Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
GABRIELA, CRAVO E CANELA
Essa, história de amor ¯ por curiosa coincidência, como diria dona Arminda ¯ começou no mesmo dia claro, de sol primaveril em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de igreja, e o dr Osmundo Pimentel, cirurgião-dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. Pois, naquela manhã, antes da tragédia abalar a cidade, finalmente a velha Filomena cumprira sua antiga ameaça, abandonara a cozinha do árabe Nacib e partira, pelo trem das oito, para Água Preta, onde prosperava seu filho.
Como opinara depois João Fulgêncio, homem de muito saber, dono da Papelaria Modelo, centro da vida intelectual de Ilhéus, fora mal escolhido o dia, assim formoso, o primeiro de sol após a longa estação das chuvas, sol como uma carícia sobre a pele. Não era dia próprio para sangue derramado. Como, porém, o coronel Jesuíno Mendonça era homem de honra e determinação, pouco afeito a leituras e a razões estéticas, tais considerações não lhe passaram sequer pela cabeça dolorida de chifres. Apenas os relógios soavam as duas horas da sesta e ele ¯ surgindo inesperadamente, pois todos o julgavam na fazenda ¯ despachara a bela Sinhazinha e o sedutor Osmundo, dois tiros certeiros em cada um. Fazendo com que a cidade esquecesse os demais assuntos a comentar: o encalhe do navio da costeira pela manhã na entrada da barra, o estabelecimento da primeira linha de ônibus ligando Ilhéus a Itabuna, o grande baile recente do Clube Progresso e, mesmo, a apaixonante questão levantada por Mundinho Falcão das dragas para a barra. Quanto ao pequeno drama pessoal de Nacib subitamente sem cozinheira, dele apenas seus amigos mais íntimos tomaram conhecimento imediato, sem lhe dar, aliás, maior importância. Voltavam-se todos para a tragédia a emocioná-los, a história da mulher do fazendeiro e do dentista, seja pela alta classe dos três personagens nela envolvidos, seja pela riqueza, de detalhes, alguns picantes e saborosos. Porque, apesar do propalado e envaidecedor progresso da cidade (Ilhéus civiliza-se em ritmo impetuoso, escrevera o dr.Ezequiel Prado, grande advogado, no Diário de Ilhéus), ainda se glosava, acima de tudo, naquela terra, uma história assim violenta de amor, ciúmes e sangue. Iam-se perdendo, no passar dos tempos, o eco dos últimos tiros trocados nas lutas pela conquista da terra, mas daqueles anos heróicos ficara um gosto de sangue derramado no sangue dos ilheenses. E certos costumes: o de arrotar valentia, de carregar revólveres dia e noite, de beber e jogar. Certas leis também, a regularem suas vidas. Uma delas, das mais indiscutidas, novamente cumprira-se naquele dia: honra de marido enganado só com a morte dos culpados podia ser lavada. Vinha dos tempos antigos, não estava escrita em nenhum código, estava apenas na consciência dos homens, deixada pelos senhores de antanho, os primeiros a derrubar matas e a plantar cacau. Assim era em Ilhéus, naqueles idos de 1925, quando floresciam as roças nas terras adubadas com cadáveres e sangue e multiplicavam-se as fortunas, quando o progresso se estabelecia e transformava-se a fisionomia da cidade.
Tão profundo aquele gosto de sangue que o próprio árabe Nacib, afetado bruscamente em seus interesses com a partida de Filomena, esquecia tais preocupações, voltando-se por inteiro para os comentários do duplo assassinato. Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se ruas, importavam-se automóveis, construíam-se palacetes, rasgavam-se estradas, publicavam-se jornais, fundavam-se clubes, transformava-se Ilhéus. Mais lentamente porém evoluíam os costumes, os hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades.
AVENTURAS E DESVENTURAS DE UM BOM BRASILEIRO (NASCIDO NA SÍRIA) NA CIDADE DE ILHÉUS, EM 1925, QUANDO FLORESCIA O CACAU E IMPERAVA O PROGRESSO COM AMORES, ASSASSINATOS, BANQUETES, PRESÉPIOS, HISTÓRIAS VARIADAS PARA TODOS OS GOSTOS, UM REMOTO PASSADO GLORIOSO DE NOBRES SOBERBOS E SALAFRÁRIOS UM RECENTE PASSADO DE FAZENDEIROS RICOS E AFAMADOS JAGUNÇOS, COM SOLIDÃO E SUSPIROS, DESEJO, VINGANÇA, ÓDIO, COM CHUVAS E SOL E COM LUAR, LEIS INFLEXÍVEIS, MANOBRAS POLÍTICAS, O APAIXONANTE CASO DA BARRA, COM PRESTIDIGITADOR, DANÇARINA, MILAGRE E OUTRAS MÁGICAS OU UM BRASILEIRO DAS ARÁBIAS.
CAPÍTULO PRIMEIRO
O LANGOR DE OFENÍSIA (QUE MUITO POUCO APARECE MAS NEM POR ISSO É MENOS IMPORTANTE).
Neste ano de impetuoso progresso...
(de um jornal de Ilhéus, em 1925)
RONDÓ DE OFENÍSIA
Escutai, ó meu irmão, Luiz Antônio, meu irmão: Ofenísia na varanda na rede a se balançar.O calor e o leque,a brisa doce do mar, mucama no cafuné. Já ia fechar os olhos o monarca apareceu:barbas de tinta negra, ó resplendor!O verso de Teodoro,a rima para Ofenísia, o vestido vindo do Rio, o espartilho, o colar, mantilha de seda negra, o sagüi que tu me deste, tudo isso de que serve Luiz Antônio, meu irmão?
São brasas seus olhos negros, (¯ São olhos de imperador!) incendiaram meus olhos. Lençol de sonho suas barbas (¯ São barbas imperiais!) para o meu corpo envolver. Com ele quero casar (¯ Com o rei não podeis casar!) com ele quero deitar em suas barbas sonhar. (¯Ai, irmã, nos desonrais!) Luiz António, meu irmão, que esperais pra me matar?
Não quero o conde, o barão, senhor de engenho não quero, nem os versos de Teodoro, não quero rosas nem cravos nem brincos de diamante. Tudo que quero são as barbas tão negras do imperador! Meu irmão, Luiz Antônio, da casa ilustre dos Ávilas, escutai, ó meu irmão: se concubina não for do Senhor imperador nessa rede vou morrer de langor.
DO SOL E DA CHUVA COM PEQUENO MILAGRE
Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas a perguntar uns aos outros, o medo nos olhos e na voz:
¯ Será que não vai parar?
Referiam-se às chuvas, nunca se vira tanta água descendo dos céus, dia e noite, quase sem intervalos.
¯ Mais uma semana e estará tudo em perigo.
¯ A safra inteira...
¯ Meu Deus!
Falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as anteriores. Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior riqueza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, novas residências para as famílias nas novas ruas recém-abertas, móveis de luxo mandados vir do Rio, pianos de cauda para compor as salas, as lojas sortidas, multiplicando-se, o comércio crescendo, bebida correndo nos cabarés, mulheres desembarcando dos navios, o jogo campeando nos bares e nos hotéis, o progresso enfim, a tão falada civilização.
E dizer-se que essas chuvas agora demasiado copiosas, ameaçadoras, diluviais, tinham demorado a chegar, tinham-se feito esperar e rogar! Meses antes, os coronéis levantavam os olhos para o céu límpido em busca de nuvens, de sinais de chuva próxima. Cresciam as roças de cacau, estendendo-se por todo o sul da Bahia, esperavam as chuvas indispensáveis ao desenvolvimento dos frutos acabados de nascer, substituindo as flores nos cacauais. A procissão de São Jorge, naquele ano, tomara o aspecto de uma ansiosa promessa coletiva ao santo padroeiro da cidade.
O seu rico andor bordado de ouro, levavam-no sobre os ombros orgulhosos os cidadãos mais notáveis, os maiores fazendeiros, vestidos com a bata vermelha da confraria, e não é pouco dizer, pois os coronéis do cacau não primavam pela religiosidade, não freqüentavam igrejas, rebeldes à missa e a confissão, deixando essas fraquezas para as fêmeas da família:
¯ Isso de igreja é coisa para mulheres.
Contentavam-se com atender os pedidos de dinheiro do bispo e dos padres para obras e folguedos: o colégio das freiras no alto da Vitória, o palácio diocesano, escolas de catecismo, novenas, mês de Maria, quermesses, festas de Santo António e São João.
Naquele ano, em vez de ficarem nos bares bebericando, estavam todos eles na procissão, de vela em punho, contritos, prometendo mundos e fundos a São Jorge em troca das chuvas preciosas. A multidão, atrás dos andores, acompanhava pelas ruas a reza dos padres. Paramentado, as mãos unidas para a oração, o rosto compun-gido, o padre Basílio elevava a voz sonora puxando as preces. Escolhido para a importante função por suas eminentes virtudes, por todos consideradas e estimadas, o fora também por ser o santo homem proprietário de terras e roças, diretamente interessado na intervenção celestial. Rezava assim com redobrado vigor.
As solteironas, numerosas, em torno à imagem de Santa Maria Madalena, retirada na véspera da Igreja de São Sebastião, para acompanhar o andor do santo padroeiro em sua ronda pela cidade, sentiam-se transportar em êxtase ante a exaltação do padre habitualmente apressado e bonachão, despachando sua missa num abrir e fechar de olhos, confessor pouco atento ao muito que elas tinham a lhe contar, tão diferente do padre Cecílio, por exemplo.
Elevava-se a voz vigorosa e interessada do padre na prece ardente, elevava-se a voz fanhosa das solteironas, o coro unânime dos coronéis, suas esposas, filhas e filhos, dos comerciantes, exportadores, trabalhadores vindos do interior para a festa, carregadores, homens do mar, mulheres da vida, empregados no comércio, jogadores profis-sionais e malandros diversos, dos meninos do catecismo e das moças da Congregação Mariana. Subia a prece para um diáfano céu sem nuvens, onde, assassina bola de fogo, queimava um sol impie-doso ¯ capaz de destruir os recém-nascidos brotos dos cocos de cacau.
Certas senhoras de sociedade, numa promessa combinada durante o último baile do Clube Progresso, acompanhavam a procissão de pés descalços, oferecendo o sacrifício de sua elegância ao santo, pedindo-lhe chuva. Murmuravam-se promessas diversas, apressava-se o santo, nenhuma demora se lhe podia admitir, ele bem via a aflição de seus protegidos, era milagre urgente o que lhe pediam.
São Jorge não ficaria indiferente às preces, à repentina e como-vente religiosidade dos coronéis e ao dinheiro por eles prometido para a igreja matriz, aos pés nus das senhoras castigados pelos paralelepípedos das ruas, tocado sem duvida mais que tudo pela agonia do padre Basílio. Tão receoso estava o padre pelo destino dos seus frutos de cacau que, nos intervalos do rogo vigoroso, quando o coro clamava, jurava ao santo abster-se um mês inteiro dos doces favores de sua comadre e ama Otália. Cinco vezes comadre pois já cinco robustos rebentos ¯ tão vigorosos e promissores quanto os cacauais do padre levara ela, envoltos em cambraia e renda, à pia batismal. Não os podendo perfilhar, era o padre Basílio padrinho de todos cincos ¯ três meninas e dois meninos ¯ e, exercendo a caridade cristã, lhes emprestava o uso do seu próprio nome de família: Cerqueira, um belo e honrado nome.
Como poderia São Jorge ficar indiferente a tanta aflição? Vinha ele dirigindo, bem ou mal, os destinos dessa terra, hoje do cacau, desde os tempos imemoriais da Capitania. O donatário, Jorge de Figueiredo Correia, a quem o rei de Portugal dera, em sinal de amizade, essas dezenas de léguas povoadas de silvícolas e de pau-brasil, não quisera deixar pela floresta bravia os prazeres da corte lisboeta, mandara seu cunhado espanhol morrer nas mãos dos índios. Mas lhe recomendara pôr sob a proteção do santo vencedor dos dragões aquele feudo que o rei seu senhor houvera por bem lhe regalar. Não iria ele a essa distante terra primitiva mas lhe daria seu nome consagrando-a a seu xará São Jorge. Do seu cavalo na lua, seguia assim o santo o destino movimentado desse São Jorge dos Ilhéus desde cerca de quatrocentos anos. Vira os índios trucidarem os primeiros colonizadores e serem por sua vez trucidados e escravizados, vira erguerem-se os engenhos de açúcar, as plantações de café, pequenos uns, medíocres as outras. Vira essa terra vegetar, sem maior futuro, durante séculos. Assistira depois à chegada das primeiras mudas de cacau e ordenara aos macacos juparás que se encarregassem de multiplicar os cacaueiros. Talvez sem objeto preciso, apenas para mudar um pouco a paisagem da qual já devia estar cansado após tantos anos. Não imaginando que, com o cacau, chegava a riqueza, um tempo novo para a terra sob sua proteção. Viu então coisas terríveis: os homens matando-se traiçoeira e cruelmente pela posse de vales e colinas, de rios e serras, queimando as matas, plantando febrilmente roças e roças de cacau. Vira a região de súbito crescer, nascerem vilas e povoados, vira o progresso chegar a Ilhéus trazendo um bispo com ele, novos municípios serem instalados ¯ Itabuna, Itapira ¯, elevar-se o colégio das freiras, vira os navios desembarcando gente, tanta coisa vira que pensava nada poder mais impressioná-lo. Ainda assim impressionou-se com aquela inesperada e profunda devoção dos coronéis, homens rudes, pouco afeitos a leis e rezas, com aquela louca promessa do padre Basílio Cerqueira, de natural incontinente e fogoso, tão fogoso e incontinente que o santo duvidava pudesse ele cumpri-la até o fim.
Quando a procissão desembocou na praça São Sebastião, parando ante a pequena igreja branca, quando Glória persignou-se sorridente em sua janela amaldiçoada, quando o árabe Nacib avançou do seu bar deserto para melhor apreciar o espetáculo, então aconteceu o falado milagre.
Não, não se encheu de nuvens negras o céu azul, não começou a cair a chuva. Sem dúvida para não estragar a procissão. Mas uma esmaecida lua diurna surgiu no céu, tão perfeitamente visível apesar da claridade ofuscante do sol. O negrinho Tuísca foi o primeiro a enxergá-la e chamou a atenção das irmãs Dos Reis, suas patroas, no grupo todo em negro das solteironas. Um clamor de milagre sucedeu, partindo das solteironas excitadas, propagando-se pela multidão, logo espalhando-se pela cidade toda. Durante dois dias não se falara noutra coisa. São Jorge viera para ouvir as preces, as chuvas não tardariam.
Realmente, alguns dias após a procissão, nuvens de chuva se acumularam no céu e as águas começaram a cair no começo da noite. Só que São Jorge, naturalmente impressionado pelo volume de orações e promessas, pelos pés descalços das senhoras e pelo espantoso voto de castidade do padre Basílio, fez milagre demais e agora as chuvas não queriam parar, a estação das águas se prolongava já por mais de duas semanas além do tempo habitual.
Aqueles brotos apenas nascidos dos cocos de cacau, cujo desen-volvimento o sol ameaçara, haviam crescido magníficos com as chuvas, em número nunca visto, agora começavam novamente a necessitar do sol para se porem de vez. A continuação das chuvas, pesadas e persistentes, poderia apodrecê-los antes da colheita. Com os mesmos olhos de temor agoniado, os coronéis fitavam o céu plúmbeo, a chuva descendo, buscavam o sol escondido. Velas eram acesas nos altares de São Jorge, de São Sebastião, de Maria Madalena, até no de Nossa Senhora da Vitória, na capela do cemitério. Mais uma semana, mais dez dias de chuvas e a safra estaria por inteiro em perigo, era uma trágica expectativa.
Eis porque quando, naquela manhã em que tudo começou, um velho fazendeiro, o coronel Manuel das Onças (assim chamado porque suas roças ficavam num tal fim de mundo que lá, segundo diziam e ele confirmava, até onças rugiam) saiu de casa ainda quase noite, às quatro da manhã, e viu o céu despejado, num azul fantasmagórico de aurora desabrochando, o sol a anunciar-se num clarão alegre sobre o mar, elevou os braços, gritou num alivio imenso:
¯ Enfim... A safra está salva.
O coronel Manuel das Onças apressou o passo em direção à banca de peixe, nas imediações do porto, onde pela manhãzinha, quotidianamente, reunia-se um grupo de velhos conhecidos em torno das latas de mingau das baianas. Não iria encontrar ainda ninguém, era ele sempre o primeiro a chegar, mas andava depressa como se todos o esperassem para ouvir a notícia. A alvissareira notícia do fim da estação das chuvas. O rosto do fazendeiro abria-se num sorriso feliz. Estava garantida a safra, aquela que seria a maior safra, a exce-pcional, de preços em constante alta, naquele ano de tantos acontecimentos sociais e políticos, quando tanta coisa mudaria em Ilhéus, ano por muitos considerado como decisivo na vida da região. Para uns foi o ano do caso da barra, para outros o da luta política entre Mundinho Falcão, exportador de cacau, e o coronel Ramiro, Bastos, o velho cacique local. Terceiros lembravam-no como o ano do sensacional julgamento do coronel Jesuíno Mendonça, alguns como o da chegada do primeiro navio sueco, dando início à exportação direta do cacau. Ninguém, no entanto, fala desse ano, da safra de 1925 à de 1926, como o ano do amor de Nacib e Gabriela, e, mesmo quando se referem às peripécias do romance, não se dão conta de como, mais que qualquer outro acontecimento, foi a história dessa doida paixão o centro de toda a vida da cidade naquele tempo, quando o impetuoso progresso e as novidades da civilização transformavam a fisionomia de Ilhéus.
DO PASSADO E DO FUTURO MISTURADOS NAS RUAS DE ILHÉUS
As chuvas prolongadas haviam transformado estradas e ruas em lamaçais, diariamente revolvidos pelas patas das tropas de burros e dos cavalos de montaria.
A própria estrada de rodagem, recentemente inaugurada, ligando Ilhéus a Itabuna, onde trafegavam caminhões e marinetes, ficara, em certo momento, quase intransitável, pontilhões arrastados pelas águas, trechos com tanta lama que ante eles os choferes recuavam. O russo Jacob e seu sócio, o jovem Moacir Estrela, dono de uma garagem, haviam raspado um susto. Antes da chega das chuvas organizaram uma empresa de transportes para explorar a ligação rodoviária entre as duas principais cidades do cacau, encomendaram quatro pequenos ônibus no sul. A viagem por estrada de ferro durava três horas quando não havia atraso, pela estrada de rodagem podia ser feita em hora e meia.
Esse russo Jacob possuía caminhões, transportava cacau de Itabuna Ilhéus. Moacir Estrela montara uma garagem no centro, também ele labutava com caminhões. Juntaram suas forças, levantaram capital num banco, assinando duplicatas, mandaram buscar as marinetes. Esfregavam as mãos na expectativa de negócio rendoso. Isto é: o russo esfregava as mãos, Moacir contentava-se em assoviar. O assovio alegre enchia a garagem enquanto, nos postes da cidade, boletins anunciavam o próximo estabelecimento da linha de ônibus, viagens mais rápidas e mais baratas que pelo trem de ferro.
Só que as marinetes demoraram a chegar, e quando finalmente desembarcaram de um pequeno cargueiro do Lloyd Brasileiro, ante a admiração geral da cidade, as chuvas estavam no auge e a estrada em petição de miséria. A ponte de madeira sobre o rio Cachoeira, coração mesmo da estrada, estava ameaçada pela cheia do rio e os sócios resolveram adiar a inauguração das viagens. As marinetes novinhas ficaram quase dois meses na garagem, enquanto o russo praguejava numa língua desconhecida e Moacir assoviava com raiva. Os títulos venciam no banco, e se Mundinho Falcão não os houvesse socorrido no aperto o negócio teria fracassado antes mesmo de iniciar-se. Fora o próprio Mundinho quem procurara o russo, mandando-o chamar a seu escritório, oferecendo-lhe, sem juros, o dinheiro necessário. Mundinho Falcão acreditava no progresso de Ilhéus e o incentivava.
Com a diminuição das chuvas o rio baixara, Jacob e Moacir, apesar do tempo continuar ruim, mandaram consertar por conta própria uns pontilhões, botaram pedras nos trechos mais escorregadios, e iniciaram o serviço. A viagem inaugural, com o próprio Moacir Estrela dirigindo a marinete, deu lugar a discursos e a piadas. Os passageiros eram todos convidados: o intendente, Mun-dinho Falcão, outros exportadores, o coronel Ramiro Bastos, outros fazendeiros, o Capitão, o Doutor, advogados e médicos. Alguns, receosos da estrada, apresentaram desculpas diversas, os seus lugares foram ocupados por outros, e tantos eram os candidatos que acabou indo gente em pé. A viagem durou duas horas ¯ a estrada ainda estava muito difícil ¯ mas correu sem incidente de maior monta. Em Itabuna, à chegada, houve foguetório e almoço comemorativo. O russo Jacob anunciara então, para o fim da primeira quinzena de viagens regulares, um grande jantar em Ilhéus, reunindo personalidades dos dois municípios, para festejar mais aquele marco do progresso local. O banquete foi encomendado a Nacib.
Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e em Itabuna naquele tempo. Estava em todas as bocas, insistentemente repetida. Aparecia nas colunas dos jornais, no quotidiano e nos semanários, surgia nas discussões na Papelaria Modelo, nos bares, nos cabarés. Os ilheenses repetiam-na a propósito das novas ruas, das praças ajardinadas, dos edifícios no centro comercial e das residências modernas na praia, das oficinas do Diário de Ilhéus, das marinetes saindo pela manhã e a tarde para Itabuna, dos caminhões trans-portando cacau, dos cabarés iluminados, do novo Cine-Teatro Ilhéus, do campo de futebol, do colégio do dr. Enoch, dos conferencistas esfomeados vindos da Bahia e até do Rio, do Clube Progresso com seus chás-dançantes. É o Progresso! Diziam-no orgulhosamente, cons-cientes de concorrerem todos para as mudanças tão profundas na fisionomia da cidade e nos seus hábitos.
Havia um ar de prosperidade em toda parte, um vertiginoso crescimento. Abriam-se ruas para os lados do mar e dos morros, nasciam jardins e praças, construíam-se casas, sobrados, palacetes. Os aluguéis subiam, no centro comercial atingiam preços absurdos. Bancos do sul abriam agencias, o Banco do Brasil edificara prédio novo, de quatro andares, uma beleza!
A cidade ia perdendo, a cada dia, aquele ar de acampamento guerreiro que a caracterizara no tempo da conquista da terra: fazendeiros montados a cavalo, de revólver à cinta, amedrontadores jagunços de repetição em punho atravessando ruas sem calçamento, ora de lama permanente, ora de permanente poeira, tiros enchendo de susto as noites intranqüilas, mascates exibindo suas malas nas calçadas. Tudo isso acabava, a cidade esplendia em vitrines coloridas e variadas, multiplicavam-se as lojas e os armazéns, os mascates só apareciam nas feiras, andavam pelo interior. Bares, cabarés, cinemas, colégios. Terra de pouca religião, orgulhara-se no entanto com a promoção a diocese, e recebera entre festas inesquecíveis o primeiro bispo. Fazendeiros, exportadores, banqueiros, comerciantes, todos deram dinheiro para a construção do colégio das freiras, destinado às moças ilheenses, e ao palácio diocesano, ambos no Alto da Conquista. Como deram dinheiro para a instalação do Clube Progresso, iniciativa de comerciantes e doutores, Mundinho Falcão à frente, onde aos domingos havia chás-dançantes e de quando em quando grandes bailes. Surgiam clubes de futebol, prosperava o Grêmio Rui Barbosa. Naqueles anos Ilhéus começara a ser conhecida nos estados da Bahia e de Sergipe como a Rainha do SuL A cultura do cacau dominava todo o sul do estado da Bahia, não havia lavoura mais lucrativa, as fortunas cresciam, crescia Ilhéus, capital do cacau.
No entanto ainda se misturavam em suas ruas esse impetuoso progresso, esse futuro de grandezas, com os restos dos tempos da conquista da terra, de um próximo passado de lutas e bandidos. Ainda as tropas de burros, conduzindo cacau para os armazéns dos expor-tadores, invadiam o centro comercial, misturando-se aos caminhões que começavam a fazer-lhes frente. Passavam ainda muitos homens calçados de botas, exibindo revólveres, estouravam ainda facilmente arruaças nas ruas de canto, jagunços conhecidos arrotavam valentias nos botequins baratos, de quando em vez um assassinato era cometido em plena rua. Cruzavam essas figuras, nas ruas calçadas e limpas, com exportadores prósperos, vestidos com elegância por alfaiates vindos da Bahia, com incontáveis caixeiros-viajantes ruidosos e cordiais, sabendo sempre as últimas anedotas, com os médicos, advogados, dentistas, agrônomos, engenheiros, chegados a cada navio. Mesmo muitos fazendeiros andavam sem botas e sem armas, um ar pacífico, construindo boas casas de moradia, vivendo parte de seu tempo na cidade, botando os filhos no colégio de Enoch ou enviando-os para os ginásios da Bahia, as esposas indo às fazendas apenas pelas férias, gastando sedas e sapatos de taco alto, freqüentando as festas do Progresso.
Muita coisa recordava ainda o velho Ilhéus de antes. Não o do tempo dos engenhos, das pobres plantações de café, dos senhores nobres, dos negros escravos, da casa ilustre dos Ávilas. Desse passado remoto sobravam apenas vagas lembranças, só mesmo o Doutor se preocupava com ele. Eram os aspectos de um passado recente, do tempo das grandes lutas pela conquista da terra. Depois que os padres jesuítas haviam trazido as primeiras mudas de cacau. Quando os homens, chegados em busca de fortuna, atiraram-se para as matas e disputaram, na boca das repetições e dos parabeluns, a posse de cada palmo de terra. Quando os Badarós, os Oliveiras, os Braz Damásio, os Teodoros das Baraúnas, outros muitos, atravessavam os caminhos, abriam picadas,à frente dos jagunços, nos encontros mortais. Quando as matas foram derrubadas e os pés de cacau plantados sobre cadáveres e sangue. Quando o caxixe reinou, a justiça posta a serviço dos interesses dos conquistadores de terra, quando cada grande árvore escondia um atirador na tocaia, esperando sua vítima. Era esse passado que ainda estava presente em detalhes da vida da cidade e nos hábitos do povo. Desaparecendo aos poucos, cedendo lugar às inovações, a recentes costumes. Mas não sem resistência, sobretudo no que se referia a hábitos, transformados pelo tempo quase em leis. Um desses homens apegados ao passado, olhando com desconfiança aquelas novidades de Ilhéus, vivendo o tempo quase todo na roça, vindo à cidade somente a negócios ¯ discutir com os exportadores ¯, era o coronel Manuel das Onças. Andando pela rua deserta, na madrugada sem chuvas, a primeira após tanto tempo, pensava em partir naquele mesmo dia para sua fazenda. Aproximava-se a época da colheita, o sol iria agora dourar os frutos de cacau, as roças ficavam uma beleza. Era daquilo que ele gostava, a cidade não conseguia prendê-lo apesar de tantas seduções: cinemas, bares, cabarés com mulheres formosas, lojas sortidas. Preferia a fartura da fazenda, as caçadas, o espetáculo das roças de cacau, as conversas com os trabalhadores, as histórias repetidas dos tempos das lutas, os casos de cobras, as caboclinhas humildes nas pobres casas de rameiras, nos povoados. Viera a Ilhéus para conversar com Mundinho Falcão, vender cacau para entrega posterior, retirar dinheiro para novas benfeitorias na fazenda. O exportador andava pelo Rio, ele não quisera discutir com o gerente, preferira esperar, já que Mundinho chegaria pelo próximo Ita. E, enquanto esperava, na cidade alegre apesar das chuvas, ia sendo arrastado pelos amigos aos cinemas (em geral dormia no meio do filme, cansava-lhe a vista), aos bares, aos cabarés. Mulheres com tanto perfume, meu Deus!, um despropósito... E cobrando alto, pedindo jóias, querendo anéis...
Esse Ilhéus era mesmo uma perdição... No entanto, a visão do céu límpido, a certeza da safra garantida, o cacau a secar nas barcaças, a largar o mel nos cochos, partindo no lombo dos burros, fazia-o tão feliz que ele pensou ser injusto manter a família na fazenda, os meninos crescendo sem instrução, a esposa na cozinha, como uma negra, sem uma diversão. Outros coronéis viviam na cidade, construíam boas casas, vestiam-se como gente...
De tudo quanto fazia em Ilhéus, durante suas rápidas estadas, nada agradava tanto ao coronel Manuel das Onças quanto a conversa matutina com os amigos, junto da banca de peixe. Naquele dia lhes anunciaria sua decisão de botar casa em Ilhéus, de trazer a família. Nessas coisas ia pensando pela rua deserta quando, ao desembocar no porto, encontrou o russo Jacob, a barba ruiva por fazer, despenteado, eufórico. Mal enxergou o coronel, abriu os braços e bradou qualquer coisa mas, tão excitado estava, o fez em língua estrangeira, o que não impediu o iletrado fazendeiro de entender e responder:
- Pois é... Finalmente... Temos sol, meu amigo.
O russo esfregava as mãos:
¯ Agora botaremos três viagens diárias: às sete horas, ao meio-dia, às quatro da tarde. E vamos encomendar mais duas marinetes.
Juntos andaram até a garagem, o coronel, afoito, anunciou:
- Dessa vez vou viajar nessa sua máquina. Me decidi...
O russo riu:
¯ Com a estrada seca a viagem vai durar pouco mais de uma hora...
¯ Que coisa! Quem diria! Trinta e cinco quilômetros em hora e meia...Antigamente a gente levava dois dias, a cavalo... Pois, se Mundinho Falcão chegar hoje no Ita, pode me reservar passagem para amanhã de manhã...
¯ Isso é que não, coronel. Amanhã, não.
¯ E por que não?
¯ Porque amanhã é o nosso jantar de comemoração e o senhor é meu convidado. Um jantar de primeira, com o coronel Ramiro Bastos, os intendentes, o daqui e o de Itabuna, o juiz de direito, e o de Itabuna também, Mundinho Falcão, tudo gente de primeira... O gerente do Banco do Brasil... Uma festa de arromba!
¯ Quem sou eu, Jacob, para essas lordezas... Vivo no meu canto.
¯ Faço questão de sua presença. É no Bar Vesúvio, o de Nacib.
¯ Nesse caso, fico pra ir depois de amanhã...
¯ Vou lhe reservar lugar no primeiro banco.
O fazendeiro despedia-se:
¯ Não há mesmo perigo desse troço virar? Com uma velocidade assim... Parece impossível.
DOS NOTÁVEIS NA BANCA DE PEIXE
Silenciaram um instante, ouvindo o apito do navio.
¯ Está pedindo prático... ¯ disse João Fulgêncio.
¯ É o Ita que vem do Rio. Mundinho Falcão chega nele ¯ informou o Capitão, sempre a par das novidades.
O Doutor retomou a palavra, avançando um dedo categórico a sublinhar a frase:
¯ É como eu lhes digo: nuns quantos anos, um lustro talvez, Ilhéus será uma verdadeira capital. Maior que Aracaju, Natal, Maceió... Não existe hoje, no norte do país, cidade de progresso mais rápido. Ainda há dias li num jornal do Rio... ¯ deixava cair as palavras lentamente, mesmo conversando sua voz mantinha certo tom oratório e sua opinião era altamente considerada.
Funcionário público aposentado, com fama de cultura e talento, publicando nos jornais da Bahia longos e indigestos artigos históricos, Pelópidas de Assunção d’Ávila, ilheense dos velhos tempos, era quase uma glória da cidade.
Em redor aprovavam com a cabeça, estavam todos contentes com o fim das chuvas e o inegável progresso da região cacaueira era para todos eles ¯ fazendeiros, funcionários, negociantes, exportadores ¯ motivo de orgulho. A exceção de Pelópidas, do Capitão e de João Fulgêncio, nenhum dos demais a conversar junto à banca de peixe, naquele dia, nascera em Ilhéus. Tinham vindo atraídos pelo cacau mas sentiam-se todos grapiúnas, ligados àquela terra para sempre.
O coronel Ribeirinho, a cabeça grisalha, recordava:
¯ Quando eu desembarquei aqui, em 1902, para o mês faz vinte e três anos, isso era um buraco medonho. Um fim de mundo, caindo aos pedaços. Olivença é que era cidade... ¯ riu ao recordar-se. ¯ Ponte para atracação não havia, umas ruas sem calçamento, movimento pequeno. Lugar bom para esperar a morte. Hoje e o que se vê: cada dia uma rua nova. O porto entupido de embarcação.
Apontava o ancoradouro: um cargueiro do Lloyd na ponte da estrada de ferro, um navio da Bahiana na ponte em frente aos armazéns, uma lancha desatracando da ponte mais próxima, fazendo lugar para o Ita. Barcaças e lanchas, canoas indo e vindo entre Ilhéus e Pontal, chegando das roças pelo rio.
Conversavam junto à banca de peixe, construída num descampado em frente à rua do Unhão, onde os circos de passagem armavam seus pavilhões. Negras vendiam mingau e cuscuz, milho cozido e bolos de tapioca. Fazendeiros habituados a madrugar em suas roças e certas figuras da cidade ¯ o Doutor, João Fulgêncio, o Capitão, Nhô-Galo, por vezes o juiz de direito e o dr. Ezequiel Fulge Prado, quase sempre vindo diretamente da casa da rapariga situada nas imediações ¯ reuniam-se ali diariamente antes da cidade acordar. A pretexto de comprar o melhor peixe, fresquinho, a debater-se, ainda vivo, nas mesas da banca, comentavam os últimos acontecimentos, faziam previsões sobre a chuva e a safra, o preço do cacau. Alguns, como o coronel Manuel das Onças, apareciam tão cedo que assistiam à saída dos últimos retardatários do cabaré Bataclan e à chegada de pescadores, os cestos de peixes retirados dos saveiros, robalos e dourados brilhando como lâminas de prata à luz da manhã. O coronel Ribeirinho, proprietário da fazenda Princesa da Serra, cuja riqueza não afetara sua simplicidade bonachona, quase sempre já ali se encontrava quando, às cinco da manhã, Maria de São Jorge, formosa negra especialista em mingau e cuscuz de puba, descia o morro, o tabuleiro sobre a cabeça, vestida com a saia colorida de chitão e a bata engomada e decotada a mostrar metade dos seios rijos. Quantas vezes não a ajudara o coronel a baixar a lata de mingau, a arrumar o tabuleiro, os olhos no decote da bata.
Alguns vinham mesmo de chinelas, paletó de pijama sobre uma calça velha. jamais o Doutor, é claro. Esse dava a impressão de não despir a roupa negra, os borzeguins, o colarinho de bunda virada, a gravata austera, sequer para dormir. Repetiam diariamente o mesmo itinerário: primeiro o copo de mingau na banca de peixe, a conversa animada, a troca de novidades, grandes gargalhadas. Iam andando depois até a ponte principal do cais onde paravam ainda um momento, separavam-se quase sempre em frente à garagem de Moacir Estrela, onde a marinete das sete horas, espetáculo recente, recebia passageiros para Itabuna.
O navio apitava novamente, um apito longo e alegre como se quisesse despertar toda a cidade.
¯ Recebeu o prático. Vai entrar.
¯ Sim, Ilhéus e um colosso. Não há terra de mais futuro.
¯ Se o cacau subir nem que seja quinhentos réis este ano, com a safra que vamos ter, dinheiro vai ser cama de gato... ¯ sentenciou o coronel Ribeirinho, uma expressão de cobiça nos olhos.
¯ Até eu vou comprar uma boa casa para minha família. Comprar ou construir... ¯ anunciou o coronel Manuel das Onças.
¯ Ora, muito que bem! Sim, senhor, finalmente! ¯ aprovou o Capitão, batendo nas costas do fazendeiro.
¯ Já era tempo, Manuel... ¯ zombou Ribeirinho.
¯ Os meninos mais moços estão chegando na idade de colégio e não quero que fiquem ignorantes como os mais velhos e como o pai. Quero que pelo menos um seja doutor de anel e diploma.
¯ Além do mais ¯ considerou o Doutor ¯ os homens ricos da região, como você, têm obrigação de concorrer para o progresso da cidade construindo boas residências, bangalôs, palacetes. Veja o palacete que Mundinho Falcão construiu na praia: e isso que ele chegou aqui há um par de anos e, ainda por cima, é solteiro. Afinal de que vale juntar dinheiro para viver metido na roça, sem conforto?
¯ Por mim, vou comprar uma casa é na Bahia. Levar a família para lá ¯ disse o coronel Amâncio Leal, que tinha um olho vazado e um defeito no braço esquerdo, recordações do tempo das lutas.
¯ Isso é o que eu chamo de falta de civismo ¯ indignou-se o Doutor. Foi na Bahia ou foi aqui que você ganhou dinheiro? Por que empregar na Bahia o dinheiro que ganhou aqui?
¯ Calma, Doutor, não se afobe. Ilhéus é muito bom etc. e tal, mas, vosmicê compreende, a Bahia é capital, tem de um tudo, bom colégio para os meninos.
Não se acalmava o Doutor: ¯ Tem de um tudo porque vocês desembarcam aqui de mãos abanando, aqui enchem o bandulho, entopem-se de dinheiro e depois vão gastá-lo na Bahia.
¯ Mas...
¯ Creio, compadre Amâncio ¯ dirigia-se João Fulgêncio ao fazendeiro ¯, que o nosso Doutor tem razão. Se nós não cuidarmos de Ilhéus, quem vai cuidar?
¯ Não digo que não... ¯ cedeu Amâncio. Era um homem calmo, não gostava de discussões, ninguém que o visse assim cordato imaginaria estar diante do célebre chefe de jagunços, de um dos homens que mais sangue fizera correr em Ilhéus, nas lutas pelas matas de Sequeiro Grande. ¯ Pra mim, pessoalmente, não há terra que valha Ilhéus. Só que na Bahia tem outro conforto, bons colégios. Quem pode negar isso? Estou com os meninos mais moços no colégio dos jesuítas e a patroa não quer ficar longe deles. Já morre de saudades do que está em São Paulo. O que é que posso fazer? Por mim, não saio daqui...
O Capitão interveio:
¯ Por colégio, não, Amâncio. Com o do Enoch funcionando é até um absurdo dizer isso. Não tem colégio melhor na Bahia... ¯ o próprio Capitão, ¯ para ajudar e não porque necessitasse, ensinava História Universal no colégio fundado por um advogado de pequena clientela, dr. Enoch Lira, introduzindo modernos métodos de ensino e abolindo a palmatória.
¯ Mas nem está equiparado.
¯ A estas horas já deve estar. Enoch recebeu um telegrama de Mundinho Falcão dizendo que o ministro da justiça garantira para dali a poucos dias...
¯ E então?
¯ Esse Mundinho Falcão é um danado...
¯ Que diabo vocês pensam que ele está querendo? ¯ perguntou o coronel Manuel das Onças; mas a pergunta ficou sem resposta porque uma discussão se iniciara entre Ribeirinho, o Doutor e João Fulgêncio a propósito de métodos de ensino.
¯ Pode ser tudo que vocês quiserem. Para mim, para ensinar o bê-a-bá, não tem ninguém como dona Guilhermina. Mão de ferro. Filho meu é com ela que aprende a ler e contar. Isso de ensinar sem palmatória...
¯ Atraso, coronel ¯ sorria João Fulgêncio. ¯ Esse tempo já passou. A pedagogia moderna...
¯ O que?
¯ Que a palmatória é necessária olhem que é...
¯ Vocês estão atrasados de um século. Nos Estados Unidos...
¯ As meninas boto no colégio das freiras, está certo. Mas os meninos é com dona Guilhermina...
¯ A pedagogia moderna aboliu a palmatória e os castigos físicos ¯ conseguiu explicar João Fulgêncio.
¯ Não sei de quem você está falando, João Fulgêncio, mas lhe garanto que foi muito mal feito. Se eu sei ler e escrever..
Assim discutindo sobre os métodos do dr. Enoch e da famosa dona Guilhermina, legendária por sua severidade, foram andando para a ponte. Desembocando das ruas, algumas outras pessoas apareciam na mesma direção, vinham esperar o navio. Apesar da hora matinal reinava já certo movimento no porto. Carregadores conduziam sacos de cacau dos armazéns para o navio da Bahiana. Uma barcaça, as velas despregadas, preparava-se para partir, semelhava enorme pássaro branco. Um toque de búzio elevou-se, vibrou no ar, anunciando a partida próxima. O coronel Manuel das Onças insistia:
¯ O que é que Mundinho Falcão está visando? O homem tem o diabo no corpo. Não se contenta com seus negócios, se mete em tudo.
¯ Ora, é fácil. Quer ser intendente na próxima eleição.
¯ Não creio... É pouco para ele ¯ disse João Fulgêncio.
¯ É homem de muita ambição.
¯ Daria um bom intendente. Empreendedor.
¯ Um desconhecido, chegou aqui outro dia.
O Doutor, admirador de Mundinho, atalhou:
¯ De homens como Mundinho Falcão é que estamos precisando. Homens de visão, corajosos, dispostos...
¯ Ora, Doutor, coragem é que nunca faltou aos homens dessa terra...
¯ Não falo disso: dar tiro e matar gente. Falo de coisa mais difícil...
¯ Mais difícil?
¯ Mundinho Falcão chegou aqui outro dia, como diz Amâncio. E veja quanta coisa já realizou: abriu a avenida na praia, ninguém acreditava, foi um negócio de primeira, e, para a cidade, uma beleza. Trouxe os primeiros caminhões, sem ele não saía o Diário de Ilhéus nem o Clube Progresso.
¯ Dizem que emprestou dinheiro ao russo Jacob e a Moacir para a empresa de marinetes...
¯ Estou com o Doutor ¯ disse o Capitão até então silencioso. ¯ De homens assim é que precisamos... Capazes de compreender e ajudar o progresso.
Chegavam à ponte, encontravam Nhô-Galo, funcionário da mesa de rendas, boêmio inveterado, figura indispensável em todas as rodas, de voz fanhosa e anticlerical irredutível.
¯ Salve a ilustre companhia... ¯ apertava as mãos, ia contando: ¯ Tou morrendo de sono, quase não dormi. Andei no Bataclan com o árabe Nacib, acabamos indo pra casa da Machadão, comida e mulher.. Mas não podia deixar de comparecer ao desembarque de Mundinho...
Em frente à garagem de Moacir Estrela juntavam-se os passageiros da primeira marinete. O sol aparecera, um dia esplêndido.
¯ Vai ser uma safra de primeira.
¯ Amanhã tem um jantar, um banquete das marinetes...
¯ É verdade. O russo Jacob me convidou.
A conversa foi interrompida por apitos repetidos, breves e aflitos do navio. Houve um movimento de expectativa na ponte. Até os carregadores pararam para escutar.
¯ Encalhou!
¯ Porcaria de barra!
¯ Continuando assim nem navio da Bahiana vai poder entrar no porto.
¯ Quanto mais da Costeira e do Lloyd.
¯ A Costeira já ameaçou suspender a linha.
Barra difícil e perigosa, aquela de Ilhéus, apertada entre o morro do Unhão, na cidade, e o morro de Pernambuco, numa ilha ao lado do Pontal. Canal estreito e pouco profundo, de areia movendo-se continuamente, a cada maré. Era freqüente o encalhe de navios, por vezes demoravam um dia para libertar-se. Os grandes paquetes não se atreviam a cruzar a barra assustadora, apesar do magnífico ancoradouro de Ilhéus.
Os apitos continuavam angustiosos, pessoas vindas para esperar o navio começavam a tomar o caminho da rua do Unhão para ver o que se passava na barra.
¯ Vamos até lá?
¯ Isso é revoltante ¯ dizia o Doutor enquanto o grupo caminhava pela rua sem calçamento, contornando o morro. - Ilhéus produz uma grande parte do cacau que se consome no mundo, tem um porto de primeira, e, no entanto, a renda da exportação do cacau fica é na cidade da Bahia. Tudo por causa dessa maldita barra...
Agora que as chuvas tinham cessado, nenhum assunto mais empolgante que aquele para os ilheenses. Sobre a barra e a necessidade de torná-la praticável para os grandes navios, discutia-se todos os dias e em todas as partes. Sugeriam-se medidas, criticava-se o governo, acusava-se a intendência de pouco caso. Sem que solução fosse dada, ficando as autoridades em promessas e as docas da Bahia recolhendo as taxas de exportação.
Enquanto a discussão mais uma vez fervia, o Capitão atrasou-se, tomou do braço de Nhô-Galo a quem ele deixara, por volta de uma da madrugada, na porta de Maria Machadão:
¯ E a zinha, que tal?
¯ Papa fina... ¯ murmurou Nhô-Galo com sua voz fanhosa. E contou: Você não sabe o que perdeu. Você precisava ter visto o árabe Nacib fazendo declaração de amor àquela zarolha nova que saiu com ele. Era de mijar de rir..
Os apitos do navio, cresciam em desespero, eles apressaram o passo, aparecia gente de todos os lados.
DE COMO O DOUTOR QUASE POSSUÍA SANGUE IMPERIAL
O Doutor não era Doutor, o Capitão não era capitão. Como a maior parte dos coronéis não eram coronéis. Poucos, em realidade, os fazendeiros que nos começos da República e da lavoura do cacau, haviam adquirido patentes de coronel da Guarda Nacional. Ficara o costume: dono de roça de mais de mil arrobas passava normalmente a usar e receber o título que ali não implicava em mando militar e, sim, no reconhecimento da riqueza. João Fulgêncio, que amava rir dos costumes locais, dizia ser a maioria deles coronéis de jagunços, pois muitos se haviam envolvido nas lutas pela conquista da terra.
Entre as jovens gerações havia quem não soubesse sequer o sonoro e nobre nome de Pelópidas de Assunção d’Ávila, tanto se haviam acostumado a tratá-lo respeitosamente de Doutor. Quanto a Miguel Batista de Oliveira, filho do finado Cazuzinha, que fora intendente no começo das lutas, que tivera dinheiro e morrera pobre, cuja fama de bondade ainda hoje é comentada por velhas comadres, a Miguel chamaram-no de Capitão ainda criança, quando, irrequieto e atrevido, comandava os moleques de então.
Eram duas personalidades ilustres da cidade e, se bem velhos amigos, entre eles se dividia a população indecisa em resolver qual dos dois era o maior e mais empolgante orador local. Sem desfazer do dr. Ezequiel. Prado, invencível no júri.
Nos feriados nacionais ¯ o 7 de Setembro, o 15 de Novembro, o 13 de Maio , nas festas do fim e do começo de ano com reisado, presépio e bumba-meu-boi, por ocasião da vinda a Ilhéus de literatos da capital do estado, a população se regalava e mais uma vez se dividia ante a oratória do Doutor e a do Capitão.
Jamais a unanimidade se obtivera nessa disputa prolongada através dos anos. Preferindo uns as altissonantes tiradas do Capitão, onde os adjetivos grandiosos sucediam-se em impetuosa cavalgada, uns trêmulos na voz rouca a provocarem delirantes aplausos; preferindo outros as longas frases rebuscadas do Doutor, a erudição transparecendo nos nomes citados em abundância, na adjetivação difícil, na qual brilhavam, como jóias raras, palavras tão clássicas que apenas uns poucos conheciam seu verdadeiro significado.
Até as irmãs Dos Reis, tão unidas em tudo o mais na vida, dividiam, no caso, suas opiniões. A franzina e nervosa Florzinha exaltava-se com os rompantes do Capitão, suas rútilas auroras da liberdade, deliciava-se com os trêmulos de voz nos fins de frase, vibrando no ar. Quinquina, a gorda e alegre Quinquina, preferia o saber do Doutor, aquelas vetustas palavras, aquela maneira patética como, de dedo em riste, ele clamava: - Povo, ó meu povo! Discutiam as duas, de volta das reuniões cívicas na intendência ou em praça pública, como discutia toda a cidade, incapaz de decidir-se.
¯ Não entendo nada mas é tão bonito... ¯ concluía Quinquina pelo Doutor.
¯ Sinto até um frio na espinha quando ele fala ¯ decidia Florzinha pelo Capitão.
Memoráveis dias aqueles em que, no palanque da praça da Matriz de São Jorge, ornamentado de flores, o Capitão e o Doutor se sucediam com o verbo, um como orador oficial da Euterpe 13 de Maio, o outro em nome do Grêmio Rui Barbosa, organização lítero-charadística da cidade. Desapareciam todos os outros oradores (mesmo o professor Josué cujo palavreado lírico tinha seu público de mocinhas do colégio das freiras), fazia-se o silêncio das grandes ocasiões, quando avançava no palanque ou bem a figura morena e insinuante do Capitão, vestido de impecável roupa branca, uma flor na lapela, alfinete de rubi na gravata, ar de ave de rapina devido ao nariz crescido e curvo, ou bem a silhueta magra do Doutor, pequenino e saltitante, como gárrulo pássaro inquieto, trajando sua eterna roupa negra, colarinho alto e peitilho engomado, o pince-nez preso ao paletó por uma fita, os cabelos já quase inteiramente brancos.
¯ Hoje o Capitão parecia uma cachoeira de eloqüência ¯ comentava. Que palavreado bonito!
¯ Mas vazio. O Doutor, em compensação, tudo que ele diz tem tutano. O homem é um dicionário!
Só mesmo o dr. Ezequiel Prado podia lhes fazer concorrência nas raras vezes em que, quase sempre bêbedo de cair, subia a outra tribuna fora do júri. Tinha ele também seus incondicionais, e, no que se refere A debates jurídicos, a unanimidade da opinião pública: não havia quem se lhe comparasse.
Pelópidas de Assunção d’Ávila descendia de uns Ávilas, fidalgos portugueses estabelecidos nas bandas de Ilhéus ainda no tempo das capitanias. Pelo menos assim o afirmava o Doutor, dizendo-se baseado em documentos de família. Opinião ponderável, de historiador.
Descendente desses celebrados Ávilas, cujo solar elevara-se entre Ilhéus e Olivença, hoje negras ruirias ante o mar, cercadas de coqueiros, mas também de uns Assunções plebeus e comerciantes diga-se em sua homenagem, ele cultuava a memória de uns e de outros com o mesmo fervor exaltado. É claro que pouco havia a contar sobre os Assunções, enquanto era rica de feitos a crônica dos Ávilas. Obscuro funcionário federal aposentado, vivia o Doutor, no entanto, em meio a um mundo de fantasia e de grandeza: a glória antiga dos Ávilas e o glorioso presente de Ilhéus.
Sobre os Ávilas, seus feitos e sua prosápia, estava ele desde há muitos anos escrevendo um livro volumoso e definitivo. Do progresso de Ilhéus era ardoroso propagandista e voluntário colaborador.
Ávila colateral e arruinado fôra o pai de Pelópidas. Da família nobre herdara apenas o nome e o aristocrático hábito de não trabalhar. Havia sido, porém, o amor, e não o vil interesse como então se propalara, que o levara a casar-se com uma plebéia Assunção, filha de um próspero bazar de miudezas. Tão próspero durante a vida do velho Assunção, que o neto Pelópidas fora mandado estudar na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Mas o velho Assunção morrera sem ter ainda completamente perdoado à filha a burrice daquele casamento nobre, e o fidalgo, tendo adquirido hábitos populares como o jogo de gamão e a briga de galos, comera a pouco e pouco o bazar, a metro e metro de fazenda, a dúzia e dúzia de grampos, a peça e peça de fita colorida. Assim terminara a abastança dos Assunções após a grandeza dos Ávilas, deixando Pelópidas no Rio sem recursos para continuar os estudos, quando andava pelo terceiro ano da faculdade. Já então o chamavam de Doutor, primeiro o avô, as empregadas da casa, os vizinhos, quando vinha a Ilhéus pelas férias.
Amigos de seu avô arranjaram-lhe magro emprego numa repartição pública, deixou os estudos, ficou pelo Rio. Prosperou na repartição, miúdo prosperar, no entanto, falho da proteção dos grandes e da útil sabedoria da adulação. Trinta anos depois aposentou-se e voltou a Ilhéus para sempre, para dedicar-se à sua obra, o livro monumental sobre os Ávilas e o passado de Ilhéus. Livro que já era, ele próprio, quase uma tradição. Pois nele se falava desde os tempos quando, ainda estudante, o Doutor publicara numa revista carioca, de circulação limitada e vida reduzida ao primeiro número, famoso artigo sobre os amores do imperador Pedro II ¯ por ocasião de sua imperial viagem ao norte do país ¯ e da virginal Ofenísia, Ávila romântica e linfática.
O artigo do jovem estudante passaria em completa obscuridade se, por um desses acasos, não houvesse a revista caído em mãos de escritor moralista, conde papalino e membro da Academia Brasileira de Letras. Admirador incondicional das virtudes do monarca, sentiu-se o conde ofendido em sua própria honra com aquela insinuação depravada e anarquista a colocar o insigne varão na postura ridícula de suspirante, de hóspede desleal a buscar os olhares da filha virtuosa da família cuja casa ilustrava com sua visita. Descompôs o conde, em vigoroso português quinhentista, o audacioso estudante, emprestando-lhe intenções e objetivos que Pelópidas jamais tivera. Alvoroçou-se o estudante com a ríspida resposta, era quase a consagração. Para o segundo número da revista preparou um artigo, em português não menos clássico e com argumentos irrespondíveis, no qual, baseado em fatos e sobretudo nos versos do poeta Teodoro de Castro, esmagava definitivamente as negativas do conde. A revista não voltou a circular, ficara no primeiro número. O jornal onde o conde atacara Pelópidas recusou-se a publicar-lhe a resposta, e, a muito custo, resumiu as dezoito laudas do Doutor a vinte linhas impressas, num canto de página. Mas ainda hoje o Doutor vangloria-se dessa sua violenta polêmica com um membro da Academia Brasileira de Letras, nome conhecido em todo o pais. ¯ Meu segundo artigo o esmagou e o reduziu ao silêncio...
