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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GAI-JIN - V.2 - P.3 / James Clavell
GAI-JIN - V.2 - P.3 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

No início daquela tarde, na sala dos oficiais da Pearl, Seratard bateu seu copo no de Sir William, ambos se congratulando pela reunião.

— Um passo à frente maravilhoso, Henri, meu velho — disse Sir William, jovial. Ele pegou a garrafa, tornou a verificar o rótulo. — Nada mal para um 48. E excelente repasto também.

Na mesa, havia sobras do almoço providenciado pelo chefde Seratard: tortas de pombo frias, quiche, migalhas de pão francês e umas poucas fatias de um Brie devorado, trazido pelo último navio mercante que chegara de Xangai.

— Ainda não posso acreditar que Yoshi tenha oferecido tudo o que ofereceu, Henri.

— Concordo. E maravilhoso é a palavra certa. Nós treinaremos a marinha, vocês cuidam do exército, nós nos encarregamos do sistema bancário e alfândega.

— Sonhador! — interrompeu-o Sir William, com uma risada. — Mas não vamos discutir sobre a divisão. Londres e Paris cuidarão disso. — Ele arrotou, contente, antes de acrescentar: — Tudo se reduzirá ao “quanto”, no final das contas, pois é óbvio que teremos de emprestar os recursos para que comprem nossos navios, fábricas, ou qualquer outra coisa... por mais que eles digam que pagarão.

— É verdade, mas haverá as salvaguardas habituais, receitas de alfândega etc.

 

 

 

 

Os dois riram.

— Haverá mais do que o suficiente para nossos dois países — comentou Sir William, ainda não acreditando de todo. — Mas quero que me faça um favor, Henri: não provoque o almirante. Já temos problemas suficientes sem isso.

— Está bem, mas ele é tão... ora, não importa. O que me diz de Nakama? Espantoso! Acho que você teve sorte por ele não matá-lo numa noite qualquer, já que é o inimigo número um. O que deu em você para assumir tamanho risco?

— Ele não estava armado e ajudava Phillip a aprender japonês. — Até onde Sir William podia determinar, apenas os quatro, Tyrer, McFay, Babcott e ele próprio, sabiam que o homem falava inglês e não havia razão para partilhar esse segredo. — Além disso, era bem vigiado.

Sir William arrematou num tom de indiferença, embora sentisse uma pontada de angústia ao pensar no perigo que haviam corrido.

— O que fará com ele?

— O que eu disse a Yoshi.

Todos haviam ficado chocados com as revelações de Yoshi — Sir William quase tanto quanto Tyrer —, em particular ao saberem que Nakama era procurado pelo assassinato de Utani, um dos anciãos, entre outros crimes. No mesmo instante, ele dissera:

— Phillip, diga a lorde Yoshi que, tão logo retorne a Iocoama, iniciarei um inquérito formal, e se os fatos forem mesmo como ele diz, entregarei o homem imediatamente às autoridades. Phillip!

Mas Tyrer, mudo de incredulidade, olhava aturdido para Yoshi. André se recuperara depressa e traduzira para ele, tendo tido um sobressalto quando Yoshi lhe respondera em tom ríspido.

— Hum... lorde Yoshi diz: Duvida das minhas palavras?

— Diga que não, absolutamente não, lorde Yoshi. — Sir William mantivera a voz calma, pois percebera os olhos se estreitando. — Mas assim como vocês têm suas leis e costumes, e não podem, por exemplo, ordenar que esse daimio Sanjiro lhes obedeça, também tenho de respeitar nossas leis, que pelos termos do tratado são as leis dominantes em Iocoama.

— Ele diz, Sir William: Ah, sim, os tratados. Neste novo espírito de amizade, ele concorda em lhe conceder o dever de entregar... o assassino. Mandará homens para assumirem a custódia amanhã. Sobre o tratado, senhor, ele diz, disse exatamente, que algumas mudanças são necessárias, podemos discuti-las daqui a vinte dias.

Tyrer interveio, em voz baixa:

— Com licença, Sir William, sobre Nakama, posso sugerir...

— Não, Phillip, não pode. André, diga a ele, exatamente, o seguinte: Teremos o maior prazer em discutir as questões que afetem nossos interesses mútuos a qualquer momento.

Ele escolhera as palavras com o maior cuidado e deixara escapar um suspiro de alívio ao ouvir a resposta:

— Lorde Yoshi agradece, e diz: vamos nos encontrar em vinte dias, se não antes, e agora voltarei para Iedo com o Dr. Babcott.

Concluídos os gestos polidos e as reverências, depois que Yoshi deixara a sala Seratard dissera:

— William, acho que você se esquivou da armadilha com muita habilidade Ele é astuto demais. Meus parabéns.

— Sobre a marinha... — começara o almirante, veemente. Sir William não o deixara continuar:

— Primeiro, deixem-me testemunhar a partida de Babcott e Tyrer. Vamos Phillip!

Lá fora, ele sussurrara.

— Mas qual é o seu problema?

— Nenhum, senhor.

— Então por que faz uma coisa dessas? Por que esquece que seu trabalho é apenas interpretar, não fazer sugestões?

— Desculpe, senhor, mas sobre Nakama...

— Sei que é sobre ele, pelo amor de Deus! Você fez a maior cagada! Pensa que nosso astucioso hóspede não percebeu? Sua função é traduzir o que for dito, manter-se impassível, mais nada! Esta é a segunda vez que tenho de adverti-lo!

— Desculpe, senhor, mas Nakama é importante e...

— Está se referindo a Hiraga ou qualquer outro nome que ele use no momento? Ele é acusado de assassinato. Concordo que tem sido uma fonte de informações, mas um proscrito renegado? Temos sorte por ele não haver nos matado enquanto dormíamos, já que podia vaguear à vontade pela legação!

— O que pretende fazer, senhor?

— O que eu já disse: investigar e, se for verdade, como desconfio que é, somos obrigados pela honra a entregá-lo.

— Não poderia considerá-lo refugiado político?

— Ora, pelo amor de Deus! Você perdeu o juízo? Exigimos reparações e os assassinos pelo assassinato de nossos cidadãos, como podemos então nos recusar a lhes entregar um dos seus, acusado e provavelmente culpado de assassinar um dos seus governantes? Yoshi prometeu que ele teria um julgamento justo.

— Ele pode se considerar um homem morto, pois esse é todo o julgamento que terá.

— Se ele é culpado, isso é tudo o que merece.

Sir William contivera sua irritação, pois Tyrer fizera um bom trabalho hoje e constatara que a crescente amizade entre os dois o beneficiava.

— Phillip, sei que ele tem sido muito valioso, mas não podemos deixar de entregá-lo... depois que tivermos uma conversa. Adverti-o no início que teria de ir embora, se eles o pedissem. Agora, esqueça Nakama e concentre-se em descobrir tudo o que puder sobre o paciente de Babcott. Com um pouco de sorte, deve ser o tairo.

Ele seguira à frente para o pátio, onde Yoshi estava montando. Babcott esperava ao lado de um cavalo que Pallidar lhe emprestara e outro para Tyrer. A guarda de honra os cercava, alerta. Por ordem de Yoshi, os carregadores se afastaram das varas com os fardos. Depois, ele chamara Tyrer, que se adiantara, escutara, fizera uma reverência, e voltara.

— Ele disse que pode... hum... contar o dinheiro à vontade, Sir William, e lhe dar o recibo amanhã, por favor. Aquele homem... — Tyrer apontara para Abeh. — virá buscar Nakama amanhã.

— Agradeça a ele, e diga que tudo será feito como deseja.

Tyrer obedecera. Yoshi acenara para que Abeh partisse.

— Ikimasho!

Partiram a trote, com o palafreneiro e os carregadores em sua esteira.

— Tudo bem, George?

— Tudo, obrigado, Sir William.

— Boa viagem. Phillip, saiu-se muito bem hoje. Mais algumas reuniões assim, e recomendarei sua promoção a intérprete de primeira classe.

— Obrigado, senhor. Posso estar presente quando conversar com Nakama?

Sir William quase explodira.

— Como pode estar presente, se vai para Iedo com George? Use seu cérebro! George, dê-lhe um remético, pois o pobre rapaz ficou obtuso!

— Não preciso realmente de Phillip — disse Babcott. — Apenas achei que poderia ser importante que ele conhecesse essa “pessoa anônima”.

— E tinha toda razão, esse encontro pode ser muito importante... Nakama ou Hiraga, qualquer que seja o seu nome, não é. Phillip, isso já entrou na sua cabeça?

— Já, sim, senhor. Desculpe.

Babcott inclinara-se, baixara a voz:

— Talvez seja uma boa idéia não entregar Nakama até voltarmos... para qualquer emergência.

Sir William fitara-o nos olhos, tal possibilidade projetando a consulta médica para um novo nível.

— Está querendo dizer que eles podem tentar retê-lo? Como um refém? Aos dois?

Babcott dera de ombros.

— Nakama é importante para ele e não há mal nenhum em ser precavido, não é?

Sir William franzira o rosto.

— Espero que voltem amanhã.

Ele ficara observando-os até que todos sumissem de vista e, depois, voltara à sala de audiência. No mesmo instante, o almirante explodira:

— Nunca ouvi tanta conversa fiada em toda a minha vida! Construir uma marinha para eles? Perdeu completamente o juízo?

— Não cabe a nós decidir sobre isso, meu caro almirante — dissera Sir William, sem perder a calma. — É uma atribuição do Parlamento.

— Ou, mais provável, do imperador Napoleão — dissera Seratard, incisivo.

— Duvido muito, meu caro senhor. — O almirante tinha o rosto e o pescoço roxos. — Os assuntos navais estrangeiros são da competência da marinha real; qualquer interferência francesa em áreas de influência britânica será tratada com o rigor necessário.

— É isso mesmo — dissera Sir William, alteando a voz para se sobrepor ao dois, pois o rosto de Seratard também ficara roxo e ele fazia menção de responder com veemência. — De qualquer forma, seria uma decisão política. De Londres e Paris.

— A política que se dane! — exclamara o almirante, as bochechas tremendo de raiva. — Uma dúzia de nossos melhores navios de guerra nas mãos desses selvagens, quando vemos o que eles são capazes de fazer com duas espadas? Eu me oponho totalmente!

— E eu também — declarara Sir William, a voz ainda calma —, e é o que vou recomendar.

— Como?

— Concordo com a sua posição. Uma decisão desse porte cabe ao almirantado ajudado pelo Ministério do Exterior. O mesmo em Paris. Não há nada que possamos fazer, além de relatar tudo a nossos superiores. Você deve também agir assim. Graças a Deus, as autoridades japonesas finalmente aprovaram nosso direito de tomar a iniciativa de agir contra partes culpadas. Não concorda, almirante?

— Se está falando sobre sua proposta e desavisada expedição punitiva, aqui, ali, em qualquer lugar, ainda não foi aprovada pelo almirantado, portanto não conta com a minha aprovação. E sugiro que voltemos para a Pearl, antes que a chuva comece...

Sir William suspirou, olhou por uma das vigias da sala dos oficiais. A chuva parara por um momento, o mar ainda tinha cor de chumbo, mas seu espírito se tornara animado. Tinha o dinheiro da indenização, não havia necessidade agora de arrasar Iedo e através desse Yoshi ajudaremos a modernizar o Japão, refletiu ele. Arrumaremos um lugar feliz para o Japão na família de nações, tão feliz para eles quanto para nós. E é melhor que sejamos nós a fazer isso, incutindo as virtudes britânicas, do que os franceses, implantando as francesas, embora seus vinhos e atitudes em relação à comida e fornicação sejam muito superiores aos nossos.

Mas é isso mesmo. Exceto na fornicação, os japoneses serão beneficiados. Nisso, a atitude deles é sem dúvida superior. Uma pena que não possamos importá-la para a nossa sociedade, mas a rainha nunca admitiria. Uma coisa lamentável, mas é a vida. Teremos de nos contentar por abençoarmos a nossa sorte de viver aqui... depois que os civilizarmos.

— Henri, vamos respirar um pouco de ar fresco.

Ele sentiu-se contente ao voltar ao convés. O vento estava impregnado de maresia, forte e firme, a fragata sob vela agora, numa velocidade admirável. Marlowe se encontrava na ponte de comando... os oficiais e marujos nas proximidades contrafeitos pela presença do almirante, sentado lá em cima, com uma cara azeda, encolhido em seu capote.

— Pelo amor de Deus Marlowe, leve-a para mais perto do vento!

— Pois não, senhor.

Sir William não era um especialista, mas a ordem parecia pedante e desnecesária. Mas que desgraçado! Ainda assim, não posso culpá-lo por querer a confiracão das ordens, pois é seu pescoço que está em jogo, se alguma coisa sair errada.

Quando a fragata assumiu um novo curso, ele apertou as mãos na amurada. Amava o mar, se integrar nele, ainda mais no convés de um navio de guerra britânico, orgulhoso dos navios do império dominarem os mares, tanto quanto quaisquer navios podiam reinar sobre as ondas. Ketterer está certo ao não querer criar outra marinha, pensou Sir William, não com estes homens... afinal, as marinhas francesa, americana e prussiana já constituem problemas suficientes.

Ele olhou para a popa.

Ali, além do horizonte, ficava Iedo. Iedo e Yoshi prenunciavam problemas, por qualquer ângulo que se olhasse, qualquer que fosse o futuro róseo que ele prometia. À frente, ficava Iocoama. Mais problemas ali, mas não importa, porque esta noite Angelique será minha companheira ao jantar... fiquei contente por ela não ter partido, mas ainda não entendi o motivo. Isso não deixa o jogo ainda mais nas mãos de Tess Struan?

É estranho pensar em Angelique sem Malcolm Struan. Lamentável que ele tivesse tanto azar, mas agora ele se foi, e nós continuamos vivos. Joss. Quem será o tai-pan agora? O jovem Duncan tem apenas dez anos, o último dos meninos Struans. Terrível para Tess, mais tragédia para suportar. Não ficaria surpreso se isso a liquidasse. Sempre a admirei por sua coragem, carregando a carga de Culum e dos Brocks, para não falar de Dirk Struan.

Bom, fiz o melhor que podia por Tess, e também por Malcolm... vivo e morto. E por Angelique. Quando ela for embora, deixará um vazio aqui que não será preenchido com facilidade. Espero que ela recupere a juventude que perdeu, o que é outra tristeza, mas tem toda uma vida pela frente... se estiver ou não esperando uma criança de Malcolm. As apostas ainda são meio a meio.

Ordens na ponte de comando atraíram sua atenção por um momento, mas não era nada urgente, apenas acrescentar mais velas. O vento zumbia. A fragata aumentou a velocidade. Faltava uma hora para chegarem ao ancoradouro. E duas horas para o pôr-do-sol. Tempo suficiente para deter Nakama antes do jantar.

 

O pôr-do-sol foi apenas uma redução da claridade, o sol morrendo por trás de uma camada de nuvens, lamentando a perda do dia. Hiraga disse ao grupo de pescadores:

— Aquele barco servirá... sem os equipamentos de pesca, mas os remos e a vela estão incluídos.

Ele estava na praia perto da cidade dos bêbados e pagara ao dono o que fora pedido, sem regatear, ainda relutando em perder a honra por negociar, embora já soubesse agora — o que lhe fora incutido por Mukfey — que era enganado, o homem cobrara demais e riria dele, junto com seus companheiros, assim que se afastassem. Sabia também que era o culpado por isso, já que se vestia como um gai-jin, sem as suas espadas.

Metade dele sentia vontade de esbravejar, puni-los por seus maus modos, obrigá-los a rastejar na praia, suplicando pelo privilégio de lhe darem o barco de presente. A outra metade aconselhava paciência: Você fez o que deve, o barco é seu, amanhã morrerá com honra pela causa de sonno-joi, esses vermes não têm mais valor do que as cracas no barquinho miserável que me venderam.

— Deixem tudo no barco — disse ele.

Untuoso, o dono fez uma reverência e recuou, inclinado, depois se afastou com os companheiros, todos abençoando a sorte pelo lucro duplo.

O barco era de pesca, pequeno, comum, para um a três homens, com uma pequena vela e um único remo na popa. Parte do treinamento de samurai era o uso de barcos para curtas distâncias, atravessar rios ou alcançar navios ou galés ao largo de águas costeiras, por isso todos sabiam manobrá-los. A notícia de que ele comprara um barco voaria por toda a aldeia, mas isso não tinha importância. Quando o shoya e os outros descobrissem o uso provável, já seria tarde demais.

Satisfeito de que o barco se encontrava seguro, ele começou a atravessar a cidade dos bêbados, através das vielas apinhadas, passando por cima de corpos de homens embriagados e do lixo, repugnado com a sujeira. Taira diz que sua Londres é a cidade mais limpa, maior e mais rica do mundo, mas não acredito... não se tantos de sua gente vivem assim, com o resto da colônia não estando muito melhor. Pegando um atalho, ele avançou por uma viela menor. Homens passavam, mendigos estendiam a mão, olhos espiavam desconfiados de portais, mas ninguém o incomodou.

A terra de ninguém, como sempre, se encontrava coberta de mata, fedendo, o principal vazadouro de lixo da colônia. Uns poucos vagabundos esfarrapados vasculhavam pelo lixo mais recente. Observaram-no por um instante. Os olhos de Hiraga se desviaram para o poço à frente. A tampa de madeira quebrada, que ocultava a passagem secreta para a Yoshiwara, parecia intacta. O rosto de Ori aflorou em sua memória, e o tempo que passaram lá embaixo, quando estava disposto a matá-lo, e Ori jogara — ou fingira jogar — a cruz de ouro nas profundezas. Ori era baka ao desperdiçar sua vida por causa daquela mulher. Bem que poderíamos aproveitá-lo amanhã. Ele tratou de remover Ori de sua mente.

Agora, todo seu ser se concentrava no ataque. Todo o raciocínio em contrário desaparecera. Havia um consenso, Akimoto a favor, exultante, Takeda e o sensei. Portanto, ele também era a favor. O barco estava pronto. Agora, buscaria Akimoto e acertariam os detalhes finais do plano. Na verdade, Hiraga sentia-se contente também. Morreria no esplendor da glória, cumprindo os desejos do imperador. O que mais um samurai podia desejar da vida?

Com a violência súbita de um banho gelado, ele foi arrancado da euforia e desapareceu numa porta. Três soldados ingleses postavam-se diante da casa do shoya, mais dois saíam da choupana ao lado, que ele e Akimoto alugavam. Akimoto se encontrava entre os soldados, berrando a plenos pulmões uma das poucas frases em inglês que aprendera:

— Sinto muito, não compreender Nakama!

— N-a-k-a-m-a — disse o sargento, devagar, bem alto. — Onde ele está?

Uma pausa e o sargento acrescentou, ainda mais alto:

— Onde está Nakama?

— Nakama? — A voz de Akimoto também era alta e clara, sem dúvida tentando alertá-lo, se por acaso estivesse nas proximidades. — Nakama não compreender sinto muito.

Em japonês, Akimoto disse:

— Alguém traiu alguém. — E voltou ao inglês gutural: — Nakama não compre...

— Cale-se! — berrou o sargento, furioso. — Cabo, este idiota não sabe de nada. Butcher, você e Swallow ficam aqui, até mister Nakama voltar, e peçam a ele... isso mesmo, peçam, um convite... para acompanhá-los, pois Sir William quer falar com o homem. Mas não deixem de levar o patife. Você... — O sargento espetou um dedo de ferro no peito de Akimoto, enquanto acrescentava: — Venha comigo, para o caso de o chefe querer falar também com você.

Protestando em japonês, a voz bem alta, Akimoto acompanhou-os, e depois repetiu várias vezes, em inglês, “Nakama não compreender”.

Ao se recuperar do choque, e constatar que era seguro, Hiraga saiu do portal, pulou uma cerca, e correu de volta para a terra de ninguém. Ali, agachou-se no vão de porta de um barraco. Ainda não era seguro correr para o poço, havia claridade demais e os três homens vasculhando o lixo se encontravam muito próximos, pareciam ameaçadores. Tinha de manter em segredo a passagem pelo poço.

Quem nos traiu?

Não havia tempo para pensar sobre isso agora. Ele se encolheu ainda mais nas sombras, quando um dos homens se aproximou, murmurando e praguejando pelo pouco que encontrara, um saco ensebado numa das mãos. Todos os três eram esqueléticos e imundos. Um se aproximou das sombras em que se escondia, mas passou sem vê-lo. Mais meia hora e a luz desapareceria, não havia outra coisa a fazer que não esperar. Subitamente, o vão de porta foi bloqueado.

— Pensou que eu não tinha visto você, hem? — disse o homem, a voz rouca, carregada de ameaça. — O que está fazendo?

Hiraga empertigou-se devagar. Tinha a mão na pequena pistola no bolso. E depois viu a faca aparecer no punho que mais parecia uma garra, o homem desferir um golpe violento para a frente. Só que Hiraga foi mais rápido, segurou a mão, acertou uma cutilada na garganta do homem. Ele ganiu como um porco estripado e arriou no chão. No mesmo instante, os outros dois levantaram os olhos e se adiantaram apressados para investigar.

Pararam abruptamente. Hiraga aparecia agora no vão de porta, a pistola numa das mãos, a faca na outra, por cima do homem que se contorcia na terra, sufocado. Facas apareceram e os dois homens atacaram. Hiraga não hesitou e arremeteu contra um dos homens, que saiu correndo, proporcionando-lhe a abertura de que precisava. Passou em disparada entre os dois, correndo para a cidade dos bêbados, não querendo perder tempo numa luta. Momentos depois, alcançou uma rua transversal, mas descobriu que o chapéu caíra na corrida. Olhou para trás e viu um dos homens pegá-lo, com um grito. Em segundos, o outro homem também pôs mão no chapéu e os dois se puseram a brigar e a praguejar por sua posse.

O peito arfando, Hiraga deixou que ficassem com o chapéu. Outro olhar para o céu. Seja paciente. Depois que eles forem embora, você poderá ir até o poço. Não deve revelar sua existência, pois é essencial para o ataque. Seja paciente Compre um chapéu ou um gorro. O que saiu errado?

 

— Para onde será que ele foi?

— Não pode estar longe, Sir William — garantiu Pallidar. — Coloquei homens nos portões e na ponte para a Yoshiwara. É bem provável que ele esteja numa das estalagens. Uma questão de tempo antes que apareça. Quer que o ponhamos a ferros?

— Não. Quero apenas que o tragam até aqui, desarmado, sob vigilância.

— E esse sujeito?

Akimoto estava sentado, de costas na parede, um soldado ao lado. Já fora revistado.

— Decidirei depois de falar com ele. Ah, André, entre. Você não precisa esperar, Settry. Jantarei com o ministro russo. Assim que pegar Nakama, vá me chamar.

Settry bateu continência e se retirou.

— André, lamento incomodá-lo, mas não conseguimos encontrar Nakama. Como Phillip não está aqui, você poderia servir de intérprete para mim, perguntando a esse sujeito onde ele se encontra?

Ele ficou observando, enquanto André começava a interrogar Akimoto, tentando conter sua irritação, desejando que Phillip Tyrer tivesse ficado, em vez de partir com Babcott. Espero que tudo corra bem. Droga, se Nakama não for apanhado, Yoshi ficará furioso, e com toda razão.

— Ele diz que não sabe — informou André, que não tirara o capote. A sala de Sir William estava sempre congelando, mesmo no dia mais frio, seu fogo de carvão mínimo. — Parece retardado, murmura que Nakama pode estar em qualquer lugar, talvez na Yoshiwara, até mesmo em Kanagawa.

— Hem? — Sir William ficou chocado. — Ele não deveria deixar a colônia sem a minha aprovação. Pergunte a ele... pergunte quando Nakama saiu?

— Ele diz que não sabe, não conhece Nakama, se ele saiu ou onde se encontra, não sabe de nada.

— Talvez uma noite na cadeia refresque sua memória. Cabo! — A porta aberta no mesmo instante. — Ponha este homem na cadeia durante a noite ou até que eu dê ordens em contrário. Ele deve ser bem tratado. Entendido?

— Entendido, senhor.

— Ele deve ser bem tratado.

— Sim, senhor.

O cabo sacudiu um polegar para Akimoto, que saiu da sala de costas, fazendo reverências. A cadeia, usada para os arruaceiros e os soldados sujeitos à disciplina militar, ficava no final da rua, um prédio baixo de alvenaria, com uma dúzia de celas. Depois do clube, fora o segundo prédio construído, um costume normal na maioria das colônias britânicas.

— Merci, André.

— De rien.

— Tem alguma idéia do lugar em que poderíamos encontrá-lo?

— Não, monsieur, afora o que o homem disse. Vejo-o no jantar.

André sorriu, saiu, começou a descer pela High Street, o vento agitando as folhas, papéis e detritos diversos. Não restava muita claridade no céu.

Ainda bem que não somos responsáveis por encontrá-lo, pensou ele. Para onde teria ido? Se tiver um mínimo de bom senso, para Quioto ou Nagasáqui ou embarcou como clandestino no navio mercante que partiu ontem para Xangai, se sabe que Yoshi o procura. E deve saber, com toda certeza... não há segredos no Bakufu nem aqui. Grande reunião, boa para nós também, pois temos uma vantagem com Yoshi... mas Phillip já começa a se tornar bom demais. Sem qualquer dúvida, será paciente com Anjo. André cuspiu, irritado. Eu deveria ter aproveitado a oportunidade... afinal, a idéia foi minha e Raiko e Meikin devem ter transmitido a proposta de alguma forma. Mon Dieu, elas têm mais poder do que eu imaginava.

Um calafrio percorreu seu corpo. Raiko pedira para vê-lo naquela noite, urgente. O que seria agora? Só podia ser encrenca.

— Boa noite, senhor — disse o guarda da Struan na porta da frente.

— Tenho um encontro com madame Struan.

— Sim, senhor. Ela o espera na sala do tai-pan, no final do corredor. Desculpe a confusão lá dentro, senhor, mas o Sr. McFay está arrumando suas coisas. Terrível a sua saída, não acha?

— Concordo, mas vamos torcer para...

O canhão de sinalização do capitão do porto soou neste momento, interrompendo-o. Atônitos, os dois olharam para o mar, pois nenhum navio era esperado ou estava atrasado. O movimento na apinhada High Street cessou e, depois, um murmúrio de excitamento circulou por Iocoama. Um clíper contornava o promontório distante, todas as velas enfunadas, na velocidade máxima. As pessoas avistaram a fumaça de sua salva para a nave capitânia e depois ouviram a saudação em resposta. O navio ainda se encontrava longe demais para que se pudesse divisar a bandeira.

— É um dos nossos — declarou o guarda, orgulhoso. — Só pode ser, como nos velhos tempos... oh, boa noite, senhor.

Jamie McFay passou pela porta apressado, focalizou o binóculo.

— Olá, André. Só quero verificar... mas é o Prancing Cloud! Aleluia! As implicações seriam claras para todos. O navio deveria seguir para Londres. O retorno a Iocoama, tão depressa, significava que trazia notícias urgentes... ou Passageiros. E podia ser bom ou mau.

— Aleluia — repetiu André.

Ele divisou Seratard com uma luneta nos degraus da legação francesa, William em sua janela com um binóculo, e Dmitri na entrada do prédio da Brock, ao lado, também com uma luneta. Ao baixar a luneta, Dmitri notou Jamie, hesitou, fez o sinal de polegar para cima. Jamie acenou em resposta, tornou a focalizar o navio. O clíper avançava imponente para o ancoradouro.

— Será que ela se encontra a bordo? — murmurou André.

— Pensei a mesma coisa. Descobriremos em breve.

— Mande uma mensagem.

— Quando eu alcançar o capitão do porto para hastear as bandeiras aclaridade já terá acabado. De qualquer forma, não é problema meu agora, mas sim uma decisão do Sr. MacStruan. — Jamie fitou-o. — Saberemos muito em breve. Vai falar com Angelique?

— Isso mesmo.

— Não precisa preocupá-la, até sabermos, está bem?

— Concordo, mon brave. — André tornou a olhar para o clíper. — Vai ao seu encontro?

— Do navio? — O mesmo sorriso duro. — Você iria?

Entraram juntos no prédio. Albert MacStruan descia a escada, meio vestido nos trajes para a noite, a gravata desfeita, mas elegante.

— O Prancing Cloud?

— Isso mesmo — confirmou Jamie.

— Foi o que pensei. — Os olhos estranhos contraíram-se. — Boa noite, André. Como tem passado?

— Muito bem, obrigado. Até mais tarde.

Jamie esperou até que André batesse na porta e a seguir entrasse na sala do tai-pan, que era agora de MacStruan.

— Vai ao seu encontro?

— Claro. — MacStruan desceu o último degrau, mas agora os passos não tinham a mesma animação. — Por favor, acompanhe-me.

— Obrigado, mas esse é um privilégio seu agora. Mandei Vargas avisar o contramestre. A lancha estará pronta em cinco minutos.

MacStruan disse, gentilmente:

— Venha a bordo comigo, receba o navio, como costumava fazer e ainda deveria estar fazendo.

— Não. É tempo de seguir adiante. É tudo seu agora. Mas, obrigado.

— Soube que o banquete de Zergeyev esta noite será espetacular, agora que Angelique confirmou sua presença. Mude de idéia e compareça.

— Não posso, não esta noite. Ainda não terminei de arrumar minhas coisas. — Jamie sorriu, depois gesticulou para o corredor. — Angelique está usando o escritório junto com você?

— Isso mesmo e é um prazer para mim. Melhor do que deixar Angelique ir receber visitantes em sua suíte lá em cima, esse homem em particular. Não posso dizer que gosto dele.

— André é uma boa pessoa, sua música é excelente, sem dúvida a melhor que temos aqui. Espero que sejam boas as notícias trazidas pelo Prancing Cloud.

— Eu também, mas duvido muito. Acha que Tess está a bordo?

— A idéia me ocorreu. — Jamie sorriu, não mais um empregado de Tess. — Explicaria a mudança de curso do Cloud. É isso o que Dirk teria feito.

— Ela não é Dirk, mas é muito mais astuta... o que é uma pena, meu caro.

Não havia amor perdido entre os meios-irmãos e Tess Struan, mas uma cláusula no testamento de Dirk estipulava que se os dois meninos se destacassem nos estudos seriam aproveitados na Casa Nobre, ao limite de sua capacidade. Os dois eram inteligentes, tinham contatos com amigos de Eton e da universidade em altos postos, espalhados pela aristocracia, na City e no Parlamento, onde Frederick acabava de ganhar um assento, o que os tornava ainda mais valiosos. Mesmo assim, ambos sabiam que Tess Struan os dispensaria se não fosse pela cláusula.

— Espero que ela não tenha vindo nos fazer uma visita... o que seria bastante incômodo.

McFay riu.

— Vamos correr as escotilhas.

 

— Olá, André.

— Boa noite, Angelique.

Ela sentava em sua cadeira predileta, perto da janela, as cortinas abertas para a enseada.

— É o Prancing Cloud?

— É, sim.

— Ótimo. Ela está a bordo?

André exibiu um sorriso irônico.

— Isso explicaria a volta do clíper.

— Não faz diferença, de qualquer maneira — murmurou Angelique, embora sentisse um frio no estômago. — Aceita um drinque?

— Obrigado. — Ele viu a garrafa de champanhe aberta no balde de gelo e um copo pela metade na mesa. — Posso?

— À vontade.

Tornara-se costume de Angelique contemplar o pôr-do-sol, o crepúsculo e o cair da noite, com champanhe. Apenas um copo, a fim de se preparar para a longa noite, e depois a madrugada interminável. Seu padrão de sono mudara. Não mais encostava a cabeça no travesseiro para mergulhar no sono no mesmo instante, só bordando ao amanhecer. Agora, o sono se lhe esquivava. A princípio, isso a assustara, mas Babcott a convencera de que o medo só servia para agravar a insônia.

— Não precisamos de mais que oito ou dez horas, por isso não deve se preocupar. Aproveite o tempo em seu benefício. Escreva cartas, ou seu diário, tenha bons pensamentos... e não se preocupe. Ontem, Angelique escrevera:

 

Querida Colette:

O conselho que ele me deu funciona, mas acontece que não percebeu o melhor aproveitamento, que é o de PLANEJAR, porque aquela mulher está tramando a minha queda.

Se Deus quiser, estarei em Paris em breve e poderei então lhe contar tudo. Às vezes é quase como se minha vida aqui fosse uma peça de teatro, ou uma história de Victor Hugo, e Malcolm, o pobre coitado, nunca existiu. Mas gosto do sossego e me sinto contente com a espera. Só mais alguns dias, e saberei sobre a criança, se vai haver ou não. Assim espero, e rezo, rezo e rezo para estar esperando um filho de Malcolm... e também para que o seu parto seja tranqüilo e nasça outro menino.

Tenho de ser sensata. Só posso contar comigo mesma, por aqui. Jamie é um bom amigo, mas não pode ajudar muito... não trabalha mais na Casa Nobre, e o novo gerente, Albert MacStruan, é gentil, um perfeito cavalheiro, britânico bem-nascido, mas só me tolera por enquanto... até ELA ordenar o contrário. Sir William? Ele é o governo, o governo britânico. Seratard? Só Deus sabe se ele de fato ajudará, mas será apenas pelo proveito que possa tirar de mim. O Sr. Skye? Ele faz o melhor que pode, mas todos o odeiam. André? Ele é muito esperto, e sabe demais, e creio que a armadilha em que se encontra o está deixando louco (mal posso esperar para saber o que VOCÊ PENSA!!!). Minha única esperança é Edward Gornt. Ele já deve ter chegado a Hong Kong e já se encontrou com ela, a esta altura. Minhas orações — e sei que as suas também — pelo êxito dele são abundantes e diárias.

Assim, aproveito minhas noites acordadas para planejar. Agora, tenho muitos planos e idéias excelentes sobre a melhor maneira de enfrentar todas as emergências possíveis... e muita força para lidar com as que não ousei considerar; por exemplo, se Edward me falhar, ou, Deus me livre, nunca chegar, pois há rumores de terríveis tempestades nos mares da China, normais nesta época do ano. A Cooper-Tillman, do pobre Dmitri, perdeu outro navio. Os pobres marujos, como o mar é terrível, e como são bravos os homens que por ele navegam!

André diz, com toda razão, que não posso sair daqui, nem tomar uma iniciativa, até que ELA anuncie sua posição. Sou a viúva de Malcolm, é o que todos dizem, o Sr. Skye registrou todos os tipos de documentos com Sir William, e mandou mais para Hong Kong, mais ainda para Londres. Tenho dinheiro suficiente e posso permanecer aqui por tanto tempo quanto quiser. Albert MacStruan disse que posso usar a sala de Jamie sempre que estiver vaga; tenho mais dez vales que Malcolm fez para mim, deixando a quantia em branco — não foi previdente de sua parte? —, que Jamie e agora Albert concordaram em honrar, de cem guinéus cada um.

Quando ELA se manifestar, entrarei na batalha. Sinto que será até a morte, mas posso lhe garantir, minha querida Colette, que a morte não será aminha... será o Waterloo dela, não o meu, a França será vingada. Sinto-me muito forte, muito capaz...

 

Ela observava André, esperando que ele começasse. A expressão de André era dura, a pele pálida e esticada, ele emagrecera. O primeiro copo fora esvaziado. E depois o segundo. Agora, ele se pôs a tomar o terceiro.

— Você está mais linda do que nunca.

— Obrigada. Como vai sua Hinodeh?

— Mais linda do que nunca.

— Se a ama tanto, André, por que seus lábios se contraem e os olhos se esbugalham de raiva quando menciono o nome dela... disse que eu podia interrogá-lo a respeito.

Poucos dias antes, ele falara sobre o acordo. Em parte, não tudo. Irrompera quando o desespero o dominara.

— Se era tão intransigente em fazer amor no escuro e com o preço absurdo que Raiko exigia, por que concordou, em primeiro lugar?

— Eu... era necessário — murmurou ele, sem fitá-la.

André não podia contar o verdadeiro motivo. Era suficiente ver os lábios de Seratard se contraírem e evitar qualquer contato físico desde então, tomando cuidado para nunca usar os mesmos talheres, nem o mesmo copo, embora a doença só fosse contraída de um homem ou uma mulher... ou será que não?

— Apenas dei uma olhada nela... e mon Dieu, não compreende o que é o amor, como...

As palavras definharam. Ele serviu-se de outro copo, a garrafa quase vazia agora.

— Não pode imaginar como ela se mostrou totalmente desejável desde o Primeiro momento. — Ele tomou um gole do champanhe. — Desculpe, mas preciso de dinheiro.

— Claro. Mas só me restou um pouco.

— Tem o papel, com o sinete dele.

— Como?

O sorriso de André se tornou ainda mais insidioso, se é que isso era possível.

— Por sorte, os cambistas falam com os cambistas, os escriturários com os escriturários. Preencha outro amanhã. Por favor. Quinhentos mexicanos.

— É demais.

— Nem a metade do que preciso, chérie — murmurou ele, a voz quase inaudível.

André levantou-se, foi fechar as cortinas para o resto de claridade do dia depois acendeu o lampião a óleo, que estava na mesa, estendeu a mão para garrafa. A borra caiu em seu copo, e ele bateu com a garrafa de volta no balde d gelo.

— Acha que gosto de fazer isso com você? Pensa que não sei que é chantagem? Não se preocupe, sou razoável, só quero o que você pode me dar no momento. Cem mexicanos, ou os guinéus equivalentes, esta noite, duzentos amanhã, cem no dia seguinte.

— Não é possível.

— Tudo é possível.

André tirou um envelope do bolso. Continha uma única folha de papel, que ele desdobrou com todo cuidado. Dezenas de fragmentos de um papel verde estavam colados ali, de forma meticulosa, formando um perfeito quebra-cabeças. Pôs na mesa, fora do alcance de Angelique. No mesmo instante, ela reconheceu a letra de seu pai. A segunda página da carta que vira André rasgar, há tanto tempo.

— Pode ler daí? — indagou ele.

— Não.

— Seu afetuoso pai escreveu, assinou e datou... “e espero, como conversamos, que você arrume um noivado e casamento rápido, por quaisquer meios que puder. É importante para o nosso futuro. A Struan resolverá em caráter permanente os problemas de Richaud Frères. Não importa...”

— Não importa, André — murmurou Angelique, sem saber como disfarçar o veneno. — As palavras estão indelevelmente gravadas em meu cérebro. Indelevelmente. Estou comprando isso ou será uma ameaça permanente?

— É um seguro — respondeu ele, dobrando o papel e tornando a guardá-lo no envelope. —Voltará agora para um lugar bem guardado, com detalhes do affair Angelique, caso alguma coisa desagradável me aconteça.

Abruptamente, ela soltou uma risada, deixando-o desequilibrado.

— Oh, André, acha mesmo que eu tentaria assassiná-lo? Eu?

— Acabaria com qualquer acordo financeiro que Tess possa oferecer ou possa ser forçada a oferecer e a levaria ao banco dos réus.

— Ah, como você é tolo!

Angelique pegou seu copo e tomou um gole do champanhe. Ele notou, inquieto, que ela tinha a mão firme. Ela o observava, plácida, pensando que André era mesmo um tolo, por deixá-la saber que fizera aquilo, que era um trapaceiro. Ainda mais tolo ao se irritar com Hinodeh por preferir o escuro — talvez ele seja horrível nu — e mais ainda por protestar pelo preço que pagara, porque as duas coisas são insignificantes, se a moça é de fato tudo o que ele diz.

— Eu gostaria de conhecer essa Hinodeh. Por favor, combine um encontro.

— Hem?

Divertida com a expressão de André, ela acrescentou:

— O que há de tão estranho nisso? Tenho interesse por ela, já que a estou financiando, o amor de sua vida. Não concorda?

Trêmulo, ele se levantou, foi até o aparador, serviu-se de conhaque.

— Quer também?

— Não, obrigada.

Apenas os olhos de Angelique se mexiam. Ele voltou a sentar à sua frente. Uma aragem agitou a chama e fez os olhos dela faiscarem.

— Cem. Por favor.

— Quando eu paro de pagar, André? — indagou ela, jovial.

O conhaque caiu melhor do que o champanhe. Ele enfrentou a pergunta.

— Quando ela pagar, antes de você ir embora.

— Antes de eu ir embora? Quer dizer que não poderei partir até lá?

— Quando ela pagar, antes de você ir embora.

Angelique franziu o rosto, foi até a mesa, abriu uma gaveta lateral. A bolsinha continha o equivalente a cerca de duzentos mexicanos, em obans de ouro.

— E se não houver dinheiro?

— Virá de Tess, não há outro jeito. Ela pagará... de alguma forma, nós faremos com que isso aconteça.

— “Nós”?

— Eu prometo — murmurou André, os olhos injetados. — Seu futuro é o meu futuro. Pelo menos nesse ponto ambos concordamos.

Angelique abriu a bolsa, contou a metade. Depois, sem saber por que, guardou tudo de novo na bolsinha e entregou-a a André.

— Há cerca de duzentos mexicanos aí — disse ela, com um estranho sorriso. — Por conta.

— Eu gostaria de poder compreendê-la. E antigamente compreendia.

— Naquele tempo, eu era uma jovem tola. Não sou mais.

Ele balançou a cabeça, lentamente. Tornou a tirar o envelope do bolso, estendeu-o para a chama. Angelique soltou uma exclamação de espanto quando pegou fogo. André largou-o num cinzeiro e observaram juntos as chamas se espalharem, o papel se enroscar, até queimar por completo. Ele esmagou as cinzas com o fundo do copo.

— Por que, André?

— Porque você compreende sobre Hinodeh. E quer goste ou não, somos sócios. Se Tess não pagar a você, estou perdido. — André estendeu a mão. — Paz?

Ela apertou a mão estendida, sorriu.

— Paz. Obrigada. André levantou-se.

— É melhor eu ir dar uma olhada no Prancing Cloud. Se Tess estiver a bordo, tado sairá mais depressa.

Depois que ele saiu, Angelique examinou as cinzas, mas não dava para reconhecer uma única palavra. Seria fácil para André forjar uma cópia, rasgá-la, apresentá-la como o original e queimá-la... e ainda ter o original restaurado escondido, para uso posterior. É o tipo de estratagema que ele adoraria. E por que queimar a falsificação? Para me fazer confiar nele ainda mais, perdoar a chantagem.

Paz? A única paz de um chantagista é quando a denúncia terrível com que ele a ameaça não precisa mais ser escondida. No meu caso, será quando ELA pagar e o dinheiro estiver em meu poder. E depois que André conseguir o que quer... Hinodeh, talvez. O que ela deseja? Esconde-se de André no escuro. Por quê? Poi causa da cor dele? Para se excitar? Por vingança? Porque ele não é japonês?

Sei agora que o ato de amor pode ir do terror ao êxtase e à ilusão, com todas as variações intermediárias. Minha primeira vez com Malcolm foi na luz, a segunda no escuro; ambas foram maravilhosas. Com ele, da outra vida, sempre foi no claro, e ele era lindo e fatal, sua cor linda, tudo lindo e fatal, aterrador e poderoso, nada como meu marido Malcolm, a quem eu amava de verdade. E honrava... e ainda honro, honrarei para sempre.

Os ouvidos aguçados de Angelique captaram o apito do cúter a vapor. Ela abriu as cortinas, avistou a lancha se afastar apressada do cais da Struan, as luzes de bombordo e boreste acesas, Albert MacStruan na cabine. Na enseada, o Prancing Cloud mal era visível, recolhendo as velas e se preparando para ancorar.

A mente de Angelique projetou-se para bordo, e na imaginação viu sua inimiga.

— como sempre, lábios finos, olhos claros, alta e empertigada, magra, malvestida. — para depois seguir mais além, até o lugar em que Malcolm fora sepultado. Ela sorriu, exultando com essa vitória, o som de seu coração pulsando nos ouvidos. E depois ela tornou a se enroscar na cadeira — a cadeira de Malcolm, a cadeira de ambos, outra vitória — e observou a escuridão se tornar mais escura, apenas as luzes de ancoragem se destacando. Angelique mal conseguia conter seu excitamento.

Com toda certeza, Edward estaria a bordo.

 

A porta da sala de Jamie foi aberta e Vargas entrou quase correndo, esbaforido.

— A lancha deixou o Cloud, senhor — anunciou ele, ainda de capote, chapéu e um cachecol em torno do rosto, a luneta na mão. — Com quatro ou cinco passageiros.

— Ela está a bordo? — perguntou Jamie, sem levantar os olhos da caixa que enchia de documentos. Como não houvesse resposta, ele acrescentou, com alguma irritação: — E então, ela está ou não a bordo?

— Eu... acho que sim.

— Eu disse para me avisar quando tivesse certeza, não antes!

— Desculpe, senhor, mas eu estava no cais, espiei pela luneta, pensei que era melhor vir informá-lo e perguntar o que... o que devo fazer.

— Volte para recebê-la, mas primeiro certifique-se de que todos os criados estão prontos, mande acender um fogo na suíte do tai-pan, que ela vai ocupar, pois o Sr. MacStruan a deixará, com toda certeza.

— Mas isso significa que ela ficará ao lado da Sra. Angeli...

— Sei disso, mas é a suíte do tai-pan, e é lá que ela vai se instalar.

Vargas saiu. Incapaz de resistir, Jamie foi até a janela. O cúter aproximava-se da praia. Apenas com as luzes de ancoragem acesas, e balançando nas ondas. Ele focalizou o binóculo. Vultos indefinidos na cabine, mas uma mulher, sem a menor sombra de dúvida. Não havia como se equivocar com a touca, o porte ereto e a maneira como ela suportava o balanço do barco.

— Merda!

A respiração saiu de sua boca num suspiro. Para firmar a imagem, Jamie encostou-se à janela. Não melhorou muito. Identificou um dos vultos como o capitão Strongbow, mais pela altura e corpulência do que por qualquer outra coisa. Dois outros homens, não três... e um deles era MacStruan.

O cúter veio depressa, os danos na proa causados pela tempestade ainda fáceis “e se ver, os reparos ainda não completados. Espectadores curiosos esperavam sob a lanterna balançando no cais, todos agasalhados contra o frio do inverno, de chapéu e cachecol, itens que eram agora obrigatórios. Difícil ver os rostos, mas ele teve a impressão de reconhecer André e... ah, sim, Vervene, Heavenly, até Nettlesmith. Os abutres se reunindo, pensou Jamie, embora os principais estejam observando de suas janelas, como eu.

A escuridão o oprimia naquela noite. O fogo em sua sala era bom, mas agora parecia ter perdido o calor. Ele sentia a garganta apertada, uma pressão no peito. Controle-se, disse a si mesmo. Ela não é problema seu.

O capitão Strongbow foi o primeiro a passar para o cais, em seu grosso capote de marujo. Ainda era difícil ver com nitidez, mas sua aparência era inconfundível. Depois... ah, sim, MacStruan. Os dois se viraram, ajudaram-na a subir. Ela estava toda agasalhada contra o frio, empertigada, roupas escuras, touca escura, presa com a inevitável echarpe. O tamanho dela. Merda!

Os outros dois passageiros subiram para o cais. Jamie reconheceu-os. Um momento de hesitação e depois ele saiu de sua sala, atravessou o corredor, até o gabinete do tai-pan. Angelique esquadrinhava a escuridão lá fora por uma fresta na cortina, o fogo ardendo, lampiões acesos, a sala aconchegante.

— Ah, Jamie, não consigo vê-los direito. É mesmo ela?

— Receio que sim. — Ele não percebeu qualquer mudança na expressão de Angelique. — Pegue meu binóculo. Achei que gostaria de dar uma olhada melhor

— Não preciso olhar, Jamie, nem ter medo. Quem mais poderia ser? — A voz era a mais tênue que Jamie já ouvira. — Quem está com ela?

— Strongbow, Hoag e Gornt.

Ela tornou a se virar para a janela, a fim de ocultar, mas por um instante Jamie divisou a alegria intensa que inundou seu rosto. Não importava que Jamie visse, pensou ela, com uma vertigem de excitamento. Aquela mulher e Edward juntos? Os dois juntos, Hoag também! Isso não pressagia o sucesso, o sucesso de Edward, que ele conseguiu convencê-la?

— Estarei lá em cima, preparando-me para o jantar. Se alguém quiser me ver, descerei de novo. Obrigada, meu caro Jamie.

Num gesto impulsivo, Angelique abraçou-o. E saiu. Jamie ficou olhando para a porta. Por que a alegria? Se Tess está com Hoag, os canhões pesados chegaram. Ou será que não?

Ele voltou à sua sala, perplexo, deixou a porta entreaberta e continuou a arrumar papéis e livros, os dedos fazendo o trabalho, a mente em outro lugar: em Tess, o futuro, o shoya, Nemi naquela noite, a Casa Nobre, a quem dera vinte anos — seja honesto, você não quer realmente sair e sabe que não é uma ocasião oportuna para se estabelecer por conta própria —, pensando no futuro sombrio de Angelique, no encontro amanhã com o ministro suíço, as possíveis importações de suas fábricas de armamentos e relógios, tudo misturado com as incríveis notícias sobre a reunião com Yoshi, Babcott e Tyrer agora em Iedo, o ouro enviado pelo Bakufu já contado e certo... e sobre Nakama, o pobre coitado.

Pobre coitado? Ele é um assassino, do pior tipo. Nunca me senti assim, nunca me senti ameaçado, nem uma única vez. Ele deve estar na cidade dos bêbados ou em algum lugar da Yoshiwara. Se a notícia chegou ao nosso conhecimento, alguém deve ter contado a ele, que tratou de fugir. Droga! Agora terei de envolver Tyrer ou Johann...

Vozes no vestíbulo interromperam seus devaneios. Vozes poliglotas: MacStruan, Vargas, Hoag, os criados se agitando ao redor.

Não há necessidade de sair para cumprimentá-los. Serei chamado muito em breve. Deprimido, ele continuou em seu trabalho, quase concluído agora.

— Jamie!

Ele se virou. E ficou paralisado. Maureen. A sua Maureen na porta! Maureen Ross, a touca azul-marinho, os olhos azuis espiando por cima das dobras da grossa echarpe de lã. Capote azul-marinho, vestido azul-escuro. Maureen Ross, vinte e oito anos. Alta, uma fração mais alta do que Tess... a altura média agora em torno de l,55 m, a rainha Victoria tendo 1,50 m.

— Deus Todo-Poderoso! — balbuciou ele, a voz estrangulada, incapaz de pensar.

— Olá para você, Jamie McFay. — Maureen permaneceu na porta, empertigada, como o pai, a voz melodiosa. — Posso entrar, por favor?

Ela tirou a echarpe, sorriu, hesitante. Jamie podia vê-la com nitidez agora. O mesmo rosto puro, não lindo, mas forte, curiosamente atraente, sardas castanhas, como ele a vira há pouco mais de três anos — no cais, em Glasgow — embora na ocasião houvesse lágrimas pela separação. Esquecera como os olhos de Maureen...

— Olá, Sparkles — murmurou ele, sem pensar, usando o apelido que lhe dava. — Por Deus... Maureen?

A risada foi ressonante.

— Considero isso como um sim; você não vai mais blasfemar, meu rapaz. Uma vez é compreensível, eu surgindo como uma aparição na noite, querendo lhe fazer uma surpresa.

O sorriso e a cadência da voz tornavam-na mais atraente do que realmente era, assim como a luz que faiscava em seus olhos, e o amor que usava como um escudo. Maureen fechou a porta, e tornou a contemplá-lo.

— Você está ótimo, Jamie, talvez um pouco cansado, mas ainda tão bonito quanto antes.

Ele se empertigara, mas continuava parado atrás da mesa, a mente atordoada, então é você, não Tess, foi fácil confundir no escuro, quase a mesma altura, porte ereto... recordando suas cartas desoladas, negativas, ao longo do último ano, e a derradeira, rompendo o noivado, a voz silenciosa dizendo sinto muito, Maureen, escrevi para você, não vamos casar, sinto muito, não quero casar, não posso agora, ainda mais agora que estou trabalhando por conta própria, o pior momento possível, e por que você não...

— Puxa, Jamie — disse ela, do outro lado da sala, observando e esperando, o sorriso aumentando —, não pode imaginar como me sinto feliz em vê-lo, por estar aqui finalmente; as aventuras por que passei na viagem encheriam um volume inteiro.

Como ele não se mexesse, nem respondesse, um pequeno franzido surgiu na testa de Maureen.

— Está fora de si, meu rapaz?

— Tess! — balbuciou ele. — Eu pensei... nós pensamos que era Tess Struan.

— A Sra. Struan? Não, ela ficou em Hong Kong. Uma mulher e tanto, arrumou tudo para que eu viesse até aqui, não me cobrou nada. “Vá se encontra com o seu Jamie McFay, com os meus cumprimentos”, disse ela, e me apresentou ao capitão Strongbow — que providenciou um camarote só para mim —, ao excelente Dr. Hoag e ao mister Irresistível Gornt.

— Como?

— Aquele rapaz pensa que é a dádiva de Deus para as mulheres, mas não para mim. Estou noiva, eu disse a ele, noiva, diante de Deus, do Sr. Jamie McFay. Ele disse que era seu amigo, Jamie, e o Dr. Hoag me contou que Gornt salvou sua vida, e por isso me mostrei simpática, mas mantive distância. Puxa, meu rapaz, há muito o que saber, muito o que contar.

— Por Deus, — murmurou ele, sem ouvi-la, — foi fácil cometer o erro, com a echarpe em seu rosto, você e Tess são do mesmo tamanho, o mesmo porte...

— Chega! — Os olhos de Maureen faiscaram de repente. — Eu agradeceria se você não usasse o nome do Senhor em vão, e ela é um pouco mais baixa, muito mais corpulenta, muito mais velha, tem os cabelos grisalhos, enquanto os meus são castanhos, e nem mesmo no escuro somos parecidas!

Como o súbito sorriso pelo próprio gracejo não o afetasse, ela suspirou. Exasperada, correu os olhos pela sala. Viu a garrafa de cristal. No mesmo instante foi até lá, farejou para se certificar de que era uisque, torceu o nariz em repulsa, mas serviu-lhe um copo, algumas gotas em outro.

— Tome aqui. — Maureen fitou-o, de perto pela primeira vez, com um sorriso radiante. — Papai sempre precisava de uma dose de uisque quando o choque de a Escócia ser parte das ilhas britânicas o atingia.

O encantamento se desfez. Jamie riu, abraçou-a, dando as boas-vindas; os copos nas mãos de Maureen quase derramaram.

— Cuidado, meu rapaz! — balbuciou ela.

Maureen conseguiu largar os copos na mesa, abraçou-o também, na maior ansiedade, depois de tanta espera, finalmente em sua presença, vendo o choque de Jamie, não a recepção que esperava, tentando ser forte e adulta, sem saber o que fazer ou como dizer que o amava e não pudera suportar o pensamento de perdê-lo, por isso arriscara, deixara seu santuário, depositara sua confiança em Deus, pegara o livro de orações e a Bíblia, pusera a pequena pistola do pai na bolsa e partira às cegas, por quinze mil quilômetros de medo. Por dentro. Mas não por fora... oh, não, jamais, não é esse o estilo da família Ross!

— Puxa, Jamie, meu rapaz...

— Está tudo bem agora — murmurou ele, desejando que Maureen parasse de tremer.

Jamie tirou-lhe a touca, deixou que caísse a trança comprida, de cabelos castanho-avermelhados.

— Assim é melhor. Você é um homem bonito. Obrigada.

Ela entregou-lhe um copo, pegou o outro, bateram num brinde.

— Escócia para sempre — murmurou Maureen, e tomou um gole. — O gosto é horrível, Jamie, mas nem imagina como me sinto contente por vê-lo.

O sorriso era ainda mais hesitante agora, pois ela perdera parte de sua confiança. O abraço de Jamie fora como o de um irmão, não o de um apaixonado, oh, Deus, Deus, Deus... Para ocultar sua expressão, Maureen tornou a olhar ao redor, enquanto tirava o capote e as luvas. O vestido era quente, bem cortado, outra tonalidade de azul, realçava suas curvas, a cintura de ampulheta.

— O seu Sr. MacStruan diz que você pode usar a suíte dele, eu ficarei nos aposentos ao lado, até termos o nosso próprio lugar. Já arrumou outros aposentos, Jamie?

— Ainda não. — Confuso, sem saber como iniciar, mas certo de que tinha de fazê-lo. E o mais depressa possível. — Isto... arrumei primeiro todos os meus papéis e livros; ia começar lá em cima amanhã. Todo o resto, os móveis aqui e lá em cima, pertencem à Struan.

— Não importa. Podemos comprar os nossos.

Maureen sentou na cadeira diante da mesa e fitou-o. Com as mãos no colo. Esperando. Certa, agora, de que tinha de morder a língua e esperar que ele começasse. Fizera sua parte, ao chegar. Talvez até tivesse exagerado, chegando sem avisar, mas pensara a respeito com todo cuidado e fizera o melhor que podia, escrevendo a carta, e imaginara o reencontro, hora após hora, ao longo dos meses nauseantes no mar, durante as tempestades, e uma ocasião, nos mares da China, ao largo de Cingapura, durante um motim dos passageiros chineses da terceira classe, entre os quais havia piratas, e que fora reprimido de forma sangrenta. Jamie era sua estrela guia e agora chegara o momento do ajuste de contas.

— Ele é um homem que não presta, esse Jamie McFay — dissera sua mãe, quando anunciara a decisão. — Já falei e repeti, ele não será bom para você, menina. Suas cartas são tudo menos encorajadoras, justamente o contrário.

— Quero ir de qualquer maneira, mamãe. Será que papai me emprestaria o dinheiro?

— Acho que sim, se pedir a ele.

— Tenho de ir. Estou com vinte e oito anos, já velha, além da idade normal de casamento. Esperei por muito tempo, e esperaria mais três anos, se fosse necessário, mas... é agora ou nunca. Já decidi. Pode compreender, mamãe?

— Posso, sim. Mas... pelo menos você estará com ele, com o seu homem, se casar, não como eu.

Ela vira as lágrimas, escutara os conselhos nunca oferecidos antes, segredos jamais sussurrados, e depois a mãe arrematara:

— Abençoada seja, menina, vá com Deus. Vamos falar com seu pai.

Ele era major do exército indiano, reformado, vinte e cinco anos de serviço militar, dezoito dos quais no regimento gurkha, voltando para casa em licença a intervalos de dois ou três anos, antes de ser obrigado a se aposentar, de ferimentos recebidos dez anos antes, detestando o afastamento...

— Muito bem, menina, pode ir, com a minha bênção, sob duas condições — dissera o pai. — Se ele a repudiar, avise que o encontrarei em qualquer parte e o matarei; segundo, se ele a violentar, machucá-la, corte seus ovos... emprestarei minha kookrie, o jovem Duncan não vai precisar pelo menos por mais dez anos.

— Está bem, papai.

A kookrie, a faca gurkha, era o seu bem mais prezado. Maureen era a mais velha de três irmãs, com um irmão de oito anos, e a primeira a sair de casa... os filhos da Grã-Bretanha eram filhos para o império.

Jamie pôs mais carvão no fogo, chegou sua cadeira para mais perto, antes de sentar. Pegou a mão dela.

— Maureen, escrevi para você há três meses.

— Escreveu muitas cartas, mas isso não era suficiente — respondeu ela, jovial, a fim de ganhar mais tempo para se preparar.

— Em todas as minhas cartas, durante o último ano, tentei ressaltar, da melhor forma que podia, que este não é lugar para uma dama, não é como a índia, onde existe a vida dos regimentos...

— Nunca estive na índia, Jamie, como sabe, minha mãe só foi lá uma vez e nunca mais voltou. — Ela pegou a mão de Jamie entre as suas. — Não se preocupe, este lugar pode ficar uma beleza, é trabalho para uma mulher. Posso dar um jeito.

O aperto na garganta de Jamie quase o sufocava. Não havia uma saída fácil para seu problema, o cérebro apregoava, faça logo ou jamais conseguirá, faça agora! Claro que não é justo, mas você não tem sido absolutamente justo com ela, é asqueroso por ter se aproveitado de sua boa fé durante todos esses anos, por Deus, está noivo há três anos, e já a conhecia por dois anos antes disso, é um homem sórdido... admita-o, e fale depressa. Agora! O fluxo começou:

— Escrevi-lhe há três meses, a carta deve ter chegado depois de sua partida, e disse que achava mais sensato rompermos o noivado, e que você deveria me esquecer, lamentava muito, mas era o melhor para você, pois não vou voltar para casa, não posso viver lá, não posso trabalhar lá, não deixarei a Ásia até ser obrigado, se ficar doente ou... não irei embora, não posso, amo a Ásia, amo meu trabalho, não há esperança de um tempo feliz para você, não valho a pena, admito que me aproveitei de você, mas não podemos casar, não é possível, agora que vou me estabelecer por conta própria... — Jamie parou para respirar e depois acrescentou, a voz rouca: — Não sei o que mais dizer, não há mais nada para dizer, exceto pedir desculpas mais uma vez... é isso aí.

Ele tirara sua mão. Sentia o estômago embrulhado. Tirou o lenço do bolso-enxugou a testa.

— Desculpe — balbuciou ele, levantou-se, tornou a sentar, mexeu no copo — Desculpe.

Maureen tinha as mãos no colo. Os olhos continuavam abertos, concentrados, não se desviaram do rosto de Jamie por um instante sequer.

— Não precisa se desculpar — disse ela, gentilmente, a testa apenas um pouco franzida. — Essas coisas acontecem, meu rapaz.

Ele ficou boquiaberto.

— Então concorda?

Maureen riu.

— Claro, com parte do que você disse, mas não com tudo... você é homem, eu sou mulher, vemos as coisas de maneiras diferentes.

— Como assim?

— Bom, primeiro, sobre empregos. O emprego de uma mulher, seu trabalho, é cuidar de um homem, fazer um lar, e é para isso que fui educada, o lar e a família são as coisas mais importantes no mundo.

Ela viu Jamie fazer menção de interrompê-la, por isso se apressou em continuar:

— Meu pai acha que o império vem em primeiro lugar, mas ele é um homem. Os homens têm empregos para onde ir, têm de trabalhar para trazer para casa o mingau, um pouco de carne, outras coisas. Mas tem de haver um lar para o qual ele possa trazer essas coisas. Sem uma mulher, não há lar. É muito importante para um homem ter alguém em quem possa confiar, alguém para partilhar o fardo, enquanto trabalhar, ou procurar um emprego, ou se estabelecer por conta própria. Você pode confiar em mim. Entre duas coisas, tentar iniciar seu próprio negócio é o melhor para você. O Sr. Gornt quer fazer a mesma coisa.

— É mesmo?

— E, sim, em algum momento no futuro, ele diz. Voltou para assumir a Brock and Sons, e...

— É mesmo? — murmurou Jamie, aturdido.

— É, sim. Ele diz que vai ficar no lugar do homem que tentou matar você, o Sr. Greyfifth.

— Greyforth... Norbert Greyforth. — A mente de Jamie recuperou o controle: devo estar perdendo o juízo, com você aparecendo desse jeito, que nem um fantasma, e me esqueci de Hoag, Malcolm e Hong Kong. — O que aconteceu em Hong Kong? Sobre Malcolm Struan? Gornt disse alguma coisa sobre Morgan Brock ou Tyler Brock?

— Paciência, meu bonito rapaz, isso vem mais tarde. De volta a você e a mim, já que levantou a questão. Formaremos uma grande dupla, a melhor, eu prometo. Estamos noivos. E prometo que serei a melhor esposa que já existiu.

— Mas será que não percebe, menina, que não vai dar certo? — disse Jamie, odiando a si mesmo, mas com certeza absoluta. — Este lugar é difícil, a vida aqui e árdua, há poucas mulheres, não terá amigas, nada para fazer.

Maureen soltou uma risada.

— Jamie, Jamie, não ouviu uma só palavra do que eu disse. Agora, é isso... Uma batida na porta a interrompeu. Ela gritou:

— Espere um instante! — Levantou-se e continuou, no mesmo tom de voz gentil, mas firme: — Deve ser o Dr. Hoag, ele tinha urgência em lhe falar, mas pedi que me desse alguns minutos antes, pois me sentia ansiosa em vê-lo. Agora, vou deixá-los a sós.

Maureen pegou o chapéu, as luvas, o capote e a echarpe.

— Não se preocupe comigo, Jamie. Trocarei de roupa e ficarei pronta a tempo. Baterei em sua porta. O jantar é às nove horas, não se esqueça.

— Hem? — balbuciou ele.

— Esse conde russo, Zerevev ou outro nome parecido. Aceitamos o convite para o jantar. O Sr. MacStruan me falou a respeito.

Ela saiu, agradeceu a Hoag. Antes que Jamie pudesse dizer qualquer coisa, Hoag entrou na sala, fechou a porta, adiantou-se e disse, ofegante, as palavras saindo aos borbotões:

— Hong Kong foi como um sonho, Jamie, Malcolm foi sepultado com todas as honras, no mar, como ele e Angelique queriam!

— Ele foi o quê?

Hoag riu.

— Também fiquei espantado. Tess arrumou tudo, ao largo de Shek-O, um dos lugares que Malcolm mais apreciava no mundo inteiro. Aconteceu poucos dias antes da minha chegada. Com todas as honras, Jamie, todas as bandeiras a meio mastro, os navios baixando suas bandeiras, salvas de canhão, gaitas de foles, tudo enfim, o funeral do tai-pan, embora ele nunca fosse. Os jornais cobriram tudo, tenho recortes, luto de um mês em Hong Kong, o governador ordenou um serviço especial em nossa igreja, no outeiro em Happy Valley, Gordon Chen organizou a maior e mais explosiva procissão e velório na história de Chinatown... só atrás da que ele promoveu para Dirk... e como não podia deixar de ser os fogos desencadearam incêndios nas encostas, dizem que uns poucos milhares de choupanas desapareceram em fumaça, e não apenas isso, pois quando me encontrei com Tess... Posso tomar um drinque? Estou ressequido!

— Claro. Mas não pare, continue a falar. — Jamie foi servir os dois, seu próprio copo há muito vazio. Notou que seus dedos tremiam. Oh, Deus, por que Tess faria isso, um sepultamento no mar, e por que Maureen aceitou o convite para jantar, quando precisamos conversar? — Continue, pelo amor de Deus!

Primeiro, Hoag bebeu.

— Por Deus, como isso é bom! — Ele tirou o capote, sentou-se, respirou fundo e sentiu-se melhor. — Por Deus, como me sinto satisfeito em vê-lo! Onde era mesmo que eu estava? Ah, sim... quando me encontrei com Tess pela primeira vez, sentia-me transtornado por ela. Foi horrível. Encontrei-a no antigo escritório de Culum e ela disse: “Ronald, dê-me as notícias ruins, todos os detalhes, conte o que aconteceu.” Ela estava de pé, ao lado da escrivaninha enorme, empertigada. nunca tão pálida, Jamie... o retrato de Dirk na parede, olhando para você com aquela ameaça de olhos verdes, desafiando-o a mentir. Relatei tudo a ela, da melhor forma que podia, é claro que ela já tomara conhecimento de algumas coisas, por intermédio de Strongbow... lembra que eu pedi a ele para informá-la que seguiria no navio de correspondência, lamentava não poder viajar no Cloud, pois tinha uma operação a realizar.

Hoag fez uma pausa.

