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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GATOS E MAIS GATOS / Doris Lessing
GATOS E MAIS GATOS / Doris Lessing

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GATOS E MAIS GATOS

 

   É fascinante observar o nascimento do primeiro filhote duma gata, o momento em que, tendo aquela frágil criatura aparecido envolta em celofane branco, a gata lambe essa cobertura até a retirar, corta o cordão, come a placenta, tudo actos tão limpamente, tão eficientemente, tão perfeitamente executados por ela, individualmente, pela primeira vez. Há sempre um momento de pausa. O gatinho é expelido, fica deitado junto à extremidade traseira da gata. A gata olha, com um reflexo de armadilha e de querer escapar, para aquela coisa nova ligada a ela; olha de novo, não sabe o que é; e então o mecanismo funciona, ela obedece, torna-se mãe, ronrona, está feliz.

  

   Ficando a casa numa colina, falcões, águias, aves de rapina que planavam em espiral nas correntes de ar sobre a mata, estavam frequentemente ao nível do olhar, às vezes abaixo. Podia-se ver asas castanhas e pretas, estendidas nos seus quase dois metros de envergadura, quando a ave deslizava numa curva. Em baixo, nos campos, podia-se ficar muito quieto num sulco, de preferência onde o arado tivesse rasgado profundamente, sob um lençol de ervas e folhas. Pernas, demasiado pálidas em contraste com o solo castanho avermelhado, apesar de bronzeadas pelo sol, tinham de ser salpicadas com terra, ou enterradas. Centenas de metros acima, uma dúzia de aves voava em círculo, todas perscrutando no campo o mais pequeno movimento de ratos, pássaros ou toupeiras. Poder-se-ia escolher uma, talvez mesmo por cima da cabeça; talvez por um momento imaginar uma troca de olhares: o frio e fixo olhar da ave no friamente curioso olhar humano. Por baixo do pequeno corpo - uma forma de bala entre duas asas equilibradas - as garras mantinham-se prontas. Passado meio minuto, ou vinte, a ave siava direita à frágil criatura que tinha escolhido; depois subia e afastava-se num bater de asas amplo e firme, deixando atrás um redemoinho de poeira vermelha e um cheiro rançoso e quente. O céu voltava a estar como antes: um imenso espaço silencioso e azul, com seus grupos espalhados de aves circulantes. Mas, do cimo da colina um falcão podia facilmente aproximar-se, acelerando lateralmente em relação ao circuito de ar onde estivera, para escolher a sua presa - uma das nossas galinhas. Ou até voar encosta acima, ao longo de uma das estradas por entre a mata, a grande envergadura das asas cautelosamente controlada entre as ramadas frondosas: a ave agindo, certamente, contra a sua natureza ao acelerar assim por uma avenida de ar entre as árvores, em vez de se deixar cair para a terra?

   As nossas galinhas eram, ou pelo menos assim as viam os seus inimigos, uma sempre renovada ração de carne para os falcões, mochos e gatos selvagens das redondezas. Do nascer ao pôr-do-sol andavam as aves de capoeira no exposto cimo da colina, assinaladas, aos olhos dos rapinadores, pelas penas de um preto luzidio, castanhas, brancas, e por um permanente cacarejar, esgravatar, pavonear.

   Nas quintas de África é costume cortar os cimos das latas de parafina e petróleo e fixar chapas de metal brilhantes para cintilarem ao sol. Para afugentar as aves, diz-se. Mas eu vi um falcão vir de uma árvore para levar, dos seus ovos chocos, uma galinha gorda e sonolenta, e isso com cães, gatos e pessoas, negras e brancas, à volta dela. E uma vez, quando tomávamos chá ao ar livre, uma dúzia de pessoas testemunhou como um gatinho foi arrebatado da sombra de um arbusto por um falcão siante. No longo e quente silêncio do meio dia, o súbito guinchar ou cacarejar ou restolhar de penas tanto podia significar um falcão levando uma ave como um galo galando uma galinha. Havia, porém, muitas galinhas. E tantos falcões que não valia a pena abatê-los. Em qualquer momento, quem, da colina, olhasse o céu, via com certeza uma ave volteando a menos de meio quilómetro. Alguns metros abaixo, uma pequena mancha de sombra passava sobre as árvores, sobre os campos. Sentada em silêncio debaixo de uma árvore vi criaturas imobilizarem-se, ou esconderem-se, quando a sombra alertante das grandes asas lá no alto as tocava ou escurecia momentaneamente a erva, as folhas. Nunca havia só uma ave. Duas, três, quatro volteavam em bando. Porquê, justamente ali?, poder-se-ia perguntar. Claro! Estavam todas trabalhando, em níveis diferentes, na mesma espiral de ar. Um pouco mais adiante, outro grupo. Olhar atento - e o céu estava cheio de pintas pretas; ou, se o sol nelas incidisse, pintas brilhantes como partículas num feixe de luz duma janela. Em todos aqueles quilómetros de ar azul, quantos falcões? Centenas? E cada um deles capaz de fazer a viagem até ao nosso bando de galinhas em poucos minutos.

   Por isso os falcões não eram abatidos. Excepto por raiva. Lembro-me, quando aquele gatinho desapareceu no céu, miando nas garras do falcão, a minha mãe disparou a arma contra este. Improficuamente, claro.

   Se as horas do dia eram dos falcões, a aurora e crespúsculo eram dos mochos. As galinhas eram enxo tadas para as capoeiras quando. o sol se punha, mas os mochos estavam pousados nas árvores à sua hora; e um mocho atrasado e sonolento podia apanhar uma ave nos primeiros alvores, mal as capoeiras eram abertas.

   Falcões para o dia claro; mochos para a meia luz; mas para a noite, gatos, gatos bravos.

   E aqui havia alguma utilidade em usar uma arma. As aves eram livres para percorrer milhares de quilómetros de céu. Um gato tinha um covil, acasalava, tinha gatinhos - pelo menos um covil. Quando um escolheu a nossa colina para viver, nós matámo-lo. Os gatos vinham de noite às capoeiras, descobriam buracos incrivelmente pequenos nas paredes ou nas redes. Os gatos selvagens punham dubiamente em questão o estatuto dos nossos confortáveis bichos.

   Um dia, o negro que trabalhava na cozinha disse que tinha visto um gato selvagem numa árvore a meio caminho da encosta da colina. O meu irmão não estava; por isso, agarrei na espingarda e fui em perseguição do gato. Era pleno meio dia: não era hora de gatos bravos. Numa árvore mediana estava o gato, estendido ao longo de um ramo, bufando. Os seus olhos verdes reluziam. Gatos selvagens não são criaturas bonitas. Têm um pêlo amarelo acastanhado, áspero. E cheiram mal. Este gato tinha apanhado uma galinha nas últimas doze horas. A terra sob a árvore estava cheia de penas brancas e de pedaços de carne que já cheiravam mal. Detestávamos gatos bravos, que bufavam, arranhavam, silvavam e nos detestavam. Este era um gato bravo. Disparei. Caiu do ramo a meus pés, retorceu-se um pouco entre penas esvoaçantes, e ficou imóvel. Habitualmente, teria pegado naquela carcaça pela cauda sarnenta e mal cheirosa e tê-la-ia atirado para um poço próximo que estava abandonado. Mas qualquer coisa me incomodava naquele gato. Inclinei-me para o observar. O formato da cabeça estava errado para gato bravo; e o pêlo, embora áspero, era demasiado macio para pêlo de gato selvagem. Tinha de o admitir. Não era um gato bravo, era um dos nossos. Reconhecemos esse feio cadáver como sendo Minnie, um encantador animal doméstico que tinha desaparecido havia dois anos - levada, pensávamos nós, por um falcão ou um mocho. Minnie era meio persa, uma criatura fofa e meiga. Isto era ela, a comedora de galinhas. E, não longe da árvore onde foi abatida, encontrámos uma ninhada de gatinhos bravos; mas estes eram mesmo selvagens, e os seres humanos eram seus inimigos: como prova, as nossas pernas e braços foram mordidos e arranhados. Portanto, destruímo-los. Ou melhor, a minha mãe tratou de que fossem destruídos; por qualquer regra da nossa casa, sobre a qual só reflecti muito mais tarde, este tipo de trabalho sujo era-lhe atribuído, a ela.

   Pensando um pouco nisso: tínhamos sempre gatos em casa. Veterinário, só em Salisbúria, a setenta milhas. Não havia "tratamento" de gatos, que me lembre nem de gatas, certamente. Gatas significam gatinhos, com abundância e frequência. Alguém tinha de se livrar dos gatinhos indesejados. Talvez os africanos que trabalhavam na casa e na cozinha? Consigo lembrar quantas vezes soavam as palavras "bulala yena". (Matem-no!) Os animais e pássaros feridos e fracos, da casa e da quinta: "bulala yena!"

   Mas havia uma pistola em casa, e um revólver, e era a minha mãe quem os usava.

   Serpentes, por exemplo, estavam normalmente a seu cargo. Sempre tivemos cobras. Parece dramático, e penso que era; mas eram algo com que convivíamos. Eu não tinha tanto medo delas como das aranhas enormes, variadas e inumeráveis, que tornavam a minha vida um inferno. Havia cobras, mambas negras, víboras e cobras-café. E uma particularmente pérfida, chamada cuspideira, que tem por costume entoscar-se nos ramos, num pilar de varanda, em qualquer coisa acima do chão, e cuspir nas caras daqueles que a perturbem. Muitas vezes estão à altura dos olhos, e as pessoas cegam. Apesar de tudo, durante vinte anos de cobras, a única coisa má que aconteceu foi quando uma cuspideira cuspiu nos olhos do meu irmão. A sua vista foi salva por um africano, que usou medicina nativa.Os alarmes estavam sempre a soar, contudo. Há uma serpente na cozinha; ou na varanda; ou na sala de jantar; por toda a parte, parecia. Uma vez quase peguei numa cobra-café confundindo-a com uma meada de lã. Mas ela ao princípio assustou-se, e os seus silvos salvaram-nos a ambas: eu corri; e ela fugiu. Certa vez uma cobra entrou para a escrivaninha, que era um ninho de compartimentos atochados de papéis. A minha mãe e os criados passaram horas a tentar afugentar o bicho de lá para fora, para que ela o pudesse matar. Outra vez, uma cobra, uma mamba, enfiou-se debaixo do pilão no armazém dos cereais. A minha mãe teve que se deitar de lado e disparar a uns trinta centímetros do bicho.

   Uma cobra numa pilha de lenha provocou alvoroço; e eu fui a causadora da morte duma gata favorita por dizer que tinha visto a cobra esgueirar-se entre dois toros. O que eu tinha visto era o rabo da gata. A minha mãe atirou a qualquer coisa acinzentada que se mexeu; a gata saiu guinchando, o seu flanco explodido todo vermelho e esfolado. Arrastou-se por entre os cavacos de madeira, o seu pequeno coração sangrando, exposto entre frágeis costelas partidas. Morreu, enquanto a minha mãe chorava e a acariciava. Entretanto a cobra estava enroscada num grande cepo, a uns dois metros de distância.

   Uma vez houve uma grande confusão de gritos e avisos; num caminho rochoso, entre hibiscos e espinheiros, estava um gato lutando com uma cobra esguia e escura. A cobra rastejou para a moita de espinheiros, que tinha quase um metro de largura, e aí permaneceu, dardejando olhares para o gato, que não podia aproximar-se. O gato ficou ali toda a tarde, andando em redor da massa espinhosa que protegia a cobra, assanhando-se, bufando e miando. Mas, quando a noite veio, a serpente esgueirou-se, ilesa.

   Lampejos de memória, histórias sem começos nem fins. O que aconteceu ao gato que jazia na cama da minha mãe, miando de dor, os seus olhos inchados devido ao ataque duma cobra cuspideira? Ou à gata que entrou em casa chorando, o seu ventre arrastando pelo chão, com leite não usado? Fomos procurar os seus gatinhos na velha caixa do armário das ferramentas, mas já lá não estavam; e o criado examinou marcas na poeira à volta da caixa e disse, "Nyoka". Uma cobra.

   Na infância, pessoas, animais e acontecimentos aparecem, são aceites, desaparecem, sem explicação oferecida ou pedida.

   Mas agora, recordando gatos, sempre gatos, uma centena de incidentes envolvendo gatos, anos e anos de gatos, fico estupefacta com a quantidade de trabalho que eles devem ter significado. Em Londres, agora, tenho dois gatos; muitas vezes digo: "Que absurdo termos toda esta canseira e preocupação por causa destes dois bichinhos."

   Todo esse trabalho deverá ter sido feito pela minha mãe. Trabalho da quinta para o homem; trabalho de casa para a mulher, mesmo se a casa envolvia muito mais trabalho do que aquele que relacionamos com lides domésticas numa cidade. Era o seu trabalho também porque um carácter exige o trabalho que com ele condiz. Ela era humana, sensível, perspicaz. Era, acima de tudo e em todos os pormenores, prática. Mas mais do que isso: ela pertencia àquela parte do género humano "que entende como as coisas funcionam"; e funciona com elas. Um papel bastante sombrio.

   O meu pai percebia muito bem; era um homem do campo. Mas a sua atitude manifestava-se como protesto; quando alguma coisa tinha que ser feita, decidida, quando um último esforço estava sendo feito - pela minha mãe. "Portanto, vai ser mesmo assim, não é?" dizia ele, com zanga irónica que era também admiração. "Natureza," dizia ele, capitulando, "é tudo muito bonito, mas tem que ser mantida no seu lugar."

   Mas a minha mãe, sendo a natureza o seu elemento, e na verdade o seu dever e o seu fardo, não perdia tempo com filosofias sentimentais. "Para ti está tudo muito bem, não é?" dizia, com humor; com humor ainda que isso a matasse; mas ressentida também, porque não era o meu pai quem afogava os gatinhos, disparava contra a cobra, quem matava a galinha doente, ou quem queimava enxofre no ninho das formigas brancas: o meu pai gostava de formigas brancas, divertia-se a observá-las.

   O que torna ainda mais difícil de entender como se chegou ao assustador fim de semana em que fiquei sozinha com o meu pai e cerca de quarenta gatos.   Tudo o que recordo desse tempo, como explicação possível, é a observação: "Ela ficou piegas e não aguenta afogar um gatinho."

   O que era dito com impaciência, com irritação e - por minha parte - com cólera fria e dura. Nesse tempo eu estava em luta com a minha mãe, um combate de morte, um combate de sobrevivência, e talvez isso tivesse alguma coisa a ver com o assunto, não sei. Mas agora pergunto-me, aflita, que espécie de quebra na sua coragem teria acontecido. Ou teria sido um protesto? Que sofrimentos íntimos se expressavam assim? O que tentava ela realmente dizer durante o ano em que se recusou a afogar gatinhos ou a matar gatos que realmente deveriam ser mortos? E, enfim, porque se foi embora e nos deixou, aos dois, sabendo perfeitamente, porque com certeza sabia, uma vez que isso era uma óbvia e frequente ameaça, o que iria acontecer?

   Um ano, ou menos, de recusa da minha mãe a funcionar como regulador, árbitro, equilíbrio entre sensatas e insensatas proliferações da natureza, tinha dado como resultado que a casa, as construções em volta da casa e a mata que rodeava a quinta ficaram infestadas de gatos. Gatos de todas as idades; gatos domésticos e bravos e em estádios intermédios; gatos sarnentos e zarolhos e estropiados e aleijados. Pior, havia meia dúzia de gatas com gatinhos. Nada nos podia defender de nos tornarmos, em poucas semanas, no campo de batalha duma centena de gatos.

   Tinha que se fazer alguma coisa. Disse-o o meu pai. Disse eu. Diziam os criados. A minha mãe apertava os lábios, não disse nada, foi-se embora. Antes de ir despediu-se da sua gata favorita, uma velha tigrada que era a mãe de todos. Magou-a suavemente e chorou. Isso recordo, o meu sentimento da gratuidade de tudo aquilo, porque não podia entender o desespero daquelas lágrimas.

   Assim que ela partiu, o meu pai disse várias vezes, "Bom, tem que ser feito, não tem?" Tinha, sim; e ele telefonou ao veterinário da cidade. Coisa que não foi fácil. A linha do telefone era partilhada por outros vinte fazendeiros. Era preciso esperar até que os mexericos e as notícias das quintas se silenciassem; telefonar então para a central e pedir uma ligação para a cidade. Eles telefonavam de, volta quando houvesse uma linha livre: podia demorar uma hora, duas horas. o que tornou as coisas muito piores: tivemos que esperar, olhando os gatos, desejando que todo aquele horroroso assunto estivesse resolvido. Sentámo-nos, um ao lado do outro, na mesa da sala de jantar, esperando que o telefone tocasse. Finalmente apanhámos o veterinário, que disse que a maneira menos cruel de matar gatos adultos era com clorofórmio. Só havia uma drogaria em Sinoia, a mais de vinte quilómetros. Fomos até Sino ia, mas a drogaria estava fechada para o fim de semana. De Sinoia telefonámos para Salisbúria, e pedimos a um droguista que mandasse uma garrafa grande de clorofórmio, por comboio, no dia seguinte. Ele disse que ia tentar. Nessa noite sentámo-nos à frente da casa, sob as estrelas; era aí que passávamos os serões, excepto quando chovia. Estávamos infelizes, zangados, culpados. Fomos para a cama cedo para que o tempo passasse mais depressa. No dia seguinte era sábado. Fomos de carro até à estação, mas o clorofórmio não vinha no comboio. No domingo, uma gata deu à luz seis gatinhos. Eram todos deformados: cada um deles tinha uma deficiência. Consanguinidade, disse o meu pai. Sendo verdade, era espantoso que em menos de um ano os cruzamentos consanguíneos pudessem ter transformado uns quantos animais saudáveis num exército de aleijados, doentes e desgraçados. O criado fez desaparecer os novos gatinhos, e passámos outro dia de sofrimento. Na segunda voltámos à estação, esperámos o comboio e voltámos com o clorofórmio. A minha mãe ia voltar na segunda-feira ànoite. Arranjámos uma grande lata de biscoitos, estanque, e pusemos um infeliz e velho gato doente dentro dela, com um tampão ensopado em clorofórmio. Não recomendo esse método. O veterinário tinha dito que era instantâneo; mas não é.   Por fim, os gatos foram reunidos e colocados num dos quartos. O meu pai entrou no quarto com o seu revólver da Primeira Grande Guerra, mais fiável, disse, do que uma pistola. A arma soou uma vez, e outra, e outra, e outra. Os gatos que ainda não tinham sido apanhados pressentiram o seu destino e começaram a assanhar-se e a berrar por toda a mata, com as pessoas atrás deles. O meu pai saiu do quarto, a certa altura, muito branco, com os lábios apertados de raiva e os olhos secos. Estava enjoado. Praguejou um bom bocado, e depois voltou para o quarto e os disparos continuaram. Por fim saiu. Os criados entraram e levaram os cadáveres para o poço abandonado.

   Alguns gatos escaparam - três nunca regressaram à casa assassina, devem ter-se tornado bravos e arriscado a sua sorte. A minha mãe, quando regressou da viagem e o vizinho que a tinha trazido já se fora embora, andou, calada e sem comentários, pela casa onde havia agora apenas uma gata, a sua velha favorita, dormindo na cama dela. Não tinha pedido que esta gata fosse poupada porque estava velha, e não muito bem de saúde. Mas esperava que assim fosse; sentou-se, e ficou muito tempo fazendo-lhe festas e falando com ela. Depois veio para a varanda. Aí estávamos eu e o meu pai, os assassinos, e como tal nos sentindo. A minha mãe sentou-se. O meu pai enrolou um cigarro. As suas mãos ainda tremiam. Olhou para ela e disse: "Isto não pode voltar a acontecer."

E acho que nunca mais aconteceu.

     Fiquei zangada com o holocausto dos gatos, porque poderia ter sido evitado; mas não me lembro de ter pena. Estava vacinada contra isso pela angústia que me causara a morte dum gato alguns anos antes, quando eu tinha onze anos. Eu dissera então, sobre o frio e pesado corpo em que se tornara, inexplicavelmente, a criatura leve como uma pena do dia anterior: Nunca mais. Mas tinha jurado o mesmo antes, sabia-o. Quando tinha três anos, contaram-me os meus pais, saí para passear com a minha ama, em Teerão, e, apesar dos seus protestos, apanhei na rua um gatinho esfomeado e levei-o para casa. Era o meu gatinho, contaram-me que eu disse, e lutei por ele enquanto todos lá em casa se recusavam a acolhê-lo. Lavaram-no com permanganato porque estava imundo; e a partir daí passou a dormir na minha cama. Não deixava que o tirassem de ao pé de mim. Mas claro que devem tê-lo tirado, porque deixámos a Pérsia e o gato ficou. Ou talvez tivesse morrido. Talvez - mas como poderei saber?

De qualquer maneira, algures lá atrás no tempo uma menininha lutou por e ganhou um gato que lhe fez companhia durante dias e noites; e depois a menininha perdeu-o.

   Depois duma certa idade - às vezes muito cedo, para alguns de nós - já não há pessoas novas, nem bichos, sonhos, caras, acontecimentos: tudo já aconteceu antes,

apareceu antes, com máscaras diferentes, diferentes roupas, outra nacionalidade, outra cor; mas é o mesmo, o mesmo, e tudo é um eco e uma repetição; e nem há dor que não seja uma recorrência de outra coisa lá atrás na memória que se expressa numa angústia inacreditável, dias de lágrimas, solidão, conhecimento de traição - e tudo por um pequeno, magro, gato moribundo.

   Estive doente no inverno. O que foi inconveniente porque o meu grande quarto tinha que ser caiado. Puseram-me no quartinho ao fundo da casa. A casa, quase mas não exactamente no cume da colina, parecia sempre prestes a escorregar para os campos de milho, em baixo. Este quarto pequenino, apenas uma fatia do fim da casa, tinha uma porta, sempre aberta, e janelas, sempre abertas, apesar do frio ventoso de um Julho com céus de um interminável azul claro. O céu, cheio de sol; os campos, com luz de sol. Mas frio, muito frio. A gata, uma persa cinzento azulada, chegou à minha cama ronronando, e instalou-se para partilhar comigo a minha doença, a minha comida, a minha almofada, o meu sono. Quando eu acordava de manhã, a minha cara sentia a roupa da cama semi-gelada; o lado de fora do cobertor de pele sobre a cama estava frio; o cheiro da cal fresca no quarto ao lado era frio e asséptico; o vento levantando e depositando poeira fora da porta era frio - mas na curva do meu braço, um leve calor ronronante, a gata, a minha amiga.

   Atrás da casa uma selha fora colocada na terra, fora da casa de banho, para apanhar a água dos banhos. Não havia canos levando água, nem torneiras, naquela quinta: a água, quando necessária, era trazida, num carro de bois, do poço que ficava a cerca de dois quilómetros. Durante os meses da estação seca a única água usada no jardim era a água suja dos banhos. A gata caíu na selha quando estava cheia de água quente. Berrou, foi tirada para o vento frio, lavada com permanganato, porque a selha estava suja, com folhas e pó, além da água ensaboada; foi enxugada, e posta na minha cama para aquecer. Mas espirrava e arquejava e ficou escaldante de febre. Tinha uma pneumonia. Demos-lhe os remédios que tínhamos em casa, mas isto foi antes dos antibióticos, e ela morreu. Durante uma semana esteve nos meus braços ronronando, ronronando, com uma vozinha trémula, rouca e áspera, que se tornou cada vez mais fraca, até ficar silenciosa; lambia a minha mão; abria os enormes olhos verdes quando a chamava pelo nome e lhe implorava que vivesse; fechou os olhos, morreu, e foi atirada para o poço fundo - com mais de trinta metros de profundidade - que secara, porque houve um ano em que os veios de água subterrâneos mudaram de curso e deixaram aquilo que nós tínhamos acreditado ser um poço fiável transformado numa cavidade seca, gretada e rochosa, que depressa se encheu de lixo, latas e cadáveres.

   Assim foi. Nunca mais. E durante anos comparei gatos nas casas dos amigos, gatos nas lojas, gatos nas quintas, gatos nas ruas, gatos nos muros, gatos na memória, com aquela doce e ronronante criatura cinzento azulado que para mim era o gato, o Gato, insubstituível.

   Além disso, por vários anos a minha vida não incluiu extras, supérfluos, adornos. Gatos não tinham lugar numa existência passada a mudar de um lugar para outro, de um quarto para outro. Um gato necessita tanto dum lugar como duma pessoa, para os tornar seus.

   Por isso só vinte e cinco anos mais tarde a minha vida voltou a ter espaço para um gato.

 

   Era num apartamento feio e grande em Earls Court. Do que precisávamos, decidimos, era dum gato robusto, fácil e sem exigências, capaz de se defender naquilo que era claramente, ao primeiro olhar pela janela das traseiras, uma guerra selvagem pelo poder nos muros e quintais à vista. Deveria apanhar ratos e ratazanas e além disso comer o que se lhe desse. Não deveria ser de raça pura, para não ser frágil.   Esta fórmula não tinha, evidentemente, nada a ver com Londres, relacionava-se com África. Por exemplo, na quinta dávamos tijelas de leite quente aos gatos, conforme os baldes chegavam da ordenha; os favoritos apanhavam restos da mesa; mas nunca lhes dávamos carne - eles caçavam-na. Se adoeciam, e não recuperavam ao fim de alguns dias, eram mortos. E numa quinta pode-se ter uma dúzia de gatos sem se pensar num caixote de areia. E no que respeita a batalhas e equilíbrios de poder, eram disputados e defendidos a propósito duma almofada, duma cadeira, duma caixa no canto dum alpendre, duma árvore, dum pedaço de sombra. Os gatos estabeleciam territórios uns contra os Outros, contra os gatos bravos e os cães da quinta. Uma casa de quinta é um terreno aberto e portanto há aí muito mais lutas do que na cidade, onde um gato, um par de gatos, serão donos duma casa ou dum apartamento, que defendem contra visitantes ou assaltantes. O que esses dois gatos farão um ao outro dentro das suas fronteiras, é outro assunto. Mas a linha de defesa contra estrangeiros é a porta das traseiras. Uma vez uma amiga minha teve que pôr uma caixa de areia dentro de casa, durante várias semanas, em Londres, porque o seu gato estava sitiado por uma dúzia de outros gatos, sentados nos muros e nas árvores do jardim, esperando-o para o atacarem. Depois as marés da guerra viraram, e o gato pôde reivindicar de novo o seu jardim.

   A minha gata era uma jovem de origem indistinta, branca e preta, garantida como limpa e dócil. Era um bicho bastante simpático, mas eu não a amava; não sucumbi. Estava, em resumo, a proteger-me a mim própria. Achava a gata neurótica, ansiosa, agitada; o que era injusto, porque a vida dum gato na cidade é tão pouco natural que ele nunca aprende a ser independente como um gato de quinta. Aborrecia-me porque ela esperava que voltássemos para casa - como um cão; precisava de ajuda humana para ter gatinhos. E quanto aos hábitos alimentares, ganhou a batalha na primeira semana. Nunca comeu, nem uma vez, outra coisa que não fosse fígados de vitela mal passados e pescada mal cozida. Onde arranjara estes gostos? Perguntei ao seu ex-dono, que também não sabia. Dei-lhe comida de lata, e restos da mesa; mas só mostrou interesse quando nos viu comer fígado. Tinha que ser fígado. E só comia o fígado cozinhado em manteiga, nada mais. Uma vez decidi levá-la à submissão pela fome. "É ridículo que um gato tenha que ser alimentado, etc., etc., quando noutros lugares do mundo há pessoas a morrer à fome, etc." Durante cinco dias dei-lhe comida de gato, restos da nossa comida. Durante cinco dias ela olhava reprovadoramente para o prato, e ia-se embora. Todas as noites eu deitava fora a comida cediça, abria nova lata, voltava a encher a tijela do leite. Ela vagueava por ali, inspeccionava o que eu lhe dera, abalava. Ficou mais magra. Devia ter muita fome. Mas, por fim, fui eu quem cedeu.

   Atrás daquela enorme casa uma escada de madeira conduzia do patamar do primeiro andar até ao pátio. Aí se sentava a gata, vigiando uma meia dúzia de metros, a rua, o alpendre. Quando ela chegou a nossa casa, vieram todos os gatos das redondezas examinar a recém-chegada. Ela sentou-se no degrau de cima, pronta a fugir para dentro se eles se aproximassem demais. Tinha metade do tamanho dos machos grandes que esperavam. Demasiado jovem, pensei, para engravidar; mas antes de ser completamente adulta emprenhou, e não lhe fez bem nenhum ter gatinhos quando ela própria era ainda uma gatinha.

   O que me leva a - à nossa velha amiga Natureza. Que é supostamente sábia. Em estado natural, será que uma gata engravida antes de atingir a idade adulta? E tem

gatinhos quatro, cinco vezes por ano, seis de cada vez? Claro, uma gata não é só uma comedora de ratos e pássaros; é também uma fornecedora de comida para os falcões que flutuam no ar acima das árvores onde ela se esconde com os seus gatinhos. Um gatinho, deslizando para fora do abrigo na sua primeira curiosidade, desaparecerá nas garras dum falcão. Muito possivelmente, uma gata ocupada a apanhar comida para si e para os seus filhotes será capaz de proteger apenas um gatinho, talvez dois. É sabido que uma gata doméstica, se tiver cinco ou seis gatinhos e lhe tirarmos dois, mal dará por isso: queixar-se-á, procurá-los-á um pouco, depois esquece. Mas se tiver dois gatinhos, e um desaparecer antes do tempo certo para ir embora - umas seis semanas - ela fica frenética de ansiedade, e procurá-lo-á pela casa toda. Uma ninhada de seis gatinhos num cesto quentinho numa casa da cidade talvez possa ser vista como comida de águia e falcão posta no sítio errado? Mas nesse caso, como a Natureza é inflexível, indobrável: se os gatos têm sido amigos do homem por tantos séculos, não poderia a Natureza ter-se adaptado, só um pouco, afastando-se da fórmula - cinco ou seis gatinhos por ninhada, quatro vezes por ano?