Nos anais da vida intelectual de Ilhéus essa polêmica é assídua e vaidosamente citada como prova da cultura ilheense, ao lado da menção honrosa obtida por Ari Santos ¯ atual presidente do Grêmio Rui Barbosa, moço empregado numa casa exportadora ¯ num concurso de contos de revista carioca, e dos versos do já citado Teodoro de Castro.
Quanto aos amores clandestinos do imperador e de Ofenísia, reduziram-se, ao que parece, a olhares, suspiros, juras murmuradas. O imperial viajante a teria conhecido na Bahia, numa festa, apaixonara-se por seus olhos de desmaio. E como habitava no sobrado dos Ávilas, na ladeira do Pelourinho, um certo padre Romualdo, latinista emérito, mais de uma vez, o imperador por lá apareceu a pretexto de visitar sacerdote de tanto saber. Nos balcões rendilhados do sobradão, o monarca suspirara em latim inconfessado e impossível desejo por essa flor dos Ávilas. Ofenísia, numa excitação de mucama, rondava a sala onde as barbas negras e sábias do imperador trocavam ciência com o padre, sob as vistas respeitosas e ignorantes de Luiz Antônio d’Ávila, seu irmão e chefe da família. É certo ter Ofenísia, após a partida do imperial apaixonado, desencadeado uma ofensiva visando a mudarem-se todos para a côrte, fracassando ante a obstinada resistência de Luiz Antônio, guardião da honra da donzela e da família.
Esse Luiz Antonio d’Ávila morrera coronel na guerra do Paraguai, chefiando homens levados de seus engenhos, na retirada da Laguna. A romântica Ofenísia morreu tísica e virgem, no solar dos Ávilas, saudosa das barbas reais. E bêbedo morreu o poeta Teodoro de Castro, o apaixonado e mavioso cantor das graças de Ofenísia, cujos versos tiveram certa popularidade na época, nome hoje injustamente esque-cido nas antologias nacionais.
Para Ofenísia escrevera seus versos mais catitas, exaltando em rimas ricas sua frágil beleza doentia, suplicando seu inacessível amor. Versos ainda hoje declamados pelas alunas do colégio das freiras, ao som da Dalila, em festas e saraus. O poeta Teodoro, temperamento trágico e boêmio, morreu sem dúvida de lânguida saudade (quem irá discutir com o Doutor essa verdade?), dez anos após a saída, pela porta do solar em luto, do caixão branco onde ia o corpo macerado de Ofenísia. Morreu afogado em álcool, no álcool então barato em Ilhéus, cachaça do engenho dos Ávilas.
Material interessante não faltava ao Doutor, como se vê, para seu inédito e já famoso livro: os Ávilas dos engenhos de açúcar e alambiques de cachaça, de centenas de escravos, de terras a nunca acabar, os Ávilas do solar em Olivença, do sobradão na ladeira do Pelourinho, na capital, os Ávilas de pantagruélico paladar, os Ávilas sustentando concubinas na côrte, os Ávilas das belas mulheres e dos homens sem medo, incluindo até um Ávila letrado. Além de Luiz Antônio e de Ofenísia, outros haviam-se destacado, antes e depois, como aquele que lutou no Recôncavo, ao lado do avô de Castro Alves, contra as tropas portuguesas nas batalhas da Independência, em 1823. Outro, Jerônimo d’Ávila, dera-se à política, e, derrotado numas eleições, fraudadas por ele em Ilhéus, fraudadas pelos adversários no resto da Província, pusera-se à frente de seus homens, varrera estradas, saqueara povoados, marchara sobre a capital, ameaçando depor o governo. Intermediários obtiveram a paz e compensações para o Ávila colérico. A decadência da família acentuara-se com Pedro d’Ávila, de cavanhaque ruivo e aloucado temperamento, que fugira, abandonando o solar (o sobradão na Bahia já tinha sido vendido), os engenhos e os alambiques hipotecados, e a família em pranto, para seguir uma cigana de estranha beleza e - no dizer da esposa inconsolável - de maléficos poderes. Desse Pedro d’Ávila constava haver terminado assassinado, numa briga de canto de rua, por outro amante da cigana.
Tudo isso fazia parte de um passado esquecido pelos cidadãos de Ilhéus. Uma nova vida começara com o aparecimento do cacau, o que acontecera antes não contava. Engenhos e alambiques, plantações de cana e de café, legendas e histórias, tudo havia desaparecido para sempre, cresciam agora as roças de cacau e as novas legendas e histórias narrando como os homens lutaram entre si pela posse da terra. Os cegos cantadores levavam pelas feiras, até o mais distante sertão, os nomes e os feitos dos homens do cacau, a fama daquela região. Só mesmo o Doutor se preocupava com os Ávilas. O que, no entanto, não deixava de aumentar a consideração que lhe dispensavam na cidade. Aqueles rudes conquistadores de terras, fazendeiros de poucas letras, tinham um respeito quase humilde pelo saber, pelos homens letrados que escreviam nos jornais e pronunciavam discursos.
Que dizer então de um homem, com tanta capacidade e conhecimento, capaz de estar escrevendo ou de ter escrito um livro? Porque tanto se falara nesse livro do Doutor, tanto se louvaram suas qualidades, que muitos o pensavam publicado há anos, há tempos definitivamente incorporado ao acervo da literatura nacional.
DE COMO NACIB DESPERTOU SEM COZINHEIRA
Nacib despertou com as repetidas pancadas na porta do quarto. Chegara de madrugada; depois de fechado o bar, andara com Tonico Bastos e Nhô-Galo pelos cabarés, acabara em casa de Maria Machadão com a Risoleta, uma recém-chegada de Aracaju, um pouco vesga.
¯ O que é?
¯ Sou eu, seu Nacib. Pra me despedir, vou embora. Um navio apitava próximo, pedindo prático.
¯ Embora pra onde, Filomena?
Nacib levantava-se, prestava uma atenção distraída ao apito do navio pelo jeito do apito é um Ita, pensava, procurava enxergar as horas no patacão colocado ao lado da cama: seis horas da manhã e ele chegara por volta das quatro. Que mulher, aquela Risoleta! Não que fosse uma beleza, até tinha um olho troncho, mas sabia coisas, mordia-lhe a ponta da orelha e atirava-se para trás, rindo... Que espécie de loucura atacara a velha Filomena?
¯ Pra Água Preta, ficar com meu filho...
¯ Que diabo de história é essa, Filomena? Tá maluca?
Buscava os chinelos com os pés, mal acordado, o pensamento em Risoleta. O perfume barato da mulher persistia em seu peito peludo. Saía mesmo descalço para o corredor, metido no camisolão de dormir. A velha Filomena esperava na sala, com seu vestido novo, um lenço de ramagens amarrado na cabeça, o guarda-chuva, na mão. No chão, o baú e um embrulho com os quadros de santos. Era empregada de Nacib desde que ele comprara o bar, há mais de quatro anos. Rabugenta porém limpa e trabalhadora, séria a não mais poder, incapaz de tocar num tostão, cuidadosa. Uma pérola, uma pedra preciosa, costumava dizer dona Arminda para defini-la. Tinha seus dias de calundu, quando amanhecia de cara amarrada, e nesses dias não falava senão para anunciar sua próxima partida, a viagem para Água Preta onde o filho único se estabelecera com uma quitanda. Tanto falava em ir-se embora, naquela famosa viagem, que Nacib não lhe dava mais crédito, pensava não passar tudo aquilo de mania inofensiva da velha afinal tão ligada a ele, menos empregada que uma pessoa da casa, quase um parente distante.
O navio apitava, Nacib abriu a janela, era, como adivinhara, o Ita procedente do Rio de Janeiro. Estava pedindo prático, parado ante a pedra do Rapa.
¯- Mas, Filomena, que loucura é essa? Assim, de repente, sem avisar nem nada... Absurdo.
¯ Ué, seu Nacib! Desde que travessei o batente de sua porta venho lhe dizendo: - um dia vou embora, morar com meu Vícente..
¯ Mas podia ter me falado ontem que ia hoje...
¯ Bem que mandei um recado por Chico. O senhor nem ligou, nem apareceu em casa.
Realmente Chico Moleza, seu empregado e vizinho, filho da dona Arminda, tinha levado, juntamente com o almoço, um recado da velha anunciando a próxima partida. Mas isso acontecia quase toda semana, Nacib mal ouvira, nem respondera.
¯ E esperei o senhor pela noite a dentro... Até de madrugada... O senhor estava correndo gado por aí, tamanho homem que já devia estar casado, com o rabo assentado em casa em vez de viver trocando perna depois do trabalho... Um dia, com todo esse corpo, fica fraco e bate as botas...
Apontava, com o dedo estendido, magro e acusador, o peito do árabe aparecendo pela gola do camisolão, bordada de pequenas flores vermelhas. Nacib baixou os olhos, viu as manchas de batom. Risoleta!... A velha Filomena e dona Arminda viviam criticando sua vida de solteiro, lançando indiretas, planejando casamentos para ele.
¯ Mas, Filomena...
¯- Não tem mais nem meio mais, seu Nacib. Agora vou mesmo embora, Vicente me escreveu, vai se casar, tá precisando de mim. Já preparei meus teréns... E logo na véspera do jantar da Empresa de Ônibus Sul-Baiana, marcado para o dia seguinte, coisa de arromba, trinta talheres. A velha até parecia ter escolhido de propósito.
¯ Adeus, seu Nacib. Deus lhe proteja e lhe ajude a arrumar uma noiva direita que cuide de sua casa...
¯ Mas, mulher, são seis horas da manhã, o trem só sai as oito...
¯ Eu é que não confio em trem, bicho matreiro. Prefiro chegar com tempo...
¯ Deixe pelo menos eu lhe pagar..
Tudo aquilo lhe parecia um pesadelo idiota. Movia-se descalço pela sala, pisando no cimento frio, espirrou, rogou uma praga baixinho. E se ainda por cima se resfriasse... Peste de velha maluca...
Filomena estendia a mão ossuda, a ponta dos dedos.
¯ Até outra, seu Nacib. Quando for por Água Preta, apareça.
Nacib contou o dinheiro, juntou uma gratificação ¯ apesar de tudo ela merecia ¯, ajudou-a a segurar o baú, o embrulho pesado com os quadros de santos - antes pendurados em profusão no pequeno quarto dos fundos -, o guarda-chuva. Pela janela entrava a manhã alegre, e com ela a brisa do mar, um canto de pássaro e um sol sem nuvens após tantos dias de chuva. Nacib olhou o navio, o barco do prático aproximava-se. Arreou os braços, desistiu de voltar para a cama. Dormiria na hora da sesta para estar em forma à noite, prometera à Risoleta voltar. Diabo de velha, transtornara seu dia...
Foi para a janela, ficou vendo a empregada afastar-se. O vento do mar o arrepiou. A casa na ladeira de São Sebastião ficava quase em frente à barra. Pelo menos as chuvas haviam terminado. Tinham durado tanto que por pouco prejudicavam a safra, os frutos jovens de cacau podiam apodrecer nas árvores se continuasse chover. Já os coronéis demonstravam certa inquietação. Na janela da casa vizinha aparecera dona Arminda, acenava com um lenço para a velha Filomena, eram íntimas.
¯ Bom dia, seu Nacib.
¯ A doida da Filomena... Foi embora...
¯ Pois é... Uma coincidência, o senhor nem imagina. Ainda ontem eu disse a Chico ando ele chegou do bar: ¯ Amanhã siá Filômena vai embora, o filho mando uma carta chamando...
¯ Chico me falou, não acreditei.
¯ Ela ficou até tarde esperando o senhor. Até, por coincidência, ficamos as duas conversando sentadas no batente de sua casa. Só que o senhor não apareceu.... ¯ riu um risinho entre reprovador e compreensivo.
¯ Ocupado, dona Arminda, muito trabalho...
Ela não tirava os olhos das manchas de batom. Nacib sobressaltou-se: será que as tinha também no rosto? Provável, muito provável.
¯ Pois é o que eu sempre digo: homem trabalhador como seu Nacib há poucos em Ilhéus... Até de madrugada...
¯ E logo hoje ¯ lastimou-se Nacib ¯ com um jantar para trinta pessoas encomendado no bar para amanhã de noite...
¯ Eu nem senti quando o senhor entrou e olhe que fui dormir tarde, mais de duas da manhã...
Nacib rosnou qualquer coisa, essa dona Arminda era a curiosidade em pessoa:
¯ Por aí... Agora quem vai preparar o jantar?
¯ Um caso sério... Comigo o senhor não pode contar. Dona Elisabeth está esperando a qualquer momento, até já passou do dia. Foi por isso que fiquei acordada, seu Paulo podia aparecer de repente. Além do mais, essa coisa de comida fina não sei fazer..
Dona Arminda, viúva, espírita, língua viperina, mãe de Chico Moleza, rapazola empregado no bar de Nacib, era parteira afamada: inúmeros ilheenses, nos últimos vinte anos, tinham nascido em suas mãos, e as primeiras sensações do mundo a sentirem foram seu ativo cheiro de alho e sua face avermelhada de sarará.
¯ E dona Clorinda, já teve menino? O dr. Raul não apareceu no bar ontem...
¯ Já, ontem de tarde. Mas chamaram o médico, esse tal de dr. Demósthenes. Essas novidades d’agora. O senhor não acha uma indecência médico pegar criança? Ver mulher dos outros toda nua? Sem-vergonhice...
Para Arminda aquele era um assunto vital: os médicos começavam a fazer-lhe concorrência, onde já se vira tal descaração, médico a espiar mulher dos outros nua nas dores do parto... Mas Nacib preocupava-se era com o jantar do dia seguinte e com os doces e salgados para o bar, problemas sérios criados pela viagem de Filomena:
¯ É o progresso, dona Arminda. Essa velha pintou o diabo comigo...
¯ Progresso? Descaração é o que é...
¯ Onde vou arranjar cozinheira?
¯ O jeito é encomendar às irmãs Dos Reis...
¯ Careiras, arrancam a pele da gente... E eu que já tinha arrumado duas cabrochas para ajudar Filomena...
¯ O mundo é assim, seu Nacib. Quando menos a gente espera é que sucede. Eu, felizmente, tenho o finado que me avisa. Ainda outro dia, o senhor nem pode imaginar.. Foi numa sessão, em casa de compadre Deodoro...
Mas Nacib não estava disposto a ouvir as repetidas histórias de espiritismo, especialidade da parteira.
¯ Chico já acordou?
¯ Qual o que, seu Nacib. O pobre chegou mais de meia-noite.
¯ Por favor, acorde ele. Preciso tomar providências. A senhora compreende: um jantar para trinta pessoas, tudo gente importante, comemorando a instalação da linha de marinetes...
¯ Ouvi dizer que uma virou na ponte do rio Cachoeira.
¯ Conversa fiada. Vão e vêm cheias. Um negoção.
¯ Olhe que agora se vê de um tudo em Ilhéus, hein, seu Nacib? Me contaram que no hotel novo vai ter até um tal de elevador, uma caixa que sobe e desce sozinha.
¯ Quer acordar o Chico?
¯ Já tou indo... Que não vai ter mais escada, t'esconjuro!
Nacib ficou ainda uns momentos na janela olhando o navio da Costeira, do qual o prático se aproximava. Mundinho Falcão devia vir nesse navio, assim alguém dissera no bar. Cheio de novidades certamente. Chegariam também novas mulheres para os cabarés, para as casas da rua do Unhão, do Sapo, das Flores. Cada navio, da Bahia, de Aracaju ou do Rio trazia um carregamento de raparigas. Talvez chegasse também o automóvel do dr. Demósthenes, o médico estava ganhando um dinheirão, era o primeiro consultório da cidade. Valia a pena vestir-se e ir ao porto, assistir ao desembarque. Lá encontraria certamente a turma habitual, os madrugadores. E quem sabe se não lhe dariam notícias de uma boa cozinheira, capaz de arcar com o trabalho do bar? Cozinheira em Ilhéus era raridade, disputada pelas famílias, pelos hotéis, pensões e bares.
O diabo da velha... E logo quando ele havia descoberto essa preciosidade, a Risoleta! Quando precisava estar com o espírito tranqüilo... Por uns dias, pelo menos, não via outro jeito, ia ter de cair nas unhas das irmãs Dos Reis. Coisa complicada é a vida: ainda ontem tudo marchava tão bem, ele não tinha preocupações, ganhara duas partidas de gamão seguidas contra um parceiro da força do Capitão, comera uma moqueca de siris realmente divina em casa de Maria Machadão, e descobrira aquela novata, a Risoleta... E já hoje, de manhãzinha, estava atravancado de problemas... Uma porcaria! Velha maluca... A verdade é que já sentia saudade dela, de sua limpeza, do café da manhã com cuscuz de milho, batata-doce, banana-da-terra frita, beijus... De seus cuidados maternais, de sua solicitude, mesmo dos seus resmungos. Quando uma vez ele caíra com febre, o tifo na época endêmico na região como o impaludismo e a bexiga, ela não arredara do quarto, dormia mesmo no chão. Onde arranjaria outra como ela?
Dona Arminda voltava a janela:
¯ Já acordou, seu Nacib. Está tomando banho.
¯ Vou fazer o mesmo. Obrigado.
¯ Depois venha tomar café com a gente. Café de pobre. Quero lhe contar o sonho que tive com o finado. Ele me disse: - Arminda, minha velha, o diabo tomou conta da cabeça desse povo de Ilhéus. Só pensam em dinheiro, só pensam em grandezas. Isso vai terminar mal... Muita coisa vai começar a acontecer...
¯ Pois para mim,dona Arminda, já começou... Com essa viagem de Filomena. Pra mim já começou.
Disse em tom de mofa, não sabia que tinha começado mesmo. O navio recebia o prático, manobrava em direção à barra.
DE ELOGIO À LEI E À JUSTIÇA OU SOBRE NASCIMENTO E NACIONALIDADE
Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus com quatro anos, vindo num navio francês até à Bahia. Naquele tempo, no rastro do cacau dando dinheiro, chegavam à cidade de alastrada fama, diariamente, pelos caminhos do mar, do rio e da terra, nos navios, nas barcaças e lanchas, nas canoas, no lombo dos burros, a pé abrindo picadas, centenas e centenas de nacionais e estrangeiros oriundos de toda parte: de Sergipe e do Ceará, de Alagoas e da Bahia, do Recife e do Rio, da Síria e da Itália, do Líbano e de Portugal, da Espanha e de guetos variados. Trabalhadores, comerciantes, jovens em busca de situação, bandidos e aventureiros, um mulherio colorido, e até um casal de gregos surgidos só Deus sabe como. E todos eles, mesmo os loiros alemães da recém-fundada fábrica de chocolate em pó e os altaneiros ingleses da estrada de ferro, não eram senão homens da zona do cacau, adaptados aos costumes da região ainda semi-bárbara com suas lutas sangrentas, tocaias e mortes. Chegavam e em pouco eram ilheenses dos melhores, verdadeiros grapiúnas plantando roças, instalando lojas e armazéns, rasgando estradas, matando gente, jogando nos cabarés, bebendo nos bares, construindo povoados de rápido crescimento, rompendo a seiva ameaçadora, ganhando e perdendo dinheiro, sentindo-se tão dali como os mais antigos ilheenses, os filhos das famílias de antes do aparecimento do cacau.
Graças a essa gente diversa, Ilhéus começara a perder seu ar de acampamento de jagunços, a ser uma cidade. Eram todos, mesmo o último dos vagabundos chegado para explorar os coronéis enriquecidos, fatores do assombroso progresso da zona.
Já ilheenses por fora e por dentro, além de brasileiros naturalizados, eram os parentes de Nacib, uns Askar envolvidos nas lutas pela conquista da terra, onde seus feitos foram dos mais heróicos e comentados. Só encontram eles comparação com os dos Badarós, de Braz Damásio, do célebre negro José Nique, do coronel Amâncio Leal. Um deles, de nome Abdula, o terceiro em idade, morreu nos fundos de um cabaré em Pirangi, após abater três dos cinco jagunços mandados contra ele, quando disputava pacífica partida de pôquer. Os irmãos vingaram sua morte de forma inesquecível. Para saber desses parentes ricos de Nacib, basta compulsar os anais do júri, ler os discursos do promotor e dos advogados.
De árabe e turco muitos o tratavam, é bem verdade. Mas o faziam exatamente seus melhores amigos e o faziam numa expressão de carinho, de intimidade. De turco ele não gostava que o chamassem, repelia irritado o apodo, por vezes chegava a se aborrecer:
¯ Turco é a mãe!
¯ Mas, Nacib...
¯ Tudo que quiser, menos turco. Brasileiro - batia com a mão enorme no peito cabeludo ¯ filho de sírios, graças a Deus.
¯ Árabe, turco, sírio, é tudo a mesma coisa.
¯ A mesma coisa, um corno! Isso é ignorância sua. É não conhecer história e geografia. Os turcos são uns bandidos, a raça mais desgraçada que existe. Não pode haver insulto pior para um sírio que ser chamado de turco.
¯ Ora, Nacib, não se zangue. Não foi para lhe ofender. É que essas, coisas das estranjas pra gente é tudo igual...
Talvez assim o chamassem menos por sua ascendência levantina que pelos bigodões negros de sultão destronado, a descer-lhe pelos lábios, cujas pontas ele cofiava ao conversar. Frondosos bigodes plantados num rosto gordo e bonachão, de olhos desmesurados, fazendo-se cúpidos à passagem das mulheres. Boca gulosa, grande e de riso fácil. Um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido, barriga de nove meses, como pilheriava o Capitão ao perder uma partida no tabuleiro de damas.
¯ Na terra de meu pai... ¯ assim começavam suas histórias nas noites de conversas longas, quando nas mesas do bar ficavam apenas uns poucos amigos. Porque sua terra era Ilhéus, a cidade alegre ante o mar, as roças de cacau, aquela zona ubérrima onde se fizera homem. Seu pai e seus tios, seguindo o exemplo dos Askar, vieram primeiro, deixando as famílias. Ele embarcara depois, com a mãe e a irmã mais velha, de seis anos, Nacib ainda não completara os quatro. Lembrava-se vagamente da viagem na terceira classe, o desembarque na Bahia onde o pai fora esperá-los. Depois a chegada a Ilhéus, a vinda para a terra numa canoa, pois naquele tempo nem ponte de desembarque existia. Do que não se recordava mesmo era da Síria, não lhe ficara lembrança da terra natal tanto se misturara ele à nova pátria, e tanto se fizera brasileiro e ilheense. Para Nacib era como se houvesse nascido no momento mesmo da chegada do navio à Bahia, ao receber o beijo do pai em lágrimas. Aliás, a primeira providencia do mascate. Aziz, após chegar a Ilhéus, foi conduzir os filhos a Itabuna, então Tabocas, ao cartório do velho Segismundo, para registrá-los brasileiros.
Processo rápido de naturalização que o respeitável tabelião praticava, com a perfeita consciência do dever cumprido, por uns quantos mil-réis. Não tendo alma de explorador, cobrava barato, colocando a operação legal ao alcance de todos, fazendo desses filhos de imigrantes, quando não dos próprios imigrantes vindos trabalhar em nossa terra, autênticos cidadãos brasileiros, vendendo-lhes boas e válidas certidões de nascimento.
Acontece ter sido o antigo cartório incendiado, numa daquelas lutas pela conquista da terra, para que o fogo devorasse indiscretas medições e escrituras da mata do Sequeiro Grande ¯ isso está até contado num livro. Não era culpa de ninguém, portanto, muito menos do velho Segismundo, se os livros de registro de nascimentos e óbitos, todos eles, tinham sido consumidos no incêndio, obrigando a novo registro centenas de ilheenses (naquele tempo Itabuna ainda era distrito do município de Ilhéus). Livros de registros não existiam, mas existiam idôneas testemunhas a afirmar que o pequeno Nacib e a tímida Salma, filhos de Aziz e de Zoraia, haviam nascido no arraial de Ferradas e tinham sido anteriormente registrados no cartório, antes do incêndio. Como poderia Segismundo, sem cometer grave descortesia, duvidar da palavra do coronel José Antunes, rico fazendeiro, ou do comerciante Fadel, estabelecido com loja de fazendas, gozando de crédito na praça? Ou mesmo da palavra mais modesta do sacristão Bonifácio, pronto sempre a aumentar seu parco salário servindo em casos assim como fidedigna testemunha? Ou do perneta Fabiano, corrido de Sequeiro do Espinho e que outro meio de vida não possuía além de testemunhar?
Cerca de trinta anos se haviam passado sobre tais fatos. O velho Segismundo morrera cercado da estima geral e ainda hoje seu enterro é recordado. Toda a população comparecera, de há muito ele não tinha inimigos, nem mesmo os que lhe haviam incendiado o cartório. No seu túmulo falaram oradores, celebraram suas virtudes. Fora afirmaram - um servidor admirável da justiça, exemplo para as gerações futuras. Registrava ele facilmente como nascidos no município de Ilhéus, estado da Bahia, Brasil, a quanta criança lhe chegasse, sem maiores investigações, mesmo quando parecia evidente ter-se dado o nascimento bem depois do incêndio. Não era cético nem formalista nem o podia ser no Ilhéus dos começos do cacau. Campeava o caxixe, a falsificação de escrituras e medições de terras, as hipotecas inventadas, os cartórios e tabeliães eram peças importantes na luta pelo desbravamento e plantio das matas, como distinguir um documento falso de um verdadeiro? Como pensar em míseros detalhes legais, como o lugar e a data exata do nascimento de uma criança, quando se vivia perigosamente em meio aos tiroteios, aos bandos de jagunços armados, às tocaias mortais? A vida era bela e variada, como iria o velho Segismundo esmiuçar sobre nomes de localidades? Que importava em realidade onde nascera o brasileiro a registrar, aldeia síria ou Ferradas, sul da Itália ou Pirangi, Trás-os-Montes ou Rio do Braço? O velho Segismundo já tinha demasiadas complicações com os documentos de posse da terra, por que havia de dificultar a vida de honrados cidadãos que desejavam apenas cumprir a lei, registrando os filhos? Acreditava simplesmente na palavra daqueles simpáticos imigrantes, aceitava-lhes os presentes modestos, vinham acompanhados de testemunhas idôneas, pessoas respeitáveis, homens cuja palavra, por vezes, valia mais que qualquer documento legal.
E, se alguma dúvida perdurava-lhe no espírito por acaso, não era o pagamento mais elevado do registro e da certidão, o corte de fazenda para sua esposa, a galinha ou o peru para o quintal, que o punham em paz com sua consciência. Era que ele, como a maioria da população, não media pelo nascimento o verdadeiro grapiúna, e, sim, pelo seu trabalho em benefício da terra, pela sua coragem de entrar na selva e afrontar a morte, pelos pés de cacau plantados ou pelo número de portas das lojas e armazéns, pela sua contribuição ao desenvolvimento da zona. Essa era a mentalidade de Ilhéus, era também a do velho Segismundo, homem de larga experiência da vida, de ampla compreensão humana e de poucos escrúpulos. Experiência e compreensão colocadas a serviço da região cacaueira. Quanto aos escrúpulos, não foram com eles que progrediram as cidades do sul da Bahia, que se rasgaram as estradas, plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se edifícios, fundaram-se jornais, exportou-se cacau para o mundo inteiro. Foi com tiros e tocaias, com falsas escrituras e medições inventadas, com mortes e crimes, com jagunços e aventureiros, com prostitutas e jogadores, com sangue e coragem. Uma vez Segismundo lembrara-se de seus escrúpulos. Tratava-se da medição da mata de Sequeiro Grande e lhe ofereciam pouco para o vulto do caxixe: cresceram-lhe subitamente os escrúpulos. Em vista disso queimaram-lhe o cartório e meteram-lhe uma bala na perna. A bala, por engano, isto é: por engano na perna pois destinava-se ela ao peito de Segismundo. Desde então ficou ele menos escrupuloso e mais barateiro, mais grapiúna ainda, graças a Deus. Por isso, quando morreu octogenário, seu enterro transformou-se em verdadeira manifestação de homenagem a quem fora, naquelas paragens, exemplo de civismo e devoção à justiça.
Por essa mão veneranda fizera-se Nacib brasileiro nato em certa tarde distante de sua primeira infância, vestido com verde bombacho de veludo francês.
ONDE APARECE MUNDINHO FALCÃO, SUJEITO IMPORTANTE, OLHANDO ILHÉUS POR UM BINÓCULO
Da ponte de comando do navio a espera de prático, um homem ainda jovem, bem vestido e bem barbeado, olhava a cidade com um ar levemente sonhador. Qualquer coisa, talvez os cabelos negros, talvez os olhos rasgados, dava-lhe um toque romântico, fazia com que as mulheres logo o notassem. Mas a boca dura e o queixo forte eram de homem decidido, prático, sabendo querer e fazer. O comandante, rosto curtido pelo vento, mordendo um cachimbo, estendeu-lhe o binóculo. Mundinho Falcão disse, ao recebê-lo:
¯ Nem preciso... Conheço casa por casa, homem por homem. Como se tivesse nascido ali, na praia ¯ apontava com o dedo. ¯ Aquela casa ¯ a da esquerda ao lado do sobrado ¯ é minha casa. Posso dizer que essa avenida eu a construí...
¯ Terra de dinheiro, de futuro ¯ falou, como conhecedor, o comandante. ¯ Só que a barra é uma desgraça...
¯ Isso também vamos resolver ¯ anunciou Mundinho. ¯ E muito em breve...
¯ Deus lhe ouça. Toda a vez que entro aqui tremo pelo meu navio. Não há barra pior em todo o norte.
Mundinho levantou o binóculo, aplicou-o aos olhos. Viu sua casa moderna, trouxera um arquiteto do Rio para construí-la. Os sobrados da avenida, os jardins do palacete do coronel Misael, as torres da matriz, o grupo escolar. O dentista Osmundo, envolto num roupão, saía de casa para o banho de mar tomado bem de manhãzinha para não escandalizar a população. Na praça São Sebastião, nem uma só pessoa. O Bar Vesúvio com suas portas fechadas. O vento da noite derrubara uma tabuleta de anúncio na frente do cinema, Mundinho examinava cada detalhe atentamente, quase com emoção. A verdade é que gostava cada vez mais daquela terra, não lamentava o aloucado arroubo a trazê-lo um dia, há poucos anos, para ali, como um náufrago à deriva, servindo-lhe qualquer terra onde salvar-se. Mas essa não era uma terra qualquer. Ali crescia o cacau. Onde melhor aplicar o seu dinheiro, multiplicá-lo? Bastava ter disposição para o trabalho, cabeça para os negócios, tino e audácia. Tudo isso ele possuía e algo mais: mulher a esquecer, paixão impossível a arrancar do peito e do pensamento.
Dessa vez, no Rio, a mãe e os irmãos foram unânimes em achá-lo mudado, diferente.
Lourival, o irmão mais velho, não pode deixar de reconhecer com sua voz de desdém, de homem sempre enfastiado:
¯ Não há dúvida, o rapazinho amadureceu. Emílio sorrira, chupando o charuto:
¯ E está ganhando dinheiro. Não devíamos ¯ falava agora para Mundinho ¯ ter permitido que partisses. Mas quem podia adivinhar que o nosso jovem galã tinha jeito para negócios? Aqui nunca revelaste gosto senão para a esbórnia. E, quando te foste, levando teu dinheiro, que podíamos imaginar senão mais uma loucura, maior que as outras? Era esperar tua volta, para encaminhar-te na vida.
A mãe concluíra, quase irritada:
¯ Ele não é mais um menino.
Irritada com quem? Com Emílio por dizer tais coisas ou com Mundinho que já não lhe vinha solicitar mais dinheiro, após esbanjar a mesada gorda? Mundinho deixava-os falar, gozava aquele diálogo. Quando eles não mais tiveram o que dizer, então anunciou:
¯ Penso meter-me na política, fazer-me eleger qualquer coisa. Deputado, talvez... Pouco a pouco, estou a tornar-me o homem importante da terra.
¯ Que pensas, Emílio, de me veres subindo à tribuna para responder a um desses teus discursos de adulação ao governo? Quero vir pela oposição...
Na grande sala austera da residência familiar, os móveis solenes, a mãe a dominá-los como uma rainha, os olhos altivos, a cabeleira branca, estavam os três irmãos a conversar. Lourival, cujas roupas vinham de Londres, jamais aceitara deputação ou senatoria. Mesmo um ministério recusara quando convidado. Governador de São Paulo, quem sabe?, aceitaria se fosse escolhido por todas as forças políticas. Emílio era deputado federal, eleito e reeleito sem o menor esforço. Muito mais idosos os dois que Mundinho, espantavam-se agora de vê-lo homem, gerindo seus negócios, exportando cacau, obtendo lucros invejáveis, falando daquela terra bárbara onde fora se meter, ninguém jamais pôde saber por que motivo, anunciando-se deputado em breve.
¯ Podemos te ajudar ¯ disse, paternalmente, Lourival.
¯ Faremos botar teu nome na chapa do governo, entre os primeiros. Eleição garantida ¯ completou Emílio.
¯ Não vim aqui para pedir, vim aqui para contar.
¯ Orgulhoso, o rapazinho... ¯ murmurou Lourival desdenhoso.
¯ Sozinho, não te elegerás ¯ previu Emílio.
¯ Sozinho vou me eleger. E no terço da oposição. Governo, só quero ser lá mesmo, em Ilhéus. Governo que vou tomar, não vim aqui para solicitá-lo a vocês, muito obrigado.
A mãe alteou a voz:
¯ Podes fazer o que quiseres, ninguém te impede. Mas por que te levantas contra teus irmãos? Por que te separas de nós? Eles só querem te ajudar, são teus irmãos.
¯ Não sou mais menino, a senhora mesma disse.
Depois contou de Ilhéus, das lutas passadas, do banditismo, das terras conquistadas à bala, do progresso atual, dos problemas.
¯ Quero que me respeitem, que me mandem falar em seu nome, na Câmara. Que me adiantaria se vocês me metessem numa chapa? Para representar a firma, basta Emílio. Sou um homem de Ilhéus.
¯ Política de lugarejo. Com tiroteios e banda de música ¯ sorriu Emílio, entre irônico e condescendente.
¯ Para que correr perigo quando não é necessário? ¯ perguntou a mãe escondendo o temor.
¯ Para não ser apenas o irmão dos meus irmãos. Para ser alguém.
Revirara o Rio de Janeiro. Andara nos ministérios, tratava os ministros por tu, ia entrando gabinete a dentro, quantas vezes não encontrara cada um deles em sua casa, sentado na mesa presidida pela mãe, ou na casa de Lourival, em São Paulo, sorrindo para Madeleine? Quando o ministro da justiça, seu rival na disputa das graças de uma holandesa, anos antes, lhe dissera já ter respondido ao governador da Bahia, afirmando só poder equiparar o colégio de Enoch no começo do ano, Mundinho rira:
¯ Filho meu, tu deves muito a Ilhéus. Não tivesse eu emigrado para lá e jamais terias dormido com Berta, a holandezinha viciosa. Quero a equiparação para já. Ao governador podes exibir a lei. A mim não. Para mim, o ilegal, o difícil, o impossível...
¯ No Ministério da Viação e, Obras Públicas reclamara o engenheiro.
O ministro contara-lhe toda a história da barra de Ilhéus, das docas da Bahia, os interesses de gente ligada ao genro do governador. Aquilo era impossível. justo, sem dúvida, mas impossível, meu caro, completamente impossível, o governador iria rugir de raiva.
¯ Foi ele quem te nomeou?
¯ Não, é claro.
¯ Pode te derrubar?
¯ Creio que não...
¯ E então?
¯ Não compreendes?
¯ Não. O governador é um velho, o genro um ladrão, não valem nada. Fim de governo, fim de um clã. Vais ficar contra mim, contra a região mais próspera e poderosa do estado? Burrice. O futuro sou eu, o governador é o passado. Além de que, se venho a ti, é por amizade. Posso ir mais alto, bem sabes. Se falar com Lourival e Emílio tu receberás ordens do presidente da República para mandar o engenheiro. Não é verdade?
Gozava aquela chantagem com o nome dos irmãos, aos quais por nenhum preço pediria fosse o que fosse. Comeu com o ministro à noite, havia música e mulheres, champanha e flores. No mês seguinte o engenheiro estaria em Ilhéus.
Três semanas andara pelo Rio, voltara à vida de antes: às festas, às farras, às moças da alta sociedade, às artistas de teatro musicado. Admirava-se de como tudo aquilo, que fora sua vida durante anos e anos, agora tão pouco o seduzia, logo o cansava. Em verdade sentia falta de Ilhéus, do seu escritório movimentado, das intrigas, dos disse-que-disse, de certas figuras locais. Nunca pensara poder adaptar-se tanto, tanto prender-se. A mãe apresentava-lhe moças ricas, de famílias importantes, buscava-lhe noiva que o arrancasse de Ilhéus. Lourival queria levá-lo a São Paulo, Mundinho ainda era sócio das fazendas de café, devia visitá-las. Não foi: apenas cicatrizava a ferida no seu peito, apenas desaparecera a imagem de Madeleine dos seus sonhos, não iria revê-la, sofrer seus olhos de perseguição. Paixão monstruosa, jamais confessada, mas sentida por ele e por ela, sempre a um passo de se atirarem um sobre o outro. A Ilhéus devia a cura, para Ilhéus vivia agora.
Lourival desdenhoso e enfarado, tão superior, tão inglês em sua suficiência, viúvo sem filhos de mulher milionária, casara-se novamente, de súbito, numa de suas constantes viagens à Europa, com uma francesa modelo de casa de modas. Grande diferença de idade separava marido e mulher, Madeleine mal escondia as razões por que casara. Mundinho sentiu que se não partisse definitivamente nada poderia ¯ nenhuma consideração moral, nenhum escândalo, nenhum remorso possível ¯ impedir que terminassem um nos braços do outro. Os olhos perseguiam-se pela casa, as mãos tremiam ao tocar-se, as vozes embargadas. Mal podia o desdenhoso e frio Lourival. imaginar que o irmão mais moço, o aloucado Mundinho, rompera com tudo por sua causa, por amor ao irmão.
Ilhéus o curara, pois estava curado, poderia ¯ quem sabe? ¯ se quisesse, fitar Madeleine, já nada sentia por ela. Com o binóculo percorre a cidade de Ilhéus, vê o árabe Nacib na sua janela. Sorri por que o dono do bar recorda-lhe o Capitão, eram parceiros habituais na dama e no gamão. O Capitão ia servir-lhe muito. Tornara-se seu melhor amigo e há tempos vinha lhe acenando, em palavras vagas, com a possibilidade de fazer política. Não era segredo na cidade o despeito do Capitão contra os Bastos, seu pai fora por eles derrubado do governo local, por eles arruinado na luta política, há vinte anos. Mundinho fazia-se desentendido, estava ainda preparando o terreno. A hora era chegada. Precisava levar o Capitão a falar franco, a lhe oferecer a chefia da oposição. Mostraria aos irmãos de quanto era capaz. Sem contar que Ilhéus precisava de um homem como ele para incrementar o progresso, para imprimir-lhe um ritmo acelerado, aqueles coronéis nem sabiam das necessidades da região.
Mundinho restituía o binóculo, o prático subia para bordo, o navio embicava para a barra.
DA CHEGADA DO NAVIO
Apesar da hora matinal, uma pequena multidão acompanhava os penosos trabalhos de desencalhe do navio. Pegara fundo na barra, parecia ali ancorado para sempre. Da ponta do morro do Unhão, os curiosos viam o comandante e o prático afobados, dando ordens, marinheiros correndo, oficiais passando apressados. Pequenos botes, vindos do Pontal, rondavam o navio.
Passageiros debruçavam-se na amurada, quase todos de pijama e chinelos, um ou outro vestido para o desembarque. Esses trocavam frases, aos gritos, com os parentes que haviam madrugado para recebê-los no porto, informações sobre a viagem, pilhérias sobre o encalhe. De bordo, alguém anunciava a uma família em terra:
¯ Morreu num sofrimento medonho, a pobrezinha!
Notícia que arrancou soluços de uma senhora de preto, de meia-idade, junto a um homem magro e sorumbático com sinais de luto no braço e na lapela do paletó. Duas crianças olhavam o movimento sem se darem conta das lágrimas maternas.
Entre os espectadores formavam-se grupos, trocavam-se cumprimentos, comentava-se o acontecido:
¯ É uma vergonha essa barra...
¯ É um perigo. Um dia desses um navio fica aí para sempre, adeus porto de Ilhéus...
¯ O governo não liga...
¯ Não liga? Deixa assim de propósito. Para não entrar navio grande. Para a exportação continuar pela Bahia.
¯ Também a intendência não faz nada, o intendente não tem voz ativa. Só sabe dizer amém ao governo.
¯ Ilhéus precisa mostrar o que vale.
O grupo vindo da banca de peixe envolvia-se nas conversas. O Doutor, com sua habitual excitação, conclamava o povo contra os políticos, contra os governantes da Bahia a tratar o município com desprezo, como se não fosse ele o mais rico, o mais próspero do estado, o que contribuía com maiores rendas para os cofres públicos. Isso sem falar em Itabuna, cidade crescendo como um cogumelo, município também sacrificado à incapacidade dos governantes, à incúria, à má-vontade para com o porto de Ilhéus.
¯ A culpa é mesmo nossa, devemos reconhecer ¯ disse o Capitão.
¯ Como?
¯ Nossa e de mais ninguém. E é fácil provar: quem é que manda na política de Ilhéus? Os mesmos homens de há vinte anos passados. Elegemos intendente, deputado e senador estadual, deputado federal a gente que não tem nada que ver com Ilhéus, devido a compromissos antigos, do tempo em que Judas perdeu as botas.
João Fulgêncio apoiava:
¯ É isso mesmo. Os coronéis continuam a votar nos mesmos homens que os sustentaram naquele tempo.
¯ Resultado: os interesses de Ilhéus que se arranjem.
¯ Compromisso é compromisso... ¯ defendeu-se o coronel Amâncio Leal. ¯ Na hora da necessidade foi com eles que a gente contou...
¯ As necessidades agora são outras...
O Doutor brandia o dedo:
¯ Mas essa bandalheira vai acabar. Havemos de eleger homens que representem os verdadeiros interesses da terra.
O coronel Manuel das Onças riu:
¯ E os votos, Doutor, onde vão buscar?
O coronel Amâncio Leal falou com sua voz suave:
¯ Ouça, Doutor: fala-se muito de progresso, de civilização, da necessidade de mudar tudo em Ilhéus. Não ouço outra conversa o dia inteiro. Mas, me diga uma coisa: quem é que fez esse progresso? Não fomos nós, os fazendeiros de cacau? Temos nossos compromissos, tomados numa hora difícil, não somos homens de duas palavras. Enquanto eu for vivo, meus votos são para meu compadre Ramiro Bastos e pra quem ele indicar. Nem quero saber o nome. Foi ele quem me deu mão forte quando a gente estava jogando a vida nessas brenhas...
O árabe Nacib incorporava-se à roda, ainda sonolento, preocupado e abatido:
¯ De que se trata?
O Capitão explicava:
¯ É o eterno atraso... Os coronéis não compreendem que não estão mais naquele tempo, que hoje as coisas são diferentes. Que os problemas não são mais os de vinte ou trinta anos passados.
Mas o árabe não se interessou, estava distante de toda aquela discussão, capaz de empolgá-lo noutro momento. Voltado para seu problema ¯ o bar sem cozinheira, um desastre! ¯, apenas abanou a cabeça às palavras do amigo.
¯ Você está jururu. Por que essa cara de enterro?
¯ Minha cozinheira foi embora...
¯ Ora, que motivo... ¯ o Capitão voltou-se para a discussão cada vez mais exaltada, reunindo agora várias pessoas em torno ao grupo.
Ora, que motivo... Ora, que motivo... Nacib afastou-se uns passos como a colocar distância entre ele e a discussão perturbadora. A voz do Doutor cruzava-se, oratória, com a voz macia mas firme do coronel Amâncio. Que lhe importavam a Intendência de Ilhéus, deputados e senadores! Importava-lhe, sim, o jantar do dia seguinte, trinta talheres. As irmãs Dos Reis, se aceitassem a encomenda, iam pedir um dinheirão. E logo quando tudo ia tão bem...
Quando ele comprara o Bar Vesúvio, situado na praça São Sebastião, em zona residencial, distante ¯ distante não, que as distâncias em Ilhéus eram ridículas ¯, afastado do centro comercial, do porto onde estavam seus maiores concorrentes, alguns amigos e seu tio consideraram que ele ia cometer uma loucura. O bar andava numa decadência medonha, vazio, sem freguesia, às moscas. Prosperavam os botequins do porto, afreguesados. Mas Nacib não queria continuar medindo pano no balcão da loja onde trabalhava desde a morte do pai. Não gostava daquele trabalho, muito menos da sociedade com o tio e o cunhado (sua irmã casara com um agrônomo da Estação Experimental de Cacau). Enquanto o pai era vivo, a loja ia bem, o velho tinha iniciativa, era simpático. Já o tio, homem de família grande e métodos rotineiros, marcava passo, medroso, contentando-se com pouco. Nacib preferiu vender sua parte, andou fazendo o dinheiro render nuns perigosos negócios de compra e venda de cacau, terminou adquirindo o bar. Comprara de um italiano, ia fazer cinco anos. O italiano metera-se pelo interior na alucinação do cacau.
Bar era bom negócio em Ilhéus, melhor só mesmo cabaré. Terra de muito movimento, de gente chegando atraída pela fama de riqueza, multidão de caixeiros-viajantes enchendo as ruas, muita gente de passagem, quantidade de negócios resolvidos nas mesas dos bares, o hábito de beber valentemente e o costume levado pelos ingleses, quando da construção da estrada de ferro, do aperitivo antes do almoço e do jantar, disputado no pôquer de dados, hábito que se estendera a toda a população masculina. Antes do meio-dia e depois das cinco da tarde os bares superlotavam.
O Bar Vesúvio era o mais antigo da cidade. Ocupava o andar térreo de um sobrado de esquina numa pequena e linda praça em frente ao mar, onde se erguia a Igreja de São Sebastião. Na outra esquina, inaugurara-se recentemente o Cine-Teatro Ilhéus. Não se devia a decadência do Vesúvio à sua localização fora das ruas comerciais, onde prosperavam o Café Ideal, o Bar Chic, o Pinga de Ouro, de Plínio Araçá, os três principais concorrentes de Nacib. Devia-se sobretudo ao italiano, de cabeça voltada para as roças de cacau. Não ligava para o bar, não renovava os estoques de bebidas, nada fazia para agradar os fregueses. Até um gramofone velho, onde tocava discos com árias de óperas, esperava conserto, coberto de teias de aranha. Cadeiras desconjuntadas, mesas de pernas quebradas, um bilhar com o pano rasgado. Mesmo o nome do bar, pintado com letras cor de fogo, sobre a imagem de um vulcão em erupção, desbotara com o tempo. Nacib comprou toda aquela porcaria e mais o nome e o ponto por pouco dinheiro. O italiano só ficou com o gramofone e os discos.
Mandou pintar tudo de novo, fazer novas mesas, cadeiras, trouxe tabuleiros de damas e gamão, vendeu o bilhar para um bar de Macuco, construiu um reservado nos fundos para o jogo de pôquer. Variado sortimento de bebidas, sorvete para as famílias na hora dos passeios à tarde pela nova avenida da praia e na saída dos cinemas, e, mais que tudo, os salgadinhos e os doces para as horas do aperitivo. Um detalhe aparentemente sem importância: os acarajés, os abarás, os bolinhos de mandioca e puba, as frigideiras de siri mole, de camarão e bacalhau, os doces de aipim, de milho.
Tinha sido idéia de João Fulgêncio:
¯ Por que você não faz para vender no bar? ¯ perguntara um dia, mastigando um acarajé da velha Filomena, preparado para o prazer exclusivo do árabe, amante da boa mesa.
No começo, apenas os amigos se afreguesaram: a turma da Papelaria Modelo, vindo discutir ali após o fechamento do comércio, os amantes do gamão e das damas, e certos homens mais respeitáveis, como o juiz de direito e o dr. Mauricio, pouco dados a se mostrarem nos bares do porto de freqüência misturada, onde, não raro, explodiam rixas violentas com pancadaria e tiros de revólver. Também logo vieram as famílias, atraídas pelo sorvete e pelos refrescos de frutas. Mas foi após ter iniciado o serviço de doces e salgados nas horas do aperitivo que a freguesia realmente começou a crescer e o bar a prosperar. As partidas de pôquer, no reservado, conheceram grande sucesso. Para esses fregueses ¯ o coronel Amâncio Leal, o rico Maluf, o coronel MeIk Tavares, Ribeirinho, o sírio Fuad. da loja de calçados, Osnar Faria, cuja única ocupação era jogar pôquer e pegar negrinhas no morro da Conquista, o dr. Ezequiel Prado, vários outros ¯ ele guardava, pela meia-noite, pratos de frigideira, de bolinhos, de doces. A bebida corria farta, o barato da casa era alto.
Com pouco tempo, o Vesúvio voltara a florescer. Superara o Café Ideal, o Bar Chic, seu movimento só era inferior ao do Pinga de Ouro. Nacib não se podia queixar: trabalhava como um escravo é bem verdade, ajudado por Chico Moleza e Bico-Fino, às vezes pelo moleque Tuísca que estabelecera sua caixa de engraxate no passeio largo do bar, no lado da praça, junto às mesas ao ar livre. Tudo ia bem, daquele trabalho ele gostava, no bar sabia-se de todas as novidades, comentavam-se os mais mínimos acontecimentos da cidade, as notícias do país e do mundo. Uma simpatia geral cercava Nacib, homem direito e trabalhador, como dizia o juiz ao sentar-se, após o jantar, numa das mesas de fora para contemplar o mar e o movimento da praça.
Tudo ia muito bem até esse dia quando a maluca Filomena cumprira a antiga ameaça. Quem iria agora cozinhar para o bar ¯ e para ele, Nacib, cujo vício era comer bem, comidas temperadas e apimentadas? Pensar nas irmãs Dos Reis em caráter permanente era um absurdo, não só elas não aceitariam, como ele não as poderia pagar. Preços altos, absorveriam todo o lucro. Tinha de arranjar, naquele mesmo dia se possível, uma cozinheira e de mão cheia, sem o que...
¯ É capaz de ter de jogar a carga no mar para se safar ¯ comentou um homem em mangas de camisa. ¯ Tá preso de verdade.
Nacib esqueceu por um momento suas preocupações: as máquinas do navio roncavam sem sucesso.
¯ Isso vai acabar... ¯ a voz do Doutor na discussão.
¯ Ninguém nem sabe direito quem é esse tal Mundinho Falcão... ¯ atacava Amâncio Leal sempre suave.
¯ Não sabe? Pois é um homem que está nesse navio, um homem como Ilhéus precisa.
O navio sacudia-se, o casco arrastava-se sobre a areia, os motores gemiam o prático gritava ordens. Na ponte de comando surgiu um homem ainda jovem, bem vestido, as mãos sobre os olhos, buscando reconhecer amigos entre os espectadores.
¯ Lá está ele... Mundinho! ¯ avisou o Capitão.
¯ Onde?
¯ Lá em cima...
Sucederam-se gritos:
¯ Mundinho! Mundinho!
O outro ouviu, procurou de onde vinham as vozes, abanou com a mão. Depois desceu as escadas, desapareceu durante uns minutos, surgiu na amurada, entre os passageiros, risonho. Punha agora as mãos em concha em torno da boca para anunciar:
¯ O engenheiro vai vir!
¯ Que engenheiro?
¯ Do Ministério da Viação, para estudar a barra. Grandes novidades...
¯ Tão vendo? O que é que eu dizia?
Por detrás de Mundinho Falcão surgia uma figura de mulher nova, um grande chapéu verde, cabelos loiros. Tocava sorridente o braço do exportador.
¯ Que mulher, puxa! Mundinho não, perde tempo...
¯ Um peixão! ¯ Nhô-Galo aprovou com a cabeça.
O navio balançou violentamente, assustando os passageiros ¯ a mulher loira soltou uni pequeno grito ¯, o fundo desprendeu-se da areia, um clamor alegre elevou-se de terra e de bordo. Um homem escuro e magérrimo, cigarro na boca, ao lado de Mundinho, olhava indiferente. O exportador disse-lhe alguma coisa, ele riu.
¯ Esse Mundinho é um finório... ¯ comentou, com simpatia, o coronel Ribeirinho.
O navio apitou, apito largo e livre, rumou para o porto.
¯ É um lorde, não é como a gente ¯ respondeu, sem simpatia, o coronel Amâncio Leal.
¯ Vamos saber as novidades que Mundinho traz ¯ propôs o Capitão.
¯ Vou é pra pensão, trocar de roupa e tomar café ¯ despediu-se Manuel das Onças.
¯ Eu também... ¯ e Amâncio Leal o acompanhou.
A pequena multidão dirigia-se para o porto. O grupo de amigos comentava a informação de Mundinho:
¯ Pelo jeito ele conseguiu movimentar o ministério. Já não era sem tempo.
¯ O homem tem prestígio de fato.
¯ Que mulher! Bocado de rei... ¯ suspirava o coronel Ribeirinho.
Quando chegaram à ponte já estava o navio nas manobras de atracação. Passageiros com destino a Bahia, Aracaju, Maceió, Recife, olhavam curiosos. Mundinho Falcão foi dos primeiros a saltar, logo envolvido pelos abraços.
