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GERMINAL - P.2 / Emili Zola
GERMINAL - P.2 / Emili Zola

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GERMINAL

Parte 2

 

Naquela segunda-feira, o Hennebeau haviam convidado para almoçar os Grégoire e sua filha Cécile. Tinham planejado uma excursão: ao levantarem-se da mesa, Paul Négrel devia ir mostrar às senhoras uma galeria, a Saint-Thomas, que acabava de ser reaberta com todos os requintes. Mas o passeio não passaria de um amável pretexto; essa excursão fora inventada pela Sra. Hennebeau, para apressar o casamento de Cécile com Paul.

Mas, subitamente, nessa mesma segunda-feira, às quatro horas da manhã, rebentara a greve. Quando, no dia primeiro de dezembro, a companhia aplicou seu novo sistema de salário, os mineiros permaneceram calmos. No fim da quinzena, no dia do pagamento, nenhum deles reclamou. Todos os empregados, desde o diretor até o último dos vigias, acreditavam que a tarifa fora aceita. E agora, desde a madrugada, era grande a surpresa com aquela declaração de guerra, de uma tática e de uma uniformidade que indicavam claramente uma direção enérgica.Às cinco horas Dansaert foi acordar o Sr. Hennebeau para preveni-lo de que nenhum homem descera à Voreux. O conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarente, que ele atravessara, dormia, dormia profundamente, com as portas e janelas fechadas. E o diretor, assim que saltou da cama, os olhos ainda pesados de sono, não teve mais descanso: de quinze em quinze minutos chegavam mensageiros; como granizo, as mensagens caíram sobre sua mesa. A princípio acreditou que a revolta se limitaria à Voreux, mas as notícias eram cada vez mais graves: era Mirou, era Crèvecoeur, era Madeleine, onde só os cavalariços tinham aparecido; eram a Victoire e a Feutry-Cantel, as duas minas mais disciplinadas, onde a descida se achava reduzida a um terço; só a Saint-Thomas tinha o seu pessoal completo e parecia estar fora do movimento. Até as nove horas ditou mensagens e telegrafou para toda parte, ao prefeito de Lille, aos administradores da companhia, preveniu as autoridades, pediu ordens. Por outro lado, enviou Négrel para as minas mais próximas, a fim de fazer uma inspeção e obter informações precisas.

De repente, o Sr. Hennebeau lembrou-se do almoço, e ia enviar o cocheiro para prevenir os Grégoire de que a reunião estava adiada quando uma hesitação, uma quebra

de vontade o reteve, a ele, que, em algumas frases rápidas, preparara militarmente seu campo de batalha. Subiu aos aposentos da esposa, que estava sendo penteada por uma camareira, no seu toucador.

— Ah, estão em greve! — disse ela tranqüilamente, ao ser consultada pelo marido. — Pois muito bem; e o que é que vamos fazer? Não vamos deixar de comer por isso, não é?

E, opiniática, ficou nisso. Por mais que lhe dissesse que o almoço seria um desastre, que a visita à mina de Saint-Thomas não poderia ser realizada, ela teve uma resposta para tudo: por que perder uma refeição que já estava preparada? Quanto a visitar a mina, podia-se renunciar a isso, se o passeio fosse realmente uma imprudência.

— De resto — continuou ela assim que a camareira saiu —, você sabe muito bem por que insisto em receber essa boa gente. Este casamento deveria interessá-lo muito mais do que as bobagens dos seus operários. Enfim, já disse que quero; por favor, não me contrarie.

Ele encarou-a com um ligeiro estremecimento e seu rosto duro e fechado de homem de disciplina exprimiu a dor secreta de um coração amargurado. Ela permanecera de ombros nus, já bem madura, mas esplêndida e desejável ainda, com a sua estatura de Ceres dourada pelo outono.

Por um instante, ele foi possuído pelo brutal desejo de tomá-la em seus braços, de afundar sua cabeça entre aqueles seios nus, naquela peça tépida de um luxo íntimo de mulher sensual, onde pairava um perfume irritante de almíscar. Mas recuou; havia dez anos que o casal dormia em quartos separados.

— Está bem — disse ele, deixando o quarto. — Deixemos as coisas seguirem seu curso.

O Sr. Hennebeau nascera nas Ardennes. Tivera um começo difícil de rapaz pobre, jogado como órfão nas ruas de Paris. Após ter seguido com muita dificuldade os cursos da Escola de Minas partira, aos vinte e quatro anos, para a Grand-Combe, com o posto de engenheiro do poço Santa Bárbara. Três anos mais tarde era engenheiro de divisão em Pas-de-Calais, nas minas de Marles. Foi ali que casou, desposando, por um desses golpes de sorte, que são a regra geral para os altos funcionários de minas, a filha de um rico proprietário de uma fábrica de fiação de Arras. Durante quinze anos o casal viveu na pequena cidade provinciana, sem que um acontecimento, nem mesmo o nascimento de um filho, rompesse a monotonia de sua existência. Uma crescente irritação distanciava a mulher, que fora educada no respeito pelo dinheiro, cada vez mais desdenhosa por

aquele marido que ganhava tão duramente um salário de pobre e do qual não tirava nenhuma das satisfações vaidosas com que sonhara no colégio. Ele, de uma honestidade muito estrita, não especulava, mantinha-se em seu posto, como um bom soldado. A divergência fora-se tornando cada vez maior, agravando-se por um desses singulares mal-entendidos da carne, que tornam frígidos mesmo os mais ardentes. Ele adorava sua mulher, ela era de uma sensualidade de loura gulosa. Mas desde então já dormiam separados, incômodos na presença um do outro, ferindo-se com facilidade. A partir dessa época a mulher arranjou um amante, fato que ele ignorou. Por fim, deixou Pas-de-Calais para ocupar em Paris um posto de administração, pensando que ela lhe ficaria grata por isso. No entanto, Paris acabou de separá-los, essa Paris com a qual ela sonhava desde a sua primeira boneca e onde, em oito dias, perdeu todo o provincianismo, tornando-se elegante, lançando-se em todas as loucuras luxuosas da época. Os dez anos que ali passou foram preenchidos por uma grande paixão, uma ligação pública com um homem que, ao abandoná-la, quase a matou. Dessa vez o marido não pôde continuar ignorando, e resignou-se, após ter feito cenas terríveis, desarmado ante a tranqüila inconsciência daquela mulher que buscava a felicidade e colhia-a onde quer que a encontrasse. Fora logo depois do rompimento, quando a vira doente de desgosto, que aceitara a direção das minas de Montsou, esperando ainda pô-la no bom caminho, no deserto das regiões carboníferas.

Os Hennebeau, desde que viviam em Montsou, tinham voltado para o tédio irritado dos primeiros tempos do seu casamento. No princípio, ela pareceu aliviada em meio àquela grande calma, saboreando uma espécie de relaxamento na monotonia chata da imensa planície. Passou a viver retirada, afetando ser uma mulher acabada, com o coração morto, tão distante do mundo que nem se importava de engordar. Depois, sob essa indiferença, um último arranco febril a possuiu, um desejo de viver mais ainda, desejo que ela conseguiu enganar durante seis meses, organizando e mobiliando a seu gosto o palacete da direção. Achava-o horrível e por isso encheu-o de tapeçarias, de bibelôs, de um grande luxo artístico do qual se falou até em Lille. Mas agora essa região a exasperava, não podia mais ver aqueles campos enfadonhos que se estendiam até o infinito, aquelas estradas eternamente negras, sem uma árvore, e onde formigava uma população horrenda que só lhe dava nojo e medo. Começaram então os lamentos de exilada; acusava o marido de a ter sacrificado ao ordenado de quarenta mil francos que recebia, miséria que mal dava para prover a casa. Na sua opinião, ele devia ter imitado os outros, exigido uma cota, obtido ações, chegado a alguma coisa, enfim. E insistia, com a crueldade da herdeira que trouxera a fortuna. Ele, sempre correto, refugiando-se na calma falsa de homem de administração, vivia devastado de desejo por essa mulher, um desses desejos tardios e violentos que aumentam com a idade. Nunca a possuíra como amante, e vivia perseguido pela eterna fantasia de tê-la uma vez como ela se dava a outro. Todas as manhãs sonhava conquistá-la à noite; depois, quando ela o fitava com seus olhos altaneiros, quando sentia que tudo nela era uma recusa, evitava até roçá-la com a mão. Era um sofrimento sem cura possível, escondido sob a carapaça da sua atitude, o sofrimento de uma natureza afável agonizando em silêncio por não ter encontrado a felicidade conjugai. Ao término de seis meses, tendo mobiliado completamente o palacete e sem mais nada para ocupar seus dias, ela deixou-se escorregar novamente para a languidez do tédio, como vítima que o exílio mataria, declarando-se feliz se morresse. Justamente nessa época, Paul Négrel surgiu em Montsou. Sua mãe, viúva de um capitão provençal, que vivia em Avinhão com um modesto rendimento, tivera de se alimentar a pão e água para conseguir sustentá-lo na Escola Politécnica, de onde, aliás, ele saíra com más notas. Seu tio, o Sr. Hennebeau, aconselhara-o a pedir demissão do emprego anterior e oferecera-lhe um posto de engenheiro na Voreux. Desde então, tratado como filho da casa, ali tinha seu quarto, ali comia e vivia, o que lhe deixava a metade do seu salário de três mil francos livre para enviar à mãe. O Sr. Hennebeau procurava esconder á proteção que dispensava ao sobrinho, falando das dificuldades pelas quais passava um jovem para montar um lar num dos pequenos chalés reservados aos engenheiros das minas. Imediatamente, a Sra. Hennebeau começou a representar o papel da tia bondosa, tuteando o sobrinho, velando pelo seu bem-estar. Sobretudo nos primeiros meses mostrou-se muito maternal, cheia de conselhos a propósito das menores coisas. Mas, sendo mulher, escorregou para o terreno das confidências. O rapaz, jovem e prático, de uma inteligência inescrupulosa, professando sobre o amor teorias de filósofo, divertia-a pela vivacidade do seu pessimismo, que aguçava suas feições finas, de nariz pontudo. Naturalmente uma noite ele se encontrou nos braços dela, e ela pareceu entregar-se por bondade, não deixando de lhe dizer que já não tinha mais coração e desejava apenas ser sua amiga. E, realmente, não teve ciúmes, brincava até com ele a respeito das operadoras de vagonetes que o rapaz afirmava serem abomináveis, irritava-se mesmo por ele não ter um repertório de devassidões para lhe contar. Depois, a idéia de fazê-lo casar apaixonou-a, sonhou sacrificar-se e dá-lo, ela mesma, a uma moça rica. As suas relações, no entanto, continuavam, eram um brinquedo para passar tempo, em que ela punha suas derradeiras ternuras de mulher ociosa e acabada.

Decorreram dois anos. Uma noite, o Sr. Hennebeau, ouvindo pés descalços passando à sua porta, teve uma suspeita. Essa nova aventura revoltava-o; na sua casa, debaixo do seu teto, entre esta mãe e este filho! Mas, no dia seguinte, a mulher lhe falou precisamente da escolha que fizera para o sobrinho: Cécile Grégoire. Entregava-se a esse casamento com tal fervor, que ele envergonhou-se da monstruosa suspeita que tivera. Ao rapaz, continuou a dedicar algum reconhecimento, pois fizera menos triste a casa desde a sua chegada.

Ao descer dos aposentos da esposa, o Sr. Hennebeau encontrou no vestíbulo o sobrinho Paul, que voltava da inspeção. Este mostrava-se bastante divertido com toda aquela história de greve.

— Então? — perguntou o tio.

— Dei um passeio pelos conjuntos habitacionais dos mineiros. Parece tudo muito calmo. Creio que vão enviar delegados para discutirem com a direção.

Nesse momento, a voz da Sra. Hennebeau soou no primeiro andar.

— És tu, Paul? Sobe, quero saber as novidades. Uma gente que vive tão feliz querendo fazer-se de engraçada, bancando a valente...

O diretor teve de renunciar a saber mais, já que sua mulher lhe tomava o mensageiro. Voltou e sentou-se no escritório, onde se amontoava uma nova pilha de mensagens.

Às onze horas, quando os Grégoire chegaram, ficaram surpresos ao serem postos para dentro às pressas por Hippolyte, o camareiro, que fora colocado de sentinela à porta de entrada e lançava olhares inquietos para os dois extremos da estrada. As cortinas do salão estavam fechadas, e eles foram levados diretamente para o gabinete de trabalho, onde o Sr. Hennebeau desculpou-se de recebê-los assim, mas o salão dava para a rua e podia parecer que estavam provocando.

— Mas como? Ainda não sabem? — continuou de, vendo a surpresa estampada nos rostos dos visitantes.

O Sr. Grégoire, quando soube que a greve tinha enfim sido declarada, deu de ombros com a sua calma habitual. Ora! Não havia de ser nada, essa gente era boa... Com um movimento de queixo a Sra. Grégoire aprovou a confiança do marido na secular resignação dos mineiros, enquanto Cécile, sentindo-se muito alegre naquele dia, e bem de saúde, trajando .um vestido de cor pastel, sorria à palavra greve, que lhe fazia lembrar visitas e distribuição de esmolas pelos conjuntos habitacionais mineiros.

Mas a Sra. Hennebeau, seguida de Négrel, surgiu toda vestida de seda negra.

— Ora, ora, que aborrecimento! — exclamou ela da porta. — Então esses homens não podiam ter esperado? Agora Paul se recusa a levar-nos para a visita a Saint-Thomas.

— Pois permaneceremos aqui — disse galantemente o Sr. Grégoire. — Será igualmente um prazer.

Paul limitara-se a saudar Cécile e sua mãe. Irritada com essa mostra de pouco entusiasmo, sua tia ordenou-lhe, com um sinal, que se sentasse ao lado da moça. Depois, ouvindo-os rir juntos, envolveu-os num olhar maternal.

Nesse ínterim, o Sr. Hennebeau terminou de ler as mensagens e redigiu algumas respostas. E a conversa prosseguia; sua mulher explicava que não se ocupara daquele gabinete de trabalho. Realmente, a peça conservara seu forro de parede vermelho desbotado, seus pesados móveis de mogno, suas estantes estragadas pelo uso.

Passados quarenta e cinco minutos, iam sentar-se à mesa quando o camareiro anunciou o Sr. Deneulin. Este, muito excitado, entrou e inclinou-se diante da Sra. Hennebeau. . 

— Ah! vocês estão aqui? — disse ele, percebendo os Grégoire E dirigiu-se ao diretor sem mais delongas:

— Como vai a coisa? O meu engenheiro acaba de me dizer.. Na minha mina todos os homens desceram esta manhã, mas assim mesmo não estou tranqüilo, a greve pode alastrar-se. Já resolveram alguma coisa?

Viera a cavalo e a sua inquietação ficava patente no tom de voz quase gritado e nos gestos bruscos que o faziam parecer um oficial da cavalaria reformado.

O Sr. Hennebeau começou a informá-lo sobre a situação exata, quando Hippolyte abriu a porta da sala de jantar. Interrompeu-se para dizer:

— Almoce conosco. À sobremesa, acabo de lhe contar.

— Pois bem, com muito prazer — respondeu Deneulin, tão arrebatado pelos acontecimentos que aceitou sem mais cerimônias.

Mas em seguida teve consciência de sua indelicadeza e voltou-se para a dona da casa, pedindo desculpas. Esta respondeu de maneira encantadora, e, depois de ter mandado pôr um sétimo talher, instalou seus convivas: a Sra. Grégoire e Cécile de um e outro lado do marido, o Sr. Grégoire e Deneulin à sua direita e à sua esquerda, respectivamente, e Paul, que ela colocou entre a moça e o pai desta. Ao hors-d'oeuvre', ela disse com um sorriso:

— Sei que me desculparão, desejava abrir este almoço com ostras... Como sabem, às segundas-feiras um carregamento delas chega a Marchiennes, e eu tinha planejado mandar a cozinheira até lá com o carro, mas ela teve medo de ser apedrejada...