   A primeira ninhada desta gata foi anunciada com muitas queixas. A gata sabia que alguma coisa ia acontecer; e tratava de ter a certeza de que alguém estivesse perto quando isso acontecesse. Na quinta, as gatas iam para fora de casa, tinham os gatinhos num sítio bem escondido e escuro, e reapareciam um mês depois com a sua prole para a apresentar às tijelas de leite. Não me lembro de ter de arranjar, para alguma das nossas gatas, um sítio para parir. A gata preta e branca foram-lhe oferecidos cestos, armários, fundos de roupeiros. Não pareceu gostar de nenhum deles, mas seguiu-nos pela casa nos dois dias anteriores ao parto, esfregando-se nas nossas pernas e miando. Quando começou o trabalho de parto foi no chão da cozinha, porque as pessoas estavam na cozinha. Um oleado de um azul frio, e em cima dele uma gata gorda, miando para ter atenção, ronronando ansiosamente, espiando os seus acompanhantes para que não a deixassem. Trouxemos um cesto, metêmo-Ia lá dentro e fomos fazer o que tínhamos a lfazer. Veio atrás de nós. Era, portanto, evidente que tínhamos que ficar com ela. Esteve em trabalho de parto horas e horas. Por fim apareceu o primeiro gato, mas vinha virado ao contrário. Um de nós segurou o gato, outro puxou-lhe as pernas escorregadias. Saiu, mas a cabeça ficou presa. A gata mordia e arranhava e berrava. Uma contracção expeliu o gatinho, e imediatamente a gata, semi-enlouquecida, virou-se e mordeu-lhe na parte de trás do pescoço e o gatinho morreu. Depois de os outros quatro gatinhos terem nascido em segurança, verificámos que o morto era o maior e o mais forte. A gata teve seis ninhadas, e em cada ninhada teve cinco gatinhos, e em cada ninhada matou o primeiro a nascer, por causa das dores que sentia. Fora isso, era uma boa mãe.

   O pai era um gato preto muito grande com o qual, quando estava no cio, ela se rebolava pelo pátio; no resto do tempo, o gato sentava-se no último degrau da escada de madeira, lambendo-se, enquanto ela se sentava no primeiro degrau, lambendo-se também. A gata não gostava que ele entrasse no apartamento - enxotava-o. Quando os filhotes chegavam à idade em que conseguiam descer para o pátio, sentavam-se nos degraus, um, dois, três, quatro, todos misturas de branco e preto, e olhavam com medo para o grande macho que os observava. A mãe, finalmente, descia à frente, a cauda levantada, ignorando o gato preto. Os gatinhos iam atrás dela, passavam por ele. No pátio ela ensinava os filhos a serem limpos, enquanto o gato olhava. Depois subia as escadas à frente, e eles vinham atrás, um, dois, três, quatro.       .

   Não comiam nada excepto fígado mal passado, e pescada mal cozida; facto que eu ocultava aos seus potenciais donos.

   Os ratos eram apenas objectos de interesse para aquela gata, e para todos os seus gatinhos.     O apartamento tinha uma particularidade que eu nunca vi noutro, em Londres. Alguém tinha tirado uma dúzia de tijolos da parede da cozinha, pusera uma grade de metal do lado de fora e uma porta do lado de dentro; havia assim uma espécie de armário de comida na parede, insanitário, digamos, mas que preenchia as funções dessa necessidade obsoleta, uma despensa. O pão e o queijo podiam ser aí guardados numa temperatura adequada, não refrigerados, mantendo-se frescos. Os ratos entravam, contudo, nesta despensa em miniatura. Viviam nas paredes, e do medo aos seres humanos apenas conservavam uns ténues vestígios. Quando eu entrava subitamente na cozinha e encontrava um rato, ele olhava para mim, com os olhos brilhantes, e esperava que eu me fosse embora. Se eu ficasse quieta, ignorava-me, e continuava à procura de comida. Se eu fizesse muito barulho ou lhe atirasse alguma coisa, o rato desaparecia na parede, mas sem pânico.

   Não conseguia convencer-me a pôr uma ratoeira para aquelas confiadas criaturas; sentia, no entanto, que um gato era, digamos assim, jogo limpo. Mas a gata não ligava aos ratos. Um dia entrei na cozinha e vi-a deitada na mesa da cozinha, olhando para dois ratos no chão.

   Talvez a presença dos gatinhos lhe despertasse os seus supostamente reais instintos? Em breve deu à luz, e quando os gatinhos já desciam as escadas, pus a gata e quatro gatinhos na cozinha, retirei a comida, e fechei-os aí todos durante a noite. Desci de madrugada para vir buscar um copo de água, acendi a luz, e vi a gata estirada no chão, amamentando os gatinhos, um, dois, três, quatro; enquanto um rato estava sentado a meio metro de distância, incomodado com a luz, mas não com a gata. O rato nem fugiu, esperou que eu me fosse embora.

   A gata apreciava, ou tolerava, a companhia de ratos; e desarmou um cão bastante palerma do andar de baixo, que capitulou quando se preparava para a perseguir, porque ela, aparentemente ignorando que os cães eram inimigos, começou a roçar-se nas pernas dele, ronronando. O cão tornou-se seu amigo, e amigo de todos os seus gatinhos. Mas a gata mostrou terror numa ocasião em que, se os gatos são criaturas da noite, amigos da escuridão, deveria ter permanecido calma.

   Uma tarde, a noite desceu sobre Londres. Eu estava à janela da cozinha, bebendo o café depois do almoço, com uma visita, quando o ar se tornou escuro e sujo, e as luzes da rua se acenderam. Da plena luz do dia à plena e opaca escuridão demorou dez minutos, ou menos. Assustámo-nos. Tínhamos perdido o sentido do tempo?

Tinha finalmente explodido uma bomba algures, cobrindo a terra com uma nuvem suja? Tinha alguma dessas fábricas da morte, espalhadas nesta bonita ilha, deixado escapar acidentalmente um gás letal? Eram estes, em resumo, os nossos últimos momentos? Não havia informações, por isso ficámos à janela, olhando. Estava um céu pesado, sufocante, sulfuroso; uma escuridão de um amarelo escuro; e o ar queimava-nos as gargantas, como num poço de mina após uma explosão.

   Havia um silêncio extraordinário. Em momento de crise, esta quietude expectante é o primeiro sintoma de Londres, mais perturbador do que qualquer outro.

   Entretanto a gata estava sentada na mesa, tremendo. De tempos a tempos soltava, não uma miadela, mas um gemido, uma queixa interrogativa. Posta no colo e acariciada, lutou, saltou para o chão, e depois, não correu, rastejou escada acima, e meteu-se debaixo duma cama, onde ficou, tiritando. Tal e qual como um cão, de facto.

   Meia hora mais tarde, a escuridão levantou. Um padrão contraditório de correntes de vento tinha encurralado, sob um tecto de ar obstinadamente imóvel, as sujas exalações da cidade, que normalmente são dissipadas para cima. Depois soprou novo vento, que empurrou aquela massa, e a cidade respirou outra vez.

   A gata ficou. debaixo da cama toda a tarde. Quando finalmente foi persuadida a descer, na luz fresca e clara do fim do dia, sentou-se no parapeito e olhou a escuridão caindo - a escuridão real. Então lambeu e arranjou a pelagem eriçada, bebeu leite, recompôs-se.

   Mesmo antes de deixar aquele apartamento, tive que viajar num fim de semana, e uma amiga encarregou-se da gata. Quando voltei, a gata estava no veterinário, com uma fractura da pélvis. A casa tinha um telhado plano, junto a uma janela alta, onde ela costumava apanhar sol. Por qualquer razão a gata caíra do telhado, que tinha a altura de três andares. Deve ter apanhado qualquer susto, um grande susto. Tinha que ser abatida e decidi que ter gatos em Londres era um erro.

   O sítio em que vivi a seguir era impossível para gatos. Era um bloco de seis pequeníssimos apartamentos, um por cima do outro ao longo duma fria escada de pedra. Nem pátio nem jardim: o bocado de terra mais próximo era provavelmente Regent's Park, a mais de meio quilómetro. País impróprio para gatos, poder-se-ia pensar; mas um gato grande com pelagem tartaruga decorava a montra do merceeiro da esquina; e este disse que o gato dormia ali sozinho de noite, e que deixava o gato na rua, governando-se sozinho, quando ia de férias. Não valia a pena argumentar com ele, porque perguntou: Não parece saudável e feliz? Parecia, sim. E vivia assim há cinco anos.

   Durante alguns meses um grande gato preto viveu na escada dos apartamentos, não pertencendo, aparentemente, a ninguém. Queria pertencer a algum de nós. Ficava esperando até que a porta se abrisse, quando al guém entrava ou saía, e então miava, tentando, como quem já teve muitas recusas. Bebia um pouco de leite, comia alguns restos, roçava-se nas pernas, pedindo que o deixassem ficar. Mas sem insistência e, na verdade, sem esperança. Ninguém lhe pediu que ficasse. Havia a questão, como sempre, dos dejectos do gato. Ninguém aguentava pensar em subir e descer aquelas escadas com caixas malcheirosas, indo e vindo dos caixotes do lixo. E o dono dos apartamentos não gostaria. Além disso, dissemos tentando confortar-nos, provavelmente pertencia a alguma das lojas e só vinha visitar-nos. Por isso só lhe dávamos de comer.

   Durante o dia sentava-se no pavimento, vendo o tráfego, ou vagueava saindo e entrando nas lojas: um velho gato urbano; um gato gentil; um gato sem pretensões.

   Na esquina costumavam estar três padiolas de fruta e vegetais que pertenciam a três velhos: dois irmãos, um gordo e um magro, e a mulher do gordo, que também era gorda. Eram pessoas baixas, de metro e meio, sempre a dizer piadas, sempre acerca do tempo. Quando o gato os visitava sentava-se debaixo duma padiola e comia bocados das sanduíches deles. A senhora gorda e pequena, que tinha bochechas vermelhas, tão vermelhas que eram quase pretas, e que era casada com o irmão pequeno e gordo, dizia que gostava de levar o gato para casa, mas que tinha medo que o seu velho Tibby não gostasse. O irmão pequeno e magro, que nunca se tinha casado e vivia com eles, brincava dizendo que podia levá-lo para lhe fazer companhia e defendê-lo do Tibby: um homem que não tinha mulher precisava dum gato. Julgo que ele teria levado o gato; mas morreu repentinamente de um ataque cardíaco. Qualquer que fosse a temperatura, aquelas três criaturas estavam enroladas em tudo o que era lenço, casaco, camisola, casacão. O irmão magro usava, invariavelmente, um sobretudo por cima dum monte de roupa. Se a temperatura subia para mais de treze graus queixava-se de que era uma vaga de calor, e sentia-se cheio de calor. Sugeri-lhe que não se sentiria tão quente se não usasse tanta roupa. Mas esta era uma atitude em relação ao vestuário que lhe era francamente estranha: fazia-o sentir-se pouco a vontade. Um ano, tivemos um longo período de bom tempo, uma verdadeira vaga de calor de Londres. Todos os dias eu saía para uma rua alegre, quente, amigável, com gente em roupa de verão. Mas os três velhinhos continuavam a usar os seus lenços e cachecóis e camisolas. As bochechas da velhota ficaram cada vez mais vermelhas. Diziam piadas todo o tempo sobre o calor. Na sombra, a seus pés, debaixo da padiola, o gato deitava-se estirado entre ameixas e bocados de alface murcha. No final da segunda semana da vaga

de calor o irmão solteiro morreu de um ataque e acabou a esperança duma casa para o gato.   Por algumas semanas teve sorte e era benvindo no bar. Isto porque Lucy, a prostituta que vivia no rés-do-chão do nosso prédio, usava o bar a noite. Levava o gato consigo e sentava-se num banco alto, num canto perto do balcão, com o gato noutro banco a seu lado. Era uma senhora simpática, de quem gostavam no bar; e quem quer que fosse que ela levasse consigo era também benvindo. Quando eu ia ao bar comprar cigarros ou uma garrafa, lá estava Lucy com o gato. Os seus admiradores, muitos e de todos as partes do mundo, velhos e novos fregueses, e de todas as idades, ofereciam-lhe bebidas e e persuadiam o dono do bar e a mulher a darem leite e batatas fritas ao gato. Mas um gato num bar foi novidade que deve ter-se gasto, porque em breve vi Lucy trabalhar ali sem o gato.

   Quando chegaram o tempo frio e os dias curtos, o gato já estava instalado na escada bem antes da porta da rua ser fechada. Dormia no canto mais abrigado que pudera encontrar nas desumanas escadas de pedra sem alcatifa. Quando fazia muito frio, um de nós no prédio convidava o gato para passar a noite; e de manhã ele agradecia roçando-se nas nossas pernas. E depois, nada de gato. O porteiro do prédio disse, na defensiva, que o tinha levado para os serviços camarários para ser morto. Uma noite, tendo sido demasiado longas as horas de espera até que a porta fosse aberta, o gato fizera as suas necessidades num patamar. O porteiro não ia aturar "aquilo", disse. Já lhe bastava limpar o que nós todos sujávamos, não ia limpar também porcaria de gatos.

 

   Fui viver para uma casa que fica em território de gatos. As casas aí são velhas e têm jardins estreitos com muros. Através das nossas janelas das traseiras via-se uma dúzia de muros para um lado, uma dúzia de muros para o outro, de todos os tamanhos e feitios. Árvores, relva, sebes. Há um pequeno teatro que tem telhados de várias alturas. Os gatos florescem aí. Há sempre gatos nos muros, nos telhados e nos jardins, vivendo uma complicada vida secreta, como as vidas das crianças da vizinhança, que prosseguem de acordo com inimagináveis regras próprias de que os crescidos nem suspeitam.

   Eu sabia que iria haver um gato lá em casa. Tal como alguém sabe, se uma casa é demasiado grande, que virá mais gente viver nela, assim também algumas casas devem ter gatos. Mas por algum tempo rejeitei os vários gatos que apareciam por ali a cheirar para ver que espécie de lugar era aquele.

   Durante todo o horrível inverno de 1962, o jardim e o telhado por cima da varanda de trás foram visitados por um velho macho preto e branco. Sentava-se na neve enlameada do telhado; vagueava pelo chão gelado; quando a porta das traseiras se abria, ele sentava-se bem junto a ela, olhando para o aconchego. Não tinha nada de bonito, com uma mancha branca num olho, uma orelha rasgada, o maxilar sempre um pouco aberto. Mas não era um vadio. Tinha uma boa casa na rua, e ninguém sabia por que é que não ficava lá.

   Aquele inverno foi mais um passo na educação da extraordinária capacidade de sofrimento voluntário dos ingleses.

   As casas são, em maioria, habitação social e, na primeira semana de frio, os canos gelaram e rebentaram, e as pessoas ficaram sem água. A canalização manteve-se gelada. As autoridades abriram uma boca de incêndio na esquina da rua, e durante semanas as mulheres fizeram longos trajectos para ir buscar água em jarros e latas, num pavimento atulhado de lama gelada, de chinelos. Os chinelos eram para terem os pés quentes. A lama e o gelo não foram limpos do pavimento. As mulheres tiravam água da torneira, que se avariou várias vezes, e diziam que não tinham tido água quente, a não ser a que aqueciam no fogão, durante uma semana, duas semanas - depois três, quatro e cinco semanas. Claro que não havia água quente para banhos. Quando se lhes perguntava por que não se queixavam, pois que, no fim de contas, pagavam renda, pagavam para ter água quente e fria, respondiam que os responsáveis sabiam dos canos, mas não faziam nada. Tinham, os responsáveis, declarado que se tratava duma vaga de frio: e as mulheres tinham concordado com o diagnóstico. As suas vozes eram lúgubres, mas sentiam-se realizadas, como se sente esta nação quando sofre actos de Deus inteiramente evitáveis.

   Na loja da esquina um velho, uma mulher de meia idade e uma criança pequena passaram os dias daquele inverno. A loja estava ainda mais gelada, pelos balcões frigoríficos, do que as temperaturas negativas mandadas pela Natureza; a porta estava sempre aberta para os gelados flocos de neve da rua. Não havia aquecimento. O velho apanhou uma pleurisia e passou dois meses no hospital. Debilitado para sempre, teve que vender a loja nessa primavera. A criança ficava sentada no chão de cimento chorando sem parar, de frio, e levava palmadas da mãe que se mantinha atrás do balcão com um leve vestido de lã, peúgas de homem e casaco de malha fino, dizendo que a vida era horrível, com os olhos e o nariz a pingar e as mãos inchadas de frieiras. O velho da casa ao lado que trabalha como carregador no mercado escorregou no gelo frente à sua porta, magoou-se nas costas e esteve durante semanas a receber do fundo de desemprego. Nessa casa, que abrigava umas nove ou dez pessoas, incluindo duas crianças, havia um aquecedor eléctrico com uma barra para combater o frio. Três pessoas foram parar ao hospital, uma delas com pneumonia.

   E os canos ficaram rebentados, selados por recortadas estalactites de gelo; os pavimentos continuaram sendo escorregas de gelo; e as autoridades nada fizeram.

Nas ruas da classe média, é evidente, a neve era limpa à medida que caía, as autoridades respondiam aos cidadãos zangados que exigiam os seus direitos e ameaçavam com tribunais. Na nossa área as pessoas padeceram tudo aquilo até à primavera.

   Rodeadas de pessoas tão submetidas ao inverno como se fossem habitantes das cavernas de há dez mil anos, as peculiaridades dum velho gato que escolheu um telhado gelado para passar as noites perdem a sua força.

   A meio daquele inverno, uns amigos nossos receberam uma gatinha de presente. Amigos desses amigos tinham uma gata siamesa, e ela tivera uma ninhada, de um gato vadio. Os gatinhos híbridos estavam a ser oferecidos. A casa dos meus amigos é mínima, e ambos trabalham o dia todo; mas quando viram a gatinha não conseguiram resistir. No primeiro fim de semana a gata foi alimentada com sopa de lagosta enlatada e mousse de galinha, e quebrou as muito conjugais noites do casal porque tinha de dormir debaixo do queixo, ou pelo menos algures junto à pele, de H., o marido. S., a mulher, anunciou-me ao telefone que estava a perder os carinhos do marido por causa dum gato, tal como a mulher do conto de Colette. Na segunda-feira foram os dois trabalhar, e quando voltaram a gata estava triste e chorosa por ter ficado sozinha o dia todo. Disseram que nos iam trazer a gata. Assim fizeram.

   A gatinha tinha seis semanas. Era encantadora, uma delicada gata de conto de fadas, cujos genes siameses se viam na forma da cabeça, das orelhas, da cauda, e nas subtis linhas do corpo. Tinha as costas tigradas: vista de cima ou de trás, era uma bonita gatinha tigrada, cinzento e creme. Mas de frente e na barriga era de um dourado fumado, da cor creme dos siameses, com meias riscas pretas no pescoço. O focinho era desenhado a preto - linhas finas e escuras rodeando os olhos, traços finos e escuros nos lados do focinho, um narizinho cor de marfim com a ponta cor de rosa, debruado a preto. De frente, sentada com as suas esbeltas patas direitas, era um bicho duma beleza exótica. Sentou-se, aquela coisinha frágil, no meio dum tapete amarelo, rodeada por cinco adoradores, sem nenhum medo de nós. Depois saltitou pelo chão da casa, inspeccionando cada centímetro, subiu para a minha cama, esgueirou-se para debaixo da dobra do lençol e estava em casa.

  1. foi-se embora com H. dizendo: Foi mesmo a tempo, se não, teria ficado sem marido.

   E ele saiu resmungando, dizendo que nada pode ser mais delicioso do que ser acordado pelo delicado toque duma língua cor de rosa na cara.

   A gata desceu a escada, ou melhor, pulou os degraus, cada um dos quais tinha o dobro da sua altura: primeiro patas da frente, depois queda das patas traseiras; patas dianteiras, queda das de trás. Inspeccionou o rés-do-chão, recusou a comida de lata que lhe oferecemos, pediu um caixote miando. Não gostou da serradura, mas jornais rasgados eram aceitáveis, assim dizia a sua enfastiada atitude, se não havia mais nada. Não havia: a terra lá fora estava uma pedra de gelo.

   A gata não comia comida de gato enlatada. Não comia. E eu não ia dar-lhe sopa de lagosta e. galinha. Chegámos a um compromisso com a carne picada. Sempre foi niquenta com a comida como um gourmet solteirão. Piora à medida que envelhece.

Mesmo quando pequenina, mostrava aborrecimento, ou prazer, ou amuo, por aquilo que comia, semi-comia, ou decidia recusar. Os seus hábitos alimentares eram uma linguagem eloquente.

   Mas penso que é possível que a tenham separado da mãe demasiado cedo. Atrevo-me a sugerir respeitosamente aos peritos em gatos que talvez estejam enganados quando dizem que um gatinho pode ser separado da mãe no dia em que faz seis semanas. Esta gata tinha seis semanas, nem mais um dia, quando foi tirada à mãe. A base da sua esquisitice com a comida é como a hostilidade e suspeita neuróticas de uma criança com problemas de comida. Tinha que comer, achava ela; comia; mas nunca comeu com prazer, pelo gosto de comer. E partilhava outra característica com as pessoas que não tiveram suficiente calor materno. Ainda agora se esconde instintivamente sob a dobra de um jornal, ou dentro duma caixa ou dum cesto - tudo o que abriga, tudo o que cobre. Mais: está sempre pronta a sentir-se insultada; pronta a amuar. E é terrivelmente medrosa.

   Os gatinhos que são deixados com as mães durante sete ou oito semanas comem facilmente, e têm confiança. Mas, é evidente, são menos interessantes.

   Enquanto bebé, esta gata nunca dormiu em cima da cama. Esperava que eu estivesse deitada, depois andava por cima de mim, considerando as possibilidades. Metia-se no fundo da cama, junto aos meus pés, ou ficava no meu ombro, ou esgueirava-se para debaixo da almofada. Se eu me mexia muito, mudava arrogantemente de lugar, mostrando a sua contrariedade.

   Quando eu fazia a cama, gostava de ficar dentro dela; e ficava, visível como uma pequena bossa, muito feliz, durante horas, entre dois cobertores. Se eu fazia festas na bossa, ronronava e miava. Mas só saía dali quando precisava.

   A bossa mexia-se pela cama, hesitava na beira. Às vezes ouvia-se um mio frenético quando ela escorregava para o chão. Com a dignidade perturbada, lambia-se rapidamente, dardejando os seus olhos amarelos para os espectadores, que cometeriam um erro se se rissem. Depois, consciente de cada um dos seus pêlos, colocava-se em qualquer outro centro de cena.

   Hora do fastidioso e aborrecido comer. Hora de ir ao caixote, desempenho primoroso. Hora de pôr em ordem a pelagem creme. E hora de brincar, que nunca acontecia pelo gosto de brincar, mas apenas quando a gatinha se sabia observada.

   Era tão arrogantemente consciente de si mesma como uma rapariga bonita que não tem atributos a não ser a sua beleza: corpo e cara sempre em pose, de acordo com algum monitor interno - uma pose que é tão boa quanto uma máscara: não, não, "isto" é o que eu sou, e os seios agressivos, ou os taciturnos olhos hostis sempre em busca de admiração.

   Gata, na idade em que, se fosse humana, usaria a roupa e o cabelo como armas, mas confiante em que, querendo, poderia a qualquer momento recair na complacente infância, porque o papel se tornara demasiado pesado - gata em pose, arranjando-se e fazendo de princesa, e depois, cansada, um pouco birrenta, aconchegando-se na dobra dum jornal ou atrás duma almofada para ver daí o mundo, em segurança.

     A sua habilidade mais bonita, usada principalmente para a assistência, era deitar-se de costas debaixo de um sofá e arrastar-se ao longo deste, dando puxões rápidos e incisivos com as patas, parando para virar a elegante cabecinha para o lado, os olhos amarelos semicerrados, esperando aplausos. "Oh gatinha bonita! Bichinho delicioso! Bichana linda!" Logo seguia para outra exibição.

     Ou, no lugar certo, o tapete amarelo, uma almofada azul, deitava-se de costas e rolava devagar, as patas para cima, a cabeça para trás, de forma e expor o peito e a barriga de cor creme, tenuemente marcadas, como se ela fosse uma delicada subespécie de leopardo, com manchas pretas, como as pintas dos leopardos. "Oh gatinha bonita, que linda que tu és." E ela dispunha-se a continuar até os cumprimentos pararem.

   Ou então sentava-se na varanda das traseiras, não na mesa, que não estava enfeitada, mas numa pequena estante que tinha vasos com narcisos e jacintos. Sentava-se em pose entre hastes de flores azuis e brancas, até que reparassem nela e fosse admirada. Não apenas por nós, claro; também pelo velho gato com reumatismo que vagueava, sombria advertência duma vida muito mais dura, pelo jardim onde a terra estava ainda gelada. O gato via uma bonita gata adolescente atrás do vidro. Ela via o gato. Levantava a cabeça, para este lado, para o outro lado; mordiscava um fragmento de jacinto, deixava cair; lambia o pêlo, negligentemente; depois, com um olhar insolente para trás, saltava da estante e vinha para dentro, para longe da vista dele. Ou, a caminho do andar de cima, num braço ou num ombro, olhava pela janela para ver o pobre e velho bicho, tão quieto que às vezes pensávamos que tinha morrido e gelara ali. Quando o sol aquecia um pouco, ao meio dia, e o gato se sentava lambendo-se, ficávamos aliviados. Às vezes a gata sentava-se à janela a vê-lo, mas a vida dela ainda era para ser aconchegada nos braços, camas, almofadas e cantos dos seres humanos.

   Veio então a primavera, a porta de trás ficava aberta, o caixote, graças a Deus, tornou-se desnecessário, e o jardim passou a ser o território dela. Tinha seis meses, completamente adulta, do ponto de vista da Natureza. Era muito bonita, então, perfeita; mais bonita ainda do que aquela gata que eu jurara, tantos anos atrás, não poder nunca ter igual. E claro que não teve; porque a natureza dessa gata era toda tacto, delicadeza, calor e graça - por isso, como dizem os contos de fadas e as esposas velhas, tinha que morrer jovem.

       A nossa gata, a princesa, era, ainda é, bonita, mas, não interessa disfarçar, é um bicho egoísta.

   Os gatos alinhavam-se nos muros dos jardins. Primeiro, o sombrio e velho gato do inverno, rei dos jardins das traseiras. Depois, um bonito preto e branco da casa ao lado, filho do primeiro, pela semelhança. Um malhado com cicatrizes de batalha. Um gato cinzento e branco que tinha tanta certeza da derrota que nunca desceu do muro. E um vistoso e jovem gato tigrado que ela obviamente admirava. Nada a fazer, o velho rei não podia ser derrotado. Quando ela saía, cauda levantada, aparentemente ignorando-os a todos, mas espiando o jovem e bonito tigre, este saltava em sua direcção, mas bastava o gato do inverno mexer-se onde estava, deitado no muro, e o jovem gato saltava de volta para a segurança. Isto durou semanas.

   Entretanto, H. e S. vieram visitar a sua perdida gatinha. S. disse que era horrível e injusto que a princesa não pudesse fazer a sua escolha; e H. disse que era exactamente como devia ser: uma princesa deve ter o rei, mesmo que este seja feio e velho. O gato tinha muita dignidade, disse H.; tinha muita presença; e tinha ganho ao jovem gato bonito por ter aguentado o longo inverno.

     Por essa altura chamávamos Mefistófeles ao gato feio. (Na sua casa, ouvimos, chamavam-lhe Billy. A nossa gata teve vários nomes, mas nenhum pegou. Melissa e Franny; Marilyn e Sappho; Circe e Ayesha e Suzette. Mas em conversa, em diálogo carinhoso, ela miava e ronronava em resposta às sílabas longas e arrastadas dos adjectivos - boooniiiita, liiinda bichana.)

       Num fim de semana muito quente, o único, parece-me, num verão feio, a gata começou com o cio.

  1. e S. vieram almoçar no domingo, sentámo-nos na varanda das traseiras e observámos as escolhas da Natureza. Não as nossas. Nem as da nossa gata.

   As lutas haviam durado duas noites, lutas ferozes, gatos berrando e gemendo e gritando no jardim. Entretanto a bichana cinzenta sentara-se aos pés da minha cama, olhando na escuridão, orelhas arrebitando-se e movendo-se, a cauda comentando, apenas com a ponta, levemente.

   Nesse domingo, só estava Mefistófeles à vista. Gata cinzenta rebolava-se em êxtase pelo jardim. Veio para junto de nós, rebolou-se a nossos pés e mordeu-os.

Correu para baixo e para cima da árvore do fundo do jardim. Rebolou-se e gritou, chamou, convidou.

