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Minha estimada Bárbara Alexeievna:
Ontem fui feliz, excessivamente feliz, como não se pode sê-lo mais! Até que enfim, uma vez na vida, você, sempre tão inacessível, satisfez os meus desejos! Eram cerca de oito horas, já quase noite, quando acordei da soneca que costumo dormir todos os dias, depois do trabalho. Acendi a luz e tinha já os papéis em ordem, faltando-me apenas aguçar a pena, quando, de súbito, levantei, casualmente, os olhos e deparou-se-me um espetáculo extraordinário, que me fez pular o coração. Decerto adivinhou já do que se trata, compreendeu o motivo do meu alvoroço! É que vi uma pontinha da cortina da sua janela presa a um vaso de balsamina, exatamente como já por várias vezes lhe lembrei fazer. Pareceu-me vislumbrar o seu querido rosto, através da janela; que me contemplava da penumbra do seu quarto, e que também pensava em mim. E que pena eu tive de não poder distinguir bem essa face aveludada, minha querida! Dantes eu via bem, mas os anos não perdoam, meu amor! Agora, por vezes, como que bailam na minha frente os objetos. Se trabalhar um bocadito de noite, se escrever qualquer coisa, no dia seguinte, quando me levanto, tenho os olhos vermelhos e chorosos; até sinto vergonha de aparecer assim diante de estranhos. Mas, em espírito, eu via perfeitamente o seu amável e afetuoso sorriso, e no meu coração sentia o mesmo que quando a beijei pela primeira vez, querida Bárbara. Lembra-se, meu anjo? Parece-me estar a vê-la, neste momento, ameaçar-me com o dedo. Não será verdade, minha mazinha? Na próxima carta, quero que me diga pormenorizadamente se acertei nas minhas conjeturas.
Mas que me diz da minha ideia acerca da cortina, Bárbara? Magnifica, não lhe parece? Sempre que me sente para escrever, ou me deite, ou me levante, poderei assim saber se ainda me traz no pensamento e se lembra de mim, e também se está boa e bem-disposta. Quando baixar a cortina, isso quererá dizer que são horas de eu, Makar Alexeievitch, me deitar; se a erguer, significará que me dá os bons-dias e me pergunta se dormi bem, informando-me ao mesmo tempo de que, graças a Deus, se encontra de saúde e muito contente. Como vê, este engenhoso plano é de grande vantagem e poupa-nos muitas cartas. E fui eu o inventor desta ideia tão subtil. Ainda será capaz de negar que sou dotado de prodigiosa imaginação, Bárbara Alexeievna?
Devo dizer-lhe, querida, que contra o que esperava, dormi a última noite de um sono, o que deveras me alegra, pois, como sabe, agora moro noutra casa, e quando se muda de cama, geralmente nas primeiras noites dorme-se mal! Mas, pelo que vejo, nem sempre assim acontece. Levantei-me muito cedo, a transbordar de alegria e de amor. Como tudo me parecia belo, àquela hora, meu anjo! Quando abri a janela, o sol resplandecente entrou a jorros no meu quarto, o canto das avezinhas deliciou-me o ouvido e aspirei a atmosfera saturada de perfumes de primavera. Numa palavra, toda a Natureza parecia despertar para nova vida. Tudo se mostrava de harmonia com a minha boa disposição, belo e primaveril. Além disso, imaginava que o dia me correria admiravelmente. Mas todos os meus pensamentos se dirigiam para si. «Sem dúvida — pensei —, todos aqueles que levam uma vida de trabalhos e sofrimentos podem, com razão, invejar as avezinhas do céu, que não conhecem nada disto!» E todos os meus pensamentos eram mais ou menos neste teor. Quer dizer: ocupei o espírito com comparações fantásticas.
Tenho aqui um livrito, onde estes pensamentos se encontram amplamente expressos. Diz, por exemplo, que há muitas, mesmo muitas espécies de sonhos, querida Bárbara. Mal chega a primavera, os nossos pensamentos tornam-se agradáveis, espirituais e fantásticos — como a bela estação — e os sonhos são ternos, tudo é calor e rosas. É por isso que eu escrevi estas coisas. Se bem que, na sua maior parte, fui buscá-las ao livro de que lhe falei. Nele o autor exprime, mas em verso, este mesmo desejo.
Oh, quem me dera ser pássaro, ave de rapina...
Tem ainda muitos outros pensamentos, porém deixemos isso...
Mas diga-me, meu amor: aonde foi esta manhã? Muito cedo, antes de eu sair para o trabalho, já a Bárbara saíra do quarto e atravessava o pátio, toda lampeira, tal como o pardal na primavera, quando deixa o ninho. Que grande alegria senti ao vê-la! Ah, querida Bárbara, querida Bárbara, não se deixe dominar pela tristeza; as lágrimas nada remedeiam, acredite. Sei-o por experiência própria. Agora leva uma vida mais alegre e distraída, por isso parece melhor de saúde. Ah! Já me esquecia: e a nossa boa Fédora? Que coração de ouro! Manda-me dizer que agora vive consigo e que se dão muito bem. Bem sei que a pobre é um pouco resmungona, mas não se importe, Bárbara. Ao fim e ao cabo, é uma excelente alma, Deus seja louvado!
Já me referi, nas minhas cartas, à nossa Teresa; é também uma boa criatura e muito fiel. O que passei por causa da nossa correspondência! Vi-me e desejei-me para descobrir forma de a fazer chegar ao seu destino. Felizmente, Deus mandou-nos a Teresa. É uma bondosa moça, honesta e de bom génio, mas a nossa patroa não tem piedade dela, tratando-a como uma escrava. A pobre trabalha de mais.
Mas a que espécie de alojamento vim eu dar. Bárbara Alexeievna? Que ideia faz do meu quarto? Como sabe, dantes eu vivia completamente só, tão só que o simples esvoaçar de uma mosca não me passava despercebido. Todavia, agora, tudo é barulho e bulício à minha volta. Vou descrever-lhe a planta da casa em que vivo. Imagine um comprido corredor, quase escuro e muito imundo. À direita fica uma parede de resguardo e, à esquerda, há uma série de portas, correspondentes cada uma delas a um quarto, que ostenta um número, como nos hotéis. Estes compartimentos são habitados por diferentes pessoas por uma, duas ou três, conforme os casos. O que, porém aqui, não existe é ordem. Pode dizer-se que o edifício é uma perfeita Arca de Noé. Não obstante, a maior parte dos inquilinos são boas pessoas, educadas e até cultas. Entre outros, mora aqui um funcionário muito erudito, que tanto pode falar de Homero como de qualquer autor; numa palavra, conhece de tudo, pois é dotado de verdadeiro talento. Vivem também aqui dois oficiais reformados que passam o tempo a jogar as cartas, um marinheiro e um professor de Inglês. Mas, para a distrair um pouco, na próxima carta vou descrever-lhe estas pessoas, contando-lhe pormenorizadamente a vida de cada uma.
Quanto à nossa patroa, é uma velhota baixinha e muito suja, que passa o dia a passear de um lado para outro, sempre de chinelos e de bata, insultando constantemente a pobre Teresa.
Eu moro na cozinha, ou, melhor dizendo, num pequeno quarto que faz parte da cozinha. Esta é muito espaçosa, muito limpa, com muita luz; constitui um esplêndido compartimento com três janelas. Paralelo à parede exterior, existe um tabique que a divide, formando assim uma espécie de recantozinho, como que um quarto supranumerário, que é o meu. Tudo neste quarto é confortável e cómodo, e até disponho de uma janela. É este o meu cantinho. Não vá, porém, pensar, minha querida, que nas minhas palavras há qualquer intenção reservada. Viver na cozinha significa simplesmente que habito por detrás da parede divisória existente neste compartimento, quase sem companhia, e que passo o tempo em paz, ocupado com ninharias.
O mobiliário do meu aposento compõe-se de uma cama, uma mesa, uma cómoda e duas cadeiras — duas, note bem! Também pendurei fia parede uma imagem piedosa. Podem, é certo, existir no mundo quartos melhores do que o meu, mesmo muito melhores; mas o principal é o conforto. Se coloquei aqui todas estas coisas, foi unicamente para conseguir o conforto; não julgue que tive outro fim em vista. E como a sua janela fica mesmo defronte da minha e o pátio que nos separa é muito estreito, eu daqui vejo-a passar. Assim, este miserável poderá levar uma vida mais feliz e ao mesmo tempo mais económica. O quarto mais pequeno desta casa, incluindo a comida, custa trinta e cinco rublos por mês — mais do que as minhas posses; o meu cantinho, pelo contrário, custa apenas vinte e quatro. Dantes pagava cerca de trinta, e por isso tinha de renunciar a muitas coisas; só raramente tomava chá, e nunca pude conceder-me o prazer daquela bebida e de açúcar como agora. Seja como for, eu não gosto de passar sem o chá, porque os inquilinos são todos pessoas remediadas e o facto de o não tomar envergonha-me. Devo dizer-lhe, Bárbara, que o uso desta bebida, nesta casa, faz parte do bom tom. Se assim não fosse, não me importaria absolutamente nada, pois não sou homem muito dado a prazeres. É necessário, além disso, contar com despesas extraordinárias, pois está-se sempre a precisar de alguma coisa: um par de botas, um corte de fazenda, etc. Somando todas estas despesas, com que se fica? É claro, gasto quanto ganho. Mas não me queixo; pelo contrário, estou muito satisfeito. Governo-me com o que tenho. Há já muitos anos que sigo esta norma. O que vale é de vez em quando, recebermos algumas gratificações...
Bom, adeus, minha querida. Comprei duas penas e dois vasos, um de balsamina e outro de gerânios, para lhe oferecer. Preferia, talvez, reseda? Bastará dizer-mo aa sua carta, que logo ela lhe aparecerá ai. Mas escreva-me o mais minuciosamente possível, sim? Além disso, espero, meu amor, que não lhe dê cuidado a minha vida, nem o facto de ter alugado este quarto tão pequenino. Foi a comodidade que me seduziu, unicamente o conforto que ele me oferece me levou a esta resolução... Mas devo confessar-lhe, minha amiguinha, que sob o aspeto financeiro, também fiquei a lucrar e já tenho algumas economias. É verdade; vou amealhando qualquer coisa. Não me julgue um pobrezinho a quem uma mosca seria capaz de derrubar com as asas. Não, meu amor, não sou tão insignificante, O meu caráter é o de um homem de consciência tranquila, possuidor dessa retidão que é dada pelo sentimento do próprio decoro. Adeus, meu anjo! Já enchi duas folhas e são horas de ir trabalhar.
Beijo os seus deditos, querida Bárbara, e sou um seu humilde criado e fiel amigo.
Makar Dievuchkin
P. S. — Uma coisa lhe peço especialmente: que em resposta a esta, me escreva uma carta o mais extensa possível. Junto envio-lhe um cartuchinho de bombons. Coma-os, que lhe farão bem e, por amor de Deus, não se preocupe comigo, nem fique zangada. Uma vez mais, adeus, minha querida.
8 de abril
Prezado Makar Alexeievitch:
Ainda acabo por me zangar consigo, sabe? É verdade, Makar Alexeievitch, juro-lhe que me custa imenso aceitar os seus presentes; sei pelo preço que lhe devem ficar e que para mos oferecer se vê obrigado a impor-se grandes sacrifícios e a privar-se mesmo do necessário. Quantas vezes lhe disse já que não preciso de nada, absolutamente nada, e que não me encontro em condições de corresponder às atenções com que me cumula? Por exemplo, para que me mandou os gerânios? Lá que me tivesse enviado um vasinho de balsamina, ainda vá; mas os gerânios! Basta então que eu deixe, distraidamente, escapar uma palavra — como sucedeu com os gerânios —, para que o senhor vá imediatamente comprar um vaso? Deve ter sido muito cara esta planta! E que flores maravilhosas! São tão vermelhas e dá tantas! Mas diga-me: onde foi descobrir tão belo exemplar? Pu-lo à janela, no sítio mais visível. No banquito que há do lado de dentro hei de colocar também outras flores, mas isso será quando for rica. Fédora não se cansa de gabar o nosso quartinho. Está tão limpo, claro e acolhedor, que é um verdadeiro paraíso. Mas porque me mandou os bombons?
Ao ler a sua carta, pareceu-me compreender que o senhor não estava lá muito fixe da cabeça; falava muito em paraíso, em primavera, em doces perfumes, em pipilar de passarinhos. Pensei comigo própria, confesso, que o senhor me ia dedicar uma poesia. É que só faltavam versos à sua carta, Makar Alexeievitch. Os sentimentos nela expressos são muito ternos e as ideias cor-de-rosa... Todavia, quanto à cortina, nem nela pensei. Naturalmente, essa pontinha de que fala ficou presa a algum ramo quando andei a mudar os vasos. Não deve ter sido outra coisa.
Ah, Makar Alexeievitch! Bem sei que fala e enumera os seus ganhos e despesas só para me tranquilizar e fazer crer que esses gastos extraordinários os faz por prazer. Mas não me conseguirá enganar. Tenho a certeza de que se priva do necessário por minha causa... Por exemplo, porque alugou esse quarto, onde o incomodam e distraem e não dispôs de largueza nem comodidade, quando gosta da solidão e do silêncio? Com o seu ordenado, creio que podia arranjar um aposento noutras condições. Até a Fédora me contou que o senhor dantes vivia muito melhor do que agora. Quer, porventura, convencer-me de que tem passado toda a vida cheio de privações, sem alegria, sem uma palavra carinhosa, sempre em quartos de aluguer, entre estranhos? Ah! Se soubesse a pena que tenho de si, meu pobre amigo! Ao menos não despreze a sua saúde, Makar Alexeievitch. Diz-me, por exemplo, que os seus olhos enfraquecem cada vez mais devido a escrever à luz artificial. E porque escreve? Os seus superiores não precisam disso para saberem como é zeloso no serviço.
Mais uma vez lhe peço que não gaste tanto dinheiro comigo. Bem sei que gosta de mim, mas também não ignoro que não é rico... Hoje de manhã acordei tão bem-disposta como você. Que satisfação a minha! Fédora já trabalhava havia muito e eram horas de me agarrar à minha tarefa. Esta simples ideia dava-me uma alegria indescritível. Saí apenas para comprar seda e entreguei-me logo ao trabalho. Passei o dia, desde manhã à noite, tão contente! Mas agora... surgem de novo as ideias escuras e tristes a atormentar-me o coração.
Ah, que será de mim? Que destino será o meu? O que deveras confrange é não se saber nada, absolutamente nada, do que a sorte nos reserva; não nos pertence o futuro e nem podemos vislumbrar o que há de ser de nós! Quando penso nisto, sinto tal dor e tanta pena que o coração parece querer saltar-me do peito. hei de queixar-me toda a vida, de lágrimas nos olhos, dos que fizeram a minha desgraça. Que abomináveis criaturas!
São horas de me agarrar outra vez ao trabalho, que já está escuro. Bem queria escrever-lhe mais coisas, mas por hoje fico por aqui; tenho de adiantar o serviço, a fim de o ter pronto no prazo que me foi marcado. Na verdade, é com muito prazer que lhe escrevo isso, representa mesmo, para mim, um passatempo agradável. Mas porque não vem pessoalmente visitar-me? Porque não, Makar Alexeievitch? Mora tão perto de mim e deve ter tanto tempo livre! há de vir cá, suplico-lhe. Ainda há momentos vi a Teresa. Pareceu-me de aspeto doentio e tive tanta pena dela que lhe dei vinte kopeks.
Estou mesmo a cair de sono. Em resposta a esta, descreva-me minuciosamente o género de vida que leva, as características das pessoas que habitam nessa casa, e diga-me se se dá bem com elas. Não se esqueça de me dar todos estes pormenores. Esta noite deixarei, de propósito, a ponta da cortina levantada. Vá-se deitar mais cedo, porque, ontem, vi a luz acesa no seu quarto por volta da meia-noite. E com isto, adeus!
Estou outra vez triste e aborrecida. Sempre foi um dia! Mais uma vez, adeus! Sua
Bárbara Dobroselof
8 de abril
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Pensar, meu amor, que um dia como este me reservava tão triste sorte! Divertiu-se à custa deste pobre velho, não há dúvida... Mas a culpa é só minha e de mais ninguém. Com esta idade e o cabelo que tenho na cabeça, quem me manda meter em aventuras amorosas? O homem é por natureza incompreensível, um ser raro, devo confessar. Santo Deus! Deita às vezes tais coisas pela boca fora... E não pensa nas consequências. Suceda o que suceder, isso não lhe importa; diz tais loucuras, que Deus nos livre delas! Não, minha querida, eu não me zango; apenas me sinto vexado ao pensar que tive a leviandade de lhe escrever numa fraseologia tão estúpida e floreada.
Hoje fui para a repartição bem-disposto e a pular de contente, porque o meu coração estava sob a sua influência e a minha alma encontrava-se em festa, por assim dizer. Sim, tudo me parecia correr bem. Votei-me ao trabalho, e que sucedeu? Circunvagando o olhar pelos objetos que de há muito me eram familiares, notei que eles se apresentavam cinzentos e escuros como sempre, tinham a mesma aparência dos outros dias. Eram ainda as mesmas manchas de tinte, as mesmas mesas e cadeiras que sempre conheci. Sim, era tudo exatamente o mesmo, nada havia mudado. Por que motivo, pois, eu montara o Pégaso? A que era devida a minha boa disposição? Filiava-se no facto de certo sol me ter sorrido e o céu haver-se tornado mais claro? Mas apenas nisso? De que valem os aromas primaveris, quando se olha para um pátio em que se pode encontrar toda a imundície do inundo? Todas estas coisas são devidas à minha estúpida imaginação, porque o homem pode perder-se nos seus próprios sentimentos de modo a esquecer o que o cerca, e entregar-se a uma paixão louca que lhe ataca o coração.
O regresso a casa, fi-lo com grande dificuldade, quase arrastando-me, pois doía-me muito a cabeça, o que de resto me costuma suceder. Certamente apanhei frio nas costas. Sou muito imbecil! Alegrei-me tanto com a chegada da primavera, que saí de casa com um agasalho demasiado ligeiro.
Quanto aos meus sentimentos, porém, está enganada, querida. As minhas palavras foram inspiradas unicamente por um afeto paternal, o mais puro dos afetos, Bárbara Alexeievna, mas interpretou-as mal. De facto, ocupo ao seu lado o lugar de um pai, na triste orfandade em que se encontra. Digo-lhe isto do fundo da minha alma, com toda a sinceridade. Mas, seja como for, prendem-nos laços de parentesco, embora muito afastado. Sou seu parente. Posso mesmo acrescentar que agora sou o seu melhor parente, o seu único protetor, pois onde seria natural que encontrasse auxílio e proteção, apenas se lhe deparam a perfídia e o insulto.
Em referência à poesia, devo dizer-lhe, meu amor, que com a idade que tenho, já me não fica bem dedicar-me a ela. A poesia é rematado disparate. Atualmente, nas escolas, quando apanham os alunos a fazer versos, castigam-nos.
Porque me fala, na sua carta, de comodidade, descanso e não sei que mais, Bárbara Alexeievna? Não sou exigente e nunca vivi tão bem como presentemente; porque havia, pois, de me lamentar agora? Tenho que comer, que vestir e que calçar... distraio-me... que mais hei de querer? Não devemos meter-nos em altas cavalarias. Não corre nas minhas veias sangue azul! Meu pai não era nenhum aristocrata; mantinha toda a família com um ordenado igual ao meu. Nem eu sou nenhum sibarita. Não obstante, para lhe falar com toda a franqueza, devo dizer-lhe que estava muito melhor na outra casa. Gozava ali de mais liberdade e independência, minha querida. Mas o aposento que agora ocupo também é bom e, sob certos aspetos, oferece algumas vantagens: leva-se aqui uma vida mais alegre, se se quiser, e há mais variedade e distração, não o nego. Apesar de tudo, sinto pena de haver deixado o antigo. Nós, os velhos, ou melhor, os que estamos a entrar na velhice, olhamos para as coisas velhas a que esta» mos habituados, como se elas fizessem parte da nossa família. O meu antigo quarto era um cantinho tão sossegado e bonito! E era só meu! As paredes eram como as de qualquer outro; porém, não é delas que quero falar, mas sim das recordações que em mim despertam e me entristecem... Essas recordações são-me dolorosas, é certo; contudo, proporcionam-me também alegria, porque me fazem pensar com prazer no passado. Até o que aquela casa tinha de desagradável e às vezes me irritava, deixou de ser mau na minha recordação, aparecendo-me purificado de todo o mal e, em espírito, vejo tudo como uma coisa familiar e boa. Vivíamos felizes e sossegados, querida Bárbara, eu e a minha patroa, e agora não posso lembrar-me daquela boa velhota sem experimentar um sentimento de tristeza. Era uma excelente mulher e não me levava caro. Passava o tempo a fazer colchas de retalhos velhos, que cortava em tiras, e usava no seu lavor umas agulhas muito compridas. Não se ocupava em mais coisa alguma. Como à noite trabalhávamos à mesma mesa, uma luz chegava para ambos. Vivia com ela uma sobrinhita de nome Macha, então uma criança de dez anos. Agora deve ter uns treze; é quase uma mulherzinha. Era uma pequenita tão desajeitada e indolente que nos fazia rir. Constituíamos um trio absolutamente feliz. Nas longas noites de inverno, sentávamo-nos em volta da mesa redonda, tomávamos chá e depois continuávamos o nosso trabalho. Para que a menina se não aborrecesse, e também para a instruir, às vezes a tia punha-se a contar-nos histórias. E que bem ela as contava! Podiam interessar a uma criança e mesmo a um adulto inteligente. Quantas vezes eu próprio me deliciava a escutar com a maior atenção aquelas histórias, enquanto tirava umas fumaças do meu cachimbo! Chegava, por vezes, a esquecer-me por completo do meu trabalho. A pequena, a nossa menina, com ar pensativo, uns olhos muito grandes, e a bochechinha cor-de-rosa apoiada na mãozita, abria a linda boquinha e punha-se a ouvir a velha atentamente; e se o conto era de meter medo, era vê-la toda medrosa, a chegar-se devagarinho para a velha, até se lhe agarrar à saia. Olhar para ela constituía para nós um prazer, de modo que, com umas coisas e outras, estávamos sentados à mesa até altas horas da noite; não dávamos fé do tempo passar e esquecíamo-nos até de que lá fora nevava. E foi assim, levando uma vida feliz, que decorreram quase vinte anos da minha existência, querida Bárbara!
Mas já estou a alongar-me demasiado. É possível que estas histórias lhe não agradem, e a mim, recordar estas coisas faz-me mal, especialmente a esta hora do crepúsculo.
A Teresa está para ali a fazer barulho com os cacos... Sinto dores na cabeça e nas costas, e ocorrem-me uns pensamentos tão estranhos, que parecem doer-me também. Sim, estou triste até mais não, querida!
Que me diz na sua carta? Que a vá visitar? Mas como posso eu ir a sua casa? Que diriam as outras pessoas, minha querida? Para isso, teria de atravessar o pátio; os vizinhos notá-lo-iam e certamente punham-se de atalaia. Levantava-se então semelhante borborinho e as mexeriqueiras inventavam tais histórias, deturpando por completo as coisas! Não, meu anjo; acho preferível vê-la amanhã de tarde, na igreja; assim será melhor e menos comprometedor para nós dois.
Não se zangue, querida, por lhe escrever uma carta tão disparatada. Ao relê-la, vejo bem as incoerências do seu conteúdo. Sou um homem sem cultura, preza-la Bárbara; em novo pouco aprendi e nesta idade seria rematada loucura querer recomeçar os estudos. Devo, na verdade, confessar-lhe que não sou lá muito hábil na escrita, e não preciso de indicações alheias nem de observações sarcásticas para saber que não digo senão disparates quando pretendo dizer qualquer coisa engraçada.
Vi-a hoje à janela, precisamente no momento em que baixava a cortina. Adeus, querida Bárbara, e que Deus a guarde!
Seu desinteressado amigo
Makar Dievuchkin
P. S. — Não me julgue capaz de lhe escrever em tom satírico, meu amor. Já sou muito velho para me permitir brincadeiras com o simples propósito de passar o tempo. Se assim procedesse, daria azo a que os outros se rissem de mim, podendo aplicar-se-me o provérbio russo que diz: «Quem para outro abre a cova... nela cai!»
9 de abril
Prezado Makar Alexeievitch
Não tem vergonha, meu bom amigo e protetor, de albergar no seu cérebro tais ideias? Sente-se deveras ofendido? Ai! Sou, por vezes, tão irrefletida nas minhas apreciações! Mas desta, pode crer, nem sequer pensei que o senhor pudesse ver nas minhas palavras tom de zombaria. Fique certo de que nunca seria capaz de brincar com a sua idade ou o seu caráter. A culpada de tudo foi a minha cabecinha oca, ou, para melhor dizer, o facto de me aborrecer horrivelmente... E quando o tédio se apossa de nós, de que não somos capazes para conseguirmos combatê-lo?
Para lhe falar com franqueza, ao ler a sua carta pareceu-me também ver nela um tonzinho de brincadeira; mas agora sinto-me deveras penalizada ao pensar que o senhor estará zangado comigo. Não, meu leal amigo e protetor, será injusto se me julgar, por um momento que seja, insensível e ingrata. Sei apreciar bem tudo o que fez por mim, protegendo-me do ódio e da perseguição de homens abomináveis. hei de sempre pedir a Deus por si, e se Ele ouvir as minhas orações, o senhor será absolutamente feliz.
Estou hoje muito doente. Ora sinto arrepios de frio, ora um calor que parece abrasar-me, e Fédora mostra-se inquieta com o meu estado. Quanto aos escrúpulos que demonstra em visitar-me, julgo-os destituídos de fundamento. Que importam os outros? O senhor é nosso amigo, e é quanto basta.
Adeus, Makar Alexeievitch. Não tenho mais que lhe escrever, e mesmo não me seria possível prosseguir; estou muito doente. Mais uma vez lhe peço que não se zangue comigo e creia no respeito e afeto inalteráveis da sua dedicada e agradecida.
Bárbara Dobresselof
12 de abril
Minha estimada Bárbara Alexeievna:
Mas que aconteceu, meu amor? Assusta-me, querida! Não me canso de lhe repetir nas minhas cartas que não deve sair à rua quando esteja mau tempo, que tenha o máximo cuidado com tudo; mas não quer saber e desobedece-me! É uma perfeita criança, meu anjo! Sei que é fraquinha. Um pouco de vento que apanhe, é o bastante para ficar doente. Por isso, deve cuidar mais da sua pessoa, evitar, quanto possível, os perigos, se não por outro motivo, ao menos para não inquietar aqueles que lhe querem bem.
Na sua penúltima carta, manifestava o desejo de conhecer mais pormenorizadamente o meu género de vida e tudo quanto me rodeia e comigo se relaciona. É com prazer que vou dar satisfação ao seu desejo. Vou começar, pois... pelo princípio, minha querida, para haver, assim, mais ordem.
Em primeiro lugar devo dizer-lhe que a entrada da nossa casa não é lá grande coisa. Todavia, a escada principal encontra se em bom estado, mesmo muito bom, e é limpa, clara e larga, com forro de chapa metálica, e os corrimões, de madeira, brilham como acaju. Em contrapartida, na de serviço, é melhor não falarmos: é húmida, suja, com os degraus gastos e as paredes tão ensebadas, que, encostando-lhes as mãos, estas ficam lá pegadas. Nos patamares veem-se gavetas, cadeiras e armários velhos, completamente desmantelados e a cair, roupa a secar, janelas com os vidros partidos; se uma pessoa se descuida, tropeça nos baldes do lixo, cheios de toda a espécie de porcaria: cascas de ovos, restos de comidas, etc. O cheiro é insuportável; numa palavra, a casa não tem nada de interessante.
Já lhe disse a disposição dos quartos. Na verdade, são bastante cómodos, isso sim; mas o ar que se lá respira é um tanto húmido. Não quero com isto dizer que cheiram mal; apenas se sentem neles umas esquisitas emanações a podre, isto é, um odor penetrante e enjoativo a mofo ou a coisa que o valha. A primeira impressão que se recebe não é muito agradável. Mas isso depressa se esvai; ao fim de dois minutos passados lá dentro, já não se nota coisa alguma, porque nós próprios, a roupa, as mãos, tudo, enfim, fica impregnado do mesmo cheiro. A gente depressa se habitua a esta atmosfera e não liga mais importância ao caso. Os pássaros não se aguentam muito tempo neste ambiente. O marinheiro já comprou cinco, mas está sobejamente provado que eles não se dão aqui, e não vale a pena teimar. A cozinha é grande, espaçosa e clara. De manhã, quando cozinham peixe ou carne, a casa enche-se de fumo e sente-se o cheiro a carvão. É claro, entorna-se sempre qualquer coisa, de modo que o chão fica um pouco húmido; em compensação, de tarde é um verdadeiro paraíso. É costume porem na cozinha cordas carregadas de roupa, a secar. Ora, como o meu quarto fica mesmo contíguo, o cheiro a barreia incomoda-me um pouco. Mas não será por muito tempo. Não demora muito que esteja habituado.
A vida nesta casa principia logo ao alvorecer, querida Bárbara. Levantam-se os primeiros, andam de um lado para o outro, fazem barulho, até que, pouco a pouco, vão saltando todos para fora da cama: uns para irem para o trabalho, outros, porque isso lhes agrada. Antes, porém, tomam o chá. Os samovares são quase todos da patroa; mas como esta não possui muitos, temos de aguardar com paciência a nossa vez. Aquele que sai da bicha para ser servido primeiro, é enèrgicamente admoestado. Foi o que me sucedeu a mim na primeira manhã que passei nesta casa. Nessa altura familiarizei-me com todos os moradores. O primeiro que me dirigiu a palavra foi o marinheiro. É tão expansivo, que me pôs ao corrente de toda a sua vida; falou-me do pai, da mãe, de uma irmã, casada com um advogado em Tula, e da cidade de Cronstadt, onde viveu muito tempo. Ofereceu-se para tudo em que me pudesse ser útil e convidou-me a tomar chá com ele, de tarde. À hora marcada fui encontrá-lo na sala em que os hóspedes costumam reunir-se a jogar. Tomámos chá e depois quis que eu jogasse com eles. Não sei se o fizeram com o fim de troçar de mim, ou se era outro o seu objetivo; o certo é que, quando entrei, já estavam agarrados às cartas e que o jogo se prolongou por toda a noite. Viam-se por todos os sítios baralhos de cartas e pedras de dominó, e a fumarada lá dentro era tão espessa que até fazia arder os olhos. Claro, não quis jogar, e por isso começaram a dizer que eu era filósofo. Daí em diante, ninguém voltou a olhar para mim nem a dirigir-me a palavra enquanto lá me demorei. Mas, para lhe ser franco, confesso que não me sentia muito bem naquele ambiente. Agora já não paro naquele aposento; ali só há jogos de azar e nada mais. Costumo juntar-me à noite com o funcionário que, diga-se de passagem, também tem certos conhecimentos de literatura. No seu aposento o ambiente é outro; tudo ali respira modéstia, inocência e decoro.
O nosso homem leva uma vida austera.
Devo dizer-lhe, antes de mais nada, que a nossa patroa é fraca prenda, uma verdadeira bruxa. Conhece a Teresa e viu que está que parece tísica. Pois a pobre aguenta com todo o serviço. É só ela e um criado, o Faldoni. Para lhe dizer a verdade, não sei se é este o seu verdadeiro nome; seja, porém, como for, toda a gente lhe chama assim e ele responde. Tem o cabelo ruivo e aspeto finlandês ou báltico, é zarolho e possui um narigão de respeito; passa a vida a insultar a Teresa e pouco tem faltado para lhe bater. Para ser franco, devo dizer-lhe que a vida aqui não é lá muito modelar. Por exemplo, o hábito de se deitar toda a gente à mesma hora, é coisa que nesta casa não existe. Sejam as horas que forem, há sempre alguém a pé e a jogar, e por vezes dão-se cá casos que só pensar neles faz corar. Eu já estou afeito e pouco me importo, mas não compreendo como casais decentes possam viver nesta sucursal de Sodoma.
Num compartimento, sem porta para o corredor, pois fica do outro lado, num recanto, vive uma pobre família que faz pena. É uma gente tão calada! Ninguém os ouve. E vivem todos no mesmo quarto, separados apenas por um simples biombo. O chefe de família, segundo parece, é um funcionário que foi demitido do seu cargo há coisa de sete anos, não se sabe porquê. Chama-se Gorchkov. É um homenzinho baixo, de cabelos brancos; anda tão pobremente vestido, que até horroriza vê-lo... Traja muito pior do que eu. É um sujeito acanhado e com cara de doente. Costumo encontrá-lo no corredor. Tremem-lhe sempre os joelhos e a cabeça devido a alguma doença, ou então por qualquer outra razão desconhecida. Extremamente tímido, receia toda a gente, e quando se encontra com alguém, afasta-se para o lado, com ar medroso, e desliza encostado à parede. Eu também sou um pouco tímido, mas nada que se compare com ele. Vive com a mulher e três filhos. O mais velho é, em tudo, o perfeito retrato do pai e também tem aspeto doentio. A mulher não deve ter sido feia no seu tempo, a avaliar pela sua boa aparência atual; mas anda tão mal vestida, com roupas do que há de pior, e tão velhas! Consta que devem o aluguer à patroa; não sei, mas o certo é que ela não é lá muito amável com eles. Ouvi também qualquer coisa acerca de Gorchkov; segundo se sussurra, foi demitido por ter praticado qualquer irregularidade. Ignora-se, porém, se está a correr qualquer processo ou coisa semelhante, talvez algum inquérito, por denúncia. Mas uma coisa há que salta aos olhos: que se encontram na mais negra miséria! Não se ouve no quarto deles o mínimo ruído; parece mesmo que não vive lá ninguém. As próprias crianças não fazem barulho; nunca andam à bulha nem brincam, o que é mau sintoma. Quando, numa tarde em que reinava na casa absoluto silêncio, por acaso passava junto do tugúrio daqueles infelizes, notei lá dentro soluços e gemidos entre cortados, logo seguidos de novos soluços, como se alguém chorasse; e aquele pranto era tão débil e denotava tal tristeza e desespero, que me confrangeu o coração. Naquela noite, só de madrugada consegui conciliar o sono, pois tinha o meu pensamento ocupado com essas pobres criaturas.
Com isto, adeus, querida Bárbara, minha boa amiguinha. Já lhe descrevi tudo, o melhor que me foi possível. Durante todo o dia não pensei senão em si. Por sua causa vivo num verdadeiro tormento. É que, por exemplo, sei que não tem um bom casaco. E conheço tão bem estas primaveras petersburguesas, com ventania, chuva e, às vezes, neve... Um tempo assim faz tão mal, meu anjo! É cada mudança de temperatura, que Deus nos valha.
Não leve a mal estas palavras, minha boa amiga; o que tenho a dizer, digo-o com franqueza, sem meias palavras nem rodeios, porque não possuo capacidade para fazer frases lindas, bem o sei. Se eu soubesse escrever em condições! Espalho no papel o que me vem à cabeça, sempre com a mira em distraí-la e levar-lhe um pouco de alegria. Se fosse um literato, então o caso seria outro; mas... que diabo sei eu? Os meus pais não gastaram muito com a minha educação.
Seu eterno e fiel amigo
Makar Dievuchkin
25 de Abril
Meu prezado Makar Alexeievitch:
Encontrei hoje a minha prima Sacha. Que desagradável encontro! A pobre também caminha para a ruína e perversão. Horrível! Soube ainda, por acaso, e indiretamente, que Ana Fedorovna anda por toda a parte a perguntar por mim e que procura a todo o transe saber notícias minhas. Estou a ver que não deixa mais de me perseguir. Segundo me disseram, ela declarou que me perdoaria tudo, que já esqueceu o passado e que deseja visitar-me! Diz a toda a gente que o senhor não tem qualquer parentesco comigo, nem mesmo muito afastado; a mais próxima e única parenta é ela, e ao senhor não assiste o direito de se imiscuir na nossa vida. Afirma ainda que é vergonhoso eu ser mantida por si e viver à sua custa. Diz que já me não lembro do que ela fez por mim e por minha mãe, evitando com a sua hospitalidade que tivéssemos morrido de fome; que nos alimentou e tratou de nós durante dois anos e meio, tendo-nos até pago uma dívida antiga e, entretanto, só lhe demos dissabores. Ora veja! Nem ao menos deixa a minha querida mãe em paz no outro mundo! Se a santa velha soubesse o mal que me têm feito! Mas a Deus nada escapa!...
Ana Fedorovna disse ainda que só por estupidez não soube assegurar a felicidade que ela me pôs ao alcance, e que não tem culpa de eu não saber ou não querer... pescar um bom marido. Mas quem foi culpado, meu Deus! Afirmou que o senhor Buikov teve muita razão e que, na verdade, um homem não pode casar-se com qualquer mulher... Enfim, deitou pela boca fora uma série de disparates.
Custa imenso ter de ouvir todas essas aldrabices, Makar Alexeievitch.
Não sei o que tenho hoje: tremo, choro, soluço. Estou há duas horas a escrever esta carta. Convencera-me já de que essa mulher havia reconhecido, ao menos, as suas culpas, a injustiça que me fez, mas verifico que me enganei!
Peço-lhe, meu bom amigo, que não lhe dê cuidado a minha saúde. Por amor de Deus, não se aflija, meu bom e único protetor. A Fédora exagera sempre. Eu não estou doente; apenas me constipei um pouco ontem, quando fui ao cemitério de Volkovo ouvir missa por alma da minha querida mamã. Porque não foi comigo?... Tinha-lhe pedido tanto... Oh! pobre mãe, se pudesses, do lugar onde te encontras, ver o que fizeram de mim...
B. D.
20 de maio
Minha querida Bárbara:
Mando-lhe uns cachinhos de uvas; fazem bem aos convalescentes, e os médicos dizem que também são boas para matar a sede. Pode, por isso, comê-las sem receio, quando sentir a boca seca. Manifestou há dias desejo de um raminho de rosas; pois é com muito gosto que lho envio, minha querida. Tem apetite? Olhe que é o principal. Felizmente, o mal já lá vai, e assim as nossas desgraças não tardarão a ter fim também. Dê graças a Deus! Quanto aos livros, não me é possível de momento mandar-lhe nenhum. Mas disseram-me que um dos hóspedes desta casa tem um muito bom, escrito em estilo muito elevado. Afirmam que é, na verdade, uma obra excelente; eu não a li, mas têm-ma elogiado muito. Já a pedi e creio que ma emprestam. Mas... será capaz de a ler? É tão esquisita neste particular, que dificilmente se descobre coisa que lhe agrade. Digo isto, porque a conheço muito bem. Talvez prefira poesias amorosas e nostálgicas. Se assim for, arranjar-lhas-ei e tudo o que desejar. Por acaso tenho um caderno cheio de poesias copiadas por mim, que lhe envio.
Eu estou bem, esteja descansada quanto a isto, peço-lhe. Aquilo que Fédora lhe contou não é bem verdade; há de dizer-lhe que não minta tanto, não se esqueça. Mas diga-lho a sério! Que linguareira! Não vendi a casaca do meu fato novo, nem sequer tive tal ideia. E porque havia de vendê-la? Ainda há pouco soube que me iam dar uma gratificação de quarenta rublos e, sendo assim, porque havia de me desfazer dos meus fatos? Não, meu amor, não se aflija com isso. A Fédora é maliciosa e desconfiada, o que não está bem. Tenha paciência, e verá como a vida nos há de sorrir. Mas, para isso, torna-se necessário, antes de mais nada, que se restabeleça por completo. Por amor de Deus, procure recuperar a saúde e não se aflija com coisa alguma. O que mais me confrange e desgosta é vê-la tão fraca. Quem lhe disse que eu tinha emagrecido? Outra calúnia! Gozo de boa saúde e sinto-me muito contente; e engordei tanto, que quase tenho vergonha. Vivo alegre e satisfeito e nada me falta... Se você já estivesse completamente restabelecida...
Por agora, adeus, meu anjo. Beijo-lhe as pontas dos seus dedos e sou sempre o seu fiel amigo.
Makar Dievuchkin
P. S. — Ah, meu amor! Para que voltou ao mesmo assunto na sua carta? Que ideia foi essa? Como quer que vá amiúde visitá-la... não me dirá? Só se for a coberto das trevas da noite. Mas isso, só daqui a algum tempo, pois agora, a bem dizer, nem noite há. Enquanto esteve doente, prostrada com febre e em delírio, não a deixei por um só momento. Não compreendo mesmo como pude arranjar tempo para tudo, sem faltar às minhas obrigações. Depois, porém, suspendi as minhas visitas, porque os curiosos já andavam a fazer perguntas. Já não faltam por aí rumores. Confio plenamente na Teresa, que não é linguareira. Contudo, minha querida, sabe muito bem o que sucederia se o povo soubesse da nossa vida. Que pensaria e que diria? Por isso, tenha paciência, até ao seu completo restabelecimento, e então não faltará ocasião de nos encontrarmos em qualquer parte, fora de casa.