Todos a interromperam com risadas. Achavam a história muito engraçada.

— Psiu! — fez o Sr. Hennebeau, contrariado, olhando para as janelas de onde via a estrada. — Os outros não precisam ficar sabendo que temos convidados esta manhã.

— Pois eis uma rodela de salsichão que eles não terão — gracejou o Sr. Grégoire.

As risadas recomeçaram, mas mais discretas. Os convivas sentiam-se à vontade nessa sala forrada de tapeçarias flamengas, mobiliada com velhos baús de carvalho. Peças de prata brilhavam por trás dos vidros dos armários e havia ainda um grande floreiro suspenso, de cobre vermelho, cuja forma arredondada e polida refletia uma palmeira e uma aspidistra, verdejando em vasos de maiólica. Lá fora estava um dia de dezembro glacial, devido ao cortante vento do nordeste, mas nem um sopro dele entrava na peça aquecida como uma estufa e onde flutuava o fino aroma de um ananás em fatias, numa compoteira de cristal.

—  E se fechassem as cortinas? — propôs Négrel, que se divertia com a idéia de assustar os Grégoire.

A camareira, que ajudava o criado a servir a mesa, pensou que era uma ordem e foi puxar uma das cortinas. Houve, desde então, intermináveis gracejos: não pousaram mais um copo ou um garfo sem tomar precauções, cada prato foi saudado como se fosse um salvado de um saque numa cidade conquistada. Mas por trás dessa alegria forçada havia um medo surdo, traído apenas por olhares involuntários à estrada, como se um bando de famintos estivesse espiando para a mesa, através das janelas.

Depois dos ovos trufados foram servidas trutas de rio.

A conversação era agora sobre a crise, industrial que se agravava havia dezoito meses.

— Era fatal — disse Deneulin. — A prosperidade dos últimos anos tinha que nos levar a isto... Pensem um pouco nos enormes capitais imobilizados em vias férreas, em portos e canais, em todo esse dinheiro enterrado nas mais loucas especulações. Só aqui, nesta região, foram instaladas refinarias de açúcar como se o departamento tivesse de dar três colheitas de beterraba. E agora aí está o resultado! O dinheiro desapareceu, tem-se que esperar receber os juros dos milhões empatados. Daí o estrangulamento mortal da economia e a estagnação final dos negócios.

O Sr. Hennebeau combateu essa teoria, mas conveio que os anos felizes tinham estragado o operário.

— Quando penso — exclamou ele — que esses latagões das nossas minas podiam fazer até seis francos diários, o dobro do que ganham agora... E viviam bem, adquiriram hábitos de luxo... Hoje, naturalmente, parece-lhes duro ter de voltar à frugalidade antiga.

— Sr. Grégoire — interrompeu a dona da casa —, faça o favor, sirva-se de mais um pouco de truta. Estão boas, não acha?

O diretor continuou:

— Tudo isso será culpa nossa? Nós também somos atingidos, e bem cruelmente... Desde que as fábricas começaram a fechar, uma a uma, tivemos uma trabalheira dos diabos para dar saída aos nossos estoques. E, diante da crescente redução de pedidos, vemo-nos forçados a baixar o preço básico. E é isso que os operários não querem compreender.

Houve um silêncio. O criado apresentou perdizes assadas, enquanto a camareira começava a servir vinho de Chambertin aos convivas.

— Houve fome na índia — continuou Deneulin a meia voz, como se estivesse falando consigo mesmo. — A América, suspendendo seus pedidos de ferro e de fundição, deu um rude golpe nos nossos altos-fornos. Tudo se encadeia, uma sacudidela longínqua é suficiente para abalar o mundo... E dizer que o império estava tão orgulhoso dessa febre industrial!

Atirou-se à sua asa de perdiz. Depois, elevando a voz:

— O pior é que, para baixar o preço básico, devia-se, logicamente, produzir mais; de outra forma, a baixa só atinge os salários, e o operário tem razão de dizer que é ele que paga com a crise.

Esta confissão, resultado da sua franqueza, foi motivo de discussão. As senhoras começaram a entediar-se. Por outro lado, cada um se ocupava do seu prato, no entusiasmo do primeiro apetite. O criado entrou e ia dizer alguma coisa, mas hesitou.

— Que é? — perguntou o Sr. Hennebeau. — Se são mensagens, pode entregar-me. Estou esperando algumas respostas.

— Não, senhor. É o Sr. Dansaert que está no vestíbulo, mas ele não quer incomodar.

O diretor desculpou-se e mandou entrar o capataz. Este ficou em pé, a poucos passos da mesa. Todos se voltaram para olhá-lo, enorme, sem fôlego, cheio de

novidades. Os conjuntos habitacionais continuavam tranqüilos, mas já estava decidido que viria uma delegação. Talvez já estivesse a caminho...

— Está bem. Obrigado — disse o Sr. Hennebeau, — Preste atenção: quero um relatório de manhã e outro à noite.

Assim que Dansaert partiu, voltaram aos gracejos; atiraram-se à salada russa declarando que era preciso não perder um segundo se queriam dar cabo dela. Desse momento em diante a alegria recrudesceu. Tendo Négrel pedido pão à camareira, esta lhe respondeu com um "sim, senhor" tão baixo e tão aterrorizado que parecia ter atrás de si uma turba pronta para o massacre e a violação. A dona da casa disse-lhe então, com muita graça:

— Você pode falar, eles ainda não chegaram.

O diretor, a quem acabavam de entregar um maço de cartas e telegramas, quis ler alto uma das cartas. Era de Pierron. Dizia ele, em termos respeitosos, que se via obrigado a entrar em greve com os camaradas para não ser maltratado; e acrescentava que nem mesmo pudera recusar-se a fazer parte da delegação, mas estava em desacordo com essa gestão.

—  Aí está a famosa liberdade de trabalho! — exclamou o Sr. Hennebeau.

Voltaram então à greve e pediram sua opinião.

—  Bem... — respondeu ele. — Já tivemos outras, não é mesmo?

Será uma semana, no máximo uma quinzena de vagabundagem, como da última vez. Vão percorrer as tabernas e depois, quando a fome apertar, voltarão ao trabalho.

Deneulin balançou a cabeça.

— Eu não estou tão tranqüilo... Desta vez eles parecem mais bem organizados. Têm até uma caixa de previdência, não é isso?

— Sim, com apenas uns três mil francos... Que poderão fazer com uma ninharia dessas? Desconfio que o chefe deles é um tal de Etienne Lantier. É bom operário, não gostaria de ter de despedi-lo como fiz da vez passada com o famoso Rasseneur, que continua a empestar a Voreux com suas idéias e sua cerveja... Mas tudo isso não tem importância, dentro de oito dias a metade dos mineiros voltará ao trabalho, e dentro de quinze os dez mil estarão novamente no fundo da mina.

Estava convencido do que dizia. Sua única inquietação vinha do temor de cair em desgraça se a administração lhe imputasse a responsabilidade pela greve. Há já algum tempo sentia que não era visto com bons olhos. Por isso, abandonando a colherada de salada russa de que se servira, relia os telegramas de Paris, respostas em que ele

procurava penetrar o sentido de cada palavra. Os outros compreendiam sua atitude, o almoço transformara-se em refeição de campanha, comida num campo de batalha, antes dos primeiros tiros.

A partir desse momentos as senhoras tomaram parte na conversa. A Sra. Grégoire apiedava-se daquela pobre gente que ia passar fome; Cécile já planejava a distribuição de pão e carne aos necessitados.

A Sra. Hennebeau, no entanto, espantava-se ouvindo falar da miséria dos mineiros de Montsou. Então eles não eram felizes? Gente que tinha casa, carvão e cuidados médicos, tudo à custa da companhia! Na sua indiferença por aquele rebanho, ela só sabia sobre ele a lição aprendida, com que maravilhava os parisienses de visita; e, tendo acabado por acreditar no que recitava, indignava-se com a ingratidão daquela gente.

Durante todo esse tempo, Négrel continuara assustando o Sr. Grégoire. Cécile não lhe desagradava e chegaria mesmo a casar com ela, para ser agradável à sua tia. Mas não estava apaixonado, isso não; era um rapaz experiente, já calejado, como ele dizia. Proclamava-se republicano, o que não o impedia de tratar seus operários com extremo rigor, e de fazer brincadeiras a respeito deles com as senhoras.

— Eu também não tenho o otimismo do meu tio — disse ele. — Receio graves desordens... Assim, Sr. Grégoire, aconselho-o a fechar a Piolaine a sete chaves. Podem saqueá-la...

Mas justamente o Sr. Grégoire, sem abandonar o sorriso que iluminava seu rosto bondoso, ia mais longe que a esposa nos sentimentos paternais pelos mineiros.

— Saquear a mim! — exclamou ele estupefato. — E por quê?

— O senhor não é acionista de Montsou? O senhor não faz nada, vive do trabalho dos outros... Enfim, o senhor é o infame capitalista, e isso basta. Esteja certo, se a revolução triunfasse, ela o forçaria a devolver sua fortuna, como dinheiro roubado...

Isso bastou para que o velho perdesse a serenidade, a tranqüilidade infantil em que vivia. Balbuciou:

— Dinheiro roubado, a minha fortuna! Então o meu bisavô não ganhou com o suor do seu rosto a soma que ele mesmo colocou na mina? Então não corremos todos juntos os riscos da empresa? Acaso estou eu fazendo uso indébito das minhas rendas?

A Sra. Hennebeau, alarmada ao ver mãe e filha pálidas de medo, apressou-se em intervir, dizendo:

— Paul está brincando, meu bom amigo.

Mas o Sr. Grégoire estava fora de si. Tendo-lhe o criado oferecido lagostins, tirou três sem saber mais o que fazia, e pôs-se a quebrar as patas com os dentes.

— Não digo que não, há acionistas que abusam. Contaram-me, por exemplo, que certos ministros receberam dinheiro de Montsou por baixo da mesa, em retribuição por serviços prestados à companhia. É o caso desse grande senhor, de quem não direi o nome, um duque, o maior acionista que temos, cuja vida é um escândalo de prodigalidade, milhões atirados à rua com mulheres, em estroinice, em luxo inútil. Nós não, vivemos dignamente, como boa gente que somos! Não especulamos, contentamo-nos numa vida austera com o que temos, repartindo sempre com os pobres... Ora, vamos! Seria preciso que os seus operários fossem uns grandes bandidos para nos roubar sequer um alfinete!

O próprio Négrel teve de acalmá-lo, apesar de estar se divertindo com a cólera do velho. Os lagostins continuavam a passar, ouviam-se os estalidos das cascas enquanto a conversa girava para o terreno da política. Apesar de tudo, ainda muito alterado, o Sr. Grégoire proclamava-se liberal e sentia falta de Luís Filipe. Deneulin era por um governo forte, dizia que o imperador escorregava pelo declive das concessões perigosas.

— Lembrem-se de 89! — disse ele. — Foi a nobreza que tornou possível a Revolução, com sua cumplicidade, com o seu gosto pelas novidades filosóficas... Pois bem, hoje, a burguesia faz o mesmo jogo imbecil, com seu furor de liberalismo, a sua ânsia destruidora e as bajulações ao povo... Sim, sim, são vocês que estão afiando os dentes do monstro para que ele nos devore. E fiquem tranqüilos, ele vai devorar-nos!

As senhoras fizeram-no calar e tentaram mudar de conversa perguntando-lhe pelas filhas. Lucie estava em Marchiennes, cantando com uma amiga; Jeanne pintava um quadro do rosto de um velho mendigo. Disse tudo isso com ar absorto, sem tirar os olhos do diretor que lia sua correspondência, esquecido dos seus convidados. Por trás daquelas folhas finas ele procurava captar Paris, as ordens dos administradores, que decidiriam a respeito da greve. Mas Deneulin não pôde deixar de voltar ao tema que o preocupava.

— Então, que tenciona fazer? — perguntou ele repentinamente. Hennebeau estremeceu e desconversou com uma frase vaga:

— Ainda vamos ver.

— Claro, vocês podem esperar, têm infra-estrutura — pôs-se a pensar alto Deneulin. — Mas eu estou perdido se a greve atingir Vandame. Gastei tudo reinstalando Jean-Bart e agora só sobreviverei com essa galeria única se produzir sem parar. Como vêem, não posso ficar sentado esperando...

Essa confissão involuntária pareceu impressionar o Sr. Hennebeau. Enquanto escutava, um plano foi-se formando em sua cabeça: no caso de a greve trazer maus resultados, por que não a utilizar, deixando as coisas correrem até a ruína do vizinho, e depois comprar sua concessão por um preço baixo? Este era o método mais certo para voltar às boas graças dos administradores, que, havia muitos anos, sonhavam com a posse de Vandame.

— Se a Jean-Bart o preocupa dessa maneira — disse ele rindo —, por que não a passa adiante?

Mas Deneulin, que já se arrependia da involuntária confissão, exclamou:

— Isso nunca!

Todos riram da sua violência, e a greve foi finalmente esquecida no momento em que a sobremesa surgiu. A compota de maçãs coberta de merengue foi muito elogiada. Em seguida as senhoras discutiram uma receita, a propósito do ananás, que foi declarado igualmente delicioso. As frutas, uvas e pêras, foram o fecho de ouro daquele opulento almoço, que resultou num cansaço feliz. Todos falavam a um tempo, alegres e comovidos, enquanto o empregado servia vinho do Reno em substituição ao champanha, que foi julgado comum.

E o casamento de Paul e Cécile deu, por certo, um sério passo no ambiente simpático da sobremesa. Sua tia lançara-lhe olhares tão expressivos, que o rapaz mostrou-se amável, reconquistando com seu modo carinhoso os Grégoire apavorados com as suas histórias de pilhagem. Por um instante, o Sr. Hennebeau, ante o perfeito entendimento reinante entre sua mulher e sobrinho, sentiu ressurgir a abominável suspeita, como se tivesse surpreendido um contato carnal nos olhares trocados pelos dois. Mas o plano do casamento desenvolvido ali, diante dos seus olhos, tranqüilizou-o mais uma vez.

Hippolyte servia o café, quando a camareira entrou em pânico.

— Sr. Hennebeau, Sr. Hennebeau, eles chegaram!

Eram os delegados. Portas bateram, ouviu-se passar um sopro de pavor através dos aposentos circundantes.

— Faça-os entrar para o salão — disse o diretor.

Em volta da mesa, os convivas olharam-se, inquietos e vacilantes. Reinou silêncio por um momento. Em seguida, quiseram voltar às brincadeiras: fingiram colocar o resto do açúcar nos bolsos, falaram em esconder os talheres. Mas o diretor permanecia

pensativo e os risos pararam, começaram a cochichar enquanto os passos pesados dos delegados entrando no salão ao lado esmagavam o tapete.

Baixando a voz, a Sra. Hennebeau disse ao marido:

— Você vai primeiro beber o seu café, não vai?

— Claro! — respondeu o homem. — Eles que esperem...

 Estava nervoso, queria ouvir todos os ruídos, fingindo-se ocupado apenas com sua xícara.

Paul e Cécile levantaram-se; ele fez a moça olhar pelo buraco da fechadura e ambos começaram a sufocar risadas e a falar em voz baixa.

—  Pode vê-los?

—  Sim, vejo um gordo e dois menores atrás.

—  E são monstruosos, não é isso?

—  Não, não, são muito simpáticos...

