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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Gene Mortal / Robin Cook
Gene Mortal / Robin Cook

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Gene Mortal

                   

 

QUARTA-FEIRA, 11 DE OUTUBRO, À TARDE

A súbita aparição das estranhas proteínas era o equivalente molecular da peste negra. Era uma sentença de morte sem possibilidade de comutação, e Cedric Harring não fazia ideia do drama que estava prestes a acontecer dentro dele.

Em vivo contraste, as células individuais do corpo de Cedric Harring sabiam exactamente que desastrosas consequências as esperavam. As novas proteínas misteriosas que irromperam no seu meio e através das suas membranas eram irresistíveis, e as pequenas quantidades de enzimas capazes de lidar Com as recém-vindas eram totalmente inadequadas. Na glândula pituitária de Cedric, as novas proteínas mortais conseguiram ligar-se às repressoras que cobriam os genes para a hormona da morte. A partir desse momento, Com os fatais genes expostos, o resultado era inevitável. A hormona da morte começou a ser sintetizada em quantidades sem precedentes. Ao entrar na corrente sanguínea, a hormona espalhou-se pelo corpo de Cedric. Célula alguma era imune. O fim era apenas uma questão de tempo. Cedric Harring estava prestes a desintegrar-se nos seus elementos estelares.

 

A dor era como uma faca quente ao rubro a começar algures no peito e a irradiar rapidamente para cima em paroxismos que lhe afectavam a visão, até lhe paralisar o maxilar e o braço esquerdo. Cedric sentiu de imediato o terror do medo horrível da morte. Cedric Harring nunca sentira nada assim.

Agarrou automaticamente Com mais força o volante do carro e de algum modo conseguiu controlar o veículo, que serpenteava, enquanto se esforçava por respirar. Acabara de entrar na Storrow Drive pela Berkeley Street da baixa de Boston e acelerara na direcção oeste, enfiando no enlouquecedor tráfego bostoniano. As imagens da via bailavam diante dele e depois afastavam-se como se existissem no fim de um túnel muito comprido.

Por puro esforço de vontade, Cedric resistiu à escuridão que ameaçava engolfá-lo. A pouco e pouco a cena desanuviou-se. Ainda estava vivo. Em vez de encostar o carro, o instinto dizia-lhe que a sua única oportunidade era chegar a um hospital tão depressa quanto possível. Por feliz coincidência a clínica do Good Health Plan não ficava demasiado longe. «Aguenta», disse para consigo.

Juntamente Com a dor veio uma enorme quantidade de suor a começar pela testa, mas que cedo se lhe espalhou pelo corpo todo. O suor causava-lhe uma dor aguda nos olhos, mas ele não se atrevia a soltar o volante para limpá-lo. Saiu da auto-estrada e entrou no Fenway, um complexo de Boston para estacionamento, quando a dor tornou a voltar, apertando-lhe o peito como uma cinta de aço. À frente os carros abrandavam por causa de um semáforo. Ele não podia parar. Não havia tempo. Inclinando-se para a frente, apertou o claxon e passou em disparada pelo cruzamento. Os carros só não lhe tocaram por um triz. Viu as caras dos condutores sobressaltados e furiosos. Encontrava-se agora na estrada do parque para os Back Bay Fens, Com os jardins mal-arranjados à esquerda. A dor agora era constante, forte e esmagadora. Mal podia respirar.

O hospital ficava à frente, à direita, no que fora um edifício da Sears. Só um pouco mais. Por favor... Uma grande placa branca com uma seta vermelha e letras vermelhas que diziam EMERGÊNCIA surgiu, enorme, em frente.

Cedric conseguiu levar o carro para a zona de estacionamento da sala de emergência, travando tardiamente e chocando contra o resguardo de cimento. Caiu para a frente, apertando o claxon e arfando Com falta de ar.

A primeira pessoa a chegar ao carro foi o guarda de segurança. Abriu a porta Com um puxão e depois de um relance pela palidez aterradora de Cedric gritou por socorro. Cedric, sufocado, mal conseguiu articular:

— Dor no peito.

Hilary Barton, a enfermeira-chefe, apareceu e pediu uma maca. Na altura em que os enfermeiros e o homem da segurança tiraram Cedric do carro, um dos médicos da sala de emergência apareceu e ajudou a pô-lo na maca. Chamava-se Emil Frank e fora médico residente durante apenas quatro meses. Anos antes chamar-se-ia interno. Também notou a pele cor de creme de Cedric e a transpiração abundante.

— Diaforesis — disse, Com autoridade. — Provavelmente um ataque de coração.

Hilary revirou os olhos. Claro que era um ataque de coração. Insistiu para que levassem o doente para dentro, ignorando o Dr. Frank, que enfiara o estetoscópio nos ouvidos e tentava auscultar o coração de Cedric.

Logo que chegaram à sala de tratamento, Hilary mandou aplicar oxigénio, fluidos IV [intravenosos] e controlo de elsctrocardiograma [ECG], ligando ela própria os três fios principais do ECG. Logo que Emil pôs os IV a correr, ela sugeriu-lhe que mandasse aplicar 4 mg de morfina para juntar aos IV imediatamente.

Logo que a dor aliviou um pouco, a mente de Cedric clareou. Muito embora ninguém lhe tivesse dito, sabia que tivera um ataque de coração. Também sabia que estivera muito próximo da morte. Mesmo agora, fitando a máscara de oxigénio, os IV e a máquina do ECG à medida que lançava papel para o chão, Cedric nunca se sentira na vida tão vulnerável.

— Vamos removê-lo para a unidade de cuidados de coronárias— disse Hilary.—Vai tudo ficar bem — acrescentou, dando-lhe uma pancadinha na mão. Ele tentou sorrir. — Telefonámos à sua mulher. Vem a caminho.

A unidade de cuidados intensivos de coronárias, era semelhante à sala de emergência por aquilo que Cedric se apercebia — e despertava exactamente o mesmo pavor. Estava cheia de tecnologia electrónica esotérica e ultramoderna. Ouvia as pancadas do seu coração ecoadas por um bip-bip, e quando voltou a cabeça viu um traço fosforescente a delinear-se num ecrã de televisão.

Embora as máquinas fossem assustadoras, dava uma certa segurança saber que toda aquela tecnologia estava ali. Ainda mais confortante era o facto de o seu próprio médico, que fora chamado logo após a sua chegada ali, ter acabado de entrar na UCI [unidade de cuidados intensivos].

Cedric consultava o Dr. Jason Howard há cinco anos. Passara a tê-lo como médico quando a empresa em que trabalhava, o Boston National Bank, insistiu para que os executivos mais antigos tivessem exames médicos anuais. Quando o Dr. Howard, anos antes, de súbito vendeu a clientela e se juntou ao pessoal do Good Health Plan (GHP), Cedric continuou como seu cliente. A mudança exigia a troca do seu plano de saúde da Cruz Azul para a variedade Com pré-pagamento, mas foi o Dr. Howard que o atraíra, não o GHP, e Cedric fizera saber isso mesmo ao Dr. Howard.

— Como vai isso? — perguntou Jason, agarrando o braço de Cedric, mas prestando mais atenção ao ecrã do ECG.

— Nem... por isso—disse Cedric Com voz grossa. Foram precisas várias inspirações para deixar sair as três palavras.

— Quero que tente acalmar-se.

Cedric fechou os olhos. Acalmar-se! Que anedota.

— Tem muita dor?

Cedric fez que sim Com a cabeça. Corriam-lhe lágrimas pelas faces.

— Outra dose de morfina — ordenou Jason.

Passados alguns minutos após a segunda dose, a dor tornou-se mais tolerável. O Dr. Howard conversava Com o médico residente, certificando-se de que se haviam tirado todas as amostras de sangue apropriadas e pedindo um cateter qualquer especial. Cedric observava-o, confortado apenas por ver o perfil aquilino e elegante de Howard. Melhor ainda, sentia-lhe compaixão. O Dr. Howard preocupava-se.

— Temos de fazer uma coisita — ia dizendo Jason. — Precisamos de introduzir um cateter de Swan-Ganz para podermos ver o que se passa aí dentro. Vamos usar anestesia local, portanto não vai doer, está bem?

Cedric fez que sim Com a cabeça. No que lhe dizia respeito, o Dr. Howard tinha carta branca para fazer o que quer que achasse necessário. Cedric apreciava a abordagem do Dr. Howard. Nunca falava de cima para os seus clientes — mesmo quando Cedric fizera a sua consulta de rotina há três semanas e Howard lhe dera um sermão sobre a sua dieta de colesterol elevado, o seu hábito de fumar dois maços de tabaco por dia e a sua falta de exercício. Se ao menos o tivesse ouvido, pensava Cedric. Mas apesar da abordagem terrífica ao estilo de vida de Cedric, o médico admitira que os testes estavam btm. O colesterol não estava demasiado elevado e o electrocardiograma fora óptimo. Reconfortado, Cedric pôs de lado as tentativas para deixar de fumar e começar a fazer exercício.

Então, menos de uma semana depois desse exame, Cedric sentiu-se como que engripado. Mas isso fora só o começo. O sistema digestivo começou a funcionar mal, e ele sofria de terrível artrite. Até a vista parecia estar a deteriorar-se. Recordava-se de dizer à esposa que era como se tivesse envelhecido trinta anos. Tinha todos os sintomas por que o pai passara nos últimos meses de vida na casa de saúde. Por vezes, quando via a sua própria imagem de relance, era como se estivesse a ver o fantasma do velho.

Apesar da morfina, Cedric sentiu uma súbita punhalada de dor aniquilante como fogo. Sentiu-se voltar a um túnel, como lhe acontecera no carro. Ainda via o Dr, Howard, mas o médico estava muito longe, e a voz ia-se extinguindo. Então o túnel começou a encher-se de água. Cedric sufocava e tentava nadar para a superfície. Os braços agarravam o ar freneticamente.

Mais tarde, Cedric recuperou a consciência por alguns momentos de agonia. Quando lutava por tomar conhecimento de si, sentiu uma pressão intermitente no peito e qualquer coisa na garganta. Alguém estava de joelhos a seu lado, fazendo-lhe pressão no peito Com as mãos. Cedric começou a gritar quando lhe surgiu uma explosão no peito e a escuridão desceu como uma manta de chumbo.

A morte fora sempre o inimigo do Dr. Jason Howard. Como interno no Massachusetts General, levara essa crença ao extremo, nunca desistindo numa paragem cardíaca senão por ordem superior.

Agora recusava-se a acreditar que o homem de cinquenta e seis anos que examinara apenas três semanas antes e declarara como saudável de uma maneira geral estava prestes a morrer. Era uma afronta pessoal.

Olhando para o monitor, que continuava a mostrar actividade ECG normal, Jason tocou no pescoço de Cedric. Não lhe sentiu pulsação.

— Dêem-me uma seringa cardíaca — pediu. — E alguém que veja

a pressão arterial.

Uma enorme seringa cardíaca veio-lhe parar à mão enquanto apalpava o peito do homem para lhe localizar o esterno.

— Não tem pressão arterial — informou Philip Barnes, o anestesista que respondera à chamada de código que foi emitida automaticamente quando Cedric teve a paragem cardíaca. Colocara-lhe um tubo endotraqueal na traqueia e oxigenava-o ao comprimir a bolsa de ambu.

Para Jason, o diagnóstico era óbvio: ruptura cardíaca. Continuando o ECG a ser registado, mas sem o coração a bombear, prevalecia uma situação de dissociação electromecânica. Apenas podia querer dizer uma coisa. A porção de coração de Cedric que fora privada do seu fornecimento de sangue abrira como uma uva esmagada. Para provar este horrendo diagnóstico, Jason enfiara-lhe a agulha da seringa cardíaca no peito, trespassando a cobertura pericárdica do coração. Quando puxou pelo êmbolo a seringa encheu-se de sangue. Não havia dúvida. O coração rebentara-lhe dentro do peito.

— Já para a cirurgia — gritou Jason, agarrando na extremidade da cama.

Philip revirou os olhos para Judith Reinhart, a enfermeira-chefe dos cuidados de coração. Ambos sabiam que era inútil. No máximo podiam pôr Cedric na máquina de pulmão e coração, mas, e depois? Deixou de oxigenar o paciente. E em vez de ajudar a empurrar a cama, aproximou-se de Jason e suavemente pôs-lhe o braço pelo ombro, impedindo-o de prosseguir.

— Tem de ser ruptura cardíaca. Bem o sabes. Eu também o sei. Perdemos este, Jason.

Jason fez um gesto de protesto, mas Philip apertou-lhe o ombro. Jason olhou para o rosto cor de marfim de Cedric. Sabia que Philip tinha razão. Embora detestasse admiti-lo, o paciente estava perdido.

— Tens razão — disse, e Com relutância deixou que Philip e Judith o levassem dali, ficando as outras enfermeiras a preparar o corpo.

Enquanto se aproximavam da secretária, Jason admitiu que Cedric era o terceiro doente a morrer apenas a escassas semanas do exame de rotina. O primeiro fora também ataque de coração, outro uma apoplexia.

— Talvez devesse pensar em mudar de profissão — disse meio a sério. — Até os meus doentes internados não têm passado nada bem.

— Só pouca sorte — comentou Philip, dando-lhe um pequeno empurrão no ombro por brincadeira. — Todos nós temos maus bocados. Há-de melhorar.

— Sim, Com certeza. Philip voltou à cirurgia.

Jason procurou uma cadeira e sentou-se pesadamente. Sabia que teria de preparar-se para enfrentar a mulher de Cedric, que estaria a chegar ao hospital a qualquer momento. Sentiu-se esgotado.

— Dir-se-ia agora que estaria um pouco mais habituado à morte — comentou em voz alta.

— O facto de não estar é o que faz de si um bom médico — retrucou Judith, tratando da papelada relacionada Com aquele desenlace.

Jason aceitou o cumprimento, mas sabia que a sua atitude para Com a morte ultrapassava a profissão. Apenas dois anos antes a morte destruira tudo quanto lhe era querido. Ainda se lembrava do som do telefone à meia-noite e um quarto daquela negra noite de Novembro. Adormecera no seu gabinete enquanto tentava pôr-se a par Com as suas revistas da especialidade. Pensou que devia ser Danielle, sua mulher, a telefonar do Hospital de Crianças, a dizer que chegaria atrasada. Era pediatra e fora chamada de novo ao hospital nessa tarde para assistir a um prematuro Com dificuldades respiratórias. Mas era a polícia da estrada. Telefonaram para dizer que um atrelado provindo de Albany Com uma carga de pranchas de alumínio saltara a divisória central e embatera de frente no carro de sua mulher- Ela não tivera qualquer hipótese.

Jason ainda se lembrava da voz do polícia, como se tivesse sido ontem. A princípio fora o choque e a descrença, seguidos de cólera. Depois a terrível sensação de culpa. Se ao menos tivesse ido Com Danielle como às vezes fazia e ficasse a ler na biblioteca médica. Ou se ao menos tivesse insistido para que ela dormisse no hospital.

Alguns meses mais tarde vendera a casa, que parecia assombrada pela presença de Danielle, e a clientela e o consultório particular que partilhava Com ela. Foi então que se juntara ao GHP. Fizera tudo que Patrick Quillan, um psiquiatra seu amigo, lhe sugerira. Mas a dor continuava ali, e a cólera também.

— Desculpe, Dr. Howard?!

Jason levantou os olhos para o rosto largo de Kay Ramm, a secretária da unidade.

— A Sr.? Harring está na sala de espera — informou Kay. — Disse-lhe que o senhor doutor iria falar Com ela.

— Oh, meu Deus — exclamou Jason, esfregando os olhos. Falar Com os familiares de um paciente acabado de falecer era difícil para qualquer médico, mas desde a morte de Danielle, Jason sentia a dor dos familiares como se fosse a sua própria.

Do outro lado da unidade de cuidados das coronárias [UCC] havia uma pequena sala de estar Com revistas antigas, cadeiras de vinil e plantas de plástico. A Sr.ª Harring estava a olhar pela janela que dava para o Norte, na direcção do Fenway Park e do rio Charles. Era uma mulher franzina, Com cabelo a ficar naturalmente grisalho. Quando Jason entrou, ela voltou-se e fitou-o Com olhos aterrados, vermelhos de chorar.

— Sou Howard, médico — disse Jason, convidando-a a sentar-se. Ela sentou-se, mas mesmo na extremidade da cadeira.

— É grave... — começou ela. A voz endureceu.

— Mesmo muito grave — lastimou Jason. — O Sr. Harring faleceu. Fizemos tudo quanto pudemos. Pelo menos não sofreu. — Jason detestou-se por repetir aquelas mentiras que já se esperam. Sabia que Cedric sofrera. Vira-lhe no rosto o medo mortal. A morte era sempre uma luta, raramente aquele esvaziar de vida pacífico retratado nos filmes.

A cor desapareceu do rosto da Sr.ª Harring, e por instantes Jason pensou que ela ia desmaiar. Finalmente falou:

— Não posso acreditar.

Jason fez que sim Com a cabeça.

— Eu sei. — E saber, sabia.

— Não está certo — fez ela. Olhou para Jason Com ar de desafio, o rosto corado. — Quero dizer, o relatório de saúde que lhe deu era limpo. O senhor doutor fez-lhe todos aqueles testes e estavam normais! Por que não encontrou qualquer coisa? O senhor doutor podia ter evitado isto.

Jason reconheceu a cólera, o percursor familiar do sofrimento profundo. Sentiu muita pena dela.

— O relatório de saúde que lhe dei não era exactamente uma folha limpa — disse ele Com suavidade. — Os exames de laboratório eram satisfatórios, mas eu avisei-o como sempre fiz quanto ao fumo e ao regime alimentar. E lembrei-lhe que o pai morrera de ataque de coração. Todos estes factores colocaram-no numa categoria de alto risco, apesar dos exames de laboratório.

— Mas o pai tinha setenta e quatro anos quando morreu. O Cedric tem apenas cinquenta e seis! Para que vale um exame desses se o meu marido morre exactamente três semanas depois?

— Lamento — disse Jason Com brandura. — As nossas capacidades proféticas são limitadas. Sabemos disso. Apenas podemos fazer o melhor que pudermos.

A Sr.ª Harring suspirou profundamente e os ombros estreitos descaíram-lhe para a frente. Jason viu a cólera a desvanecer-se e surgir em seu lugar a tristeza esmagadora. Quando ela falou, a voz era trémula.

— Sei que fazem o melhor que podem. Desculpe.

Jason inclinou-se para diante e pôs-lhe a mão no ombro. Sentiu-lhe a fragilidade sob o fino vestido de seda.

— Sei bem quanto isto é difícil para si.

— Posso vê-lo? — perguntou através das lágrimas.

— Claro. — Jason pôs-se de pé e ofereceu-lhe a mão.

— Sabia que Cedric marcara  uma consulta para falar consigo?— perguntou a Sr.ª Harring quando entraram no corredor. Limpou os olhos Com um lencinho que tirara da bolsa.

— Não, não sabia — admitiu Jason.

— Para a semana que vem. Só era possível nessa altura. Ele não se sentia muito bem.

Jason sentiu o desconforto da preocupação defensiva que o invadiu. Embora estivesse certo que não houvera negligência, isso não garantia que não houvesse acção judicial.

— Ele queixou-se de dor no peito quando telefonou? — perguntou Jason detendo a Sr.ª Harring em frente da porta da UCC.

— Não, não. Apenas de uma série de sintomas sem relação entre si.

Jason soltou um suspiro de alívio.

— Doíam-lhe as articulações — continuou a Sr.ª Harring. — E os olhos incomodavam-no. Estava a ter problemas quando conduzia à noite.

Problemas quando conduzia à noite? Embora esse sintoma não se relacionasse Com um ataque de coração, fez soar uma espécie de campainha na cabeça de Jason.

— E a pele ficava-lhe muito seca. E tinha perdido uma grande quantidade de cabelo...

— O cabelo substitui-se naturalmente — começou Jason mecanicamente. Era óbvio que esta litania de queixas não específicas nada tinha a ver Com o ataque de coração do homem. Empurrou a pesada porta que dava para a unidade e fez sinal à Sr.ª Harring para o seguir. Conduziu-a ao cubículo apropriado.

Cedric fora coberto Com um lençol branco limpo. A Sr.ª Harring pôs a mão fina e ossuda na cabeça do marido.

— Gostava de ver-lhe a cara? — perguntou Jason.

A Sr.ª Harring fez que sim Com a cabeça, surgindo de novo as lágrimas, que lhe corriam pelas faces. Jason dobrou o lençol e afastou-se.

— Oh, meu Deus! — exclamou. — Parece-se Com o pai antes de morrer! — Voltou-se e murmurou: — Não pensava que a morte envelhecesse tanto uma pessoa.

Habitualmente não, pensou Jason. Agora que não estava concentrado no coração de Cedric, notava-lhe as modificações do rosto. O cabelo rareava. E os olhos pareciam ter-se afundado nas órbitas, dando à cara do morto o aspecto de pele e osso, muito longe daquilo de que Jason se lembrava quando lhe fizera o exame três semanas antes. Jason tornou a colocar o lençol e conduziu a Sr.ª Harring de novo à pequena sala de estar. Fê-la sentar-se e sentou-se à sua frente.

— Sei que não é boa altura para falar nisto — começou ele —, mas gostaríamos que nos autorizasse a examinar o corpo de seu marido. Talvez possamos aprender alguma coisa que ajude alguém no futuro.

— Acho que sim, se isso ajudar os outros...

A Sr.ª Harring mordeu o lábio. Era-lhe difícil pensar, quanto mais tomar uma decisão.

— Ajuda Com certeza. E nós agradecemos deveras a sua generosidade. Se aguardar aqui um bocado, mando alguém preparar os papéis.

— Muito bem — disse a Sr.ª Harring Com resignação.

— Lamento o sucedido — tornou Jason a dizer. — Telefone-me, por favor, se puder ser útil em alguma coisa.

Jason procurou Judith e disse-lhe que a Sr.ª Harring concordara Com uma autópsia.

— Telefonámos para o gabinete do médico responsável e falámos Com uma tal Dr.ª Danforth. Ela disse que eles querem tratar do caso — informou-o Judith.

— Bem, certifique-se de que nos enviam todos os resultados. — Jason hesitou. — Notou algo de estranho no Sr. Harring? Quero dizer, parecia muito velho para um homem de cinquenta e seis anos?

— Não notei — disse Judith, afastando-se apressada. Numa unidade Com onze doentes, ela já se encontrava envolvida noutra crise.

Jason sabia que a emergência de Cedric estava ultrapassada, mas aquela morte inesperada continuava a perturbá-lo. Tomando uma decisão, chamou a Dr.ª Danforth, que tinha uma voz funda e ressonante, e convenceu-a a deixar fazer a autópsia ali, dizendo que a morte foi devida a uma longa história familiar de doença de coração e que ele queria comparar a patologia do coração Com os ECGs que tinham sido feitos. A responsável médica deu naturalmente a autorização.

Antes de sair da unidade, Jason aproveitou a oportunidade para examinar outro dos seus pacientes que não passava muito bem.

Brian Lennox, de sessenta e um anos de idade, era outra vítima de ataque de coração. Entrara ali três dias antes, e embora inicialmente o estado fosse satisfatório, o curso da doença tivera uma queda súbita para pior. Nessa manhã, quando Jason fizera a visita regular aos seus doentes, planeara retirar Lennox da UCC, mas o homem apresentava os primeiros sinais de sofrimento da sua insuficiência cardíaca congestiva. Foi uma grave desilusão para Jason, uma vez que Brian Lennox ia também ficar na sua lista de doentes internados que recentemente haviam piorado. Em vez de transferir o doente, Jason indicara um tratamento mais forte para a insuficiência cardíaca.

Qualquer esperança de uma rápida recuperação de Lennox ficou desfeita quando Jason o viu. Encontrava-se sentado na cama, Com respiração rápida e ofegante na máscara de oxigénio. O rosto tinha uma cor cinzenta de mau prenúncio, que Jason aprendera a recear. Uma enfermeira que o assistia na aplicação dos IV acabara de se endireitar.

— Como vão as coisas? — perguntou Jason, forçando um sorriso. Mas não precisava de perguntar. Lennox mal teve força para eiguer uma mão. Não conseguia falar. Toda a sua atenção se concentrava nos seus esforços para respirar.

A enfermeira puxou Jason do cubículo para o centro da sala. A placa de identificação rezava Miss Levay, ED [enfermeira diplomada] .

— Nada parece dar resultado — disse preocupada. — O nível de pressão pulmonar subiu apesar de tudo quanto se fez. Demos-lhe o diurético, a hidralazine e o nitroprusside. Não sei que fazer.

Jason olhou para o cubículo por cima do ombro de Miss Levay. Lennox respirava como uma locomotiva em miniatura. Jason não via outra saída senão um transplante, e, evidentemente, isso estava fora de questão. O homem era um fumador inveterado e sem dúvida que tinha enfisema, assim como problemas de coração. Mas Lennox devia ter reagido à medicação. A única coisa que Jason podia imaginar era que a área do coração envolvida no ataque de coração estava a aumentar.

— Vamos arranjar um exame de cardiologia — disse Jason. — Talvez eles consigam ver se os vasos coronários estão mais afectados. É a única coisa em que posso pensar. Talvez se trate de um candidato a enxerto de coronária.

— Bem, pelo menos é alguma coisa — observou Miss Levay. Sem hesitação, dirigiu-se à secretária para fazer uma chamada.

Jason voltou ao cubículo para tentar animar Brian Lennox. Bem queria ter mais alguma coisa para lhe dar, mas o diurético devia reduzir o fluido enquanto a hidralazine e o nitroprusside deviam reduzir a pré-carga e a pós-carga do coração. Tudo isto se engrenava para baixar o esforço que o coração tinha de dispender para bombear o sangue. Isto iria permitir que o coração se curasse depois do choque do ataque cardíaco. Mas não estava a resultar. Lennox ia deslizando pela encosta abaixo apesar de todos os esforços e de toda a tecnologia. Os olhos estavam agora baços e afundados.

Jason pôs-lhe a mão na testa e afastou-lhe o cabelo daquela zona cheia de suor. Para surpresa sua, parte dos cabelos ficaram-lhe na mão. Momentaneamente confuso, Jason fitou os cabelos, depois, com cuidado, puxou mais algumas madeixas. Estas soltaram-se quase sem resistência. Examinando a almofada onde Brian assentava a cabeça, notou mais cabelo. Não uma quantidade enorme, mas mais do que seria de esperar. Isto levou-o a interrogar-se quanto à possibilidade de alguns medicamentos que ele ordenara terem como potencial efeito colateral a perda de cabelo. Tomou nota mental para averiguar isso nessa noite. Evidentemente que a perda de cabelo não era nesse momento uma preocupação importante. Mas lembrava-lhe o comentário da Sr.ª Harring. Curioso!

Depois de recomendar que o chamassem após o exame de cardiologia a Brian Lennox, e depois de mais um olhar masoquista ao cadáver de Cedric Harring envolvido num lençol, Jason saiu da UCC e desceu no elevador para o primeiro andar, que ligava o hospital ao edifício da consulta externa. O centro médico do GHP fazia parte das impressionantes instalações centrais do grande plano de saúde de pré-pagamento. Incluía um hospital de quatrocentas camas, Com um centro ambulatório de cirurgia, departamento de consulta externa separado, uma pequena ala de investigação e um andar de serviços administrativos. O edifício principal, inicialmente designado por edifícios de escritórios Sears, tinha um estilo art deco. Fora completamente esvaziado e totalmente renovado para incorporar o hospital e os serviços administrativos. O edifício de consulta externa e de pesquisa era novo, mas fora construído para condizer Com a estrutura antiga, Com os mesmos cuidados de pormenor. Foi construído sobre pilares assentes num terreno destinado a parque de estacionamento. O consultório de Jasoti ficava no terceiro andar, juntamente Com o resto do departamento de medicina interna.

Havia dezasseis internos no centro do GHP. A maioria era constituída por especialistas, embora uns quantos, como Jason, se mantivessem na clínica geral. Jason sempre sentira que lhe interessava toda a panóplia das doenças humanas, não propriamente órgãos ou sistemas específicos.

Os consultórios médicos espalhavam-se por todo o perímetro, Com uma secretária central, rodeada por uma zona de espera Com confortáveis assentos para os pacientes. As divisões destinadas aos exames ficavam entre os consultórios médicos. Numa extremidade existiam pequenas salas de tratamento. Havia um grupo de pessoal de apoio, que devia trabalhar em regime de rotação, mas na realidade as enfermeiras e secretárias tendiam a trabalhar para um ou outro dos médicos. Essa situação aumentava a eficiência, uma vez que podia existir certa adaptação às excentricidades de cada médico. Uma enfermeira de nome Sally Baunam e uma secretária chamada Claudia Mockelberg trabalhavam habitualmente Com Jason. Ele dava-se bem Com ambas as mulheres, mas mais em particular Com Claudia, que nutria um interesse quase maternal pelo seu bem-estar. Ela perdera no Vietname o seu único filho e afirmava que Jason se parecia Com ele, apesar da diferença de idades.

Ambas as mulheres viram Jason aproximar-se e seguiram-no até ao seu consultório. Sally tinha uma braçada de fichas respeitantes às pessoas que estavam à espera. Era autoritária, e a ausência de Jason perturbara-lhe a rotina planeada Com cuidado. Estava ansiosa por «pôr o espectáculo em marcha», mas Claudia refreou-a e mandoa-a sair do gabinete.

— Foi tão mau como parece? — perguntou Claudia.

— É assim tão óbvio? — quis Jason saber enquanto lavava as mãos no lavatório do canto do gabinete.

Ela fez que sim Com a cabeça.

— Parece como se tivesse sido atropelado por um comboio emocional.

— Cedric Harring morreu... Lembra-se dele?

— Vagamente — admitiu. — Depois de o chamarem à sala de emergência, fui buscar a ficha dele. Está na sua secretária.

Jason baixou os olhos e viu-a. A eficiência de Claudia era por vezes enervante.

— Por’que não se senta por uns instantes — sugeriu ela. Mais do que qualquer outra pessoa do GHP, Claudia conhecia a reacção de Jason à morte. Foi uma das duas únicas pessoas do centro a quem falou sobre o acidente fatal da esposa.

—’Já devemos estar realmente para além do horário... Sally vai torcer o nariz.

— Oh, que torça. — Claudia deu a volta à secretária de Jason e empurrou-o suavemente para a cadeira. — Sally que segure as águas por uns minutos.

Jason sorriu apesar de tudo. Inclinando-se para a frente, tocou na ficha de Cedric Harríng Com um dedo.

— Lembra-se, o mês passado, dos dois outros que morreram logo após o seu exame anual?

—Briggs e Connoly — respondeu ela sem hesitação.

— Que tal irmos ver as fichas deles? Não gosto nada desta tendência.

— Apenas se me prometer que não vai deixar-se... — Claudia parou, à procura de uma palavra — cair em nervosismos Com isto. As pessoas morrem. Infelizmente acontece. É a natureza do negócio. Compreende? Por que é que simplesmente não toma um café?

— As fichas — repetiu Jason.

— Está bem, está bem — contemporizou ela, saindo.

Jason abriu a ficha de Cedric Harring e percorreu Com os olhos a história e o exame. Fora os seus hábitos de vida pouco saudáveis, nada havia de notável. Voltando ao ECG normal e ao ECG de stress, Jason examinou o traçado, procurando um sinal qualquer de desastre iminente. Mesmo armado como estava Com o conhecimento dos factos, não conseguiu encontrar nada.

Claudia voltou a abrir a porta sem bater. Jason ainda ouviu Sally a lamuriar um «Claudia...», mas esta fechou-lhe a porta na cara. Aproximou-se da secretária e pôs as fichas de Briggs e Connoly em frente dele Com um chape.

— Os doentes estão a ficar inquietos — observou; depois saiu.

Jason abriu as duas fichas. Briggs morrera de enfarte maciço do coração, provavelmente semelhante ao de Harring. A autópsia mostrara vasta oclusão de todos os vasos coronários, embora o ECG feito durante o exame anual, quatro semanas antes da sua morte, se apresentasse tão normal quanto o de Harring. Tal como o de Harring, o ECG de stress fora normal. Jason abanou a cabeça desanimado. Ainda mais do que o ECG normal, o ECG de stress devia apresentar as condições que potencialmente são tão fatais. Sugeria por certo que o exame anual de executivos era um mero exercício de futilidade. O exame não só era incapaz de apanhar estes problemas sérios, como dava aos pacientes uma falsa sensação de segurança. Sendo os resultados normais, não existia motivação para os pacientes mudarem o seu estilo de vida pouco saudável. Briggs, como Harring, tinha cinquenta e muitos anos, era um fumador inveterado e nunca fazia exercício.

O outro paciente, Rupert Connoly, morrera de apoplexia cerebral maciça. De novo se tratava de um acidente pouco tempo depois do exame anual de executivo, o qual, no seu caso, também não revelara anormalidades alarmantes. Para além de um estilo de vida na generalidade pouco saudável, Connoly fora grande bebedor, embora não fosse alcoólico. Jason estava prestes a fechar a ficha quando notou algo que lhe passara antes. No relatório da autópsia o patologista anotara significativo desenvolvimento das cataratas. Pensando que não tinha bem presente a idade do homem, recorreu à página respectiva. Connoly tinha apenas cinquenta e oito anos. Ora as cataratas não eram inteiramente desconhecidas aos cinquenta e oito, mas não deixava de ser mesmo assim um caso raro. Voltando ao exame anual, procurou nos registos para ver se notara cataratas. Embaraçado, teve de reconhecer que deixara de incluí-las, notando que descrevia os «olhos, ouvidos, nariz e garganta» como estando dentro dos limites normais. Perguntava a si próprio se não estaria a ficar desleixado na sua «velhice». Mas então reparou que descrevera as retinas como parecendo normais também. A fim de visualizar as retinas, teria de ter olhado através de uma catarata. Não sendo oftalmologista, conhecia as suas limitações a este respeito. Gostaria de saber se certas espécies de cataratas impedem mais do que outras a passagem da luz. Juntou essa questão à sua lista mental das coisas a investigar,

Pôs as fichas em monte. Três homens aparentemente saudáveis morreram um mês depois do seu exame anual. Jesus, pensou. As pessoas ficavam frequentemente receosas de ir para o hospital. Se isto se soubesse lá fora, talvez deixassem de fazer exames médicos.

Levando de braçado as três fichas volumosas, saiu do seu gabinete. Viu Sally levantar-se junto à secretária do centro e fitá-lo na expectativa. Articulou em silêncio as palavras «dois minutos» enquanto atravessava a sala de espera a todo o comprimento. Passou por diversos pacientes, a quem distribuiu sorrisos e gestos afirmativos de cabeça. Esgueirou-se para o átrio que dava acesso ao gabinete de Roger Wanamaker. Roger era de medicina interna, especializado em cardiologia, e cuja opinião Jason tinha em alta estima. Encontrou o homem a sair de uma das salas de observação. Era obeso, Com o rosto parecido Com um velho cão de caça Com barbela e muita pele a mais.

— Que tal uma consulta de passagem? — perguntou Jason.

— Vai custar-te caro — disse Roger a gracejar. — Que é que há? Jason entrou atrás dele no gabinete, que não primava pela arrumação.

— Infelizmente, umas provas um tanto embrulhadas. — Abriu as fichas nas secções dos ECG dos seus clientes e colocou-as em frente de Roger. — Tenho vergonha até de discutir isto, mas morreram-me três homens de meia-idade logo após os seus exames anuais mostrarem que se encontravam razoavelmente bem de saúde. Um foi hoje. Ruptura cardíaca após enfarte de miocárdio maciço. Fiz o exame há três semanas. É este. Mesmo sabendo o que sei agora, não consigo encontrar sequer uma ponta de problemas ou quaisquer indícios. Que é que achas?

Seguiu-se um momento de silêncio, enquanto Roger estudou os ECGs.

— Bem-vindo ao clube — disse finalmente

— Ao clube?

— Estes ECGs estão bons — disse Roger. — Todos nós temos passado pelo mesmo. Tive quatro casos desses nestes últimos meses. Quase toda a gente que está disposta a tocar no caso teve pelo menos um ou dois.

— Como é que ainda não se falou nisso?

— Sei lá — respondeu Com um sorriso torcido. — Por certo que não vais pregar aos quatro ventos o que aconteceu contigo, pois não?

É roupa suja. Todos nós preferíamos não chamar a atenção para ela. Mas não és chefe de serviço? Por que não convocas uma reunião? Jason, carrancudo, fez que sim Com a cabeça. Sob a égide da administração do GHP, que tomava todas as decisões importantes a nível de organização, a posição do chefe de serviço não era invejável. Sistema rotativo entre todos os especialistas de medicina interna anualmente, coubera a Jason a tarefa dois meses antes.

— Acho que devia fazê-lo — respondeu, retirando as fichas da secretária de Roger. — Quanto mais não seja, os outros médicos devem saber que não estão sozinhos se passarem pelo mesmo.

— Acho bem — concordou Roger. Pôs de pé o corpo enorme. — Mas não esperes que toda a gente seja assim tão aberta como tu.

Jason voltou para a secretária do centro da sala, fazendo sinal a Sally para fazer avançar o primeiro paciente. Sally pôs-se em movimento como um corredor de velocidade. Jason voltou-se então para Claudia.

— Claudia, preciso de um favor. Quero que me faça uma lista de todos os exames anuais que fiz durante os últimos doze meses, tire as fichas e verifique o seu estado de saúde. Quero ter a certeza que nenhum dos outros teve sérios problemas médicos. Parece que alguns dos outros médicos têm estado a passar por episódios semelhantes. Penso que se trata de coisa que devíamos considerar.

— Vai ser uma grande lista — avisou ela.

Jason tinha consciência disso. No desejo de promover o que chamou de medicina preventiva, o GHP estivera a defender Com bastante interesse esses exames e organizara o processo para tratar do máximo número de pessoas. Jason sabia que fazia, em média, entre cinco a dez por semana.

Durante as várias horas seguintes, só se preocupou Com os seus doentes, que lhe levaram uma série infindável de queixas e problemas. Sally era inexorável, enchendo os gabinetes de observação logo que ficavam vagos. Saltando por cima do almoço, conseguiu realmente dar conta do recado.

A meio da tarde, quando regressava de um dos gabinetes de tratamento, onde fizera uma rectossigmoidoscopia num paciente Com colite ulcerosa recidivada, Claudia chamou-lhe a atenção e fez-lhe sinal para ir à secretária do centro. Perpassava-lhe pelo rosto um sorriso afectado quando Jason se aproximou. Ele pressentiu que havia qualquer coisa.

— Tem uma visita de honra — disse Claudia Com os lábios franzidos, a imitar uma personagem de Lily Tomlin.

— Quem? — perguntou, examinando automaticamente a zona da sala de espera adjacente.

— Está no seu gabinete.

Jason volveu os olhos para o seu gabinete. A porta estava fechada. Não era do género de Claudia deixar entrar alguém para ali. Ele olhou de novo para a secretária.

— Claudia? — fez ele, demorando-se a pronunciar o nome como se este tivesse mais de três sílabas. — Mas então... como é que deixa entrar alguém no meu gabinete?

— Ele insistiu — respondeu Claudia—, e quem sou eu para recusar?

Era óbvio que quem quer que fosse ofendera-a. Conhecia-a muito bem. E quem quer que fosse por certo que tinha alguma autoridade no GHP. Mas já estava cansado do jogo.

— Vai dizer-me quem é ou é para fazer-me uma surpresa?

O Dr. Alvin Hayes — informou Claudia. Piscou os olhos e

sorriu Com ar escarninho. Agnes, a secretária que trabalhava para Roger, riu à socapa.

Acenou-lhe enfadado e dirigiu-se para o seu gabinete. Uma visita do Dr. Alvin Hayes era ocorrência única. Tratava-se do símbolo do GHP e era investigador importante, contratado pelo Plano para promover a sua imagem. Fora uma jogada a lembrar o contrato pela Humana Hospital Corporation do Dr. William DeVries, o cirurgião do famoso coração artificial. O GHP, como organização de manutenção de saúde (OMS), não patrocinava de per si a investigação; todavia, contratara Hayes Com um ordenado prodigioso a fim de expandir e aumentar a sua imagem, especialmente na comunidade académica de Boston. Afinal, o Dr. Alvin Hayes era biólogo molecular de nível mundial, que fora capa de revista Time depois de ter desenvolvido um método para fazer a hormona do crescimento humano a partir de tecnologia recombinante do ADN. A hormona do crescimento que ele fizera era exactamente como a variedade humana. Tentativas anteriores tinham tido como resultado uma hormona semelhante, mas não exactamente a mesma. O facto fora considerado um avanço importante.

Chegou ao seu gabinete e abriu a porta. Não fazia a menor ideia da razão por que Hayes lhe estava a fazer uma visita. Hayes simplesmente ignorara-o desde o dia em que fora contratado um ano antes, apesar de terem estado na mesma turma da escola médica de Harvard. Depois da licenciatura haviam seguido caminhos separados, mas quando Alvin Hayes fora contratado pelo GHP, Jason procurara-o e dera-lhe pessoalmente as boas-vindas. Hayes mostrara-se distante, obviamente emproado Com a sua própria celebridade e desprezando abertamente a decisão de Jason de permanecer na medicina de clínica. Com excepção de uns quantos encontros ocasionais ignoravam-se um ao outro. De facto, Haves ignorava toda a gente do GHP, tornando-se cada vez mais naquilo a que as pessoas chamavam o cientista louco. Chegara mesmo ao extremo de deixar a sua aparência pessoal sofrer Com as roupas que usava, largas e enrugadas, e o próprio cabelo em desalinho, comprido e farfalhudo, a relembrar os turbulentos anos sessenta. Embora as pessoas mexericassem, e ele tivesse poucos amigos, toda a gente o respeitava. Hayes trabalhava longas horas e produzia uma inacreditável quantidade de ensaios e artigos científicos.

Alvin Hayes estava esparramado numa das cadeiras que ficavam em frente da secretária antiga de Jason. Mais ou menos Com a altura de Jason, rosto arrapazado e rechonchudo, o cabelo em desalinho a cair-lhe pela face, Hayes parecia mais pálido do que nunca. Sempre tivera aquela palidez académica peculiar que caracteriza os cientistas que passam todo o seu tempo no seu laboratório. Mas o olho clínico de Jason notou um tom excessivamente amarelento, bem como certa frouxidão, que dava a Hayes um aspecto doentio e de demasiado cansaço. Jason pensou se não se trataria de uma visita profissional.

— Desculpa incomodar-te — disse, esforçando-se por pôr-se de pé. — Sei que deves estar muito ocupado.

— De modo nenhum — mentiu, contornando a secretária para se sentar. Retirou o estetoscópio do pescoço. — Em que podemos servir-te?

Hayes parecia nervoso e fatigado, como se não tivesse dormido há vários dias.

— Tenho de conversar contigo — disse, baixando a voz e inclinando-se para a frente em ar conspirativo.

Jason estremeceu de novo. O hálito de Hayes era fétido e os olhos tinham um aspecto baço, como que desfocados, o que lhe dava um ar de ligeira demência. A bata branca do laboratório estava cheia de rugas e manchas, ambas as mangas enroladas para além do cotovelo. O relógio de pulso balouçava de tal modo que Jason perguntava a si próprio como é que ele não o havia já perdido.

— De que é que se trata?

Hayes inclinou-se mais para diante, pousando os nós dos dedos na pasta da secretária.

— Aqui não — sussurrou. — Quero falar contigo esta noite. Fora do GHP.

Seguiu-se um momento de tenso silêncio. O comportamento de Hayes era obviamente anormal, e Jason perguntava de si para si se não devia tentar que o homem falasse Com o seu amigo Patrick Quillan, pensando que um psiquiatra talvez tivesse mais para lhe oferecer. Se Hayes queria conversar fora do hospital, não poderia ser sobre a sua saúde.

— É importante — acrescentou Hayes, batendo na secretária Com impaciência.

— Muito bem — replicou, receoso que Hayes tivesse um acesso de cólera se ele hesitasse mais. — Que tal jantarmos? — Queria encontrar-se Com ele num lugar público.

— Muito bem. Onde?

— Não interessa — fez Jason, encolhendo os ombros. — Que tal no North End, Com comida italiana?

— Esplêndido. Quando e onde?

Jason percorreu a lista de restaurantes que conhecia na região North End de Boston, viveiro de ruelas cheias de curvas a fazer-nos sentir que havíamos sido misticamente transplantados para o Sul da Itália.

— Que tal o Carbonara? — sugeriu. — Fica na Praça de Rachel Revere, em frente da casa de Paul Revere.

— Conheço — confirmou Hayes. — A que horas?

— Oito?

— Muito bem. — Hayes voltou-se e Caminhou um tanto vacilante na direcção da porta. — E não convides mais ninguém. Quero falar contigo a sós — rematou, e, sem esperar pela resposta, saiu, fechando a porta atrás de si.

Jason abanou a cabeça admirado e voltou aos seus doentes.

Dentro de alguns minutos já se encontrava de novo absorvido no seu trabalho, e o bizarro episódio Com Hayes desaparecera-lhe no inconsciente. A tarde arrastou-se sem surpresas desagradáveis. Pelo menos os seus doentes de consulta externa pareciam estar a passar bem e a reagir aos vários regimes que ordenara. Isso foi o alento preciso para devolver-lhe a confiança que o caso Harring minara. Faltando-lhe apenas ver mais dois pacientes, atravessou a sala de espera depois de ter feito uma pequena cirurgia numa das salas de tratamento. Mesmo antes de desaparecer no seu gabinete para ditar o registo da pequena cirurgia, viu de relance Shirley Montgomery inclinada sobre a mesa das secretárias a conversar Com estas. Dentro do ambiente da clínica, Shirley era como Cinderella no baile. Em contraste Com as outras mulheres, que vestiam blusas e saias ou calças brancas, Shirley trazia um conservador vestido de seda que tentava, mas sem resultado, esconder a sua figura atraente. Embora poucas pessoas ao vê-<la conseguissem adivinhar de quem se tratava, Shirley era o executivo-chefe de toda a organização do GHP. Era tão atraente como qualquer modelo e licenciada em Administração Hospitalar por Columbia e também pela Escola de Gestão de Harvard.

Com os seus atributos físicos e mentais, Shirley podia inspirar timidez, mas isso não acontecia. Era extrovertida e sensível, e como tal dava-se bem Com toda a gente: Com o pessoal da manutenção, secretárias, pessoal de enfermagem e até Com os cirurgiões. A Shirley Montgomery podia atribuir-se boa parte da argamassa que mantinha unido o GHP e o fazia funcionar tão suavemente.

Quando viu Jason, desculpou-se junto das secretárias e aproximou-se dele Com a facilidade e a graça de uma bailarina. O cabelo castanho e farto alisava-se para trás e caía ao longo de um lado, numa pesada madeixa. A maquilhagem estava tão criteriosamente aplicada que ela parecia não usar nenhuma. Os grandes olhos azuis brilhavam-lhe de inteligência.

— Desculpe-me, Dr. Howard — disse formalmente. Nos cantos da boca pressentia-se um ligeiro sorriso. Sem que o pessoal do hospital soubesse, Shirley e Jason há vários meses que se encontravam socialmente Tudo começara durante um dos encontros  semestrais do pessoal, quando se tinham encontrado num cocktail. Quando Jason soube que o marido dela morrera recentemente de cancro, sentiu imediata afeição.

Durante o jantar que se seguiu, ela contou a Jason que numa manhã, três anos antes, o marido acordara Com uma terrível dor de cabeça. Dentro de meses morria de um tumor cerebral que não reagira a qualquer tratamento. Por essa altura, tinham ambos estado a trabalhar na Humana Hospital Corporation. Depois, tal como Jason, sentira-se compelida a mudar-se e viera para Boston. Quando contou a Jason a história, esta afectara-o tão profundamente que quebrara o seu próprio muro de silêncio. Nessa mesma tarde partilhou a própria dor provocada pelo acidente e morte da esposa.

Animados por esta extraordinária comunhão de experiência emocional, Jason e Shirley começaram uma relação que se ficava entre a amizade e o romance. Cada um sabia que o outro se encontrava demasiado impreparado emocionalmente para tomar uma iniciativa precipitada.

Jason ficou perplexo. Ela nunca o procurara de tal maneira. Como habitualmente, apenas tinha a mais vaga noção do que se passava dentro da mente expansiva dela. Era, em muitos aspectos, a mulher mais complicada que jamais encontrara.

— Posso ser útil em alguma coisa? — perguntou, tentando descobrir qual era a sua intenção.

— Sei que deve andar muito ocupado — começou—, mas estava cá a pensar se hoje à noite não estaria livre. — Baixou a voz, voltando as costas ao olhar firme de Claudia. — Dou hoje à noite um jantar sem cerimónia a vários conhecidos da Escola de Gestão de Harvard. Gostava que fosses também. Que tal?

Lamentou imediatamente ter combinado jantar Com Alvin Hayes. Se ao menos tivesse concordado encontrar-se Com ele apenas para tomar uma bebida...

— Sei que é um tanto inesperado — acrescentou Shirley, apercebendo-se da hesitação de Jason.

— Não é esse o problema. A questão é que prometi jantar Com Alvin Hayes.

— O nosso Dr. Hayes? — fez ela, claramente surpreendida.

— Esse mesmo. Sei que parece um tanto estranho, mas ele dava ares de perturbado. E embora não tenha sido muito amável, senti pena dele. O jantar foi por sugestão minha.

— Bolas! — exclamou Shirley. — Terias gostado da companhia. Bem, para a próxima vez...

— Fica combinado que vou — disse Jason. Ela estava prestes a sair quando ele se lembrou da sua conversa Com Roger Wanamaker. — Devia talvez dizer-te que vou convocar uma reunião do pessoal médico. Vários doentes morreram de problemas coronários que os exames anuais não acusaram. Como chefe de serviço em função pensei que devia considerar a questão. Morrer, mal passado um mês depois de receber de nós um boletim de saúde em ordem, não é nada abonatório para o hospital.

— Valha-me Deus... Não vais espalhar rumores desses!

— Bem, é um tanto enervante quando alguém a quem fizemos exames Com todos os nossos recursos e declarámos essencialmente cem saúde volta ao hospital numa situação catastrófica e morre. É para evitar tudo isso que se faz o exame anual. Acho que devíamos tentar aumentar a sensibilidade do nosso exame de stress.

— Excelente objectivo — concordou Shirley. — Tudo quanto peço é que mantenhas o caso uma oitava abaixo. Os nossos exames anuais de executivos representam um papel importante na nossa campanha para atrair alguns clientes das maiores companhias da zona. Vamos manter a questão como coisa da casa.

— Absolutamente — concordou Jason. — Lamento não ser possível hoje à noite.

— Eu também — disse ela, baixando a voz. — Não pensava que o Dr. Hayes fosse tão sociável. Que se passa Com ele?

— É para mim um mistério — admitiu Jason —, mas depois conto.

— Agradeço... Sou uma das principais razões por que o GHP o contratou. Sinto-me responsável. Em breve falo contigo. — Afastou-se, sorrindo para as pessoas que estavam próximas.

Ficou-se a olhá-la por um momento. Depois deu pelo ar observador de Claudia, que, sentindo-se culpada, baixou os olhos para o trabalho. Jason perguntou de si para si se o segredo não teria transpirado. Com um encolher de ombros voltou-se para os seus dois últimos doentes.

 

Os fins de Outono em Boston eram uma época agradável para Jason, apesar do Inverno gelado que anunciavam. Vestido Com o seu chapéu de feltro estilo Indiana Jones e o seu casacão Burberry aconchegante, estava devidamente protegido contra a noite fria de Outubro.

Rajadas de vento revolviam os restos amarelecidos das folhas de negrilhos ao redor dos seus pés à medida que subia Com dificuldade pela Mt. Vernon Street e depois atravessava a passagem de colunatas sob a State House. Cruzando o passeio público do Government Center, circundou o mercado de Faneuil Hall, Com os seus artistas de rua, e entrou no North End, a pequena Itália de Boston. Havia gente por todo o lado: homens parados nas esquinas a conversar Com gestos animados; mulheres à janela a mexericar Com as amigas do outro lado da rua. O ar recendia a café moído e a coisas cozidas Com cheiro a amêndoas. Como a própria Itália, o bairro era um prazer para os sentidos.

Passados dois quarteirões pela Hanover Street, voltou à direita e encontrou-se rapidamente à vista da modesta casa de ripas de madeira de Paul Revere. A praça pavimentada a pedra redonda era limitada por uma corrente náutica preta, que pendia, a espaços, de pequenos pilares. Mesmo em frente da casa de Paul Revere ficava o Carbonara, um dos seus restaurantes predilectos. Havia dois outros restaurantes na praça, mas nenhum deles era tão bom como o Carbonara. Subiu os degraus que lhe davam acesso e foi cumprimentado pelo maítre, que o conduziu à sua mesa junto à janela da frente, proporcionando-lhe uma boa vista da curiosa praça. Como muitos locais de Boston, aquele possuía algo de irreal, como se fosse o cenário de um parque de romance.

Mandou vir uma garrafa de vinho branco Gavi e foi-se servindo de um prato de aperitivos enquanto esperava que Hayes aparecesse. Passados dez minutos, parou um táxi e Hayes apeou-se. Por alguns momentos após a partida do táxi ficou parado no passeio e olhou Pela North Street acima, na direcção de onde viera. Jason observou a situação, cismando quanto à razão que levara o outro a ficar à espera. Finalmente, o homem voltou-se e entrou no restaurante.

Quando o maítre o acompanhou à mesa, Jason notou como Hayes parecia deslocado naquele ambiente elegante e entre os comensais vestidos à moda. Em vez do seu casaco de laboratório Com nódoas, Hayes trazia um casaco folgado de tweed Com os remendos nos cotovelos. Parecia ter dificuldade em caminhar, e Jason pensou se o homem não teria estado a beber.

Sem dar pela presença de Jason, atirou-se para a cadeira vazia e olhou pela janela, de novo na direcção de North Street. Havia surgido um casal, passeando de braço dado. Hayes observou-o até desaparecer da vista Prince Street abaixo. Os olhos continuavam como que vidrados e Jason notou que uma teia de novos capilares vermelhos se lhe espalhara pelo nariz como um leque. Tinha a pele cor de marfim, não muito diferente da de Harring quando Jason o vira na UCC. Na realidade parecia que Hayes não estava bem.

Remexendo num dos bolsos atulhados do casaco de tweed, Hayes tirou um maço todo amarrotado de cigarros Camel sem filtro. Acendeu um Com mãos trémulas e, os olhos brilhando por alguma forte emoção, falou pela primeira vez:

— Há alguém a seguir-me.

Jason não sabia bem como havia de reagir.

— Tens a certeza?

— Sem dúvida — replicou Hayes, puxando uma longa fumaça. Um pouco de cinza ainda a arder caiu na toalha branca. — Um tipo moreno, bem vestido... um tipo vivo, estrangeiro — acrescentou, em tom venenoso.

— Isso preocupa-te? — perguntou, tentando fazer o papel de psiquiatra. Segundo parecia, acima de tudo, Hayes sofria de paranóia.

— Cristo... claro! — berrou Hayes. Algumas cabeças voltaram-se e Hayes baixou a voz. — Não ficavas perturbado se alguém quisesse matar-te?

— Matar-te? — repetiu, certo agora que Hayes tinha enlouquecido.

— De certeza absoluta. E ao meu filho também.

— Não sabia que tinhas um filho — observou Jason. De facto, nem sequer tinha conhecimento de que ele fosse casado. Constava no hospital que frequentava as discotecas nas raras ocasiões em que queria divertir-se.

Hayes apagou o cigarro no cinzeiro, praguejou entre dentes e acendeu outro, soprando o fumo em lufadas curtas e nervosas. Jason apercebeu-se de que o homem estava prestes a atingir a rotura e teria, portanto, de avançar Com cuidado. Hayes estava prestes a descontrolar-se.

— Desculpa se for tolice da minha parte... mas gostava de ajudar. Presumo que é por isso que querias falar comigo. E francamente, Alvin, não pareces lá muito bem.

Hayes encostou a parte de trás do pulso direito na testa, o cotovelo fincado na mesa. Ò cigarro aceso estava perigosamente perto do cabelo desalinhado. Jason sentiu-se tentado a afastar o cabelo ou o cigarro; não queria que o homem se incendiasse como uma pira. Mas receoso do seu estado perturbado, não fez nem uma coisa nem outra.

— Os senhores já resolveram o que desejam? — perguntou o empregado, materializando-se silenciosamente junto à mesa.

— Por amor de Deus! —exclamou Hayes Com rispidez, a cabeça toda atirada para cima. — Não está a ver que estamos a conversar?

— Desculpe-me, senhor — disse o empregado, fazendo uma vénia e retirando-se.

Depois de fazer uma inspiração profunda, Hayes voltou a sua atenção para Jason.

— Então não estou Com bom aspecto?

— Não. A cor que tens não é nada boa, e pareces exausto e transtornado.

— Ah, o clínico clarividente — fez Hayes em tom sarcástico. Depois acrescentou: — Desculpa-me... não quis ser desagradável. Tens razão- Não ando a sentir-me bem. De facto, sinto-me horrível.

— Qual é o problema?

— Praticamente tudo. Artrite, perturbações, visão enevoada. Até pele seca. Tenho tanta comichão nos tornozelos que fico louco. Tenho o corpo literalmente a cair aos bocados.

— Talvez tivesse sido melhor termo-nos encontrado no meu gabinete— disse Jason.—Talvez devêssemos fazer-te um exame geral.

— Talvez mais tarde... mas não é por isso que queria encontrar-me contigo. É possível que para mim já seja tarde, afinal, mas se pudesse salvar o meu filho... — Interrompeu-se, apontando pela janela.—Ali está ele!

Torcendo-se para olhar, Jason mal viu uma figura a desaparecer North Street acima. Voltando-se para Hayes, perguntou:

— Como sabias que era ele?

— Tem vindo a seguir-me desde que saí do GHP. Acho que ele planeia matar-me.

Sem possibilidade de distinguir factos de alucinações, Jason estudou o seu colega. O homem agia de maneira estranha, para dizer o mínimo, mas o velho lugar comum «até os paranóicos têm inimigos» ecoou-lhe na cabeça. Talvez alguém estivesse de facto a seguir o homem. Tirando a garrafa de Gavi do balde de gelo, encheu o copo de Hayes e o seu.

— Talvez fosse melhor dizeres-me de que se trata.

Bebendo o vinho como se fosse um golo de aguardente, Hayes limpou a boca Com as costas da mão.

— É uma história tão bizarra... Que tal um pouco mais de vinho? Jason tornou a encher o copo enquanto Hayes continuava a falar.

— Suponho que não sabes lá muito bem quais são os meus interesses na pesquisa.

— Faço uma ideia.

— Crescimento e desenvolvimento... Como é que os genes ligam e desligam. Como a puberdade; o que é que faz funcionar os genes apropriados. Seria uma realização importante resolver esse problema. Podíamos não só influenciar potencialmente o crescimento e desenvolvimento, mas provavelmente conseguiríamos «desligar» os cancros, ou, depois dos ataques de coração, «ligar» a divisão celular para criar novo músculo cardíaco. De qualquer maneira, simplificando a questão, o que mais me tem interessado tem sido o ligar e desligar dos genes de crescimento e desenvolvimento. Mas como tantas vezes acontece na pesquisa, o acaso da descoberta feliz teve o seu papel. Há cerca de quatro meses, quando me dedicava ao trabalho de pesquisa, tropecei Com uma descoberta inesperada, irónica, mas espantosa. Estou a falar de um importante avanço científico. Acredita-me: é material de Prémio Nobel.

Jason estava disposto a parar Com a sua incredulidade, embora se perguntasse se Hayes não estava a mostrar sintomas de alucinação de grandeza ao lado da sua paranóia.

— Que é que descobriste?

— Um momento.

Hayes pôs o cigarro no cinzeiro e fez pressão no peito Com a mão direita.

— Estás bem? — perguntou Jason.

Hayes parecia ter-se tornado um pouco mais acinzentado e formara-se-lhe uma linha de transpiração junto à mancha do cabelo.

— Estou bem — assegurou ele, e deixou cair a mão na mesa.— Não relatei esta descoberta porque me dei conta que era o primeiro passo para um avanço ainda maior. Estou a falar de uma coisa idêntica aos antibióticos ou à estrutura helicoidal do ADN. Fiquei tão emocionado que tenho estado a trabalhar sem descanso. Mas então descobri que a minha descoberta primitiva já não era segredo algum. Que estava a ser usada. Quando suspeitei disto, eu...

Parou a meio da frase. Fixou Jason Com uma expressão que raiava a confusão, mas que depressa se transformou em medo.

— Alvin, que se passa?

Hayes não respondeu. Levou de novo a mão direita ao peito, fazendo compressão. Um gemido escapou-se-lhe dos lábios. Depois esticou ambas as mãos para a frente e agarrou na toalha, puxando-a para si. Os copos de vinho tombaram. Com um violento ataque de tosse sufocada, vomitou uma golfada de sangue, que se estendeu pela mesa, ensopando o tecido e salpicando Jason, que saltou para trás, derrubando a cadeira. O sangue não parava. Vinha em ondas sucessivas, salpicando tudo de tal modo que as pessoas próximas começaram a gritar.