1 de junho
Meu bom Makar Alexeievitch:
Quem me dera poder de qualquer modo manifestar-lhe a minha gratidão pelos seus desvelos e pelos sacrifícios que faz por mim! Resolvi, por isso, tirar da minha cómoda o velho caderno que junto lhe envio. Comecei a apontar nele as minhas impressões, no tempo em que ainda a vida me sorria. Por diversas vezes o senhor me manifestou desejos de conhecer o meu passado, e pediu-me que lhe falasse da mamã, de Pokróvski e da minha estadia em casa de Ana Fedorovna, e o pusesse ao facto das minhas recentes infelicidades. E mostrou tanta vontade de ler este caderno, a cujas páginas confiei parte da minha vida, que julgo dar-lhe grande alegria enviando-lho. Foi, porém, com grande tristeza que agora o reli. Tive a impressão de ter duplicado a idade desde que escrevi nele a última linha. As notas que aí encontra foram traçadas em diferentes épocas. Praza a Deus que continue de saúde, Makar Alexeievitch. Por mim, agora, de vez em quando tenho horríveis acessos de tédio, e de noite atormentam-me as insónias. Que aborrecida convalescença!
B. D.
I
Quando morreu meu pai, tinha eu catorze anos apenas. A infância foi a época mais feliz da minha vida. Passei-a longe daqui, na província de Tula, onde meu pai administrava uma grande quinta, propriedade do príncipe P... Ali vivíamos sozinhos, tranquilos e felizes... Eu era o que podia chamar-se uma selvagem. Passava os dias a correr através dos campos e do bosque, e por onde me apetecia, porque ninguém se importava comigo. O meu pai estava sempre ocupado nos seus assuntos administrativos, e a vida doméstica não deixava à minha mãe um momento livre. Não me mandavam para a escola, com o que muito folgava. Assim, logo de manha, ia brincar para junto do lago ou para o bosque, ou então para a companhia dos ceifeiros que trabalhavam nos campos, conforme me aprouvesse. Saía de casa sem destino, sem me importar com o ardor do sol, e o mato que me arranhava o rosto e rasgava os vestidos não representava qualquer obstáculo aos meus folguedos. Queria lá saber que estivessem em casa preocupados por minha causa!
Julgava então que havia de ser sempre assim feliz, embora passasse a vida inteira no campo. Infelizmente, teria eu uns escassos doze anos, quando me vi obrigada a dizer adeus àquela vida rústica e àqueles sítios que me eram tão familiares, para seguir os meus pais para S. Petersburgo. Ah! Como me custou arrancar-me dali! Chorei amargamente ao abandonar tudo quanto até então amara. Abracei-me a meu pai — lembro-me bem — e com os olhos inundados de lágrimas supliquei-lhe que me deixasse mais algum tempo na quinta. Ele ralhou-me, e a minha mãe, a chorar, dizia-me que era necessário partir, por força das circunstâncias. O velho príncipe P... morrera, e os herdeiros haviam dispensado os serviços do meu pai. Como o papá tinha colocado em S. Petersburgo algum capital com o fim de melhorar a sua fortuna, achou conveniente ir ele próprio tratar dos seus negócios para essa cidade. Tudo isto me foi mais tarde contado por minha mãe. Alugámos então um andar em S. Petersburgo, onde vivemos até à morte do meu pai.
Ai! Como me foi difícil habituar-me à nova vida! Chegámos a S. Petersburgo no outono. Deixámos a quinta num dia de sol, claro e ameno. As colheitas estavam no fim, e nas eiras viam-se altas montanhas de trigo, em torno das quais chilreavam bandos de inquietos passarinhos, Como tudo aquilo era calmo e alegre!
Quando, porém, chegámos à cidade, tudo era diferente; chovia e estava frio, e o chão coberto de lama; e depararam-se-nos rostos desconhecidos, que me pareceram hostis, mal-encarados e maus. Instalámo-nos o melhor que pudemos. Que maçada para conseguirmos pôr a casa em ordem!
O papá passava o dia na rua e a minha mãe encontrava-se sempre atarefada, de modo que se esqueciam por completo de mim. Que triste foi o meu despertar após a primeira noite passada na nossa nova casa! Diante das nossas janelas ficava um muro pintado de amarelo e na rua só se via barro. Os transeuntes eram raros, todos muito enroupados e de pescoço agasalhado, com aspeto de quem tinha muito frio. Tudo o que nos rodeava causava tristeza e tédio insuportáveis. Não tínhamos na cidade parentes ou conhecidos. Meu pai estava de relações cortadas com Ana Fedorovna, por causa de um dinheiro que ela lhe devia. Vinham, contudo, visitar-nos pessoas que tinham negócios com o papá. Em geral, entre os visitantes e o meu pai travavam-se grandes discussões, ouvindo-se de fora gritos e barulho. E depois de se irem embora, ele ficava sempre triste e maldisposto. Passava horas inteiras a passear de um lado para o outro da casa, de semblante carregado e sem proferir palavra. Nesses momentos, nem mesmo a mamã se atrevia a abrir a boca, conservando-se em silêncio. E eu ia meter-me a um canto, com um livro na mão, tendo receio de me mexer.
Três meses após a nossa chegada a S. Petersburgo, meteram-me num colégio. Que tristeza a minha ao princípio, ao ver-me diante de tantas caras desconhecidas! Era tudo tão árido, tão hostil, tão pouco atraente! As professoras ralhavam, as companheiras pregavam partidas e eu ficava cheia de medo. E então o regulamento era de um rigor! Tudo era feito a horas determinadas e com toda a pontualidade. As refeições em conjunto, aquelas lições tão maçadoras constituíram para mim, ao princípio, um verdadeiro martírio. Nem sequer podia dormir. Quantas noites longas, aborrecidas e frias eu passei em claro, a chorar até ao amanhecer! De tarde, enquanto as outras meninas estudavam ou passavam os olhos pelas suas lições, eu conservava-me muito quietinha, com o livro na minha frente, e não me atrevia a fazer o menor movimento; mas o meu pensamento voava em direção à minha casa, lembrava-me dos meus pais e da minha boa e velha ama e dos seus contos... E que tristeza eu sentia então! Recordava-me perfeitamente do mais insignificante objeto da casa, e ainda hoje mesmo relembro tudo isso com um prazer especial, doloroso... E para ali estava a matutar... Ai! como seria bom encontrar-me agora em casa! A esta hora, estaria sentada à mesa, sobre a qual fumega o samovar, em companhia de meus pais. Que calorzinho se sente e como se está bem ah! «Como gostaria — pensava — de dar agora na minha mamãzinha um abraço apertado, muito apertado]» Depois continuava a pensar, até que a nostalgia se apoderava de mim, fazendo-me chorar em silêncio lágrimas amargas... E esquecia por completo o que tinha para estudar. Vinha a noite, e como não sabia a lição, pensava no professor, na madame e nas condiscípulas, sonhando que estudava; mas, afinal, se me interrogavam, eu nada sabia. Era então condenada a manter-me de joelhos num canto e a ficar sem uma das refeições. A minha vida era, pois, tristonha e melancólica. As outras moças riam-se de mim, pregavam-me partidas, distraiam-me durante as horas de estudo, e beliscavam-me quando, em formatura, nos dirigíamos para o refeitório, ou faziam queixa de mim à professora. Mas, em contrapartida, que alegria a minha quando, aos sábados de tarde, a minha boa ama me ia buscar!
Com que alegria eu abraçava a boa velhinha! Depois de me vestir e me pôr muito quentinha, como ela dizia, seguíamos para casa. Pelo caminho, ela não conseguia acompanhar-me, tão ligeira eu ia. É que não tinha paciência de caminhar vagarosamente. Apesar da pressa que levava, não parava de conversar com ela durante todo o trajeto, contando-lhe tudo o que me vinha à ideia. Logo que entrava em casa, louca de alegria, atirava-me para os braços de meus pais, tal como se nos não víssemos há sete anos. Começava então a contar as novidades que sabia e a fazer perguntas acerca de tudo. Ria a bom rir e desatava a correr pela casa, cumprimentando toda a gente. Depois o papá fazia-me perguntas mais sérias: acerca dos professores, das matemáticas, do francês e da gramática de L’ Homond... e todos estávamos contentes e alegres. Ainda hoje recordo com saudade aqueles momentos.
Esforcei-me o mais possível por me instruir, a fim de dar gosto ao meu pobre pai. Via quanto ele se sacrificava por mim, apesar das preocupações cada vez mais graves que o atormentavam. Mostrava-se de dia para dia mais triste, mais sombrio e mais colérico. O seu génio piorava assustadoramente. Tudo lhe corria mal, a sorte não o protegia e as dívidas iam aumentando cada vez mais.
Minha mãe nem sequer se atrevia a chorar, não soltava o menor queixume, receando irritar ainda mais o meu pai. Por fim, a sua saúde alterou-se, começou a emagrecer e a tossir de modo inquietante. Quando, então, regressava do colégio, só se me deparavam rostos tristes: minha mãe chorava em silêncio e o meu pai encolerizava-se. Seguiam-se os queixumes e as censuras: a minha presença não lhe dava a mínima alegria, qualquer consolação; apesar de ele haver feito os maiores sacrifícios para me dar uma educação capaz, eu ainda não sabia uma palavra de francês. Em suma, vingava-se em mim e na minha mãe, afirmando que fôramos nós as únicas causadoras de tudo, de todos os fracassos, de toda a sua infelicidade. Como era possível que ele atormentasse assim a minha pobre mãe? Ao vê-la, sentia o meu coração confranger-se. Tinha as faces descoradas, os olhos enterrados nas órbitas, enfim, todos os sintomas da tísica.
Era a mim que atingiam as mais ásperas censuras de meu pai. Geralmente, principiava a queixar-se de uma insignificância, para logo proferir as frases mais descabeladas. Por vezes, eu nem atinava com o sentido das suas palavras. Dizia cada coisa! Que eu não conhecia nada de francês, que era uma estúpida e a diretora do colégio não passava de uma idiota, que não sabia ministrar a educação; que assim não me podia arranjar emprego; que a gramática de L’ Homond não prestava para nada, que a de Zapolski era muito melhor; que estava a gastar comigo rios de dinheiro, sem qualquer proveito ou utilidade; que eu não tinha juízo nenhum nem sentimentos; quer dizer: eu consumia-me para conseguir aprender um pouco de francês e, ao fim e ao cabo, era a culpada de tudo e tinha de aguentar todas as censuras. Não se julgue, porém, que o meu pai procedia desta forma porque não nos amasse; consagrava-nos, pelo contrário, imenso carinho. Mas era assim o seu génio...
Melhor dizendo, o seu génio azedara-se devido aos desgostos, às deceções e aos fracassos que sofrera na vida, pois, antes, não podia ser melhor. Tornara-se desconfiado, por vezes denotava extrema amargura, quase cedendo ao desespero; começou a descurar a saúde, até que um dia apanhou um resfriamento, do qual veio a morrer ao cabo de curta doença. O golpe foi tão repentino e inesperado, e tal o aturdimento em que nos deixou, que só ao fim de algum tempo pudemos afazer-nos à triste realidade. A mamã ficou com as ideias um pouco perturbadas; a princípio cheguei mesmo a recear pelas suas faculdades mentais. Mal o meu pai morreu, os credores, aos magotes, começaram a apresentar-se em nossa casa. Entregámos-lhes tudo o que possuíamos. Fomos obrigadas também a vender a casa em que vivíamos e que o papá comprara meio ano após a nossa chegada a S. Petersburgo. Não sei bem como as coisas se arranjaram; mas o certo é que nos vimos sem teto, sem dinheiro, desamparadas e sem recursos. A mamã estava doente; minava-a uma febre lenta que a ia consumindo; não podíamos ganhar a vida e, assim, estávamos resignadas a morrer. Tinha eu então catorze anos.
Foi nessa altura que Ana Fedorovna nos visitou pela primeira vez. Apresentou-se-nos como uma proprietária e afirmou-nos que era nossa próxima parente. A mamã, porém, dizia que, de facto, ela era aparentada connosco, mas esse parentesco era muito afastado. Enquanto o meu pai foi vivo, nunca entrou em nossa casa. Agora, aparecia-nos de lágrimas nos olhos, exagerando a parte que tomava no nosso luto. Aparentava grande compaixão pela nossa desgraça, deixando, contudo, compreender que o único culpado de todos os nossos infortúnios fora o papá com o seu orgulho e a excessiva confiança que depositava nas suas próprias forças. Além disso, na qualidade de única parente manifestou desejos de cultivar connosco relações mais intimas e pediu-nos que esquecêssemos o passado. A mamã replicou-lhe que nunca lhe quisera mal, e ela desatou a chorar, muito comovida. Levou minha mãe à igreja e mandou celebrar uma missa por alma do querido morto, como ela chamou ao meu pai. Em seguida reconciliou-se solenemente com a mamã.
Depois de muitos preâmbulos e observações e de nos ter feito ver claramente quanto era desesperada a nossa situação, devido à absoluta falta de recursos, de proteção e de amparo, instou para que fôssemos viver com ela sob o seu teto, conforme dizia. A mamã agradeceu muito a oferta; mas só daí a algum tempo se decidiu a aceitá-la, uma vez que não nos restava outro recurso. Escreveu então a Ana Fedorovna, comunicando-lhe que aceitava, agradecida, o asilo que lhe oferecera.
Lembro-me ainda muito bem do dia em que nos mudámos da nossa casita de Petersburgskaia, para Vasilievski Ostrov, no outro extremo da cidade. Foi numa clara manhã de outono, seca e fria. A mamã chorava e eu sentia profunda tristeza, como que uma inexplicável angústia me oprimia a alma. Que doloroso momento aquele...
II
Ao princípio, enquanto nos não habituámos, tanto a minha mãe como eu sentimos uma certa tristeza na nossa nova casa, essa tristeza que é costume experimentar-se sempre que se nos deparam perspetivas de um futuro pouco tranquilizador. Ana Fedorovna vivia numa das principais ruas de Vasilievski Ostrov, numa casa de sua propriedade, com cinco divisões. Destas, três eram ocupadas por Ana e Sacha, uma minha prima órfã de quem aquela tomara conta em criança; eu e minha mãe vivíamos noutra, e na quinta, pegada à nossa, habitava um pobre estudante de nome Pokrovski, o único que pagava aluguer.
Ana Fedorovna vivia muito bem — melhor mesmo do que seria lícito esperar-se; porém, de onde lhe vinham os rendimentos de que gozava e o género de ocupações em que entretinha a vida, isso constituía um enigma. A verdade é que ela não parava um momento; a pé ou de carro, ela andava sempre numa roda-viva, entrando e saindo de casa muitas vezes durante o dia. Estava relacionada com pessoas das mais diversas camadas sociais. Recebia a todo momento visitas de pessoas que vinham falar-lhe de negócios e geralmente se demoravam breves instantes. Quando a campainha tocava, a mamã costumava retirar-se comigo para os nossos aposentos, o que era motivo para Ana Fedorovna se zangar e repetir-nos continuamente que éramos umas orgulhosas. «Ainda se tivessem de que se orgulhar, vá — dizia —; mas na situação em que se encontram, sem terem nenhum motivo de orgulho...» E durante horas seguidas não se calava, sempre no mesmo tom. Eu nunca lhe ouvira estas censuras; só agora, ao escutá-las, compreendi, ou antes, adivinhei a razão por que minha mãe se negara, a princípio, a aceitar a hospitalidade que minha prima lhe oferecia.
É uma má mulher e o seu gosto era atormentar-nos constantemente. Ainda hoje não consigo descortinar o motivo por que nos teria convidado a ir viver para a sua companhia. A princípio, ainda nos tratou razoavelmente, era mesmo carinhosa connosco; mas não tardou em mostrar o seu verdadeiro caráter, logo que lhe foi possível verificar que nos achávamos desamparadas de todo e inteiramente à sua mercê. Mais tarde, voltou a ter comigo as atenções anteriores, talvez exageradas; chegava, por vezes, a dirigir-me lisonjas descabidas; mas, antes disso, sofri tanto como a minha mãe. A cada passo nos dirigia ásperas censuras, lançando-nos em rosto os benefícios que nos fazia. Apresentava-nos aos estranhos como parentes pobres — uma viúva e uma órfã desamparadas, que só por caridade cristã recebera sob o seu teto e sentara à sua mesa. À hora das refeições, não tirava os olhos dos bocados que levávamos à boca. No entanto, se não comíamos, ou comíamos pouco, isso não era para ela motivo de regozijo; perguntava-nos então se não achávamos boa a comida, se lhe encontrávamos qualquer defeito... «Dou-lhes do que tenho e do mesmo que eu como — declarava. — Talvez vocês sozinhas pudessem arranjar-se melhor, isso não sei...» Estava sempre a dizer do papá tudo o que há de pior; não podia viver sem o criticar. Afirmava que ele quisera ser sempre mais do que ninguém, mas agora podia ver-se a verdade: deixara uma viúva e uma órfã, condenadas a morrer de fome na rua se não tivessem encontrado uma alma caritativa entre os parentes, isto é, ela. E isto ainda não era nada! As suas palavras causavam mais asco do que sofrimento. A mamã levava a vida a chorar. A sua saúde piorava de dia para dia, enfraquecia a olhos vistos; contudo, trabalhávamos de manhã à noite. Costurávamos para fora, o que não agradava muito a Ana Fedorovna. Dizia que a sua casa não era nenhuma oficina. Nós, porém, para nos vestirmos, tínhamos de trabalhar, isto para não necessitarmos de que nos dessem tudo. Por isso, trabalhávamos o mais que podíamos e íamos economizando, a fim de um dia dispormos do bastante para alugarmos um quartinho para nós ambas. Mas o mal de minha mãe, devido ao excessivo trabalho, foi-se agravando; cada dia estava mais fraca. A doença minava-lhe a existência e ia-a empurrando para a cova. Eu via-o, sentia-o e nada podia fazer para o evitar!
Os dias sucediam-se, sempre iguais. Levávamos uma vida recatada, como se vivêssemos na aldeia. Ana Fedorovna, à medida que verificava a sua absoluta superioridade e que nada tinha a temer, ia-se humanizando. De resto, nunca a havíamos contrariado. O nosso quarto ficava separado do dela por um corredor e contíguo ao de Pokrovski, como já disse. O estudante ensinava a Sacha francês e alemão, história e geografia, isto é, todas as ciências, como Ana costumava dizer. Em paga, não lhe cobravam qualquer importância pela comida.
Sacha tinha então cerca de treze anos; era muito inteligente, mas extremamente grosseira. Certo dia Ana Fedorovna lembrou à minha mãe que talvez fosse conveniente eu receber algumas lições juntamente com a mocita, já que deixara o colégio antes de terminar os meus estudos.
A mamã ficou, naturalmente, muito satisfeita e, assim, Pokrovski deu-nos lição às duas, durante um ano.
O referido Pokrovski era um rapaz muito pobre, cuja saúde não lhe permitira seguir regularmente os seus estudos universitários. Por isso, só por força do hábito é que lá em casa lhe chamávamos estudante. Levava uma vida tão modesta e tranquila, que do nosso quarto nunca ouvíamos o mais ligeiro ruído no seu. Distinguia-se ainda por uma singularidade do seu exterior: era um pouco curvado e o seu andar era desajeitado; e tinha uma pronúncia tão esquisita que, a princípio, logo que o via desatava a rir. Sacha, especialmente durante a lição, estava sempre a ridicularizá-lo. Ele, porém, também não lhe ficava a dever nada; encolerizava-se com frequência; a menor graça punha-o fora de si; ralhava connosco, soltava berros e, às vezes, levantava-se e saía furioso, dando por finda a lição antes do tempo, indo meter-se no quarto. Ali passava dias inteiros, sentado a ler. Dava também lições noutras casas, e o dinheiro que ganhava aplicava-o logo na compra de mais livros.
Com o andar do tempo, fui-o conhecendo mais a fundo, acabando por verificar que era o homem mais honrado e bondoso que até então eu conhecera. A mamã tinha-o também em grande estima. Com a convivência chegou a ser o meu melhor amigo... depois de minha mãe, claro.
Ao princípio, apesar de eu já ser uma mulherzinha, associava-me a todas as partidas que Sacha tramava contra ele; às vezes passávamos horas inteiras a estudar a forma de fazermos troça dele e pôr à prova a sua paciência. Tornava-se verdadeiramente caricato quando se zangava, e nós queríamos divertir-nos à sua custa. Ainda hoje sinto vergonha quando me lembro disso. Certo dia irritámo-lo tanto, que o pobre até chorou; e ouvi-o então murmurar por entre dentes: «Que crianças tão más!» Fiquei desorientada: despertava em mim, pela vez primeira, como que um misto de vergonha, pesar e compaixão. Corei até à raiz dos cabelos e, com as lágrimas a bailarem-me nos olhos, supliquei-lhe que não se ofendesse com as nossas grosseiras travessuras. Mas ele fechou o livro e encaminhou-se para o seu quarto, sem terminar a lição.
Os remorsos não me deixaram durante todo o dia. Era para mim um verdadeiro tormento a ideia de que, com as nossas crueldades de moças, o fizéramos exasperar a ponto de lhe saltarem as lágrimas dos olhos. Quer dizer que foram só as suas lágrimas que nos fizeram arrepender! E a sua irritabilidade, sem dúvida doentia, que nós nos comprazíamos em excitar? E o esgotamento da sua paciência? E o facto de havermos obrigado o pobre rapaz a sentir mais a infelicidade da sua triste condição?
Não consegui pregar olho em toda a noite, de tal modo os remorsos me torturavam. Costuma dizer-se que o pesar e os remorsos aliviam o espírito. Pois é o contrário! Como, não sei; mas o certo é que aliado ao meu pesar andava uma pontinha de orgulho. Não me conformava com a ideia de que ele me julgasse uma criança. Contava eu nessa altura quinze anos.
A partir de então, o meu único pensamento foi procurar conseguir que Pokrovski mudasse de opinião a meu respeito. Formei mil projetos para atingir o meu objetivo, mas a timidez obstou a que os pusesse em prática; nunca me decidia por nenhum, de modo que tudo ficou em planos e sonhos. E que sonhos os meus, Santo Deus! Daí em diante, porém, jamais me associei às brincadeiras de mau gosto de Sacha, e esta mesmo, pouco a pouco, foi-se corrigindo também. Assim, o estudante não teve mais motivos para se zangar connosco. Contudo isso não era compensação bastante para o meu orgulho.
Quero traçar aqui meia dúzia de palavras acerca do homem mais invulgar e mais digno de compaixão que conheci. E é neste lugar que o desejo fazer, porque a partir do dia a que vou referir-me, ele, com quem nunca até então me preocupara nem muito nem pouco, começou a ganhar vulto nos meus pensamentos.
Aparecia às vezes em nossa casa um velhote baixinho, mal vestido e sujo, de cabelo branco, meio trôpego, em suma de características verdadeiramente invulgares. À primeira vista, dir-se-ia que sentia vergonha dele próprio e que pedia perdão de haver nascido. Pelo menos, encolhia-se muito ou esforçava-se por se tornar mais pequeno ainda, por se reduzir à ínfima espécie. Quem observasse as suas maneiras e os seus gestos estranhos convencer-se-ia de que se tratava de uma criatura sem o juízo todo. Quando vinha a nossa casa, ficava sempre muito direito por trás da porta envidraçada, não se atrevendo a entrar. Se, por acaso, Sacha ou eu íamos ao corredor e o víamos ali parado, ele começava a fazer-nos sinais para nos chamar a atenção; e se nós, também por gestos, lhe dávamos a entender que não se encontrava lá qualquer pessoa estranha, ou o chamávamos em voz alta, o pobre ganhava coragem, abria, devagarinho, a porta e entrava, com um sorriso nos lábios. Em seguida esfregava as mãos e, em bicos de pés, dirigia-se para o quarto de Pokrovski. Era o seu pai.
Mais tarde, soube pormenorizadamente a história desse pobre homem. Fora, em tempos, empregado não sei onde; mas, por falta de habilitações, ocupara sempre um lugar insignificante e modesto. Após a morte de sua primeira mulher — mãe de Pokrovski —, voltara a casar com uma burguesa. Jamais reinara a paz naquela família; a nova consorte apoderara-se do mando e levara aquele lar à ruína, de modo que o pobre homem vira-se em piores circunstâncias do que anteriormente. Pokrovski, então com dez anos, fartara-se de sofrer as consequências do ódio da madrasta, até que a sorte o protegera e as coisas para ele tomaram novo rumo. Buikov, um proprietário que conhecera em tempos o pai e lhe dispensara certa proteção, tomara a seu cargo o órfão e metera-o num colégio. Interessava-se pelo rapaz pela simples razão de que conhecera a sua falecida mãe quando esta, protegida por Ana Fedorovna, gozava dos seus benefícios e por seu intermédio casara com o empregado Pokrovski. Quando do casamento, o Sr. Buikov, como bom amigo de Ana Fedorovna, dera à noiva o dote de cinco mil rublos. O que foi feito desse dinheiro, não sei. Tudo isto me foi contado pela própria Ana Fedorovna, pois o estudante nunca me falou da sua família e não gostava que lhe fizessem perguntas acerca dos seus pais. Consta que sua mãe fora muito bonita, pelo que são deveras incompreensíveis as razões que a levaram a contrair uma união tão desvantajosa com aquele homem insignificante. Ela morreu muito nova ainda, ao cabo de quatro anos de casada.
Da escola, o jovem Pokrovski passou para o liceu e daqui para a Universidade, onde o Sr. Buikov, que ia frequentemente a S. Petersburgo, continuou a protegê-lo. Devido à sua débil saúde, porém, o jovem não pôde prosseguir os seus estudos; e foi então que o seu protetor o apresentou a Ana Fedorovna e lho recomendou, comprometendo-se ela a fornecer-lhe cama e mesa, com a condição de o estudante ensinar a Sacha todas as ciências.
Para se consolar dos maus bocados que a sua segunda mulher lhe fazia passar, o velho Pokrovski entregou-se ao pior dos vícios — a bebida —, de forma que andava quase permanentemente embriagado. A mulher dava-lhe pancada, fazia-o dormir na cozinha e levou a tal ponto os maus tratos que, com o andar do tempo, o infeliz sofria tudo sem replicar, acabando por nem soltar a mínima queixa. Não era ainda muito idoso, mas, em resultado da vida desregrada que levava, parecia, como disse não ter o juízo todo.
O único vestígio de sentimentos nobres que o pobre homem ainda mostrava, era o imenso amor pelo filho, que se parecia com a sua falecida mulher como duas gotas de água. Seria a recordação dela — que tão boa fora para ele — que alimentava no coração desse velho degenerado essa grande adoração pelo filho? Não falava noutra coisa; visitava-o duas vezes por semana, e não o fazia com mais frequência porque o jovem não gostava das visitas paternas. O desprezo que tinha pelo pai constituía, sem dúvida, o maior defeito do estudante. Na verdade, aquele, por vezes, tornava-se extremamente antipático, era demasiado curioso, tagarelava tanto que não deixava o filho trabalhar, fazia-lhe perguntas absolutamente descabeladas e, além disso, nem sempre se apresentava em estado normal. Com o tempo, o rapaz conseguiu fazê-lo perder os maus costumes, e o pai acabou por obedecer-lhe como a um deus, não se atrevendo sequer a abrir a boca sem sua ordem.
O pobre velho não encontrava palavras bastantes para elogiar o seu Petinka —como ele lhe chamava. Quando ia visitá-lo, levava sempre um aspeto preocupado, uma expressão tímida, certamente por ignorar o acolhimento que o filho lhe dispensaria. Geralmente, hesitava por muito tempo antes de entrar, e quando me lobrigava da porta, corria logo para junto de mim e assediava-me durante uma boa meia hora com perguntas acerca do seu Petinka: que estava a fazer, se se encontrava de boa saúde, que tal a sua disposição e se naquele momento trabalhava em qualquer coisa importante. Estaria a escrever, ou a estudar alguma obra filosófica? Finalmente, logo que eu lhe dava respostas suficientemente tranquilizadoras, resolvia-se a abrir devagarinho e com muito cuidado a porta do quarto do filho, metendo a cabeça pela abertura. Se visse que ele estava de bom cariz ou correspondia com um gesto à sua saudação, entrava deliberadamente no aposento, tirava a capa e o chapéu, sempre todo esburacado e às vezes sem abas, e pendurava-os num prego. Fazia tudo isto com o maior cuidado e sem causar o menor ruído. Em seguida, também com extrema cautela, sentava-se numa cadeira e para ali ficava, com os olhos fitos no filho, seguindo-lhe todos os movimentos e olhares, a ver se adivinhava o seu estado de espírito. Se, por acaso, compreendia que naquele dia o jovem se encontrava mal-humorado, levantava-se logo e dizia que tinha ido «só para passar um momento contigo, Petinka. Precisei de fazer um recado para muito longe e, como tinha de passar por aqui, disse: Vou entrar um bocadinho só para o ver e descansar um pouco. Agora vou-me embora, Petinka». E sem acrescentar mais palavra, pegava lentamente na sua velha e fina capa e no amolgado chapéu, fechava, com todo o cuidado, a porta atrás de si e saía, esforçando-se por sorrir e conter a mágoa que sentia no peito a fim de que o filho a não notasse.
Se, pelo contrário, o estudante lhe dispensava um acolhimento afetuoso, então o velho não cabia em si de contente. O seu rosto, os seus gestos, as suas mãos deixavam transparecer a alegria que lhe ia na alma. E se o filho entabulava conversa com ele, o pobre homem levantava-se na cadeira e respondia, num tom humilde e sossegado, quase respeitoso, esforçando-se sempre por adotar expressões estudadas, que como é natural, naquele caso se tornavam cómicas. Além disso, não tinha o dom da palavra, atrapalhava-se, intimidava-se e não sabia onde pôr as mãos nem o que fazer à sua pessoa; acabava por gaguejar as respostas, repetindo-as em voz baixa, como que para as retificar. Mas se, por acaso, conseguia responder em condições ficava todo vaidoso, alisava o casaco, compunha a gravata, sacudia o pó das lapelas e o seu semblante ganhava um certo ar de importância.
Em certos dias mostrava tal desenvoltura que quase se tornava atrevido; levantava-se da cadeira, ia direito à estante dos livros, pegava num à sorte e punha-se a ler. E fazia tudo isto com todo o desembaraço e sangue-frio, como se estivesse sempre autorizado a mexer nos livros, conforme lhe apetecesse, e as suas relações com o filho nada tivessem de especial. Mas um dia tive ocasião de ver o pobre velho assustar-se por o filho lhe pedir que não tocasse nos livros, Perdeu por completo a estribeira, apressou-se a reparar o seu erro, quis colocar no respetivo sítio o exemplar em que pegara, mas ele escorregou-lhe e caiu ao chão; apanhou-o com toda a rapidez, tentou encaixá-lo novamente entre os outros, mas não o conseguiu, deixando-o cair outra vez, agora de lado; sorriu sem vontade, pôs-se muito vermelho e acabou por não atinar com a forma de corrigir o mal feito.
Pouco a pouco, com admoestações e afetuosas censuras, o filho foi conseguindo que o pai perdesse os seus maus hábitos; e quando o velhote lhe aparecia três vezes seguidas sem estar embriagado, à quarta dava-lhe vinte e cinco ou cinquenta kopeks, e até mais. Comprava-lhe calçado, um casaco ou uma gravata. O pobre homem, quando aparecia com estas coisas novas, impava de orgulho como um galo. Às vezes também vinha passar uns momentos connosco, e levava-nos, a mim e a Sacha, tortas e maçãs. Conversava connosco acerca do seu Petinka, com toda a naturalidade. Pedia-nos que estivéssemos muito atentos às lições e guardássemos respeito ao nosso professor, pois Petinka era um bom filho, o melhor dos filhos e, além disso, um filho muito ilustrado. Quando dizia isto, piscava-nos comicamente o olho esquerdo e dava-se tal importância, que nós, quase sempre, não nos podíamos conter e desatávamos a rir. A mamã tinha grande simpatia pelo velhinho; este, por sua vez, detestava Ana Fedorovna, embora na sua presença se mostrasse mais humilde que a erva e mais calmo do que a água.
Bem depressa deixei de assistir às lições. Pokrovski continuava a ter-me na conta de uma criança malcriada, uma garota como Sacha. Tal facto desgostava-me em extremo, pois eu fizera tudo para modificar a minha conduta anterior. Mas de nada valia; ele não reparava, o que me feria o amor-próprio e me irritava cada vez mais. Fora das horas das lições quase não lhe dirigia a palavra, porque não podia falar. Punha-me muito vermelha e depois ia chorar, às escondidas, para um canto... revoltada contra mim mesma. É difícil de prever a que estado teriam chegado estas coisas, se não fosse um acidente puramente casual nos ter facilitado a aproximação. Foi o seguinte:
Uma tarde, estando a mamã sentada junto de Ana Fedorovna, às escondidas, entrei no quarto de Pokrovski. Sabia perfeitamente que ele não estava; contudo, não poderia explicar bem como me lembrei de me introduzir daquele modo no quarto de um homem. Apesar de vivermos há mais de um ano com uma simples parede de permeio, era a primeira vez que o fazia. O coração pulsava-me com tal violência, que me dava a impressão de saltar fora do peito. Circunvaguei pelo quarto um olhar de curiosidade. O aposento era de uma simplicidade extrema, e encontrava-se pobremente mobilado, e em completa desordem. Viam-se papéis sobre as cadeiras e em cima da mesa. Livros e papéis por toda a parte! De súbito, veio-me à imaginação uma estranha ideia: que a minha amizade e até mesmo o meu amor nada podiam significar para Pokrovski. Ele era um homem culto, enquanto eu não passava de uma ignorante, que não sabia nada, não lia nada, não possuía um único livro... Com que avidez contemplei aquela comprida estante, tão carregada de livros que dava a impressão de estar prestes a cair por não aguentar o peso! Senti inveja, pena, nostalgia e cólera!... Apoderou-se, então, de mim, um desejo enorme de ler aqueles livros, os seus livros, de lê-los todos, do primeiro ao último, e o mais depressa possível. Não sei, mas talvez pensasse que, depois de haver lido tudo aquilo e saber tanto como ele, poderia conseguir a sua amizade muito mais facilmente do que antes, quando nada conhecia. O certo é que fui direita à referida estante e, sem qualquer hesitação, nem sequer refletir no que fazia, peguei no primeiro livro que me veio à mão — um calhamaço muito velho e coberto de pó — e, a tremer de susto e de nervoso, levei-o para o meu quarto, a fim de o ler à noite, à luz da lamparina, depois de a mamã adormecer.
Qual não foi, porém, o meu desapontamento quando, já no meu quarto, abri o livro furtado e verifiquei tratar-se de uma obra em latim muito velha, amarelecida pelo tempo e roída da traça! Corri, sem perda de tempo, a repor o exemplar no respetivo sítio. Mas, no preciso momento em que tratava de o colocar lá, dei fé de abrirem e fecharem a porta do corredor e, em seguida, senti o rumor de passos. Alguém entrava! Procurei desfazer-me do calhamaço rapidamente; mas quando o retirara, os seus camaradas do lado foram ocupar o seu lugar e, agora, só comprimindo-os se conseguiria encaixá-lo. Foram baldados os meus esforços. Os passos já se ouviam muito perto; eu continuava a tentar desesperadamente atingir o meu objetivo, quando o prego que segurava uma das extremidades da estante, como se estivesse à espera daquele momento, se quebrou. O móvel caiu estrondosamente e bateu com um extremo no chão, ficando os volumes todos em desordem sobre o soalho. Então a porta abriu-se e Pokrovski entrou.
Antes de mais nada, devo observar que o estudante não admitia que se atrevessem a mexer-lhe nas suas coisas. Ai daquele que lhe tocasse, especialmente, nos livros! Imaginem, pois, a sua indignação ao ver rodarem pelo solo todos os seus livros — grandes e pequenos, encadernados e em brochura! Misturados uns com os outros, foram parar debaixo da mesa e das cadeiras e bater contra a parede, onde formaram pilha Eu quis deitar a correr, mas já era tarde de mais. «Acabou-se — pensei —; já não tem remédio! Estou perdida! Sou desastrada como uma criança de dez anos, uma estúpida moça! Que grande tola!»
Pokrovski ardia em cólera.
— Só faltava esta! — exclamou, irado. — Não tem vergonha, menina? Nunca mais ganhará juízo e não esquecerá de uma vez para sempre as criancices do colégio?
Dito isto, apressou-se a apanhar os livros e eu abaixei-me para o ajudar.
— Não é preciso, não é preciso — prosseguiu ele em tom irritado. — Faria melhor não metendo o nariz onde não é chamada!
Contudo, a minha silenciosa intenção de o auxiliar, que bem mostrava a consciência da minha culpa, pareceu suavizá-lo um pouco. E prosseguiu, em tom mais brando, a admoestar-me, tal como pouco tempo antes me falava na qualidade de professor.
— Quando se resolverá a deixar de fazer coisas no ar e a ganhar juízo? Lembre-se de que já não é nenhuma criança... é uma mocinha de quinze anos!
E, de súbito, como que para se certificar de que eu de facto não era nenhuma criança, fitou os olhos em mim e corou intensamente. Não compreendi o motivo do seu rubor; de pé na frente dele, contemplava-o, atónita, com os olhos muito abertos. Então, com um ar embaraçado, deu dois passos na minha direção e, cada vez mais enleado, balbuciou qualquer coisa em voz baixa, pretendendo talvez pedir desculpa de não haver reparado há mais tempo que eu era já uma mulherzinha. Por fim, compreendi. Não me lembro agora do que então senti; preguei logo os olhos no chão, envergonhada; pus-me mais corada do que Pokrovski, tapei o rosto com as mãos e deixei o aposento, a correr.
Não sabia o que tinha, nem onde esconder a minha vergonha. Ter sido surpreendida no seu quarto! Durante três dias não me atrevi a olhar para ele. Corava de tal modo, que as lágrimas me brotavam dos olhos. Agitavam-se-me no cérebro os mais horríveis e ridículos pensamentos. O mais extravagante de todos era de ir ter com ele, explicar-lhe, confessar-lhe e contar-lhe tudo tal como se passara, garantindo-lhe depois que o meu procedimento não fora uma leviandade de garota, mas antes uma ação animada do melhor propósito. Quando já estava quase resolvida a levar por diante o meu intento, felizmente faltou-me a coragem e não me atrevi a fazê-lo. Arranjava-a bonita! Ainda hoje, só de o pensar me envergonho.
Alguns dias depois, a mamã adoeceu gravemente, com febre. Esta foi aumentando, aponto de na terceira noite de doença cair em delírio intenso. Eu passara uma noite em claro, à cabeceira, para lhe ministrar às devidas horas os remédios que o médico receitara. Na noite seguinte, faltaram-me as forças e senti-me esgotada de todo. De vez em quando os olhos fechavam-se-me, via dançar na minha frente uns pontinhos verdes, a cabeça andava-me à roda e parecia-me estar prestes a perder os sentidos. Então, era despertada por um ligeiro gemido da doente; soerguia-me e ficava alerta por mais um bocadito, para voltar a amodorrar-me, vencida pela fadiga. Durante esses breves momentos de sono, assaltavam-me pesadelos. Não me lembro bem, mas recordo-me de que eram terríveis e, durante a luta que travava com o cansaço, cada vez maior, horrorosas visões me atormentavam. Acordava sobressaltada. A lamparina apagava-se e o aposento mergulhava na escuridão. Depois a luz despontava outra vez e um claro esplendor iluminava o quarto, para, a seguir, aquela se transformar numa chama azulada que projetava nas paredes sombras oscilantes e, por fim, mergulhar tudo em impenetráveis trevas. De uma das vezes assustei-me sobremodo e fui tomada de um temor extraordinário; os meus sentidos e a minha fantasia achavam-se sob a impressão do horrível pesadelo que tivera e o medo oprimia-me o coração. Levantei-me da cadeira a tremer e, movida por aquele medo torturante, deixei escapar dos lábios um grito aflitivo. No mesmo instante a porta abriu-se e Pokrovski entrou no aposento.
Lembro-me apenas de ter sido nos seus braços que despertei daquele horrível pesadelo. Instalou-me cautelosamente numa cadeira, deu-me um copo de água e, com ar preocupado, fez-me várias perguntas, às quais não sei o que respondi.
— A menina está doente, muito doente — dizia, com as minhas mãos nas suas. — Tem febre. Não cuida de si, dá cabo da saúde. Sossegue, deite-se e durma. Daqui a duas horas, acordo-a, esteja tranquila. Deite-se e durma descansada — ordenou-me sem me dar tempo a protestar.
