, sem se poder conter; e as lágrimas corriam, claras, sobre o seu rosto - Amava-a como a uma filha! E agora, esta morte horrorosa! Como foi isto, Gelfius? Viu a pela última vez?
O carro tinha se metido agora nos rails do eléctrico e, subitamente silencioso, rolava molemente; o grito de Rassiem jorrou no silêncio imprevisto como um corredor que, no seu impulso, ultrapassa o fim.
- Viu a? - repetiu em voz baixa e como em segredo.
- Estava como uma colegial com o seu vestidinho branco. Tão frágil, tão calma, tão feliz. Os médicos disseram que morreu sem sofrimento.
Rassiem quis pôr termo àquilo:
- Mas porquê? - preguntou-porquê, porquê? Era de boa família, tinha um certo talento, era bonita! Todos gostavam dela! E tão nova! Seria por ter uma voz tão curta? Em suma, isso podia ser uma razão! Não? Que lhe parece então?
Dima desprendeu dele o seu olhar para o levar para as mãos de Gelfius.
- Ela morreu por tua causa, Hannés! -disse, muito séria.
- Por. minha causa? Por minha causa? Mas que quer isso dizer? Fiz-lhe alguma coisa? Por minha causa? Mal a conhecia; fui sempre amável com ela, sempre. Mas nunca perturbei essa pequena, isso não. Uma criança! Por minha causa? - repetia, voltando a chorar.
Lentamente, consolou se; lentamente, acudiu lhe a conclusão:
- Então, - disse - essa garota matou-se por minha causa! Por desespero de amor? Sim, é isso, por desespero de amor. Mas, é muito romântico! Canta a gente o Tristão, e, lá em cima, num camarote, uma pequena envenena-se! Porque não falaram disso nos jornais? É natural, evitam estes assuntos. Foi pois, no Tristão. Numa bela representação!
Tenor!" - pensou Dima, sorrindo dele e dela própria, de tudo quanto tinha sofrido. Poisou a mão no ombro de Gelfius que um frémito interior sacudia. Ele disse em voz enrouquecida:
- Sim, uma bela representação! Vocês estiveram perfeitos, os dois! Que pena ela não ter ficado até ao fim, não é verdade ?
- E sobre a tua vida, Dima ? - preguntou Rassiem, num tom diferente - Tens qualquer contrato?
- Um ano em Graz, para aprender a profissão. E depois aqui, a Ópera. Meu Deus! Meu Deus!- disse ela cerrando os punhos, sem poder moderar a alegria que cantava na sua voz.
- Chegamos. - murmurou Gelfius.
Rassiem lançou vivamente um olhar para o espelho ordinário posto no fundo do carro e, com a mão, estabeleceu a ordem no penteado.
- Já é quási meio dia, as garotas devem ter tagarelado tanto que nem poderão cantar.
Os corredores estavam cheios de alunos. Das paredes saíam vozes de gente, de pianos e de violinos; um órgão soava, gravemente. Gelfius subiu os degraus,
pensando: .Como tudo é extraordinário! Elis está morta, tão delicada, tão gentil, tão criança e está morta ? Nós éramos amigos. Mas eu amei-te, Elis, minha querida, amei-te muito; como não é possível amar, E eis que as aulas recomeçam como dantes. Tenho luvas pretas nas mãos e o sol brilha sobre elas. Minha, os Filarmónicos ensaiam a minha sinfonia. Depois, há o quarteto para os instrumentos de corda e é tudo que resta de Elis: uma melodia em ré menor e uma marcha fúnebre na qual soarão trombetas. Sim, apesar de tudo, a vida é maravilhosa! Temos o trabalho, a obra, e nós próprios! Nunca mais te verei, Elis. No entanto, carreira das horas continuará, como sempre.
Lá em cima, à porta dos corredores, Dima esperava.
E disse:
- Adeus, Gelfius, adeus, sr. Kammersãnger. vou buscar o meu diploma. Depois, começa a vida bela, a vida real. Obrigada por tudo, sim, por tudo.
- Adeus. - disse o tenor, em voz rouca. "Qualquer coisa se despede de mim nesta hora, qualquer coisa que não voltará mais; adeus, querida mocidade."-pensava, retendo ainda um segundo a mão da aluna na sua.
Depois, a porta do corredor abriu-se violentamente e Hannès Rassiem passou na frente de Dima: passou a longos passos elásticos, como no palco, e desapareceu ao fundo, na sala da aula, onde ardia a última chama amarela e cantante do gás.
Vicki Baum
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