— Ela nunca tremeu, Jamie, não vacilou em momento nenhum, apenas escutou, enquanto eu falava sobre a Tokaidô, o noivado, casamento e morte, da melhor forma que podia, tão gentilmente quanto podia, o duelo, Norbert, você e Gornt. Tudo saiu, não me lembro das palavras exatas, mas contei como aconteceu.

Ele parou por um momento, menos nervoso agora.

— Sei como ela é, sempre se contendo, sempre escondendo, a mulher mais firme e impassível em toda a cristandade, e apenas me agradeceu, disse que tinha o atestado de óbito, os papéis do inquérito, entregues por Strongbow. Uma mulher extraordinária. Fantástica. E isso é tudo... ah, sim, ela me agradeceu por cuidar do caixão, junto com o agente funerário, e tudo correu bem, graças a Deus.

— Hem?

Os olhos de Hoag faiscaram.

— Naturalmente, eu não queria que o caixão fosse aberto. Dissera a Strongbow que mandasse direto para Blore, Christenson, Herberts. Tenho feito muitos negócios com Herberts e Crink e ordenei-lhes, “por motivos médicos”, que pusessem o caixão direto num deles, da melhor qualidade, alças de prata, e o fechassem no mesmo instante, sem deixar aberto, em exposição, recomendava isso por causa da decomposição, etc, e aconselhara Tess nesse sentido por uma carta, nos termos mais incisivos. Fico contente em dizer que tudo correu bem, do nosso ponto de vista, e de Malcolm. — Hoag tornou a encher o copo. — Ainda bem que fui até lá. De qualquer forma, tudo o que termina bem está bem.

— Falou a ela sobre o outro sepultamento, o nosso?

— Claro que não! Pensa que sou idiota? Está perdendo o juízo, Jamie.

— Só perguntei para ter certeza.

Jamie não se sentiu satisfeito ao lembrar que Maureen usara a mesma palavra. Portanto, deve ser isso mesmo. Acho que estou meio Atônito. Mas o que farei com ela?

— Tess disse alguma coisa sobre Angelique?

— O que ela planejava fazer? Não, embora me fizesse dezenas de perguntas. Como está Angelique?

— Bem... exteriormente. Calma, retraída, de vez em quando janta comigo. Esta noite vai jantar com Zergeyev, a pedido de Sir William. Nada como sua velha chama... — Essa idéia de novo, pensou Jamie, angustiado. — ...mas continua adorável, mais do que nunca. O que Tess perguntou?

— Nada demais, só sobre os fatos, como eu os conhecia. Respondi que achava que eles estavam mesmo apaixonados, que foi Malcolm quem a perseguiu, não o contrário, que ela se comportou como uma dama, aceitou o pedido de casamento, e concordou com a cerimônia a bordo da Pearl.

— Mas nada sobre o que ela planeja fazer?

— Não, e essa é a parte estranha. Pensei que ela se mostraria furiosa, pediria conselhos, daria uma indicação qualquer, mas isso não ocorreu. Afinal, sou o médico da família há anos, contratado por ela, pela Struan, e a conheço melhor do que qualquer outra pessoa. Tess não comentou coisa alguma, não revelou nada, as perguntas foram apenas para cobrir detalhes que eu me esquecera de mencionar Muito esquisito.

— É verdade. Ela deve ter um plano.

— Concordo. Claro que a história saiu na imprensa, os jornais mais sensacionalistas deram detalhes tétricos, TAI-PAN MORRE NA NOITE DE NÚPCIAS esse tipo de manchete, embora Tess tentasse abafar. Trouxe todos os recortes para você, e também isto aqui.

Os olhos de Hoag assumiram um brilho diferente. Entregou um envelope a Jamie. A letra de Tess. Sr. J. McFay, pessoal, em mãos.

— Antes que você pergunte, não sei o que contém. Ela disse apenas: Por favor, entregue isto ao Sr. McFay, assim que chegar.

Jamie largou o envelope em cima da mesa.

— Por que você voltou?

— Antes que eu me esqueça, mais uma coisa. O velho Brock e seu filho igualmente infame, Sir Morgan, compareceram ao funeral.

— O quê? Sem serem convidados?

— Causou a maior sensação. Aconteceu da seguinte maneira. Tess fez o funeral no China Cloud. O caixão seguiu em carruagem pelo passeio até o clíper. Quarenta convidados a bordo, o governador, todos os graúdos, o almirante Sir Vincent-Sindery, o general Skaffer... o novo comandante supremo na Ásia, muito formal, do exército indiano... todos os tai-pans, e Gordon Chen. Nada de imprensa. No momento em que o clíper fez a volta, ao largo de Shek-O, o serviço prestes a começar, o velho Brock e Morgan chegaram em seu clíper, o Hunting Witch. Parou a alguma distância, com a bandeira a meio mastro, ele e Morgan no tombadilho superior, vestidos em trajes de funeral, cartola, camisa de rufos. Quando o caixão foi lançado no mar, o desgraçado disparou uma salva de canhão, e abriu champanhe... todos a bordo disseram que ouviram o espocar da rolha. Beberam um brinde, jogaram os copos e a garrafa no mar, levantaram as cartolas, enquanto partiam, ruidosamente.

— Mas que filhos da puta!

— Concordo. Mais tarde, eles alegaram que foi “para homenagear o pobre rapaz falecido”. O governador se encontrava ao lado de Tess. Contou-me que ela nada fez, nada disse, permaneceu impassível, só que ele ouviu sua respiração sair num sibilo, com uma violência que o chocou, disse que fez seus ovos subirem, conhece a sensação... ah, esqueci de mencionar, Gornt também estava no navio dos Brocks.

— Maureen disse que ele veio assumir a Brock aqui.

— É verdade. Assim assim, acho que é um rapaz simpático. Ainda assim. Ele me disse que recebeu uma ordem para embarcar no Hunting Witch... ei, esqueci também de mencionar Maureen! Jamie, você é um homem de sorte.

— Obrigado.

— Muita sorte. — Hoag estendeu a mão. — Meus parabéns.

— Obrigado. — Jamie apertou a mão estendida e fingiu estar satisfeito, embora se sentisse deprimido. — Pensamos... eu pensei que era Tess. Mesmo com o binóculo, no escuro, ela toda coberta, era um erro fácil de se cometer.

— Hem? Não diga bobagem, ela não é nada como Tess!

Injuriado, Jamie declarou:

— Sei disso, mas elas são da mesma altura e seu porte ereto é igual ao de Tess.

Hoag franziu o rosto, soltou um grunhido.

— Isso nunca me ocorreu. Mas agora que você menciona, é verdade, mas ela não é nada parecida com Tess, quando se olha de perto. Deve ser pelo menos dez a quinze anos mais moça, tem cabelos castanho-avermelhados e uma personalidade exuberante.

— Sei de tudo isso, mas foi um erro compreensível.

— E afortunado. Eu não gostaria de fazer a viagem com Tess, de jeito nenhum! Sua Maureen é sensacional. Disse que tinha escrito para avisá-lo de sua chegada.

— Em Hong Kong, não aqui. E sem indicar a data da chegada lá.

— Ora, não havia tempo, pois o Prancing Cloud estava para zarpar quando ela chegou em Hong Kong. — Hoag riu. — Acho melhor tomar cuidado com ela ou vai perdê-la. Gornt ficou fascinado.

Jamie corou, com ciúme, contra a sua vontade.

— Obrigado pelo aviso. Como estão as crianças de Tess? Você as viu?

— Claro. Estão saudáveis, embora Duncan tivesse outro resfriado terrível. Compareceram ao funeral... ouvi dizer que foi muito triste, o pequeno Duncan tentando se mostrar corajoso, Emma e Rose chorando, Tess com um véu grosso... todos sabendo que era o fim de uma era, o fim da linhagem direta de Dirk, exceto por Duncan, e ele não poderá herdar por muito tempo, pois tem apenas dez anos. Não é um bom augúrio para a Casa Nobre. O boato mais quente em Hong Kong é o de que a Brock está prestes a liquidar a Casa Nobre.

— Não há a menor possibilidade! — Jamie tentou parecer convincente. — O novo tai-pan virá da linha de Robb, Robb Struan, o meio-irmão de Dirk. Um dos seus filhos ou netos será o tai-pan.

— Acho que você tem razão, mas não será a mesma coisa. É terrível o que aconteceu com Malcolm, pois ele era a esperança de Tess. Durante todo o tempo em que estive em Hong Kong, pensei em nosso sepultamento, tão desnecessário, hem? É melhor esquecermos isso para sempre. Malcolm foi sepultado lá, ao largo de Shek-O.

— Eu gostaria que tivesse sido assim, como Sir William e todos nós queríamos. — Jamie tivera outro pesadelo na noite anterior sobre o que o contramestre dissera ter visto, o cadáver se debatendo para aflorar à superfície, os olhos arregalados. — Mas fizemos o melhor que podíamos. E agora pode me explicar por que voltou?

Hoag levantou-se.

— Tess pediu-me para entregar a correspondência a MacStruan e a você, que procurasse Angelique para lhe dar uma carta. — Ele viu os olhos de Jamie. — Não sei o que há nelas.

— Nelas? Não tinha dito uma carta?

Hoag ficou vermelho.

— Ahn... é isso mesmo. Uma carta. Não sei o que contém. Bom, é melhor eu ir agora...

— Ora, não me venha com essa, pelo amor de Deus!

— Tess me pediu para lhe entregar... uma carta, e isso é tudo.

— Pare com isso! Eu o conheço muito bem!

Hoag se irritou.

— Acho melhor eu ir falar com Angelique agora. Ela vai querer saber...

— Sente-se! Que cartas, pelo amor de Deus?

— Não sei nada sobre...

— Não me venha com essa merda! Que cartas?

Hoag hesitou, mas acabou falando:

— Se você jurar pela cabeça de sua mãe... eu contarei.

— Juro!

O médico tornou a sentar.

— Tess disse apenas: “Entregue esta carta àquela mulher, espere uma semana, ou por aí, e depois lhe entregue uma destas duas cartas.” Ela me deu três cartas, mas não sei o que contêm. Juro por Deus que não sei.

— Uma semana? Ou seja, até o dia da gravidez? Uma de duas cartas, hem? Uma se ela estiver grávida, outra se não estiver?

— O dia 11 seria o primeiro dia, mas não é possível ter certeza nessa ocasião, será preciso esperar pelo menos mais duas semanas, e ainda assim será mais seguro aguardar o mês, para saber se ela menstruou ou não. A data pode demorar, porque às vezes é difícil determinar, em seu caso porque a pobre moça passou por um tremendo estresse... Tess me pediu para esperar até ter certeza absoluta. — Hoag deixou escapar um suspiro. — Pronto, agora você já sabe de tudo.

— Tess pediu que esperasse até examiná-la?

— Bom... sim, até eu ter certeza.

— Portanto, uma carta se ela estiver grávida, outra se não estiver?

— Isso mesmo... já disse.

— A quem mais você contou?

— A ninguém.

— Quem?

— Vá para o inferno! — explodiu Hoag. — Gornt!

— Oh, Deus! Por que ele?

— Não sei. Gornt parecia saber, chegou à mesma conclusão, e suponho que todos farão assim, concordo que é bastante óbvio, agora que estou de volta... Foi o que ressaltei para Tess, mas ela não me disse nada, apenas fitou-me com aqueles seus olhos cinzentos. É fácil para você, Jamie, é fácil para você e os Gornts deste mundo, são fortes, acostumados aos negócios, mentir não é parte dos negócios durante a maior parte do tempo? Só que não é assim com os médicos.

Repugnado com sua incapacidade de guardar segredos, Hoag exalou longo suspiro.

— Não posso mudar, depois de tanto tempo. Tess disse para explicar a Sir William o motivo da minha volta, a Albert e a você, a mais ninguém.

— Não se preocupe. Tem toda razão, não haverá um único homem em Iocoama que não compreenda o motivo de sua presença aqui. Para quem mais você trouxe correspondência de Tess?

— Não... Sir William.

— Quem mais? Quem mais, pelo amor de Deus?

— Heavenly Skye.

 

Fingindo uma tranqüilidade que não sentia, Hoag entregou a Angelique o envelope, lacrado com o sinete da Casa Nobre. Seu estômago se agitava desde que Jamie lhe dissera quem chegara com o Prancing Cloud, por mais que tentasse parecer indiferente. Nem mesmo a informação quase imediata de Vargas de que a mulher era a noiva do senhor McFay, e não Tess Struan, conseguira tranqüilizá-la. Nem o relato desconexo de Hoag sobre o funeral de Malcolm, que a confundira ainda mais. Estava escrito no envelope: “Angelique Richaud, em mãos.”

— Por que não lê enquanto estou aqui? — sugeriu ele, preocupado com o repentino rubor de Angelique.

— Para o caso de eu desmaiar? — indagou ela, ríspida, sentada na cadeira ao lado do fogo, a cadeira de Malcolm, que tirara da suíte, antes de desocupá-la para Albert MacStruan.

Hoag explicou, gentilmente:

— Porque você pode querer conversar. Sou um amigo, além de médico.

Ele subira correndo, ao sair da sala de Jamie, contente por escapar da inquisição, cumprimentara-a e abraçara-a, evitara a sua indagação imediata, sobre o que acontecera em Hong Kong, dizendo:

— Espere um instante. Deixe-me primeiro contemplá-la. Examinara-a com cuidado, primeiro como médico, depois como amigo. Nos dois casos, ficara satisfeito com o que vira.

— Foi apenas uma sugestão, Angelique.

— A carta não está endereçada da maneira correta. Deveria ser Sra. Angelique Struan ou Sra. Malcolm Struan.

Contrafeita, ela devolveu a carta.

— Tess previu que você faria isso.

Hoag falou em tom gentil.

— Se ela é tão esperta, por que não endereçou da maneira correta?

— É difícil para ela, assim como é difícil para você. Afinal, é uma mãe que perdeu o filho. Seja paciente, Angelique.

— Paciente? Eu? Quando estou sendo atacada por casar e amar um homem maravilhoso, que... Você está do lado dela, é a Struan que paga seu salário.

— É verdade, mas meu lado é o que julgo certo, e isso não se encontra à venda, nem mesmo para você.

Hoag sentou, sempre amável. A sala era aconchegante e feminina, impregnada de tensão. Ele viu a veia no pescoço de Angelique pulsar forte, os dedos tremendo um pouco.

— Eu a ajudei e a Malcolm, mas apenas porque achei que era o mais certo. Para seu conhecimento particular, pedi demissão quando cheguei em Hong Kong, Este é meu último serviço para a Casa Nobre.

Angelique ficou surpresa.

— Por que fez isso?

Outra vez o mesmo sorriso estranho.

— Voltarei para a índia. Vou tentar descobrir o que perdi. O mais depressa possível.

— Ah, Arjumand! — Isso a fez sentir-se melhor. Inclinou-se, pôs a mão no braço de Hoag. — Desculpe o que eu disse. Estava enganada. Desculpe... sinto muito.

— Não pense mais nisso. Lembre-se de que sou médico e compreendo a tensão a que você está submetida. Havia me preparado para algo pior.

Ele rompeu o lacre, abriu o envelope.

— Ela me disse para fazer isso. — Dentro, havia outro envelope. Endereçado mais simplesmente: Angelique. — Uma concessão, hem? Uma concessão sugerida.

— Por você?

— Isso mesmo.

— Sabe o que diz a carta?

— Não. Juro por Deus. Quer que eu saia?

O olhar de Angelique fixou-se na carta. Um momento depois, ela sacudiu a cabeça, e Hoag foi até a janela, a fim de lhe proporcionar um mínimo de privacidade, abriu as cortinas, observou a noite, seu próprio coração disparado.

Angelique hesitou, depois abriu o segundo envelope. Sem cumprimentos. Sem nome.

 

Não posso perdoá-la pelo que fez a meu filho.

Acredito sinceramente que, a pedido e exortada por seu pai, você deu em cima de meu filho, a fim de atraí-lo para o casamento, qualquer tipo de casamento. Seu “casamento” com meu filho não é válido, tenho certeza. Esse “casamento” precipitou a morte dele, tenho certeza — o atestado de óbito indica isso. Nesse sentido, os advogados da Struan estão preparando petições, a serem apresentadas o mais depressa possível no Tribunal Superior de Hong Kong. Mesmo que esteja esperando uma criança de meu filho, isso não desviará o curso da justiça, nem evitará a declaração de que a criança é ilegítima.

Não posso deixar de lhe agradecer pelas valiosas informações que me foram transmitidas, por instigação sua, pelo nosso conhecido comum.

Se, como acredito que acontecerá, o material provar ser válido, eu e a Casa Nobre ficaremos em dívida com você e com essa pessoa, a um preço inestimável. O fato de que ele indicou um preço, razoável, considerando-se o seu valor, não é da sua conta, já que nada pediu e nada receberá. Mas seu presente para a memória de meu filho e o futuro da Struan merece alguma consideração.

Como resolver esse impasse?

A solução, se é que alguma pode ser encontrada, deve ficar entre nós, como inimigas — sempre seremos inimigas — e como mulheres.

Primeiro, peço que coopere com o Dr. Hoag, permitindo que ele a examine na ocasião oportuna, para confirmar se espera ou não uma criança. Claro que o Dr. Babcott ou qualquer outro médico que desejar pode ser consultado, para corroborar o diagnóstico.

Segundo, vamos esperar até o segundo mês, para haver certeza, e depois seguiremos adiante. A esta altura, a petição já estará preparada, e pronta para ser apresentada ao tribunal... e não digo isso como uma ameaça, apenas como um fato. A esta altura, as informações de nosso conhecido já terão dado resultados, pelo menos parciais. No momento, não imagino como podem falhar. O fato de que o persuadiu a me procurar contribuiu para criar, como já ressaltei, uma obrigação minha e da Casa Nobre com você.

Talvez, a esta altura, com a ajuda de Deus, o impasse possa ser resolvido. Tess Struan, Hong Kong, 30 de dezembro de 1862.

 

A mente de Angelique oscilava entre a felicidade e o terror, vitória e derrota. Vencera ou fracassara? Tess Struan nada prometia, mas acenara com um ramo de oliveira? Petição legal? Tribunais? Banco das testemunhas? Pálida agora, ela recordou as palavras de Skye, como seria fácil para a oposição descrevê-la como uma Jezebel sem dinheiro, filha de um criminoso, e outras horríveis verdades distorcidas. “Impasse” e “solução”? Isso não significava que ela vencera, pelo menos uma vitória parcial?

Edward! Esta noite ou amanhã, Edward me contará tudo! E o Sr. Skye é esperto, ele saberá, oh, Deus, espero que saiba!

Angelique levantou os olhos e deparou com Hoag a observá-la.

— Oh, desculpe, eu tinha esquecido... — Atordoada, ela torceu o pano de uma manga, batendo com o pé no chão, inquieta. — Não queria um drinque? Posso chamar Ah Soh e... desculpe... parece que não consigo...

Era difícil organizar as palavras e Hoag percebeu a mudança, especulou se seria o princípio do colapso que previra. Os sinais existiam, as mãos se agitando sem serem notadas, o rosto pálido, os olhos arregalados, as pupilas alteradas.

— O que ela disse? — indagou Hoag, afável.

— Ahn... nada... exceto para esperar até...

As palavras definharam, o olhar de Angelique perdeu-se na distância.

— Até? — insistiu ele, a fim de trazê-la de volta, escondendo sua preocupação.

Mas ela se deixara arrebatar pelo que lera. Portanto, as linhas da batalha haviam sido traçadas. Angelique sabia o pior ou o melhor. Sua inimiga fizera o primeiro movimento, anunciara sua posição. Agora, ela podia ingressar na batalha. Em seus próprios termos. A náusea se desvaneceu. Em seu lugar, surgiu o fogo. O pensamento de que ELA expusera o torpe e o possível com tanta frieza a deixava ardendo de raiva... nada por ela, nenhuma preocupação, nenhuma concessão por todo o amor, agonia e dor pela morte de Malcolm. Absolutamente nada. E o pior de tudo, ilegítima, quando haviam casado dentro das leis britânicas... Tenho certeza!

Sem medo, pensou ela, isso está gravado em minha memória, em aço derretido. Angelique tornou a fitar Hoag, tremendo.

— Ela disse que quer esperar... esperar até que nós, você e eu, saibamos se estou ou não esperando uma criança de Malcolm. Quer ter certeza, é isso o que ela deseja.

— E depois?

— Ela não diz. Quer esperar e quer que eu espere também. Há uma vaga... acho que ela diz que talvez possa haver paz, uma solu...

O tremor parou quando uma decisão se definiu e a voz se tornou sibilante, impregnada de veneno:

— Espero que haja paz, porque... porque sou a viúva de Malcolm Struan e ninguém, nenhum tribunal, nem mesmo Tess Desgraçada Struan pode me tirar isso!

Hoag disfarçou seu nervosismo e disse, cauteloso:

— Todos achamos que é mesmo. Mas precisa manter a calma, não se preocupar. Se tiver um colapso, ela vence, você perde, qualquer que seja a verdade não há necessidade...

A porta foi aberta. Ah Soh entrou.

— Miss tai-tai?

— Ah! — explodiu Angelique. — Por que não bateu?

Ah Soh firmou bem os pés no chão, secretamente satisfeita porque a demônia estrangeira perdera o controle.

— Mensagem, querer ouvir, hem? Mensagem, miss tai-tai?

— Que mensagem?

Ah Soh adiantou-se, arrastando os pés, entregou o envelope pequeno, fungou se retirou. A letra de Gornt. Angelique desceu da montanha de sua fúria.

Havia um cartão lá dentro, com E.G. gravado. A mensagem dizia: “Meus calorosos cumprimentos. A visita a Hong Kong foi bastante intrigante. Podemos nos encontrar amanhã de manhã? Seu mais obediente servidor, Edward Gornt.”

Abruptamente, Angelique sentiu-se íntegra de novo. Forte, transbordando de determinação, esperança e espírito de luta.

— Tem toda razão, doutor, mas não terei um colapso, juro que não terei, não por Malcolm, não por mim, não por você, Jamie e o Sr. Skye. É um amigo muito querido e já me sinto bem agora. Não há mais necessidade de falar sobre aquela mulher.

Ela sorriu, e Hoag compreendeu que o sorriso era ao mesmo tempo bom e mau... mais sinais de perigo.

— Vamos esperar e ver o que o futuro nos reserva. E não precisa se preocupar. Se eu não me sentir bem, pode ter certeza de que o chamarei imediatamente. — Angelique levantou-se, foi beijar o médico nas faces. — Obrigada mais uma vez, meu amigo querido. Vai ao jantar do conde Zergeyev?

— Talvez. Ainda não decidi. Estou um pouco cansado.

Hoag saiu, ocultando seu presságio. Ela tornou a ler o cartão. Edward se mostrava circunspecto, outro bom sinal, pensou. Se o cartão fosse interceptado ou lido, nada deixaria transparecer. “Intrigante” era uma boa palavra para se escolher, e “servidor obediente” também. Como as palavras daquela mulher, que apodreça no inferno.

O que fazer?

Vestir-se para jantar. Mobilizar seus aliados. Prendê-los a você. Pôr em prática os planos que concebeu. E transformar Iocoama no seu bastião inexpugnável contra aquela mulher.

 

Ignore os soldados gai-jin tentando encontrá-lo, Hiraga, e esqueça Akimoto disse Katsumata, contrariado com o inesperado contratempo em seu plano. — Três são suficientes. Atacaremos amanhã, incendiaremos a igreja e afundaremos o navio. Takeda, você cuida da igreja.

— Com o maior prazer, sensei, mas por que não aproveitar o plano de Ori e queimar toda Iocoama? Hiraga tem razão, vamos esquecer o navio. Sinto muito, mas ele está certo nesse ponto — disse Takeda, inclinando-se para o lado dele, pois Hiraga era o líder dos shishi de Choshu e sensato ao levar em consideração a retirada. — Seria muito difícil chegar perto de um navio sem sermos observados com este mar, com este vento. Por que não usar o plano de Ori, em vez disso, e incendiar todo o ninho de gai-jin?

— O plano de Ori exige tempo e um vento sul — acrescentou Hiraga. — Mas concordo que é um plano melhor. Devemos esperar.

— Não! — exclamou Katsumata, ríspido, agressivo. — Com coragem, podemos fazer as duas coisas, com coragem! Podemos fazer! As duas coisas! Com a coragem dos shishi!

Hiraga ainda se sentia abalado com os soldados imprevistos, a mente continuava lerda. O fato de acreditar que matara o homem na terra de ninguém não incomodava nem um pouco; avistara-o no chão, imóvel, quando se encaminhara mais tarde para o poço, por onde descera, avançando às cegas pelo túnel estreito, a área enregelante.

— Impossível com apenas três — disse ele —, e amanhã de noite é cedo demais, qualquer que seja a nossa decisão. Se o plano for incendiar a colônia precisamos de três dias para espalhar os inflamáveis e os pavios. Aconselho contra a precipitação.

Ele se envolvera com uma manta, nu por baixo, à exceção de uma tanga enquanto as criadas secavam suas roupas, encharcadas da passagem pelo túnel. Fazia frio no pequeno bangalô, o vento zunia em torno das shojis e ele tinha de recorrer a toda a sua força de vontade para não estremecer abertamente. A concentração era difícil. Ainda não podia entender por que os soldados o procuravam. No momento em que chegara, Katsumata, irado, pedira a Raiko que enviasse espiões à colônia, a fim de descobrir o que acontecera, e os três poderem fazer planos para escapar da casa das Três Carpas, caso os soldados entrassem na Yoshiwara.

Agora, ele observava Katsumata servir-se de mais saquê. A ira contraíra suas feições já afiladas, fazendo com que parecesse ainda mais perigoso.

— Hiraga, minha opinião é a de que devemos atacar amanhã.

— E minha opinião é a de que só devemos entrar em ação quando tivermos uma possibilidade de êxito — respondeu Hiraga, com igual firmeza —, não antes... sempre foi esse o seu conselho... a menos que sejamos surpreendidos em campo aberto e nos defrontemos com a morte ou a captura. Takeda, qual é a sua opinião?

— Primeiro, eu gostaria de saber qual seria o plano. Você conhece o alvo como ninguém. O que faria?

Hiraga tomou seu chá quente, aconchegou-se ainda mais na manta, fingindo pensar, grato porque Takeda tendia para a sua posição.

— Se ainda tivesse meu acesso normal, Akimoto e eu poderíamos pôr todos os inflamáveis nos lugares em três dias... já tenho quatro preparados e escondidos em minha casa na aldeia — disse ele, embelezando a história. — Precisamos de uns seis, o ideal seriam oito: um em cada dos dois prédios de dois andares, são de madeira, quase queimaram no terremoto; um na casa do líder dos gai-jin; um na casa ao lado; três ou quatro na cidade dos bêbados; um em cada igreja. Na confusão, podemos escapar em nosso barco para Iedo.

— Quanto tempo isso levaria? — indagou Katsumata, ainda mais rude, fazendo os dois se remexerem, apreensivos. — Quantos dias, agora que você não tem o “acesso normal”?

— Posso lhe dizer isso assim que souber por que os soldados me procuram — respondeu Hiraga.

As espadas de Katsumata se encontravam ao seu lado, as espadas de Hiraga tainbém ao alcance fácil. Assim que chegara, ele pedira as espadas a Raiko, que as havia escondido... para o caso de serem obrigados a efetuar uma fuga súbita por cima dos muros e pelo arrozal por trás da Yoshiwara. Todos haviam concluído que seria perigoso demais se esconderem no túnel.

— O que acha, Takeda?

— Proponho esperarmos até sabermos qual é o problema. Depois, podemos combinar um plano final, sensei... mas se pudermos fazer como Hiraga diz, sou a favor.

— Devemos atacar amanhã. Esse é o nosso plano final.

Pensando melhor agora, Hiraga lançou uma isca.

— Se pudéssemos fazer as duas coisas, afundar o navio e incendiar a colônia, seria o melhor — declarou ele, com a intenção de apaziguar Katsumata. — Seria possível se planejássemos assim, mas precisaríamos de mais homens. Uns poucos homens a mais, sensei.

Hiraga usou o título de respeito, que evitara até então, para lisonjear Katsumata ainda mais, e depois acrescentou:

— Poderíamos trazer três homens de Iedo. Takeda iria até lá, ele não é conhecido, voltaria com os homens em três ou quatro dias. Sou um homem marcado e não posso me movimentar até o ataque. Você nos comandará contra o navio... e posso dizer aos outros onde colocar os inflamáveis, explicar onde ir, como fazer.

— É um bom plano, sensei — disse Takeda, querendo aproveitar a oportunidade de escapar de barco, pois nunca fora favorável a um ataque suicida. — Irei até Iedo, e encontrarei os homens.

— Seria apanhado — garantiu Katsumata, os lábios contraídos numa linha fina. — Nunca chegaria lá... e mesmo que chegasse, não conheceria os lugares, não saberia para onde ir. Seria capturado.

Sua raiva se achava a pique de irromper, pois nunca poderia atacar sozinho, e precisava daqueles dois, ou de outros homens, e nada seria realizado sem um consenso. Se alguém tivesse de ir, só poderia ser ele. Tal pensamento não o desagradou, pois não gostava daquele lugar, não havia muitos pontos de fuga, nem esconderijos suficientes... só se sentia seguro em Quioto, Osaca ou Iedo, e também em sua terra natal, Kagashima. Ah, seria ótimo rever os amigos e a família. Mas eles devem esperar, pensou Katsumata, endurecendo seu coração: “Sonno-joi deve ser levado adiante, Yoshi tem de ser humilhado...” Ao mesmo tempo, os três homens estenderam as mãos para as espadas. Sombras apareceram na porta de shoji.

— Katsumata-sama? — Era Raiko. — Tenho uma criada comigo.

— Por favor, entre.

Eles relaxaram. Raiko entrou, fez uma reverência, a criada também, e eles retribuíram.

— Conte tudo, Tsuki-chan — disse Raiko à criada.

— Fui à casa do shoya, Sires. Ele disse que Akimoto-sama foi levado à presença do líder dos gai-jin e depois para a prisão. Ainda não foi possível falar com ele, mas com sua primeira refeição, servida por um dos nossos, poderemos descobrir mais.

— Ótimo. Ele foi espancado e arrastado? — perguntou Katsumata.

— Não, lorde, nenhuma das duas coisas.

— Tem certeza que ele não foi espancado?

— O shoya também ficou surpreso, Sire. Akimoto-sama assoviava e cantava e ouviram-no dizer, como se fosse parte da canção, “alguém traiu alguém”.

Hiraga comentou, sombrio:

— Foi isso que ele disse na aldeia. O que mais o shoya contou?

— O shoya diz que sente muito, mas ainda não sabe por que os soldados o procuram. Os guardas continuam lá. Assim que ele souber o motivo, enviará o aviso.

— Obrigada, Tsuki-chan — disse Raiko, dispensando-a em seguida.

— Se ele não foi espancado — murmurou Katsumata —, não seria porque deu a informação que eles queriam, e o puseram na prisão para protegê-lo de você?

— Não — respondeu Hiraga. — Ele não diria coisa alguma.

A mente de Hiraga divagava: quem seria o traidor? Seus olhos fixaram-se em Raiko, que estava dizendo:

— Talvez eu possa descobrir. Um cliente gai-jin, que pode saber de tudo, chegará a qualquer momento. Se ele não souber, com certeza pode descobrir.

 

André entrou na sala com um sorriso forçado.

— Boa noite, Raiko-san — disse ele, repugnado com a própria fraqueza. Ela cumprimentou-o com frieza, ofereceu chá. Depois de tomado o chá, André lhe entregou a bolsinha com as moedas.

— Aqui outro pagamento, sinto muito não tudo, mas bastante no momento. Quer falar comigo?

— Esperar um pouco é polido, Furansu-san, entre amigos — disse ela, irritada. Avaliando o peso da bolsa, Raiko sentiu-se secretamente contente pela quantia e por ter acertado essa primeira e importante questão. Mesmo assim, acrescentou, para manter a pressão, tão importante com os clientes: — Um pouco é aceitável, entre amigos, mas muito não é correto, de jeito nenhum.

— Prometo mais em um ou dois dias.

— Lamento que seus pagamentos estejam tão atrasados.

André hesitou, mas acabou tirando o anel de sinete de ouro.

— Tome aqui.

— Não quero isso. Devo liberar Hinodeh, permitir que ela vá embora, depois você...

— Não! Por favor, não... escute, tenho informações...

André não se sentia bem, tanto por causa da recepção fria de Raiko, como por causa de uma enxaqueca adquirida durante a reunião com Angelique, Que se recusou a desaparecer. E por causa de Angelique. E porque Tess Struan não viera no Prancing Cloud, o que lhe facilitaria a negociação de um acordo e a obtenção da riqueza de que precisava. Não tinha o menor desejo de ir a Hong Kong para desafiá-la, ali, no covil da Casa Nobre.

Angelique ainda é a única chance que você tem, seu cérebro continuava a martelar. Seratard tornara a consultar Ketterer, Sir William e até mesmo Skye, sobre a validade do casamento. Todos estavam convencidos de que resistiria num tribunal.

— Mas em Hong Kong? Não tenho a mesma certeza — comentara Ketterer, desdenhoso.

Os outros haviam dito a mesma coisa, com palavras diferentes, em graus diferentes... exceto Sir William.

— Há muitos desonestos ali, os juizes não são iguais aos de Londres... são coloniais, há muita corrupção, muita fraude. Uns poucos taéis de prata... e não podemos esquecer que a Struan é a Casa Nobre...

Raiko inclinou-se para André.

— Informações, Furansu-san?

— Isso mesmo. — Era agora ou nunca com Raiko... e Hinodeh. —Especiais. Segredos sobre a reunião secreta de Yoshi com os gai-jin.

— So ka! — exclamou Raiko, toda atenção. — Continue, Furansu-san. Ele contou o que acontecera, em detalhes, para o profundo interesse de Raiko, que prendeu a respiração várias vezes, não pôde conter diversas exclamações. E quando, abruptamente, André entrou na parte de Yoshi exigindo a entrega de Hiraga, ela empalideceu. A ansiedade de André se evaporou, ele ocultou sua satisfação, e fechou a armadilha.

— Então Hiraga amigo seu?

— Não, claro que não, ele é cliente de uma amiga — apressou-se em dizer Raiko, abanando-se.

Sua mente fervilhava com as informações maravilhosas a transmitir ao shoya e à Gyokoyama, informações que lhe valeriam um enorme crédito... e também para Meikin. Ah, Meikin, pensou ela, de passagem, por quanto tempo mais você permanecerá viva? Sinto muito, mas você, e só você, terá de pagar, de um jeito ou de outro, Yoshi investiu demais em sua falecida Koiko, mas já sabe disso. O que me leva ao meu problema atual e premente: como posso, em nome de todos os deuses e de Amida Buda, me livrar de Hiraga, Katsumata e os outros dois, que se tornaram perigosos demais, e... Foi nesse instante que ela ouviu André dizer, com uma voz diferente:

— Então Hiraga cliente mama-san amiga na Yoshiwara. Hiraga com amiga agora. Neh?

Raiko tornou a suspender a guarda.

— Não sei onde ele se encontra. Imagino que está na colônia, como sempre, lorde Yoshi o procura? Por quê?

— Porque Hiraga é shishi. — André usou a palavra pela primeira vez, consciente do que significava, pelas revelações de Yoshi. — Também por matar daimio. Utani. Outras mortes também.

Ela não permitiu que o medo transparecesse em seu rosto.

— Terrível. Shishi, hem? Já ouvi falar deles. Sobre essa informação, velho amigo, posso perguntar...

— Hiraga desaparecer, Raiko. Não na colônia. Muitos soldados procurar. Sumir, Raiko. Procurar todos lugares. Ele sumir.

— Desapareceu, hem? Soldados? Foi para onde?

— Veio para cá. Ao encontro de sua amiga. Onde está sua amiga?

— Ah, sinto muito, mas duvido que ele esteja aqui. — Raiko falou com sinceridade, sacudiu a cabeça, enfática. — Provavelmente ele foi avisado e fugiu para Kanagawa ou algum outro lugar. Sinto muito, velho amigo, mas essa não é uma boa pergunta para se fazer. Suas informações são muito interessantes. Tem mais?

André suspirou. Sabia que ela sabia. Agora, Raiko se encontrava à sua mercê. Por algum tempo.

— Samurai Yoshi vir amanhã para seu Hiraga — disse ele, sem sentir mais medo, pois bastaria uma palavra sua e as patrulhas, japonesas ou britânicas, arrasariam a casa das Três Carpas... depois que Hinodeh fosse levada para um lugar seguro. — Se gai-jin não ter Hiraga amanhã muito problema, Raiko. Para gai-jin, Yoshiwara, todos.

A maneira como ele falou provocou um calafrio em Raiko.

— Talvez gai-jin mandar vigilantes aqui, ali, todos lugares — acrescentou André, deixando a ameaça pairar no ar.

— É mesmo? — murmurou ela, uma gota de suor se formando em seu lábio superior, apavorada pelo que estava para acontecer, todo o resto esquecido.

— Ter idéia: se você... desculpar... se sua amiga esconder Hiraga poucos dias, lugar secreto, seguro. Depois, momento certo, entregar Hiraga líder gai-jin, talvez ganhar muito dinheiro, bastante para você, Hinodeh, neh? — Ele a observava e Raiko fazia um grande esforço para não tremer. — Ou sua gente entregar Hiraga a Yoshi. Hiraga ser shishi, valioso... melhor do que brincos.

André viu-a estremecer e arrematou:

— Shishi valioso, neh?

Quando o coração parou de trovejar tanto, e podia confiar em sua voz, Raíko empenhou-se em exibir o melhor sorriso de que era capaz, pois era evidente que ele acreditava que ela estava a par da presença de Hiraga ali, e assim poderia, provocado, lançá-la e à casa das Três Carpas a um perigo letal.

— Perguntarei à minha amiga se o tem visto, ou sabe onde ele se encontra, depois poderemos conversar.

Ela assumiu um tom conciliador, tendo decidido que era melhor tirar todos shishi de sua vida, o mais depressa possível. De preferência, ainda naquela noite.

— Que maravilhosas informações você descobriu, muito valiosas, e darão algum lucro, sem dúvida! Ah, Furansu-san... — acrescentou ela, como se urna súbita lembrança, para desviá-lo ainda mais — ...soubemos que uma dama gai-jin chegou de Hong Kong esta noite. É a famosa mãe do tai-pan?

— Como? Não — murmurou André, distraído. — Ela prometida casamento mercador. Por quê?

— Seria um dos meus clientes, velho amigo?

— Não. Acho ele ir estalagem Suculenta Alegria, um ano, talvez mais. Jamie McFay.

— Jami-san? Jami-san da Struan?

Puxa, pensou Raiko, no mesmo instante, Nemi vai precisar saber disso, e depressa. Deve estar preparada para se apresentar a esta dama na casa grande da Struan, fazer uma reverência, dar as boas-vindas, assegurar que vem cuidando bem de Jami-san — é muito importante haver boas relações entre nee-go-san, a segunda dama, uma consorte, e oku-san, a esposa —, porque a esposa paga todas as contas, e depois convidá-la a uma visita de retribuição na casa de Jami nos jardins da Suculenta Alegria. Seria ótimo, pois assim todas nós poderíamos dar uma boa olhada nela.

— Furansu-sama, há um rumor de que os gai-jin puseram um japonês na prisão esta noite.

— O quê? Não saber nada respeito. Talvez descobrir mais tarde. Não importante. Escute, sobre Hinodeh...

Raiko interrompeu-o, jovial:

— Hinodeh me perguntou, antes, se você a honraria com sua visita esta noite. Ela ficará muito satisfeita por você ter vindo.

André sentiu uma pressão no peito. Agora que tinha Raiko sob seu controle, pediria a ela, não, mandaria que dissesse a Hinodeh para renunciar à condição da luz. Mas, de repente, ele teve medo de fazê-lo.

— O que é?

— Nada — murmurou André. — Eu ir Hinodeh.

Depois que ele saiu, Raiko tomou um pouco de conhaque para firmar os nervos, mastigou algumas folhas de chá fragrantes para eliminar o cheiro e depois, preocupada, procurou os três shishi, e relatou parte das informações de André, sobre Yoshi exigindo a entrega de Hiraga, e que seus homens chegariam no dia seguinte para assumir a custódia.

— Sinto muito, mas seria melhor se partissem esta noite, mais seguro para vocês — disse ela, a voz impregnada de medo. — Katsumata-sama, esse cliente jurou que vigilantes e soldados gai-jin devem aparecer aqui a qualquer momento, procurando por toda parte.

Os três ficaram em silêncio, ao tomarem conhecimento das negociações secretas de Yoshi com os gai-jin. Katsumata sentiu-se mais determinado do que nunca a criar problemas entre eles.

— Obrigado, Raiko-san, prestou-nos um grande serviço. Podemos partir ou podemos ficar, mas de qualquer forma você será bem recompensada.

— Acredito com toda sinceridade que seria melhor se fossem embora e...

A voz ríspida de Katsumata nao a deixou continuar:

— De qualquer maneira, você será bem recompensada. Enquanto isso, vamos conversar sobre o melhor modo de protegê-la.

Ela não queria se retirar, mas fez uma reverência, agradeceu e saiu para a noite. Ao se encontrar a uma distância segura, amaldiçoou-o e aos outros, também a André, ao mesmo tempo em que decidia quem seria a pessoa de confiança que levaria as informações de André a Meikin.

— Acendam as lanternas — ordenou Katsumata.

Todas haviam sido abaixadas, a maioria apagada, quando Raiko abrira e fechara a porta e o vento invadira a sala. Com a porta fechada outra vez, as poucas chamas restantes assentaram, a não ser por uma ou outra aragem isolada.

— Escute, Hiraga — disse ele, bem baixo, para que ninguém lá fora pudesse ouvir —, vou buscar mais homens e voltarei em três dias. Esconda-se aqui, é mais seguro do que ir comigo, use um novo disfarce, refugie-se no túnel. Se for esperto, estará seguro.

— Certo, sensei.

— Daqui a três dias arrasamos Iocoama, afundamos o navio, matamos tantos gai-jin quanto pudermos e escapamos. Trarei uniformes do Bakufu. Takeda, ajude Hiraga com os artefatos incendiários. Devem estar prontos quando eu voltar.

— É melhor eu acompanhá-lo, sensei — propôs Takeda. — Posso guardar suas costas, caso seja visto ou interceptado.

— Não. Fique com Hiraga. — Katsumata não queria ser estorvado e se sentia contrafeito demais dentro da cerca da Yoshiwara. — Partirei no momento em que as barreiras forem abertas.

— É o melhor plano — disse Hiraga. — Sonno-joi.

Ele sentia-se nauseado e inebriado ao mesmo tempo, consternado com a perspectiva dos homens de Yoshi chegando no dia seguinte, ou vigilantes, e de ser capturado — o que era inevitável, agora que Yoshi se empenhava pessoalmente nisso — sabendo também que o sensei tinha razão, mais uma vez: a colônia murada e a Yoshiwara cercada eram armadilhas.

Ao mesmo tempo, experimentava profundo alívio. Agora que seu fim se tornara inevitável, não havia motivo para não se lançar com todo o ânimo ao ataque.

Três dias constituem uma vida inteira. Com Katsumata ausente, quem sabe o que pode acontecer? De qualquer jeito, não serei capturado vivo.

 

— Por Deus, Jamie, olhe só! — exclamou Dmitri.

Jamie olhou para a porta, assim como os outros vinte convidados espalhados pela sala de recepção da legação russa. As conversas cessaram por um instante e logo recomeçaram, alvoroçadas. Angelique entrava no braço de Sir William. Um vestido preto simples, de mangas completas, que realçava a palidez, mas também o lustro da pele e o pescoço perfeito, a cintura pequena, as curvas dos seios, um traje condizente com o luto, mas não havia como duvidar da magia oculta. Os cabelos levantados. Sem jóias, exceto um colar fino de ouro e o anel de casamento — O anel de sinete de Malcolm, agora ajustado para ficar firme em seu dedo.

— Ela é de vinte e quatro quilates.

— Concordo — murmurou Jamie.

Depois, sentindo outra comoção, ele olhou ao redor. Do outro lado da sala, Maureen sorriu-lhe, cercada por homens, entre os quais Pallidar. Jamie retribuiu ao sorriso, gostando do que via, ainda atordoado pela chegada de Maureen, impressionado por sua coragem em fazer sozinha uma viagem tão formidável. O que vou fazer?

— Incrível a história de Hong Kong e o funeral de Malc, hem?

— É verdade, Dmitri. Eu teria apostado que Tess nunca faria isso.

Quais são as intenções dela?, perguntou-se, mais uma vez. E o que continha a carta para Angelique? Ainda não tivera a oportunidade de perguntar e a aparência dela não oferecia nenhuma indicação. Acarta que ele recebera fora esclarecedora:

 

Prezado Jamie:

O Sr. Gornt me relatou em detalhes como você se mostrou um grande amigo de meu filho. Agradeço do fundo do meu coração. Mas ainda assim não posso perdoá-lo por não haver cumprido meus desejos — política da companhia —, por não desviar meu filho de volta a seu dever e persuadi-lo a abandonar seu interesse por aquela mulher ou, no mínimo, enquadrá-la nas proporções devidas e despachá-lo para cá; não posso perdoá-lo por ajudar e apoiar meu filho em sua loucura, em particular depois que ressaltei sua menoridade e que ele podia ser tai-pan no nome, mas não exercia os poderes até a posse formal na função.

Soube também, pelo Sr. Gornt, que você tenciona abrir sua própria companhia. Desejo-lhe sorte e agradeço por seus muitos anos de bons serviços. Anexo uma carta de crédito contra Londres, no valor de cinco mil guinéus. Por favor, transmita meus cumprimentos à sua noiva. Gostei de conhecê-la. Tess Struan.

 

Ele sentiu-se radiante ao pensar no dinheiro. Tornava sua companhia possível, em pequena escala, é verdade, e proporcionava o tempo de que precisava, além de reforçar sua posição com o shoya, embora não imaginasse como aqueles empreendimentos poderiam prosperar sem a contribuição de Nakama/Hiraga. Tinha pena dele. E de Tess. No caso dela, podia compreender, e a perdoava, não por causa do dinheiro.

— O que é, Dmitri?

— Você tem toda razão em se sentir presunçoso. Sua Maureen é sensacional.

— Também acho.

— O que pretende fazer com Nemi?

O sorriso de Jamie desapareceu, o constrangimento voltou e ele virou as costas para a porta.

— Um problema terrível, Dmitri. Eu tinha marcado um encontro com ela para esta noite.

— Essa não! Na Struan?

— Não, graças a Deus. Em nosso... na casa dela.

— Foi muita sorte. Você vai?

— Claro. Por que não? Deus Todo-Poderoso, não sei... Quando Maureen chegou inesperadamente... não é que eu não goste dela, mas ainda me encontro em estado de choque.

— Pode ser, mas um bom choque... você tem sorte. Escute, somos velhos companheiros e posso falar com franqueza. Se você... se decidir parar com Nemi, suspender sua pensão, encerrar o negócio, qualquer coisa, posso pedir que me avise? Ela é bem atraente, uma boa diversão, e fala um pouco da nossa língua.

— Está certo, mas...

Os risos dos homens em torno de Maureen atraíram a atenção dos dois. Que depois se desviou para Angelique.

— Ela é espetacular, não é? — murmurou Jamie. — Estou me referindo a Angelique...

 

Angelique e Sir William esperavam que Zergeyev se juntasse a eles. O vestido e o penteado daquela noite haviam sido determinados com bastante antecedência... escolhidos expressamente para Tess e aquele sarau, que seria o primeiro campo de batalha. Embora a inimiga não tivesse vindo, Angelique resolvera não alterar seu plano, pois o efeito era bastante satisfatório. Considerara a possibilidade de usar o anel de jade imperial que Malcolm encomendara de Hong Kong para ela e que fora trazido pelo navio de correspondência uma semana depois de sua morte, provocando-lhe outro fluxo de lágrimas particulares. Se Tess estivesse ali, ela não hesitaria. Sem esse motivo, o anel era errado.

Na verdade, estou satisfeita por ela não ter vindo, disse Angelique a si mesma. Graças a Deus que Vargas me avisou. Preciso de mais tempo para me preparar para o combate... ah, tempo, estou ou não esperando uma criança de Malcolm?

— Boa noite, conde Zergeyev — disse ela, com um sorriso gentil. — Obrigada por ter me convidado.

— É sempre bem-vinda e já converteu a noite num sucesso. Boa noite, Sir William. Já conhecem a todos, exceto uma nova convidada.

Num súbito silêncio, todos observando, comparando, Zergeyev chamou Maureen do círculo de admiradores, entre os quais figurava Marlowe agora.

— Miss Maureen Ross, de Edinburgh, a noiva de Jamie. Madame Angelique Struan.

No momento em que entrara, Angelique avistara Maureen, avaliara-a da cabeça atraente aos sapatos impecáveis, e decidira que a outra não era uma ameaça... notando Gornt também, de passagem, mas deixando-o para mais tarde.

— Seja bem-vinda ao posto avançado britânico mais distante no mundo, mademoiselle Ross — disse ela, jovial, especulando que idade a outra teria, pensando: É verdade, à noite, toda agasalhada, esta poderia ser facilmente confundida com aquela mulher, pois também é alta, o mesmo porte imponente, o olhar direto. — Jamie tem muita sorte.

— Obrigada.

No momento em que Angelique entrara na sala, Maureen também a avaliara, da cabeça deslumbrante aos pés pequenos, reconhecera sua beleza, simpatizara instintivamente, mas ao mesmo tempo decidira que se tratava de uma ameaça — seus olhos deslocaram-se para Jamie, deparando com sua admiração ostensiva, e os homens ao redor, não havia como se equivocar com os murmúrios gerais de apreciação — e se aprontara para a batalha.

— Sinto-me muito satisfeita em conhecê-la e lamentei muito ao saber de sua tragédia... todos lamentaram. — Com um sentimento genuíno, ela se inclinou, encostou o rosto no de Angelique. — Espero que nos tornemos amigas.

Um sorriso especial e Maureen arrematou:

— Por favor, vamos ser amigas. Precisarei de uma amiga aqui. Jamie disse que você tem sido uma boa amiga dele.

— Não há necessidade de “por favor”, Maureen... posso chamá-la de Maureen, e você me chamar de Angelique?

Ela também ofereceu um sorriso especial, reconhecendo e compreendendo a advertência apresentada com suavidade, sem necessidade de mostrar as garras, de que Jamie era propriedade pessoal, um homem com quem não deveria flertar.

— Seria ótimo ter uma amiga aqui. Poderíamos tomar um chá amanhã?

— Puxa, eu adoraria. Angelique... um lindo nome e um lindo vestido. Austero demais, mas também cinturado demais para o luto.

— E o seu também, essa cor combina muito bem com os seus cabelos. — Seda verde, dispendioso, mas inglês, não parisiense, e o feitio era antiquado. Não importa. Isso pode ser melhorado, se ela se tornar uma amiga íntima. — Jamie foi um grande amigo de meu marido, e também meu, quando precisei, desesperadamente. Tem muita sorte. E, agora, onde se encontra o seu belo noivo? Ah, lá está ele!

Todos observando, Angelique passou o braço pelo de Maureen. Todos ficaram radiantes com a entende cordiale. Ainda o centro das atenções, ela guiou Maureen até Jamie.

— Tome cuidado, Jamie, pois é fácil perceber que esta dama é muito preciosa... e há piratas demais em Iocoama.

Os homens ao redor riram, Angelique deixou-os, voltou para Sir William, cumprimentou Ketterer no caminho — um cumprimento e um sorriso especiais para ele, assim como para Marlowe, mais tarde — e também Settry Pallidar, esplendoroso e rivalizando com Zergeyev, que usava seu uniforme de cossaco.

— Ah, Sir William, como temos sorte! — murmurou ela.

— Por estarmos... — Zergeyev conteve-se a tempo. Quase dissera “Por estarmos vivos?” Em vez disso, pegou um copo de champanhe, de uma bandeja de prata levada por um criado de libré, e acrescentou: — Por estarmos na presença de duas damas tão adoráveis, somos afortunados! Saúde!

Todos beberam e continuaram a comparar. Zergeyev estava preocupado demais para seguir o exemplo, absorvido nas outras notícias terríveis que haviam chegado com o Prancing Cloud.

Um despacho urgente e cifrado de São Petersburgo — remetido três meses antes — fora-lhe entregue. Primeiro, relatava os problemas habituais com a Prússia, tropas se concentrando nas fronteiras ocidentais, seis exércitos enviados para lá; problemas esperados em breve com o império otomano e os muçulmanos ao sul, três exércitos enviados para lá; fome por toda parte, com intelectuais como Dostoievski e Tolstoi defendendo as mudanças e a liberalização. Segundo, recebera ordem para pressionar os japoneses a retirarem suas aldeias de pescadores das Kurilas e Sakhalin, sob a ameaça de “graves consequências”. E, terceiro, um grande transtorno para ele, pessoalmente: Foi designado governador-geral do Alasca russo. Na primavera, o navio de guerra Tsar Alexander chegará aí, com o seu substituto no Japão, e o levará e à sua comitiva para a nossa capital alasquiana, Sitka, onde fixará residência pelo menos por dois anos, para promover amizade.

— Por que tão soturno, meu amigo? — perguntou Sir William, em russo. Zergeyev viu que Angelique se encontrava cercada outra vez, por isso levou-o para um lado, e falou sobre seu novo posto. Mas não sobre “Amizade”. Era o codinome de um plano de Estado ultra-secreto para facilitar a emigração maciça e compulsória de vigorosas tribos siberianas para seus vastos territórios alasquianos-americanos, que se estendiam por centenas de quilômetros para o interior, pelo Canadá, e desciam pela costa para o sul, terminando não muito longe da fronteira americano-canadense. Eram povos vigorosos e resistentes, belicosos, que poderiam, ao longo de uma, duas ou três gerações, se expandir para o sul e para leste, pelas vastas pradarias e exóticas terras quentes da Califórnia, talvez até possuindo toda a América um dia. O plano fora proposto por um tio, vinte e cinco anos antes.

— Dois anos! Uma terrível sentença de prisão!

— Concordo. — Sir William também se sentia contrafeito com as vicissitudes de seu próprio Ministério do Exterior, a aptidão que demonstravam para removê-lo de repente, despachá-lo para postos distantes. — Alasca? Ufa! Não sei nada a respeito... já esteve lá alguma vez? No ano passado, o navio em que eu viajava fez escala em Vancouver, nossa colônia ali. É apenas um posto avançado, e não seguimos mais para o norte.

— Sitka não fica muito longe. Estive lá uma vez, quando era jovem. Agora, temos um povoado permanente, muitos mercadores, algumas centenas de habitações — disse Zergeyev, amargurado. — Peles, gelo, ausência da lei, índios, bêbados, nenhuma sociedade. O lugar é uma horrível terra desolada, descoberto por Bering e Chirikov há cento e tantos anos... a princípio, pensaram que era apenas parte de nossos territórios setentrionais, no outro lado de uma enseada de cerca de oitenta quilômetros, sem perceberem que se tratava de um estreito, a que depois deram o nome de Bering. Há sessenta e poucos anos, um dos meus tios-avôs ajudou a formar a Companhia de Peles Russo-Americana, nosso monopólio do comércio de peles, e designou um arrogante filho de uma prostituta... um primo chamado Baranof... para ser o diretor, e ele transferiu a capital para Sitka. Fica numa ilha perto da costa, desolada e miserável, e chamada... adivinhe... ilha Baranof! Infelizmente, minha família fez do Alasca um interesse especial. Daí a minha transferência para o novo posto. Matyeryeybitz! Os dois!

Sir William riu, e Angelique virou-se para eles.

— Posso partilhar o gracejo?

— Ahn... não foi... não foi muito engraçado, minha cara — disse ele, registrando a informação tão interessante para transmitir a Londres. — Apenas uma vulgaridade russa.

— Humor inglês, Angelique. — Zergeyev soltou uma risada. — E com esse pensamento feliz, é tempo de jantar.

Galante, ele fez uma reverência, adiantou-se e conduziu Maureen para a sala de jantar, Sir William e Angelique logo atrás, depois os outros. Prataria abundante na mesa comprida, criados de libré por trás de cada cadeira, outros para trazer vastas quantidades de carnes, borscht, pastelões, jarros de vodca gelada, champanhe, vinhos franceses e sorvetes. Músicos ciganos do navio russo, e mais tarde dançarinos cossacos, da comitiva de Zergeyev, como entretenimento.

O burburinho de conversas, e todos ainda comparando: pequena e alta, francesa contra uma das nossas, o delicioso sotaque francês, o tranquilo escocês. As duas sedutoras, Angelique muito mais, ambas aceitáveis, as duas casadouras, Maureen muito mais.

 

Sábado, 3 de janeiro:

— Mister baixo escada, miss tai-tai.

— Mister Gornt?

Ah Soh deu de ombros, parada na porta do boudoir de Angelique.

— Kwailoh mister.

Com a mão, ela indicou alguém alto e depois fechou a porta, com a batida costumeira.

Angelique contemplou-se no espelho por um instante. O excitamento reprimido era toda a maquilagem de que precisava. Mais um momento para fechar seu diário e guardá-lo. Uma inspeção final e ela saiu. Vestido preto de seda, com muitas anáguas, os cabelos presos por uma impecável echarpe de chiffon, também preta. O anel de sinete do casamento. E desceu a escada, alheia aos criados, empenhados nas tarefas matutinas.

Entrou na sala do tai-pan. Gornt estava de pé junto da janela, olhando para a baía. Chen esperava, com uma expressão lúgubre.

— Bom dia, Edward.

Ele virou-se, sorriu.

— Bom dia, madame.

— Posso pedir café ou champanhe?

— Não, obrigado. Acabei de comer o desjejum. Só queria lhe falar sobre Hong Kong e sua lista de compras. Espero não estar incomodando.

— Claro que não. Chen, espere lá fora.

No momento em que ficaram a sós, ela disse, em voz baixa:

— Este escritório é agora de Albert e o tomo emprestado enquanto ele está na sala de contabilidade com Vargas. Portanto, não temos muito tempo... é difícil encontrar algum lugar para uma conversa particular. Vamos sentar aqui, Edward. — Angelique indicou a mesa ao lado da janela, as cortinas abertas. — Os transeuntes poderão nos ver, mas isso não é problema, porque você era amigo de Malcolm. Por favor, conte depressa o que aconteceu.

— Posso dizer primeiro que tem uma aparência maravilhosa?

— Você também. — A ansiedade de Angelique era ostensiva agora. — Como foi?

— Tudo correu bem, eu acho. Tess se manteve impassível, como uma jogadora de pôquer, por isso não posso ter certeza, Angelique. Em nosso primeiro encontro, eu lhe falei das informações sobre os Brocks, como havíamos combinado, dizendo várias vezes, de maneiras diferentes, que só a procurava por sua causa. Não o...

— Foi o primeiro do navio a vê-la?

— Fui, sim, tenho certeza, porque desembarquei no barco do piloto, antes que o Prancing Cloud atracasse, junto com o capitão Strongbow. Depois que falei a Tess sobre os Brocks, não houve muita reação. Ela escutou atentamente, fez algumas perguntas, e depois disse: Por favor, volte amanhã, com os documentos, logo depois do amanhecer. Use a porta lateral, na viela, que estará destrancada. Venha encoberto e tome cuidado, pois os Brocks têm espiões por toda parte. No dia seguinte...

— Espere! Falou com ela sobre a morte de Malcolm e sobre o nosso casamento?

— Não. Deixei essa parte para Strongbow. Começarei pelo início. Desembarcamos juntos, no barco do piloto, por sugestão minha, mantendo discrição a respeito, sem dizer nada a Hoag... ele é um boca frouxa. Tinha me oferecido para apoiar e ajudar Strongbow, por ter sido testemunha... o pobre sujeito estava apavorado, embora fosse seu dever contar a ela. Quando ele disse que Malcolm morrera, ela ficou branca. Recuperou o controle em poucos segundos, com uma rapidez espantosa, e depois perguntou a ele, a voz firme, como Malcolm morrera. Strongbow estava transtornado e gaguejou: “Trouxe o atestado de óbito, Sra. Struan, as atas do inquérito, e uma carta de Sir William. Foi de causas naturais e aconteceu a bordo do Prancing Cloud. Nós o encontramos morto pela manhã, depois da noite de seu casamento.”

Gornt fez uma pausa.

— Ela se levantou de um pulo e gritou, a voz estridente: “Casou meu filho com aquela mulher?” Strongbow quase morreu e contou toda a história, tão depressa quanto podia, sobre a Pearl, o duelo, eu salvando a vida de Jamie, matando Norbert, como encontrou Malcolm, como você ficou em estado de choque, tudo o que ele sabia. O suor escorria por todo o seu corpo, Angelique. Devo admitir que eu também suava... Depois do primeiro grito, Tess se manteve impassível, só com os olhos em fogo, como uma Medusa. E depois Strongbow lhe entregou algumas cartas, vi que uma era de Sir William, balbuciou que lamentava muito, mas era seu dever contar a ela, e se retirou, trôpego.

Tirando um lenço do bolso, Gornt enxugou a testa. Angelique sentia-se fraca, tonta com a força de sua inimiga... se Tess podia fazer Gornt suar assim, o que não seria capaz de fazer com ela?

— Ela simplesmente ficou imóvel por um momento, depois seus olhos se viraram para mim. É incrível como uma mulher pode parecer tão... tão alta. E dura. Dura num momento, suave no seguinte, mas nunca baixando a guarda. Tive de forçar meus pés a não recuarem e olhei ao redor, fingindo ter medo de que alguém pudesse ouvir, e me apressei em dizer que também lamentava muito, Malcolm era de fato meu amigo, que você também era minha amiga, e era por sua causa que eu levava as informações que destruiriam Tyler e Morgan Brock. No instante em que falei em destruir Tyler, a loucura a deixou, ou pelo menos o fogo assustado em seus olhos se extinguiu. Ela sentou, ainda sem desviar os olhos de mim, também sentei. Só depois de um longo momento é que Tess indagou: “Quê informações?” Eu disse que voltaria no dia seguinte, mas ela insistiu, com uma voz que parecia uma faca afiada: Que informações? Relatei apenas o essencial... Desculpe, Angelique, mas posso tomar um drinque? Não champanhe, mas uísque ou bourbon, se tiver.

Ela foi até o aparador, serviu uísque para Gornt, água para si mesma, enquanto ele continuava:

— No dia seguinte, levei todos os documentos e deixei com Tess. Ela...

— Espere. Ela se mostrava igual ao dia anterior?

— Sim e não. Obrigado, saúde, e uma vida longa e feliz. — Gornt tomou um gole grande, engasgou, quando o uísque prendeu na garganta. — Obrigado. Quando acabei de falar tudo, ela me fitou, e pensei que havia fracassado. É uma mulher terrível, eu não gostaria de ser seu inimigo.

— Mas eu sou? Mon Dieu, Edward, diga-me a verdade!

— É, sim, mas isso não importa, no momento. Deixe-me continuar. Eu...

— Entregou minha carta a ela?

— Ah, sim, esqueci de mencionar isso. Entreguei a carta no primeiro dia, antes de sair, como havíamos combinado, ressaltando de novo que era tudo idéia sua, que o meu acordo era com Malcolm, o tai-pan, e ele estava morto, eu considerara o negócio encerrado, pretendia voltar a Xangai, a fim de esperar por um novo tai-pan. Mas você me procurara, suplicara para que eu a procurasse, alegando que devia isso a meu amigo Malcolm, que ele mencionara minha proposta a você em segredo... sem dar os detalhes... e você tinha certeza de que seria o desejo dele que as informações fossem transmitidas à sua mãe, o mais depressa possível, e que isso deveria ser feito com urgência. A princípio, eu não queria, mas você insistira, e acabara me persuadindo. Por isso, ali estava eu, por sua causa, e você também me pedira para trazer uma carta. E entreguei-a.

— Ela leu na sua frente?

— Não. Isso foi no primeiro dia. No dia seguinte, em nosso encontro ao amanhecer, depois que lhe passei parte das informações, ela fez muitas perguntas, inteligentes, e me disse para voltar depois do pôr-do-sol, outra vez pela porta lateral. Assim fiz. Ela foi logo me dizendo que o dossiê era incompleto. Eu lhe disse que sim, sem dúvida, não havia sentido em mostrar tudo, enquanto eu não soubesse até que ponto ela estava empenhada... se tinha mesmo interesse, como Malcolm, em arruinar os Brocks? Ela respondeu que sim, e perguntou por que eu estava atrás deles, qual era o meu interesse.

Gornt fez outra pausa.

— E eu contei, sem rodeios. Toda a história de Morgan, a verdade. Era Morgan quem eu queria arruinar, se o pai caísse também, tudo bem por mim. Não mencionei que isso a tornava minha tia, nem uma única vez, em qualquer dos encontros, e ela também não disse nada a respeito. Nunca. Também não mencionou a carta que você mandou. Nem uma única vez. Ela se limitou a fazer perguntas. Depois das revelações sobre Morgan, esperava que ela dissesse alguma coisa, como lamentava a situação, ou que era típico de Morgan... afinal, ele é seu irmão. Mas nada. Ela não disse nenhuma palavra, pediu detalhes sobre o meu acordo com Malcolm, e lhe entreguei o contrato. — Ele terminou o drinque. — Seu contrato.

— Seu contrato — disse Angelique, nervosa. — Deve odiá-la muito, Edward.

— Está enganada, não a odeio. Acho que compreendia que ela vivia com os nervos à flor da pele. A morte de Malcolm a abalou, por mais que tentasse esconder e se colocasse acima. Tenho certeza. Malcolm era o futuro da Casa Nobre, agora ela enfrenta o caos... seu único raio de esperança era eu e meu plano, que mal chega a ser legal, diga-se de passagem, até mesmo em Hong Kong, onde as leis são flexíveis como em nenhum outro lugar. Posso?

Gornt levantou seu copo.

— Claro — murmurou Angelique, especulando sobre ele.

— Ela leu o contrato com todo cuidado, depois se levantou, contemplou a enseada de Hong Kong lá embaixo, parecendo frágil por um lado, mas feita de aço por outro. “Quando terei o resto dos documentos?”, perguntou ela. Eu disse que agora, se concordasse com o acordo. “Negócio fechado”, declarou ela. Tornou a sentar, assinou o contrato, aplicou o sinete, na presença da secretária, como testemunha, e depois mandou que o guardasse no cofre, e se retirasse. Ela...

— Ela nunca mencionou minha assinatura como testemunha.

— Não, embora eu tenha certeza de que foi a primeira coisa que notou, como você previu. Continuando... fiquei com ela por umas quatro horas, orientando-a pelo labirinto de documentos e cópias de documentos, não que Tess precisasse de muita orientação. Depois, ela juntou tudo numa pilha impecável, e me interrogou sobre o atentado na Tokaidô, Malcolm, você, McFay, Tyrer, Sir William, Norbert, o que Morgan e Tyler haviam me dito em Xangai, minhas opiniões a seu respeito, sobre Malcolm, ele se empenhou em conquistá-la, ou foi o contrário, não fazendo qualquer comentário, perguntas e mais perguntas... esquivando-se às minhas... sua mente tão aguçada quanto a espada de um samurai. Mas juro por Deus, Angelique, que cada vez que aflorava o nome de Morgan ou do Velho Brock, cada vez que eu mencionava outra manobra que os documentos permitiam, ou sugeria outra farpa para abalar o império deles, Tess quase salivava.