Com efeito, a fadiga dera-me conta das energias e os olhos fechavam-se-me de fraqueza. Deitei-me então, resolvida a passar pelo sono meia hora apenas, mas dormi até ser dia. Pokrovski acordou-me precisamente à hora de dar o remédio à minha mãe.
No dia seguinte, quando pelas onze horas, após um breve descanso, me dispunha a velar a mamã, desta vez firmemente decidida a não adormecer, bateram à porta. Abri... e dei de cara com o estudante.
— Pensei que era muito aborrecido estar aí sozinha — disse-me —; por isso trago-lhe este livro para a distrair um pouco.
Peguei no livro — já não me lembro do título — mas pouco li, apesar de ter passado quase toda a noite em claro. Uma extraordinária excitação não me permitia conservar-me quieta um instante; não conseguia dormir, nem tão-pouco ficar por muito tempo sentada, levantando-me por isso a cada passo, para passear pelo aposento. Uma estranha agitação interior agitava todo o meu ser. Causava-me enorme contentamento a atenção de Pokrovski e sentia-me orgulhosa daquela gentileza e dos cuidados que por mim demonstrava. Passei toda a noite a pensar nisso e a sonhar acordada. Ele não apareceu mais e eu sabia muito bem que não voltaria durante aquela noite, mas esforçava-me por fantasiar o nosso próximo encontro.
Na noite seguinte, quando já todos se encontravam deitados, o estudante abriu a porta do seu quarto e pôs-se dali a falar comigo. Já não me recordo de nada do que dissemos um ao outro; apenas me lembro de que estava perturbada e confusa, e revoltada contra mim própria, e que esperava com impaciência o fim da conversa, apesar de tão ardentemente a ter desejado, e durante todo o dia não haver pensado noutra coisa, chegando mesmo a ensaiar, em imaginação, as minhas perguntas e respostas.
Começaram ali as nossas relações de amizade, e enquanto durou a doença da mamã, passávamos assim algumas horas da noite. Fui, pouco a pouco, vencendo a minha timidez, embora após cada colóquio tivesse mais motivos para estar descontente comigo própria. Ao mesmo tempo, porém, sentia grande alegria e secreto orgulho por ver que ele abandonava, por minha causa, os seus horríveis calhamaços.
Um dia, por acaso, a conversa recaiu sobre o incidente da queda da estante, e referimo-nos a ele em tom de brincadeira. Que momento extraordinário aquele! Creio que me exprimi com absoluta franqueza e ingenuidade. Senti-me arrebatada por uma singular inspiração e confessei-lhe tudo: que queria estudar para aprender, para saber, e quanto me magoava que me considerassem uma criança... Como digo, encontrava-me naquele momento com uma disposição de espírito especial; o meu coração trasbordava de ternura e as lágrimas afloravam-me aos olhos. Contei-lhe tudo, sem lhe omitir a mínima particularidade: o carinho que ele me inspirava, o meu desejo de o amar, de o ter sempre junto do meu coração, de o consolar, de o ajudar pela vida fora...
Ele contemplava-me de modo estranho, parecia ao mesmo tempo perturbado e surpreendido e não proferia palavra. A sua atitude fez-me pena e, de súbito, invadiu-me a tristeza. Pensei que ele não me compreendia e talvez intimamente se risse à minha custa. As lágrimas brotaram-me dos olhos e desatei a chorar como uma criança; era impotente para me conter, estava como que dominada pela vertigem. Então, pegou-me nas mãos, beijou-mas, e apertou-mas de encontro ao seu peito; e, carinhosamente, começou a dizer-me coisas para me consolar. As minhas palavras tinham decerto calado fundo na sua alma, pois dava mostras de grande emoção. O que então me disse, não sei; eu chorava e ria ao mesmo tempo, corava, voltava a chorar de alegria e não conseguia articular palavra. Apesar, porém, da minha agitação, notei que Pokrovski se conservava embaraçado e como que coagido. Surpreendera-o, sem dúvida, o meu arrebatamento sentimental, aquela súbita e apaixonada ternura. A princípio, talvez lhe tivesse despertado apenas curiosidade, mas depois acabou por perder toda a reserva; correspondia ao meu afeto, à minha dedicação, com sentimentos não menos sinceros e verdadeiros, e manifestava-me delicadeza e ternura de amigo leal, como se fora meu irmão. Que alegria experimentava o meu coração e que bem me fazia o seu afeto! Eu não lhe ocultava coisa alguma, não usava com ele de dissimulação; mostrava-me aos seus olhos tal como era, e de dia para dia mais se ia aproximando de mim e o nosso amor aumentava...
Na verdade, não me seria fácil dizer as palavras que trocávamos naquelas horas torturantes e ao mesmo tempo tão agradáveis dos nossos colóquios noturnos à luz trémula da lamparina, que ardia diante do oratório, e quase chegados ao leito da minha pobre mãe... Falávamos de tudo o que nos vinha à ideia, de tudo o que nos enchia os corações, e éramos quase felizes... Que período triste e ao mesmo tempo alegre! Ainda hoje o recordo com tristeza e alegria. As recordações são sempre pungentes, quer sejam alegres ou melancólicas. É, pelo menos, o que sucede com as minhas; mas essa tortura vem sempre acompanhada de certa dose de prazer. E quando nos ataca a melancolia e a tristeza se apossa do nosso coração, quando aos sentimos lacerados e tristes, as recordações servem-nos de lenitivo e vivificam-nos, tal como o fresco orvalho que, após um dia de canícula, refrigera, na tarde húmida, as pobres flores murchas pelo ardor do sol, e lhes dá nova vida,
A mamã já se encontrava muito melhor, mas, apesar disso, continuei a passar as noites à sua cabeceira. Pokrovski emprestava-me livros. Ao princípio, lia apenas para não adormecer; mas depois começaram a interessar-me, e acabei por devorá-los com verdadeira sofreguidão. Um novo mundo de coisas desconhecidas e não imaginadas se abria diante de mim. Na minha alma agitavam-se novos pensamentos e novas impressões, e quanto maior fosse a excitação, quanto maiores o trabalho e a luta para conseguir assimilar dentro de mim essas novas impressões, tanto mais queridas se me tornavam e tanto mais alegremente sacudiam todo o meu ser. Penetravam-me de., súbito no coração afugentando dele a tranquilidade e transformando-o num horrível caos. Porém, aquele domínio exercido sobre o meu espírito não era bastante forte para me aniquilar. Eu era demasiado idealista e sonhadora, e esse facto salvou-me.
Logo que minha mãe se restabeleceu por completo, cessaram as nossas entrevistas e os longos colóquios noturnos. Depois só de vez em quando se nos deparava ocasião de trocar meia dúzia de palavras insignificantes e indiferentes; mas consolava-me a ideia de que a cada uma daquelas palavras sem importância eu atribuía um significado particular, dando-lhe a entender um sentido secreto. Sentia que a minha vida tinha um objetivo, por isso era feliz, tranquilamente feliz. E assim passaram várias semanas...
Um dia, o velho Pokrovski veio visitar-nos. Falou muito connosco, acerca das coisas mais diversas, dando mostras de grande contentamento, e até se excedeu um pouco em gracejos e ditos espirituosos — espirituosos a seu modo, bem entendido. Por fim, saiu-se com a grande novidade que era a causa daquela alegria e boa disposição, dizendo-nos que na semana próxima se verificava o aniversário de Petinka e que todos os anos, nesse dia, costumava visitar o filho. Para o efeito, envergaria o fato novo, e sua mulher prometera comprar-lhe umas botas novas. Em suma: o velho estava radiante e falava pelos cotovelos.
Era então o aniversário do nascimento de Pokrovski! Essa ideia não me deixou em sossego nem de dia, nem de noite. Para lhe testemunhar a minha amizade, resolvi oferecer a Petinka uma prenda. Mas qual? Finalmente, tive a boa ideia de lhe oferecer livros. Sabia que ele andava mortinho por conseguir a última edição das Obras Completas de Pouchkine e decidi comprar-lhas. A minha fortuna pessoal eram uns trinta rublos que ganhara na costura Tinha destinado esta quantia à aquisição de um vestido novo. Contudo, mandei logo a nossa cozinheira, a velha Matriona, à livraria mais próxima saber o preço daquelas obras. Que horror! Os onze volumes, encadernados, custavam sessenta rublos. Onde havia de ir buscar tão elevada importância? Examinei o problema com todo o cuidado e sob todos os aspetos, mas não encontrei solução. Não queria pedir dinheiro à mamã. Estou certa de que se apressaria a dar-mo; mas ter-me-ia perguntado para que precisava dele, e assim todos ficariam a saber que eu queria presentear Petinka. Além disso, não seria considerado um presente, mas simplesmente a paga dos serviços que o jovem me havia prestado durante o ano. Por isso o meu desejo era oferecer-lhe os livros, eu só, sem que ninguém soubesse. Pelos ensinamentos que o estudante me ministrava, ficar-lhe-ia grata para sempre, mas queria que esta gratidão se traduzisse apenas em amizade. Por fim, consegui uma solução.
Sabia que nos estabelecimentos de velharias do Gostinii Dvor se podem adquirir livros quase novos por metade do seu preço, desde que se regateie um pouco. Às vezes apareciam lá exemplares muito pouco usados, ou mesmo completamente novos. Optei por este partido e resolvi ir ao mercado na primeira vez que saísse. A ocasião proporcionou-se-me no dia seguinte. Tanto a mamã como Ana Fedorovna precisavam de comprar umas coisas; esta, porém, felizmente para mim, não estava com vontade de sair e, assim, encarregaram-me de ir fazer as compras em companhia de Matriona.
Encontrei logo a obra que desejava, primorosamente encadernada e em muito bom estado. Ao princípio pediram-me por ela mais do que ela custava nova; mas, depois de grande trabalho da minha parte e de haver simulado, por várias vezes, desinteressar-me e dirigir-me a outra parte, o homenzinho fixou o preço em trinta e cinco rublos. Que bom fora ter regateado tanto! A pobre Matriona não podia compreender o que se passava nem a razão do meu empenho em adquirir tantos livros de uma vez só. Mas, ó desgraça das desgraças! Eu só dispunha de trinta rublos, e o comerciante não me queria dar os volumes mais baratos do que o preço referido. Pedi e implorei, e tanto fiz por o convencer, que ele, por fim, já mos dava por menos dois rublos e meio, mas jurando e tornando a jurar que não abaixaria mais o preço; e que era por ser para mim, por se tratar de uma menina tão simpática, pois qualquer outro cliente teria de pagar muito mais. Ainda me faltavam dois rublos e meio! Estava capaz de chorar de desgosto. Mas, de súbito, uma circunstância inesperada veio em meu auxílio.
Não longe de mim, junto de outro tabuleiro, encontrava-se o velho Pokrovski, no meio de quatro ou cinco negociantes de livros. Todos, à porfia, lhe recomendavam a sua mercadoria — livros de todos os gostos imagináveis —, de modo que o pobre homem parecia perplexo, não sabendo os que comprar. Não podia comprá-los todos! Por quais optar? Aproximei-me e perguntei-lhe o que procurava. O velho ficou radiante ao ver-me, pois queria-me muito, embora não tanto como ao seu Petinka.
— Olhe, Bárbara Alexeievna: estou a ver se compro uns livritos — respondeu-me — para o Petinka, sabe? Aproxima-se o seu aniversário, e como o que ele aprecia mais neste mundo são os livros, disse de mim para comigo: «Vou comprar-lhe uns livritos...»
O pobre homem costumava exprimir-se de um modo vago, e naquele momento encontrava-se absolutamente perdido da cabeça. Qualquer dos livros expostos não custaria menos de um rublo, e alguns até dois ou três. Os volumes grandes não os podia comprar; apenas os olhava de soslaio, com um sorriso guloso, ou então folheava-os devagarinho, com muito cuidado e respeito, mirava-os e remirava-os, virava-os de um lado e do outro e acabava por os repor no respetivo lugar.
— Não, não; isto é muito caro — dizia a meia voz. — Vejamos estes... — E começava a mexer no monte de folhetos e opúsculos, nos livros de poesias e nos almanaques velhos, que, naturalmente, eram baratos.
— Mas, que vai comprar? — perguntei-lhe. — Esses folhetos não prestam.
— Ora essa! — tornou-me. — Olhe que bonitos livros aqui há...
Proferiu estas palavras num tom repassado de tal tristeza, que receei que irrompesse em choro... com pena de os livros bons serem tão caros. E, na verdade, uma lagrimazita deslizou-lhe até ao seu rubicundo nariz.
Apressei-me a perguntar-lhe quanto dinheiro trazia.
— Este todo — respondeu-me o pobre homem tirando do bolso o seu capital, que trazia embrulhado num bocado de jornal todo sujo: algumas moedas de prata e vinte kopeks em cobre.
Eu levei-o para junto do meu livreiro.
— Olhe: estão aqui dozes volumes que custam, todos, trinta e dois rublos e meio. Eu tenho trinta; dê-me os dois e meio que possui; compramos os livros e somos os dois a oferecer-lhos.
O velho ficou louco de alegria; com as suas trémulas mãos, tirou do bolso todo o dinheiro e dispôs-se a carregar com a nossa improvisada biblioteca. Meteu volumes em todos os bolsos e colocou os restantes debaixo dos braços, encaminhando-se para sua casa, tendo-me antes jurado que no dia seguinte os levaria ao meu quarto, sem que ninguém desse fé.
De facto, no outro dia o pobre homem foi visitar o filho; demorou-se com ele cerca de uma hora, como de costume e, em seguida, veio visitar-nos, apresentando o seu rosto um ar verdadeiramente cómico e misterioso. Sorrindo e esfregando as mãos, intimamente orgulhoso de possuir um segredo, comunicou-me, muito em particular, que os livros já se encontravam em minha casa, escondidos na cozinha, onde, com a proteção de Matriona, se poderiam conservar até ao aniversário de Petinka.
A seguir, a conversa, como é natural, recaiu sobre a solene festa que se aproximava. Falou dela com grande entusiasmo, e expôs como, segundo ele, se devia fazer a entrega da prenda. À medida que a conversa se ia prolongando, sempre sobre o mesmo assunto e cada vez mais ambígua, mais me convencia de que o velho tinha para me dizer qualquer coisa que não queria ou não sabia exprimir, ou que talvez não se atreveria a manifestar-me sequer. Eu esperava, calada. Pouco a pouco iam-se apagando do seu rosto a misteriosa alegria e a cómica satisfação que os seus gestos, as suas maneiras, os seus sorrisos e -até o piscar do seu olho esquerdo denunciavam a princípio. Era evidente que no íntimo não reinava a tranquilidade e que se encontrava preocupado e triste. Por fim, não pôde conter-se mais e começou, com voz tímida:
— Olhe, Bárbara Alexeievna... Sabe, Bárbara Alexeievna? — O pobre velho estava embaraçado. — Sim, vai ver: no dia do aniversário, a menina pega em dez livros e oferece-lhos, sabe? Depois, ofereço-lhe o restante, eu só, isto é, apenas em meu nome. Está a ver: a Bárbara tem de lhe oferecer alguma coisa, e eu também; assim, ambos teremos que lhe dar...
Era tal a sua perturbação, que não pôde prosseguir. Eu levantei os olhos do meu lavor; muito sentadito, esperava decerto, a tremer, a minha resposta...
— Porque não quer que façamos a oferta em comum, Zakar Petrovitch? — perguntei.
— Está muito bera, Bárbara Alexeievna, está muito bem; eu apenas queria dizer...
Em suma: o velhote, embaraçado, não atinava com o que dizer; por isso calou-se por momentos.
— Olhe — continuou por fim. — Eu queria dizer-lhe que tenho os meus defeitozitos, isto é, às vezes não me porto lá muito bem; confesso-lhe que faço tolices, Bárbara Alexeievna... que não estão bem. É verdade: não estão bem... Mas é que... vai ver... Quando na rua está muito frio, ou a gente quer esquecer certos desgostos, ou lhe sucedeu alguma coisa desagradável e não quer pensar nisso... empurra a porta da taberna, entra e bebe um copito a mais... Quem não gosta muito disto é Petruchka. Zanga-se comigo, ralha-me e dá-me conselhos. Quero, por isso, oferecer-lhe qualquer coisa, para lhe provar que as suas lições de moral me têm aproveitado e que já me porto melhor e até economizo uns patacos para lhe comprar um livro. As minhas economias são do dinheiro que ele me dá, pois não disponho de outro, como ele bem sabe; assim, verá com gosto que faço dele bom uso e o gasto exclusivamente em proveito dele!
Fiquei profundamente comovida com as palavras do pobre velho.
— Olhe, Zakar Petrovitch — disse-lhe —, ofereça-lhos você todos!
— Que me diz? Os onze volumes?
— Sim, os onze.
— Os onze, eu só?
— Você só.
— Mas... como sendo eu só a oferecer-lhos? Sem lhe falar em si?
— Sim, isso mesmo.
Julgo ter sido bastante clara; contudo, só ao fim de muito tempo o homenzinho conseguiu compreender-me.
— Pois bem — exclamou depois de refletir. — Isso seria esplêndido, magnífico. Mas, e você, Bárbara Alexeievna?
— Eu? Ora, não lhe ofereço nada, aí está.
— Como! — exclamou, espantado. — Não oferece nada a Petinka? Não quer dar-lhe uma prenda?
Tenho a certeza de que naquele momento o velho estava resolvido a recusar a minha oferta, simplesmente para que eu pudesse oferecer qualquer coisa ao seu filho. Que bom coração o daquele homem!
Apressei-me a afirmar-lhe que, naturalmente, também tinha vontade de lhe oferecer qualquer coisa, mas que me custava privá-lo da sua satisfação.
— Se o seu filho gostar da prenda e se alegrar e você também ficar contente — acrescentei —, eu, intimamente, compartilharei da mesma alegria, como se fosse eu a dar-lhe o presente.
Consegui assim tranquilizar o bom velho. Demorou-se na nossa companhia ainda duas horas, mas não pôde conservar-se quieto no assento, nem por um instante; levantava-se, passeava de um lado para o outro, falava mais alto do que de costume, taramelava com Sacha, atirava-me beijos dissimuladamente, e fazia caretas por trás da cadeira de Ana Fedorovna. Entreteve-se deste modo por muito tempo, até que, por fim, se foi embora. Em suma: não cabia em si de contente e nunca na sua vida havia experimentado tamanha alegria.
No dia do aniversário do filho, chegou às onze horas em ponto, depois de ter ido à missa. Envergava um fraque muito decente, embora já passajado; botas novas, conforme tinha anunciado, e um chapéu novo. Levava um pacote de livros em cada mão, embrulhados em dois guardanapos que Matriona lhe emprestara. Era um domingo. Encontrávamo-nos a tomar café com Ana Fedorovna. Se bem me recordo, o pobre homem começou por dizer que Pouchkine era um grande poeta. A seguir, não sem grande dificuldade e com as hesitações e confusão habituais, e fazendo mais pausas do que nunca, mas, apesar disso, com invulgar fluência, derivou para outras questões. «O homem — dizia — deve portar-se bem; se assim não fizer, praticará ações condenáveis. As más inclinações levam o homem à ruína e à degradação». Chegou mesmo a apresentar-nos alguns exemplos pavorosos de intemperança, para concluir que havia algum tempo que se emendara e que o seu atual comportamento era quase exemplar. Reconhecera há muito quanto eram justas as observações de seu filho; no entanto, só ultimamente começara a desviar-se do mal e a levar uma vida de acordo com o que o seu coração considerava bom. Como prova da sua regeneração, oferecia ao filho aqueles livros, para comprar os quais economizara durante muito tempo a quantia necessária.
Dificilmente consegui conter as lágrimas e o riso enquanto o pobre velho falava. Não há dúvida de que sabia bem mentir quando era necessário! Em seguida levámos os livros para os aposentos do filho e colocámo-los na estante, tendo logo Pokrovski adivinhado tudo.
Convidámos o velho para jantar connosco e o dia constituiu uma verdadeira festa intimai Depois de comermos, entretivemo-nos a jogar as prendas e, a seguir, as cartas. Sacha estava sempre a pregar partidas e mostrava-se mais traquinas que nunca; mas eu não a imitava nas suas infantilidades. Pokrovski cumulou-me de atenções e procurava todos os meios de me falar a sós; eu, porém, esquivava-me. Esse dia foi para mim o mais feliz daqueles quatro anos da minha vida.
A partir de então, a vida só me deixou tristes e graves recordações; começa ali a história dos meus dias cinzentos. Talvez por isso, a minha pena como que principia a deslizar mais dificilmente; dir-se-ia sentir-se fatigada e não querer levar mais por diante o relato. E pela mesma razão foi que contei tão pormenorizadamente os sucessos daqueles dias felizes da minha juventude. Passaram tão rápidos! Seguiram-se-lhes a dor, a tristeza, os sofrimentos, que só Deus sabe quando terminarão.
Os meus infortúnios principiaram com a doença e a morte de Pokrovski.
Caiu doente dois meses após o seu aniversário natalício. Durante esse período de tempo, o pobre empenhara-se com afinco para conseguir uma colocação que pudesse assegurar-lhe a existência, pois até então não tivera nenhuma. Como todos os tuberculosos, sonhava com muitos anos de vida, ilusão que o acompanhou até à hora da morte. Aparecera-lhe um dia um lugar de professor, não sei onde; mas não quis, porque tinha ferrenha aversão pelo ensino. Devido à sua doença já declarada, não lhe era possível conseguir um lugar público, e mesmo admitindo tal possibilidade, teria de passar muito tempo como suplente sem ganhar um tostão. Quer dizer: fracassava em toda a linha. Tudo isto foi de péssimos efeitos para ele. O seu caráter azedou-se. Dava cabo da saúde, sem o sentir.
Chegou, por fim, o outono. Envolto na sua leve capa, lá ia todos os dias em busca de emprego, o que para ele constituía um tormento. Regressava a casa cansado, cheio de fome, todo molhado da chuva e com os pés húmidos; até que, finalmente, a sua doença fez tais progressos, que caiu de cama, para não mais se levantar... Morreu em meados do outono, por fins de outubro.
Quase não abandonei o seu quarto, enquanto ele esteve doente. Passei muitas noites em claro. Geralmente conservava-se em estado de inconsciência devido à febre e, no seu delírio, falava nas coisas mais diversas: no seu emprego, nos livros, no pai e em mim. Soube, deste modo, muitas coisas da sua vida, que ignorava e de que nunca teria suspeitado. Quando principiei a tratar dele, todos lá em casa me olhavam com um ar estranho, e Ana Fedorovna mexia a cabeça significativamente. Eu, porém, olhava-os bem de frente, e foram deixando de me censurar o interesse que demonstrava pelo doente. Pelo menos minha mãe nunca mais me criticou.
Às vezes Pokrovski reconhecia-me, mas esses intervalos de lucidez eram relativamente raros. A maior parte do tempo, passava-a em delírio. Havia momentos, e até noites inteiras, em que proferia palavras vagas, incompreensíveis, dirigindo-se a um interlocutor imaginário, e a sua voz ressoava naquele diminuto quarto como saída de uma tumba. Então eu tinha medo. Principalmente na última noite, já na agonia, sofria horrivelmente, e os seus queixumes de dor dilaceravam-me a alma. Todos se alarmaram e Ana Fedorovna pedia instantemente a Deus que aliviasse a sua agonia. Chamaram o médico, e este disse que o doente não passaria a manhã seguinte.
O velho Pokrovski passou a noite no corredor, junto à porta do quarto do filho. Arranjámos-lhe ali uma cama com esteiras, mas ele não descansava um instante; volta e meia transpunha a porta, com um aspeto que fazia dó. A dor atingia-o tão profundamente, que parecia alucinado, insensível e estúpido. O corpo tremia-lhe dos pés à cabeça, e ele murmurava, mecanicamente, palavras misteriosas. Temi que perdesse por completo e razão.
Por fim, ao amanhecer, o velho adormeceu, deitado na esteira, no corredor. Cerca das oito horas o filho entrou na última agonia. Acordei o pai. Pokrovski encontrava-se então em pleno uso das suas faculdades e despediu-se de nós todos. Coisa extraordinária! Eu já não podia chorar, mas como que sentia o coração despedaçar-se-me fibra a fibra.
Mas o que mais me custou foram os últimos momentos do enfermo. Manteve-se por muito tempo a rezar, a pedir qualquer coisa que eu não compreendia, pois já mal movia a língua. O coração estalava-me de dor. Passou uma hora extremamente agitado; esforçava-se por fazer sinais com a sua mão já rígida e com a voz rouca suplicava qualquer coisa... Mas as suas palavras eram apenas sons inarticulados que eu não conseguia compreender. Uma a uma, levei até junto dele todas as pessoas da casa; dava-lhe de beber; mas ele limitava-se a abanar tristemente a cabeça e olhava para mim. Finalmente compreendi o seu desejo; queria que corresse as cortinas da janela e a abrisse, decerto para ver pela última vez a luz do dia, a chama divina do sol.
Levantei as cortinas e abri as portadas, mas o dia que despontava era sombrio e triste como a pobre vida do agonizante, prestes a extinguir-se. Não havia pinta de sol. Uma espessa cortina de nuvens envolvia o céu e o tempo estava chuvoso, melancólico e escuro. Uma chuva miudinha batia mansamente nos vidros da janela, desfazendo-se contra eles em claras e frias gotas. O dia estava escuro e opaco. Penetrava no quarto uma pálida luz, mal ofuscando a lamparina acesa que ardia no oratório. O moribundo lançou-me um olhar triste, muito triste, e moveu a cabeça, como num estremecimento de cansaço. Um minuto depois expirou.
Foi Ana Fedorovna que se encarregou do funeral. Mandou comprar um caixão barato e alugou um carro fúnebre, e para se indemnizar das despesas, tomou conta de todos os livros e de tudo o mais que pertencera ao defunto. O velho não queria de modo algum privar-se da herança do filho, discutiu com ela, gritou, fez escândalo, pegou nos livros que lhe foi possível meter nos bolsos, no chapéu e onde pôde e, neste preparo, andou três dias, nem mesmo se resolvendo a abandoná-los para nos acompanhar à igreja. Parecia um perfeito alienado. Desenvolvia extraordinária atividade à volta do féretro, ora pondo em ordem as coroas, ora acendendo as velas, para logo as apagar e tornar a acendê-las de novo. Era evidente que o pobre homem não podia fixar a atenção por muito tempo na mesma coisa.
Nem minha mãe, nem Ana Fedorovna assistiram aos responsos. A mamã estava doente, e a minha prima, no momento em que saía para a igreja, discutira outra vez com o velho Pokrovski e zangara-se, resolvendo ficar em casa. Na missa encontrávamo-nos apenas eu e o velho. Durante a cerimónia fui acometida de um receio inexplicável, como que um vago pressentimento do que o destino me reservava. Mal me tinha de pé.
Finalmente fecharam o caixão, puseram-no no carro e levaram-no para o cemitério. Acompanhei-o apenas até ao fim da rua. Dai em diante o carro seguiu a trote. O pobre pai foi atrás do veículo, a chorar ruidosamente, num pranto entrecortado devido à corrida. Caiu-lhe o chapéu, mas não se deu ao trabalho de o apanhar, continuando o seu caminho. A chuva caía-lhe na cabeça e um vento frio açoitava-lhe o rosto. O velho, porém, parecia não o sentir, chorando e correndo sempre, ora de um lado do carro, ora de outro. As compridas abas do seu fraque já roto ondulavam ao vento. Viam-se-lhe livros em todos os bolsos, e debaixo do braço levava um grande e pesado volume, que apertava convulsivamente de encontro ao peito. Os transeuntes descobriam-se e benziam-se e alguns ficavam parados a contemplar o pobre homem, com olhos de espanto. De vez em quando caia-lhe um livro, sobre a lama da rua. Então chamavam por ele, obrigavam-no a parar e dar fé do que perdera. O velho apanhava o volume e continuava a caminhar atrás de féretro. Pouco antes de dobrar a esquina, aproximou-se dele uma mendiga bastante idosa e seguiu também o carro, ao seu lado. Finalmente o cortejo sumiu-se na curva do caminho.
Regressei então a casa e, a tremer de dor, atirei-me para os braços de minha mãe. Apertei-a contra o meu peito, beijei-a muito e de súbito irrompi em pranto. Agarrava-me angustiosamente ao único ente amigo que ainda me restava para me consolar, como se quisesse retê-lo para sempre, a fim de que a morte mo pudesse preservar.
Mas a morte já esvoaçava sobre a minha pobre mãe.
11 de junho
Quanto lhe agradeço o nosso passeio de ontem pelas ilhas, Makar Alexeievitch! Como tudo aquilo estava belo, que maravilha de verdura e que perfumes pairavam na atmosfera! Havia tanto tempo que não via verdura nem árvores! Durante a minha doença, cheguei a convencer-me de que não sararia mais, que morria com certeza... Imagine as sensações que ontem devo ter experimentado!
Não se incomode por ter parecido triste. Sinto-me muito bem e sou feliz; mas nos mais alegres momentos da minha vida, hei de ter sempre um motivo de tristeza, não posso evitá-lo. E as lágrimas que me viu nos olhos também não querem dizer nada; eu própria ignoro porque não posso passar sem chorar. Bem sei que tenho uma sensibilidade mórbida, de modo que todas as impressões que experimento tornam-se-me morbidamente violentas. A culpa foi do céu claro e sem nuvens, do pôr sol, do silêncio do anoitecer, de tudo isso... e verdadeiramente de nenhuma dessas coisas...
É que ontem estava numa disposição de espírito tal, que todas as impressões eram tristes e torturantes; o meu coração parecia em extremo sobrecarregado e pedir às lágrimas que o aliviassem. Mas para que escrevo eu estas coisas? Se nós próprios nos vemos e desejamos para as compreender, como poderemos explicá-las aos outros? Mas pode ser que o senhor me compreenda. Tristeza e alegria ao mesmo tempo! Como é bom, Makar Alexeievitch!
Ontem o senhor fitava-me como se quisesse ler nos meus olhos o que me ia na alma, e sentia-se feliz por me ver contente. Quer fosse num maciço, ou numa alameda, ou junto de um regato, lá estava sempre o senhor diante de mim, todo orgulhoso, fitando-me nos olhos como se tudo aquilo que me mostrava lhe pertencesse. Isso prova que tem bom coração, e é por isso que lhe quero tanto, Makar Alexeievitch.
Bem, tenho de ficar por aqui. Estou um pouco adoentada; ontem molhei os pés e apanhei uma constipação. Fédora ainda não está boa de todo, de modo que estamos ambas doentes. Não se esqueça de mim e venha ver-me mais amiúde.
Sua
B. D.
12 de junho
Querida Bárbara Alexeievna:
Julguei, minha querida, que me ia descrever em verso a nossa excursão, e afinal manda-me uma folha apenas escrita de um lado. Mas não a censuro por isso, pois, no pouco que me escreveu, conseguiu fazer uma descrição de rara beleza e graça. Com reduzido número de palavras, pintou-me, de modo admirável, a Natureza, as sensações que experimentou em contacto com a paisagem, tudo, enfim, que lhe feriu os sentidos. Eu, pelo contrário, não tenho esse talento; nem gatafunhando dez folhas de papel, chegaria a dizer qualquer coisa de jeito.
Diz a minha querida que eu sou bom e amável por princípio, incapaz de ofender seja quem for, que compreendo bem a bondade do Criador — sobejamente demonstrada na Natureza —, e muitas coisas mais neste teor. Talvez tenha razão, meu amor, talvez seja exatamente como diz. Na verdade, penso que assim é. Mas, se assim sucede, é porque, depois de recebermos uma carta como a que acaba de me mandar, o coração enternecesse involuntariamente e acorrem-nos pensamentos da índole mais profunda e mais grave. Ouça, minha querida: vou contar-lhe uma coisa.
Principiarei pela época dos meus dezassete anos, altura em que entrei para o lugar que hoje ocupo; completo, em breve trinta anos de atividade como funcionário. Devo dizer-lhe que durante este período gastei muitos fardamentos, transformei-me num homem mais prudente e avisado, conheci e convivi com muita gente, vivi... Sim — porque não dizê-lo? —, também eu vivi e ganhei experiência. Como prémio dos meus serviços, quiseram até agraciar-me com uma condecoração. É possível que não acredite nisto, mas é verdade; não lhe minto, meu amor. Mas a que vem tudo isto? Vai ver. Neste mundo há de tudo: bons e maus.
Confesso-lhe, minha boa amiga, que sou um homem inculto, estúpido mesmo, se assim quer. Mas, em contrapartida, o meu coração é perfeitamente igual ao dos outros homens. Não calcula, querida Bárbara, quanto me fizeram sofrer os maus colegas de trabalho! Até tenho vergonha de o contar. «Porquê?» — perguntará. Precisamente porque sou uma pessoa pacata, um homem modesto, um bom rapaz. Não gostavam do meu feitio e atribuíam-me sempre as culpas de tudo. Ao princípio, quando alguém fazia qualquer coisa mal feita, diziam logo: «Ah, sim! Devem ser coisas do Makar Alexeievitch!»
Com o andar do tempo, esta frase transformou-se noutra: «Ah, naturalmente foi Makar Alexeievitch! Não pode ter sido outro!»
Até que, por fim, só diziam: «Foi Makar Alexeievitch! É escusado indagar!»
Já vê no que parou a história. Makar Alexeievitch era o culpado de tudo o que sucedesse de mau. Chegaram ao extremo de converter o meu nome não só em sinónimo de «tudo o que havia de mau» na repartição, mas ainda, não satisfeitos em fazer dele uma palavra amaldiçoada, uma censura digna de anátema — quase um termo injurioso —, tinham sempre alguma coisa a dizer das minhas botas, do fato, do cabelo e das orelhas. Numa palavra, tudo o que me dizia respeito lhes merecia reparo, tudo o que era meu lhes parecia mau, nada era do gosto deles. E isto todos os dias, durante inúmeros anos! Acabei por me habituar, porque sou um homem pacato, uma criatura insignificante. É caso para perguntar: Ao fim e ao cabo, que fiz eu para merecer tal trato? Fiz algum dia mal a alguém? Tirei a algum companheiro o seu lugar na escala? Ou fui algum dia ao chefe com intriguices acerca de algum colega, para conseguir qualquer recompensa pela delação? Tramei alguma conjura contra alguém? Seria injusta se assim pensasse, minha querida. Sabe muito bem que eu seria incapaz de praticar tais infâmias. Mas porquê, então, aquela antipatia? Perdoai-lhes, Senhor! Desde que a Bárbara me tenha na conta de homem de bem, a opinião dos outros não me interessa, pois você é incomparavelmente melhor do que todas as outras criaturas!
Qual será a maior virtude cívica? Não vai há muito tempo que Evstafil Ivanovitch, em conversa particular, dizia que a maior virtude cívica é saber ganhar dinheiro. Disse-o a brincar, claro; mas a moralidade da frase — o que ele pretendia dizer exatamente — é que não devemos tomar-nos pesados para ninguém. Mas eu nunca o fui! O bocado de pão que como é amassado com o suor do meu rosto. Tenho, de facto, apenas um bocado de pão, às vezes duro e seco, mas pertence-me, adquiri-o legitimamente com o meu trabalho honrado.
Afinal, que hei de fazer? Bem sei que copiar minutas no escritório não é uma profissão muito elevada. Contudo orgulho-me dela porque trabalho, faço alguma coisa de utilidade, e faço-o com as minhas mãos. E que pode haver de mau no facto de ser um simples copista? Será, porventura, algum crime? «Ora! Não passa de um amanuense!» — dizem. Mas vejamos: que há de desonroso nisso? Tenho uma letra bonita, tão legível que até parece de imprensa e até dá gosto ver uma folha escrita por mim, e sua excelência, o ministro, está muito satisfeito com ela. Quer que seja eu o copista dos documentos que têm de ser assinados por ele. Sim, tudo isto está muito bem; mas não tenho estilo! Sei muito bem que o não tenho. Não possuo talento para construir uma frase com elegância, e isso tem obstado a que suba de categoria na repartição, não o ignoro também. Para si, minha querida, escrevo como Deus quer, sem arrebiques, espalho no papel as ideias tais como me ocorrem, como o coração mas dita... Sei tudo isto perfeitamente; mas se todos fossem escritores, quem havia de ser copista?
Pois é este o problema que lhe apresento e ao qual peço que me responda, minha querida. Cheguei à conclusão de que tem necessidade de mim, melhor dizendo, que sou imprescindível; seria, por isso, insensato incomodar-me com ninharias. Sou como um ratito — se tal semelhança é admissível —, mas este ratito é necessário, sem ele não podem passar, é um elemento apreciável e, finalmente, a este ratito prometeram até uma gratificação. Imagine o rato que eu sou!
Já falei de mais a este respeito. Não era meu desejo dizer-lhe nada disto; mas agora já está; a ocasião proporcionou-se-me e, além disso, foram as suas palavras que me espevitaram. É-nos sempre agradável verificar que nos fazem alguma justiça!
Adeus, meu amor, minha querida consoladora! Irei visitá-la muito brevemente, irei com certeza, para ver como passam e o que fazem. Entretanto, não se aborreça muito. Levar-lhe-ei um livro. Mais uma vez, adeus!
De todo o coração lhe deseja toda a sorte de venturas
Makar Dievuchkin
20 de junho
Prezado Makar Alexeievitch:
Escrevo-lhe apenas meia dúzia de palavras à pressa. Estou a acabar um trabalho que tenho de entregar num prazo fixo, não dispondo por isso de mais tempo.
Vou dizer-lhe, sem rodeios, o assunto de que se trata: surgiu uma oportunidade de efetuar um negócio vantajoso. Diz a Fédora que um conhecido dela se quer desfazer de uma farda quase nova — calças, casaco e boné — e que a vende barato. Se quiser comprar... O senhor agora tem dinheiro e não vive com dificuldades; garantiu-me até que tinha dinheiro de mais. Por isso, seja razoável e adquira esse fato, que precisa dele. O que traz está muito velho, como poderá verificar se se mirar ao espelho. É verdadeiramente horroroso! Está cheio de nódoas e, segundo me afirmaram, o senhor não tem outro, apesar de me garantir o contrário. Pelo menos, ninguém lho vê. Peço-lhe, por isso, que me obedeça uma vez e compre o fato! Faça-o por mim, se é que realmente me tem algum amor.
O senhor mandou-me roupa branca. Devo dizer-lhe, Makar Alexeievitch, que é de mais. Se assim continua, arruinar-se-á, pode crer; o que já gastou comigo representa quase uma fortuna! Como pode esbanjar tanto? Eu não preciso de nada, todas essas prendas são exageradas. Sei, tenho mesmo a certeza de que me quer; é, portanto, supérfluo o seu empenho em demonstrar-me. a verdade do seu carinho, oferecendo-me umas coisas atrás de outras. Creia que me custa imenso aceitar os seus obséquios, porque sei bem os sacrifícios que eles representam. Deixe-se dessas coisas de uma vez para sempre, ouviu? Peço-lhe, suplico-lhe!
Pede-me que lhe envie a continuação das minhas memórias e diz que devo terminá-las. Meu Deus! Se eu própria não sei como consegui escrever tantas coisas naquele caderno! Não; já não sinto coragem para falar do meu passado, não quero pensar mais nele. Essas recordações horrorizam-me. Especialmente referir-me à minha pobre mãe, cuja filha única, após a sua morte, foi vítima de tantos infortúnios, é superior às minhas forças! Sinto o meu coração sangrar quando evoco essas recordações, apesar de serem tão longínquas. A ferida está ainda muito viva! Além disso, não disponho de serenidade para pensar; já passou um ano sobre esses acontecimentos, mas não consegui ainda recuperar a tranquilidade. De resto, o senhor sabe tudo.
Já lhe falei também das tenções com que anda agora Ana Fedorovna. Acusa-me de ingratidão e afirma não ter de modo algum interferido no caso do senhor Buikov. Diz que estou a viver de esmolas e que enveredei pelo mau caminho. Por isso convida-me a voltar para sua casa, prometendo levar o senhor Buikov a reparar o mal que fez. Chegou mesmo a dizer que ele me indemnizará dando-me um dote. Para longe com eles! Estou aqui muito bem sob a sua proteção e ao lado da boa Fédora, cuja afeição me faz lembrar a minha velha ama que Deus haja. Bem sei que o senhor é apenas um parente afastado, mas isso não o impede de olhar por mim e me proteger com o seu nome honrado e a sua boa fama. A essa gente, não a conheço, votá-la-ei ao esquecimento, se tal me for possível! Que mais querem de mim? Diz a Fédora que são simples artimanhas que eles empregam e que, por fim, hão de acabar por me deixar em paz. Deus o queira!