Como médico, Jason sabia o que estava a acontecer. O sangue era vermelho-vivo e estava literalmente a ser bombeado pela boca fora. Isso significava que vinha directamente do coração. Nos segundos que se seguiram Hayes manteve-se erecto na cadeira, a confusão e a dor a substituírem o medo nos seus olhos. Jason rodeou a mesa e agarrou-o pelos ombros. Infelizmente, não havia maneira de estancar o fluxo de sangue. Hayes ia ficar exangue ou afogar-se. Jason nada podia fazer a não ser segurar o homem à medida que a vida se lhe escoava.

Quando o corpo de Hayes ficou flácido, Jason deixou-o descair para o chão. Embora o corpo humano contenha cerca de seis litros de sangue, a quantidade espalhada pela mesa e pelo chão parecia consideravelmente mais. Jason voltou-se para uma mesa vizinha que estivera vaga e pegou num guardanapo para limpar as mãos.

Pela primeira vez desde a catástrofe inicial, Jason ficou consciente do que o cercava. Os outros clientes do restaurante haviam todos saltado das suas mesas e encontravam-se ap’nhados na outra extremidade da sala. Infelizmente, várias pessoas tinham ficado enjoadas.

O próprio maítre, Com uma tez esverdeada, vacilava, não se firmando bem nos pés.

— Já chamei uma ambulância — conseguiu dizer através da mão que tapava a boca.

Jason baixou os olhos para Hayes. Sem uma sala operatória mesmo ali, Com uma máquina de coração e pulmões pronta a funcionar, não havia possibilidade de o salvar. A ambulância nesta situação era absolutamente fútil. Mas pelo menos podia retirar dali o corpo. Olhando de novo para o corpo inerte, concluiu que o homem devia ter tido um cancro de pulmão. Um tumor podia ter penetrado pela aorta e causara a perda de sangue. Por ironia, o cigarro de Hayes continuava aceso no cinzeiro, que estava agora cheio de sangue Com espuma. Uma fina coluna de fumo erguia-se languidamente para o tecto.

À distância ouviu-se o som ondeante da ambulância que se aproximava. Mas antes de chegar, um carro da polícia, Com uma luz azul a piscar, parou em frente, e dois polícias de uniforme entraram a correr na sala de jantar. Ambos se detiveram subitamente diante de tanto sangue espalhado. O mais novo, Peter Carbo, de cabelo louro, que parecia ter cerca de dezanove anos, ficou extraordinariamente pálido de emoção. O companheiro, Jeff Mário, mandou rapidamente entrevistar os clientes. Jeff Mário era da idade de Jason, mais ou menos.

— Que diabo aconteceu? — .perguntou, espantado Com a quantidade de sangue.

— Sou médico — ofereceu-se Jason. — O homem está morto. Ficou exangue. Não se podia fazer nada.

Baixando-se sobre Hayes, Jeff Mário procurou sentir-lhe o pulso Com todo o cuidado. Satisfeito, levantou-se e dirigiu a atenção para Jason.

— Amigo dele?

— Colega — emendou Jason. — Trabalhamos ambos para o Good Health Plan.

— Ele... é médico também? — perguntou o polícia, apontando o polegar na direcção de Hayes.

Jason confirmou Com um gesto de cabeça.

— Estava doente?

— Não tenho a certeza... Se tivesse de opinar, diria cancro. Mas não sei.

O polícia puxou de um bloco-notas e de um lápis. Abriu o bloco-notas.

—Como se chama o homem?

— Alvin Hayes.

— O Sr. Hayes tem família?

— Creio que sim... Para lhe dizer a verdade, não sei muita coisa da sua vida privada. Mencionou um filho, portanto presumo que tenha família.

— Sabe o endereço?

— Não, não sei.

Jeff Mário observou Jason por um momento, depois baixou-se e Com cuidado examinou os bolsos de Hayes, acabando por encontrar uma carteira. Passou os olhos pelos cartões de Hayes.

— O tipo não tem licença de condução — disse, e olhou para Jason à espera de confirmação.

— Não lhe posso dizer.

Sentia-se a ficar a tremer. O horror do episódio começava a afectá-lo.

O som da ambulância, que se tornara progressivamente mais intenso, baixou em frente da janela. Havia agora uma luz vermelha intermitente a juntar à azul- Num instante, dois técnicos de emergência (TEM) uniformizados entraram na sala, trazendo uma maleta metálica que parecia uma caixa de instrumentos médicos. Aproximaram-se logo de Hayes.

— Este homem é médico — disse Jeff Mário, apontando para Jason Com o lápis. — Diz que o caso está liquidado. Diz que o tipo se esvaiu em sangue por causa de cancro.

— Não tenho a certeza se foi cancro — disse Jason. A voz saiu-lhe mais alta do que tencionava. Estava apenas visivelmente a tremer, por isso apertou as mãos Com força.

Os TEMs examinaram Hayes sumariamente, depois ergueram-se. O que transportava a maleta disse ao outro para ir buscar a maca.

— Muito bem, aqui está o endereço — disse o polícia, que voltara em busca do que continha a carteira de Hayes. Exibia um cartão. — Mora ali perto do Boston City Hospital.

Quando estavam preparados para partir, Jason perguntou se podia acompanhar o corpo. Sentia-se mal por mandar Hayes sozinho para a morgue. Os polícias disseram que por eles não havia problemas. Quando surgiram na praça, Jason viu a considerável multidão que se juntara. Notícias como esta davam a volta ao North End como uma língua de fogo, mas a multidão estava silenciosa, receosa pela presença da morte.

Jason notou um homem bem vestido que parecia fundir-se na multidão. Tinha o aspecto de um homem de negócios — mais latino-americano ou espanhol do que italiano—, particularmente as suas roupas, e por um momento Jason ficou admirado consigo próprio por ter notado.

Então um dos TEMs falou para ele.

— Quer acompanhar o seu amigo?

Jason fez que sim Com a cabeça e subiu para a parte de trás da ambulância. Sentou-se num banco baixo em frente de Hayes, para o lado dos pés. Um dos TEMs sentou-se num banco semelhante, mais perto da cabeça de Hayes. Com um solavanco, a ambulância arrancou. Pela janela de trás Jason viu o restaurante e a multidão a diminuir. Quando voltaram para a Hanover Street teve de segurar-se. Não haviam ligado a sirene, mas a luz intermitente continuava a funcionar. Jason via-a reflectida no vidro das montras dos estabelecimentos.

A viagem foi curta; cerca de cinco minutos. O TEM tentou não conversar muito, mas Jason deu mostras de estar preocupado. Fixando o corpo coberto de Hayes, tentou avaliar a situação. Não podia deixar de pensar que a morte estava a falar Com ele. Fê-lo sentir-se curiosamente responsável por Hayes, como se o homem ainda estivesse vivo se não tivesse tido a desgraça de se encontrar Com ele, Jason. Sabia que tais pensamentos eram ridículos a nível racional. Mas os sentimentos nem sempre contam Com a razão.

Depois de uma curva repentina para a esquerda, a ambulância afrouxou e parou. Quando se abriu a porta traseira, Jason reconheceu onde se encontravam. Haviam chegado ao pátio do General Hospital de Massachusetts. Aquele lugar era-lhe familiar. Anos atrás fizera ali o seu internato de medicina interna. Desceu da ambulância. Os dois TEMs tiraram rapidamente Hayes na maca, cujas rodas pousaram no pavimento. Em silêncio, levaram o corpo para a sala de emergência, onde um enfermeiro de triagem os dirigiu para um quarto de trauma vazio.

Apesar de ser médico, Jason não conhecia o protocolo a seguir numa situação como a morte de Hayes. Ficou um pouco surpreendido que tivessem até chegado a uma sala de emergência quando Hayes já não precisava de cuidados. Mas pensando nisso, compreendeu que Hayes tinha de ser formalmente dado como morto. Lembrava-se de fazer isso quando fora médico interno.

A sala de trauma estava equipada da maneira habitual, Com toda a espécie de instrumentos necessários para utilização imediata. Num canto, um lavatório. Jason lavou as mãos sujas do sangue de Hayes. Um pequeno espelho por cima do lavatório revelou uma quantidade significativa de sangue seco, que se lhe tinha espalhado pela cara também. Depois de passar o rosto por água, serviu-se das toalhas de papel. Tinha sangue no casaco e na frente da camisa, bem como nas calças, mas pouco havia a fazer quanto a isso. Quando acabava de se limpar, entrou de súbito na sala um médico Com um bloco-notas. Sem cerimónias afastou o lençol que tapava Hayes e tirou do pescoço o estetoscópio. O rosto de Hayes tinha uma estranha palidez à luz crua fluorescente.

— É parente? — perguntou o médico como por acaso enquanto auscultava o peito de Hayes.

Quando tirou o estetoscópio dos ouvidos é que Jason falou. —’Não, sou colega. Trabalhávamos juntos no Good Health.

— É médico? — perguntou o interno, mostrando um pouco mais de deferência.

Jason confirmou Com um gesto de cabeça. — Que aconteceu ao seu amigo? — perguntou, apontando uma lâmpada de estilete aos olhos de Hayes.

— Ficou exangue à mesa de jantar — respondeu Jason Com deliberada brusquidão, um tanto ofendido Com a atitude do interno.

— Não me diga. Estranho! Bem, de facto está morto.—Voltou a puxar o lençol para tapar a cabeça de Hayes.

Jason precisou de todo o seu autocontrole para não dizer ao interno o que pensava da sua insensibilidade, mas sabia que seria pura perda de tempo. Em vez disso, saiu para o átrio e ficou a observar o movimento da sala de emergência, recordando-se do seu tempo

como médico interno. Parecia que fora há muito, mas nada realmente havia mudado.

Trinta minutos depois, o corpo de Hayes foi levado de maca novamente para a ambulância. Jason foi atrás e assistiu a toda a operação.

— Importam-se que eu vá? — perguntou, sem ter bem a certeza dos motivos que o levaram a agir assim, a não ser que fosse por choque emocional.

— Vamos apenas para a morgue — disse o condutor —, mas faça favor.

Quando saíram do pátio, ficou subitamente surpreendido por ver o que parecia ser o mesmo homem de negócios vestido a primor que notara em frente do restaurante. Então encolheu os ombros. Isto parecia coincidência a mais. Era estranho, porém, que a cara do homem tivesse traços de espanhol.

Jason nunca estivera na morgue da cidade. À medida que faziam passar a maca Com o corpo de Hayes pelas portas marcadas de riscas e pancadas e entravam na sala de depósito, sentiu o desejo de não ter vindo nesta ocasião. A atmosfera era tão desagradável como a sua imaginação sugerira que seria. A sala de depósito era grande e tinha de ambos os lados uma série de portas quadradas estilo frigorífico, que outrora haviam sido brancas. As paredes e o pavimento eram cobertos Com mosaicos velhos, manchados e estalados. Havia várias macas manchadas, umas quantas ocupadas Com cadáveres cobertos Com lençóis, alguns deles ensanguentados. A sala cheirava a peixe e antisséptico, o que, para Jason, tornava o ambiente irrespirável. Um homem corpulento e muito rosado, Com um avental e luvas de borrracha, aproximou-se de Hayes e ajudou a transferir o cadáver para uma das macas antigas e manchadas da morgue. Depois desapareceram todos para tratar dos papéis necessários.

Por instantes, Jason ficou ali na sala dos corpos e pensou no fim súbito da vida distinta de Hayes. Depois, perseguido por uma imagem muito nítida da sua ida ao hospital após a morte de Danielle, saiu atrás dos TEMs.

Na altura em que se construíra, a morgue de Boston há meio século, fora considerada um complexo artístico. Quando Jason subiu a larga escadaria que dava acesso aos escritórios, notou alguns pormenores arquitectónicos Com antigos motivos egípcios. Mas o edifício sofrera Com o decorrer dos anos. Estava escuro e sujo e era inadequado. A que horrores assistira era coisa que estava para além da sua imaginação.

Num gabinete bastante degradado, encontrou os dois TEMs e o funcionário da morgue corpulento e rosado. Haviam terminado a papelada e riam-se de algo, completamente esquecidos da opressiva atmosfera da morte.

Jason interrompeu-lhe a conversa para perguntar se alguns dos responsáveis médicos ali se encontravam de momento.

— Sim — disse o funcionário. — A Dr.ª Danforth está a acabar um caso de emergência na sala das autópsias.

— Posso esperar por ela nalgum sítio? — perguntou, não se sentindo em condições de ir à sala das autópsias.

— Há a biblioteca no andar de cima. Mesmo a seguir ao gabinete da Dr.ª Danforth.

A biblioteca era um lugar escuro e bafiento, Com grandes volumes encadernados de relatórios de autópsias que datavam do século xviii. No centro da sala havia uma grande mesa de carvalho Com seis cadeirões. Mais importante que tudo, havia um telefone. Depois de pensar um pouco, decidiu-se telefonar a Shirley. Sabia que ela estava a meio do jantar, mas achava que gostaria de saber o que se passara.

— Jason! — exclamou. — Vens até cá?

— Infelizmente não. Houve problema.

— Problema?

— Vai ser um choque — avisou. — Espero que estejas sentada.

— Não me arrelies — contrapôs Shirley, a preocupação a crescer-lhe na voz.

— Alvin Hayes morreu.

Seguiu-se uma pausa. Podia ouvir-se em fundo o riso dos convivas.

— Que aconteceu?

— Não tenho bem a certeza — disse, querendo evitar-lhe os horríveis pormenores. — Uma espécie de catástrofe interna.

— Como ataque de coração?

— Uma coisa desse género — disse evasivo.

— Meu Deus! Pobre homem.

— Sabes alguma coisa da família? Perguntaram-me, mas não sei nada.

— Também não sei muito. É divorciado. Tem filhos, mas creio que é a mulher que tem a custódia. Ela vive algures perto de Manhattan, e é tudo quanto sei. O homem era muito fechado quanto à sua vida particular.

— Desculpa ter-te incomodado com isto agora.

— Não sejas tolo. Onde estás?

— Na morgue.

— Como é que foi?

— Vim na ambulância que trouxe o corpo de Hayes.

— Vou aí buscar-te.

— Não é preciso. Apanho um táxi, depois vou falar Com o responsável.

— Como te sentes?... Deve ter sido um mau bocado.

 —’Bem... tenho passado por melhores.

— Está decidido. vou aí buscar-te.

— E os teus convidados? — protestou, meio convencido. Sentia-se culpado por estragar a reunião dela, mas não suficientemente culpado para recusar a sua oferta. Sabia que não estava preparado para ficar sozinho Com a lembrança desta noite.

— Tomam conta de si próprios — replicou. — Onde é que estás exactamente?

Jason deu-lhe as indicações necessárias e desligou. Deixou afundar a cabeça entre as mãos e fechou os olhos.

— Desculpe — disse uma voz profundamente suavizada por ligeiro sotaque. — É o Dr. Jason Howard?

— Sou, sim — respondeu, endireitando-se Com um sobressalto. Uma figura avantajada entrou na sala. O homem tinha uma cara

larga Com olhos profundos, nariz grande e dentes todos iguais. O cabelo era escuro Com reflexos vermelhos.

— Sou o detective Michael Curran, Homicídios — disse, estendendo uma mão larga e calosa.

Jason apertou-lhe a mão, desorientado pela súbita presença do detective à paisana. Compreendeu que estava a ser avaliado quando reparou que os olhos do detective se lhe fixaram no rosto, depois nos pés e de novo no rosto.

— O polícia Mário relatou que o senhor estava Com a vítima — disse, puxando de uma cadeira-

—Está a investigar a morte de Hayes?

— Mera rotina... Caso bastante dramático, conforme a descrição da polícia. Não quero ter o meu sargento às costas se houver depois quaisquer perguntas.

— Ah, compreendo.

Na verdade, a presença do detective Curran fê-lo recordar-se da insistência de Hayes de que alguém andava a tentar matá-lo. Embora a morte do homem parecesse mais um desastre natural do que um assassínio, Jason apercebeu-se que o medo de Hayes em parte o fizera vir até à morgue para verificar a causa da morte.

— De qualquer modo, tenho de fazer-lhe as perguntas habituais. Na sua opinião, esperava-se pela morte do Dr. Hayes? Quero dizer, ele estava doente?

— Não, que eu saiba... embora quando o vi esta tarde e depois outra vez à noite tivesse a sensação de que não estava bem.

As pesadas pálpebras do detective Curran ergueram-se ligeiramente.

— Que quer dizer?

— Tinha um aspecto terrível. E quando lhe mencionei o facto, admitiu que não andava a sentir-se bem.

— Quais eram os sintomas? — perguntou o detective, puxando de um pequeno bloco-notas.

— Fadiga, perturbações de estômago, desconforto nas articulações. Pensei que talvez tivesse sido febre, mas não pude ter a certeza.

— Que é que pensa destes sintomas?

— Preocuparam-me — admitiu. — Disse-lhe que talvez fosse melhor se nos encontrássemos no meu consultório para eu poder fazer-lhe uns quantos testes. Mas insistiu para que nos encontrássemos longe do hospital.

— E por que foi assim?

— Não tenho a certeza.

Então continuou a descrever o que provavelmente se tratava da paranóia de Hayes e das suas declarações sobre ter feito um avanço na ciência.

Depois de escrever tudo isto, Curran levantou os olhos. Parecia mais alerta.

—’Que quer dizer Com isso de «paranóia»?

— Ele disse que alguém o andava a seguir e que queriam matá-lo a ele e ao filho.

— Disse quem?

— Não... Para falar Com franqueza, achei que estava alucinado. Agia de maneira estranha. Pensei que estava prestes a ficar desequilibrado.

— Desequilibrado? — fez Curran.

— Colapso nervoso.

— Compreendo.

Curran voltou ao seu bloco-notas. Jason observou-o enquanto escrevia. Tinha o hábito curioso de lamber a ponta do lápis a intervalos irregulares. Nesse momento surgiu outra figura à porta. Era uma senhora. Avançou, rodeando a mesa para a direita de Jason. Os dois homens puseram-se de pé. A recém-vinda era baixa, mal atingindo o metro e meio. Apresentou-se como a Dr.ª Margaret Danforth. Em contraste Com o seu tamanho, a voz ressoou na pequena sala.

— Sentem-se — ordenou, sorrindo para Curran, que obviamente conhecia.

Jason calculou que devia ter trinta e muitos anos. Tinha traços pequenos e delicados, Com as sobrancelhas muito arqueadas, que lhe davam um ar inocente e atraente. O cabelo era curto e muito encaracolado. Trazia um vestido escuro modesto, Com gola de renda. Jason teve dificuldade em associar a sua aparência Com a posição que tinha na medicina legal da cidade de Boston.

— Qual é o problema — perguntou, preparando-se para o trabalho.

Tinha círculos negros debaixo dos olhos e Jason calculou que ela devia estar a trabalhar desde manhã cedo.

O detective Curran inclinou a cadeira um pouco para trás e começou a falar.

— Morte súbita de um médico num restaurante de North End. Segundo parece, vomitou uma grande quantidade de sangue...

— Com acessos de tosse seria mais exacto — interrompeu Jason.

— Como assim? — perguntou o detective, chegando-se para a frente Com um solavanco. Lambeu a ponta do lápis para fazer a correcção.

— Vomitar significava que o sangue provinha do seu sistema digestivo — esclareceu Jason. — Este sangue é claro que vinha dos pulmões. Era vermelho-vivo e Com espuma.

— Espuma! Gosto da palavra — disse Curran. Inclinou-se sobre o bloco-notas e fez a correcção.

— Presumo que se tratava de sangue arterial — disse a Dr.ª Danforth.

— Creio que sim — concordou Jason.

— Que quer dizer...? — fez Curran.

— Provavelmente uma ruptura da aorta — respondeu Danforth. Tinha as mãos cruzadas no regaço como se estivesse num chá. — A aorta é o vaso principal que sai do coração — acrescentou como esclarecimento para Curran. — Leva o sangue oxigenado para o corpo.

— Obrigado.

— Parece ou cancro do pulmão ou aneurisma — acrescentou. — Aneurisma é uma dilatação anormal do vaso sanguíneo.

— De novo obrigado... É tão cómodo quando as pessoas sabem que sou ignorante.

Jason lembrou-se de repente de Peter Falk a representar o detective Columbo. Tinha a certeza absoluta que Curran era tudo menos ignorante.

—Concorda, doutor? — perguntou Danforth, olhando directamente para Jason.

—’Eu votava em cancro do pulmão. O Hayes era um fumador inveterado.

— Isso aumenta as probabilidades.

— Alguma possibilidade de crime? — perguntou Curran, olhando para a médica por debaixo das pesadas pálpebras.

A Dr.ª Danforth deu uma curta risada.

— Se o diagnóstico for o que penso que é, o único crime em causa teria sido perpetrado pelo seu Criador... ou pela indústria do tabaco.

— Era o que eu pensava — disse Curran, fechando o bloco-notas Com um piparote e metendo o lápis no bolso.

— Vai fazer agora a autópsia? — quis saber Jason.

— Por Deus, não — respondeu a Dr.ª Danforth.—Se houvesse alguma razão premente, podíamos fazê-la. Mas não há. Será amanhã a primeira coisa a fazer. Aí pelas dez e meia já devemos ter algumas respostas, se quiser telefonar por essa altura.

Curran pôs as mãos na mesa como se estivesse prestes a levantar-se. Mas deteve-se.

— O Dr. Howard alegou que a vítima pensava que alguém andava a tentar matá-lo. Estou certo, doutor?

Jason confirmou Com um gesto de cabeça.

— Portanto... Podia ter isso em mente quando fizer a autópsia?

— Absolutamente. Mantemo-nos sempre alerta em todos os casos que tratamos. É a nossa tarefa. Agora, se me dão licença, gostaria de ir para casa. Nem sequer tive tempo para jantar.

Jason sentiu uma leve onda de náusea a percorrê-lo. Imaginava como podia a médica sentir fome depois de passar o seu dia a cortar cadáveres. Curran realmente disse o mesmo a Jason quando ambos desciam para o rés-do-chão. Ofereceu-lhe uma boleia, mas Jason disse-lhe que aguardava uma pessoa amiga. Mal acabara de dizer isto, abriu-se a porta da rua e Shirley entrou.

— Que amiga — sussurrou Curran Com uma piscadela quando saiu.

Mais uma vez Shirley parecia uma miragem. Para a recepção vestira um vestido camiseiro vermelho, cingido Com um largo cinto preto de couro. Emanava da sua pessoa tal vitalidade que a sua presença na morgue suja era uma amostra dos contrários. Jason sentiu um impulso pouco natural de tirá-la dali o mais depressa possível para que nenhuma força maligna lhe tocasse. Mas ela resistiu a esse impulso. Abraçou-o e apertou a cabeça dele contra a dela num gesto puro de compreensão. Cedeu. A reacção surpreendeu-o. Sentiu-se a tentar reter as lágrimas como um adolescente. Era embaraçoso.

Ela afastou-se um pouco e olhou-o nos olhos. Ele tentou um meio sorriso.

— Que dia — fez ele.

— Que dia!—concordou ela. — Alguma razão para ficarmos aqui?

Jason sacudiu a cabeça.

— Vamos, vou levar-te a casa — disse ela, forçando-o a sair e seguir para onde se encontrava o seu BMW, numa zona de estacionamento proibido. Entraram, e o carro pôs-se em movimento Com ruído.

— Estás bem? — perguntou ela quando se dirigiam para a Massachusetts Avenue.

— Agora estou muito melhor. — Olhava para o perfil de Shirley sempre que as luzes da cidade o iluminavam. — Estou simplesmente esmagado Com todas estas mortes. Como se não conseguisse fazer melhor.

— És demasiado exigente contigo próprio. Não podes assumir a responsabilidade por toda a gente. De resto, Hayes não era teu doente.

— Eu sei.

Seguiram por algum tempo em silêncio.

— É uma tragédia — disse por fim Shirley. — Hayes era quase um génio, e não devia ter mais de quarenta e cinco anos.

— Era da minha idade. Andava na minha turma na escola médica.

— Não sabia disso. Parecia bastante mais velho.

— Especialmente nos últimos tempos.

Passaram pelo Symphony Hall. Estava a acabar algum espectáculo, pois surgiam homens em trajo de cerimónia nas escadarias.

— Que é que o médico legista disse?

— Provavelmente cancro. Mas só vão fazer a autópsia amanhã.

— Autópsia? Quem deu a autorização?

— Não é preciso se o médico legista achar que há alguma dúvida quanto à morte.

— Mas que dúvida? Disseste que o homem teve um ataque de coração.

— Não disse que foi um ataque de coração. Disse que foi uma coisa parecida. De qualquer modo, parece que faz parte do protocolo deles fazer autópsia quando há morte inesperada. Até um detective me fez perguntas.

— Acho que é desperdiçar o dinheiro dos contribuintes — comentou ela quando voltaram à esquerda na Beacon Street. — Aonde vamos?—perguntou subitamente.

— vou levar-te a minha casa. Os meus convidados ainda lá devem estar. Vai ser bom para ti.

— Não pode ser. Não me sinto capaz de ser boa companhia. —Tens a certeza? Não te quero a cismar. Esta gente vai compreender.

—Por favor. Não tenho forças para discutir. Só preciso de dormir. De resto, olha para mim- Estou um farrapo.

— Muito bem, se pões as coisas assim.

Cortou à esquerda no quarteirão seguinte, depois à esquerda de novo para a Commonwealth Avenue, voltando para Beaoon Hill. Passado um período de silêncio ela recomeçou a conversa.

— Acho que a morte de Hayes vai ser um grande golpe para o GHP. Estávamos a contar Com ele para produzir resultados estupendos. O rescaldo vai ser especialmente duro para mim, pois fui responsável por o terem contratado.

— Então segue alguns dos teus próprios conselhos... Não podes considerar-te responsável pelo seu estado de saúde.

— Eu sei. Mas tenta dizer isso à administração.

— Nesse caso acho que devia dizer-te mais alguma coisa. Mais notícias desagradáveis. Parece que ele acreditava ter alcançado um verdadeiro avanço científico. Uma coisa extraordinária. Sabes alguma coisa disso?

— Nem nada — disse alarmada. — Ele disse-te o que era?

— Infelizmente, não. E não fiquei Com a certeza se hei-de ou não acreditar nele. Agia de maneira bastante bizarra, para dizer o mínimo, clamando que alguém queria matá-lo.

— Achas que estava a passar por um esgotamento nervoso?

— Pensei nisso.

— Pobre homem. Se realmente fez alguma descoberta, então o GHP vai ter uma dupla perda.

— Mas se fez alguma descoberta dramática, não serias capaz de descobrir do que se tratava?

— É claro que não conhecias o Dr. Hayes — comentou Shirley. — Era um homem extraordinariamente reservado, pessoal e profissionalmente. Metade do que sabia trazia na cabeça.

Rodearam o Jardim de Boston, depois seguiram por um desvio para entrar em Beacon Hill, bairro residencial de moradias Com fjontaria de tijolo no centro de Boston, cujas ruas de sentido único são um verdadeiro pesadelo para o automobilista.

Depois de cruzar a Charles Street, Shirley subiu a Mt. Vernon Street e entrou no empedrado da Louisbourg Square. Quando Jason decidira deixar de morar na zona suburbana e tentar a cidade, teve a sorte de encontrar um apartamento de um quarto Com vista para a praça. Ficava numa moradia grande cujo proprietário tinha um andar no edifício, coisa rara ali. Era um local perfeito para Jason, pois o apartamento tinha direito a um verdadeiro prémio urbano — um íccal de estacionamento.

Jason saiu do carro e, fechando a porta, inclinou-se para dentro da janela.

— Obrigado por me teres ido buscar. Foi muito útil. Estendeu a mão e apertou-lhe o ombro.

Ela, num impulso, agarrou-lhe na gravata e puxou-lhe a cabeça para junto da sua. Deu-lhe um beijo, acelerou o motor e partiu.

Jason ficou na borda do passeio, num lago de luz que vinha do lampião a gás, e viu-a desaparecer lá em baixo, na Pinckney Street. Voltando-se para a porta, meteu as mãos nos bolsos à procura das chaves. Ficou satisfeito por ela ter entrado na sua vida, e pela primeira vez considerou a possibilidade de uma verdadeira relação.

 

Não fora uma noite agradável. Toda a vez que Jason fechava os olhos, via a expressão excêntrica de Hayes mesmo antes da catástrofe e tornava a passar pela sensação horrível de impotência perante o sangue da vida que lhe saía em golfadas pela boca fora.

A cena não lhe saía da cabeça quando se dirigia para o trabalho, e recordou-se de algo que se esquecera de dizer quer a Curran quer a Shirley. Hayes dissera que a sua descoberta já não era segredo e estavam a usá-la. Fosse lá o que fosse que ele pretendia dizer Com isso. Jason decidiu telefonar ao detective quando chegasse ao GHP, mas no momento em que entrou foi logo chamado para ir directamente à UCC.

Brian Lennox encontrava-se muito pior. Depois de breve exame, Jason compreendeu que pouco havia a fazer. A própria consulta cardíaca que pedira no dia anterior não foi muito optimista, embora Harry Sarnoff tivesse marcado um estudo de emergência das coronárias para essa manhã. A única esperança era que talvez uma intervenção cirúrgica imediata pudesse dar algum resultado.

Jason aproximou-se do quarto de Brian.

— Se ele não se aguentar, quer que aplique o «protocolo»? Parece que até os rins estão a falhar.

Detestava estas decisões, mas disse Com firmeza que queria o homem ressuscitado pelo menos até terem os resultados do estudo das coronárias.

Os restantes doentes que viu na sua visita habitual também não foram nada animadores. Os casos de diabetes, todos eles envolvendo multissistemas, estavam a piorar. Dois deles estavam Com insuficiência renal e o terceiro ameaçava chegar a essa situação. O pior de tudo isto era que não tinham entrado no hospital por essa razão. A insuficiência renal desenvolvera-se enquanto Jason os tratava por causa de outros problemas.

Os seus dois doentes que sofriam de leucemia também não estavam a reagir ao tratamento como ele esperava. Ambos surgiram Com significativos problemas de coração, muito embora tivessem sido admitidos Com sintomas respiratórios. E os seus dois doentes de SIDA haviam piorado nitidamente. Os únicos pacientes Com uma evolução normal eram duas jovens Com hepatite. O último doente era um homem de trinta e cinco anos que dera entrada no hospital para um exame às válvulas do coração. Tivera febre reumática quando criança. Felizmente, o seu estado não se alterara.

Chegado ao seu gabinete, teve de ser firme Com Claudia. A notícia sobre a morte de Hayes já percorrera todo o complexo do GHP, e Claudia estava cheia de curiosidade. Jason disse-lhe que não ia falar sobre o caso. Ela insistiu. E ele mandou-a sair do consultório. Mais tarde pediu-lhe desculpa e deu-lhe uma versão abreviada do acontecimento. Às dez e meia recebeu um telefonema de Harry Sarnoff Com notícias desagradáveis. Brian Lennox tinha as artérias coronárias muito piores, mas sem bloqueio focal Por outras palavras, estavam a encher-se uniformemente de aterosclerose a ritmo acelerado e não havia possibilidade de cirurgia. Sarnoff disse que nunca vira uma tal progressão e pediu-lhe permissão para fazer um relatório sobre o caso. Jason disse que por ele estava tudo bem.

Depois do telefonema de Sarnoff, deixou-se ficar por uns minutos no seu gabinete, fechado à chave. Quando se sentiu emocionalmente preparado, telefonou para a UCC e pediu para falar Com a enfermeira encarregada de Brian Lennox. Quando esta atendeu, discutiu Com ela os resultados do estudo das artérias coronárias. Disse-lhe então que Brian Lennox não devia ser sujeito ao «protocolo». Sem esperança, o sofrimento do homem tinha de ser reduzido. Ela concordou. Depois de desligar, ficou-se a olhar para o telefone. Eram momentos assim que o faziam interrogar-se quanto à razão por que havia escolhido ir para medicina.

Quando chegou o intervalo para o almoço, decidiu verificar pessoalmente os resultados da autópsia de Hayes. À luz do dia, a morgue não era um lugar tão arrepiante — apenas outro edifício a envelhecer, degradado e pouco limpo. Os próprios traços arquitecturais egípcios eram mais cómicos que imponentes. Todavia, evitou a sala de depósito dos corpos e foi directamente ao pequeno gabinete de Margaret Danforth, que ficava pegado à biblioteca. Ela estava curvada sobre a secretária a comer o que parecia ser uma sanduíche. Fez-lhe um gesto para entrar, sorrindo.

— Bem-vindo

— Desculpe incomodá-la — disse, sentando-se. Mais uma vez se admirava como Margaret parecia pequena e feminina no seu ambiente de trabalho.

— Não incomoda nada... Tratei do caso do Dr. Hayes esta manhã.— Recostou-se na cadeira, que chiou ligeiramente. — Fiquei um pouco surpreendida. Não era cancro.

— Que era?

— Aneurisma. Aneurisma aórtico, que penetrou na árvore traqueiobronquial. O homem nunca teve sífilis, pois não?

Jason abanou a cabeça.

— Não, que eu saiba. Não me parece-

— Bem, tinha um aspecto estranho... Importa-se que continue a comer? Tenho outra autópsia dentro de alguns minutos.

— De maneira nenhuma — fez Jason, perguntando de si para si como era ela capaz disso. O estômago deu-lhe uma volta. Todo o edifício recendia ligeiramente a peixe. — Que é que tinha um aspecto estranho?

Margaret mastigou e engoliu.

— A aorta parecia feita de uma espécie de queijo, substância frágil. E a traqueia também. Nunca vi coisa igual, excepto nesse tipo que autopsiei que tinha cento e catorze anos. Acredita? Eram palavras de The Globe. Tinha quarenta e quatro anos quando começou a Primeira Guerra Mundial. Espantoso.

— Quando estará pronto o relatório microscópico? Margaret mostrou-se embaraçada.

— Duas semanas... Não temos fundos para pessoal adequado de apoio. Os diapositivos levam o seu tempo.

— Se me pudesse dar algumas amostras, podia pôr o nosso departamento respectivo a processá-las.

— Temos de ser nós a fazê-lo. Com certeza que compreende.

— Não quero dizer que não o façam cá. Apenas queria dizer que também nós o podíamos fazer. Pouparia tempo.

— Não vejo por que não pode ser.

Levantando-se, Margaret deu outra grande dentada no hambúrguer e fez sinal a Jason para a seguir. Usaram as escadas e subiram até ao andar de cima para a sala de autópsias.

Era uma sala rectangular, comprida, Com quatro mesas de aço impecáveis orientadas perpendicularmente em relação ao comprimento. O cheiro de formoldeído e de outros fluidos de nomes complicados era intenso. Estavam ocupadas duas mesas e as outras duas estavam a limpá-las. Margaret, perfeitamente à vontade naquele ambiente, mastigava ainda o último pedaço do almoço enquanto conduzia Jason até à bancada. Depois de olhar por entre uma profusão de frascos de amostras Com tampas de plástico, separou uma série deles. Então, pegando num de cada vez, pescou os conteúdos, colocou-os numa tábua de cortar, e Com uma lâmina, que muito se assemelhava a uma verdadeira faca de trinchar, cortou um pedaço de cada. Depois pegou em novos frascos de amostras, rotulou-os, pôs-lhes formaldeído e deitou neles as respectivas amostras. Quando terminou, meteu-os num saco de papel castanho e deu este a Jason. Tudo feito Com notável eficiência.

De novo no GHP, Jason dirigiu-se à patologia, onde encontrou o Dr. Jackson Madsen ao microscópio. Era um homem alto e magro, que aos sessenta anos se orgulhava de correr a maratona. Logo que viu Jason, exprimiu-lhe o seu pesar pela experiência que passara Com Hayes.

— Por aqui não há muitos segredos — comentou Jason Com um pouco de amargura.

— Claro que não. Socialmente, o centro médico é como uma cidade pequena. Vibra Com os mexericos. — Vendo o saco de papel castanho, acrescentou: — Trazes aí alguma coisa para mim?

— De certo modo.

Jason continuou a falar explicando de que amostras se tratava, acrescentando que como eram precisas duas semanas para fazer os diapositivos no laboratório da cidade, se lembrou se Jakson não se importaria de tratar disso no laboratório do GHP.

— Ficaria contente Com isso — disse Jackson pegando no saco. — A propósito, estás interessado em saber agora os resultados do caso Harring?

Jason engoliu em seco.

— Claro.

— Rotura cardíaca. O primeiro caso que vejo há anos. Estoirou o ventrículo esquerdo. Parecia como se a maior parte do coração tivesse ficado envolvida no enfarte, e quando seccionei o coração, tive a impressão que todos os vasos coronários estavam envolvidos no processo. Aquele homem teve a pior doença de coronárias que já vi nestes anos.

Tanto pior para os nossos maravilhosos exames de previsão, pensou Jason. Um tanto na defensiva explicou a Jackson que voltara a rever o relatório de Harring e continuava a não conseguir encontrar provas do problema iminente no ECG feito a menos de um mês antes da morte de Harring.

— Talvez seja melhor verificarem as vossas máquinas... Estou a dizer-te, o coração deste homem estava em má forma. As secções microscópicas devem estar prontas amanhã se estiveres interessado.

Saindo do departamento de patologia, considerou o comentário de Jackson. A ideia de uma máquina de ECG defeituosa não lhe ocorrera. Mas na altura em que chegou ao seu gabinete, rejeitou a ideia. Haveria muitas maneiras de averiguar se a máquina de ECG não estava a funcionar como devia ser. Além disso, usavam-se duas máquinas diferentes para o ECG na situação de repouso e para o ECG na situação de tensão. Mas, ao pensar no caso, recordou-se de um pormenor. Tal como o próprio Jason, ao passar a fazer parte do pessoal do GHP, Hayes teria passado por um exame físico completo. Com todos acontecia o mesmo.

Depois de Claudia lhe ter dado as mensagens telefónicas a ele dirigidas, pediu-lhe para ir ver se o Dr. Alvin Hayes tinha uma ficha, e se a tivesse, que lha trouxesse. Entretanto, evitou Sally e dirigiu-se para a radiologia. Com a ajuda de uma das secretárias do departamento, localizou a pasta que continha os elementos de Alvin Hayes. Como calculara, continha uma chapa de raios X do tórax, de rotina, tirada seis meses antes. Deu-lhe uma rápida vista de olhos. Depois, Com a chapa, foi procurar um dos quatro radiologistas do hospital.

Milton Perlman, especialista, ia a sair do gabinete de fluoroscopia quando Jason o deteve. Descreveu-lhe a morte de Hayes e os resultados da autópsia e passou-lhe a chapa do tórax. Milton pegou na chapa e voltou ao seu gabinete, colocou-a no visualizador e ligou a luz. Examinou a chapa por um bom minuto antes de a passar a Jason.

— Não há aqui nenhum aneurisma — disse. Era natural de West Virgínia e gostava de falar como se tivesse saído da fazenda no dia anterior. — A aorta parece normal, não há calcificação. - Isso é possível?

— Deve ser. — Milton verificou o nome e o número da unidade na chapa. — Claro que há sempre uma possibilidade de termos misturado os nomes, mas duvido. Se o homem morreu de aneurisma, então desenvolveu-o nestes últimos trinta dias.

— Nunca ouvi falar em tal coisa.

— Que posso eu dizer? — fez Milton, estendendo as mãos Com as palmas para cima.

Jason voltou ao seu gabinete, matutando sobre o problema. Um aneurisma podia inchar rapidamente, especialmente se a vítima tivesse uma doença de vasos e elevada tensão arterial combinadas, mas quando verificou o exame anual de Hayes, a tensão arterial e os sons do coração eram, como já suspeitava, normais. Sem sinais de doença vascular, compreendeu que pouco havia a fazer nesse ponto para além de esperar pelas secções microscópicas. Talvez Hayes tivesse contraído alguma estranha doença infecciosa que lhe tivesse atacado os vasos sanguíneos, incluindo a aorta. Pela primeira vez, perguntava a si próprio se não estariam diante do começo de uma nova e terrível doença.

Tirando o casaco e vestindo uma bata branca, saiu do seu gabinete, chocando praticamente Com Sally.

— Está atrasado! — ralhou ela.

— Onde está a novidade? — disse, dirigindo-se para a sala de exames A.

Com bastante trabalho e um pouco de sorte, conseguiu entrar no seu horário normal. A sorte foi não ter doentes novos que precisassem de extensos tratamentos ou de doentes antigos Com novos problemas. Por volta das três houve até uma pausa. Alguém havia cancelado a consulta.

Durante toda a tarde não conseguiu tirar da cabeça o caso de Hayes. E podendo dispor de um pouco de tempo, dirigiu-se ao sexto piso. Era onde ficava o laboratório do Dr. Alvin Hayes. Pensou que talvez o assistente de Hayes tivesse alguma ideia sobre se a descoberta que Hayes mencionara tinha de facto alguma base.

Logo que saiu do elevador, sentiu como se estivesse noutro mundo. Como parte do incentivo para que Hayes viesse para o GHP, a direcção deste mandara construir um laboratório novo, que ocupava uma boa porção do sexto piso.

A zona perto do elevador estava mobilada Com confortáveis poltronas de couro, carpetes espessas e até uma ampla estante envidraçada cheia de livros correntes sobre biologia molecular. Para além desta sala de recepção havia uma sala desinfectada onde os visitantes deviam vestir longas batas brancas e pôr nos sapatos coberturas de protecção.

Jason experimentou a porta. Sentiu-a aberta e entrou. Vestiu uma bata, pôs as coberturas de protecção e tentou a porta interior. Como calculava, estava fechada à chave. Ao lado da porta havia um botão de chamada. Premiu-o e esperou. Acima do lintel começou a piscar uma pequena luz vermelha por cima de uma câmara de televisão de circuito fechado. Então a porta abriu Com um zumbido e Jason entrou.

O laboratório era dividido em duas secções principais. A primeira secção era de fórmica branca e azulejos brancos e incluía uma ampla sala central, Com diversos gabinetes de um lado. Com iluminação fluorescente na parte superior, o efeito era deslumbrante. A sala encontrava-se cheia de equipamento sofisticado, a maior parte do qual desconhecido de Jason. Uma porta de aço fechada à chave separava a primeira secção da segunda. Uma tabuleta ao lado da porta informava: SALA DE ANIMAIS E INCUBADORAS DE BACTÉRIAS: PROIBIDA

A ENTRADA.

Sentada a uma das extensas bancadas do laboratório da primeira secção estava uma mulher muito loura, que Jason vira por diversas vezes na cafetaria do GHP. Tinha traços angulosos, um nariz ligeiramente aquilino, e o cabelo puxado para trás a terminar num nó francês. Jason notou-lhe os olhos vermelhos, como se tivesse estado a chorar.

— Desculpe, sou Jason Howard, médico — disse, estendendo a mão.

Ela apertou-a. Tinha a dela fria.

— Helene Brennquivist — disse, Com um ligeiro sotaque escandinavo.

— Tem um momento?

Helene não respondeu. Em vez disso, fechou o bloco-notas e empurrou uma pilha de pratos de pedra.

— Gostava de fazer umas quantas perguntas — continuou Jason. Viu que ela tinha uma estranha habilidade para manter uma expressão facial absolutamente neutra.

— É este, ou era, o laboratório do Dr. Hayes? — perguntou, Com um gesto da mão para abarcar o que o rodeava.

Ela confirmou Com um aceno de cabeça.

— E presumo que a senhora trabalhava Com o Dr. Hayes? Outro aceno de cabeça, menos perceptível do que o primeiro.

Jason teve a sensação que já suscitara uma atitude defensiva na mulher.

— Suponho que soube das más notícias sobre o Dr. Hayes — disse. Desta vez ela pestanejou, e Jason teve a impressão de ter visto

o brilho de lágrimas.

— Encontrava-me Com o Dr. Hayes quando morreu — explicou, observando Helene Com cuidado.

A não ser quanto aos olhos lacrimosos, parecia estranhamente vazia de emoção, e Jason perguntava a si próprio se se tratava de uma forma de dor.

— Mesmo antes de morrrer, Hayes disse-me que fizera uma descoberta científica importante...

Deixou ficar o comentário no ar, esperando alguma reacção apropriada. Não houve nenhuma. Helene limitou-se a devolver-lhe o olhar.

— Então, houve? — fez Jason, inclinando-se para a frente.

— Não sabia que tinha acabado de falar — retorquiu Helene. — Não era uma pergunta, como sabe.

— É verdade — admitiu. — Estava simplesmente à espera que reagisse. Tenho a esperança de que a senhora saiba o que o Dr. Hayes queria dizer.

— Na realidade não sei. Outras pessoas da administração já vieram aqui fazer-me a mesma pergunta. Infelizmente, não tenho ideia alguma do que o Dr. Hayes podia querer dizer.

Jason imaginou que Shirley decidira que a primeira coisa a fazer nessa manhã era ver Helene.

— A senhora é a única pessoa além do Dr. Hayes que trabalha neste laboratório?

— Sou, sim. Tínhamos uma secretária, mas o Dr. Hayes despediu-a há três meses. Achava que ela falava demasiado.

— De que é que ele tinha medo que ela falasse?

— Qualquer coisa e tudo. O Dr. Hayes era uma pessoa extraordinariamente reservada. Especialmente a respeito do seu trabalho.

— Estou a ver — comentou. A sua impressão inicial de que Hayes se tornara paranóico parecia confirmar-se. Todavia, insistiu: — Que é que a senhora faz, Miss Brennquivist?

— Sou bióloga molecular. Tal como o Dr. Hayes, mas nem de perto Com a sua capacidade.. Eu utilizo técnicas do ADN recombinante para alterar a colibactéria E para produzir várias proteínas em que o Dr. Hayes estava interessado.

Jason fez que sim Com a cabeça, como se entendesse. Ouvira o termo «ADN recombinante», mas tinha apenas uma ideia muito vaga do que aquilo realmente significava. Desde que saíra da escola médica houvera uma autêntica explosão de conhecimentos nesse campo. Mas havia uma coisa de que de facto se lembrava, e era o medo de que os estudos do ADN recombinante pudessem reproduzir bactérias capazes de causar novas doenças desconhecidas. Com a morte súbita de Hayes em mente, perguntou:

— Haviam deparado Com algumas estirpes novas e potencialmente perigosas?

— Não — disse Helene sem hesitação.

— Como é que pode ter tanta certeza disso?

— Por duas razões. Primeiro que tudo, fui eu que fiz todo o trabalho bacteriano recombinante, e não o Dr. Hayes. Em segundo lugar, utilizamos uma estirpe de colibactéria E que não pode desenvolver-se fora do laboratório.

— Oh — fez Jason, Com um aceno de cabeça encorajante.

— O Dr. Hayes estava interessado no crescimento e no desenvolvimento. Passava a maior parte do seu tempo isolando os factores de crescimento do eixo hipotálamo-pituitária responsável pela puberdade e pelo desenvolvimento sexual. Os factores do crescimento são proteínas. Tenho a certeza que sabe isso.

— Claro.

Que mulher curiosa, pensou. A princípio, a conversa fora como arrancar dentes. Agora que já se encontravam em terreno científico, era extremamente loquaz.

— O Dr. Hayes dava-me uma proteína e eu começava a produzi-la pelas técnicas do ADN recombinante. É o que estou aqui a fazer.

Voltou-se para as pilhas de pratos de pedra, e, levantando um, retirou a cobertura. Estendeu-o na direcção de Jason. Na superfície estavam amontoados esbranquiçados de colónias de bactérias. Depois tornou a colocar o prato na sua respectiva pilha.

— O Dr. Hayes ficava fascinado Com o ligar e desligar dos genes, Com o equilíbrio entre repressão e expressão, Com o papel das proteínas repressoras e onde elas se ligam ao ADN. Utilizou o gene da hormona do crescimento como protótipo. Quer ver o seu último mapa do cromossoma 17?

— Com certeza — disse Jason, forçando um sorriso.

Um besouro de chamada ressoou no laboratório, abafando momentaneamente o zunido cavo do equipamento electrónico. Um ecrã em frente de Helene iluminou-se, mostrando quatro pessoas e um cão no átrio. Jason reconheceu duas delas imediatamente — Shirley Montgomery e o detective Michael Curran. As outras duas eram-lhe desconhecidas.

— Oh, que maçada — fez Helene, enquanto estendia a mão para o besouro de chamada.

Jason levantou-se quando os recém-chegados entraram na sala. Shirley mostrou momentaneamente uma certa surpresa quando viu Jason, mas apresentou calmamente o detective Curran a Helene. Quando ele começou a fazer-lhe perguntas, Shirley tomou Jason pelo braço e conduziu-o para o gabinete ao lado, que, conforme lhe parecia, devia ter sido o de Hayes. Cobrindo as paredes havia uma série progressiva de fotografias da genitália humana percorrendo a evolução anatómica da puberdade. Estavam todas muito bem encaixilhadas em molduras de aço impecável.

— Decoração interessante — comentou Jason, em tom maldoso. Shirley agia como se nem sequer tivesse visto as fotografias. O seu rosto habitualmente calmo apresentava-se preocupado e Com certa irritação.

— Este caso está a sair das marcas.

— Que queres dizer?

— Segundo parece, a noite passada a polícia recebeu uma informação anónima segundo a qual o Dr. Hayes era traficante de drogas. Fizeram uma busca no seu apartamento e encontraram uma significativa quantidade de heroína, cocaína e dinheiro. Agora têm um mandato para passar busca no seu laboratório.

— Meu Deus! — exclamou Jason, compreendendo de súbito a presença do cão.

-—E como se isso não chegasse, descobriram que ele tem estado a viver Com uma mulher de nome Carol Donner.

— Esse nome é-me familiar.

— Então não devia ser — comentou Shirley Com aspereza. — Carol Donner é uma bailarina exótica do Club Cabaret na Combat Zone.

— Bem, estou arrumado — galhofou.

—. Jason! —cortou ela. — Isto não é para rir.

— Não estou a rir — protestou. — Estou apenas aturdido.

— Se achas que estás aturdido, que vai dizer a direcção? E pensar que fui em que insisti em contratarmos Hayes. A morte do homem já não era nada bom. Isto está a tornar-se rapidamente num pesadelo de relações públicas.

— Que vais fazer?

— Não faço a mínima ideia — admitiu. — De momento, a minha intuição diz-me que quanto menos fizermos, melhor.

— Qual é a tua opinião sobre a descoberta científica de Hayes?

— Acho que o homem andava a fantasiar. Quero dizer, andava envolvido Com drogas e Com uma bailarina exótica, por amor de Deus!

Exasperada, voltou para a parte principal do laboratório, onde o detective Curran continuava a conversar atentamente Com Helene. Os outros dois homens e o cão faziam uma busca metódica ao laboratório. Jason observou tudo aquilo por alguns momentos, depois desculpou-se Com o seu trabalho. Ainda tinha uma série de doentes de consulta externa para ver, bem como as visitas aos doentes do hospital.

A caminho de casa, muito embora mais convencido que nunca de que Hayes estivera mais à beira de um esgotamento nervoso do que de uma descoberta científica, parou na biblioteca e tirou um volume delgado intitulado ADN Recombinante: Uma Introdução para o Não Cientista.

O tráfego das horas de ponta era o habitual rali bostoniano de cão-come-cão, e quando Jason apertou o travão de emergência no seu lugar de estacionamento em frente de casa sentiu o alívio usual de que sobrevivera ileso. Levou a pasta para o apartamento e pô-la na secretária de um pequeno estúdio que dava para a praça. Os ulmeiros agora sem folhas pareciam esqueletos recortados no céu da noite. A hora de Verão já tinha terminado e estava escuro lá fora, muito embora fossem apenas sete menos um quarto. Vestido o fato de treino, desceu a correr a Mt. Vernon Street, atravessou a Storrow Drive na ponte Arthur Fietler e correu ao longo do rio Charles. Foi até à ponte da Universidade de Boston antes de voltar. Em contraste Com o Verão, havia poucos praticantes de jogging. No regresso, parou no mercado De Luca e comprou peixe-azul fresco, o necessário para uma salada e uma garrafa de Chardonnay, da Califórnia.

Gostava de cozinhar, e depois de tomar um duche preparou o peixe, grelhando-o Com um pouco de alho e azeite- Fez a salada e foi buscar o vinho ao frigorífico, onde o pusera para dar-lhe um toque gelado. Encheu um copo. Então pôs tudo numa bandeja e levou-a para o estúdio. Tudo preparado, abriu o pequeno livro sobre o ADN recombinante e instalou-se.

A primeira parte do livro serviu como revisão do assunto. Jason sabia muito bem que o ácido desoxirribonudeico, mais conhecido por

ADN, era uma molécula, em forma de fita torcida de dois elementos. Era constituída por subunidades, que se repetiam, chamadas bases, que tinham a propriedade de se juntarem aos pares de maneiras muito específicas. Certas áreas do ADN chamavam-se genes, e cada gene estava associado à produção de uma proteína específica.

Sentiu-se Com mais coragem quando bebeu um golo de vinho. O livro estava bem escrito e tornava o assunto atraente e claro. Gostava daqueles pequenos pormenores, como o facto de que cada célula humana tinha quatro biliões de pares de bases. A parte seguinte do livro tratava das bactérias e do facto de que as bactérias se reproduzem fácil e rapidamente. Em escassos dias, a partir de uma simples célula inicial, podiam fazer-se triliões de células idênticas. Isto era importante, porque em engenharia genética as bactérias serviam como recipiente de pequenos fragmentos do ADN. Este ADN «estrangeiro» era incorporado no próprio ADN da bactéria, e então, à medida que a célula se dividia, manufacturava os fragmentos originais. A bactéria Com o ADN recentemente incorporado passou a chamar-se uma estirpe recombinante e a nova molécula do ADN passou a chamar-se ADN recombinante. Até agora tudo bem.

Comeu um pouco de peixe Com salada e empurrou Com um golo de vinho. O capítulo seguinte tornou-se um pouco mais complicado. Falava da maneira como os genes da molécula de ADN ye punham a produzir as respectivas proteínas. A primeira parte implicava fazer uma cópia do segmento do ADN Com uma molécula chamada o ARN mensageiro. O ARN então dirigia a produção de proteínas num processo chamado transcrição. Jason bebeu mais um pouco de vinho. A última parte do capítulo tornou-se particularmente interessante, uma vez que explicava os elaborados mecanismos que ligavam e desligavam os genes.

Levantando-se da secretária, atravessou a sala comum e entrou na cozinha. Abriu o frigorífico e encheu outro copo de vinho. De volta ao estúdio, deteve-se a olhar pela janela, vendo as luzes do outro lado da praça no Convento de St. Margaret. Sempre o divertia o facto de haver um convento na praça residencial mais desejável de Boston: abandona o mundo material, faz-te freira, e vem para Louisburg! Sorriu, depois volveu os olhos para o livro do ADN recombinante. De novo sentado, releu a secção sobre o momento a partir do qual se dava a expressão dos genes. Era complicado e fascinante. Segundo parecia, fora descoberta uma hoste de proteínas que servia de repressora da função dos genes. Estas proteínas ligavam-se ao ADN ou faziam o ADN encaracolar, para cobrir os genes envolvidos.

Fechou o livro. Já tivera bastante para uma noite. Além disso, a secção sobre o controlo da função dos genes era o que inconscientemente andara a procurar. A leitura dessa secção fê-lo recordar-se do comentário de Hayes de que o que lhe interessava principalmente era «a maneira como os genes ligavam e como desligavam». Helene dissera o mesmo, mas por palavras diferentes.

Pegando no vinho, foi andando até à sala comum. Sem dar por isso, ia acariciando os castiçais de vidro lapidado enquanto a sua mente considerava as possibilidades. Que podia ter querido dizer Hayes quando referiu que fizera um grande avanço científico? De momento afastou a ideia de Hayes ter ilusões de grandeza. Afinal, era um investigador de nível mundial, e trabalhava intensamente. Portanto, havia uma possibilidade de ter estado a dizer a verdade. Se tivesse feito uma descoberta, seria na área do ligar e desligar dos genes, e provavelmente teria a ver Com o crescimento e o desenvolvimento. A imagem das fotografias dos genitais toldou-lhe a mente por instantes.

O telefone acordou-o do seu sonho. Era a enfermeira-chefe da UCC.

— Brian Lennox acaba de morrer. Teve um episódio terminal de fibrilação ventricular, que progrediu até assistolia.

— vou já para aí.

Desligou e pensou no calão científico da enfermeira, reconhecendo que se tratava de uma defesa emocional. Mais uma vez a sombra da morte pairava sobre ele como uma nuvem daninha.

 

O alarme do rádio fez Jason saltar da cama. Pusera o volume no máximo Com receio de não acordar. Tinha passado uma’ ’boa porção da noite a consolar a esposa de Brian Lennox. Depois de ir buscar o jornal à soleira da porta, barbeou-se e tomou um duche enquanto o seu Mr. Coffe (1) executava o habitual milagre da manhã. Ao acabar de se vestir, o apartamento enchia-se do aroma do café de recente infusão. De caneca na mão, retirou-se para o quarto, tirando o Boston Globe do seu invólucro protector de plástico.

Pensando ir directamente à secção desportiva deteve-se num título da primeira página: MÉDICO, DROGA E BAILARINA. Não era um artigo muito lisonjeiro sobre o Dr. Alvin Hayes. Chamava a atenção para a morte chocante de Hayes e associava-a injustamente Com as drogas encontradas no seu apartamento, comparando até a sua relação Com a bailarina Com o caso que envolveu o professor da Tufts Medical School, que fora condenado por assassínio de uma prostituta. Junto ao artigo duas fotografias: a de Hayes da capa da Time e outra de uma mulher a entrar no Qub Cabaret, Com a legenda: «Carol Donner a entrar na sua casa de negócios». Tentou ver qual era o aspecto de Carol Donner, mas era impossível. Tinha uma mão levantada a tapar a cara. Ao fundo havia uma tabuleta que dizia: «TOPLESS COLLEGE GIRLS». Com certeza, pensou Com um sorriso.

Leu o resto do artigo, sentindo pena de Shirley. A polícia informava que fora encontrada uma quantidade significativa de heroína e cocaína no apartamento de South End que Hayes partilhava Com Carol Donner.

Dirigiu-se depois para o hospital onde encontrou os seus doentes internados de uma maneira geral em pior estado. Matthew Cowen, que no dia anterior tivera uma manifestação cardíaca, mostrava sintomas estranhos e de modo alarmantes aos do falecido Cedric Harring: artrite, obstipação intestinal e pele seca. Nenhum destes sintomas lhe causaria normalmente preocupação. Mas em face dos acontecimentos recentes, deixavam-no inquieto. De novo parecia surgir o espectro de qualquer nova doença infecciosa desconhecida que não sabia controlar. Tinha a sensação de que o estado de Matthew estava prestes a mudar para pior.

Depois de pedir uma consulta de dermatologia para Cowen, desceu sorumbático ao seu gabinete, onde Claudia o cumprimentou Com a informação de que estivera a ver os exames anuais de executivos da letra P. Telefonara aos doentes e descobrira que apenas dois se queixavam de problemas de saúde.

Estendeu as mãos para as pastas e abriu-as. A primeira era de Holly Jennings e a outra de Paul Klinger Ambos haviam feito os seus exames anuais há menos de um mês.

— Telefone-lhes outra vez e peça para virem cá logo que possível, mas sem alarmá-los.

— Vai ser difícil não os perturbar. Que devo eu dizer?

— Diga-lhes que queremos repetir um teste qualquer. Use a imaginação.

Mais tarde, nesse dia, decidiu ver se conseguia arrancar mais informações sobre Hayes à técnica de laboratório, mas no momento em que viu Helene ela tornou bem claro que não estava disposta a ir na sua conversa.

— A polícia encontrou alguma coisa? — perguntou, sabendo desde já que a resposta era não. Shirley telefonara-lhe a falar do caso após a polícia ter partido, agradecendo a Deus estes pequenos favores.

Helene abanou a cabeça.

— Sei que está ocupada... mas acha que podia dispensar-me um minuto? Gostava de lhe fazer mais umas quantas perguntas.

Por fim parou de trabalhar e voltou-se para ele.

— Obrigado — disse ele, sorrindo.

A expressão dela não mudou. Não era desagradável, apenas neutra.

— Detesto estar a bater sempre no mesmo, mas... continuo a pensar no que o Dr. Hayes disse sobre um avanço científico importante. Tem a certeza de que não tem ideia alguma do que poderia ser? Seria trágico se se perdesse uma verdadeira descoberta médica.

— Disse-lhe o que sei. Podia mostrar-lhe o último mapa que ele fez do cromossoma 17. Isso adiantaria alguma coisa?

— Vamos experimentar.

Helene dirigiu-se para o gabinete de Hayes. Ignorou as fotos que cobriam as paredes, mas Jason não pôde fazê-lo. Perguntava a si próprio que espécie de homem era capaz de trabalhar em tal ambiente. Helene apresentou-lhe uma grande folha de papel coberta de letra miudinha impressa, dando a sequência de pares de bases da molécula do ADN compreendendo uma porção do cromossoma 17.