Repentinamente o Sr. Hennebeau levantou-se, dizendo que o café estava muito quente e que depois o beberia. Ao sair pôs um dedo sobre os lábios, recomendando prudência. Todos tinham tornado a sentar-se, e ficaram à mesa, mudos, sem ousarem mover-se, de ouvido à escuta, procurando captar o que se dizia no salão, cheios de mal-estar com aquelas vozes grossas.

 

Numa reunião realizada na véspera em casa de Rasseneur, Etienne e mais alguns camaradas haviam escolhido os delegados que deveriam ir no dia seguinte falar com a direção. Quando à noite a mulher de Maheu soube que seu homem fora um dos convocados para a missão, ficou desesperada e perguntou-lhe se ele queria que os pusessem na rua. O próprio Maheu aceitara não sem relutância. Ambos, no momento de agir, apesar da injustiça da sua miséria, caíam na resignação característica daquele povo, apavorados com o futuro, preferindo baixar mais uma vez a cabeça. Para os problemas diários, ele, de hábito, entregava-se ao julgamento da mulher, que era boa conselheira. Desta vez, no entanto, acabou por zangar-se, tanto mais que participava secretamente dos receios dela.

— Deixa-me em paz! — disse ele, deitando-se e dando-lhe as costas. — Queres que eu abandone meus camaradas... Estou cumprindo um dever.

Ela deitou-se por sua vez; nenhum falava; após um longo silêncio a mulher respondeu:

— Tens razão, vai... Mas, desta vez, estamos perdidos, meu velho.

Comeram ao meio-dia em ponto; o encontro era à uma hora, no Avantage, de onde, em seguida, iriam à casa do Sr. Hennebeau. Almoçaram batatas; como havia apenas uma migalha de manteiga, ninguém a tocou; ficaria para ser comida com pão, à noite.

— Sabes que contamos contigo para falar — disse de repente Etienne a Maheu.

Este, apanhado de surpresa, não pôde responder, a voz embargada pela emoção:

— Ah, não! Isso já é demais! — saltou a mulher. — Não me importa que vá, mas proíbo-o de falar. Essa é boa! Por que há de ser ele e não outro?

Etienne, então, começou a explicar seu projeto com fogosa eloqüência. Maheu era o melhor operário da mina, o mais querido, o mais respeitado, o exemplo do bom senso. Pela sua boca, as reivindicações dos mineiros teriam um peso decisivo. No começo, o escolhido para falar era ele, Etienne, mas chegara a Montsou havia muito pouco tempo. Um natural da região seria escutado com mais boa vontade. Enfim, os camaradas confiavam seus interesses ao mais digno, não podia recusar, seria uma covardia.

A mulher fez um gesto impotente e desesperado.

— Pois vai, vai, homem, sacrifica-te pelos outros. Que mais posso dizer?!

— Mas o que é que eu vou falar? — balbuciou Maheu. — Vão sair só asneiras...

Etienne, satisfeito por tê-lo convencido, bateu-lhe no ombro.

— Dirás aquilo que sentes, e vais sair-te muito bem.

Com a boca cheia, o velho Boa-Morte, cujas pernas estavam desinchando, escutava balançando a cabeça. Fez-se silêncio. Quando comiam batatas, as crianças se engasgavam e ficavam muito comportadas. Depois de ter engolido, o velho murmurou lentamente:

— Podes dizer o que quiseres, não vai adiantar nada, será como se tivesses ficado calado. Ah, eu conheço muito bem essas coisas! Há quarenta anos, éramos jogados para fora do edifício da direção pelas baionetas caladas. Hoje talvez eles recebam vocês, mas permanecerão tão impassíveis como essa parede. Diabo! quem tem dinheiro não se importa com os outros.

Outra vez o silêncio. Maheu e Etienne levantaram-se, deixando o resto da família muito abatida diante dos pratos vazios. Ao sair, juntaram-se a Pierron e Levaque, e os quatro se dirigiram para a taberna de Rasseneur, onde os delegados dos conjuntos habitacionais operários vizinhos chegavam em pequenos grupos. Quando os vinte membros da delegação estavam presentes, decidiu-se quais condições seriam opostas às da companhia; em seguida partiram para Montsou.

O cortante vento do nordeste varria a estrada. Davam duas horas quando chegaram.

O criado que os atendeu mandou que esperassem, fechando novamente a porta; voltou em seguida, introduzindo-os no salão e abrindo as cortinas. Uma luz pálida, filtrada pelos rendões, clareou o ambiente. Os mineiros, tendo ficado sozinhos, não ousaram sentar, embaraçados, todos muito limpos, vestidos convenientemente, com barbas feitas pela manhã, com cabelos e bigodes amarelos. Rolavam os bonés entre os dedos, lançavam olhares de esguelha para o mobiliário, que era uma confusão de todos os estilos, que o gosto pela antigalha pusera em moda: poltronas Henrique II, cadeiras Luís XV, uma escrivaninha italiana do século XVII, um contador espanhol do século XV, um frontal de altar como lambrequim da lareira e apliques de vestimentas litúrgicas decorando os reposteiros. Esses ouros velhos, essas sedas velhas de tons fulvos, todo esse luxo de capela colhera-os num mal-estar respeitoso. Os tapetes do Oriente pareciam estar embaraçando seus pés com sua lã alta. Mas o que mais os sufocava era o calor, um calor de aquecedor que envolvia com sua surpresa aqueles rostos gelados pelo vento da estrada. Cinco minutos tinham-se escoado. Sentiam-se cada vez mais inquietos no bem-estar daquele salão rico e confortavelmente fechado.

Finalmente o Sr. Hennebeau fez sua entrada, abotoado militar-mente, ostentando na sobrecasaca a roseta formal da sua condecoração. Foi ele o primeiro a falar.

— Pois muito bem... Ao que parece os senhores se revoltaram... — E interrompeu-se para acrescentar com uma rigidez polida: — Sentem-se, estou disposto a conversar.

Os mineiros voltaram-se, procurando assentos com os olhos. Alguns arriscaram-se a sentar nas cadeiras, enquanto outros, temerosos de estragar as sedas bordadas, preferiram ficar em pé.

Silêncio. O Sr. Hennebeau, que arrastara sua poltrona para junto da lareira, examinava-os inquisitorialmente, tentando lembrar-se dos seus rostos. Acabou reconhecendo Pierron, que se escondia na retaguarda, e seus olhos pousaram em Etienne, sentado à sua frente.

— Vejamos, o que têm a me dizer? — perguntou ele. Esperava ouvir o rapaz tomar a palavra, e ficou a tal ponto surpreendido ao ver Maheu avançar, que não pôde conter-se e acrescentou:            

— Então é você, um bom operário, que sempre se mostrou razoável, um antigo membro de Montsou, cuja família trabalha na mina desde a primeira escavação!... Ah... vai tudo muito mal! Entristece-me bastante vê-lo encabeçando os descontentes!

Maheu escutou de olhos baixos. Depois, começou com uma voz a princípio hesitante e surda:

— Senhor diretor, é justamente porque sou um homem tranqüilo, a quem ninguém pode atacar, que meus camaradas me escolheram. Isso deve servir-lhe como prova de que não se trata de uma revolução de desordeiros, de más pessoas que procuram instaurar a anarquia. Queremos apenas justiça, estamos cansados de andar morrendo de fome e parece-nos que chegou a hora de um entendimento para que ao menos tenhamos pão todos os dias.

Sua voz era cada vez mais firme. Levantou os olhos e continuou, fixando o diretor:

— O senhor sabe muito bem que não podemos aceitar o novo sistema. Somos acusados de revestir mal. É verdade, não dedicamos a essa tarefa o tempo necessário. Mas, se o fizéssemos, nosso salário seria ainda mais reduzido, e, como ele já não chega para nos alimentar, seria então o nosso fim, o golpe de misericórdia que arrasaria os homens que trabalham para o senhor. Pague-nos melhor e revestiremos melhor, empregaremos no escoramento as horas recomendadas, em lugar de nos encarniçarmos no abate, que é a única coisa que nos rende. Não há outro acordo possível, o trabalho precisa ser pago para ser feito... E o que o senhor inventou no lugar disso? Uma coisa que não nos entra na cabeça: baixou o vagonete e depois pretendeu compensar essa baixa pagando o revestimento à parte! Mesmo que isso fosse verdade, ainda assim estaríamos sendo roubados, já que o revestimento sempre tomará mais tempo. Mas o que mais nos enfurece é que nem isso é verdade: a companhia não compensa coisa nenhuma, ela simplesmente põe dois cêntimos por vagonete no bolso, eis tudo.

— E isso mesmo, aí está a verdade... — murmuraram os outros delegados ao verem o Sr. Hennebeau fazer um gesto violento, como para interromper.

De resto, Maheu cortou a palavra ao diretor. Agora que começara, as palavras vinham sozinhas. Chegava a escutar-se, com surpresa, como se um estranho falasse nele. Eram coisas acumuladas no fundo do seu peito; coisas que não sabia que estavam ali armazenadas e saíam aos borbotões do seu coração. Falou da miséria em que viviam,

do trabalho duro, da vida de bestas de carga, da mulher e das crianças chorando de fome em casa. Citou os últimos pagamentos ínfimos, as quinzenas irrisórias, desfalcadas pelas multas e pelas folgas, levadas às famílias desesperadas. Seria isso um plano para destruí-los?

—  Assim é que, senhor diretor — concluiu ele —, viemos aqui para lhe dizer que, se é para morrer, preferimos morrer sem fazer nada; ao menos não estaremos exaustos quando chegar a hora. Deixamos o trabalho e só voltaremos a ele se a companhia aceitar nossas condições. Ela quer baixar o preço do vagonete, pagar o revestimento à parte. Nós queremos que as coisas continuem como eram e exigimos ainda que nos dêem cinco cêntimos a mais por vagonete... Agora chegou a sua vez de dizer se é pela justiça e pelo trabalho.

Outros membros da delegação elevaram suas vozes.

— É isso mesmo... Ele disse o que nós pensamos... Só queremos o direito.

Alguns, em silêncio, aprovavam com a cabeça. O salão luxuoso tinha desaparecido com seus ouros e bordados, seu amontoado misterioso de quinquilharias. Eles já nem mais sentiam o tapete que calcavam com seus sapatos grosseiros.

— Mas deixem-me responder! — acabou gritando o Sr. Hennebeau, que começava a ficar zangado. — Em primeiro lugar, não é verdade que a companhia esteja ganhando dois cêntimos por vagonete... Vejamos os dados.

Seguiu-se uma discussão confusa. O diretor, tentando dividi-los, interpelou Pierron, que se esquivou, balbuciando. Levaque, ao contrário, estava à frente dos mais agressivos, embaralhando as coisas, afirmando fatos que ignorava.

O murmúrio crescia, indo morrer contra as tapeçarias, em meio àquele calor que abafava.

— Se todos falam de uma só vez — continuou o Sr. Hennebeau —, não poderemos entender-nos.

Havia recuperado sua calma, sua polidez rude e controlada, de gerente que recebeu uma missão e quer vê-la respeitada. Desde as primeiras palavras não tirou os olhos de Etienne, manobrando para arrancá-lo do silêncio em que este se fechava. Assim é que, abandonando a discussão dos dois cêntimos, repentinamente ampliou o tema de debates.                     

— Vamos, confessem a verdade, vocês estão obedecendo a motivos detestáveis. É uma peste que atualmente sopra sobre todo o operariado e corrompe mesmo os melhores. Mas não preciso da confissão de ninguém, sei bem que vocês, antes tão

tranqüilos, foram catequizados. Não estou certo? Prometeram-lhes uma grande vida, disseram-lhes que tinha chegado a vez de serem os patrões... Enfim, estão sendo arregimentados para essa malfadada Internacional, para esse exército de malfeitores, cujo sonho é a destruição da sociedade...

Nesse momento Etienne interrompeu-o.

— Está enganado, senhor diretor. Nenhum mineiro de Montsou ainda aderiu. Mas, se os empurrarem, todas as minas se alistarão. Isso depende da companhia.

Daí por diante a luta continuou entre ele e o diretor, como se os outros não estivessem mais ali.

— A companhia é uma mãe para os seus empregados, não deve ameaçá-la. Só este ano ela gastou trezentos mil francos na construção de conjuntos habitacionais operários, que não lhe rendem nem dois por cento, isso sem falar nas aposentadorias que dá, no carvão, nos medicamentos. Você, que parece ser inteligente e se tornou em poucos meses um dos operários mais competentes, não faria melhor espalhando essas verdades, em vez de tresmalhar-se na companhia de pessoas de péssima reputação? Sim, refiro-me a Rasseneur, que tivemos de alijar para salvar nossas minas da podridão do socialismo... Você é visto constantemente na casa dele, e foi ele, com certeza, que o levou a criar essa caixa de previdência, que toleraríamos de boa vontade se fosse apenas um motivo de economia para os operários, mas que não passa de uma arma contra nós, um fundo de reserva para pagar os gastos de guerra. E, já que estamos no assunto, devo acrescentar que a companhia pretende exercer um controle sobre essa caixa.

Etienne deixou-o falar, com os olhos fitos nos dele, os lábios agitados por uma leve contração nervosa. Quando a última frase foi pronunciada, ele sorriu e respondeu simplesmente:

 — Esta é uma nova exigência, senhor diretor. Até agora o senhor não reclamara esse controle... Infelizmente, nosso desejo é que a companhia se ocupe menos de nós, e, em vez de representar o papel de mãe, mostre-se apenas justa, dando-nos aquilo que é nosso, isto é, nosso ganho, que ela reparte consigo própria. Então é honesto, a cada crise, deixar morrer de fome os trabalhadores para salvar os dividendos dos acionistas? Sem levar em conta tudo o que o senhor disse, o novo sistema é uma baixa disfarçada de salário, e é isso que nos revolta, porque, se a companhia tem que fazer economia, está agindo muito mal em aplicar seu processo unicamente sobre o operário.

— Ah, chegamos onde eu queria! — bradou o Sr. Hennebeau.

— Estava esperando por esta acusação de deixar o povo faminto e viver do seu suor! Como pode dizer semelhantes bobagens, você, que devia saber dos riscos enormes que correm os capitais na indústria, nas minas, por exemplo? Uma galeria completamente equipada custa hoje de um milhão e meio a dois milhões de francos... E quanto tempo leva para que se tire um juro mínimo de tamanha soma empatada! Quase metade das sociedades carboníferas da França estão quebrando... O que vem a ser uma estupidez acusar de crueldade as que continuam abertas. Quando seus operários sofrem, elas também sofrem. Ou acredita que a companhia não tem tanto a perder quanto vocês com a crise atual? Não é ela que determina o salário; está apenas obedecendo à concorrência, sob pena de ruína. Culpem os fatos, não a companhia. Mas vocês não querem ouvir, não querem compreender, essa é a verdade!

— Mas sim — retrucou o rapaz. — Nós compreendemos muito bem que não há melhora possível para o operariado enquanto as coisas continuarem assim, e é por isso mesmo que os trabalhadores acabarão, cedo ou tarde, por fazer que elas mudem de rumo.

Esta frase tão moderada na forma, foi pronunciada a meia voz, mas com uma convicção tão cheia de ameaça, que se fez um grande silêncio. Um mal-estar, um sopro de medo perpassou pelo confortável salão. Os outros delegados, que compreendiam mal, sentiam, no entanto, que seu companheiro acabava de reclamar por todos no centro daquele luxo. E eles começaram a lançar olhares oblíquos às tapeçarias extravagantes, às poltronas refinadas, a todo aquele luxo cuja menor bagatela daria para comprar a sopa de um mês inteiro.

O diretor, que ficara pensativo, finalmente ergueu-se em sinal de despedida e todos o imitaram. Etienne tocou ligeiramente no braço de Maheu; este voltou a falar, mas já com a língua pastosa e emperrada:

— Então o senhor não tem mais nada a dizer? Iremos dizer aos outros que não aceita nossas condições...