   "A mais desavergonhada exibição de lascívia que eu já vi," disse S. olhando para H., que estava apaixonado pela nossa gata.

       "Pobre gata," disse H., "se eu fosse o Mefistófeles nunca te trataria tão mal."

       "Oh, H." disse S., "és nojento, se eu contasse ninguém ia acreditar. Mas eu sempre disse, és nojento."

       "Então, é isso o que tu sempre disseste," -disse H., acariciando a extática gata.

   Estava um dia quente, tínhamos bebido bastante vinho ao almoço, e o jogo do amor continuou pela tarde toda.

   Finalmente, Mefistófeles saltou do muro para junto da gata que se contorcia e rebolava - mas, desgraçadamente, falhou.

           "Oh meu Deus, " disse H., sofrendo genuinamente. "É imperdoável, este tipo de coisa."

   S., angustiada, olhava os tormentos da nossa gata, e duvidava, frequentemente, dramaticamente e em voz alta, se o sexo valia aquilo. "Olhem," dizia, "aquilo somos nós. Aquilo é como nós somos."

   "Não é nada como nós somos," disse H. "Aquilo é o Mefistófeles. Deveria ser abatido."

   Abatamo-lo já, dissemos todos; ou, pelo menos, fechemo-lo, para que o jovem tigre da casa ao lado         possa ter a sua oportunidade.

Mas o bonito gato jovem não estava visível. Continuámos bebendo vinho; o sol continuou a brilhar, a nossa princesa dançou, rebolou, galopou árvore acima e árvore abaixo e, quando finalmente as coisas correram bem, o velho rei pôs-se na gata uma, e outra, e outra vez.

       "Está tudo errado," disse H., "é demasiado velho para ela."

   "Meu Deus," disse S., "vou levar-te para casa. Porque se não te levar, garanto que ainda vais tu fazer amor com a gata."

   "Quem me dera poder," disse H. "Que bicho extraordinário, que criatura linda, que princesa, mal empregada num gato, não aguento."

   No dia seguinte voltou o inverno; o jardim estava frio e húmido; gata cinzenta tinha voltado aos seus modos enfastiados e desdenhosos. E o velho rei estava deitado no muro do jardim, na lenta chuva inglesa, ainda vencedor de todos, esperando.

 

   Gata cinzenta vestiu a gravidez com ligeireza. Corria até ao fundo do jardim, subia à árvore e voltava; depois outra vez, e outra; sendo o objectivo disto o momento em que, agarrada à árvore, ela virava a cabeça, olhos semicerrados, para receber os aplausos. Saltava degraus abaixo, três, quatro de cada vez. Arrastava-se debaixo do sofá, escorregando pelo chão. E, como tinha aprendido que qualquer pessoa, vendo-a pela primeira vez, ficava muito provavelmente em êxtase: Oh, que lindo gato! - ela punha-se sempre em frente da porta quando chegavam visitas, em pose adequada.

   Depois, tentando passar entre os balaústres para saltar para o patamar de baixo, descobriu que não conseguia. Tentou outra vez, não podia. Sentiu-se humilhada, fingiu que não tinha tentado, que preferia fazer o caminho mais longo, seguindo as voltas da escada.

       As suas correrias para cima e para baixo da árvore tornaram-se mais lentas, depois pararam.

       E quando os gatinhos se mexeram na sua barriga, pareceu surpreendida, irritada.

   Normalmente, cerca de quinze dias antes do parto, as gatas começam a cheirar os cantos e armários: tentando, rejeitando, escolhendo. Esta gata não fez nada disso. Tirei sapatos dum armário do quarto, mostrei-lhe o sítio - abrigado, escuro, confortável. Ela entrou e saiu. Outros lugares foram-lhe oferecidos. Não era que ela não gostasse deles; parecia que não entendia o que estava a acontecer.

   No dia anterior ao parto, enroscou-se nuns jornais velhos, numa cadeira, mas os actos dela eram automáticos, nada tinham de propositado. Alguma glândula, ou o que seja, falara, comandara movimentos; ela obedeceu, mas o que fazia não estava ligado com o seu conhecimento vital, ou assim parecia, porque não tentou de novo.   No dia do parto esteve em trabalho cerca de três horas antes que se apercebesse da situação. Miava, soando surpreendida, sentada no chão da cozinha, e quando a mandei para cima, para o armário, foi. Mas não ficou aí. Trotou erraticamente pela casa, cheirando, nesta fase já tão adiantada, vários lugares possíveis, mas perdeu o interesse e voltou para a cozinha. A dor, ou sensação, tendo diminuído, ela esqueceu-a, e dispunha-se a recomeçar a vida normal - a vida duma gatinha mimada e adorada. No final das contas, era ainda uma gatinha.

   Levei-a para cima, obriguei-a a ficar no armário. Ela não queria. Pura e simplesmente não tinha nenhuma das reacções esperadas. De facto, tocava as raias do absurdo - e do engraçado, nós tínhamos vontade de rir. Quando as contracções se tornaram fortes, ela ficou mal humorada. Quando teve uma dor maior, próximo do fimm, miou, mas era um mio de protesto, de aborrecimento.

     Estava aborrecida connosco, que havíamos contribuído para que todo aquele processo lhe fosse infligido.

   É fascinante observar o nascimento do primeiro filhote duma gata, o momento em que, tendo aquela frágil criatura aparecido envolta em celofane branco, a gata lambe essa cobertura até a retirar, corta o cordão, come a placenta, tudo actos tão limpamente, tão eficientemente, tão perfeitamente executados por ela, individualmente, pela primeira vez. Há sempre um momento de pausa. O gatinho é expelido, fica deitado junto à extremidade traseira da gata. A gata olha, com um reflexo de armadilha e de querer escapar, para aquela coisa nova ligada a ela; olha de novo, não sabe o que é; e então o mecanismo funciona, ela obedece, torna-se mãe, ronrona, está feliz.

   Com esta gata houve a pausa mais longa que já vi enquanto ela olhava para o gatinho. Olhou, olhou para mim, mexeu-se um pouco, para ver se se soltava daquele objecto preso a ela - e então, funcionou. Limpou o gatinho, fez tudo o que se esperava dela, ronronou e a seguir levantou-se e foi para baixo, onde se sentou na varanda das traseiras olhando para o jardim. Já acabou, parecia ela pensar. Então o seu corpo contraiu-se outra vez, e ela virou-se para me olhar - estava aborrecida, furiosa. O focinho, as linhas do corpo, tudo nela dizia, indubitavelmente, Que diabo de chatice! Vai para cima!, ordenei-lhe. Para cima! Foi, amuada. Arrastou-se escada acima com as orelhas para trás - "quase" como faz um cão quando é repreendido ou castigado: mas ela não tinha nada da abjecção de um cão. Pelo contrário, estava irritada comigo e com todo aquele processo. Quando viu outra vez o primeiro gatinho, reconheceu-o, e mais uma vez o mecanismo funcionou, e ela lambeu-o. Deu à luz quatro gatinhos ao todo, e adormeceu, uma imagem encantadora, uma gata linda rodeada de quatro gatinhos mamando.

   Eram um belo conjunto. A primeira, uma fêmea, uma réplica da mãe, até com os mesmos anéis desenhados à volta dos olhos, as meias riscas no peito e nas pernas, a barriga esbranquiçada com ténues manchas. Depois uma gatinha cinzento-azulado: mais tarde, com certas luzes, parecia roxo escuro. Um gatinho preto, quando crescido um perfeito gato preto, com olhos amarelos, todo elegância e força. E o gatinho do pai, exactamente igual a ele, um gatinho pesadote e desengraçado, branco e preto. Os primeiros três tinham as formas delicadas da raça siamesa.

   Quando a gata acordou olhou para os gatinhos, agora adormecidos, levantou-se, espreguiçou-se e rumou escada abaixo. Bebeu um pouco de leite, comeu alguma carne crua, lambeu-se por todo o lado. Não voltou para junto da ninhada.

  1. e H., vindos para admirar os gatinhos, encontraram a mamã gata em pose ao fundo das escadas, de perfil. Depois correu para fora de casa, novamente acima e abaixo da árvore - várias vezes. Depois subiu até ao cimo das escadas e desceu-as todas saltando, através dos balaústres, de um lanço para outro. Depois andou à volta das pernas de H., ronronando.

   "É suposto seres uma mãe," disse S., chocada. "Por que não estás com os teus gatinhos?"

   Parecia ter esquecido os filhotes. Inexplicavelmente, tivera que fazer um trabalho incómodo; fizera-o; estava acabado, e pronto. Pulou e brincou pela casa até que, à noite, mandei-a para cima. Não queria ir. Peguei-lhe e levei-a aos gatinhos. Sem gosto nenhum, lá ficou com eles. Não queria deitar-se para os amamentar.

Obriguei-a. Assim que me vim embora, deixou os gatinhos. Sentei-me ao pé dela enquanto os amamentava.

   Fui arranjar-me para ir para a cama. Quando voltei para o quarto, a gata estava debaixo dos meus lençóis, dormindo. Voltei a pô-la junto dos gatinhos. Olhou

para eles com as orelhas para trás, e tê-los-ia simplesmente deixado se eu não ficasse ali, apontando, figura inexorável de autoridade, para os gatinhos. Ela voltou, afundou-se no ninho como quem diz, já que insistes. Uma vez os gatinhos mamando o instinto funcionava, ainda que ineficientemente, e ela ronronou durante algum tempo.

   Pela noite toda andou a escapar-se do armário e a instalar-se no seu lugar habitual na minha cama. De cada vez, obriguei-a a voltar para o armário. Assim que eu adormecia, lá voltava ela, enquanto os filhos protestavam.

   Pela manhã, a gata tinha compreendido que era responsável por aqueles gatinhos. Mas entregue a si própria, a grande Mãe Natureza não intervindo, ela teria deixado os filhotes morrerem de fome.

   No dia seguinte, quando almoçávamos, gata cinzenta entrou na cozinha correndo, com um gatinho, balançando-o para baixo e para cima, na boca. Pôs o gato no meio do chão, e foi para cima buscar os outros. Trouxe os quatro, um de cada vez, e depois deitou-se ao comprido no chão da cozinha com eles. Não ia deixar que a fechassem, sem companhia, decidira; e. durante os meses em que os gatinhos não andavam, qualquer um de nós, em qualquer lugar da casa, podia ver gata cinzenta trotando quarto dentro com os seus gatinhos pendurados na boca, de forma que parecia aflitivamente descuidada.

À noite, sempre que eu acordava, gata cinzenta estava aconchegada a meu lado, silenciosa, e silenciosa ficava, esperando que eu não desse por ela. Quando via que eu já dera, ronronava, esperando que eu condescendesse, e lambia-me a cara e mordiscava-me o nariz. Sem resultado. Eu mandava-a de volta, e ela ia, amuada.

   Em resumo, era uma mãe desastrosa. Achámos que era por ser tão nova. Quando os gatinhos tinham um dia, ela tentava brincar com eles como faz uma gata com gatinhos de quatro ou cinco semanas. Uma daquelas bolinhas minúsculas e cegas podia levar patadas das enormes patas traseiras; ou ser mordido com ternura, enquanto que tudo o que o gatinho queria era agarrar-se às mamas com tão má vontade oferecidas. Uma visão triste, seguramente; e todos nos zangámos com ela; depois rimo-nos; o que foi pior, porque se há coisa que não suporta é que se riam dela.

   Apesar de tão mal tratada, a primeira ninhada era encantadora, a mais bem produzida nesta casa, cada gato notável à sua maneira, mesmo a réplica de Mefistófeles.

     Um dia, fui ao andar de cima e encontrei-o no quarto. Estava a olhar para os gatinhos. Gata cinzenta, evidentemente, não estava. O gato sentara-se a um metro de distância, a cabeça estendida para a frente, o maxilar aberto como de costume. Mas não queria fazer mal aos gatinhos, estava só interessado.

     Os gatinhos, sendo tão bonitos, depressa encontraram donos. Mas foram uma ninhada triste, afinal de contas. Num prazo de dezoito meses, todos tiveram revezes. A muito amada gata, que era o retrato da mãe, desapareceu de casa um dia e nunca mais foi encontrada. O mesmo aconteceu com o gato preto. O pequeno Mefistófeles foi levado, pela sua força e coragem, para ser o gato dum armazém, mas morreu de enterite. A gata roxa, tendo dado à luz a ninhada mais impressionante que já vi, três gatinhos siameses perfeitos, de cor creme, olhos cor de rosa, e três vadios típicos de Londres, ficou sem casa. Mas ouvi dizer que tinha ido para outra casa, numa rua próxima.

   Gata cinzenta, decidimos, não deveria ter gatinhos outra vez. Não era, obviamente, talhada para a maternidade. Mas era demasiado tarde. Estava grávida outra vez. E não do Mefistófeles.

   Esta área é conhecida como território de gatos para os negociantes e ladrões de gatos. Julgo que passam de carro e apanham qualquer animal que achem bonito e que não esteja em segurança dentro de casa. Isto acontece de noite; e é desagradável pensar como é que os ladrões mantêm os gatos calados para que não acordem os donos. As pessoas desta rua suspeitam dos hospitais que nos rodeiam. Esses viviseccionistas andaram por aí outra vez, dizem; e talvez tenham razão. De qualquer forma, uma noite desapareceram seis gatos, entre os quais Mefistófeles. E agora gata cinzenta tinha o seu preferido, o jovem tigrado com peito de cetim branco.

   De novo o parto a apanhou de surpresa, mas não demorou tanto tempo a instalar-se. Levantou-se depois do parto e foi para baixo, e não teria voltado para junto dos gatinhos se não a mandássemos; mas no conjunto acho que gostou desta segunda ninhada. Desta vez os gatinhos eram vulgares, misturas bonitinhas de tigrados e brancos com malhas tigradas, mas não tinham qualidades especiais na forma e na cor, e foi mais difícil encontrar-lhes donos.

   Outono, os caminhos atapetados de folhas de sicômoro da árvore grande: a gata ensinou os seus quatro gatinhos a caçar e a andar e a saltar enquanto as folhas caíam. As folhas desempenhavam o papel de ratos e pássaros - e depois eram trazidas para casa. Um dos gatinhos rasgava cuidadosamente a sua folha em pedaços. Foi desta forma que ele herdou o mais estranho traço de gata cinzenta: ela podia passar meia hora rasgando metodicamente um jornal, bocado a bocado. Será isto, talvez, uma característica dos siameses? Tenho uma amiga que tem dois gatos siameses. Quando ela tem rosas no apartamento, os gatos tiram as rosas das jarras com os dentes, põem-nas no chão, e arrancam as pétalas, uma a uma, como se desempenhassem uma tarefa necessária. Talvez na natureza, a folha, o jornal, a rosa fossem materiais para uma toca.

     Gata cinzenta gostava de ensinar aos gatinhos a arte de caçar. Se fossem gatos do campo, teriam sido bem educados. Também lhes ensinou a serem limpos: nenhum dos seus filhotes sujou qualquer canto da casa. Mas, continuando a ter má boca, não estava interessada em lhes ensinar a comer. Tiveram que aprender por si próprios.

   Desta ninhada, um ficou muito mais tempo do que os outros. Durante o inverno tivemos dois gatos, gata cinzenta e o filho, que era duma cor quente, laranja acastanhada, com uma mancha em forma de colete como a do pai.

     Gata cinzenta voltou a ser uma gatinha, e os dois brincavam o dia inteiro, e dormiam enroscados um no outro. O jovem macho era muito maior do que a mãe; mas ela atenazava-o, e batia-lhe quando ele a contrariava. Passavam horas lambendo o focinho um do outro e ronronando.

   Ele era um comilão, comia tudo. Esperámos que o seu exemplo desse à gata mais bom senso relativamente à comida, mas não deu. Ela deixava sempre, como fazem as gatas, que o filho comesse e bebesse primeiro, enquanto olhava, agachada. Quando ele acabava, ela aproximava-se, cheirava a comida de gato ou os restos, aproximava-se de mim e, muito delicadamente, mordia-me o tornozelo para me lembrar que comia coelho, carne crua, ou peixe cru, em pequenas porções devidamente servidas num pires limpo.

   Sobre este - o que lhe era devido, o seu direito agachava-se agressivamente, deitando olhares coruscantes ao gato, comendo apenas o bastante, não mais, sem gosto. Raramente acaba a comida que lhe é dada; quase sempre deixa um pouco - boas maneiras suburbanas, sobre as quais, assim observadas, num contexto diferente, com gata cinzenta, me ocorre pela primeira vez que devem ter uma base realmente agressiva. "Não vou acabar esta comida - não tenho fome, cozinhaste demais e é por tua culpa que se vai estragar." "Tenho tanta comida, não preciso de comer isto." "Sou uma criatura superior e delicada e estou acima de coisas primárias como a comida." Esta última é a declaração de gata cinzenta.

   O jovem macho comia o que ela deixava, não notando que era melhor do que o que se lhe tinha dado a ele; e lá iam os dois, correndo atrás um do outro pela casa e pelo jardim. Ou sentavam-se aos pés da minha cama, olhando pela janela, lambendo-se um ao outro de vez em quando, e ronronando.

   Este foi o apogeu de gata cinzenta, o pico da sua felicidade e encanto. Não estava sozinha; o seu companheiro não a ameaçava porque ela o dominava. E era tão bonita - realmente muito bonita.

   Onde ela ficava melhor era sentada na cama, olhando para fora. As suas duas patas dianteiras, de cor creme e ligeiramente riscadas, ficavam direitas lado a lado, com as extremidades prateadas. As orelhas, levemente franjadas de um branco que parecia prata, levantavam-se e mexiam-se, para trás, para diante, ouvindo e sentindo.

O focinho virava-se, um pouco, a cada nova sensação, alerta. A cauda mexia, noutra dimensão, como se a ponta estivesse captando mensagens que os seus outros órgãos não captavam. Ela sentava-se composta, luminosa, olhando, ouvindo, sentindo, cheirando, respirando, toda ela, pêlo, bigodes, orelhas - tudo, numa vibração delicada. Se um peixe é o movimento da água corporizado, tornado forma, então esta gata é um diagrama e um padrão de ar subtil.

   Oh gata; dizia eu, ou entoava: gata boniiiita! Gata deliciosa! Gata exótica! Gata acetinada! Gata com macieza de mocho, gata com patas de mariposa, gata jóia preciosa, gata milagrosa! Gata, gata, gata, gata.

   Primeiro, ela ignorava-me; depois virava a cabeça, sedosamente arrogante, e semicerrava os olhos a cada nome de louvor, um de cada vez. E depois, quando eu acabava, bocejava, deliberadamente, afectada, mostrando uma boca de um rosa de gelado e uma língua curva e rosada.

   Ou, deliberadamente, agachava-se e fascinava-me com os olhos. Eu olhava para eles, desenhados a lápis preto na sua forma amendoada, com outro traço em volta de cor creme. Sob cada olho, uma pincelada escura. Verdes, olhos verdes; mas na sombra, de um dourado escuro - uma gata de olhos escuros. Mas na luz, verdes, um esmeralda fresco e claro. Atrás dos globos transparentes dos olhos, pedaços de asa de borboleta com mamentos brilhantes. Asas como jóias - a essência de asa.

   Um insecto em forma de folha não se distingue duma folha - à primeira vista. Mas, olhando de perto: a cópia da folha é mais folha do que a folha - com vincos e veios, delicado como se fosse trabalho de um joalheiro, mas de um joalheiro um pouco irónico, de tal forma que o insecto está no limiar da troça. Vejam, diz o insecto-folha, a imitação: alguma vez uma folha foi tão refinada quanto eu? Vejam, mesmo naquilo em que copiei as imperfeições da folha, sou perfeito. Querem voltar a olhar para uma folha, depois de me terem visto, o artífice?

     Nos olhos de gata cinzenta jazia o resplendor verde da asa duma borboleta de jade, como se um artista tivesse dito: o que pode ser tão gracioso, tão delicado como um gato? O que pode ser mais naturalmente criatura do ar? Que ser aéreo tem afinidade com o gato? A borboleta, a borboleta evidentemente! E ali, no fundo dos olhos da gata jaz este pensamento, apenas sugerido, com um semi-riso; escondido atrás da franja das pestanas, atrás da fina pálpebra interior e das evasões da coqueteria felina.

   Gata cinzenta, perfeita, refinada, uma rainha; gata cinzenta com as suas insinuações de leopardo e cobra; sugestões de borboleta e mocho; uma miniatura de leão com garras de aço para matar, gata cinzenta cheia de segredos, afinidades, mistérios - gata cinzenta, com dezoito meses de idade, uma jovem matrona na flor da vida, teve uma terceira ninhada, esta vez de um gato cinzento e branco que, durante o reinado do rei, tivera demasiado medo para descer do muro. A gata teve quatro gatinhos, e o filho ficou sentado a seu lado durante o parto olhando, lambendo-a nas pausas do trabalho, e lambendo os gatinhos. Tentou meter-se no ninho com eles, mas. levou uma patada nas orelhas por esta recaída no infàntilismo.

  

   Era primavera outra vez, a porta das traseiras estava aberta, e gata cinzenta, o filho crescido e os quatro gatinhos gozavam o jardim. Mas gata cinzenta preferia a companhia do filho à dos gatinhos; e, na verdade, voltara a escandalizar S. porque, no momento em que terminara o parto, levantara-se, deixara os gatinhos, e caíra nos braços do filho crescido, ficando os dois enroscados, ronronando.

       O filho passou a desempenhar o papel de pai desta ninhada: educou os gatinhos tanto quanto a gata.

   Entretanto já tinha aparecido, ténue e disfarçada, como é sempre o futuro nas suas primeiras intimações, a sombra da queda de gata cinzenta como soberana e única rainha da casa.

   Por cima, no mundo humano, havia assustadoras tempestades e emoções e dramas; e, juntamente com o verão, chegou a visita duma bonita e triste rapariga loira, que tinha uma gata preta, pequena e elegante, na verdade pouco maior do que uma gatinha, e esta estrangeira ficou na cave, apenas temporariamente, claro, porque a sua casa não estava disponível.

   A pequena gata preta tinha uma coleira e uma trela vermelhas e, nesta época da sua vida, era apenas um acessório e uma pertença decorativa da rapariga bonita. A gata preta foi mantida bem afastada da rainha do andar de cima: não permitíamos que se encontrassem.

   Depois, de repente, várias coisas correram mal para gata cinzenta. O filho foi finalmente entregue à pessoa que prometera ficar com ele, e foi viver para Kensington. Os quatro gatinhos também foram entre gues a novos donos. E nós decidimos que já bastava, que ela não deveria ter mais filhos.

     Não sabia então o que implicava a esterilização duma gata. Conhecia gente que tinha "preparado" gatos, machos e fêmeas. Os serviços camarários, quando consultados, aconselharam vivamente a operação. Compreensivelmente: têm que destruir centenas de gatos indesejados todas as semanas - cada um dos quais, suponho, foi para alguém o "oh que lindo gatinho", até que cresceu. Mas nas vozes das senhoras dos serviços soava exactamente o mesmo tom que na voz da mulher da mercearia da esquina, que me dizia sempre, quando eu andava à procura de donos para os gatinhos: "Ainda não a preparou? Pobrezinha, obrigá-la a passar por tudo isso, acho que é cruel." "Mas é natural ter gatinhos," insistia eu, bastante desonestamente, uma vez que qualquer instinto de maternidade que gata cinzenta tivesse lhe fora imposto.

   As minhas relações com as senhoras da rua têm sido sobretudo a propósito de gatos - gatos perdidos ou aparecidos, ou gatinhos que as crianças querem ver, ou gatinhos que lhes vou dar. E não há uma que não tenha insistido que é cruel deixar uma gata ter filhos - com veemência, com histeria, ou pelo menos com o antagónico e rabugento argumento final que usava a minha mãe: "A ti não te custa nada!"

   O solteiráo que tinha um lugar de hortaliça na esquina - agora fechado por causa da concorrência do supermercado, e porque ele achou que o seu negócio era um negócio de família e ele não tinha família -, um rapaz velho e gordo com bochechas de um vermelho arroxeado, quase preto, como as da velhota da padiola das frutas e hortaliças, disse, referindo-se às mulheres: "Elas nunca param de ter crianças, mas não cuidam delas, pois não?" Não tinha filhos, mas opinava sobre os filhos dos outros.

   Tinha, no entanto, uma mãe muito idosa, com mais de oitenta anos, completamente inválida, que precisava de alguém que lhe fizesse tudo - o filho. Um irmão e três irmãs eram casados e tinham filhos, e era tarefa dele, haviam decidido os outros, tarefa do irmão solteiro, cuidar da mãe, uma vez que eles tinham suficiente trabalho com os filhos.

   Ele ficava na sua minúscula loja atrás de pilhas de nabos, nabiças, batatas, cebolas, cenouras, couves - só se encontrando à venda, como acontece em ruas deste género, outros vegetais congelados - e observava as crianças correndo pelas ruas, dizendo coisas antipáticas sobre as respectivas mães.

   Era a favor de que se "preparasse" a gata cinzenta. Demasiadas pessoas no mundo, demasiados animais, pouca comida, ninguém compra nada hoje em dia, onde é que vamos parar?

   Telefonei a três veterinários perguntando se era necessário retirar o útero e as trompas da gata - não podiam laquear as trompas e deixar-lhe o sexo pelo menos?

Todos, com ênfase, insistiram que o melhor era tirar tudo. "Fica tudo arrumado," disse um; exactamente as mesmas palavras que um ginecologista usou com uma amiga minha. "Vou limpar-lhe tudo, fica tudo arrumado," disse. Muito interessante.Em Portugal, dizem H. e S., que são portugueses, quando as senhoras burguesas se reunem nos seus chás, falam das suas operações e dos seus problemas femininos. A frase que usam para esses órgãos é exactamente a mesma que é usada para as miudezas das galinhas: "As minhas miudezas, as tuas miudezas, as nossas miudezas."Muito interessante, de facto.Pus a gata cinzenta no cesto e levei-a ao veterinário. Nunca tinha ficado fechada e queixou-se - a sua dignidade e auto-respeito ficaram feridos. Deixei-a, e fui buscá-la ao fim da tarde.

   Estava no cesto, cheirando a éter, mole, tonta, enjoada. Tinham-lhe rapado um bocado grande de pêlo, de um dos lados, deixando à vista a pele, de um branco acinzentado. Atravessando essa mancha de pele, um corte vermelho de cinco centímetros, muito bem cosido com vários pontos. Ela olhou para mim com uns olhos enormes, escuros e chocados. Tinha sido traída e sabia-o. Tinha sido vendida por uma amiga, por uma pessoa que a alimentava, a protegia, em cuja cama dormia. Tinham-lhe feito uma coisa horrorosa. Eu não conseguia olhá-la nos olhos. Levei-a para casa de táxi, e ela gemeu o caminho todo - um som desesperado, desamparado, assustado. Em casa, pu-la noutro cesto, não o cesto dos gatos com as recordações do veterinário e das dores. Tapei-a, pus o cesto diante de um aquecedor, e sentei-me ao pé dela. Não que ela estivesse muito doente, ou em perigo. Estava em profundo estado de choque. Não acredito que qualquer criatura possa "ultrapassar" uma experiência destas.

   Ali ficou, sem se mexer, durante dois dias. Depois, com dificuldade, foi ao caixote. Bebeu um pouco de leite e arrastou-se de volta para se deitar.

   Ao fim de uma semana o pêlo voltou a crescer sobre a feia cicatriz. Tive que a levar outra vez ao veterinário para que lhe tirasse os pontos. Foi pior do que da primeira vez, porque agora ela sabia que o cesto e os movimentos do carro significavam dor e terror.

   Gritou e lutou no cesto. O homem do táxi, atencioso como sempre são, segundo a minha experiência, parou o táxi por algum tempo para me deixar tentar sossegá-la, mas logo concordámos que era melhor continuar e resolver o assunto. Esperei enquanto os pontos eram tirados. Foi obrigada, lutando, a voltar para o cesto, e trouxe-a no mesmo táxi. A gata fez chichi, de medo, e gritou. O homem do táxi, um amigo de gatos, disse: Por que é que esses doutores não inventam um contraceptivo para gatos?

Não estava certo, disse ele, que nós lhes roubássemos as suas verdadeiras naturezas, para os acomodarmos às nossas conveniências.

   Quando entrei em casa e abri o cesto, gata cinzenta, agora capaz de se mexer, fugiu para o muro do jardim, debaixo da árvore, seus olhos de novo imensos e chocados. Voltou à noite para comer. E dormiu, não na minha cama, mas no sofá. Não deixou que lhe fizéssemos festas durante dias.

   Um mês depois da operação, a sua forma mudou. Perdeu, não lentamente, mas depressa, a esbelteza, a graça; engrossou, tornou-se espessa. Os seus olhos afrouxaram, enrugaram; a cabeça alargou. De repente, era, embora bonita, uma gata rechonchuda.

   Quanto à mudança na sua natureza, bom, essa deve ter sido, foi provavelmente, em parte devida aos golpes que a vida lhe desferiu simultaneamente - a perda do seu amigo, o jovem macho, a perda dos gatinhos, e a chegada de gata preta.

