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GELO NEGRO / Michael Connelly
GELO NEGRO / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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CAL MOORE, do departamento de narcóticos, foi encontrado em um motel com um tiro na cabeça quando estava investigando sobre uma nova droga chamada "gelo negro". Para o detetive Harry Bosch, o importante não são os fatos isolados, mas o fio condutor que os mantém unidos. E suas averiguações sobre o suspeito suicídio de Moore parecem riscar uma linha reta entre os traficantes que rondam por Hollywood e os becos mais escuros da fronteira do México.

 

 

 


 

 

 


Um

A FUMAÇA se elevava do Passo Cahuenga e, ao topar com uma capa de ar frio, se dispersava por todo o vale. De onde Harry Bosch estava, a fumaça se assemelhava a uma bigorna cinzenta, que o sol do entardecer dava um tintura rosada na parte superior. O rosa ia se obscurecendo até chegar a um negro profundo na base, onde se achava a origem da fumaça: um incêndio florestal que avançava colina acima pela ladeira leste do cânion. Depois de conectar seu rádio à frequência do Serviço de Socorro do condado de Los Angeles, Bosch ouviu os relatos dos chefes das equipes de bombeiros para o quartel. Pelo visto, o fogo já tinha arrasado nove casas e estava a ponto de assolar as moradias da rua seguinte. Se não apagassem logo, chegaria nas montanhas de Griffith Park, onde poderia se propagar descontrolado durante horas. Percebia-se um claro tom de desespero nas vozes daqueles homens.


Bosch observou a esquadrilha de helicópteros aos quais a distância dava um aspecto de libélulas; entravam e saíam da cortina de fumaça com a missão de jogar água e espuma sobre as casas e árvores em chamas. Aquele ruído de hélices e o bamboleio característico dos aparelhos sobrecarregados lembrou-o por um instante dos ataques aéreos no Vietnam. Não obstante, sua atenção voltou em seguida para água que se precipitava sobre os telhados acesos, levantando enormes nuvens de vapor.


A seguir Bosch afastou a vista do fogo e dirigiu-a para a vegetação seca que cobria a ladeira oeste do cânion até aos pilares que suportavam sua própria casa. De sua varanda, viu margaridas e flores silvestres, mas não conseguiu divisar o coiote que há semanas rondava pela ravina em que ficava a sua casa. De vez em quando, Bosch tinha lhe jogado partes de frango, mas o animal nunca aceitava a comida enquanto ele estivesse presente. Somente aparecia para levar o seu jantar quando o detetive se retirava, por isso Harry batizara-o com o nome de Tímido. Algumas noites, Bosch ouvia seus uivos rasgados por todo o vale.


Ao voltar os olhos para o incêndio, Bosch foi testemunha de uma explosão, cujo resultado foi uma bola de densa fumaça negra que se elevou sobre a bigorna cinzenta. Pelo rádio, as vozes ficaram histéricas até que finalmente o chefe da brigada explicou que tinha explodido um botijão de gás de uma churrasqueira. Harry continuou acompanhando como a fumaça negra se dissolvia na nuvem cinzenta, ao mesmo tempo em que passava para a frequência do Departamento de Polícia de Los Angeles. Nesse dia estava de serviço: Plantão de natal. Bosch escutou durante meio minuto, mas não ouviu nada além das habituais comunicações. Parecia um natal tranquilo em Hollywood.


Depois de consultar o relógio, Bosch levou o rádio da polícia para dentro de casa. Em seguida tirou uma bandeja do forno e serviu em um prato, o seu jantar de natal: peito de frango acompanhado de uma abundante porção de arroz cozido com ervilhas. Na mesa da sala lhe esperavam uma taça de vinho e três cartões natalinos que ainda não abrira apesar de terem chegado na semana anterior. No toca-discos soava Song of the Underground Railroad, na versão de John Coltrane.


Enquanto comia e bebia, Bosch leu os cartões e pensou nas pessoas que os tinham enviado. Aquele era um ritual próprio de uma pessoa solitária, mas não se importava. Não seria o primeiro natal que passava sem companhia. A primeira felicitação era de um antigo colega de trabalho que se retirara para Enseada graças ao dinheiro que cobrara por um livro e um filme. Em suas cartas sempre dizia o mesmo: "Harry, quando virá me ver?" A outra também vinha do México, concretamente do guia com quem Bosch tinha passado seis semanas vivendo, pescando e praticando espanhol no verão anterior. Harry tinha ido se recuperar de um tiro no ombro na Baía São Felipe, onde o sol e o mar tinham feito milagres. Em sua mensagem natalina escrita em espanhol, Jorge Barreira também o convidava a que lhe fizesse uma visita.


Bosch abriu o último cartão lenta e cuidadosamente. Como os anteriores, sabia perfeitamente quem o enviara; neste caso o envelope trazia o carimbo de Tehachapi, o que não deixava lugar a dúvidas. Ao tirar a felicitação, Bosch viu um desenho algo impreciso de um presépio, desenhado manualmente em papel reciclado da mesma prisão. Seu remetente era uma mulher com quem o detetive tinha passado uma só noite, mas em quem pensava quase todas as noites. Também lhe pedia que a fosse ver, embora os dois estivessem conscientes de que ele não o faria.


Ao som de Spiritual de Coltrane gravada no Village Vanguard de Nova Iorque, quando Harry ainda era menino, Bosch tomou um gole de vinho e começou a fumar um cigarro. E justo nesse momento ouviu algo estranho no rádio da polícia, que continuava ligado em uma mesa junto ao televisor. Fazia tanto tempo que aquela se convertera em sua música de fundo que era capaz de esquecer as vozes, se concentrar no som do saxofone, e ao mesmo tempo captar palavras e códigos pouco frequentes. Nessa ocasião a voz disse:


“Um k doze, Número dois necessita sua vinte”.


Bosch levantou e se dirigiu ao aparelho, como se olhando pudesse compreender o significado da mensagem. Esperou dez segundos para que alguém respondesse ao pedido de ajuda. Vinte segundos.


“Número dois, estamos em Hideaway”

“Western, ao sul da Franklin. Quarto sete. Ah, traga uma máscara”.


Bosch esperou um pouco mais, mas isso foi tudo. As coordenadas que tinham dado, Western e Franklin, correspondiam à jurisdição da Divisão de Hollywood. "Um k doze" era um código em chave para um detetive da Divisão de Roubos e Homicídios fora de Parker Center, o quartel geral do Departamento de Polícia de Los Angeles. "Número dois" era o código dos subdiretores do departamento. Havia três, por isso Bosch não soube a quem se referiam. Mas isso era o de menos. A questão era: por que um dos chefões saiu de casa no dia de natal? Havia uma segunda pergunta com que Harry se preocupava ainda mais. Se o Departamento de Roubos e Homicídios já estava a caminho, por que antes não tinham avisado a ele, que era o detetive de serviço da Divisão de Hollywood?


Depois de deixar o prato na pia da cozinha, Bosch ligou para a delegacia de polícia de Wilcox e pediu que o pusessem em contato com o encarregado do turno de guarda. Finalmente passaram a um tenente chamado Kleinman, a quem Bosch não conhecia porque era novo. Acabava, de chegar a Hollywood vindo de Foothill.


— O que está acontecendo? Perguntou Bosch. — Ouvi pelo rádio algo sobre um cadáver na Western e Franklin, mas ninguém me disse nada. É curioso, considerando que sou eu que estou de plantão.

— Não se preocupe, respondeu Kleinman. — Os "chapéus" têm tudo controlado.


Bosch deduziu que Kleinman devia ser da velha guarda, porque há anos não ouvia essa expressão. Nos anos quarenta, os membros do Departamento de Roubos e Homicídios usavam brilhantes chapéus de palha que nos cinquenta passaram a ser de feltro cinza. Ao cabo de um tempo, os chapéus saíram de moda, mas os detetives especializados da homicídios continuaram existindo, embora os policiais de uniforme já não os chamassem de "chapéus", a não ser "ternos". Ainda se acreditavam os melhores e se davam muitos ares, coisa que Bosch tinha odiado inclusive nos tempos em que fora um deles. Para ele, uma das vantagens de trabalhar em Hollywood, "o esgoto da cidade", era que a ninguém crescia o ego. As pessoas faziam o trabalho e ponto.


— Do que era a ligação? Insistiu Bosch. Kleinman vacilou uns segundos, mas finalmente respondeu:

— Encontraram um cadáver num motel de Franklin. Parece suicídio, mas o caso vai ficar com Roubos e Homicídios, bom, de fato já ficou. Nós não entramos. Ordens de acima.


Bosch permaneceu em silêncio. Roubos e Homicídios saindo no dia de natal para se encarregar de um caso de suicídio... Não fazia sentido. De repente compreendeu: Calexico Moore.


— Há quantos dias está frio? Perguntou Bosch. — Ouvi que pediam ao Número Dois que trouxesse uma máscara.

— Está bastante passado. Pelo cheiro já imaginavam que seria difícil de identificar, mas o pior foi que não restou muito do rosto. Usou uma escopeta de cano duplo, ou ao menos foi isso que disseram no rádio.


O receptor do Bosch não captava a frequência de Roubos e Homicídios; por isso não tinha ouvido nenhum comentário sobre o caso. Pelo visto eles só tinham trocado de frequência para informar o endereço ao motorista do Número Dois. Se não fosse por isso, Bosch não teria sabido de nada até na manhã seguinte, ao chegar à delegacia de polícia. Embora aquela omissão o irritasse, se esforçou para manter um tom tranquilo, já que queria tirar todo o possível de Kleinman.


— É Moore, não?

— Parece, respondeu Kleinman. — Sua placa está na cômoda do motel, junto com a carteira. Mas já lhe disse que não se pode fazer uma identificação visual do cadáver, assim não há nada certo.

— Como foi a coisa?

— Ouça, Bosch, eu tenho muito trabalho, certo? Isto está com a Roubos e Homicídios, assim não está consigo.

— Errou, cara. Sim está comigo. Deveriam ter me avisado primeiro. Quero que me explique o que aconteceu, para ver se entendo.

— Bem. Foi assim: recebemos uma ligação desse antro dizendo que tinham encontrado um cara frio no banheiro do quarto número sete. Enviamos uma patrulha que confirmou que sim, que havia um cadáver. Mas ligaram pelo telefone, não pelo rádio, porque assim que viram a placa e a carteira na cômoda, souberam que se tratava de Moore. Ou ao menos pensaram isso. Eu telefonei para casa do Capitão Grupa, que por sua vez informou o Subdiretor. Eles decidiram avisar à central, em lugar de você. Assim estão as coisas, ou seja, se tiver algum problema, fale com Grupa ou com o Subdiretor, não comigo. Eu não tenho culpa.


Bosch não disse nada. Sabia que às vezes, quando precisava de informação, a pessoa com quem estava falando acabava por preencher o silêncio.


— Agora já não está em nossas mãos, continuou Kleinman. — Inclusive os da televisão se inteiraram e também o Times! Ah, e o Daily News. Logicamente eles também acreditam que seja Moore. Fizeram uma enorme confusão. E olhe que com o incêndio da montanha deveriam ter o bastante, mas não. Lá estão como abutres na Western Avenue. Agora mesmo preciso enviar outro carro para controlá-los. Assim deveria estar contente de que não o tenham chamado. Que é natal, porra.


Aquilo não era suficiente para Bosch. Não só deveriam ter lhe avisado, mas também era ele que deveria ter tomado a decisão de chamar Roubos e Homicídios. Chateava-o que alguém o tivesse eliminado de modo tão descarado. Depois de se despedir de Kleinman, Bosch acendeu outro cigarro, tirou o seu revólver do armário da cozinha, pendurou-a no cinto e vestiu uma jaqueta de cor bege sobre seu pulôver cáqui.


Do lado de fora já tinha anoitecido. Através da porta envidraçada do terraço, Bosch divisou a linha do incêndio do outro lado do cânion. O fogo resplandecia sobre a silhueta negra da montanha, como o sorriso falso de um diabo em seu avanço para o topo. Debaixo de sua casa, Bosch ouviu o lamento do coiote, que uivava à lua ou ao incêndio. Ou talvez a si mesmo, por se encontrar só na escuridão.


* * *


Dois

BOSCH dirigiu da sua casa até Hollywood, descendo por ruas em sua maioria desertas até chegar ao Boulevard. Ali se reuniam os vagabundos e jovens fugidos de casa e umas quantas prostitutas faziam a rua. Uma delas inclusive usava um gorro de Papai Noel. "Negócio é negócio”, pensou Bosch. “Inclusive no dia de natal". Nas paradas de ônibus haviam mulheres elegantemente maquiadas que na realidade não eram nem mulheres nem esperavam o ônibus. As grinaldas e as luzes natalinas que decoravam o Hollywood Boulevard davam um toque surrealista àquela rua tão suja e sórdida. "É como uma puta com muita maquiagem", decidiu. Se é que aquilo fosse possível.


Mas não era o panorama o que deprimia Bosch, era Cal Moore. Bosch estava esperando este desenlace há mais de uma semana, desde o momento em que soube que Moore não aparecera na delegacia de polícia. Para a maioria dos policiais da Divisão de Hollywood, a dúvida não era se Moore tinha morrido, mas sim quantos dias demoraria para aparecer o cadáver. Moore tinha sido um sargento no comando da unidade de narcóticos da Divisão de Hollywood. Trabalhava de noite, com uma brigada dedicada exclusivamente a área do Boulevard.


Na delegacia de polícia era bem sabido que Moore estava separado de sua mulher, a quem tinha substituído pelo uísque. Bosch pôde verificar isso durante o único encontro que tivera com o sargento. Naquela ocasião Harry também descobriu que algo mais o atormentava, além de seus problemas matrimoniais e o estresse derivado do seu trabalho. Moore tinha insinuado algo sobre uma investigação de Assuntos Internos. Todos aqueles fatores se somaram, tendo como resultado uma forte depressão natalina. Assim que Bosch ouviu que fora iniciada a busca de Cal Moore, viu tudo muito claro: o sargento tinha morrido.


Todo mundo no departamento pensou isso mesmo, embora ninguém falasse em voz alta, nem sequer os meios de comunicação. No princípio, a polícia tinha tentado levar o assunto em segredo: foram ao seu apartamento em Los Feliz e fizeram discretas averiguações, deram um par de voltas de helicóptero sobre as montanhas do Griffith Park... Mas então a notícia foi dada a um repórter de televisão e a partir desse momento todos os canais e jornais começaram a informar pontualmente sobre a busca do sargento desaparecido. Depois de pendurar a fotografia de Moore no painel de anúncios da sala de imprensa de Parker Center, os comandantes do departamento realizaram as habituais chamadas ao público para encontrar o agente. Tudo muito dramático ou cinematográfico: se viram imagens de buscas a cavalo e de helicóptero, assim como do chefe de polícia sustentando uma foto de um homem moreno com semblante sério. Curiosamente, ninguém mencionou que estavam procurando um cadáver.


Bosch parou em um semáforo na Vine Street e observou um homem-anúncio que cruzava a rua a grandes passadas, batendo os joelhos contra os cartazes. O poster era uma fotografia de Marte em que alguém tinha destacado uma grande seção e sob a qual se lia, em letras grandes:


ARREPENDAM—SE! O ROSTO DO SENHOR NOS CONTEMPLA


Bosch lembrou que tinha visto a mesma foto na capa de um jornal sensacionalista enquanto esperava na fila de uma loja de comestíveis. Só que dessa vez o jornal atribuía a cara a Elvis Presley. Quando o semáforo ficou verde, Bosch continuou para a Western Avenue e voltou a pensar em Moore e na noite em que os dois tomaram uns copos em um bar musical perto do Boulevard. No princípio as pessoas lhe deram boas-vindas, embora alguns tinham vacilado ao lhe dar a mão quando Bosch chegara na Divisão de Hollywood no ano anterior, e depois a maioria tinha mantido distância. Bosch não se importava com aquela reação, e inclusive a compreendia, já que a única coisa que sabiam dele era que o tinham tirado da Divisão de Roubos e Homicídios por culpa de um problema com Assuntos Internos.


Moore era um dos que não foram muito além de um cumprimento com a cabeça quando se cruzavam no corredor ou se viam nas reuniões de trabalho. Aquilo também era compreensível, já que a mesa de Homicídios onde Bosch trabalhava ficava no escritório de detetives do primeiro andar, enquanto que a brigada de Moore, o Grupo Anti-Narcóticos do Boulevard(Bang) ficava no segundo andar da delegacia de polícia. De qualquer maneira, se encontraram em uma ocasião. Para o Bosch tinha sido uma reunião com o fim de obter informação sobre um caso em que estava trabalhando. Para Moore tinha sido outra oportunidade de tomar umas quantas cervejas e uísques.


Embora a brigada Bang tivesse um nome contundente e chamativo muito ao gosto do departamento, na realidade eram só cinco tiras que trabalhavam em um armazém reconvertido e patrulhavam à noite pelo Hollywood Boulevard, prendendo qualquer um que levasse droga no bolso. Bang era uma brigada de números, quer dizer, uma equipe criada para realizar o maior número possível de detenções a fim de justificar a solicitação de mais pessoal, equipamento e, sobretudo, dinheiro para pagar horas extras no contra-cheque do ano seguinte. Havia brigadas de números em todas as divisões; não importava que o escritório do promotor do distrito concedesse liberdade sob fiança à maioria de casos e soltasse o resto. O que contava eram as estatísticas de prisões. E se o Canal 2, o Canal 4 ou um jornalista do Times da seção de Westside vinha uma noite para escrever um artigo sobre o Bang, melhor ainda.


Ao chegar à Western e virar para o norte, Bosch divisou as luzes azuis e amarelas dos carros-patrulha e a luz estroboscópica dos focos de televisão. Em Hollywood aquele espetáculo costumava assinalar o final violento de uma vida ou a estreia de um filme. Bosch sabia que naquele bairro só estreavam prostitutas de treze anos. Depois de estacionar à meia quadra da Hideaway, Harry acendeu um cigarro. Algumas coisas em Hollywood nunca mudavam; só passavam a serem chamadas de outra maneira. Aquele lugar tinha sido um hotelzinho de má fama trinta anos antes, sob o nome de El Rio. E continuava sendo um hotelzinho de má fama agora com o nome de Hideaway. Bosch nunca estivera ali, mas tinha crescido em Hollywood e se lembrava. Hospedou-se em muitos lugares parecidos com sua mãe antes que ela morresse.


O Hideaway tinha um pátio central construído nos anos quarenta e durante o dia gozava da sombra de uma grande figueira que crescia no centro. De noite os quatorze quartos do motel ficavam imersos em uma escuridão que só o néon vermelho da entrada quebrava. Harry notou que as letras BA do luminoso que anunciava QUARTOS BARATOS estavam apagadas.


Quando Bosch era menino e o Hideaway se chamava El Rio, a área já estava em queda livre. Mas não havia tantas luzes de néon, menos edifícios, e as pessoas não mostravam um aspecto tão ruinoso. Ao lado do motel, por exemplo, tinha havido um bloco de escritórios da companhia Streamline Moderne com aspecto de transatlântico. Obviamente o edifício tinha levantado âncora há muito tempo e o solar tinha sido ocupado por pequenas galerias comerciais. Olhando o Hideaway do carro, Harry soube que era um lugar deprimente para passar a noite. E ainda mais triste para morrer.


Bosch saiu do veículo e caminhou para o motel. Na entrada do pátio passou por alguns policiais de uniforme e pela fita amarela que é usada para demarcar a cena de um crime. Junto a ela, os potentes focos das câmaras de televisão iluminavam um grupo de homens de terno. Quem falava mais tinha a cabeça barbeada e reluzente. Quande Harry se aproximou, se deu conta de que as luzes os cegavam e os impediam de ver além dos entrevistadores. Bosch aproveitou a circunstância para mostrar sua placa rapidamente a um dos policiais de uniforme, assinar na lista de presença e entrar por debaixo da fita amarela.


A porta do quarto sete estava aberta e um cone de luz iluminava o carpete do corredor. Dela saía também o som de um aparelho eletrônico, o que queria dizer que Art Donovan estava trabalhando no caso. O perito em rastros sempre trazia consigo um deles para escutar The Wave, a emissora de música new-age. Conforme dizia, a música trazia paz a um lugar onde fora cometido um assassinato.


Bosch franqueou a porta, tampando o nariz e a boca com um lenço. Foi tudo inútil; o cheiro inconfundível da morte assaltou-o assim que transpôs a soleira. Nesse mesmo instante, viu Donovan de joelhos, mexendo nos comandos do aparelho de ar condicionado situado na parede sob a única janela do aposento.


— Olá, cumprimentou Donovan. Usava uma máscara de pintor para se proteger do cheiro e do pó negro que empregava para detectar impressões digitais. — Está no banheiro.


Bosch deu uma olhada rápida ao seu redor, consciente de que os detetives da central o mandariam embora assim que descobrissem sua presença. No aposento havia uma cama de casal com uma colcha rosa desbotada e uma só cadeira com um jornal: o Times de seis dias. Junto à cama havia uma penteadeira na qual descansava um cinzeiro com a bituca de um cigarro a meio fumar e ao seu lado um Special trinta e oito milímetros em uma cartucheira de náilon, assim como uma carteira e um estojo para a placa, todos eles cheios do pó negro de Donovan. Entretanto, Harry não viu o que esperava encontrar na penteadeira: um bilhete de suicídio.


— Não há bilhete, disse mais para si mesmo que para Donovan.

— Não, nem aqui nem no banheiro. Pode dar uma olhada... Bom, se não se importar em vomitar o jantar de natal.


Harry se dirigiu para o curto corredor que havia do lado esquerdo da cama. À medida que se aproximava da porta do banheiro, sentia que sua apreensão aumentava. Acreditava firmemente que todo policial tinha considerado em um momento ou outro pôr fim a sua própria vida. Bosch parou na soleira. O corpo jazia sobre o chão de ladrilhos brancos, com as costas apoiadas contra a banheira. A primeira coisa em que reparou foi nas botas: botas de vaqueiro, de crocodilo cinzento. Moore usava-as no dia em que estiveram no bar. Uma delas continuava no pé direito. Bosch tomou nota mental da marca do fabricante: um S como uma serpente gravada na sola gasta do salto. A outra bota se achava junto à parede, e o pé com a meia três-quartos posta estava envolto em uma bolsa da polícia. Bosch supôs que a meia três-quartos teria sido branca, mas agora era de uma cor cinzenta. O pé parecia ligeiramente inchado.


No chão, junto ao marco da porta, havia uma escopeta de dois canos de calibre vinte. A parte inferior da culatra estava quebrada; ao seu lado havia uma lasca de uns dez centímetros de tamanho, que Donovan ou um dos diretores tinha marcado com um círculo azul. Bosch não dispunha de tempo para considerar todos esses fatos, assim se concentrou em ver o máximo possível. Quando levantou a cabeça para olhar o cadáver, descobriu que Moore usava jeans e um suéter de algodão. Suas mãos jaziam inertes em ambos os lados do corpo e sua pele era de um cinza cerúleo. Tinha os dedos inchados pela putrefação e os antebraços mais inflados que Popeye. No braço direito, se via uma tatuagem apagada que mostrava a cara sorridente de um demônio sob a auréola de um anjo.


O corpo estava recostado contra a banheira como se Moore tivesse colocado a cabeça para trás para lavar o cabelo. Mas Bosch se deu conta de que só dava essa impressão, porque a cabeça simplesmente não estava lá, já que fora pulverizada pelo impacto da escopeta de dois canos. O azulejado azul celeste que rodeava a banheira estava coberto de sangue seco. E no interior notou que alguns azulejos estavam gretados ali onde as balas da escopeta tinham impactado.


De repente sentiu uma presença atrás dele e, ao se voltar, topou com o olhar do subdiretor Irvin Irving. Irving não usava máscara, nem estava tampando a boca ou o nariz.


— Boa noite, chefe. Irving cumprimentou-o com a cabeça e perguntou:

— O que faz por aqui, detetive?


Bosch tinha visto o suficiente para poder deduzir o que acontecera, assim circundou Irving e se dirigiu para a saída. O subdiretor do departamento o seguiu e ambos passaram diante de dois homens do escritório do legista, vestidos com macacões azuis idênticos. Uma vez do lado de fora, Harry jogou seu lenço em um cesto de papéis da polícia. Enquanto acendia outro cigarro, reparou que Irving levava um envelope de cor marrom na mão.


— Soube pelo rádio, Bosch lhe contou. — Como estava de serviço, passei por aqui. Esta é minha divisão; deveriam ter me chamado.

— Sim, bem, quando se descobriu a possível identidade do cadáver, decidi passar o caso imediatamente para a Divisão de Roubos e Homicídios. O capitão Grupa me avisou e eu tomei a decisão.

— E já é certo que se trata de Moore?

— Não, ainda não. Irving lhe mostrou o envelope. — Acabo de passar pelos arquivos para apanhar as impressões digitais dele. Esse será o fator decisivo, claro. Também a análise dental, se é que restou algo para analisar. Mas todos os indícios parecem apontar para ele. Quem quer que seja que esteja lá dentro se registrou com o nome do Rodrigo Moya, que era o apodo que Moore usava no Bang. E havia um Mustang estacionado atrás do motel que também tinha sido alugado usando esse nome. No momento, a equipe investigadora deixa isso muito claro.


Bosch assentiu. Tinha tratado com Irving anteriormente quando estava a cargo da Divisão de Assuntos Internos. Agora era subdiretor, quer dizer, um dos três homens mais importantes do departamento e seu âmbito tinha sido ampliado para incluir Assuntos Internos, Inteligência e Investigação de Narcóticos e todos os serviços de detetives. Harry considerou momentaneamente a conveniência de insistir sobre o fato de não ter sido avisado.


— Deveriam ter me chamado, repetiu finalmente. — Este é meu caso. Tiraram-me dele antes de me avisar.

— Bem, eu já falei isso, não acha? Além disso, não há necessidade de se incomodar. Chame-o de "racionalização". Já sabe que Roubos e Homicídios fica com todas as mortes de nossos agentes. Ao final você deveria ter passado para eles de qualquer maneira; assim economizamos tempo. Asseguro-lhe que não há nenhum outro motivo além do desejo de acelerar os trâmites. Lembro-lhe que aí jaz o corpo de um policial. Isso nos obriga a agir com rapidez e profissionalismo, sem importar as circunstâncias de sua morte. Devemos isso a ele e a sua família.


Bosch assentiu de novo e, ao olhar ao seu redor, viu um detetive chamado Sheehan junto a uma porta sob o rótulo de "ESCRITÓRIO". Estava entrevistando um homem de uns sessenta anos que desafiava o frio da noite com sua camiseta de suspensórios e mascava um charuto moribundo. Era o encarregado do motel.


— Conhecia-o? Perguntou Irving.

— A Moore? Não, não muito. Bom, estávamos na mesma divisão, assim nos conhecíamos de vista. Ele trabalhava principalmente no turno de noite, na rua. Não tivemos muita relação...


Bosch não sabia por que nesse momento tinha decidido mentir. Perguntou-se se Irving teria notado em sua voz e rapidamente mudou de tema.


— Então foi suicídio... É isso o que disse aos jornalistas?

— Eu não lhes disse nada. falei com eles, sim, mas não mencionei a identidade da vítima. E não penso em fazê-lo até que se confirme oficialmente. Embora você e eu estejamos bastante certos de que se trata de Calexico Moore, o público não saberá até que tenhamos feito todas as análises e realizado os testes necessários. Irving se golpeou com o envelope na coxa. — Por isso apanhei o processo de Moore; para acelerar os trâmites. Irá para o legista junto com o corpo. Irving se voltou para olhar o aposento do motel. — Mas você esteve lá dentro, detetive Bosch. Diga-me você.


Bosch pensou um momento. Irving estaria realmente interessado ou estava brincando? Era a primeira vez que tratava com ele fora da situação de confrontamento pessoal que acompanha qualquer investigação de Assuntos Internos. Ao final Bosch se decidiu a responder.


— Parece que se sentou no chão junto à banheira, tirou a bota, e apertou ambos os gatilhos com o dedão do pé. Bom, suponho que foram os dois pelo destroços causados. O retrocesso impulsionou a escopeta para o marco da porta, estilhaçando a culatra. A cabeça saiu disparada para o outro lado, se chocou contra a parede e caiu dentro da banheira.

— Exatamente, disse Irving. — Agora posso dizer ao detetive Sheehan que você está de acordo. Como se tivesse sido chamado. Não há razão para que ninguém se sinta marginalizado.

— Essa não é a questão.

— E qual é a questão, detetive? Que nunca quer dar o braço a torcer? Que não aceita as decisões de seus superiores? Estou começando a perder a paciência com você, detetive. E esperava que não voltasse a acontecer.


Irving tinha se aproximado muito de Bosch, que notou seu fôlego de ervas medicinais em pleno rosto. Sentia-se encurralado e se perguntou se o subdiretor o faria expressamente.


— Mas não há bilhete, comentou Bosch, dando um passo atrás.

— Não, no momento não. Embora ainda restem coisas para revistar.


Bosch não sabia a que se referia. O apartamento de Moore fora revistado quando este desapareceu, como a casa de sua mulher. Que mais restava? Moore teria enviado um bilhete pelo correio? Não era provável porque, se fosse assim, já teria chegado.


— Quando aconteceu?

— Com um pouco de sorte começaremos a ter uma ideia depois da autópsia de amanhã pela manhã. De qualquer maneira, eu acredito que aconteceu pouco depois de que tivesse se registrado, quer dizer, há seis dias. O encarregado do motel declarou que Moore entrou no quarto há seis dias e que não o voltou a ver, o que concorda com o aspecto do quarto, o estado do corpo e a data do jornal.


Quando Bosch ouviu que a autópsia seria no dia seguinte, em seguida compreendeu que Irving tinha movido fios. Normalmente demoravam três dias para conseguir uma autópsia e no natal tudo demorava um pouco mais. Irving pareceu adivinhar o que estava pensando.


— A legista concordou em fazer a autópsia amanhã pela manhã. Eu lhe expliquei que haveria muita especulação na imprensa e que isso não seria justo para a mulher de Moore, nem para o departamento, e ela resolveu cooperar. Depois de tudo, ela quer se converter em chefa permanente. Por isso aprecia o valor da cooperação. Bosch não fez nenhum comentário. — Ou seja, que manhã saberemos com certeza, insistiu Irving. — Embora no momento tudo aponta para que Moore tenha se suicidado logo depois de chegar ao motel, já que ninguém, nem sequer o encarregado, o viu depois de sua chegada. O mesmo Moore deixou instruções precisas para que não o incomodassem.

— E por que não o encontraram antes?

— Porque pagou um mês adiantado e pediu que o deixassem tranquilo. Em um lugar como este tampouco devem limpar o quarto todo dia. O encarregado supôs que seria um bêbado que quereria tomar uma boa bebedeira ou deixar de beber. Deverá levar em conta que em lugares assim não se pode selecionar a clientela. E um mês são seiscentos dólares... Irving fez uma pausa. — Assim o encarregado pegou o dinheiro e respeitou a sua promessa de não incomodar o seu cliente, ao menos até hoje. Nesta manhã a mulher dele descobriu que alguém tinha forçado o Mustang do senhor Moya durante a noite e os dois decidiram entrar. Também o fizeram por curiosidade, claro. Bateram na porta e, como não ninguém respondeu, usaram a chave-mestra. Assim que abriram compreenderam o que acontecera. Pelo cheiro.


Irving contou a Bosch que Moore/Moya tinha aumentado o ar condicionado ao máximo para frear a decomposição do corpo e manter o fedor dentro do quarto. Do mesmo modo, o quarto tinha sido selado com toalhas molhadas colocadas debaixo da porta de entrada.


— Ninguém ouviu o tiro? Inquiriu Bosch.

— Que nós saibamos, não. O encarregado diz que não ouviu nada e a mulher é meio surda. De qualquer maneira, moram no outro extremo do motel. Aqui temos lojas de um lado e um bloco de escritórios ao outro; dois lugares que fecham de noite. E na parte de trás há um beco. Estamos consultando o registro do motel para tentar localizar as outras pessoas que se hospedaram aqui durante os primeiros dias da estadia de Moore. De qualquer forma, o encarregado diz que não alugou os quartos contíguos porque pensou que poderia ficar um pouco pesado se vestisse o macacão. Além disso, esta é uma rua concorrida, com uma parada de ônibus justo em frente. Pode ser que ninguém ouvisse nada. Ou que o ouvissem, mas não soubessem o que era.


Bosch ficou um instante pensativo e em seguida perguntou:


— Não entendi porque alugar o quarto por um mês inteiro. Para quê? Se o cara ia se suicidar, por que tentar escondê-lo por tanto tempo? Por que não fazê-lo, deixar que o encontrem e acabou?

— Boa pergunta, disse Irving. — A única coisa que me ocorre é que talvez tenha feito isso por causa da mulher. Bosch arqueou as sobrancelhas. — Estavam separados, explicou Irving. — Talvez não quisesse que ela soubesse durante as festas natalinas e tentou atrasar a notícia um par de semanas ou um mês.


Para Bosch pareceu uma explicação bastante frouxa, embora no momento não tinha nenhuma melhor. Tentou pensar em outra pergunta, mas não lhe ocorreu nada. Nesse preciso instante Irving mudou de tema, dando a entender que sua visita à cena do crime tinha terminado.


— Como está o ombro?

— Bem.

— Disseram-me que foi ao México para melhorar seu espanhol.


Bosch não respondeu, já que o aborrecia esse tipo de bate-papo. Queria dizer a Irving que suas deduções não o convenciam, apesar de todas as provas e explicações que tinha dado. Não obstante, não saberia dizer por quê, e até que descobrisse, era melhor ficar calado.


— Sempre pensei que não há suficientes agentes, entre os não hispanos, claro, que se esforcem para aprender o segundo idioma desta cidade, comentou Irving. — Eu gostaria que todo o departamento...

— O bilhete! Gritou Donovan do quarto.


Irving se separou de Bosch sem dizer uma só palavra e se dirigiu para a porta. Sheehan o seguiu junto com outro homem de terno que Bosch identificou como um detetive de Assuntos Internos chamado John Chastain. Harry pensou um momento, mas os seguiu. Dentro, todo mundo tinha se juntado em frente da porta do banheiro, ao redor do perito forense, Bosch manteve o cigarro na boca e inalou a fumaça.


— No bolso traseiro direito, informou o perito. — Há manchas de putrefação, mas ainda se lê. Por sorte o papel estava dobrado em quatro e o interior se salvou.


Irving se afastou do lavabo com o saco de plástico que continha o bilhete e outros o seguiram. Todos, menos Bosch. O papel era cinza como a pele de Moore e tinha uma linha escrita em tinta azul. Irving pousou seus olhos sobre Bosch e foi como se o visse pela primeira vez.


— Bosch, você terá de sair.


Harry queria perguntar sobre o conteúdo do bilhete, mas sabia que se negariam a lhe dizer antes de sair. Notou um sorrisinho de satisfação na cara de Chastain.


Quando chegou na fita amarela, Bosch parou para acender outro cigarro. Então ouviu ruído de saltos nas suas costas e se voltou; era uma jornalista loura do Canal 2 que vinha para ele com um microfone sem fio e um sorriso falso, de modelo publicitária. A loira se aproximou mediante uma manobra bem estudada, mas Harry cortou-a antes de que pudesse falar:


— Sem comentários. Não trabalho no caso.

— Mas não poderia...?

— Sem comentários.


A jornalista olhou-o surpresa e o sorriso desapareceu de seu rosto. Deu meia volta, zangada, mas ao cabo de uns instantes já caminhava alegremente seguida do câmera até a posição escolhida para começar a reportagem. Justo nesse momento tiravam o cadáver. Os focos se acenderam e as seis câmeras formaram um corredor pelo qual os dois homens do legista empurraram a maca com o corpo coberto. Enquanto se dirigiam para a caminhonete azul da polícia, Harry reparou no semblante sério de Irving, que caminhava uns passos mais atrás, mas suficientemente perto para entrar no enquadramento da câmera. Ao fim e ao cabo, qualquer aparição no noticiário da noite era melhor que nada, especialmente para um homem com o olho no cargo de diretor.


Depois daquilo, o lugar começou a limpar. Todo mundo foi embora: a imprensa, a polícia, os curiosos... Bosch passou de novo por debaixo da fita amarela e se dispôs a procurar Donovan ou Sheehan. Nesse momento Irving veio até ele.


— Detetive, agora que pensei bem, sim há algo que possa fazer para acelerar os trâmites. O detetive Sheehan precisa ficar aqui, mas eu preferiria me adiantar à imprensa com a mulher de Moore. Você poderia se encarregar do trâmite de notificação ao familiar mais próximo? É obvio, ainda não há nada certo, mas quero que a mulher dele saiba o que está acontecendo.


Bosch tinha se indignado tanto antes que não podia se negar. Acaso não quisera fazer parte do caso?


— Me dê o endereço, respondeu.


Uns minutos mais tarde, Irving tinha partido e os policiais de uniforme estavam retirando a fita amarela. Finalmente Bosch localizou Donovan, que se dirigia para seu furgão com a escopeta em um saco plástico e várias saquinhos cheios de provas. Harry se apoiou no para-choque do furgão para amarrar o sapato, enquanto Donovan guardava os sacos de provas em uma caixa de vinho do vale de Napa.


— O que quer, Harry? Disseram-me que não estava autorizado a entrar.

— Isso foi antes. Agora acabaram de me pôr no caso. Tenho que notificar o familiar mais próximo.

— Felicidades.

— Bom, algo é algo, respondeu Bosch. — Ouça, o que dizia?

— O quê?

— O bilhete.

— Olhe, Harry, já sabe que...

— Donnie, Irving me encarregou que notificasse a familiar mais próximo. Eu acredito que isso significa que estou no caso. Só quero saber o que Moore escreveu. Bosch trocou de tática. — Era meu amigo, certo? Não vou contar a ninguém.


Soltando um grande suspiro, Donovan colocou a mão na caixa e começou a rebuscar por entre os sacos de provas.


— A verdade é que o bilhete não dizia muito. Bem, nada muito profundo.


Donovan acendeu a lanterna e a enfocou no saco que continha o papel com uma só linha escrita:


Descobriram quem eu era.


* * *


Três

O ENDEREÇO que Irving tinha lhe dado ficava em Canyon Country, quase uma hora de carro. Bosch pegou a autoestrada de Hollywood para o norte, em seguida virou na Golden State e atravessou o escuro desfiladeiro das montanhas de Santa Susanna. Havia pouco trânsito, já que nessa hora a maioria das pessoas estariam em casa jantando peru ao forno. Bosch pensou em Cal Moore: no que tinha feito e no que tinha deixado para trás.


"Descobriram quem eu era".


Não tinha a menor ideia do que queria dizer o policial morto naquela frase rabiscada em um pedaço de papel enfiado no bolso de trás das calças. Tivera apenas um encontro com Moore. E o que tinha sido? Um par de horas bebendo com um policial cínico e amargurado. Não havia forma de saber o que aconteceria após; de descobrir como havia se corroído a couraça que o protegia. Bosch rememorou aquele encontro com Moore. Tinha sido algumas semanas antes e, embora o motivo fosse falar de trabalho, os problemas pessoais de Moore tinham aflorado à superfície. Bosch e Moore estiveram na terça-feira à noite no Catalina Bar & Grill. Nessa noite Moore estava de serviço, mas o Catalina ficava a só meia quadra do Boulevard. Quando entrou no bar, Harry esperava-o sentado no fundo do balcão. Aos policiais nunca obrigavam uma consumação.


Moore se sentou no tamborete ao lado e pediu uma dose de uísque e uma Henry's, a mesma cerveja que Bosch estava bebendo. Usava jeans e uma camiseta folgada que cobria o cinto, a vestimenta típica de um policial antidroga. De fato, parecia se sentir muito cômodo com aquela roupa. Os jeans estavam gastos e as mangas da camiseta cortadas. Debaixo da manga desfiada no braço direito, se via a cara de um demônio tatuado com tinta azul. De maneira um tanto rude,


Moore era um homem atraente, mas naquela ocasião tinha um aspecto estranho: não se barbeava há vários dias e parecia um refém depois de um comprido período de tortura e cativeiro. Entre a fauna do Catalina, parecia um lixeiro num casamento. Ao apoiar os pés no tamborete, Harry reparou no calçado do policial: botas cinzas de pele de serpente. Eram do modelo preferido pelos vaqueiros de rodeios porque os saltos se inclinavam para diante, permitindo uma melhor firmeza quando se jogava o laço numa vitela. Harry sabia que os policiais de narcóticos as chamavam "pega-anjo" porque lhes davam melhor firmeza quando pegavam um suspeito que estava usando pó de anjo.


No princípio Bosch e Moore fumaram, beberam e conversaram, tentando estabelecer diferenças e pontos em comum. Bosch descobriu que o nome Calexico Moore refletia perfeitamente a mescla de origens do sargento. O policial tinha a pele escura, o cabelo negro como o azeviche, os quadris estreitos e os ombros largos. Essa imagem exótica contrastava com os olhos, que eram os de um surfista californiano, verdes como o anticongelante, e com a voz, em que não havia nem rastro de acento mexicano.


— Calexico é um povoado na fronteira, do outro lado de Mexicali. Conhece?

— Nasci lá. Por isso me puseram esse nome.

— Eu nunca estive ali.

— Não se preocupe, não perdeu nada. É um povo fronteiriço como qualquer outro. Ainda volto de vez em quando.

— Tem família lá?

— Não... Agora não. Depois de indicar ao garçom que trouxesse outra rodada, Moore acendeu um cigarro no anterior, que tinha fumado até o filtro. — Pensei que queria me perguntar alguma coisa, disse Moore.

— Sim. É para um caso. Quando chegaram as bebidas, Moore esvaziou seu uísque de um só gole. E antes que o garçom tivesse terminado de tomar nota do primeiro, já tinha pedido outro.


Bosch começou a contar os detalhes de um caso em que trabalhava, já que apesar de investigar há algumas semanas, não tinha conseguido descobrir nada. O cadáver de um homem de trinta anos, mais tarde identificado como James Kappalanni, de Oahu, Havaí, tinha sido encontrado perto da autoestrada de Hollywood, à altura de Gower Street. À vítima fora estrangulada com um arame do meio metro ao qual tinham colocado uns pedaços de madeira lixada para poder puxar melhor, uma vez apertado ao redor do pescoço. Foi um trabalho limpo e eficiente: o rosto de Kappalanni ficou da cor azul cinzenta de uma ostra. O havaiano azul, tinha-o chamado a legista que fez a autópsia. Bosch já tinha averiguado através do Sistema Nacional de Inteligência Criminal e do computador do Departamento de Justiça que o morto era conhecido como Jimmy Kapps, e que tinha uma folha de antecedentes criminais por delitos relacionados com drogas quase tão longa como o arame com que tinham lhe tirado a vida.


— Assim não foi uma grande surpresa quando, ao abri-lo, a legista encontrou quarenta e duas camisinhas no estômago dele, disse Bosch.

— E o que havia dentro?

— Uma merda havaiana chamada "cristal" que, conforme tenho entendido, é um derivado do ice, essa droga que estava tão em moda faz uns anos, respondeu Bosch. — Bom, pois o tal Jimmy Kapps era um correio que levava todo esse cristal na barriga, o que quer dizer que certamente acabava de chegar de Honolulu quando topou com o estrangulador. Disseram-me que o cristal é caro e há muita demanda. Neste momento procuro todo tipo de informação, uma pista ou algo, porque estou perdido. Não tenho ideia de quem se encarregou de Jimmy Kapps.

— Quem lhe contou sobre o cristal?

— Alguém de narcóticos no Parker Center, mas não soube me dizer muito.

— Ninguém tem nem ideia; esse é o problema. Falaram-lhe do gelo negro?

— Um pouco. Disseram-me que era concorrente do cristal e que vinha do México. Moore olhou ao seu redor em busca do garçom. Entretanto, este tinha se colocado no outro extremo do balcão e parecia não lhe fazer caso de propósito.

— As duas drogas são relativamente novas. Em resumo, o gelo negro e o cristal são a mesma coisa. Produzem os mesmos efeitos, mas o cristal vem do Havaí, e o gelo negro do México, explicou Moore. — Poderia se dizer que é a droga do século XXI. Se eu fosse um camelo, definiria-a como a droga mais completa. Basicamente, alguém pegou coca, heroína e PCP e as mesclou para criar uma pedra bruta muito potente que faz tudo; sobe como o crack, mas dura como a heroína. Estou lhe falando de horas, não de minutos. E em seguida se usa um pouco de pó, o PCP, que dá um empurrão no final da viagem. Assim que começarem a distribui-lo em grandes quantidades, as ruas se encherão de zumbis.


Bosch não disse nada. Muitas daquelas coisas já sabia, mas Moore estava bem encaminhado e não queria distrai-lo com uma pergunta. Assim acendeu um cigarro e esperou.


— Tudo começou no Havaí, concretamente em Oahu, continuou Moore. — Ali fabricavam uma substância que chamavam de "ice", sem mais. E o faziam combinando PCP e cocaína. Era muito lucrativo, mas pouco a pouco foi evoluindo. Em um dado momento, acrescentaram heroína da boa, branca e asiática, e a batizaram de "cristal". Suponho que seu lema seria "fino como o cristal" ou algo do tipo. Mas neste negócio não há monopólios nem direitos de autor; só preços e lucros. Moore elevou as duas mãos para destacar a importância destes dois fatores. — Os havaianos criaram um bom produto, mas tinham dificuldade em transportá-lo para terra firme. Os aviões e navios de mercadorias que realizam o trajeto das ilhas estão sempre controlados. Ou ao menos sempre se corre o risco de que verifiquem os carregamentos. Por isso acabaram usando correios como este tal Kapps, que engolem a merda e a passam pelo avião. Mas inclusive esse sistema é mais complicado do que parece. Em primeiro lugar, só se pode movimentar uma quantidade limitada. O que trazia este cara: quarenta e duas bolinhas? E isso, o que são? Umas cem gramas? Não compensa muito. E em segundo lugar os federais da DEA; os antidrogas sempre têm a sua gente enfiada nos aviões e aeroportos à espera de tipos como Kapps, aos que chamam de "contrabandistas da camisinha". E sabem perfeitamente o tipo de pessoa que procuram: gente que sua muito, que vai umedecendo os lábios totalmente secos... É o efeito dos adstringentes, essa merda do Kaopectate. Os contrabandistas os tomam como se fosse Pepsi, e isso os delata. Bom, o que quero dizer é que para os mexicanos é muito mais fácil. A geografia faz a sua parte; têm navios e aviões, mas também uma fronteira de três mil quilômetros que é virtualmente inexistente para efeitos de controle e contenção. Pelo que parece, por cada quilograma de coca que os federais encontram, nove lhes escapam das mãos. E que eu saiba, até agora não confiscaram nem um só grama de gelo negro na fronteira.


Quando Moore fez uma pausa para acender um cigarro, Bosch observou que a mão dele tremia.


— Os mexicanos roubaram a receita. Começaram a copiar o cristal, mas usando heroína da sua, de baixa qualidade. É essa merda que vem com alcatrão incluído; a massa asquerosa que fica no fundo da chaleira. A versão mexicana tem tantas impurezas que fica negra; por isso a chamam de "gelo negro". O gelo negro é mais barato de fabricar, movimentar e vender; os mexicanos ganharam dos havaianos com seu próprio produto. Moore parecia ter terminado.

— Sabe se os mexicanos começaram a utilizar correios havaianos para monopolizar o mercado?

— Ao menos por aqui, não. Lembre-se de que os mexicanos fabricam a droga, mas não necessariamente são os que a vendem. Daí até a rua há vários degraus.

— Mas têm que continuar controlando o albergue.

— Sim, isso é verdade.

— Quem acha que matou Jimmy Kapps?

— Não tenho ideia, Bosch. É a primeira notícia que tenho.

— Sua equipe prendeu algum camelo de gelo negro? Interrogou alguém?

— A uns quantos, mas são os últimos degraus da escada: meninos brancos. Os camelos que vendem pedras no Boulevard costumam ser garotos de raça branca, porque é mais fácil para eles fazer negócios. Mas isso não quer dizer que os fornecedores não sejam mexicanos, embora também poderiam ser turmas do bairro do South-Central. A verdade é que não acredito que as prisões que andamos fazendo serviram de muito.


Moore golpeou o balcão com a jarra de cerveja vazia até que o garçom levantou a vista e o policial indicou que queria outra rodada. Moore começava a ficar de mau humor e Bosch ainda não tinha conseguido grande coisa.


— Preciso chegar mais acima, aos atacadistas. Pode me conseguir algo? Estou há três semanas com isto e ainda não descobri nada, assim tenho que encontrar algo ou virar a página. Moore tinha a vista fixa na fileira de garrafas por trás do balcão.

— Tentarei, prometeu. — Mas deve lembrar que não nos dedicamos ao gelo negro. Nosso trabalho diário é a coca, o pó, um pouco de maconha; nada de substâncias exóticas. Somos uma brigada de números, cara. Mas tenho um contato na DEA. Falarei com ele.


Bosch consultou o relógio. Eram quase meia-noite e queria ir embora. Moore acendeu outro cigarro, mesmo ainda tendo um ardendo no cinzeiro repleto de bitucas. Para Harry ainda restavam uma cerveja e um uísque, mas se levantou e começou a rebuscar em seus bolsos.


— Obrigado, cara.

— Claro, respondeu Moore. Ao cabo de um segundo acrescentou: — Bosch...

— O quê é?

— Na delegacia me falaram de você. Bem, e que esteve suspenso. Estava me perguntando se conheceria um tal de Chastain do Assuntos Internos.


Bosch pensou um momento. John Chastain era um dos melhores. Em Assuntos Internos, as questões se classificavam como justificadas, injustificadas ou infundadas. John era conhecido como Chastain o Justificador.


— Ouvi falar dele, respondeu Bosch. — É um peixe gordo, tem um grupo a seu encargo.

— Sim, já sei que fila tem. Isso todo mundo sabe, porra. O que quero dizer é... É um dos que investigaram você?

— Não, foram outros. Moore concordou. Então esticou o braço, pegou o uísque de Bosch e o bebeu de um gole

— Ouça, você acredita que Chastain é bom? Ou é desses aos quais o terno faz brilhos no rabo?

— Suponho que isso depende do que queira dizer com bom. Pessoalmente não acredito que algum deles seja bom. Com um trabalho como esse é impossível. Mas afirmo que se lhes der a mínima oportunidade, qualquer um deles o queimará vivo e atirará as cinzas no mar.


Bosch se debateu entre perguntar o que acontecia ou deixá-lo em paz. Moore não disse nada; estava dando a Bosch a possibilidade de escolher, mas este decidiu não se intrometer.


— Se encrencaram consigo, não há muito que fazer. Chame o sindicato e consiga um bom advogado. Faça o que ele disser e não dê a esses abutres mais do que o estritamente necessário.


Moore concordou uma vez mais sem dizer uma palavra. Harry pôs duas notas de vinte dólares para cobrir a conta e a gorjeta e saiu. Essa foi a última vez que

viu Moore.


* * *


Ao chegar à autoestrada de Antelope, Bosch rumou para nordeste. No passo elevado de Sand Canyon deu uma olhada no movimento contrário e viu uma caminhonete branca com um nove muito grande na lateral, o que significava que a esposa de Moore já saberia quando ele chegasse lá. Harry se sentiu culpado, mas também aliviado por não ser o portador da má notícia. Aquilo o fez pensar que ignorava o nome da viúva. Irving só tinha lhe dado um endereço, assumindo que Bosch saberia. Ao sair da autoestrada e pegar a estrada da serra, tentou se lembrar dos artigos de jornal que tinha lido durante a semana. Todos mencionavam a mulher de Moore, mas o nome não lhe veio à cabeça. Lembrava-se de que era professora; professora de idiomas em uma escola do vale de São Fernando. Lembrava-se que ela e seu marido não tinham filhos e que tinham se separado a meses. Não obstante, o nome resistia em não vir.


Quando finalmente Bosch chegou a Del Prado, acompanhou os números pintados nas casas e estacionou diante da que tinha sido o lar de Cal Moore. Era uma casa típica, estilo rancho, virtualmente idêntica a todas as casas que constituíam as urbanizações satélites de Los Angeles e cujos habitantes congestionavam as autoestradas da cidade. A casa dos Moore parecia grande, de uns quatro dormitórios, algo que Bosch achou um pouco estranho para um casal sem filhos. Talvez tivessem tido planos em algum momento.


A luz do alpendre não estava acesa. Não esperavam, nem queriam ver ninguém. Apesar da escuridão, Bosch verificou que a grama do jardim da entrada estava descuidada. A erva alta rodeava um cartaz branco da imobiliária Ritenbaugh plantado perto da calçada. Do lado de fora não havia nenhum carro estacionado e a porta da garagem estava fechada. As duas janelas da casa eram como buracos negros. Uma só luz brilhava fracamente depois da cortina da janela junto da porta de entrada. Bosch se perguntou como seria a mulher de Moore e se nesse instante sentiria culpa ou raiva. Ou talvez ambas as coisas.


Bosch jogou seu cigarro no chão e saiu do carro. Ao se dirigir para a porta, passou adiante do triste cartaz de "Vende-se".


* * *


Quatro

O TAPETE da entrada dizia BEM-VINDO, mas estava muito gasto e fazia tempo que ninguém se preocupava em limpá-lo. Bosch se fixou em tudo isto porque manteve a cabeça baixa depois de bater na porta. Faria qualquer coisa para evitar enfrentar os olhos daquela mulher. Depois da segunda batida, se ouviu uma voz.


— Vão embora. Sem comentários. Bosch sorriu, pensando que ele já tinha empregado a mesma expressão naquela noite.

— Senhora Moore? Não sou jornalista. Sou da polícia de Los Angeles.


A porta se abriu alguns centímetros e o rosto dela apareceu, apenas visível na contraluz. Bosch notou que havia uma corrente e lhe mostrou sua placa.


— Sim?

— Senhora Moore?

— Sim?

— Sou Harry Bosch... Detetive do Departamento de Polícia de Los Angeles. Enviaram-me para... Posso entrar? Tenho que... Fazer algumas perguntas e informá-la de uns... Acontecimentos...

— Chegou tarde. Já vieram o Canal 4, o 5 e o 9. Quando você bateu, pensei que seria outro canal. O 2 ou o 7.

— Importa-se que entre, senhora Moore?


Bosch guardou a placa. Ela fechou de novo e ele ouviu que tirava a corrente. Quando a porta se abriu fez um gesto para que entrasse. Ao entrar, observou que o saguão era decorado com azulejos mexicanos da cor cobre. Na parede havia um espelho redondo, em que Bosch viu refletida a mulher de Moore, fechando a porta com um lenço numa mão.


— Vai demorar muito? Perguntou ela.


Bosch disse que não e ela o levou para a sala de estar, onde se sentou em uma poltrona de couro marrom que, além de parecer muito cômoda, estava estrategicamente situada junto à lareira. Frente a esta, havia um sofá reservado aos convidados e que a mulher de Moore ofereceu a Bosch. Na lareira ainda ardiam os últimos rescaldos de um fogo e na mesinha junto à poltrona havia uma caixa de lenços de papel e uma pilha de folhas. Tinham aspecto de relatórios manuscritos; alguns deles estavam dentro de envelopes plásticos.


— São resenhas de livros, explicou ela ao notar o seu olhar. — Pedi aos meus alunos que escrevessem uma antes do natal. Seria o meu primeiro natal sozinha e queria ter algo para fazer.


Bosch concordou com a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Em seu trabalho obtinha muita informação sobre pessoas a partir de suas casas e de sua maneira de viver. Frequentemente as pessoas também já não estavam aqui para lhe contar algo, assim se via obrigado a deduzir a partir de suas observações, uma habilidade da qual se sentia muito orgulhoso.


A sala de estar era austera; haviam poucos móveis. Dava a impressão de que não recebia visitas de muitos amigos ou familiares. Em um canto do aposento viu uma grande estante cheia de romances de capa dura e catálogos de arte, mas não havia televisor nem rastro de crianças. Era um lugar destinado a trabalhar tranquilamente ou conversar junto ao fogo, nada mais. No canto oposto à lareira se via uma árvore de natal de metro e meio com luzinhas brancas, bolas vermelhas e uns quantos adornos natalinos feitos à mão que pareciam ter passado de geração em geração. Bosch gostou que ela tivesse montado a árvore, porque demonstrava que tinha prosseguido com sua vida e seus costumes depois da ruptura matrimonial. Tinha feito por ela, o que demonstrava a sua fortaleza. Aquela mulher possuía uma couraça causada pela dor e possivelmente pela solidão, mas em seu interior se ocultava uma grande força. A árvore disse a Bosch que era o tipo de pessoa que sobreviveria a tudo aquilo. Sozinha.


— Antes de começar, posso perguntar algo? Disse ela.


Embora a luz do abajur de leitura que havia junto da sua poltrona fosse de pouca voltagem, Bosch percebeu a intensidade de seus olhos castanhos e, uma vez mais, desejou poder lembrar seu nome.


— Claro.

— Fez de propósito? Deixar que os jornalistas chegassem antes para não ter de fazer o trabalho sujo? Assim é como meu marido se referia à notificação das famílias. Chamava-o de "trabalho sujo", e dizia que os detetives sempre tentavam evitá-lo.


Bosch notou que se ruborizava. No silêncio embaraçoso que se seguiu, o tiquetaque do relógio da lareira ficou fortíssimo.


— Deram-me a ordem muito recentemente. Demorei um momento em encontrar o lugar e... Bosch se calou. Ela tinha razão. — Sinto muito. Suponho que seja verdade. Vim com muita calma.

— Não importa. Não deveria criticá-lo. Deve ser um trabalho horrível.


Nesse instante Bosch ansiou ter um chapéu de feltro como os que os detetives dos filmes antigos usavam; desse modo poderia ter brincado com ele, alisado a aba com os dedos e, definitivamente, saberia o que fazer com as mãos. Bosch olhou para a mulher de Moore com atenção e descobriu uma beleza quebrada. Devia rondar os trinta e cinco anos e parecia ágil, como uma corredora. Tinha o cabelo castanho com mechas loiras e a mandíbula bem definida sobre os tensos músculos do pescoço. Não usava maquiagem para ocultar os ligeiros sulcos que rodeavam os olhos. Vestia jeans azuis e um suéter de algodão branco que poderia ter pertencido a seu marido. Bosch se perguntou quanto de Calexico Moore restara em seu coração.


Na realidade, Harry a admirava por ter lhe falado do trabalho sujo. Merecia. Ao cabo de três minutos de conhecê-la, pensou que lembrava alguém, mas não sabia quem. A alguém de seu passado, talvez. Junto daquela fortaleza havia uma ternura silenciosa. Bosch não podia parar de olhá-la nos olhos; eram como ímãs.


— Bem, sou Harry Bosch, repetiu de novo, com a esperança de que ela também se apresentasse.

— Sim, ouvi falar de você. Li alguns artigos no jornal. E lembro que meu marido falou algo, acredito que quando foi enviado para a Divisão de Hollywood, há um par de anos. Cal me disse que uma produtora tinha lhe pago um monte de dinheiro para usar seu nome e fazer um longa-metragem para televisão sobre um caso. Também me contou que comprou uma dessas casas nas colinas. Bosch concordou e mudou rapidamente de tema.

— Não sei o que lhe disseram os jornalistas, senhora Moore, mas me enviaram para comunicar que acreditam ter encontrado o seu marido, morto. Sinto ter que lhe dizer, mas...

— Eu já sabia, você sabia e todos os policiais da cidade sabiam. Não falei com os jornalistas, mas não precisava. Só lhes disse que não queria fazer comentários. Quando tanta gente aparece num dia de natal, está claro que devem trazer más notícias. Bosch concordou e olhou para o chapéu imaginário que tinha nas mãos. — Bem, me vai dizer isso ou não? Foi um suicídio? Usou uma arma? Bosch concordou de novo e disse:

— Parece, mas não há nada certo até...

— Até a autópsia, já sei. Sou mulher de um policial. Bem, era. Sei o que pode dizer e o que não. É penoso; vocês não vão ser claros nem sequer comigo. Sempre guardam algo! Bosch notou que o olhar dela ficava duro, cheio de raiva.

— Isso não é verdade, senhora Moore. Estou tentando suavizar o gol...

— Detetive Bosch, se quer me dizer algo, diga.

— Pois sim, foi com uma arma. Se quiser os detalhes, posso lhe dar. Seu marido, se é que era ele, atirou em seu próprio rosto com uma escopeta. O rosto ficou totalmente destroçado, por isso primeiro temos que nos assegurar de que era ele e depois de que se suicidou. Não estamos tentando ocultar nada; simplesmente ainda não temos todas as respostas.


Ela se apoiou na poltrona e ficou fora da luz. Entre as sombras, Bosch distinguiu a expressão de seu rosto. A dureza e a raiva se diluíram. Seus ombros começaram a relaxar. Bosch se sentiu envergonhado.


— Sinto muito, se desculpou. — Não sei por que falei isso tudo. Deveria...

— Não importa. Suponho que eu mereci isso... Eu também sinto muito.


Ela o olhou sem raiva nos olhos. Agora que tinha quebrado a couraça que a protegia, Bosch compreendeu que precisava de companhia. Por mais árvores de natal e resenhas de livros que tivesse, a casa era muito grande e escura para ela sozinha nesse momento. Entretanto, havia algo mais que o empurrava a ficar: o fato de que se sentisse instintivamente atraído por ela. Bosch nunca se ajustou à teoria da atração dos polos opostos, a não ser justamente o contrário; sempre tinha visto algo dele nas mulheres que tinham lhe interessado. Não compreendia por quê, mas era assim. E naquele preciso momento uma mulher o atraía, e da qual desconhecia até o nome. Possivelmente fora uma projeção de suas próprias necessidades, mas de qualquer maneira aquela mulher tinha lhe interessado; Bosch quis descobrir a causa dos sulcos ao redor daqueles olhos afiados. Como as de Bosch, as cicatrizes dela pareciam estar dentro, enterradas no mais fundo de seu ser. De certo modo eram iguais e Bosch sabia.


— Sinto muito, mas não sei o seu nome. O subdiretor só deu o endereço e disse que viesse. Ela sorriu ao compreender seu problema.

— Sylvia. Ele concordou com a cabeça.

— Sylvia. Ouça, o que cheira tão bem não será café?

— Sim. Quer uma xícara?

— Eu adoraria, se não lhe der muito trabalho.

— Absolutamente. Quando ela se levantou para ir buscá-lo, Bosch se arrependeu de ter pedido.

— Embora... Possivelmente deveria ir embora. Você tem muito no que pensar e eu a estou incomodando. Vou...

— Por favor, fique. Me fará bem um pouco de companhia.


Ela não esperou que ele respondesse. O fogo crepitou quando as chamas encontraram a última bolsa de ar. Bosch observou Sylvia enquanto se afastava. Esperou um segundo, deu outra olhada na sala e a seguiu até a cozinha.


— Café puro, por favor.

— Como todos os policiais.

— Não gosta muito de nós, não é?

— Bom, digamos que não tive muita sorte com eles.


Deu-lhe as costas enquanto punha duas xícaras na bancada e servia o café. Bosch se apoiou contra a porta da geladeira. Não sabia o que dizer nem se devia fazer perguntas sobre o caso ou não.


— Tem uma casa muito bonita.

— Você acha? Eu não, falta vida. Vamos vendê-la. Bom, suponho que deveria dizer que eu vou vendê-la. Ela continuava de costas.

— Não deve se culpar pelo que ele fez. Bosch se deu conta de que aquilo não a consolaria.

— É fácil falar.

— É.


Houve um comprido silêncio antes de que Bosch decidisse ir direto ao ponto.


— Havia um bilhete.


Ela largou o que estava fazendo, mas continuou sem se voltar.


— "Descobriram quem eu era". Isso é tudo o que estava nele.


Ela não disse nada. Uma das xícaras ainda estava vazia.


— Significa algo para você?


Finalmente ela se voltou. Sob a luz branca da cozinha, Bosch viu os sulcos salgados que as lágrimas tinham deixado em sua bochecha. Fizeram-no se sentir impotente, incapaz de fazer algo para ajudá-la.


— Não sei. Meu marido... Estava preso no passado.

— O que quer dizer?

— Porque... Estava sempre tentando ir para trás. O passado o interessava mais que o presente ou a ilusão do futuro. Gostava de voltar para a época em que cresceu... Não podia esquecer.


Bosch viu que as lágrimas escorriam até os sulcos sob os olhos. Ela se virou e terminou de servir o café.


— O que lhe aconteceu? Perguntou Bosch.

— Não me pergunte. Depois de permanecer um bom momento em silêncio, acrescentou: — Não sei. Queria voltar para o passado. Precisava disso.


"Todo mundo precisa de um” pensou ele. “Às vezes puxa-o ainda mais forte que o futuro". Ela secou os olhos com um lenço de papel, se voltou e lhe deu uma xícara. Antes de dizer algo, Bosch tomou um gole de café.


— Uma vez me disse que tinha vivido em um castelo, comentou ela. — Ao menos é assim como o chamou.

— Em Calexico? Perguntou ele.

— Sim, mas foi por pouco tempo. Não sei o que aconteceu. Nunca me contou muito sobre essa parte de sua vida. Seu pai teve culpa, pois em um dado momento não quis saber mais nada dele. Cal e sua mãe tiveram que ir embora de Calexico, do castelo, ou de onde fosse, e ela o levou para o outro lado da fronteira. Gostava de dizer que era de Calexico, embora na realidade tenha crescido em Mexicali. Já esteve lá?

— De passagem. Nunca fiquei.

— Todo mundo o considera um lugar de passagem, mas lá é onde Cal cresceu.


Sylvia se calou e Bosch esperou que continuasse. Ela mantinha a vista fixa em seu café; era uma mulher atraente que parecia cansada de tudo aquilo. Ainda não se dera conta de que aquilo, além de um final, era um princípio em sua vida.


— O abandono foi algo que nunca superou. Voltava para Calexico muito frequentemente. Eu não ia, mas sabia. Sozinho. Acredito que espionava o pai; talvez para ver o que poderia ter sido. Não sei. Cal conservava as fotos de quando era pequeno. Às vezes, de noite, quando pensava que eu dormia, tirava-as e as olhava.

— O pai ainda vive?

— Não sei. Cal pouco o mencionava e quando o fazia, dizia que estava morto. Mas não sei se falava de maneira figurada ou se era verdade. Para Cal seu pai estava morto desde que ele partiu, isso era o que importava. Algo muito pessoal. Ainda se sentia rechaçado, inclusive depois de tantos anos. Eu não consegui que falasse do tema. E das poucas vezes que o fazia, mentia; dizia que seu pai não significava nada para ele. Mas importava, afirmo. Ao cabo de um tempo, dois anos, tenho que admitir que deixei de puxar o tema. E ele nunca o mencionava, só ia para lá... Às vezes num fim de semana, às vezes num dia... Jamais dizia algo quando retornava.

— Você tem as fotos?

— Não, ele as levou. Nunca saía sem elas. Bosch tomou um gole de café para ganhar tempo.

— Parece... Não sei... Você acha que este assunto poderia ter algo a ver com...?

— Não sei. Só posso lhe dizer que este assunto tinha muito a ver conosco. Para Cal era como uma obsessão; mais importante do que eu. Isso é o que terminou com nossa relação.

— O que estava tentando descobrir?

— Não sei. Nos últimos tempos ele não me mostrava seus sentimentos. Ao cabo de um tempo eu também fiz o mesmo e por isso terminamos.


Bosch concordou e desviou o olhar. Que outra coisa podia fazer? Às vezes seu trabalho o empurrava para tão perto da vida das pessoas que só podia assentir. Sentia-se culpado de fazer aquelas perguntas, já que não tinha direito às respostas. De qualquer maneira, ele era só o mensageiro. Não era sua missão descobrir a razão de uma pessoa colocar uma escopeta de dois canos no rosto e apertar o gatilho.


Entretanto, o mistério de Cal Moore e o sofrimento daquele rosto o impediam de partir. Ela o cativava por uma razão que ia além de sua beleza física. Era atraente, sim, mas o que o atraía com mais força era sua expressão de dor, suas lágrimas e a intensidade de seu olhar. Nesse momento Bosch pensou que ela não merecia tudo aquilo. Como Cal Moore podia ter arruinado a sua vida dessa maneira? Bosch voltou a olhá-la nos olhos.


— Uma vez seu marido me disse uma coisa. Eu tive um problema com o Departamento de Assuntos Internos, o departamento que se encarrega...

— Já sei o que é.

— Sim, bem, pois seu marido me pediu conselho. Perguntou-me se conhecia uma pessoa que estava fazendo perguntas sobre ele: um tal Chastain. Falou-lhe dele? Sabe o que acontecia?

— Não, não me falou dele.


A atitude dela estava mudando. Bosch notou que a raiva voltava a se acumular em seu interior pela forma como o olhava. Pelo visto tinha posto o dedo na ferida.


— Mas você sabia, não?

— Chastain veio aqui um dia. Pensou que eu cooperaria. Falou que eu tinha me queixado do meu marido, o que era mentira. Como queria revistar a casa, lhe pedi que fosse embora. Sylvia fez uma pausa. — Prefiro não falar do tema.

— Quando Chastain veio?

— Não sei. Há um par de meses.

— Avisou o Cal? Ela duvidou e em seguida concordou.


"Então Cal veio à a Catalina e me pediu conselho", pensou Bosch.


— Está certa de que não sabe o motivo da visita?

— Nesse momento já estávamos separados. Não nos falávamos. A única coisa que fiz, foi contar a Cal que Chastain tinha vindo e que mentira sobre quem apresentara a queixa. Cal me respondeu que sempre mentiam e me disse que não me preocupasse.


Harry tinha terminado o café, mas ficou de pé com a xícara na mão. Embora Sylvia Moore soubesse que seu marido tinha caído em desgraça de alguma forma, que traíra o seu futuro juntos por culpa do passado, fora leal. Avisara sobre Chastain. Bosch não a reprovava, a não ser justamente o contrário: ainda a admirava mais.


— O que você faz aqui? Perguntou ela de repente.

— O quê?

— Se estiver investigando a morte do meu marido, já deveria saber de Assuntos Internos. Ou está mentindo ou não sabia. De qualquer maneira, o que você faz aqui?


Bosch depositou a xícara na bancada, o que lhe deu uns segundos para pensar.


— O subdiretor me enviou para lhe dizer que... Interrompeu-se.

— O trabalho sujo.

— Isso. Deram-me o trabalho sujo, mas, como lhe disse, conheci um pouco o seu marido e...

— Duvido que meu marido seja um mistério que você possa resolver, detetive Bosch. Ele concordou com a cabeça; o velho truque para ganhar tempo. — Eu dou aulas de idiomas e literatura no Instituto Grant no vale de São Fernando, contou ela. — Peço a meus alunos que leiam um monte de livros sobre Los Angeles para que tenham um pouco de ideia sobre a história e o caráter de nossa cidade. Como sabe, muito poucos deles nasceram aqui... Bem, um dos livros que lhes dou é O LONGO ADEUS. É sobre um detetive.

— Sim, já li.

— Bem, pois há uma frase que eu sei de cor. "Não há armadilha mais mortífera que a que alguém estende a si mesmo". Quando o leio, sempre penso em meu marido. E em mim.


Ela se voltou e tornou a chorar, embora o fez silenciosamente, sem afastar a vista de Bosch. Dessa vez, detectando a necessidade em seus olhos, atravessou a sala e lhe pôs a mão sobre o ombro. Bosch se sentiu um pouco incômodo, mas então ela se aproximou dele e apoiou a cabeça contra seu peito. Harry a deixou chorar.


* * *


Uma hora mais tarde Bosch estava em casa. Depois de recolher a taça de vinho e a garrafa da mesa do salão, saiu para o terraço e ficou pensando até altas horas da madrugada. O brilho do incêndio no passo tinha desaparecido, mas em seu lugar algo ardia dentro dele. Calexico Moore tinha achado a resposta a uma pergunta que todo mundo leva dentro de si; uma pergunta que Harry Bosch também tinha desejado responder. "Descobriram quem eu era". E isso o tinha matado. Aquele pensamento foi para o Bosch como um murro nas vísceras, nos limites mais secretos de seu coração.


* * *


Cinco

NA QUINTA-FEIRA, quer dizer, o dia depois do Natal, foi um desses dias de postal. Não havia nem rastro de contaminação no ar. O incêndio das colinas se apagara e a brisa do Pacífico tinha dispersado a fumaça há horas. A concha de Los Angeles jazia sob um nítido céu azul salpicado de nuvens com penugens.


Bosch escolheu o caminho mais comprido para chegar ao centro; desceu pela Woodrow Wilson até cruzar Mulholland e depois pegou a rota sinuosa que atravessa Nichols Canyon. Harry adorava ver as montanhas atapetadas de glicínias azuis e cristalizadas lilás, e aquelas antigas mansões de um milhão de dólares que davam à cidade sua aura de glória decadente. Enquanto dirigia, lembrou a noite anterior e o que tinha sentido ao consolar Sylvia Moore. Como se fosse um desses policiais serviçais que aparecem nas ilustrações de Norman Rockwell; como se realmente tivesse servido de ajuda a alguém.


Depois de descer as colinas, Bosch pegou a Genesee e em seguida o Sunset Boulevard até chegar a Wilcox. Depois de estacionar atrás da delegacia de polícia, passou diante da cela dos bêbados e entrou na sala dos detetives, onde o ambiente estava mais carregado que um cinema pornô. Os detetives trabalhavam em suas mesas, cabisbaixos; a maioria falando no telefone a meia voz ou tinham os rostos sepultadas sob uma montanha de papéis que os tiranizava diariamente.


Ao sentar na sala de homicídios, Harry olhou para Jerry Edgar, seu colega ocasional. Há um tempo os detetives investigavam em duplas. Agora não. O escritório andava com pouco pessoal, já que não tinham contratado, nem promovido ninguém por cortes no investimento. Aquele era o motivo de que só houvesse cinco detetives na sala de homicídios. O chefe da brigada, o tenente Harvey Pounds, mais conhecido como Noventa e Oito, conseguia que a Homicídios funcionasse fazendo com que seus homens trabalhassem sozinhos exceto em casos chave, em missões perigosas ou quando tinham que prender alguém. Bosch não se importava porque gostava de trabalhar sozinho, mas outros detetives se queixavam.


— O que aconteceu? Perguntou Bosch a Edgar. — Moore?


Edgar concordou. Estavam sozinhos na sala. Shelby Dunne e Karen Moshito estavam acostumados a entrar às nove e Lucius Porter chegava às dez, se é que estivesse suficientemente sóbrio.


— Há um momento Noventa e Oito disse que as impressões digitais do cadáver coincidem com as de Moore. Não há mais dúvida de que o cara esplodiu a tampa dos miolos.


Permaneceram em silêncio uns minutos. Harry começou a folhear os papéis pulverizados sobre sua mesa, mas não conseguiu tirar Moore da cabeça. Imaginou Irving, Sheehan ou possivelmente Chastain, ligando para Sylvia Moore para comunicar que a identificação tinha sido confirmada. Harry sentiu que se evaporava ante seus olhos a débil conexão que tinha com o caso. Nesse momento notou que havia alguém atrás dele. E efetivamente, Pounds estava ali.


— Harry, venha cá.


Um convite ao "aquário". Bosch olhou para Edgar, que fez um gesto de "não tenho ideia", e seguiu o tenente até o fundo da sala. O escritório de Pounds era uma pequena sala com janelas em três das paredes, o que permitia controlar os seus subordinados, ao mesmo tempo que servia para limitar seu contato com eles; graças a isso não tinha que ouvi-los, cheirá-los ou conhecê-los. Nessa manhã, as persianas com as quais se protegia deles, estavam subidas.


— Sente-se, Harry. Já sabe que não se pode fumar. Passou um bom Natal?


Bosch olhou-o sem dizer nada. Incomodava-o que aquele homem o chamasse de Harry e perguntasse sobre o Natal. Pensou uns momentos antes de sentar.


— O que aconteceu? Perguntou.

— Não fique agressivo, Harry. Sou eu quem deveria estar zangado. Acabo de saber que passou quase toda a noite de Natal naquele motel, o Hideaway. Não me parece normal que aparecesse ali, especialmente quando lhe disseram que não precisavam de você e que Roubos e Homicídios estava levando a investigação.

— Estava de serviço, replicou Bosch. — Deveriam ter me avisado. Fui ver o que acontecia e no final Irving precisou de mim.

— Está bem. Pediram-me que lhe diga que esqueça o caso Moore.

— O que quer dizer?

— O que disse.

— Olhe, se...

— Deixe-o, certo? Pounds levantou as mãos em um gesto conciliador. A seguir beliscou o nariz ao notar os primeiros sintomas de uma dor de cabeça; abriu a gaveta central de sua mesa e tirou um pequeno frasco de aspirinas. — Já basta, insistiu Pounds. Fez uma pausa para engolir duas aspirinas sem água. — Não me parece... Não acredito que faça falta... Pounds tossiu e se levantou da mesa de um salto. Depois de ultrapassar Bosch e sair do "aquário", se dirigiu para o fornecedor de água situada junto à porta do escritório.


Bosch nem sequer o olhou. Ao cabo de uns instantes Pounds retornou e continuou o seu discurso.


— Perdoe-me. Bom, o que estava dizendo é que não quero discutir cada vez que o chamo ao meu escritório. Acredito que precisa resolver este seu problema com a estrutura hierárquica do departamento. Porque está passando da linha.


Bosch notou o pó de aspirina que se acumulava na comissura dos lábios do Pounds. O tenente voltou a limpar a garganta.


— Só queria fazer um comentário para seu próprio benefi...

— Por que não o faz a Irving?

— Eu não disse... Olhe, Bosch, esqueça. Avisei-o e chega. Se tiver alguma teoria sobre o caso Moore, esqueça. Já está tudo controlado.

— Certo.


Dando-se por avisado, Bosch se levantou. Embora sentisse vontade de jogar esse cara pela janela de seu próprio escritório, decidiu que se conformaria fumando um cigarro junto à cela de bêbados.


— Sente-se ordenou Pounds. — Não o chamei por isso.


Bosch voltou a sentar e esperou em silêncio, ao mesmo tempo que Pounds tentava recuperar a compostura. O tenente tirou uma régua de madeira de sua gaveta e começou a brincar com ela enquanto falava.


— Harry, sabe quantos casos de homicídio a nossa divisão pegou este ano?


Harry se perguntou o que tinha nas mãos o tenente Pounds. Bosch sabia que ele tinha recebido onze casos, mas estivera fora de serviço durante seis semanas no verão enquanto se recuperava no México de uma ferida de bala. Em todo o ano, calculou que a unidade de homicídios teria recebido uns setenta casos.


— Não tenho ideia, respondeu.