— Eu, meu bom homem — exclamou o diretor —, não posso aceitar nada! Não passo de um assalariado, como vocês; mando tanto como o último dos empregados. Recebo ordens, e meu único papel é cuidar para que elas sejam levadas a bom termo. Disse-lhes o que julguei ser do meu dever dizer-lhes, mas não posso decidir nada. Vocês me trouxeram suas exigências, eu as comunicarei à administração e depois lhes transmitirei a resposta.

Falava com a sua maneira correta de alto funcionário, evitando inflamar-se, com uma secura cortês de simples instrumento da autoridade. Os mineiros, agora, olhavam-no com desconfiança, perguntando a si mesmos de onde vinha aquele homem, que interesse podia ter ele em mentir, quanto deveria roubar nessa posição de intermediário entre eles e os verdadeiros patrões. Talvez um intrigante, pois, sendo pago como um operário, como é que podia viver com tanto luxo?

Etienne ousou intervir outra vez.

— Veja, senhor diretor, como é lamentável que não possamos advogar nossa causa pessoalmente. Explicaríamos muitas coisas, encontraríamos razões que seguramente o senhor não vê. Se soubéssemos pelo menos a quem nos dirigir...

O Sr. Hennebeau não se irritou com o rapaz, chegou mesmo a sorrir.

— Ora! assim tudo se complica, vocês não têm confiança em mim... Terão que ir até lá, então...

Os delegados seguiram seu gesto vago, sua mão estendida para uma das janelas. Onde era esse lugar? Paris, sem dúvida. Mas não sabiam ao certo, devia ser uma paragem longínqua e aterradora, numa região inacessível e misteriosa onde reinava um deus desconhecido, acocorado no fundo do seu tabernáculo. Jamais o veriam, sentiam-no apenas como uma força que, de longe, pesava sobre os dez mil mineiros de Montsou. E, quando o diretor falava, era essa força que tinha por detrás, oculta e pronunciando seus oráculos.

Um enorme desânimo se abateu sobre eles. O próprio Etienne teve um encolher de ombros como dizendo-lhes que o melhor era irem embora. Enquanto isso o Sr. Hennebeau batia amistosamente no braço de Maheu, pedindo-lhe notícias de Jeanlin.

— Essa foi uma lição bem triste, e você ainda defende os revestimentos feitos às pressas! Reflitam, meus amigos, compreenderão em seguida que uma greve seria maléfica para todos nós. Antes de uma semana estarão morrendo de fome. Que farão nesse momento? Conto com o proverbial bom senso de vocês; estou convencido de que até segunda-feira, o mais tardar, estarão de volta ao trabalho.

Partiram. Abandonaram o salão acotovelando-se e tropeçando como um rebanho, curvados, sem responder àquela esperança de submissão. O diretor acompanhou-os e, num último gesto, resumiu o encontro: a companhia de um lado, com sua nova tarifa, os operários do outro, com seu pedido de um aumento de cinco cêntimos por vagonete. Para matar neles qualquer laivo de ilusão, julgou dever preveni-los de que suas condições seriam certamente rechaçadas pela administração.

— Reflitam antes de fazer tolices — repetiu ele, inquieto com seu silêncio.

No vestíbulo, Pierron cumprimentou-o disfarçadamente, enquanto Levaque fazia um gesto de pôr o boné. Maheu procurava alguma coisa para dizer quando novamente Etienne tocou no seu braço. E todos se retiraram em meio a um silêncio ameaçador. Só a porta bateu com grande estardalhaço.

Ao voltar para a sala de jantar, o Sr. Hennebeau encontrou seus convivas imóveis e mudos diante dos cálices Wicor. Em poucas palavras expôs a reunião a Deneulin, cujo semblante acabou de se anuviar. Depois, enquanto ele tomava seu café frio, tentaram falar de outra coisa, mas os próprios Grégoire voltaram ao tema, admirados de não haver leis que proibissem os operários de abandonar o trabalho. Paul tranqüilizou Cécile, afirmando que os policiais estavam por chegar.

Finalmente a Sra. Hennebeau chamou o empregado.

— Hippolyte, antes de irmos para o salão, abra as janelas para arejar.

 

Haviam transcorrido quinze dias; e na segunda-feira da terceira semana, as folhas de ponto enviadas à direção acusavam uma nova queda no número de operários que se apresentavam ao trabalho. Naquela manhã contava-se com o reinicio das atividades, mas a obstinação da administração em não ceder estava exasperando os mineiros. Já não eram só a Voreux, Crèvecoeur, Mirou e Madeleine que estavam paradas; na Victoire e na Feutry-Cantel, descia agora para o trabalho apenas um quarto dos seus homens; e a própria Saint-Thomas fora atingida. Pouco a pouco a greve alastrava-se, tornando-se geral.

No pátio da Voreux reinava profundo silêncio. Era uma fábrica morta, com o vazio e o abandono das vastas oficinas onde o trabalho cessara. Sob o céu cinzento de dezembro, ao longo dos altos passadiços, três ou quatro vagonetes esquecidos tinham a muda tristeza das coisas abandonadas. Embaixo, entre as armações dos cavaletes, o estoque de carvão esgotava-se, deixando a terra nua e negra; a provisão de madeira apodrecia sob os aguaceiros. No embarcadouro do canal, estacionava uma chata com seu carregamento incompleto, que parecia estar dormindo na água turva. No aterro

deserto, cujas emanações sulfúricas fumegavam apesar da chuva, uma carroça erguia melancolicamente seus varais para o ar. Mas os edifícios, sobretudo, tinham sido atingidos por aquele torpor. A triagem com suas persianas fechadas, a torre do sino de rebate, para onde não mais subiam os ruídos da recepção, a casa das máquinas completamente fria e a gigantesca chaminé, soltando agora uma fumaça rala. A máquina extratora só era aquecida de manhã. Os cavalariços desciam a ração dos cavalos, os contramestres eram os únicos que trabalhavam, voltando a ser operários, remediando os desabamentos que costumam ocorrer nas galerias quando não há conservação. Depois, a partir das nove horas, o resto do serviço era feito pelas escadas. E, por cima dessa agonia dos edifícios amortalhados no seu sudário de poeira negra, não havia mais que o escapamento da bomba com seu bafo grosso e longo, o resto de vida da mina, que teria sido destruída pelas águas se aquela respiração parasse.

Defronte, no planalto, o conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante também parecia morto. O prefeito de Lille acorrera, policiais tinham batido os caminhos, mas, diante da calma dos grevistas, prefeito e policiais decidiram voltar às suas bases. Nunca o conjunto habitacional dera tão belo exemplo a toda a planície. Os homens, para evitarem a taberna, dormiam o dia inteiro; as mulheres, racionando o café, andavam mais calmas, menos sequiosas de mexericos e disputas; até a garotada parecia estar imbuída dos mesmos propósitos razoáveis, pois corria descalça e brigava em surdina. Era a palavra de ordem, repetida, circulando de boca em boca: calma acima de tudo.

Mas, apesar disso, a casa dos Maheu era palco de um contínuo vaivém. Etienne, desempenhando as funções de secretário, repartira ali os três mil francos da caixa de previdência entre as famílias necessitadas; em seguida, tinham chegado de diversas partes algumas centenas de francos, produto de subscrição e donativos. Atualmente, porém, todos os recursos se esgotavam, os mineiros não tinham mais dinheiro para levar adiante a greve e a fome já rondava, ameaçadora. Maigrat, após ter prometido crédito por uma quinzena, ao cabo de oito dias mudara bruscamente de atitude, cortando os víveres. De costume ele recebia ordens da companhia; talvez esta desejasse acabar depressa com o movimento esfomeando os conjuntos habitacionais mineiras. Mas a verdade é que ele gostava de agir como um tirano caprichoso, dando ou recusando pão, conforme a aparência da moça que era mandada às compras pelos pais. Cheio de rancor, querendo puni-la por não ter conseguido Catherine, era na cara da mulher de Maheu que ele fechava mais acintosamente sua porta. Para cúmulo da miséria, o frio acentuava-se, as mulheres viam diminuir as provisões de carvão com a inquieta certeza de que elas não

seriam renovadas pela companhia enquanto os homens não voltassem ao fundo da mina. Não bastando a fome, havia ainda o frio para castigá-los.

Na casa dos Maheu já faltava de tudo. Os Levaque ainda comiam com uma moeda de vinte francos que Bouteloup lhes emprestara. Os Pierron, esses tinham sempre dinheiro, mas, para parecerem tão famintos como os demais, temendo os pedidos de empréstimos, compravam fiado no Maigrat, que era capaz de entregar seu armazém à mulher de Pierron se esta levantasse a saia. A partir de sábado muitas famílias deitaram sem jantar. E, diante dos dias terríveis que se anunciavam, nem uma queixa era ouvida, todos obedecendo à palavra de ordem com uma tranqüila coragem. Havia, apesar de tudo, uma confiança absoluta, uma fé religiosa, a cega faculdade de suportar de uma população de crentes. Tinham-lhes prometido a era da justiça, eles estavam prontos a sofrer pela conquista da felicidade universal. A fome exaltava as cabeças; nunca antes uma porta a tal ponto estreita abrira-se para horizonte tão largo a esses alucinados da miséria. Viam ao longe, com olhos embaralhados pela fraqueza, a cidade ideal dos seus sonhos quase alcançada e como que real, com seu povo de irmãos, sua época de ouro de trabalho e refeições em comum. Nada abalava a convicção que eles tinham de nela entrar finalmente.

A caixa se esgotara, a companhia não ia ceder, a situação agravava-se com o correr dos dias, mas eles continuavam a ter esperança, sorrindo com desprezo para os fatos. Se a terra se abrisse sob seus pés, um milagre os salvaria. Esta fé substituía o pão e aquecia a barriga. Depois de ingerirem suas sopas ralas, os Maheu e os outros entregavam-se a uma semivertigem, ao êxtase de uma vida melhor que lançava os mártires às feras.      

Daí por diante, Etienne foi o chefe incontestado. Nas conversas da noite falava como um oráculo, à medida que o estudo lhe dava firmeza, fazendo-os discorrer sobre qualquer assunto. Passava as noites lendo; recebia grande número de cartas; chegara mesmo a fazer uma assinatura do Vingador, folha socialista da Bélgica, aliás o primeiro jornal a entrar no conjunto habitacional, o que fez crescer mais ainda sua estatura entre os camaradas. A popularidade de que gozava superexcitava-o. Manter uma correspondência variada, discutir sobre o destino dos trabalhadores com os quatro cantos das províncias dar conselhos aos mineiros da Voreux, sobretudo tornar-se um pólo sentir o mundo girar em torno de si, resultava num constante aumento de vaidade, ele, antigo mecânico, atual operador de vagonetes, de mãos sujas e negras. Tinha subido um degrau, penetrava nessa execrada burguesia, com a satisfação da inteligência e do bem-

estar que a si mesmo não confessava. Apenas uma coisa o incomodava: a consciência da sua falta de instrução, que o tornava embaraçado e tímido desde o momento em que se encontrava diante de um senhor de sobrecasaca. Se continuava a instruir-se, devorando tudo, a falta de método tornava a assimilação muito lenta, produzindo tal confusão que acabava por saber coisas que não tinha compreendido. Como resultado, em certos momentos de exame de consciência, sentia-se inquieto a respeito de sua missão, tinha medo de não ser o homem esperado. Talvez fosse preciso um advogado, alguém com muitas luzes, capaz de falar e agir sem comprometer os companheiros? Mas uma espécie de revolta fazia que vencesse uma outra vez as dúvidas. Não, não, nada de advogados! São todos uns canalhas que se aproveitam de sua sabedoria para chupar o sangue do povo! Acabando bem ou mal, os operários deviam decidir seus problemas entre eles... E o seu sonho de líder popular voltava a embalá-lo: Montsou a seus pés, Paris ao longe, envolta em bruma, e, quem sabe? a deputação um dia, a tribuna de uma luxuosa assembléia onde se via fulminando os burgueses com o primeiro discurso pronunciado por um operário num parlamento.

Havia alguns dias que Etienne andava perplexo. Pluchart escrevia carta sobre carta, oferecendo-se para ir a Montsou reativar o ânimo dos grevistas. Tratava-se de organizar uma reunião privada, presidida pelo mecânico. Por trás desse projeto havia a idéia de explorar a greve, de levar para a Internacional os mineiros, até ali desconfiados. Etienne temia barulho, mas teria deixado vir Pluchart, se Rasseneur não se tivesse oposto violentamente a essa intervenção.

Apesar do seu poder, o rapaz tinha que contar com o taberneiro, cuja influência era mais antiga e que possuía fiéis seguidores entre seus clientes. Por isso hesitava ainda, sem saber o que responder.

Na segunda-feira, por volta das quatro horas, chegou outra carta de Lille, quando Etienne estava sozinho com a mulher de Maheu na sala do térreo. O dono da casa, enervado pela ociosidade, fora pescar; se tivesse a sorte de fisgar um peixe grande, além da comporta do canal, vendê-lo-ia para comprar pão. O velho Boa-Morte e Jeanlin acabavam de sair, para esticar as pernas curadas, enquanto as crianças tinham saído com Alzire, que passava horas no aterro juntando lascas de carvão. Sentada ao lado do fogo quase morto, que não mais ousavam reavivar, a mulher, com o vestido aberto e um seio de fora caindo até a barriga, dava de mamar a Estelle.

Quando o rapaz dobrou a carta, ela perguntou:

— Boas notícias? Vão mandar dinheiro? Ele fez um gesto negativo e ela continuou:

— Não sei como vamos fazer esta semana... Mas havemos de arranjar-nos. Quando a gente tem o direito do seu lado, pode resistir e acabar vencendo, não é?

Agora era partidária da greve. Teria sido melhor forçar a companhia a ser justa, mas, já que tinham abandonado o trabalho, não deviam voltar a ele sem a vitória. A esse respeito mostrava-se de uma energia virulenta. Antes morrer do que dar o braço a torcer, estando com a razão!

— Ah! — exclamou Etienne — se irrompesse uma boa epidemia de cólera que nos livrasse de todos esses exploradores da companhia!

— Não, isso não — respondeu ela. — Não se deve desejar a morte de ninguém. Não nos adiantaria de nada, outros tomariam os seus lugares. Eu só peço que os atuais se tornem mais sensatos, conto mesmo com isso, porque em toda parte há gente boa... Você sabe que não estou em absoluto de acordo com a sua política.

Ela, realmente, costumava censurar-lhe o verbo fogoso, achava-o muito brigão. Que exigissem a paga justa pelo trabalho, estava certo; mas para que ocupar-se de outras coisas, dos burgueses, do governo?... Para que meter-se nos assuntos dos outros para depois levar uma bordoada na cabeça? Apesar dessas divergências, continuava a estimá-lo, porque não bebia e pagava com toda a regularidade os quarenta e cinco francos pela pensão. Quando um homem se conduzia direito, podia-se esquecer o resto.

Etienne, então, começou a falar da república, que daria pão a todos. Mas a mulher sacudiu a cabeça: ela ainda se lembrava de 48, um ano dos diabos, que os deixara pele e ossos, a ela e ao seu homem, nos primeiros tempos do casamento. E começou a contar todos os percalços daquele ano com sua voz monótona, o olhar perdido, o colo nu, enquanto Estelle, sem largar o seio, dormia sobre seus joelhos. Etienne, também absorto, olhava fixamente para aquele seio enorme, cuja brancura flácida contrastava com a tez gretada e amarelecida do rosto.

— Não havia um centavo em parte alguma, ou mesmo um naco de qualquer coisa para mastigar... — murmurou ela. — Enfim, era igual a hoje, os pobres rebentando de fome!