Angelique estremeceu.

— Acha que há alguma possibilidade de paz comigo?

— Creio que sim, mas deixe-me terminar, em seqüência. Ela perguntou de novo se o acordo que Malcolm assinara ainda era uma recompensa aceitável e respondi que sim. E ela disse: “Amanhã o substituirei por um documento mais legal, assinado e sacramentado, como o outro. Agora, vamos à última questão Sr. Gornt. O que devo dar “àquela mulher?” Eu tinha dito a ela, Angelique, que você não me pedira nada, só queria que os desejos e esperanças de seu marido fossem apresentados a ela, e que, se fossem úteis... afirmei a ela que você nada sabia do conteúdo... essa seria toda a sua recompensa.

— Usou essa palavra, “marido”? E ela deixou passar?

— Deixou, mas disse logo em seguida: “Fui informada de que esse casamento, independente do que ela alega, ou do que Sir William diz, não é válido.”

Angelique começou a se eriçar, mas Gornt disse:

— Não tão depressa, minha cara, seja paciente. Estou lhe contando o que ela disse. Seja paciente, há tempo suficiente para fazermos o nosso jogo. Depois desse encontro, ela queria outro, na noite seguinte. Para manter tudo às claras, eu disse a ela que estivera com os Brocks e lhes contara a mesma história de Iocoama, em particular sobre o duelo, entregando uma cópia do inquérito sobre a morte de Norbert. O velho Tyler ficou tão furioso quanto um buldogue atiçado, mas Morgan acalmou-o, disse que atirar em Jamie McFay pelas costas os prejudicaria muito mais do que a perda de um gerente, facilmente substituível.

Angelique observou-o organizar seus pensamentos; seu coração batia forte, de tantas perguntas ainda sem respostas.

— Ela vai... vai agir com base nas informações?

— Vai, sim, e depressa. Terei minha vingança e você conseguirá um acordo.

— Por que tem tanta certeza?

— Porque tenho, madame, não se preocupe. Precisei de anos mordendo a língua, bancando o subserviente, mas muito em breve... vai ver só! Quando lhe falei sobre o meu encontro com os Brocks... ela se pôs a me fazer perguntas sobre eles, qual fora a reação de Tyler ao casamento e morte de seu filho, e nem uma única vez usou o termo “pai”. Contei a ela, com toda franqueza, que os dois haviam rido de seu casamento naval, por ter ido contra os desejos dela, e que o velho Brock declarara: “É uma boa lição para aquela vaca, por ter agido contra a minha vontade!” Disse que os dois se mostraram exultantes pela morte de Malcolm, Morgan dizendo que agora que eles não têm tai-pan e quando chegar 1o de fevereiro, Tess sairá do Jóquei Clube, ficará arruinada em Hong Kong, com Tyler acrescentando e eu serei O Tai-pan, o nariz de Dirk ficará na merda e a Casa Nobre e seu nome serão esquecidos para sempre!

— Disse isso a ela? — indagou Angelique, aturdida.

— Disse, madame, mas apenas repeti o que Tyler falou... e juro que falou isso mesmo. E ele é o meio de levá-la à loucura, por isso que deveria relatar acuradamente. Quando o fiz, madame, a cabeça dela tremia tanto que os olhos tinham dificuldade em acompanhar e pensei que a Medusa ia voltar. Mas não voltou, não desta vez. O fogo do ódio foi contido desta vez, mas não desapareceu, madame de jeito nenhum. Só que ela o reprimiu, manteve-o lá no fundo, mas mesmo assim tenho certeza... desculpe, estou especulando. Não é próprio para uma mulher sentir tanto ódio assim, mas depois de conhecer Tyler e Morgan, é fácil compreender de onde veio.

Gornt pensou por um instante.

— Depois que ela esfriou um pouco, contei a ela que Tyler acabara concordando com a sugestão de Morgan de que eu deveria voltar para cá como gerente, em experiência pelo prazo de um ano, com uma porção de ameaças sinistras por um eventual fracasso. Ela perguntou meu salário e disse: “Excelente. Em público, seremos inimigos, mas secretamente seremos aliados e, se a Brock and Sons naufragar para sempre, o que peço a Deus que aconteça, a sua Rothwell-Gornt tomará o lugar.” Isso é tudo, Angelique, exceto que ela resolveu mandar Hoag de volta para cá, e estava lhe escrevendo uma carta.

Ele tomou um gole do bourbon, o gosto se tornando suave.

— Não perguntei o que a carta continha, e não fiz outra defesa sua, além de continuar a dizer, de vários modos, que se meu plano ajudasse a destruir os Brocks, ela teria de agradecer a você também. O que havia na carta?

Angelique entregou-lhe a carta.

— Um monte de esterco com os fardos de algodão — comentou Gornt, devolvendo-a. — É a primeira posição de barganha de Tess Struan... e deixa evidente que cumpri minha parte do acordo: ela está convencida de que deve lhe agradecer também. Você vai ganhar.

— Ganhar o quê? Não haverá uma ação judicial?

— Isso e mais um estipêndio. Ela admite que tem uma dívida com você.

— Pode ser, mas não há mais nada, só ameaças.

— Temos alguns trunfos?

— Quais?

Eles ouviram vozes lá fora.

— O tempo, entre outros, Angelique. Esta noite a convidarei para um jantar informal. Poderemos conversar em segurança e...

— Não no prédio da Brock, nem a sós — apressou-se em dizer Angelique. — Devemos ter cuidado. Por favor, convide também Dmitri e Marlowe. Precisamos ter muito cuidado, Edward, devemos simular que não somos muito ligados... pois isso deixaria aquela mulher desconfiada; seria inevitável que ela soubesse, já que Albert está totalmente do seu lado. Se não for possível conversarmos esta noite, darei uma volta pelo passeio amanhã, às dez horas, e poderemos continuar...

A fim de prevenir o abraço, que sentira iminente, Angelique beijou-o de leve no rosto, e estendeu-lhe a mão, agradecendo, efusiva.

Quando ficou sozinha de novo, na privacidade de seu boudoir, ela deixou a mente vaguear. Que trunfos? Que ases? E por que o sorriso estranho? E o que ele acertara de fato com Tess? É verdade, a julgar pela carta, que ele a convenceu da minha ajuda e isso é importante. Ou será apenas estou sendo desconfiada demais? Se ao menos eu estivesse presente na ocasião...

E, depois, o estou-ou-não-estou dominou-a, deixando agoniada. Num momento assim, assustada, ela mencionara a questão a Babcott, que respondera.

— Seja paciente e não se preocupe.

Por um instante, ela especulou se Babcott e Phillip Tyrer voltariam de Iedo, escapando das teias do inimigo, em que haviam se metido de bom grado, enviados por Sir William.

Os homens com sua estupidez de paciência, falsidade e prioridades erradas... o que eles sabem?

 

No castelo, em Iedo, Yoshi sentia-se ansioso e irritado. Era o meio da manhã, ele se encontrava em seus aposentos, e ainda não tinha qualquer notícia sobre o exame do tairo pelo doutor gai-jin. Ao chegar a Iedo, de volta de Kanagawa, no dia anterior instalara Babcott e Tyrer num dos palácios de daimio fora dos muros do castelo escolhido com o maior cuidado, guarnecido e cercado por guardas de confiança com segurança adicional, e logo em seguida convidara Anjo para o exame.

O tairo chegara num palanquim fechado e anônimo, protegido por sua própria guarda; afinal, a tentativa de assassiná-lo ocorrera a poucos mais de cem metros dali. Isso e mais o ataque em massa dos shishi ao xógum Nobusada e os vários atentados contra Yoshi haviam aumentado a preocupação e necessidades de segurança dos anciãos.

Yoshi, com Babcott e Phillip Tyrer ao seu lado, recebera o palanquim clandestino no pátio. Fizeram uma reverência, a de Yoshi a mais profunda, rindo por dentro, enquanto Anjo, com uma dor evidente, era ajudado a saltar.

— Tairo, este é o doutor gai-jin, B’bc’tt, e o intérprete, Firrup Tiara. Anjo ficara boquiaberto ao olhar para Babcott.

— Ei, o homem é mesmo grande como uma árvore! Grande demais, parece um monstro! Seu pênis terá a mesma proporção? — Depois, ele fitara Phillip Tyrer e rira. — Cabelos de palha, cara de macaco, olhos azuis de porco e um nome japonês... é um dos seus nomes de família, Yoshi-dono, neh?

— O nome tem quase o mesmo som — respondera Yoshi, bruscamente e depois acrescentara para Tyrer: — Quando o exame acabar, mande esses dois homens ao meu encontro.

Ele apontara para Misamoto, o pescador, seu espião e falso samurai, e o constante guarda de Misamoto, o samurai que tinha a ordem para nunca deixá-lo a sós com qualquer gai-jin.

— Anjo-dono, creio que sua saúde está em boas mãos.

— Obrigado por arranjar este encontro. O doutor será enviado a você quando me aprouver, não há necessidade de deixar estes homens aqui, nem qualquer de seus homens...

Isso acontecera ontem. Yoshi se preocupara durante toda a noite e pelo início da manhã. Seus aposentos haviam mudado. Eram agora mais austeros. Todos os vestígios de Koiko foram removidos. Dois guardas postavam-se atrás dele e dois na porta. Irritado, Yoshi afastou-se da mesa de escrever, foi até a janela, inclinou-se para fora. Podia avistar o palácio do daimio lá embaixo, no círculo interior. Os homens do tairo montavam guarda ali. Nenhum outro sinal de atividade. Acima dos telhados de Iedo dava para ver o oceano e as trilhas de fumaça de navios mercantes e um navio de guerra, a caminho de Iedo.

O que eles transportam?, especulou Yoshi. Armas? Soldados e canhões? Que insídia os gai-jin planejam?

A fim de controlar os nervos, ele voltou a sentar à mesa, e continuou a praticar caligrafia. Em circunstâncias normais, o exercício o tranquilizava. Hoje, porém, não lhe proporcionou qualquer paz. Os traços refinados de Koiko continuavam a se formar no papel e ele não conseguia, por mais que tentasse, impedir que o rosto dela aflorasse em sua mente.

— Baka! — exclamou ele, fazendo um traço errado, arruinando uma hora de trabalho.

Jogou o pincel longe, esparramando tinta no tatame. Os guardas se remexeram, apreensivos, e Yoshi censurou-se pelo lapso. Deve controlar sua memória. De qualquer maneira.

Koiko o assediava desde aquele dia sinistro. A delicadeza de seu pescoço, mal sentindo o golpe, depois se afastando apressado, sem acender sua pira fúnebre, as noites piores que os dias. Solitário ao deitar, com frio, mas sem o desejo do corpo de uma mulher, ou de socorro, todas as ilusões perdidas. Depois da traição de Koiko, permitindo o acesso a seus aposentos da mulher-dragão Sumomo... nenhuma desculpa era aceitável para isso, absolutamente nenhuma, ele disse a si mesmo de novo, absolutamente nenhuma. Ela devia saber sobre Sumomo. Não há desculpa, não há perdão, nem mesmo o seu sacrifício, como ele acreditava agora, de se adiantar para receber o shuriken que o teria abatido. Nunca mais poderia confiar em nenhuma mulher. Exceto sua esposa, talvez, e a consorte, talvez. Não mandara chamar nenhuma das duas, apenas escrevera, dizendo-lhes que esperassem e guardassem seus filhos, mantendo o castelo são e salvo.

Yoshi não sentia nenhuma alegria genuína, nem mesmo por sua vitória sobre os gai-jin, embora tivesse certeza de que fora um magnífico passo à frente e também que os anciãos ficariam extasiados, quando lhes contasse. Até mesmo Anjo. Será que aquele cão está mesmo muito doente? Espero que sim e que seja uma doença fatal. O gigante fará sua magia, conseguirá curá-lo? Ou devemos acreditar naquele doutor chinês, o que Inejin garantiu que nunca erra, e que sussurrou uma morte em breve?

Não importa. Anjo, doente ou não, vai me escutar mais agora, os outros tombem escutarão, e concordarão com minhas propostas. Por que não? Os gai-jin foram contidos, agora não há mais ameaça da esquadra e podemos considerar que Sanjiro será destruído pelos gai-jin; Ogama continuará em Quioto, satisfeito. O xógum Nobusada receberá a ordem de retornar a Iedo, que é o lugar a que ele pertence, depois que explicasse o papel que o menino deveria desempenhar no grande plano. E não apenas voltará, mas também voltará sozinho, deixando a esposa hostil, a princesa Yazu, para “segui-lo em poucos dias”, o que jamais aconteceria, se Yoshi pudesse prevalecer. Não havia necessidade de revelar o que pretendia fazer aos outros. Só a Ogama.

E o próprio Ogama não saberia de tudo, apenas a parte para manipular a princesa e levá-la ao divórcio, por “solicitação” imperial. Ogama cuidaria para que ela não interferisse, até que fosse neutralizada em caráter permanente, contente em viver para sempre nas areias movediças palacianas, de competições de poesia, misticismo e outros cerimoniais temporais. E teria um novo marido. Ogama.

Não, não Ogama, pensou, cínico e divertido, embora eu vá propor a união. Não, um outro, alguém com quem ela se contente... o príncipe a quem foi outrora prometida e a quem ainda adora. Ogama será um excelente aliado. Sob muitos aspectos. Até seguir para o outro mundo.

Enquanto isso, não há necessidade de partilhar uma verdade imortal que descobri sobre os gai-jin... nem com Ogama, nem com Anjo, nem com qualquer outro: Os gai-jin não compreendem o tempo como nós, não consideram ou pensam sobre o tempo como nós. Pensam que o tempo é finito. O que não acontece conosco. Preocupam-se com o tempo, minutos, horas, dias... os meses são importantes para eles, os prazos exatos são sagrados. Sua versão do tempo os controla. Portanto, esse é o instrumento que podemos usar para derrotá-los.

Ele sorriu para si mesmo, adorando segredos, sonhando com mil maneiras de usar o tempo dos gai-jin contra o tempo real para dominá-los, e também o futuro, por intermédio deles. Paciência, paciência, paciência.

Enquanto isso, ainda tenho os nossos portões, embora os homens de Ogama controlem meus homens que guardam os portões. Isso não importa. Muito em breve os possuiremos por completo e prevaleceremos sobre o filho do céu. Viverei para testemunhar isso? Se viver, testemunharei; se não viver, não testemunharei. Karma.

A risada de Koiko provocou um calafrio por sua espinha. Ah, Tora-chan, você e o karma! Surpreso, Yoshi olhou ao redor. Não era ela. A risada vinha do corredor, misturada com vozes.

— Sire?

— Entre — disse ele, reconhecendo Abeh.

Abeh entrou, deixando os outros lá fora. Os guardas relaxaram. Abeh era acompanhado por uma das criadas, uma mulher jovial, de meia-idade, carregando uma bandeja, com chá fresco. Ambos se ajoelharam, fizeram uma reverência.

— Ponha a bandeja na mesa — ordenou Yoshi.

A criada obedeceu, sorrindo. Abeh continuou ajoelhado, perto da porta. Eram as novas ordens: ninguém podia se aproximar a menos de dois metros sem permissão.

— Do que estava rindo?

Para surpresa de Yoshi, ela disse, efusiva:

— Do gigante gai-jin, Sire. Eu o vi no pátio, pensei que era um kami — dois na verdade, Sire, o outro de cabelos amarelos e olhos azuis de um gato siamês. E tive de rir, Sire. Imagine só, olhos azuis! O chá é desta estação, como ordenou. Gostaria de alguma coisa para comer, por favor?

— Mais tarde. — Yoshi dispensou-a, sentindo-se mais calmo agora, a natuza jovial da mulher contagiosa. — Abeh, eles se encontram no pátio? O que aconteceu?

— Por favor, Sire, perdoe-me, mas não sei — respondeu Abeh, ainda furioso porque Anjo ordenara a retirada de todos no dia anterior. — O capitão da guarda do tairo me procurou há um momento e ordenou... ordenou a mim... que os conduzisse de volta a Kanagawa. O que devo fazer, Sire? Vai querer falar com eles antes, tenho certeza.

— Onde está o tairo Anjo agora?

— Só sei que os dois gai-jin devem ser levados de volta a Kanagawa, Sire. Perguntei ao capitão como fora o exame e ele retrucou, insolente, “que exame?”, afastando-se em seguida.

— Traga os gai-jin aqui.

Pouco depois, soaram passos pesados no corredor, passos estranhos. Uma batida na porta.

— Os gai-jin, Sire.

Abeh deu um passo para o lado, gesticulou para que Babcott e Tyrer se adiantassem, ajoelhassem, e fizessem uma reverência. Só que eles fizeram a reverência de pé, ambos com a barba por fazer, visivelmente exaustos. No mesmo instante, um dos guardas, enfurecido, deu um empurrão em Tyrer, que se estatelou no chão. O outro guarda tentou fazer a mesma coisa com Babcott, mas o doutor, com uma rapidez surpreendente para alguém tão grande, agarrou-o pela roupa, perto da garganta, só com uma das mãos, e suspendeu-o, empurrando-o de costas para a parede de pedra. Por um segundo, ele manteve o homem inconsciente ali, depois arriou-o até o chão, com todo cuidado. No silêncio chocado, Babcott disse, descontraído:

— Gomen nasai, Yoshi-sama, mas esses idiotas não deveriam empurrar os visitantes. Phillip, traduza isso, por favor, e diga que não o matei, mas o patife mal-educado ficará com uma tremenda dor de cabeça por uma semana.

Os outros samurais saíram de seu transe, estenderam as mãos para as espadas.

— Parem! — ordenou Yoshi, furioso com os gai-jin e furioso com os guardas. Todos ficaram imóveis. Atordoado, Phillip levantou-se, ignorou o guarda inerte, e disse, em seu japonês exótico e hesitante:

— Por favor, desculpar, Yoshi-sama, mas doutor-sama e eu fazer reverência, O costume estrangeiro. Polido, sim? Não má intenção. Doutor-sama diz por favor, desculpe, homem não morto, apenas... — Ele procurou a palavra correta, não a encontrou, apontou para sua cabeça. — Dor, uma semana, duas. Yoshi riu. A tensão se dissipou.

— Levem-no. Quando ele acordar, tragam-no de volta.

Ele acenou para que os outros voltassem a seus lugares, gesticulou para que os ingleses sentassem à sua frente. Depois que eles se acomodaram, meio desajeitados, Yoshi perguntou:

— Como está o tairo? Como foi o exame?

Babcott e Phillip responderam com gestos e palavras simples, que haviam combinado de antemão, explicando que o exame correra bem, o tairo tinha uma hérnia — uma ruptura —, que Babcott poderia ajudar a aliviar a dor com um funda e um medicamento, que teria de ser feito e trazido da colônia, e que o tairo concordara em que ele voltasse uma semana depois, para ajustar a funda, e trazer os resultados dos testes. Enquanto isso, o tairo recebera um medicamento que acabaria com quase toda a dor e o ajudaria a dormir. Yoshi franziu o rosto.

— Essa “hérnia” é permanente?

— Doutor-sama diz que...

— Sei que o doutor fala por seu intermédio, Taira — disse Yoshi, ríspido insatisfeito com o que acabara de ouvir. — Apenas traduza suas palavras, sem títulos cerimoniais!

— Sim, Sire. Ele dizer dano ser permanente. Tairo Anjo precisar... precisar sempre medicamento para dor, sinto muito, todo dia, e também usar todo dia essa “funda”. — Tyrer usou a palavra inglesa e com as mãos explicou a cinta e o ponto de pressão. — Doutor acha tairo-san ter se cuidar. Não poder... não pode lutar espada.

Yoshi amarrou a cara, pois os resultados não eram muito animadores.

— Quanto tempo... — Ele parou, acenou para que os guardas saíssem. — Esperem lá fora.

Abeh ficou.

— Você também.

Relutante, o capitão saiu, fechou a porta. Yoshi disse:

— A verdade. Quanto tempo ele viverá?

— Só Deus sabe.

— Ah, deuses! Quanto tempo doutor acha que tairo viverá?

Babcott hesitou. Esperava que o tairo lhe ordenasse que nada dissesse a Yoshi, mas depois que falara da hérnia e medicamento, dera um pouco de sua tintura de láudano, que aliviara a dor quase que no mesmo instante, o tairo rira e o encorajara a relatar a “boa notícia”. Mas a hérnia era apenas parte do problema.

Seu diagnóstico completo, que não revelara a Anjo, nem a Phillip Tyrer, querendo reservar o julgamento até efetuar uma análise das amostras de urina e fezes, consultar Sir William e fazer um segundo exame, era o de que receava que podia haver uma perigosa deterioração dos intestinos, de causas desconhecidas.

O exame físico só levara cerca de uma hora, a sondagem verbal se prolongara por várias horas. Aos quarenta e seis anos, Anjo se encontrava em péssimas condições. Dentes podres, que com certeza provocariam uma septicemia, mais cedo ou mais tarde. Reações negativas à pressão no estômago e outros órgãos, óbvias constrições interiores, próstata muito inchada.

O maior problema do diagnóstico era decorrente da falta de fluência sua e de Phillip, pois o homem se mostrara impaciente, ainda não confiava nele e não queria falar sobre os sintomas. Fora preciso um interrogatório diligente para que ele pudesse determinar as prováveis dificuldades experimentadas pelo paciente nos movimentos intestinais, passagem da urina e incapacidade de manter ereções — o que parecia preocupá-lo acima de qualquer outra coisa — embora Anjo tivesse dado de ombros e não admitisse expressamente nenhum desses sintomas.

— Phillip, diga a lorde Yoshi que acho que o tairo viverá mais ou menos a média para um homem em sua condição, com a mesma idade.

A dor de cabeça de Tyrer voltara, agravada por sua ansiedade em realizar um bom trabalho.

— Ele viver mais ou menos mesma coisa um homem mesma idade. Yoshi pensou a respeito, compreendendo as dificuldades de sondar questões delicadas numa língua estrangeira, com uma interpretação inadequada. Por isso, devia manter as perguntas bem simples.

— Pergunte: dois anos, três anos, um ano? Ele observava Babcott atentamente, não Tyrer.

— Difícil dizer, lorde. Em uma semana talvez saber melhor.

— Mas agora? A verdade. Um, dois ou três, o que acha?

Babcott compreendera, antes de deixar Kanagawa, que sua função ali não era apenas como médico. Sir William dissera:

— Falando francamente, meu caro, se o paciente for mesmo Anjo, você também é um importante representante do governo de sua majestade, meu, da colônia, e ainda um espião... portanto, George, por favor, não desperdice essa oportunidade de ouro...

Por si mesmo, ele era primeiro e acima de tudo um médico. Com o sigilo médico-paciente. Não restava a menor dúvida de que Yoshi era inimigo do paciente, um poderoso inimigo, mas também, em potencial, um poderoso amigo do governo de sua majestade. Pondo os dois na balança, Yoshi era mais importante, a longo prazo. Anjo emitira o ultimato para evacuar Iocoama, era o chefe do Bakufu, e com toda certeza morreria antes de Yoshi, a menos que o segundo tivesse um fim violento. Se forçado, o que você responderia?, ele perguntou a si mesmo. Dentro de um ano. Em vez disso, porém, respondeu:

— Um, dois ou três, Yoshi-sama? Verdade, sinto muito, não saber agora.

— Poderia ser mais?

— Sinto muito, não possível dizer agora.

— Poderá dizer na próxima semana?

— Talvez poder dizer próxima semana não mais três anos.

— Talvez saiba mais do que diz, agora ou na próxima semana.

Babcott sorriu com a boca apenas.

— Phillip, diga a ele, polidamente, que estou aqui a seu convite, um hóspede. Como médico, não mágico, e não preciso voltar na próxima semana, nem em qualquer outra.

— Mas que droga, George! — murmurou Tyrer. — Não queremos encrenca.

Não sei como traduzir esse “mágico” e não tenho como explicar tais nuanças Pelo amor de Deus, encontre uma resposta mais simples.

— O que você disse, Taira? — indagou Yoshi, ríspido.

— Oh, Sire... difícil traduzir palavras altos líderes quando... quando ter muitos significados, e não saber menor palavra... melhor palavra, por favor, desculpar

— Deveria estudar mais — disse Yoshi, irritado por não estar com seu próprio intérprete. — Faz um bom trabalho, mas não o suficiente, deve estar mais É importante que saiba mais. Agora, o que ele disse, exatamente?

Tyrer respirou fundo, suando.

— Ele dizer ser doutor, não como deus, Yoshi-sama, não saber exato sobre tairo. Ele... ele aqui convite Yoshi. Sinto muito, se não quiser vir Iedo, doutor-sama não vir Iedo.

Ele morreu um pouco, ao ver Yoshi sorrir da mesma maneira insincera de Babcott. Não havia como se enganar quanto ao significado daquele sorriso; Tyrer amaldiçoou o dia em que decidira se tornar um intérprete.

— Sinto muito.

— So ka!

Sombrio, Yoshi avaliou seu movimento seguinte. O doutor provara ser útil, embora estivesse lhe escondendo fatos. Se assim fosse, podia deduzir que os fatos concretos eram ruins, não bons. E esse pensamento agradou-o. Um segundo pensamento também o agradou. Baseava-se numa idéia sugerida por Misamoto, sem saber, meses atrás. Yoshi no mesmo instante iniciara a prática, através do seu chefe de espionagem, Inejin, para uso futuro: um meio de controlar os bárbaros era através de suas prostitutas.

Inejin fora diligente, como sempre. Assim, Yoshi sabia agora muita coisa sobre a Yoshiwara dos gai-jin, quais eram as estalagens mais populares, sobre Raiko e a prostituta daquele jovem esquisito e tão feio, Taira, a velha de muitos nomes agora chamada Fujiko. E sobre a estranha prostituta de Furansu-san. O líder gai-jin, Sur Wrum, não tinha nenhuma prostituta especial. Serata usava duas, esporadicamente. Nemi era chamada de a consorte do chefe mercador gai-jin e uma boa fonte de informações. O doutor não visitava a Yoshiwara. Por quê? Meikin vai descobrir...

Ah, sim, Meikin, a traidora, você não está esquecida!

— Diga ao doutor que aguardo ansioso a sua visita na próxima semana — disse ele, incisivo. — E agradeça a ele. Abeh!

Abeh entrou na sala, ajoelhou-se.

— Escolte-os até Kanagawa. Não, leve-os pessoalmente até o líder gai-jin, em Iocoama, e traga de volta o renegado Hiraga.

 

— Olá, Jamie! Está na hora do almoço! Ontem à noite você disse para vir chamá-lo a uma hora! — Maureen sorriu da porta, de touca, vestida com elegância, as faces coradas pela caminhada apressada desde o prédio da Struan. — Uma hora, você disse, para o almoço no seu clube.

— Já estou indo, menina — disse ele, distraído, concluindo a carta para seu banqueiro em Edimburgo, sobre o empreendimento conjunto com o shoya, e anexando a ordem de pagamento de Tess Struan para depósito. Tenho de falar de alguma forma com Nakama-Hiraga, assim que ele for encontrado. Onde será que se meteu? Espero que não tenha fugido, como todos pensam. — Sente-se. Albert vai com a gente.

Ele estava tão absorvido que não percebeu o desapontamento de Maureen. O novo escritório ficava no prédio do Guardian, perto da cidade dos bêbados, na High Street. Era muito menor do que o escritório anterior, no prédio da Struan, mas tinha uma vista agradável da baía, o que era importante, permitindo que o mercador observasse as chegadas e partidas dos navios. Não mobiliado, exceto por uma escrivaninha e três cadeiras, meia dúzia de arquivos. Pilhas de livros e caixas, maços de papel em branco, penas e cadernos de contabilidade, que tomara emprestado até que chegasse sua encomenda de Hong Kong, espalhavam-se por toda parte. Na mesa, havia mais papéis, cartas, pedidos e uma circular, anunciando o lançamento de sua nova companhia e pedindo negócios. Tudo tinha de ficar pronto para a partida do Prancing Cloud.

— Dormiu bem, Jamie?

Ele fechou a carta, mal ouvindo-a.

— Dormi, sim, obrigado. E você?

Jamie pegou outra pilha de correspondência. As cartas haviam sido copiadas por dois escriturários portugueses que ocupavam uma sala no final do corredor, ao lado da oficina gráfica. Os escriturários foram emprestados por MacStruan, até que ele pudesse ter empregados permanentes.

— Albert é um bom sujeito, não acha? — murmurou ele, distraído. — Eu disse que poderíamos nos atrasar um pouco.

Se dependesse dele, não iria ao clube, apenas pediria a um dos escriturários que lhe fizesse um sanduíche ou encomendasse um pouco da comida chinesa que os dois mandavam vir todos os dias da cidade dos bêbados. Meia hora depois, Jamie largou a pena e disse, jovial:

— Vamos?

— Hum, hum...

— Qual é o problema?

— É que eu esperava que pudéssemos almoçar a sós, pois temos muito o que conversar... obviamente, não houve tempo ontem à noite. Foi uma bela festa, não é?

— Foi, sim. Os dançarinos cossacos eram espetaculares. E teremos muito tempo para conversar. Desculpe, mas achei que não era importante.

— Angelique também foi espetacular, assim como muitos de seus amigos, entre os quais Marlowe e Pallidar!

Maureen riu, descontraída. Aliviado, ele baixou a guarda, pegou o chapéu e o casaco, abriu a porta.

— Fico contente que tenha gostado.

— Você saiu ontem à noite, depois que nos despedimos.

Jamie tornou a levantar a guarda, baixo demais para evitar o rubor de culpa

— Ahn... é verdade.

— Bati na sua porta, mas não houve resposta... queria apenas conversar, não me sentia cansada. Você disse que estava cansado.

— E estava mesmo, mas depois o cansaço desapareceu. Vamos embora?

— Claro. Estou com fome.

Saíram para o passeio. Não havia muitas pessoas ali. O dia não era dos melhores, o mar encapelado, o vento forte.

— Não é tão ruim quanto Glasgow nesta época do ano — comentou Maureen alegre, passando o braço pelo dele.

— Tem razão. O frio não vai durar. Muito em breve chegará uma das melhores épocas do ano. A primavera e o outono são maravilhosos aqui.

Ele respirava melhor, agora que o assunto ficara para trás. Mas Maureen indagou, sempre jovial:

— Você foi à Yoshiwara?

Um alfinete de gelo saltou de seus testículos para o coração e voltou. Mil respostas afloraram, a melhor das quais era: se eu quiser ir à Yoshiwara, por Deus, irei quando me aprouver. Não somos casados e mesmo que eu fosse... e lhe diria que não queria casar, pelo menos ainda não, não agora que o novo negócio tem possibilidades. Confiante, Jamie abriu a boca para dizer tudo isso, mas por alguma razão a voz saiu estrangulada e hesitante:

— Eu... hum... fui, sim, mas...

— Divertiu-se?

— Escute, Maureen, há algumas coisas...

— Já sei sobre a Yoshiwara, meu caro, e sobre os homens — disse ela, gentilmente. — Divertiu-se?

Jamie parou, abalado pela voz gentil e o comportamento afável:

— Hum... acho que sim... mas deve compreender, Mau...

— Faz frio demais para a gente parar, Jamie. — Ela tornou a pegar o braço dele, forçou-o a continuar a andar. — Muito bem, você se divertiu. Por que não me contou? E por que inventar a mentira de que se sentia cansado?

— Porque... — Outra vez uma dúzia de respostas, mas sua boca emitiu apenas: — Porque é óbvio. Eu não queria...

Jamie não podia dizer: Eu não queria magoá-la, porque tinha um encontro marcado, queria me encontrar com Nemi, mas ao mesmo tempo não queria, também não queria que você soubesse dela, e a verdade é que me senti horrível.

Quando entrara na pequena casa, encontrara Nemi vestindo o seu melhor quimono de dormir, o santuário dos dois impecável, comidas e saquê à espera, ela rindo e feliz, muito atenciosa.

— Ei, Jamie-san, bom ver você! Ouvir boa notícia do barco. Você casar dama da Scut’rand, hem?

Ele ficara Atônito pela rapidez com que a notícia circulara.

— Como soube?

— Toda Yoshiwara saber! Importante, neh? — Nemi se mostrava esfuziante. Dois dias eu ir Casa Grande conhecer breve oku-san.

— HEM?

— Importante, Jami-san. Quando casamento? Importante, para oku-san, nee goh-san amiga, neh?

— Você ficou doida? — explodira ele.

Nemi não entendera.

— Doida, Jami-san? Oku-san pagar agora. Oku-san pagar, Jami-san, Iyé? Importante oku-san nee...

— Não é assim que as coisas são feitas, pelo amor de Deus!

— Não compreender... importante Nemi ir oku-san...

— Você está doida!

— Não compreender...

Ela se mostrara assustada com a atitude belicosa de Jamie e concluíra que a fuga era a melhor defesa para aquele comportamento incrível... mas a fuga em lágrimas, é claro.

Nemi saíra antes que ele pudesse detê-la, a mama-san não conseguira convencê-la a voltar e por isso, furioso, ele fora para casa e quase não dormira. Deus Todo-Poderoso, Nemi indo ao prédio da Struan para se encontrar com Maureen? E Maureen pagando a Nemi no futuro? Importante amante e esposa serem boas amigas? Deus do céu! Devo ter entendido mal.

Não, seu idiota, não entendeu errado. Foi isso mesmo o que ela disse.

Acabara indo para o escritório. Antes do amanhecer. Pensara no caso durante toda a manhã e descobria agora que tinha duas mulheres para enfrentar.

— Escute, Maureen, desculpe ter mentido — balbuciou ele. — Mas... não sei o que mais dizer.

— Não se preocupe, pois essas coisas acontecem.

Maureen sorriu.

— Hem? Não está aporrinha... desculpe, não está zangada?

— Não, meu caro, não desta vez... não até termos uma conversinha.

Não havia ameaça na voz ou atitude de Maureen, pelo menos que ele pudesse perceber, e ela continuava a segurar seu braço com a maior ternura; mesmo assim, todo o seu ser interior bradava perigo, pelo amor de Deus, controle a língua, não diga nada.

— Conversinha? — ele se ouviu indagar.

— Isso mesmo.

Houve um silêncio ensurdecedor, apesar do barulho do vento nos telhados e calhas, os sinos de igreja, os apitos dos navios no porto, os cachorros latindo. Controle a língua, dois podem entrar nessa negociação, Jamie advertiu a si mesmo.

— E o que isso significa?

Maureen tateava o caminho com cuidado, gostando do aprendizado — e do ensinamento — do processo. Era apenas a primeira de uma sucessão intermináve1 de confrontações.

— Todos os homens são horríveis, Maureen — declarara sua mãe, em outros conselhos. — Alguns são piores do que outros, mas todos são mentirosos embora uma esposa esperta sempre seja capaz de perceber as mentiras de seu homem. No começo, os maridos são doces, deixam a mulher nas nuvens, com seu amor e carinhos, pequenas gentilezas. No começo. Depois chegam as crianças é preciso cuidar da casa, a maioria sempre sem dinheiro suficiente. A esta altura você se sente propensa a se largar, nas roupas, nos cabelos, na sua pessoa. É muito difícil, com as crianças, a falta de sono, um cansaço mortal. Não demora muito para que seu homem vire as costas na cama, desate a roncar... o que não é tão incômodo assim, se você aprende a fechar os ouvidos. E depois eles passam a procurar outras mulheres... mas não se preocupe, é uma coisa temporária, não dura muito, e se você for uma esposa esperta, o homem sempre volta, pois você sempre tem as crianças e tem Deus. Lembre-se de que não é fácil ganhar o pão de cada dia, como ele deve se lembrar também que não é fácil criar as crianças e manter a casa em ordem. Só que eles nunca se lembram disso. Seu pai não foi diferente, com suas mulheres ou mulher na índia, mas ele está em casa agora, e seu problema é outro. Eu já deveria saber que ele era casado com o regimento quando casamos. Pelo menos esse Jamie não é do exército, pois é muito difícil para uma esposa competir contra isso.

— Como a gente pode se tornar uma esposa esperta, mamãe?

— Eu bem que gostaria de saber, menina, juro que gostaria. Mas algumas regras são certas: escolha o seu homem com esperteza, pôr um freio na língua sempre ajuda, um bom cabo de vassoura e um acesso de raiva no momento certo também ajudam, muita compreensão e perdão durante todo o tempo, e um peito quente para o pobre coitado chorar...

— Conversinha? — repetiu Jamie, a voz sufocada.

Maureen quase riu. Manteve o sorriso e a atitude de quem perdoava, mas o cabo de vassoura e o temperamento de prontidão.

— Soube da Yoshiwara no barco.

Ela deixou a informação em suspenso e Jamie se apressou em abocanhar a isca.

— Gornt lhe contou? Ou Hoag? Foi ele? Mas que idiota!

— Não, foi o seu bom capitão Strongbow... e o Dr. Hoag não é nenhum idiota, rapaz. Perguntei a Strongbow como vocês todos faziam para não enlouquecer sem amigas, se a mesma coisa acontecia na índia e na China. — Maureen riu, recordando como fora difícil persuadi-lo a falar com franqueza. O uísque é maravilhoso, pensou ela, abençoando o pai por ensiná-la a beber, quando necessário. — Acho que a Yoshiwara de vocês é uma coisa muito sensata.

Ele já iadizer “é mesmo?”, mas desta vez, no entanto, ficou calado. O silêncio de Maureen o torturava. Quando concluiu que chegara o momento, ela disse:

— Amanhã é domingo.

Jamie fitou atordoado, despreparado para aquele non sequitur.

— É, sim... acho que amanhã é domingo. Por quê?

— Pensei que poderíamos procurar o reverendo Tweet esta tarde. Espero que não seja um homem tão tolo quanto seu nome. Devemos lhe pedir para publicar os proclamas.

Jamie piscou, mais aturdido do que nunca.

— O quê?

— Os proclamas, Jamie. — Ela riu. — Não esqueceu que os proclamas devem ser lidos por três domingos consecutivos, não é?

— Não, mas já lhe disse que escrevi para...

— Isso foi quando eu estava lá. Acontece que não estou mais lá e, sim, aqui, e amo você.

Maureen parou, fitou-o, viu que ele era maravilhoso, tudo o que desejava na vida, e de repente todo o seu controle se foi com o vento.

— Jamie, querido, estamos noivos e creio que devemos casar, porque serei a melhor esposa que um homem já teve, prometo, prometo e prometo, não apenas porque estou aqui, amei você desde o primeiro momento e agora é o melhor momento para casar, tenho certeza, mas voltarei, voltarei para a Escócia, e nunca... se quiser que eu volte, voltarei, pelo próximo barco, mas eu amo você, Jamie. Juro que partirei, se você quiser.

As lágrimas afloraram a seus olhos e ela removeu-as.

— Desculpe, é apenas o vento, rapaz. — Mas não era o vento, toda a astúcia se desvanecera, seu espírito aberto, para que ele visse. — Acontece apenas que eu amo você, Jamie...

Os braços de Jamie a enlaçaram, ela comprimiu a cabeça contra seu ombro, sentindo-se mais angustiada do que em qualquer outro momento de sua vida, desesperada pelo amor daquele homem, as lágrimas escorrendo.

Depois que o terror amainou, contido pelo carinho de Jamie, ela ouviu-o dizer palavras bonitas, misturadas com o barulho do vento e das ondas, que a amava, e a queria muito feliz, que não se preocupasse, não ficasse triste, mas aquela tarde seria cedo demais, e tinha muito trabalho a fazer pela companhia, seria bastante difícil começá-la e mantê-la viva.

— Não se preocupe com a nova companhia, Jamie, pois a Sra. Struan disse que...

Ela parou, horrorizada. Não tencionava lhe contar, mas era tarde demais agora, os braços de Jamie apertando e depois afastando-a

— Ela disse o quê?

— Não importa. Vamos...

— O que ela disse a você? O quê? — O rosto de Jamie era severo, os olhos penetrantes. — Disse que estava me mandando dinheiro?

— Não, não disse. Apenas falou que você era um bom mercador e seria bem-sucedido. Vamos logo comer. Estou famin...

— O que ela disse? Exatamente.

— Já expliquei. Vamos al...

— Conte-me o que ela falou. E diga a verdade, exatamente! Ela lhe falou sobre o dinheiro, não é?

— Não, não exatamente.

Maureen desviou os olhos, furiosa consigo mesma.

— A verdade! — Jamie segurou-a pelos ombros. — E agora!

— Está bem.— Ela respirou fundo e pôs-se a falar, com uma velocidade cada vez maior. — Foi assim que aconteceu, Jamie, exatamente assim. Quando fui ao prédio da Struan para perguntar onde você estava, se no Japão ou em outro lugar, mandaram-me esperar. E depois ela me chamou, a Sra. Struan, para aquela sala grande de onde se podia ver toda Hong Kong, mas uma mulher muito triste, embora com bastante força. Largue-me por um momento.

Maureen tornou a enxugar os olhos, assoou o nariz e, depois, sem saber o que fazer com as mãos, passou o braço pelo dele, e sua mão encontrou o caminho para o bolso do casaco de Jamie.

— Vamos andar, Jamie, é mais fácil falar andando. Faz muito frio. A Sra. Struan me convidou a sentar, disse que você fora dispensado. Perguntei por que e ela me contou. Protestei que não era justo, não era problema seu se o filho dela era um pequeno demônio, loucamente apaixonado por uma aventureira inaceitável chamada Angelique... não sei nada sobre aventureiras, Jamie, mas depois de ter visto Angelique posso compreender por que o filho dela ou qualquer outro homem se apaixonaria por uma mulher assim, e tendo conhecido a mãe, também compreendo por que havia ira entre eles...

Uma rajada de vento agitou seus chapéus, tiveram de segurá-los, e depois Maureen continuou:

— Nós... tivemos uma briga. Não se esqueça que isso foi dias antes de sabermos da morte do rapaz. Foi uma briga terrível, Jamie. Logo estávamos as duas de pé e receio ter perdido o controle. Você ficaria envergonhado de mim. Ainda por cima, usei algumas palavras horríveis de papai.

Ele parou, aturdido.

— Teve uma briga com Tess?

— Isso mesmo. Nunca, em toda a minha vida, tive uma briga tão terrível, nem mesmo com minhas irmãs e meu irmão, em segredo. Não me sentia muito corajosa, mas tamanha injustiça me deixou enfurecida, a coisa transbordou, e lhe dei... — a boa natureza e o senso de humor de Maureen voltaram e ela riu, nervosa. — Puxa, foi como uma briga de rua em Glasgow, duas peixeiras no mercado, dispostas a arrancar os cabelos uma da outra. Em determinado momento, algumas pessoas entraram, mas ela expulsou-as... Muito bem, miss Ross, disse ela, os lábios contraídos, finos como o gume de uma adaga escocesa, as duas ofegando, sem qualquer sinal de amizade, o que acha que devo fazer? Fazer?, repeti. Primeiro dê ao Sr. McFay uma boa gratificação de dispensa, pois ele a mereceu uma dúzia de vezes, ao longo de seus anos de serviços, e lhe dê negócios para começar seus negócios e também lhe escreva um bom bilhete.

— Você disse isso? A Tess?

— Disse, sim. — Ela viu e ouviu a incredulidade e tratou de dissipá-la no mesmo instante. — Juro que é essa a verdade de Deus, Jamie. Não ia lhe contar, mas você insistiu e eu não mentiria. Pelo Senhor Deus, juro que é a verdade!

— Eu sei. Desculpe. Por favor, continue.

— Não precisa se desculpar, pois eu mesma não acreditei na ocasião. Depois que eu disse o que tinha de dizer, sem a menor gentileza, a Sra. Struan riu e riu, e me disse para sentar. Muito bem, concordo, mas sem o bilhete. Não é suficiente, insisti. E perguntei qual era a compensação justa. Seu sorriso desapareceu e ela respondeu mil guinéus. Falou igualzinho ao pai quando está com raiva. É muito pouco. Dez mil.

Maureen parou de novo, fitou-o, inquisitiva.

— Tive de acertar em cinco. Foi certo? Eu não sabia se era suficiente. Acha que é?

— Você acertou? Você acertou em cinco mil?

— Foi preciso algum tempo e mais imprecações... naquela noite pedi perdão a Deus pelas imprecações, mas o fato é que usei mais palavras do pai. Espero que tenha sido um acordo justo, Jamie, junto com os negócios extras... e ela concordou que não faria nada contra você, seriam amigos nos negócios, considerei que isso era importante. Depois de concordar, ela arrematou, com seu sorriso gelado: Vá se encontrar com o seu Sr. McFay, com os meus cumprimentos.

Maureen olhou para as ondas por um momento, organizando os pensamentos. Outro dar de ombros, nervoso, e depois ela tornou a fitá-lo, com um ar ingênuo.

— Foi isso o que aconteceu, e o fiz por você, não por mim, nem por nós, só por você. Não tinha a intenção de mencionar.

— Jamie! Miss Ross!

Lunkchurch saiu de seu escritório, juntou-se a eles, antes que se dessem conta. Cumprimentou-os, efusivo, quase asfixiando Maureen com o cheiro de uísque, convidou-os para jantar naquela noite, e depois se afastou, cambaleando.

— Ele está sempre bêbado por volta das duas horas da tarde, mas é um bom sujeito — comentou Jamie. — Nem vai se lembrar do convite ou de nossa recusa.

Desta vez ele pegou a mão de Maureen, meteu-a no bolso de seu casaco, para esquentar, e segurou-a ali, enquanto continuavam a andar.

— Maureen, eu...

— Antes de dizer mais alguma coisa, deixe-me acabar. Não tencionava lhe contar o nosso encontro, mas escapuliu. Lamento profundamente, juro por Deus que não queria que você soubesse, é a verdade de Deus, não quando estamos conversando a sério sobre... sobre nós, você e eu. Por favor, acredite nisso, é a verdade de Deus.

— Acredito em você, não precisa se preocupar com isso. Tess me escreveu, cumpriu a palavra, mandou o dinheiro, mais do que já tive em toda a minha vida, O suficiente para começar, tudo graças a você.

Lágrimas de remorso começaram a escorrer.

— Não por minha causa, Jamie, você seria injustiçado, a Sra. Struan lhe devia isso... eu não queria contar, mas você insistiu. E tinha razão de se zangar, eu errei ao dizer esta tarde, por favor, perdoe-me, foi apenas... você tem razão, esta tarde é cedo demais, está certo, e eu errada por fazer tal sugestão. Podemos esperar Jamie, por favor? Podemos esperar, digamos uma ou duas semanas, um mês, para você verificar se gosta mesmo de mim? Por favor?

— Vai me escutar agora — disse Jamie, apertando-lhe a mão. — Gosto demais de você e não quero que vá embora; sim, vamos esperar um pouco; não não estou zangado; sim, acredito em você, agradeço de todo coração; não, você não estava errada ao fazer a sugestão. Vamos pensar a respeito e conversar durante o jantar, Sparkles, só eu e você, hem?

Antes de perceber o que fazia, Maureen inclinou-se, beijou-o em agradecimento, o uso do apelido um presságio alegre. As mãos tornaram a se encontrar, mergulharam no bolso.

— Você é lindo, Jamie, essa é a verdade, eu amo você e...

Maureen ia acrescentar que ele não precisava dizer isso, enquanto não estivesse pronto. Mas não o fez. Retirou-se desse precipício.

— Você é um bom rapaz.

— E você é uma boa menina.

Jamie sentia-se mais calmo agora em relação a ela, como não acontecia há anos, a ânsia e a culpa não mais prevalecendo. E o casamento?, ele perguntou a si mesmo, pela primeira vez sem estremecer. Claro que um homem deve casar e ter filhos, no momento correto. Não me oponho ao casamento, longe disso. Quando? Depois que os negócios estiverem assentados, os lucros entrando? Ela é sensacional, inteligente, atraente, boa família, paciente e fiel, e me ama, é incrível que tenha enfrentado Tess, feito o que fez, demonstrando como é esperta. Pode dar certo. Eu a amo? Gosto muito dela...

Tenho trinta e nove anos. Continuo em boa forma física, já deveria ter casado... há bastante tempo. Ela tem vinte e oito anos, também parece jovem para a sua idade, deve conhecer a própria mente, e não resta dúvida de que cintila.

Ontem à noite, Marlowe e Pallidar também notaram... até demais! Aquele desgraçado devasso do Settry não a deixava em paz, não que eu me importasse... bastava sacudir a cabeça e ela viria correndo para mim. Ele apertou o braço de Maureen, gostando disso.

— O que é?

— Nada. Estou contente por você ter gostado da festa ontem à noite. — Jamie pensou que podiam esperar três ou quatro meses, não havia necessidade de pressa... e não era uma má idéia. — Chegamos.

Entraram no pátio do clube. MacStruan conversava com Dmitri nos degraus. Avistou-os e virou-se. Dmitri acenou, jovial. Jamie sentiu um frio nas entranhas. Nemi! Quando Nemi pegar o freio nos dentes...

Deus Todo-Poderoso, pensou ele, consternado, como vou lidar com Nemi, a Yoshiwara e Sparkles? Não é possível. Mas tenho de encontrar um meio. O que foi mesmo que ela disse sobre a Yoshiwara? Não ficou aporrinhada desta vez... não até termos uma conversinha. Uma conversinha?

— Está com frio, Jamie querido?

— Não, não... estou bem.

 

— Phillip, diga outra vez ao capitão Abeh que sinto muito, mas Hiraga não pode ser encontrado no momento. — Sir William postava-se de costas para a lareira, numa das salas de recepção da legação. Tyrer, Babcott e Abeh haviam acabado de chegar de Iedo. Era o crepúsculo. — Ainda estamos procurando por toda parte. E mais uma coisa, Phillip, tire esse sorriso de satisfação do rosto, ou quer realmente irritá-lo?

Abeh estava furioso. E Sir William também. Fizera tudo o que podia, a colônia fora vasculhada e os soldados efetuavam outra revista na cidade dos bêbados e na aldeia. A Yoshiwara era mais difícil. Não se permitia armas ali, o acesso às estalagens era quase impossível sem arrombamento, uma idéia inconcebível, e fadada a criar um incidente internacional. Se ele assim ordenasse, os samurais nos portões insistiriam no mesmo direito. No começo da colônia, ficara acertado que a Yoshiwara seria deixada em paz, para prestar seus serviços, desde que não houvesse tumultos ali.

— Ele diz que não pode voltar sem Hiraga, e que foi prometido que Hiraga seria entregue a lorde Yoshi hoje.

Sir William reprimiu a imprecação. Em vez disso, murmurou:

— Por favor, peça a ele para esperar. Na casa da guarda. Tenho certeza que Hiraga será encontrado em breve, se ainda estiver por aqui.

— Ele pergunta: Ainda aqui? Se não aqui, onde ele está?

— Se eu soubesse, já teria mandado capturá-lo para lorde Yoshi. Talvez ele tenha fugido para Iedo, Kanagawa ou algum outro lugar.

Até mesmo Sir William ficou chocado com a fúria intensa no rosto de Abeh, que disse algumas palavras em japonês, a voz ríspida, depois virou-se e saiu.

— Mas que patife grosseiro!

— Ele disse que é melhor encontrar logo Hiraga, Sir William. — Tyrer esfregou o rosto com a barba por fazer, sentindo-se sujo, ansioso em tomar um banho, receber uma massagem e fazer a sesta, antes de ir se encontrar com Fujiko. A maior parte de sua fadiga se dissipara ao saber que Hiraga não se encontrava preso e agrilhoado. — Não posso deixar de sentir pena de Abeh, senhor. Ele não pode voltar sem Naka... sem Hiraga, pois sua vida está em jogo.

— O problema é dele. Tem alguma idéia do possível paradeiro de Nakama?

— Não, senhor, se ele não estiver na aldeia ou na Yoshiwara.

— Tente descobrir, pois obviamente é importante. — Sir William olhou para Babcott. — Agora, o mais importante. E o paciente, George? Era Anjo?

— Era, sim.

— Viva! Phillip, você parece exausto. Não precisa esperar. Podemos conversar mais tarde. George pode me contar tudo. Se Nakama-Hiraga aparecer, ponha-o a ferros imediatamente.

— Certo, senhor, e obrigado. Antes de eu sair, posso perguntar o que aconteceu em Hong Kong?

Ao chegarem, ambos haviam perguntado, ao constatarem, ansiosos, que o Prancing Cloud voltara, mas Sir William responderia que primeiro tratariam de Abeh.

— Está tudo tranquilo em Hong Kong e tudo tranquilo aqui, graças a Deus Sir William falou sobre o funeral, o retorno de Hoag e o motivo para isso.

— A razão deveria ser confidencial, mas é do conhecimento comum. Tudo se resume a um jogo de espera. Tess está esperando, parece que Angelique concordou em esperar, pelo que diz Hoag, não que ela tenha outra coisa a fazer. Ou está grávida ou não está.

— Se não estiver, saberá dentro de poucos dias — comentou Babcott. — E nós também saberemos.

— Oh, Deus! — murmurou Tyrer. — O que acontece, se ela estiver ou se não estiver?

Sir William deu de ombros.

— Temos de esperar também. E agora pode ir, Phillip. Uísque ou conhaque, George? Importa-se de me contar tudo agora... ou sente-se muito cansado?

— Não. — Os dois se encontravam a sós agora. — Conhaque, por favor. Iedo foi muito interessante.

— Saúde! O que aconteceu?

— Saúde. Antes de Iedo, sabemos mais sobre Hong Kong.

Sir William sorriu. Os dois eram amigos antigos e Babcott era o vice-ministro.

— Tudo correu muito bem. Isso mesmo. Tess me escreveu uma carta particular de agradecimento. Posso lhe contar a maior parte agora. Hoag trouxe três cartas para Angelique, mas ela não sabe disso, diga-se de passagem. Hoag entregou a primeira assim que chegou, não houve reação perceptível, de um jeito ou de outro, nenhuma pista, ele presumiu que era apenas um pedido para que Angelique esperasse. Tess me confirmou o conteúdo dessa carta, que propôs uma trégua, até se determinar se Angelique está ou não grávida. Se Angelique tiver a menstruação, ele entrega uma carta; se não, espera o segundo mês para ter certeza e entrega a outra carta. Hoag jurou que não conhece o conteúdo de nenhuma das duas e Tess nada revelou na carta que me escreveu.

Ele tomou um gole de uísque, pensativo.

— Mas, infelizmente, um item da carta de Tess indica seu pensamento. Os advogados da Struan estão preparando uma petição para pedir no tribunal a anulação do casamento, a “cerimônia ridícula”... ela sublinhou isso... independentemente da legalidade ou ilegalidade, independentemente do resultado da gravidez. Também vão contestar qualquer testamento, se for encontrado alguns em Hong Kong ou no Japão.

— Que coisa! Pobre Angelique... uma coisa terrível!

— Um enfático sim a isso. Minha carta pedindo clemência não teve efeito. Terrível, não é? — Sir William foi até sua mesa, pegou um despacho. — É isso o ue eu queria realmente discutir... confidencial, é claro.

Babcott acendeu o lampião. A luz do dia diminuía depressa. O governador de Hong Kong escrevera, formalmente:

 

Prezado Sir William:

Obrigado por seu despacho do dia 13. Receio que não seja possível enviar tropas extras no momento. Acabei de receber o aviso de Londres de que todas as tropas são necessárias em outros lugares, que considerações orçamentarias impossibilitam a mobilização de novos recrutas na índia ou em qualquer outro lugar; assim, você terá de operar com o que tem. Contudo, estou enviando outra fragata a vela, de vinte canhões, H.M.S. Avenger, num empréstimo temporário. Mas pode ter certeza de que se houver um grande ataque a Iocoama, este será devidamente punido, no momento oportuno.

Fui instruído por Londres a informá-lo das seguintes diretivas, para ação prudente imediata: deve cobrar a indenização exigida, junto com a entrega dos assassinos (ou testemunhos de seu julgamento e execução), punir e submeter o tirano responsável, Sanjiro de Satsuma. Devo ainda comunicar que os efetivos da marinha e exército que têm agora à sua disposição são considerados mais do que adequados para lidarem com um príncipe insignificante.

 

Babcott soltou um assovio e só falou após longo momento:

— Um bando de idiotas, todos eles.

Sir William riu.

— Pensei a mesma coisa. Mas feito o comentário, o que você acha?

— “Ação prudente imediata”? Isso é uma contradição.

— A verbosidade diplomática não encobre seus rabos, obviamente.

— Já temos a indenização e...

— O ouro foi adiantado por conta de Sanjiro. Foi um empréstimo, não um pagamento pela parte culpada.

— Tem razão. E é bem provável que os dois assassinos estejam mortos.

— É verdade, mas foi por acaso, não como uma punição pelo crime e não há cem por cento de certeza.

— Concordo. Nós... — Babcott suspirou. — O que eu acho? Aqui entre nós, que você já decidiu desfechar um ataque punitivo contra Sanjiro, provavelmente em Kagoshima, ainda mais agora que Yoshi concedeu sua aprovação tácita.

— Possível aprovação. O despacho e minhas respostas são suficientes para convencer Ketterer de que um ataque foi autorizado?

— Não há qualquer dúvida a respeito. Eles lhe deram as diretivas. O despacho torna o ataque obrigatório, por mais que eu o desaprove e considere uma estupidez.

— Porque é um médico?

— Isso mesmo.

— Se algum dia tiver de assumir o comando, George, espero que esqueça que é um médico.

— Não precisa dizer isso, William. Sei em que lado do pão está a minha manteiga. Enquanto isso, não deposite sua confiança em príncipes, burocratas ou generais, pois eles alegarão conveniência, ao mesmo tempo em que derramam seu sangue de uma distância segura. — Babcott levantou seu copo. — A Londres, Por Deus, como estou cansado!

— Enquanto isso, lembre-se que Maquiavel também disse: A segurança do Estado é o dever supremo do soberano ou algum outro chavão parecido.— Os olhos de Sir William faiscaram. — Agora, passemos a Anjo.

Babcott contou tudo. E, sendo indagado, deu seu diagnóstico abalizado.

— Seis meses. Um ano, não mais do que isso. Dependendo dos resultados dos testes.

— Interessante...

Sir William pensou bastante, por longo tempo. Lá fora, a noite assentara, a esquadra se recolhia. Ele fechou as cortinas contra as correntes de ar, foi até a lareira, atiçou o fogo.

— Pondo esse problema de lado por enquanto, minha propensão é ordenar uma presença naval imediata ao largo de Kagoshima, seguindo-se o bombardeio, se Sanjiro não nos der satisfações... tanto em benefício de Yoshi, Anjo e o Conselho de Anciãos, mas também pelo patife do Sanjiro. Especialmente por Yoshi.

— Enviar a esquadra para lá deixará a colônia exposta. O que me diz das informações sobre samurais nos cercando... vimos uma grande quantidade ao longo da Tokaidô.

— É um risco que temos de assumir.

Babcott fitou Sir William com firmeza e não disse mais nada. A decisão não era sua. Obedeceria feliz, como todos os outros, insistindo em participar da expedição. Ele se levantou.

— Acho que vou tirar um cochilo antes do jantar. Não dormi muito ontem à noite. Antes que eu me esqueça, Phillip fez um excelente trabalho. Iniciarei os testes mais tarde e o informarei assim que souber de alguma coisa.

— Quer alguma coisa para comer? Às nove horas? Está certo. E obrigado por Anjo, isso é muito importante. Torna Yoshi ainda mais importante. Se é que podemos confiar nele. Se.

— Nesta terra, isso é sempre um grande problema. — Uma pausa e Babcott acrescentou, ainda injuriado pela atitude de Tess: — Lamentável essa idéia de ação judicial. Será terrível para Angelique, não acha?

— A vida alguma vez foi justa, meu velho?

 

Na hora do jantar, Angelique bateu na porta do gabinete do tai-pan, vestida para sair.

— Albert?

— Entre. Ei, adorei o chapéu!

Era um elegante chapéu para jantar, discreto, ainda apropriado para o luto, azul escuro, mas com umas poucas flores de seda, que ela prendera na faixa.

— Obrigada. Está trabalhando até tarde.

— Faz parte do emprego.

Como todos os outros, ele especulava sobre o que continha a carta de Tess para Angelique. Todos os rumores mais absurdos circulavam pela colônia, de que Tess ordenara que ela deixasse a Ásia imediatamente a uma acusação de assassinato. Não havia nenhum sinal no rosto de Angelique, apenas uma cativante melancolia.

Na carta que mandara para ele, Tess advertira-o a ser bastante cauteloso antes de assumir quaisquer compromissos sobre armamentos e, se propostos, que os mantivesse confidenciais. E usasse McFay, se necessário.

 

Pedi a ele que cooperasse com você. Claro que o principal interesse de McFay será promover o seu próprio negócio, mas você deve tratá-lo como amigo. Agora que o Sr. Edward Gornt assumiu o controle da Brock no Japão, ele é o inimigo — tome cuidado com esse homem, é mais astucioso do que presumimos. Quanto àquela outra pessoa, o Dr. Hoag concordou em me ajudar. Soube que ela ainda ocupa aposentos em nosso prédio, concedidos por meu filho. Você será informado mais tarde de novas disposições.

 

— Onde vai jantar? — indagou MacStruan. — Na legação francesa?

— Aceitei um convite para jantar no prédio ao lado, com o Sr. Gornt. — Angelique viu o rosto dele endurecer. — Foi um convite para jantar no último minuto, com amigos comuns, Dmitri e Marlowe. Ele me pediu para convidá-lo a se juntar a nós, e me escoltar, se... está livre?

— Lamento, mas não é possível. Terei o maior prazer em levá-la até a porta, e depois ir buscá-la, mas é o escritório da Brock and Sons, ele é o chefe, e eu trabalho para a Casa Nobre.

— Deveriam ser amigos e poderiam continuar a ser concorrentes nos negócios. Ele era um grande amigo de meu marido, de Jamie e meu.

— Lamento, mas o problema é meu, não seu. — MacStruan tornou a sorrir. — Vamos.

Pegando Angelique pelo braço, sem se dar ao trabalho de vestir um capote, ele conduziu-a para o frio da rua. O vento agitou o chapéu dela, mas não o deslocou. Angelique o prendera com uma echarpe de chiffon.

— Boa noite, madame.

O guarda na porta da Brock fez uma reverência.

— Boa noite. Obrigada, Albert. Não precisa vir me buscar. Um dos outros me acompanhará na volta. É melhor ir agora ou vai pegar um resfriado.

Ele riu e se foi. No mesmo momento, Gornt apareceu para recebê-la.

— Boa noite, madame... puxa, está deslumbrante!

Agora, enquanto ele pegava seu agasalho, a preocupação de Angelique tornou a se avolumar. Que trunfos? Uma explosão de risos veio de uma sala interior. Ela reconheceu Marlowe. Viu que o guarda se afastara, não havia criados por perto e se encontravam a sós por um instante.

— Edward — sussurrou ela, a preocupação prevalecendo sobre a cautela — por que tem tanta certeza de que tudo vai acabar bem para mim?

— Tess me convidou a voltar. Não se preocupe, está sob controle. E é melhor deixarmos para conversar durante seu passeio amanhã... esta noite é apenas para uma boa conversa entre amigos, um prazer gentil. Sinto-me honrado por ter aceito meu convite... graças a você é que sou o chefe aqui.

Gornt pegou-a pelo braço e acrescentou, em voz normal:

— Seja bem-vinda à Brock and Sons, Angelique. Vamos entrar?

A sala de jantar era tão grande quanto a da Struan, com o mesmo luxo, a prataria da mesma qualidade, o vinho superior, o serviço de mesa mais rico. Criados chineses de libré. Marlowe, Pallidar e Dmitri postavam-se à frente do fogo a crepitar, esperando para cumprimentá-la. Beijaram sua mão, admiraram seu chapéu, que ela manteve na cabeça, como era o costume, Marlowe e Pallidar em seus uniformes informais. E enquanto Angelique os cumprimentava e escutava, com discreto charme, seu motor interior avaliava Gornt, o que ele dissera e o que faltava.

— Vamos sentar, agora que nossa convidada nos honra com sua presença?

Gornt instalou-a numa extremidade da mesa. Foi ocupar a outra. A mesa era bastante pequena para que o jantar fosse íntimo, bastante grande para ser impressiva.

— Senhores, um brinde! — disse ele, erguendo seu copo de champanhe. — À dama!

Eles beberam e os olhos de Gornt não se desviaram dos olhos de Angelique por um segundo sequer. Um discreto convite. Ela sorriu em resposta, nem sim nem não.

Há tempo suficiente, pensou ele, satisfeito por ser o anfitrião e ainda mais satisfeito consigo mesmo. Restava muita coisa a contar. Talvez a melhor parte. Mas não para ela.

No último dia em Hong Kong, Tess Struan mandara chamá-lo mais uma vez, secretamente.

— Examinei todos os documentos, Sr. Gornt. Não há uma certeza absoluta de que poderão sustentar seu plano para a destruição dos Brocks.

— Acho que vão, madame — respondera ele, impressionado pelo quanto ela sabia sobre os negócios. — Com toda sinceridade, acredito que possui tudo o que é necessário para abrir a caixa de Pandora. — Era o nome em código que haviam combinado. — Só falta uma última peça do quebra-cabeça para completar a imagem e garantir o sucesso.

— E qual é?

— O sinete oficial de Norbert. Está no seu cofre em Iocoama.

Tess suspirara, recostara-se em sua cadeira toda lavrada. Não havia necessidade que qualquer dos dois articulasse que aquele sinete, quase que em qualquer documento em papel timbrado, aposto da maneira correta, validava o que estava escrito, comprometendo por completo a Brock de Iocoama.

Também não havia necessidade de dizer em voz alta que todos os tipos de informações incriminadoras podiam ser escritas agora, com data anterior, e encontradas ou introduzidas de forma sub-reptícia numa pilha. Quem poderia contestar a carta, com Greyforth morto?

Ambos sabiam do valor.

Morgan e Tyler Brock haviam especulado a fundo no esquema complicado, mas incrivelmente engenhoso, para açambarcar o mercado do açúcar havaiano — uma operação já consumada, em princípio — negociando a colheita em troca do algodão sulista, que tinham vendido antes, num negócio legal, a grupos franceses de confiança. Como os franceses eram aliados históricos dos Estados Unidos, não se encontravam sujeitos ao bloqueio nortista, e naquele caso contavam com certa ajuda no Congresso e outras salvaguardas oficiais. O algodão seguiria da França para Genebra, ainda numa operação legal, e de lá para os teares do Lancashire, em outra operação legal, para alimentar as fábricas quase paralisadas, ansiosas por matéria-prima.

Um risco mínimo: se o governo da União descobrisse com certeza o destino final — em termos formais, a Grã-Bretanha era neutra, mas a maioria dos britânicos se mostrava ativa no apoio à Confederação — e isso chegasse ao conhecimento público, a exportação poderia ser suspensa por um confisco. Era de fato um risco mínimo, por causa do acordo de alto nível dos intermediários franceses, que na verdade, como provavam pela primeira vez os documentos obtidos por Gornt, formavam uma companhia que pertencia à Brock. Além disso, a não-interferência governamental era mais do que certa, porque grande parte do açúcar, também desesperadamente necessário, seria negociada em troca de armamentos desviados da União, que os Brocks logo despachariam para a Ásia. Os lucros projetados eram imensos. A posição da Brock na entente Ásia-América se tornaria preeminente, quem quer que vencesse a guerra civil. Na Ásia, a companhia se tornaria suprema. E não havia a menor possibilidade de o plano fracassar, porque o Victoria Bank, de Hong Kong, era o subscritor.