B. D.
21 de junho
Minha querida:
Desejo escrever-lhe, mas não sei por onde principiar. É deveras estranha a vida que ambos agora levamos! Quero com isto apenas dizer que nunca passei dias tão felizes! É como se Deus me tivesse dado um lar e uma família querida: Mas para que falou nas quatro camisas que lhe enviei? Sei que precisava delas, disse-mo Fédora. E, bem sabe, para mim constitui um prazer ser-lhe útil em qualquer coisa. É a maior alegria que posso ter na vida; peço-lhe por isso que me permita gozá-la e queira fazer-me feliz. Nunca experimentei nada de semelhante, querida. A vida que hoje levo é completamente diferente, muito outra, da anterior.
Em primeiro lugar, vivo duplamente vivendo perto de si, o que é para mim uma verdadeira consolação espiritual, ao passo que, por outro lado, o meu vizinho de quarto, Ratazaiev — esse funcionário em cujos aposentos se dão serões literários, convidou-me para tomar chá. Esta noite, portanto haverá uma dessas reuniões onde serão lidos alguns trechos literários. Está a ver a minha vida?
Bom, por hoje adeus! Já lhe escrevi bastante sem qualquer objetivo; apenas queria participar-lhe que me encontro bem-disposto. Mandou-me dizer pela Teresa que precisava de seda de cor para os seus bordados; esteja descansada, que eu vou-lha comprar amanhã, sendo para mim um grande prazer a satisfação de um desejo seu. Já sei onde poderei encontrar a seda da melhor qualidade.
Entretanto, creia-me seu sincero amigo
Makar Dievuchkin
22 de junho
Querida Bárbara Alexeievna:
Têm estas linhas por fim comunicar-lhe que se deu em nossa casa um acontecimento deveras lamentável e digno da compaixão de toda a gente. Esta manhã, por volta das cinco horas, morreu um dos filhos de Gorchkov, não sei se vítima da escarlatina ou de qualquer outra doença parecida. Fui apresentar aos pais as minhas condolências e verifiquei que viviam na maior miséria e desordem. Se a Bárbara visse... Verdade seja que não é para admirar, pois vive toda a família num único compartimento, separados por um simples biombo, para salvar a decência. Agora têm o féretro no meio do quarto — um caixão muito simples, do mais barato, mas muito bonito, que compraram já pronto. O pequenito tinha nove anos e, segundo me contaram, fazia alimentar acerca dele as mais lisonjeiras esperanças. Faz pena, mesmo muita pena, ver aquele corpinho inanimado, querida Bárbara! A mãe não chora, mas está triste. Talvez seja para eles um alívio verem-se livres de uma boca, mas ainda lhes ficam duas para alimentar: um menino de peito e uma menina de seis anos, o máximo. Custa imenso ver aquelas crianças a sofrer e não lhes podermos valer! O pai, vestindo um casaco velho, sujo e roto, está sentado numa cadeira quase a desfazer-se; as lágrimas correm-lhe pelas faces, talvez por hábito e não devido â dor, mas o certo é que chora. É uma criatura tão invulgar! Quando alguém lhe dirige a palavra, põe-se muito vermelho e nunca atina com a resposta.
A pequenita está chegada ao caixão, muito caladita e séria e com ar pensativo. Não me agrada. Não gosto de ver as crianças assim sérias, querida Bárbara! Incomodam-me. Ao pé da pequena, deitada no chão, está uma boneca muito velha, mas ela não brinca. Para lá está com o dedito na boca, sem esboçar um movimento. A patroa deu-lhe um bombom, mas ela não o comeu. Como tudo isto é triste, não lhe parece, Bárbara?
Seu
Makar Dievuchkin
25 de junho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Devolvo-lhe o seu livro. É muito pesado e, quanto a mim, não vale nada. Melhor fora não me ter chegado às mãos. Onde descobriu essa joia? Falando a sério... gosta de livros como este? Prometeu há dias arranjar-me qualquer coisa para ler. Faremos a despesa a meias, se quiser.
E agora, adeus, até à vista. Não tenho tempo para escrever mais.
B. D.
26 de junho
Minha querida Bárbara;
Devo confessar-lhe sinceramente que não tinha lido o livro a que se refere. Na verdade, limitei-me a examiná-lo por alto, o bastante para verificar que se tratava de coisas disparatadas, escritas para fazer rir e alegrar os leitores. E pensei então: «Deve ser engraçado e talvez agrade à Bárbara.» Foi por isso que lho enviei.
Ratazaiev prometeu agora arranjar-me qualquer coisa verdadeiramente literária para ler. Prepare-se, pois, para ler um bom livro, minha querida. É que Ratazaiev percebe do assunto! Também é escritor, e que escritor! Escreve muito bem e o seu estilo é admirável, acredite. Em cada palavra, mesmo nas mais vulgares e banais, em cada frase, até, por exemplo, quando se dirige a Faldoni ou à Teresa, exprime-se com estilo, o que já tive ocasião de verificar. Costumo frequentar com regularidade os seus serões literários. Fumamos enquanto ele nos lê coisas; às vezes lê durante cinco horas seguidas, e nós ouvimo-lo durante todo esse tempo, sem pestanejar. É que aquilo são pérolas, verdadeiras pérolas; não é literatura, são flores, simplesmente flores, cheirosas e em tal profusão, que com cada página poder-se-ia fazer um ramalhete. Além disso, é tão efusivo e cordial! Que sou eu ao pé dele? Nada. Ele é um homem conhecido, respeitável, ao passo que eu não sou nada, não sirvo para nada, nada represento comparado com ele. No entanto, honra-me com a sua amizade. Já lhe copiei duas ou três coisitas, mas não julgue, querida Bárbara, que é por isso que ele me trata com tanta deferência. Não dê ouvidos a essas bisbilhotices, não acredite no que se diz por ai! Não; copio-lhe essas coisas de livre vontade, simplesmente para lhe ser agradável; e se ele é gentil comigo, fá-lo espontaneamente para me dar prazer. Não sou tão tolo que não o compreenda; sei muito bem avaliar a delicadeza do seu procedimento. É um homem bom, muito bom, e um escritor incomparável!
A literatura, querida Bárbara, é uma coisa bela, qualquer coisa de extraordinário, segundo aprendi anteontem em casa de Ratazaiev. Ela fortalece o coração do homem, instrui... Nos livros de Ratazaiev, que, na verdade, estão muito bem escritos, encontram-se vários pensamentos sobre este assunto. A literatura é, por assim dizer, uma pintura e um espelho; um espelho das paixões e de todos os nossos sentimentos; é, ao mesmo tempo, instrução e lição edificante; é crítica e um importante documento humano. Foi isto o que ouvi e aprendi de Ratazaiev, que explanou o assunto diante dos frequentadores dos seus serões. Confesso-lhe, querida, com toda a sinceridade, que quando me encontro sentado no meio deles, a escutar e a fumar o meu cachimbo — como todos os circunstantes — e eles começam a argumentar e a discutir acerca das coisas mais diversas, costumo dizer, como no jogo das cartas, simplesmente: passo. Já que não posso entrar no jogo, passo, é o que tenho a fazer. Estou sentado no meio deles, calado como um basbaque, e até sinto vergonha de mim próprio. E embora esteja durante todo o serão a pensar na forma de intervir na conversa, nem uma só palavra me ocorre! O eterno desejado nunca aparece! Dou voltas e mais voltas à cabeça, e tudo em vão! Dir-se-ia que estou enfeitiçado, querida Bárbara, e acabo por ter pena de mim mesmo, é verdade. Pode-se aplicar-me o ditado que diz: «Quem torto nasce, torto morre.»
Que faço agora nas horas vagas? Durmo, durmo como um porco. Em vez, porém, de dormir sem necessidade, faria melhor se empregasse o tempo livre em qualquer coisa agradável e proveitosa, como, por exemplo, a escrever o que me viesse à cabeça, não lhe parece? Assim, seria útil aos outros e a mim próprio. Não faz ideia do que esses tipos ganham com o que escrevem! Para não ir mais longe, por exemplo, calcula quanto ganha esse Ratazaiev? Trabalha muito e escreve uma folha num instante. Segundo disse, em poucos dias pode ganhar uns trezentos rublos! Quando escreve uma historiazita ou um conto humorístico, uma anedota ou qualquer coisa de interesse para o público, nunca recebe menos de quinhentos rublos. E é para quem quer! Se um achar exagerado, aparecerá outro que dê mil. Que diz a isto, querida Bárbara?
E isto não é nada. Por um cadernito de poesias — meia dúzia de linguados com uns versitos — pede ele sete mil rublos, nem mais nem menos. Que lhe parece? Com esse dinheiro compra-se uma boa propriedade; é o rendimento de um prédio de cinco andares. Já lhe ofereceram cinco mil rublos, mas ele não aceitou. Tentei persuadi-lo, com boas razões, dizendo-lhe: «Aceite os cinco mil, homem, aceite, pois com essa quantia já pode virar as costas e não se importar com esses tipos; olhe que cinco mil rublos são dinheiro!» Mas ele não cede e diz que lhe têm de dar os sete mil. Ora veja se ele não é esperto!
Olhe, querida Bárbara, já que estamos a falar disto, mando-lhe um extrato das Paixões Italianas, tal é o título de uma das suas obras. Leia e avalie:
Vladimiro estremeceu, porque nas suas veias despertavam furiosas paixões e o sangue fervia-lhe.
— Condessa — exclamou — condessa! Não sabe como é terrível esta paixão, como é ilimitado este delírio? Não, os meus sentidos não me enganam! Amo, amo com loucura, amo com desespero! Todo o sangue do teu marido não bastará para apagar esta horrível exaltação da minha alma. Não haverá obstáculo capaz de deter o fogo destruidor, diabólico, que arde no meu peito desolado! Oh, Zinaida, Zinaida!
— Vladimiro — murmurou a condessa, fora de si e reclinando a cabeça no seu ombro.
— Zinaida! — exclamou Imeielski, deixando escapar um soluço do seu peito.
No altar do amor brotou clara a chama e envolveu as almas dos amantes.
— Vladimiro — murmurou outra vez a condessa. O seu peito arquejava, as faces tingiam-se-lhe de púrpura, os seus olhos brilhavam.
Uma nova e terrível união se consumara!
[...]
Meia hora depois, o velho conde entrou no toucador da esposa.
— Mas, meu amor, como é que ainda não está pronto o chá para o nosso querido hóspede? — perguntou acariciando-lhe as faces.
Ora diga-me: que tal acha isto? É um bocadinho livre, é verdade; mas, ao mesmo tempo, que grandioso, que bem escrito! Mas não; ainda lhe vou transcrever outra passagem do conto intitulado: Iermak e Zuleika.
Imagine, querida, que o cossaco Iermak, o feroz conquistador da Sibéria, se encontra enamorado de Zuleika, filha do chefe siberiano Kuchum, que foi feito prisioneiro. A ação decorre, como vai ver, na época em que reinava Ivan, o Terrível. Bom; eis o diálogo entre Iermak e Zuleika:
— Amas-me, Zuleika? Oh! Repete-mo, repete-mo!
— Anuo-te, Iermak! — respondeu Zuleika, num sussurro.
— Céu e Terra, obrigado! Sou feliz! Concedestes-me tudo aquilo a que desde a infância a minha alma aspirava! E tu, estrela que guias os meus passos, por isso me trouxeste aqui, através da cintura de pedra do Ural! Mostrarei ao mundo inteiro a minha Zuleika, e os homens, esses monstros selvagens, não se atreverão a acusar-me! Oh, se pudessem compreender as secretas torturas da sua alma terna! Se, como eu, soubessem contemplar, numa lágrima da minha Zuleika, todo um poema! Oh, deixa-me enxugar com os meus beijos essa lágrima, essa gota de orvalho do céu... Ó ente celestial!
— Iermak — disse-lhe Zuleika —, o mundo é mau e os homens são injustos. Vão perseguir-nos e condenar-nos, meu amor! Que será de uma pobre moça como eu, criada nos campos nevados da Sibéria, na cabana do seu pai, lá nesse mundo frio, glacial, egoísta e sem alma? Os homens não me compreenderão, meu querido!
— Sim? Nesse caso terão de se entender com a espada do cossaco! — exclamou Iermak, em cujos olhos brilhou um relâmpago sinistro.
Imagine, querida Bárbara, o que acontece a Iermak quando tem conhecimento de que lhe assassinaram a sua Zuleika. O velho Kuchum, protegido pelas trevas da noite, conseguiu introduzir-se na tenda de Iermak, que se achava ausente, e matou a sua filha Zuleika, julgando vingar-se do cossaco que lhe arrebatara o cetro e a coroa.
— Que prazer eu senti a afiar a espada! — exclamou Iermak, a arder em furioso desejo de vingança; e pôs-se a passar o aço numa pedra sagrada. — Quero o seu sangue, o seu sangue! Preciso de a vingar, de a vingar, de a vingar!
Mas, apesar de tudo, Iermak não pode sobreviver à sua Zuleika. Atira-se ao Irtich e afoga-se, com o que termina o conto.
Veja agora uma amostra de uma descrição humorística, feita exclusivamente para fazer rir:
— Então não conheces Ivan Prokofievitch Zeltopuz? Não? É aquele que mordeu Prokofi Ivanovitch numa perna. Ivan Prokofievitch tem mau génio, mas ao mesmo tempo é dotado de raras virtudes. Prokofi Ivanovitch, pelo contrário, pela-se por rabanetes com mel. Quando ainda vivia em boas relações com Pelágia Antonovna... Mas não conhece, porventura, Pelágia Antonovna? Como? Ah, sim, é essa mesmo; aquela que veste sempre a camisa do avesso...
Isto é que é humorismo, verdadeiro humorismo, não acha, querida Bárbara? Quando ele nos leu esta página, nós até nos retorcíamos nos assentos, de tanto rir. Que grande maduro, meu amor! De resto, se bem que seja um pouco cómico e livre, no fundo, é um inocente, sem sombra de livre-pensamento nem de nenhum desses erros liberais. Devo dizer-lhe, também, que Ratazaiev, além de um grande escritor, é um homem de linha, o que não se pode dizer da maioria dos escritores.
Que sucederia se eu pusesse em prática a ideia em que por várias vezes tenho pensado, de também escrever alguma coisa? Suponhamos que, de um momento para o outro, me lembrava de publicar um livro, em cuja capa se lesse: «Poesias de Makar Dievuchkin»? Que diria a isto, meu anjo? Que lhe pareceria, como receberia um tal acontecimento? Cá por mim, posso garantir-lhe, querida, que, depois do meu livro ser publicado, não me atreveria a aparecer mais na Perspetiva Nevski. Não podia ouvir toda a gente dizer, apontando-me: «Olhem, vai ali o poeta Dievuchkin; é ele mesmo!»
Que sucederia então às minhas botas? Porque devo dizer-lhe, meu amor, que as trago sempre por engraxar e as solas, para falar verdade, não costumam encontrar-se em muito bom estado. Que figura faria se todos soubessem que o poeta Dievuchkin andava com as botas sujas? Que diria uma condessa ou duquesa se tivesse conhecimento de tal coisa? É possível que não dessem por isso, pois as condessas e as duquesas não reparam nas botas, principalmente tratando-se das botas de um empregadito qualquer (ao fim e ao cabo, umas botas são sempre umas botas, é preciso ver...). Mas tenho a certeza de que não faltaria quem lhes levasse a notícia, a começar pelos meus próprios amigos. Ratazaiev seria o primeiro, pois é frequentador assíduo da casa da condessa B..., onde, segundo diz, se apresenta mesmo sem que tenha sido convidado. Consta que se trata de uma bondosa senhora e, além disso, uma dama distinta e muito versada em literatura. Que espertalhão que é Ratazaiev!
Mas fiquemos por aqui! Escrevo-lhe estas coisas apenas para a distrair, por mera brincadeira. O que desejo é que continue bem, meu amor! A carta é um pouco longa porque, para lhe ser franco, hoje encontro-me admiravelmente bem-disposto. Jantámos todos no quarto de Ratazaiev, que costuma servir um licor especial, tão bom, que não sei de palavras para o descrever... Mas, alto lá! Não vá pensar mal de mim, querida Bárbara! Não se trata disso! Vou enviar-lhe uns livrinhos. Agora andam aqui a ler uma novela de Paul de Kock, mas este autor não é próprio para si... Não, não, Deus me livre! Paul de Kock não deve cair nas suas mãos. De facto, consta que todos os críticos decentes de S. Petersburgo se mostraram um pouco mal impressionados.
Envio-lhe uma libra de bombons, que comprei expressamente para si. E olhe, querida, pense em mim de todos as vezes que pegar num. Meta-os à boca e não os engula logo; vi derretendo-os pouco a pouco, senão, ao trincá-los, pode estragar os dentes. Também gosta de pastilhas de chocolate? Se gostar, diga-mo.
Adeus, adeus! Deus a guarde.
Sempre seu muito fiel amigo
Makar Dievuchkin
27 de junho
Querido Makar Alexeievitch:
Fédora disse-me que conhece pessoas que seriam capazes de se interessar pela minha situação e, se eu quisesse, me poderiam arranjar um bom lugar como governante em qualquer casa. Que lhe parece, meu amigo? Aceito ou não? Não queria continuar a ser-lhe pesada, e o referido lugar parece muito bom. Por outro lado, atemoriza-me um pouco a ideia de ter de entrar ao serviço de gente estranha. Dizem que se trata de uma família de proprietários rurais. E se quiserem obter informações acerca do meu passado, que deverei dizer-lhes? Além disso, insociável e amiga da solidão como sou! Onde gosto mais de viver, é onde já me encontro. Sinto-me mais contente e alegre neste cantinho a que já estou habituada; embora, por vezes, passe dificuldades, sempre é preferível a qualquer outro. Além disso, ver-me-ia obrigada a viajar para me trasladar para as propriedades da referida família; e sabe-se lá que serviço me dariam? Eram capazes de me pôr a olhar por crianças! E que gente será aquela para, nestes últimos dois anos, haverem já tido três governantes? Aconselhe-me, querido Makar Alexeievitch, a fazer o que achar ser melhor: devo aceitar a proposta ou deixar-me ficar aqui?
Porque não nos vem visitar? Vejo-o tão poucas vezes! Tirante os domingos, na igreja, durante a semana quase não nos vemos. O senhor é assim insociável? Então é como eu! E não admira, pois, ao fim e ao cabo, somos parentes. Ou já me não tem amor, Makar Alexeievitch? A solidão, às vezes, entristece-me, sobretudo à hora do crepúsculo, quando me encontro sozinha em casa. Se Fédora sai, às compras ou a qualquer coisa, fico para aqui a pensar e a recordar o passado — as alegrias e as tristezas —, pois tudo perpassa diante de mim como uma nuvem. Surgem outra vez na minha frente os rostos conhecidos — parece-me vê-los, acordada, como se fosse em sonhos-, sendo frequente ver a mamã... E o que eu sonho! Penso que a minha saúde está abalada. Sinto-me tão fraca! De manhã, ao levantar-me da cama, achei-me muito mal, e esta aborrecida tosse não há forma de me passar! Pressinto — sei-o bem — que pouco durarei. Quem me acompanhará à última morada? Quem chorará por mim? E se morrer numa casa estranha, no meio de desconhecidos? Meu Deus, como esta vida é triste, Makar Alexeievitch!
Meu amigo, porque me está sempre a mandar doces? Não posso compreender como arranja dinheiro para estas coisas. Guarde-o para outras de mais utilidade, guarde! Fédora arranjou comprador para o tapete que fiz. Dão-me por ele quinze rublos. Já é bem pago; julguei que me ofereceriam menos. Tocam três rublos a Fédora, e com o resto comprarei um bocado de tecido qualquer, barato, para um vestido simplesinho. Ao meu amigo, quero dar-lhe um colete muito bonito, de bom pano, que eu mesma farei.
Fédora arranjou-me um livro — Contos de Bielkin — que junto lhe envio, a fim de que o leia também. Apenas lhe peço que não o demore muito aí, porque não é meu. É da autoria de Pouchkine. Há dois anos li estes contos na companhia da mamã; por isso, ao lê-lo agora, acudiram-me à mente tristes recordações.
Se tiver por aí algum livro, mande-mo, contanto que não seja de Ratazaiev. Ele é capaz de lhe oferecer alguma obra da sua autoria, se é que tem alguma publicada. Como é possível que o senhor goste tanto dos seus escritos, Makar Alexeievitch? São verdadeiramente disparatados.
Bem, adeus! O que eu para aqui rabisquei! Quando me assalta a melancolia, o meu gosto é ter com quem falar! É o melhor remédio para o mal; sinto-me logo mais aliviada, sobretudo quando posso deitar cá para fora tudo o que me aflige o coração.
Adeus, adeus, meu amigo!
Sua
B. D.
28 de junho
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Para longe as tristezas! Não tem vergonha? Acabe com essas mágoas! Como pode ter semelhantes pensamentos? A sua doença já lá vai; está completamente boa, meu anjo! Até dá gosto vê-la, é a pura verdade, creia; apenas um bocadinho pálida, mas, apesar disso, é bem nítida a sua louçania. Deixe-se desses sonhos, pesadelos e espectros! Isso é vergonhoso, sabe? Não pense nessas coisas, minha querida! Se não se preocupar com esses estúpidos sonhos, eles não a apoquentarão mais. Não há nada mais simples. Porque é que eu durmo bem? Será por não me faltar nada? Repare em mim. Sinto-me contente e alegre, durmo a sono solto, tenho saúde a rodos, numa palavra, sou da pele do diabo; e gabo-me disso! Deixe-se dessas coisas, repito, tenha vergonha e corrija-se. Mas eu conheço bem essa cabecita; a mínima insignificância entristece-a e preocupa-a, e atormenta o espírito com pensamentos de toda a espécie. Acabe com esses desvarios, quanto mais não seja, para me fazer a vontade!
Ir servir gente estranha? Isso nunca. Não, e mil vezes não! Que ideia foi essa? Como se fosse uma coisa sem importância ir para longe daqui! Não, minha querida; ainda me não conhece bem; nunca consentirei em tal; oponho-me com todas as minhas forças a semelhante projeto! Nem que tivesse de vender o casaco e ficar em camisa, meu amor, nunca a deixaria passar necessidade! Não, eu conheço-a bem! Isso é uma loucura e nada mais. A culpada de tudo, é essa tonta da Fédora, tenho a certeza; é ela que lhe mete essas ideias na cabeça. Mas você não deve ligar importância ao que ela diz. Sabe muito bem que essa mulher é uma imbecil, uma charlatã incorrigível que amargurou a vida do falecido marido com as suas loucuras! Decerto tem-na atormentado, como fazia ao infeliz.
Não, minha querida; nada do que escreveu se poderá realizar! E que seria de mim, aqui sozinho?
Não, Bárbara, meu amor, deixe-se disso. Que falta nessa casa? Para mim é uma alegria tê-la aqui perto, e para si esta proximidade representa também uma satisfação. Não vá, e vivamos todos juntos, em paz e na graça de Deus! Faça o que quiser — costure ou leia, ou não costure —, mas não nos abandone. Se assim fizesse, diga-me: que seria de nós? De vez em quando daremos o nosso passeio. O que é preciso é afastar de si, de uma vez para sempre, esses pensamentos, procurar ser razoável e não se preocupar nem afligir com bagatelas! Irei visitá-la brevemente e então falaremos. Mas espero que não faça isso; com certeza não o fará.
Não sou, naturalmente, um homem culto. Mais do que ninguém, preciso de me instruir, pois pouco mais aprendi além das primeiras letras. Mas não se trata agora disso, nem era a este ponto que eu queria chegar. Pretendia apenas dizer que, por Ratazaiev, seria capaz de tudo; e não leve a mal esta minha confissão! É meu amigo e cumpre-me defendê-lo. Escreve bem, mesmo muito bem. Não posso, de modo algum, estar de acordo consigo.
O seu estilo é colorido, sóbrio, cheio de imagens e pensamentos. Numa palavra: escreve muitíssimo bem! Talvez o haja lido superficialmente, querida Bárbara; se calhar Fédora incomodou-a com alguma das suas, ou então, estava maldisposta nesse dia.
Não; há de voltar a lê-lo, mas com interesse e atenção, quando estiver contente e bem-humorada; por exemplo, com um docinho na boca... Só nestas condições deverá tentar fazê-lo. Não quero dizer — o que seria um disparate — que Ratazaiev é incomparável; porém, admitindo mesmo que há escritores muito melhores do que ele, isso não é razão para o declarar mau. Todos são bons: ele escreve bem, e os outros também, quanto a mim. Além disso, não esqueçamos que ele escreve apenas para se entreter; só pega na pena nos momentos livres... o que bem se nota; e, para dizer a verdade, não perde nada com isso.
Por agora, adeus, meu amor; hoje não lhe escrevo mais; tenho de copiar umas coisas, e por isso não posso demorar-me. Veja se me tranquiliza. Deus a guarde, queridinha, e a conserve sob a Sua proteção.
Seu fiel amigo
Makar Dievuchkin
P. S. — Muito obrigado pelo livro, minha querida. Vou ler, seguido, este volume de Pouchkine, e logo à noite, sem falta, irei aí.
28 de junho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Não, meu amigo; não posso continuar aqui por mais tempo. Pensei bem no caso e cheguei à conclusão de que não devia deixar fugir uma colocação tão boa. Ali, ao menos terei garantido o pão de cada dia. Trabalharei o mais possível, procurarei conquistar a simpatia desses estranhos e, se tanto for necessário, esforçar-me-ei até por mudar de feitio. Bem sei que é difícil e doloroso viver entre estranhos, fazer-lhes todas as vontades, dissimular e depender deles em tudo; mas conto para isso com a ajuda de Deus. Não posso ficar toda a vida presa! Já em tempos passei por transes semelhantes, por exemplo, quando estava no colégio.
Aos sábados ia para casa e passava o domingo inteiro a brincar e a saltar como uma verdadeira selvagem, e quando por acaso a mamã me ralhava — o que às vezes fazia —, nem por isso eu deixava de continuar contente e sentir o coração radiante e quente. Mas quando chegava a tarde, sentia-me outra vez imensamente infeliz; às nove tinha de regressar ao colégio. Tudo ali era estranho, frio, severo: as professoras, aos domingos, estavam sempre maldispostas, e invadia-me tal tristeza, caía num abatimento tal, que não conseguia conter as lágrimas. Devagarinho, escondia-me num canto e ali me punha a chorar, sozinha e abandonada. Se me viam naquele preparo, logo diziam que era preguiçosa e não queria estudar. Mas não era esse o motivo do meu pranto.
E, por fim, que sucedeu? Acabei por me habituar, e quando me vi obrigada a deixar o colégio, foi com lágrimas que me despedi das minhas companheiras.
Não; não devo continuar aqui, pois represento um encargo para si e para Fédora. Pensar nisto é para mim um verdadeiro tormento. Digo-lhe isto com toda a franqueza, porque estou afeita a não lhe ocultar seja o que for. Pensa que não vejo a Fédora levantar-se ainda não é bem dia e ir lavar, prosseguindo depois numa lida constante até altas horas da noite? As pessoas de idade precisam de descanso. Sei também quanto o senhor se sacrifica por mim, privando-se por vezes do necessário para gastar comigo tudo o que ganha. Não ignoro, meu bom amigo, que faz por esta infeliz mais do que pode. Dizia-me o senhor, na sua carta, que preferia ficar sem nada, a consentir que eu passasse necessidade. Acredito, meu protetor; sei-o muito bem, conheço o seu bondoso coração. Mas pense um pouco! É possível que presentemente tenha dinheiro de sobra, talvez haja recebido uma gratificação inesperada. Mas, e depois? Sabe bem que passo a maior parte do tempo doente. Não posso trabalhar como o Makar Alexeievitch, apesar de ser esse o meu desejo, e mesmo nem sempre há trabalho. Que devo fazer? Sofrer e torturar-me, sem fazer coisa alguma, deixando que entretanto o senhor e Fédora tratem de mim? Como poderia eu retribuir o menor dos seus desvelos, como poderia eu auxiliámos, fosse no que fosse? Não lhe sou, certamente, tão Indispensável como o meu amigo diz. Já lhe fiz, porventura, algum bem? Fiz uma coisa apenas: querer-lhe do fundo do coração; e é tudo quanto posso fazer. O meu destino cruel persegue-me outra vez! Sei amar, mas não posso fazer bem, retribuir com ações os benefícios com que me tem cumulado. Por isso, não me retenha por mais tempo, pense maduramente no meu projeto e dê-me depois, com sinceridade, a sua opinião.
Fica na expectativa a sua.
B D.
1 de julho
Loucura, querida Bárbara; tudo isso não passa de uma loucura, uma verdadeira loucura! Quando se abandona a si mesma, vêm-lhe à ideia as coisas mais disparatadas! Tão depressa pensa numa coisa, como já pensa noutra! Mas que lhe falta na nossa companhia, não me dirá? Queremos-lhe muito e a Bárbara corresponde ao nosso afeto, vivendo todos contentes e na melhor harmonia... Que mais deseja? Porquê essa teimosia em ir viver com gente estranha? Sabe o que significa «gente estranha»? Se o ignora, pergunte-mo a mim, que eu conheço muito bem os estranhos, minha querida; conheço-os demasiado; posso dizer-lhe como são. Já comi o pão deles. Todo o ente estranho é mau, muito mau; a sua maldade é tal, que o nosso coração não pode conter-se perante as censuras, recriminações e olhares de desprezo com que no-lo martirizam. Ao menos, na nossa companhia, leva uma vida calma e descuidada, como o pássaro no ninho. Como é possível que agora, do pé para a mão, resolva deixar-nos? Que será de mim se levar avante o seu intento? Pensa que não preciso de si? Está convencida de que me não serve de nada? Não, meu amor; reconsidere bem, e depois veja se me é útil ou não. Saiba que me é utilíssima! Tem sobre mim uma influência tão benéfica! Por exemplo, se estiver maldisposto e me lembrar de si, logo o mau humor desaparece... Escrevo-lhe uma carta na qual me abro por completo, e recebo a seguir uma resposta sua, pormenorizada. De vez em quando, compro-lhe um vestido, e se você precisa, por acaso, de que lhe traga qualquer coisa, eu vou logo procurar seja o que for... E, então, não me é útil? Que poderei fazer sem a Bárbara, com a idade que tenho? Para que servirei eu?
É possível, meu amor, que ainda não tenha pensado nisto; mas pense e verá que não posso prescindir de si. Afiz-me à sua companhia, querida Bárbara. Que fim seria o meu longe de si? Atirar-me-ia ao Neva, acabando por uma vez. É que, não a tendo ao pé de mim, não tenho nada a fazer no mundo. Parece, querida, que me estou já a ver no carro fúnebre que me há de levar ao cemitério de Volkov; uma velha que, por acaso, passa, segue o ataúde; atiram-me à cova, cobrem-me de terra e depois vão-se embora, deixando-me sozinho. Que injustiça sua, minha querida! Cometeria um grande pecado. Digo-lhe isto com a máxima sinceridade, creia!
Devolvo-lhe o livro que me emprestou, e devo dizer-lhe que nunca na minha vida li uma obra tão excelente. Chego a perguntar a mim próprio como pude viver até aqui como um mocho. Deus me perdoe! Em que tenho empregado os meus dias? De que planeta terei eu caído? É que não sei nada de nada; sou o que se chama um zero. Confesso-lhe com toda a franqueza, minha boa amiga, que não tenho a mais rudimentar cultura. Pouco, pouquíssimo, tenho lido até esta idade, isto para não dizer «nada». Li O Retrato do Homem, que é um bom livro, e O Menino que Tocava Várias Músicas em Campainhas e A cegonha de Ivik. E é tudo. Mas agora li o seu livrinho O Inspetor; e é caso para pensar, querida, como se pode viver no mundo e não saber que se tem ao alcance da mão uma obra, na qual se descreve uma vida completa, com todas as minúcias, como se fosse uma pintura. E soube muitas coisas com que nunca sonhara. É a sensação que se experimenta ao principiar a leitura de um livro assim; mas depois, pouco a pouco, à medida que se vai lendo, vamos descobrindo novas coisas, acabando por as compreender e as ver com toda a clareza. Quer saber outra razão que me levou a gostar tanto de seu livro? É que há muitas obras que, por mais famosos que os seus autores sejam, lemo-las e voltamos a lê-las e ficamos atarantados, sem compreendermos absolutamente nada. Estão tão bem escritas e encerram pensamentos tão subtis, que não as podemos entender. Eu, por exemplo, que sou rude por natureza, a nativitate, não posso ter uma obra demasiado profunda. Mas a que me emprestou, lemo-la e temos a impressão de termos sido nós quem a escreveu, dir-se-ia que brotou cá de dentro, do coração. Sim, talvez assim seja; é como se pegássemos no coração e o virássemos do avesso, diante de toda a gente, e depois nos puséssemos a descrevê-lo minuciosamente. É assim mesmo, meu amor! De resto, é uma coisa tão simples, meu Deus! Oh, se é! Eu próprio não teria a mínima dificuldade em escrever assim, pode crer. E porquê? Porque eu sinto exatamente as mesmas coisas que esse livrinho diz. Já me encontrei também em situação análoga, por exemplo, à do pobre Sansão Virin. E quantos Sansão Virin não há por esse mundo, pobres e bons como aquele! E a verdade ressalta de todas estas páginas! Ao lê-las, quase me saltavam as lágrimas dos olhos, minha querida. Coitado! Embriagava-se, até perder os sentidos, quando a desgraça o perseguiu, e passava o dia inteiro a dormir deitado numa pele de carneiro! Para afastar as penas, bebia ponche; contudo, quando se recordava da sua pobre ovelha tresmalhada, da sua filha Dunacha, chorava amargamente, enxugando, com o sujo forro de pele, as lágrimas que lhe corriam pelas faces!
Sim; isso é que se chama uma pintura natural! Leia-o outra vez, e verá que é assim; tão verdadeiro como a própria vida. É real! Eu próprio o senti... Tudo isto existe, e cerca-nos por todos os lados. Aí temos a Teresa ou, para não irmos mais longe, temos este pobre, que é um perfeito Sansão Virin, apenas com outro nome: chama-se, por acaso, Gorchkov. É uma coisa que qualquer de nós está sujeito a experimentar: você mesmo, querida, ou, em especial, eu. Até um conde que vive na Perspetiva Nevski ou na rua de Nevakai, pode achar-se um dia em idêntica situação, apenas com a diferença de que, exteriormente, se conduziria de modo diverso — por fora tudo é diferente nele —; no entanto, podem suceder-lhe as mesmas coisas que a nós.
Nesse livro, meu amor, pode ver o que se chama a vida. Mas quanto a afastar-se de nós e abandonar-nos à nossa sorte, nem é bom pensar em tal! Não pode avaliar, nem mesmo superficialmente, querida Bárbara, o prejuízo que com isso me causaria. Seria um prejuízo irreparável para si e para mim. Por amor de Deus, afaste de si tais pensamentos, minha boa amiguinha, e não me torture inutilmente! Como poderia você, meu pobre pardalito sem asas, procurar o alimento, não se perverter e defender-se das ciladas? Pense melhor no caso, deixe estar as coisas como estão, não dê ouvidos a conselhos néscios e leia outra vez esse livro; far-lhe-á bem, acredite.
Troquei impressões com Ratazaiev acerca de O Inspetor; diz ele que isso é tudo já muito antiquado, que agora só se publicam livros com ilustrações e ornatos de várias espécies. Falou ainda em muitas outras coisas, que eu não sei bem explicar, porque não compreendi. Por fim, acabou por declarar que Pouchkine é um grande poeta e que cantou a Sagrada Rússia. Sim, está bem. Volte a ler o livro com atenção; siga o meu conselho e faça feliz este pobre velho, com a sua obediência. Deus recompensá-la-á, minha querida, não duvide!
Seu fiel amigo
Makar Dievuchkin
1 de julho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Fédora trouxe-me hoje os quinze rublos do tapete. A pobre mulher ficou tão contente quando lhe dei três! Escrevo-lhe à pressa, porque estou a fazer o seu colete. O tecido, muito bom, é amarelo, com umas florinhas. Mando-lhe um livro de contos, de que apenas li alguns. Aconselho-lhe a leitura do que tem por título A Capa.
Prometeu levar-me uma noite ao teatro. Mas é capaz de ficar muito caro. Só se formos para a galeria. Há tanto tempo que não vou ao teatro, que nem me lembro de quando foi a última vez! Receio, porém, que esse divertimento esteja fora das suas possibilidades. A Fédora abana a cabeça e diz que o senhor está a gastar mais do que pode, o que eu também tenho notado. Só comigo, o que o senhor já gastou! Tenha cuidado, meu amigo, não vá suceder-lhe qualquer infortúnio. A Fédora contou-me, se não me engano, que a hospedeira não anda lá muito bem-disposta consigo por o senhor se ter atrasado nos pagamentos, o que me traz bastante preocupada.
Bem; adeus por agora, pois preciso de tratar de outra coisa: pôr uma fita no meu chapéu.
P. S. — Se formos ao teatro, quero levar o meu chapéu novo e a mantilha preta. Acha que ficarão bem?
7 de julho
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Retomo o fio da conversa no ponto onde ontem a deixámos... Também, minha querida, no meu tempo, fiz algumas loucuras.
Estive enamorado de uma atriz, mas enamorado a valer; é como lhe digo! E o mais interessante é que nunca a tinha visto na rua; vi-a no teatro, e só uma vez. No entanto apaixonei-me por ela.
Nesse tempo, na divisão pegada aos meus aposentos viviam cinco rapazes muito alegres. Não mantínhamos relações íntimas, mas uma noite juntei-me espontaneamente com eles e acompanhei-os ao teatro. O que eu ouvia os rapazes contarem dessa atriz! Sempre que havia espetáculo, lá iam todos, gastando às vezes o dinheiro que lhes fazia falta para as coisas necessárias. Entravam para a galeria e todos os seus aplausos e ovações eram exclusivamente para aquela atriz; não se cansavam de a aplaudir freneticamente como possessos. Depois, como é natural, os meus companheiros não me deixavam dormir em toda a noite; passavam-na a falar dela, todos lhe chamavam a sua Glacha, estavam todos enamorados da artista, denominando-a «o canário dos seus corações». Por fim, acabaram por me contagiar do seu entusiasmo. Eu era ainda tão novo!
Não sei como, uma noite encontrei-me sentado, como eles, na galeria. Apenas distinguia um cantinho do pano de fundo do palco, mas ouvia tudo perfeitamente. Ela possuía uma vozita linda, clara, agradável como a de um rouxinol. Batíamos palmas até ficarmos com as mãos roxas e vermelhas, e gritávamos sem cessar; numa palavra, quase tinham de nos tirar dali pelo pescoço para nos irmos embora.
De regresso a casa, vinha como envolto numa névoa! Já só trazia no bolso um rublo, e para o fim do mês faltavam ainda uns bons dez dias. E que imagina que eu fiz, meu amor? No dia seguinte, quando ia para o trabalho, entrei numa perfumaria e gastei o dinheiro que me restava em perfumes e sabonetes cheirosos, sem saber mesmo para que queria tudo aquilo. Além disso, naquela tarde não comi; fui rondar a casa da atriz, ao pé das suas janelas. Vivia num quarto andar da Perspetiva Nevski. Em seguida, regressei a casa, comi qualquer coisa e dirigi-me de novo para Nevski, onde reatei a vigilância em frente às suas janelas.
Passei assim mês e meio; de vez em quando alugava um drochki dos mais luxuosos, e passeava nele de um lado para o outro, junto das janelas da atriz. Gastei assim todo o meu ordenado, vendo-me obrigado a contrair dívidas. Por fim aquela paixão foi-se dissipando, acabando por se me tornar aborrecido aquele namoro.
Ora veja a que extremos uma atriz pode conduzir um homem! Mas é preciso ter em conta que nessa altura era um jovem, querida Bárbara. Sim, era ainda muito novo...
M. D.
8 de julho
Querida Bárbara Alexeievna:
Apresso-me a devolver-lhe o livro que teve a amabilidade de me enviar no dia 6 deste mês, ao mesmo tempo que quero ter consigo umas explicações, meu amor. Acho que não faz bem colocando-me nesta melindrosa situação.
Permita-me, minha amiga, que lhe diga que é o Todo-Poderoso quem marca ao homem a sua condição social. Um nasceu para ostentar as estrelas de general, outro para ser literato; aquele, para mandar; este, para obedecer, sem replicar. Estas coisas estão de acordo com a capacidade de cada qual; um tem aptidão para uma coisa, outro para outra, mas é Deus quem dá essas aptidões.