— Pois vou lhe dizer replicou Pounds. — investigamos sessenta e seis homicídios. E, é obvio, ainda faltam cinco dias para o final do ano. Provavelmente cairá algum mais, um no mínimo. Na Véspera do Ano Novo sempre há problemas. Provavelm...

— E daí? No ano passado tivemos cinquenta e nove. Isso significa que está subindo o número de assassinatos.

— Sim, mas o número de casos que resolvemos está caindo. Não chega a cinquenta por cento; só trinta e dois de sessenta e seis. A verdade é que você resolveu muitos; recebeu onze, resolveu sete mediante prisão ou outro método, e tem pendentes duas ordens de detenção. E dos dois que tem abertos, em um está à espera de informação. O outro é o assunto James Kappalanni, que continua investigando, correto?


Bosch concordou. Embora não sabia muito bem por quê, não gostava da aparência que estava tomando a conversa.


— O problema é a estatística final, concluiu Pounds. — O total... Bem, é uma percentagem de êxitos muito lamentável.


O tenente golpeou a palma da mão com a régua e sacudiu a cabeça. Harry começava a compreender para onde ele ia, mas ainda faltavam informações. Ainda não estava certo do que Pounds estava planejando.


— Pense bem; todas essas vítimas e suas famílias ficam sem justiça... Continuou Pounds. — E imagine como baixará a confiança do público quando o Times proclame aos quatro ventos que mais da metade dos assassinos da Divisão de Hollywood escapam impunes.

— Não se preocupe, respondeu Bosch. — A confiança do público não pode baixar muito mais. Pounds esfregou de novo a ponta do nariz.

— Economize os comentários cínicos, Bosch, disse com voz tranquila. — Essa sua sacanagem me irrita. Já sabe que se me der vontade posso lhe tirar de Homicídios e mandá-lo para Automóveis ou Menores. Entendeu? Por mim, já pode ir chorar no sindicato.

— E o que acontecerá com sua percentagem de casos resolvidos? O que dirão os do Times? Que saem impunes dois terços dos assassinos de Hollywood?


Pounds colocou a régua na gaveta e fechou-a. Bosch pareceu ver um leve sorriso em seus lábios e se deu conta de que acabava de cair em uma armadilha. Pounds abriu outra gaveta e tirou uma pasta azul que pôs sobre a mesa. Era o tipo de pasta que se usava para investigações de assassinato, embora dentro havia muito poucos papéis.


— Tem razão, concedeu Pounds. — Isso nos traz para o motivo desta reunião. Estamos falando de estatísticas, Harry. Se resolvermos um caso a mais, chegamos na metade justa. Em vez de dizer que mais da metade saem impunes, poderemos dizer que pegamos a metade dos assassinos. E se solucionarmos mais dois, poderemos dizer que resolvemos mais da metade. Entendeu?


Como Bosch não disse nada, Pounds concordou com a cabeça. E depois do ritual de colocar a pasta perfeitamente reta, olhou para Bosch nos olhos.


— Lucius Porter não vai voltar, informou. — Esta manhã me ligou para dizer que vai pedir aposentadoria por estresse. Disse-me que já falou com o médico. Pounds colocou a mão na gaveta e tirou outra pasta azul. E em seguida outra. Finalmente Bosch compreendeu o que estava ocorrendo. — Espero que tenha um bom médico, comentou Pounds enquanto acrescentava a quinta e sexta pasta à pilha, — Porque, que eu saiba, este departamento não considera que cirrose de fígado seja estresse. Porter é um bêbado, digo assim claramente. E não é justo que consiga aposentadoria antecipada porque não pode controlar sua afeição à bebida. Nos vamos acabar com isso na audiência preliminar. Importa-me pouco quem seja o advogado dele, pode ser até a mãe Teresa da Calcutá; nós vamos acabar com isso.


Pounds repicou com o dedo sobre a pilha de pastas azuis.


— Estive repassando esses casos. Tem oito abertos. É penoso. copiei as cronologias para verificá-las, mas estou certo de que estão repletas de entradas falsas. Quando diz que estava entrevistando testemunhas ou rodando na cidade, aposto o meu salário que estava sentado em um tamborete com a cabeça sobre o balcão. Pounds sacudiu a cabeça com tristeza. — Já sabe que perdemos muito controle ao acabar com o sistema de duplas de detetives. Como não havia ninguém vigiando este inútil, agora me encontro com oito investigações abertas. E pelo que vejo, todas poderiam ter sido resolvidas.


"E de quem foi a ideia de fazer com que os detetives trabalhassem sozinhos?", quis perguntar Bosch, embora no final se limitasse a dizer:


— Sabe a história de quando Porter andava de uniforme há dez anos? Ele e seu colega pararam para multar um filho da puta que estava sentado num meio-fio, bebendo. Era pura rotina, pois só era uma falta menor, assim Porter não saiu do carro. De repente, o filho da puta se levantou e atirou no seu colega, no rosto, entre as sobrancelhas. Pegou-o despreparado, com as duas mãos na caderneta de multas, e Porter não pôde fazer outra coisa a não ser olhar. Pounds fez um gesto de exasperação.

— Sim, conheço a história. Contam a todos os recrutas que passam pela Academia de Polícia como exemplo do que não se deve fazer, respondeu Pounds. — Mas isso foi há séculos. Se Porter queria uma aposentadoria por estresse, deveria tê-la pedido então.

— Refiro-me a isso. Não a pegou quando podia; tentou continuar trabalhando. Ou melhor tentou durante dez anos, mas no final se afogou na merda que há no mundo. O que queria que fizesse? Prosseguir no mesmo caminho de Cal Moore? Acaso lhe põem uma estrela no processo por economizar uma pensão à prefeitura? Pounds permaneceu em silêncio uns segundos antes de dizer:

— Muito eloquente, Bosch, mas o que acontecer com Porter não lhe concerne. Não deveria ter puxado o tema, mas eu o fiz para que compreendesse o que vou dizer agora.


Pounds voltou a fazer seu truquinho de pôr todas as pastas retas e em seguida passou a pilha a Bosch.


— Vai se encarregar dos casos do Porter. Pode estacionar o assunto Kappalanni. Agora mesmo não estava avançando muito, assim deixe-o por uns dias e se dedique a isto. Quero que dê uma olhada nos oito casos de Porter e escolha o que acha que consegue resolver mais rapidamente. Dedique-se plenamente a ele nos próximos cinco dias... Até o dia de Ano Novo. Pode trabalhar no fim de semana; eu darei o ok para as horas extras. Se precisar que alguém da sala o ajude, adiante. Mas coloque alguém no cárcere, Harry. Prenda alguém. Eu... Bem, todos nós precisamos resolver mais um caso para alcançar nosso objetivo. Tem tempo até meia-noite. Até a véspera do Ano Novo.


Bosch ficou olhando por cima da pilha de pastas. Por fim compreendia aquele homem. Pounds já não era um policial, era um burocrata. Quer dizer, nada. Para ele, um crime, o derramamento de sangue e o sofrimento das pessoas eram meras estatísticas num relatório. No final de ano, eram as cifras que lhe diziam se tinham ido bem. Não as pessoas. Nem a voz de sua consciência. Essa era o tipo de arrogância impessoal que corrompia o departamento e o isolava da cidade, de todos. Não estranhava que Porter queria partir. Nem que Cal Moore mandou a si mesmo para o outro lado. Por isso, Harry se levantou, recolheu a pilha de pastas e lançou a Pounds um olhar que significava: "Impregnou-se". Pounds desviou o olhar. Antes de sair, Bosch disse:


— Se vencer o Porter, o mandarão de novo para a sala de Homicídios. O que ganharemos com isso? Quantos casos ficarão abertos no ano que vem? Pounds arqueou as sobrancelhas enquanto considerava aquela possibilidade. — Se o deixar partir, nos enviarão um substituto. Há muita gente boa nas outras salas. Meehan, de Menores, é muito preparado. Se o puser em nossa sala rapidamente verá como sobem as estatísticas. Mas se impedir que Porter se aposente, no ano que vem estaremos na mesma.


Pounds esperou um momento para ter certeza de que Bosch tinha terminado.


— Não o entendo, Bosch, comentou finalmente. — Como investigador, Porter não lhe chega nem à sola dos sapatos. E entretanto está tentando lhe salvar a pele. Por quê?

— Por nada.


Bosch levou as pastas para para a mesa e as deixou cair no chão junto da sua cadeira. Edgar olhou. Dunne e Moshito, que acabavam de chegar, fizeram o mesmo.


— Sem comentários, disse Harry.


Bosch se sentou, olhou a pilha de pastas que jazia a seus pés e desejou não ter nada a ver com elas. A única coisa que ansiava era um cigarro, mas no escritório era proibido fumar, ao menos enquanto Pounds rondava por ali. Bosch procurou um número em sua agenda rotatória e o discou. Depois de soar sete vezes, alguém atendeu o telefone.


— Alô?

— Lou?

— Quem é?

— Bosch.

— Ah, sim, Harry. Desculpe, não sabia quem ligava. O que aconteceu? Soube que vou pedir a aposentadoria por estresse?

— Sim, por isso estou ligando. Vou ficar com os seus casos... Pounds me deu... E, bem, vou tentar resolver um rapidamente, antes do final da semana. Queria saber tinha alguma ideia... Por qual me recomenda que comece? Estou perdido. Houve um comprido silêncio.

— Merda, Harry, exclamou Porter, e nesse momento Bosch pensou que possivelmente já estivesse bêbado. — Porra. Não pensava que esse idiota entregaria tudo a você... Eu... Bem, eu não avancei muito...

— Bem, Lou, eu não tinha trabalho; só preciso de um lugar por onde começar. Se não puder me orientar eu mesmo descobrirei.

— Porra, repetiu Porter. — Eu... Bem... Não sei, Harry. Não me dediquei muito, você sabe. Estou muito feito pó... Soube de Moore? Merda, ontem vi as notícias e...

— Sim, é uma pena. Ouça, Lou, não se preocupe, certo? Eu me encarrego. Tenho as pastas aqui e darei uma olhada. Nada. — Lou?

— Sim. me ligue mais tarde; vou ver se penso em algo. Agora mesmo não estou muito bem. Bosch pensou um momento antes de dizer algo mais. Imaginou Porter do outro lado do telefone, de pé, às escuras. Totalmente sozinho.

— Ouça, sussurrou Bosch. — Tome cuidado com Pounds quando pedir a aposentadoria. Pode ser que mande um par de abutres para controlá-lo, me entende, para segui-lo. É possível que tente anular s sua solicitação, assim se afaste dos bares. De acordo?


Ao cabo de uns segundos Porter respondeu que sim. Bosch desligou e olhou para seus colegas da mesa de homicídios. Na sala de detetives sempre havia ruído, exceto quando se fazia uma ligação que não queria que alguém ouvisse.


— Noventa e oito lhe deu todos os casos do Porter? Perguntou Edgar.

— Efetivamente. Esse sou eu: o varredor do escritório.

— E então nós outros o que somos? O lixo?


Bosch sorriu. Enquanto acendia um cigarro, compreendeu que Edgar não sabia se devia se alegrar por ter se liberado do encargo ou se zangar porque Pounds não o tivesse considerado.


— Se quiser, posso voltar para o "aquário" e dizer a Noventa e Oito que você se apresentou como voluntário para repartir isto comigo...


Bosch se calou quando Edgar lhe deu uma chute por debaixo da mesa. Ao se virar, viu Pounds com o rosto muito vermelho. Provavelmente tinha ouvido seu último comentário.


— Bosch, não vai fumar essa merda aqui dentro, não é?

— Não, tenente. Estava a ponto de sair.


Bosch se levantou e foi fumar no estacionamento. A porta traseira da cela de bêbados estava aberta e Harry verificou que já tinham levado aos de natal no furgão celular ao tribunal de plantão. Nesse momento um detento embelezado como um macaco cinza limpava a cela com uma mangueira, uma tarefa diária que o chão ligeiramente inclinado facilitava. Bosch viu o rio de água suja que saía pela porta e percorria o estacionamento até desaparecer por um bueiro. A água continha restos de vômito e sangue, e o cheiro da cela era insuportável, mas ainda assim Harry não se moveu. Aquele era seu lugar.


Quando terminou, Bosch jogou a bituca na água e viu como a corrente arrastava-a para o esgoto.


* * *


Seis

BOSCH estava se sentindo como se a sala de detetives fosse uma jaula e ele, o único animal preso. Para se afastar dos olhos curiosos que o espreitavam, tinha recolhido a pilha de pastas azuis e saído para o estacionamento pela porta traseira. Quando voltou para a delegacia de polícia, entrou pela porta do escritório de plantão. Caminhou por um corredor curto até as outras celas e subiu até o depósito do segundo andar, que era chamado de "suíte nupcial" por causa das duas camas de armar que havia em um canto. O depósito era um lugar de descanso para os agentes; havia uma velha mesa de bar e um telefone, e se ficava tranquilo. Era tudo o que Bosch precisava.


Nesse dia o depósito estava vazio. Bosch colocou as pastas azuis na mesa, depois de afastar um para-choque amassado que alguém guardara como prova. Apoiou-o contra uma pilha de caixas, junto a uma prancha de surfe que também tinha etiqueta de prova, e mãos à obra. Harry viu o monte de pastas, que teria um palmo de altura. Segundo Pounds, a divisão tinha investigado sessenta e seis homicídios nesse ano. Levando em conta a rotação e a convalescença de dois meses de Harry, Porter deve ter ficado com quatorze daqueles casos. Se restavam oito sem resolver, queria dizer que tinha solucionado os outros seis. Não era um mau resultado, especialmente dado o caráter passageiro dos homicidas de Hollywood. No resto do país, a grande maioria das vítimas de assassinato conheciam o seu assassino. Eram gente com a qual comiam, bebiam, dormiam ou inclusive moravam. Mas em Hollywood era diferente. Não havia normas; só separações, aberrações.


Desconhecidos que matavam desconhecidos. O motivo não era um requisito imprescindível. As vítimas apareciam em becos, nos bordas das autoestradas, entre a vegetação das colinas do Griffith Park, em latões de lixo nos contêineres de restaurantes... Um dos casos que Harry ainda não conseguira resolver era o de uma pessoa cujo cadáver tinha aparecido em seis pedaços: um em cada patamar da escada de incêndio de um hotel da Gower Street. Aquele crime atroz não tinha escandalizado ninguém no escritório. Inclusive corria a piada de que por sorte criminoso não se hospedara no Holiday Inn, porque este tinha quinze andares.


Em Hollywood, os monstros podiam se mover com impunidade entre a maré de gente; eram só um carro a mais no trânsito demencial da cidade. A uns pegavam e a outros jamais encontravam; tão somente ficava o rio de sangue que deixavam em sua passagem. Antes de se aposentar, Porter tinha seis a oito sem solucionar. Embora aquela cifra não lhe serviria para ser promovido, significava que havia seis monstros à menos em Hollywood. Então Bosch se deu conta de que podia equilibrar a estatística de Porter se resolvesse um dos oito casos abertos. Assim, ao menos, seu colega se aposentaria com um “aprovado”. Para Bosch não importavam nem Pounds, nem seu desejo de fechar mais um caso antes de véspera de Ano Novo. Não tinha nenhuma lealdade com seu chefe e, na sua opinião, essa análise, recontagem e classificação de vidas sacrificadas não significava nada. Decidiu que se ia fazer esse trabalho seria por causa de Porter. E Pounds que se danasse.


Harry empurrou as pastas para o fundo da mesa criando espaço para trabalhar. Primeiro decidiu folheá-las e separá-las em duas pilhas: uma para casos com possível solução rápida e outra para casos que precisariam de mais tempo. Repassou os crimes por ordem cronológica, começando pelo estrangulamento de um sacerdote nos banheiros públicos da Santa Mônica, ocorrido no dia de São Valentim.


Quando terminou, duas horas mais tarde, havia somente duas pastas na pilha de possibilidades. Um dos casos tinha um mês. Tratava-se do estupro e esfaqueamento de uma mulher que estava esperando o ônibus em Las Palmas e a que fora levada para a soleira escura de uma loja de presentes. O outro fora a descoberta há oito dias do corpo de um homem em um restaurante da Sunset Boulevard. O local ficava aberto vinte e quatro horas e se achava situado ao lado do edifício do Grêmio de Diretores. A vítima tinha morrido espancada.


Bosch se concentrou nesses dois assassinatos porque eram os mais recentes. A experiência tinha lhe ensinado que a possibilidade de resolver um caso diminui em proporção geométrica a cada dia que passa. Quem quer que tivesse estrangulado o sacerdote tinha todos os pontos para escapar. De fato, as estatísticas demonstravam que já conseguira. Segundo Bosch, os dois casos mais recentes podiam ser resolvidos rapidamente se encontrasse alguma pista. Se conseguisse identificar o cadáver achado atrás do restaurante, aquela informação poderia conduzi-lo a um membro de sua família, amigo ou colega de trabalho com mais possibilidades de ter um motivo e ser um assassino. Por outro lado, se conseguisse reconstruir os passos da mulher antes de chegar na parada de ônibus, talvez descobrisse onde e como o assassino a viu.


Bosch precisava decidir, assim decidiu estudar cada pasta atentamente antes de realizar uma escolha. Seguindo sua teoria das probabilidades, primeiro se debruçou no caso mais recente: o do corpo encontrado atrás do restaurante. À primeira vista a informação brilhava por sua ausência. Como Porter não tinha apanhado uma cópia datilografada do relatório da autópsia, Bosch precisou ler os resumos e apontamentos tomados pelo próprio Porter. Nestes apontamentos simplesmente se dizia que a vítima tinha recebido uma surra mortal com um "objeto sem afiar", uma expressão policial que não significava nada.


Porter se referia ao homem, de uns cinquenta e cinco anos, como Juan 67, porque acreditava que era hispano. Era o sexagésimo sétimo cadáver sem identificar aparecido no condado de Los Angeles neste ano. No corpo não acharam dinheiro, nem carteira nem outras posses além da roupa, toda ela fabricada no México. A única identificação era uma tatuagem na parte superior esquerda do peito: um desenho à tinta de uma espécie de fantasma cuja foto se incluía na pasta. Depois de examiná-la atentamente, Bosch concluiu que o fantasminha, que parecia com Casper, era muito velho, já que a tinta estava muito apagada. Juan 67 havia feito a tatuagem quando era jovem.


O relatório da cena do crime redigido por Porter dizia que o corpo tinha sido achado à 1:44 de 18 de dezembro por um policial fora de serviço do qual só se especificava o número de placa. O agente se dispunha a tomar o café da manhã cedo ou jantar muito tarde quando encontrou o corpo junto ao contêiner de lixo, ao lado da entrada da cozinha do restaurante Egg and I.


O agente 1101 estava em código sete e estacionou atrás do edifício com a intenção de entrar para comer. A vítima fora localizada na parte ocidental do beco. O corpo se achava em posição supina, com a cabeça apontando para o norte e os pés para o sul. Sendo visíveis feridas por todo o corpo, o agente notificou o oficial de plantão que avisasse Homicídios. O agente não viu nenhum outro indivíduo nos arredores antes nem depois de localizar o cadáver.


Bosch folheou a pasta em busca de um resumo escrito pelo agente em questão, mas não o encontrou. Depois estudou as outras fotos da pasta. Eram imagens do corpo tal como o encontraram, antes de que o transferissem para a morgue. Bosch observou que a cabeça da vítima apresentava uma enorme brecha, produto de um golpe brutal. Também notou feridas no rosto e rastros de sangue seco, negro, no pescoço e na camiseta branca do homem. Suas mãos descansavam, abertas, em ambos os flancos e, em nas fotos tiradas mais de perto, Bosch viu que dois dedos da mão direita estavam dobrados para trás e apresentavam múltiplas fraturas. Eram as típicas feridas que evidenciavam as tentativas de se defender da vítima. Do mesmo modo, Bosch se fixou na rudeza, nas cicatrizes das mãos e nos fortes músculos dos braços. O homem parecia um operário de algum tipo. O que faria num beco atrás de um restaurante à uma da manhã?


O papel seguinte na pasta continha declarações das testemunhas, quer dizer, dos empregados do Egg and I. Eram todos homens, coisa que Bosch estranhou, porque tinha tomado o café da manhã várias vezes no estabelecimento e lembrava que vira garçonetes. Porter parecia ter decidido que não eram importantes e se concentrou nos empregados da cozinha. Cada um dos entrevistados tinha declarado que não se lembrava de ter visto o homem assassinado, nem vivo nem morto. Porter tinha marcado com um asterisco a margem de uma das declarações, a do cozinheiro encarregado das frituras. Este tinha contado que, quando começara a trabalhar à uma da madrugada entrara pela porta de trás da cozinha, tinha passado pela parte ocidental do beco e não tinha visto nenhum cadáver. O homem estava certo de que teria notado se estivesse ali. Aquela declaração tinha ajudado Porter a estabelecer que o assassinato acontecera durante o espaço de quarenta e quatro minutos entre as chegadas do cozinheiro e do agente de polícia que encontrara o corpo.


Os documentos seguintes da pasta eram os resultados dos exames de impressões digitais da vítima realizados pelo Departamento de Polícia de Los Angeles, do índice Nacional de Delitos, do Departamento de Justiça da Califórnia e do Serviço de Naturalização e Imigração. Os quatro deram negativos. Não coincidiam com nenhuma de suas fichas, por isso Juan 67 continuava sem ser identificado.


Por último, Bosch achou os apontamentos que Porter tomara durante a autópsia. Esta não tinha tido lugar até na terça-feira, Véspera de Natal, devido ao habitual acumulo de casos no escritório do legista. Bosch notou que assistir à autópsia foi talvez a última tarefa oficial de Porter já que depois das festas não havia retornado para trabalhar. Possivelmente Porter estava consciente disso, porque seus apontamentos eram muito escassos; só uma página com uns quantos garranchos soltos. Alguns eram ilegíveis; outros podiam serem decifrados, mas não pareciam importantes. Entretanto, quase ao final da página, Porter tinha esboçado um círculo ao redor de uma anotação que dizia: "HD-12:00 a 18:00". Bosch sabia que aquilo significava que, depois de analisar a temperatura do fígado e outros dados do cadáver, fora determinada a hora de falecimento entre o meio-dia e seis horas da tarde.


No princípio, Bosch pensou que aquilo não fazia sentido, já que significava que o falecimento aconteceu no mínimo sete horas e meia antes da descoberta do corpo. Tampouco coincidia com o testemunho do cozinheiro, que afirmava não ter visto nada no beco à uma da madrugada. Essas contradições eram a razão pela qual Porter tinha esboçado um círculo ao redor da hora da morte. Aquilo queria dizer que Juan 67 não tinha sido assassinado atrás do restaurante, mas sim em outro lugar, quase um dia antes, e que depois o levaram para o beco.


Bosch tirou uma caderneta do bolso e começou a elaborar uma lista de pessoas com as quais queria falar. O primeiro da lista era o legista; Harry precisava obter o relatório completo da autópsia. Depois anotou Porter para que lhe desse mais detalhes. A seguir escreveu o nome do cozinheiro porque, em seus apontamentos, Porter só dizia que não tinha visto o corpo quando entrara para trabalhar. Não especificava se vira algo ou alguém estranho no beco. Finalmente tomou nota para se lembrar de descobrir o nome das garçonetes que trabalharam nessa manhã. Para completar a lista, Bosch telefonou para a delegacia de polícia.


— Queria falar com o mil cento e um, disse Bosch. — Pode procurar na lista e me dizer quem é?

— Muito engraçado, respondeu uma voz. Era Kleinman de novo.

— O quê? Exclamou Bosch. Nesse momento lhe veio à mente: — É Cal Moore?

— Quer dizer que era Cal Moore.


Quando Harry desligou o telefone, sua cabeça fervilhava de ideias. Juan 67 tinha aparecido no dia antes de que Moore se registrasse no Hideaway. Bosch tentou reconstruir a história: uma manhã cedo, Moore topa com um cadáver num beco. No dia seguinte, se hospeda em um motel, sobe o ar condicionado e se dá um tiro em pleno rosto. A mensagem que deixara é tão simples como misteriosa: “Descobriram quem eu era.”


Bosch acendeu um cigarro e riscou o agente 1101 da lista, mas continuou centrando seus pensamentos nesta última revelação. Sentia-se impaciente, incômodo. Trocou de postura várias vezes, se levantou e começou a dar voltas ao redor da mesa. Com este novo panorama, Bosch voltou a pensar em Porter e tentou deduzir o que tinha acontecido. A cada vez chegava à mesma conclusão: Porter recebe a ligação do caso Juan 67 e fala com Moore nesse mesmo dia. No dia seguinte Moore desaparece. Uma semana mais tarde Moore aparece morto e imediatamente Porter anuncia que vai pedir a aposentadoria. Eram muitas casualidades. Bosch pegou o telefone e ligou para a sala de Homicídios. Edgar atendeu, a quem Harry pediu o número particular de Porter. Edgar forneceu-o.


— Bosch, onde está? Perguntou.

— Por que pergunta? Noventa e oito está me procurando?

— Não, mas ligou um dos meninos da unidade de Moore dizendo que queria falar consigo.

— Ah, sim? Sobre o quê?

— E eu que sei? Eu só estou passando o recado. Não vai querer que faça o seu trabalho...

— Certo. Quem era?

— Um tal Rickard. Só me disse que tem algo para você. Dei-lhe seu número do pager porque não sabia se iria voltar logo. Onde está?

— Em nenhum lugar.


A seguir Bosch ligou para a casa de Porter. O telefone soou dez vezes. Bosch desligou e acendeu outro cigarro. Não sabia o que pensar de tudo aquilo. Teria Moore topado com o cadáver por acaso tal como dizia o relatório? Ou ele o teria deixado ali? Bosch não podia saber.


— Em nenhum lugar, repetiu em voz alta, com um monte de pastas como único interlocutor.


Bosch voltou a pegar o telefone e ligou para o escritório do legista. Depois de dar o nome, pediu que o pusessem em contato com a doutora Corazón, a legista-chefe. Harry se negou a revelar para a telefonista o motivo da ligação. Precisou esperar quase um minuto antes que Corazón atendesse.


— Estou ocupada.

— Feliz Natal, respondeu Bosch.

— Desculpe.

— É a autópsia de Moore?

— Sim, mas não posso falar. O que quer, Harry? Perguntou.

— Acabo de herdar um caso e não encontro o relatório da autópsia no arquivo. Estou tentando descobrir quem a fez para conseguir uma cópia.

— E me ligou para isso? Já sabe que pode pedir informação a qualquer dos peritos que estão por aqui.

— Eu sei, mas eles não são tão encantadores comigo.

— Bom, se apresse. Como se chamava?

— Juan 67. Data de falecimento, dia dezoito, e da autópsia, dia vinte e quatro. Ela não disse nada, por isso Bosch deduziu que estava verificando.

— Sim, confirmou ao cabo de um minuto. — Em vinte e quatro. Foi feita pelo Salazar, mas ele saiu de férias. Foi para a Austrália. Essa foi sua última autópsia até o mês que vem. Sabia que na Austrália agora é verão?

— Merda.

— Não se preocupe, Harry. Tenho o relatório aqui mesmo. Sally esperava que Lou Porter viesse apanhá-lo hoje, mas não apareceu. Como o herdou?

— Lou se aposentou.

— Um pouco cedo, não? Qual é...? Espere um momento.


A legista desapareceu durante mais de um minuto. Quando voltou, sua voz tinha um tom mais agudo.


— Harry, preciso ir. Façamos uma coisa. Quer ficar depois da hora? Então terei tempo para ler isto e poderei dizer o que encontramos. Acabo de lembrar que há algo interessante neste caso. Salazar veio me ver para que o enviasse a um assessor.

— Um assessor de quê?

— A um entomólogo, quer dizer, a um perito em insetos, da Universidade da Califórnia, respondeu ela. — Sally encontrou insetos.


Bosch estava consciente de que não era costume ter vermes em um homem que morrera a menos de doze horas. Além disso, Salazar não precisaria de um entomólogo para identificá-los.


— Insetos? Repetiu Bosch.

— Sim, na análise do conteúdo do estômago e das fossas nasais. Mas não posso lhe contar isso agora. Tenho quatro homens impacientes me esperando na sala de autópsias. E só um deles está morto.

— Suponho que os vivos serão Irving, Sheehan e Chastain: os três mosqueteiros. Ela soltou uma gargalhada.

— Exato.

— Certo. Como ficamos? Perguntou Bosch, enquanto consultava o relógio. Eram quase três horas.

— Às seis? Mediu ela. — Isso me dá tempo para acabar aqui e dar uma olhada no relatório do seu Juan 67.

— Quer que passe para apanhá-la? Nesse momento o pager de Bosch começou a apitar e ele o desligou num movimento reflexo.

— Não, me deixe pensar, respondeu ela. — Por que não me espera no Red Wind? Podemos ficar até que passe a hora do rush.

— Muito bem, repôs Harry.


Depois de desligar, Bosch verificou o número que aparecia no pager. Correspondia a uma cabine de telefones.


— Bosch? Respondeu uma voz.

— Sim.

— Sou Rickard, da unidade Bang. Antes trabalhava com Cal Moore.

— Certo.

— Tenho algo para você.


Bosch não disse nada, mas notou que o pelo das mãos e dos antebraços se arrepiavam. Embora tentasse imaginar o rosto de Rickard, não conseguiu. Bosch não o conhecia, o que era lógico. Os de narcóticos faziam um horário estranho; eram como uma raça à parte.


— Bom, deveria dizer que Cal deixou algo para você, se corrigiu Rickard. — Por que não nos encontramos? Prefiro não levar isso para a delegacia de polícia.

— Por quê?

— Tenho minhas razões. Direi-lhe quando nos encontrarmos.

— Onde?

— Conhece um lugar na Sunset, o Egg and I? É um restaurante aberto vinte e quatro horas. A comida é boa e não está cheio de drogados.

— Sim, sei onde é.

— Muito bem. Nós estaremos no fundo, ao lado da porta da cozinha. Procure a mesa onde estará o único negro do restaurante; esse serei eu. Pode estacionar atrás, no beco.

— Já sei. Quem são "nós"?

— Toda a brigada de Cal.

— Essa é sua base?

— Sim, sempre ficamos ali antes de sair à rua. Até agora.


* * *


Sete

O NOME do restaurante tinha mudado desde a última vez que Bosch estivera lá. Agora se chamava American Egg and I, o que devia significar que um estrangeiro o tinha comprado. Depois de estacionar o Caprice no beco, Bosch caminhou para o lugar onde tinham encontrado Juan 67: precisamente atrás do restaurante frequentado pela brigada de narcóticos. Bosch começou a pensar nas implicações de tudo aquilo, mas os vagabundos do beco o interromperam, pois se aproximaram dele para pedir esmola. Sua presença serviu para lembrar outra falha na ineficaz investigação de Porter. No relatório não se mencionava a possibilidade de entrevistar os mendigos do beco como possíveis testemunhas.


Já dentro do restaurante, Bosch descobriu quatro homens jovens, um deles negro, na mesa do fundo. Estavam sentados em silêncio, com o olhar fixo em suas xícaras de café vazias. Harry apanhou uma cadeira e se sentou à cabeça da mesa, onde se via uma pasta de cor marrom.


— Sou Bosch.

— Tom Rickard, respondeu o negro. Rickard lhe estendeu a mão e em seguida apresentou os outros três: Finks, Montirez e Fedaredo. — Cansamo-nos de nos reunir no escritório, explicou Rickard. — Cal gostava deste lugar.


Bosch simplesmente concordou e olhou a pasta. O nome escrito na etiqueta era Humberto Zorrillo, o que não lhe dizia nada. Rickard passou a pasta a Bosch.


— O que é? Perguntou Bosch sem tocá-la.

— Provavelmente seu último caso, respondeu Rickard. — Íamos entregá-la a Roubos e Homicídios mas pensamos que ele estava preparando-a para você. E esses caras do Parker Center estão tentando cobri-lo de merda, assim não vamos ajudá-los.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que não podem deixar que o homem se suicide e pronto. Os idiotas precisam desmontar a vida dele e descobrir exatamente por que fez isto. O cara se deu um tiro, porra. Que mais se pode dizer?

— Não querem saber por quê?

— Já sabemos, cara. Pela batalha. É algo que acontece com todos. Quero dizer, que eu o compreendo.


Bosch se limitou a assentir de novo. Os outros três não haviam dito nada.


— Exagerei, mas é que tive um mau dia, explicou Rickard. — O dia mais comprido de toda minha puta vida.

— Onde estava isto? Perguntou Bosch, assinalando a pasta. — Roubos e Homicídios não revistaram a mesa dele?

— Sim, mas isto não estava lá. Cal a deixou em um dos carros do Bang, um desses carros que usava para andar incógnito; na bolsa que há atrás do assento dianteiro. Não a vimos durante a semana que Cal desapareceu, porque até hoje ninguém se sentou atrás. Normalmente usamos dois carros nas operações, mas hoje nos juntamos em um só para fazer um reconhecimento no Boulevard depois de saber da notícia. Eu a encontrei. Dentro há uma nota que diz que para entregarmos a você. Sabíamos que estava trabalhando em algo depois daquela noite em que se reuniu consigo no Catalina.


Bosch ainda não tinha aberto a pasta. Só olhá-la lhe dava uma sensação de angústia.


— Naquela noite, no Catalina, Moore me disse que os abutres estavam lhe pisando nos calcanhares. Sabem por quê?

— Não. Só sabemos que pululavam por aqui, como moscas em bosta. Assuntos Internos revistou sua mesa antes de Roubos e Homicídios; os porcos levaram seus arquivos, sua agenda de telefones, inclusive a máquina de escrever. E era a única tínhamos! Mas continuamos sem entender qual seria o assunto. Eu só sei que o cara estava há muitos anos batalhando. Por isso digo que a batalha foi a razão de sua morte. No final acontecerá com todos.

— E fora do trabalho? Seu passado. Sua mulher disse que...

— Não me fale dessa fulana. Foi ela quem soltou os de Assuntos Internos sobre ele; lhes contou não sei qual mentira sobre Cal quando ele a deixou. Mas acredito que só queria se vingar.

— Como sabe que foi ela?

— Porque Cal nos disse, cara. Avisou-nos de que os abutres talvez passassem a fazer perguntas e que ela tinha instigado tudo.


Bosch se perguntou quem teria mentido: Moore a seus colegas ou Sylvia a ele. Quando pensou nela, não a pôde imaginar acusando o marido, mas seria inútil insistir ante os quatro da narcóticos. Finalmente Bosch pegou a pasta e saiu.


Harry tinha muita curiosidade para esperar. E estava consciente de que nem sequer deveria ter a pasta; que o correto seria entregá-la a Frank Sheehan do Departamento de Roubos e Homicídios. Não obstante, deu uma olhada ao redor do carro para ter certeza de que estava sozinho e começou a ler. Na primeira página encontrou uma notinha adesiva que dizia:


Para Harry Bosch


Não tinha assinatura nem data; estava presa a uma folha de papel e a mais cinco fichas de cor verde. Harry tirou as fichas de interrogatório e as folheou. Cinco nomes diferentes, todos homens. Cada um deles tinha sido detido, questionado e finalmente posto em liberdade por membros da unidade Bang em outubro ou novembro. As fichas continham pouco mais que uma descrição, endereço, placa do veículo, data e lugar da detenção. Os nomes não significavam nada para Bosch.


Bosch examinou a folha a qual foram unidas as fichas. Sob o título "Memorando interno", leu: "Relatório de Inteligência Bang, número 144." A folha tinha data de 1 de novembro, e o carimbo com a palavra arquivado com data de dois dias após.


Durante o transcurso da investigação sobre atividades de narcotráfico no Distrito 12, os agentes Moore, Rickard, Finks, Fedaredo e Montirez entrevistaram numerosos suspeitos supostamente implicados na venda de drogas na área do Hollywood Boulevard. Nas últimas semanas, estes agentes notaram o fato de que vários indivíduos estão envolvidos na venda de uma nova droga chamada "gelo negro", um narcótico que combina heroína, cocaína e PCP em forma de pedra. A demanda desta droga na rua continua sendo fraca neste momento, mas se espera que sua popularidade aumente grandemente. Os agentes atribuídos a esta unidade acreditam que várias pessoas sem residência fixa estão envolvidas na venda do gelo negro a nível de rua. Graças a sua investigação, foram identificados cinco suspeitos, mas não foi realizada nenhuma detenção. A rede de distribuição nas ruas parece ser dirigida por um indivíduo cuja identidade ainda se desconhece.


Nossas conversas com informantes e consumidores de gelo negro nos permitiram descobrir que a forma predominante desta droga no distrito investigado vem do México, e não do Havaí, onde a substância se originou, e de onde se continua exportando para o resto do país em grandes quantidades. Veja-se o documento 502 da DEA. Os citados agentes ficarão em contato com a DEA para descobrir a origem deste narcótico e continuarão controlando as atividades de venda no Distrito 12.

Assinado:

C. V. Moore, agente 1101


Bosch releu o relatório. Era o típico documento para cobrir as costas; não dizia nada, nem significava nada. Carecia de qualquer valor, exceto o de demonstrar a um superior que se estava consciente do problema e se tomariam medidas para atacá-lo. Moore devia se dar conta que o gelo negro começava a ser algo mais que uma piada e redigiu um relatório pelo que pudesse acontecer.


O documento seguinte era o relatório da detenção de um homem chamado Marvin Dance por posse de drogas. O escrito tinha data de 9 de novembro e dizia que Dance foi detido por agentes do Bang em Ivar, ao norte do Boulevard. Segundo o documento, o suspeito estava sentado em um carro estacionado e os de narcóticos viram outro homem entrar no veículo. Continuando, Dance tirou algo da boca e o passou ao outro indivíduo, que então saiu do carro e se afastou andando. Os dois agentes se separaram e Finks seguiu o que caminhava até que estivessem fora do campo de visão de Dance. Então Finks parou-o e confiscou um eightball, oito gramas de gelo negro embrulhadas separadamente e metidas em um preservativo.


Rickard continuou vigiando Dance, que ficara no carro esperando a que chegasse o camelo seguinte. Quando Finks avisou a Rickard de que tinha realizado a detenção, este se dirigiu ao carro para prender Dance. Imediatamente, Dance engoliu o que tinha na boca. Enquanto permanecia algemado na calçada, Rickard revistou o carro, mas não encontrou drogas. Entretanto, em um copo do MacDonald's amassado jogado no meio-fio junto à porta do carro, o policial encontrou mais seis preservativos, todos eles com um eightball dentro.


Dance foi preso por venda e posse com intenção de venda. O relatório dizia que o suspeito se negou a falar com a polícia antidroga, exceto para dizer que o copo do MacDonald's não era dele. Embora não tivesse chamado nenhum advogado, em menos de uma hora se apresentou um na delegacia de polícia e informou os agentes que seria anticonstitucional levar o seu cliente a um hospital para fazer uma lavagem de estômago ou examinar seus sedimentos quando tivesse que ir ao sanitário. Moore, que processou a detenção na delegacia de polícia, consultou o promotor do distrito e verificou que o advogado tinha razão.


Dance foi posto em liberdade após depositar fiança de 125.000 dólares, duas horas depois da detenção, coisa que Bosch estranhou. Segundo o relatório, a detenção aconteceu às 23:42, quer dizer, que em duas horas, em plena noite, Dance conseguira um advogado, o aval, e dez por cento em dinheiro da importância fixada pelo juiz: 12.500 dólares.


Finalmente não foram feitas acusações contra Dance. A página seguinte na pasta era uma folha do escritório do promotor do distrito que desprezava apresentar denúncia já que não haviam provas suficientes para relacionar Dance com o copo do MacDonald's encontrado no meio-fio a um metro de seu carro. Por isso Dance não foi acusado de posse. Imediatamente se desprezou a denúncia de venda, já que os policiais de narcóticos não viram que tivesse dinheiro trocando de mãos quando Dançar deu o eightball ao tipo que tinha entrado no carro. O garoto se chamava Glenn Druzon, tinha dezessete anos e se negou a testemunhar que Dance tinha lhe dado a droga. E mais, no relatório do escritório do promotor, se afirmava que estava disposto a declarar que já tinha a droga antes de entrar no carro. Se o chamassem para testemunhar, diria que tinha tentado vender o Dance mas que não tinha aparecido nenhum interessado. No final, o caso contra Dance caiu. Druzon foi acusado de posse e colocado em liberdade condicional por ser menor de idade.


Bosch levantou os olhos dos relatórios e os dirigiu ao fundo do beco, por onde aparecia o edifício de cobre e cristal do Grêmio de Diretores e a parte superior da cerca da Marlboro que dominava Sunset Boulevard desde tempos imemoriais. Acendeu um cigarro e reatou sua leitura do relatório do promotor do distrito. Presa ao mesmo havia uma foto policial de Dance, um homem loiro que sorria para a câmara. Bosch não se surpreendeu com o que acontecera, por ser habitual em muitos dos casos das ruas. Os peixes pequenos, os mais baixos no escalão delitivo, mordiam o anzol. Os peixes mais gordos, em troca, rompiam a linha e escapavam. A polícia compreendia que só podia interromper, mas não pôr fim à delinquência nas ruas.


Se prendiam um camelo, outro ocupava o lugar. Ou um advogado o livrava sob fiança e em seguida um promotor do distrito com quatro gavetas cheias de casos o soltava. Aquela era uma das razões pelas quais Bosch preferia trabalhar em Homicídios. Às vezes pensava que era o único crime que contava. Mas inclusive isso estava mudando.


Harry pegou a foto de Dance, colocou-a no bolso e fechou a pasta. Aquilo o preocupava. Perguntou-se que relação Calexico Moore tinha visto entre Dance e Jimmy Kapps para guardar o relatório de sua detenção. Bosch tirou uma caderneta do bolso interior de sua jaqueta e começou a escrever uma cronologia.


9 de novembro. Detenção de Dance.

13 de novembro. Jimmy Kapps morto.

4 de dezembro. Reunião de Moore e Bosch.


Bosch fechou a caderneta. Precisava voltar ao restaurante e fazer uma pergunta a Rickard. Mas antes voltou a abrir a pasta. Só restava uma folha para ler: outro relatório da unidade Bang. Neste caso se tratava do resumo de uma conversa que Moore tivera com um agente da DEA atribuído a Los Angeles. Tinha a data de 11 de dezembro, quer dizer, uma semana depois de que Moore e Bosch se reuniram no Catalina.


Harry tentou decifrar a importância daquele último documento. Quando se reuniram, Moore não havia dito a Bosch tudo o que sabia, mas depois tinha ido até a DEA para conseguir informações sobre o tema. Parecia como se estivesse fazendo um jogo duplo. Ou talvez Moore estava tentando roubar o caso de Bosch, e resolvê-lo por sua conta. Bosch leu o relatório lentamente, enquanto dobrava de forma inconsciente as quinas da pasta de cartolina.


A informação fornecida pelo agente especial da DEA, Rene Curvo, do escritório de operações em Los Angeles, indica que o principal lugar de origem do gelo negro é a Baixa Califórnia. O sujeito 44Q3, Humberto Zorrillo (11/11/54), supostamente opera um laboratório clandestino na área de Mexicali que produz gelo mexicano para distribuição nos Estados Unidos. O sujeito reside em um rancho de dois hectares e meio à sudoeste de Mexicali. A Polícia Judicial do Estado não tomou medidas contra ele por motivos políticos. Desconhece-se o modo de transporte da droga. A vigilância aérea não mostra rastro algum de pista de aterrissagem nas terras do rancho. A DEA supõe que empregam rotas terrestres através de Calexico ou São Isidro, embora no momento não foram interceptados carregamentos nestes pontos. Acredita-se que o sujeito goza do apoio e da colaboração de agentes da Polícia Judicial do Estado. Nos bairros à sudoeste de Mexicali, Zorrillo é muito conhecido, virtualmente um herói, graças a suas generosas doações de empregos, medicamentos, moradias e comida nos bairros pobres onde cresceu. Alguns dos habitantes dos bairros à sudoeste se referem a Zorrillo como o Papa de Mexicali. O imóvel de Zorrillo está sendo vigiado vinte e quatro horas. O Papa quase nunca sai do imóvel, à exceção de uma excursão semanal nas arenas da Baixa Califórnia para ver corridas em que seus touros lutam. As autoridades da Polícia Judicial do Estado afirmaram que, no momento, sua colaboração em qualquer ação da DEA contra Zorrillo seria impossível.

Assinado:

Sargento C. V. Moore, agente 1101


Depois de fechar a pasta, Bosch ficou ensimesmado. Sua cabeça era um torvelinho de ideias contraditórias. Alguém como ele, que não acreditava em casualidades, não podia deixar de se perguntar por que a sombra de Cal Moore se projetava por toda parte. Então consultou o relógio e se deu conta de que seria a hora de se encontrar com Teresa Corazón. Mas nada podia afastar uma ideia de sua mente: Frankie Sheehan do Departamento de Roubos e Homicídios devia ter acesso à informação do arquivo Zorrillo. Bosch tinha trabalhado com Sheehan no Departamento de Roubos e Homicídios; era um bom homem e um bom investigador. Se estava levando uma investigação legítima, devia ter a pasta. E se não, não importava que a tivesse ou não.


Bosch saiu do carro e retornou ao restaurante. Desta vez entrou pela porta da cozinha, no beco. A equipe do Bang não se movera: os quatro homens continuavam ali sentados em completo silêncio, como se estivessem em um funeral. Bosch voltou a ocupar a mesma cadeira que tinha usado antes.


— O que aconteceu? Perguntou Rickard.

— Leram tudo, não? Falem-me de Dance.

— O que quer que falemos? Disse Rickard. — Nós o pegamos e o promotor do distrito o soltou. O de sempre. A droga é diferente, mas o cilindro é o mesmo.

— Quem lhes deu a pista de Dance? Como souberam que estava traficando?

— Ouvimos por aí.

— É muito importante. Tem a ver com Moore.

— Como?

— Não posso lhes dizer agora. Precisam confiar em mim até que resolva umas quantas coisas. Só me digam quem recebeu a dica. Porque foi uma dica, não? Rickard pareceu sopesar as respostas.

— Sim. Foi um de meus informantes.

— Quem foi?

— Porra, cara, não posso...

— Jimmy Kapps. Foi Jimmy Kapps, não foi?


Rickard pensou um instante, o que confirmou as suspeitas de Bosch. Enfurecia-lhe estar descobrindo aquilo quase por acaso e só depois da morte de um policial. Mas o panorama estava se esclarecendo. Kapps delatou Dance com o propósito de conseguir parte da estrutura dele. Em seguida voltou para o Havaí, recolheu um carregamento de globos e os trouxe no estômago. Mas na sua volta, Dance já não estava na cadeia e mataram Jimmy Kapps antes que pudesse vender a mercadoria.


— Por que diabos não falaram comigo quando souberam que mataram Kapps? Eu estava há dias tentando encontrar uma pista sobre este caso e vocês...

— Mas o que diz, cara? Moore ia lhe contar isso...


Nesse momento todos os que estavam sentados naquela mesa compreenderam que Moore não tinha contado a Bosch o que sabia. Fez-se um silêncio sepulcral. Se não sabiam antes, agora era evidente; Moore estava metido em algum assunto sujo. Finalmente Bosch quebrou o silêncio.


— Moore sabia que Kapps tinha lhe dado a dica? Rickard vacilou de novo, mas finalmente concordou com a cabeça. Então Bosch se levantou e devolveu a pasta. — Eu não a quero. Chamem Frank Sheehan do Departamento de Roubos e Homicídios e lhe digam que acabaram de encontrá-la. Podem fazer o que quiserem, mas eu não mencionaria que me deram primeiro. Eu tampouco direi alguma coisa.


Harry se encaminhou para a porta, mas de repente parou.


— Ah, outra coisa. Viram esse cara ultimamente, o Dance?

— Depois da detenção não, respondeu Fedaredo. Os outros três negaram com a cabeça.

— Se o encontrarem, me avisem, de acordo? Já sabem meu número.


Uma vez no beco, Bosch voltou a examinar o lugar exato onde Moore tinha encontrado Juan 67. Supostamente, claro. Bosch já não sabia em que acreditar com respeito a Moore; não podia evitar se perguntar qual era a relação entre Juan 67, Dance e Kapps, se é que havia alguma. Finalmente Bosch concluiu que a chave residia em descobrir a identidade do homem com as mãos e os músculos de operário. Quando o fizesse, encontraria o assassino.


* * *


Oito

DEPOIS DE passar diante do pequeno monumento aos mortos em serviço, Harry entrou no vestíbulo de Parker Center, onde precisou mostrar sua placa a um agente. Os policiais de recepção não reconheciam ninguém abaixo do cargo de comandante, o que para o Bosch era um sinal inequívoco de que o departamento se tornara muito grande e impessoal.


O vestíbulo estava cheio de gente que ia e vinha. Alguns usavam uniforme e outros trajes, enquanto outros traziam o adesivo de VISITANTE na camisa e o olhar aturdido dos cidadãos que se aventuravam pela primeira vez naquele enorme labirinto. Harry considerava Parker Center um matagal burocrático que, mais que ajudar, atrapalhava o trabalho do policial de rua. O edifício tinha oito andares com seus corredores e feudos correspondentes. Cada um deles era zelosamente guardado por seus subdiretores e diretores, e todos desconfiavam uns dos outros; eram pequenos organismos dentro de uma enorme organização.


Bosch tinha se convertido em um perito do labirinto durante os oito anos que trabalhara na Roubos e Homicídios. Isso até ser expulso, quando Assuntos Internos o investigou por ter matado um presumido assassino em série. Bosch tinha disparado ao ver que o homem colocava a mão debaixo do travesseiro para pegar alguma coisa, no caso talvez uma arma. Em seguida mostrou ser um golpe. A coisa teria sido engraçada, se não fosse porque o sujeito morreu no ato. Mais tarde, os investigadores do Departamento de Homicídios confirmaram que o suspeito tinha cometido onze assassinatos. Transferiram-no para um crematório em uma caixa de papelão, enquanto Bosch fora transferido para a Divisão de Hollywood.


O elevador estava repleto e cheirava a alento rançoso. Bosch desceu no quarto andar e se dirigiu aos escritórios da Divisão de Investigações Científicas. Como a secretária já tinha saído, Harry esticou o braço por cima do balcão e apertou o botão que abria a portinhola de entrada. Depois de atravessar o laboratório de balística, entrou no escritório da divisão. Donovan continuava ali, sentado à sua mesa.


— Harry... Como entrou?

— Eu abri.

— Não faça isso. Não pode sair por aí pulando as normas de segurança. Bosch concordou e pôs cara de contrição. — O que quer? Perguntou Donovan. — Não tenho nenhum de seus casos.

— Errou.

— Qual?

— Cal Moore.

— É uma merda.

— É sim. Foi me dada uma parte, de acordo? Só tenho um par de perguntas. Se quiser, responda, se não, não acontecerá nada.

— O que foi lhe dado?

— Estou seguindo um par de pistas dos meus casos e elas se cruzam em Cal Moore. Assim... Bem, só queria estar certo do Moore. Já me entendeu, não?

— Não, não entendi.


Bosch pegou uma cadeira de outra mesa e se sentou. Apesar de estarem sozinhos no escritório, Bosch falou baixo e devagar com a esperança de interessar ao perito da Divisão de Investigações Científicas.


— É só para mim, mas preciso estar certo. O que quero saber é se tudo se confirmou.

— O que se confirmou?

— Vamos, homem. Se realmente era Moore e havia se alguém mais no quarto do motel. Depois de um comprido silêncio, Donovan aclarou a garganta e perguntou:

— O que quer dizer com “Estou trabalhando em casos que se cruzam com o de Moore?”. "Vamos bem", pensou Bosch, entrevendo uma pequena possibilidade de comunicação.

— Eu estava investigando a morte de um camelo e pedi ajuda a Moore. Depois me deram um cadáver, sem identificar, em um beco da Sunset e acabou sendo Moore que encontrara o corpo. No dia seguinte, Moore se registrou nesse motel de má fama e se voou a tampa dos miolos. Ou parece isso. Só quero ratificar que era ele. Ouvi que os legistas já o identificaram.

— E o que faz pensar que esses dois casos estão relacionados com o assunto de Moore?

— No momento não penso nada. Só estou tentando eliminar possibilidades. Talvez sejam coincidências; não sei.

— Bem, cedeu Donovan. — Não sei o que encontraram na autópsia, mas eu tirei impressões que lhe pertenciam. Posso assegurar que Moore esteve naquele quarto. Acabei de terminar; levei todo o dia.

— Por quê?

— Porque nesta manhã o computador do Departamento de Justiça não funcionava e quando fui a Pessoal para pedir as impressões digitais de Moore, me disseram que Irving já as tinha tirado para levar ao legista. Supõe-se que isso não se pode fazer, mas quem vai ser o corajoso a dizer? O cara o poria em sua lista negra. Então, tive que esperar que o computador do Departamento de Justiça funcionasse. No final me chegaram as impressões e acabo de terminar há um momento. A do quarto era de Moore.

— Onde encontrou as impressões?

— Um momento.


Sem se levantar da cadeira, Donovan rodou até os arquivos e abriu uma gaveta com uma chave que tirou do bolso. Enquanto o perito folheava os arquivos, Bosch acendeu um cigarro. Finalmente, Donovan tirou um e voltou rodando até sua mesa.


— Apague isso, Harry. Já sabe que não suporto.


Bosch deixou cair o cigarro no chão de linóleo, pisou-o e o empurrou com o pé para baixo da mesa de Donovan. Este começou a repassar umas folhas que tinha tirado de uma pasta. Bosch notou em que cada folha continha um plano do quarto do motel onde encontraram o corpo de Moore.


— Vejamos, disse Donovan. — As impressões do quarto eram de Moore. Todas. Eu mesmo as veri...

— Já me disse.

— Certo. Vamos ver, há um polegar de quatorze pontos na culatra da arma. Esse foi o dado definitivo: quatorze.


Harry sabia que só se precisavam de cinco pontos iguais em uma comparação de impressões digitais para que se aceitasse como identificação em um julgamento. Obter quatorze pontos iguais na escopeta era quase melhor que uma foto da pessoa com a arma na mão.


— Então... Vamos ver... Encontramos quatro impressões de três pontos nos canos da arma. Suponho que devem ter se borrado um pouco quando a escopeta saltou das mãos, assim esses não contam.

— E nos gatilhos?

— Não, nada. Apertou os gatilhos com o dedo do pé, vestido com a meia três-quartos, não se lembra?

— E o resto do quarto? Eu o vi empoeirar o aparelho de ar condicionado.

— Sim, mas não consegui nada. Pensamos que Moore tivesse aumentado o ar para atrasar a decomposição do corpo, mas o comando do aparelho estava limpo. Claro que, como era de plástico rugoso, tampouco fosse ideal para encontrar impressões.

— O que mais? Donovan consultou seus dados.

— Na placa de Moore encontrei o indicador e o polegar. Cinco e sete pontos respectivamente. A placa estava na cômoda com a carteira, mas ali não havia nada; só manchas imprecisas. Na pistola aconteceu outro tanto; manchas imprecisas exceto no cartucho, onde havia um polegar. Donovan fez uma pausa. — Vamos ver... Sim, aqui tenho quase toda a mão: uma palma, um polegar e três dedos na porta do armário debaixo do lavabo. Suponho que deve ter se apoiado nele quando se sentou no chão. Que forma de morrer, cara.

— Sim, conveio Bosch. — Já terminou?

— Bem, não. No jornal... Havia um jornal na cadeira; aí encontrei uma impressão perfeita. Outra vez o polegar e três dedos.

— E nos cartuchos das balas?

— Só manchas imprecisas. Nada claro.

— E no bilhete?

— Nada.

— Alguém verificou a letra?

— Bem, estava datilografada, mas Sheehan a passou a alguém de Documentos Suspeitos, que confirmou que fora escrita na máquina de Moore. Há uns meses, Moore se separou da mulher e foi para um lugar em Los Feliz chamado The Fountains. Moore preencheu um impresso de mudança de domicílio, que estava no dossiê de pessoal que Irving levou. O cartão de mudança de endereço também estava escrito à máquina. Muitas das letras coincidiam exatamente com as do bilhete.

— E a escopeta? Algum rastro do número de série?

— Não, tinham-no limado e queimado com ácido. Ouça, Harry, não acredito que deva lhe dizer tantas coisas. É melhor... Em lugar de terminar a frase, Donovan deu meia volta e começou a guardar os documentos no arquivo.

— Já estou indo. E a impressão no projétil? Analisou? Donovan fechou a gaveta com chave e se voltou para o Harry.

— Começamos, mas não terminamos. De qualquer maneira, se trata de dois canos paralelos e balas de escopeta, por isso o impacto é enorme. Eu diria que poderia ter disparado a uns quinze centímetros de distância e os resultados teriam sido igualmente devastadores. Não há mistério. Depois de assentir, Bosch consultou o relógio e se levantou.

— Uma última coisa.

— Bem, venha. Com o que lhe contei já me tiram a pele, respondeu Donovan. — Ouça, será discreto, não?

— Claro. Isto é o último. Outras impressões. Quantas encontrou que não pertençam a Moore?

— Nenhuma, e é curioso; ninguém deu importância.


Bosch se sentou de novo; aquilo não fazia sentido. Os quartos de motéis eram como as prostitutas. Todos os clientes deixam algum rastro, alguma marca. Por muito que as limpem, sempre fica algo: um sinal delatador. Harry não podia acreditar que todas as superfícies que Donovan tinha verificado estivessem impolutas, descontando as impressões de Moore.


— O que quer dizer com “Ninguém deu importância?.

— Porque ninguém o mencionou. Eu disse ao Sheehan e a esse tipo dos Assuntos Internos que o acompanha, mas eles não pareceram se surpreender. Soltaram-me algo assim como: "Pois se não há mais impressões, não há mais impressões". Nota-se que nunca precisaram revistar um quarto de motel! E eu que pensava que ia passar a noite toda trabalhando... E no final só havia as que lhe contei. Porra, estava mais limpa que a minha própria casa. Inclusive liguei o laser, mas não encontrei nada: só os rastros de terem passado um pano. E não é precisamente um lugar famoso por sua limpeza...

— Contou a Sheehan, não?

— Sim, quando terminei. Como era Natal, pensei que me diriam que não podia estar tão limpo; que eu queria escapar para ficar com a minha família. Mas eles me responderam que ok, adeus e Feliz Natal. Assim fui embora. À merda todos eles.


Bosch pensou em Sheehan, Chastain e Irving. Sheehan era um investigador competente, mas com esses dois vigiando, poderia ter cometido um engano, Além disso, tinham entrado no motel completamente certos de que se tratava de um suicídio. Bosch teria feito o mesmo. E para cúmulo encontraram um bilhete; precisaram ter encontrado uma faca enfiada nas costas de Moore para mudar de opinião. De qualquer maneira, a ausência de outras impressões no quarto e do número de série da escopeta eram detalhes que deveriam ter reduzido a certeza, mas que obviamente não os fizeram duvidar muito. Harry começou a se perguntar se a autópsia confirmaria a teoria de que se tratava de um suicídio.


Bosch se levantou uma vez mais, agradeceu a informação a Donovan e partiu. Desceu pelas escadas até o terceiro andar e se dirigiu ao escritório do Departamento de Roubos e Homicídios, onde a maioria das três fileiras de mesas estavam vazias, já que passavam das cinco. A de Sheehan era uma delas, na área especialmente demarcada para Homicídios Especiais. Alguns dos detetives que ainda não tinham ido para casa levantaram os olhos, mas em seguida os desviaram. Bosch não lhes interessava porque era um símbolo do que podia acontecer; da dura que podia ser a queda.


— Sheehan está por aí? Perguntou a uma detetive sentada atrás do balcão. Estava de plantão e a tinham encarregado do telefone, das denúncias e do restante dos trabalhos tediosos.

— Não, já foi embora, respondeu ela sem levantar a vista de uma solicitação de férias que estava preenchendo. — Ligou do escritório do legista há uns minutos para dizer que estava em código sete até amanhã de manhã.

— Posso usar uma mesa uns minutos? Preciso fazer umas ligações. Bosch odiava ter que pedir permissão depois de ter trabalhado naquele escritório durante oito anos.

— Use a que quiser, respondeu ela, ainda sem levantar os olhos.


Bosch escolheu uma mesa que não estava muito repleta de papéis e ligou para homicídios de Hollywood com a esperança de que ainda restasse alguém. Quando Karen Moshito atendeu o telefone, Bosch perguntou se havia mensagens para ele.


— Só uma, de uma tal Sylvia. Não me deu o sobrenome. Ao anotar o número, Bosch notou que o pulso acelerava. — Soube de Moore? Perguntou-lhe Moshito.

— A identificação? Sim.

— Não, o da autópsia. Nas notícias do rádio disseram que não é concludente. É a primeira vez que um tiro de escopeta no rosto não é concludente.

— Quando disseram isso?

— Acabo de ouvir na KFWB, nas notícias das cinco horas.


Quando desligou, Bosch tentou discar outra vez o número de Porter. E de novo não obteve resposta. Harry se perguntou se o policial estaria em casa, mas não

queria falar ao telefone. Imaginou Porter sentado com uma garrafa, às escuras, incapaz de abrir a porta ou levantar o telefone. Bosch olhou o número de Sylvia Moore e se perguntou se saberia da autópsia. Devia ser isso. Depois de soar três vezes, Sylvia atendeu o telefone.


— Senhora Moore?

— Sim.

— Harry Bosch.

— Já sei. Ela não disse mais nada.

— Como vai?

— Acredito que bem. Liguei para agradecer. Por sua amabilidade ontem à noite.

— Bem, não precisa que...

— Lembra-se do livro que mencionei?

— O longo adeus?

— Sim. Há outra frase que eu gosto: "Para mim, um homem cavalheiresco é menos comum que um carteiro gordo". Embora na verdade agora há muitos carteiros gordos. Sua risada era doce, quase como seu pranto. — Mas não há muitos homens cavalheirescos. E você foi ontem à noite. Bosch não sabia o que responder. Tentou imaginá-la do outro lado do silêncio.

— Obrigado, é muito amável, mas não sei se mereço isso. Às vezes a profissão me obriga a agir de forma muito pouco cavalheiresca.


A seguir falaram de assuntos mais corriqueiros e ao cabo de uns minutos se despediram. Quando desligou, Bosch ficou um momento pensativo, com a vista fixa no telefone e a mente concentrada no que haviam dito e no que calaram. Era evidente que entre eles havia algo mais que a morte de Cal Moore; algo mais que um caso. Havia harmonia. Em seguida, Bosch passou as folhas da caderneta até chegar à cronologia que tinha começado a redigir nessa tarde.


09 de novembro. Detenção de Dance.

13 de novembro. Jimmy Kapps morto.

04 de dezembro. Reunião de Moore e Bosch.


Bosch começou a acrescentar outras datas e fatos, apesar de que alguns deles ainda não pareciam encaixar. Entretanto, intuía que todos os casos estavam conectados e que o ponto de união era Calexico Moore. Não quis se deter para considerar a lista até que tivesse terminado. Quando o fez, descobriu que o ajudava a pôr em ordem todas as ideias que tinham lhe dançado pela cabeça nos últimos dois dias.


01 de novembro. Memorando Bang sobre o gelo negro.

09 de novembro. Rickard recebe dica de Jimmy Kapps.

09 de novembro. Detenção e em seguida liberação de Dance.

13 de novembro. Jimmy Kapps morto.

04 de dezembro. Reunião Moore e Bosch. Moore mente.

11 de dezembro. Moore fala com a DEA.

18 de dezembro. Moore encontra corpo de Juan 67.

18 de dezembro. Porter lhe atribui o caso Juan 67.

19 de dezembro. Moore se registra no Hideaway. Suicídio?

24 de dezembro. Autópsia de Juan 67. Insetos?

25 de dezembro. Aparece o corpo de Moore.

26 de dezembro. Porter se retira.

26 de dezembro. Autópsia de Moore. Não concludente?


De qualquer maneira, Bosch não continuou estudando a lista muito tempo, já que não podia tirar Sylvia Moore da cabeça.


* * *


Nove

BOSCH PEGOU a Los Angeles Street até chegar na Second Street, e rumou para o bar Red Wind. Quando passou diante da igreja da Santa Vibiana, notou um grupo de vagabundos esfarrapados que saíam de seu interior; certamente tinham passado o dia dormindo nos bancos e nesse momento se preparavam para jantar na missão da Union Street. Ao chegar ao edifício do Times, Bosch levantou os olhos para o relógio e viu que eram seis em ponto, então ligou o rádio para escutar o boletim de notícias da KFWB. A autópsia de Moore foi a segunda notícia, depois da do prefeito. Pelo visto, o homem tinha sido a última vítima de uma onda de ataques camicazes para protestar contra a AIDS. Tinham lhe jogado um saco cheio de sangue de porco na escadaria branca da prefeitura da cidade. Um grupo denominado "SuiSida" tinha reivindicado o atentado.


A autópsia do sargento de polícia Calexico Moore não permite concluir que o agente de narcóticos tirou a própria vida, conforme informou o escritório do legista do condado de Los Angeles. O cadáver do agente, de trinta e oito anos, foi encontrado no dia de natal em um motel de Hollywood. Segundo fontes policiais, o sargento Moore estava morto à uma semana por causa de um tiro de escopeta. Estas mesmas fontes confirmaram que foi encontrado um bilhete de suicídio, mas não divulgaram o seu conteúdo. O sargento Moore será enterrado na segunda-feira.


Bosch desligou o rádio. Era óbvio que a informação fora retirada de um comunicado de imprensa. Perguntou-se o que se queria dizer com “a autópsia não fora concludente”. O único dado novo em toda a notícia. Finalmente Bosch chegou ao Red Wind, estacionou e entrou no bar. Como não viu Teresa Corazón, aproveitou para ir ao banheiro e lavar o rosto. Depois se secou com uma toalha de papel e tentou pentear com a mão o bigode e o cabelo encaracolado. Depois de afrouxar a gravata, ficou um momento se olhando no espelho. Precisava se barbear. Com aquele aspecto a maioria das pessoas evitariam se aproximar dele.


Ao sair do lavabo, Bosch comprou um maço de cigarros na máquina e deu outra olhada no bar. Ela ainda não tinha chegado. Então se dirigiu ao balcão e pediu uma Anchor, que levou para uma mesa vazia perto da porta. Nessa hora, o Wind começava a encher de gente que saía do trabalho: homens de terno ou mulheres bem vestidas. Abundavam as combinações de homens mais velhos com mulheres mais jovens. Harry reconheceu vários jornalistas do Times, o que o fez pensar que Teresa tinha escolhido um mau lugar, se é que ela iria aparecer. Depois da notícia da autópsia, os jornalistas poderiam reconhecê-la. Bosch acabou a cerveja e saiu do bar.


Estava na calçada, suportando o frio do anoitecer e olhando o túnel da Second Street quando ouviu uma buzina. Um carro parou em frente a ele e alguém desceu o vidro elétrico. Era Teresa.


— Desculpe, me atrasei. Vou procurar um lugar para estacionar. Bosch colocou a cabeça pelo vidro.

— Não sei se é uma boa ideia. Há muitos jornalistas. Pelo rádio deram a notícia da autópsia de Moore; se arrisca a que lhe façam perguntas.


Bosch via vantagens e desvantagens. Que o nome da Teresa saísse nos jornais melhorava suas oportunidades de passar a chefa permanente. Mas se dissesse algo inapropriado também podia acabar voltando para interina ou, ainda pior, para desempregada.


— Onde podemos ir? Perguntou ela. Harry abriu a porta e entrou no carro.

— Está com fome? E se formos ao Gorky's ou ao Pantry?

— Muito bem. Gorky's está aberto? Gostaria de uma sopa.


Como era a hora do rush, demoraram quinze minutos em percorrer as oito quadras e encontrar lugar para estacionar. Quando finalmente chegaram ao Gorky's, pediram duas garrafas de cerveja russa da casa e Teresa pediu um caldo de frango com arroz.


— Péssimo dia, não é? Comentou Bosch.

— Eu que o diga. Não tive tempo nem para almoçar. Passei cinco horas na suíte.


Bosch queria que ela falasse da autópsia de Moore, mas sabia que não podia pedir. Precisava conseguir o que ela quisesse lhe contar.


— Como passou o Natal? Com o marido?

— Quem dera. Tentamos, mas não funcionou. Nunca conseguiu aceitar o que eu faço e agora que tenho a oportunidade de ser a legista-chefe, ainda menos. Saiu na véspera de natal e passei sozinha o dia de natal. Hoje ia ligar para a minha advogada para que começasse os trâmites do divórcio, mas não tive tempo.

— Deveria ter me chamado. Eu passei o dia de natal com o coiote.

— Com o Tímido?

— Sim, ainda vem me ver de vez em quando. Havia um incêndio do outro lado do passo e acredito que ele se assustou.

— Sim, li no jornal. Teve sorte.


Bosch concordou. Teresa Corazón e ele se deitaram umas quantas vezes durante os últimos quatro meses, e cada encontro se iniciava com este tipo de conversa superficial. Era uma relação de conveniência, apoiada na atração física e não sentimental, que nunca se converteu em uma paixão profunda para nenhum dos dois. Esse ano Teresa se separara do seu marido, um catedrático da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e tinha escolhido Harry para amante. Entretanto, Harry sabia que aquilo não significava nada; ele era uma mera diversão. Seus encontros eram esporádicos, normalmente com várias semanas de diferença, e Harry deixava que Teresa os instigasse.


Bosch observou-a enquanto ela baixava a cabeça para soprar sobre a colher cheia de sopa. Depois de afastar uma mecha de seu cabelo encaracolado e comprido, voltou ao sopro e sorveu um pouco daquele caldo de arroz com rodelas de cenoura. Teresa era morena de pele e seu rosto era exótico e ovalado, com as maçãs do rosto muito marcadas. Tinha os lábios grossos e pintados de vermelho e um ligeiro tom aveludado nas bochechas. Ele sabia que tinha uns trinta e tantos anos mas nunca tinha lhe perguntado a idade exata. Por último, se fixou em suas unhas, que usava curtas e sem esmalte para não rasgar as luvas de borracha que constituíam a ferramenta básica de seu trabalho.


Enquanto bebia uma cerveja pesada de uma garrafa pesada, Bosch se perguntou se aquilo era o princípio de outro encontro ou se ela tinha vindo para lhe contar um ponto verdadeiramente importante sobre os resultados da autópsia de Juan 67.


— Então agora preciso de alguém para a véspera de ano novo, concluiu ela, levantando os olhos do prato de sopa. — O que está olhando?

— Nada, a você. Se precisar de alguém, já achou. Acredito que Frank Morgan vai tocar no Catalina.

— Quem é esse e o que toca?

— Você vai gostar.

— Que pergunta tão tola. Se você gosta dele, com certeza toca saxofone.


Harry sorriu, mais por ele que por ela. Alegrava-se de ter um encontro. Ficar sozinho na véspera do ano novo lhe deprimia mais do que no dia de natal, de ação de graças ou em qualquer outra festa. Era uma noite para escutar jazz e o saxofone podia afundá-lo se estivesse sozinho.


— Harry, as mulheres solitárias podem, comentou Teresa sorrindo. Aquilo lembrou-o do sorriso triste de Sylvia Moore. — Bem, disse Teresa, como se tivesse percebido que ele se distraíra. — Suponho que quer saber sobre os insetos de Juan 67.

— Quando terminar a sopa.

— Não, não tem problema. Não me incomodo. Eu sempre tenho fome, sobretudo quando passei todo o dia cortando.


Teresa sorriu. Fazia comentários destes muito frequentemente, como desafiando Bosch a que expressasse seu desgosto por seu trabalho. Ele sabia que no fundo ela continuava presa ao marido. Não importava o que ele dissesse a respeito; era muito claro.


— Bem, espero que não sinta falta dos bisturis quando a nomearem chefa. Então terá que se contentar em cortar salários.

— Nem pensar. Eu não seria uma chefa de escritório; me encarregaria pessoalmente dos casos especiais. Mas depois do de hoje, não sei se me farão chefa.


Harry sentiu que nessa ocasião fora ele quem tinha despertado uma lembrança e que ela estava pensativa. Esse poderia ser o momento de dizer algo.


— Quer falar do tema?

— Não. Bem, sim, mas não posso, respondeu ela. — Harry, já sabe que confio em você, mas acredito que no momento é melhor que não diga nada.


Bosch não insistiu, mas decidiu voltar ao tema mais adiante; queria descobrir o que tinha ido mal na autópsia de Moore.


— Bem, pois, me fale de Juan, disse, ao mesmo tempo que tirava a caderneta do bolso da jaqueta.


Ela afastou o prato de sopa e depositou sua maleta de pele sobre o regaço. Dela extraiu uma pasta de cor marrom.


— Certo. Isto é uma cópia para você; pode ficar com ela quando tivermos terminado. Repassei as notas e todo o material que Salazar tinha sobre o caso. Suponho que já sabe que a causa da morte foi traumatismo craniano causado por múltiplos golpes fortes. No frontal, no parietal, no esfenoide e no supraorbital.


Enquanto descrevia as lesões, Teresa ia assinalando em si mesma a parte superior da testa, o cocuruto, a têmpora e a sobrancelha esquerda, tudo isso sem afastar os olhos dos documentos que tinha ante si.


— Qualquer uma delas teria sido mortal. Havia outras feridas que aconteceram quando a vítima tentou se defender, como pode ver em seguida. Salazar extraiu lascas de madeira de duas das fraturas cranianas. Portanto, a arma poderia ser algo como um taco de beisebol. Não um pedaço de pau, a não ser algo maior: talvez o cabo de uma pá, algo como... Não sei, um taco. Embora certamente fosse algo sem polir, porque já disse que Salazar retirou lascas das feridas. Duvido que um taco, lixado e envernizado, pudesse deixar lascas.


Teresa estudou as notas um momento.


— Outra coisa. Não sei se Porter disse isso, mas o mais certo é que largassem o cadáver nesse lugar. A morte aconteceu no mínimo seis horas antes de descobrirem o corpo. Em vista da quantidade de gente que passa por esse beco para entrar no restaurante, o cadáver não poderia ter passado inadvertido durante seis horas. Alguém precisou levá-lo até lá.

— Sim, estava em seus apontamentos.

— Bem.


Ela começou a passar páginas, deu uma olhada rápida nas fotos da autópsia e as foi afastando.


— Ah, aqui está. Ainda não temos os resultados das análises de substâncias tóxicas, mas a cor do sangue e do fígado apontam a que não encontraremos nada. É nossa hipótese, bem, da Sally.


Harry concordou. Ainda não tinha tomado nenhuma nota. Aproveitou a ocasião para acender um cigarro, o que não pareceu incomodar a Teresa. Ela nunca tinha protestado antes, embora uma vez, quando Bosch assistia a uma autópsia, veio expressamente da sala contígua para mostrar o pulmão de um homem de quarenta anos que fumava três maços por dia. O pobre parecia um mocassim negro que um caminhão tivesse passado por cima.


— Como já sabe, estamos acostumados a tirar amostras e analisar o conteúdo do estômago, prosseguiu ela. — Primeiro, na cera da orelha, encontramos uma espécie de pozinho marrom. Também havia um pouco no cabelo e nas unhas da mão. Bosch pensou na heroína mexicana, um dos ingredientes do gelo negro.

— Heroína?

— Boa ideia, mas não.

— Só pó marrom. Bosch começou a tomar notas.

— Isso. Quando examinamos pelo microscópio, nos pareceu trigo. Achamos que é trigo pulverizado.

— Trigo? Tinha cereais no cabelo e nas orelhas?


Um garçom bigodudo com cara de cossaco, camisa branca e gravata negra, se aproximou da mesa para perguntar se queriam algo mais. Indevidamente viu a pilha de fotos da Teresa. Em cima havia uma de Juan 67, nu sobre a mesa de operações de aço inoxidável. Teresa cobriu-as rapidamente com a pasta e Harry pediu duas cervejas mais. O homem se afastou lentamente da mesa.


— Refere a trigo? Perguntou Harry de novo. — Como o pó que fica ao fundo do pacote de cereais?

— Não exatamente. Mas anote isso e me deixe prosseguir. No final fará sentido. Ele fez um gesto para que continuasse. — Nas análise do conteúdo das fossas nasais e do estômago, apareceram duas coisas muito interessantes. Por isso eu gosto do que faço, embora outras pessoas prefeririam que não o fizesse. Ela levantou os olhos da pasta e sorriu. — Bem, no interior do estômago, Salazar identificou café, restos mastigados de arroz, frango, páprica, várias especiarias e intestino de porco. Em outras palavras, tinha comido chouriço mexicano. O fato de que usassem intestino para a pele do chouriço me sugere que não se trata de um embutido de fábrica, a não ser caseiro. Tinha ingerido pouco antes de morrer, porque ainda não tinha começado a ser processado pelo estômago. Pode ser inclusive que estivesse comendo quando o atacaram; embora não havia restos na garganta nem na boca, mas encontramos pedaços nos dentes. Por certo, a dentadura era toda dele e está claro que nunca tinha ido ao dentista. O que acha? Não parece ser daqui, não é verdade?


Bosch concordou ao lembrar que as anotações de Porter diziam que a roupa de Juan 67 era de fabricação mexicana.


— Também encontramos isto no estômago, anunciou ela, enquanto mostrava uma fotografia. Era uma foto instantânea de um inseto rosáceo que tinha perdido uma asa e tinha a outra quebrada. Parecia molhado, o que era lógico levando em conta onde o tinham encontrado. O inseto estava em um recipiente de cultivos junto a uma moeda de dez centavos dez vezes maior que ele.


Nesse momento Harry se deu conta que o garçom esperava a uns três metros deles com duas garrafas de cerveja. Quando levantou as garrafas e arqueou as sobrancelhas com impaciência, Bosch lhe deu permissão para se aproximar. O garçom depositou as cervejas na mesa, deu uma olhada furtiva na fotografia do inseto e se afastou com passo ligeiro. Harry devolveu a foto a Teresa.


— Então o que é?

— Ceratitis capitata, respondeu ela com um sorriso.

— Não me diga! Justo o que estava pensando. Embora fosse uma piada muito ruim, Teresa riu.

— É uma mosca da fruta, Harry. Não ouviu falar desse inseto tão devastador para a indústria cítrica de Califórnia? Salazar veio me ver para pedir que alguém a classificasse porque não tinha ideia do que era. Eu a mandei a um entomólogo da Universidade de Califórnia que Gary me recomendou e ele o identificou.


Bosch sabia que Gary era o marido, muito em breve ex-marido, de Teresa. Embora tivesse concordado, não podia compreender que importância tinha aquele dado.


— Passemos às fossas nasais, prosseguiu ela. — Pois bem; aqui encontramos mais pó de trigo e... Isto.


Passou-lhe outra fotografia em que também aparecia um recipiente para cultivos com uma moeda de dez centavos. Mas desta vez havia uma linha pequena de cor marrom rosado junto à moeda. Apesar de ser muitíssimo menor que a mosca da primeira foto, Bosch notou que se tratava de outro inseto.