O banco, o maior de Hong Kong, sustentava todo o esquema, com a aprovação do conselho diretor de doze homens, entre os quais figurava Tyler Brock. As ações e a liquidez da Brock and Sons eram a garantia nominal. Para todos os efeitos e propósitos, o Victoria era dominado pela Brock. O velho Brock fora um dos fundadores, em 1843, escolhera os outros membros da diretoria — excluindo para sempre qualquer diretor da Struan — conservara uma participação acionária de Quarenta por cento e mantinha o controle dos votos em caráter permanente, numa proporção no mínimo de nove para três. Ao mesmo tempo em que apoiava a Brock nas operações internacionais, o conselho diretor concordara em destruir a Struan pela posse de todas as suas dívidas, que venceriam a 30 de janeiro — esse prazo e os métodos questionáveis da aquisição clandestina e a longo prazo também eram evidentes nos documentos de Gornt.

Excitado, Gornt ressaltara que a Brock and Sons, pela primeira vez, se tornara vulnerável — nunca antes haviam oferecido o controle da companhia como garantia. O Victoria era a chave para a Caixa de Pandora. E a chave para o banco era o conselho diretor. Era preciso subvertê-lo, inverter sua posição, retirar o apoio financeiro a Tyler e Morgan no dia correto, deixando-os desprovidos, sem os recursos necessários para acionar sua máquina. Enquanto isso, evidências do plano, tiradas dos documentos de Gornt, e o aviso de que o Victoria não mais apoiaria a operação seriam despachados num clíper para Washington, indo parar nas mãos certas, que deveriam promover o confisco, já que sem o apoio do banco não haveria açúcar para negociar por algodão ou armamentos. Mas isso tinha de ser feito agora, antes que fosse reestruturado o controle acionário do banco.

Como inverter a posição do conselho diretor era a essência do plano de Gornt.

Os documentos revelavam fatos bastante embaraçosos sobre os antecedentes de dois membros pró-Tyler Brock, tão graves que seus votos penderiam para quem possuísse aquelas provas. Sete a cinco. Havia mais fatos sobre um outro homem, embora menos perniciosos, e mais questionáveis. Um possível seis a seis.

A idéia de Gornt era de que Tess procurasse o presidente do conselho, numa reunião particular, apresentasse os fatos, informasse que os detalhes do esquema já estavam a caminho de Washington e apresentasse uma proposta.

— Eles puxam o tapete da Brock e se inclinam para você e a Struan, concedendo uma prorrogação de seis meses ao vencimento das dívidas, duas vagas no conselho, o imediato controle da Brock, com a venda do patrimônio a um preço de barganha, o suficiente para cobrir o débito, deixando Tyler e Morgan Brock se afogarem no açúcar que não poderão pagar. E, por último, o banco concorda em dividir os quarenta por cento de ações confiscados, que pertenciam à Brock, em quatro partes, uma para o presidente do conselho, outra para dois membros à sua escolha, uma para a Casa Nobre.

— Em troca do quê? Por que o banco haveria de trair Tyler? — perguntara Tess. Jogo duplo, não é esta a expressão que os americanos usam?

— É, sim, madame, mas neste caso seria triplo. Porque o conselho aceitaria a proposta? Porque sairão como grandes vencedores, o presidente e os outros, porque odeiam Tyler Brock, em particular, ao mesmo tempo em que o temem, como todas as pessoas. Não a odeiam, porque representa a Casa Nobre, não constitui uma ameaça para eles. O ódio, não apenas o dinheiro, é a graxa que faz as engrenagens do mundo funcionarem.

— Não concordo, mas vamos deixar isso de lado. De volta a seu sinete mítico. O que faria com ele? — O sorriso de Tess fora cético. — Se conseguisse obtê-lo.

— Qualquer coisa que quiser, madame.

— Talvez devesse trazê-lo para cá, no Prancing Cloud.

— Sinto muito, mas seria cedo demais, a menos que deixe o navio esperando por uma ou duas semanas. Eu o trarei no momento oportuno.

— Por que a espera? Mande por Strongbow, que é de confiança.

— Eu o tratei no momento oportuno.

Os olhos de Tess, tão claros e parecendo inocentes na maior parte do tempo, penetraram-no como ferro derretido e ele acrescentara:

— Prometo.

— Vamos deixar isso de lado, por enquanto. O preço, Sr. Gornt?

— Prefiro lhe dizer quando voltar, madame. Ela rira, sem qualquer humor.

— Tenho certeza que sim. Pensei que me conhecesse bastante bem, a esta altura, para não tentar me pressionar, nem à Struan. Pode protelar até o último momento, quando terei de desfechar o ataque de qualquer maneira, contra Tyler e contra o banco, deixando a Struan exposta demais. Assim, eu teria de concordar com suas exigências, quaisquer que fossem.

— Deve haver confiança dos dois lados. Eu lhe dei as evidências de que precisa para destruir Tyler Brock e Morgan, por um acordo que me promete no futuro. Estou confiando que cumprirá a sua parte, madame. Não é pedir demais um pequeno adiamento. Juro que voltarei a tempo. Trarei de Iocoama a glacê do bolo e o preço será justo.

— Jamais gostei de bolo, Sr. Gornt, nem de glacê... qualquer possibilidade de gostar dessas coisas me foi arrancada por meu pai, que desaprovava essas coisas, quando eu era pequena. O preço?

— Posso lhe garantir, madame, que será um preço que terá o maior prazer em pagar, por minha honra e minha palavra como cavalheiro.

Ela o fitara nos olhos.

— Posso também lhe assegurar, Sr. Gornt, que se me trair cuidarei para que se torne um homem extremamente infeliz, além de persona non grata na Ásia e por todo o Império... por minha honra e minha palavra como tai-pan da Casa Nobre...

 

Gornt sentiu um calafrio, recordando a maneira como as palavras de Tess o envolveram, o orgulho com que ela dissera tai-pan da Casa Nobre, mesmo quando acrescentara “embora em caráter temporário”. Compreendera, de repente, que aquela mulher era de fato tai-pan agora, compreendera que quem tinha o título não exerceria o poder. Compreendera, com uma pontada de medo, que teria de lidar com ela por muito tempo, que ao destruir a Brock talvez criasse um monstro que acabaria por destruí-lo também.

Deus do céu, ela pode me retalhar em pedacinhos, a seu capricho! Como posso convertê-la numa aliada e mantê-la como aliada? Ela tem de ser minha aliada. Qualquer que seja o custo.

E depois as risadas de Dmitri e Marlowe o trouxeram de volta. Seu mundo tornou a entrar em foco. Luz de velas, a mesa de jantar, a melhor prataria, bons amigos. Seguro em Iocoama, o sinete já retirado do cofre e escondido, uma carta já escrita, com data anterior e a marca do sinete, corroborando a prova insuficiente contra o membro fundamental do conselho, outra carta insinuando um conluio do presidente. Sem eles, o conselho vai desabar em nosso colo como um castelo de cartas soprado, não terão outro jeito, não conseguirão resistir à sua única chance de vingança contra Tyler e Morgan Brock. E não há necessidade de temer Tess Struan. Ela está em meu poder, assim como meu futuro se encontra em suas mãos.

Tenho muitos motivos para me sentir satisfeito. Aqui estou, aos vinte e sete anos, a cabeça de Morgan quase na bandeja, sou o futuro tai-pan da Rothwell-Gornt, no comando de uma mesa esplêndida, criados à espera de minhas ordens E ela também está aqui, linda, potencialmente rica e me amando, por mais que tente ocultar, minha futura noiva, qualquer que seja o resultado... uma criança de Malcolm só torna o preço mais alto para Tess, um preço espetacular, mas também uma barganha, que ela pagará com a maior satisfação!

“Saúde e uma vida longa”, brindou ele, silenciosamente, erguendo o copo, para Angelique e para si mesmo, e para os dois juntos, convencido de que seu futuro era ilimitado.

Os convidados não notaram o brinde particular, absorvidos demais na conversa, disputando a atenção de Angelique. Tranquilo, ele os observou. Mais do que tudo, observou-a. Até que bateu na mesa.

— Angelique, cavalheiros, a atenção de todos, por favor. Temos uma sopa hindu de caril com xerez, peixe assado com cebolas e azeitonas, acompanhado por um Pouilly Fuissé gelado, sorvete e champanhe, depois o rosbife com batatas e St-Emilion... o cozinheiro “encontrou” uma excelente peça de carne Struan... não se preocupe, madame — disse ele, rindo —, foi comprada, não roubada. Depois, um pastelão de galinha e, no final, uma surpresa para acabar com todas as surpresas.

— Qual é? — indagou Marlowe.

— Espere para ver.

Gornt olhou para Angelique. Ela sorriu, seu sorriso enigmático, o sorriso que tanto o excitava, como a Mona Lisa que admirara no Louvre, numa viagem a Paris... e que nunca mais seria esquecida.

— Acho que devemos confiar em nosso anfitrião, capitão — disse ela, suavemente. — Não concorda?

 

Angelique despertou de madrugada com um suor frio, de volta no tempo, de volta à legação francesa, os vidros da mama-san na mesinha de cabeceira, um já vazio, o outro pronto para desarrolhar e tomar, assim que as cólicas começassem.

Descobrindo-se coberta na cama, em sua própria suíte, os carvões em brasa ainda luzindo, a luz noturna projetando sombras firmes, o terror se dissipou, a pulsação voltou ao normal e ela esperou pelas indicações. Nada. Nem cólicas, nem dor na barriga. Um tempo de espera. Ainda nada. Graças a Deus, pensou ela, devo ter sonhado que haviam começado. Relaxou, observando as brasas, ainda não de todo desperta, boas imagens nas brasas, retratos felizes dos telhados de Paris ao pôr-do-sol, fundindo-se com a paisagem de verão da casa dos seus sonhos na Provence, o bebê dormindo contente em seu colo.

— Jésus, Marie, por favor, não deixe que comecem. Por favor.

Babcott a visitara na tarde anterior.

— Passei por aqui e resolvi entrar para saber como você está.

— Não precisa inventar mentiras — protestara ela, em tom ríspido. — O Dr. Hoag disse a mesma coisa esta manhã. As mesmas palavras.

— Calma, Angelique. Acontece que eu estava realmente passando por aqui e pensei em vê-la. Para tranquilizá-la.

— É mesmo?

— É, sim. O velho Hoag disse que você anda um pouco sensível. E com toda razão. — Ele balançara a cabeça, sorrindo. — E para dizer o que você não lhe deu a oportunidade de falar, que é bem possível que sua regra atrase, ou que tenha algumas cólicas ligeiras, que vão desaparecer logo, para voltar da maneira apropriada um ou dois dias depois. Ou não voltar.

— Por que vocês, médicos, são tão sábios, mas não sabem nada, realmente nada, nem mesmo sobre uma coisa tão simples como ter ou não ter um bebê? — gritara ela, exasperada e cansada dos olhares de esguelha nos últimos dias, os súbitos silêncios quando passava. — Deixem-me em paz, vocês dois. Avisarei quando precisar de você, se é que vou precisar. Deixem-me em paz!

Ele se retirara, acabrunhado, mas Angelique não se importara. Desde a discussão acalorada com o padre Leo no último domingo que ela se mantinha tão retraída quanto era possível.

— Odeio aquele homem — murmurou ela agora. — Odeio-o por me deixar tão transtornada. Ele é infame, não é um homem de Deus.

Durante a confissão, o padre Leo dissera:

— Talvez você deva pedir perdão por esse falso casamento de que participou minha criança. Sei que foi induzida a isso, enganada, mas mesmo assim é pecado.

— Não fui enganada, padre, e não é pecado, nem uma coisa falsa. É absolutamente legal, nos termos da lei.

— A lei herética? É um falso casamento. Está querendo ser cega. Claro que não é legítimo, não é válido, aos olhos de Deus.

— Mas é legítimo perante a lei inglesa! — protestara ela, fervendo de raiva. — E é também aos olhos de Deus!

— Não é, não, minha pobre criança, e você sabe que não é. A Igreja não reconhece um casamento herético, muito menos um casamento celebrado por um mero capitão de navio. Aos olhos de Deus, você não está casada.

— Estou, sim. A Igreja de Malcolm reconhece meu casamento, a lei de meu marido reconhece. Estou legalmente casada.

— Não diga bobagem. E não tente enganar a si mesma. Você é católica e a verdadeira Igreja não reconhece um casamento assim. Arrependa-se, minha criança.

— Sou casada e ponto final!

Ela se levantara.

— Espere! Ainda não acabou, minha criança. Para lhe conceder a absolvição, você deve admitir seus pecados, a fim de se apresentar perante Ele sem culpa! Como posso lhe conceder a absolvição?

— O Deus deles é o mesmo que nosso Deus! — exclamara ela, cega por lágrimas de raiva e frustração. — Posso cultuá-lo na igreja deles, tanto quanto aqui!

— Arrisca-se à danação e ao tormento eterno. À excomunhão, à retirada dos sacramentos. Tome cuidado, pois sua mente foi dominada pelos hereges. Reze por perdão...

Ela saíra correndo.

André e Seratard ali se encontravam na ocasião. Mais tarde, André perguntara qual fora o problema, e ela contara. André comentara:

— Milhares de católicos estão casados e felizes sob o dogma protestante, e vice-versa, independentemente do que alegam as hierarquias de qualquer das Igrejas.

— Estou casada ou não, André?

— Está, sim, de acordo com a lei britânica, de acordo com a lei naval britânica, até que um tribunal britânico diga que não está.

— Mas não de acordo com a Igreja?

— Para a Igreja deles, sim, dependendo do que falei, para a nossa, não. Já conhece a resposta a isso, não?

— Odeio aquele homem.

— Ele é um padre. Nem todos são bons, ambos sabemos disso também. Escute, Angelique, sobre o seu... o seu momento... assim que souber, de um jeito ou de outro, avise-me, por favor, em particular, para que possamos começar a planejar. Henri espera a qualquer dia a aprovação do embaixador francês à sua condição de tutelada do Estado. Não se preocupe. Prometi que a defenderíamos e a seus interesses, e é o que vamos fazer.

André se retirara, deixando-a a remoer.

Não era casada segundo a Igreja? Pois então que se danasse a Igreja de Roma, pensara ela, doente de apreensão. Cuidado! Nunca admita isso abertamente, mas nunca mesmo. Você é francesa, o povo francês compreende a Roma católica, sua corrupção e heresia, seus papas mal orientados. Todas as noites, em suas orações, ela pedia, mais do que isso, implorava por orientação e socorro à Santa Mãe.

A segunda-feira e todos os outros dias se arrastaram, sempre olhares, indagações tácitas, por isso ela passara a sair cada vez menos. Para passar o tempo, lia e dormia, lia e escrevia cartas e iniciara uma história sobre uma jovem francesa que naufragava em Iocoama. Interrompera-a abruptamente, queimara as páginas escritas, ao reviver Kanagawa e ele, as noites e os dias com Malcolm, a noite de núpcias no Prancing Cloud.

O Prancing Cloud já zarpara. Sentira-se contente ao ver aquele presságio de más notícias sumir na distância.

Desde o seu passeio, quando tornara a conversar com Gornt — sem tomar conhecimento de mais nenhuma novidade —, haviam decidido, por consenso mútuo, que não se encontrariam por alguns dias. Por duas vezes ela convidara Maureen Ross para o chá, a segunda recebendo-a deliberadamente na cama, para encorajar os rumores de que tinha uma febre. As conversas foram corriqueiras, sobre moda, os problemas na colônia, a vida aqui, nada sério. Mais tarde, tais visitas seriam divertidas, quando pudessem conversar mais sobre assuntos e pensamentos íntimos. Não agora. Mas ela gostava de Maureen, que trouxera livros e revistas, falara sobre o novo escritório de Jamie, como ele vinha trabalhando por longas horas, e manifestara, com certa inibição, sua esperança de que casassem em breve.

A única pessoa que ela gostara realmente de receber era Phillip Tyrer. Ele fora enviado por Sir William com os melhores votos de rápida recuperação, levara os últimos jornais de Londres, presenteara-a com flores, que comprara na aldeia.

— Por ordem do governo de sua majestade — dissera ele, em francês, com um floreio, seu sorriso infantil e joie de vivre contagiantes.

Phillip conversara por uma hora ou mais, a maior parte do tempo em francês, relatando os últimos rumores. Sobre sua viagem a Iedo, sobre Nakama-Hiraga, Que desaparecera sem deixar o menor vestígio, criando um problema diplomático para Sir William, e sobre o capitão Abeh, que “ainda está esperando, fervendo de raiva, no portão norte”.

— O que vai acontecer, Phillip?

— Não sei. Esperamos que o problema desapareça em breve. Uma pena que tivéssemos de descrever Nakama, qual é a sua aparência agora, e com isso ele não terá muita chance de escapar. O que é lamentável, porque ele era um bom sujeito, me ajudou muito. Não acredito numa só palavra dessa alegação de que ele é assassino. Não arrancamos muitas informações do outro sujeito, o amigo de Nakama, de uma família de construtores de barcos de Choshu. Até levei-o a dar uma olhada em uma de nossas fragatas. Um sujeito muito simpático, mas bastante estúpido não sabia sobre Nakama ou não quis dizer nada. Sir William não queria entregá-lo ao Bakufu, por isso deixou-o ir embora. Uma coisa terrível, Angelique, pois Nakama me ajudou tremendamente... e não apenas com o japonês... se não fosse por ele...

Mais tarde, tomaram uma sopa juntos, e Phillip acabara admitindo, por insistência dela, depois de fazê-la jurar que guardaria segredo, que tinha uma garota, uma garota especial, na Yoshiwara.

— Ela é linda e simpática, Angelique, acho que posso arrumar o dinheiro para o contrato sem sacrificar o Tesouro, a ligação é maravilhosa...

Angelique se divertira por ele parecer tão jovem, invejara-o por seu amor simples e se sentira, comparada com Phillip, muito adulta e sofisticada.

— Eu gostaria de conhecê-la um dia — sugerira ela. — Posso facilmente me esgueirar até sua Yoshiwara, vestida como homem.

— Oh, Deus, não, Angelique! Não poderia fazer isso! Não deve!

Poderia ser bastante divertido fazer isso, pensou ela, rindo, e virou-se na cama, quase adormecida. André me levará. Gostaria de conhecer essa Hinodeh em quem tanto investi. Como será que ela parece?

No limiar do sono, ela teve um espasmo.

Outra cólica, diferente. E mais outra. Totalmente desperta agora. Apreensiva, ela esfregou a barriga e o ventre, a fim de atenuar a dor. Mas não desapareceu e ela compreendeu, com toda certeza, que era a dor antiga e familiar, com a sensação de estar um pouco inchada.

Começara. E seguiu-se o fluxo de sangue. Com o fluxo, todo o seu anseio, preocupação e esperança irromperam. Num desespero total, Angelique começou a chorar, comprimiu a cabeça contra os travesseiros.

— Oh, Malcolm, eu esperava tanto, mas tanto, agora nada me resta para dar, nada restou de você, oh, Malcolm, Malcolm, sinto muito, lamento tanto. Oh, Deus, perdoe... seja feita a sua vontade...

Chorando e chorando, depois de uma eternidade, chorando até dormir, ela tinha mais lágrimas para derramar.

 

— Miss, acorde! Miss tai-tai, café, hem!

Enquanto ela ainda continuava nas brumas do sono, Ah Soh bateu com a bandeja na mesa ao lado da cama e Angelique sentiu o aroma quente e divino de café fresco — presente de Seratard e um dos poucos serviços que Ah Soh podia ou queria fazer direito — envolvendo-a, trazendo-a para o dia sem sofrimento.

Ela sentou na cama, espreguiçou-se, atônita e feliz por se sentir tão alerta, tão bem. As cólicas haviam desaparecido, a dor se desvanecera para o padrão normal, melhor do que o habitual, a sensação de inchaço menor do que o habitual.

E o melhor de tudo, o desespero a deixara. É o milagre DELA, pensou Angelique, reverente. Durante o último mês, em suas orações noturnas à Virgem Maria falando, pedindo, suplicando, uma noite, extenuada pela ansiedade, ela ouvira: “Deixe tudo comigo, minha criança, a decisão é MINHA, não sua.” Ouvira sem ouvir com os ouvidos, mas com seu eu interior. “MINHA decisão, tudo, descanse em paz.” A ansiedade se dissipara.

Era a decisão dela e isso era maravilhoso! Angelique aceitaria o veredito DELA. A vontade de Deus. E fora o que fizera.

Impulsiva, Angelique ajoelhou-se ao lado da cama, fechou os olhos, pediu a sua bênção, expressou seus fervorosos agradecimentos, e outra vez disse que sentia muito, mas agradecia pela remoção do fardo, Sua vontade será feita. Depois, tornou a se meter sob as cobertas, pronta para o café e o mundo. O café naquele momento, nove horas, era um costume aos domingos, mal tinha tempo suficiente para tomar um banho, se vestir e ir à igreja.

Igreja! Por que não?, pensou ela, devo apresentar meus agradecimentos, mas sem confissão.

— Ah Soh, traga meu banho e...

Ah Soh a fitava aturdida, os olhos vidrados. Abruptamente, ela compreendeu que a criada devia ter visto manchas de sangue na parte de trás da camisola. Ah Soh apressou-se em dizer:

— Buscar banho.

Ela se encaminhou para a porta, mas Angelique chegou lá na sua frente e empurrou-a de volta.

— Se contar a alguém, arrancarei seus olhos!

— Não compreender, miss tai-tai — balbuciou Ah Soh, apavorada com o veneno no rosto e na voz de Angelique. — Não compreender!

— Ah, sim, claro que compreende! Dew neh loh moh-ah.

Angelique disse a imprecação em cantonês como ouvira Malcolm pronunciá-la uma ocasião, quando ficara furioso com Chen, que empalidecera ao ouvir. Ele nunca lhe dissera o que as palavras significavam, mas causaram o mesmo efeito em Ah Soh, cujas pernas quase cederam.

— Aiiiii!

— Se você falar, Ah Soh, tai-tai vai... — Furiosa, Angelique esticou as unhas compridas a um milímetro dos olhos da criada chinesa e manteve-as ali. — Tai-tai fazer isto! Compreender?

— Compreender! Segredo, tai-tai! — A assustada criada balbuciou alguma coisa em cantonês, levou os dedos aos lábios, imitando um grampo. — Ah Soh não falar! Ah Soh compreender!

Controlando sua fúria, embora o coração ainda estivesse disparado, Angelique empurrou a mulher em direção à cama e tornou a se deitar. Autoritária, apontou para a xícara de café.

— Dew neh loh moh! Sirva meu café!

Cheia de humildade e medo genuíno, Ah Soh serviu o café, entregou a xícara e ali ficou parada, submissa.

— Não fale nada, arrume a cama, limpe as roupas! Segredo!

— Compreender, tai-tai, não falar, segredo, compreender.

— Não fale nada! Ou... — As unhas de Angelique cortaram o ar. —O banho! Ah Soh retirou-se apressada para buscar a água quente, mas antes, ofegante foi sussurrar a notícia para Chen, que revirou os olhos para o céu, e disse:

— Ah, o que tai-tai Tess vai fazer agora?

Depois, Chen saiu correndo, a fim de enviar a notícia pelo navio mais veloz para o ilustre compradore Chen, que lhes ordenara que o informassem de imediato, qualquer que fosse o custo.

O café estava delicioso. Acalmou o estômago e o espírito de Angelique, desfez a ligeira intumescência. Uma das autênticas alegrias de Angelique no mundo era o café da manhã, ainda mais com croissants e Colette, nos Champs-Elysées, num dos elegantes cafés com mesinhas na calçada, lendo a última circular da corte e vendo o mundo passar.

Primeiro, a igreja. Fingirei que nada aconteceu, por enquanto... Ah Soh não ousará contar qualquer coisa. A quem dizer primeiro? Hoag? André? Edward? O Sr. Skye?

Já conversara a respeito com Heavenly Skye. Seu conselho fora o de que não tinham opção senão esperar, descobrir o que Hoag faria, e depois o que Tess faria. A carta de Tess para ele fora sucinta: Prezado Sr. Skye: Sei que meu filho tinha negócios com você. Suspenda e desista de todas as ações, de meu filho e minhas. Nada de bom resultará disso.

— Uma escolha interessante das palavras — comentara Skye.

— Você parece assustado, como se já tivéssemos perdido.

— Absolutamente, Angelique. Nossa única posição é a de esperar. A iniciativa cabe a ela.

— Pela próxima correspondência, quero que você escreva para os advogados da Struan, pedindo um relatório sobre o espólio do meu marido.

Era uma idéia sugerida por André, favorável à abertura de uma ofensiva imediata.

— Com prazer, se você quiser cair na armadilha dela.

— Como assim?

— Sua única postura é a de criança-viúva magoada e injuriada, atraída a um casamento prematuro por um homem de vontade forte... não a viúva pobre e gananciosa de um marido rico e pródigo, que se pôs contra os desejos da mãe ao casar com uma mulher pobre, de antecedentes questionáveis... por favor, não se zangue, só estou lhe dizendo o que pode e provavelmente será dito. Deve esperar, minha cara, torcendo para que Tess se comporte como um ser humano deveria. Se a criança de Malcolm... hum... está a caminho, isso seria uma grande ajuda.

— E se não estiver?

— Vamos considerar essa possibilidade quando acontecer... isto é, quando não acontecer. Haverá muito tempo para...

— Não tenho muito tempo. Meu dinheiro vai acabar.

— Seja paciente...

— Mon Dieu, paciência! Ah, os homens e sua paciência!

Agora que Angelique sabia, sem a menor sombra de dúvida, que não esperava uma criança de Malcolm, tratou de pôr de lado todas as idéias que formulara para o caso de um bebê e concentrou-se no outro caminho.

Uma investida violenta e imediata contra aquela mulher? Não, isso fica para mais tarde, o Sr. Skye tem razão nesse ponto. Preciso primeiro descobrir o que ela vai fazer. Para isso, tenho de contar a Hoag ou Babcott. Hoag lhe entregara a mensagem, por isso deveria ser o escolhido. Não há necessidade que ele me apalpe. Nenhum dos dois. Posso contar a ele. Imediatamente ou mais tarde? Vale a pena consultar André, ou Edward? Acho que não.

Não ter um bebe para sustentar, para considerar, torna minha vida mais simples, melhora as minhas possibilidades de outro casamento. O que quer que aconteça, como toda moça no mundo, preciso ter um protetor, o marido certo... ou, em última análise, qualquer marido.

Sobre as minhas perspectivas: Não tenho dinheiro suficiente para voltar a Paris e lá me instalar. Não tenho perspectivas exceto por um acordo com a Struan... não, não com a companhia, mas com aquela mulher. Até mesmo Edward está preso a isso. Especialmente ele. Sem um bom acordo para mim, e a benevolência daquela mulher para seus negócios, o interesse dele por um casamento vai se dissipar. O que é justo, porque o meu vai se dissipar ainda mais depressa. Ele está apaixonado por mim, eu não estou apaixonada por ele, embora goste muito dele, mas a ligação não tem lógica sem a segurança financeira mútua.

Tudo sempre volta àquela mulher, qualquer que seja a idéia que surja, refletiu Angelique, satisfeita com a maneira como sua mente funcionava, fria e lógica, sem se angustiar, apenas avaliando todos os aspectos como uma mulher prudente devia fazer.

Posso me agüentar por um ou dois meses, não mais do que isso... se não der mais dinheiro a André. Daqui apouco meus vales acabarão e, a qualquer dia, Albert pode dar ordens para suspender meu crédito e me expulsar. Quase que posso ler sua mente rancorosa. Mas não importa, sempre posso me mudar para a legação francesa. Mas eles não me apoiariam por muito tempo.

Sir William? Não há razão para que ele faça mais do que já fez. André é o único fora do alcance daquela mulher que pode me ajudar. Pense com objetividade, Angelique, isso é um erro! Quando André perceber que a fonte do dinheiro está secando, ou já secou, não há como prever o que ele é capaz de fazer, em desespero. Pode vender a Tess aquele papel horrível, pode oferecer a ela a prova sobre... sobre o passado. Ele é um cínico, bastante insensível e bastante esperto para guardar a prova de que paguei o medicamento com os brincos que perdi. E se contentar com muito menos dinheiro do que eu. Mesmo assim, ele é o único homem por aqui bastante insidioso para combatê-la. Edward também pode enfrentá-la, mas apenas até certo ponto. Ele não se arriscaria a perder a Rothwell-Gornt.

Devo persuadir Edward a retornar a Hong Kong imediatamente? Ou Hoag, que é um amigo, ou uma espécie de amigo, e foi o homem que ela enviou a mim? Ou André? Não, ele não, pois neste caso eu não dormiria um instante sequer, sabendo de sua presença em Hong Kong com aquela mulher, sem que eu possa vigiá-lo.

 

Para ela, a igreja foi um imenso sucesso, mesmo com a sua melancolia. Vestira-se de preto, como sempre, um véu cobrindo o chapéu e o rosto. Com o livro de orações na mão, ela partiu pelo dia tempestuoso. Passou direto pela igreja católica no passeio, misturando-se com a multidão que seguia para a Santíssima Trindade. Entrou na igreja, sentou no último banco, vazio, no instante seguinte se ajoelhou e começou a rezar. Uma onda percorreu a nave, já cheia pela metade, ressoou pelos retardatários, adquiriu força, espalhou-se por toda a colônia, estendeu-se até a cidade dos bêbados.

— Deus Todo-Poderoso, Angel foi à igreja, à nossa igreja...

— À Santíssima Trindade? Não diga besteira. Ela é católica...

— Besteira ou não, ela está lá, na Santíssima Trindade, brilhante como um morango, toda vestida de vermelho e sem o calção por baixo...

— Ora, pelo amor de Deus, não espalhe rumores...

— Não é nenhum rumor, ela nunca usa um calção por baixo...

— Na Santíssima Trindade? Oh, Deus! Ela se tornou uma de nós?

— O velho Tweety vai se mijar de alegria...

Maureen e Jamie chegaram logo em seguida. Hesitaram por um momento, ao lado do último banco, prestes a dizer “podemos sentar com você?”, mas Angelique continuou ajoelhada, como se estivesse imersa em oração, e não olhou para eles, embora consciente da presença dos dois, nem um pouco invejosa do vestido de Maureen, de um verde alegre, casaco e chapéu combinando, com uma pluma de chiffon amarela pendendo por trás. Mais um instante e os dois seguiram adiante, sob a pressão dos outros, não querendo incomodá-la... justamente o que ela queria. Depois da fervorosa oração inicial, de agradecimento pela força para dominar seu vasto desapontamento, Angelique continuou ajoelhada, a almofada para os joelhos confortável. Protegida pelo véu, os olhos arregalados se mantinham atentos, querendo observar tudo o que aconteceria. Era o primeiro serviço protestante que ela testemunhava.

Não havia tanta reverência quanto em sua própria igreja, mas estava lotada, com braseiros aqui e ali contra a umidade, e a presença de todos os que podiam andar. Os vitrais eram ricos, o altar e ornamentos mais austeros do que imaginara.

Outros pensaram em parar ali, para cumprimentá-la, ou apenas acenar com a cabeça, com graus variados de satisfação ou espanto, ansiosos em sentar ao seu lado. Mas não o fizeram, também por não desejarem interrompê-la. Gornt escolheu um banco no outro lado.

Assim, Angelique ficou sozinha, e dali a pouco o serviço começou. O primeiro hino, e ela imitou os outros, levantando-se ao mesmo tempo, sentando-se quando todos sentavam, rezando quando rezavam, mas sempre para a Virgem Maria, escutou o sermão que o reverendo Tweet gaguejou, atordoado com sua presença. Mais hinos e canto, a bandeja, um momento embaraçoso, quando ela procurou por algumas moedas, outro hino e a bênção, e depois terminou, com um suspiro audível e bem merecido.

A congregação levantou-se, enquanto o vigário se retirava para a sacristia, acompanhado pelo velho sacristão. A maioria começou a se arrastar para a saída, os paladares já prontos para o tradicional almoço de domingo, a melhor refeição da semana: rosbife, pastelão de Yorkshire, batatas assadas, para os afortunados que haviam conseguido obter uma parte do último carregamento de carne australiana conservada no gelo.

Uns poucos permaneceram para uma oração final. A de Angelique foi um pedido de perdão por ter vindo àquela igreja, mas sentia-se confiante de que Deus compreenderia que era apenas um protesto momentâneo e necessário contra o padre Leo. Todos, ao sair, observaram-na. Depois, ela juntou-se aos últimos, acenando com a cabeça e dizendo “bom dia” aos cumprimentos sussurrados.

O vigário se postara do lado de fora da porta, cumprimentando algumas pessoas, olhando furioso para outras. Quando ela apareceu, Tweet se tornou ao mesmo tempo extasiado e gago:

— Oh, miss Ange... oh, madame, como é maravilhoso vê-la aqui, seja bem-vinda à Santíssima Trindade e que possamos vê-la mais vezes... se há alguma coisa que eu possa explicar... Oh! Não? Espero que tenha gostado, volte de novo, por favor, foi maravilhoso vê-la aqui... será sempre bem-vinda...

— Obrigada, reverendo.

Angelique fez uma rápida mesura, subiu apressada pelo caminho, foi andando pelo passeio. Sir William a esperava, junto com Babcott, agasalhados como todos contra as rajadas de vento.

— É um prazer vê-la, ainda mais aqui — disse Sir William, com sinceridade. — Temos bastante orgulho da Santíssima Trindade e é bem-vinda, muito, todos nos sentimos felizes com a sua presença. O vigário se mostrou um pouco desligado hoje, sinto muito, em geral ele é muito bom, sem trovejar com o fogo eterno. Gostou do serviço?

— Foi bastante diferente, Sir William. A missa em inglês, e não em latim, foi exótica.

— Imagino que sim. Podemos acompanhá-la?

— Será um prazer.

Partiram em passos rápidos, trocando cortesias e perguntas amenas, evitando o assunto central na mente de todos. O tempo está horrível, não acha? A partida de futebol ontem à tarde foi sensacional... poderemos escoltá-la na próxima semana. Já leu os últimos jornais? Já soube que os Artistas de Iocoama farão uma apresentação de Romeu e Julieta e que a Sra. Lunkchurch consentiu gentilmente em fazer a Julieta, contracenando com o Romeu da Sra. Grimm?

— Alguma vez já foi ao teatro ou representou, madame?

— Apenas peças infantis sobre a natividade, no convento, e não muito bem... Oh!

Uma rajada de vento arrancou a cartola de Sir William, e arremessou-a girando pelo ar. Babcott mal teve tempo de segurar a sua. Angelique não foi bastante rápida e seu chapéu saiu voando, assim com vários outros ao longo do passeio, sob um coro de imprecações, lamentos, aclamações e risos. Ela juntou-se à confusão e partiu atrás do seu, mas Babcott recuperou-o, pouco antes que rolasse para a praia. A cartola de Sir William foi recolhida por Phillip Tyrer, que se aproximou apressado para entregá-la, e depois correu atrás da sua.

— Minha melhor cartola — murmurou Sir William, irritado, limpando a lama, com uma aparência suspeita de estrume.

O chapéu de Angelique estava intacto. Ela o pôs na cabeça, ajustou o alfinete para prendê-lo melhor.

— Obrigada, George. Cheguei a pensar que meu chapéu daria um mergulho.

— E eu também. Podemos ter a honra de sua companhia no almoço?

— Obrigada, mas não será possível. Ficarei em casa hoje.

Logo chegaram ao portão do prédio da Struan. Os dois homens beijaram sua mão e ela entrou.

— Uma dama adorável, uma companhia agradável — comentou Sir William.

— Concordo.

Babcott franziu o rosto, olhando para o mar. Sir William acompanhou seu olhar atento. Não havia nada de errado na baía, ao que ele pudesse perceber.

— Qual é o problema?

— A regra dela começou.

— Deus Todo-Poderoso! Já a examinou? Ou Hoag? Por que não me contou antes?

— Não a examinamos ainda. Apenas sei, isso é tudo.

— Mas como...

Ele interrompeu a frase quando MacStruan e Dmitri passaram. Murmurou “bom dia, bom dia”, impaciente, depois pegou Babcott pelo braço, e conduziu-o rua abaixo, na direção da legação.

— Como pode saber?

— Ora, sou médico. Estive com ela ontem. Ao vê-la hoje, sem o véu, tornou-se evidente. O rosto estava um pouco inchado e notei que se mostrava um pouco desajeitada quando correu atrás do chapéu.

— Não percebi nada. Tem certeza?

— Não, mas cem guinéus contra um quarto de penny dizem isso.

Sir William franziu o rosto.

— Hoag também saberá só de olhar para ela?

— Não posso garantir.

— Neste caso, não diga a ele.

— E por que não?

— Vamos deixar como uma coisa particular entre nós. É melhor assim. — Uma pausa e Sir William acrescentou, gentilmente: — Vamos deixar que Angelique jogue suas cartas como quiser. É o jogo dela, com Tess Struan, não o nosso. Deixou de ser nosso.

 

Quatro vigilantes do Bakufu, incluindo um sargento, passaram pelo portão da Yoshiwara. Eram como qualquer outra patrulha de samurais, exceto que os homens eram mais duros, mais brutais e mais alertas. A tarde começava. Apesar do tempo, havia o tradicional desfile de cortesãs, sem pressa, com criadas em sua esteira, de um lado para outro, exibindo seus ornamentos umas para as outras, e para os grupos de gai-jin, olhando boquiabertos, enquanto bebiam nos cafés, rindo quando o vento lançava pelo ar uma ou outra sombrinha decorativa.

De vez em quando, um vigilante abordava o porteiro de uma estalagem, o dono de uma casa de chá ou a criada de um restaurante. No mesmo instante, a pessoa fazia uma reverência, submissa, e balbuciava:

— Não, Sire, o traidor Hiraga não foi visto por aqui, oh, não, Sire, obrigado, Sire, imediatamente, Sire, não, Sire, não o conheço.

Quase todos sabiam onde Hiraga se encontrava, mas preferiam manter sua paz, odiando os vigilantes, e também sabendo que nenhuma recompensa seria bastante grande para impedir a vingança dos shishi ou a repulsa do mundo flutuante por tal traição. Naquele mundo, os segredos eram o condimento e a essência da vida, aumentando o excitamento do dia.

O progresso da patrulha parecia ao acaso. Mas, de repente, o sargento mudou de rumo, entrou na viela da casa das Três Carpas e foi bater com toda força no portão na cerca.

Hiraga ficou acuado. Sempre que havia patrulhas nas proximidades, os vigias alertavam-no a tempo de fugir para o esconderijo subterrâneo, no túnel, onde tinha agora uma cama, velas, fósforos, comida, suas espadas e a pistola, além dos explosivos de Katsumata. Hoje, quando o alarme o alcançou, Hiraga descobriu que outros samurais vasculhavam os jardins, e assim não havia nenhuma possibilidade de chegar ao poço.

Em pânico, ele correu para a área da cozinha e mal teve tempo de assumir um disfarce, ali guardado, um presente de Katsumata, enquanto o sargento, a poucos metros de distância, a vista obstruída por uma sebe, dava um empurrão no porteiro subserviente, tirava suas sandálias e subia para a varanda da casa principal.

Sem saber que Hiraga se encontrava ali perto, Raiko saiu para cumprimentar o sargento, ajoelhou-se, fez uma reverência, seu rosto um charme só, as entranhas palpitando, pois aquele era o terceiro dia de buscas... um exagero que não permitia qualquer sossego.

— Boa tarde, Sire. Sinto muito, mas as damas estão descansando, ainda não se prepararam para receber os clientes.

— Desejo revistar a casa.

— Com todo prazer. Por favor, acompanhe-me.

— Vamos para a cozinha.

— Cozinha? Por favor, acompanhe-me.

Raiko seguiu na frente, afável. Ao deparar com Hiraga na cozinha, de cabeça baixa, entre a dúzia de pessoal da cozinha, seus joelhos quase vergaram.

Hiraga estava imundo, a cabeça coberta pela peruca emaranhada que Katsumata usara em Hodogaya, trajando apenas uma sunga suja e uma camiseta rasgada.

— Prenda um seixo sob o pé, Hiraga — aconselhara Katsumata. — Seu andar, tanto quanto o rosto, pode denunciá-lo. Passe sujeira no rosto e nas axilas, estrume é o melhor, finja ser um ajudante de cozinha, e não represente, seja de fato. Enquanto espera, prepare os artefatos incendiários, instrua Takeda a respeito, e esteja pronto para o momento em que eu voltar...

O sargento de rosto curtido parou, as mãos nos quadris, em meio ao silêncio, e olhou ao redor. De forma meticulosa. Cada canto, armário ou despensa foi inspecionado. Fileiras de condimentos, chás, barris de saquê e garrafas das bebidas dos gai-jin, sacos com o melhor arroz. Ele soltou um grunhido para ocultar sua inveja.

— Você! Cozinheiro-chefe!

O homem corpulento, aterrorizado, levantou a cabeça e o sargento acrescentou:

— Fique parado ali! E todos vocês, entrem em fila!

Em sua pressa para obedecer, todos esbarraram uns nos outros. Hiraga, claudicando bastante, imundo, nu, exceto pela tanga suja e a camiseta rasgada, encaminhou-se para a fila. Murmurando imprecações, o samurai observou atentamente cada homem, enquanto percorria a fila. Ao se aproximar de Hiraga, suas narinas tremeram em repulsa pelo mau cheiro e depois passou para o homem seguinte, e o outro, e o outro, descarregando sua raiva acumulada aos gritos no último homem, que arriou no chão, apavorado. O sargento voltou pela fila, parou diante de Hiraga, os pés bem plantados no chão.

— Você! — berrou ele. — Você!

Raiko gritou, quase desfaleceu, todos pararam de respirar. Hiraga se prostrou de cara no chão, rastejando, gemendo, apoiando os pés na parede, a fim de se lançar para a frente, contra as pernas do sargento. Mas o samurai pôs-se a arengar:

— Você é uma desgraça para uma cozinha, e você... — Ele virou-se para Raiko, que recuou contra a parede, assustada, enquanto Hiraga mal conseguia conter a investida. — Você deveria se envergonhar de ter um vagabundo coberto de estrume como este numa cozinha para os ricos!

O dedão duro como ferro acertou o homem imundo no pescoço e articulação do ombro. Hiraga soltou um grito de dor autêntico, a peruca quase caiu, ele segurou-a em pânico, pondo as mãos na cabeça.

— Livre-se dele! Se este saco de piolhos estiver aqui ou em qualquer outro lugar da Yoshiwara ao pôr-do-sol, fecharei esta casa por sujeira! Raspe a cabeça dele!

Outro pontapé e o sargento saiu. Ninguém se mexeu, até que veio o aviso de tudo limpo. Mesmo assim, todos começaram a se movimentar com a maior cautela, criadas foram buscar sais de cheiro para Raiko, que se retirou a passos trôpegos, apoiando-se nelas, enquanto o pessoal da cozinha ajudava Hiraga a se levantar. Ele sentia dor, mas não deixou transparecer. No mesmo instante, despiu-se e foi para a área dos criados, onde se lavou, esfregando e esfregando, cheio de repulsa... tivera tempo apenas de enfiar as mãos no balde de dejetos noturnos mais próximo, sujar-se e correr para um lugar perto dos fogos.

Depois de parcialmente satisfeito com a limpeza, ele se encaminhou para sua casa, nu, a fim de tomar outro banho, desta vez com água quente, convencido de que nunca mais tornaria a ficar limpo de fato. Raiko interceptou-o na varanda, não de todo recuperada de seu alarme.

— Sinto muito, Hiraga-sama, o vigia deixou de nos avisar a tempo, mas os samurais nos jardins... Água quente e uma criada de banho lhe esperam lá dentro. Mas agora, sinto muito, talvez deva ir embora, é perigo...

— Estou aguardando Katsumata, só depois partirei. Ele lhe pagou muito bem.

— É verdade, mas os vigi...

— Baka! Você é responsável pelo sistema de alerta. Se houver outro, engano, sua cabeça rolará para o balde!

Com uma expressão sombria, Hiraga entrou na casa de banho, onde a criada ajoelhou-se, faz uma reverência tão apressada que bateu com a cabeça no chão.

— Baka! — rosnou ele, ainda não superado o seu pavor intenso, o gosto amargo do medo ainda em sua boca. Acocorou-se no pequeno banco, pronto para que a criada começasse a esfregar. — Depressa!

Baka, pensou ele, enfurecido. Todos são baka, Raiko é baka, mas não Katsumata... ele não é baka, estava certo de novo: sem a bosta, eu teria morrido ou, pior, seria capturado vivo.

 

IEDO

O crepúsculo era uma ocasião de intenso movimento para os habitantes da Yoshiwara de Iedo, a maior e a melhor em todo o Nipão, um labirinto de pequenas ruas e lugares agradáveis, à beira da cidade, cobrindo quase oitenta hectares, onde Katsumata e outros shishi, ou ronin, podiam se esconderem segurança... se fossem aceitáveis.

Katsumata era muito aceitável. Dinheiro não era problema para ele. Pagou à garçonete por sua sopa e talharim, e se encaminhou sem pressa para a casa da Glicínia, ainda disfarçado como um bonzo, embora agora usasse um bigode falso, e se vestisse de maneira diferente, os ombros alargados por enchimentos, a túnica mais suntuosa.

Lanternas coloridas estavam sendo acesas por toda parte, jardins e caminhos recebiam os últimos retoques, arranjos de flores frescas eram concluídos. Dentro das casas de chá e estalagens, de maior ou menor importância, gueixas, cortesãs e mama-sans tomavam banho e se vestiam, conversando e se preparando para o entretenimento daquela noite. As cozinhas fervilhavam, homens cortando e picando, ajeitando salames e doces, fazendo as decorações, cuidando de caldeirões com o melhor arroz, limpando peixe, ajeitando as postas em molhos.

Muitos risos cordiais. Sofrimento aqui e ali, algumas mulheres em lágrimas pensando nos clientes que lhes haviam sido designados ou nos estranhos que deveriam receber com sorrisos, simulando satisfação... e não os jovens amantes pelos quais muitos corações ansiavam, mas o anseio tinha de ser posto de lado, adormecido. Como sempre, as mama-sans e as cortesãs mais velhas e experientes as acalmavam, repetindo o mesmo dogma que Meikin estava dizendo a Teko, a maiko de Koiko, agora em lágrimas, e que deveria fazer a sua estreia como cortesã naquela noite:

— Enxugue as lágrimas, Raio de Luar, aceite sem pensar a triste impermanência da vida, aceite o que há pela frente, ria com suas irmãs, desfrute o vinho, as canções e suas roupas bonitas, contemple a lua ou uma flor, e se deixe levar pela correnteza da vida, como uma cabaça flutuando à deriva rio abaixo. E agora trate de se apressar.

Não aceitarei que Katsumata traiu minha Koiko por uma causa justa, pensou Meikin, o coração confrangido. Ele não tinha necessidade ou justificativa para comprometer minha preciosa com aquela mulher shishi, por mais brava que ela fosse. Pior, ele foi baka ao encerrar uma fonte tão maravilhosa de influência e informações confidenciais sobre a sombra de Yoshi, uma estupidez inominável! Mas está feito. Terminado. Aceite seu próprio conselho, Meikin: Deixe-se ir à deriva, que importância tem, realmente?

Aceito que importava, Koiko era importante para todos nós, inclusive para Yoshi, que agora se lança implacável contra todos os shishi.

A mama-san tornou a sentar diante do espelho. O reflexo a fitou. A maquilagem, mais intensa que o habitual, não escondia as olheiras e rugas de preocupação.

Aceito também que envelheci horrivelmente desde que o shoya nos interrompeu, a Raiko e a mim — o décimo primeiro dia do décimo segundo mês, o último mês, o último dia da minha vida. Há apenas trinta e três dias. Apenas trinta e três dias, e pareço uma velha enrugada, muito além do tempo normal de cinqüenta anos. Trinta e três dias de lágrimas, um lago de lágrimas, quando pensava que me encontrava sã e salva além das lágrimas, convencida de que esgotara todas as minhas lágrimas há muito tempo, por amantes que mal posso lembrar, por alguém que ainda posso sentir, cheirar, saborear e ansiar, meu jovem e indigente samurai que partiu sem avisar, sem dizer uma só palavra, sem deixar uma carta, por outra casa de chá e outra mulher, levando o pouco dinheiro que eu guardara e os fragmentos do meu espírito, que ele jogou na sarjeta. E depois mais lágrimas por meu filho, morto no incêndio da casa de seus pais de adoção, o pai dele, o velho e rico mercador, indo embora como o outro, meu suicídio malogrado.

Anos demais a flutuar. Trinta e três anos à deriva, um ano para cada um dos meus dias de angústia. Tenho agora quarenta e três anos, hoje faz quarenta e três anos que nasci. O que devo fazer agora? Muito em breve lorde Yoshi vai exigir o pagamento. Karma.

Aceito que treinei Koiko, ofereci-a, garanti-a. O que mais posso oferecer em súplica? O que posso fazer?

Seu reflexo não respondeu.

Uma batida na porta.

— Ama, Katsumata-sama está aqui. Chegou cedo. Ela sentiu um vazio no estômago.

— Já vou falar com ele.

Para se acalmar, Meikin tomou um pouco do conhaque dos gai-jin que Raiko lhe dera. Assim que se sentiu mais descontraída, saiu, atravessou o corredor comprido para uma sala de recepção, toda de madeira, tatame e shoji mais dispendiosos. Em maravilhoso bom gosto. Tudo comprado e pago com muito esforço, aflição e adulação; por causa de Koiko, a Flor, sua casa era muito lucrativa, uma fonte de satisfação para seus banqueiros. Com os quais tivera uma reunião naquele dia.

— Sinto muito, mas notamos que seus recibos se tornaram consideravelmente mais baixos, em comparação com o mês passado.

— É a época do ano, muito desfavorável para todas as casas de chá, com um frio anormal. Os negócios vão melhorar com a primavera. Ainda temos um lucro alto para o último ano, não há necessidade de preocupação.

Mas Meikin sabia — e sabia que a Gyokoyama sabia — que a maior parte de seu lucro era por causa de Koiko, e que agora uma tênue cortina de gaze pairava entre ela e sua ruína. Se Yoshi assim decidisse.

Então por que aumentar seu risco, permitindo os shishi aqui?, perguntou-se ela. Em particular Katsumata, que é agora o primeiro dos inimigos de Yoshi. O que isso importa? Deve haver o mau com o bom, o mau deve ser enfrentado e o bom desfrutado. Fora emocionante ser parte dos shishi, com sua bravura e sonno-joi, a luta pela libertação do jugo de séculos, sacrificando suas vidas pelo imperador, na busca tão trágica e desesperançada, todos jovens e valentes, nascidos para fracassar, o que é muito triste. E se eles vencessem, aqueles que reinassem em seguida nos libertariam do jugo de séculos?

Não. Nunca. Não a nós, as mulheres. Continuaremos onde estamos agora, sob o domínio do yang.

Seus olhos vislumbraram uma nesga da lua surgindo de uma nuvem avermelhada pelo pôr-do-sol, por um instante incomparável, para ser tragada de novo, o vermelho se tornando marrom, depois ouro, as flamas escurecendo... um momento viva, no seguinte morta.

— Lindo, neh?

— É, sim, Katsumata-san, tão triste, tão bonito... Ah, já trouxeram o chá! Lamento que esteja nos deixando.

— Voltarei em poucos dias. Tem mais alguma notícia de Raiko? Qualque informação adicional sobre os gai-jin e seus planos?

Meikin serviu-lhe o chá, fazendo uma pausa para admirar as xícaras magníficas.

— Parece que lorde Yoshi teve um encontro com o líder gai-jin, para fazer um pacto de amizade.

Ela relatou as informações de Furansu-san, sussurradas pelo enviado de Raiko poucas noites antes, e que não revelara a Katsumata até aquele momento.

— Além disso, o doutor gai-jin de Kanagawa examinou secretamente o tairo aqui em Iedo, no mesmo dia, dando-lhe medicamentos gai-jin... e soube que ele melhorou.

— Baka — resmungou Katsumata, repugnado.

— Tem razão. Esse doutor deve ser detido. A fonte de Raiko diz que ele volta amanhã, ou no dia seguinte, para ver o tairo de novo.

— So ka? — O interesse de Katsumata dobrou. — Onde? No castelo? Ela sacudiu a cabeça.

— Não. Esta é a melhor parte. Fora das muralhas, no palácio de Zukumura, o idiota, como na última vez.

Katsumata franziu o rosto.

— Muitas opções, Meikin, opções excepcionais. Igual a Utani, neh? Tentação demais. A morte de Utani ainda ressoa por todo o Nipão! Hiraga? Ele já foi apanhado?

— Não. O chefe gai-jin deixou Akimoto partir e Takeda também continua seguro. — Raiko observou-o por um momento, especulando sobre o que ele estaria pensando e depois acrescentou, suavemente: — Há mais dois fatos que deve saber. Lorde Yoshi esteve no encontro do doutor com o tairo, também com apenas uns poucos guardas. Ouvi dizer que ele estará presente de novo.

Ela viu os olhos de Katsumata faiscarem e experimentou um repentino medo, sentindo sua violência contida.

— Yoshi e Anjo juntos, aqueles cães fora das muralhas juntos? Puxa, Meikin, mas isso é incrível! — Katsumata tremia de excitamento. — Pode descobrir quando exatamente o doutor chega?

Meikin inclinou-se para a frente, quase tonta de esperança, e murmurou:

— Outro mensageiro é esperado esta noite. Saberei então. Raiko deve compreender como poderia ser uma oportunidade vital para nós, para todos nós, para todos os que têm contas a acertar.

E era mesmo uma oportunidade como nunca surgira antes, se viesse a se concretizar. Katsumata contraiu os olhos.

— Não posso esperar aqui, nem voltar esta noite. Quando foi o outro encontro, em que momento do dia?

— Cedo.

A carranca se aprofundou, depois se dissolveu.

— Meikin, todos os shishi lhe agradecerão. Se o encontro for amanhã, mande-me o aviso da hora imediatamente, para a estalagem dos Céus Azuis, perto da ponte em Nihonbashi.

Ele fez uma reverência, Meikin retribuiu, ambos satisfeitos, por enquanto.

 

A ponte em Nihonbashi era considerada a primeira etapa da Tokaidô, nos arredores de Iedo, e a estalagem dos Céus Azuis uma entre dezenas, ricas e pobres, espalhadas por todo o distrito. Aquela noite era escura e fria, o céu coberto por sólida camada de nuvens, ainda faltavam horas para a meia-noite. A estalagem ficava numa viela pequena e suja, um dos estabelecimentos mais pobres, um prédio indefinido, de dois andares, quase em ruínas, com as latrinas, cozinhas e uns poucos bangalôs separados de um só cômodo nos jardins, por trás dos muros. Katsumata sentava na varanda de um desses bangalôs, meditando, com uma túnica acolchoada contra o frio, desfrutando o jardim, a única coisa por ali a que se dispensavam cuidados mais meticulosos.

Lanternas coloridas em meio a plantas viçosas, ao longo de um regato, uma ponte, o som suave e tranquilizador da água correndo, o ruído ressonante da caçamba de bambu caindo contra a pedra, ao se encher de água, para se esvaziar, subir, cair de novo, enquanto a água escorresse pela cachoeira em miniatura. Seu silencioso guarda shishi parou por um instante, gesticulou que estava tudo bem e prosseguiu em sua ronda pelo terreno da estalagem.

Katsumata sentia-se contente, seus planos aperfeiçoados: dois shishi o acompanhariam no retorno a Iocoama pela manhã, aquele guarda e mais outro. O sacrifício dos dois, mais Hiraga, Takeda e Akimoto, garantiria o incêndio da colônia e o afundamento do navio de guerra, o que acarretaria o bombardeio e destruição de Iedo, com todos os resultados conseqüentes. No último minuto, ele assumiria o encargo de incendiar a igreja, como antecipara desde o início, deixando que Hiraga comandasse o ataque contra o navio de guerra. Com isso, teria amplas oportunidades para escapar, enquanto os outros não teriam nenhuma.

Os dedos acariciaram o punho de uma espada longa em seu colo, apreciaram o contato do couro de primeira qualidade, enquanto ele se imaginava a participar daqueles atos de terrorismo que tirariam sonno-joi de sua atual apatia e garantiriam sua liderança sobre os novos quadros de shishi, recém-formados, e que dali por diante seriam dominados por ele e Satsuma.

Yoshi e Anjo, por mais tentadores que fossem, não eram tão importantes quanto Iocoama, e por isso os deixaria aos cuidados de outros shishi. Não havia homens suficientes para desfechar um ataque frontal, o que o levara a planejar uma emboscada. Talvez uma emboscada tivesse êxito, provavelmente não, mas a própria ousadia seria inspiradora. Mas ele precisava saber a hora exata da volta do doutor. Se Meikin transmitisse a informação amanhã, ele avisaria os homens já mobilizados, esperando numa estalagem próxima, para a missão suicida, e depois partiria com seus dois companheiros para Iocoama.

Já será suficiente se a emboscada for realizada tão perto do castelo, disse ele a si mesmo, inebriado pela expectativa. Isso e mais Iocoama garantirão Sonno-joi e tornarão meu futuro sublime. Se ao menos houvesse mais tempo para nos prepararmos... Ah, tempo! “Tempo é um pensamento”, era o que sempre diziam aos discípulos em suas aulas de Zen, cerrando e abrindo o punho para dar ênfase “O tempo existe, mas não existe, é permanente e impermanente, fixo e flexível necessário e desnecessário, devemos tomá-lo na mão e indagar: por quê?”

Solene, Katsumata abriu a mão, contemplou a palma. E soltou uma risada. Que absurdo! Mas quantos daqueles jovens costumavam rebuscar seus cérebros em busca de um significado, quando não havia nenhum, Ori em particular, Hiraga também, meus melhores discípulos, futuros líderes, a minha esperança. Mas Ori morreu, e agora Hiraga se tornou maculado, traiçoeiro.

O barulho da caçamba de bambu era confortador. E também o som da água correndo. Seu ser transbordava de vitalidade, planos e idéias, o futuro mais uma vez promissor, sem o menor vestígio de cansaço naquela noite, haveria tempo suficiente para Meikin enviar...

Uma sombra passou pelos arbustos, depois outra, um som tênue por trás, e ele se levantou, a espada na mão, correu para a porta secreta escondida entre as folhagens, mas três homens vestidos de ninja emergiram das sombras, e bloquearam o caminho, as espadas erguidas. No mesmo instante, Katsumata virou-se, correu em outra direção, mas havia outros ninjas ali, povoando todo o jardim, alguns em movimento, outros parados como rocha, esperando que ele se aproximasse. Katsumata desfechou um ataque impetuoso contra um alvo fácil, os quatro homens que se adiantavam pela esquerda, matando um, os outros se evaporando tão depressa quanto haviam surgido. Uma súbita dor ofuscante em seus olhos, de um pó ácido lançado contra o rosto. Em agonia, ele uivou de raiva e arremeteu sem ver contra o inimigo, o frenesi por ser emboscado e enganado proporcionando força maníaca a seus braços e asas aos pés.

A espada encontrou carne, o homem gritou, sem braço, e Katsumata se encolheu, golpeou às cegas de novo, desviou-se para a esquerda e direita, correu para a direita, com fintas sucessivas, enquanto tentava limpar os olhos. Virando-se, golpeando, correndo para um lado e outro, em pânico, esfregando os olhos.

A vista clareou por um instante. Um caminho aberto estendia-se à sua frente, para a cerca e a segurança. Enfurecido, ele saltou para a frente e foi nesse instante que um tremendo golpe atrás da cabeça o atingiu, fazendo-o cambalear. Em desespero, ele virou a espada, a fim de tombar por cima dela, mas outro golpe arremessou-a para longe, quebrando seu braço. Katsumata soltou um grito estridente. E desfaleceu.

O poço negro turbilhonante foi uma eternidade de tormento, com relâmpagos vermelhos e verdes por trás dos olhos, nenhuma visão ali, nem audição, a não ser por um martelar gigantesco, o peito em fogo, o coração palpitando, todas as aberturas fora de controle. Água gelada o encharcou, ele engasgou. Outro dilúvio em seu rosto, mais outro. Tossindo e arquejando, ele emergiu da escuridão. A agonia do braço quebrado, o osso lascado, exposto, subiu para a cabeça, trouxe de volta a visão. Ele se descobriu no chão, braços e pernas estendidos, impotente, um ninja de pé em cada pulso e cada tornozelo. Só que não eram ninjas. Estavam agora sem as máscaras. Ele reconheceu Abeh, de pé à sua frente. E depois viu Yoshi, perto, também vestido de preto, mas não como seus guerreiros. Vinte ou trinta outros ao redor. Silenciosos como a noite e a área.

— Ah, Katsumata! Katsumata, o Corvo, Katsumata, o shishi e líder de shishi, benfeitor de mulheres — disse Yoshi, a voz suave. — Uma pena que esteja vivo. Por favor, a verdade. Koiko era parte de sua conspiração, neh?

Frenético, Katsumata tentava recuperar o controle; quando conseguiu, não respondeu de imediato. O samurai de pé sobre seu braço fraturado torceu o osso de fora, violentamente, e ele gritou, a vontade de ferro que sempre presumira possuir se perdendo com sua liberdade.

— Por favor, oh, por favor...

— Koiko era parte de sua conspiração?

— Não minha conspiração, Sire, conspiração dela e de sua mama-san — balbuciou Katsumata, a cabeça em fogo como o braço, a dor insuportável. — Não... ela era... foi ela, junto com sua mama-san, Lorde, não eu... nada tive a ver... a idéia foi dela e de Meikin, sua mama-san, não minha...

— So ka? E Sumomo, a shishi que escapou com você pelo túnel... o túnel em Quioto, lembra? Isso mesmo, lembra de Sumomo? Você fez chantagem com Koiko e ordenou secretamente, sem o conhecimento dela, que Sumomo me assassinasse, neh?

— Su... momo, Sire? Não sei quem é... ela... nada tinha a ver comigo, na...

As palavras se extinguiram em outro grito, quando o homem de pé em seu braço mudou de posição.

Yoshi suspirou, seu rosto uma máscara. Gesticulou para Meikin, que se encontrava parado ao lado, fora do campo de visão de Katsumata, com Inejin ao seu lado.

— Ouviu seu acusador, Meikin?

— Ouvi, Sire. — Ela se adiantou, as pernas fracas, estremecendo, falando com um fio de voz. — Sinto muito, mas ele é um mentiroso. Nunca participamos de qualquer conspiração contra o lorde, mas nunca mesmo. Ele é um mentiroso. Somos inocentes.

Meikin olhou para Katsumata, odiando-o, contente por tê-lo traído, por ter se vingado... a covardia dele e o fato de ter sido capturado vivo eram melhores do que qualquer coisa que ousara esperar.

— Mentiroso! — sibilou ela.

E tratou de recuar, quando Katsumata se pôs a vociferar, tentando em vão alcançá-la, até que outro homem o golpeou, deixando-o atordoado. Ele ficou inerte, gemendo. A cabeça de Meikin latejava como nunca antes, havia um gosto horrível na boca.

— Sinto muito, Sire, mas também é verdade que eu o conhecia, da mesma forma que meu tesouro, apenas como um cliente antigo, não mais do que isso. Ele era um cliente antigo, e eu não sabia na ocasião quem era ou que... — Ela hesitou tentando encontrar uma palavra que exprimisse sua aversão. — ...ou que fazia uma coisa assim.

— Acredito em você, Meikin. A verdade, finalmente. Ótimo. E porque é ele o mentiroso, pode tê-lo à sua mercê, como combinamos.

— Obrigada, lorde.

— Obedeça a ela — disse Yoshi a Abeh. — E depois a leve para mim.

Ele se afastou. Todos os homens o acompanharam, cercando-o, como um escudo, exceto Abeh e os samurais que imobilizavam o cativo, braços e pernas estendidos, agora gemendo, de volta à consciência. Meikin esperou, saboreando o momento, por si mesma, por Koiko, por todo o mundo flutuante, pois era muito rara a oportunidade de vingança.

— Por favor, tirem as roupas dele — pediu ela, muito calma.

Os samurais obedeceram. Meikin ajoelhou-se, mostrou a faca a Katsumata. Era pequena, mas suficiente para seus propósitos.

— Traidor, não vai fornicar no inferno, se existe um inferno.

Quando os gritos se desvaneceram na inconsciência, depois de um longo momento, ela o estripou como se fosse um porco.

— É isso o que você é — murmurou ela, limpando a faca e guardando-a na obi, com sangue nas mãos e mangas.

— Ficarei com a faca, por favor — disse Abeh, nauseado com a vingança. Sem dizer nada, Meikin entregou a faca e seguiu para o pátio, cercada pelos homens. Yoshi esperava. Ela ajoelhou-se na terra.

— Obrigada, Lorde. Creio que ele se arrependeu de tê-lo traído, de haver traído a todos nós, antes de partir. Obrigada.

— E você, Meikin?

— Nunca o traí. Falei a verdade, contei tudo o que sabia e lhe entreguei o traidor esta noite.

— E agora?

Sem medo, ela fitou-o nos olhos; não conhecera muitos olhos tão implacáveis assim, mas preferiu descartar isso, optando por considerá-lo apenas como um homem, um de mil clientes e autoridades que tivera de suportar ao longo de sua vida, por dinheiro ou favores, para si mesma ou sua casa.

— É tempo de seguir adiante, Sire. — Meikin enfiou a mão em sua manga, tirou um pequeno frasco. — Posso fazê-lo aqui, se assim desejar, meu poema de morte já foi escrito, a Gyokoyama possui a casa da Glicínia. Mas pertenço ao mundo flutuante — acrescentou ela, orgulhosa. — Não é correto partir maculada, com um sangue impuro nas roupas e nas mãos. Gostaria de partir limpa. Gostaria de voltar para a minha casa. Um desejo de morte, Sire: um banho e roupas limpas. Por favor?

 

IOCOAMA, Terça-feira, 13 de janeiro:

Angellque se encontrava entre os cavaleiros que exercitavam seus pôneis à primeira claridade da manhã, na pista de corrida em Iocoama, galopando sozinha, por opção, mal notando os outros. Havia bastante gente no circuito e todos a observavam. Havia muito dinheiro acompanhando-a naquela manhã. Ela estava atrasada. Pelo menos um dia.

— Edward, ela está, não é? — perguntou Pallidar, cavalgando ao lado de Gornt, no outro lado da pista. — Ahn... atrasada?

— Sim, senhor, é o que indicam todos os cálculos.

Gornt contemplou-a, ponderando sobre o que faria agora. Ela montava o pônei preto que Malcolm lhe dera, usava um traje de montaria preto, elegante, botas pretas, um chapéu com meio véu.

— Seu alfaiate é muito bom, as roupas assentam com perfeição — comentou ele. — Nunca tinha visto esse traje antes.

— E não se pode deixar de reconhecer que ela também tem um assento muito bom — disse Pallidar, secamente.

Os dois riram.

— Mas ela cavalga como um sonho, não resta a menor dúvida quanto a isso, deslumbrante como qualquer beldade sulista.