Já tenho trinta anos de serviço como empregado público, cumpro à risca os meus deveres, procuro comportar-me bem e nunca fui apanhado na mínima falta. Como cidadão e como pessoa humana, reconheço que sou homem e que tenho, por isso, defeitos, mas também tenho algumas virtudes. Sou estimado pelos meus superiores e mesmo sua excelência está contente comigo... Apesar de até hoje me não haver dado mostras da sua satisfação, sei de boa fonte que isso é verdade. Possuo uma letra agradável, nem muito grande nem muito pequena; no cursivo, destaco-me mesmo no meio dos copistas; mas em qualquer dos tipos, sou regular. De todos os empregados do ministério, talvez haja apenas um — Ivan Prokofievitch — com letra igual à minha, ou antes, que se aproxima da minha. Envelheci no serviço e não me lembro de ter cometido qualquer falta digna de registo. Faltas ligeiras, claro, quem nunca as cometeu? Todos pecamos, minha amiga, até você própria. Mas não me pesa na consciência qualquer delito importante, nem mesmo um ato consciente de insubordinação como, por exemplo, perturbar a tranquilidade pública ou qualquer coisa no género. Não tenho nada disso a censurar-me, nunca me ralharam por nada parecido. Pelo contrário, concederam-me até uma cruz de mérito. Mas a que vêm estas coisas? Já deve saber tudo isto, e o autor também; antes de principiar a descrição, decerto pôs-se ao corrente de tudo. Não, nunca a julgaria capaz de tal coisa, querida Bárbara, nunca esperara isto de si.
Mas quê? Não poderão deixar-nos viver em paz no nosso cantinho, por mais humilde que este seja, sem incomodar ninguém, sem turvar as águas, como diz o ditado, possuídos do temor de Deus? Será que terão sempre de nos incomodar, quando nós não queremos causar incómodo a quem quer que seja, devassando sempre a nossa vida particular, penetrando-nos em casa, para espiar o que por lá vai e verificar, por exemplo, se o colete se encontra em bom estado, se carecemos de roupa interior, se temos botas e que tais as solas, o que comemos, o que bebemos e o que andamos a copiar? Lá porque uma pessoa às vezes tenha falta de dinheiro e não tome chá, será razão para lhe assoalhar a vida no papel? Como se todos os mortais, sem exceção, tivessem de tomar chá! Alguma vez, porventura, examinei a boca de alguém para ver o que come? A quem é que eu fiz tal ofensa? Não, meu amor; não devemos fazer mal a quem nos não ofende! Tem aqui um exemplo; um homem serve conscienciosamente, cumpre com zelo os seus deveres, e goza mesmo da estima dos seus superiores — digam os outros o que quiserem; o certo é que o estimam —, e de repente surge um maduro que, sem qualquer motivo e inopinadamente, começa a escrevinhar um folheto atentatório da dignidade desse empregado, uma sátira como a desse livro!
Bem sei que todo aquele que cria alguma coisa de novo, fica orgulhoso e, com a alegria, quase não dorme. Sucede ordinariamente assim; se uma pessoa, por exemplo, compra umas botas novas, o gosto que sente quando as calça! É verdade, já se passou comigo, pois torna-se sumamente agradável enfiar os pés numas botas finas. O livro descreve isto muito bem. Todavia, confesso muito sinceramente que estou espantado de Fédor Fedrovitch o ter lido sem se mostrar ofendido.
É certo que esse funcionário é um simples oficial, ainda jovem, e às vezes gosta de fazer valer os seus direitos e barafustar com os subordinados. Mas porque não havia de se insurgir quando se torna necessário? Porque não havia de o fazer, dado que, de outro modo, nada se pode conseguir? Bom; aqui para nós, querida Bárbara, isso é necessário, embora não passe de uma simples formalidade. Devem segurar-se bem as rédeas, tem de se mostrar energia, porque senão, meu amor, sem energia, sem severidade, não conseguem nada de nós. O que cada um quer é conservar o seu emprego e poder dizer: «Estou empregado aqui ou ali»; quanto a trabalho, cada qual procura fugir-lhe o mais que pode. Mas como há várias categorias na hierarquia burocrática, e cada uma delas uma vez ou outra merece ser repreendida, sucede que o chefe tem de servir-se, nas suas reprimendas, de diversos tons, de acordo com a categoria a que se dirige; e isso está muito bem!
De resto, para que o mundo possa subsistir, tem de haver sempre uns que mandem nos outros e lhes retesem as rédeas... Se assim não fosse, o mundo perderia o equilíbrio e não se aguentaria, transformar-se-ia num verdadeiro caos. Na verdade, admira-me Fédor Fedrovich não haver notado semelhante ofensa.
Mas para quê escrever todas estas coisas? Alguém lucrará com isso? Dar-me-á, porventura, algum leitor alguma capa ou umas botas novas? Não, querida Bárbara; o leitor limita-se a ler a história e fica ansioso pela continuação da mesma. O resultado de tal escrito é que a gente tem de se esconder, ocultar-se, acobardar-se, sentir medo até de deitar o nariz fora da porta, com receio de ser escarnecido, pois, como se sabe, o difamador serve-se de tudo. Se qualquer se lembra de exibir, em letra de forma, toda a sua vida, tanto a pública como a particular, de modo a provocar sarcasmos e risos a quem a ler, já não poderá mais aparecer nas ruas! Mas, no livro a que me refiro, a descrição atinge tal minuciosidade, que o protagonista pode ser reconhecido até pelo modo de andar! Se ao menos o autor, para o fim, fosse mudando um pouco, suavizando as cores, dizendo, por exemplo, que o herói, apesar de tudo, foi sempre um honrado e virtuoso cidadão e que nada fez para merecer tal tratamento da parte dos seus colegas; que era obediente para com os superiores e cumpria escrupulosamente os seus deveres (podendo, neste ponto, apontar um caso elucidativo do que afirmava); que nunca desejou mal a quem quer que fosse; que cria em Deus e quando morreu (se é que por força tinha de morrer), todos o prantearam...
Mas não seria preferível, em vez de deixar morrer esse pobre infeliz, arranjar as coisas de modo a que a capa aparecesse e Fédor Fedrovitch, o chefe da repartição, estivesse mais bem informado acerca das virtudes do seu subordinado e lhe desse emprego no seu gabinete, promovendo-o e aumentando-lhe o ordenado? Desta forma, o mal seria castigado e a virtude conseguiria o triunfo. Se assim procedesse, os seus companheiros ficariam cheios de inveja!
Era este o desenlace que eu imaginaria; de outro modo, a novela apresenta um caso dos mais vulgares da vida corrente, destituído de qualquer beleza; não se vê nela mais que um simples exemplo do humilde dia a dia. E como pôde lembrar-se de me enviar semelhante livro? É uma obra mal intencionada, prejudicial, querida Bárbara! Falta-lhe verdade, verosimilhança, pois é de todo impossível encontrar, seja onde for, um empregado como este! Não, querida Bárbara; tenho de me queixar, vou apresentar uma queixa em forma!
Seu fiel servidor
Makar Dievuchkin
27 de julho
Meu querido Makar Alexeievitch:
A sua carta e os últimos acontecimentos inquietaram-me sobremaneira, tanto mais quanto é certo que, a princípio, não consegui compreender nada. Foi Fédora que me explicou do que se tratava. Porque se desespera tanto e se inquieta por tão pouca coisa, Makar Alexeievitch? As suas explicações só em parte me satisfizeram. Talvez eu não devesse insistir em aceitar aquele emprego tão vantajoso, lembrando-me do que a minha última experiência neste capitulo me proporcionou.
Diz o senhor que o seu afeto por mim o levou a ocultar-me muitas coisas. Eu não ignorava os grandes sacrifícios que fazia por mim, apesar da sua insistente afirmação de que apenas gastava comigo o supérfluo, aquilo que, de outro modo, seria para pôr de lado. Mas agora que sei que o senhor não dispõe de quaisquer reservas de dinheiro; que foi só condoído pela minha triste situação que começou a gastar, em meu proveito, o seu ordenado, chegando mesmo a pedir adiantamentos; que durante a minha doença se sacrificou ao ponto de vender peças do seu vestuário... ao ter conhecimento de tudo isto, acho-me numa situação deveras crítica, sem saber como interpretar o sucedido, nem que pensar acerca dele.
Ah, Makar Alexeievitch! O senhor, movido pela compaixão e pelo afeto de parente, devia ter-se limitado a auxiliar-me nas minhas mais prementes necessidades, nunca indo além das suas posses e não fazendo comigo essas despesas supérfluas que constituem um verdadeiro esbanjamento. Atraiçoou a nossa amizade, Makar Alexeievitch; abusou da minha confiança; e agora que me vejo obrigada a ouvir que o senhor gastou até ao último centavo nas ofertas de vestidos, doces e livros e em passeios e teatros que me proporcionou — pago bem caro tudo isso com as censuras que a consciência me dirige —, deploro amargamente a minha imperdoável despreocupação, pois aceitava tudo o que me oferecia sem querer saber da sua vida. Deste modo, tudo o que fez para me dar prazer, converteu-se num peso aniquilador, e o pesar que sinto enegrece a recordação do que noutros tempos foi agradável.
Já tinha notado que ultimamente dava mostras de certo abatimento; mas, embora eu própria, assaltada por pressentimentos, suspeitasse de qualquer coisa, não podia, de modo algum, prever a realidade. Nunca pensei que a sua cabeça regulasse tão mal, Makar Alexeievitch. Que dirão de si todos aqueles que o conhecem? Será possível que o senhor, a quem eu, como de resto toda a gente, estimava tanto pela sua honradez, simplicidade e dignidade, haja contraído um vício tão repugnante e em que, segundo parece, nunca caíra? Se soubesse o que pensei quando Fédora me contou que o haviam encontrado na rua embriagado e que a polícia se vira obrigada a acompanhá-lo a casa! Fiquei deveras surpreendida, se bem que já imaginasse qualquer coisa de extraordinário, em virtude de ter passado quatro dias sem aparecer. Já pensou, Makar Alexeievitch, no que dirão os seus superiores quando souberem do verdadeiro motivo da sua falta ao trabalho? Diz-se que toda a gente se ri à sua custa, que ninguém ignora as nossas relações e que os seus vizinhos me envolvem nos seus comentários trocistas! Não se preocupe com isso, Makar Alexeievitch, e por amor de Deus, tranquilize-se!
Traz-me também bastante inquieta o incidente que teve com aquele oficial... Ainda não sei bem como as coisas se passaram, pois apenas surpreendi uns rumores acerca do caso. Peço-lhe que me explique no que aquilo veio a dar.
Diz-me na sua carta que não me contou toda a verdade, com receio de perder o meu afeto; que durante a minha doença, desesperado, vendeu tudo para fazer face às despesas e evitar que me internassem no hospital; e que se viu mesmo obrigado a empenhar-se até mais não, o que lhe valeu ter todos os dias cenas desagradáveis com a patroa. Pois, devo dizer-lhe, o pior que fez foi ocultar-me essas coisas. Pretendia, com o seu silêncio, evitar-me o conhecimento das suas dificuldades, mas agora, pondo-me ao corrente de tudo, causa-me duplo sofrimento. Isto dá cabo de mim, Makar Alexeievitch. A desgraça é uma doença contagiosa, meu amigo! Os pobres e os desgraçados deviam viver longe uns dos outros, para que as suas misérias se não agravassem mutuamente. Reconheço que fui a causadora do seu infortúnio, e este facto aflige-me extraordinariamente e faz-me perder toda a coragem.
Escreva-me, contando-me com franqueza tudo o que lhe aconteceu e como lhe foi possível deixar-se abater até tal ponto. Tranquilize-me, se puder. Não é por egoísmo que assim falo, mas pelo afeto e pela amizade que lhe tenho, sentimentos que nada será capaz de arrancar do meu coração.
Adeus, Makar Alexeievitch. Espero com impaciência a sua resposta. Julgou-me mal, meu amigo. Ama-o sinceramente
Bárbara Dobroselof
28 de julho
Minha inestimável Bárbara Alexeievna:
Que lhe hei de dizer, agora que tudo acabou, que tudo, pouco a pouco, está a regressar à normalidade? Sim, agora posso ser sincero consigo. Diz a minha amiguinha que está inquieta com o que se pensa e se diz de mim. Apresso-me, por isso, a comunicar-lhe que na repartição me estimam ainda mais do que dantes. E depois de lhe contar todas as minhas calamidades e infortúnios, posso informá-la de que os meus superiores não tiveram ainda conhecimento de nada disso; continuam todos a ter de mim a mesma opinião favorável. A única coisa que receio são as mexeriquices. Cá em casa a patroa gritava; mas, como, graças aos dez rublos, já lhe paguei parte do meu débito, agora limita-se a rosnar baixinho. Quanto às restantes pessoas, também a coisa não piorou; contanto que não lhes peça dinheiro, todos mostram boa cara. Para terminar as minhas explicações, devo dizer-lhe, querida, que para mim a sua estima vale mais do que tudo o que há no mundo, e que o simples facto de a não ter perdido representa uma consolação no meio das minhas dificuldades presentes. Graças a Deus, o primeiro choque e os primeiros dissabores já lá vão; e a grande bondade da minha boa amiga permite-me acreditar que não fez de mim mau conceito e continua a ter-me na conta de um bom amigo, não me acusando de egoísmo pelo facto de tudo ter feito para a reter na nossa companhia. É que queria-lhe muito e não me sentia com coragem para me separar de si, meu anjo. Agarrei-me novamente, com todo o afinco, ao meu trabalho, esforçando-me por reparar o mal feito, com o cumprimento fiel dos meus deveres burocráticos. Evstafii não me disse nada quando ontem passei ao seu lado.
Devo dizer-lhe que as minhas dívidas e o mau estado do meu fato me contrariam sobremaneira; mas tudo se há de arranjar e, entretanto, rogo-lhe que não se aflija com insignificâncias.
Envia-me mais meio rublo, querida Bárbara, e esse meio rublo trespassou-me o coração. Aqui tem, pois, como as coisas são e ao que eu cheguei. Não sou eu, velho imbecil, que a ajudo a si, meu anjo, mas você, pobre órfã, que me auxilia a mim. Fédora é credora da minha gratidão por ter arranjado o dinheiro. Por mim, não sabia aonde recorrer, minha filha; mas tão depressa saiba de alguma possibilidade, lhe comunicarei o que houver. As mexeriquices e só as mexeriquices é que me inquietam! Adeus, meu amor. Beijo-lhe as mãos e peço-lhe encarecidamente que faça por se restabelecer. Por hoje não lhe escrevo mais, porque são horas de ir para o trabalho; quero, à força de zelo e de aplicação, reparar as minhas faltas e tranquilizar, pouco a pouco, a minha consciência. Deixo para logo à noite a descrição mais pormenorizada de tudo o que me tem sucedido, bem como o incidente com os oficiais.
Seu respeitoso e sincero amigo,
Makar Dievuchkin
28 de julho
Minha querida Bárbara:
Ah! Bárbara, querida Bárbara! Desta vez a culpa é toda sua e há de pesar-lhe na consciência. A sua carta arrumou com os últimos laivos de superioridade que ainda me restavam e deixou-me por completo desnorteado. Só agora pude pensar em tudo calmamente e lançar um olhar introspetivo para o meu coração, tendo verificado que a razão estava do meu lado. Razão de sobra. Não quero referir-me agora aos meus três dias de loucura (seja boa, querida; não falemos mais nestas coisas!); limito-me apenas a insistir no afeto que lhe consagro e a afirmar que este sentimento nada tem de absurdo. Não, de modo nenhum. Mas, minha querida, ainda não sabe tudo. Se soubesse como isso foi, como comecei a gostar de si, falaria de outro modo. Agora fala assim, mas estou convencida de que intimamente pensa outra coisa. Passam-lhe pela cabeça essas ideias, mas não as sente.
Quanto ao incidente com os oficiais, para lhe ser franco, nem sei bem como aquilo foi. Devo observar-lhe que nessa altura atravessava uma crise terrível. Imagine que havia já um mês que eu andava, por assim dizer, suspenso por um fio. Encontrava-me numa situação tão aflitiva que não sabia que rumo dar à minha vida. Ocultava-lhe tudo, e aqui em casa procurava também que ninguém o percebesse; mas a patroa encarregava-se de pôr toda a gente ao facto do que se passava. Isso não me incomodaria muito e teria deixado essa desavergonhada dizer o que lhe apetecesse; mas, em primeiro lugar, isso era uma vergonha e, em segundo, saiba que ela estava ao corrente das nossas relações de amizade, não sei como, e dizia cá em casa tais coisas a nosso respeito, que eu ficava atordoado e me via obrigado a tapar os ouvidos. O caso é que as outras pessoas não os tapavam, antes os abriam o mais possível. Mesmo agora, não sei onde me esconder deles.
Na verdade, este conjunto de circunstâncias desagradáveis, até então para mim desconhecidas, deixaram-me desnorteado. Soube depois, por Fédora, que um tipo indigno aparecera em vossa casa e a insultara com uma vil proposta. A dor que tal ofensa lhe deve ter causado, avalio-a bem, minha querida, por mim próprio, porquanto isso me feriu também profundamente. Então, como que me fugiu a razão e perdi a cabeça. Nunca me senti tão encolerizado, querida Bárbara. O meu primeiro movimento foi correr a toda a pressa em busca daquele sedutor, para quem nada havia de sagrado no mundo. Para ser franco, porém, não sei o que pretendia; queria, sim, obstar a que a ofendessem. Que tristeza! Chovia e o chão estava coberto de lama, e no coração sentia uma mágoa imensa. Quis regressar a casa, mas eis que não me aguentei nas pernas e... Encontrei-me com Emelia, o Emelia Ilich, que é companheiro de ofício, ou antes, era, porque agora já não é; despediram-no, ignoro porquê. Não sei em que trabalha presentemente, mas ele já deve ter conseguido alguma coisa... Depois Emelia agarrou-se a mim e acompanhou-me. Sim, devo contar-lhe tudo, querida Bárbara, embora não lhe causem alegria alguma os infortúnios e faltas do seu amigo, o relato de todas as minhas desventuras. Daí a três dias, ao anoitecer, animado por Emelia — Deus lhe perdoe! —, fui ter com o oficial, cujo endereço soubera por intermédio do nosso criado. Vem agora a propósito dizer-lhe, querida, que eu trazia, havia muito, esse rapaz debaixo de olho; já quando ele se encontrava hospedado aqui, eu o vigiava. Agora compreendo que não me conduzi lá muito bem, pois não me encontrava muito fixe quando fui a sua casa. E depois, francamente, não sei o que se passou. Lembro-me apenas de que estava acompanhado de muitíssimos empregados, embora talvez eu naquela altura visse tudo em duplicado. Tão pouco me recordo das palavras que lhe dirigi, lembrando-me apenas de que, preso de nobre indignação, falei pelos cotovelos. Por fim, puseram-me fora da porta, empurrando-me pelas escadas abaixo, isto é, eu é que me atirei, esta é que é a verdade. Como vim ter a casa, isso não sei. E eis tudo, querida Bárbara. O resto já o conhece. Rebaixei-me muito, sem dúvida, a minha reputação ficou um pouco abalada com isto; mas ninguém tem conhecimento de tudo o que sucedeu, nenhum estranho, além da minha boa amiga. Assim, afinal de contas, é como se nada se houvesse passado. Será, porventura, da mesma opinião, querida Bárbara? Que me diz? A única coisa que sei ao certo é que, no ano passado, um dos hóspedes daqui, Aksenti Osipovicth, fez o mesmo a Pedro Petrovitch, mas em segredo. Convidou-o a ir até ao quarto da guarda — eu, por acaso, presenciei tudo — e logo que o apanhou ali, disse-lhe o que entendeu, mas educadamente, sem fazer barulho, de modo que só eu, como já referi, tive conhecimento da cena. O facto de eu estar ao corrente do caso não importa, pois se alguém me fizesse perguntas a tal respeito, limitar-me-ia a afirmar que nada ouvira, de modo que era a mesma coisa que de nada soubesse. Pois, a seguir a isso, as relações entre ambos não se alteraram. Como sabe, Pedro Petrovitch é muito orgulhoso e teve o máximo cuidado em não contar nada a ninguém. Agora, cumprimentam-se e até se apertam a mão, quando se encontram, tal como se entre eles nada se tivesse passado.
Lá que me rebaixei muito e — o que é mais lamentável — fiquei muito diminuído na minha dignidade, isso compreendo e estou plenamente de acordo consigo, minha boa amiga. Mas não há dúvida de que isto já devia estar escrito desde o meu nascimento, seria certamente a minha sina e, como sabe, ninguém pode fugir ao seu destino.
Aqui tem, pois, querida Bárbara, o relato pormenorizado de todas as minhas atribulações e infortúnios. Como vê, são de tal marca, que melhor será não falar mais neles. Sinto-me um pouco doente, meu amor, e perdi toda a minha boa disposição. Dou por terminada esta, reiterando-lhe a certeza dos meus sentimentos de afeto, estima e respeito.
Seu muito humilde criado
Makar Dievuchkin
29 de julho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Li as suas duas últimas cartas, que me fizeram sofrer imenso. Meu Deus! Ou o meu bom amigo me oculta alguma coisa, descrevendo-me apenas uma parte dos seus infortúnios, ou então, Makar Alexeievitch, não compreendi nada do que nelas diz... Venha, hoje, ver-me, por amor de Deus! Venha do trabalho direito aqui e janta connosco, ouviu? Não sei que vida é a sua agora aí, nem como se arranja com a patroa. Não se refere a isso nas suas cartas e tenho a impressão de que o faz de propósito.
Até à vista, meu bom amigo; não falte. Seria mesmo preferível vir sempre comer connosco.
A Fédora cozinha muito bem. Até logo, pois.
Sua
Bárbara Dobroselof
1 de agosto
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Está satisfeita por Deus lhe haver proporcionado a oportunidade de pagar o bem com o bem e saldar a sua dívida de gratidão! Creio nisso e acredito, querida Bárbara, na bondade do seu coração. Não serei eu quem a censure. Peço-lhe, porém, que também me não critique agora por eu ter sido um dissipador. Cometi um pecado, mas que se lhe há de fazer? Isto, se ainda teima em classificar assim o meu procedimento. Lembro-lhe, porém, que me custa imenso ouvir, precisamente da sua boca, essas coisas!
Não leve a mal as minhas palavras. O meu coração anda tão fraco, meu amor! Os pobres também têm caprichos. A Natureza é que assim o determina, e já há muito que eu o havia observado e sentido. O pobre é suscetível; não vê o mundo tal qual ele é, olha de soslaio quem passa, com receio, não perdendo uma só palavra que seja proferida à sua volta. Estarão a falar dele? Dar-se-á o caso de estarem a comentar, em voz baixa, o seu miserável aspeto? Ou perguntarão no que agora se emprega? Que figura fará ele neste ou naquele lugar? Toda a gente sabe que um homem pobre é pior do que um farrapo e que, digam o que disserem, ninguém tem por ele a mínima consideração. Por mais que escrevam esses rabiscadores, um pobre será sempre um pobre com todas as consequências de tal condição. E há de ser sempre assim, porquê? Porque o pobre, por assim dizer, tem de mostrar tudo, não pode conservar nada escondido — um bocadinho de orgulho, por exemplo, qualquer outro sentimento parecido —, porque não lho permitem. Contou-me há dias Emelia que uma vez fizeram uma subscrição a seu favor e que por cada pequena moeda que lhe davam, submetiam-no a uma espécie de investigação. Entendiam os subscritores que não deviam dar as suas esmolas assim sem mais nem quê... De modo nenhum! Pagavam para gozar o espetáculo de um pobre! Hoje, minha boa amiga, a caridade é exercida de um modo muito estranho! Quem sabe se não terá sido sempre assim! Das duas, uma: ou as pessoas não sabem ministrá-la, ou então já são peritos na matéria...
Se calhar, ignorava estas coisas, mas faça por não as esquecer para o futuro! É verdade que acerca de muitos outros assuntos não sei nada, mas conheço em pormenor tudo o que diz respeito a este, acredite. E como se pode adquirir tão perfeito conhecimento? Sobretudo, porque pensar desta forma? Sim, como se consegue saber tão bem estas coisas? Pois... pela experiência. Pela mesma razão o pobre sabe que, se entrar num restaurante juntamente com um senhor, este perguntará para os seus botões: «Que irá comer agora ao almoço este empregadito? Eu vou pedir sauté aux papillotes, ao passo que ele talvez tenha de contentar-se com um cozinhado qualquer, sem manteiga.» Mas que lhe importará a ele que eu não possa comer senão um reles cozinhado sem manteiga? É verdade, querida Bárbara, há homens assim, existem criaturas que só pensam nessas coisas. E andam entre nós esses seres inúteis, esses bisbilhoteiros e mexeriqueiros; metem o nariz em tudo, a ponto de repararem se os outros põem no chão a planta do pé ou só a ponta, observando se este ou aquele empregado traz os dedos a sair pelas botas fora, se tem as mangas do casaco rotas nos cotovelos. Depois escrevem tudo sem omitir a mínima particularidade e, sem mais preâmbulos, mandam-no imprimir...
Que lhes importa que eu tenha as mangas rotas nos cotovelos? Se me permite esta comparação, dir-lhe-ei, minha amiga, que o pobre, neste caso, sente uma vergonha análoga à do pudor virginal da mulher.
A Bárbara — desculpe o grosseiro exemplo — seria capaz de se despir diante de toda a gente? Decerto que não. Pois exatamente pelo mesmo motivo, o pobre não gosta que metam o nariz na sua pocilga, para bisbilhotar como vivem ele e os seus. Com que razão, pois, a minha amiga me ofende, precisamente como os meus inimigos, que atentaram contra a honra e a reputação de um homem honrado?
Hoje de manhã, sentado na repartição, muito calado e absorto, pareceu-me ver a minha própria figura como se fosse a de um pardal sem penas. Senti tal vergonha, que cheguei a ter desejos de morrer. É verdade, querida, senti vergonha! Sem querer, a gente sente-se desanimado quando sabe que através dos rasgões das mangas se lhe veem os cotovelos e que os botões do casaco estão presos por um fio. Pois eu encontrava-me precisamente neste preparo! E será de admirar que nos sintamos desanimados? Até Estepan Karlovitch, ao falar-me de qualquer coisa relacionada som o serviço, mudou, de repente, de assunto e exclamou: «Ai, Makar Alexeievitch!»; mas não chegou a dizer o resto, aquilo que no seu íntimo pensava. Eu, porém, adivinhei tudo e ruborizei-me de tal forma, que decerto até a careca se me pôs cor-de-rosa. Bem pensado, isso não tem uma importância por aí além; no entanto, sempre causa uma certa inquietação e faz com que os nossos pensamentos se encaminhem num rumo melancólico. Como conseguem estes tipos saber a minha vida? Devo confessar-lhe, para ser franco, que alimento sérias suspeitas acerca de certo indivíduo. A esses bandidos não escapa coisa alguma! Põem-nos a nu sem qualquer consideração! São capazes de vender a vida por uma ninharia, minha boa amiga, porque para eles não existe nada sagrado!
Já sei de quem deve ter partido tudo: de Ratazaiev! Certamente é amigo de alguém da minha repartição, a quem contou qualquer coisa, acrescentando ao relato alguns pormenores da sua lavra. Ou então falou do caso onde trabalha e dali a notícia alastrou. Cá em casa estão todos ao corrente do sucedido, e até apontam com o dedo a janela da minha boa amiga. É, pelo menos, o que me consta. Ontem ao meio-dia, quando me dirigia a sua casa para almoçar, esconderam-se por trás das janelas, espreitando com muito cuidado, para que não os víssemos; e a patroa dizia que o diabo fizera um pacto com uma criança de peito e mimoseava-a, a si, com nomes pouco decentes.
Mas isto ainda não é nada, comparado com o escandaloso procedimento de Ratazaiev. Pretende fazer-nos figurar num dos seus livrecos e fazer com o nosso caso uma sátira. Foi o que ele disse, segundo me contaram alguns bons amigos, colegas na repartição. Não me sai isto da ideia, meu amor, e não sei que medidas adotar. Não há dúvida, meu anjo, que temos ofendido muito o Senhor, não o esqueçamos!
Queria a minha amiga mandar-me um livro, para que eu me não aborrecesse. Não, por enquanto não preciso de livros, meu amor! Mas que livro, nesta altura, me poderia divertir? Ainda se fosse um que só descrevesse a realidade! Mas as novelas e as sátiras são verdadeiros disparates, escritos com o único fim de dizer tolices e os ociosos terem alguma coisa que ler. Acredite, querida Bárbara, no que lhe digo, deixe-se guiar pela minha larga experiência. A começar pelas de Shakespeare — e é Shakespeare, note bem! — essas mesmo são puros disparates e nada mais, como as de qualquer escrevinhador de livrecos para divertir o público!
Seu
Makar Dievuchkin
2 de agosto
Querido Makar Alexeievitch;
Não se inquiete, por favor. Tudo se há de arranjar, se Deus quiser. A Fédora conseguiu muito trabalho para nós, e agarrámo-nos logo a eles, cheias de alegria. É possível que com isto remediemos tudo. A minha companheira assevera que Ana Fedorovna está ao corrente dos meus últimos desgostos; mas isso é-me indiferente. Hoje sinto-me alegre a valer.
Então o senhor queria contrair um empréstimo de dinheiro! Deus o defenda de tal! Iria agravar ainda mais a sua situação; ao fim, feitas as contas, teria de pagar uma quantia muito mais elevada. O que deve é levar uma vida mais económica, visitar-nos com mais frequência e não se importar com os comentários da sua patroa. Quanto aos seus inimigos e a todas as outras pessoas que pensam mal de si, estou convencida de que as suas apreensões são infundadas, Makar Alexeievitch.
Devo dizer-lhe também que precisa de ter mais cuidado com o estilo; tenho notado que difere grandemente de carta para carta. Com isto, adeus até à vista. Espero que não falte.
Sua
B. D.
3 de agosto
Bárbara Alexeievna, meu anjo:
Apresso-me a comunicar-lhe que estão a renascer em mim as esperanças. Antes, porém, permita-me que lhe pergunte se de facto entende que não devo contrair um empréstimo de dinheiro. Na verdade, sou obrigado a recorrer a este meio, meu amor. A minha vida encontra-se desorganizada e, além disso, de um momento para o outro, vocês podem necessitar também de qualquer coisa. A Bárbara não goza de muito boa saúde, por isso julgo imprescindível o empréstimo.
Antes de mais nada, deixe-me dizer-lhe que o meu lugar na repartição é ao lado de Emelia Ivanovitch. Este não é o Emelia de que já lhe tenho falado, é, como eu, um funcionário público. Somos os mais antigos da repartição, os veteranos, como costumam chamar-nos. É um homem extremamente bondoso, nada egoísta, mas fala muito pouco. E veja o que são as coisas: quem o vir, julga-o um perfeito urso. Trata só do seu trabalho, tem uma boa letra inglesa e, para dizer a verdade, não escreve pior do que eu. Além disso, é um homem de uma honradez a toda a prova. Nunca houve entre nós verdadeira intimidade, limitando-nos à troca de saudações: «Bom dia!» e «Até amanhã!» Mas se eu, por exemplo, preciso, às vezes, de um apara-penas, digo-lhe: «Caro Ivanovitch, faz o favor de me emprestar o seu apara-penas por um momentinho?» Quer dizer, nunca tivemos uma verdadeira conversa; apenas trocamos essas palavras que é costume dizerem-se entre empregados da mesma secção. Pois hoje, esse tal Emelia disse-me: «Makar Alexeievitch, porque está tão pensativo?» Notei que me falava com a melhor das intenções e... confessei-me a ele, abri-lhe o meu coração e contei-lhe tudo, isto é, tudo não, Deus me livre! Coisas há na minha vida que nunca as confiarei a ninguém; não teria coragem de o fazer. Contei-lhe apenas parte ou, melhor dizendo, confessei-lhe que estava com dificuldades financeiras, etc., etc. Ele então disse-me que me dirigisse, por exemplo, a Pedro Petrovitch e lhe pedisse dinheiro emprestado, a juros. Contou-me que já recorrera a ele com o mesmo fim e garantiu-me que o juro não era exagerado.
Pois bem; ao ouvi-lo, o meu coração até pulou de alegria... Batia com tanta força! Pensava e tornava a pensar e pedia a Deus que inspirasse a Pedro Petrovitch a ideia de me emprestar dinheiro! Em seguida, pus-me a fazer contas, para ver a forma como poderia pagar à patroa e ajudá-la também a si, e renovar o meu vestuário a fim de readquirir o aspeto de homem, pois já sinto tal vergonha de andar neste estado, que até me custa estar aqui no meio dos meus colegas — sem falar nos motejos com que me mimoseiam os próprios contínuos... Deus lhes perdoe! De mais a mais, sua excelência passa às vezes junto da nossa mesa de trabalho, e se lhe dá para me dirigir um olhar e reparar no meu fato, Deus me livre! É que para ele a boa apresentação e a ordem são o que há de mais importante no mundo. Talvez não dissesse nada; mas eu, querida Bárbara, creio que cairia logo morto de vergonha... É o que lhe digo. Por isso, apelei para toda a minha coragem, pus de parte o receio e, por um lado, cheio de esperança, e por outro um pouco inquieto, resolvi-me a ir ter com Pedro Petrovitch. Pois bem, meu amor, foi tudo em vão. Encontrava-se muito entretido a conversar com Fadosi Ivanovitch. Aproximei-me dele e toquei-lhe muito discretamente no braço, como quem lhe queria falar. Ele voltou-se para mim e então eu disse-lhe pouco mais ou menos o seguinte: «Encontro-me numa situação deveras aflitiva e desejava que me emprestasse trinta rublos...» A princípio, pareceu não me ter compreendido; mas eu expliquei-lhe outra vez a minha pretensão e ele desatou a rir, sem me dizer palavra. Comecei de novo a falar-lhe na minha necessidade, após o que ele me perguntou: «Pode dar-me alguma garantia?» Em seguida, mergulhou de novo nos seus papéis e continuou a escrever, sem sequer me dirigir um olhar. Fiquei um tanto enleado e disse-lhe: «Não, Pedro Petrovitch, não posso dar-lhe qualquer garantia, mas mal receba o ordenado deste mês, aparecerei logo aqui para cumprir a minha obrigação.» Naquele momento chamaram-no e ele abalou do escritório e eu fiquei à sua espera. Não demorou muito a estar de volta. Sentou-se, aguçou a pena, tendo feito tudo isto sem reparar na minha presença. Eu, porém, voltei à carga, dizendo-lhe: «Quer então dizer, Pedro Petrovitch, que não se pode arranjar nada?»
Ele continuava calado, como se não ouvisse, e eu, ali de pé, pensei: «Vou fazer mais uma tentativa, a última». E puxei-lhe outra vez pela manga. Pedro Petrovitch, porém, não proferiu palavra; tirou da pena um fiapo e continuou a escrever. Então, retirei-me.
Olhe, minha amiga, estes tipos talvez sejam muito honrados, não o contesto; mas orgulhosos, lá isso são, e muito... São verdadeiramente inacessíveis. Contei-lhe este episódio para que fique a saber o que é essa gente.
Entretanto Emelia Ivanovitch animou-me muito. Aquele, de facto, é uma bondosa criatura. Prometeu recomendar-me a um individuo que mora em Viborskaia e que também empresta dinheiro, e garante-me que serei servido, sem falta. Por isso, amanhã vou ter com o sujeito em questão. Que lhe parece? Sem dinheiro nada feito.
A minha patroa já me ameaçou de me pôr na rua e não me quer fornecer mais refeições. Trago as botas em estado lastimoso, minha querida, falta-me uma grande quantidade de botões e uma infinidade de coisas mais! E se algum dos meus superiores se lembra de reparar em mim... Horrível, minha amiga, simplesmente horrível!
Makar Dievuchkin
4 de agosto
Querido Makar Alexeievitch:
Por amor de Deus, Makar Alexeievitch, veja se arranja algum dinheiro o mais depressa possível! Eu não pediria, de modo algum, o seu auxílio para as dificuldades com que presentemente me debato; mas se o meu amigo soubesse a situação em que me encontro... Não posso continuar nesta casa, tenho de me mudar! Sofri aqui os mais horríveis desgostos, e o senhor não pode imaginar como me sinto inquieta e desanimada!
Hoje de manhã, calcule, apareceu-me cá em casa, inesperadamente, um desconhecido, um homem de certa idade, quase um velho, com uma condecoração ao peito. Fiquei muito surpreendida, sem compreender o que desejava. Como Fédora tinha saído a fazer umas compras, perguntei-lhe o que pretendia. Então o visitante quis saber como é que eu vivia, em que me ocupava, e depois, sem esperar resposta, informou-me que era tio daquele oficial de que o senhor falou e que o procedimento incorreto do seu sobrinho o desgostara muito, sobretudo por ter posto em cheque a minha boa reputação. Acrescentou que o rapaz era um estouvado, sem juízo algum; por isso, ele, na qualidade de tio, achava-se na obrigação de reparar os seus erros e tomar-me sob a sua proteção. Aconselhou-me ainda a não dar ouvidos aos rapazes; ele sentia por mim uma compaixão de pai e um amor paternal e estava pronto a auxiliar-me em tudo o que lhe fosse possível.
Ao ouvir isto, fiquei tão envergonhada que nem sabia o que responder-lhe, pois, como deve calcular, a minha perturbação não me permitia qualquer pensamento. Pegou-me na mão contra vontade e não ma queria largar; eu procurei libertar-me, e ele deu-me umas palmadinhas nas faces, dizendo que eu era muito bonita e que gostava muito de mim, encantando-o, sobretudo, as covinhas do rosto, só Deus sabe com que sentido! Continuou a falar pelos cotovelos e, por fim, fez menção de me dar um beijo. «Como sou um velho!» — dizia. Que indecente galanteador! Naquele momento chegou a Fédora. Então o presumido perdeu um pouco o entusiasmo; repetiu que tinha em grande apreço sobretudo a minha modéstia e virtude, acrescentando que veria com gosto a minha confiança nele. Depois chamou Fédora de lado e quis meter-lhe dinheiro na mão, não sei com que pretexto. Fédora, claro, não aceitou.
Então ele despediu-se, reiterando os seus oferecimentos e prometendo fazer-me em breve outra visita, trazendo-me nessa altura uns brincos de presente. Além disso, aconselhou-me a mudar de casa, recomendando-me uma que é muito bonita e não me custaria um tostão. Repetiu-me que lhe inspirara um afeto muito especial, por ser uma moça honrada e de juízo, e advertiu-me mais uma vez que tivesse muito cuidado com os rapazes libertinos. Por fim, declarou que conhecia Ana Fedorovna, a qual o encarregara de me dizer que muito em breve me faria uma visita.
Então, compreendi tudo! Não sei explicar o que se passou em mim. Nunca experimentara tal sensação, e também era a primeira vez que me encontrava em situação igual. Estava fora de mim! Verberei asperamente o seu procedimento, secundada por Fédora, quase o pusemos fora da porta. Tudo isto é, sem dúvida, obra de Ana Fedorovna... De outro modo, como poderia ele conseguir saber tantas coisas a nosso respeito?
É por isso que agora recorro a si, Makar Alexeievitch, e lhe peço o seu auxílio. Ajude-me e, por amor de Deus, não me abandone em tão aflitiva situação. Arranje-nos, por favor, algum dinheiro, nem que seja pouco, pois não temos a que deitar a mão para as despesas da mudança e não podemos, de modo nenhum, continuar a viver aqui. Fédora é da mesma opinião. Precisamos, pelo menos, de vinte e cinco rublos, que lhe pagarei com o produto do trabalho que Fédora arranjou e que começarei dentro de dias. Se lhe pedirem juros muito elevados, não se importe, aceite todas as condições, que eu reembolsá-lo-ei de tudo; mas, por amor de Deus, não me abandone nesta conjuntura! Custa-me imenso fazer-lhe este pedido nas atuais circunstâncias, mas não tenho mais a quem recorrer; o senhor é o meu único amparo, a minha única esperança!
Adeus, Makar Alexeievitch. Pense em mim e Deus queira que seja bem sucedido.
B. D.
4 de agosto
Bárbara Alexeievna, meu amor:
São precisamente estes choques imprevistos que me desconcertam. Estas horríveis calamidades dão cabo de mim. Esses insulsos peralvilhos, esses velhotes desprezíveis acabarão por fazer-nos adoecer, não só a si, meu amor, com os desgostos que lhe causam, mas também a mim, a quem esses malandros darão o golpe mortal. São capazes de o fazer, asseguro-lho, querida. Contudo, seria mais fácil eu deixar-me matar do que não lhe prestar o meu auxílio. Se não pudesse ajudá-la, morreria, querida Bárbara, isso seria a minha morte, a minha verdadeira morte! Mas logo que eu consiga socorrê-la, fuja de mim sem demora, como um pardal, pois só assim se verá livre dessa chusma de aves de rapina que lhe andam a rondar o ninho. Dou-lhe este conselho, apesar de ser isso o que mais me aflige. O que eu sofro por sua causa! Como é cruel, minha amiga! Afligem-na, ofendem.na, pobre passarinho, meu amor, fazem-na sofrer continuamente... E como se isso fosse pouco, preocupa-se ainda com outras coisas que me desgostam a mim também. Promete reembolsar-me do dinheiro à custa do seu trabalho! Quer dizer: fraca como está, vai pôr-se a trabalhar com afinco a fim de poder dar-me o dinheiro dentro do prazo marcado. Já pensou bem no que promete? Para que há de trabalhar, fatigar-se, torturar essa pobre cabecinha com preocupações, cansar esses lindos olhos e dar cibo da saúde? Ah, querida Bárbara, querida Bárbara!