— O que é? Perguntou.

— O mesmo, segundo o entomólogo. Só que isto é um bebê: uma larva. Teresa enlaçou os dedos e se apoiou sobre os cotovelos. Sorriu para Bosch enquanto esperava em silêncio.

— Você adora isto, não? Perguntou Harry. Depois de beber uma quarta parte de sua garrafa de cerveja, admitiu: — De acordo, não tenho ideia. O que significa tudo isto?

— Bem, sabe mais ou menos o que faz a mosca da fruta, não? Come nas colheitas de cítricos e pode arruinar toda uma indústria: milhões de dólares em perdas, nada de suco de laranja pela manhã, etcétera, etcétera. Em poucas palavras, o fim do mundo civilizado.


Bosch concordou e ela continuou falando muito depressa.


— Bem, parece que a cada ano há uma praga destas moscas. Com certeza já notou esses avisos de quarentena nas autoestradas e ouviu os helicópteros que fumigam durante a noite.

— Sim, lembram o Vietnã em meus pesadelos, respondeu Harry.

— E também deve ter visto ou lido algo sobre as campanhas contra o inseticida. Há gente que acha que é tão prejudicial para as pessoas como para os insetos e querem que o proíbam. O que o Departamento de Agricultura pode fazer? Bem, uma das coisas é investir mais no outro sistema que existe para eliminar os insetos. O Departamento de Agricultura e o Projeto de Erradicação das Moscas da Fruta soltam milhares de milhões de moscas estéreis por todo o sul de Califórnia; milhões a cada semana. Sua intenção é que quando as que estão ali comecem a se acasalar o façam com companheiras estéreis, e assim vão desaparecendo ao se reproduzir cada vez menos. É matemático, Harry. Podem erradicar o problema, mas só se saturarem a região com suficientes moscas estéreis.


No chegar a este ponto, Teresa fez uma pausa, mas Bosch continuava sem compreender.


— Que interessante! Mas tem algo que ver com o caso ou com...?

— Agora, escute só. É detetive, não? Supõe-se que os detetives estão acostumados a escutar. Uma vez me disse que resolver assassinatos era só uma questão de conseguir que as pessoas falassem e saber escutar. Bem, pois agora estou lhe contando isso.


Bosch elevou as mãos, como dizendo "certo, certo" e ela retomou o fio da explicação.


— As moscas que o Departamento de Agricultura solta são tingidas de rosa quando estão na etapa larval a fim de se poder distinguir com facilidade as estéreis das não estéreis na hora de controlar as pequenas armadilhas que ficam nos laranjais. Depois de tingir, submetem-nas a radiação para esterilizá-las e em seguida as soltam.


Harry concordou. A coisa começava a ficar interessante.


— O entomólogo que consultamos examinou as duas amostras tiradas do cadáver de Juan 67 e encontrou o seguinte. Teresa consultou os dados na pasta. — A mosca adulta obtida do estomago do defunto tinha sido tanto pintada quanto esterilizada e era fêmea. Até aqui não há nada estranho. Como dizia, soltam uns trezentos milhões de insetos por semana. Por ano são milhares de milhões, então o seu homem poderia ter engolido uma sem querer, se estivesse em qualquer lugar do sul de Califórnia.

— Certo, disse Bosch. — E a outra amostra?

— A larva era diferente, informou Teresa, sorrindo de novo. — O doutor Braxton, o entomólogo, afirmou que o espécime tinha sido tingido com a mesma substância empregada pelo Departamento de Agricultura mas que, quando entrou pelo nariz do Juan, ainda não tinha sido esterilizada.


Teresa desenlaçou as mãos e as deixou cair nos flancos. Seu relatório dos fatos tinha terminado. Chegara o momento de especular e estava dando a oportunidade a Bosch de começar.


— Ou seja, que dentro do corpo encontraram duas moscas pintadas, uma esterilizada e a outra não, resumiu Bosch. — Isso parece indicar que pouco antes de sua morte, nosso homem esteve no lugar onde se esterilizam moscas. Ali haveria milhões, por isso seria fácil que uma ou duas tivessem ficado na comida ou no nariz, não? Ela concordou. — E o pó de trigo? Por que tinha isso nas orelhas e no cabelo?

— O pó de trigo é a comida, Harry. Braxton nos contou que com isso alimentam as moscas durante o período de cria.

— Se descobrir onde criam essas moscas estéreis, posso encontrar uma pista sobre Juan 67. Possivelmente seja um criador ou algo do gênero.

— Por que não me pergunta onde as criam?

— Onde as criam, Teresa?

— Bem, o truque é criá-las em seu próprio habitat, onde já fazem parte da população natural de insetos, para que não haja problemas se escapar alguma antes de receber sua dose de radiação, explicou ela. — Definitivamente, o Departamento de Agricultura Americano tem estes criadores em só dois lugares: Havaí e México. No Havaí têm contratos com três deles em Oahu. No México há um perto de Zihuatenejo, e o maior dos cinco fica perto de...

— Mexicali.

— Como sabe? Harry, não me diga que já sabia de tudo isto e me deixou...

— Não, mulher. Foi uma dedução a partir de outras investigações em que estou trabalhando.


Teresa lhe deu um olhar estranho e, por um instante, ele se arrependeu de ter estragado a surpresa. Finalmente Bosch acabou a cerveja e olhou ao seu redor em busca do garçom.


* * *


Dez

TERESA LEVOU Bosch ao seu carro, que ficara estacionado perto do Red Wind, e seguiu o dele até a casa na montanha. Embora o seu apartamento ficasse mais perto de Hancock Park, a legista disse a Harry que na última temporada tinha ficado muito tempo fechada em casa e que gostaria de ver o coiote. Mas Bosch sabia que o verdadeiro motivo era que seria mais fácil para ela ir embora da casa dele do que pedir a ele que partisse de seu apartamento. De qualquer maneira, Bosch não se importava, já que não se sentia cômodo na casa dela; fazia-o pensar no que estava se convertendo Los Angeles. O lugar em questão era um loft com vistas para o centro da cidade, no quinto andar de um edifício antigo chamado The Warfield. O exterior do edifício continuava tão bonito quanto no dia em que fora completado por George Aliam Hancock em 1911; no feitio do século XIX, com fachada de terracota cinza azulada, George não tinha economizado o dinheiro que ganhara com o petróleo e, The Warfield, com suas flores de lis e seus demais ornamentos, era boa prova disso.


Entretanto, o que incomodava a Bosch era o interior. Uma companhia japonesa tinha comprado o edifício havia um par de anos e o tinha restaurado, renovado e redecorado completamente. Tinham derrubado as paredes antigas e as converteram em pouco mais que apartamentos alargados e feios, com pisos de madeira falsa, bancadas de aço inoxidável e focos que deslizavam por trilhos. "Agora é só uma carapaça bonita", pensou Bosch. E tinha a impressão de que George não teria concordado.


Na casa de Harry, os dois conversaram enquanto ele acendia o fogão japonês do terraço e se punha a fritar um filé de perca alaranjado. Tinha comprado na véspera de natal, ainda estava fresco e se preparava para cortá-lo em dois. Teresa contou a Bosch que a Comissão do Condado certamente decidiria de maneira oficiosa antes do fim de ano quem ia ser o novo legista-chefe. Desejou-lhe boa sorte, embora não estivesse muito certo se seria sincero. Tratava-se de um posto político, por isso ela se veria obrigada a obedecer e calar. Bosch mudou de tema.


— Se este tal Juan esteve em Mexicali, como acha que chegou até aqui?

— Não tenho ideia. Não sou detetive.


Teresa contemplava a paisagem apoiada no corrimão. Ante ela se estendia o Vale de São Fernando, iluminado por um milhão de luzinhas e banhado por um ar fresco e limpo. Ela usava a jaqueta de Harry sobre os ombros. Enquanto isso, Bosch umedeceu o peixe com um molho de abacaxi e virou-o.


— Aqui está mais quente, informou Bosch. Furou o peixe com o garfo para que embebesse o molho e acrescentou: — Eu acredito que os assassinos não queriam que alguém colocasse o nariz na empresa contratada pelo Departamento de Agricultura. Não os interessava que se relacionasse o corpo com esse lugar, assim por isso trouxeram o cara.

— Sim, mas por que para Los Angeles?

— Possivelmente porque... Bem, não sei. Tem razão; é muito longe.


Os dois permaneceram pensativos uns instantes. Bosch sentia o cheiro do molho de abacaxi e o ouvia crepitar ao gotejar sobre as brasas.


— Como pode se passar um cadáver pela fronteira?

— Eu acredito que as pessoas passam coisas maiores, não é? Bosch concordou. — Esteve alguma vez em Mexicali? Perguntou ela.

— Só a caminho da Baía São Felipe, onde fui pescar no verão passado, mas não parei. E você?

— Nunca.

— Sabe o nome do povoado do outro lado da fronteira? Do nosso lado.

— Não, respondeu ela.

— Calexico.

— O que diz? É aí aonde...?

— É.


O peixe estava pronto. Bosch colocou-o em um prato, tampou o fogão e entraram na casa. Acompanhou-o com arroz à mexicana e, como não tinha vinho branco, abriu uma garrafa de tinto Néctar dos Deuses. Enquanto colocava tudo na mesa, notou que um sorriso aparecia no rosto da Teresa.


— Pensava que eu não sabia cozinhar, não é?

— Pensava, mas isto está muito bom.


Harry e Teresa brindaram e começaram a comer em silêncio. Ela o felicitou pelo jantar, embora ele estivesse pensando que o peixe tinha ficado um pouco seco. Depois voltaram a conversar de coisas sem importância. Durante todo esse tempo, ele esteve esperando a oportunidade de perguntar sobre a autópsia de Moore. A ocasião não apareceu até que terminaram.


— E o que fará agora? Ela perguntou enquanto colocava o seu guardanapo na mesa.

— Recolher os pratos e ver se...

— Sabe a que me refiro: o caso Juan 67.

— Não sei. Quero voltar a falar com Porter. E certamente irei ao Departamento de Agricultura para tentar descobrir algo mais sobre como as moscas do México chegaram até aqui. Ela concordou.

— Avise se quiser se encontrar com o entomólogo. Posso organizar. Bosch observou-a enquanto ela ficava absorta em seus pensamentos, algo que acontecera várias vezes nessa noite.

— E você? Quis saber Bosch. — O que fará agora?

— Sobre o quê?

— Sobre os problemas na autópsia de Moore.

— Nota-se tanto?


Bosch se levantou e recolheu os pratos, mas ela não se moveu. Quando voltou a sentar, repartiu o vinho que restara nas duas taças, e decidiu que deveria dar algo a Teresa para que ela se justificasse com ele.


— Sabe o que é? Parece-me que você e eu deveríamos conversar. Acredito que temos duas investigações, ou talvez três, que podem ser parte do mesmo caso. Como raios distintos da mesma roda. Ela olhou-o, confusa.

— Que investigações? Do que está falando?

— Já sei que o que vou lhe contar não entra dentro de seu trabalho, mas acredito que precisa saber para poder tomar uma decisão. Estive lhe observando toda a noite e me parece que tem um problema e não sabe o que fazer.


Bosch se calou, dando oportunidade para que ela o detivesse, coisa que não fez. Então Bosch contou sobre a detenção de Marvin Dance e sua relação com o assassinato de Jimmy Kapps.


— Quando descobri que Kapps estava envolvido com o gelo desde o Havaí, fui ver Cal Moore e perguntar o que sabia sobre o gelo negro. Queria saber de onde vinha, onde se podia conseguir, quem o estava vendendo ou algo que me ajudasse a descobrir quem podia ter se encarregado de Jimmy Kapps. Bem, a questão é que Moore me disse que não sabia de nada, mas hoje descobri que estava preparando um relatório sobre o gelo negro. Estava recolhendo informação sobre o meu caso. Por um lado me ocultou dados essenciais, mas por outro estava investigando o tema quando desapareceu. Hoje recebi seu relatório em uma pasta com uma nota que dizia: "Para Harry Bosch".

— E o que havia na pasta?

— Um monte de papéis, entre eles um relatório que afirma que o principal fornecedor de gelo negro certamente vive em um rancho em Mexicali. Ela olhou-o, mas não disse nada. — O que nos leva ao nosso querido Juan 67, já que Porter me passou o caso. Enquanto folheava o processo, li quem encontrara o cadáver. Adivinhe quem foi? Darei uma pista: no dia seguinte desapareceu do mapa.

— Merda, soltou ela.

— Exatamente. Cal Moore. Não sei o que significa, mas a verdade é que ele encontrou o cadáver. No dia seguinte se esfumou e na semana seguinte o encontraram no quarto de um motel. Dizem que foi suicídio. E assim que foi descoberto o cadáver, informaram a televisão e os jornais,


De repente, Teresa se levantou. Dirigiu-se à porta do terraço e ficou ali olhando o vale.


— Que droga, disse finalmente. — Querem fechar o caso porque a investigação poderia envergonhar a mais de um. Bosch levantou e se aproximou dela.

— Precisa falar com alguém. Conte-me.

— Não, não posso. me conte você.

— Já lhe disse quase tudo. Na pasta havia uns quantos documentos, mas estavam amarrados e tampouco tinham muito interesse, além do que disse o cara da DEA; quer dizer, que o gelo negro vinha de Mexicali. Por isso adivinhei o das moscas. E também temos Moore, que nasceu e cresceu em Calexico e Mexicali. Está vendo? São muitas coincidências.


Teresa continuava olhando a paisagem, de costas para Bosch, mas ele podia sentir seu perfume e ver seu rosto de preocupação refletido no vidro da porta.


— O mais importante da pasta é que Moore não a guardou em seu escritório ou em seu apartamento, mas em um lugar onde não poderiam encontrá-la os de Assuntos Internos ou Roubos e Homicídios. E quando os meninos de sua equipe a encontraram, havia uma nota que dizia que me entregassem. Não vê?


A expressão de perplexidade da Teresa foi resposta suficiente. Ela se voltou, sentou na poltrona da sala de estar e passou os dedos pelo cabelo. Harry ficou de pé, caminhando de cima a baixo.


— Por que Moore irIa escrever uma nota dizendo que me entregassem o processo? É claro que não o fez para si mesmo, porque já sabia que estava recolhendo a informação para mim. Quer dizer, que a nota era para outra pessoa. E o que isso significa? Que quando a escreveu já sabia que ia se matar ou...

— Iam matá-lo, terminou ela. Bosch concordou.

— Ao menos estava consciente de que tinha ido muito longe. Que tinha se metido em uma confusão, que estava em perigo...

— Meu Deus, disse ela.


Harry se inclinou para lhe passar a taça de vinho e se aproximou de seu rosto.


— Precisa me falar sobre a autópsia. Sei que aconteceu algo; ouvi essa merda de comunicado de imprensa que fizeram. Que diabos significa "não concludente"? Desde quando não se pode determinar se um disparo de escopeta matou ou não alguém? Vamos, me conte e assim poderemos decidir o que fazer. Ela deu de ombros e negou com a cabeça, mas Bosch soube que ia falar.

— Ordenaram-me que não falasse com ninguém porque não estava completamente certa. O subdiretor, Irving, esse fanfarrão imbecil, sabia exatamente onde me doeria. Mencionou que a Comissão do Condado decidiria logo sobre meu posto. E que procurariam um legista-chefe que soubesse ser discreto. Também deixou cair que tinha amigos na comissão...

— Isso não me interessa. O que é isso de que não estava “completamente certa?”


Ela bebeu um gole da sua taça de vinho e então saiu a história. Teresa contou que a autópsia tinha começado de forma rotineira, exceto pelo fato de que além dos dois detetives atribuídos ao caso, Sheehan e Chastain de Assuntos Internos, se achava presente Irving, subdiretor do Departamento de Polícia. Do mesmo modo, assistiam-nos um técnico de laboratório para cotejar as impressões digitais.


— A decomposição se estendera por todo o corpo, explicou Teresa. — Tive que cortar as pontas dos dedos e cobri-las com uma substância endurecedora. De outro modo, Collins, meu técnico de laboratório, não poderia tirar as impressões digitais. Collins comparou as impressões ali mesmo porque Irving havia trazido cópia das do Moore. Coincidiam perfeitamente. Era Moore.

— E os dentes?

— A identificação dental foi mais difícil. Restava pouco que não estivesse fragmentado. No final comparamos um incisivo incompleto que encontramos na banheira com alguns relatórios dentais que Irving trouxera. Moore tinha um molar empastelado e ali estava. Isso também coincidia.


Teresa disse que começou a autópsia depois de confirmar a identidade e imediatamente chegou à conclusão mais óbvia; que a ferida de escopeta fora mortífera. Moore morrera imediatamente. Mas durante o exame da matéria que se separou do corpo, a forense começou a se questionar se podia confirmar que a morte de Moore tinha sido resultado de um suicídio.


— A força do impacto provocou um deslocamento cranial absoluto, explicou Teresa. — E, é obvio, a legislação sobre autópsias exige um exame de todos os órgãos vitais, incluído o cérebro. O problema era que a massa encefálica estava quase toda desfeita devido ao enorme impacto do projétil. Disseram-me que os tiros vieram de uma escopeta de dois canos. Entretanto, uma porção relativamente grande do lóbulo frontal e o fragmento de crânio correspondente ficaram virtualmente intactos em que pese terem se separado. Entendeu? O diagrama dizia que o tinham encontrado na banheira. Ouça... Estou sendo muito detalhista? Sei que o conhecia.

— Não muito. Continue.

— Bem, comecei a examinar essa parte sem esperar nada especial, mas me equivoquei. Havia uma marca hemorrágica no lóbulo frontal. Teresa deu um golpezinho na taça de Bosch e respirou fundo, como se estivesse afugentando um demônio. — E esse foi o problema, Harry.

— Por quê?

— Parece o Irving: "por quê?, por quê?" Pois deveria ser evidente. Por duas razões. Primeiro, em mortes instantâneas como esta, não costuma haver muita hemorragia. Quando o cérebro literalmente se desconecta do corpo em uma fração de segundo a carapaça cerebral sangra pouco. Mas embora seja improvável, é possível. Entretanto, a segunda razão é indiscutível. A hemorragia indicava claramente uma ferida a contragolpe. Não tenho nenhuma dúvida.


Harry repassou mentalmente o que tinha aprendido durante os dez anos que passara observando autópsias. Uma ferida a contragolpe é uma lesão que se produz no lado do cérebro oposto ao golpe. Um impacto violento no lado esquerdo frequentemente causa mais dano ao hemisfério direito, já que a força do golpe empurra a massa encefálica contra a parte direita do crânio. Ou seja, para que Moore tivesse a hemorragia que ela havia descrito na zona frontal do cérebro, deveria ter sido golpeado por trás. Um disparo de escopeta no rosto não teria provocado esse efeito.


— Há alguma possibilidade... Bosch se calou, já que não estava certo do que queria perguntar. De repente se deu conta de que o corpo pedia a gritos um cigarro e pegou um maço. — O que aconteceu? Perguntou a Teresa enquanto rasgava o celofane.

— Bem, quando comecei a explicar, Irving ficou tenso e começou a perguntar: "Está certa? Totalmente certa? Não estaremos nos precipitando?". Era muito claro; não queria que isto fosse outra coisa que um maldito suicídio. Assim que introduzi um elemento de dúvida, começou a falar de não nos precipitarmos e de que precisávamos ir mais devagar. Em sua opinião, as conclusões às que chegaríamos podiam ser uma vergonha para o departamento se não agíssemos com cautela e correção. Essas foram suas palavras.

— Não desperte um leão adormecido, aconselhou Bosch.

— Não, mas disse diretamente que não ia certificá-lo como suicídio. Então... Então me convenceram de que não declarasse homicídio. Daí vem o de “não concludente”. No momento tive que ceder e isso faz me sentir culpada.

— Vão fechar o caso, concluiu Bosch.


Não conseguia entender. A reticência de Irving devia estar relacionada com a investigação de Assuntos Internos. Fosse qual fosse o assunto em que Moore andava metido, Irving acreditava que aquilo o levara a se matar ou a que o matassem. De qualquer forma, não queria abrir essa caixa da Pandora sem saber o que continha. Ou talvez não o interessava. Bosch compreendeu que uma coisa tinha ficado muito clara; que estava sozinho. Não importava o que descobrisse; prejudicaria Irving ou ao Departamento de Roubos e Homicídios, e estes o enterrariam. Se Bosch continuasse com a investigação, estaria fazendo por sua conta e risco.


— Sabiam que Moore estava trabalhando para você? Perguntou Teresa.

— Agora já sabem, mas certamente não estavam sabendo durante a autópsia. De qualquer maneira, não acredito que os faça mudar de opinião.

— E o que acontecerá com o caso de Juan 67? Sabem que Moore encontrou o corpo?

— Não tenho ideia.

— E o que vai fazer agora?

— Não sei. Já não sei de nada. E o que você vai fazer?


Teresa ficou em silêncio um bom momento e depois se levantou e caminhou até Bosch. Inclinou-se sobre ele e o beijou nos lábios.


— Esqueçamos um momento de tudo isto, ela lhe sussurrou.


Harry cedeu, deixando-a tomar a iniciativa e dirigi-lo, usar seu corpo a seu desejo. Tinham estado juntos vezes suficientes para se sentir cômodos e conhecer os costumes um do outro. Já tinham superado a fase de sentir curiosidade ou vergonha. Teresa acabou montando sobre ele, enquanto ele se deixava cair sobre os travesseiros da cama. Ela jogou a cabeça para trás e lhe cravou suas unhas recortadas no peito, sem causar dor nem fazer o menor ruído. Na escuridão, Bosch vislumbrou um brilho prateado nas orelhas da Teresa. Então tocou os pendentes, e em seguida lhe passou as mãos pelo pescoço, os ombros e os seios. Teresa tinha a pele quente e úmida. Seus movimentos lentos e metódicos o arrastaram até um mundo isolado e vazio.


Enquanto os dois descansavam com Teresa ainda por cima dele, Bosch foi invadido por um repentino sentimento de culpa e pensou em Sylvia Moore. Acabara de conhecê-la na noite anterior. Como podia entrar em seus pensamentos dessa maneira? Mas entrara. Bosch se perguntou pelo motivo do sentimento de culpa. Possivelmente se referia a algo que ainda não acontecera.


De repente Bosch pareceu ouvir o latido curto e agudo do coiote na lonjura, atrás da casa. Teresa separou a cabeça do peito dele e ambos escutaram os uivos solitários do animal.


— Tímido, ouviu-a dizer em voz baixa.


Harry voltou a se sentir culpado. Pensou em Teresa. Tinha-a enganado para que lhe contasse o que sabia? Acreditava que não. Uma vez mais, a culpa podia se referir a algo que ainda não acontecera. Como, por exemplo, o que faria com a informação que ela tinha dado. Teresa pareceu adivinhar que seus pensamentos se afastavam dela. Possivelmente fora delatado pela mudança no batimento de seu coração ou a tensão de um músculo.


— Nada, disse ela.

— O quê?

— Perguntou-me o que ia fazer. Nada. Não vou entrar ainda mais nessa merda. Se eles querem enterrar o caso, que enterrem.


Nesse momento Harry soube que seria uma boa legista-chefe do condado de Los Angeles. Bosch sentiu que se distanciava dela na escuridão. Teresa levantou e se sentou na borda da cama enquanto olhava pela janela para a lua crescente. O coiote voltou a uivar. Bosch pareceu ouvir que um cão respondia na distância.


— Identifica-se com ele? Perguntou Teresa.

— Com quem?

— Com Tímido. Sozinho ante o perigo.

— Às vezes. Todos nós ficamos sozinhos às vezes.

— Sim, mas você gosta, não é?

— Nem sempre.

— Nem sempre... Bosch parou para pensar no que ia dizer. Se errasse, perderia-a por completo.

— Perdoe-me se estiver um pouco distante, se desculpou. — Tenho muitas coisas... Não terminou a frase. Não tinha desculpa.

— Você gosta de viver aqui nesta casinha solitária com o coiote como seu único amigo, não?


Harry não respondeu. Inexplicavelmente, lhe veio à mente o rosto da Sylvia Moore. Entretanto, dessa vez não se sentiu culpado; gostaria de vê-la ali.


— Preciso ir, anunciou Teresa. — Amanhã me espera um dia comprido.


Harry observou-a enquanto recolhia a bolsa na mesinha de cabeceira e caminhava nua para o banheiro. Ao ouvir o ruído do chuveiro, imaginou-a lavando qualquer impressão que ele tivesse deixado sobre ela ou dentro dela e se orvalhando com a colônia multiuso que sempre trazia na bolsa para fazer desaparecer os cheiros de seu trabalho. Bosch esticou o braço até a pilha de roupa no chão e apanhou a caderneta de telefones. Aproveitando o ruído da água discou um número. Atendeu uma voz meio adormecida; era quase meia-noite.


— Não sabe quem sou e não liguei. Houve um silêncio enquanto a outra pessoa identificava a voz de Harry.

— Certo.

— Há um problema com a autópsia de Cal Moore.

— Isso eu já sei! Não foi concludente. Para isso me acordou?

— Não, não entendeu. Está confundindo a autópsia com o comunicado de imprensa da autópsia. São duas coisas distintas. Está me entendendo?

— Sim... Acredito que sim. Qual é o problema?

— O subdiretor de polícia e a legista-chefe não estão de acordo. Um diz suicídio e o outro homicídio. Não podem ser as duas coisas, então disseram que não é concludente. Ouviu-se um assobio pelo telefone.

— Bela manchete. Mas por que os tiras iriam querer ocultar um homicídio? Especialmente de um dos seus. Em princípio o suicídio deixa pior o departamento. Por que jogar terra sobre o assunto? A não ser que...

— É isso, respondeu Bosch e desligou o telefone.


Um minuto mais tarde a torneira fechou e Teresa saiu se secando com uma toalha. Estar nua não lhe dava a menor vergonha,. Aquele acanhamento tinha desaparecido de todas as mulheres com as que tinha tido alguma relação antes de que elas acabassem o abandonando.


Bosch vestiu seus jeans azuis e uma camiseta enquanto ela também se vestia. Nenhum dos dois disse uma palavra. Teresa lhe dedicou um débil sorriso e depois ele a acompanhou ao carro.


— E aí? Continuamos tendo um encontro na véspera de ano novo? Perguntou-lhe Teresa depois de que ele abriu a porta do carro.

— Claro, respondeu Bosch, embora sabia que ela ligaria para cancelar o encontro com alguma desculpa.


Ela se aproximou, beijou-o nos lábios e depois deslizou para o assento do motorista.


— Adeus, Teresa, se despediu Bosch, mas ela já tinha fechado a porta.


Passava muito da meia-noite quando Bosch voltou para dentro. A casa cheirava ao perfume da Teresa e a sua própria culpa. Bosch pôs o CD de Frank Morgan, Mood Índigo, e ficou de pé na sala de estar. Enquanto escutava a primeira melodia sem sem se mover, uma canção chamada "Lullaby", Bosch pensou que não havia nada mais honesto que o som de um saxofone.


* * *


Onze

DORMIR SERIA impossível, e Bosch sabia. Saiu para o terraço e viu o tapete de luzes a seus pés. O ar invernal lhe cortava o rosto e o animava a continuar investigando. Pela primeira vez em muitos meses se sentia cheio de energia, preparado para a caça. Bosch repassou mentalmente todos os casos e depois fez uma lista mental das pessoas a quem deveria ver e do que precisaria fazer. O primeiro da lista era Lucius Porter, o detetive bêbado cuja retirada tinha coincidido com tal precisão com a morte de Moore que não podia ser casualidade. Harry notou que se zangava ao pensar em Porter. se envergonhava de ter dado a cara por ele ante a Pounds. Bosch procurou o telefone em sua caderneta e voltou a ligar para Porter uma vez mais. Não esperava resposta e não a teve. Ao menos nesse aspecto, Porter funcionava. Harry leu o endereço que tinha anotado e saiu.


Em seu trajeto montanha abaixo, Bosch não cruzou com nenhum veículo até chegar ao passo de Cahuenga. Uma vez ali seguiu para o norte e entrou na autoestrada de Hollywood em Barham. O trânsito da autoestrada era muito denso, embora não lento. Os carros prosseguiam de maneira fluída, como fitas de luzes. Ao longe, Bosch vislumbrou um helicóptero da polícia que riscava círculos sobre a área de Studio City e iluminava com seus potentes focos a cena de algum crime. O feixe de luz parecia uma corda que amarrava o helicóptero para impedir que ele se afastasse voando.


Bosch preferia Los Angeles de noite, já que a escuridão ocultava muitas das suas misérias. A noite silenciava a cidade, mas também fazia aflorar um rosto oculto. Entretanto, era nessa área escura, entre as sombras, onde Bosch se movia com mais liberdade. Sentia-se como um passageiro em uma limusine; ele podia olhar para fora, mas ninguém podia vê-lo. A escuridão tinha algo de infeliz, de capricho do destino. Naquelas noites à luz do néon azul havia múltiplas formas de viver e de morrer. As pessoas podiam trafegar em uma limusine negra ou na caminhonete azul do legista. O som dos aplausos se confundia com o assobio de uma bala que passava roçando a orelha na escuridão. Isso era fo azar. Isso era Los Angeles.


Em Los Angeles havia incêndios e inundações, tremores e deslizamentos de terra. Havia loucos que atiravam nos viajantes e usuários de crack. Motoristas bêbados e estradas cheias de curvas. Policiais assassinos e assassinos de policiais. A mulher com a qual se deitava. E seu marido. Em qualquer momento de cada noite havia pessoas que estavam sendo estupradas, agredidas ou mutiladas. Assassinadas e amadas. Sempre havia um bebê no peito de sua mãe. E, algumas vezes, um bebê só em um contêiner. Em algum lugar da cidade.


Harry saiu da autoestrada pela Vanowen, em North Hollywood, e se dirigiu ao este para Burbank. Depois voltou a virar ao norte e entrou em uma área de prédios desmantelados. Bosch deduziu pelas pinturas das gangues que se tratava de uma vizinhança em sua maior parte hispano. Sabia que Porter tinha vivido ali durante anos. Era tudo o que podia se permitir com o dinheiro que restava depois de pagar a pensão da sua ex-mulher e comprar bebida.


Bosch entrou no parque de trailers Happy Valley e encontrou o trailer de Porter ao final da Greenbriar Lane. Estava escura; nem sequer havia uma luz sobre a porta ou um carro sob a cobertura de alumínio que fazia as vezes de garagem. Bosch ficou um bom momento no carro, fumando e observando. O vento trazia música de mariachis vindo de um dos clubes mexicanos do Lankershim Boulevard, e que foi afogada pelo estrondo de um avião em voo baixo a ponto de aterrissar no aeroporto de Burbank. Bosch colocou a mão no porta-luvas, tirou uma bolsinha de couro que continha sua lanterna e sua gazua e saiu do carro. Como ninguém respondia à porta, Harry abriu a bolsa de couro. Não pensou duas vezes antes de entrar na casa de Porter. Porter era parte do jogo, não um pobre inocente. Para o Bosch, o policial tinha perdido seu direito à intimidade, quando omitiu expressamente que Moore tinha achado o corpo de Juan 67. Agora Harry estava decidido a encontrar Porter para lhe perguntar por que fizera aquilo.


Bosch tirou a lanterna minúscula, acendeu-a e a sustentou com os dentes enquanto se inclinava para colocar uma gazua na fechadura. Demorou só uns minutos em abrir a porta. Assim que ultrapassou a soleira, assaltou-o um inconfundível aroma azedo que em seguida identificou como o do suor de um bêbado. Bosch gritou várias vezes o nome de Porter, mas ninguém respondeu. À medida que avançava de aposento em aposento, Harry ia acendendo as luzes. Havia copos vazios em quase todas as superfícies horizontais. A cama estava sem fazer e os lençóis tinham uma cor amarelada. Entre os copos da mesinha de cabeceira havia um cinzeiro transbordante de guimbas e a figurinha de um santo que Bosch não soube identificar. No banheiro, a banheira estava imunda, a escova de dentes jazia no chão e no cesto de papéis havia uma garrafa vazia de uísque. Harry não conhecia a marca; seria muito cara ou muito barata, embora essa última fosse a mais provável.


Na cozinha havia outra garrafa vazia no lixo. Na pia e nas bancadas se empilhavam pratos sujos e, ao abrir a geladeira, Bosch só viu um pote de mostarda e uma caixa de ovos. A casa de Porter se parecia com seu dono, era o fiel reflexo de uma vida marginal, se é que a aquilo se podia chamar de vida.


De volta a sala de estar, Bosch pegou uma fotografia emoldurada que descansava em uma mesinha junto a um sofá amarelo. Era de uma mulher de escasso atrativo, exceto possivelmente para Porter. Devia se tratar de sua ex. Talvez Porter não tivesse superado a separação. Harry devolveu a foto ao seu lugar e então soou o telefone. Bosch seguiu o som do aparelho até o dormitório. O telefone estava no chão, junto à cama. Harry esperou que soasse algumas vezes mais antes de pegá-lo.


— Sim? Disse pondo voz de adormecido.

— Porter?

— Sim.


Desligaram. Não desligou, porque tinha reconhecido a voz? Era Pounds? Não, não era. Embora só tinha pronunciado uma palavra, Bosch acreditava ter notado um ligeiro acento espanhol. Depois de memorizar a informação, se levantou da cama. Outro avião passou por cima de sua cabeça e sacudiu o trailer enquanto retornava à sala de estar. Ali, Bosch revistou uma mesa de escritório sem muito entusiasmo, porque não lhe interessava muito o que pudesse encontrar. A verdadeira questão era: onde estava Porter? Bosch apagou todas as luzes e fechou a porta ao sair. Decidiu começar por North Hollywood e ir penteando a área até o centro. Perto de cada delegacia havia um punhado de bares com uma nutrida clientela de policiais. A partir das duas, a hora de fechamento, os mais contumazes se deslocavam aos clubes onde se podia beber a noite toda. A maioria eram antros escuros onde os homens iam se embebedar em silêncio, como se suas vidas dependessem disso. Eram oásis no deserto da rua, lugares para esquecer e se perdoar. Bosch esperava encontrar Porter em um deles.


Começou com um lugar em Kirtridge chamado The Parrot onde o garçom de trás do balcão, um ex-policial, disse que não tinha visto Porter desde a véspera de natal. Depois, passou pelo 502, em Lankershim e em seguida pelo Saint de Cahuenga. Embora em todos eles conhecessem Porter, nessa noite ninguém o tinha visto. A coisa continuou assim até as duas. Então, Bosch tinha circulado por toda a área até Hollywood. Estava sentado em seu carro diante do Bullet, tentando pensar em clubes noturnos dos arredores quando soou seu buscador. Ao olhar o número, Bosch não o reconheceu. Quando voltou ao Bullet para usar o telefone, as luzes do bar se acenderam. Estavam a ponto de fechar.


— Bosch?

— Sim?

— É o Rickard. É muito tarde?

— Não, estou no Bullet.

— Está perto.

— Do quê? Pegou o Dance?

— Não, não totalmente. Estou em uma rave atrás da Cahuenga, ao sul do Boulevard. Não podia dormir assim saí para caçar um pouco. Não vi o Dance, mas sim um de seus antigos camelos. Um dos que estavam nas fichas da pasta. Chama-se Kerwin Tyge. Bosch parou para pensar. Lembrava-se do nome. Tyge era um dos menores e a equipe Bang tinha registrado a intenção de espantá-lo das ruas. Seu nome aparecia em uma das fichas do arquivo que Moore tinha lhe deixado.

— O que é uma rave?

— Uma festa clandestina. Uma montagem provisória em um armazém deste beco com música tecno. Durará a noite toda, até as seis, e na semana que vem será em outro lugar.

— Como a encontrou?

— São fáceis de localizar. Nas lojas de discos da Melrose põem anúncios com os números de telefone. Se ligar, anotam-no na lista. Isso custa vinte dólares; em seguida você vai e dança até o amanhecer.

— Tyge está vendendo gelo negro?

— Não, está vendendo sherms com toda tranquilidade.


Um sherm era um cigarro empapado de PCP líquido. Molhá-lo custava vinte paus e deixava o fumante ligado a noite toda. Pelo visto Tyge já não trabalhava para Dance.


— Primeiro o pegamos e depois o esprememos para descobrir aonde está o idiota do Dance, sugeriu Rickard. — Eu acredito que o cara está pirado, e possivelmente o guri saiba aonde. Você decide; eu não sei se Dance é importante para você.

— Onde preciso ir? Perguntou Bosch.

— Pegue o Hollywood Boulevard para o oeste e quando passar Cahuenga entre no primeiro beco ao sul, o de trás das sex-shops. Está escuro, mas verá uma flecha de néon azul; é aí. Eu estarei esperando a meia quadra em meu carro, um Camaro vermelho com placa de Nevada. Precisamos pensar num plano para pegá-lo com as mãos na massa.

— Sabe onde está o PCP?

— Sim, em uma garrafa de cerveja ao lado da calçada e ele vai saindo e entrando. Traz para os clientes de dentro, explicou Rickard. — Quando chegar, já terei pensado em algo.


Bosch desligou e voltou para o Caprice. Demorou quinze minutos em chegar por culpa dos carros que percorriam o Boulevard a passo de tartaruga em busca de prostitutas. No beco estacionou atrás do Camaro vermelho, apesar de ser proibido. Rickard estava sentado meio oculto atrás do volante.


— Bom dia, cumprimentou o policial quando Bosch se sentou no banco de trás do Camaro.

— Igualmente. O nosso homem ainda está aí?

— Certamente; o guri está fazendo seu pé de meia. Os sherms vendem como rosquinhas. Pena que vamos amassar seu violão.


Bosch olhou para o fundo do beco. Nos intervalos de luz azulada que o néon projetava, vislumbrou um grupo de pessoas vestidas com roupa escura ante a porta do prédio. De vez em quando, a porta se abria e alguém saía ou entrava. Então se ouvia a música; tecno-rock a todo volume com um baixo que parecia sacudir toda a rua. Quando seus olhos se adaptaram à escuridão, viu que o grupinho de gente estava bebendo e fumando, tirando uma pausa depois de dançar. Alguns sustentavam globos inchados. Apoiavam-se nos capôs dos carros, chupavam o globo e o passavam como se fosse um cigarro de maconha.


— Os globos estão cheios de óxido nitroso, disse Rickard.

— Gás hilariante?

— Isso. Vendem-no nas rave a cinco paus por globo. Se conseguirem um bujão de um hospital ou dentista podem tirar facilmente um par das grandes.


De repente uma garota caiu do capô do carro e seu globo de gás saiu voando pelos ares. Os outros a ajudaram a se levantar.


— É legal?

— A posse sim; há um monte de usos legais, e consumi-lo de forma recreativa é uma falta menor. Nem sequer nos preocupamos. Se alguém quer cheirar, cair no chão e abrir cabeça, adiante. Não serei eu quem... Lá está.


A figura magra de um adolescente emergiu da porta do armazém e se dirigiu para os carros estacionados no beco.


— Agora se agachará, prognosticou Rickard. Efetivamente, a figura desapareceu atrás de um carro. — Está vendo? Agora está molhando os cigarros. Depois esperará uns minutos, para que sequem um pouco e seu cliente saia. E então fará a venda.

— Vamos prendê-lo?

— Não. Se o pegarmos com só um sherm, não servirá de nada; é considerada uma quantidade para consumo próprio. Nem sequer o deixariam preso uma noite na cela de bêbados. Precisamos pegá-lo com o PCP se quisermos que cante.

— E como faremos?

— Você volta para seu carro, dá a volta pela Cahuenga e entra no beco pelo outro lado. Assim poderá se aproximar mais do que por aqui. Estacione e tente se aproximar ao máximo para me cobrir as costas. Eu entrarei por aqui. Tenho roupa velha na maleta, para me camuflar. Bosch voltou para o Caprice, virou e saiu do beco.


Deu a volta na quadra e voltou a entrar pelo outro lado. Finalmente achou um lugar diante de um contêiner e estacionou. Assim que distinguiu a silhueta encolhida de Rickard avançando pelo beco, Bosch começou a se mover. Os dois policiais se aproximavam da entrada do armazém por ambos os extremos, mas enquanto Bosch permanecia oculto, Rickard, que tinha posto um suéter de algodão manchado de graxa e trazia uma bolsa de roupa suja na mão, caminhava pelo meio do meio-fio, cantando. Embora não estivesse certo, a Bosch pareceu que se tratava da canção de Percy Sledge, When A Man Loves A Woman interpretada com voz de bêbado.


Rickard tinha captado a atenção das pessoas que estavam perto da porta do armazém. Um par de garotas aplaudiram sua forma de cantar. A distração permitiu a Bosch se situar a quatro carros da porta e a três carros do lugar onde Tyge guardava o PCP. Ao passar por ali, Rickard parou de cantar em pleno estribilho e ficou fazendo dramalhões como se acabasse de encontrar um grande tesouro. Então se agachou entre os dois carros estacionados e saiu com a garrafa de cerveja na mão. Estava a ponto de guardá-la na bolsa quando Tyge saiu de entre os carros e a pegou. Rickard se negava a soltá-la e, na luta, o menino ficou de costas para Bosch. Harry se dispôs a agir.


— Qual é, cara! Gritou Rickard.

— Eu a coloquei aí, colega. Solte-a ou cairá tudo!

— Pegue outra, cara. Esta é minha.

— Solte-a já!

— Está certo de que é sua?

— Claro que é minha!


Bosch golpeou o jovem com força por trás; este soltou a garrafa e caiu sobre o porta-malas do carro. Bosch o manteve imobilizado, empurrando com seu antebraço o pescoço do garoto. A garrafa continuava na mão de Rickard; não tinha derramado nenhuma gota.


— Bem, se você diz suponho que seja sua, respondeu o policial. — E isso significa que está preso.


Bosch tirou as algemas do cinto, colocou-as no garoto e o afastou do carro. Nesse momento começou a formar um carriola de gente ao seu redor.


— Caiam fora! Afugentou-os Rickard. — Voltem para dentro e vão cheirar seu gás hilariante. Fora daqui ou irão acompanhar este garoto para a cadeia! Agachou-se e sussurrou ao ouvido de Tyge: — De acordo, "colega"?


Ao ver que ninguém se movia, Rickard deu um ameaçador passo adiante e o grupo se dispersou. Um par de garotas saíram correndo para o armazém. A música afogou a gargalhada de Rickard, que em seguida se voltou e pegou Tyge pelo braço.


— Venha, Harry. Vamos no seu carro.


No trajeto para Wilcox ninguém disse uma palavra. Embora não tivessem comentado antes, Harry pensava em deixar que Rickard, que estava atrás com o garoto, assumisse a liderança. Pelo retrovisor, Harry observou que Tyge usava um pendente e o cabelo comprido até os ombros, engordurado e descuidado. Alguém deveria ter lhe colocado aparelhos nos dentes cinco anos antes, mas uma só olhada mostrava evidentemente que vinha de um lar onde esse tipo de coisas nem eram consideradas.


A expressão de seu rosto era de desinteresse total, mas a dentadura foi o que mais impactou Bosch. Aqueles dentes torcidos e saídos, mais que nenhuma outra coisa, simbolizavam o desespero de sua vida.


— Quantos anos tem, Kerwin? Perguntou Rickard. — E não se incomode em mentir. Temos sua ficha na delegacia e posso verificar.

— Dezoito. Pode enfiar a ficha no rabo.

— Vamos, vamos! Zombou Rickard. — Dezoito. Parece-me que prendemos um adulto, Harry. Nada de levar o garotinho para a sala de menores. Vamos colocá-lo no "sete mil"; e acompanharemos quanto tempo vai demorar para "ser adotado" por um dos detentos.


O "sete mil" era como a maioria de policiais e delinquentes se referiam ao centro de detenção para adultos do condado. O nome vinha do telefone de informação sobre os detentos: o 555-7000. O cárcere ficava em pleno centro da cidade: quatro andares de ruído, ódio e violência por sobre as dependências do xerife do condado. A cada dia esfaqueavam alguém, a cada hora estupravam mais alguém e ninguém fazia nada para evitar, porque ninguém, exceto a vítima, se importava. Os ajudantes do xerife encarregados da segurança o chamavam de UISHI, quer dizer, Um Incidente Sem Humanos Implicados. Bosch sabia que, se o que ele queria era assustar o garoto para que falasse, Rickard tinha escolhido bem.


— Agarramos você pelos bagos, Kerwin, disse Rickard. — Aqui ao menos há cinquenta gramas. Posse com intenção de venda, homem.

— Vá a merda.


O garoto falou aquelas palavras num completo desprezo. Ia brigar até o final. Bosch notou que Rickard colocava a garrafa de cerveja do lado de fora da janela para evitar que o PCP invadisse o carro e provocasse dores de cabeça.


— Isso não está andando bem, Kerwin. Especialmente quando o homem que está dirigindo está disposto a fazer um trato consigo... Eu, em troca, deixaria que se arrumasse com os colegas do "sete mil". Ao fim de um par de dias ali, barbeará as pernas e passeará com roupa interior rosa.

— Vá a merda, porco. me deixe telefonar.


Estavam no Sunset Boulevard, a pouca distância da Wilcox. Apesar de que quase tinham chegado na delegacia, Rickard ainda não havia dito ao garoto o que queria. Embora pelo visto, o menino não iria fazer nenhum trato, fosse qual fosse.


— Deixaremos que telefone quando nos passar pelos culhões. Agora parece fanfarrão, mas não vai durar. Todo mundo passa mal aí dentro; verá. A não ser que nos ajude. Nós só queremos falar com seu amigo Dance.


Bosch entrou na Wilcox. A delegacia ficava a duas quadras. O garoto não disse nada e Rickard deixou que o silêncio continuasse durante uma quadra mais antes de fazer uma última tentativa.


— O que me diz, cara? Se me der um endereço, acabo com esta merda agora mesmo. Não será um desses idiotas que acreditam que o "sete mil" vai convertê-lo em homens? Como se fosse uma espécie de ritual de iniciação. De iniciação nada; é justamente o contrário. É o final. É isso o que quer?

— Foda-se.


Bosch entrou no estacionamento traseiro da delegacia. Antes de levá-lo para o cárcere, precisaram processar a detenção e entregar as provas. Harry sabia que não tinha outra solução a não ser cumprir as ameaças. O garoto não estava cooperando e eles precisavam demonstrar que não estavam blefando.


* * *


Doze

BOSCH NÃO recomeçou a busca de Porter até as quatro da madrugada. Então já tinha tomado duas xícaras de café na delegacia e estava na terceira. Outra vez no Caprice, só e percorrendo a cidade. Rickard tinha levado Kerwin Tyge ao centro, já que o garoto se negara a falar. Sua dura carapaça de rechaço, ódio a polícia e orgulho mal entendido não rachou. Na delegacia, Rickard se obcecou para que o garoto desse a informação que precisavam. Repetiu as ameaças e as perguntas com um fanatismo que, para Bosch, pareceu exagerado. Finalmente precisou lhe pedir que parasse, prendesse o garoto e que tentariam de novo mais adiante. Depois de sair da sala de interrogatórios, os dois concordaram de se reunir no "sete mil" às duas da tarde. Isso daria a Tyge a oportunidade de sofrer na cadeia do condado durante dez horas; o suficiente para tomar uma decisão.


Bosch estava percorrendo os clubes noturnos, locais abertos de madrugada onde os membros levavam suas próprias garrafas de bebida e pagavam pelas bebidas sem álcool. O preço dos ditos refrigerantes era evidentemente exagerado, e certos clubes inclusive cobravam uma cota de seus membros. Mas algumas pessoas não conseguiam beber sozinhas em casa. E outras não tinham uma casa onde beber.


No semáforo da Sunset com Western, uma figura imprecisa passou diante do carro e se equilibrou sobre o lado esquerdo do capô. Instintivamente, Bosch levou a mão ao cinto e quase derramou o café. Então se deu conta de que o homem tinha começado a esfregar o para-brisa com uma folha de jornal. Eram quatro da madrugada e um vagabundo estava limpando seu para-brisa. E para cúmulo fazia muito mal; os esforços do pobre homem só serviram para rabiscar o vidro. Bosch pegou um dólar e esticou a mão pela janela para dar ao tipo quando passasse por seu lado. Entretanto, este fez um gesto para que o guardasse.


— De nada, disse e, em seguida, se afastou em silêncio.


Bosch continuou sua busca pelos clubes de Echo Park, perto da academia de polícia, e em seguida por Chinatown, mas não achou nem rastro de Porter. Pegou a autoestrada de Hollywood até chegar ao centro da cidade e pensou no garoto quando passou diante da cadeia do condado. Teriam-no mandado para o pavilhão sete, a seção de traficantes, onde no geral os detentos eram menos hostis. Certamente ficaria bem.


Bosch viu os grandes caminhões azuis que saíam do estacionamento do Times pela Spring Street com um novo carregamento de notícias frescas. Em seguida continuou sua procura em um par de clubes perto do Parker Center e outra perto dos favelas. Estava esgotando as possibilidades. O último lugar que verificou foi o Poe's, na Third Avenue, perto das favelas, do Los Angeles Times, da igreja da Santa Vibiana e dos arranha-céus de vidro do distrito financeiro, um lugar onde se fabricavam bêbados a granel. O Poe's fazia muitos negócios nas horas da manhã anteriores ao que o centro da cidade despertasse com suas pressas e cobiças.


O Poe's se localizava no primeiro andar de um edifício de tijolo de antes da guerra. A Agência de Reconstrução Comunitária condenara-o a ser demolido porque sua estrutura não estava preparada para suportar terremotos e adaptá-lo custaria mais do que valia o edifício. A Agência tinha-no comprado e ia derrubá-lo para construir apartamentos que atraíssem residentes para o centro da cidade. Entretanto, no momento tudo estava paralisado. Outro organismo municipal, o Escritório de Preservação do Patrimônio, queria que o Edifício Poe tal como era conhecido de maneira informal, obtivesse a categoria de monumento. Tinham ido aos tribunais para impedir a demolição, e até o momento tinham conseguido por quatro anos parar o projeto. O Poe's continuava aberto, mas os quatro andares superiores estavam abandonados.


Lá dentro, o lugar era um buraco negro com um balcão longo e curvo. Não havia mesas, já que não era um lugar para sentar com amigos, e sim para beber sozinho. Um lugar para executivos tentando reunir a coragem para se suicidar, policiais amargurados que não podiam suportar a solidão de suas vidas, escritores incapazes de escrever e sacerdotes que não conseguiam perdoar nem seus próprios pecados. Ali se ia para beber muito, enquanto restasse dinheiro. Sentar-se em um tamborete no balcão custava cinco paus e um copo de gelo para acompanhar a garrafa de uísque, um dólar. Um refrigerante, como a soda, valia três dólares, mas a maioria dos clientes preferiam tomá-lo a seco. Era mais barato e mais direto. Dizia-se que o Poe's não se chamava assim por causa do escritor, mas sim pela filosofia geral da clientela: Chegar, embebedar, esquecer. Em que pese a que lá fora ainda estivesse escuro, entrar no Poe's era como se internar em uma cova. Por um instante Bosch se lembrou do primeiro momento depois de entrar num túnel inimigo no Vietnã.


Harry ficou de pé, imóvel junto à entrada, até que seus olhos se acostumaram à penumbra do local e distinguiu o couro vermelho e acolchoado do balcão. O lugar cheirava pior que o trailer de Porter. O garçom usava uma camisa enrugada que já fora branca e um colete negro desabotoado; estava à direita, diante das fileiras de garrafas de bebida, todas elas com o nome do proprietário grudado com fita adesiva. Um néon vermelho iluminava a prateleira das bebidas, dando um brilho sinistro. De repente se ouviu uma voz vinda das sombras, à esquerda de Bosch.


— O que faz aqui, Harry? Estava me procurando?


Bosch se voltou e ali estava Porter, sentado no outro extremo do balcão de cara para a porta, para ver qualquer um que entrasse antes que o vissem. Quando Harry se encaminhou para o policial, notou que este tinha um uísque, um copo meio cheio de água e uma garrafa de bourbon quase nas últimas. No balcão também havia vinte e três dólares e um maço de Camel. Bosch notou que a raiva lhe subia para a garganta.


— Sim, estava lhe procurando.

— O que aconteceu?


Bosch sabia que tinha que agir antes de que a pena diluísse a sua raiva. Assim, pegou a jaqueta de Porter pelas lapelas e a desceu até os cotovelos, de modo que imobilizasse seus braços nos flancos. O cigarro de Porter caiu no chão. Bosch lhe tirou a pistola da cartucheira e deixou-a sobre o balcão.


— Por que continua carregando uma arma, Lou? Aposentou-se, não foi? O que aconteceu? Alguma coisa está lhe assustando?

— Harry, o que aconteceu? O que está fazendo?


O garçom começou a caminhar para eles com a intenção de dar auxílio a um membro do clube, mas Bosch lhe deu um olhar ameaçador e o parou como um guarda de trânsito.


— Não está acontecendo nada. Isto é particular.

— Porra, nisso tem razão. Aqui é um clube particular e você não é sócio.

— Não se preocupe, Tommy, confirmou Porter. — Eu o conheço.


Um par de homens sentados em tamboretes próximos levantaram e se transferiram para o outro extremo do balcão com seus copos e garrafas. No fundo, um par de bêbados observavam Bosch e Porter. Entretanto, ninguém partiu; havia bebidas em seus copos e ainda não eram seis da manhã. Os bares comuns não abriam antes das sete. Não, não iriam a nenhum lugar, mesmo que tivessem de presenciar um assassinato.


— Harry, vamos, disse Porter. — Fique calmo. Podemos conversar.

— Ah, sim? E por que não falou isso quando liguei no outro dia? E o que me diz de Moore? Falou com ele?

— Olhe, Harry...


Bosch lhe deu um empurrão que o fez saltar do tamborete e se precipitar contra os painéis de madeira da parede. Seu nariz fez um ruído como o de um cartucho ao cair sobre a calçada. Então Bosch apoiou suas costas contra a de Porter, imobilizando-o contra a parede.


— Não me venha com "Olhe, Harry". Eu o defendi porque pensava que... Pensava que valia a pena. Mas agora sei que estava errado. Você deixou o caso Juan 67 e quero saber por quê. Quero saber que merda está acontecendo. A voz de Porter apenas se ouvia amortecida pela parede e o sangue.

— Merda, Harry; estou sangrando. Acho que quebrei o nariz.

— Esqueça do nariz. E Moore? Sei que foi ele quem encontrou o cadáver.


Porter deu um suspiro, mas Bosch se limitou a empurrá-lo com mais força. O homem cheirava a suor, a álcool e a cigarro. Bosch se perguntou quanto tempo estaria no bar com um olho na porta.


— Vou chamar a polícia, gritou o garçom com o telefone na mão para que Bosch visse que falava a sério. Entretanto, era um farol. O garçom sabia que se discasse esse número todos os tamboretes do bar esvaziariam imediatamente e ele ficaria sem ninguém de quem receber gorjetas ou a quem enganar com a bebida. Empregando seu corpo para manter Porter contra a parede, Bosch tirou a identidade e a mostrou ao garçom:


— Eu sou a polícia. Meta-se em seus assuntos.


O garçom sacudiu a cabeça como dizendo "aonde iremos parar" e devolveu o telefone a seu lugar, atrás da caixa registradora. O anúncio de que Bosch era um agente de polícia provocou uma correria; quase a metade dos clientes acabaram suas consumações de um só gole e partiram. Bosch deduziu que haveria ordens de prisão contra a maioria deles. Porter começou a balbuciar e Bosch pensou que talvez estivesse chorando de novo, tal como fizera na quinta-feira de manhã ao telefone.


— Harry, eu... Eu não pensava no que estava fazendo... Tinha... Bosch arremeteu contra as costas de Porter e ouviu que sua testa batia contra a parede.

— Não me venha com essa cantilena, Porter. Estava me preocupando com você e...

— Vou vomitar.

— ...E agora, acredite ou não, eu sou a única coisa que se preocupa com você. Conte-me o que fez. Diga-me de uma vez e ficaremos em paz. Prometo-lhe que não sairá daqui. Você vai se confessar com seu padre e eu paro de incomodar. Bosch ouviu a respiração de Porter sobre a parede. Era quase como se pudesse ouvi-lo pensar.

— Promete-me isso, Harry?

— Não tem escolha. Se não começar a cantar, vai ficar sem trabalho e sem aposentadoria.

— Bem, eu... Manchei a camisa de sangue; terei que tirá-la. Bosch o empurrou com mais força. — Certo, certo. Eu conto... Eu só lhe fiz um favor, isso é tudo. Quando soube o que havia acontecido... Bem, não consegui voltar. Não sei o que aconteceu. Quero dizer que eles... Alguém podia estar me procurando. Assustei-me, Harry. Tenho medo. Vou de bar em bar desde que falei consigo ontem. E agora todo este sangue... Preciso de um guardanapo.


Bosch parou de pressioná-lo com o corpo, mas o manteve preso com uma mão nas costas para impedi-lo de escapar. Ao mesmo tempo, esticou o braço até o balcão e pegou um punhado de guardanapos empilhados junto a uma terrina cheia de pacotes de fósforos. Harry passou-as por cima do ombro e ele as pegou com sua mão livre. Voltando-se para Harry, aplicou os guardanapos no nariz quebrado. Quando Harry viu lágrimas em seu rosto, desviou o olhar. Nesse momento a porta do bar se abriu e a luz cinzenta do amanhecer iluminou o local. Na soleira havia um homem imóvel, que parecia estar acomodando os olhos à escuridão tal como tinha feito Bosch anteriormente. Harry notou em que era moreno de pele com o cabelo negro como o azeviche. Na bochecha esquerda tinha três lágrimas tatuadas que desciam da extremidade do olho. Bosch soube imediatamente que não se tratava de um banqueiro ou de um advogado necessitado de um uísque duplo no café da manhã. Devia ser algum mafioso que queria descansar, depois de um duro dia de trabalho recolhendo cotas para os italianos ou mexicanos. Os olhos do homem pousaram finalmente em Porter e Bosch, e em seguida na pistola daquele que continuava no balcão. O recém-chegado compreendeu a situação e partiu tranquilamente.


— Puta mãe! Gritou o garçom. — Por que não vão embora de uma maldita vez? Estou perdendo clientes. Fora daqui, os dois!


À esquerda de Bosch havia uma placa que dizia BANHEIROS e uma flecha que apontava a um corredor escuro. Bosch empurrou Porter nessa direção. Dobraram uma esquina e entraram no lavabo de homens, que cheirava pior que Porter. Em um canto havia uma vassoura dentro de um balde cheio de água cinzenta, mas o chão gretado estava mais sujo que a água. Bosch guiou Porter para o lavabo.


— Lave-se, ordenou. — Qual era o favor? Diz que fez um favor a Moore. Qual foi?


Porter olhava para o seu reflexo impreciso em uma prancha de aço inoxidável que os proprietários deviam ter pendurado quando se cansaram de substituir os espelhos quebrados.


— Não para de sangrar. Acredito que está quebrado.

— Esqueça do nariz. Conte o que fez.

— Eu... Olhe, ele só me disse que conhecia algumas pessoas que preferiam que o frio do restaurante não fosse identificado durante um tempo. "Atrase uma ou duas semanas", me pediu. Também não tinha documentação. Disse-me que verificasse as impressões digitais nos computadores porque ele sabia que não encontraria nada. Disse-me que essa gente, a que ele conhecia, me trataria bem. Prometeu-me um bonito presente de natal. Assim, bem, fiz todos os trâmites de rotina na semana passada. De qualquer maneira, também nada encontrei. Você sabe; viu o processo. Não havia carteira, nem testemunhas, nem nada. O cara estava morto há mais de seis horas antes que o deixassem jogado ali.

— E o que o assustou? O que aconteceu no dia de natal? Porter assoou o nariz com um monte de toalhinhas de papel, e os olhos se encheram de lágrimas.

— Sim, está quebrado. O ar não passa. Preciso ir ao hospital, para que me mediquem... No dia de natal não aconteceu nada; esse foi o problema. Moore desaparecera há mais de uma semana e eu estava ficando nervoso. No dia de natal Moore não veio me trazer nada. Não veio ninguém. Quando voltei do Lucky, minha vizinha me disse que sentia muito pelo policial que tinham encontrado morto. Eu agradeci, entrei e liguei o rádio. Quando soube que era Moore, caguei nas calças.


Porter molhou um punhado de toalhinhas de papel e começou a limpar a camisa manchada de sangue, o que lhe dava um aspecto ainda mais patético. Então Bosch viu sua cartucheira vazia e lembrou que deixara a pistola em cima do balcão. Entretanto, não queria voltar enquanto Porter estivesse falando.


— O caso é que Moore não era um suicida. Não importa o que digam em Parker Center. Eu sei que ele não se matou: o cara sabia de alguma coisa. Assim decidi que não aguentava mais. Liguei para o sindicato e pedi um advogado. Vou parar de beber e ir para Las Vegas; possivelmente me coloque como segurança de algum cassino. Millie está lá com meu filho. Quero ficar perto dele. "Certo” pensou Harry. “E passar o resto da sua vida aterrorizado". Bosch se dirigiu à porta, mas Porter o deteve. — Harry, vai me ajudar? Bosch olhou seu rosto machucado uns segundos antes de dizer:

— Sim, farei o que puder.


Quando voltou para bar, Bosch fez um sinal ao garçom que estava fumando no outro extremo do balcão. O homem, de uns cinquenta anos, e com umas velhas tatuagens azuis que lhe cobriam os antebraços como se fossem veias, se aproximou. Então Bosch já tinha deslizado uma nota de dez dólares sobre o balcão.


— Quero um par de cafés para levar. Puros. Um com muito açúcar.

— Já era hora de irem embora. Além disso, penso em cobrar os guardanapos. Acredita que estão aparecendo por aí tiras que vão batendo nas pessoas? Ao ver a nota de dez dólares, o garçom concordou. — Isso será suficiente.


A seguir serviu um café que tinha todo o aspecto de estar na cafeteira desde o natal. Enquanto isso, Bosch voltou para o tamborete de Porter e recolheu os vinte e três dólares e o Smith trinta e oito. De volta para perto da nota de dez, Harry acendeu um cigarro. Alheio a vigilância de Bosch, o garçom colocou uma quantidade excessiva de açúcar em ambos os cafés. Bosch deixou passar. Depois de pôr as tampas nos copos de plástico, o garçom trouxe-os com um sorriso que deixaria uma puta frígida.


— Este é o que não tem... Explicou-lhe, assinalando uma das tampas. — Que merda é essa?


A nota de dez que Bosch tinha deixado no balcão se convertera em uma nota de um. Bosch soprou a fumaça do cigarro no rosto do garçom, pegou os cafés e respondeu:


— Isto é para o café. Os guardanapos enfie no rabo.

— Fora daqui, filho da puta, disse o garçom. Em seguida virou e se dirigiu para o fundo do balcão, onde uns quantos clientes o esperavam impacientem com os copos vazios. Precisavam de mais gelo para esfriar seu plasma.


Ao ter as mãos ocupadas com os cafés, Bosch abriu a porta do lavabo com o pé. Mas não viu Porter. Então foi abrindo as portas das privadas, mas o policial tampouco estava ali. Harry saiu do lavabo de homens a toda pressa e se meteu no de mulheres. Nem rastro de Porter. Seguindo o corredor, dobrou outra esquina e ali descobriu uma porta que dizia SAÍDA e umas gotas de sangue no chão. Bosch se arrependeu de seu enfrentamento com o garçom e se perguntou se poderia localizar Porter ligando para hospitais e clínicas. Então empurrou a porta com o quadril. Desgraçadamente, esta só cedeu um par de centímetros; havia algo no outro lado.


Bosch depositou os cafés no chão e pressionou com todas as suas forças. Pouco a pouco a porta foi se deslocando à medida que o que a trancava ia cedendo. Quando finalmente Bosch conseguiu passar pela abertura, descobriu que alguém a tinha bloqueado com um latão de lixo. Harry saiu ao exterior pela parte traseira do bar onde ficou deslumbrado pela luz cegadora da manhã que entrava pelo leste do beco. Frente a ele havia um Toyota abandonado ao qual faltavam as rodas, o capô e uma porta. Haviam mais latões e o vento levantava redemoinhos de lixo. Mas não via nem rastro de Porter.


* * *


Treze

BOSCH TOMAVA café no balcão do Pantry e comia ovos com bacon, tentando recuperar as energias. Não tinha se incomodado em tentar seguir Porter porque não tinha nenhuma possibilidade de encontrá-lo. Sabendo que Bosch o procurava, inclusive um policial feito pó como Porter teria o sentido comum de se afastar dos lugares mais evidentes e se manter fora de alcance.


Harry tirou sua caderneta e abriu-a pela lista cronológica que elaborara no dia anterior. Entretanto, custava se concentrar nela; estava muito deprimido. Deprimido porque Porter tinha fugido, não tinha acreditado nele. E deprimido porque parecia que a morte de Moore fazia parte da escuridão que havia lá fora, além da possibilidade de compreensão de qualquer policial. Moore tinha cruzado a linha. E tinha pago com a vida.


"Descobriram quem eu era".


A nota também o preocupava. Se Moore não havia se suicidado, quem tinha escrito? Aquilo lembrou-o do que Sylvia Moore lhe contara sobre o passado do marido: que tinha caído em uma armadilha estendida por ele mesmo. Nesse instante pensou em ligar para ela para contar o que tinha descoberto, mas descartou a ideia, ao menos no momento, já que não tinha respostas para as perguntas que faria. Por que tinham assassinado Calexico Moore? E quem o tinha feito?


Eram pouco mais das oito da manhã. Bosch deixou o dinheiro no balcão e partiu. Do lado de fora, dois vagabundos pediram esmola, mas ele não deu. A seguir foi até Parker Center; por sorte conseguiu encontrar um lugar no estacionamento. Uma vez lá dentro, primeiro se dirigiu a sala de Roubos e Homicídios do terceiro andar, onde descobriu que Sheehan ainda não tinha chegado. Então subiu ao quarto andar, onde ficava Fugitivos, para fazer o que deveria ter feito quando falara com Moore. Fugitivos também pegava os casos de pessoas desaparecidas, algo que Bosch sempre achara irônico. A maioria das pessoas desaparecidas fugiram de algum lugar, pelo menos de uma parte de suas vidas.


Quando o detetive encarregado das denúncias de desaparecimentos chamado Capetillo atendeu-o, Harry pediu a lista de desaparecidos hispanos dos últimos dez dias. Capetillo levou-o para sua mesa e lhe ofereceu uma cadeira enquanto procurava nos arquivos. Harry olhou ao redor e seus olhos pousaram sobre uma foto emoldurada do detetive rechonchudo com uma mulher e duas meninas. Um homem de família. Na parede, sobre a mesa, havia o poster de uma corrida na praça de touros de Tijuana. À direita apareciam os nomes dos seis participantes, enquanto que toda a margem esquerda era ocupada por uma ilustração de um touro investindo contra um toureiro que o recebia com sua capa vermelha em punho. No pé da imagem se lia: "A arte da tourada".


— A clássica verônica. Bosch se voltou. Era Capetillo, que havia retornado com uma pasta na mão.

— Como?

— A verônica. Sabe um pouco de touros? Já foi a uma corrida?

— Não, nunca.

— São magníficas. Eu vou ao menos quatro vezes por ano. Não há nada que se possa comparar; nem o futebol, nem o basquete, nem nada. A verônica é o lance em que o toureiro contorna o touro com a capa estendida com as duas mãos. No México as corridas são chamadas de festivais bravos.


Bosch olhou a pasta que o detetive segurava. Capetillo abriu-a e entregou a Bosch uma pilha muito fina de papéis.


— Isto é tudo o que chegou nos últimos dez dias, informou Capetillo. — Os mexicanos, ou chicanos, quase nunca denunciam os desaparecimentos. É uma questão cultural. A maioria não confia na polícia. E quando alguém desaparece, muitas vezes imaginam que terão voltado para o México. Aqui há muitos imigrantes ilegais e por isso não nos avisam.


Bosch leu a pilha de papéis em menos de cinco minutos. Nenhuma das denúncias se encaixava com a descrição de Juan 67.


— E as solicitações de informação da polícia mexicana?

— Isso é diferente. A correspondência oficial nós arquivamos separadamente, mas se quiser posso verificar. Por que não me diz o que está procurando?

— Nada concreto. Tenho um cadáver sem identificar e acredito que o homem possa ser mexicano, talvez de Mexicali. É uma intuição mais do que qualquer outra coisa.

— Espere um momento, pediu Capetillo enquanto saía de novo de seu cubículo.


Bosch voltou a olhar o poster e notou que o rosto do toureiro não revelava a menor indecisão ou medo, só concentração naqueles chifres mortíferos. Seus olhos tinham um olhar inexpressivo, morto, como o de um tubarão. Capetillo retornou em seguida.


— Uma boa intuição. Tenho três relatórios recebidos nas últimas duas semanas. Todos poderiam ser o seu homem, embora um mais que os outros. Acredito que tivemos sorte. Capetillo deu uma folha de papel a Bosch e acrescentou: — Este chegou ontem do consulado da Olvera Street.


Era uma fotocópia de um telex enviado ao consulado por um agente da Polícia Judicial do Estado chamado Carlos Águia. Bosch estudou o telex, que estava escrito em inglês.


Procura-se informação sobre o desaparecimento de Fernal Gutiérrez-Llosa, 55 anos, operário, Mexicali. Paradeiro desconhecido. Última vez que foi visto: 17/12, Mexicali. Descrição: 1,72 metro, 60 kg. Olhos castanhos, cabelo castanho com algumas cãs. Tatuagem na parte superior esquerda do peito (fantasma, tinta azul, símbolo do bairro Cidade das Pessoas Perdidas).

Ligar para: Carlos Águia, 57-20-13,

Mexicali, Baixa Califórnia.


Bosch releu o telex. Não havia muita informação, mas era suficiente. Fernal Gutiérrez-Llosa desaparecera de Mexicali no dia dezessete e na manhã de dezoito apareceu o corpo de Juan 67 em Los Angeles. Bosch deu uma olhada rápida nas outras duas páginas, mas estas se referiam a homens que eram muito jovens para serem Juan 67. Bosch voltou para a primeira folha. A tatuagem era a prova definitiva.


— Acredito que seja este, disse. — Posso levar uma cópia?

— Claro. Quer que ligue? Para ver se podem enviar as impressões digitais?

— Não, ainda não. Primeiro quero verificar umas coisas, mentiu Bosch. Na realidade queria limitar ao máximo a participação de Capetillo. — Uma última pergunta. Sabe o que quer dizer Cidade das Pessoas Perdidas?

— Sim. No México as tatuagens costumam ser símbolos de um bairro. Fernal Gutiérrez-Llosa morava no bairro Cidade das Pessoas Perdidas. Muitos dos habitantes dos bairros pobres mexicanos fazem isso; se marcam. É algo similar às daqui. Só que lá eles se tatuam e aqui pintam as paredes. A polícia de lá sabe que tatuagem corresponde a que bairro. É muito comum em Mexicali. Quando ligar para Águia, ele lhe explicará isso e inclusive pode pedir uma foto, se precisar.


Bosch ficou em silêncio uns segundos enquanto simulava ler o telex do consulado. "A Cidade das Pessoas Perdidas”, pensou. “Um fantasma". Harry brincou com esta nova informação como um menino que encontra uma bola de beisebol e fica virando-a para ver se as costuras estão gastas. Então se lembrou da tatuagem no braço de Moore: a cara sorridente de um demônio sob a auréola de um anjo. Seria de um bairro de Mexicali?


— Disse que a polícia de lá tem uma lista das tatuagens?

— Exatamente. É uma das poucas coisas úteis que fazem.

-— O que quer dizer?

— Esteve alguma vez trabalhando lá? É terceiro-mundo, cara. O aparelho policial, se é que pode se chamar assim, é totalmente primitivo comparado com o nosso. A verdade é que não me surpreenderia se não tiverem impressões digitais para mandar. Estranharia inclusive que enviassem algo ao cônsul. O tal Águia deve ter tido uma intuição, como você. Bosch deu uma última olhada no poster da parede, agradeceu a Capetillo sua ajuda e apanhou a cópia do telex, e partiu.


Ao entrar no elevador para descer, Bosch encontrou Sheehan. Havia muita gente e Sheehan estava atrás de todos, por isso não se falaram até chegar ao terceiro andar.


— Tudo bem, Frankie? Saudou-o Bosch. — No final não consegui falar consigo no dia de natal.

— O que faz aqui, Harry?

— Esperando-o. Chegou tarde. Ou é que agora passa no quinto andar antes de entrar?


O comentário de Bosch era uma pequena indireta, já que os escritórios de Assuntos Internos ficavam no quinto andar. Harry também falou isso para que Sheehan soubesse de que estava informado sobre que acontecia no caso Moore. Se Sheehan descia, queria dizer que vinha do quinto ou sexto andar, quer dizer, de Assuntos Internos ou da sala de Irving. Ou de ambos.


— Não me sacaneie, Bosch. Se chego tarde é porque andei ocupado desde cedo por culpa de suas brincadeirinhas.

— O que quer dizer?

— Deixe. Olhe, eu não gosto que me vejam falando consigo. Irving me deu instruções estritas a respeito de você. Não faz parte da investigação; coloque isso na cabeça. Ajudou-nos na outra noite e só.


Estavam no corredor diante da sala de Roubos e Homicídios. Bosch não gostava do tom de voz do Sheehan. Nunca tinha visto Frankie baixar as calças ante os chefes daquela maneira.


— Pare com isso, Frankie, vamos tomar um café e me conte porque está de rabo preso.

— Não estou de rabo preso, cara. Esquece de que trabalhei consigo e sei que quando remói algo não solta? Estou lhe dizendo como está o assunto; você estava no dia que encontramos o Moore, mas a coisa acaba aí. Volte para Hollywood. Bosch deu um passo para ele e abaixou a voz.

— Mas nós dois sabemos que a coisa não acaba aí. Se quiser, pode dizer a Irving que eu disse isso. Sheehan olhou-o fixamente uns segundos, mas logo Bosch viu que sua determinação se evaporava.

— Muito bem, Harry, entre. Sei que vou me arrepender, mas...


Os dois foram até a mesa de Sheehan e Bosch apanhou uma cadeira da mesa ao lado. Sheehan retirou o paletó e pendurou-o em um cabide junto à mesa. Depois de sentar, ajustou a cartucheira da pistola, cruzou os braços e disse:


— Sabe onde passei toda a manhã? No escritório do legista, tentando negociar um trato para cobrir isto durante algumas horas. Parece que ontem à noite houve uma filtração à imprensa; nesta manhã ligaram para Irving dizendo que estamos ocultando o homicídio de um de nossos próprios agentes. Por acaso você não saberá alguma coisa sobre isso, não é?

— A única coisa sei é que estive pensando na cena do motel e em que a autópsia não era concludente e... Bem, cheguei à conclusão de que não é suicídio.

— Você não chegou a nenhuma conclusão porque não está no caso, lembra? Corrigiu-o Sheehan. — E o que me diz disto? Sheehan abriu uma gaveta e tirou uma pasta. Era o arquivo sobre Zorrillo que Rickard tinha mostrado um dia antes. — Não se incomode em dizer que não viu porque se fizer isso vou levá-la a polícia científica para que tirem as impressões digitais. Aposto o diafragma de minha mulher que encontraria as suas.

— Perderia.

— Pois teria mais filhos, disse Sheehan. — Mas não perderia, Harry. Bosch esperou um momento para que Sheehan se tranquilizasse.

— Toda esta bronca que está me dando significa uma coisa: que você tampouco acha que seja suicídio.

— Tem razão; não acredito nisso. Mas tenho um subdiretor me controlando e que teve a brilhante ideia de me pendurar um abutre de Assuntos Internos. Assim tenho os dois pés enfiados na merda antes de começar.

— Está me dizendo que não querem que isso saia daqui?

— Não, não estou dizendo isso.

— O que vão dizer ao Times?

— Há uma reunião com a imprensa nesta tarde. Irving vai dizer que estamos considerando a possibilidade, só a possibilidade, de que se trate de homicídio. Daremos a notícia a todo mundo; até a merda do Times. Além disso, como sabe que foram eles?

— Sorte, suponho.

— Tome cuidado, Bosch. Se voltar a se meter, Irving lhe meterá um charuto onde não veja. Ele adoraria, com seu histórico e toda a experiência que teve consigo. No momento já me encarregou que investigue esta pasta. Você disse a Irving que não conhecia Moore e acaba que temos provas que demonstram que estava investigando algo para você.


Nesse momento Bosch se deu conta de que tinha esquecido de retirar a nota adesiva que Moore tinha posto na pasta.


— Diga ao Irving o que quiser. Pouco me importa. Bosch olhou a pasta. — O que você pensa?

— Do que está nesta pasta? Eu não penso nada em voz alta.

— Vamos, Frankie. Pedi a Moore que me ajudasse num caso de homicídio relacionado às drogas e ele acabou em um motel com a cabeça esmigalhada na banheira. Foi um trabalho tão perfeito que não deixaram nenhum só rastro em todo o quarto.

— E o que acontecerá se foi perfeito e não havia outros rastros? Há caras que merecem o que lhes acontece, entendeu?


Aí se rompera a defesa de Sheehan. Intencionadamente ou não, estava contando a Bosch que Moore tinha cruzado a linha.


— Preciso de mais, falou Bosch. — Você tem todo o peso sobre você, mas eu não. Trabalho livre. Pode ser que Moore tenha passado para o outro lado, sim, mas ninguém tinha direito de matá-lo dessa maneira. Nós dois sabemos. Além disso, existem mais mortos. Harry notou que aquilo tinha capturado a atenção de Sheehan. — Podemos fazer uma troca, sussurrou Bosch.

— Sim, vamos tomar esse café, respondeu Sheehan, ao mesmo tempo que se levantava de sua cadeira.


Cinco minutos mais tarde estavam sentados na cafeteria do segundo andar e Bosch estava lhe contando sobre Jimmy Kapps e Juan 67. Explicou-lhe as conexões entre Moore e Juan 67, Juan e Mexicali, Mexicali e Humberto Zorrillo, Zorrillo e o gelo negro e o gelo negro e Jimmy Kapps. Tudo estava relacionado. Sheehan não fez perguntas nem tomou notas até o final.


— O que acha então? Perguntou Sheehan.

— O mesmo que você, respondeu Bosch. — Que Moore passou para o outro lado. Talvez estivesse trabalhando para Zorrillo, o homem do gelo negro, e se enfiou tanto que não pôde mais sair. Ainda não sei a explicação, mas estou baralhando algumas possibilidades. Ocorrem-me algumas. Possivelmente Moore queria largar e por isso o mataram. Ou talvez porque estava recolhendo informação para mim. Também pode ser que corresse alguma informação sobre a investigação de seu colega de Assuntos Internos, Chastain, e que de repente vissem Moore como um perigo e o eliminassem.