O árabe desdobrava-se em salamaleques.
¯ Engordou...
¯ Está mais moço...
¯ É o Rio de janeiro que remoça...
A mulher loira ¯ menos jovem do que parecia de longe, porém ainda mais formosa, bem vestida e bem pintada, uma boneca estrangeira, como classificou o coronel Ribeirinho ¯ e o homem esquelético estavam parados junto ao grupo, esperando. Mundinho fez as apresentações numa voz brincalhona de propagandista de circo:
¯ O Príncipe Sandra, mágico de primeira, e sua esposa, a bailarina Anabela... Vão fazer uma temporada aqui.
O homem que, de bordo, anunciara a dolorosa morte de alguém, abraçado agora com a família no cais, contava detalhes tristes:
¯ Levou um mês morrendo, a coitadinha! Nunca se viu sofrer tanto... Gemia dia e noite, de cortar o coração.
Cresceram os soluços da mulher. Mundinho, os artistas, o Capitão, o Doutor, Nacib, os fazendeiros saíram andando pela ponte. Carregadores passavam com malas. Anabela abriu uma sombrinha. Mundinho Falcão propôs a Nacib:
¯ Não quer contratar a moça pra dançar no seu bar? Ela tem uma dança dos véus, meu caro, seria um sucesso...
Nacib levantou as mãos:
¯ No bar? Isso é pro cinema ou pros cabarés... Eu tou querendo é cozinheira.
Riram todos. O Capitão tornou do braço de Mundinho:
¯ E o engenheiro?
¯ No fim do mês está aqui. O ministro me garantiu.
DAS IRMÃS DOS REIS E DO SEU PRESÉPIO
As irmãs dos reis, a roliça Quinquina e a franziria Florzinha, de volta da missa das sete na catedral, apressaram o passo miudinho ao ver Nacib esperando, parado junto ao portão. Eram duas velhinhas álacres, somavam cento e vinte e oito anos de sólida virgindade indiscutida. Gêmeas, eram tudo que sobrava de antiga família ilheense de antes do cacau, daquela gente que cedera seu lugar aos sergipanos, aos sertanejos, aos alagoanos, aos árabes, italianos e espanhóis, aos cearenses. Herdeiras da boa casa onde moravam ¯ cobiçada por muito coronel rico ¯ na rua coronel Adami, e de três outras na praça da Matriz, viviam dos aluguéis e dos doces vendidos à tarde pelo moleque Tuísca. Doceiras eméritas, mãos de fada na cozinha, aceitavam por vezes encomendas para almoços e jantares de cerimônia. Sua celebridade, no entanto, aquilo a fazê-las uma instituição da cidade, era o grande presépio de Natal, armado cada ano numa das salas de frente da casa pintada de azul. Trabalhavam o ano inteiro, recortando e colando em cartolina figuras de revistas para aumentar o presépio, sua diversão e sua devoção.
¯ Madrugou hoje, seu Nacib...
¯ Coisas que acontecem pra gente.
¯ E as revistas que prometeu?
¯ Vou trazer, dona Florzinha, vou trazer. Tou juntando.
A nervosa Florzinha cobrava revistas a todos os conhecidos, a plácida Quinquina sorria. Pareciam duas caricaturas saídas de um livro antigo, com seus vestidos fora de moda, os xales na cabeça, saltitantes e vivas.
¯ O que lhe traz aqui a essa hora?
¯ Queria tratar um assunto.
¯ Pois entre...
O portão conduzia a uma varanda onde cresciam flores e plantas cuidadas com carinho. Uma empregada, mais velha ainda que as solteironas, curvada pelos anos, passava entre os canteiros a regá-los com um balde.
¯ Entre para a sala do Presépio ¯ convidou Quinquina.
¯ Anastácia, sirva um licor a seu Nacib! ¯ ordenou Florzinha. ¯ De que prefere? De jenipapo ou de abacaxi? Temos também de laranja e de maracujá...
Nacib sabia, por experiência própria, ser necessário tomar o licor ¯ àquela hora da manhã, Senhor! ¯, elogiá-lo, perguntar pelos trabalhos do presépio, mostrar por eles interesse, se quisesse levar a bom termo suas negociações. O importante era garantir os salgados e doces do bar durante alguns dias, e o jantar da empresa de ônibus para a noite seguinte. Até arranjar uma nova e boa cozinheira.
Era uma daquelas casas de antigamente, com duas salas de visita dando para a rua. Uma delas há muito deixara de funcionar como sala de visitas, era a sala do presépio. Não que ficasse armado o ano inteiro. Só em dezembro ele era montado e exposto ao público, durava até as proximidades do carnaval, quando Quinquina e Florzinha o desarmavam cuidadosamente, e, em seguida, iniciavam a preparação do proximo presépio.
Não era o único em Ilhéus. Outros existiam, alguns belos e ricos, mas quando alguém falava do presépio era ao das irmãs Dos Reis que se referia, pois nenhum dos demais se lhe podia comparar. Fora crescendo aos poucos no correr de mais de cinqüenta anos. Era Ilhéus ainda um lugarejo atrasado, Quinquina e Florzinha ainda mocinhas, irrequietas e festeiras, requestadas pelos rapazes (ainda hoje é um pequeno mistério terem ficado solteiras, talvez houvessem escolhido demais) quando armaram seu primeiro e pequeno presépio. Naquele esquecido Ilhéus de outros tempos, antes do cacau, estabelecia-se entre as famílias verdadeira emulação para ver qual apresentaria mais belo, completo e rico presépio pelo Natal. O Natal europeu com Papai Noel em carro de renas, vestido para a neve e para o frio, trazendo presentes para as crianças não existia em Ilhéus. Era o Natal dos presépios, das visitas às casas de mesa posta, das ceias após a missa do galo, do início dos folguedos populares, dos reisados, dos ternos de pastorinha, dos bumbas-meu-boi, do vaqueiro e da caapora.
Ano a ano foram as meninas Dos Reis aumentando seu presépio. E, à proporção que o tempo das danças foi passando, mais tempo lhe dedicavam, juntando-lhe novas figuras, ampliando o tablado sobre o qual era montado, terminando por abranger três dos quatro lados da sala. Entre março e novembro, todas as horas deixadas pelas visitas obrigatórias às igrejas (às seis da manhã para a missa, às seis da tarde para a bênção), pela confecção dos saborosos doces vendidos pelo moleque Tuísca a uma freguesia certa, pelas visitas a amigos e vagos parentes, pelo comentário da vida alheia com a vizinhança, dedicavam-nas a recortar figuras de revistas e almanaques, cuidadosamente coladas depois em papelão. Nos trabalhos de montagem, no fim do ano, eram elas auxiliadas por Joaquim, empregado da Papelaria Modelo, tocador de bombo da Euterpe 13 de Maio, que se considerava assim um temperamento de artista. João Fulgêncio, o Capitão, Diógenes (dono do Cine-Teatro Ilhéus e protestante), alunas do colégio das freiras, o professor Josué, Nhô-Galo, apesar de anticlerical exaltado, eram fornecedores assíduos de revistas. Quando, em dezembro, o trabalho apertava, vizinhas, amigas e moças estudantes ¯ após os exames ¯, vinham ajudar as velhas. O grande presépio chegara a ser quase propriedade coletiva da comunidade, orgulho dos habitantes, e o dia de sua inauguração era dia de festa, cheia a casa das irmãs Dos Reis, os curiosos aglomerados na rua, ante as janelas abertas, para ver o presépio iluminado com lâmpadas multicores, trabalho também de Joaquim que nesse dia glorioso embebedava-se intrepidamente com os licores açucarados das solteironas.
Representava o presépio, como é de esperar-se, o nascimento de Cristo na cocheira pobre da distante Palestina. Mas, ah!, a árida terra oriental era hoje apenas um detalhe no centro do mundo variado, onde se misturavam democraticamente cenas e figuras as mais diversas, dos mais diferentes períodos da história. Ampliando-se ano a ano: homens célebres, políticos, cientistas, militares, literatos e artistas, animais domésticos e ferozes, maceradas faces de santo ao lado da radiosa carnação de estrelas seminuas de cinema.
Sobre o tablado elevava-se uma sucessão de colinas com um pequeno vale ao centro onde ficava a estrebaria com o berço de Jesus, Maria sentada ao lado, São José de pé segurando pelo cabresto um tímido jumento. Essas figuras não eram as maiores nem as mais ricas do presépio. Ao contrário, pareciam pequenas e pobres ao lado de outras, mas como eram as do primeiro presépio por elas montado, Quinquina e Florzinha faziam questão de conservá-las. Já o mesmo não acontecia com o grande e misterioso cometa anunciador do nascimento, suspenso por fios entre a estrebaria e um céu de pano azul perfurado de estrelas. Era a obra-prima de Joaquim, alvo de elogios que o deixavam de olhos úmidos: uma enorme estrela de cauda vermelha, tudo em papel celofane, tão bem concebida e realizada que parecia dela descer toda a luz a resplandecer no imenso presépio. Nas proximidades da estrebaria, vacas ¯ acordadas do seu pacífico sono pelo acontecimento, cavalos, gatos, cachorros, galos, patos e galinhas, um leão e um tigre, uma girafa, animais variados adoravam o recém-nascido. E guiados pela luz da estrela de Joaquim, ali estavam os três reis magos, Gaspar, Melchior e Baltazar, trazendo ouro, incenso e mirra. Duas figuras bíblicas as dos reis brancos, recortadas há muito tempo de um almanaque. Quanto ao rei negro, porém, cuja figura a umidade arruinara, fora recentemente substituído pelo retrato do sultão de Marrocos, profusamente divulgado pelos jornais e revistas da época (que melhor rei, em verdade, mais indicado para substituir o estropiado Melchior, do que aquele tão necessitado de proteção, lutando de armas na mão pela independência de seu reino?).
Um rio, filete de água correndo sobre o leito de um cano de borracha cortado ao meio, descia das colinas para o vale, e até mesmo uma cachoeira concebera e realizara o engenhoso Joaquim. Caminhos cruzavam as colinas, dirigindo-se todos à estrebaria, arruados levantavam-se aqui e ali. E nesses caminhos, diante de casas de janelas iluminadas, encontravam-se, em meio a animais, os homens e mulheres que, de alguma forma, se haviam destacado no Brasil e no mundo, cujos retratos mereceram a consagração das revistas. Ali estava Santos Dumont ao lado de um dos seus primitivos aviões, com um chapéu esportivo e seu ar um pouco triste. Próximo a ele, na vertente direita de uma colina, confabulavam Herodes e Pilatos. Mais adiante, heróis da guerra: o rei George V, da Inglaterra, o kaiser, o marechal Joffre, Lloyd George, Poincaré, o tzar Nicolau. Na vertente esquerda esplendia Eleonora Duse, de diadema na cabeleira, os braços nus. Misturavam-se Rui Barbosa, J. J. Seabra, Lucien Guitry, Victor Hugo, D. Pedro II, Emílio de Meneses, o barão do Rio Branco, Zola e Dreyfus, o poeta Castro Alves e o bandido Antônio Silvino. Lado a lado com ingênuas estampas coloridas cuja visão nas revistas arrancava exclamações das irmãs, encantadas:
Que beleza para o presépio!
Nos últimos anos crescera grandemente o número de artistas de cinema, principal contribuição das alunas do colégio das freiras, e os William Farnum, Eddie Polo, Lya de Putti, Rodolfo Valentino, Carlitos, Lillian. Gish, Ramon Novarro, William. S. Hart, ameaçavam seriamente dominar os caminhos das colinas. E, lá estava até mesmo VIadimir Ilitch Lenin, o temido chefe da revolução bolchevique. Fora João Fulgêncio quem cortara o retrato numa revista, entregara a Florzinha:
¯ Homem importante... Não pode deixar de estar no presépio.
Apareciam também figuras locais: o antigo intendente Cazuza de Oliveira, cuja administração deixara fama, o falecido coronel Horácio Macedo, desbravador de terras. Um desenho ¯ feito por Joaquim, a instâncias do Doutor ¯ representando a inesquecível Ofenísia, jagunços de barro, cenas de tocaia, homens com repetição ao ombro.
Numa mesa, ao lado das janelas, espalhavam-se revistas, tesouras, cola, cartolina. Nacib tinha pressa, queria acertar o jantar da empresa de ônibus, os tabuleiros de doces e salgados. Sorveu o licor de jenipapo, elogiou os trabalhos do presépio:
¯ Esse ano, pelo visto, vai ser formidável!
¯ Se Deus quiser...
¯ Muita coisa nova, não é?
¯ Chi.... Nem damos conta.
Sentavam,se as duas irmãs num sofá, muito empertigadas, sorrindo para o árabe, à espera de que ele falasse.
¯ Pois é... Avaliem só o que me aconteceu hoje... A velha Filomena foi embora, morar com o filho em Água Preta.
¯ Não me diga... Foi mesmo? Ela bem dizia... ¯ falavam as duas ao mesmo tempo, era uma notícia a espalhar.
¯ Eu não esperava por uma dessas. E logo hoje: dia de feira, dia de muito movimento no bar. E ainda por cima eu tinha tomado a encomenda de um jantar para trinta pessoas.
¯ Jantar de trinta pessoas?
¯ Oferecido pelo russo Jacob e por Moacir da garagem. Pra festejar a inauguração da empresa de ônibus.
¯ Ah! ¯ fez Florzinha. ¯ Já sei.
¯ Bem! ¯ disse Quinquina. ¯ Ouvi falar. Diz que vem o intendente de Itabuna.
¯ O daqui, o de Itabuna, o coronel Misael, o gerente do Banco do Brasil, seu Hugo Kaufmann, enfim, tudo gente de primeira.
¯ O senhor acha que esse negócio de marinete vai dar certo? ¯ quis saber Quinquina.
¯ Se vai... Já está dando... Daqui a pouco ninguém viaja mais de trem. Uma hora de diferença...
¯ E o perigo? ¯ perguntou Florzinha.
¯ Que perigo?
¯ Perigo de virar... Outro dia virou uma na Bahia, li no jornal, morreram três pessoas...
¯ Eu é que não viajo nesses negócios. Automóvel não foi feito pra mim. Posso morrer de automóvel se me pegar na rua. Mas de eu entrar dentro, isso não... ¯ disse Quinquina.
¯ Ainda outro dia compadre Eusébio queria a pulso fazer a gente subir no carro dele para dar uma volta. Até a comadre Noca nos chamou de atrasadas... ¯ contou Florzinha.
Nacib riu:
¯ Ainda vou ver as senhoras comprar automóvel.
¯ Nós... Mesmo que a gente tivesse dinheiro...
¯ Mas vamos ao nosso assunto.
Relutaram, fizeram-se rogar, terminaram aceitando. Não sem antes afirmar que só o faziam por se tratar de seu Nacib, moço distinto. Onde já se viu encomendar de véspera um jantar para trinta pessoas e todas importantes? Sem falar nos dois dias perdidos para o presépio, não ia sobrar tempo de cortar uma figura sequer. Além de ter de arranjar quem as ajudasse...
¯ Eu havia apalavrado duas cabrochas para ajudar Filomena...
¯ Não. A gente prefere dona Jucundina e as filhas. Já estamos acostumadas com ela. E cozinha bem.
¯ Será que ela não aceitaria cozinhar pra mim?
¯ Quem? Jucundina? Nem pense nisso, seu Nacib: e a casa dela, os três filhos já homens, o marido, quem ia cuidar? Pra nós, assim uma vez, ela vem, por amizade...
Cobravam caro, um dinheirão. Pelo preço que lhe fizeram, o jantar não ia render nada. Não fosse Nacib ter tomado o compromisso com Moacir e o russo... Era homem de palavra, não ia deixar os amigos a ver navios, sem jantar para seus convidados. Como não podia também deixar o bar sem salgadinhos e doces. Se o fizesse, perderia a freguesia, o prejuízo seria maior. Mas aquilo não podia durar mais de alguns dias, senão onde iria parar?
¯ Cozinheira boa é tão difícil de encontrar... ¯ lastimou Florzinha.
¯ Quando aparece uma, é disputada... ¯ completou Quinquina.
Era verdade. Boa cozinheira em Ilhéus valia ouro, as famílias ricas mandavam buscar em Aracaju, em Feira de Santana, em Estância.
¯ Então, está certo. Mando Chico Moleza com as compras.
¯ Quanto antes, seu Nacib.
Levantava-se, estendia a mão às solteironas. Olhava mais uma vez a messa cheia de revistas, o presépio por armar, as caixas de papelão atulhadas de figuras:
¯ Vou trazer as revistas. E muito obrigado por me tirar do aperto...
¯ Não há de que. Fazemos pelo senhor. O que o senhor precisa é se casar, seu Nacib. Se fosse casado não lhe acontecia dessas...
¯ Com tanta moça solteira na cidade... E prendadas.
¯ Eu sei de uma ótima para o senhor, seu Nacib. Moça direita, não é dessas sirigaitas que só pensam em cinema e em dança... Distinta, sabe até tocar piano. Só que é pobre...
Era mania das velhas arrumar casamentos. Nacib riu:
¯ Quando resolver me casar venho direto aqui. Buscar noiva.
DA DESESPERADA BUSCA
Iniciara a desesperada busca pelo morro do Unhão. O corpanzil atirado para a frente, suando em bicas, o paletó sob o braço, Nacib percorrera Ilhéus de ponta a ponta, naquela primeira manhã de sol após a longa estação das chuvas. Reinava alegre animação nas ruas onde fazendeiros, exportadores, comerciantes trocavam exclamações e parabéns. Era dia de feira, as lojas estavam cheias, os consultórios médicos e as farmácias abarrotados. Descendo e subindo ladeiras, cruzando ruas e praças, Nacib praguejava. Ao chegar em casa, na véspera, cansado da jornada de trabalho e do leito de Risoleta, fizera seus cálculos para o dia seguinte: dormir até às dez horas, quando Chico Moleza e Bico-Fino, feita a limpeza do bar, começavam a servir os primeiros fregueses. Dormir a sesta após o almoço. Jogar suas partidas de gamão ou de damas, com Nhô-Galo e o Capitão, conversar com João Fulgêncio, saber as novidades locais e as notícias do mundo. Dar um pulo, após fechar o bar, ao cabaré, terminar a noite, quem sabe?, outra vez com Risoleta. Em vez disso, corria as ruas de Ilhéus, subia as ladeiras do morro...
No Unhão desfizera o trato com as duas cabrochas acertadas para ajudar Filomena no preparo do jantar da empresa de ônibus. Uma delas, rindo com a boca sem dentes, declarou saber fazer o trivial. A outra nem isso... Acarajé, abará, doces, moquecas e frigideiras de camarão, isso só mesmo Maria de São Jorge... Nacib perguntou aqui e ali, desceu pelo outro lado do morro.
Cozinheira em Ilhéus, capaz de assegurar a cozinha de um bar, era coisa difícil, quase impossível.
Perguntara pelo porto, passara em casa do tio: não sabiam por acaso de uma cozinheira? Ouvira a tia lastimar-se: tinha uma mais ou menos, não que fosse grande coisa, largara o emprego sem quê nem porquê. Agora era ela, a tia, quem estava cozinhando enquanto não aparecia outra. Por que Nacib não vinha almoçar com eles?
Deram-lhe notícias de uma, famosa, vivendo no morro da Conquista. De mão cheia, dissera-lhe o informante, o espanhol Felipe, hábil no conserto não só de sapatos e botas, como de selas e arreios. Falador como só ele, temível adversário no jogo de damas, esse Felipe, de língua suja e coração sem fel, representava em Ilhéus a extrema-esquerda, declarando-se anarquista a cada e passo, ameaçando limpar o mundo de capitalistas e de padres, sendo amigo e comensal de vários fazendeiros, entre os quais o padre Basílio. Enquanto batia sola cantava canções anarquistas e, quando jogavam damas, ele e Nhô-Galo, valia a pena ouvir as pragas que rogavam contra os padres.
Interessara-se pelo drama culinário de Nacib:
¯ Uma tal de Mariazinha. Um portento.
Nacib tocou-se para a Conquista, a ladeira ainda escorregadia das chuvas, um grupo de negrinhas a rir quando ele caiu, sujando os fundilhos da calça. De informação em informação, localizou a casa da cozinheira. No alto do morro. Uma casinha de madeira e zinco. Daquela vez ia com certa esperança. Seu Eduardo, dono de vacas leiteiras, confirmara-lhe os predicados de Mariazinha. Trabalhara uns tempos em sua casa, tinha um tempero de fazer gosto. Seu único defeito era a bebida, cachaceira memorável. Quando bebia pintava o diabo: faltara com o respeito a dona Mariana, por isso Eduardo a despedira.
¯ Mas pra casa de homem solteiro como você...
Bêbeda ou não, se era boa cozinheira, ele a contrataria. Pelo menos enquanto não encontrasse outra. Finalmente divisou a casinhola miserável e, sentada à porta, Mariazinha, os pés descalços, a pentear uns cabelos compridos, a matar piolhos. Era mulher de uns trinta, trinta e cinco anos, gasta pela bebida, mas ainda com uns restos de graça no rosto caboclo. Ficara a ouvi-lo com o pente na mão. Depois riu como se a proposta a divertisse:
¯ Inhô, não. Agora só cozinho pra meu homem e pra mim. Ele nem quer ouvir falar nisso.
A voz do homem vinha lá de dentro:
¯ Quem é, Mariazinha?
¯ Um doutor procurando cozinheira. Tá me oferecendo... Diz que paga bem...
¯ Diga a ele pra ir pro diabo que o carregue. Aqui não tem cozinheira nenhuma.
¯ O senhor tá vendo? Ele é assim: nem quer ouvir falar em me empregar. Ciumento... Por dá cá essa palha faz um fuzuê medonho... É sargento da polícia ¯ contava prazerosa como a mostrar quanto valia.
¯ O que é que tu ainda está dando prosa a estranho, mulher? Manda o homem embora antes que eu me zangue...
¯ É melhor vosmicê ir capando o gato...
Voltava a pentear os cabelos, procurando piolhos entre os fios, as pernas estendidas ao sol.
Nacib sacudiu os ombros:
¯ Não sabe de nenhuma?
Nem respondeu, apenas balançou a cabeça. Nacib desceu pela ladeira da Vitória, passou pelo cemitério. Lá embaixo a cidade brilhava ao sol, movimentada. O Ita, chegado pela manhãzinha, descarregava. Desgraça de terra: falava-se tanto em progresso e não se podia conseguir nem mesmo uma cozinheira.
¯ Por isso mesmo ¯ explicara-lhe João Fulgêncio quando o árabe parara na Papelaria Modelo para descansar ¯, a mão-de-obra torna-se difícil e cara com a procura. Quem sabe se na feira?
A feira semanal era uma festa. Ruidosa e colorida. Um vasto descampado em frente ao ancoradouro, estendendo-se até às proximidades da estrada de ferro. Postas de carne seca, de sol, de fumeiro, porcos, ovelhas, veados, pacas e cotias, caça diversa. Sacos de alva farinha de mandioca. Bananas cor de ouro, abóboras amarelas, verdes jilós, quiabos, laranjas. Nas barracas serviam, em pratos de flandres, sarapatel, feijoada, moqueca de peixe. Camponeses comiam, o copo de cachaça ao lado. Nacib informou-se ali. Uma negra gorda, um torso na cabeça, colares e pulseiras, torceu o nariz:
¯ Trabalhar pra patrão? Deus que me livre...
Pássaros de incrível plumagem, papagaios faladores.
¯ Quanto quer pelo louro, sinhá-dona?
¯ Oito mil-réis porque é pra vosmicê...
¯ Tão caro não pode ser.
¯ Mas é falador de verdade. Sabe cada palavrão...
O papagaio, como a provar, se esganiçava, cantava Aí, seu Mé. Nacib passou entre montanhas de requeijão, o sol brilhava sobre o amarelo das jacas maduras. O papagaio gritava:
¯ Tabaréu! Tabaréu! Ninguém sabia de cozinheira.
Um cego, a cuia no chão, contava na viola histórias dos tempos das lutas:
Amâncio, homem valente,
atirador de primeira.
Mais valente do que ele
só mesmo Juca Ferreira.
Em noite de escuridão
se encontraram na clareira.
¯ Quem vem lá? ¯ disse Ferreira.
¯ É homem. Não é bicho não.
Seu Amâncio respondera
com a mão na repetição.
Tremeram até os macacos
na noite de escuridão...
Os cegos, às vezes, eram bem informados. Não souberam dar notícias. Um deles, vindo do sertão, disse pestes da comida de Ilhéus. Não sabiam cozinhar, comida era a de Pernambuco, não aquela porcaria dali, ninguém sabia o que era bom.
Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam suas malas abertas, berliques e berloques, cortes baratos de chita, colares falsos e vistosos, anéis brilhantes de vidro, perfumes com nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo. Mulatas e negras, empregadas nas casas ricas, amontoavam-se ante as malas abertas:
¯ Compra, freguesa, compra. É baratinho... ¯ a pronúncia cômica, a voz, sedutora.
Longas negociações. Os colares sobre os peitos negros, as pulseiras nos braços mulatos, uma tentação! O vidro dos anéis faiscava ao sol que nem diamante.
¯ Tudo verdadeiro, do melhor.
Nacib interrompia a discussão dos preços, alguém sabia de uma boa cozinheira? Existia uma, muito boa, de forno e fogão, mas era empregada do comendador Domingos Ferreira, sim senhor. E vivia num trato, nem parecia, empregada...
O mascate estendia uns brincos a Nacib:
¯ Compra, patrício, presente pra mulher, pra noiva, pra rapariga. Nacib continuava seu caminho, indiferente a toda tentação. As negrinhas compravam por metade do preço, pelo duplo do valor.
Um camelô, com uma cobra mansa e um pequeno jacaré, anunciava a cura de todas as moléstias para um grupo a cercá-lo. Exibia um vidro contendo um remédio milagroso, descoberta dos índios nas selvas mais além dos cacauais.
¯ Cura tosse, resfriado, tísica, perebas, catapora, sarampo, bexiga brava, impaludismo, dor de cabeça, íngua, tudo que é doença feia, cura espinhela caída e reumatismo...
Por uma ninharia, mil e quinhentos réis, cedia aquele vidro de saúde. A cobra subia pelo braço do camelô, o jacaré no chão imóvel como uma pedra estranha. Nacib perguntava a uns e outros.
¯ Cozinheira, sei não sinhô. Um bom pedreiro, eu sei...
Bilhas de barro, moringas, potes para água fresca, panelas, cuscuzeiros, e cavalos, bois, cachorros, galos, jagunços com suas repetições, homens montados, soldados de policia e cenas de tocaia, de enterro e casamento, valendo um tostão, dois, um cruzado, obra das mãos toscas e sábias dos artesãos. Um negro quase tão alto quanto Nacib virava um copo de cachaça de um trago, cuspia grosso no chão:
¯ Pinga de primeira, Nosso Senhor Jesus Cristo seja louvado. Respondia à cansada pergunta:
¯ Não sei, não senhor. Tu sabe de alguma cozinheira, Pedro Paca? Aqui pro coronel...
O outro não sabia. Talvez no mercado dos escravos, só que agora não tinha mesmo ninguém, nenhuma leva de sertanejos recém-chegados.
Nacib nem se deu ao trabalho de ir ao mercado dos escravos, por detrás da estrada de ferro, onde se amontoavam os retirantes vindos do sertão, fugitivos da seca, em busca de trabalho. Ali os coronéis iam contratar trabalhadores e jagunços, as famílias procuravam empregadas. Mas não havia ninguém naqueles dias. Aconselharam-no dar uma busca no Pontal.
Pelo menos não tinha de subir ladeira. Tomou a canoa, atravessou o ancoradouro. Andou pelas poucas ruas de areia, sob o sol, onde crianças pobres jogavam futebol com bola de meia. Euclides, dono de uma padaria, tirou-lhe as esperanças.
¯ Cozinheira? Nem pense... Nem boa nem ruim. Na fábrica de chocolate ganham mais. Nem adianta procurar.
Voltou a Ilhéus, cansado e sonolento. A estas horas, o bar já devia estar aberto e, com o dia de feira, movimentado. Necessitando de sua presença, de suas atenções para com os fregueses, sua animação, sua prosa, sua simpatia. Os dois empregados ¯ uns palermas! ¯ sozinhos não davam conta. Mas, no Pontal, lhe haviam falado de uma velha que fora cozinheira apreciada, trabalhara em várias casas e vivia com uma filha casada, perto da praça Seabra.
Decidiu tentar a sorte:
¯ Depois vou pro bar...
A velha morrera há mais de seis meses, a filha quis lhe contar a história da doença, Nacib não tinha tempo de ouvir. Um desânimo o invadia, se pudesse ia era para casa, dormir. Entrou pela praça Seabra, onde ficava o Prédio da intendência e a sede do Clube Progresso. Ia ruminando suas tristezas quando deparou com o coronel Ramiro Bastos, sentado num banco, tomando sol, bem em frente ao palácio municipal. Parou para cumprimentá-lo, o coronel fê-lo sentar-se ao seu lado:
¯ Faz tempo que não lhe vejo, Nacib. E como vai o bar? Prosperando sempre? Assim desejo, pelo menos.
¯ Hoje me aconteceu uma, coronel!... Minha cozinheira foi embora. Já corri Ilhéus inteiro, fui até ao Pontal, e não se arranja quem saiba cozinhar..
¯ Fácil não é. Só mandando buscar fora. Ou nas roças...
¯ E com um jantar amanhã do russo Jacob...
¯ É verdade. Estou convidado, talvez vá.
O coronel sorria, contente do sol que brincava nos vidros das janelas da intendência e lhe esquentava o corpo fatigado.
DO DONO DA TERRA ENQUANTO SOL
Nacib não conseguiu despedir-se, o coronel Ramiro Bastos não deixou. E quem iria discutir uma ordem do coronel, mesmo quando ele a dava sorrindo, como a solicitar:
¯ Muito cedo. Vamos conversar um pouco.
Nos dias de sol, invariavelmente às dez horas, apoiando-se numa bengala de castão de ouro, o passo vagaroso mas ainda firme, o coronel Ramiro Bastos atravessava a rua, vindo de sua casa, entrava na praça da Intendência, sentava-se num banco.
¯ A cobra já veio esquentar sol... ¯ dizia o Capitão ao vê-lo da porta da Coletoria, em frente à Papelaria Modelo.
O coronel também o via, tirava o chapéu Panamá, balançava a cabeça de cabelos brancos. O Capitão respondia ao cumprimento, bem outro era seu desejo.
Aquele era o mais belo jardim da cidade. As más línguas diziam ter a intendência atenções especiais para com aquele logradouro devido à vizinhança da casa do coronel Ramiro. Mas a verdade é que na praça Seabra elevavam-se também o edifício da intendência, a sede do Progresso e o Cinema Vitória em cujo segundo andar residiam rapazes solteiros e funcionava numa sala de frente, o Grémio Rui Barbosa. Além de sobrados e casas, dos melhores da cidade. É natural que os poderes públicos cuidassem com especial carinho da praça. Fora ela ajardinada durante um dos períodos de governo do coronel Ramiro.
Naquele dia o velho estava satisfeito, conversador. Finalmente o sol havia reaparecido, o coronel Ramiro o sentia nas costas curvadas, nas mãos ossudas, dentro do coração também. Aos oitenta e dois anos de idade, aquele sol da manhã era sua diversão, seu luxo, sua melhor alegria. Por ocasião das chuvas sentia-se infeliz, ficava na sala de visitas, na sua cadeira austríaca, atendendo gente, ouvindo pedidos, prometendo soluções. Desfilavam dezenas de pessoas diariamente. Mas quando fazia sol, às dez horas, estivesse quem estivesse, ele se levantava, desculpava-se, tomava da bengala, vinha para a praça. Sentava-se num banco do jardim, não tardava a aparecer alguém para fazer-lhe companhia. Seus olhos passeavam pela praça, pousavam no edifício da intendência. O coronel Ramiro Bastos contemplava tudo aquilo como se fosse propriedade sua. E assim o era um pouco, pois ele e os seus governavam Ilhéus há muitos anos.
Era um velho seco, resistente à idade. Seus olhos pequenos conservavam um brilho de comando, de homem acostumado a dar ordens. Sendo um dos grandes fazendeiros da região, fizera-se chefe político respeitado e temido. O poder viera às suas mãos durante as lutas pela posse da terra, quando o poderio de Cazuza de Oliveira desmoronou-se. Apoiara o velho Seabra, esse entregou-lhe a região. Fora duas vezes intendente, era agora senador estadual. De dois em dois anos mudava o intendente, em eleições a bico de pena, mas nada mudava em realidade, pois quem continuava a mandar era mesmo o coronel Ramiro, cujo retrato de corpo inteiro se podia ver no salão nobre da intendência, onde se realizavam conferências e festas. Amigos incondicionais ou parentes seus revezavam-se no cargo, não moviam uma palha sem sua aprovação. Seu filho, médico de crianças e deputado estadual, deixara fama de bom administrador. Abrira ruas e praças. Plantara jardins, durante sua gestão a cidade começara a mudar de fisionomia. Falava-se ter assim sucedido para facilitar a eleição do rapaz à Câmara Estadual. A verdade, porém, é que o coronel Ramiro amava a cidade à sua maneira, como amava o jardim de sua casa, o pomar de sua fazenda. Nos jardins de sua casa plantara até macieiras e pereiras, mudas vindas da Europa. Gostava, de ver a cidade limpa (e para isso fizera a intendência adquirir caminhões), calçada, ajardinada, com bom serviço de esgotos. Animava as construções de boas casas, alegrava-se quando os forasteiros falavam da graça de Ilhéus, com suas praças e jardins. Mantinha-se, por outro lado, obstinadamente surdo a certos problemas, a reclamações diversas: criação de hospitais, fundação de um ginásio municipal, abertura de estradas para o interior, construção de campos de esportes. Torcia o nariz ao Clube Progresso e nem queria ouvir falar de dragagem, da barra. Cuidava de tais coisas quando não tinha jeito, quando sentia abalar-se seu prestígio. Assim fôra com a estrada de rodagem, obra das duas intendências, a de Ilhéus, a de Itabuna. Olhava com desconfiança certos empreendimentos, e, sobretudo, certos hábitos novos. E como a oposição estava reduzida a um pequeno grupo de descontentes sem força e sem maior expressão, o coronel fazia quase sempre o que queria, com um supremo desprezo pela opinião pública. No entanto, apesar de sua teimosia, nos últimos tempos sentia seu indiscutível prestígio, sua palavra como lei, um tanto quanto abalados. Não pela oposição, gente sem conceito. Mas pelo próprio crescimento da cidade e da região, que às vezes parecia querer escapar de suas mãos agora trêmulas. Suas próprias netas não, o criticavam porque ele fizera a intendência negar uma ajuda de custo ao Clube Progresso? E o jornal de Clóvis Costa não ousara discutir o problema do ginásio? Ele ouvira a conversa das netas: Vovô é um retrógrado!
Ele compreendia, aceitava os cabarés, as casas de mulheres da vida, a orgia, desenfreada das noites de Ilhéus. Os homens precisavam daquilo, ele também fôra jovem. O que não entendia era clube para rapazes e moças conversarem até altas horas, dançarem essas tais danças modernas, onde até mulheres casadas iam rodopiar em outros braços que não os de seus maridos, uma indecência! Mulher é para viver dentro de casa, cuidando dos filhos e do lar. Moça solteira é para esperar marido, sabendo coser, tocar piano, dirigir a cozinha. Não pudera impedir a fundação do clube, bem se esforçara. Esse Mundinho Falcão, vindo do Rio, escapava ao seu controle, não vinha visitá-lo nem consultá-lo, decidia por sua própria conta, ia fazendo o que bem entendia. O coronel sentia obscuramente ser o exportador um inimigo, ainda lhe daria dor de cabeça. Na aparência mantinham ótimas relações. Quando se encontravam, o que sucedia raramente, trocavam palavras gentis, protestos de amizade, punham-se à disposição um do outro. Mas esse tal Mundinho começava a meter o bico em todas as coisas, era cada vez maior o número de pessoas a cercá-lo, ele falava de Ilhéus, sua vida, seu progresso, como se aquilo fosse assunto seu, de sua alçada, como se tivesse alguma autoridade. Era homem de família do sul do país, acostumada a mandar, seus irmãos tinham prestígio e dinheiro. Para ele, era como se o coronel Ramiro não existisse. Não fôra assim que agira quando resolvera abrir a avenida na praia? Aparecera de súbito na intendência com as plantas, dono dos terrenos, os planos completos.
Nacib lhe dava as notícias mais recentes, o coronel já tinha sabido do encalhe do Ita.
¯ Mundinho Falcão chegou nele. Disse que o caso da barra...
¯ Forasteiro... ¯ atalhou o coronel. ¯ Que diabo veio buscar em Ilhéus onde não perdeu nada? ¯ era aquela voz dura do homem que tocara fogo em fazendas, invadira povoados, liquidara gente, sem piedade. Nacib estremeceu.
¯ Forasteiro...
Como se Ilhéus não fosse uma terra de forasteiros, de gente vinda de toda parte. Mas era diferente. Os outros chegavam modestamente, curvavam-se logo à autoridade dos Bastos, queriam apenas ganhar dinheiro, estabelecer-se, entrar pelas matas. Não se metiam a cuidar do progresso da cidade e da região, a decidir sobre as necessidades de Ilhéus. Uns meses antes, o coronel Ramiro Bastos fora procurado por Clóvis Costa, dono de um semanário. Queria organizar uma sociedade para lançar um jornal diário. Já tinha máquinas em vista, na Bahia, precisava de capital. Dera-lhe longas explicações: um jornal diário significava um novo passo no progresso de Ilhéus, seria o primeiro do interior do estado. Pretendia o jornalista levantar dinheiro entre os fazendeiros, seriam todos sócios do jornal, órgão a serviço da defesa dos interesses da região cacaueira. A Ramiro Bastos a idéia não agradou. Defesa contra quem ou contra quê? Quem ameaçava Ilhéus? O governo, por acaso? A oposição era coisa à toa, desprezível. Jornal diário parecia-lhe luxo supérfluo. Se precisasse dele para qualquer outra coisa, às ordens. Para jornal diário, não...
Clóvis saíra desanimado, queixara-se a Tonico Bastos, o outro filho do coronel, tabelião da cidade. Poderia obter um pouco de dinheiro com um ou outro fazendeiro. Mas a recusa de Ramiro significava a da maioria. Iriam perguntar-lhe, quando ele lhes falasse:
¯ O coronel Ramiro quanto assinou?
O coronel não pensou mais no assunto. Essa coisa de jornal diário era um perigo. Bastava não satisfazer um dia um pedido de Clóvis para ter o jornal fazendo oposição, metendo-se nos negócios municipais, esmiuçando, arrastando reputações na lama. Com sua recusa botara de vez uma pedra em cima da idéia. Foi o que disse a Tonico quando este, à noite, veio lhe falar no caso, relatando as queixas de Clóvis:
¯ Tu precisa de jornal diário? Eu também não. Então Ilhéus não precisa; e falou de outra coisa.
Qual não foi sua surpresa ao ver, nos postes da praça e nas paredes, dias depois, anúncios do próximo aparecimento do jornal. Mandou chamar Tonico:
¯ Que história é essa de jornal?
¯ De Clóvis?
¯ Sim. Tem uns papéis dizendo que vai sair.
¯ As máquinas já chegaram e estão sendo montadas.
¯ Como é isso? Neguei meu apoio. Onde ele achou dinheiro? Na Bahia?
¯ Aqui mesmo, pai. Mundinho Falcão...
E quem animara a fundação do Clube Progresso, quem dera dinheiro aos rapazes do comércio para fundar os clubes de futebol? A sombra de Mundinho Falcão projetava-se por toda parte. Seu nome soava cada vez mais insistentemente nos ouvidos do coronel. Ainda agora o árabe Nacib falava nele, em sua chegada a anunciar a vinda de engenheiros do Ministério da Viação para; estudar o caso da barra. Quem lhe encomendara engenheiros, quem lhe entregara a solução dos problemas da cidade? Desde quando ele era autoridade?
¯ Quem deu essa comissão a ele? ¯ a voz brusca do velho interrogava Nacib como se este tivesse alguma responsabilidade.
¯ Ah, isso lá não sei... Estou vendendo o peixe pelo preço que comprei...
As flores coloridas do jardim brilham à luz do dia esplêndido, pássaros trinam nas árvores em torno. O coronel fecha a cara, Nacib não tem coragem de despedir-se. O velho está zangado, de repente começa a falar. Se pensam que ele está acabado, estão enganados. Ainda não morreu nem é um inútil. Querem luta? Pois vamos lutar, que outra coisa ele fez na vida? Como plantou suas roças, marcou os amplos limites de suas fazendas, construiu seu poder? Não foi herdando de parentes, crescendo à sombra de irmãos, nas grandes capitais, como esse Mundinho Falcão... Como liquidara os adversários políticos? Foi rompendo a mata, o parabelum na mão, os jagunços a segui-lo. Qualquer ilheense de mais idade poderá contar. Ninguém esqueceu ainda essas histórias. Esse Mundinho Falcão está muito enganado, veio de fora, não conhece as histórias de Ilhéus, era melhor primeiro se informar...
O coronel bate com o bico da bengala no cimento do passeio, Nacib escuta em silêncio.
A voz cordial do professor Josué o interrompe:
¯ Bom dia, coronel. Tomando sol?
O coronel sorri, estende a mão ao jovem:
¯ Conversando aqui com o amigo Nacib. Sente-se - faz lugar no banco. ¯ Na minha idade tudo que resta é tomar sol...
¯ Ora, coronel, poucos moços valem o senhor.
¯ Pois eu estava dizendo a Nacib que ainda não estou enterrado. Tem quem pense por aí que não valho mais nada...
¯ Ninguém pensa isso, coronel ¯ disse Nacib.
Ramiro Bastos mudava de assunto, perguntava a Josué:
¯ Como vai o colégio de Enoch? ¯ Josué era professor e subdiretor do colégio.
¯ Vai bem, muito bem. Foi equiparado. Ilhéus já tem seu ginásio. Uma grande notícia.
¯ Já foi equiparado? Não sabia... O governador mandou me dizer que só podia ser no princípio do ano. Que o ministério não podia fazer antes, era proibido. Eu me interessei muito pelo caso.
¯ Realmente, coronel, as equiparações, em princípio, são feitas sempre no começo do ano, antes do início das aulas. Mas Enoch pediu a Mundinho Falcão quando ele foi pro Rio...
¯ Ah!
¯ ... e ele obteve do ministro uma exceção. Já para os exames deste ano o colégio terá fiscal federal. É uma grande notícia para Ilhéus...
¯ Não há duvida... Não há dúvida...
O jovem professor continuava a falar, Nacib aproveitava para despedir-se, o coronel nem os ouvia. Seu pensamento estava longe. Que diabo fazia seu filho Alfredo, na Bahia? Deputado estadual, entrando em palácio e falando com o governador a qualquer hora, que diabo fazia? Não havia ele mandado pedir a equiparação do colégio? A ele, e mais ninguém, deveriam Enoch e a cidade a equiparação do colégio se o governador, pressionado por Alfredo, houvesse realmente se interessado. Ele, Ramiro, quase não ia ultimamente à Bahia, às sessões do Senado, a viagem era um sacrifício. E o resultado aí estava: seus pedidos ao governo dormiam nos ministérios, arrastavam-se nos caminhos normais da burocracia, enquanto que... O colégio seria equiparado sem falta no começo do ano, mandara dizer-lhe o governador como se estivesse atendendo pressurosamente seu pedido. E ele ficara contente, dera a notícia a Enoch, sublinhando a presteza com que o governo respondera à sua solicitação.
¯ Para o ano seu colégio terá fiscalização federal.
Enoch agradecera, mas lastimara:
- Pena não ter obtido agora mesmo, coronel. Vamos perder um ano, muitos meninos irão para a Bahia.
¯ Fora do prazo, meu caro. No meio do ano, a equiparação é impossível. Mas, é só esperar um pouco.
E agora, de repente, essa notícia. O colégio equiparado fora do prazo por, obra e graça de Mundinho Falcão. Iria à Bahia, o governador ouviria poucas e boas... Não era homem com quem se brincasse, com cujo prestígio se pudesse jogar. Também que diabo fazia seu filho na Câmara Estadual? O rapaz não tinha mesmo jeito para político, era bom médico, bom administrador, mas era mole, não saíra a ele, não sabia impor. O outro, Tonico, só pensava em mulheres, não queria saber de mais nada... Josué despedia-se.
¯ Até logo, meu filho. Diga a Enoch que eu mando meus parabéns. Eu estava esperando a notícia a qualquer momento...
Ficou outra vez sozinho na praça. Não sentia mais a alegria do sol, seu rosto ensombrecera-se. Pensava nos tempos de antes, quando essas coisas eram fáceis de resolver. Quando alguém se fazia incômodo bastava chamar um cabra prometer-lhe um dinheiro, dizer-lhe o nome do cujo. Hoje era diferente. Mas esse Mundinho Falcão se enganava. Ilhéus mudara muito nesses anos, é bem verdade. O coronel Ramiro buscava compreender essa nova vida, esse Ilhéus nascendo daquele outro que fora o seu. Pensara tê-lo compreendido, sentido seus problemas, suas necessidades. Não embelezara a cidade, não construíra praças e jardins, não calçara ruas, não abrira até a estrada de rodagem, apesar de seus compromissos com os ingleses da estrada de ferro? Por que então, assim de repente, a cidade parecia fugir de suas mãos? Por que começavam todos a fazer, o que queriam, por conta própria, sem o ouvir, sem esperar que ele desse ordens? Que estava acontecendo em Ilhéus que ele já não compreendia e já não comandava?
Não era homem de deixar-se vencer sem luta. Aquela era sua terra, ninguém fizera mais por ela que Ramiro Bastos, ninguém iria arrebatar-lhe o bastão de comando, fosse quem fosse. Sentia um novo tempo de luta aproximar-se. Diferente daquele de outrora, mais difícil talvez. Levantou-se, erguia-se como se pouco sentisse o peso dos anos. Podia estar velho, mas ainda não estava enterrado e enquanto vivesse era ele quem mandava ali. Deixou o jardim, atravessou para o palácio. O soldado de polícia, postado na porta, bateu-lhe continência. O coronel Ramiro Bastos sorriu.
DA CONSPIRAÇÃO POLÍTICA
Na mesma hora em que o coronel Ramiro Bastos penetrava no edifício da intendência e o árabe Nacib chegava ao Bar Vesúvio sem ter encontrado cozinheira, em sua casa na praia Mundinho narrava ao Capitão:
¯ Uma batalha, meu caro. Não foi nada fácil.
Empurrou a xícara, estirou as pernas, espreguiçou-se na cadeira. Estivera rapidamente no escritório, arrastara o amigo para conversar em casa a pretexto de lhe contar as novidades. O Capitão saboreou um gole de café, quis saber detalhes:
¯ Mas, de onde vem toda essa resistência? Afinal, Ilhéus não é um povoado qualquer. Um município que rende mais de mil contos.
¯ Ora, meu caro, um ministro não é todo-poderoso. Tem que atender aos interesses dos governadores. E o governo da Bahia quer ouvir falar de tudo menos da barra de Ilhéus. Cada saco de cacau que sai do porto da Bahia significa dinheiro para as docas de lá. E o genro do governador é ligado ao pessoal das docas. O ministro me disse: seu Mundinho, você vai me deixar mal com o governador da Bahia.
¯ Uma indecência esse genro. É isso que os coronéis não querem compreender. Ainda hoje estávamos discutindo enquanto o Ita desencalhava. Eles apóiam um governo que tira tudo de Ilhéus e não, nos dá nada.
¯ Ao contrário... Os políticos daqui também não se mexem.
¯ Pois é: põem dificuldades a obras indispensáveis à cidade. Uma estupidez sem nome. Ramiro Bastos cruza os braços, não tem visão, os coronéis o acompanham.
A pressa que assaltara Mundinho no escritório, fazendo-o deixar os fregueses, transferindo para a tarde importantes encontros comerciais, desaparecia agora, ao perceber a impaciência do Capitão. Era preciso deixar que o outro lhe oferecesse a chefia política, devia fazer-se rogado, tomado de surpresa, solicitado. Levantou-se, andou até a janela, contemplou o mar rebentando na praia, o dia de sol:
¯ Por vezes pergunto a mim mesmo, Capitão, por que diabo vim me meter aqui? Afinal podia estar gozando a vida, no Rio e em São Paulo. Ainda agora meu irmão Emílio, o deputado, me perguntou: ainda não te cansaste dessa loucura de Ilhéus? Não sei o que te deu para te meteres nesse buraco. Você sabe que minha família negocia com café, não sabe? Há muitos anos...
Tamborilava com os dedos na janela, olhava para o Capitão:
¯ Não pense que me queixo, cacau é bom negócio. Ótimo. Mas não se pode comparar a vida daqui com a do Rio. No entanto, não quero voltar. E sabe por quê?
O Capitão gozava aquela hora de intimidade com o exportador, sentia-se vaidoso daquela amizade importante:
¯ Confesso minha curiosidade. Que não é só minha, é de todo mundo. ¯ Porque você veio para aqui, eis um dos mistérios da terra...
¯ Porque vim, não tem importância. Porque fiquei, essa a pergunta a fazer. Quando desembarquei aqui e me hospedei no Hotel Coelho, no primeiro dia tive vontade de sentar no passeio e começar a chorar.
¯ Esse atraso todo...
¯ Pois bem: creio que foi isso mesmo que me prendeu. Exata-mente isso... Uma terra nova, rica, onde tudo está por fazer, onde tudo está começando. O que está feito em geral é ruim, é preciso mudar. É, por assim dizer, uma civilização a construir.
¯ Uma civilização a construir, bem dito... ¯ o Capitão apoiava. ¯ Antigamente, no tempo dos barulhos, se dizia que quem chegava a Ilhéus não partia nunca mais. Os pés grudavam no mel do cacau, ficavam presos para sempre. Você nunca ouviu falar?
¯ Já. Mas, como sou exportador e não fazendeiro, creio que meus pés ficaram presos foi na lama das ruas. Deu-me vontade de ficar para construir alguma coisa. Não sei se você me compreende.
¯ Perfeitamente.
¯ É claro que se não ganhasse dinheiro, se cacau não fosse o bom negócio que é, não ficaria. Mas só isso não era suficiente para prender-me. Creio que tenho alma de pioneiro ¯ riu.
¯ Por isso você se mete em tanta coisa? Compreendo... Compra terrenos, abre ruas, constrói casas, bota dinheiro nos negócios mais diferentes...
O Capitão foi enumerando e ao mesmo tempo dava-se conta da extensão dos negócios de Mundinho, de como o exportador estava presente em quase tudo que se fazia em Ilhéus: a instalação de novas filiais de bancos, a empresa de ônibus, a avenida na praia, o jornal diário, os técnicos vindos para a poda do cacau, o arquiteto maluco que construíra sua casa e agora estava na moda, sobrecarregado de trabalho.
¯ ... até artista de teatro você traz... ¯ concluiu rindo corri a alusão à bailarina chegada no Ita, pela manhã.
¯ Bonita, hein? Coitados! Encontrei os dois no Rio sem saber o que fazer. Queriam viajar mas não tinham dinheiro sequer para as passagens. Virei empresário...
¯ Nessas condições, meu caro, não é vantagem. Até eu viraria. O marido parece ser da confraria...
¯ Que confraria?
¯ A de São Cornélio, a ilustre confraria dos maridos conformados, os naturais de bom gênio...
Mundinho fez um gesto com a mão:
¯ Qual.... Nem são casados, essa gente não se casa. Vivem juntos mas cada um para seu lado. O que é que você pensa que ela faz quando não tem onde dançar? Para mim, foi uma diversão para quebrar a monotonia da viagem. E acabou-se. Está à disposição de vocês. Ali é só pagar, meu caro.
¯ Os coronéis vão perder a cabeça... Mas não conte que não são casados. O ideal de cada coronel é dormir com mulher casada. Só que, se alguém quiser dormir com a deles, aí... Mas, voltando ao caso da barra... Você está mesmo disposto a levar a coisa adiante?
¯ Para mim agora é uma questão pessoal. No Rio, entrei em contato com uma companhia de cargueiros suecos. Estão dispostos a estabelecer uma linha direta para Ilhéus. Assim que a barra esteja em condições de dar passagem a navios de certo calado.
O Capitão ouvia atento, ruminando certas idéias a persegui-lo há muito, certos planos políticos. Chegara a hora de pô-los em execução. A vinda de Mundinho para Ilhéus fora uma bênção dos céus. Mas como receberia ele tais propostas? Era preciso ir com cuidado, ganhar sua confiança, convencê-lo. Mundinho sentia-se enternecido com a admiração do outro, estava em veia de confidência, deixava-se levar:
¯ Olhe, Capitão, quando eu vim para aqui... ¯ silenciou um instante como a duvidar se valia a pena falar ¯ ...vim meio fugido ¯ novo silêncio. ¯ Não da polícia! De uma mulher. Um dia eu lhe conto a história toda, hoje não. Você sabe o que é paixão? Mais do que paixão, loucura? Por isso eu vim. Larguei tudo. Já tinham me falado de Ilhéus, do cacau. Vim para ver como era, nunca mais fui embora. O resto você sabe: a firma exportadora, minha vida aqui, as boas amizades que fiz, o entusiasmo que tenho pela terra. Não é só pelos negócios, pelo dinheiro, você compreende? Podia ganhar tanto ou mais exportando café. Mas aqui estou fazendo alguma coisa, sou alguém, sabe? Faço com minhas mãos... ¯ e olhava as mão bem tratadas, finas, de unhas manicuradas como as de uma mulher.