   Mas ela mudou. A sua confiança fora abalada. A beleza tirânica, que comandava a casa toda, tinha desaparecido. O encanto peremptório, os meneios dos olhos e da cabeça que nos faziam suster a respiração - tudo desaparecera. Voltou, claro, às velhas seduções, rebolando de costas, para um lado e para outro, para ser admirada, arrastando-se debaixo do sofá - mas, por largo tempo, foram feitas tentativamente. Não tinha a certeza de agradar. Não teve a certeza de nada durante muito tempo. E por isso, insistia. Uma nota estridente entrou no seu carácter. Era irritável no tocante aos seus direitos. Era despeitada. Tinha que ser satisfeita. Tinha mau feitio com os seus velhos admiradores, os gatos no muro. Em resumo, tornara-se uma gata solteirona. É uma coisa horrorosa fazer isto aos bichos. Mas acho que temos de fazê-lo.

   A gatinha preta, por várias e tristes razões, ficou sem casa e juntou-se a nós. Teria sido melhor para a boa harmonia se fosse um gato macho.

Sendo como era, as duas gatas encontraram-se como inimigas, ficaram agachadas observando-se uma à outra durante horas.

   Gata cinzenta, com metade do lado do corpo, onde o pêlo fora rapado, ainda eriçado, recusando-se a dormir na minha cama, recusando-se a comer até ser convencida, infeliz e insegura de si, estava determinada quanto a uma coisa: a gata preta não ia tomar-lhe o lugar.

   Gata preta, por seu lado, sabia que ia viver ali, e que não ia ser posta fora. Não lutava. Gata cinzenta era maior e mais forte. Gata preta instalou-se no canto duma cadeira, as costas protegidas pela parede, e nunca tirou os olhos de gata cinzenta.

   Quando a sua inimiga foi dormir, gata preta comeu e bebeu. Depois observou o jardim, com o qual já travara conhecimento presa com uma trela e uma coleira chique, inspeccionando-o cuidadosamente. Depois examinou a casa, andar por andar. A minha cama, decidiu, era o seu lugar. Vendo isto, gata cinzenta saltou, bufando, enxotou a gata preta e retomou o seu lugar na minha cama. Gata preta tomou então lugar no sofá.

   O carácter de gata preta é completamente diferente do de gata cinzenta. É um bicho firme, obstinado, modesto. Não sabia o que era coqueteria até ver a de gata cinzenta: não posava, não namoriscava, não rebolava, não dava corridinhas nem se exibia.

     Sabia que não era o gato principal da casa; gata cinzenta era a gata patroa. Mas, como segunda gata, tinha direitos, e insistia neles. As duas gatas nunca lutaram, fisicamente. Travavam grandes duelos com os olhos. Sentavam-se uma em cada lado da cozinha; olhos verdes, olhos amarelos, fixos. Se gata preta fazia alguma coisa para além do limite que gata cinzenta julgava tolerável, esta rosnava baixo, e fazia subtis movimentos ameaçadores com os músculos. Gata preta desistia. Gata cinzenta dormia na minha cama; gata preta não podia. Gata cinzenta podia sentar-se na mesa; mas gata preta não. Quando havia visitas, gata cinzenta era a primeira a ir à porta. E gata cinzenta não comia, a não ser em separado, num pires lavado, comida acabada de preparar, e num lugar fresco da cozinha. Para gata preta, o velho canto da comida servia.

   Gata preta submeteu-se a tudo isto, e com os seres humanos da casa era modestamente afectuosa, roçava-se nas pernas, ronronava, conversava - também ela é meia siamesa; mas sempre com um olho em gata cinzenta.

   Este comportamento não condizia com a sua aparência. O aspecto e o comportamento de gata cinzenta sempre se conjugaram: a sua aparência ditou-lhe o carácter.

   Mas gata preta é ambígua. Por exemplo, o seu tamanho. É uma gata pequena e esbelta. Quando tem gatinhos, parece incrível que tenha espaço para eles. Mas quando se lhe pega ao colo, é sólida, pesada; um bichinho forte e compacto. Não parece nada modesta, doméstica; nem maternal, como mais tarde demonstrou ser.

   É elegante. Tem um perfil curvo e nobre, como o de um gato num túmulo. Quando se senta direita, patas lado a lado, olhando, ou quando se agacha, olhos semicerrados, é plácida, remota, retirada para qualquer lugar distante dentro de si própria. Muitas vezes é sombria, inspira temor. E é preta, preta, preta. Bigodes pretos brilhantes, pestanas pretas, nem um pêlo branco. Se o desenhador de gata cinzenta foi um mestre da subtileza, do detalhe amoroso, então o de gata preta declarou: criarei um gato preto, a quinta-essência do gato preto, um gato do Submundo.

   Demorou duas semanas para que estas antagonistas estabelecessem as regras de precedência. Nunca se tocavam, nem brincavam, nem se lambiam uma à outra: criaram um equilíbrio dentro do qual estavam sempre conscientes uma da outra, em hostilidade vigilante. E isto era triste, relembrando como gata cinzenta e o seu filho crescido tinham brincado e limpo um ao outro e enroscado um no outro. Talvez, pensámos, estas duas possam aprender o afecto com o tempo.

       Mas então gata preta adoeceu, e a pobre gata cinzenta perdeu a sua árdua luta pela primeira posição.

   Gata preta estava constipada, pensei. Tinha os intestinos desarranjados: ia frequentemente ao jardim. Vomitou várias vezes.

   Se eu a tivesse levado então ao veterinário, não teria ficado tão doente. Tinha esgana; mas eu não sabia que era tão grave, e que poucos gatos escapam a essa doença, pelo menos enquanto são ainda muito jovens. Na segunda noite da sua doença, acordei e vi gata preta agachada num canto - tossindo, pensei primeiro. Mas ela tentava vomitar - sem nada para vomitar. As maxilas e a boca estavam cobertas de uma espuma branca, peganhenta, que não se conseguia limpar facilmente. Lavei-a. A gata voltou para o canto, agachada, olhando em frente. Era agoirenta, aquela maneira de se sentar: imóvel, paciente, sem dormir. Estava à espera.

   De manhã levei-a ao hospital de gatos mais próximo, mordida de remorsos por não a ter levado mais cedo. Estava muito doente, disseram-me; e pela forma como o disseram, soube que não havia esperanças de que vivesse. Estava muito desidratada e com uma temperatura galopante. Deram-lhe uma injecção para a febre, e disseram que se lhe devia dar líquidos - se possível. Ela não queria beber, disse eu. Não, normalmente não querem, disseram eles, depois de um certo estádio da doença, que

é caracterizado por outro sintoma: os gatos decidem morrer. Refugiam-se num lugar fresco, algures, por causa do calor no seu sangue, agacham-se e esperam a morte.

   Quando levei gata preta de volta para casa, caminhou debilmente até ao jardim. Era no princípio do outono e estava frio. Agachou-se encostada à frescura do muro

do jardim, a terra fria debaixo dela, na paciente posição de espera da noite anterior.

   Levei-a para dentro, pu-la num cobertor, afastada do radiador. Voltou para o jardim: mesma posição, a mesma mortalmente paciente posição.

   Voltei a levá-la para dentro e fechei-a. Arrastou-se até à porta, instalou-se aí, nariz virado para a porta, esperando morrer.

   Tentei-a com água, água e açúcar, sumos de carne. Não é que os recusasse: estava para além disso; comida era uma coisa que já deixara para trás. E não queria voltar para trás; não voltaria.

     No dia seguinte as pessoas no hospital disseram que a temperatura dela estava ainda muito alta. Não tinha baixado. E que ela tinha que beber.

   Trouxe-a para casa e pensei no assunto. Obviamente, manter gata preta viva ia ser um trabalho a tempo inteiro. E eu estava muito ocupada. E, como me faziam notar as pessoas que viviam comigo, era apenas uma gata.

   Mas ela não era só uma gata. Por várias razões, todas humanas e irrelevantes para a gata, não podia permitir que morresse.

   Misturei uma repelente mas útil solução de glucose, sangue e água, e lutei com gata preta.

   Não queria abrir a boca para tomar a bebida. Uma criatura pequena e febril, uma sombra, que perdera toda a sua saudável solidez, sentada, ou melhor, caída no meu colo, cerrando os dentes contra a colher. Era a força da fraqueza: não, não, não.

   Forcei-a a abrir os dentes, usando os caninos como alavancas. O líquido chegou-lhe à garganta, mas ela não engolia. Mantive-lhe os maxilares levantados, e o líquido correu pelos cantos da boca. Mas algum deve ter ido para baixo, porque depois da terceira, quarta, quinta colherada, ela fez um fraco movimento de engolir.

   E assim foi. Todas as meias horas. Tirava o pobre bicho do seu canto e enfiava-lhe o líquido pela boca abaixo. Tinha medo de lhe magoar o maxilar, fazendo tanta força nos dentes salientes. Provavelmente doía-lhe muito a mandíbula.

   Nessa noite deitei-a a meu lado na cama, e acordei-a de hora a hora. Embora ela não estivesse realmente a dormir. Estava agachada, o calor da febre enviando ondas à sua volta, os olhos meio abertos, sofrendo o fim da sua vida.

   No dia seguinte a febre ainda não tinha baixado. Mas no outro dia baixou; e agora na clínica davam-lhe injecções de glucose. Cada injecção deixava-lhe uma saliência mole debaixo da pele rígida. Mas ela não se importava; não se importava com nada.

   Agora que a febre baixara, tinha muito frio. Embrulhei-a numa toalha velha e pu-la em frente do radiador. Todas as meias horas lutávamos as duas. Ou melhor, a intenção de morrer de gata preta lutava com a minha intenção de a fazer viver.

   A noite, ficava encolhida a meu lado na cama, tremendo com o débil e triste tremor interior da extrema fraqueza, a toalha por cima dela. Onde a punha, ela ficava; não tinha forças para se mexer. Mas não queria abrir a boca para tomar líquidos. Não queria. Todas as forças que lhe restavam eram para dizer não.

   Dez dias passaram. Levei a gata ao hospital todos os dias. Era um sítio onde são treinados os jovens veterinários, um hospital escola. As pessoas da vizinhança levam aí gatos e cães todas as manhãs, entre as nove e o meio dia. Sentávamo-nos em filas de bancos numa sala de espera grande e nua, com os animais doentes remexendo-se, gemendo, ladrando. Toda a espécie de amizades se faziam à conta das doenças destes animais.

     Toda a espécie de pequenos incidentes tristes me ficaram na mente. Por exemplo, havia uma mulher, de meia idade, com o cabelo pintado de louro claro por cima duma cara macilenta. Tinha um enorme cão lindíssimo, luzidio de tanta comida e atenção. O cão não podia ter nada de grave, ladrava, era vivaço e cheio de orgulho de si. Mas a mulher usava um vestido leve, sempre o mesmo, sem casaco. Estava um pouco de frio, não muito, todos nós trazíamos roupa leve ou camisolas. Mas ela tremia descontroladamente; a carne dos seus braços e pernas não existia. Era evidente que não tinha suficiente para comer, e que todo o seu dinheiro e tempo iam para o cão. Alimentar um cão daquele tamanho custa muito caro. Um gato custa, calculo, dez xelins por semana, mesmo não sendo um bicho mimado, como são os nossos. Aquela mulher vivia através do cão. Acho que toda a gente sentia isso. As pessoas desta área são pobres na maioria: a maneira como a olhavam, tiritando com o seu regalado bicho, e a convidavam a passar à frente da fila para entrar no edifício e sair do frio enquanto esperávamos que abrissem as portas, mostrava que compreendiam a sua situação e tinham pena dela.

   E um incidente no outro extremo - ou assim parecia. Um gordo buldogue - mas muito gordo, roscas de carne por todo o lado - foi trazido por um rapaz gordo de uns doze anos. Os veterinários examinaram o cão, e explicaram ao rapaz que um cão deve comer só o suficiente, e uma vez ao dia: o cão não tinha nada, só estava sobrealimentado. E não deve comer bocados de bolo e de pão e doces e... O rapaz repetiu, vezes sem conta, que chegando a casa ia dizer à mãe, ia dizer à mãe; mas o que ela queria saber era por que é que o cão arfava e arquejava, afinal só tinha dois anos, e não corria nem brincava nem ladrava como faziam os outros cães. Bom, diziam os médicos pacientemente, étão fácil sobrealimentar um animal como subalimentá-lo. Se se sobrealimenta um cão, está a ver...

     Eram extraordinariamente pacientes; e muito simpáticos. E cheios de tacto. Os tratamentos que têm de ser feitos aos animais e que poderiam impressionar os donos são feitos atrás de portas fechadas. A pobre gata preta era levada para lhe darem as injecções e demorava vinte minutos, meia hora, antes de ma trazerem de volta com o líquido subcutâneo fazendo um bojo no seu pêlo eriçado e sujo.

   Não se lambera, não se limpara durante dias. Não conseguia mexer-se. Não melhorava. Se toda a minha atenção, se todas as técnicas da clínica não adiantavam nada, talvez, afinal de contas, se devesse deixá-la morrer, uma vez que era o que ela queria. Lá ficava, dia após dia, frente ao radiador. O pêlo já parecia o de um gato morto, com poeira e cotão; os olhos estavam pegajosos; o pêlo à volta da boca estava duro com a glucose que eu tentava despejar-lhe na boca.

   Pensei como é estar doente na cama, a sensação de desgosto irritado, de raiva a si próprio que se instala, até se confundir com a própria doença. O cabelo precisa de ser lavado; pode-se cheirar o azedo da doença na pele, no próprio hálito. Uma pessoa sente-se fechada numa concha de doença, de miasmas de doença. Chega então uma enfermeira, lava-nos a cara, escova-nos o cabelo e sacode o cheiro azedo dos lençóis.

   Não, claro que os gatos não são humanos; os humanos não são gatos; de qualquer forma, não podia acreditar que um bichinho tão meticuloso como gata preta não sofresse sabendo-se tão suja e malcheirosa.

   Mas não se pode lavar um gato. Primeiro, peguei numa toalha, molhada em água quente e torcida, e esfreguei a gata toda, suavemente, para tirar a sujidade e o cotão e o peganhento. Demorou muito tempo. Ficou passiva, sofrendo provavelmente, porque tinha a pele toda picada de tantas injecções. Então, quando ela estava quentinha, pêlo e orelhas e olhos, sequei-a com uma toalha aquecida.

   Depois - e acho que foi isto o que resultou aqueci as mãos em água quente e friccionei-a, muito devagar, toda. Tentei passar, com aquela fricção, alguma vida para o corpo frio da gata. Fiz isto durante algum tempo, cerca de meia hora.

   Quando acabei, cobri-a com uma toalha limpa e aquecida. E então, muito rígida e lenta, ela levantou-se e atravessou a cozinha. Depressa se agachou outra vez, onde o impulso para mexer-se se desvaneceu. Mas mexera-se, por iniciativa própria.

   No dia seguinte perguntei aos veterinários se friccionar a gata poderia ter dado algum resultado. Disseram que provavelmente não, que pensavam que eram as injecções. Seja como for, não há dúvida de que o momento a partir do qual houve a possibilidade de ela viver surgiu quando foi limpa e friccionada. Durante mais dez dias foi injectada com glucose na clínica; foi obrigada por mim a tomar a nojenta mistura de sumo de carne, água e glucose; e esfregada e escovada duas vezes por dia.

   E todo este tempo a pobre gata cinzenta foi posta de lado. Primeiro o que tem que ser primeiro. Gata preta precisava de demasiada atenção para que gata cinzenta pudesse receber muita. Mas gata cinzenta não ia aceitar restos, nada de segundos lugares para ela. Pura e simplesmente ausentou-se, física e emocionalmente, e vigiou. Algumas vezes aproximava-se cautelosamente de gata preta, para todos os efeitos já morta, cheirava-a, e afastava-se. Outras vezes levantava a cabeça quando cheirava gata preta. Uma vez ou duas, durante o tempo em que gata preta se esgueirava para o frio do jardim para morrer, gata cinzenta foi também, e sentou-se a pouca distância, olhando-a. Mas não parecia hostil; não tentou fazer mal a gata preta.

   Durante todo esse tempo, gata cinzenta nunca brincou, nem fez habilidades, nem teve grandes exigências com a comida. Não era acariciada, e dormia no canto do quarto, no chão, não enrolada numa bola luxuriante, mas agachada para vigiar a cama onde gata preta estava sendo tratada.

   Depois gata preta melhorou, e começou o período pior - isto é, do ponto de vista humano. E talvez também para gata preta, que tinha sido forçada no regresso à vida contra sua vontade. Era como um gatinho que tem de aprender tudo de novo, ou como uma pessoa muito velha.

   Não controlava os intestinos: esquecera, parecia, a função do caixote. Comia penosamente, desajeitadamente, e fazia as necessidades enquanto comia. E onde quer que estivesse, tinha colapsos súbitos, sentava-se agachada e olhando em frente. Era impressionante: o pequeno bicho doente e distante, sempre sentado numa posição rígida, nunca se rebolava nem se estirava. E olhando fixamente - parecia um gato morto, com os seus olhos fixos e distantes. Por algum tempo pensei que ela tinha ficado um pouco doida.

   Mas melhorou. Deixou de sujar o chão. Comia. E um dia, em vez de se instalar na sua habitual posição agachada, de espera, lembrou-se de que podia deitar-se enrolada.

Não foi fácil nem rápido. Fez duas ou três tentativas, como se os seus músculos não se lembrassem como se fazia aquilo. Depois enrolou-se, com o nariz na cauda, e adormeceu. Era outra vez um gato.

   Mas ainda não se lambia. Eu tentava lembrar-lho pegando-lhe numa pata dianteira e esfregando-lha no pescoço, mas ela deixava cair a pata. Era demasiado cedo.

       Tive que me ausentar para uma viagem de seis semanas, e as gatas foram deixadas com uma amiga.

   Quando voltei à minha cozinha, gata cinzenta estava sentada na mesa, de novo patroa. E no chão estava gata preta, brilhante, luzidia, limpa e ronronando.

   O equilíbrio de poder fora restaurado. E gata preta esquecera que estivera doente. Mas não completamente. Os seus músculos nunca recuperaram inteiramente. Tem uma certa rigidez nas ancas: não consegue saltar com presteza, ainda que salte bastante bem. Nas costas, por cima da cauda, tem uma pequena pelada. E algures no seu cérebro está guardada a memória desse tempo. Mais de um ano depois levei-a à clínica porque tinha uma pequena infecção. Não se importou de ir no cesto. Não se incomodou com a sala de espera. Mas quando foi levada para a sala de diagnóstico, começou a tremer e a salivar.

Levaram-na para a sala de dentro, onde tinha levado tantas injecções, para lhe limparem as orelhas, e quando a trouxeram estava hirta de medo, a boca pingando, e depois ficou a tremer durante horas. Mas é uma gata normal, com instintos normais.

 

   Talvez por ter estado tão perto da morte, os apetites de gata preta são enormes: na gata preta testemunhamos a reposição de um equilíbrio.

   Come três ou quatro vezes mais do que gata cinzenta, e quando está com o cio, é impressionante. Gata cinzenta era luxuriosamente amorosa. Gata preta fica obsessa.

Durante quatro ou cinco dias, os humanos olham, pasmados, esta obcecada força da natureza. Gata preta anuncia o início da sua necessidade de um macho com um ronronar frenético, rebolando-se e pedindo festas. Faz amor com os nossos pés, com o tapete, com uma mão. Gata preta uiva pelo jardim. Gata preta queixa-se, a plenos pulmões, que não é suficiente, não é suficiente - e depois, o sexo já não sendo o seu cuidado, passa a ser mãe, a tempo inteiro e a cem por cento, sem qualquer impulso em relação a outra coisa.

   O pai da primeira ninhada de gata preta foi um gato novo, um jovem malhado. Naquele verão havia uma nova população de gatos. Os vivisseccionistas, ou os fornecedores de peles de gato, tinham feito outra caçada no nosso quarteirão, e numa noite tinham desaparecido seis gatos.

     Estavam disponíveis: o malhado bonito; um preto e branco de pêlo comprido; um gato branco com malhas cinzentas. Ela queria o malhado, e conseguiu o malhado. Com suplementos. Pelo fim do segundo dia do cio, observei a seguinte cena.

   Gata preta estivera debaixo do malhado durante horas. Veio a correr até à entrada, esperando ser perseguida. Aí, rebolou-se, esperando. O malhado veio atrás dela, olhou-a, lambeu-a e depois, como ela se rebolava insinuantemente, segurou-a com uma pata, como quem diz, está um bocadinho quieta. Indulgente, afectuoso, agachou-se, segurando gata preta. Debaixo da pata dele ela contorcia-se e pedia. Está quieta, dizia ele. Depois ela conseguiu soltar-se, e correu pelo jardim, olhando para trás para ver se ele a seguia. Ele seguiu-a, com o seu vagar. No jardim o gato preto e branco estava à espera. A nossa gata rebolou-se e instigou o malhado, que se sentou, aparentemente indiferente, lambendo o pêlo: mas observava-a. A gata começou a rebolar em frente do gato preto e branco. O malhado aproximou-se a agachou-se junto do par, olhando. Deixou-se estar ali sentado, observando, enquanto gata preta acasalava com o gato preto e branco. Foi um curto acasalamento. Quando gata preta terminou com este seu novo par, puramente com o propósito de coqueteria, o malhado castigou-a pela infidelidade, dando-lhe patadas nas orelhas. Pôs-se nela. Em momento nenhum ele se importou com, ou castigou, o gato preto e branco que, durante esses três, quatro dias, aproveitou a sua vez com gata preta, cujas orelhas apanharam patadas, mas sem muita convicção.

   As gatas têm um duplo útero, como as coelhas. Gata preta teve seis gatinhos. Havia um gatinho cinzento, dois pretos, três pretos e brancos, por isso parecia que o par de segunda escolha tivera mais efeito nos gatinhos do que o favorito malhado.

   Como gata cinzenta, gata preta está muito longe da lei natural que diz que os gatinhos deveriam nascer num lugar escondido e escuro. Gosta de ter os gatinhos numa sala em que haja sempre gente. Nessa altura, o quarto no último andar da casa era usado por uma rapariga que estava a estudar para os exames, e por isso quase não saía. Gata preta escolheu a poltrona de cabedal da rapariga, e deu à luz enquanto gata cinzenta observava. Uma ou duas vezes gata cinzenta trepou para o braço da poltrona, e esticou uma pata para tocar num dos gatinhos. Mas nesta área, a materna, gata preta é segura de si própria e manda em gata cinzenta, que foi obrigada a descer.

   Os gatinhos nasceram devidamente, despachadamente. Como de costume passámos a mesma aflição, conforme apareceu um, dois, três, quatro, cinco, seis gatinhos, desejando que cada um fosse o último, esperando que, só desta vez, ela tivesse dois, três gatinhos. Como de costume decidimos que três bastavam, que mataríamos os restantes, e depois, quando já estavam limpos, em pé, patas da frente no peito da mamã, mamando vigorosamente enquanto ela ronronava e se sentia orgulhosa de si própria, decidimos que não podíamos matá-los.

   Ao contrário de gata cinzenta, gata preta detestava deixar os filhos; ficava mais contente quando havia quatro ou cinco pessoas à volta da poltrona, admirando-a.

Quando gata cinzenta boceja, aceitando homenagens, é insolente, lânguida. Gata preta, no meio dos seus gatinhos, quando se lhe diz que é esperta e bonita, boceja satisfeita, sem ser auto-consciente, a boca e a língua muito rosadas em contraste com a sua pelagem preta.

   Gata preta, enquanto mãe, é destemida. Quando tem gatinhos, e outros gatos invadem a casa, gata preta atira-se escada abaixo e persegue-os guinchando: e eles saltam para fora e para cima dos muros.

   Mas gata cinzenta, se um gato que não é benvindo aparece, rosna e avisa e ameaça até aparecer um ser humano. Depois, apoiada, persegue o intruso - mas não antes. Se ninguém aparece, ela espera pela gata preta. Gata preta ataca; depois, ela, gata cinzenta. Gata preta trota de regresso a casa, determinada, atarefada, missão cumprida; gata cinzenta, cobarde, saracoteia-se de regresso, pára para se lamber, depois grita desafios atrás de pernas humanas, ou da porta.

   Gata cinzenta, quando gata preta está ocupada com os gatinhos, fica quase, não completamente, restaurada nos seus poderes e modo de ser. Vagueia pela cama à noite, escolhendo o lugar preferido, já não debaixo do lençol, ou no meu ombro, mas no ângulo atrás dos meus joelhos, ou contra a curva dos pés. Gata cinzenta lambe-me a cara, delicadamente, olha pela janela, brevemente, reconhecendo a árvore, a lua, as estrelas, os ventos, ou os amores dos outros gatos, dos quais ela está agora definitivamente afastada, depois instala-se. De manhã, quando quer que eu acorde, agacha-se no meu peito, e passa a pata na minha cara. Ou, se estou virada de lado, agacha-se olhando a minha cara. Suaves, suaves toques da sua pata. Eu abro os olhos, digo-lhe que não quero acordar. Fecho os olhos. Gata acaricia-me as pálpebras. Gata lambe-me o nariz. Gata começa a ronronar, a poucos centímetros da minha cara. Gata, então, como continuo deitada fingindo dormir, morde-me delicadamente o nariz. Eu rio e sento-me. Vendo isto, salta da cama e dispara para o andar de baixo - para que eu lhe abra a porta das traseiras se é inverno, para que lhe dê de comer se é verão.

   Gata preta desce do último andar, quando pensa que são horas de levantar, e senta-se no chão olhando-me. Algumas vezes torno-me consciente do olhar fixo e insistente dos seus olhos amarelos. Ela salta para a cama. Gata cinzenta rosna baixinho. Mas gata preta, apoiada pela sua ninhada de gatinhos, sabe os seus direitos e não tem medo. Atravessa os pés da cama e vem pelo outro lado, junto à parede, ignorando gata cinzenta. Senta-se, esperando. Gata cinzenta e gata preta trocam longos olhares verdes e amarelos. Então, se não me levanto, gata preta salta com precisão, mesmo por cima de mim, para o chão. Aí olha para ver se o seu gesto me acordou. Se não, repete. E outra vez. Gata cinzenta, então, desdenhosa da falta de subtileza de gata preta, mostra-lhe como se deve fazer as coisas: agacha-se para me dar pancadinhas na cara. Gata preta, contudo, não consegue aprender a finura de gata cinzenta: impacienta-se com ela. Não sabe como acariciar uma cara até ao riso, ou como mordiscar, gentilmente, ironicamente. Sabe que se saltar por cima de mim as vezes sufiCientes, eu irei acordar e dar-lhe de comer, e ela pode então voltar para junto dos seus gatinhos.

   Observei-a tentando imitar gata cinzenta. Quando gata cinzenta se estira no chão para que a admiremos e nós dizemos Gata bonita, boooniiita, gata preta deixa-se cair ao lado dela, na mesma posição. Gata cinzenta boceja; gata preta boceja. Gata cinzenta decide então arrastar-se debaixo do sofá, de costas; e gata preta fica vencida, não consegue fazer esta habilidade. Por isso vai-se embora, para junto dos gatinhos, onde, sabe-o muito bem, nós iremos vê-la e admirá-la também.

   Gata cinzenta começou a tornar-se caçadora. Não era para comer. A sua caça nunca se relaciona com comida - quer dizer, com comida considerada enquanto substância para alimentar, não enquanto comentário, ou declaração, sobre as suas emoções.

   Um fim de semana esqueci-me de comprar coelho fresco, que era então a única coisa que ela comia. Havia comida de gato enlatada. Gata cinzenta, quando tem fome, senta-se não no canto da comida, o inferior lugar de gata preta, mas no meio da cozinha, no lugar dela. Nunca mia pedindo comida. Senta-se junto de um imaginário pires, olhando para mim. Se eu não lhe prestar atenção, aproxima-se, roça-se nas minhas pernas. Se ainda não lhe presto atenção, ela salta, dá pancadinhas na minha saia. Depois, mordisca-me suavemente no tornozelo. Como comentário final, aproxima-se do pires de gata preta, vira-lhe as costas, e coça-se atirando poeira imaginária para dentro do pires, assim dizendo que, no que lhe respeita, é porcaria.

   Mas não havia coelho no frigorífico. Abri-o, enquanto ela se sentou perto, esperando, depois voltei a fechá-lo, para lhe dizer que não havia lá nada que lhe interessasse, e que se estivesse realmente com fome, teria que comer comida enlatada. Não percebeu, e sentou-se junto ao inexistente pires. Abri outra vez o frigorífico, fechei-o, mostrei a comida enlatada, e voltei ao trabalho.

   Gata cinzenta saiu então da cozinha, e passados poucos minutos voltou com duas salsichas cozinhadas, que pôs a meus pés.

   Gata marota! Gata ladra! Gata imoral! Gata roubadora de salsichas! A cada epíteto ela fechava os olhos em aquiescência; depois virou-se, sacudiu do pêlo a imaginária poeira para cima das salsichas, e saiu da cozinha, furiosa.

   Subi para o quarto, de onde posso ver os quintais e jardins das traseiras e os muros. Gata cinzenta tinha saído de casa, e estava a atravessar o jardim direita ao muro de trás numa corrida de caçador, a passo comprido. Saltou para o muro, correu ao longo dele, desapareceu. Não pude ver para onde tinha ido.

   Voltei à cozinha. Ela apareceu com outra salsicha cozinhada, que depositou junto das duas primeiras. Depois, tendo coçado a poeira para cima da salsicha, saiu da cozinha e foi dormir para a minha cama.