Havia uma série espantosa de pares de bases: centenas e centenas de milhares.

— A área do Dr. Hayes fica aqui — disse, e apontou para uma grande secção onde os pares estavam feitos a vermelho. — Estes são o:- genes associados Com a hormona do crescimento. É muito complexo.

— Tem razão.

Sabia que tinha de ler muito mais para conseguir encontrar algum sentido em tudo aquilo.

— Há alguma possibilidade de que estes cálculos pudessem ter levado a uma importante descoberta científica?

Helene pensou por um momento, depois abanou a cabeça.

— A técnica já se conhece há algum tempo.

— E sobre o cancro? — perguntou, como por acaso. — O Dr. Hayes podia ter descoberto alguma coisa sobre o cancro?

— Não trabalhámos Com o cancro.

— Mas se ele estava interessado na divisão e maturação celular, é possível que pudesse ter descoberto alguma coisa sobre o cancro. Especialmente Com o seu interesse no ligar e desligar dos genes.

— Acho que é possível — disse Helene sem entusiasmo. Jason tinha a certeza que Helene não estava a ser tão prestável

quanto podia ser. Como assistente de Hayes, devia ter uma ideia melhor do que Hayes estava a fazer. Mas não havia maneira de forçar a questão.

— E quanto aos seus livros de laboratório?

Helene voltou para o seu lugar na bancada do laboratório. Abrindo a segunda gaveta da mesa, puxou de um livro de registos.

— Isto é tudo quanto tenho — disse, passando-o a Jason.

O livro estava cheio até três quartos. Via-se que se tratava apenas de um livro de dados sem protocolos experimentais, e sem esses, os dados não faziam sentido.

— Não há outros livros de laboratório?

— Havia alguns — admitiu —, mas o Dr. Hayes guardava-os consigo, especialmente nestes últimos três meses. Em princípio guardava tudo na cabeça. Tinha uma memória fabulosa, especialmente para números.

Por um breve instante Jason viu uma luz nos olhos de Helene e pensou que ela talvez se abrisse, mas tudo se fechou. Caiu de novo em silêncio. Pegou no livro de dados e tornou a colocá-lo na gaveta respectiva.

— Deixe-me fazer-lhe outra pergunta — continuou, lutando Com as palavras que ia dizer. — Pelo que sabe, o Dr. Hayes agiu normalmente nestas últimas semanas? Ele parecia ansioso e extremamente cansado quando o vi. — Deliberadamente procurou atenuar o estado de Hayes.

— Pareceu-me normal — disse peremptória.

Eh lá!, pensou Jason. Agora tinha a certeza que Helene não se estava a abrir Com ele. Infelizmente, não podia fazer nada. Agradecendo-lhe e desculpando-se, saiu do laboratório de Hayes. Desceu no elevador, evitou que Sally o visse atravessar o edifício principal e foi à patologia.

Encontrou Jackson Madsen no laboratório de química, onde havia um problema Com uma das máquinas automáticas. Encontravam-se lá dois empregados da companhia para a reparar, e Jackson ficou contente por ter de voltar ao seu gabinete Com Jason para lhe mostrar os diapositivos do coração de Harring.

— Espera até veres isto — disse, quando colocou um diapositivo debaixo do microscópio. Espiou pela ocular, movendo o diapositivo habilmente Com o polegar e o indicador. Depois afastou-se e deixou Jason ver.

— Vês esse vaso?

Jason confirmou Com um gesto de cabeça.

— Nota que o lúmen está menos obliterado. É uma das piores arterosclerose que já vi. Essa matéria rosada parece amiloide. É espantoso, especialmente se dizes que o ECG dele estava bom. E deixa-me mostrar mais uma coisa. — Jackson pôs outro diapositivo. — Vê agora.

Jason espiou pelo microscópio.

— Que devo eu ver?

— Nota como os núcleos estão inchados. E a matéria rosada. É amiloide de certeza.

— Que quer isso dizer?

— É como se o coração do tipo estivesse cercado. Nota as células inflamatórias.

Nada habituado a ver lâminas ao microscópio, não as havia notado a princípio, mas agora saltavam à vista.

— Que achas disto — perguntou.

— Não tenho a certeza. Que idade disseste que este tipo tinha?

— Cinquenta e seis. — Jason endireitou-se. — Há alguma possibilidade, pelos teus cálculos, de estarmos perante alguma doença infecciosa nova?

Jackson pensou por momentos, depois abanou a cabeça.

— Creio que não há inflamação suficiente para isso. Parece mais metabólico, mas é tudo quanto posso dizer. Oh, mais uma coisa — acrescentou, pondo outro diapositivo. Enquanto o focava foi falando. — Isto é parte do núcleo vermelho no cérebro. Diz-me o que vês.

Afastou-se. Jason espiou pela ocular. Viu um neurónio. Dentro do neurónio estava um núcleo proeminente, bem como uma zona granular manchada. Descreveu-a a Jackson.

— Trata-se de lipofuscina — disse Jackson, que retirou o diapositivo.

Jason endireitou-se.

— Que quer tudo isso dizer?

— Quem me dera saber. Tudo nada específico, mas por certo uma sugestão de que o teu Sr. Harring era um tipo doente. Estes meus diapositivos podiam ser do meu avô.

— É a segunda vez que ouço uma coisa parecida — observou lentamente. — Não podes dar-me nada de mais específico?

— Lamento, mas não. Bem queria poder ser mais prestável. vou fazer alguns testes para ter a certeza de que estes depósitos no coração e noutros sítios são amiloide. Depois digo-te.

— Obrigado... E sobre os diapositivos de Hayes?

— Não estão prontos ainda.

Jason voltou ao segundo pavimento e foi andando até à área dos doentes de consulta externa. Como médico, sempre tivera dúvidas sobre a eficácia de certos testes, maneiras de agir e drogas. Mas nunca tivera razão para pôr em questão a sua competência geral. De facto, na maioria das situações sempre pensara em si como bem acima da média. Agora, já não estava tão certo disso. Estes receios eram perturbadores, especialmente porque estivera a usar o trabalho como sua principal preocupação desde a morte de Danielle.

— Onde é que tem estado? — perguntou Sally, apanhando Jason quando ele tentava escapar-se para o seu gabinete.

Em escassos minutos, Sally mergulhava-o numa série de problemas menores, que felizmente lhe absorveram a atenção. Na altura em que conseguiu respirar mais um pouco, já passava do meio-dia. Viu o último doente, que queria conselhos e medicamentos porque ia fazer uma viagem à índia, e depois ficou livre.

Claudia tentou convidá-lo a juntar-se a ela e a algumas outras secretárias para o almoço, mas declinou o convite. Retirou-se para o seu gabinete e ficou a pensar. O pior para ele era a frustração. Tinha a sensação de que algo estava terrivelmente errado, mas não sabia o que era ou o que havia de fazer a respeito. Sentiu-se evadido por uma grande solidão.

— Diabo!—exclamou, batendo no tampo da secretária Com a mão aberta, de tal modo que pôs os papéis a voar. Tinha de evitar cair em depressão. Era preciso fazer qualquer coisa. Despiu a bata e, enfiando o casaco, pegou no seu bip-bip e desceu para a garagem. Meteu-se no carro e deu a volta ao Fenway, passando pelo Gardner Museum e depois pelo Museum of Fine. Arts, à sua direita. Então, dirigindo-se para o Sul pela Storrow Drive, saiu em Arlington. O seu destino era o quartel da polícia de Boston.

No quartel da polícia, um agente indicou-lhe o quinto andar. Logo que saiu do elevador, viu o detective no átrio a aproximar-se de caneca de café na mão. Curran estava sem casaco, Com o colarinho desabotoado e a gravata desapertada. Sob o braço esquerdo trazia suspenso um coldre de couro já gasto. Quando viu Jason pareceu perplexo até ele o relembrar de que se haviam encontrado na morgue e no GHP.

— Ah, sim — disse, Com o seu ligeiro sotaque. — O caso Alvin Hayes.

Convidou Jason a entrar no seu gabinete, todo utilitário, Com uma secretária de metal e um ficheiro igualmente de metal. Na parede via-se um calendário Com o horário do basquetebol dos Celtics.

— Que tal um pouco de café? — sugeriu, pousando a caneca.

— Não, obrigado.

— Você é esperto — comentou. — Sei que toda a gente se queixa do café institucional, mas esta coisa faz mesmo mal. — Puxou uma cadeira de metal da parede e fez menção para Jason se sentar. — Então em que é que lhe posso ser útil, doutor?

— Não tenho bem a certeza. Este caso do Dr. Hayes incomoda-me. Lembra-se de lhe dizer que ele disse que fizera uma descoberta importante? Ora eu penso que há muitas probabilidades de que isso tenha acontecido. Afinal, o homem era um investigador de fama mundial e andava a trabalhar num campo Com muitas possibilidades.

— Um momento. Também não me disse que achava que Hayes estava a passar por um esgotamento nervoso?

— Na altura pensei que ele apresentava um comportamento anormal. Pensei que se tratava de paranóia e alucinação. Agora já não tenho a certeza. E se ele tivesse feito uma importante descoberta que não revelara porque ainda estava a aperfeiçoá-la? Suponha que alguém viesse a saber da coisa e por alguma razão quisesse suprimi-la?

— E o tivesse mandado matar? — interrompeu Curran um tanto condescendente. — Doutor, está a esquecer um facto importante. Hayes morreu de causas naturais. Não houve jogo sujo, nem tiros na cabeça, nem facadas nas costas. E em cima disso, negociava. Encontrámos heroína, coca e dinheiro no seu coito de Southie. Não admira que parecesse paranóico. O mundo da droga é coisa séria.

— Essa denúncia anónima não é um pouco estranha? — perguntou Jason, subitamente curioso.

—’Acontece constantemente. Alguém dá à dica sobre qualquer coisa e eles chamam-nos para se vingarem.

Jason fitou o detective. Achava que a ligação Com a droga não se enquadrava, mas não sabia porquê. Depois lembrou-se que Hayes estivera a viver Com uma bailarina exótica. Talvez a coisa afinal não fugisse ao quadro.

— Ouça, doutor — começou Curran, como que lendo os pensamentos dele —, agradeço-lhe ter tido a maçada de vir cá, mas factos são factos. Não sei se este tipo fez uma descoberta ou não, mas deixe-me dizer-lhe uma coisa. Se ele traficava Com drogas, também as tomava. É esse o cenário habitual. Mandei o Departamento do Vício passar o nome dele pelos computadores. Não chegaram a nada, mas isso apenas quer dizer que ele não fora ainda apanhado. Teve sorte em morrer de causas naturais. Em qualquer caso, não tenho justificação para gastar o tempo do Departamento dos Homicídios Com essa morte.

— Continuo a pensar que há mais do que isso. Curran sacudiu a cabeça.

— O Dr. Hayes estava a tentar dizer-me qualquer coisa — insistiu Jason. — Acho que queria que o ajudasse.

— Com certeza... Provavelmente queria atraí-lo para o círculo da droga. Ouça, doutor, aceite o meu conselho. Esqueça o caso. — Levantou-se, indicando assim que a entrevista terminara.

Chegando à rua, Jason retirou o bilhete de estacionamento do limpa-para-brisas. Entrando no carro, pensava na sua conversa Com o detective Curran. O homem fora cordial, mas era óbvio que dava pouco crédito às suas ideias e intuição. Quando pôs o carro em andamento, recordou-se doutra coisa que Hayes lhe dissera sobre a sua descoberta. Dissera que era «irónica». Ora essa era uma maneira estranha de caracterizar um importante avanço científico, especialmente se alguém andava a inventar a história.

De novo no GHP, voltou aos seus doentes, indo de quarto em quarto, ouvindo, tocando, dando uma palavra de carinho e aconselhando. Era o que adorava na medicina. As pessoas abriam-se para ele, literalmente e em sentido figurado. Sentiu-se privilegiado e necessário. Parte da sua confiança refluía para ele.

Eram quase quatro horas quando se aproximou do quarto de exames C e pegou na ficha. Recordava-se do nome. Era Paul Klinder, o homem a quem fizera o exame anual. Antes de entrar no quarto, passou em revista rapidamente o relatório. O homem parecia ser saudável, Com baixo colesterol e triglicéridos e ECG normal. Entrou no quarto.

Klinder era magro, Com cabelo ruivo e a calma confiança do velho yankee endinheirado.

— Que há de mal nos meus testes?—perguntou preocupado.

— Nada, realmente.

— Mas a sua secretária disse-me que o senhor doutor queria repetir alguns. Que eu tinha de vir hoje.

— Desculpe o incómodo. Não era nada para alarmes. Quando ela soube que o senhor não se andava a sentir bem, pensou que devíamos dar uma olhadela.

— Estou a recuperar da gripe. Os pequenos trouxeram-na da escola. Estou muito melhor. O único problema é que não me deixa fazer exercício há mais de uma semana.

A gripe não assustou Jason. As pessoas saudáveis não morriam disso. Mas continuou a examinar Paul Klinger Com cuidado e repetiu vários testes cardíacos. Finalmente disse a Klinger que lhe telefonaria se as análises de sangue revelassem alguma anormalidade.

Dois doentes mais à frente, Jason confrontou-se Com Holly Jennings, uma executiva de cinquenta e quatro anos de uma das maiores firmas de publicidade de Boston. Não se sentia contente e com certeza que não se envergonhava de exprimir os seus sentimentos. E embora houvesse um aviso específico contra os fumadores, ela enchera o quarto de fumo enquanto estivera à espera.

— Que diabo é que se passa? — perguntou quando Jason entrou no quarto. O seu exame anual feito havia um mês dera-lhe um relatório de saúde limpo, embora Jason a avisasse para parar de fumar e para se livrar dos dez ou quinze quilos que acrescentara ao seu peso nos últimos cinco anos.

— Disseram-me que não andava a sentir-se bem — disse Jason suavemente- Notou que tinha aspecto de cansada e viu-lhe círculos escuros debaixo dos olhos.

— É por causa disso tudo? — perguntou secamente. — A secretária disse-me que queria repetir alguns testes. Que têm eles de mal?

— Nada. Apenas queríamos acompanhar o seu estado. Fale-me da sua saúde.

— Jesus Cristo! Arrastam-me para aqui, metendo-me um medo dos diabos, fazendo-me perder duas importantes sessões de apresentação, só para conversar. Isto não se podia tratar pelo telefone?

—Bem, uma vez que está aqui, por que não me diz como se tem sentido?

— Cansada.

— Nada mais?

— Geralmente mal. Não tenho conseguido dormir. Não tenho apetite. Nada de específico... bem, não é verdade. Os olhos têm-me incomodado. Tive de começar a usar óculos escuros, mesmo no escritório.

— Mais alguma coisa? — perguntou, começando Com uma desconfortável sensação de medo.

Holly encolheu os ombros.

— Por alguma razão maldita o cabelo está a começar-me a cair. Com o maior cuidado possível, Jason examinou a mulher. O pulso

e a tenção arterial estavam altos, embora isso pudesse ser devido ao stress. Tinha a pele seca, particularmente nas extremidades. Quando lhe repetiu o ECG, pensou que talvez tivesse havido ligeiras alterações do ST que indicavam provável redução de oxigénio no coração. Quando sugeriu que fizesse outro teste de stress, ela declinou.

— Posso cá voltar para fazer isso?

— Achava melhor fazer agora. De facto, não podia considerar a hipótese de ficar no hospital por uns dias?

—Está a brincar? Não tenho tempo. Além disso, não me sinto mal a esse ponto. Por que razão é que o está a sugerir?

— Apenas para fazer tudo. Gostava que consultasse um cardiologista e um oftalmologista também.

—’Na semana que vem. Segunda ou terça-feira. Mas mesmo assim tenho algumas dificuldades.

Com relutância deixou Holly ir-se embora depois de feita uma colheita de sangue. Não havia maneira de a forçar a ficar e nada tinha de suficientemente específico para convencê-la de que estava Com problemas. Era apenas um pressentimento: um mau pressentimento.

Seguindo a sua habitual rotina depois de regressar a casa, Jason praticou o seu jogging, parou no mercado De Luca onde comprou um frango perdue, pôs a refeição no forno, tomou um duche e retirou-se para o seu quarto Com uma cerveja gelada. Instalando-se confortavelmente, continuou a sua leitura sobre o ADN. Começou a entender a maneira como Hayes conseguia isolar genes específicos. Era isso que Helene Brennquivist estivera provavelmente a fazer nessa manhã. Logo que se encontrasse uma colónia de bactérias apropriada, era cultivada para produzir triliões de bactérias. Depois, utilizando enzimas, o ADN das bactérias era separado, fragmentado, e o gene desejado era isolado e purificado. Mais tarde, podia ser de novo unido a diferentes bactérias em regiões do ADN que pudessem ser «ligadas» pelo investigador. Nessa forma, a estirpe recombinante das bactérias agia como fábricas miniatura para produzir a proteína para a qual o gene era codificado. Fora este método que Hayes usara para produzir a hormona humana do crescimento. Começara Com uma porção do ADN humano, o gene que fazia a hormona do crescimento, repetia-o Com a ajuda das bactérias, depois unia-o ao ADN das bactérias numa zona controlada por um gene responsável pela digestão de lactose. Juntando lactose à cultura, a estirpe recombinante de bactérias de Hayes tinha sido «ligada» para produzir a hormona humana do crescimento.

Bebeu o resto da cerveja e foi à cozinha buscar outra. Estava extraordinariamente abalado Com o que lera. Não admirava que cientistas como Hayes fossem estranhos. Sabiam que tinham o poder de manipular a vida. Este facto emocionava-o e perturbava-o ao mesmo tempo. A tecnologia do ADN tinha um potencial terrível para fazer o bem e o mal. «A direcção a tomar», pensou, «era uma questão de moeda ao ar.»

Armado destas informações, estava mesmo mais inclinado a acreditar que Hayes, embora sob stress geral, estivera a dizer a verdade—pelo menos a respeito do avanço científico. Já não tinha tanta certeza quanto à afirmação de Hayes de que alguém o queria matar. Desejava ter passado mais tempo Com o homem nestes últimos meses. Bem gostava de saber mais coisas a respeito dele.

Abrindo o forno, verificou o estado do frango. Estava belamente tostado e tinha um aspecto delicioso. Pôs água a ferver para o arroz, depois voltou ao quarto. Pondo as pernas sobre a secretária e inclinando a cadeira para trás, começou o capítulo seguinte sobre as técnicas de laboratório da engenharia genética. A primeira parte tratava dos métodos pelos quais as moléculas do ADN se fragmentavam Com enzimas chamadas endonucleases de restrição. Teve de ler o capítulo várias vezes. Era material difícil.

O som agudo do detector de fumos sobressaltou-o. Levantando-se da secretária onde tinha adormecido profundamente, dirigiu-se à pressa para a cozinha. A água para o arroz fervera e evaporara-se toda, e o revestimento de Teflon estava a fumegar, enchendo a cozinha de vapores acres. Pôs o tacho debaixo de água corrente, o que provocou uma série de salpicos que sibilavam. A ventoinha de exaustão a trabalhar e uma das janelas da sala comum aberta fizeram desaparecer lentamente o fumo da cozinha, e finalmente o detector de fumos ficou silencioso. Estava contente por o senhorio estar fora da cidade, como habitualmente.

Quando o jantar ficou pronto finalmente, sem arroz, levou-o para a secretária do quarto, empurrando para o lado jornais e livros. Quando começou a comer deu por si a olhar para a primeira página do Boston Globe Com o artigo MÉDICO, DROGA E BAILARINA a fitá-lo no rosto. Pegando no jornal Com a mão esquerda, tornou a olhar para Carol Donner. A ideia de que Hayes teria vivido Com esta mulher deixou-o confuso. Perguntava a si próprio se Hayes não fora vítima da fantasia dos velhos, que levava a salvar a prostituta que, apesar do seu trabalho, tinha um coração de ouro. Pensando em Hayes como colega Com uma formação semelhante, incluindo a mesma escola médica, achou muito forçada a ideia de ele se deixar levar por tal banalidade. Mas como Curran dissera, factos eram factos. Era óbvio que Hayes vivera Com a rapariga. Atirou o jornal para o lado.

Depois de ler o que conseguiu encontrar sobre pele seca, que não foi muito, levou os pratos sujos para a cozinha e passou-os por água. A imagem de Carol Donner Com a mão em frente da cara continuava a aparecer-lhe na cabeça. Olhou para o relógio. Eram dez e meia. «Por que não?», disse em voz alta. Afinal, se Hayes vivera Com a mulher, talvez ela soubesse de alguma coisa que pudesse dar-lhe uma pista sobre o trabalho de Hayes. De qualquer modo, nada tinha a perder. Vestiu uma camisola de lã e um casaco e saiu do apartamento.

De Beacon Hill à Combat Zone eram apenas quinze minutos a pé. Mas estes quinze minutos representavam para Jason uma enorme distância social. Beacon Hill era a epítome da riqueza e propriedade confortáveis, Com as suas ruas empedradas e candeeiros a gás. A cornbat Zone era o sórdido oposto. Para chegar lá, rodeou a orla do Boston Common, chegando à Washington Street, Com a sua série de bares sem fundo à laia de Boylston Street. Eram os magotes deambulantes de mulheres da rua a procurar misturar-se Com grupos barulhentos de estudantes e trabalhadores de fato-macaco e casaco de cabedal provindos de Dorchester. O Club Cabaret ficava a meio do quarteirão, aninhado entre um cinema só para maiores de dezoito anos e uma livraria para adultos Com uma variedade de artigos de suposto apoio sexual em exposição na montra. A tabuleta TOPLESS COLLEGE GIRLS rebrilhava na sua tinta fluorescente.

Aproximou-se da porta e entrou. Achou-se no bar, uma sala escura sobre o comprido iluminada no centro para chamar a atenção para uma pista de madeira. O bar em si era em forma de U e rodeava a pista. Por detrás havia pequenas cabinas, e toda a sala ressoava Com música rock que provinha de grandes altifalantes que flanqueavam as escadas que do pavimento superior desciam para a pista.

O ar estava empestado de fumo de cigarro e daquele peculiar odor químico que cheira a desodorizante barato. O lugar estava quase cheio de homens curvados sobre as suas bebidas no bar. Era difícil ver dentro das cabinas, mas quando passou, percebeu lá dentro numerosas mulheres Com reduzidos vestidos de correias finas. Viu um banco vazio junto ao bar e sentou-se. Uma empregada, Com uma saia branca e calções pretos justos atendeu-o quase de imediato.

Quando ela lhe trouxe a cerveja e um copo, descia as escadas uma bailarina seminua que se pavoneou ao longo da pista. Jason fitou-a, olhando-a nos olhos por um instante. Parecia enfadada. O rosto estava pesadamente maquilhado e o cabelo branqueado tinha a consistência da palha. Calculou-lhe a idade, teria mais de trinta anos, por certo sem instrução.

Olhando ao redor da sala, notou iguais expressões de enfado nas caras dos homens enquanto os olhos seguiam mecanicamente o desenrolar dos movimentos da bailarina pela pista. Bebeu um pequeno golo de cerveja pela garrafa. Não se sentia capaz de tocar Com os lábios num copo naquele lugar.

Quando o trecho de rock-and-roll terminou, a bailarina agiu como se momentaneamente não soubesse que fazer. Embaraçada, nos seus sapatos de dez centímetros de salto, mudava o peso do corpo de um pé para o outro, aguardando o número seguinte. Jason notou-lhe a tatuagem de um coração na coxa direita.

Com ritmo forte de bateria, o número seguinte começou, e a loura voltou imediatamente às suas revoluções pseudobalétícas. Enquanto assim dançava, tirou o soutien reduzido. Agora tudo quanto tinha no corpo era uma simples faixa a cobrir-lhe o sexo, e os sapatos. Todavia, os homens no bar pareciam feitos de pedra. Os únicos movimentos eram os necessários para levar a bebida ou o cigarro aos lábios. Pelo menos até a bailarina começar a mover-se ao longo da pista. Então uns quantos clientes estendiam notas de dólar.

Jason ficou-se a observar durante algum tempo, depois voltou a examinar a sala. A cerca de seis metros havia uma cabina ocupada por um homem de fato escuro e charuto, Com óculos escuros embrenhado no estudo de um livro de registo. Jason não fazia ideia de como o homem conseguia ver alguma coisa mas achou que ele devia ser a gerência da casa. Vários latagões de pescoço enorme, trajando T-shirts brancas, encontravam-se de um e de outro lado da cabina, os braços musculosos cruzados e a cabeça constantemente a girar para investigar o que se passava na sala.

Quando a música terminou, a loura do strip-tease apanhou as suas coisas e correu escadas acima. Os aplausos foram esparsos. Quando a música recomeçou, nova bailarina desceu as escadas e rodopiou pela pista. Vestida de cigana, trajo vistoso e cheio de roda, bem podia ser a irmã da primeira bailarina — a sua irmã mais velha.

Com rapidez, Jason apanhou o sentido do programa. Uma rapariga aparecia Com um trajo estranho qualquer e dançava, tirando as peças de roupa à medida que o número se desenrolava. Passaram quarenta e cinco minutos e Jason começou a pensar se Carol Donner estaria no programa daquela noite. Perguntou a uma das empregadas.

— Deve ser a seguir. Quer outra bebida, senhor?

Abanou a cabeça. Estava contente por fazer chegar a sua primeira cerveja para toda a visita. Olhando à volta, notou que várias das bailarinas de strip-tease tinham voltado à sala. Paravam a conversar Com o homem de óculos escuros e depois vagueavam pela sala, cavaqueando Com os clientes. Tentou imaginar Hayes, o famoso biólogo molecular, ali no bar. Mas Com o que conhecia dele, era-lhe impossível imaginá-lo.

Seguiu-se uma pausa na música e as luzes da pista foram-se apagando. Um sistema de informação ao público deu sinal pela primeira vez e anunciou a artista seguinte: a famosa Carol Donner. Os enfadados clientes endireitaram-se e o bar pareceu despertar. Ouviram-se uns quantos assobios.

A música passou a um rock mais suave e uma figura surgiu na pista. Quando as luzes voltaram a acender, ficou admirado. Para seu espanto, Carol Donner era uma bela jovem. A pele tinha uma tonalidade saudável e os olhos cintilavam. Como se estivesse numa aula de aeróbica, vestia um trajo de malha, justo ao corpo, e perneiras. Os pés descalços. Deslizou pela pista Com graça e sem esforço, e Jason notou que o seu sorriso se revestia de puro prazer.

À medida que o número se desenrolava, retirou as perneiras, uma faixa de seda da cintura e depois o trajo de malha. A assistência toldada pelo álcool aplaudiu então, à medida que ela continuava a dançar escadas acima, exibindo a sua nudez. Logo que desapareceu da vista, os clientes voltaram à sua modorra. Jason continuou à espera que Carol aparecesse na sala como as outras raparigas, mas passados vinte minutos decidiu que não podia esperar. Afastou o banco e foi ao encontro do homem dos óculos escuros. Um dos latagões notou a sua aproximação e abriu os braços.

— Desculpe — disse para o homem Com o livro de registos. — Seria possível falar Com Carol Donner?

O homem tirou o charuto.

— Quem diabo é você?

Teve relutância em dizer o seu nome, e enquanto hesitava, o homem de óculos escuros fez um sinal a um dos latagões. Então sentiu umas mãos enormes a agarrarem-lhe no braço e indicar-lhe a direcção da porta.

— Só quero...

Mas não conseguiu dizer mais nada. Agarraram-no pelo casaco e rapidamente atravessaram o bar a todo o comprimento, passaram a cortina escura, os pés mal lhe tocando no chão. Com uma boa dose de humilhação, viu-se atirado porta fora para o meio da rua.

 

Depois de acordado pelo alarme do rádio, precisou de ficar sob o chuveiro por vários minutos para se sentir capaz de enfrentar o dia. Na noite anterior, depois de regressar da desagradável visita ao Club Cabaret, fora chamado ao hospital. Um dos seus doentes de SIDA, um homem chamado Harvey Rachman, não aguentara. Quando Jason chegou, o pessoal de emergência tinha estado a dar-lhe RCP [aparelho de ressuscitação cardiopulmonar] durante quinze minutos. Tentaram tudo durante duas horas antes de admitir a derrota. O comentário da enfermeira-chefe de que pelo menos o homem não tinha de sofrer mais não serviu de muita consolação a um Jason combalido. Para ele parecia que a morte estava a ganhar a competição.

O único lado positivo da visita aos doentes internos mais tarde nessa manhã foi dar alta a um dos seus casos de hepatite. Ficou triste por ver a rapariga ir-se embora. Agora apenas tinha um único paciente que ia passando bem.

Na UCC, Matthew Cowen não estava melhor. A juntar a outras queixas, estava agora Com problemas na vista. O sintoma preocupou Jason. Harring e Lennox também se haviam queixado de enfraquecimento da visão nas semanas que precederam a morte, e de novo a possibilidade de alguma nova doença multissistémica lhe atravessou a mente. Mandou fazer uma consulta de oftalmologista. Depois de terminar as visitas, dirigiu-se à patologia para ver se estavam prontos os diapositivos da autópsia de Hayes. Talvez eles ajudassem a explicar por que razão tantas pessoas aparentemente saudáveis estavam a sofrer catástrofes cardiovasculares.

Teve de esperar enquanto Jackson pedia pelo telefone ao departamento respectivo um relatório sobre um exame por congelação. Era uma biópsia da mama e era positiva.

— Isto sempre me deixa num estado terrível — comentou Jackson, pousando o auscultador. Depois, em tom mais alegre, acrescentou: — Aposto que queres ver os diapositivos de Hayes. — Procurou pela secretária até encontrar a pasta em causa. Abrindo-a, tirou um diapositivo e focou-o para Jason ver. — Espera até veres isto.

— Aí tens a aorta de Hayes — explicou Jackson enquanto Jason olhava. A morte e a desorganização celulares eram evidentes mesmo para um observador sem prática. — Não me admira que explodisse — continuou Jackson. — Nunca vi tanta deterioração em pessoa alguma Com menos de setenta anos, a não ser Com doença da aorta declarada. E deixa-me mostrar-te mais uma coisa. — Substituiu o diapositivo. — Agora é o coração de Hayes. Olha para o vaso coronário. É igual ao de Cedric Harring. Se a aorta de Hayes não tivesse estoirado, teria morrido de ataque de coração. O homem era uma bomba de relógio ambulante. E não só isso; tinha uma inflamação na tiroide, de novo como Harring. De facto, havia tantos pormenores paralelos que fui rever a aorta de Harring. E sabes uma coisa? A aorta de Harring estava prestes a estoirar também.

— O que pretendes dizer exactamente? Jackson estendeu as mãos.

— Não sei. Existem profundas semelhanças entre estes dois casos. A inflamação generalizada... mas creio que não infecciosa. Tem mais o aspecto de auto-imunidade, como se o sistema imunitário tivesse começado a atacar-lhes os órgãos.

— Queres dizer como o lúpus?

— Sim, uma coisa dessas. De qualquer modo, Alvin Hayes estava numa forma terrível. Quase todos os órgãos se encontravam em estado de deterioração. Estava a desfazer-se pelas costuras.

— Disse que não se estava a sentir muito bem.

— Ah! — exclamou Jackson. — Essa é a pior do ano.

Jason saiu da patologia, tentando achar sentido na afirmação de Jackson. Mais uma vez considerou a possibilidade de uma doença infecciosa desconhecida, apesar da opinião de Jackson. «Afinal, que espécie de doença auto-imunitária conseguia desenvolvimento tão rápido?» Respondeu à própria pergunta: «Nenhuma.»

Antes de começar Com as consultas, decidiu parar no laboratório de Hayes. Não que esperasse que Helene passasse a ser mais prestável, mas achou que ela talvez se interessasse pelo facto de Hayes ter estado tão doente nas últimas semanas de vida. Para surpresa sua, viu que Helene estivera a chorar.

— Que se passa? Helene abanou a cabeça.

— Nada.

— Não está a trabalhar?

— Já acabei.

De súbito, Jason apercebeu-se de que sem Hayes ali para lhe dar instruções, ela estava perdida. Segundo parecia não fora informada do grande quadro, facto esse que deixava Jason pessimista quanto à possibilidade de ela saber da descoberta de Hayes, se realmente alguma existiu. A inclinação do homem para o segredo ia ser uma perda para a sociedade.

— Importa-se que converse consigo uns minutos?

— Não — disse Helene na sua maneira lacónica de falar, indicando-lhe o gabinete de Hayes.

Jason seguiu-a, assaltado mais uma vez pelas expressivas fotografias de órgãos genitais.

— Acabo de vir da patologia — começou logo que se sentaram. — O Dr. Hayes, segundo parece, estava muito doente. Tem a certeza de que ele não se queixava de se sentir doente?

— Queixava-se, sim — admitiu Helene, contradizendo a sua anterior afirmação. — Estava sempre a dizer que se sentia fraco.

Jason fitou-a Pareceu-lhe menos hirta, mais aberta, e apercebeu-se de que, em contraste Com as ocasiões anteriores em que a vira, tinha agora o cabelo solto, a cair-lhe pelos ombros, em vez de muito puxado para trás.

— Da última vez disse que o comportamento dele não mudara.

— E não Mas dizia que se sentia terrivelmente.

Frustrado Com esta distinção semântica, voltava a ficar convencido de que ela encobria qualquer coisa. Perguntava de si para si porquê, mas sentiu que não havia outro processo senão confrontá-la.

— Miss Brennquivist — começou Com paciência —, mais uma vez lhe quero perguntar... Tem absoluta certeza de que não tem ideia alguma daquilo a que o Dr. Hayes podia estar a referir-se quando ele me disse que fizera uma importante descoberta científica?

Abanou a cabeça.

— Realmente não sei. A verdade foi que as coisas não tinham andado bem no laboratório. Há cerca de três meses, os ratos que recebiam factores de libertação da hormona do crescimento tinham começado misteriosamente a morrer.

— De onde vieram os factores de libertação?

— Foi o próprio Dr. Hayes que os extraiu de cérebros de ratos. Principalmente do hipotálamo. Depois eu produzi-os pelas técnicas do ADN recombinante.

— Portanto, as experiências foram um fracasso?

— Completamente. Mas, como qualquer grande investigador, o Dr. Hayes não perdia a coragem. Em vez disso, trabalhava ainda mais. Tentou diferentes proteínas, mas infelizmente Com os mesmos resultados fatais.

— Acha que o Dr. Hayes estava a mentir quando me disse que fizera uma descoberta?

— O Dr. Hayes nunca mentia — disse Helene indignada.

— Bem, então como explica isto? Aprincípio pensei que Hayes estava Com esgotamento nervoso. Agora já não tenho a certeza. Que é que acha?

— O Dr. Hayes não estava Com esgotamento algum — disse Helene, levantando-se para tornar claro que a conversa acabara. Jason tocara na corda sensível. Ela não estava disposta a ouvir o falecido patrão ser caluniado.

Frustrado, desceu para o seu gabinete, onde Sally já tinha duas pessoas para exames anuais. Entre eles, conseguiu escapar-se de Sally o tempo suficiente para verificar os dados laboratoriais sobre Holly Jennings. A única modificação significativa em relação aos testes anteriores era um nível elevado de globulina gama, o que o fez mais uma vez considerar a hipótese de uma epidemia nãc relacionada Com a SIDA a envolver o sistema de auto-imunição. Em vez de desligar o sistema de auto-imunição, como acontece Com a SIDA, este problema parecia ligá-lo de uma forma destrutiva.

A meio da manhã recebeu uma chamada de Margaret Danforth, que afirmou sem quaisquer preâmbulos:

— Achei que devia saber que a urina do Dr. Hayes apresentou níveis moderados de cocaína.

Portanto, Curran tinha razão, pensou, desligando. Hayes estava a utilizar drogas. Mas se isso estava relacionado Com a sua pretensa descoberta, Com o seu medo de ser atacado ou até Com a própria morte, era coisa que não podia dizer.

Foi forçado a afastar as suas especulações à medida que a pesada carga de doentes cada vez mais o assoberbava. A pressão subiu Com um telefonema de Shirley, que segundo parecia tomara conhecimento da visita dele a Helene.

— Jason — disse Com uma ponta de irritação na voz —, por favor, não remexas na panela. Deixa o caso Hayes acalmar.

— Acho que Helene sabe mais do que nos está a dizer.

— De que lado estás tu?

— «tá bem, ’tá bem — cortou Com rudeza, desligando, quando se defrontou Com Madeline Krammer, uma doente idosa que dera entrada de emergência. Até agora o seu estado cardíaco fora estável. De repente começou a apresentar os tornozelos inchados e ralas no peito. Apesar de forte medicação, a sua doença cardíaca congestiva agravara-se ao ponto de Jason insistir na hospitalização.

— Este fim-de-semana não — protestou Madeline. — O meu filho está a chegar da Califórnia Com a sua bebé. Nunca vi a minha neta. Por favor!

Madeline era uma mulher Com cerca de sessenta e cinco anos, bem disposta, Com o cabelo prateado. Jason sempre simpatizara Com ela, pois raramente se queixava e estava grata pelos tratamentos que ele lhe indicara.

— Madeline, desculpe. Não faria isso se não o achasse absolutamente necessário. Mas a única maneira de podermos ajustar o seu tratamento é Com controlo constante.

Rabujando, mas resignada, Madeline concordou. Jason disse-lhe que a examinaria mais tarde e deixou-a nas mãos hábeis de Claudia. Pelas quatro da tarde, conseguira pôr as consultas a par do horário. Saindo do seu gabinete, chocou Com Roger Wanamaker, cuja corpulência bloqueava por completo a pequena passagem.

— É a minha vez — disse Roger. — Tens um minuto para uma conversa?

— Claro — prontificou-se Jason, que nunca dizia não a um colega.

Voltou a entrar no gabinete. Roger, Com toda a cerimónia, pousou uma pasta na sua secretária.

— Só para não te sentires sozinho... É a ficha de um executivo de cinquenta e três anos da Data General que acaba de dar entrada na sala de emergência mais morto que um puxador de porta. Fiz-lhe um dos nossos exames completos de executivo há menos de três semanas.

Jason abriu a pasta e deu uma vista de olhos pelo exame, que incluía dados do ECG e de laboratório. O colesterol era alto, mas não terrível.

— Outro ataque de coração? — perguntou, tirando o relatório da radiografia do tórax e vendo que era normal.

— Não... Apoplexia cerebral maciça. O tipo teve um acesso mesmo a meio de uma reunião de direcção. A mulher está completamente louca. Fez-me sentir terrivelmente mal. Disse que ele começara a sentir-se bastante doente desde que viera consultar-nos.

— Quais eram os sintomas?

— Nada de específico. Principalmente insónia e tensão, o género de coisas de que os executivos estão sempre a queixar-se.

— Que diabo é que se passa? — perguntou Jason em tom retórico.

— Ultrapassa-me... Mas tenho cá um pressentimento... como se estivéssemos à beira de alguma espécie de epidemia ou coisa parecida,

— Falei Com o Madsen da patologia. Perguntei-lhe o que é que achava de uma doença infecciosa desconhecida. Disse que não. Disse que era metabólico, talvez auto-imunição.

— Acho que é melhor fazer qualquer coisa. E essa reunião que sugeriste?

— Ainda não a convoquei — admitiu. — Tenho Claudia a procurar todos os exames anuais que fizemos há um ano para cá e a verificar como é que as pessoas estão a passar. Talvez devesses fazer o mesmo.

— Boa ideia.

— E a autópsia neste caso? — perguntou, devolvendo-lhe a ficha.

— O responsável médico está a tratar disso.

— Diz-me o que tiverem encontrado.

Quando Roger saiu, fez uma nota para convocar uma reunião dos outros especialistas de medicina interna no princípio da semana seguinte. Mesmo que não quisesse saber qual a extensão do problema, sabia que não podia ficar sentado a olhar enquanto fossem acabando na morgue pacientes Com exames aparentemente normais.

A caminho do seu último doente, deu por si a pensar de novo em Carol Donner. De súbito teve uma ideia. Fez um desvio para a secretária central e encontrou Claudia. Pediu-lhe para descer à secção do pessoal e ver se conseguia o endereço da casa de Alvin Hayes. Sabia que se havia alguém capaz de o conseguir, esse alguém era Claudia.

Mais uma vez, ao dirigir-se para o seu último paciente de consulta externa, perguntava a si próprio por que razão não pensara em arranjar o endereço de Hayes mais cedo. Se Carol Donner estivera a viver Com o homem, seria muitíssimo mais fácil falar Com ela no seu apartamento do que no Club Cabaret, onde obviamente se sentia pouco à vontade. Talvez ela tivesse algumas ideias sobre o trabalho de Hayes, ou mesmo que não fosse outra coisa, sobre a sua saúde. Na altura em que terminava a consulta do seu último doente, Claudia tinha o endereço. Ficava no South End.

Feita a consulta externa e ditada a necessária correspondência, dirigiu-se ao elevador principal para começar Com as visitas aos doentes internados. A primeira pessoa que viu foi Madeline Krammer.

Já estava Com melhor aspecto. Um diurético mais forte reduzira-lhe consideravelmente o inchaço dos pés e das mãos, mas quando a examinou de novo ficou perturbado por verificar que as pupilas pareciam muito dilatadas e sem reagir à luz. Fez uma nota na sua ficha antes de prosseguir na visita.

Antes de entrar para ver Matthew Cowen, pegou na ficha para verificar o que dera a consulta de oftalmologia. Chocado, leu: «Formação moderada de cataratas em ambos os olhos. Verificar de novo dentro de seis meses.» Não acreditava no que via. Cataratas aos trinta e cinco anos? Recordava-se de que a autópsia notara cataratas nos olhos de Connoly. Também se lembrou de mesmo agora ver Madeline Krammer Com as pupilas dilatadas. Que diabo estavam eles a defrontar? Ficou ainda mais confuso quando desceu pelo átrio para ver Matthew.

— Está a dar-me algumas drogas estranhas? — perguntou logo que viu Jason.

— Não. Por que pergunta?

— Porque tenho o cabelo a cair.

Para corroborar a afirmação, puxou por uns quantos cabelos, que lhe ficaram sem esforço na mão. Espalhou-os pela almofada.

Jason pegou num, rolou-o lentamente entre o polegar e o indicador. Parecia normal, a não ser por uma tonalidade cinzenta na raiz. Então examinou o couro cabeludo do homem. Também estava normal, sem inflamação ou ulceração.

— Há quanto tempo se passa isto? — perguntou, recordando-se de Brian Lennox Com espantosa nitidez, bem como do comentário da Sr.ª Harring sobre o cabelo do marido, que começara a cair.

— Hoje ficou muito pior — disse Matthew. — Não quero dizer que seja maluco, mas parece que tudo está a acontecer-me.

— É apenas coincidência — comentou, tentando salvar a sua própria confiança tanto quanto a de Matthew. — vou mandar o dermatologista dar outra olhadela. Talvez esteja relacionado Com a sua pele seca. Isso melhorou?

— Está pior, se quer saber. Não devia ter vindo para o hospital. Esteve quase a concordar, especialmente por tantos dos seus doentes estarem a passar mal. Quando acabou a visita estava exausto. Quase se esquecia de que uns amigos bem-intencionados haviam insistido para que fosse a um jantar nessa noite para o porem em contacto Com uma advogada elegante de trinta e quatro anos chamada Penny Lambert. Com uma hora ainda, decidiu que não valia a pena ir a casa. Em vez disso, puxou do mapa de Boston que trazia no carro e localizou a Springfield Street, onde ficava o apartamento de Hayes. Ligava Com a Washington Street. Pensando que seria uma boa altura de apanhar Carol Donner, resolveu ir directamente para lá. Mas era mais fácil dizer do que fazer. Dirigindo-se para o Sul, achou-se no tráfego intenso da Massachusetts Avenue. Com persistência, chegou à Wasington Street e cortou à esquerda, depois outra vez à esquerda, em Springfield. Localizou o edifício de Hayes e então procurou um lugar para estacionar.

A vizinhança era uma mistura de edifícios renovados e degradados. O de Hayes pertencia à segunda categoria. Havia graffiti a spray nos degraus da frente. Jason entrou no átrio e notou que várias das caixas do correio estavam quebradas e que a porta interior não estava fechada à chave. De facto, a fechadura havia sido rebentada uma vez qualquer, há muito tempo, e nunca mais fora substituída. O apartamento de Hayes ficava no terceiro andar. Começou a subir as escadas pobremente iluminadas. Cheirava a bafio e humidade.

O edifício era grande, Com apartamentos individuais em cada andar. No terceiro tropeçou em vários exemplares do Boston Globe ainda nos seus sacos de plástico. Não havia campainha, portanto bateu à porta. Não ouvindo resposta tornou a bater Com mais força. A porta rangeu e abriu-se um pouco. Baixando os olhos, viu que a fechadura fora recentemente forçada e que faltava parte da ombreira. Empurrando Com o indicador, abriu cautelosamente a porta. Tornou a ranger, como se lhe doesse.

— Está alguém?

Não houve resposta. Entrou no apartamento.

— Está alguém?

Não havia barulho algum, a não ser a água de um sanitário a correr. Fechou a porta atrás de si e atravessou um átrio mal-iluminado em direcção a uma porta parcialmente aberta.

Deu uma vista de olhos e quase desistiu. O lugar fora todo danificado. A sala comum, outrora decorada Com interessantes antiguidades e reproduções, estava uma lástima. Todas as gavetas da secretária e do aparador haviam sido abertas e despejadas em monte Os almofadões do sofá estavam todos golpeados e o conteúdo de uma grande estante encontrava-se espalhado pelo chão.

Passando cuidadosamente através de toda aquela barafunda, espreitou para um pequeno quarto de dormir, que se encontrava nas mesmas condições que a sala comum, depois atravessou o átrio até àquilo que, segundo a sua opinião, devia ser o quarto de dormir principal. Também estava uma lástima. Todas as gavetas haviam sido despejadas em monte e as roupas do guarda-fato arrancadas das cruzetas e atiradas para o chão. Pegando em algumas peças, notou que todas elas eram roupas de homem.

De súbito, a porta de entrada rangeu, o que lhe provocou um frio pela espinha acima. Deixou cair as roupas no chão. Pensou chamar outra vez em voz alta, na esperança de que fosse Carol Donner, mas por instantes teve demasiado medo para falar. Ficou gelado, os ouvidos atentos ao menor som. Talvez uma corrente de ar tivesse empurrado a porta... Então ouviu uma pancada seca, como se fosse o som de um sapato a bater num livro ou numa gaveta virada. Havia mesmo alguém no apartamento e teve a sensação de que quem quer que fosse sabia que ele estava ali. A testa cobriu-se-lhe de suor, que lhe correu pelo nariz. O aviso do detective- Curran de que o mundo da droga era perigoso atravessou-lhe o espírito. Começou a pensar se não havia maneira de sair dali. Então compreendeu que se encontrava no fim de uma longa caminhada.

De repente uma figura enorme encheu o limiar da porta. Mesmo na meia obscuridade Jason podia dizer que empunhava uma arma.

O pânico invadiu-o à medida que o coração acelerava. Mas continuou sem se mover. Uma segunda figura, mais pequena, juntou-se à primeira, e ambas entraram pelo quarto. Então avançaram na sua direcção, inexoravelmente, passo a passo. Parecia uma eternidade. Queria gritar ou fugir.

 

No instante seguinte Jason pensou que morrera. Houve um relâmpago. Mas então compreendeu que não era arma alguma, mas apenas uma lanterna sobre a sua cabeça. Continuava vivo. Diante dele encontravam-se dois polícias uniformizados. De boa vontade os abraçara, de alívio.

— Estou contente por vos ver, rapazes.

— Volta-te — ordenou o polícia mais encorpado, ignorando o comentário.

— Posso explicar... — começou, mas mandaram-no calar e pôr as mãos contra a parede, os pés afastados.

O segundo polícia revistou-o, tirando-lhe a carteira. Quando verificaram que estava desarmado, puxaram-lhe os braços da parede e algemaram-no. Depois fizeram-no atravessar o apartamento, descer as escadas e sair. Alguns transeuntes pararam a ver enquanto o forçavam a entrar para o banco de trás de um carro sem qualquer distintivo.

Os polícias mantiveram-se em silêncio durante o trajecto até à esquadra e Jason decidiu que não havia interesse em explicar o que se passara até chegar ali. Agora que acalmara, começou a pensar no que devia fazer. Calculou que poderia fazer um telefonema, e perguntava a si próprio se devia telefonar a Shirley ou ao advogado que tratara da venda da sua casa e consultório.

Mas quando chegaram os polícias apenas o levaram para uma pequena sala nua e deixaram-no ali. A porta deu um estalido quando saíram e Jason compreendeu que ficara ali fechado. Nunca estivera antes na prisão e não se sentia bem.

À medida que os minutos se escoavam, apercebeu-se da gravidade da situação. Lembrou-se do pedido de Shirley para que não mexesse na panela. Só Deus sabe o efeito que a sua prisão teria na clínica se se tornasse do domínio público.

Finalmente, a porta da sala abriu-se e o detective Curran entrou, seguido pelo polícia mais baixo. Jason ficou contente por ver Curran, mas teve de imediato consciência de que o estado emocional do detective não era correspondente. As linhas do rosto pareciam mais vincadas do que nunca.

— Tire-lhe as algemas — disse Curran sem sorrir.

Jason levantou-se enquanto o polícia lhe libertava as mãos. Observou a cara de Curran, tentando sondar-lhe os pensamentos, mas o outro permaneceu impenetrável.

— Quero conversar Com ele a sós — disse ao polícia, que acatou o desejo e saiu.

— Aqui tem a sua malfadada carteira — disse-lhe o detective, batendo Com ela na mão de Jason. — O senhor não gosta que o avisem, pois não? Que tenho eu que fazer para o convencer que este caso de droga é coisa bastante séria?

— Apenas estava a tentar conversar Com Carol Donner...

— Estupendo. Portanto mete-se no caso e facilita-nos o trabalho.

— Como assim? — fez Jason, começando a sentir-se enervado.

— O Departamento do Vício tem estado atento ao apartamento de Hayes desde que soubemos que fora rebuscado. Tínhamos a esperança de apanhar alguém um pouco mais interessante do que o senhor.

— Desculpe.

Curran sacudiu a cabeça frustrado.

— Bem, podia ter sido pior. O senhor podia ter-se magoado. Por favor, doutor... não se importava de voltar para as suas medicinas?

— Posso ir-me embora? — perguntou, incrédulo.

— Sim...—confirmou Curran, voltando-se para a porta. — Não vou tomar conta da ocorrência. Não vale a pena perder tempo.

Saiu da esquadra da polícia e tomou um táxi, que o levou à Springfield Street, onde se meteu no seu carro. Olhou de relance para a casa de Hayes e estremeceu. Fora uma experiência enervante.

Com bastante adrenalina agora no sistema para correr uma milha em quatro minutos, estava contente por ter planos para a noite. Os seus amigos, os Alies, haviam convidado um grupo animado, e a comida e o vinho eram realmente bons. A rapariga que eles queriam que conhecesse, Penny Lambert, pareceu-lhe um tanto yuppie jovem profissional urbano aperaltado], conservadoramente metida num fato azul Com um volumoso laço de seda ao pescoço. Por sorte, era alegre e conversadora, e de boa vontade preencheu o vazio deixado pela incapacidade de Jason em parar de pensar no apartamento de Hayes e na necessidade que tinha de falar Com Carol Donner.

Quando terminaram o café e o brande, Jason teve uma ideia. Talvez se se oferecesse para levar Penny a casa conseguisse persuadi-la a parar no clube de Carol. Era óbvio que Carol já não vivia no apartamento de Hayes, e Jason calculava que talvez tivesse melhor sorte para conversar Com ela se fosse acompanhado de outra mulher. Felizmente, Penny aceitou a oferta de boleia; quando se encontravam no carro, ele perguntou-lhe se se sentia disposta à aventura.

— Que quer dizer? — perguntou Com cuidado.

— Achei que talvez gostasse de ver o outro lado de Boston.

— Como uma discoteca?

— Uma coisa dessas — confirmou. Com uma certa perversidade, pensou que a experiência talvez fosse boa para Penny. Era bastante simpática, mas pouco imaginativa.

Ela ficou descansada, sorrindo e conversando até pararem em frente do Club Cabaret.

— Tem a certeza que é uma boa ideia? — perguntou ela.

— Vá, vamos — incitou Jason.

Durante o trajecto falara-lhe um pouco das coisas, explicando que queria ver a rapariga Com que o Dr. Hayes andara envolvido. Penny recordava-se da história por ter visto nos jornais, e isso não lhe aumentou a confiança, mas Com um pouco de adulação ele conseguiu persuadi-la a deixá-lo estacionar e a entrar.

Sexta-feira era obviamente uma grande noite. Agarrando-lhe na mão, Jason abriu caminho até à sala, esperando evitar o homem de óculos escuros e os seus dois corpulentos guarda-costas. Com a ajuda de uma nota de cinco dólares conseguiu que uma das empregadas lhes desse uma cabina junto à parede lateral, a certa distância acima do pavimento. Podiam ver a pista e ao mesmo tempo ficar parcialmente escondidos das bailarinas por causa das silhuetas dos homens que se agrupavam junto ao bar.

Entraram na pausa entre duas exibições. Tinham acabado de mandar vir bebidas quando os altifalantes se fizeram ouvir. Os olhos ajustados à escuridão, Jason conseguiu distinguir o rosto de Penny. O que melhor se lhe notava era o branco dos olhos. Parecia nem sequer pestanejar.

Uma artista de strip-tease surgiu num rodopio de diáfano crepe. Ouviram-se uns quantos assobios. Penny permaneceu em silêncio. Ao pagar as bebidas, Jason perguntou se Carol Donner dançava nessa noite. A empregada informou que a primeira exibição dela era às onze. Ficou aliviado — pelo menos não lhe tinham feito o mesmo que fizeram ao apartamento de Hayes.

Quando a empregada se afastou, ele viu que a bailarina já chegara ao máximo da nudez e que os lábios de Penny se franziam de severidade.

— É nojento — fez ela.

— Não é a Boston Symphony — concordou.

— Até tem celulite.

Jason olhou Com mais atenção quando a bailarina subia as escadas. Na realidade, a parte de trás das coxas estava cheia de ondulações de gordura. Sorriu. Era curioso o que uma mulher notava.

— Estes homens estão mesmo a divertir-se? — Sentia-se-lhe uma repugnância na voz.

— Boa pergunta. Não sei. A maioria parece aborrecida.

Mas nenhum deles ficou aborrecido quando apareceu Carol. Como na noite anterior, os presentes animaram-se vivamente quando ela começou a sua rotina.

—Que é que acha?

— É uma boa bailarina, mas não posso crer que o seu amigo andasse envolvido Com ela.

— É exactamente o que eu pensava — disse. Mas agora já não tinha tanta certeza. Carol Donner projectava uma personalidade muito diferente do que esperava.

Depois de Carol terminar, e de novo sem aparecer entre os clientes, Jason sentiu que já lhe chegava. Penny estava ansiosa por sair, e pouco teve para dizer, como ele notou a caminho de casa. Calculou que o Club Cabaret não a impressionara por aí além. Quando a deixou à porta de casa, nem sequer se incomodou a dizer que telefonaria. Sabia que os Alies ficariam desiludidos, mas achava que eles deviam ter pensado antes de lhe arranjarem um encontro daqueles.

De volta ao seu próprio apartamento, despiu-se e pegou no livro do ADN Meteu-se na cama e começou a ler. Recordando-se da fadiga dessa tarde, pensou que iria adormecer rapidamente. Mas não foi o caso. Esteve a ler coisas sobre bacteriófagos, partículas de vírus que infectavam as bactérias, e como se usavam em engenharia genética. Depois leu um capítulo sobre plasmides, de que nunca ouvira sequer falar até começar a ler sobre o ADN. Achou interessante que as plasmides fossem pequenas moléculas do ADN que existiam nas bactérias e se reproduziam fielmente quando as bactérias se reproduziam. Também elas cumpriam uma função extraordinariamente importante como veículos para introduzir segmentos do ADN nas bactérias.

Ainda bem desperto, olhou para as horas. Já passava das duas da madrugada, e dormir estava fora de questão. Levantou-se e foi até à sala comum, ficando a olhar para a Lousibourg Square. Um carro parou. Era o inquilino que ocupava o apartamento do rés-do-chão do edifício. Também era médico e, embora fossem amigos, pouco sabia do homem a não ser que saía Com uma série de mulheres bonitas. Perguntava de si para si onde as ia buscar a todas. Para não faltar à verdade, o homem saiu do carro Com uma atraente loura e por entre risos discretos desapareceu da vista lá em baixo. Jason ouviu fechar a porta da frente do edifício. O silêncio voltou. Não conseguia tirar Carol Donner da cabeça, crescendo em si o desejo de falar Com ela. Olhando para o relógio sobre a consola, teve uma ideia. Rapidamente voltou ao quarto, tornou a vestir-se e saiu, dirigindo-se ao carro.

Com algum receio quanto às possíveis consequências, voltou à Combat Zone. Em contraste Com o resto da cidade, continuava ainda bem desperta. Passou pelo Club Cabaret uma vez, depois deu a volta e, fazendo marcha atrás para uma rua lateral, estacionou. Desligou o motor. Viam-se uns tipos de mau aspecto pelos portais e na rua lateral, que não o deixavam muito à-vontade. Verificou se as portas do carro estavam trancadas.

Passado um quarto de hora, saiu do clube um grande grupo de pessoas que seguiram para os seus diversos destinos. Cerca de dez minutos depois, surgiu um grupo de bailarinas. Detiveram-se um pouco a cavaquear diante do clube, depois o grupo desfez-se. Carol não se encontrava entre elas. Exactamente quando Jason começava a preocupar-se por não a encontrar, Carol saiu acompanhada de um dos guarda-costas. Ele trazia um blusão de cabedal por cima da T-shirt, mas não tinha o fecho corrido. Cortaram à direita subindo pela Washington Street para Filene’s.

Jason pôs o carro a trabalhar, sem saber bem o que havia de fazer. Por sorte havia muito trânsito, tanto de carros como de peões. Para ter Carol à vista, meteu pela rua e encostou-se à direita. Um polícia viu-o e fez-lhe sinal para avançar. Carol e o amigo cortaram à esquerda para a Boylston Street, dirigindo-se para um parque de estacionamento aberto, onde entraram para um grande Cadillac preto.

Bem, pelo menos não era fácil de perder de vista, pensou. Mas, como nunca seguira uma pessoa, descobriu que não era assim tão fácil como imaginava, especialmente se não queria que o notassem. O Cadillac circundou a ponta do Common, seguiu para o Norte pela Charles Street, depois cortou à esquerda em Beacon, passando pela Hampshire House. Vários quarteirões mais adiante, o carro passou para a esquerda da rua e estacionou em dupla fila. Era uma zona da cidade chamada Back Bay, composta de grandes edifícios do início do século, de fachadas em pedra castanho-avermelhada, a maioria dos quais convertidos em andares de renda ou condomínios. Jason passou pelo Cadillac quando Carol se apeava. Com o carro a avançar lentamente, foi observando no espelho retrovisor e viu-a a subir as escadas de um edifício Com uma grande janela saliente da parede. Cortou à esquerda em Exeter, mais adiante em Marlborough, de novo à esquerda. Depois de aguardar cerca de cinco minutos, deu a volta ao quarteirão. Chegando de novo à Beacon Street, procurou o Cadillac preto. Havia desaparecido.

Estacionou em frente de uma boca-de-incêndio a meio quarteirão de distância do edifício de Carol. Às três da madrugada, Back Bay estava silenciosa — sem peões e apenas um ou outro carro a passar.

Entrando pelo caminho que servia o edifício de Carol, observou Com atenção a fachada de seis andares e não viu luz em qualquer das janelas. Entrando no átrio exterior do edifício, examinou os nomes em frente dos besouros de chamada. Havia catorze. Para desilusão sua não havia nenhum Donner.

Saindo, pensou no que devia fazer. Recordando-se de que havia uma ruela entre Beacon e Marlborough, deu uma volta ao quarteirão, contando os edifícios, até que localizou o de Carol. Via-se uma luz na janela do quarto andar. Calculou que tinha de ser a de Carol, pois não era provável que alguém estivesse a pé àquela hora.

Tencionando entrar outra vez no prédio e premir o botão de chamada apropriado, voltou a seguir pela ruela. Viu a figura solitária imediatamente, mas continuou a caminhar, na esperança de que o homem passasse simplesmente por ele. Quando a distância entre ambos se reduziu, abrandou os passos e depois parou. Desanimado, apercebeu-se de que se tratava do guarda-costas. O blusão de cabedal estava aberto, mostrando uma T-shirt branca bem moldada a músculos poderosos. Era o mesmo indivíduo que no Club Cabaret o lançara porta fora na noite anterior.

O homem continuou a aproximar-se, os dedos a abrir e a fechar em aparente antecipação. Jason calculou que teria os seus vinte e cinco anos, Com uma cara cheia, o que sugeria que tomava esteroides. Aquilo representava problemas, obviamente. E a esperança de que o homem talvez não o reconhecesse desvaneceu-se-lhe quando o indivíduo rosnou:

— Que diabo é que andas a fazer, lorpa?