— Falando sério, o que você acha? Há todos os tipos de rumores circulando sobre datas, não muitos de nós jamais tiveram... não muitos de nós sabem sobre o incômodo, os intervalos, essas coisas. Tem algum dinheiro apostado?

Tanto que você nem acreditaria, pensou Gornt.

— Perguntei ontem a Hoag, à queima-roupa.

— Por Deus, assim de repente? Eu nunca teria coragem, meu velho — Pallidar inclinou-se para mais perto, montado num castrado castanho dos dragões muito maior que o pônei de Gornt. — O que ele disse?

— Respondeu que não sabe mais do que nós. E, conhecendo-o, acredito

Gornt disfarçava sua impaciência por perder a companhia de Angelique. Haviam combinado que simulariam evitar um ao outro, até que ela tivesse certeza se estava ou não grávida. Nada poderia ser feito antes disso... ou até o segundo mês.

— O dia certo seria 11 ou 12, mas Hoag explicou que poderia atrasar, mas não muito, demorar um pouco para... começar. Se não vier, é que ela está esperando.

— Faz a gente pensar, hem? Difícil para ela se estiver, a pobre coitada, mais do que difícil, quando a gente se lembra de Hong Kong, Tess e todos os problemas. Pior ainda se não estiver, a se acreditar nos rumores... não sei qual seria o mais terrível.

Cornetas começaram a soar no penhasco por cima da pista, onde ficava o acampamento dos soldados; havia mil soldados ali.

— Droga! — murmurou Pallidar.

— O que é?

— Um toque de “retorno à base”. O general deve estar de ressaca e quer rosnar para todo mundo.

— Vai com Sir William amanhã?

— À conferência com Yoshi em Kanagawa? Acho que sim. Sempre me mandam para essas coisas. É melhor eu ir logo. Vamos jantar juntos?

— Seria um prazer.

Gornt observou Pallidar fazer uma volta impecável com o cavalo e partir a galope, misturando-se aos outros oficiais, que seguiam na mesma direção. Notou que Hoag vinha da colônia para o circuito. O médico montava bem, confortável na sela para um homem tão volumoso. Decidindo interceptá-lo, Gornt esporeou seu pônei — um garanhão castanho, o melhor no estábulo da Brock — para meio trote, mas depois mudou de idéia. Já cavalgara o suficiente hoje. E muito em breve teriam notícias, pois Hoag nunca seria capaz de guardar um segredo para si mesmo. Antes de deixar a pista, ele acenou para Angelique e gritou:

— Bom dia, madame! É uma alegria para os olhos num dia tão frio! Ela levantou os olhos, arrancada de seu mundo pessoal.

— Ahn... Obrigada, Sr. Gornt.

Ele percebeu sua melancolia, mas Angelique sorriu-lhe. Tranquilizado, Gornt se afastou a trote. Não havia necessidade de pressioná-la. Primeiro, ela está ou não? Qualquer que seja o caso, não é problema para mim.

Angelique ficara satisfeita ao vê-lo, apreciando sua admiração ostensiva, elegância e virilidade. A tensão da espera, permanecendo sozinha, atendo-se ao regime de luto, reprimindo segredos, começava a transparecer. As únicas distrações que se permitia agora eram os passeios matutinos a cavalo, as caminhadas ocasionais pelo passeio, a leitura de tantos livros quanto podia encontrar, as conversas com Vargas sobre seda e bicho-da-seda, na tentativa de ressuscitar o entusiasmo anterior. E, de repente, ela avistou Hoag.

Hoag! Se continuasse no mesmo ritmo, acabaria por alcançá-la. Poderia evitá-lo se trotasse o cavalo; seria ainda mais fácil voltar para casa.

— Bom dia, monsieur le docteur. Como tem passado?

— Olá, Angelique. Você está com uma ótima aparência.

— Não estou, não. Sinto o maior mal-estar. De qualquer forma, obrigada. — Uma ligeira hesitação e ela acrescentou, casual: — Uma mulher nunca se sente bem durante esse período do mês.

Surpreso, Hoag puxou as rédeas. Sua égua levantou a cabeça, relinchou, assustando a montaria de Angelique. Os dois logo recuperaram o controle dos animais.

— Desculpe — disse ele, a voz rouca. — Eu... esperava o oposto.

A manifestação súbita e indiferente deixaram-no tão aturdido que ele quase disse: Tem certeza? Devo estar ficando velho, pensou Hoag, irritado consigo por não ter percebido o óbvio... o óbvio agora que sabia.

— Bom, pelo menos você já sabe.

— Sinto um terrível desapontamento, por Malcolm, mas de certa forma parece que não... me atormenta mais. Chorei muito, é claro, mas agora...

O ar inocente de Angelique fez com que ele tivesse vontade de abraçá-la, confortá-la.

— Com todo o resto, Angelique, isso é compreensível. Talvez seja melhor assim. Eu lhe disse antes: enquanto for capaz de chorar, nada poderá afetá-la para sempre. Posso perguntar quando começou?

Mais toques de corneta vieram do penhasco.

— O que está acontecendo? Vi Settry e outros oficiais partirem a galope.

— As cornetas estão apenas chamando os oficiais de volta ao acampamento, rotina, não há com que se preocupar. — Hoag olhou ao redor, para se certificar de que não havia ninguém por perto, depois soltou uma risada nervosa. — Obrigado por me avisar, embora de uma forma um tanto abrupta. Podemos conversar enquanto cavalgamos?

— Claro.— Angelique sabia muito bem por que lhe contara. Por ter visto Gornt hoje e pela chegada conveniente de Hoag. E também porque queria que a luta fosse logo iniciada. — Começou no domingo.

— Não sei o que dizer, se deve se considerar afortunada ou desafortunada. — Nenhuma das duas coisas. Foi a vontade de Deus e aceito-a. Lamento por Malcolm, não por mim. Para mim, é a vontade de Deus. O que vai fazer agora? Informá-la?

— Isso mesmo, mas primeiro tenho de lhe entregar uma carta. Foi a vez de Angelique ficar surpresa.

— Tinha uma carta durante todo esse tempo e não a entregou?

— Ela me pediu para só entregar se você não estivesse esperando uma criança de Malcolm.

— Hum... — Angelique pensou a respeito por um momento, sentindo-se um pouco nauseada. — E se eu estivesse grávida?

— Trata-se de uma pergunta hipotética agora, não é mesmo?

Hoag falou gentilmente, preocupado com a súbita palidez de Angelique. Essa moça ainda não se livrou da depressão, nem de longe.

— Quero saber.

— Ela me pediu para lhe entregar a carta, Angelique, se sua menstruação começasse. Gostaria de voltar agora? Levarei a carta à sua suíte.

— Obrigada, mas... esperarei enquanto você a pega, diante do prédio da Struan.

Ela esporeou a montaria, completou o circuito, indiferente aos outros... todos a observando. Num súbito impulso, virou para pegar o caminho num galope curto, a fim de desanuviar a cabeça do medo. Esporas, joelhos e mãos espicaçando e controlando o pônei.

À frente, podia divisar as torres das duas igrejas, a cerca do perímetro, a Yoshiwara, a ponte e a casa da guarda. Por um momento, sua mente voltou no tempo e foi como se estivesse na direção de tudo aquilo, dominada pelo pânico, a sangrenta Tokaidô para trás, sem o chapéu, as roupas rasgadas, quase morta de medo. A visão se dissipou quando puxou as rédeas... os acontecimentos pareciam muito distantes. Um tipo diferente de medo persistia. A sorte estava lançada.

A carta de Tess dizia:

 

Tenho certeza de que você vai concordar que não há necessidade de cortesias, que não têm o menor sentido entre nós.

Estou contente por saber que você não espera uma criança de meu filho. Isso torna o futuro mais simples, menos complicado. Não aceito ou reconheço o “casamento” ou que você tenha quaisquer pretensões legais em relação a ele... muito ao contrário.

No momento em que estiver lendo esta carta, a Casa Nobre já terá iniciado uma nova era ou se encontrará à beira da bancarrota. Se for a primeira coisa, será em grande parte uma decorrência de você ter me encaminhado aquela pessoa.

Por causa disso, como uma comissão, depositarei capital num fundo de investimentos, no Banco da Inglaterra, o necessário para lhe proporcionar uma renda de dois mil guinéus por ano — se, em troca, você me apresentar, no prazo de trinta dias, a contar da data de hoje (quando sua regra for confirmada), uma declaração escrita e juramentada, nos seguintes termos:

Primeiro, que repudia e renuncia para sempre a toda e qualquer reivindicação que você ou um representante seu possam fazer contra o espólio inexistente de meu filho — deve compreender que ele, como menor, nunca tendo sido legalmente credenciado como tai-pan, não tinha herança para deixar.

Segundo, que concorda em renunciar a todas as reivindicações e concorda em não mais usar o título de “Sra. Malcolm Struan” ou qualquer versão similar. (A fim de resguardar as aparências, para você, sugiro que anuncie, pesarosa, que decidiu fazer isso porque, sendo católica, aceita que o casamento não foi legal, segundo sua fé e sua Igreja, não que eu admita que a cerimônia foi válida, sob qualquer aspecto.)

Terceiro, que nunca mais porá os pés em Hong Kong, a não ser para baldeação, não tentará se encontrar comigo, não me escreverá, não fará qualquer contato comigo ou minha família, no futuro.

Quarto, que sua declaração, com o testemunho formal de Sir William Aylesbury, ministro de sua majestade no Japão, me seja entregue aqui, em Hong Kong, através do Dr. Hoag, para maior segurança, até 14 de fevereiro, pouco mais de trinta dias depois de hoje (a data em que sua regra foi confirmada).

Por último, que se você casar dentro de um ano, o capital será aumentado para que o estipêndio anual chegue a três mil guinéus, durante os dez primeiros anos. Por sua morte, o capital reverterá para mim ou meus herdeiros.

Três semanas depois de ler esta carta, deve se retirar, por favor, de qualquer propriedade da Struan. Dei instruções neste sentido ao Sr. Albert MacStruan, em carta enviada hoje, e também determinei que, a partir deste dia, seu crédito com a Struan está suspenso, e que qualquer vale dado ou supostamente dado por meu filho e apenas autenticado por seu sinete não devem ser honrados — excetuando os que ele assinou e datou pessoalmente, por isso mesmo de autenticidade incontestável.

Se, dentro de três semanas, sua declaração estiver assinada e pronta para o Dr. Hoag me trazer, então o Sr. MacStruan está autorizado a lhe conceder imediatamente um crédito de QUINHENTOS guinéus, por conta de seu fundo de investimentos, que será instituído em trinta dias, com a renda anual liberada em pagamentos trimestrais.

Caso recuse as condições acima (tem a minha palavra solene de que não são negociáveis) ou não procure o Dr. Hoag até a data especificada, 12 de fevereiro, no dia seguinte, 13 de fevereiro, sexta-feira, meus advogados entrarão com uma ação judicial contra você, arguindo o máximo que consideramos justificado, inclusive que foi uma premeditação dolosa que causou a morte do meu filho.

Um conselho: o Sr. Skye pode espernear e bradar que se trata de coação, que estas condições são ameaças contra sua pessoa. Não são. Meus advogados garantem que não são, que esta é uma maneira generosa e legal de remover um problema incômodo causado por meu filho, quaisquer que tenham sido as razões desavisadas.

Por favor, peça ao Dr. Hoag para voltar o mais depressa possível, com sua declaração juramentada, ou a não-concordância. Tess Struan, 28 de dezembro, Ano de Nosso Senhor de 1862, em Hong Kong.

 

Gornt levantou os olhos da carta.

— Não aceite.

— Foi exatamente o que o Sr. Skye me disse. — Um pouco da fúria de Angelique se dissipou. Sentava na cadeira alta, rígida, o rosto firme, Gornt à sua frente, no boudoir. — Fico contente por você concordar. Responderei nos mesmos termos para aquela mulher esta tarde.

— Não, seria um erro. Estou querendo dizer que não deve lutar, seria a pior coisa que poderia fazer. Chegue a um acordo.

Ela se tornou pálida de novo, mais do que furiosa.

— Acha que devo aceitar... essa sordidez?

— Estou apenas dizendo que pode chegar a um acordo, no momento oportuno — respondeu Gornt, a mente funcionando com perfeição, lógica, embora sentisse um aperto no peito e na garganta. — Tenho certeza de que pode melhorar as condições.

— Melhorar as condições? Quer dizer que aceita isso, em princípio? Aceita isso? Pensei que era um lutador, além de meu amigo, mas concorda em deixar que ela me arraste de cara na lama?

— Sei que ela disse que as condições são inegociáveis, mas não acredito nisso. Posso melhorar. A primeira oferta, dois ou três mil guinéus, já a deixa numa boa situação; com cinco mil já seria rica.

— Isso não compensa o comportamento infame daquela mulher, suas ameaças insidiosas, a constante hostilidade! Sou casada legalmente! Legalmente! — Angelique bateu com o pé no chão. — Não ser mais a Sra. Struan? Nunca mais pôr os pés em Hong Kong, ser tratada dessa maneira? Como ela ousa? Parece até que sou... que sou uma criminosa!

— Concordo. Posso renegociar, em seu nome.

— Jesus! Quero que ela seja humilhada, destruída!

— Eu também, mas este não é o momento.

— O quê?

— O grande Dirk Struan maltratou a família de minha mãe, os Tillmans, não tanto quanto Morgan, mas o que ele fez foi uma indignidade. — O sorriso de Gornt era cruel. — Se eu posso destruir os Brocks, por que não os Struans? É tudo a mesma coisa para mim. A vingança é uma refeição que podemos comer juntos, lentamente, pouco a pouco.

— Podemos? — Angelique experimentou um súbito calor no ventre; ele parecia muito bonito, forte e confiante. — Como?

— Primeiro, o que Skye disse?

— Disse que eu deveria lutar e me mostrou as petições que preparou para apresentar em Hong Kong, Londres e Paris...

— Paris? Por que Paris?

Angelique explicou a posição de “tutelada do Estado”.

— Ele diz que em Paris, com a proteção da França como um fato, podemos vencer, o casamento será declarado legal de acordo com a lei francesa e, depois, poderei fazer um acordo pelo meu critério, não o dela.

— Ele mencionou os honorários, Angelique?

Ela corou.

— Isso nada tem a ver com seu conselho.

— Bobagem — disse Gornt, a voz ríspida. — Nossa única segurança é enfrentar a verdade e compreender o jogo como é. Aquele pequeno bastardo... desculpe o termo, mas o uso com conhecimento de causa, ele é isso mesmo, descobri em Hong Kong... aquele pequeno bastardo só está pensando no próprio futuro, não no seu, imaginando-se em vários tribunais a defender essa pobre e linda viúva francesa, emocionando vários júris... e perdendo em todos.

— Não entendo... Por quê?

— Malcolm não deixou nenhuma herança.

— Mas... mas o Sr. Skye diz que, segundo a lei francesa...

— Acorde, Angelique!

A voz era ainda mais ríspida. Era vital que ela se livrasse daquela ira estúpida e inútil.

No momento em que entrara no boudoir, vira a raiva e os lábios comprimidos de Angelique, a carta tremendo em sua mão, ele compreendera que era a carta de que Hoag lhe falara, o que significava que não havia uma criança; agora o plano ‘A’ podia começar a ser executado. Sua alegria disparara.

Fingindo não saber de nada, Gornt apresentara cumprimentos efusivos, que haviam sido dispensados, a carta estendida em sua direção, a fúria tornando-a ainda mais atraente... a paixão boa para ambos, pensara ele, satisfeito. Mas agora devia ser canalizada e refinada, como a dele.

— Skye só tem presunção! Acorde!

— Estou acordada. Ele não é assim e não pense...

— Pare com isso! Use a cabeça, pelo amor de Deus! É você quem corre todos os riscos, não ele!

Por um instante, Gornt especulou mais uma vez sobre a segunda carta de Tess, O que conteria. Mas agora ninguém jamais saberia, pois Hoag dissera que parte do seu acordo com Tess era queimar a outra, sem abri-la, antes de entregar esta. Hoag realmente fizera isso ou a teria lido antes de queimá-la, apesar do juramento solene de cumprir todos os desejos dela? Eu bem que gostaria de saber, mas isso não passa, afinal, do glacê do bolo.

— Angelique, minha cara Angelique... — Ele jogou a carta na mesa, como se fosse uma coisa suja, mas achando que era maravilhosa, levantou-se, foi sentar ao lado de Angelique, pegou sua mão. — Paris, a lei francesa e todo o resto são apenas em benefício de Skye, não o seu. Mesmo que ele ganhasse, eu apostaria dez mil contra um que a decisão não teria qualquer efeito em Tess Struan e Hong Kong...

Como ela fizesse menção de interromper, ele alteou a voz para continuar:

— Não temos muito tempo e você precisa ser sensata. Enquanto você pede emprestado, mendiga ou se vende para pagar os custos dos processos, sem falar nos honorários de que ele precisa, acabará perdendo esta oportunidade. Ele só dispõe de uns poucos dólares. Como vai chegar a Hong Kong, muito menos a Londres e Paris? Não passa de um sonho irreal.

Angelique retirou a mão, bruscamente. Ele riu.

— Você é como uma pirralha mimada e a amo por isso!

— Você... — Ela parou. — É mesmo?

— Eu a amo ou acho que é uma pirralha mimada?

Com uma voz diferente, Angelique disse:

— As duas coisas.

— As duas coisas — murmurou Gornt, também com uma voz diferente. Ele tornou a pegar a mão de Angelique, sorriu quando ela tentou retirá-la. E desta vez não permitiu. Com uma firmeza igual e gentil, puxou-a e beijou-a, com ardor. A reação dela foi imediata, logo diminuiu, e o prazer prevaleceu. Para ambos. Ao soltá-la, Gornt esquivou-se no mesmo instante, antecipando corretamente que as unhas tentariam golpeá-lo.

— Calma, calma... — murmurou ele, como se enfrentasse um cavalo fogoso, satisfeito por poder avaliá-la. — Calma, Nelly!

Angelique riu, apesar de sua raiva.

— Você é um demônio.

— É possível, mas darei um excelente marido, madame.

O sorriso de Angelique se extinguiu. A raiva se dissipou. Ela se levantou, foi até a janela, contemplou a baía e os navios ali. Uma intensa atividade em torno dos navios de guerra. Gornt observou e esperou, torcendo para que seu julgamento fosse correto. Quando se sentiu pronta, Angelique disse:

— Diz para chegar a um acordo, Edward. Como?

— Eu pegaria o próximo e mais rápido navio para Hong Kong. Iria procurá-la imediatamentee providenciaria as mudanças que você e eu combinássemos, e creio que são possíveis. Tenho certeza que posso aumentar o estipêndio. Cinco em vez de dois ou três mil seriam aceitáveis?

— Ela diz que essas condições repulsivas não serão mudadas.

— Eu as mudarei... algumas.

— Quais?

— Podemos falar sobre isso hoje ou amanhã. Mas posso garantir que estou confiante sobre o dinheiro.

— Mon Dieu, o dinheiro não é tudo e por que tão depressa? Ainda falta muito para o dia marcado.

— Devo ser o primeiro a procurá-la com a notícia, a fim de pegá-la desprevenida. Isso melhora minha posição de barganha. Por você.

Ela virou-se para fitá-lo.

— E também por você.

— Também por mim.

Aquelas voltas e rodeios, riscos e manobras, uma palavra errada podendo ser fatal, eram mais emocionantes do que o melhor jogo de pôquer de que ele já participara, com as apostas mais altas. Ela. Ela e o futuro dele, indissolúveis. E ela conta com a maioria dos ases, disse ele a si mesmo, embora não saiba: a concordância imediata de Angelique com as exigências, por persuasão dele, deixaria Tess mais propícia do que nunca a aceitá-lo como aliado, o que era vital para seu futuro; os cinco mil guinéus o ajudariam a consolidar a Rothwell-Gornt; seu veneno garantiria a destruição de Tess.

— Eu a amo e quero casar com você, Angelique.

— É muito cedo para dar uma resposta.

— Não concordo. Você é livre, sem qualquer compromisso.

— Porque não sou casada, e nunca fui?

— Acalme-se, meu bem. Precisa pensar com toda calma. Somos adultos, tenho o direito de perguntar, amo você, e quero casar.

Angelique baixou os olhos e reconheceu que precisava dele, era o único que podia protegê-la de Tess.

— Desculpe... a carta me deixou transtornada. Mas, realmente, ainda é muito cedo para dar uma resposta.

— Não concordo. Acho que você me ama, a promessa poderia ser particular, sem mais ninguém saber, só entre nós. Eu a amo e formaríamos um casal excepcional. — Gornt falava com absoluta sinceridade. — O futuro será vasto para nós, depois que isto... — Ele apontou para a carta. —... depois que isto não mais ameaçá-la. Temos muito em comum, assim como um objetivo comum, o de destruir nossa inimiga, com calma.

— Não o amo. Gosto de você, imensamente, talvez... talvez possa vir a amá-lo, com o tempo, e tentaria, se... se casasse com você... não, não se mexa, deixe-me terminar.

Seus dedos mexiam numa fivela de pérolas, que comprara na aldeia, e isso a lembrou que agora, já que MacStruan não mais aceitaria seus vales restantes, era a única jóia que ainda possuía, além do anel de noivado e do anel de jade. E André tornaria a procurá-la naquela tarde. Ela relegou essa preocupação para mais tarde e tratou de se concentrar. Curioso que Edward tenha a mesma idéia que eu. Pensamos igual, em muitas coisas.

— Prefiro deixar essa resposta para depois. Quando parte o próximo navio para Hong Kong?

— O melhor e o mais rápido seria o que vai zarpar amanhã de noite, o Atlant Belle, da Cooper-Tillman, direto para Hong Kong e depois San Francisco. — respondeu Gornt sem hesitar, as chegadas e partidas de todos os navios ocupando uma posição de destaque na mente de qualquer mercador. — Chegará a Hone Kong antes do nosso clíper, o Night Witch... que só deve chegar aqui dentro de três dias.

— E você gostaria de viajar no Atlanta Belle?

— Isso mesmo.

— Muito bem, Edward, vamos conversar sobre o que você acha que pode ser melhorado na proposta daquela mulher amanhã de manhã. Isso me daria tempo para pensar. Se concordarmos, então, por favor, siga o mais depressa possível para Hong Kong... e volte depressa.

— Combinado. Mas sua resposta ao meu pedido de casamento?

— Eu a darei quando você voltar.

— Preciso saber antes de partir.

— Por quê?

— Para o meu prazer.

Angelique percebeu o mesmo sorriso estranho e se perguntou o que havia por trás.

— Falando sério, por quê?

Gornt levantou-se, parou diante dela.

— Porque é vital para mim. Se casar comigo, o céu é o limite. Vai adorar Xangai, é a maior cidade da Ásia, faz com que Hong Kong pareça um lugar tacanho e atrasado, você será o grande sucesso da cidade e viverá feliz para sempre, eu prometo. E agora, por favor, quero sua promessa.

— Prometo que darei minha resposta quando você voltar. Deve haver confiança entre nós. — Angelique lembrou que dissera a mesma coisa a Tess. — Quando você voltar.

— Lamento, minha cara Angelique, mas preciso saber antes de partir.

— Ou não vai negociar com Tess por mim?

Ele não respondeu no mesmo instante.

— Negociarei por você. E gostaria de me casar amanhã, esta noite... não tem nada a ver com Tess. Mas não é possível partir sem uma resposta.

Gornt chegou mais perto, pôs as mãos nos ombros de Angelique, beijou-a na ponta do nariz.

— Jolie mademoiselle, uma resposta, por favor? Até o pôr-do-sol de amanhã? Terei de embarcar então. Uma resposta, perante Deus.

 

Naquela tarde, a notícia sobre Katsumata e o suicídio de Meikin foi transmitida a Raiko, em seus aposentos particulares. Ela desmaiou. Quando começou a se recuperar, mandou uma criada pedir a Hiraga que localizasse Akimoto e Takeda, com toda urgência, e viessem procurá-la, pois havia fatos terríveis a relatar. Eles não demoraram a aparecer.

Chorando sem qualquer constrangimento, retorcendo as mãos, ela informou nue Yoshi capturara Katsumata, falou sobre a morte dele e a de Meikin. a mama-san de Koiko, mas não revelou que fora ela quem o traíra.

— É o fim... se Yoshi descobriu tudo sobre Katsumata e Meikin, também sabe do meu envolvimento, sabe de vocês. Fomos todos traídos. Quem será o traidor? É apenas uma questão de tempo... — Outra vez o terror a dominou. — Vocês devem partir imediatamente, antes que os vigilantes os descubram... não podem mais continuar aqui...

— Pare! — sibilou Hiraga, o rosto branco.

Ele não estava mais disfarçado como serviçal da cozinha. Usava um quimono comum e se encontrava preparado para correr até seu santuário no túnel, os vigias agora confiáveis, sob pena de morte. Akimoto e Takeda também ficaram abalados. O fato de que Katsumata pudesse morrer como um covarde era inconcebível.

Não posso acreditar que o sensei se deixasse capturar vivo, pensou Hiraga. E Yoshi permitir que Meikin fizesse uma coisa assim com ele era repulsivo, por mais que merecido. Baka ser capturado vivo!

— Deixe-nos agora, Raiko. Falarei com você mais tarde.

— Obrigada, Sire, sinto muito, mas...

— Deixe-nos!

Ela se retirou, trôpega, contente por se livrar deles, odiando todos os shishi, mas sensatamente escondendo seu ódio. Takeda cuspiu de raiva.

— Yoshi não tem honra ao permitir que uma coisa assim acontecesse. Katsumata deve ser vingado!

Akimoto olhou para Hiraga, também angustiado.

— O que devemos fazer, primo? Essa velha megera tem razão, a busca será intensificada. Devemos escapulir esta noite. Vamos tentar, hem?

— Você é baka! Estamos cercados como ratos numa carcaça!

Embora simulasse raiva, Hiraga, na verdade, sentia-se tonto de alívio. Com Katsumata morto, não haveria agora necessidade de um ataque. Mais uma vez, ele assumia o comando de seu próprio destino.

— Não devemos cometer nenhum erro.

Takeda disse:

— Concordo que somos ratos numa armadilha aqui. Portanto, vamos atacar, como o sensei planejou. Temos as bombas agora. Sonno-joi!

— Não. Estamos seguros, por enquanto.

Akimoto disse:

— Hiraga, se Yoshi entregou Katsumata a essa Meikin, foi uma recompensa, neh? Em troca por traí-lo? Raiko fará a mesma coisa com a gente. E não poderia ser ela a traidora que denunciou os dois a Yoshi, em primeiro lugar?

Takeda levantou-se.

— Vamos matá-la, para começar.

— Sente-se! — ordenou Hiraga. — Precisamos de Raiko. Ela já demonstrou seu valor no passado e vocês esquecem que nenhuma mama-san merece confiança total. Sente-se, Takeda, e seja lógico. Ela não vai nos trair... não passa de urn bruxa gananciosa, como qualquer outra mama-san. Se você deixar, ela lhe cobrará uma prostituta de terceira classe quando a mulher é apenas uma vagabunda da rua que mal vale um momme de cobre. Meikin nos forneceu boas informações no passado. Foi graças a ela que pegamos Utani, o pederasta. Ela própria foi traída. Yoshi e o Bakufu têm milhares de espiões.

— Não estamos seguros aqui. — Akimoto estremeceu. — Odeio este lugar. Esta Yoshiwara dos gai-jin se acha contagiada pela praga deles. Voto com Takeda Atacar, escapar ou morrer.

— Ainda não. Deixem-me pensar.

Takeda observava-o atentamente.

— Você conhecia essa Meikin?

— Há muitos anos...

Hiraga quase acrescentou que conhecera Koiko também, tentado a lhes contar o verdadeiro motivo para a traição, mas decidiu não fazê-lo, saboreando a maneira como Katsumata morrera. Agora Sumomo está vingada, Koiko também. Agora seus espíritos se tornarão kami ou renascerão no trigésimo primeiro dia, conforme os deuses decidirem... se é que existem deuses. Agora posso esquecê-las, embora elas vivam para sempre.

O sensei suplicando por misericórdia? Todos esses anos a idolatrá-lo, a escutar o que ele dizia? Fomos enganados, pensou Hiraga, revoltado. Não importa, aquele covarde será escarnecido e cuspido por toda parte, muito em breve poemas e peças de teatro contarão como ele traiu Sumomo e Koiko, a vingança da mama-san... e o desejo de morte. Ah, que classe ela tinha!

Involuntariamente, ele soltou uma risada nervosa e imitou a voz estridente de um onnagata — um ator que se especializava em papéis femininos, já que só os homens eram permitidos nos palcos.

— “Um banho e roupas limpas. Por favor?” Os teatros kabuki e de marionetes lotarão casas com isso por gerações.

— Baka ao kabuki! — exclamou Takeda, furioso. — O sensei será vingado. A honra será redimida. Atacaremos esta noite, conforme o planejado, vocês afundam o navio, eu cuido da igreja, e também da outra, e mato todos os gai-jin que encontrar, até morrer. O que diz, Akimoto?

Ele se levantou, foi espiar pela janela. Não faltava muito para a noite. Subitamente, notou o vento agitando os arbustos.

— Olhem! É um sinal dos deuses! O vento está aumentando. E sopra do sul.

Akimoto foi se postar ao seu lado.

— É verdade, Hiraga!

Por um momento, Hiraga hesitou. Seria mesmo um sinal?

— Nada de ataque, não esta noite. Nada de ataque.

Takeda virou-se.

— Pois eu digo que devemos atacar. — Ele olhou para Akimoto. — Você concorda? Sonno-joi!

Akimoto não sabia o que fazer. A raiva e confiança de Takeda eram contagiantes.

— O fogo encobriria a nossa fuga, Hiraga.

— Um pouco, talvez — disse Hiraga, irritado —, mas não uma tentativa de incendiar toda Iocoama.

Seu cérebro ainda oscilava e ele não tinha ainda outra solução que não seu plano final e nenhum meio de pô-lo em execução sem a ajuda de Taira e da remoção da pressão de Yoshi em seu pescoço.

— Amanhã, ou no dia seguinte, pode...

— Esta noite — insistiu Takeda, mal conseguindo conter sua ira. — Esta noite é uma dádiva, os deuses nos falam!

— Nesta época do ano, o vento vai se prolongar. Precisamos de mais homens para incendiar a colônia. Um de nós deve ir a Iedo para buscá-los. Takeda, você poderia ir.

— Como? Você mesmo disse que os vigilantes estão por toda parte. Como?

— Não sei, Takeda. — Trêmulo, Hiraga levantou-se. — Esperem até eu voltar, e depois poderemos decidir. Falarei com Raiko, direi a ela que partiremos amanhã... não será assim, mas direi isso.

— Ela não mais merece confiança.

— Já disse que ela nunca mereceu.

Hiraga saiu e foi encontrá-la.

— Muito bem, Hiraga-sama, vocês podem ficar.

Raiko já dominara o pânico, o conhaque no estômago, permitindo que o destino se tornasse o destino.

— Taira virá aqui esta noite?

— Não, nem amanhã. Mas Furansu-san vem. Sei que vem.

— Mande chamar Taira. Pode fazer isso, não pode?

— Posso, sim, mas o que direi quando ele chegar? — indagou Raiko, apática. No instante seguinte, ela teve um sobressalto, quando Hiraga declarou, os dentes semicerrados:

— Diga a ele, Raiko, que Fujiko decidiu que não deseja mais assinar um contrato, que outro gai-jin a procurou, com uma proposta de negócio melhor.

— Mas o preço do contrato de Fujiko já é fantástico, bom demais, e ele não é nenhum tolo. Vai comparar os preços e o perderei para outra casa. Ele até já visitou algumas. Vou perdê-lo.

— Vai perder a cabeça, se a confusão em que se meteu não for resolvida e o resto do seu corpo bem-alimentado servirá de comida aos peixes.

— Resolver o problema? — Raiko se tornou toda atenção. — Há alguma possibilidade, Hiraga-sama? Tenho uma chance? Conhece algum meio?

— Faça o que eu mandar e talvez eu possa salvá-la. Mande chamar Taira agora.

Hiraga fitou-a com a maior frieza e voltou para junto dos companheiros. Estavam na varanda, observando os arbustos serem inclinados pelo vento.

— Estamos seguros, por um ou dois dias. Takeda disse, desdenhoso:

— Ela nem imagina que está morta, e hoje à noite Iocoama também morrerá será purificada dos vermes.

— Vamos adiar por um dia. Amanhã à noite será melhor.

A ira de Takeda começou a voltar.

— Por quê?

— Quer uma chance de escapar? Desfechar o golpe da morte, mas continuai vivo para apreciá-lo? Todos nós? Concordo com você que o momento chegou. Tem razão nesse ponto, Takeda. Mas amanhã me dá tempo para planejar.

Depois de um momento, Takeda exclamou:

— Akimoto!

— Vamos concordar com o adiamento. Para escapar também... Hiraga é sábio, Takeda, neh?

O silêncio tornou-se imenso.

— Adiamento. Um dia. Concordo.

Takeda levantou-se, seguiu para seu esconderijo, na casa de chá mais próxima. Uma pausa prolongada e Hiraga sugeriu:

— Akimoto, daqui a pouco vá sentar com ele, tranqüilizá-lo.

— Ele é Satsuma, primo. Katsumata era Satsuma. Hiraga olhou para os arbustos, inclinados pelo vento sul.

— Sente com ele. Tranqüilize-o.

 

Tyrer ficou transtornado.

— Não contrato, Raiko-san?

— Não, sinto muito. Fujiko mudou de idéia e recebeu uma oferta muito melhor. Sinto muito, mas ela está intransigente.

— Por favor? — suplicou ele, não entendo a maior parte das palavras em japonês.

Ela repetiu e acrescentou:

— Foi por isso que pedi para vê-lo com urgência. Sinto muito. Ela não vai vê-lo, nem esta noite, nem nunca.

A sensação de Tyrer era de que mergulhava num poço sem fundo. Interrogou-a em seu japonês mais polido e melhor, mas Raiko sacudiu a cabeça.

— Sinto muito — disse ela, encerrando a conversa e fazendo uma reverência para dispensá-lo. — Boa noite, Taira-sama.

Como se estivesse embriagado, Tyrer saiu para a varanda. A porta de shoji foi fechada. Ele cambaleou para o caminho através do jardim, praguejou ao perceber que esquecera os sapatos. Atordoado, sentou na varanda para calçá-los, murmurando:

— O que aconteceu?

Três dias atrás, quando voltara com Babcott de Iedo, tudo estava perfeito, o contrato acertado, a não ser por um pequeno detalhe, o pagamento seria efetuado dentro de uma semana. Sua conta anterior fora liquidada com sorrisos e reverências, Fujiko mais amorosa e mais doce do que nunca naquela noite. Quando Raiko enviara um criado à casa que ele partilhava com Babcott, pedindo uma reunião urgente, ele presumira, divertido, que era apenas para assinar o documento. Enviara uma mensagem antes, avisando que provavelmente não poderia ir naquela noite, nem estaria disponível no dia seguinte, pois teria de ir a Kanagawa. E, agora, aquilo...

— Não entendo...

Rajadas de vento agitavam mais folhas em torno de seus pés. Desesperado, ele se aconchegou no casaco. A noite parecia cada vez mais escura. Com um suspiro profundo, Tyrer levantou-se, foi andando pelo caminho sinuoso, mas parou abruptamente, quando um samurai quase esbarrou nele.

— Deus Todo-Poderoso! — explodiu ele. — Nakama!

Hiraga estendeu a mão para a espada e Tyrer pensou que ia morrer. Mas a espada permaneceu pela metade na bainha e ele viu os olhos avaliarem-no, compreendendo que fora por um triz.

— Não — balbuciou Tyrer, meio sufocado com a súbita aparição. — Eu... não estou armado.

Ele ergueu os braços em rendição, ficou imóvel, censurando-se por sua estupidez, quase morreu de novo quando Hiraga bateu com a espada na bainha.

— Taira-sama, eu não machucar você. Pensar era inimigo. Mas ser amigo.

Hiraga sorriu, estendeu a mão. Atordoado, Tyrer apertou-a e depois não pôde mais se conter:

— O que está fazendo aqui? Pensamos que havia fugido para Iedo. Que história é essa de ser um ronin? Temos de entregá-lo a Yoshi, sabe disso. Lorde Yoshi está à sua procura, sabia?

— Não aqui! — advertiu Hiraga. Ele pegou o braço de Tyrer, que sentiu o aperto de ferro. — Vir comigo.

Gesticulando para que ele se mantivesse em silêncio, Hiraga conduziu-o por outro caminho e, depois, por um labirinto de pequenas trilhas, separadas por sebes, até que Tyrer perdera por completo todo e qualquer senso de direção.

— Dentro, por favor.

Trêmulo de medo e desamparado, Tyrer obedeceu. Não havia a menor possibilidade de fugir. Viu Hiraga esquadrinhar a noite, para verificar se haviam sido seguidos. A porta de shoji foi fechada. Uma vela num quebra-luz iluminava o interior da casa comum, de um só cômodo, com pequeno banho adjacente. A chama oscilou, quase se apagou com a aragem.

— Sente! Por favor. Agora, dizer de novo, mas não depressa, a voz baixa. — Com uma expressão sinistra, Hiraga tirou a espada curta do cinto, largou-a no tatame, ao seu lado. — E então?

Tentando conter o temor que se misturava de forma nauseante com sua aflição, Tyrer relatou sobre Yoshi e Abeh, o assassinato de Utani e como todos pensavam que Hiraga já havia fugido para outro lugar.

— Temos de entregá-lo a Yoshi, aos guardas no portão, porque o capitão Abeh voltou para Iedo, Nakama, e... Como devo chamá-lo, Nakama ou Hiraga?

— Como quiser, Taira-sama.

— Hiraga então, pois esse é seu verdadeiro nome, não é?

— Sou chamado assim. Mas os japoneses ter muitos nomes, um no nascimento, outro sete anos, outro adulto, e tomar outro, se quiser. Sou Nakama ou Hiraga, seu amigo.

— Amigo? — repetiu Tyrer, amargurado, esquecendo o medo. — Por que não me disse que era um assassino? Você matou Utani, não é mesmo?

— Sim, ele um alvo, homem muito mau. Yoshi outro. Isto não ser Ing’rand, Taira-sama, não Ing’rand. Esses homens maus, Bakufu, roubar poder do imperador, eles tiranos.

Solene, Hiraga explicou da melhor forma que podia sobre os shishi e sua luta para eliminar o governo despótico — com uma sinceridade óbvia — falou da ganância de Utani e seus impostos exorbitantes, como os clãs e daimios Toranagas possuíam toda a riqueza da terra, os Toranagas mais do que todos os outros, sobre a corrupção do Bakufu, como o povo se tornara faminto e impotente.

— Nós querer devolver Nipão ao imperador, fazer governo justo para todas pessoas.

Por “todas pessoas” Hiraga se referia a todos os samurais, embora Tyrer presumisse que incluía todos os japoneses. E enquanto interrogava Hiraga, fascinado por aquela janela singular para a estrutura interna do Nipão — e a mentalidade dos japoneses —, ele foi se convencendo cada vez mais de que havia mérito no lado de Hiraga. Só tinha de considerar a história inglesa e a luta do povo para prevalecer sobre o “direito divino dos reis” e o domínio dos tiranos para se tornar mais e mais simpático. Não era difícil recordar o imenso custo em vidas para criar o Parlamento e o governo do povo pelo povo: a cabeça de um rei, outros humilhados, revolução, tumultos, mortes, antes de florescerem o Raj britânico e a Pax Britannica. Recordando também a dívida que tinha com aquele homem, ele disse, sombrio:

— Mesmo assim, não vejo qualquer esperança para você. No momento em que for avistado, será capturado, por seu povo ou pelo meu. E não há nada que eu possa fazer para evitar.

Hiraga respirou fundo e lançou-se no vazio.

— Uma coisa sim, poder fazer me ajudar. Ajudar entrar navio, navio ir Ing’rand.

Tyrer ficou aturdido.

— O quê? Você enlouqueceu!

— Por favor, falar baixo, muito inimigo aqui — murmurou Hiraga, no maior excitamento com aquela idéia surpreendente e radical, que surgira do nada, como se plantada pela própria deusa-Sol. — Por favor, escutar. Muitas vezes dizer eu aprender sobre gai-jin, seu país melhor, neh? Eu ir lá com meu primo. Nós aprender melhor maneira fazer governo, seu Parlamento. Nós aprender suas maneiras. Yoshi certo sobre marinha e exército, mas eu achar melhor aprender de banco, negócios, comércio. Nós precisar saber melhor maneira, neh? Sua maneira, a maneira ing’rish, neh?

Com eloqüência, Hiraga continuou a tecer sua teia, a ansiedade emprestando-lhe palavras extras e cadências suaves. Aquele era seu plano final, a única fuga possível da armadilha de Yoshi. Ele tinha certeza de que um ou dois anos passados entre os gai-jin, com as apresentações certas e a ajuda conveniente, seriam de enorme valor para sonno-joi.

É a solução perfeita para escapar da morte inevitável se eu ficar, raciocinara ele, exuberante. Voltaremos dentro de um ou dois anos, falando ing’rish com perfeição, conhecendo seus segredos sobre produk’shum e stoku markit, fuzis, canhões, táticas, estratégias, os métodos que usaram para conquistar o mundo exterior, até mesmo para humilhar a China.

Esta é a terra dos deuses! A China deve ser nossa, não dos gai-jin. Antes de partir, contarei meu plano aos nossos líderes shishi de Choshu e de alguma forma manteremos contato, através de cartas.

— Ser simples, Taira-sama. Você falar capitão, nós embarcar sem problema. Ninguém precisar saber.

— Sir William jamais concordaria.

— Talvez não precisar falar ele. — Hiraga inclinou-se para a frente, oferecendo sua opção, sem se sentir muito seguro. — Ou se falar, eu falar também, achar ele concordar, neh? Muito importante para ing’rish ter amigo Japão. Eu bom amigo. Jami-sama, ele ajudar também, se pedir.

— Quem?

— Jami, homem grande barbudo, maior que você. Jami.

— Jamie? Jamie McFay?

— Sim, Jami Mukfey.

Agora que absorvera a idéia, a mente de Tyrer passou a funcionar melhor. Havia tremendas possibilidades a longo prazo em fazer o que Hiraga sugeria. Sempre fora a política britânica educar — reeducar — estudantes estrangeiros devidamente selecionados, quanto mais importantes ou de famílias reais, melhor. Muitos eram radicais ou revolucionários em seus próprios países, em particular na índia. Hiraga era muito inteligente e não podia deixar de ser importante, se era inimigo de Yoshi. Julgue um homem por seus inimigos, dissera seu pai.

E enquanto remoía sobre a sugestão de Hiraga, ele também especulou como estavam o pai e a mãe, seus amigos, triste por não poder vê-los, por saber que tão cedo não voltaria a Londres... não havia licença por dois anos. Ao mesmo tempo, orgulhava-se de participar do serviço diplomático, de ser uma engrenagem, mesmo que mínima, na vastidão do império britânico.

A idéia de Hiraga é boa. Daria certo. Mas como tirá-lo daqui, como persuadir Sir William a ajudar... Willie é a chave.

Quanto mais Tyrer pensava a respeito, mais suas esperanças minguavam, mas tinha de admitir que era uma estupidez sequer considerar a possibilidade, tornando-se mais e mais certo de que Sir William não ajudaria, nem sequer ia querer ouvir um plano assim, não com aquele homem, um assassino confesso, não com Hiraga, que era apenas um peão na disputa muito maior por Yoshi. Não haveria retorno para Sir William — nenhuma compensação, nenhum motivo para se arriscar à hostilidade de Yoshi, nem o poder no futuro, ou qualquer outra coisa que Hiraga alegasse.

— Tentarei — disse ele, procurando se mostrar confiante, sem esquecer de que ainda era um prisioneiro de Hiraga, a espada muito próxima. — Não posso garantir coisa alguma, mas tentarei. Onde poderei encontrá-lo?

Hiraga sentia-se satisfeito, seu jogo imenso, entretanto, lhe concedera espaço para manobrar. Convencera Taira, agora outra vez do seu lado. O líder gai-jin se tornaria um aliado.

— Você guardar segredo?

— Claro.

— Mandar aviso Raiko. Nós encontrar na aldeia ou aqui. Dizer onde, Taira-sama. Achar quanto mais cedo, ser melhor, para navio, neh?

— Tem razão. Enviarei uma mensagem amanhã ou virei pessoalmente. Cauteloso, Tyrer começou a se levantar. Hiraga estava radiante.

— Ir ver Fujiko?

A desolação de Tyrer foi imediata.

— Não há mais Fujiko.

— Como? O que significar, por favor?

Tyrer contou tudo, viu o rosto de Hiraga corar.

— Mas você ter promessa, Taira-sama. Eu falar, arranjar tudo com Raiko, neh?

— Pode falar, mas agora o contrato foi cancelado. Raiko diz... Tyrer parou de falar, assustado com a expressão de Hiraga.

— Esperar, por favor!

Hiraga saiu, com cara de furioso. Tyrer espiou por uma janela lateral. Ninguém à vista, apenas os arbustos balançando, o cheiro de maresia no ar... fuja enquanto tem chance, ele disse a si mesmo, mas depois, subitamente, experimentou desesperada vontade de urinar. Usou o balde no banheiro e sentiu-se melhor. Agora estava com fome. E com sede. Olhou ao redor. Não havia bule de chá nem um cântaro com água. A fome e a sede eram excruciantes... assim como a idéia de Hiraga. Não havia meio de satisfazer qualquer das coisas. Sem a benevolência de Sir William, Hiraga seria como uma criança perdida na selva. Nem mesmo Jamie poderia ser de grande valia, agora que deixara a Struan. E por que ele ou qualquer outra pessoa haveriam de ajudar? Não havia qualquer compensação. Tyrer tornou a espiar pela pequena janela.

Saia enquanto pode, pensou ele, e se encaminhou para a porta. Foi nesse instante que ouviu passos. Voltou apressado para a almofada. A porta de shoji foi aberta. Raiko ajoelhou-se na sua frente, enquanto Hiraga mantinha-se na porta, ameaçador.

— Desculpe, Taira-sama — disse Raiko, engasgando com as palavras, numa pressa abjeta para apaziguá-lo. — Sinto muito. Cometi um erro terrível...

Suas palavras foram como uma fonte. Tyrer não entendeu tudo, mas absorveu a mensagem com clareza.

— Já chega — disse ele, com firmeza. — Trazer contrato agora. Eu assinar. Submissa, ela tirou o pergaminho da manga e estendeu-o.

— Espere! — interveio Hiraga. — Dê-me isso!

Raiko obedeceu no mesmo instante e tornou a baixar a cabeça. Ele examinou o documento curto, soltou um grunhido.

— Estar conforme combinado, Taira-sama, você assinar mais tarde — disse ele, voltando a falar em inglês. — Esta pessoa,... — Ele apontou para Raiko, irado. — ...dizer cometer erro, dizer Fujiko suplicar agora honra receber você, sentir muito pelo erro. Erro dela. Baka!

Uma pausa e Hiraga acrescentou em japonês, a voz ríspida:

— Trate este lorde muito bem ou destruirei sua casa de chá! Cuide para que Fujiko esteja pronta, à espera! E agora vá!

— Hai, Hiraga-sama!

Murmurando desculpas em profusão, Raiko se retirou. Quando se encontrava a uma distância segura, ela riu, satisfeita com seu desempenho, com o êxito da trama de Hiraga, e por ter fechado o negócio.

Tyrer, exultante, agradeceu a Hiraga, feliz demais para se preocupar com a maneira pela qual seu óbvio amigo conseguira promover uma mudança tão depressa. Nunca seremos capazes de compreender algumas coisas sobre os japoneses, refletiu ele.

— Assinarei o contrato e o trarei de volta amanhã.

— Não ter pressa, deixar aquela cadela de mulher esperar. — Hiraga sorriu e estendeu-lhe o pergaminho. — Agora eu levar você até Fujiko. lkimasho.

— Domo arígato gozaimashita.

Tyrer fez uma reverência como a que um japonês ofereceria a alguém a quem devesse um considerável favor.

— Amigo ajudar amigo — disse Hiraga, simplesmente.

 

Mais tarde, ainda naquela noite, Tyrer acordou, completamente satisfeito. Seu relógio marcava 9:20 h. Perfeito, pensou ele. Ficou deitado ao lado de Fujiko, mergulhada num sono profundo. Os futons e as colchas de plumas eram tão limpos e com um aroma tão suave quanto ela, quentes e confortáveis... muito melhor que sua cama, um colchão de palha duro, pesados cobertores de lã, com cheiro de umidade. A pele lustrosa de Fujiko era dourada à luz da vela, o pequeno quarto dourado e aconchegante, com o vento agitando o telhado, as telas de shoji e as chamas.

Outro breve cochilo, pensou ele, e depois irei embora.

Não seja tolo. Não há necessidade de voltar esta noite. Todos os documentos para a reunião com Yoshi amanhã já estão prontos, uma cópia do tratado em japonês e inglês na pasta de Wee Willie, tudo conferido esta tarde. O plano de batalha acertado contra Sanjiro de Satsuma está pronto, no cofre, à espera da assinatura dele e de Ketterer. Voltarei ao amanhecer, tão radiante quanto um guinéu de ouro que acabou de ser cunhado. Afinal, bem que mereço um prêmio, depois do choque-iú de Hiraga e do choque-iú ainda maior de Raiko. Ele sorriu, choque-iú, soando muito japonês. Um suspiro de satisfação, o bom e velho Nakama, isto é, Hiraga. Tyrer bocejou, fechou os olhos. E se aconchegou ainda mais. Fujiko não acordou, mas se abriu para ele.

Em outra parte dos jardins, Hinodeh aguardava impaciente por André, que deveria chegar a qualquer momento agora, como Raiko avisara. Ela se sentia quase doente na expectativa.

Raiko se encontrava em seus aposentos, relaxada, tomando saquê. Muito em breve passaria para o conhaque e o esquecimento, a bebida removendo todos os pensamentos desagradáveis: seu medo e aversão a Hiraga, suas esperanças por ele, o terror por Meikin, o desejo de vingança, tudo se misturando e se fundindo a cada taça esvaziada.

No outro lado dos jardins, escondido em sua casa segura, Hiraga sentava na posição clássica do Lótus, meditando para desanuviar a terrível dor de cabeça provocada pela notícia sobre Katsumata e o encontro com Tyrer. Muito em breve Akimoto voltaria. E depois ele decidiria sobre Takeda.

No outro lado da cerca, num bangalô nos jardins da casa de chá das Cerejeiras, Akimoto se encontrava bêbado de saquê. Refestelado à sua frente, Takeda arrotou tomou mais um gole de sua cerveja. Outro frasco de saquê foi esvaziado, lentamente, até que escapuliu dos dedos de Takeda, que tinha os olhos turvos. A cabeça baixou para os braços, e ele começou a roncar. Takeda sorriu, não tão embriagado quanto fingira.

Depois de se certificar de que Akimoto estava mesmo adormecido, ele abriu a porta de shoji, saiu e fechou-a sem fazer barulho. A noite era fria, o vento forte soprava do sul. Zunia ao seu redor, agitando seus cabelos curtos e incômodos. Takeda coçou com todo vigor, esquadrinhando a parte dos jardins que podia avistar. Uma criada com uma bandeja saiu apressada de um bangalô, retornando à casa principal. A distância, homens cantavam, embriagados, sob os acordes de uma samisen. Um cachorro latiu em algum lugar. Depois que a criada desapareceu, ele pôs o casaco escuro, acolchoado, enfiou as espadas no cinto, calçou as sandálias de palha e se afastou apressado por um caminho, passou para outro e mais outro, até chegar perto da cerca. Seu esconderijo era sob um arbusto. Cinco bombas, feitas por ele e Hiraga, com estopins de diversos comprimentos.

As bombas eram fabricadas com dois pedaços de bambu gigante, amarrados juntos, um palmo e meio de extensão, a metade disso na largura, o interior de um com a pólvora extra de Katsumata, o outro com óleo. Num instante, ele armou as três bombas, usando o mais longo dos estopins de que dispunha, com cerca de uma vela de duração... quase duas horas. O estopim era de corda de algodão, impregnada com uma solução de pólvora e posta a secar. Preparou as duas restantes com estopins para a metade desse tempo.

Um último olhar para o céu. As nuvens disparavam com o vento. Ótimo. Takeda pegou duas bombas e se afastou, fundindo-se com a noite. Passou pela porta secreta na cerca para o jardim da casa das Três Carpas, que ficava ao sul da casa das Cerejeiras, e se encaminhou para o mais meridional dos bangalôs ali, também erguido, como todos os demais, sobre meio metro do chão, apoiado em estacas baixas. Estava ocupado e iluminado. Cauteloso, Takeda rastejou por baixo. Acendeu o estopim com uma pederneira, o barulho abafado pelo vento. O estopim pegou. Os passos de uma mulher soaram por cima e ele ficou imóvel. O som da porta de shoji sendo aberta. Depois de um momento, foi fechada de novo.

Folhas caídas empilhadas sobre o estopim aceso o ocultavam quase que por completo e Takeda tornou a se afastar, uma sombra entre sombras... para se agachar por trás de arbustos, ao deparar com um gai-jin se aproximando. O homem passou sem percebê-lo e Takeda logo voltou a se movimentar, seguindo para o prédio principal. Outra bomba incendiária foi instalada ali, com o maior cuidado.

Ele voltou para a cerca, evitando um criado, esperando que uma criada velha e corpulenta passasse, chegou ao esconderijo, pegou a última das bombas de estopim comprido e outra vez partiu apressado. Acendeu-a e colocou-a debaixo de seu próprio bangalô. Podia ouvir os roncos de Akimoto lá em cima. Os lábios de Takeda se contraíram num sorriso. Pela última vez, ele correu de volta ao esconderijo, suado e eufórico. Até agora, tudo transcorrera de acordo com o plano de Ori. Hiraga estava infectado pelos gai-jin. E Akimoto também. O que já não acontecia com ele. Faria tudo sozinho.

Com as bombas restantes, ele atravessou o jardim, pulou a cerca para o seguinte, depois outro e mais outro, até alcançar o poço que era a entrada para o túnel secreto. Entrou no poço, pôs a tampa de volta no lugar. Não precisava temer a possibilidade de encontrar Hiraga ali embaixo.

No túnel, são e salvo, Takeda recomeçou a respirar e acendeu o lampião de óleo. A cama de Hiraga e uns poucos objetos espalhavam-se ao redor. A mochila de Katsumata, com as bombas nos cilindros de metal, estava debaixo de uma manta. Ele pôs na mochila suas duas bombas e ajeitou-a nos ombros, seguindo apressado pelo túnel. Logo deparou com a barreira de água. Tirou as roupas, amarrando-as numa trouxa.

A água enregelante deixou-o com dificuldade para respirar. Ao alcançar a parte mais estreita, onde o teto baixava na direção da água, sua cabeça ficou a poucos centímetros da rocha, a água subindo até o queixo. Não foi fácil manter a lanterna e a mochila acima da superfície. No outro lado, ele se vestiu, o mais depressa possível, estremecendo e praguejando. Ainda havia muita coisa a fazer. Não tinha importância, pois já começara. Dali a pouco terminaria tudo; depois viveria para sempre. Seu fervor aqueceu-o, fez com que esquecesse o frio.

Na extremidade do túnel, onde havia barras de ferro para subir e o poço desaparecia nas profundezas, Takeda parou, a fim de recuperar o fôlego. Agora, era o momento de subir. Escorregou numa das barras de ferro, quase caiu, mas conseguiu se equilibrar e ficou parado, até o coração se aquietar. E continuou a subir. Com a maior cautela, empurrou para o lado a tampa quebrada, ergueu a cabeça para espiar ao redor. A terra de ninguém se encontrava vazia. Acidade dos bêbados estava agitada, com risos, gritos, cantos embriagados, uns poucos homens cambaleando por vielas, não muito longe, cachorros latindo para eles.

A cidade dos bêbados situava-se ao sul da aldeia e da colônia, que se estendia ao longo da costa, numa linha sul-norte. A Yoshiwara ficava ao sul da cidade dos bêbados. Ori primeiro, depois Katsumata e Hiraga haviam planejado onde pôr os artefatos incendiários, a fim de que um vento sul espalhasse as chamas, que consumiriam tudo em seu caminho.

Takeda deixou a mochila no meio do mato e foi esconder uma das bombas de pavio curto junto a um armazém desconjuntado, a outra por trás de uma choupana. O lixo cobriu os estopins acesos.

Voltando apressado para o lugar em que deixara a mochila, com as bombas restantes, ele teve de se esconder por trás de uma pilha de lixo. Vindo da aldeia, uma patrulha de soldados fazia sua ronda noturna. Costumava sair da legação britânica, percorria a High Street, atravessava a aldeia, passava pela terra de ninguém, cruzava a cidade dos bêbados e voltava pelo passeio. Duas vezes por noite. Ao chegarem à viela, a trinta metros do lugar em que Takeda se encontrava, os soldados pararam, ao abrigo de um armazém, para fumar um cigarro e urinar.

Takeda praguejou silenciosamente, imobilizado ali. Mais de três quartos de uma vela já haviam transcorrido desde que acendera o primeiro estopim.

 

— Boa noite, Hinodeh — disse André, ao entrar no santuário que tinham no jardim, algum tempo antes. — Desculpar atraso.

— Boa noite, Furansu-san. Nunca está atrasado. Não importa o que faça, é sempre correto. — Sorrindo para ele. — Aceita saquê?

— Por favor.

Ele sentou na frente de Hinodeh, observou-a servir, suas pernas no espaço sob a mesa, onde um pequeno braseiro aquecia o ar, o calor mantido pelo edredom estendido por cima da mesa e envolvendo os dois. A graciosidade de Hinodeh era ainda mais sedutora, os cabelos pretos, brilhantes, presos com alfinetes ornamentais, um toque de ruge nos lábios, as mangas compridas afastadas com cuidado do frasco.

Naquela noite ela usava um quimono que André nunca vira antes, numa gloriosa tonalidade de verde, a cor predileta dele, com garças, símbolo de vida longa, bordadas em fio prateado por toda parte, a bainha de um quimono de baixo aparecendo, de forma sedutora. Com uma reverência, Hinodeh entregou-lhe a taça e depois, para surpresa de André, serviu-se de outro frasco, que continha saquê aquecido — o dele era frio, como preferia. Era muito raro Hinodeh beber. Com um sorriso, ela ergueu sua taça.

— A ta santé, chéri, je t’aime.

Ela imitou o sotaque de André, como ele lhe ensinara.

— A ta santé, chérie, je t’aime.

André sentiu um aperto no coração, não acreditando que ela o amasse; como poderia?

Bateram as taças e Hinodeh esvaziou a sua, engasgou um pouco, e logo tornou a servir mais aos dois. O mesmo sorriso e ela estendeu sua taça para tocar na de André. Esvaziaram de novo, Hinodeh encheu mais uma vez.

— Mon Dieu, Hinodeh, tomar cuidado, sim? — disse ele, rindo. — Não acostumada saquê. Cuidado, não ficar embriagada!

Ela riu, os dentes brancos faiscando, os lábios sensuais.

— Por favor, Furansu-san, esta noite é especial. Beba e seja alegre. Por favor. Hinodeh tomou só um gole desta vez, fitando-o por cima da taça, os olhos brilhando, cintilando à luz das velas, olhos que ele sempre achara insondáveis, sempre o mantiveram desconcertado... parte do fascínio que ela exercia.

— Por que especial, Hinodeh?

— Hoje é Sei-ji-no-Hi, o dia da maioridade... para todas as pessoas que alcançaram vinte anos... você alcançou os vinte, neh? — Feliz, ela apontou para a vela grande na mesa. — Esta vela eu dediquei ao deus da minha aldeia, Ujigami, para você.

Hinodeh gesticulou para a porta de shoji. Por cima, havia um buque de agulhas de pinheiro e bambus.

— Aquilo é um kadamatsu, simbolizando estabilidade. — Um sorriso tímido ela tornou a servir, bebeu mais. — Espero que aprove.

— Claro que sim — murmurou ele, satisfeito. — Obrigado, Hinodeh.

Poucas semanas antes, André descobrira que era o aniversário dela e trouxera champanhe gelada, com uma pulseira de ouro. Hinodeh torcera o nariz para as borbulhas, dissera que o champanhe era delicioso, mas só bebera quando ele insistira. André tomara a maior parte da garrafa e naquela noite seu ato de amor fora frenético.

Ao longo do tempo juntos, André notara que a violência de seus movimentos não a perturbava, Hinodeh reagia da mesma forma, o que quer que ele fizesse, e depois se estendia de costas ao seu lado, esgotada. Mas ele nunca fora capaz de descobrir se Hinodeh de fato gostava, como também não podia apenas saboreá-la, e deixá-la assim, deixá-la com sua farsa, se assim era... e esquecer o enigma que ela se tornara. Ainda haveria um dia de deslindar o enigma. Tinha certeza. Só precisava de paciência, mais nada. Teria de desbastar a carapaça do enigma e depois o amor dos dois, com sua paixão frenética e insaciável, passaria a ser mais tranqüilo, e ele poderia viver em paz.

Hinodeh ainda era tudo para ele. Nada mais importava. Naquela tarde ele se humilhara com Angelique, adulara, suplicara e ameaçara, até que ela lhe dera um broche, em vez de dinheiro. Raiko o aceitara.

Angelique é uma idiota. Por que está hesitando? Claro que ela deveria aceitar a oferta de Tess Struan, ficar com o dinheiro, antes que a proposta fosse retirada. É uma oferta generosa e muito mais do que eu esperava, considerando a posição insustentável de Angelique: nenhum testamento em seu favor, e de qualquer maneira nenhuma herança para reivindicar! Quinhentos guinéus como adiantamento em três semanas! Maravilhoso... uma dádiva de Deus! Ela pode dispensar quatrocentos dessa quantia e encontrarei agiotas para adiantarem outros mil, contra seu fundo, dois mil, o que eu precisar. Skye é um tolo. Angelique vai concordar, depois que eu conversar com ela, e aceitar agradecida qualquer adiantamento, quando eu sugerir. Estou salvo!

Contemplando Hinodeh, ele exibiu um sorriso radiante, na maior satisfação.

— O que é?

Ela se abanou, contra o crescente calor alcoólico, a ponta da língua entre os dentes. Em francês, André disse:

— Estou livre, meu amor, muito em breve seu contrato será pago, e se tornará toda minha para sempre.

— Sinto muito, mas não entendi. Voltando ao japonês, ele murmurou:

— Esta noite eu ser feliz e dizer você minha. Ser muito bonita e ser minha.

Hinodeh inclinou a cabeça ao elogio.

— Você também é bonito e fico contente quando se sente feliz comigo.

— Sempre.

Mas isso não era verdade. Com bastante frequência, André se irritava, ia embora furioso. Sempre o mesmo problema, um comentário casual, levando-o a indagar, depois escarnecer, suplicar, exigir, implorar, gritar:

— Não precisamos de escuridão! Somos amantes e não precisamos mais do escuro. Somos amigos, além de amantes, estou comprometido com você para sempre. Para sempre! Amo você, não pode nem imaginar o quanto a amo, não pode saber, fico perguntando e perguntando, mas você apenas senta aí...

Sempre a mesma resposta paciente e submissa, a cabeça no chão, a voz baixa, com ou sem lágrimas, mas categórica:

— Por favor, desculpe, mas você concordou. Sinto muito, mas você concordou.

Ela tornou a beber e André percebeu o crescente rubor em suas faces, observou-a sair de novo, os dedos trêmulos, derramando uma gota. Hinodeh prendeu a respiração, com uma risada.

— Oh, sinto muito!

As duas taças, cheias, de novo logo se esvaziaram, a embriaguez de Hinodeh tornando-a ainda mais sedutora.

— Ah, mas isso é muito, muito gostoso, neh, Furansu-san?

Os dedos compridos, com unhas perfeitas, sacudiram o frasco, para descobrir que estava vazio. Hinodeh levantou-se no mesmo instante, graciosa, o quimono comprido arrastando no chão, criando a ilusão de que ela flutuou até o braseiro, onde havia outros frascos, em água fervendo, e até a pequena janela, onde havia uma prateleira para fora, com mais frascos, gelando. O vento entrou no cômodo por um instante, trazendo um odor inesperado. Fumaça de pólvora, tênue, mas inconfundível.

— O que é isso? — disse ele, em francês. Hinodeh fitou-o, surpresa.

— Por favor?

Agora que a janela fora fechada, o odor desaparecera.

— Nada... apenas pensei... — Naquela noite, tudo em Hinodeh o fascinava. — Nada... Por favor, sente aqui.

Obediente, ela sentou ao seu lado, esbarrando nele, rindo. Meio desajeitada, serviu de novo. Divertido, André bebeu com ela, o saquê esquentando-o, mas não tanto quanto aquecia Hinodeh. Sob a manta, as pernas se encontraram. Ele estendeu a mão para pegar a dela, a outra contornou sua cintura, beijaram-se, os lábios de Hinodeh macios e úmidos, a língua sensual. A mão de André foi subindo, ela se desvencilhou do abraço, rindo.

— Espere, espere, não aqui, esta noite...

Como uma colegial assustada, Hinodeh empurrou-o, levantou-se, foi para o quarto, com um único lampião, pronta para apagá-lo, e depois, quando estivesse no escuro, convidando-o para entrar. Mas naquela noite ela parou na porta, encostou-se nela, virou-se, os olhos cintilando.

— Furansu-san...

Observando-o, ela cantarolou, enquanto tirava os alfinetes compridos dos cabelos, deixou-os caírem numa cascata até a cintura. Em seguida, soltou a obi e deixou-a cair. Uma risada. E veio a vez do quimono. André ficou fascinado incapaz de respirar. O dourado do quimono de baixo tremeluzia às chamas das velas, deixando entrever, mas também ocultando. Mais uma vez, a ponta da língua de Hinodeh percorreu os lábios. Coquete, ela desamarrou os laços, deixou o quimono abrir um pouco. Não havia outras roupas por baixo. Apenas as linhas estreitas de seu corpo reveladas, do pescoço aos pés mínimos. E durante todo o tempo o sorriso enigmático, os olhos sedutores, compelindo-o a esperar, prometendo, insinuando. O vento zunia pelas telas de shoji, mas nenhum dos dois o ouvia.

O coração de André batia forte, como nunca antes. Ele forçou-se a permanecer sentado. Podia agora ver o peito de Hinodeh subindo e descendo, os mamilos dos seios pequenos se projetando contra a seda. E depois ela suspirou. Com uma graça excepcional, ela deixou essa última cobertura escorregar, devagar, e ficou imóvel ali, em toda a sua pureza.

Para André, o tempo parou. Mal respirando, ele exultou com o presente que Hinodeh lhe oferecia, tão inesperado, e dado por livre e espontânea vontade. Quando não mais podia suportar a espera, ele se levantou. Seus braços foram gentis e beijou-a com toda a paixão que possuía, apertando-se fortemente contra ela, que ficou inerte em seus braços. Com a maior facilidade, André levantou-a, foi estendê-la sobre os futons no quarto, tirou as próprias roupas. Ajoelhou-se ao seu lado, contemplando-a em êxtase, na luz.