   No dia seguinte, no chão da cozinha, uma fiada de salsichas cruas, e ao lado delas, gata cinzenta, sentada, esperando que eu decifrasse as implicações desta declaração.

   Pensei que talvez os pobres actores do pequeno teatro estivessem a ficar sem almoço. Mas não. Vi, da janela do meu quarto, gata cinzenta trotar ao longo do muro, e depois saltar e desaparecer pela parede duma casa que fazia ângulo recto com o muro. Já tinha notado que uns dois tijolos tinham sido retirados da parede - presumivelmente como ventilação para uma cozinha. Não era fácil para um gato caber naquele buraco tão pequeno, especialmente dando um salto de um metro a partir dum muro estreito, mas era isso o que ela fazia, e ainda faz, quando quer demonstrar que não está a ser adequadamente alimentada.

   A pobre mulher na cozinha, tendo cozinhado salsichas para o pequeno almoço do marido, vira-se e descobre que desapareceram. Fantasmas! Ou então bate num cão inocente ou numa criança. Ou põe num prato meio quilo de salsichas cruas, prontas para a frigideira. Vira as costas por um momento - nada de salsichas. Gata cinzenta corre no nosso jardim, arrastando atrás de si uma fiada de salsichas, para as vir depositar no chão da nossa cozinha. Talvez este gesto tenha origem nos antepassados caçadores que eram treinados para apanhar e trazer comida para os seres humanos; e a memória disso permanece no cérebro da gata, para ser convertida nesta linguagem quase-humana.  

   No sicômoro do fundo do jardim, um tordo faz o ninho todos os anos. Todos os anos, os passarinhos saem dos ovos e fazem os seus primeiros voos para as bocas dos gatos, que os esperam. Mãe pássaro, pai pássaro, vêm atrás dos filhotes, são apanhados.

     Os pios e guinchos assustados dum pássaro apanhado perturbam a casa. Gata cinzenta trouxe o pássaro para dentro de casa, mas apenas para ser admirada pela sua habilidade, porque brinca com ele, tortura-o - e com quanta graça. Gata preta agacha-se nas escadas e observa. Nunca matou um pássaro. Mas quando, três, quatro, cinco horas depois de gata cinzenta ter apanhado o pássaro, este está morto, ou quase, gata preta pega nele e atira-o para aqui e para ali, em rivalidade com os jogos de gata cinzenta. Todos os verões salvo pássaros de gata cinzenta, atiro-os para bem longe dela, para o ar, ou para outro jardim - quer dizer, se não estão seriamente feridos, e têm possibilidades de recuperarem. Quando isto acontece, gata cinzenta fica furiosa, põe as orelhas para trás, o seu olhar faísca, não compreende, não, de todo. Quando traz um pássaro, está orgulhosa. É, de facto, um presente; facto que não compreendi até ao verão em Devon. Mas eu ralho com ela e tiro-lhe os pássaros, e não fico contente.

   Gata horrível! Gata torturadora de pássaros! Gata assassina! Gata sádica! Descendente degenerada de caçadores honestos!

   Ela rebrilha de raiva, em resposta à minha voz zangada; e foge de casa com o pássaro, que guincha. Fecho a porta das traseiras, fecho as janelas, enquanto prossegue a tortura. Mais tarde, quando tudo se acalma, gata cinzenta regressa. Não se roça nas minhas pernas, nem me saúda. Repele-me, segue para o andar de cima, e dorme até que o amuo lhe passe. O corpo do pássaro, morto de exaustão mais do que pelos dentes e garras da gata, vai ficando rígido no jardim.    Quando mandei podar a árvore grande, a pedido dos vizinhos, alguns dos quais não gostam dela porque lhes faz sombra nos jardins, outros porque "suja muito, por todo o lado, com as folhas", o homem que veio fazer a poda queixou-se. Não directamente de mim, a freguesa que, apesar de tudo, lhe ia pagar; mas queixou-se da vida moderna que, diz ele, é anti-árvore.

   "Todos os dias," disse ele, amargo, amargo, "telefonam. Eu vou. Há uma árvore linda. Levou cem anos a crescer - o que somos nós, comparados com uma árvore? Eles dizem, corte a árvore, está a estragar as minhas rosas. Rosas! O que são rosas, comparadas com uma árvore? Tenho que cortar uma árvore por causa dumas rosas. Ainda ontem, tive que cortar um freixo, para ficar com oitenta centímetros de altura. Para fazer uma mesa, disse ela, uma mesa, e a árvore levou cem anos a crescer. Ela queria sentar-se à mesa e beber chá e olhar para as suas rosas. Não há árvores hoje, as árvores desapareceram. E se se lhes faz um bom trabalho, não gostam, não, querem a árvore cortada com uma forma diferente da sua forma verdadeira. E os pássaros? Sabia que tinha um ninho naquele ramo?"

   "Gatos," disse eu. "Gostaria que os pássaros fizessem ninho noutro lado."

   "Ah, sim," disse ele, "isso é o que me dizem - os gatos. Todos querem as árvores cortadas e gatos por todo o lado. E os pássaros? Digo-lhe, vou deixar este trabalho, já ninguém quer um podador competente hoje em dia - olhe para esses gatos, olhe-me para eles!"

     Para o homem das árvores, árvores e pássaros, uma unidade, uma unidade sagrada à qual se deveria dar preferência, imagino, sobre os seres humanos, tivesse ele a possibilidade de decidir. Quanto aos gatos, trataria de se livrar de todos.

   Podou a árvore, não a cortou; e na primavera seguinte um tordo fez ali ninho, e os passarinhos desceram dela esvoaçando, como de costume. Um, contudo, voou direito à janela das traseiras do andar de cima, a do quarto de hóspedes. E passou um dia ali, tão mansamente que pousou numa cadeira e me olhou a uma distância de trinta centímetros, quase olhos nos olhos. Não tinha medo instintivo dos seres humanos - ainda não. Mantive a porta fechada enquanto gata cinzenta rondava do lado de fora. À tardinha, o passarinho voou directamente da janela para a árvore, sem se aproximar do chão. Por isso talvez tenha sobrevivido.

   O que me lembra a história que me foi contada por uma senhora que vive no topo dum edifício de apartamentos de sete andares, em Paris, perto da Place Contrescarpe. Ela gosta de viajar com ligeireza, sem estorvos, com liberdade para ir a qualquer lugar em qualquer momento. O marido é marinheiro. Bom, uma tarde, um pássaro, vindo dos telhados, entrou na sua casa e não mostrava sinais de querer sair. Ela é uma mulher arrumada, a última pessoa a tolerar dejectos de pássaro. Mas "alguma coisa mexeu com ela". Pôs jornais no chão e fez amizade com o pássaro. Este não foi para o sul quando chegou o inverno, como deveria ter feito; e subitamente a minha amiga percebeu que estava carregada com uma responsabilidade. Se atirasse agora o pássaro para fora, no Paris invernoso, morreria. Tinha que ir de viagem por duas semanas. Não podia deixar o pássaro. Comprou uma gaiola e levou-o com ela.

   Então, viu-se a si própria: "Imagine: eu! eu! chegando a um hotel de província com uma mala numa mão e uma gaiola de pássaro na outra! Eu! Mas o que podia fazer? Tinha o pássaro no meu quarto, o que quer dizer que tinha de ser simpática com a patroa e as criadas. Tinha-me tornado numa amante da humanidade santo Deus! Velhinhas faziam-me parar nas escadas. Raparigas contavam-me os seus problemas de amor. Voltei logo para Paris e fiquei mal-humorada até à Primavera. Atirei então o pássaro pela janela com uma praga, e desde então tenho tido as janelas fechadas. Pura e simplesmente não quero que gostem de mim e pronto!"

  

   Gata preta engravidou outra vez quando a primeira ninhada tinha apenas dez dias. Isto pareceu-me antieconómico, mas o veterinário disse que era normal. O mais fraquinho da ninhada - e os fraquinhos são frequentemente os mais simpáticos, talvez porque tenham de compensar com charme o que os outros têm em força - foi para um apartamento de estudantes. Estava ele sentado num ombro, na janela dum terceiro andar, quando um cão ladrou dentro do quarto, atrás dele. Num reflexo de medo,

o gato saltou pela janela fora. Toda a gente correu para a rua, para apanhar o cadáver. Mas na rua estava o gato sentado, lambendo-se. Não tinha sofrido nem um arranhão.

     Gata preta, temporariamente sem gatinhos, veio para baixo, para a vida normal. Provavelmente gata cinzenta imaginara que gata preta se tinha mudado para cima, para a responsabilidade e maternidade, definitivamente. E que ela teria o território para si. Percebeu que não era assim; podia ser ameaçada a qualquer momento. De novo houve luta pela primazia, e desta vez não foi agradável. Gata preta tinha tido gatinhos, tinha mais confiança em si, e não se intimidava facilmente. Por exemplo, não queria dormir no chão ou no sofá.

   Este assunto foi assim resolvido: gata cinzenta dormia na cabeceira da cama, gata preta aos pés. Mas era gata cinzenta que podia acordar-me. Acto que agora era desempenhado inteiramente em intenção de gata preta: as brincadeiras, as patadinhas, o lamber, o ronronar, tudo era feito enquanto gata cinzenta olhava a rival: olha, vê-me bem. E os truques a propósito da comida: olha para mim, olha para mim. E os pássaros: olha para o que eu posso fazer e tu não. Acho que, durante essas semanas, as gatas não estavam conscientes da presença humana. Apenas se relacionavam uma com a outra, como crianças rivais, para quem os adultos são objectos manobráveis, subornáveis, exteriores à obsessão dentro da qual as crianças têm só consciência uma da outra. Todo o mundo se estreita até à dimensão do outro, que deve ser derrotado, enganado. Um pequeno mundo brilhante, quente e assustador, como o da febre.

   As gatas perderam o seu charme. Faziam as mesmas coisas, praticavam os mesmos actos. Mas charme - perdido. o que é então o charme? A dádiva gratuita duma graça, o gasto de qualquer coisa dada pela natureza no seu papel de pródiga. Mas há algo de desconfortável nisso, de intolerável, uma aspereza, estamos em presença duma injustiça. Porque algumas criaturas recebem muito mais do que outras, devem devolver esse excesso? Charme é qualquer coisa extra, supérflua, desnecessária, essencialmente um poder deitado fora - dado. Quando gata cinzenta se rebola, de costas, numa mancha de sol, voluptuosa, sensual, encantadora, isso écharme, e sentimos um nó na garganta. Quando gata cinzenta rebola, exactamente com os mesmos movimentos, mas com os olhos semicerrados e fixos em gata preta, é feio, e o próprio movimento tem em si uma qualidade abrupta e dura. E gata preta olhando, ou tentando copiar alguma coisa para a qual não é naturalmente dotada, tem uma furtividade invejosa, como se estivesse a roubar algo que não lhe pertencesse. Se a natureza desperdiça numa criatura, como fez com gata cinzenta, arbitrariamente, inteligência e beleza, então gata cinzenta devia, em paga, desperdiçá-las prodigamente.

   Como gata preta faz com a sua maternidade. Quando ela está aninhada entre os seus gatinhos, uma esbelta pata de azeviche estendida sobre eles, protectora e tirânica, os olhos semicerrados, um ronronar profundo na garganta, ela é magnífica, generosa -- e descuidadamente segura de si. Entretanto, a pobre gata cinzenta, despida do seu sexo, senta-se do outro lado da sala, por sua vez invejosa e rancorosa, e todo o seu corpo e o focinho e as orelhas postas para trás dizem: odeio-a, odeio-a.

   Em resumo, por um período de cerca de seis semanas, elas não foram um prazer para os seres humanos da casa, e certamente não eram um prazer para si próprias.

   Mas tudo mudou subitamente, porque houve uma viagem ao campo, onde nenhuma das duas tinha estado.

 

   Ambas tinham memórias de dor e medo associadas com o cesto dos gatos; por isso pensei que não gostariam de viajar nele.   Foram colocadas à solta no assento de trás do carro. Gata cinzenta imediatamente saltou para a frente, para o meu colo. Estava infelicíssima. Todo o caminho de saída de Londres ela tremeu e miou, numa queixa contínua e aguda que nos pôs todos doidos. A queixa de gata preta era baixa e carpida, relacionada com o seu íntimo desconforto, não com o que a rodeava. Gata cinzenta guinchava todas as vezes que um carro ou camião aparecia no quadrado da janela. Por isso pu-la no chão, a meus pés, onde não podia ver o tráfego. Mas não gostou. Queria ver aquilo que causava os sons que a assustavam. Ao mesmo tempo, detestava ver. Ficou encolhida no meu colo, levantando a cabeça quando o som aumentava, via a escura e vibrante massa da maquinaria passar, ou ficar para trás - e miava. Experimentar o tráfego através dum gato é uma lição sobre aquilo que todos bloqueamos cada vez que entramos num carro. Não ouvimos o barulho aterrador - o tremer, o roncar, o guincho. Se ouvíssemos ficaríamos meio doidos, como gata cinzenta.

   Incapazes de aguentar mais, parámos o carro e tentámos metê-la num cesto. Ficou frenética, histérica de medo. Deixámo-la outra vez à solta e experimentámos gata preta. Esta ficou muito contente no cesto, com a tampa fechada. Durante o resto da viagem, gata preta seguiu encolhida no cesto, o seu nariz preto aparecendo num buraco. Fazíamos-lhe festas no nariz e perguntávamos como ia, ela respondia em voz baixa e triste, mas não parecia demasiado incomodada. Talvez o facto de estar grávida tivesse a ver com a sua calma.

   Entretanto gata cinzenta queixava-se. Miou constantemente, todo o caminho, seis horas de viagem até Devon. Finalmente meteu-se debaixo do banco, e o miar insensato e sem sentido continuou, e não houve palavras, nem festas nem mimos que dessem qualquer resultado. Acabámos por deixar de a ouvir, como não ouvimos o tráfego.

   Nessa noite ficámos em casa de amigos numa aldeia. Ambas as gatas foram colocadas num quarto grande, com comida e um caixote de areia. Não podiam ficar à solta porque havia outros gatos na casa. O terror de gata cinzenta foi esquecido pela necessidade de suplantar gata preta. Usou ela primeiro o caixote; comeu primeiro; e pôs-se na única cama. Aí ficou, desafiando gata preta a subir também para a cama. Gata preta comeu, foi ao caixote e ficou no chão olhando para gata cinzenta. Quando gata cinzenta saiu da cama, mais tarde, para comer, gata preta saltou para a cama e foi imediatamente escorraçada.

   Assim passaram a noite. Pelo menos, quando acordei, gata preta estava no chão, mirando gata cinzenta, que estava de guarda, aos pés da cama, com os olhos reluzindo na direcção de gata preta.

   Mudámo-nos para uma casa na charneca. É uma casa velha, que esteve vazia bastante tempo. Tinha pouca mobília. Mas tinha uma grande lareira. Estas gatas nunca haviam visto fogo. Quando viu as achas a arder, gata cinzenta guinchou de medo, fugiu para o andar de cima e meteu-se debaixo duma cama, onde ficou.

   Gata preta farejou pelo quarto de baixo, descobriu a única poltrona, e apropriou-se dela. Estava interessada no fogo; não tinha medo, desde que não se chegasse multo perto.

   Mas tinha medo do campo fora da vivenda - prados, erva, árvores, aqui não encaixados em rectângulos de tijolo, mas hectares deles, cortados por muros baixos de pedra.

   As gatas tiveram que ser enxotadas para fora de casa, a bem da limpeza, por alguns dias. Depois ambas perceberam, e saíram - por pouco tempo, no entanto; não mais longe, a princípio, do que debaixo das janelas, onde há canteiros e pedras de calçada. Depois um pouco mais longe, até um muro de pedra coberto de vegetação.

Depois até um pedaço de terra rodeado de muros. E daí, na sua primeira visita, gata cinzenta não voltou logo. Havia urtigas, cardos e trevo; pássaros e ratos. Gata cinzenta agachou-se no extremo deste baldio, com os bigodes, os ouvidos e a cauda em acção ouvindo e sentindo. Mas ainda não estava pronta para aceitar a sua própria natureza. Um pássaro, aterrando subitamente num ramo, foi o suficiente para a fazer debandar de volta a casa e para debaixo da cama no andar de cima. Ficou aí vários dias. Mas quando apareciam carros, com visitas, ou gente trazendo lenha, pão, leite, ela parecia sentir-se encurralada em casa, e fugia para os campos, onde se sentia mais segura. Estava, em resumo, desorientada; sentia-se perdida; não havia sentido nos seus instintos. Nem comia; é inacreditável o tempo que um gato pode manter-se sem mais nada além duma lambidela de leite ou água, quando está desdenhando comida de que não gosta, ou assustado, ou um pouco doente.

   Tivemos medo de que ela fugisse - que tentasse, talvez, voltar para Londres.

   Quando eu tinha seis ou sete anos, um homem sentou-se na nossa sala de tecto de colmo, uma noite, à luz do candeeiro, acariciando um gato. Lembro-me dele fazendo festas ao bicho, falando com ele; e o envolvente círculo do candeeiro fazia deles, homem e gato, uma imagem que ainda posso ver. Sinto outra vez o que senti então fortemente, mal-estar, desconforto. Eu estava em pé ao lado do meu pai, e sentindo, com ele. O que estava a acontecer? Rebusco na memória, tentando apanhá-la de surpresa, pô-la a trabalhar a partir da luminosidade quente no pêlo cinzento e macio, ouvindo outra vez a voz emocionada do homem. Alguma coisa estava mal. De qualquer maneira, ele queria o gato. Ele era um negociante de madeira; cortava madeira perto das montanhas, a cerca de trinta quilómetros dali. Aos fins de semana, ia para junto da mulher e dos filhos, em Salisbúria. Dá vontade de perguntar: para que queria ele um gato numa estância de madeiras? Porquê um gato adulto e não um gatinho, que aprenderia quem era o dono, ou pelo menos, que a estância era a sua casa? Porquê este gato? Por que estávamos dispostos a dar um gato adulto, uma coisa sempre arriscada, e a um homem que apenas estava temporariamente na estância, pois que na estação das chuvas regressaria à cidade? Porquê?

Bem, a resposta está, evidentemente, na tensão, na discórdia existente na sala naquela noite. Fizemos uma viagem à estância com o gato.

       Ficava alto, entre colinas que iniciavam uma cordilheira montanhosa, paisagem com aspecto de parque florestal, com árvores grandes e silenciosas. Baixo entre as árvores, um ninho de tendas brancas numa clareira. As cigarras cantavam. Era no fim de Setembro ou Outubro, porque em breve chegaram as chuvas. Muito quente, muito seco. Mastado, entre as árvores, o lamento da serra, firme, monótono, como o das cigarras. Depois, um silêncio exagerado, quando parava. O estrondo de mais uma árvore caindo, e um forte cheiro de folhas e ervas quentes, soltado pelos ramos caindo.

   Passámos a noite naquele lugar quente e silencioso. O gato ficou. Não havia telefone na estância; mas o homem telefonou no fim de semana seguinte para dizer que o gato desaparecera. Tinha pena; pusera-lhe manteiga nas patas, como a minha mãe lhe tinha dito, mas não havia lugar onde pudesse fechá-lo, porque não se pode

fechar um gato numa tenda; e ele tinha fugido.

   Quinze dias mais tarde, a meio duma manhã quente, o gato rastejou do mato para casa. Tinha sido um luzidio gato cinzento. Agora estava magro, o pêlo áspero, os olhos selvagens e assustados. Correu para a minha mãe e agachou-se, olhando-a, para ter a certeza de que pelo menos esta pessoa era ainda a mesma num mundo assustador.

Depois subiu para o colo dela, ronronando, miando de alegria por estar em casa outra vez.

   Bom, tinham sido trinta quilómetros, talvez vinte para um voo de pássaro, mas não para uma caminhada de gato. O gato esgueirara-se da estância, apontando o nariz na direcção para a qual o seu instinto lhe dizia que deveria ir. Não havia caminho que pudesse seguir. Entre a nossa quinta e a estância havia um meandro confuso de estradas, todas azinhagas de terra, e a estrada para a estância limitava-se a cinco ou seis quilómetros de trilho de pneus na erva seca. É pouco provável que o gato pudesse ter seguido a estrada dos carros. Deve ter vindo a corta-mato, pela savana desolada, cheia de ratos e ratazanas e pássaros que podia comer, mas também com gatos inimigos, como os leopardos, cobras, aves de rapina. Provavelmente viajou de noite. Havia dois rios para atravessar. Não eram rios largos, no fim da estação seca. Nalguns lugares havia pedras atravessando-os; ou talvez o gato tenha inspeccionado as margens até encontrar um sítio em que os ramos se tocassem por cima da água e tenha atravessado os rios pelas árvores. Ou talvez tenha nadado. Já ouvi dizer que os gatos nadam, embora nunca tenha visto.

   A estação das chuvas começara durante essas duas semanas. Ambos os rios se transformam numa inundação, inesperadamente. Uma tempestade desaba a montante, a quinze, vinte ou trinta quilómetros. A água sobe e, com uma onda, varre tudo o que tenha entre sessenta centímetros e quatro metros e meio. Facilmente o gato podia ter estado sentado na margem, aguardando uma oportunidade para atravessar o rio, quando caíram as primeiras chuvas da estação. Teve sorte em ambos os rios. Mas molhara-se: o pêlo estivera encharcado, e secara. Quando o gato conseguiu passar o segundo rio, tinha pela frente mais quinze quilómetros de savana deserta. Deve ter viajado cego, feroz, esfomeado, desesperado, sabendo apenas que devia viajar e que estava apontando na direcção certa.

   Gata cinzenta não fugiu, mesmo que tenha pensado fazê-lo quando vinham estranhos à casa, e ela se escondia nos campos. Quanto a gata preta, instalou-se na poltrona, e aí ficou.

   Para nós, foi um tempo de muito trabalho duro, pintando paredes, limpando soalhos, cortando hectares de urtigas e ervas. Comíamos só por necessidade, pois que não havia muito tempo para cozinhar. E gata preta comia connosco, feliz, uma vez que o medo de gata cinzenta a tinha afastado como rival. Era gata preta quem se enroscava nas nossas pernas quando entrávamos, quem ronronava, quem recebia mimos. Sentava-se na poltrona, vendo-nos marchar para dentro e para fora com grandes botas, e olhava o fogo, as chamas vermelhas, criaturas sempre moventes que depressa mas não imediatamente, levou tempo - a convenceram daquilo que nós tomávamos como garantido: que uma lareira e gato condizem.

   Depressa tornou-se suficientemente corajosa para se aproximar do fogo, e sentar-se junto dele. Trepava para a pilha de achas amontoadas no canto, e saltava daí para o velho forno do pão, que, tinha ela decidido, seria um lugar melhor para gatinhos do que a poltrona. Mas alguém se esqueceu, e fechou a porta do forno. E de repente, no meio duma noite ventosa, o grito lastimoso com o qual gata preta anuncia desamparo face ao destino. Nenhuma queixa de gata preta pode ser ignorada: é a sério, ela nunca se queixa sem uma boa razão. Corremos para baixo. O triste miar vinha da parede. Gata preta tinha ficado fechada no forno do pão. Não havia perigo; mas ela assustou-se; e voltou ao nível do chão-poltrona, onde a vida era comprovadamente segura.

   Quando gata cinzenta se decidiu por fim a deixar o seu refúgio debaixo da cama e a vir para o andar de baixo, gata preta era a rainha da casa.

   Gata cinzenta tentou olhares intimidantes; tentou enxotar gata preta da poltrona e de junto do fogo, contraindo os músculos ameaçadoramente, e fazendo súbitos movimentos de fúria. Gata preta ignorou-a. Gata cinzenta tentou começar os jogos de precedências quanto à comida. Mas não teve sorte, estávamos todos demasiado atarefados para os jogar.

   E aí estava gata preta, feliz em frente do fogo, e aí estava gata cinzenta - bem afastada, excluída.

     Gata cinzenta sentava-se à janela e miava desafiadoramente para as chamas agitadas. Aproximou-se o fogo não lhe fez mal. Além disso, lá estava gata preta, não muito mais longe do fogo do que a distância dos bigodes. Gata cinzenta aproximou-se, sentou-se no tapete da lareira, olhou as chamas, com as orelhas para trás, a cauda abanando. Lentamente, também ela percebeu que o fogo atrás de grades era um benefício. Deitou-se e rebolou-se em frente dele, expondo ao calor a sua barriga leitosa, como faria com a luz do sol num chão em Londres. Tinha chegado a um acordo com o fogo. Mas não com a precedência de gata preta.

     Fiquei sozinha na casa por alguns dias. Subitamente, gata preta desaparecera. Gata cinzenta estava na poltrona, gata cinzenta estava em frente do fogo. Gata preta não estava em lado algum. Gata cinzenta ronronava e lambia-me e mordiscava-me; gata cinzenta insistia em dizer-me como era bom estar sozinha, como era bom não haver gata preta.

   Fui à procura de gata preta e encontrei-a num campo, escondida. Miou tristemente, e eu trouxe-a de volta para casa, onde ela fugiu de gata cinzenta, aterrorizada. Dei uma palmada em gata cinzenta.

   Depois, quando eu saía para ir às compras ou à charneca, descobri que gata preta vinha atrás de mim para o carro, miando. Não que ela quisesse vir no carro comigo; não queria que eu fosse. Reparei que, enquanto me afastava com o carro, ela trepava para um muro,. ou para uma árvore, com as costas protegidas, e não descia até eu voltar. Gata cinzenta batia-lhe quando eu estava fora. Gata preta estava então muito grávida, e esta segunda ninhada vinha demasiado próxima da primeira. Gata cinzenta era muito mais forte. do que ela. Desta vez bati com força em gata cinzenta; e disse-lhe o que pensava dela. Ela percebeu bastante bem. Quando eu saía, punha gata preta dentro de casa, e fechava gata cinzenta cá fora. Gata cinzenta amuou. Gata preta estava subjugada; mas, com o nosso apoio, voltou à poltrona e não deixava gata cinzenta aproximar-se.

   Gata cinzenta foi, por conseguinte, para o jardim, que era agora meio acre de restolho. Apanhou alguns ratos e trouxe-os para dentro, deixando-os no meio do chão. Não gostámos, e atirámo-los fora. Gata cinzenta mudou-se para fora da casa e passava os dias ao ar livre.

   No fundo dum estreito caminho entre muros de pedra há uma pequena clareira que, uma vez cortada a erva que a enchia até à altura do ombro, mostrou ter nas suas profundezas um lago calmo e silencioso. Sobre o lago estende-se uma grande árvore; à sua volta relva, depois arbustos e moitas.

   Há uma pedra perto da borda do lago. Gata cinzenta sentava-se nela e olhava a água. Seria perigosa? Uma extensão de água era tão nova para ela como o fogo tinha sido. Um vento levantou ondas, que banharam a borda da pedra e lhe molharam as patas. Ela soltou uma queixa petulante e escapou-se para casa. Onde se sentou, à porta, as orelhas movendo-se, olhando para olago no fundo do caminho. Lentamente, regressou não de uma só vez: gata cinzenta nunca admitiria tão depressa que pudesse estar enganada sobre alguma coisa.

Primeiro compôs-se, lambeu-se, limpou-se, para mostrar indiferença. A seguir tomou um caminho sinuoso até ao lago, através da parte mais alta do jardim, descendo por uma margem pedregosa. A pedra ainda lá estava, à beira da água. A água, mexendo ligeiramente, lá estava. E sobre ela, a árvore com os seus ramos baixo. Gata tomou o seu caminho enfadadamente através da erva húmida como uma senhora velha. Sentou-se na pedra e olhou a água. Os ramos acima dela balançavam-se e moviam-se com o vento; e de novo a água veio molhar-lhe as patas. Ela recuou e sentou-se direita, numa pose tesa e fechada. Olhou para a árvore, que se remexia agitadamente --,- isso era-lhe familiar. Observou a água movendo-se. Fez então uma coisa que eu já a vira fazer com a comida. Ambas as gatas, quando se lhes dava comida desconhecida para elas, estendiam uma pata e tocavam a comida. Davam-lhe patadas e espetavam-lhe as unhas, traziam a pata até à boca, cheiravam primeiro, depois lambiam a nova substância. Gata cinzenta estendeu a pata para a água, sem lhe tocar. Encolheu a pata. Quase fugiu: os músculos tensos num impulso de fuga; mas decidiu que não. Aproximou a boca e lambeu a água. Não gostou. Não era como a água que bebe do meu copo ao lado da cama, à noite; nem como as gotas que caem duma torneira e que ela apanha pondo a boca de lado. Pôs uma pata dentro de água, deixou-a ficar, tirou-a, lambeu a pata. Água, certo. Uma coisa que ela conhecia, ou uma variedade disso.

   Gata cinzenta agachou-se na pedra, o focinho por cima da água, e olhou para o seu reflexo. Nada de estranho, está habituada a espelhos. Mas as ondas iam e vinham e o reflexo desintegrou-se. Gata pôs uma pata na sua imagem, na água, mas, ao contrário do espelho, a pata entrou nela, na humidade. Endireitou-se, obviamente aborrecida. Era demasiado para ela; caminhou afectadamente para casa, pela erva húmida. Aí, tendo dito a gata preta, com os olhos, quanto a odiava, sentou-se em frente do fogo, de costas para gata preta que a olhava, em guarda, da poltrona.