Foi tudo quanto precisava ouvir. Rodou nos calcanhares e pôs-se a andar para a outra extremidade da ruela. Infelizmente, os seus sapatos de sola não podiam competir Com os ténis do guarda-costas.

— Meu maldito invertido! — gritou, obrigando-o a parar Com um puxão.

Jason baixou-se para evitar o golpe e agarrou na coxa do latagão, na esperança de o fazer perder o equilíbrio. Infelizmente, foi como agarrar a perna de um piano. Em vez de o fazer cair, Jason foi posto em sentido Com uma sacudidela. A desigualdade da luta parecia bem clara e Jason decidiu-se por qualquer forma de diálogo.

— Por que é que não arranja alguém do seu tamanho?! —exclamou desesperado.

— Porque não gosto de invertidos — respondeu o guarda-costas, praticamente levantando-o no ar.

Torcendo-se para um lado, depois para o outro, conseguiu desenvencilhar-se do casaco e partir em disparada ruela fora, derrubando um latão do lixo enquanto fugia.

— vou ensinar-te a não andar a cheirar à volta da Carol! —gritou o homem, dando um pontapé no latão do lixo ao começar a persegui-lo.

Mas os anos de jogging de Jason pagaram o seu tributo. Embora o guarda-costas fosse rápido apesar da sua corpulência, Jason podia ouvir-lhe a respiração a tornar-se cada vez mais difícil. Jason já quase se encontrava no fim da rua quando os pés se lhe embaraçaram nas pedras soltas e momentaneamente perdeu o equilíbrio. Refazendo-se, pôs-se de pé exactamente quando uma pesada mão lhe agarrava no ombro e o fazia rodopiar.

 

— Alto aí! Polícia!

Uma voz quebrou a quietude da noite de Boston. Jason ficou imóvel e o guarda-costas também. As portas de um carro da polícia sem distintivo, estacionado à entrada da ruela, abriram-se subitamente e de lá saíram três homens à paisana.

— Mãos contra a parede. Pés afastados! —ouviu Jason mais uma vez. Obedeceu.

Mas o guarda-costas ficou-se a pensar por um momento.

— És um filho da puta Com sorte — rosnou por fim para Jason, e cumpriu a ordem.

— Caluda!—gritou um polícia.

Jason e o seu perseguidor foram rapidamente revistados, depois mandaram-nos voltar-se e pôr as mãos atrás da cabeça. Um polícia tirou uma lanterna e verificou-lhes a identidade.

— Bruno DeMarco? — perguntou o homem de lanterna apontada para o guarda-costas.

Bruno confirmou Com um gesto de cabeça. A luz voltou-se para Jason.

— Dr. Jason Howard?

— Exactamente.

— Que se passava aqui? — perguntou o polícia.

—’Este lorpazito andava a tentar incomodar a minha namorada — informou Bruno Com voz ofendida. — Seguiu-a.

O polícia olhou ora para Jason ora para Bruno, depois aproximou-se do carro, abriu a porta e tirou qualquer coisa do banco de trás. Quando voltou, entregou a carteira a Bruno e disse-lhe para ir para casa e dormir um pouco. A princípio Bruno agiu como se não tivesse percebido, mas depois pegou na carteira.

— Não me esquecerei de ti, parvalhão!—gritou para Jason quando desapareceu na direcção da Beacon Street.

— Você — disse o polícia, apontando para Jason. — Para o carro!

Jason ficou atónito. Não podia acreditar que deixassem o fanfarrão em liberdade e ele não. Estava prestes a queixar-se quando o polícia lhe agarrou no braço e o forçou a entrar para o banco de trás.

— O senhor está a tornar-se um verdadeiro bico de obra — disse o detective Curran. Estava calmamente sentado a fumar.—Eu devia ter deixado aquele marmanjo tratar de si.

Jason não encontrava palavras.

— Espero que faça uma ideia — continuou Curran — de quanto está a perturbar todo este caso. Primeiro mandámos vigiar o apartamento de Hayes. O senhor deu cabo disso. Depois estamos a vigiar Carol Donner, e o senhor faz-lhe o mesmo. Também podíamos acabar Com toda a operação. Não vamos por certo conseguir saber dela qualquer coisa nesta altura. Onde diabo está o seu carro? Calculo que tenha vindo num carro?

— Mesmo à esquina — disse Com resignação.

— Sugiro que se meta nele e vá para casa — disse Curran lentamente. — Depois sugiro que volte para as suas medicinas e deixe esta investigação para nós. Está a tornar-nos o trabalho impossível.

— Desculpe — começou. — Não pensei...

— Vá-se embora!—disse Curran apontando a porta.

Jason saiu do carro da polícia, sentindo-se um tanto apatetado. Evidentemente que deviam estar a vigiar Carol. Se ela vivera Com Hayes, provavelmente estava envolvida Com drogas também. De facto, levando ela a vida que levava, era quase um dado certo. Entrando no Carro, pensou no casaco, mandou-o para o diabo e seguiu para casa.

Eram três e meia quando, Com certa dificuldade, subiu as escadas para o seu apartamento e telefonou para o hospital. Não levara consigo o bip-bip de chamada quando saiu para ir à procura de Carol Donner e tinha esperanças de que não tivesse havido chamadas. Encontrava-se demasiado cansado para atender a uma emergência. Não havia nada do hospital, mas Shirley deixara uma mensagem a pedir-lhe para lhe telefonar logo que chegasse, não importava a hora. O telefonista de serviço disse-lhe que era urgente.

Perplexo, fez a ligação. Shirley respondeu ao primeiro toque.

— Onde diabo é que estiveste?

— É uma longa história.

— Quero que me faças um favor. Vem cá agora mesmo.

— São três e meia — queixou-se ele.

— Não pedia se não fosse importante.

Jason vestiu outro casaco, voltou ao carro e seguiu para Brookline, perguntando de si para si que emergência seria aquela que não podia esperar um pouco mais. A única certeza era que envolvia Hayes.

Shirley morava na Lee Street, uma rua que circundava o Brookline Reservoir e subia às curvas para uma zona residencial de belas casas antigas. A sua casa era um edifício de pedra de confortáveis proporções Com telhado de dupla inclinação e empenas gémeas. Quando Jason entrou no desvio empedrado, viu que a casa estava cheia de luz. Parou em frente da entrada e, no momento em que saía do carro, já Shirley estava de porta aberta.

— Obrigada por teres vindo — disse, abraçando-o. Vestia uma camisola de cachemira branca e jeans e parecia, pela primeira vez desde que Jason se encontrara Com ela, totalmente perturbada.

Fê-lo entrar para uma grande sala comum e apresentou-o a dois executivos do GHP, que também davam mostras de perturbação. Jason apertou primeiro a mão a Bob Walthrow, homem baixo e calvo, e depois a Fred Ingelnook, figura do género Robert Redford.

— Que tal um cocktail? — propôs Shirley. — Parece que o senhor bem precisa.

— Apenas uma soda... Estou a morrer em pé. Que se passa?

— Mais problemas. Recebi uma chamada da segurança. O laboratório de Hayes foi assaltado esta noite e praticamente destruído.

— Vandalismo?

— Não temos a certeza.

— Não deve ter sido — acrescentou Bob Walthrow. — Foi revistado.

— Levaram alguma coisa? — perguntou.

— Ainda não sabemos — disse Shirley. — Mas esse não é o problema. Queremos manter isto fora dos jornais. O Good Health não pode ter mais publicidade desta. Temos duas grandes companhias na perspectiva de se juntarem ao Plano. Podiam ficar assustadas se soubessem que a polícia pensa que o laboratório de Hayes foi remexido à procura de droga.

— É possível... A médica legista disse-me que Hayes tinha cocaína na urina.

— Abóbora!—exclamou Bob Walthrow.—Esperemos que os jornais não deitem mão a isso.

— Temos de limitar o prejuízo!—ajuntou Shirley.

— Como se propõem fazer isso? — perguntou Jason, sem saber para que é que ela o chamara.

— A comissão de gestão quer que mantenhamos em segredo este último incidente.

— Isso vai ser difícil — disse, tomando um golo de soda. — Os jornais provavelmente obterão tudo isso dos registos da polícia.

— É essa a questão — disse Shirley. — Decidimos não dizer à polícia. Mas queríamos a sua opinião.

— A minha opinião? — perguntou surpreendido.

— Bem — começou Shirley—, queremos a opinião do pessoal médico. O senhor é o chefe actual. Pensámos que poderia averiguar de maneira discreta como se sentiam os outros.

— Compreendo — disse, perguntando a si próprio como é que iria obter as informações dos outros médicos e continuar a manter o episódio em segredo. — Mas se querem a minha opinião pessoal, creio que não é boa ideia. Além disso, não conseguirão receber o seguro se não informarem a polícia.

— É essa a questão — disse Fred Ingelnook.

— É verdade — concordou Shirley —, mas isso ainda tem menos importância que o problema das relações públicas. Para já não o comunicamos. Mas vamos entrar em contacto Com o seguro e saberemos o que pensa o respectivo departamento.

— Parece-me bem — disse Fred Ingelnook.

— Esplêndido — confirmou Bob Walthrow.

A conversa esmoreceu e Shirley mandou os dois executivos para casa. Reteve Jason quando ele tentou fazer o mesmo, sugerindo que se encontrasse Com ela às oito da manhã.

— Pedi a Helene para vir cedo. Talvez possamos tirar alguma conclusão do que se passa.

Jason fez que sim Com a cabeça, continuando sem perceber a razão por que Shirley não podia ter-lhe dito isto tudo pelo telefone. Mas estava demasiado cansado para se preocupar, e depois de lhe dar um pequeno beijo na face, regressou ao carro um pouco cambaleante, esperando poder ainda dormir duas ou três horas.

 

Já passava das oito da manhã desse sábado quando Jason, olhos meio enramelados, entrou no gabinete de Shirley Almofadado a mogno escuro, tinha ornamentos de bronze e carpete verde-escura, mais parecendo pertencer a um banqueiro do que a um executivo-chefe de um hospital. Shirley encontrava-se ao telefone a falar Com um funcionário dos seguros, e assim Jason sentou-se e ficou à espera.

— Tinhas razão sobre o seguro — disse Shirley depois de desligar. — Não fazem tenção de pagar coisa alguma se não se participar o assalto.

— Então participa.

— Primeiro vamos ver a extensão do prejuízo e o que falta.

Passaram para o edifício de consulta externa e tomaram o elevador para o sétimo piso. Um guarda de segurança estava à sua espera e abriu a porta interior. Não calçaram os sapatos de protecção nem vestiram casaco branco.

Tal como o apartamento de Hayes, o laboratório era uma barafunda. Todas as gavetas e armários haviam sido esvaziados para o chão, mas o equipamento de alta tecnologia parecia não ter sido tocado, por isso era bem claro para ambos que se tratara de uma busca e não de uma visita Com intuitos destrutivos. Jason passou os olhos pelo gabinete de Hayes. Estava igualmente em desordem, Com o conteúdo da secretária e de diversos arquivos espalhados pelo chão.

Helene Brennquivist apareceu à porta que dava acesso à sala dos animais, o rosto branco e preocupado. O cabelo estava de novo todo puxado para trás; sem a habitual bata do laboratório toda direita, Jason via que ela tinha uma figura atraente.

— Pode dizer-nos se falta alguma coisa? — perguntou Shirley.

— Bem, não vejo os meus livros de registo. E desapareceram algumas das culturas de bactérias E. coli. Mas o pior é o que aconteceu aos animais.

— Que é que têm? — perguntou Jason, notando que o seu rosto habitualmente sem expressão tremia de medo.

— Talvez fosse melhor verem. Foram todos mortos!

Jason passou ao lado de Helene e empurrando a porta de aço entrou na zona dos animais. Sentiu-se imediatamente confrontado Com um cheiro fétido e acre de jardim zoológico. Acendeu a luz. Era uma sala maior, uns quinze metros de comprido por nove de largo. As gaiolas dos animais estavam dispostas em filas e empilhadas por vezes até à altura de seis.

Começou pela fila mais próxima, examinando as gaiolas individualmente. Atrás dele, a porta fechou-se Com um dique decisivo. Helene não exagerara: todos os animais que via estavam mortos, horrivelmente encaracolados em posições contorcidas, muitas vezes Com a língua ensanguentada, como se a tivessem cortado Com os dentes na agonia final.

De súbito deteve-se. Fitando o interior de um grupo de grandes gaiolas, viu algo que lhe deu volta ao estômago: ratos como nunca vira. Eram enormes, quase do tamanho de porcos, e a cauda sem pêlo, em forma de chicote, grossa como o seu pulso. Os dentes expostos tinham mais de dez centímetros de comprimento. Continuando, chegou junto de coelhos Com o mesmo tamanho, e depois de ratos brancos Com o tamanho de pequenos cães.

Esta faceta da engenharia genética horrorizou-o. Embora tivesse medo do que ainda podia ver, a curiosidade mórbida fê-lo avançar. Lentamente, olhou para dentro de outras gaiolas, vendo distorções de animais familiares que o deixaram enjoado. Era a ciência enlouquecida: coelhos Com diversas cabeças e ratos Com extremidades supernumerárias e pares de olhos extra. Para si, a manipulação genética de bactérias primitivas era uma coisa; a distorção de mamíferos era outra muito diferente.

Retirou-se para a parte central do laboratório, onde Shirley e Helene tinham estado a verificar as culturas de cintilação.

— Já viu os animais? — perguntou a Shirley Com repugnância.

— Infelizmente. Quando Curran aqui esteve. Nem me faça lembrar.

— O GHP autorizou estas experiências?

— Não. Nunca fizemos perguntas a Hayes- Nunca pensámos que o devíamos fazer.

— O poder da celebridade — disse Com cinismo.

— Os animais faziam parte do trabalho do Dr. Hayes, do crescimento de hormonas — disse Helene na defensiva.

— Fosse o que fosse — observou. Não estava interessado nesse momento em qualquer discussão ética Com Helene. — De qualquer modo estão todos mortos.

— Todos? — perguntou Shirley. — Que estranho. Que acha que aconteceu?

— Veneno — disse em tom sinistro. — Embora me ultrapasse a razão por que qualquer pessoa à busca de drogas se incomodasse a matar animais de laboratório.

— Tem alguma explicação para tudo isto? — perguntou Shirley furiosa, voltando-se para Helene.

A mulher mais nova sacudiu a cabeça, os olhos percorrendo nervosamente a sala.

Shirley continuava a fitar Helene, que agora mudava Com desconforto o peso do corpo de um pé para o outro. Jason observava, intrigado Com o súbito comportamento agressivo de Shirley.

— É melhor cooperar — ia ela dizendo—, ou vai meter-se em grandes trabalhos O Dr. Howard está convencido que você anda a esconder de nós alguma coisa. Se for verdade e descobrirmos, espero que compreenda o que pode fazer à sua carreira.

A ansiedade de Helene revelou-se por completo finalmente.

— Apenas cumpria ordens do Dr. Hayes — disse, a vez entrecortada.

— Que ordens? — perguntou Shirley, baixando a voz em tom ameaçador.

— Fazíamos aqui algum trabalho independente...

— De que género?

— O Dr. Hayes fazia trabalho extra para uma companhia chamada Gene, Inc. Desenvolvemos uma estirpe recombinante do E. coli para produzir uma hormona para eles.

— Sabia que o trabalho extra era especificamente proibido pelo contrato do Dr. Hayes?

— Foi o que ele me disse — admitiu. Shirley fitou-a irritada por mais um minuto.

— Não quero que fale nisto a ninguém — disse por fim. — Quero que faça uma lista pormenorizada de todos os animais e artigos que faltam ou estão danificados neste laboratório e ma entregue pessoalmente. Compreende?

Helene fez que sim Com a cabeça.

Jason saiu do laboratório atrás de Shirley. Ela, era óbvio, conseguira penetrar na fachada de Helene, enquanto ele falhara. Mas não fizera as perguntas exactas.

— Por que não a forçaste a respeito da descoberta de Hayes? — perguntou quando chegaram ao elevador.

Shirley premiu o botão de chamada várias vezes, claramente irritada.

— Não pensei nisso. Sempre que penso que o problema de Hayes está sob controlo, surge qualquer coisa nova. Eu tinha exigido especificamente no contrato a cláusula de nenhum trabalho extra.

— Isso agora não importa — disse, entrando no elevador atrás de Shirley. — O homem está morto.

Ela suspirou.

— Tens razão. Talvez esteja a incomodar-me demasiado. Só quero ver todo este caso arrumado.

— Continuo a pensar que Helene sabe mais do que nos está a dizer.

— Voltarei a falar Com ela.

— E depois de veres aqueles animais, não achas que devias chamar a polícia?

— Com a polícia vêm os jornais — lembrou-lhe Shirley. — Com os jornais vêm os trabalhos. Fora os animais, parece que não se encontra danificado nada muito valioso.

Jason calou-se. Era evidente que participar o incidente era uma decisão administrativa. Estava mais preocupado em descobrir o avanço científico que Hayes conseguira, e sabia que a polícia e os jornais não viriam ajudar a descobrir isso. Pensava se essa descoberta científica não estaria relacionada Com os animais monstruosos. A ideia provocou-lhe um arrepio.

Começou as visitas por Matthew Cowen. Infelizmente, houvera um novo desenvolvimento. Para além dos seus outros problemas, Matthew estava agora a agir de maneira estranha. Apenas escassos minutos antes, as enfermeiras encontraram-no a vaguear pelos átrios, resmungando palavras sem sentido. Quando Jason entrou no quarto, estava metido na cama, olhando para ele como se fosse um estranho. O homem estava completamente desorientado quanto ao tempo, lugar e pessoas. Pelo que dizia respeito a Jason, isso só podia significar uma coisa. O homem lançara embolias, provavelmente coágulos de sangue, das suas válvulas do coração danificado para o cérebro. Por outras palavras, tivera uma apoplexia ou talvez mesmo apoplexias múltiplas.

Sem demora, mandou telefonar para uma consulta de neurologia. Também telefonou ao cirurgião cardíaco que vira o caso. Embora considerasse anticoagulação imediata, decidiu-se a esperar pela opinião do neurologista. No Ínterim, mandou dar ao doente aspirina e persantine para reduzir a aderência das plaquetas. As apoplexias eram um desenvolvimento perturbador e um sinal muito mau.

Fez rapidamente o resto das visitas e estava prestes a ir para casa e aproveitar para dormir quando o chamaram da sala de emergência para um dos seus doentes. Praguejando por dentro, correu escadas abaixo, esperando que fosse qual fosse o problema poderia ser facilmente resolvido. Infelizmente, não foi esse o caso.

Chegando sem fôlego à sala principal de tratamento, encontrou um grupo de internos a assistir a uma doente em estado comatoso.

Um rápido olhar ao ecrã do monitor deixou bem claro que já não havia ali qualquer actividade cardíaca.

Aproximou-se de Judith Reinhart, que lhe disse que fora o marido que a encontrara inconsciente quando tentou acordá-la de manhã.

— Os técnicos de emergência viram alguma actividade cardíaca ou respiratória?

— Nada — disse Judith. — De facto, pareceu-me já fria. Tocou na perna da mulher e concordou. Tinha a cara voltada para o outro lado.

— Como se chamava a doente? — perguntou, preparando-se intuitivamente para o golpe.

— Holly Jennings.

Sentiu como se lhe tivessem dado uma pancada no estômago.

— Meu Deus!—murmurou.

— Sente-se bem? — perguntou Judith.

Fez que sim Com a cabeça, mas insistiu que a equipa da sala de emergência continuasse Com o aparelho de ressuscitação cardiopulmonar até passado algum tempo. Havia suspeitado de problemas quando vira Holly na quinta-feira, mas nada parecido Com isto. Simplesmente não podia aceitar o facto de que, como Cedric Harring, Holly morresse menos de um mês depois de ser informada que o seu exame anual dizia que estava bem e dois dias depois de ele a ter visto outra vez.

Abalado, pegou no telefone e chamou Margaret Danforth.

— Mais uma vez sem haver história cardíaca? — perguntou Margaret.

— Exactamente.

— Que é que vocês aí estão a fazer? — quis saber Margaret. Jason não respondeu. Queria que Margaret autorizasse que eles

fizessem a autópsia no GHP, mas Margaret hesitou.

— Trataremos do caso hoje — disse Jason. — Terá um relatório no princípio da semana que vem.

— Desculpe — disse Margaret, tomando uma decisão. — Tenho dúvidas na minha cabeça, e acho que sou obrigada por lei a fazer a autópsia.

— Compreendo. Mas suponho que não se importaria de nos fornecer as amostras para nós as processarmos aqui também.

— Acho que sim — disse Margaret sem grande entusiasmo. —Para dizer a verdade, nem sequer sei se é legal. Mas vou saber. Prefiro não esperar duas semanas pelo exame microscópico.

Jason foi para casa e caiu na cama. Dormiu quatro horas, interrompidas por uma chamada do neurologista sobre o caso Matthew.

Queria dar ao doente anticoagulante e examiná-lo a TAC [tomografia axial computorizada]. Jason implorou-lhe que fizesse o que achasse que fosse melhor.

Tentou voltar a adormecer, mas não conseguiu. Sentia-se ansioso e como que possuído por choque nervoso. Levantou-se. Era um dia de fim de Outono, sombrio, Com chuviscos, que fazia Boston parecer terrível. Lutando contra a depressão, media o apartamento a passos, procurando algo que lhe ocupasse a mente. Apercebendo-se de que não podia ficar ali, vestiu-se sem grandes formalidades e desceu, dirigindo-se ao carro. Sabendo que ia provavelmente procurar complicações, seguiu até à Beacon Street e estacionou em frente do apartamento de Carol.

Dez minutos depois, como se Deus tivesse finalmente decidido dar-lhe uma ajuda, Carol apareceu. Vestida de jeans e camisola de gola alta, Com o farto cabelo castanho preso em rabo-de-cavalo, parecia a jovem estudante universitária que o Club Cabaret anunciava. Sentindo os chuviscos, abriu uma sombrinha pintada às flores e começou a subir a rua, passando muito perto de Jason, que se enfiou pelo assento do carro, receoso, sem razão, que ela o reconhecesse.

Dando-lhe um bom avanço, saiu do carro para a seguir a pé. Perdeu-a de vista na Dartmouth Street, mas apanhou-a de novo na Commonwealth Avenue. Enquanto continuava a segui-la, mantinha-se alerto a indivíduos do género de Bruno ou Curran. Na esquina da Dartmouth Com a Boylston, parou numa banca de revistas e folheou uma. Carol passou por ele, esperou o semáforo verde, e atravessou então a Boylston. Jason estudou as pessoas e os automóveis, à procura de qualquer coisa suspeita. Mas não havia indicação alguma que Carol não estivesse sozinha.

Passava agora junto da biblioteca pública de Boston, e Jason calculou que se dirigisse para o Copley Plaza Shopping Mall. Depois de comprar a revista, que acabara por ser The New Yorker, continuou a segui-la. Quando ela fechou a sombrinha e entrou no Copley Plaza, apressou o passo. Era um enorme complexo de centro comercial e hotel, e ele sabia que podia facilmente perdê-la.

Durante os três quartos de hora seguintes, Jason foi-se entretendo, fingindo estudar os artigos expostos, lendo o seu The New Yorker e olhando para a multidão. Carol felizmente saltitou de Louis Vuitton para Ralf Laurent e para Victoria’s Secret. A certo momento, Jason pensou que ela estava a ser seguida, mas acabou por verificar que o homem em questão estava simplesmente a tentar meter-se Com ela. Aparentemente, ela rejeitou-o quando ele finalmente a abordou, porque o homem desapareceu rapidamente.

Um pouco depois das três e meia, Carol pegou nos sacos e na sombrinha e retirou-se para o Au Bon Pain. Jason seguiu-a, ficando a seu lado enquanto esperavam que os atendessem e aproveitando a oportunidade para observar-lhe o admirável rosto oval, tez ligeiramente azeitonada e olhos negros. Era uma jovem elegante. Calculou que teria cerca de vinte e quatro anos.

— bom dia para café — disse ele, esperando meter conversa.

— Prefiro chá.

Jason sorriu timidamente. Não tinha grande habilidade para estas coisas.

— O chá também é bom — disse, receando estar a fazer figura

de parvo.

Carol mandou vir sopa, chá e um croissant simples, depois levou a bandeja para uma das grandes mesas comuns.

Jason mandou vir um cappuccino e depois, hesitando como se não conseguisse achar lugar para se sentar, aproximou-se da mesa dela.

— Importam-se? — perguntou, puxando uma cadeira.

Várias das pessoas sentadas à mesa levantaram os olhos, incluindo Carol. Um homem afastou alguns dos seus embrulhos. Jason sentou-se, sorrindo ligeiramente para aqui e para acolá.

— Que coincidência — disse para Carol. — Voltámos a encontrar-nos.

Carol olhou-o por cima da chávena. Não disse nada, mas também não tinha que dizer. A expressão reflectia-lhe a irritação.

Jason reconheceu de imediato que toda sua maneira de agir parecia ser um engate e que estava prestes a ser despachado.

— Desculpe-me. Não pretendo incomodá-la. Sou Jason Howard, médico. Fui colega do Dr. Alvin Hayes. A senhora é Carol Donner, e eu gostaria muito de conversar consigo.

— Está no GHP? — perguntou desconfiada.

— Sou o chefe actual do pessoal médico.

Era a primeira vez que usava o título. Num hospital académico normal tinha grande importância, mas no GHP esse lugar era uma maçadora sinecura.

— Como posso eu ter a certeza?

— Posso mostrar-lhe o meu cartão.

— Muito bem.

Jason estendeu a mão para tirar a carteira, mas Carol agarrou-lhe no braço.

— Não se incomode — disse ela. — Acredito em si. Alvin costumava falar de si. Dizia que era o melhor clínico de lá.

— Sinto-me lisonjeado — disse, não deixando de ficar surpreendido, considerando o pouco contacto que tivera Com Hayes.

— Desculpe ser tão desconfiada, mas fico sempre de pé atrás, especialmente nestes últimos dias. De que é que gostaria de conversar?

— Do Dr. Hayes. Primeiro, gostava de dizer que a sua morte foi para nós uma grande perda. Dou-lhe os meus sentimentos.

Carol encolheu os ombros.

Jason não estava bem certo de como havia de interpretar a reacção dela.

— Custa-me ainda a acreditar que o Dr. Hayes estivesse envolvido Com drogas. Sabia disso?

— Sabia. Mas os jornais não disseram a verdade- Alvin era fraco viciado, usava habitualmente marijuana, cocaína por vezes. Heroína Com certeza que não.

— Não negociava?

— Não, absolutamente. Acredite-me, eu teria sabido.

— Mas encontraram no seu apartamento muitas drogas e dinheiro.

— A única explicação que posso encontrar é que a polícia pôs no apartamento tanto as drogas como o dinheiro. Alvin tinha sempre falta de ambas as coisas. Se tinha alguma vez dinheiro extra, mandava-o à família.

— Quer dizer à ex-mulher?

— Sim. Ela tinha a custódia dos filhos.

— Por que havia a polícia de fazer isso? — perguntou, achando que o comentário dela era como um eco da paranóia de Hayes.

— Realmente não sei. Mas não consigo ver outra maneira de chegarem lá as drogas. Posso dar-lhe a certeza, ele não as tinha quando o deixei às nove horas nessa noite.

Jason inclinou-se para a frente, baixando a voz.

— Na noite em que o Dr. Hayes morreu disse-me que fizera uma descoberta importante. Ele disse-lhe alguma coisa sobre isso?

— Mencionou qualquer coisa. Mas isso foi há três meses.

Por um momento Jason permitiu-se um certo optimismo. Então Carol explicou que não sabia de que descoberta se tratava.

— Não confiava em si?

— Ultimamente não. Tínhamo-nos como que afastado.

— Mas viviam juntos... ou os jornais também se enganaram nisso?

— Vivíamos juntos — admitiu —, mas no fim apenas como companheiros do mesmo quarto. A nossa relação deteriorara-se. Ele realmente mudou. Não era só o sentir-se fisicamente doente; toda a sua personalidade era diferente. Parecia ausente, quase paranóico. Continuava a falar em vê-lo a si e eu tentei que o fizesse.

— Realmente não tem ideia alguma de que descoberta se tratava? — insistiu Jason.

— Desculpe — disse Carol, estendendo as mãos em gesto de impotência. — A única coisa de que me lembro era que ele dizia que a descoberta científica era irónica. Lembro-me porque parecia uma maneira estranha de descrever o êxito.

— Ele disse-me o mesmo.

— Pelo menos foi coerente. O seu outro comentário foi que, se tudo corresse bem, eu apreciá-la-ia porque era bonita. Foram essas as suas palavras exactas.

— Não explicou mais nada?

— Foi tudo quanto disse.

Tomando um golo do seu cappuccino, Jason fitou o rosto de Carol. Como podia uma descoberta irónica ajudar a sua beleza? O seu espírito tentava reconciliar essa afirmação Com a sua suposição de que a descoberta de Hayes tinha algo a ver Com a cura do cancro. Não condizia.

Terminando o chá, Carol levantou-se.

—’Tive prazer em conhecê-lo — disse, estendendo a mão.

Jason levantou-se, agarrando atabalhoadamente a cadeira para ela não cair. Ficou um tanto atrapalhado Com esta súbita partida.

—’Não quero que lhe pareça mal, mas... tenho um encontro. Espero que resolva o mistério. Alvin trabalhava muito. Seria de facto uma tragédia se tivesse descoberto alguma coisa importante que se perdesse.

— Sinto exactamente o mesmo — disse, preocupado por deixar de estar Com ela tão rapidamente. — Podemos ver-nos outra vez? Há tanta coisa que gostaria de falar consigo.

— Acho que sim. Mas ando muito ocupada. Quando é que pensava?

— Que tal amanhã? — sugeriu, ansioso. — Um almoço cedo... domingo.

— Teria de ser mais para a tarde. Trabalho à noite e o sábado é o dia mais atarefado.

Bem podia imaginar.

— Por favor... Podia ser importante.

— Está bem. Digamos às duas da tarde. Onde?

— Que tal na Hampshire House?

— Muito bem — concordou Carol, pegando nos sacos e na sombrinha. Com um sorriso final saiu do café.

Olhando para o relógio, Carol apressou o passo. O encontro imprevisto Com Jason não figurara no seu horário apertado e não queria chegar tarde ao encontro Com o seu mestre de filosofia. Passara o fim da tarde do dia anterior e o princípio da tarde desse dia a dar o último retoque no terceiro capítulo da sua dissertação e estava ansiosa para saber da reacção do professor. Desceu a escada rolante até à rua, pensando na sua conversa Com o Dr. Howard.

Fora uma surpresa encontrar o homem depois de ter ouvido falar nele durante tanto tempo. Alvin dissera-lhe que Jason perdera a mulher e reagira à tragédia mudando completamente de ambiente e submergindo-se no seu trabalho. Carol achara a história fascinante, porque a sua tese envolvia a psicologia do sofrimento profundo. O Dr. Jason Howard parecia ser o estudo de um caso perfeito.

O porteiro do Weston Hotel fez soar o apito de tal maneira que lhe feriu os ouvidos, fazendo-a estremecer. Quando o táxi se aproximou pesadamente, admitiu que a sua reacção ao Dr. Jason Howard ia um pouco para além do puro interesse profissional. Achara o homem invulgarmente atraente, e compreendeu que o conhecimento que tinha da vulnerabilidade dele contribuía para o seu encanto. Até o seu embaraço social acabava por cativar.

— Harvard Square — disse, quando entrou no táxi. Sentiu que estava ansiosa pelo almoço do dia seguinte.

Ainda sentado à frente do café a arrefecer, Jason admitiu ter ficado completamente confundido Com a inteligência e encanto inesperados de Carol. Pensava ir encontrar uma rapariga de cidadezinha do interior, nada sofisticada que de algum modo tinha saído da escola secundária atraída pelo dinheiro ou pelas drogas. Em vez disso, era uma mulher adorável e madura, muito capaz de manter qualquer conversa. Que tragédia que uma pessoa Com as suas óbvias possibilidades se tivesse misturado Com o mundo sórdido em que trabalhava...

O som insistente do seu bip-bip trouxe-o à realidade. Desligou-o e olhou para o mostrador. A palavra «urgente» piscou duas vezes, seguida por um número de telefone que não reconheceu. Depois de ver a sua identificação médica, o gerente do Au Bon Pain deixou-o usar o telefone que estava por detrás da caixa registadora.

— Obrigada por ter telefonado, Dr. Howard. Daqui fala a Sr.ª Farr. O meu marido, Gerald Farr, está Com terríveis dores no peito e tem muita dificuldade em respirar.

— Chame uma ambulância... Leve-o à emergência do GHP. O Sr. Farr é meu doente? — Achou que o nome lhe era familiar, mas não conseguia localizá-lo.

— Sim — disse a Sr.ª Farr. — O senhor doutor fez-lhe um exame anual há duas semanas. É o vice-presidente da Boston Banking Company.

Oh, não, pensou quando pousou o auscultador. Lá volta outra vez. Decidindo deixar o carro na Beacon Street até ter resolvido a emergência, saiu do café a correr, passou pela ligação destinada a peões do hotel do complexo Copley Plaza e saltou para dentro de um táxi.

Chegou à sala de emergência do GHP antes dos Farrs. Disse a Judith o que esperava e até chamou a anestesia, satisfeito por saber que foi Philip Barnes quem o atendeu ao telefone.

Quando viu Gerald Farr, compreendeu imediatamente que os seus piores receios se tinham realizado. O homem agonizava de dor e estava pálido como leite desnatado, Com gotas cristalinas de suor na testa.

O ECG inicial mostrou que uma grande zona do coração ficara danificada. Não ia ser caso fácil. Morfina e oxigénio ajudaram a acalmar o doente e deram-lhe lidocaína para profilaxia contra a pulsação irregular. Mas, apesar de tudo, Farr não reagia. Estudando outro ECG, teve a sensação de que a área de enfarte do coração estava a aumentar.

Desesperado, tentou tudo. Mas foi inútil. Às quatro menos cinco, os olhos de Gerald Farr reviraram para dentro e o coração parou.

Nada disposto a desistir como habitualmente, mandou que tentassem a ressuscitação. Conseguiram que o coração recomeçasse várias vezes a bater, mas de todas as vezes voltava ao padrão anterior e falhava.

Farr nunca recuperou a consciência. Às seis e quinze, Jason finalmente declarou-o morto.

— Abóbora!—exclamou Com desgosto para si próprio e para a vida em geral.

Nada habituado a praguejar, o facto de fazê-lo não passou despercebido a Judith Reinhart que encostou a testa ao seu ombro e pôs-lhe o braço à volta do pescoço.

— Jason, fizeste o melhor que podias — disse Com suavidade. — Fizeste o melhor que qualquer um podia fazer. Mas os nossos poderes são limitados.

— O homem só tinha cinquenta e oito anos — comentou, retendo lágrimas de frustração.

Judith afastou as outras enfermeiras e internos da sala. Voltando para junto de Jason, pôs-lhe a mão no ombro.

— Olha para mim, Jason!

Com relutância, voltou a cara para a enfermeira. Ainda se via uma lágrima junto ao nariz. Com brandura, mas firmemente, ela disse-lhe que não podia tomar tanto a peito estes episódios.

— Sei que dois num dia é carga demasiada — acrescentou. — Mas a culpa não é tua.

Jason sabia que intelectualmente ela tinha razão, mas emocionalmente a coisa era outra. Além disso, Judith não fazia ideia até que ponto os doentes internados dele estavam a passar mal, especialmente Matthew Cowen, e não tinha coragem de lhe dizer. Pela primeira vez, pensou seriamente em abandonar a medicina. Infelizmente, não tinha ideia alguma sobre que outra coisa podia fazer. Não se sentia treinado para outro tipo de actividade.

Depois de prometer a Judith que estava bem, saiu para enfrentar a Sr.ª Farr, tentando arranjar forças para dominar a situação que ia encontrar. Mas a Sr.ª Farr, na profundeza da sua dor, decidira arcar Com o fardo da culpa. Disse que o marido há uma semana que se vinha queixando do seu estado de saúde, mas que ela ignorara as suas queixas porque, francamente, ele sempre fora um tanto hipocondríaco. Jason tentou confortá-la como Judith tentara confortá-lo a ele. Quase que conseguiu o mesmo que ela.

Certo que a médica legista tomaria conta do caso, não incomodou a Sr.ª Farr Com um pedido de autópsia. Por lei, o médico legista não precisa de autorização para fazer uma autópsia em casos em que a causa da morte não é clara. Mas para ter a certeza, telefonou a Margaret Danforth. A reacção foi a esperada: na verdade, estava interessada no caso, e enquanto o tinha ao telefone falou-lhe sobre Holly Jennings.

— Retiro aquele comentário mal-humorado que fiz esta manhã. Vocês estão Com pouca sorte. Jennings estava tão mal como Cedric Harring. Todos os vasos coronários tinham um aspecto terrível; não era só o coração.

—’Não é grande consolação — replicou Jason.—Dera-lhe um relatório anual que mostrava que estava tudo bem. Fiz mais um ECG na quinta-feira, mas que só apresentava modificações mínimas.

— Não está a brincar? Espere até ver as amostras microscópicas. De maneira geral, os vasos coronários tinham aspecto de destruídos em noventa por cento, e a coisa estava disseminada, não era um foco só. A cirurgia não teria feito nada ali. Oh, a propósito, já verifiquei e podemos dar-lhe pequenas amostras do caso Jennings. Mas preciso de ter um pedido formal por escrito.

— Não há problema... O mesmo Com Farr?

— Claro.

Jason foi de táxi buscar o seu carro e seguiu para casa. Apesar do nevoeiro e da chuva, quando chegou a casa foi praticar jogging.

O ficar salpicado de lama e ensopado teve um suave efeito catártico, e depois de um duche sentiu-se um tanto aliviado das opressivas emoções e sensações de depressão. Exactamente quando começava a pensar em comer, telefonou Shirley a convidá-lo para jantar. A primeira reacção foi dizer que não. Mas depois reconheceu que se sentia demasiado oprimido para estar sozinho, por isso aceitou. Depois de vestir roupas mais razoáveis desceu e dirigiu-se para oeste, na direcção de Brookline.

O avião do voo 409 da Eastern, directo de Miami a Boston, curvou bruscamente antes de se endireitar para a aproximação final. Tocou na pista às sete e trinta e sete quando Juan Díaz fechou a revista e olhou pela janela para a linha do horizonte de Boston, amortalhada de nevoeiro. Era a sua segunda viagem a Boston e não estava nada satisfeito. Perguntava de si para si por que razão uma pessoa havia de resolver viver Com tão mau tempo. Chovera na sua viagem anterior apenas uns quantos dias antes. Olhando para baixo, para a pista do aeródromo, viu o vento e a chuva nos charcos e pensou Com nostalgia em Miami, onde um Outono tardio pusera finalmente fim ao causticante calor de Verão.

Tirando o saco de debaixo do assento à sua frente, Juan pensava de si para si quanto tempo ia ficar em Boston. Lembrava-se de que na viagem anterior estivera lá apenas dois dias, e não tivera de fazer nada. Ia ver se não teria a mesma boa sorte desta vez. Afinal ganhara os seus cinco mil sem fazer nada.

O avião rolou na direcção do terminal. Juan olhou à volta do compartimento Com uma sensação de orgulho. Bem gostava que a família lá em Cuba o pudesse ver agora. Ficariam surpreendidos! Ali estava ele, a voar em primeira classe. Depois de ter sido condenado a prisão perpétua pelo Governo de Castro, fora libertado depois de apenas oito meses e mandado primeiro para Mariel e a seguir, Com espanto seu, para os EUA. Foi essa a punição por ter sido condenado por múltiplo assassínio e violação—’Ser enviado para os EUA! Era muito mais fácil fazer o seu tipo de trabalho nos Estados Unidos. Sentiu que a única pessoa no mundo a quem gostaria de apertar a mão era a um fazendeiro de amendoim algures na Georgia.

O avião deu uma guinada final e ficou parado. Juan pôs-se de pé e espreguiçou-se. Pegando no saco, dirigiu-se para a bagagem. Depois de reaver a mala, apanhou um táxi para o Royal Sonesta Hotel, onde se registou como Carlos Hernández, de Los Angeles. Tinha até um cartão de crédito nesse nome Com um número legítimo. Sabia que o número estava bem, pois o tirara de um recibo que encontrara no centro comercial de Bal Harbour, em Miami.

Uma vez confortavelmente instalado no seu quarto, Com o seu outro fato de seda no armário, sentou-se à secretária e telefonou para um número que lhe haviam dado em Miami. Quando responderam, disse à pessoa que precisava de uma arma, de preferência uma calibre 22. Com esse assunto resolvido, tirou o nome e endereço do alvo e procurou a localização no mapa fornecido pelo hotel. Não ficava muito longe.

A noite Com Shirley foi um êxito. Jantaram frango assado, alcachofras e arroz. Depois tomaram Grand Marnier em frente da lareira da sala comum e conversaram. Jason soube que o pai de Shirley fora médico e já na faculdade ela acarinhara a ideia de seguir as suas pisadas.

— Mas meu pai tirou-me isso da ideia. Disse-me que a medicina estava a mudar.

— Nisso tinha razão.

— Disse-me que seria dominada pelo grande negócio e que uma pessoa que estivesse interessada na profissão devia ir para a gestão. Por isso mudei para os cursos comerciais, e creio que fiz a escolha acertada.

— Também o creio — concordou, pensando na explosão de papelada e no dilema da incompetência. A medicina mudara realmente. O facto de que agora trabalhava numa companhia Com um determinado salário atestava essa mudança. Quando estava na escola médica sempre imaginara que trabalharia sozinho. Parte do encanto que o atraíra fora isso.

No fim do serão houve um certo embaraço. Jason disse que era melhor ir andando, mas Shirley encorajou-o a ficar.

— Achas que seria boa ideia? — perguntou. Ela fez que sim Com a cabeça.

Não tinha tanta certeza assim e foi dizendo que teria de levantar-se cedo por causa da visita aos doentes e que não queria incomodá-la. Shirley insistiu dizendo que estava a pé às sete e meia como habitualmente. Incluindo domingos.

Fitaram-se por instantes, a luz das chamas da lareira a fazer brilhar o rosto de Shirley.

— Não há obrigações — disse ela Com suavidade. — Sei que ambos temos de tratar disto sem pressas. Vamos só estar juntos. Temos ambos estado sob tensão.

— Muito bem — disse, reconhecendo que não tinha força para resistir. Além disso, sentiu-se lisonjeado que Shirley insistisse tanto. Começava a tornar-se mais aberto à ideia de que não só podia vir a gostar doutra pessoa, mas também que outra pessoa podia gostar dele.

Mas acabou por não passar a noite toda a dormir. Às três e meia sentiu uma mão no ombro e sentou-se na cama, momentaneamente confuso quanto ao ambiente. À meia luz, só pôde descortinar o rosto de Shirley.

— Desculpa ter de incomodar-te — começou ela suavemente —, mas parece que o telefone é para ti. — E passou-lhe o auscultador.

Pegou no telefone e agradeceu-lhe. Não ouvira tocar. Apoiado sobre um cotovelo, levou o auscultador ao ouvido. Tinha a certeza de que seriam más notícias, e teve razão. Haviam encontrado Matthew Cowen morto na cama, aparentemente por ter sofrido uma última apoplexia cerebral maciça.

— Já informaram a família?

— Sim — disse a enfermeira. — Moram em Minneapolis. Disseram que viriam de manhã.

— Obrigado — disse, passando o telefone a Shirley Com ar abstracto.

— Problema? — perguntou, pondo o auscultador no descanso. Confirmou Com um gesto de cabeça. Problema passara a ser o

seu segundo nome.

— Um doente jovem morreu. Tinha trinta e cinco anos mais ou menos. Reumatismo no coração. Estava no’ hospital para uma possível cirurgia.

— Era muito grave a doença dele?

— Bastante — disse, vendo a cara de Matthew, ao recordá-lo como se encontrava quando entrou no hospital. — Três das quatro válvulas estavam afectadas. Teriam de substituí-las a todas.

— Portanto não havia garantia alguma...

— Nenhuma — concordou.—A substituição das três válvulas pode ser difícil. Teve insuficiência cardíaca congestiva durante muito tempo, sem dúvida afectando-lhe o coração, os pulmões, rins e fígado. Teria havido complicações, mas tinha a idade a ajudá-lo.

— Talvez fosse melhor assim — sugeriu Shirley. — Talvez lhe tenha poupado muito sofrimento. Era como andar a entrar e a sair do hospital para o resto da vida.

— Talvez, talvez — disse sem convicção. Sabia o que Shirley estava a fazer: estava a tentar que se sentisse melhor. Agradecia-lhe o esforço. Acariciou-lhe a coxa Com uma pancadinha através do fino tecido do robe. — Obrigado pelo teu apoio.

A noite pareceu-lhe terrivelmente fria quando correu para o seu carro. Ainda chovia, de facto, mais do que antes. Ligando o aquecimento, esfregou as pernas para activar a circulação. Pelo menos não havia trânsito. Às quatro da madrugada, domingo, a cidade estava deserta. Shirley tentara fazê-lo ficar, argumentando que ele já nada podia fazer se o homem havia morrido e a família não estava lá. Embora isto fosse verdade, sentia uma obrigação para Com o seu doente a que não podia eximir-se. Além disso, sabia que não conseguiria voltar a adormecer. Agora Com mais outra morte na consciência.

O parque de estacionamento do GHP estava praticamente vazio. Jason pôde estacionar o carro quase junto à entrada em vez de debaixo do edifício de consulta externa onde habitualmente estacionava. Quando saiu do carro, preocupado Com o caso de Matthew Cowen, não notou uma figura escura corcovada ao lado da porta do hospital. Rodeando a frente do carro, a figura precipitou-se sobre ele. Apanhado completamente desprevenido, gritou. Mas a figura acabou por ser um daqueles ébrios de rua que frequentavam a sala de emergência do GHP, a pedir uns trocados. Com mão trémula, Jason deu-lhe um dólar, esperando que ao menos comprasse alguma coisa de comer.

Shirley tivera razão. Não havia nada a fazer, a não ser escrever uma nota final na ficha de Matthew Cowen. Entrou e viu o corpo. Pelo menos a cara de Matthew parecia calma, e como Shirley sugeriu, agora já não sofreria mais. Em silêncio, Jason pediu desculpa ao morto.

Chamando o interno de serviço, instruiu-o para pedir à família autorização para uma autópsia. Explicou que talvez não estivesse imediatamente disponível. Então, sentindo-se incapaz como sempre, depois destas mortes, saiu do hospital e regressou ao seu apartamento. Deitou-se na cama um pedaço, a fixar o tecto, incapaz de dormir. Dava voltas à imaginação para saber que tipo de trabalho conseguia arranjar na indústria farmacêutica.

 

Cedric Harring, Brian Lennox, Holly Jennings, Gerald Farr, e agora Matthew Cowen. Nunca perdera tantos doentes em tão curto espaço de tempo. Toda a noite o desfile dos seus rostos tinha-lhe interrompido os sonhos, e quando acordou cerca das onze estava tão exausto como se nunca tivesse dormido. Forçou-se a fazer os seus dez quilómetros de domingo, depois tomou um duche e vestiu-se cuidadosamente, Com uma camisa de um tom amarelo-pálido, Com colarinho e punhos brancos, calças castanho-escuras e um casaco tipo escocês de linho e seda. Estava contente por ter o encontro Com Carol para distraí-lo.

A Hampshire House ficava na Beacon Street, Com frente para os jardins públicos de Boston. Em contraste Com a chuva de sábado, o céu estava radioso de sol e nuvens fugidias. A bandeira americana içada por cima da entrada do Hampshire drapejava à brisa dos fins de Outono. Jason chegou cedo e pediu uma mesa na sala da frente do rés-do-chão. Na lareira as chamas crepitavam confortavelmente e um pianista ia tocando uma série de melodias antigas famosas.

Olhou para as pessoas à sua volta. Estavam todas respeitavelmente vestidas e entretidas em animada conversa, obviamente inconscientes de qualquer horror médico que grassasse na sua cidade. Neste ponto, fez a si próprio a recomendação de não deixar a imaginação correr à solta. Meia dúzia de mortes não significava uma epidemia. Além disso, nem sequer tinha a certeza de que fosse infecciosa. Todavia, não conseguia tirar as fatalidades da cabeça.

Carol chegou às duas e cinco minutos. Jason levantou-se, acenando Com a mão para chamar-lhe a atenção. Vinha encantadoramente vestida, Com uma blusa branca de seda e calças pretas de lã. A sua aparência inocente, jovem e fresca fora do clube sempre o deixava admirado. Ao vê-lo, ela brindou-o Com um sorriso largo e dirigiu-se para a sua mesa. Parecia um pouco açodada.

— Desculpe o atraso — disse, arrumando as suas coisas, que incluíam um casaco de camurça, um saco de lona cheio de jornais e uma mala a tiracolo. Enquanto tratava das coisas, olhava frequentemente para a entrada.

— Está à espera de alguém?

— Espero bem que não. Mas tenho este patrão doido que insiste em ser superprotector. Especialmente desde que Alvin morreu. Põe uma pessoa a meu lado a maior parte do tempo, em princípio para protecção minha. À noite não me importo, mas durante o dia, não gosto. O Sr. Músculo apresentou-se esta manhã, mas mandei-o à vida. Mas é capaz, afinal, de me ter seguido.

Jason perguntou para consigo se devia mencionar que já se encontrara Com Bruno, mas decidiu não falar no caso. Foi só depois de terem sido servidos sem verem a figura enorme de Bruno que ambos começaram a relaxar um pouco.

— Provavelmente devia ser mais grata ao meu patrão — observou. — Tem sido tão bom para mim. Mesmo agora estou a morar num dos seus apartamentos em Beacon Street. Nem pago renda.

Jason não quis considerar todas as razões pelas quais o patrão de Carol talvez quisesse que ela tivesse um belo apartamento. Embaraçado, voltou a sua atenção para a omeleta.

— Então... — começou Carol, de garfo na mão.—Que mais queria perguntar-me? — E meteu na boca um razoável pedaço da sua torrada francesa.

— Lembrou-se de mais alguma coisa sobre a descoberta de Alvin Hayes?

— Não — fez ela, engolindo o que mastigara. — Além disso, mesmo quando falava do seu trabalho comigo, achava a coisa incompreensível. Esquecia-se sempre de que nem toda a gente é físico nuclear... — e riu, os olhos brilhando, encantadores.

— Disseram-me que Alvin fazia trabalho extra para outra companhia de bioengenharia. Sabia alguma coisa disso?

— Calculo que está a referir-se à Gene, Inc. — Fez uma pausa, desaparecendo-lhe o sorriso. — Parece que isso era um grande segredo. — Inclinou a cabeça para o lado. — Mas agora que já morreu creio que não interessa. Trabalhava para eles há cerca de um ano.

— Sabe o que realmente ele fez para eles?

— Realmente, não. Qualquer coisa Com hormonas do crescimento. Mas ultimamente tinham-se zangado. Qualquer coisa relacionada Com finanças. Não sei dos pormenores...

Jason apercebeu-se de que tivera razão, afinal. Helene não dissera tudo. Se Hayes tivera alguma rixa Com a Gene, Inc., ela devia ter sabido.

— Que é que sabe de Helene Brennquivist?

— É uma senhora simpática. — Pousou o garfo. — Bem... não muito sincera. Provavelmente está certa. Mas para lhe dizer a verdade, Helene é a razão porque eu e Alvin deixámos de ser amantes. Porque trabalhavam juntos tanto que ela começou a vir até ao apartamento. Depois descobri que tinham uma relação. Isso não consegui aguentar. Custou-me que ela fizesse tanto segredo sobre o caso, especialmente mesmo debaixo do meu nariz e na minha própria casa.

Ficou espantado. Calculara que Helene estivesse a reter informações, mas nunca lhe ocorrera que dormisse Com Alvin. Olhou melhor para o rosto de Carol para o estudar. Via que o facto de mencionar o caso fizera voltar emoções desagradáveis. Bem gostaria de saber se Carol estivera tão zangada Com Hayes como o estava Com Helene.

— E a família dele? — perguntou, mudando deliberadamente de assunto.

— Não sei muita coisa. Falei Com a ex-mulher ao telefone uma ou duas vezes, mas nunca pessoalmente. Tinham-se divorciado há uns cinco anos.

— Tinha filhos?

— Tinha. Dois rapazes e uma rapariga.

— Sabe onde vivem?

— Numa pequena cidade em Nova Jérsia. Leonia ou celsa parecida. Lembro-me da rua... Park Avenue. Ficou-me na memória porque me pareceu muito pretensioso.

— Ele alguma vez falou em um dos filhos estar doente? Carol abanou a cabeça. Fazendo sinal à empregada, indicou que

queria mais café. Comeram ambos em silêncio por algum tempo, apreciando a comida e o ambiente.

Quando o bip-bip de Jason se fez ouvir, sobressaltaram-se. Por sorte era apenas o seu serviço a informar que a família de Cowen chegara finalmente de Minneapolis e esperava encontrar-se Com ele por volta das quatro.

Voltando do telefone, sugeriu que se aproveitassem do bom tempo e dessem um passeio pelo jardim. Depois de atravessarem a Beacon Street, ela surpreendeu-o ao tomar-lhe o braço. E, por sua vez, surpreendeu-se a si próprio por sentir prazer nisso. Apesar da profissão dela um tanto duvidosa, tinha de admitir que apreciava imenso a sua companhia. Para além do aspecto saudável, a vitalidade dela era contagiante.

Deram a volta ao lago dos barcos-gaivotas, passaram por debaixo da estátua de bronze de Washington, depois atravessaram a ponte que cruza a parte mais estreita do lago. Os barcos-gaivotas haviam sido retirados nesta altura do ano. Encontrando um banco vazio sob um salgueiro agora sem folhagem, sentaram-se, Jason conduziu de novo a conversa para Hayes.

— Ele fez algo de anormal durante estes últimos três meses? Qualquer coisa inesperada... ,que não estivesse nos seus hábitos?

Carol apanhou um seixo e atirou-o para a água.

— É uma pergunta difícil... Uma das coisas de que gostava em Alvin era a sua impulsividade. Fazia uma série de coisas conforme lhe dava na veneta, como fazer viagens.

— Viajou muito recentemente?

— Oh, sim — confirmou, procurando outra pedra. — Em Maio passado foi à Austrália.

— Também foi?

— Não. Não me levou. Disse que ia estritamente em negócios.. e que precisava de Helene para ajudá-lo em vários testes. Na altura acreditei nele, parva que eu fui.

— Alguma vez descobriu de que negócios se tratava?

— Qualquer coisa que envolvia ratos australianos. Lembro-me de ele dizer que tinham hábitos peculiares. Mas é tudo quanto sei. Tinha muitos ratos e ratazanas no laboratório.

— Eu sei — corroborou Jason, assaltado pelas vivas imagens dos repugnantes animais mortos. Perguntara se Hayes se comportava de maneira estranha. Uma viagem súbita à Austrália podia considerar-se bizarra, mas sem saber os seus estudos da época era difícil ter a certeza. Teria de seguir essa pista Com Helene. — E outras viagens?

— Tive de ir a Seattle.

— Quando foi?

— Em meados de Julho. Segundo parece a velha Helene não se sentia lá muito bem e Alvin precisava de quem conduzisse

—De quem conduzisse?

— Isso era outra coisa estranha em Alvin. Não sabia conduzir. Dizia que nunca aprendera nem queria.

Jason recordou-se do comentário do polícia na noite em que Hayes morreu de que ele não tinha carta de condução.

— Que aconteceu em Seattle?

— Nada por aí além. Estivemos na cidade apenas uns dias. Visitámos a Universidade de Washington. Depois fomos às Cascades. Ora, é uma bela região, mas se pensa que chove bastante em Boston, havia de visitar o Pacific Northwest. Já lá foi?

— Não — disse, ausente. Tentava imaginar uma descoberta que envolvesse viagens a Seattle e à Austrália. — Quanto tempo estiveram lá?

— De que vez?

— Foram mais do que uma vez?

— Duas vezes. A primeira viagem foi por cinco dias. Visitámos a Universidade de Washington e apreciámos as vistas. Na segunda, que foi várias semanas depois, só lá estivemos duas noites.

— Fizeram a mesma coisa de ambas as vezes?

Abanou a cabeça.

— Na segunda viagem, passámos perto de Seattle e fomos directamente a Cascades.

— Que diabo é que fizeram por lá?

— Eu só passeei, relaxei. Fomos a uma cabana. Foi interessante.

— E Alvin? Que fez ele?

— Praticamente o mesmo. Mas estava interessado na ecologia e nessas coisas todas. Sabe, sempre o cientista.

— Portanto, assim como umas férias? — perguntou, absolutamente perplexo.

— Acho que sim. — Atirou outra pedra.

— Que é que Alvin fez na Universidade de Washington?

— Foi ver um velho amigo. Não consigo lembrar-me do nome dele. Alguém Com quem praticou na Columbia.

— Um geneticista molecular como Alvin?

— Creio que sim. Mas não estivemos lá muito tempo. Visitei o departamento de psicologia enquanto conversavam.

— Deve ter sido interessante. — Jason sorriu, pensando que o departamento de psicologia teria gostado de pôr as mãos académicas em pessoas do género de Carol Donner.

— Que diabo — disse ela, verificando subitamente as horas. — Tenho de ir. Tenho outra entrevista.

Jason levantou-se, pegando-lhe na mão. Ficou impressionado pela delicadeza Com que Carol descrevia o seu trabalho. «Uma entrevista» parecia tão profissional. Caminharam até à orla do parque.

Recusando a boleia, Carol despediu-se e foi pela Beacon Street. Jason ficou-se a ver a sua figura desaparecer à distância. Parecia tão despreocupada e feliz. Que tragédia, pensou. O tempo, que parecia sem fronteiras para o seu espírito juvenil, em breve a apanharia. Que género de vida era ser bailarina topless e sair Com homens? Não gostava de pensar nisso. Voltando-se para a direcção contrária, seguiu até ao mercado De Luca e comprou o necessário para uma ceia simples: frango no espeto e verdura para salada. Enquanto isso, ia revivendo a conversa Com Carol. Possuía muito mais informações, mas estas conduziam a mais perguntas do que a conclusões. Todavia, tinha agora a certeza de duas coisas. Primeira, Hayes tinha de facto feito uma descoberta; segunda, a chave era Helene Breenquivist.

Em menos de vinte e quatro horas Juan tinha todo o cenário delineado. Uma vez que a coisa não devia parecer um atentado tradicional, exigia mais maturação. A técnica habitual era apanhar a vítima entre a multidão, pôr-lhe à cabeça uma pistola de baixo calibre e pumf, ficava tudo arrumado. Esse género de operação precisa de pouco planejamento, apenas as circunstâncias exactas. Toda a execução assentava na mentalidade peculiar das multidões. Depois de qualquer acontecimento chocante, toda a gente ficava tão preocupada Com a vítima que o autor do crime podia afastar-se sem ser notado ou até mesmo fingir ser um dos curiosos. Tudo quanto tinha a fazer era deixar cair a arma.

Mas as instruções sobre este trabalho eram diferentes. O golpe tinha de ter o aspecto de uma violação, a especialidade de Juan. Sorriu para consigo, admirado por lhe pagarem por uma coisa que costumava fazer por desporto. Os Estados Unidos eram um lugar estranho e maravilhoso, onde a lei muitas vezes dava ao assassino mais consideração do que à vítima.

Desta vez Juan compreedeu que teria de apanhar a vítima sozinha. Era isso que tornava a coisa tão excitante. Também teria a sua graça, porque sem testemunhas podia fazer o que quisesse Com a mulher, conquanto a deixasse morta quando se fosse embora.

Juan decidiu seguir a vítima e abordá-la no átrio do edifício onde morava. A ameaça de violação feita numa voz macia e razoável devia ser o suficiente para pressuadi-la a levá-lo para o apartamento. Uma vez lá dentro, seria tudo uma brincadeira.

Seguiu o seu alvo numa curta visita às lojas de Harvard Square. A mulher comprou uma revista num quiosque da esquina, depois dirigiu-se para uma mercearia chamada Sages. Juan demorou-se a atravessar a rua, examinando depois a montra de uma livraria, surpreendido por a casa estar aberta ao domingo. O alvo saiu da mercearia Com um saco de plástico Com compras, atravessou a rua em diagonal e desapareceu num café-padaria. Juan fez o mesmo — café agora sabia bem, mesmo que fosse do tipo americano. Preferia café cubano: espesso, a cheirar bem, e rico.

Enquanto beberricava a mistura aguada, fitou a vítima. Ficou confundido Com a sua sorte. A mulher era uma bela mulher. Calculou que tivesse à volta de vinte e cinco anos. Que mulher, pensou. Já se sentia entusiasmado. Não teria de enganar esta.

Meia hora depois, a mulher terminou, pagou e saiu do café. Juan atirou Com uma nota de dez dólares para cima da mesa. Sentia-se generoso. Afinal, ia ser cinco mil vezes mais rico quando voltasse a Miami.