¯ Sobre isso quero lhe falar...
¯ Espere. Deixe eu acabar. Vim por motivos íntimos, fugindo. Mas, se fiquei foi por causa de meus irmãos. Sou o mais moço dos três, o caçula, muito mais moço, nasci fora de tempo. Tudo já estava feito, eu não precisava me esforçar para nada. Era deixar as coisas correrem. Apenas eu era sempre o terceiro. Primeiro os outros dois. Não me servia.
O Capitão nadava em gozo, aquelas confidências chegavam na hora justa. Fizera-se amigo de Mundinho Falcão, apenas o exportador chegara a Ilhéus, devido à fundação da nova casa exportadora. Era o coletor federal, coube-lhe orientar o capitalista. Passaram a andar juntos, servia-lhe de cicerone. Levou-o à fazenda de Ribeirinho, a Itabuna, a Pirangi, a Água Preta, explicou-lhe os costumes da terra, recomendou-lhe até mulheres. Mundinho, por sua vez, era homem sem pose, cordial, de camaradagem fácil. O Capitão sentira-se a princípio apenas orgulhoso da intimidade daquele ricaço vindo do sul, de família importante nos negócios e na política, irmão deputado, parentes na diplomacia. O mais velho tinha sido até falado para ministro da Fazenda. Só depois, com o correr dos tempos e a múltipla atividade de Mundinho, começara a cogitar e a planejar: era o homem para se opor aos Bastos, para derrubá-los...
¯ Fui menino mimado. Na firma não tinha nada a fazer, os manos resolviam tudo. Homem feito, para eles eu era um menino. Deixavam que eu me divertisse, depois chegaria minha vez, minha hora de responsabilidade, como dizia Lourival... ¯ seu rosto fechava-se ao falar do irmão mais velho. Você compreende? Cansei-me de não fazer nada, de ser o irmão mais moço. Talvez não reagisse nunca, fosse ficando naquela moleza, na boa vida. Aí apareceu a tal mulher.. Uma coisa sem solução... ¯ seus olhos agora estavam voltados para o mar, ante a janela aberta, mas fitavam além do horizonte, lembranças e figuras que só ele enxergava.
¯ Bonita?
Mundinho Falcão teve um breve riso:
¯ Bonita é insulto falando dela. Sabe o que é beleza, Capitão? Tudo perfeito? Uma mulher assim não se chama de bonita.
Passou a mão sobre o rosto a desfazer visões:
¯ Enfim... No fundo, estou contente. Hoje não sou mais o irmão de Lourival, de Emílio Mendes Falcão. Sou eu mesmo. Essa é minha terra, tenho minha firma e vou, seu Capitão, virar esse Ilhéus pelo avesso, fazer disso aqui uma...
¯ ... uma capital como ainda hoje dizia o Doutor... ¯ interrompeu o Capitão.
¯ Desta vez meus irmãos já me olharam de outra forma. Já perderam a esperança de me ver voltar fracassado, de cabeça baixa. A verdade é que não estou indo tão mal assim, hein?
¯ Mal? Puxa, você chegou outro dia e já é o primeiro exportador de cacau.
¯ Ainda não. Os Kaufmann exportam mais. Stevenson também. Mas passarei à frente dele. Porém, o que me prende é essa terra começando, esse princípio de tudo. Com tudo por fazer e eu podendo fazer tudo isso. Pelo menos - corrigiu-se - ajudar a fazer. É estimulante para um homem como eu.
¯ Você sabe o que andam dizendo por aí? ¯ o Capitão levantava-se, atravessava a sala, chegara o momento.
¯ O quê? ¯ Mundinho esperava, adivinhava as palavras do outro.
¯ Que você tem ambições políticas. Ainda hoje...
¯ Ambições políticas? Nunca pensei, pelo menos a sério. Tenho pensado em ganhar dinheiro e estimular o progresso da terra.
¯ Tudo isso é muito bonito, fica-lhe muito bem. Porém você não vai conseguir fazer nem metade do que pensa enquanto não se meter em política, não modificar a situação aqui existente. Como? ¯ as cartas estavam na mesa, o jogo começara.
¯ Você mesmo disse: o ministro tem de atender ao governador. O governo não tem interesse, os políticos daqui são umas zebras. Os coronéis não enxergam um plano adiante do nariz. Para eles, é plantar e colher cacau. O resto não interessa. Elegem uns idiotas para a Câmara, votam em quem Ramiro Bastos ordena. A intendência vai das mãos de um filho para as de um compadre de Ramiro.
¯ Mas o coronel sempre faz alguma coisa...
¯ Calça ruas abre praças, planta flores. E fica nisso. Estradas? Nem pensar. Já construir a estrada de rodagem para Itabuna foi uma luta. Que tinha compromisso com os ingleses da estrada de ferro, patati, patatá... A barra? Tem compromissos com o governador.. Como se Ilhéus houvesse parado há vinte anos...
Agora era Mundinho quem ouvia em silêncio. O Capitão falava com um acento de paixão, querendo convencer. Mundinho pensava: ele tinha razão, as necessidades dos coronéis já não correspondiam às da terra em rápido progresso.
¯ Você não deixa de ter razão...
¯ É claro que tenho ¯ bateu no ombro do exportador. ¯ Meu caro, mesmo que você não quisesse não tinha outro jeito senão meter-se em política...
¯ E por quê?
¯ Porque Ilhéus exige, seus amigos, o povo!
O Capitão falara solene, estendera o braço como se estivesse discursando. Mundinho Falcão acendeu um cigarro:
¯ É uma coisa a pensar... ¯ e via-se chegando à Câmara Federal, eleito deputado pela terra do cacau, assim como dissera a Emílio.
¯ Você nem imagina... ¯ o Capitão voltava a sentar-se, satisfeito consigo mesmo. ¯ Não se fala noutra coisa. Todos os que se interessam pelo progresso de Ilhéus, de Itabuna, da zona toda. Tanta gente, você nem pode calcular.
¯ É uma coisa a discutir-se, não digo sim nem não. Não quero me meter numa aventura ridícula.
¯ Aventura? Se eu lhe disser que vai ser fácil, que não vai haver luta, estarei lhe mentindo. Vai ser uma dureza, não há dúvida. Mas uma coisa é certa: podemos ganhar longe.
¯ É uma coisa a pensar... ¯ repetiu Mundinho Falcão.
O Capitão sorriu, Mundinho estava interessado, daí a comprometer-se era um passo. E, em Ilhéus, apenas Mundinho Falcão, ele e mais ninguém, podia fazer frente ao poder do coronel Ramiro Bastos, apenas ele podia vingar o Capitão. Os Bastos não haviam desbancado o velho Cazuzinha, levando-o a arruinar-se em inglória luta política, deixando o Capitão sem vintém a herdar, na dependência de emprego público?
Mundinho Falcão sorriu, o Capitão ali estava a oferecer-lhe o poder, ou, pelo menos, os meios de alcançá-lo. Como ele desejava.
¯ Coisa a pensar? As eleições se aproximam. É a começar imediatamente.
¯ Você pensa mesmo que encontraria apoio, gente disposta a marchar comigo?
¯ É só você se dispor. Veja: essa história da barra pode ser decisiva. É uma coisa que bole com o povo todo. E não só daqui. De Itabuna, de Itapira, de todo o interior. Você verá: a chegada do engenheiro vai ser uma sensação.
¯ E depois do engenheiro, virão as dragas, os rebocadores...
¯ E a quem Ilhéus deve tudo isso? Você já viu o trunfo que tem na mão, melhor do que baralho marcado. Sabe qual a primeira providência a tomar?
¯ Qual?
¯ Uma série de artigos no Diário desmascarando o governo, a intendência, mostrando a importância do caso da barra. Veja você: até jornal nós temos.
¯ Bem, não é meu. Botei dinheiro para ajudar, mas Clóvis Costa não tem nenhum compromisso comigo. Creio que é amigo dos Bastos. Pelo menos Tonico, andam juntos...
¯ Amigo de quem lhe pagar melhor. Deixe ele por minha conta.
O exportador quis aparentar uma última vacilação:
¯ Valerá mesmo a pena? Política é sempre tão suja... Mas, se é para o bem da terra... ¯ sentia-se levemente ridículo. ¯ Talvez seja divertido ¯ emendou.
¯ Meu caro, se você quer realizar seus projetos, servir a Ilhéus, não tem outro jeito. Idealismo só não basta.
¯ Lá isso é verdade...
Batiam palmas na porta, a empregada ia abrir. A figura inconfundível do Doutor exclamava:
¯ Fui ao seu escritório, dar-lhe as boas-vindas. Não o encontrei, aqui vim para cumprimentá-lo ¯ suava sob o colarinho de bunda virada, a camisa peito engomado.
O Capitão apressou-se:
¯ Que me diz, Doutor, de termos Mundinho Falcão candidato nas próximas eleições?
O Doutor ergueu os braços:
¯ Grande notícia! Sensacional! - voltava-se para o exportador. - Se para alguma coisa podem servir-lhe os meus modestos préstimos...
O Capitão olhou para Mundinho como a dizer-lhe: Viu que eu não mentia? Os melhores homens de Ilhéus...
¯ Mas ainda é segredo, Doutor.
Sentaram-se os três, o Capitão começou a explicar o mecanismo político da terra, as ligações entre os donos de votos, os interesses em jogo. O dr. Ezequiel Prado, por exemplo, homem de tantos amigos entre os fazendeiros, estava descontente com os Bastos, não o haviam feito presidente do Conselho Municipal...
DA ARTE DE FALAR DA VIDA ALHEIA
Nacib arregaçou as mangas da camisa, examinou a freguesia. Quase toda ela constituída àquela hora por gente estranha, de passagem na cidade devido à feira. Havia também alguns passageiros do Ita, em trânsito para os portos do Norte, era ainda cedo para os fregueses habituais. Segurou Bico-Fino, tirou-lhe a garrafa da mão:
¯ Que quer dizer isso? ¯ era uma garrafa de conhaque português. ¯ Onde já se viu? ¯ andava com o empregado para o balcão. ¯ Servir a esses tabaréus conhaque verdadeiro... ¯ tomava de outra garrafa, o mesmo rótulo, a mesma aparência, apenas nela misturavam-se o conhaque português e o nacional, receitas do árabe para aumentar os lucros.
¯ Não é para eles não, seu Nacib. É pro pessoal do navio.
¯ E daí? São melhores que os outros?
O conhaque puro, o vermute sem mistura, o porto e o madeira sem batismo, eram reservados para a freguesia certa, os de todos os dias, os amigos. Não podia afastar-se do bar, os empregados começavam logo a meter os pés pelas mãos, se ele não estivesse presente acabaria perdendo dinheiro. Abriu a caixa registradora. Aquele ia ser um dia de muito movimento! De muitos comentários também. A viagem de Filomena não lhe causava apenas prejuízo material e canseira. Tirava-lhe também a paz do espírito, impedia-o de voltar-se por inteiro para as múltiplas novidades, para tanta coisa a comentar quando os amigos chegassem. Novidades a granel, e, na opinião de Nacib, nada mais gostoso ¯ só mesmo comida ou mulher ¯ do que comentar novidades, especular sobre elas. Falar da vida alheia era a arte suprema, o supremo deleite da cidade. Arte levada a incríveis refinamentos pelas solteironas. Está reunido o Congresso das Línguas Viperinas, dizia João Fulgêncio ao vê-las, em frente à igreja, na hora da bênção. Mas não era na Papelaria Modelo, onde João Fulgêncio imperava entre livros, cadernos, lápis, canetas, que se reuniam, os talentos locais, línguas tão afiadas quanto as das solteironas? Ali e nos bares, junto às pontes do cais, nas rodas de pôquer, em toda a parte: falava-se da vida alheia, glosavam-se os acontecimentos. Uma vez foram dizer a Nhô-Galo, andarem comentando suas aventuras em casas de mulheres. Respondeu com sua voz fanhosa:
¯ Meu filho, não me importo. Sei que falam de mim, fala-se de todo mundo. Apenas esforço-me, como bom patriota, para lhes dar assunto.
Era a diversão principal da cidade. E, como nem todos possuíam o bom humor de Nhô-Galo, por vezes havia bofetadas nos bares, exaltados a exigir explicações, sacando revólveres. Não era, assim, uma arte gratuita, sem perigo.
Naquele dia havia muito a comentar: primeiro o caso da barra, assunto, complexo, envolvendo uma diversidade de detalhes, tais como o encalhe do Ita, a vinda do engenheiro, a atividade de Mundinho Falcão (Que é que ele está querendo?, perguntava o coronel Manuel das Onças), a violenta irritação do coronel Ramiro, Bastos. Só esse complicado assunto bastaria para apaixonar. Mas como esquecer o casal de artistas, a mulher formosa e o Príncipe de meia-tigela, com sua cara de rato esfomeado? Assunto delicado e delicioso, daria lugar às piadas do Capitão e de João Fulgêncio, a sarcásticos comentários de Nhô-Galo, a gostosas gargalhadas. Tonico Bastos não tardaria a estar, rondando a dançarina, mas desta vez teria Mundinho Falcão pela frente. Não fôra certamente por amor às suas danças que o exportador a trouxera, rebocando o marido de piteira, pagando certamente as passagens. Havia o jantar do dia seguinte, da empresa de ônibus. Saber os motivos por que tal e qual não haviam sido convidados. E as novas mulheres do cabaré, a noite com Risoleta...
Nem de propósito, Nhô-Galo entrava no bar. Não era sua hora, devia estar, na mesa de rendas:
¯ Fiz a besteira de voltar pra casa depois da chegada do Ita, dormi até agora. Me dá um trago, vou trabalhar.
Serviu-lhe a mistura habitual de vermute e cachaça.
¯ E a zarolha, hein? - Nhô-Galo ria. ¯ Você ontem estava grandioso, árabe, grandioso! ¯ afirmava depois, na constatação de um fato: ¯ O mulherio aqui está melhorando, não há dúvida.
¯ Nunca vi mulher tão sabida... ¯ Nacib sussurrava detalhes.
¯ Não me diga, senhor!
O negrinho Tuísca chegava com sua caixa de engraxate, trazia um recado das irmãs Dos Reis: estava tudo em ordem, Nacib podia ficar descansado. À tarde mandariam dois tabuleiros.
¯ Por falar em tabuleiro, me serve alguma coisa pra acompanhar. Um tira-gosto qualquer.
¯ Não tá vendo que não tem? Só de tarde. Minha cozinheira foi embora.
Nhô-Galo fez-se engraçado:
¯ Por que você não contrata Machadinho ou Miss Pirangi?
Tratava-se dos dois invertidos oficiais da cidade. O mulato Machadinho sempre limpo e bem arrumado, lavadeira de profissão, em cujas mãos delicadas as famílias entregavam os ternos de linho, de brim branco HJ, as camisas finas, os colarinhos duros. E um negro medonho, servente na pensão Caetano, cujo vulto era visto à noite na praia, em busca viciosa. Os moleques atiravam-lhe pedras, gritavam-lhe o apelido: Miss Pirangi! Miss Pirangi!
Nacib danava-se com o conselho motejador:
¯ Vá à merda!
¯ Vou mesmo, vou pra repartição. Fazer que trabalho. Daqui a pouco volto, quero saber a noite de ontem, tintim por tintim.
O movimento crescia no bar. Nacib viu quando, das bandas da praia, surgiram o Capitão e o Doutor, ladeando Mundinho Falcão. Conversavam animados, o Capitão gesticulava, de quando em quando interrompido pelo Doutor. Mundinho ouvia, concordava com a cabeça. Ali havia coisa... ¯ pensou Nacib. Que diabo fazia o exportador em casa (pois de casa certamente vinha), àquela hora, em companhia dos dois compadres? Desembarcado naquela, manhã, ausente quase um mês, Mundinho deveria estar em seu escritório, recebendo coronéis, discutindo negócios, comprando cacau. Esse Mundinho Falcão era inesperado, fazia tudo diferente dos demais. Lá vinha ele, como se não tivesse negócios a resolver, fregueses a atender e despachar, conversando na maior das animações com os dois amigos. Nacib entregou a caixa a Bico-Fino, adiantou-se para o passeio.
¯ Já arranjou cozinheira? ¯ perguntou o Capitão, sentando-se.
¯ Já andei Ilhéus inteiro. Nem sombra...
¯ Conhaque, Nacib. Do verdadeiro, hein! ¯ pediu Mundinho.
¯ E uns bolinhos de bacalhau...
¯ Só à tarde...
¯ Ué, árabe, que decadência é essa?
¯ Assim você perde a freguesia. Mudamos de bar... ¯ riu o Capitão.
¯ De tarde já tem. Encomendei às Dos Reis.
¯ Ainda bem...
¯ Bem? Cobram uma fortuna... Perco dinheiro.
Mundinho Falcão aconselhava:
¯ O que você precisa, Nacib, é modernizar seu bar. Trazer frigorífico para ter gelo próprio, instalar máquinas modernas...
¯ Eu preciso é de uma cozinheira...
¯ Mande buscar em Sergipe.
¯ E até chegar?
Espiava o ar cúmplice dos três, o sorriso satisfeito do Capitão, a conversa interrompida, terminada de repente. Chico Moleza chegava com a bandeja das bebidas. Nacib sentou-se:
¯ Seu Mundinho, que diabo o senhor fez ao coronel Ramiro Bastos?
¯ Ao coronel? Não fiz nada. Por quê?
Foi a vez de Nacib fazer-se discreto:
¯ Por nada...
O Capitão, interessado, bateu-lhe nas costas, autoritário:
¯ Desembucha, árabe. O que foi?
¯ Encontrei ele hoje, na frente da intendência. Tava sentado, quentando sol. Conversa vai, conversa vem, contei que seu Mundinho tinha chegado hoje, que ia vir o engenheiro... O velho ficou uma fera. Queria saber o que seu Mundinho tinha que ver com isso, por que se metia onde não era chamado.
¯ Tão vendo? ¯ interrompeu o Capitão. ¯ A barra...
¯ Não é só isso, não. Quando ele estava falando chegou o professor Josué contando que o colégio tinha sido oficializado, aí é que o homem pulou. Parece que ele tinha pedido ao governo e não conseguiu. Batia a bengala no chão, danado da vida.
Nacib gozava o silêncio dos amigos, a impressão produzida por sua história, vingava-se do ar conspirativo com que haviam chegado. Não tardaria a saber o que andavam tramando. O Capitão falou:
¯ Furioso, hein? Muito mais ele ainda vai ficar, o velho pajé. Pensa que é dono disso aqui...
¯ Para ele, Ilhéus é como se fosse parte de sua fazenda. E, nós, ilheenses, simples empreiteiros e contratados... ¯ definiu o Doutor.
Mundinho Falcão não dizia nada, sorria. Na porta do cinema apareciam Diógenes e o casal de artistas. Viram os outros na mesa, no passeio do bar, para lá se dirigiram. Nacib acrescentava:
¯ É isso mesmo. Seu Mundinho para ele é um forasteiro.
¯ Ele disse forasteiro? ¯ perguntou o exportador.
¯ Forasteiro, sim. Foi a palavra que usou.
Mundinho Falcão tocou no braço do Capitão:
¯ Pode procurar o homem, Capitão. Estou decidido. Vamos tocar música pro velho dançar... ¯ disse a última frase para Nacib.
O Capitão levantou-se, esvaziou seu cálice, o casal de artistas estava chegando. Que diabo estariam os outros planejando? ¯ cogitava Nacib. O Capitão cumprimentava:
¯ Desculpem-me, estava de saída, coisa urgente.
Os homens levantavam-se da mesa, arrastavam cadeiras. Uma sombrinha aberta, Anabela sorria coquete. O Príncipe, com sua piteira comprida, estendia a mão longa e magérrima, nervosa.
¯ Quando é a estréia? ¯ perguntou o Doutor.
¯ Amanhã... Estamos acertando com seu Diógenes.
O dono do cinema, barba por fazer, explicava numa voz eternamente desanimada e lamentosa de cantador de hinos sacros:
¯ Creio que ele pode agradar. A meninada gosta desses truques de prestidigitação. E mesmo gente grande. Mas ela...
¯ Por que não? ¯ perguntou Mundinho enquanto Nacib servia novos aperitivos.
Diógenes coçou a barba:
¯ O senhor sabe, isso aqui ainda é um lugar atrasado. Essas danças dela, quase nua, as famílias não vêm.
¯ Enche de homem... ¯ afirmou Nacib.
Diógenes estava cheio de dedos para explicar. Não querendo confessar ser ele próprio, protestante e pudico, quem se sentia melindrado com as danças ousadas de Anabela:
¯ É coisa pra cabaré... Não fica bem no cinema.
O Doutor, muito cortês e fino, desculpava a cidade ante a sorridente artista:
¯ A senhora desculpe. Terra atrasada, onde as ousadias da arte não são compreendidas. Acham tudo imoral.
¯ Danças artísticas ¯ a voz cavernosa do prestidigitador.
¯ É claro, é claro... Mas...
Mundinho Falcão divertia-se:
¯ Ora, seu Diógenes...
¯ No cabaré ela pode até ganhar mais. Trabalha no cinema com o marido, nos truques. Depois dança no cabaré...
À voz de ganhar mais, iluminou-se o olhar do Príncipe. Anabela queria saber a opinião de Mundinho:
¯ O que é que acha?
¯ Bem, não é? Mágica no cinema, dança no cabaré... Perfeito.
¯ E o dono do cabaré? Será que se interessa?
¯ Isso vamos saber logo... ¯ dirigia-se a Nacib. ¯ Nacib, faça-me um favor: mande um rapaz chamar Zeca Lima, quero falar com ele. Com pressa, que venha logo.
Nacib gritou uma ordem ao negrinho Tuísca que saiu correndo, Mundinho dava boas gorjetas. O árabe pensava na voz de mando do exportador, parecia a voz do coronel Ramiro Bastos quando mais moço, ordenando sempre, ditando leis. Alguma coisa estava para suceder.
O movimento aumentava, chegavam novos fregueses, animavam-se mesas, Chico Moleza corria de um lado para outro. Nhô-Galo reapareceu, juntou-se à roda. Também o coronel Ribeirinho, os olhos a engolir a dançarina. Anabela resplandecia entre todos aqueles homens. O Príncipe Sandra, com seu ar de subalimentado, muito digno na cadeira, fazia cálculos do dinheirão a ganhar ali... Praça para demorar, para tirar a barriga da miséria.
¯ Essa idéia do cabaré não é má...
¯ Que idéia? ¯ desejava saber Ribeirinho.
¯ Ela vai dançar no cabaré.
¯ No cinema, não?
¯ No cinema só mágicas. Pras famílias. No cabaré, a dança dos sete véus...
¯ No cabaré? Ótimo... Vai pegar enchente... Mas por que não dança no cinema? Eu pensei...
¯ Danças modernas, coronel. Os véus vão caindo um a um...
¯ Um a um? Todos sete?
¯ As famílias podiam não gostar..
¯ Ah! Lá isso é... Um a um... Todos? É melhor mesmo no cabaré... Mais animado.
Anabela ria, fitava o coronel com uns olhos prometedores. O Doutor repetia:
¯ Terra atrasada. Onde a arte é expulsa para os cabarés.
¯ Nem cozinheira se encontra ¯ lastimou-se Nacib.
O professor Josué descia a rua em companhia de João Fulgêncio. Chegara a hora do aperitivo. O bar regurgitava de gente. O próprio Nacib era obrigado a andar entre as mesas, servindo. Os fregueses reclamavam os salgados e doces, o árabe repetia explicações, praguejava contra a velha Filomena. O russo Jacob, suando em bicas, despenteado o cabelo ruivo, queria saber do jantar do dia seguinte:
¯ Não se preocupe. Não sou mulher-dama para faltar ao trato.
Josué, muito homem de sociedade, beijava a mão de Anabela. João Fulgêncio, que não freqüentava o cabaré, protestava contra a pudicícia de Diógenes:
¯ Escândalo, coisa nenhuma. Isso é carolice desse protestante...
Mundinho Falcão espiava a rua, esperando a volta do Capitão. De quando em vez, ele e o Doutor trocavam olhares. Nacib acompanhava aqueles olhares, a impaciência do exportador. A ele não enganavam: alguma coisa estava sendo tramada. O vento, vindo do mar, arrastava a sombrinha de Anabela, deixada aberta ao lado da mesa. Nhô-Galo, Josué, o Doutor, o coronel Ribeirinho precipitaram-se para segurá-la. Apenas Mundinho Falcão e o Príncipe Sandra ficaram sentados. Mas quem a trouxe foi o dr. Ezequiel Prado, que vinha chegando, os olhos empapados de ébrio.
¯ Meus respeitos, minha senhora...
Os olhos de Anabela, de longas pestanas negras, passavam de homem a homem, demoravam-se em Ribeirinho.
¯ Gente distinta! ¯ disse o Príncipe Sandra.
Tonico Bastos, vindo do cartório, caía nos braços de Mundinho Falcão, grandes demonstrações de amizade:
¯ E o Rio, como o deixou? Lá é que se vive...
Seus olhos mediam Anabela, seus olhos de conquistador, do homem irresistível da cidade.
¯ Quem me apresenta? ¯ perguntou.
Nhô-Galo e o Doutor sentavam-se ao lado de um tabuleiro de gamão. Noutra mesa, alguém contava a Nacib as maravilhas de uma cozinheira. Tempero como o dela, nunca tinha visto... Só que estava no Recife, empregada de uma família Coutinho, pernambucanos importantes.
¯ De que diabo me serve?
GABRIELA NO CAMINHO
A paisagem mudara, a inóspita caatinga cedera lugar a terras férteis, verdes pastos, densos bosques a atravessar, rios e regatos, a chuva caindo farta. Haviam pernoitado nas vizinhanças de um alambique, plantações de cana balançando ao vento. Um trabalhador lhes dera detalhadas explicações sobre o caminho a seguir: menos de um dia de marcha e estariam em Ilhéus, a viagem de pavores terminada, uma nova vida a começar.
¯ Tudo que é retirante acampa perto do porto, pros lados da estrada de ferro, no fim da feira.
¯ Num vai procurar trabalho? ¯ perguntou o negro Fagundes.
¯ É melhor esperar, não demora e logo aparece gente pra contratar. Tanto pra trabalhar nas roças de cacau quanto na cidade...
¯ Também na cidade? ¯ interessou-se Clemente, o rosto fechado, a harmônica no ombro, uma preocupação nos olhos.
¯ Inhô, sim. Pra quem tem ofício: pedreiro, carpina, pintor de casa. Tão levantando tanta casa em Ilhéus que é um desperdício.
¯ Só?
¯ Tem ocupação também nos armazéns de cacau, nas docas.
¯ Por mim ¯ disse um sertanejo forte, de meia idade ¯, vou é pras matas. Diz que um homem pode juntar dinheiro.
¯ Faz tempo era assim. Hoje é mais custoso.
¯ Diz que um homem sabendo atirar tem boa aceitação... ¯ falou o negro Fagundes passando a mão, quase numa carícia, sobre a repetição.
¯ Num tempo foi assim.
¯ E num é mais?
¯ Ainda tem sua procura.
Clemente não tinha ofício. Labutara sempre no campo, plantar, roçar e colher era tudo o que sabia. Ademais viera com a intenção de se meter nas roças de cacau, tinha ouvido tanta história de gente chegando como ele, batida pela seca, fugindo do sertão, quase morta de fome, e enriquecendo naquelas terras em pouco tempo. Era o que diziam pelo sertão, a fama de Ilhéus corria mundo, os cegos cantavam suas grandezas nas violas, os caixeiros-viajantes falavam daquelas terras de fartura e valentia, ali um homem se arranjava num abrir e fechar de olhos, não havia lavoura mais próspera que a do cacau. Os bandos de imigrantes desciam do sertão, a seca nos seus calcanhares, abandonavam a terra árida onde o gado morria e as plantações não vingavam, tomavam as picadas em direção ao sul. Muitos ficavam pelo caminho, não suportavam a travessia de horrores, outros morriam ao entrar na região das chuvas onde o tifo, o impaludismo, a bexiga os esperavam. Chegavam dizimados, restos de famílias, quase mortos de cansaço, mas os corações pulsavam de esperança naquele dia derradeiro de marcha. Um pouco mais de esforço e teriam atingido a cidade rica e fácil. As terras do cacau onde dinheiro era lixo nas ruas.
Clemente ia carregado. Além dos seus haveres ¯ a harmônica e um saco de pano cheio pela metade ¯ levava a trouxa de Gabriela. A marcha era lenta, iam velhos entre eles e mesmo os moços estavam no limite da fadiga, não podiam mais. Alguns quase se arrastavam, sustentados apenas pela esperança.
Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem.
Como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados. A poeira dos caminhos da caatinga a cobrira tão por completo que era impossível distinguir seus traços. Nos cabelos já não penetrava o pedaço de pente, tanto pó se acumulara. Parecia uma demente perdida nos caminhos. Mas Clemente sabia como ela era deveras e o sabia em cada partícula de seu ser, na ponta dos dedos e na pele do peito. Quando os dois grupos se encontraram, no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume. Ainda agora, através da sujeira a envolvê-la, ele a enxergava como a vira no primeiro dia, encostada, numa árvore, o corpo esguio, o rosto sorridente, mordendo uma goiaba.
¯ Tu parece que nem veio de longe...
Ela riu:
¯ A gente tá chegando. Tá pertinho. Tão bom chegar.
Ele fechou ainda mais o rosto sombrio:
¯ Num acho não.
¯ E por que tu não acha? ¯ levantou para o rosto severo do homem seu olhos, ora tímidos e cândidos, ora insolentes e provocadores. ¯ Tu não saiu para vir trabalhar no cacau, ganhar dinheiro? Tu não fala noutra coisa.
¯ Tu sabe porquê ¯ resmungou ele com raiva. ¯ Pra mim esse caminho podia durar a vida toda. Num me importava...
No riso dela havia certa mágoa, não chegava a ser tristeza, como se estivesse conformada com o destino:
¯ Tudo que é bom, tudo que é ruim, também termina por acabar.
Uma raiva subia dentro dele, impotente. Mais uma vez, controlando a voz, repetiu a pergunta que lhe vinha fazendo pelo caminho e nas noites insones:
¯ Tu não quer mesmo ir comigo pras matas? Botar uma roça, plantar cacau junto nós dois? Com pouco tempo agente vai ter um roçado seu, começar a vida.
A voz de Gabriela era cariciosa, mas definitiva:
¯ Já te disse minha tenção. Vou ficar na cidade, não quero mais viver no mato. Vou me contratar de cozinheira, de lavadeira ou pra arrumar casa dos outros...
Acrescentou numa lembrança alegre:
¯ Já andei de empregada em casa de gente rica, aprendi cozinhar.
¯ Aí tu não vai progredir. Na roça, comigo, a gente ia fazendo seu pé-de-meia, ia tirando pra frente...
Ela não respondeu. Ia pelo caminho quase saltitante. Parecia uma demente com aquele cabelo desmazelado, envolta em sujeira, os pés feridos, trapos rotos sobre o corpo. Mas Clemente a via esguia e formosa, a cabeleira solta e o rosto fino, as pernas altas e o busto levantado. Fechou ainda mais o rosto, queria tê-la com ele para sempre. Como viver sem o calor de Gabriela?
Quando, no início da viagem, os grupos se encontraram, logo reparou na moça. Ela vinha com um tio, acabado e doente, sacudido o tempo todo pela tosse. Nos primeiros dias ele a observara de longe, sem coragem sequer para aproximar-se. Ela ia de um para outro, conversando, ajudando, consolando.
Nas noites da caatinga, povoadas de cobras e de medo, Clemente tomava da harmônica e os sons enchiam a solidão. O negro Fagundes contava histórias de valentias, coisas de cangaço, andara metido com jagunços, matara gente. Punha em Gabriela uns olhos pesados e humildes, obedecia-lhe pressurosamente quando ela lhe pedia para ir encher uma lata com água.
Clemente tocava para Gabriela, mas não se atrevia a dirigir-lhe a palavra. Foi ela quem veio, certa noite, com seu passo de dança e seus olhos de inocência, para junto dele, puxar conversa. O tio dormia numa agitação de falta de ar, ela encostou-se numa árvore. O negro Fagundes narrava:
¯ Tinha cinco soldados, cinco macacos que a gente comeu na faca pra não gastar munição...
Na noite escura e assustadora, Clemente sentia a presença vizinha de Gabriela, não se animava sequer a olhar para a árvore à qual ela se encostara, um umbuzeiro. Os sons morreram na harmônica, a voz de Fagundes ressaltou no silêncio. Gabriela falou baixinho:
¯ Não pare de tocar senão vão arreparar.
Atacou uma melodia do sertão, estava com um nó na garganta, aflito o coração. A moça começou a cantar em surdina. A noite ia alta, a fogueira morria em brasas, quando ela deitou-se junto dele como se nada fora. Noite tão escura, quase não se viam.
Desde aquela noite milagrosa, Clemente vivia no terror de perdê-la. Pensara a princípio que, tendo acontecido, ela já não o largaria, iria correr sua sorte nas matas dessa terra do cacau. Mas logo se desiludiu. Durante a caminhada ela se comportava como se nada houvesse entre eles, tratava-o da mesma maneira que aos demais. Era de natural risonha e brincalhona, trocava graças até com o negro Fagundes, distribuía sorrisos e obtinha de todos o que quisesse. Mas quando a noite chegava, após ter cuidado do tio, vinha para o canto distante, onde ele ia meter-se, e deitava-se a seu lado, como se para outra coisa não houvesse vivido o dia inteiro. Se entregava toda, abandonada nas mãos dele, morrendo em suspiros, gemendo e rindo.
No outro dia, quando ele, preso a Gabriela como se ela fosse sua própria vida, queria concretizar os planos de futuro, ela apenas ria, quase a mofar-se dele, e ia embora, ajudar o tio cada vez mais fatigado e magro.
Uma tarde tiveram que parar a caminhada, o tio de Gabriela estava nas últimas. Vinha cuspindo sangue, não agüentava mais andar. O negro Fagundes jogou-o nas costas como um fardo e o carregou durante um pedaço de caminho. O velho ia arfando, Gabriela a seu lado. Morreu de tardinha, botando sangue pela boca, os urubus voavam sobre o cadáver.
Então Clemente a viu órfã e só, necessitada e triste. Pela primeira vez pensou compreendê-la: nada mais era que uma pobre moça, quase menina ainda, a quem proteger. Aproximou-se e longamente falou de seus planos. Muito tinham-lhe contado daquela terra do cacau para onde iam. Sabia de gente que, saíra do Ceará sem tostão e voltara poucos anos depois a passeio, arrotando dinheiro. Era o que ele ia fazer. Queria derrubar mata, ainda existiam algumas, plantar cacau, ter terra sua, ganhar bastante. Gabriela iria com ele, e, quando aparecesse um padre por aquelas bandas, casariam. Ela fez que não com a cabeça, agora não ria seu riso de mofa, disse apenas:
¯ Vou pro mato não, Clemente.
Outros morreram e os corpos ficaram pelo caminho, pasto dos urubus. A caatinga acabou, começaram terras férteis, as chuvas caíram. Ela continuava a deitar-se com ele, a gemer e a rir, a dormir recostada sobre seu peito nu. Clemente falava, cada vez mais sombrio, explicava as vantagens, ela apenas ria e balançava a cabeça numa renovada negativa. Certa noite, ele teve um gesto brusco, atirou-a para um lado, num repelão:
¯ Tu não gosta de mim!
De súbito, saído não se sabe de onde, o negro Fagundes apareceu, a arma na mão, um brilho nos olhos. Gabriela disse:
¯ Foi nada não, Fagundes.
Ela havia batido contra o tronco de árvore junto ao qual estavam deitados. Fagundes baixou a cabeça, foi embora. Gabriela ria, a raiva foi crescendo dentro de Clemente. Aproximou-se dela, tomou-lhe dos pulsos, ela estava caída sobre o mato, o rosto ferido:
¯ Tenho até vontade de te matar e a mim também...
¯ Por quê?
¯ Tu não gosta de mim.
¯ Tu é tolo...
¯ Que é que eu vou fazer, meu Deus?
¯ Importa não... ¯ disse ela, e o puxou para si.
Agora, naquele último dia de viagem, desnorteado e perdido, ele terminara por se decidir. Ficaria em Ilhéus, abandonaria seus planos, a única coisa importante era estar ao lado de Gabriela.
¯ Já que tu não quer ir, vou arranjar jeito de ficar em Ilhéus. Só que não tenho ofício, além de lavrar terra não sei fazer um nada...
Ela tomou-lhe a mão num gesto inesperado, ele sentiu-se vitorioso e feliz.
¯ Não, Clemente, fique não. Pra quê?
¯ Pra quê?
¯ Tu veio pra ganhar dinheiro, botar roça, ser um dia fazendeiro. É disso que tu gosta. Pra que ficar em Ilhéus passando necessidade?
¯ Só pra te ver, pra gente tá junto.
¯ E se a gente não puder se ver? É melhor não, tu vai pra teu lado, eu vou pro meu. Um dia, pode ser, a gente se encontra outra vez. Tu feito um homem rico, nem vai me reconhecer. Dizia tudo aquilo tranqüilamente, como se as noites que dormiram juntos não contassem, como se apenas se conhecessem.
¯ Mas, Gabriela...
Nem sabia como responder-lhe, esquecia os argumentos, também os insultos, a vontade de bater-lhe para ela aprender que com um homem não se brinca. Só conseguia dizer:
¯ Tu não gosta de mim...
¯ Foi bom a gente ter se encontrado, a viagem encurtou.
¯ Tu não quer mesmo que eu fique?
¯ Pra quê? Pra passar necessidade? Num vale a pena. Tu tem tua tenção, vai cumprir teu destino.
¯ E tu qual é tua tenção?
¯ Quero ir pro mato não. O resto só Deus sabe.
Ele ficou silencioso, uma dor no peito, vontade de matá-la, de acabar com a própria vida, antes que a viagem terminasse. Ela sorriu:
¯ Importa não, Clemente.
CAPÍTULO SEGUNDO
A SOLIDÃO DE GLÓRIA (NA SUA JANELA A SUSPIRAR)
Atrasados e ignorantes, incapazes de compreender os tempos novos, o progresso, a civilização, esses homens já não podem governar...
(de um artigo do Doutor no Diário de Ilhéus)
LAMENTO DE GLÓRIA
Tenho no peito um calor ai! um calor no meu peito (quem nele se queimará?)
Coronel me deu riqueza, riqueza de não acabar: mobília de Luiz XV pra minha bunda sentar. Camisa de seda pura, blusa branca de cambraia. Não há corpete que caiba, nem de cetim nem de seda nem da mais fina cambraia, o fogo que está queimando a solidão do meu peito.
Tenho sombrinha pro sol, dinheiro para esbanjar. Compro na loja mais cara mando na conta botar. Tenho tudo que desejo e um fogo dentro do peito.
De que vale tanto ter se o que desejo não tenho?
Me viram a cara as mulheres, os homens olham de longe: sou Glória do coronel, manceba do fazendeiro. Alvo lençol de linho e um fogo no meu peito. Na solidão desse leito meus peitos estão queimado, coxas de chamas, boca morrendo de sede, ai!
Sou Glória, a do fazendeiro que tem um fogo no peito e no lençol do seu leito se deita com a solidão. Meus olhos são de quebranto, os meus seios de alfazema com um calor dentro deles. Como é meu ventre não conto, mas esse fogo que queima nasce da brasa acendida na solidão dessa lua do doce ventre de Glória. O segredo dele não conto nem de sua brasa acendida.
Ai, um estudante quisera de buço apenas nascido. Quisera um brioso soldado de túnica bem militar. Quisera um amor, quisera para esse fogo apagar com a solidão acabar. Empurrai a minha porta a tranca já retirei, não tem chave de fechar. Vinde essa brasa apagar, nesse fogo vos queimar, trazei um pouco de amor que eu muito tenho pra dar. Vinde esse leito ocupar. Tenho no peito um calor ai! um calor no meu peito (quem nele se queimará?).
DA TENTAÇÃO NA JANELA
A casa de Glória ficava na esquina da praça e Glória debruçava-se à tarde na janela, os robustos seios empinados como numa oferenda aos passantes. Uma e outra coisa escandalizavam as solteironas que vinham para a igreja, e davam lugar aos mesmos comentários, cada dia, na hora vespertina da prece:
¯ Falta de vergonha...
¯ Os homens pecam até sem querer. Só de olhar.
¯ Até os meninos perdem a virgindade dos olhos...
A áspera Dorotéia, toda em negro de virginal virtude, atrevia-se a murmurar em santa exaltação:
¯ Também o coronel Coriolano podia botar casa para a rapariga numa rua de canto. Vem e planta com ela bem na cara das melhores famílias da cidade. Bem no nariz dos homens...
¯ Pertinho da igreja. Isso até ofende a Deus...
Do bar, repleto a partir das cinco da tarde, os homens alongavam os olhos para a janela de Glória do outro lado da praça. O professor Josué, de gravata borboleta azul com pintas brancas, o cabelo reluzente de brilhantina e as cavadas faces de tísico, alto e espigado (como um triste eucalipto solitário, definira-se ele num poema), um livro de versos na mão, atravessava a praça e tomava pela calçada de Glória. Na esquina, no fundo da praça, no centro de um pequeno jardim bem cuidado de rosas-chá e açucenas, com um jasmineiro à porta, elevava-se a casa nova do coronel MeIk Tavares, objeto de profundas e agras discussões na Papelaria Modelo. Era uma casa em estilo moderno, a primeira a ser construída pelo arquiteto trazido por Mundinho Falcão, e as opiniões da intelectualidade local se haviam dividido, as discussões eternizavam-se.
Em suas linhas claras e simples, contrastava com os sobradões pesados e as casas baixas, coloniais.
No jardim, a cuidar de suas flores, ajoelhada entre elas, mais bela que elas, sonhava Malvina, filha única de MeIk, aluna do colégio das freiras, por quem suspirava Josué. Todas as tardes, terminadas as aulas e a indispensável prosa na Papelaria Modelo, o professor vinha passear na praça, vinte vezes passava ante o jardim de Malvina, vinte vezes seu olhar suplicante pousava-se na moça em muda declaração. No bar de Nacib, os fregueses habituais seguiam a peregrinação quotidiana com comentários risonhos:
¯ O professor é obstinado...
¯ Quer fazer sua independência, ganhar roça de cacau sem o trabalho de plantar.
¯ Lá vai ele para sua penitência... ¯ diziam as solteironas ao vê-lo chegar à praça, afobado, e simpatizavam com ele, com aquela ardente paixão não correspondida.
¯ O que ela é, eu sei: uma sirigaita, metida a importante. Que espera ela de melhor do que um moço tão inteligente?
¯ Mas pobre...
¯ Casamento de dinheiro não traz felicidade. Um moço tão bom, tão cheio de letras, até escreve versos...
Nas proximidades da igreja, Josué diminuía o passo acelerado, tirava o chapéu, dobrando-se quase em dois ao saudar as solteironas.
¯ Tão educado. Um moço fino...
¯ Mas fraco do peito...
¯ Dr. Plínio disse que ele não tem nada no pulmão. É só franzino.
¯ Uma espevitada é o que ela é. Por que tem uma carinha bonita e o pai tem dinheiro. E o moço, coitado, tão influído... ¯ um suspiro elevava-se peito encarquilhado.
Seguido pelos simpáticos comentários das solteironas e pelas injustas opiniões emitidas no bar, aproximava-se Josué da janela de Glória. Era para ver Malvina, bela e fria, que, nos fins da tarde, ele vinte vezes fazia aquele percurso em passos lentos, um livro de versos na mão. Mas, de passagem, seu olhar romântico pousava na pujança dos seios altos de Glória, colocados na janela como sobre uma bandeja azul. E dos seios subia para o rosto moreno queimado, de lábios carnudos e ávidos, de olhos entornados em permanente convite. Acendiam-se em pecaminoso e material desejo os olhos românticos de Josué e um calor cobria-lhe a palidez da face. Por um instante apenas, pois, passada a tentação da janela mal-afamada, retornavam seus olhos à expressão de súplica e desesperança, mais pálida ainda era sua face, olhos e face para Malvina.
Também o professor Josué criticava, em seu foro íntimo, a infeliz idéia do coronel Coriolano Ribeiro, fazendeiro rico, de instalar na praça São Sebastião, em rua onde moravam as melhores famílias, a dois passos da casa do coronel MeIk Tavares, sua concubina tão apetecida e tão se oferecendo. Fosse noutra rua qualquer, mais distante do jardim de Malvina, e ele poderia talvez arriscar-se, numa noite sem lua, para cobrar todas as promessas lidas nos olhos de Glória a chamá-lo, nos lábios entreabertos.
¯ Lá está a peste de olho no rapaz...
As solteironas, os longos vestidos negros fechados no pescoço, negros xales aos ombros, pareciam aves noturnas paradas ante o átrio da pequena igreja. Viam o movimento da cabeça de Glória acompanhando Josué no passeio da casa do coronel Melk.
¯ Ele é um moço direito. Só tem olhos pra Malvina.
¯ Vou fazer uma promessa a São Sebastião ¯ dizia a roliça Quinquina ¯ para Malvina gostar dele. Trago uma vela das grandes.
¯ E eu trago outra... ¯ reforçava a franzina Florzinha, em tudo solidária com a irmã.
Na janela Glória suspirava, quase um gemido. Ânsia, tristeza, indignação misturavam-se nesse suspiro a morrer na praça.
De indignação estava cheio seu peito, contra os homens em geral. Eram covardes e hipócritas. Quando, nas horas de mormaço do meio da tarde, a praça vazia, as janelas das casas de família fechadas, ao passar sozinhos ante a janela aberta de Glória, sorriam para ela, suplicavam-lhe um olhar, desejavam-lhe boa tarde com visível emoção. Mas bastava que houvesse alguém na praça, uma única solteirona que fosse, ou que viessem acompanhados, para que lhe virassem a cara, olhassem para outro lado, acintosamente, como se lhes repugnasse vê-la na janela, os altos seios saltando da bordada blusa de cambraia. Vestiam o rosto de ofendida pudicícia mesmo os que antes lhe haviam dito galanteios ao passar sozinhos. Glória gostaria de dar-lhes com a janela na cara mas, ai!, não tinha forças para fazê-lo, aquela chispa de desejo entrevista nos olhos dos homens era tudo que possuía em sua solidão. Demasiado pouco para sua sede e sua fome. Mas, se lhes batesse com a janela, perderia até mesmo aqueles sorrisos, aqueles olhares cínicos, aquelas medrosas e fugidias palavras. Não havia mulher casada em Ilhéus, onde mulher casada vivia no interior de suas casas, cuidando do lar, tão bem guardada e inacessível como aquela rapariga.
O coronel Coriolano não era homem para brincadeiras.
Tanto medo lhe tinham que não se animavam sequer a cumprimentar a pobre Glória. Só Josué era diferente. Vinte vezes cada tarde, seu olhar se acendia ao passar sob a janela de Glória, apagava-se romântico ante o portão de Malvina. Glória sabia da paixão do professor e também ela antipatizava com a moça estudante, indiferente a tanto amor, tratava-a de enjoada e tola. Sabia da paixão de Josué mas, nem por isso, deixava de sorrir-lhe o mesmo sorriso de convite e de promessa; e era-lhe grata porque ele, jamais, mesmo quando Malvina estava no portão da casa nova sob o jasmineiro em flor, lhe virava o rosto. Ah! se ele tivesse um pouco mais de coragem e empurrasse, no meio da noite a porta da rua que Glória deixava aberta, pois, quem sabe?, de repente... Então ela o faria esquecer a moça orgulhosa.
Josué não se atrevia a empurrar a maciça porta da rua. Ninguém se atrevia. Medo da língua afiada das solteironas, da gente da cidade a falar mal da vida alheia, medo do escândalo, mas medo sobretudo do coronel Coriolano Ribeiro.Todos sabiam da história de Juca e de Chiquinha.
Naquele dia, Josué viera bem mais cedo, na hora da sesta, a praça deserta. A freqüência no bar reduzia-se a alguns caixeiros-viajantes, ao Doutor e Capitão disputando um partida de damas. Enoch, para festejar a equiparação do colégio, dera a tarde de folga aos alunos. O professor Josué andara pela feira, assistira à chegada de um numeroso grupo de retirantes ao mercado dos escravos, demorara-se na Papelaria Modelo, tomava agora uma mistura no bar, conversando com Nacib:
¯ Uma quantidade de retirantes. A seca está comendo no sertão.
Nacib interessou-se:
¯ Mulheres também?
O professor quis saber a razão daquele interesse:
¯ Você está assim tão falto de mulher?
¯ Não brinca. Minha cozinheira foi embora, tou procurando outra. Às vezes no meio desses retirantes vem alguma...
¯ Tinha umas quantas mulheres, sim. Um horror essa gente vestida de farrapos, suja, parecendo empestiados...
¯ Mais tarde vou lá, ver se encontro alguma...
Malvina não aparecia no portão, Josué mostrava-se impaciente. Nacib informou:
¯ A pequena está na avenida, na praia. Passaram há pouco, ela e umas colegas...
Josué pagou, levantou-se. Nacib ficou na porta do bar, olhando-o ir, devia ser bom sentir-se assim apaixonado. Mesmo quando a moça fazia pouco caso, mais cobiçada ainda. Aquilo terminaria em casamento, mais dia menos dia... Glória surgia na janela, os olhos de Nacib tornavam-se cúpidos. Se um dia o coronel a largasse haveria uma corrida nunca vista em Ilhéus. Nem assim chegaria para seu bico, os coronéis ricos não deixariam... Os tabuleiros de doces e salgados tinham chegado, os fregueses do aperitivo ficariam contentes. Só que ele, Nacib, não poderia continuar a pagar aquela fortuna às irmãs Dos Reis. Quando o movimento decrescesse, na hora do jantar, iria ao acampamento dos retirantes. Quem sabe não teria sorte, encontraria uma cozinheira?...
De súbito, a calma da tarde foi cortada por gritos, balbúrdia de muita gente falando. O Capitão parou a jogada, a pedra de dama na mão. Nacib deu um passo à frente, o clamor aumentava. O negrinho Tuísca, que mercava os doces feitos pelas irmãs Dos Reis, apareceu correndo, vindo da avenida, o tabuleiro equilibrado na cabeça. Gritava algo, não conseguiam ouvir. O Capitão e o Doutor voltavam-se curiosos, fregueses levantavam-se. Nacib viu Josué e, com ele, várias pessoas movimentando-se apressadas na avenida. Finalmente o negrinho Tuísca fez-se ouvir:
¯ O coronel Jesuíno matou dona Sinhazinha e o doutor Osmundo. ¯ Tá tudo lá no meio do sangue...
O Capitão empurrou a mesa de jogo, saiu quase correndo. O Doutor o acompanhou. Nacib, após um momento de indecisão, apressou o passo para alcançá-los.
DA LEI CRUEL
A notícia do crime espalhara-se num abrir e fechar de olhos. Do morro do Unhão ao morro da Conquista, nas casas elegantes da praia e nos casebres da ilha das Cobras, no Pontal e no Malhado, nas residências familiares e nas casas de mulheres públicas, comentava-se o acontecido.
Ao demais era dia de feira, a cidade repleta de gente vinda do interior, dos povoados e das roças, para vender e comprar. Nas lojas, nos armazéns de secos e molhados, nas farmácias e nos consultórios médicos, nos escritórios de advogados, nas casas exportadoras de cacau, na matriz de São Jorge e na igreja de São Sebastião, não havia outro assunto.
Sobretudo nos bares, cuja freqüência crescera apenas a notícia circulara. Especialmente a do Bar Vesúvio, situado nas proximidades do local da tragédia. Em frente à casa do dentista, pequeno bangalô na praia, juntavam-se curiosos.
Um soldado de polícia postado à porta dava explicações. Cercavam a empregada apalermada, queriam detalhes. Moças do colégio das freiras, numa excitação álacre, exibiam-se no passeio da praia, cochichavam-se segredos. O professor Josué aproveitara-se para aproximar-se de Malvina, relembrava para o grupo de moças amores célebres, Romeu e Julieta, Heloísa e Abelardo, Dirceu e Marília.
E toda aquela gente terminava no bar de Nacib, enchendo as mesas, comentando e discutindo. Unanimemente davam razão ao fazendeiro, não se elevava voz ¯ nem mesmo de mulher em átrio de igreja ¯ para defender a pobre e formosa Sinhazinha. Mais uma vez o coronel Jesuíno demonstrara ser homem de fibra, decidido, corajoso, íntegro, como aliás à saciedade o provara durante a conquista da terra. Segundo recordavam, muitas cruzes no cemitério e na beira das estradas deviam-se aos seus jagunços, cuja fama não fora esquecida. Não só utilizara jagunços, mas os comandara também em ocasiões famosas, como aquele encontro com os homens do finado major Fortunato Pereira, na encruzilhada da Boa Morte, nos perigosos caminhos de Ferradas. Era homem sem medo e obstinado.