Sheehan pensou um momento. Era a hora da verdade. Se mencionasse a investigação de Assuntos Internos estaria quebrando regras departamentais suficientes para que o expulsassem permanentemente de Roubos e Homicídios. Tal como tinha acontecido a Harry.


— Poderiam me pegar por falar sobre isso, lembrou-o Sheehan. — Acabaria como você, no esgoto.

— Tudo é um esgoto, cara. Continua se nadando na merda, tanto se estiver acima como abaixo. Sheehan bebeu um gole de seu café.

— Assuntos Internos recebeu um aviso, há uns dois meses, de que Moore estava envolvido no tráfico de drogas no Boulevard. Possivelmente oferecendo amparo ou talvez algo pior. A fonte não era mais clara.

— Há dois meses? Surpreendeu-se Bosch. — E não encontraram nada em todo esse tempo? Nada para ao menos retirar Moore da rua?

— Olhe, precisa lembrar que Irving endossou Chastain nesta investigação, mas não trabalhamos muito juntos; ele pouco conversa comigo. Só me disse que a investigação estava em seu início quando Moore desapareceu. Ainda não tinha nada para provar ou desmentir a acusação.

— Sabe se dedicou muito tempo ao caso?

— Suponho que sim. O cara é de Assuntos Internos; sempre está procurando uma chapa para arrancar. E isto parecia algo mais que uma simples infração do regulamento; certamente chegaria ao promotor do distrito. Imagino que o cara que estava querendo fazê-lo desaparecer simplesmente não encontrou nada. Moore devia ser muito bom. "Evidentemente, não o suficiente", pensou Bosch.

— Quem era a fonte?

— Não precisa disso.

— Sabe que sim. Se for trabalhar por minha conta nisto, preciso saber o que aconteceu. Sheehan pensou, mas em seguida continuou.

— Foi anônimo: uma carta. Mas Chastain me disse que foi a esposa. Ela o denunciou.

— Como pode estar tão certo?

— Pelos detalhes da carta. Não sei quais eram, mas Chastain me disse que só podia sabê-los alguém muito próximo de Moore. Contou-me que não era estranho; muitas vezes as denúncias vêm do cônjuge. Mas também me contou que frequentemente são falsas. Não é difícil que um marido ou uma mulher acuse sem motivo o seu par quando estão se divorciando. Assim pelo visto passaram muito tempo tentando descobrir se a acusação era fundada porque Moore e sua mulher estavam em processo de separação. Ela nunca o admitiu, mas Chastain estava certo de que ela a tinha enviado. Simplesmente não chegou muito longe tentando provar, isso é tudo. Bosch pensou em Sylvia. Estava convencido de que estavam errados.

— Falou com a esposa para dizer que a identificação se confirmou?

— Não, foi Irving quem falou ontem à noite.

— Contou-lhe da autópsia, de que talvez não fosse suicídio?

— Não sei. Eu não posso me sentar com o Irving como você comigo e perguntar tudo o que me passa pela cabeça. Bosch notou que estava esgotando a paciência de Sheehan.

— Só um par de coisas mais, Frankie. Chastain investigou o assunto do gelo negro?

— Não. Quando recebemos a pasta ontem, cagou tudo; acredito que era a primeira notícia que tinha. A verdade é que achei engraçado, embora o restante deste assunto não tenha a menor graça. .

— Bem, agora pode lhe contar tudo o que eu lhe disse.

— Nem de brincadeira. Que conste; você e eu não mantivemos esta conversa. Antes de poder contar a ele, preciso fazer ver o que eu andei descobrindo. Bosch pensava a toda velocidade. Que mais podia perguntar?

— E a nota? Isso não encaixa agora. Se não foi suicídio, quem a escreveu?

— Sim, esse é o problema. Por isso conversamos tanto com o forense. Ou já estava com ela no bolso ou quem quer que o matou obrigou a escrevê-la. Não sei.

— Sim. Bosch meditou um momento. — Você escreveria uma nota assim se alguém estivesse a ponto de matá-lo?

— Não sei, cara. A gente faz coisas inexplicáveis quando lhes apontam uma arma porque sempre têm a esperança de se salvar. Bem, ao menos eu penso assim. Bosch concordou, embora não soubesse se estava de acordo ou não. —Preciso ir, disse Sheehan. — Depois me conte o que descobrir.


Bosch voltou a assentir e Sheehan deixou-o sozinho com duas xícaras de café na mesa. No cabo de uns momentos voltou.


— Nunca havia lhe isso dito, mas foi uma pena o que aconteceu. Faz falta gente como você aqui, Harry. Sempre pensei assim. Bosch levantou a vista.

— Obrigado, Frankie.


* * *


Quatorze

O CENTRO de Erradicação de Parasitas ficava no limite de East Los Angeles na estrada de São Fernando, não muito longe do Sanatório do Condado e do hospital da Universidade do Sul de Califórnia, onde ficava a morgue. Bosch esteve tentado a ir encontrar Teresa, mas pensou que deveria lhe dar tempo para que se acalmasse. Estava consciente de que era uma decisão covarde, mas não mudou de opinião. Continuou dirigindo. O centro estava localizado no antigo pavilhão psiquiátrico do condado que fora abandonado quando o Tribunal Superior fez com que fosse virtualmente impossível para o governo, por meio da polícia, retirar da rua os doentes mentais e retê-los sob vigilância por motivos de segurança dos cidadãos. O pavilhão da estrada de São Fernando, fechou então quando o condado renovou seus centros psiquiátricos.


Após isso o edifício fora utilizado em diversas funções: desde cenário de um filme de terror ambientado em um manicômio, a morgue improvisada quando um terremoto causou danos nas instalações do hospital da Universidade alguns anos atrás. Os corpos foram armazenados em dois caminhões frigoríficos dentro do estacionamento. Devido a situação de emergência, os funcionários do condado tiveram que recorrer aos primeiros caminhões que puseram o olho. Pintadas no lateral de um deles se liam as palavras: LAGOSTAS VIVAS DO MAINE Bosch lembrava de ter lido a piada no Times, na coluna "Coisas que só acontecessem em Los Angeles".


Na entrada do estacionamento havia um agente da polícia estatal. Bosch desceu o vidro do carro, mostrou o distintivo e perguntou quem era o diretor do centro. O agente indicou um lugar para estacionar frente à entrada dos escritórios de administração, onde ainda se via um cartaz que dizia: "Proibida a entrada a pacientes sem acompanhamento".


Uma vez lá dentro, Bosch caminhou por um corredor e passou por diante de outro agente estatal, a quem cumprimentou com a cabeça. Ao chegar à mesa da secretária, se identificou e solicitou ver o entomologista encarregado. Ela fez uma ligação rápida, acompanhou Harry a uma sala próxima e apresentou-o a um homem chamado Roland Edson. A secretária ficou rondando perto da porta com um olhar de susto até que Edson finalmente lhe disse que podia se retirar. Quando ficaram sozinhos, Edson perguntou:


— A que se deve sua visita, detetive? Saiba que eu ganho a vida matando moscas, não pessoas.


O homem começou a rir às gargalhadas e Bosch forçou um sorriso por educação. Edson era um homenzinho miúdo vestido com uma camisa branca e uma gravata verde. Tinha a calva cheia de sardas produzidas pelo sol e cicatrizes causadas por enganos de cálculo. Os óculos grossos que usava aumentavam os olhos e lhe davam um aspecto similar ao de suas presas. Seus subordinados provavelmente o chamavam de A Mosca às suas costas.


Bosch explicou a Edson que estava trabalhando em um caso de homicídio e que não podia entrar em muitos detalhes porque a investigação era de caráter altamente confidencial. Advertiu-lhe que outros investigadores podiam voltar com mais perguntas e em seguida pediu um pouco de informação geral sobre a criação e transporte de moscas estéreis com a esperança de que, apelando a sua condição de perito, o burocrata se sentisse mais inclinado a falar. Edson respondeu com mais ou menos a mesma informação que Teresa Corazón já tinha lhe dado, mas Bosch fez ver que não sabia e tomou notas.


— Este é o espécime, detetive, anunciou Edson ao mesmo tempo que levantava um peso de papéis. Tratava-se de um bloco de vidro em que a mosca tinha ficado presa eternamente, como uma formiga pré-histórica no âmbar. Bosch concordou, mas imediatamente desviou o tema da conversa para Mexicali. O entomólogo informou que a empresa contratada pelo governo americano no tal povoado era uma companhia chamada EnviroBreed, que enviava ao centro de erradicação um carregamento de umas trinta milhões de moscas por semana.

— Como chegam até aqui? Perguntou Bosch.

— Na etapa pupal, claro.

— Claro. Mas minha pergunta era como.

— A etapa pupal é aquela em que o inseto não se alimenta, nem se move. É o que nós denominamos de fase de transformação entre larva e imago, quer dizer, inseto adulto. A operação funciona muito bem porque é o momento ideal para o transporte. As pupas vêm em uma espécie de chocadeiras: o que nós denominamos caixas-estufa. E logo depois que chegam aqui, a metamorfose finaliza e estão prontas para serem soltas.

— Então quando chegam aqui, já foram pintadas e irradiadas?

— Correto.

— E estão em seu estado pupal, não larval?

— Diz-se larval, mas sim, a ideia é basicamente correta.


Bosch começava a pensar que Edson era basicamente um pedante insuportável. Já não tinha nenhuma dúvida de que deviam chamá-lo de A Mosca.


— Certo, disse Harry. — E se eu encontrasse aqui, em Los Angeles, uma larva que tivesse sido pintada mas não irradiada? Seria possível?


Edson ficou em silêncio um momento. Não queria se precipitar e dizer algo absurdo. Bosch suspeitava que era o tipo de pessoa que a cada tarde via os concursos de cultura geral na televisão e se apressava a gritar as respostas antes dos concursantes. Embora estivesse sozinho em casa.


— Bem, detetive, qualquer situação é possível. Mas eu diria que sua hipótese é muito improvável. Como já disse, nossos fornecedores passam os pacotes de pupas por uma máquina de radiações antes de enviá-las para cá. Nos envios frequentemente encontramos larvas mescladas com as pupas porque é quase impossível separar as duas. Mas estes espécimes larvais sofreram a mesma radiação que as pupas. Assim não; não acredito que seja possível.

— Quer dizer, que se tiver encontrado uma só pupa, pintada mas não irradiada, no corpo de uma pessoa, essa pessoa não poderia ser daqui, não é?

— Não, não acredito.

— Não acredita?

— Não. Estou certo de que não seria daqui.

— Então de onde poderia ser?


Edson voltou a considerar sua resposta, enquanto ajustava os óculos sobre o nariz com a borracha de um lápis com que estivera brincando.


— Suponho que essa pessoa está morta, por você ser um detetive de homicídios e não poder perguntar à pessoa em questão, por razões evidentes.

— Supõe corretamente, senhor Edson.

— Doutor Edson. Bem, não tenho ideia de onde poderia ter recolhido um espécime assim.

— Poderia ser num dos criadores que você mencionou, no México ou no Havaí, não é?

— Sim, é uma possibilidade. Uma delas.

— E qual é a outra?

— Bem, senhor Bosch. Já viu você a segurança que temos aqui. Para lhe ser sincero, direi que muita gente da região não está de acordo com o que fazemos. Alguns extremistas acreditam que a natureza deveria seguir seu curso. Segundo eles, se as moscas vierem ao sul da Califórnia, quem somos nós para erradicá-las? Há quem acredite que não temos nenhum direito. Inclusive houve ameaças de alguns grupos; anônimas, mas ameaças reais. Estes grupos ameaçaram criar moscas não estéreis e soltá-las para provocar uma praga maciça. Se eu fosse fazer isso, talvez as tingisse para confundir o meu inimigo.


Edson estava satisfeito de sua teoria, mas Bosch não estava convencido. Não encaixava com os fatos. Harry concordou, dando a entender a Edson que a consideraria e em seguida perguntou:


— Diga-me, como chegam os envios até aqui? Por exemplo, do lugar de Mexicali que as criam.


Edson respondeu que no criadeiro empacotavam milhares de pupas em tubos de plástico como salsichas de uns dois metros de comprimento. Os tubos eram colocados em caixas de papelão que continham chocadeiras e umidificadores. Estas caixas-estufa eram seladas na EnviroBreed sob estrita observação de um inspetor do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Depois eram transportadas por caminhão através da fronteira e em seguida para o norte, até Los Angeles. Os envios da EnviroBreed chegavam duas ou três vezes por semana, dependendo da quantidade de produto disponível.


— As caixas não são inspecionadas na alfândega? Inquiriu Bosch.

— Inspecionam, mas não abrem porque poderiam pôr o produto em perigo. Como compreenderá, cada caixa tem uma temperatura e um entorno cuidadosamente controlado. Mas, como lhe disse, as caixas são seladas sob a vigilância de inspetores do governo e em seguida voltam a serem examinadas quando rompemos os selos no centro de erradicação para ter certeza de que não foram manipuladas. Na fronteira, as autoridades alfandegárias verificam o número dos selos e as caixas com o conhecimento de embarque e nossa própria notificação de transporte. É uma supervisão à fundo, detetive Bosch. O sistema de segurança foi discutido nas mais altas esferas.


Bosch não disse nada. Não ia debater a segurança do sistema, mas se perguntou quem o tinha desenhado nas mais altas esferas: os cientistas ou as autoridades alfandegárias.


— Se tivesse que ir lá, até Mexicali, poderia me colocar na EnviroBreed?

— Impossível, respondeu Edson rapidamente. — Precisa lembrar que são fornecedores particulares. Nós conseguimos as moscas de uma empresa de propriedade privada. Contamos com um inspetor do Departamento de Agricultura em cada fábrica e de vez em quando gente como eu, entomólogos estatais, realizamos visitas de caráter rotineiro, mas não podemos ordenar que abram as portas à polícia ou a quem quer que seja, sem infringir nosso contrato. Em outras palavras, detetive Bosch, me diga o que têm feito e eu lhe direi se posso colocá-lo na EnviroBreed.


Bosch não respondeu. Queria contar a Edson o menos possível, assim mudou de tema.


— Essas caixas-estufa onde vêm os tubos com os insetos, são muito grandes?

— Bem, são de um tamanho considerável. Normalmente as transportamos mediante uma empilhadeira.

— Pode me mostrar uma? Edson consultou o relógio.

— Suponho que sim, embora não sei se já chegou alguma.


Bosch se levantou para obrigá-lo a se mexer e finalmente Edson fez o mesmo. Levou Bosch por outro corredor, passando adiante de mais salas e laboratórios que antigamente tinham sido celas para doentes mentais, viciados e abandonados. Harry lembrou de uma vez em que, sendo patrulheiro, tinha caminhado por esse mesmo corredor acompanhando uma mulher que prendera em Mount Fleming quando escalava a estrutura metálica que sustenta o primeiro O das letras de HOLLYWOOD. A mulher trouxera uma corda de náilon com a qual planejava se enforcar. Anos mais tarde leu no jornal que, depois de sair do hospital estatal Patton, voltara para as letras e levara a cabo o trabalho que ele tinha interrompido.


— Deve ser duro, comentou Edson. — Trabalhar em Homicídios. Bosch respondeu o que sempre respondia quando as pessoas lhe diziam isso.

— Não está tão mal. Ao menos as vítimas com as quais eu trabalho pararam que sofrer. Edson não disse mais nada.


O corredor terminava em uma enorme porta de aço. Edson abriu-a e ambos passaram a uma área de carga e descarga em um edifício parecido a um hangar. A uns dez metros havia meia dúzia de operários, todos hispanos, que colocavam algumas caixas de plástico branco sobre plataformas com rodas e empurravam-nas através de portas para o outro lado da área de descarga. Bosch observou que todas as caixas eram aproximadamente do tamanho de um ataúde.


Uma pequena empilhadeira descarregava as caixas de uma caminhonete branca. No lateral da caminhonete se lia "EnviroBreed" pintado em letras azuis. A porta do motorista estava aberta e um homem branco supervisionava o trabalho. Na parte traseira do veículo outro homem branco se inclinava para verificar os números dos selos de cada uma das caixas e tomava notas em uma caderneta.


— Estamos com sorte, disse Edson. — Uma entrega. As caixas-estufa são levadas ao nosso laboratório onde se completa o processo de metamorfose. Edson assinalou as portas abertas da garagem. Do lado de fora havia seis caminhonetes laranjas estacionadas em fila. — Depois colocamos as moscas adultas em cubos tampados e empregamos nossa própria frota para levá-las às áreas de ataque. Agora mesmo nosso objetivo é uma área de uns duzentos e cinquenta quilômetros quadrados. Cada semana soltamos umas cinquenta milhões de moscas estéreis ou mais, se pudermos. As estéreis serão maioria e a raça se extinguirá.


Bosch notou um ar triunfal na voz do entomólogo.


— Quer falar com o motorista da EnviroBreed? Sugeriu Edson. — Estou certo que ele...

— Não, respondeu Bosch. — Só queria saber um pouco de como funciona. Doutor, agradeceria muito que não dissesse nada sobre minha visita.


Enquanto dizia isto, Bosch notou que o motorista da EnviroBreed olhava-o fixamente. O homem era muito moreno, tinha o rosto enrugado e o cabelo branco, usava um chapéu de palha e fumava um cigarro. Bosch devolveu o olhar compreendendo que o tinham calado. Por um momento inclusive pareceu distinguir um ligeiro sorriso no rosto do motorista, mas o homem finalmente desviou o olhar e voltou a supervisionar o processo de descarga.


— Posso fazer algo mais por você, detetive? Inquiriu Edson.

— Não, doutor. Obrigado por sua cooperação.

— Estou certo de que não terá problemas em encontrar a saída.


Edson deu meia volta e desapareceu pela porta de aço. Harry colocou um cigarro na boca, mas não o acendeu. Espantou uma nuvem de moscas, certamente parasitas da fruta, desceu as escadas da área de descarga e saiu pelas portas da garagem.


Em seu caminho de volta ao centro, Bosch decidiu tirar um peso de cima e enfrentar Teresa. Ao chegar ao estacionamento do hospital da universidade, passou um dez minutos procurando um espaço onde o Caprice coubesse. Finalmente encontrou um ao fundo, na parte do estacionamento que fica elevado, com vistas à velha estação de manobras da ferrovia. Harry permaneceu no carro uns instantes para pensar no que ia dizer, enquanto fumava e olhava os velhos vagões. Um grupo de rapazes hispanos vestidos com as típicas camisetas enormes e calças largas caminhava por entre as vias enferrujadas. Um deles, que levava um aerossol, se atrasou um pouco para fazer uma pintura em um dos vagões. Embora em espanhol, Bosch entendeu-a. Era o lema da turma, sua filosofia de vida: RIA AGORA E CHORE DEPOIS.


Bosch observou-os até que desapareceram por trás de outra fileira de vagões. Finalmente saiu do carro e entrou na morgue pela porta de trás, onde recebem as entregas. Um guarda de segurança deixou-o passar ao ver seu distintivo. Aquele era um bom dia na morgue. O aroma de desinfetante tinha ganho a batalha do aroma de morte. Harry passou adiante das câmaras refrigeradas número um e dois, e chegou nas escadas que levavam para as salas de administração no segundo andar.


Bosch perguntou a secretária do legista-chefe se podia ver a doutora Corazón. A mulher, cuja pele pálida e cabelo rosáceo faziam-na parecer um dos clientes do lugar, consultou-o por telefone e finalmente deixou-o entrar. Teresa estava de pé atrás de sua mesa, olhando pela janela. Dali desfrutava da mesma vista das vias mortas de ferrovia que Bosch tivera; pode ser que inclusive o tivesse visto chegar. Mas do segundo andar, se via uma panorâmica que ia dos arranha-céus do centro da cidade ao monte Washington. Bosch notou nos claros onde se viam os arranha-céu na distância. Também fazia bom dia fora da morgue.


— Não penso falar consigo, anunciou Teresa sem se voltar.

— Vamos, mulher.

— Não.

— E por que me deixou entrar?

— Para dizer que não penso falar consigo, que estou de saco cheio e que certamente você acabou com a minha oportunidade de ser legista-chefe.

— Vamos, Teresa. Ouvi que tem uma reunião com imprensa nesta tarde. Tudo sairá bem.


Não sabia que mais o que dizer. Ela se voltou, se apoiou no batente da janela e lançou um olhar fulminante. A Bosch chegou o aroma de seu perfume do outro lado da sala.


— Preciso agradecer pela reunião de imprensa.

— A mim não. Soube que foi Irving que convocou-a...

— Não brinque comigo. Nós dois sabemos o que fez com o que lhe contei e nós dois sabemos que esse idiota do Irving deduziu automaticamente que eu o dedurei à imprensa. Agora sim acabou a minha oportunidade de ser chefa. Note bem nesta sala, Harry, porque é a última vez que me vê aqui.


Bosch tinha observado que muitas das mulheres profissionais que conhecia, sobretudo policiais e advogadas, ficavam grosseiras quando discutiam. Perguntou-se se o faziam para ficar ao mesmo nível que os homens com os que estavam lutando.


— Tudo sairá bem, repetiu Harry.

— De que merda está falando? Irving só precisa contar aos da comissão que passei informação confidencial para que me descartem totalmente para o posto.

— Olhe, Irving não pode estar certo de que foi você e aposto que acredita que fui eu. Eu e Bremmer, o cara do Times que removeu tudo, somos amigos há tempos. Irving sabe, assim pare de se preocupar. Vim para saber se queria ir almoçar... Bosch viu que ela se avermelhava de raiva.

— Almoçar? Está brincando comigo? Acaba de me dizer que você e eu somos os dois únicos suspeitos e quer que nos vejam juntos em um restaurante? Sabe o que poderia...?

— Teresa, que tenha uma boa reunião de imprensa, interrompeu Bosch. Dito isto, deu meia volta e saiu da sala.


A caminho ao centro, o pager de Bosch começou a soar; era a linha direta de Noventa e Oito. Harry supôs que continuaria preocupado com as estatísticas. Decidiu não fazer caso do aviso e também desligou o rádio do carro.


Na Alvarado Street parou diante de um posto ambulante de comida mexicana e pediu dois tacos de camarões-rosa. Serviram-nos em tortilhas de milho, no estilo da Baixa Califórnia, e Bosch notou o forte sabor a coentro do molho. A poucos metros do posto havia um homem recitando de cor versos da Bíblia. Sobre a cabeça tinha um copo de água que não derramava porque descansava comodamente em seu penteado afro estilo anos setenta. De vez em quando pegava o copo e tomava um gole de água sem parar de pular de um livro a outro do Novo Testamento. Antes de cada recitação, o homem dava a seus ouvintes o capítulo e versículo como referência. A seus pés havia um aquário de vidro com moedas. Quando terminou de almoçar, Bosch pediu uma Coca-cola e jogou a chapinha no aquário. Em troca recebeu um "Deus lhe salve".


* * *


Quinze

AS DEPENDÊNCIAS do condado ocupavam todo o edifício em frente aos tribunais. Nos primeiros seis andares ficavam os escritórios do xerife e nos quatro acima, a cadeia do condado. Aquela divisão era evidente de fora; não só pelas barras das janelas, mas também porque os quatro andares superiores apresentavam um aspecto queimado e abandonado. Parecia como se todo o ódio e a fúria contidos naquelas celas sem ar condicionado se transformara em fogo e fumaça, enegrecendo para sempre as janelas e balaustradas de cimento.


A construção datava de finais do século e os enormes blocos de pedra lhe davam uma aparência ominosa, como uma fortaleza. Era um dos poucos edifícios do centro que ainda tinha ascensoristas. Em um canto de cada um dos cubículos com painéis de madeira se sentava uma velha negra que abria as portas e operava a roda que nivelava o elevador com o chão de cada andar.


— Ao "sete mil", pediu Bosch para a ascensorista quando entrou. Fazia tempo que não ia lá, e esquecera o nome dela. Não obstante, sabia que a mulher, como todas as demais, trabalhava nos elevadores desde antes que Harry fosse policial. Assim que ela abriu a porta no sexto andar, Bosch viu Rickard. O policial antidrogas estava junto do vidro de recepção, colocando seu distintivo em uma bandeja.


— Olá, disse Bosch e rapidamente adicionou seu distintivo.

— Venha comigo, disse Rickard.


No outro lado do vidro, o ajudante do xerife trocou os distintivos por dois passes de visitante que passou através da bandeja. Bosch e Rickard prenderam-nos nas camisas. Bosch notou em que os passes davam direito a visitar a galeria "Alta Voltagem" no décimo andar. "Alta Voltagem" era onde colocavam os suspeitos mais perigosos enquanto esperavam julgamento ou serem enviados às prisões estatais depois de veredictos de culpa. Bosch e Rickard se dirigiram ao elevador da prisão.


— Colocou o garoto na "Alta Voltagem"? Perguntou Bosch.

— Sim. Conheço um cara aí dentro e disse que só necessitaríamos de um dia. O garoto ficará aterrorizado e contará tudo o que quiser sobre Dance.


Bosch e Rickard subiram no elevador de segurança, que nesta ocasião era operado por um ajudante do xerife. Bosch pensou que esse devia ser o pior posto dentro das forças da ordem. Quando a porta se abriu, receberam-nos outro ajudante, que verificou seus passes e os fez assinar. Depois atravessaram duas portas corrediças em trilhos de aço até uma área para receber advogados, que consistia em uma longa mesa dividida por um vidro de uns trinta centímetros e bancos de ambos os lados. No fundo da mesa estava sentada uma advogada, inclinada sobre o vidro e sussurrando a um cliente que colocara a mão em concha depois do ouvido para escutar melhor. Os músculos dos braços do detento estavam a ponto de arrebentar as mangas da camisa. Era um monstro.


Na parede, atrás deles, havia um poster que dizia: "Proibido tocar, beijar ou passar algo por cima do vidro". E apoiado na parede oposta havia outro ajudante com seus enormes braços cruzados. Estava vigiando à advogada e o seu cliente. Enquanto esperavam que os ajudantes do xerife trouxessem Tyge, Bosch reparou no ruído da prisão. Através da porta de grades que havia atrás da mesa de visitas, centenas de vozes competiam e ressonavam por todo o edifício. De vez em quando se ouviam batidas nas portas de aço e algum que outro grito indecifrável. Um ajudante do xerife se aproximou da grade e disse:


— Demorará uns minutos. Precisamos ir buscá-lo na enfermaria.


Antes que algum dos dois perguntasse o que acontecera, o ajudante já partira. Bosch nem sequer conhecia o garoto, mas sentiu que o estômago se encolhia. Quando olhou para Rickard, descobriu que estava sorrindo.


— Agora veremos como as coisas andaram, comentou o policial de narcóticos.


Bosch não compreendia o prazer que Rickard tirava disso. Para Bosch, aquilo era o pior de seu trabalho: tratar com gente desesperada e empregar táticas desesperadas. Ele estava ali porque tinha que estar; era seu caso. Mas não entendia por que Rickard estava ali.


— Por que está fazendo isto? O que quer? Rickard olhou-o nos olhos.

— O que eu quero? Quero saber o que está acontecendo. E acredito que você é a única coisa que pode descobrir. Por isso, se puder ajudar, vou ajudar. Se custar a honra deste garoto, que custe. O que quero saber é o que está acontecendo. O que Cal fez e o que vai fazer o departamento à respeito?


Bosch se inclinou para trás e tentou pensar uns instantes no que dizer. De repente ouviu que o monstro do outro extremo da mesa elevava o tom de voz e dizia algo sobre não aceitar a oferta. O ajudante do xerife deu um passo ameaçador para ele, deixando cair os braços nos flancos. O detento se calou. O ajudante tinha arregaçado as mangas para mostrar seus impressionantes bíceps e, no braço esquerdo, Bosch viu as letras C e L, quase como uma marca de ferro candente sobre a pálida pele. Harry sabia que, publicamente, os ajudantes que usavam essa tatuagem pretendiam que ela indicasse Clube Lynwood, a delegacia de um subúrbio de Los Angeles que era famoso pelas brigas entre gangues de ruas. Mas sabia que as letras também se referiam a "chango lutador" e que chango era o nome que davam aos macacos no México. O ajudante fazia parte de uma gangue, embora essa fosse sancionada legalmente para andar armada e a salário do condado.


Bosch afastou os olhos. Desejava acender um cigarro, mas o condado aprovara uma lei que proibia fumar nos edifícios públicos, inclusive na cadeia. Obviamente, aquilo quase tinha provocado um motim dos detentos.


— Olhe, explicou a Rickard. — Não sei o que lhe dizer de Moore. Estou me dedicando ao caso, embora não totalmente. Cruza com dois casos que tenho, assim é inevitável. Se este garoto puder me levar a Dance, ótimo, porque o cara está relacionado com duas das minhas investigações e pode ser inclusive que esteja com o de Moore. Mas ainda não sei. O que eu sei com certeza, e isso se fará público hoje, é que a morte de Moore parece ser homicídio. O que o departamento não vai declarar é que Moore se passou para o outro lado. Essa é a razão pela qual Assuntos Internos o estava seguindo.

— Não pode ser, disse Rickard, com pouca convicção. — Eu saberia.

— Não se pode conhecer as pessoas tão bem, cara. Cada pessoa é um mundo.

— E o que está fazendo Parker Center?

— Não sei. Não acredito que saibam o que fazer. Antes queriam que passasse por suicídio, mas a legista se impôs e agora chamam de homicídio. Mas não acredito que joguem a roupa suja na rua para benefício dos jornalistas.

— Pois é melhor que esclareçam. Eu não vou ficar com os braços cruzados. Não me importa se Moore se passou para o outro lado; era um bom policial. Eu o vi fazer coisas, como entrar em um antro de drogados e enfrentar sozinho a quatro camelos. Vi-o se interpor entre um cafetão e sua propriedade, receber o murro que ia dirigido a ela, e perder um dente. Eu estava ali quando ultrapassou nove semáforos para tentar levar um pobre drogado ao hospital antes que morresse de overdose. Rickard fez uma pausa. — Todas essas coisas um policial corrupto não faz. Por isso digo que se ele passou ao outro lado, acredito que estava tentando voltar para este lado e que alguém o matou.


Rickard parou aí, e Bosch não quebrou o silêncio. Os dois estavam conscientes de que uma vez que se passa para o outro lado não se pode voltar. Enquanto refletia sobre isso, Bosch ouviu passos que se aproximavam.


— É bom que estejam fazendo algo em Parker Center, concluiu Rickard. — Ou vão se ferrar.


Bosch quis dizer algo, mas o ajudante já tinha chegado com Tyge. O garoto parecia ter envelhecido uns dez anos nas últimas dez horas. Agora possuía um olhar distante que para Bosch lembrava os homens que tinha visto e conhecido no Vietnã. Também tinha um arroxeado na maçã do rosto esquerdo. A porta se abriu mediante um mecanismo eletrônico e o menino-homem se dirigiu ao banco que o ajudante do xerife indicou. Tyge se sentou com cuidado e parecia evitar o olhar de Rickard.


— Como vai, Kerwin? Perguntou Rickard.


O garoto elevou os olhos e, ao vê-los, Bosch sentiu que se fazia um nó em seu estômago. Lembrou-se da primeira noite que passara no refúgio para jovens McLaren quando era garoto. Lembrou-se do intenso pânico e dos gritos de solidão. E ali estava rodeado de jovens, a maioria não violentos. Esse garoto tinha passado as últimas dez horas entre animais selvagens. Bosch se sentia envergonhado de fazer parte de tudo aquilo, mas não disse nada. Agora tocava a Rickard agir.


— Olhe, garoto, certamente não está passando muito bem aqui dentro. Por isso viemos; para ver se mudou de opinião sobre o que falamos ontem à noite.


Rickard falava muito baixo para evitar que o monstro do outro extremo da mesa ouvisse. Como o garoto não dizia nada e não dava sequer mostras de tê-lo ouvido, Rickard continuou pressionando.


— Kerwin, quer sair daqui? Pois este é o homem, o senhor Harry Bosch. Apesar de que o pescamos com a mão na massa, o senhor Bosch o soltará se nos contar sobre Dance. Olhe.


Rickard tirou um papel de dentro do bolso da camisa. Era um impresso sem preencher do escritório do promotor do distrito.


— Tenho quarenta e oito horas para denunciá-lo. Com o fim de semana, isso quer dizer que tenho até segunda-feira. Aqui estão seus papéis; não fiz nada ainda porque queria voltar a perguntar mais uma vez se quer ajudar a si mesmo. Se não, vou denunciá-lo e esta será sua casa durante os próximos... Bem, acredito que no mínimo um ano.


Rickard esperou, mas não aconteceu nada.


— Um ano. Como acha que estará depois de um ano aqui dentro, Kerwin? O garoto baixou a cabeça um momento e as lágrimas começaram a sulcar suas bochechas.

— Vá pro inferno, conseguiu dizer com uma voz trêmula.


Bosch já estava nele; lembraria disso durante muito tempo. Deu-se conta de que estava apertando os dentes e tentou relaxar a mandíbula. Mas não conseguiu. Rickard se inclinou para dizer algo ao garoto, mas Bosch lhe pôs a mão no ombro.


— Solte-o, disse Bosch.

— O quê?

— Que vamos deixá-lo ir.

— Que merda está falando?


Apesar de que o garoto olhasse para Bosch com uma expressão de ceticismo, não se tratava de um truque. Harry estava com asco do que tinham feito.


— Um momento, exclamou Rickard. — O moleque trazia em cima meio litro do PCP. É meu. Se não quer nos ajudar, que se foda; vai voltar para zoológico.

— Não. Então Bosch se aproximou de Rickard para que o ajudante do xerife não pudesse ouvir. — Não vai voltar. Vamos tirá-lo daqui. Vamos, faça-o ou vou lhe arrancar o pelo.

— O que disse?

— Que vou denunciá-lo ao quinto andar. Este garoto não deveria ter vindo para cá, assim é sua culpa. Apresentarei uma denúncia e seu amiguinho daqui dentro também ficará envolvido, ameaçou Bosch. — Quer que faça isso? Só porque não conseguiu fazer o garoto falar?

— Acha que Assuntos Internos se importará com este camelo de merda?

— Não, mas você se importará. Adorará. Se insistir; sairá caminhando mais devagar do que esse garoto.


Harry se afastou dele. Ninguém disse nada durante uns segundos e Bosch viu que Rickard estava pensando cuidadosamente, tentando decidir se o detetive estava bravateando.


— Não imagino um cara como você indo a Assuntos Internos.

— Se arrisca a isso. Rickard olhou o papel que tinha na mão e começou a amassá-lo-lo lentamente.

— Certo, cara, mas é melhor que me ponha em sua lista, avisou Rickard.

— Em que lista?

— A das pessoas que precisará vigiar. Bosch se levantou e Rickard fez o mesmo.

— Vamos soltá-lo, disse Rickard ao guarda. Bosch apontou o garoto e ordenou:

— Quero que escoltem o garoto até que saia daqui, certo? O ajudante concordou. O garoto não disse nada.


Demoraram uma hora para tirá-lo dali. Depois de que Rickard assinasse os papéis correspondentes e recolhesse os distintivos, esperaram em silêncio junto ao guichê do sétimo andar. Bosch estava enojado consigo mesmo. Tinha perdido de vista a arte de sua profissão. Resolver casos era conseguir que a gente falasse; não forçá-los a falar. Naquela ocasião esquecera.


— Pode ir se quiser, disse a Rickard.

— Assim que o garoto sair por essa porta, vou embora. Não quero ter nada a ver com ele. Mas quero vê-lo sair consigo, Bosch. Não confio em você.

— Ainda tem muito que aprender, Rickard. Nem tudo é branco e preto. Nem todo mundo merece ser pisoteado. Pegue um garoto como esse...

— Economize o sermão, Bosch. Pode ser que tenha muito a aprender, mas não será de você. Você é um fracassado de primeira. A única coisa que pode me ensinar é como cair. Não, muito obrigado.

— De nada, respondeu Bosch, e foi sentar num banco do outro lado da sala. Quinze minutos mais tarde o garoto saiu e caminhou para o elevador entre o Rickard e Bosch. Uma vez fora do edifício, Rickard disse a Bosch:

— Vá tomar no cu.

— Muito bem, respondeu Bosch. Rickard se afastou, enquanto Bosch ficava na calçada. Então acendeu um cigarro e ofereceu outro ao jovem, mas este o rechaçou.

— Não vou contar nada, avisou o garoto.

— Já sei. Quer que o leve a algum lugar? A um médico? A Hollywood?

— A Hollywood.


Caminharam até o carro de Bosch que estava estacionado a duas quadras de Parker Center e de ali pegaram a Third Street em direção a Hollywood. Estavam a meio caminho quando Bosch quebrou o silêncio.


— Onde mora? Onde prefere que o deixe?

— Em qualquer lugar.

— Não tem casa?

— Não.

— Família?

— Não.

— O que vai fazer?

— Dá na mesma. Harry pegou a Western. Permaneceram em silêncio uns quinze minutos mais, até que Bosch parou diante do Hideaway.

— O que é isto? Perguntou o jovem.

— Espere aqui. Volto agora mesmo.


Na recepção, o diretor do motel tentou alugar para Bosch o quarto número sete, mas Harry mostrou o distintivo e lhe disse que nem pensar. O diretor, que usava a mesma camiseta suja e os suspensórios, lhe deu a chave do quarto número treze. Bosch retornou ao carro e entregou a chave ao garoto. Também tirou sua carteira.


— Tem um quarto alugado por uma semana, informou. — Já sei que não vai me levar a sério, mas o meu conselho é que tire uns dias para pensar e que em seguida se afaste para o mais longe que puder desta cidade. Há melhores lugares para viver.


O garoto olhou a chave que estava na palma de sua mão. Então Bosch lhe deu todo o dinheiro que tinha, que eram só quarenta e três dólares.


— Aluga um quarto, me dá dinheiro e acha que vou falar? Vi na televisão, cara. Foi tudo uma montagem, você e esse cara.

— Não me interprete mal, garoto. Estou fazendo isto porque acredito que é o que preciso fazer. Isso não significa que está bem. Se voltar a vê-lo na rua, asseguro que acabarei com você. Isto é só uma última oportunidade. Faça com ela o que quiser. Pode ir. Não é uma montagem. O garoto abriu a porta e saiu, mas se voltou para Bosch.

— Então, por que o faz?

— Não sei. Suponho que porque você o mandou ao inferno, algo que eu deveria ter feito. Preciso ir. O garoto olhou-o um momento antes de falar.

— Dance foi embora. Não sei porque estão todos preocupados com ele.

— Olhe, garoto, eu não fiz...

— Eu sei. Harry ficou olhando. — Caiu fora, cara. Disse-nos que o contato havia pirado e desceu para voltar a remontar todo o sistema. Suponho que ele quer passar a ser o contato.

— Desceu?

— Para o México, mas não sei de mais nada. Por isso eu estava vendendo sherms.


O garoto fechou a porta do carro e desapareceu pelo pátio do motel. Bosch ficou lá sentado, pensando, e a pergunta de Rickard voltou para a cabeça. Onde estaria o garoto dentro de um ano? Então se lembrou que ele mesmo se hospedara em motéis deste tipo durante anos. Bosch conseguira; tinha sobrevivido. Convencido de que sempre existia a possibilidade de escapar, Harry ligou o carro e partiu.


* * *


Dezesseis

A CONVERSA com o garoto decidira-o. Bosch iria ao México. Todos os raios da roda apontavam para o centro e o centro era Mexicali, algo que fazia tempo que suspeitava. Enquanto Bosch dirigia até a delegacia de Wilcox, tentou pensar numa estratégia. Deveria entrar em contato com Águia, o agente da Polícia Judicial do Estado que enviara a carta ao consulado. Também deveria falar com a DEA, que proporcionara a Moore a informação sobre o gelo negro. Certamente precisaria da permissão de Pounds para ir ao México, o que poderia pôr fim a todos seus planos.


Na delegacia, a mesa de Homicídios estava vazia. Eram mais das quatro da tarde de uma sexta-feira e, para cúmulo, de um fim de semana com feriado. Se não aparecessem novos casos, os detetives terminariam o quanto antes e voltariam para casa encontrar suas famílias ou suas vidas fora do trabalho. Pounds era um dos poucos que ficavam no escritório. Bosch o viu, cabisbaixo, no aquário. Estava escrevendo numa folha e usando uma régua. Harry sentou e repassou uma pilha de papeizinhos rosas que estavam sobre a mesa; eram mensagens, mas nenhuma urgente. Duas eram de Bremmer sob o pseudônimo Jon Marcus: um código que inventaram para que não se soubesse que o jornalista do Times ligara para Bosch. Havia um par de mensagens do promotor do distrito que estava tramitando dois dos casos de Harry; certamente precisava de algum dado ou prova. Também Teresa ligara, mas Bosch viu que a hora da nota era anterior a sua conversa dessa manhã; ela devia ter ligado para dizer que não queria falar com ele. Não havia nenhuma mensagem de Porter nem da Sylvia Moore.


Bosch tirou a cópia da folha enviada de Mexicali que Capetillo lhe dera, o detetive de pessoas desaparecidas, e discou o número de Carlos Águia, que acabou sendo o do posto telefônico do escritório da Polícia Judicial do Estado. Apesar de sua recente visita ao México, Bosch não falava muito bem espanhol então demorou uns cinco minutos para que o passassem à unidade de investigação para poder conversar com Águia. Em que pese a tudo, não conseguiu falar com ele. Em seu lugar encontrou um capitão que falava inglês e contou que Águia saíra, mas que voltaria mais tarde e também trabalharia no sábado. Bosch sabia que no México os policiais trabalhavam seis dias por semana.


— Posso ajudar? Perguntou o capitão.


Bosch explicou que estava investigando um homicídio e ligava em resposta a uma solicitação de informação que Águia enviara ao consulado mexicano de Los Angeles. O capitão disse que conhecia o tema porque tinha tramitado a denúncia do desaparecimento antes de passar o caso a Águia. Bosch perguntou se haveriam impressões digitais para confirmar a identificação do corpo, mas o capitão respondeu que não. "Um ponto para Capetillo", pensou Bosch.


— Têm uma fotografia do cadáver? Sugeriu o capitão. — Nós podemos levá-la a família do senhor Gutiérrez-Llosa para que o identifique.

— Sim, tenho fotos. A carta dizia que Gutiérrez-Llosa era um operário, não é?

— Sim, ia procurar trabalho diariamente no Círculo, onde as companhias contratam os jornaleiros. Debaixo da estátua de Benito Juárez.

— Sabe se trabalhou em uma empresa chamada EnviroBreed? Têm um contrato com o estado da Califórnia. Houve um longo silêncio antes que o mexicano respondesse.

— Não sei. Não conheço seu histórico trabalhista. Anotei e informarei o investigador Águia assim que voltar. Se você enviar as fotografias agiremos o mais rápido possível para obter uma identificação. Eu me encarregarei pessoalmente de acelerar os trâmites e de ligar para você. Nessa ocasião foi Bosch quem ficou calado.

— Perdoe, capitão, não tenho seu nome.

— Gustavo Grenha, diretor de investigações de Mexicali.

— Capitão Grenha, poderia dizer a Águia que receberá as fotos amanhã?

— Tão rápido?

— Sim. Diga-lhe que eu mesmo vou levá-las.

— Investigador Bosch, não precisa. Acredito que...

— Não se preocupe, capitão Grenha, interrompeu Bosch. — Diga-lhe que estarei aí amanhã de tarde.

— Como você quiser.


Bosch agradeceu e desligou. Ao elevar a vista, descobriu que Pounds o observava através do vidro de sua sala. O tenente levantou o polegar e as sobrancelhas como perguntando se tudo ia bem. Harry desviou o olhar. "Um jornaleiro", pensou. Fernal Gutiérrez-Llosa era um jornaleiro que ia procurar trabalho a quem sabe que demônios de círculo. Como encaixava um jornaleiro em todo o assunto? Talvez fosse um correio que passava gelo negro pela fronteira. Ou possivelmente não fizera parte da operação de contrabando. Talvez não tenha feito nada para que o matassem exceto estar onde não devia ou ver algo que não queriam que visse.


Bosch só possuía as partes de um todo; o que precisava era a cola que as unia. Quando recebeu a placa dourada de detetive, um colega da mesa de Roubos de Van Nuys dissera que o mais essencial de uma investigação não eram os fatos, a não ser a "cola". E segundo ele, esta era composta de instinto, imaginação, um pouco de especulação e um muito de sorte.


Duas noites antes, Bosch analisara o fatos encontrados no quarto de um motel e daí inferira que se tratava de um suicídio. Mais tarde soube que estava errado. Quando considerou os fatos de novo, assim como todos outros dados que recolhera, viu que o assassinato do policial era mais um de uma série de assassinatos relacionados. Se Mexicali era o centro de uma roda com tantos raios, Moore era o parafuso que a segurava.


Bosch apanhou a agenda e procurou o nome do agente da DEA mencionado no relatório sobre drogas que Moore incluíra no arquivo Zorrillo. A seguir procurou o número da DEA em seu fichário rotatório e pediu que lhe pusessem com Curvo.


— Da parte de quem?

— Diga-lhe que é o fantasma de Calexice Moore. Um minuto mais tarde ouviu uma voz:

— Quem é?

— Curvo?

— Olhe, se quer falar, se identifique. Se não, desligo. Bosch se identificou. — Ouça, a que veio a brincadeirinha?

— Não importa. Quero falar consigo.

— Ainda não me deu uma razão.

— Quer uma razão? Certo. Amanhã pela manhã vou a Mexicali procurar Zorrillo. preciso da ajuda de alguém que saiba como está o rolo. E pensei que você, sendo a fonte de Moore...

— Quem disse que o conheço?

— Atendeu a minha ligação, não é? Também lhe passou informação da DEA. Disse-me ele.

— Bosch, eu trabalhei sete anos infiltrado. Está me contando uma mentira, não é? Pode tentar isso com os camelos de eightballs do Hollywood Boulevard. Talvez eles acreditem, mas eu não.

— Olhe, às sete estarei no Code 7, na parte de trás. Depois irei ao sul. Você escolhe; se vier, bem e se não, também.

— E se resolver ir, como o reconhecerei?

— Não se preocupe. Eu reconhecerei a você; será o cara que ainda está infiltrado.


Quando desligou, Harry levantou os olhos. Pounds estava rondando pela mesa de Homicídios, folheando o último relatório sobre crimes violentos, outro ponto negro para as estatísticas da divisão. Estas estavam crescendo a um ritmo muito mais alarmante que o resto dos delitos. Aquilo significava, não só que a delinquência estava subindo, mas também que os delinquentes estavam se tornando mais violentos. Bosch notou o pó branco que salpicava a parte superior das calças do tenente. Como aquilo ocorria com muito frequência, era motivo de brincadeira e especulação no escritório. Alguns detetives diziam que o chefe certamente cheirava coca mas que era tão idiota que a deixava cair. Isso era especialmente divertido porque Pounds se convertera a uma seita evangélica. Outros diziam que o pó misterioso vinha dos donuts açucarados que comia em segredo, depois de fechar as persianas de sua sala envidraçada. Bosch, entretanto, deduziu o que era assim que identificou o aroma que Pounds sempre desprendia. Segunde Harry, o tenente tinha o costume de se borrifar de talco pela manhã antes de colocar a camisa e a gravata, mas depois de colocar as calças. Pounds afastou o olhar do relatório e perguntou com um tom falso:


— Como vão os casos? Bosch sorriu de forma tranquilizadora e concordou com a cabeça, mas não disse nada. Queria fazê-lo suar um pouco. — Bem, o que andou descobrindo?

— Algumas coisas. Falou com Porter hoje?

— Porter? Não, por quê? Esqueça dele, Bosch. É um inútil; não pode ajudar. O que encontrou? Vejo que não escreveu nenhum relatório.

— Estive ocupado, tenente. Tenho algumas pistas sobre Jimmy Kapps e uma identificação e possível cenário do crime do último caso de Porter; o do tipo que jogaram em um beco do Sunset Boulevard na semana passada. Estou a ponto de descobrir quem o fez e por quê. Talvez descubra amanhã. Se não se importar, eu gostaria de trabalhar no fim de semana.

— Não há problema; tome o tempo que precisar. Agora mesmo assinarei a autorização para horas extras.

— Obrigado.

— Mas por que seguir tantos casos? Por que não escolhe o que seja mais fácil de resolver? Já sabe que precisamos fechar um.

— Porque acredito que os casos estão relacionados.

— Estão...? Pounds levantou a mão para que Bosch não dissesse nada. — É melhor que venha a minha sala.


Assim que o teve sentado atrás do vidro, Pounds pegou sua régua e começou a brincar com ela. Bosch se sentou frente a ele e, da sua cadeira, notou o aroma de talco.


— Certo, Harry. Que merda está acontecendo?


Bosch ia improvisar. Tentou que sua voz soasse como se tivesse provas irrefutáveis sobre o que dizia, embora na realidade havia muita especulação e pouca cola.


— A morte de Jimmy Kapps foi uma vingança. Ontem descobri que denunciara o seu competidor chamado Dance por vender gelo negro na rua. Pelo visto Jimmy não achara engraçado porque ele estava tentando dominar o mercado com seu gelo havaiano. Assim delatou Dance; dedurou-os aos garotos da Bang. O único problema é que o promotor desprezou o caso de Dance. O plano falhou; soltaram Dance e quatro dias mais tarde mataram Kapps.

— Certo, respondeu Pounds. — Parece lógico. Então Dance é o seu suspeito?

— Até que encontre algo melhor. Mas o cara desapareceu.

— Certo, e o que tem isso a ver com o caso Juan 67?

— Os da DEA dizem que o gelo negro que Dance estava vendendo vem de Mexicali. Estou esperando que a polícia estatal de lá abaixo me confirme a identificação. Parece que nosso Juan 67 era um cara chamado Gutiérrez-Llosa, de Mexicali.

— Um correio?

— Pode ser. Embora algumas coisas não encaixam nessa teoria. A polícia dali diz que era jornaleiro.

— Talvez decidiu ganhar mais algum. Muitos o fazem.

— Talvez.

— E você acha que o mataram para vingar a morte de Kapps?

— É possível.


Pounds concordou. "Até o momento, estou indo bem", pensou Bosch. Os dois permaneceram calados uns segundos. Pounds finalmente aclarou a garganta.


— É muito trabalho para dois dias, Harry. Muito bem, felicitou o tenente. — E agora o que vai fazer?

— Quero procurar Dance e confirmar a identificação de Juan 67... Bosch não terminou a frase. Não estava certo do quanto contar a Pounds, mas decidira omitir sua viagem a Mexicali.

— Mas disse que Dance desapareceu.

— Disseram-me Isso, mas não estou certo. Quero verificar neste fim de semana.

— Muito bem. Bosch decidiu abrir a porta um pouco mais.

— Ainda há mais, se quiser ouvir. É sobre Cal Moore.


Pounds depositou a régua sobre a mesa, cruzou os braços e se inclinou para trás. Aquela postura significava precaução. Estavam entrando em uma área em que as carreiras de ambos podiam sair prejudicadas para sempre.


— Estamos pisando em terreno escorregadio. O case Moore não é nosso.

— Não, e eu não o quero; já tenho estes dois casos. Mas não deixa de aparecer. Se você não quer saber de nada, eu vou compreender.

— Não, não. Quero que me conte. Simplesmente eu não gosto de... Confusões. Isso é tudo.

— Sim, confusão é uma boa palavra. Bem, como disse, a equipe Bang prendeu Dance. Moore não estava ali quando o prenderam, mas era sua gente. Bosch fez uma pausa. — E mais adiante foi Moore quem encontrou o corpo de Juan 67.

— Cal Moore encontrou o cadáver? Exclamou Pounds. — Isso não estava no relatório de Porter.

— Está seu número de identificação, explicou Bosch. — Ou seja, Moore encontrou o cadáver no beco, e portanto aparece nos dois casos. Um dia depois de encontrar Juan 67 no beco, Moore se registrou no motel onde lhe voaram a tampa dos miolos. Suponho que já sabe que Roubos e Homicídios agora diz que não foi suicídio. Pounds concordou, mas parecia aniquilado. Esperava o resumo de um par de investigações, mas não aquilo. — Também o mataram, continuou Bosch. — Aí tem os três casos: Kapps, em seguida Juan 67 e depois Moore. E Dance por aí, solto.


Bosch dissera o suficiente. Agora podia relaxar e deixar que a mente de Pounds entrasse em funcionamento. Ambos estavam conscientes de que a obrigação do tenente era ligar para Irving e pedir ajuda, ou ao menos orientação. Não obstante, isso definiria que Roubos e Homicídios ficasse com os casos de Kapps e Juan 67. E os idiotas tomariam seu tempo. Pounds não poderia fechar seus casos até várias semanas depois.


— E Porter? O que ele diz disto?


Bosch fazia todo o possível para não envolver Porter. Não sabia por quê. Porter passara a linha e mentira, mas no fundo Bosch continuava sentindo pena. Talvez pela sua última pergunta: "Harry, me ajudará?"


— Não encontrei Porter. Não atende ao telefone, mentiu. — Não acredito que teve muito tempo para resolver tudo isto. Pounds sacudiu a cabeça com desdém.

— Claro que não. Certamente estava bêbado. Bosch não disse nada. Tocava a Pounds decidir. — Ouça, Harry, não está... Está me dizendo tudo o que sabe, não é? Não posso me permitir tê-lo solto por aí como uma bala perdida. Contou-me tudo, não é?


O que Pounds queria dizer era: o que aconteceria se tudo isso saltasse pelos ares?


— Disse-lhe o que sei. Temos dois casos, três se contarmos o de Moore. Se quiser resolvê-los em seis ou oito semanas, escreverei um relatório para que envie a Parker Center. Se quer fechá-los antes de primeiro de janeiro, como disse, me deixe trabalhar os quatro dias.


Pounds cravou o olhar em algum lugar por cima da cabeça de Bosch, enquanto arranhava a orelha com a régua. Estava tomando uma decisão.


— Certo, confirmou. — Dedique o fim de semana para ver o que descobre. Veremos como estão as coisas na segunda-feira e, conforme estiverem, chamamos Roubos e Homicídios. Enquanto isso, quero que me informe de todos seus movimentos amanhã e domingo. Quero saber o que fez e o que descobriu.

— De acordo, respondeu Bosch.


Em seguida se levantou e se dispôs a sair. Então reparou em um crucifixo pequeno sobre a porta e se perguntou se isso seria o que Pounds estivera olhando. A gente dizia que o tenente era evangélico por motivos políticos; havia muitos na polícia. Todos pertenciam à mesma paróquia do vale de São Fernando porque o pregador laico era um dos subdiretores do departamento. Bosch imaginou a todos indo lá aos domingos de manhã e se congregando ao seu redor para dizer que era um grande homem.


— Falaremos amanhã, se despediu Pounds.

— De acordo.


Ao cabo de pouco minutos, Pounds fechou a sala com chave e foi para casa. Bosch ficou sozinho na sala dos detetives, tomando café, fumando e esperando

as notícias das seis da tarde. Havia um televisor portátil em branco e preto em cima do arquivo da mesa de Automóveis. Bosch ligou-o e mexeu na antena até que obteve uma imagem nítida. Um par de agentes de uniforme vieram do escritório de guarda para ver as notícias.


Por fim Cal Moore conseguira ser a primeira notícia do dia. O Canal 2 começou com uma reportagem sobre a reunião de imprensa no Parker Center em que o subdiretor Irvin Irving revelara algumas novidades. As imagens mostravam Irving rodeado de microfones e Teresa de pé junto a ele. Irving a mencionou como a pessoa responsável pelo descobrimento de novas provas durante a autópsia. Estas provas apontavam para a teoria de homicídio. A reportagem terminava com uma fotografia de Moore e a voz em off da jornalista.


Os investigadores agora têm a tarefa, e dizem que é obrigação pessoal, de indagar mais a fundo na vida do sargente Calexice Moore com o propósito de determinar o que o levou a esse quarto de motel onde alguém o executou. Algumas fontes assinalam que os investigadores não dispõem de muito por onde começar, embora comecem com uma dívida para com a legista-chefe, que descobriu um assassinato onde antes só se falava de... Suicídio de um policial solitário.


Então vinha um primeiro plano de Moore e uma última frase lapidária: "Agora começa o mistério".


Bosch desligou o televisor. Os agentes de uniforme voltaram para seus postos e ele retornou ao seu lugar na mesa de Homicídios. Harry supôs que a foto que mostraram de Moore era de alguns anos atrás porque parecia mais jovem e seus olhos eram mais claros; sem rastro de uma vida oculta. Aqueles pensamentos lhe trouxeram para a memória outras fotografias: as que Sylvia Moore disse que seu marido tinha guardado toda a sua vida e folheado de vez em quando. Que mais trouxera Moore do passado? Bosch nem sequer tinha uma foto de sua própria mãe e não conhecera o pai até seu leito de morte. Que bagagem trazia consigo Cal Moore?


Era hora de partir para o Code 7, mas antes de ir apanhar o carro, Harry caminhou pelo corredor até o escritório de guarda e pegou uma folha que estava pendurava na parede junto aos cartazes de "Procura-se". Nela eram detalhados os turnos da delegacia: Bosch supunha que não a teriam atualizado na última semana, e estava certo. Na lista de sargentos encontrou o nome e o endereço de Moore em Los Feliz. Bosch copiou-o em sua caderneta e partiu.


* * *


Dezessete

BOSCH DEU uma última tragada ao cigarro e jogou a bituca no bueiro. Antes de puxar o bastão que fazia as vezes de maçaneta do Code 7, pensou um instante e se voltou para olhar o outro lado da First Street. Ali ficava o Freedom Park, a extensão de grama que flanqueava o edifício da prefeitura. Sob a luz dos postes Bosch distinguiu os corpos de homens e mulheres sem lar, dispersados sobre a erva que rodeava o monumento aos mortos. Pareciam vítimas de uma batalha, mortos sem enterrar.


Finalmente Bosch entrou no Code 7. Depois de atravessar o restaurante, abriu as cortinas, negras como a toga de um juiz, que escondiam a entrada do bar. O lugar estava cheio de advogados, policiais e fumaça azulada. Todos vieram passar a hora do rush e tinham bebido muito. Harry se encaminhou para o final do balcão, onde os tamboretes estavam vazios, e pediu uma cerveja e um uísque. Eram sete em ponto segundo as horas marcadas no relógio com o logotipo da cerveja Miller. Bosch olhou a sala através do espelho do balcão, mas não viu ninguém que parecesse o agente de narcóticos Curvo. Assim, acendeu outro cigarro e decidiu que esperaria Curvo até as oito.


Nesse preciso instante, Bosch olhou para trás e viu um homem baixinho, moreno e de barba que abria a cortina e ficava parado enquanto seus olhos se habituavam à penumbra do bar. Usava jeans e uma camisa. Bosch em seguida distinguiu o pager no cinto e o vulto da pistola sob a camisa. O homem fez um reconhecimento do bar até que seu olhar se cruzou com o de Harry no espelho e este balançou a cabeça. Curvo se aproximou e se sentou no tamborete junto ao dele.


— Já me descobriu, disse Curvo.

— E você a mim. Acredito que nós dois teremos que voltar para a academia. Quer uma cerveja?

— Olhe, Bosch, antes de que comece a ser simpático comigo, preciso dizer que não sei de nada. Não sei e ainda não decidi se vou falar consigo. Harry pegou seu cigarro do cinzeiro e olhou Curvo pelo espelho.

— Eu ainda não decidi se Certs é uma pastilha ou um caramelo. Curvo se levantou do tamborete.

— Até mais tarde.

— Vamos, Curvo, por que não toma uma cerveja? Acalme-se, cara.

— Informei-me sobre você antes de vir. Disseram que é maluco e que está caindo direto; de Roubos e Homicídios a Hollywood, e de Hollywood a... Segurança de banco?

— Não, a próxima parada é Mexicali e, das duas uma, posso ir lá às cegas e destruir o que andou planejando sobre Zorrillo... Ou nós dois podemos nos beneficiar se me explicar como vai a coisa.

— A coisa é que não vai chegar em Mexicali. Assim que sair daqui e fizer uma ligação, acabou a sua viagem.

— E assim que eu sair daqui, eu vou para lá. Então será muito tarde para me deter. Sente-se. Se fui um pouco idiota, desculpe. Às vezes sou assim, mas preciso de você e você precisa de mim. Curvo continuava sem se sentar.

— Bosch, o que vai fazer? Ir ao rancho, pegar o Papa pelo ombro e trazê-lo até aqui?

— Algo assim.

— Porra.

— A verdade é que não sei o que vou fazer. Vou improvisar. Talvez não consiga ver o Papa ou talvez sim. Quer se arriscar?


Curvo sentou no tamborete. Depois de chamar o garçom, pediu o mesmo que Bosch. No espelho, Bosch notou em que o policial tinha uma cicatriz longa e grossa que atravessava a face direita. Deixara a barba crescer para cobrir esse verme cor de rosa, mas não dera certo. Embora talvez tampouco quisesse fazê-lo; a maioria dos agentes da DEA que Bosch conhecera eram muito fanfarrões e não se sentiriam envergonhados de uma cicatriz. Para alguém cuja vida consistia em blefar e intimidar, as cicatrizes eram quase um sinal de coragem. De qualquer maneira, Bosch duvidava que pudesse fazer muito trabalho incógnito com uma anomalia física tão reconhecível. Assim que o garçom trouxe as bebidas, Curvo tomou o uísque de um gole, como alguém acostumado a isso.


— Bem, disse. — O que vai fazer realmente lá em baixo? E por que deveria confiar em você? Bosch pensou uns instantes.

— Porque posso lhe entregar Zorrillo.

— Porra.


Bosch não disse nada. Precisava dar a Curvo um tempo para se zangar e para que ficasse sem corda. Quando acabasse de interpretar o papel de agente indignado, poderiam falar a sério. Nesse momento Bosch pensou que uma das coisas que os filmes e séries de televisão não exageravam era a relação de ciúmes e desconfiança que existia entre os policiais locais e federais. Um dos lados sempre se acreditava melhor, mais sábio e mais qualificado. Normalmente, esse lado estava acostumado a errar.


— De acordo, cedeu Curvo. — Rendo-me. O que sabe?

— Antes que comecemos, tenho uma pergunta. Quem é? Quero dizer, que se está aqui em Los Angeles, como é um perito em Zorrillo? Por que apareceu em um dos arquivos de Moore?

— Isso são como dez perguntas. A resposta a todas elas é que sou um dos agentes de controle de uma investigação em Mexicali, em que estamos colaborando com os escritórios da Cidade do México e de Los Angeles. Como estamos equidistantes, dividimos o caso. Não vou dizer nada mais até que saiba que vale a pena falar consigo. Adiante.


Bosch contou sobre Jimmy Kapps, sobre Juan 67, da relação de suas mortes com Dance e Moore e da operação de Zorrillo. Por último, contou que descobrira que Dance tinha ido ao México, provavelmente a Mexicali, depois que assassinaram Moore. Curvo bebeu mais um gole de cerveja e interveio.


— Há um enorme buraco em sua teoria. Porque acha que mataram este tal Juan lá em baixo? E por que o trouxeram até aqui? Não faz sentido.

— Segundo a autópsia, a morte aconteceu de seis a oito horas antes que Moore o encontrasse ou que ele dissesse que o encontrara. Além disso, certos detalhes da autópsia conectavam-no com Mexicali, com um lugar concreto da cidade. Acredito que queriam tirá-lo dali para evitar que o relacionassem com esse lugar. Mandaram-no a Los Angeles porque havia um caminhão que ia nessa direção. Era o ideal.

— Está falando em código, Bosch, De que lugar estamos falando?

— Não estamos falando; esse é o problema. Eu falo, mas você não disse uma merda, lembrou-o Bosch. — Mas vim negociar. Estou ao corrente de seus resultados até agora e sei que não conseguiu interceptar nenhum de seus carregamentos. Eu posso dar a rota de entrada de Zorrillo. O que você pode me dar? Curvo riu e fez sinal ao garçom, que imediatamente trouxe mais duas cervejas.

— Sabe de uma coisa? Gostei de você, Bosch. Informei-me sobre você, e eu gostei muito do que soube, disse Curvo. — Entretanto, algo me diz que não tem nada para negociar.

— Conhece uma empresa chamada EnviroBreed? Curvo baixou os olhos para a cerveja que tinha diante, ordenando seus pensamentos. Bosch precisou incitá-lo a falar. — Sim ou não?

— EnviroBreed é uma fábrica de Mexicali onde criam uma espécie de moscas estéreis para soltá-las na Califórnia. Têm um contrato com o governo. Os insetos precisam ser criados ali porque...

— Isso eu sei. E você, como sabe?

— Porque participei da organização da operação lá em baixo. Queríamos um ponto de observação terrestre para o rancho de Zorrillo, assim fomos aos parques industriais que rodeiam o rancho em busca de possíveis candidatos. A EnviroBreed era uma opção óbvia; dirigida por americanos e contratada por nosso governo. Fomos ver se podíamos montar um posto de vigilância no teto, em uma sala ou algo assim. As terras do rancho começam do outro lado da rua.

— Mas disseram que não.

— Não, eles disseram que sim. Fomos nós que dissemos não.

— Por quê?

— Pelas radiações, pelos insetos, há moscas por todo lado, e principalmente porque os olhos estavam tampados. Do telhado se via o imóvel, mas o celeiro e os estábulos, todas as instalações de criação de touros, ocultavam os edifícios principais do rancho. Ou seja, não daria certo. Dissemos obrigado ao cara dali, mas que não nos servia.

— Qual era sua cobertura? Ou contaram que eram do DEA?

— Não, inventamos uma. Dissemos que éramos do Serviço Nacional Meteorológico e estávamos realizando um estudo dos sistemas eólicos do deserto e da montanha. Ou algo do gênero. O cara caiu. Curvo limpou a boca com o dorso da mão. — Então, como a EnviroBreed entrou neste assunto?

— Através de Juan 67. O cadáver continha esses insetos que você diz. Acredito que o mataram lá. Curvo se voltou para olhar diretamente a Bosch. Harry continuou observando-o pelo espelho que havia atrás do balcão.

— De acordo, Bosch, digamos que conseguiu me interessar. Adiante; solte a história.


Bosch contou que acreditava que a EnviroBreed até então ignorava que ficasse do outro lado do rancho de Zorrillo e que fazia parte da via de entrada do gelo negro. Em seguida explicou o restante de sua hipótese; que Fernal Gutiérrez-Llosa era um jornaleiro que contrataram como correio e fez besteira, ou que trabalhava no criadouro e viu algo que não devia ver. Fosse como fosse, espancaram-no até matá-lo, colocaram seu corpo em uma das caixas-estufa e mandaram-no com um carregamento de moscas para Los Angeles. Desembaraçaram-se do cadáver em Hollywood, onde Moore o descobriu, que certamente controlava esse lado da fronteira.


— Precisavam tirar o corpo da EnviroBreed porque não podiam permitir que a investigação chegasse na fábrica. Nesse lugar há alguma coisa; ao menos algo pelo que vale a pena matar um homem. Curvo tinha o braço apoiado no balcão e o rosto sobre a palma da mão.

— E o que ele viu? Perguntou.

— Não sei, respondeu Bosch. — Sei que a EnviroBreed tem um trato com os federais para que não abram os carregamentos na fronteira porque poderia prejudicar a mercadoria.

— A quem contou isto?

— A ninguém.

— A ninguém? Não contou a ninguém sobre a EnviroBreed?

— Fiz algumas investigações, mas não contei a ninguém a história que acabo de contar.

— Com quem falou? Com a Polícia Judicial do Estado?

— Sim. Eles enviaram uma carta ao consulado perguntando pelo operário. Descobri assim. Ainda preciso fazer uma identificação formal do corpo quando chegar lá.

— Sim, mas mencionou a EnviroBreed?

— Só perguntei se o homem trabalhara lá. Curvo se deixou cair sobre o balcão com um suspiro de exasperação.

— Com quem falou lá em baixo?

— Com um capitão chamado Grenha.

— Não o conheço, mas certamente cagou tudo. Não pode ir dizendo essas coisas às pessoas de lá. Os caras pegam o telefone, avisam Zorrillo e conseguem um pagamento extra no final de mês.

— Pode ser que eu tenha cagado tudo ou pode ser que não. Grenha me tirou de cima e talvez pense que a coisa acabou aí. Ao menos eu não entrei na fábrica de insetos com a desculpa ridícula de instalar uma estação meteorológica.


Nenhum dos dois falou durante um momento. Cada um pensava no que o outro dissera.


— Vou me pôr a trabalhar sobre isto imediatamente, anunciou Curvo. — Precisa me prometer que não o estragará tudo quando chegar lá.

— Eu não prometo nada. E no momento eu contei tudo. Você não soltou nada.

— O que quer saber?

— Informação sobre Zorrillo.

— A única coisa que precisa saber é que há séculos estamos atrás desse cara.


Desta vez foi Bosch quem pediu mais duas cervejas. Acendeu um cigarro e viu que a fumaça apagava sua imagem no espelho.


— Zorrillo é um filho da puta muito preparado e não me surpreenderia que já saiba que você está a caminho. É culpa da fodida Polícia Judicial. Nós só tratamos com os federais, embora às vezes eles também são mais traiçoeiros que uma ex. Bosch concordou de maneira visível para que Curvo continuasse. — Se não souber agora, saberá antes que chegue ali, assim é melhor andar de olhos bem abertos. A melhor forma de não ter problemas é não ir. Mas como já sei que não vai fazer o que estou dizendo, aconselho-o que esqueça a Polícia Judicial; não confie neles. O Papa tem essa gente nas mãos, entendeu?


Bosch concordou para o espelho. Em seguida decidiu deixar de assentir todo o momento.


— Bem, já sei que tudo o que falei entrou por uma orelha e saiu pelo rabo, concluiu Curvo. — Assim estou disposto a pô-lo em contato com um cara para que o ajude lá em baixo. Chama-se Ramos. Você desce, cumprimenta a polícia local, se comporta como se tudo estivesse bem e liga para Ramos.

— Se tudo o que acho da EnviroBreed for verdade e decidirem ferrar Zorrillo, quero estar presente.

— Estará, mas enquanto isso não se separe de Ramos, certo? Bosch pensou um momento e respondeu:

— Certo, mas agora me fale de Zorrillo.

— Zorrillo está há muito tempo na estrada. Temos informações sobre ele que remontam aos anos setenta no mínimo. É um camelo por vocação. Poderia se dizer que é uma das molas do trampolim.


Bosch conhecia o termo, mas sabia que Curvo explicaria de qualquer maneira.


— O gelo negro é só seu último brinquedo. Começou garoto passando droga. Alguém, como ele é agora, tirou-o do bairro. Quando tinha doze anos, carregava trouxinhas de erva, quando ficou mais velho passou aos caminhões e continuou subindo. Nos oitenta, na época em que nos dedicávamos sobretudo ao tráfico na Florida, os colombianos se aliaram aos mexicanos. Os colombianos transportavam a cocaína para o México e os mexicanos a passavam pela fronteira, usando os mesmos caminhos que empregavam para a maconha. O cartel de Mexicali e Calexico era um deles. Essa rota era chamada de trampolim porque a merda pula da Colômbia para o México e logo ricocheteia nos Estados Unidos. Zorrillo fez ouro; passou de viver na miséria do bairro para esse grande rancho com sua própria guarda pessoal e a metade dos policiais na mão. Zorrillo tirou muita gente dos subúrbios. Nunca se esqueceu dos bairros mais pobres e estes nunca o esqueceram; são muito leais. Daí vem o Papa. Quando finalmente nos dedicamos à situação da cocaína no México, o Papa apareceu com a heroína. Tinha seus próprios laboratórios nos bairros próximos e sempre sobravam voluntários para passar a droga. A gente aparecia de olho na massa; Zorrillo pagava por uma só viagem mais do que ganhariam em cinco anos fazendo qualquer outra coisa.


Bosch pensou na tentação; tanto dinheiro em troca de tão pouco risco. Inclusive os que eram presos passavam tão pouco tempo na cadeia...


— Passar da heroína ao gelo negro foi uma transição lógica. Zorrillo é um empresário. Obviamente esta droga ainda é pouco conhecida, mas acreditam que Zorrillo é o principal fornecedor do país. Começa a aparecer gelo negro em todos os lugares: Nova Iorque, Seattle, Chicago, todas as grandes cidades... Seja qual for a operação com que tropeçou em Los Angeles, é só uma gota no oceano. Uma de muitas. Acreditam que ainda continuam passando heroína pura com seus correios vindo dos bairros pobres, mas o gelo é sua aposta para o futuro. Cada vez investe mais, com o propósito de eliminar os havaianos do negócio. Seus gastos são tão baixos que sua droga se vende a vinte dólares mais barata por cápsula, do que o gelo havaiano ou vidro ou como quer que se chame. E para cúmulo a droga de Zorrillo é melhor. Está desbancando os havaianos, o quer dizer que, quando a demanda desta droga comece a aumentar seriamente talvez como o crack fez nos anos oitenta, o preço subirá e ele terá um monopólio quase total até que os outros o alcancem. Zorrillo é como um desses navios pesqueiros que arrasta uma rede de quinze metros; vai navegando em círculos até que fecha a rede e fica com todos os peixes.

— Um empresário, repetiu Bosch para dizer algo.

— Sim, eu o definiria assim. Lembra-se de que há uns anos a Polícia Alfandegária encontrou um túnel no Arizona? Um que ia de um depósito num lado da fronteira a outro depósito no outro? Em Nogueiras? Pois bem, ele era um dos investidores daquilo e provavelmente foi ideia dele.

— Mas a questão é que nunca o tocaram.

— Não. Assim que nos aproximamos, alguém morre. É um empresário um pouquinho violento.


Bosch se lembrou do corpo de Moore no sujo banheiro do motel. Moore tentara atacar Zorrillo?


— Zorrillo é relacionado com a máfia mexicana, acrescentou Curvo. — Dizem que podem matar a quem quer que seja em qualquer lugar. Pelo visto nos anos setenta havia muitas matanças para controlar as rotas da maconha. Zorrillo era um dos piores; era como uma guerra de gangues, bairro contra bairro. Agora ele conseguiu unir todas, mas então era o clã dominante: os Santos e Pecadores.


A máfia mexicana contava com membros entre os detentos da maioria das cadeias do México e Califórnia. Bosch ouvira falar deles, já que investigara um par de casos que implicavam seus membros. Sabia que a lealdade ao grupo era obrigatória; as traições eram castigadas com a morte.


— Como sabe tudo isso? Perguntou de qualquer maneira.

— Por confidentes durante todos estes anos; os que viveram para contar. Temos todo um histórico sobre nosso amigo o Papa. Inclusive sei que há um quadro de veludo com a imagem de Élvis no escritório de seu rancho.

— O seu bairro tinha um sinal especial?

— O que quer dizer?

— Um símbolo.

— Ah, sim. Um demônio sob a auréola de um anjo.


Bosch terminou a cerveja e olhou ao seu redor. Viu um ajudante do promotor do distrito sozinho em uma mesa, com um Martíni na mão. Harry sabia que fazia parte de equipe dedicada a investigar tiroteios com policiais implicados. Em outras mesas Bosch reconheceu os rostos de outros agentes. Todos estavam fumando; eram dinossauros, policiais da velha escola. Harry queria partir, ir para um lugar onde pudesse digerir a informação do demônio. Moore tinha isso tatuado no braço, o que significava que vinha do mesmo lugar que Zorrillo. Harry sentiu que a adrenalina disparava.


— Como encontrarei Ramos lá em baixo?

— Procurará você. Onde vai se hospedar?

— Não sei.

— Vá para o Hotel Del Anza, em Calexico. Nosso lado da fronteira é mais seguro. E a água também é melhor.

— De acordo. Lá estarei.

— Outra coisa. Não pode levar uma arma para o México. Bem, na realidade é fácil; mostre seu distintivo na alfândega e ninguém vai revistar o porta-luvas, mas se acontecer algo lá em baixo, a primeira coisa que vão perguntar é se consignou a pistola na delegacia de Calexico.


Curvo olhou para Bosch com ar de cumplicidade.


— No Departamento de Polícia de Calexico têm uma consignação para as armas de policiais que cruzam a fronteira. Eles anotam numa lista e dão um recibo. Deixe sua pistola em consignação; por cortesia profissional. Não a leve e em seguida pense que pode dizer que deixou-a em casa. Registre-a lá em baixo, anote-a na lista e assim não terá problemas. Entendido? É como ter um álibi para sua arma no caso de que aconteça algo.


Bosch concordou. Compreendia perfeitamente o que Curvo estava dizendo. Continuando, o agente da DEA tirou a carteira e deu a Bosch um cartão.


— Ligue a qualquer hora e se eu não estiver no escritório, deixe recado; eles me encontrarão. Dê seu nome para a telefonista e eu deixarei instruções para que me passem a ligação.


O ritmo de conversa de Curvo mudara; agora falava muito mais rápido. Bosch deduziu que devia ser pelo tema EnviroBreed. O agente da DEA estava ansioso por colocar mãos à obra. Harry estudou em seu reflexo no vidro; a cicatriz da face parecia mais escura, como se a cor mudasse junto com seu estado de ânimo. Curvo descobriu Bosch olhando-o através do espelho.


— Foi uma briga de facas, explicou, tocando a cicatriz. — Em Zihuatenajo. Eu estava trabalhando infiltrado em um caso. Levava a minha arma na bota, mas o cara me atacou antes que pudesse tirá-la. Lá em baixo têm poucos hospitais. Curaram-me de qualquer jeito e fiquei assim. Já não posso trabalhar incógnito; muito reconhecível.


Bosch notou que Curvo estava adorando contar a história; estava orgulhoso. Certamente era a única vez que estivera perto da morte. Harry sabia que Curvo estava esperando a pergunta, mas a fez igualmente.


— E o cara? O que aconteceu?

— Matei-o assim que tirei a pistola.


Curvo encontrara uma maneira para que soasse heroico, ao menos para ele, matar um homem que levara uma faca para uma briga de pistolas. Provavelmente contava a história frequentemente, cada vez que descobria alguém olhando a cicatriz. Bosch concordou respeitosamente, se levantou e pôs dinheiro no balcão.


— Lembre-se de nosso trato. Não vão atacar Zorrillo sem me avisar. Diga isso ao Ramos.

— Fique calmo, disse Curvo. — Mas não posso garantir que a prisão aconteça enquanto estiver lá. Não vamos nos precipitar. Além disso, já perdemos Zorrillo. Ao menos no momento.

— O que quer dizer com “perdemos”?

— Porque ninguém o viu com segurança há uns dez dias. Acreditam que continue no rancho, mas que está saindo pouco e mudando sua rotina diária.

— Que rotina?