— Jet’aime, jet’aime.

— Olhe, Furansu-san — murmurou ela, com um sorriso adorável.

Os dedos apontavam para a parte interna da coxa. Por um instante, ele não entendeu. E depois viu a abrasão. Seu coração quase saltou do peito, a bílis subindo à boca.

— Olhe — repetiu ela, a voz suave, o sorriso constante, os olhos muito escuros, na tênue claridade. — Começou.

— Não... não é nada — balbuciou André, a voz trémula. — Nada.

— É tudo. — Ela fitou-o nos olhos. — Por favor, dê-me a faca.

Ele sentiu a cabeça girar, sem ver mais nada, apenas a chaga, que parecia encher todo o mundo. Com um esforço gigantesco, André sacudiu a cabeça, para desanuviá-la. E forçou os olhos a ver. Mas isso não dissipou o gosto amargo e vil na boca.

— Não é nada, apenas... nada... absolutamente nada. — Quanto mais ele olhava, menos importante a chaga parecia. — Não passa de uma marca de esfoladura, só isso.

— Por favor? Deve falar em japonês, Furansu-san, sinto muito.

— Ah... não ser doença. Não isso. Apenas... apenas tanga apertada, não se preocupar.

André inclinou-se para cobri-la, apagar a luz, mas ela o deteve. Gentilmente.

— Sinto muito, mas já começou. Por favor, dê-me a faca.

Como sempre, a faca de André se encontrava na bainha em seu cinto. Junto com as roupas, por trás dele.

— Não, por favor, Hinodeh, não faca, faca ruim, não precisar faca. Isso apenas marca, sem importância.

Através de seu pesadelo, ele a viu sacudir a cabeça, sempre gentil, e repetir o pedido, que agora se tornara uma ordem. Os braços e pernas de André começaram a tremer, a cabeça balançava, de forma incontrolável, não havia como controlar, não havia como interromper a litania incoerente, o murmúrio em francês e japonês que se despejou por sua boca, suplicando, alegando e explicando que a pequena chaga era apenas uma esfoladura, não mais do que isso, não era nada demais, embora ele soubesse. Começara mesmo. Hinodeh tinha razão. Começara, começara de verdade. O estômago de André se contraiu. Mal conseguiu conter o vômito e continuou a murmurar, interminável.

Hinodeh não o interrompeu. Pior do que isso, continuou estendida ali, paciente, esperando que o acesso passasse. Pois em seguida haveria uma solução. André insistiu, balbuciando:

— Escute, Hinodeh, por favor, não faca. Por favor. Não pode... isso... não ser nada. Logo desaparecer. Olhar para mim, olhar! — Desesperado, ele apontou para si mesmo. — Nada, nenhum lugar. Essa pequena, logo sumir. Não faca. Nós viver. Não ter medo. Feliz. Sim?

Ele viu uma sombra passar pelo rosto de Hinodeh, seus dedos voltaram a tocar na abrasão e ela repetiu, outra vez com a mesma voz doce e monótona:

— Já começou.

André fixou um sorriso, sem saber que era grotesco, e por mais que adulasse, persuadisse, suplicasse, ela continuou a insistir, com extrema gentileza, enfurecendo-o mais e mais, até que ele se descobriu a pique de explodir.

— Não ser nada — disse ele, a voz rouca. — Compreender?

— Claro, eu compreendo. Mas já começou. Neh?

Ele fitou-a nos olhos, com uma expressão rancorosa, a raiva aflorou, e desatou a gritar:

— Pelo amor de Deus, sim! Sim, SIM! Hai!

Houve um silêncio profundo e prolongado, rompido por Hinodeh:

— Obrigada, Furansu-san. Agora, por favor, como concordou, já começou, como prometeu, dê-me a faca, por favor.

Os olhos de André estavam injetados, os cantos da boca cheios de espuma, o suor escorria pelo corpo, ele se achava à beira da loucura. A boca se abriu e disse o que ele sempre soubera que diria:

— Não faca. Kinjiru! Ser proibido. Não poder. Não poder. Você muito valiosa. Proibido. Não faca.

— Você recusa?

A pergunta foi feita gentilmente, sem qualquer mudança.

— Hinodeh, você sol, meu sol, minha lua. Não poder. Não fazer isso. Nunca, nunca, nunca. Proibido. Você ficar. Por favor. Je t’aime.

— Por favor, a faca.

— Não!

Um longo suspiro. Dócil, ela fez uma reverência, uma luz se extinguindo em seus olhos, foi pegar uma toalha úmida, outra seca, e ajoelhou-se ao lado da cama.

— Aqui, Sire.

O rosto franzido, todo suado, André observava-a.

— Você concordar?

— Sim, eu concordo. Se é esse o seu desejo.

Ele pegou-lhe a mão. Hinodeh não a retirou.

— Concordar de verdade?

— Se é o seu desejo. Como quiser. A voz era triste.

— Não pedir faca, nunca mais?

— Eu concordou. Já acabou, Furansu-san, se é esse o seu desejo. — A voz era doce, o rosto sereno, diferente, mas também o mesmo, com uma insinuação de tristeza. — Por favor, pare agora. Já acabou. Prometo que nunca mais tomarei a pedir. Por favor, desculpe-me.

André sentiu um peso removido de seus ombros. Ficou fraco de alívio.

— Oh, Hinodeh, je t’aime! Obrigado! Obrigado! — A voz era trêmula. — Mas, por favor, por favor, não triste. Je t’aime, obrigado.

— Por favor, não me agradeça. É seu desejo.

— Por favor, não triste, Hinodeh. Eu prometer ser tudo, ser muito bom agora. Maravilhoso. Eu prometer.

Ela acenou com a cabeça, devagar. Um súbito sorriso inundou seu rosto e toda a tristeza se desvaneceu.

— Sim, eu agradeço a você; sim, não ficarei mais triste.

Hinodeh esperou enquanto ele se enxugava, depois removeu as toalhas. Os olhos de André acompanharam-na, deleitando-se com sua imagem, exultantes com a vitória. Ela atravessou o tatame até o outro cômodo, voltou com dois frascos de saquê e murmurou, com um terno sorriso:

— Vamos beber dos frascos, melhor do que taças. O meu quente, o seu frio. Obrigada por comprar meu contrato. A ta santé.

— A ta santé, je t’aime.

— Ah, so ka! Je t’aime.

Hinodeh esvaziou o frasco, engasgou um pouco, depois riu, removeu o que escorrera para o queixo.

— Vamos para a cama, Furansu-san. Arrisca-se a pegar um resfriado.

A bebida lavou a boca de André, dissipou o sentimento de morte. Lentamente, ele puxou a colcha que a cobria, ansiando por ela.

— Por favor, não mais escuro. Por favor?

— Se assim deseja. Não mais escuro. Exceto para dormir, neh?

Agradecido, André inclinou a cabeça até o futon, renascido, depois deitou-se ao seu lado, amando-a, com um desejo monstruoso. Estendeu a mão.

— Ah, Furansu-san, posso descansar primeiro, por favor? — pediu ela, com profunda ternura, como nunca antes. — Tanta paixão me cansou. Posso descansar um pouco? Mais tarde, nós... mais tarde, neh?

Ele obedeceu, estendeu-se de costas, a virilha vibrando de desejo.

Na escuridão, Hinodeh sentia-se mais contente do que em muitos anos, contente como nos dias anteriores à morte de seu marido, quando viviam em sua casinha em Iedo, com o filho, o menino que agora se encontrava são e salvo, já na casa dos avós, aceito, protegido e crescendo para se tornar um samurai.

Foi lamentável Furansu-san não me dar a faca, como prometeu. Desprezível. Mas também ele é gai-jin e não merece a menor confiança. Mas não importa. Eu já sabia que ele não manteria sua parte do acordo, como eu mantive a minha... independentemente do que Raiko prometeu. Ele mentiu quando assinou o contrato, assim como ela também mentiu. Não importa, não importa mesmo. Eu me encontrava preparada para os dois, ambos mentirosos.

O sorriso de Hinodeh se alargou. O velho herbanário não mentiu. Não senti o gosto de nada, não sinto nada agora, mas a morte circula por meu corpo e só me restam uns poucos minutos neste mundo de lágrimas.

Para mim e para o animal também. Ele fez a escolha. Quebrou sua promessa. E, assim, o impuro paga por me enganar. Não vai iludir mais nenhuma dama. E vai para a morte sem saciar seu desejo!

André despertou, ouvindo sua risada ligeira e estranha.

— O que foi?

— Nada. Mais tarde, riremos juntos. Não haverá mais escuridão depois desta noite, Furansu-san. Não haverá mais escuridão.

 

Hiraga bateu com o punho no tatame, cansado de esperar por Akimoto. Saiu para a noite tempestuosa, seguiu pelos caminhos no jardim até a porta na cerca. Passou para o outro jardim, encaminhou-se para o bangalô de Takeda, errando a volta na primeira vez. Parou na varanda. Soavam roncos no interior.

— Akimoto, Takeda? — chamou ele, baixinho, não querendo abrir a porta de shoji sem avisar, pois eles podiam se mostrar perigosos se apanhados de surpresa.

Não houve resposta. Os roncos continuaram. Hiraga abriu a porta, sem fazer barulho. Akimoto estava arriado sobre a mesa, com frascos de saquê e garrafas de cerveja espalhadas pelo chão. Nenhum sinal de Takeda. Furioso, ele sacudiu Akimoto, xingando-o. O jovem saiu do estupor, os olhos turvos, apenas meio acordado.

— O que aconteceu?

A voz saiu engrolada, o rosto de Hiraga desfocado, oscilando.

— Onde está Takeda? Acorde! Baka! Onde está Takeda?

— Não sei. Nós... estávamos bebendo...

Por um segundo, Hiraga ficou imóvel, todo o seu mundo virando de cabeça para baixo, depois saiu correndo, atravessou o jardim, passou pela cerca, foi até o esconderijo das bombas.

Ficou atordoado. E depois se lembrou de que todos conheciam o plano, os melhores lugares para pôr as bombas. O pânico proporcionou velocidade a seus pés. Espiou debaixo do bangalô de Takeda, não pôde ver nada, mas logo sentiu o cheiro de fumaça de pólvora. Abaixou-se, rastejou entre os suportes baixos de pedra, mas o estopim fora bem escondido, a fumaça era dissipada pelas correntes de ar. Hiraga saiu lá de baixo e foi sacudir Akimoto de novo.

— Acorde! Levante-se!

Quando o primo, ainda embriagado, tentou empurrá-lo para longe, Hiraga bateu em seu rosto, com a mão aberta, duas vezes. A dor fez com que Akimoto recuperasse um pouco da percepção.

— Takeda pegou as bombas, está incendiando a estalagem, há uma aqui embaixo...

Hiraga obrigou-o a ficar de pé. Resmungando, apoiado nele, Akimoto saiu, trôpego, desceu os degraus para o jardim, o barulho do vento cada vez mais forte. E foi nesse momento que a bomba explodiu.

A explosão foi pequena, mas o suficiente para derrubá-los e abrir um buraco no chão, a maior parte do ruído abafada pelas vigas no chão e pelo vento. Mas o jato do óleo incendiado foi implacável. As chamas se projetaram para cima e para fora.

— Vá para o túnel e espere lá! — ordenou Hiraga, a voz rouca, antes de sair correndo.

O choque da explosão e de sua quase morte dissipou o estupor de Akimoto. Ele começou a correr, mas o vento arremessou algumas brasas, que o atingiram. Frenético, ele bateu em suas roupas, enquanto se afastava. Ao olhar de novo para o bangalô, constatou que se transformara num inferno — tatames de palha de arroz seca, telas de papel oleado, chão e vigas de madeira, telhado de colmo. Enquanto observava, o telhado desabou, com uma chuva de fagulhas, que foram sugadas para cima e levadas pelo vento para a habitação mais próxima. O colmo pegou fogo. Sinos de incêndio começaram a soar — criadas, servos, clientes, cortesãs, os guardas no portão, todos reagiram no mesmo instante.

Hiraga corria pelo caminho para o bangalô mais ao sul. Chegara a poucos metros de distância quando a bomba explodiu. O impacto foi menor do que o anterior, mas jogou-o contra os arbustos, o corpo batendo num dragão de pedra decorativo, fazendo-o soltar um grito de dor, a explosão bastante poderosa para derrubar todo um canto de suportes e parte do bangalô, que se inclinou, como uma pessoa embriagada. Uma parede irrompeu em chamas.

Ele forçou-se a levantar, pulou para a varanda, sem a menor hesitação, arremeteu pela parede de shoji em chamas, o óleo espirrado já provocando a devastação no interior, a fumaça sufocante. Hiraga levantou as mãos para o rosto, a fim de protegê-lo do calor escaldante, e prendeu a respiração contra a fumaça.

Avistou Tyrer jogado para um lado, tentando desesperado engatinhar, sufocado, cercado por chamas, que num instante transformaram a parede de shoji por trás dele, salpicada de óleo, num lençol de fogo. Outras chamas espalharam-se pelas demais paredes, as vigas de apoio e o telhado, lamberam o que restara do futon e da colcha em que Tyrer se deitava. A bainha de seu quimono de dormir rasgado pegou fogo. Hiraga saltou para a frente, bateu com os pés para apagar as chamas da bainha, ajudou-o a se levantar. Um olhar para Fujiko foi suficiente. A bomba a cortara ao meio. Já estava sem cabelos, virando cinza.

Meio cego pela fumaça, Hiraga arrastou Tyrer para fora do bangalô. No segundo em que saíram, o telhado desabou, derrubando-os no chão. O jato resultante de fagulhas e brasas, convertido num lança-chamas pelo vento, começou a incendiar outras construções, cercas, a casa de chá no jardim ao lado. Soavam gritos por toda parte, alertas contra incêndio, pessoas já formavam filas, correndo para um lado e outro com baldes, ou indo buscar mais baldes, a maioria usando agora máscaras molhadas contra a inalação de fumaça, o que todos já tinham feito, em abundância.

Atônito por ainda estar vivo, tossindo e engasgando, Hiraga bateu num trecho em brasa no peito do seu quimono, a espada curta no cinto, a espada longa desaparecida. Até onde podia determinar, Tyrer se encontrava ileso, mas era impossível ter certeza, já que ele não estava de todo consciente, o peito arfando, tossindo e vomitando devido à fumaça inalada. Desesperado, Hiraga ficou parado ao seu lado, a fim de recuperar o fôlego e o raciocínio. Olhou ao redor, à procura de novos perigos. A habitação mais próxima irrompeu em chamas, depois a seguinte, cortando seu caminho de fuga.

Katsumata tinha razão, pensou ele. Com este vento, a Yoshiwara está condenada. E também a colônia.

 

À beira da terra de ninguém, a patrulha de soldados ficou imóvel, chocada — assim como todas as pessoas na cidade dos bêbados que se encontravam sóbrias —, olhando por cima da cerca, na direção da Yoshiwara. Duas colunas de fogo e fumaça turbilhonante projetavam-se para o céu e soavam gritos e sinos distantes, os sons trazidos pelo vento. Ouviram o barulho fraco de uma terceira explosão. Uma terceira fonte de chamas. A fumaça começou a envolvê-los. Algumas fagulhas passaram por eles.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou o sargento, saindo de junto do armazém para ver melhor. — Isso foi uma bomba?

— Não sei, sarja. Pode ter sido um barril de óleo explodindo. Mas é melhor voltarmos, pois o fogo vem em nossa direção e...

A bomba incendiária que Takeda colocara no outro lado do armazém detonou nesse momento. Instintivamente, todos se abaixaram. Mais fumaça, fogo crepitando, berros dos moradores da cidade dos bêbados mais próximos, pedidos por baldes.

— Fogo! Fogo! Depressa, pelo amor de Deus! Aquele é o armazém em que fica guardado o óleo de lampião!

Homens seminus entravam e saíam correndo das casas próximas, na tentativa de salvar seus valores. Num ponto mais abaixo da rua, a casa da Sra. Fortheringill estava se esvaziando, mulheres e fregueses praguejando e suando, vestindo suas roupas. Mais sinos de alarme soaram. E o saque começou.

Mais além, no portão sul, os disciplinados samurais entraram em ação, correndo para a Yoshiwara com escadas e baldes, máscaras molhadas contra a fumaça cobrindo seus rostos. Uns poucos desviaram-se para combater o fogo no armazém, uns poucos seguiram em frente. As chamas do telhado do armazém, impelidas pelo vento, saltaram pela viela, para atacar a fileira seguinte de construções, que pegaram fogo no mesmo instante.

De seu esconderijo, na terra de ninguém, Takeda viu os soldados em confusão e exultou com o sucesso das bombas, grande parte da Yoshiwara já em chamas. Era tempo de continuar. Rapidamente, ele ajustou a máscara no rosto, que o fazia parecer ainda mais sinistro, junto com o quimono sujo de terra e fuligem.

Em alternações bruxuleantes de noite e luz, ele correu para o poço, pegou a mochila, enfiou os braços pelas alças e foi se esgueirando num caminho precário entre o lixo, tão depressa quanto ousava. Soaram gritos de advertência por trás. Takeda pensou que fora avistado, mas a manifestação era pelo prédio, no momento em que uma parede desabou, com um estrondo, provocando novos jatos de fogo, uma nova chuva de fagulhas, dispersando as pessoas, levando o incêndio ao prédio seguinte. Agora, a abundância de chamas permitia-lhe ver melhor. Exultante, ele começou a correr. Mais à frente ficavam a aldeia e a segurança.

— Ei, você!

Takeda não entendeu as palavras, mas o grito fez com que parasse, num sobressalto. Havia outro grupo de soldados britânicos à sua frente, sob o comando de um oficial. Era uma patrulha que viera correndo da área da aldeia, a fim de avaliar o perigo, e parara de repente, em surpresa. Bloqueavam a sua fuga.

— Deve ser um saqueador! Ou um incendiário! Ei, você!

— Por Deus, senhor, tome cuidado! É um samurai e está armado!

— Dê-me cobertura, sargento! Você aí, samurai! O que faz aqui? O que leva nessa mochila?

Em pânico, Takeda viu o oficial desabotoar o coldre, enquanto avançava em sua direção, e os soldados tirarem o rifle do ombro. Durante todo o tempo, o som do holocausto continuava, as chamas se alastrando, criando estranhas sombras. Takeda virou-se, saiu correndo. No mesmo instante, os soldados partiram em seu encalço.

No outro lado da terra de ninguém, o fogo no armazém escapara por completo a todo e qualquer controle e os soldados tentavam, sem muito resultado, organizar um grupo para combater o incêndio e evitar que as chamas se propagassem a outras construções. O fogo proporcionava bastante claridade para que Takeda corresse pela terra de ninguém, evitando a maioria dos obstáculos, a mochila batendo ern suas costas. A respiração era cada vez mais ofegante. Com súbita esperança, ele divisou a segurança, na viela vazia ao lado do armazém em chamas, bem à sua frente. Foi para lá que correu, distanciando-se com facilidade dos soldados em sua perseguição.

— Pare ou eu atiro!

As palavras nada significavam para ele, mas a hostilidade era inequívoca. E Takeda continuou a correr, em linha reta agora, não precisava mais de esquivas, tão perto da segurança. Esquecera que a claridade que o ajudava também ajudava aos soldados, delineando seu vulto contra as chamas.

— Detenha-o, sargento! Pode feri-lo, mas não o mate!

— Certo, senhor... Ei, por Deus, não é aquele patife que Sir William procura, o tal de Nakama, aquele assassino desgraçado?

— Tem toda razão, é ele mesmo! Depressa, sargento, trate de derrubá-lo logo!

O sargento mirou. Seu alvo já começava a escapar pela viela. Ele puxou o gatilho.

— Acertei! — gritou em seguida, exultante, começando a correr. — Vamos embora, pessoal!

A bala derrubara Takeda. Atravessara a mochila, no alto das costas, perfurara um pulmão e saíra pelo peito. Não era um ferimento fatal, se o homem tivesse sorte. Mas Takeda não sabia disso, tinha certeza de que estava perdido e ficou estendido na terra, uivando com o choque, mas sem dor, um braço inútil, dormente, o rugido do fogo próximo abafando seus gritos. O terror fez com que ficasse de joelhos, o calor do incêndio se aproximando era assustador, a segurança a poucos passos à frente, pela viela. Ele se arrastou para a frente. E depois, através das lágrimas, ouviu os gritos dos soldados logo atrás. Não tinha escapatória!

Seus reflexos assumiram o comando. Usando a mão incólume como apoio para se levantar, com um grito poderoso, ele se lançou para as chamas. O jovem soldado na vanguarda parou abruptamente, quase caindo, recuou para um ponto seguro, as mãos erguidas contra o inferno, a estrutura devendo cair a qualquer momento.

— Desgraçado! — O soldado olhou furioso para as chamas, que consumiam sua presa, o cheiro de carne queimada deixando-o nauseado. — Mais um segundo e eu pegaria o patife, senhor! Era mesmo ele, o homem que Sir William...

Foi a última coisa que o jovem disse em sua curta vida. As bombas de Katsumata na mochila explodiram com a maior violência, um pedaço de metal dilacerou a garganta do soldado, derrubando o oficial e outros homens como pinos num jogo de boliche, quebrando alguns membros. Como se fosse um eco, um tambor de óleo também explodiu, com a mesma violência, depois outro e mais outro, com um efeito cataclísmico. Chamas e fagulhas subiram pelo ar, foram apanhadas e usadas de forma implacável pelo vento cada vez mais forte, agora alimentado também pela intensidade do calor.

A primeira das casas da aldeia começou a arder.

O shoya, sua família e todos os aldeões, já com máscaras contra a fumaça e preparados num instante, desde o primeiro alarme, continuaram a trabalhar com uma rapidez bem ensaiada, mas estóica, guardando os objetos valiosos nos pequenos abrigos de tijolos, à prova de fogo, encontrados em todos os jardins. Todos os telhados ao longo da rua principal pegaram fogo.

Menos de uma hora depois da explosão da primeira bomba, a casa das Três Carpas não mais existia e quase toda a Yoshiwara fora destruída. Apenas as chaminés de tijolos, os suportes de pedra das casas e os abrigos de tijolos, pedras e terra, à prova de fogo, ainda continuavam de pé, no meio das cinzas e brasas. Taças e frascos de saquê com os formatos alterados pelo fogo. Os utensílios de cozinha de metal. Jardins em ruínas, arbustos queimados, grupos de habitantes atordoados reunidos aqui e ali. Milagrosamente, o fogo deixara duas ou três estalagens incólumes, mas ao redor havia um vazio desolado, feito de cinzas e brasas, até a cerca da Yoshiwara e o fosso além.

No outro lado do fosso ficava a aldeia. Estava em chamas. Além da aldeia, na colônia propriamente dita, os telhados de três prédios, perto da cidade dos bêbados, já haviam pegado fogo. Um desses prédios era o do Guardian, onde Jamie McFay tinha seu novo escritório.

Nettlesmith e seus empregados estendiam baldes com água para o topo da escada, onde Jamie se postava, tentando apagar as chamas no telhado. O fogo já devorava grande parte do prédio ao lado. Outros homens, mais criados chineses e Maureen, entravam e saíam correndo pela porta da frente, intrépidos, carregando nos braços pilhas de papel, moldes de impressão e tudo o mais que fosse importante. As telhas de madeira em chamas caíam em torno deles. A fumaça que vinha da cidade dos bêbados fazia com que tossissem, deixava-os sem respiração, dificultando o trabalho. Lá em cima, Jamie estava perdendo a batalha. Uma rajada de vento empurrou as chamas em sua direção. Ele quase caiu da escada e acabou descendo, derrotado.

— Não tem mais jeito — murmurou ele, ofegante, o rosto escurecido pela fuligem, cabelos chamuscados.

— Jamie, ajude-me com o prelo, pelo amor de Deus! — berrou Nettlesmith. Ele correu para o interior do prédio. Maureen fez menção de segui-lo, mas Jamie deteve-a.

— Não! Fique aqui e tome cuidado com seu vestido! — gritou ele, por cima do barulho, no momento em que uma chuva de fagulhas caía ao redor, para depois entrar no prédio também.

Numa reação sensata, Maureen recuou para o lado da rua que dava para o mar, ajudando outros a empilharem de modo mais seguro o que fora salvo. Todo o telhado pegara fogo agora, mais fagulhas caíram sobre Jamie e Nettlesmith, quando saíram cambaleando pela porta da frente, carregando o pequeno prelo portátil. Depois, constatando que era impossível salvar o telhado, Jamie tornou a entrar, apressado, para ajudá-lo a tirar os tipos, moldes, tinta e algum papel. Mas num instante se tornou perigoso demais entrar no prédio de madeira. Os dois ficaram parados na frente, praguejando, e logo recuaram para uma distância segura, quando algumas vigas começaram a cair.

— Porra de fogo miserável! — bradou Jamie, chutando uma caixa com tipos, furioso.

Ele se virou abruptamente, quando Maureen pegou sua mão.

— Sinto muito, amor — murmurou ela, as lágrimas escorrendo. Jamie abraçou-a e disse, fervoroso, com toda sinceridade:

— Não tem importância. Você está sã e salva e isso é tudo o que conta.

— Não se preocupe demais, Jamie. Espere até amanhã, quando poderemos pensar direito. Talvez a situação não seja tão desesperadora.

Nesse instante, bombeiros samurais voluntários passaram correndo. Por meio de sinais, Jamie perguntou a um deles onde podia conseguir uma máscara de incêndio. O homem soltou um grunhido, tirou um punhado da manga e partiu correndo. Jamie molhou-as num balde com água.

— Tome aqui, Maureen.

Ele entregou-lhe a primeira máscara, deu outra a Nettlesmith, sentado num barril, no lado do passeio que dava para o mar, praguejando em silêncio. O telhado desabou, convertendo o prédio num inferno.

— Terrível! — comentou Jamie para Nettlesmith.

— É verdade, mas não um desastre total. — O homem mais velho, esguio, gesticulou pelo passeio. O lado norte da colônia não fora atingido pelas chamas, os prédios da Brock, da Struan e das legações continuavam intactos. — Com um pouco de sorte, o incêndio não vai se estender até lá.

— Este vento é o maior perigo.

— Tem razão, mas estamos seguros no lado da praia...

Mais homens passaram correndo, com machados, inclusive Dmitri. Ele viu o prédio destruído e gritou, sem parar:

— Sinto muito por isso! Vamos tentar abrir um aceiro para impedir a passagem das chamas!

Maureen disse:

— Jamie, vá ajudar. Estarei segura aqui.

— Você não pode fazer mais nada aqui — acrescentou Nettlesmith. — Tomarei conta dela. Estamos seguros aqui e recuaremos para o prédio da Struan, se for necessário.

Ele tirou lápis e papel do bolso, passou a língua pela ponta do lápis, pensativo, e começou a escrever.

 

Os machados golpearam a construção de madeira, os prédios para o sul em chamas, o vento mais quente a cada minuto, mais forte do que nunca. Os homens redobraram seus esforços, mas logo uma rajada cheia de fagulhas forçou-os a recuar, seguida por outra. Todos fugiram para a segurança. Dmitri disse, desolado:

— Por Deus, já viu um incêndio se espalhar tão depressa? Tudo aqui é inflamável demais, autênticas armadilhas mortais. E agora?

— O que acha de tentarmos abrir um espaço ali? — gritou Jamie.

Ele apontou para a cerca mais próxima. Todos o acompanharam. Quanto mais se aproximavam da cerca e da Yoshiwara, no entanto, pior se tornavam a fumaça o calor e as chamas.

Havia bem pouco que ele ou qualquer outro pudesse fazer. Nada, para ser mais preciso. O fogo se espalhava depressa demais, as pessoas corriam para um lado e outro com baldes, mas no momento em que extinguiam um incêndio, dez outros começavam nas proximidades. Por trás de grupos de mulheres e criados atordoados, em busca de segurança, alguns carregando trouxas, a maioria de mãos vazias as poucas casas de chá restantes pegaram fogo também, parecendo mariposas em torno de uma vela, num instante vivas, no seguinte mortas.

Com quase tudo na Yoshiwara desaparecido, sob o céu coberto pela fumaça, os homens misturaram-se aos sobreviventes, procurando ansiosos por uma dama em particular, por uma mama-san. Jamie também se adiantou, seus olhos esquadrinhando cada rosto, tentando descobrir Nemi na multidão. Não a esquecera. Se alguém fosse capaz de escapar, pensara ele, seria Nemi. Mas, subitamente, ele já não tinha mais tanta certeza. Havia bem poucos sobreviventes aqui. Preocupado, Jamie procurou algum rosto conhecido. Não encontrou nenhum.

— Gomen nasai, Nemi-san, wakarimasu ka? — disse ele, indagando se alguém a vira.

Mas todos responderam, apáticos, ou com graus diversos de reverências e sorrisos forçados, que não, sinto muito:

— Iyé, gomen nasai.

Dmitri recuou do meio da fumaça, tossindo.

— Os samurais são tremendos bombeiros. Poderíamos aprender algumas coisas com eles, embora não sejam capazes de controlar esta merda. Viu Nemi?

— Não. Ia perguntar a você.

— Talvez ela esteja no outro lado ou por ali. — O peito arfando, com dificuldade para respirar, Dmitri apontou para a campina que levava à pista de corrida de cavalos, onde uns poucos lampiões acesos iluminavam a escuridão. — Darei a volta pelo outro lado, passarei pelo portão norte e atravessarei o canal. Você tenta a campina. Se eu a encontrar, o que quer que diga?

— Apenas que espero que esteja sã e salva e que a procurarei amanhã.

Os dois se abaixaram, quando uma língua de fogo passou por cima e foi atingir uma casa da aldeia por trás. Na confusão, Jamie se perdeu de Dmitri e continuou sua busca, ajudando onde podia. Em determinado momento, Heavenly Skye passou correndo e gritou:

— Jamie, acabei de saber que Phillip Tyrer sumiu, junto com todo o pessoal das Três Carpas!

— Deus Todo-Poderoso! Tem certeza? O que me diz...

Mas Skye já desaparecera na escuridão.

As legações, que ficavam para o norte, ainda não estavam diretamente ameaçadas. Nem os prédios da Struan e Brock, as casas e armazéns próximos, embora o vento fosse mais quente e mais forte a cada minuto. O passeio e as ruas estavam apinhados, todos se preparando para a última defesa, mais soldados e marujos desembarcando da esquadra, onde soara pela primeira vez o alarme geral. Samurais espalharam-se pela High Street, vindos de seus acampamentos, além dos portões. Traziam escadas e baldes, máscaras contra incêndio, demonstrando a maior eficiência. Em grupos, encaminhavam-se para os pontos mais perigosos.

Sir William, um capote comprido por cima do pijama, assumira o comando da defesa da legação. Na beira da praia, Pallidar supervisionava os dragões que ligavam bombas no mar, através de compridas mangueiras de lona. Ele olhou para trás e avistou o general sair apressado da noite, tendo ao lado um oficial-engenheiro, com um destacamento de soldados em sua esteira, até parar na frente de Sir William.

— Estou seguindo para a cidade dos bêbados e a aldeia — anunciou o general, esbaforido. — Planejo explodir algumas casas para abrir um aceiro que impeça a passagem do fogo... com a sua permissão. Concorda?

— Claro. Faça o que for necessário. Pode dar certo. Se o vento não diminuir, estaremos liquidados de qualquer maneira. Vá depressa!

— Por acaso eu observava do penhasco e tive a impressão de que três ou quatro incêndios começaram ao mesmo tempo na Yoshiwara, em pontos diferentes.

— Por Deus! Está querendo dizer que foi um incêndio criminoso?

— Não sei, mas quer tenha sido um ato de Deus ou do demônio, ou de um maldito incendiário, isto vai nos destruir!

Acompanhado por seus homens, o general se afastou pela escuridão. Sir William viu o almirante subir pela praia, do cais da legação, onde mais marujos e fuzileiros desembarcavam.

— Os barcos já estão prontos para a evacuação — avisou Ketterer. — Temos suprimentos em quantidade suficiente para toda a população. Podemos reunir o pessoal ao longo da praia, onde haverá segurança.

— Ótimo. A situação pode se tornar perigosa.

— Tem isso. Isso muda completamente os nossos planos, não é?

— Receio que sim. O incêndio não poderia ter ocorrido numa ocasião pior. Maldito fogo, pensou Sir William, furioso. Complica tudo — a reunião com Yoshi amanhã, o bombardeio de Kagoshima, logo no momento em que Ketterer finalmente concordava em obedecer às minhas instruções. O que faremos agora? Vamos evacuar Iocoama? Embarcar todo mundo na esquadra e voltar a Hong Kong, com o rabo entre as pernas? Ou transferir todo mundo para Kanagawa e que se dane o que os japoneses podem fazer? Não, não é possível. Kanagawa é uma armadilha pior, pois a baía ali é muito rasa para a esquadra nos ajudar. Ele olhou para Ketterer. O rosto do almirante era duro e curtido, os olhos pequenos fixados na distância. Ele vai optar pelo retorno a Hong Kong, pensou Sir William, consternado. Droga de vento!

Num ponto mais abaixo da rua, MacStruan tinha escadas encostadas na lateral de seu prédio. Vários homens suspendiam baldes com água pela escada, os que estavam no topo molhavam o telhado. No prédio da Brock, ao lado, Gornt e outros faziam a mesma coisa.

— Por Deus, olhem só! — gritou alguém.

As chamas se estendiam agora por toda a linha do horizonte da cidade dos bêbados e da aldeia. O vento era escaldante e forte, soprando contra seus rostos furioso, provocando-os, desafiando-os.

— Mon Dieu! — murmurou Angelique.

Ela usava um casaco por cima da camisola, lenço na camisa. Vestira-se apressada, ao primeiro alarme, e saíra correndo para a rua. Era evidente que o fogo os alcançaria em breve, por isso ela tornou a entrar, subiu apressada para o seu quarto. Rapidamente, meteu suas escovas, pentes, pomadas, cremes e ruges numa bolsa, a melhor lingerie em outra. Um momento de pensamento e depois, não mais assustada, ela abriu a janela, gritou para que Ah Soh permanecesse lá embaixo e pôs-se a lhe jogar seus vestidos e casacos.

Ah Soh fungou, desdenhosa, e não se mexeu. MacStruan, ali perto, ordenou que ela começasse a trabalhar e apontou para o cais da companhia, no outro lado do passeio, onde empregados já guardavam caixas com documentos, fuzis e mercadorias diversas, enquanto Vargas e outros suavam para levar mais pacotes até lá. MacStruan decidira correr o risco de deixar dinheiro, lingotes e alguns documentos no cofre de ferro.

— Ah Soh, sua rameira sem mãe! — gritou ele, num cantonês perfeito. — Leve as coisas da tai-tai para lá, vigie tudo e não saia do lugar mesmo que o fogo do inferno caia em cima de você ou vou bater nas solas de seus pés até virarem uma polpa sangrenta!

Ela obedeceu no mesmo instante e MacStruan acrescentou, rindo:

— Angelique, teremos um aviso com bastante antecedência. Pode ficar aí até eu chamá-la.

— Obrigada, Albert.

Ela viu Gornt levantar os olhos, do prédio ao lado. Ele acenou. Angelique respondeu ao aceno. Não sentia mais medo agora. Albert a avisaria a tempo, a segurança a aguardava no outro lado da rua ou nos barcos que começavam a se concentrar perto da praia. Não havia mais qualquer preocupação em sua mente. Já decidira como cuidar de André, Skye e a mulher de Hong Kong. E de Gornt amanhã. Sabia o que fazer. Cantarolando Mozart, ela pegou uma escova, sentou-se diante do espelho, a fim de se fazer mais apresentável para todos. Era como nos velhos tempos. Agora, o que vou vestir? O que seria melhor?

 

Raiko seguiu o corpulento servo pelas ruínas de sua estalagem. Ele segurava um lampião a óleo e avançava com extremo cuidado, contornando as brasas que ainda luziam intensamente, uma advertência na escuridão, atiçadas pelo ar quente e acre. Ela tinha o rosto enegrecido, os cabelos impregnados de cinza e poeira, o quimono chamuscado, todo rasgado. Ambos usavam máscaras contra a fumaça, mas mesmo assim tossiam e espirravam de vez em quando.

— Vá mais para a esquerda — balbuciou Raiko, a garganta ressequida, continuando a inspeção.

Podiam ver apenas os suportes de pedras, formando quadrados perfeitos, por cima das cinzas, indicando os lugares em que antes havia habitações.

— Pois não, ama.

E eles seguiram em frente.

Acima do barulho do vento, podiam ouvir vagamente outras pessoas chamando, gritos ocasionais de dor e choro, sinos de incêndio distantes, na aldeia e na colônia, que também ardiam. Raiko superara o pânico inicial. Incêndios acontecem. Eram obra dos deuses. Não importa, estou viva. Amanhã descobrirei o que causou o incêndio, se foi mesmo uma explosão, como alguns alegam, embora na confusão este vento terrível possa enganar os ouvidos, e o barulho possa muito bem ter sido causado por um pote de óleo mal colocado caindo num fogo da cozinha e explodindo, assim o incêndio se iniciando. A casa das Três Carpas desapareceu. Assim como todas as outras ou quase todas. Mas não estou arruinada, ainda não.

Algumas cortesãs e criadas, várias chorando, surgiram da noite, umas poucas com queimaduras. Raiko reconheceu as mulheres do Dragão Verde. Não havia nenhuma das suas ali.

— Parem de chorar! — ordenou ela. — Podem ir para a casa das Dezesseis Orquídeas... todas estão se reunindo ali. Não foi muito afetada e há lugar para dormir, comida e bebida para todas. Onde está Chio-san?

Era a mama-san delas.

— Não a vimos — disse uma delas, entre lágrimas. — Eu estava com um cliente. Mal tive tempo de sair correndo com ele e ir para o abrigo subterrâneo.

— Ótimo. E agora tratem de ir. Sigam por este caminho e tomem cuidado. Raiko sentiu-se satisfeita ao recordar que, por ocasião da construção da Yoshiwara, há pouco mais de dois anos, com as mama-sans escolhidas por sua guilda — e contando com a aprovação prévia e dispendiosa do departamento encarregado do Bakufu —, ela sugerira que cada casa de chá tivesse uma adega à prova de fogo, perto da estrutura central, a estrutura de tijolos abaixo da superfície, como segurança adicional. Nem todas as mama-sans haviam aprovado, dizendo que não havia mérito nenhum na despesa extra. Não importa, elas é que saíram perdendo. Vamos ver quantas vão se lamentar e bater no peito amanhã, por não terem seguido o meu exemplo.

Ela acabara de inspecionar seu abrigo. Os degraus desciam para a porta revestida de ferro. O interior se encontrava impecável. Todos os bens valiosos se encontravam ali, todos os contratos, provas de dívidas, empréstimos feitos à Gyokoyama, declarações bancárias, vales, as melhores roupas de cama e mesa, os melhores quimonos... tanto os seus quanto os de suas damas, tão bons quanto novos. Desde o início, fora sua política que as melhores roupas não deveriam ser usadas à noite, mas guardadas no abrigo, o que quase sempre acarretava resmungos e protestos pelo trabalho extra. Não haverá resmungos esta madrugada, pensou ela.

Para seu imenso alívio, localizara todas as suas damas depois do incêndio, assim como os criados e clientes, à exceção de Fujiko, Hinodeh, Furansu-san e Taira, mais dois servos e duas criadas, que continuavam desaparecidos. Mas isso não a preocupava. Tinha certeza de que todos se encontravam sãos e salvos, em algum lugar. Um servo avistara um gai-jin, talvez dois, correndo na direção do portão.

Namu Amida Butsu, orou ela, que todos estejam em segurança, e me abençoe por minha sabedoria, ao cuidar para que meu pessoal sempre fizesse os exercícios de incêndio.

O horror do incêndio na Yoshiwara de Iedo, doze anos antes, lhe ensinara a lição. O fogo quase a matara e a seu cliente, um rico mercador de arroz da Gyokoyama. Ela o salvara, despertando-o do estupor da embriaguez, quase o arrastando para fora, ao risco da própria vida. Escapando pelos jardins, descobriram-se subitamente cercados pelo fogo, acuados, mas salvaram-se da morte ao cavarem uma vala na terra macia, com a ajuda da adaga que ela sempre levava na obi, deixando as chamas passarem por cima. Mesmo assim, ela sofrera queimaduras graves na parte inferior das costas e nas pernas, o que encerrara sua carreira de cortesã.

Mas o cliente não a esquecera. Ao se recuperar, convencera o pessoal da Gyokoyama a lhe emprestar os recursos para abrir sua própria casa de chá e depois passara a se dedicar a outra dama. O investimento já dera um lucro cinco vezes maior que o seu valor. Naquele incêndio, mais de cem cortesãs, dezesseis mama-sans, incontáveis clientes e criadas haviam perecido. Mais morreram no incêndio da Shimibara, em Quioto. Ao longo dos séculos, centenas em outros incêndios. No grande fogo das mangas pendentes, poucos anos depois de mama-san Gyoko ter construído a primeira Yoshiwara, o fogo fora devastador, custando cem mil vidas a Iedo. Em dois anos, tudo fora reconstruído, prosperava de novo, só para queimar outra vez, ser reconstruído, queimar, num processo interminável. E agora, como antes, jurou Raiko, reconstruiremos a nossa Yoshiwara para ser melhor do que nunca!

— A casa das Dezesseis Orquídeas seria nessa direção, ama, neh?

O servo hesitou, indeciso, entre as nuvens de fumaça. Ao redor, havia apenas brasas e cinzas, uns poucos suportes de pedra patéticos, sem que se pudesse divisar os caminhos sinuosos, sem os marcos de pedra para orientá-los. De repente, uma rajada de vento removeu cinzas para revelar os suportes de um bangalô e um dragão de pedra rachado pelo calor. Raiko reconheceu-o e compreendeu onde se encontravam. O bangalô de Hinodeh.

— Devemos voltar um pouco — disse ela. Foi nesse instante que alguma coisa atraiu sua atenção. Um brilho. — Espere um pouco. O que é aquilo?

— Onde, ama?

Raiko esperou. Outra vez o vento agitou as brasas e outra vez um objeto faiscou, um pouco à frente, à direita.

— Ali!

— Ah, sim.

Com todo cuidado, ele usou um galho enegrecido, sem folhas, para abrir caminho, foi se adiantando, ergueu o lampião para espiar à frente. Outro passo cauteloso, só para recuar apressado, quando uma nova rajada jogou fagulhas em sua direção.

— Vamos voltar. Procuraremos amanhã.

— Um momento, ama.

Estremecendo com o calor, ele usou o galho para remover mais cinzas. E soltou uma exclamação aturdida. Os dois corpos carbonizados estavam estendidos lado a lado, a mão esquerda de um na mão direita de outro. O brilho era de um anel de sinete de ouro, retorcido, parcialmente derretido.

— Ama!

Consternada, como uma estátua, Raiko postou-se ao lado dele. Furansu-san e Hinodeh, só podiam ser os dois, pensou ela, no mesmo instante. Ele sempre usava um anel de sinete... e lembro que me chegou a oferecê-lo, há poucos dias.

E, também no mesmo instante, seu espírito se animou, à visão das mãos dadas, a imagem que eles formavam em seu leito de brasas parecendo ser um berço de pedras preciosas, de rubis, faiscando, morrendo e renascendo a cada corrente de ar... como se os dois fossem permanecer assim até o final dos tempos.

Ah, muito triste, pensou Raiko, as lágrimas aflorando, muito triste, e ao mesmo tempo tão lindo. Como eles parecem serenos, deitados aqui, como parecem abençoados, morrendo juntos, de mãos dadas. Devem ter se decidido pela taça de veneno e partiram juntos, como um só. Muito sábio. A melhor coisa, para ambos.

— Namu Amida Butsu — murmurou ela, como uma bênção, enquanto removia as lágrimas. — Vamos deixá-los em paz, amanhã resolverei o que fazer.

Raiko se afastou, com lágrimas entre amargas e doces, mas contente pela beleza que testemunhara. Mais uma vez, dois seres haviam escolhido o caminho para o ponto de encontro.

Um súbito pensamento aflorou em sua mente.

Se aqueles dois eram Furansu-san e Hinodeh, o gai-jin que escapara devia ser Taira. Isso é ótimo, muito melhor do que se fosse o contrário. Perdi uma boa fonte de informações, mas o ganho será maior a longo prazo. Taira e Fujiko são mais dóceis e têm futuro. Manipulado com habilidade, Taira poderá com a maior facilidade fornecer muitas informações, muito em breve conseguirei conversar diretamente com ele, seu japonês melhora a cada dia e já é muito bom para um gai-jin. Devo arrumar lições extras, ensinar frases políticas, não apenas a linguagem da cama e do mundo flutuante, que é tudo o que Fujiko conhece... e com um sotaque camponês ainda por cima. Com toda certeza, meu investimento a longo prazo é muito mais promissor e...

Raiko e o servo pararam ao mesmo tempo. Olharam um para o outro e depois, abruptamente, para o céu ao sul. O vento amainara.

 

Quarta-feira, 14 de janeiro:

— Iocoama está acabada, William — disse o general, à primeira claridade da manhã, a voz rouca.

Estavam no penhasco, por cima da colônia, Pallidar junto com eles, todos montados. A fumaça ainda subia até ali. O rosto do general estava machucado e sujo, o uniforme rasgado, a pala do quepe chamuscada.

— Achei que era melhor chamá-lo para subir até aqui, de onde pode ter uma vista melhor. Um ato de Deus.

— Eu sabia que fora terrível, mas isto...

As palavras definharam. Sir William estava atordoado. Nenhum deles dormira. Os sinais de fadiga e preocupação estampavam-se em seus rostos, as roupas chamuscadas e sujas, a de Pallidar toda rasgada, em piores condições. Enquanto o sol surgia, podiam contemplar todo o panorama, até Hodogaya, na Tokaidô.

A Yoshiwara não mais existia, nem a aldeia, a maior parte da cidade dos bêbados, mais da metade da colônia, inclusive os estábulos. Ainda não havia um relatório confirmado de baixas, mas circulavam rumores abundantes, todos ruins. Também não havia ainda uma causa confirmada para a catástrofe. Muitos bradavam incêndio criminoso por japoneses, mas que japoneses, e por ordem de quem, ninguém sabia, embora a destruição da Yoshiwara e da aldeia não fosse incomodar nenhum deles, se com isso pudessem alcançar seus objetivos.

— Vai ordenar a evacuação esta manhã?

A cabeça de Sir William doía com mil perguntas e presságios.

— Primeiro, uma inspeção. Obrigado, Thomas. Pallidar, venha comigo. Ele esporeou seu pônei pela encosta abaixo. Parou por um momento diante da legação.

— Alguma novidade, Bertram?

— Não, senhor. Nem nomes ou números confirmados, por enquanto.

— Mande chamar imediatamente o ancião da aldeia, o shoya. Peça a ele para descobrir quantas baixas teve e vir falar comigo o mais depressa possível.

— Não falo japonês, Sir William, e Phillip Tyrer não está aqui.

— Pois então trate de encontrá-lo! — berrou Sir William, satisfeito pela oportunidade de descarregar um pouco de sua ansiedade acumulada e a preocupação com Tyrer. Foi recompensado ao ver o jovem empalidecer. — E aprenda logo japonês ou vou despachá-lo para a África, lá aprenderá o que é bom! Quero todos os mercadores seniores reunidos aqui dentro de uma hora... Não, não aqui, no clube é melhor. Vamos ver... São seis e vinte agora. Marque a reunião para as nove e meia e, pelo amor de Deus, comece logo a usar a droga da sua cabeça!

Idiota, pensou Sir William, afastando-se a trote, já se sentindo melhor. Sob o céu clareando, os habitantes de Iocoama começavam a recolher os fragmentos de suas vidas. A princípio, Sir William, escoltado por Pallidar, manteve-se na High Street, cumprimentando a todos, respondendo a perguntas, sempre com a mesma declaração:

— Primeiro, deixem-me dar uma olhada. Convoquei uma reunião no clube as nove e meia. Até lá, já terei uma avaliação melhor da situação.

Mais perto da cidade dos bêbados, o cheiro de prédios queimados piorou. Naquela madrugada, quando o vento amainara, por volta das duas horas, os incêndios haviam se extinguido rapidamente e as chamas deixaram de saltar de uma casa para outra. Só isso salvara a colônia da destruição completa. Todas as legações estavam salvas, assim como o prédio da capitania do porto, dos principais mercadores e seus armazéns, da Struan, Brock, Cooper-Tillman e outras companhias. O prédio de Lunkchurch fora destruído.

O fogo parara pouco antes da Santíssima Trindade, deixando-a intacta. Ele agradeceu a Deus por um milagre tão conveniente. Mais além, a igreja católica perdera a maior parte de suas janelas e telhado, tinha a entrada chamuscada, as vigas ainda fumegavam, dando a impressão de uma boca escancarada com dentes apodrecidos.

— Bom dia. Onde está o padre Leo? — perguntou Sir William a um homem que fazia limpeza no jardim.

— Na sacristia, Sir William. Bom dia, fico satisfeito por ver que está são e salvo, Sir William.

— Obrigado. Lamento por sua igreja. Convoquei uma reunião no clube, às nove e meia. Pode espalhar a notícia? O padre Leo será bem-vindo, é claro.

Sir William seguiu em frente. Ao contrário do que acontecia na aldeia e na Yoshiwara, onde pilhas de cinza limpa se acumulavam em montes, como neve, as áreas devastadas da colônia e da cidade dos bêbados eram uma confusão de tijolos, lajes de pedra, metal retorcido, restos de máquinas, ferramentas, armas, canhões, bigornas e outros produtos manufaturados, tudo transformado em lixo. A chaga purulenta da terra de ninguém estava limpa, exceto pelos metais, e isso o agradou.

Ele seguiu pelo caminho sinuoso para o portão sul. A casa da guarda desaparecera. Uma barreira improvisada fora erguida no vazio, e havia samurais de sentinela ali.

— Mas que idiotas! — murmurou Pallidar. — Eles estão fazendo uma barricada contra o quê?

Sir William não respondeu, absorto no que podia ver e no que podia fazer. À frente, junto ao canal e ao fosso, podia ver aldeões e outras pessoas circulando ou agachados em grupos desolados. No outro lado do fosso, onde antes existia a Yoshiwara, havia também grupos de mulheres, cozinheiros e outros criados sentados ou de pé, em torno da única estrutura parcial que não fora destruída, usando telas de lona como abrigo. Samurais ainda jogavam água em focos de fogo aqui e ali. O vento brando trazia o som de muitas pessoas chorando.

— Terrível, senhor — comentou Pallidar.

— Tem razão.

Sir William suspirou e fez novo esforço; cabia a ele dar o exemplo e, por Deus, iria agir como deveria fazer o ministro de sua majestade britânica para o Japão.

— Foi mesmo lamentável, mas dê uma olhada ali. — No penhasco, o acampamento de barracas continuava intacto. — Todos os nossos soldados estão sãos e salvos, os canhões seguros, todos os armamentos e o depósito de munições incólumes. E dê uma olhada ali!

Na baía, a esquadra continuava ilesa, a bandeira britânica tremulando orgulhosa nos mastros. Com o amanhecer se transformando em dia, todos os cúteres disponíveis navegavam de um lado para outro, trazendo homens para a praia ou levando-os de volta aos navios para comer, beber e dormir.

— Todo o resto é substituível, menos as pessoas. Reúna alguns soldados e inicie uma contagem de cabeças e montarias. Preciso saber quantos perdemos, até a reunião das nove e meia. Trate de se apressar.

— Pois não, senhor. Quase todos os estábulos se encontravam abertos e os cavalos correram para o hipódromo ou o penhasco. Vi o garanhão de Zergeyev ali, com dois cavalariços.

Subitamente, Pallidar ficou radiante, não se sentindo mais desesperado.

— Tem toda razão, Sir William! Oh, Deus, como tem razão! Enquanto o exército e a marinha estiverem sãos e salvos, estamos todos bem, não teremos maiores problemas. Obrigado.

Ele se afastou a galope. Sir William concentrou sua atenção no interior. O que fazer? O que fazer? Seu pônei puxou as rédeas, nervoso, escarvou a terra, sentindo a inquietação do cavaleiro.

— Bom dia, Sir William. — Pálido de fadiga, Jamie McFay aproximou-se, saindo de trás das ruínas de um prédio, agora uma pilha de estruturas de metal retorcidas, os restos de armações de cama, de móveis queimados. Suas roupas estavam rasgadas, chamuscadas em alguns pontos, os cabelos emaranhados. — Quantos perdemos? Quais são as últimas novidades?

— Ainda não temos nada de concreto. Pelo bom Deus, isso é... isso é tudo o que restou do prédio do Guardian e dos prelos?

— Receio que sim. Mas tome aqui.

Jamie parou o cavalo ao lado de Sir William e estendeu uma folha de papel mal impressa, com uma manchete borrada, que anunciava: IOCOAMA ARRASADA. SUSPEITA DE INCÊNDIO CRIMINOSO. PRÉDIOS DA STRUAN E BROCK INTACTOS, EXÉRCITO, MARINHA E TODOS OS NAVIOS SALVOS. CALCULA-SE QUE FATALIDADES FORAM ALTAS NA YOSHIWARA E ALDEIA. Depois, um breve editorial, com a promessa de que sairia uma edição naquela tarde, e um pedido de desculpas pelos problemas de impressão.

— Nettlesmith está ali.

Sob um telheiro improvisado, Sir William avistou Nettlesmith, desleixado e sujo, operando o prelo manual, diligente, seus funcionários ajeitando tipos em bandejas, outros ainda recuperando o que podiam das cinzas.

— Soube que você tirou alguns aldeões de um prédio, Jamie, salvou suas vidas.

Ainda era difícil para Jamie pensar direito. Vagamente, recordava que não encontrara Nemi, nem tivera qualquer notícia dela, mas não se lembrava de mais nada.

— Não me lembro muito bem... reinava o caos por toda parte... outros faziam a mesma coisa ou ajudavam pessoas a irem para o hospital... — A cabeça estava tonta de cansaço. — Soube ontem à noite que Phillip estava perdido. É verdade?

— Não sei. Espero que nada tenha lhe acontecido, mas também ouvi o rumor. — Sir William deixou escapar um suspiro ruidoso. — Passaram-me essa informação, há muitos rumores, mas aprendi que não se deve confiar em rumores. Correu a notícia de que Zergeyev morrera na Yoshiwara, assim como André. Há poucos minutos, no entanto, avistei Zergeyev. Portanto, como eu disse, é melhor esperar.

Ele indicou a folha de papel e indagou:

— Posso ficar com isto, Jamie? Obrigado. Convoquei uma reunião para as nove e meia, a fim de discutir o que devemos fazer. Sua opinião seria valiosa.

— Não há muito o que discutir, não é mesmo? Estou liquidado.

— Ao contrário, Jamie, há muito o que discutir. No fundo, tivemos muita sorte. O exército e a marinha... — Sir William desviou os olhos, levantou o chapéu. — Bom dia, miss Maureen.

Ela ainda usava as mesmas roupas, mas com o rosto lavado, um sorriso exuberante.

— Bom dia, Sir William. É um prazer vê-lo são e salvo, saber que nada aconteceu com a legação. Bom dia, amor.

O sorriso de Maureen tornou-se ainda mais especial. Abraçou Jamie, fazendo um esforço para não parecer muito ansiosa, resistindo à vontade de beijá-lo, por mais que desejasse... ele estava lindo em suas roupas chamuscadas, o rosto com a barba por fazer, contraído em preocupação, mas nada que uma sopa quente, um uísque e um bom sono não pudessem curar.

Ao vir para cá, ao seu encontro, muitos haviam lhe contado como Jamie se mostrara corajoso durante a noite. Ela passara a maior parte da noite acalmando a Sra. Lunkchurch e a Sra. Swann, seus maridos e outros no armazém da Struan, distribuindo a bebida do demônio, como sua mãe chamava todas as beberagens alcoólicas — embora não na presença de seu pai —, cuidando de queimaduras ou levando feridos a Hoag e Babcott, que haviam instalado um hospital de campanha tão perto quanto possível das piores áreas.

— Você parece muito bem, Jamie, apenas exausto.

— Não mais do que outros.

Sabendo que fora esquecido — e com alguma inveja por isso —, Sir William saudou-os com seu chicote.

— Até mais tarde, Jamie. Miss Maureen.

Os dois observaram-no se afastar a trote. A proximidade de Maureen era agradável para Jamie. Abruptamente, sua felicidade e apreensão pelo futuro afloraram, ele virou-se, abraçou-a e apertou-a, com toda a intensidade de sua angústia. Maureen fundiu-se nele, feliz, esperou, procurando lhe transmitir sua força.

Depois de algum tempo, Jamie sentiu que se recuperava, a coragem voltou, o senso de integração prevaleceu.

— Deus a abençoe, Maureen. Não posso acreditar, mas você me fez voltar à vida. Deus a abençoe.

Ele se lembrou de Tess, dos cinco mil guinéus que Maureen lhe arrancara, de Maureen dizendo que amanhã as coisas não serão tão ruins assim e sua alegria explodiu.

— Por Deus, Sparkles, você tem toda razão! — disse ele, tornando a abraçá-la. — Estamos vivos, temos sorte, tudo vai acabar bem, graças a você!

— Não precisa exagerar, meu rapaz — murmurou ela, com um pequeno sorriso, a cabeça encostada na de Jamie, não querendo largá-lo ainda. — Não tive nada a ver com isso.

É tudo obra de Deus, pensou Maureen, sua dádiva especial para as mulheres, assim como sua dádiva para os homens é fazer a mesma coisa pelas mulheres em ocasiões especiais.

— É apenas a vida, Jamie.

Ela usou “vida”, mas poderia também ter dito “amor”, embora não tivesse certeza total de que era mesmo isso.

— Estou orgulhoso de você, menina. Foi maravilhosa ontem à noite.

— Não fiz nada demais. E agora vamos embora. Você precisa tirar um cochilo.

— Não tenho tempo para cochilos. Preciso falar com o shoya.

— Um cochilo antes da reunião. Eu o acordarei com uma xícara de chá. Pode usar minha cama. Albert diz que é nosso quarto por tanto tempo quanto quisermos; não deixarei ninguém incomodá-lo.

Sorrindo, apesar da sugestão, ele perguntou:

— O que pretende fazer?

Maureen abraçou-o.

— Ficarei segurando sua mão e contarei uma história até você dormir. Vamos embora.

 

Tyrer abriu os olhos e descobriu-se no inferno, todos os ossos doendo, cada respiração queimando o peito, os olhos ardendo, a pele em tormento. Na escuridão acre e enfumaçada, podia ver rostos japoneses sem corpo espiando-o, dois deles, as bocas contorcidas em sorrisos cruéis, dando a impressão de que a qualquer momento tornariam a levantar seus forcados e recomeçariam a torturá-lo. Um rosto chegou mais perto. Ele recuou e deixou escapar um grito de dor. Através das brumas ouviu palavras em japonês e depois em inglês:

— Taira-sama, acorde, você seguro!

O nevoeiro que envolvia sua mente se dissipou.

— Nakama?

— Sim. Você salvo.

Agora ele percebeu a luz de um lampião a óleo. Pareciam estar numa caverna e Nakama lhe sorria. Assim como o outro rosto. Saito! O primo de Nakama, o que se interessava por navios... Não, este não é Nakama, este é Hiraga, o assassino!

Tyrer se empertigou abruptamente, caiu para trás, contra a parede do túnel, a dor de cabeça cegando-o por um momento, enquanto tossia e tossia, a bílis e um gosto horrível de fumaça provocando ânsias de vômito. Quando não havia mais nada para subir, depois que passou o espasmo, ele sentiu um copo comprimido contra seus lábios. Bebeu a água gelada, na maior ansiedade, engasgando um pouco.

— Desculpe... — balbuciou ele.

Hiraga tornou a ajeitar a manta em torno de seu quimono de dormir meio queimado.

— Obrigado.

Um momento depois ele prendeu a respiração, a mente se deslocando lentamente do vazio para um caleidoscópio de imagens, fundindo-se em mais imagens, paredes em chamas, Hiraga arrancando-o do meio do fogo, correndo, caindo, sendo ajudado a se levantar, casas desabando ao seu redor, arbustos explodindo em seus rostos, não conseguindo respirar, sufocando, não consigo respirar, Hiraga gritando “Depressa, por aqui... não, por aqui não, vamos voltar, por aqui...”, alguma coisa faltando, fugindo para um lado e outro, guiado entre paredes de fogo, na frente, por trás, nos lados, mulheres gritando, fumaça, e depois a entrada do poço, o fogo se projetando para eles, quase alcançando-os, “Desça, depressa, desça”, entrando no poço, o fogo se aproximando, uma luz lá embaixo, um olho na escuridão, o rosto de Saito, e depois, como um raio...

Fujiko!

— Onde está Fujiko? — gritara ele.

Ofegando para respirar, Hiraga gritara, acima do rugido das chamas:

— Depressa, descer, ela morta no quarto, Fujiko morta quando eu encontrar você... depressa ou você morto!

Tyrer se lembrava agora dessa parte com nitidez. Saíra do poço, desatara a correr de volta, o fogo ainda pior do que antes, a morte certa à frente, mas ele tinha de alcançá-la, precisava ter certeza, e depois caíra de cara no chão, uma dor ofuscante no pescoço, tentara se levantar, o calor monstruoso, e tudo o que recordava era de ter visto a quina da mão dura como pedra se aproximando do lado de seu pescoço.

— Você... eu ia buscá-la, mas você me deteve?

— Sim. Não ser possível salvar. Fujiko morta, sinto muito, eu vi. Ela morta, você também se voltar, por isso bater, carregar para cá. Fujiko morta no quarto.

Hiraga falou com voz gelada, ainda furioso com Tyrer por arriscar a vida de ambos em tamanha estupidez. Só tivera tempo de levantar Tyrer para seu ombro e descer pelo poço, quase perdendo o equilíbrio ao se projetar para a segurança, salvando a própria vida das chamas por um triz. E ele pensou, irritado, que até mesmo o homem mais baka deveria saber que não haveria a menor possibilidade de encontrá-la, não havia como sobreviver com todo o jardim e a casa de chá em chamas, e mesmo que ela não estivesse morta na ocasião, teria morrido quinze vezes desde então.

— Se não bater, você morto. Achar morto melhor?

— Não. — Tyrer sentia-se sufocado pela dor. — Desculpe. Devo-lhe minha vida, mais uma vez.

Ele esfregou o rosto, para tentar, em vão, conter a angústia. Fujiko morta... oh, Deus, oh, Deus!

— Desculpe, Na... isto é, Hiraga-sama. Onde estamos?

— Túnel. Perto Três Carpas. Ir até aldeia, por baixo da cerca, fosso. — Hiraga gesticulou para o alto do poço. — Ser dia agora.

Tyrer levantou-se, o corpo todo dolorido. De pé, sentiu-se um pouco melhor. A luz do dia no alto do poço era ofuscada pela fumaça turbilhonante, mas ele pôde perceber que o sol se encontrava prestes a surgir.

— Dozo.

Com um sorriso, Akimoto entregou-lhe uma tanga e um quimono extra.

— Domo.

Tyrer ficou chocado ao constatar a extensão em que seu quimono ficara queimado. Ele próprio tinha umas poucas queimaduras nas pernas, mas nada de mais grave. Hiraga subiu pelas barras de ferro precárias para dar uma espiada lá fora, mas foi obrigado a recuar pelo calor. Descendo de volta ao túnel, ele disse:

— Não bom. Quente demais. Aqui.

Ele ofereceu água outra vez, e Tyrer aceitou, agradecido.

— Taira-sama, melhor ir por ali. — Hiraga apontou pelo túnel. — Você estar bem?

— Estou. Fujiko morreu mesmo? Tem certeza?

— Sim.

— O que aconteceu? Eu estava dormindo e de repente... Foi uma bomba. Posso lembrar... acho que explodiu no outro lado do quarto... no lado de Fujiko. A sensação foi de que uma bomba explodiu embaixo da casa. Foi isso mesmo? E por que o incêndio? Tudo pegou fogo?

Akimoto tocou no ombro de Tyrer e disse, com um sorriso, em japonês:

— Taira-sama, você teve sorte. Se não fosse por Hiraga, estaria morto. Compreende isso?

— Hai, wakamarisen.

Tyrer fez uma reverência solene para Hiraga e acrescentou, em japonês:

— Obrigado, Hiraga-sama, eu novamente em dívida. Obrigado pela vida.

Uma súbita vertigem o dominou.

— Desculpar, primeiro descansar um pouco. — Meio desajeitado, Tyrer sentou. — O que acontecer?

— Nós falar ing’erish. Por que fogo? Homem mau ter bomba de fogo. Atear fogo aqui, vento levar fogo Iocoama...

Tyrer recuperou o ânimo com o choque.

— A colônia também pegou fogo?

— Não saber, Taira-sama. Não ter tempo olhar, mas Yoshiwara destruída, achar aldeia também. Talvez Iocoama também.

Tyrer tornou a se levantar, foi até o poço.

— Não, não subir, por aqui. — Hiraga acendeu outro lampião. — Você seguir, sim?

Em japonês, ele acrescentou para Akimoto:

— Você fica aqui. Eu o levarei por parte do caminho. Quer ver o que aconteceu. Voltarei em seguida.

Avançando à frente pelo túnel, Hiraga voltou a falar, em inglês:

— Homem mau ter bomba de fogo. Querer ferir gai-jin. Vento sul fazer fogo pequeno fogo grande.

No mesmo instante, Tyrer compreendeu o significado do vento sul.

— Oh, Deus, tudo é tão combustível, vai arder como nenhuma outra coisa neste mundo. E se...

Ele parou, frenético de preocupação. A água escorria pelas paredes do túnel. Tyrer recolheu um pouco, para molhar a cabeça. A água fria ajudou.

— Desculpe. Continue, por favor. Um homem mau? Que homem mau?

— Homem mau — repetiu Hiraga, sombrio.

Ele sentia-se desorientado, a mente dividida: experimentava intensa fúria por Takeda ter tomado a iniciativa, destruindo seu refúgio seguro, mas ao mesmo tempo estava feliz com o sucesso das bombas incendiárias. Com o vento sul e a Yoshiwara em chamas, a aldeia fora atingida e também as casas dos gai-jin. E com a base em Iocoama perdida, os gai-jin teriam de ir embora, como Ori fora o primeiro a prever e Katsumata depois. Sonno-joi dera um grande passo à frente.

Há cerca de uma hora, ele tentara espiar pelo poço perto da cidade dos bêbados, verificar pessoalmente o que acontecera, mas o calor era intenso demais e tivera de recuar. Talvez os tijolos já tivessem esfriado o bastante para que ele pudesse observar a extensão da devastação ali. Ele se concentrou nessa esperança, sem esquecer que ainda precisava acertar tudo com Tyrer.

O sucesso de sua história dependia em grande parte do fato de Takeda ter sido ou não capturado vivo. Era uma boa aposta que Takeda não permitiria que isso ocorresse, e neste caso sua versão, em grande parte verdadeira, seria lógica.

— Homem mau querer destruir todos gai-jin, expulsar eles do Nipão. Homem do Bakufu. Bakufu querer todos gai-jin ir embora. Yoshi querer todos gai-jin longe do Nipão. Pagar espião para começar fogo, culpar shishi, mas homem do Bakufu.