Esse Jesuíno Mendonça, de uns famigerados Mendonças, de Alagoas, chegara a Ilhéus ainda jovem, quando das lutas pela terra. Desbravara selvas e plantara roças, disputando a tiro a posse do solo, suas propriedades cresceram e seu nome fez-se respeitado. Casara com Sinhazinha Guedes, formosura local, de antiga família ilheense, órfã de pai e herdeira de um coqueiral para as bandas de Olivença. Quase vinte anos mais moça que o marido, bonitona, freguesa assídua das lojas de fazendas e sapatos, principal organizadora das festas da igreja de São Sebastião, aparentada de longe com o Doutor, passando longos períodos na fazenda, Sinhazinha jamais dera que falar, em todos aqueles anos de casada, aos muitos maledicentes da cidade. De súbito, naquele dia de sol esplêndido, na hora calma da sesta, o coronel Jesuíno Mendonça descarregara seu revólver na esposa e no amante, emocionando a cidade, trazendo-a mais uma vez para o remoto clima de sangue derramado, fazendo com que o próprio Nacib esquecesse seu problema tão grave, de cozinheira.Também o Capitão e o Doutor esqueceram suas preocupações políticas, e o próprio coronel Ramiro Bastos, informado do infortúnio, deixou de pensar em Mundinho Falcão. A notícia correra rápida como relâmpago e cresceram o respeito e a admiração que já cercavam a figura magra e um tanto sombria do fazendeiro. Porque assim era em Ilhéus: honra de marido enganado só com sangue podia ser lavada.
Assim era. Numa região recém-chegada de barulhos e lutas freqüentes, quando as estradas para as tropas de burro e mesmo para os caminhões abriam-se sobre picadas feitas por jagunços, marcadas pelas cruzes dos caídos nas tocaias, onde a vida humana possuía pouco valor, não se conhecia outra lei para traição de esposa além da morte violenta. Lei antiga, vinha dos primeiros tempos do cacau, não estava no papel, não constava do código, era no entanto a mais válida das leis e o júri, reunido para decidir da sorte do matador, a confirmava unanimemente, cada vez, como a impô-la sobre a lei escrita mandando condenar quem matava seu semelhante.
Apesar da recente concorrência dos três cinemas locais, dos bailes e chás-dançantes do Clube Progresso, das partidas de futebol nas tardes de domingo, e das conferências ¯ literatos da Bahia, e até mesmo do Rio, arribando a Ilhéus na caça de uns mil-réis na terra inculta e rica ¯, a sessão do júri, duas vezes por ano, era ainda a mais animada e concorrida diversão da cidade. Existiam advogados famosos como o dr. Ezequiel Prado e o dr. Maurício Caires, o rábula João Peixoto, de retumbante voz, oradores aplaudidos, retóricos eminentes, fazendo a assistência fremir e chorar. O dr. Maurício Caires, homem muito da igreja e dos padres, presidente da Confraria de São Jorge, era especialista em citações da Bíblia. Fora seminarista antes de entrar para a faculdade, gostava de frases em latim, havia quem o considerasse tão erudito quanto o Doutor. No júri, os duelos oratórios duravam horas e horas, com réplicas e tréplicas, atravessavam pelas madrugadas, eram os acontecimentos culturais mais importantes de Ilhéus.
Faziam-se apostas volumosas na absolvição ou na condenação, a gente de Ilhéus gostava de jogar e tudo lhe servia de pretexto. Noutras ocasiões, agora mais raras, o resultado do júri dava lugar a tiroteios e novas mortes. O coronel Pedro Brandão, por exemplo, fora assassinado na escadaria da intendência, ao ser absolvido pelo júri. O filho de Chico Martins, a quem o coronel e seus jagunços haviam matado barbaramente, fez justiça com as próprias mãos.
Nenhuma aposta se aceitava, porém, quando o júri se reunia para decidir sobre crime de morte em razão de adultério: sabiam todos ser a absolvição unânime do marido ultrajado o resultado fatal e justo. Iam para ouvir os discursos, a acusação e a defesa, e na expectativa de detalhes escabrosos e picarescos, escapando dos autos ou da falação dos advogados. Condenação do assassino, isso jamais!, era contra a lei da terra mandando lavar com sangue a honra manchada do marido.
Comentava-se e discutia-se apaixonadamente a tragédia de Sinhazinha e do dentista. Divergiam as versões do sucedido, opunham-se detalhes, mas numa coisa todos concordavam: em dar razão ao coronel, em louvar-lhe o gesto de macho.
DAS MEIAS PRETAS
Crescia o movimento no Bar Vesúvio em dia de feira, mas naquela tarde de morte violenta havia uma freqüência absolutamente anormal, uma animação quase festiva. Além dos fregueses habituais do aperitivo, do pessoal vindo para a feira, inúmeros outros apareciam para colher e comentar novidades. Iam até à praia espiar a casa do dentista, ancoravam no bar:
¯ Quem havia de dizer! Não saía da igreja...
Nacib, atarefado de mesa em mesa, ativava os empregados, calculando mentalmente os lucros. Um crimezinho assim, todos os dias, e logo poderia ele comprar as sonhadas roças de cacau.
Mundinho Falcão, tendo marcado encontro com Clóvis Costa no Bar Vesúvio, viu-se envolvido pelos comentários. Sorria indiferente, preocupado com seus projetos políticos, aos quais se entregava de corpo e alma. Ele era assim: quando decidia fazer uma coisa não descansava enquanto não a visse realizada. Mas tanto o Doutor quanto o Capitão pareciam distantes de qualquer outro assunto além do crime, como se a conversa da manhã não houvesse sequer existido. Mundinho apenas lastimara a morte do dentista, seu vizinho na praia e um de seus raros companheiros no banho de mar - considerado então quase um escândalo em Ilhéus. O Doutor, cujo temperamento arrebatado sentia-se bem naquele clima de tragédia, a pretexto de Sinhazinha revivia Ofenísia, a do imperador:
¯ Dona Sinhazinha era ainda aparentada dos Ávilas. Família de mulheres românticas. Ela deve ter herdado o destino da prima, sua vocação para a desgraça.
¯ Que Ofenísia? Quem é essa? ¯ quis saber um comerciante do Rio do Braço, vindo a Ilhéus para a feira e desejoso de levar ao seu povoado o maior e mais completo sortimento de detalhes do crime.
¯ Uma antepassada minha, beleza fatal que inspirou o poeta Teodoro de Castro e apaixonou D. Pedro II. Morreu de desgosto por não ter ido com ele.
¯ Pra onde?
¯ Ora, pra onde... ¯ gracejou João Fulgêncio. ¯ Para a cama, para onde Podia ser..
O Doutor explicava:
¯ Para a Côrte. Não lhe importava ser amante dele, o irmão teve de trancá-la a sete chaves. O irmão, o coronel Luiz Antônio d’Ávila, da guerra do Paraguai. Ela morreu de desgosto. Em dona Sinhazinha havia sangue de Ofenísia, esse sangue dos Ávilas marcado pela tragédia!
Nhô-Galo surgia afobado, soltava a notícia no meio da mesa:
¯ Foi carta anônima. Jesuíno encontrou na fazenda.
¯ Quem, teria escrito?
Perdiam-se num silêncio de cogitações, Mundinho aproveitou para perguntar ao Capitão, em voz baixa:
¯ E Clóvis Costa? Falou com ele?
¯ Estava escrevendo a notícia do crime. Até atrasou o Jornal. Combinei pra de noite, em sua casa.
¯ Então, vou embora...
¯ Embora? Com uma história, dessas?
¯ Não sou daqui, meu caro... ¯ riu o exportador.
Era geral o assombro ante tanta indiferença por um prato daqueles, suculento,de raro sabor. Mundinho atravessava a praça, encontrava-se com o grupo de moças do colégio das freiras, comboiadas pelo professor Josué. A aproximação do exportador, os olhos de Malvina resplandeceram, sua boca sorriu, ajeitou o vestido. Josué, feliz de estar em companhia de Malvina, felicitou mais uma vez Mundinho pela equiparação do colégio:
¯ Ilhèus lhe deve mais esse benefício...
¯ Qual! Coisa tão fácil... ¯ parecia um príncipe a distribuir benfeitorias, títulos de nobreza, dinheiro e favores, magnânimo.
¯ E o senhor, que pensa do crime? ¯ perguntou Iracema, fogosa morena de namoros falados, no portão do quintal de sua casa.
Malvina adiantou-se para ouvir a resposta. Mundinho abriu os braços:
¯ É sempre triste saber da morte de mulher bonita. Sobretudo morte assim horrível. Mulher bonita é sagrada.
¯ Mas ela enganava o marido ¯ acusou Celestina tão moça e já tão solteirona.
¯ Entre a Morte e o amor, prefiro o amor..
¯ O senhor também faz versos? ¯ sorriu Malvina.
¯ Quem? Eu? Não, senhorita, não tenho esses dons. O poeta aqui é o nosso professor.
¯ Pensei. O que o senhor disse parece um verso...
¯ Bela frase, não há dúvida ¯ apoiou Josué.
Mundinho, pela primeira vez, prestou atenção em Malvina. Bonita moça, os olhos não o largavam, fundos e misteriosos.
¯ O senhor diz isso porque é solteiro ¯ frisou Celestina.
¯ E a senhorita também não é?
Riram todos, Mundinho despedia-se. Os olhos de Malvina o perseguiam, Iracema ria um riso quase descarado:
¯ Esse seu Mundinho... ¯ e como o exportador se afastasse, caminho de casa: ¯ Beleza de rapaz!
No bar, Ari Santos ¯ o Ariosto das crônicas no Diário de Ilhéus, empregado em casa exportadora e presidente do Grêmio Rui Barbosa ¯ curvou-se sobre a mesa, ciciou o detalhe:
¯ Ela estava nuinha...
¯ Toda?
¯ Inteira? ¯ a voz gulosa do Capitão.
¯Todinha... A única coisa que levava era umas meias pretas.
¯ Pretas? ¯ Nhô-Galo escandalizava-se.
¯ Meias pretas, oh! ¯ o Capitão estalava a língua.
¯ Devassa... ¯ condenou o dr. Maurício Caires.
¯ Devia estar uma beleza ¯ o árabe Nacib, de pé, viu de repente dona Sinhazinha nua, calçada de meias pretas. Suspirou.
O detalhe constaria dos autos, depois. Requinte do dentista, sem dúvida moço da capital, nascido e formado na Bahia, de onde viera para Ilhéus, após a colação de grau, há, poucos meses, atraído pela fama da terra rica e próspera. Dera-se bem. Alugara aquele bangalô na praia, ali mesmo instalara o consultório, na sala da frente, e os passantes podiam ver, pela larga janela, das dez ao meio-dia, e das três às seis da tarde, a cadeira nova, reluzente de metais, de fabricação japonesa, o dentista elegante em sua bata branca trabalhando a boca dos clientes. O pai dera-lhe o dinheiro para o consultório, nos primeiros meses fornecia-lhe mesada para ajudar as despesas, era comerciante forte na Bahia, com loja na rua Chile. Consultório bem montado na sala da frente mas o fazendeiro encontrou a esposa foi no quarto, vestida apenas ¯ como contava Ari e constou nos autos ¯ com depravadas meias pretas. Quanto ao dr. Osmundo Pimentel estava completamente descalço, sem meias de qualquer cor, nem nenhum outro traje a cobrir-lhe a arrogante juventude conquistadora. O fazendeiro disparou dois tiros em cada um, definitivos. Homem de pontaria louvada, acostumado a acertar balas no escuro das estradas em noites de barulhos e tocaias.
Nacib não tinha mãos a medir. Chico Moleza e Bico-Fino iam de mesa em mesa no bar cheio, servindo a uns e a outros, pescando de quando em vez um detalhe das conversas. O negrinho Tuísca ajudava, preocupado em saber quem lhe pagaria a conta semanal de doces do dentista, em cuja casa, todas as tardes, deixava bolo de milho e de aipim, cuscuz de mandioca também. De quando em vez, olhando o bar superlotado, consumidos já os doces e salgados do tabuleiro enviado pelas irmãs Dos Reis, Nacib praguejava contra a velha Filomena. Logo num dia desses, de tantas novidades e tamanhos acontecimentos, ela achara de ir embora, deixando-o sem cozinheira. Indo de mesa em mesa, participando das conversas, bebendo com os amigos, o árabe Nacib não podia se entregar por completo ao prazer dos comentários sobre a tragédia, como o desejaria, e certamente o faria se a preocupação de cozinheira não o afligisse. Histórias como aquela, de amores ilícitos e vingança mortal, com detalhes tão suculentos, meias pretas, meu Deus!, não aconteciam todos os dias. E ele obrigado a sair daí a pouco, em busca de cozinheira, no meio dos retirantes chegados ao mercado dos escravos.
Chico Moleza, preguiçoso incurável, passava com copos e garrafas, ouvidos alertas, parando para escutar. Nacib o apressava:
¯ Anda, preguiça...
Chico parava ante as mesas, também ele era filho de Deus, queria também ele ouvir as novidades, saber das meias pretas.
¯ Finíssimas, meu caro, estrangeiras... ¯ Ari Santos acrescentava detalhes. ¯ Mercadoria que não existe em Ilhéus...
¯ Certamente foi ele quem mandou vir da Bahia. Da loja do pai.
¯ O quê! ¯ o coronel Manuel das Onças deixava cair o queixo de espanto. ¯ Se vê cada uma nesse mundo...
¯ Tavam embolados quando Jesuíno entrou. Nem ouviram.
¯ E isso que a criada, quando viu Jesuíno, deu um grito...
¯ Nessa hora não se ouve nada... ¯ disse o Capitão.
¯ Bem feito! O coronel fez justiça...
Dr. Maurício parecia já sentir-se no júri:
¯ Fez o que faria qualquer um de nós, num caso desses. Obrou como homem de bem: não nasceu pra cabrão e só há uma forma de arrancar os chifres, a que ele utilizou.
A conversa generalizava-se, falava-se de uma mesa para outra, e nem uma voz se levantava, naquela ruidosa assembléia, onde alguns dos notáveis da cidade se reuniam, em defesa da maturidade em fogo de Sinhazinha, trinta e cinco anos de adormecidos desejos despertados subitamente pela lábia do dentista e transformados em crepitante paixão. A lábia do dentista e suas melenas ondeadas, seus olhos derramados, tristonhos como os da imagem de São Sebastião trespassado de flechas no altar-mor da pequena igreja da praça, ao lado do bar. Ari Santos, companheiro do dentista nas sessões literárias do Grêmio Rui Barbosa, onde declamavam versos e liam prosa nas manhãs de domingo para reduzido auditório, contava como tudo começara: primeiro ela achara Osmundo parecido com São Sebastião, santo de sua devoção, os mesmos olhos, iguaizinhos.
¯ Esse negócio de muito freqüentar igreja, dá nisso... ¯ comentou Nhô-Galo, anticlerical conhecido.
¯ É mesmo... ¯ concordou o coronel Ribeirinho. ¯ Mulher casada que vive agarrada em saia de padre não é boa bisca...
Três dentes a obturar e a voz melosa do dentista ao ritmo do motor japonês, as palavras bonitas em comparações que nem versos...
¯ Ele tinha veia ¯ afirmava o Doutor. ¯ Uma vez declamou-me uns sonetos, primorosos. Rimas soberbas. Dignos de Olavo Bilac.
Tão diferente do marido áspero e soturno, vinte anos mais velho do que ela, o dentista doze anos mais moço! E aqueles olhos súplices de São Sebastião... Meu Deus! que mulher resistiria, sobretudo mulher na força da idade, com marido velho ¯ vivendo mais na roça que em casa, farto da esposa, doido por cabrochas novas na fazenda, caboclinhas em flor, brusco nos modos ¯, e ademais mulher sem filhos nos quais pensar e dos quais cuidar. Como resistir?
¯ Não me venha defendê-la, a sem-vergonha, meu caro senhor Ari Santos... ¯ cortou o dr. Maurício Caires. ¯ Mulher honrada é fortaleza inexpugnável.
¯ O sangue... ¯ disse o Doutor, a voz lúgubre como sob o peso de uma maldição eterna. ¯ O sangue terrível dos Ávilas, o sangue de Ofenísia...
¯ E você a dar com o sangue... Querendo comparar uma história platônica que não passou de olhares sem conseqüência como essa orgia imunda. Comparar uma fidalga inocente com uma bacante, o nosso sábio imperador, modelo de virtudes, com esse dentista depravado...
¯ Quem está comparando? Falo apenas da hereditariedade, do sangue da minha...
¯ Não defendo ninguém ¯ afirmou Ari ¯, estou apenas contando. Sinhazinha foi deixando as festas de igreja, freqüentou os chás-dançantes do Clube Progresso...
¯ Fator de dissolução dos costumes... ¯ interrompeu dr. Maurício.
¯ ...foi prolongando o tratamento, já agora sem motor, trocada a cadeira de metais rutilantes do consultório pelo leito negro do quarto. Chico Moleza, parado com uma garrafa e um copo na mão, recolhia avidamente os detalhes, arregalados os olhos adolescentes, aberta também a boca num riso idiota. Arí Santos concluía com uma frase que lhe parecia lapidar:
¯ E assim o destino transforma uma senhora honesta, religiosa e tímida em heroína de tragédia...
¯ Heroína? Não me venha com literaturas. Não queira absolver a pecadora. Onde iríamos parar? ¯ dr. Maurício suspendia a mão num gesto ameaçador.- Tudo isso é resultado da degeneração dos costumes que começa a imperar em nossa terra: bailes e tardes dançantes, festinhas em toda parte , namorinhos na escuridão dos cinemas. O cinema ensinando como enganar maridos, uma degradação.
¯ Ora, doutor, não culpe nem o cinema nem os bailes. Antes de existir tudo isso já as mulheres traíam os maridos. Esse costume vem de Eva com a serpente... ¯ riu João Fulgêncio.
O Capitão o apoiou. O advogado via fantasmas. Ele também, Capitão, não desculpava mulher casada esquecida dos seus deveres. Mas, daí a querer culpar o Clube Progresso, os cinemas... Por que não culpava certos maridos que nem ligavam para as esposas, tratavam-nas como criadas, enquanto davam de um tudo, jóias e perfumes, vestidos caros e luxo, às raparigas, às mulheres da vida que sustentavam, às mulatas para quem botavam casa? Bastava olhar ali mesmo na praça: aquele luxo de Glória vestindo-se melhor que qualquer senhora ¯ será que o coronel Coriolano gastava tanto com a esposa?
¯ Também é uma velha decrépita...
¯ Não estou falando dela e sim do que se passa. É ou não é assim?
¯ Mulher casada é para viver no lar, criar os filhos, cuidar do esposo e da família...
¯ E as raparigas para esbanjar o dinheiro?
¯ Quem eu não acho tão culpado é o dentista. Afinal... ¯ João Fulgêncio interrompia a discussão, as palavras indignadas do Capitão podiam ser mal interpretadas pelos fazendeiros presentes.
O dentista era solteiro, jovem, desocupado coração, se a mulher o achava parecido com São Sebastião que culpa tinha ele, não era sequer católico, formava com Diógenes a dupla de protestantes da cidade...
¯ Nem católico era, doutor Maurício.
¯ Por que não pensou ele, antes de acoitar-se com mulher casada, na honra impoluta do esposo? ¯ inquiriu o advogado.
¯ Mulher é tentação, é o diabo, vira gente.
¯ E você acha que ela se atirou assim, sem mais nem menos, nos braços dele? Que ele não fez nada, inocente?
A discussão entre os dois admirados intelectuais ¯ o advogado e João Fulgêncio, um solene e agressivo, defensor sectário da moral, o outro bonachão e risonho, amigo da blague e da ironia, nunca se sabendo quando falava a sério ¯ empolgava a assistência. Nacib adorava ouvir uma discussão assim. Ainda mais estando presentes, e podendo participar, o Doutor, o Capitão, Nhô-Galo, Ari Santos...
Não, João Fulgêncio não achava Sinhazinha capaz de ter se atirado nos braços do dentista, assim sem mais nem menos. Que ele lhe dissera frases adocicadas, era perfeitamente possível. Mas ¯ perguntava ¯ não seria essa a mais mínima obrigação de um bom dentista? Galantear um pouco as clientes amedrontadas ante os ferros, o motor, a cadeira assustadora? Osmundo era bom dentista, dos melhores de Ilhéus, quem o negaria? E quem negaria também o medo que os dentistas inspiram? Frases para criar ambiente, afastar o temor, inspirar confiança.
¯ Obrigação de dentista é tratar dos dentes e não recitar versos às clientes bonitas, meu amigo. É o que eu afirmo e reafirmo: esses costumes depravados de terras decadentes estão querendo nos dominar.. Começa a sociedade de Ilhéus a penetrar-se de veneno, direi melhor: de lama dissolvente...
¯ É o progresso, doutor.
¯ A esse progresso, eu chamo de imoralidade... ¯ passou os olhos ferozes pelo bar, Chico Moleza chegou a estremecer.
A voz fanhosa de Nhô-Galo se elevou:
¯ De que costumes o senhor fala? Dos bailes, dos cinemas... Mas eu vivo aqui há mais de vinte anos e sempre conheci Ilhéus como uma terra de cabarés, de bebedeira farta, de jogatina, de mulheres-damas...Isso não é d’agora, sempre existiu.
¯ São coisas para homens. Não que eu as aprove. mas não são coisas que atinjam as famílias como esses clubes onde mocinhas e senhoras vão dançar, esquecidas das obrigações familiares.O cinema é uma escola de depravação...
Agora o Capitão colocava outra pergunta:como podia um homem ¯ e essa era também uma questão de honra ¯ recusar uma mulher bonita quando ela, enleada por suas palavras, achando-o parecido com santo de igreja, tonteada pelo perfume em ondas das melenas negras, caía-lhe nos braços, obturados os dentes mas para sempre ferido o coração? O homem tem também sua honra de macho. Ao ver do Capitão, o dentista era mais vítima que culpado, mais digno de dó que de reprovação.
¯ Que faria você, seu dr. Maurício, se a dona Sinhazinha, com aquele corpo que Deus lhe deu, nua e de meias pretas, se atirasse em cima de você? Saía correndo, pedindo socorro?
Alguns ouvintes ¯ o árabe Nacib, o coronel Ribeirinho, mesmo o coronel Manuel das Onças com seus cabelos brancos ¯ pesaram a pergunta e a acharam irrespondível. Todos eles haviam conhecido dona Sinhazinha, haviam-na visto atravessar a praça, as carnes presas no vestido apertado, indo para a igreja, o ar sério e recolhido...Chico Moleza, esquecido de servir, suspirou ante a visão de Sinhazinha nua, atirando-se-lhe nos braços. Com o que foi expulso por Nacib:
¯ Vai servir, moleque. Onde já se viu?
Dr. Maurício sentia-se já em pleno júri:
¯ Vade retro!
Não era o dentista esse inocente que o Capitão (quase ia dizendo o nobre colega) descrevia. E para lhe responder, ia buscar na Bíblia, o livro dos livros, o exemplo de José...
¯ Que José?
¯ O que foi tentado pela mulher do faraó...
¯ Esse cara era brocha... ¯ riu Nhô-Galo.
Dr. Maurício fuzilou com os olhos o funcionário da mesa de rendas:
¯ Tais pilhérias não se coadunam com a seriedade do assunto. Não era nenhum inocente o tal de Osmundo. Bom dentista podia ser, mas era também um perigo para a família ilheense... E o descreveu como se estivesse ante o juiz e os jurados: bem falante, apurado no vestir ¯ e para que toda aquela elegância em terra onde os fazendeiros andavam de calça de montaria e botas altas? Não já era prova de decadência dos costumes, responsável pela decadência moral? Revelara-se, logo ao chegar à cidade, um dançarino emérito de tango argentino. Ah! esse clube onde aos sábados e domingos moças e rapazes, mulheres casadas, iam rebolar-se... Esse tal de Clube Progresso que melhor se chamaria Clube da Esfregação... Nele o pudor e o recato desapareciam... Qual mariposa, Osmundo namorara, em seus oito meses de Ilhéus, meia dúzia das mais belas moças solteiras, pulando de uma em uma, leviano coração. Porque moças casadoiras não lhe interessavam, queria era mulher casada, banquetear-se gratuitamente em mesa alheia. Um malandrim, desses muitos que agora começavam a aparecer nas ruas de Ilhéus. Pigarreou, balançou a cabeça, já agradecendo as palmas que no júri não faltariam, apesar das repetidas proibições do juiz.
Também no bar não faltaram aplausos:
¯ Bem dito... ¯ apoiou o fazendeiro Manuel das Onças.
¯ Não há dúvida, é isso mesmo... ¯ disse Ribeirinho. ¯ Foi bom exemplo, Jesuíno agiu como devia.
¯ Não discuto isso ¯ falou o Capitão. ¯ Mas a verdade é que você, dr. Maurício, e muitos outros são é contra o progresso.
¯ Desde quando progresso é safadeza?
¯ São contra, sim, e não me venha com essa conversa de safadeza numa terra cheia de cabarés e de mulheres perdidas. Onde cada homem rico tem sua rapariga. Vocês são contra o cinema, um clube social, até as festas familiares. Vocês querem as mulheres trancadas em casa, na cozinha...
¯ O lar é a fortaleza da mulher virtuosa.
¯ Quanto a mim, não sou contra nada disso ¯ explicou o coronel Manuel das Onças. ¯ Até gosto de um cinema para me distrair quando a fita é cômica. Arrastar o pé, não, não estou mais na idade. Mas isso é uma coisa e outra é achar que mulher casada tem o direito de enganar o marido.
¯ E quem disse isso? Quem está de acordo?
Nem mesmo o Capitão, homem vivido, tendo morado no Rio e reprovando muitos dos hábitos de Ilhéus, nem mesmo ele sentia-se com coragem para opor-se de frente à lei feroz. Tão feroz e rígida que o pobre dr. Felismino, médico chegado uns quantos anos antes a Ilhéus para tentar a clínica, ali não pudera continuar, após ter descoberto os amores de sua esposa Rita com o agrônomo Raul Lima, e havê-la abandonado ao amante. Feliz, aliás, com a inesperada oportunidade de livrar-se da mulher insuportável, com a qual casara nem ele mesmo sabia porquê. Poucas vezes sentira-se tão satisfeito como ao descobrir o adultério: o agrônomo, enganado a respeito de suas intenções, a correr, seminu, pelas ruas de Ilhéus. A Felismino vingança nenhuma parecia melhor, mais refinada e tremenda: entregar ao amante a responsabilidade desperdícios de Rita, seu amor ao luxo, seu insuportável mandonismo. Mas Ilhéus não possuía tanto senso de humor, ninguém o compreendera, consideraram-no um cínico, covarde e imoral, sua iniciada clientela esfumou-se, houve quem lhe negasse a mão, apelidaram-no de Boi Manso. Não teve outro jeito, foi-se embora para sempre.
DA LEI PARA AS RAPARIGAS
Naquele dia, de bar excitado e quase festivo, muitas histórias foram recordadas, além da melancólica aventura do dr. Felismino. Histórias em geral terríveis, de amor e traição, vinganças de arrepiar. E, como não podia deixar de acontecer, com a proximidade de Glória na janela, ansiosa e solitária, sua empregada andando entre os grupos na praia, vindo ao bar à cata de informações, alguém relembrou o caso famoso de Juca Viana e Chiquinha. Não se tratava, é claro, de acontecimento semelhante ao daquela tarde, os coronéis reservavam a pena de morte para traição de esposa. Rapariga não merecia tanto. Assim pensava também o coronel Coriolano Ribeiro. Quando tomavam conhecimento de infidelidades das mulheres que sustentavam ¯ ou pagando-lhes o quarto, a comida e o luxo em pensões de prostitutas ou alugando-lhes casa nas ruas menos freqüentadas, contentavam-se com largá-las, substituí-las no conforto que lhes proporcionavam. Arranjavam outra. Já sucedera, no entanto, tiro e morte, mais de uma vez, devido a rapariga. Não tinham, por exemplo, o coronel Ananias e o comerciário Ivo, conhecido como El Tigre por sua maestria de centroavante do Vera-Cruz F. C., trocado tiros no Pinga de Ouro, por causa de Joana, pernambucana bexigosa, ainda recentemente?
Fora o coronel Coriolano Ribeiro dos primeiros a atirar-se às matas e a plantar cacau. Poucas fazendas podiam comparar-se com a sua, terras magníficas, onde em três anos os cacaueiros começavam a produzir. Homem de influência, compadre do coronel Ramiro Bastos, dominava ele um dos mais ricos distritos de Ilhéus. De hábitos simples, conservava os costumes dos velhos tempos, sóbrio em suas necessidades: seu único luxo era rapariga de casa montada. Vivia quase sempre na fazenda, aparecendo em Ilhéus a cavalo, desprezando o conforto do trem e das recentes marinetes, vestido com calça porta-de-loja, paletó batido pelas chuvas, chapéu de respeitável idade, botas sujas de lama. Gostava mesmo era da roça, das plantações de cacau, de dar ordens aos trabalhadores, meter-se pela mata. As más línguas diziam que, na fazenda, ele só comia arroz aos domingos ou em dias feriados, tão econômico era, contentando-se com o feijão e o pedaço de carne seca, refeição dos trabalhadores. No entanto sua família vivia na Bahia no maior conforto, em casa grande na Barra, o filho na Escola de Direito, a filha nos bailes da Associação Atlética. A esposa envelhecera precocemente, nos tempos das lutas, nas noites ansiosas quando o coronel partia à frente dos jagunços.
¯ Um anjo de bondade, um demônio de feiúra... ¯ dizia dela João Fulgêncio, quando alguém criticava o abandono em que o coronel deixava a esposa, indo à Bahia só de raro em raro. Mesmo quando sua família residia em Ilhéus ¯ na casa onde agora instalara Glória ¯, nunca deixara o coronel de ter rapariga de mesa e cama. Por vezes, ao chegar da fazenda, era para a filial que se dirigia, ali descia do cavalo, antes mesmo de ir ver a família. Eram seu luxo, sua alegria na vida, essas cabrochas, mulatinhas no verdor dos anos, que o tratavam como se ele fosse um rei. Logo que os filhos chegaram à idade de colégio, transferiu a família para a Bahia, parava na casa da rapariga. Ali recebia os amigos, tratava de negócios, discutia política, estendido numa rede, a pitar um cigarro de palha. O próprio filho ¯ quando nas férias dava um pulo a Ilhéus e à fazenda ¯ ali o devia procurar. Homem de economizar vintém consigo próprio, era mão aberta com as raparigas, gostava de vê-las luxando, abria para elas conta nas lojas.
Antes de Glória, muitas outras haviam se sucedido nas boas graças do coronel, em amigações que em geral duravam certo tempo. Rapariga sua era trancada em casa, pouco saindo, solitária, sem direito a amizades, a visitas. Um monstro de ciúmes, diziam dele.
¯ Não gosto de pagar mulher pros outros... ¯ explicava o coronel quando lhe tocavam no assunto.
Quase sempre era a mulher quem o abandonava, farta daquela vida de cativa, de escrava bem alimentada e bem vestida. Algumas iam parar nas casas de prostituição, outras voltavam para as roças, uma viajara para a Bahia, levada por um caixeiro-viajante. Por vezes, no entanto, era o coronel quem se fartava, precisava carne nova. Descobria, quase sempre em sua própria fazenda ou nos povoados, uma caboclinha simpática, mandava a anterior embora. Nesses casos, gratificava-a bem. Para uma delas, que com ele vivera mais de três anos, montara uma quitanda na rua do Sapo. De quando em quando ia lá visitá-la, sentava-se a conversar, interessava-se pelo andamento dos negócios. Sobre raparigas do coronel Coriolano contavam-se múltiplas histórias.
A de uma certa Chiquinha, de extrema juventude e timidez, ficara como exemplo. Menina de dezesseis anos, parecendo ter medo de tudo, franzina, os olhos meigos saltando do rosto, fôra descoberta e trazida, pelo coronel, de suas terras para uma casa de rua de canto. Lá ele amarrava seu cavalo alazão ao vir à cidade. Andava o coronel pelos seus cinqüenta anos e era ele próprio, tão tímida e encabulada parecia Chiquinha, quem lhe comprava sapatos e cortes de fazenda, vidros de perfume. Ela, mesmo nas horas de completa intimidade, tratava-o respeitosamente de senhor e coronel. Coriolano babava-se de contente
Estudante em férias, Juca Viana descobriu Chiquinha num dia de procissão. Começou a rondar a casa na rua mal iluminada, amigos o avisaram do perigo: com rapariga do coronel Coriolano ninguém se metia, o coronel não era homem de meias-conversas. Juca Viana, segundanista de Direito, tirado a valente, encolheu os ombros. Dissolveu-se a timidez de Chiquinha ante o atrevido bigode estudantil, as roupas elegantes, as promessas de amor. Terminou por abrir a janela, quase sempre fechada quando o fazendeiro não estava. Abriu a porta uma noite, Juca fez-se parceiro do coronel no leito da rapariga. Sócio sem capital e sem obrigações, levando o melhor dos lucros no ardor da paixão, que logo se fez conhecida e comentada na cidade inteira.
Ainda hoje a história, em todos os seus detalhes, é relembrada na Papelaria Modelo, nas conversas das solteironas, ante os tabuleiros de gamão. Juca Viana perdera o senso da prudência, entrava, em plena luz do dia, na casa ¯ de aluguel pago por Coriolano. A tímida Chiquinha transformou-se em atrevida amante, chegando ao cúmulo de sair à noite, de braço dado com Juca, para deitarem-se os dois na praia deserta, sob o luar. Duas crianças pareciam, ela com seus dezesseis, ele com vinte anos incompletos, fugidos de um poema bucólico.
Os cabras do coronel chegaram no princípio da noite, beberam acintosamente umas cachaças no bar mal freqüentado de Toinho Cara de Bode, resmungaram ameaças e partiram para a casa de Chiquinha. Jogavam os amantes jogos de amor no leito pago pelo coronel, apaixonados e confiantes, sorrindo um para o outro, felizes. Os vizinhos próximos ouviam risos e suspiros entrecortados, de quando em vez a voz de Chiquinha num gemido: ai, meu amor! Os cabras entraram pelo quintal, os vizinhos próximos e distantes ouviram novos rumores, toda a rua acordou com os gritos, neutra se reuniu em frente à casa. Foi, segundo contam, surra de criar bicho, no rapaz e na moça; e rasparam o cabelo dos dois, de tranças compridas o de Chiquinha, ondeado e loiro o de Juca Viana, e lhes deram ordens, em nome do indignado coronel, de desaparecer naquela mesma noite e para sempre de Ilhéus.
Juca Viana era agora promotor em Jequié, nem mesmo depois de formado voltara a Ilhéus. De Chiquinha não se teve mais notícia.
Conhecendo essa história, quem se atreveria a transpor, sem expresso convite do coronel, a soleira da porta de rapariga sua? Sobretudo a pesada porta da casa de Glória, a mais apetitosa, a mais esplêndida de quantas mancebas abrigara Coriolano? O coronel envelhecera, sua força política já não era a mesma, mas a lembrança do exemplo de Juca Viana e Chiquinha persistia, e o próprio Coriolano encarregava-se de relembrá-lo quando isso lhe parecia necessário. Recentes eram os sucessos ocorridos no cartório de Tonico Bastos.
DO SIMPÁTICO VILÃO
Tonico Bastos, o homem, por excelência, elegante da cidade, olheiras negras e romântica cabeleira de fios prateados, o paletó azul e a calça branca, os sapatos brilhando de lustro, um verdadeiro dândi, entrava no bar com seu passo despreocupado quando vinham de pronunciar seu nome. Fez-se um silêncio incômodo na roda, ele perguntou suspeitoso:
¯ De que falavam? Ouvi meu nome.
¯ De mulheres, de que havia de ser? ¯ disse João Fulgêncio. ¯ E, falando-se de mulheres, seu nome veio à baila. Como não podia deixar de acontecer...
Abriu-se o rosto de Tonico num sorriso, puxou uma cadeira, aquela fama de conquistador, de irresistível, era sua razão de viver. Enquanto o irmão Alfredo, médico e deputado, examinava crianças em seu consultório, em Ilhéus, fazia discursos na Câmara, na Bahia, ele trocava pernas pelas ruas, metendo-se com raparigas, corneando os fazendeiros nos leitos das concubinas. Mulher nova desembarcada na cidade, sendo bonita, logo encontrava. Tonico Bastos rodando em torno de sua saia, dizendo-lhe galanteios, gentil e ousado. A verdade é que tinha sucesso, e multiplicava esse sucesso nas conversas sobre mulheres. Era amigo de Nacib e vinha, em geral, na hora da sesta, quando o bar cochilava vazio, espantar o árabe com suas histórias, suas conquistas, a ciumieira, das mulheres por sua causa. Não havia em Ilhéus pessoa a quem Nacib tanto admirasse.
As opiniões variavam sobre Tonico Bastos. Uns o consideravam bom rapaz, um pouco interesseiro e um pouco gabola, mas de agradável conversa e, no fundo, inofensivo. Outros achavam-no burro e cheio de si, incapaz e covarde, preguiçoso e suficiente. Mas sua simpatia era indiscutível: aquele sorriso de homem satisfeito com a vida, a conversa cativante. O próprio Capitão o dizia, quando falavam a seu respeito:
¯ É um canalha simpático, um irresistível mau-caráter.
Não conseguira Tonico Bastos passar do terceiro ano de engenharia, nos sete levados a cursar a faculdade, no Rio, para onde o enviara o coronel Ramiro, farto dos seus escândalos na Bahia. Cansado de lhe remeter dinheiro, desiludido de ver aquele filho formado, exercendo a profissão com capricho, como Alfredo, o coronel fê-lo voltar a Ilhéus, arranjou-lhe o melhor cartório da cidade e a noiva mais rica.
Rica, filha única de viúva, órfã de um fazendeiro que deixara a pele no fim das lutas, dona Olga era sobretudo incômoda. Não herdara Tonico a coragem do pai, por mais de uma vez haviam-no visto empalidecer e gaguejar quando envolvido em complicações nas ruas de mulheres, mas nem mesmo isso podia explicar o medo que tinha da esposa. Medo, sem dúvida, de um escândalo a prejudicar o velho Ramiro, homem conceituado e respeitado. Pois dona Olga vivia ameaçando com escândalos, era uma boca de trapo, na sua opinião todas as mulheres andavam atrás de Tonico. A vizinhança ouvia diariamente as ameaças da gorda senhora, os sermões ao marido:
¯ Se um dia eu souber que você anda metido com mulher!...
Em sua casa não parava empregada: dona Olga suspeitava de todas, despedia-as ao menor pretexto, andavam certamente cobiçando seu belo esposo. Olhava com desconfiança as moças do colégio das freiras, as senhoras nos bailes do Clube Progresso, seu ciúme tornara-se lendário em Ilhéus. Seu ciúme e sua má-educação, seus modos brutos, suas gafes colossais.
Não que tivesse conhecimento das aventuras de Tonico, que suspeitasse estar ele em casa de mulheres quando saía à noite para tratar de política, como lhe explicava. O mundo viria abaixo se soubesse. Mas Tonico tinha lábia, encontrava sempre maneira de enganá-la, de acalmar seu ciúme. Não havia homem mais circunspecto do que ele, quando, após o jantar, dava uma volta com a esposa na avenida da praia, tomava um sorvete no Bar Vesúvio, ou a levava ao cinema.
¯ Olhem como ele vai sério com o seu elefante... ¯ diziam, ao vê-lo passar, referindo-se ao seu ar tão digno e à gordura de Olga, estourando os vestidos.
Era outro homem minutos depois, após conduzi-la de volta à casa da rua dos Paralelepípedos, onde também ficava o cartório, quando saía para conversar com os amigos e fazer política. Ia dançar nos cabarés, cear em casas de mulheres, muito requestado; por ele se engalfinhavam raparigas, trocavam insultos, chegavam a agarrar-se pelos cabelos.
¯ Um dia a casa cai... ¯ comentavam. ¯ Dona Olga sabe, vai ser um fim de mundo.
Várias vezes estivera para acontecer. Mas Tonico Bastos envolvia a esposa numa rede de mentiras, aplacava-lhe as suspeitas. Não era barato o preço a pagar pela posição de homem irresistível, de conquistador número um da cidade.
¯ O que é que você me diz do crime? ¯ perguntou Nhô-Galo.
¯ Que horror, hein! Uma coisa assim...
Contaram-lhe das meias pretas, Tonico pinicou um olho entendido. Voltavam a relembrar casos semelhantes, o do coronel Fabrício, que esfaqueara a mulher e mandara os jagunços atirar no amante, quando este voltava de uma reunião na maçonaria. Costumes cruéis, tradição de vingança e sangue. Uma lei inexorável.
Também o árabe Nacib, apesar de suas preocupações ¯ os doces e salgados das irmãs Dos Reis tinham-se evaporado ¯, participava da conversa. E, como sempre, para dizer que na Síria, terra de seus pais, era ainda mais terrível. Parado junto à mesa, de pé, o corpanzil enorme, dominava a assistência.
O silêncio se estendia pelas outras mesas, para melhor ouvi-lo:
¯ Na terra de meu pai ainda é pior.. Lá, honra de homem é sagrada, com ela ninguém brinca. Sob pena de...
¯ De que, árabe?
Passava o olhar demoradamente pelos ouvintes, seus fregueses e amigos, tomava um ar dramático, avançava a cabeçorra:
¯ Lá mulher sem-vergonha se acaba é a faca, devagarinho. Cortando em pedacinhos...
¯ Em pedacinhos? ¯ a voz fanhosa de Nhô-Galo.
Nacib aproximava o rosto balofo, as grandes bochechas cândidas, armava uma cara assassina, torcia a ponta do bigode:
¯ Sim, compadre Nhô, lá ninguém se contenta com matar a desavergonhada, com essa coisa de dois ou três tirinhos nela e no safardana. Lá é terra de homem macho e para mulher descarada o tratamento é outro: cortar a peste em pedacinhos, começando do bico dos peitos...
¯ Do bico dos peitos, que barbaridade ¯ até o coronel Ribeirinho sentia-se estremecer.
¯ Que barbaridade nem nada! Mulher que trai o marido não merece menos. Eu, se fosse casado e minha mulher me iluminasse a testa, ah!, comigo era na lei síria: picadinho com o corpo dela... Não faria por menos.
¯ E o amante? ¯ interessou-se o dr. Maurício Caires, impressionado.
¯ O manchador da honra alheia? ¯ ficou parado, quase tenebroso, levantou a mão, riu um pequeno riso cavo. ¯ O miserável, ah!... Bem seguro por uns quantos homens, desses sírios rijos das montanhas, tiram-lhe as calças, afastam-lhe as pernas... e o marido, com a navalha de barba bem afiada... ¯ baixava a mão num gesto rápido descrevendo o resto.
¯ O quê! Não me diga!
¯ Isso, doutor. Capadinho da silva...
João Fulgêncio passou a mão no queixo:
¯- Estranhos costumes, Nacib. Enfim, cada terra com seu uso...
¯ É o diabo ¯ disse o Capitão. ¯ E, fogosas como são essas turcas, deve haver muito capado por lá...
¯ Também quem manda se meter em casa alheia para roubar o que não é seu. ¯ dr. Maurício aprovava. ¯ E logo a honra de um lar.
O árabe Nacib triunfava, sorria, olhava com carinho seus fregueses. Gostava daquela profissão de dono de bar, daquelas prosas, discussões, das partidas de gamão e damas, do joguinho de pôquer.
¯ Vamos à nossa partida... ¯ convidava o Capitão.
¯ Hoje, não. Muito movimento. E daqui a pouco vou sair, procurar cozinheira.
O Doutor aceitou, foi sentar-se com o Capitão ante o tabuleiro. Nhô-Galo foi com eles, jogaria com o vencedor. Enquanto batiam as pedras, o Doutor ia contando:
¯ Houve um caso parecido com um dos Ávilas... Meteu-se com a mulher de um capataz, foi um escândalo, o marido descobriu...
¯ E capou seu parente?
¯ Quem falou em castrar? O marido apareceu armado, só que meu bisavô atirou antes dele...
A roda dissolvia-se aos poucos, aproximava-se a hora do jantar. Vindos do hotel para o cinema, surgiam, como pela manhã, Diógenes e o casal de artistas. Tonico Bastos queria detalhes:
¯ Exclusividade de Mundinho?
Do tabuleiro de gamão, sentindo-se um pouco senhor dos atos de Mundinho, o Capitão informava:
¯ Não. Não tem nada com ela. Está livre como um passarinho, à disposição...
Tonico assoviou entre dentes. O casal dava boa tarde, Anabela sorria.
¯ Vou até lá, cumprimentá-la em nome da cidade...
¯ Não rnisture a cidade nisso, seu malandro.
¯ Cuidado com a navalha do marido... ¯ riu Nhô-Galo.
¯ Vou com você... ¯ disse o coronel Ribeirinho.
Mas não chegaram a ir, pois apareceu o coronel Amâncio Leal e a curiosidade foi mais forte: sabiam todos ter-se Jesuíno homiziado em sua casa, após o crime. Saciada sua vingança, retirara-se o coronel calmamente, para evitar o flagrante. Atravessara a cidade movimentada pela feira, sem apressar o passo, fôra para a casa do amigo e companheiro dos tempos dos barulhos, mandara avisar ao juiz que no dia seguinte se apresentaria. Para ser imediatamente enviado em paz, aguardar em liberdade o julgamento, como era costume em casos idênticos. O coronel Amâncio procurava alguém com os olhos, aproximou-se dr. Maurício:
¯ Podia lhe dar uma palavra, doutor?
Levantou-se o advogado, andaram os dois para os fundos do bar, o fazendeiro dizia algo, Maurício balançava a cabeça, voltava para buscar o chapéu:
¯ Com licença. Devo retirar-me.
¯ O coronel Amâncio cumprimentava:
¯ Boa tarde, senhores.
Tomavam pela rua cel. Adami, morava Amâncio na praça do grupo escolar. Alguns, mais curiosos, puseram-se de pé para vê-los subindo a rua, silenciosos e graves como se acompanhassem procissão ou enterro.
¯ Vai contratar dr. Maurício para a defesa.
¯ Está em boas mãos. Vamos ter, no júri, o Velho e o Novo Testamento.
¯ Também... Nem precisa advogado. Absolvição certa.
O Capitão voltava-se, segurando uma pedra do gamão, desafogava:
¯ Esse Maurício é um saco de hipocrisia... Viúvo descarado.
¯ Dizem que não há negrinha que se agüente em suas mãos...
¯ Já ouvi falar..
¯Tem uma, do morro do Unhão, vem quase toda noite pra sua casa.
Na porta do cinema voltavam a aparecer o Príncipe e Anabela, Diógenes a comboiá-los com sua cara triste. A mulher tinha um livro na mão.
¯ Vêm para cá... ¯ murmurou o coronel Ribeirinho.
Levantavam-se à aproximação de Anabela, ofereciam cadeiras. O livro, um álbum encadernado em couro, passava de mão em mão. Continha recortes de jornais e opiniões manuscritas sobre a dançarina.
¯ Depois de minha estréia quero a opinião dos senhores todos ¯ estava de pé, não aceitara sentar-se: ¯ já vamos para o hotel, encostava-se na cadeira do coronel Ribeirinho. Estrearia no cabaré naquela mesma noite, no outro dia exibir-se-iam, ela e o Príncipe, no cinema, em números de prestidigitação. Ele hipnotizava, era um colosso na telepatia. Acabavam de fazer uma demonstração para Diógenes, o dono do cinema confessava nunca ter visto nada igual. No átrio da igreja, as solteironas, já tão excitadas com o duplo assassinato, fitavam a cena, apontavam a mulher:
¯ Mais uma para virar a cabeça dos homens...
Anabela perguntava numa voz meiga:
¯ Ouvi dizer que hoje houve um crime aqui?
¯ Verdade. Um fazendeiro matou a mulher e o amante.
¯ Coitadinha... ¯ comoveu-se Anabela, e essa foi a única palavra a lastimar o triste destino de Sinhazinha, nessa tarde de tantos comentários.
¯ Costumes feudais... ¯ pronunciou Tonico Bastos voltado para a dançarina. Aqui ainda vivemos no século passado.
O Príncipe sorria, desdenhoso, aprovou com a cabeça, engoliu a cachaça pura, não gostava de misturas. João Fulgêncio restituía o álbum onde lia elogios ao trabalho de Anabela. O casal despedia-se. Ela queria descansar antes da estréia:
¯ Espero todos hoje no Bataclan.
¯ Lá estaremos, com certeza.
As solteironas enchiam o átrio da igreja, escandalizadas, persignavam-se. Terra de perdição, essa de Ilhéus... No portão da casa do coronel Melk Tavares, o professor Josué conversava com Malvina. Glória suspirava em sua janela solitária. A tarde caía sobre Ilhéus. O bar começava a despovoar-se. O coronel Ribeirinho partira no rastro dos artistas.
Tonico Bastos vinha encostar-se ao balcão, junto à caixa. Nacib vestia o paletó, dava ordens a Chico Moleza e a Bico-Fino. Tonico contemplava absorto o fundo quase vazio do cálice.
¯ Pensando na dançarina? Aquilo é comida de luxo, é preciso gastar os tubos... A concorrência vai ser grande. Ribeirinho já está de olho.
¯ Estava pensando em Sinhazinha. Que horror, seu Nacib...
¯ Já tinham me falado dela com o dentista. Juro que não acreditei. Era tão séria.
¯ Você é um ingênuo ¯ servia-se ele mesmo, íntimo do bar, enchia novamente o copo, mandava botar na conta, pagava no fim do mês. ¯ Mas podia ter sido pior, bem pior.
Nacib baixou a voz, assombrado:
¯ Você também navegou naquelas águas?
Tonico não teve coragem de afirmar, bastava-lhe criar a dúvida, a suspeita. Fez um gesto com a mão.
¯ Parecia tão séria... ¯ a voz de Nacib se acanalhava. ¯ Vai-se ver e debaixo dessa seriedade toda... Você, hein!
¯ Não seja má-língua, árabe. Deixe os mortos em paz.
Nacib abriu a boca, ia dizer qualquer coisa, não disse, apenas suspirou. Então o dentista não tinha sido o primeiro... Esse danado do Tonico, com sua faixa de cabelos brancos, mulherengo como ele só, também a tivera nos braços, tomara daquele corpo. Quantas vezes, ele, Nacib, não a acompanhara com olhos de cobiça e respeito, quando Sinhazinha passava frente ao bar para a igreja.
¯ É por isso que não me caso nem me meto com mulher casada.
¯ Nem eu... ¯ disse Tonico.
¯ Cínico...
Encaminhava-se para a rua:
¯ Vou ver se encontro cozinheira. Chegaram uns retirantes, quem sabe tem alguma que sirva.
Na janela de Glória, o negrinho Tuísca contava-lhe as novidades, detalhes do crime, coisas ouvidas no bar. Agradecida, a mulata afagava a carapinha do moleque, beliscava-lhe o rosto. O Capitão, tendo ganho a partida, olhava a cena:
¯ Êta negrinho feliz!
DA HORA TRISTE DO CREPÚSCULO
Andando para a estrada de ferro, na hora triste do crepúsculo, o chapelão de abas largas, o revólver na cinta, Nacib recordava Sinhazinha. Do interior das casas vinha um ruído de mesas postas, risos e conversas. Falariam certamente de Sinhazinha e de Osmundo. Nacib a recordava com ternura, a desejar, no escondido do coração, fosse esse miserável Jesuíno Mendonça, sujeito arrogante e antipático, condenado pela justiça, coisa impossível, bem certo, porém merecida. Costumes ferozes esses de Ilhéus...
Porque toda aquela fanfarronada de Nacib, suas histórias terríveis da Síria, a mulher picadinha a faca, o amante capado a navalha, era tudo da boca para fora. Como poderia ele achar que mulher moça e bonita pudesse merecer a morte por ter enganado homem velho e bruto, incapaz certamente de um carinho, de uma palavra terna? Essa terra de Ilhéus, sua terra, estava longe de ser realmente civilizada. Falava-se muito em progresso, o dinheiro corria solto, o cacau rasgava estradas, erguia povoados, mudava o aspecto da cidade, mas conservavam-se os costumes antigos, aquele horror. Nacib não tinha coragem de dizer tais coisas em voz alta, só mesmo Mundinho Falcão podia se dar a esse atrevimento, mas, nessa hora melancólica de sombras caindo, ele ia pensando e uma tristeza o invadia, sentia-se cansado.
Por essas e outras ele, Nacib, não se casava: para não ser enganado, não ter de matar, derramar o sangue alheio, enfiar cinco tiros no peito de uma mulher. E bem gostaria de casar.. Sentia falta de um carinho, de ternura, um lar, casa cheia com uma presença feminina a esperá-lo no meio da noite, quando fechasse o bar. Pensamento a persegui-lo de quando em quando, como agora no caminho do mercado dos escravos. Não era homem para andar atrás de noiva, não tinha sequer tempo, o dia inteiro no bar. Sua vida sentimental reduzia-se aos xodós, mais ou menos longos, com raparigas encontradas nos cabarés, mulheres ao mesmo tempo dele e de outros, aventuras fáceis nas quais não cabia o amor. Quando mais jovem, tivera duas ou três namoradas. Mas, como então não podia pensar em casar-se, tudo não passara de conversas sem conseqüência, bilhetinhos marcando encontro nos cinemas, tímidos beijos trocados nas matinês.
Hoje não lhe sobrava tempo para namoros, o bar o ocupava o dia inteiro. Queria era ganhar dinheiro, prosperar, para poder comprar terras onde plantar cacau. Como todos os ilheenses, Nacib sonhava com roças de cacau, terras onde crescessem as árvores de frutos amarelos como ouro, valendo ouro. Talvez então pensasse em casamento. Por ora contentava-se em botar olhos compridos nas belas senhoras que passavam na praça, em Glória inacessível em janela, em descobrir novatas como Risoleta, deitar-se com elas.
Sorriu ao recordar a sergipana da véspera, seu olho um pouco vesgo, sua sabedoria na cama. Iria ou não vê-la novamente naquela noite? Ela o esperaria certamente, no cabaré, mas ele estava cansado e triste. Novamente pensou em Sinhazinha: muitas vezes ficara parado, em frente ao bar, vendo-a passar na praça, entrar na igreja. Os olhos cobiçando o bem do fazendeiro, manchando a honra alheia com o pensamento, já que não podia manchá-la com atos e desatinos. Não sabia palavras bonitas como versos, não tinha melenas ondeadas, não dançava o tango argentino no Clube Progresso. Se o fizesse talvez fosse ele a estar estendido no meio do sangue, o peito furado de balas, ao lado da mulher calçada de meias pretas.