— O Papa é um homem que gosta que o vejam. Adora nos provocar; normalmente passeia pelo rancho em um jipe, caça coiotes, dispara seu UZI e admira seus touros. Tem um favorito: um touro de luta que matou um toureiro em uma tourada. Chama-se El Temblar e é um pouco como Zorrillo. Muito orgulhoso. Zorrillo não apareceu na praça de touros, que era seu costume no domingo. Não o viram passeando pelas favelas, como estava acostumado a fazer para lembrar de onde veio. Ali é uma figura muito conhecida e adora toda esta merda de Papa de Mexicali.


Bosch tentou imaginar vida de Zorrillo, uma celebridade em um cidade sem nada para celebrar. Acendeu um cigarro, desejando sair dali imediatamente.


— Quando foi a última vez que o viram?

— Se continuar ali, não saiu do rancho desde quinze de dezembro. Isso foi um domingo; esteve na praça vendo seus touros. Foi a última vez que o viram. Depois vários confidentes afirmaram que no dia dezoito esteve andando no rancho, Mas isso é tudo. Ou se foi ou está se ocultando.

— Possivelmente por ter ordenado que matassem um policial.


Curvo concordou. Em seguida, Bosch foi embora. Foi sozinho, já que Curvo disse que precisava telefonar. Assim que Harry saiu, notou o ar fresco da noite e deu uma última tragada no cigarro. De repente chamou a sua atenção um movimento brusco na escuridão do outro lado da rua. Então um vagabundo louco entrou no cone de luz de um dos postes. Era um homem negro que saltava e agitava dos braços de forma estranha. Com a mesma rapidez, deu meia volta e voltou a se internar na escuridão. Então Bosch compreendeu que o homem tocava trombone em uma banda do outro mundo.


* * *


Dezoito

O APARTAMENTO onde Calexico Moore vivera ficava em um edifício de três andares na Franklin Avenue. Parecia um globo como o dos táxis dos aeroportos. Era um dos muitos edifícios de estuque construídos depois da guerra que flanqueavam as ruas daquela área. O bairro em si se chamava The Fountains, mas as fontes às que fazia referência, há tempos que tinham sido cobertas com terra e convertidas em canteiros. O edifício de Moore se achava a uma quadra do edifício que hospedava a sede central da Igreja da Cientologia, cujo letreiro de néon branco projetava um brilho sinistro sobre a calçada onde Bosch estava. Felizmente eram quase dez da noite, por isso não havia perigo de que o assaltassem com um teste de personalidade. Bosch ficou fumando e observando o apartamento durante meia hora até que se decidiu a entrar, mesmo com o risco que aquilo supunha.


Apesar do edifício ter entrada de segurança, não era muito seguro. Bosch abriu o ferrolho da grade dianteira com um canivetinho que guardava junto com sua gazua no porta-luvas do Caprice. A porta seguinte, a que dava ao vestíbulo, foi ainda mais fácil porque precisava que passassem óleo nela e por isso não fechava totalmente. Bosch ultrapassou a soleira, verificou a lista de residentes e encontrou o nome de Moore junto ao número sete, no terceiro andar.


O apartamento de Moore ficava ao fundo de um corredor que dividia o andar pela metade. Embora existissem mais dois apartamentos, Bosch não ouviu vozes nem televisão em nenhum deles. Ao chegar à porta de Moore, Harry viu que estava selada com um adesivo da polícia. Depois de cortá-lo com o canivetinho, se ajoelhou para examinar a fechadura. A iluminação do corredor era boa, assim não precisou da lanterna. Moore tinha uma fechadura comum; usando um gancho curvado e um pente de puas, Bosch abriu-a em menos de dois minutos.


Harry envolveu a mão em um lenço e puxou a maçaneta da porta, considerando a prudência de suas ações. Se Irving ou Pounds descobrissem, mandariam-no com um chute patrulhar na rua. Bosch deu uma última olhada e abriu a porta. Precisava entrar. Mais ninguém parecia se importar com o que acontecera a Cal Moore. Ele sim, embora ignorasse por quê. Harry pensava que talvez encontrasse o motivo naquele apartamento. Uma vez dentro, Bosch voltou a fechar a porta e permaneceu uns instantes imóvel, na entrada, tentando se acostumar à escuridão. O lugar cheirava a umidade e não se via nada além do brilho fluorescente do letreiro da Igreja da Cientologia que passava pelas cortinas da janela. Bosch acendeu um abajur junto a um sofá velho e deformado. A luz descobriu uma sala de estar com a mesma decoração de há vinte anos. O carpete azul marinho estava mais gasto que uma pista de tênis; inclusive tinham formado caminhozinhos que iam do sofá à cozinha e ao corredor do fundo.


Bosch se internou um pouco mais para dar uma olhada rápida na cozinha, no quarto e no banheiro. Espantou-se de como estava vazio o apartamento. Não havia nada pessoal: nem quadros nas paredes, nem notas na geladeira, nenhuma jaqueta pendurada no respaldo de uma cadeira. Nem sequer havia um prato na pia. Moore morara ali, mas era como se não existisse. Como não sabia o que procurava, Bosch começou pela cozinha. Abriu os armários e as gavetas, mas só encontrou um pacote de flocos de milho, um pote de café e uma garrafa quase vazia de bourbon Early Times. Em outro armário encontrou uma garrafa sem abrir de rum com uma etiqueta mexicana. Dentro da garrafa havia um ramo de cana de açúcar. Nas gavetas havia alguns talheres e utensílios de cozinha além de caixas de fósforos de bares da área de Hollywood, como o Ports e o Bullet.


O congelador estava vazio, à exceção de duas bandejas de cubinhos de gelo. Na prateleira superior da geladeira havia um pote de mostarda, um pacote sem terminar de salsichas defumadas que se tornara rançoso e uma solitária lata de Budweiser, ainda com a argola de plástico que levam os pacotes de seis. Na prateleira inferior da porta havia um quilo de açúcar Domino. Harry examinou o açúcar. O pacote estava sem abrir, mas ele pensou: "À merda, agora já cheguei até aqui". Abriu-o e foi derramando na pia. Para Bosch parecia açúcar e tinha sabor de açúcar. Depois de verificar que não havia mais nada no pacote, abriu a torneira de água quente e viu como o montículo branco ia desaparecendo pelo ralo da pia. Bosch deixou o pacote na bancada e entrou no banheiro.


Havia uma escova de dentes num copo e artigos de barbear dentro do armário-espelho. Nada mais. Ao entrar no quarto, Bosch se dirigiu primeiro ao armário. Ali havia diversos objetos pendurados em cabides e mais roupa em uma cesta de plástico no chão. Na prateleira havia uma mala de quadros verdes e uma caixa branca com a palavra "Snakes". Bosch derrubou a cesta e revistou os bolsos das camisas e das calças sujas. Estavam vazios. Em seguida foi revistando a roupa pendurada nos cabides até chegar ao fundo do armário, onde se impressionou ao encontrar, protegido com um plástico, o uniforme de Moore. Bosch pensou que tê-lo guardado era um mau augúrio, já que uma vez que se deixava a patrulha, só havia um motivo para guardá-lo: ser enterrado com ele.


Tal como ordenava o departamento, Bosch também possuía um uniforme para casos de emergência, tais como, um grande terremoto ou distúrbios nas ruas em grande escala. Mas já fazia mais de dez anos que se desfizera do seu uniforme. Bosch desceu a mala; estava vazia e cheirava a mofo, por isso deduziu que não a tinham usado em muito tempo. Em seguida tirou a caixa das botas, mas já sabia que estava vazia antes de começar. Dentro só havia papel de seda. Enquanto voltava a colocar tudo na prateleira, Bosch se lembrou da bota de Moore no chão de ladrilhos do Hideaway e se perguntou se o assassino tivera problemas em tirá-la para completar a cena de suicídio. Ordenara a Moore que tirasse-a antes? Certamente que não. O golpe que Teresa encontrara na parte posterior da cabeça significava que provavelmente Moore não soube quem o atacava. Bosch imaginou o assassino, envolto no anonimato das sombras, vindo por trás e golpeando-o com a culatra da escopeta. Moore caiu. Então o assassino tirou a bota, arrastou-o até o banheiro, apoiou-o contra a banheira e apertou os dois gatilhos. Em seguida limpou-os cuidadosamente, pressionou o polegar de Moore sobre a culatra e esfregou as mãos nos canos para que os rastros fossem convincentes. Finalmente deixou a bota sobre os ladrilhos e acrescentou a lasca da culatra, o toque final para completar uma cena de suicídio.


A cama de casal do apartamento de Moore estava desfeita. Na mesinha de cabeceira havia um par de dólares em moedas e um porta-retratos com uma foto de Moore e da mulher. Bosch se aproximou e examinou-o sem tocá-lo. Sylvia sorria, sentada em um restaurante ou em uma festa de casamento. Estava muito bonita e seu marido olhava-a como se soubesse.


— Cagou tudo, Cal, disse Harry em voz alta.


Bosch se dirigiu a cômoda, um móvel tão desmantelado, cheio de queimaduras e com iniciais gravadas com faca, que nem o Exército de Salvação aceitaria. Na gaveta de cima havia um pente e um porta-retrato de madeira de cerejeira. Quando Bosch pegou-o viu que estava vazio, ficou uns momentos pensativo. O marco tinha gravuras de flores; era caro e obviamente não vinha com o apartamento, o que queria dizer que Moore trouxera consigo. Por que estaria vazio? Gostaria de perguntar a Sheehan se ele ou alguém levou a fotografia como parte da investigação, mas não podia fazer isso sem revelar que estivera ali.


A gaveta seguinte continha roupa interior, meias e uma pilha de camisetas dobradas; nada mais. Havia mais roupa na terceira gaveta, toda bem dobrada por uma lavanderia. Debaixo das camisas aparecia uma revista pornográfica que trazia fotos de uma famosa atriz de Hollywood nua. Bosch folheou a revista, mais por curiosidade do que pudesse encontrar, talvez uma pista, no seu interior. Estava certo de que todos os detetives e policiais que passaram pelo apartamento manusearam-na.


Bosch devolveu a revista ao seu lugar depois de verificar que as fotos da atriz eram imagens escuras e de baixa qualidade onde apenas se distinguiam seus seios. Imaginou que vinham de um de seus primeiros filmes, antes que tivesse poder suficiente para controlar a exploração de seu corpo. Bosch imaginou a decepção dos homens que compraram a revista e acabaram descobrindo que essas fotos eram a única recompensa da oferta da capa. Imaginou a raiva e a vergonha da atriz. E se perguntou se Cal Moore se excitara com elas. De repente lhe veio uma imagem de Sylvia Moore; Bosch colocou a revista debaixo das camisas e fechou a gaveta.


A última gaveta da cômoda continha um jeans gasto e um saco de papel, velho e amassado, em que havia uma grossa pilha de fotografias. Isso era o que Harry viera procurar; tinha-o intuído assim que viu o saco. Apagou a luz do quarto, e levou o saco para a sala. Sentado no sofá junto ao abajur, Bosch acendeu um cigarro e apanhou as fotos. A primeira coisa que notou foi que a maioria estavam imprecisas e velhas. De algum jeito, aquelas fotos pareciam mais particulares e íntimas que as da revista pornográfica. Eram as imagens que documentavam a triste biografia de Cal Moore. Pelo visto estavam em uma espécie de ordem cronológica. Bosch deduziu isso porque começavam em preto e branco e acabavam em cores. Outros detalhes, como a roupa ou os carros, também o inclinavam a aceitar esta teoria.


A primeira foto era uma imagem em preto e branco de uma garota hispana vestida com um uniforme branco, talvez de enfermeira. Era morena, bonita e mostrava um sorriso infantil e um olhar de ligeira surpresa. Estava de pé junto a uma piscina, com os braços nas costas. Bosch distinguiu a borda de um objeto redondo atrás dela e então compreendeu que estava ocultando uma bandeja. A moça não quisera que a fotografassem com a bandeja. Não era uma enfermeira, era uma faxineira. Na pilha havia outras fotos dela ao longo dos anos. O passar do tempo fora generoso com ela, mas indevidamente se deixava notar. A mulher conservava uma beleza exótica, mas com os anos apareceram rugas de preocupação e os olhos perderam parte da alegria. Em algumas das fotos segurava um bebê e em seguida posava com um garoto pequeno. Bosch estudou-a atentamente e, apesar de que a foto era em preto e branco, viu que o garoto de cabelo e pele escura tinha os olhos claros. "Olhos verdes", pensou Bosch. Eram Calexico Moore e sua mãe.


Em uma das imagens, a mulher e o garoto pequeno estavam diante de uma grande casa com um telhado tipo mexicano. Parecia uma vila de estilo mediterrâneo. Detrás da mãe e filho, embora não se visse muito bem porque a foto estava desfocada, se elevava uma torre com duas janelas escuras imprecisas, como conchas vazias. Bosch pensou no que Moore contara a sua mulher sobre crescer em um castelo. Era este. Em outra das fotos o garoto estava de pé, muito rígido, junto a um homem, um anglo-saxão com cabelo louro e a pele muito bronzeada. Atrás deles se desenhava a silhueta esbelta de um Thunderbird dos anos cinquenta. O homem tinha uma mão apoiada no capô e a outra na cabeça do menino. Essas eram suas posses, parecia dizer a foto. Apesar do homem olhar para a câmera com os olhos semicerrados, se distinguia a cor de suas pupilas. Eram do mesmo verde que as do filho. O homem estava ficando calvo e, ao comparar com fotos do garoto com a mãe tiradas na mesma época, Bosch deduziu que o pai de Moore era ao menos quinze anos mais velho que sua mulher. A foto do pai e do filho tinha as bordas gastas por ter sido muito mais manuseada que as outras fotos da pilha.


O grupo seguinte de fotos mudava de cenário; certamente foram tiradas em Mexicali. Curiosamente, havia menos imagens para documentar um espaço de tempo muito maior. O garoto crescia de foto em foto e os ambientes tinham um toque terceiro-mundista. foram tiradas em um favela. Quase sempre havia grupos de pessoas ao fundo, todos mexicanos e todos com aquele olhar de desespero e desesperança que Bosch também observara nos guetos de Los Angeles.


Nelas havia outro menino. Era da mesma idade ou um pouco mais velho que Moore e parecia mais forte e duro. Estava em muitas das imagens com Cal. "Possivelmente um irmão", pensou Bosch. Neste grupo de fotos a mãe começava a acusar claramente o passar dos anos. A menina que escondia a bandeja de faxineira desaparecera completamente e em seu lugar se via uma mãe acostumada à dureza da vida. As fotografias começavam a adquirir uma qualidade inquietante. Harry ficava angustiado ao vê-las porque achava que compreendia o poder que exerceram sobre Moore.


A última imagem em preto e branco mostrava os dois meninos, sem camisa, sentados costas com costas em uma mesa de piquenique. Estavam rindo de alguma piada que a câmera capturaria para sempre. A foto instantânea mostrava que Calexico era um adolescente com um sorriso sem malícia. Em troca, o outro menino, talvez um ano ou dois mais velho que ele, parecia mais conflitivo; seu olhar era duro e insociável. Na foto, Cal tinha o braço direito dobrado e mostrava os músculos para o fotógrafo. Bosch viu que a tatuagem já estava ali: o demônio sob a auréola. Os Santos e Pecadores.


Nas fotos posteriores, o outro garoto não voltava a aparecer. Todas eram fotos em cores tiradas em Los Angeles. Bosch reconheceu o edifício da Prefeitura ao fundo de uma delas e a fonte de Echo Park na outra. Moore e sua mãe tinham vindo para os Estados Unidos. Quem quer que fosse o outro menino, ficara para trás.


No final da pilha, a mãe tampouco voltava a aparecer. Harry se perguntou se isso significava que morrera. As últimas duas fotos eram de Moore adulto. A primeira correspondia a sua graduação na academia de polícia. Era um retrato após o juramento da bandeira diante do edifício que mais adiante fora rebatizado com o nome do Daryl F. Gates Auditorium. Os agentes estavam lançando suas boinas no ar. Bosch encontrou o rosto de Moore entre a multidão de rostos anônimos. Tinha o braço ao redor de outro formando e uma expressão de verdadeira alegria.


A última foto era de Moore em seu uniforme abraçando uma Sylvia jovem. Os dois sorriam, face com face. A pele dela era mais tersa então, seus olhos mais brilhantes e o cabelo mais longo e com mais volume. Mas no fundo não mudara: continuava sendo uma bela mulher.


Bosch colocou as fotos no saco e deixou este no sofá, junto a ele. Ao olhá-lo de novo sentiu curiosidade em saber por que Moore nunca colocara as fotografias em um álbum ou as emoldurara. Deste modo pareciam pequenos pedaços de uma vida, prontas para carregar para qualquer lado. Não obstante, Harry sabia por quê. Em sua casa tinha pilhas de fotos que nunca colocaria em um álbum porque sentia necessidade de tocá-las quando olhava para elas. Eram mais que lembranças de outra época; faziam parte essencial de sua vida, uma vida que não podia continuar sem compreender o que havia atrás.


Bosch esticou o braço e apagou o abajur. Fumou outro cigarro; aquela era a única luz que flutuava na sala. Harry continuava pensando no México e em Calexico Moore.


— Cagou tuto, sussurrou de novo.


Bosch se convencera de que precisava ir até aquele apartamento para descobrir fatos sobre Moore. Entretanto, nesse momento, sentado na escuridão, compreendeu que havia algo mais. Sabia que viera porque queria entender uma vida que não conseguia explicar. O único com todas as respostas era Cal Moore. E ele já não estava aqui. Bosch viu o resplendor branco do neon através das cortinas transparentes, que lhe pareceram fantasmagóricas. Fizeram-no lembrar a foto velha e gasta quase branca do pai e do filho. Bosch pensou em seu próprio pai, um homem a quem não conhecera até seu leito de morte. Então já era muito tarde para que mudasse o curso da vida de Bosch.


Nesse momento, Harry ouviu uma chave que abria a fechadura da porta principal. Rapidamente se levantou, tirou a pistola e cruzou a sala até chegar ao corredor. Primeiro se dirigiu ao quarto, mas depois se meteu no banheiro porque lhe oferecia uma melhor vista da sala. Bosch jogou seu cigarro no sanitário e ouviu-o assobiar ao apagar.


Depois que a porta de entrada fora aberta, houve uns segundos de silêncio. Então a luz da sala se acendeu e Bosch se escondeu entre as sombras de seu esconderijo. Refletida no espelho do banheiro, viu Sylvia Moore no meio da sala olhando ao seu redor como se fosse a primeira vez que pisava naquele apartamento. Quando seus olhos pousaram no saco de papel que jazia no sofá, Sylvia o pegou. Bosch observou-a enquanto ela olhava as fotografias. Ao chegar à última, passou a mão pelo rosto para confirmar o passar dos anos. Em seguida voltou a guardar as fotos no saco e deixou-o no sofá. Então se dirigiu para o corredor e Bosch retrocedeu, se metendo silenciosamente no chuveiro.


Distinguiu uma luz vinda do quarto e ouviu que a porta do armário se abria. Em seguida ouviu o ruído dos cabides. Bosch guardou a pistola e saiu do banheiro. Finalmente apareceu no corredor.


— Senhora Moore? Sylvia? Disse Bosch. Não sabia como chamar sua atenção sem assustá-la.

— Quem é? Respondeu uma voz aguda e atemorizada.

— Sou eu, o detetive Bosch. Ela saiu do armário do quarto com olhos espantados. Na mão segurava o cabide com o uniforme de seu defunto marido.

— Assustou-me. O que faz aqui?

— Eu ia lhe perguntar o mesmo. Sylvia estava se cobrindo com o uniforme como se Bosch a surpreendesse nua.

— Seguiu-me? Perguntou ela, dando um passo atrás. — O que aconteceu?

— Não, não a segui. Eu já estava aqui.

— Às escuras?

— Sim. Estava pensando. Ouvi que alguém abria a porta me escondi no banheiro. Quando vi que era você, não sabia como sair sem assustá-la. Sinto muito. Você me assustou e eu a você.


Ela concordou, como se aceitasse esta explicação. Usava uma camisa texana clara e jeans azul escuro, o cabelo recolhido e pendentes de vidro rosado. Na orelha esquerda colocara um segundo pendente: uma lua chapeada em quarto crescente com uma estrela pendurada da ponta inferior. Quando lhe sorriu amavelmente, Bosch lembrou que não se barbeara.


— Pensou que eu era o assassino? Perguntou ela, vendo que ele não dizia nada. — Voltando para a cena do crime?

— Pode ser... A verdade é que não, não sei o que pensava. Além disso, esta tampouco é a cena do crime, disse. Harry indicou com a cabeça o uniforme.

— Preciso levá-lo ao McEvoy Brothers amanhã. Ela deve ter notado a cara de desconcerto de Bosch. — É a missa. Com o ataúde fechado obviamente. Mas acredito que a Cal gostaria de usar o uniforme. O senhor McEvoy me perguntou se ele tinha um. Harry concordou. Ainda estava no corredor. Quando retrocedeu para a sala, ela seguiu-o.

— O que o departamento disse? Como vão organizar o...? O funeral, quero dizer.

— Quem sabe? No momento dizem que morreu em serviço.

— Ou seja, que vão fazer todas as honras.

— Acredito que sim.


"Uma despedida de herói", pensou Bosch. O departamento não gostava da autoflagelação. Não iam anunciar nas manchetes que um policial corrupto fora executado pela gente corrupta para as quais trabalhava. Não se pudessem evitar. Prefeririam dar um funeral de herói para os meios de comunicação e ver artigos de apoio em sete canais diferentes a cada noite da semana. Nesse momento o departamento precisava de todo o apoio possível.


Bosch também compreendeu que uma morte em serviço significava que a viúva obteria todos os direitos à pensão do marido. Se Sylvia Moore usasse um vestido preto, enxugasse os olhos com um lenço nos momentos adequados e mantivesse a boca fechada, receberia o salário do marido pelo resto da vida. Não estava ruim. Se Sylvia fora quem avisou Assuntos Internos, se arriscava a perder a pensão se perseverava com o tema ou este saísse à luz. O departamento poderia dizer que Cal morrera por culpa de suas atividades ilegais e então adeus pensão. Bosch estava certo de que ela não precisava que lhe explicassem isso.


— Quando é o funeral? Perguntou Bosch.

— Na segunda-feira à uma. Na capela da missão de São Fernando. O enterro será em Oakwood, perto de Chatsworth.


Bosch pensou que se fossem montar todo o espetáculo, aquele era um lugar ótimo. A foto de duzentos policiais motorizados subindo em formação pelo sinuoso Valley Circle Boulevard sempre ficava bem na primeira página.


— Senhora Moore, por que veio aqui às... Bosch consultou o relógio: eram quinze para as onze. — Tão tarde para apanhar o uniforme de seu marido?

— Chame-me Sylvia, por favor. Pode ser?

— Sim, claro.

— Pois se quiser que eu diga a verdade, não sei. Não dormi muito bem, nada bem, desde... Desde que o encontraram. Gostaria de dar uma volta de carro. De qualquer maneira não recebera a chave até hoje.

— Quem lhe deu a chave?

— O subdiretor Irving. Veio na minha casa, disse que terminaram no apartamento e que se houvesse algo que quisesse levar podia fazê-lo. A verdade é que não quero nada. Esperava nunca ter de vir a este lugar. Em seguida o homem da funerária ligou e disse que precisava do uniforme. E aqui estou. Bosch apanhou o saco de fotografias do sofá e ofereceu-o.

— E isto? Vai quere-las?

— Não.

— Já as vira antes?

— Acredito que algumas sim. As outras com certeza que não.

— Como explica isso? Um homem que guarda fotos toda sua vida e nem sequer mostra-as a esposa.

— Não sei.

— É estranho. Bosch abriu o saco e enquanto repassava as fotos perguntou: — Sabe o que aconteceu com a mãe dele?

— Morreu antes que eu o conhecesse. Teve um tumor cerebral quando ele tinha vinte anos.

— E o pai?

— Cal me contou que morrera, mas já lhe disse que não sei se é verdade, porque nunca me contou como ou quando. Quando eu perguntava, dizia que não queria falar sobre o tema, assim nunca conversamos. Bosch mostrou a foto dos dois meninos na mesa de piquenique.

— Quem é este?


Ela se aproximou de Harry para ver a foto. Ele, em troca, estudou o rosto dela e as faíscas verdes de seus olhos castanhos. Havia um ligeiro aroma a perfume no ar.


— Não sei quem é. Um amigo, suponho.

— Um irmão?

— Não, nunca mencionou um irmão. Quando nos casamos me disse que eu era sua única família. Disse... Disse que estava sozinho. Bosch olhou a foto.

— Eu acho que se parecem. Ela não fez nenhum comentário. — E a tatuagem?

— O que tem a tatuagem?

— Contou-lhe onde a fez ou o que significava?

— Disse-me que a fez no povoado onde morou quando era criança. Bem, não era um povoado, era um bairro. Chamavam-no Santos e Pecadores. Isso é o que a tatuagem significa: Santos e Pecadores. Segundo ele, se chamava assim porque seus habitantes não sabiam o que eram, nem o que seriam no futuro.


Bosch pensou na nota que encontraram no bolso traseiro de Cal Moore: "Descobriram quem eu era". Perguntou-se se ela relacionava o significado desta frase com o lugar onde crescera seu marido. Um lugar onde cada jovem precisava descobrir o que era: santo ou pecador. Sylvia interrompeu seus pensamentos.


— Ainda não me disse por que estava aqui. Sentado às escuras, pensando. Precisava vir aqui para fazer isto?

— Suponho que queria olhar. Queria ver se me ocorria algo, algo que me ajudasse a compreender o seu marido. Parece-lhe ridículo?

— A mim não.

— Menos mal.

— E descobriu algo?

— Ainda não sei. Às vezes custa um pouco.

— Perguntei a Irving por você e ele me disse que não estava investigando o caso e que só veio me avisar na outra noite porque os outros detetives estavam ocupados com os jornalistas e com... Com o cadáver.


Harry notou um comichão de emoção como se fosse um rapazinho. Ela perguntara por ele. Não importava o que descobrira, o importante era que se interessara por ele.


— Bem, respondeu Bosch, — Isso é verdade, mas não totalmente. Teoricamente não estou investigando o caso de seu marido, mas tenho outros casos que parecem estar relacionados com sua morte.


Sylvia cravou seus olhos nos dele. Bosch notava que ela queria perguntar que casos eram, mas fora a mulher de um policial; conhecia as regras. Nesse momento estava certo de que não merecia o que caíra em cima dela.


— Não foi você, não é? Quem avisou a Assuntos Internos. A da carta. Ela negou com a cabeça. — Pensam que você começou tudo.

— Mas não fui eu.

— E o que Irving disse? Quando lhe deu a chave do apartamento.

— Disse que se quisesse o dinheiro da pensão, que esquecesse; que não tivesse ilusões. Ilusões! Como se eu me importasse. Eu sabia que Cal entrou no mau caminho. Não sei o que fez exatamente, mas sei. Uma mulher nota essas coisas sem necessidade de que as contem. E esse foi um dos fatores que acabaram com nosso casamento. Mas eu não enviei nenhuma carta; me comportei como a mulher de um policial até o final. Disse isso ao Irving e ao cara que veio antes, mas não se importaram.

— O cara que veio antes era Chastain, não é?

— Sim, era esse.

— E o que queria exatamente? Disse que procurava algo dentro da casa?

— Chastain mostrou a carta e disse que sabia que eu a escrevera. Repetiu várias vezes que era melhor que contasse tudo. Eu respondi que não fora eu e pedi que saísse. Mas no princípio não quis ir embora.

— O que disse que queria, concretamente?

— Pois... Não me lembro muito bem. Queria ver o saldo do banco e que propriedades nós tínhamos. Disse-me que lhe desse a máquina de escrever e eu respondi que não tínhamos uma. Assim empurrei-o e fechei a porta.


Bosch concordou e tentou encaixar aqueles dados junto aos outros que tinha. Era um verdadeiro quebra-cabeças.


— Não lembra de nada do que a carta dizia?

— Não pude vê-la bem. Chastain não me deixou ler porque pensava e continua pensando que eu a escrevi. Só li um pouco antes que a guardasse no bolso. Dizia algo sobre Cal trabalhar para um mexicano, a quem dava amparo. Algo assim como se fizesse um pacto faustiano. Sabe o que é, não? Um pacto com o diabo.


Bosch concordou, lembrando que ela era professora. Nesse momento também se deu conta de que estavam a dez minutos de pé na sala, mas não fez nenhum gesto para sentar. Temia que qualquer movimento brusco rompesse o encanto, afugentasse-a do apartamento e dele.


— Bem, continuou Sylvia. — Eu não sei se teria sido tão alegórica, mas basicamente a carta dizia a verdade. Quer dizer, que algo acontecera. Eu não sabia o que era, mas via que algo estava matando Cal por dentro. Um dia, isso foi antes de que partisse, finalmente perguntei o que estava acontecendo e ele me disse que tinha cometido um erro e estava tentando corrigi-lo. Não quis me dizer mais; me deixou totalmente por fora.


Finalmente ela se sentou na borda de uma poltrona estofada, sustentando o uniforme em seu regaço. A poltrona era de um verde horrível e tinha queimaduras de cigarro no braço esquerdo. Bosch se sentou no sofá junto ao saco de fotos.


— Irving e Chastain não acreditam, insistiu ela. — Quando nego que fui eu assentem com a cabeça e dizem que a carta tem muitos detalhes íntimos; que somente poderia ser eu. Enquanto isso suponho que há alguém aí fora que estará contente. Sua maldita carta o matou.


Bosch pensou em Kapps e se perguntou se ele conheceria suficientes detalhes sobre Moore para escrever a carta. Kapps estendera uma armadilha para Dance. Talvez também tivesse tentado estender uma armadilha para Moore, mas parecia muito improvável. Possivelmente a carta vinha do próprio Dance porque queria subir no escalão e Moore o incomodava.


Harry se lembrou do café que vira no armário da cozinha e se perguntou se deveria oferecer uma xícara a Sylvia. Não queria que acabasse seu tempo com ela. Queria fumar mas não se arriscar a que lhe pedisse que não o fizesse.


— Quer um café? Há um pouco na cozinha.


Ela olhou para a cozinha como se sua resposta dependesse de sua situação ou estado de limpeza. A seguir respondeu que não, que não planejava ficar tanto tempo.


— Amanhã vou ao México, anunciou Bosch.

— Para Mexicali?

— Sim.

— Pelos outros casos?

— Sim.


Então Bosch contou tudo. Sobre o gelo negro, Jimmy Kapps e Juan 67. E o que relacionava seu marido com Mexicali. Era ali onde esperava resolver o problema. Bosch terminou sua história dizendo:


— Como pode imaginar, pessoas como Irving não querem que isto venha a luz. Não se importam com quem matou Cal porque ele passou para o outro lado. Querem esquecer dele como de uma má dívida. Não vão continuar com o caso porque poderia explodir em suas caras. Entendeu?

— Claro. Fui mulher de um policial.

— Então já sabe. A questão é que eu me importo. Seu marido estava preparando um dossiê para mim; um dossiê sobre o gelo negro. Isso me faz pensar que talvez estivesse tentando fazer algo de bom. Possivelmente tentava fazer o impossível: voltar a mudar de lado. E pode ser que isso o tenha matado. Se essa foi a razão, não quero esquecer do caso.


Houve um comprido silêncio. Sylvia continuava triste, mas seus olhos continuavam vivos e sem lágrimas. Ela endireitou o uniforme em seu regaço, enquanto Bosch escutava o ruído de um helicóptero riscando círculos na lonjura. Los Angeles não seria Los Angeles sem helicópteros da polícia e focos rastreando a noite.


— Gelo negro... Sussurrou ela ao cabo de um momento.

— O que aconteceu?

— Nada, é curioso. Ela ficou calada uns instantes e olhou para a sala como se dando conta pela primeira vez de que aquele era o lugar onde viera morar seu marido depois da separação. — Gelo negro. Eu cresci na área da Baía, nos arredores de São Francisco, e sempre nos diziam que tomássemos cuidado com isso. Embora se referiam ao outro gelo negro. Quando ela olhou-o, viu que Bosch não a compreendia. — No inverno, naqueles dias que faz muito frio depois de chover, quando a água gela na estrada; isso é gelo negro. Está na estrada, no asfalto negro, mas não se vê. Lembro que meu pai me ensinou a dirigir e sempre dizia: "Tome cuidado com o gelo negro, menina! Não se vê o perigo até que se está em cima. E então é muito tarde porque começa a patinar e se perde o controle".


Ela sorriu ao lembrar daquilo.


— Bem, esse era o gelo negro que eu conhecia, ao menos quando garota. Igual à coca; antes era um refrigerante. O significado das palavras pode mudar com o tempo. Bosch se limitou a olhá-la, mas desejava voltar a abraçá-la, a sentir a suavidade daquela face sobre a sua. — Seu pai nunca lhe disse que tomasse cuidado com o gelo negro? Perguntou ela.

— Não conheci meu pai. Aprendi a dirigir sozinho. Ela concordou sem dizer nada, mas tampouco desviou o olhar. — Custou-me três carros aprender a dirigir, explicou Bosch. — Quando finalmente peguei o jeito, ninguém se atrevia a me emprestar um carro. E ninguém me contou sobre o gelo negro.

— Eu lhe contei isso.

— Obrigado.

— Você também está pendurado do passado, Harry? Ele não respondeu. — Suponho que todos nós estamos, respondeu ela mesma. — Estudando nosso passado aprendemos sobre nosso futuro, não é? Parece um homem que continua estudando, ou estou errada?


Os olhos de Sylvia pareciam ler o pensamento dele. Eram olhos com muita sabedoria. E Bosch se deu conta de que apesar de seus desejos na outra noite, ela não precisava que a abraçassem ou aliviassem a sua dor. Era ela quem possuía o poder da cura. Como Cal Moore podia ter fugido daquela maravilha? Bosch mudou de tema, sem saber por quê. Só sabia que devia desviar a atenção de si mesmo.


— Há um porta-retrato no quarto, de madeira de cerejeira, mas sem foto. Lembra-se? Deveria vê-lo.


Ela se levantou, deixou a roupa do marido na cadeira e se dirigiu ao quarto. Examinou o porta-retrato que estava na gaveta superior durante um bom momento antes de dizer que não o reconhecia. Não olhou para Bosch até depois de dizer isso. Ficaram de pé ao lado da cama, se olhando em silêncio. Harry finalmente levantou a mão e em seguida repensou. Ela deu um passo para ele, e ele o interpretou como um convite a que a tocasse. Harry lhe acariciou a face, da mesma maneira que ela fizera momentos antes quando estudou a foto e pensou que estava sozinha. A seguir passou a mão pela lateral do pescoço e pela nuca de Sylvia.


Os dois se olharam fixamente até que Sylvia se aproximou e aproximou sua boca a de Bosch. Agarrou-o pela nuca, puxou-o brandamente e se beijaram. Sylvia abraçou-o com uma intensidade que revelava sua necessidade de ternura. Ao vê-la lhe beijando com os olhos fechados, compreendeu que ela era um reflexo exato de sua própria fome e solidão.


Fizeram amor na cama desfeita de seu marido, sem prestar atenção aonde estavam, nem o que significaria o dia, a semana ou o ano seguinte. Bosch manteve os olhos fechados; queria se concentrar em outros sentidos para apreciar o aroma, o sabor e o tato de Sylvia. Quando acabaram, ele recostou sua cabeça sobre ela, entre seus seios sardentos. Acariciava-lhe o cabelo e brincava com seus cachos.


E ouvia pulsar o coração de Sylvia, no compasso do dele.


* * *


Dezenove

PASSAVA da uma da madrugada quando Bosch e entrou na Woodrow Wilson e iniciou a longa e sinuosa ascensão para casa. Pelo caminho viu os focos dos estudos Universal riscando oitos sobre as nuvens baixas. Bosch se viu obrigado a ir se desviando dos carros estacionados em fila dupla, devido às numerosas festas natalinas que se comemoravam nesses dias. Também precisou evitar uma árvore de natal que o vento derrubara sobre a estrada e da qual estava pendurada uma só guirlanda. No assento junto a ele levava a Budweiser solitária da geladeira de Cal Moore e a pistola de Lucius Porter.


Toda sua vida Harry acreditara que estava vivendo mal para chegar a algo melhor, que a vida tinha um significado. No refúgio para jovens, nos lares de acolhida, no exército e Vietnã, e por último no departamento, Harry sempre tinha a sensação de estar lutando para chegar a alcançar algum tipo de decisão ou para estabelecer um objetivo claro. Sabia que havia algo de bom nele ou para ele, mas a espera era difícil. Uma espera que frequentemente deixava um vazio na alma. Harry acreditava que as pessoas podiam vê-lo; que ao vê-lo se davam conta de que era vazio por dentro. Aprendera a encher o oco com isolamento e trabalho e às vezes com a bebida e o som do saxofone, mas nunca com pessoas. Nunca deixara que alguém se aproximasse totalmente. Entretanto, nesse momento pensava que vira os olhos de Sylvia Moore, seus olhos de verdade, e se perguntava se ela seria a pessoa que ia completá-lo.


— Quero voltar a vê-la, dissera Bosch quando se separaram no The Fountains.

— Sim, foi sua única resposta. Sylvia lhe acariciou a face e entrou no carro.


Enquanto dirigia, Harry pensava no significado dessa única palavra e dessa carícia. Sentia-se feliz. E isso era algo novo para ele. Ao dobrar a última curva Bosch diminuiu para deixar passar um carro com as luzes acesas, enquanto lembrava ao mesmo tempo que ela olhara o porta-retratos antes de dizer que não o reconhecia. Seria mentira? Quantas possibilidades havia de que Cal Moore comprasse um porta-retratos tão caro depois de se mudar para um apartamento tão sujo quanto aquele? Não muitas, na verdade.


Quando chegou à garagem de sua casa, era um rodamoinho de sentimentos contraditórios. O que havia na foto? Que importância tinha para que ela mentisse? Se é que o fizera. Ainda no carro, Bosch abriu a cerveja e bebeu-a tão rápido que umas gotas escorregaram pelo pescoço. Sabia que essa noite dormiria bem.


Uma vez dentro de casa, se dirigiu à cozinha, colocou a pistola de Porter em um armário e deu uma olhada na secretária eletrônica. Não havia nenhuma mensagem. Nenhuma ligação de Porter para explicar por que desaparecera. Nem de Pounds perguntando como estava. Nem de Irving dizendo que sabia o que Bosch tinha entre as mãos. Depois de duas noites sem dormir, Bosch morria de vontade de se deitar. Quase sempre acontecia a mesma coisa e já fazia parte de sua rotina: noites de descanso intermitente e pesadelos, seguidas de uma noite em que o esgotamento o vencia e mergulhava em um sono profundo.


Ao se enfiar na cama, notou que ainda restavam partes do aroma do perfume de Teresa Corazón nos lençóis e travesseiros. Fechou os olhos e pensou nela um momento, mas em seguida sua imagem foi deslocada pelo rosto de Sylvia Moore. Não o da foto do saco, nem o da mesinha de cabeceira, mas o seu rosto de verdade. Tinha uma expressão cansada, mas forte, com os olhos fixos nos de Bosch.


O sonho que Harry teve aquela noite se parecia com outros que tivera anteriormente. Estava em um lugar escuro; estava envolto por um negrume cavernoso onde só se ouvia sua própria respiração. Bosch sentia, ou melhor, sabia com a certeza habitual que possuía em seus sonhos que a escuridão terminava mais adiante e que ele devia atravessá-la. Mas,diferentemente de outras ocasiões, dessa vez não se achava sozinho. Estava com Sylvia, e os dois se abraçavam na escuridão. O suor empapava suas testas; Harry a segurava e ela a Harry, mas não se falavam. Os dois começaram a avançar pela escuridão para a tênue luz que se distinguia na distância. Bosch estendia para diante a mão em que empunhava a Smith & Wesson, enquanto sua mão direita segurava a de Sylvia para guiá-la. No final do túnel, Calexico Moore estava esperando-os com a escopeta. Não se escondia, mas sua silhueta se recortava contra a luz que entrava no passadiço. Seus olhos verdes estavam ocultos na sombra e sorria. Então elevou a escopeta.


— Quem disse que caguei tudo? Perguntou.


O estrondo na escuridão foi ensurdecedor. Bosch viu as mãos de Moore sair voando por cima de seu corpo como aves capturadas que tentavam reiniciar o voo. Moore voltou rapidamente para a escuridão e desapareceu. Não caíra, mas desaparecera. Foi-se. A única coisa que ficara atrás dele era a luz no final do túnel. Harry continuava segurando Sylvia com uma mão, mas na outra agora sustentava a pistola fumegante. Então abriu os olhos.


Bosch se sentou na cama. Os raios do sol passavam pelas cortinas das janelas que davam ao este. O sonho parecera muito breve, mas a luz indicava que dormira até a manhã. Quando consultou seu relógio já eram seis horas. Bosch não tinha despertador porque não precisava. A seguir esfregou o rosto com as mãos e tentou reconstruir a cena, um pouco habitual nele. Uma das especialistas em problemas de sonho da clínica da Associação de Veteranos aconselhara que escrevesse sempre tudo o que lembrasse de seus pesadelos. Segundo ela, era um bom exercício para tentar informar à mente consciente do que estava dizendo o subconsciente. Durante meses Bosch guardou obedientemente uma caderneta e uma caneta na mesinha de cabeceira a fim de descrever todas as suas lembranças matinais. Mas descobriu que não serviam de nada. Por muito que compreendesse a origem de seus pesadelos, não conseguia eliminá-los. Por essa razão há anos que Harry largara a terapia contra a insônia.


Curiosamente nessa manhã não lembrava de nada. O rosto de Sylvia desaparecera entre as sombras e a única coisa que Bosch sabia era que suara muito. Harry se levantou, tirou os lençóis e jogou-os dentro de uma cesta. Depois foi à cozinha e ligou a cafeteira. Em seguida tomou banho, se barbeou e se vestiu com jeans, uma camisa de veludo cotelê verde e uma jaqueta negra; roupa para dirigir. Finalmente voltou para a cozinha e encheu uma garrafa térmica com café.


A primeira coisa que levou para o carro foi a pistola. Depois de levantar o carpete que cobria o fundo do porta-malas, Bosch retirou a chave de roda e o estepe. Então colocou o Smith & Wesson, que tirara de sua capa e envolvido em um oleado, e pôs o estepe em cima. Em seguida pôs a chave de roda e em seguida voltou a colocar o carpete em seu lugar. Para arrematar, colocou uma bolsa com roupa limpa para um par de dias. Tudo parecia normal, e além disso duvidava que chegassem a revistá-lo.


Bosch retornou e tirou sua outra pistola do armário do saguão. Era uma quarenta e quatro com a empunhadura e a segurança desenhados para uma pessoa destra. O tambor se abria para a esquerda, por isso ele que era canhoto não podia usá-la. Entretanto, guardara-a durante seis anos porque recebera de presente do pai de uma garota que tinham estuprado e assassinado. Harry ferira levemente o assassino no transcurso de sua captura perto da represa da Sepúlveda, em Van Nuys. O assassino sobrevivera e cumpria prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, mas aquele castigo não fora suficiente para o pai. Depois do julgamento dera sua pistola a Bosch e este aceitou-a porque não fazê-lo seria como negar a dor do homem. A mensagem implícita naquele presente era: "Da próxima vez faça bem seu trabalho. Atire para matar". Harry ficou com a pistola, mas nunca levou-a a um armeiro para que a adaptasse para uma pessoa canhota. Isso seria dar razão ao pai e Harry não estava seguro de poder fazê-lo. A pistola passara seis anos em um armário. Bosch verificou que ainda funcionava e carregou-a. Depois de colocá-la em sua cartucheira, estava preparado para partir. Antes de sair, apanhou a garrafa térmica na cozinha e se inclinou sobre a secretária eletrônica para gravar uma nova mensagem:


Bosch. Fui ao México passar o fim de semana. Se quer deixar uma mensagem, espere o sinal. Se for importante e precisar me localizar, estarei no Hotel Del Anza, em Calexico.


Ainda não eram sete horas quando Bosch desceu a colina. Pegou a autoestrada de Hollywood em direção ao centro, onde os arranha-céus de escritórios eram manchas opacas entre a mescla matinal de névoa e contaminação, e se dirigiu à autoestrada de São Bernardino onde rumou para o este, para fora da cidade. De Los Angeles eram quatrocentos quilômetros até a localidade fronteiriça de Calexico e sua cidade irmã no outro lado da fronteira, Mexicali, por isso Harry calculou que chegaria antes do meio-dia. Depois de se servir uma xícara de café sem derramar uma gota, Bosch começou a apreciar a viagem.


A contaminação de Los Angeles não começou a limpar até que Bosch passou a saída de Yucaipa no condado de Riverside. Depois disso o céu ficou de um azul como o do oceano dos mapas que trazia no assento. Era um dia sem vento, tal como verificou Harry ao passar junto a um centro de energia eólica nos subúrbios de Palm Springs. Na neblina matinal do deserto as hélices imóveis de centenas de geradores elétricos adquiriam um aspecto sinistro. Para Harry lembrava um cemitério e desviou o olhar.


Bosch atravessou as opulentas populações de Palm Springs e do Rancho Mirage, passando por ruas com nomes de presidentes admiradores de golfe e gente famosa. Enquanto dirigia pela Bob Hope Drive, se lembrou de uma vez que vira o comediante no Vietnã. Depois de retornar de uma missão de treze dias nos túneis da província de Ku Chi, o número do Bob Hope parecera divertidíssimo. Entretanto, quando anos mais tarde passaram imagens do mesmo espetáculo na televisão, achou-o deprimente.


Passado o Rancho Mirage, Bosch pegou a rota 86 e se dirigiu ao sul. Para Harry, iniciar uma viagem pela rodovia era sempre emocionante; adorava a aventura do novo mesclada com o nervosismo ante o desconhecido. Além disso, estava convencido de que as suas melhores ideias apareciam dirigindo. Nesse momento estava repassando mentalmente sua revista no apartamento de Moore e tentando procurar significados ou mensagens escondidas. O mobiliário desarrumado, a mala vazia, a revista pornográfica e o porta-retratos sem foto... Moore deixara atrás de si um rastro desconcertante. Bosch voltou a pensar no saco das fotos, que Sylvia finalmente levara após mudar de opinião. Harry lamentava não ter ficado com a foto dos dois garotos, e a do pai e do filho.


Diferentemente de Moore, Bosch não possuía fotografias do próprio pai. e para Sylvia disse que não o conhecera, embora isso fosse só uma meia verdade. Harry cresceu sem saber quem era o pai e aquilo não lhe importava muito, ao menos conscientemente, mas quando retornou da guerra teve uma necessidade premente de conhecer suas origens. Por isso decidiu procurar o seu progenitor depois de vinte anos de ignorar inclusive o seu nome. Quando as autoridades retiraram a custódia de sua mãe, a infância de Harry passara em uma série de refúgios para jovens e famílias de acolhida. Nos orfanatos de McLaren, São Fernando e demais, consolavam-no as visitas de sua mãe, que eram muito frequentes exceto quando metiam-na na cadeia. Sua mãe afirmava que não podiam enviá-lo a uma família de acolhida sem seu consentimento. Também contava que tinha um bom advogado e que estava fazendo todo o possível para recuperar a custódia.


No dia que a diretora do McLaren lhe disse que as visitas se acabaram porque sua mãe morrera, Harry não absorveu a notícia como faziam a maioria dos meninos de onze anos. Não mostrou nada exteriormente; concordou com a cabeça para dizer que o compreendia e partiu. Não obstante, nesse mesmo dia, durante a hora da piscina, mergulhou até o fundo da parte mais profunda e gritou com todas suas forças. Gritou tanto, que acreditou que o ruído chamaria a atenção do socorrista.


Harry subia para pegar ar e voltava a desceu; gritou e chorou até se esgotar. No final só restaram forças para se aguentar na escada da piscina; seus frios tubos de aço foram os únicos braços que o consolaram. A única coisa que pensava então era que gostaria de estar lá, de tê-la protegido de algum modo. Depois daquilo o classificaram como DPA, Disponível para Adotar. E então começou a passar por uma procissão de famílias, onde sempre se sentia à prova. Quando não cumpria as expectativas enviavam-no para uma nova família, um novo casal de julgadores. Em uma ocasião um casal devolveu-o ao McLaren por causa de seu costume de comer de boca aberta. E noutra vez, antes que o mandassem para uma casa do vale de São Fernando, uns eleitores tal como os meninos os chamavam, levaram Harry e outros meninos de treze anos para jogar um pouco de beisebol. No final da partida escolheram Harry, mas este em seguida se deu conta de que não possuía as virtudes próprias de um garoto de sua idade, mas sim porque o homem estava há tempos procurando um canhoto. Seu plano era treinar um pitcher e os canhotos eram os melhores.


Depois de dois meses de exercícios diários, lições de beisebol e aulas teóricas sobre estratégias do jogo, Harry fugiu. A polícia demorou seis semanas para localizá-lo rondando pelo Hollywood Boulevard. Dali o retornaram ao McLaren para esperar o casal seguinte de Eleitores. Os meninos sempre precisavam ficar erguidos e sorrir quando os eleitores passavam pelo quarto.


Bosch começou a busca de seu pai no registro civil do condado. A certidão de nascimento de Hieronymus Bosch do hospital Queen of Angels, com data de 1950, dizia que sua mãe era Margerie Philips Lowe e que o nome de seu pai era o mesmo que o seu: Hieronymus Bosch. Certamente, Harry sabia que isto não era verdade. Sua mãe lhe contara em uma ocasião, que pusera o nome de um pintor que gostava. Disse-lhe que seus quadros, pintados há mais de quinhentos anos, eram um retrato perfeito de Los Angeles, uma paisagem de pesadelo cheio de depredadores e vítimas. Prometeu-lhe que lhe diria o nome verdadeiro de seu pai quando chegasse a hora. Entretanto, encontraram-na morta em um beco junto ao Hollywood Boulevard antes que esse momento chegasse.


Harry contratou um advogado para solicitar ao juiz do tribunal de menores que lhe permitisse examinar seus próprios documentos de custódia. A petição foi concedida e Bosch passou uns quantos dias nos arquivos do condado. Ali entregaram um enorme maço de papéis que documentavam as numerosas, mas vãs, tentativas de Margerie Lowe de recuperar a custódia do filho. Embora para Bosch parecera um achado reconfortante, não conseguiu descobrir o nome de seu pai; se encontrava em um beco sem saída.


Entretanto, quando anotou o nome do advogado que ajudara a sua mãe J. Michael Haller, caiu na conta de que o conhecia. O filho, Mickey Haller, era um dos defensores mais importantes de Los Angeles. Trabalhara no caso de uma das meninas Manson e, no final dos anos cinquenta, conseguira que soltassem o Autopista, um guarda de trânsito acusado de estuprar sete mulheres depois de pará-las por excesso de velocidade em lugares solitários da autoestrada Golden State. Que fazia, pois, J. Michael Haller na custódia de um menino?


Seguindo pouco mais que uma intuição, Bosch foi aos tribunais penais e solicitou todos os arquivos de sua mãe. Ao folheá-los, descobriu que, além da batalha legal por sua custódia, Haller representara Margerie P. Lowe em seis acusações por vagabundear entre 1948 e 1961, quando já era um reputado defensor.


Nesse momento Bosch soube.


No andar superior de um arranha-céu da Pershing Avenue, a recepcionista do escritório de advogados lhe disse que Haller se aposentara recentemente por doença. Seu endereço não aparecia na Lista Telefônica, mas no censo eleitoral do Partido Democrata. Morava em Canor Drive, Beverly Hills. Bosch nunca esqueceria as roseiras que flanqueavam o caminho de entrada da mansão de seu pai. As rosas eram perfeitas.


A camareira que abriu a porta informou que o senhor Haller não recebia visitas. Bosch lhe rogou que dissesse ao senhor Haller que o filho do Margerie Lowe viera apresentar seus respeitos. Dez minutos mais tarde, conduziram-no ao quarto do advogado, passando por diante dos membros da família, que estavam no corredor e o olhavam desconcertados. O velho ordenara que saíssem do quarto e trouxessem Bosch sozinho. De pé junto à cama, Harry calculou que Haller pesaria uns quarenta quilos; não precisou perguntar o que acontecia porque era evidente que o câncer o estava comendo por dentro.


— Acredito que sei por que veio, disse com voz cansada.

— Só queria... Não sei.


Bosch ficou um bom momento em silêncio, vendo o muito que custava ao homem manter os olhos abertos. Também notou que, debaixo dos lençóis havia um tubo conectado a uma máquina que apitava quando bombeava morfina no sangue do moribundo. O velho, por sua parte, observava Bosch sem dizer nada.


— Não quero nada de você, disse Bosch finalmente. — Não sei, acredito que só queria que soubesse que sobrevivi. Estou bem.

— Foi à guerra?

— Sim, mas isso já passou.

— Meu filho... Meu outro filho, ele... Eu não permiti que fosse... O que vai fazer agora?

— Não sei. Ao cabo de mais silêncio, o velho pareceu assentir com a cabeça.

— Chama-se Harry. Sua mãe me disse. Contou-me muitas coisas de você... Mas eu não poderia... Entende? Eram outros tempos. E depois, quando tantos anos já tinham se passado já não podia... Dar marcha a ré.


Bosch se limitou a assentir. Não viera para causar mais dor a aquele homem. Permaneceram uns segundos mais em silêncio durante os quais Bosch escutou sua difícil respiração.


— Harry Haller, sussurrou o velho, com um meio sorriso nos lábios finos e cortados pela quimioterapia. — Esse poderia ter sido você. Leu Hesse?


Bosch não compreendia, mas voltou a assentir. Então ouviu um assobio. Ficou um minuto olhando, à espera de que a dose de morfina surtisse efeito. O velho fechou os olhos e suspirou.


— É melhor eu ir, disse Harry. — Cuide-se.


Bosch tocou a mão frágil e azulada do homem. Este lhe segurou os dedos com força, quase desesperadamente e depois soltou. Quando Bosch se dispunha a abrir a porta, ouviu o pigarro do velho.


— Perdão, o que disse?

— Disse que sim. Que me preocupei com você. Uma lágrima apareceu na extremidade do olho do velho e escorreu até desaparecer entre seus cabelos brancos. Bosch voltou a assentir.


Duas semanas mais tarde se achava em uma colina sobre a área de Good Shepherd em Forest Lawn, acompanhando o enterro de um pai a quem nunca conhecera. No cemitério viu um grupinho de pessoas que deveriam ser suas meio-irmãs e seu meio-irmão. Este nascido provavelmente uns quantos anos antes de Bosch, esteve observando-o durante a cerimônia. Quando esta terminou, Harry deu meia volta e foi embora.


Perto das dez Bosch parou em um restaurante de estrada chamado O Oásis Verde, onde comeu ovos mexidos. De sua mesa se via o lago de águas calmas chamado Salton Sea e, na lonjura, as montanhas Chocolate. Bosch desfrutou em silêncio da beleza e amplitude da paisagem. Quando acabou e a garçonete encheu a garrafa térmica de café, Harry caminhou para o estacionamento de terra onde deixara o Caprice. Ao chegar ao carro, Bosch se apoiou um momento no para-choque para respirar o ar puro e fresco, e voltar a admirar a paisagem. Seu meio-irmão se convertera em um conhecido defensor, enquanto ele era policial. Havia uma estranha coerência naquilo que para Bosch parecia correto. Até então nunca conversaram e certamente nunca o fariam.


Bosch continuou para o sul pela rota 86 atravessando a planície que ia de Salton Sea às montanhas da Santa Rosa. A terra era de cultivo e ia descendo lentamente até mais abaixo que o nível do mar: o famoso Vale Imperial. O terreno estava sulcado por canais de irrigação, por isso, durante grande parte da viagem, acompanhou-o o aroma de verduras frescas. De vez em quando, saíam caminhões das granjas carregados com caixas de alfaces, espinafres ou coentro. Embora impedindo-o de ir mais depressa, Harry não se importava e simplesmente esperava com paciência a oportunidade de ultrapassá-los.


Perto de um povoado chamado Vallecito, Bosch parou um momento a um lado da estrada para observar um esquadrão de aviões que sobrevoava com estrépito uma das montanhas do sudoeste. Os aparelhos cruzaram a 86 e passaram por cima das águas do Salton Sea. Apesar de que Bosch não soubesse nada sobre os modernos aviões de guerra, muito mais rápidos e sofisticados que os que lembrava de ver no Vietnã, estes voavam suficientemente baixo para distinguir as mortíferas munições sob suas asas. Bosch observou os três bombardeiros formar um triângulo compacto e dar meia volta. Depois que o sobrevoaram, Harry consultou seus mapas e encontrou uma área ao sudoeste fechada ao público; se tratava da Base de Artilharia Naval dos Estados Unidos no monte Superstition. O mapa dizia que era uma área de provas com fogo real e advertia as pessoas que se afastassem.


Bosch sentiu que uma vibração surda sacudia o carro ligeiramente e, continuando, ouviu o estrondo. Ao levantar os olhos, pareceu distinguir uma coluna de fumaça que se elevava da base do Superstition. Em seguida, sentiu e ouviu cair outra bomba. E em seguida outra. Refletindo os raios do sol, os aviões de pele prateada passaram outra vez por cima de sua cabeça dispostos a iniciar uma segunda manobra. Nesse momento, Bosch voltou para a estrada e foi parar atrás de um caminhão com dois adolescentes sentados na parte traseira. Os garotos eram jornaleiros mexicanos com olhos cansados que já pareciam conhecer a longa e dura vida que os esperava. Teriam a mesma idade que os dois rapazes que apareciam sobre a mesa de piquenique na foto de Moore e olhavam para Bosch com indiferença.


Em seguida teve ocasião de ultrapassar o caminhão. Continuou ouvindo explosões vindas da montanha Superstition durante um bom tempo mesmo enquanto se afastava. No caminho passou diante de mais granjas, restaurantes para a família toda e uma fábrica de açúcar onde havia um enorme silo com uma linha pintada que indicava o nível do mar.


No verão depois de falar com o pai Bosch comprara os livros de Hesse. Sentia curiosidade em saber o que o velho queria dizer e encontrou a resposta no segundo livro que leu. Naquele texto Harry Haller era um personagem, um homem solitário e desiludido, um homem sem verdadeira identidade. Harry Haller era o lobo das estepes. Em agosto Bosch entrara para a Polícia.


Bosch sentiu que o terreno se elevava e lhe tamparam os ouvidos. A terra de lavoura se abria a um terreno árido onde o pó formava redemoinhos que se elevavam sobre a vasta paisagem. Harry soube que se achava perto da fronteira muito antes de passar a placa que indicava que Calexico ficava a trinta e dois quilômetros de distância.


* * *


Vinte

CALEXICO era como a maioria de cidades fronteiriças: poeirenta e construída ao mesmo nível chão. A rua principal era uma variada mescla de letreiros de néon e plástico onde os onipresentes arcos dourados do MacDonald's eram o único ícone reconhecível embora não necessariamente reconfortante entre os escritórios de seguros de automóveis e as lojas de lembranças mexicanas.


Na cidade a rota 86 se une a 111, uma estrada que leva diretamente à fronteira. Formara-se uma fila de cinco quadras até a guarita de cimento enegrecida pela fumaça dos escapamentos, de onde a polícia federal mexicana controlava a passagem de veículos. Para Bosch lembrou o sacrifício das cinco da tarde para entrar na autoestrada 101 da Broadway. Antes de ficar preso nela, Harry virou para o este na Fifth Street, passou diante do Hotel del Anza e dirigiu duas quadras mais até a delegacia de polícia. Esta ficava em um edifício de dois andares pintado de um amarelo berrante. Pelas placas de fora Bosch compreendeu que também fazia às vezes de prefeitura. E de quartel de bombeiros. E de sede da Associação Histórica.


Bosch encontrou um espaço para estacionar bem na frente dela. Ao abrir a porta do carro, cheio de pó depois da viagem, ouviu gente que cantava no parque do outro lado da rua. Cinco mexicanos bebiam Budweiser ao redor de uma mesa de piquenique. Um sexto homem, que usava uma camisa de cowboy negra com bordados brancos e um Stetson de palha, tocava violão e entoava uma canção em espanhol. Como cantava devagar, Harry não teve problema em entendê-la:


Não sei como lhe querer,

nem sequer sei como lhe abraçar,

porque o que nunca me deixa

é esta dor que me atormenta.


A voz chorosa do cantor se ouvia claramente por todo o parque. Bosch gostou da canção, assim se apoiou contra o carro e ficou fumando até que o homem acabou.


Os beijos que me deu, meu amor

são os que me estão matando.

Mas minhas lágrimas se estão secando

com minha pistola e meu coração,

e aqui como sempre vou vivendo,

com a pistola e o coração.


Ao terminar, os homens da mesa de piquenique aplaudiram e brindaram com as cervejas. Bosch se dirigiu para a porta de vidro marcada com a palavra "Polícia" e entrou em uma sala fedorenta do tamanho da parte traseira de uma caminhonete. À esquerda havia uma máquina de Coca-Cola, em frente uma porta de fechamento eletrônico e à direita um guichê de vidro grosso com uma bandeja para passar objetos de um lado a outro. Atrás do vidro se achava um agente uniformizado e, ao fundo, uma mulher sentada frente a um posto telefônico de rádio. Um pouco além do posto telefônico havia uma parede com divisórias quadradas de uns trinta por trinta centímetros.


— Não pode fumar, avisou o homem.


O agente, um homem gordo com óculos espelhados, usava uma placa com seu nome sobre o bolso da camisa. Chamava-se Gruber. Bosch retrocedeu, abriu a porta e jogou a bituca fora.


— Não sei se sabe que em Calexico sujar as ruas se castiga com uma multa de cem dólares. Harry mostrou seu distintivo e identificação.

— Mande-me a fatura, disse. — Preciso consignar uma pistola. Gruber sorriu de maneira zombeteira, revelando feias gengivas liliáceas.

— Eu masco tabaco. Assim evito esse problema.

— Já notei. Gruber franziu o cenho e precisou pensar um momento antes de compreender o comentário.

— Pois me entregue, disse finalmente. — Para consignar uma pistola primeiro terá que entregá-la.


Gruber se voltou para a operadora para ver se o apoiava neste duelo verbal, mas ela permaneceu impassível. Enquanto observava a pressão que exercia a barriga de Gruber sobre os botões de seu uniforme, Bosch tirou a quarenta e quatro da cartucheira e depositou-a na bandeja.


— Quarenta e quatro, anunciou Gruber, ao mesmo tempo que levantava a pistola para examiná-la. — Quer deixar a cartucheira? Bosch não pensara nisso. Precisava da cartucheira; se não, deveria colocar o Smith na cintura e se arriscar a que caísse se precisasse correr.

— Não, respondeu. — Só a pistola.


Gruber lhe piscou o olho e levou-a às divisórias, abriu uma e colocou a pistola dentro. Depois de fechá-la, pegou a chave e voltou para o guichê.


— Deixe-me ver sua identificação. Preciso fazer um recibo.


Bosch deixou cair sua carteira na bandeja e viu Gruber enquanto preenchia lentamente um recibo com cópia. O homem parecia ter que consultar o documento de identidade a cada duas letras.


— De onde tirou esse nome?

— Pode escrever Harry para abreviar.

— Já escrevi, mas não me peça que o pronuncie. Quando Gruber terminou, pôs os recibos na bandeja e pediu a Harry que os assinasse, coisa que este fez com sua própria caneta.

— Um canhoto que deixa uma pistola para destros, comentou Gruber. — Que coisa estranha. Gruber voltou a piscar o olho para Bosch, mas este simplesmente ignorou. — É só um comentário, se desculpou o agente. Harry deixou um dos recibos na bandeja e, em troca, Gruber lhe entregou a chave numerada da divisória. — Cuidado, não a perca, disse.


Quando Bosch voltou para o Caprice, os homens continuavam na mesa de piquenique, mas já não cantavam. Entrou no carro e guardou a chave no cinzeiro, que nunca usava quando fumava. Ao arrancar, Harry notou um velho de cabelo branco que abria a porta sob a placa de Sociedade Histórica. Finalmente Bosch deu marcha a ré e rumou para o hotel.


O Hotel del Anza era um edifício de três andares no estilo colonial com uma antena parabólica no telhado. Bosch estacionou no caminho cimentado da entrada; seu plano era se registrar, deixar a bolsa no quarto, lavar o rosto e depois cruzar a fronteira para Mexicali. Quando entrou no estabelecimento, viu um rapaz depois do balcão vestido com uma camisa branca e uma gravata marrom fazendo conjunto com o colete. Não teria muito mais de vinte anos. No colete, uma chapa identificava-o como Miguel, auxiliar de recepção. Bosch pediu um quarto, preencheu um impresso e devolveu-o ao recepcionista.


— Ah sim, senhor Bosch. Temos algumas mensagens para você.


Então Miguel se dirigiu para uma cesta metálica e tirou três papeizinhos. Dois dos recados eram de Pounds e o outro de Irving. Bosch verificou a hora de cada ligação e descobriu que as três foram feitas nas últimas duas horas. Primeiro Pounds, em seguida Irving, depois Pounds outra vez.


— Têm um telefone? Perguntou a Miguel.

— Sim, senhor. Lá à direita.


Harry ficou olhando o auricular pensando no que fazer. Acontecera alguma coisa já que, de outro modo, não tentariam localizá-lo com tanta urgência, algo que os obrigara a ligar para sua casa e ouvir a mensagem gravada na secretária eletrônica. O que podia ter acontecido? Usando seu cartão de crédito telefônico, Bosch ligou para a mesa de Homicídios com a esperança de que algum colega contasse o que estava acontecendo. Jerry Edgar atendeu quase imediatamente.


— Jed, o que aconteceu? Estou com mensagens dos chefões até as orelhas. Houve um comprido silêncio. Muito comprido. — Jed?

— Harry, onde está?

— No sul.

— Onde?

— O que aconteceu, cara?

— Esteja onde estiver, Pounds o quer aqui. Ordenou-nos que lhe disséssemos que voltasse imediatamente. Disseram que...

— Por quê? O que aconteceu?

— Porter. Encontraram-no nesta manhã no Sunshine Canyon, estrangulado. Apertaram tanto o cabo que lhe deixaram o pescoço como um relógio de pulso.

— Porra. Bosch puxou seus cigarros. — Porra.

— Sim.

— E que fazia lá em cima? Sunshine... Isso fica no lixão da Divisão de Foothill, não é?

— Porra, Harry. Levaram-no para lá. Claro. Bosch deveria ter compreendido. Não estava pensando com lógica.

— Certo. O que aconteceu exatamente?

— Encontraram o corpo nesta manhã. Descobriu-o um caminhoneiro. O cadáver estava cheio de lixo, mas os de Roubos e Homicídios identificaram algumas coisa, entre elas faturas de restaurantes. Daí conseguiram o nome da companhia de limpeza e descobriram qual caminhão passava por diante desses lugares. Pelo visto fez uma rota pelo centro ontem pela manhã. Estamos trabalhando com eles; eu ia sair agora mesmo para investigar o percurso do caminhão. Assim que encontremos o latão onde o jogaram, poderemos começar a amarrar os cabos.


Bosch pensou no latão de lixo atrás do Poe's e compreendeu que Porter não fugira dele. Certamente fora executado enquanto Bosch se fazia de engraçado com o garçom. De repente se lembrou do homem com as lágrimas tatuadas. Como não se dera conta? Provavelmente estivera a três metros do assassino de Porter.


— Não vi o corpo, mas dizem que lhe deram uma surra antes de matá-lo, prosseguiu Edgar. — Tinha a cara feito pó; o nariz quebrado e um monte de sangue. Porra, cara, que forma horrível de morrer.


A polícia não demoraria muito em entrar no Poe's com fotos de Porter. O garçom se lembraria do rosto e descreveria Bosch encantado como o homem que entrara, dissera que era policial e atacara Porter. Bosch se perguntou se deveria contar a Edgar para economizar a peregrinação dele de bar em bar. Entretanto, ao final seu instinto de sobrevivência impediu de mencioná-lo.


— Por que Pounds e Irving querem me ver?

— Não sei. Primeiro mataram Moore, em seguida Pounds. Talvez estejam reunindo as tropas, pondo às pessoas a salvo. Corre o rumor de que os dois casos são na realidade um só e que Moore e Pounds faziam algum tipo de trato. Irving já organizou uma operação conjunta para os dois casos. Bosch não disse nada. Estava tentando pensar; agora tudo adquiria um significado diferente.

— Escute bem, Jed. Você não sabe nada de mim. Não falamos, de acordo? Edgar pensou um pouco antes de dizer:

— Está seguro?

— No momento sim. Já lhe ligarei.

— Tome cuidado.


"Cuidado com o gelo negro", lembrou Bosch ao desligar. Apoiou-se um momento na parede e pensou em Porter. Como podia ter acontecido? Instintivamente levou a mão ao quadril, mas aquilo não o reconfortou, já que a cartucheira estava vazia. Tinha duas opções: continuar até Mexicali ou voltar para Los Angeles. Sabia que retornar significaria o final de seu trabalho no caso, já que Irving o separaria da investigação como a uma mosca irritante. Então se deu conta que não tinha escolha; devia continuar. Assim, Bosch tirou uma nota de vinte dólares do bolso e voltou para recepção.


— Sim, senhor?

— Quereria anular meu quarto, anunciou Bosch, oferecendo a Miguel a nota de vinte dólares.

— Muito bem. Não há encargo porque você não usou o quarto.

— Não, isto é para você, Miguel. Tenho um pequeno problema. Não quero que ninguém saiba que estive aqui, entendeu?


Miguel era jovem, mas preparado, assim disse a Bosch que não havia nenhum problema. Em seguida pegou a nota do balcão e guardou-a no colete. Então Bosch lhe devolveu as mensagens.


— Se voltarem a ligar, diga que não passei para recolhê-las, de acordo?

— Sim, senhor.


Ao cabo de alguns minutos, Bosch já estava na fila para cruzar a fronteira. Enquanto esperava, observou que o edifício da Alfândega e da Patrulha Alfandegária dos Estados Unidos era tão grande que, a seu lado, seu equivalente mexicano parecia ridículo. A mensagem estava clara; sair dos Estados Unidos não era difícil, mas entrar era outra coisa. Quando chegou a sua vez, Bosch mostrou seu distintivo pela janela e, assim que o oficial mexicano o pegou, mostrou o recibo da delegacia de polícia de Calexico.


— Viagem de trabalho? Perguntou o agente. Usava um uniforme que alguma vez devia ter sido ser cáqui e uma boina manchada de suor.

— Sim, visita oficial. Tenho uma reunião no prédio da Justiça.

— Ah. Sabe como chegar lá? Bosch mostrou um dos mapas do assento e confirmou. O oficial estudou o recibo rosa.

— Não está armado? Perguntou enquanto lia o papel. — Deixou seu quarenta e quatro, não?


O oficial sorriu e Bosch pareceu notar um indício de incredulidade em seus olhos, mas finalmente concordou e deixou-o passar. Assim que arrancou, o Caprice se viu engolido por uma corrente de automóveis que se moviam por uma grande avenida sem faixas pintadas. Não se ouviam buzinadas e o trânsito avançava com fluidez. Tanto era assim, que Bosch não pôde consultar seu mapa até chegar a um semáforo em vermelho, a mais de um quilômetro de distância. Quando o fez, descobriu que estava na Rua López Mateos, uma rua que o levaria até as portas das dependências judiciais na parte sul da cidade. Então o semáforo ficou verde e o trânsito voltou a se movimentar. Bosch se relaxou um pouco e olhou ao seu redor, com um olho sempre posto nas rápidas mudanças de faixa. A ambos os lados da rua existiam lojas e fábricas velhas, com suas fachadas de cor bolo enegrecidas pela fumaça dos veículos que a atravessavam diariamente. Para Bosch pareceu deprimente. Também se viam vários ônibus escolares da marca Chevrolet, que embora estivessem pintados de cores vivas, não conseguiam alegrar a cena. Em um dado momento, a rua se curvava para o sul e chegava a uma intercessão com um monumento no centro: uma escultura equestre de cor dourada. Bosch notou que alguns homens, a maioria com chapéu de cowboy de palha, rodeavam a estátua ou se apoiavam em sua base, com os olhos perdidos no mar de carros. Eram jornaleiros em busca de trabalho.


Bosch consultou o mapa e viu que o lugar se chamava Praça Benito Juárez. Ao cabo de um minuto, Bosch chegou a um complexo formado por três grandes edifícios com antenas convencionais e parabólicas nos telhados. Uma placa perto da estrada indicava que se tratava da prefeitura de Mexicali. Entrou num estacionamento, sem parquímetros nem guarda de segurança, encontrou um lugar e estacionou. Enquanto permanecia no carro estudando o complexo, não pôde evitar de se sentir como se fugisse de algo ou de alguém. A morte de Porter o afetara. Bosch estivera lá e isso o fazia se perguntar como escapara com vida e por que o assassino não tentara matar a ele também. Uma explicação óbvia era que matar duas pessoas seria muito arriscado. Mas também era possível que o homem obedecesse ordens; que fosse um capanga com instruções precisas de matar Porter. Bosch suspeitava que se aquilo fosse verdade, a ordem saíra dali, de Mexicali.


Cada edifício do complexo, com seu moderno desenho e fachadas de pedra marrom e rosa, ocupava um dos lados da praça triangular. No terceiro andar de um deles as janelas estavam tampadas por dentro com papel de jornal. Bosch deduziu que era para bloquear o sol, mas o detalhe lhe dava um aspecto de pobreza. Sobre a entrada principal deste bloco de escritórios havia umas letras cromadas: POLÍCIA JUDICIAL DO ESTADO DA BAIXA CALIFÓRNIA. Bosch saiu do carro com o arquivo do caso Juan 67, fechou a porta e se encaminhou para lá. A praça estava cheia de gente e de vendedores ambulantes de artesanato e sobretudo de comida. Nas escadas frontais do edifício, várias meninas se aproximaram dele com a mão estendida, tentando vender goma de mascar ou pulseirinhas feitas com fios de cores. Bosch disse que não obrigado. Quando abriu a porta do vestíbulo, quase tropeçou numa mulher baixa que trazia no ombro uma bandeja com seis empanadas.


Dentro do edifício, Bosch entrou numa sala de espera com quatro filas de cadeiras de plástico de frente para um balcão onde se apoiava um agente de uniforme. Quase todas as cadeiras estavam ocupadas e quase todo mundo tinha os olhos fixos no agente. O homem usava óculos espelhados e estava lendo o jornal. Bosch se aproximou e lhe disse em espanhol que tinha uma entrevista com o investigador Carlos Águia. Depois abriu a carteira que continha seu distintivo e depositou-o sobre o balcão. O homem não parecia impressionado, mas lentamente esticou o braço e apanhou um telefone. Era um velho aparelho de disco, muito mais antigo que o edifício onde estavam e para Bosch pareceu que demorava anos para discar um número.


Ao cabo de um momento, o agente passou a falar em um espanhol tão rápido que Harry só compreendeu umas poucas palavras: "capitão", "gringo", "sim", "Departamento de Polícia de Los Angeles", "investigador". Também lhe pareceu que o homem dizia "Charlie Chan". Depois de escutar uns momentos, o agente desligou e, sem olhar para Bosch, lhe indicou com o polegar uma porta situada atrás dele. Em seguida reatou sua leitura. Harry passou ao outro lado do balcão, abriu a porta e chegou a um corredor que se bifurcava a esquerda e direita com muitas portas de cada lado, assim voltou para a sala de espera, golpeou brandamente as costas ao agente e lhe perguntou como ir.


— No fundo, a última porta, respondeu o agente em inglês e apontou ao corredor da esquerda.


Bosch seguiu suas instruções até chegar a uma sala ampla onde encontrou vários homens, uns de pé e outros sentados em sofás. Nas paredes onde não havia sofás, havia bicicletas apoiadas. E na única mesa de escritório uma garota escrevia a máquina enquanto um homem parecia ditar algo. Harry notou em que o homem usava uma Beretta de nove milímetros metida na cintura de suas calças de lã grossa. Então verificou que outros também traziam pistolas no cinto ou nas calças, por isso deduziu que se achava na sala de detetives.


Assim que repararam em sua presença, os detetives se calaram. Bosch perguntou ao homem mais próximo por Carlos Águia e este gritou para uma porta no fundo da sala. De novo, falava muito depressa, mas Bosch voltou a ouvir a palavra "Chan" e se perguntou o que queria dizer em espanhol. O homem assinalou a porta com o polegar e Bosch caminhou para lá. Ouviu umas risadinhas às suas costas, mas não se voltou. A porta que lhe indicaram dava a uma pequena sala com uma só mesa. Atrás dela estava sentado um homem de cabelo grisalho e olhos cansados fumando um cigarro. Os únicos objetos que havia sobre a mesa eram um jornal mexicano, um cinzeiro de vidro e um telefone. Outro homem mais jovem, sentado em uma cadeira junto à parede, parecia observar Bosch através dos onipresentes óculos espelhados. A não ser que estivesse dormindo.


— Bom dia, saudou-o em espanhol o homem mais velho, que imediatamente passou ao inglês: — Você é o detetive Harry Bosch, não é? Eu sou o capitão Gustavo Grenha. Falamos ontem.


Bosch esticou o braço e lhe deu a mão. Então Grenha indicou o homem dos óculos espelhados.


— E este é o investigador Águia, a pessoa que veio ver. O que trouxe de Los Angeles?


Águia, o agente que enviara a solicitação de informação ao consulado do México em Los Angeles, era um homem pequeno de cabelo moreno e pele clara. Embora tinha a testa e o nariz avermelhados pelo sol, Bosch notou a pele branca que aparecia pela gola aberta da camisa. Águia usava jeans e botas de couro negro. Cumprimentou Bosch com a cabeça, mas não se incomodou em lhe dar a mão. Como não havia nenhuma cadeira onde sentar, Harry simplesmente se aproximou da mesa e depositou o arquivo. Em seguida abriu a pasta e tirou as fotos do cadáver de Juan 67 tiradas na morgue; uma do rosto e outra da tatuagem. Passou-as a Grenha, que as estudou um momento e voltou a deixa-las sobre a mesa.


— Também está procurando um homem? O assassino, possivelmente? Perguntou Grenha.

— Existe a possibilidade de que o tenham matado aqui e que os assassinos levaram o corpo para Los Angeles. Sendo assim, seu departamento deveria procurar o culpado... Grenha olhou-o desconcertado.

— Não entendi, disse. — Por quê? Por que iriam fazer isso? Parece-me que está errado, detetive Bosch. Bosch deu de ombros. Não queria insistir, no momento.

— Bem, primeiro eu gostaria de confirmar a identificação e em seguida veremos.

— Muito bem, respondeu Grenha. — Deixo-o com o investigador Águia, mas devo informá-lo de que a empresa que mencionou ontem por telefone, EnviroBreed... Bem, eu falei pessoalmente com o diretor e ele me assegurou que seu homem não trabalhou ali. Economizei-lhe o trabalho de ir até lá. Grenha concordou com a cabeça como dizendo que não fora nenhum trabalho e que não precisava que o agradecesse.