   Gata cinzenta voltou ao lago, à pedra. Sentada na pedra, reparou que a árvore era um local preferido dos pássaros que, no momento em que ela deixava a clareira, desciam até à água, bebiam, brincavam, voavam para trás e para diante. Gata cinzenta passou a visitar o lago por causa dos pássaros. Mas nunca aí apanhou um pássaro.

Nunca apanhou, julgo, pássaro algum naquela casa. Talvez porque há por ali tantos gatos e os pássaros já os conhecem?

   Guiando pelas azinhagas, à noite, os faróis estão sempre a descobrir gatos, gatos nas sebes caçando ratos, gatos trotando para fora do alcance das rodas; gatos nos portões; gatos nos muros.

   Durante a primeira semana na casa, que é aparentemente um refúgio, bem escondida atrás de árvores e muros, da estrada e das outras casas, vários gatos vieram ver quem eram as novas pessoas e que novos gatos teriam chegado.

   A meio da noite, vi uma cauda avermelhada desaparecer por uma janela aberta. Pensei, um gato; e voltei a adormecer. No dia seguinte, contudo, na loja disseram-me que as raposas vinham atrás dos gatos até Dartmoor. Toda a espécie de histórias horríveis sobre raposas e gatos. Mas não se pode fechar gatos no campo; uma paisagem tão cheia de gatos não parece grande evidência do perigo das raposas, ou de qualquer outra coisa.

   Descobriu-se que a cauda avermelhada pertencia afinal a um bonito gato castanho avermelhado, escorraçado por gata cinzenta, que agora tinha tomado conta da casa. Passou a enxotar os visitantes logo a partir do portão, a uns noventa metros da casa. A casa e os campos em volta eram agora território de gata cinzenta; e podíamos avistá-la apanhando sol nas ervas altas do pequeno campo por cima da casa, ou acocorada no campo comprido em baixo, onde há poças e os pássaros vêm beber.

   A seguir - invasão. A cerca de um dos lados caiu, e uma manhã, quando fui acender o lume, encontrei ambas as gatas no parapeito da janela, temporariamente aliadas porque fora da janela vagueavam e berravam e faziam barulho grandes bestas fedorentas que elas nunca tinham visto antes. Gata preta deixou escapar a sua triste e surda queixa. É demais, o que é isto? Não sei o que fazer, socorro por favor. E gata cinzenta guinchava desafios da segurança do parapeito. O gado dos campos próximos tinha deitado a cerca abaixo e espalhava-se para além da casa até ao lago e ao campo comprido que, como os animais obviamente sabiam, tinha tudo para ser um belo pasto. Não havia ninguém que pudesse ajudar-me a enxotar o gado, pelo menos tão cedo; e o dono não apareceu. Cerca de cinquenta animais instalaram-se por ali; as gatas estavam desesperadas. Corriam de parapeito em parapeito, e depois para fora da porta, em corridas pequenas e raivosas, e queixavam-se amargamente, até que chegou socorro e os enormes e ameaçadores bichos foram recambiados para os seus campos. Segurança. As gatas tinham aprendido que não havia perigo com aquela espécie de animais. Porque, quando alguns dias mais tarde o portão ficou aberto e alguns póneis vindos da charneca entraram, as gatas não se queixaram, não se assustaram. Oito pequenos póneis pastaram no velho jardim; e gata cinzenta fez o seu caminho até eles, sentou-se no muro de pedra e ficou a vigiá-los. Não desceu do muro; mas estava interessada, e ficou até eles decidirem ir-se embora.

     Os gatos vigiam seres, actividades, acções inabituais para eles, durante horas. Fazer uma cama, varrer o chão, fazer ou desfazer uma mala, coser, tricotar qualquer coisa, observam, vigiam. Mas, o que vêem? Há cerca de duas semanas, gata preta e dois gatinhos sentaram-se no meio do chão vendo-me cortar tecido. Observaram a tesoura mexendo, a maneira como as minhas mãos se moviam, e forma como o tecido era posto em diferentes montes. Ali ficaram, absortos, toda a manhã. Mas não suponho que tenham visto aquilo que pensamos. O que vê, por exemplo, gata cinzenta quando mira durante meia hora as partículas que se movem num feixe de luz do sol? Ou quando olha para as folhas mexendo-se na árvore fora da janela? Ou quando levanta os olhos para a lua por cima dos vasos da chaminé?

   Bichana preta, meticulosa educadora dos seus gatinhos, nunca perde uma ocasião para uma lição ou uma moral. Por que haveria de perder uma manhã, com um gatinho de cada lado, vendo o brilho do metal no tecido escuro, por que é que cheira a tesoura, e o tecido, e dá a volta ao teatro das operações e comunica qualquer observação aos gatinhos, para que eles possam executar as mesmas acções - misturadas, uma vez que são gatinhos, com toda a espécie de jogos e brincadeiras? Mas eles cheiram a tesoura, e o tecido, fazem exactamente o que a mãe' acabou de fazer. Depois sentam-se e observam. Gata preta está a aprender alguma coisa e está a ensiná-la aos gatinhos, não há dúvidas quanto a isso.

 

   Gata preta não estava em forma antes da sua segunda ninhada. Tinha uma grande pelada nas costas, e estava magra. E ansiosa: toda a semana anterior não quis estar sozinha. Havia muita gente na casa, e era fácil arranjar-lhe sempre companhia. No fim de semana, estávamos três mulheres em casa; o tempo estava mau e queríamos guiar até à costa para ver um mar frio e tempestuoso. Mas gata preta não nos deixava ir. Estávamos todas irritáveis: tensas, porque não íamos deixar à gata mais de dois gatinhos, uma vez que ela não estava em condições de amamentar mais. O que significava que teríamos de matar alguns.

   No domingo começou o trabalho de parto cerca das dez da manhã. Foi uma coisa lenta e exaustiva. O primeiro gatinho nasceu pelas quatro da tarde. Ela estava cansada. Houve um grande intervalo entre a expulsão do filho e o reflexo quando se virou para o lamber. Era um belo gatinho. Mas concordámos em não olhar muito para os gatinhos, em não admirar essas vigorosas migalhas de vida. Finalmente, o segundo gatinho. A gata estava então muito cansada e soltou o seu grito dorido: Por-favor-ajudem-me.

Pronto, dissemos, chega: ela pode ficar com estes dois e livramo-nos dos restantes.

Fomos buscar uma garrafa de uísque e bebemos bastante. Apareceu então o terceiro gatinho: claro, claro, já chegava? O quarto, o quinto, o sexto. Pobre gata preta, trabalhando arduamente, expelindo gatinhos, lambendo-os, limpando e arrumando - nas profundezas duma poltrona, quanta actividade. Por fim, estava limpa, e os gatinhos estavam limpos, mamando. Ela estava deitada toda estendida, ronronante e magnífica.

   Gata valente, gata esperta, gata bonita... mas não havia remédio, tínhamos que nos livrar de quatro gatinhos.

   E assim fizemos. Foi horrível. Depois, fomos até ao campo comprido, junto à cerca, no escuro, com lanternas e cavámos um buraco enquanto a chuva caía sem parar, e enterrámos os quatro gatinhos mortos, e praguejámos e amaldiçoámo-nos, amaldiçoámos a natureza, a vida; voltámos depois para a grande e tranquila sala rústica onde o fogo ardia, e aí estava gata preta num cobertor limpo, uma bonita e orgulhosa gata com dois gatinhos - a civilização tinha triunfado de novo. Olhámos incredulamente para os gatinhos, já tão fortes, em pé, ao lado um do outro, nas patas traseiras, as suas minúsculas e rosadas patas dianteiras amassando a barriga da mãe. Impossível imaginá-los mortos, mas tinham sido escolhidos ao acaso; se a minha mão os tivesse apanhado uma hora antes, descendo sobre eles, a mão do destino - estariam estes dois jazendo agora sob pesado solo húmido num campo chuvoso. Foi uma noite horrorosa; bebemos demais; e decidimos definitivamente que mandaríamos operar gata preta porque realmente, realmente, não valia a pena.

     Gata cinzenta trepou para o braço da poltrona, agachou-se aí e esticou uma pata para tocar num gatinho; e gata preta deu-lhe uma chicotada com a sua pata; gata cinzenta amuou e saiu de casa para a chuva.

   No dia seguinte sentíamo-nos todas muito melhor; e guiámos até ao mar, que estava calmo e azul. O tempo mudara durante a noite.

   O ronronar orgulhoso de gata preta podia-se ouvir pela sala inteira.

   E gata cinzenta trouxe vários ratos, que colocou no chão de pedra. Eu tinha entretanto compreendido que os ratos eram parte dum ritual hierárquico, uma oferenda; mas era impossível: ratos mortos dificilmente podem ser considerados atractivos. Conforme ela os trazia para dentro, eu atirava-os fora; e ela olhava para mim com as orelhas puxadas para trás, os olhos brilhando de ressentimento.

   Todas as manhãs, quando eu acordava, gata cinzenta estava sentada aos pés da minha cama, e no chão havia um rato recentemente morto.

   Gata simpática. Gata esperta. Muito obrigada, gata. Mas atirava os ratos fora. E gata preta apanhava-os e comia-os.

   Estava sentada no muro de pedra do jardim quando vi gata cinzenta a caçar.

   Era um dia de nuvens delgadas e velozes, por isso nos campos, na casa, nas árvores e no jardim, sucediam-se o sol e a sombra: e gata cinzenta era uma sombra entre as sombras debaixo dum lilás. Estava muito quieta; mas olhando de perto podia-se ver ligeiro movimento nos bigodes e nas orelhas; por isso não estava mais imóvel do que o habitual, quando folhas e erva estremecem com uma brisa. Ela olhava, movendo os olhos, para um graveto a pouca distância. Enquanto eu olhava, ela avançou, rápida e agachada, como uma sombra se move sob um ramo agitado. Havia três ratinhos, arrastando-se por ali num monte de erva seca. Não a tinham visto. Pararam para mordiscar, desandaram, sentaram-se para olhar em volta. Por que é que ela não saltou imediatamente? Não estava a mais de um metro de distância deles. Fiquei olhando; a gata ficou olhando; os ratos continuaram com a sua vida. Meia hora passou. A ponta da cauda da gata mexia-se: não com impaciência, mas como visível expressão do seu pensamento: Tenho muito tempo. Uma nuvem ofuscante com o sol do meio-dia por trás pingou umas dúzias de gotas gordas, todas douradas. Um pingo caiu no focinho da gata. Pareceu aborrecida, mas não se mexeu. As gotas douradas esparrinharam entre os ratos. Eles imobilizaram-se, sentaram-se, e olharam. Eu podia ver os olhinhos pretos olhando. Alguns pingos caíram na cabeça da gata. Ela sacudiu-os. Os ratos imobilizaram-se, e a gata saltou, uma risca cinzenta. Um pequeno e desgraçado guincho. Gata estava sentada com um rato na boca. O rato contorcia-se. Gata deixou cair o rato; este rastejou um pouco; ela perseguiu-o. Uma pata dardejou; com todas as suas pérfidas garras de fora, a gata fez um movimento de agarrar, para dentro, trazendo o rato para si. Ele guinchou. Ela mordeu. O guincho parou. Ela sentou-se, lambendo-se delicadamente. Depois segurou o rato, atirando-o para a boca e apanhando-o, exactamente como fizera com os seus gatinhos, e trotou até mim. Pôs o rato a meus pés. Tinha-me visto o tempo todo: não tinha dado sinal disso.

   As pessoas deixaram a casa e eu fiquei só. Havia mais tempo para acariciar e falar com as gatas.

   Um dia, na cozinha, eu cortava a comida delas nos pires, em cima da mesa, quando gata cinzenta saltou e começou a comer de um deles. Gata preta esperou no chão. Mas quando eu pus no chão os dois pires, gata cinzenta foi-se embora: não ia comer no chão.

   No dia seguinte, o mesmo. Gata cinzenta tentava que eu lhe desse comida na mesa, um lugar superior, enquanto gata preta ficava no chão para comer. Eu disse-lhe não; era absurdo; e, durante três dias ela não comeu nada em casa; talvez tenha comido ratos. Mas não quando podia ser vista. No quarto dia saltou para a mesa, como de costume, e eu pensei: Bom, é interessante, vejamos o que acontece. Ela ficou contente, comeu tudo o que havia no pires; e durante todo o tempo deitava olhares para baixo, para gata preta que comia no chão: Olha, sou privilegiada.

   Poucos dias depois, gata preta saltou para a mesa, tentando conseguir o mesmo privilégio. Vendo isto, gata cinzenta, com as orelhas para trás, instalou-se no parapeito de janela por cima da mesa. Se gata preta tinha conseguido o estatuto da mesa, tinha ela decidido, então iria exigir estatuto melhor.

   Perdi então a paciência, e disse a ambas que eram maçadoras, e que ou comiam no chão ou não comiam.

     Gata cinzenta saiu de casa e não comeu nem bebeu nada por alguns dias. Estava fora de casa todo o dia; depois todo o dia e toda a noite - ficava fora dois, três dias de cada vez. Na quinta em África teríamos dito neste ponto da situação: Gata cinzenta está a ficar selvagem. E tomaríamos medidas, cuidados, fechando-a, relembrando-lhe a sua natureza doméstica. Mas provavelmente, na muito populosa Inglaterra, tornar-se selvagem não é fácil. Mesmo em Dartmoor deve haver sempre luzes duma casa brilhando algures, não muito longe.

   Quando ela regressou de novo, cedi; e deixei-a comer na mesa, e elogiei-a; e liguei um pouco menos a gata preta - no fim de contas, ela tinha os gatinhos. E gata cinzenta voltou para casa, instalou-se à noite aos pés da minha cama. E quando trazia ratos, passei a fazer um curto discurso elogioso sobre cada um.

   Gata preta comia os ratos. Gata cinzenta nunca comia. Era interessante que gata preta nunca começava a comer um rato antes de eu o ter visto. Uma vez o cadáver aceite por mim, e gata cinzenta louvada, então gata preta saltava da cadeira, e comia, com limpeza, metodicamente, enquanto gata cinzenta observava, e não fazia qualquer tentativa para a deter. Embora tivesse tentado pô-los numa mesa, num parapeito, onde parecia esperar que gata preta não os visse. Gata preta via sempre: saltava sempre e comia o rato.

       Então, uma manhã, algo de extraordinário aconteceu.

       Eu tinha ido fazer compras a Okehampton. Voltei e vi, no meio do chão, um montinho de ervas. Gata cinzenta estava sentada perto, olhando-me. Gata preta estava à espera com os seus gatinhos, na poltrona. Arnbas queriam que eu prestasse atenção ao monte verde.

   Fui ver. Debaixo das ervas, um rato morto. Gata cinzenta apanhara o rato, e pusera-o no chão como presente. Mas eu tinha demorado mais do que ela contara; e assim, tinha tido tempo para decoração - ou talvez fosse um aviso para gata preta: deixa o rato em paz.

   Deve ter feito três viagens até à sebe, que tinha sido recentemente podada, para trazer três rebentos de gerânio bravo, que colocou cuidadosamente sobre o rato.

   Enquanto a cumprimentei, nunca desviou os olhos de gata preta - um olhar velhaco, superior, triunfante.

   Disseram-me, algum tempo depois, que os leões às vezes arrastam ramos para cobrir uma presa fresca. Para a marcar? Para a proteger de chacais e hienas? Para a proteger do sol?

   Teria gata cinzenta recordado, através de milhares de anos, o seu parentesco com o leão?   Mas pergunto-me: supondo que gata preta nunca tivesse vindo para nossa casa, supondo que gata cinzenta tivesse ficado única dona, de nós e dos lugares onde vivemos, teria ela, enquanto avançava para a meia idade, tido a preocupação de seduzir e encantar? Teria ela desenvolvido esta complicada linguagem de auto-estima e vaidade? Teria ela alguma vez apanhado um pássaro ou um rato? Penso que provavelmente não.

 

     Tempo de voltar para Londres. Gata cinzenta estava solta na parte detrás do carro e mais uma vez monotonamente se queixou, durante as seis horas da viagem. Um breve silêncio enquanto dormitou. Depois, uma miadela particularmente alta quando acordou e realizou que ainda estava a sofrer.

   E, na viagem de volta, o fenómeno tão notável: não lhe era suficiente experimentar barulho, movimento e desconforto; queria também ver as aproximações aterradoras, os desaparecimentos, dos outros veículos. Juro que havia então uma satisfação no seu miado. Como uma pessoa neurótica, ela retirava prazer daquilo.

     Gata preta ficou quieta no cesto com os seus dois gatinhos, amamentou-os, ronronou quando eu pus um dedo no buraco do cesto para lhe acariciar o nariz; e só se lamentava quando a voz de gata cinzenta se elevava muito, juntando-se-lhe então por alguns momentos, respondendo a miado com miado. Parecia que pensava: se ela faz, acho que devo fazer também. Mas não aguentava muito tempo.

   Soltei os dois animais quando chegámos, e imediatamente se sentiram em casa. Gata preta levou os seus dois gatinhos para a casa de banho, onde gosta de os ter durante as duas semanas em que estão prontos para aprender. Gata cinzenta foi logo para cima, e tomou posse da cama.

   Outono. As portas de trás fechadas por causa do aquecimento; os caixotes de areia trazidos para a varanda; os gatos saindo quando pedem. Não muitas vezes: parecem bastante felizes com uma existência dentro de casa quando faz frio.

   Gata preta entrou turbulentamente no cio. Começou com o cio dez dias depois do nascimento dos gatinhos, em Devon, como habitualmente. Foi enquanto gata cinzenta estava fora, caçando. Gata preta deixou os gatinhos na poltrona em frente do fogo, e foi à procura dum gato macho. Mas, por qualquer razão, não havia nenhum perto: talvez gata cinzenta os tivesse enxotado demasiado exaustivamente. Nenhum correu para gata preta, como correm por muros e jardins, em Londres, quando ela os chama.

Tinha que ir mais para dentro dos campos. Levou os gatinhos para o andar de cima, onde pensou que estariam seguros, e foi para o porrão, chamando e gritando. Correu de novo para junto dos gatinhos, uma vez que para gata preta nem o sexo pode ter precedência sobre a maternidade; deu-lhes de mamar, saiu outra vez. Mal comia, e miou e guinchou até ficar magra e escanzelada. Quando eu acordava de noite ouvia-a chamar junto ao portão. Mas não encontrou par; e voltou a ficar gorda e lustrosa.

  

   Durante os dois meses em que tínhamos estado fora, a população de gatos em Londres mudara. Não havia nenhum dos primitivos gatos. O listrado cinzento tinha desaparecido; e o preto e branco de pêlo comprido também. O relativamente recente gato branco com malhas cinzentas tinha ficado. Mais nenhum gato para emparceirar; por isso o gato branco malhado tornou-se pai, e estávamos interessados em ver quais os dados que os genes lançariam desta vez.

O outono estava frio e húmido. Quando saí para as traseiras, gata cinzenta e gata preta vieram também, e caminharam atarefadamente sobre folhas molhadas, e perseguiram-se uma à outra até casa. Uma espécie de amizade começava. Nunca se tinham lambido uma à outra, nem dormido juntas. Mas começavam a brincar um pouco; embora a maioria

das vezes a que começava a brincar acabasse por ser repreendida com uma bufadela. Encontravam-se sempre com cautela, cheirando-se no nariz - és tu, amiga ou inimiga?

Era como o aperto de mão de adversários.

     Gata preta tornou-se pesada e dormia muito. Gata cinzenta era a gata patroa outra vez, fazia habilidades, exibia-se.

   Gata preta voltou a ter os seus gatinhos no quarto de cima, e deixámos-lhe ficar todos os seis. Estávamos ainda demasiado amargas, depois do assassínio do último lote, para passar pelo mesmo.

   Quando os gatinhos já se podiam mexer, gata preta decidiu que havia apenas uma coisa que ela queria, só uma, e ia consegui-la: os gatinhos tinham que ficar debaixo da minha cama. Isto porque o quarto do andar de cima não estava, para seu grande aborrecimento, ocupado todo o tempo, de modo que ela pudesse ter companhia e apreço. A estudante estava a ter um Natal alegre e sociável. Gata preta é persistente. Trouxe os gatos para o primeiro andar. Eu levei-os, numa trouxa, para o quarto de banho do rés-do-chão. Gata preta trouxe-os de volta. Eu levei-os para baixo. Ela trouxe-os de volta. Finalmente ganhou a força bruta: simplesmente, fechei a porta.

   Quando os gatinhos já se mexem começa o tempo em que são mais engraçados, mas uma pessoa deseja que se vão embora. Gatinhos por todo o lado, por baixo dos pés, nas mesas, gatinhos nas cadeiras, nos parapeitos, gatinhos escavacando a mobília. Para qualquer lado que se olhasse, uma gracinha preta - porque eram todos pretos, seis gatinhos pretos, o pai branco e cinzento não tivera qualquer efeito no seu aspecto.

   E entre eles, gata preta, infatigável, devotada, cumpridora, vigiando-os a cada momento. Bebia muitos mais litros de leite do que queria, porque de cada vez que um gatinho estava perto, ela tinha que ensiná-lo a beber. Comia de cada vez que um gatinho estava perto dum pires. Vi gata preta, obviamente sem apetite para mais uma colherada de comida que fosse, parar quando um gatinho saía do quarto, lamber-se, preparar-se para descansar. Esse gatinho ou outro aparecia. Gata preta debruçava-se sobre o pires, e comia, com o som baixo e trinado que ela usa para persuadir os gatinhos. Os gatinhos vinham, sentavam-se curiosos ao lado da mãe, vendo-a comer. Gata comia, mais, devagar, forçava-se a comer. Os gatinhos cheiravam a comida, decidiam que leite quente era melhor, voltavam aos mamilos da gata. Gata preta fazia um som baixo de comando. Os gatinhos, obedientes, iam ao pires e lambiam uma ou duas vezes; depois, tendo feito o que lhes fora mandado, corriam de volta para gata preta, que se deixava cair de lado para os amamentar.

   Ou gata preta no caixote de areia. Ela tinha estado no jardim; tinha feito as suas necessidades. Mas um gatinho precisava duma lição. Gata preta vai para o caixote em posição apropriada. Chama os gatinhos: olhem para mim. Fica sentada enquanto eles cirandam por ali, olhando ou não olhando. Quando ela sabe que um percebeu, sai do caixote e senta-se ao lado, encorajando o gatinho, com ronrons e miados, a fazer o que acabou de ver. O minúsculo gatinho imita a mamão Sucesso! Gatinho parece admirado. Mamã lambe gatinho.

   Os gatinhos da gata preta nunca passam por uma fase de porcaria. Na verdade, como crianças obsessivamente treinadas, ficam ansiosos em relação ao assunto. Surpreendido, enquanto brinca, a alguma distância do caixote, um gatinho dá uma miadela aflitiva; começa a pôr-se na posição adequada - mas, outra miadela desesperada; não é aqui o lugar certo. Gata preta chega a correr para ajudar; gata preta incita o gatinho a ir para o quarto onde está o caixote. O gatinho vai, deixando talvez cair uns pingos, miando. No caixote, que alívio, enquanto a mãe se senta perto, aprovando. Que lindo gatinho limpo eu sou, diz a pose e o focinho do gatinho. Gatinho sai do caixote, é lambido com aprovação: a lambidela aqui e acolá, descuidada, confiante, que é como um beijo.    Este gatinho está bem; mas como estão os outros? Lá vai gata preta, atarefada, atarefada, verificar focinhos, caudas, pêlos. E - onde estão? Quando chega a idade em que quase estão prontos para se irem embora, espalham-se pela casa toda. Gata preta, frenética, corre, escada abaixo escada acima, para dentro e para fora dos quartos; onde estão, onde estão? Os gatinhos enrolam-se em molhos, atrás de caixas, em armários. Não aparecem quando os chama. Por isso deixa-se cair perto deles, e fica de guarda, olhos meio fechados para os possíveis inimigos ou intrusos.Ela esgota-se. Os gatinhos vão-se embora, um atrás do outro. Ela parece não notar até ficarem só dois. Vigia-os, ansiosa. Depois só fica um gatinho. Gata preta devota toda a sua feroz maternidade a um gatinho. O último vai-se embora. E gata preta corre pela casa toda, procurando-o, miando. Depois, um interruptor é desligado, algures - gata preta esqueceu o que a preocupava. Trepa escada acima e vai dormir no sofá, no seu lugar. É como se nunca tivesse tido gatinhos.

   Até ao seu próximo lote. Gatinhos, chuvas de gatinhos, invasões de gatinhos. Tantos, que podem ser vistos como Gatinhos, como folhas crescendo num tronco despido, ficando verdes e pesados, e depois caindo, exactamente o mesmo todos os anos. As pessoas que nos visitam dizem: o que aconteceu àquele gatinho amoroso? Qual gatinho amoroso? São todos amorosos, os gatinhos.

   Gatinhos. Uma criaturinha viva na sua membrana transparente, rodeado pela imundície do seu nascimento.

Dez minutos mais tarde, húmido mas limpo, já mamando. Dez dias depois, uma migalha com olhos macios e nebulosos, a boca abrindo-se num silvo de corajoso desafio à enorme ameaça que sente debruçada sobre ele. Nesta altura, em vida selvagem, confirmaria a sua selvajaria, tornando-se um gato selvagem. Mas não, uma mão humana toca-o, um cheiro humano envolve-o, uma voz humana sossega-o. Depressa sai do ninho, confiante que as gigantescas criaturas à sua volta não lhe farão mal. Cambaleia, depois anda, depois corre a casa toda. Acocora-se no caixote de areia, lambe-se, sorve leite, depois agarra-se a um osso de coelho, defende-o contra o resto da ninhada. Gatinho encantador, gatinho bonito, lindo fofinho pequenino delicioso bichinho - e vai-se embora. E a sua personalidade será formada pela sua nova casa, pelo novo dono, porque enquanto está com a mãe é apenas um gatinho - embora, sendo filho de gata preta, um gatinho muito bem educado.

   Talvez, como gata cinzenta, a pobre gata solteirona, gata preta, quando nós eventualmente a "prepararmos", olhe para os gatinhos como se não soubesse o que são. Talvez a sua memória não guarde o conhecimento de gatinhos, embora enquanto os tem lhes dedique os seus dias e as suas noites, todos os seus instintos, e esteja disposta a morrer por eles qualquer morte, se necessário for.

   Havia uma gata, há tantos anos. Não me lembro por que se tornou selvagem. Alguma terrível batalha se desenrolou, para além da atenção dos humanos. Talvez algum castigo lhe tenha sido aplicado, demasiado para o orgulho de um gato aguentar. Essa velha gata fugiu de casa durante meses. Não era um bicho bonito, parecia remendada, com manchas e listas em preto, branco, cinzento e cor de raposa. Um dia voltou e sentou-se na beira da clareira em que a casa ficava, olhando a casa, as pessoas, a porta, os outros gatos, as galinhas - a cena de família da qual estava excluída. Depois deslizou de novo para o mato. Na noite seguinte, no crepúsculo silente e dourado, lá estava a velha gata. As galinhas estavam a ser enxotadas para as capoeiras, para passarem a noite. Dissemos: Talvez venha atrás das galinhas, e gritámos-lhe que se fosse embora. Ela abaixou-se na erva e desapareceu. Na noite seguinte, lá estava. A minha mãe foi até à borda da clareira e chamou-a. Mas a gata estava cautelosa, não queria chegar-se perto. Estava muito grávida: um enorme bicho magricela, pele sobre ossos saídos, arrastando o pesado inchaço da barriga. Tinha fome. Era um ano seco. A longa estação seca tinha feito baixar e escassear a erva, tinha queimado as moitas: tudo o que se via eram esqueletos, paus secos; e as pequenas folhas que neles se agitavam, meras sombras. O mato era escasso; as árvores, com a sua carga de folhas rala e seca, mostravam o mapa do seu tronco e ramos. A savana tinha ossos por todo o lado. E a colina onde ficava a nossa casa, na estação húmida tão alta e viçosa e macia e espessa, estava ressequida. A sua forma, uma curva suave até um cume alto, depois uma ravina abrupta até ao vale, mostrava agora uma franja inteiriçada de paus e ramos.

Os pássaros, os roedores, tinham talvez emigrado para sítios mais viçosos. E a gata não estava suficientemente selvagem para migrar atrás deles, para longe do lugar que ela ainda considerava a sua casa. Ou talvez estivesse demasiado depauperada pela fome e pela sua carga de gatinhos para viajar.

   Demos-lhe leite, e ela bebeu, mas cuidadosamente, com os músculos tensos para a fuga todo o tempo. Outros gatos da casa vieram olhar a fora-da-lei. Quando acabou de beber o leite, correu de volta para o lugar em que costumava esconder-se. Todos os fins de tarde ela vinha até à herdade para ser alimentada. Um de nós mantinha afastados os outros gatos ressentidos; outro trazia leite e comida. Ficávamos de guarda até ela ter comido. Mas estava nervosa: abocanhava cada pedaço como se estivesse a roubá-lo; deixava o prato, e o pires, depois voltava. Fugia antes de ter acabado a comida; e não se deixava acariciar, não se chegava perto.

   Uma noite seguimo-la, à distância. Desapareceu a meia encosta da colina. Era uma terra que já tinha sido cavada e minada por um pesquisador de ouro. Alguns dos fossos tinham aluído - chuvas fortes tinham varrido o solo. Os poços estavam abandonados, talvez tivessem dois palmos de água da chuva dentro. Ramos secos tinham sido arrastados sobre eles para impedir o gado de lá cair. Num desses buracos deveria esconder-se a gata. Chamámo-la, mas ela não apareceu, por isso deixámo-la.