Para encanto seu, a mulher continuou pela Brattle Street. Juan abrandou o passo, satisfeito por tê-la sempre à vista. Quando ela cortou para a Concord, apressou o passo, sabendo que ela se encontrava quase em casa. Ao chegar ao complexo de apartamentos das Craigie Arms, Juan estava mesmo atrás dela. Uma olhadela rápida pela Concord Avenue acima e abaixo sugeriu que o momento era perfeito. Agora tudo dependia do que se passaria dentro do edifício.

Juan aguardou o tempo suficiente para ter a certeza que a porta interior fora aberta. Num escasso segundo já estava no átrio e tinha um pé no limiar da porta interior. Foi então que falou.

— Miss Brennquivist?

Em sobressalto momentâneo, Helene olhou para a cara espanhola, bem-parecida e morena de Juan.

— Sim — disse Com o seu sotaque escandinavo, pensando que devia tratar-se de outro inquilino.

— Tenho estado ansioso por conhecê-la. Chamo-me Carlos. Helene fez a pausa fatal, as chaves ainda na mão.

— Mora aqui?

— Moro, sim — disse Juan Com estudado à-vontade. — Primeiro andar. E a senhora?

— Terceiro.

Helene transpôs a porta, logo seguida de Juan.

— Prazer em conhecê-lo — acrescentou ela. Não sabia se devia ir pelas escadas ou pelo elevador. A presença de Juan fazia-a sentir-se desconfortável.

— Esperava podermos conversar — disse ele, pondo-se a seu lado — Que tal convidar-me para uma bebida?

— Não acho que . — Helene viu a arma e sobressaltou-se.

— Por favor, não me faça zangar miss—disse, numa voz suave. — Faço coisas que lamento quando fico zangado. — Premiu o botão do elevador. As portas abriram-se. Fez sinal a Helene para entrar e entrou a seguir.

Quando o elevador arrancou Com o ruído habitual, Juan sorriu satisfeito. Era melhor manter tudo Com calma.

Helene ficou paralisada de pânico. Não sabendo que fazer, não fez nada O homem aterrorizava-a, contudo parecia razoável, e estava muito bem vestido. Tinha aspecto de um homem de negócios bem sucedido. Talvez estivesse associado à Gene, Inc., e eles quisessem passar busca ao apartamento. Pensou por instantes em gritar ou tentar fugir, mas lembrou-se da arma.

O elevador rangeu no terceiro andar. Abrindo a porta, Juan fez-lhe respeitosamente sinal para sair primeiro. Com as chaves na mão, trémula, ela caminhou na direcção da porta e abriu-a. Juan pôs imediatamente o pé no limiar, exactamente como fizera lá em baixo. Depois de entrarem ambos, ele fechou a porta e trancou-a, usando os três ferrolhos. Helene parou Com ar apatetado no pequeno vestíbulo da entrada, incapaz de se mover.

— Por favor — disse Juan, fazendo-lhe delicadamente sinal para entrar na sala comum. Para surpresa sua, viu uma loura rechonchuda sentada no sofá. Tinham-lhe dito que Helene vivia sozinha. Não importa, pensou. — Qual é esse ditado que as pessoas usam? — murmurou. — Quando chove, cai água. Esta festa vai ser duas vezes melhor do que eu esperava.

Com a arma apontada fez sinal a Helene para se sentar em frente da sua colega. As mulheres trocaram olhares ansiosos. Então Juan arrancou da parede o fio do telefone, deixando ficar no ar os três fios de cores diferentes. Aproximou-se do estéreo de Helene e ligou-o. Ouviu-se uma estação a emitir música clássica. Estudando os botões digitais, ligou para uma estação de rock e abriu o volume.

— Que género de festa é esta sem um pouco de música? — berrou ele, enquanto tirava do bolso uma corda fina.

 

Jason chegou cedo ao hospital na segunda-feira de manhã e a visita que fez aos doentes fê-lo sofrer. Nenhum deles ia melhor. Depois de entrar no seu gabinete, começou a telefonar a Helene para o laboratório sempre que tinha um momento disponível. Nunca respondia. A meio da manhã até deu um pulo ao quinto andar, mas encontrou o laboratório escuro e deserto. Voltou ao seu gabinete, irritado. Sentia que ela fora obstrutiva desde o começo, e agora, não estando disponível, complicava a questão.

Pegou no telefone, ligou para o pessoal e obteve o endereço de Helene e o seu número de telefone. Ligou imediatamente. Depois de ouvir o telefone tocar dez vezes, cheio de frustração bateu Com o auscultador no descanso. Ligou então para o pessoal e pediu para falar Com a directora, Jean Clarkson. Quando ela respondeu, pediu informações sobre Helene Brennquivist.

— Telefonou a dizer que estava doente? Tenho estado a tentar encontrá-la toda a manhã.

— Estou admirada — disse a Sr.ª Clarksoo. — Não soubemos de nada, e ela é pessoa em quem se pode confiar. Creio que não dá uma falta há ano e meio.

— Mas se estivesse doente — insistiu —, acha que telefonava?

— Absolutamente.

Jason desligou. A sua irritação transformou-se em preocupação. A ausência de Helene não lhe augurava nada de bom.

A porta do gabinete abriu-se e Claudia enfiou a cabeça.

— A Dr.a Danforth está na linha 2. Quer falar Com ela? Fez que sim Com a cabeça.

— Precisa da ficha de alguém?

— Não, obrigado — disse, enquanto levantava o telefone. A voz ressonante da Dr.ª Danforth bateu-lhe no ouvido.

— Eu diria que era melhor o Good Health começar a examinar cuidadosamente os seus pacientes. Nunca vi cadáveres em tão mau estado. Gerald Farr está tão mau como os outros. Não tinha um órgão que não aparentasse mais de cem anos!

Jason não respondeu.

— Está? — insistiu Margaret.

— Estou, sim.

Mais uma vez se sentia embaraçado por dizer a Margaret que há um mês fizera um exame completo a Farr e nada encontrara de anormal, apesar do estilo de vida pouco saudável que o homem levava.

— Admira-me que ele não tivesse uma apoplexia há vários anos — disse Margaret. — Todos os vasos estavam ateromatosos. As carótidas estavam quase fechadas.

— E o doente de Roger Wanamaker?

— Como se chamava?

— Não sei. O homem morreu na sexta-feira de apoplexia. Roger disse que vocês iam tratar do caso.

— Ah, sim. Também apresentava degenerescência quase total. Eu pensava que os planos de saúde eram para proporcionar medicina preventiva em larga escala. Vocês não vão fazer muito dinheiro se se responsabilizam por doentes tão graves. — Margaret riu-se. — Brincadeira à parte, foi outro caso de doença multissistémica.

— Vocês fazem toxicologia de rotina’ — perguntou subitamente

— Com certeza. Especialmente agora, nos tempos que correm Fazemos testes para a cocaína e esse género de coisas.

— E que tal fazer mais a toxicologia a Gerald Farr? Seria possível?

— Acho que ainda temos sangue e urina. Que é que quer que procuremos?

— Praticamente tudo. Ando à pesca, mas não faço ideia alguma do que se passa aqui.

— É Com todo o prazer que lhe faço uma bateria de testes, mas Gerald Farr não estava envenenado, isso posso eu dizer-lhe. Acabou-se-lhe o tempo, simplesmente. Era como se tivesse mais trinta anos do que a sua idade real. Sei que não parece muito científico, mas é a verdade.

— Agradecia os testes de toxicologia na mesma.

— Está bem. E vamos mandar algumas amostras para vocês aí processarem. Lamento levarmos tanto tempo Com os nossos exames microscópicos

Jason desligou e voltou ao trabalho, hesitando entre a dúvida pessoal e a sensação frustrante de que algo se passava, que estava para além da compreensão. De toda a vez que tinha um momento livre, ligava para o laboratório de Hayes. Continuava a não responder. Tornou a telefonar para Jean Clarkson, que disse que lhe telefonaria se soubesse alguma coisa de Miss Brennquivist e que por favor deixasse de a incomodar. E bateu Com o auscultador no descanso. Com nostalgia, Jason lembrou-se daqueles tempos em que recebia mais respeito do pessoal do hospital.

Depois de ver o último paciente da manhã, ficou sentado à secretária, tamborilando nervosamente Com os dedos. De repente, uma onda de certeza invadiu-o, dizendo-lhe que a ausência de Helene não era apenas significativa, era séria. De facto, estava convencido que era tão séria que devia informar a polícia imediatamente.

Trocou a bata pelo casaco e dirigiu-se ao carro. Decidiu que o melhor era ir ter Com o detective Curran em pessoa. Depois do último encontro de ambos, achava que Curran não o levaria a sério ao telefone.

Lembrava-se do caminho para o gabinete de Curran e chegou lá sem dificuldade. Dando uma olhadela para a sala escassamente mobilada, viu o detective a trabalhar sobre um impresso à sua secretária de metal, a mão imensa a agarrar o lápis como se este fosse um prisioneiro a tentar escapar.

— Curran — chamou, esperando que o homem estivesse Com melhor disposição do que estava da última vez.

Curran levantou os olhos.

— Oh, não! — exclamou, atirando Com o lápis para cima do impresso que preenchia. — O meu médico favorito! — Fez uma expressão exagerada de desespero, depois convidou Jason Com um gesto para o seu gabinete.

Jason puxou de uma cadeira Com castas de metal e sentou-se junto à secretária. O detective fitava-o Com evidente desconfiança.

— Mais um facto importante. Pensei que devia saber.

— E eu pensei que o senhor voltara às medicinas. Ignorando a observação sarcástica, Jason continuou:

— Helene Brennquivist não foi trabalhar hoje.

— Talvez esteja doente. Talvez esteja cansada. Talvez esteja enjoada e cansada de si e de todas as suas perguntas.

Jason tentou controlar-se.

— A secção de pessoal diz que é extremamente pontual. Nunca falta um dia sem avisar. E quando tentei ligar para o seu apartamento, não houve resposta.

O detective Curran brindou Jason Com um olhar desdenhoso.

— Já considerou a possibilidade de a atraente jovem ter passado um longo fim-de-semana Com um namorado?

— Creio que não. Depois de ter estado consigo soube que ela tinha um caso Com Hayes.

Curran endireitou-se na cadeira e pela primeira vez deu a Jason toda a sua atenção.

— Sempre senti que ela estava a encobrir Hayes — continuou. — Agora sei porquê. E também acredito que ela sabe muito mais acerca do trabalho dele do que diz, e sei por que razão passaram busca às coisas dele. Penso que Hayes fez uma importante descoberta e alguém anda atrás das suas notas...

— Se houve descoberta.

— Tenho a certeza que houve. E isso aumenta as minhas suspeitas sobre a morte dele. Foi demasiado conveniente.

— Está a saltar para conclusões.

— Hayes disse que andava alguém a tentar matá-lo- Penso que fez uma importante descoberta científica e foi assassinado por causa disso.

— Alto aí! — berrou Curran, batendo Com o punho na secretária. — A médica legista determinou que o Dr. Alvin Hayes morreu de causas naturais.

— Aneurisma, para ser exacto. Mas estava a ser seguido.

— Pensou que estava — corrigiu Curran, a voz subindo de irritação.

— Penso que também estava — insistiu Jason Com igual veemência. — Isso explicaria por que razão alguém voltou do avesso o seu apartamento e o seu...

— Nós sabemos por que é que o seu apartamento foi revistado — interrompeu Curran. — Apenas encontrámos as drogas e o dinheiro primeiro!

— Ele pode ter usado cocaína. — Agora era Jason que gritava. — Mas não era passador! E penso que essas drogas foram lá postas, e... — Esteve prestes a mencionar a sua conversa Com Carol, mas deteve-se. Não estava disposto a contar a Curran que insistira em ver a bailarina. — Em qualquer caso — disse Com mais calma —, penso que a razão por que puseram o laboratório do avesso foi que alguém andava à procura dos seus livros do laboratório.

— Que é isso sobre um laboratório? — Os olhos de Curran, de pesadas pálpebras, abriram-se desmedidamente e a cara pôs-se-lhe às manchas vermelhas.

Jason engoliu em seco.

— Que diabo! — berrou Curran. — Quer dizer que o laboratório dele foi virado do avesso e não informaram a polícia de nada? Que pensam vocês que andam a fazer?

— A clínica estava preocupada Com o aspecto negativo na imprensa — explicou, forçado a defender a decisão Com que não concordara.

— Quando é que isso aconteceu?

— Sexta-feira à noite.

— Que é que levaram?

— Vários livros de dados e algumas culturas de bactérias. Mas nada do equipamento valioso. E não foi assalto. — Jason observava a cara de cão-de-caça de Curran, à procura de algum sinal de que se justificava a sua preocupação Com Helene.

— Alguns danos, vandalismo?

— Bem, viraram o laboratório de pernas para o ar e deitaram tudo para o chão. Era uma confusão. Mas a única destruição deliberada deu-se naqueles... uff... naqueles animais.

— Ainda bem — concordou Curran. — Aqueles monstros deviam ter sido destruídos. Puseram-me doente. Como foram eles mortos?

— Provavelmente envenenados. O nosso departamento de patologia está a verificar isso.

O detective Curran correu os dedos grossos pelos cabelos outrora ruivos.

— Sabe uma coisa? — perguntou em tom de retórica. — Com a quantidade de cooperação que obtive das vossas cabeças iluminadas, estou terrivelmente contente, por ter passado este caso para o Departamento do Vício. Eles que se governem. Talvez queira descer ao átrio e fazer-lhes um discurso bombástico e irritado. Talvez eles consigam tirar alguma coisa do facto de que o vosso louco cientista andava a incomodar a sua assistente de laboratório e também a exótica bailarina...

— Hayes e a bailarina já não eram amantes.

— Oh, realmente? — perguntou Curran Com um riso curto e cavo, que terminou num vómito. — Por que não vai ao Departamento do Vício e me deixa em paz, doutor? Tenho uma quantidade tremenda de verdadeiros homicídios para deslindar.

Curran pegou no lápis e voltou aos seus impressos. Irritado, Jason voltou ao rés-do-chão e entregou o passe de visitante. Depois saiu e dirigiu-se ao carro. Seguindo ao longo da Storrow Drive, Com o rio Charles a espraiar-se preguiçosamente à direita, começou finalmente a acalmar. Continuava convencido que algo acontecera a Helene, mas pensou que se a polícia não estava preocupada, pouco podia fazer.

Entrou no parque de estacionamento do GHP, arrumou o carro e voltou ao seu gabinete. Claudia e Sally ainda não haviam regressado do intervalo para almoçar. Uns quantos pacientes já estavam à espera. Vestiu a bata branca e telefonou a verificar o que havia sobre a consulta de cardiologia de Madeline Krammer. Harry Sarnoff concordara Com a sua opinião e Madeline estava a fazer o seu angiograma.

Logo que Sally regressou, Jason começou o seu trabalho por ver os doentes inscritos. Estava no seu treceiro paciente da tarde quando Claudia enfiou a cabeça na porta da sala de observações.

— Tem uma visita — anunciou.

— Quem? — perguntou, separando uma receita.

— A nossa destemida chefe. E vem a espumar. Achei que devia avisá-lo.

Entregou a receita ao paciente, pôs o estetoscópio no pescoço e, percorrendo o corredor, entrou no seu gabinete. Shirley estava junto à janela. No instante em que o ouviu, voltou-se para o enfrentar. Estava sem dúvida furiosa.

— Espero naturalmente que tenha uma boa explicação, Dr. Howard. Acabo de receber um telefonema da polícia. Vêm a caminho para obter uma declaração formal do assalto ao laboratório de Hayes. Dizem que souberam disso por si... e estão a ameaçar Com obstrução de justiça.

— Desculpe... Foi um acidente. Estive na esquadra da polícia. Não era minha intenção mencionar o caso.

— E afinal que diabo estava o senhor a fazer na esquadra?

— Queria falar Com Curran — disse, sentindo-se culpado.

— Porquê?

— Havia uma informação que achava que ele devia conhecer.

— Sobre o assalto?

— Não — disse, deixando cair as mãos. — Helene Brennquivist não apareceu hoje. Descobri que ela e Hayes tinham um caso, e acho que tirei conclusões apressadas. A questão do assalto escapou-se-me.

— Acho que seria melhor se ficasse pela medicina — disse Shirley, a voz amaciando um pouco.

— Foi o que Curran disse — suspirou.

—Bem... — e estendeu a mão, tocando-lhe no braço—, pelo menos não o fizeste de propósito. Por uns instantes, fiquei sem saber de que lado estavas. É o que te digo, este caso de Hayes tem vida própria. De toda a vez que penso que o caso está controlado, quebra-se qualquer coisa.

— Desculpa — disse Com sinceridade. — Não queria tornar as coisas piores do que estão.

— Está bem. Mas lembra-te... a morte de Hayes está a prejudicar esta instituição. Não vamos complicar as nossas dificuldades. — Deu um beliscão na mão de Jason e caminhou para a porta.

Jason voltou aos seus doentes, resolvido a deixar a investigação para a polícia. Eram quase quatro horas quando Claudia voltou a interromper.

— Tem uma chamada — sussurrou.

— Quem é? — perguntou, enervado. A maneira de proceder habitual era Claudia receber as mensagens e Jason telefonar no fim do trabalho diário. A menos, claro, que se tratasse de uma emergência. Mas Claudia não sussurrava quando era uma emergência.

— Carol Donner.

Hesitou, depois disse que atenderia no gabinete. Claudia continuou, ainda a sussurrar:

— É a Carol Donner?

— Quem é a Carol Donner?

— A bailarina da Combat Zone.

— Não sabia — disse, entrando no gabinete. Fechou aporta na cara de Claudia e pegou no telefone. — Howard, médico.

— Jason, aqui é Carol Donner. Desculpe incomodá-lo.

— Não incomoda. — A voz dela trouxe-lhe de novo a agradável imagem dela sentada em frente dele na Hampshire House. Ouviu um dique. — Só um momento, Carol. — Pousou o auscultador, abriu a porta e olhou para Claudia no outro lado da sala. Com uma expressão de irritação, fez-lhe um gesto para desligar. — Desculpe — disse voltando ao telefone.

— Não queria telefonar-lhe se não pensasse que podia ser importante. Mas dei Com um embrulho no meu cacifo do trabalho. A propósito, sou bailarina no Club Cabaret...

— Oh — disse vagamente.

— De qualquer modo — continuou Carol —, tive de ir hoje ao clube e encontrei-o. Alvin tinha-me pedido há várias semanas para o pôr no meu cacifo e eu esqueci-me totalmente.

— Que é que contém?

— Livros de registo encadernados, papéis e correspondência. Esse género de coisas. Não havia drogas, se é o que está a pensar.

— Não, não é nisso que estava a pensar. Mas fico contente por ter telefonado. Os livros podem ser importantes. Gostava de vê-los.

— Muito bem. Estarei no clube esta noite. Tenho de pensar numa maneira de trazer-lhos. O meu patrão está a dar-me muitos problemas Com a protecção. Passa-se qualquer coisa de estranho, de que eles não me querem falar, mas estou presa a este guarda-costas, sempre a seguir-me. Não queria já envolvê-lo a si nisto.

— Talvez pudesse ir lá buscá-lo?

— Não, não acho boa ideia. Eu digo. Se me der o seu número de telefone, ligo quando chegar a casa.

Jason deu-lhe o número.

— Outra coisa... A noite passada lembrei-me que havia outra coisa de que não lhe falei. Há cerca de um mês, Alvin disse que ia romper Com Helene. Disse que queria que ela se concentrasse no trabalho deles.

— Acha que lhe disse a ela?

— Não faço a mínima ideia.

— Helene não apareceu hoje no trabalho.

— Não me diga! É estranho. Pelo que sei ela era rigorosa Com o trabalho. Talvez seja ela a razão por que o meu patrão está a agir desta maneira.

— Como é que o seu patrão havia de saber de Helene Brennquivist?

— Ele tem uma grande rede de informações. Sabe o que se passa em toda a cidade.

Desligando, Jason pensou nas contradições confusas entre o trabalho de Carol e o seu refinamento intelectual. «Rede de informações» era um termo da era do computador — inesperado numa bailarina exótica.

Voltando aos seus doentes, evitou habilidosamente o olhar interlogador de Claudia Sabia que ela morria de curiosidade, mas não estava disposto a satisfazê-la.

Para o fim da tarde, o Dr. Jerome Washington, um médico negro corpulento que se especializou em desarranjos gastrointestinais, interrompeu-o, pedindo-lhe uns momentos de atenção.

— Com certeza — disse, levando-o para o seu gabinete.

— Roger Wanamaker sugeriu que falasse contigo sobre este caso. — Tirou uma volumosa pasta de debaixo do braço e pô-la sobre a secretária. — Mais uns quantos como este e vou para o negócio das folhas de alumínio.

Jason abriu a pasta. Tratava-se de um doente de sessenta anos.

— Fiz um exame médico anual ao Sr. Lamborn há vinte e três dias —• começou Jerome — O tipo tinha um pouco de peso a mais, mas não é o caso de todos nós? Fora isso, achei que estava bem e disse-lhe isso mesmo. Então, há uma semana, entra por aí dentro parecendo morto-vivo. Tinha perdido cerca de dez quilos. Pu-lo no hospital, pensando que tinha alguma doença de carácter maligno que me passara. Fiz-lhe todos os testes que o livro manda. Nada. Depois, há três dias morreu. Insisti bastante Com a família para uma autópsia. E que é que ela mostrou?

— Nada de maligno.

— Exactamente. Nada de maligno... mas todos os órgãos que ele tinha estavam totalmente degenerados. Contei a Roger e ele disse-me para falar contigo, que entenderias.

— Bem, tive uns problemas semelhantes... E Roger também. Para falar verdade, tenho a impressão que estamos à beira de algum desastre médico desconhecido.

— Que é que vamos fazer? Não tenho grande estofo para aguentar emoções destas.

— Concordo. Com todas as mortes que tivemos ultimamente, também tenho andado a pensar em mudar de profissão. E não compreendo por que razão não apanhamos os sintomas nos nossos exames anuais. Disse a Roger que ia marcar uma reunião para a semana que vem, mas agora acho que não nos podemos dar ao luxo de esperar. — Nesse instante, a imagem de Hayes a deitar sangue para cima da mesa de jantar surgiu-lhe ao espírito. — Vamos reunir-nos amanhã à tarde. vou mandar Claudia tratar disso e vou dizer às secretárias para fazerem uma lista de todos os exames anuais que fizemos há um ano a esta parte e ver o que aconteceu aos indivíduos

—’Acho bem... Casos destes não nos ajudam a ter confiança.

Depois de Jerome sair, Jason foi à secretária central para tratar da conferência do pessoal médico. Sabia que umas quantas pessoas teriam de fazer horas extraordinárias, e agradeceu à providência por existirem computadores. Houve alguns resmungos quando explicou o que era preciso, incluindo novas marcações para todos os doentes de consulta externa da parte da tarde, mas Claudia tomou a seu cargo tratar dos telefonemas. Jason confiava que as coisas se arranjariam dentro do curto tempo de que dispunham.

Às cinco e meia, depois de ver o último paciente, tentou o telefone de casa de Helene. Continuava a não responder. Impulsivamente, decidiu parar no apartamento dela a caminho de casa. Viu o endereço que obtivera no departamento de pessoal e notou que ela morava em Cambridge, na Concord Avenue. Então reconheceu o endereço. Era no edifício de apartamentos das Craigie Arms.

Que coincidência, pensou. Antes de conhecer Danielle, namoriscara uma rapariga nas Craigie Arms

Metendo-se no carro, dirigiu-se para Cambridge. O trânsito era terrível, mas graças ao seu conhecimento da zona não teve dificuldade em localizar o endereço. Estacionou o carro e entrou no átrio familiar. Examinou os nomes, encontrou Brennquivist e premiu o botão. Havia sempre a possibilidade de Helene não levantar o auscultador, mas responder à campainha da porta. Não houve resposta. Tornou a olhar para a lista de inquilinos, mas o nome de Lucy Hagen desaparecera. Afinal, já lá iam quinze anos.

Estendeu então a mão para o botão do superintendente e premiu Um pequeno altifalante por cima dos botões de chamada deu sinal e a voz rude do Sr. Gratz fez-se ouvir no átrio de mosaicos.

— Sim?

Jason identificou-se rapidamente, admitindo que o Sr. Gratz talvez não se lembrasse, pois já se tinham passado alguns anos. Disse que estava preocupado Com uma colega que era inquilina. O Sr. Gratz nada disse, mas a porta abriu-se. Jason teve de correr alguns passos para lá chegar. Já dentro, confrontou-se Com o odor que não enganava e de que se lembrava há quinze anos. Era o cheiro de cebolas grelhadas. Uma porta de metal abriu para o átrio de mosaicos e o Sr. Gratz apareceu, vestido, como sempre, de camisola interior e jeans sujos. Ostentava uma barba de dois dias. Estudou a cara de Jason e tornou a perguntar-lhe o nome.

— Você não costumava sair Com a Hagen do 2-J?

Ficou impressionado. O homem Com certeza que não ganharia nenhum concurso de beleza, mas segundo parecia tinha excelente memória. Jason acabara por conhecê-lo porque Lucy tinha problemas crónicos Com os esgotos e Larry Gratz estava sempre a entrar e a sair do seu apartamento.

— Em que lhe posso ser útil?

Explicou-lhe que Helene Brennquivist não apareceu no trabalho e não respondia ao telefone. E acrescentou que estava preocupado.

— Não posso deixá-lo entrar no apartamento.

— Compreendo... Só quero ter a certeza de que tudo está bem. Gratz fitou-o por um momento, resmungou, depois dirigiu-se

ao elevador. Puxou do bolso de um molho de chaves que pareciam bem capazes de abrir metade das portas de Cambridge. Subiram no elevador sem falarem.

O apartamento de Helene ficava na extremidade de um longo átrio. Mesmo antes de chegarem à porta, já ouviam rock-and-roll em alto volume.

— Parece que está numa festa — comentou Gratz. Tocou a campainha durante um bom minuto, mas não houve resposta. Pôs o ouvido à porta e tocou outra vez. — Nem sequer ouvem a campainha. É estranho que ninguém se tenha queixado da música.

Levantando o punho cheio de pêlos, deu um murro na porta. Finalmente, escolheu uma chave e meteu-a na fechadura. Quando a porta se abriu, o volume da música aumentou dramaticamente.

— Abóbora — disse Gratz. Depois berrou: — Há gente?—Não houve resposta.

O apartamento tinha um pequeno átrio de entrada Com uma abertura em arco para a esquerda, mas mesmo de onde se encontrava Jason reconheceu o cheiro inegável da morte. Começou a falar, mas Gratz deteve-o.

— É melhor esperar aqui — disse em voz alta para cobrir a música ensurdecedora, enquanto avançava para a sala comum.

— Oh, Cristo! — berrou um segundo depois.

Os olhos esbugalharam-se-lhe na cara retorcida de horror. Jason olhou por entre o arco e o corpo de Gratz. A sala era um pesadelo.

O superintendente correu para a cozinha, a mão agarrada à boca. Mesmo Com o seu treino médico, Jason sentiu o estômago revolver-se. Helene e outra mulher encontravam-se lado a lado no sofá, nuas, Com as mãos atrás das costas. Os corpos haviam sido indescritivelmente mutilados. Uma faca de cozinha, enorme e manchada, estava encravada na mesa de café.

Jason voltou-se e olhou para a cozinha. Larry Gratz estava curvado sobre a pia, a tentar vomitar. A primeira reacção de Jason foi ajudá-lo, mas pensou noutra coisa. Foi à porta de entrada e abriu-a, desejoso de ar fresco. Alguns minutos depois Larry passou por ele a cambalear.

— Por que não vai telefonar à polícia? — perguntou Jason, deixando a porta fechar-se atrás de si. A relativa calma reanimou-o um pouco. A náusea diminuiu.

Grato por fazer qualquer coisa, Larry desceu as escadas. Jason encostou-se à parede e tentou não pensar. Tremia.

Pouco depois chegaram dois polícias. Eram jovens e passaram por vários tons de verde quando olharam para a sala comum. Mas logo se puseram a isolar a área e a interrogar cuidadosamente Jason e Gratz. Com cuidado para não tocarem em mais nada, puxaram finalmente a ficha do aparelho de estéreo. Chegaram mais polícias, incluindo detectives à paisana. Jason sugeriu que o detective Curran podia estar interessado no caso e alguém lhe telefonou. Chegou um fotógrafo da polícia, que começou a tirar fotografia após fotografia do apartamento devastado. Depois chegou o médico legista de Cambridge.

Jason aguardava no átrio quando Curran se aproximou pesadamente do apartamento de Helene.

Vendo Jason, parou apenas para dizer em voz alta e exaltada:

— Que diabo está aqui a fazer?

Jason não disse palavra, e Curran voltou-se para o polícia parado à porta.

— Onde está o detective encarregado? — disparou, mostrando o distintivo.

O polícia fez um gesto Com o polegar na direcção da sala comum. Curran entrou, deixando Jason no átrio.

A imprensa apareceu Com a sua habitual confusão de máquinas fotográficas e bloco-notas. Tentaram entrar no apartamento de Helene, mas o polícia uniformizado à porta impediu-lhes a entrada. Isso limitou-os a entrevistar qualquer pessoa por ali, incluindo Jason. Jason disse-lhes que não sabia de nada, e eles finalmente deixaram-no em paz.

Depois de algum tempo Curran reapareceu. Até ele parecia um pouco esverdeado. Aproximou-se de Jason. Tirou um cigarro de um maço amarrotado e fez uma cena à procura de um fósforo. Finalmente, olhou para Jason.

— Não me diga, «eu não lhe disse?».

— Não foi só um crime de violação, pois não? — perguntou Jason calmamente.

— Não me compete dizê-lo. Com certeza que foi uma violação.

Que é que lhe faz pensar que foi mais alguma coisa?

— A mutilação foi feita depois da morte.

— Oh? Por que é que diz isso, doutor?

— Falta de sangue. Se as mulheres estivessem vivas, haveria muito sangue.

— Estou impressionado. . E embora deteste admiti-lo, creio que não foi aquele seu amalucado. Há prova” que não posso discutir, mas parece obra de profissional. Está em jogo uma arma de pequeno calibre.

— Então concorda que a morte de Helene está ligada a Hayes.

— Possivelmente. Disseram-me que descobriu os corpos.

— Com a ajuda do superintendente.

— Que é que o trouxe aqui, doutor? Não respondeu logo.

— Não tenho a certeza — disse finalmente. — Como lhe disse, tive uma sensação desagradável quando Helene não apareceu para trabalhar.

Curran coçou a cabeça, deixando a atenção vaguear pelo átrio da entrada. Tirou uma longa fumaça do cigarro e deixou o fumo sair pelo nariz. Havia por ali muita gente: polícias, repórteres e inquilinos curiosos. Dois maqueiros estavam alinhados junto à parede, aguardando o momento de levarem os corpos.

— Talvez não entregue o caso ao Departamento do Vício — disse Curran por fim. Depois foi-se embora.

Jason aproximou-se do polícia que fazia guarda à porta do apartamento de Helene.

— Estava a pensar se não posso já ir-me embora.

— Eh, Rosati! — gritou o polícia.

O detective encarregado, homem magro, de rosto encovado, Com uma madeixa de cabelo negro rebelde, apareceu quase imediatamente.

— Ele quer ir-se embora — disse o polícia, fazendo sinal Com a cabeça para Jason.

— Já temos o seu nome e morada?

— Nome, morada, telefone, segurança social, licença de condução... tudo.

— Acho que está bem — fez Rosati. — Depois falaremos.

Jason fez que sim Com a cabeça, depois caminhou ao longo do átrio Com as pernas um tanto trémulas. Quando saiu para a rua na Concord Avenue, ficou surpreendido por já ser escuro. O ar frio da noite estava pesado Com o fumo dos escapes. Como bofetada final, encontrou um aviso de multa de estacionamento indevido no limpa-pára-brisas. Irritado, arrancou-o, compreendendo que estacionara numa zona que exigia um autocolante de residente em Cambridge.

Levou muito mais tempo a voltar ao GHP do que levara a chegar ao apartamento de Helene. O trânsito na Storrow Drive aumentou na saída no Fenway, de modo que eram cerca das sete e meia quando finalmente estacionou e entrou no edifício. Subindo ao seu gabinete, encontrou na secretária um grande maço de listas de computador, que se referiam a todos os pacientes do GHP que haviam sido sujeitos aos exames anuais desde há um ano, juntamente Com uma anotação do estado actual do paciente. As secretárias fizeram um magnífico trabalho, pensou, pondo o maço de listas na sua pasta.

Subiu ao andar da visita aos doentes internos. Uma das enfermeiras deu-lhe os resultados do arteriograma de Madeline Krammer. Todos os vasos coronários apresentavam aumento difuso e não focal significativo. Quando compararam os resultados Com igual estudo feito seis meses antes, verificou-se significativa deterioração. Harry Sarnoff, o cardiologista, não achava que fosse doente para cirurgia, e Com os seus actuais níveis baixos de colesterol e ácidos gordos, não tinha muita coisa a sugerir quanto ao seu tratamento. Para ter uma certeza de cem por cento, Jason ordenou uma consulta de cirurgia cardíaca.

Como habitualmente, Madeline estava Com a melhor das disposições, minimizando os seus sintomas. Jason disse-lhe que pedira a um cirurgião para a observar, e prometeu parar Com as diligências no dia seguinte. Tinha a sensação terrível de que a mulher não ia viver por muito mais tempo. Quando lhe examinou os tornozelos à procura de edema, encontrou algumas escoriações.

— Tem andado a coçar-se?

— Um pouco — admitiu Madeline, agarrando no lençol e puxando-o para si como se sentisse embaraçada.

— Tem comichão nos tornozelos?

— Creio que é o calor aqui dentro. Está muito seco, como sabe. Jason não sabia. De facto, o sistema de ar condicionado do hospital mantinha a humidade a nível constante e normal.

Com uma sensação horrível de déjà vu, voltou à sala das enfermeiras e ordenou uma consulta de dermatologia, bem como um exame pelo departamento de química, que incluía uns quarenta testes automáticos. Tinha de haver qualquer coisa que não conseguia compreender.

O resto das visitas foi igualmente deprimente. Parecia que todos os seus doentes estavam em declínio. Quando saiu do hospital, decidiu dar uma fugida até casa de Shirley. Sentia-se necessitado de conversar e ela naturalmente tornara bem claro que gostava sempre de o ver. Também sentia que lhe devia dar a notícia do assassínio de Helene antes que ela o soubesse pela imprensa. Sabia que ia arrasá-la.

Levou cerca de vinte minutos a chegar ao desvio empedrado da casa dela. Ficou satisfeito por ver luzes acesas.

— Jason! Que agradável surpresa! — disse Shirley, respondendo à campainha. Vestia um camiseiro vermelho Com calças pretas justas e uma fita branca em torno da cabeça. — Ia sair para a aeróbica.

— Devia ter telefonado.

— Disparate — disse, agarrando-lhe na mão e puxando-o para dentro. — Estou sempre à procura de uma desculpa para não fazer exercício.

Levou-o à cozinha, onde uma montanha de relatórios e memorandos cobria a mesa. Jason ficou a saber a quantidade enorme de trabalho que implicava gerir uma organização como o GHP. Como sempre, estava impressionado Com a capacidade de Shirley.

Quando ela lhe trouxe uma bebida, Jason perguntou se ouvira as notícias.

— Não sei — disse, tirando a fita da cabeça e sacudindo o cabelo espesso. — Notícias sobre quê?

— Helene Brennquivist...—Deixou a voz apagar-se.

— É uma notícia de que vou gostar? — perguntou, pegando na sua bebida.

— Penso bem que não... Ela e a companheira que morava Com ela foram assassinadas.

Shirley deixou cair o copo no sofá e depois ocupou-se mecanicamente a limpar tudo aquilo.

— Que aconteceu? — perguntou, depois de longo silêncio.

— Foi assassínio Com violação. Pelo menos ostensivamente. — Sentiu-se mal ao recordar a cena.

— Que coisa terrível — disse, levando a mão ao peito.

— Foi horrendo — concordou Jason.

— É o pior pesadelo de toda a mulher. Quando é que aconteceu?

— Parece que pensam que foi a noite passada. Shirley ficou-se a olhar a meia distância.

— É melhor telefonar a Bob Walthrow. Isto só vai aumentar as nossas dificuldades nas relações públicas.

Levantou-se e caminhou um tanto nervosa para o telefone. Jason sentiu-lhe a emoção na voz quando explicava o que acontecera.

— Não invejo o teu trabalho — disse, quando ela desligou. Podia ver-lhe os olhos marejados de lágrimas.

— Sinto o mesmo em relação ao teu. Sempre que te vejo depois de morrer um doente, fico contente por eu própria não ter ido para medicina.

Embora nem um nem outro estivesse Com fome, fizeram um rápido jantar de sparghetti. Shirley tentou convencê-lo a passar ali a noite, mas embora ele se sentisse confortado junto dela porque o ajudara a suportar o horror da morte de Helene, sabia que não podia ficar. Tinha de estar em casa por causa do telefonema de Carol. Desculpando-se Com muito trabalho por acabar, voltou ao seu apartamento.

Depois de fazer jogging e tomar um duche, sentou-se Com os registos de computador de todos os indivíduos que tinham feito exames anuais no GHP desde há um ano. Pés em cima da secretária, percorreu a lista cuidadosamente, notando que o número de exames era igualmente distribuído por entre todos os médicos de medicina interna. Como a lista estava impressa por ordem alfabética em vez de cronológica, levou algum tempo a perceber que os resultados maus eram muito mais comuns nos últimos seis meses do que no começo do ano. De facto, mesmo sem fazer um gráfico do material, parecia que houvera um notável aumento de mortes Com que não se contava durante os últimos meses.

Pegando num lápis, começou a apontar os números das unidades Com mortes recentes. Ficou chocado pela quantidade. Então telefonou para a central do GHP e pediu que lhe ligassem para os registos. Quando uma das secretárias da noite respondeu, deu-lhe a lista dos números das unidades e pediu se lhe podiam arranjar as fichas dos pacientes de consulta externa e pô-las na sua mesa de trabalho. A secretária disse-lhe que não haveria problema algum.

Voltando a pôr os registos de computador na pasta, pegou no seu Textbook of Endocrinology de Williams e procurou os capítulos sobre a hormona do crescimento. Como tantos outros assuntos, quanto mais lia, menos sabia. A hormona do crescimento e a sua relação Com o crescimento e a maturação sexual eram questões extremamente complicadas. Tão complicadas, de facto, que acabou por adormecer, o pesado livro a comprimir-lhe o abdómen.

O telefone, qual choque, fê-lo acordar — tão abruptamente que lançou o livro ao chão. Agarrou no auscultador, esperando ouvir o seu serviço. Mas levou um momento a perceber que quem telefonava era Carol Donner. Olhou para o relógio: onze minutos para as três.

— Espero que não estivesse a dormir.

—’Não, não! —mentiu. Tinha as pernas inteiriçadas por estarem apoiadas na secretária. — Tenho estado à espera que ligasse. Onde está?

— Em casa.

— Posso ir buscar esse embrulho?

— Não o tenho aqui. Para evitar problemas, dei-o a uma amiga que trabalha comigo. Chama-se Melody Andrews. Mora na Revere Street, 69, no Beacon Hill. — Deu-lhe também o número de telefone de Melody. — Ela aguarda um telefonema e deve estar mesmo a chegar a casa. Diga-me depois o que acha do material, e se houver algum problema, o meu número é este... — e recitou o número do telefone.

— Obrigado — disse, tomando apontamento. Ficou surpreendido Com a sensação de desapontamento por não ir ter Com ela.

— Tome cuidado consigo — disse Carol, desligando. Continuou à secretária, tentando ficar completamente acordado.

Quando o conseguiu, apercebeu-se que não mencionara a Carol a morte de Helene. Bem, talvez seja uma boa desculpa para telefonar a Carol, reflectiu enquanto marcava o número da amiga dela.

Melody Andrews respondeu à chamada Com um forte sotaque do Sul de Boston. Disse a Jason que tinha o embrulho e que esperava que o fosse buscar. Acrescentou que estaria a pé ainda por mais ou menos meia hora.

Jason vestiu uma camisola de lã e um colete, saiu de casa, desceu pela Pinckney Street, seguiu ao longo da West Cedar, subiu a Revere. O edifício onde morava Melody ficava à esquerda. Tocou a campainha e ela apareceu à porta em papelotes. Jason não acreditava que ainda se usasse daquilo. Apresentava uma cara cansada e contraída.

Jason apresentou-se. Melody limitou-se a dizer que sim Com a cabeça e a entregar-lhe um embrulho de papel castanho e atado Com um cordel. Pesava uns cinco quilos. Quando Jason lhe agradeceu, apenas encolheu os ombros e disse:

— Está bem.

Voltando a casa, Jason tirou o colete e a camisola de lã. Olhando ansioso para o embrulho, foi buscar uma tesoura à cozinha e cortou o cordel. Depois levou o embrulho para o quarto e colocou-o na secretária. Abriu-o e encontrou dois livros de registos cheios de instruções escritas à mão, diagramas e dados experimentais. Um dos livros tinha impressos «Property of Gene, Inc.» na capa, o outro apenas a palavra «Bloco-notas». Além dos livros, havia um grande sobrescrito de papel forte Com correspondência.

As primeiras cartas que leu eram da Gene, Inc., exigindo que Hayes respeitasse os seus acordos contratuais e devolvesse o protocolo somatomedina & a estirpe de bactérias E. coli recombinante, que ilegalmente retirara do laboratório deles- À medida que ia lendo verificava que, segundo parecia, Hayes tinha uma opinião bastante diferente quanto à propriedade do protocolo e da estirpe e que andava a tratar de patentear os mesmos. Também havia uma série de cartas de um advogado de nome Samuel Schwartz. Metade delas tratava da proposta para a patente do processo de produção de somatomedina por E. coli e as restantes tratavam da formação de uma empresa.

Parecia que Alvin Hayes possuía cinquenta e um por cento das acções, enquanto os filhos partilhavam os outros quarenta e nove por cento, juntamente Com Samuel Schwartz.

Quanto a correspondência é tudo, pensou.

Voltou a pôr as cartas no sobrescrito de papel forte. A seguir pegou nos livros de registo. O que tinha «Gene, Inc.» escrito na capa parecia ser o protocolo a que se fazia referência na correspondência. À medida que passava as páginas, percebeu que apresentava em pormenor a criação da estirpe de bactérias de recombinante para produzir somatomedina. Pela leitura ficou a saber que somatomedinas eram factores de crescimento produzidos pelas células de fígado em reacção à presença da hormona do crescimento.

Pondo o primeiro livro de lado, pegou no segundo. As experiências delineadas estavam incompletas, mas diziam respeito à produção de um anticorpo monoclonal a uma proteína específica. Não se dava nome a esta proteína, mas existia um diagrama da sua sequência de aminoácidos. A maior parte do material estava para além da sua compreensão, mas era evidente pelas grandes secções de texto cortadas e Com escrita miúda à margem que o trabalho não estava a correr bem, e que, na altura do último registo, Hayes não criaria afinal o anticorpo que desejara.

Espreguiçando-se, levantou-se da secretária. Estava desiludido. Esperara que o embrulho de Carol oferecesse um aspecto mais claro do avanço científico de Hayes, mas fora a documentação da controvérsia entre Hayes e a Gene, Inc., pouco mais tinha ficado a saber do que já conhecia antes de abrir o embrulho. Tinha de facto o protocolo para produzir a estirpe de E coli de somatomedina, mas isso mal se podia considerar uma descoberta importante, e tudo quanto o outro livro de laboratório apresentava era um fiasco.

Exausto, apagou as luzes e foi deitar-se. Fora um dia enorme e terrível.

 

Pesadelos que envolviam grosseiras permutações dos factos terríveis passados no apartamento de Helene levaram Jason a sair da cama antes das primeiras cores no céu oriental. Pôs café a fazer e enquanto esperava que a máquina o filtrasse, pegou no jornal e leu a notícia sobre o duplo assassínio. Não havia nada de novo. Como esperara, acentuava-se o crime de violação. Pondo o livro de registo da Gene, Inc., na pasta, saiu para o hospital.

Pelo menos não havia trânsito àquela hora da madrugada quando seguia para o GHP, e teve muito por onde escolher para estacionar o carro. Até os cirurgiões que habitualmente chegavam a horas pouco civilizadas ainda ali não se encontravam.

Quando chegou ao GHP, foi directamente para o seu gabinete. Conforme havia pedido, a secretária estava empilhada de fichas. Tirou o casaco e começou a percorrê-las. Tendo em mente que se tratava de doentes que haviam morrido no espaço de um mês após receberem um boletim de saúde sem problemas passado por médicos que tinham feito os exames anuais que o GHP oferecia, procurou factores comuns. Nada lhe saltou à vista. Comparou ECGs e os níveis de colesterol, ácidos gordos, imunoglobulinas e exames de sangue. Nenhum grupo comum de compostos, de elementos ou de enzimas variava do normal em qualquer padrão possível. O único traço comum era que a maioria das mortes ocorreu no espaço de um mês após a execução dos exames. Mais perturbante ainda, conforme notou, era que nos últimos três meses o número de mortes aumentara dramaticamente.

Ao ler a vigésima sexta ficha, ocorreu-lhe de súbito uma correlação. Embora os pacientes não partilhassem sintomas físicos, as suas fichas mostravam predominância de hábitos sociais de alto risco. Tinham excesso de peso, fumavam muito, usavam drogas, bebiam demasiado, e não faziam exercício, ou combinavam quaisquer ou todas estas práticas nada saudáveis; eram homens e mulheres que estavam eventualmente destinados a ter graves problemas médicos. O facto chocante era que tinham piorado rapidamente. E por que razão o súbito acréscimo no número de mortes? As pessoas não se entregavam mais agora aos seus prazeres nefastos do que há um ano. Talvez se tratasse de uma espécie de compensador estatístico. Tinham sido felizes e agora os números estavam a alcançá-los. Mas isso não fazia sentido algum, pois parecia haver mortes a mais. Não era técnico de estatística, por isso decidiu perguntar a um matemático melhor do que ele para ver os números.

Quando soube que já não ia acordar os doentes, saiu do seu gabinete e foi fazer as visitas. Nada mudara. De novo no seu gabinete, e antes de ver o doente da primeira marcação, telefonou para a patologia a informar-se sobre os animais mortos do laboratório de Hayes, e aguardou vários minutos enquanto a técnica procurava o relatório.

— Aqui está. Morreram todos por envenenamento por estricnina. Jason desligou e telefonou para a morgue da cidade, para Margaret

Danforth. Respondeu uma técnica, pois Margaret estava ocupada numa autópsia. Perguntou então se a toxicologia de Gerald Farr revelava algo de interessante.

— A toxicologia foi negativa.

— Mais uma pergunta. A estricnina teria aparecido?

— Apenas um momento.

Jason ouviu ao fundo a mulher a gritar para a médica legista. Depois ouviu-a ao telefone.

— A Dr.ª Danforth disse que sim, a estricnina teria aparecido se lá tivesse estado.

— Obrigado.

Desligou o telefone, levantou-se e foi até à janela, onde ficou a olhar para o dia a animar-se. O trânsito arrastava-se no Riverway. O céu estava claro, mas Com nuvens. Estava-se em princípios de Novembro. Um mês pouco agradável em Boston.

Sentia-se inquieto, ansioso e triste. Pensou no embrulho de Carol e estava indeciso se havia de entregá-lo a Curran. E a que propósito? Nem sequer andaram a investigar Hayes, a não ser como traficante de drogas.

Voltando à secretária, pegou na lista telefónica e procurou o número da Gene, Inc. Viu que a empresa se localizava na Pioneer Street, na East Cambridge a seguir aos terrenos do MIT [Massachusets Institute of Techonlogy]. Impulsivamente, sentou-se e discou o número. Respondeu uma recepcionista Com sotaque inglês. Jason perguntou pelo director da empresa.

— Quer dizer o Dr. Leonard Dawen, o presidente? —O Dr. Dawen... pode ser — concordou.

Ouviu tocar na extensão. Respondeu uma secretária:

— Gabinete do Dr. Dawen.

— Gostava de falar Com o Dr. Dawen.

— Quem posso dizer que está ao telefone?

— Jason Howard, médico.

— Posso dizer-lhe qual o assunto?

— É sobre um livro de laboratório que tenho em meu poder. Diga ao Dr. Dawen que sou do Good Health Plan e fui amigo do falecido Alvin Hayes.

— Um momento, por favor — disse a secretária numa voz que parecia uma gravação.

Jason abriu a gaveta do meio da sua secretária e brincou Com a sua colecção de lápis. Ouviu um dique no telefone, depois surgiu uma voz forte.

— Daqui Leonard Dawen!

Jason explicou quem era e depois descreveu o livro de laboratório.

— Pode dizer-me, por favor, como é que ele chegou às suas mãos?

— Penso que isso não tem importância. O facto é que está em meu poder. — Não estava disposto a implicar Caroll.

— Esse livro é nossa propriedade — disse o Dr. Dawen. A voz era calma, mas revestida de tom dominante e ameaçador.

— Ficarei satisfeito por devolver o livro em troca de algumas informações sobre o Dr. Hayes. Acha que podíamos encontrar-nos?

— Quando?

— Logo que possível. Eu podia chegar aí mesmo antes do almoço.

— Vai trazer o livro consigo?

— vou, sim.

Durante o resto da manhã não conseguiu concentrar-se devidamente diante da corrente contínua de doentes. Ficou contente por Sally não lhe ter feito marcação para a hora do almoço. No instante em que acabou a última consulta, apressou-se a sair para meter-se no carro e partir.

Chegando a Cambridge, seguiu Com cuidado junto dos terrenos do MIT e por entre os arranha-céus da nova East Cambridge, alguns deles Com arquitectura dramaticamente moderna, que contrastava vivamente Com as estruturas de tijolo mais antigas e tradicionais da Nova Inglaterra. Fazendo uma curva final na Pioneer Street, encontrou a Gene, Inc., instalada num edifício surpreendentemente moderno, de granito preto polido. Diferente dos edifícios vizinhos, a estrutura tinha apenas seis andares de altura. As janelas eram estreitas aberturas alternando Com círculos de vidro espelhado e bronze. Possuía um aspecto sólido e poderoso, como um castelo de um filme de ficção científica.

Jason saiu do carro Com a pasta e levantou os olhos para a fachada impressionante Depois de ler tanta coisa sobre o ADN recombinante e ver o jardim zoológico grosseiramente deformado de Hayes, tinha receio de estar prestes a entrar numa casa de horrores. A entrada principal era circular, definida por espigões de granito radiantes, dando a ilusão de um olho gigante, sendo as portas pretas a pupila. O grande átrio de entrada era também de granito preto: paredes, pavimento, até o tecto. No centro da zona de recepção encontrava-se uma escultura moderna vistosamente iluminada da molécula do ADN de dupla hélice a abrir como um fecho de correr.

Jason aproximou-se de uma atraente coreana sentada por detrás de uma parede de vidro e em frente de um painel de controlo que parecia tirado do Starship Enterprise. Tinha uns auscultadores juntamente Com um pequeno microfone, que, como uma serpente, lhe surgia por detrás do pescoço. Cumprimentou Jason pelo nome. Disse-lhe que o esperavam na sala de conferências do terceiro andar. A voz tinha uma tonalidade metálica através do microfone.

Logo que a recepcionista parou de falar, abriu-se um dos painéis de granito, revelando um elevador. Quando lhe agradeceu, Jason pensou para consigo que ela era um verdadeiro robot. Sorrindo, entrou no elevador e procurou os botões de comando. A porta fechou atrás de si. Não havia painel de comando no elevador, mas este começou a subir.

Quando as portas tornaram a abrir, encontrou-se num átrio negro sem portas. Tinha a impressão que todo o edifício era controlado a partir de uma estação central, talvez pela recepcionista lá em baixo. À sua esquerda um painel de granito deslizou e deixou ver uma entrada. No limiar encontrava-se um homem Com traços grosseiros, impecavelmente vestido Com um fato escuro às riscas, camisa branca e gravata de lã vermelha.

— Dr. Howard, sou Leonard Dawen — disse o homem, fazendo-lhe sinal para entrar. Não esboçou o gesto de apertar a mão. A voz tinha a mesma tonalidade de comando de que Jason se recordava pela conversa telefónica. Comparada Com a austeridade tumular do resto do edifício, a sala de conferências tinha mais o aspecto de uma biblioteca Com painéis de madeira e parecia francamente confortável até se olhar para a quarta parede, que era de vidro. Esta dava para o que parecia ser um laboratório ultramoderno. Encontrava-se outro homem na sala, um oriental, trajando um fato branco de treino Com fecho corrido. Dawen apresentou o homem como o Sr. Hong, engenheiro da Gene, Inc. Sentaram-se os três numa pequena mesa de conferência.

— Presumo que tem o livro de laboratório — disse Dawen. Jason abriu a pasta e entregou o livro de registos a Dawen, que

o passou a Hong. O engenheiro começou a estudá-lo página a página. Seguiu-se pesado silêncio.

Olhando ora para um, ora para outro, esperara que as coisas fossem um pouco mais cordiais. Afinal, estava ali a fazer-lhes um favor.

Voltou-se e olhou Com atenção através da parede de vidro. O pavimento dessa divisão ficava um andar abaixo. Grande parte da área estava repleta de cubas de aço inoxidável, fazendo-o lembrar-se de uma visita que fizera a uma fábrica de cervejas. Calculou que se tratasse das incubadoras para a cultura de bactérias recombinantes. Havia grande quantidade de outro equipamento e complicada tabuagem. Por todo o lado, pessoas em fato de treino branco Com capuz verificavam instrumentos de medida e faziam ajustamentos.

Hong fechou o livro de registos Com um baque.

— Parece completo.

— É uma bela surpresa — disse o Dr. Dawen. Voltando-se para Jason: — Espero que perceba que tudo quanto este livro contém é confidencial.

— Não se preocupe — disse forçando um sorriso. — Não compreendi muita coisa. Estou interessado é no Dr. Hayes. Mesmo antes de morrer disse que fizera uma importante descoberta. Tenho curiosidade em saber se o que se descreve nessas páginas seria isso.

Dawen e Hong trocaram um olhar.

— Trata-se mais de um assunto de boas perspectivas comerciais — disse Hong. — Aqui não há nenhuma tecnologia nova.

— Era o que eu suspeitava. Hayes estava tão perturbado que eu diria que não estava inteiramente bom da cabeça. Mas se fez uma importante descoberta, lamentaria bastante que se perdesse para a humanidade.

Pela primeira vez desde a chegada de Jason os traços rígidos de Dawen suavizaram-se.

E Jason prosseguiu, dirigindo a sua atenção para o engenheiro. — Tem alguma ideia sobre que é que Hayes podia estar a falar?

— Infelizmente, não. Hayes era sempre bastante reservado. — Dawen cruzou as mãos sobre a mesa e olhou directamente para Jason. — Receávamos que fosse extorquir-nos dinheiro Com este material... fazer-nos pagar para o reavermos — disse, tocando na capa do livro de laboratório. — Tem de compreender que o Dr. Hayes nos estava a fazer passar um mau bocado.

— Qual era aqui o papel do Dr. Hayes?

— Contratámo-lo para produzir uma estirpe recombinante de bactérias — explicou Dawen. — Queríamos produzir um certo factor de crescimento em quantidades comerciais.

Jason calculou que se tratava da somatomedina.

— Concordámos em pagar-lhe uma importância simbólica, bem como deixá-lo utilizar as instalações da Gene, Inc., para as suas próprias pesquisas. Temos algum equipamento verdadeiramente único.

— Têm alguma ideia do que constavam as suas próprias pesquisas? Foi Hong que respondeu.

— Passava a maior parte do tempo a isolar proteínas como factor de crescimento Algumas delas existem em quantidades tão diminutas que é preciso o mais sofisticado equipamento para isolá-las.

— Seria de considerar uma importante descoberta científica conseguir isolar um desses factores de crescimento?

— Não estou a ver como — replicou Hong. — Mesmo que nunca tenham sido isolados, conhecemos os seus efeitos.

Mais outro beco sem saída, pensou, aborrecido.

— Há apenas uma coisa de que me lembro, que talvez seja significativa — disse Hong, apertando a cana do nariz como gesto de reflexão. — Há cerca de três meses Hayes ficou muito excitado Com um efeito lateral qualquer. Disse que era irónico.

Jason endireitou-se. Lá vinha aquela palavra outra vez.

— Tem alguma ideia do que causou essa excitação? Hong abanou a cabeça.

— Não... mas depois disso não o vimos durante um tempo. Quando o tornámos a ver, disse que fora à Costa. Então começou a aplicar um elaborado processo de extracção sobre um material qualquer que trouxera consigo. Não sei se deu resultado, mas então voltou-se bruscamente para a tecnologia de anticorpos monoclonais. Nessa altura o seu entusiasmo esmoreceu.

As palavras «anticorpos monoclonais» fizeram Jason recordar-se do segundo livro de laboratório, e perguntou de si para si se não devia tê-lo trazido, afinal. Talvez o Sr. Hong conseguisse tirar mais dele do que ele próprio.

— O Dr. Hayes deixou aqui qualquer outro material de pesquisa?

— Nada de importância — respondeu Leonard Dawen. — E nós verificámos Com cuidado, porque ele foi-se embora Com o nosso livro de laboratório e Com as culturas. De facto, estávamos em tribunal Com o Dr. Hayes. Nunca previmos que ia tentar argumentar que era o dono das estirpes que ia produzir por contrato connosco

— Conseguiram reaver as vossas culturas?

— Conseguimos.

— Onde as encontraram?

— Digamos que procurámos no lugar certo — disse Dawen evasivamente. — Mas embora tenhamos as culturas, continuamos gratos por reaver o livro de protocolo. Em nome da companhia, gostaria de lhe agradecer. Espero termo-lo ajudado de algum modo.

— Talvez — disse vagamente Jason. Tinha a ideia de que inadvertidamente descobrira quem revistara o laboratório e o apartamento de Hayes. Mas por que razão haviam os cientistas da Gene, Inc., de

ter morto os animais? Pensava se os enormes animais não teriam sido tratados Com a somatomedina da Gene, Inc.—Muito obrigado pelo tempo dispensado — disse para Dawen. — Têm aqui umas instalações extraordinárias.

— Obrigado. As coisas vão indo bem. Pensamos ter em breve as estirpes recombinantes de animais domésticos de criação.

— Quer dizer porcos e vacas?

— Exactamente. Geneticamente, podemos produzir porcos mais magros, vacas que produzam mais leite e frangos que tenham mais proteínas, para lhe dar alguns exemplos.

— Fascinante — disse sem entusiasmo. A que distância estariam eles de poderem aplicar a engenharia genética nas pessoas? Voltou a ter um calafrio ao recordar os ratos e ratazanas enormes, especialmente aqueles Com olhos a mais.

De volta ao carro, olhou para o relógio. Ainda tinha uma hora antes da reunião que ia tratar das mortes recentes dos doentes, por isso decidiu ir visitar Samuel Schwartz, advogado de Hayes.

Pondo o carro a trabalhar, saiu em marcha atrás do parque de estacionamento da Gene, Inc., e dirigiu-se para o Memorial Drive. Atravessou o rio Charles, parando no Philip’s Drugstore, no Charles Circle. Estacionando em fila dupla Com as luzes de emergência a piscar, entrou a correr no estabelecimento e procurou o endereço de Schwartz. Dez minutos depois estava na sala de espera do advogado a passar as páginas de uma Newsweek já antiga.

Samuel Schwartz era um homem obeso, enorme, Com uma calva brilhante. Fez a Jason um gesto para entrar no seu escritório como se estivesse a dirigir o trânsito. Instalando-se na sua cadeira e ajustando os óculos de aros de metal, ia estudando Jason, que se sentara em frente da secretária de mogno maciço.

— Com que então é amigo do falecido Alvin Hayes...

— Éramos mais colegas do que amigos.

— Seja o que for — disse Schwartz Com outro gesto da mão papuda. — E então que deseja de mim?

Jason tornou a contar a história de Hayes de uma pretensa descoberta científica Explicou que estava a tentar descobrir em que estivera Hayes a trabalhar e acabara por encontrar correspondência de Samuel Schwartz.

— Era meu cliente. E depois?

— Não precisa estar na defensiva.

— Não estou na defensiva. Sinto apenas amargura. Fiz muito trabalho para esse vagabundo e vou ter de anular tudo isso.

— Nunca pagou?

— Nunca. Conseguiu levar-me a trabalhar em troca de acções da sua nova empresa.

— Acções?

Samuel Schwartz riu-se sem humor.

— Infelizmente, agora que Hayes morreu, as acções não valem nada. Talvez também nada valessem se continuasse vivo. Eu devia era mandar examinar a minha cabeça.

— A empresa de Hayes ia vender algum serviço ou um produto?

— Um produto. Hayes disse-me que estava em vésperas de conseguir o mais valioso produto para a saúde jamais conhecido. E eu acreditei nele. Achava que um tipo que foi capa da Time tinha de fazer alguma coisa importante.