Nacib marcha no crepúsculo, de vez em quando responde a um “boa tarde” seu pensamento longe. O peito furado de balas, os seios alvos da amante rasgados de balas. Via a cena, os dois cadáveres lado a lado, nus em meio ao sangue, ela de meias pretas. Com ligas ¯ talvez ¯ ou sem ligas, como seria? Sem ligas parecia-lhe mais elegante, meias de fina malha prendendo na carne branca sem ajuda de nada. Bonito! Bonito e triste. Nacib suspira, já não enxerga o dentista Osmundo ao lado de Sinhazinha. Era o próprio Nacib quem ele via, um tanto quanto mais magro e menos barrigudo, estendido morto, assassinado, ao lado da mulher. Uma beleza! O peito rasgado de balas. Suspirou novamente. Coração romântico, as histórias terríveis que ele contava nada significavam. Nem o revólver que conduzia no cinto, como todo homem em Ilhéus. Hábitos da terra... Ele gostava mesmo era de comer bem, bons pratos apimentados, beber sua cerveja geladinha, jogar uma apurada partida de gamão, atravessar madrugadas chorando cartas no pôquer, receoso de perder no jogo os lucros do bar, que ele ia depositando no banco, na esperança de comprar terras. De falsificar a bebida para ganhar mais, aumentar cuidadosamente uns mil-réis nas contas dos que pagavam por mês, de acompanhar os amigos ao cabaré, acabar a noite nos braços de uma Risoleta qualquer, xodó de alguns dias. Dessas coisas e das morenas queimadas na cor, ele gostava. De conversar também e rir.
DE COMO NACIB CONTRATOU UMA COZINHEIRA OU DOS COMPLICADOS CAMINHOS DO AMOR
Deixou para trás a feira onde as barracas estavam sendo desmontadas, as mercadorias recolhidas. Atravessou por entre os edifícios da estrada de ferro. Antes de começar o morro da Conquista ficava o mercado dos escravos. Alguém assim apelidara, há tempos, o lugar onde os retirantes acampavam à espera de trabalho. O nome pegara, ninguém chamava de outra maneira. Amontoavam-se ali os sertanejos fugidos da seca, os mais pobres entre quantos deixavam.suas casas e suas terras no apelo do cacau.
Fazendeiros examinavam a leva recente, o chicote batendo nas botas. Os sertanejos gozavam fama de bons trabalhadores.
Homens e mulheres, esgotados e famélicos, esperavam. Viam a feira distante, onde havia de um tudo, uma esperança enchia-lhes o coração. Tinham conseguido vencer os caminhos, a caatinga, a fome e as cobras, as moléstias endêmicas, o cansaço. Atingiam a terra farta, os dias de miséria pareciam terminados. Ouviam contar histórias espantosas, de morte e violência, mas sabiam do preço do cacau em alta, sabiam de homens chegados como eles, do sertão em agonia, e agora andando de botas lustrosas, empunhando chicotes de cabo de prata. Donos de roças de cacau.
Na feira explodia uma rixa, gente corria, uma navalha brilhava aos últimos raios do sol, os gritos chegavam até ali. Todo fim de feira era assim, com bêbedos e barulhos. Do meio dos sertanejos subiam sons melodiosos de harmônica, uma voz de mulher cantava toadas. O coronel MeIk Tavares fez um sinal ao tocador de harmônica, o instrumento silenciou:
¯ Casado?
¯ Inhô não.
¯ Quer trabalhar para mim? ¯ apontava outros homens já selecionados por ele. ¯ Um bom tocador nunca é demais numa fazenda. Alegra as festas... ¯ ria convincente, dele diziam saber escolher como ninguém homens bons para o trabalho. Suas fazendas ficavam em Cachoeira do Sul, as grandes canoas estavam esperando ao lado da ponte da estrada de ferro.
¯ De agregado ou de empreiteiro?
¯ A escolher. Tenho umas matas a derrubar, preciso de empreiteiros; os sertanejos preferiam as empreitadas, o plantio de cacau novo, a possibilidade de ganhar dinheiro por sua conta e risco.
¯ Inhô sim.
Melk avistava Nacib, pilheriava:
¯ Botou roça, Nacib, vem contratar alugados?
¯ Quem sou eu, coronel... Busco cozinheira, a minha foi embora hoje...
¯ E o que me diz do sucedido? O Jesuíno...
¯ Pois é... Uma coisa assim, de repente...
¯ Já lhe levei meu abraço na casa do Amâncio. É que subo para a fazenda ainda hoje, levando esses homens... Com o sol, vai ser uma safra e tanto ¯ mostrava os homens que selecionara, agora agrupados a seu lado. ¯ Esses sertanejos são bons no trabalho. Não é como essa gente daqui. Grapiúna não gosta de pegar no pesado, gosta é de ficar vagabundando na cidade...
Outro fazendeiro percorria os grupos, MeIk continuava:
¯ Sertanejo não mede trabalho, quer é ganhar dinheiro. As cinco da manhã já estão na roça, só largam a enxada depois do sol deitar. Tendo feijão e carne seca, café e pinga, estão contentes. Pra mim, não há trabalhador que valha esses sertanejos ¯ afirmava como autoridade na matéria.
Nacib examinava os homens contratados pelo coronel, aprovava a escolha. Invejava o outro, dono de terras, montado em suas botas, contratando homens para a lavoura. Quanto a ele, buscava apenas uma mulher não muito moça, séria, capaz de assegurar-lhe a limpeza da pequena casa da ladeira de São Sebastião, a lavagem da roupa, a comida para ele, os tabuleiros para o bar. Nisso estivera o dia inteiro, andando de um lado para o outro.
¯ Cozinheira por aqui é dureza... ¯ dizia Melk.
Instintivamente, Nacib buscava entre as sertanejas alguma parecida com Filomena, mais ou menos de sua idade, com seu jeito resmungão. O coronel MeIk apertava-lhe a mão, as canoas o esperavam já carregadas:
¯ Jesuíno agiu direito. Homem de honra...
Também Nacib vendia suas novidades:
¯ Consta que vem um engenheiro estudar a barra.
¯ Ouvi falar. Tempo perdido, essa barra não tem conserto.
Nacib saiu andando entre os sertanejos. Velhos e moços lançavam-lhe olhares, numa esperança. Poucas mulheres, quase todas com filhos agarrados nas saias. Finalmente reparou numa de seus cinqüenta anos, grandona, robusta, sem marido:
¯ Ficou no caminho, inhô...
¯ Sabe cozinhar?
¯ Pra mesa posta, não.
Meu Deus, onde encontrar cozinheira? Não podia ficar pagando fortunas às irmãs Dos Reis. E logo em dias de movimento, hoje assassinatos, amanhã enterros... E, ainda pior, ter de almoçar e jantar no Hotel Coelho, aquela porcaria de comida sem gosto. O jeito era encomendar em Aracaju, pagar a passagem. Parou ante um velha, mas tão velha que certamente apenas teria tempo de morrer ao chegar em sua casa. Dobrava-se num bastão, como conseguira atravessar tanto caminho até Ilhéus? Chegava a dar aflição, tão velha e ressequida, um resto de gente. Tanta desgraça no mundo...
Foi quando surgiu outra mulher, vestida de trapos miseráveis, coberta de tamanha sujeira que era impossível ver-lhe as feições e dar-lhe idade, os cabelos desgrenhados, imundos de pó, os pés descalços. Trazia uma cuia com água, entregou nas mãos trêmulas da velha, que sorveu ansiosa.
¯ Deus lhe pague...
¯ Não tem de que, avó... ¯ era uma voz de jovem, talvez a voz a cantar modas quando Nacib chegara.
O coronel Melk e seus homens desapareciam por detrás dos vagões da estrada de ferro, o tocador de harmônica parava um instante, acenava adeus. A mulher levantou o braço, sacudiu a mão, voltou-se novamente para a anciã, recebeu a cuia vazia. Ia retirar-se, Nacib perguntou-lhe, ainda na admiração da velha alquebrada:
¯ É sua avó?
¯ Não, moço ¯ parou e sorriu, e só então Nacib constatou tratar-se realmente de uma jovem, porque os olhos brilhavam enquanto ela ria. ¯ A gente encontrou ela no caminho, há uns quatro dias de viagem.
¯ A gente, quem?
¯ Acolá... ¯ apontou um grupo com o dedo e novamente riu um riso claro, cristalino, inesperado. ¯ A gente saiu junto, do mesmo lugar. A seca matou tudo que era bicho vivente, secou tudo que era água, árvore virou graveto seco. No caminho a gente encontrou outros. Tudo fugindo.
¯ Você é parente deles?
¯ Não, moço. Sou só no mundo. Meu tio vinha comigo, entregou a alma antes de chegar a Jeremoabo. A tal de tísica... ¯ e riu como se fosse coisa para rir.
¯ Não era você que estava cantando há pouquinho?
¯ Era, sim senhor. Tinha um moço tocador, foi contratado pra roça, diz que vai enricar aqui. A gente canta, esquece os maus pedaços...
A mão segurava a cuia, encostada na anca. Nacib a examinava sob a sujeira. Parecia forte e disposta.
¯ O que é que você sabe fazer?
¯ De tudo um pouco, seu moço.
¯ Lavar roupa?
¯ E quem não sabe? ¯ espantava-se. ¯ Basta ter água e sabão.
¯ E cozinhar?
¯ Já fui cozinheira até de casa rica... ¯ e novamente riu como se recordasse algo divertido.
Talvez porque ela risse, Nacib concluiu que não servia. Essa gente vinda do sertão, esfomeada, era capaz de qualquer mentira para conseguir trabalho. Que podia ela saber de cozinha? Assar jabá e cozinhar feijão, nada mais. Ele precisava de mulher idosa, séria, limpa e trabalhadora, assim como a velha Filomena. E boa cozinheira, entendendo de temperos, de pontos de doces. A moça continuava parada, esperando, a fitá-lo no rosto. Nacib sacudiu a mão sem achar o que dizer:
¯ Bem... Até outra. Boa sorte.
Virou as costas, ia saindo, ouviu a voz atrás dele, arrastada e quente:
¯ Que moço bonito!
Parou. Não se lembrava de ninguém achá-lo bonito, à exceção da velha Zoraia, sua mãe, nos dias de infância. Foi quase um choque.
¯ Espere.
Voltou a examiná-la, era forte, por que não experimentá-la?
¯ Sabe mesmo cozinhar?
¯ O moço me leva e vai ver..
Se não soubesse cozinhar, serviria ao menos para arrumar a casa, lavar a roupa.
¯ Quanto quer ganhar?
¯ O moço é que sabe. O que quiser pagar..
¯ Vamos ver primeiro o que você sabe fazer. Depois acertamos o ordenado. Lhe serve?
¯ Pra mim, o que o moço disser, tá bom.
¯ Então pegue sua trouxa.
Ela riu novamente, mostrando os dentes brancos, limados. Ele estava cansado, já começava a achar que tinha feito uma besteira. Ficara com pena da sertaneja, ia levar um trambolho para casa. Mas era tarde para arrepender-se. Se pelo menos soubesse lavar...
Voltou com um pequeno atado de pano, pouca coisa possuía. Nacib saiu andando devagar. A trouxa na mão, ela o acompanhava poucos passos atrás. Quando já iam saindo da estrada de ferro, ele voltou a cabeça e perguntou:
¯ Como é mesmo seu nome?
¯ Gabriela, pra servir o senhor.
Continuaram andando, ele na frente, novamente pensando em Sinhazinha, o dia agitado, de encalhe de navio e crime de morte. Sem falar nos segredinhos do Capitão, do Doutor e de Mundinho Falcão. Ali havia coisa, a ele, Nacib, não enganavam. Não tardaria a surgir novidade. A verdade é que, com a notícia do crime, até daquilo esquecera, o ar conspirativo dos três, a raiva do coronel Ramiro Bastos. O crime a todos empolgara, tudo mais ficara em segundo plano. O pobre dentista, rapaz simpático, pagara caro seu desejo de mulher casada. Era correr muito risco meter-se com esposa dos outros, terminava-se com uma bala no peito. Tonico Bastos que tomasse cuidado, senão um dia ia lhe acontecer coisa semelhante. Teria ele realmente dormido com Sinhazinha, ou era prosa sua, gabação para impressioná-lo? De qualquer maneira, Tonico corria risco, um dia ainda lhe sucederia uma desgraça. Nacib refletia:quem sabe?, talvez valesse a pena correr todos os riscos por um olhar, um suspiro, um beijo de mulher.
Gabriela ia uns passos atrás com sua trouxa, já esquecida de Clemente, alegre de sair do amontoado de retirantes, do acampamento imundo. Ia rindo com os olhos e a boca, os pés descalços quase deslizando no chão, uma vontade de cantar as modas sertanejas, só não cantava porque talvez o moço bonito e triste não gostasse.
DA CANOA NA SELVA
¯ Diz que o coronel Jesuíno matou a mulher lá dele e um doutor que dormia com ela. É mesmo verdade, coronel? ¯ perguntou um remeiro a Melk Tavares.
¯ Também ouvi falar... ¯ disse outro.
¯ Verdade, sim. Apanhou a mulher na cama com o dentista. Despachou os dois.
¯ Mulher é bicho ruim, faz a desgraça da gente.
A canoa subia o rio, a selva crescia nos barrancos, os sertanejos olhavam a paisagem inédita, um vago terror no coração. A noite precipitava-se das árvores sobre as águas, assustadora. A canoa era quase um batelão de tão grande, descia carregada de sacos de cacau, voltava cheia de mantimentos. Os remeiros curvavam-se num esforço descomunal, avançavam lentamente. Um deles acendeu uma lamparina na popa, a luz vermelha criava sombras fantásticas no rio.
¯ Lá no Ceará sucedeu um caso parecido... ¯ começou um sertanejo a contar.
¯ Mulher é enganadeira, a gente nunca sabe que coisa mulher tá maginando... Conheci uma, parecia uma santa, ninguém podia pensar... ¯ lembrou o negro Fagundes.
Clemente ia silencioso. MeIk Tavares puxava conversa com os novos agregados, querendo saber de cada um, as qualidades e os defeitos de seus trabalhadores, seu passado. Os sertanejos iam contando, as histórias assemelhavam-se, a mesma terra árida queimada pela seca, o milharal, o mandiocal perdidos, a caminhada imensa. Eram sóbrios no narrar. Chegavam por lá notícias de Ilhéus: a terra rica, o dinheiro fácil. Lavoura de futuro, barulhos e mortes. Quando a seca batia, largavam tudo e rumavam para o sul. O negro Fagundes era mais falador, contava valentias.
Eles também desejavam saber:
¯ Diz que tem ainda muita mata pra derrubar..
¯ Pra derrubar, tem muita. Pra medir é que não tem mais. Tudo já tem dono ¯ riu um remeiro.
¯ Mas ainda há dinheiro a ganhar, e muito, para um homem trabalhador ¯ consolou MeIk Tavares.
¯ Só que aquele tempo quando o cujo chegava com as mãos abanando, com a cara e a coragem, e ia pra mata plantar roça, se acabou. Naquele tempo era bom... Bastava ter peito, tocar pra frente, liquidar quatro ou cinco que tinham a mesma tenção, e o cidadão tava rico...
¯ Ouvi falar desse tempo... ¯ disse o negro Fagundes. ¯ Foi por isso que vim...
¯ Não gosta da enxada, moreno? ¯ perguntou Melk.
¯ Não desprezo, não sinhô. Mas manejo melhor o pau-de-fogo... ¯ riu acariciando a repetição.
¯ Ainda há matas e grandes. Lá para a serra do Baforé, por exemplo. Terra boa para o cacau como não há outra...
¯ Só que é preciso comprar cada palmo de mata. Tudo tá medido e registrado. O senhor mesmo tem terras por lá.
¯ Um pedacinho... ¯ confessou Melk. ¯ Coisa à toa. Vou começar a derrubar a mata no ano que vem, se Deus quiser.
¯ Hoje Ilhéus não vale mais nada, não é como dantes. Tá virando lugar importante ¯ lastimou-se um remeiro.
¯ E por isso não presta?
¯ Dantes, um homem valia pela coragem. Hoje só quem enriquece é turco mascate e espanhol de armazém. Não é como antigamente...
¯ Aquele tempo acabou ¯ explicou Melk. ¯ Agora chegou o progresso, as coisas são diferentes. Mas um homem trabalhador ainda se arranja, ainda há lugar pra todo mundo.
¯ Não se pode mais nem dar uns tiros na rua... Querem logo prender a gente.
A canoa subia vagarosa, as sombras da noite a envolviam, gritos de animais chegavam da selva, papagaios faziam súbita algazarra nas árvores. Só Clemente ia silencioso, todos os demais participavam da conversa, contavam casos, discutiam sobre Ilhéus.
¯ Essa terra vai crescer demais é no dia que começar a exportação direta.
¯ É Mesmo.
Os sertanejos não entendiam, Melk Tavares explicou: todo o cacau para o estrangeiro, para a Inglaterra, a Alemanha, a França, os Estados Unidos, a Escandinávia, a Argentina, saía pelo porto da Bahia. Um dinheirão de impostos, a renda da exportação, tudo ficava na capital, Ilhéus não via nem as sobras. A barra era estreita, pouco profunda. Só com muito trabalho ¯ havia até quem dissesse não haver jeito ¯ seria possível capacitá-la para a passagem dos grandes navios. E, quando os grandes cargueiros viessem buscar o cacau no porto de Ilhéus, então poder-se-ia falar realmente em progresso...
¯ Agora só se fala num tal de seu Mundinho Falcão, coronel. Diz que ele vai resolver.. Que é um homem danado.
¯ Tá pensando na moça? ¯ perguntou Fagundes a Clemente.
¯ Nem me disse até logo... Nem me olhou de despedida.
¯ Ela tava virando tua cabeça. Tu não era mais o mesmo.
¯ Como se a gente nem se conhecesse... Nem até logo.
¯ Mulher é assim mesmo. Num vale a pena.
¯ É um homem de muita ambição. Mas, como vai poder resolver o caso da barra se nem compadre Ramiro deu jeito? ¯ Melk falava sobre Mundinho Falcão.
A mão de Clemente acariciou a harmônica no fundo da canoa, ouviu a voz de Gabriela cantando. Olhou em torno, como a procurá-la: a selva cercando o rio, árvores e um intrincado de cipós, gritos amedrontadores e pios agourentos de corujas, uma exuberância de verde fazendo-se negro, não era como a caatinga cinzenta e nua. Um remeiro estendeu o dedo mostrando um lugar na mata:
¯ Foi por aqui o tiroteio entre Onofre e os cabras de seu Amâncio Leal... Morreu bem uns dez.
Dinheiro a ganhar naquela terra, era preciso não ter medo do trabalho. Ganhar dinheiro e voltar à cidade em busca de Gabriela. Haveria de encontrá-la, fosse como fosse.
¯ Melhor é não pensar, tirar ela da cabeça ¯ aconselhou Fagundes. Os olhos do negro perscrutavam a selva, sua voz fez-se suave para falar de Gabriela. ¯ Tira ela da cabeça. Não é mulher pra tu nem pra mim. Não é como essas quengas, é...
¯ Tou com ela metida em meu juízo, mesmo querendo não posso.
¯ Tu tá maluco. Ela não é mulher pra se viver cum ela.
¯ Que é que tu tá dizendo?
¯ Num sei... Pra mim é assim. Tu pode dormir com ela, fazer as coisas. Mas ter ela mesmo, ser dono dela como é de outras, isso ninguém vai nunca ser.
¯ E por quê?
¯ Num sei, o diabo é que sabe. Num tem explicação.
Sim, o negro Fagundes tinha razão. Dormiam juntos à noite, no outro dia era como se ela nem se recordasse, olhava-o como aos outros, tratava-o como aos demais. Como se não tivesse nenhuma importância...
As sombras cobrem e cercam a canoa, a selva parece aproximar-se mais e mais, fechando-se sobre eles. O pio das corujas corta a escuridão. Noite sem Gabriela, seu corpo moreno, seu riso sem motivo, sua boca de pitanga. Nem lhe disse até logo. Mulher sem explicação. Uma dor sobe pelo peito de Clemente. E de súbito a certeza de que jamais voltará a vê-la, tê-la nos braços, esmagá-la contra o peito, ouvir seus ais de amor.
O coronel Melk Tavares, no silêncio da noite, ergueu a voz, ordenou a Clemente:
¯ Toca alguma coisa pra gente, rapaz. Pra disfarçar o tempo.
Tomou da harmônica. Entre as árvores crescia a lua sobre o rio. Clemente enxerga o rosto de Gabriela. Brilham luzes de fifós e lamparinas ao longe. A música se eleva num choro de homem perdido, solitário para sempre. Na selva, rindo, aos raios da lua, Gabriela.
GABRIELA ADORMECIDA
NACIB a levara até a casa na ladeira de São Sebastião. Apenas meteu a chave na fechadura e dona Arminda, fremente, apareceu na janela:
¯ Que coisa, hein, seu Nacib? Parecia tão distinta, tão cheia de nós pelas costas, toda tarde na igreja. É por isso que eu digo sempre... ¯ bateu os olhos em Gabriela, ficou com a frase suspensa.
¯ Tomei de empregada. Pra lavar e cozinhar.
Dona Arminda examinava a retirante, de alto a baixo, como a medi-la e a pesá-la. Oferecia seus préstimos:
¯ Se precisar de alguma coisa, menina, é só me chamar. Os vizinhos são para se ajudar, não é? Só que hoje de noite não vou estar. É dia de sessão em casa do compadre Deodoro, dia do finado conversar comigo... É até capaz que dona Sinhazinha apareça... ¯ seus olhos iam de Gabriela para Nacib.
¯ Moça, hein? Agora não quer mais velhas como Filomena... ¯ ria seu riso cúmplice.
¯ Foi o que arranjei...
¯ Pois, como eu ia dizendo: para mim não foi surpresa, ainda outro dia vi o tal dentista na rua. Por coincidência, era dia de sessão, hoje faz uma semana direitinho. Olhei para ele e ouvi a voz do finado no meu ouvido, dizendo: Tá aí, todo prosa, tá morto. Pensei que o finado tava brincando. Só hoje, quando soube, é que me dei conta, o finado tava me avisando. Voltava-se para Gabriela, Nacib já tinha entrado:
¯ Qualquer coisa que precise, é só chamar. Amanhã a gente conversa. Tou aqui pra ajudar, seu Nacib é mesmo que parente. É patrão de meu Chico...
Nacib mostrou-lhe o quarto no quintal, antes ocupado por Filomena, explicou-lhe o serviço: arrumação da casa, lavagem da roupa suja, cozinhar para ele. Não falou dos doces e salgados para o bar, primeiro queria ver que espécie de comida ela sabia fazer. Mostrou-lhe a despensa onde Chico Moleza deixara as compras da feira.
¯ Qualquer coisa, pergunte a dona Arminda.
Estava com pressa, a noite chegara, o bar em pouco ficaria novamente cheio e ele ainda devia jantar. Na sala, Gabriela, os olhos arregalados, olhava o mar noturno, era a primeira vez que o via. Nacib disse-lhe em despedida:
¯ E tome um banho, está precisada.
No Hotel Coelho encontrou Mundinho Falcão, o Capitão e o Doutor jantando juntos. Sentou-se naturalmente na mesa deles, foi logo contando da cozinheira. Os outros ouviam em silencio, Nacib compreendeu ter interrompido conversa importante. Falaram do crime da tarde, ele apenas iniciara o jantar quando os amigos, já no fim, se retiraram. Ficou a refletir. Aqueles três andavam arquitetando coisas. Que diabo seria?
O bar, naquela noite, não lhe deu descanso. Andou numa roda viva, as mesas cheias, todo mundo querendo comentar os acontecimentos. Por volta das dez horas o Capitão e o Doutor apareceram, acompanhados de Clóvis Costa, o diretor do Diário de Ilhéus. Vinham da casa de Mundinho Falcão, anunciavam que o exportador apareceria no Bataclan por volta de meia-noite, para a estréia de Anabela. Clóvis e o Doutor conversavam em voz baixa, Nacib apurou o ouvido.
Noutra mesa, Tonico Bastos contava do jantar, verdadeiro banquete, em casa de Amâncio Leal. Com vários amigos de Jesuíno Mendonça, inclusive o dr. Maurício Caires, encarregado da defesa do coronel Rega bofe monumental, com vinho português, comida e bebida em abundância.
Nhô-Galo achava aquilo um absurdo. Com o corpo da mulher ainda quente, não havia direito... Ari Santos contou do velório de Sinhazinha, em casa de uns parentes: velório triste e pobre, meia dúzia de pessoas. Quanto ao de Osmundo, nem valia a pena falar. Tinha horas que o corpo do dentista ficava só com a empregada. Ele passara por lá, afinal conhecia o morto, privara com ele nas sessões do Grêmio Ruí Barbosa.
¯ Daqui a pouco vou até lá... ¯ disse o Capitão. ¯ Era bom rapaz e talento não lhe faltava. Versos supimpas...
¯ Eu também vou - solidarizava-se Nhô-Galo.
Nacib fora com eles e mais alguns, por curiosidade, por volta das onze horas quando o movimento diminuía no bar. As faces sem sangue, Osmundo sorria na morte, Nacib ficou impressionado. As mãos cruzadas, lívidas.
¯ Os tiros acertaram no peito. No coração.
Terminou indo mesmo ao cabaré, apreciar a dançarina, tirar da cabeça a visão do morto. Sentou-se numa mesa com Tonico Bastos. Dançavam em torno. Noutra sala, separada por um corredor, jogavam. O dr. Ezequiel Prado, já bastante alto, veio sentar-se com eles. Apoiava o indicador no peito de Nacib:
¯ Me disseram que você tá enrabichado com aquela zarolha ¯ apontava Risoleta a dançar com um caixeiro-viajante.
¯ Enrabichado? Não. Tive com ela ontem, foi tudo.
¯ Não gosto de me meter com xodó de amigos. Por isso perguntei. Mas se é assim... Ela é um pirãozinho, não é?
¯ E Marta, dr. Ezequiel?
¯ Fez de besta, meti-lhe a mão. Não vou hoje lá.
Tomava o copo de Tonico, bebia de um trago. As brigas do advogado e da rapariga, uma loira por ele mantida há alguns anos, eram constante prato da cidade, sucediam-se a cada três dias. Quanto mais a surrava, bêbedo, mais ela se agarrava a ele, apaixonada, indo buscá-lo nos cabarés, nas casas de mulheres, tirando-o por vezes da cama de outra. A família do advogado vivia na Bahia, era separado da esposa.
Levantou-se, cambaleante, meteu-se no meio dos dançarinos, separou Risoleta de seu par. Tonico Bastos anunciou:
¯ Vai haver barulho.
Mas o caixeiro-viajante conhecia o dr. Ezequiel, sua fama, abandonou-lhe a mulher, procurou outra com os olhos. Risoleta resistia, Ezequiel segurou-lhe o pulso, tomou-a nos braços.
¯ Perdeste a comida... ¯ riu Tonico Bastos.
¯ Um favor que ele me faz. Não quero nada com ela hoje, tou morto de cansado. Logo que a tal dançar, dou o fora. Tive um dia de cão.
¯ E a cozinheira?
¯ Terminei por arranjar uma, sertaneja.
¯ Jovem?
¯ Sei lá... Parece. Com tanta sujeira não dava pra ver. Essa gente não tem idade, seu Tonico, mesmo as meninas parecem velhas.
¯ Bonita?
¯ Como vou saber? Uns molambos, uma imundície, os cabelos duros de pó. Há de ser uma bruxa, minha casa não é como a sua onde empregada até parece moça de sociedade.
¯ Se Olga deixasse, bem que seria assim. Mas basta que a pobre tenha cara de gente e vai pro meio da rua com desaforos.
¯ Dona Olga não é de brincadeira. E faz bem. Você só mesmo de rédea curta.
Tonico Bastos fez um gesto de falsa modéstia:
¯ Também não exagere, homem. Quem lhe visse falar...
Mundinho Falcão chegava com o coronel Ribeirinho, sentavam-se com o Capitão.
¯ E o Doutor?
¯ Não vem nunca ao cabaré. Nem à força.
Nho-Galo aproximou-se de Nacib:
¯ Largou a zinha pra Ezequiel? Hoje quero é dormir.
¯ Pois eu vou à casa de Zilda. Me disseram que tem uma pernambucana, um pancadão ¯ estalava a língua. - Talvez apareça por aqui...
¯ Uma de tranças?
¯ Isso. De bunda grande...
¯ Tá no Trianon. Toda noite tá lá... ¯ esclareceu Tonico. É protegida do coronel MeIk, ele a trouxe da Bahia. Tá de beiço caído...
¯ O coronel foi hoje pra fazenda. Vi quando embarcou ¯ informou Nacib. ¯ Tava contratando trabalhadores no mercado dos escravos.
¯ Me toco pro Trianon...
¯ Antes da dançarina?
¯ Logo depois.
O Bataclan e o Trianon eram os principais cabarés de Ilhéus, freqüentados pelos exportadores, fazendeiros, comerciantes, viajantes de grandes firmas. Mas nas ruas de canto havia outros, onde se misturavam trabalhadores do porto, gente vinda das roças, as mulheres mais baratas. O jogo era franco em todos eles, garantindo os lucros.
Uma pequena orquestra animava as danças. Tonico foi tirar uma mulher, Nhô-Galo olhava o relógio, já era hora da dançarina, ele estava impaciente. Queria ir ao Trianon ver a de tranças, a do coronel Melk..
Era quase uma da manhã quando a orquestra cessou e as luzes se apagaram. Ficaram apenas umas pequenas lâmpadas azuis, da sala de jogo veio muita gente, espalhando-se pelas mesas, outros de pé junto às portas. Anabela surgiu dos fundos, enormes leques de penas nas mãos. Os leques a cobriam e a descobriam, mostravam pedaços do corpo.
O Príncipe, de smoking, martelava o piano. Anabela dançava no meio da sala, sorrindo para as mesas. Foi um sucesso. O coronel Ribeirinho pedia bis, aplaudia de pé. As luzes voltavam a se acender, Anabela agradecia as palmas, vestida com uma malha cor de carne.
¯ Porcaria... A gente pensa que está vendo carne, é fazenda cor-de-rosa... ¯ comentou Nhô-Galo.
Sob aplausos, ela retirou-se para voltar minutos depois num segundo número mais sensacional ainda: coberta de véus multicores que iam caindo um a um, como anunciara Mundinho.
E durante um breve minuto, quando caiu o último véu e as luzes novamente se acenderam, puderam ver o corpo magro e bem feito, quase nu, apenas uma tanga mínima e um trapo vermelho sobre os seios pequenos. A sala gritava em coro, reclamava bis, Anabela passava correndo entre as mesas. O coronel Ribeirinho mandava descer champanha.
¯ Agora valeu a pena... ¯ até Nhô-Galo estava entusiasmado. Anabela e o Príncipe foram para a mesa de Mundinho Falcão. ¯ É tudo por minha conta, ¯ dizia Ribeirinho. A orquestra voltava a tocar, dr. Ezequiel arrastava Risoleta, tombando sobre as cadeiras. Nacib resolveu ir embora. Tonico Bastos, os olhos em Anabela, mudara-se para a mesa de Mundinho. Nhô-Galo desaparecera. A dançarina sorria, levantava a taça de champanha:
¯ À saúde de todos! Ao progresso de Ilhéus!
Batiam palmas, aplaudindo. Nas mesas vizinhas olhavam com inveja. Muitos iam para a outra sala, jogar. Nacib desceu as escadas.
Atravessou as ruas silenciosas. Na casa do dr. Maurício Caires filtrava-se a luz pela janela. Devia estar começando a estudar o caso de Jesuíno, a preparar dados para a defesa, pensou Nacib, recordando os indignados propósitos do advogado no bar. Mas um riso de mulher saiu pelas frinchas da janela, morreu na rua. Diziam que o viúvo levava, à noite, negrinhas do morro para sua casa. Ainda assim não podia Nacib adivinhar que o causídico, àquela hora, talvez por interesse puramente profissional, exigia de uma cabrocha do Unhão, mulatinha banguela e espantada, deitar-se calçada unicamente com umas meias pretas de algodão, vestida apenas com elas.
¯ Se vê cada coisa nesse mundo... ¯ a cabrocha ria por entre os dentes falhos e podres.
Nacib sentia o cansaço do dia trabalhoso. Tinha conseguido saber, finalmente, o motivo daquelas idas e vindas de Mundinho, dos segredos com o Capitão e o Doutor, da entrevista secreta com Clóvis. Relacionavam-se com o caso da barra. Surpreendera pedaços de conversas. Pelo que diziam, iriam chegar engenheiros, dragas, rebocadores. Doesse a quem doesse, grandes navios estrangeiros entrariam no porto, viriam buscar cacau, começaria a exportação direta. A quem podia doer? Não era, por acaso, a luta aberta com os Bastos, com o coronel Ramiro? O Capitão sempre desejara mandar na política local. Mas não era fazendeiro, não tinha dinheiro para gastar. Estava explicada sua amizade com Mundinho Falcão, acontecimentos sérios se anunciavam.
O coronel Ramiro não era homem, apesar da idade, para cruzar os braços, entregar-se sem luta. Nacib não queria meter-se nessa história. Era amigo de uns e de outros, de Mundinho e do coronel, do Capitão e de Tonico Bastos. Dono de bar não pode se envolver em política. Só traz prejuízo. Mais perigoso ainda que meter-se com mulher casada.
Sinhazinha e Osmundo não veriam os rebocadores e dragas no porto, cavando a barra. Não veriam esses dias de tanto progresso sobre os quais Mundinho falava. Esse mundo é assim, feito de alegrias e tristezas.
Contornou a igreja, começou a subir vagarosamente a ladeira. Será mesmo que Tonico Bastos havia dormido com Sinhazinha? Ou era conversa para impressionar? Nhô-Galo afirmava que Tonico mentia descaradamente. Em geral ele não se metia com mulher casada. Rapariga, isso sim, não respeitava dono. Sujeito de sorte. Também com aquela elegância, cabelo prateado, a voz sussurrante. Bem que Nacib gostaria de ser como ele, olhado com desejo pelas mulheres, merecendo ciúmes violentos. Ser amado com loucura, assim como Lídia, rapariga do coronel Nicodemos, amava Tonico. Mandava-lhe recados, atravessava ruas para vê-lo, suspirava por ele que nem mais ligava para ela, farto de tanta devoção. Por ele, Lídia arriscava todos os dias sua situação, por um olhar, uma palavra sua. Rapariga, Tonico não respeitava de ninguém, a não ser Glória e todos sabiam por quê. Mas com mulher casada não sabia que ele se metesse.
Enfiou a chave na fechadura, arfando da subida, a sala estava iluminada. Seria ladrão? Ou bem a nova empregada esquecera de fechar a luz?
Entrou de mansinho e a viu dormida numa cadeira, os cabelos longos espalhados nos ombros. Depois de lavados e penteados tinham-se transformado em cabeleira solta, negra, encaracolada. Vestia trapos, mas limpos, certamente os da trouxa. Um rasgão na saia mostrava um pedaço de coxa cor de canela, os seios subiam e desciam levemente ao ritmo do sono, o rosto sorridente.
¯ Meu Deus! ¯ Nacib ficou parado sem acreditar.
A espiá-la, num espanto sem limites, como tanta boniteza se escondera sob a poeira dos caminhos? Caído o braço roliço, o rosto moreno sorrindo no sono, ali, adormecida na cadeira, parecia um quadro. Quantos anos teria? Corpo de mulher jovem, feições de menina.
¯ Meu Deus, que coisa! ¯ murmurou o árabe quase devo-tamente.
Ao som de sua voz, ela despertou amedrontada mas logo sorriu e toda a sala pareceu sorrir com ela. Pôs-se de pé, as mãos ajeitando os trapos que vestia, humilde e risonha, coberta pelo luar.
¯ Por que não deitou, não foi dormir? ¯ foi tudo que Nacib acertou dizer.
¯ O moço não disse nada...
¯ Que moço?
¯ O senhor... já lavei roupa, arrumei a casa. Depois fiquei esperando, peguei no sono ¯ uma voz cantada de nordestina.
Dela vinha um perfume de cravo, dos cabelos talvez, quem sabe do cangote.
¯ Você sabe mesmo cozinhar? Luz e sombra em seu cabelo, os olhos baixos, o pé direito alisando o assoalho como se fosse sair a dançar.
¯ Sei, sim senhor. Trabalhei em casa de gente rica, me ensinaram. Até gosto de cozinhar... ¯ sorriu e tudo sorriu com ela, até o árabe Nacib deixando-se cair numa cadeira.
¯ Se você sabe mesmo cozinhar, lhe faço um ordenadão. Cinqüenta mil-réis por mês. Aqui pagam vinte, trinta é o mais. Se o serviço lhe parecer pesado, pode arranjar uma menina para lhe ajudar. A velha Filomena não queria nenhuma, nunca aceitou. Dizia que não estava morrendo para precisar ajudante.
¯ Também não preciso.
¯ E o ordenado? Que me diz?
¯ O que o moço quiser pagar, tá bom pra mim...
¯ Vamos ver a comida amanhã. Na hora do almoço mando o moleque buscar.. Como mesmo no bar. Agora...
Ela estava esperando, o sorriso nos lábios, a réstia de luar nos seus cabelos e aquele cheiro de cravo.
¯... agora vá dormir que já é tarde.
Ela foi saindo, ele espiou-lhe as pernas, o balanço do corpo no andar, o pedaço de coxa cor de canela. Ela voltou o rosto:
¯ Pois boa noite, seu moço...
Desaparecia no escuro do corredor, Nacib pareceu ouvi-la acrescentar, mastigando as palavras: moço bonito... Levantou-se quase a chamá-la. Não, fora à tarde na feira que ela dissera. Se a chamasse, poderia assustá-la, ela tinha um ar ingênuo, talvez até fosse moça donzela... Havia tempo para tudo. Nacib tirou o paletó, pendurou na cadeira, arrancou a camisa. O perfume ficara na sala, um perfume de cravo. No dia seguinte compraria um vestido para ela, de chita, umas chinelas também. Daria de presente sem descontar no ordenado.
Sentou-se na cama desabotoando os sapatos. Dia complicado aquele. Muita coisa acontecera. Vestiu o camisolão. Morena e tanto, essa sua empregada. Uns olhos, meu Deus... E da cor queimada que ele gostava. Deitou-se, apagou a luz. O sono o venceu, um sono agitado, sonhou inquieto com Sinhazinha, o corpo nu, calçada com meias pretas, estendida morta no convés de um navio estrangeiro entrando na barra. Osmundo fugia de marinete, Jesuíno atirava em Tonico, Mundinho Falcão aparecia com dona Sinhazinha, outra vez viva, sorrindo para Nacib, estendendo os braços, mas era dona Sinhazinha com a cara morena da nova empregada. Só que Nacib não podia alcançá-la, ela saía dançando no cabaré.
DE ENTERROS E BANQUETES COM PARÊNTESIS PARA CONTAR UMA HISTÓRIA EXEMPLAR
Ia alto o sol reconquistado na véspera quando, aos gritos de dona Arminda, Nacib acordou:
¯ Vamos espiar os enterros, menina. Vale a pena!
¯ Inhora, não. O moço ainda não levantou.
Pulou da cama: como perder os enterros? Saiu do banheiro já vestido, Gabriela acabava de pôr na mesa os bules fumegantes de café e leite. Sobre a alva toalha, cuscuz de milho com leite de coco, banana-da-terra frita, inhame, aipim. Ela ficara parada na porta da cozinha, interrogativa:
¯ O moço precisa me dizer do que é que gosta.
Engolia pedaços de cuscuz, os olhos enternecidos, a gula a prendê-lo à mesa, a curiosidade a dar-lhe pressa, era hora dos enterros. Divino aquele cuscuz, sublimes as talhadas de banana frita. Arrancou-se da mesa com esforço. Gabriela amarrara uma fita nos cabelos, devia ser bom morder-lhe o cangote moreno. Nacib saiu quase correndo para o bar. A voz de Gabriela acompanhava-o no caminho, a cantar:
Não vá lá, meu bem,
que lá tem ladeira,
escorrega e cai, quebra o galho da roseira.
O enterro de Osmundo despontava na praça, vindo da avenida na praia.
¯ Não tem gente nem para pegar nas alças do caixão... ¯ comentou alguém.
Pura verdade. Era difícil imaginar-se enterro mais magro de acompanhamento. Só mesmo as pessoas mais chegadas a Osmundo tiveram a coragem de acompanhá-lo nesse seu último passeio pelas ruas de Ilhéus. Levar o dentista ao cemitério era quase uma afronta ao coronel Jesuíno e à sociedade. Ari Santos, o Capitão, Nhô-Galo, um redator do Diário de Ilhéus, uns poucos mais, revezavam-se nas alças do caixão.
O morto não tinha família em Ilhéus, mas nos meses que ali passara fizera muitas relações, homem dado, amável, freqüentador dos bailes do Clube Progresso, das reuniões do Grêmio Rui Barbosa, das danças familiares, dos bares e cabarés. No entanto ia para o cemitério como um pobre diabo, sem coroas e sem lágrimas. Um comerciante recebera um telegrama do pai de Osmundo, com quem mantinha negócios, pedindo-lhe tomar todas as providências para o enterro do filho e anunciando que chegaria pelo primeiro navio. O comerciante encomendara caixão e cova, contratara alguns homens no porto para levar o esquife no caso de não aparecer nenhum amigo, não achara necessário gastar dinheiro com coroas e flores.
Nacib não mantivera relações estreitas com Osmundo. Uma ou outra vez o dentista parava no bar, seu ponto era o Café Chic. Tomava um trago, quase sempre com Ari Santos ou com o professor Josué. Declamavam-se sonetos, liam-se pedaços de prosa, discutiam literatura. Por vezes acontecia o árabe sentar-se com eles: ouvia trechos de crônicas, versos falando em mulher. Como todo mundo, achava o dentista um bom rapaz, diziam-no competente profissional, sua clientela aumentava. Vendo agora o enterro mesquinho, aquela ausência de gente e de flores, aquele caixão pelado, sentia-se triste. Era afinal uma injustiça, uma coisa desairosa para a própria cidade. Onde estavam os que lhe louvavam o talento de versejador, os clientes a elogiar sua mão tão leve na extração de molares, seus colegas do Grêmio Rui Barbosa, os amigos do Clube Progresso, os parceiros de bar? Medo do coronel Jesuíno saber, das solteironas comentarem, de que a cidade os pensasse solidários com Osmundo.
Um moleque atravessou o enterro distribuindo anúncios do cinema, da estréia naquela mesma noite do famoso mágico hindu, Príncipe Sandra, o maior ilusionista do século, faquir e hipnotizador, aclamado pelas platéias da Europa, e de sua bela ajudante, madame Anabela, médium vidente e assombro da telepatia. Levado pelo vento, um dos anúncios voava sobre o caixão. Osmundo não conheceria Anabela, não se juntaria ao seu séquito de admiradores, não participaria da concorrência em torno de seu corpo. O enterro passava perto do átrio da igreja, Nacib se incorporou ao acompanhamento. Não iria até ao cemitério, não podia deixar o bar, naquela noite era o jantar da empresa de ônibus. Mas o acompanharia durante pelo menos uns dois quarteirões, sentia-se obrigado a fazê-lo.
O enterro tomava pela rua dos Paralelepípedos, de quem teria sido a idéia? O caminho mais direto e mais curto era pela rua cel. Adami, por que passar em frente à casa onde estava sendo velado o corpo de Sinhazinha? Aquilo devia ser coisa do Capitão. De sua janela, Glória assistia, uma bata sobre a camisa de dormir, o caixão passou sob seus seios mal escondidos na cambraia.
Na porta do colégio de Enoch, onde crianças comprimiam-se curiosas, o professor Josué substituiu Nhô-Galo numa das alças do féretro. janelas cheias, comentários. Em frente à casa dos primos de Sinhazinha estavam paradas algumas pessoas vestidas de negro. O caixão de Osmundo ia lentamente com seu mísero acompanhamento. Passantes tiravam o chapéu. De uma janela da casa enlutada, alguém exclamou:
¯ Não tinham outro caminho? Não bastou ele ter desgraçado a vida da pobre?
Da praça da Matriz, Nacib voltou. Demorou-se uns minutos no velório de Sinhazinha. O caixão ainda não estava fechado, velas e flores na sala, algumas coroas. Mulheres choravam, por Osmundo ninguém chorara.
¯ É preciso esperar um bocado. Dar tempo pra enterrar o outro ¯ explicou um parente.
O dono da casa, marido de uma prima de Sinhazinha, sem esconder seu aborrecimento, andava pelo corredor. Aquilo era uma complicação inesperada em sua vida: afinal o corpo não podia sair da casa de Jesuíno, tão pouco da casa do dentista, não era decente. Sua mulher era o único parente de Sinhazinha a viver na cidade, os demais habitavam Olivença, que outro jeito senão deixar que trouxessem o corpo e ali o velassem? E logo ele, amigo do coronel Jesuíno, com quem até tinha negócios.
¯ Uma espiga. . . ¯ explicava.
Noite e manhã de amolações, sem falar nas despesas. Quem iria pagar? Nacib foi contemplar o rosto da morta: os olhos fechados, a face serena, os cabelos escorridos, muito lisos; depois demorou os olhos nas pernas bem feitas. Desviou a vista, não era momento de olhar as pernas de Sinhazinha.
A figura solene do Doutor surgiu na sala. Ficou um instante parado ante a morta, sentenciou para Nacib, mas todos o ouviram:
¯ Tinha sangue dos Ávilas. Sangue predestinado, o sangue de Ofenísia ¯ baixou a voz. ¯ Ainda era minha parenta.
Ante os olhos espantados da rua comprimida nas portas e janelas, Malvina entrou trazendo um ramo de flores colhidas em seu jardim. Que vinha fazer ali, no funeral de uma esposa morta por adultério, essa moça solteira, estudante, filha de fazendeiro? Nem que fossem amigas íntimas.
Reprovavam com os olhos, cochichavam pelos cantos. Malvina sorriu para o Doutor, depositou suas flores aos pés do caixão, moveu os lábios numa prece, saiu de cabeça erguida como entrara, Nacib estava de queixo caído.
¯ Essa filha de MeIk Tavares tem topete.
¯ Tá namorando com Josué.
Nacib a acompanhou com os olhos, gostara de seu gesto. Não sabia o que lhe passava naquele dia, amanhecera esquisito, sentindo-se solidário com Osmundo e Sinhazinha, irritado com a falta de gente no enterro do dentista, com as queixas do dono da casa onde estava o caixão da assassinada. O padre Basílio chegava, apertava mãos, comentava o sol brilhante, o fim das chuvas.
Finalmente o enterro saiu, maior que o de Osmundo mas também lastimável, o padre Basílio engrolando as rezas, em prantos a família vinda de Olivença, suspirando aliviado o dono da casa.
Nacib voltou ao bar. Por que não enterrar os dois juntos, saindo os caixões na mesma hora, da mesma casa, para a mesma cova? Assim deviam ter feito. Vida salafrária, cheia de hipocrisia, cidade sem coração onde só o dinheiro contava.
¯ Seu Nacib, a empregada é um pirão. Que beleza! ¯ a voz mole de Chico.
¯ Vá pro inferno! ¯ Nacib estava triste.
Soube depois que o caixão de Sinhazinha transpusera o portão do cemitério no mesmo momento em que se retiravam os raros acompanhantes de Osmundo. Quase na mesma hora em que o coronel Jesuíno Mendonça, assistido pelo doutor Maurício Caires, batia palmas na porta do juiz de direito para se apresentar. Depois o advogado aparecera no bar, recusando qualquer bebida além de água mineral:
¯ Ontem saí do sério em casa de Amâncio. Tinha um vinho português de primeira...
Nacib afastou-se, não queria ouvir o comentário do rega-bofe da véspera. Foi à casa das irmãs Dos Reis saber como marchavam os preparativos do jantar e as encontrou ainda excitadas com o crime:
¯ Ontem de manhã, ela estava na igreja, a infeliz ¯ disse Quinquina a benzer-se.
¯ Quando o senhor veio aqui, a gente tinha acabado de estar com ela na missa ¯ arrepiou-se Florzinha.
¯ Uma coisa dessas... Por isso não me caso.
Levaram-no à cozinha, onde Jucundina e as filhas se desdobravam. Não se afligisse pelo jantar, tudo ia bem.
¯ Por falar nisso, arranjei cozinheira.
¯ Ótimo. É boa?
¯ Cuscuz sabe fazer. Comida, vou saber daqui a pouco, na hora do almoço.
¯ Não quer mais os tabuleiros?
¯ Ainda uns dias...
¯ É por causa do presépio... Muito trabalho.
Quando o movimento no bar se acalmou, mandou Chico Moleza almoçar:
¯ Na volta traga minha marmita.
Na hora do almoço o bar ficava vazio. Nacib fazia a caixa, calculava os lucros, media as despesas. Invariavelmente o primeiro a aparecer após o almoço era Tonico Bastos, tomava um digestivo, cachaça com bitter. Naquele dia falaram dos enterros, depois Tonico contara os sucessos do cabaré na véspera, após a partida do árabe. O coronel Ribeirinho bebera tanto que tivera de ser levado para casa quase carregado. Na escada vomitara três vezes, sujando a roupa toda.
¯Tá de beiço caído pela dançarina...
¯ E Mundinho Falcão?
¯ Foi embora cedo. Me garantiu que não tem nada com ela, que a estrada estava livre. E aí, é claro...
¯ Você se atirou...
¯ Entrei com meu jogo.
¯ E ela?
¯ Bem. Interessada ela está. Mas enquanto não agarrar Ribeirinho vai bancar a santa. Percebi tudo.
¯ E o marido?
¯ Inteiramente do coronel. Já sabe tudo sobre Ribeirinho. E comigo não quer nada. Que a mulher ria pra Ribeirinho, saia dançando com ele apertadinha, que segure a testa para ele vomitar, o crápula acha uma beleza. Mas basta eu me aproximar e ele se mete no meio. Aquilo não passa de um cafetão emérito.
¯ Tem medo que você estrague o negócio dele.
¯ Eu? Só quero as sobras. Que Ribeirinho pague e me contento com os dias feriados...¯ Quanto ao marido; não se preocupe. A essas horas ele já deve saber que sou filho do chefe político da terra. Que tem de se comportar direito comigo.
Chico Moleza chegava com o almoço. Nacib abandonou o balcão, instalou-se numa das mesas, amarrando um guardanapo no pescoço:
¯ Vamos ver que tal a cozinheira...
¯ A nova? ¯ Tonico aproximou-se curioso.
¯ Nunca vi morena tão bonita! ¯ Chico Moleza deixava as palavras rolarem preguiçosamente.
¯ E você me disse que era uma bruxa, seu árabe sem-vergonha. Escondendo a verdade de seu amigo, hein?
Nacib destampava a marmita, separava os pratos.
¯ Oh! - exclamava ante o aroma a exalar-se da galinha de cabi-dela, da carne de sol assada, do arroz, do feijão, do doce de banana em rodinhas.
Tonico interrogava Chico Moleza:
¯ Bonita de verdade?
¯ Se é...
Curvava-se sobre os pratos:
¯ E não sabe cozinhar, não é? Seu turco mentiroso... Até dá água na boca...
Nacib convidava:
¯ Dá pra dois. Faça uma boquinha.
Bico-Fino abria uma garrafa de cerveja, colocava na mesa.
¯ Que é que ela está fazendo? ¯ perguntou Nacib a Chico.
¯ Tá numa prosa comprida com a velha. Tão falando de espiritismo. Quer dizer: mamãe está falando, ela só faz escutar e rir. Quando ela ri, seu Tonico, até tonteia a gente.
¯ Oh! ¯ voltava a exclamar Nacib após a primeira garfada. ¯ Maná dos céus, seu Tonico. Desta vez, valha Deus, estou bem servido.
¯ Pra mesa e pra cama, hein, seu turco...
Nacib empanturrou-se e, após a saída de Tonico, estendeu-se, como o fazia diariamente, na espreguiçadeira, à sombra de umas árvores ao lado do bar. Tomou de um jornal da Bahia, atrasado de quase uma semana, acendeu o charuto. Passava a mão nos bigodes, contente da vida, dissipara-se a tristeza da manhã de enterros. Mais tarde iria à loja do tio, traria um vestido barato, um par de chinelas. E acertaria com a cozinheira os salgados e doces para o bar. Não pensara que aquela retirante, coberta de poeira, vestida de trapos, soubesse cozinhar.. E que a poeira escondesse tanto encanto, tanta sedução... Adormeceu na paz de Deus. A brisa do mar acariciou-lhe os bigodes. Não tinham os relógios anunciado ainda as cinco da tarde, a mesa de rendas em pleno movimento, quando Nhô-Galo, na mão um exemplar do Diário de Ilhéus, entrou no bar, alvoroçado. Nacib serviu-lhe um vermute, preparava-se para falar na nova cozinheira, mas o outro elevava a voz fanhosa:
¯ A coisa começou!
¯ O que?
¯ É o jornal de hoje. Acaba de sair. Leia...