Olhe, meu anjo, bem sei que nada valho, que não sirvo absolutamente para nada, mas vai ver que alguma coisa conseguirei. hei de vencer todas as dificuldades. Arranjarei trabalho extraordinário, farei cópias de manuscritos para escritores; irei ter com eles e pedir-lhes-ei serviço. verão que escrevo bem e hão de dar-me que fazer, pois sei que procuram bons copistas! Mas o que não consentirei é que dê cabo das suas forças pondo em prática os seus horríveis desígnios! Não, hei de evitá-lo, custe o que custar!
Vou pedir dinheiro emprestado e hei de arranjá-lo, esteja descansada, meu anjo. Se não o conseguisse, morreria. Recomenda-me que não me importe se os juros forem muito elevados; pode ficar certa de que assim farei, nada me deterá, já nada me mete medo! Para já, pedirei quarenta rublos. Talvez seja pouco, não lhe parece, querida Bárbara? E serão capazes de me emprestar quarenta rublos, sem outra garantia além da minha palavra? O que desejo saber, meu amor, é se me acha capaz de inspirar confiança a qualquer pessoa, à primeira vista. Com um simples olhar, isto é, pela expressão do meu rosto, poderão formar de mim um conceito favorável? Pense bem, minha querida, pense bem. Posso fazer boa impressão em quem me vê pela primeira vez? Que lhe parece? Serei homem para isso? Bem vejo as dificuldades que tenho a vencer e sinto uma angústia doentia, verdadeiramente doentia! Dos quarenta rublos, vinte e cinco serão para si, dois para a minha patroa, e o resto ficará para as minhas despesas.
Na verdade, devia dar um pouco mais à minha patroa; mas, se deitar conta às minhas prementes necessidades, verá que não me é possível dar-lhe maior quantia... Por isso, não vale a pena preocupar-se mais com o assunto, podendo dá-lo por solucionado. Por cinco rublos compro um par de botas; as que tenho encontram-se em tão lastimoso estado, que não me sinto com coragem de me apresentar outra vez com elas na repartição. Também precisava de uma gravata, pois esta já tem quase um ano de uso; como, porém, você me prometeu fazer, de um avental velho, um peitilho e uma gravata, para já não penso neste assunto. Tenho, portanto, botas e gravata. Faltam ainda botões, minha boa amiga. Deve concordar que são imprescindíveis; ao meu casaco da farda falta mais de metade. Até tremo ao pensar que qualquer dia sua excelência pode reparar em tal amostra de desleixo e dizer alguma coisa, e com muita razão. Eu não chegaria a ouvir mais do que uma palavra, porque cairia logo morto, subitamente, com vergonha; à simples ideia dessa desgraça, parece que a alma se me aparta do corpo. Sim, meu amor, não poderia sobreviver a tal opróbrio.
Depois de acudir às mais urgentes necessidades, restar-me-ão seguramente três rublos, para viver e para comprar uma onça de tabaco, pois não posso passar sem o tabaco e há já nove dias que não meto o cachimbo na boca. Confesso-lhe francamente que sou capaz de comprar tabaco sem lhe dizer nada, apesar da vergonha que sinto perante a minha consciência. Você é uma infeliz que se priva de tudo e eu hei de satisfazer os meus prazeres! Desde já a aviso do facto para evitar os remorsos da minha consciência.
Encontro-me presentemente numa situação deveras desesperada, é com sinceridade que lho digo; nunca me vi em tais apuros. A minha patroa despreza-me; ninguém tem por mim qualquer consideração ou respeito. Por toda a parte, só faltas e dívidas. E na repartição, onde os meus companheiros nunca me trataram muito bem, nem é bom falar. Eu dissimulo tudo, procuro ocultar tudo e até ocultar-me a mim próprio; de manhã, quando entro, faço todo o possível por passar despercebido e meto-me no meio dos colegas quase sem ninguém dar fé. Só a si tenho coragem de contar francamente a minha situação... Mas e se me não emprestarem o dinheiro?
Não, querida Bárbara; é melhor não pensar em tal eventualidade e não me atormentar com semelhantes ideias, não vá desanimar antes do tempo. Digo-lhe estas coisas apenas para a prevenir e a pôr de sobreaviso, a fim de não pensar nisso e atormentar-se com outras ideias tristes! Não faça isso! Que seria da minha boa amiga, meu Deus! Decerto, se tal sucedesse, a Bárbara não poderia mudar de casa e continuaria minha vizinha. Eu, porém, não resistiria, sumir-me-ia, simplesmente, pela terra abaixo, desapareceria, sucumbiria!
Aqui tem outra longa carta. Em vez de escrevinhar tanto, faria melhor barbeando-me, pois um homem com a barba feita tem um aspeto mais distinto e respeitável, o que é de grande importância e representa um grande auxílio, muito apreciável para conseguirmos o que temos em mira. Será o que Deus quiser! Vou rezar e depois... mãos à obra.
M. Dievuchkin
5 de agosto
Meu querido Makar Alexeievitch:
Se o senhor ao menos não desesperasse! Nada de mais preocupações, que as que temos já chegam... Mando-lhe trinta kopeks, lamentando não dispor de mais. Compre com elas aquilo que mais necessitar, a fim de poder arranjar-se até amanhã. Nós ficamos quase sem nada e não sei o que há de ser de nós agora! Não sei. Que tristeza, Makar Alexeievitch! Mas não é caso para o senhor se afligir. Se não lhe arranjaram o dinheiro, que lhe havemos de fazer? Fédora diz que, afinal, não é assim tão desesperadora a nossa situação; podíamos continuar aqui por mais algum tempo e, segundo ela, pouco teríamos a lucrar com a mudança, pois os interessados não nos perderiam a pista. Apesar de tudo, porém, não me agrada muito continuar nesta casa. Se não receasse magoá-lo, dir-lhe-ia o motivo.
Que estranho feitio o seu, Makar Alexeievitch! Toma tudo muito a sério, sendo por isso o mais infeliz dos homens. Leio atentamente as suas cartas e por elas verifico que se preocupa e aflige mais por causa de mim do que propriamente pela sua pessoa. Sim, cada uma delas diz-me que o senhor possui bom coração; mas eu digo-lhe a si que o acho bom de mais. Por isso, permito-me dar-lhe um conselho amigo, Makar Alexeievitch. Estou-lhe muito reconhecida, mesmo muito, por tudo quanto tem feito por mim; agradeço-lhe do fundo do coração, creia. Pode fazer ideia do prazer que sinto por ver que apesar de todos esses maus bocados, de que fui causa involuntária, o senhor continua a viver só para mim e, de certo modo, eu sou a razão da sua existência, pois as minhas alegrias são as suas, os meus sofrimentos são os seus, os meus sentimentos têm para si mais valor do que propriamente os seus. O meu bom amigo encara de tal forma as dores alheias e é capaz de se preocupar tanto com aquilo que não lhe diz respeito, que se pode de facto chamar-lhe o mais infeliz dos mortais! Hoje, quando, de passagem para a repartição, entrou em minha casa, assustei me ao vê-lo. Vinha tão pálido, tão aflito, tão abatido, tão preocupado e desesperado que, francamente, nem parecia o mesmo. E porquê? Simplesmente por recear desgostar-me e afligir-me confessando-me o seu fracasso. Quando, porém, viu que eu encarava as coisas com otimismo, respirou mais à vontade. Não se desespere assim, Makar Alexeievitch, nada de inquietações e seja razoável, peço-lhe, imploro-lhe! Verá que tudo se há de arranjar e correr à medida dos nossos desejos. Se continua a incomodar-se e a afligir-se tanto com as desgraças dos outros, a sua vida será cada vez mais triste, tornando-se um eterno suplício.
Adeus, meu amigo. Mais uma vez lhe peço que não se inquiete por minha causa!
B. D.
5 de agosto
Minha querida Bárbara:
Está bem, meu anjo, está bem! Crê então que não é caso para aflições o facto de eu não haver conseguido o dinheiro? Bem, nesse caso, também estou tranquilo e contente. Até sinto alegria por saber que não abandonará este pobre velho e continuará na mesma casa. É para lhe dizer a ver dade, devo confessar-lhe que fiquei radiante com as bonitas palavras que me dirigia na sua carta e a apreciação que fez dos meus sentimentos. Não é por orgulho que lhe digo isto, mas sim por ver o afeto que me tem, uma vez que tanto se esforça por me tranquilizar o coração. Mas deixemos o meu coração, que não é agora cá chamado. Aconselha-me a pôr de parte o receio e tem toda a razão; nada de pusilanimidade. Mas, isto cá para nós: que botas hei de levar amanhã para a repartição, não me dirá? A questão é esta, fique sabendo; esta é que é a realidade. Basta esta ideia para dar cabo de um homem, aniquilá-lo pura e simplesmente. A falar a verdade, não é a minha pessoa que me dá cuidado e me faz inquietar. Cá por mim, não me ensaiava para ir através dessas ruas sem casaco e descalço; isso ser-me-ia indiferente, de nada me importaria, porque sou um homem simples e modesto. Mas que diriam os outros? Que diriam os meus inimigos e todas essas más línguas se me vissem sem casaco? Usa-se casaco por causa dos outros e por causa deles também é que se calçam botas. Quer dizer, meu amor, quer as botas servem simplesmente para a conservação da honra e da boa fama do homem. Quem andar com o calçado roto, perde as duas coisas. Acredite no que lhe digo, minha querida; deixe-se guiar pela longa experiência deste velho, siga os meus conselhos e não dê ouvidos a qualquer peralvilho!
Mas ainda lhe não contei pormenorizadamente o meu insucesso de hoje, meu amor. Talvez, nesta manhã, eu tenha sofrido tanto, passado por tantas torturas morais como num ano inteiro.
Eis como as coisas se passaram: saí de casa muito cedo para me avistar com o homem e chegar ao meu trabalho a tempo. Chovia e o chão estava coberto de lama. Embrulhado no capote, pus-me a caminho, pensando no meu íntimo: «Meu Deus, perdoai-me todos os meus pecados e permiti que os meus desejos se realizem! Ao passar diante da igreja de ..., benzi-me e fiz ato de contrição; mas ao mesmo tempo pensei que não devia pedir estas coisas a Nosso Senhor. Assim, voltei a mergulhar nos meus pensamentos e continuei o meu caminho, sem sequer olhar para o lado. As ruas encontravam-se desertas e os transeuntes que de vez em quando se me deparavam pareciam preocupados e pensativos... Não é, porém, para admirar; com um tempo destes e a tal hora só anda fora de portas quem a isso é obrigado. Nisto, passou por mim um grupo de trabalhadores esfarrapados, que me deram um grande encontrão. Senti-me então atacado de timidez e, para dizer a verdade, nem queria lembrar-me do dinheiro. Contudo, lá fui à aventura, à sorte de Deus.
Precisamente ao atravessar a ponte Vrokresenski, soltou-se-me a sola de uma das botas e, depois disto, não compreendo como pude caminhar. Nesse momento encontrei-me com o amanuense lá da repartição, Ermolaiev, que parou e me seguiu com a vista, como se quisesse pedir-me uma gorjeta. «Ah, meu amigo — pensei —, querias uma gorjeta! Mas como dar-ta com os bolsos vazios como os levo?»
Sentia-me terrivelmente cansado; parei um momento para repousar, e depois prosseguir no meu caminho.
Comecei então a olhar para toda a banda, a ver se descobria qualquer coisa que me distraísse, afastando-me o pensamento da realidade; mas foi em vão. E como se isto ainda não fosse pouco, cobri-me de tal modo de lama, que até senti vergonha. Finalmente, divisei ao longe uma casa amarela, de madeira, com uma espécie de mirante. «Deve ser aquela, a avaliar pela descrição que dela me fez Emelia Ivanovitch. A casa de Markov». (É assim que se chama o homem que empresta dinheiro a juros.) Mas naquele momento fervilharam-me no espírito tantos pensamentos que fiquei quase sem ideias. Dirigi-me então a um guarda perguntando-lhe de quem era aquela casa. O agente da autoridade, um bruto, com maus modos e como se estivesse zangado comigo, resmungou por entre dentes: «Essa casa pertence a um tal Markov.» Os guardas são todos uns grosseiros, o que, de resto, não me interessa absolutamente nada. Contudo, aquele causou-me uma impressão má e desagradável. Quer dizer: se vinha aborrecido, mais aborrecido fiquei. Sucede sempre assim. Quando qualquer coisa nos preocupa, surge outra contrariedade, como que relacionada com a primeira.
Passei diante da porta por três vezes; mas, à medida que me aproximava, mais a minha perturbação crescia. «Não — pensava —, nada consigo deste homem; nunca conseguirei dele coisa alguma, não há dúvida. Sou um estranho, completamente desconhecido para ele; o meu caso é bastante melindroso, e o meu aspeto não é lá muito recomendável.» «Bom — prosseguia comigo mesmo —; seja o que Deus quiser; ao menos, assim não sentirei remorsos de não ter tentado o remédio. Decerto não me hão de matar!»
Assim pensando, abri a porta com muito jeitinho. Mas surgiu-me outro contratempo: mal tinha transposto o limiar, atirou-se a mim um estúpido cão, a ladrar desesperadamente, com tal fúria que me atroava os ouvidos. São sempre incidentes fúteis como aquele, minha querida, que nos perturbam e nos infundem receio, aniquilando num instante a coragem que com tanto esforço conseguíramos ganhar. Entrei naquela casa mais morto do que vivo, mas já dentro, outra desgraça me sobreveio: devido à obscuridade, não vi um degrau ali existente e dei um passo em falso, indo inesperadamente tropeçar numa mulher que, de cócoras, estava a vazar uma medida de leite num canado. Foi tal o empurrão, que o leite entornou-se todo, e a tola da mulher desatou a apostrofar-me em altos gritos: «Não vê onde põe os pés, seu estúpido? Traz os olhos fechados? Que quer daqui?» e muitas outras amabilidades do género. Contei-lhe isto, meu amor, porque quando me encontro em circunstância semelhantes, sucede-me sempre qualquer contratempo como aquele; dir-se-ia que é este o meu destino. há de surgir-me sempre algum obstáculo, aparentemente sem importância, que se me atravessa no caminho.
Atraída pelos gritos da mulher, apareceu uma bruxa, uma finlandesa. Dirigi-me logo a ela e perguntei-lhe se era ali que morava o Sr. Markov.
— Não — respondeu-me ela com maus modos; mas depois olhou-me de alto a baixo, perguntando-me, por seu turno, em tom desabrido: — E que lhe quer?
Então expliquei-lhe tudo; falei-lhe de Emelia Ivanovitch e disse-lhe que... que... enfim, contei-lhe tudo, acabando por declarar-lhe: «Venho tratar de um negócio.»
Ao ouvir isto, a velha chamou a filha, uma moçoila que apareceu imediatamente, descalça.
— Vai chamar o teu pai — disse-lhe. — Anda com os criados... Entre, faça o favor.
Entrei. A sala era confortável, como em geral sucede com os compartimentos destas casas. Das paredes pendiam alguns quadros, na maior parte retratos de generais, e via-se ali um sofá, uma mesa redonda, vasos de reseda e balsamina... Entretanto, eu ia pensando: «Não seria melhor retirar-me enquanto é tempo?» Confesso-lhe, minha boa amiga, que pouco faltou para me pôr ao fresco. «Sim — continuei —, talvez fosse preferível vir amanhã, que a ocasião deve ser mais propícia. Esperarei até amanhã! Hoje entornei o leite a essa mulher e esses generais olham-me com maus olhos...» E com franqueza, já me dirigia para a porta quando Markov entrou.
É um tipo absolutamente vulgar, baixinho, com o cabelo branco e uns olhos um pouco travessos, envolto num roupão cheio de nódoas, apertado na cinta com um cordão.
Perguntou-me em que me poderia servir e eu comecei a dizer-lhe que ia da parte de Emelia Ivanovitch e que...
— Resumindo, preciso que me empreste quarenta rublos... — concluí. Mas não pude acrescentar mais nada, pois li nos seus olhos que errara o alvo.
— Não — tornou-me ele —; lamento muito, mas de momento não disponho de dinheiro. De resto, que garantia me dá?
Comecei então a explicar ao homenzinho que, de facto, não podia oferecer qualquer garantia, mas que Emelia Ivanovitch me tinha dito... Isto é, expliquei-lhe tudo minuciosamente enquanto ele me ouvia em silêncio.
— Já disse — retorquiu —, não tenho dinheiro. Quero lá eu saber de Emelia Ivanovitch!
«Claro — pensei —, isso já eu sabia, tinha de ser assim, bem o suspeitava.»
Digo-lhe com franqueza, querida: naquele momento teria sido melhor que a terra se abrisse e me tragasse, pois os meus pés estavam gelados e sentia calafrios nas costas. Eu olhava para Markov e ele para mim, parecendo dizer-me: «Põe-te a mexer, meu caro amigo; não sei porque esperas.» Noutra ocasião qualquer, sentiria uma vergonha mortal.
— E para que quer o senhor esse dinheiro? — perguntou-me muito a sério, querida Bárbara!
Ia para lhe responder qualquer coisa, só para não ficar calado, mas ele não se dignou escutar-me.
— Não — disse —, não tenho dinheiro. Se o tivesse — acrescentou — seria com muito gosto que...
Eu insisti com ele, observei-lhe que não precisava de uma quantia muito avultada, que estava resolvido a pagar-lhe escrupulosamente no prazo combinado, que poderia cobrar-me os juros que entendesse e que eu, repeti-lhe, me comprometia a pagar-lhe tudo. Era em si que eu pensava nesse momento, nos seus infortúnios e dificuldades, e lembrava-me do seu meio rublo.
— Não — repetiu-me. — Quero lá saber de juros! Ainda se me desse um fiador... De momento, como disse, não disponho de dinheiro, juro-lhe por Deus. Se não fosse isso, teria muito gosto em...
O grande bandido até por Deus me jurava!
Em suma, meu amor, não sei como consegui sair dali, percorrer a rua Viborskaia e chegar à ponte de Voskresenski.
Eram cerca de dez horas quando, muito fatigado e cheio de frio, cheguei à repartição.
Quis limpar a lama que me salpicara o fato, mas o contínuo teimou em não me emprestar a escova, alegando que as escovas pertencem ao Estado e que eu as estragava.
Ora veja, minha querida, como agora me tratam! Para essa gente represento menos do que o capacho a que limpam os pés. E é isto que me comove, meu amor... Não é propriamente a falta de dinheiro, mas esses dissabores que me pregam e o ver-me obrigado a passar pelos homens; são todas essas mexeriquices, esses sorrisos e essas partidinhas... E se qualquer ocasião, por acaso, sua excelência repara na minha indumentária! Ai, minha boa amiga, os meus dias de felicidade lá se foram! Hoje li outra vez todas as suas cartas... Que tristeza eu sinto, minha querida! Adeus! Que o Senhor a conserve sob a sua proteção!
M. Dievuchkin
P. S. — Pretendia contar-lhe as minhas desgraças em tom de brincadeira; mas verifico que a não consegui — a brincadeira, quero dizer. — O meu desejo era distraí-la. Irei visitá-la logo que possa, a ver se consigo entretê-la.
11 de agosto
Bárbara Alexeievna, meu amor:
Estou perdido, estamos ambos irremediavelmente perdidos... A minha reputação, a minha honra — a única fortuna que possuía — tudo se foi! E o causador da sua perdição fui eu! Todos me desprezam e escarnecem, e agora a minha patroa insulta-me em altos gritos e diante de toda a gente. Hoje discutiu comigo e dirigiu-me as piores injúrias, como se eu fosse um Zé-Ninguém! À tarde, um dos componentes da tertúlia de Ratazaiev pôs-se a ler em voz alta uma carta destinada a si e que eu não tinha terminado. Decerto caíra-me do bolso, onde a metera. O que eles se riram à custa dessa carta, meu amor! O que aqueles malandros troçaram de nós! Ao ver aquilo, não me contive; fui direito a eles e acusei Ratazaiev de desleal e de falso. Ele tornou-me que falso era eu e que me dedicava só a conquistas. Segundo Ratazaiev, eu é que os dececionei, porquanto, ao fim e ao cabo, não passava de um Don Juan; e é por este nome que agora sou conhecido em toda a parte! Estão ao corrente de tudo o que se relaciona connosco, imagine, meu anjo! Tanto do que se refere a si como do que a mim diz respeito. Até o próprio Faldoni comunga nos mesmos princípios. Quis hoje mandá-lo à loja buscar um bocado de chouriço e ele recusou-se, declarando que não podia ir porque tinha muito que fazer.
— Contudo — disse-lhe —, tens obrigação de me obedecer.
— Ora, ora... Obrigação! — murmurou. — O senhor não paga à minha ama, por isso não sou obrigado a prestar-lhe nenhum serviço.
Eu, que não posso suportar tais ofensas vindas de um indivíduo estúpido e insolente como aquele, apostrofei-o:
— Seu animal!
E ele replicou-me, muito calmo:
— Olhe a grande coisa! Isso é o que toda a gente me chama cá na casa!
A princípio, lembrou-me que teria bebido uma pinguita a mais e dei-lho a entender, perguntando:
— Estás bêbedo?
Ao que ele me tornou:
— Foi decerto com o dinheiro que o senhor me deu! Não tem para mandar vir um copo para si! — E resmungou a seguir: — Que grande personagem!
Já vê, querida Bárbara, a que ponto as coisas chegaram! Até sinto vergonha de viver, meu amor! Estou perdido, esta é que é a verdade! Irremediavelmente perdido!
M. D.
13 de agosto
Meu querido Makar Alexeievitch;
A desgraça persegue-nos de tal modo, que já não sei o que havemos de fazer. Que será de nós? Nem mesmo com o meu trabalho posso contar! Hoje queimei-me, com o ferro de brunir, na mão esquerda; deixei-o cair, estraguei o trabalho e queimei-me, tudo ao mesmo tempo. Por isso não posso trabalhar, e a Fédora encontra-se doente há três dias. Estou numa ansiedade verdadeiramente torturante!
Mando-lhe trinta kopeks, que representam quase toda a nossa fortuna. Só Deus sabe quanto eu gostaria de lhe valer em tão aflitiva conjuntura. Sinto-me tão triste que me apetece chorar!
Adeus, querido amigo! Se pudesse vir hoje visitar-nos, dar-me ia uma grande consolação.
B. D.
14 de agosto
Que lhe sucedeu, Makar Alexeievitch? Terá, porventura, perdido o temor de Deus? Não só dá comigo em doida, como o senhor mesmo caminha a passos largos para a completa ruína. Não tem vergonha de assim proceder? Pense na sua reputação! É um homem honrado, respeitável, trabalhador... Que dirão quando todos tiverem conhecimento da vida que leva? O senhor mesmo, Makar Alexeievitch, morrerá de vergonha! Lembre-se de que já tem cabelos brancos! Não perca, ao menos, o temor de Deus!
Fédora diz que não mais o ajudará, e eu, se o senhor continuar nessa vida, também não lhe mandarei mais dinheiro. Que ideia faz de mim? Imagina que não sofro com a sua conduta incorreta?
O senhor bem sabe o que tenho passado por sua causa! Nem coragem tenho de aparecer nas escadas, pois todos me olham e me apontam a dedo, dizendo o que lhes dá na veneta... Olhe, meu amigo: chegam a dizer-me que ando metida com um bêbedo! Acha que não me custa dizer coisas assim? E quando o trazem bêbedo para casa, toda a gente diz, com desprezo: «Aí vêm trazer o funcionário!» Mas eu... Eu coro de vergonha por sua causa. hei de sair desta casa, nem que tenha de ir servir, juro-lhe! Continuar aqui, isso de modo nenhum!
Pedi-lhe que viesse a minha casa, e o senhor não apareceu. Então, Makar Alexeievitch, os meus pedidos e as minhas lágrimas deixam-no indiferente? Por amor de Deus, tenha cuidado, senão está irremediavelmente perdido, creia! E que vergonha, que ignomínia! Ontem a sua patroa não quis abrir-lhe a porta, e o senhor passou a noite nas escadas... Estou ao facto de tudo. Se soubesse quanto sofro quando me contam essas coisas!
Venha ver-nos; passará melhor o tempo na nossa companhia; leremos e falaremos do passado. A Fédora contar-nos-á coisas da sua vida. Não se perca, que me perde a mim também, creia, Makar Alexeievitch! É para si que eu vivo, por sua causa é que continuo nesta casa. E o senhor porta-se dessa maneira! Seja um homem de linha, tenha caráter e coragem mesmo na desgraça! Sabe muito bem que ser pobre não é vergonha. Porque se desespera então? Esta vida é efémera. Com a ajuda de Deus, se o senhor entrar no bom caminho, tudo se arranjará!
Mando-lhe vinte kopeks, para o meu bom amigo comprar tabaco ou o que lhe aprouver, mas não dê mau destino ao dinheiro, por amor de Deus! Reabilite-se! Venha visitar-nos sem falta! É possível que se sinta envergonhado como da última vez... Não lhe dê, porém, isso cuidado, porque essa vergonha é falsa, de outro modo ter-se-ia sinceramente arrependido... Tenha confiança em Deus e verá que tudo se há de remediar da melhor maneira.
B. D.
19 de agosto
Querida Bárbara Alexeievna:
Estou envergonhado, muito envergonhado, minha boa amiguinha. Mas, afinal de contas, que sucedeu de especial? Porque não havemos de alegrar um pouco o coração? Olhe: já nem me lembro das solas das minhas botas, pois uma sola nada representa e nunca passará de ser uma sola, simples e suja. Até mesmo as botas nada valem! Os sábios gregos andavam descalços. Para que havemos de nos preocupar com insignificâncias? Será caso para me ofenderem e desprezarem? Ai, meu amor, o que se lembrou de me escrever! Diga à Fédora que ela é uma maluca, sem juízo algum, uma tonta e, ainda por cima, estúpida, de uma estupidez incrível! No que se refere aos meus cabelos brancos, está enganada, pois ainda não sou nenhum velho, como imagina.
Emelia envia-lhe cumprimentos. Manda-me a minha boa amiga dizer que, ao ler a minha carta, sentiu vontade de chorar. Pois, devo ê dizer-lhe, também as suas palavras me causaram um grande desgosto e me fizeram chorar. Para terminar, desejo-lhe saúde e muitas felicidades.
Quanto a mim, encontro-me bem e sinto-me também muito feliz.
Sempre seu amigo
Makar Alexeievitch
21 de agosto
Minha querida e boa Bárbara Alexeievna:
Sinto que sou culpado e que tem muito que me perdoar; mas quanto a mim, o facto de eu reconhecer as minhas culpas, meu amor, não interessa. Há já muito que eu reconhecia tudo isso perante a minha consciência, embora só agora visse bem a minha culpa.
Meu amor, meu anjo, não sou cruel nem mau; para dilacerar o seu coraçãozinho seria preciso ser um tigre sedento de sangue, e eu possuo um coração de cordeiro e, como deve saber, não tenho queda nenhuma para armar em animal feroz. Por isso, a bem dizer, meu anjo, não me sinto verdadeiramente culpado, e não o são também o meu coração e os meus pensamentos. Assim, nem eu sei também a quem cabe, de facto, a culpa. É um assunto muito complexo, querida Bárbara!
Mandou-me, da primeira vez, vinte kopeks, e agora trinta, e o meu coração confrangia-se ao pensar que este dinheiro me vinha das mãos de uma órfã. Queimou a mãozinha, sentia dores, e daqui a pouco terá fome! Apesar disso, dizia-me na sua carta que comprasse tabaco com esta importância! Mas diga-me: qual seria o caminho a seguir? Simplesmente, como um bandido e sem remorsos de consciência, havia de a sugar, pobre órfã?
Não tive coragem de o fazer, meu amor. A princípio, cheguei a convencer-me de que não sirvo para coisa alguma e que, ao fim e ao cabo, sou pouco melhor do que a sola das minhas botas. Comecei a cismar nisto e persuadi-me de que era um absurdo aspirar a ser alguém; melhor dizendo: que devia considerar-me desgraçado e indigno. Quando um homem chega ao ponto de perder a estima de si próprio e abdicar das suas melhores qualidades e da dignidade humana, perdeu tudo, a sua ruína é inevitável! Mas não me cabe a culpa. É o destino. Naquela tarde saí de casa com o simples propósito de tomar ar, e deu-se então toda essa série de circunstâncias: o tempo estava frio e chuvoso, a natureza associava-se ao meu estado de espírito. Sucedeu então encontrar-me com Emelia no caminho. Este tinha gasto tudo o que possuía e, quando se encontrou comigo, havia já dois dias que não provava uma côdea de pão. Por isso estava resolvido a empenhar umas coisas de tão pouco valor que, se as quisesse vender, ninguém lhes pegava. Então, querida Bárbara, acedi a acompanhá-lo, mais por compaixão do que propriamente por vontade. E foi este o meu crime, meu amor. Falou-me de si e eu confundi as minhas lágrimas com as dele. Sim, é um excelente homem, todo bondade e dotado de um coração muito sensível. Eu compreendia tudo isso, minha querida, e precisamente porque o compreendia foi que me sucederam todas aquelas coisas.
Bem sei os favores que lhe devo, minha boa amiga! Desde que travei conhecimento consigo, melhor me fui conhecendo a mim próprio, e assim nasceu este amor. Até então, meu anjo, vivera sempre só, levara uma existência obscura, afastado da maldade do mundo. Os meus conhecidos costumavam dizer que eu tinha aspeto de mau e envergonhavam-se de me acompanhar. Isso causou-me tal impressão que acabei por me julgar mau e por sentir vergonha de mim mesmo. Garantiam que eu era curto de inteligência, e eu pensava que o era realmente. Mas, depois que a Bárbara apareceu na minha vida, varreu-se de vez a escuridão que me envolvia, fez-se luz na minha alma e no meu coração. Pude, então, saborear as delícias da paz interior e compreender que os outros não me eram superiores. Reconheço que, embora destituído de elegância, de esplendor e de maneiras delicadas — o que é verdade —, sou, contudo, um homem completo pelo coração e pelo pensamento! Pois bem: agora, ao ver-me perseguido pela pouca sorte, esqueci de todo a minha própria dignidade, deixei-me vencer pelo peso do infortúnio, demonstrando assim que perdera a coragem, o que seria a maior desgraça.
Agora que sabe tudo, meu amor, rogo-lhe, com as lágrimas nos olhos, que não me pergunte mais nada acerca desse incidente, nem me fale mais nele, pois tenho o coração destroçado e a vida já me é bem dura e atroz.
Apresento-lhe os meus respeitos, minha querida, e fico seu sincero amigo de sempre
Makar Dievuchkin
3 de setembro
Não cheguei a terminar a minha última carta, Makar Alexeievitch, porque me custava muito escrever. Há ocasiões em que o meu gosto é estar, só, para poder, livremente, abandonar-me aos meus sofrimentos, e saborear sozinha a minha torturar tais estados de espírito são cada vez mais frequentes. Perdura qualquer coisa de misterioso nas minhas recordações, que me prende sem que eu oponha a mínima resistência; e são tão fortes os laços dessa coisa inexplicável, que passe horas e horas alheia a tudo o que me cerca e esquecida por completo do presente, de todo o presente. Sim. Na minha vida atual não há impressão alguma, seja de que género for, que não me faça recordar um facto semelhante do meu passado, sobretudo da minha infância, da minha feliz infância! Mas após estes momentos evocadores, mergulho sempre numa horrível melancolia. Perco de todo as forças, esgotada pelos meus sonhos, e cada vez sinto a saúde mais abalada.
Porém, esta manhã outonal, tão fresca, luminosa e brilhante, como agora já vão sendo raras, comunicou-me nova vida e trouxe à minha alma uma alegria indizível. Oh! Como eu gostava do outono no campo! É certo que nesse tempo eu era uma criança, mas sentia e apreendia tudo com grande intensidade. Na verdade, gostava mais das tardes de outono do que das manhãs. Ainda me lembro. A meia dúzia de passos de minha casa, junto da montanha, ficava o lago. Esse lago... Parece-me mesmo que o estou a ver... Era claro e puro como cristal! Naquelas tardes serenas, tudo se refletia nas suas águas. Não se agitava uma folha nas árvores que o marginavam; o lago, cristalino e imóvel, parecia um espelho. Puro e frio! O orvalho tremeluzia na relva. Numa cabana, ao longe, fumegava uma fogueira pastoril, e os pastores tangiam o rebanho... Eu fugia, às escondidas, de casa e ia para junto do lago; olhava-o e tornava a olhá-lo, e esquecia-me de tudo, até de mim própria. Na margem os pescadores aqueciam-se a uma fogueira de ramos, e o fogo iluminava grande superfície da água, na minha direção. O céu mostrava-se de um azul pálido e frio, e ao Poente, no horizonte, estendiam-se manchas de um vermelho ígneo, que, pouco a pouco, se iam tornando mais pálidas, até, finalmente, perderem toda a cor. Surgia a lua. A atmosfera tornava-se tão diáfana, tão serena e calma! De repente, um pássaro levantava voo, ou ouvia-se o leve sussurrar do junco agitado brandamente pela aragem... Distinguia-se tudo claramente, até o mais ligeiro rumor. Sobre a água azul começava a formar-se, lentamente, uma branca neblina, leve e transparente. Ao longe começava a escurecer, dir-se-ia que a névoa envolvera tudo; mas, de perto, que bem se via! A embarcação, a margem, a ilha...
Um tonel, que para ali ficara esquecido na água, deixava ouvir o seu gorgolejar; um ramo de salgueiro, com as folhas secas, via-se, não muito longe, sobre o junco; uma gaivota retardatária esvoaçava, tocava na água e tornava a levantar voo, acabando por desaparecer por trás do nevoeiro... E eu para ali me deixava estar, olhando e escutando tudo aquilo, tão maravilhoso! Contudo, nesse tempo eu era uma criança!...
Encantava-me o outono em especial no seu fim, quando o trigo já fora ceifado, as grandes fainas do campo terminadas e os lavradores se metem nas suas cabanas e se começam a preparar para o inverno. Os dias então são mais escuros, e o céu cobre-se de nuvens, os bosques apresentam um tom amarelo, as árvores perdem as suas folhas, ficando despidas e negras, em especial ao entardecer, quando se forma uma bruma ainda mais húmida, e depois dão o aspeto de gigantes escuros e informes, que parecem pavorosos espectros. E se por acaso retardamos o nosso passeio e ficamos para trás das outras pessoas, que pressa nós temos de as alcançar e que horrível medo nós experimentámos! Trememos como varas verdes. Sabe-se lá se... atrás daquele tronco de árvore não estará escondido um monstro que, à nossa passagem, nos atacará! Entretanto, o vento atravessa o bosque, ruge, assobia, e às vezes parece-nos ouvir vozes que uivam e soltam gemidos, e as folhas revoluteiam pelos ares e são levadas pelo vento; de súbito, um bando de aves de rapina fere a atmosfera com os seus estridentes guinchos. O medo é cada vez maior e parece-nos escutar a voz estranha de alguém, que murmura: «Corre, corre, pobre criança; não te demores, porque de um momento para o outro este lugar será terrível; corre, meu filho...» A estas palavras que julgamos ouvir, o terror apossa-se do nosso coração e corremos, corremos sempre, até entrarmos em casa, desolados. Em casa, contudo, espera-nos a vida e a alegria; enquanto crianças, mandam-nos escolher ervilhas ou descascar semente de papoula. Na lareira arde o lume; a mãe contempla com um sorriso o alegre trabalho das crianças, e a velha ama Iliana conta-nos pavorosas histórias de bruxas e salteadores. E nós, ainda crianças, chegamo-nos bem umas às outras; mas o riso não nos sai dos lábios. De um momento para outro, tudo mergulha no silêncio... «Ouve: parece que estão a bater à porta!...» Mas não! É o ruído da roca da tia Frolovna. E desatamos todos a rir! Depois vamos para a cama, mas o medo não nos deixa dormir, pavorosas visões e pesadelos afugentam o sono. Acordamos e não nos atrevemos a mexer-nos, e assim ficamos, despertos e a tremer, até raiar a aurora, sempre com a cabeça debaixo da roupa. Quando o sol entra no quarto, levantamo-nos, desembaraçados e alegres. Espreitamos então com curiosidade pela janela, e vemos campos de restolho, em que brilham argênteas gotas outonais, e todas as árvores e arbustos cobertos de orvalho. O gelo formou como que um ténue disco cristalino na superfície do lago e os passarinhos deixam ouvir os seus alegres gorjeios. E o sol, por toda a parte, trespassa, com os seus quentes raios, o fino gelo, como se fora cristal. Como tudo é claro, reluzente, delicioso!
Na lareira arde outra vez o lume; sentamo-nos à mesa onde já ferve o samovar, e através de uma janela olha para nós o negro cão Polkan, agitando a cauda. Nisto passa junto da casa um lavrador que se dirige para o bosque, à procura de lenha. E todos se sentem contentes e bem-dispostos! Nos celeiros erguem-se grandes montões de trigo e o coruto de palha das medas de feno brilha ao sol, despedindo cintilações de amarelo-ouro... É tão agradável contemplar tudo isso!... Todos se sentem contentes, irradiam felicidade; reconhecem a bênção de Deus que lhes concedeu a colheita; todos sabem que no inverno não passarão necessidade, e poderão dar aos seus filhos pão com fartura. E esta atmosfera de bem-estar reflete-se nas canções das moças que, às tardes, sorridentes, dançam em roda. Aos domingos toda a gente vai à igreja agradecer a Deus, com suas orações, os benefícios que se dignou conceder-lhe... Ah, como foi bela, que maravilhosa a minha infância...
Ao recordar assim o meu passado, as lágrimas brotam-me, abundantes, dos olhos, como se eu fosse uma criança. Revejo esses bons tempos com tanta nitidez, essa época da minha vida revive de tal modo no meu espírito, que agora o presente se me afigura ainda mais triste e desolador... Que fim terá tudo isto? Que será de nós? Sabe? Pressinto, ou melhor, estou convencida de que vou morrer neste outono. Sinto-me doente, muito doente. A cada passo penso na morte; mas, na verdade, não me apetecia morrer assim... Não queria que o meu corpo fosse sepultado em S. Petersburgo. Creio que vou recolher à cama outra vez, como sucedeu na primavera, pois não cheguei a restabelecer-me completamente daquela doença.
A Fédora saiu e só voltará à noite, de modo que estou sozinha em casa. Ultimamente até sinto receio de me ver só; tenho a impressão de que se encontra alguém na minha companhia, em especial quando me abandono a estes devaneios em que me mergulham as recordações, fazendo-me esquecer a realidade. De repente, desperto e olho à minha volta, parecendo-me então sentir que algo de sinistro se encontra escondido dentro de casa. É por isso que lhe escrevo uma carta tão extensa, sabe? É que quando escrevo, esqueço-me de tudo.
Adeus, meu bom amigo. Fez muito bem em dar dois rublos à sua patroa; assim, ela deixá-lo-á sossegado por algum tempo... Mas veja se, de qualquer modo, consegue arranjar um fato mais decente. Com isto, não escrevo mais, que estou cansada... Não compreendo a razão desta minha fraqueza. O mais pequeno esforço me fatiga. Se a Fédora me trouxer trabalho, como poderei fazê-lo? É isto o que me desanima.
B. D.
5 de setembro
Minha querida Bárbara:
Hoje, meu anjo, experimentei várias impressões. Doeu-me a cabeça durante todo o dia, e ao cair da tarde resolvi ir tomar um pouco de ar fresco junto do canal de Fontanka, a ver se melhorava. O tempo estava húmido e cinzento. Como sabe, agora, por volta das seis horas é noite. Não chovia, mas caía um frio orvalho que é ainda mais desagradável do que propriamente a chuva, e as nuvens formavam no firmamento compridas e largas manchas. Andava muita gente pelo cais, mas só distingui rostos claros, horríveis, caras capazes de pôr triste uma pessoa: mujiques bêbedos; finlandesas de narizes encarnados, com botas de homem e o cabelo despenteado; operários e cocheiros — gente de todas as idades —, aprendizes de serralheiro de blusa com nódoas, entre eles um rapazito magrinho e pálido, moreno e besuntado de óleo, levando na mão uma fechadura; um soldado reformado, de elevada estatura, que oferecia aos transeuntes navalhas e anéis de cobre, por baixo preço..., etc., etc. A tal hora não podia encontrar-se outro género de passeantes por aquele local?
O Fontanka é um canal largo e com grande profundidade, que permite a navegação, e veem-se ali barcos em tal número, que parece impossível caberem lá tantos... Pois, ao fim e ao cabo, não passa de um canal, não é um rio. Ao longo do cais encontravam-se mulheres sentadas, velhas e sujas, que vendiam bolos molhados e maçãs quase podres. Resumindo, o Fontanka é um local muito triste para passeio. O pavimento, de granito, está húmido. Assim, por baixo, os pés enterram-se na neblina, e sobre a cabeça cai neblina também. As casas são altas e escuras... Que triste e aborrecida decorreu esta tarde!