— Tem alguma ideia de que produto se tratava?—perguntou, tentando não dar à voz qualquer tonalidade emocional.

— Nem a mais leve sombra. Hayes não me quis dizer.

— Sabe se isso envolvia anticorpos monoclonais? — perguntou, pouco disposto a desistir.

Schwartz voltou a rir.

— Eu não conheceria um anticorpo monoclonal mesmo que chocasse Com ele.

— Coisas malignas? — Jason estava a apontar no escuro, mas esperava poder fazer vibrar a memória do advogado. — Podia o produto ter relação Com o tratamento do cancro?

O homem obeso encolheu os ombros.

— Não sei. Talvez.

— Hayes disse a alguém que a sua descoberta ia realçar-lhe a beleza. Isto tem algum significado para si?

— Ouça, Dr. Howard. Hayes não me disse nada sobre o produto. Eu apenas estava a montar a empresa.

— Também estava a tratar da patente?

— A patente nada tinha a ver Com a empresa. Ia ficar em nome dele.

O bip-bip de Jason sobressaltou os dois homens. Olhou para o pequeno mostrador. A palavra «urgente» piscou duas vezes, seguida de um número do GHP-

— Seria possível usar o seu telefone? Schwartz empurrou-lho por cima da mesa.

— Sirva-se, doutor.

A chamada era do andar onde se encontrava Madeline Krammer. Acontecera o pior, e eles estavam a aplicar-lhe o ressuscitador cardiopulmonar. Jason disse que iria já para lá. Agradecendo a Samuel Schwartz, saiu a correr do seu escritório e esperou Com impaciência pelo elevador.

Quando chegou ao quarto de Madeline, viu toda uma cena demasiado familiar. A doente não reagia. O coração recusava-se a reagir qualquer coisa, incluindo o pace-maker externo. Jason insistiu que continuassem a aplicar todo o apoio possível enquanto o seu espírito percorria as possibilidades das várias drogas e tratamentos, mas depois de uma hora de frenética actividade, até ele foi forçado a desistir, e Com relutância ordenou que parassem Com o que estavam a fazer. Ficou junto à cama de Madeline depois de todas as pessoas terem saído. Fora uma velha amiga, uma das primeiras pessoas que tratara no seu consultório particular. Uma das enfermeiras cobriu-lhe o rosto Com um lençol. O nariz de Madeline projectava-se como um monte miniatura coberto de neve. Suavemente, afastou um pouco o lençol. Muito embora ela tivesse sessenta e poucos anos, ele não podia deixar de notar-lhe o aspecto de velha. Desde que entrara no hospital, o rosto perdera todo o seu ar rechonchudo de boa disposição e tomara o aspecto esquelético daqueles que se aproximam da morte.

Precisando de algum tempo para si, retirou-se para o seu gabinete, evitando tanto Claudia como Sally. Cada uma delas tinha uma centena de questões urgentes sobre a conferência que se ia fazer e os problemas que isso levantava a respeito da mudança das marcações de tantos doentes. Como doente tão antiga, a morte de Madeline parecia a rotura de mais um elo que ele tinha Com a sua vida anterior. Sentia-se pungentemente sozinho, e receoso, embora aliviado, que a lembrança de Danielle se fosse esbatendo.

O telefone tocou, mas ele ignorou-o. Passou os olhos pela secretária, que era uma barafunda de fichas de doentes falecidos, incluindo a de Hayes. Era frustrante que o embrulho de Carol, que se revestira de tanta esperança, prestara afinal tão poucas informações. Dava um pouco mais de crédito à ideia de que Hayes fizera uma descoberta que pelo menos pensava que era estupenda. Amaldiçoou-lhe o mistério e a reserva.

Encostando-se para trás, cruzou as mãos atrás da cabeça e fitou o tecto. As ideias sobre Hayes estavam a esgotar-se-lhe. Mas nesse momento lembrou-se do comentário do engenheiro oriental de que Hayes trouxera algo da Costa, presumivelmente de Seattle. Deve ter sido uma amostra de qualquer coisa, porque Hayes a sujeitara a um complicado processo de extracção. Pelos comentários de Hong, parecia-lhe que Hayes estivera provavelmente a isolar alguma espécie de factor de crescimento que estimularia o crescimento, ou a diferenciação, ou a maturação, ou todas estas três coisas.

Com um baque endireitou-se. Recordando-se de que Carol dissera que Hayes visitara um colega na Universidade de Washington, agarrou-se de súbito à ideia de que Hayes obtivera do homem uma amostra de algum género.

De repente, decidiu que iria a Seattle, desde que, evidentemente, Carol fosse também. Ela podia ir. Afinal, era ela a chave para encontrar este amigo. Além disso, uns dias afastado deste ambiente pareciam-lhe uma excelente terapia. No pouco tempo que faltava para a reunião do pessoal, resolveu ir ver Shirley.

A secretária de Shirley, a princípio, insistiu que a chefe estava demasiado ocupada para atendê-lo, mas ele convenceu-a a, pelo menos, anunciar a sua presença. Um momento depois foi introduzido no gabinete. Shirley estava ao telefone. Sentou-se e gradualmente foi apanhando a linha da conversa. Estava a tratar Com um dirigente do sindicato, manobrando a pessoa Com impressionante facilidade.- Distraída, passava os dedos pelo farto cabelo. Era um gesto maravilhosamente feminino, recordando-lhe que sob a capa profissional existia uma mulher muito atraente, complicada, mas adorável.

Shirley desligou e sorriu.

— É um prazer... És uma pessoa cheia de surpresas ultimamente, não és, Jason? Suponho que estás aqui para pedir desculpa por não teres passado mais tempo comigo a noite passada.

Riu-se. Aquela directa era desarmante.

— Talvez sim. Mas há mais alguma coisa. Estou a pensar tirar uns dias de folga. Perdi outro doente esta manhã, e acho que preciso de algum tempo fora disto.

Shirley deu um estalido Com a língua, num gesto de compreensão.

— Era de esperar?

— Creio que sim. Pelo menos nestes últimos dias. Mas quando lhe dei entrada não fazia ideia de que ela estava em estado terminal.

Shirley suspirou.

— Não sei como consegues passar por este género de coisas.

— Nunca é fácil — concordou. — Mas o que torna a coisa particularmente dura ultimamente é a frequência.

O telefone tocou, mas ela premiu o besouro de chamada para a secretária receber a mensagem.

— De qualquer modo — continuou —, decidi tirar uns dias de folga.

— Acho que é boa ideia. Eu não me importaria de fazer o mesmo se estas malditas negociações Com o sindicato terminassem. Aonde estás a pensar ir?

— Ainda não sei bem — mentiu. A viagem a Seattle era atirar no escuro de tal modo que tinha vergonha de a mencionar.

— Tenho alguns amigos que possuem uma estância nas British Virgin Islands. Podia dar-lhes uma apitadela — ofereceu Shirley.

— Não, obrigado. Não sou pessoa para estar ao sol. Que aconteceu quanto à tragédia de Helene Brennquivist? Muitos estragos?

— Não lembres coisas tristes... Para dizer-te a verdade, não consegui suportar tal coisa. Bob Walthrow é que está a tratar do caso.

— Eu tive pesadelos toda a noite — admitiu.

— Não é surpresa

— Bem, tenho uma reunião — disse Jason, pondo-se de pé.

— Terias tempo hoje à noite para jantar? Talvez possamos animar-nos um ao outro.

— Com certeza. A que horas?

— Digamos... por volta das oito.

— Às oito — disse ele, dirigindo-se para a porta. Ia a sair quando Shirley ainda o chamou.

— Lamento o caso da tua doente.

A reunião do pessoal médico teve mais participantes do que Jason esperava, dado o curto prazo de aviso. Encontravam-se lá catorze dos dezasseis especialistas de medicina interna, e vários tinham trazido também pessoal de enfermagem. Parecia óbvio que todos reconheciam que enfrentavam um sério problema.

Jason começou Com as estatísticas que extraíra das listas de computador, incluindo todos os pacientes que haviam morrido no mês que se seguiu ao exame anual completo. Mostrou que o número de mortes aumentara nos últimos três meses e disse que estava a tentar examinar todos os clientes do GHP que haviam feito exames anuais de executivos nos últimos sessenta dias.

— Os exames anuais foram distribuídos igualmente por todos nós? — perguntou Roger Wanamaker.

Jason fez que sim Com a cabeça.

Uma série de médicos exprimiu a sua opinião, tornando bem claro que receavam o começo de uma epidemia a nível nacional. Ninguém conseguia perceber a conexão entre os exames anuais e a razão por que não se estavam a prever estas mortes. A Dr.a Judith Rolander, chefe interina de cardiologia, tentou chamar a si grande parte da culpa, admitindo que na maioria dos casos que revira o ECG feito durante o exame anual não previa os problemas iminentes, mesmo quando já estava prevenida.

A conversa então derivou para os testes sobre stress como a principal chave para prever os problemas cardíacos catastróficos. Sobre este assunto surgiram muitas opiniões; todas foram devidamente debatidas. Com recomendação da maioria, formou-se uma comissão ad hoc para investigar processos específicos para alterar os testes de stress, na esperança de aumentar o seu valor prognóstico.

Jerome Washington, levantando-se pesadamente, tomou então a palavra.

— Acho que não estamos a dar a devida importância aos estilos de vida pouco saudáveis. Trata-se de um factor que todos estes pacientes parecem partilhar.

Ouviram-se umas quantas referências jocosas ao peso de Jerome e ao seu gosto pelos charutos.

— Muito bem, rapazes. Vocês sabem que os doentes devem fazer o que nós dizemos e não o que fazemos.

Toda a gente riu.

— A sério — continuou. — Todos nós conhecemos os perigos de dietas pobres, excessos de fumo e de álcool, e falta de exercício. Esses factores sociais têm muito mais valor de prognóstico do que uma ligeira anormalidade de ECG.

— Jerome tem razão — disse Jason. — O pouco cuidado Com o factor de risco foi o único elemento comum negativo que consegui encontrar.

Por um voto, decidiu-se formar uma segunda comissão para investigar a contribuição do factor de risco para Com o problema actual e apresentar recomendações específicas.

Harry Sarnoff, o cardiologista de serviço no mês corrente, levantou a mão, e Jason reconheceu-o. Pondo-se de pé, começou a falar sobre um incremento na morbidade e mortalidade dos seus doentes internados no hospital. Jason interrompeu-o.

— Desculpa-me, Harry. Compreendo a tua preocupação, e francamente tenho tido situações aparentemente semelhantes às tuas. Todavia, esta reunião trata do problema Com exames anuais de executivos de consulta externa. Podemos agendar uma segunda reunião se o corpo médico desejar discutir qualquer problema potencial de doentes internados. Podem muito bem estar relacionados.

Harry levantou as mãos num gesto de impotência e Com relutância sentou-se.

Jason incitou então o pessoal médico a fazer a autópsia a quaisquer pessoas que tivessem morte inesperada se o médico legista não tratasse do caso. Disse depois aos presentes que os resultados provenientes do gabinete do médico legista dos seus doentes sugeriam que as pessoas estavam a sofrer de doença multissistémica, incluindo extensos problemas cardiovasculares. Evidentemente que esse facto apenas torna difícil a hipótese de ser por as condições deles não terem sido apanhadas nos ECGs feitos em repouso ou em exercício. Acrescentou ainda que o departamento de patologia achava que existia uma componente de auto-imunição.

Acabada a reunião, os médicos gravitavam em pequenos grupos para discutir o problema. Jason pegou no seu material de computador e procurou Roger Wanamaker. Este encontrava-se em animada conversa Com Jerome.

— Posso interromper?

Os dois homens afastaram-se um pouco para que Jason se lhes juntasse.

— vou sair da cidade por uns dias...

Roger e Jerome trocaram um olhar. Foi Roger quem falou:

— Parece má altura para sair da cidade.

— Preciso mesmo de sair — disse sem mais explicações. — Mas tenho cinco doentes no hospital. Estaria qualquer dos senhores na disposição de dar cobertura ao caso? Admito desde já que eles todos estão razoavelmente doentes.

— Não seria grande problema — disse Roger. — Tenho estado aqui dia e noite a tentar manter viva a minha própria meia dúzia. Fico encantado por te substituir.

Com esse problema resolvido, entrou no seu gabinete e telefonou a Carol Donner, pensando que aquela hora da tarde seria uma boa altura para apanhá-la. O telefone tocou durante muito tempo, e estava prestes a desistir quando ela atendeu, quase sem fôlego. Explicou que estava no banho.

— Preciso de vê-la esta noite.

 — Oh — fez Carol Com certa reserva. Hesitou. — Talvez seja difícil. — Depois acrescentou, zangada: — Por que não me falou a noite

passada de Helene Brennquivist? Li no jornal que foi você quem

encontrou os corpos.

— Desculpe — disse, na defensiva. — Para ser perfeitamente honesto, você acordou-me a noite passada e só pensei no embrulho.

— Foi buscá-lo? — perguntou, a voz mais suave.

— Fui.. Obrigado.

— E...?

— O material não era tão esclarecedor como eu esperava.

— É surpresa para mim. Os livros devem ter sido importantes, ou então o Alvin não me teria pedido para guardá-los. Mas isso já não interessa. Que coisa terrível isso de Helene O meu patrão está tão preocupado que não quer deixar-me ir a qualquer lado sem um dos guardas do clube Neste momento está ele em frente do edifício.

— É importante que a veja a sós.

— Não sei se posso. Este monstro recebe ordens do meu patrão e não de mim. E eu não quero complicações.

— Bem, telefone-me no momento em que chegar a casa. Prometa! Havemos de pensar em qualquer coisa.

— Vai ser tarde outra vez — avisou Carol.

— Isso não interessa. É importante.

— Está bem — concordou, e desligou.

Jason fez mais uma chamada, para a companhia United Airlines, e pediu informações sobre o serviço de Boston a Seattle. Ficou a saber que havia um voo diário às quatro da tarde.

Pegando no estetoscópio, saiu do gabinete e dirigiu-se para o hospital, para ir fazer a visita. Sabia que precisava de actualizar completamente as fichas, uma vez que Roger ia tomar conta dos seus doentes. Nenhum deles estava a passar muito bem, e ficou perturbado Com o facto de mais um doente ter aparecido Com cataratas avançadas. Preocupado, marcou uma consulta de oftalmologia. Desta vez tinha a certeza que não notara o problema na altura da admissão do paciente. Como podiam as cataratas progredir tão depressa?

Em casa vestiu as roupas de jogging e foi correr uma boa hora, tentando ordenar as ideias. Depois de ter tomado duche e vestido outra roupa, foi até à casa de Shirley; já estava Com melhor disposição.

Shirley excedeu-se Com o jantar, e Jason começou a pensar que ela se encaixava na categoria da supermulher. Trabalhava todo o dia dirigindo uma empresa de muitos milhões de dólares e conduzindo cruciais negociações sindicais, e todavia, de algum modo, chegada a casa preparara um fabuloso banquete de pato assado Com massa e alcachofra. E ainda por cima apresentava-se Com um vestido de seda preta que teria ficado a propósito na ópera. Jason sentiu-se embaraçado por, depois do duche, ter vestido jeans e uma camisa de rugby por cima de uma camisola de gola alta.

— Tu vestiste o que querias e eu também — comentou Shirley, rindo.

Deu-lhe um Kir Royale e disse-lhe para lavar os legumes para

a salada. Provou o pato e disse que estava quase pronto. Para Jason cheirava esplêndidamente.

Comeram na sala de jantar, sentados a uma longa mesa, frente a frente, Com seis cadeiras vazias de cada lado. De toda a vez que Jason deitava mais vinho nos copos tinha de levantar-se e dar vários passos. Shirley achava que era divertido.

Enquanto comiam, Jason descreveu a reunião do pessoal e acrescentou que todos os médicos iam intensificar a qualidade dos seus testes de stress. Shirley ficou satisfeita, recordando-lhe que o exame anual de executivos era uma parte importante do lançamento de vendas do GHP em relação às empresas. Disse-lhe que se daria novo ênfase à medicina preventiva para executivos.

— Michael Curran — disse ela, mais tarde, ao café —, passou por lá esta tarde.

— Sim? Tenho a certeza que foi desagradável. Que é que queria?

- Informações sobre Helene Brennquivist. Demos-lhe tudo quanto tínhamos. Até entrevistou a mulher do departamento de pessoal que a tinha contratado.

— Disse se tinha alguns suspeitos?

—Não. Só espero que tudo acabe.

— Bem queria ter conseguido conversar Com Helene outra vez. Continuo a pensar que ela estava a dar cobertura a Hayes.

— Continuas a pensar que ele descobriu alguma coisa?

— Absolutamente.

E continuou, descrevendo os livros de registo de laboratório e a sua visita à Gene, Inc., e a Samuel Schwartz. Disse que Schwartz montara uma empresa para Hayes, a qual ia comercializar a nova descoberta, o que quer que fosse.

— O advogado não sabia de que produto se tratava?

— Não. Segundo parece, Hayes não confiava em ninguém.

— Mas ele precisava de capital para financiamento. Teria de confiar em alguém se planeava fabricar e distribuir.

— Talvez — admitiu. — Mas não consigo encontrar ninguém a quem falou... pelo menos até agora- Infelizmente, Helene era o melhor trunfo.

— Continuas a procurar?

— Creio que sim — admitiu. — Achas que é estupidez?

—-Não... apenas perturbador. Seria uma tragédia se se perdesse uma descoberta importante, mas acho que é absolutamente altura de pôr o caso Hayes fora de circulação. Espero que vás aproveitar o tempo para relaxar e não para continuar esta caça ao pato bravo.

— Mas afinal por que dizes isso? — perguntou, surpreendido Com a própria franqueza.

— Por que não desistes facilmente. — Ela aproximou-se e pôs-lhe a mão no ombro. — Por que não vais às Caraíbas? Talvez eu aproveitasse o fim-de-semana e fosse ter contigo.

Jason sentiu uma emoção como não sentira desde a morte de Danielle. A ideia de sol quente e água fresca e clara era maravilhosa, especialmente se Shirley lá estivesse também. Mas nesse momento hesitou. Não sabia se estava pronto para o estado emocional que se seguiria. E, mais importante que tudo, prometera a si próprio que iria a Seattle.

— Preciso de ir à Costa Oeste — disse por fim. — Tenho lá um velho amigo que gostaria de ver.

— Que inocência... As Caraíbas soa-me melhor.

— Talvez um dia destes... — Apertou o braço de Shirley. —Que tal um conhaque?

Quando Shirley se levantou para ir buscar o Courvoisier, estudou-lhe a figura Com crescente interesse.

Quando Carol telefonou às duas e meia da madrugada, Jason estava bem acordado. Estivera tão preocupado que ela se esquecesse que não conseguira dormir.

— Estou exausta, Jason — anunciou, em vez de dizer olá.

— Desculpe, mas preciso de conversar consigo. Posso estar aí em dez minutos?

— Acho que não seria boa ideia. Como lhe disse esta tarde, não estou sozinha. Está ali alguém fora a vigiar-me a casa. Por quê tem de estar comigo esta noite? Talvez possamos resolver alguma coisa amanhã

Pensou em pedir-lhe pelo telefone para ir a Seattle, mas resolveu que teria mais hipóteses de convencê-la pessoalmente. Era um pouco fora do vulgar pedir a uma jovem para o acompanhar a Seattle depois de apenas dois encontros.

— Esse guarda-costas está sozinho?

— Está Mas que diferença faz? O tipo é forte que nem um touro.

— Há uma ruela nas traseiras da sua casa. Eu podia subir pela escada de salvação.

— Escada de salvação! Que doidice! Que diabo é assim tão importante para ter de estar comigo esta noite?

— Se lhe dissesse, não tinha de estar consigo.

— Bem, eu não desejo assim tanto que os homens venham à noite ao meu apartamento.

Oh, Com certeza, pensou Jason

— Olhe — disse em voz alta. — vou dizer-lhe. Estive a tentar imaginar o que é que Hayes podia ter descoberto, e cheguei a uma conclusão. Preciso da sua ajuda.

— É uma boa tirada, Dr. Jason Howard.

— É verdade Você é a única pessoa que me pode ajudar. Carol riu-se.

— Quando põe as coisas desse modo, quem pode recusar? Muito bem, venha. Mas vem à sua responsabilidade. Devo avisá-lo que não tenho muito controlo sobre aquele atlas ali em frente.

— O meu seguro de incapacidade já está liquidado.

— Eu moro... — começou Carol.

— Eu sei onde mora — interrompeu. — De facto, já tive um encontro Com Bruno, se é esse o encantador camarada que lhe está a guardar a porta.

— Já conhece Bruno? — perguntou, incrédula.

— Homem adorável. Que maravilhoso conversador.

— Deixe que o avise, Foi Bruno que me acompanhou a casa

— É uma sorte, porque é fácil de ver. Esteja atenta à sua janela das traseiras. Não quero errar a sua escada de salvação.

— Isto é mesmo uma loucura.

Jason vestiu umas calças pretas e camisola de lã a condizer. Já seria bastante visível na escada de salvação sem usar cores claras.

Calçou sapatos de corrida e dirigiu-se para o carro. Seguindo ao longo da Beacon Street, manteve-se atento quanto a Bruno. Cortou à esquerda na Gloucester Street e de novo à esquerda na Commonwealth. Quando atravessou a Marlborough, abrandou. Sabia que não teria possibilidade de encontrar um lugar para estacionar, por isso parou na primeira boca-de-incêndio. Não trancou as portas; se fosse necessário, os bombeiros podiam passar as mangueiras pelo carro.

Saindo do carro, olhou Com atenção pela ruela entre as ruas Beacon e Marlborough. Luzes intermitentes formavam pequenas zonas de iluminação. Havia muitas áreas escuras, e as sombras das árvores pareciam teias de aranha gigantes. Ainda tinha bem viva na memória a sua última tentativa de fuga em relação a Bruno por aquela mesma ruela.

Chamando a si toda a coragem, entrou na ruela tenso como um corredor à espera do tiro da partida. Um súbito movimento à sua esquerda fê-lo ficar suspenso. Era uma ratazana do tamanho de um pequeno gato, que não deixou de lhe fazer eriçar os cabelos da nuca. Continuou a caminhar, contente por não ver sinal de Bruno. Estava tudo tão calmo que podia ouvir a própria respiração.

Chegado ao edifício de Carol, notou a luz já familiar na janela do quarto andar antes de examinar a escada de salvação. Infelizmente, esta tinha um daqueles mecanismos que têm de ser baixados a partir do primeiro andar. Olhou à volta, à procura de qualquer coisa para onde pudesse subir para chegar lá. A única coisa à vista era um latão de lixo, e isso significava ter de voltá-lo e despejá-lo. Apesar do barulho que teria de fazer, compreendeu que não tinha por onde escolher. Mas teve um arrepio quando o metal tilintou contra o pavimento e uma série de latas de cerveja rolaram pela rua Com o ruído característico.

Sustendo a respiração, levantou os olhos. Não surgiram luzes. Satisfeito, subiu para o latão e agarrou o degrau mais abaixo da escada de mão.

— Eh!—gritou alguém.

Jason voltou a cabeça e viu uma figura familiar enorme a descer a rua a correr. Os braços fortes como que a bombear e a respiração apressada quais bafos de uma locomotiva. Nesse momento, Bruno parecia um defesa de futebol recuado dos Washington Redskins.

— Abóbora — disse irritado.

Com toda a sua força firmou-se na escada, quase na expectativa de que desse de si Com o seu peso. Felizmente, isso não aconteceu. Mão após mão, foi-se içando até conseguir pôr o pé no primeiro degrau e correr para o primeiro andar.

— Eh, meu malandro! — gritava Bruno. — Trato-te da saúde aqui em baixo!

Jason hesitou. Podia livrar-se dele pisando-lhe os dedos se tentasse subir, mas isso impediria que entrasse para falar Com Carol E alguém chamava a polícia se houvesse muita balbúrdia. Decidiu aproveitar a oportunidade. Subiu os restantes lanços da escada, chegando à janela de Carol. Ela estava por detrás dos vidros e abriu a janela logo que o viu. Antes de poder articular palavra, ouviu-o dizer, arquejando:

— O seu neonazi vem aí. Acha que ele tem alguma arma? — perguntou, já dentro de uma ampla cozinha.

— Não sei.

— Vai aqui chegar num instante — disse, baixando a janela Com um baque e trancando-a. Isso só ia atrasar Bruno em dez segundos.

— Talvez eu devesse falar Com ele — sugeriu Carol.

— E ele vai ouvi-la?

— Não tenho a certeza. Só ouve o que ele quer...

— É essa a minha impressão. E sei que não simpatiza nada comigo. Acho que preciso de uma coisa do género de pá de basebol.

— Não vai bater-lhe, Jason.

— Não quero bater-lhe, mas acho que Bruno não vai sentar-se para discutirmos o assunto. Preciso de qualquer coisa para o ameaçar e mantê-lo afastado de mim.

— Tenho o ferro da lareira.

— Vá buscá-lo.

Fechou a luz da cozinha. Pondo o nariz contra o vidro, viu Bruno a tentar içar-se para a primeira escada. Era forte, mas também enorme e pesado. Carol voltou Com o ferro da lareira. Jason tomou-lhe o peso. Com um pouco de sorte, talvez conseguisse convencer o fulano a ouvir.

— Eu sabia que era má ideia — comentou Carol.

Jason olhou ao redor de si e notou que o pavimento era de linóleo antigo. Olhou para a porta que, da cozinha, dava acesso ao resto do apartamento. Era grossa e sólida, Com fechadura e chave. Antes, aquela divisão fora qualquer coisa menos cozinha.

— Carol, importava-se que eu fizesse para aqui uma porcaria? Quero dizer, fico contente se me deixar pagar a limpeza

— De que é que está a falar?

— Tem aí uma lata grande de óleo vegetal?

— Acho que sim.

— Pode dar-ma?

Perplexa, Carol abriu a porta da despensa e pegou numa lata de quatro litros de azeite importado da Itália.

— Perfeito.

Depois de outro rápido exame pela janela, apressou-se a tirar as duas cadeiras e a mesa para fora da cozinha. Carol observava-o cada vez mais confusa.

— Muito bem, saia — mandou Jason.

Carol passou para o pequeno átrio. Jason abriu a vasilha do azeite e começou a deitar o líquido pelo chão em movimentos largos. Quando fechou a porta à chave, ouviu fortes pancadas na janela da cozinha, seguidas pelo estilhaçar de vidros. Pegou na mesa e pô-la entre a porta e a parede do átrio.

— Vamos — disse, pegando na mão de Carol. Continuando Com o ferro da lareira na mão, conduziu-a até à porta de entrada do apartamento, que tinha sido preparada Com ferrolhos duplos e uma fechadura de segurança. Na cozinha ouviu-se um tremendo trambolhão Bruno caíra pela primeira vez.

— Mas que engenhoso — comentou Carol rindo.

— Quando se tem pouco mais de setenta quilos, temos de compensar de algum modo — observou, Com o coração ainda a bater. — De qualquer maneira, não faço ideia alguma de quanto tempo Bruno vai ficar ali dentro, portanto isto tem de ser rápido. Preciso de si. A última hipótese que tenho de reconstruir a descoberta de Hayes é ir a Seattle e tentar descobrir o que fez ele ali. Segundo parece, ele...

Ouviu-se outro trambolhão seguido de uma rovoada de palavrões, alguns dos quais em italiano apropriado.

— Vai ficar fulo — disse Jason, enquanto abria os ferrolhos da porta de entrada.

— Portanto, quer que eu vá consigo a Seatlle. Era por causa disso?

— Sabia que compreenderia. Hayes trouxe de lá uma amostra biológica, Com que trabalhou na Gene, Inc. Tenho de descobrir o que era. A melhor pista é o homem que ele viu lá na Universidade de Washington.

— O homem que não me lembro como se chama.

— Mas você viu-o; não era capaz de reconhecê-lo?

— Provavelmente.

— Sei que é presunção da minha parte pedir-lhe que venha... Mas realmente acredito que Hayes fez qualquer género de descoberta científica. E considerando os seus antecedentes, tem de ser importante.

— E acha de facto que indo a Seattle podia resolver a questão?

— É um tiro no escuro. Mas o único que nos resta.

A porta da cozinha rangeu, e eles ouviram Bruno começar a dar-lhe pancadas.

— Acho que já estou a ultrapassar as marcas. Bruno não vai magoá-la, pois não?

— Céus, não. O meu patrão esfolava-o vivo. É por isso que ele está tão furioso. Pensa que estou em perigo.

— Carol, importa-se de vir comigo a Seattle? — pediu, enquanto abria o último fecho de segurança da porta.

— Quando é que queria ir? — perguntou, vacilante.

— Hoje, lá para a tarde. Não ficaríamos muito tempo. Ser-lhe-ia possível sair sem aviso prévio?

— Já o fiz antes. Apenas digo que quero ir a casa. Além disso, depois do assassínio de Helene, o meu patrão talvez ficasse aliviado por não me ter na cidade.

— Então diz que vai? — insistiu.

— Sim, senhor. — Carol brindou-o Com um dos seus calorosos sorrisos. — Por que não?

— Há um voo para Seattle às quatro da tarde. Encontramo-nos à entrada. Eu trato dos bilhetes. Que tal lhe parece?

— Louco... mas engraçado.

— Então até lá.

Jason desceu as escadas e dirigiu-se ao carro, receoso que Bruno tivesse mudado de direcção e tornasse a sair pela janela.

 

Jason acordou cedo e telefonou a Roger para lhe dar informações sobre os seus doentes. Hoje não ia ao hospital. Tinha outra viagem que queria fazer antes de se encontrar Com Carol para seguirem no voo das quatro da tarde para Seattle. Tratou da bagagem rapidamente, tendo o cuidado de levar roupas para tempo fresco e chuvoso, e chamou um táxi, que o levou ao aeroporto, onde chegou mesmo a tempo de guardar o saco de viagem num cacifo e tomar o voo das dez para La Guardiã. Em La Guardiã alugou um carro e foi a Leonia, Nova Jérsia. Era uma possibilidade ainda menor do que Seattle, mas ia ver a primeira mulher de Hayes. Não estava disposto a deixar sequer de atirar a mais pequena pedra.

Leonia acabou por ser uma cidadezinha surpreendentemente adormecida, que não condizia Com o facto de ficar próxima de Nova Iorque. A dez minutos da ponte de George Washington encontrou-se numa rua larga, ladeada de estabelecimentos comerciais de um só piso, a dar para estacionamento em espinha. Podia chamar-se Rua Direita, EUA. Em vez disso, chamava-se Avenida Larga. Havia um drugstore, uma loja de ferragens, uma padaria e até uma lanchoneta. Parecia o cenário de um filme dos anos cinquenta. Entrou na lanchoneta, mandou vir um malte de baunilha e pegou na lista telefónica- Havia uma Louise Hayes na Park Avenue. Enquanto bebia o malte, reflectia sobre a vantagem de telefonar ou passar lá por casa. Optou pela segunda.

A Park Avenue dividia em duas a Avenida Larga e subia a encosta que bordejava Leonia a leste. Depois do Pauline Boulevard, seguia em arco para o Norte. Foi onde encontrou a casa de Louise Hayes. Era uma construção modesta, castanho-escura, coberta de tabuínhas, bem precisada de reparação. A relva no pátio fronteiro tinha espigado.

Tocou à campainha. A porta abriu-se e surgiu uma mulher sorridente, de meia-idade, num vestido de trazer por casa vermelho desbotado. Tinha cabelo castanho viscoso e uma menina de cinco ou seis anos, o polegar todo enfiado na boca, agarrada ao lado.

— Sr.ª Hayes?

A mulher ficava a grande distância das outras duas namoradas de Hayes.

— Sim.

— Sou Jason Howard, médico, colega do seu falecido marido. — Não ensaiara o que ia dizer.

— Sim? — repetiu a Sr.ª Hayes, instintivamente empurrando a criança para trás de si.

— Gostava de conversar Com a senhora, se tiver um momento. —Puxou da carteira e entregou-lhe a carta de condução Com fotografia e o seu bilhete de identidade do GHP. — Andei na escola médica Com o seu marido — acrescentou, para facilitar a situação.

Louise olhou para os elementos de identificação e devolveu-os.

— Quer entrar?

— Obrigado.

O interior da casa também parecia necessitado de arranjo. A mobília era bastante usada e a carpete estava no fio. Viam-se brinquedos de criança pelo chão. Louise apressou-se a arranjar espaço no sofá e fez menção para Jason se sentar.

— Posso oferecer-lhe alguma coisa? Café? Chá?

— Café... agradecia.

A mulher parecia ansiosa, e ele pensou que a actividade a acalmaria. Ela entrou na cozinha, onde a ouviu pôr água a correr. A menina ficara para trás, fitando-o Com grandes olhos castanhos. Quando Jason lhe sorriu, fugiu para a cozinha.

Deu uma vista de olhos pela sala. Era escura e triste, Com umas quantas paisagens impressas, mandadas vir pelo correio, nas paredes.

Louise voltou Com a filha a reboque. Deu a Jason uma caneca de café e colocou açúcar e natas na pequena mesa de café. Jason serviu-se de ambas as coisas. Louise sentou-se à sua frente.

— Desculpe se não me mostrei hospitaleira a princípio. Não tenho muitas visitas a querer saber de Alvin.

— Compreendo.

Olhou para ela Com mais atenção. Sob aquele ar um tanto desmazelado, via-se a sombra de uma mulher atraente. Hayes tinha bom gosto, isso era verdade.

— Desculpe vir aqui incomodá-la, mas Alvin tinha-me falado de si. Como estava por estes lados, pensei em visitá-la. — Achou que algumas inverdades podiam ajudar.

— Ah, sim? — fez Louise Com indiferença.

Jason decidiu ter cuidado. Não se encontrava ali para suscitar emoções dolorosas.

— A razão por que queria falar Com a senhora... é que o seu marido disse-me que fizera uma importante descoberta.

E continuou, explicando as circunstâncias da morte de Alvin Hayes, e como ele, Jason, se resolvera por uma cruzada pessoal para tentar descobrir se o marido dela fizera na verdade uma descoberta científica. Explicou que seria uma tragédia se Alvin tivesse deparado Com algo que poderia ajudar a humanidade, para afinal se perder tudo. Louise concordou Com um gesto de cabeça, mas quando ele lhe perguntou se fazia alguma ideia de que descoberta se tratava, ela disse que não.

— A senhora e Alvin não falavam...

— Não. Apenas a respeito dos filhos e de assuntos financeiros.

— Como estão os seus filhos — perguntou, recordando-se da preocupação de Hayes acerca do filho.

— Estão ambos bem, obrigada.

— Ambos?

— Sim... Aqui a Lucy — afagou a cabeça da filha—, e o John está na escola.

— Pensei que tinham três filhos...

Viu que os olhos se lhe toldavam. Seguiu-se um silêncio desconfortável.

— Bem... há outro. O Alvin Júnior. É bastante atrasado. Vive numa escola em Boston.

— Desculpe.

— Não tem importância. Uma pessoa pensa que já se habituou, mas creio que nunca me habituarei. Acho que foi por isso que eu e Alvin nos divorciámos... eu não conseguia aguentar.

— Onde está o Alvin Júnior exactamente? — perguntou, sabendo que estava a entrar em domínio doloroso.

— Na Hartford School.

— Como vai ele?

Jason conhecia a Hartford School. Era uma instituição adquirida pelo GHP quando a empresa comprou um hospital Com anexo de cuidados graves. Também sabia que a escola estava à venda Para o GHP era um escoador de dinheiro.

— Bem, creio — disse Louise. — Acho que não faço as visitas suficientes. Quebra-me o coração.

— Compreendo — disse, pensando de si para si se este era o filho a que Hayes se referia na noite em que morreu.—Seria possível telefonar e saber como está o rapaz?

— Acho que sim — respondeu, não reagindo à natureza extraordinária da pergunta.

Pôs-se de pé Com certa rigidez e, Com a filha ainda agarrada a ela, foi até ao telefone e fez a chamada para a escola. Pedindo dormitório infantil e, quando responderam, conversou um pouco sobre a situação em que se encontrava o filho. Depois desligou.

— Acham que vai tão bem quanto se pode esperar. O único problema novo é alguma artrite, que tem interferido Com a tarefa física.

— Já lá está há muito tempo?

— Apenas desde que Alvin foi trabalhar para o GHP. Uma das razões por que aceitou o lugar foi poder pôr o Alvin Júnior em Hartford.

— E o seu outro filho? Diz que está bem.

— Não podia estar melhor — disse Louise, Com evidente orgulho. — Está no terceiro grau e é considerado um dos mais brilhantes da turma.

— Isso é muito bom — comentou, tentando recordar-se da noite em que Hayes morreu Alvin dissera que alguém queria vê-los mortos, a ele e ao filho. Para ele já era tarde, mas para o filho talvez ainda não. Que diabo quisera ele dizer? Presumira que um dos filhos estivesse fisicamente doente, mas segundo parecia não era esse o caso.

— Mais café?

— Não, obrigado... Há só mais uma coisa que gostava de perguntar. Na altura da morte, Alvin andava a tratar de montar uma empresa. Os seus filhos iam ser accionistas. Sabia alguma coisa de tudo isso?

— Nada, nada.

— Pronto.. Obrigado pelo café. Se puder ser-lhe útil em alguma coisa em Boston, como visitar o Alvin Júnior, não hesite em telefonar.

Levantou-se, e a menina escondeu a cabeça na saia de Louise.

— Espero que Alvin não tenha sofrido.

— Não, não sofreu — mentiu. Ainda se lembrava da agonia no rosto de Alvin.

Estavam à porta quando Louise se lembrou de algo.

— Oh, há uma coisa que não lhe disse. Uns dias depois de Alvin morrer, alguém assaltou isto aqui. Por sorte estávamos fora.

— Levaram alguma coisa? — perguntou, pensando se a Gene, Inc , nãoteria a ver Com o caso.

— Não.. Provavelmente viram a habitual barafunda e foram-se embora. — Sorriu. — Mas parecia que tinham rebuscado tudo. Até as estantes das crianças.

Quando saiu de Leonia, Nova Jérsia, e se dirigiu à ponte de George Washington, ia pensando no seu encontro Com Louise Hayes. Devia ter ficado mais desanimado do que ficou. Afinal, nada soubera de importante que justificasse a viagem. Mas sentia que houvera algo mais a motivar a sua ida ali. Estivera verdadeiramente interessado a respeito da mulher de Hayes. Tendo-se visto rudemente despojado da própria esposa, não podia compreender por que razão alguém como Hayes se separara voluntariamente. Mas a verdade é que nunca passara pelo trauma de uma criança atrasada mental.

Conseguiu apanhar o voo das duas da tarde de regresso a Boston. Tentou ler no avião, mas não era capaz de se concentrar. Começou a preocupar-se que Carol não esperasse por ele no aeroporto de Boston, ou, pior ainda, que aparecesse Com Bruno.

Infelizmente, o avião das duas horas que devia aterrar em Boston às duas e meia nem sequer deixara La Guardiã às duas e meia. Na altura em que saiu do avião eram três e um quarto. Foi buscar a bagagem ao cacifo e correu do terminal oriental para o da United.

Havia uma longa bicha para os bilhetes e Jason não conseguia imaginar o que estavam a fazer as funcionárias da linha aérea para haver tanta demora. Eram agora vinte para as quatro e nem sinal de Carol Donner.

Por fim, chegou a sua vez. Atirou o seu cartão da American Express, pedindo dois bilhetes de ida e volta para Seattle para o voo das quatro, sem data definida para o regresso.

Pelo menos Com Jason a funcionária foi eficiente. Em três minutos já tinha os bilhetes e cartões de embarque e corria para a barreira 19. Faltavam agora cinco minutos para as quatro. O voo encontrava-se nas fases finais de embarque. Chegando à barreira 19, perguntou, ofegante, se alguém perguntara por ele. Quando a rapariga à secretária disse que não, descreveu Carol rapidamente e perguntou se a funcionária a tinha visto.

— É muito atraente — acrescentou.

— Tenho a certeza que é — sorriu a funcionária. — Infelizmente, não dei por ela. Mas se pensa ir para Seattle é melhor embarcar.

Jason viu o ponteiro dos segundos dar a volta ao mostrador do relógio da parede através do balcão de recepção. A funcionária estava ocupada a contar os bilhetes. Outra funcionária fez o anúncio final para a partida para Seattle. Faltavam dois minutos para as quatro.

Com o saco de viagem a tiracol, passou os olhos pela multidão que se dirigia para o terminal respectivo. No momento em que estava prestes a perder a esperança, viu-a, a correr na direcção dele. Devia ter ficado encantado. O único problema era que a alguns passos atrás dela vinha o volume impressionante de Bruno. Na parte mais afastada do átrio encontrava-se um polícia, a vaguear na zona onde a bagagem era vista pela máquina de raios X. Jason decidiu-se mentalmente: aquela seria a direcção de fuga, se fosse necessário.

Com o seu saco de viagem ao ombro, Carol estava a ter dificuldades em avançar. Bruno não fazia qualquer tentativa para a ajudar.

Carol aproximou-se de Jason, o qual viu a expressão na cara de Bruno passar de aborrecimento para confusão e fúria.

— Cheguei a tempo? — arfou ela.

O funcionário estava agora à porta da passagem para o avião, afastando Com o pé o calço que a mantinha aberta.

— Que diabo estás tu aqui a fazer, malandro?—gritou Bruno, levantando os olhos para a placa de destino. Voltou-se Com ar acusador para Carol. — Disseste que ias para casa, Carol.

— Vamos — insistiu Carol, agarrando no braço de Jason e puxando-o na direcção da passagem para o avião.

Jason cambaleou para trás, os olhos pregados na cara gorda de Bruno, que passara para um tom vermelho pouco agradável. As veias das têmporas ficaram grossas como charutos.

— Só um momento!—pediu Carol.

O funcionário fez que sim Com a cabeça e gritou para a passagem para o avião. Jason observou Bruno até ao último instante. Viu-o aproximar-se de uma bancada de telefones.

— Vocês gostam de chegar à última da hora — disse o funcionário, rasgando uma parte de cada cartão de embarque.

Jason finalmente voltou-se para a frente, convencido por fim que Bruno decidira não fazer cena. Carol ainda lhe puxava pelo braço quando desceram a passagem para o avião. Tiveram de esperar enquanto o operador da passagem batia de lado no avião para avisar o assistente da cabina, lá dentro, para reabrir a porta que, já estava trancada.

— Isto está mesmo à tabela — disse, franzindo o sobrolho. Uma vez sentados, Carol pediu desculpa por chegar atrasada.

— Estou furiosa — foi dizendo, enfiando o saco de viagem por debaixo do assento da frente. — Agradeço a preocupação de Arthur pelo meu bem-estar, mas isto é ridículo.

— Quem é Arthur?

— O meu patrão — disse, Com desgosto.—Disse-me que se eu fosse agora talvez me despedisse mesmo. Acho que sou eu que me despeço quando regressarmos.

— Poderia fazer isso? — perguntou, imaginando o que implicava o trabalho dela para além da dança. Era sua opinião que as mulheres como Carol perdiam o controlo das suas vidas.

— Andava a pensar em parar em breve, de qualquer modo.

O avião deu um solavanco quando começaram a rebocá-lo para fora da zona de embarque.

— Você sabe mesmo que espécie de trabalho eu tenho?

— Bem, calculo... — disse, vagamente.

— Nunca falou nisso. A maioria das pessoas são contra.

— Achei que era assunto seu. Quem é que pode julgar?

— Você é um pouco estranho... simpático, mas estranho.

— Pensei que fosse bastante normal.

— Ah! — exclamou, brincalhona.

Havia razoável tráfego aéreo e eles tiveram de esperar mais de vinte minutos antes de levantar voo e seguir para oeste.

— Não pensei que fôssemos conseguir — disse Jason, finalmente a começar a acalmar.

— Desculpe — tornou Carol a dizer. — Tentei despistar Bruno, mas ele pegava-se-me como cola. Não queria que ele soubesse que eu não ia para Indiana. Mas que podia eu fazer?

— Não importa — descansou-a Jason, embora muito lá atrás na mente o perturbasse a ideia de que outra pessoa a não ser Shirley soubesse para onde ia. Queria que se mantivesse em segredo. Ao mesmo tempo, não podia imaginar que diferença faria.

Tomando notas num bloco amarelo, começou a interrogar Carol quanto ao plano que Hayes seguiu em cada uma das duas viagens a Seattle. A primeira visita foi a mais interessante. Haviam ficado no Mayfair Hotel e entre outras coisas visitaram um clube chamado Totem, semelhante ao Cabaret de Boston. Perguntou-lhe que tal era.

— Era bom. nada de especial. Mas não tinha a excitação do Club Cabaret. Seattle parece um pouco conservadora.

Jason fez que sim Com a cabeça, perguntando de si para si por que razão Hayes gastaria o seu tempo num lugar como aquele quando viajava Com Carol.

— Alvin conversou Com alguém de lá?

— Conversou. Arthur arranjou as coisas para ele falar Com o dono.

— O seu patrão? Alvin conhecia o seu patrão?

— Eram amigos. Foi como eu conheci Alvin.

Recordou-se dos rumores sobre o gosto de Alvin por discotecas e coisas no género. Segundo parecia, correspondiam à verdade. Mas a ideia de um biólogo molecular de fama mundial acamaradar Com um homem que geria um bar de topless parecia ridícula.

— Sabe acerca de que é que Alvin e este homem falaram?

— Não, não sei. Não conversaram muito tempo. Eu estava ocupada a ver as bailarinas. Eram muito boas.

— E visitaram a Universidade de Washington, não foi?

— Exactamente. Foi no primeiro dia.

— E você acha que é capaz de encontrar o homem Com quem Alvin falou? — perguntou, para ter a certeza.

— Acho que sim. Era um tipo alto e bem-parecido.

— E depois?

— Fomos para as montanhas.

— E era na altura de férias?

— Penso que sim.

— Alvin esteve Com alguém lá em cima?

— Ninguém em particular. Mas conversou Com muita gente. Recostou-se após o serviço de coktail. Pensou no que Carol lhe

dissera, acreditando que o acontecimento mais importante era a visita à Universidade de Washington. Mas a visita ao clube também era curiosa e merecia ser examinada.

— Outra coisa — disse Carol. — Na segunda viagem tivemos de andar um bocado à procura de gelo seco (1).

— Gelo seco? Para que diabo?

— Eu não soube e Alvin não me disse. Alvin tinha uma caixa frigorífica e queria que ela estivesse cheia de gelo seco.

Talvez para transportar o espécime, pensou. Isto parece que promete.

Quando aterraram em Seattle, tiveram o cuidado de acertar os relógios pela hora da Costa do Pacífico. Jason olhou pela janela do avião. Como já esperava, estava a chover. Via as gotas nos charcos de água da pista. Pouco depois, até a janela estava riscada de humidade.

Alugaram um carro e, uma vez desembaraçados do trânsito do aeroporto, Jason foi o primeiro a falar.

— Para ajudar à sua memória, pensei que era melhor ficarmos no mesmo hotel em que ficou da última vez. Quartos separados, evidentemente.

Carol voltou-se para olhá-lo na meia luz do carro. Jason queria que ficasse bem claro que se tratava apenas de negócios.

Dois carros atrás de Jason e Carol seguia um Ford Taunus azul-escuro. Ao volante, um homem de meia-idade, vestido Com uma camisola de gola alta, casaco de camurça e calças aos quadrados. Recebera uma chamada telefónica apenas cerca de cinco horas antes para ir esperar o voo da United provindo de Boston. Devia localizar um médico de quarenta e cinco anos que ia chegar Com uma jovem bonita. Os nomes eram Howard e Donner, e devia mantê-los sob observação. A operação fora mais fácil do que contara. Confirmara-lhes

(1) Dióxido de carbono em estado sólido, usado principalmente para manter frias as substâncias. (N. do T.)

a identidade ficando simplesmente por detrás deles ao balcão

da Avis.

Agora, tudo quanto tinha a fazer era mantê-los à vista. Em princípio seria contactado por alguém que viria de Miami. Para isto estavam a pagar-lhe os seus habituais cinquenta dólares por hora mais despesas. Pensava se não se trataria de uma espécie de problema doméstico.

O hotel era elegante. A julgar pelo habitual aspecto desalinhado de Hayes, Jason não teria esperado que o homem tivesse gostos tão dispendiosos. Arranjaram quartos separados, mas Carol insistiu que abrissem a porta de comunicação.

— Não sejamos hipócritas.

Jason não sabia como aceitar a situação. Entretanto, como mal tinham comido no avião, sugeriu que jantassem antes de se dirigirem ao Totem Club. Carol mudou de roupa, e quando entraram na sala de jantar, ficou satisfeito Com o aspecto jovem e adorável que ela tinha. O empregado de mesa verificou-lhe o bilhete de identidade quando Jason mandou vir uma garrafa de Chardonnay da Califórnia. O episódio emocionou-a, mas sempre se foi queixando de parecer como se já tivesse dobrado a colina dos vinte e cinco anos-

Pelas dez da noite, uma hora na Costa Oriental, estavam prontos para partir para o Totem Club. Jason já começava a sentir-se ensonado, mas Carol sentia-se muito bem. Para evitar dificuldades, deixaram o carro de aluguer no parque de estacionamento do hotel e tomaram um táxi. Carol admitiu que teve problemas para encontrar o local Com Hayes.

O Totem Club ficava fora da zona da baixa de Seattle, na orla de um bairro residencial agradável. Não havia nada da cor sórdida da Combat Zone de Boston. O clube ficava rodeado por uma grande área de estacionamento asfaltado que nem tinha papéis pelo chão e nas ruas não se viam pessoas a mendigar. Parecia-se como qualquer restaurante ou bar, a não ser quanto a vários pretensos tótemes a flanquear a entrada. Quando Jason saiu do carro, sentiu logo o ritmo da música rock. Tiveram de correr para a entrada por causa da chuva.

Lá dentro, o clube tinha um aspecto mais conservador do que o Cabaret. A primeira coisa que Jason notou foi que a assistência era constituída principalmente por casais, em vez dos homens bem bebidos que ladeavam a pista em Boston. Havia até um pequeno recinto de dança. A única verdadeira semelhança era a configuração do bar, que também era em forma de U, Com uma pista para as bailarinas no centro.

— Elas aqui não dançam em topless — sussurrou Carol. Foram conduzidos a uma cabina no primeiro plano, afastado do bar. Havia outro plano por detrás deles. Uma empregada colocou uma placa de cartão diante de cada um e perguntou que iam tomar Depois de terem sido servidos, Jazon perguntou a Carol se o dono do clube estava à vista. A princípio disse que não, mas passado um quarto de hora ela agarrou-lhe no braço e inclinou-se por sobre a mesa.

— Ei-lo ali.

Apontou para um jovem, provavelmente Com trinta e poucos anos, vestido de smoking, Com gravata e faixa vermelhas. Tinha pele cor de azeitona e farto cabelo preto azulado.

— Lembra-se do nome dele? Ela abanou a cabeça.

Jason, Com certo cuidado, saiu da cabina e caminhou na direcção do proprietário, que possuía uma cara arrapazada e amiga. Quando se aproximou, ele riu-se e deu uma palmadinha nas costas de um homem sentado ao balcão do bar.

— Desculpe-me... Sou Jason Howard, médico. De Boston.

O homem voltou-se para ele Com um sorriso de circunstância.

— Sebastion Frahn... Bem-vindo ao Totem.

— Podia falar consigo por instantes? O sorriso quase se desfez.

— Que pretende?

— Preciso de um ou dois minutos para explicar.

— Estou terrivelmente ocupado. Talvez mais tarde. Apanhado de surpresa pela recusa, ficou por um momento a olhar para Frahn, que distribuía pelos clientes o seu sorriso estereotipado.

— Teve sorte? — perguntou Carol quando Jason voltou à cabina e tornou a sentar-se.

— Nada. Cerca de cinco mil quilómetros e o tipo não quer falar comigo.

— As pessoas têm de ter cuidado neste ramo de negócio. Deixe-me tentar.

Sem esperar pela resposta, deslizou para fora da cabina e Com graciosidade dirigiu-se ao proprietário. Tocou-lhe no braço e disse-lhe meia dúzia de palavras. Jason viu-o fazer que sim Com a cabeça e olhar na sua direcção. O homem tornou a concordar Com um gesto de cabeça e afastou-se. Carol voltou ao seu lugar.

— Ele vem aqui dentro de momentos.

— Que é que lhe disse?

— Ele lembrou-se de mim — disse Com simplicidade.

Jason perguntou de si para si que significava aquilo.

— Ele lembrava-se de Hayes?

— Lembrava-se, sim. Não há problema.

Na verdade, passados uns minutos, Sebastion Frahn deu uma volta pela sala e parou junto da mesa deles.

— Desculpe ter sido tão brusco. Não sabia que vocês eram amigos.

— Não faz mal — disse Jason. Não sabia exactamente o que queria dizer o homem, mas aquilo pareceu revestido de cordialidade.

— Em que posso ser útil?

— Carol diz que o senhor se lembra do Dr. Hayes. Sebastion voltou-se para Carol.

— Era aquele homem Com quem esteve aqui da última vez? Carol confirmou Com a cabeça.

— Claro que me lembro dele. Era amigo de Arthur Koehler.

— Acha que era capaz de se lembrar sobre que conversaram? Talvez fosse importante.

— Jason trabalhava Com Alvin — esclareceu Carol.

— Não tenho qualquer problema em dizer-lhe do que falámos. O homem queria ir à pesca do salmão.

— Pescar? — exclamou Jason.

— Sim. Disse que queria apanhar alguns peixes grandes, mas não queria ir muito longe. Disse-lhe para ir a Cedar Falis.

— E foi tudo? — perguntou, o desânimo a invadi-lo.

— Conversámos sobre os Seattle Supersonics durante uns minutos.

— Obrigado... Agradeço-lhe o tempo que lhe tomei.

— Não tem de quê — disse Sebastion Com um sorriso. — Bem, tenho de ir por aí. — Levantou-se e apertou-lhes as mãos, dizendo-lhes para voltarem. Depois afastou-se.

— Nem posso acreditar... Sempre que penso que tenho uma pista, acaba por ser uma autêntica anedota. Ir à pesca!

A pedido de Carol ficaram mais meia hora para ver o espectáculo, e na altura em que regressaram ao hotel, Jason estava totalmente exausto. Pela hora da Costa Leste eram quatro horas da madrugada de quinta-feira. Preparou-se para se deitar e foi Com alívio que se meteu entre os lençóis. Ficara desiludido Com os resultados da sua visita ao Totem Club, mas restava ainda a Universidade de Washington. Estava prestes a adormecer quando ouviu uma ligeira pancada na porta de comunicação. Era Carol. Disse que estava Com fome e não conseguia dormir. Podiam chamar o serviço de quartos? Sentindo-se obrigado a ser bom desportista, concordou. Encomendaram uma dose de champanhe para dois e um prato de salmão fumado.

Carol, de robe de veludo frisado, sentou-se-lhe na borda da cama e comeu salmão e biscoitos. Descreveu a sua infância passada às portas de Bloomington, Indiana. Nunca a ouvira falar tanto. Vivia numa quinta e tinha de ordenhar as vacas antes de ir para a escola, de manhã. Conseguia imaginá-la a fazer isso, pois possuía esse tipo de frescura que sugeria tal estilo de vida. Tinha era dificuldade em relacionar essa vida anterior Com a que tinha actualmente. Queria saber de que maneira as coisas tinham tomado esse outro caminho menos próprio, mas teve receio de perguntar. Além disso, o cansaço tomou conta dele, e por mais que tentasse, não conseguia manter os olhos abertos. Adormeceu, e Carol, depois de o tapar Com um cobertor, voltou para o seu quarto.

 

Acordando de sobressalto, Jason olhou para o relógio que marcava cinco da manhã. Isso significava oito horas em Boston, altura em que habitualmente saía para o hospital. Abriu os cortinados e deparou Com um dia claro como cristal. À distância, um barco de passageiros fazia a ligação das duas margens do Puget Sound em direcção a Seattle, deixando uma esteira cintilante.

Depois de tomar um duche, bateu na porta de comunicação. Não houve resposta. Tornou a bater. Finalmente, abriu uma nesga, deixando entrar uma réstea de sol no quarto frio e escuro. Carol dormia ainda, agarrada à almofada. Observou-a por um instante. Parecia adorável como um anjo. Com todo o cuidado, fechou a porta para não a acordar.

Voltou para a sua cama, chamou o serviço de quartos pelo telefone e mandou virsumo de laranja, café & croissants para dois. Depois telefonou para o GHP e pediu para ligarem a Roger Wanamaker.

— Tudo bem?

— Não propriamente — admitiu Roger— Marge Todd teve uma embolia a noite passada. Entrou em coma e morreu. Paragem cardíaca.

— Meu Deus!

— Desculpa ser portador de tristes notícias... Tenta divertir-te.

— Dou-te uma apitadela dentro de um dia ou coisa.

Outra morte. A não ser uma jovem Com hepatite, começava a pensar que a única maneira que os seus doentes tinham para sair do hospital era de pés para a frente. Pensou se não seria melhor regressar directamente a Boston. Todavia, Roger tinha razão. Nada havia a fazer, e talvez resolvesse o caso Hayes, muito embora não se sentisse muito optimista.

Duas horas mais tarde Carol bateu à porta e entrou, o cabelo ainda molhado do banho de chuveiro.

— O melhor da manhã — disse em tom alegre. Jason mandou vir café feito na altura.

— Acho que vamos ter sorte — disse, apontando para o sol.

— Não diria tanto. O tempo por aqui pode voltar-se do avesso rapidamente.

Enquanto Carol tomava o pequeno-almoço, Jason bebeu outra chávena de café.

— Espero não lhe ter acabado Com os ouvidos ontem à noite.

—Não seja tola. Eu é que peço desculpa por ter adormecido.

— E quanto a si, doutor? — perguntou, pondo compota no croissant. —Ainda não me disse praticamente nada a seu respeito. — Não mencionou que Hayes lhe havia falado bastante acerca dele.

— Não há muita coisa a dizer.

Carol ergueu as sobrancelhas. Quando lhe viu o sorriso, riu-se.

— Por instantes pensei que falasse a sério.

Jason falou-lhe da sua adolescência em Los Angeles, a educação em Berkeley e na Harvard Medical School o seu internato no Massachusetts General. Sem querer, viu-se a descrever Danielle e a terrível noite de Novembro em que ela morrera. Ninguém jamais conseguira saber tanto dele como Carol o fez, nem mesmo Patrick, o psiquiatra que consultara depois da morte de Danielle. Até deu por si a descrever o seu actual estado depressivo por causa do aumento da mortalidade dos seus doentes e depois Com as notícias de Roger dessa manhã sobre a morte de Marge Todd.

— Sinto-me lisonjeada por me ter contado isto — disse Com sinceridade. Não contara Com tanta franqueza e confiança. — Tem sofrido muito emocionalmente.

— A vida pode ser assim — disse Com um suspiro. — Não sei por que a massacrei Com tudo isto.

—’Não massacrou nada. Acho que fez um ajustamento extraordinário. Penso que foi difícil, mas muito positivo, ter mudado de ambiente de trabalho e de vida.

— Acha?

Não se lembrara de ter dito aquilo. Não contara ser tão pessoal Com Carol, mas agora que o fizera, sentia-se melhor.

Usufruindo da companhia um do outro, foi só às dez e meia que saíram dos respectivos quartos vestidos para sair. Jason pediu ao paquete para lhes trazer o carro para a entrada do hotel e desceram do elevador até ao átrio. De acordo Com a previsão de Carol, quando saíram para a rua o céu havia ficado negro e caía uma chuva persistente.

Com a ajuda de um mapa da Avis e da memória de Carol, dirigiram-se para a escola médica da Universidade de Washington. Carol indicou o edifício de pesquisa que Hayes visitara. Avançaram para a entrada mas depararam logo Com um homem fardado da segurança. Não possuíam o crachá de identificação da Universidade de Washington.

— Sou médico em Boston — disse Jason, tirando a carteira para mostrar o bilhete de identidade.

— Eh, homem, não me interessa quem é nem donde vem. Não tem crachá, não entra. Assim mesmo. Se quiser entrar aqui, tem de ir à administração central.

Vendo que era inútil discutir, dirigiram-se à administração central. A propósito, Jason quis saber como resolvera Hayes o problema da segurança.

— Ele telefonou anteriormente ao amigo. O homem encontrou-se connosco no parque de estacionamento.

A mulher que se encontrava na administração central foi simpática e não causou dificuldades, tendo até mostrado a Carol um livro da faculdade para ver se ela conseguia descobrir o amigo de Hayes. Mas as caras não bastaram e Carol não consegui identificá-lo. Em vez disso, munidos dos crachás de segurança, voltaram ao edifício de pesquisa.

Carol conduziu Jason até ao quarto piso. O corredor encontrava-se apinhado de equipamento sobresselente e as paredes precisavam de pintura nova. Percebia-se um cheiro intenso de produto químico, semelhante ao formaldeído.

— Aqui é o laboratório — disse Carol, parando junto a uma porta aberta.

Os nomes à esquerda da porta eram Duncan Sechler, licenciado em Medicina e Filosofia, e Rhett Shannon, licenciado em Medicina e Filosofia. O departamento era, como Jason calculara, de genética molecular.