— Conhece esse homem? Hiraga sacudiu a cabeça.

— Um homem de Satsuma, mama-san dizer.

— Raiko-san?

— Não, Wakiko, outra casa de chá — respondeu Hiraga, inventando um nome. Haviam alcançado a água. — Melhor tirar roupas. Mais seguro.

Despiram-se e vadearam a barreira, com o lampião suspenso acima da superfície. No outro lado, enquanto Tyrer prendia a tanga e vestia o quimono, com alguma dificuldade, Hiraga discorreu sobre o tema de que o Bakufu era insidioso, que eles atribuiriam a culpa a todos os outros, aos ronin, aos shishi, mas haviam planejado e executado a destruição de Iocoama, os verdadeiros culpados eram Anjo, os anciãos, acima de tudo Yoshi.

Para Tyrer, era bastante plausível. Outra vez um Satsuma, um dos demônios de Sanjiro. Na entrada do poço, Hiraga apontou para cima.

— Mesmo que outro. Primeiro, eu ver.

Ele entregou o lampião a Tyrer e subiu até o topo, os tijolos ainda quentes. Cauteloso, espiou para fora. A cena o deixou atordoado. Onde antes existia a terra de ninguém, com suas pilhas de lixo, havia agora um terreno plano, que lhe permitia ver claramente até o mar, além do espaço outrora ocupado pela cidade dos bêbados, além do espaço em que no passado se situava a aldeia, a vista se prolongando até a extremidade norte. Muitos prédios gai-jin continuavam intactos, mas isso não o preocupou. Em tudo e por tudo, Iocoama deixara de existir. Ele desceu.

— O que aconteceu, Hiraga-sama?

— Você ir ver. Eu ficar. Você ir agora, amigo. Hiraga não ir, não poder... samurai ainda procurar, neh?

Tyrer viu os olhos castanhos observando-o, aquele homem estranho, que sem dúvida arriscara sua vida para salvá-lo. E o salvara pela segunda vez. O que mais um amigo pode fazer além de arriscar a vida pelo amigo?

— Sem você, sei que eu estaria morto. Devo-lhe uma vida. Agradecer não e suficiente.

Hiraga deu de ombros, sem dizer nada.

— O que vai fazer?

— Por favor?

— Se eu quiser encontrá-lo, fazer um contato com você.

— Eu aqui. Taira-sama, não esquecer, Yoshi pôr preço minha cabeça, neh? Por favor, não dizer sobre túnel. Bakufu e Yoshi querer pegar eu qualquer maneira. Se Taira-sama falar, eu logo morto, não ter onde fugir.

— Não contarei a ninguém. Como posso lhe enviar uma mensagem?

Hiraga pensou a respeito por um momento.

— Hora sol se pôr, vir aqui, falar para baixo. Eu aqui hora sol se pôr. Compreender?

— Sim. — Tyrer estendeu a mão. — Não tenha medo. Não contarei a ninguém e tentarei ajudá-lo.

O aperto de mão de Hiraga foi firme.

 

— Phillip! Phillip, meu rapaz, graças a Deus que está são e salvo! — O rosto de Sir William iluminou-se de alívio, e ele se adiantou apressado, pondo as mãos nos ombros de Tyrer. — Circularam rumores de que você havia morrido na Yoshiwara. Venha sentar aqui, meu pobre amigo.

Ele ajudou-o a se acomodar na melhor cadeira no escritório, ao lado do fogo.

— Por Deus, você tem uma aparência horrível! O que aconteceu? Mas precisa antes de um drinque! O conhaque já está vindo!

Tyrer relaxou na cadeira alta, sentindo-se muito melhor. Depois do horror inicial pelos danos, tendo encontrado umas poucas pessoas à beira d’água, vendo bandagens e queimaduras, mas sem que ninguém falasse em mortes, constatando que os prédios das legações, da Struan e Brock e outras partes da colônia continuavam intactos — assim como o acampamento do exército e a esquadra —, tudo isso dissipara a maior parte de sua tensão. Ninguém parecia saber quem estava perdido, ou quantos, e por isso ele voltara apressado à legação. Tomou um gole grande de conhaque e disse:

— Fui apanhado pelo incêndio na Yoshiwara. Estava com... hum... com minha garota, e... hum... ela morreu.

Sua infelicidade tornou a invadi-lo, como um maremoto.

— Lamento muito saber disso. Estranho é que seu outro amigo, Nakama, Hiraga, qualquer que seja seu nome verdadeiro, também esteja morto.

— Como, senhor?

— Isso mesmo — disse Sir William, sentando na cadeira em frente e continuando a falar, satisfeito. — Identificação positiva. Uma patrulha avistou-o na terra de ninguém, no início do incêndio na cidade dos bêbados. A princípio, pensaram que fosse um saqueador e os soldados partiram em sua perseguição. Mas logo o reconheceram e atiraram no patife, ferindo-o, para que parasse. Mas não pode imaginar o que aconteceu então. O louco se levantou e jogou-se contra um prédio em chamas... o velho depósito de óleo. O sargento contou que poucos momentos depois houve uma terrível explosão e todo o lugar pareceu subir pelo ar.

— Mas não é possível que...

— Concordo que é improvável, lançar-se para o meio de um inferno, um absurdo, ninguém faria isso. Lamento dizer que dois dos nossos homens morreram quando tentavam agarrá-lo... atingidos pela explosão. Uma pena! É bem possível que Nakama tenha sido o incendiário, se é que houve algum, o que me parece implausível, se quer saber minha opinião. Seja como for, os barris de óleo estavam explodindo por toda parte.

Ele viu a agitação e palidez de Tyrer e se sentiu condoído.

— Lamento por você, Phillip. Lamento por você que Nakama tenha morrido porque sei que gostava dele, mas não lamento pelo outro lado... ele era um assassino e isso nos tira de uma encrenca enorme com Yoshi, não acha?

Sir William ficou esperando que ele concordasse, mas havia apenas um rosto vazio à sua frente.

— Deve ter sido um choque em cima do outro para você... uma coisa horrível não é?

Tyrer estava atordoado, era difícil assimilar o equívoco sobre a morte de Hiraga.

— A Yoshiwara... foi, sim...

Ele já ia esclarecer o engano, quando Sir William voltou a falar:

— Devo lhe dizer, Phillip, que tivemos uma sorte incrível. O exército está intacto, a marinha também, só temos a informação de uma única fatalidade em nossa comunidade, embora ainda estejamos verificando. Viu algum dos nossos ontem à noite na Yoshiwara?

— Não, senhor, nenhum dos nossos. — Tyrer não conseguia pôr a mente para funcionar direito. — Nem uma única alma. Deve compreender...

— É muito difícil tentar localizar a todos, não dá para fazer uma contagem acurada. A cidade dos bêbados é um caso perdido, mas mesmo lá dizem que apenas meia dúzia de vagabundos desapareceram, ninguém que tivesse um nome completo, apenas Charlie, Tom ou George. Fico contente em dizer que todas as jovens damas da Sra. Fortheringill estão sãs e salvas. É espantoso que tenhamos todos escapado, mas se o vento não tivesse amainado... mas acontece que amainou, devemos agradecer a Deus por isso... viu que a Santíssima Trindade também escapou? É verdade que os danos se elevam a centenas de milhares de libras. Graças a Deus pelo seguro, hem? Mas termine logo seu conhaque e vá tirar um cochilo. Depois que pensar bem a respeito, compreenderá como fomos afortunados com Nakama. Ele estava se tomando um grande desastre diplomático. Estou de saída, vou discutir um plano com a comunidade. Por que não fica deitado até eu voltar e...

Uma batida na porta. Bertram anunciou:

— O shoya está aqui, Sir William.

— Um momento bem oportuno. Mande-o entrar. Phillip, antes de ir se deitar, quero que traduza tudo para mim. Entre, entre, Sr. shoya.

O shoya fez uma reverência deferente, cauteloso.

— Meu superior cumprimentar você, shoya — traduziu Tyrer, ainda atordoado, a mente em outro lugar, ansioso em deitar, avaliar toda a situação. — Por favor, dizer quantos perder no fogo?

— Por favor, agradeça a ele por sua gentileza ao perguntar, mas diga que não precisa se preocupar com os nossos problemas.

O shoya achou a pergunta espantosa, pois aquilo não era da conta dos gai-jin. Que armadilha estão querendo armar para mim?, especulou ele.

— Meu superior dizer querer saber quantos perder?

— Oh, sinto muito, mas ainda não tenho certeza da contagem final, mas já sabemos que cinco pescadores e duas famílias foram para o outro mundo.

O shoya falou com toda polidez, inventando um número, já que o líder gai-jin insistia em saber “quantos perder”, o que indicava que esperava um número. Na verdade, não haviam perdido nenhum dos seus, nem crianças, nem barcos, já que o alarme soara com bastante antecedência.

— Meu superior dizer sentir muito. Ele poder ajudar aldeia?

— Ah, sim! Por favor, agradeça ao grande lorde. As famílias podiam aproveitar alguns sacos de arroz, talvez um pouco de dinheiro, qualquer ajuda em comida ou...

O shoya deixou a sugestão pairando no ar, para que eles pudessem decidir com que mais ajudariam. Seria outra armadilha?

— Meu superior dizer que mandar comida para aldeia. Por favor, contar como fogo começar.

O shoya refletiu que era uma loucura total dos gai-jin esperar uma resposta a tal pergunta. Era perigoso se envolver em política, ainda mais no conflito entre os shishi e o Bakufu. Embora lamentasse profundamente a perda de todos os seus lucros, quando os gai-jin deixassem suas praias amanhã, ou no dia seguinte, nem tudo estava perdido, porque todos os seus livros, recibos e lingotes se encontravam salvos, e por causa de seu acordo com o gai-jin Jami, que se tornara ainda mais importante agora. Tenho certeza de que minha stoku kompeni não será afetada.

Ao mesmo tempo, ele sentia-se satisfeito com os shishi ousando expulsá-los, atribuindo a culpa ao infame Bakufu. Sonno-joi. Estaremos melhor sem os gai-jin aqui. É muito melhor que eles fiquem restritos à pequena Deshima, em Nagasáqui, como no passado. Abrirei uma sucursal em Nagasáqui e estarei preparado quando eles voltarem. Se é que algum dia voltarão.

— Sinto muito, mas deve ter sido óleo derramado numa cozinha — respondeu ele, com uma reverência humilde. — Apenas na Yoshiwara cozinham de noite, nós não. Por favor, desculpem, mas isso é tudo o que sei.

— Meu superior dizer que esse homem Nakama, ou Hiraga, o shishi que lorde Yoshi procurar, ele visto soldados, que tentar apanhar ele. Ele fugir e morrer no fogo. Você conhecer ele?

O presságio ruim do shoya triplicou, embora também tivesse sido informado da morte, o que o deixara bastante satisfeito.

— Por favor, desculpem, mas só conhecia como um cliente, nunca como um shishi. Morto? Mas é ótimo que o assassino esteja morto. Maravilhoso!

Sir William suspirou, cansado das perguntas e respostas.

— Agradeça a ele, Phillip, e dispense-o.

O velho se retirou, agradecido. Sir William disse:

— E agora, Phillip, vá se deitar. Esteja pronto para partir ao meio-dia.

— Como, senhor?

— Para Kanagawa, a reunião com Yoshi. Não tinha esquecido, não é?

Tyrer ficou estupefato.

— Com toda certeza, senhor, Yoshi não deve estar nos esperando agora — balbuciou ele, experimentando uma náusea intensa à perspectiva de uma prolongada reunião, traduzindo as nuances do tratado. — Com toda certeza!

— E é justamente por isso que iremos até lá — declarou Sir William, radiante. — Para deixá-lo surpreso, hem? Somos britânicos, não um bando de idiotas fracos e vacilantes. Apenas tivemos um pequeno contratempo, um estorvo insignificante.

Ele pôs o casaco e acrescentou para Tyrer:

— Até meio-dia e não deixe de vestir seu melhor traje.

— Mas ele não vai aparecer, não depois do que aconteceu aqui!

— É possível. Mas se Yoshi não aparecer, ele é que vai ficar mal, não nós.

— Não posso ir, Sir William, não como intérprete. Estou... estou exausto e não poderei ir, não hoje. Sinto muito.

— Receio que terá de ir de qualquer maneira. Não podemos perder a pose e todas essas coisas.

Tyrer viu o sorriso fino, a frieza voltando. E a atitude inflexível.

— Desculpe, senhor, mas não posso. Por favor, deixe que André cuide disso. Ele é melhor do que eu.

— Você é que terá de ir — disse Sir William, sem o menor vestígio de bom humor agora. — André Poncin morreu.

Tyrer quase caiu.

— Não é possível... Como?

— Na Yoshiwara. Recebi a notícia pouco antes de você chegar, e foi por isso que me senti tão aliviado ao vê-lo são e salvo.

Ao dizer isso, Sir William lembrou-se subitamente do envelope lacrado que André deixara com ele, no cofre da legação, para ser aberto no caso de sua morte.

— Henri identificou-o, na medida em que se pode identificar um cadáver naquele estado. O anel de sinete ainda estava em seu dedo... — Ele sentiu uma náusea ao pensar no assunto. — O pobre coitado foi carbonizado em sua garçonnière. Fui informado que ficava a poucos metros da sua, na mesma casa de chá. Eu diria que você teve muita sorte, Phillip. Esteja pronto ao meio-dia.

Sir William deixou a legação, desceu pela rua, a caminho do clube. Vários homens seguiam para lá, de todas as direções. Passando pela Struan, ele olhou para o prédio, sentindo-se grato por estar incólume, assim como o prédio da Brock... um bom presságio, pensou, um dos dois é sem dúvida a Casa Nobre, e a Brock é muito melhor com Gornt do que era com Norbert. Ele notou Angelique em sua janela e acenou. Ela acenou em resposta. Pobre Angelique, eu me pergunto se Henri já a informou sobre André. Depois, ouvindo o tumulto no interior do clube, mesmo a distância, os gritos habituais, as imprecações, o barulho de copos, Sir William suspirou e concentrou sua mente nos problemas da colônia.

Houve silêncio quando ele entrou. O clube estava apinhado, o excesso de pessoas transbordando pela escada. Abriu-se um caminho estreito para a sua passagem, através das fileiras comprimidas e suadas. Sir William encaminhou-se para seu lugar costumeiro, perto do bar, e cumprimentou os outros ministros, Seratard, Erlicher e Zergeyev, que tinha parte do rosto enfaixado, das queimaduras, e um braço na tipóia. Todas as pessoas de alguma importância se encontravam presentes, assim como muitos que não tinham nenhuma importância, inúmeras enfaixadas, vários ossos fraturados, mas todos os rostos corados. Já havia alguns bêbados arriados nos cantos.

— Bom dia. Sinto-me feliz em comunicar que tivemos uma tremenda sorte...

Vaias interromperam-no, soaram gritos:

— Uma ova que tivemos! Estou arruinado!

— Mas o que está querendo dizer, pelo amor de Deus?

— Deixem-no falar!

— Ele está cheio de besteira, não viu...

— Ora, cale essa boca!

Sir William esperou um pouco e depois continuou, num tom mais firme:

— Tivemos realmente muita sorte, apenas a morte de André Poncin foi confirmada... — Um murmúrio audível de pesar, pois seu talento como pianista era muito apreciado. — ...e mais ninguém da comunidade. O Sr. Seratard identificou o corpo e o enterro será amanhã. Infelizmente, perdemos dois soldados e o funeral deles também será amanhã. Ainda há uns poucos desaparecidos na cidade dos bêbados, mas ninguém que conheçamos pelo nome. Nosso exército está intacto, com todas as suas armas, balas e munições. A marinha também está intacta. Tivemos de fato muita sorte e proponho que agradeçamos a Deus por isso.

No silêncio opressivo, ele acrescentou:

— Pedi ao padre que celebrasse um serviço especial ao crepúsculo. Todos estão convidados. Alguma pergunta até aqui?

— E nossas firmas? — gritou Lunkchurch. — Meu prédio pegou fogo!

— É para isso que todos temos seguro contra incêndio, Sr. Lunkchurch. Uma explosão de risos interrompeu-o.

— O que foi?

Heavenly Skye, o agente de seguros de Iocoama, responsável pelo encaminhamento a Hong Kong, onde todas as apólices eram aceitas, explicou:

— Lamento dizer, Sir William, mas a apólice de Barnaby venceu na semana passada e, para poupar algum dinheiro, ele se recusou a renová-la até o primeiro dia do mês.

O resto das palavras foi abafado pelos risos e zombarias.

— Eu lamento ouvir isso. De qualquer forma, pela correspondência que partirá esta noite, para o governador de Hong Kong, estou formalmente declarando a colônia uma área de desastre para todas...

Ele foi outra vez interrompido, por gritos de concordância, pois tal declaração garantia que todas as reivindicações fossem atendidas com a maior rapidez possível.

— ...uma área de desastre para todas as reivindicações legítimas, que devem ser comprovadas, exigindo minha assinatura para se tornarem válidas e...

Outros gritos, agora de protesto, pois ele era conhecido como um homem escrupuloso, ao contrário de certas autoridades do governo em Hong Kong, e o incêndio fora automaticamente considerado por muitos como uma dádiva divina uma oportunidade de engrossar seus estoques. Depois que o silêncio voltou, Sir William disse, em tom mais ameno:

— Não serão admitidas exceções, e quanto mais cedo as reivindicações estiverem em minha mesa, mais depressa serão aprovadas e despachadas...

Iniciou-se êxodo generalizado para a porta e ele berrou, com a voz potente demais para alguém tão magro:

— Ainda não acabei, por Deus! Vamos passar ao próximo assunto. Certas pessoas tolas e desavisadas acreditam que o curso mais sensato é abandonar nossa base aqui. O governo de sua majestade não tem a menor intenção de se retirar. Absolutamente nenhuma!

Argumentos em contrário surgiram aqui e ali, mas Sir William repeliu-os com frieza.

— Próximo assunto. Vocês são obrigados a se ajudarem uns aos outros, como cavalheiros britânicos e...

— E os malditos ianques? — gritou alguém, sob aplausos e vaias, a favor ou contra.

— Eles também! — berrou Sir William, seu humor voltando. — Uns poucos são cavalheiros e muitos mais poderiam se tornar.

Mais risos e ele continuou:

— Portanto, vamos agir como cavalheiros e reconstruir tudo, o mais depressa que pudermos. Isso é importante. Devemos confirmar nossa posição aqui, porque, o último assunto, e o mais sério, há rumores de que o incêndio foi criminoso.

— É verdade. Minha musume diz que foi mesmo.

— Um relato provável é o de que o incendiário foi o samurai Nakama, o sujeito procurado pelo Bakufu como um revolucionário, embora o Sr. Tyrer e eu... e o Sr. McFay também, se não me engano... o achássemos simpático, alguém que não constituía uma ameaça, e uma vasta fonte de informações.

— É verdade — declarou Jamie, revigorado pela ternura de Maureen. — Não creio que ele pudesse ser um incendiário, para dizer o mínimo.

— Seja como for, talvez nunca saibamos com certeza, porque ele está morto, foi surpreendido em circunstâncias suspeitas. Todos devem estar precavidos para a possibilidade de ter sido um incêndio criminoso. Pessoalmente, não estou convencido, mas se o incêndio foi um ato de violência contra nós, haverá outros. Se foi um ato de Deus... ora, esse é seu privilégio...

— Amém — disseram muitos, gratos por estarem vivos.

— ...portanto, fiquemos conscientes do possível perigo, mas vamos agir de modo normal e voltar ao trabalho. Obrigado a todos e bom dia.

— E o que vamos fazer com a Yoshiwara e a casa da Sra. Fortheringill?

Sir William piscou, aturdido. Pelo bom Deus, devo estar ficando velho, pensou ele. O problema da Yoshiwara não lhe ocorrera, mas era a única coisa que tornava o Japão suportável, e até mesmo desejável, para muitos homens.

— O estabelecimento da Sra. Fortheringill deve estar coberto pelo seguro, com certeza. Quanto à Yoshiwara... Vamos abrir um fundo de contribuições agora mesmo. Por uma semana. Eu começo, doando vinte guinéus, e... ora, como é parte de nossa área de desastre, o governo de sua majestade vai igualar, libra por libra, todas as contribuições.

Sob mais aplausos e tapinhas nas costas, Sir William conversou por um momento com os outros ministros, comunicando-lhes, para surpresa de todos, que a reunião com Yoshi continuava de pé, que ele e Seratard tratariam com Yoshi, mas todos jantariam juntos naquela noite, num encontro particular. Saindo para o passeio, ele enxugou o suor da testa. Satisfeito, encaminhou-se para a legação.

— Ei, olhem só! — gritou alguém, por trás dele.

Sir William virou-se e observou, espantado, com a maior inveja, assim como os outros que saíam do clube.

Na área desolada em que antes existia a aldeia, havia agora todo um enxame de homens, mulheres e crianças diligentes, limpando e trabalhando, com o mesmo empenho de formigas num formigueiro, todos com o mesmo objetivo: reconstituir o que desaparecera. Duas casas, com telhado e paredes de shoji, já se encontravam prontas e havia outras parcialmente erguidas. Muitas pessoas carregavam tábuas e paredes de shoji de pilhas além do portão sul.

É uma pena que o nosso pessoal não demonstre a mesma diligência, pensou Sir William, impressionado. Ele também viu, no outro lado do fosso, através da ponte reparada, a ponte para o paraíso, mais atividade, um portão provisório erguido, balançando à brisa.

Do lugar em que se encontrava, podia ler os caracteres chineses, tão apreciados, muito bem lembrados... a tradução para o inglês também inscrita ali, parecendo de certa forma exótica na caligrafia: O desejo não pode esperar, deve ser satisfeito.

 

Naquela tarde, o mar sereno, o céu ainda nublado, o cúter da Struan aproximou-se do cais em Iocoama, voltando da reunião com Yoshi em Kanagawa. O galhardete de Sir William tremulava no mastro. As pessoas na cabine, Sir William, Seratard e Tyrer, cochilavam... Tyrer como um morto. O contramestre tocou o apito, pedindo passagem aos cúteres que se acumulavam nas proximidades do atracadouro, mas soaram gritos de “espere a sua vez!”, com uma ampla variedade de palavrões como pontuação. Sir William abriu os olhos e berrou para o contramestre:

— Deixe-nos no cais da Brock!

Quando o contramestre sugeriu que o Sr. MacStruan não ia gostar, Sir William acrescentou:

— Faça logo o que estou mandando!

Os outros foram arrancados do sono, mas Tyrer murmurou algumas palavras incompreensíveis e voltou a dormir. Seratard esticou-se, reprimiu um bocejo.

— Grande almoço, William, um excelente peixe. — Sem notar, ele passou a falar em francês. — Eu teria preferido um molho de manteiga com alho e salsa. Mas não importa. Seu chefe inglês, o que mais poderia fazer?

— Ele é chinês — protestou Sir William, jovial.

A reunião transcorrera exatamente como ele planejara. Ou seja, não houvera nenhuma reunião. Haviam chegado a tempo, esperaram meia hora e depois chamaram o governador local, Tyrer dizendo que não podia entender o que acontecera com lorde Yoshi.

— Ele estar doente?

— Ah, sinto muito, não sei o que o lorde...

— Meu superior dizer: Perguntar pela saúde de lorde Yoshi, dizer nós estar aqui, conforme combinado. Assim que ser possível, marcar novo dia, por favor.

Deliberadamente, Tyrer abandonara todas as cortesias. O governador ficara vermelho, fizera uma reverência, do tipo reservado a superiores, pedira desculpas mais uma vez e se retirara apressado, consternado porque os gai-jin continuavam ali. Como não podia deixar de ser, todas as pessoas civilizadas, dali até Iedo, haviam visto o incêndio, presumindo que os gai-jin, os que restassem, lamberiam suas queimaduras, embarcariam nos navios, juntando-se ao êxodo, e iriam embora.

Depois que o governador e sua comitiva se retiraram, Sir William sugerira um almoço sem pressa, conduzindo Seratard à sua adega substancial.

— Merecemos uma celebração, Henri. O que gostaria de beber? Tivemos realmente muita sorte ontem à noite... exceto por André, pobre coitado.

— Tem razão. Uma pena. A vontade de Deus. — Seratard franzira o rosto, ainda olhando para os rótulos. — Ah, Montrachet, 51! Duas garrafas?

— Duas no mínimo. George vai nos acompanhar no almoço. Podemos também saborear um Margaux... recomendo o 48, Château Pichon-Longuville... e um Château d’Yquem com o pastelão.

— Perfeito. É uma pena que não tenhamos queijo. Não há a menor possibilidade de Yoshi aparecer agora?

— Se ele vier, não o veremos.

— Na reunião no clube, você disse que teríamos um jantar esta noite. Quer discutir alguma coisa com os outros?

— Isso mesmo. — A adega era fresca e agradável. Havia uns poucos copos no aparador, ao lado das prateleiras. Sir William selecionara meia garrafa de champanhe e começara a abri-la. — Acho que devemos fingir que o incêndio não é o desastre que realmente foi e prosseguir com os nossos planos contra Sanjiro e sua capital, Kagoshima.

— Agora? — Seratard ficara surpreso. — Mas não acha que seria perigoso demais enviar a esquadra num momento em que nos tornamos tão expostos? Não seria uma tentação para eles?

— E muito grande, mas é justamente esse o meu ponto. Minha proposta é enviarmos apenas navios de guerra britânicos, mantendo aqui sua nave capitânia e a dos russos, junto com os navios mercantes armados. Cancelamos o envio de unidades do exército para o desembarque proposto e despachamos apenas os fuzileiros. E nos limitaremos a um bombardeio do mar.

Ele tirara a rolha e servira o champanhe.

— Isso tornará a missão de Ketterer muito mais fácil. Ele jamais gostou da idéia de comandar um desembarque dos navios. Agora, pode ficar a distância na baía e arrasar os japoneses. Saúde.

Os dois homens bateram seus copos, Seratard avaliando a proposta para descobrir os perigos latentes, quaisquer lugares em que seu adversário plantara minas para prejudicar os interesses franceses. Não havia nenhum. Ao contrário, ajudava seu plano a longo prazo de se insinuar na confiança de Yoshi, fazendo-o compreender que os ingleses eram os bárbaros, não os franceses, e que a França, que comparava a si mesmo, merecia toda confiança, sabia ser paciente e via mais longe.

— Uma safra maravilhosa, William. En príncipe, sim, mas eu gostaria de consultar meu almirante.

— Por que não? Depois, faremos o seguinte...

O almoço fora bastante agradável. No momento oportuno, embarcaram no cúter e agora Sir William equilibrava-se com a maior agilidade, enquanto a embarcação era atracada no cais da Brock, uma ocorrência inédita. Avistou Gornt ao lado de alguns baús, junto com um empregado, perto dos degraus do cais.

— Espero que não tenha se incomodado, Sr. Gornt — disse ele. — Requisitei o cúter, que está sob a minha bandeira, não da Struan.

— O prazer é meu, Sir William. Como foi a reunião?

— O sujeito não apareceu. Acho que esperava que nós não comparecêssemos.

— Ele perdeu prestígio com isso, daqui até Timbuctu.

— Concordo. — O que fora a sua idéia, pensou Sir William, com um sorriso secreto, enquanto apontava para as malas. — Não vai embora, não é?

— Claro que não, senhor. Mas viajarei até Hong Kong, pelo paquete que zarpa esta noite, a fim de providenciar material de construção para nós e para os outros.

— Boa idéia. Desejo uma viagem segura e rápido retorno.

Sir William ergueu o chapéu e afastou-se em seguida, junto com Seratard. Tyrer, doente de cansaço, cambaleou atrás deles, mal reconhecendo Gornt.

— Leve estes baús para bordo, Pereira — ordenou Gornt. — Avise ao capitão que embarcarei dentro do horário. Olá, doutor.

Hoag aproximou-se, acompanhado por alguns cules, carregando um baú de viagem marítima e várias malas.

— Olá, Edward. Soube que você também vai viajar no Atlanta Belle. — Hoag estava sem fôlego, aflito, as roupas e as mãos manchadas de sangue e sujas, os olhos injetados. — Posso pedir a seu pessoal para levar minha bagagem para bordo? Ainda tenho uma dúzia ou mais de braços e pernas para encanar, várias queimaduras... muito obrigado.

Ele se afastou apressado, sem esperar por uma resposta.

— Leve isso para bordo também, Pereira.

Gornt franziu o rosto e se perguntou: por que Hoag está com tanta pressa em partir?

Tudo fora arrumado como deveria, tudo providenciado para que a Brock continuasse a operar sem problemas durante sua ausência: a que mercadores dar crédito, a que mercadores negar; amanhã ou no dia seguinte, os representantes de Choshu deveriam chegar para negociar os embarques de armas — um bom negócio para ele próprio usufruir, depois que os Brocks fossem destruídos, e depois, como planejado também, que adquirisse as instalações e o pessoal da companhia aqui... a preços de salvados de incêndio, é claro. Ele riu para si mesmo da piada. Em seguida, a concessão de carvão de Yoshi, que ele soubera que poderia ser transferida da Struan para Seratard, através da companhia comercial do falecido André Poncin, e que talvez ainda estivesse disponível para ofertas. Instruíra seu cambista a apresentar uma oferta, em segredo.

Pereira ficaria no comando. Na noite passada, ao saber por Maureen que o novo escritório de Jamie fora destruído no incêndio, ele planejara designá-lo; mas naquela tarde, para sua surpresa, Jamie agradecera e recusara, dizendo que achava que seria capaz de reiniciar seu próprio negócio.

Jamie seria mais glacê na glacê, pensou Gornt. Mas não importa, Jamie ainda vai assumir por mim, quando tudo for a Rothwell-Gornt. Sentia isso no íntimo.

O sinete de Norbert estava ali, assim como as duas cartas com datas atrasadas para Tess. Seu cinto de dinheiro tinha recursos da Brock, mais do que suficiente para as despesas, em mex de prata e ouro. Ótimo. Tudo resolvido.

Agora, faltava Angelique.

 

— Olá, Edward — disse ela, com um sorriso efusivo.

Era a primeira vez que ela o recebia em seu boudoir, no segundo andar. Ah Soh postava-se ao lado de um balde de gelar vinho e ele notou que a porta para o quarto estava fechada, o cortinado corrido, embora a claridade do dia ainda não tivesse desaparecido por completo, lampiões a óleo acesos, o cômodo feminino, convidativo, o comportamento de Angelique recatado, estranho.

— Vinho branco, para variar — disse ela, jovial. — La Doucette. Ou bourbon, se preferir.

— Vinho, por favor, madame. Nunca a vi com uma aparência melhor.

— O mesmo posso dizer a seu respeito, meu amigo. Por favor, sente aqui, ao lado do fogo.

O vestido de luto para a tarde, preto-azulado, era novo, o modelo sedutor, o decote quadrado e pudico. Mas, para o prazer de Gornt — e o dela —, havia um xale de seda multicolorido em torno de seus ombros, o efeito surpreendente, um sopro de primavera naquele dia de janeiro.

— Ah Soh, vinho — disse ela.

Depois que os dois foram servidos, Angelique acrescentou:

— Espere lá fora! Se eu quiser, chamarei!

A criada se retirou, arrastando os pés, e bateu a porta. Gornt comentou, em voz baixa:

— Ela deve estar com o ouvido comprimido na porta.

Angelique riu.

— Para ouvir segredos? Que segredos poderia haver entre nós? A uma viagem segura, Edward! — Ela tomou um gole, largou o copo. — Já arrumou tudo?

— Já, sim. Você está maravilhosa, eu a amo e gostaria de uma resposta ao meu pedido.

Angelique abriu o leque, começou a usá-lo, como deveria ser usado por uma jovem dama de classe, na presença de um homem solteiro de classe — e de duvidosa reputação —, para seduzir, flertar, prometer sem prometer, dar respostas, ou evitá-las, insinuar perguntas que seriam perigosas se formuladas abertamente.

— Eu o admiro muito, Edward.

— Não mais do que eu a admiro. Mas a resposta é sim ou não?

O leque foi fechado. Angelique sorriu, foi abrir uma caixa na cômoda, entregou-lhe um envelope. Endereçado à Sra. Tess Struan.

— Por favor, leia a carta. Estou enviando-a para Hong Kong por intermédio de Hoag, em resposta à carta que ela me escreveu.

A caligrafia de Angelique era impecável:

 

Prezada Sra. Struan:

Agradeço por sua carta e generosidade.

Concordo com tudo o que solicitou: juro solenemente e concordo por livre e espontânea vontade em renunciar a toda e qualquer reivindicação à herança de seu filho, concordo em nunca mais usar o título de Sra. Struan, concordo que sou católica e nunca fui casada de acordo com a minha Igreja, concordo em nunca mais pôr os pés em Hong Kong, exceto para uma baldeação, e nunca mais tentar entrar em contato com você, ou qualquer pessoa de sua família, concordo em me retirar destas instalações dentro de uma semana, e aceito, com sinceros agradecimentos, a oferta de um fundo que me dará dois mil guinéus por ano, até minha morte.

 

O espaço para sua assinatura estava em branco e, abaixo, ela escrevera confirmada como assinatura autêntica por Sir William Aylesbury, ministro no Japão, com outro espaço em branco para a assinatura e a data. Gornt levantou os olhos.

— Não pode estar falando sério. Isto entrega tudo a ela.

— Não me aconselhou a aceitar as condições dela?

— É verdade, mas disse para chegar a um acordo... renegociar.

— Não esqueci. Se você concorda, pedirei a Sir William para testemunhar agora, antes de sua partida. O Dr. Hoag prometeu levá-la esta noite, no mesmo navio em que você vai viajar. Assim, a carta estará lá quando você chegar.

— Mas sabe que isto cede tudo... como eu, ou qualquer outra pessoa, poderia negociar em seu nome?

— Há uma segunda página.

Angelique tirou-a da caixa, entregou-a, abriu o leque, começou a se abanar. Gentilmente.

Gornt tornou a se concentrar. A letra não era tão precisa, e havia manchas aqui e ali... poderiam ser manchas de lágrimas?, ele perguntou a si mesmo.

 

Prezada Sra. Struan:

Por motivos óbvios, esta parte deve ser separada, ficar só entre nós, pois não é da conta de Sir William. Mais uma vez, agradeço por sua generosidade. A gentil oferta de mais mil guinéus, se eu recasar, ou apenas casar, como diria, dentro de um ano, não posso aceitar, porque não tenciono recasar ou casar, qualquer que seja o termo que considere correto...

 

Ele tornou a levantar os olhos, aturdido.

— É esta a minha resposta?

O leque adejou.

— Termine a carta.

Os olhos de Gornt desceram apressados pela página.

 

Diante de Deus não posso evitar a convicção de que fui casada, embora renuncie por livre e espontânea vontade a qualquer pretensão pública e legal a esse estado. Não assumirei outro... não desejo magoá-la ou ofendê-la, mas quanto a casar de novo... não. É minha intenção, assim que for possível, instalar-me em Londres, porque me sinto mais inglesa do que francesa, a língua de minha mãe era o inglês, não o francês, minha tia foi minha verdadeira mãe.

Nunca mais usarei o título de Sra. Struan, como concordei, mas não posso evitar que outras pessoas se refiram a mim como tal. Sir William não aceitará Angelique, ou Angelique Richaud, e insiste que eu assine como Sra. Angelique Struan, née Richaud, para tornar o acima compulsório, pois segundo ele, e seu entendimento da lei inglesa, é esse o meu atual nome legal, até que eu torne a casar.

 

— Ele disse isso? — perguntou Gornt, em tom brusco.

— Não, mas o Sr. Skye garante que ele concordaria, se lhe for pedido.

— Hum...

Gornt balançou a cabeça, pensativo, tomou um gole de vinho e continuou a ler, mais devagar, com maior atenção:

 

Caso qualquer dos pontos acima seja insatisfatório, por favor escreva o que mais exige e entregue ao Sr. Gornt, que me disse que tornará a vê-la e depois voltará para cá, quase que imediatamente, e eu assinarei. Eu o recomendo, pois ele foi um bom amigo de seu filho e tem sido gentil comigo — aconselhou-me a aceitar suas generosas condições, assim como o Sr. Skye foi contra. Respeitosamente... Angelique.

 

Gornt recostou-se, deixou escapar um suspiro, fitou-a nos olhos, impressionado.

— E maravilhosa. Não há outra palavra. Você concorda com tudo, mas ainda mantém a espada de Dâmocles sobre a cabeça dela.

O leque parou.

— Como assim?

— Planeja viver em Londres, portanto sob a lei inglesa, uma ameaça latente e óbvia. Não usa uma única vez “marido”, mas a ameaça existe, e me lança bem no meio do palco, como amigo das duas partes, numa perfeita posição de negociação. E por mais insidiosa que ela seja, independente do documento que elaborar para a sua assinatura, você sempre pode derramar mais lágrimas e suspirar, alegar que houve coação, e acabaria vencendo. Uma maravilha de vinte e quatro quilates!

— Sendo assim, devo pedir a Sir William para testemunhar minha assinatura?

— Deve, sim — respondeu Gornt, fascinado por ela, tão esperta e ousada, e também perigosa. Talvez perigosa demais. — É o xeque-mate.

— Como assim?

— Tess só fica segura de uma forma: se você tornar a casar, e bloqueou essa possibilidade.

Embora o leque parasse, os olhos de Angelique observavam-no por cima. Depois, o movimento recomeçou, enquanto Gornt devolvia a carta, pensando: De uma esperteza diabólica... para você, não para mim.

— Skye a aconselhou de uma forma brilhante.

— Ninguém me aconselhou, exceto você... fui orientada por uma coisa que me disse.

O coração de Gornt pulou uma batida.

— Ninguém mais viu esta carta?

— Não. E ninguém mais verá. Pode ser um segredo entre nós.

Ele ouviu o “pode ser” e especulou para onde isso levava, desanimado agora, mas escondendo. O fogo na lareira precisava de atenção, por isso ele se levantou, foi usar o atiçador, ganhando tempo para pensar. O ar ainda estava impregnado de fumaça e do incêndio, mas ele não registrou isso, só se concentrava em Angelique.

Como ela pôde conceber tudo isso? É absolutamente brilhante, todas as peças estão no tabuleiro, para nós dois. Ela vai vencer, derrotará Tess, mas eu perdi. Ainda terei de negociar para ela e agora tenho mais certeza de que conseguirei aumentar seu estipêndio, mas Angelique não admitiu coisa alguma, deixou seu plano de jogo em aberto. Eu perdi. Não partilharei o grande prêmio: ela.

— Portanto, a resposta à minha pergunta é não, deve ser não?

Apenas o leque se mexia.

— Por quê? — indagou Angelique, sem emoção.

— Porque no momento em que disser sim, perde o jogo, perde todo o seu poder sobre Tess Struan.

— Tem razão, eu perderia.

Ela fechou o leque, largou-o em seu colo. Os olhos nunca se desviaram dos olhos de Gornt, nunca perderam a intensidade.

Por um momento, ele sentiu-se hipnotizado, depois sua mente tornou a entrar em ação, e uma súbita esperança o invadiu.

— Você disse eu perderia, significando que você perderia. Mas eu não? Eu não perderia o poder?

Agora, Angelique sorriu. Era uma resposta.

O sorriso de Mona Lisa outra vez, pensou ele, é estranho como o rosto de Angelique muda, como eu penso que muda, como ela é insidiosa e como terei de ser vigilante para domar esta potranca. Ainda não entendo, mas um coração fraco jamais conquista uma bela dama. Ele precisou de toda a sua força de vontade para manter os pés plantados no mesmo lugar.

— Eu a amo por todas as razões usuais e também a amo por sua astúcia. Agora, formalmente, quer casar comigo?

— Sim — respondeu Angelique.

 

— Aleluia! — exclamou Gornt, inebriado, mas sem sair do lado da lareira.

O leque parou.

— Aleluia? Isso é tudo? — murmurou ela, o coração acelerando.

— Claro que não, mas primeiro deve me dizer quais são as condições. Angelique riu.

— Deve haver condições?

— Estou começando a entender a maneira como sua mente funciona... pelo menos algumas vezes.

— Quando vai embarcar no Atlanta Belle?

— No último momento. Há muito... para conversar.

— Tem razão. Edward, nossos filhos seriam criados como católicos, e nós nos casaríamos numa igreja católica?

— Isso é uma condição?

— Uma pergunta.

Ele franziu o rosto, deixando a mente se projetar à frente e ao redor, querendo ser cauteloso naquele mar infestado de rochedos.

— Não vejo por que não. Não sou católico, como sabe, mas se é isso o que você quer, não tem problema... — A peça final do quebra-cabeça ofuscou-o com sua força. — Aleluia!

— O que foi?

— Apenas uma idéia. Conversaremos a respeito dentro de um minuto. Agora, Angelique, chega de jogos. Quais são as condições? O que tem nessa sua mente mágica?

Angelique se levantou. Na ponta dos pés, encostou os lábios nos dele, num beijo gentil. Ela tinha lábios macios, uma respiração fragrante.

— Obrigada por me perguntar, e pelo que já fez por mim.

Gornt pôs as mãos nos quadris dela. Ambos notaram que seus corpos pareciam se ajustar, embora nenhum dos dois o admitisse.

— As condições?

— Diga-me quais são, Edward.

Agora que ela respondera à pergunta principal e lhe entregara as chaves, Gornt não tinha pressa.

— Acho que são três — disse ele, divertido. — Se eu estiver certo, vai me contar o resto?

— Concordo.

O corpo de Gornt, firme contra o seu, a agradava. E seu corpo suave e cheio de curvas contra o dele também o agradava, desviando sua concentração. Sem o menor esforço. Cuidado, é o maior trunfo de Angelique e o jogo se encontra agora no seu estágio mais perigoso... o acerto do futuro. Cuidado! E muito fácil tornar o beijo mais sério, fácil demais, e também será fácil tomá-la em meus braços, levá-la para a cama no quarto ao lado e perder — qualquer que seja o resultado — antes mesmo de alcançar a porta.

Era mais excitante para ele se conter, esperar pelo momento perfeito — como fizera com Morgan Brock —, aceitar o fato de seu desejo, mas pô-lo de lado e, em vez disso, projetar sua mente para a de Angelique. Três condições? Conheço pelo menos cinco, pensou ele, querendo vencer, precisando vencer, como acontecia em tudo.

— Não necessariamente nesta ordem — começou ele. — Uma, que eu consiga renegociar com sucesso um aumento, no mínimo para quatro mil por ano. Outra, que passemos algum tempo em Paris e Londres, digamos pelo menos um mês a cada dois anos... mais o tempo de viagem, que será em torno de seis meses. Depois, que o dinheiro do fundo de Tess, qualquer que seja, permaneça sob o seu controle, não o meu.

Ele viu os olhos de Angelique faiscando e compreendeu que vencera.

— E outra, para arrematar, que eu a ame loucamente para sempre.

— Você é bastante esperto, Edward. Tenho certeza de que seremos muito felizes. — O sorriso estranho ressurgiu. — Agora, cinco seriam melhor do que quatro e dois meses melhor do que um.

— Tentarei chegar a cinco, embora não possa prometer — disse ele no mesmo instante. — Também concordo com dois meses em Paris, todas as outras coisas permanecendo iguais. O que mais?

— Nada de importante. Precisaremos de uma casa em Paris, mas sei que você vai amá-la, depois que a conhecer. Nada mais, exceto que você tem de prometer que vai gostar de mim.

— Nem precisava perguntar isso, mas prometo.

Os braços de Gornt a apertaram. Ela encostou-se nele, percebendo como os corpos se ajustavam, sentindo-se segura, embora ainda não tivesse certeza sobre Gornt.

— Você é mais desejável do que qualquer outra mulher que já conheci — acrescentou ele. — Isso, por si só, já é bastante terrível, mas ainda por cima possui uma mente extraordinária, e suas maquinações... não, essa não é a palavra apropriada... seus voos de genialidade...

Por um momento, ele a manteve à distância dos braços, fitando-a nos olhos.

— Você é espetacular, sob todos os aspectos. Ela sorriu, não saiu de seus braços.

— Todos mesmo?

— Até pelo casamento católico.

— Ah...

— Isso mesmo, ah! — Gornt soltou uma risada. — É a sua solução de sonho, minha jovem e esperta dama, junto com sua carta. Ocorreu-me subitamente o que você já decidiu: um casamento católico faz com que deixe de ser uma ameaça a Tess para sempre. Afinal, para Tess, um casamento católico neutraliza completamente o casamento protestante, celebrado no mar, por mais legítimo que seja, perante a lei inglesa.

Angelique riu, aninhando-se contra ele.

— Se dissesse que achava que poderia me persuadir a casar com você e depois, como protestante, se oferecesse para fazer esse sacrifício deliberado, tenho certeza de que aquela mulher ficaria feliz em lhe dar tudo o que pedisse, para nós dois, se os pedidos fossem razoáveis. Não concorda?

— Concordo. — Gornt suspirou. — Em que pedido pensou?

— Nada demais, mas Malcolm me explicou uma ocasião a importância do Jóquei Clube, tanto em Xangai quanto em Hong Kong, e como, junto com os conselhos das duas cidades, todo o poder dos negócios se concentra ali. A influência daquela mulher não lhe conseguiria um título de sócio em um e uma vaga no outro?

Ele riu, tornou a abraçá-la.

— É mesmo incomparável, madame. Por isso, eu até me tornaria católico.

— Não precisa chegar a esse ponto, Edward.

— Vai adorar Xangai. Agora, também tenho condições.

— É?

Gornt ficou contente ao ver um brilho de preocupação nos olhos de Angelique, mas ocultou sua satisfação e assumiu uma expressão mais severa. Não preciso impor condições prévias, pensou ele, divertido: um marido tem direitos inalienáveis, como possuir todos os bens materiais da esposa. Graças a Deus que este mundo pertence aos homens.

— A primeira condição é que você me ame com todo o seu coração e alma.

— Tentarei, Edward, e me esforçarei para ser a melhor esposa que já existiu. — Ela apertou-o. — E que mais?

Gornt percebeu a preocupação latente e soltou uma risada.

— Isso é tudo, exceto que tem de prometer que me deixará ensiná-la a jogar bridge e mah-jongg... e assim nunca mais precisará pedir dinheiro a mim ou a qualquer outra pessoa.

Angelique fitou-o nos olhos por um momento, depois se ergueu na ponta dos pés. O beijo sacramentou o acordo e depois ele fez um esforço para relaxar, excitado demais.

— Mal posso esperar, Angelique.

— Eu também.

— Agora, devemos planejar, pois não resta muito tempo. Primeiro, temos de obter a assinatura de Sir William, o mais depressa possível. Minha querida, eu me sinto muito feliz por você ter me aceitado.

Angelique tinha vontade de ronronar.

— E eu me sinto mais feliz do que posso exprimir. Quando você voltar continuaremos aqui ou partiremos para Xangai?

— Iremos para Xangai o mais depressa possível... assim que os Brocks afundarem.

Ele beijou-a no nariz.

— Ah, os Brocks. Tem certeza? Tem certeza em relação eles? Todo o nosso futuro depende disso, não é?

— E de Tess. Tenho certeza. Minhas provas são irrefutáveis e o veneno de Tess será a pá de cal na ruína deles — ela deve ter compreendido isso também ou nunca teria feito essa oferta tão mesquinha; mesmo assim, precisamos ter cuidado, independente do que sejamos em particular, o que é uma situação diferente, pelo prazo de seis meses — precisarei de todo esse tempo para levá-la a Xangai, sua reputação imaculada, a Rothwell-Gornt consolidada, suas finanças definidas... devemos agir apenas como bons amigos. Eu adoro você.

Como resposta, Angelique tornou a apertá-lo e depois murmurou:

— Os americanos têm o costume de fazer um contrato de casamento?

— Não, mas o faremos, se você quiser. — Gornt percebeu o sorriso que encobria e prometia. — Não é necessário, não é mesmo? Estamos interligados, nosso futuro é comum, somos uma única entidade mesmo agora. O sucesso depende de nosso desempenho conjunto e da minha atuação. Nunca se esqueça de que Tess é muito hábil e astuta, não será enganada com facilidade e considera que um acordo é um acordo. Mesmo assim, prometo que você conseguirá o que quer.

Tem toda razão, vou conseguir, pensou Angelique.

 

Chocado, Sir William largou a última página escrita por André na mesa do lado. Era tudo em francês, com a letra de André.

— Por Deus! — murmurou ele, mudando de posição em sua poltrona velha puída, mas confortável.

A sala era agradável, um fogo crepitava alegre na lareira, as cortinas fechadas contra as aragens.

Ele levantou, sentindo-se muito velho, serviu-se de um drinque, ficou olhando para os papéis, incrédulo. Tornou a sentar, folheou-os. Aparte final da carta do pai de Angelique, reconstituída de forma meticulosa, sugeria sem qualquer dúvida um esquema calculado para seduzir Malcolm Struan, outras páginas fixavam datas e detalhes do estupro pelo assassino ronin em Kanagawa e sua estranha morte na legação francesa, o nome da mama-san que fornecera o medicamento, como fora pago com os brincos “perdidos” e como André saíra remando pelo mar para dar um sumiço nas provas — algumas toalhas, as ervas e um dos dois vidros, o outro guardado como prova, agora esperando na gaveta de sua mesa na legação. Sua carta de explicação dizia:

 

Sir William, quando ler esta carta, eu já estarei morto. O que existe aqui só deve ser usado se eu sofrer uma morte violenta. Confesso que usei meu conhecimento para arrancar dinheiro de Angelique, isso mesmo, fiz chantagem, se quiser usar essa palavra, mas também a chantagem é um instrumento diplomático, que você também tem usado, como todos nós. Eu lhe passo estas informações porque posso ter sido assassinado ou talvez minha morte tenha parecido acidental, mas não foi necessariamente assim e, sim, provocada por ela ou com sua ajuda — outra verdade é a de que não seriam poucos os que cometeriam assassinato por ela (Babcott, McFay, Gornt) —, porque meu conhecimento e participação em seus... “crimes “ é uma palavra forte demais... em suas manipulações me transformam num alvo.

Estas páginas apresentam os indícios para pegar a pessoa que me matou e atribuir a culpa à responsável suprema. Não guardo qualquer ressentimento contra Angelique, eu a usei quando precisava, embora nunca tenha ido para a cama com ela. Minha morte pode parecer acidental, mas talvez não seja. Se assim for, muito bem, já fiz minha confissão (embora não tenha revelado nada disso ao padre Leo) e partirei para a maior aventura — tão impuro quanto a maioria, talvez mais do que a maioria, que Deus me ajude.

Por que tenho de entregar isto a você, e não a Henri? Por quê?

 

A assinatura era firme.

— Por que eu? — murmurou Sir William. — E como é possível que aquela moça fosse capaz de esconder tudo isso por tanto tempo, esconder de Malcolm Struan? E de George e de Hoag? Impossível, certamente impossível, André deve ter perdido o juízo... e, no entanto...

Além da carta do pai — e mesmo esta, fora do contexto, poderia ser um exagero da verdade —, o resto é apenas opinião de André, a menos que ela seja pressionada e confesse. Estas histórias poderiam ser invenções de uma mente demente. Claro que ele também a queria, não foram poucas as ocasiões em que todos notamos a maneira libidinosa como André a contemplava e ainda houve aquele estranho incidente, quando Vervene o encontrou no quarto de Angelique. E é bastante curioso que ele tenha usado a palavra “impuro” desse jeito, quando de fato o era, o pobre coitado.

Sir William estremeceu. Seratard lhe contara o segredo de André. A sífilis era endêmica em todas as camadas da sociedade, em todas as cidades e aldeias, em São Petersburgo, Londres e Paris, nos palácios e nas habitações mais vis da Casbá, podia espreitar de qualquer bordel, de qualquer dama da noite, na China ou em nosso mundo flutuante aqui.

Ah, André, por que me entregar tudo isso? É curioso que tenha morrido como morreu, de mãos dadas com a moça que comprou para destruir. Que coisa terrível! Só que ela teve uma opção, como somos levados a acreditar. Sua morte foi um acidente. Foi mesmo? Henri não tem certeza.

— É tudo muito estranho, William — dissera-lhe Henri naquela manhã.__

Os corpos... seria mais acurado falar esqueletos... davam a impressão de mortos antes do fogo chegar, sem qualquer sinal de que tentaram escapar. Apenas se encontravam estendidos lado a lado, de mãos dadas. E isso me espanta. Apesar de todos os seus defeitos, André era um sobrevivente, e num incêndio o instinto é tentar escapar, não continuar deitado, sem fazer nada. Seria impossível.

— Então qual é a resposta?

— Não sei. Pode ter sido um pacto de suicídio, consumado antes do incêndio. Veneno, nada mais se ajustaria. É verdade que ultimamente André se mostrava mórbido, ao ponto da insanidade, e precisava muito de dinheiro para pagar o contrato da mulher. Tirando isso, André um suicida? Acredita nessa possibilidade?

Não, não André, pensou Sir William, inquieto. Ele foi envenenado ou ambos. Agora, há um motivo para assassinato. Deus Todo-Poderoso, seria possível? É, sim, mas quem?

Cansado, bastante transtornado, ele fechou os olhos. Quanto mais tentava encontrar uma resposta, mais perturbado se tornava. A porta foi aberta, sem barulho. Seu empregado número um entrou, começou a cumprimentá-lo, percebeu a palidez e envelhecimento no rosto de Sir William, franziu o rosto, presumiu que ele dormia, serviu um uísque, pôs o copo na mesa ao seu lado. Seus olhos esquadrinharam a carta de André, no alto da pilha, e depois ele saiu, tão silencioso quanto entrara.

Poucos minutos mais tarde, houve uma batida na porta. Sir William despertou com um sobressalto, no momento em que Babcott estendia a cabeça pela porta.

— Tem um minuto?

— Olá, George. Claro. — Sir William guardou os papéis numa pasta, consciente da atração que pareciam irradiar. — Sente-se e tome um drinque. Qual é o problema?

— Não há nenhum. — Babcott estava ainda mais cansado do que antes. — Não ficarei muito tempo. Só queria avisar que vou tirar umas poucas horas de sono. A contagem até agora é de três sujeitos da cidade dos bêbados, o australiano que trabalhava num bar e dois vagabundos sem documentos... pode haver outros corpos nas ruínas, mas ninguém sabe quando a limpeza será concluída. E ninguém parece muito preocupado com isso.

— O que me diz da aldeia e da Yoshiwara?

— Nunca teremos uma contagem. — Babcott bocejou. — Eles parecem considerar que estatísticas desse tipo são segredos nacionais. Não se pode culpá-los, pois nós somos os forasteiros. Eu diria que não tiveram muitas baixas. O mesmo em nossa Yoshiwara, graças a Deus... sabia que cada estalagem tinha um porão de emergência?

— Muito conveniente. Seria bom instituirmos a mesma idéia aqui.

— Uma pena o que houve com André... — murmurou Babcott, provocando outra pontada de angústia em Sir William. — Tivemos muita sorte, porque a maioria do nosso pessoal não foi apanhada pelo fogo. Mas até agora não sei como Phillip conseguiu escapar vivo. Ele ficou bastante abalado pela perda de sua garota, William. Por que não lhe dá uma licença de umas poucas semanas, deixa-o ir a Hong Kong ou Xangai?

— O trabalho é a melhor terapia e preciso dele aqui.

— Talvez você tenha razão. — Outro bocejo. — Por Deus, como estou cansado! Já sabe que Hoag vai embarcar no paquete esta noite?

— Ele me avisou antes. Disse que tinha conversado com você, que respondeu que não precisava mais dele aqui. Imagino que Tess ordenou que ele voltasse assim que soubesse... se ela não estivesse esperando.

— Deve ser isso mesmo. Mas em parte é pessoal, William, pois ele se mostra ansioso em voltar para a índia, acha que encontrará a felicidade por lá. — Babcott franziu o rosto, reprimiu um bocejo. — Ele lhe contou o que havia na carta de Tess?

— A carta para Angelique? Não. Disse que Tess não lhe mostrou o que escrevera, embora seja difícil acreditar nisso. — Sir William observava-o atentamente. — Heavenly esteve aqui antes. Também não disse nada a respeito, apenas informou que Angelique queria que eu testemunhasse sua assinatura numa carta que está enviando para Tess.

Um pouco do cansaço de Babcott se desvaneceu.

— Eu gostaria muito de saber o que diz a carta.

— Serei apenas testemunha da assinatura. Não preciso tomar conhecimento do conteúdo.

Babcott suspirou, tornou a bocejar. — Lamento profundamente por ela, gostaria de poder ajudar, faria qualquer coisa... uma moça tão boa, para quem a vida tem sido tão injusta. Com ela e com Malcolm. Seja como for, estou contente porque ela não vai nos deixar por enquanto. Tenho certeza que Angelique dará uma esposa espetacular para alguém. Tornarei a vê-lo dentro de algumas horas.

— Durma bem e obrigado por seu excelente trabalho. Por falar nisso — acrescentou Sir William, não querendo que ele se retirasse, mas receando que, se Babcott ficasse, poderia se sentir tentado a partilhar o que André revelara, pedir seu conselho —, quando vai ver Anjo de novo?

— Dentro de uma ou duas semanas, assim que acabar o láudano que deixei com ele... sem isso, Anjo vai sofrer muito.

— Não há esperança para ele?

— Não. Só vai durar mais uns poucos meses, os testes foram bastante acurados... suas entranhas se deterioraram. Yoshi é o nosso homem. — Outro bocejo. — Acha que foi Anjo ou Yoshi, se não mesmo ambos, que ordenaram o incêndio criminoso?

— Os dois, ou nenhum dos dois, nunca saberemos. — Ele observou Babcott se encaminhar para a porta, trôpego. — George, em termos médicos, se uma mulher estivesse sedada, um homem poderia possuí-la sem que ela soubesse?

Babcott piscou, aturdido, virou-se no mesmo instante, a fadiga desvanecida.

— Por que pergunta isso?

— Apenas um pensamento súbito, por você ter mencionado o láudano. Há poucos dias, Zergeyev expôs algumas teorias incríveis sobre drogas, o que havia de bom e ruim nelas. Isso poderia acontecer?

Depois de uma pausa, Babcott acenou com a cabeça, não acreditando nessa explicação. Sabia como a mente de Willie era sutil e especulou sobre o motivo da pergunta, mas era esperto demais para perguntar outra vez.

— Se a dose fosse maciça e o homem não se comportasse como um selvagem, sim, não seria problema.

Ele esperou, mas Sir William limitou-se a balançar a cabeça, pensativo. Diante disso, Babcott acenou com a mão e retirou-se.

Mais uma vez, Sir William abriu a pasta.

Seus dedos tremeram quando releu a carta de André. É bem claro. A droga em Kanagawa desencadeou a sucessão de eventos, a droga dada por George. Se ela tivesse despertado, o homem a mataria, não resta a menor dúvida quanto a isso. Assim, ela foi salva, mas também destruída. E por que o homem não a matou de qualquer maneira? Por que a deixou viva? Não faz sentido. E o que aconteceu na legação francesa naquela outra noite, quando ele voltou? Se não fosse por George...

E o que pensar de George? Se ele foi capaz de lhe dar uma droga assim, para ajudá-la a dormir, para proteger sua sanidade, é claro que poderia fazer a mesma coisa com André, para remover um chantagista da mulher a quem ama, com toda certeza. Uma dose excessiva da mesma droga...

George Babcott? Oh, Deus, devo estar perdendo o juízo! Seria impossível para ele fazer uma coisa dessas!

Ou será que não?

E Angelique... seria impossível para ela fazer tudo isso!

Ou será que não?

O que vou fazer?

 

— Com licença, senhor — disse Bertram. — Miss Angelique está aqui.

— Mande-a entrar. E pode se retirar em seguida. O jantar será às nove horas. Providencie para que o Belle não zarpe sem os meus despachos.

— Pois não, senhor. É apenas ela. O Sr. Skye não veio junto.

Sir William levantou-se de sua velha cadeira, cansado, sentindo-se mal. A pasta com o material de André continuava em cima da mesa, virada para baixo.

Angelique entrou, fisicamente tão magnética quanto sempre, mas diferente, o rosto rígido, com uma força latente que ele não pôde interpretar. De casaco, touca e luvas. O preto se ajusta bem a ela, pensou Sir William, contrasta com sua pele alva, tão bela e tão jovem, mais jovem do que Vertinskya. Estranho... ela estivera chorando?

— Boa noite. Como vai, Angelique?

— Ah... vou muito bem, obrigada. — A voz era apática, diferente de sua personalidade controlada habitual.

— O Sr. Skye informou-o que eu precisava que testemunhasse minha assinatura esta noite?

— Informou, sim. — Ele foi para sua mesa, a concentração afetada pelas imagens que André descrevera com tanto vigor. — Eu... por favor, sente-se.

Angelique sentou. Enquanto ele a fitava, outra sombra passou por seus olhos adoráveis.

— Qual é o problema? — perguntou Sir William, gentilmente.

— Não é nada. Eu... esta tarde soube sobre André, que ele tinha morrido. Teria vindo antes, mas... — Com um esforço visível, ela relegou isso para um segundo plano, tirou o envelope da bolsa, pôs em cima da mesa. — Como devo assinar, por favor?

Sir William uniu as pontas dos dedos, apreensivo de novo, o espectro de André tornando a invadir a sala... embora não por sua vontade.

— Não tenho muita certeza. Pelo que Skye contou, entendi que você concordou com a Sra. Tess Struan, entre outras condições, a renunciar a seu título de Sra. Struan?

— Pode ler a carta, por favor, se assim o desejar — murmurou ela, apática.

— Agradeço, mas isso não é necessário — disse Sir William, resistindo ao impulso intenso de ler o curto documento. — O que acertou com ela não é da minha conta, a menos que precise de meu conselho.

Atordoada, Angelique sacudiu a cabeça.

— Sendo assim... Skye tem uma teoria legal. Não tenho certeza se ele está correto, mas não vejo nenhuma razão em contrário. Está renunciando ao título de “Sra.” para sempre. Mas ele ressaltou, de forma procedente, que isso só acontece depois que você assinar. Portanto, é melhor assinar Sra. Angelique Struan, née Angelique Richaud, o que deve cobrir todas as possibilidades.

Ele observou-a se concentrar, a mente dominada pela história terrível que André relatara de seu túmulo de chamas... não é possível que ela tenha escondido tanta coisa de nós, não é possível mesmo.

— Pronto — disse Angelique. — Já assinei.

— Sinto-me na obrigação de perguntar: tem certeza de que está fazendo a coisa certa... ninguém a obrigou, por qualquer meio, a assinar este documento, não importa o que contenha?

— Assino por minha livre e espontânea vontade. Ela... ela ofereceu um acordo, Sir William. E a verdade é que... a verdade é que se trata de um acordo justo. Algumas das cláusulas são distorcidas, poderiam ser melhoradas, talvez sejam, mas Malcolm era seu filho, ela tem o direito de ficar transtornada.

Angelique levantou-se, enfiou a carta no envelope, guardou-o na bolsa, querendo sair logo, mas ao mesmo tempo querendo ficar.

— Obrigada.

— Não se vá ainda. Talvez... não gostaria de jantar aqui amanhã, apenas umas poucas pessoas? Eu estava pensando em convidar Jamie e Miss Maureen.

— Seria ótimo, obrigada. Eu gostaria muito, mas... Eles são simpáticos, e ela é maravilhosa. Acha que vão casar?

— Se Jamie não casar com ela, é mais tolo do que eu pensava... Outro tomará seu lugar, se ele não casar. — Antes de poder se controlar, Sir William acrescentou. — Muito triste o que aconteceu com André, não acha? Henri lhe contou como o encontraram?

Abruptamente, ele viu os olhos de Angelique se encherem de lágrimas, o controle desaparecer.

— Desculpe. Não tinha a intenção de deixá-la tão transtornada.

— Sei disso, mas já me encontro tão transtornada que... ainda não posso... Henri me contou há cerca de uma hora como André e ela, juntos... a vontade de Deus para ambos, muito triste, mas também maravilhoso.

Angelique tornou a sentar, removendo as lágrimas e recordando que quase desfalecera ao saber. Depois que Henri se retirara, ela fora correndo para a igreja, ajoelhara-se diante da imagem da Santa Virgem... a igreja estranhamente mudada, imponente sem o telhado, mas as velas acesas, como sempre, a paz ali, como sempre. E agradecera, um agradecimento desesperado, por se livrar da servidão, e uma súbita e sincera compreensão de que André também se libertara de seu tormento, tanto quanto ela. E murmurara:

— Compreendo isso agora. Santa mãe, obrigada por nos abençoar, a mim e a ele. André está com ela, em paz, quando sabia que jamais encontraria a paz neste mundo. Mas agora eles se encontram sãos e salvos em seus braços, foi feita a sua vontade...

Os olhos de Angelique mal conseguiam divisar Sir William, através do pesar e da gratidão.

— Henri me falou sobre a doença de André. Pobre coitado, uma coisa terrível... e ele estava apaixonado, totalmente apaixonado. André foi gentil comigo e para ser sincera... — Angelique precisava dizer a verdade em voz alta. — ... também foi horrível, mas acima de tudo era um amigo. E sentia uma paixão irresistível por essa Hinodeh, nada mais no mundo tinha a mesma importância. Por isso, ele deve ser desculpado. Chegou a conhecê-la?

— Não. Nem sequer sabia seu nome. — Apesar de sua determinação em deixar a questão por aí, Sir William perguntou: — Por que ele foi horrível?

Angelique usou um lenço para enxugar as lágrimas e respondeu a voz triste, sem raiva:

— André sabia sobre meu pai e meu tio e usou isso e outras coisas para me deixar em dívida. Vivia me pedindo dinheiro, que eu não tinha, fazendo as promessas mais delirantes... e até mesmo, para ser franca, ameaças.

Inquisitiva, ela fitou-o, sem qualquer astúcia agora, franca e grata a Deus e à Virgem santa por liberar os dois, o passado consumido com ele, junto com toda a sordidez.

— Foi a vontade de Deus! — disse ela, fervorosa. — Fico contente por isso e também triste. Por que não podemos esquecer o que era ruim e apenas lembrar as coisas boas... já há suficiente mal neste mundo para compensar o nosso esquecimento, não acha?

— Tem razão — murmurou ele, com uma compaixão angustiante, os olhos desviando-se para a miniatura de Vertinskya. — É isso mesmo.

Aquela rara demonstração de emoção em Sir William desencadeou alguma coisa em Angelique, que no mesmo instante, antes de perceber o que fazia, pôs-se a revelar o seu medo mais profundo:

— É um homem sensato e tenho de contar a alguém. Sinto-me purificada, como nunca antes, mas é meu Malcolm que me preocupa. Acontece que não fiquei com nada seu, nem o nome, nem o daguerreótipo... não saiu... nenhum retrato e descubro que não consigo encontrar suas feições. A cada dia, parece um pouco pior. Estou assustada...

As lágrimas escorriam, silenciosas, e Sir William, sentado à sua frente, não era capaz de se mexer.