Nesse momento, a porta se abriu e ambos ficaram mudos de surpresa vendo Catherine entrar. Desde a sua fuga com Chaval, não mais voltara ao conjunto habitacional. Sua confusão era tanta que nem mesmo fechou a porta, toda trêmula e sem

voz. Pensara que ia encontrar sua mãe sozinha, e, ao ver o rapaz, a frase que preparara a caminho foi esquecida.

— Que é que vens fazer aqui? — gritou a mulher, permanecendo sentada. — Não quero mais saber de ti, podes ir andando!

Catherine, então, conseguiu balbuciar algumas palavras.

— Mamãe! E café e açúcar que estou trazendo... para as crianças... Perdi horas pensando nelas...

Tirou dos bolsos meio quilo de café e meio quilo de açúcar, que corajosamente pôs sobre a mesa. Andava angustiada com a greve da Voreux, enquanto ela continuava trabalhando na Jean-Bart, e só encontrara esta maneira de ajudar um pouco os pais, o pretexto de pensar nas crianças. Mas seu bom coração não amolecia o da mãe, que replicou:

— Em vez de trazer-nos gulodices, seria melhor que tivesses ficado para ganhar nosso pão.

A mulher então teve um grande desabafo, encheu a filha de insultos, lançou-lhe no rosto tudo aquilo que dizia contra ela havia um mês. Fugir com um homem, amasiar-se aos dezesseis anos, tendo uma família na mais negra miséria! Precisava ser a última das desnaturadas. Podia-se perdoar um mau passo, mas uma mãe nunca esqueceria tal atitude! Como se a trouxessem sob quatro chaves! Era livre como um passarinho, a única coisa que lhe exigiam é que viesse dormir em casa...

— Com essa idade... O que tens na cabeça, hem?

Catherine, imóvel junto da mesa, escutava de cabeça baixa. Um tremor agitava seu corpo magro de moça ainda não desabrochada. procurava responder, e as palavras saíam entrecortadas.

— Não foi culpa minha, ele quis, mas não me sinto feliz... E, quando ele quer, eu tenho de obedecer... Ele é o mais forte, tu bem sabes... Como é que eu podia adivinhar que as coisas iam ficar desse jeito? Enfim, o que está feito, está feito. E agora, melhor ele que outro. Vamos ter de casar...

Defendia-se sem revolta, com a resignação passiva das moças que são defloradas cedo. Não era essa a lei comum? Nunca sonhara com outra coisa, era aquele o destino: violentada ao abrigo do aterro, um filho aos dezesseis anos, depois a miséria no lar, se o amante a desposasse. Não estava com vergonha, tremia assim por ser tratada como uma prostituta pela mãe diante daquele rapaz, cuja presença a oprimia e exasperava.

Etienne, no entanto, levantara-se fingindo reavivar o fogo quase apagado, para deixá-la mais à vontade. Mas seus olhares se encontraram, ele achava-a pálida, cansada, mas sempre bonita com aqueles olhos tão claros num rosto que fenecia. Teve uma estranha emoção, seu rancor desaparecera, desejou simplesmente que ela fosse feliz com esse homem pelo qual fora trocado. Sentia como um desejo de cuidar dela ainda, de ir a Montsou e forçar o outro a entrar em brios. No entanto, a moça não viu senão piedade naquela ternura que continuava a oferecer-se; ele devia desprezá-la para fitá-la daquela maneira. Sofria tanto que ficou sufocada e não pôde mais balbuciar outras palavras de desculpa.

— E melhor assim; ganhas mais calando-te — voltou à carga, implacável, a mãe. — Se voltas para ficar, entra; senão podes ir andando... E considera-te feliz de eu estar com a criança, porque a minha vontade é fazer-te cair a pontapés.

Como se, de repente, a ameaça se realizasse, Catherine recebeu em cheio um pontapé cuja violência deixou-a tonta de surpresa e de dor. Era Chaval, que entrara de um salto pela porta aberta e lhe dera um coice de besta furiosa. Havia um minuto que a espreitava do lado de fora.

— Cadela! — urrou ele. — Eu te segui, sabia que vinhas aqui para foderes até rebentar! E quem paga és tu hem? O café que trazes para ele foi comprado com o meu dinheiro!

A mulher de Maheu e Etienne, estupefatos, não se moviam. Com gestos furibundos, Chaval empurrava Catherine para a porta.

 — Vamos! sai de uma vez, cadela!

E, como ela corresse para um canto, ele começou a atacar a mãe

— É um belo trabalho guardar a casa enquanto a puta da tua filha está lá em cima, de pernas abertas!

Conseguiu por fim agarrar Catherine pelo pulso e, aos sacalões começou a arrastá-la para fora. Já na porta voltou-se outra vez para a mulher de Maheu, ainda pregada na sua cadeira e que nem atinara em guardar o seio. Estelle dormia com o nariz enfiado na saia de lã e o seio enorme pendia livre e nu, como uma teta de vaca leiteira.

— Quando a filha não está é a mãe que trepa! — gritou Chaval. — Anda, mostra-lhe os peitos! Ele não sente nojo, o canalha do teu inquilino!

Com aquela, Etienne levantou-se para esbofetear o outro. O receio de tumultuar o conjunto habitacional com uma briga o contivera até ali de arrancar Catherine das mãos de Chaval. Mas, agora, ele também era presa da raiva, e os dois homens se encontraram

frente a frente, com os olhos injetados de sangue. Era um ódio antigo, um ciúme por muito tempo inconfessado, que agora explodia. Chegara o momento de um dos dois destruir o outro.

— Cuidado! — balbuciou Etienne, mal podendo falar. — Chegou a tua hora!

— Vem, se és homem! — respondeu Chaval. Encararam-se ainda por alguns segundos, tão de perto, que seus hálitos ardentes queimavam-lhes os rostos. Foi Catherine, suplicante, quem tomou a mão do amante para arrastá-lo para fora do conjunto habitacional o mais depressa possível, sem mesmo olhar para trás.

— Que animal! — murmurou Etienne batendo a porta violentamente, agitado por tamanha cólera que teve de sentar.

Em frente a ele, a mulher, que ainda não se movera, fez um gesto cheio de perplexidade, e ambos caíram num silêncio penoso e prenhe das coisas que calavam. Apesar dos esforços em contrário, o rapaz, agora, não podia tirar os olhos daquele seio, daquela torrente de carne branca, cuja alvura o embaraçava. Sem dúvida, ela tinha quarenta anos e estava deformada, como uma boa fêmea que produziu demais; mas muitos ainda a desejavam, larga, sólida, com seu rosto cheio e comprido de moça que foi bonita. Lenta e tranqüilamente, ela arrepanhou o seio para guardá-lo. Como um pedaço róseo se obstinasse em ficar de fora, empurrou-o com o dedo e abotoou-se. Agora, era uma figura toda de preto, encolhida dentro da sua velha bata.

 —  Mas que porco! — disse ela por fim. — Só mesmo um porco mundo como ele pode ter idéias tão repugnantes... Que me importa! nem merece resposta...

Depois, com voz franca, acrescentou, sem tirar os olhos do rapaz:

— Eu também tenho meus defeitos, mas não esse... Em toda a minha vida, só dois homens me tocaram: um operador de vagonetes, há muito tempo, quando eu tinha quinze anos, e depois Maheu. Se ele me tivesse abandonado como o outro, ah meu Deus! nem sei o que teria acontecido. E, se não tenho orgulho por ter sido sempre direita desde o nosso casamento, é porque muitas vezes não se pratica o mal apenas por falta de ocasião... Juro que estou dizendo a verdade; conheço vizinhas que não poderiam dizer a mesma coisa, não é? 

— É mesmo — respondeu Etienne, levantando-se e saindo.

A mulher decidiu espertar o fogo, depois de ter deitado Estelle adormecida sobre duas cadeiras. Se o marido apanhasse um peixe para vender, poderiam fazer uma sopa.

Fora, a noite caía, uma noite glacial. E, de cabeça baixa, Etienne caminhava, tomado de grande tristeza. Não sentia mais cólera contra o homem, ou mesmo piedade

pela pobre mocinha maltratada. A cena brutal apagava-se, desaparecia, atirando-o para o sofrimento geral, para a abominável miséria. Podia ver o conjunto habitacional sem pão, as mulheres e crianças que não comeriam naquela noite, toda aquela população lutando de barriga vazia. E a dúvida que tantas vezes o aguilhoava voltou, tendo por fundo a terrível melancolia do crepúsculo, prostrando-o numa angústia de inusitada violência. Que enorme responsabilidade carregava aos ombros! Iria continuar a empurrá-los, a fazê-los obstinarem-se na resistência, agora que o dinheiro e o crédito tinham acabado? E qual seria o desenlace se não viesse socorro algum, se a fome vencesse os ânimos? Repentinamente teve a visão do desastre: crianças morrendo, mães soluçando, enquanto os homens, cadavéricos e cabisbaixos, voltavam a descer ao fundo da mina.

Continuava caminhando, tropeçando nas pedras; a idéia de que a companhia seria a mais forte e de que ele era o responsável pela desgraça dos camaradas enchia-o de uma angústia insuportável.

Quando ergueu a cabeça, viu que estava defronte da Voreux. A massa sombria dos edifícios tornava-se mais pesada nas trevas que avançavam. No meio, o pátio deserto, obstruído por grandes sombras imóveis, mais parecia uma fortaleza abandonada. Desde que a máquina extratora parava, a alma daquele complexo carbonífero se evolava. Aquela hora da noite, tudo estava morto, não se via um lampião, não se ouvia uma voz. E o próprio escapamento da bomba de esgoto não passava de um estertor longínquo, vindo não se sabe de onde; era como se a mina inteira estivesse prostrada.

Enquanto olhava, sentiu que o sangue fluía novamente em seu coração. Se os operários estavam passando fome, a companhia estava deixando de ganhar os seus milhões. Por que havia de ser ela a mais forte nesta guerra do trabalho contra o dinheiro? Se ela vencesse, a vitória lhe custaria caro; depois ver-se-ia quem perdera mais. Ressurgia nele a sede de batalha, o desejo feroz de acabar com a miséria, mesmo que para isso tivesse de dar a vida. Era melhor que o conjunto habitacional sucumbisse todo junto, em vez de estar morrendo aos poucos, de fome e de injustiça. As leituras mal digeridas voltavam-lhe à mente, exemplos de povos que tinham incendiado suas cidades para deter o inimigo, histórias nebulosas onde as mães salvavam seus filhos da escravidão esmigalhando suas cabeças contra as pedras, onde os homens morriam de inanição para não comer o pão dos tiranos. Tudo isso arrebatava-o, uma alegria vermelha emergia da sua crise de negra tristeza, espantando a dúvida, envergonhando-o daquela vacilação passageira. E, nesse despertar de fé, o orgulho surgia, carregando-o em suas asas; era a alegria de ser o chefe, de se ver obedecido até o sacrifício, o sonho cada vez

maior de poder, a noite do triunfo. Já imaginava uma cena de uma grandeza simples, sua não aceitação do poder, a autoridade entregue às mãos do povo, quando ele fosse o vencedor.

Mas despertou sobressaltado com a voz de Maheu que lhe contava da sorte que tivera: uma enorme truta pescada e vendida por três francos, o que daria para a sopa.

Deixou Maheu seguir sozinho para o conjunto habitacional, dizendo-lhe que iria em seguida, e entrou no Avantage, onde esperou a partida de um freguês para dizer claramente a Rasseneur que pretendia escrever a Pluchart pedindo-lhe que viesse imediatamente. Sua resolução estava tomada, queria organizar uma reunião privada. Se os mineiros de Montsou aderissem em massa à Internacional, a vitória era certa.

 

Foi no estabelecimento da viúva Désir, no Bon-Joyeux, que se marcou a reunião privada, para a quinta-feira, às duas horas.

A viúva, indignada com a miséria que estavam impondo aos seus filhos, os mineiros, andava rubra, sobretudo depois que sua taberna ficara às moscas. Nunca nenhuma greve tivera tão pouca sede; os beberrões fechavam-se em casa, temendo desobedecer à palavra de ordem de calma e sossego. Era o mesmo caso de Montsou, que costumava fervilhar de gente nos dias de festa, e agora exibia sua rua larga, silenciosa e vazia, sem vivalma. A cerveja não mais corria dos balcões e das bexigas, as sarjetas estavam secas. Na estrada, na venda Casimir e no botequim Progrès só se viam os rostos pálidos das taberneiras perscrutando o horizonte. Em Montsou mesmo, todos os estabelecimentos que vendiam cerveja estavam desertos, desde L'Enfant até o Tison, passando pelo Piquette e o Tête-Coupée. Apenas o Saint-Éloy, freqüentado por contramestres, servia ainda algumas cervejas. A solidão atingia até o Volcan, onde as mulheres não tinham o que fazer por falta de fregueses, embora tivessem baixado o preço de dez para cinco soldos, visto o rigor dos tempos. Era um verdadeiro luto que se abatia pela região inteira.

— Com mil diabos! — gritou a viúva Désir, batendo com as mãos nas coxas. — A culpa é dos policiais! Que me joguem na prisão, se quiserem, mas estou disposta a dar-lhes uma boa dor de cabeça!

Para ela, todas as autoridades, todos os patrões eram policiais, um termo de desprezo geral com que envolvia os inimigos do povo.

Acolhera com deleite o pedido de Etienne; a sua casa era propriedade dos mineiros, que emprestaria gratuitamente o salão de baile, faria ela mesma os convites, o que era uma exigência de lei. Aliás, se as autoridades não gostassem, melhor! Ver-se-ia com que cara se apresentariam.

No dia seguinte o rapaz lhe trouxe umas cinqüenta cartas para assinar e que ele fizera copiar pelos habitantes do conjunto habitacional que sabiam escrever. Essas cartas foram enviadas para as minas, aos delegados e a outros homens de confiança. A ordem do dia anunciada era discutir a continuação da greve, mas, na realidade, esperava-se Pluchart, contava-se com um discurso dele para conseguir a adesão em massa à Internacional. ..

Na quinta-feira pela manhã Etienne começou a ficar inquieto, vendo que seu antigo contramestre não chegava, já que prometera por telegrama estar lá na quarta-feira à noite. Que podia estar acontecendo? Sentia-se irritado por não poder conversar com ele antes da reunião. Às nove horas foi para Montsou, com a idéia de que talvez o mecânico para lá tivesse ido diretamente, sem parar na Voreux.

— Não, o seu amigo não apareceu por aqui — respondeu a viúva Désir. — Mas está tudo pronto, venha ver.

Conduziu-o ao salão de baile. A decoração ainda era a mesma, guirlandas sustendo no teto uma coroa de flores de papel pintado, e escudos de cartão dourado com nomes de santos e santas ao longo das paredes. Apenas o tablado dos músicos tinha sido substituído por uma mesa e três cadeiras a um canto; bancos atravessados enchiam a sala.

— Está muito bem — declarou Etienne.

— E já sabem — disse a viúva —, esta é a casa de vocês. Podem gritar à vontade. Os policiais, para entrarem aqui, terão de passar por cima do meu cadáver.

Apesar do seu nervosismo, ele não pôde deixar de sorrir ao observá-la, tão gorda ela lhe pareceu, com tal par de seios que na certa um só homem não chegaria para abraçá-la; o que fazia dizer que, agora, dos seus seis amantes da semana, ela acolhia dois por noite, para conseguir satisfação.

Etienne admirou-se vendo entrar Rasseneur e Suvarin; e, como a viúva os deixasse sozinhos na grande sala vazia, exclamou:

— Então, já vieram?