Estava na primeira página, artigo longo, em tipo gordo. O título quatro colunas: O ESCANDALOSO ABANDONO DA BARRA. Descompostura em regra na intendência, em Alfredo Bastos, deputado estadual eleito pelo povo de Ilhéus para defender os sagrados interesses da região cacaueira, esquecido desses interesses, cuja eloqüência franzina só se fazia ouvir para celebrar os atos do governo, parlamentar do muito bem e do apoiado!, no intendente, um compadre do coronel Ramiro, inútil mediocridade, servilismo exemplar ao cacique, ao mandachuva, culpando os políticos no poder pelo abandono da barra de Ilhéus. O artigo tinha como pretexto o encalhe do Ita na véspera. O maior e mais premente problema da região, aquele que é o vértice e o cume do progresso local que significará riqueza e civilização ou atraso e miséria, o problema da barra de Ilhéus, ou seja, o magno problema da exportação direta do cacau não existia para os que haviam em circunstâncias especiais abocanhado os postos de mando. E por aí vinha, verrina terrível, terminando numa evidente alusão a Mundinho, ao lembrar que, no entanto, homens de elevado sentimento cívico estão dispostos, ante o criminoso desinteresse das autoridades municipais, a tomar o problema em suas mãos e a resolvê-lo. O povo, esse glorioso e intimorato povo de Ilhéus, de tantas tradições, saberá julgar, castigar e premiar.
¯ Menino... a coisa é séria...
¯ Escrito pelo Doutor.
¯ Parece mais de Ezequiel.
¯ Foi o Doutor. Tenho certeza. Dr. Ezequiel estava bêbedo ontem, no cabaré. Vai dar uma confusão...
¯ Confusão! Você é um otimista. Vai haver o diabo.
¯ Desde que não comece hoje, aqui no bar.
¯ Por que aqui?
¯ E o jantar das marinetes, você esqueceu? Vai vir todo mundo: o intendente, Mundinho, o coronel Amâncio, Tonico, o Doutor, o Capitão, Manuel das Onças, até o coronel Ramiro Bastos disse que talvez viesse.
¯ O coronel Ramiro? Não sai mais de noite.
¯ Disse que viria. É homem danado e agora vem mesmo, você vai ver. É capaz do jantar terminar em briga...
Nhô-Galo esfregava as mãos:
¯ Vai ser divertido... ¯ voltava para a mesa de rendas deixando Nacib preocupado. O dono do bar era amigo de todos, precisava manter-se afastado daquela luta política.
Chegavam os garçons contratados para servir o jantar, começavam a preparar a sala, juntando mesas. Quase ao mesmo tempo o juiz de direito, um pacote de livros sob o braço, sentava-se do lado de fora com João Fulgêncio e Josué. Admiravam Glória na janela, o juiz considerava aquilo um verdadeiro escândalo. João Fulgêncio ria, discordava:
¯ Glória, seu doutor, é uma necessidade social, devia ser considerada de utilidade pública pela intendência como o Grêmío Ruí Barbosa, a Euterpe 13 de Maio, a Santa Casa de Misericórdia. Glória exerce importante função na sociedade. Com a simples ação de sua presença na janela, com o passar de quando em quando pela rua, ela eleva a um nível superior um dos aspectos mais sérios da vida da cidade: sua vida sexual. Educa os jovens no gosto à beleza e dá dignidade aos sonhos dos maridos de mulheres feias, infelizmente grande maioria em nossa cidade, às suas obrigações matrimoniais que, de outra maneira, seriam insuportável sacrifício.
O juiz dignava-se em concordar:
¯ Bela defesa, meu caro,digna de quem a faz e de quem é feita. Mas, aqui para nós, não é mesmo absurdo tanta carne de mulher para um homem só? E um homem pequeno, magrinho... Se pelo menos ela não estivesse o dia todo à vista, como está...
¯ E o que é que o senhor pensa? Que ninguém dorme com ela? Engano, meu caro juiz, engano...
¯ Não me diga, João! Quem se atreve?
¯ A maioria dos homens, Digníssimo. Quando dormem com as esposas estão pensando é em Glória. É com ela que dormem.
¯ Ora, seu João Fulgêncio, eu logo devia adivinhar que se tratava de paradoxo...
¯ De qualquer maneira, essa dona aí e uma tentação ¯ disse Josué. ¯ Ela só falta agarrar a gente com os olhos...
Alguém aparecia agitando um exemplar do Diário de Ilhéus:
¯ Já viram?
João Fulgêncio e Josué já tinham lido. O juiz apoderou-se do jornal, botou os óculos.
Noutras mesas também comentavam.
¯ Que me dizem?
¯ A política vai pegar fogo...
¯ Esse jantar de hoje vai ser gozado.
Josué continuava a falar sobre Glória:
¯ O que é admirável é que ninguém se atreva a meter-se com ela. Para mim é um mistério.
O professor Josué era novato na terra, trazido por Enoch quando fundara o colégio, Apesar de ter-se imediatamente adaptado, de freqüentar a Papelaria Modelo e o Bar Vesúvio, de aparecer nos cabarés, de discursar nas festividades, de cear em casas de mulheres, ainda desconhecia muitas das histórias de Ilhéus.
E enquanto os outros discutiam o artigo do Diário, João Fulgêncio contou-lhe o sucedido entre o coronel Coriolano e Tonico Bastos pouco antes da vinda de Josué para a cidade, quando o coronel pusera casa para Glória.
PARÊNTESIS DA ADVERTÊNCIA
¯ Logo que o coronel trouxera e instalara Glória na cidade ¯ contou João Fulgêncio, verdadeiro repositório de sucessos e histórias de Ilhéus , na melhor de suas casas, aquela onde, antes de mudar-se para a capital, habitava sua família, escandalizando as solteironas, Antoninho Bastos, tabelião, marido de mulher ciumenta e pai de duas lindas crianças, rapaz tão elegante que aos domingos usava colete, o Don Juan da terra, o filho bem-amado do coronel Ramiro Bastos, andara botando olhos compridos na mulata.
Não se tratava da repetição do idílio de Juca Viana e Chiquinha. Já ouvira Josué falar nessa antiga história? Tinham-lhe contado os detalhes entre cômicos e tristes? Mais tristes do que cômicos, era um tanto macabro esse humor ilheense. No caso recente, não houvera passeios pela praia, nem mãos dadas nas pontes do porto, não se arriscara ainda Tonico a empurrar a porta noturna de Glória. Apenas dera de aparecer pelas tardes, freqüentemente, em casa da rapariga, com presentinhos de bombons comprados no bar de Nacib, a perguntar-lhe pela saúde e se de algo necessitava. E olhares caídos e palavrinhas açucaradas. Daí não passara ainda mestre Tonico.
Tradicional amizade ligava o coronel Coriolano à família Bastos. Ramiro Bastos batizara-lhe um filho, eram parceiros políticos, viam-se sempre. Disso aproveitava-se Tonico para explicar à esposa, essa gordíssima e ciumentíssima dona Olga, ser obrigado, pelos laços de afeição e de interesse político que o ligavam ao coronel, àquelas suspeitas visitas, após o almoço, à casa mal-habitada. Dona Olga arfava o peito monumental, ameaçava:
¯ Se você é obrigado a ir, Tonico, se o coronel lhe pede, vá, por mim não se acanhe. Mas, tome sentido! Se eu souber de alguma coisa, ah! se eu souber..
¯ Nesse caso, filha, pra ficar desconfiada, é melhor eu não ir. Só que prometi a Coriolano...
Língua de mel, esse Tonico, como dizia o Capitão. Para dona Olga não havia homem mais puro, pobre dela!, perseguido pelas mulheres todas da cidade, raparigas, moças solteiras, mulheres casadas, marafonas todas elas, sem exceção. No entanto, por via das dúvidas, para evitar que ele caísse em tentação, trazia-o sob controle. Mal sabia ela...
Assim, com paciência e bombons, ia Tonico preparando a cama onde deitar-se, como já se murmurava na papelaria e no bar. Mas, antes de suceder o que certamente sucederia, o coronel Coriolano soube das visitas, dos caramelos, dos olhares mortos. Apareceu inesperadamente em Ilhéus, num meio de semana, entrou pela porta da casa de Tonico - onde também estava instalado o cartório, cheio de gente àquela hora.
Antoninho Bastos acolheu o amigo com expressões ruidosas e palmadinhas nas costas, sendo, como era, homem extremamente cordial e simpático. Coriolano deixou-se agradar, aceitou a cadeira, sentou-se, batia com o rebenque nas botas sujas de lama, disse sem elevar a voz:
¯ Seu Tonico, chegou aos meus ouvidos que vosmicê está se bandeando pros lados da casa de minha afilhada. Eu prezo muito sua amizade, seu Tonico. Lhe vi menino em casa do compadre Ramiro. Por isso vou dar um conselho a vosmicê, conselho de amigo velho: não apareça mais por lá. Eu apreciava também muito Juca Viana, filho do finado Viana, meu companheiro de pôquer, vi Juca pequenininho também. Vosmicê se lembra do que sucedeu com ele? Coisas de lastimar, coitado, ele foi se meter com mulher dos outros...
Havia um silêncio aflito no cartório. Tonico, gaguejou:
¯ Mas, coronel...
Coriolano continuava, sem alterar a voz, brincando com o rebenque:
¯ Vosmicê é moço bonito e lorde, tem muita mulher, é o que não lhe falta. Eu tou gasto e velho, minha mulher verdadeira já macheou, coitada dela!, só tenho mesmo a Glória. Gosto dessa moça e quero ela só pra mim. Esse negócio de pagar mulher pros outros nunca foi de minha devoção. Sorriu para Tonico Bastos:
¯ Sou seu amigo e por isso tou lhe avisando: deixe de andar por aquelas bandas.
O tabelião estava pálido, o silêncio era tumular no cartório. Os presentes entreolhavam-se, Manuel das Onças, que fora lavrar uma escritura, afirmava depois ter sentido no ar cheiro de defunto e ele possuía bom olfato para esse odor, responsável por uns quantos cadáveres nos tempos dos barulhos.
Tonico começou a explicar-se: eram calúnias, miseráveis calúnias de seus inimigos e dos inimigos de Coriolano. Ele apenas aparecera em casa de Glória para oferecer seus préstimos à protegida do coronel, diariamente desfeiteada por todos. Essa mesma gente que criticava Coriolano por tê-la hospedado na praça São Sebastião, numa casa onde residira sua família, gente que virava a cara para a moça, que cuspia à sua passagem, era essa mesma gente que agora fazia intriga. Ele só tinha querido demonstrar publicamente sua estima e solidariedade ao coronel. Nada tivera com a rapariga, nem mesmo intenção. Língua de mel, esse Tonico.
¯ Que vosmicê não teve nada eu sei. Se tivesse tido, eu não tava aqui pra conversar, a conversa era outra. Mas se teve intenção, aí eu já não boto minha mão no fogo. Mas intenção não tira pedaço nem põe chifre em ninguém... O melhor é vosmicê fazer como os outros: virar a cara para ela. É assim mesmo que eu gosto. E, agora que vosmicê já está avisado, não vamos falar mais nisso.
Imediatamente começou a falar de negócios, como se nada houvesse dito, entrou pela casa adentro, foi dar bom dia a dona Olga, beliscar as faces das crianças. Tonico Bastos deixou até de passar na calçada de Glória, desde então ela viveu ainda mais melancólica e solitária. A cidade glosara o assunto: a cama caiu antes dele se deitar, diziam, e caiu fazendo barulho, acrescentavam, uma gente sem dó nem piedade essa de Ilhéus. O aviso do coronel Coriolano servira não apenas para Tonico: muita gente resolveu ficar nas intenções que, pelas noites mornas, transformavam-se em sonhos agitados, alimentados da contemplação do busto de Glória na janela e do sorriso descendo dos olhos para a boca, molhado de desejo, como versejara muito bem o próprio Josué. E quem ganhava com isso, segundo João Fulgêncio, encerrando a narração, eram as esposas, as velhas e feias, pois, como ele dissera ao juiz, Glória era de utilidade pública, necessidade social, elevando a nível superior a vida sexual dessa cidade de Ilhéus, tão feudal ainda, apesar do propalado e inegável progresso...
FECHADO O PARÊNTESIS, CHEGA-SE AO BANQUETE
Apesar da curiosidade e do receio de Nacib, o jantar da empresa de ônibus transcorreu em perfeita paz e harmonia. Antes das sete horas, quando os últimos fregueses do aperitivo retiravam-se, já o russo Jacob, esfregando as mãos, rindo com todos os dentes, rondava em derredor de Nacib. Também ele tinha lido o artigo no jornal e também ele temia pelo sucesso da festa. Gente esquentada essa de Ilhéus... Seu sócio, Moacir Estrela, esperava, na garagem, a chegada da marinete com os convidados de Itabuna, dez pessoas, incluindo o intendente e o juiz de direito. E agora esse malfadado artigo a lançar a cizânia, a desconfiança e a divisão entre seus convidados.
¯ Isso ainda vai dar muito que falar.
O Capitão, tendo aparecido antes para a costumeira partida de gamão,confidenciara a Nacib ser o artigo apenas um começo. O primeiro de uma série, e não iriam ficar em artigos, Ilhéus viveria grandes dias. O Doutor, os dedos sujos de tinta, os olhos brilhantes de vaidade, lá estivera rapidamente, declarando-se ocupadíssimo. Quanto a Tonico Bastos não voltara ao bar, constava ter sido chamado com urgência pelo coronel Ramiro.
Os primeiros convidados a chegar foram os de Itabuna, louvando a viagem em marinete, o percurso feito em hora e meia apesar da estrada não estar ainda completamente seca. Olhavam com condescente curiosidade as ruas, as casas, a igreja, o Bar Vesúvio, o estoque de bebidas, o Cine-Teatro Ilhéus, achando que em Itabuna tudo era melhor, não havia igreja como as de lá, cinema melhor que os deles, casas que se igualassem às novas moradias itabunenses, bares mais ricos em bebidas, cabarés tão freqüentados. Naquele tempo a rivalidade entre as duas primeiras cidades da zona do cacau começava a tomar corpo. Os itabunenses falavam do progresso sem medidas, do crescimento espantoso de sua terra, ainda há alguns anos simples distrito de Ilhéus, uma aldeia conhecida por Tabocas. Discutiam com o Capitão, falavam do caso da barra.
Famílias dirigiam-se ao cinema para assistir à estréia do mágico Sandra, olhavam o movimento no bar, as figuras importantes ali reunidas, a grande mesa em forma de “T”. Jacob e Moacir recebiam os convidados. Mundinho Falcão chegou com Clóvis Costa, houve um movimento de curiosidade. O exportador foi abraçar os itabunenses, havia entre eles fregueses seus. O coronel Amâncio Leal, em companhia de Manuel das Onças, contava ter Jesuíno partido, devidamente autorizado pelo juiz, para sua fazenda, onde aguardaria o andamento do processo. O coronel Ribeirinho não tirava os olhos da porta do cinema, na esperança de ver Anabela chegar. A conversa generalizava-se, falava-se dos enterros, do crime da véspera, de negócios, do fim das chuvas, das perspectivas da safra, do Príncipe Sandra e de Anabela, evitava-se cuidadosamente qualquer referência ao caso da barra, ao artigo do Diário de Ilhéus. Como se todos temessem iniciar as hostilidades, ninguém quisesse assumir tal responsabilidade.
Quando, por volta das oito horas, já iam sentar-se à mesa, da porta do bar alguém anunciou:
¯ Lá vem o coronel Ramiro com Tonico.
Amâncio Leal dirigiu-se a seu encontro. Nacib sobressaltou-se: a atmosfera ficara mais tensa, os risos soavam falsos, ele percebia os revólveres sob os paletós. Mundinho Falcão conversava com João Fulgêncio, o Capitão se aproximou deles. Podia-se ver, do outro lado da praça, o professor Josué no portão de Malvina. O coronel Ramiro Bastos, o cansado passo apoiado na bengala, penetrou no bar, adiantou-se cumprimentando um a um. Parou ante Clóvis Costa, apertou-lhe a mão:
¯ Como vai o jornal, Clóvis? Prosperando?
¯ Vai bem, coronel.
Demorou-se um pouco no grupo formado por Mundinho, João Fulgêncio e o Capitão. Quis saber da viagem de Mundinho, reclamou de João Fulgêncio não ter aparecido nos últimos tempos em sua casa, pilheriou com o Capitão.
Nacib sentiu-se cheio de admiração pelo velho: ele devia estar se comendo por dentro, de raiva, e nada deixava transparecer. Olhava para os adversários, aqueles que se preparavam para lutar contra seu poder, para arrancar-lhe os postos, como se fossem crianças sem juízo, não oferecessem perigo. Sentaram-no à cabeceira da mesa, entre os dois intendentes. Mundinho vinha logo depois entre os juízes. A comida das irmãs Dos Reis começou a ser servida.
A princípio ninguém estava completamente à vontade. Comiam, bebiam, conversavam, riam, mas havia uma inquietação na mesa como se esperassem um acontecimento. O coronel Ramiro Bastos não tocava na comida, apenas provara o vinho. Seus olhos miúdos passeavam de conviva a conviva. Escureciam-se ao pousar em Clóvis Costa, no Capitão, em Mundinho. De súbito quis saber porque o Doutor não comparecera e lamentou sua ausência. Aos poucos, o ambiente foi-se fazendo mais alegre e despejado. Contavam-se anedotas, descreviam-se as danças de Anabela, elogiavam a comida das irmãs Dos Reis.
E finalmente chegou a hora dos discursos. O russo Jacob e Moacir haviam pedido ao dr. Ezequiel Prado para falar em nome da empresa, oferecendo o jantar. O advogado levantou-se, bebera muito, tinha a língua pastosa, quanto mais bebia melhor falava. Amâncio Leal segredou qualquer coisa ao dr. Maurício Caires. Sem dúvida prevenindo-o para estar atento. Se Ezequiel, cuja lealdade política ao coronel Ramiro encontrava-se vacilante desde as últimas eleições a ele, Maurício responder na bucha. Mas o dr. Ezequiel, em dia de muita inspiração, tomou como tema principal a amizade entre Ilhéus e Itabuna, as cidades irmãs da zona de cacau, agora ligadas também pela nova empresa de ônibus, essa monumental realização de homens empreendedores como Jacob, vindo das estepes geladas da Sibéria para impulsionar o progresso deste rincão brasi1eiro ¯ frase que umedeceu os olhos de Jacob, em realidade nascido num ghetto de Kiev ¯, e Moacir, homem que se fez à custa do próprio esforço,exemplo de trabalho honrado ¯ Moacir baixava a cabeça, modesto, enquanto em torno ressoavam apoiados. Por aí foi, gastando muita civilização e muito progresso, prevendo o futuro da zona, destinada a alcançar rapidamente os píncaros mais elevados da cultura.
O intendente de Ilhéus, xaroposo e interminável, saudou o povo de Itabuna, ali tão bem representado. O intendente de Itabuna, coronel Aristóteles Pires, agradeceu em poucas palavras. Observava o ambiente, pensativo. Levantou-se o dr. Maurício, soltou o verbo, serviu-lhes a Bíblia como sobremesa. Para concluir elevando um brinde a esse impoluto ilheense, a quem tanto deve nossa região, varão de insignes virtudes, administrador operoso, pai de família exemplar, chefe e amigo, o coronel Ramiro Bastos. Beberam todos, Mundinho brindou com o coronel. Apenas dr. Maurício sentava-se e já o Capitão pusera-se de pé, uma taça na mão. Também ele queria fazer um brinde, disse, aproveitando aquela festa que marcava um passo a mais no progresso da zona do cacau. A um homem chegado das grandes cidades do sul para empregar naquela região sua fortuna e suas extraordinárias energias, sua visão de estadista, seu patriotismo. A esse homem, a quem Ilhéus e Itabuna já tanto deviam, cujo nome estava anonimamente ligado a essa empresa de ônibus, como a tudo mais que nesses últimos anos empreendera o povo ilheense, a Raimundo Mendes Falcão, ele levantava sua taça. Foi a vez do coronel brindar com o exportador. Segundo contaram depois, durante todo o discurso do Capitão, Amâncio Leal manteve a mão na coronha do revólver.
E nada mais se passou. Apenas todos compreenderam que Mundinho, a partir daquele dia, assumira a chefia da oposição e começara a luta. Não mais uma luta como a de antes, do tempo da conquista da terra. Agora, as repetições e as tocaias, os cartórios queimados e as escrituras falsas não eram decisivos. João Fulgêncio disse ao juiz:
¯ Em vez de tiros, discursos... É melhor assim.
Mas o juiz duvidava:
¯ Isso acaba mesmo é em bala, você vai ver.
O coronel Ramiro Bastos retirou-se logo, acompanhado de Tonico. Outros espalharam-se pelas mesas do bar, continuaram a beber. Formou-se uma roda de pôquer no reservado, alguns dirigiram-se para os cabarés. Nacib ia de grupo em grupo, ativando os empregados, a bebida corria.
No meio de toda aquela atrapalhação, recebeu, trazido por um moleque, um bilhete de Risoleta. Ela queria vê-lo sem falta naquela noite, ia esperá-lo no Bataclan. Assinava sua bichinha Risoleta, o árabe sorriu satisfeito. Junto à caixa estava o pacote para Gabriela: um vestido de chita, um par de sandálias.
Quando terminou a sessão de cinema, o bar encheu. Nacib não tinha mãos a medir. Agora as discussões em torno ao artigo dominavam as conversas. Ainda havia quem falasse no crime da véspera, as famílias elogiavam o prestidigitador. Mas o assunto, em quase todas as mesas, era o artigo do Diário de Ilhéus. O movimento durou até tarde, era mais de meia-noite quando Nacib fechou a caixa e dirigiu-se ao cabaré. Numa mesa, com Ribeirinho, Ezequiel e outros, Anabela pedia opiniões para seu álbum. Nhô-Galo, romântico, escreveu:
¯ Tu és, ó dançarina, a encarnação da própria arte. O dr.Ezequiel, num pileque grandioso, acrescentara, a letra tremida: ¯ Quem me dera ser gigolô da arte. O Príncipe Sandra fumava sua longa piteira, imitação de marfim. Ribeirinho, muito íntimo, batia-lhe nas costas, narrava-lhe as grandezas de sua fazenda.
Risoleta esperava Nacib. Levou-o para um canto da sala. Contou-lhe amarguras: amanhecera doente, voltara-lhe uma complicação antiga que infernava os dias, tivera de chamar médico. E estava sem dinheiro nenhum, nem para os remédios. Não tinha a quem pedir, não conhecia quase ninguém. Recorria a Nacib, ele fora tão gentil naquela noite... O árabe passou-lhe uma cédula, resmungando, ela acariciou-lhe os cabelos.
¯ Fico boa logo, dois, três dias, mando te chamar..
Partiu apressada. Estaria mesmo doente ou era uma comédia para tomar-lhe dinheiro, ir gastar com um estudante ou um caixeiro numa ceia regada a vinho? Nacib sentia-se irritado, esperara ir dormir com ela, nos seus braços esquecer o dia melancólico de enterros, trabalhoso e inquieto, de banquete e intrigas políticas. Dia de arrasar um homem. Terminando naquela decepção. Segurava o pacote para Gabriela. As luzes se apagavam, a dançarina apareceu vestida com suas penas. O coronel Ribeirinho chamava o garçom, comandava champanha.
NOITE DE GABRIELA
Entrou na sala, arrancou os sapatos. Ficava grande parte do dia em pé, andando de mesa em mesa. Um prazer tirar os sapatos, as meias, mexer os dedos dos pés, dar uns passos descalço, enfiar os velhos chinelos cara de gato. Sentimentos e imagens baralhavam-se em sua cabeça. Anabela devia haver terminado seu número, estaria na mesa com Ribeirinho bebendo champanha. Tonico Bastos não aparecera naquela noite. E o Príncipe? Chamava-se Eduardo da Silva, no seu cartão constava: artista. Um cínico, isso sim, Adulando o fazendeiro, empurrando a mulher para seus braços, negociando com o corpo dela. Nacib encolheu os ombros. Talvez fosse apenas um pobre diabo, talvez Anabela não significasse grande coisa para ele, simples ligação acidental, de trabalho. Aquele era seu negócio, seu ganha-pão, tinha cara de já haver passado muita fome. Sujo ganha-pão, sem dúvida ¯ e qual o limpo? Por que julgá-lo e condená-lo? Quem sabe se não seria ele mais decente do que os amigos de Osmundo, seus companheiros de bar, de literatice, de bailes no Clube Progresso, de conversas sobre mulheres, todos eles cidadãos honrados mas incapazes de levar o corpo do amigo ao cemitério?... Homem direito era o Capitão. Pobre, sem outro recurso além do emprego de coletor federal, sem roças de cacau, mantinha suas opiniões, enfrentava qualquer um. Não era íntimo de Osmundo, e lá estava no enterro, segurando uma alça do caixão. E o discurso no jantar? Sapecara o nome de Mundinho na cara de todos, na presença do coronel Ramiro Bastos. Recordando o jantar, Nacib estremeceu. Até tiro podia ter saído, foi uma sorte haver terminado em paz. Aliás, era apenas o começo, o próprio Capitão dissera. Mundinho tinha dinheiro, prestígio no Rio, amigos no governo federal, não era um porcaria qualquer como o dr. Honorato, médico idoso e alquebrado, chefe da oposição a dever favores a Ramiro, a pedir-lhe emprego para os filhos. Mundinho ia arrastar muita gente, dividir os fazendeiros donos de votos, fazer misérias. Se conseguisse, como prometia, trazer engenheiros e dragas para desentulhar a barra... Podia tomar conta de Ilhéus, botar os Bastos no ostracismo. Também o velho estava no fim, Alfredo só existia na Câmara por ser seu filho, bom médico de meninos e nada mais. Quanto a Tonico... aquele não nascera para política, para mandar e desmandar, fazer e desfazer. A não ser quando se tratava de mulheres. Nem aparecera no cabaré naquela noite. Certamente para não enfrentar as discussões em torno do artigo, não era homem de brigas. Nacib balançou a cabeça. Amigo de uns e de outros, do Capitão e de Tonico, de Amâncio Leal e do Doutor, com eles bebia, jogava, conversava, ia à casa de mulheres. Deles vinha-lhe o dinheiro que ganhava. E agora se encontravam divididos, cada um para seu lado. Só numa coisa estavam todos de acordo: em matar mulher adúltera, nem mesmo o Capitão defendia Sinhazinha. Nem mesmo seu primo, em cuja casa o corpo fora encomendado para o cemitério. Que diabo viera fazer ali a filha do coronel Melk Tavares, aquela por quem Josué suspirava apaixonado, uma de rosto formoso, calada, os olhos inquietos como se conduzisse um segredo, um mistério qualquer? Uma vez João Fulgêncio dissera, ao vê-la com outras colegas comprando chocolate no bar:
¯ Essa moça é diferente das outras, tem caráter.
Por que diferente, que queria dizer João Fulgêncio, homem tão ilustrado, com aquela coisa de caráter? A verdade é que ela aparecera no velório, levando flores. O pai visitara Jesuíno, levara-lhe o seu abraço, como ele mesmo dissera a Nacib no mercado dos escravos. A filha, moça solteira e estudante, à espera de noivo, que diabo fora fazer junto ao caixão de Sinhazinha? Tudo dividido, o pai de um lado, a filha de outro. Esse mundo é complicado, entenda-o quem quiser, estava acima de suas forças, não passava de dono de bar, por que pensar em tudo isso? Tinha era de ganhar dinheiro para um dia comprar roça de cacau. Se Deus ajudasse, haveria de comprar. Talvez então pudesse olhar o rosto de Malvina, tentar decifrar o seu enigma. Ou, pelo menos, botar casa para rapariga igual a Glória.
Estava com sede, foi beber água na moringa da cozinha. Viu o pacote, com o vestido e os chinelos, trazidos da loja do tio. Ficou indeciso. O melhor era entregar no outro dia. Ou botar na porta do quartinho dos fundos, para a empregada encontrar quando acordasse. Como se fosse Natal... Sorriu, tomou do embrulho. Na cozinha engoliu a água em grandes goles, bebera muito naquele dia, durante o jantar, ajudando a servir.
A lua, no alto dos céus, iluminava o quintal de mamoeiros e goiabeiras. A porta do quarto da empregada estava aberta. Talvez por causa do calor. No tempo de Filomena era trancada a chave, a velha tinha medo de ladrões, sua riqueza eram os quadros de santos. O luar entrava quarto a dentro. Nacib aproximou-se, deixaria o pacote nos pés da cama, ela levaria um susto pela manhã. E, talvez, na próxima noite...
Os olhos perscrutaram a escuridão. A réstia de luar subia pela cama, iluminava um pedaço de perna. Nacib firmou a vista, já excitado. Esperara dormir essa noite nos braços de Risoleta, nessa certeza fora ao cabaré, antegozando a sabedoria dela, de prostituta de cidade grande. Ficara-lhe o desejo irritado. Agora via o corpo moreno de Gabriela, a perna saindo da cama. Mais do que via, adivinhava-o sob a coberta remendada, mal cobrindo a combinação rasgada, o ventre e os seios. Um seio saltava pela metade, Nacib procurava enxergar. E aquele perfume de cravo, de tontear.
Gabriela agitou-se no sono, o árabe transpusera a porta. Estava com a mão estendida, sem coragem de tocar o corpo dormido. Por que apressar-se? Se ela gritasse, se fizesse um escândalo, fosse embora? Ficaria sem cozinheira, outra igual a ela jamais encontraria. O melhor era deixar o pacote na beira da cama. No outro dia demoraria mais em casa, ganhando sua confiança pouco a pouco, terminaria por conquistá-la.
Sua mão quase tremia pousando o embrulho. Gabriela sobressaltou-se, abriu os olhos, ia falar, mas viu Nacib de pé, a fitá-la. Com a mão, instintivamente, procurou a coberta mas tudo que conseguiu ¯ por acanhamento ou por malícia? ¯ foi fazê-la escorregar da cama. Levantou-se a meio, ficou sentada, sorria tímida. Não buscava esconder o seio, agora visível ao luar.
¯ Vim lhe trazer um presente ¯ gaguejou Nacib. ¯ Ia botar em sua cama. Cheguei agorinha...
Ela sorria, era de medo ou era para encorajar? Tudo podia ser, ela parecia uma criança, as coxas e os seios à mostra como se não visse mal naquilo, como se nada soubesse daquelas coisas, fosse toda inocência. Tirou o embrulho da mão dele:
¯ Obrigada, moço, Deus lhe pague.
Desatou o nó, Nacib a percorria com os olhos, ela estendeu sorrindo o vestido sobre o corpo, acariciou-o com a mão:
¯ Bonito...
Espiou os chinelos baratos, Nacib arfava.
¯ O moço é tão bom...
O desejo subia no peito de Nacib, apertava-lhe a garganta. Seus olhos se escureciam, o perfume de cravo o tonteava, ela tomava do vestido para melhor o ver, sua nudez cândida ressurgia.
¯ Bonito... Fiquei acordada, esperando pro moço me dizer a comida de amanhã. Ficou tarde, vim deitar..
¯ Tive muito trabalho ¯ as palavras saíam-lhe a custo.
¯ Coitadinho... Não tá cansado?
Dobrava o vestido, colocava os chinelos no chão.
¯ Me dê, penduro no prego.
Sua mão tocou a mão de Gabriela, ela riu:
¯ Mão mais fria...
Ele não pode mais, segurou-lhe o braço, a outra mão procurou o seio crescendo ao luar. Ela o puxou para si:
¯ Moço bonito...
O perfume de cravo enchia o quarto, um calor vinha do corpo de Gabriela, envolvia Nacib, queimava-lhe a pele, o luar morria na cama. Num sussurro entre beijos, a voz de Gabriela agonizava:
¯ Moço bonito...
ALEGRIAS E TRISTEZAS DE UMA FILHA DO POVO NAS RUAS DE ILHÉUS, DA COZINHA AO ALTAR (ALIÁS ALTAR NÃO HOUVE DEVIDO A COMPLICAÇÕES RELIGIOSAS), QUANDO CORRIA FARTO O DINHEIRO E TRANSFOR-MAVA-SE A VIDA COM CASAMENTOS E DESCASA-MENTOS SUSPIROS DE AMOR E UIVOS DE CIÚME, TRAIÇÕES POLÍTICAS E CONFERÊNCIAS LITERÁRIAS, ATENTADOS, FUGAS, JORNAIS EM CHAMAS, LUTA ELEITORAL O FIM DA SOLIDÃO, CAPOEIRISTAS E “CHEF DE CUISINE”, CALOR E FESTAS DE FIM DE ANO, TERNO DE PASTORINHAS E CIRCO MAMBEMBE, QUERMESSE E ESCAFANDRISTAS, MULHERES DESEMBARCANDO A CADA NAVIO, JAGUNÇOS NOS ÚLTIMOS TIROS, COM OS GRANDES CARGUEIROS NO PORTO E A LEI DERROTADA, COM UMA FLOR E UMA ESTRELA OU GABRIELA, CRAVO E CANELA
CAPÍTULO TERCEIRO
O SEGREDO DE MALVINA
(Nascida para um grande destino, presa em seu jardim)
A moral se enfraquece, os costumes degeneram, aventureiros vindos de fora ...
(de um discurso do dr. Maurício Caires)
CANTIGA PARA NINAR MALVINA
Dorme, menina dormida teu lindo sonho a sonhar.
No teu leito adormecida partirás a navegar.
Estou presa em meu jardim com flores acorrentada.
Acudam! vão me afogar.
Acudam! vão me matar.
Acudam! vão me casar
numa casa me enterrar
na cozinha a cozinhar
na arrumação a arrumar
no piano a dedilhar
na missa a me confessar.
Acudam! vão me casar
na cama me engravidar.
No teu leito adormecida partirás a navegar.
Meu marido, meu senhor na minha vida a mandar.
A mandar na minha roupa no meu perfume a mandar.
A mandar no meu desejo no meu dormir a mandar.
A mandar nesse meu corpo nessa minh´alma a mandar.
Direito meu a chorar.
Direito dele a matar.
No teu leito adormecida partirás a navegar.
Acudam! me levem embora quero marido
pra amar não quero pra respeitar.
Quem seja ele ¯ que importa?
moço pobre ou moço rico bonito,
feio mulato me leve embora daqui.
Escrava não quero ser.
Acudam! me levem embora.
No teu leito adormecida partirás a navegar.
A navegar partirei acompanhada ou sozinha.
Abençoada ou maldita a navegar partirei.
Partirei pra me casar a navegar partirei.
Partirei pra me entregar a navegar partirei.
Partirei pra trabalhar a navegar partirei.
Partirei pra me encontrar para jamais partirei.
Dorme, menina dormida teu lindo sonho a sonhar.
GABRIELA COM FLOR
As flores desabrochavam nas praças de Ilhéus, canteiros de rosas, crisântemos, dálias, margaridas, malmequeres. As pétalas das onze-horas abriam-se por entre a relva, pontuais como o relógio da intendência, salpicando de vermelho o verde da grama. Para as bandas do Malhado, em meio ao mato, nos bosques úmidos do Unhão e da Conquista, explodiam fantásticas orquídeas. Mas o perfume a elevar-se na cidade, a dominá-la, não vinha dos jardins, dos bosques, das tratadas flores, das orquídeas selvagens. Chegava dos armazéns de ensacamento, do cais e das casas exportadoras, era o perfume das amêndoas de cacau seco, tão forte que entontecia os forasteiros, tão habitual que ninguém mais o sentia. Espalhando-se sobre a cidade, o rio e o mar.
Nas roças, os frutos de cacau punham-se de vez, todas as gamas do amarelo na paisagem, um ar doirado. O tempo da colheita aproximava-se, de safra tão grande jamais se tivera notícia.
Gabriela arrumava enorme tabuleiro de doces. Outro, ainda maior, de acarajés, abarás, bolinhos de bacalhau, frigideiras. O moleque Tuísca, pitando uma ponta de cigarro, esperava a contar-lhe conversas do bar, miúdos acontecimentos, aqueles a afetá-lo mais particu-larmente: os dez pares de sapatos de Mundinho Falcão, as partidas de futebol na praia, um roubo acontecido em loja de fazendas, o anúncio da próxima chegada do Grande Circo Balcânico, com elefante e girafa, camelo, leões e tigres. Gabriela ria, ouvindo, ficou atenta às notícias do circo:
¯ Vem mesmo?
¯ Já tem anúncio nos postes.
¯ Uma vez teve um circo por lá. Fui com a tia pra ver. Tinha um homem que comia fogo.
Tuísca fazia projetos: quando o circo chegasse, ele acompanharia o palhaço em seu percurso pela cidade, montado de costas num jumento. Assim acontecia sempre, cada vez que um circo armava seu pavilhão no descampado da banca de peixe. O palhaço a perguntar:
¯ E o Palhaço o que é?
A meninada a responder:
¯ É ladrão de mulher...
O palhaço marcava-lhe a testa com cal, ele entrava de graça no espetáculo à noite. Quando não ajudava os mata-cachorros na arrumação do picadeiro, fazendo-se indispensável e íntimo. Nessas ocasiões abandonava sua caixa de engraxate.
¯ Um circo quis me levar. O diretor me chamou...
¯ De mata-cachorro?
Tuísca quase se ofendeu:
¯ Não. De artista.
¯ O que é que tu ia fazer?
Iluminou-se o rostinho negro:
¯ Pra ajudar com os macacos, aparecer com eles. E pra dançar também... Só não fui por causa de mamãe... ¯ a negra Raimunda estava entrevada de reumatismo, incapacitada de exercer sua profissão de lavadeira, os filhos sustentavam a casa: Filó, chofer de marinete, e Tuísca, mestre de várias artes...
¯ E tu sabe dançar?
¯ Nunca viu? Quer ver?
Imediatamente pôs-se a dançar, tinha a dança dentro de si, os pés criando passos, o corpo solto, as mãos batendo o ritmo. Gabriela olhava, com ela era igual, não se conteve. Abandonou tabuleiros e panelas, salgados e doces, a mão a suspender a saia. Dançavam agora os dois, o negrinho e a mulata, sob o sol do quintal. Nada mais existia no mundo. Em certo momento Tuísca parou, ficou apenas a bater as mãos sobre um tacho vazio, emborcado. Gabriela volteava, a saia voando, os braços indo e vindo, o corpo a dividir-se e a juntar-se, as ancas a rebolar, a boca a sorrir.
¯ Meu Deus, os tabuleiros...
Arrumaram às pressas, o de doces sobre o dos salgados, tudo na cabeça de Tuísca que saiu assoviando a melodia. Os pés de Gabriela ainda traçaram uns passos, dançar era bom. Um ruído de fervura veio da cozinha, ela precipitou-se.
Quando sentiu Chico Moleza entrar na casa ao lado já estava pronta, tomou da marmita, enfiou os chinelos, dirigiu-se para a porta. Ia levar a comida de Nacib, ajudar enquanto o empregado não estava. Voltou, porém, colheu uma rosa no canteiro do quintal, enfiou o talo atrás da orelha, sentia as pétalas veludosas a tocar-lhe de leve a face.
Fora o sapateiro Felipe ¯ boca suja de anarquista a praguejar contra os padres, tão educado quanto um nobre espanhol ao falar com uma dama ¯ quem lhe ensinara aquela moda. A mais formosa das modas, dissera-lhe.
¯ Todas as muchachas em Sevilha usam uma flor roja nos cabelos... Tantos anos em Ilhéus, batendo sola, e ainda misturava palavras castelhanas ao seu português. Antes aparecia no ar apenas de raro em raro. Trabalhava muito, remendando selas, arreios, fabricando chicotes de montaria, botando sola em sapatos e botas, no tempo livre lia folhetos de capa encarnada, discutia na Papelaria Modelo. Quase só aos domingos vinha ao bar para jogar gamão e dama, adversário temido. Atualmente era todos os dias, antes do almoço, na hora do aperitivo. Quando Gabriela chegava, o espanhol suspendia a cabeça de rebeldes cabelos brancos, ria com os dentes perfeitos, de jovem:
¯ Salve la gracia, olé.
E fazia com os dedos um ruído de castanholas.
Outros também, fregueses anteriormente acidentais, haviam-se tornado quotidianos, o Vesúvio conhecia uma singular prosperidade. A fama dos salgados e doces de Gabriela circulara, desde os primeiros dias, entre os viciados do aperitivo, trazendo gente dos bares do porto, alarmando Plínio Araçá, o dono do Pinga de Ouro. Nhô-Galo, Tonico Bastos, o Capitão, cada um por sua vez, haviam partilhado o almoço de Nacib, saíram dizendo maravilhas da comida. Seus acarajés, as fritadas envoltas em folhas de bananeira, os bolinhos de carne, picantes, eram cantados em prosa e verso ¯ em verso por que o professor Josué a eles dedicara uma quadra, onde rimava frigideira com abrideira, cozinheira com faceira. Mundinho Falcão já a solicitara por empréstimo, um dia, quando ofereceu um jantar em sua residência, por ocasião da acidental passagem por Ilhéus, num Ita, de um amigo seu, senador por Alagoas.
Vinham para o aperitivo, o pôquer de dados, os acarajés apimentados, os bolinhos salgados de bacalhau a abrir o apetite. O número crescendo, uns trazendo outros, devido às notícias sobre a alta qualidade do tempero de Gabriela. Mas muitos deles demoravam-se agora um pouco mais além da hora habitual, atrasando o almoço. Desde que Gabriela passara a vir ao bar com a marmita de Nacib.
Exclamações ressoavam à sua entrada: aquele passo de dança, os olhos baixos, o sorriso espalhando-se dos seus lábios para todas as bocas. Entrava, dizendo bom dia, por entre as mesas, ia direta para o balcão, depositava a marmita. Habitualmente, àquela hora o movimento era mínimo, um ou outro retardatário a apressar-se para casa. Mas, pouco a pouco, os fregueses foram prolongando a hora do aperitivo, medindo o tempo pela chegada de Gabriela, bebendo um último trago após sua aparição no bar.
¯ Desce um rabo-de-galo, Bico-Fino.
¯ Dois vermutes aqui...
¯ Saímos para outra? ¯ os dados ressoavam no copo de couro, rolavam sobre a mesa. ¯ Trinca de reis em uma...
Ela ajudava a servir, para mais depressa o movimento acabar, senão a comida esfriaria na marmita, perderia o gosto. Os chinelos arrastando-se no cimento, os cabelos amarrados com uma fita, o rosto sem pintura, as ancas dança. Ia por entre as mesas, um lhe dizia galanteios, outro a fitava com olhos súplices, o Doutor batia-lhe palmadinhas na mão, chamava-a minha menina. Ela sorria para uns e outros, pareceria uma criança não fossem as ancas soltas. Uma súbita animação percorria o bar, como se a presença de Gabriela o tornasse mais acolhedor e íntimo.
Do balcão, Nacib a via aparecer na praça, a rosa na orelha, presa nos cabelos. Semi-cerravam-se os olhos do árabe ¯ a marmita cheia de comida gostosa, àquela hora sentia-se esfomeado, contendo-se para não devorar os pastéis e empadas de camarão, os bolinhos dos tabuleiros. E a entrada de Gabriela significaria mais uma rodada de bebida em quase todas as mesas, aumento de lucro. Ao demais, era um prazer para os olhos vê-la ao meio do dia, rememorar a noite passada, imaginar a próxima.
Por baixo do balcão a beliscava, passava-lhe a mão sob as saias, tocava-lhe os peitos. Gabriela ria então em surdina, era gostoso.
O Capitão a reclamava:
¯ Venha ver essa jogada, minha aluna...
De aluna a tratava, um falso ar paterno, desde um dia quando tentara, no bar quase vazio, ensinar-lhe os mistérios do gamão. Ela rira sacudindo a cabeça, além do jogo de burro não conseguia aprender nenhum outro. Mas ele, nas conclusões das partidas prolongadas em jogadas lentas para a ver chegar, reclamava sua presença nos lances decisivos:
¯ Venha aqui me dar sorte...
Por vezes a sorte era para Nhô-Galo, para o sapateiro Felipe ou para o Doutor:
¯ Obrigado, minha menina, Deus lhe faça ainda mais bela ¯ o Doutor batia-lhe levemente na mão.
¯ Mais bela? Impossível! ¯ protestava o Capitão, abandonando o ar paternal.
Nhô-Galo não dizia nada, apenas a olhava. O sapateiro Felipe elogiava-lhe a rosa na orelha:
¯ Ah! mis vinte años...
Reclamava de Josué, por que não fazia ele um soneto para aquela flor, aquela orelha, aqueles olhos verdes? Josué respondendo que um soneto era pouco, faria uma ode, uma balada. Sobressaltavam-se quando o relógio soava as doze e meia, iam saindo, deixando gordas gorjetas que Bico-Fino recolhia com as unhas sujas e ávidas. Iam empurrados pelo relógio, como obrigados, a contragosto. O bar esvaziava-se, Nacib sentava-se a comer. Ela o servia, rodando em torno da mesa, abrindo a garrafa de cerveja, enchendo-lhe o copo. O rosto moreno resplandecia, quando ele, farto, entre dois arrotos ¯ é bom para a saúde, explicava ¯, elogiava os pratos. Recolhia as marmitas, Chico Moleza aparecia de volta, era a vez de Bico-Fino ir almoçar. Gabriela armava a espreguiçadeira num terreno ao lado do bar, plantado de árvores, dando para a praça. Dizia até logo, seu Nacib, voltava para casa. O árabe acendia o charuto de São Félix, tomava dos jornais da Bahia, atrasados de uma semana, ficava a espiá-la desaparecer na curva da igreja, seu andar de dança, seus quadris marinheiros. Já não levava a flor na orelha, metida nos cabelos. Ele a encontrava na espreguiçadeira, teria caído por acaso, ao curvar-se a moça, ou a retirara ela da orelha e a deixara ali de propósito? Rosa rubra com cheiro de cravo, perfume de Gabriela.
DO INESPERADO HÓSPEDE INDESEJÁVEL
Eufóricos, o Capitão e o Doutor apareceram cedo no Bar Vesúvio comboiando um homem de uns trinta e poucos anos, de rosto aberto e ar esportivo. Antes mesmo que o apresentassem, Nacib adivinhou tratar-se do engenheiro. Desencantara afinal o tão esperado e discutido cidadão...
¯ Dr. Rômulo Vieira, engenheiro do Ministério da Viação.
¯ Muito prazer, doutor. Um seu criado...
¯ O prazer é meu.
Ali estava ele, o rosto queimado de sol, o cabelo cortado quase rente, uma pequena cicatriz na testa. Apertava com força a mão de Nacib. O Doutor, sorria tão feliz como se exibisse parente próximo e ilustre ou mulher de rara, beleza. O Capitão pilheriava:
¯ Esse árabe é uma instituição. É ele quem nos envenena com bebida falsificada, rouba-nos ao pôquer, sabe da vida de todo mundo.
¯ Não diga isso, Capitão. O que é que o doutor vai pensar?
¯ Um bom amigo ¯ retificava o Capitão. ¯ Pessoa de bem.
O engenheiro sorria, um tanto contrafeito, a olhar com desconfiança a praça e as ruas, o bar, o cinema, as casas próximas em cujas janelas surgiam olhos curiosos. Sentaram-se em torno de uma das mesas do passeio. Glória surgia na janela, molhada do banho, os cabelos por pentear, num desalinho matinal. Logo descobria o forasteiro, cravava-lhe os olhos, corria para dentro a embelezar-se.
¯ Um pancadão de mulher, hein? ¯ o Capitão explicava-lhe Glória solitária.
Nacib quis servi-los pessoalmente, trouxe pedaços de gelo num prato, a cerveja estava apenas fria. Afinal chegara o engenheiro! O Diário de Ilhéus anunciara na véspera, na primeira página, em letras gordas, o desembarque no dia seguinte, pelo navio da Bahiana. Com o que, acrescentava asperamente a notícia, vai transformar-se em sorriso amarelo o riso alvar dos parvos e despeitados, aqueles profetas de fancaria que, em sua obra impatriótica, negam não só a vinda do engenheiro mas a própria existência de qualquer engenheiro no ministério...O dia de amanhã será o das bocas arrolhadas, da empáfia castigada.
O engenheiro viera via Bahia, desembarcara em Ilhéus naquela madrugada.
Violenta a notícia do jornal, cheia de desaforos contra os adversários. Mas a verdade é que o engenheiro demorara a chegar, ia para mais de três meses o anúncio de sua vinda imediata. Um dia ¯ Nacib recordava-se muito bem pois naquele dia a velha Filomena partira e ele contratara Gabriela ¯ Mundinho Falcão desembarcara de um Ita espalhando aos quatro ventos, numa demonstração de absoluto prestígio, o estudo e a solução do caso da barra. Ponto de partida inicial era a iminente chegada de um engenheiro do ministério. Fora uma sensação na cidade pelo menos tão intensa quanto o crime do coronel Jesuíno Mendonça. Marcara o início da campanha política para as eleições do começo do ano próximo, Mundinho Falcão assumindo a chefia da oposição, arrastando um bocado de gente com ele. O Diário de Ilhéus, em cujo cabeçalho se lia: noticioso e apolítico, começou a marretar a administração municipal, a atacar o coronel Ramiro Bastos, a fazer picuinhas ao governo estadual.
O Doutor escrevera uma série de artigos, pasquinadas ferozes, brandindo o anunciado engenheiro como um gládio sobre a cabeça dos Bastos.
No seu escritório ¯ todo o andar térreo ocupado pela ensacagem de cacau ¯, Mundinho Falcão conversava com fazendeiros mas já não eram simples assuntos comerciais, vendas de safra, modalidades de pagamento. Discutia política, propunha alianças, anunciava planos, dava a eleição como ganha. Os coronéis ouviam impressionados. Os Bastos mandavam em Ilhéus há mais de vinte anos, prestigiados pelos sucessivos governos estaduais. Mundinho, porém, atingia mais alto: seu prestígio decorria do Rio, do governo federal. Não obtivera, apesar da oposição do governo do estado, um engenheiro para estudar o até então insolúvel caso da barra, não garantia resolvê-lo em pouco tempo?
O coronel Ribeirinho, que jamais fizera caso de seus votos, dando-os de mão beijada a Ramiro Bastos, formara nas fileiras do novo chefe, metia-se em política pela primeira vez. E exaltado, viajando pelo interior para conversar compadres seus, influir sobre pequenos lavradores. Havia quem dissesse ter aquela amizade política nascido no leito de Anabela, dançarina trazida a Ilhéus pelo exportador e que ali abandonara o parceiro, mágico ilusionista, para dançar exclusivamente para o coronel. Exclusivamente, uma ova, pensava Nacib.
Demonstrando exemplar neutralidade política, dormia ela com Tonico Bastos enquanto o coronel percorria vilas e povoados. E aos dois traía quando Mundinho Falcão, amigo de variar, mandava-lhe um recado. Era com ele que contava, em definitivo, no caso de lhe ocorrer uma infelicidade qualquer nessa terra assustadora, de costumes brutais.
Outros fazendeiros, especialmente os mais moços, cujos compromissos com o coronel Ramiro Bastos eram recentes, não traziam o selo de sangue derramado, concordavam com Mundinho Falcão na análise e nas soluções dos problemas e necessidades de Ilhéus: abertura de estradas, aplicação de parte da renda nos distritos do interior, em Água Preta, em Pirangi, no Rio do Braço, em Cachoeira do Sul, exigir dos ingleses a conclusão do ramal da estrada de ferro ligando Ilhéus a Itapira, cujas obras eternizavam-se.
¯ Chega de praças e jardins... Precisamos de estradas.
Influíam-se sobretudo com a perspectiva da exportação direta, a barra dragada e retificada dando passagem aos grandes navios. Cresceria a renda do município, Ilhéus seria uma verdadeira capital. Mais uns dias e entre eles estaria o engenheiro...
Mas a verdade é que o tempo foi passando, semana após semana, um mês, outro mês, e o engenheiro não chegava. Arrefecia o entusiasmo dos fazendeiros, só Ribeirinho mantinha-se firme, discutindo nos bares, prometendo e ameaçando. O jornal do Sul, semanário dos Bastos, perguntava pelo engenheiro fantasma, invenção de forasteiros ambiciosos e mal-intencionados, cujo prestígio não passa de conversa de bar. O próprio Capitão, alma de todo aquele movimento, por mais que o escondesse, andava nervoso, irritava-se no tabuleiro de gamão, perdia partidas.
O coronel Ramiro Bastos fora à Bahia, apesar dos amigos e filhos desaconselharem a viagem, perigosa para sua idade. Voltou uma semana depois, triunfante. Reuniu os correligionários em sua casa.
Amâncio Leal contava para quem quisesse ouvir, com sua voz macia, ter o governador do estado garantido ao coronel Ramiro não existir engenheiro nenhum designado pelo ministério para a barra de Ilhéus. Aquele era um problema irremediável, já o secretário de Viação do estado o estudara amplamente. Não tinha mesmo jeito, seria tempo perdido tentar resolvê-lo. A solução estava em construir-se um novo porto para Ilhéus, no Malhado, fora da barra. Obra de enorme vulto, exigindo anos de estudos antes de pensar-se em iniciá-la. Dependendo de milhões de contos de réis, da cooperação entre os poderes federal, estadual e municipal. Obra de tamanha magnitude, os estudos andavam lentamente, não podia ser de outra maneira. Estudos múltiplos, demorados e difíceis. Mas já tinham começado. O povo de Ilhéus devia pacientar um pouco...
O Jornal do Sul publicou um artigo sobre o futuro porto, elogiando o governador e o coronel Ramiro. Quanto ao engenheiro, escrevia, encalhara na barra para sempre.. O intendente, por sugestão de Ramiro, mandou ajardinar mais uma praça, ao lado do novo edifício do Banco do Brasil.
Amâncio Leal, toda vez que encontrava o Capitão ou o Doutor, não deixava de perguntar-lhes, um sorriso de zombaria:
¯ E o engenheiro, quando chega?