— Como podem saber disso se ainda não temos a identificação? Grenha deu uma profunda tragada no cigarro, se dando mais tempo para pensar a resposta.

— Quando mencionei o nome do Fernal Gutiérrez-Llosa, o diretor me disse que nunca tivera um empregado com esse nome. EnviroBreed é uma empresa contratada pelo governo dos Estados Unidos; devemos ir com cuidado... Não queremos prejudicar nossas relações comerciais com o estrangeiro.


Grenha se levantou, deixou seu cigarro no cinzeiro e, depois de se despedir de Águia com um gesto, saiu da sala. Bosch ficou olhando os óculos espelhados enquanto se perguntava se Águia teria entendido uma só palavra do que haviam dito.


— Não se preocupe com o idioma, tranquilizou-o Águia depois de que Grenha saíra. — Falo inglês.


* * *


Vinte e Um

BOSCH INSISTIU em dirigir com a desculpa de que o carro não era dele e não queria deixá-lo no estacionamento. O que não contou a Águia era que não desejava se afastar de sua arma, que ainda continuava no porta-malas. Quando atravessaram a praça, espantaram os meninos com a mão.


— Como vamos identificar o corpo sem impressões digitais? Perguntou Bosch já no Caprice. Águia pegou a pasta do assento.

— Seus amigos e sua mulher olharão as fotos.

— Vamos em sua casa? Porque então posso conseguir impressões digitais e levá-las a Los Angeles para que alguém dê uma olhada. Isso confirmará.

— Não é uma casa, detetive Bosch. É um barraco.


Bosch concordou e ligou o carro. Águia guiou-o para ao sul, até o Boulevard Lázaro Cárdenas onde viraram para o oeste antes de virar outra vez para o sul pela Avenida Canto Rodado.


— Vamos a um dos bairros, informou Águia. — À Cidade das Pessoas Perdidas.

— Isso é o que significa a tatuagem do cadáver, não é? O fantasma representa as almas das pessoas?

— Sim. Bosch refletiu um instante antes de perguntar:

— Que distância há entre o bairro das Almas Perdidas e o do Santos e Pecadores?

— Também fica no setor sudoeste, não muito longe das Almas Perdidas. Se quiser eu mostro.

— Sim, possivelmente sim.

— Fala por alguma razão? Bosch lembrou a advertência de Curvo de não confiar na polícia local.

— Por curiosidade, respondeu. — É pelo outro caso.


Imediatamente Bosch se sentiu culpado por não ser sincero com Águia. Ao fim e ao cabo também era policial e Bosch sentia que merecia, pelo menos, o benefício da dúvida. Embora, segundo Curvo, não fosse assim. Depois dessa conversa viajaram um momento em silêncio. Estavam se afastando da cidade e da comodidade dos edifícios e do trânsito. Os escritórios, lojas e restaurantes davam passagem a barracos de papelão. Harry viu uma câmera refrigeradora ao lado da estrada que era o lar de alguém. As pessoas que viam ao passar estavam sentadas em peças de motor enferrujadas ou latões, e olhavam-nos com olhos vazios. Bosch tentou fixar os olhos na estrada poeirenta.


— Pareceu-me que o chamam de Charlie Chan. Por quê? Bosch perguntava porque estava nervoso e pensava que a conversa talvez o distraísse de seu desassossego e da desagradável tarefa que o esperava.

— Sim, respondeu Águia. — É porque sou chinês.


Bosch se voltou e olhou-o. Ao ficar de perfil conseguiu ver atrás dos óculos espelhados e verificou que Águia tinha os olhos um pouco rasgados. Sim, era verdade.


— Bem, não totalmente. Um de meus avós era. Há uma grande comunidade chinesa-mexicana em Mexicali.

— Ah.

— Mexicali foi fundada ao redor de 1900 pela Companhia da Terra do Rio Colorado. Eles eram proprietários de grandes extensões de terra em ambos os lados da fronteira e precisavam de mão de obra barata para a coleta de algodão e vários alimentos, explicou Águia. — Assim se estabeleceram em Mexicali, do outro lado de Calexico, suponho que com a ideia de que fossem cidades gêmeas. Trouxeram uns dez mil chineses, todos homens, e formaram uma cidade: a cidade da companhia.


Bosch concordou. Não conhecia a história e parecia muito interessante. De qualquer maneira, embora tivesse visto muitos restaurantes chineses e anúncios em chinês ao atravessar a cidade, não se lembrava de muitos rostos asiáticos.


— E todos ficaram... Os chineses? Inquiriu Bosch.

— A maioria sim, mas já disse que eram dez mil homens e nenhuma mulher. A companhia não permitia porque acreditavam que prejudicaria o rendimento. Então os chineses se casaram com mulheres mexicanas; o sangue se misturou. De qualquer maneira, ainda conservamos grande parte de nossa cultura. Hoje podemos comer comida chinesa na hora do almoço, o que acha?

— Muito bom.

— O trabalho policial continua dominado pelos mexicanos de origem hispana. Não há muitos como eu na Polícia Judicial do Estado e por isso me chamam de Charlie Chan. Outros me consideram um estranho, alguém de fora.

— Compreendo-o perfeitamente.

— Chegará um momento, detetive Bosch, em que confiará em mim. Não me importo em esperar para falar desse outro caso que mencionou.


Bosch concordou, envergonhado, e tentou se concentrar na estrada. Em seguida, Águia levou-o por um caminho estreito e sem asfaltar que atravessava o coração de um bairro dos subúrbios. Ali os edifícios eram blocos de cimento com tetos planos e lençóis pendurados em lugar de portas. Muitos possuíam anexos construídos com aglomerado e telhas de alumínio. Pelo chão havia muito lixo. Homens desalinhados e famintos pululavam pelas ruas e ficavam olhando o Caprice com placa da Califórnia.


— Estacione diante do edifício com a estrela, instruiu Águia.


Bosch viu-a em seguida. Estava pintada à mão na parede de um dos barracos. Sobre a estrela se liam as palavras "Almas Perdidas" e, por baixo, "Honorável Prefeito" e "Xerife". Harry estacionou o Caprice diante daquele barracão e esperou instruções.


— Não é nem prefeito, nem xerife, se for isso o que está pensando, explicou Águia. — Arnolfo Muñoz da Cruz simplesmente se dedica a proteger a paz; está aqui para impor um pouco de ordem num lugar de caos total. Pelo menos tenta. É o xerife oficioso da Cidade das Pessoas Perdidas. Foi ele quem nos informou que Fernal Gutiérrez-Llosa desaparecera de sua casa.


Bosch saiu do carro com a pasta de Juan 67. Enquanto dava a volta no Caprice, voltou a levar a mão à jaqueta, ao lugar onde normalmente trazia a pistola. Era um gesto que fazia inconscientemente quando estava de serviço a cada vez que saía do carro. Entretanto, nessa ocasião faltou a tranquilidade de encontrar a pistola e pela primeira vez se conscientizou de que era um estrangeiro desarmado num país estranho. Não podia tirar a Smith do porta-malas enquanto Águia estivesse por perto. Ao menos até que o conhecesse melhor.


Águia fez soar um sino de barro que estava pendurado junto à entrada do barraco. Não havia porta; só um lençol pendurado em uma ripa de madeira que atravessava a soleira. Uma voz do interior disse "Adiante" e Bosch e Águia entraram. Muñoz era um homem baixinho, muito bronzeado e com um longo cabelo grisalho preso com um nó atrás da cabeça. Não usava camisa, deixando a descoberto uma estrela de xerife tatuada na parte direita do peito e o símbolo do fantasma na esquerda. Quando entraram, Muñoz olhou para Águia e em seguida para Bosch, a quem ficou observando com curiosidade. Águia apresentou Harry e explicou por que vieram. Falava devagar para que Bosch pudesse seguir a conversa. Águia pediu ao velho que desse uma olhada nas fotografias. Isso confundiu Muñoz até que Bosch tirou as fotos instantâneas tiradas na morgue e o velho compreendeu que as fotos eram de um homem morto.


— É Fernal Gutiérrez-Llosa? Perguntou Águia depois que o homem estudou-as tempo suficiente.

— Sim, é ele.


Muñoz desviou o olhar. Então Bosch olhou ao seu redor pela primeira vez. O barraco contava com um só aposento, muito parecido com uma cela grande. Só continha o mais imprescindível: uma cama, uma caixa de papelão, uma toalha sobre o respaldo de uma velha cadeira, uma vela e um copo com uma escova de dentes que descansava sobre a caixa de papelão junto à cama. Cheirava a miséria e Bosch se sentiu envergonhado de ter irrompido no lar do Muñoz daquela maneira.


— Onde vivia Gutiérrez-Llosa? Perguntou Bosch a Águia em inglês. Águia olhou para Muñoz.

— Sinto muito a morte de seu amigo, senhor Muñoz. É meu dever informar a sua mulher. Sabe se está aqui? O velho concordou e disse que a mulher estava em sua casa. — Quer vir nos ajudar?


Muñoz concordou de novo, pegou uma camisa branca da cama e a pôs. A seguir se dirigiu à porta, puxou a cortina e segurou-a para que passassem. Bosch foi primeiro ao porta-malas do Caprice para tirar seu equipamento de impressões digitais. Depois todos caminharam um pouco mais pela rua poeirenta até que chegaram a um barraco de aglomerado com um toldo de lona. Águia tocou Bosch no ombro.


— O senhor Muñoz e eu falaremos com a mulher aqui fora. Enquanto isso, você pode entrar, recolher as impressões e fazer o que achar necessário.


Muñoz gritou o nome da Marita e, ao cabo de um momento, uma mulher miúda apareceu pela cortina de banheiro branca que estava pendurada na porta. Assim que viu Muñoz e Águia, saiu ao seu encontro. Pelo rosto que pôs, Bosch soube que já adivinhava a notícia que vieram dar. As mulheres sempre sabiam. Harry lembrou da noite em que conheceu Sylvia Moore; ela também adivinhara. Todas adivinham. Bosch passou a pasta a Águia, se por acaso a mulher quisesse ver as fotos, e entrou no lar que ela e Juan 67 compartilharam.


Tratava-se de um aposento com escasso mobiliário; até aqui não havia surpresa. Perto de um berço de madeira jazia um colchão de casal; de um lado, havia uma cadeira solitária e do outro uma cômoda fabricada com pedaços de madeira e caixas de papelão onde apareciam vários objetos de roupa. A parede do fundo não era mais que uma grande prancha de alumínio com o logotipo da cerveja Tecate e algumas prateleiras de madeira com latas de café, uma caixa de charutos e outros pequenos objetos.


Bosch ouviu a mulher chorando e Muñoz tentando consolá-la. Então deu uma olhada rápida por todo o aposento com a intenção de decidir qual seria o melhor lugar para tirar as impressões digitais. Embora talvez não fosse necessário, dado que as lágrimas da mulher pareciam confirmar a identidade do cadáver. Depois de se dirigir às prateleiras, Bosch abriu a caixa de charutos com a unha. Dentro havia um pente sujo, uns quantos pesos e uma caixa de peças de dominó.


— Carlos? Chamou Bosch. Águia colocou a cabeça por entre a cortina de banheiro. — Pergunte se ela andou tocando nesta caixa ultimamente. Parecem coisas de seu marido. Se forem, tentarei tirar as impressões.


Bosch ouviu a pergunta em espanhol e a mulher respondeu que ela nunca tocava na caixa porque era de seu marido. Empregando as unhas, Harry depositou a caixa sobre aquela cômoda improvisada. A seguir abriu o estojo que continha o equipamento e tirou um aerossol, uma ampola de pó negro, um pincel de pelo de marta, um rolo de fita adesiva transparente e uma pilha de cartões de dez por quinze centímetros. Colocou tudo sobre a cama e pôs mãos à obra.


Bosch pegou o aerossol e orvalhou a caixa com ninhidrina. Depois que a ninhidrina se fixou, apanhou um cigarro, acendeu-o e aproveitou a chama do fósforo para passá-la pela borda da caixa, a uns cinco centímetros da superfície. O calor fez com que aparecessem na ninhidrina vários impressões digitais. Bosch se inclinou sobre a mesa e estudou-as, procurando amostras completas. Havia duas. Então quebrou a ampola e aplicou um pouco de pó negro com o pincel de cabelo de marta sobre as impressões, o que definiu claramente as linhas e bifurcações. A seguir cortou um pedaço de fita adesiva, pressionou-o sobre uma das impressões e levantou-o. Em seguida grudou a fita em um dos cartões brancos e repetiu toda a operação com a segunda impressão. No final, Bosch obtera excelentes amostras para levar consigo. Nesse momento, Águia entrou no aposento.


— Conseguiu alguma impressão?

— Um par. Esperemos que sejam dele e não dela, embora pelo que ouvi não vai importar muito, respondeu Bosch. — Parece que a mulher também identificou o cadáver, não é? Viu as fotos? Águia concordou com a cabeça.

— insistiu em vê-las, explicou o policial. — Revistou o aposento?

— Para quê?

— Não sei.

— Olhei um pouco, disse, — Mas não há muito para ver.

— Tirou impressões das latas de café? Bosch olhou para as prateleiras, onde havia três velhas latas de café Maxwell House.

— Não, porque pensei que teria impressões da mulher. Não quero tirar as impressões dela para em seguida descartá-las. Não vale a pena fazê-la passar por isso. Águia voltou a assentir, mas parecia perplexo.

— Por que um pobre homem e sua mulher teriam três latas de café?


Era uma boa observação. Bosch se dirigiu até as prateleiras e pegou uma das latas, que fez um ruído metálico. Quando abriu-a encontrou um punhado de moedas. A seguinte estava cheia até uma terça parte de café. A última era a mais leve. Dentro encontrou papéis, uma certidão de nascimento da Gutiérrez-Llosa e uma certidão de casamento onde constava que o casal tinha se casado há trinta e dois anos. Isso deprimiu-o muito. Também havia uma foto da mulher de Gutiérrez e outra de Gutiérrez em pessoa, o que permitiu a Bosch corroborar que se tratava de Juan 67; a identificação era, pois, definitiva. Finalmente, Harry encontrou uma pilha de recibos presos com um elástico. Ao olhá-los, descobriu que se tratavam de pequenos valores pagos por diversas empresas: as contas de um diarista. As empresas que não pagavam os seus diaristas em espécie o faziam mediante cheques e os últimos dois recibos correspondiam a dois cheques de dezesseis dólares cada um, liberados pela EnviroBreed. Bosch meteu os recibos no bolso e disse a Águia que terminara.


Enquanto Águia dava os pêsames à nova viúva, Bosch se dirigiu ao porta-malas do carro para guardar o equipamento de tirar impressões junto com as amostras que tirara. Então olhou por cima do porta-malas e, ao confirmar que Águia continuava falando com Muñoz e a mulher, levantou rapidamente a ponta direita do tapete, levantou um pouco a roda sobressalente e pegou seu Smith & Wesson. Sem perder tempo, meteu a pistola na cartucheira e virou a correia para que ficasse nas costas. Embora usasse jaqueta, para um olho acostumado a essas coisas não custaria detectá-la. De qualquer maneira, Bosch já não se preocupava que Águia descobrisse. Entrou no carro e esperou. Uns segundos mais tarde apareceu o policial mexicano. Enquanto se afastavam dali, Bosch observou a viúva e Muñoz pelo espelho retrovisor.


— O que acontecerá com ela? Perguntou a Águia.

— Não acho que gostaria de saber, detetive Bosch. Sua vida já era difícil antes, mas agora seus problemas se multiplicarão. Acredito que chora por si mesma tanto quanto pelo marido que perdeu. E com razão.


Bosch dirigiu em silêncio até sair do bairro e voltar para a estrada principal.


— Foi muito esperto o que fez lá, comentou ao cabo de um momento. — O das latas de café.


Águia não disse nada; não era necessário. Bosch sabia que o policial estivera ali antes e vira os recibos da EnviroBreed. Grenha mentia e Águia estava em desacordo ou talvez descontente porque não lhe deram parte no trato. Qualquer que fosse a razão, guiara Bosch pelo caminho correto. Estava claro que desejava que Bosch encontrasse os recibos e soubesse que Grenha era um embusteiro.


— Foi a EnviroBreed investigar por sua conta?

— Não, respondeu Águia. — Informariam meu capitão e eu não podia ir lá depois que ele investigou pessoalmente. A EnviroBreed é uma empresa internacional, com contratos com agências governamentais dos Estados Unidos. Deve compreender que...

— Uma situação delicada?

— Exatamente.

— Bem, eu estou acostumado a esse tipo de situações. Você não pode se rebelar contra Grenha, mas eu sim. Onde fica a EnviroBreed?

— Não muito longe daqui, no sudoeste, em uma área plana que se estende até a Serra de Cucapah. Há muitas indústrias e grandes fazendas.

— A que distância fica a EnviroBreed do rancho do Papa?

— O Papa?

— Zorrillo, o Papa de Mexicali. Pensava que queria conhecer o outro caso em que estou trabalhando.


Permaneceram um momento em silêncio. Bosch olhou para Águia e, apesar dos óculos, descobriu claramente que seu rosto escurecera. A menção de Zorrillo certamente confirmava uma suspeita que o detetive mexicano tivera desde que Grenha tentara boicotar a investigação. Bosch já sabia através de Curvo que a EnviroBreed ficava em frente do rancho. Sua pergunta era simplesmente um teste a mais para Águia.


— O rancho e a EnviroBreed ficam muito perto, respondeu Águia finalmente.


* * *


Vinte e Dois

— Posso fazer uma pergunta? Disse Bosch. — Por que enviou a solicitação de informação ao escritório do cônsul? Aqui não têm pessoas desaparecidas. Se alguém desaparecer, se deduz que cruzou a fronteira, mas não se enviam solicitações de informação. O que o fez pensar que isto era diferente?


Bosch e Águia se dirigiam para as montanhas que se elevavam por cima da ligeira capa de contaminação que cobria a cidade. Nesse momento seguiam pela Avenida Valverde em direção ao sudoeste e atravessavam uma área com grandes imóveis à direita e parques industriais à esquerda.


— Sua mulher, respondeu Águia. — Ela veio à delegacia com Muñoz para fazer a denúncia. Grenha me passou a investigação e, ao falar com ela, compreendi que Gutiérrez-Llosa não cruzaria a fronteira voluntariamente... Sem ela. Assim fui ao círculo.


Águia explicou que o círculo sob a estátua dourada de Benito Juárez na Rua López Mateos era onde os homens iam procurar trabalho. Os diaristas com quem conversou no círculo, contaram que as caminhonetes da EnviroBreed vinham duas ou três vezes por semana contratar trabalhadores. Os homens que tinham trabalhado no criatório de moscas descreveram-no como um trabalho duro. Precisavam preparar uma massa para alimentar os insetos e carregar caixas-chocadeiras muito pesadas. As moscas entravam na boca e nos olhos. Muitos nunca voltavam; preferiam esperar outras oportunidades.


Esse não era o caso do Gutiérrez-Llosa. Algumas pessoas do círculo viram-no entrar na caminhonete da EnviroBreed. Comparado com os outros diaristas, ele era um homem velho, assim não tinha muito onde escolher. Quando soube que a produção da EnviroBreed era enviada para o outro lado da fronteira, Águia mandou a notificação pertinente aos consulados do sul de Califórnia. Uma de suas teorias era que o velho morrera em um acidente trabalhista e que ocultaram o corpo para evitar uma investigação que paralisasse o processo de fabricação. Segundo Águia, era algo muito frequente nos setores industriais da cidade.


— Uma investigação, embora seja de morte por acidente, pode ficar muito cara, explicou Águia.

— Pela mordida.

— Isso: o suborno.


Águia contou que a investigação chegou a seu fim quando compartilhou suas descobertas com Grenha. O capitão disse que ele mesmo se encarregaria de falar com a EnviroBreed pessoalmente e mais tarde informou que chegaram a um beco sem saída. E assim ficaram as coisas até que Bosch ligou com notícias do cadáver.


— Parece que Grenha recebeu sua mordida.


Águia não respondeu ao comentário. Nesse momento passavam diante de um imóvel protegido por uma cerca metálica arrematada com um alambrado. Através dela, Bosch viu a Serra de Cucapah no horizonte além de uma deserta extensão de terra. Mas em seguida chegaram à entrada do rancho, onde sim havia algo: um caminhão atravessado no caminho. Os dois homens que estavam sentados na cabine olharam para Bosch e ele lhes devolveu o olhar.


— O rancho de Zorrillo é aqui, não é? Perguntou Harry.

— Sim. A entrada.

— Alguma vez apareceu o nome de Zorrillo na investigação?

— Não até que você perguntou.


Águia não acrescentou mais nada. Ao cabo de um minuto chegaram a uns edifícios situados perto da estrada, mas dentro do rancho. Bosch viu uma espécie de celeiro com uma porta de garagem fechada. A ambos os lados do edifício haviam currais, onde viu meia dúzia de touros em cercados individuais. Não notou ninguém pelos arredores.


— Zorrillo cria touros bravos, contou Águia.

— Ouvi isso. Por aqui isto é um grande negócio, não é?

— Sim, e todos saem de um só touro: El Temblar. É um animal famoso em Mexicali porque matou Méson, o legendário toureiro. Agora vive aqui e passeia pelo rancho, montando nas vacas quando quer. É um verdadeiro campeão.

— El Temblar? Perguntou Bosch.

— Sim. Diz a lenda que o homem e a Terra tremem quando este animal investe. Faz dez anos da morte de Méson, mas as pessoas ainda lembram todo domingo na praça, respondeu Águia.

— E El Temblar brinca de correr por aí solto, como uma espécie de cão de vigilância; um buldogue ou algo do gênero.

— Às vezes as pessoas chegam a cerca com a esperança de ver o grande animal, o pai dos touros mais bravos de toda Baixa. Pare um momento.


Bosch parou no acostamento. Águia olhava para o outro lado da rua, para uma fileira de edifícios. Em alguns haviam placas, quase todas em inglês. Eram empresas que fabricavam produtos para os Estados Unidos, mas preferiam a mão de obra local e os baixos impostos do México. Havia fabricantes de móveis, de azulejos, de placas para circuitos.


— Vê o edifício da Mexitec Furniture? Perguntou Águia. — Pois a segunda estrutura, a que não tem letreiro, é a EnviroBreed.


Era um edifício branco rodeado por uma cerca de três metros de altura arrematada com um alambrado. Placas na cerca advertiam em dois idiomas que era eletrificada e havia cães dentro. Como Bosch não viu nenhum, supôs que eram soltos à noite. O que detectou foram duas câmeras nos cantos da fachada do edifício e uns quantos carros estacionados dentro do complexo. Não havia nenhuma caminhonete da EnviroBreed, mas não era de estranhar, já que as duas portas da garagem estavam fechadas.


Bosch precisou apertar um botão, explicar o motivo de sua visita e mostrar seu distintivo à câmera antes que o portão de entrada abrisse automaticamente. Depois de estacionar junto a um Lincoln com placa da Califórnia, Bosch e Águia atravessaram o poeirento estacionamento até chegar aos escritórios. Bosch apalpou levemente a parte posterior do quadril e, ao notar a pistola debaixo da jaqueta, se tranquilizou um pouco. Quando se dispunha a pegar na maçaneta da porta, esta se abriu e saiu um homem acendendo um cigarro. O homem, de raça caucasiana, usava um Stetson para cobrir seu rosto marcado pela acne e bronzeado pelo sol. Bosch pensou que podia se tratar do motorista da caminhonete que vira no centro de erradicação de Los Angeles.


— A última porta à esquerda, disse o homem. — Está esperando.

— Quem?

— Ele.


O homem do Stetson lhes dirigiu um sorriso falso. Bosch e Águia entraram em um corredor com paredes forradas de madeira. À esquerda havia uma pequena mesa de recepção seguida de três portas e uma quarta ao fundo. Uma garota mexicana estava sentada na mesa de recepção e olhava-os fixamente. Bosch cumprimentou-a e, ele e Águia, começaram a avançar pelo corredor. A primeira porta que passaram estava fechada e marcada com uma placa com as siglas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Nas duas portas seguintes não havia placa. No fundo do corredor se viam óculos protetores e máscaras penduradas em um gancho junto a uma porta que dizia:


PERIGO: RADIAÇÃO. PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS SEM AUTORIZAÇÃO


Tal como lhe indicaram, Bosch abriu a terceira porta da esquerda e ele e Águia entraram em uma pequena sala de espera onde viram a mesa de uma secretária, mas sem secretária.


— Por aqui, por favor, se ouviu uma voz na sala contígua.

 

Bosch e Águia entraram em um amplo escritório, em cujo centro havia uma enorme mesa de aço em que descansava um copo de café. Atrás dela, um homem usando uma camisa leve azul-celeste escrevia em um livro contábil. Pela janela de persianas entrava luz suficiente para que não precisasse de um abajur. O homem parecia rondar os cinquenta anos e entre seus cabelos grisalhos se distinguiam mechas de cabelo tingido de negro. Também era gringo.


O homem não disse nada, e continuou escrevendo. Bosch aproveitou para olhar ao seu redor: junto à mesa, em uma prateleira, ficava o console do circuito fechado de televisão. Em três das telas se viam claramente as imagens em preto e branco da cerca de entrada, realizadas pelas duas câmeras da fachada, mas a quarta tela estava muito escura. Ao cabo de um momento Harry viu uma caminhonete branca com as portas abertas e dois ou três homens carregando grandes caixas brancas. Era a área de carga e descarga.


— Sim? Perguntou o homem, ainda sem levantar a cabeça.

— Quanta segurança para quatro moscas. Então ele levantou-a.

— Como?

— Não sabia que fossem tão valiosas.

— Em que posso ajudar? O homem jogou a caneta sobre a mesa para sublinhar que Bosch estava interrompendo o curso do comércio internacional.

— Sou Harry Bosch, do Departamento de Polícia de...

— Isso já disse na entrada. Em que posso ajudar?

— Queria falar de um de seus empregados.

— Como se chama? O homem voltou a pegar a caneta e a tomar notas no livro.

— É estranho. Se um policial viaja quase quinhentos quilômetros para fazer umas perguntas, o normal é que tenha um pouco de atenção. Mas você não parece se interessar, o que me incomoda.


Desta vez a caneta caiu com tanta força sobre a mesa que ricocheteou e foi parar no cesto de papéis.


— Olhe, pouco me importa se você se preocupa ou não. Agora mesmo estou pendente de um carregamento de material perecível que preciso despachar antes das quatro. Não posso mostrar interesse por você. Se quer me dar o nome do empregado, se é que era um empregado, direi o que sei.

— O que quer dizer com "se é que era um empregado"?

— O quê?

— Acaba de dizer "era".

— E daí?

— O que significa?

— Você disse... Você é quem veio aqui com todas estas perguntas. Eu...

— E como você se chama?

— Como?

— Como se chama? O homem se calou, completamente confuso, e bebeu um gole do copinho de café.

— Lembro-o que não tem nenhuma autoridade aqui.

— Você disse "se é que era um empregado", mas eu não dissera nada sobre "era", o que me faz pensar que você já sabia que nos referíamos a um homem morto.

— Imaginei isso. Se um policial vem de Los Angeles, me parece natural que se trate de um morto. Mas não diga coisas que eu não... Além disso, você não pode entrar com esse distintivo que aqui não vale nada e começar a me incomodar. Não tenho porquê...

— Quer autoridade? Este é Carlos Águia, da Polícia Judicial do Estado. Eu falo em seu nome. Águia concordou, mas não disse nada.

— Essa não é a questão. O problema é sua atitude, o típico imperialismo americano, como diz as coisas, espetou o homem. — Vejamos; eu me chamo Charles Ely. Sou o dono da EnviroBreed e não sei nada do homem que você diz que trabalhava aqui.

— Mas se ainda não disse como se chamava.

— Não importa, entendeu? Você se equivocou. Jogou mal suas cartas.


Bosch tirou do bolso a foto do cadáver de Gutiérrez-Llosa e colocou-a sobre a mesa. Ely olhou-a sem tocar na foto, mas Bosch não detectou nenhuma reação. Depois Harry depositou as matrizes dos cheques sobre a mesa, mas a resposta foi a mesma; Ely não reagiu.


— Chamava-se Fernal Gutiérrez-Llosa e era um diarista, informou Bosch. — Preciso saber quando trabalhou aqui pela última vez e o que estava fazendo. Ely recolheu sua caneta do cesto de papéis e usou-a para empurrar a foto para Bosch.

— Sinto muito, mas não posso ajudar. Não temos nenhum controle dos diaristas; no final do dia pagamos com cheques ao portador e ponto final. Além disso, sempre são pessoas diferentes então é impossível que conheça este homem. Agora que pensei bem, acredito que já respondemos umas perguntas sobre ele que nos fez a Polícia Judicial do Estado. Um tal capitão Grenha. Terei que descobrir por que não foi suficiente.


Bosch quis perguntar se se referia ao suborno que Ely dera para Grenha ou à informação. Mas se controlou porque sabia que Águia acabaria se prejudicando.


— Muito bem, disse finalmente. — Enquanto isso, eu vou dar uma olhada por aqui. Pode ser que alguém se lembre do Gutiérrez. Aquilo o deixou visivelmente nervoso.

— Não, senhor. Você não tem livre acesso a estas instalações. Nós usamos algumas partes do edifício para irradiar material e, portanto, são perigosas. Está proibida a entrada a todo mundo exceto ao pessoal autorizado. Outras áreas se acham sob o controle e quarentena do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, por isso não podemos permitir o acesso a ninguém. Além disso, repito que você não tem nenhuma autoridade aqui.

— Quem é o proprietário da EnviroBreed, Ely? Perguntou Bosch. Ely pareceu surpreso pela repentina mudança de tema.

— O quê? Exclamou.

— Quem é o proprietário, Ely?

— Não tenho por que responder a essa pergunta. Você não...

— O homem do outro lado da rua? O Papa? Ely se levantou e assinalou a porta.

— Não sei do que está falando, mas chega. Vão embora. E advirto que penso me queixar à Polícia Judicial do Estado e as autoridades mexicanas e americanas. Veremos se estarão de acordo com este comportamento da polícia de Los Angeles em território estrangeiro.


Bosch e Águia saíram do escritório, mas Harry ficou ali uns segundos para ver se ouvia passos ou o som do telefone. Como não foi assim, se voltou para a porta do fundo do corredor e tentou abri-la, mas estava fechada com chave. Ao passar diante da porta marcada com as siglas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, Bosch aproximou o ouvido mas tampouco ouviu algo. Quando abriu sem bater, descobriu um homem com cara de burocrata atrás de uma pequena mesa de madeira em uma sala que era a quarta parte da sala de Ely.


O homem usava uma camisa branca de manga curta com uma gravata fina de cor azul. Tinha o cabelo grisalho, muito curto, um bigode que parecia uma escova de dentes, olhos pequenos e mortiços que olhavam-no através de óculos bifocais encaixados em suas têmporas. O protetor de plástico que trazia no bolso tinha seu nome impresso: Jerry Dinsmore. E na mesa, sobre um papel manchado de gordura, se via uma terrina cheia de feijões.


— Sim? Disse com a boca cheia.


Bosch e Águia entraram na sala de Dinsmore. Bosch mostrou o seu distintivo e deixou-o que o examinasse atentamente. Depois pôs a foto do cadáver na mesa, ao lado da terrina. Dinsmore olhou, envolveu a comida que restava com o papel e guardou-a em uma gaveta.


— Reconhece-o? Inquiriu Bosch. — É só uma verificação de rotina porque houve um alarme de infecção. Este cara levou o vírus a Los Angeles; agora estamos seguindo seus passos para que a gente que o conhecia possa ser inoculada. Ainda estamos em tempo. De repente, Dinsmore começou a mastigar muito mais devagar. Olhou a foto e em seguida, por cima dos óculos, a Bosch.

— Era um dos homens que trabalhavam aqui?

— Acreditamos que sim. Estamos perguntando a todos os empregados fixos e pensamos que talvez você o reconhecesse. Aproximou-se muito dele e talvez tenhamos que colocá-lo em quarentena.

— Bem, eu nunca me aproximo dos trabalhadores, assim não aconteceu nada. Mas de que infecção fala? Não entendo por que o Departamento de Polícia de Los Angeles... Além disso, este homem parece que recebeu uma surra.

— Sinto muito, senhor Dinsmore, mas isso é confidencial até que tenhamos decidido se você está em perigo. Nesse caso, não teremos outra solução a não ser pôr as cartas na mesa, disse Bosch. — Vamos ver, o que quer dizer com “não se aproxima dos trabalhadores?” Acaso não é o inspetor desta empresa? Bosch esperava que Ely irrompesse na sala de um momento a outro.

— Sim, sou o inspetor, mas só me interessa o produto final, respondeu Dinsmore. — Eu reviso amostras das caixas-estufa e em seguida as selo. Tudo isso se faz na sala de transporte. Deve levar em conta que isto é uma propriedade particular, detetive, e eu não tenho livre acesso aos laboratórios de cria ou esterilização. Por isso não me relaciono com os empregados.

— Você acaba de dizer "amostras". Ou seja, não inspeciona todas as caixas.

— Não inspeciono todos os cilindros de cada caixa, mas inspeciono e selo todas as caixas. Mas não entendo o que isto tem a ver com este homem. Ele não...

— Não, eu tampouco. Não importa. Está fora de perigo.


Dinsmore olhou-o perplexo e Bosch lhe piscou os olhos para acabar de confundi-lo. Harry se perguntava se Dinsmore fazia parte do que estava ocorrendo ali ou se era alheio a tudo. Bosch disse que podia continuar comendo e ele e Águia saíram de novo ao corredor. Justo nesse momento se abriu a porta do fundo do corredor, e dela saiu Ely. Depois de tirar a máscara e os óculos protetores, avançou para eles a grandes passadas derramando gotas de café de seu copinho de plástico.


— Vão embora imediatamente a não ser que tenham uma ordem judicial.


Ely chegou até Bosch com o rosto vermelha de raiva. Aquele devia ser o numerozinho que empregava para intimidar as pessoas, mas a Bosch não se impressionou. Harry olhou o copinho de café que o homem segurava e sorriu ao encaixar uma peça do quebra-cabeças. O conteúdo do estomago de Juan 67 incluía café; assim tinha engolido a mosca que levara Bosch até a EnviroBreed. Ely seguiu seu olhar e se precaveu do inseto que flutuava na superfície do líquido quente.


— Cago para as moscas!

— Sabe o que lhe digo? Acredito que vou conseguir uma ordem judicial, ameaçou Bosch.


Não lhe ocorria nada mais para dizer, mas não queria deixar Ely com a satisfação de tê-lo vencido. Bosch e Águia se dirigiram à saída.


— Que fique bem claro, disse Ely. — Isto é o México; aqui você não é ninguém.


* * *


Vinte e Três

BOSCH ESTAVA de pé junto à janela de seu quarto no terceiro andar do Hotel Colorado, na Rua Justo Sierra. Dali contemplava o que se via de Mexicali. À sua esquerda o panorama ficava prejudicado por outra ala do hotel, mas à direita se viam as ruas cheias de carros e ônibus multicoloridos que já vira ao cruzar a fronteira. No ar flutuava uma música distante de mariachis e o cheiro de fritura de algum restaurante próximo. O céu que emoldurava aquela cidade desmantelada era violeta e vermelho, à luz moribunda do entardecer. Recortados contra o horizonte, Bosch distinguiu os edifícios das dependências da justiça e, perto deles, à direita, uma estrutura redonda como a de um estádio: a praça de touros.


Fazia duas horas que Bosch ligara para Curvo em Los Angeles e deixara seu número de telefone e endereço, e estava esperando uma ligação de seu homem em Mexicali: Ramos. Harry se afastou da janela e olhou o telefone. Sabia que precisava fazer outras ligações, mas estava pensando. Então tirou uma cerveja do refrigerador e abriu-a. Depois de beber uma quarta parte, se sentou na cama ao lado do telefone. Na secretária eletrônica de sua casa havia três mensagens, todos elas de Pounds dizendo o mesmo: "Ligue para mim". Mas Bosch não o fez. Em seu lugar ligou para a mesa de Homicídios. Era sábado à noite, mas seria provável que tivesse gente trabalhando no caso Porter. Jerry Edgar atendeu o telefone.


— Como vão as coisas?

— Merda, cara, precisa voltar. Edgar falava muito baixo. — Todo mundo está lhe procurando. Os de Roubos e Homicídios tomaram as rédeas, assim não sei muito bem o que estão cozinhando. Eu só sou o último macaco, mas acredito que... Não sei, cara.

— O quê? Diga.

— Parece que acreditam que você, ou matou Porter, ou será o próximo. É difícil adivinhar que merda estão fazendo ou pensando.

— Quem está aí?

— Todo os deuses; este é o posto de comando. Agora mesmo Irving está no "aquário" com Noventa e Oito. Bosch sabia que não podia continuar assim por muito tempo; precisava dar sinais de vida. Talvez até já tivesse se prejudicado irremediavelmente.

— Certo, disse. — Falarei com eles. Mas antes preciso fazer outra ligação. Obrigado, cara.


Bosch desligou e discou outro número. Esperava se lembrar corretamente e que ela estivesse em casa. Como eram quase sete horas, Harry pensou que talvez saísse para jantar, mas finalmente atendeu.


— Bosch. Peguei-a em um mau momento?

— O que quer? Perguntou Teresa. — Onde está? Não sei se sabe, mas todo mundo está lhe procurando.

— Já ouvi isso, mas não estou em Los Angeles. Liguei porque soube que encontraram o meu amigo Lucius Porter.

— Sim, sinto muito. Acabo de voltar da autópsia.

— Já imaginava que a faria. Houve um silêncio antes de que ela dissesse:

— Harry, por que tenho a sensação de que...? Ouça, você não me ligou porque era seu amigo...

— Bom...

— Merda! Outra vez a mesma história, não é?

— Não. Só queria saber como morreu, isso é tudo, Era meu amigo, trabalhávamos juntos. Mas deixe.

— Não sei por que ajudo. Foi uma "gravata mexicana". Então? Está contente? Já tem tudo o que queria?

— Garrote?

— Sim. Estrangularam-no com um arame de empacotar feno com duas pontas de madeira nos extremos. Com certeza que já viu isso antes. Ouça, também vai sair no Times de amanhã?


Bosch se calou até estar seguro de que ela terminara. Da cama olhou para a janela e descobriu que a luz do dia se desvanecera totalmente. Tinha escurecido e o céu era de uma cor de vinho tinto. De repente lembrou do homem do Poe's e das três lágrimas.


— Fizeram uma compara...

— Comparação com o caso Jimmy Kapps? Interrompeu ela. — Sim, já fizemos, mas não se saberá nada até dentro de uns dias.

— Por quê?

— Porque é o tempo que demora para analisar as fibras de madeira das pontas e a liga do arame. Embora já fizemos uma análise do arame durante a autópsia e tem muito boa pinta.

— O que quer dizer?

— Porque o arame que foi usado para estrangular Porter parece ser do mesmo cilindro que o empregado para matar Kapps. As pontas coincidem. Não é cento por cento certo porque alicates similares podem fazer cortes parecidos; por isso vamos analisar a liga metálica. Saberemos dentro de uns dias.


Teresa soava fria e indiferente. Bosch se surpreendia que continuasse zangada com ele, já que as notícias da televisão na noite anterior pareciam tê-la favorecido. Não sabia o que dizer; passaram de se sentir cômodos na cama a violentos no telefone.


— Obrigado, Teresa, disse finalmente. — Já nos veremos.

— Harry? Interveio ela antes de que ele pudesse desligar.

— O quê?

— Quando voltar, é melhor que não me procure. Se nos virmos numa autópsia, a trabalho, muito bem. Mas é melhor que deixemos assim. Ele não disse nada. — Certo?

— Sim.


Desligaram. Bosch permaneceu imóvel uns segundos. Finalmente pegou o telefone de novo e discou a linha direta do "aquário". Pounds atendeu imediatamente.


— Bosch.

— Onde está?

— Em Mexicali. Ligou?

— Liguei para o hotel que deixou na secretária eletrônica, mas me disseram que não estava.

— No final decidi me hospedar no outro lado da fronteira.

— Basta de palhaçada. Porter morreu.

— O quê? Bosch fez o possível para se mostrar autêntico. — O que aconteceu? Mas se o encontrei ontem...

— Já lhe disse que basta de palhaçadas. O que faz aí em baixo?

— Você me disse que fosse para onde me levasse o caso. E me trouxe até aqui.

— Eu não disse que fosse para o México! Gritou. — Quero que volte imediatamente. Bosch, as coisas se estão ficando feias. Temos um garçom disposto a... Um momento.

— Bosch, disse uma nova voz. — Aqui é o subdiretor Irving. Onde se encontra?

— Estou em Mexicali.

— Quero-o em minha sala amanhã de manhã às oito em ponto. Bosch não duvidou, consciente de que não podia mostrar a menor fraqueza.

— Sinto muito, mas não posso. Preciso terminar umas coisas que certamente levarão até manhã pelo menos.

— Estamos falando do assassinato de um colega, detetive. Não sei se se deu conta, mas você pode estar em perigo.

— Não se preocupe comigo. Além disso, é o assassinato de um colega o que me trouxe até aqui, se lembra? Ou por acaso já não se interessa com o que aconteceu a Moore? Irving não fez caso do comentário.

— Nega-se a obedecer minhas ordens?

— Ouça, não importa o que diga um garçom de merda; você sabe perfeitamente que eu não o matei.

— Eu não disse isso, mas por sua conversa deduzo que sabe você mais do que saberia se não estivesse envolvido.

— A única coisa que digo é que as respostas a um monte de perguntas, sobre Moore, Porter e outros, estão aqui em baixo. Por isso vou ficar.

— Detetive Bosch, me enganei com você. Desta vez lhe dei uma margem de confiança porque pensava que mudara, mas agora vejo que não é verdade. Tornou a me enganar. Você...

— Estou fazendo todo o possível para...

— Não me interrompa! Não obedeça minhas ordens, mas não me interrompa, lhe exortou Irving. — A única coisa que digo é que se não querer voltar, não volte. Mas então já não será preciso que se apresente. Pense bem.


Depois que Irving desligou, Bosch tirou uma segunda Tecate do refrigerador e acendeu um cigarro junto à janela. Harry não se preocupava com as ameaças de Irving; bem, não muito. Certamente o suspenderia, mas cinco dias no máximo. Não era grave. Irving não o transferiria porque não havia muitos lugares piores que Hollywood. O que ocupava sua mente era Porter. Até então conseguira atrasar o momento, mas chegara a hora de pensar nele. Estrangulado com um arame, jogado em um contêiner. Pobre desgraçado. Não obstante, algo dentro de Bosch impedia de sentir pena pelo policial morto. O que acontecera não chegou na sua alma como esperava. Era um final perverso, mas Harry não sentia nenhuma pena porque Porter cometera enganos fatais. Bosch prometeu a si mesmo que ele não os cometeria.


A partir de então tentou se concentrar em Zorrillo. Harry estava certo de que o Papa orquestrara tudo, enviando um capanga para fazer a limpeza. Se fosse o mesmo homem que matara Kapps e Porter, então seria fácil acrescentar Moore à lista de vítimas. E possivelmente Fernal Gutiérrez-Llosa. O homem das três lágrimas acabara com todos. Significava que Dance estava livre de culpa? Bosch duvidava. Talvez usassem Dance para atrair Moore ao Hideaway.


De qualquer modo, aqueles raciocínios confirmaram que estava fazendo o correto ao ficar em Mexicali. As respostas estavam aqui, não em Los Angeles. Bosch se dirigiu a sua maleta, que deixara sobre a cômoda, e tirou a foto da ficha policial de Dance que Moore incluíra na pasta. Bosch viu a estudada expressão de dureza de um homem jovem com o cabelo louro platinado que ainda tinha rosto de menino. Queria subir mais acima no escalão e cruzara a fronteira para tentar. Bosch deduziu que se Dance estava em Mexicali não se camuflaria facilmente. Precisaria de ajuda.


A batida na porta sobressaltou-o. Silenciosamente Harry depositou a garrafa e apanhou a pistola da mesinha de cabeceira. Ao se aproximar do olho-mágico, viu um homem de uns trinta anos com o cabelo moreno e um grande bigode. Não era o garçom do hotel que trouxera a cerveja.


— Sim? Perguntou Bosch em espanhol.

— Bosch? Sou Ramos, respondeu este em inglês. Bosch abriu a porta com a corrente colocada e pediu que se identificasse.

— Não tenho identificação. Deixe-me entrar. Curvo me enviou.

— E como sei disso?

— Porque ligou para o escritório de operações de Los Angeles há duas horas e deixou seu endereço. Ouça, não me faça a maldita gracinha de ter que berrar tudo isto aos quatro ventos.


Bosch fechou a porta, tirou a corrente e abriu-a totalmente. Embora continuasse segurando a pistola, baixou o braço. Ramos entrou no quarto, caminhou até a janela, deu uma olhada e em seguida começou a caminhar junto à cama.


— Cheira a puta aí fora, estão fritando omeletes ou não sei que merda é. Tem mais cerveja? Por certo, se os federais mexicanos lhe pegarem com um cachimbo será difícil voltar a cruzar a fronteira. Por que não ficou em Calexico como Curvo disse, homem?


Se não tivesse sido policial, Bosch pensaria que estava até as orelhas de coca. Mas o que acelerava Ramos devia ser outra coisa, algo que Harry não sabia. Bosch pegou o telefone e pediu um pacote de seis cervejas ao serviço de quarto, sem tirar os olhos do homem que caminhava pelo quarto. Depois de desligar, meteu a pistola na calça e se sentou na cadeira junto à janela.


— Queria evitar as filas da fronteira, disse Bosch como resposta a uma das muitas perguntas do Ramos.

— Não confiava em Curvo, isso é o que quer dizer. Não é que eu não confie nele, sim confio, mas entendo. A comida é melhor aqui, Calexico é uma cidade selvagem, um desses lugares onde nunca se sabe que merda está acontecendo. Se entrar com mau pé, pode acabar patinando. Pessoalmente gosto mais deste lugar. Já jantou?


Por um momento Bosch lembrou do que Sylvia Moore dissera sobre patinar no gelo negro. Enquanto Ramos continuava caminhando para cima e para baixo, Harry notou que trazia dois pagers eletrônicos no cinto. Era óbvio que o agente estava excitado por algo.


— Sim, já jantei, respondeu Bosch, ao mesmo tempo que aproximava a cadeira da janela aberta para evitar o cheiro de suor de Ramos.

— Conheço o melhor chinês do mundo. Poderíamos...

— Cara, pare! Pediu Bosch. — Está me deixando nervoso. Sente-se e conte o que aconteceu.


Ramos olhou ao seu redor como se visse o quarto pela primeira vez. Depois de pegar uma cadeira junto à porta, se sentou escarranchado no meio do quarto.


— O que aconteceu? Porque não estamos muito contentes com o número que montou hoje na EnviroBreed. Bosch se surpreendeu que a DEA soubesse tanto e tão rápido, mas tentou dissimular. — Não foi muito inteligente, opinou Ramos. — Vim pedir que deixe de atacar livremente. Curvo já me avisou de que esse era seu modo, mas não esperava que atacasse tão rapidamente.

— O que aconteceu? Defendeu-se Bosch. — Era minha pista. Por isso Curvo me contou, vocês não tinham nem uma puta ideia sobre esse lugar. Fui deixá-los um pouco nervosos; isso é tudo.

— Essa gente não fica "um pouco" nervosa, Bosch. É o que estou tentando explicar. Mas bem, já chega. Só queria avisar e ver o que mais sabe além da fábrica de insetos. Conte-me uma coisa: que merda faz aqui? Antes que Bosch pudesse responder, bateram na porta. O agente da DEA deu um pulo e ficou ajoelhado no chão.

— É o serviço de quarto, tranquilizou-o Bosch. — O que está acontecendo com você?

— Sempre fico assim antes de jogar a rede.


Bosch se levantou, olhando para o agente com curiosidade, e se dirigiu à porta. Através da olho-mágico viu o mesmo homem que trouxera as primeiras duas cervejas. Abriu a porta, pegou-as e passou a Ramos uma Tecate do novo pacote. Ramos bebeu meia garrafa antes de voltar a sentar, enquanto Bosch voltava para sua cadeira.


— Que rede?

— Bem, respondeu Ramos depois de outro gole. — O que deu a Curvo era boa informação, mas depois cagou-a ao aparecer na EnviroBreed. Por pouco não fode tudo.

— Isso já disse. O que descobriram?

— Investigamos a EnviroBreed e acertamos totalmente. O verdadeiro proprietário é Gilberto Ornelas, um conhecido nome falso de um tal Fernando Ibarra, um dos capangas de Zorrillo. Estamos trabalhando com os federais para obter uma ordem de revista. O novo promotor geral que têm aqui em baixo é um cara honrado e com mão dura. Está colaborando conosco. Assim vai ser uma boa jogada de rede, se nos derem autorização.

— Quando saberão?

— Muito em breve, mas ainda nos falta um dado.

— Qual?

— Se Zorrillo está passando gelo negro nos envios da EnviroBreed, como o leva do seu rancho até a fábrica de insetos? Nós estamos há meses vigiando o rancho e veríamos. E estamos muito certos de que não fabricam a merda na EnviroBreed. O lugar é muito pequeno, cheio de gente, perto da estrada... Além disso, todos nossos informantes explicam que é feita no rancho, em um bunker clandestino. Inclusive temos fotos aéreas que mostram a temperatura do chão onde ficam os buracos de ventilação. A pergunta é: como atravessa a rua?


Bosch pensou no que Curvo dissera no Code 7; que Zorrillo era um dos implicados na construção do túnel que atravessava a fronteira perto de Nogueiras.


— Clandestinamente.

— Exato, conveio Ramos. — Estamos falando com nossos informantes agora mesmo. Se se confirmar, o promotor geral nos dará a autorização. Entraremos no rancho e na EnviroBreed de uma só vez; uma operação conjunta. O promotor geral enviará o exército federal e nós o CLAC. Embora Bosch odiasse as siglas, não tinha outra solução a não ser perguntar o que significava. — Comando contra Laboratórios Clandestinos. Os caras são uns ninjas.


Enquanto digeria esta informação, Bosch não compreendia por que tudo estava acontecendo tão rápido. Ramos estava deixando de contar alguma coisa. Precisava haver alguma novidade sobre Zorrillo.


— Viram-no, não? Zorrillo. Ou alguém o viu.

— Sim, senhor. E a esse inseto estranho que veio procurar. Dance.

— Onde? Quando?

— Temos um informante no rancho que os viu às duas desta manhã praticando tiro ao alvo.

— Estava perto? O espião.

— O suficiente. Não tanto como para dizer "Olá, Santo Padre!", mas muito perto para identificá-lo.


Ramos deu uma sonora gargalhada e se levantou para apanhar outra cerveja. A seguir jogou uma a Bosch, que ainda não terminara a primeira.


— Onde se metera? Inquiriu Bosch.

— Quem sabe! A única coisa que me importa é que apareceu e que vai estar lá quando o CLAC derrubar a porta. Agora, esqueça da pistola ou os federais mexicanos pegarão você também. Vão permitir que o CLAC use armas, mas isso é tudo. O promotor geral assinará a permissão... Deus, espero que não subornem ao cara ou o assassinem. Bem, como dizia, se quiserem que vá armado, lhe dirão.

— E como saberei quando vai ser?


Ramos continuava de pé. Jogou a cabeça para trás e bebeu meia garrafa de cerveja. Seu cheiro impregnara todo o quarto, por isso Bosch aproximou a garrafa da boca e do nariz. Preferia cheirar a cerveja que o agente da DEA.

 

— Avisaremos, respondeu Ramos. — Pegue isto e espere. Ramos lhe deu um dos pagers de seu cinto. — Fique com isso e eu darei um toque assim que estejamos prontos para atacar. Será logo, antes do Ano Novo... Ao menos, espero. Precisamos atacar porque não sabemos quanto tempo Zorrillo ficará.


Ramos acabou a cerveja e pôs a garrafa na mesa. Não pegou outra, dando por terminada a conversa.


— E o que acontecerá com o meu colega? Perguntou Bosch.

— Quem? O mexicano? Esqueça. É da Polícia Judicial. Não pode contar para ele, Bosch. Sabemos que o Papa tem espiões em todo o corpo de polícia, assim não confie em ninguém dali, certo? Leve o pager como disse e espere o assobio. Vá às corridas de touros, relaxe na piscina ou no que seja. Não me viu, homem. Cairia bem um pouco de cor.

— Conheço Águia melhor que você.

— E sabia que trabalha para um homem que é hóspede habitual de Zorrillo nas corridas dos domingos?

— Não, respondeu Bosch, pensando em Grenha.

— Sabia que o posto de detetive na Polícia Judicial do Estado pode se comprar por uns dois mil dólares? A capacidade investigadora não conta.

— Não.

— Claro que não, mas assim são as coisas por aqui. Precisa colocar isso na cabeça; não pode confiar em ninguém. Pode ser que esteja trabalhando com o último policial honesto de Mexicali, mas por que arriscar a pele? Bosch concordou e disse:

— Uma última coisa. Quero vir amanhã para dar uma olhada nas suas fotos policiais. Tem dos homens de Zorrillo?

— De quase todos. O que quer?

— Estou procurando um cara com três lágrimas tatuadas no rosto. É o capanga de Zorrillo, que ontem matou um policial em Los Angeles.

— Porra! Certo, amanhã de manhã me ligue neste número e prepararei tudo. Se o identificar, diremos ao promotor geral. Pode ser que nos ajude a conseguir a ordem de revista. Ramos deu um cartão com um número de telefone e nada mais.


Quando foi embora, Harry voltou a pôr a corrente na porta.


* * *


Vinte e Quatro

BOSCH SE SENTOU na cama com a cerveja, enquanto pensava no reaparecimento de Zorrillo. Perguntou-se onde esteve e por que abandonara a segurança de seu rancho. Harry pensava na possibilidade de que Zorrillo tivesse ido a Los Angeles e que sua presença fora essencial para atrair Moore ao motel. Talvez Zorrillo fosse a única pessoa pela qual Moore tivesse ido até lá.


De repente ouviu o chiado de freios e o ruído de metal ao se chocar. Antes de se levantar, Bosch distinguiu vozes que discutiam na rua. As palavras se tornaram mais duras até que se converteram em gritos e ameaças tão rápidas que não conseguia entendê-las. Apareceu na janela aberta e viu dois homens cara a cara junto a dois carros, um dos quais batera no outro por atrás. Ao se voltar, Bosch detectou um pequeno brilho azul na sua esquerda. Antes que tivesse tempo de se virar, a garrafa que tinha na mão explodiu em mil pedaços.


A cerveja e o vidro saltaram em todas direções. Harry deu um passo atrás e se jogou sobre a cama e em seguida ao chão. Esperava mais tiros, mas não vieram. O coração acelerou e sentiu uma familiar lucidez que experimentava nas situações de vida ou morte. Então se arrastou pelo chão até a mesa e apagou o abajur, colocando o quarto na mais completa escuridão. Quando esticou o braço para pegar a pistola, ouviu que os dois carros se afastavam à toda velocidade. "Uma montagem espetacular", pensou. “Mas falharam”.


Bosch se aproximou da janela e se levantou lentamente com as costas contra a parede. Nesse momento se dava conta de fora um idiota; virtualmente posara para seus assassinos. Olhou a escuridão pela abertura, para onde acreditava ter visto a chama da arma, mas não havia ninguém. Muitas das janelas da ala oposta do hotel estavam abertas e era impossível determinar a procedência exata do disparo. Bosch se voltou de novo para o interior do quarto e observou que a bala estilhaçara a cabeceira. Seguindo a linha imaginária do ponto de impacto até a posição onde estivera com a garrafa e chegou a uma janela aberta, mas escura, no quinto andar do outro bloco do hotel. Não detectou nenhum movimento além da cortina que ondeava brandamente com a brisa. Assim, enfiou a pistola na cintura e saiu do quarto. Sua roupa cheirava a cerveja e os pequenos pedacinhos de vidro estavam cravados na camisa e pele. Sabia que pelo menos tinha dois cortes: um no pescoço e outro na mão direita, a que sustentava a garrafa. Ao caminhar levou a mão à ferida do pescoço.


Bosch calculou que a janela aberta pertencia a um quarto no quinto andar. Com a pistola na mão, Harry avançou lentamente pelo corredor do quinto andar. Esteve se debatendo sobre abrir a porta com um chute, mas em seguida viu que não seria necessário. Uma brisa fresca vinda da janela anunciou que a porta já estava aberta. No quarto 504 reinava a mais completa escuridão. Bosch sabia que sua silhueta se recortaria contra o corredor iluminado, assim, com um gesto rápido, acendeu o interruptor de luz. Apontou a Smith para todo o quarto, mas estava vazio. O cheiro de pólvora queimada flutuava no ar. Harry olhou pela janela e seguiu a linha imaginária até sua própria janela no terceiro andar. Era um disparo fácil. Foi então que ouviu o chiado de pneus e viu as luzes traseiras de um grande sedã que saía do estacionamento do hotel e se afastava a toda velocidade.


Bosch voltou a colocar pistola na cintura e cobriu-a com a camisa. A seguir deu uma olhada no quarto para ver se o franco-atirador deixara algo atrás de si. Viu um brilho acobreado na colcha dobrada sob os travesseiros. Ao puxá-la, descobriu um cartucho de calibre trinta e dois. Procurou em uma gaveta e encontrou um envelope do hotel que usou para guardar a prova do ataque.


Saiu do quarto 504 e caminhou pelo corredor sem que ninguém colocasse a cabeça do lado de fora; nenhum detetive do hotel veio correndo e nenhuma sirene de polícia soou na distância. Ninguém ouvira nada exceto possivelmente o ruído da garrafa ao se quebrar, já que o trinta e dois devia ter um silenciador no cano. Quem quer que fosse só teve tempo para disparar um tiro. Mas falhara. Ou teria feito de propósito? Bosch decidiu que não; atirar de tão perto com a intenção de falhar era muito arriscado. Harry simplesmente tivera sorte; se virar no último momento certamente salvara sua vida.


Bosch se dirigiu para seu quarto com a intenção de recuperar a bala da parede, tratar suas feridas e sair do hotel. Entretanto, começou a correr assim que se deu conta de que precisava avisar Águia. De volta ao quarto, procurou freneticamente em sua carteira o papelzinho onde Águia escrevera seu endereço e número de telefone.


— Sim? Respondeu Águia em espanhol.

— Bosch. Alguém acaba de atirar em mim.

— Sim? Onde? Está ferido?

— Estou bem, em meu quarto. Dispararam pela janela. Liguei para avisar.

— Por quê?

— Trabalhamos juntos hoje, Carlos. Não sei se querem a mim ou aos dois. Certo?

— Sim. Bosch se deu conta de que não sabia se Águia tinha família ou morava sozinho. De fato, a única coisa que conhecia dele se referia a seus antepassados. — O que vai fazer? Perguntou Águia.

— Não sei. No momento vou sair do hotel e...

— Pois então venha para a minha casa.

— Bem... Não. Você pode vir aqui? Eu não estarei, mas quero que descubra o que puder da pessoa que alugou o quarto 504. O tiro veio dali. Você pode conseguir a informação mais facilmente que eu.

— Vou para aí.

— Ficarei em sua casa, mas antes tenho algo para fazer.


* * *


Uma lua que parecia o sorriso do gato de Cheshire iluminava a feia silhueta do parque industrial. Eram dez da noite e Bosch estava no Caprice na Avenida Valverde, diante da fábrica de móveis Mexitec. Estacionara a uns duzentos metros da EnviroBreed e esperava que o último carro, um Lincoln que certamente pertencia a Ely saísse do estacionamento. No assento junto a Bosch jazia uma bolsa com o que acabava de comprar. Dela emanava um forte cheiro de porco frito que invadiu o interior do carro e obrigou Harry a baixar a janela.


Enquanto vigiava o estacionamento da EnviroBreed, Harry respirava rapidamente e a adrenalina continuava circulando por suas artérias como se fosse anfetamina. Embora o ar da noite estivesse fresco, suava ao lembrar de Moore, Porter e dos outros. "Eu não”, pensava. “Eu não". Às dez e quinze, a porta da EnviroBreed se abriu e saiu um homem acompanhado por duas silhuetas imprecisas. Eram Ely e os cães. As sombras escuras saltavam de ambos os lados do homem à medida que avançava. Ely dispersou algo pelo estacionamento, mas os animais permaneceram junto a ele. Finalmente se deu uma palmada no quadril e gritou: "Comer!" Nesse momento os cães se puseram a correr e se perseguiram uns aos outros até vários pontos do estacionamento onde brigaram pelo que Ely jogara.


Então Ely entrou no Lincoln. Ao cabo de uns momentos, os faróis se acenderam e o carro arrancou. Bosch seguiu as luzes até chegar à porta de entrada, que se abriu lentamente e deixou passar o veículo. Embora não houvesse ninguém, o motorista pensou um momento antes de sair para a estrada. Esperou a que a porta se fechasse completamente, se assegurou de que os cães estivessem do lado de dentro e só então se afastou. Bosch se agachou um pouco, apesar de que o Lincoln ia na direção contrária, para a fronteira.


Bosch esperou uns minutos e observou ao seu redor. Nada se movia: nem carros, nem pessoas. Supunha que os vigilantes da DEA teriam se retirado para planejar a jogada de rede e evitar serem descobertos. Ao menos esperava isso. Uma vez que se sentiu seguro, Bosch saiu do carro com a bolsa, a lanterna e sua gazua. Antes de fechar a porta, tirou os tapetes de borracha do chão, enrolou-os e levou-os sob o braço. Depois de sua visita nessa manhã, Bosch chegara à conclusão de que as medidas de segurança da EnviroBreed eram desenhadas para dissuadir e impedir a entrada, mais que para alertar da presença de um intruso. Havia cães, câmeras, uma cerca de três metros com um alambrado eletrificado. Mas dentro da planta, Bosch não tinha visto fita adesiva nas janelas do escritório do Ely, nem células fotoelétricas, nem sequer o teclado de um alarme junto à porta de entrada.


Os criadores queriam impedir intrusões na área de insetos, mas não captar a atenção das autoridades. Não importava se as autoridades podiam serem facilmente corrompidas ou subornadas para fechar os olhos. O melhor era não envolvê-las. Quer dizer, nada de alarmes. É óbvio que aquilo não significava que não pudesse terem alarmes conectados com algum outro lugar como o rancho do outro lado da rua. Entretanto, esse era um risco que Harry estava disposto a correr.


Bosch caminhou pelo lado da fábrica Mexitec até um beco que passava por trás dos edifícios da Avenida Valverde. Quando chegou à parte de trás da EnviroBreed, parou para esperar os cães. Os animais, dois dobermanns negros e esbeltos, apareceram rápida e silenciosamente. Um deles soltou um rosnado grave e gutural, e o outro imitou-o. Bosch começou a andar junto da cerca, com os olhos fixos no alambrado. Os cães caminharam com ele, babando e com a língua de fora. Na parte de trás do edifício Bosch viu a canil onde os prendiam durante o dia. Havia um carrinho de mão apoiado contra a parede traseira, mas nada mais.


Bosch se agachou e abriu a bolsa. Primeiro tirou o frasco de plástico de Sonho Meu. Depois desembrulhou o pacote de carne de porco frita que comprara em um restaurante chinês junto ao hotel e que já estava quase fria. Bosch escolheu uma parte do tamanho do punho de um bebê e enfiou três das potentes drágeas soníferas. Depois de apertar bem em uma mão, lançou-o por cima da cerca. Os cães correram para ele e um deles se preparou para comer mas não o tocou. Bosch repetiu a operação e jogou a outra parte; o outro cão se aproximou mas tampouco o comeu. Os cães farejavam a carne, voltavam os olhos para Bosch, e a farejavam de novo. Parecia que precisavam do dono para que os ajudasse a decidir. Ao não encontrá-lo, olhavam um ao outro. Por fim um dos dois mordeu sua parte, mas em seguida soltou-a. Então olharam para Bosch e ele gritou: "Comer!". Mas não aconteceu nada. Embora Bosch gritasse a ordem mais um par de vezes, os cães não se moveram. Nesse momento notou que os animais tinham os olhos fixos em sua mão direita. Harry por fim compreendeu; se deu uma palmada no quadril, repetiu a ordem e os cães pularam sobre a carne.


Bosch se apressou a preparar outros dois aperitivos dopados e a lançá-los por cima da cerca. Os cães os devoraram imediatamente. A seguir começou a caminhar para cima e para baixo e os animais o seguiram. Bosch fez o percurso duas ou três vezes com a esperança de que o exercício acelerasse a digestão. Depois esqueceu deles por um momento e se dedicou a estudar a espiral de arame que arrematava a cerca. Enquanto contemplava seu brilho à luz da lua, observou que os circuitos elétricos eram espaçados a cada três metros e meio e pareceu ouvir um leve zumbido. O alambrado fritaria um escalador antes que pudesse passar uma perna por cima dele. Mas iria tentar.


De repente Bosch precisou se esconder atrás de um contêiner, ao ver os faróis de um veículo que vinha devagar pelo beco. Quando se aproximou, Bosch se deu conta de que era um automóvel da polícia. Ficou momentaneamente paralisado pensando numa desculpa que justificasse sua presença ali. Para cúmulo deixara os tapetes do carro junto à cerca. O carro diminuiu ao passar pela EnviroBreed. O motorista lançou uns beijos aos cães que continuavam junto da cerca. Finalmente o automóvel se afastou e Bosch saiu de seu esconderijo. Os dobermanns continuaram vigiando por quase uma hora, momento em que um deles se sentou. O outro não demorou em fazer o mesmo. O líder estirou as patas para diante até ficar totalmente deitado e seu imitador fez o mesmo. Bosch os viu enquanto deixavam cair as cabeças sobre as patas estiradas, quase em uníssono. Então notou em que um charquinho de urina se formava perto de um deles, embora ambos mantivessem os olhos abertos. Quando Bosch tirou a última parte de porco do pacote e jogou-a, viu que um deles se esforçava para levantar a cabeça e seguir o arco da comida que caía. Mas a cabeça não aguentou. Nenhum dos dois foi até a última oferenda. Então Bosch segurou a cerca em frente aos cães e sacudiu-a com força; o aço fez um chiado agudo, mas os animais não prestaram a menor atenção.


Chegara a hora. Bosch amassou o papel gordurento e jogou-o no contêiner. A seguir tirou um par de luvas da bolsa e colocou-as; desenrolou o tapete e segurou-o por um canto com a mão esquerda. Com a direita se aferrou à cerca, levantou o pé direito o mais alto que pôde e colocou o sapato em um dos buracos em forma de círculo. Então usou a mão esquerda para lançar o tapete por cima dele de modo que ficasse pendurado no alambrado como uma sela de montaria. Harry repetiu a manobra com o tapete traseiro e finalmente os dois ficaram pendurados um ao lado do outro, esmagando com seu peso a fiação elétrica. Bosch demorou menos de um minuto em escalar a cerca e passar cautelosamente as pernas por cima dos tapetes. O zumbido elétrico se ouvia mais acima, assim Harry moveu as mãos com muito cuidado antes de deixa-las cair junto às silhuetas imóveis dos cães. Bosch pegou sua pequena lanterna e enfocou aos animais. Tinham os olhos abertos e dilatados, e ofegavam profundamente. Ficou quieto um momento observando os corpos que subiam e desciam ao mesmo tempo e revistando o recinto com a lanterna até que encontrou a parte do porco sem comer. Bosch jogou-o por cima da cerca, para o beco. Em seguida arrastou os dois cães pela coleira, meteu-os no canil e passou o fecho na portinhola.


Em seguida correu silenciosamente para a lateral do edifício e apareceu na quina para ter certeza de que o estacionamento continuava vazio. Então voltou para a parte traseira, para a sala de Ely. Bosch examinou atentamente a janela de lâminas de vidro e verificou que tivera razão ao acreditar que não havia alarme. Percorreu com a lanterna todo o marco, mas não observou nenhum cabo, fita para captar vibrações, nem nenhum outro sistema detector. Em seguida, com a sua faquinha, desparafusou os parafusos que amparavam a lâmina inferior, segurou o vidro com supremo cuidado e apoiou-o contra a parede. Aquilo lhe permitiu passar a lanterna pela abertura e percorrer toda a sala com o feixe de luz. Estava vazia; só se viam a mesa de Ely e outros móveis. As quatro telas de vídeo estavam negras, o que significava que as câmeras de vigilância estavam desligadas. Depois de tirar as seis lâminas da janela e empilhá-las cuidadosamente contra a parede, Bosch teve espaço suficiente para entrar na sala. A superfície da mesa estava vazia. Não havia papéis, nem outros objetos, à exceção de um peso de papéis de vidro que refletia a luz da lanterna como um prisma. Bosch tentou abrir as gavetas da mesa, mas estavam fechados com chave. Depois de forçá-las, não encontrou nada de interesse. Em uma delas havia um livro de contas, mas parecia fazer referência exclusivamente ao negócio de insetos.


Bosch dirigiu o feixe de luz para o cesto de lixo situado debaixo da mesa e viu várias folhas amassadas. Depois de esvaziá-la no chão, foi alisando uma a uma e, à medida que verificava que careciam de interesse, voltava-as a colocar na cesta. Mas nem tudo era lixo. Em uma parte de papel amassado encontrou várias palavras rabiscadas, entre as quais leu: "Colorado 504". O que podia fazer com aquilo? Era uma prova clara da tentativa de matá-lo, mas fora descoberta durante uma revista ilegal. Isso era totalmente inútil, a não ser que fosse encontrada mais adiante durante uma revista legal. A questão era: quando isso aconteceria? Se Bosch deixasse o papel no cesto de lixo, era muito provável que o esvaziassem e se perdesse. Finalmente Bosch voltou a amassá-lo. Em seguida cortou uma parte comprida de um rolo de fita adesiva que havia numa gaveta, colou um extremo no papel, que colocou no cesto de lixo, e o outro no fundo deste. Desse modo, esperava que a bola de papel ficasse grudada no fundo quando esvaziassem o cesto e, com um pouco de sorte, a pessoa que o fizesse não se desse conta.


Bosch saiu da sala de Ely. No corredor colocou óculos e uma máscara que estavam penduradas na porta do laboratório. Este tinha uma fechadura simples, por isso conseguiu abrir a porta sem problemas, que se abriu para uma escuridão total. Bosch esperou um pouco antes de entrar naquele lugar úmido. Um aroma doce impregnava tudo, de forma opressiva e repugnante. Harry percorreu o lugar com a lanterna e deduziu que se tratava da sala de carga e descarga. Ouviu uma mosca que passava voando junto a sua orelha e notou que outra revoava ao redor de seu rosto mascarado. Bosch espantou-as e continuou andando. No fundo da sala, havia uma porta dupla que se abria para outra sala onde a umidade era ainda pior. Lâmpadas vermelhas iluminavam filas e filas de urnas de fibra de vidro, todas elas cheias de insetos. O ambiente era sufocante e um esquadrão de moscas se chocavam e zumbiam ao redor de sua máscara. Depois de afugentá-las com a mão, se aproximou de uma das urnas e enfocou-a com a lanterna. Descobriu uma massa marrom e rosada de larvas que se movia como um mar tranquilo sob a luz vermelha.


Então passeou a lanterna na sala com e encontrou uma estante com várias ferramentas e uma pequena betoneira com a qual supôs que os diaristas mesclavam a massa para alimentar os insetos. Várias pás, ancinhos e vassouras estavam penduradas em ganchos na parede. Havia pallets com sacos cheios de trigo pulverizado e de açúcar, e pacotes menores de levedura. As palavras dos pacotes estavam em espanhol. Bosch deduziu que a sala era algo assim como a cozinha das moscas.


Bosch enfocou a luz sobre as ferramentas e notou uma das pás porque o cabo era novo. A madeira era de cor clara e estava polida, enquanto que as outras ferramentas tinham cabos que se obscureceram com o tempo, por causa da sujeira e do suor humano. Ao examinar o cabo, Bosch teve certeza de que Fernal Gutiérrez-Llosa fora assassinado ali. Bateram-lhe tão forte com uma pá, que esta quebrou ou se manchou tanto de sangue que precisaram substitui-la. Mas o que o pobre diarista viu para que o matassem? Ou o que fez? Bosch voltou a percorrer a sala com a lanterna até que encontrou outras portas ao fundo. Nestas havia um letreiro, escrito em inglês e espanhol, que dizia: PERIGO! RADIAÇÃO!


Bosch voltou a usar a gazua para abrir a fechadura. Ao passear a lanterna não viu mais nenhuma porta, por isso deduziu que aquela era a última sala do edifício. Era a mais larga das três e estava dividida em duas por um guichê. No guichê havia uma placa em inglês que dizia: USE A PROTEÇÃO. Ao olhar atrás do guichê, Bosch viu que quase todo o espaço estava ocupado por uma enorme máquina quadrada. Atravessando a máquina havia uma fita transportadora que levava bandejas de um lado ao outro. No outro lado, deviam esvaziar as bandejas nas urnas que vira na outra sala. Na máquina havia mais advertências de perigo. Estava claro que aquele era o lugar onde se esterilizavam as larvas mediante radiação.


Bosch foi para o outro lado da sala onde se viam grandes mesas de trabalho com armários por cima. Os armários não estavam fechados e Bosch reparou que continham caixas de material: luvas de plástico, os estojos em forma de salsicha onde transportavam as larvas, baterias, sensores de temperatura... Era ali onde empacotavam as larvas nos tubos, que em seguida passavam às caixas-estufa. O final do processo de fabricação. Não havia mais nada que parecesse importante. Bosch voltou para a porta. Ao apagar a lanterna só ficou o pequeno brilho vermelho da câmera de vigilância montada em um canto perto do teto. "Falta alguma coisa” pensou, “Mas o que falta?"


Então acendeu uma vez mais a lanterna e se encaminhou de novo para a máquina de radiação. Todos os avisos da sala estavam desenhados para manter as pessoas afastadas desse ponto, por isso ali deveria ser o segredo. Bosch iluminou as pilhas de bandejas empregadas para mover as larvas. A seguir apoiou o ombro em uma delas e começou a empurrar para que se movesse. Debaixo só havia cimento. Quando fez o mesmo com a pilha seguinte, descobriu uma portinhola no chão: o túnel. Nesse instante compreendeu o perigo que entranhava aquela luz vermelha da câmera de vigilância. As telas de vídeo do escritório de Ely estavam apagadas. E naquela manhã, quando Bosch visitara a fábrica, notou em que a única vista interior que Ely tinha, era a da sala de carga e descarga. Isso significava que mais alguém estava vigiando. Bosch consultou o relógio para calcular quanto tempo estava no lugar. Dois minutos? Três? Se viessem do rancho, tinha pouco tempo. Deu uma olhada na porta e em seguida ao olho vermelho que brilhava na escuridão.


Não podia se arriscar a que não tivesse ninguém vigiando. Bosch voltou a colocar a pilha de bandejas em seu lugar e se apressou a sair da terceira sala. Retrocedeu sobre seus passos e colocou a máscara e os óculos no gancho. Depois entrou no escritório de Ely e saiu pela janela. Rapidamente recolocou as lâminas de vidro. Os cães continuavam deitados no mesmo lugar, respirando fundo. Bosch pensou um instante antes de decidir tirá-los. Ao fim e ao cabo, talvez não o tenham visto. Assim, pegou-os pelas coleiras e os arrastou do canil. Um deles tentou rosnar, mas só conseguiu emitir um gemido afogado. O outro fez o mesmo. Bosch correu até a cerca e escalou-a rapidamente, mas se obrigou a ir mais devagar ao passar por cima dos tapetes de borracha. De lá, pareceu ouvir o ruído de um motor acima do zumbido elétrico. Bosch apanhou os tapetes antes de saltar para outro lado e aterrissou com eles no beco.


A seguir revistou os bolsos para verificar se não tinha esquecido a gazua, a lanterna ou as chaves. A pistola continuava na capa. Tinha tudo. Então ouviu com toda clareza o ruído de pelo menos um veículo. Era seguro que o tinham descoberto. Pôs-se a correr pelo beco em direção a Mexitec, ao mesmo tempo que alguém gritava:


— Pedro, Pablo! Pedro, Pablo! Harry compreendeu que chamavam os cães.


Bosch se arrastou até o carro e ficou escondido no assento dianteiro, espiando. Dali viu dois veículos no estacionamento diante da EnviroBreed e três homens, armados com pistolas, sob o foco da porta principal. Então um quarto homem apareceu falando em espanhol. Tinha encontrado os cães. O homem tinha algo que para Bosch era familiar, mas estava muito escuro e se achava muito longe para distinguir se tinha lágrimas tatuadas no rosto. Os homens abriram as portas e, como policiais, entraram no edifício com as pistolas no alto. Esse foi o sinal para Bosch. Sem pensar duas vezes, ligou o Caprice e pegou a estrada.


Enquanto se afastava a toda velocidade, se deu conta que estava tremendo como uma folha depois de ter passado por um momento de grande tensão. Era a clássica adrenalina depois de um bom susto. As gotas de suor deslizavam por seu cabelo e secavam na nuca pelo ar frio da noite.


Bosch acendeu um cigarro, jogou o fósforo pela janela e soltou uma gargalhada nervosa para o vento.


* * *


Vinte e Cinco

NO DOMINGO de manhã, Bosch ligou para o número do telefone público que Ramos lhe dera, de um restaurante chamado Casa Mandarim, no centro de Mexicali. Bosch deu seu nome e o número, desligou e acendeu um cigarro. Dois minutos mais tarde o telefone soou: era Ramos.


— O que aconteceu, amigo? Perguntou em espanhol.

— Nada, respondeu Bosch. — Quero ver as fotos policiais que pedi. Lembra-se?

— Certo. Se quiser, levo até aí. Me dê meia hora.

— Já não estou no hotel.

— Não?

— Não, simplesmente saí do hotel. Eu não gosto de me hospedar em um lugar onde tentam me matar.

— O quê?

— Alguém com um rifle. Depois eu conto. Bem, agora mesmo não estou localizável. Se quer me apanhar, espero-o no Mandarim, no centro.

— Chegarei dentro de meia hora. Quero saber mais detalhes.


Desligaram, e Bosch voltou para sua mesa, onde Águia continuava tomando o café da manhã. Os dois pediram ovos mexidos com molho picante, coentro e almôndegas fritas. A comida estava muito boa e Bosch a devorara. Sempre comia depressa depois de uma noite sem dormir.


Na noite anterior, depois de voltar rindo da EnviroBreed, se encontrara com Águia em sua casa perto do aeroporto. Ali, o detetive mexicano contara o resultado de sua investigação no hotel. Pelo visto, o recepcionista não soube oferecer uma descrição detalhada do homem que alugara o quarto 504; a única coisa que lembrava era que tinha três lágrimas tatuadas na face, debaixo do olho esquerdo. Águia não perguntou a Bosch onde estivera, como se já soubesse que não ia receber uma resposta. Entretanto, ofereceu o sofá de sua modesta casa. Harry aceitou o convite, mas não dormiu. Passou a noite vigiando a janela e dando voltas em tudo até que a luz cinzenta do amanhecer se filtrou através das finas cortinas brancas da sala.