   A estação das chuvas irrompeu com uma espectacular trovoada, cheia de ventos e relâmpagos e trovões e bátegas de água. Algumas vezes a primeira tempestade pode durar dias, mesmo semanas. Naquele ano tivemos duas semanas de trovoadas contínuas. A erva nova rompeu. As moitas, as árvores, forraram-se de verde. Tudo estava quente, húmido e abundante. A velha gata veio até casa uma ou duas vezes; depois deixou de vir. Dissemos que ela andava outra vez a caçar ratos. Então, numa noite de grande tempestade, os cães ladraram e ouvimos um gato chorando mesmo fora da casa. Saímos, com lanternas de tempestade, para uma cena de ramos chicoteando, erva furiosamente sacudida, chuva caindo em espessas cortinas. Debaixo da varanda estavam os cães, e ladravam à velha gata, agachada na chuva, os olhos verdes à luz da lanterna. Tinha tido os gatinhos. Era um esqueleto de gato. Trouxemos-lhe leite, enxotámos os cães, mas não era isso o que ela queria. Ficou sentada com a chuva abatendo-se sobre ela, chorando. Queria ajuda. Pusemos gabardinas por cima dos pijamas e patinhámos atrás dela na negra trovoada, com os trovões ribombando, os relâmpagos iluminando os lençóis de chuva. Na beira do mato parámos e espreitámos - à nossa frente estava a área dos velhos fossos, dos poços abandonados. Era perigoso mergulhar na erva rasteira. Mas à nossa frente a gata chorava, pedia. Fomos cautelosamente, com as lanternas, através de erva que dava pela cintura e moitas, na espessura da chuva. Perdemos a gata de vista, mas ela chorava algures abaixo dos nossos pés. Mesmo à nossa frente estava uma pilha de galhos velhos. O que queria dizer que estávamos na borda dum' poço. A gata algures dentro dele. Bom, não íamos puxar uma pequena montanha de ramos mortos escorregadios para fora dum poço aluído, a meio da noite. Espreitámos, com as lanternas, através dos interstícios dos galhos, e pensámos ver a gata a mexer-se, mas não tínhamos a certeza. Por isso voltámos para casa, deixando os pobres bichos, e bebemos cacau numa sala quente e iluminada, sacudimos os arrepios, secámos e aquecemo-nos.

   Mas dormimos mal, pensando na pobre gata, e levantámo-nos às cinco com os primeiros raios de luz. A tempestade tinha acalmado, mas tudo pingava. Saímos para uma aurora fresca, com listas vermelhas aparecendo a leste, onde o sol iria nascer. Descemos até ao mato encharcado, até à pilha de ramos velhos. Nem sinal da gata.

   Era um poço com cerca de vinte e cinco metros de profundidade, onde desembocavam duas galerias, uma delas a cerca de três metros, a outra bastante mais abaixo.

Decidimos que a gata deveria ter posto os seus gatinhos na primeira galeria, que se estendia por cerca de seis metros, descendo obliquamente. Era difícil levantar aqueles ramos húmidos e pesados; demorámos muito tempo. Quando a abertura do poço apareceu não tinha a nítida forma quadrada que tivera. A terra desabara, e alguns galhos leves e gravetos do monte que o tapava tinham afundado, fazendo uma tosca plataforma a cerca de quatro metros e meio. A isto acrescentava-se terra empurrada por ventos e águas e pequenas pedras. Formava um delgado chão - mas muito delgado: através dele podíamos ver o brilho da água da chuva no fundo do poço. Um pouco mais abaixo, não muito, agora que a boca do poço tinha afundado, a cerca de um metro e oitenta, podíamos ver a abertura da galeria, um buraco com cerca de um metro quadrado, agora que, também ele, tinha desabado. De barriga para baixo na escorregadia lama vermelha, agarrando as moitas para maior segurança, podia-se ver um bom bocado para dentro da galeria - um metro e meio. E aíestava a cabeça da gata, apenas visível. Estava muito quieta, espetada para fora da terra vermelha. Pensámos que o corte tivesse caído com toda aquela chuva e que ela estivesse semi-soterrada, provavelmente morta. Chamámos por ela: houve um fraco som áspero, depois outro. Portanto não estava morta. O nosso problema agora era como chegar até ela. Inútil fixar um molinete naquela terra encharcada que podia aluir a cada momento. E nenhum ser humano poderia pousar os pés naquela precária plataforma de gravetos e terra: era mesmo incrível que tivesse aguentado o peso da gata, que devia ter saltado para cima dela várias vezes ao dia.

   Atámos uma corda grossa a uma árvore, com grandes nós a cada metro de intervalo, e deixámo-la cair da borda, tentando que não ficasse enlameada e escorregadia. Então um de nós desceu pela corda com um cesto, até conseguir chegar à abertura lateral. Aí estava a gata, agachada no solo vermelho encharcado - rígida, com o frio e a humidade. E a seu lado, meia dúzia de gatinhos, com cerca de uma semana, ainda cegos. Aquela quinzena de tempestades atirara tanta chuva para o buraco que os lados e o tecto haviam ruído parcialmente. Esse fora o problema da gata: a toca que tinha encontrado, e que parecera tão segura e seca, tinha-se tornado numa armadilha mortal prestes a desabar. Viera ter connosco a casa para que salvássemos os gatinhos. Tivera medo de se aproximar da casa por causa da hostilidade dos outros gatos e dos cães, talvez porque agora tivesse também medo de nós, mas ultrapassara o medo para conseguir socorro para os gatinhos. Mas não conseguira ajuda. Deve ter perdido toda a esperança nessa noite, enquanto a chuva caía a cântaros, enquanto a terra escorregava à sua volta, enquanto a água subia por trás dela, no túnel escuro e em ruínas. Mas tinha amamentado os gatinhos, e eles estavam vivos. Bufaram e cuspiram quando foram içados para o cesto. A gata estava demasiado rígida e fria para conseguir sair sozinha. Primeiro fizemos sair os gatinhos zangados, enquanto ela ficava agachada na terra húmida, esperando. O cesto desceu outra vez, e ela foi içada. Toda a família foi levada para nossa casa, onde lhe demos um canto, comida, protecção. Os gatinhos cresceram e encontraram lares; e ela voltou a ser uma gata doméstica - e provavelmente continuou a ter gatinhos.

  

   Primavera. As portas abrem-se. A terra cheira a novo. Gata cinzenta e gata preta correm e saltam por todo o jardim, pelos muros. Rebolam-se no fraco calor do sol - mas bem longe uma da outra. Levantam-se, e encontram-se, cautelosamente, cheiram-se, nariz contra nariz, deste lado, daquele. Gata preta vai para dentro, para os deveres da maternidade; gata cinzenta fica fora, caçando.

   Gata cinzenta trouxe novos hábitos de Devon. A sua caça é mais veloz, mais mortal, mais sensitiva. Fica assolapada junto a um muro, vigiando a árvore durante horas, imóvel. Então, quando o pássaro voa para baixo, agarra. Ou, surpreendentemente, não agarra. Há o telhado plano do teatro sobranceiro ao jardim do vizinho, onde os pássaros gostam de estar. Gata cinzenta deita-se no telhado, não agachada, mas esticada, queixo nas patas, a cauda quieta. E não dorme. Os seus olhos ficam intensos sobre os estorninhos, os tordos, os pardais. Vigia. Depois levanta-se; arqueia o dorso, lentamente; estica as patas de trás, as patas da frente. Os pássaros ficam imóveis, vendo-a. Mas ela boceja, ignora-os, e delicadamente toma o seu caminho ao longo do muro até casa. Ou senta-se aos pés da minha cama e observa-os através da janela. Talvez a sua cauda se contorça um pouco - mas é tudo. Pode ficar ali durante meia hora, observadora indiferente: ou assim parece. Então, num momento, alguma coisa dispara o instinto da caça. Fareja, os bigodes mexem-se: salta da cama, corre escada abaixo, para o jardim. Aí se acocora, fera mortífera, contra o muro. Silenciosamente trepa o muro - não para cima dele, não: gata cinzenta, como nos desenhos animados, agarra-se ao muro com as patas dianteiras, põe o queixo sobre o muro, suporta o peso nas pernas detrás, observa o estado das coisas no jardim do lado. Fica muito engraçada assim. É impossível não rir. Mas porquê? Por uma vez, gata cinzenta não está fazendo poses, não está consciente de si, não está a tentar arranjar admiração e comentários. Talvez seja o contraste entre a sua absoluta intensidade, a sua concentração, e a inutilidade daquilo que vai fazer: matar uma criaturinha que ela nem sequer quer comer.   Enquanto ainda nos estamos a rir, ela sobe e está em cima do muro, apanhou um pássaro, está de volta ao muro com ele. Corre para casa com o pássaro - mas não, os inexplicáveis seres humanos apressaram-se a ir ao andar de baixo e a fechar a porta das traseiras. Por isso ela brinca com o pássaro no jardim até se cansar da brincadeira.

   Uma vez, um pássaro voou para baixo logo após ter passado um telhado, viu demasiado tarde a saliência duma parede, chocou contra ela, e ficou desmaiado, ou morto, no chão. Eu estava no jardim com gata cinzenta. Aproximámo-nos juntas do pássaro. Gata cinzenta não estava muito interessada - um pássaro morto, parecia pensar. Lembrei-me como gata preta revivera com o calor das mãos, e aconcheguei o pássaro na minha mão. Sentei-me na beira dum canteiro; gata cinzenta sentou-se perto, observando. Segurei o pássaro entre nós as duas. Ele moveu-se, tremeu; a sua cabeça levantou-se, os olhos desfocados. Observei a gata. Não se interessou. O pássaro pôs as suas garras frias na palma da minha mão, e fez força, como um bebé experimentando a sua força com os pés. Deixei o pássaro ficar numa das mãos, pus-lhe a outra por cima. Parecia cheio de vida. Todo este tempo, gata cinzenta mal olhava. Levantei então o pássaro na minha mão, onde ele se deixou ficar uns momentos. Gata cinzenta ainda não respondeu. Então o pássaro bateu as asas e levantou voo rapidamente. No último momento, os instintos caçadores da gata foram despertados, os músculos obedeceram, ela concentrou-se para o salto. Mas entretanto o pássaro tinha desaparecido, e ela relaxou e lambeu-se. Os seus movimentos durante este incidente tinham a mesma qualidade que aqueles que fizera antes do nascimento da sua primeira ninhada - quando ela fora breve e inconclusivamente coagida a fazer uma toca para os gatinhos. Alguns actos foram executados; parte da gata estava envolvida neles; mas sem que ela realmente o soubesse; não se pusera em acção como criatura total.

   Talvez seja algum determinado movimento que o pássaro faz, um sinal particular, que atrai o caçador dentro do gato, e até esse momento chegar o gato não está envolvido com o pássaro, não tem relação com ele. Ou talvez seja um som. Tenho a certeza que o frenético pipilar dum pássaro apanhado, o chiar dum rato, desperta o desejo do gato de torturar e atormentar. Afinal de contas, mesmo nos humanos, os sons do susto despertam emoções fortes: pânico, raiva, reprovação - as molas da moralidade são tocadas. Quer-se socorrer a criatura, bater no gato, ou deixar todos esses assuntos de bichos onde não possam ser vistos nem ouvidos, onde possam ser ignorados. Um pouco de pressão, a mola saltaria, e estaríamos cravando os dentes em carne macia, rasgando-a com garras. Mas qual mola? Essa é a questão. Talvez para o gato não seja um som, mas outra coisa.

     O grande naturalista sul-africano, Eugene Marais, descreve no seu notável e belo livro, A Alma da Formiga Branca, como tentou descobrir como comunica uma certa espécie de escaravelho. Era o escaravelho "toktokkie". Não está equipado com órgãos auditivos; no entanto, qualquer pessoa criada nas planícies sul-africanas conhece o seu sistema de sons de pequenas pancadas. Ele descreve as semanas que passou com os escaravelhos,. observando-os, pensando neles, fazendo experiências. E de repente, aquele maravilhoso momento de descoberta, quando chegou à conclusão, até então não óbvia, de que não era o som, mas a vibração, que o escaravelho usava: uma vibração tão subtil que fica fora do nosso alcance. E a sinfonia de estalos, chiadeiras, trinados e zumbidos, que é como experimentamos o mundo dos insectos - numa noite quente, por exemplo - épara eles um conjunto de sinais de natureza diferente, que nós somos demasiado crus para captar. Claro, com certeza: óbvio. Quer dizer, assim que se vê.

       À frente dos nossos narizes, todas estas complicadas linguagens que não sabemos interpretar.

     Podemos ver uma coisa dúzias de vezes, pensando: Que bonito, ou: Que estranho, até que - sempre inesperadamente - de repente faz sentido.

     Por exemplo: quando os gatinhos de gata preta estão na idade de andar, há sempre um momento, nunca quando gata preta está a ver, em que gata cinzenta se arrasta até um dos gatinhos - e é isto o que é tão estranho - como se os gatinhos fossem um fenómeno novo, como se ela nunca tivesse tido gatinhos. Arrasta-se por trás, ou de lado, até ao gato. Cheira-o, ou estende uma pata, tenteando, experimentando: poderá até dar-lhe uma ou duas lambidelas rápidas. Mas nunca de frente. Nunca a vi aproximar-se de frente. Se o gatinho se vira e a enfrenta, talvez até com curiosidade amigável, de modo nenhum hostil, gata cinzenta bufa, o pêlo eriça-se - como se avisada por algum mecanismo.

   Pensei que acontecesse só com gata cinzenta, a quem foram retirados os instintos sexual e maternal, e que é tão cobarde. Mas há quinze dias, um gatinho de cinco semanas estava a dar o seu primeiro passeio no jardim: cheirando, olhando, aventurando-se. O pai, o gato esbranquiçado, apareceu; e exactamente da mesma forma que gata cinzenta, duma maneira cautelosamente arrastada. Cheirou o gatinho por trás. Este voltou-se e encarou esta nova criatura, e imediatamente o grande gato macho retrocedeu, bufando assustado, ameaçado por aquela coisa minúscula que ele poderia matar com um golpe das suas mandíbulas.

   A natureza protegendo uma frágil criatura de um adulto da mesma espécie durante o período em que ela não pode defender-se pela força?

As gatas têm agora quatro anos, e dois anos. Gata cinzenta está a menos de metade da sua vida - se tiver sorte.

   Não há muito tempo, ela não estava em casa quando fomos para a cama. Não entrou durante a noite. No dia seguinte, nada de gata cinzenta. Nessa noite, uma vez que gata cinzenta não estava na posição de prestígio, gata preta ocupou-a.

   No dia seguinte, liguei todos os mecanismos de defesa: bem, era só uma gata, etc. E fiz as coisas rotineiras: Alguém viu uma gata cinzenta meia siamesa com a barriga esbranquiçada e manchas pretas? Ninguém tinha visto.

   Muito bem, quando gata preta tivesse a próxima ninhada ficaríamos com um, pelo menos ficaríamos com dois gatos em casa que seriam amigos, que gostariam um do outro.

   Ao fim de quatro dias, gata cinzenta apareceu, veio correndo pelos muros. Talvez tivesse sido roubada e tivesse fugido; talvez tivesse ido visitar alguma família que a admirasse. Gata preta não ficou contente de a ver. De tempos a tempos alguém em casa ralha com as gatas, quando pensa que ninguém está a ouvir: Palermas, idiotas, por que é que não são amigas? Pensem no que perdem, que bom que seria!

   Na semana passada pisei o rabo de gata cinzenta sem querer; ela soltou um berro, e gata preta saltou para matar: reflexo instantâneo. Gata cinzenta tinha perdido favores e protecção, assim pensou gata preta, e tinha chegado o seu momento.

   Pedi desculpa a gata cinzenta, acariciei as duas. Aceitaram estas atenções, olhando uma para a outra todo o tempo, e seguiram os seus caminhos separados para os seus separados pires, os seus separados lugares para dormir. Gata cinzenta rebola-se na cama, boceja, lava-se, ronrona: gata favorita, gata patroa, gata rainha pelo direito da força e da beleza.

   Gata preta tende a acomodar-se agora - não há gatinhos, de momento - num canto do vestíbulo onde fica de costas para a parede, e pode vigiar os invasores que cheguem do jardim, e espiar os movimentos de gata cinzenta, escada abaixo, escada acima.

     Quando gata preta dormita, olhos semi fechados, torna-se no que realmente é: o seu ser verdadeiro, sem a devoção atarefada a que a maternidade a obriga. Pequeno animal sólido e macio, sentada, uma gata preta, preta com o seu nobre perfil, curvo e distante.

   Gato das Sombras! Gato plutónico! Gato de alquimista! Gato da meia-noite!

   Mas gata preta não está hoje interessada em cumprimentos, não quer ser incomodada. Faço-lhe festas, ela arqueia levemente as costas. Solta um meio ronrom, num agradecimento polido ao alienígena, volta a olhar para o mundo escondido atrás dos seus olhos amarelos.

 

   Os acontecimentos projectaram a sua sombra, algum tempo antes. Durante toda essa primavera e verão, quando eu passava no passeio da rua, um gato ruivo de aspecto miserável saía de debaixo dum carro ou dum jardim, e ficava a olhar intensamente para mim, não querendo ser ignorado. Queria alguma coisa, mas o quê? Gatos nos passeios, gatos nos muros dos jardins, ou aparecendo das portas, esticam-se e abanam as caudas, cumprimentam, acompanham-nos durante alguns passos. Querem companhia ou, se foram deixados na rua por donos sem coração, frequentemente aí ficando todo o dia ou toda a noite, pedem socorro com um miado estridente, insistente e implorante, que significa que estão com fome, ou sede ou frio. Um gato enrolando-se nas nossas pernas numa esquina, pode estar a pensar se lhe será possível trocar uma casa pobre por uma melhor. Mas este gato não miava, apenas olhava, um olhar pensativo, directo, dos olhos amarelo-cinzento. Depois começou a seguir-me ao longo do passeio, hesitando, olhando para mim. Apresentava-se-me quando eu entrava e quando saía, e pesava-me na consciência. Teria fome? Trouxe-lhe alguma comida, que pus debaixo dum carro, e ele comeu um pouco, mas deixou o resto. No entanto, estava necessitado, desesperado, via-se. Teria ele uma casa na nossa rua, e seria uma má casa? Parecia estar a maior parte das vezes perto duma casa um pouco abaixo da nossa, e, uma vez, quando uma mulher velha entrou, ele entrou também. Portanto tinha casa. Mas continuou a seguir-me até ao nosso portão e uma vez, quando o passeio se encheu .com uma onda de ruidosas crianças da escola, ele refugiou-se no nosso pequeno jardim da frente, aterrado, olhando-me enquanto eu entrava em casa.

   Tinha sede, não fome. Ou tinha tanta sede, que a fome era exigência secundária. Isto passou-se no verão de 1984, que teve longos períodos de tempo quente. Gatos deixados na rua todo o dia sem água sofriam. Pus uma bacia com água no alpendre da frente, uma noite, e de manhã estava vazia. Depois, como o tempo quente continuasse, pus outra bacia na varanda de trás, alcançável pelo lilaseiro e por um grande salto a partir do pequeno telhado mais abaixo. E também esta bacia estava vazia todas as manhãs. Num dia quente e poeirento lá estava o gato cor de laranja na varanda de trás, agachado junto à bacia, bebendo, bebendo... Acabou a água e queria mais. Voltei a encher a bacia e novamente ele se agachou e a bebeu toda. O que queria dizer que os seus rins não estavam bons. Pude então olhar bem para ele. Um gato esgrouviado, a pelagem suja e áspera sobre ossos salientes. Mas era duma cor maravilhosa, cor de fogo, como uma raposa. Era, como se costuma dizer, um gato inteiro, as suas duas bolas felpudas bem arrumadas sob a cauda. Tinha as orelhas rasgadas, cheias de cicatrizes de lUtas. Agora, quando eu saía e entrava em casa, já não estava na rua, mudara-se da frente das casas e da vida precária, com carros velozes e gritos e correrias das crianças, para o cenário das traseiras com grandes jardins desmazelados e arbustos e árvores, e muitos pássaros e gatos. Ficava na nossa varanda, onde há plantas em vasos e um parapeito baixo em volta. Sobre a varanda, o lilás estende os seus ramos, sempre cheios de pássaros. O gato deitava-se na tira de sombra junto ao parapeito, e a tijela de água estava sempre vazia, e quando me via levantava-se e punha-se ao lado da tijela esperando mais.

   Entretanto, nós, os da casa, tínhamos percebido que urgia tomar uma decisão. Queríamos outro gato? Já tínhamos dois machos, bonitos, grandes, preguiçosos e capados, que haviam tido sempre uma óptima vida, e acreditavam que a vida lhes devia comida, conforto, calor, segurança, coisas pelas quais nunca tinham tido que lutar. Não, não queríamos outro gato, muito menos um gato doente. Passámos então a dar comida, além de água, a este pobre enjeitado, pondo a comida na varanda para que ele soubesse que se tratava dum favor e não dum direito, e que ele não nos pertencia e não podia entrar em casa. Brincávamos, dizendo que era o nosso gato de rua.O tempo quente continuou.

       O gato tinha que ser levado ao veterinário. Mas isso quereria dizer que o gato era nosso, passaríamos a ter três gatos, e os realmente nossos estavam insolentes, desconfiados e ofendidos com este recém-chegado que parecia ter direitos sobre nós, ainda que limitados. Além disso, o que acontecera à mulher velha que ele às vezes visitava? Observámo-lo indo rigidamente ao longo dum caminho, virando à direita para rastejar por baixo duma vedação, atravessando um jardim e depois outro, a sua cor de fogo brilhando contra o verde esmaecido do final do verão, e desaparecendo, provavelmente para a porta das traseiras duma casa onde era benvindo.

     O tempo quente acabou e começou a chover. O gato fulvo, à chuva na varanda, com o pêlo riscado de escuro pela água que escorria, olhava-me. Abri a porta da cozinha, ele entrou. Disse-lhe qual a cadeira que ele podia usar, e só aquela; era a cadeira dele, e não deveria pedir mais. Saltou para a cadeira, deitou-se e olhou tranquilamente para mim. Tinha o ar de alguém que sabe que deve tirar o máximo partido daquilo que o Destino lhe oferece, antes que lhe seja retirado.

   Quando não estava a chover a porta da varanda ficava aberta, sobre as árvores e o jardim. Detestávamos fechar-nos com vidraças e cortinas. E o gato continuava a poder usar o lilaseiro para descer para o jardim quando precisava. Ficou todo esse dia na cadeira, na cozinha, algumas vezes descendo desajeitadamente para beber mais uma tijela de água. Agora comia muito. Não passava por uma tijela de comida ou de água sem comer ou beber um pouco, pois sabia que não deveria considerar nada como garantido.

   Era um gato que tivera casa, mas perdera-a. Sabia o que era ser o gato da casa, um animal de estimação. Queria ser acariciado. A sua história era vulgar. Tinha tido uma casa, amigos humanos que o amavam, ou pensavam que sim, mas não era uma boa casa, porque as pessoas ausentavam-se muito e deixavam-no e ele tinha que encontrar comida e abrigo por si, ou eram pessoas que cuidaram dele enquanto lhes apeteceu, e que depois deixaram o bairro, abandonando-o. De tempos a tempos, fora alimentado pela mulher velha, mas não fora suficiente, ou não conseguira água para beber. Agora estava com melhor aspecto. Mas não se limpava. Tinha o corpo rígido, claro que isso lhe dificultava os movimentos, mas estava desencorajado, desanimado. Talvez tivesse acreditado que nunca mais voltaria a ter uma casa? Depois de alguns dias, quando teve a certeza que não o escorraçaríamos da cozinha, começou a ronronar de cada vez que entrávamos. Eu nunca ouvira, nem nenhuma das pessoas que me visitava, um gato ronronar tão alto como ele. Deitava-se na cadeira, as suas costelas subiam e desciam e o seu ronronar ressoava pela casa. Queria que soubéssemos que nos estava grato. Era um ronronar calculado.

   Escovámo-lo. Limpámos o pêlo que ele não limpava. Demos-lhe um nome. Levámo-lo ao veterinário, assim assumindo que tínhamos um terceiro gato. Os rins dele estavam mal. Tinha uma úlcera numa orelha. Perdera alguns dentes. Tinha artrite ou reumatismo. O coração podia estar melhor. Mas não, não era um gato velho, talvez oito ou nove anos, na força da vida se tivesse sido bem tratado, mas vivera como pudera, e talvez durante bastante tempo. Os gatos que têm que fazer pela vida e pedinchar e dormir ao relento com mau tempo nas grandes cidades não vivem muito. Teria morrido em breve se não o tivéssemos recolhido. Ele tomou os seus antibióticos e vitaminas, e pouco depois da primeira visita ao veterinário reiniciou a penosa tarefa de se limpar. Mas havia partes do corpo que ele não alcançava, por ser demasiado rígido, e tinha que labutar e lutar para ser um gato limpo e civilizado.

   Tudo isto se passava na cozinha, geralmente na cadeira, que ele tinha medo de deixar. O seu lugar. O seu pequeno lugar. O seu buraquinho na vida. E quando saía para a varanda, vigiava-nos, não fosse o caso de lhe fecharmos a porta, porque, mais do que tudo, receava ser fechado fora da porta, e se fizéssemos qualquer movimento parecendo que iríamos fechar a porta, ele apressava-se dolorosamente para dentro de casa e para cima da cadeira.

   O gato gostava de se sentar no meu colo, e, quando se sentava, desatava a ronronar, e olhava para mim com aqueles inteligentes olhos amarelos acinzentados: Olha, estou grato, e estou a dizer-te que estou.

   Um dia, quando os árbitros do seu destino estavam na cozinha bebendo chá, pulou da sua cadeira e caminhou vagarosamente até à porta, que dava para o resto da casa. Aí parou, voltou-se e, deliberadamente, olhou-nos. Não podia ter perguntado mais claramente: Posso entrar na casa? Posso ser um gato de casa a sério? .Por essa altura já o teríamos convidado com gosto, mas os nossos dois outros gatos pareciam tolerá-lo apenas se ele ficasse como era, um gato de cozinha. pontámos-lhe a cadeira, voltou pacientemente para ela, onde ficou deitado em silêncio por algum tempo, começando depois a arfar no seu ronrom. Escusado será dizer que isto nos fez sentir mal.

       Alguns dias depois, saiu cuidadosamente da sua cadeira, foi até à mesma porta e parou, olhando para trás, esperando instruções. Desta vez não lhe dissemos que tinha de voltar para trás, por isso ele entrou em casa, mas não foi longe. Descobriu um lugar abrigado debaixo duma banheira e aí ficou. Os outros gatos foram ver onde ele estava, e inquiriram sobre o que pensávamos quanto a isso, mas o que nós pensávamos era que estes dois jovens príncipes bem podiam partilhar a sua boa sorte. Lá fora era oUtono, e depois inverno, e precisávamos de fechar a porta da cozinha. E o que fazer quanto aos problemas de retrete deste novo gato? Ele agora esperava à porta da cozinha quando precisava de sair, mas uma vez lá fora não queria saltar para o pequeno telhado em baixo, ou trepar pelo lilás, porque lhe custava mexer-se. Usava os vasos onde as plantas tentavam crescer, por isso pus uma caixa grande cheia de terra; ele percebeu e usou-a. Uma maçada, ter de esvaziar a caixa de terra. Há uma porta para gatos no fundo da casa, que dá para o jardim, e os nossos dois jovens gatos nunca, nem uma vez, sujaram a casa. Com chuva ou neve ou ventania, vão lá fora.

   E assim estava a situação quando o inverno começou. À noite, as pessoas e os dois gatos residentes, os gatos com direitos, ficavam na sala de estar, e Rufus ficava debaixo da banheira. Então, uma noite, Rufus apareceu à porta da sala de estar, e foi uma aparição dramática, porque ali estava a incarnação dos desapossados, dos insultados, dos injuriados, fazendo-se sentir junto dos aquecidos, alimentados e privilegiados. Rufus deitou um olhar aos dois gatos seus rivais, mas manteve os seus olhos inteligentes em nós. O que íamos dizer? Dissemos: Muito bem, ele podia usar o velho almofadão de couro perto do aquecedor, o calor iria fazer bem aos seus ossos doridos. Ajeitámos uma cova no almofadão, ele trepou para a concavidade e enrolou-se, cuidadosamente, e ronronou. Ronronou, ronronou, ronronou tão alto e tanto tempo que tivemos que lhe pedir que parasse, porque nem nos conseguíamos ouvir a nós próprios. Literalmente. Tivemos que aumentar o som da televisão. Mas ele sabia que estava com sorte e queria que soubéssemos que percebia o valor daquilo que conseguira. Quando eu estava no último andar da casa, podia ouvir o rítmico ressoar, dois andares abaixo, o que significava que Rufus estava acordado, dizendo-nos a sua gratidão. Ou talvez estivesse a dormir e ronronando enquanto dormia, porque quando começava não parava, ficava ali enrolado, com os olhos fechados, o peito arfando. Havia qualquer coisa de imoderado e escandaloso no ronronar de Rufus, por ser tão calculado. E ele lembrava-nos os acasos e aventuras e desventuras que tinha sofrido, enquanto nós olhávamos e ouvíamos esse velho sobrevivente, que ainda estava vivo apenas porque usara os seus talentos.