O Doutor respondia ríspido:
¯ Ri melhor quem ri por último.
O Capitão acrescentava:
¯ Você não perde por esperar.
¯ Quanto tempo é pra esperar?
Terminavam por beber juntos qualquer coisa, Amâncio exigia que eles pagassem:
¯ Quando o engenheiro chegar, eu começo a pagar.
Quis fazer dessas pilhérias com Ribeirinho mas o outro exaltou-se, gritando alto no bar:
¯ Não sou de mesquinharias. Quer apostar? Então aposte dinheiro de verdade. Boto dez contos como o engenheiro vem.
¯ Dez contos? Boto vinte contra seus dez e dou um ano de prazo. Ou quer mais? ¯ a voz suave, o olho mau.
Nacib e João Fulgêncio serviram de testemunhas.
O Capitão insistia junto a Mundinho para que fosse ao Rio, apertar o ministro. O exportador recusava-se. A safra se iniciara, não podia largar seus negócios naquele momento. Viagem além de tudo desnecessária, pois a vinda do engenheiro era certa, apenas retardara-se devido a detalhes burocráticos. Não contava as dificuldades reais, o susto que passara ao saber, por carta de amigo, ter o ministro recuado da promessa feita ante o protesto do governador da Bahia. Mundinho jogou então todas as suas amizades, à exceção da própria família, na solução do caso. Escreveu cartas, passou quantidade de telegramas, pediu e prometeu. Um amigo seu falou com o presidente da República e, coisa que Mundinho jamais veio a saber, foi o prestígio de Lourival e de Emílio o fator decisivo para resolver o impasse. Ao saber o nome do autor do pedido e seu parentesco com os influentes políticos paulistas, o presidente dissera ao ministro:
¯ Afinal é um pedido justo. O governador está no fim do mandato, brigado com muita gente, nem sei se fará o sucessor. Não devemos nos curvar sempre à vontade dos governos estaduais...
Mundinho vivera dias de temor, quase de pânico. Se perdesse aquela partida, não tinha outra coisa a fazer senão arrumar sua bagagem, ir-se embora de Ilhéus. A não ser que quisesse viver desmoralizado, objeto de dichotes e pilhérias. Voltar, cabisbaixo, fracassado, para a sombra dos irmãos... Quase deixara de aparecer nos bares, nos cabarés, onde a maledicência crescia.
O próprio Tonico Bastos, muito discreto, evitando, o quanto podia, tocar naquele assunto diante dos partidários de Mundinho, já não se continha, gozava o mau humor dos adversários. Certa vez houve um bate-boca entre ele e o Capitão, teve João Fulgêncio que intervir para evitar um rompimento de relações. Tonico propusera enquanto bebiam e conversavam:
¯ Por que, em vez de engenheiro, Mundinho não traz outra dançarina? Custa menos trabalho e serve aos amigos...
Naquela mesma noite, o Capitão aparecera, sem avisar, em casa do exportador. Mundinho o recebera contrafeito:
¯ Você vai me desculpar, Capitão, tenho gente em casa. Uma jovem que veio da Bahia, chegou no navio de hoje. Para me distrair dos negócios...
¯ Só lhe ocupo um minuto ¯ aquela história de rapariga mandada vir, da Bahia irritava o Capitão. ¯ Sabe o que Tonico Bastos dizia hoje, no bar? Que você só servia mesmo para trazer mulheres para Ilhéus. Mulheres e nada mais... Engenheiro, isso não.
¯ Tem graça. ¯ Mundinho ria. ¯ Mas não se aflija...
¯ Como não vou me afligir? O tempo está passando, a vinda do engenheiro...
¯ Já sei tudo que você vai dizer, Capitão. Você pensa que sou um imbecil, que estou de braços cruzados?
¯ Por que você não se dirige a seus irmãos? Têm força...
¯ Isso nunca. Nem é preciso. Hoje mandei um verdadeiro ultimatum. Vá descansado e desculpe o recebimento.
¯ Eu é que fui inoportuno... ¯ ouvia passos de mulher andando no quarto.
¯ E pergunte a Tonico se ele prefere loira ou morena...
Dias depois chegava o telegrama do ministro anunciando o nome do engenheiro e a data de seu embarque para a Bahia. Mundinho mandou chamar o Capitão, o coronel Ribeirinho, o Doutor. “Designado engenheiro Rômulo Vieira”. O Capitão tomava do despacho, punha-se de pé:
¯ Vou esfregá-lo nas ventas de Tonico e de Amâncio...
¯ Vinte pacotes, ganhos sem esforço ¯ Ribeirinho erguia as mãos. ¯ Vamos fazer uma farra monumental no Bataclan.
Mundinho recolheu o telegrama, não deixou o Capitão levá-lo. Pediu-lhes mesmo guardar segredo ainda uns dias, era de muito mais efeito anunciar no jornal quando o engenheiro já estivesse na Bahia. No fundo, temia nova ofensiva do governador, novo recuo do ministro. E só uma semana depois, quando o engenheiro, já na Bahia, avisara sua chegada no próximo baiano, Mundinho os convocara novamente, mostrou-lhes as cartas e telegramas trocados, aquela fora uma dura e difícil batalha contra o governo do estado. Ele não quisera alarmar os amigos, por isso não os pusera antes a par dos detalhes. Mas agora, quando haviam vencido, valia a pena conhecer toda a extensão e valor dessa vitória.
No Bar Vesúvio, Ribeirinho mandou servir bebida a todo mundo e o Capitão, cujo bom humor reaparecera, elevou seu cálice à saúde do dr Rômulo Vieira, libertador da barra de Ilhéus. A notícia circulou, saiu depois no jornal, vários fazendeiros voltavam a entusiasmar-se. Ribeirinho, o Capitão, o Doutor citavam trechos de cartas. O governo do estado fizera tudo para impedir a vinda do engenheiro. Jogara todo seu prestígio, toda sua força. O governador, por causa do genro, se empenhara pessoalmente. E quem vencera? Ele, com o estado na mão, chefe de governo, ou Mundinho Falcão, sem sair de seu escritório em Ilhéus? Seu prestígio pessoal derrotara o governo do estado. Essa a verdade indiscutível. Os fazendeiros abanavam a cabeça, impressionados.
A recepção no porto foi festiva. Nacib, tendo acordado tarde, o que lhe sucedia agora freqüentemente, não pôde comparecer. Mas soubera de tudo mal chegara ao bar, da boca de Nhô-Galo. Lá estiveram, na ponte, Mundinho Falcão e seus amigos, vários fazendeiros também, e grande número de curiosos. Tanto se falara desse engenheiro que desejavam ver como ele era, havia-se tornado quase um ser sobrenatural. Até um fotógrafo apareceu, contratado por Clóvis Costa. Juntou todo mundo num grupo, com o engenheiro no centro, meteu a cabeça sob o pano preto, levou meia hora para bater o retrato. Infelizmente perdeu-se esse documento histórico: a chapa queimara-se, o homem só sabia fotografar em seu atelier.
¯ Quando vai começar? ¯ quis saber Nacib.
¯ Logo. Os estudos preliminares. Devo esperar meus ajudantes e os instrumentos necessários, estão vindo num navio do Lloyd, direto.
¯ Vai durar muito?
¯ É difícil prever. Mês e meio, dois meses, ainda não sei...
O engenheiro interessava-se, por sua vez:
¯ A praia é bonita. É boa pro banho de mar?
¯ Muito boa.
¯ Mas está vazia...
¯ Aqui não há esse costume. Só Mundinho, e, antigamente, o finado Osmundo, um dentista que foi assassinado... De manhãzinha bem cedo...
O engenheiro riu:
¯ Mas não é proibido?
¯ Proibido? Não. Só que não é costume.
Moças do colégio das freiras, aproveitando o dia santo, andavam pelo comércio fazendo compras, entravam no bar em busca de bombons e caramelos. Entre elas, formosa e séria, Malvina.
O Capitão as apresentava:
¯ A juventude estudiosa, as futuras mães de família. Iracema, Heloísa, Zuleika, Malvina...
O engenheiro apertava as mãos, sorria, elogiava:
¯ Terra de moças bonitas...
¯ O senhor demorou demais ¯ disse Malvina a fitá-lo com seus olhos de mistério. ¯ Já se pensava que o senhor não viria.
¯ Se eu soubesse que era esperado por senhoritas tão belas, teria vindo já há muito tempo, mesmo sem ter sido designado... ¯ que olhos aquela moça possuía, sua formosura não estava apenas no rosto e no corpo elegante, era como se viesse também de dentro dela.
Partiu o grupo álacre, Malvina voltou-se duas vezes a olhar. O engenheiro anunciou:
¯ Vou aproveitar esse sol e tomar um banho de mar.
¯ Volte para o aperitivo. Aí pelas onze, onze e meia... Vai conhecer meio ilhéus...
Estava hospedado no Hotel Coelho. Viram-no passar pouco depois, envolto num roupão de banho, andando para a praia. Levantaram-se para espiá-lo despindo o roupão, o corpo atlético vestido apenas com um maiô, correndo para o mar, cortando-o em braçadas rápidas. Malvina fora sentar-se num banco no passeio da praia, acompanhava com os olhos.
DE COMO SE INICIOU A CONFUSÃO DE SENTIMENTOS DO ÁRABE NACIB
Leu umas linhas no jornal, aspirando a fumaça do charuto de São Félix, perfumado. Em geral, nem chegava a fumar todo o charuto, a ler grande coisa nos diários da Bahia. Logo adormecia, embalado pela brisa do mar, afrontado pelas iguarias gulosamente devoradas, o inigualável tempero de Gabriela. Ressonava feliz por entre os bigodes frondosos. Aquela meia hora de sono, à sombra das árvores, era uma das delícias de sua vida, sua boa vida tranqüila, sem sustos, sem complicações, sem problemas graves. Jamais tinham os negócios marchado tão bem, crescia a freqüência do bar, ele acumulava dinheiro no banco, o sonho de um pedaço de terra onde plantar cacau ganhava realidade. Nunca fizera negócio tão vantajoso como ao contratar Gabriela no mercado dos escravos. Quem diria ser ela tão competente cozinheira, quem diria esconder-se sob trapos sujos tanta graça e formosura, corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?...
Naquele dia da chegada do engenheiro, a curiosidade tomando conta do bar, apresentações e cumprimentos, elogios a granel ¯ é um nadador de primeira ¯ quando todos os almoços se atrasaram em Ilhéus, Nacib fizera dia por dia a conta do tempo decorrido desde o anúncio de sua vinda. Gabriela voltava para casa após pedir:
¯ Deixa eu ir no cinema hoje? Pra acompanhar dona Arminda...
Tirara da caixa uma nota de cinco mil-réis, generoso:
¯ Pague a entrada dela...
Vendo-a partir, esfogueada e risonha (ele não parara de beliscá-la e tocá-la mesmo enquanto comia), contara os dias: três meses e dezoito dias exatamente. De aperreação, cochichos, agitação, dúvida e esperança para Mundinho e seus amigos, para o coronel Ramiro Bastos e seus correligionários. Com descomposturas nos jornais, conversas segredadas, apostas, bate-bocas, surdas ameaças, um clima de tensão em aumento. Havia dias em que o bar parecia uma caldeira prestes a explodir. Quando o Capitão e Tonico mal se falavam, o coronel Amâncio Leal e o coronel Ribeirinho apenas se cumprimentavam.
É para ver-se como são as coisas da vida. Aqueles mesmos dias foram de calma, de perfeita tranqüilidade de espírito, de suave alegria para Nacib. Talvez os mais felizes de toda a sua existência.
Jamais dormira tão sereno sua sesta, acordando risonho com a voz de Tonico, infalível após o almoço para um dedo de amargo a ajudar a digestão, um dedo de prosa antes de abrir o cartório. Pouco depois juntava-se a eles João Fulgêncio, passando para a papelaria. Falavam de Ilhéus e do mundo, o livreiro era entendido em assuntos internacionais, Tonico sabia tudo quanto se referia ao mulherio da cidade.
Três meses e dezoito dias tardara o engenheiro a chegar, fazia exatamente o mesmo tempo que contratara Gabriela. Naquele dia o coronel Jesuíno Mendonça matara dona Sinhazinha e o dentista Osmundo. Mas só no outro dia tivera Nacib certeza de que ela sabia cozinhar. Na espreguiçadeira, o jornal abandonado no chão, o charuto a apagar-se, Nacib sorri, recordando... Três meses e dezessete dias a comer comida temperada por ela, não havia em todo Ilhéus cozinheira que se lhe pudesse comparar. Três meses e dezesseis dias dormindo com ela, a partir da segunda noite, quando o luar lambia-lhe a perna e no escuro do quarto saltava um seio da rota combinação...
Nessa tarde, devido talvez ao anormal movimento do bar, à excitação da presença do engenheiro, Nacib não conciliava o sono, tomado por seus pensamentos. A princípio não dera maior importância a nenhuma das duas coisas: nem à qualidade da comida nem ao corpo da retirante nas noites ardentes. Satisfeito com o tempero e a variedade dos pratos, só lhes deu o devido valor quando a freguesia começou a crescer, quando foi preciso aumentar o número de salgados e doces, quando sucederam-se unânimes os elogios e Plínio Araçá, cujos métodos comerciais eram dos mais discutíveis, mandou fazer uma oferta a Gabriela. Quanto ao corpo ¯ aquele fogo de amor a consumi-la no leito, aquela loucura de noites atravessadas insones ¯ prendeu-se a ele, insensivelmente. Nos primeiros tempos, apenas certas noites a procurava, quando, ao chegar em casa, ocupada ou doente Risoleta, não estava cansado e com sono. Então decidia deitar-se com ela, à falta de outra coisa a fazer. Mas durara pouco essa displicência. Logo habituara-se de tal maneira à comida feita por Gabriela que, convidado a jantar com Nhô-Galo no dia de seu aniversário, mal provara os pratos, sentindo diferença na finura do tempero. E fora, sem o sentir, amiudando as idas ao quarto do quintal, esquecendo a sabida Risoleta, passando a não suportar seu carinho representado, suas manhas, seus eternos queixumes, mesmo aquela ciência do amor que ela usava para lhe tirar dinheiro. Terminou por não mais procurá-la, não responder a seus bilhetes, e desde então, há quase dois meses, não tinha outra mulher senão Gabriela. Agora arribava todas as noites em seu quarto, procurando sair do bar o mais cedo possível.
Tempo bom, meses de vida alegre, de carne satisfeita, boa mesa, suculenta; de alma contente, cama de felizardo. No rol das virtudes de Gabriela, mentalmente estabelecido por Nacib na hora da sesta, contavam-se o amor ao trabalho e o senso de economia. Como arranjava tempo e forças para lavar a roupa, arrumar a casa ¯ tão limpa nunca estivera! ¯, cozinhar os tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. Parecia adivinhar os pensamentos de Nacib, adiantava-se às suas vontades, reservava-lhe surpresas: certas comidas trabalhosas das quais ele gostava ¯ pirão de caranguejo, vatapá, viúva de carneiro ¯, flores num copo ao lado de seu retrato na mesinha da sala de visitas, troco do dinheiro dado para fazer a feira, essa idéia de vir ajudar no bar.
Antes era Chico Moleza, ao voltar do almoço, quem trazia para Nacib a marmita preparada por Filomena. A barriga a dar horas, o árabe esperava impaciente. Ficava só, com Bico-Fino, a servir os últimos fregueses do aperitivo. Um dia, sem prevenir, Gabriela aparecera com a marmita, vinha lhe pedir licença para ir à sessão espírita, dona Arminda a convidara. Ficou ajudando a servir, passou a vir todos os dias. Naquela noite lhe dissera:
¯ É melhor eu levar a comida pro moço. Assim come mais cedo, posso ajudar também. Importa não?
Como ia importar se a presença dela era mais uma atração para a freguesia? Nacib logo se deu conta: demoravam-se mais, pedindo outro trago, os ocasionais passavam a permanentes, vindo todos os dias. Para vê-la, dizer-lhe coisas, sorrir-lhe, tocar-lhe a mão. Afinal que lhe importava, era apenas sua cozinheira com quem dormia sem nenhum compromisso. Ela servia-lhe a comida, armava-lhe a cadeira de lona, deixava a rosa com seu perfume. Nacib, satisfeito da vida, acendia o charuto, tomava dos jornais, adormecia na santa paz de Deus, a brisa do mar a acariciar-lhe os bigodões florescentes.
Mas nesse começo de tarde não conseguia dormir. Fazia mentalmente o balanço daqueles três meses e dezoito dias, agitados para a cidade, calmos para Nacib. Gostaria, no entanto, de cochilar pelo menos uns dez minutos, em vez de deter-se a relembrar coisas à toa, sem maior importância. De repente, sentiu que algo lhe faltava, talvez por isso não conseguisse dormir. Faltava-lhe a rosa, cada tarde encontrada caída no bojo da espreguiçadeira. Ele vira quando o juiz de direito, sem dar-se o respeito devido ao seu cargo, a furtara da orelha de Gabriela e a pusera em sua botoeira... Um homem idoso, de seus cinqüenta anos, aproveitando-se da confusão em torno do engenheiro para roubar a rosa, um juiz... Ficara com medo de um gesto brusco de Gabriela, ela fez como se não tivesse percebido. Esse juiz estava saindo do sério. Antigamente nunca vinha ao bar na hora do aperitivo, aparecendo apenas, de quando em vez, à tardinha, com João Fulgêncio ou com o dr. Maurício. Agora esquecia todos os preconceitos e, sempre que podia, lá estava no bar, bebendo um vinho do porto, rondando Gabriela.
Rondando Gabriela... Nacib ficou a pensar. Sim, rondando, de súbito dava-se conta. E não era só ele, muitos outros também... Por que se demoravam além da hora do almoço, criando problemas em casa? Senão para vê-la, sorrir para ela, dizer-lhe gracinhas, roçar-lhe a mão, fazer-lhe propostas, quem sabe? De propostas Nacib sabia apenas de uma feita por Plínio Araçá. Mas aquela dirigia-se à cozinheira. Fregueses do Pinga de Ouro haviam-se mudado para o Vesúvio, Plínio mandara oferecer um ordenado maior a Gabriela. Apenas escolhera mal o mediador, confiando a mensagem ao negrinho Tuísca, fiel do Bar Vesúvio, leal a Nacib. Assim, fora o próprio árabe quem dera o recado a Gabriela. Ela sorrira:
¯ Quero não... Só se seu Nacib me botar pra fora...
Ele a tomara nos braços, era de noite, envolveu-se em seu calor. E aumentou-lhe em dez mil-réis o ordenado:
¯ Tou pedindo não... ¯ disse ela.
Por vezes comprava-lhe um brinco para as orelhas, um broche para o peito, lembranças baratas, algumas nem lhe custavam nada, trazia da loja do tio. Entregava-as à noite, ela enternecia-se, agradecia-lhe humilde, beijando-lhe a palma da mão num gesto quase oriental:
¯ Moço bom, seu Nacib...
Broches de dez tostões, brincos de mil e quinhentos, com isso lhe agradecia as noites de amor, os suspiros, os desmaios, o fogo a crepitar inextinguível. Cortes de fazenda vagabunda duas vezes lhe dera, um par de chinelos, tão pouco para as atenções, as delicadezas de Gabriela: os pratos de seu agrado, os sucos de frutas, as camisas tão alvas e bem passadas, a rosa caída dos cabelos na espreguiçadeira. De cima, superior e distante, ele a tratara como se estivesse a pagar-lhe regiamente o trabalho, a fazer-lhe um favor deitando-se com ela.
Os outros no bar a rondá-la. A rondá-la talvez na ladeira de São Sebastião, a mandar-lhe recados, a fazer-lhe propostas, por que não seria assim ? Nem todos haviam de usar Tuísca de portador, como ele, Nacib, iria saber? Que vinha fazer no bar o juiz de direito senão tentá-la? A rapariga do juiz, uma jovem cabrocha da roça, aparecera alastrada de doenças feias, ele a largara.
Quando Gabriela começara a vir ao bar, ele ¯ idiota! ¯ alegrara-se interessado apenas nos vinténs a mais das rodadas repetidas, sem pensar no perigo dessa tentação diariamente renovada. Impedi-la de vir não devia fazê-lo, deixaria de ganhar dinheiro. Mas era preciso trazê-la de olho, dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de novo aumento. Boa cozinheira era coisa rara em Ilhéus, ninguém o sabia melhor do que ele. Muita família rica, donos de bares e de hotéis deviam estar cobiçando sua empregada, dispostos a fazer-lhe escandalosos ordenados. E como iria continuar o bar sem os doces e os salgados de Gabriela, sem o seu sorriso diário, sua momentânea presença ao meio-dia? E como iria ele viver sem o almoço e o jantar de Gabriela, os pratos perfumados, os molhos escuros de pimenta, o cuscuz pela manhã?
E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe moço bonito, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do seio, fogueira de pernas, como? E sentiu então a significação de Gabriela. Meu Deus!, que se passava, por que aquele súbito temor de perdê-la, por que a brisa do mar era vento gelado estremecer-lhe as banhas? Não, nem pensar em perdê-la, como viver sem ela? Jamais poderia gostar de outra comida, feita por outras mãos, temperada por outros dedos. Jamais,ah!, jamais poderia querer assim tanto desejar, tanto necessitar sem falta, urgente, permanen-temente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada. Que significavam esse medo, esse terror de perdê-la, a raiva repentina contra os fregueses a fitá-la, a dizer-lhe coisas, a tocar-lhe a mão, contra o juiz ladrão de flores, sem respeito ao cargo? Nacib perguntava-se ansioso: afinal que sentia por Gabriela, não era uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de canela, com quem deitava por desfastio? Ou não era tão simples assim? Não se animava a procurar a resposta.
A voz de Tonico Bastos veio ¯ felizmente!, respirou aliviado ¯ arrancá-lo desses pensamentos confusos e assustadores. Mas para outra vez neles mergulhá-lo, neles afundá-lo violentamente.
Pois, apenas haviam-se encostado no balcão, servindo-se Tonico do amargo, e já Nacib, para varrer suas melancolias, lhe foi dizendo:
¯ Então o homem chegou finalmente... Mundinho lavrou um tento, essa é a verdade.
Tonico, sorumbático, botou-lhe uns olhos maus:
¯ Por que você não cuida de sua vida, seu turco? Quem avisa amigo é. Em vez de ficar falando tolices, por que não toma conta do que é seu?
Queria Tonico apenas evitar o assunto do engenheiro, ou sabia de alguma coisa?
¯ Que quer você dizer com isso?
¯ Cuide do seu tesouro. Tem gente querendo roubar.
¯ Tesouro?
¯ Gabriela, bestalhão. Até casa querem botar pra ela.
¯ O juiz?
¯- Ele também? Ouvi falar de Manuel das Onças.
Não seria intriga de Tonico? O velho coronel estava muito do lado de Mundinho... Mas, também era verdade, agora aparecia em Ilhéus constantemente, não arredava do bar. Nacib estremeceu, viria do mar aquele vento gelado? Apanhou no escondido do balcão uma garrafa de conhaque sem mistura, serviu-se um trago respeitável. Quis puxar mais por Tonico, porém o tabelião arrenegava de Ilhéus:
¯ Merda de terra atrasada que se alvoroça toda com a presença de um engenheiro. Como se fosse coisa do outro mundo...
DE CONVERSAS E ACONTECIMENTOS COM AUTO DE FÉ
Com o correr da tarde cresceram nostalgias no peito de Nacib, como se Gabriela já não estivesse, inevitável fosse sua partida. Decidiu comprar-lhe uma lembrança, necessitada estava de um par de sapatos. Andava descalça o tempo todo em casa, vinha de chinelas ao bar, não ficava bem. Uma vez Nacib já reclamara: ¯ arranje uns sapatos, brincando na cama, coçando seus pés. Os tempos na roça, a caminhada do sertão para o sul, o hábito de andar de pés no chão, não os haviam deformado, ela calçava número 36, eram apenas um pouco esparramados, o dedo grande, engraçado, para um lado. Cada detalhe recordado enchia-o de ternura e de saudade, como se a houvesse perdido.
Vinha com o embrulho rua abaixo, uns sapatos amarelos, pareciam-lhe lindos, avistou a Papelaria Modelo em efervescência. Não pôde resistir, estava mesmo precisando de distrações, para lá se dirigiu. As poucas cadeiras em frente ao balcão todas ocupadas, havia gente em pé. Nacib sentiu dentro de si renascer, ainda indecisa chama, a curiosidade. Comentariam sobre o engenheiro, fariam previsões acerca da luta política. Apressou o passo, viu o dr. Ezequiel Prado agitando os braços. Escutou, ao chegar, suas últimas palavras:
¯... falta de respeito à sociedade e ao povo...
Estranho! ¯ não falavam do engenheiro. Comentavam a volta à cidade, inesperada, do coronel Jesuíno Mendonça, recolhido à sua fazenda desde o assassinato da esposa e do dentista. Ainda há pouco ele passara em frente à intendência, entrara em casa do coronel Ramiro Bastos. Contra esse regresso, por ele considerado ofensivo aos brios ilheenses, clamava o advogado. João Fulgêncio ria:
¯ Ora, Ezequiel, quando você já viu a gente daqui ofender-se com assassinos soltos na rua? Se todos os coronéis criminosos de morte tivessem que viver nas fazendas, as ruas de Ilhéus ficariam desertas, os cabarés e bares cerrariam suas portas, nosso amigo Nacib, aqui presente, ia ter prejuízo.
O advogado não concordava. Afinal, não concordar era sua obrigação, fora contratado pelo pai de Osmundo para acusar Jesuíno no júri, o comerciante não confiava no promotor. Em casos de crime como aquele, mortes por adultério, a acusação não passava de simples formalidade. O pai de Osmundo, abastado comerciante, com poderosas relações, na Bahia, movimentara Ilhéus durante uma semana. Dois dias depois dos enterros saltara de um navio, envergando luto fechado. Adorava aquele filho, o mais velho, cuja formatura recente fora motivo de grandes festas. Sua esposa esta inconsolável, entregue aos médicos. Ele vinha a Ilhéus disposto a todas as providências para não deixar o assassino sem castigo. De tudo isso logo se soube na cidade, a figura dramática do pai enlutado comoveu muita gente. E ocorreu um fato curioso: no enterro de Osmundo não houvera quase ninguém, mal chegavam para as alças do caixão. Uma das primeiras medidas do pai fora organizar uma visita ao túmulo do filho. Encomendara coroas, um desparrame de flores, fizera vir um pastor protestante de Itabuna, saíra convidando todos aqueles que, por um ou outro motivo, haviam mantido relações com Osmundo. Até em casa das irmãs Dos Reis foi bater, de chapéu na mão, a dor estampada nos olhos secos. Quinquina, numa noite de terrível dor de dentes, de enlouquecer, fora socorrida pelo dentista.
Na sala, o comerciante contara às solteironas pedaços da infância de Osmundo, sua aplicação aos estudos, falara da pobre mãe desfeita, perdida a alegria de viver, andando pela casa como uma demente. Terminaram chorando os três e mais a velha empregada a escutar na porta do corredor. As Dos Reis mostraram-lhe o presépio, elogiaram o dentista:
¯ Moço bom, tão delicado.
E não é que a romaria ao cemitério foi todo um sucesso, o oposto do enterro? Muita gente: comerciantes, o Grêmio Rui Barbosa em peso, diretores do Clube Progresso, o professor Josué, vários outros. As irmãs Dos Reis lá estavam, muito empertigadas, cada uma com seu ramalhete de flores. Haviam consultado o padre Basílio: não seria pecado visitar o túmulo de um protestante?
¯ Pecado é não rezar pelos mortos... ¯ respondera o apressado sacerdote.
É verdade que o padre Cecílio, com sua magreza e seu ar místico, reprovara-lhes o gesto. O padre Basílio, ao saber, comentara:
¯ Cecílio é um pernóstico, gosta mais das penas do inferno que dos gozos do céu. Não se importem, eu as absolvo, minhas filhas.
Em torno do pai desconsolado e ativo iam o dr. Ezequiel, o Capitão, Nhô-Galo, o próprio Mundinho Falcão. Não fora ele quase vizinho do dentista, seu companheiro nos banhos de mar?
Coroas mortuárias, as que haviam faltado no enterro; flores em profusão, as que haviam recusado ao esquife. Mármore mortuário cobria agora a cova rasa, uma inscrição, com o nome de Osmundo, data de nascimento e morte, e, para que o crime não fosse esquecido, duas palavras gravadas a buril: COVARDEMENTE ASSASSINADO.
O dr. Ezequiel começara a agitar o caso. Requerera a prisão preventiva do fazendeiro, o juiz recusara, ele apelara para o Tribunal da Bahia onde o recurso esperava julgamento. Diziam ter-lhe o pai de Osmundo prometido cinqüenta contos de réis, uma fortuna!, se ele conseguisse botar o coronel na cadeia.
Pouco duraram os comentários sobre Jesuíno Mendonça. A sensação do dia era o engenheiro. Ezequiel não conseguia transmitir ao auditório sua indignação bem paga, terminou ele também na conversa sobre o caso da barra e suas conseqüências:
¯ Bem feito, para quebrar o topete desse velho jagunço.
¯ Não me diga que você também vai apoiar Mundinho Falcão? ¯ perguntou João Fulgêncio.
¯ E o que me impede? ¯ replicava o advogado. ¯ Acompanhei os Bastos um horror de tempo, advoguei várias causas para eles, e que recompensa tive? A eleição para conselheiro? Com eles ou sem eles, me elejo quantas vezes quiser. Na hora de escolher o presidente do Conselho Municipal preferiram MeIk Tavares, analfabeto de pai e mãe. Isso que meu nome já estava falado, era coisa assente.
¯ E faz você muito bem ¯ a voz fanhosa de Nhô-Galo. ¯ Mundinho Falcão tem outra mentalidade. Com ele no governo muita coisa vai mudar em Ilhéus. Se eu fosse homem de influência, estava nessa panela.
Nacib comentou:
¯ O engenheiro é simpático. Tipo do atleta, hein? Parece mais artista de cinema... Vai virar a cabeça de muita menina...
¯ É casado ¯ informou João Fulgêncio.
¯ Separado da mulher... ¯ completou Nhô-Galo. Como já sabiam aquelas intimidades do engenheiro? João Fulgêncio explicava: ele próprio contara, depois do almoço, quando o Capitão o trouxera à papelaria. A mulher era maluca, estava num sanatório.
¯ Sabe quem está neste momento conversando com Mundinho? ¯ perguntou Clóvis Costa, até então calado, os olhos na rua, esperando ver os moleques a vozear o Diário de Ilhéus.
¯ Quem?
¯ O coronel Altino Brandão... Vende sua safra esse ano a Mundinho. E pode ser que negocie seus votos também... ¯ mudava o tom de voz. ¯ Por que diabo o jornal não está ainda circulando?
O coronel Brandão, do Rio do Braço... O maior fazendeiro da zona depois do coronel Misael. Com ele votava todo o distrito, era carta importante na vida política. Clóvis Costa dizia a verdade. No escritório de Mundinho, afundado na poltrona de couro, macia, o fazendeiro, de botas e esporas, saboreava um licor francês, servido pelo exportador.
¯ Pois, seu Mundinho, esse ano é cacau de dar gosto. O que vosmicê precisa é aparecer lá na fazenda. Passar uns dias com a gente. É casa de pobre, mas, se vosmicê quiser dar a honra, não vai morrer de fome, graças a Deus. Pra ver as roças carregadinhas, tudo luzindo nos pés. Tou começando a colher...Dá alegria aos olhos ver essa fartura de cacau.
O exportador batia na perna do fazendeiro:
¯ Pois aceito seu convite. Vou passar um desses domingos com o senhor...
¯ Venha no sábado, domingo os homens não trabalham. Volta na segunda-feira. Se quiser, é claro, a casa é sua...
¯ Trato feito, sábado lá estarei. Agora já posso sair um pouco, estava amarrado aqui com essa história da vinda do engenheiro.
¯ Diz que o moço chegou, é mesmo verdade?
¯ Verdade verdadeira, coronel. Amanhã já estará mexendo na barra. Prepare-se para ver em breve o cacau de suas fazendas saindo direto de Ilhéus para a Europa, para os Estados Unidos...
¯ Sim,senhor.. Quem houvera de dizer... ¯ sorveu outro gole de licor, espiava Mundinho com seus olhos sabidos. ¯ De primeira, essa cachaça, coisa fina. Não é daqui, pois não? ¯ mas sem esperar resposta continuou: ¯ Diz que também vosmicê vai ser candidato nas eleições? Me contaram essa novidade, fiquei sem acreditar.
¯ E por que não, coronel? ¯ Mundinho estava contente com o velho ter entrado no assunto. ¯ Será que não tenho nenhuma qualidade? Pensa assim tão mal de mim?
¯ Eu? Pensar mal de vosmicê? Deus me livre e guarde. Vosmicê é mais que merecedor. Só que... ¯ suspendia o cálice de licor, expondo-o ao sol. ¯ Só que vosmicê, como essa cachaça, não é daqui... ¯ elevava os olhos para Mundinho, a espiá-lo.
O exportador balançou a cabeça: aquele argumento não era novo, já se acostumara. Rebatê-lo tornara-se um hábito, uma espécie de exercício intelectual:
¯ O senhor nasceu aqui, coronel?
¯ Eu? Sou de Sergipe, sou ladrão de cavalo como dizem esses moleques daqui, examinava os reflexos do cristal ao sol. ¯ Só que já faz mais de quarenta anos que arribei em Ilhéus.
¯ Eu tenho somente quatro anos, quase cinco. E sou tão grapiúna como o senhor. Daqui não vou mais sair...
Desenvolvia sua argumentação, ia citando de passagem todos os interesses a ligá-lo à zona, os variados empreendimentos em que se metera ou que propiciara. Para terminar com o caso da barra, a vinda do engenheiro.
O fazendeiro escutava, a preparar um cigarro de palha de milho e fumo de rolo, de quando em vez os olhos vivos a perscrutarem a face de Mundinho como a pesar sua sinceridade.
¯ Vosmicê tem muito merecimento... Tem outros que chegam aqui, só visam ganhar dinheiro, não pensam em mais nada. Vosmicê pensa em tudo, nas necessidades da terra. Pena vosmicê não ser casado.
¯ Por que, coronel? ¯ tomava da garrafa, quase uma obra de arte, ia servir novamente.
¯ Vosmicê me adesculpe... Coisa fina essa bebida. Mas, pra ser franco com vosmicê, prefiro uma cachacinha... Esse trago é enganador: cheiroso, açucarado, parece até bebida pra mulher. E é forte como o cão, embebeda sem a gente se dar conta. Cachaça não, a gente sabe logo, não engana ninguém.
Mundinho tirou do armário uma garrafa de cachaça:
¯ Como prefira, coronel. Mas por que eu devia ser casado?
¯ Pois, se vosmicê me consente, vou lhe dar um conselho: case com moça daqui, filha da gente. Não tou lhe oferecendo filha minha: estão as três casadas e bem casadas, graças a Deus. Mas tem muita moça prendada aqui e em Itabuna. Assim todo mundo vê que vosmicê não está aqui de visita, só pra se aproveitar.
¯ Casamento é coisa séria, coronel. Primeiro é preciso encontrar a mulher com quem se sonha, o casamento nasce do amor.
¯ Ou da necessidade, não é? Nas roças, trabalhador casa até com toco de pau, se vestir saia. Pra ter mulher em casa com quem deitar, também pra conversar. Mulher tem muita serventia, o senhor nem imagina. Ajuda até na política. Dá filho pra gente, impõe respeito. Pro resto, tem as raparigas...
Mundinho ria:
¯ O senhor está querendo fazer-me pagar um preço muito alto pelas eleições. Se depender de casar-me, temo estar desde já derrotado. Não quero ganhar assim, coronel. Quero ganhar com meu programa.
Falou-lhe então, como já o fizera com tantos outros, sobre os problemas da região, apresentando soluções, rasgando estradas e perspectivas num entusiasmo contagiante.
¯ Vosmicê está coberto de razão. Tudo que vosmicê disse é como as tábuas da lei: verdade pura. Quem pode contradizer? ¯ agora fitava o chão, muitas vezes sentira-se magoado contra o abandono em que vivia o interior, esquecido pelos Bastos. ¯ Se o povo daqui tiver juízo o senhor vai ganhar. Se o governo lhe reconhece, não sei, isso já é outra conversa...
Mundinho sorriu, pensando ter convencido o coronel.
¯ Só que tem uma coisa: o senhor tem a razão, mas o coronel Ramiro tem as amizades, fez benefício a muita gente, tem muito parente e compadre, todo mundo tá acostumado a votar com ele. Vosmicê me adesculpe: por que vosmicê não faz um arranjo com ele?
¯ Que arranjo, coronel?
¯ Se juntar os dois? Vosmicê com sua cabeça, seus olhos de ver, ele com o prestígio, os eleitor. Ele tem uma neta bonita, vosmicê não conhece? A outra ainda é muito menina... Filhas do dr. Alfredo.
Mundinho enchia-se de paciência:
¯ Não se trata disso, coronel. Eu penso de uma forma, o senhor conhece minhas idéias. O coronel Ramiro, pensa de outra, para ele governar é somente calçar rua e ajardinar a cidade. Não vejo acordo possível. Eu estou lhe propondo um programa de trabalho, de administração. Não é para mim que peço seus votos, é para Ilhéus, para o progresso da região do cacau.
O fazendeiro coçou a cabeça de cabelos mal penteados:
¯ Vim aqui para lhe vender meu cacau, seu Mundinho, vendi bem vendido, estou contente. Tou contente da conversa também, fiquei sabendo do pensar de vosmicê ¯ fitava o exportador. ¯ Voto com Ramiro há bem vinte anos. Não precisei dele nos barulhos. Quando cheguei em Rio do Braço não tinha ainda ninguém, os que apareceu depois era uns bunda-suja, corri com eles sem precisar ajuda. Mas tou acostumado a votar com Ramiro, nunca me fez mal. Uma vez que buliram comigo, ele me deu razão.
Mundinho ia falar, um gesto do coronel o impediu:
¯ Não prometo nada pra vosmicê, só prometo pra cumprir. Mas a gente ainda volta a conversar. Isso eu garanto a vosmicê.
Retirou-se deixando o exportador irritado, a lastimar o tempo perdido, uma boa parte da tarde. Assim disse ao Capitão, que apareceu momentos após a partida do senhor indiscutido de Rio do Braço:
¯ Um velho imbecil a querer casar-me com uma neta de Ramiro Bastos. Gastei meu latim inutilmente. Não prometo nada, mas volto pra conversar outra vez ¯ imitava o acento cantado do fazendeiro.
¯ Disse que ia voltar? Excelente sinal ¯ animava-se o Capitão. ¯ Meu caro, você ainda não conhece os nossos coronéis. E sobretudo não conhece Altino Brandão. Não é homem de meias conversas. Teria lhe dito na cara que ficaria contra nós se sua lábia não o tivesse impressionado. E se ele nos apoiar...
Na papelaria prolongava-se a conversa. Clóvis Costa cada vez mais inquieto: passava das quatro horas e não apareciam os jornaleiros com o Diário de Ilhéus:
¯ Vou à redação ver que diabo é isso.
Moças do colégio das freiras, Malvina entre elas, interrompiam o disse-que-disse, folheavam livros da Biblioteca Cor de Rosa, João Fulgêncio as atendia. Malvina corria com os olhos a prateleira de livros, folheava romances de Eça, de Aluísio Azevedo. Iracema aproximava-se, risinhos maliciosos:
¯ Lá em casa tem O Crime do padre Amaro. Peguei pra ler, meu irmão tomou, disse que não era leitura pra moça... ¯ o irmão era acadêmico medicina na Bahia.
¯ E por que ele pode ler e você não? ¯ cintilaram os olhos de Malvina, aquela estranha luz rebelde. ¯ Tem O Crime do padre Amaro, seu João?
¯ Tem, sim. Quer levar? Um grande romance...
¯ Vou levar, sim senhor. Quanto custa?
Iracema impressionava-se com a coragem da amiga:
¯ Você vai comprar? O que é que não vão dizer?
¯ E que me importa?
Diva comprava um romance para moças, prometia emprestar às demais. Iracema pedia a Malvina:
¯ Depois você me empresta? Mas não conta a ninguém. Vou ler em sua casa mesmo.
¯ Essas moças de hoje... ¯ comentou um dos presentes. ¯ Até livro imoral elas compram. É por isso que há casos como o de Jesuíno.
¯ João Fulgêncio cortava a conversa:
¯ Não diga besteira, Maneca, você não entende disso. O livro é muito bom, não tem nada de imoral. Essa moça é inteligente.
¯ Quem é inteligente? ¯ quis saber o juiz de direito abancando-se na cadeira deixada por Clóvis.
¯ Falávamos de Eça de Queiroz, Ilustríssimo - respondeu João Fulgêncio apertando a mão do magistrado.
¯ Um autor muito instrutivo... ¯ para o juiz todos os autores eram muito instrutivos. Comprava livros às bateladas, misturando jurisprudência e literatura, ciência e espiritismo. Segundo diziam, comprava para enfeitar a estante, impor-se na cidade, não lia nenhum deles. João Fulgêncio costumava perguntar-lhe:
¯ Então, Digníssimo, gostou de Anatole France?
¯ Um autor muito instrutivo... ¯ respondia imperturbável o juiz.
¯ Não o achou um tanto quanto irreverente?
¯ Irreverente? Sim, um tanto quanto. Porém muito instrutivo...
Com a presença do juiz retornaram as penas de Nacib. Velho debochado... Que fizera da rosa de Gabriela, onde a deixara abandonada? Era hora de crescer o movimento no bar, bastava de conversas.
¯ Já vai, meu caro amigo? ¯ interessou-se o juiz. ¯ Boa empregada você arranjou... Eu lhe dou meus parabéns. Como é mesmo o nome dela?
Saiu. Velho debochado... E ainda por cima a perguntar-lhe o nome de Gabriela, velho cínico, sem respeito ao cargo que ocupava. E ainda falavam nele para desembargador.
Ao despontar na Praça, divisou Malvina a conversar com o engenheiro na avenida da praia. A moça sentada num banco, Rômulo de pé a seu lado. Ela ria numa gargalhada solta, Nacib nunca a escutara rir assim. O engenheiro era casado, a mulher estava louca num hospício. Malvina não tardaria a saber. Do bar, Josué também olhava a cena, acabrunhado, ouvia a cristalina gargalhada a ressoar na doçura da tarde. Nacib sentou-se a seu lado, simpatizante de sua tristeza, solidário. O jovem professor nem buscava esconder a dor de cotovelo a roer-lhe a alma. O árabe pensou em Gabriela: o juiz, o coronel Manuel das Onças, Plínio Araçá, muitos outros a rondá-la. O próprio Josué não fazia por menos, a escrever-lhe rimas. Uma calma infinita cobria a praça, tépida tarde de Ilhéus. Glória debruçava-se na janela. Josué, enfurecido de ciúmes, levantava-se, voltado para a janela proibida de rendas e seios. Tirava o chapéu para cumprimentar Glória, num gesto irrefletido e escandaloso.
Malvina ria na praia, doce tarde de sossego.
Correndo pela rua, arauto de boas e más novas, o negrinho Tuísca, arquejante, parava junto à mesa:
¯ Seu Nacib! Seu Nacib!
¯ O que é, Tuísca?
¯ Tocaram fogo no Diário de Ilhéus.
¯ O quê? No prédio? Nas máquinas?
¯ Não, senhor. Nos jornais, juntaram num monte na rua, jogaram querosene, foi uma fogueira que nem noite de São João...
DO FOGO & DA ÁGUA EM JORNAIS E CORAÇÕES
Alguns felizardos conseguiam retirar das cinzas molhadas, exemplares quase perfeitos do jornal. O que o fogo não consumira, empapara-se de água, trazida em latas e baldes por operários, empregados e voluntários, de boa vontade, para apagar a fogueira. As cinzas espalhavam-se pela rua, voavam à brisa da tarde, um cheiro de papel queimado.
Trepado numa mesa transportada da redação, o Doutor, pálido de revolta, a voz embargada, discursava para os curiosos amontoados ante o Diário Ilhéus:
¯ Almas de Torquemada, Neros de fancaria, cavalos de Calígula, apetece -lhes combater e vencer idéias, derrotar a luz do pensamento escrito com o fogo criminoso de incendiários, obscuros obscurantistas!
Algumas pessoas aplaudiam, a multidão de moleques em festa clamava, batia palmas, assoviava. O Doutor, ante tanto entusiasmo, o pince-nez perdido no paletó, estendia os braços para os aplausos, vibrante e comovido:
¯ Povo, ó meu povo de Ilhéus, terra de civilização e liberdade! Jamais permitiremos, a não ser que passem sobre os nossos cadáveres, venha aqui instalar-se a negra inquisição a perseguir a palavra escrita. Ergueremos barricadas nas ruas, tribunas nas esquinas...
Da Pinga de Ouro, nas imediações, em mesa junto a uma das portas, o coronel Amâncio Leal ouvia o discurso inflamado do Doutor, brilhava-lhe o olho são, comentou sorrindo para o coronel Jesuíno Mendonça:
¯ Doutor está inspirado hoje...
Jesuíno estranhou:
¯ Ainda não falou dos Ávilas. Discurso dele sem Ávila, não presta.
Dali, daquela mesa, haviam assistido todo o desenrolar dos acontecimentos. A chegada dos homens armados, jagunços trazidos das fazendas, postando-se nas imediações do jornal, esperando a hora. O cerco perfeito aos moleques saindo das oficinas com os exemplares. Alguns ainda tinham chegado a vozear:
¯ Diário de Ilhéus! Olha o Diário... A chegada do engenheiro, o governo de cara no chão...
Os jornais sendo seqüestrados dos moleques em pânico. Alguns jagunços entraram na redação e nas oficinas, saíram com o resto da edição. Contava-se depois que o velho Ascendino, pobre professor de português a ganhar uns cobres extras na revisão dos artigos de Clóvis Costa, dos tópicos e notícias, borrara-se todo, de medo, as mãos juntas numa súplica:
¯ Não me matem, tenho família...
As latas de querosene estavam num caminhão parado junto ao passeio, tudo tinha sido previsto. O fogo crepitou, cresceu em labaredas altas, lambendo ameaçador as fachadas das casas, parava gente a olhar a cena sem compreender. Os jagunços, para não perder o costume e garantir a retirada, deram umas descargas para o ar, dissolvendo o ajuntamento. Embarcaram no caminhão, o chofer atravessou as ruas centrais a buzinar, quase atropelando o exportador Stevenson. Ia numa disparada de louco, sumiu em direção à estrada de rodagem.
Curiosos aglomeravam-se nas portas das lojas, dos armazéns, andavam para o jornal.
Amâncio e Jesuíno não se haviam levantado sequer, a mesa em posição estratégica. A um tipo que se colocou na porta, impedindo-lhes a visão, Amâncio solicitou, sua voz macia:
¯ Saia da frente, faz favor...
Como o homem não ouviu, apertou-lhe o braço:
¯ Sai, já disse...
Depois do caminhão ter passado, Amâncio suspendeu o copo de cerveja, sorriu para Jesuíno:
¯ Operação de limpeza...
¯ Bem sucedida...
Continuaram no bar, sem dar importância à curiosidade a cercá-los, gente parando no passeio do outro lado da rua para vê-los. Diversas pessoas haviam reconhecido jagunços de Amâncio, de Jesuíno, de MeIk Tavares. E quem dirigira tudo, mandando os homens, fora um certo Loirinho, afilhado de Amâncio, desordeiro profissional, que vivia a fazer baderna em casas de mulheres.
Clóvis Costa chegara quando as chamas começavam a ser contidas. Sacou do revólver, postou-se heróico na porta da redação. Da mesa do bar, Amancio comentou com desprezo:
¯ Nem sabe segurar o revólver...
Começaram a acorrer os amigos, improvisaram aquele comício. Durante o resto da tarde vieram personalidades emprestar seu apoio.
Mundinho apareceu com o Capitão, abraçava Clóvis Costa. O jornalista, repetia:
¯ São os ossos do ofício...
Naquela tarde quem parou sob a janela de Glória, a satisfazer-lhe a fome de notícias, não foi o negrinho Tuisca, extremamente ocupado a comandar o bando de moleques em frente à redação. Foi o professor Josué, perdida toda a prudência e respeitabilidade, a face mais pálida que nunca, cobertos de crepe os olhos românticos, de luto o coração. Malvina passeava com o engenheiro pela avenida, Rômulo apontava o mar, talvez a informasse sobre sua profissão. A moça ouvindo interessada, de quando em vez a rir. Nacib arrastara Josué até o jornal, o professor demorara apenas uns minutos, o que realmente lhe interessava eram os acontecimentos da praia, a conversa de Malvina e do engenheiro. Já as solteironas corvejavam na porta da igreja, em torno do padre, Cecílio, comentando, o incêndio. A risada de Malvina ante o mar, desinteressada de jornais queimados, acabou de enfurecer Josué. Afinal não era o engenheiro o responsável? O recém-chegado nem se dignava interessar-se pela brusca agitação da cidade, indiferente, a conversar com Malvina. Josué atravessou a praça, passou entre as solteironas, aproximou-se da janela de Gloria, os lábios carnudos da mulata abriram-se num sorriso.
¯ Boa tarde.
¯ Boa tarde, professor. Que foi que houve?
¯ Tocaram fogo na edição do Diário. Gente dos Bastos. Por causa desse palerma de engenheiro que chegou hoje... Glória olhou para a avenida na praia:
¯ O moço que está conversando com sua namorada?
¯Minha namorada? Engano. Simples conhecimento. Em Ihéus, só uma mulher que me tira o sono...
¯ E quem é, se pode saber?
¯ Posso dizer?
¯ Não se acanhe...
Na porta da igreja as solteironas arregalavam os olhos, na avenida Malvina nem se dera conta.
GABRIELA NA BERLINDA
Era um gato vadio do morro, quase selvagem. O pêlo sujo de barro com tufos arrancados, a orelha despedaçada, corredor de gatas da vizinhança, lutador sem rival, visagem de aventureiro. Roubava em todas as cozinhas da ladeira, odiado pelas donas de casa e empregadas, ágil e desconfiado, jamais tinham conseguido pôr-lhe a mão. Corno fizera Gabriela para conquistá-lo, obter que ele a acompanhasse miando, viesse deitar-se no regaço de sua saia? Talvez porque não o enxotasse com gritos e vassouras quando ele aparecia, audaz e prudente, em busca das sobras da cozinha. Atirava-lhe pedaços de pelanca, rabos de peixe, tripas de galinha. Ele foi-se habituando, agora passava a maior parte do dia no quintal, dormindo à sombra das goiabeiras. Já não parecia tão magro e sujo, se bem conservasse a liberdade de suas noites correndo morro e telhados, devasso e prolífero.
Quando, de volta do bar, sentava-se Gabriela para o almoço, vinha ele roçar-se em suas pernas, a ronronar. Mastigava enfarado os bocados que ela lhe dava, miando agradecido quando Gabriela estendia a mão e lhe acariciava a cabeça ou a barriga.
Para dona Arminda aquilo era um verdadeiro milagre. Nunca imaginara possível amansar-se animal tão arisco, fazê-lo vir comer na mão, deixar-se tomar ao colo, adormecer nos braços de alguém. Gabriela apertava o gato contra os seios, empurrava-lhe o rosto na cara selvagem, ele apenas miava em surdina, os olhos semicerrados, rascando-a levemente com as unhas. Para dona Arminda só havia uma explicação: Gabriela era médium, de poderosos eflúvios, não desenvolvida nem mesmo descoberta, diamante bruto a lapidar nas sessões para que fosse perfeito aparelho às comunicações do além-túmulo. Que outra coisa senão seus fluidos poderiam domar animal tão bravio?
Sentadas as duas no batente da porta, a viúva a remendar meias, Gabriela a brincar com o gato, dona Arminda tratava de convencê-la:
¯ Menina, o que você tem a fazer é não perder sessão. Ainda outro dia o compadre Deodoro me perguntou por você. Por que aquela irmã não voltou? Ela tem um espírito-guia de primeira. Estava por detrás dela na cadeira. Foi isso que ele disse, palavra por palavra. Uma coincidência, eu tinha pensado a mesma coisa. E olha que compadre Deodoro é entendido no assunto. Não parece, tão moço que é. Mas aquilo, minha filha, é uma intimidade com os espíritos que só vendo. Manda e desmanda neles. Você pode vir a ser até médium vidente...
¯ Quero não... Quero não, dona Arminda. Pra quê, não é? É melhor não bulir com os mortos, deixar eles em paz. Gosto disso não... ¯ coçava a bariga do gato, o ronronar crescia.
¯ Pois faz muito mal, minha filha. Assim seu guia não pode lhe aconselhar, você não entende o que ele diz. Vai andando na vida como uma cega. mesmo que guia de cego. Vai mostrando o caminho pra gente evitando os tropeços...
¯ Tenho não, dona Arminda. Que tropeço?
¯ Não são só os tropeços, são os conselhos que ele dá. Outro dia tive um parto difícil, o de dona Amparo. O menino atravessado, não queria sair. sem saber que fazer, seu Milton já com história de chamar o médico. Quem me valeu? O finado meu marido que me acompanha, não me larga. Lá cima ¯ apontava o céu ¯ eles sabem de um tudo, até de medicina. Ele me dizendo no ouvido, eu fui fazendo. Nasceu um bitelo de menino!...
¯ Deve ser bom ser parteira... Ajudar os inocentinhos nascer.
¯ Quem vai lhe aconselhar? Logo você que tanto precisa...
¯ Preciso, dona Arminda, por quê? Sabia não...