A maior parte do tempo seus pensamentos se centraram em Lucius Porter. Bosch imaginou o corpo nu do detetive sobre a fria mesa de aço e Teresa Corazón cortando-o com suas tesouras de podar. Pensou nas minúsculas hemorragias que ela encontraria nas córneas dos olhos: a confirmação de que fora estrangulado. E se lembrou das vezes que estivera na sala de autópsias com Porter observando como abriam outras pessoas e seus despojos enchiam os deságues. Nesse momento era Lucius quem jazia sobre a mesa com um taco de madeira sob a nuca, preparado para que serrassem o crânio dele... Quando começava a amanhecer, os pensamentos de Harry se tornaram confusos e de repente viu a si mesmo em cima da maca de aço enquanto Teresa preparava o instrumental para a autópsia.


Bosch se levantou de repente. Enquanto esticava a mão para pegar o maço de cigarros, jurou a si mesmo que ele nunca acabaria naquela mesa. Não dessa maneira.


— A DEA? Perguntou Águia enquanto empurrava o prato para o lado.

— O quê? Águia indicou com a cabeça o pager que Bosch levava.

— Sim. Querem que o carregue.


Bosch sabia que precisava confiar mais uma vez naquele homem que já ganhara sua confiança com acréscimo. Não se importava com o que dissessem Ramos ou Curvo. Toda sua vida Bosch morara e trabalhara em instituições, mas acreditava ter escapado da filosofia institucional e ser capaz de tomar suas próprias decisões. Por isso resolveu que diria a Águia o que estava acontecendo assim que chegasse o momento oportuno.


— Vou lá nesta manhã para ver umas fotos. Marcamos para mais tarde?


Águia aceitou e explicou que ele ia à Praça da Justiça para completar a papelada oficial sobre o falecimento de Gutiérrez-Llosa. Bosch quis contar da pá com o cabo novo que vira na EnviroBreed, mas pensou que era melhor não. Só ia contar sobre a noite anterior para uma pessoa. Permaneceram um momento em silêncio, Bosch com seu café e Águia com seu chá.


— Viu alguma vez o Zorrillo? Em pessoa?

— Sim, de longe.

— Onde? Em uma corrida?

— Sim, na praça de touros. O Papa está acostumado a ir ver seus touros, mas tem um camarote novo à sombra a cada semana. Eu só posso me permitir assentos ao sol. Por isso o vi de longe.

— Ele vai com os touros, não?

— Como?

— Que quer que seus touros ganhem, não os toureiros.

— Não, ele quer que seus touros morram com honra. Bosch não estava certo do que queria dizer, mas deixou estar.

— Quero ir hoje. Podemos conseguir entradas? Eu gostaria de me sentar em um camarote perto do Papa.

— Não sei. Os camarotes são muito caros. Embora não consigam vendê-los, não baixam o preço.

— Quanto valem?

— No mínimo uns duzentos dólares. Já disse que é muito caro.


Bosch tirou sua carteira e contou duzentos e dez dólares. Deixou uma nota de dez na mesa para o café da manhã e empurrou o resto para Águia por cima da puída toalha verde. Nesse instante Harry se deu conta de que aquilo era mais do que Águia ganhava em uma semana de seis dias e desejou não ter tomado tão rápido uma decisão que seu colega precisava levar várias horas de cuidadosa consideração.


— Quero um camarote perto do Papa.

— Pense que haverá muitos homens com ele. Estará...

— Só quero vê-lo, isso é tudo. Compre as entradas e não se preocupe.


Ao sair do restaurante, Águia avisou que iria à Praça da Justiça a pé, já que ficava a poucas quadras dali. Quando partiu, Bosch ficou esperando Ramos na calçada. Então consultou seu relógio e viu que eram oito da manhã; a hora em que devia ter se apresentado na sala de Irving. Harry se perguntou se o subdiretor já tomara as medidas disciplinares contra ele; certamente o castigaria pondo-o para trabalhar numa mesa assim que voltasse para a cidade. A não ser que... A não ser que voltasse com tudo solucionado. Essa era a única forma de enfrentar Irving. Bosch sabia que precisava retornar do México com tudo amarrado e bem amarrado.


Nesse instante Harry se deu conta do risco que representava ficar ali parado, como um alvo perfeito, de modo que retornou ao restaurante e esperou Ramos junto à porta de entrada. Em várias ocasiões, a garçonete se aproximou, cumprimentou-o efusivamente e partiu. Bosch deduziu que devia se tratar dos efeitos da gorjeta de três dólares que deixara.


Ramos demorou quase uma hora para chegar. Como Bosch não queria deixar seu carro, disse ao agente que o seguiria. Ambos se dirigiram para o norte pela López Mateos, viraram para o este na rotunda da Praça Benito Juárez e entraram em um bairro cheio de edifícios sem identificação. Finalmente entraram em um beco e estacionaram atrás de um edifício cheio de grafites. Ramos saiu de seu velho Camaro com placa mexicana e olhou ao seu redor de maneira furtiva.


— Bem-vindo a nosso modesto escritório federal, disse.


Dentro não havia ninguém; se notava que era domingo. Ramos acendeu a luz e Bosch viu umas quantas filas de mesas e arquivos. No fundo havia dois armários para armas e uma caixa forte de duas toneladas para guardar provas.


— Vou ver o que temos, enquanto você me conta sobre ontem à noite. Está certo de que tentaram matá-lo?

— Como que me chamo Hieronymus Bosch.


A verdade era que o atentado pouco deixara de rastro, já que a atadura que Bosch colocara no corte do pescoço estava coberta pela camisa, e a da palma da mão direita não se notava muito. Harry contou a Ramos a história do tiro no hotel sem omitir nenhum detalhe, incluído o cartucho que encontrara no quarto 504.


— E a bala? Conseguiu recuperar?

— Deve continuar incrustada na cabeceira. Não fiquei verificando.

— Não, aposto que saiu apressado pra avisar seu colega, o mexicano. Bosch, repito que tome cuidado. Pode ser que seja bom cara, mas não o conhece. Talvez tenha sido ele quem organizou tudo.

— Pois eu o avisei. Mas depois fiz o que você queria que eu fizesse.

— De que merda está falando?

— Da EnviroBreed. Ontem de noite entrei na fábrica.

— O quê? Ficou maluco? Eu não disse que...

— Vamos, cara, não me sacaneie. Contou-me tudo para que eu soubesse o que precisava para conseguir uma ordem de revista. Agora não me venha com idiotices. Estamos sozinhos; eu sei o que queria e o consegui. Escreva tudo como se fosse um informante.


Ramos caminhava para cima e para baixo sem parar; estava mostrando a Bosch o número de policial indignado.


— Cara, antes de usar um informante preciso pedir permissão ao chefe. Isto não vai colar. Não posso...

— Pois faça com que cole.

— Bosch...

— Interessa-lhe o que encontrei lá dentro ou deixamos correr? Isso silenciou o agente da DEA durante alguns segundos. — Já chegaram os ninjas? Como diz que se chamam? Os ÑAC?

— Os CLAC. Sim, chegaram ontem à noite.

— Bem. Precisarão se apressar, porque me viram, disse. O rosto do agente escureceu de repente. Ramos sacudiu a cabeça e se deixou cair numa cadeira.

— Como sabe?

— Havia uma câmera, mas não a vi até ser muito tarde. Consegui sair e depois foram uns caras olhar. Não podem me identificar porque usava máscara, mas sabem que alguém entrou.

— Certo, Bosch. Não está me deixando muitas opções. Que merdas você viu?


Aí estava. Ramos estava aceitando a revista ilegal; estava autorizando, por isso não poderiam mais usá-la contra Bosch. Então Harry contou ao agente sobre a portinha escondida debaixo da pilha de bandejas.


— Não abriu?

— Não tive tempo, mas também não abriria. Estive nos túneis do Vietnã e todas as portinhas podem ser armadilhas. Se pensar bem, o pessoal que veio até mim chegou de carro, não pelo túnel. Isso significa que o passadiço pode conter explosivos.


Então Harry aconselhou a Ramos que a autorização de revista, ou como quer que se chamasse no México, incluísse a possibilidade de confiscar todas as ferramentas e tudo o que encontrarem nos cestos de lixo.


— Por quê?

— Porque isso me ajudará a resolver um dos casos de assassinato que me trouxeram até aqui. E porque contêm provas de uma conspiração para assassinar um agente da lei: eu.


Ramos concordou sem pedir mais explicações, não lhe interessavam. Em seguida, levantou e se dirigiu a um arquivo de onde tirou duas enormes pastas negras de argolas. Bosch se sentou à uma mesa vazia e Ramos pôs as pastas na sua frente.


— Estes são os cúmplices conhecidos de Humberto Zorrillo. De alguns temos informações biográficas, mas dos outros só o que descobrimos em operações de vigilância. Em alguns casos nem sequer conhecemos os nomes.


Bosch abriu uma pasta e examinou o primeiro retrato. Era uma ampliação imprecisa de uns vinte por vinte e cinco centímetros de uma foto tirada durante uma operação de vigilância. Ramos confirmou que se tratava de Zorrillo, algo que Bosch já imaginara. Tinha o cabelo negro, barba e os olhos escuros com um olhar intenso. Bosch já vira antes esse rosto; era o rosto adulto do garoto que estava com Calexico Moore nas fotos.


— O que sabem dele? Perguntou Bosch a Ramos. — Algo de sua família?

— Não, embora não procuramos muito. Pouco me importa de onde veio; só me interessa o que está fazendo agora e o que vai fazer depois.


Bosch passou a página e continuou com o restante das fotos. Algumas eram das fichas policiais e outras foram obtidas durante as vigilâncias. Ramos se sentou em sua mesa e se dispôs a escrever a máquina.


— Vou preparar a declaração de um informante. Esperemos que cole.


Quando olhara umas duas terças partes da pasta, Bosch encontrou o homem das três lágrimas. Havia várias fotos dele tiradas de todos os ângulos e durante o transcurso de vários anos. Bosch viu transformar o seu rosto quando acrescentaram as lágrimas; passou de ser um garoto com aspecto de esperto a um criminoso cruel. A breve biografia dizia que se chamava Osvaldo Arpis Rafaelillo e que nascera em 1952. Também se detalhava que as suas três estadias na penitenciária se deviam a condenações; por um assassinato que cometera ainda sendo menor, um segundo assassinato já adulto e por posse de drogas. Passara a metade de sua vida na prisão. Conforme os relatórios Arpis era um dos homens-chave de Zorrillo.


— Aqui. Anunciou Bosch. Ramos se aproximou. Ele também conhecia Arpis.

— E disse que esteve em Los Angeles matando policiais?

— Sim, pelo menos um, mas acredito que também matou o primeiro. E pode ser que também eliminasse um dos correios da concorrência, um havaiano chamado Jimmy Kapps. Ele e um dos tiras foram estrangulados da mesma maneira.

— A "gravata mexicana", não é?

— Sim.

— E o diarista? Acha que ele o assassinou na fábrica de insetos?

— Acredito que sim.

— Há séculos que Arpis anda por aqui. Sim, há um ano que saiu da cadeia. É um assassino a sangue frio, Bosch. Um dos homens de confiança do Papa. De fato, a gente daqui o chama de Alvin Karpis, por causa do cara que metralhava seus inimigos nos anos trinta. Conhece? O da gangue do MA Baker? Arpis foi preso por um par de assassinatos, mas dizem que isso não lhe faz justiça, que o filho da puta matou muito mais gente. Bosch olhou as fotos e perguntou:

— Isto é tudo o que tem sobre ele?

— Há mais, mas aí tem quase tudo o que precisa saber; o resto são só rumores que nossos informantes nos contaram. A única coisa importante sobre Karpis é que quando Zorrillo começou a subir, o cara era como um exército que fazia todo o trabalho sujo. Cada vez que Zorrillo precisava solucionar um assunto, pedia a Arpis, seu amigo do bairro. E Arpis solucionava. Como disse, só o prenderam um par de vezes. As outras deve ter subornado o pessoal.


Bosch começou a tomar notas em uma caderneta enquanto Ramos continuava falando.


— Zorrillo e Arpis vêm de um bairro ao sul daqui. Chamam-no...

— Santos e Pecadores.

— Sim, Santos e Pecadores. Embora não confie muito neles, alguns tiras locais nos contaram que Arpis pegou o gostinho de matar. No bairro usavam a expressão "Quem é?" como uma espécie de provocação. Era uma forma de perguntar de que lado se estava. Conosco ou contra nós? Santo ou pecador? E quando Zorrillo chegou ao poder, pôs Arpis para se encarregar das pessoas que estava contra ele. Parece que depois de matar alguém, no bairro corria a voz: " Descobriram quem eu era ". Entendeu?

— Perfeitamente, respondeu Bosch.

— Muito bem. A verdade é que era boa publicidade: uma maneira de que a gente do bairro o temesse. Mas pelo visto Arpis em seguida aperfeiçoou a arte de matar, até o ponto de deixar mensagens no corpo. Depois de assassinar um cara escrevia " Descobriram quem eu era" ou algo parecido e deixava-o preso na camisa com um alfinete.


Bosch não disse, nem escreveu nada. Outra peça que encaixava no quebra-cabeças.


— Às vezes ainda se vê a frase em grafites pelo bairro, explicou Ramos. — É parte da lenda popular de Zorrillo, parte do mito do Papa. Harry fechou a caderneta e se levantou.

— Já tenho tudo o que preciso.

— Muito bem, mas ande com cuidado. É possível que voltem a tentar, especialmente se estiver nas mãos do Arpis. Quer ficar no escritório? Aqui estará seguro.

— Não, não se preocupe. Bosch concordou e se dirigiu à porta, mas antes levou a mão ao pager. — Me chamarão?

— Sim. Curvo descerá em breve para o espetáculo e pediu que o localizasse. Onde posso encontra-lo mais tarde?

— Não sei. Acredito que vou fazer um pouco de turismo. Ir à Sociedade Histórica ou as touradas...

— Pois fique tranquilo. Vamos chamá-lo.


Bosch voltou para o Caprice pensando unicamente na nota que tinham encontrado no bolso traseiro da calça de Cal Moore.


"Descobriram quem eu era".


* * *


Vinte e Seis

BOSCH DEMOROU trinta minutos para cruzar a fronteira, já que havia quase um quilômetro de fila até o posto de controle da Patrulha Alfandegária. Enquanto esperava e ia avançando um ou dois carros, lhe assaltou um exército de camponeses que pediam esmola e vendiam bagatelas ou comida. Muitos limpavam o para-brisas com seus trapos sujos sem que ele pedisse e em seguida estendiam a mão para receber uma moeda. Depois de cada limpeza, o vidro ficava mais rabiscado, por isso Bosch precisou ligar o limpador de para-brisa e usar o jorro de água do carro. Quando finalmente chegou ao posto de controle, Bosch ficara sem moedas e notas de um dólar. O inspetor com os óculos espelhados deixou-o passar assim que viu a placa.


— Ali tem uma mangueira se quiser limpar a merda do para-brisa, comentou.


Ao cabo de uns minutos, Bosch parou no estacionamento frente à Prefeitura de Calexico. Enquanto fumava um cigarro dentro do carro, deu uma olhada no outro lado da rua. Nesse dia não havia trovadores; o parque estava quase vazio. Bosch saiu do Caprice e se dirigiu à Sociedade Histórica de Calexico. Embora não estivesse muito certo do que estava procurando, tinha umas horas para matar e acreditava que havia algo mais profundo em toda a história de Cal Moore: desde sua decisão de cruzar a linha até o bilhete no bolso traseiro, passando pela foto dele com Zorrillo há tantos anos. Bosch queria descobrir o que acontecera com a casa que ele denominava "o castelo" e ao indivíduo com o qual posara: aquele homem com o cabelo completamente branco.


A porta de vidro estava fechada e Bosch descobriu que nos domingos não abriam antes da uma; ainda faltavam quinze minutos. Então se aproximou do vidro e olhou para dentro, mas não viu ninguém naquela salinha minúscula que continha duas mesas, uma parede coberta de livros e um par de mostruários. Pensou em aproveitar o tempo indo comer algo, mas em seguida decidiu que era muito cedo. Então se dirigiu à delegacia, onde comprou uma Coca-Cola na máquina do pequeno vestíbulo. Ao partir, cumprimentou o oficial que estava atrás do guichê e que nesse dia não era Gruber.


Enquanto esperava apoiado contra a fachada da delegacia, bebendo o refrigerante e olhando o parque, Harry reparou num velho com uma retícula de finos cabelos brancos em ambos os lados da cabeça. O ancião abriu a porta da Sociedade Histórica. Apesar de que ainda faltavam uns minutos para a uma, Bosch seguiu-o e perguntou.


— Está aberto?

— Suponho que sim, respondeu o homem. — Posso ajudar em algo? Bosch entrou e explicou que não estava bem certo do que queria.

— Estou procurando informações sobre o passado de um amigo e acredito que seu pai foi um personagem importante. Em Calexico, quero dizer. Eu gostaria de encontrar sua casa, se ainda continuar de pé, e descobrir o que puder sobre seu pai.

— Como se chama esse homem?

— Não sei. Só sei seu sobrenome: Moore.

— Vá, filho, esse nome não nos ajuda muito. Moore é um dos sobrenomes mais importantes desta cidade. São uma família enorme: irmãos, primos, etc. Façamos uma coisa, Deixe-me...

— Tem fotos? Quero dizer, livros com imagens dos Moore. Eu vi retratos do pai e poderia...

— Sim, isso é o que ia sugerir. Deixe-me lhe mostrar um par de coisas. Encontraremos esse Moore. Agora também estou curioso. Conte, por que está fazendo isto para seu amigo?

— Estou tentando construir sua árvore genealógica. Descobrir suas raízes.


Ao cabo de uns minutos, Bosch se achava sentado na outra mesa com três livros que o homem trouxera. Eram uns tomos grandes, encadernados em pele que cheiravam a pó. Em cada página os textos eram acompanhados de documentos fotográficos da época. Ao abrir um deles ao azar, Harry encontrou uma foto em preto e branco do Hotel del Anza em processo de construção. Depois começou em ordem. O primeiro volume se intitulava Calexico e Mexicali: Setenta e cinco anos de fronteira e, ao ler por cima os textos e pés da foto, Bosch foi tendo uma ligeira ideia da história das duas cidades e dos homens que a construíram. Tudo era basicamente como Águia contara, mas do ponto de vista do homem branco. O livro descrevia a terrível pobreza em Tapei, China, e contava que os homens que viviam ali vieram encantados para a Baixa Califórnia em busca de fortuna. Curiosamente, não dizia nada da mão de obra ser barata.


Calexico era uma cidade que surgira do nada nos anos vinte e trinta. A cidade foi fundada pela Companhia da Terra do Rio Colorado, cujos diretores, totalmente donos e senhores, construíram mansões luxuosas e ranchos nos morros que se elevavam nos subúrbios da cidade. À medida que ia lendo, Bosch notou que se repetiam os nomes de três irmãos: Anderson, Cecil e Morgan Moore. Também existiam outros Moore, mas estes três sempre eram citados com grande respeito já que ostentavam altos cargos na companhia.


Enquanto folheava um capítulo titulado "Uma cidade poeirenta cobre suas ruas de ouro", Bosch encontrou o homem que lhe interessava: Cecil Moore. Ali, entre a descrição da riqueza que o algodão trouxera para Calexico, havia uma imagem de um homem com o cabelo prematuramente branco frente a uma enorme mansão colonial. Era o homem da foto que Moore conservara tantos anos. À esquerda da mansão se elevava, como o campanário de uma igreja, uma torre com duas janelas em forma de arco na parte mais alta, que dava a casa um aspecto de castelo espanhol. Não havia dúvida; aquele era o lar onde Cal Moore passara a infância.

 

— Este é o homem e este é o lugar, afirmou Bosch, ao mesmo tempo que mostrava a foto ao ancião.

— É Cecil Moore, informou o ancião.

— Vive ainda?

— Não, nenhum dos irmãos vive. Embora ele foi o último a morrer; morreu no ano passado por esta época, enquanto dormia. Mas eu acredito que está errado.

— Por quê?

— Porque Cecil não teve filhos. Bosch concordou.

— Talvez tenha razão. E a casa, também desapareceu?

— Olhe, você não está preparando uma genealogia, não é?

— Não, sou policial. Vim de Los Angeles para investigar uma história que alguém me contou. Pode me ajudar? Quando o velho olhou-o nos olhos, Bosch se arrependeu de não ser sincero com ele desde o princípio.

— Não sei o que tem a ver com Los Angeles, mas em frente. Que mais quer saber?

— A casa da torre ainda continua lá?

— Sim. Chamam-na o Castelo dos Olhos por causa dessas duas janelas. De noite, quando estavam iluminadas, a gente dizia que eram os olhos que viam todo o Calexico.

— Onde fica?

— Em uma estrada chamada Coiote Trail, a oeste da cidade. Se pegar a 98 passado o Rio Pinto até uma área chamada Crucifixión Thorn, só terá que virar ao chegar a Anza Road, o mesmo nome do hotel, e esse caminho o levará a Coiote Trail. O castelo fica no final da estrada. Não tem erro.

— Quem mora ali agora?

— Acredito que ninguém. Moore deixou-a de herança para a cidade, mas a prefeitura não podia se permitir manter um lugar como esse, assim o venderam; para um homem de Los Angeles, com certeza. Mas que eu saiba, ele nunca se mudou. É uma pena; gostaria de convertê-la em um museu ou algo parecido.


Bosch agradeceu e rumou para Crucifixión Thorn. Embora o Castelo dos Olhos talvez fosse simplesmente a casa de um homem rico sem nenhuma relevância para o caso, Harry decidiu investigar: não tinha nada mais para fazer e o instinto empurrava-o a seguir adiante.


A estrada estatal 98 era uma rota asfaltada de duas pistas que se estendia para o oeste, paralela à fronteira, a partir do centro de Calexico, atravessando amplas extensões de terra quadriculadas por canais de irrigação. Do carro Bosch notou o aroma de pimentões verdes e coentro. Em seguida passou junto a uma plantação de algodão e pensou que todo aquele enorme território fora épocas atrás propriedade da Companhia da Terra do Rio Colorado. Um pouco mais à frente, a estrada começava a subir e se tornava montanhosa, por isso Bosch vislumbrou a casa de Calexico Moore muito antes de chegar a ela. O Castelo dos Olhos se elevava, orgulhoso sobre um promontório, e sua torre se recortava no horizonte com suas duas janelas, que realmente pareciam olhos negros e profundos na pedra alaranjada do edifício.


Bosch cruzou uma ponte sobre o leito seco de um arroio. Devia ser o Rio Pinto, embora não havia nenhuma placa na estrada que o confirmasse. Ao olhar de esguelha a bacia poeirenta, Harry viu estacionado um Chevrolet Blazer de cor verde e, atrás do volante, um homem espiando com binóculos. Bosch deduziu que seria da patrulha de fronteiras. O agente estava usando o desnível do arroio como esconderijo para vigiar a fronteira e impedir a passagem a imigrantes ilegais.


O Rio Pinto marcava o final das terras de cultivo; quase imediatamente o terreno começou a se transformar em colinas cobertas de arvoredos sombrios. Junto ao acostamento da estrada havia um bosque de eucaliptos e carvalhos cujos ramos estavam totalmente quietos naquela manhã sem vento. Desta vez uma placa informou onde se achava:


PARQUE NATURAL DE CRUCIFIXIÓN THORN

Perigo. Minas abandonadas


Bosch acabava de ler um comentário nos livros da Sociedade Histórica sobre as minas de ouro que se multiplicaram por toda a área da fronteira a finais de século passado. Os especuladores ganharam e perderam verdadeiras fortunas, e as colinas se encheram de criminosos... Até que chegou a companhia e pôs ordem.


Harry acendeu um cigarro e viu a torre, já muito mais próxima, aparecendo por trás de uma área amuralhada. A quietude da paisagem e as janelas escuras, como olhos sem alma, davam a cena um ar sinistro. E isso porque o castelo não estava só na montanha; do carro Bosch via os telhados de outras casas. Mas havia algo naquele torreão que se elevava sobre todas elas e olhava com seus ocos olhos de vidro que lhe dava um aspecto totalmente desolado. Morto.


A menos de um quilômetro ficava o cruzamento com a Anza Road. Bosch virou e pegou a estrada de uma só pista, cheia de buracos e curvas, que subia a montanha. À sua direita, se estendiam as terras de cultivo que acabava de atravessar. Finalmente chegou a Coiote Trail, virou à esquerda e passou diante de vários terrenos enormes com suas respectivas mansões. Bosch só conseguia ver os segundos andares da maioria delas devido aos muros que as rodeavam. Coiote Trail ia morrer em uma pracinha ao redor de um carvalho que no verão daria sombra. O Castelo dos Olhos ficava ali mesmo, no final da rua, mas pouco se via dele, já que um muro de pedra de uns dois metros e meio encobria tudo exceto a torre. Só através da grade de ferro forjado se obtinha uma vista mais completa.


Quando Bosch dirigiu até ela, descobriu em seguida que estava fechada com uma grossa corrente de aço e um cadeado. Então saiu do carro e olhou através da grade. Observou que a área para estacionar frente à casa estava vazia e que todas as janelas da fachada tinham as cortinas puxadas. No muro junto à grade havia uma caixa de correio e um interfone. Bosch apertou o timbre mas não recebeu resposta, embora tampouco soubesse do que falaria se alguém atendesse. Depois de abrir a caixa de correio, descobriu que estava vazia. Bosch deixou o carro onde estava e caminhou de volta por Coiote Trail até a casa mais próxima. Havia uma perto de madeira branca e interfone na entrada. Era uma das poucas sem muro. Dessa vez, quando apertou o botão, alguém atendeu.


— Sim? Disse uma voz feminina.

— Sim, senhora, polícia. Queria fazer umas perguntas sobre a casa de seu vizinho.

— Que vizinho? Era a voz de uma anciã.

— O do castelo.

— Lá não mora ninguém. O senhor Moore morreu faz tempo.

— Sim, já sei, senhora, mas eu gostaria de entrar e falar um momento. Tenho identificação.


Houve um silêncio até que ouviu um seco "Entre" e o zumbido do ferrolho que abria a porta. A mulher insistiu para que Bosch mostrasse a sua documentação pelo vão da porta. Através do vidro Bosch viu-a lá dentro, grisalha e decrépita, se esforçando por enxergar o documento de uma cadeira de rodas. Finalmente abriu a porta.


— Por que enviam um policial de Los Angeles?

— Porque estou trabalhando em um caso acontecido em Los Angeles. Tem a ver com um homem que estava acostumado a viver no castelo. Um menino, há muitos anos. Ela olhou-o com os olhos entrecerrados, como se estivesse tentando evocar uma lembrança.

— Refere-se a Calexico Moore?

— Sim. Conhecia-o?

— Aconteceu algo com ele? Bosch pensou um momento e disse:

— Infelizmente faleceu.

— Lá em Los Angeles?

— Sim. Era um agente da polícia. Acredito que sua morte teve algo a ver com sua vida aqui. Por isso vim. Não sei exatamente o que perguntar... Não viveu aqui muito tempo, não é?

— Não viveu aqui muito tempo, mas isso não quer dizer que não o voltasse a ver. Pelo contrário; o vi regularmente durante anos. Estava acostumado a vir de moto ou de carro e se sentar na estrada para contemplar o castelo. Uma vez fiz com que Marta levasse um sanduíche e uma limonada para ele. Bosch assumiu que Marta seria a criada. Aquelas mansões sempre incluíam uma. — Imagino que se sentava ali para relembrar, continuou a anciã. — É horrível o que Cecil lhe fez. Provavelmente agora estará pagando por isso.

— O que quer dizer com "horrível"?

— O de expulsar Cal e sua mãe daquela maneira. Depois disso acredito que nunca voltou a falar com eles. Mas eu vi o garoto e em seguida o homem que vinha aqui para contemplar o castelo. A gente diz que foi por isso que Cecil construiu o muro há vinte anos; porque estava farto de ver Calexico observando-o da rua. Assim Cecil fazia as coisas. Se não gostava do que via, levantava um muro e pronto. Mas o jovem Cal continuou vindo. Uma vez eu mesma levei uma bebida fresca, naquela época não estava na cadeira. Perguntei-lhe: "por que vem tanto por aqui?" e ele me respondeu: "Porque eu gosto de relembrar, tia Mary".

— Tia Mary?

— Sim, achei que foi por isso você veio. Cecil e meu marido Anderson, que em paz descanse, eram irmãos. Bosch concordou e esperou respeitosamente uns cinco segundos antes de falar.

— O homem da Sociedade Histórica me disse que Cecil não teve filhos.

— Pois claro. Cecil ocultou-o das pessoas. Era um enorme segredo. Não queria desmerecer o nome da companhia.

— A mãe de Calexico era a criada?

— Sim, ela... Embora pareça que você já sabe de tudo.

— Só algumas coisas. O que aconteceu? Por que ele expulsou ela e o menino?


Ela pensou antes de responder, para rememorar uma história que tinha mais de trinta anos.


— Depois que ela ficou grávida, veio morar aqui... Ele quis que ficasse... E ela teve o bebê no castelo. Depois, quatro ou cinco anos mais tarde, Cecil descobriu que ela mentira. Um dia fez com que um de seus homens a seguisse quando ia para Mexicali visitar a mãe. Só que não havia nenhuma mãe, a não ser um marido e outro filho, mais velho que Calexico. Foi quando os expulsou. Expulsou o sangue de seu sangue. Bosch pensou nisto um bom momento. A mulher tinha o olhar perdido no passado.

— Quando foi a última vez que viu Calexico?

— Deixe-me pensar... Há uns quantos anos. No final deixou de vir.

— Acredita que soube da morte do pai?

— Só sei que não veio ao funeral, e a verdade é que não lhe culpo.

— Disseram-me que Cecil Moore deixou a propriedade para a prefeitura.

— Sim, morreu sozinho e deixou tudo para a cidade, nada para Calexico nem a suas ex-mulheres ou queridas. Cecil Moore foi um homem avaro, inclusive ao morrer. Obviamente a prefeitura não podia fazer nada com a casa: é muito grande e cara de manter. Calexico já não é uma cidade tão próspera como antes e não pode se permitir um lugar assim. Por um momento pensaram em convertê-la em museu histórico, mas se não se pode nem encher um armário com a história deste lugar; imagine um museu! A prefeitura vendeu a casa por mais de um milhão de dólares. Talvez agora tenham dinheiro para uns quantos anos.

— Quem a comprou?

— Não sei, mas nunca se mudaram. Têm uma pessoa que vem limpá-la; vi luzes na semana passada. Mas não, ninguém veio morar nela. Suponho que será um investimento. Não sei no que, porque aqui estamos no meio do nada.

— Uma última pergunta. Moore vinha com alguém mais para ver o lugar?

— Não. Sempre vinha sozinho. O pobre garoto sempre esteve sozinho.


De volta na cidade, Bosch pensou nas vigílias solitárias de Moore frente à casa do pai. Perguntou-se se o que faltava eram a casa e as lembranças que encerrava, ou o pai que o expulsara. Ou ambas as coisas.


Os pensamentos de Bosch se centraram em seu breve encontro com seu próprio pai, um homem à beira da morte. Nesse momento Harry perdoara cada segundo que ele tinha lhe roubado. Não queria passar o resto de sua vida sofrendo por algo irreversível.


* * *


Vinte e Sete

A FILA para entrar no México era mais longa e lenta que a do dia anterior. Bosch deduziu que aquilo se devia a corrida, que atraía pessoas de toda a área. Ir as touradas era uma tradição dominical tão popular em Mexicali como ver jogo de futebol americano em Los Angeles.


Bosch se achava a dois carros do oficial da polícia mexicana quando se lembrou que ainda carregava a Smith & Wesson. Entretanto, era muito tarde para fazer algo a respeito. Ao chegar ao posto de controle, simplesmente disse: "Vou a tourada" e o deixaram passar.


O céu sobre Mexicali era claro e o ar fresco; um clima ideal para ir à praça. Harry sentiu uma comichão de emoção na garganta. Tinha motivos: ia assistir a sua primeira corrida e talvez encontrar Zorrillo, o homem cuja lenda rodeara-o nos últimos três dias de sua vida. Tanto era assim, que Bosch acabara por se sentir um pouco seduzido pelo mito. Harry queria ver o Papa em sua terra, com seus touros e sua gente. Bosch tirou o binóculo do porta-luvas depois de estacionar na Praça da Justiça. Como a praça de touros só ficava a três quadras de distância, supôs que iriam a pé. Depois de mostrar sua documentação ao oficial de recepção, passou pela delegacia, onde encontrou Águia sentado na única mesa da brigada. Frente a ele havia vários relatórios escritos à mão.


— Conseguiu as entradas?

— Sim. Comprei um camarote no sol, embora nos camarotes nunca bata muito sol.

— Estaremos perto do Papa?

— Bem em frente... Se é que ele virá.

— Claro. Já terminou?

— Sim, acabo de completar o relatório do caso Gutiérrez-Llosa. Bem, ao menos até que apresentemos denúncia contra alguém.

— Coisa que não deve acontecer muito frequentemente.

— Não... Então vamos?

— Eu estou preparado, respondeu Bosch, mostrando o binóculo.

— Estaremos muito perto dos touros, avisou Águia.

— Não é para ver a corrida, explicou Bosch.


No caminho para a arena foram engolidos por um rio de gente que caminhava naquela direção. Alguns traziam almofadinhas para sentar nos degraus, mas outros as compravam de garotos que vendiam a um dólar por almofada. Depois de passar a cerca, Bosch e Águia desceram uns degraus de cimento até chegar a um andar subterrâneo onde Águia mostrou as entradas a um fiscal.


Este dirigiu-os por uma espécie de catacumba que seguia a circunferência da praça. À esquerda havia várias portinhas de madeira numeradas. O fiscal abriu a porta marcada com o número sete e os dois policiais entraram em um aposento não maior que a cela de um presídio. As paredes, o chão e o teto abobadado eram de cimento sem pintar, e este último se inclinava para diante até deixar uma abertura de uns dois metros. Bosch descobriu que se achavam na parte inferior da praça, ao lado dos matadores, banderilheiros e outros participantes da festa. A primeira coisa que notou foi o fedor da arena, o cheiro de cavalo, touro, e sangue. Apoiadas em uma das paredes do camarote havia seis cadeiras metálicas dobradas. Bosch e Águia abriram duas e se sentaram depois que este último agradeceu ao fiscal e fechasse a porta com fecho.


— Isto é como uma trincheira, comentou Bosch enquanto olhava para os camarotes do outro lado do arena. Não viu Zorrillo.

— O que quer dizer?

— Nada, respondeu Bosch, ao mesmo tempo que pensava que nunca estivera em uma. — Lembra-me um pouco de uma cela.

— Pode ser, respondeu Águia. Bosch se deu conta de que o ofendera. Aqueles eram os melhores assentos da casa.

— É ótimo, Carlos, adicionou. — Daqui veremos tudo.


Nesse momento Bosch estava pensando que o camarote cheirava a cerveja e era extremamente ruidoso. O pequeno cubículo de cimento amplificava o som dos passos das pessoas que iam se sentando sobre suas cabeças e de uma banda que tocava na parte mais alta. Na arena já estavam apresentando os toureiros. A multidão se animou e as paredes do camarote retumbaram cada vez que saudavam os matadores.


— Pode-se fumar, não? Perguntou Bosch.

— Sim, respondeu Águia ao mesmo tempo que se levantava. — Cerveja?

— Muito bem. Tecate, se tiverem.

— Com certeza. Feche a porta com o fecho. Eu já voltarei.


Águia saiu e Harry correu o fecho enquanto se perguntava se fazia isso para se proteger ou simplesmente para evitar que entrasse outra pessoa para ver a corrida. Curiosamente, assim que ficou sozinho, notou que não se sentia absolutamente protegido naquele recinto de cimento.


Bosch enfocou o binóculo para os outros camarotes da praça. A maioria estavam vazios e no resto não havia ninguém que encaixasse com a descrição de Zorrillo. Bosch notou que muitos tinham tapeçarias penduradas ou prateleiras com garrafas de bebida e colocado poltronas. Eram os camarotes à sombra dos abonados. Ao fim de alguns minutos, Águia bateu e Bosch deixou-o passar com as bebidas. E então começou o espetáculo. As duas primeiras touradas foram opacas e sem emoção. Águia qualificou-as de "pobres". O público vaiou os toureiros com raiva por não matar o touro limpamente e permitir que as touradas se convertessem em uma exibição longa e sangrenta que tinha muito pouco de arte ou demonstração de coragem.


Na terceira tourada, a praça ganhou vida. Houve um estrondo enorme no camarote quando o touro seguinte, um animal negro azeviche à exceção de um z branco no costado investiu violentamente num dos cavalos dos picadores. A tremenda força do animal levantou o peitilho do cavalo até a coxa do cavaleiro. O picador cravou a estaca nas costas do touro e apoiou nela todo seu peso, mas isto só pareceu enfurecer mais a besta. Com forças renovadas, o touro voltou a atacar violentamente o cavalo. Embora se passasse a menos de dez metros de seu camarote, Bosch pegou o binóculo para ver com mais detalhe. Através das lentes de aumento, presenciou a cena como em câmera lenta: o cavalo encabritou, seu cavaleiro saltou pelos ares e o touro continuou a carga, corneando o peitilho até derrubar o cavalo, que foi cair a pouca distância do picador.


O ruído ficou ensurdecedor. As pessoas aclamavam aos banderilheiros que invadiam a arena e agitavam suas capas para tentar desviar a atenção do cavalo e do cavaleiro caídos. Enquanto isso, outros ajudaram o picador a ficar de pé e o começaram a acompanha-lo à barreira. Mas, o homem rechaçou a ajuda e se afastou coxeando.


Tinha o rosto brilhante pelo suor e vermelho de vergonha, já que o público o vaiava. Graças ao binóculo, Bosch se sentia como se estivesse bem ao lado do homem. Então viu que uma almofadinha vinda dos degraus lhe batia no ombro. O picador não levantou a vista, pois fazê-lo seria uma provocação para que lançassem mais. O touro ganhara o respeito do público e, ao cabo de uns minutos, sua morte foi aplaudida. Com a banderilha do matador firmemente enfiado no pescoço, as patas do animal cederam e seu enorme peso desabou sobre o chão. O toureiro, um homem mais velho que os outros participantes, avançou rapidamente com uma espada curta e cravou-a na base do crânio. Foi uma morte instantânea depois da comprida tortura. Bosch observou o homem enquanto limpava a adaga suja de sangue sobre a negra pele do animal morto e depois a guardava em uma capa presa na jaqueta.


A seguir trouxeram três mulas arreadas, amarraram os chifres do touro com uma corda e as mulas arrastaram-no por toda a arena. Durante a volta na praça, alguém lançou uma rosa vermelha que caiu sobre o animal que ia marcando um círculo sobre a areia. Harry observou o homem da espada. Dar o toque de graça parecia ser sua única missão em cada tourada e Bosch não tinha claro se seu trabalho era piedoso ou cruel. O homem era muito velho: tinha o cabelo negro cheio de cãs e uma expressão cansada, impassível. Naquele rosto de pedra gasta seus olhos pareciam carecer de alma. Então Bosch pensou no homem com as três lágrimas tatuadas na cara: Arpis. Qual deveria ser a expressão dele quando tirou a vida de Porter ou apontou para o rosto de Moore e apertou o gatilho?


— O touro foi muito bravo, comentou Águia. Até esse momento dissera pouca coisa além de definir os toureiros como peritos ou fracos, bons ou maus.

— Suponho que Zorrillo estaria orgulhoso, conveio Bosch. — Se tivesse vindo.


Efetivamente, Zorrillo não tinha ido à praça. Bosch estivera espiando o camarote que Águia apontara, mas os assentos permaneciam vazios. Nesse momento, quando faltava tão somente uma tourada, parecia improvável que o homem que criara os touros para a corrida aparecesse.


— Quer ir embora, Harry? Perguntou Águia.

— Não, quero ir até o final, sorriu Bosch.

— Muito bem. Esta tourada será a melhor e mais artística. Silvestri é o melhor toureiro de Mexicali. Outra cerveja?

— Sim, mas agora vou eu. O que quer?

— Não. Eu vou. É minha pequena forma de lhe pagar.

— Como quiser, respondeu Bosch.

— Feche a porta.


Assim o fez. Harry ficou examinando o seu prospecto, onde estavam impressos os nomes dos participantes. Cristóbal Silvestri. Águia lhe dissera que era o toureiro com mais arte e coragem que vira em sua vida. De repente a multidão voltou a gritar entusiasmada; o último touro, outro enorme monstro negro, entrou na arena para enfrentar seus verdugos. Uns quantos picadores começaram a se mover ao redor dele com suas capas verdes e azuis, abertas como flores. Bosch se impressionara com o ritual e a pompa das funções, inclusive das mais fracas. Tourear não era um esporte, disso estava certo. O que era então? Uma prova, talvez. Uma demonstração de habilidade e, sim, também de coragem e determinação. Bosch pensou que, se pudesse, gostaria de ir frequentemente a esse lugar para ser testemunha. Então bateram na porta e Bosch se levantou para abrir a Águia. Entretanto, descobriu dois homens esperando. A um deles não conhecia, mas ao outro sim, embora tenha demorado uns segundos em situá-lo. Era Grenha, o capitão. Em que pese que podia ver atrás deles, não via rastro de Águia.


— Senhor Bosch, podemos entrar?


Bosch deu um passo atrás e Grenha entrou sozinho. O outro homem se virou de costas e ficou tomando conta da porta, que Bosch se apressou a passar o fecho.


— Assim não nos incomodarão, não é? Comentou Grenha enquanto revistava o camarote tão conscienciosamente como se este fosse do tamanho de uma quadra de basquete. — Tenho por costume assistir à última tourada, senhor Bosch. Especialmente quando Silvestri atua, um grande toureiro. Espero que goste.


Bosch concordou e deu uma olhada na arena. O touro continuava vivo e brincava de correr pela areia enquanto os toureiros esperavam que se tranquilizasse.


— E Carlos Águia? Foi embora? Perguntou-lhe Grenha.

— Comprando cerveja, embora você já deva saber. Por que não me conta o que está acontecendo, capitão?

— Como que o que está acontecendo? O que quer dizer?

— Quero dizer o que disse. Por que veio?

— Ah você quer ver nosso pequeno espetáculo e que não o incomodemos com negócios. Ir ao ponto, como vocês dizem.

— Pois é.


Houve uma ovação e os dois homens se voltaram para a arena. Silvestri entrara e estava seguindo o touro. Usava um traje de brilhos brancos e dourados e caminhava majestosamente, com as costas retas e o queixo grudado ao pescoço enquanto examinava o adversário com gravidade. O touro ainda corria pela arena, sacudindo as banderilhas amarelas e azuis que tinha cravadas no costado. Bosch voltou sua atenção para Grenha. O capitão usava uma jaqueta de pele negra, sob a qual aparecia um Rolex.


— O que quero saber o que está fazendo, senhor Bosch. Você não veio ver os touros. Então, o que faz em Mexicali? Disseram-me que já identificaram o senhor Gutiérrez-Llosa, assim não tem mais nenhum motivo para ficar aqui. Por que faz Carlos Águia perder tempo? Harry pensou em não responder, mas não desejava prejudicar Águia. Partiria logo, mas Águia ficaria.

— Vou amanhã de manhã. Já terminei meu trabalho.

— Então deveria ir embora nesta noite, não acha? Assim chegará antes.

— Pode ser. Grenha concordou.

— Olhe, recebi uma ligação de um tal tenente Pounds do Departamento de Polícia de Los Angeles. Ele quer que você volte imediatamente e me pediu que lhe dissesse pessoalmente. Por que você acha que fez isso? Bosch olhou-o e negou com a cabeça.

— Não sei. Deveria perguntar a ele.


Houve um comprido silêncio durante o qual a atenção de Grenha se voltou para arena. Bosch também virou, bem a tempo de ver Silvestri fazer uma verônica. Grenha olhou para Bosch fixamente e em seguida sorriu, do mesmo modo que Ted Bundy devia sorrir para suas vítimas antes de assassiná-las.


— Conhece a arte de tourear? Bosch não respondeu e os dois travaram um duelo de olhares. No rosto escuro do capitão continuava um leve sorriso. — A arte de tourear, repetiu Grenha. — É apoiada no engano. É a arte da sobrevivência. O matador usa a capa para burlar a morte, para obrigá-la a ir onde ele não está. Mas também deve ter coragem e se aproximar ao máximo dos chifres do touro. Quanto mais perto, mais valente. Não pode mostrar medo nem por um momento, porque isso é perder: morrer. Esse é a arte, meu amigo.


Grenha concordou e Bosch simplesmente olhou-o nos olhos. Finalmente Grenha sorriu de orelha a orelha e se voltou para a porta. Quando abriu, Bosch verificou que o outro homem continuava ali. Antes de fechar, Grenha olhou para Bosch e acrescentou:


— Que tenha uma boa viagem, detetive Harry Bosch. Esta noite, certo?


Bosch não disse nada e a porta se fechou. Harry se sentou e permaneceu imóvel até que os urros do público o distraíram. Silvestri colocara um joelho na areia no centro da arena e provocava o touro para que investisse. O toureiro ficou fixo naquela posição até que a besta estava quase em cima dele, momento em que retirou a capa de seu corpo com um belo movimento. O touro passou a poucos centímetros do homem, mas não o tocou. Foi impressionante; uma enorme ovação encheu a praça. Então a porta se abriu e Águia entrou.


— O que Grenha queria? Bosch não respondeu, mas levantou o binóculo para voltar a examinar o camarote de Zorrillo. Em lugar do Papa ali estava Grenha, que olhava-o e ainda tinha o mesmo sorriso nos lábios.


Silvestri derrubou o touro com uma só estocada; o gume da espada penetrou profundamente entre os ombros e atravessou o coração. Foi uma morte instantânea. Bosch voltou os olhos para o homem da espada e pareceu detectar uma certa decepção em seu rosto endurecido. Naquela ocasião, seus serviços não foram necessários. A ovação pela perita tarefa de Silvestri foi ensurdecedora e os aplausos não diminuíram quando o matador deu a tradicional volta na arena com os braços no alto. A areia se encheu de rosas, almofadinhas, sapatos de mulher... Enquanto isso o toureiro sorria, desfrutando da adulação daquela massa entusiasmada.


O ruído na praça era tal que Bosch demorou muito em se dar conta que seu pager estava tocando.


* * *


Vinte e Oito

AS NOVE Bosch e Águia saíram da Avenida Cristóbal Colón para pegar uma estrada das redondezas que bordeava o Aeroporto Internacional Rodolfo Sánchez Taboada. A estrada passava na frente de hangares pré-fabricados muito velhos e, um pouco depois, diante de outros mais novos. As enormes portas de um deles, marcado com uma placa que dizia Aero Carga, estavam ligeiramente abertas e deixavam ver um fio de luz. Aquele era seu destino: o improvisado quartel da DEA. Bosch estacionou em frente, junto a uma série de carros, quase todos com placa da Califórnia. Assim que Bosch e Águia saíram do Caprice, quatro agentes se aproximaram com casacos de plástico azul. Harry mostrou sua documentação e um deles verificou seu nome numa lista.


— E você? Perguntou o cara da lista.

— Veio comigo, respondeu Bosch.

— Pois aqui não consta. Temos um problema.

— Esqueci de avisar que ia trazer um par ao baile, brincou Bosch.

— Não tem graça, detetive Bosch.

— Sei, mas é meu colega e fica comigo.


O homem da lista olhava-o com cara de preocupação. Era um anglo-saxão de tez corada e cabelo quase branco pelo sol, que tinha aspecto de ter estado vigiando a fronteira durante muitos anos. O homem se voltou para o hangar, como se esperasse ajuda sobre como tratar o assunto. Nas costas de seu casaco Bosch viu as siglas DEA, em grandes letras amarelas.


— Vá procurar Ramos, aconselhou Bosch. — Porque se meu colega não for, eu tampouco irei. E então, me dirá onde estará a segurança da operação. Bosch olhou para Águia, que via a cena sem se mover, com os outros três agentes ao seu redor como se fossem porteiros de uma discoteca da Sunset Boulevard. — Pense bem, prosseguiu Bosch. — Qualquer um que veio até aqui precisa continuar até o final. Se não, alguém ficará de fora, solto e descontrolado. Consulte Ramos.


O homem da lista pensou de novo, mas finalmente pediu a todo mundo que mantivesse a calma e tirou um rádio do bolso do casaco. Então informou a alguém a quem chamou de "líder de pessoal" de que havia um problema. Todos ficaram em silêncio um momento. Bosch olhou para Águia e quando este devolveu o olhar, lhe piscou o olho. Nesse momento viu Ramos e Curvo, o agente de Los Angeles, que caminhavam para eles com passo decidido.


— Que merda está acontecendo, Bosch? Soltou Ramos antes de chegar ao carro. — Sabe o que fez? Colocou em perigo toda a fodida operação. Disse-lhe claramente que...

— Águia é meu colega neste caso, Ramos, explicou Bosch. — Sabe o que eu sei. Estamos trabalhando juntos e se ele não puder entrar, eu tampouco não entrarei. Eu irei para casa, para Los Angeles, mas não sei aonde ele irá. O que acontecerá então com sua teoria de que não se pode confiar em ninguém?


À luz do hangar, Bosch observou a força com que pulsava uma das artérias do pescoço do Ramos.


— Se o deixar ir, quer dizer que confia nele. E se confia nele, pode deixar que fique.

— Vá a merda, Bosch. Curvo pôs a mão sobre o braço de Ramos e deu um passo à frente.

— Bosch, se ele cagar ou foder de algum jeito esta operação, está acabado. Entendeu, não é? Farei com que se saiba em Los Angeles que você o trouxe.


Curvo fez um sinal aos seus homens para que deixassem Águia entrar. A luz da lua se refletia sobre o rosto de Curvo e iluminava a cicatriz que dividia seu queixo na face direita. Harry se perguntou quantas vezes contaria a história da facada nessa noite.


— Outra coisa, acrescentou Ramos. — O cara entra nu. Só nos sobra um colete e é para você. Se entregar a ele culpa é sua.

— Não importa o que acontecer, a culpa será minha, disse Bosch. — Tenho um colete no porta-malas. Ele pode usar o seu e eu fico com o meu.

— A reunião é às 22:00, informou Ramos enquanto retornava ao hangar. Curvo seguiu-o, Bosch e Águia caminharam atrás dele e os outros agentes fecharam o grupo.


Dentro do cavernoso hangar, haviam três helicópteros e muitos homens, quase todos vestidos com macacões negros, que caminhavam tomando café em copinhos brancos. Dois dos helicópteros eram aparelhos de fuselagem larga para transporte de pessoal. Bosch reconheceu-os em seguida: eram UH1N, também conhecidos como Huey’s, cujo peculiar ruído Harry associaria para sempre com o Vietnã. O terceiro aparelho era menor e esbelto. Parecia fabricado para uso comercial, como um helicóptero de televisão ou da polícia, mas fora convertido em veículo militar. Bosch viu a torre de artilharia montada na lateral direita do aparelho e, debaixo da cabine, outro anexo com um conjunto de acessórios, incluído um refletor e um sensor de raios infravermelhos. Um par de homens vestidos com macacões negros pintavam letras e números brancos nas caudas dos aparelhos. Estavam se preparando para um assalto noturno. De repente Bosch notou a presença de Curvo ao seu lado.


— Chamamos de Lince, disse, enquanto apontava para o menor dos três aparelhos. — Estamos acostumados a usá-los quase que exclusivamente em nossas operações na América do Sul e Central, mas conseguimos agenciar este que estava a caminho. É ideal para o trabalho, porque carrega o necessário para se ver de noite: infravermelhos, monitores geotérmicos. Será nossa base de controle no ar.


Bosch concordou, embora as máquinas não o impressionavam tanto quanto Curvo. O agente federal parecia mais animado que durante a reunião no Code 7; seus olhos escuros rodeavam pelo hangar, absorvendo tudo. Bosch deduziu que provavelmente sentia falta do trabalho de campo. Curvo estava preso em um escritório em Los Angeles enquanto gente como Ramos brincava de guerra.


— E aí é aonde irão, você e seu colega, anunciou Curvo, enquanto voltava a apontar para o Lince com a cabeça. — Comigo. Poderão ver tudo do ar, totalmente a salvo.

— Quem está no comando? Você ou Ramos?

— Eu. Olhando o helicóptero, Bosch acrescentou:

— Diga-me uma coisa, Curvo. Queremos Zorrillo vivo, não é?

— Sim.

— Então, qual é o plano quando o pegarmos? É um cidadão mexicano, assim não podem levá-lo para o outro lado da fronteira. Vão entregá-lo aos mexicanos? Porque em um mês será o dono da penitenciária onde o prenderem. Se é que conseguirão prendê-lo.


Esse era um problema com o qual topavam todos os policiais do sul da Califórnia. O México se negava a extraditar seus cidadãos para os Estados Unidos por crimes cometidos ao norte da fronteira. Os tribunais mexicanos julgavam, mas era bem sabido que os traficantes mais importantes do país convertiam suas estadias nas penitenciárias em férias pagas. Mulheres, drogas, álcool e outras comodidades estavam ao seu alcance se tivessem dinheiro suficiente. Contava-se uma anedota que um narcotraficante capitalista se instalou no escritório e dependências do diretor-geral da prisão de Juárez. O réu pagara cem mil dólares pelo aluguel, quatro vezes mais do que o funcionário ganhava em todo um ano. O diretor-geral acabou como um recluso a mais cumprindo pena.


— Já lhe entendi, respondeu Curvo. — Mas não se preocupe. Temos um plano para isso. Só precisa se preocupar com seu colega e com você. Vigie-o bem e tome um café, porque vai ser uma noite muito longa.


Bosch se reuniu com Águia, que se achava junto a uma mesa de trabalho onde colocaram a cafeteira. Ambos cumprimentaram com a cabeça alguns dos agentes que se aproximavam da mesa, mas quase nenhum devolveu o cumprimento. Estava claro que penetraram na festa. De onde estavam, se viam uma série de salas ao lado dos helicópteros. Sentados em várias mesas, haviam vários mexicanos com uniformes verdes, tomando café e esperando.


— São da tropa, disse Águia. — Da Cidade do México. Não confiam em ninguém de Mexicali.

— Bem, depois desta noite, confiarão em você. Bosch acendeu um cigarro para acompanhar o café e percorreu o hangar com o olhar. — O que achou? Perguntou a Águia.

— Parece-me que o Papa de Mexicali vai levar um bom susto.

— Acredito que sim.


Bosch e Águia se afastaram da mesa para que outros pudessem se sentar e se apoiaram em um balcão próximo para acompanhar os preparativos. No fundo do hangar, Ramos estava com um grupo de homens que vestiam macacões negros muito grandes. Quando se aproximou, Harry descobriu que usavam trajes não inflamáveis debaixo dos macacões. Alguns estavam esfregando o rosto com betume e outros estavam colocando balaclavas negras. Era a equipe CLAC, que obviamente estava desejando subir nos helicópteros e entrar em ação. Bosch quase podia cheirar sua adrenalina de onde estava.


Os CLAC eram doze e estavam tirando coisas de caixas na preparação para a missão dessa noite. Bosch viu capacetes, coletes à prova de bala e granadas antimotins capazes de aturdir pelo som. Na cartucheira de um dos homens havia uma P 226 de nove milímetros que seria para casos de emergência, e em um das caixas aparecia o cano de uma metralhadora. Quando Ramos reparou em Bosch, tirou a arma da caixa. O agente sorria de forma estranha.


— Olhe que beleza, homem, disse. — A Colt só fabrica a RO636 para nós. É uma versão especial do fuzil padrão de nove milímetros. Sabe o que se pode fazer uma destas? É capaz de atravessar três corpos sem sequer frear e tem um silenciador especial que suprime a chama. Estes caras se dedicam a assaltar laboratórios cheios de gases onde a menor faísca poderia fazê-los explodir. Atire e bum! Acaba tudo. Mas com estas não há faísca. Oxalá pudesse entrar com uma delas nesta noite. Ramos sustentava e admirava a arma como uma mãe ao seu primeiro filho. — Bosch, você esteve no Vietnã, não foi? Perguntou Ramos. Bosch concordou com a cabeça. Ramos devolveu a arma para a caixa, ainda com aquele sorriso estranho nos lábios. — Eu era muito jovem para o Vietnã e muito velho para o Iraque. Que merda, não?


A reunião final não teve lugar antes das dez e meia. Ramos e Curvo convocaram todos os agentes, os oficiais da tropa e Bosch e Águia ante um grande quadro onde tinham pendurado a ampliação de uma foto aérea do rancho de Zorrillo. A ampliação mostrava que a fazenda continha enormes seções de terreno ermo. O Papa se rodeara de espaço como medida de segurança. Ao oeste de sua propriedade ficava a serra de Cucapah, uma barreira natural, enquanto que nas outras direções Zorrillo criara uma área para-choque com centenas de hectares de matagais.


Ramos e Curvo se colocaram em ambos os lados do quadro e o primeiro tomou a palavra. Usando uma régua como ponteiro, assinalou os limites do rancho e identificou o que chamou de centro habitado: um enorme complexo que incluía uma casa, um depósito e um anexo estilo bunker. Depois riscou um círculo ao redor dos currais e do celeiro localizados a um quilômetro e meio do centro habitado junto ao perímetro do imóvel que dava para a Avenida Valverde. Também assinalou a EnviroBreed do outro lado da estrada. Continuando, Ramos mostrou outra ampliação que só compreendia um quarto do imóvel: do centro habitado até a EnviroBreed. A foto fora tirada tão de perto que se distinguiam pequenas figuras nos telhados do bunker. Entre os matagais da parte de trás dos edifícios se desenhavam silhuetas negras sobre a terra marrom e verde. Quando compreendeu que se tratava dos touros, Bosch se perguntou qual seria El Temblar.


— Muito bem, essas fotos têm umas trinta horas, informou Ramos, enquanto um dos oficiais da tropa traduzia suas palavras aos soldados que se reuniam ao seu redor. — Pedimos para a Nasa que sobrevoasse o rancho em um U-34. Também pedimos que tirassem imagens geotérmicas e aí é onde a coisa fica interessante. As manchas vermelhas que se veem são focos de calor.


Em seguida, Ramos colocou outra ampliação junto à anterior. Essa era um gráfico por computador com uns quadrados vermelhos, os edifícios, em um mar azul e verde. Fora dos quadros havia uns pontinhos vermelhos soltos que Bosch deduziu que fossem os touros.


— Estas imagens geotérmicas foram tiradas ontem ao mesmo tempo que as outras, explicou Ramos. — Mas se formos do gráfico à foto real, detectaremos uma série de anomalias. Os quadrados são os edifícios e quase todos estes pontinhos vermelhos são touros. Ramos empregava a régua para comparar as duas ampliações. Bosch em seguida se deu conta de que havia mais pontos vermelhos no gráfico que touros na foto.

— Mas estes sinais não correspondem aos animais da foto, confirmou Ramos. — Mas com os armazéns de forragem.


Curvo ajudou a Ramos a colocar outras duas ampliações, que foram tiradas muito de perto. Bosch distinguiu claramente o teto de zinco de um pequeno armazém e um novilho negro junto a ele. No gráfico correspondente, tanto o armazém quanto o animal eram de um vermelho brilhante.


— Os armazéns são pequenos celeiros para proteger o feno e a comida do gado da chuva. A Nasa diz que poderiam emitir um calor residual que se refletiria nas imagens térmicas, mas não com a força que estamos vendo aqui. Por isso pensamos que os armazéns são falsos. Acreditamos que ocultam os orifícios de ventilação do laboratório subterrâneo e que no centro habitado há alguma entrada que leve a ele.


Ramos fez uma pausa para que aa pessoas assimilassem a informação. Ninguém fez perguntas.


— Além disso, há um... Bem, um informante nos informou que existe um túnel. Acreditam que o túnel vai dos currais até este recinto: uma empresa chamada EnviroBreed. Graças ao túnel, Zorrillo pôde burlar a vigilância e possivelmente movimentar seus produtos do rancho a empresa.


Em seguida, Ramos passou a dar detalhes da jogada de rede. O plano era entrar à meia-noite e a tropa mexicana teria duas missões. Primeiro enviariam um carro até a entrada principal, dirigindo em ziguezague como se estivessem bêbados. Mediante esta artimanha, os três soldados do carro prenderiam os dois sentinelas da porta. Depois disso, a metade da tropa avançaria pela estrada do imóvel até o centro habitado enquanto a outra metade se dirigiria a EnviroBreed, e esperariam o desenvolvimento dos acontecimentos no rancho.


— O êxito da operação depende em grande parte de que os dois sentinelas possam ser detidos antes que alertem o centro habitado, interveio Curvo pela primeira vez. — Se falharmos, perderemos o fator surpresa.


Quando o ataque por terra estivesse em andamento, chegariam os reforços pelo ar. Os dois helicópteros de transporte aterrissariam ao norte e ao leste do centro habitado para fazer saltar a equipe CLAC, que entraria em todos os edifícios. O terceiro helicóptero, o Lince, se manteria no ar e serviria de posto de comando. Finalmente, Ramos avisou que o rancho dispunha de dois jipes com patrulhas de dois homens cada um. Ramos explicou que não seguiam uma rota de vigilância determinada e que seriam impossíveis de localizar até que começasse a jogada de rede.


— São os imponderáveis, afirmou Ramos. — Para isso temos um posto de controle no ar; eles nos avisarão quando virem os jipes ou simplesmente vão atacá-los do Lince.


Ramos caminhava nervoso de um lado a outro, enquanto brincava com a régua. Bosch notava que adorava tudo aquilo. A sensação de estar no comando possivelmente compensava-o por não ter ido ao Vietnã ou Iraque.


— Bem, cavalheiros. Esta é a última, anunciou Ramos enquanto pendurava outra foto. — Como já sabem, temos ordens de revista para procurar drogas. Se encontrarmos narcóticos, ótimo. Se encontrarmos aparelhos para fabricá-los, ótimo. Mas o que realmente nos interessa é este homem. A foto era uma ampliação do retrato que Bosch vira nessa manhã. — Este é nosso objetivo, declarou Ramos. — Humberto Zorrillo, o Papa de Mexicali. Se não o pegarmos, não adiantou toda a operação. Ele é o cérebro que montou tudo isto. Possivelmente lhes interesse saber que além de suas atividades relacionadas com a droga, Zorrillo é o principal suspeito dos assassinatos de dois policiais de Los Angeles, assim como de mais um par de homicídios, tudo isso no último mês. Lembrem-se que é um homem que não pensa duas vezes; se não o fizer ele mesmo, sempre terá alguém disposto a fazê-lo por ele. É muito perigoso. Bem, todo mundo que encontremos no rancho deve ser considerado armado e perigoso. Alguma pergunta?


Um dos da tropa falou em espanhol.


— Boa pergunta, respondeu Ramos. — Não vamos entrar imediatamente na EnviroBreed por duas razões. Primeiro, porque nosso objetivo principal é o rancho e teríamos que envolver mais homens se fizéssemos uma entrada simultânea nos dois lugares. E segundo, porque nosso informante nos disse que pode haver uma armadilha nesse lado do túnel. Refiro-me a explosivos e não queremos nos arriscar. Quando terminarmos no rancho, entraremos na EnviroBreed pela porta ou pelo outro lado do túnel.


Ramos esperou para ver se havia mais perguntas, mas não houve. Os homens da primeira fila moviam os pés, mordiam as unhas ou tamborilavam com os dedos sobre os joelhos. A adrenalina começava a subir. Bosch já vira tudo antes, no Vietnã e mais tarde. Por isso sua própria emoção se mesclava com uma sensação de temor e desconfiança.


— Muito bem! Gritou Ramos. — Quero todo mundo preparado e embarcado dentro de uma hora! A meia-noite atacamos!


A reunião terminou com gritos adolescentes dos agentes mais jovens. Bosch se aproximou de Ramos enquanto este desencravava as fotos do quadro.


— O plano tem boa pinta.

— Sim. Só espero que as coisas aconteçam um pouco como planejamos. Nunca saem igual.

— É, conveio Bosch. — Curvo me disse que tinham outro plano. Para levar Zorrillo ao outro lado da fronteira.

— Sim, tramamos algo. Ramos se voltou, segurando as fotos bem ordenadas e empilhadas. — Sim. Vai gostar porque o mandaremos a Los Angeles para que possa ser julgado pelos assassinatos. É muito provável que o filha da puta resista a prisão e que se machuque. Certamente feridas no rosto que terão um aspecto pior do que são na realidade, mas precisarão de atenção médica imediata. Ofereceremos um de nossos helicópteros e o comandante da tropa aceitará agradecido. O problema é que o piloto fará confusão e confundirá as luzes do hospital Imperial Memorial County de Calexico com as da Clínica Geral de Mexicali. Quando o helicóptero aterrissar no hospital errado e Zorrillo descer do outro lado da fronteira, vamos prendê-lo e passará às mãos do sistema judicial americano. Coitado, que má sorte. Nós certamente teremos que brigar com o piloto.


Ramos tinha de novo esse estranho sorriso. Sem dizer mais nada, piscou os olhos para Bosch e se afastou.


* * *


Vinte e Nove

O LINCE sobrevoava o tapete de luzes de Mexicali e se dirigia a sudeste, para a silhueta escura da serra de Cucapah. Para Bosch, o voo parecia muito mais suave e silencioso do que se lembrava de ter experimentado no Vietnã ou em seus próprios sonhos. Harry se achava na parte de trás, encolhido junto à janela esquerda para se proteger do ar frio da noite que se infiltrava por uma abertura. No assento junto a ele estava Águia e, nos da frente, Curvo e o piloto. Curvo era o Ar Um, quer dizer, o coordenador das comunicações e instruções no assalto ao rancho. Ramos era Terra Um, a encarregado do ataque na superfície.


Ao olhar para a parte dianteira da cabine, Bosch viu o reflexo verde do tabuleiro de instrumentos na viseira do capacete de Curvo. Os capacetes dos quatro homens estavam conectados por cordões umbilicais eletrônicos a um console central e foram equipados com transmissores de ar-terra, de comunicação a bordo e lentes infravermelhas para ver à noite. Depois de quinze minutos de voo, as luzes que se viam pela janela começaram a escassear. O brilho de baixo era menor, e Harry adivinhou a silhueta de um dos helicópteros à uns duzentos metros à esquerda. O outro aparelho negro devia se achar na sua direita. Pelo visto, voavam em formação.


— Objetivo a dois minutos, disse uma voz pelos auriculares. Era o piloto.


Bosch pegou o colete à prova de balas que tinha sobre o regaço, uma medida de proteção contra possíveis disparos de terra, e colocou-o debaixo dele, no assento. A seguir notou que Águia fazia o mesmo com o colete que a DEA emprestara. De repente, o Lince começou uma descida em picado e a voz do piloto anunciou: "Vamos lá". Bosch baixou a viseira de infravermelho e olhou através das lentes. Abaixo via passar a terra à toda velocidade: um rio de matagais e pouco mais. O helicóptero começou a seguir uma estrada e, ao chegar numa bifurcação, virou para o este. Então Bosch viu um carro, um caminhão e um jipe que estavam parados e, mais adiante, veículos que avançavam pelo caminho de terra, levantando nuvens de pó na sua passagem. Era a tropa, que progredia rapidamente para o centro habitado. A batalha começara.


— Parece que nossos amigos já se encarregaram de um dos jipes, informou Curvo pelos auriculares.

— É um dez quatro, respondeu uma voz que parecia vir de outro dos helicópteros.


O Lince se adiantou aos veículos da tropa e continuou descendo até nivelar a uma altura que Bosch calculou de uns trezentos metros. Harry observava a estrada através das lentes de infravermelho e de repente entrou em seu campo de visão a casa e a entrada do bunker. Nesse momento viu os outros dois helicópteros, que como libélulas negras, pousavam nos lugares designados junto à casa. Então notou que o Lince subia um pouco e ficava totalmente parado, como se estivesse flutuando em uma bolsa de ar.


— Um abaixo! Gritou uma voz pelo auricular.

— Dois abaixo! Disse outra.


Os homens de negro começaram a emergir pelas portas laterais dos aparelhos que acabavam de aterrissar. Um grupo de seis se dirigiu diretamente para a fachada da casa, enquanto outro grupo de seis se encaminhou para o bunker. De repente os veículos da tropa apareceram no campo de visão. Bosch viu mais figura humanas que saltavam dos helicópteros; deviam ser Ramos e os reforços. Do ponto de vista de Bosch tudo tinha um toque surrealista. A cor amarelada, as figurinhas diminutas; parecia um filme mal filmado e pior montado.


— Câmbio a Terra Um, anunciou Curvo.


Bosch ouviu o ruído da mudança de frequência e quase imediatamente escutou breves comentários pelo rádio e a respiração entrecortada de homens correndo. De repente aconteceu um grande estrondo, mas Bosch em seguida compreendeu que não se tratava de um tiro, mas sim do aríete empregado para abrir a porta. Pelo rádio se ouviram os gritos frenéticos de "Polícia! DEA!". Curvo aproveitou uma das pausas momentâneas entre os gritos para dizer:


— Terra Um, me diga alguma coisa. O que aconteceu? Informe ao posto de controle. Depois de umas ligeiras interferências, chegou a voz de Ramos.

— Entramos no Ponto A... Vou... A comunicação se cortou. O Ponto A era a casa. O plano era atacar de uma vez a casa e o bunker, quer dizer, o Ponto B.

— Terra Dois, entramos no Ponto B? Perguntou Curvo. Não houve resposta. Depois de uns tensos segundos de silêncio, Ramos voltou a responder.

— Ar Um, ainda não sei nada de Terra Dois. O Comando Objetivo acaba de se aproximar do ponto de entrada e nós...


Antes que a comunicação cortasse, Bosch ouviu o ruído inconfundível das rajadas de metralhadora. Sentiu que a adrenalina subia, mas não pôde fazer nada exceto se sentar, olhar o rádio que ficara mudo e observar através das imprecisas lentes infravermelhas. Ao cabo de uns segundos pareceu ver chamas diante do bunker, e finalmente ouviu Ramos pelo rádio:


— Vamos! vamos! De repente o helicóptero subiu, fazendo uma brusca inclinação. Ao ganhar altura, a panorâmica da cena que se desenvolvia a seus pés ampliou até abranger todo o centro habitado. De repente Harry viu silhuetas no terraço do bunker que avançavam para a fachada do edifício. Sem pensar duas vezes, pulsou o botão lateral de seu capacete e disse pelo microfone:

— Curvo, têm gente no telhado. Avise-os.

— Não se intrometa, Bosch! Gritou Curvo, mas imediatamente transmitiu aos de baixo. — Terra Dois, Terra Dois, indivíduos armados no terraço do bunker. Daqui contamos duas posições se aproximando pelo lado norte.


Embora Bosch não ouvisse os disparos por culpa do ruído do rotor, via as chamas das armas automáticas em duas posições frente ao bunker. Harry também viu alguma que outra cintilação dos veículos, mas teve a impressão de que a tropa estava colocada. Nesse momento abriu a transmissão de rádio, se ouviu o ruído de disparos, mas em seguida fechou sem que ninguém falasse.


— Terra Dois, me recebe? Repetiu Curvo ao vazio, com um ligeiro tom de pânico na voz. Não houve resposta. — Terra Dois, me recebe? Uma voz ofegante respondeu:

— Aqui Terra Dois. Estamos imobilizados no Ponto de Entrada B, em pleno tiroteio. Precisamos de ajuda.

— Terra Um, relatório, por favor! Gritou Curvo.


Houve um comprido silêncio. Finalmente chegou a voz de Ramos, embora os disparos impediam de ouvir algumas das palavras.


— Aqui... A casa... Três suspeitos mortos. Não há mais ninguém. Parece que estão... Fodido bunker.

— Vão para o bunker. Terra Dois precisa de reforços.

— ...Lá.


Bosch notou que as vozes se tornavam cada vez mais agudas e prementes, ao mesmo tempo que desapareciam as palavras em código e a linguagem formal. A culpa era totalmente do medo. Bosch vira muitas vezes na guerra e nas ruas quando estava de uniforme. O pânico, que nunca era mencionado, despojava os homens de seus artifícios. De repente a adrenalina disparava e a garganta gorgolejava como um ralo quase entupido, enquanto só o desejo de sobrevivência passava a controlar todas as ações do indivíduo. O medo aguçava as ideias e eliminava todo o supérfluo. Por essa razão, a referência educada ao Ponto B se convertera naquele impropério histérico. Do seu posto de vigilância a quatrocentos metros de altura, Bosch compreendeu onde o plano falhara. Os agentes da DEA pretendiam se adiantar à tropa nos helicópteros, atacar o centro habitado e acertar bem as coisas antes que chegassem as tropas de terra. Mas isso não acontecera. Nesse momento a tropa já chegara, mas uma das equipes CLAC se achava entre os soldados mexicanos e a gente de Zorrillo. De repente aumentaram os disparos do bunker, coisa que Bosch notou pelos repetidos brilhos das armas. Um jipe saiu acelerando da parte traseira do bunker, atravessou a porta da cerca que rodeava-o e começou a se afastar por entre os matagais. Bosch voltou a pulsar seu botão de transmissão.


— Curvo, temos uma fuga. Um jipe na direção sudeste.

— Precisamos deixá-lo ir. Por aí não se vai a nenhuma parte e não posso movimentar ninguém. E basta de se intrometer, Bosch! O jipe já estava fora do campo de visão. Bosch tirou as lentes infravermelhas e olhou pela janela, mas não viu nada: só escuridão. O jipe não tinha as luzes acesas. Então se lembrou do celeiro e dos currais perto da autoestrada e deduziu que o carro em fuga se dirigia para lá.

— Ramos, disse Curvo. — Quer os focos? Não houve resposta. — Terra Um?... Terra Dois, querem os focos?

— ...ficaríamos bem mas vocês seriam um alv..., Respondeu Terra Dois. — Melhor esperar um pouco até que tenhamos... nado.

— Recebido. Ramos, nos recebe?


Não houve resposta. Depois disso, o tiroteio terminou rapidamente. Pelo visto os homens do Papa renderam as armas após sentir que suas chances de sobrevivência em um enfrentamento prolongado eram quase nulas.


— Ar Um, luzes, transmitiu Ramos de baixo. Seu tom de voz voltara a ser calmo.


Três potentes focos situados na barriga do Lince iluminaram a terra. Bosch viu então que vários homens saíam do bunker com as mãos na cabeça e passavam à mãos da tropa; havia ao menos uma dúzia. Um dos CLAC arrastou um corpo do interior e deixou-o do lado fora, no chão.


— Tudo controlado aqui em baixo, transmitiu Ramos.


Curvo fez um sinal com o polegar e o aparelho começou a descer. Bosch sentiu que a tensão ia se desvanecendo à medida que desciam. Ao fim de uns trinta segundos se achavam em terra junto a outro dos helicópteros. No pátio em frente ao bunker, os prisioneiros esperavam ajoelhados enquanto uns quantos oficiais da tropa algemavam-nos com braceletes de plástico descartáveis. Os outros oficiais estavam fazendo uma pilha com as armas confiscadas; havia um par de metralhadoras e AK’s 47, mas quase tudo eram escopetas e M-16. Ramos se achava junto ao capitão da tropa, que tinha o rádio no ouvido. Bosch não reconheceu nenhum rosto entre os prisioneiros. Afastou-se de Águia e se dirigiu a Ramos.


— Onde está Zorrillo?


Ramos levantou a mão para indicar que não incomodasse e não respondeu, mas ficou olhando para o capitão. Em seguida, Curvo se uniu ao grupo. O capitão escutou um relatório pelo rádio, olhou para Ramos e disse em espanhol:


— Nada.

— Bem, não aconteceu nada na EnviroBreed, traduziu Ramos. — Não entrou nem saiu ninguém desde que começamos. A tropa continua vigiando a fábrica. Ao ver curvo, Ramos sussurrou em voz baixa um comentário que estava destinado exclusivamente a seu superior:

— Temos um problema. Perdemos um.

— Sim, nós vimos, interveio Bosch. — Saiu num jipe para o sudeste, fora de... Bosch se calou quando se deu conta do que Ramos queria dizer.

— A quem perdemos? Perguntou Curvo.

— Kirth, um dos CLAC. Mas o problema não acaba aí. Bosch se afastou um pouco dos homens, já que sabia que a conversa não lhe incumbia.

— Que merda quer dizer? Perguntou Curvo.

— Venha ver. Os dois agentes rodearam a casa, enquanto Bosch os seguia a uma distância prudente.


Ao longo de toda a parte traseira havia um alpendre, que Ramos cruzou para chegar a uma porta aberta. No interior da casa, aproximadamente a um metro da soleira, jazia um dos agentes da CLAC, a quem alguém tirara a balaclava para revelar um rosto coberto de suor e sangue. Bosch pareceu detectar quatro impactos de bala: duas na parte superior do peito, justo por cima do colete, e duas no pescoço. Todas elas tinham atravessado o corpo, e o sangue, que ainda gotejava por debaixo do cadáver, formava um atoleiro ao seu redor. Os olhos e a boca do agente estavam abertos, por isso podia se deduzir que fora uma morte rápida. Bosch em seguida compreendeu qual era o problema. Kirth não fora morto pelo o inimigo, mas sim alguém com um dos fuzis RO636. As feridas eram muito grandes e devastadoras para vir das armas que nesse momento jaziam em uma pilha junto aos prisioneiros.


— Deveu ter saído correndo pela porta quando ouviu os disparos, deduziu Ramos. — Terra Dois já estava em pleno tiroteio. Alguém da unidade deve ter aberto a porta e atirado em Kirth.

— Merda! Gritou Curvo. Depois baixou a voz e disse a Ramos: — Venha aqui.


Os dois se reuniram e dessa vez Bosch não pôde ouvir o que diziam. Tampouco precisava, porque sabia o que fariam já que estavam em jogo as carreiras de várias pessoas.


— Certo, disse Ramos em um tom de voz outra vez audível, ao mesmo tempo que se afastava de Curvo.

— Muito bem, replicou Curvo. — Quando acabar com isso, quero que procure um telefone e ligue para Los Angeles, para Operações. Terá que orientar os relações públicas daqui e de lá. Que ponham mãos à obra o quanto antes possível. Toda a imprensa vai pular sobre nós.

— Certo. Curvo se dispôs a entrar na casa, mas parou um momento.