   Mas os nossos outros dois gatos não estavam satisfeitos. Um chama-se Carlos, originalmente Príncipe Carlos, não pelo actual proprietário desse título, mas por anteriores príncipes românticos, porque Carlos é um tigrado veloz e bonito que sabe apresentar-se. Quanto ao seu carácter, quanto menos se disser, melhor - mas esta crónica não é sobre Carlos. O outro gato, o irmão mais velho, com personalidade correspondente, tem um nome cerimonialmente completo, conferido logo que deixou a infância e as suas qualidades se tornaram evidentes. Chamámos-lhe General Pinlrnose Terceiro, rendendo-lhe homenagem, e talvez relembrando a nós próprios que mesmo o mais bem tratado dos gatos nos deixará um dia. Já tínhamos visto aquele tom rosa cor de gelado, mas só na ponta de narizes com uma curva menos nobre, em gatos anteriores e menos imponentes. Como algumas pessoas, General adquire novos nomes à medida que o tempo traz as suas revelações, e recentemente, por causa da sua força moral e habilidade para impor juízos silenciosos numa situação, tornou-se Bispo, e ficou conhecido como Bispo Butchkin. Reservando os seus comentários, estes dois gatos deitavam-se nos respectivos lugares, narizes nas patas, e observavam Rufus. Carlos está sempre debaixo dum aquecedor, mas Butchkin gosta do topo dum cesto alto onde pode estar de olho nas coisas. É um gato magnífico. O hábito já embotou os meus olhos: eu sabia que ele era bonito, mas quando voltei duma viagem fiquei deslumbrada com este gato enorme, ousadamente manchado de preto brilhante e branco imaculado, de olhos amarelos, com bigodes brancos, e pensei que a sua beleza tinha sido criada, a partir de material mais do que comum, por boa alimentação e bons cuidados. Deixado inteiro, se tivesse que calcorrear em volta em qualquer estação do ano para competir por uma companheira, não teria este aspecto, seria mais pequeno, ou pelo menos magro, um gato combatente e com marcas de guerra. Não, não acho que capar gatos seja uma boa coisa, longe disso.

   Mas este conto não é sobre El Magnifico, o nome que melhor lhe fica.

   Quando pensava que nós não víamos, Carlos tentava encurralar Rufus num canto e ameaçava-o. Mas Carlos nunca tinha tido que lutar e competir, e Rufus tinha, toda a vida. Rufus era tão raquítico que podia ser derrubado com uma pancada duma pata decidida. Mas sentava-se e defendia-se com olhares duros e experientes, com a sua prudente paciência, a sua indomabilidade. Não havia dúvida quanto ao que aconteceria a Carlos se ficasse ao alcance duma patada. E quanto a El Magnifico, esse estava acima de competições deste nível.

   Durante todas essas primeiras semanas, enquanto recuperava forças, Rufus nunca saía de casa, excepto para ir à caixa de terra na varanda, e aí tratava dos seus assuntos, mantendo o olhar sobre nós, e mesmo depois, se lhe parecesse que a porta iria fechar-se, dava um pequeno gemido de pânico e coxeava de volta para dentro. Tinha tanto medo, mesmo então, de perder o refúgio ganho depois de tão longo desamparo, de tantos tormentos de sede. Tinha medo de pôr uma pata de fora.

   Lentamente passou o inverno. Rufus deitava-se no seu almofadão, ronronava de cada vez que se lembrava de o fazer, e vigiava-nos, e vigiava os outros dois gatos vigiando-o. Deu então outro passo. Por esse tempo já sabíamos que ele nunca fazia nada sem uma boa razão, que primeiro planeava, e depois agia. O gato preto e branco, Butchkin, era o patrão. Tinha nascido em nossa casa, um de seis gatos. Tinha educado os irmãos tanto como a mãe: ela não era tanto uma má mãe como uma mãe exausta. Nunca houve dúvidas acerca de quem era o mandão da ninhada. Rufus decidiu então usar um estratagema para alcançar a posição de gato patrão. Não pela força, que a não tinha, mas usando a sua posição de gato doente, a quem se dava tanta atenção. Todas as noites O General, El Magnifico Butchkin, vinha deitar-se a meu lado no sofá durante um bocado, para estabelecer o seu direito a essa posição, antes de ir para o seu sítio favorito, em cima do cesto. Esse lugar a meu lado era o melhor porque Butchkin pensava assim: Carlos, por exemplo, não tinha direito a ele. Mas agora, tal como caminhara deliberadamente até à porta da cozinha e olhara então para trás para ver se nós lhe permitíamos que entrasse em casa, tal como ele ficara à porta da sala de estar para ver se nós o deixávamos entrar e juntar-se à família, agora Rufus saiu deliberadamente do seu almofadão, veio até onde eu estava, içou-se, primeiro as patas dianteiras, e depois, com dificuldade, as patas traseiras, e sentou-se a meu lado. Olhou para Butchkin. Depois para os humanos. Finalmente, um olhar descuidado a Carlos. Eu não o enxotei. Não podia. Butchkin apenas olhou para ele e então, vagarosamente (e magnificamente), bocejou. Pensei que seria ele a obrigar Rufus a voltar para o almofadão. Mas ele nada fez, apenas olhou. Estaria à espera que eu agisse? Rufus deitou-se, cuidadosamente, por causa das suas articulações doridas. E ronronou. Todas as pessoas que vivem com animais têm momentos em que desejam uma linguagem comum. E esta era uma. O que lhe tinha acontecido, como é que tinha aprendido a planear e calcular, como é que se tinha tornado num gato tão pensante? Está bem, teria nascido inteligente, mas também Butchkin, e Carlos. (E há gatos muito estúpidos.) Está bem, ele teria nascido com esta ou aquela natureza. Mas nunca conheci um gato tão capaz de pensar, de planear o seu próximo passo, como Rufus.

   Deitado a meu lado, tendo conseguido o melhor lugar na sala de estar apenas algumas semanas depois de ser um marginal, ronronou. (Chiu, Rufus, nem conseguimos ouvir o que pensamos." Mas não partilhávamos uma linguagem, não podíamos explicar-lhe que não o mandávamos embora se parasse de ronronar, de dizer obrigado.

   Quando o obrigávamos a engolir pílulas dava pequenos gemidos de protesto: provavelmente via nisso o preço que tinha de pagar pelo refúgio. Algumas vezes, quando lhe limpávamos a orelha e lhe doía, ele praguejava, mas não connosco: era uma praga genericamente dirigida, uma praga de alguém que tinha muitas ocasiões de rogar pragas. Lambia-nos depois as mãos, para mostrar que não praguejara connosco, e punha outra vez o seu ronrom a funcionar. Fazíamos-lhe festas e ele soltava o seu gemido rouco de reconhecimento.

   Entretanto Butchkin o Magnífico olhava-nos e pensava os seus próprios pensamentos. O seu carácter teve muito a ver com o destino de Rufus. É demasiado orgulhoso para competir. Se estava em conversa íntima comigo, na parte de cima da casa, e Carlos aparecia, ele pura e simplesmente saltava da cama ou da cadeira e ia para o andar de baixo. Não só não tolerava competição que achasse indigna dele, como não consentia pensamentos de que não fosse o centro. Pegando nele, fazendo-lhe festas, eu tinha que manter os meus pensamentos centrados nele. Com Butchkin, nunca nada do género de lhe fazer festas enquanto lia. No momento em que os meus pensamentos se desviavam, ele sabia, saltava para o chão e ia-se embora. Mas não guardava ressentimentos. Quando Carlos se portava mal, atormentando-o, dava-lhe uma patada, mas a seguir dava uma lambidela de perdão, noblesse oblige.

   Tal carácter não iria rebaixar-se lutando com gato algum pelo primeiro lugar.

   Um dia, eu estava de pé no meio da sala falando com Butchkin, que estava enrolado no cimo do seu cesto, quando Rufus saiu do sofá e veio pôr-se mesmo à frente das minhas pernas, olhando para Butchkin como se dissesse: Ela prefere-me a mim. Isto foi feito lenta e deliberadamente, ele não era nunca emotivo ou precipitado ou impulsivo, características que Carlos tinha em demasia. Rufus tinha planeado isto, estava calmo e,o reflectido. Tinha decidido fazer um lanço final para ser primeiro gato, o meu favorito, com Butchkin em segundo lugar. Mas eu não ia aceitar. Apontei para o sofá, ele olhou para mim duma maneira que, fosse ele humano, quereria dizer, está bem, valia a pena tentar. E voltou para o sofá.

   Butchkin notou a minha decisão a seu favor e não fez mais comentários sobre isso, para além de descer do seu lugar, vir roçar-se nas minhas pernas, e voltar para o cesto.

   Rufus tinha feito a sua tentativa para ser primeiro gato, e falhara.

 

     Ele não tinha posto uma pata fora durante meses, mas vi-o então tentar um salto desajeitado para o telhado; e daí olhou para trás, ainda com medo que eu não o deixasse voltar, depois mirou o lilaseiro, congeminando como descer por ele. A primavera tinha voltado. O arbusto estava verde de novo e as flores, ainda em botão, caíam em cachos verdes esbranquiçados. Ele desistiu de utilizar a árvore e saltou penosamente de volta para a varanda. Peguei-lhe ao colo, levei-o para baixo, mostrei-lhe a porta dos gatos. Ficou aterrado, pensando que era uma armadilha. Suavemente empurrei-o através dela, enquanto ele praguejava e lutava. Fui atrás dele, agarrei-o, e empurrei-o outra vez. Imediatamente correu escada acima, pensando que eu queria mandá-lo embora. Esta cena repetiu-se em dias sucessivos e Rufus odiava-a. Entretanto eu acariciava-o e elogiava-o para que soubesse que não estava a tentar livrar-me dele.

   Pensou no assunto. Vi-o sair do seu lugar no sofá e descer devagar as escadas. Foi até à porta dos gatos. Aí ficou, a cauda contorcendo-se, indeciso, examinando a porta. Tinha medo: o medo fê-lo retroceder. Obrigou-se a parar, voltar atrás... várias vezes fez o mesmo, depois chegou à portinhola e tentou forçar-se a saltar através dela, mas os seus instintos despertaram e obrigaram-no a recuar. Outra e outra vez isto se repetiu. E finalmente conseguiu. Como uma pessoa saltando na beira do precipício, enfiou a cabeça, depois o corpo, e estava no jardim cheio de cheiros e sons de primavera, pássaros rejubilando porque tinham sobrevivido outro inverno, crianças reocupando os seus pátios de recreio. O velho vagabundo ficou ali, inalando o ar que parecia enchê-lo com nova vida, uma pata levantada, virando a cabeça para captar as mensagens dos odores (o que alguém lá em casa chamou odorogramas) que lhe traziam lembranças de antigos amigos, tanto felinos como humanos, que lhe traziam memórias. Foi fácil vê-lo então como era em jovem, bonito e vigoroso. Continuou a andar no seu modo deliberado, coxeando um pouco, até ao extremo do jardim. Debaixo das velhas árvores de fruto olhou à direita, olhou à esquerda. Memórias puxavam-no para ambos os lados. Foi para a direita, passando sob a cerca, na direcção da casa da mulher velha - ou pelo menos assim o supusemos. Aí ficou cerca de uma hora, até que o vi voltar, encolhendo-se sob as cercas, até ao nosso jardim, e veio pelo carreiro e ficou frente à porta das traseiras, junto à portinhola dos gatos e olhou para mim: Por favor abre a porta, por hoje basta. Cedi e abri-lhe a porta. Mas no dia seguinte ele forçou-se a passar pela portinhola, e voltou pela portinhola, e depois disso já não foi necessária a caixa de terra, nem quando chovia ou nevava ou o jardim estava cheio de vento e barulho. A não ser quando ele estava doente ou demasiado fraco.

   A maior parte das vezes ia para a direita, mas algumas vezes também para a esquerda, para uma viagem maior, e eu espreitava-o com os binóculos, até o perder de vista nos arbustos. Quando voltava de qualquer dos seus passeios vinha logo pedir festas, e punha em funcionamento a sua máquina de ronronar... foi então que reparámos que o seu ronrom já não era o altíssimo ruído, insistente e prolongado, do tempo em que ele viera para nossa casa. Agora ronronava adequadamente, com moderação, como convinha a um gato que queria que tivéssemos a certeza de que ele nos valorizava, a nós e ao seu lugar connosco, mesmo não sendo o gato principal, e não lhe dando nós o primeiro lugar. Durante muito tempo tivera medo de que nos revelássemos caprichosos e o mandássemos embora, ou o deixássemos na rua, mas agora sentia-se mais seguro. Mas, nesta fase, quando voltava das suas visitas vinha imediatamente para junto de um de nós, e ronronava, sentava-se junto às nossas pernas, ou dava-nos marradinhas, o que significava que queria que lhe esfregássemos as orelhas, particularmente a que estava ferida e não sarava.

   Essa primavera e esse verão foram bons para Rufus. Estava bem, tanto quanto podíamos ver. Tinha confiança em nós, embora uma vez, quando descuidadamente peguei num velho pau de vassoura, que estava no chão da varanda de trás, o visse saltar para o telhado debaixo, cair, atabalhoar-se pelo lilaseiro abaixo e fugir para o fim do jardim em pânico. Alguém no passado lhe tinha atirado paus, ou lhe tinha batido. Corri para o jardim, e encontrei-o aterrado, escondido num arbusto. Peguei-lhe, trouxe-o de volta, mostrei-lhe o inofensivo pau de vassoura, pedi desculpa, fiz-lhe festas. Ele percebeu que tinha sido um engano.

   Rufus fez-me pensar nas diferentes espécies de inteligência felina. Antes, só tinha reconhecido que os gatos têm temperamentos diferentes. A inteligência dele era a de um sobrevivente. Carlos tinha uma inteligência científica, curioso acerca de tudo, assuntos humanos, as pessoas que vinham cá a casa, e, em particular, máquinas. Gravadores, o prato do gira-discos, a televisão, o rádio, fascinavam-no. Podia-se vê-lo conjecturando por que é que uma incorpórea voz humana emergia duma caixa. Quando era um gatinho, costumava parar um disco que girava com uma pata... soltá-lo... parar outra vez... olhar para nós, miar uma pergunta. Espreitar atrás do rádio para ver se podia ver o que ouvia, ir para trás da televisão, virar um gravador com a pata, cheirá-lo, miar. O que é isto? Era um gato falador. Falava connosco enquanto descíamos as escadas e saíamos de casa, falava outra vez quando entrávamos e quando subíamos as escadas, comentava tudo o que acontecia. Quando chegava do jardim podia-se ouvi-lo no cimo da casa. "Aqui estou eu, finalmente," gritava, "Carlos o adorável, e com certeza sentiram muito a minha falta! Imaginem o que me aconteceu, nem vão acreditar. . ." Entrava no quarto em que estávamos, parava na porta, a cabeça um pouco para o lado, esperando que o admirassem. "Não sou o gato mais bonito da casa?" perguntava, vibrante. Encantador, é a palavra para Carlos.

   O General tinha uma inteligência intuitiva, sabia o que estávamos a pensar, e o que íamos fazer a seguir. Não estava interessado na ciência, como funcionam as coisas; e não se dava ao trabalho de impressionar com a sua aparência. Falava quando tinha alguma coisa para dizer e apenas quando estava só com uma pessoa. "Ah," dizia, descobrindo que os outros gatos estavam em qualquer outro lado, "finalmente estamos sós." E permitia um dueto de admiração mútua. Quando eu voltava de qualquer lado, corria do fim do jardim gritando: "Estás aí, senti a tua falta! Como pudeste sair e deixar-me por tanto tempo?" Saltava para os meus braços, lambia a minha cara e, incapaz de conter a alegria, corria pela casa toda como um gatinho. Depois voltava ao seu ser digno e grave.

   O outono começou; Rufus tinha vindo a comportar-se como um gato forte e saudável por vários meses, visitando amigos, algumas vezes ficando fora um dia ou dois. Mas depois deixou de sair, era um gato doente deitado num sítio quente, um gato triste com feridas nas patas, sacudindo a cabeça por causa da úlcera na orelha, bebendo, bebendo... De novo para o veterinário. Veredito: não bom, muito mau, na verdade, feridas como esta, mau sinal. Mais antibióticos, mais vitaminas, e Rufus não deveria sair com frio e tempo húmido. Durante meses Rufus não fez qualquer tentativa para sair. Deitava-se perto do aquecedor, e o pêlo caía-lhe em grandes e espessos chumaços cor de ferrugem. Onde ele se deitava, mesmo por alguns minutos, ficava um ninho de pêlo cor de laranja, e podia-se ver-lhe a pele através do pêlo ralo. Lentamente, melhorou.

     Desafortunadamente aconteceu que outro gato, que não era nosso, precisava de medicação ao mesmo tempo. Tinha sido atropelado, tivera uma séria operação, e veio convalescer para nossa casa antes de ir para outra casa. Cuidávamos de dois gatos doentes e os nossos dois gatos não gostaram, resolveram ir para o jardim, para longe das vistas perturbantes. E Butchkin também parecia doente. Quando eu ia ao jardim ou à sala de estar via-o esticando o pescoço e tossindo duma forma delicada mas lúgubre, aguentando o sofrimento nobremente. Levei-o ao veterinário, mas nada se descobriu. Um mistério. Ele continuou a tossir. No jardim eu não podia apanhar um sacho ou arrancar uma erva sem ouvir aquela tosse seca e cavernosa. Muito estranho na verdade. Um dia, quando eu tinha feito festas ao pobre Butchkin e perguntado pela sua saúde, e desistido, e voltado para dentro, tive uma súbita e desagradável suspeita. Fui para a parte de cima da casa e espiei-o com os binóculos. Nem sinal de tosse, estava estendido gozando o sol do princípio da primavera. Desci ao jardim, e quando me viu pôs-se numa posição encolhida, o pescoço esticado, tossindo e sofrendo. Voltei àvaranda com os binóculos espiões, e lá estava ele, o seu belo pêlo branco e preto rebrilhando ao sol, bocejando. Felizmente o outro gato doente recuperou e foi para a sua nova casa e voltámos a ser uma família de três gatos. A tosse de Butchkin desapareceu misteriosamente, e ele adquiriu outro nome: durante algum tempo foi conhecido como Sir Laurence Olivier Butchkin.

   Agora os três gatos apreciavam o jardim nas suas diferentes maneiras, mas seguiam nas suas três existências paralelas: se os seus caminhos se cruzavam, ignoravam-se polidamente.

   Numa manhã soalheira vi dois gatos cor de laranja na relva fresca do quintal do lado. Um deles era Rufus. O seu pêlo tinha voltado a crescer mas mais fraco do que antes. Estava sentado muito direito, confrontando-se com um jovem macho, que o desafiava. Este gato era de um laranja brilhante, como um alperce ao sol, um gato rechonchudo e peludo, que fazia movimentos delicados, primeiro com uma pata depois com a outra, não tocando em Rufus mas, assim parecia, apontando a um imaginário ou invisível gato mesmo em frente de Rufus. Este jovem gato amoroso parecia dançar, conforme se sentava e balançava e andava de lado e dava patadas e golpeava o ar, e o ígneo brilho cor de raposa do seu pêlo fàzia Rufus parecer baço. Eram parecidos: este era filho de Rufus, de certeza, e nele eu estava a ver como fora Rufus antes de a maldade humana o ter transformado num pobre farrapo. A cena continuou por vários minutos, meia hora. Como muitas vezes fazem os gatos machos, pareciam estar encenando uma justa ou duelo como formalidade, com nenhuma intenção de realmente se magoarem. O jovem gato deu um berro ou dois, mas Rufus manteve-se silencioso, solidamente sentado no seu traseiro. O gato jovem continuou a fingir, com as suas patas orladas de vermelho, depois parou e rapidamente lambeu o lado como se perdesse interesse no assunto, mas depois, relembrado pela impávida presença de Rufus de que tinha o dever de lutar com ele, sentou-se outra vez, cheio de estilo e pose, como um gato heráldico, um felino numa cota de armas, e continuou com a sua dança de fingimento. Rufus continuou sentado, nem lutando nem recusando lutar. O jovem gato começou a ficar maçado e desandou jardim fora, desafiando as sombras, rebolando-se e refastelando-se na relva, caçando insectos. Rufus esperou até ele desaparecer, e então seguiu na sua calma maneira, na direcção em que ia esta primavera, não para a direita, para a casa da velha senhora, mas para a esquerda, onde ficava horas ou mesmo de noite. Estava bem de saúde outra vez, e era primavera, tempo de acasalamento. Quando voltava para casa vinha esfomeado e sedento, e isto significava que não fazia amigos humanos. Mas depois, à medida que a primavera passava, ficava fora mais tempo, uns dois dias, três. Tinha uma namorada, com certeza.

     Irritável e petulante, Gata Cinzenta tinha sido pouco amigável com outros gatos. Antes de ser esterilizada era seca com os seus parceiros, e hostil mesmo com gatos vivendo na mesma casa por longo tempo. Não tinha gatos amigos, apenas amigos humanos. Quando ela se tornou amiga de um gato pela primeira vez era velha, tinha cerca de treze anos. Eu vivia nessa altura num apartamento pequeno no andar de cima duma casa que não tinha portinholas de gato, apenas uma escada para a entrada principal. Daí ela fazia o seu caminho até ao jardim atrás da casa. Conseguia abrir a porta para entrar, mas tinha que ser ajudada a sair. Começou a admitir um velho gato cinzento que costumava subir as escadas mesmo atrás dela, depois esperava à porta que ela lhe dissesse que podia subir a escada dentro do nosso apartamento, e depois esperava em cima para ser convidado a entrar no meu quarto: esperava os convites dela, não os meus. Ela gostava dele. Pela primeira vez gostava dum gato sem que este tivesse começado por ser seu filho. Ele avançava silenciosamente no meu quarto - o quarto dela, segundo ele - e ia para o pé dela. Ao princípio ela sentava-se de frente para ele, de costas para um velho cadeirão como protecção; não ia confiar em ninguém, nem pensar! Ele parava a pouca distância e miava suavemente.

Quando ela dava uma rápida e relutante miadela em resposta - ficara como uma mulher velha que é quezilenta e tem mau génio mas não sabe -, ele agachava-se a uns trinta centímetros, e olhava-a fixamente. Ela também se agachava. Podiam ficar assim uma hora, duas horas. Depois ela tornou-se mais descontraída, e ficavam os dois agachados lado a lado, perto, mas sem se tocarem. Não conversavam, excepto sons curtos e suaves de cumprimento. Gostavam um do outro, queriam sentar-se juntos. Quem era ele? Onde vivia? Nunca descobri. Era velho, um gato que não tinha tido uma vida fácil, porque chegou às nossas mãos como uma sombra, o pêlo baço. Mas era um gato inteiro, um velho gato cavalheiro, cinzento, com bigodes brancos, educado, cortês, não esperando tratamento especial, nem grande coisa da vida. Comia um pouco da comida dela, bebia algum leite se lhe era oferecido, mas não parecia ter fome. Muitas vezes, quando eu chegava de qualquer lado, ele estava à porta, à espera, miava baixinho, olhando-me, e entrava atrás de mim, seguia-me escada acima até à porta do nosso apartamento, miava outra vez, e subia as últimas escadas até ao cimo, onde ia direito a Gata Cinzenta que deixava escapar o seu mal humorado miado quando o via, mas que lhe permitia depois um trinado de boas-vindas. Ele passava grandes serões com ela. Ela tinha mudado, menos arisca, menos pronta à ofensa. Costumava ficar a vê-los sentados juntos como dois velhos que não precisam de falar. Nunca na minha vida quis tanto poder partilhar uma linguagem com um animal. "Porquê este gato?" queria perguntar-lhe. "Porquê este e não outro? O que tem este gato velho e educado que te faz gostar dele? Porque suponho que admites que gostas dele? Todos estes belos gatos em casa, toda a tua vida, e nunca gostaste de nenhum, mas agora..."

   Uma noite ele não apareceu. Nem na seguinte. Gata Cinzenta esperou por ele. Olhou a porta toda a noite. Depois esperou em baixo, na porta da casa. Procurou no jardim. Mas ele não apareceu, nunca mais. E ela não voltou a ter um gato amigo. Outro gato, um macho que visitava o gato do andar de baixo, refugiou-se em nossa casa quando adoeceu, algumas semanas antes de morrer, e viveu o fim da sua vida no meu quarto - o quarto dela; mas ela nem reconheceu a sua existência. Comportava-se como se só eu e ela estivéssemos ali.

       Acho que Rufus tinha uma amiga assim, e que era onde ele ia de visita.

   Uma noite, no fim do verão, ele deitou-se a meu lado, no sofá, e ainda aí estava na manhã seguinte, exactamente na mesma posição. Quando finalmente desceu do sofá, andava com uma pata traseira encolhida, pendurada e flácida. O veterinário disse que ele fora atropelado; pode perceber-se pelas garras, porque os gatos instintivamente estendem as unhas para agarrar quando a roda os arrasta. As garras estavam partidas e abertas. Tinha uma fractura complicada na pata de trás.

     O gesso ia do tornozelo até ao cimo da anca, e ele foi colocado num quarto sossegado, com água, comida e um caixote de areia. Aí ficou contente durante a noite, mas depois quis sair. Abrimos-lhe a porta, e vimo-lo descer desajeitadamente as escadas, lanço após lanço, até ao rés-do-chão, onde praguejou e barafustou enquanto manobrava aquela perna espetada através da portinhola dos gatos, depois saltitou e mancou pelo carreiro fora, e praguejou ainda mais quando se esgueirou, arrastando a perna, por baixo da vedação. Seguiu para a esquerda, para a sua amiga. Demorou cerca de meia hora: tinha ido dar a notícia do seu acidente a alguém, felino ou humano. Quando voltou, ficou contente de ser posto de novo no seu refúgio. Estava abalado, deprimido, e os seus olhos mostravam que tinha dores. O pêlo, que ficara saudável com o verão e a boa alimentação, parecia áspero, e ele era outra vez um pobre gato velho que não podia limpar-se facilmente. Pobre farrapo velho! Pobre Gato Calamity! Acumulava nomes, como Butchkin, mas eram nomes tristes. Mas era indómito. Lançou-se à tarefa de arrancar o gesso, conseguiu, voltou ao veterinário para pôr gesso que não conseguisse arrancar. Mas tentou. E, todos os dias fazia a sua viagem escada abaixo, até à portinhola, onde hesitava, a perna espetada para trás, e depois passava, praguejando, porque batia sempre com a perna na porta, e nós ficávamos a vê-lo coxear no jardim pelas poças e folhas de outono. Tinha que rastejar quase com a barriga no chão para passar debaixo da vedação. Todos os dias ia dar notícias, voltava exausto e ia dormir. Quando acordado, trabalhava na tarefa de tirar o gesso. Onde se sentava, ficava tudo branco com bocadinhos de gesso.

   Ao fim de um mês tirou o gesso, a perna estava rígida mas utilizável, e Rufus voltou a ser quem era, um gato galante e aventureiro, que nos usava como base, mas depois voltou a adoecer. Este ciclo durou uns dois anos. Ficava bom e saía, adoecia e voltava para casa. Mas as suas doenças pioravam. A úlcera da orelha não sarava. Voltava de algures para pedir ajuda. Punha a pata, delicadamente, na orelha supurante, enojava-se delicadamente com o cheiro da pata, e olhava desanimadamente para os seus enfermeiros. Soltava pequenos gemidos de protesto quando lhe lavávamos a orelha, mas queria que o fizéssemos, e tomava os remédios, e deitava-se e tratava de ficar bom. Nas nossas mãos, o seu corpo duro e musculado, um velho gato forte, apesar das suas maleitas. Só no final da sua vida, da sua vida demasiado curta, quando estava tão doente que mal podia andar, ficava em casa e não tentava sair. Deitado no sofá, parecia pensar, ou sonhar, quando não dormia. Uma vez, estava a dormir e acordei-o com uma festa para lhe dar o remédio, e ele saiu do sono com o confiante e terno trinado que os gatos usam para saudar as pessoas de quem gostam, os gatos de quem gostam. Mas quando viu que era eu voltou ao seu ego polido e grato, e apercebi-me que fora esta a única vez que eu o ouvira fazer aquele som especial numa casa em que esse som era ouvido a toda a hora. É assim que as mães gatas saúdam os seus filhos, que os gatinhos saúdam as mães. Tinha ele tido um sonho de quando era gatinho? Ou talvez sonhasse até com o ser humano que fora seu dono quando ele era gatinho, ou um gato jovem, mas que se tinha ido embora e o abandonara. Magoou-me e chocou-me, esse som, porque ele nem o fizera quando ronronava como uma máquina para mostrar a sua gratidão. Durante todo o tempo em que nos conhecera, cerca de quatro anos, várias vezes tratado para recobrar a saúde, ou quase-saúde, nunca tinha realmente acreditado que não pudesse perder esta casa e não tivesse que voltar a lutar pela sobrevivência, voltar a ser um gato enlouquecido pela sede e dorido com o frio. A sua confiança em alguém, o seu amor, haviam sido uma vez tão profundamente traídos que ele não podia permitir-se amar de novo.

   Conhecendo gatos, uma vida inteira com gatos, o que resta é um sedimento de mágoa bem diferente do que é devido aos humanos: composto de dor pelo seu desamparo, de culpa em nome de nós todos.

 

                                                                                Doris Lessing  

 

                      

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