Ao chegar à rua de Gorochovaya era noite fechada e já se encontravam acesas as luzes. Havia muito tempo que não passava por ali, e melhor fora que não tivesse lá posto boje os pés. Que rua larga e populosa! Tantas lojas, tantas montras!.. Tudo muito iluminado e brilhante... Tecidos e vestidos de seda de mistura com flores e cristais... Que bonitos chapéus com fitas e laços! Dá a impressão de que tudo aquilo foi ali colocado para embelezar a rua; mas não, há homens que compram essas coisas para oferecer às suas mulheres. Esplêndida rua, não há dúvida! É ali que se situam as padarias de vários alemães... Deve tratar-se de gente de grossos cabedais. O movimento de carros é tão intenso que não sei como o pavimento pode resistir! E então é cada trem! As janelas deles parecem espelhos e são interiormente forrados a cetim e seda; e os cocheiros e lacaios, todos empertigados, envergam brilhantes uniformes agaloados! Eu olhava para todos aqueles carros ao passar, e via sempre neles senhoras sentadas, muito luxuosas e elegantes, talvez princesas ou condessas que àquela hora iam certamente a algum baile, jantar ou serão. Ainda gostava de ver, ao pé, uma dessas grandes damas da alta sociedade. Sim, deve ser uma coisa muito agradável. Nunca tive esse prazer; contento-me com vê-las através dos vidros e de passagem, como agora sucedeu. O que me lembrei hoje de si, querida Bárbara! Minha pomba, meu anjo, valerá porventura menos do que elas? Não; a Bárbara é boa, bonita e instruída! Porque a persegue tanto o infortúnio? Que triste quinhão lhe reservou a sorte! Porque será que o homem de bem tem de viver pobre e miserável, enquanto a felicidade vai ter com os outros sem que a procurem? Bem sei, bem sei, meu amor, que não devo pensar assim; isso chama-se livre-pensamento. Mas a verdade é que — isto falando com sinceridade e franqueza —, ao cabo de muito refletir sobre a justiça das coisas, não chego a compreender como é que uns ainda no ventre da mãe estão destinados a serem felizes por toda a vida, ao passo que outros são atirados para a Roda e só conhecem tribulações durante todo o tempo que se demoram por este mundo de Cristo! E, entretanto, a vida é isto, e às vezes até qualquer imbecil Ivanuchka é protegido pela sorte.
«Tu, imbecil Ivanuchka — diz o Destino —, tira quanto puderes do bolso de teu pai; come, bebe e diverte-te. Mas tu, e tu, e tu, fazei boca, que não fostes julgados merecedores de melhor sorte!»
É pecado, meu amor, bem sei que é pecado pensar assim; mas à força de tanto refletir, os pecados invadem-nos a alma, involuntariamente. Com efeito, meu anjo, porque não havemos de passear também de carruagem? Tenho a certeza, de que até generais e altos funcionários do Estado disputariam a graça de um olhar dos seus... não dos meus. Em vez desse vestido velho de algodão, envergaria um de seda, e no seu corpo brilhariam pedras preciosas. Não estaria, certamente, tão magra e pálida como agora, antes se apresentaria fresca, rosada e gorda como uma boneca. Poder, então, ver da rua as suas janelas iluminadas e distinguir de vez em quando a sua sombra já seria para mim verdadeira felicidade. Só de a imaginar assim feliz e contente, minha pomba, me sinto também invadido de felicidade e contentamento. Mas, agora, como se não bastasse que a maldade humana a tivesse desgraçado, surge ainda um grosseiro a insultá-la! E porque esse canalha enverga um fato de corte impecável e pode vê-la através de umas lentes de aros de ouro, apenas por isso, é-lhe permitido tudo o que lhe apetecer, enquanto a Bárbara se vê obrigada a escutar com paciência as suas palavras insolentes. Onde está, pois, a justiça?
Sabe porque sucede isto? Porque a Bárbara é órfã; porque não tem quem a defenda; porque não tem um amigo poderoso que a ampare e a proteja.
Mas que homem é esse, que homens são esses que não têm o menor pejo em ofender uma órfã? Nem homens são; são uns vadios, uns rufiões, seres desprezíveis que só juntos é que valem alguma coisa, mas sem a entreajuda da classe nada representam... Sei muito bem que é assim. Aí tem o que é essa gente. Em minha opinião, querida Bárbara, o mendigo que vi hoje na Gorochovaya é mais digno da estima dos homens do que esse canalha. Esse pobre arrastava-se por ali penosamente, a ver se arranjava meia dúzia de kopeks para prover ao seu sustento; mas, no fundo, é senhor de si mesmo e só tem de procurar que comer. Não pede, propriamente, esmola, sem mais nem menos; toca realejo sem cessar, como uma máquina a que deram corda para distrair o povo. Quer dizer, é útil à sociedade, na medida das suas posses. Sim, é um pobre mendigo, e há de sê-lo sempre, mas é, por isso mesmo, um homem honrado; está alquebrado e decrépito e passa um frio horrível, no entanto trabalha, e embora o seu trabalho não seja igual ao dos outros, o certo é que trabalha. E como este há muitos homens honrados, meu amor, muitos que, apesar de ganharem uma insignificância em relação à atividade que exercem, não precisam de se inclinar diante de ninguém, nem de saudar humildemente o próximo, nem mesmo pedir a quem quer que seja um bocado de pão por caridade. Eu sou como esse mendigo, se bem que, por natureza, totalmente diferente. Pareço-me com ele neste aspeto: também faço o que as minhas forças me permitem. Não será muito, mas é, com certeza, mais do que nada.
Se lhe falei tanto daquele mendigo, querida Bárbara, foi porque, devido ao seu encontro, experimentei ainda maior infortúnio. Cruzaram-me pelo cérebro estranhos pensamentos que me deixaram como que entontecido, e para ver se os afugentava, parei então com os olhos postos no músico ambulante. A ouvi-lo pararam também uns cocheiros, depois uma mocinha e mais tarde uma criança muito suja. O mendigo instalara-se ao pé da janela de uma casa. Entre os circunstantes, despertou a minha atenção um rapazito de uns dez anos, que seria lindo se não fosse o-aspeto doentio e faminto do seu rosto. Vestia uma simples camisita e uma espécie de calças muito finas. Naquele preparo, e para mais descalço, ali estava de boca aberta a ouvir a música. As crianças são sempre as mesmas! Tinha, segundo parecia, toda a sua atenção concentrada, com infantil assombro, nas marionetes que dançavam sobre o realejo do mendigo, enquanto, com as mãozitas e os pés arroxeados pelo frio, tremia todo e mordia a manga com os dentes... Segurava na mão um bocado de papel. Passou um senhor e atirou uma moeda ao tocador, a qual foi cair precisamente sobre a tábua onde dançavam as marionetes. Mal o pequenito ouviu o retinir, da moeda, saiu da sua abstração; olhou timidamente em redor e, julgando que fora eu quem atirara o dinheiro, aproximou-se de mim, a tiritar, estendeu-me o papel e, com voz mal segura, disse-me: «Uma esmolinha, cavalheiro!»
Peguei no papel, desdobrei-o e li-o... Tinha os dizeres já conhecidos: «Almas caridosas, sou uma pobre mãe doente, com três criancinhas com fome... Tende compaixão de nós! Não me esquecerei dos meus benfeitores nas minhas orações, e quando for chamada à Divina Presença, pedirei a Deus por aqueles que não esqueceram os meus queridos filhos.»
Não há que pensar, a coisa é clara e vulgar. Mas que havia eu de lhe dar? Não lhe dei nada. E contudo inspirou-me tanta compaixão! O pobre pequeno estava roxo de frio e com a cara de esfomeado; apesar disso, ninguém o socorria!
Eu bem sei o que é isto! o que indigna é essas mães não poderem sustentar os filhos e mandarem-nos para a rua mendigar, quase nus e com um frio destes. A mãe daquele rapazito deve ser uma imbecil, que não sabe cumprir o seu dever; talvez ninguém a ajude, e ela deixa-se estar em casa sentada, sem fazer nada. Mas é possível também que esteja doente! Sim; mas, de qualquer modo, o que ela tinha a fazer era dirigir-se a uma instituição de beneficência, ou então apresentar-se à polícia, que é o que em tais casos se deve fazer. Pode, porém, tratar-se simplesmente de uma embusteira que manda para a rua uma criança esfomeada e doente para enganar o público, até que o pobre pequeno piore e acabe por ir desta para melhor. E que é que o infeliz aprende nesta vida de mendicidade? O seu coração tornar-se-á duro e cruel. Leva o dia, de manhã à noite, de um lado para outro, a pedir. Passa por ele muita gente, mas ninguém repara na sua infelicidade. Só têm para ele palavras duras e cruéis.
«Põe-te a andar, desaparece, vadio!» — é o que ele ouve. E o coração daquela criança confrange-se, o pobre tirita, assustado, cheio de frio. Incham-lhe os pés e as mãos. Passado tempo, começa a tossir. A doença, como um verme porco e horrendo, vai-lhe roendo o peito; o insensivelmente, a morte lançar-lhe-á as suas garras e o pobrezinho cairá mortalmente ferido em qualquer cubículo imundo, sem tratamento ou assistência E assim terminará a vida! Sim, querida Bárbara, é o que sucede a muitos seres humanos. Como é doloroso, meu amor, ouvirmos estas palavras: «Pelo amor de Deus», e termos de prosseguir o nosso caminho sem darmos nada, dizendo apenas: «Deus o ajude!»
Verdade seja que muitos «Por amor de Deus» não são motivo para compaixão. É que há várias espécies de «Por amor de Deus», querida Bárbara! Uns são de pedinchão rotineiro, em tom arrastado, salmodiante, indiferente. Esse é o mendigo de profissão, que se defende bem, graças à prática que tem da mendicidade. Se passarmos junto deste e não lhe dermos nada, não haverá nisso grande mal. Há outros, porém, que imploram a caridade em voz rude, torturada, terrível. Ao ouvirmos o apelo destes infelizes, sentimos como que um calafrio percorrer-nos as costas e as pernas... Foi precisamente o que me sucedeu hoje com o pequeno do papel. Encontrava-se junto da parede sem dizer palavra, até que, finalmente, se dirigiu a mim: «Uma esmolinha, cavalheiro, pelo amor de Deus!» — me disse ele com uma voz tão hesitante e cava que, involuntariamente, estremeci de terror. E não lhe dei a esmola porfie não tinha nada que lhe dar. Há ricos que não querem ouvir os pobres queixarem-se do seu infortúnio. «São a vergonha da sociedade e uns importunos» — dizem. Dar-se-á o caso de os lamentos dos esfomeados não deixarem dormir os que estão fartos?
Para lhe falar com franqueza, meu amor, escrevi lhe tudo isto, não só para desafogar o meu coração, mas também — e principalmente para isso, devo confessar-lhe — a fim de lhe dar uma amostra do meu bom estilo. Já deve, decerto, ter notado, querida Bárbara, que ultimamente o meu estilo tem melhorado de modo apreciável. Mas em vez de com isto desafogar o coração, enquanto escrevia, invadiu-me tal pena, que, realmente, começo a sentir verdadeira piedade dos meus próprios sentimentos, embora saiba muito bem que com esta piedade nada consigo. Mas, ao menos, de certo modo, faço justiça a mim mesmo!
Na verdade, meu amor, a gente humilha-se até mais não poder ser, sem razão; julga-se valer menos que um kopek, menos que uma palha. Mas isso deve-se apenas ao facto de nos assustarmos e diminuirmos, exatamente como aquele pequeno que hoje me pediu esmola.
Mas deixe-me continuar com as minhas alegorias, querida Bárbara, e preste atenção ao que lhe vou dizer.
Às vezes, quando me levanto de manhã para ir para o trabalho, ponho-me a contemplar o aspeto da cidade, a ver como ela desperta gradualmente e se vai levantando, o fumo que começa a subir das chaminés, o movimento e o barulho. Esqueço-me, então, de mim mesmo e perante esse espetáculo sinto-me pequeno e insignificante, como se alguém me tivesse dado um soco no nariz curioso... Sim, nessas ocasiões, prossigo no meu caminho, acanhado e sem sequer me atrever a pensar em nada! Mas faça ideia, por um momento, do que se passa no interior dessas casas grandes e negras, faça um esforço de imaginação, e depois veja se teremos motivos para nos humilharmos tanto e deixarmo-nos acobardar tão indignamente... Lembre-se, querida Bárbara, de que estou a falar apenas alegoricamente; as minhas palavras não devem ser tomadas ao pé da letra.
Vejamos agora o que há dentro destas casas.
Ali, no canto mofento de um sótão defumado, que só por grande necessidade se pôde tornar uma residência para seres humanos, acordou um operário. Passou toda a noite a sonhar com um corte que ontem, por descuido, deu num par de botas. Como se um homem só devesse sonhar com insignificâncias!... Sim, mas é que esse operário é sapateiro, e isso explica tudo. Tem filhos pequenos e a sua mulher passa fome. Não pense, porém, minha querida, que essas coisas só sucedem aos sapateiros. O caso, em si, nada representaria, nem mereceria qualquer referência especial; mas repare, meu amor, nesta circunstância: na mesma casa, mas num quarto com todo o luxo, outra pessoa passou a noite a sonhar também com um par de botas. Claro que essas botas do sonho do cavalheiro rico eram de outra classe, naturalmente, mais elegantes, mas ao fim e ao cabo não passavam de umas botas. Quero eu dizer com esta minha alegoria que todos somos um pouco sapateiros. Isto também nada teria de particular; o mal está em que não haja um homem, um só, junto dele, que lhe pudesse sussurrar ao ouvido: «Deixa-te dessas coisas, não penses nisso; pensa apenas em ti, em ti, e lembra-te de que não és um pobre sapateiro e tens os teus filhos com saúde e uma mulher que não se queixa com fome; olha em tua volta e vê se descobres outra coisa mais nobre e digna das tuas preocupações, do que as tuas botas».
Era isto, querida Bárbara, que eu queria explicar em forma alegórica. Talvez que isto seja uma ideia um pouco avançada; no entanto, às vezes agita-se dentro do nosso peito, e quando assim acontece, escapam-se-nos do coração palavras amargas. Por isso é que eu digo que não há motivo para nos humilharmos como eu fiz, só porque alguém murmurou qualquer coisa a nosso respeito. Talvez considere uma insinuação maldosa o que acabo de expor, ou que fui beber estas ideias a qualquer livro. Não, querida Bárbara; não é nada disso; esteja descansada, que eu não sei pintar as coisas com cores negras, nem tão pouco sou precipitado nas minhas afirmações, devo dizer-lhe!
Regressei a casa muito triste, sentei-me à mesa, pus um pouco de água a aquecer e ia deitar-lhe um bocado de chá, quando, de repente, entrou no meu quarto Gorchkov, o pobre que vive em nossa casa. Já de manhã tivera a impressão de que ele andava através do corredor a espreitar às portas dos outros quartos, e de uma vez até me parecera que ele mostrava vontade de se dirigir a mim. Diga-se de passagem que a sua situação é pior, muito pior do que a minha. Nem pode comparar-se! Tem mulher e filhos para manter... Quer dizer, eu no seu lugar... Ora... Não sei o que faria no seu caso!... Pois, como ia dizendo, o bom Gorchkov entrou no meu quarto e cumprimentou-me, com uma lágrima a brilhar-lhe nas pestanas, como de costume... A sua boca emitia um ruidozito, mas sem chegar a articular qualquer palavra. Ofereci-lhe uma cadeira, desengonçada, claro, pois é a única que possuo. Convidei-o a tomar chá e ele recusou com insistência, mas por fim aceitou. Em seguida, queria bebê-lo sem açúcar, mas eu opus-me, e ele, depois de apresentar pretextos e desculpas para a sua preferência, que eu rebati, agradeceu, voltou a insistir na sua obstinação e acabou por deitar um torrãozinho na chávena. Afirmou então que o chá, de tão doce, até estava enjoativo. Ora veja, querida Bárbara, aonde a miséria nos pode conduzir!
— Então, que há de novo, meu amigo? — perguntei-lhe.
— Simplesmente isto, Makar Alexeievitch. Peço-lhe que nos socorra; ajude-me, ampare uma família desgraçada, que se encontra na maior miséria! Meus filhos e minha mulher!... Não temos absolutamente nada que meter na boca!... E eu, como pai... Ponha-se no meu lugar, compreenda o meu sofrimento!...
Ia para dizer qualquer coisa, mas ele interrompeu-me:
— Aqui, tenho medo de toda a gente, Makar Alexeievitch; quer dizer, não é precisamente que lhes tenha medo, mas, compreende, sinto vergonha... São todos tão orgulhosos e altivos! Também não queria incomodar o senhor — acrescentou — se não fosse... Já sei que tem tido grandes dificuldades e que não me pode dar muito; mas talvez tenha possibilidade de me emprestar qualquer coisa! Por conhecer a bondade do seu coração e saber que também já tem passado necessidades e é pobre, foi que ousei pedir-lhe auxilio, na certeza de que, por tais motivos, se compadeceria da minha triste situação...
Por último, pediu-me desculpa do seu atrevimento e ousadia. Respondi-lhe que da melhor vontade lhe valeria, mas que não tinha nada, ou quase nada, que lhe dar.
— Oh! Makar Alexeievitch, não julgue que lhe vou pedir muito — principiou, corando até à raiz dos cabelos —, mas a minha mulher e os meus filhos têm fome. Não poderia emprestar-me dez kopeks apenas, Makar Alexeievitch?
Que havia de lhe dizer, querida Bárbara? Aquelas palavras faziam-me sangrar o coração. Comparado com ele, eu era rico! Na verdade, vinte kopeks constituíam toda a minha fortuna, com a qual contava aguentar-me até receber o meu ordenado. Respondi, por isso, que me era de todo impossível valer-lhe... E pu-lo ao corrente da situação.
— Dez kopeks, apenas dez kopeks, meu amigo, senão morremos de fome, Makar Alexeievitch...
Fui então buscar à gaveta os vinte kopeks e dei-lhos, minha boa amiga... Era uma obra de caridade. Sim, a miséria... Coitado de quem vive nela! Depois conversámos durante uns momentos, perguntando-lhe, entre outras coisas, como é que ele se encontrava em tão desesperada situação e morava num quarto que não custava menos de cinco rublos de prata por mês.
O pobre homem explicou-me então que alugara o quarto por seis meses, tendo pago um trimestre adiantadamente. Mas depois as coisas pioraram e já não pudera pagar os outros três meses, nem tão pouco arranjar dinheiro para mudar de casa. Entretanto, aguardava debalde a solução de um processo em curso. Mas um processo é uma coisa tão complicada, querida Bárbara. Como sabe, foi acusado de conivência em irregularidades cometidas por um negociante, nuns fornecimentos que este fez ao Estado. Os abusos foram descobertos e o comerciante foi preso, tendo então metido Gorchkov no assunto. Este, contudo, apenas pôde, na realidade, ser acusado de negligência por não ter inspecionado convenientemente os fornecimentos e não haver zelado, como devia, os interesses do Estado. De qualquer modo, porém, há já dois anos que o processo corre os seus trâmites e, até hoje, ainda não estão bem esclarecidas todas as circunstâncias. Assim, não pode, por enquanto, ser reconhecida a inocência de Gorchkov. «Estou completamente inocente da infâmia que me atribuem — diz o próprio Gorchkov. — É certo que, de certo modo, não cumpri o regulamento, mas não cometi qualquer fraude nem a encobri.»
Apesar dos seus protestos de inocência, e de nada se haver apurado de concreto contra ele, como já disse, exoneraram-no do cargo que desempenhava. Enquanto não surgir a sentença que o reabilitará, não pode tomar conta de uma quantia apreciável que o comerciante lhe deve e que o tribunal tem em seu poder. E assim se vai passando lamentavelmente o tempo, sem que o infeliz veja proclamada a sua inocência.
Eu acredito sinceramente nas suas palavras, querida Bárbara, mas a justiça não pensa do mesmo modo. O assunto é tão complicado, que, possivelmente, nem em cem anos ficará esclarecido. Às vezes parece o caso caminhar para a solução definitiva; mas o comerciante, então, volta a complicá-lo, e tudo muda novamente de feição. Tenho sincera pena da infelicidade de Gorchkov, meu amor, e estou inteiramente do seu lado. Um homem sem emprego dificilmente consegue trabalho, pois a notícia da sua incapacidade depressa se espalha. O pouco que o pobre Gorchkov tinha amealhado, já o comeu. E este estado de coisas pode prolongar-se, sabe-se lá por quanto tempo... Mas eles têm de viver... E eis que, em situação tão crítica, lhes nasceu um filho, o que ocasiona sempre despesas. A mulher também se encontra doente e ele, por seu turno, padece não sei de que moléstia contagiosa. Em suma: infeliz sorte, muito infeliz.
O pobre homem assevera, convicto, que o processo deve ser julgado dentro de dias, e a seu favor, não o duvida. Tenho compaixão dele, muita compaixão, é verdade! Tratei-o o mais afetuosamente possível, pois tem-se tornado extremamente tímido e o que anseia é uma palavra de conforto, de bondade e de afeto. Eu, como digo, tratei-o nos mais afetuosos termos.
Bem, adeus, meu amor. O Senhor a acompanhe e lhe conserve a saúde. Quando penso em si, minha querida, é como se derramasse um bálsamo na minha alma doente. Até mesmo sofrer por si é para mim um prazer.
Seu sincero amigo
Makar Dievuchkin
9 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Escrevo-lhe esta carta completamente transtornado. Um terrível incidente excitou-me a tal ponto, que quase perdi os sentidos. Sinto tonturas na cabeça e parece-me ainda que tudo anda às voltas. Ai, meu amor, não sei como contar-lhe o sucedido! Nunca nos passou pela mente que tal se desse! Se bem que... julgo ter pressentido tudo, é verdade; absolutamente tudo! O coração já mo segredava, e não vai há muito que tive um sonho em que vi uma coisa semelhante!
Ouça agora o que me sucedeu! Desta vez contar-lhe-ei tudo sem me importar com o estilo: com toda a simplicidade, conforme a inspiração de Deus.
Esta manhã, dirigi-me, como de costume, para a repartição. Cheguei lá, sentei-me e pus-me a escrever. Como sabe, minha querida, já ontem estive no mesmo serviço, e quando estava a trabalhar, fui abordado por Timofei Ivanovitch, que me disse: «Tem aqui um documento de grande importância, que deve copiar com urgência. Por isso, agarre-se já a ele... Boa letra e o máximo cuidado! Sua excelência queria-o pronto depressa para ser assinado ainda hoje...» Antes de mais nada, devo lembrar-lhe que ontem não me encontrava muito bem-disposto; achava-me abatido de compaixão e de dor, embora o não deixasse transparecer. Sentia frio no coração e trevas no cérebro. Mas os meus pensamentos iam todos para si, meu anjo! Bem, principiei a cópia, com boa letra e muito cuidado; mas eis que... Olhe, não sei explicar-lhe exatamente se foi o diabo — Deus me perdoe — em pessoa que me guiou a mão, ou se qualquer outra força misteriosa, ou se de facto tinha simplesmente de suceder; o certo é que saltei uma linha inteira. Só Deus sabe o sentido que o texto tomou com aquele salto, talvez um verdadeiro absurdo. Mas o documento só ficou pronto ao fim da tarde, de modo que apenas esta manhã pôde ser apresentado à assinatura de sua excelência.
Pois quando hoje lá cheguei, como de costume, ocupei o meu lugar ao lado de Emelia Ivanovitch. Devo dizer-lhe, minha querida, que de algum tempo a esta parte sinto cada vez mais vergonha e procuro mais do que nunca esconder-me. Ultimamente até perdi a coragem de olhar as pessoas de frente. Mal dou fé de mexerem uma cadeira, fico logo mais morto do que vivo. Nesse estado de espírito me encontrava hoje; estava todo dobrado sobre o trabalho, muito quietinho no meu sítio, como um ouriço, quando Efin Akimovitch (o maior brincalhão deste mundo), de repente, me disse em voz alta, de modo que todos ouvissem:
— Porque está assim sentado, Makar Alexeievitch? Parece um U!
E ao dizer isto, fez tal trejeito que todos desataram a rir à minha custa, naturalmente, que não à dele. Pois foi o que o tipo me disse! Tapei os ouvidos, fechei os olhos e não me mexi. É o que costume fazer sempre quando me dirigem piadas, e deste modo mais depressa me deixam em paz. Mas de repente ouvi vozes excitadas, uns passos apressados, corridas e vozes. Ouvi... — mas não se enganariam os meus ouvidos? — Ouvi chamar-me, pelo meu nome, chamar por Dievuchkin. O meu coração palpitou desordenadamente e por todo o corpo senti um medo como nunca tivera em toda a minha vida! Continuei sentado na cadeira.
Como se estivesse morto, sem me mexer, porque eu já não era eu! Mas os gritos soavam cada vez mais perto, mesmo junto de mim. «Dievuchkin! Mas onde está Dievuchkin? Dievuchkin!» Abri então os olhos e deparou-se-me Evstafii Ivanovitch... Ainda o ouvi repetir: «Makar Alexeievitch, venha já a sua excelência. Arranjou-no-la boa com a sua cópia!» Disse-me apenas isto, e chegou bem. Não lhe parece, minha querida, que era o suficiente? Fiquei como que petrificado, simplesmente morto, não senti mais nada, e dirigi-me para o gabinete do ministro... Quer dizer, quem se dirigiu foram os meus pés, porquanto, a bem dizer, a minha pessoa encontrava-se mais morta do que viva! Levaram-me através de uma sala, depois atravessei outra e outra ainda, até chegar ao gabinete de sua excelência... Só ali tive consciência do sítio em que me achava. Não posso dizer-lhe, de modo nenhum, os pensamentos que então me cruzaram pela mente. Vi diante de mim o ministro, rodeado pela sua gente. Julgo que nem sequer me lembrei de lhe fazer uma inclinação de cabeça. Os lábios e as pernas tremiam-me de emoção. E tinha razões de sobra para isso, meu amor! Em primeiro lugar porque sentia muita vergonha, e depois porque, tendo-me virado casualmente para a direita, mirei-me ao espelho, e verifiquei que tinha motivo de sobra para cair redondamente no chão. Além disso, procurara sempre portar-me tal como se não existisse, pelo que não era provável que sua excelência tivesse de mim a mais vaga ideia. Talvez o ministro tivesse ouvido dizer, de passagem, que na sala quatro, trabalhava um empregado de nome Dievuchkin, mas não devia ser mais circunstanciada a referência.
Pois, de súbito, sua excelência, muito zangado, exclamou:
— Como é que o senhor fez este disparate, não me dirá? Onde tinha os olhos? Um documento tão importante e que tinha de ser enviado urgentemente! E o senhor arranja um serviço destes! Em que estava a pensar, homem?
E ao dizer isto, sua excelência virava-se para Evstafii Ivanovitch. Apenas consegui compreender algumas palavras soltas, que pareciam vir do outro mundo: Descuido! Negligência! Não faz senão tolices!
Abri a boca, mas não consegui articular palavra. Queria desculpar-me, pedir perdão, mas não podia. Deitar a fugir... nem pensar nisso. De repente, sucedeu uma coisa... uma coisa, meu amor, que até tenho vergonha de contar. Um botão do meu casaco — diabos o levem! —, um botão que se encontrava preso apenas por um fio, de súbito caiu ao chão (decerto toquei-lhe, não sei como) e, rodando, foi ter mesmo junto dos pés de sua excelência, rodando sempre no meio do silêncio sepulcral que ali reinava. E foi àquilo que ficou reduzida a minha justificação, a minha desculpa, tudo o que tinha a dizer ao ministro! As consequências foram imediatas. Logo sua excelência atentou no meu aspeto e no meu fato. Lembrei-me do que vira no espelho... E não é preciso dizer mais nada... Baixei-me, para apanhar o botão e colocar de novo no respetivo sítio o inoportuno desertor. Perdera por completo o juízo! Estendi a mão para o alcançar, mas ele continuava a rodar como um pião, e por mais esforços que fizesse, nada conseguia... Mesmo quanto a habilidade, estava a dar bonitas provas!
De súbito, senti que me abandonavam as minhas últimas energias e que estava tudo perdido. Fora-se toda a dignidade, a minha reputação acabara-se! Ao mesmo tempo senti um zumbido nos ouvidos e tinha a impressão de que, através da parede, chegavam até mim os insultos de Teresa e Faldoni, tão habituado estou a ser insultado por eles na cozinha.
Finalmente, consegui apanhar o botão e levantei-me. Mas em vez de fazer por reparar de certo modo a falta cometida e me conservar direito e j:om as mãos na costura das calças, fui tão imbecil que me pus a ver se segurava o botão no respetivo sítio, com duas pontas de fio ali existentes. Como se pudesse prendê-lo com tanta facilidade! E ainda me ria do caso, é verdade; tinha o descaramento de me rir!
Sua excelência olhou outra vez para mim, e ouvi-o a seguir dizer a Evstafii Ivanovitch:
— Olhe... Repare no aspeto dele! Porque é que anda assim? Que quer aquilo dizer?
Ai, minha querida! Não era preciso mais nada! Sua excelência tinha dito tudo com clareza. Evstafii Ivanovitch respondeu-lhe:
— Não tem havido motivo para lhe dirigir a mínima censura, Excelência; o seu porte, até hoje, tem sido irrepreensível, verdadeiramente exemplar... Tem boa letra... e ganha um ordenado regular...
— Bem, então, veja a forma de o ajudar — continuou o ministro. — Faça-lhe um adiantamento...
— Adiantamentos já lhe foram feitos de mais; já recebeu adiantadamente uma data de meses. Decerto atravessa qualquer crise especial. Quanto ao resto, como digo, o seu porte é irrepreensível, exemplar...
Sentia-me, meu anjo, como que no meio de um círculo de chamas infernais, que me queimavam e tostavam vivo! Eu... Já não era nada, havia exalado o último suspiro, tinha morrido e estava morto.
— Bem — disse sua excelência em voz alta —, é preciso fazer outra cópia. Dievuchkin, venha cá; vai copiar isto novamente, sem erros; e os senhores...
Dizendo isto sua excelência voltou-se para os circunstantes e deu-lhes diferentes ordens, após o que eles se foram retirando. Logo que o último saiu, sua excelência tirou prontamente a carteira do bolso, da qual pegou numa nota de cem rublos.
— Olhe, é quanto posso dar-lhe... Pegue lá. Atribua ao meu gesto o sentido que entender...
E meteu-me na mão a nota.
Estremeci com a comoção, meu anjo. Não sei explicar o que se passou dentro de mim. Quis agarrar-lhe na mão para a beijar, mas ele pôs-se vermelho, meu amor, é pura verdade o que lhe digo, e pegou nesta indigna mão e apertou-ma — tudo isto como se se tratasse da mão de um igual, de qualquer personagem da sua categoria.
— Bem, pode retirar-se — disse. — É quanto posso fazer por si. Copie o documento outra vez, mas veja que não se engane. Esta cópia pode rasgar-se.
Pois agora, meu amor, ouça o que pensei: rogar a si e à Fédora, como o faria aos meus filhos se os tivesse, que nas suas orações peçam a Deus, não pelo seu pai, mas por sua excelência, e que rezem por ele enquanto forem vivas. Sim, minha querida, vou dizer-lhe mais uma coisa solenemente e preste-lhe toda atenção: por maior que fosse a penúria em que me achava e por muito que a nossa falta de recursos me fizesse sofrer, ao pensar na necessidade da minha boa amiga e nas dificuldades com que se debatia e, portanto, ao lembrar-me da minha triste condição e da minha inutilidade, juro-lhe que estes cem rublos não representam para mim tanto como o gesto de sua excelência ao dar-me a mim, o bêbedo, o mau entre os maus, a sua mão e dignar-se apertar a minha, tão indigna. Com este movimento, sua excelência restituiu-me ao meu verdadeiro ser; ressuscitou-me de entre os mortos; suavizou-me a vida para sempre. E estou firmemente convencido de que, embora pecador aos olhos do Altíssimo, as minhas preces pela saúde e prosperidade de sua excelência hão de chegar ao trono de Deus e Ele há de ouvi-las!...
Querida, meu amor! Encontro-me, neste momento, inusitadamente excitado, perturbado. O meu coração palpita e dá saltos, e sinto-me tão fatigado como se todas as minhas forças fossem abandonar-me.
Mando-lhe quarenta e cinco rublos; dei vinte à minha patroa e fico com trinta e cinco para mim. Destes, vinte destino-as à aquisição de algumas peças de roupa, e o restante para ir fazendo face às necessidades de cada dia.
Todas as impressões desta manhã deixaram-me tão fatigado, que me sinto muito fraco. Vou-me deitar. De resto, agora, estou absolutamente tranquilo. Apenas experimento uma espécie de peso no coração e, no fundo, não sei onde, sinto como que a minha alma a agitar-se, a esvoaçar. Irei vê-la em breve, mas, de momento, ainda tenho a cabeça transtornada com todas estas sensações...
Deus vê tudo, minha querida, tudo!
Seu digno amigo
Makar Dievuchkin
10 de setembro
Meu querido Makar Alexeievitch:
A sua felicidade causou-me indizível alegria e sei avaliar bem o valor do auxílio do seu superior. Deste modo, o meu bom amigo poderá, finalmente, respirar e descansar das suas preocupações. Agora, por amor de Deus, não gaste mais dinheiro em coisas inúteis, suplico-lhe! Leve uma vida calma e ordenada, o mais económica possível, e principie, a partir de hoje, a pôr todos os dias alguma coisa de lado, a fim de não tornar a ver-se em tais dificuldades. A falar verdade, não precisa de se preocupar connosco. Nós cá nos arranjaremos. Porque nos mandou tanto dinheiro, Makar Alexeievitch? De facto, não precisamos dele. O que vamos ganhando é-nos suficiente. É certo que daqui a pouco tempo necessitaremos de algum para a mudança; mas a Fédora conta que lhe paguem, até então, uma dívida antiga. Entretanto, fico com vinte rublos para o que der e vier, e devolvo-lhe o restante. Não julgue o dinheiro uma coisa supérflua, Makar Alexeievitch, peço-lhe!
Adeus, meu amigo. Desejo que continue tranquilo e se conserve de saúde e cheio de alegria.
Por minha vontade, escreveria uma carta mais extensa; mas sinto-me muito cansada. Ontem estive de cama durante todo o dia. Fiquei muito contente com a promessa da sua visita. Não demore, Makar Alexeievitch. Olhe que estou à sua espera.
Sua
B. D.
11 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Rogo-lhe, meu anjo, que se não esqueça de que agora sou completamente feliz e tudo corre à medida dos meus desejos. Não faça caso da Fédora, minha querida! Prometo fazer-lhe tudo o que a minha boa amiga quiser. De futuro, hei de comportar-me bem, de maneira digna e decente, quando por outro motivo não fosse, em atenção a sua excelência. Recomeçaremos a troca de cartas alegres; confiaremos um ao outro os nossos pensamentos e também as nossas alegrias e preocupações, se é que havemos de ter estas últimas; voltaremos de novo a viver uma vida feliz e em boa harmonia... Dedicar-nos-emos à literatura. Agora, tudo na minha vida tende a melhorar, anjo do meu coração! A minha patroa já conversa comigo. A Teresa tornou-se mais atenciosa e até Faldoni me é mais prestável. Fiz as pazes com Ratazaiev. A alegria que me ia na alma impeliu-me para ele outra vez. Realmente, é um bom rapaz, querida Bárbara, e tudo o que de mal disseram dele não passa de pura mentira e disparate; tive agora oportunidade de verificar que se tratava de uma odiosa calúnia. Nunca lhe passou pela cabeça escrever qualquer sátira a nosso respeito; isso era mentira. Foi ele próprio que mo afirmou, e até me leu a sua última obra. E quanto a ter-me posto a alcunha de Don Juan... isso não me traz mal algum, nem tal denominação tem nada de ofensivo. Explicou-me o que queria dizer. É um termo estrangeiro, que significa, mais ou menos, rapaz esperto, ou, exprimindo-me em linguagem mais polida, isto é, mais literária, cavalheiro galante. E é tudo. Assim, tratava-se, como vê, simplesmente de um gracejo inofensivo, meu anjo! Sou tão ignorante, que o havia tomado por uma ofensa, pelo que já hoje lhe apresentei as minhas desculpas...
Que bonito dia está hoje, querida Bárbara! É certo que de manhã havia alguma neve; mas isso não importa: torna o ar mais fresco. Fui comprar umas botas, e adquiri um par esplêndido, absolutamente irrepreensível... Em seguida dei um passeio pela Nevski e depois li o jornal. Sim, e com isto esquecia-me de lhe contar o mais importante!
É isto, ora ouça:
Hoje de manhã estive à conversa com Emelia Ivanovitch e Aksenti Michaelovitch, e falámos de sua excelência. É verdade, querida Bárbara; não foi só para comigo que sua excelência teve gestos de bondade. A sua caridade tem-se estendido também a outras pessoas e toda a gente conhece bem os tesouros do seu coração. São muitos, mesmo muitos os indivíduos que exaltam as suas bondosas qualidades e vertem lágrimas de sincero agradecimento pelo bem que ele lhes fez. Sua excelência tomou conta de uma órfã e educou-a em sua casa, e depois casou-a com um empregado dos que trabalham diretamente sob as suas ordens; e não contente com isso, ainda lhe destinou um bom dote. Além disso, sua excelência colocou numa chancelaria o filho de uma pobre viúva. E muitos outros atos de generosidade se lhe podem apontar. Achei que era meu dever, querida, entrar na conversa, e pus em destaque o que ele fizera por mim; contei tudo, sem omitir a mínima particularidade, e fi-lo desassombradamente. Tratando-se de um gesto de tão grande alcance, pus de lado toda a timidez e toda a circunspeção e referi o caso em voz alta, para que todos ouvissem. Sim, muito alto, a fim de tornar bem conhecidas as nobres ações de sua excelência. Falei com calor e entusiasmo e fi-lo sem corar, antes, pelo contrário, sentia-me orgulhoso por poder contar semelhante episódio.
No meu relato, apenas omiti, felizmente, o que se relaciona consigo, minha querida; essa circunstância, passei-a em claro, muito discretamente. Mas o respeitante à patroa, a Faldoni, a Ratazaiev, a Markov e às minhas botas, foi tudo contado pormenorizadamente... Alguns riram-se de mim um pouco, ou, melhor dizendo, todos fizeram caçoada... Mas ao menos todo riam! Pelo visto sempre encontraram em mim algum motivo de riso. Talvez se rissem só das minhas botas! No entanto, creio que não o faziam com má intenção, pois são incapazes disso. O mais certo é aqueles risos serem devidos à juventude dos colegas que me ouviam, ou então ao facto de não terem falta de dinheiro. Porém, repito, não devia existir má intenção ou sentido hostil nos risos que com as minhas palavras provoquei. Sim, pois não creio que fosse de sua excelência... Não; de sua excelência nunca se atreveriam a fazer pouco... Não lhe parece, querida Bárbara?
Ainda não recuperei de todo a serenidade após a perturbação em que os últimos acontecimentos me mergulharam! Tem lenha para o lume, querida Bárbara? Tenha cuidado, não vá apanhar frio! Peço a Deus que vele por si e a proteja, meu amor. Tem, por exemplo, meias de lã ou os agasalhos necessário para o inverno? Tenha cautela, meu anjo! Se tiver falta de alguma coisa, não se acanhe, diga a este pobre velho aquilo de que precisa. Os nossos tempos maus já lá vão. A vida agora apresenta-se-nos brilhante, e bela!
Foram bem tristes aqueles dias, querida Bárbara! Mas não vale a pena recordá-los, uma vez que já passaram!... À medida que os anos forem andando, poderemos falar desses tempos. Não evoco com tanta saudade a minha infância? No entanto, o que eu sofri então! Às vezes não dispunha de um único kopek. Passava frio e fome; mas senti-me sempre contente.
De manhã ia até Nevski, deparava-se-me uma cara bonita... e lá se iam os sofrimentos por aquele dia. Bons tempos, maravilhosos tempos aqueles, apesar de tudo, meu amor! Dá gosto viver neste mundo, querida Bárbara! Sobretudo em S. Petersburgo. Ontem fiz ato de contrição diante de Deus, com lágrimas nos olhos, para que me perdoe todos os pecados que nessa dolorosa época cometi: maus pensamentos, embriaguez e jogo. E também me lembrei de si nas minhas orações. Foi a minha única consolação, meu anjo, a única pessoa que me deu bons conselhos e me ajudou a vencer todas as dificuldades. Isso, meu amor, jamais o esquecerei! Hoje beijei as suas cartas, uma a uma, meu anjo! Mas, com isto, adeus!