— Qual deles? — perguntou.

— Não sei — disse Carol, aproximando-se de um técnico jovem e perguntando se algum dos cientistas estava presente.

— Ambos. Encontram-se na sala dos animais.

E apontou por cima do ombro, voltando-se quando Carol passou para observá-la de costas. Jason ficou surpreendido Com a indelicadeza.

A porta para a sala dos animais tinha um grande painel de vidro. Lá dentro encontravam-se dois homens de batas brancas a tirar sangue a um macaco.

— Era o alto Com cabelo grisalho — disse Carol, apontando. Jason aproximou-se da janela. O homem que Carol indicou era

elegante e de aparência atlética, mais ou menos da sua idade. O cabelo era todo branco de prata, o que lhe dava uma aparência particularmente distinta. O outro homem, em contraste, era quase calvo. O cabelo que tinha estava penteado para cima na vã tentativa de cobrir a calvice.

— Ele lembrar-se-á de si?

— Talvez. Só nos encontrámos por momentos antes de eu ir ao departamento de psicologia.

Aguardaram até os cientistas terminarem o seu trabalho e saírem da sala dos animais. O alto de cabelo grisalho transportava um frasco de sangue.

— Desculpe — começou Jason. — Pode conceder-me um momento, por favor?

O homem olhou de relance para o crachá.

— É vendedor de drogas?

— Oh, não, não — disse, sorrindo. — Sou Jason Howard, médico, e esta senhora é Miss Carol Donner.

— Em que posso ser útil?

— Até já, Duncan — interrompeu o homem calvo.

— Muito bem. vou tratar do sangue imediatamente. — Depois, voltando-se para Jason: — Desculpe.

— Não tem importância. Queria falar consigo sobre um velho conhecido.

— Sim?

— Alvin Hayes. Lembra-se de ele vir aqui visitá-lo?

— Lembro-me, sim — respondeu, voltando-se para Carol. — E você não estava Com ele?

Carol fez que sim Com a cabeça.

— Tem boa memória.

— Fiquei chocado por saber da morte dele. Que perda.

— Carol disse que Hayes veio aqui pedir-lhe uma coisa importante. Podia dizer-me de que é que se tratava?

Duncan pareceu perturbado, olhando de relance e nervosamente para os técnicos.

— Não sei bem se quero falar sobre isso.

— Lamento sabê-lo. Era uma questão de negócios ou pessoal?

— Talvez fosse melhor vir ao meu gabinete,

Jason teve dificuldade em conter a excitação. Finalmente, parecia que encontrara algo significativo.

Depois de entrarem no gabinete, Duncan fechou a porta. Havia duas cadeiras Com costas de metal. Retirando montes de revistas, fez um gesto para Jason e Carol se sentarem.

— Respondendo à sua pergunta...—começou—, Hayes veio ver-me por razões pessoais, e não por negócios.

— Fizemos cerca de cinco mil quilómetros exactamente para conversar consigo — disse Jason. Não ia desistir assim tão facilmente, mas a coisa não parecia nada animadora.

— Se tivessem telefonado, podia ter-lhes poupado a viagem... — A sua voz deixara de ter parte da simpatia inicial.

— Talvez devesse dizer-lhe por que estamos tão interessados.

E explicou o mistério da possível descoberta de Hayes e as suas próprias tentativas inúteis para imaginar o que podia ter sido.

— Acha que Hayes veio pedir-me ajuda para a sua pesquisa?

— Era o que esperava.

Duncan soltou uma risada curta e desagradável. Olhou para Jason pelo canto do olho.

— Não me diga que é bufo... Jason ficou confuso.

— Muito bem. vou dizer-lhe o que Hayes queria. Um sítio para comprar marijuana. Disse que estava furioso para «voar» Com a droga e não tinha podido trazer nenhuma consigo. Por favor, pu-lo em contacto Com um rapaz da faculdade.

Jason ficou aturdido. A sua excitação desapareceu como o ar a sair de um balão, deixando-o vazio.

— Desculpe ter roubado o seu tempo.

— Não tem importância.

Carol e Jason saíram do edifício de pesquisa, entregando os crachás de visitantes ao guarda da segurança. Carol sorria à socapa.

— Não é assim tão engraçado, sabe — disse Jason quando entraram no carro.

— Mas é. Só que você não é capaz de ver as coisas assim neste momento.

— O melhor talvez é irmos para casa — disse, sombrio.

— Oh, não! Você arrasta-me todo este caminho até aqui... Não vamos embora enquanto não virmos as montanhas. É só uma meia dúzia de quilómetros.

— Deixe-me pensar no caso — disse, taciturno.

Carol venceu. Voltaram ao hotel, pegaram nas suas coisas e, antes de Jason dar por isso, encontravam-se numa auto-estrada a sair da cidade. Ela insistiu em conduzir. Em breve os subúrbios deram lugar à floresta verde enevoada e os montes ondulantes passaram a montanhas. A chuva parou e viam-se picos cobertos de neve à distância. A paisagem era tão bela que ele esqueceu a sua desilusão.

— Vai ficar ainda mais bonito — disse Carol quando deixaram a auto-estrada e se dirigiram a Cedar Falis- Lembrava-se agora do caminho e ia apontando, feliz, as vistas. Tomando uma estrada mais estreita, guiava agora ao longo do rio Cedar.

Era uma região encantadora da natureza, Com matas extensas, rochas escarpadas, montanhas distantes e rios impetuosos. Quando começou a escurecer, Carol saiu da estrada e meteu-se por um caminho de pedra miúda, acabando por parar em frente de uma casa pitoresca da montanha, construída como uma enorme cabana de toros de madeira de cinco pisos. Da grande chaminé de pedra saíam preguiçosos rolos de fumo. Uma tabuleta por cima das escadas que levavam à varanda da entrada dizia ESTALAGEM DO SALMÃO.

— Foi aqui que você e Alvin estiveram? — perguntou Jason, procurando observar através do pára-brisas. A enorme varanda da entrada tinha móveis rústicos de pinho.

— Exactamente.

Carol voltou-se e pegou no saco que estava no banco de trás.

Saíram do carro. O ar estava frio e sentia-se o cheiro acre do fumo de madeira a queimar. Jason ouviu o som distante de água impetuosa a correr.

— O rio fica do outro lado da estalagem — observou Carol, subindo as escadas. — Um pouco mais acima há uma bonita queda-d’água. Amanhã vamos vê-la.

Jason seguiu-a, perguntando de súbito para si próprio que diabo fazia ele ali. A viagem fora um erro; a vida dele era lá em Boston, Com os seus doentes em estado crítico. Todavia, ei-lo aqui nas Cascade Mountains, Com uma rapariga a quem nada o ligava.

O interior da estalagem era em cada pormenor tão interessante como o exterior. A parte central era uma sala a ocupar dois pisos, dominada por uma lareira gigantesca. Estava decorada Com chita, cabeças de animais e tapetes de pele de urso por todo o lado. Várias pessoas liam em frente da lareira e uma família jogava ao Scrabble1. Algumas pessoas olharam quando Jason e Carol se aproximaram do local de recepção.

— Têm reserva? — perguntou o homem por detrás do balcão. Jason pensou se o homem não estaria a brincar. O lugar era

imenso, estava nos confins do mundo, estavam em princípios de Novembro e nem sequer era fim-de-semana. Não conseguia imaginar que a procura fosse assim tão elevada.

— Não, não temos — disse Carol. — Há problema?

— Vejamos — disse o recepcionista, curvando-se sobre o livro.

— Quantos quartos há no hotel? — perguntou Jason, ainda admirado.

— Quarenta e dois e seis suites — respondeu o homem sem levantar os olhos.

— Há alguma convenção de sapatos na cidade? O homem riu-se.

1 Jogo em que os jogadores marcam pontos pondo filas de letras separadas nos quadrados de um quadro para formar palavras. (N. do T.)

— Estamos sempre cheios nesta altura do ano. Os salmões estão por aí.

Jason ouvira falar do salmão do Pacífico e como o peixe regressava misteriosamente às zonas de água doce onde se dera a desova. Mas pensara que o fenómeno ocorria na Primavera.

— Estão Com sorte. Temos um quarto, mas talvez tenham de se mudar amanhã à noite. Quantas noites pensam ficar?

Carol olhou para Jason, que se sentiu invadido por súbita ansiedade — apenas um quarto! Não sabia que dizer. Começou a gaguejar.

— Três noites — disse Carol.

— Muito bem. E quanto à forma de pagamento? Seguiu-se uma pausa.

— Cartão de crédito — disse Jason, procurando atabalhoadamente a carteira. Não podia acreditar no que estava a acontecer.

Enquanto seguiam o paquete para o átrio da entrada do segundo piso, perguntava de si para consigo como se havia metido nisto tudo. Tinha esperança que pelo menos houvesse duas camas. Por muito que lhe agradasse a presença de Carol, não se achava preparado para uma aventura Com uma bailarina exótica que fazia por fora sabe-se lá que mais.

— Daqui têm uma bela vista — disse o paquete.

Jason entrou, mas os olhos procuraram imediatamente as acomodações para dormir, e não as janelas. Ficou aliviado por ver camas separadas.

Quando o rapaz saiu, Jason aproximou-se para admirar a paisagem. O rio Cedar, que naquele ponto alargava até quase parecer um pequeno lago, era bordejado por altas sempre-verdes, que resplandeciam em púrpura forte ao crepúsculo. Logo abaixo havia um gramado que descia até à borda da água. Rio adentro havia um emaranhado de docas, onde se encontravam amarrados uns vinte a trinta barcos de remos. Fora de água, em armações, viam-se canoas. Atracados na extremidade de uma doca encontravam-se quatro grandes barcos de borracha Com motores fora-de-borda. Jason percebeu que as águas do rio eram animadas de significativa corrente apesar da sua plácida aparência, pois todos os quatro barcos de borracha tinham a popa apontada para a foz do rio, a bolina esticada.

— Então, que é que acha? — quis saber Carol, batendo as palmas. — Não é confortável?

O quarto era forrado a papel Com desenhos de flores. O pavimento era de madeira de pinho Com tapetes de retalhos. As camas tinham cobertores de lã Com estampados a dar ideia de colchas.

— É maravilhoso — respondeu, olhando para dentro da casa de banho, esperando ver roupões. — Você parece que é guia turístico. E agora?

— Voto por jantar imediatamente. Morro de fome. E acho que a sala de jantar só serve até às sete. As pessoas aqui recolhem cedo.

O restaurante tinha uma parede curva, Com janelas, do lado do rio. No centro da parede havia portas duplas que davam acesso a uma larga varanda. Jason calculou que no Verão a varanda era usada para jantar. Da varanda desciam alguns degraus para o gramado, e nas docas haviam surgido luzes, que iluminavam as águas.

Cerca de metade das duas dúzias de mesas da sala encontravam-se ocupadas. A maioria das pessoas já estava a tomar o seu café. Pareceu a Jason que toda a gente parou de conversar no momento em que ele e Carol apareceram.

— Parece que estamos em exposição... Por que será? — sussurrou Jason.

— Porque se sente nervoso por ir dormir no mesmo quarto Com uma jovem que mal conhece — devolveu-lhe Carol Com igual sussurro. — Acho que se sente na defensiva e um pouco culpado e inseguro quanto ao que esperam de si.

Jason deixou cair o queixo lentamente. Tentou olhar-lhe nos olhos claros e alegres para compreender o que lá se passava. Sabia que estava a corar. Como diabo podia uma rapariga que dançava meio nua ser tão observadora? Sempre se orgulhara da sua capacidade para avaliar as pessoas: afinal, era essa a sua vida. Como médico, tinha de possuir a percepção da dinâmica interior dos seus pacientes. Todavia, por que razão sentia que havia algo em Carol que não se ajustava bem?

Olhando-lhe de relance para a cara avermelhada, Carol riu-se.

— Por que é que simplesmente não relaxa e se diverte? Abaixe a juba, doutor... Com certeza que não vou morder-lhe.

— Muito bem. É o que vou fazer.

Jantaram salmão, que lhes foi oferecido numa série espantosa de variedades tentadoras. Depois de longa deliberação, decidiram-se por mandá-lo vir cozido em forma de massa. Para dar mais autenticidade, experimentaram um Chardonnay do Estado de Washington, que Jason achou excepcionalmente bom. Em determinada altura deu por si a rir em voz alta. Já há muito tempo que não se sentia tão à-vontade. Foi então que ambos repararam que se encontravam sozinhos na sala de jantar.

Mais tarde, nessa noite, quando estava na cama, fitando o tecto na obscuridade, voltou a sentir-se confuso. Fora uma autêntica comédia para se deitarem, quais malabaristas Com toalhas para se taparem, atirando a moeda ao ar para saber quem é que utilizava primeiro a casa de banho e tendo de sair da cama para apagar a luz. Não se lembrava de alguma vez se sentir tão consciente do corpo. Virou-se na cama. Na obscuridade percebia o recorte da forma de Carol. Estava deitada de lado. Sentia-lhe a respiração ritmada de encontro ao som distante da queda-d’água. Era evidente que dormia. Invejou; -lhe a aceitação honesta de si própria e o sono despreocupado. Mas o que o confundia não eram as incompatibilidades da personalidade de Carol, mas antes o facto de ele próprio se sentir bem. E Carol era disso a responsável.

 

Em relação ao tempo, continuaram a ter sorte. Quando abriram os cortinados de manhã, viram o rio a cintilar Com o brilho de uma infinidade de pedras preciosas. Logo que acabaram o pequeno-almoço, Carol anunciou que iam dar um passeio a pé.

Com o almoço em marmitas fornecido pelo hotel, seguiram pela margem do rio Cedar acima, por um caminho bem marcado cheio de aves e pequenos animais. A cerca de quinhentos metros da estalagem chegaram à queda-d’água que Carol mencionara. Era uma série de ressaltos rochosos, cada um dos quais Com cterca de metro e meio de altura. Juntaram-se a vários outros turistas num miradouro de madeira e ficaram-se a olhar em respeitoso silêncio, enquanto a água, impetuosa, fazia cascata por ali abaixo. Mesmo abaixo deles, um peixe de cerca de um metro, Com um magnífico colorido de arco-íris, quebrou a superfície turbulenta da água e, desafiando a gravidade, deu um salto até ao primeiro ressalto da rocha. Em segundos, tornava a saltar, ultrapassando o segundo ressalto por larga margem.

— Meu Deus! — exclamou Jason, que se lembrava de ter lido que o salmão era capaz de vencer rápidos contra a corrente, mas não fazia ideia da altura que tais quedas-d’água podiam atingir.

Ele e Carol ficaram hipnotizados quando vários outros salmões saltaram. Jason sentia-se maravilhado Com a energia física que os peixes exibiam. O incitamento geneticamente determinado para procriar era uma força poderosa.

— É inacreditável — observou, quando viu um peixe particularmente grande começar a vencer aquele desafio das águas.

— Alvin também ficou fascinado.

Bem podia imaginar, especialmente Com aquele seu interesse nas hormonas do desenvolvimento e do crescimento.

— Vamos — disse Carol, agarrando-lhe na mão. — Há mais. Continuaram a subir pelo caminho, que se afastou da margem

do rio cerca de quinhentos metros, levando-os para o interior da mata. Quando o caminho voltou ao rio, o Cedar havia alargado, fazendo outro pequeno lago, como o que existia em frente da estalagem do Salmão. Tinha cerca de quinhentos metros de largura por pouco mais de quilómetro e meio de comprimento e a superfície estava pontilhada de pescadores.

Aninhada numa pequena zona de grandes pinheiros via-se uma cabana, qual miniatura da Estalagem do Salmão. Em frente, à borda da água, existia uma pequena doca Com meia dúzia de barcos a remos. Carol levou Jason pelo caminho de lajes que conduzia até à porta da frente e entraram.

A cabana era uma concessão pesqueira dirigida pela Estalagem do Salmão. À direita havia um longo balcão, Com a parte da frente em vidro, dominado por um homem de barbas, enfiado numa camisa de lã aos quadrados vermelhos, Com suspensórios vermelhos, calças coçadas e botas calafetadas. Jason calculou que teria sessenta e muitos anos e pensou que daria um perfeito Pai Natal de qualquer centro comercial. Disposta ao longo da parede por detrás dele via-se uma enorme colecção de canas de pesca. Carol apresentou-o ao homem, que se chamava Stooky Griffiths, dizendo que Alvin se entretivera Com Stooky enquanto ela pescava.

— Olhe cá — disse Carol subitamente. — E que tal experimentar essa mão numa pesca ao salmão?

— Cá por mim, não — replicou. Caça e pesca nunca lhe tinham despertado interesse.

— Acho que vou tentar. Vá... venha daí.

— Vá você — insistiu. — Eu cá me entretenho.

— Muito bem.

Carol voltou-se para Stooky e alugou uma cana de pesca Com o isco necessário, depois tentou mais uma vez convencer Jason a ir Com ela, mas ele abanou a cabeça.

— Foi aqui que você e Alvin estiveram a pescar? — perguntou, olhando pela janela para o rio.

— Não — respondeu Carol, pegando nos apetrechos. — Alvin fez como você. Não quis ir comigo. Mas eu apanhei um grande. Mesmo em frente da doca.

— Alvin não pescou mesmo? — perguntou, surpreendido.

— Não. Ficou só a observar os peixes.

— Pensei que Alvin tinha dito ao Sebastion Franh que queria ir à pesca.

— Que posso eu dizer? Logo que aqui chegámos, Alvin ficou tão satisfeito por andar por aí a observar. Sabe, o cientista...

Jason abanou a cabeça, um tanto confuso.

— vou para a doca — disse Carol Com vivacidade. — Se mudar de ideias, venha cá abaixo. É engraçado!

Ficou-se a vê-la correr pelo caminho de lajes abaixo, perguntando para consigo por que razão Alvin teria feito investigações tão elaboradas sobre a pesca e depois nem uma linha lançou. Era estranho.

Dois homens entraram na cabana e alugaram os apetrechos de pesca Com o isco necessário e um barco. Jason saiu para a varanda. Havia várias cadeiras de balanço. Stooky pendurara no beiral um recipiente Com comida para aves e dezenas destas esvoaçavam à sua volta. Jason ficou a olhar para as aves durante algum tempo, depois foi andando para se juntar a Carol. A água estava transparente como cristal e viam-se as rochas e folhas do fundo. De súbito, um salmão enorme apareceu, cintilante, por entre o verde-escuro-esmeralda das águas mais profundas e disparou por debaixo da doca, dirigindo-se para uma zona baixa e Com sombra, a uns quinze metros de distância.

Seguindo-o Com a vista, Jason notou certa perturbação à superfície. Curioso, caminhou ao longo da margem. Quando se aproximou, viu outro salmão grande estendido de lado em muito pouca água, < cauda a agitar-se levemente. Tentou empurrá-lo Com um pau para águas mais profundas, mas ele não cedeu. Era evidente que o peixe estava doente. A alguma distância mais adiante viu outro salmão imóvel em poucos centímetros de água, e ainda mais próximo da margem, um peixe morto a ser comido por uma grande ave.

Resolveu voltar à cabana. Stooky encontrava-se na varanda, sentado numa das cadeiras de balouço, Com um cachimbo enfiado entre os dentes Encostado ao corrimão da varanda, Jason perguntou-lhe o que havia Com os peixes doentes, pensando se não haveria algum problema de poluição a montante do rio.

— Não — disse Stooky Tirou várias fumaças do cachimbo bem mascado. — Aqui não há poluição. Esses peixes desovaram e agora é altura de morrerem.

— Ah. sim — concordou, lembrando-se subitamente do que lera sobre o ciclo de vida do salmão. O peixe esforçava-se até ao limite das suas forças para regressar à zona da desova, mas uma vez postos os ovos e fertilizados, morria. Ninguém sabia exactamente porquê. Havia teorias sobre os problemas fisiológicos resultantes da passagem da água salgada para a água doce, mas ninguém sabia ao certo. Era um dos mistérios da natureza.

Jason olhou para Carol lá em baixo — estava entretida a tentar lançar a linha. Depois voltou-se de novo para Stooky.

— Você por acaso lembra-se de conversar Com um médico chamado Alvin Hayes?

— Não.

— Tinha mais ou menos a minha altura — continuou. — Cabelo comprido. Um tanto pálido.

— Vejo muita gente.

— Claro que vê. Mas o homem de que estou a falar estava Com aquela rapariga — e apontou para Carol. Calculou que Stooky não via muitas raparigas que se parecessem Com Carol Donner.

— Aquela na doca?

— Exactamente.

— É bem engraçada.

O fumo saiu em curtas bofaradas da boca de Stooky. Os olhos semicerraram-se-lhe.

— Esse fulano de que fala era de Boston? Jason confirmou Com um gesto de cabeça.

— Lembro-me dele. Mas não parecia nada ser médico.

— Fazia pesquisas.

— Talvez isso explique a coisa. Era realmente estranho. Pagou-me cem dólares para lhe arranjar vinte e cinco cabeças de salmão.

— Só as cabeças?

—’Sim. Deu-me o número do telefone lá de Boston. Disse-me para telefonar quando as tivesse.

— Depois ele voltou cá para as levar? — perguntou, recordando-se que Hayes e Carol haviam feito duas viagens.

—’Voltou. Disse-me para as limpar e metê-las em gelo.

— Por que levou tanto tempo? — perguntou, achando que, Com todo o peixe disponível, parecia ser fácil reunir vinte e cinco cabeças numa só tarde.

— Nem todo o salmão lhe servia. Tinha de acabar de desovar... e o salmão que está a desovar não morde a isca. É preciso apanhá-lo à rede. Aquela gente que está a pescar ali está a apanhar truta.

— Alguma espécie de salmão?

— Não. Tinham de ter acabado de desovar

— Ele disse por que razão queria aquelas cabeças?

— Não disse, e eu não perguntei. Estava a pagar, e eu achei que não tinha nada Com isso.

— E só cabeças de peixe.. nada mais?

— Só cabeças de peixe.

Jason afastou-se da varanda frustrado e confundido. A ideia de que Hayes percorrera cerca de cinco mil quilómetros em busca de cabeças de peixe e marijuana parecia falha de lógica.

Carol viu-o na borda da doca e acenou-lhe a chamá-lo.

— Tem de experimentar isto, Jason... Quase apanhei um salmão.

— O salmão aqui não morde o isco. Deve ter sido uma truta. Carol pareceu desiludida.

Jason estudou-lhe o rosto adorável, de faces alongadas. Se a premissa original estivesse correcta, as cabeças de salmão estariam associadas às tentativas de Hayes para criar um anticorpo monoclonal.

Mas como podia isso ajudar a beleza de Caroll, como Hayes lhe dissera? Não fazia sentido.

— Acho que não interessa se é truta ou salmão — disse Carol, , voltando a atenção outra vez para a pesca. — Estou a divertir-me.

Um falcão a voar em círculos mergulhou na água baixa e tentou agarrar um dos salmões moribundos Com as presas, mas o peixe era demasiado grande e a ave desistiu, voltando para as alturas. Enquanto Jason observava, o salmão deixou de lutar na água e morreu.

— Apanhei uma! —exclamou Carol quando a cana arqueou. Aquela excitação desanuviou-o. Dispôs-se a ajudar Carol a puxar

para terra uma truta de tamanho razoável — um belo peixe Com olhos pretos de aço. Sentiu pena. Depois de lhe tirar o anzol do lábio inferior, convenceu Carol a lançá-lo de novo à água. Desapareceu como uma flecha.

Para almoçar, resolveram caminhar ao longo das margens do rio, que cada vez se alargava mais, até um promontório rochoso. Sentaram-se então, e enquanto comiam não só admiravam toda a extensão do rio, mas os picos cobertos de neve das Cascade Moomtains. Era de tirar a respiração.

Foi já ao fim da tarde que decidiram regressar à Estalagem do Salmão. Quando passaram pela cabana, viram outro peixe grande nos estertores da morte. Estava de lado, a barriga branca e brilhante.  

— Que triste — observou Carol, agarrando-lhe no braço. — Por que é que têm de morrer?

Não tinha resposta para a situação. Ocorreu-lhe a frase já batida: «É a natureza», mas não a disse. Por uns instantes ficaram a ver o outrora magnífico salmão a servir de repasto a vários peixes mais pequenos, que se lançavam ao ataque.

— Que horror! — exclamou Carol, dando-lhe um esticão no braço.

Continuaram a caminhar. Para mudar de assunto, Carol começou a falar sobre outra diversão que o hotel tinha para oferecer. Era andar de jangada nas águas baixas. Mas Jason não a ouvia. A imagem horrível dos pequenos peixes a alimentarem-se do peixe maior moribundo suscitara-lhe na mente o germe de uma ideia. De súbito, como uma revelação, teve a percepção daquilo que Hayes descobrira. Não era irónico... era aterrorizador.

A cor fugiu-lhe do rosto e parou de caminhar.

— Que se passa? — quis saber Carol.

Jason engoliu em seco, os olhos parados, muito abertos.

— Jason, que é?

— Temos de voltar a Boston — disse, Com uma tonalidade de urgência na voz. Pôs-se de novo a caminhar, o passo açodado, quase arrastando Carol atrás de si.

— De que está a falar? — protestou Carol. Não reagiu à pergunta.

— Jason! Que se passa? — insistiu, fazendo-o parar.

— Desculpe — disse, como se acordasse de um transe. — De repente tive uma ideia... Parece que sei o que é que Alvin encontrou. Temos de regressar.

— Que quer dizer... esta noite?

— Já.

— Ora... um momento. Não deve haver avião para Boston esta noite. Lá são três horas mais tarde. Podemos ficar aqui e partir de manhã cedo, se insiste em partir.

Não deu resposta.

— Pelo menos podemos jantar — acrescentou Carol irritada. Deixou que ela o acalmasse. Afinal, quem sabe? Podia estar

enganado, pensou. Carol queria discutir o caso, mas Jason disse-lhe que ela não compreenderia.

— Deixe-se de superioridades.

— Desculpe. Dir-lhe-ei tudo quando tiver a certeza.

Na altura em que se vestia, depois de um duche, pensou que Carol afinal tinha razão. Se tivesse seguido para Seattle, teriam chegado ao aeroporto por volta da meia-noite, hora de Boston. Não haveria então voos até de manhã.

Chegados à sala de jantar, conduziram-nos a uma mesa mesmo em frente das portas que davam para a varanda. Jason fez sentar Carol de frente para as portas, dizendo que ela merecia desfrutar a paisagem. Depois de lhes darem a ementa, pediu desculpa por ter agido de maneira tão estranha e deu-lhe toda a razão por achar que não deviam partir imediatamente.

— Fico grata por me dar razão.

Para variar, mandaram vir truta em vez de salmão, e em lugar do vinho do Estado de Washington pediram um Chardonnay de Napa Valley. Lá fora, o dia fechava-se e surgiam as luzes nas docas.

Jason teve dificuldade em concentrar-se na refeição. Começava a compreender que se a sua teoria estivesse correcta, Hayes fora assassinado e Helene não fora vítima de violência casual. E se Hayes tinha razão e alguém estava a utilizar a sua descoberta acidental e terrível, o resultado podia ser muito pior do que qualquer epidemia.

Enquanto a cabeça de Jason fervilhava, Carol prosseguia na conversa, mas quando se apercebeu que ele não estava ali, estendeu a mão e agarrou-lhe no braço.

— Você não está a comer...

Jason olhou, ausente, para a mão dela no seu braço, para o prato e depois para Carol.

— Estou preocupado. Desculpe.

— Não importa. Se não tem fome, talvez seja melhor irmos saber se há aviões para Boston de manhã.

— Podemos esperar até acabar a sua refeição. Carol atirou o guardanapo para a mesa.

— Já comi mais do que o suficiente, obrigada.

Jason procurou o empregado daquela mesa. Os olhos percorreram a sala e pararam. Ficaram cravados num homem que acabara de entrar na sala de jantar e parara junto do chefe de mesa. Vestia um fato azul-escuro Com camisa branca aberta no colarinho. Mesmo à distância, Jason percebeu que o homem usava um pesado colar de ouro. Via-o cintilar Com as luzes da sala.

Estudou o homem. Parecia-lhe familiar, mas não conseguia localizá-lo. Era de raça espanhola, Com cabelo escuro e pele muito morena. Dava a ideia de homem de negócios bem sucedido. De repente, lembrou-se. Vira aquela cara na terrível noite em que Hayes morrera. O homem estivera em frente do restaurante e depois em frente da sala de emergência do Massachusetts General Hospital.

Nesse momento o homem descobriu-o, e Jason sentiu um frio repentino a percorrer-lhe a espinha. Era evidente que o homem o reconhecera, pois se adiantou imediatamente, a mão direita casualmente metida no bolso do casaco. Caminhava Com decisão, diminuindo rapidamente a distância. Com o pensamento no assassínio de Helene Brennquivist, Jason entrou em pânico. A intuição dizia-lhe o que se aproximava, mas não foi capaz de mover-se. Tudo quanto conseguiu fazer foi olhar para Carol. Quis gritar e dizer-lhe para fugir, mas não pôde. Ficou paralisado. Pelo canto do olho viu o homem rodear a mesa ao lado.

— Jason? — chamou Carol, inclinando a cabeça para o lado.

O homem estava apenas a escassos passos. Jason viu-lhe a mão sair do bolso e o brilho do metal da pistola que a mão cobria. A visão da arma pôs Jason em acção. Em repentina explosão de actividade, puxou a toalha da mesa, fazendo voar para o chão pratos, copos e talheres de prata. Carol pôs-se de pé Com um grito.

Jason precipitou-se para o homem, atirando-lhe a toalha por cima da cabeça, empurrando-o para trás contra uma mesa vizinha e fazendo cair esta, num amontoado de louça e copos. As pessoas que estavam à mesa gritaram e tentaram afastar-se, mas algumas foram apanhadas pela confusão de cadeiras a cair.

No burburinho, Jason agarrou na mão de Carol e puxou-a pela porta fora, para a varanda. Tendo conseguido quebrar a paralisia de terror pânico, Jason era agora uma torrente de movimento em acção. Sabia agora quem era o homem de negócios de raça espanhola: o assassino que Hayes clamava que andava na sua peugada. Não tinha dúvidas de que os próximos alvos seriam Carol e ele próprio.

Puxou Carol pelas escadas abaixo, pensando correr à volta do hotel até ao parque de estacionamento. Mas então compreendeu que nunca o conseguiria fazer. Era melhor correrem para um dos barcos da doca.

— Jason! —gritou Carol quando ele mudou de direcção e arrastou para o gramado. — Que é que você tem?

Atrás deles Jason ouviu as portas da sala a abrirem Com estrondo, e calculou que estivessem a persegui-los.

Quando chegaram à doca, Carol tentou parar.

— Vamos, que diabo — gritou Jason, de dentes cerrados Olhando para trás, viu um vulto correr para a grade da varanda, depois começar a descer as escadas.

Carol tentou libertar a mão Com um safanão, mas Jason apertou-a mais e puxou-a Com violência para a frente

— Ele quer matar-nos!—gritou.

Avançaram aos tropeções, correndo para a extremidade da doca, ignorando os barcos a remos. Jason gritou para Carol o ajudar a desamarrar três dos barcos de borracha e a empurrá-los para o largo. Já estes seguiam pela corrente abaixo quando o perseguidor chegou à doca. Jason ajudou Carol a entrar para o quarto barco e, fazendo o mesmo, deu um impulso Com o pé na doca para se afastarem. Também eles seguiram corrente abaixo, a princípio lentamente, depois ganhando velocidade. Jason forçou Carol a deitar-se, cobrindo o corpo dela Com o seu.

Um pequeno estalo inocente foi imediatamente seguido por um baque surdo algures no barco. Quase simultaneamente perceberam o som de ar a escapar-se. Jason gemeu. O homem estava a disparar contra eles Com uma pistola silenciosa Outro pequeno estalo foi seguido por um som metálico quando uma bala fez ricochete no motor fora-de-borda; outra bateu na água Com o som característico.

Para alívio seu, Jason apercebeu-se de que o barco de borracha era construído por compartimentos. Embora uma bala tivesse inutilizado uma secção,o barco não se afundou. Mais alguns tiros caíram ali perto. Então ouviu-se uma pancada de madeira contra a doca. Jason ergueu a cabeça Com cuidado e olhou para trás. O homem puxara uma das canoas da armação e estava a metê-la na água.

Jason tornou a ficar cheio de medo — o homem podia avançar na canoa muito mais rapidamente do que eles, sujeitos apenas a velocidade da corrente. A sua única possibilidade era pôr o motor a trabalhar — um motor fora-de-borda, ultrapassado, que fazia o arranque Com uma corda. Pôs a alavanca na posição de «partida» e puxou a corda. O motor nem sequer deu sinal de si. O assassino já se metera na canoa e começava a dirigir-se a eles. Puxou de novo a corda: nada. Carol ergueu a cabeça.

— Está a aproximar-se — disse, nervosa.

Nos quinze segundos seguintes, Jason puxou e tornou a puxar a corda freneticamente. Já via a silhueta da canoa, que se aproximava em silêncio. Verificou se a alavanca se encontrava na posição de «partida», depois experimentou outra vez, sem êxito. Os olhos viraram-se-lhe para o depósito de gasolina, que pedia a Deus estivesse cheio. A tampa preta parecia estar lassa, por isso apertou-a. Mesmo ao lado existia um botão, que calculou devia ser para aumentar a pressão dentro do depósito. Premiu-o uma meia dúzia de vezes, notando que se tornava cada vez mais difícil premi-lo. Levantou os olhos novamente e viu a canoa quase junto deles.

Voltando a agarrar a corda, puxou-a Com toda a força. O motor começou a trabalhar ruidosamente. Então estendeu a mão para a alavanca e empurrou-a para «inversão», pois seguiam pela corrente de popa. Deu mais gás ao motor e atirou-se para o fundo do barco, impedindo Carol de se mexer. Como calculava, surgiram vários tiros mais, dois dos quais atingiram de novo o barco. Quando Jason se atreveu a olhar outra vez, a distância havia aumentado. Na obscuridade, já mal se via a canoa.

— Fique aí — ordenou a Carol, enquanto verificava a extensão dos estragos. A secção do lado direito da proa estava flácida, bem como a parte do talabardão esquerdo- De resto, o barco estava intacto. Voltando ao motor, abrandou a admissão de gás, pôs a alavanca «para a frente», depois virou o leme para acompanhar a corrente, aproximando-se da parte central do rio. A última coisa que queria era bater nas rochas.

— Muito bem — disse para Carol. — Já pode sentar-se.

Carol ergueu-se a cambalear do fundo do barco e correu os dedos pelos cabelos.

— Nem posso acreditar — gritou, acima do barulho do motor. — Que diabo é que vamos fazer agora?

— Vamos rio abaixo até vermos luzes. Há muitos lugares por aqui fora.

Enquanto prosseguiam, Jason pensava para consigo se seria seguro parar noutra doca. Afinal, o homem que os perseguia podia muito bem meter-se no carro e seguir ao longo do rio. Talvez haja uma luz na outra margem, pensou.

Pelas silhuetas das árvores que bordejavam aquele Como que lago em que se transformara o rio podia calcular a velocidade a que seguiam. Era como se fosse uma caminhada a passo estugado.

Também tinha a sensação de que o rio estava de novo gradualmente a estreitar-se, especialmente quando parecia que a velocidade aumentava. Passada meia hora, continuava a não aparecer qualquer luz. Apenas uma mata negra a recortar um céu sem lua salpicado de estrelas.

— Não vejo nada — vociferou Carol.

— Está tudo bem — animou ele.

Passado outro quarto de hora, as árvores das margens estreitaram-se repentinamente, o que queria dizer que aquela espécie de lago ia chegar ao fim. Quando as árvores se fecharam mais, apercebeu-se de que não calculara devidamente a velocidade; estavam a avançar Com mais rapidez do que julgara. Estendendo a mão para trás, baixou ainda mais a admissão. O pequeno motor quase emudeceu. Logo que o som deixou de se ouvir, passou a ouvir-se outro ruído mais temeroso. Era o rugido profundo da queda-d’água.

— Oh, meu Deus — disse para consigo, recordando-se das quedas que ficavam a montante, para lá da Estalagem do Salmão. Empurrou o pequeno motor para o lado e voltou o barco. Depois, pôs o motor a toda a força. Para surpresa e consternação sua, o barco abrandou, mas não deixou de continuar rio abaixo. A seguir tentou dirigir o barco para a margem.

Lentamente, foi-se deslocando para o lado. Mas nessa altura foi como se o inferno rebentasse. O rio fechou-se numa garganta rochosa, e Jason e Carol foram chupados para dentro dela sem o saberem.

Na parte superior da borda do barco de borracha corria uma corda, segura a intervalos por ilhoses. Jason agarrou um pedaço de ambos os lados, firmando-se no barco, Com os braços estendidos. Gritou a Carol para fazer o mesmo. Ela não ouvia por causa do barulho das águas, mas quando viu o que ele estava a fazer, tentou proceder da mesma forma. Infelizmente, não chegava lá. Agarrou-se a um lado e meteu uma perna debaixo de um dos assentos de madeira. Nesse momento, atingiram a primeira turbulência a sério, e o barco foi atirado para o ar como uma rolha. Um autêntico lençol de água entrou por ali dentro, molhando-os e cegando-os. Jason cuspiu água. A escuridão e a água nos olhos não o deixava ver coisa alguma. Sentiu o corpo de Carol bater contra o seu e tentou segurá-la Com a perna. Então o barco bateu contra uma rocha e rodopiou sobre si Durante toda esta violência, Jason continuava a ver a imagem das quedas-d’água, sabendo que a qualquer momento podiam despenhar-se para a morte.

Agarravam-se às cordas extremamente aterrorizados. Balanceavam de um lado para o outro, e da popa para a proa, em rápidas rotações, completamente à mercê da água. A todo o momento Jason pensava que iam precipitar-se. A água enchia todo o barco. Estava tão fria que fazia doer.

Depois do que pareceu uma eternidade infernal, as águas abrandaram. Eles continuavam a rodopiar de um lado para o outro, rio abaixo, mas sem as repentinas e violentas convulsões. Jason olhou para fora, conseguindo distinguir de ambos os lados as rochas alcantiladas. Sabia que a coisa ainda não terminara.

Com uma vaga tremenda para cima, a violência recomeçou. Jason começava a sentir os dedos a doer; a combinação da constante contracção muscular Com o frio estava a ter os seus efeitos. Agarrava na corda Com toda a sua força, tentando Com as pernas não deixar fugir Carol. A dor nas mãos era tão intensa que por instantes pensou que tinha de largar a corda.

Então, o pesadelo, tão repentinamente como começara, terminou. Ainda rodopiando, o barco precipitou-se em águas relativamente calmas. O trovejar dos rápidos diminuiu. As margens do rio afastaram-se, deixando ver um céu cheio de estrelas. Dentro do barco a água gelada já não era muita, mas Jason reparou que o motor fora-de-borda continuava a trabalhar tão suavemente como se nada tivesse acontecido.

Com mãos trémulas, endireitou o barco e deteve aquela rotação de causar náuseas. Os dedos tocaram-lhe num botão mesmo abaixo do cadaste. Tentou a sorte e premiu-o; a água que estava dentro do barco foi desaparecendo lentamente.

Continuava a olhar para a silhueta das árvores das margens. À frente, o rio virava vivamente para a esquerda, e quando passaram a curva, viram luzes finalmente. Dirigiu então o barco para a margem.

À medida que se aproximavam, ia vendo vários edifícios bem iluminados, docas, e uma série de barcos de borracha iguais ao seu. Continuava Com medo que o assassino pudesse ter vindo de carro para interceptá-los, mas sabia que precisavam de ir para terra. Atracou ao longo da segunda doca e desligou o motor.

— Ainda sabe como se convida uma rapariga para jantar? — foi dizendo Carol, Com os dentes a bater.

— Agrada-me saber que continua Com o seu senso de humor. —’Não conte Com isso por muito mais tempo. Bem gostava de

saber o que é que em nome de Deus se vai seguir.

Jason pôs-se de pé, agarrando-se à doca. Ajudou Carol a sair do barco, saiu também e amarrou a corda a um gancho. De um dos edifícios ouvia-se música country.

— Deve ser um bar — disse Jason, pegando-lhe na mão. — Temos de aquecer-nos antes de apanharmos uma pneumonia.

Seguiu à frente pelo caminho de gravilha, mas, em vez de entrarr, dirigiu-se ao parque de estacionamento e começou a olhar para dentro dos veículos estacionados.

— Pare aí — disse Carol, irritada. — Que é que está a fazer agora?

— Estou à procura de chaves... Precisamos de um carro.

— Não posso acreditar — disse, atirando as mãos ao ar. — Pensava que íamos aquecer-nos. Quanto a si, não sei, mas eu vou entrar naquele restaurante... — e sem esperar resposta, dirigiu-se para a entrada.

Jason correu para ela e agarrou-lhe no braço.

— Tenho medo que ele volte... o homem que disparou contra nós.

— E nós chamamos a polícia — retorquiu Carol, soltando-se e entrando no restaurante.

O espanhol não se encontrava no restaurante. Então, seguindo a sugestão de Carol, telefonaram à polícia, que por acaso era o xerife local. O proprietário do restaurante recusou-se a acreditar que tivessem atravessado na escuridão a Devil’s Chute [Queda-d’Água do Diabo].

— Ninguém jamais o conseguiu — disse.

Arranjou-lhes roupa do cozinheiro-chefe, batas e calças enormes aos quadrados pretos e brancos, para trocarem pela sua molhada, que meteram em sacos de plástico. Também insistiu que tomassem grogues quentes de rum, os quais pararam finalmente Com os seus arrepios de frio.

— Jason, tem de dizer-me o que é que se passa — insistiu Carol enquanto esperavam pelo xerife. Estavam sentados a uma mesa em frente de uma máquina Wurlitzer, na qual alguém metera uma moeda, para ouvir música dos anos cinquenta.

— Não tenho bem a certeza... Mas o homem que disparou contra nós estava em frente do restaurante onde Alvin morreu- O que eu calculo é que Alvin foi vítima da sua própria descoberta, mas se ele não tivesse morrido nessa noite, aquele homem acabaria por o matar de qualquer modo. Portanto, Alvin dizia a verdade quando disse que alguém o queria matar.

— Isto nem parece verdade — comentou Carol, tentando alisar o cabelo, que ia secando em pequenos anéis emaranhados.

— Eu sei. A maioria das conspirações também não.

— E quanto à descoberta de Hayes?

— Não sei bem, mas se a minha teoria estiver correcta, fico aterrorizado só de pensar. É por isso que quero voltar a Boston.

Nesse momento abriu-se a porta e entrou o xerife Marvin Arnold. Era uma verdadeira montanha, vestido Com um uniforme castanho enrugado que tinha tantas fivelas e correias que Jason mal conseguia imaginar. O que achou de mais importante foi a Magnum 357 que Marvin trazia do lado esquerdo. Era aquele género de canhão que bem queria ter lá na Estalagem do Salmão.

Marvin já ouvira falar do que se passara na Estalagem do Salmão, e estivera lá a tomar conta da ocorrência. O que não sabia era de homem algum Com uma pistola, e ninguém ouvira quaisquer tiros. Quando Jason descreveu o que acontecera, sentiu que Marvin o observava Com cepticismo. O xerife ficou surpreendido e impressionado, todavia, quando soube que Jason e Carol tinham descido pela Devil’s Chute sozinhos, na escuridão.

— Muita gente não vai acreditar numa coisa dessas — disse, abanando a cabeça, admirado.

Depois levou-os de carro à Estalagem do Salmão. Aqui, Jason descobriu Com surpresa que tinha contra si uma acusação que o tornava responsável pelos danos causados na sala de jantar. Ninguém vira arma alguma. E ainda mais chocante, ninguém se lembrava de homem algum de tez morena Com fato azul-escuro. Mas no fim a gerência decidiu retirar a queixa, dizendo que o seguro tomaria conta dos estragos. Resolvido isto, Marvin deu um toque no chapéu como despedida, preparando-se para se ir embora.

— E a protecção? — perguntou Jason.

— Contra quê...? Não acha um tanto embaraçoso que ninguém se disponha a corroborar essa história? Ouça, acho que vocês já causaram esta noite bastantes problemas. Penso que o melhor é irem para o vosso quarto e dormirem para esquecer tudo isto.

—’Precisamos de protecção — insistiu Jason, procurando dar à voz um tom autoritário. — Que fazemos se o assassino voltar?

— Olhe, amigo, não posso ficar aqui sentado a segurar-lhe a mão. Sou o único que estou neste turno e tenho o concelho inteiro à minha conta. Fechem-se à chave no quarto e procurem dormir.

Com um aceno final de cabeça para o gerente, Marvin afastou-se pesadamente e foi-se embora.

O gerente, por sua vez, sorriu para Jason Com ar condescendente e entrou no escritório.

— Isto não pode ser — disse Jason Com um misto de medo e irritação. — Não posso acreditar que ninguém notasse o espanhol.

Dirigiu-se à cabina telefónica pública e procurou na lista agências de detectives particulares. Achou vários em Seattle, mas quando fez a ligação só encontrou máquinas a registar a chamada. Deixou o nome e o número do hotel, mas não tinha muita esperança de encontrar alguém nessa noite.

Saindo da cabina, disse a Carol que iam partir imediatamente. Ela seguiu-o escadas acima.

— São nove e meia da noite — protestou ela, entrando no quarto atrás dele.

— Não quero saber. Vamos embora o mais depressa possível. Junte as suas coisas.

— Não tenho voto na matéria?

— Não. Foi sua a decisão de ficarmos esta noite e também foi sua a decisão de chamarmos a prestável polícia local. Agora é a minha vez. Vamos embora.

Por instantes Carol ficou no meio do quarto a observá-lo a meter as coisas no saco, depois achou que talvez tivesse razão. Dez minutos depois, já vestidos Com roupa sua, levaram a bagagem para baixo e aproximaram-se da recepção.

— Terão de pagar esta noite — informou o homem.

Jason não se incomodou em discutir. Em vez disso perguntou-lhe se lhes traria o carro para a entrada principal. Deu-lhe cinco dólares de gorjeta e o empregado, todo contente, apressou-se a fazer o que lhe pediam.

Uma vez no carro, esperara que se sentiria menos ansioso e menos vulnerável. Mas não foi o caso. Quando se afastou do hotel e começou na escuridão da noite a descer a estrada da montanha, depressa reconheceu como estavam isolados. Passados quinze minutos, viu pelo espelho retrovisor um par de faróis. A princípio tentou ignorá-los, mas a certa altura pareceu-lhe que iam ganhando terreno inexoravelmente, muito embora ele fosse acelerando. O terror que sentira antes voltava. As palmas das mãos começaram a transpirar-lhe.

— Há alguém atrás de nós.

Carol voltou-se e olhou para trás. Passada uma curva os faróis desapareceram. Mas na recta seguinte tornaram a aparecer. Estavam cada vez mais próximos. Carol voltou-se para a frente.

— Eu disse que devíamos ter ficado.

— É uma grande ajuda — replicou Jason em tom sarcástico.

E apertou mais o acelerador. Já iam bem acima dos noventa na estrada cheia de curvas. Agarrou-se Com mais força ao volante, olhando a seguir para o espelho retrovisor. O carro estava mesmo ali, os faróis quais olhos de monstro. Tentou resolver o que podia fazer, mas não conseguia pensar noutra coisa senão tentar distanciar-se do carro atrás deles. Chegaram a outra curva. Torceu o volante e viu a boca de Carol abrir-se num grito silencioso. Parecia-lhe que o carro começava a abrir-se ao meio. Travou, e o carro derrapou primeiro para um lado e depois para o outro. Carol agarrou-se ao painel para se firmar e ele sentiu o cinto de segurança a apertar.

Lutando contra o carro, conseguiu mantê-lo na estrada. Atrás, o carro perseguidor ganhava terreno. Agora estava mesmo por detrás, os faróis a encherem-lhes o carro de luz irreal. Em pânico, pisou o acelerador até ao fundo, fazendo saltar o carro para a frente e disparando por uma pequena colina abaixo. Mas o carro que os perseguia manteve-se mesmo atrás deles, qual cão de caça atrás de um veado.

Então, para espanto de ambos, o carro encheu-se de luz vermelha a relampejar. Levaram uns instantes a compreender que a luz provinha do topo do carro que os seguia. Quando Jason se apercebeu do que se tratava, abrandou, observando pelo espelho retrovisor. O carro atrás abrandou também. À frente, num desvio, saiu da estrada e parou O suor caía-lhe em pequenas gotas pela testa. Os braços tremiam-lhe pela força Com que agarrara o volante. Atrás deles, o outro carro parou também, a luz a piscar iluminando as árvores circunvizinhas. Pelo espelho, Jason viu abrir-se a porta e sair Marvin Arnold. Trazia a sua Magnum 357 no coldre pronta a usar.

— Ora vejam só — disse, apontando a lanterna para a cara embaraçada de Jason. — Era o que me faltava.

Furioso, Jason gritou:

— Por que diabo não acendeu o farol vermelho logo de início?

— Queria apanhar o aselha das velocidades — retorquiu, galhofando. — Não sabia que vinha atrás do meu lunático favorito.

Depois de um sermão não solicitado e de uma multa por condução imprudente, deixou-os prosseguir. Jason estava demasiado irritado para falar e seguiram em silêncio até à auto-estrada.

— Acho que devíamos ir para Portland — anunciou. — Deus sabe quem será que está à nossa espera no aeroporto de Seatle.

— Por mim está bem — disse ela, demasiado cansada para discutir. Pararam num motel perto de Portland, onde dormiram umas

horas, e ao princípio da madrugada seguiram para o aeroporto, onde tomaram um avião para Chicago. De Chicago, foram também de avião para Boston, aterrando um pouco depois das cinco e meia da tarde de sábado.

No táxi em frente do apartamento de Carol, Jason começou de súbito a rir-se.

— Eu nem sei como hei-de pedir-lhe desculpa daquilo por que a obriguei a passar.

Carol pegou no saco de viagem.

— Bem, pelo menos não foi aborrecido. Olhe, Jason, não quero ser sarcástica ou estar a massacrá-lo, mas, por favor, diga-me o que se passa.

— Logo que tenha a certeza. Prometo. Deveras. Mas faça-me um favor. Fique aqui esta noite. Espero que ninguém saiba que voltámos, mas vai ser um inferno se e quando descobrirem.

— Não penso ir a parte alguma, doutor — disse, e acrescentou Com um suspiro: — Já tenho a minha conta.

 

Nem sequer parou no seu apartamento. Logo que Carol desapareceu no prédio onde morava, disse ao motorista para deixá-lo junto do seu carro e seguiu directamente para o GHP. Passou imediatamente para o complexo de consulta externa. Eram sete horas e a grande sala de espera estava deserta. Foi directamente ao seu gabinete, tirou o casaco e sentou-se ao terminal do computador. O GHP gastara uma fortuna no seu sistema de computadores e tinha orgulho nisso. Cada posição dava acesso à grande estrutura principal, onde entravam todos os dados dos doentes. Embora as fichas individuais continuassem a ser a melhor fonte de informações dos doentes, a maior parte do material podia obter-se no computador. Melhor ainda, a sofisticada maquinaria podia examinar toda a base de doentes do GHP e apresentar graficamente os dados no ecrã, analisados quase de qualquer maneira que se desejasse.

Primeiro, pediu as curvas actuais de sobrevivência. O gráfico que o computador apresentou tinha a forma de encosta íngreme de montanha, começando lá no alto, depois arredondando e caindo a pique. O gráfico comparava a taxa de sobrevivência dos utentes do GHP pela idade. Como se podia esperar, os subscritores de idade mais avançada do gráfico tinham a mais baixa taxa de sobrevivência. Nos últimos cinco anos, embora a idade média da população do GHP tivesse aumentado gradualmente, as curvas de sobrevivência permaneceram praticamente as mesmas.

A seguir, pediu ao computador para lhe apresentar os gráficos mensais durante os últimos seis meses. Como receara, viu que a taxa de mortalidade subia para os pacientes à volta de sessenta anos, particularmente durante os três últimos meses.

Uma pancada seca fê-lo saltar da cadeira, mas olhou pela porta para o átrio e viu que se tratava do serviço de limpeza.

Aliviado, voltou a atenção para o computador. Bem queria poder separar os dados sobre os pacientes a quem se fizeram os exames anuais de executivos, mas não conseguia imaginar como havia de fazê-lo. Em vez disso, teve de contentar-se Com as cruéis taxas de mortalidade. Estes gráficos comparavam a percentagem de mortes combinada Com a idade. Desta vez, a curva apresentava outro aspecto. Começava em baixo, depois, à medida que a idade aumentava, a percentagem de mortalidade subia. Mas nessa altura resolveu pedir ao computador para apresentar uma série desses gráficos durante os vários meses anteriores, mês a mês. Os resultados foram surpreendentes, particularmente durante os últimos dois meses. As curvas de mortalidade subiam repentinamente, a começar nos cinquenta anos.

Continuou a trabalhar mais meia hora Com o terminal de computador, tentando levar a máquina a separar os exames anuais de executivos. O que esperava ver, se o conseguisse, era um aumento rápido nas taxas de mortalidade para as pessoas de cinquenta anos e mais que tivessem factores de alto risco, tais como fumar, excesso de álcool, dietas pobres e falta de exercícios. Mas os dados não surgiram. Não fora programado para extrair em massa. Teria de pegar em cada nome individualmente, mas não tinha tempo para isso- Além disso, as terríveis curvas de taxa de mortalidade eram suficientes para corroborar as suas suspeitas. Sabia agora que tinha razão. Mas havia mais um processo para prová-lo. Com enorme constrangimento, saiu do gabinete e voltou ao carro.

Saindo do Riverway, dirigiu-se para o Roslindale. Quanto mais se aproximava, mais nervoso ficava. Não fazia ideia daquilo Com que ia deparar, mas suspeitava que não ia ser agradável. O seu destino era a Hartford School, a instituição gerida pelo GHP para crianças deficientes. Se Alvin Hayes tivera razão sobre a sua própria situação, devia ter tido razão sobre a do seu filho deficiente.

A Hartford School ficava aninhada no Arnold Arboretum, um cenário idílico de graciosas colinas arborizadas, campos e lagos. Jason cortou para o parque de estacionamento, que estava quase deserto, e parou a uns quinze metros da entrada principal. O elegante edifício estilo colonial tinha um aspecto ilusoriamente sereno, que não condizia Com as tragédias familiares que albergava. A deficiência profunda era uma matéria difícil, mesmo para os profissionais. Jason recordou em vivas imagens o exame que fizera a algumas crianças em visitas anteriores à escola. Muitas não tinham qualquer defeito físico, o que apenas tornava muito mais perturbador o seu baixo quociente de inteligência.

A porta da entrada principal estava fechada à chave, por isso teve de tocar à campainha e esperar. Um guarda da segurança, bastante corpulento, de uniforme azul já gasto, abriu a porta.

— Que deseja? — perguntou, sem vontade alguma de ser prestável.

— Sou médico — disse, e tentou passar pelo segurança.

— Desculpe...—começou, barrando-lhe a entrada—, não há visitas depois das seis, doutor.

— Não sou propriamente visita — retorquiu, puxando da carteira e apresentando o bilhete de identidade do GHP.

O guarda nem sequer se dignou olhar para o cartão.

— Não há visitas depois das seis — repetiu, acrescentando: — E sem excepções.

—’Mas eu... — começou Jason, mas ficou-se a meio da frase. Pela expressão do homem, percebeu que não valia a pena discutir.

— Venha de manhã — disse o guarda, batendo Com a porta. Desceu os degraus da frontaria e voltou-se, erguendo os olhos

para o edifício de cinco pisos. Era de tijolo, Com as guarnições das janelas em granito. Não ia desistir. Presumindo que o guarda estaria a observar, voltou para o carro e saiu dali. A uns cem metros, estrada abaixo, encostou e parou. Saiu, e Com alguma dificuldade atravessou o Arboretum e voltou à escola.

Circundou o edifício, seguindo pelas sombras. Havia escadas de salvação em todos os lados, menos na frontaria. Subiam até ao telhado. Infelizmente, como no prédio de Carol, nenhuma delas ficava ao nível do chão, e não conseguiu encontrar nada para onde pudesse subir para chegar ao primeiro degrau.

Do lado direito do edifício, notou um lanço de escadas que descia para uma porta fechada por dentro. Apalpando Com as mãos na obscuridade, descobriu que a porta tinha uma parte central em vidro. Subiu de novo as escadas e passou as mãos pelo chão até encontrar uma pedra do tamanho de uma bola de basebol.

Retendo a respiração, voltou à porta e partiu o vidro. Na quietude do fechar do dia, o ruído pareceu mais do que suficiente para acordar os mortos. Correu logo a esconder-se nas árvores próximas, observando o edifício. Como ninguém apareceu passado um quarto de hora, aventurou-se a voltar à porta. Com toda a cautela, meteu a mão e puxou o trinco. Não se ouviu alarme algum.

Durante a meia hora seguinte andou aos tropeções por uma grande cave, que lhe pareceu ser uma zona de armazenagem. Encontrou um escadote e ficou a pensar se não era o que precisava para chegar à escada de salvação, mas desistiu da ideia e continuou às cegas, à procura de uma luz. As mãos finalmente encontraram um interruptor e acendeu a luz.

Encontrava-se num depósito de manutenção, Com máquinas de cortar relva, pás e outro equipamento. Ao lado do interruptor existia uma porta. Com todo o cuidado abriu-a. Do outro lado havia uma divisão quente muito maior, que estava escassamente iluminada.

Avançando rapidamente, atravessou a segunda divisão e começou a subir por uma escada de ferro íngreme. Abriu a porta a que a escada dava acesso e percebeu imediatamente que chegara ao átrio de entrada. Pelas suas visitas anteriores sabia que as escadas para as enfermarias ficavam à sua direita. À sua esquerda havia um gabinete, onde se encontrava uma mulher de meia-idade, de uniforme branco tufado, sentada a uma secretária, a ler. Olhando para a entrada principal, viu os pés do guarda empoleirado numa cadeira. A cara do homem não se via do sítio onde estava.

Com o máximo cuidado possível, transpôs o limiar e fechou a porta da cave. Por um instante ficou à vista da mulher do gabinete, mas ela não desviou os olhos do livro. Esforçando-se por avançar lentamente, atravessou em silêncio o átrio e entrou no vão da escada. Soltou um suspiro de alívio quando se sentiu completamente fora da vista tanto da mulher como do homem. Subindo as escadas nas pontas dos pés, de dois em dois degraus, dirigiu-se para o terceiro piso, onde ficava a enfermaria dos rapazes dos quatro aos doze anos.

As escadas eram em mármore, e muito embora tentasse não fazer barulho, os seus passos ecoavam no espaço cavernoso onde antes reinara o silêncio. Acima dele existia uma clarabóia, que na altura se parecia Com um ónix preto incrustado no tecto.

No terceiro piso, abriu Com cuidado a porta de acesso. Recordava-se que havia um gabinete de enfermeiras envidraçado à direita, na extremidade de um longo átrio, e notou que, embora o corredor estivesse às escuras, o gabinete brilhava ainda de luz. Um empregado, tal como a mulher lá em baixo, estava ocupado a ler.

Olhando em diagonal viu, do outro lado, a porta da enfermaria. Notou que tinha uma grande janela central de vidro, Com rede por dentro. Depois de se certificar mais uma vez que o empregado não o via, atravessou em pontas dos pés o corredor largo e entrou na sala às escuras. Foi imediatamente confrontado Com um cheiro a mofo. Depois de aguardar um momento para ter a certeza de que o empregado não se apercebera de nada, começou à procura da luz. Para confirmar as suas suspeitas, teria de acendê-la, mesmo que isso significasse ser apanhado.

A sala, de tonalidade esverdeada, foi subitamente inundada de luz fluorescente, branca e crua. A enfermaria tinha uns quinze metros de comprimento, Com camas de ferro baixas alinhadas de ambos os lados, Com uma estreita passagem pelo meio. Havia janelas, mas ficavam perto do tecto. Na extremidade da sala havia instalações sanitárias cobertas a mosaico, Com uma mangueira enrolada para limpeza e uma porta Com ferrolhos para a escada de salvação. Jason caminhou pela coxia olhando para as placas Com os nomes fixados nas camas: Harrison, Lvons, Gessner... As crianças, perturbadas pela luz, começaram a sentar-se na cama, fixando o intruso Com olhos muito abertos e vazios, sem compreender.

Jason parou, invadido por uma sensação horrível de revolta, que se transformou em terror. Era pior do que imaginara. Lentamente, os olhos saltaram de um rosto lamentável para outro daquelas criaturas não desejadas. Em vez de terem o aspecto de crianças que eram, todas elas se apresentavam como centenários senis em miniatura, Com olhos pequenos como contas, pele seca enrugada e cabelo branco escasso, revelando manchas escamosas no couro cabeludo. Jason localizou o nome Hayes. Como os outros, o rapazinho parecia prematuramente envelhecido. Perdera a maior parte das pestanas e até as pálpebras inferiores pendiam, frouxas. Em lugar das pupilas via-se o reflexo branco de espessas cataratas. Excepto quanto à percepção da luz, o rapazinho estava cego.