— Outra coisa, mantenha os mexicanos afastados. Curvo se referia à tropa. Ramos concordou e Curvo partiu a grandes passadas. Então Ramos dirigiu os olhos a Bosch, que o observava entre as sombras do alpendre. Os dois se entenderam sem precisar falar; Bosch sabia que declarariam a imprensa que Kirth morrera como resultado de feridas causadas pelos homens de Zorrillo. Ninguém diria nada sobre um erro.

— Tem algum problema?

— Nenhum.

— Bem. Não precisarei me preocupar com você, não é, Bosch? Bosch se aproximou da porta.

— Onde está Zorrillo?

— Continuamos procurando. Ainda ficou muito para ver. No momento revistamos a casa e não está aqui; há três pessoas mortas, mas ele não é uma delas. Ainda não encontramos ninguém que possa nos dizer algo, se lamentou Ramos. — Mas seu assassino de policiais está lá, Bosch. O homem das lágrimas.


A seguir Bosch passou por Ramos e pelo cadáver e entrou na casa, cuidando de não pisar no sangue. Ao passar baixou os olhos e notou os olhos do homem morto, que começavam a se nublar e parecer partes de gelo sujo. Ele seguiu o corredor até a parte frontal da casa, onde ouviu vozes vindas de uma porta no final das escadas. Ao se aproximar, notou que a porta dava para uma sala com uma grande mesa de madeira polida com uma gaveta aberta e, ao fundo, uma estante cheia de livros. Dentro da sala estavam Curvo e um dos agentes da CLAC. E dois cadáveres. Um jazia no chão junto a um sofá derrubado. O outro estava sentado em uma cadeira à direita da mesa, junto da única janela do quarto.


— Entre, Bosch, convidou Curvo. — Cairá bem sua experiência.


O cadáver da cadeira atraiu a atenção de Bosch. Tinha o casaco de pele negra aberto e debaixo aparecia uma pistola ainda metida em sua capa. Era Grenha, embora não fosse fácil de ser identificado porque a bala, que entrara pela têmpora direita, destroçara grande parte do rosto ao sair pelo olho esquerdo. O sangue empapara todo o casaco. Bosch afastou os olhos de Grenha e dirigiu-os ao homem que jazia no chão. Uma das pernas estava pendurada nas costas do sofá, que estava derrubado para trás. Apesar do sangue, Bosch conseguiu distinguir ao menos cinco orifícios no peito. As três lágrimas tatuadas na face também eram inconfundíveis; era Arpis, o homem que Harry vira no Poe's. No chão, junto à perna direita, havia uma quarenta e cinco prateada.


— É esse seu homem? Perguntou Curvo.

— Sim, um deles.

— Bem. Agora não precisa mais se preocupar com ele.

— O outro é da Polícia Judicial. É um capitão chamado Grenha.

— Sim, acabo de tirar a documentação do bolso. Também tinha seis das grandes na carteira. Não está nada mal se levar em conta que os capitães da Polícia Judicial ganham trezentos dólares por semana. Venha aqui.


Curvo se dirigiu ao outro lado da mesa. Bosch seguiu-o e descobriu que debaixo do tapete havia uma caixa forte no chão do tamanho de uma geladeira de hotel. A grossa porta de aço estava aberta e o interior, vazio.


— Assim é como a CLAC encontrou tudo. O que acha? Estes cadáveres não parecem muito velhos. Eu acredito que chegamos tarde ao espetáculo. Bosch estudou a cena uns momentos.

— Não sei. Parece o final de um trato; possivelmente Grenha ficou avaro e pediu mais do que merecia. Talvez estivesse tramando algo com Zorrillo, um plano, e a coisa melou. Eu o vi há umas horas na tourada.

— Sim? E o que disse? Que ia para a casa do Papa para que o matassem? Nem Curvo nem Bosch riram.

— Não, só me disse que saísse da cidade.

— Então, quem o matou?

— A ferida parece de um quarenta e cinco, embora não saiba ao certo. Se for assim, Arpis seria o candidato mais provável.

— E quem matou Arpis?

— Não tenho ideia. Mas tudo aponta a que Zorrillo ou quem quer que estivesse atrás da mesa, tirou uma pistola da gaveta e começou a disparar em Arpis aqui mesmo, diante da mesa. O cara caiu para trás por cima do sofá.

— Por que ia fazer isso?

— Não sei. Talvez Zorrillo não gostasse que Arpis tivesse matado Grenha. Ou talvez começava a ter medo dele. Talvez Arpis também quisesse mais dinheiro. Podem ser muitas coisas, mas agora nunca saberemos, concluiu Bosch. — Ouça, Ramos me disse que havia três mortos.

— No outro lado do corredor.


Bosch saiu da sala e entrou em um salão amplo e comprido com um carpete peludo de cor branca e um piano combinando. Na parede em cima do sofá de pele, também branco, havia um quadro de Elvis Presley. O carpete estava manchado de sangue do terceiro homem, que jazia junto ao sofá. Bosch reconheceu-o imediatamente, face ao cabelo tingido de negro; era Dance. Sua estudada expressão de dureza se transformara em uma cara de susto. Os olhos estavam abertos e pareciam olhar o buraco que tinham lhe feito na testa. Curvo entrou no salão.


— O que acha?

— Parece que o Papa precisou sair apressado. E possivelmente não queria deixar estes três aqui para que falassem com a polícia... Merda, não sei, Curvo. Curvo levou o rádio à boca.

— Equipes de busca, disse. — Situação.

— Aqui o líder da equipe de busca. Encontramos o laboratório subterrâneo. A entrada ficava no bunker; é enorme. Encontramos o que queríamos.

— E o principal suspeito?

— Negativo no momento. No laboratório não há ninguém.

— Merda, exclamou Curvo depois de fechar a transmissão. O agente esfregou a cicatriz da face com o rádio enquanto pensava o que fazer a seguir.

— O jipe, disse Bosch. — Precisamos ir procurá-lo.

— Se for para a EnviroBreed, a tropa está lá esperando. Neste momento não posso deixar ninguém solto num rancho que tem mais de dois mil hectares.

— Irei eu.

— Espere um momento, Bosch. Este não é seu trabalho.

— À merda, Curvo. Eu vou.


* * *


Trinta

BOSCH SAIU da casa, procurou Águia na escuridão e finalmente encontrou-o junto aos prisioneiros, ao lado da tropa. Harry se deu conta de que seu colega devia se sentir ainda mais estranho do que ele naquela situação.


— Vou procurar o jipe que vimos. Acredito que seja Zorrillo.

— Eu estou preparado, disse o mexicano. Antes que saíssem, Curvo foi correndo a seu encontro. Mas não para detê-los.

— Bosch, Ramos está no helicóptero. É tudo o que posso lhe dar. Fez-se silêncio, que só se quebrou por um som vindo do outro lado da casa. Era o rotor do helicóptero.

— Vamos! Gritou Curvo. — Ou iremos sem vocês.


Bosch e Águia correram até o outro lado do edifício e voltaram a ocupar seus lugares no Lince. Ramos estava na cabine com o piloto. O aparelho subiu de repente e Bosch se esqueceu do cinto de segurança. Estava muito ocupado colocando o capacete e o equipamento de visão infravermelha. Não havia nada no campo de visão; nem jipe, nem ninguém correndo. Dirigiam-se ao sudeste do centro habitado e, enquanto observava através das lentes, Harry se deu conta de que ainda não informara Águia da morte de seu capitão. "Quando acabar", decidiu.


Em dois minutos encontraram o jipe. Estava estacionado em um bosque de eucaliptos e arbustos altos, a uns cinquenta metros dos currais e do celeiro. Um amaranto do tamanho de um caminhão voara até ele... Ou alguém colocara-o ali como camuflagem. O piloto acendeu os focos e o Lince começou a riscar círculos sobre a área. Entretanto, não acharam nem rastro de seu ocupante: Zorrillo. Ao olhar entre os dois assentos, Bosch viu que Ramos indicava ao piloto que aterrissasse. Apagaram os focos e, até que os olhos de Harry se acostumassem, sentiu como se se internassem nas profundezas de um buraco negro. Finalmente Harry percebeu o impacto na terra e seus músculos relaxaram um pouco. Quando o motor foi desligado, só se ouvia o chiado e o ruído do rotor que ia parando sozinho. Através da janela, Bosch viu a parede oeste do celeiro. Não havia portas ou janelas nesse lado e Harry estava pensando que poderiam se aproximar com relativa segurança, quando ouviu Ramos gritar:


— Que merda...? Cuidado! a sacudidela foi tão forte que o helicóptero cambaleou violentamente e começou a escorregar.


Bosch olhou pela janela, mas só viu que estavam empurrando-os pelo lado. O jipe. Alguém estava escondido no jipe! Ao final os patins de aterrissagem se engancharam em algo no chão e o aparelho virou. Bosch se encolheu e cobriu o rosto quando viu que o rotor que ainda girava se espatifava contra o chão e se fazia em mil pedaços. Então sentiu o peso de Águia que desabara sobre ele e ouviu gritos na cabine que não pôde decifrar. O helicóptero balançou nesta posição uns segundos antes de receber outro forte impacto, desta vez pela frente. Bosch ouviu disparos e o ruído de metal e vidros quebrados. Depois acabou tudo. Bosch notou que a vibração ia diminuindo até que o jipe se afastou totalmente.


— Acredito que acertei! Gritou Ramos. — Viram?


Bosch só podia pensar em sua vulnerabilidade. O golpe seguinte certamente viria por trás, onde não poderiam vê-lo para disparar. Harry tentou alcançar seu Smith, mas tinha os braços presos por baixo de Águia. O detetive mexicano finalmente começou a sair de cima dele e os dois se moveram com cuidado até ficarem agachados. Bosch levantou o braço e empurrou a porta. Esta se abriu até a metade antes de topar com algo, provavelmente uma parte de metal. A seguir tiraram os capacetes e Bosch saiu primeiro. Águia lhe passou o colete à prova de balas. Embora não soubesse por quê, Bosch pegou-os e Águia seguiu-o. O ar cheirava a combustível. Os dois se aproximaram do focinho esmagado do aparelho onde Ramos, com a pistola em uma mão, tentava sair pelo buraco onde antes ficava a janela.


— Ajude-o, disse Bosch. — Eu cobrirei.


Bosch desencapou a pistola e deu meia volta, mas não viu ninguém. Então vislumbrou o jipe, estacionado onde viram-no do ar, com o amaranto ainda apoiado contra ele. Aquilo não fazia sentido. A não ser que...


— O piloto está preso, anunciou Águia.


Harry foi para a cabine, enquanto Ramos enfocava uma lanterna sobre o piloto, cujo bigode louro estava empapado de sangue. Tinha um corte profundo na ponte do nariz, os olhos abertos e o volante de comando prendia as suas pernas.


— Onde fica o rádio? Perguntou Bosch. — Precisamos ajuda. Ramos introduziu a parte superior do corpo pela janela da cabine e tirou o microfone do rádio.

— Chamando Curvo. Venha imediatamente, temos uma emergência. Enquanto esperava uma resposta, Ramos disse a Bosch. — Não posso acreditar nisso, homem. Esse monstro de merda saiu de um nada. Eu não sabia que merda...

— O que aconteceu? Respondeu a voz de Curvo pelo rádio.

— Temos um problema. Precisamos de assistência médica e ferramentas. O Lince está fodido. Corcoran está preso dentro, com feridas.

— ...ente?

— Não foi um acidente, cacete. Um touro de merda investiu na gente. O Lince está destruído e não podemos tirar Corcoran. Estamos à cem metros a nordeste do celeiro.

— Não se movam. Vamos para aí. Ramos prendeu o rádio no cinto, colocou a lanterna sob a axila e voltou a segurar a pistola.

— Sugiro que formemos um triângulo, com o helicóptero no meio, e vigiemos se por acaso o animal voltar.

— Não, respondeu Bosch. — Ramos, você e Águia ficam cada um de um lado do helicóptero e esperem ajuda. Eu vou entrar no celeiro, a não ser que Zorrillo...

— Não, não, não. Não vamos fazer assim, Bosch. Você não está no comando. Esperaremos aqui e quando chegar ajuda...


Ramos se calou no meio da frase e se voltou. Bosch também ouviu... Ou melhor, notou. Era uma vibração rítmica no chão, que ficava cada vez mais forte, e era impossível de localizar. Bosch viu Ramos girar sobre si mesmo com a lanterna acesa. Então ouviu Águia que dizia:


— El Temblar.

— O quê? Gritou Ramos. — O quê?


Nesse momento o touro apareceu em seu campo de visão. Era uma besta negra que vinha para eles. Não se preocupava que fossem superiores em número; aquele era seu território e ia defendê-lo. Para Bosch parecia que o animal surgia da escuridão, uma aparição como a morte, com a cabeça baixa e os chifres na frente. Estava a menos de dez metros quando se fixou num objetivo concreto: Bosch. Em uma mão Harry segurava a pistola, enquanto na outra sustentava o colete com a palavra Polícia escrita em letras fluorescentes amarelas. Em milésimos de segundo compreendeu que as letras atraíram a atenção do touro e por isso escolhera a ele. Também chegou à conclusão de que sua pistola seria inútil. Não poderia deter o animal com balas; era muito grande e potente. Precisaria disparar um tiro mortal num objetivo em movimento. Feri-lo, tal como fizera Ramos, não o deteria. Bosch jogou a pistola no chão e levantou o colete.


Harry ouviu gritos e tiros na sua direita. Era Ramos, que tentava distrair o touro, mas este continuava indo direto para ele. Quando se aproximou, Bosch agitou o colete à direita e as letras amarelas brilharam à luz da lua. Bosch soltou-o quando o animal estava quase em cima dele. O touro, como uma mancha negra na escuridão, atingiu o colete antes que Bosch o soltasse totalmente. Harry tentou pular fora de seu caminho, mas uma das enormes costas do animal atingiu-o e o derrubou. Do chão, viu o animal que girava à sua esquerda com a agilidade de um esportista e se dirigia a Ramos. O agente continuou disparando e Bosch inclusive acreditou ver o reflexo da lua sobre os cartuchos ao sair da pistola. Mas as balas não detiveram o animal; nem sequer diminuíram sua velocidade. Bosch ouviu que a pistola ficava vazia e Ramos apertava o gatilho com a antecâmara vazia. Seu último grito foi ininteligível, o touro pegou-o pelas pernas e levantou seu pescoço brutal e sangrento, lançando-o pelos ares. Ramos pareceu dar uma cambalhota no ar antes de bater de cabeça contra o chão. O touro tentou se deter, mas o impulso e o impacto das balas o deixaram incapaz de controlar seu enorme peso. Primeiro baixou a cabeça e jogou-a a um lado; depois endireitou-a e se preparou para outra investida. Instintivamente Bosch se arrastou até sua pistola, pegou-a e apontou. Mas então falharam as patas dianteiras do animal e este desmoronou. Ficou imóvel, à exceção de seu peito que subia e baixava, até que finalmente também isso terminou.


Águia e Bosch foram até Ramos ao mesmo tempo. Aproximaram-se dele, mas nenhum dos dois tocou-o. Ramos jazia com os olhos abertos e cheios de terra. Sua cabeça estava inclinada em um ângulo antinatural; quebrara o pescoço ao cair. Nesse instante ouviram ao longe as hélices de um dos Hueys. Bosch se levantou e descobriu que o helicóptero estava procurando-os com o foco.


— Vou entrar no túnel, anunciou Bosch. — Quando aterrissarem, virão com reforços.

— Não, disse Águia. — Eu vou consigo. Disse de uma maneira que não admitia discussão. Águia se agachou, pegou o rádio do cinto do Ramos e recolheu a lanterna. Então passou o microfone a Bosch. — Disse que vamos os dois. Bosch chamou Curvo.

— Onde está Ramos?

— Acabamos de perdê-lo. Águia e eu vamos entrar no túnel. Alertem à tropa na EnviroBreed de que nos dirigimos para lá. Não queremos que atirem na gente.


Bosch desligou o rádio antes de que Curvo pudesse replicar e deixou o microfone junto ao agente. O outro helicóptero já estava quase em cima deles. Bosch e Águia correram para o celeiro com as armas no alto e se moveram cuidadosamente pelo exterior até que chegaram à fachada e viram que a enorme porta estava entreaberta. A abertura era suficientemente grande para deixar passar um homem. Assim se internaram na escuridão. Águia começou a percorrer o interior com a lanterna e descobriram que se tratava de um grande celeiro com currais de ambos os lados. Também havia enormes caixotes empilhados que eram utilizados para transportar os touros para as arenas, assim como fardos de feno. Bosch notou que havia uma fileira de luminárias no centro do teto, olhou ao seu redor e viu o interruptor perto da porta.


Uma vez iluminado o interior, prosseguiram pelo corredor entre as fileiras de currais. Bosch foi pela direita e Águia pela esquerda. Os currais estavam todos vazios, já que os touros andavam soltos pelo rancho. Bosch e Águia não viram a entrada do túnel até que chegaram no fundo. Em um canto, uma empilhadeira sustentava uma paleta com fardos de feno à um metro do chão. Ali mesmo, onde estivera a paleta, havia um buraco de um metro de diâmetro. Zorrillo, ou quem quer que fosse, empregara a empilhadeira para levantar a paleta, mas não tivera ninguém para descê-la e ocultar a via de fuga. Bosch se agachou, olhou no buraco e descobriu uma escada que levava a um passadiço iluminado, à uns três metros e meio de profundidade. Harry olhou para Águia.


— Preparado? o mexicano concordou.


Bosch entrou primeiro. Desceu vários degraus da escada e depois saltou ao chão com a pistola na mão, disposto a disparar. Mas no túnel não havia ninguém. A verdade é que era mais um corredor que um túnel, já que se podia caminhar totalmente de pé e estava perfeitamente iluminado graças a um cabo elétrico que alimentava lâmpadas penduradas no teto há cada seis metros. Como se curvava ligeiramente para a esquerda, Bosch não via o final. Harry deu um passo adiante e Águia foi atrás dele.


— Certo, sussurrou Bosch. — Caminhemos pela direita. Se houver um tiroteio, você dispara alto e eu baixo.


Águia concordou e começaram a avançar rapidamente pelo túnel. Enquanto caminhavam,eBosch tentou se orientar e decidiu que estavam se dirigindo ao este e um pouco ao norte. Correram até a curva; na esquina grudaram na parede antes de passar ao segundo lance do túnel. Então compreendeu que o giro era muito acentuado para que levasse a EnviroBreed. Olhou para o último segmento da galeria e viu que não havia ninguém. A escada de saída estava a uns cinquenta metros e sabia que não conduzia a EnviroBreed.


— Merda, sussurrou Harry.

— O quê? Respondeu Águia.

— Nada. Vamos.


Bosch e Águia percorreram os vinte e cinco metros seguintes muito depressa. Depois adotaram um passo mais prudente e silencioso ao se aproximar da escada de saída. Águia passou para a parede direita e os dois chegaram à abertura ao mesmo tempo, com as pistolas no alto e o suor nos olhos. Acima não havia luz. Bosch pegou a lanterna de Águia e projetou o feixe pelo buraco. Isso permitiu ver vigas de madeira no teto do aposento. Ninguém apareceu, ninguém atirou, ninguém fez nada. Harry escutou atentamente, mas não ouviu nada. Fez um gesto a Águia para que o cobrisse e guardou a pistola. Então começou a subir pela escada enquanto segurava a lanterna com uma mão.


Harry tinha medo. No Vietnã, sair de um dos túneis do inimigo sempre significava o final do pesadelo. Era como voltar a nascer; a gente emergia da escuridão para ser recebido por seus camaradas. Ia do negro ao azul. Mas nessa ocasião, era justamente o contrário. Ao chegar em cima e antes de passar pelo buraco, percorreu a sala com a lanterna, mas não viu nada. Então tirou a cabeça lentamente pela abertura, como uma tartaruga. A primeira coisa que notou foi a serragem que cobria o chão; depois foi descobrindo que a sala era uma espécie de armazém onde haviam estantes de alumínio com serras, fitas abrasivas para máquinas industriais, ferramentas manuais e serrotes de carpinteiro. Uma das estantes estava cheia de pinos de madeira de diferentes tamanhos. Bosch imediatamente pensou nos pinos atados ao arame que tinham empregado para matar Kapps e Porter.


Bosch fez um sinal a Águia para que subisse, enquanto ele se dirigia à porta do armazém. Não estava fechada com chave. Harry descobriu que dava para um enorme aposento com várias filas de maquinaria e bancos de carpinteiro de um lado e produtos terminados do outro. Quase todos eram móveis sem envernizar: mesas, cadeiras, cômodas, etc... Uma lâmpada em uma viga transversal projetava a única luz da sala; deixavam-na acesa de noite por motivos de segurança. Quando Águia apareceu por trás, não precisou dizer a Bosch que se achavam na Mexitec.


No fundo do aposento havia umas portas. Uma delas estava aberta e os dois policiais correram para lá. Em seguida descobriram que dava a uma área de carga e descarga ao lado do beco pelo qual Bosch caminhara na noite anterior. No estacionamento Bosch detectou rastros de pneus que saíam do beco. Não havia ninguém à vista; fazia tempo que Zorrillo sumira.


— Havia dois túneis, concluiu Bosch, incapaz de ocultar a decepção.


* * *


— Havia dois túneis! Exclamou Curvo. — O informante do Ramos nos fodeu bem fodido.


Bosch e Águia estavam sentados em cadeiras de pinheiro sem envernizar enquanto viam Curvo caminhando para cima e para baixo. Tinha um aspecto terrível: o de um homem no comando de uma operação em que tinha perdido dois homens, um helicóptero e seu objetivo principal. Tinham se passado duas horas desde que Bosch e Águia tinham saído do túnel.


— O que quer dizer? Perguntou Bosch.

— Quero dizer que o informante deveria saber do segundo túnel. Como nos contou sobre um e não sobre o outro? O cara nos estendeu uma armadilha; deixou uma escapatória para Zorrillo. Se soubesse quem é, prenderia-o como cúmplice da morte de um agente federal.

— Não sabe?

— Ramos não me passou o relatório. Não teve tempo. Bosch respirou aliviado. — Não posso acreditar, insistia Curvo. — É melhor que eu não volte.... Caguei tudo... Ao menos você conseguiu seu assassino de policiais, Bosch. Espero um bom alvoroço.

— Mandou algum telex? Inquiriu Bosch para mudar de tema.

— Sim, já foram enviados, a todas as delegacias de polícia e agências federais. Mas não importa, porque escapou. Irá para o interior, passará um ano escondido e depois voltará a começar exatamente onde parou. Em Michoacan ou um pouco mais ao sul.

— Talvez tenha ido para o norte, sugeriu Bosch.

— Impossível. Não vai cruzar a fronteira porque sabe que se o pegarmos lá em cima, não voltará a ver a luz do dia. Foi para sul, onde está seguro.


Na fábrica havia outros agentes que anotavam e catalogavam as provas que iam recolhendo. Entre elas estava uma máquina que esvaziava as pernas das mesas para enchê-las de droga; assim podiam passá-las para o outro lado da fronteira. Um pouco antes, os agentes da DEA tinham encontrado a entrada ao segundo túnel no celeiro e o seguiram até a EnviroBreed. Como não havia explosivos, tinham entrado e descoberto que a fábrica de insetos estava vazia à exceção dos cães, que mataram. A operação desmantelara uma grande rede de tráfico. Um par de agentes partiram para Calexico para prender o diretor da EnviroBreed, Ely. No rancho foram feitas quatorze detenções e certamente haveria mais. Mas tudo aquilo não era suficiente para Curvo, nem para ninguém, já que dois agentes tinham morrido e Zorrillo escapara. Além disso, Curvo errava se pensava que Bosch se sentiria satisfeito com a morte de Arpis. Bosch também queria Zorrillo, já que ele é quem dera as ordens para os assassinatos.


Harry se levantou para não ter que presenciar mais tempo a angústia do agente. Tinha suficiente com a sua. Águia também devia sentir o mesmo, já que imitou Bosch e começou a caminhar nervosamente entre as máquinas e os móveis. Nesse momento estavam esperando que um dos carros da tropa levasse-os a aeroporto para apanhar o carro de Bosch. Os federais ficariam ali até o amanhecer, mas Bosch e Águia terminaram. Quando contara sobre Grenha, o mexicano simplesmente assentira com a cabeça, sem mostrar nenhum sentimento.


Bosch seguiu Águia que voltava para armazém e se aproximava da entrada do túnel. Águia se agachou e começou a estudar o chão como se a serragem fosse um sedimento de café no qual pudesse ler o paradeiro de Zorrillo. Ao fim de uns segundos, comentou:


— O Papa tem botas novas.


Bosch se aproximou e Águia mostrou as pegadas na serragem. Havia uma que não pertencia aos sapatos de Águia ou Bosch; estava muito claramente marcada e Harry em seguida reconheceu o salto de uma bota vaqueira e aquela letra formada por uma serpente. A borda da pegada e a cabeça da serpente se viam com toda clareza.


Águia estava certo. O Papa tinha botas novas.


* * *


Trinta e Um

NO CAMINHO para a fronteira, Bosch pensou em como aconteceram os fatos, em como todas as peças se encaixavam e como poderia ficar sem descobrir tudo se Águia não se fixasse na pegada. Bosch lembrou a caixa das botas Snakes no apartamento de Los Feliz; era uma pista óbvia e, entretanto, passara por cima. Só vira o que quisera ver.


Ainda era cedo. Os primeiros raios de luz começavam a aparecer pelo horizonte e não havia muita fila na fronteira. Ninguém limpava o para-brisa, nem vendia bagatelas porque não havia nenhuma alma. Bosch mostrou seu distintivo ao aborrecido agente de alfândega, que deixou-o passar sem mais trâmites.


Precisava de um telefone e um pouco de cafeína. Em um par de minutos estava na Prefeitura de Calexico. Harry comprou uma Coca-Cola na máquina do minúsculo vestíbulo da delegacia e levou-a para fora, até a cabine telefônica que havia diante do edifício. Bosch consultou o relógio e soube que ela estaria em casa, provavelmente acordada e se preparando para ir trabalhar. Harry acendeu um cigarro, discou o número e colocou a ligação na sua conta telefônica. Enquanto esperava a autorização, dirigiu os olhos ao parque. Através da neblina matinal, viu as figuras de vários vagabundos que dormiam nos bancos do parque cobertos com mantas. A bruma dava à imagem um caráter fantasmagórico e solitário. Teresa atendeu o telefone quase imediatamente. Parecia que já estava acordada.


— Olá.

— Harry, o que aconteceu?

— Desculpe se a acordei.

— Não me acordou. O que aconteceu?

— Está se vestindo para ir ao funeral de Moore?

— Sim. O que é isto? Liga as seis menos dez da manhã para me perguntar...

— A pessoa que vão enterrar não é Moore.


Houve um comprido silêncio durante o qual Bosch olhou para o parque e viu um homem de pé, envolvido numa manta, que olhava-o fixamente através da névoa. Bosch desviou o olhar.


— Mas o que disse? Harry, você está bem?

— Estou cansado, mas nunca estive melhor. O que quero dizer é que ele está vivo. Moore. Acaba de escapar nesta manhã.

— Ainda está no México?

— Na fronteira.

— O que disse não faz sentido. As impressões digitais e as impressões dentais coincidiram, e sua própria mulher reconheceu a tatuagem numa foto. Estamos totalmente seguros da identidade.

— É mentira. Moore preparou tudo.

— Por que me ligou para contar isso, Harry?

— Quero que me ajude, Teresa. Eu não posso falar com Irving, mas você sim. Ajude-me e, se eu tiver razão, sairá beneficiada.

— Se tiver razão. Bosch voltou os olhos ao parque, mas o homem da manta sumira. — Só me diga como, desafiou ela. — Convença-me.


Bosch ficou calado um momento, como um advogado antes de interrogar uma testemunha. Sabia que cada palavra precisava passar seu cuidadoso escrutínio ou a perderia.


— Além dos impressões digitais e as análises dentais, Sheehan também me disse que a letra da máquina de escrever de Moore coincidia com a do bilhete de "Descobriram quem eu era". O compararam com uma nota de mudança de endereço que Moore colocara em seu arquivo pessoal há alguns meses, depois que ele e sua mulher se separaram. Bosch deu uma longa tragada no cigarro e ela pensou que ele terminara.

— E? Não entendi. O que tem de estranho?

— Uma das concessões que nosso sindicato ganhou há uns anos durante as negociações trabalhistas, foi o livre acesso a nosso arquivo pessoal. Deste modo, os policiais podem verificar se nossos processos contêm acusações, recomendações, cartas de queixa ou algo assim. Quero dizer que Moore tinha acesso ao seu arquivo, assim foi ao Pessoal há uns meses e pediu-o porque acabava de se mudar e precisava colocar o novo endereço. Bosch parou um momento para recompor o resto da história em sua cabeça.

— Certo. E daí? Insistiu ela.

— Os arquivos pessoais também contêm cartões com as impressões digitais. Isso significa que Moore teve acesso ao cartão que Irving levou no dia da autópsia; a que seu perito usou para identificar as impressões. Está vendo? Moore pode ter trocado seu cartão pelo de outra pessoa e vocês usaram o cartão errado para identificar o corpo. Embora, claro, não era seu cadáver, e sim o de outra pessoa.

— Quem?

— Acredito que era um homem daqui de baixo chamado Humberto Zorrillo.

— Parece-me muito improvável. Houve outras formas de identificação. Lembra que nesse dia, na sala de autópsias, como se chama? Sheehan, recebeu uma ligação da polícia científica para dizer que tinham cotejado os impressões digitais do motel e que eram de Moore. Eles usaram outros cartões que não os nossos. E a identificação dental. Como explica isso?

— Olhe, Teresa, me escute bem. Tudo tem explicação; verá como encaixa. A identificação dental? Você mesma me disse que só encontraram um fragmento, parte de uma peça dental, sem a raiz. Era um dente morto, assim não pôde dizer quanto tempo estava fora; só que coincidia com os relatórios do dentista. Um dos colegas de Moore me disse que uma vez o viu perder um dente em uma briga no Hollywood Boulevard. Poderia ser esse, não sei.

— Certo, e as impressões no quarto do motel? Como se explicam?

— Muito fácil. Essas eram suas impressões de verdade. Donovan, o da polícia científica, me contou que tirara cópias do computador do Departamento de Justiça, por isso precisavam ser suas impressões de verdade. Isso quer dizer que esteve no quarto, mas não significa que fosse ele o cadáver. Normalmente usamos só uma amostra das impressões, as do computador do Departamento de Justiça, para fazer todas as comparações, mas Irving ignorou-as ao pegar as do arquivo pessoal. E aí está a genialidade do plano de Moore; ele sabia que Irving ou alguém do departamento a apanharia. Sabia porque imaginou que o departamento colocaria pressa na autópsia, na identificação, tudo, porque se tratava da morte de um agente de polícia. Era algo que fizeram antes e Moore deduziu que fariam o mesmo com ele.

— Donovan alguma vez comparou suas impressões com as nossas?

— Não, porque não é o costume. Talvez fizesse mais tarde se não tivessem tanta pressa no caso.

— Merda, ela exclamou. Bosch sabia que a estava convencendo. — E a tatuagem?

— É uma insígnia do bairro. Muita gente poderia tê-la. Acredito que Zorrillo também tinha.

— E quem é este tal Zorrillo?

— Um cara que cresceu aqui com Moore. É possível que fossem irmãos, não sei. A questão é que Zorrillo se converteu no traficante mais importante da área e Moore foi para Los Angeles e se tornou policial. Não sei por quê, mas Moore estava trabalhando para Zorrillo. O resto da história já sabe. Os da DEA acabam de fazer uma jogada de rede no rancho de Zorrillo; e ele escapou, mas eu acredito que fosse Moore.

— Viu-o?

— Não precisei.

— Há alguém o procurando?

— Os da DEA, especialmente no interior do México. Embora estejam procurando Zorrillo, não a Moore. E é possível que Moore nunca apareça.

— Parece que... Está dizendo que Moore matou Zorrillo e depois o substituiu?

— Sim. Eu acredito que Moore conseguiu que Zorrillo fosse a Los Angeles. Ficaram no Hideaway e Moore matou-o; esse é o golpe que encontrou na cabeça. Moore pôs suas botas e sua roupa no cadáver. Depois disparou no rosto com a escopeta. Assegurou-se de deixar algumas pistas pelo quarto para que Donovan encontrasse e pôs o bilhete no bolso da calça. Acredito que o bilhete funcionava de muitas maneiras. No princípio parecia um bilhete de suicídio e, além disso, a letra contribuía para a identificação. Por outro lado, acredito que era algo pessoal entre e Moore e Zorrillo, algo que se remonta à época em que viviam no bairro. O tal "Descobriram quem eu era" é parte de uma longa história.


Os dois ficaram em silêncio um momento, pensando em tudo o que Bosch dissera. Harry sabia que ainda ficavam muitos fios soltos; muitos enganos para descobrir.


— Por quê todos os assassinatos? Perguntou ela. — Porter e Juan 67? Por que precisavam deles? Aqui era onde falhavam as respostas.

— Não sei. Suponho que se meteram no meio. Zorrillo fez com que assassinassem Jimmy Kapps porque era um delator. Acredito que Moore foi quem contou a Zorrillo. Depois, surraram Juan 67, que se chamava Gutiérrez-Llosa, até matá-lo e levaram o cadáver para Los Angeles. Não sei por quê. Finalmente Moore matou Zorrillo e o substituiu. Por que matou Porter, não sei. Suponho que pensou que talvez Lou descobriria tudo.

— Isso é muito cruel.

— Sim.

— Como pôde acontecer? Perguntou ela, mais para si mesmo que para Bosch. — Estão a ponto de enterrar este traficante de drogas com todas as honras... O prefeito e o diretor do departamento. Todos os meios de comunicação...

— E você sabe da verdade. Teresa pensou um momento antes de fazer a pergunta seguinte.

— Por que o fez?

— Não sei. Estamos falando de vidas diferentes. O policial e o traficante. Mas devia haver algo entre eles: uma conexão de algum tipo que se remonta aos seus tempos do bairro. E de alguma forma, o policial passou para o outro lado e começou a ajudar o traficante nas ruas de Los Angeles. Quem sabe por quê? Talvez por dinheiro, talvez por algo que perdera faz tempo, quando era um garoto.

— O que quer dizer?

— Não sei. Ainda estou pensando.

— Se eram tão unidos, por que o matou?

— Suponho que isso teremos que perguntar a ele. Se é que o encontraremos. Talvez foi como você diz; fez para substituir Zorrillo, para ficar com seu dinheiro. Ou talvez para empurrar a culpa. Tinha ido muito longe e queria terminar... Moore estava, ou está, pendurado no passado, me disse sua mulher. Possivelmente tentava recuperar algo, retroceder no tempo. Ainda não sei.


Houve outro silêncio. Bosch deu a última tragada no cigarro e acrescentou:


— Era um crime quase perfeito; deixar um corpo em circunstâncias que o departamento não queria investigar.

— Mas você o fez.

— Sim. "E aqui estou", pensou. Sabia o que precisava fazer nesse momento: terminar a tarefa. No parque viu as figuras fantasmagóricas de várias pessoas que despertavam para enfrentar a outro dia de desespero.

— Por que me ligou, Harry? O que quer que eu faça?

— Liguei porque preciso confiar em alguém. E você é a única que pode me ajudar.

— Repito: O que quer que eu faça?

— Da sua sala tem acesso aos impressões digitais do Departamento de Justiça, não é?

— Sim. Assim é como fazemos a maioria das identificações. E assim é como as faremos de agora em diante. Agora tenho Irving pego pelos culhões.

— Ainda guarda o cartão de impressões que ele trouxe para a autópsia?

— Mmm, não sei. Mas estou certa de que os peritos fizeram uma fotocópia para acompanhar o cadáver. Quer que as compare?

— Sim, compare-as e verá que não coincidem.

— Antes estava certo.

— Estou certo, mas mais é melhor que confirme.

— E depois o quê?

— Pois suponho que nos veremos no funeral. Eu preciso fazer mais uma parada e depois irei para lá.

— Que parada?

— Quero ver um castelo. É uma longa história. Contar-lhe-ei tudo logo.

— Não quer impedir que se realize o funeral?


Harry refletiu uns momentos antes de responder. Pensou em Sylvia Moore e no mistério que ela ainda era para ele. E a seguir considerou a ideia de que um traficante de droga recebesse uma despedida de herói.


— Não, não quero. E você?

— Nem pensar.


Bosch sabia que as razões da Teresa eram muito diferentes das suas, mas pouco se importava. Ela já tinha o desejado posto de legista-chefe. Se Irving se interpusesse em seu caminho, Teresa podia confrontá-lo. "Bem, melhor para ela", pensou Bosch.


— Até mais tarde.

— Tome cuidado, Harry.


Bosch desligou e acendeu outro cigarro. O sol da manhã estava alto e começava a dissipar a névoa do parque. As pessoas começavam a se movimentar e Bosch acreditou ouvir uma mulher que ria. Nesse momento se sentiu totalmente só no mundo.


* * *


Trinta e Dois

QUANDO BOSCH estacionou diante da grade de ferro forjado ao final de Coiote Trail, verificou que o caminho circular frente ao Castelo dos Olhos continuava vazio. Não obstante, a grossa corrente, que no dia anterior mantinha fechadas as duas metades da grade, estava pendurada com o cadeado aberto. Moore estava em casa.


Harry deixou o carro ali mesmo, bloqueando a entrada, e entrou no jardim a pé. Atravessou correndo a grama, meio agachado, consciente de que as janelas da torre o olhavam como os olhos negros e acusadores de um gigante. Ao chegar à porta principal, Bosch grudou na fachada de estuque. Estava ofegante e suado, apesar do ar da manhã ainda ser fresco. A porta principal estava fechada com chave. Bosch permaneceu imóvel um bom momento à escuta de algum ruído, mas não ouviu nada. Finalmente se abaixou sob a fileira de janelas do primeiro andar e deu a volta na casa até chegar a uma garagem com quatro portas. Ali encontrou outra porta também fechada com chave.


Bosch reconheceu a parte traseira da casa pelas fotografias que encontrara na bolsa de Moore. Uma das portas junto à piscina estava aberta e uma cortina branca ondeava ao vento como uma mão que o convidasse a entrar. A porta aberta dava para uma grande sala de estar cheia de fantasmas, quer dizer, móveis cobertos com velhos lençóis. E nada mais. Bosch se dirigiu à sua esquerda, atravessou silenciosamente a cozinha e abriu a porta da garagem. Dentro havia um carro, coberto com mais lençóis, e uma caminhonete verde pálida com a palavra "Mexitec" na lateral. Ao encostar a mão no capô da caminhonete, Bosch descobriu que ainda estava quente. Através do para-brisa, viu uma escopeta de cano recortado no assento do passageiro. Bosch abriu a porta e tirou a arma. Tão silenciosamente como pôde, abriu-a e viu que os dois canos estavam carregados. Em seguida fechou-a e levou consigo.


Bosch levantou o lençol da parte dianteira do outro carro e descobriu o Thunderbird que vira na foto do pai e filho. Ao olhar dentro do veículo, Bosch se perguntou quanto se precisava voltar no tempo para encontrar o que motivava as decisões de uma pessoa. No caso de Moore, não sabia a resposta e no seu também não. Bosch retornou à sala de estar e parou para escutar. Nada. A casa estava quieta, vazia e cheirava a pó, como o tempo que transcorre lenta e dolorosamente esperando alguém ou algo que não vai chegar. Os fantasmas ocupavam todas os aposentos. Bosch estava admirando a forma de uma poltrona amortalhada quando ouviu o ruído. Veio de cima e foi como o som de um sapato que caía sobre um chão de madeira. Bosch se dirigiu à parte dianteira da casa, onde havia um amplo vestíbulo do qual partia uma majestosa escada de pedra. Bosch subiu os degraus e continuou prestando atenção, mas o ruído de cima não se repetiu.


No segundo andar caminhou por um corredor atapetado e apareceu nas portas de quatro quartos e dois banheiros, todos eles vazios. Então retornou às escadas e subiu na torre. A única porta no último patamar estava aberta, mas Harry não ouviu nenhum ruído em seu interior. Agachou-se e avançou lentamente para a abertura com a escopeta na frente, como uma vara para procurar água. Lá estava Moore. De pé, de costas para a porta e se olhando num espelho de um armário ligeiramente aberto, de modo que não captava a imagem de Harry. Durante breves instantes Bosch observou Moore sem que este o visse, e deu uma olhada ao seu redor. No centro do quarto havia uma cama com uma mala aberta e, junto dela, uma bolsa esportiva com o zíper fechado. Moore continuava sem se mover, já que estava olhando fixamente para seu próprio rosto. Usava barba e seus olhos eram castanhos. Vestia uns jeans gastos, botas novas de pele de serpente, uma camiseta negra e uma jaqueta de pele negra com luvas combinando. Tinha um aspecto elegante, como saído das boutiques da Melrose Avenue. De longe poderia passar facilmente pelo Papa de Mexicali. Bosch detectou o cabo de madeira e prata de uma pistola automática em seu cinto.


— Vai dizer alguma coisa, Harry? Ou vai ficar aí me olhando? Sem mover as mãos, nem a cabeça, Moore apoiou o peso do corpo no pé esquerdo de modo que ele e Bosch pudessem se ver no espelho.

— Comprou botas novas antes de matar Zorrillo, não é? Então Moore se voltou por completo mas não disse nada. — Mantenha as mãos à vista, avisou Bosch.

— Sabe Harry? Imaginava que se alguém viesse atrás de mim, seria você.

— Você queria que alguém viesse, não é?

— Às vezes sim, às vezes não. Bosch entrou no quarto e deu um passo para o lado para se situar diretamente na frente de Moore.

— Lentes de contato novas, barba. Parece o Papa, de longe. Mas como convenceu os seus homens, o seu guarda pessoal? Não me diga que ficaram longe quando você entrou e o substituiu.

— Convenceu-os o dinheiro. Certamente também o deixariam se mudar para lá se tivesse grana. Tudo é negociável quando se controla esse tema. E eu controlava. Moore indicou com a cabeça a bolsa esportiva. — Quanto quer você? Não tenho muito, uns cento e dez mil dólares nessa bolsa.

— Pensava que fugiria com uma fortuna.

— Sim. O da bolsa é só o que tenho à mão. Pegue um pouco, pois posso conseguir muito mais. Está depositado em vários bancos.

— Também andou imitando a assinatura de Zorrillo? Moore não respondeu. — Diga, quem era? Perguntou Bosch.

— Quem?

— Já sabe quem.

— Meu meio irmão. De pais diferentes.

— Este lugar é o motivo, não é? É o castelo onde viveu antes que o expulsassem.

— Mais ou menos. Decidi comprá-lo depois que ele morreu, mas está caindo de podre. É tão difícil cuidar das coisas que se quer nestes dias... Tudo é um esforço. Bosch tentava compreender seu estado de ânimo; parecia farto totalmente.

— O que aconteceu no rancho? Perguntou.

— Refere-se aos três corpos? Bem, suponho que no final se fez justiça. Grenha era uma sanguessuga que andara espremendo Zorrillo durante anos e Arpis simplesmente arrancou-a.

— E quem "arrancou" Arpis e Dance?

— Isso fui eu. Falou sem pensar muito e suas palavras paralisaram Bosch. Moore era policial; sabia que confessar seria a última coisa que deveria fazer. Alguém não confessa até ter um advogado ao seu lado e um trato assinado com o promotor.


Harry segurou bem a escopeta com suas mãos suadas, deu um passo adiante e escutou com atenção para ver se ouvia algum outro som na casa. Entretanto, só ouviu silêncio até que Moore o quebrou.


— Não penso em voltar. Suponho que sabe. Disse tranquilamente, como se fosse algo inamovível, que tivesse decidido há muito tempo.

— Como conseguiu que Zorrillo fosse a Los Angeles e em seguida ao quarto do motel? Como arranjou suas impressões para o arquivo de pessoal?

— Quer que lhe conte isso, Harry? E em seguida o quê? Moore olhou brevemente a bolsa esportiva.

— Em seguida nada. Voltamos para Los Angeles. Eu não lhe avisei, assim tudo o que disser não pode ser usado contra você. Só estamos você e eu.

— As impressões foram fáceis. Eu tinha preparado identidades falsas para que ele pudesse cruzar a fronteira quando quisesse. Tinha três ou quatro. Um dia me pediu um passaporte e toda uma carteira cheia de documentos e eu lhe disse que precisava de suas impressões digitais. Tirei eu mesmo.

— E o motel?

— Já disse que ele cruzava a fronteira quando tinha vontade. Saía pelo túnel e a DEA ficava lá fora pensando que ainda estava dentro do rancho. Gostava de ir ver os Lakers e se sentar na primeira fila perto dessa atriz loura que adora tanto uma câmera. Ou seja, ele já estava aqui e, quando disse que queria vê-lo, ele veio.

— Então o matou e o substituiu... E o diarista? O que fez?

— No lugar errado. Pelo visto, estava lá quando Zorrillo saiu pelo túnel antes de sua última viagem. O homem não precisava ter entrado nesse lugar, mas suponho que não soube ler os cartazes. Zorrillo não quis se arriscar que contasse a alguém sobre o túnel.

— E por que deixou-o no beco? Por que não o enterrou debaixo da Joshua Tree ou em outro lugar remoto? Em um lugar onde nunca pudessem encontrá-lo.

— O deserto seria uma boa ideia, mas não fui eu quem se desfez do corpo. Eles me controlavam; eles o trouxeram e deixaram lá. Foi o Arpis. Naquela noite recebi uma ligação de Zorrillo para que me encontrasse com ele no Egg and I. Pediu que estacionasse no beco e então vi o cadáver. Eu não quis tocá-lo, então liguei para a delegacia de polícia para dizer que o encontrara. Zorrillo usou-o como outra forma de me controlar e eu segui a corrente. Deram o caso a Porter e eu fiz um trato com ele para que fosse com calma.


Bosch não disse nada. Simplesmente tentava imaginar a sequência de fatos que Moore acabava de descrever.


— Isto começa a ser um problema. Vai tentar me algemar, me levar a Los Angeles e se tornar um herói?

— Por que não o esqueceu? Perguntou Bosch.

— O quê?

— Este lugar. Seu pai. Tudo. Deveria ter se esquecido do passado.

— Porque me roubaram a vida. O cara nos expulsou de casa... Minha mãe... Como se esquece de um passado assim? Vá a merda, Bosch. Você não conseguirá entender.


Bosch não disse nada, embora sabia que estava esticando muito a situação. Moore começava a ficar nervoso.


— Quando soube que o velho morrera, me afetou muito, explicou Moore. — Não sei por que, decidi que queria este lugar e fui ver meu irmão. Esse foi meu engano. Comecei fazendo coisas pequenas, mas ele foi pedindo mais e mais, e acabei carregando com tudo. No final precisava sair e só havia uma maneira.

— A maneira errada.

— Não se incomode, Bosch. Já sei a canção.


Embora estivesse certo de que Moore contara a história tal como ele a via, Bosch tinha certeza que Moore se lançara nos braços do diabo. Tinham descoberto quem era.


— Por que eu? Perguntou Bosch.

— Por que você o quê?

— Por que me deixou a pasta? Se não fizesse isso, eu não estaria aqui agora. Teria escapado.

— Bosch, você foi meu plano de emergência. Não vê? Precisava de algo, se por acaso o suicídio não colasse. Imaginei que quando recebesse a pasta se poria a investigar. Sabia que com um pouco de ajuda avisaria as pessoas de que se tratava de um assassinato. O que não esperei é que chegasse tão longe. Pensei que Irving e o resto o impediriam, porque não iriam querer escavar mais. Eles prefeririam que todo o assunto morresse comigo.

— E com Porter.

— Sim, bom, Porter era fraco. Certamente está melhor assim.

— E eu? Estaria melhor se Arpis acertasse o tiro no hotel?

— Bosch, estava se aproximando muito. Precisava detê-lo.


Harry já não tinha nada mais que dizer ou perguntar. Moore pareceu intuir que chegavam ao final do trajeto, mas tentou uma vez mais.


— Bosch, nessa bolsa tem os números de minhas contas. São suas.

— Não me interessa, Moore. Voltamos para Los Angeles. Moore riu de semelhante ideia.

— De verdade acha que alguém se importará com tudo isto? Bosch não disse nada. — No departamento? Prosseguiu Moore. — Nem pensar. Eles não querem saber nada de uma coisa assim. É uma má história para o negócio. Você em troca não está no departamento. Trabalha lá, mas não faz parte dele. Entendeu? Aí está o problema... Se me levar, vai ficar tão mal quanto eu, porque vai lhes jogar em cima um monte de merda. Você é o único que se importa com tudo isto, Bosch. De verdade. Assim pegue o dinheiro e vá embora.

— E sua mulher? Tampouco se importa? Isso o parou, ao menos um momento.

— Sylvia, disse. — Não sei. Perdi-a há muito tempo. Não sei se ela se importa. Bosch esquadrinhou-o em busca da verdade. — Isso são águas passadas, concluiu Moore. — Assim leve o dinheiro. Depois posso conseguir mais.

— Não posso pegá-lo e você sabe.

— Sim, suponho que sei. Mas você também sabe que não posso voltar consigo. Então, o que faremos?


Bosch apoiou todo seu peso no pé esquerdo e a culatra da escopeta sobre o quadril. Houve um comprido silêncio durante o qual pensou em si mesmo e em suas próprias motivações. Por que não pedira a Moore que jogasse a pistola no chão?


Com um movimento ágil e rápido, Moore descruzou a mão e tirou a pistola da cintura. Estava levantando o cano para Bosch quando o dedo de Harry apertou os gatilhos da escopeta. O estrondo dos dois canos foi ensurdecedor. Através da fumaça, Bosch viu que Moore recebia toda a força de impacto no rosto e seu corpo saltava para trás. Suas mãos se elevaram para o teto antes de cair sobre a cama. Moore chegou a disparar mas o tiro saiu alto e fez em pedacinhos um dos vidros das janelas em forma de arco. Finalmente a arma caiu ao chão.


Resíduos dos tiros flutuaram e aterrissaram sobre o sangue do homem sem rosto. Bosch notou que o ar cheirava a pólvora queimada e que umas gotinhas diminutas lhe cobriam o rosto. Pelo cheiro, deduziu que era sangue. Bosch ficou imóvel durante mais de um minuto, depois levantou os olhos e se viu no espelho. Rapidamente desviou o olhar. A seguir se dirigiu à cama e abriu o zíper da bolsa esportiva. Dentro havia um monte de maços de notas, quase todos de cem dólares, assim como uma carteira e um passaporte. Quando Bosch inspecionou a carteira, descobriu que os documentos identificavam Moore como Henry Maze, de quarenta anos, natural de Pasadena.


No interior do passaporte havia duas fotos soltas. A primeira era uma Polaroid que devia vir do saco de papel branco. A imagem mostrava Moore e sua mulher com pouco mais de vinte anos. Estavam sentados num sofá, talvez em uma festa, e Sylvia não estava olhando para a câmera; estava olhando para ele. Bosch compreendeu em seguida por que Moore escolhera essa foto; pelo precioso olhar de amor de Sylvia. A segunda foto era uma antiga foto instantânea em preto e branco com as bordas descoloridas, como se tivesse estado emoldurada. Mostrava Cal Moore e Humberto Zorrillo, meninos. Os dois estavam sem camisa, lutando de brincadeira e rindo. Tinham a pele bronzeada, só afeada pela tatuagem dos Santos e Pecadores que ambos traziam no braço.


Bosch colocou a carteira e o passaporte na bolsa, mas guardou as duas fotos no bolso da camisa. A seguir caminhou até a janela e olhou pelo vidro quebrado para Coiote Trail e as terras que levavam para a fronteira. Não vinham carros de polícia, nem da patrulha de fronteiras. Ninguém chamara sequer uma ambulância. As grossas paredes do castelo tinham silenciado a morte do homem que jazia em seu interior.


O sol já estava alto no céu e Harry notou seu calor através do buraco triangular do vidro quebrado.

 

 

* * *


Trinta e Três

BOSCH NÃO COMEÇOU a se sentir totalmente bem até que chegou aos poluídos subúrbios de Los Angeles. Embora a cidade o desagradasse, sabia que ali se curariam suas feridas. Para evitar o centro, Harry pegou a autoestrada. Por ser meio-dia, não havia muito trânsito e rumou para o passo de Cahuenga. Quando levantou os olhos para as montanhas, descobriu o rastro carbonizado que deixara o incêndio do Natal. Mas até aquilo consolou-o. O calor do fogo certamente abrira as sementes das flores silvestres, por isso na primavera a ladeira seria uma explosão de cores. A ravina se cobriria de flores e em seguida aquela cicatriz sobre a terra desapareceria completamente.


* * *


Passava da uma. Bosch chegara muito tarde para a missa do funeral, na missão de São Fernando, assim atravessou o Vale em direção ao cemitério. O enterro de Calexico Moore, morto no cumprimento do dever, ia ter lugar no Eternal Valley, em Chatsworth, ante o chefe de polícia, o prefeito e todos os meios de comunicação. Bosch sorriu enquanto dirigia. "Estamos todos aqui reunidos para honrar e dar sepultura a... Um traficante".


Bosch chegou ao cemitério antes do séquito de motos, mas a imprensa já estava instalada num penhasco perto da entrada. Homens vestidos com ternos negros, camisas brancas, gravatas negras e braceletes de luto no braço esquerdo assinalaram onde se podia estacionar. Harry usou o espelho retrovisor para ajeitar a gravata. Um dos homens com bracelete tinha lhe indicado o caminho. Harry atravessou a grama coberta de sepulturas, enquanto o vento desordenava seu cabelo. Bosch se posicionou a uma distância razoável do toldo verde onde jaziam as coroas de flores. Apoiado contra uma das árvores, fumou um cigarro enquanto examinava os carros que começavam a chegar. Uns quantos se adiantaram à procissão. Então ouviu o som dos helicópteros que se aproximavam: a patrulha aérea da polícia que sobrevoava o carro fúnebre e os aparelhos das emissoras que revoavam como moscas por todo o cemitério. A seguir as primeiras motocicletas entraram no cemitério e as câmeras de televisão colocadas no penhasco se dispuseram a filmar toda a fila. Bosch calculou que devia haver umas duzentas motos e pensou que o funeral de um policial era o melhor dia para avançar um semáforo, exceder o limite de velocidade ou fazer uma manobra ilegal, já que não havia nem um só guarda de trânsito em toda a cidade.


O carro fúnebre e as limusines dos assistentes seguiram as motocicletas. Depois chegaram o restante dos carros e finalmente as pessoas estacionaram onde puderam e se encaminharam para o lugar indicado vindo de todas as direções. Então Bosch viu que um dos homens com bracelete ajudava Sylvia Moore a sair de uma limusine, em que viajava sozinha. Embora estivesse a mais de cinquenta metros de distância, Harry notou que estava muito bonita. Usava um singelo vestido negro que o forte vento grudava contra seu corpo, marcando sua figura. Trazia o cabelo recolhido com um passador negro, que precisou segurar para que não caísse, luvas e óculos de sol negros e batom vermelho. Bosch não podia afastar os olhos dela. O homem do bracelete dirigiu-a para uma fileira de cadeiras dobradiças sob o toldo e junto ao buraco que fora cavado na terra. Pelo caminho ela virou um momento a cabeça e Bosch achou que olhava para ele, mas os óculos ocultavam seus olhos e seu rosto não mostrou nenhuma reação. Depois que ela se sentou, os portadores do féretro, um grupo composto por Rickard, o resto da unidade de narcóticos de Moore, e uns quantos mais que Bosch não conhecia, trouxeram o ataúde de aço prateado.


— Ah, já retornou, disse uma voz às suas costas. Bosch se voltou e viu Teresa Corazón que caminhava para ele.

— Sim, acabo de chegar.

— Não se barbeou.

— Não. E com você, tudo bem?

— Ótimo.

— Fico feliz. O que aconteceu nesta manhã depois que conversamos?

— O que você disse. Pegamos as impressões digitais do Departamento de Justiça e as comparamos com as que Irving nos deu. Pertenciam a duas pessoas diferentes, ou seja, que esse do pijama de prata não é Moore.


Bosch concordou. Obviamente, já não precisava da confirmação da Teresa, porque verificara pessoalmente. Bosch pensou no corpo sem rosto de Moore que jazia sobre a cama do castelo.


— O que vai fazer? Perguntou ele.

— Já fiz.

— O quê?

— Tive um pequeno bate-papo com o subdiretor Irving antes da missa. Deveria ver a cara dele.

— Mas não parou o funeral.

— Porque acha que o mais provável é que Moore, se souber o que é melhor para ele, não volte a aparecer por aqui. Irving espera que este idiota só lhe custe uma recomendação para o posto de legista-chefe. Ele mesmo se ofereceu para fazê-lo; nem sequer tive que explicar como era delicada a sua situação.

— Espero que desfrute do trabalho, Teresa. Embora vá colocá-la na boca do lobo.

— Farei isso. E, Harry, obrigado por me ligar nesta manhã.

— Irving sabe como descobriu isto? Disse-lhe que eu ligara?

— Não, mas acredito que não precisava.


Ela tinha razão. Irving devia saber que Bosch era responsável por isso de algum jeito. Harry olhou por cima da Teresa para ver Sylvia Moore outra vez; estava sentada em silêncio, entre duas cadeiras vazias que ninguém iria ocupar.


— Volto com o grupo, anunciou Teresa. — Vim para cá com Dick Ebart. Quer fixar uma data para pedir o voto de toda a comissão.


Bosch concordou. Ebart era um homem de quase setenta anos que estava a mais de vinte e cinco como membro da comissão do condado. Fora ele quem propusera Teresa para o posto.


— Harry, continuo querendo que nos vejamos só a trabalho. Agradeço o que fez hoje por mim, mas eu gostaria de manter distância, ao menos por um tempo.


Bosch concordou e viu-a se afastar com seus sapatos de salto alto e passo inseguro, por culpa da grama. Por um momento Bosch imaginou-a em um abraço carnal com Ebart, que era facilmente reconhecível nas fotos dos jornais por seu pescoço flácido e enrugado como papel crepom. A imagem repugnou-o e ficou com asco por ter imaginado aquilo.


Rapidamente tirou-o da cabeça e continuou observando Teresa enquanto se misturava com as pessoas, dava a mão a várias e se convertia no personagem político que deveria interpretar a partir de então. Bosch sentiu um pouco de tristeza por ela. Faltavam poucos minutos para o serviço, mas continuava chegando gente. Entre os reunidos, Bosch viu a calva brilhante do subdiretor Irvin Irving que usava o uniforme completo e a boina sob o braço. Estava de pé junto ao chefe de polícia e um dos homens fortes do prefeito. Pelo visto o prefeito estava atrasado, como sempre. Então Irving reparou em Bosch, se separou do grupo e se dirigiu até ele. Enquanto caminhava parecia olhar os olhos das montanhas. Não olhou para Bosch até que chegou perto da árvore.


— Detetive.

— Chefe.

— Quando chegou?

— Agora mesmo.

— Poderia ter se barbeado.

— Sim, já sei.

— O que vamos fazer? Disse com uma expressão de nostalgia e Bosch não sabia se queria uma resposta. — Não sei se sabe, detetive, mas quando você não se apresentou ontem em minha sala, coloquei-o em oitenta e um.

— Imaginava. Estou suspenso?

— No momento não fizemos nada a respeito. Sou um homem justo e queria vê-lo primeiro. Falou com a legista? Bosch não ia mentir e, além disso, nessa ocasião precisava ganhar.

— Sim, queria que ela comparasse algumas impressões digitais.

— O que aconteceu lá em baixo, no México, para que pensasse em algo semelhante?

— Nada importante, chefe. Certamente verá nas notícias.

— Não me refiro a essa jogada de rede catastrófica que a DEA levou a cabo. Falo de Moore. Bosch, preciso saber se tiver que parar o funeral.

— Aí não posso ajudar, chefe. A decisão não é minha. Bosch fez uma pausa. — Temos companhia.


Irving se voltou para olhar. O tenente Harvey Pounds, também vestido com o uniforme, caminhava para eles, certamente para descobrir quantos casos Bosch fechara. Mas Irving elevou a mão como um guarda de trânsito e então Pounds parou imediatamente e retornou.


— O que quero dizer, detetive Bosch, é que parece que estamos a ponto de enterrar um narcotraficante mexicano enquanto um policial corrupto anda solto. Dá-se conta do que...? Irving se calou de repente. — Maldito seja! Não entendo por que disse isto em voz alta, e menos ainda a você.

— Não confia muito de mim, não é?

— Em assuntos como este, não confio em ninguém.

— Pois não se preocupe.

— Não me preocupo. Sei em quem devo e em quem não devo confiar.

— Referia-me a enterrar um traficante de drogas enquanto um policial corrupto está solto. Não acontecerá nada.


Irving olhou-o atentamente, entrecerrando os olhos, como se pudesse entrar nos pensamentos de Bosch.


— O que disse? Que não acontecerá nada? Isto é uma situação embaraçosa de proporções inimagináveis para esta cidade e este departamento. Isto poderia...

— Ouça, digo que esqueça. Entendeu? Estou tentando facilitar as coisas.


Irving voltou a observá-lo um bom momento. Apoiou-se no outro pé e uma veia da cabeça começou a pulsar com forças renovadas. Harry sabia que Irving não se sentiria cômodo compartilhando um segredo semelhante com alguém como ele. Com Teresa Corazón podia tratar porque os dois jogavam o mesmo jogo, mas Bosch era diferente. Harry apreciou o momento, embora o silêncio começasse a ficar muito longo.


— Falei com a DEA sobre o desastre desta manhã. Dizem que o homem que acreditavam ser Zorrillo escapou. Não sabem onde está. Aquilo era uma última tentativa desesperada de que Bosch falasse. Mas não funcionou.

— Nunca saberão.


Irving não respondeu, mas Bosch sabia perfeitamente que era melhor não interromper seus silêncios. O subdiretor estava tramando algo. Harry deixou-o pensar enquanto olhava como se esticavam os músculos de sua enorme mandíbula.


— Bosch, me diga se for ter um problema com isto. Qualquer tipo de problema, porque preciso saber nos próximos três minutos se tiver que me plantar diante do chefe de polícia, do prefeito e de todas essas câmeras e pôr um final em tudo isto.

— O que estão fazendo na DEA?

— O que podem fazer? Vigiar os aeroportos e ficar em contato com as autoridades locais; difundir a foto e a descrição, mas nada mais. Escapou ou, ao menos, dizem isso. Eu quero estar certo de que não vai voltar. Bosch concordou.

— Nunca vão encontrar o homem que procuram, chefe.

— Convença-me, Bosch.

— Não posso.

— Por que não?

— Porque a confiança é coisa de dois. Igual a desconfiança. Irving considerou este comentário e a Bosch pareceu ver que assentia imperceptivelmente. — O homem que procuram, que acreditam que seja Zorrillo, escapou e não vai voltar nunca mais. Isso é tudo o que precisa saber.


Bosch se lembrou de novo do corpo que jazia sobre a cama no Castelo dos Olhos. Já não tinha rosto, e ao cabo de umas duas semanas, a carne também desapareceria. Tampouco ficariam impressões digitais, nem identificação exceto os documentos falsos que havia na carteira. A tatuagem continuaria intacta durante um tempo, mas havia muita gente com essa tatuagem, incluído Zorrillo. Bosch deixara o dinheiro como precaução suplementar. Na bolsa havia dinheiro suficiente para convencer a primeira pessoa que encontrasse o cadáver de que pegasse a bota de cano longo e saísse correndo. Com um lenço Bosch limpou os impressões da escopeta e deixou-a ali. Fechou a porta da casa, rodeou a grade com a corrente, pôs o cadeado e limpou tudo o que tocara. Depois rumou para Los Angeles.


— Suponho que a DEA estará destacando o êxito da operação.

— Estão tentando, disse Irving. — Dizem que desmantelaram a rede de tráfico. Confirmaram que a droga denominada "gelo negro" era elaborada no rancho, levada através de túneis para duas empresas próximas e depois transportada para a fronteira. As caminhonetes faziam uma pequena parada para descarregar a droga, certamente em Calexico, e em seguida continuavam. As duas empresas estão sendo investigadas. Uma delas, uma empresa com contratos públicos, certamente será uma vergonha para o governo americano.

— A EnviroBreed.

— Sim. Amanhã terminarão as comparações entre os conhecimentos de embarque que os motoristas mostravam na fronteira e o recibo dos carregamentos no centro de erradicação de Los Angeles. Dizem que estes documentos foram alterados ou falsificados. Quer dizer, que passavam mais caixas seladas do outro lado da fronteira das que eram preparadas no centro.

— Tinham alguém dentro.

— Certamente. O inspetor local do Departamento de Agricultura precisaria ser cego ou corrupto. Não sei o que é pior.


Irving limpou uma bolinha de pó imaginária do ombro de seu uniforme. Não podia ser cabelo ou caspa, porque não tinha nenhum dos dois. Em seguida se voltou para olhar o féretro e ao grande número de oficiais que se reuniam ao seu redor. A cerimônia estava a ponto de começar.


— Não sei o que pensar, Bosch, acrescentou Irving, muito rígido e sem olhá-lo nos olhos. — Não sei se me tem pego ou não. Bosch não respondeu para deixar o subdiretor um pouco preocupado. — Mas se lembre bem, disse Irving. — Você tem tanto a perder quanto o departamento. Bem mais. O departamento sempre poderá se recuperar; possivelmente custará um tempo, mas sempre se recuperará. Mas isso não se pode dizer da pessoa que fica manchada pelo escândalo.


Bosch sorriu com tristeza. Sempre deverei cobrir tudo; essa era a filosofia de Irving. Seu último comentário fora uma advertência, uma ameaça de que se usasse a informação contra o departamento, Harry também afundaria porque Irving se encarregaria pessoalmente disso.


— Tem medo? Perguntou Bosch.

— Do quê, detetive?

— De tudo. De mim, de você. De que não cole. De que eu possa estar errado. De tudo. Não tem medo?

— Eu só temo as pessoas sem consciência. A gente que age sem pensar nas repercussões, mas não acredito que você seja assim. Bosch negou com a cabeça. — Então, adiante, detetive. Eu preciso me reunir com o chefe e ver se o prefeito chegou. Peça o que quiser e, se estiver em meu poder, darei.

— Eu não aceitaria nada de você, sussurrou Bosch. — Mas parece que não entende. Irving se voltou para olhá-lo no rosto.

— Tem razão, Bosch. Não o compreendo. Por que arriscar tudo por nada? Está vendo? Voltei a me preocupar. Você não joga para a equipe, joga para si mesmo.


Bosch olhou fixamente para Irving e não sorriu, embora desejasse fazê-lo. Irving tinha lhe feito um grande elogio, mas o subdiretor não se dera conta.


— O que aconteceu lá em baixo não tinha nada a ver com o departamento, explicou. — Se fiz algo, foi por uma pessoa.


Irving lhe devolveu o olhar e flexionou o músculo da mandíbula para apertar os dentes. Aquele sorriso torcido sob a calva brilhante o fez pensar como era parecido com as tatuagens de Moore e Zorrillo: o rosto do diabo. Harry observou os olhos de Irving até que estes se acenderam como se finalmente compreendesse. Então olhou para Sylvia e depois para Bosch.


— Para ser um cavalheiro, é isso? Está fazendo tudo isto para conseguir a pensão para uma viúva? Bosch não respondeu. Perguntava-se se Irving inventara ou se sabia algo, mas era impossível descobrir. — Como sabe que ela não fazia parte disto? Perguntou Irving.

— Porque sei.

— Mas como pode estar tão certo? Como pôde se arriscar?

— Da mesma maneira que você. Pela carta.

— O que tem a carta?


No caminho de volta a Los Angeles, Bosch não parara de pensar em Moore. Tivera quatro horas na estrada para recompor tudo. E acreditava ter conseguido.


— Moore escreveu a carta, começou. — Denunciou-se a si mesmo. Tinha um plano e a carta era o primeiro passo. Ele a escreveu.


Bosch acendeu um cigarro. Enquanto isso, Irving permaneceu em silêncio, esperando que reatasse a história.


— Por razões que devem se remontar a infância, Moore se desviou. Passou para o outro lado e uma vez ali, se deu conta de que não podia voltar. Mas tampouco podia continuar; precisava escapar de algum jeito. Seu plano era provocar uma investigação do Departamento de Assuntos Internos com essa carta. Moore incluiu o suficiente na missiva para que Chastain pensasse que havia algo de verdade, mas não muito para que pudessem prendê-lo. A carta só serviria para turvar seu nome, para pô-lo sob suspeita. Depois de tantos anos no departamento, Moore adivinhou como caso prosseguiria. Vira assuntos Internos operar e gente como Chastain. A carta preparou a cena; sujou a água para que, quando ele aparecesse morto no motel, o departamento, quer dizer, você, não quisesse investigar a fundo. Você é um livro aberto, chefe. Moore sabia que agiria de forma rápida e eficaz para proteger primeiro ao departamento antes do que descobrir a verdade. Por isso enviou a carta. Usou você e também me usou.


Irving se voltou para a sepultura. A cerimônia estava a ponto de começar. Depois se dirigiu a Bosch.


— Adiante, detetive. Rápido, por favor.

— Moore preparou camada por camada. Lembra-se de falar que Moore alugara o quarto do motel por um mês? Essa foi a primeira camada. Se não descobrissem o cadáver até ao fim de um mês, a decomposição do corpo se encarregaria de apagar as provas. Não ficariam impressões que tomar, exceto as que deixou no quarto. Moore escaparia.

— Mas o encontraram umas quantas semanas antes, adicionou Irving de maneira serviçal.

— Sim. Isso nos leva a segunda camada. Você. Moore fora um policial durante muitos anos. Sabia o que você faria: que iria a Pessoal pegar seu arquivo.

— Aí jogou, Bosch.

— Nem tanto. Na noite de Natal, quando eu o vi com a pasta, em seguida compreendi o que era, antes que você dissesse. Por isso Moore trocou os cartões. Mas, ele esperava que não tivesse que chegar até essa fase. Você era a segunda camada.

— E você, Bosch? Era a terceira?

— Sim, acredito nisso. Moore me usou como uma espécie de plano de emergência. No caso de que o suicídio não colasse, queria alguém que compreendesse a razão pela qual Moore fora assassinado. Esse era eu. Moore me deixou um processo, eu fui buscá-lo e em seguida pensei que o mataram por isso. Tudo era uma maneira de desviar a atenção; o que Moore queria evitar era de alguém descobrir quem era a pessoa que jazia nos ladrilhos do motel. Só queria ganhar um pouco de tempo.

— Mas você foi muito longe, Bosch. Isso ele não planejou.

— Suponho que não.


Bosch lembrou de seu encontro com Moore na torre. Ainda não decidira se Moore estava esperando ou não. Esperando que Harry viesse matá-lo. Nunca descobriria. Esse era um segredo que Calexico Moore levara para a sepultura.


— Tempo para quê? Perguntou Irving.

— Como?

— Você disse que ele só queria ganhar tempo.

— Sim, acredito que precisava de tempo para descer ao México, substituir Zorrillo e fugir com o dinheiro. Não acredito que queria ser o Papa para sempre. Sua única ambição era voltar a viver no castelo.

— O quê?

— Nada. Ficaram um momento em silêncio até que Bosch fez um último comentário: — Você já devia saber quase tudo isto.

— Ah, sim?

— Sim. Acredito que descobriu quando Chastain disse que Moore enviara uma carta.

— E como o detetive Chastain sabia disso?


Irving não ia dar nada a Bosch, mas não importava. Harry gostava de contar a história porque ajudava-o a deixá-la bem clara para ele. Era como segurá-la no alto para inspecionar os buracos.


— Depois que recebeu a carta, Chastain pensou que sua mulher a enviara, assim foi na casa dele e ela negou. Então pediu a máquina de escrever para verificar, mas ela respondeu que não tinham máquina de escrever e lhe bateu a porta no nariz. Quando Moore apareceu morto, Chastain começou a pensar e levou a máquina de Moore da delegacia. Imagino que Chastain viu que as letras coincidiam. A partir disso, não seria difícil deduzir que a carta vinha de Moore ou alguém da unidade Bang. Suponho que Chastain deve ter entrevistado todos nesta semana e concluir que não foram eles. Moore escreveu-a pessoalmente.


Irving não confirmou nada, mas não tinha por quê. Tudo encaixava.


— Moore tinha um bom plano. Brincou conosco como se estivesse fazendo armadilhas ao acaso; conhecia todas as cartas do baralho antes de virá-las.

— Exceto uma, concluiu Irving. — Você. Moore não imaginou que iria em sua busca.


Bosch não respondeu. Voltou a olhar para Sylvia. Ela era inocente e a partir desse momento estaria a salvo. Bosch notou que o olhar de Irving também pousava nela.


— Ela é inocente, repetiu Bosch em voz alta. — Você sabe e eu sei. Se lhe causar problemas, eu os causarei a você. Não era uma ameaça, só uma oferta. Um trato. Irving considerou uns instantes e concordou com a cabeça. Era um acordo tácito.

— Falou com ele lá em baixo, Bosch? Harry sabia que se referia a Moore, mas não podia responder. — O que fez você lá em baixo?


Ao fim de alguns segundos de silêncio, Irving deu meia volta e se afastou, rígido como um nazista, para o toldo onde esperavam as personalidades e os altos personagens do departamento. Irving se sentou em uma cadeira que seu ajudante reservara atrás de Sylvia Moore.


Não se voltou para olhar Bosch nenhuma só vez.


* * *


Trinta e Quatro

BOSCH ESTIVERA observando-a durante toda a cerimônia de seu posto junto a árvore. Sylvia Moore não levantou a cabeça, nem sequer para olhar a fila de cadetes que dispararam salvas no ar ou quando o esquadrão aéreo sobrevoou a sepultura e os helicópteros chegaram em formação. Em um dado momento teve a impressão de que ela tinha cuidado, mas não estava certo. Para Bosch pareceu estoica e muito bonita. Quando tudo terminou, o caixão já estava na tumba e as pessoas começavam a se dispersar, ela permaneceu sentada e Bosch viu que rechaçava com a mão a oferta de Irving de acompanhá-la à limusine. O subdiretor se afastou com passo tranquilo, alisando a gola da camisa. Finalmente, quando a área ao redor da tumba ficou vazia, ela se levantou, deu uma olhada rápida no fosso onde jazia o ataúde e começou a caminhar para Bosch. No ruído de seus passos se acrescentou o de portas de carros que se fechavam por todo o cemitério. Quando chegou perto de Bosch, tirou os óculos de sol.


— Acreditou em mim, disse Sylvia. Isso o confundiu completamente. Bosch olhou a roupa e em seguida olhou para ela. Acreditou em quê? Ela adivinhou sua confusão e se explicou. — O gelo negro, se lembra? Disse-lhe que precisava ir com cuidado. Está aqui, assim suponho que acreditou.

— Sim.


Bosch notou que seus olhos, muito claros, pareciam mais fortes, mais inclusive que da última vez que se viram. Aqueles olhos não esqueceriam uma ação amável. Ou uma ofensa.


— Sei que há mais do que me disseram. Contar-me-á isso algum dia? Ele concordou e ela concordou.


Houve um momento, nem muito curto, nem muito comprido, em que os dois se olharam em silêncio. Para Bosch pareceu um instante mágico, mas o vento aumentou e quebrou o encanto. Uma mecha de seu cabelo se soltou e ela penteou-o com a mão.


— Eu gostaria que me contasse, disse ela.

— Quando quiser, replicou ele. — Possivelmente você também me contará algumas coisas.

— Como o quê?

— Como aquela foto que faltava no porta-retratos. Você sabia qual era, mas não me disse. Ela sorriu como dizendo que era algo corriqueiro.

— Só era uma foto dele e de seu amigo do bairro. Havia outras na bolsa.

— Era importante, mas você não disse nada. Ela baixou a vista.

— Não queria voltar a falar ou pensar nisso.

— Mas o fez, não?

— Sim, claro. Acontece a todos; as coisas que não quer saber ou lembrar voltam para lhe perseguir. Permaneceram um momento em silêncio.

— Sabe, não?

— Que a pessoa que enterraram não era meu marido? Sim, suspeitava. Sabia que havia mais do que as pessoas me contavam. Não você. Os outros.


Bosch concordou e o silêncio ficou comprido mas não incômodo. Ela se voltou ligeiramente para olhar o motorista que estava esperando junto à limusine. No cemitério já não havia mais ninguém.


— Há algo que espero que me diga, acrescentou ela. — Agora ou mais adiante. Se puder, quero dizer... Em... Há alguma possibilidade de que... Ele volte?


Bosch olhou-a e negou com a cabeça lentamente, enquanto estudava seus olhos para ver sua reação: tristeza, medo ou inclusive cumplicidade. Mas não houve nada. Ela olhou as mãos enluvadas que mantinha enlaçadas frente ao seu vestido.


— O motorista... Começou a dizer, sem terminar a frase. Sylvia se esforçou por sorrir e, pela enésima vez Bosch se perguntou como Calexico Moore podia ser tão cego.


Então ela deu um passo adiante e lhe tocou a face com a mão. Harry notou o calor de sua pele, apesar da luva de seda, e o aroma de perfume no pulso. Era um aroma muito suave. Não exatamente um perfume, a não ser um aroma.


— Preciso ir, ela se despediu. Bosch concordou e ela deu um passo atrás. — Obrigado, disse ela. Harry concordou. Não sabia porque agradecia, mas era só capaz de assentir.

— Ligará? Poderíamos... Não sei...

— Ligarei. Então ela concordou e deu meia volta para caminhar até a limusine negra. Bosch pensou um momento antes de perguntar:

— Você gosta de jazz? Ela parou e se voltou de novo para ele. Seus olhos olhavam-no intensamente. A necessidade de se tocarem estava tão clara que Bosch sentiu que o atravessava como uma faca. Por um momento pensou que talvez só fosse um reflexo de seus próprios desejos.

— Sobretudo saxofone, respondeu ela. — Eu adoro as canções tristes e solitárias.

— É que... É amanhã muito cedo?

— Amanhã é véspera de Ano Novo.

— Eu sei... Estava pensando... Suponho que talvez não seja o momento apropriado. Na outra noite... Isso foi... Não sei. Ela caminhou para ele, pegou-o pelo pescoço e aproximou seu rosto do dele. Ele se deixou pegar. Beijaram-se longamente e Bosch manteve os olhos fechados. Quando ela o soltou, ele não verificou se alguém os vira porque não se importava.

— Qual é o momento apropriado? Perguntou ela. Ele não tinha uma resposta. — Estarei esperando. Os dois sorriram.


Sylvia deu meia volta pela última vez e caminhou para o carro. Seus saltos repicaram ao passar da grama ao asfalto. Bosch se apoiou contra a árvore e viu o motorista abrir a porta da limusine.


Então acendeu um cigarro e viu como a bela máquina negra levava-a do cemitério e deixando-o a sós com os mortos.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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