Suvarin, que trabalhara à noite na Voreux — os mecânicos não estavam em greve —, vinha simplesmente por curiosidade. Quanto a Rasseneur, havia dois dias que parecia nervoso, sua gorda cara de lua cheia perdera o sorriso bondoso.

— Pluchart ainda não chegou, não sei o que vou fazer — acrescentou Etienne.

O taberneiro desviou os olhos e respondeu entre dentes:

— Isso não me espanta, não o espero mais.

— Como?

Com ar decidido, olhando o outro de frente, disse então:

— Se queres saber, eu também lhe escrevi uma carta; nela pedi-lhe que não viesse. É isso. Acho que temos de decidir nossos problemas entre nós, sem apelar para estranhos.

Etienne, fora de si, trêmulo de cólera, com os olhos nos do outro, disse gaguejando:

— Mas por que fizeste isso? Por quê?

—  Fiz, sim, senhor. E tu sabes como tenho confiança em

Pluchart! É leal e sabe muitas coisas, a gente pode contar com ele... Mas as idéias de vocês não me interessam. Política, governo, tudo isso não me interessa... Desejo apenas que o mineiro tenha um tratamento mais digno. Trabalhei no fundo da mina durante vinte anos suei tanto de miséria e cansaço que jurei conseguir uma vida melhor para os infelizes que ainda estão lá embaixo. Sei muito bem que nada obterão com essas histórias de vocês, o que farão é apenas tornar a vida do operário ainda mais miserável. Quando ele for obrigado pela fome a voltar ao trabalho, será mais humilhado ainda, a companhia o receberá a porrete, como cão fugido que se faz voltar ao canil. E é isso que eu quero evitar, compreendeste?

Elevava a voz, barriga saliente, solidamente plantado sobre as grossas pernas. Toda a sua natureza de homem razoável e paciente se denunciava em frases claras, abundantes e rápidas. Então não era estúpido acreditar que se podia de um golpe mudar a face do mundo, pôr os operários no lugar dos patrões, repartir o dinheiro como se reparte uma maçã? Talvez dentro de milhares e milhares de anos isso fosse uma realidade. Mas, por enquanto, que o deixassem em paz, sem soluções miraculosas! A melhor maneira de não quebrar o nariz era andar direito, exigir as reformas que fossem

viáveis, tentar melhorar a vida dos trabalhadores quando se apresentasse a ocasião. Assim é que ele agiria se estivesse com o caso em mãos, obrigando a companhia a dar melhores condições aos trabalhadores, em vez de obstinar-se em mandá-la ao diabo, o que resultaria na desgraça de todos.

Etienne tinha-o deixado falar, já que ele estava sufocado pela indignação. Mas, em seguida, explodiu:

— Com mil raios! Então tu não tens sangue nas veias?

Por um instante pensou que ia esbofeteá-lo. Para resistir à tentação, começou a andar furiosamente pela sala, aliviando sua raiva nos bancos, entre os quais abria passagem.

— Ao menos fechem a porta — observou Suvarin. — Ninguém precisa ouvir.

Depois de ter ido ele mesmo fechá-la, sentou-se tranqüilamente numa das cadeiras em frente à mesa. Enrolava um cigarro enquanto observava os outros dois com seu olhar calmo e irônico, os lábios franzidos por um leve sorriso.

— De nada adianta zangares-te — disse judiciosamente Rasseneur. — No princípio acreditei que eras sensato. Achei muito bom que tivesses recomendado a maior calma aos outros, que ficassem em casa, que usasses teu poder para manter a ordem. E agora queres instaurar a baderna...

Cada vez que respondia ao taberneiro, Etienne suspendia sua furiosa evolução por entre os bancos para agarrar o outro pelos ombros e sacudi-lo, gritando-lhe no rosto.

— Mas com todos os diabos! O que eu quero é ficar calmo! Sim, impus-lhes uma disciplina! Aconselhei-os a ficarem em casa! Mas os outros estão querendo destruir-nos, rindo na nossa cara! Considera-te feliz por seres um homem calmo. Há momentos em que parece que vou enlouquecer...

Era uma confissão da sua parte. Escarnecia das suas próprias ilusões de neófito, do seu sonho religioso de uma vida onde a justiça ia reinar em breve entre os homens transformados em irmãos. Um bom sistema, realmente: cruzar os braços e esperar para ver o homem devorando o homem até o fim dos tempos, como lobos. Não, nada disso! Era preciso participar, senão a injustiça seria eterna, os ricos sempre bebendo o sangue dos pobres. Por isso não se perdoava de ter dito uma vez que a política tinha de ser banida da questão social. Mas naquele tempo ele não sabia nada; depois, lera e estudara. Agora suas idéias estavam maduras, orgulhava-se de possuir um sistema.

E, contudo, explicava-o mal, em frases cuja confusão tinha um pouco de todas as teorias adotadas e sucessivamente abandonadas. No cimo, pairava a teoria de Karl Marx:

o capital era o resultado da exploração, o trabalho tinha o direito e o dever de reconquistar essa riqueza roubada. Na prática, a princípio ele se deixara prender na quimera de Proudhon do crédito mútuo, de um vasto banco de troca que suprimiria os intermediários; depois as sociedades cooperativas de Lassalle, financiadas pelo Estado, transformando pouco a pouco a terra numa única cidade industrial apaixonaram-no, até o dia em que renunciara ao sistema diante da dificuldade de controle. Mas tudo isso ficara numa nebulosa, ele não sabia como realizar o novo sonho, impedido ainda pelos escrúpulos da sua sensibilidade e da sua razão, não ousando arriscar-se em afirmações absolutas e sectárias. Dizia simplesmente que era preciso apoderarem-se, antes de mais nada, do governo. O resto vinha depois.

— Mas o que está acontecendo contigo? Por que passaste para o lado dos burgueses? — continuou ele com violência, voltando a pôr-se diante do taberneiro. — Tu mesmo dizias que como estava não podia continuar.       

Rasseneur corou ligeiramente.

— Sim, eu disse isso. E se a coisa explodir tu vais ver que não é mais covarde do que os outros. Só que me recuso a fazer o jogo daqueles que aumentam a desordem para conseguir uma posição.

Foi a vez de Etienne corar. Os dois homens pararam de gritar, invadidos pelo frio de sua rivalidade, tornaram-se ásperos e brutais.

Era aquilo que desnaturava os sistemas, levando um ao exagero revolucionário, empurrando o outro para uma afetação de prudência, conduzindo-os, enfim, e sem eles quererem, para além das suas verdadeiras idéias, nessa fatalidade de encarnar um papel que não se escolheu.

Suvarin, que os escutava, deixou transparecer no seu rosto de moça loura um silencioso desprezo, o esmagador desprezo do homem que está pronto a dar a vida, obscuramente, sem a glória do martírio.

— É para mim que estás dizendo isso? — perguntou Etienne. — Estás com inveja?

— Inveja de quê? — respondeu Rasseneur. — Eu não me dou ares de grande homem, não procuro criar uma seção em Montsou para ser o secretário.

O outro quis interrompê-lo, mas ele continuou:

— Vamos, sê franco! A ti pouco te importa a Internacional, queres é estar à nossa frente, bancar o importante, que mantém correspondência com o famoso Conselho Federal do Norte!

Houve um silêncio. Etienne, trêmulo, respondeu:

— Está bem... Acreditei que estava agindo decentemente; sempre te consultei, por saber que combatias aqui muito tempo antes de mim. Mas já que não podes suportar ninguém ao teu lado, passarei a trabalhar sozinho de hoje em diante... Para começar, previno-te de que a reunião vai-se realizar e os camaradas vão aderir mesmo que te oponhas e Pluchart não venha.

— Ora, aderir!... — murmurou o taberneiro. — Isso não é tudo. Tens que convencê-los a pagar a cotização.

— Não terão que pagar agora. A Internacional dá um prazo aos trabalhadores em greve. Pagaremos mais tarde, ela é que virá imediatamente em nosso auxílio.

Rasseneur perdeu a calma.         

— Pois veremos... Vou tomar parte nessa tua reunião e vou falar. Fica sabendo que não te deixarei virar a cabeça dos meus amigos! Vou esclarecê-los sobre seus verdadeiros interesses. Vamos ver a quem vão seguir, se a mim, que eles conhecem há trinta anos ou a ti, que em menos de um ano transformaste isto aqui numa confusão... Não! não! deixa-me em paz! Agora o mais forte vai esmagar o outro!

E saiu, batendo com a porta. As guirlandas de flores estremeceram no teto, os escudos dourados balançaram-se nas paredes Em seguida a grande sala voltou à sua paz pressaga.

Suvarin continuava a fumar com seu jeito delicado, sentado em frente à mesa. Depois de ter caminhado por algum tempo em silêncio, Etienne começou a desabafar com todas as palavras que tinha. Então era culpa sua se trocavam aquele vagabundo por ele? E defendeu-se dizendo que nunca tinha procurado a popularidade, não sabia mesmo como aquilo tudo se tinha armado: a amizade sincera dos moradores do conjunto habitacional, a confiança dos mineiros o poder que tinha sobre eles no momento atual. Mostrou-se indignado com a acusação de querer instaurar a desordem por ambição; e batia no peito protestando sua fraternidade.

Com um movimento brusco parou na frente de Suvarin e exclamou

— Digo com toda a honestidade: se soubesse que tudo isto ia custar uma gota de sangue a um amigo, embarcava para a América agora mesmo!

O mecânico deu de ombros e um sorriso imperceptível aflorou-lhe novamente aos lábios.

— Ora! sangue... — murmurou. — E daí? A terra está precisando de sangue...

Etienne, mais calmo, arrastou uma cadeira, sentou-se do outro lado da mesa e apoiou os cotovelos nela. Aquela cabeça loura, cujos olhos sonhadores lançavam às vezes selvagens faíscas rubras, fascinava-o, exercia sobre sua vontade uma ação singular. Sem que o companheiro falasse, era o próprio silêncio que o conquistava, absorvendo-o pouco a pouco.

— Vejamos, o que farias em meu lugar? Não tenho razão de querer agir? A melhor coisa a fazer é entrar para essa Associação não é?

Suvarin, depois de ter exalado lentamente uma baforada, respondeu com sua palavra favorita:

— Besteiras! Mas que seja... Aliás, essa tal de Internacional vai funcionar mesmo, dentro em breve. Ele está tratando disso.

— Ele quem?

— Ele!

Esta última palavra fora pronunciada a meia voz, com fervor religioso, em direção ao Oriente. Falava do mestre, de Bakunin, o exterminador.

— Só ele pode, tem força para isso — continuou. — Esses teus sábios são uns idiotas com suas teorias da evolução. Dentro de três anos a Internacional, sob as ordens de Bakunin, vai esmagar o velho mundo.

Etienne era todo ouvidos. Tinha sede de saber, de compreender esse culto de destruição, sobre o qual o mecânico não dava senão detalhes obscuros, como se estivesse guardando mistério para si.

— Explica-te, homem. Qual é a finalidade de vocês?

— Destruir tudo... Exterminar as nações, os governos, a propriedade, Deus e o culto.

— Estou entendendo. Mas a que leva isso?

— À comuna primitiva e sem forma, a um mundo novo, ao começo de tudo.

— E os meios de execução? Como é que vocês vão fazer?

— Pelo fogo, pelo veneno, pelo punhal. O salteador é o verdadeiro herói, o vingador popular, o revolucionário em ação, sem frases tiradas dos livros. E preciso que uma série de horríveis atentados aterre os poderosos e acorde o povo.

Falando, Suvarin transformava-se, ficava terrível. Em êxtase, erguia-se da cadeira, uma chama mística incendiava-lhe os olhos pálidos e suas mãos delicadas comprimiam a borda da mesa a ponto de quebrá-la. Cheio de medo, o outro o fitava, pensando nas histórias de que conhecia trechos vagos, mediante confidências entrecortadas: tesouros

abarrotados por baixo dos palácios do czar, chefes de polícia abatidos a punhaladas como javalis, uma amante dele, a única mulher que amara, enforcada em Moscou numa manhã de chuva, enquanto ele na multidão beijava-a com os olhos, despedindo-se.

— Não, não! — murmurou Etienne, fazendo um grande gesto para espantar essa abominável visão. — Nós ainda não chegamos a esse ponto. Assassinato, incêndio, nunca! Isso é monstruoso e injusto. Todos os companheiros se levantariam para estrangular o culpado!

Continuava não compreendendo aquelas teorias. E depois, seu povo recusava-se a aceitar esse sonho sombrio de extermínio do mundo, que ficaria ceifado como um campo de centeio, arrasado.

Que fariam depois? Como os povos voltariam a crescer? Exigia uma resposta

— Explica o teu programa. Nós queremos saber para onde vamos.

Suvarin, então, concluiu placidamente, com seu olhar fluido e vago:

— Todos os raciocínios sobre o futuro são criminosos porque impedem a destruição pura e entravam a marcha da revolução.

Esta última tirada fez Etienne sorrir, apesar do arrepio que o perpassara. Aliás, ele confessava de bom grado que alguma coisa de útil havia em tais idéias, cuja horrível simplicidade o atraía. Mas seria perder a partida para Rasseneur advogar tal causa ante os companheiros. Tinha de ser prático.

A viúva Désir propôs-lhes almoçarem. Aceitaram, passando para o bar, que um biombo separava do salão de baile durante a semana. Assim que acabaram a omelete e o queijo, o mecânico disse que ia embora; como o outro o detivesse, exclamou:

— Para quê? Para ouvir vocês dizendo besteiras inúteis? Estou farto delas! Até logo!

E partiu, com seu jeito doce e obstinado, de cigarro na boca.

O nervosismo de Etienne aumentava. Era uma hora; decididamente Pluchart faltaria à palavra dada. Por volta de uma e meia os delegados começaram a aparecer, e ele, enquanto os recebia, vigiava as entradas, receoso de que a companhia mandasse seus espiões habituais. Examinava cada carta de convocação, perscrutava os rostos. Mas muitos entravam sem a carta, bastava conhecê-los para abrir-lhes a porta. Às duas horas chegou Rasseneur, que terminou de fumar seu cachimbo diante do balcão, conversando calmamente. Essa calma zombeteira acabou de enervá-lo, ainda mais que tinham vindo uns irresponsáveis, só para se divertirem, como Zacharie, o jovem Mouque e outros; eram os que não se importavam com a greve e achavam ótimo não fazer nada. E, sentados a

uma mesa, gastando os últimos dois soldos numa cerveja, riam, faziam troça dos camaradas, dos convictos, que iam morrer de tédio naquela reunião.

Decorreram mais quinze minutos. A assistência começava a dar mostras de impaciência. Etienne, já desesperado, decidiu-se; ia entrar quando a viúva Désir, que espiava a rua, exclamou:

— Aí vem o homem!          

Realmente, era Pluchart. Vinha num carro puxado por um cavalo atacado de tuberculose pulmonar. Foi logo saltando para o chão, franzino, bem parecido, de cabeça quadrada e muito grande, usando por baixo da sobrecasaca de pano preto os complementos domingueiros típicos de um operário rico. Havia cinco anos que não negava na lima, e cuidava do seu aspecto, sobretudo dos cabelos, penteados com correção, vaidoso dos seus sucessos na tribuna. Mas conservava certo endurecimento nas articulações e as unhas das suas mãos largas não cresciam, roídas pelo ferro. Sendo muito ativo, percorria a província sem descanso para divulgar suas idéias.

— Não me queiram mal! — disse ele, adiantando-se às perguntas e recriminações. — Ontem, conferência em Preuilly pela manhã e reunião em Valençay à tarde. Hoje, almoço em Marchiennes com Sauvagnat... Afinal, pude tomar este carro. Estou exausto, podem ver pela minha voz. Mas não tem importância, falarei do mesmo jeito.