Alguns deles começaram a sair das camas, mal se equilibrando nos membros definhados. Então, para seu horror, começaram a avançar para ele. Um deles começou a dizer debilmente as palavras «por favor», repetidamente, numa voz esganiçada. Logo os outros se lhe juntaram num coro terrível e medonho.

Jason recuou, Com medo de que lhe tocassem. O filho de Hayes saiu da cama e começou a tentar aproximar-se, os bracitos ossudos e descoordenados a fazer movimentos inúteis no ar.

O grupo de crianças foi obrigando Jason a recuar até à porta da enfermaria e já lhe puxava pelas roupas. Assustado e enjoado, empurrou a porta e saiu para o átrio. Depois fechou a porta, as crianças comprimindo os rostos como múmias contra o vidro, continuando a articular as palavras «por favor».

— Eh, você! — ouviu Jason em tom áspero atrás de si Voltando a cabeça viu o empregado parado em frente do seu

gabinete, a agitar o livro aberto, cheio de espanto.

— Que é que se passa? — gritou.

Jason, correndo, atravessou o átrio e chegou às escadas. Mas mal desceu alguns degraus, ouviu uma segunda voz vinda de baixo.

— Kevin? Que há?

Olhando por cima do corrimão, Jason viu o guarda no patamar do primeiro piso.

— Oh, macacos me mordam! — clamou o guarda, subindo as escadas, cacete na mão.

Mudando de direcção, Jason voltou para o terceiro piso. O empregado continuava parado à porta do seu gabinete, manifestamente confundido e incapaz de se mover, quando Jason atravessou o átrio a correr e voltou à enfermaria. Algumas das crianças vagueavam por ali sem destino; outras jaziam em colapso nas camas. Jason acenou-lhes freneticamente, abriu a porta e, quando o empregado e o guarda apareceram, foram imediatamente rodeados por um enxame de rapazes.

Tentaram abrir caminho por entre aquela pequena multidão, mas as crianças agarraram-se-lhes, a gritar o seu coro arrepiante e monótono de «por favor».

Chegando à porta de emergência na outra extremidade da sala, Jason baixou o puxador que, por razões de segurança, ficava a um metro e oitenta do chão. A princípio a porta não abriu. Era evidente que não fora aberta durante anos. Via-se que a pintura a tinha colado. Metendo-lhe o ombro, conseguiu finalmente abri-la. Saindo para a escuridão da noite, empurrou vários dos rapazes para dentro da enfermaria antes de fechar a pesada porta.

Sem perda de tempo, desceu pela escada de salvação. Já não era preciso ter cuidado Com o barulho. Estava no segundo piso quando a porta por cima dele se abriu. Mais uma vez ouviu os gritos agudos das crianças. Então sentiu a vidração de pesadas botas na escada.

Puxando por uma cavilha, fez descer o lanço final da escada Com um baque, quando bateu no asfalto do parque de estacionamento. Ainda antes de tocar no chão já ele estava a descer. Mesmo assim, o ligeiro atraso permitiu ao guarda que o perseguia reduzir a distância que os separava.

Uma vez no gramado, todavia, a sua capacidade de corrida em breve deixava o avantajado segurança muito para trás, e na altura em que chegou ao carro teve muito tempo para pôr o motor a trabalhar, engrenar e afastar-se. Pelo espelho retrovisor, mal viu o homem chegar à borda da estrada e agitar o punho fechado à luz de um candeeiro.

Jason teve dificuldade em controlar a aversão e fúria em relação ao que vira. Seguiu directamente para o quartel da polícia de Boston e de propósito deixou o carro em frente do edifício, numa zona de estacionamento proibido.

— Quero falar Com o detective Curran — disse ao agente que estava na recepção, e depois identificou-se.

O polícia, calmamente, olhou para o relógio e a seguir telefonou para o Departamento de Homicídios. Falou durante um minuto; depois, tapando o bocal do telefone, levantou os olhos.

— Serve outra pessoa?

— Não. Quero falar Com Curran. E agora, se faz favor.

O polícia falou mais uns tantos minutos ao telefone, depois desligou.

— O detective Curran não está disponível, senhor.

— Acho que ele fala comigo. Mesmo se não estiver de serviço.

— Não é esse o problema — replicou o polícia. — O detective Curran está a tratar de um duplo homicídio em Revere. Deve estar a chegar dentro de uma hora, mais ou menos. Se quiser, pode esperar ou deixar o seu número. É Com o senhor.

Pensou por um momento Estivera a pé a maior parte da noite, os nervos desfeitos, e a ideia de um banho de chuveiro, roupa limpa e comida teve muita força. Além disso, logo que se encontrasse Com Curran, iria estar ocupado durante algum tempo. Deixou o número do telefone de casa, pedindo que Curran lhe falasse logo que possível.

O voo da United provindo de Seattle tivera um atraso considerável, e na altura em que o avião aterrou em Logan, Juan Díaz estava de muito mau humor. Nunca se saíra tão mal de uma tarefa desde que atingira o indivíduo errado em Nova Iorque. Esse fiasco era desculpável, mas este não. Estivera a escassos segundos de resolver a questão tanto do médico como da puta do clube nocturno, quando Jason, um amador, lhe levou a melhor. Não tinha desculpa e dissera isso mesmo ao contacto. Sabia que tinha de redimir-se, ou outra coisa qualquer, ansiava por isso. Logo que saiu do avião, foi ao telefone. Responderam ao segundo toque.

Jason cobriu a curta distância que separava o quartel da polícia da Louisbourg Square tentando apagar a terrível imagem das crianças da escola envelhecidas prematuramente. Nem sequer queria pensar em Hayes nem na sua descoberta enquanto não estivesse em segurança na presença de Curran.

Quando chegou ao prédio onde morava deu duas ou três voltas ao quarteirão para se certificar de que ninguém o estava a vigiar Finalmente, convencido de que o guarda de segurança da escola não olhara sequer para o cartão de identidade, e por isso não tinha ideia alguma de quem ele era, estacionou o carro, levou a bagagem para o apartamento e abriu as luzes. Para alívio seu, tudo se encontrava como deixara. Quando deu uma olhadela para a praça, parecia tão calma como sempre.

No momento em que ia para tomar banho de chuveiro, lembrou-se de uma outra pessoa a quem devia falar, para além do detective. Ligou para Shirley, que só respondeu ao oitavo toque. Pelo auscultador chegaram-lhe vozes animadas a marcar o ambiente

— Jason!—exclamou. — Quando voltaste de férias?

— Hoje à noite.

— Que se passa? — perguntou, ao perceber-lhe cansaço e preocupação na voz.

— Grandes complicações. Acho que já sei qual foi a descoberta de Hayes e a maneira como estava a ser mal utilizada. Envolve o GHP numa extensão que nem sequer se pode imaginar.

— Sim?

—’Não convém falar pelo telefone.

— Então vem até cá. Tenho convidados, mas livro-me deles.

— Estou à espera para falar Com Curran, dos Homicídios.

— Compreendo... Já estiveste em contacto Com ele?

— Está a tratar de um caso, mas deve telefonar dentro em pouco.

— Então por que não vou eu a tua casa? Deixaste-me agora realmente aterrada.

— Bem-vinda ao clube — retorquiu Com uma risada amarga.— Talvez seja bom que venhas. Provavelmente, devias estar presente quando falar Com Curran.

—’vou já daqui a nada.

— Oh, outra coisa. Lembras-te de quem é o actual director médico da Hartford School?

— O Dr. Peterson, creio... Amanhã já posso ter a certeza.

— Peterson não estava estreitamente ligado aos estudos clínicos de Hayes? — perguntou, recordando-se subitamente de que Peterson era o médico que fizera a Hayes o exame anual.

— Acho que sim. Isso é importante?

— Não tenho a certeza. Mas se vens, vem depressa. Curran deve estar a telefonar a todo o momento.

Desligou, e quando se dispunha de novo a tomar banho, pensou que Carol também podia estar em perigo. Pegando outra vez no telefone, marcou o número dela.

— Quero que fique bem assente que vai ficar em casa — disse no momento em que ela atendeu. — Não estou a brincar. Não responda à porta... não saia.

— Mas o que é agora?

— A conspiração de Hayes é pior do que se podia imaginar.

— Parece-me aflito, Jason.

Apesar de estar como estava, sorriu. Às vezes Carol falava como um psiquiatra.

— Não estou aflito, estou tremendamente apavorado. Mas dentro em pouco devo estar a conversar Com a polícia.

— Diga-me o que se passar, sim? — pediu Carol.

— Prometo.

Desligou e finalmente entrou na casa de banho e pôs o chuveiro a correr.

 

O besouro de chamada soou e Jason correu escadas abaixo. Shirley sorria-lhe do outro lado do vidro lateral da porta de entrada. Afastou-se para ela entrar, admirando-lhe como sempre o vestuário impecável. Esta noite trazia uma minissaia preta de cabedal e um casaco vermelho de camurça a três quartos.

— Curran já telefonou? — perguntou, enquanto subiam para o apartamento.

— Ainda não — disse, fechando cuidadosamente a porta de dupla fechadura.

— Agora põe-me ao corrente — disse Shirley, tirando o casaco. Por debaixo trazia uma camisola de caxemira. Sentou-se na borda do sofá, as mãos cruzadas no regaço, e esperou.

— Não vais gostar disto — começou Jason, sentando-se ao seu lado.

— Já fiz por me preparar. Avança.

— Primeiro, deixa-me dar-te um pouco de pano de fundo. Se não compreendes a actual pesquisa sobre o envelhecimento, o que te quero contar talvez não faça muito sentido. — Nestes últimos anos — continuou —, os cientistas como Hayes têm gasto muito tempo a tentar tornar mais lento o processo de envelhecimento. A maior parte do seu trabalho tem-se concentrado nas células, em culturas de células, embora se tenha feito algum trabalho Com ratazanas e ratos. Grande parte dos cientistas concluiu que o envelhecimento é um processo natural Com base genética regulada por factores neuroendócrinos, de imunição e dos humores.

— Já não sei onde estou — admitiu Shirley, erguendo as mãos como que num gesto de rendição.

— Então... que tal uma bebida? — sugeriu, pondo-se de pé.

— Que vais tomar?

— Uma cerveja. Mas tenho vinho, «material pesado», é só dizeres.

— Uma cerveja então...

Jason foi à cozinha, abriu o frigorífico e tirou duas cervejas Coors frias.

— Vocês, os médicos, são todos os mesmos — queixou-se Shirley, tomando um golo. — Fazem parecer tudo complicado.

— Mas é complicado — retorquiu, recostando-se. — A genética molecular diz respeito à base fundamental da vida. A investigação neste campo é assustadora, não só porque os cientistas podem acidentalmente criar uma nova bactéria ou vírus mortal. É igualmente assustadora se tudo corre bem, porque estamos a jogar Com a própria vida. A tragédia de Hayes não foi falhar; o problema é que ele teve êxito.

— Que descobriu ele?

— Só um momento — pediu, tomando um longo trago de cerveja e limpando a boca Com as costas da mão. — Deixa-me começar por outro lado. Todos nós atingimos a puberdade mais ou menos ao mesmo tempo, e se não surge a doença ou algum acidente, todos nós envelhecemos e morremos mais ou menos no mesmo lapso de tempo.

Shirley fez que sim Com um gesto de cabeça.

— Muito bem — continuou, inclinando-se para a frente. — Isto acontece porque o nosso corpo está geneticamente preparado para seguir um horário interno. À medida que nos desenvolvemos, há uns genes que ligam, isto é, começam a sua actividade, e outros que desligam- Era isto que fascinava Hayes. Andara a estudar a maneira como os sinais dos humores provindos do cérebro controlam o crescimento e a maturação sexual. Isolando uma após outra destas proteínas humorais, descobriu o que faziam aos tecidos periféricos. Esperava descobrir o que levava as células ou a começarem a dividir-se ou a pararem de dividir-se.

— Isso entendo eu. Foi uma das razões por que o contratámos. Tínhamos esperança que desse um avanço importante no tratamento do cancro.

— Agora deixa-me divagar por momentos... Havia outro investigador chamado Denckla, que andava a fazer experiências sobre a maneira de retardar o processo de envelhecimento. Tirou a glândula pituitária às ratazanas, e depois de substituir as hormonas necessárias, descobriu que as ratazanas tinham passado a ter um lapso de vida aumentado.

Parou de falar e olhou para Shirley na expectativa.

— Achas que devo dizer alguma coisa? — perguntou ela.

— As experiências de Denckla sugerem-te alguma coisa?

— Por que é que tu não me dizes simplesmente?

— Denckla deduziu que a pituitária não só segrega as hormonas do crescimento e- a da puberdade, mas também segrega as hormonas do envelhecimento. Denckla chamou-lhe a hormona da morte.

Shirley riu Com nervosismo.

— Isso parece uma coisa boa.

— Bem, eu creio que enquanto Hayes andava a investigar os factores de crescimento, tropeçou na tal hormona da morte de Denckla. Era isso que queria dizer ao falar numa descoberta irónica. Ao procurar estimulantes do crescimento, encontra uma hormona que causa um rápido envelhecimento e a morte.

—>Que aconteceria se dessem esta hormona a alguém?

— Se fosse dada isoladamente, provavelmente não aconteceria muita coisa. O indivíduo podia experimentar alguns sintomas de envelhecimento, mas a hormona seria provavelmente metabolizada e o seu efeito limitado. Mas Hayes não estava a estudar a hormona isoladamente. Ele compreendeu que da mesma maneira que a segregação da hormona do sexo e do crescimento se põe em actividade, também tinha de haver um factor que faria o mesmo Com a hormona da morte. Sentiu-se imediatamente atraído para o ciclo de vida do salmão, que morre poucas horas depois de desovar. Acredito que ele tenha colhido cabeças de salmão e isolado o factor desencadeante da hormona da morte a partir dos miolos. Era este, creio eu, o trabalho que fazia por sua conta na Gene, Inc. Logo que isolou o factor desencadeante, mandou Helene reproduzi-lo em quantidade pelas técnicas do ADN recombinante no seu laboratório do GHP.

— Por que razão queria Hayes produzi-lo?

— Penso que esperava desenvolver um anticorpo monoclonal que impediria a segregação da hormona da morte e detinha o processo de envelhecimento.

De súbito compreendeu o que Hayes pretendia dizer quando se referia à sua descoberta como algo de que a beleza iria beneficiar. Iria conservar o bom aspecto da juventude, como de Carol.

— Que aconteceria se dessem o factor desencadeante a alguém?

— Iria pôr em actividade o gene da morte, desencadeando a hormona do envelhecimento tal qual como no salmão... praticamente Com os mesmos resultados. O indivíduo envelhecia e morria em três ou quatro semanas. E ninguém saberia porquê. E isto leva-me ao pior de tudo. Acredito que alguém obteve a hormona criada artificialmente, que Helene produzia no nosso laboratório, e começou a dá-la aos nossos doentes. Quem quer que seja deve ser louco,., mas é isso que, penso eu, tem estado a acontecer. Hayes apercebeu-se disso... provavelmente quando visitou o filho... e ele próprio recebeu o factor de envelhecimento. Se não tivesse morrido nessa noite, acho que o teriam morto de qualquer outra maneira — finalizou, arrepiando-se todo.

— Como descobriste? — perguntou Shirley num sussurro.

— Segui a linha experimental de Hayes. Quando Helene foi assassinada, calculei que Hayes dissera a verdade tanto a respeito da sua descoberta como sobre o facto de que alguém o queria matar.

—’Mas Helene foi violada por um intruso desconhecido.

— Com certeza. Mas apenas para despistar a polícia quanto ao motivo do assassínio. Sempre senti que ela sabia mais do que dizia sobre o trabalho de Hayes. Quando soube que eles tinham um caso entre si, tive a certeza.

— Mas quem havia de querer matar os nossos doentes? — perguntou em tom desesperado.

— Um sociopata. O mesmo género de fulano que põe cianeto no tylenol. Esta noite, na clínica, pedi ao computador para apresentar as curvas de sobrevivência e as curvas de mortalidade. Os resultados eram inacreditáveis. Tem havido um aumento significativo na taxa de mortalidade no GHP em relação aos pacientes Com mais de cinquenta anos que são doentes crónicos ou que têm estilo de vida de alto risco. — De súbito, deteve-se. — Raios!

— Que é? — perguntou Shirley, olhando à volta, nervosa, como se o perigo estivesse mesmo ao voltar da esquina.

— Esqueci-me de uma coisa. Fiz as curvas mês a mês... não as observei médico a médico.

— Achas que está um médico por detrás disto? — perguntou, incrédula.

— Deve estar. Um médico... ou talvez uma enfermeira. O factor desencadeante seria uma proteína de polipeptide. Teria de ser injectada. Se fosse administrada oralmente, os sucos gástricos desintegrá-la-iam.

— Oh meu Deus — fez Shirley, pondo a cabeça entre as mãos. — E pensava eu que as complicações já tinham passado. — Inspirou profundamente e levantou os olhos. — Não há uma possibilidade de estares enganado, Jason? Talvez o computador cometesse um erro. Deus sabe, o processamento de dados falha bastantes vezes.

Jason pôs-lhe a mão no ombro. Sabia que o império dela, ganho a tanto custo, estava prestes a ruir.

— Não estou enganado — disse suavemente. — Também fiz outra coisa esta noite. Vi o filho de Hayes em Hartford.

— E...?

— Um horror. Devem ter dado o factor desencadeante a todos os miúdos da enfermaria onde ele está. Segundo parece, actua mais lentamente em indivíduos prepubescentes, por isso os rapazes continuam vivos. Deve haver um género de competição hormonal Com a hormona do crescimento. Mas todos eles têm o aspecto de centenários.

Shirley arrepiou-se toda.

— É por isso que queria saber o nome do actual director médico.

— Achas que Peterson é responsável?

— Teria de ser um primeiro suspeito.

— Talvez se fôssemos à clínica e verificássemos os dados do computador. .. podíamos até passar de novo as tuas curvas de sobrevivência médico a médico.

Antes de responder, o besouro de chamada da porta quebrou o silêncio e fê-los dar um salto a ambos. Jason pôs-se de pé, o coração a matraquear. Shirley deixou bater o copo da bebida na mesa.

— Quem poderá ser agora? — perguntou ela.

— Não sei — respondeu, tendo em mente que dissera a Carol para não sair de casa e que Curran teria telefonado antes de aparecer.

— Que fazemos? — perguntou Shirley nervosa.

— vou lá abaixo dar uma olhadela.

— Será boa ideia?

— Tens melhor? Shirley abanou a cabeça.

— Eu simplesmente não abria a porta.

— Que achas tu que sou... maluco? Oh... e mais uma coisa que não te disse. Alguém tentou matar-me.

— Não! Onde?

— Numa remota estalagem a leste de Seattle. Abriu a porta do apartamento.

— Talvez fosse melhor não ires lá abaixo — avisou, preocupada.

— Tenho de descobrir quem é.

Jason saiu para o patamar e olhou lá para baixo, para a porta de entrada. Notou uma silhueta recortada num dos painéis de vidro.

— Tem cuidado — disse Shirley.

Jason começou a descer as escadas em silêncio. Quanto mais se aproximava, mais se alongava pelo átrio a sombra do indivíduo. Estava diante das placas dos nomes e premia zangado o botão do besouro de chamada. De repente, rodou sobre si e comprimiu a cara contra o vidro. Por um instante, a cara de Jason e a do estranho estiveram a escassos centímetros uma da outra. Não havia que enganar-se naquela cara maciça de olhos pequenos e apertados. O visitante era Bruno, o guarda-costas. Jason voltou-se e voou escadas acima, enquanto a porta matraqueava furiosamente atrás de si.

— Quem é? — perguntou Shirley.

—Um bandido musculado que conheço — esclareceu, dando volta às duas fechaduras da porta —, e a única pessoa que sabia que eu ia a Seattle. — Esse pormenor acabava de ocorrer-lhe Com força aterradora. Correu para o seu gabinete e pegou no telefone. — Raio! — exclamou depois de algum tempo. Bateu Com o auscultador e tentou o telefone do quarto. Também não ouviu sinal algum. — Os telefones estão cortados — disse, mal acreditando nas palavras.

Falava para Shirley, que o seguira, pressentindo o pânico em que ele se encontrava.

— Que vamos fazer?

— Vamos embora. Não fico nesta ratoeira.

Esquadrinhando no armário do átrio, encontrou a chave do portão que dava acesso à viela que ia dar à rua de West Cedar. Abriu a janela do quarto, subiu para a escada de salvação e ajudou Shirley a fazer o mesmo. Um atrás do outro, desceram até ao pequeno jardim, onde os vidoeiros brancos sem folhas se recortavam como fantasmas na obscuridade. Uma vez aí, correram para o portão, onde Jason atabalhoadamente procurou meter a chave na fechadura. Quando saíram para a rua estreita, esta encontrava-se sossegada e vazia, a obscuridade cortada a espaços pelos candeeiros a gás de Beacon Hill. Não se via vivalma.

— Vamos! — disse Jason, e começou a descer pela West Cedar até à Charles.

— O meu carro está lá atrás na Louisbourg Square — arfou Shirley, esforçando-se por o acompanhar.

— O meu também. Mas é claro que não podemos voltar atrás. Vamos no carro de um amigo meu.

Na Charles havia umas quantas pessoas em frente do Eleven. Jason pensou em telefonar do centro comercial, mas agora que se encontrava fora do seu apartamento, já não tinha tanto a sensação de ratoeira. Além disso, queria voltar a consultar o computador do GHP antes de falar Com Curran.

Desceram pela Chestnut Street, Com os seus velhos edifícios federais de ambos os lados. Diversas pessoas andavam a passear os cães, facto que fez Jason sentir-se mais seguro. Mesmo antes da Brimmer Street, entrou numa garagem de estacionamento, onde deu dez dólares ao empregado e lhe pediu para ir buscar o carro que pertencia a um amigo. Por sorte, o homem reconheceu-o e trouxe-lhe um BMW azul.

— Acho que seria uma boa ideia irmos para minha casa — disse Shirley entrando para o carro. — Podemos telefonar de lá a Curran e dizer-lhe onde te encontras.

— Primeiro quero ir outra vez à clínica.

Não havendo praticamente trânsito algum, chegaram ao hospital em menos de dez minutos.

— Demoro só um minuto — disse Jason, parando o carro à entrada. — Queres entrar ou esperas aqui?

— Não sejas tolo — retorquiu, abrindo a porta do seu lado. — Também quero ver esses gráficos.

Mostraram os cartões de identificação ao guarda de segurança e tomaram o elevador, muito embora fossem para o primeiro piso.

O serviço de limpeza havia deixado a clínica em excelentes condições — revistas nas estantes, cestos de papéis vazios, o pavimento a brilhar Com cera recente. Jason dirigiu-se logo para o seu gabinete, sentou-se à secretária e pôs o terminal do computador em acção.

— vou telefonar a Curran — informou Shirley, afastando-se na direcção do posto das enfermeiras.

Jason indicou Com um gesto que a ouvira. Já se encontrava enfronhado nos dados do computador. Primeiro pediu os números de identificação dos vários médicos da clínica. Estava particularmente interessado no de Peterson. Quando ficou Com todos os números, deu instruções ao computador para separar a população doente do GHP por médicos e depois para começar a fazer curvas de mortalidade sobre cada grupo durante os últimos dois meses, meses que tinham mostrado as maiores alterações, conforme se via pelas listas de todos os pacientes. Esperava que os doentes de Peterson mostrassem ou uma taxa de mortalidade mais elevada ou mais baixa, acreditando que para um psicopata se tocavam os extremos, ou muito mais experiências ou muito menos.

Shirley voltou ao gabinete e ficou a observá-lo a tratar dos dados.

— O teu amigo Curran ainda não regressou. Telefonou para a esquadra a dizer que talvez estivesse ocupado ainda mais um par de horas.

Jason fez que sim Com a cabeça. Estava mais interessado nas curvas que iam surgindo. Foram precisos quinze minutos para fazer todos os gráficos. As folhas continuavam, e ele separava-as e alinháva-as.

— Parecem todas iguais — comentou Shirley, inclinando-se sobre o ombro dele.

— Praticamente — admitiu. — Até de Peterson. Não o iliba de envolvimento, mas também não nos ajuda.

Olhou para o computador, tentando imaginar quaisquer outros dados que pudessem ter utilidade. Deixou um espaço em branco.

— Bem. de momento são as ideias brilhantes que temos. A polícia terá de começar por aqui.

— Vamos então. Pareces exausto.

— E estou — admitiu, levantando-se Com esforço evidente.

— São estes os gráficos que fizeste antes? — perguntou, apontando para o monte de folhas impressas junto ao terminal.

Confirmou Com um gesto de cabeça.

— E se os levássemos? Gostava que mós explicasses. Jason meteu os papéis num grande sobrescrito castanho.

— Dei o meu número de telefone lá para o gabinete de Curran — disse Shirley. — Acho que é o melhor lugar para ficarmos à espera. Já comeste alguma coisa?

— Qualquer coisa horrível no avião, mas parece que isso já foi há dias.

— Tenho um resto de frango frio.

— Que maravilha!

Quando chegaram ao carro, perguntou-lhe se não se importava de conduzir para poder descansar e pensar um pouco.

— De modo nenhum — disse ela, pegando nas chaves. Entraram no carro, e ele atirou o sobrescrito para o banco de

trás. Apertou o cinto de segurança, recostou-se e fechou os olhos. Deixou o espírito vaguear sobre o assunto, considerando as várias maneiras como seria possível dar o factor desencadeante aos doentes. Uma vez que não podia ser administrado oralmente, perguntava-se como poderia o criminoso tê-lo injectado aos executivos que faziam os seus exames anuais. Tirava-se o sangue para as análises laboratoriais, mas os tubos de vácuo não davam possibilidade de se injectar substância alguma. Para os doentes internados, a história era diferente — estavam sempre a levar injecções e fluidos intravenosos.

Quando pararam em frente da casa de Shirley, não havia chegado a nenhuma conclusão plausível. Ao sair do carro, cambaleou e ia quase caindo. O pequeno descanso aumentara-lhe a fadiga. Com certo esforço retirou o sobrescrito do banco de trás.

— Fica à vontade — disse Shirley, conduzindo-o para a sala comum.

— Primeiro vê se o Curran telefonou ou não.

— vou já saber num momento. Por que não tomas uma bebida enquanto preparo aquele frango? Vá!

Demasiado cansado para discutir, foi até ao bar e deitou um pouco de Dewar’s em cima de gelo, depois foi sentar-se no sofá. Enquanto esperava por Shirley, voltou a considerar as possibilidades de administrar o factor desencadeante. Não havia muitas hipóteses. Se não foi injectado, tinha de ser por supositórios rectais ou alguma outra forma de contacto directo Com a mucosa. A maioria dos executivos que faziam exames anuais completos recebia um clister de bário, e ao lembrar-se deste caso pensou de si para si se não seria esta a resposta.

Começou a beberricar o uísque quando Shirley entrou Com o frango frio acompanhado de salada.

— Posso arranjar-te uma bebida? Shirley pousou a bandeja na mesa de café.

— Por que não? — disse, acrescentando: — Não te levantes. Eu vou buscar.

Jason viu-a juntar uma gota de vermute ao vodca, e foi então que se lembrou das gotas para os olhos. Todos os executivos que faziam os tais exames eram submetidos a uma análise completa aos olhos, o que incluía gotas dos olhos para dilatar-lhes as pupilas. Se alguém desejasse introduzir o factor desencadeante do gene da morte, a mucosa do olho absorvê-lo-ia perfeitamente. Mais ainda, uma vez que o factor desencadeante podia ser introduzido secretamente na medicação regular para os olhos, qualquer médico ou técnico inocente podia involuntariamente administrar as gotas fatais.

Começou a sentir a cabeça a latejar. O facto de encontrar uma explicação plausível daquilo que poderia ter sido a chave de tudo tornava repentinamente real a possibilidade de um assassínio em massa psicopático. Viu Shirley voltar do bar a agitar a bebida e decidiu poupá-la, para já, a esta novíssima revelação.

— Alguma mensagem de Curran?

— Ainda não.

Deu por ela a olhá-lo de maneira estranha e por instantes pensou se ela não seria capaz de ler-lhe o pensamento.

— Gostava de saber uma coisa — disse ela, hesitante. — Este suposto factor desencadeante da hormona da morte não faz parte de um processo natural?

— Faz. É por isso que a patologia não tem ajudado muito. Todas as vítimas, incluindo Hayes, morreram daquilo a que se chama causas naturais. O factor desencadeante pega simplesmente no gene activado na puberdade e liga-o a toda a força.

— Queres dizer que começamos a envelhecer na puberdade? — perguntou Com tristeza.

— É a teoria actual. Mas claro que é gradual, ganhando velocidade apenas mais tarde, à medida que diminuem os níveis da hormona do crescimento e das hormonas sexuais O factor desencadeante, segundo parece, põe em actividade o gene da hormona da morte imediatamente, e num adulto, sem os elevados valores da hormona do crescimento para o conter, causa rápido envelhecimento, tal e qual como no salmão. O meu cálculo é de cerca de três semanas. O factor limitativo parece ser o sistema cardiovascular. É aquilo que cede em primeiro lugar e causa a morte. Mas também podiam ser outros sistemas de órgãos.

— Mas o envelhecimento é um processo natural... —repetiu ela.

— Envelhecer faz parte da vida — concordou. — No aspecto evolutivo é tão importante como o crescimento Sim, é um processo natural. — Soltou uma falsa risada. — Hayes tinha Com certeza razão quando descreveu a sua descoberta como irónica. Com toda a sua preocupação em abrandar o envelhecimento, o seu trabalho sobre o crescimento teve como resultado um processo de aceleração.

— Se o envelhecimento e a morte têm um valor evolutivo — insistiu Shirley—, talvez tenham também um valor social.

Olhou para ela Com uma sensação crescente de alarme. Desejava não estar tão fatigado. O cérebro enviava-lhe sinais de perigo, que, por excessivo cansaço, sentia dificuldade em descodificar. Tomando o seu silêncio por concordância, Shirley continuou a exposição.

— Deixa-me pôr a questão de outro modo. A medicina em geral é defrontada Com o desafio de proporcionar cuidados de qualidade a baixo custo. Mas por causa do crescente índice de longevidade, os hospitais estão atolados de uma população idosa, que mantêm viva a alto preço, esgotando não só os recursos económicos, mas também a energia do pessoal médico. O GHP, por exemplo, estava muito bem quando começou, porque o maior número dos seus subscritores era jovem e saudável. Agora, vinte anos depois, são todos mais velhos e requerem muito mais cuidados de saúde. Se se acelerasse o envelhecimento em certas circunstâncias, seria talvez melhor, tanto para os pacientes como para os hospitais. — O ponto importante — continuou Shirley Com ênfase —, é que os velhos e os enfermos devem envelhecer e morrer rapidamente para evitar o sofrimento e também a excessiva utilização de cuidados médicos dispendiosos.

À medida que o seu cérebro entorpecido começava a compreender o raciocínio dela, ia-se sentindo paralisado de horror. Embora quisesse gritar que o que ela sugeria era crime legalizado, deu por si quedo e mudo na borda do sofá gelado de medo qual ave ameaçada por serpente venenosa

— Jason, fazes ideia de quanto custa manter as pessoas vivas durante os seus últimos meses de vida num hospital? — continuou, de novo tomando o silêncio dele por aquiescência. — Fazes? Se a medicina não gastasse tanto Com os moribundos, poderia fazer muito mais para ajudar os vivos. Se o GHP não estivesse atolado de pessoas de meia-idade destinadas a ficarem doentes por causa do seu estilo de vida pouco saudável, pensa no que podíamos fazer pelos jovens. E não há pessoas que deixam de cuidar de si próprias, como os fumadores e bebedores inveterados ou os que usam drogas, acelerando voluntariamente a própria morte? É assim tão errado apressar-lhes a morte para que não sejam um fardo para o resto da sociedade?

A boca finalmente abriu-se-lhe em protesto, mas não conseguiu encontrar as palavras apropriadas para refutá-la. Tudo quanto pôde fazer foi abanar a cabeça, incrédulo.

— Não posso acreditar que não aceites o facto de que a medicina não consegue sobreviver por mais tempo sob o fardo esmagador dos problemas crónicos de saúde apresentados pelas pessoas fisicamente incapazes... aqueles verdadeiros doentes que passaram trinta ou quarenta anos a abusar do corpo que Deus lhes deu.

— Não me cabe a mim ou a ti tomar essa decisão — gritou por fim.

— Mesmo que o processo de envelhecimento seja simplesmente acelerado por uma substância natural?

— Isso é assassínio! — exclamou, pondo-se de pé Com dificuldade. Shirley levantou-se também, dirigindo-se rapidamente para as

portas duplas que davam acesso à sala de jantar.

— Entre, Sr. Díaz — disse, afastando as portas. — Fiz o que pude. Jason sentiu a boca seca quando se voltou para enfrentar o

homem que vira na Estalagem do Salmão. A cara morena e atraente de Juan Díaz brilhava de prazer. Trazia uma pequena automática alemã Com um silenciador do tamanho de um cigarro.

Jason, atrapalhado, recuou até as costas lhe baterem na parede mais distante. Os olhos passaram da arma para a cara surpreendentemente bem parecida do assassino e para Shirley, que o olhava Com tanta calma como se estivesse numa reunião da direcção.

— Desta vez não há toalha — disse Díaz, mostrando os dentes brancos como perfeita estrela de cinema. Avançou para Jason, pondo-lhe o cano da arma a escassos centímetros da cabeça. — Adeus — disse Com um gesto amigo de cabeça.

 

— Sr. Díaz — chamou Shirley.

— Sim... — respondeu Juan sem desviar os olhos de Jason.

— Não o mate se ele o não levar a isso. Será melhor tratar dele como fizemos Com o Sr. Hayes. Trago-lhe amanhã o material da clínica.

Jason soltou a respiração. Não se apercebera que estava a retê-la. Juan deixou de sorrir. As narinas dilataram-se-lhe; estava desiludido e zangado.

— Acho que seria mais seguro se o matasse já, Miss Montgomery.

— Não me interessa o que você acha... e sou eu que estou a pagar-lhe. Agora vamos levá-lo para a cave. E nada de parvoíces... sei o que estou a fazer.

Juan deslocou a pistola de maneira a tocar-lhe na têmpora Com o metal frio. Jason sabia que o homem esperava a mínima desculpa para disparar; petrificado de medo, ficou completamente imóvel.

— Vamos! — chamou Shirley do átrio de entrada.

— Ande!—mandou Juan, afastando a pistola.

Jason caminhou Com certa dificuldade, os braços hirtos ao longo do corpo. Juan seguia atrás, tocando-lhe Com a pistola nas costas uma ou outra vez.

Shirley abriu a porta do vão da escada, em frente da entrada principal. Jason viu um lanço de escadas que dava para a cave.

Quando Jason se aproximou, tentou apanhar o olhar de Shirley, mas ela afastou-se. Então passou a porta e começou a descer, Juan mesmo atrás dele.

— Os médicos espantam-me — comentou Shirley abrindo a luz da cave e fechando a porta atrás de si. — Pensam que exercer medicina é apenas uma questão de ajudar os doentes. A verdade é que, se não se fizer alguma coisa em relação aos indivíduos cronicamente sem saúde, não haverá dinheiro ou potencial humano para ajudar os que realmente podem recuperar.

Jason olhou-lhe para o rosto calmo e bonito, para as roupas bem feitas: não podia acreditar que se tratava da mesma mulher que sempre admirara.

Ela interrompeu-se para guiar Juan por um longo corredor até uma pesada porta de carvalho. Metendo-se por entre Juan e Jason, abriu a porta Com uma chave e premiu o interruptor, inundando de luz uma grande divisão quadrada. Empurrado lá para dentro, Jason viu o vão de uma porta à esquerda, uma bancada de trabalho e outra pesada porta à direita, fechada. Depois a luz apagou-se, a porta fechou-se Com uma pancada, e ficou rodeado de total escuridão.

Durante alguns minutos, ficou parado, imobilizado pelo choque e por não poder ver nada. Ouvia pequenos sons: água a correr pelos canos, o sistema de aquecimento a matraquear, passos no andar de cima. A escuridão permanecia completa: nem sequer podia dizer se tinha os olhos fechados ou abertos.

Quando finalmente conseguiu mexer-se, foi até à porta por onde entrara. Agarrou no puxador e tentou rodá-lo. Puxou a porta. Não havia dúvida, era bem segura. Percorrendo a ombreira da porta Com as mãos, procurou as dobradiças. Mas desistiu quando se lembrou que a porta abria para o outro lado.

Deixando a porta, procurou avançar lateralmente, dando pequenos passos e passando as mãos cuidadosamente pela parede. Chegou ao canto e rodou noventa graus. Com passos muito curtos continuou a avançar lentamente, até que sentiu o vão da porta aberta. Penetrando Com cuidado, procurou um interruptor. À esquerda, mais ou menos à altura do peito, encontrou um. Premiu-o. Nada aconteceu.

Avançando para a divisão lateral, começou a apalpar as paredes, tentando certificar-se das dimensões. Os dedos bateram num objecto de metal na parede, cuja parte frontal era de vidro. Apalpando para baixo, à altura da cintura, tocou numa bacia. Para a direita, encontrou uma sanita. A divisão tinha apenas metro e meio por dois metros.

Voltando à divisão principal, continuou o seu lento circuito. Encontrou uma segunda divisão pequena Com uma porta fechada, mesmo do -outro lado da casa de banho. Quando abriu a porta, o nariz informou-o de que se tratava de um armário de cedro. Lá dentro sentiu diversas malas Com roupas.

De regresso à sala principal, chegou a outro canto, e voltou outra vez. A uns doze passos curtos, bateu levemente contra a bancada de trabalho que sobressaía da parede cerca de um metro. Rodeando a extremidade da bancada apalpou por debaixo e encontrou armários. A bancada, calculou, tinha cerca de três a quatro metros de comprimento. Para lá da bancada, voltou à parede, encontrando prateleiras Com o que lhe pareceu serem latas de tinta. Para lá das prateleiras ficava outro canto.

No meio da quarta parede, veio dar Com outra pesada porta, que estava muito bem fechada. Sentiu uma fechadura, mas era preciso uma chave. Não havia dobradiças. Continuando a avançar chegou ao quarto canto. Depois de alguns minutos, voltou à entrada.

Pondo-se de joelhos, apalpou o pavimento. Era de cimento. De novo em pé, tentou pensar no que poderia fazer mais. Não lhe surgiram ideias. De repente, teve uma extraordinária sensação de medo mortal, como se estivesse a ser sufocado. Nunca sofrera de claustrofobia, mas sentiu-a, como, uma pressão esmagadora. «SOCORRO!», gritou, mas apenas para receber o eco da sua voz. Perdendo o controlo, procurou, furioso, às apalpadelas, a porta de entrada e bateu nela Com os punhos fechados. «POR FAVOR!», gritou. Bateu até ter consciência da dor nas mãos. Parou abruptamente Com um estremeção e apertou as mãos magoadas contra o peito. Inclinando-se para a frente tocou na porta Com a testa, e finalmente surgiram as lágrimas.

Não se lembrava de ter chorado desde criança. Mesmo depois da morte de Danielle. E durante todos esses anos em que não cedeu, essa emoção surgia agora, quando se via de rastos na escuridão da cave de Shirley. Perdeu todo o controlo e lentamente foi-se abatendo até ao chão, onde se enroscou em frente da porta como um cão aprisionado, afogado nas próprias lágrimas.

Ficou surpreendido Com a ferocidade da sua reacção emocional. E depois de soluçar durante uns dez minutos, começou a recompor-se Sentiu-se embaraçado consigo próprio, pois sempre acreditara que tinha mais autocontrolo. Finalmente, sentou-se de costas contra a porta e limpou as lágrimas das faces naquela escuridão.

Em vez de se render totalmente ao desespero, pensou no lugar em que se encontrava. Tentou calcular as dimensões e fazer a localização das coisas que encontrara no seu circuito de exploração. Começou a perguntar-se se não haveria outros interruptores de luz. Pondo-se de pé, voltou lentamente até à segunda porta que lhe ficava à direita. Quando aí chegou, apalpou a parede de ambos os lados, mas não havia interruptor algum.

Atravessando a cave Com as mãos à frente, a tactear, voltou à casa de banho. Experimentou o interruptor daí mais uma série de vezes. Depois tentou encontrar o suporte da lâmpada, pensando que poderia trocar esta se conseguisse localizar as lâmpadas no tecto da divisão principal. Mas não havia suporte algum, quer no armário dos frascos quer no tecto. Desanimado, voltou à divisão maior.

— Ahh!—gritou, quando, ao caminhar, esbarrou numa coluna metálica de uns quinze centímetros de diâmetro, amachucando o nariz. Perdendo momentaneamente o equilíbrio, sentiu o nariz já a começar a inchar. Havia uma saliência óssea ao longo do lado direito: tinha-o quebrado. Mais uma vez as lágrimas lhe surgiram involuntariamente nos olhos, mas desta vez fora por dor não por emoção. Quando se recompôs o suficiente para prosseguir, ficara desorientado. Voltando aos passos curtos, foi avançando até encontrar a parede. Só então conseguiu encontrar a bancada de trabalho.

Baixando-se, começou a abrir os armários, explorando cada um deles cuidadosamente Com as mãos. Cada armário tinha cerca de um metro e vinte de largura e continha uma única prateleira removível. Encontrou mais latas daquilo que lhe parecia ser tinta, mas não deu conta de ferramentas de qualquer tipo. Levantando-se, curvou-se a seguir por cima da bancada e sentiu a parede. Havia algumas prateleiras estreitas à direita, Com pequenas vasilhas e caixas- Avançando para a parte central, sentiu de novo a parede, esperando encontrar um painel ou coisa parecida Com chaves de parafusos, martelos e escopros. Em vez disso, a mão tocou-lhe e numa taça de vidro, de fundo voltado para ele. Curioso em saber do que se tratava, apalpou a toda a volta, verificando que a taça de vidro estava fixada a uma caixa de metal, na qual entravam tubos. Apercebeu-se de que era um contador eléctrico.

Avançando para a extremidade esquerda da bancada, tornou a sentir a parede. Havia mais prateleiras contendo vasos de flores em plástico e cerâmica, mas nada de ferramentas.

Desanimado, perguntava de si para si que mais podia ele fazer. Pensou em procurar qualquer coisa para onde pudesse subir para poder explorar as paredes mesmo junto ao tecto, no caso de haver uma fresta. Então o seu espírito voltou ao contador eléctrico. Subindo para a bancada, localizou o contador e foi seguindo os fios até uma segunda caixa de metal, rectangular. Apalpando a superfície, encontrou imediatamente uma argola articulada. Dando-lhe um pequeno puxão, abriu a caixa.

Lá dentro encontrava-se o quadro da electricidade da casa. Lentamente, meteu a mão, esperando não tocar num fio Com corrente. Em vez disso, os dedos tocaram-lhe na fila dos comutadores de interrupção de circuito.

Durante os cinco minutos seguintes, reflectiu sobre como havia de utilizar a sua descoberta. Descendo da bancada, abriu a porta do armário que ficava logo abaixo e retirou o seu conteúdo, arrumando as latas nos dois armários laterais. Depois retirou a prateleira, que por sorte não estava pregada, e subiu lá para dentro. Tinha bastante espaço.

Saiu, tornou a subir para a bancada e, um a um, accionou os comutadores de interrupção de circuito. A seguir fechou o quadro, meteu-se no armário vazio, puxou a porta atrás de si e rezou. Se tivessem ido para a cama, a falta de corrente não os incomodaria.

Depois do que lhe pareceu serem outros cinco minutos, ouviu abrir uma porta. Então ouviu vozes, e através de uma fenda da porta do armário viu uma linha de luz vacilante. A seguir ouviu o som de uma chave na porta de entrada, e esta abriu-se. Olhos pregados na fenda, viu claramente duas figuras. Uma segurava uma lanterna, cuja luz varria lentamente todo o lugar.

— Está escondido — disse Juan.

— Não preciso que mo diga — disse Shirley irritada.

— Onde fica a caixa dos fusíveis?

A luz da lanterna agitou-se por cima da bancada.

Jason viu-o avançar e interpor-se entre o seu raio de visão e a luz que Shirley devia estar a segurar. Suspeitou que ele devia ter as mãos ocupadas Com a arma. Encostou-se então contra a parede do fundo do armário e levantou os pés. Logo que ouviu os comutadores a serem ligados, empurrou as portas do armário Com toda a força e energia que as suas pernas de corredor lhe permitiam. As portas apanharam Juan Díaz completamente de surpresa, atingindo-o na virilha. Gritou de dor e cambaleou para trás, contra o armário de cedro.

Jason não perdeu tempo. Saiu rapidamente do armário e atravessou a cave a correr, agarrando a porta antes de Shirley ter possibilidade de a fechar. Atingiu-a Com toda a força, chocando Com Shirley e caindo os dois pelo chão fora. Shirley gritou quando a cabeça lhe bateu no cimento. A lanterna saltou-lhe da mão.

Rapidamente de pé, Jason correu pelo corredor em direcção às escadas, grato por esta área da casa estar já Com luz. Agarrou no corrimão e utilizou-o como catapulta para se lançar pelos primeiros degraus acima. Foi então que ouviu o baque surdo. Simultaneamente sentiu dor na coxa e a perna direita ficou-se-lhe sem força debaixo dele. Endireitou-se, saltou pelo resto das sacadas. Estava quase no átrio; não podia desistir.

A perna direita a arrastar-se, esforçou-se por atingir a porta de entrada. Lá em baixo ouviu alguém a começar a subir as escadas.

O ferrolho abriu-se e aí estava ele aos tropeções, na noite fria de Novembro. Sabia que fora atingido por um tiro. Sentia o sangue do ferimento da bala a escorrer-lhe pela perna abaixo até ao sapato.

Tinha apenas dado alguns passos quando Juan o apanhou e Com uma pancada da coronha da pistola o derrubou na calçada do caminho particular. Caiu sobre as mãos e os joelhos. Antes de poder levantar-se, Juan pontapeou-o nas costas. Mais uma vez, a pistola lhe ficou apontada à cabeça.

De repente, ambos ficaram inundados de luz brilhante. Mantendo a arma contra Jason, Juan tentou defender os olhos do clarão de dois faróis. Um segundo depois, ouviu-se o som de portas de automóvel a abrir, seguido do som agoirento de armas a engatilhar. Juan recuou alguns passos, como um animal encurralado.

— Pára, Díaz — gritou uma voz que Jason desconhecia. Era cheia Com o sotaque do sul de Boston. — Não faças nenhuma estupidez. Não queremos problemas contigo ou Com Miami. Tudo o que queremos que faças é que vás até ao teu carro sem fazer ondas e te ponhas a andar. És capaz de fazer isso?

Juan fez que sim Com a cabeça. A mão esquerda continuava em vão a tentar proteger os olhos da luz.

— Vá, anda!—comandou a voz.

Depois de recuar dois ou três passos incertos, Juan voltou-se e correu para o seu carro. Pôs o motor a trabalhar, engatou e arrancou pelo caminho particular.

Jason rolou sobre a barriga. Logo que Juan partiu, Carol Donner saiu detrás do círculo de luz e caiu de joelhos em frente dele.

— Meu Deus, está ferido!—exclamou, vendo-lhe uma enorme mancha de sangue na coxa.

— Acho que sim — disse Jason vagamente. Acontecera demasiado num curto espaço de tempo. — Mas não dói muito — acrescentou.

Outra figura emergiu detrás do clarão. Bruno avançou, empunhando uma Winchester automática.

— Oh, não! — exclamou Jason, tentando pôr-se de pé.

— Não se preocupe — disse Carol. — Ele sabe que você é amigo.

Nesse momento, apareceu Shirley na varanda de entrada. O vestuário estava desalinhado e o cabelo levantado como o de um punk. Observou a cena por instantes. Depois recuou e bateu Com a porta. Ouviu-se o som de fechaduras a correr.

— Temos de levá-lo a um hospital — disse Carol apontando para Jason.

Um segundo guarda-costas aproximou-se. E Com todo o cuidado pegaram nele.

— Nem posso acreditar — disse, ao dar por si a ser levado para trás do clarão dos faróis.

O veículo era um Lincoln branco e comprido, Com uma antena de televisão em V na parte de trás. Os dois guardas-costas colocaram-no Com cuidado no banco traseiro, onde já se encontrava um homem de óculos escuros, cabelo alisado para trás e charuto por acender entre os dentes. Tratava-se de Arthur Koehler, o patrão de Carol. Esta entrou atrás de Jason e apresentou-o ao patrão. Os guarda-costas entraram para o banco da frente e a limusina pôs-se em movimento.

— É bem certo que estou contente por vê-los a ambos... Mas o que é que em nome de Deus vos trouxe aqui?—perguntou, desequilibrando-se quando o carro deu um solavanco ao sair do caminho particular para a rua.

— A sua voz — explicou Carol. — Daquela última vez que telefonou, eu sabia que estava metido em sarilhos outra vez.

— Mas como soube que eu estava aqui em Brookline?

— Bruno seguiu-o... Depois do seu telefonema, liguei aqui para o meu simpático patrão — explicou, dando uma ligeira palmada na perna de Arthur.

— Pára Com isso! —cortou Arthur. Fora a sua voz que aterrorizara Juan Díaz.

— Pedi a Arthur se ele lhe dava protecção, e ele disse que sim, sob uma condição. Tenho de dançar pelo menos durante mais dois meses ou até ele encontrar quem me substitua.

— Sim... mas ela fez-me descer para um mês — queixou-se o patrão.

— Estou muito grato — disse Jason. — Você vai realmente deixar de dançar, Carol?

— Ela é uma miúda danada — disse Arthur.

— Estou admirado — comentou Jason. — Julgava que as raparigas como você não conseguissem parar sempre que quisessem.

— De que é que está a falar? — perguntou ela, indignada.

— Eu digo-te o que ele quer dizer — riu-se Arthur, estendendo a mão e devolvendo-lhe a palmada na coxa. — Ele acha que és uma pega danada — e ficou-se em paroxismos de riso, que se transformaram em tosse. Carol teve de bater-lhe diversas vezes nas costas até ele conseguir dominar-se. — Costumava ter acessos destes quando acendia destas coisas — explicou Arthur, mostrando o charuto. Depois olhou para Jason na meia luz do carro. — Acha que eu a teria deixado ir a Seattle se fosse prostituta? Tenha juízo, homem.

— Desculpe... Só pensei...

— Você... porque eu dançava no clube pensou que eu era uma pega — disse já um tanto menos indignada. — Bem, acho que não é inteiramente injusto. Umas tantas são-no. Mas a maioria não. Para mim, foi uma grande oportunidade. A minha família não é Donner. É Kikonem. Somos filandeses, e sempre tivemos uma atitude mais saudável perante a nudez do que vocês, americanos.

— E é filha da irmã da minha mulher — disse Arthur. — Por isso dei-lhe trabalho.

— São aparentados? — perguntou Jason admirado.

— Não gostamos de admiti-lo — comentou Arthur, começando outra vez a rir-se.

— Vá lá —fez Carol.

Mas Arthur continuou o seu pensamento.

— Detestamos a ideia de qualquer pessoa da nossa gente ir para Harvard. Fere a nossa imagem.

— Você vai para Harvard? — perguntou Jason, voltando-se para Carol.

— Para o meu doutoramento. O que ganho como bailarina cobre-me as despesas.

— Acho que já devia ter pensado que Alvin nunca teria vivido Com uma bailarina qualquer — comentou. — Em qualquer caso, estou grato a ambos. Deus sabe o que teria acontecido se não tivessem aparecido. Sei que a polícia tomará conta de Shirley Montgomery, mas bem gostava que não tivessem deixado Juan ir-se embora.

— Não se preocupe — retorquiu Arthur Com um aceno do charuto. — Carol contou-me o que aconteceu em Seattle. Não vai andar por aí durante muito tempo. Mas não quero complicações Com a minha gente de Miami. Trataremos de Juan através de certos canais; eu posso dar suficientes informações para a polícia de Miami o apanhar. Terão material bastante contra ele por lá para o arrumar. Acredite-me.

Jason olhou para Carol.

— Não sei como hei-de pagar-lhe.

— Tenho umas quantas ideias... — retorquiu ela Com vivacidade. Arthur teve outro acesso de riso. Quando finalmente conseguiu

acalmar, Bruno baixou o vidro que o separava dos lugares de trás.

— Eh, malandro — galhofou ele. — Onde queres que te levemos? À urgência do GHP?

— Que diabo, não! Estou um pouco em baixo quanto a cuidados de saúde desse tipo. Leva-me ao Mass General.

 

Jason nunca gozara de má saúde, como diz o ditado, mas actualmente adorava-a. Ficara hospitalizado durante três dias a seguir à cirurgia ao ferimento da perna. A dor diminuíra significativamente e o pessoal de enfermagem no General era extraordinariamente competente e cuidadoso. Vários deles até se recordavam de Jason como interno.

Mas o melhor da hospitalização era que Carol passava a maior parte do dia Com ele, lendo-lhe, deliciando-o Com histórias engraçadas, ou simplesmente sentada em silêncio a fazer-lhe companhia.

— Quando estiveres mesmo melhor — disse no segundo dia, enquanto dava outro arranjo as flores que lhe enviaram Claudia e Sally—, acho que devemos voltar à Estalagem do Salmão.

— Mas para quê? — retorquiu. Depois da experiência por que passaram, nem de longe pensava em tornar a visitar o lugar.

— Gostava de tentar de novo a Devil’s Chute — explicou Carol alegremente. — Mas desta vez durante o dia.

— Estás a brincar!

— A sério. Aposto que é bestial Com o sol a brilhar.

Um pequeno acesso de tosse fê-los olhar para a porta. O vulto desalinhado do detective Curran ficava completamente deslocado num hospital. As mãos enormes agarravam um chapéu caqui que parecia ter sido passado a ferro por um camião.

— Espero não vir incomodá-lo, Dr. Howard — disse, Com desajeitada cortesia.

Jason calculou que Curran estava tão intimidado pelo hospital como ele estivera no quartel da polícia.

— De modo nenhum — respondeu, procurando sentar-se melhor na cama. — Entre. Sente-se.

Carol puxou uma cadeira e colocou-a junto à cama. Curran sentou-se lentamente, continuando a agarrar o chapéu Com ambas as mãos.

— Como vai a perna?

— Bem... É principalmente uma questão muscular. Não vai ser problema.

— Agrada-me sabê-lo.

— Um bombom? — perguntou Carol, estendendo uma caixa de chocolates que as secretárias do GHP tinham mandado.

Curran examinou-os Com cuidado, escolheu uma cereja coberta de chocolate e atirou-a para dentro da boca. Deu-lhe uma volta e engoliu-a.

— Achei que gostasse de saber como vai o caso.

— Com certeza.

Carol foi para o outro lado da cama e sentou-se na borda.

— Primeiro que tudo, apanharam o Juan em Miami. Tem uma folha de quase dois quilómetros. É o que lhe digo. É um dos presentes que Castro deu à América. Vamos tentar que o extraditem para Massachusetts pelos crimes da Brennquivist e da Lund, mas vai ser complicado. Parece que quatro ou cinco outros Estados querem o tipo por semelhantes malandrices, incluindo a Florida.

— Não vou dizer que tenho muita pena dele. —O tipo é psicopata — concordou Curran.

— E o GHP...? Já conseguiu provar que o factor desencadeante do gene da morte foi introduzido nas gotas dos olhos usadas pelo departamento de oftalmologia?

— Estamos a trabalhar no caso juntamente Com a Promotoria de Justiça — esclareceu Curran. — Vai ser cá uma história de todo o tamanho.

— Quanto da coisa acha que vai tornar-se do domínio público?

— Até agora não temos a certeza. Alguma coisa terá de sair. A Hartford School fechou e os pais dessas crianças não são cegos. Além disso, como o Promotor da Justiça aponta, há uma série de famílias locais Com acções judiciais de milhões de dólares contra o GHP. Shirley e a sua gente estão acabados.

— Shirley... — pronunciou Jason Com melancolia. — Sabe, houve um tempo em que, se não tivesse encontrado Carol, talvez me tivesse envolvido Com essa senhora.

Carol, por brincadeira, mostrou-lhe o punho fechado.

— Acho que devo pedir-lhe desculpa, doutor... A princípio pensei que estava apenas Com fogo no rabo. Mas afinal veio a ser o responsável pelo estouro da conspiração mais mortífera que jamais conheci.

— Foi sorte, principalmente. Se não tivesse estado Com Hayes na noite em que morreu, nós, médicos, teríamos pensado que estávamos a lutar Com alguma nova epidemia.

— Esse tipo, o Hayes, deve ter sido um espertalhão — comentou Curran.

— Um génio — disse Carol.

— Sabe o que mais me confunde? Até ao fim, Hayes pensava que estava a trabalhar sobre uma descoberta para ajudar a humanidade. Provavelmente pensava que seria um herói, como o Salk, os prémios Nobel e essa coisa toda. Salvar o mundo. Não sou cientista, mas parece-me que todo o campo de investigação de Hayes é uma coisa assustadora dos diabos. Percebe o que quero dizer...

— Percebo exactamente o que quer dizer... A ciência médica sempre partiu do princípio que as suas investigações salvam vidas e reduzem o sofrimento. Mas agora a ciência tem um potencial pavoroso. As coisas podem seguir para um lado ou para o outro.

— Se entendo a questão — continuou Curran —, Hayes encontrou uma droga que faz as pessoas envelhecer e morrer em escassas semanas. . e nem sequer andava à procura da coisa. Faz-me pensar que as sumidades como vocês são completamente desatinadas. Estou enganado?

— Concordo consigo. Talvez estejamos a ultrapassar as marcas em relação ao que nos interessa. É como estar sempre a comer o fiuto proibido.

— Sim, e vamos ser corridos do paraíso a pontapé — acrescentou Curran. — A propósito, o Tio Sam não tem cães de guarda a vigiar os tipos como Hayes?

— Eles não possuem muitas informações sobre este género de coisas — explicou. — Demasiados conflitos de interesses. Além disso, tanto os médicos como os leigos tendem a acreditar que toda a investigação médica é inerentemente boa.

— Maravilhoso — comentou Curran, Com indignação. — É como um carro desembestado por uma auto-estrada abaixo a cento e cinquenta à hora, sem condutor.

— É provavelmente a melhor analogia que jamais ouvi.

— Olhem só — retorquiu o detective, encolhendo os ombros enormes. —• Pelo menos podemos tratar do GHP. Em breve surgirão acusações formais. Evidentemente que a matilha toda anda à solta sob fiança. Mas o caso deu de si por todos os lados, Com todos os responsáveis a apunhalarem-se uns aos outros pelas costas e a tentarem negociar. Parece que o nosso amigo Hayes aproximou-se inicialmente de um tipo chamado Ingelbrook.

— Ingelnook. É um dos vice-presidentes do ’GHP. Creio que está no departamento financeiro.

— Deve estar. Segundo parece, Hayes abordou-o por causa de capital para lançar uma empresa.

— Eu sei.

O detective olhou-o Com dureza.

— Sabia...? E como é que sabia disso, Dr. Howard?

— Não tem importância. Continue.

— De qualquer modo — prosseguiu Curran — Hayes deve ter dito a Ingelnook que estava prestes a desenvolver um elixir da juventude qualquer.

— Devia tratar-se de um anticorpo do factor desencadeante da hormona da morte.

— Espere um momento... Talvez devesse ser o senhor a falar-me deste assunto, e não ao contrário.

— Desculpe. Finalmente está tudo a fazer sentido. Por favor... continue.

— Ingelnook deve ter gostado mais da hormona da morte do que do elixir da juventude. Durante algum tempo andou a massacrar os miolos para baixar os custos do GHP de modo a mantê-los competitivos. Até agora a conspiração só envolve seis pessoas, mas talvez haja mais. Foram responsáveis pela eliminação de muitos pacientes que, segundo eles, iam utilizar-se mais do que deviam dos serviços médicos. Lindo, ahn?

— Então mataram-nos — observou Carol, Com horror.

— Bem, continuaram a dizer a si próprios que o processo era natural — disse Curran.

— Uma desculpa para o assassínio... todos nós vamos morrer, afinal — comentou Jason amargamente. Via à sua frente, a atormentá-lo, a cara de alguns dos seus doentes recentemente falecidos.

— Em qualquer caso, é o fim do GHP — acrescentou Curran. — O criminoso ataca, todavia, reivindicações de negligência médica já vêm por aí. O GHP já está a pedir o capítulo onze. Portanto, acho que é melhor procurar trabalho.

— Parece que sim — confirmou. Depois, olhando para Carol, acrescentou: — Carol está a terminar os seus estudos em psicologia médica. Pensámos em abrir juntos um consultório. Acho melhor pensar em voltar à medicina privada. Por enquanto nada de empresas.

— É uma ideia agradável — comentou Curran. — Depois já posso mandar consertar a cabeça e o coração no mesmo lugar.

— Até pode ser o nosso primeiro doente.

 

                                                                                            Robin Cook

 

 

                      

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