— É quase como se ele nunca tivesse existido e toda a viagem, o tempo em Iocoama, não passasse de um... um théâtre macabre. Estou casada, mas não estou, acusada de coisas horríveis que jamais aconteceram ou não ocorreram de propósito, inocente, mas culpada, odiada por Tess, quando apenas queria fazer o melhor que podia por meu Malcolm, claro que eu sabia que ele era um grande partido e meu pai maquinava um casamento, não eu, acho que não eu, mas não fiz coisa alguma que pudesse prejudicá-lo, e ele me amava, queria casar comigo, empenhei-me em fazer o melhor, juro que sim, e agora que ele morreu, tento ao máximo ser sensata, estou sozinha agora, ele se foi, tenho de pensar no futuro, estou apavorada, era uma criança quando cheguei, agora é diferente, tudo aconteceu muito depressa, e o pior é que não consigo me lembrar de seu rosto, está me escapando, e não há nada... Pobre Malcolm...

 

No crepúsculo, à beira da terra de ninguém, ao abrigo de uma casa na aldeia meio concluída, uma sombra se deslocou. E depois outra. Dois homens espreitavam, escondidos, observando. Em algum lugar, no meio dos telheiros e abrigos temporários da aldeia, em meio às habitações parcialmente reconstruídas, em meio às conversas abafadas, uma criança começou a chorar, para ser logo silenciada.

Onde antes a terra de ninguém fora uma sucessão de colinas e vales de lixo e refugos, a maior parte fora consumida pelo fogo e o resto assentara mais fundo na terra, e por cima de tudo se estendera uma camada de cinzas da qual ainda saíam filetes de fumaça. Só o poço de tijolos era proeminente. A primeira sombra transformou-se em Phillip Tyrer e ele correu até o poço, meio encurvado, agachando-se ao seu lado.

Cauteloso, correu os olhos ao redor. Até onde podia determinar, ninguém o vira. No outro lado, a cidade dos bêbados não passava de escombros fumegantes, detritos retorcidos, uns poucos incêndios isolados ainda ardendo, entre barracas de lona temporárias. Havia uns poucos homens por ali, belicosos, quase todos encolhidos contra o frio, sentados em barris virados, bebendo cerveja, uísque e rum saqueados.

Com o maior cuidado, Phillip inclinou-se para a beira do poço e assoviou. Lá de baixo veio um assovio em resposta. Ele tornou a se abaixar, reprimiu um bocejo nervoso. Momentos depois uma mão alcançou o topo dos tijolos. A cabeça de Hiraga apareceu. Phillip fez um sinal para ele. Em silêncio, Hiraga agachou-se ao seu lado, depois Akimoto. Ambos usavam casacos acolchoados e quimonos, por cima de calças largas, e carregavam as espadas camufladas com roupas extras. Cautelosos, encolheram-se quando três homens no lado da cidade dos bêbados começaram a atravessar o lugar em que antes existira uma viela, desviando-se entre os destroços do armazém. Um deles cantava uma canção do mar. Muito tempo depois de sumirem de vista, sua voz de barítono ainda ressoava, trazida pelo vento.

— Seguir eu, mas tomar cuidado!

Tyrer correu de volta à aldeia e parou ao lado do outro homem, junto ao bangalô inacabado. Jamie McFay. Quando estava seguro, Hiraga e Akimoto se juntaram aos dois, correndo com mais agilidade, sem qualquer barulho. Jamie McFay disse:

— Aqui, depressa.

Ele abriu o saco e entregou-lhes trajes de marujo, com casacos de lã e sapatos. Hiraga e Akimoto despiram-se, puseram as roupas de marujo. Os trajes descartados foram para o saco, que Akimoto pendurou nas costas. Tyrer viu Hiraga guardar uma pistola num bolso lateral.

Demorara apenas um ou dois minutos. Jamie seguiu na frente, ao longo do trecho em que antes existia a rua principal da aldeia... e em breve voltaria a existir. Podiam sentir olhos por toda parte. No céu, a lua saiu de trás das nuvens por um instante. Numa reação automática, Hiraga e Akimoto se congelaram em sombras, prontos para empunharem suas armas, criticando mentalmente a negligência inepta dos outros dois. A lua logo desapareceu e eles continuaram.

A casa do shoya estava três quartos reconstruída, a loja na frente vazia, mas os aposentos por trás concluídos, em caráter temporário, e habitáveis. Jamie esgueirou-se entre pilhas de vigas e shojis, foi bater numa porta improvisada. A porta se abriu e ele entrou. Os outros seguiram-no para a escuridão. A porta foi fechada.

Um momento depois, um fósforo foi riscado, e o pavio da vela aceso. O shoya estava sozinho, pálido de cansaço e de medo, que se esforçava em ocultar. Na mesa baixa, havia frascos de saquê e um pouco de comida. Hiraga e Akimoto devoraram a comida e esvaziaram dois frascos em segundos.

— Obrigado, shoya — disse Hiraga. — Não esquecerei.

— Tome aqui, Otami-sama. — O shoya entregou-lhe uma pequena bolsa com moedas. — São cem oban de ouro e vinte mexicanos.

Havia um pincel na mesa, a pena e o tinteiro preparados, ao lado do papel. Hiraga assinou o recibo.

— E meu primo?

— Sinto muito, mas isso é tudo o que consegui providenciar em tão pouco tempo — respondeu o shoya, lançando um rápido olhar para Jamie, que os outros não perceberam.

— Não importa. — Hiraga não acreditava nele, mas também Akimoto não tinha crédito, ninguém para pagar o empréstimo. — Obrigado. E, por favor, cuide para que meu fiador receba isto, o mais depressa possível.

Ele entregou um pequeno pergaminho. Era uma mensagem de despedida codificada para a mãe e o pai, relatando seu plano e dando a notícia sobre Sumomo. Por precaução, não continha nomes reais. Em inglês, Hiraga acrescentou:

— Taira-sama, pronto. Aqui acabado.

— Pronto, Jamie? — indagou Tyrer.

Ele se sentia estranho, nauseado, sem saber se a causa era excitamento ou medo, fadiga ou desespero. Desde o incêndio, o rosto de Fujiko aflorava de seu subconsciente a intervalos de poucos minutos, gritando, em chamas.

— Melhor apressar, Otami-sama — disse ele a Hiraga. Ambos haviam combinado que era melhor nunca mais usar Hiraga ou Nakama. — Baixar mais gorro sobre rosto. Domo, shoya, mataneh. Obrigado, shoya, boa noite.

Ele tornou a sair para a rua. Depois de verificar que era seguro, fez um sinal para os outros.

— Vá na frente, Jamie — sussurrou ele.

Em súbito pânico, todos se esgueiraram para as sombras, enquanto uma patrulha de granadeiros se aproximava e passava. Voltando a respirar, Tyrer murmurou:

— Eles estar procura saqueadores, ladrões, wakamarisu ka?

— Wakamarisu.

Mais uma vez Jamie seguiu à frente, desviando-se entre os escombros, na direção do cais no outro lado do passeio, perto do lugar em que antes se erguia o prédio do Guardian. Havia muitos homens vagueando por ali, olhando impressionados para as ruínas da aldeia, Yoshiwara e cidade dos bêbados ou apenas passeando a esmo, pois ainda era muito cedo para dormir. Reconhecendo alguns, Jamie passou a andar mais devagar, não querendo atrair qualquer atenção. Dmitri era um deles, voltando para casa. Jamie não pôde reprimir um sorriso amargo. Naquela manhã, Dmitri, radiante, procurara-o para informar que descobrira Nemi durante a madrugada e que ela estava bem, tinha apenas umas poucas equimoses, salvara-se quase ilesa.

— Graças a Deus, Dmitri!

— A primeira coisa que ela disse foi Jami-san bem? Eu disse que sim e ela me deu um abraço para você. Dei o seu recado, de que a encontraria assim que fosse possível.

— Obrigado. Isso tira uma carga da minha cabeça. Receava que ela tivesse morrido. Acabei encontrando sua estalagem, mas era apenas uma pilha de cinzas, inclusive nossa casa. Não descobri ninguém que... Graças a Deus.

— Lembra o que eu...

— Claro que lembro, mas primeiro tenho de conversar com ela. Afinal, Nemi não é uma mera peça do mobiliário.

— Ei, companheiro, vamos com calma! Nem pense nisso. Não tive a intenção de insinuar qualquer coisa...

Jamie suspirou e continuou a avançar, passando pelas ruínas de um bar, agora não muito longe do passeio. Dmitri é um ótimo sujeito, pensou ele, mas Nemi era especial, e...

— Oh, Deus, olhe ali!

Ele apontou. Cinco guerreiros samurais exaustos agachavam-se ao redor de uma fogueira, ao lado do cais, fazendo um chá. Num instante, Jamie avaliou as alternativas. Não havia nenhuma.

— Não temos como evitar. Vamos embora.

Ao chegaram ao passeio, Lunkchurch emergiu da escuridão.

— Jamie — murmurou ele, soturno —, o que você vai fazer? Perdeu tudo, como eu...

Lunkchurch lançou um olhar para Phillip, mal notando os outros dois. Pareciam marujos asiáticos comuns, de um tipo abundante na frota mercante.

— É uma merda...

— Talvez não seja tão horrível assim, Barnaby. Tenho algumas idéias. Falarei com você amanhã.

Jamie continuou a andar, chegou ao cais, levantou o chapéu, polido, para os samurais e seu oficial, que retribuíram a saudação, distraídos. As estacas e o caminho de madeira do cais se estendiam por cinquenta metros, pelo mar adentro. Jamie sentiu um aperto no coração. Não havia nenhum cúter à espera e nenhum se aproximava do cais da Struan, ao norte. No meio da baía, o Atlanta Belle estava todo iluminado, cercado por um enxame de pequenas embarcações, chegando e partindo.

No início daquela tarde, Jamie perguntara a MacStruan se podia emprestar o cúter naquela noite, para uma rápida viagem, pois queria conversar com o capitão do Belle, Johnny Twomast, um velho amigo. Phillip, depois de deixar Sir William, que confirmara a suposta morte de Híraga, fora correndo se encontrar com Jamie. Tropeçando nas palavras, de tanto excitamento, Phillip contara, na maior satisfação, que Hiraga continuava vivo, escondido num poço na cidade dos bêbados, como o japonês salvara sua vida na noite passada e expusera seu plano para salvá-lo.

— Só precisamos levá-lo às escondidas para bordo do Belle, ninguém jamais saberá de nada.

— Ele está vivo? Fui informado que havia morrido no incêndio... ele está mesmo vivo?

— Está, sim. Tudo o que temos de fazer é levá-lo para bordo, junto com seu amigo.

— Pedirei a Johnny Twomast para escondê-lo, mas apenas se você obtiver a aprovação de Willie. Hiraga ainda é um assa...

— Hiraga morreu... Nakama, Hiraga, é tudo a mesma coisa, oficialmente, Willie disse que o sargento confirmou sua morte no incêndio. Nakama está morto, desapareceu para sempre, assim como Hiraga. Mandá-lo para fora daqui num navio é a solução perfeita e vale a pena salvá-lo. Só estamos ajudando dois samurais estudantes a conhecerem o mundo, o nosso mundo, durante cerca de um ano, e um deles se chama Otami.

— Se formos apanhados, Willie vai arrancar sangue... o nosso sangue.

— Não há motivo para sermos apanhados. Otami é mesmo Otami, seu nome verdadeiro, e ele me falou sobre você e o shoya combinando todos os tipos de negócios. Você será o vencedor quando ele voltar, todos nós sairemos ganhando. Temos de ajudá-lo de qualquer maneira!

Jamie acabara concordando e se encontrara com o shoya para acertar o empréstimo, pelo qual também se tornara fiador. A esta altura, já era o pôr-do-sol. Tyrer fora até o poço, para chamar Hiraga e Akimoto, e agora esperavam no cais.

— Onde está o cúter, Jamie? — indagou Tyrer, nervoso.

— Já vai chegar.

Sentindo-se bastante expostos, os quatro homens esperaram na extremidade do cais, perto dos degraus cambaios, escorregadios, cheios de algas, todos conscientes dos samurais ali perto, seu capitão andando de um lado para outro. Hiraga sussurrou:

— Taira-sama, aquele capitão lembrar? Ele vigilante. Lembrar ele, capitão no portão?

— Que portão?

— Em Iedo. Na sua casa grande em Iedo. Quando nós encontrar primeira vez.

— Oh, Deus!

Tudo voltou agora — o rude samurai que insistira em revistar a legação, quando se encontravam cercados e trancados, antes da evacuação, Hiraga escapando numa maca, disfarçado como um paciente de varíola.

— O que foi agora? — perguntou Jamie.

Tyrer contou. Por cima do ombro de Tyrer, Jamie constatou que o oficial os observava. Sua ansiedade aumentou. — Ele parece curioso demais.

— Posso reconhecê-lo agora — murmurou Tyrer. — Seria melhor se nós... Olhe, lá está!

O cúter surgiu da escuridão, as luzes de navegação acesas, mas quase indistintas. O contramestre acenou, eles acenaram em resposta. As ondas batendo no cais os salpicavam com borrifos.

— Tratem de embarcar o mais depressa possível — disse Jamie, num excitamento cada vez maior.

Phillip o convencera de que Hiraga não era um assassino, mas alguém que lutava pela liberdade. Além disso, já testemunhara pessoalmente como Hiraga podia ser útil. Agora, tinha ainda mais certeza do quanto um shishi e amigo que falava inglês poderia ser valioso no futuro, em particular se tivesse sido orientado e ajudado por ele. Até preparara um dossiê sobre pessoas que Hiraga deveria procurar na Inglaterra e Escócia, aonde ir, o que ver, e tencionava explicar tudo isso antes da partida do navio.

Phillip é um gênio, pensou ele, soltando uma risadinha. Foi nesse instante que olhou para trás e prendeu a respiração. O oficial japonês aproximava-se pelo cais.

— Por Deus, o patife está vindo para cá!

Todos olharam para o homem e depois para o cúter. Não havia a menor possibilidade de o barco chegar antes do capitão.

— Estamos perdidos!

Hiraga já chegara à mesma conclusão. Puxou os quimonos que cobriam suas espadas.

— Akimoto, vamos matá-lo!

— Esperar! Ficar aqui!

Tyrer entregou a Hiraga um envelope grande, que continha cartas de apresentação a seu pai e tio, também a um advogado e o diretor de sua universidade.

— Eu ia explicar tudo a eles no cúter — disse Tyrer, falando depressa. — Não há mais tempo agora. Jamie, faça isso por mim.

Ele fitou Hiraga nos olhos, pela última vez, estendeu a mão.

— Obrigado. Serei sempre seu amigo. Volte são e salvo.

Tyrer sentiu o aperto firme, divisou um breve sorriso, depois virou-se, com um suor frio, e partiu ao encontro do inimigo.

O capitão já percorrera a metade do cais quando Tyrer postou-se à sua frente, no meio da passagem, e fez uma reverência formal. Um grunhido, o homem hesitou, a mão no punho da espada longa, depois respondeu com outra reverência. Quando ele tentou passar, Tyrer fez uma nova reverência e disse, em seu melhor japonês, deliberadamente solene:

— Ah, senhor oficial, eu querer dizer como samurais combater bem o fogo. Lembrar de Iedo, sim? Por favor, desculpar, em nome meu superior, chefe gai-jin no Nipão, aceitar grande agradecimento por salvar todas casas nossas.

— Obrigado, mas agora eu quero ver...

— Ver? Olhar ali, senhor oficial!

Tyrer apontou na direção da cidade e ao redor, seu japonês se tornando cada vez mais incompreensível, dando um passo para o lado, cada vez que o homem tentava contorná-lo.

— Ver o que fogo...

— Saia da frente! — disse o samurai, furioso, a respiração com o cheiro de daikon. — Saia da frente!

Mas Tyrer fingiu não entender, sacudiu os braços para bloqueá-lo, tentando dar a impressão de que não era intencional, tomando cuidado para não tocá-lo, ao mesmo tempo em que dizia como a devastação fora terrível e como os samurais haviam demonstrado grande competência... Jamie e os outros se encontravam às suas costas, e por isso não tinha como calcular quanto tempo ainda precisava ganhar.

— Baka! — rosnou o oficial.

Tyrer viu o rosto do homem se contrair em raiva e preparou-se para o golpe, mas nesse instante ouviu Jamie berrar:

— Vamos partir logo, pelo amor de Deus!

O capitão empurrou-o para o lado, bruscamente, e correu na direção do barco. Ofegando, Tyrer recuperou o equilíbrio e virou-se para avistar o cúter fazendo a volta, a toda velocidade, os três homens abaixados na cabine, o contramestre na casa do leme, um marujo na proa, as luzes na cabine apagadas no instante em que o samurai alcançou a extremidade do cais, gritando para que voltassem, a ordem abafada pelo barulho do motor. Um momento antes de as luzes se apagarem e de Hiraga e Akimoto virarem as costas, Tyrer teve a impressão de que podia ver seus rostos com toda nitidez... e se os vira, o oficial também vira.

— É minha imaginação — murmurou Phillip, já se afastando, no andar mais rápido de que era capaz.

Ergueu o chapéu para os samurais em torno da fogueira, que responderam de uma maneira superficial, e ao ouvir o grito do capitão, “Ei, você! Venha cá!”, já estava se fundindo com a multidão. Quando achou que era seguro, desatou a correr e só voltou a respirar quando se encontrava são e salvo na legação.

— Por Deus, Phillip! — exclamou Bertram, os olhos arregalados. — O que aconteceu?

— Ora, vá se foder! — balbuciou Tyrer, ainda aflito com a fuga por um triz.

— Por que ele deveria fazer isso? — indagou Sir William, da porta de sua sala, o rosto tenso, a voz ríspida.

— Oh... desculpe, senhor, foi... apenas uma brincadeira.

Um grunhido irritado foi o comentário.

— Phillip, você está de miolo mole! Onde se meteu? Há uma mensagem do Bakufu com a indicação de urgente em sua mesa, à espera de tradução, um despacho para Sir Percy que tem de ser copiado, antes de seguir no Atlanta Belle esta noite, quatro pedidos de pagamento do seguro para autenticar... já aprovei e assinei. Depois de acabar tudo, venha falar comigo. Estarei aqui, ou no cais, despedindo-me dos passageiros... Não fique parado aí! Trate de se apressar!

Sir William tornou a entrar em sua sala, fechou a porta, encostou-se nela. Seus olhos foram inexoravelmente atraídos para a pasta de André, bem no meio da mesa. E a tristeza tornou a aflorar.

Depois que Angelique fora embora, ele ficara quase sem se mexer por uma hora, ou mais, tentando tomar uma decisão, desesperado em fazer o que era certo, pois se tratava de fato de uma questão de vida e morte. A mente vagueara para os caminhos de sua própria experiência: a infância na Inglaterra, o posto em Paris, São Petersburgo, sua casa ali, o jardim, rindo com Vertinskya, na primavera, verão, outono e inverno, amando-a; o retorno à Inglaterra, missões nos campos de batalha da Criméia, momentos turbilhonantes, sinistros e indistintos, que ainda o assustavam.

Sentia-se contente pela voz de Phillip tê-lo atraído de volta à normalidade. Mais uma vez, seus olhos vaguearam pela sala, passando pelo fogo e a pasta, fixando-se no rosto jovem e adorável, em miniatura, que lhe sorria. Sentiu o coração partir, como sempre acontecia, mas logo se recuperou. Um pouco menos a cada vez.

Adiantou-se, pegou a miniatura, examinou-a, cada pincelada já gravada em sua memória. Se eu não tivesse o retrato, teria esquecido o rosto dela, como Angelique com seu Malcolm?

— Não há resposta para isso, Vertinskya, minha querida — murmurou ele, desconsolado, à beira das lágrimas, repondo a miniatura na mesa. — Talvez esquecesse... seu rosto... mas nunca você, nunca, nunca, nunca você.

E por mais que tentasse reviver o tempo em que se sentira mais vivo, a pasta de André era como uma porta de ferro a separá-los.

Ele que se dane!

Isso não importa, tome a decisão. Basta de vacilação, ordenou ele a si mesmo. Volte ao trabalho, enfrente o problema, a fim de poder continuar em frente, para coisas mais importantes, como Yoshi e a guerra iminente contra Satsuma... Você é o ministro de sua majestade britânica! Aja como tal!

A única maneira correta e apropriada de lidar com a pasta de André é lacrá-la, escrever um relatório particular sobre o que aconteceu, e quando, o que foi dito e por quem, despachar tudo para Londres e deixar que eles decidam. Há muitos segredos em seus cofres e arquivos. Se eles quiserem que seja mantido em segredo, cabe-lhes tomar essa decisão.

Muito bem, esse é o único curso correto e apropriado.

Confiante de que estava tomando a decisão acertada, Sir William pegou os papéis e jogou-os um a um no fogo, cantarolando para si mesmo, observando-os se enroscarem, enegrecerem e se transformarem em cinzas. Não é uma atitude incorreta. Tais documentos não constituem uma prova irrefutável e, de qualquer maneira, a pobre moça foi uma vítima, André era um agente secreto perigoso e ativo de uma potência inimiga e se for autêntica a metade dos males relatados em seu dossiê secreto, ele bem que merecia ser detonado uma dúzia de vezes. Verdades ou mentiras, neste caso o pó reverte ao pó.

Depois de acabar, ele levantou seu copo para a miniatura, sentindo-se muito bem.

— A você, minha querida — murmurou Sir William.

 

Já era quase meia-noite quando Tyrer finalmente deixou a legação, apressado, e se encaminhou para o cais da Struan. Sua cabeça doía como nunca antes, não tivera tempo para jantar, muito menos para pensar sobre Hiraga ou Fujiko, nenhum tempo para fazer outra coisa que não trabalhar. Levava uma bolsa oficial de despachos do governo de sua majestade e tinha no bolso a tradução que fizera por último, desejando ter sido a primeira coisa. Acelerou os passos.

Havia uma multidão no cais. Umas poucas pessoas ali se encontravam para se despedir dos passageiros, mas a maioria cercava ruidosamente o comissário de bordo do Belle, que recebia a correspondência de última hora para as matrizes em Hong Kong e Xangai — corretores de seguros, fornecedores, armadores, bancos —, qualquer um e todos que precisavam tomar conhecimento do incêndio e danos causados. Ele avistou Angelique conversando com Gornt. No outro lado da multidão, Pallidar falava com alguns oficiais que embarcariam como passageiros. Sir William estava perto da beira do cais, absorvido em conversa com Maureen Ross. Ao vê-la, Tyrer lembrou-se no mesmo instante de Jamie e Hiraga, de sua promessa a Jamie de esclarecer o caso dos “estudantes” com seu superior. Ele avançou pela multidão.

— Boa noite, miss Maureen. Com licença, Sir William, mas talvez queira ver isto imediatamente. — Tyrer entregou a tradução. — Providenciarei para que os despachos sejam levados para bordo.

Ele tratou de se afastar, na direção do comissário de bordo, não querendo estar por perto quando ocorresse a inevitável explosão. O comissário era pequeno e dispéptico e a fila irregular de homens se acotovelando para chegar até ele ainda era comprida. Tyrer foi até o começo da fila, ignorando os protestos de “Espere a sua vez!”, e declarou:

— Desculpe, senhor, mas são ordens de Sir William. Negócios do governo de sua majestade. Um recibo, por favor.

— Está bem, está bem! Por que a pressa?

Enquanto o comissário fazia o registro em seu livro, Tyrer lançou um olhar para Sir William, que fora se postar sob um lampião e lia a tradução, com os olhos contraídos. Enquanto ele observava, o rosto se contorceu, os lábios começaram a murmurar palavrões, levando os homens nas proximidades a recuar, chocados, não por causa da linguagem, mas por ser tão inesperada. Tyrer soltou um gemido e tornou a virar as costas.

O documento era dos roju, assinado pelo tairo Nori, ríspido, sem os floreios habituais, e endereçado com a maior desfaçatez Ao Líder dos Gai-jin. Ele traduzira da melhor forma que pôde, com o mesmo estilo, só interpolando quando era necessário:

Os roju dão os parabéns a você e aos outros gai-jin por terem escapado com vida e pouco mais dos incêndios ateados por descontentes e revolucionários. O governador de Kanagawa enviará amanhã quinhentos cules para ajudá-los na evacuação de Iocoama, de acordo com as inequívocas advertências dos deuses, e de acordo com os desejos do imperador, que lhe foram transmitidos muitas vezes. Quando vocês voltarem, se voltarem, devem nos dar um aviso com bastante antecedência. Serão providenciadas acomodações para os gai-jin selecionados em Deshima, no porto de Nagasáqui, de onde, como no passado, serão conduzidos no futuro todo o comércio e negócios dos gai-jin. Um comunicado cordial.

 

— Tyrer!

Ele fingiu não ter ouvido, continuou de costas para Sir William, aceitou o recibo do comissário, os homens impacientes na fila gritando em graus variados de irritação:

— Depressa, pelo amor de Deus! Não queremos passar a noite inteira aqui! Ei, ele já voltou!

O cúter vazio, voltando do Belle, estava atracando. Tyrer notou que Jamie não se encontrava a bordo. O contramestre inclinou a cabeça para fora da casa do leme e berrou:

— Todos a bordo, os que vão embarcar!

Na agitação imediata, Maureen se aproximou.

— Phillip, quando Jamie vai voltar?

— No último barco, com toda certeza, se não antes — respondeu ele, sem saber se Jamie contara o plano a ela. — Ainda resta uma hora, ou mais.

— Tyrer!

— Desculpe, mas tenho de ir agora. Pois não, senhor? — gritou ele. Tyrer respirou fundo, preparando-se mentalmente, e se afastou apressado.

— Em meia hora, Phillip — disse Sir William, vesgo de tanta raiva —, em apenas meia hora, precisarei que você traduza minha resposta, que será vigorosa, bastante acurada.

— Certo, senhor. Antes que eu me esqueça...

— Vá procurar... ah, lá está ele! Eu sabia que o tinha visto por aqui!

Um olhar para o rosto de Sir William foi suficiente para fazer com que a multidão silenciasse e lhe desse passagem, todos na maior atenção.

— Pallidar, chame os dragões. Quero que entregue um comunicado cordial ao governador de Kanagawa... imediatamente.

— Esta noite, senhor? — indagou Pallidar, para perceber a expressão no rosto dele e se apressar em acrescentar: — Claro, senhor. Imediatamente.

— Com licença, Sir William — disse Tyrer, falando depressa, antes que o ministro britânico pudesse se afastar. — Não tive tempo de lhe falar antes, mas ajudei dois estudantes japoneses a embarcar. Eles queriam viajar, visitar a Inglaterra. Salvaram minha vida ontem à noite. Espero que não se incomode.

— Por eles terem salvo sua vida? Tenho minhas dúvidas. — Os olhos penetraram fundo em Tyrer. — Se você se tornou agente de viagens durante o horário de expediente, suponho que terá uma resposta satisfatória, caso eu a exija. Pallidar, quero que siga com todo seu destacamento, dentro de uma hora, e entregue minha mensagem de uma forma um tanto rude!

Sir William afastou-se. Pallidar assoou o nariz, ainda bastante resfriado.

— O que houve com ele?

Tyrer inclinou-se e contou sobre o ultimato.

— Por Deus, não é de admirar! Mas que desfaçatez! Na verdade, até que é bom, pois agora teremos alguma ação. Todo esse suspense só serve para irritar o general, junto com suas hemorróidas.

Ele riu, mais de nervosismo do que pelo gracejo antigo. Nesse momento, Hoag chegou ao cais, ofegante, ainda usando a sobrecasaca de operar, as mangas e o peito rígidos de sangue ressequido, cartola na cabeça, carregando valises e pacotes.

— Pensei que tinha me atrasado. Qual é a graça?

— Tem bastante tempo — disse Tyrer.

E ele especulou, assim como Pallidar, o que haveria na carta de Angelique, cuja assinatura Sir William testemunhara, e que Hoag levaria para Hong Kong. Todos sabiam apenas que era uma resposta à carta, também ainda um mistério, entregue a Angelique quando Hoag tivera a certeza de que ela não esperava uma criança de Malcolm. Desde o primeiro dia do retorno de Hoag, as linhas gerais do ultimato de Tess eram do conhecimento geral e tema de acalorados debates particulares.

— Espero que faça uma boa viagem. Viajará para a índia em seguida, não é?

— Isso mesmo. Estarei lá no mês que vem. — O rosto feio desmanchou-se num sorriso. — Mal posso esperar. Podem ir me visitar. Garanto que vão adorar.

Pallidar disse:

— A Índia é meu próximo posto. Acabo de ser informado. A fronteira, Hindu Kush, passo Khyber.

Embora falasse em tom jovial, Pallidar odiara secretamente a perspectiva. Havia mortes demais naquele inferno, uma bala disparada do nada, uma adaga surgindo no meio da noite, poços envenenados, nenhuma glória ali, apenas violência e morte, tentar permanecer vivo naquela paisagem rochosa e árida, onde nada vicejava, a não ser a morte. E, no entanto, era um lugar vital para o império, pois passava por ali a rota histórica de invasão da índia britânica, por hordas mongóis, persas ou russas. Uma terrível premonição o dominou e ele não pôde resistir à tentação de acrescentar:

— Não há sepultamentos no mar ali, doutor.

— Não, nenhum, absolutamente nenhum — respondeu Hoag, interpretando errado o comentário. Depois, ele passou o braço pelos ombros de Pallidar, num gesto afetuoso. — Você é um bom sujeito, Settry. Se eu puder ajudá-lo na índia, será fácil me encontrar. Vai adorar aquilo lá. Boa sorte.

Ele se afastou, para cumprimentar Gornt e Angelique.

— O que foi? — indagou Tyrer, tendo notado a súbita mudança em Pallidar, O oficial deu de ombros, irritado com sua ansiedade e lapso, experimentando abrupta inveja de Hoag.

— O doutor Hoag me disse que não gosta de sepultamentos no mar e que se sentiu contente por perder o de Malcolm em Hong Kong.

Ele exibiu um sorriso irônico. Depois de relatar a Sir William o estranho comportamento de Hoag com os caixões, em Kanagawa, testemunhado pelo sargento, e de receber instruções e jurar segredo, Pallidar, sem ser observado, efetuara a troca de posição dos caixões, depois de examiná-los. Não havia qualquer diferença entre eles, ao que pudesse perceber. Assim, o caixão enviado para Hong Kong, a bordo do Prancing Cloud, continha o corpo de Malcolm, enquanto o outro. o que Hoag, Angelique, Jamie e Skye haviam sepultado, era o do aldeão, como Sir William ordenara.

— É uma pena que Malcolm tenha morrido — murmurou ele, a voz rouca. — A vida é curiosa, não acha? Nunca se sabe quando vai acontecer.

Tyrer acenou com a cabeça. A depressão de Pallidar era insólita. Gostando dele, Tyrer baixou sua guarda.

— Qual é o problema, meu velho?

— Não há nenhum. Você teve muita sorte ontem à noite, conseguindo escapar...

Sombras passaram pelo rosto de Tyrer e Pallidar censurou a si mesmo por sua estupidez.

— Desculpe, Phillip. Não tinha a intenção de transtorná-lo. Não sei o que acontece comigo esta noite.

— Já soube de... de...

Nem por sua própria vida, Tyrer seria capaz de dizer o nome de Fujiko, sua dor ainda intensa, empurrando-o para profundezas insondáveis, em que nunca estivera antes. Sua boca disse, enquanto ele tentava se mostrar bravo:

— Quando acontece uma coisa assim, tão terrível, meu velho costumava dizer... Tive uma irmã que pegou sarampo e morreu aos sete anos de idade, uma menina linda, que todos nós amávamos... Meu velho sempre dizia: “Essas coisas nos são enviadas para nos testar. Você chora e chora e depois... depois se recupera, diz que foi a vontade de Deus e tenta não odiá-lo.”

Ele sentiu as lágrimas escorrendo pelas faces e não se importou. Os pés o levaram para a praia e ali, sozinho com as ondas, o céu e a noite, pensou de fato em Fujiko, lembrou-a com toda a sua paixão e, em seguida, a guardou numa pequena caixa, que pôs ao lado de seu coração.

 

A bordo do Atlanta Belle, o capitão Twomast estava dizendo:

— Muito bem, Jamie, deixarei que eles viajem, independente do que a Sra. Struan decidiu. Mas você a conhece, sabe que ela não é dada a generosidades.

— Basta lhe entregar minha carta quando chegar a Hong Kong.

Jamie contara a Twomast a verdade sobre Otami e seu primo, não querendo criar problemas para o amigo, e garantira o dinheiro da passagem dos dois, ida e volta, se Tess não concordasse com sua proposta: adiantar-lhes os recursos necessários, com prudentes apresentações a pessoas na Inglaterra e Escócia, contra um empreendimento meio a meio que ele formaria para aproveitar tudo o que os dois pudessem proporcionar, ao voltarem ao Japão.

Ele escrevera:

 

Sei que é um grande risco, Sra. Struan, mas Otami é muito inteligente, bem relacionado, até onde posso determinar, e representa o futuro no Nipão. Caso não concorde, por favor, tire o dinheiro da passagem da generosa doação que me fez. Agora, devo dizer que Albert MacStruan está indo muito bem, suas propriedades e prédios aqui nada sofreram com o incêndio e tudo se acha preparado para um grande futuro — continuarei a ajudar, se ele pedir. Por último, permita-me dizer que deve tomar cuidado com o novo gerente da Brock, Edward Gornt. Ele é um homem bom e corajoso, mas um rival perigoso.

 

— Vai sair bastante caro, Jamie — comentou Twomast, que era baixo e magro, o rosto curtido de marujo, cabelos escuros, olhos castanhos. — Pelo menos cem libras. Vale o risco?

— O navio é de Tess, o custo da passagem nada significa para ela.

— Ainda assim é caro, e ela se preocupa com os pence, tanto quanto com as libras. Mas não importa, a decisão cabe a ela. Descontarei o seu cheque em Londres, se ela não bancar a conta. Tem certeza que os seus japas compreendem que devem me obedecer?

— Tenho. Eu disse a eles que a bordo você é um rei, um daimio. Eles devem obedecer e permanecer a bordo, até que os mande desembarcar, em Londres. Mas trate-os como a nobreza, Johnny. Será bem recompensado.

Twomast riu.

— Serei, sim, só que no céu. Mas não importa, fiquei devendo algumas coisas a você, ao longo dos anos, e agora farei o que me pede.

— Obrigado.

Jamie correu os olhos pelo camarote. Pequeno, um beliche, mesa de cartas, mesa para quatro pessoas, tudo impecável, sólido, digno de um autêntico marujo... como Johnny Twomast, originalmente um norueguês, primo de Sven Orlov, o Corcunda, que assumira o comando da frota da Struan, depois de Dirk Struan. O Atlanta Belle, um vapor de mil toneladas, podia transportar quatro passageiros na primeira classe, dez na segunda, cinqüenta na terceira, e ainda sobrava espaço para uma carga substancial.

— Onde eles vão ficar?

— Com a tripulação. Onde mais poderia ser?

— Pode lhes dar um camarote, por menor que seja.

— Vamos partir lotados; eles aprenderão depressa, com a tripulação, os nossos costumes.

— Dê-lhes um camarote pelo menos até partir de Hong Kong. Não quero que sejam reconhecidos.

Johnny Twomast pensou por um instante.

— Eles podem ficar no camarote do terceiro-imediato, que tem dois beliches. Estão armados, Jamie?

— Claro que estão. São samurais.

— Nada de armas, nem esse negócio de samurai.

Jamie deu de ombros.

— Diga isso a eles. Mas, por favor, trate-os com todo respeito, não como meros nativos. Podem ser esquisitos, mas são japoneses importantes.

— Mister! — gritou o capitão para o imediato. — Mande os dois entrarem!

Hiraga e Akimoto entraram, bem instruídos por Jamie.

— Qual de vocês fala inglês?

— Eu falar, anjin-sama. Eu Otami-sama.

— O Sr. McFay aqui garante você, Otami-sama, o seu bom comportamento, por toda a viagem até Londres. Concordam em me obedecer, permanecem a bordo se eu mandar, desembarcam e voltam como eu determinar, até a cidade de Londres. Vão me obedecer como se eu fosse seu chefe, seu daimio?

— Nós concordar fazer tudo que anjin-sama dizer — respondeu Hiraga, com o maior cuidado.

— Ótimo. Mas não quero armas, enquanto estiverem a bordo. Devem me entregar as espadas, pistolas, facas. Serão devolvidas quando desembarcarem. — Twomast percebeu o relance de raiva e registrou-o. — Vocês concordam?

— Mas se homens nos atacar?

— Se meus homens atacarem vocês, usem os punhos, até eu chegar. Eles serão avisados, cinqüenta açoites para cada homem, se começarem uma briga. E vocês não puxam briga com ninguém. Entenderam?

— Não, sinto muito.

Jamie explicou como os marujos seriam amarrados ao mastro e açoitados por desobedecer. Consternado com a crueldade, Hiraga transmitiu a explicação a Akimoto e depois disse:

— Mas, anjin-sama, você não ter medo? Se homem livre no navio, depois do insulto, não ter medo esse homem assassinar você?

Johnny Twomast riu.

— Ele seria enforcado, tão certo quanto Deus fez as maçãs. O motim é punido com a morte. Ordenarei que a tripulação não provoque vocês e vocês não provocam os homens... isso também é importante. Compreende?

— Eu compreender, anjin-sama — respondeu Hiraga, embora só compreendesse parcialmente, sua cabeça doendo.

— Qualquer problema, falem comigo. Nada de brigas, a menos que sejam atacados. Suas armas, por favor.

Relutante, Hiraga entregou as espadas envoltas por quimonos. E a pistola.

— Mister!

A porta do camarote foi aberta.

— Pois não, senhor?

— Esses dois vão ficar no camarote do terceiro-imediato. Eu os levarei até lá.

Jamie levantou-se e estendeu a mão para Hiraga.

— Desejo uma viagem segura. Podem me escrever quando quiserem, e para Phillip... Taira-sama. Como eu expliquei, escreverei para meu banco, o Hong Kong Bank, no Mall. Está tudo nos papéis que entreguei a você, junto com a maneira de receber ou enviar correspondência. Não espere uma resposta por quatro meses. Boa sorte e um retorno seguro.

Eles trocaram um aperto de mão. Jamie fez a mesma coisa com Akimoto.

— Venham comigo, vocês dois — disse Twomast. Ele seguiu na frente pelo corredor, abriu uma porta.

— Vão dormir aqui e ficar fora de vista. O Sr. McFay não quer que sejam reconhecidos. Depois de Hong Kong, será mais fácil.

Twomast fechou a porta.

 

Em silêncio, Hiraga e Akimoto olharam ao redor. Era mais um armário do que um quarto. O espaço mal dava para ficarem de pé. Havia um lampião a óleo aceso. Dois beliches imundos, um por cima do outro, encostados na antepara, com gavetas por baixo. Colchões de palha sujos, cobertores de lã. Mau cheiro. Botas de borracha, roupas por lavar espalhadas. Impermeáveis de tempestade penduradas em ganchos.

— Para que servem essas coisas? — perguntou Akimoto, aturdido.

— É alguma espécie de roupa; mas muito rígida. Como se pode lutar com uma coisa assim? Eu me sinto nu sem as espadas.

— Eu me sinto como a morte, não apenas nu.

O convés balançava sob seus pés, podiam ouvir homens gritando ordens, outros cantando, enquanto preparavam o navio para o mar, o motor ruidoso fazendo vibrar o convés e anteparas, o cheiro desagradável de fumaça de carvão e óleo, o ar abafado, parecendo sufocá-los. O convés tornou a se inclinar, quando uma âncora foi recolhida, e Hiraga cambaleou contra os beliches, sentou no de baixo.

— Acha que é aí que devemos dormir?

— Onde mais? — murmurou Akimoto.

Os olhos aguçados, ele puxou o cobertor todo amarrotado. Todos os cantos do colchão estavam povoados por colônias de percevejos, vivos e mortos, a lona áspera manchada de sangue antigo, onde gerações haviam sido esmagadas. Ele conseguiu não vomitar.

— Vamos desembarcar — resmungou Akimoto. — Já vi o suficiente.

— Não — disse Hiraga, prevalecendo sobre seu próprio medo. — Realizamos um milagre, conseguimos escapar do Bakufu e de Yoshi e estamos partindo para o território do inimigo como convidados. Podemos espionar seus segredos e aprender como destruí-los.

— Aprender o quê? Como açoitar um homem até a morte, como viver nesta cloaca por meses? Viu como o capitão se retirou na maior grosseria, sem responder à nossa reverência? Vamos embora... mesmo que tenhamos de nadar até a praia!

Akimoto pôs a mão na maçaneta, mas Hiraga segurou-o pela camisa e puxou-o de volta.

— Não!

Akimoto gritou com ele, desvencilhou-se, chocou-se com a porta. Não havia espaço nem para lutar.

— Você não é mais um dos nossos! Foi infectado pelos gai-jin! Deixe-me ir! É melhor morrer civilizado do que viver assim!

Subitamente, Hiraga ficou paralisado. O tempo parou. Pela primeira vez, compreendia a enormidade em que lançara os dois: o mundo exterior, o mundo bárbaro, longe de tudo o que era civilizado, deixando para trás tudo o que valia a pena, sonno-joi, Choshu, shishi, família, sem ter ainda esposa e filhos... ah, minha brava e maravilhosa Sumomo, como sinto sua falta, tornaria minha partida mais fácil, mas agora...

Seu corpo começou a tremer, o coração batendo forte, a respiração sufocada, cada parte de seu ser clamando para que fugisse daquele inferno, que representava tudo o que detestava. Se Londres também era assim, qualquer coisa seria melhor, absolutamente qualquer coisa. Ele empurrou Akimoto para o lado, avançou para a porta. Mas parou.

— Não — balbuciou ele. — Suportarei isto! Tenho de suportar! Suportarei por sonno-joi. Devemos fazer isso por sonno-joi, primo. Mas não importa o que venha a acontecer, morreremos como samurais, faremos nossos poemas de morte, e os faremos agora, neste momento, depois nada mais importará nesta vida...

 

No cais, o contramestre gritou:

— Última chamada para o Belle! Todos a bordo!

— Boa sorte, Edward, e um retorno seguro — disse Angelique, ainda dominada pela melancolia, mas com um pequeno sorriso que o deixou radiante. — Tome cuidado!

Depois de deixar Sir William, ela esgotara as lágrimas na privacidade de sua suíte... tanto choro nestes dias, pensara, não sei de onde saem tantas lágrimas, mas depois que passa a angústia, a cabeça desanuvia, ressurge o pensamento lúcido. Outra vez sob controle, ela descera e tivera nova reunião com Gornt, em particular. E disseram tudo o que ainda precisava ser dito. A força, confiança e amor que ele irradiava haviam dissipado os pensamentos ruins.

Edward é bom para mim, refletiu ela agora, contemplando-o... não que algum dia possa substituir meu Malcolm, pois é diferente.

— Você está bem agora? — indagou ele.

— Estou, sim, obrigada, meu caro. Volte depressa. Ele beijou a mão estendida de Angelique.

— Cuide-se, madame.

A exultação fazia com que ele parecesse ainda mais infantil.

— Não se esqueça. — Angelique pedira-lhe que dissesse a Tess que esperava que pudessem um dia se encontrar como amigas. — É importante.

— Sei disso, não esquecerei, e voltarei antes do que imagina. — Para os que se encontravam nas proximidades, Gornt acrescentou, em voz mais alta: — Providenciarei para que toda a sua lista de compras seja atendida. Não se preocupe.

Uma pequena pressão final na mão de Angelique e ele saltou para o convés escorregadio, despreocupado, o último a embarcar. O contramestre tocou o apito, empurrou a alavanca para toda velocidade à popa e recuou pelas ondas crispadas. Gornt acenou e depois, sem querer ser indiscreto, entrou na cabine.

— Uma linda jovem — murmurou Hoag, pensativo.

— Tem toda razão, senhor, uma Belle para acabar com todas as Belles. Os dois ficaram observando o cais se afastar.

— Já esteve na índia alguma vez, Edward?

— Não, nunca. E você já esteve em Paris?

— Não, nunca. Mas a índia é o melhor lugar do mundo, a melhor vida no mundo para os ingleses.

Em sua imaginação, Hoag podia se ver chegando à casa da família, por trás de muros altos, tudo castanho e poeirento por fora, mas fresco e verde lá dentro, o som do chafariz se misturando com as risadas na casa principal e nos alojamentos dos criados, a cordialidade e serenidade que todos demonstravam, por causa da convicção total no nascimento, morte e renascimento, numa sucessão interminável, até que, pela misericórdia do infinito, alcançavam o nirvana, o lugar da paz celestial. Arjumand estará lá, pensou ele, e espero poder encontrar meu caminho para o nirvana também.

Seus olhos focalizaram o cais, Angelique e os outros, todas as pessoas que provavelmente nunca mais tornaria a ver. Angelique acenou agora pela última vez, depois se aproximou de Maureen Ross, que esperava sob o lampião. Espero que se tornem amigas, pensou Hoag, especulando sobre as duas. Mais um momento e elas e o cais tornaram-se parte da noite. Angelique está certa em se submeter a Tess, refletiu ele, embora não tivesse mesmo qualquer opção. Distraído, seus dedos se certificaram de que a declaração estava mesmo guardada no bolso.

Muito triste o que aconteceu com Malcolm, trágico. Pobre Malcolm, trabalhando com a maior diligência por toda a sua vida, por algo que nunca teria, algo que nunca seria. Malcolm Struan, o tai-pan que nunca foi... toda a sua vida como um homem ofuscado pela neve, no meio de uma nevasca, procurando por uma barraca branca que nunca existiu.

— Muito triste o que aconteceu com Malcolm, não acha?

Mas Gornt não se encontrava mais ao seu lado. Hoag olhou ao redor e viu que ele saíra para o convés, postara-se de costas para Iocoama e contemplava o Belle, à frente, sem chapéu, o vento agitando seus cabelos.

Por que o sorriso e o que ficou para trás?, especulou Hoag. Tão duro, mas ao mesmo tempo... Havia algo de estranho naquele jovem. Ele é um rei em ascensão ou um homem fadado ao regicídio?

 

A maioria das pessoas no cais já se afastara. Angelique permanecia ao lado de Maureen, perto do lampião, observando o Belle e o cúter desaparecendo. Logo ficaram sozinhas, a não ser por Chen e Vargas, conversando em voz baixa, à espera para descarregar o cúter, caso fosse necessário, e para escoltar as duas mulheres, embora ninguém tivesse lhes pedido.

— Maureen... — Angelique fitou-a. Seu sorriso adorável se evaporou, ao notar como sua nova amiga parecia infeliz. — Qual é o problema?

— Não é nada. Isto é... ora, não envolve você. Acontece que não vi Jamie durante o dia inteiro, ele esteve ocupado, e eu... tinha uma coisa importante...

As palavras definharam.

— Esperarei com você, se quiser. Ainda melhor, Maureen, por que não vem comigo? Podemos esperar na minha suíte, e observar pela janela. Avistaremos o cúter com bastante antecedência para vir recebê-lo aqui.

— Acho que... acho que é melhor esperar aqui.

Angelique pegou-a pelo braço, a mão firme.

— O que foi? Qual é o problema? Posso ajudar?

— Não... acho que não, minha cara Angelique. É que... apenas... — Maureen hesitou de novo, e depois gaguejou: — Oh, Deus, eu não queria preocupá-la com isso, mas... a amante de Jamie me procurou esta tarde.

— Da Yoshiwara?

— Isso mesmo. Ela se ajoelhou à minha frente, fez uma reverência e disse que eu não me preocupasse, pois cuidara dele muito bem e queria perguntar se, no futuro, deveria apresentar sua conta a mim todo mês ou anualmente.

Angelique ficou boquiaberta.

— Ela disse isso?

— Disse. — Maureen parecia esverdeada à luz do lampião e continuou, sempre gaguejando: — Também disse que se houvesse alguma coisa que eu quisesse saber sobre... sobre “Jami”, como o chamou, sobre seus hábitos na cama, suas po... posições e assim por diante, já que eu era virgem, e assim não poderia saber dessas coisas, teria o maior prazer em me esclarecer em detalhes, pois era uma profissional de segunda classe e prometeu me dar um livro de ilustrações, chamado “livro de travesseiro”, em que indicaria as... as especialidades dele, mas que eu não me preocupasse, porque Jami era experiente e seu... seu, ela chamou monge de um olho só, estava em perfeita ordem. Pronto, agora você já sabe de tudo!

Angelique estava espantada.

— MonDieu, minha pobre amiga, que coisa horrível! Mas... mas ela também fala inglês?

— Não, uma mistura quase incoerente de jargão e pidgin, e também algumas palavras de Jamie, mas compreendi muito bem o sentido. Parece que ela... ela é sua amásia há um ano ou mais. Era pequena, nem de longe bonita, não devia ter muito mais que um metro e meio, e eu disse... não sabia o que dizer, por isso comentei seu tamanho, como era pequena, e ela... ela riu e disse: “Vela muito grande, Jami tai-tai, entra mesma maneira, hem? Você mulher de sorte.”

— Oh, mon Dieu!

— O que vou fazer?

Angelique descobriu que sua cabeça fervilhava.

— Você poderia... não, isso não adiantaria...

— Talvez eu pudesse... não, não posso. É demais...

— E se você...

Angelique sacudiu a cabeça. Desamparada, ela olhou para a outra, nesse momento Maureen a fitou, cada uma vendo a si mesma na outra, o mesmo choque, repugnância, desprezo, a fúria estampada claramente nos dois rostos. Por um instante, ambas ficaram imóveis e depois Angelique soltou uma risadinha, no segundo seguinte Maureen fez a mesma coisa, e logo as duas desataram em gargalhadas.

Chen e Vargas olharam, o som das risadas se misturando com o barulho das ondas, que se desmanchavam na praia e batiam contra os pilares do cais. Angelique removeu as lágrimas, as primeiras lágrimas de um riso bom e saudável que derramava em muito tempo.

— Seu monge de um olho só...

E outra vez as duas soltaram risadas convulsivas, estridentes, até que suas barrigas doeram, e tiveram de se apoiar uma na outra.

Tão subitamente quanto surgira, o acesso de riso cessou. Mas persistiu uma certa aflição.

— É engraçado, Maureen, mas ao mesmo tempo não tem nada de engraçado.

— Tem razão, não é nada engraçado. Sinto... quero voltar para casa agora. Pensei que poderia suportar a Yoshiwara... Jamie não é diferente dos outros homens... mas não posso, sei disso agora. Não posso suportar esta vida em que a Yoshiwara existe... existe e sempre existirá, quer eu goste ou não. Dentro de um ou dois anos, Angelique, virão as crianças e depois de uns poucos anos ele achará que somos velhas, quem quer que ele seja... e seremos mesmo velhas, com os cabelos grisalhos, os dentes caindo, e quem quer que ele seja, vai tratar de se desguiar. O destino de uma mulher não é dos mais felizes. Eu gostaria de estar a bordo do Atlanta Belle neste momento, voltando para casa, não aqui, não aqui. Vou embora de qualquer maneira, assim que eu puder. Já decidi.

— Pense bem a respeito. Não diga nada a ele esta noite.

— É melhor dizer logo esta noite. É isso... é melhor assim.

Angelique hesitou.

— Esperarei até avistarmos o cúter e depois irei embora.

— Obrigada. Lamentarei deixá-la, agora que nos conhecemos melhor. Nunca tive uma amiga de verdade.

Maureen passou o braço pelo dela e tornou a olhar para o Atlanta Belle.

— Ai, ai... — sussurrou Chen, irritado, no dialeto das quatro aldeias, que ele e Vargas falavam fluentemente. — Por que aquelas duas prostitutas não podem ser sensatas e esperar dentro de casa? Assim, não teríamos de esperar no frio também.

— Jami não vai ficar nada satisfeito se ouvir você chamá-la assim.

— Por sorte, ele não fala este dialeto, nem mesmo cantonês, e de qualquer maneira eu não a chamaria de prostituta na frente dele, ou de qualquer outro demônio estrangeiro... embora seja assim que chamamos todas as mulheres deles, como você sabe muito bem... nem usaria palavras tão chulas perto deles. Usaria “Flor da Manhã” ou um de mil outros nomes, que ambos sabemos que significa “prostituta”, mas os demônios estrangeiros pensam que significa apenas “Flor da Manhã”.

Chen riu, agasalhado pelo comprido casaco acolchoado. Levantou os olhos para o céu, quando a lua surgiu por um instante no meio das nuvens.

— Aquela Flor da Manhã pensa que será a tai-tai de Jami. — Outra risada.

— Ela nunca será.

— Não, não depois de hoje — murmurou Vargas, sombrio. — Ela é do tamanho certo para ele, é tempo de Jami casar, e seria ótimo ter crianças por aqui.

Vargas sentia saudade dos próprios filhos, seis, que deixara com as duas esposas em Macau, até que tivesse condições de possuir sua própria casa aqui.

— O que acha de miss tai-tai e daquele Xangai Gornt? Ele vai conseguir aumentar o dinheiro dela?

— Se ele conseguir, será em seu próprio benefício, não dela. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa: o que há naqueles papéis?

— Que papéis?

— Os que Lun viu quando tai-pan Willum estava cochilando ao lado do fogo. Os papéis de Nariz Comprido Pontudo. Dew neh loh moh que Lun não saiba ler francês. Tai-pan Willum levou o maior choque, contou Lun.

— O que Nariz Comprido mandou para Willum da sepultura?

Chen deu de ombro

— Encrenca para miss tai-tai. Talvez fosse sobre Escuro da Lua, hem?

— Isso é apenas um rumor.

Chen não disse nada, mantendo o segredo, como Chen da Casa Nobre lhe ordenara, depois da morte de Malcolm.

— Não importa o que venha a acontecer, Tess tai-tai vai triturar em poeira miss tai-tai e demônio estrangeiro de Xangai.

— É mesmo? O que você soube?

Chen revirou os olhos.

— Tess tai-tai é tai-pan agora, é isso o que diz Chen da Casa Nobre... ele nos informou pela última correspondência e advertiu que tivéssemos cuidado. Já ouviu falar de uma imperatriz cedendo o seu poder, depois de conquistá-lo? Ou qualquer outra mulher, diga-se de passagem? Nunca, em todos os nossos quinhentos séculos de história. Ela é tai-pan agora, segundo Chen da Casa Nobre, e ele deve saber dessas coisas.

— Pensei que Xangai Albert seria o tai-pan.

— Nunca. Ela vai triturá-lo em poeira também... Velho Demônio de Olhos Verdes forçou a entrada dele e do irmão na Casa Nobre. O rumor é de que Tess tai-tai odeia os dois, porque são bastardos secretos daquela filha do demônio estrangeiro missionário... aquela dos muitos amantes, com o próprio Demônio de Olhos Verdes.

— A esposa do mestre do porto Glessing? Mary Sinclair? Nunca!

— Pode ser verdade. Ela fez Glessing de uma perna só usar o chapéu verde uma dúzia de vezes.

— Transformou-o num corno? Isso é outra lenda.

Vargas tratou de resguardar a reputação da mulher, como todos os seus ex-amantes. Agora ela estava na casa dos quarenta anos, gasta, mas ainda tão faminta quanto antes, refletiu ele, o oposto de Tess Struan, que abomina a fornicação, e empurrou o marido Culum à bebida e outras mulheres.

— Tess tai-tai deveria ter casado com o tai-pan... e não com seu filho Culum. Ele poderia tê-la lubrificado de forma gloriosa, no fundo era disso que ela carecia, e ainda restaria mais do que o suficiente para segunda esposa May-may e terceira esposa Yin Hsi.

— É verdade. Neste caso, estaríamos fortes, com muito mais filhos para continuar, e não fracos, fugindo do demônio de um olho só Brock. — Uma pausa, e Chen acrescentou, ominoso: — Chen da Casa Nobre está preocupado.

— Muito triste que filho número um Malcolm tenha morrido do jeito que morreu.

— Os deuses tinham saído naquele dia — comentou Chen, do alto de sua sabedoria. — Escute, você que se curva ao deus dos demõnios estrangeiros, ele lhe disse alguma vez por que os deuses passam mais tempo ausentes do que velando por nossos assuntos?

— Deuses são deuses, só falam entre si... olhe, o Belle está partindo...

 

Maureen disse:

— O Atlanta Belle está a caminho, Angelique.

Boa viagem, pensou Angelique, contraindo os olhos contra o vento suave, o navio apenas uma forma indistinta.

— E lá está o cúter.

— Onde? Puxa, como os seus olhos são aguçados! Mal consigo ver. — Angelique deu um aperto cordial no braço de Maureen. — Tenho certeza que você e Jamie vão...

Ela viu a cor se esvair do rosto da outra e acrescentou:

— Não se preocupe, Maureen. Tudo vai acabar dando certo. Tenho certeza.

— Acho que não posso encará-lo agora — murmurou Maureen.

— Neste caso... é melhor ir embora. Direi que você estava com dor de cabeça e o verá amanhã. Assim, terá tempo para pensar. Será melhor deixar o encontro para amanhã.

— Esta noite, amanhã, não faz diferença, já tomei minha decisão — respondeu Maureen.

As duas ficaram observando as luzes do cúter, que eram cada vez mais visíveis. Não demorou muito para que pudessem divisar o vulto alto de Jamie na cabine iluminada. Ele estava sozinho.

— Boa noite, Maureen — disse Angelique. — Eu a verei amanhã.

— Não, por favor, fique. Não serei capaz de fazer isso sozinha. Por favor, fique.

O cúter se encontrava agora a apenas cinquenta metros do cais. Elas viram Jamie se inclinar pela janela da cabine e acenar. Maureen não respondeu à saudação. Por trás delas, os lampiões estavam acesos ao longo do passeio, nas casas e armazéns intactos. Homens cantavam em algum lugar. Vervene tocava flauta na legação francesa. Os olhos de Maureen fixavam-se no homem que se aproximava do cais. Ele tornou a acenar, saiu para o convés.

— Maureen! — gritou Jamie, feliz por tornar a vê-la.

Angelique virou o rosto, viu os olhos de Maureen se abrandarem e compreendeu que fora esquecida. E com toda razão, pensou ela, sorrindo para si mesma. Maureen vai chorar, ter um acesso de raiva, jurar que partirá, mas continuará aqui. Fará com que ele sofra, mas acabará perdoando-o. Nunca esquecerá, mas ficará — e ficará porque o ama... ah, como as mulheres são tolas!

Em silêncio, despercebida, ela se afastou, contente por estar sozinha.

A noite era agradável. Na baía, os sinos dos navios assinalaram a hora. Lá longe, além do promontório, seu emissário seguia no Atlanta Belle, uma viagem de conquista, uma viagem sem retorno para ambos. E para a inimiga, a mulher de Hong Kong.

Edward vai pressionar aquela mulher horrível e viveremos felizes para sempre, passaremos mais de dois meses em Paris a cada dois anos, o verão na Provença, e iniciarei uma dinastia... com cinco mil guinéus só meus, sou uma herdeira, e cada sou que gastar me lembrará aquela mulher.

Edward roi muito tolo ao pensar que algum dia eu poderia me tornar amiga dela ou haveria de querer isso.

Aquela mulher é vil. Nunca a perdoarei pelas coisas que fez e escreveu. Ilegítimo, hem? Jamais esquecerei isso, e nós seremos vingados, meu Malcolm e eu, por toda a angústia que ela nos causou, a ele e a mim. Vamos nos vingar daquela megera.

Gosto dessa palavra, disse Angelique a si mesma, sorrindo. E este é um dos meus novos segredos. Percebi o que ela era desde o primeiro momento em que a conheci e durante as poucas vezes em que nos encontramos, nas ocasiões em que jantamos juntas, a megera mal falando comigo, sempre me desaprovando, por mais que eu me esforçasse. Ela é mesmo uma velha megera. Embora tenha apenas trinta e sete anos. Mas é e sempre será a megera Struan para mim.

Angelique tinha dezoito anos, seis meses e uns poucos dias. Entrou no saguão do prédio da Struan, sob o leão vermelho da Escócia e o dragão verde da China entrelaçados, subiu a enorme escada, e foi para sua suíte. Trancou a porta e, depois, na maior felicidade, foi para a cama... e mergulhou num sono tranquilo.

 

Sete dias depois, a seu pedido, Yoshi reuniu-se com Sir William e os outros ministros em Kanagawa e tratou de tranquilizá-los, contente por Anjo ter caído outra vez em sua armadilha, usando um porrete grande que nem era um porrete... embora também se sentisse Atônito pelo fato de os gai-jin não terem ido embora, escapando da devastação. Seu bálsamo foi prometer uma reunião com o xógum, assim que este voltasse.

E quando seria isso?, perguntou Sir William. Ao que Yoshi respondeu: Providenciarei esse encontro o mais depressa possível, passando por cima do tairo Anjo, se for necessário, ele está muito doente, o pobre coitado, embora ainda seja o tairo. Enquanto isso, posso confiar que as informações que solicitei para tornar possíveis os nossos futuros acordos estarão prontas em breve, e que minhas sugestões serão levadas em consideração?

Imediatamente, a fragata Pearl foi despachada para Kagoshima, com uma exigência formal para que Sanjiro pedisse desculpas, pagasse reparações e entregasse ou identificasse os assassinos. Sanjiro descartou a exigência como impertinente. Na semana seguinte, com Sir William e seu pessoal a bordo da nave capitânia, a esquadra de batalha zarpou — H.M.S. Eurylus, com 35 canhões, Pearl, 21, Perseus, 21, Racehorse, 14, Havoc, Coquette e a chalupa de roda Argus, 9 — e logo ancorou na entrada da baía de Kagoshima, fora do alcance das baterias em terra, que eram bem protegidas, em quatorze fortes, nos lados da baía. O tempo começou a piorar.

À medida que as condições se deterioravam, Sanjiro vacilava. Durante quatro dias. Ao amanhecer do quinto dia, a chuva e a tempestade ainda mais intensas, três vapores construídos no exterior, mas pertencentes a Satsuma, ancorados ao largo da cidade, foram capturados e afundados. Ao meio-dia, todas as baterias de terra começaram a disparar e o almirante Ketterer deu ordens para iniciar a batalha. Em linha, com a nave capitânia à frente, a esquadra avançou por águas desconhecidas. Ao se aproximarem dos fortes, os navios despejaram sucessivas surriadas, o fogo de retaliação muito mais intenso do que se esperava.

Uma hora depois do início da batalha, o Eurylus desviou-se da linha. Involuntariamente, colocara-se entre um forte e uma área de alvo em que os artilheiros haviam se exercitado com extrema precisão e uma bala de canhão arrancou as cabeças de seu capitão e imediato, ambos na ponte de comando, ao lado de Ketterer e Sir William, e uma granada explodiu no convés, matando mais sete marujos e ferindo um oficial. A Pearl assumiu seu lugar na vanguarda. Quase ao pôr-do-sol, o Perseus encalhou sob os canhões de um forte, mas a Pearl conseguiu retirá-lo de lá, sem maiores perdas.

O combate se prolongou até o pôr-do-sol. Vários fortes haviam sido avariados, com muitos canhões destruídos, alguns paióis explodidos e foguetes disparados contra Kagoshima. Nenhum navio fora perdido e as únicas mortes até aquele momento haviam sido as dos homens a bordo da nave capitânia. Naquela noite, Kagoshima ardeu, como acontecera com Iocoama. A tempestade aumentou. Ao amanhecer, sem que o tempo ruim mudasse, os mortos foram sepultados no mar e ordenado o reinício da batalha. O Eurylus tornou a assumir a vanguarda. Naquela noite, a esquadra tornou a ancorar fora do alcance das baterias em terra, todos os navios intactos, o moral alto, com muita munição de reserva. Kagoshima fora arrasada, a maioria das baterias ficara danificada. Ao amanhecer, com um vento cada vez mais forte e chuva intensa, para irritação de muitos a bordo, e apesar dos protestos de Sir William, Ketterer ordenou que a esquadra retornasse a Iocoama. Embora fora de alcance, uns poucos canhões em terra ainda dispararam em desafio, na esteira da esquadra.

Ketterer proclamou vitória, a cidade fora incendiada, Sanjiro humilhado e, o mais importante de tudo, a esquadra estava incólume... e o tempo tornara sua decisão necessária, alegou ele.

Em Quioto, no momento em que soube que Kagoshima fora destruída — com Sanjiro supostamente morto —, Ogama de Choshu desfechou um ataque de surpresa à noite, com o codinome de Céu Escarlate, a fim de recuperar o controle total dos portões, atraído a outra armadilha preparada por Yoshi. No mesmo instante, Yodo de Tosa e todos os outros daimios em cima da cerca se aliaram ao xogunato contra Ogama — melhor um xogunato fraco guardando os portões do que um solitário e todo-poderoso Ogama. Com isso, o golpe foi rechaçado e Ogama obrigado a se retirar de Quioto, voltando a Shimonoseki e seus estreitos, para lamber os ferimentos, jurando vingança, em particular contra seu ex-aliado Yoshi. E se preparar para a guerra.

Para o Nipão, nada fora resolvido. Nem Sanjiro fora morto, o que não passava de mais desinformação espalhada pelos espiões de Yoshi. Mas isso não importava, porque Yoshi sabia que dera um gigantesco passo à frente, para a conquista do futuro: tinha agora a posse exclusiva dos portões, por mais tênue que fosse, O gama fora banido, Kagoshima destruída, o xógum Nobusada voltando a Iedo, sem a sua princesa, convencido de que Quioto era insegura para sua pessoa, os shishi quase exterminados, Anjo não mais neste mundo... e os gai-jin temporariamente contidos.

Mas cerca de um mês depois, emissários de Sanjiro saíram de Satsuma, foram procurar Sir William em Iocoama e pediram a paz. Sanjiro admitiu que estava errado, pagou a indenização, indicou os assassinos, jurou amizade aos gai-jin, culpou o decadente xogunato por todos os problemas e convidou os gai-jin a irem à sua reconstruída Kagoshima para comerciar, para discutir a modernização em todos os seus aspectos e também, entre outras coisas, “lorde Sanjiro quer que vocês saibam que Satsuma é uma antiga potência naval e deveria ter uma marinha como a dos gai-jin. Ele é rico e pode pagar em ouro, prata ou carvão, o que for necessário para obter os navios ing'erish e instrutores ing'erish...”

Consternado, Yoshi soube da oferta quase que no mesmo instante, por intermédio de seu espião Inejin, e ficou na maior irritação. Não planejara aquilo, jamais concebera tal possibilidade, que mudava o equilíbrio do poder.

Não importa, pensou ele, deprimido, naquele pôr-do-sol em particular. Ele estava em seu refúgio no alto da torre do castelo em Iedo, por cima da cidade, o céu riscado de vermelho, fogo aqui e ali, iluminando a chegada da noite. Não importa, os deuses nos pregam peças, se é que existem deuses. Mas com deuses ou sem deuses, não importa, é isso o que torna a vida o que é. Talvez eu vença, talvez não. Karma. Lembrarei o legado. E terei paciência. Isso é suficiente.

Não, nunca é suficiente!

Deliberadamente, ele abriu o compartimento e recordou Koiko, em toda a sua beleza, todos os tempos bons por que haviam passado, todo o riso. Isso o alegrou e acalmou e o pensamento de Koiko levou-o depois de algum tempo a Meikin e seu desejo de morte: “Um banho e roupas limpas. Por favor. “Ele sorriu, feliz por ter concedido... mas apenas por causa das boas maneiras de Meikin.

Nesta vida, pensou ele, soltando uma risada para o ar noturno, neste mundo de lágrimas, a gente precisa de um senso de humor, neh?

 

 

                                                                  James Clavell

 

 

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