Estava na soleira da porta do Bon-Joyeux quando estacou, exclamando:

— Diacho! estava esquecendo as fichas! Ficaríamos a ver navios!

Voltou ao carro, que já estava sendo manobrado pelo cocheiro, e tirou do guarda-volume uma pequena caixa preta de madeira, que levou debaixo do braço.

Etienne, radiante, seguia-o de perto, enquanto Rasseneur, profundamente abatido, nem ousava estender-lhe a mão. Mas o outro já a apertava, falando de passagem sobre a carta: que idéia a dele! Por que não fazer a reunião quando se apresentava a oportunidade?

A viúva Désir perguntou-lhe se queria beber alguma coisa, mas ele recusou. Não era preciso, falaria sem beber. Apenas, tinha pressa, pretendia ainda dar um pulo a Joiselle para um encontro com Legoujeux.

Entraram então em grupo no salão de baile, seguidos de Maheu e Levaque, que chegavam atrasados. E a porta foi fechada a chave, por medida de segurança, o que fez os trocistas inventarem mais ditos espirituosos, Zacharie gritando ao jovem Mouque que talvez eles fossem fazer um filho todos juntos para se encerrarem dessa maneira.

Uns cem mineiros, sentados nos bancos, esperavam no ar abafado do recinto, de cujo soalho o suor nauseabundo do último baile se evaporava. Houve cochichos, olhares para a porta, enquanto os recém-chegados sentavam nos lugares vazios. O senhor de Lille foi detidamente examinado, sua sobrecasaca preta causou surpresa e inquietação.

Mas imediatamente, sob proposta de Etienne, votou-se a composição da mesa. Ele lançava os nomes e os outros aprovavam levantando a mão. Pluchart foi eleito presidente, tendo como assessores Maheu e o próprio Etienne. Houve um arrastar de cadeiras e a mesa diretora instalou-se. Por um instante procurou-se o presidente agachado atrás da escrivaninha, sob a qual guardava a caixa que não tinha largado. Ao reaparecer, bateu ligeiramente com a mão, pedindo atenção, e em seguida começou com voz rouquenha:

— Cidadãos...

Uma portinhola se abriu e ele teve de interromper a fala. Era a viúva Désir, que dera a volta pela cozinha e trazia seis copos de cerveja sobre uma bandeja.

— Continue, continue... — murmurou ela. — Falar dá sede... Maheu auxiliou-a e Pluchart pôde continuar. Disse estar muito comovido com a acolhida que lhe fora dispensada pelos trabalhadores de Montsou, desculpou-se do atraso, alegando cansaço e doença de garganta. Em seguida deu a palavra ao cidadão Rasseneur, que a pedia.

Rasseneur dirigiu-se imediatamente para a mesa e colocou-se ao lado das cervejas. Uma cadeira emboscada serviu-lhe de tribuna. Parecia muito comovido, tossiu antes de lançar com voz tonitruante um:

— Camaradas!...

A sua influência sobre os mineiros era resultante dessa facilidade de palavra, da simplicidade com a qual podia falar durante horas, sem nunca cansar. Não gesticulava, permanecia sólido e risonho, afogava-os, atordoava-os até vê-los gritar: "Sim, sim, é verdade, tens razão!" Naquele dia, porém, desde as primeiras palavras, sentira uma oposição surda; por isso, avançava com prudência. Só falou sobre a continuação da greve, esperando ser aplaudido para então atacar a Internacional.

Sem dúvida, a hora proibia ceder às exigências da companhia, mas quanta miséria, que futuro terrível se tivessem de continuar resistindo ainda por muito tempo! E, sem se pronunciar pela submissão, amolecia os ânimos, mostrava os conjuntos habitacionais mineiros famintos, perguntava com que recursos contavam os partidários da resistência.

Três ou quatro amigos tentaram apoiá-lo, o que veio atenuar o silêncio frio da maioria, a desaprovação cada vez mais irritada que acolhia suas palavras.'

Desistindo de reconquistá-los, presa de cólera, predisse-lhes desgraças se se deixassem virar a cabeça por provocações vindas do estrangeiro.

Dois terços da assistência erguera-se furiosa, querendo impedi-lo de continuar falando, uma vez que a insultava, tratando-a como crianças incapazes de se dirigirem.

Rasseneur, bebendo enormes goles de cerveja, continuou falando em meio ao tumulto, gritando fora de si que ainda não tinha nascido o valentão que o impediria de cumprir com seu dever.

Pluchart pusera-se em pé. Como não tinha campainha, batia com o punho na mesa, repetindo com sua voz sem volume:

— Cidadãos... cidadãos...

Por fim obteve algum silêncio e a assembléia, consultada, cassou a palavra a Rasseneur. Os delegados que tinham representado as minas na entrevista com o diretor guiaram os outros, todos trabalhados pela fome, cheios de idéias novas. Foi uma vitória ganha antes mesmo da votação.

— A ti que te importa, comes todos os dias! — berrou Levaque, mostrando o punho a Rasseneur.

Etienne curvara-se por trás do presidente, para acalmar Maheu, muito vermelho, fora de si com aquele discurso hipócrita.

— Cidadãos — disse Pluchart —, deixem-me falar.

Fez-se um profundo silêncio e ele falou. Sua voz saía com esforço e rouca, mas já estava habituado, pois andava sempre na estrada, passeando sua laringite com o seu programa. Pouco a pouco sua voz ia subindo e conseguia arrancar-lhe efeitos patéticos. Os braços abertos acompanhavam os períodos com um balançar de ombros. Tinha uma eloqüência de sermão, uma maneira religiosa de deixar cair o final das frases, cujo bramido monótono acabava por convencer.

Pronunciou um discurso sobre a grandeza e utilidade da Internacional, que era o primeiro da sua bagagem oratória nas localidades em que estreava. Explicou a finalidade da organização: a emancipação dos trabalhadores; mostrou sua estrutura grandiosa: na base a comuna, depois a província, em seguida a nação e no topo a humanidade. Seus braços se moviam lentamente, empilhando os andares, erigindo a imensa catedral do mundo futuro. Depois, veio a administração interna: leu os estatutos, falou dos congressos, ressaltou a crescente importância da obra, o aprofundamento do programa,

que, partindo da discussão dos salários, tratava agora da liquidação social, para terminar no sistema assalariado. A liquidação das nacionalidades, os operários do mundo inteiro congregados num desejo comum de justiça, varrendo a podridão burguesa, fundando, enfim, a sociedade livre, onde aquele que não trabalhasse não comeria! Seus bramidos faziam estremecer as flores de papel pintado pendentes do teto enfumaçado, cuja altura oprimente devolvia o fragor de sua voz. Uma onda agitou a platéia. Alguns gritaram:

— É isso!... Estamos de acordo!

Ele prosseguiu. Era a conquista do mundo antes de três anos. Nesse ponto enumerou os povos conquistados. As adesões choviam de todos os lados. Nunca uma religião nascente fizera tantos fiéis. Depois, quando fossem os vencedores, ditariam a lei aos patrões, seria a vez de eles apertarem o nó no pescoço dos ricos.

— Muito bem! Muito bem! A vez deles chegará!

Pediu silêncio com um gesto. Começou a abordar o problema das greves. Em princípio, desaprovava-as, eram um meio muito lento, que antes agravava os sofrimentos do operário. Mas, enquanto a situação não mudava e sendo elas inevitáveis, então devia-se seguir esse caminho, pois tinham a vantagem de desorganizar o capital. E, nesse caso, apontava a Internacional como uma providência para os grevistas, citava exemplos: em Paris, quando da greve dos fundidores de bronze, os patrões tinham concordado com tudo de uma só vez, tomados de terror com a notícia de que a Internacional enviaria socorros; em Londres ela salvara os mineiros de uma hulheira, repatriando por sua conta um grupo de belgas, chamados pelo proprietário da mina. Apenas com a adesão, as companhias tremiam, os operários entravam para o grande exército dos trabalhadores, decididos a morrer uns pelos outros ao invés de continuarem escravos da sociedade capitalista.

Interromperam-no os aplausos. Ele enxugava a testa com o lenço, voltando a recusar um copo de cerveja que Maheu lhe oferecia. Quando quis prosseguir, novos aplausos não o deixaram falar.

— Chega! — disse ele rapidamente a Etienne. — Já estão prontos... Depressa! as fichas!

Mergulhou debaixo da mesa e reapareceu com a pequena caixa de madeira preta.

— Cidadãos! — gritou ele, dominando a algazarra. — Aqui estão as fichas de inscrição. Por favor, que se aproximem os delegados, eles as distribuirão. As contas serão feitas mais tarde.

Rasseneur levantou-se para protestar mais uma vez. Por seu lado Etienne agitou-se, pois queria fazer um discurso. Seguiu-se uma total' confusão. Levaque gesticulava, como se estivesse brigando. Maheu, em pé, falava, sem que se ouvisse uma só palavra do que dizia Naquele tumulto infernal, a poeira subia do soalho, a mesma poeira volátil dos antigos bailes, empestando a atmosfera com o cheiro forte das operadoras de vagonetes e dos aprendizes.

Bruscamente a portinhola abriu-se e a viúva Désir obstruiu-a com sua barriga e seus seios, dizendo com voz trovejante

— Fiquem quietos, pelo amor de Deus! Os policiais estão aí!

Era o comissário da circunscrição que chegava, um pouco tarde, para lavrar um auto e dissolver a reunião. Quatro policiais o acompanhavam. Havia cinco minutos que a viúva os barrava à porta, alegando que estava em sua casa e tinha o direito de reunir amigos. Mas tinha sido empurrada e viera correndo prevenir sua ninhada.

— Fujam por aqui — ofegou ela. — Há um canalha de policial guardando o pátio, mas não tem importância, meu depósito de lenha dá para o beco. Vamos, depressa!

O comissário já estava esbordoando a porta, que, como não se abrisse, ele ameaçava arrombar. Algum espião tinha-o informado, porque ele gritava que a reunião era ilegal, já que um grande número de mineiros entrara ali sem convite.

Na sala a confusão era cada vez maior. Não podiam ir embora dessa maneira, nem sequer tinham votado, seja pela adesão, seja pela continuação da greve. Todos insistiam em falar ao mesmo tempo. Finalmente o presidente teve a idéia de um voto por aclamação. Braços ergueram-se, os delegados declararam às pressas que aderiam em nome dos camaradas ausentes. E foi assim que os dez mil mineiros de Montsou tornaram-se membros da Internacional.

Depois disso começou a debandada. Protegendo a retirada, a viúva Désir encostara-se à porta que as coronhas dos policiais faziam estremecer de encontro a ela. Os mineiros pulavam por cima dos bancos, escapavam em fila através da cozinha e do depósito de lenha. Rasseneur foi um dos primeiros a desaparecer, seguido de Levaque, que já esquecera as injúrias e sonhava com que o outro lhe oferecesse uma cerveja, para se refazer. Etienne, depois de ter-se apoderado da caixa, esperava com Pluchart e Maheu, que tinham como ponto de honra serem os últimos a sair. Quando estes abandonaram o recinto, a fechadura saltou e o comissário achou-se frente a frente com a viúva, cujos seios e barriga ainda formavam uma barricada.                 

— Não adiantou de nada quebrarem tudo o que é meu! — exclamou ela. — Não há ninguém aqui.

O comissário, homem preguiçoso, que não gostava de dramas, ameaçou-a simplesmente de metê-la na cadeia. E logo foi embora para lavrar o auto, levando consigo os quatro policiais, sob as chacotas de Zacharie e do jovem Mouque, que, cheios de admiração com a peça pregada pelos companheiros, ridicularizavam a força armada.

No beco, Etienne, sem saber o que fazer com a caixa, correu, seguido dos outros. Lembrou-se repentinamente de Pierron e perguntou por que ele não fora visto. Maheu, sempre correndo, respondeu que estava doente, uma doença fictícia, medo de se comprometer.

Quiseram reter Pluchart, mas ele, sem parar, declarou que partia imediatamente para Joiselle, onde Legoujeux esperava instruções. Desejaram-lhe então boa viagem, não pararam de correr, atravessando Montsou a toda a brida. Frases, entrecortadas pelo arquejar da respiração, foram trocadas. Etienne e Maheu riam confiantes, certos agora do triunfo: quando a Internacional mandasse socorros, seria a vez de a companhia implorar para que voltassem ao trabalho. E naquele impulso de entusiasmo, no galope dos sapatos grossos soando na estrada, havia uma outra coisa, alguma coisa de sombrio e feroz, uma violência cujo vento iria incendiar os conjuntos habitacionais mineiros, nos quatro cantos do país.

Transcorreu outra quinzena. Estava-se nos primeiros dias de janeiro, feitos de brumas frias que entorpeciam a imensa planície. E a miséria era cada vez maior, os conjuntos habitacionais agonizavam com a penúria crescente. Quatro mil francos enviados de Londres, pela Internacional, não chegaram para dois dias de pão. Depois, nada mais veio. Esta grande esperança morta abatia os espíritos. Com quem contar agora, já que até os próprios irmãos os abandonavam? Sentiam-se perdidos no meio do brutal inverno, isolados do mundo.

Na terça-feira faltou tudo no conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante. Etienne e os demais delegados tinham feito o podiam: abriram novas subscrições nas cidades vizinhas, e até em Paris; lançaram pedidos; organizaram conferências. Seus esforços quase não tiveram resultados; a opinião pública, que a princípio se comovera, tornou-se indiferente com a infinita duração da greve, calma demais, sem dramas apaixonantes. As magras esmolas mal negavam para alimentar as famílias mais pobres. As outras viviam empenhando o que tinham, vendendo peça por peça as coisas da casa. Tudo ia parar no brechó, a lã dos colchões, os utensílios de cozinha, até os móveis.

Por um momento julgaram-se salvos; foi quando os pequenos varejistas de Montsou, asfixiados por Maigrat, ofereceram crédito, numa tentativa para recuperar a freguesia. Durante uma semana, o merceeiro Verdonck e os dois padeiros Carouble e Smelten efetivamente cumpriram a promessa, mas em seguida pararam. Quem se alegrou com isso foram os cobradores judiciais, porque o resultado foi um aumento de dívidas, que por muito tempo ainda deveria pesar sobre os mineiros. Agora que o crédito acabara e nem sequer uma panela velha tinham para vender, podiam jogar-se a um canto e esperar pela morte, como cães sarnentos.

Etienne, por eles, daria a própria vida. Renunciara ao seu ordenado, fora a Marchiennes empenhar suas calças e sobrecasaca de lã, sentindo-se feliz de poder fazer continuar no fogo a panela dos Maheu. Ficara apenas com as botas; poupara-as para continuar sentindo o chão firme sob os pés, dizia ele.

Sentia profundo desespero por ter sido a greve deflagrada muito cedo, quando a caixa de previdência ainda não tivera tempo de ter recursos suficientes. Via nisso a causa única do desastre, porque os operários triunfariam certamente sobre os patrões no dia em que tivessem dinheiro economizado suficiente para resistir. Lembrou-se então das palavras de Suvarin acusando a companhia de provocar a greve para destruir os primeiros fundos da caixa.

A visão do conjunto habitacional, daquela pobre gente sem pão e sem fogo, angustiava-o. Preferia sair, fatigar-se com longos passeios. Uma noite, quando voltava, nas imediações de Réquillart, percebeu uma velha desmaiada na beira da estrada. Sem dúvida estava morrendo de inanição. Tendo-a erguido, pós-se a chamar uma mulher que via do outro lado do tapume.

— Ah, és tu! — disse ele, reconhecendo a filha de Mouque. — Vamos, ajuda-me... Ela tem que tomar algum alimento.