Ouvi dizer que há por aqui perto quem venda um fato. É que também quero melhorar o meu exterior. Mais uma vez adeus, meu anjo; Deus lhe dê saúde e até à vista.
Seu de alma e coração
Makar Dievuchkin
15 de setembro
Meu querido Makar Alexeievitch
Estou numa excitação terrível. Ouça o que me sucedeu. Tenho o pressentimento de uma fatalidade. O meu bom amigo atenda e julgue: o Sr. Buikov está outra vez em S. Petersburgo!
A Fédora encontrou-o. Ele ia de carro, reconheceu-a, mandou logo parar, dirigiu-se a ela e perguntou-lhe onde morava. A Fédora, claro, não lho disse. Então ele, com um sorriso, deu a entender que sabia quem vivia com ela. (Deve ter sido Ana Fedorovna que lhe contou tudo.) Ao ouvir aquilo, Fédora ficou furiosa e insultou-o ali mesmo, na rua, dizendo-lhe que ele era um imoral e o único causador das minhas desgraças. Então ele respondeu-lhe que quem não possui um kopek é por força um desgraçado. A Fédora replicou-lhe que eu ganho bem a vida com o meu trabalho, e que posso casar-me ou arranjar um emprego; mas que perdi a felicidade para sempre, que estou muito doente e pouco durarei.
Buikov observou que, apesar de muito jovem ainda, parecia ter perdido o juízo e que as minhas boas qualidades se tinham turvado um pouco (foram exatamente estas as suas palavras).
Tanto eu como Fédora julgávamos que ele ignorava a nossa morada; mas ontem, enquanto fui ao Gostini Dvor fazer umas compras, ele veio a nossa casa. Pelo visto, não queria encontrar-se aqui comigo! Começou por fazer a Fédora uma série de perguntas acerca da vida que levávamos, reparando em tudo com muita atenção, até nos meus trabalhos. De súbito, por fim, perguntou:
— Quem é esse funcionário vosso amigo?
Precisamente Daquele instante, o senhor atra vessava o pátio e Fédora mostrou-o. Ele espreitou da janela e em seguida desatou a rir. Fédora convidou-o a ir-se embora, dizendo-lhe que eu não estava muito boa de saúde por causa dos desgostos, e não me seria muito agradável encontrá-lo ali quando regressasse. Mas ele, sem dar qualquer resposta, conservou-se calado por um bocado e acabou por declarar que fora ali por ir, pois não tinha nada que fazer. Por fim, quis, a toda a força, dar à Fédora vinte e cinco rublos, que ela, claro, não aceitou.
Que quererá dizer tudo isto? Porquê e para quê terá ele vindo a nossa casa? Não sei como conseguiu saber tudo o que se relaciona connosco. Perco-me em conjeturas.
Diz a Fédora que Aksina, sua cunhada, a qual nos visita de vez em quando, é muito bem dada com Nastásia, a lavadeira, e esta tem um primo empregado no mesmo escritório em que trabalha um dos mais íntimos amigos de Ana Fedorovna. Não terão, por essa via, chegado aos seus ouvidos todas essas intriguices? Não sabemos o que pensar. Será capaz de voltar cá? O simples pensamento de que tal venha a acontecer me revolta! Quando, ontem, a Fédora me contou o que se passara, fiquei tão assustada que ia desmaiando de angústia. Que quererá de mim esse homem? Se eu não quero saber dessa gente para nada! Que têm eles comigo? Ai, se soubesse a ansiedade em que vivo! Parece-me, a cada momento, ver Buikov na minha frente. Que há de ser de mim? Que mais me reservará o destino?
Por amor de Deus, venha cá o mais breve possível, peço-lhe, Makar Alexeievitch! Venha já, suplico-lhe!
18 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Deu-se hoje em nossa casa um acontecimento deveras triste, inexplicável e absolutamente inesperado. Mas eu vou contar-lhe as coisas pela respetiva ordem.
Antes de mais nada, comunico-lhe que o nosso pobre Gorchkov foi absolvido no processo. O caso já há muito que estava julgado, mas só hoje de manhã foi lida a sentença, que o ilibava de toda a culpa. Não conseguiram qualquer prova da matéria da acusação — descuido, negligência, etc. O Tribunal reconheceu a sua absoluta honorabilidade e condenou o negociante a pagar a Gorchkov aquela avultada quantia de que lhe falei. Assim, de súbito, a sua miserável situação melhorou, pois o dinheiro será, sem dúvida, arrancado ao negociante por via judicial. Mas o mais importante, naturalmente, era o pobre ver-se limpo daquela mancha que a denúncia pusera na sua honra. Numa palavra: conseguira ver realizados todos os seus desejos.
Chegou a casa pelas três horas da tarde, mas com tal aspeto que dificilmente se reconhecia. Trazia a cara branca como a cal, os lábios tremiam-lhe e ao mesmo tempo sorria. Correu para a mulher e os filhos e abraçou-os. Nós todos, num magote, dirigimo-nos para ele, a fim de o felicitarmos. A nossa atitude, creio, comoveu-o muito, pois desfazia-se em agradecimentos e apertou a mão de cada um de nós repetidas vezes. É verdade; até parecia que crescera; pelo menos, conservava-se mais direito do que de costume. Nos olhos já não se lhe viam lágrimas, antes ostentava neles um brilho extraordinário. Como o pobre estava emocionado! Não parava quieto no sítio, por dois minutos que fosse; pegava numa coisa para logo a largar, e tão depressa se apoiava nas costas de uma cadeira, sorria e pronunciava palavras de agradecimento, como se sentava e voltava a levantar-se para se sentar outra vez, e murmurava frases ininteligíveis. Uma vez disse: «Já posso deixar aos meus filhos a minha honra, sim, a minha honra, uma boa reputação...» E como ele dizia aquilo! Tinha os olhos inundados de lágrimas, e a nós pouco faltava também para chorar. Ratazaiev, decerto para lhe insuflar coragem, disse-lhe:
— Ora! A honra! De que serve a honra, meu amigo, quando não há que comer? Dinheiro, meu velho, dinheiro, isso é o principal! O dinheiro, esse sim, deve agradecê-lo a Deus!
E deu-lhe uma amigável palmada no ombro.
Tive a impressão de que as palavras de Ratazaiev ofenderam um pouco Gorchkov. Não é que ele tivesse mostrado cara de ressentido; mas olhou para ele de um modo um tanto estranho e não fez qualquer comentário, limitando-se apenas a afastar do seu ombro a mão do literato. Melhor fora não o ter feito, minha querida. De resto, não temos todos o mesmo feitio. Eu, por exemplo, se me visse em idênticas circunstâncias, não levaria a mal um gesto assim. Às vezes, meu amor, dizem-se coisas absolutamente descabidas mesmo sem qualquer motivo, apenas por excesso de ternura ou numa efusão de cordialidade... Contudo, isto não é da minha conta...
— Sim — prosseguiu Gorchkov, após uma pausa —; o dinheiro também é uma boa coisa, graças a Deus. Graças a Deus!
E repetia várias vezes em voz baixa: «Graças a Deus! Graças a Deus!»
A mulher arranjou-lhe uma refeição mais abundante e melhor do que o habitual, e foi mesmo a nossa patroa que a cozinhou, pois, reconheço, no fundo, ela não é má pessoa. Mas até à hora de comer Gorchkov não teve um momento de descanso. Ia e vinha de um lado para o outro da casa, aproximando-se de cada um de nós, como se o tivéssemos chamado. Vinha direito à gente, nem mais nem menos, sorrindo a seu modo; sentava-se numa cadeira, dizia qualquer coisa, ou deixava-se estar calado... e depois lá ia outra vez. No quarto do marinheiro, onde naquela altura se encontravam a jogar, pegou nas cartas na mão e os outros convidaram-no para o jogo. E para ali esteve joga que joga, mas de tal modo que desnorteava os companheiros. O que valeu foi ele largar as cartas depois de ter perdido três ou quatro partidas.
— Não, só tenho isto — disse —; só tenho isto.
E saiu do quarto.
Encontrei-me com ele no corredor. Pegou-me nas mãos e fitou-me detidamente, mas de modo estranho. Depois estreitou-mas e afastou-se, sempre a sorrir, com aquele sorriso singular, impassível como o sorriso de um louco. A mulher chorava de alegria e nos seus aposentos tudo tinha o ar de festa. A refeição não durou muito e, depois de comer, Gorchkov disse então à mulher:
— Agora queria descansar um bocadinho.
E deitou-se na cama.
Daí a instantes chamou a filhinha, pôs-lhe as mãos na testa e começou a acariciá-la, Em seguida dirigiu-se outra vez à mulher:
— Onde está Petinka? O nosso Petinka? — perguntou. — O nosso Petinka...
A mulher benzeu-se e respondeu-lhe que a criança tinha morrido.
— Sim, é verdade; bem sei. Petinka está no céu!
A mulher notava que o marido não era o mesmo de antes; verificou que os acontecimentos daquele dia lhe haviam transtornado as ideias e tinham causado nele profunda impressão. Por isso, aconselhou-o a fazer por dormir e descansar, enquanto ela faria o mesmo.
— Sim... Vou ver se durmo... um bocadinho apenas...
Ao dizer isto, deitou-se de costas. Conservou-se assim uns momentos e, por fim, deu uma volta, fez menção de querer dizer alguma coisa. A mulher perguntou-lhe:
— Que dizes, homem?
Mas não teve resposta. «Deve ter adormecido», pensou a mulher, e saiu do quarto para conversar um pouco com a patroa. Voltou ao cabo de uma hora. O marido ainda não acordara, dormia a sono solto, sem se mexer. «Está a dormir sossegado — disse, sentando-se e começando a trabalhar em qualquer coisa. — Com o sono, ganhará vontade para o trabalho.»
Contou que estivera sentada à cabeceira mais de meia hora, mas não pôde dizer ao certo em que pensava, por mais que puxasse pela ideia; apenas sabe que se esquecera por completo do marido. De súbito, porém, voltou à realidade, despertada por uma estranha agitação que sentiu dentro de si. Foi então que deu conta do silêncio sepulcral em que se encontrava mergulhado o aposento.
Olhou, para a cama e verificou que o marido se achava deitado como hora e meia antes. Aproximou-se dele e tocou-lhe... Mas sentiu-o frio, porque estava morto, minha querida; Gorchkov morrera repentinamente, como que fulminado por um raio. Só Deus sabe a causa da sua morte!
Este acontecimento causou-me tal impressão que ainda agora não consigo associar bem as ideias. Não compreendo como um homem pode morrer assim, sem mais nem menos. Coitado do pobre Gorchkov! E logo morrer hoje, precisamente num dia para ele de tanta alegria! Porquê? Sim, é o destino, o destino! A mulher está debulhada em lágrimas, ainda transtornada por tão horrível e imprevisto choque. A filhinha, essa acocorou-se num canto, assustada. Entretanto, no seu quarto, entram e saem constantemente. Tem de ser feito ao cadáver um exame médico... ou lá o que é; não sei como isso se chama. Que desgraça, querida, que desgraça! É muito triste pensar que de um momento para outro se morre, sem mais nem menos, e li se vai!...
Seu
Makar Dievuchkin
19 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Apresso-me a comunicar-lhe, minha boa amiga, que Ratazaiev me arranjou trabalho... Um escritor trouxe-lhe hoje um enorme manuscrito para eu copiar... Graças a Deus, agora não me falta serviço. A única dificuldade é o original ser tão ilegível, que não sei como o hei de decifrar; e, além disso, o autor querer o trabalho feito com urgência. Para mais, o assunto é tão transcendente que pouco compreendo. Já ficou estabelecido o preço de quarenta kopeks por folha. Escrevi-lhe para sem demora lhe dizer, minha querida, que agora já conto com um ganho suplementar.
Com isto adeus, meu anjo. Vou-me agarrar ao trabalho.
Seu fiel
Makar Dievuchkin
23 de setembro
Meu bom amigo Makar Alexeievitch:
Há já três dias que lhe não escrevo, meu amigo; contudo não me têm faltado preocupações e receios durante este tempo.
Anteontem veio cá Buikov. Encontrava-me sozinha, pois a Fédora tinha saído.
Abri-lhe a porta, e fiquei tão assustada quando o vi que nem me podia mexer do sítio. Senti que empalidecia. Ele entrou, a rir, como é seu costume, puxou de uma cadeira e sentou-se sem mais cerimónias. Custou-me a recuperar a serenidade. Por fim, fui outra vez sentar-me a trabalhar, junto da janela. Ao reparar em mim, decerto ficou surpreendido com o meu aspeto, pois, de súbito, deixou de rir. Ultimamente, piorei muito: tenho os olhos fundos e as faces mirradas. Além disso, estava coberta de uma palidez mortal... Sim; devo despertar compaixão em quem me conheceu há uns anos para trás...
Observou-me atentamente durante largo tempo e, por fim, o seu semblante alegrou-se outra vez. Disse não sei quê, ao que nem sequer me lembro o que respondi. E retomou o aspeto risonho. Conservou-se uma hora sentado ao pé de mim, torturando-me com perguntas e conversando animadamente. Antes de se ir embora, pegou-me na mão e disse-me exatamente isto:
— Bárbara Alexeievna, vou-lhe dizer uma coisa, muito em segredo. Ana Fedorovna, sua prima e minha antiga amiga, é uma mulher muito ordinária. — Qualificou-a mesmo com uma palavra indecentíssima. — Primeiro, preparou a desgraça da prima, e depois arruinou-se a si própria. Sim; o meu procedimento então também foi ignóbil; mas, enfim, não percamos o tempo com palavras inúteis, que isso é o pão-nosso de cada dia, coisas da vida.
E desatou outra vez a rir alto. Em seguida, depois de fazer notar que não possuía o dom da palavra, disse que a única coisa que tinha a dizer era simplesmente aquilo que um homem de bem não podia calar, como já declarara; por isso, limitar-se-ia a explicar o resto em duas palavras. E assim fez. Declarou-me que pedia a minha mão, que achava ser seu dever devolver-me a honra, que é rico, e que, após o casamento, me levaria com ele para a sua terra, na região das estepes. Tencionava passar ali o tempo na caça à lebre, não fazendo conta de voltar a S. Petersburgo, pois aborrecia a vida nas grandes capitais. Acrescentou ainda que teve aqui um sobrinho, estroina e pouco prometedor, a quem se propôs fazer perder as esperanças de ser seu herdeiro. Resolvera, por isso, casar-se, isto é, deseja herdeiros diretos. Depois, deteve-se em considerações acerca do nosso quarto; disse que não era nada para admirar encontrar-me doente vivendo num tugúrio destes, e augurou-me a morte para breve, no caso de continuar aqui. «Em S. Petersburgo, todas as residências são más», disse; e depois perguntou-me se não tinha desejo de alguma coisa.
A sua proposta impressionou-me tanto que, de súbito, sem eu mesma saber o motivo, desatei a chorar. Atribuiu as lágrimas à gratidão e disse-me que estivera sempre convencido de que eu era uma boa moça, sensível e culta: mas que não se decidira há mais tempo a fazer-me aquela proposta, porque quisera antes informar-se pormenorizadamente da minha conduta. Falou-me então de si, contando-me que ouvira dizer que o senhor era um homem de bem, e declarou que não queria ficar a dever-lhe nada... Perguntou-me se quinhentos rublos seriam bastante para pagar os seus favores, e eu respondi-lhe, que o que o senhor tem feito por mim não há dinheiro que o pague. Ao ouvir isto, disse que tal ideia era um absurdo e que essas coisas estão bem mas é nos romances; que eu sou ainda muito nova e que vejo a vida através dos livros; mas que os romances só servem para sugerir ideias extravagantes às moças. Segundo ele, em geral os livros apenas concorrem para a corrupção dos costumes, e por isso detesta-os. Aconselhou-me a esperar pela sua idade para poder julgar os homens. «Só então — disse — poderá dizer que os conhece.»
Depois convidou-me a refletir sobre a sua proposta e pesar maduramente os prós e os contras, pois não achava bem que eu, sem profunda meditação, desse passo tão importante. Acrescentou ainda que a falta de ponderação e as resoluções precipitadas são quase sempre a origem da desgraça das jovens sem experiência da vida; mas que, apesar de tudo, o seu maior desejo era obter de mim uma resposta afirmativa. Caso contrário, ver-se-ia forçado a desposar a filha de um comerciante de Moscovo, pois, como já dissera, tinha feito solene juramento de não deixar os seus bens ao estroina do sobrinho. Finalmente, levantou-se e colocou quinhentos rublos sobre o bastidor com que trabalhava, para alfinetes, segundo disse; eu quis levantar-me, mas ele não me deixou, quase à força. Para terminar, disse-me que lá na sua terra havia de engordar muito e ganhar cores de saúde, e que poderia dormir quanto quisesse. Segundo parece tem muito que fazer; disse que os negócios lhe ocupam quase todo o dia, e por essa razão só se demorara na minha companhia breves minutos. E dizendo isto, saiu.
Já refleti muito sobre o assunto, e examinei-o de todos os lados. Por fim, meu bom amigo, tomei uma resolução: casar-me-ei com ele; devo aceitar a sua proposta. Só ele me pode livrar da vergonha, devolver-me a minha honra e preservar-me da pobreza e das dificuldades no futuro. Que outra coisa posso esperar do futuro ou pedir ao destino? Diz Fédora que não devemos brincar com a sorte; mas pergunta a si própria, entre soluços, se a isto se pode chamar sorte. Por mim, também não descubro outra solução para a minha vida, meu bom amigo. Que hei de fazer? Na luta pela existência já perdi a saúde. O trabalho ininterrupto... é superior às minhas forças. Servir a estranhos? Claro que a carreira que vou encetar também não será nenhum paraíso. Mas que devo fazer, meu amigo, que devo fazer? Que resolução tomar?
Não pedi o seu conselho, porque queria meditar bem tudo, sozinha. A resolução que tomei e que já lhe dei a conhecer, mantém-se firme, e vou sem demora escrever a Buikov, que já deve estar impaciente pela minha resposta, participando-lhe que aceito. Disse-me que os negócios lhe tomavam quase todo o tempo, que não se podia demorar, e não podia, por causa destas bagatelas, alterar a sua vida.
Só Deus, nos seus sagrados e impenetráveis desígnios sobre o meu futuro, sabe se vou ser feliz; mas a minha resolução está tomada. Dizem que Buikov é boa pessoa; se assim for, espero que venha a sentir por mim afeto, e que talvez eu também lhe ganhe algum. E que mais se pode esperar do nosso casamento?
Ponho-o ao corrente de tudo, Makar Alexeievitch, porque sei que compreenderá a minha angústia. Não tente dissuadir-me do meu propósito, pois nada conseguiria. Se analisar bem todas as razões que me levaram a dar este passo, estou certa de que o seu coração aprovará o meu procedimento. A princípio, senti-me extremamente angustiada, mas agora já estou mais tranquila, O que me espera... não sei. há de ser o que Deus quiser...
Acaba de chegar Buikov e não posso terminar a carta. Ainda tinha muitas coisas para lhe dizer, mas Buikov já está à porta.
23 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Apresso-me a responder-lhe. Sim, meu amor, apresso-me a exprimir-lhe o meu espanto. De passagem, comunico-lhe que ontem foi enterrado o pobre Gorchkov... Sim; Buikov portou-se honradamente, isso é verdade, querida Bárbara; mas diga-me: já lhe deu a sua palavra? Claro que Deus é quem tudo dispõe. É assim, e assim tem de ser, quer dizer, também nisto se tem de cumprir a vontade do Criador. A Providência Divina, embora imperscrutável, nunca tem outro fim senão a felicidade dos mortais, e a sorte e a vontade de Deus são uma e a mesma coisa.
A Fédora, claro, comunga nos mesmos sentimentos. Estou certo de que será feliz, minha querida; vai viver na riqueza e na abundância, meu amor, meu anjo; não me canso de lhe chamar assim... Mas diga-me uma coisa, apenas uma, querida Bárbara: porque tem tanta pressa? Ah, pois é, os negócios!... O senhor Buikov tem negócios... Naturalmente... E quem há que os não tenha? Por isso, também ele os pode ter. Vi-o quando ele saía de sua casa. É um homem imponente, mesmo demasiado imponente, quer dizer, a sua presença impõe respeito. Mas não é deste pormenor que eu pretendo agora falar; trata-se de outra coisa. Já não sou o mesmo, devo dizer-lhe. De futuro, como nos poderemos escrever? E eu... sim, eu... como poderei continuar aqui sozinho? O meu coração, meu anjo, avalia e pesa tudo o que me dizia na sua carta, as razões que a levaram a decidir-se, etc.
Já tinha vinte folhas copiadas quando, de súbito, recebi a notícia. Meu amor, meu amor! Antes de sair daqui, precisa de comprar um sem-número de coisas; vários pares de sapatos e diversos vestidos, não é verdade? Pois bem: lembra-se daquele armazém da Gorcohovaya de que uma vez lhe falei? Ainda se recorda, decerto, da descrição que lhe fiz daquela rua. Mas não. Que estou eu para aqui a dizer? Que ideia fará de mim? Que pensará, minha querida? Não; não deve, é-lhe completamente impossível sair assim sem mais nem quê. Precisa de fazer muitas compras, mas para isso tem de alugar um carro. Demais, com um tempo destes! Como vê, chove a bom chover, ininterruptamente e, além disso, está muito frio.
Era capaz de lhe arrefecer, de lhe gelar esse coraçãozinho da minha alma.
Diz a minha boa amiga que receia os estranhos, e agora está resolvida a viajar com esse desconhecido! Como pode deixar-me aqui sozinho? Sim. A Fédora garante que uma feliz sorte lhe está reservada a si... Mas essa Fédora é uma velha cruel e quer arrebatar-me o único bem que me resta. Vai hoje à igreja, à oração da tarde? Eu também vou, minha querida, só para a ver lá! Buikov tem razão em afirmar que a Bárbara é uma boa moça, sensível e culta. Contudo, acho que ele faria melhor se casasse com a filha do tal comerciante. Que lhe parece, meu amor? Que se case com essa menina de Moscovo!...
Irei visitá-la, minha querida, depois de escurecer; daqui a uma hora ter-me-ão aí. Agora já anoitece muito cedo, de modo que não demorarei. Dentro de uma hora, sem falta! Agora está aí Buikov, bem sei; mas logo que ele se vá embora... Espere, pois, por mim, querida, que vou sem falta...
Makar Dievuchkin
27 de setembro
Querido Makar Alexeievitch:
O senhor Buikov disse que preciso de levar, pelo menos, três dúzias de camisas de holanda. Por isso, tenho de arranjar, a toda a pressa, costureiras de roupa branca que me façam duas dúzias, pois o tempo urge. O senhor Buikov está aborrecido por não se ter lembrado dos incómodos que o arranjo do enxoval ocasiona.
O nosso casamento realizar-se-á daqui a cinco dias e no seguinte partimos. O senhor Buikov tem muita pressa e diz que não devemos perder tanto tempo com estas ninharias. Estou tão cansada de toda esta lida que mal me posso ter de pé. Ainda tenho de fazer muito trabalho e, contudo, quem sabe se não seria preferível não me incomodar tanto com estas coisas! Além disso, não temos rendas que cheguem e temos de comprar mais algumas; o senhor Buikov não quer que a sua mulher vá vestida como uma cozinheira e deseja que ela meta a um canto todas as senhoras das redondezas. São estas as suas palavras.
Por isso, peço-lhe, querido Makar Alexeievitch, que vá a casa de madame Chiffon, na rua Gorochovaya, e lhe diga, em primeiro lugar, que me mande, o mais depressa possível, algumas costureiras, e em segundo lugar, que ela própria faça o favor de passar por aqui; não posso lá ir, porque hoje sinto-me muito doente. A nossa nova casa é muito fria e está numa desordem que mete medo. A tia do senhor Buikov mal pode respirar de tão velha e doente. Receio bem que exale o último suspiro antes da nossa viagem de núpcias, O meu futuro marido, porém, diz-me que não tema tal coisa, pois ela depressa se restabelecerá.
Cá em casa anda tudo numa barafunda, como costuma dizer-se. Como o senhor Buikov não vive aqui, as criadas andam de um lado para o outro e fazem o que lhes apetece. Às vezes apenas disponho da Fédora para o serviço. O criado de quarto do senhor Buikov, a quem compete manter o pessoal na ordem, não apareceu cá nos últimos três dias. O patrão vem todas as manhãs, de carro, e exalta-se; ontem bateu no criado, pelo que foi incomodado pela Polícia...
Neste momento não tenho quem vá entregar-lhe esta carta. Por isso, segue pelo correio.
Como de costume, já me esquecia do mais importante! Diga a madame Chiffon que troque as rendas por outras a dizer com a amostra que ontem escolhi, e depois venha cá mostrar-me o que arranjou. Diga-lhe ainda que, com respeito à guarnição, mudei de ideia: quero-a também bordada. Ah! Recomende-lhe que o monograma dos lenços tem de ser trabalhado e não simples... Compreende? Trabalhado! Tome bem sentido! Ah! Ainda me esquecia outra coisa! Diga-lhe que quero a capa de arminho bem guarnecida a cordão, e o peitilho da blusa com uma renda ou uma guarnição larga. Explique-lhe tudo bem, Makar Alexeievitch!
Sua
B. D.
P. S. — Estou envergonhada de voltar a incomodá-lo com os meus recados! Anteontem fi-lo correr de um lado para outro durante toda a tarde. Mas que hei de fazer? A nossa casa está em completa desordem e eu sinto-me doente. Não se aborreça comigo, Makar Alexeievitch! Se soubesse a pena que tenho de si! Que há de ser do meu amigo, do meu bom e querido amigo Makar Alexeievitch? Receio tanto o futuro! Ao pensar nele, fico apreensiva e mil pressentimentos maus me cruzam pela cabeça.
Por amor de Deus, meu amigo, não se esqueça de tudo o que lhe peço que diga a madame Chiffon. Receio que façam tudo ao contrário. Fixe bem: tudo com cordão e não simples bordado!
27 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Cumpri escrupulosamente as suas instruções. Madame Chiffon disse que já tinha pensado em fazer as letras em cordão, porque assim é mais distinto e... Não sei se foi exatamente assim que ela disse, porque não compreendi muito bem; mas deve ter sido mais ou menos isto. Também me falou na tal guarnição a que Bárbara se havia referido. O que disse acerca disto, é que já me não lembro. Apenas me recorda que falou muito. Que mulher tagarela! Mas que me disse? Olhe, dir-lho-á ela própria hoje mesmo. Eu, querida Bárbara, ando completamente desnorteado. Hoje de manhã não fui trabalhar, mas não se preocupe, porque não foi nada de grave. Para lhe conseguir pia e sossego, estou disposto a visitar todas as lojas de S. Petersburgo. Diz-me a minha amiga que tem medo de pensar no futuro. Pois hoje, pelas sete horas, tomará conhecimento de tudo, porque madame Chiffon irá pessoalmente visitá-la. Por isso, tenha paciência e espere que tudo corra pelo melhor. O que não me sai da ideia é essa malfadada guarnição; até parece zunir-me nos ouvidos: guarnição, guarnição, guarnição!
Daqui a bocado irei visitá-la, meu anjo; tenho absoluta necessidade de perder uns momentos à conversa consigo. Já me aproximei hoje da sua porta duas vezes; mas Buikov, quer dizer, o senhor Buikov parece dotado de mau génio e decerto não gostaria muito... Enfim, as coisas são como são... não é verdade?
Seu
Makar Dievuchkin
28 de setembro
Meu querido Makar Alexeievitch:
Por amor de Deus, vá a toda a pressa à joalharia e diga ao proprietário que já não quero os brincos de pérolas e esmeraldas. O senhor Buikov diz que são muito caros e que lhe dão um rombo na carteira. Está muito zangado. Queixa-se de que já lhe estou a ficar pelos olhos da cara e de que o estamos a depenar. Disse ontem que se pudesse prever todas estas despesas, não teria feito as coisas assim à pressa, e acrescentou que partiremos logo a seguir à cerimónia do casamento. «Não penses que vai haver convidados para a boda e baile a seguir; não, as festas realizar-se-ão no campo, na minha terra, mas não imagines que podes dançar nesse dia», foram estas as suas palavras! Só Deus sabe o pouco que essas coisas me interessam. Foi o senhor Buikov quem determinou tudo e eu não me atrevo a contradizê-lo. Tem um génio tão irascível! Que será de mim, meu Deus?
B. D.
28 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Eu, isto é, o joalheiro diz que... está bem. Quanto a mim, infelizmente apenas tenho a comunicar-lhe que estou doente e não me posso levantar. E logo agora, que há tanto que fazer e a minha amiga precisa do meu auxílio é que havia de adoecer! Não parece um absurdo?
Comunico-lhe também que, para cúmulo da infelicidade, sua excelência deu-lhe hoje para estar maldisposto; zangou-se com Emelia Ivanovitch e ralhou-lhe tanto que o pobre, no fim, mostrava-se extremamente sucumbido. Metia pena! Como vê, conto-lhe tudo.
Queria escrever mais, mas receio roubar-lhe tempo que pode dedicar a outras coisas. Sou um homem simples, um ignorante, sem cultura, que escreve ao correr da pena, conforme as ideias lhe vêm à cabeça, de modo que a minha boa amiga, por vezes, há de notar alguns disparates. Não sei o que quero dizer... Ah, já me lembro: precisamos agora tanto de conversar!
Seu
Makar Alexeievitch
28 de setembro
Querida Bárbara Alexeievna:
Encontrei hoje a Fédora e estive a conversar com ela, meu anjo. Contou-me que se realiza amanhã o seu casamento e que depois de amanhã segue viagem. O senhor Buikov já alugou os cavalos.
Muito bem, já lhe contei o incidente com sua excelência. Estive a verificar as contas de madame Chiffon; estão certas, mas levou muito caro. Mas porque é que o senhor Buikov se zanga consigo? Olhe, desejo-lhe muitas felicidades, querida! Que a sorte a proteja sempre é a minha maior alegria; é verdade, a sua felicidade será sempre para mim motivo de satisfação. Bem queria ir amanhã à igreja, mas não posso; é demasiado violento.
Mas como havemos de continuar a corresponder-nos? Insisto outra vez neste ponto. Quem se há de encarregar de fazer chegarem ao seu destino as nossas cartas?
Sim, a Bárbara tem sido muito amiga da Fédora. Tem-na tratado com toda a deferência e bondade. Tal procedimento é bem digno de si. Deus abençoa-nos sempre que praticamos uma boa ação. Nada fica sem recompensa e a virtude recebe sempre o divino galardão.
Querida, meu amor! Tinha ainda muitas coisas para lhe dizer; passaria minutos e horas seguidas a escrever-lhe; por minha vontade estaria sempre a escrever-lhe.
Ainda tenho aqui um livro seu — Contos de Bielkin — que me esqueci de lhe devolver. Mas peço-lhe, meu anjo, que mo deixe cá ficar; não mo tire, ofereça-mo! Não é que sinta gosto de tornar a ler esses contos; mas, como sabe, o, inverno está à porta, as noites são grandes e a tristeza invade-nos... Então, far-me-á muito bem dispor de um livro para ler.
Como sabe, vou mudar deste quarto para a casa onde você morou, onde a Fédora me alugará um compartimento. Jamais me separarei desta honrada e boa velhinha. Demais, trabalha tanto! Ontem percorri os seus antigos aposentos demoradamente. Ainda se vê lá o bastidor com o trabalho principiado. Deixámos tudo exatamente como estava. Demorei-me também a ver os seus bordados. Ainda por lá ficaram uns restos de coisas. Dei com uma carta minha com linhas enroladas nela. Na sua mesinha encontrei uma folha de carta em que a Bárbara escrevera: «Meu querido Makar Alexeievitch: Apresso-me...» E nada mais. Certamente entrara alguém no momento em que principiava a carta. No canto, separada por um biombo, está a sua caminha... Oh meu anjo querido!
Bem, com isto, adeus, adeus. Por amor de Deus, escreva-me alguma coisa em resposta à minha carta, o mais breve possível!
Makar Dievuchkin
30 de setembro
Meu querido amigo Makar Alexeievitch:
Está tudo acabado! A minha sorte está lançada e não sei o que o futuro me reserva, mas desde já me entrego nas mãos de Deus.
Partimos amanhã e venho, pela última vez, despedir-me de si, meu único, meu fiel, meu querido e bom amigo. É o meu único parente, a única pessoa que me valeu nas minhas dificuldades!
Não sofra por minha causa, seja feliz, lembre-se algumas vezes de mim e que Deus o abençoe! Pensarei muito em si e não o esquecerei nas minhas orações. Acabou-se a nossa convivência! São poucas as recordações agradáveis do passado que levo para a minha futura vida; por isso mesmo, mais querida e apreciada se me torna a sua lembrança e maior estima lhe consagra o meu coração. É o meu único amigo, a única pessoa que aqui me quis bem. Não sou nenhuma cega, pude avaliar bem o afeto que sempre me dedicou. Um simples sorriso meu era o bastante para o fazer feliz, e uma linha minha tinha o condão de o reconciliar com tudo. Agora tem de me esquecer. Que vida solitária o senhor vai levar! E quem estará ao seu lado para o confortar, meu bom, prezado e único amigo?
Ofereço-lhe o livro, o bastidor e a carta principiada. Ao ler essas linhas, continue, faça de conta que lê no meu pensamento tudo aquilo que teria lido ou escutado de mim com prazer, tudo o que lhe poderia haver escrito... e de futuro não poderei! Não esqueça a sua pobre Bárbara que lhe dedicou sempre uma afeição cordial e sincera. As suas cartas ficam todas guardadas na gaveta da cómoda da Fédora.
Escreve-me que está doente. Da melhor vontade o iria visitar, mas o senhor Buikov não me deixa sair hoje. Prometo escrever-lhe, meu bom amigo; mas só Deus sabe o que pode acontecer.
Por isso, é melhor despedirmo-nos para sempre, meu amiguinho, meu adorado, meu tesouro, como o senhor me chama a mim. Para sempre! Ai, que abraço tão apertado lhe daria agora! Adeus, querido amigo. Desejo-lhe muitas felicidades! Deus permita que goze sempre de boa saúde; nunca me esquecerei de rezar por si. Oh, se soubesse como estou triste, que horrível peso tenho na minha alma!
O senhor Buikov está-me a chamar.
Sua eternamente dedicada
B.
P. S. — A minha alma está tão cheia, tão cheia de lágrimas! Parecem querer afogar-me, despedaçar-me... Adeus, adeus, Makar Alexeievitch! Que tristeza, meu Deus!
Não esqueça, não esqueça nunca a sua pobre Bárbara.
30 de setembro
Querida Bárbara, meu anjo, meu amor:
Levam-na, lá se vai! Seria preferível que me arrancassem o coração do peito a arrebatarem-ma. Como é isso possível? Como pôde consentir em tal?
Acabo de receber a sua carta, que se vê salpicada de lágrimas em muitos sítios. Dar-se-á o caso de ir contra a vontade? Levá-la-ão, porventura, à força? Ou terá pena de mim? Se assim é... tem-me amor! Pode lá ser! Ora... Que será de si? O seu coração não poderá resistir; lá nessa terra, é tudo feio, horrível, frio... As saudades não a deixarão ter saúde, o sofrimento dará cabo de si. Morrerá nessa região distante, hão de sepultá-la na terra húmida e não terá quem a chore. O senhor Buikov passará a vida na caça.
Ah, minha querida, meu amor! Que terrível resolução tomou! Como pôde aceitar semelhante proposta? Que fez a Bárbara, que crime cometeu contra si própria? Cavar-lhe-ão a sepultura, querida; acabarão consigo, pura e simplesmente, meu anjo! É uma criança, terna e leve como uma pena! Mas onde estava eu? Dormia de olhos abertos, como um imbecil! Então não via uma criança a pensar loucuras, não sabia que à sua cabecinha apenas faltava juízo? Eu, simplesmente, o que devia ter feito era... Mas não: portei-me como um rematado idiota; não pensava nem via nada, como se tudo estivesse bem, como se o assunto me não interessasse. E ainda por cima andei a correr atrás das costureiras! Não, Bárbara; hei de curar-me. Até amanhã, talvez continue doente; mas depois ficarei bom. Aparecerei inopinadamente diante do seu carro e atirar-me-ei para debaixo das rodas! Não a deixarei partir! Com que direito procedem assim? Irei consigo. Correrei atrás da carruagem, se não me admitir dentro dela, correrei, correrei enquanto tiver forças, até que perca o alento e exale o último suspiro!
Mas sabe bem, meu amor, o que a espera nessa região distante para onde a levam? Se não sabe, eu vou dizer-lho, porque o sei! Espera-a a estepe, meu anjo, a estepe nua, plana e sem fim, tão nua como a palma da minha mão! Ali só há camponeses brutais, sem sentimentos, aldeões incultos e bêbedos. Nesta altura do ano, já lá se não encontra uma única árvore com folha, chove e está frio. Aí tem para onde a levam!
O senhor Buikov, claro, esse terá em que se entreter: a caça à lebre. Mas, e a Bárbara? Que vida será a sua? Contentar-se-á com ser proprietária rural? E isso, querida, fascina-a, está muito desejosa de ocupar tal posição?
Como é possível tal coisa, querida Bárbara? A quem hei de escrever agora? Sim! Pense e pergunte a si própria apenas isto: a quem há de agora aquele desgraçado escrever cartas? E a quem, de futuro, poderei chamar «minha querida»? A quem poderei dar este nome tão terno? A quem poderei dirigir essa doce invocação? Onde a tornarei a encontrar, meu anjo? Morrerei, Bárbara; morrerei com certeza! Não; o meu coração não poderá resistir a tão grande desgraça!
Amei-a como à luz do sol, quis-lhe como a uma verdadeira filha, tudo o que lhe diz respeito me interessava, minha pomba! a Bárbara era a razão da minha vida. Trabalhava e escrevia, e refletia depois sobre as impressões que confiava ao papel, e tudo isto, meu amor, porque a tinha perto de mim. Talvez você não o compreendesse, mas era assim, era realmente como lhe digo!
Preste-me atenção, querida; pense bem e veja se me deve abandonar... Não, meu amor, não o pode fazer e não o fará! Nem pensar em tal coisa! Chove e você anda tão adoentada! Vai apanhar, sem dúvida, um resfriamento! O carro em que viajam molhar-se-á, porque um carro não é uma casa... e a chuva há de atingi-la a si também. Logo à saída da cidade, uma roda do carro rebentará, se não se despedaçar todo ele! Os carros feitos em S. Petersburgo são muito maus! Eu conheço todos os construtores! São uns veículos muito bonitos, metem vista, mas quanto a segurança... Pode crer, juro-lhe: esses carritos não prestam para nada.
Lançar-me-ei aos pés do senhor Buikov e dir-lhe-ei tudo, tudo. E você, minha querida, há de também procurar convencê-lo. Contar-lhe-á tudo, discretamente, e convencê-lo-á. Dir-lhe-á simplesmente que fica cá, que o não pode acompanhar... Ah! Porque se não terá ele casado com a filha do tal comerciante de Moscovo? Porque não terá optado por isso? Seria melhor para todos e mais indicado para ele, creio! Assim você continuaria aqui, ao meu lado! De resto, que é para si esse senhor Buikov? Como pôde enamorar-se de si tão de repente e você ganhar-lhe tal afeição? Ter-lhe-á, porventura, transtornado a cabeça com esses trapos que lhe ofereceu, ou a razão será outra? Mas, afinal, para que servem esses farrapos? Não passam de um bocado de pano. Neste momento, trata-se de coisa de maior valia: de uma vida humana, meu amor; e esses trapos, comparados com ela, nada valem, não têm a mínima importância. Além disso, também lhe posso comprar dessas coisas; deixe-me receber o ordenado, e há de ver... Sei onde se vendem e tenho conhecimento na loja. Apenas precisa, como digo, de esperar que receba o ordenado, meu anjo, querida Bárbara.
Ah, meu Deus, meu Deus! Então está deveras resolvida a acompanhar o senhor Buikov para a estepe, para sempre? Ai, querida!... Não, tem de me voltar a escrever, nem que sejam umas letras apenas, a contar-me tudo. E logo que chegue ao destino, escreva-me de lá! De contrário, meu amor, seria esta a última carta, e isso não é possível, não me conformo com a ideia de que seja esta a última!
Como poderia interromper-se a nossa correspondência assim tão de repente? A última, a última! Mas não; ainda lhe hei de escrever muitas cartas e você a mim. Pois se só agora é que começo a ter estilo... Ah, querida Bárbara, que digo eu de estilo? Escrevo-lhe ao correr da pena, sem saber o que escrevo — porque não sei mesmo! —, e não leio outra vez os meus escritos, nem os emendo, nem nada. Só penso em escrever-lhe, escrever-lhe cada vez mais!... Meu cordeirinho, meu amor, minha querida Bárbara!
Fiódor Dostoiévski
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