A moça, chorando de compaixão, correu a casa, ao pardieiro oscilante que seu pai instalara no meio dos escombros; voltou em seguida com genebra e um pão. A genebra ressuscitou a velha, que, em silêncio, mordeu gulosamente o pão. Era a mãe de um mineiro que vivia num conjunto habitacional para os lados de Cougny, e caíra ali quando voltava de Joiselle, onde fizera esforços baldados para conseguir dez soldos emprestados com uma irmã. Assim que comeu, partiu, ainda tonta.

Etienne ficou parado no meio do terreno baldio de Réquillart, cujos galpões desabados desapareciam sob o matagal.

— Não queres entrar para beber alguma coisa? — perguntou a filha de Mouque alegremente.

E como ele hesitasse:

— Então, continuas com medo de mim?

Seguiu-a, conquistado por seu sorriso. Aquele pão que dera com tão boa vontade comovia-o.

Ela não quis que ficassem no quarto do pai e levou-o para o seu, onde foi logo servindo dois copinhos de genebra. O quarto era muito limpo e ele a cumprimentou por isso. A verdade é que não parecia faltar nada à família: o pai continuava com o seu trabalho de cavalariço na Voreux e ela, com a desculpa de que não queria ficar de braços cruzados, fizera-se lavadeira, o que lhe rendia trinta soldos por dia. Gostava de farrear com os homens, mas nem por isso lhe apetecia permanecer o dia inteiro deitada.

— Escuta... — murmurou ela de repente, agarrando-o meigamente pela cintura. — Por que não queres andar comigo?

Disse aquilo de uma maneira tão graciosa, que ele não pôde conter-se e sorriu também.

— Mas eu te quero muito bem — respondeu o rapaz.

— Não da maneira como eu gosto... Tu sabes que morro de desejo... Vamos? Tu me darias um grande prazer!

Era verdade; corria atrás dele havia seis meses. Bastava olhá-la para que se atirasse, apertando-o em seus braços frementes, o rosto levantado e com tal súplica amorosa que ele acabou comovendo-se. Sua cara de lua cheia não era bonita, com a tez encardida, escalavrada pelo carvão. Mas seus olhos eram tão ardentes, sabia ser tão encantadora, palpitava com tal desejo, que parecia mais jovem e rosada.

Agora, diante daquela entrega cheia de humildade e ardor, ele não resistiu mais.

— Tu queres! Tu queres! — balbuciou ela, maravilhada.

E entregou-se com uma imperícia e um êxtase de virgem, como se fosse aquela a primeira vez, como se nunca tivesse conhecido homem. Ao deixá-la, ela beijou-lhe as mãos e agradeceu.

Etienne ficou algo envergonhado com aquela boa sorte inesperada.

Ninguém se gabava de ter possuído a filha de Mouque. Ao partir, jurou não mais voltar. Mas assim mesmo guardou uma lembrança amável, era uma boa moça.

Quando chegou ao conjunto habitacional, as graves notícias que lhe comunicaram fizeram que esquecesse a aventura. Corria o boato de que a companhia talvez estivesse

disposta a fazer uma concessão se os delegados tentassem uma nova diligência com o diretor. Pelo menos era isso o que tinha sido espalhado pelo contramestre. A verdade era que, na luta travada, a mina sofria ainda mais que os mineiros. De ambos os lados a obstinação só fazia ruínas: enquanto o trabalho morria de fome, o capital se destruía. Cada dia de greve consumia milhões de francos. Máquina parada é máquina morta. As ferramentas e o material iam sendo corroídos, o dinheiro imobilizado sumia, como água que a areia absorve. Com o esgotamento do estoque de hulha armazenado no pátio das minas, a freguesia começou a dizer que ia dirigir-se à Bélgica. Havia nisso uma ameaça futura. Mas o que mais assustava a companhia, o que ela ocultava com cuidado, eram os estragos crescentes nas galerias e nos veios. Os contramestres não bastavam para os consertos, o madeiramento estava rachando por toda parte, havia desabamentos a todo o instante. Dentro em pouco os desmoronamentos seriam de tal monta que necessitariam longos meses de reparação, antes que pudesse continuar a extração. A região já andava cheia de histórias: em Crèvecoeur, trezentos metros de via tinham caído, obstruindo o acesso ao veio Cinq-Paumes: na Madeleine, o veio Maugrétout esfarelara-se e estava ficando inundado. A direção recusava confirmar tais histórias, mas, de repente, dois acidentes, um atrás do outro, obrigaram-na a confessar. Uma manhã, perto da Piolaine, encontraram o solo fendido por cima da galeria norte da Mirou, que desmoronara na véspera; no dia seguinte foi um aluimento interior na Voreux que abalou toda uma faixa do subúrbio, fazendo que duas casas quase fossem tragadas.

Etienne e os delegados hesitavam em arriscar-se numa nova diligência, sem conhecerem as intenções da administração. Procuraram Dansaert, que evitou responder claramente: por certo deploravam o mal-entendido, fariam tudo ao seu alcance para chegar a uma solução. Mas ficava nisso, não se definia. Os mineiros decidiram-se por fazer uma visita ao Sr. Hennebeau, mostrando assim que eram razoáveis. Não queriam ser acusados mais tarde de terem recusado à companhia a oportunidade de reconhecer seus erros.

Mas juraram não ceder em nada, manter de qualquer maneira as suas condições, que eram as únicas justas.

A entrevista teve lugar na terça-feira de manhã, o dia em que o conjunto habitacional caiu na mais negra miséria. O encontro foi menos cordial que o primeiro. Maheu falou outra vez, explicou que seus companheiros o enviavam para saber se a companhia tinha alguma coisa de novo a dizer-lhes.

Primeiro, o Sr. Hennebeau fingiu-se surpreendido: não recebera novas ordens, as coisas continuariam no mesmo pé enquanto os mineiros insistissem nessa revolta execrável. A atitude rígida e autoritária do diretor produziu efeitos tão funestos que, se os delegados tivessem vindo com intenções conciliadoras, a maneira com que foram recebidos teria bastado para torná-los ainda mais intransigentes. Em seguida, o patrão achou melhor resvalar para um terreno de concessões mútuas: se os operários aceitassem o pagamento do revestimento à parte, a companhia aumentaria esse pagamento com os dois cêntimos de que era acusada de lucrar. Aliás, disse ele, fazia tal oferta por sua conta e risco, nada estava resolvido, prometia apenas obter essa concessão de Paris.

Os delegados não aceitaram a oferta e repetiram suas exigências: a manutenção do sistema antigo, com uma alta de cinco cêntimos por vagonete.

Então ele confessou que podia dar andamento ao que prometera imediatamente, insistiu para que aceitassem, por amor de suas mulheres e filhos morrendo de fome. Mas os mineiros, de cabeça baixa, irredutíveis, continuaram dizendo não e não, com um menear feroz.

Separaram-se brutalmente, o Sr. Hennebeau batendo as portas, Etienne, Maheu e os outros indo embora, batendo seus grossos tacões estrada afora, com a raiva muda dos vencidos levados às últimas conseqüências.

Nesse mesmo dia, às duas horas, as mulheres dos mineiros, por seu lado, fizeram uma tentativa com Maigrat. Era a última esperança, comover aquele homem, arrancar-lhe mais uma semana de crédito. Fora idéia da mulher de Maheu, que muitas vezes contava demais com o bom coração das pessoas. Convenceu a Queimada e a mulher de Levaque a acompanharem-na. A de Pierron desculpou-se, dizendo que não podia deixar o marido, que ainda não estava bem curado. Outras mulheres se juntaram ao grupo; eram bem umas vinte. Quando a burguesia de Montsou as viu chegando, tomando toda a largura da estrada, sombrias e miseráveis, balançou a cabeça inquieta. Portas se fecharam, uma senhora escondeu a prataria. Era a primeira vez que apareciam todas juntas, um péssimo sinal; quando as mulheres percorriam em bandos as estradas, tudo estava por ir água abaixo.

No Maigrat houve uma cena violenta. Primeiro, ele mandou-as entrar, às gargalhadas, fingindo crer que vinham para pagar as contas: quanta amabilidade virem em comissão para pagar tudo de uma só vez! Mas depois, assim que a mulher de Maheu começou a falar, ele deu-se ares de zangado. Então, estavam zombando dele? Estavam

planejando levá-lo à bancarrota com esse pedido de novo crédito, ou o quê? Não! Nem mais uma batata, nem mais uma migalha de pão! Que fossem ao merceeiro Verdonck, aos padeiros Carouble e Smelten, já que era com eles que se abasteciam! As mulheres o escutaram cheias de uma humildade medrosa, desculparam-se, espiaram nos seus olhos para ver se descobriam algum sinal de amolecimento. Ele recomeçou com as brincadeiras, ofereceu seu armazém à Queimada se ela o aceitasse como amante. Para agradá-lo, na covardia da miséria, riram; a mulher de Levaque foi mais longe, disse que aceitava a proposta. Mas logo ele voltou ao tom grosseiro e empurrou-as para a porta. Como insistissem, deu um safanão numa delas. As outras, já do lado de fora, chamaram-no vendido, enquanto a mulher de Maheu levantava os braços num impulso de indignação vingadora, pedindo a sua morte, gritando que um homem daquele não merecia comer.

A volta para o conjunto habitacional foi lúgubre. Quando as mulheres entraram em casa com as mãos vazias, os homens as olharam em silêncio e baixaram a cabeça. Era o fim... o dia terminaria sem uma colherada de sopa, e os outros dias por vir estavam envoltos numa sombra gelada, onde não luzia uma única esperança. Mas tinham querido assim, ninguém falou em render-se. Tal excesso de miséria só servia para torná-los ainda mais obstinados, mudos, verdadeiros animais acuados, preferindo morrer no fundo da toca a sair. Quem ousaria falar em submeter-se? Tinham feito um juramento em comum de resistirem juntos, e resistiriam, como quando na mina eram um só homem, quando lutavam para salvar um companheiro soterrado. Agüentariam, tinham aprendido a resignação numa boa escola; podiam perfeitamente apertar o cinto por oito dias — não engoliam fogo e água desde a idade de doze anos? E à sua resignação misturava-se um orgulho de soldado, de homens orgulhosos de sua profissão, temperados na luta diária contra a morte, ufanos do sacrifício.

Em casa dos Maheu a noite foi terrível. Todos permaneceram calados, em frente ao fogo que morria, onde fumegavam os últimos restos de carvão.

Após terem esvaziado os colchões, pouco a pouco, na antevéspera decidiram vender o relógio de cuco por três francos, e, agora, a sala parecia nua e morta, sem o tique-taque familiar que a enchia com seu ruído. O único luxo que restava era a caixa de cartão cor-de-rosa no centro do guarda-comida, antigo presente de Maheu, que a mulher guardava como uma jóia. As duas cadeiras em bom estado tinham partido: o velho Boa-Morte e as crianças apertavam-se num banco carcomido, trazido do jardim. E o crepúsculo lívido que descia dava a impressão de aumentar o frio.

— O que fazer? — repetiu a mulher, acocorada junto ao fogão. Etienne, em pé, olhava para os retratos do imperador e da imperatriz, colados na parede. Já os teria arrancado há muito tempo, não fosse a família, que os tinha ali como decoração. De repente murmurou de dentes cerrados:

— E dizer que ninguém daria dois soldos por esses cretinos que observam a gente morrer de fome!

— E se eu levasse a caixa? — perguntou a mulher muito pálida, após uma hesitação.

Maheu, sentado na borda da mesa, com as pernas balouçantes e a cabeça no peito, empertigou-se.

— Não, não quero!

A mulher levantou-se com dificuldade e deu uma volta pela sala. Como podia Deus deixar que fossem reduzidos àquela miséria! O guarda-comida sem uma migalha, nada para vender, nem mesmo uma idéia de como conseguir um pão... E o fogo estava morrendo! Irritou-se contra Alzire, a quem tinha mandado pela manhã ao aterro para catar restos de carvão, e voltara de mãos abanando, dizendo que a companhia proibira a entrada. E quem é que se importava com as ordens da companhia? Como se fosse um roubo juntar uns miseráveis pedaços de carvão! A menina, desesperada, contou que um homem ameaçara dar-lhe uns tapas; prometeu em seguida voltar ao aterro no outro dia e trazer carvão, mesmo que a espancassem.

— E o malandro do Jeanlin, por onde andará? É isso o que eu quero saber! — gritou a mãe. — Deveria trazer a verdura para a salada, pelo menos a gente pastava, como os animais! Vocês vão ver como ele não volta para casa. Ontem já não dormiu aqui. Não sei o que poderá andar fazendo, mas tem jeito de estar sempre com a pança cheia.

— Talvez ande recolhendo dinheiro na estrada — disse Etienne.

A mulher brandiu os punhos, fora de si.

— Se eu souber que é isso!... Meus filhos pedindo esmolas! Preferia matá-los e matar-me depois.

Maheu estava novamente prostrado, sentado sobre a mesa. Lénore e Henri, admirados com a falta de comida, começavam a gemer, enquanto o velho Boa-Morte, silencioso, enrolava filosoficamente a língua na boca, para enganar a fome.

Ninguém falou mais, havia uma espécie de insensibilidade em todos, resultante da enorme carga de desgraças. O avô tossindo, cuspindo preto, novamente vítima de reumatismo, que se estava transformando em hidropisia; o pai asmático, os joelhos

cheios de água; a mãe e as crianças minadas pelas escrófulas e a anemia hereditárias. Mas tudo isso eram os cavacos do ofício; só se queixavam quando a falta de alimentação ia dando cabo de todos eles. No conjunto habitacional já se morria como moscas. Contudo, precisavam encontrar o que comer. Que fazer, onde ir, meu Deus?

Então, no crepúsculo, cuja tristeza lenta tornava a sala cada vez mais escura, Etienne, que hesitava havia um momento, decidiu-se com o coração partido.

— Esperem um momento — disse ele. — Vou ver se consigo alguma coisa e já volto.

E saiu. Lembrara-se da filha de Mouque. Ela devia ter um pão, que lhe daria de bom grado. A idéia de ter que voltar a Réquillart custava-lhe bastante sacrifício; a moça ia beijar-lhe as mãos, com ar de escrava enamorada. Mas não podia deixar os amigos naquela aflição, e, se fosse preciso, faria o que ela quisesse.

— Eu também vou ver — disse por sua vez a mulher de Maheu. — Isto é demais...

Abriu novamente a porta nas pegadas do rapaz e puxou-a com força, deixando os outros imóveis e mudos, na claridade bruxuleante de um toco de vela que Alzire acabava de acender.

Na rua, a mulher parou para refletir, depois entrou na casa dos Levaque.           

— Será que podias pagar-me o pão que te emprestei outro dia? Mas interrompeu-se, o que via não lhe dava coragem para continuar falando: a casa transpirava mais miséria do que a sua.

A mulher de Levaque, os olhos fixos, encarava o fogo apagado, enquanto o marido, embriagado por pregueiros, dormia sobre a mesa, de estômago vazio. Encostado à parede, Bouteloup rascava maquinalmente os ombros, com a pasmaceira de um pobre-diabo a quem rasparam as economias e que se admira de não ter o que comer.

— Um pão? Mas, minha cara, eu ia justamente à tua casa pedir outro emprestado... — respondeu a mulher de Levaque.

E, como o marido grunhisse de dor no seu sonho, bateu-lhe com a cabeça na mesa.

— Fica quieto, porco! Tomara que estejas com as tripas em fogo! Em vez de aceitar bebidas, devias ter pedido vinte soldos emprestados a um amigo.

E continuou praguejando, desabafando, no meio da imundície da casa, tanto tempo entregue às baratas, que já exalava um fedor insuportável do próprio chão. Podia tudo ir para o inferno, não se importava! Seu filho, o patife do Bébert, desaparecera desde a manhã. E ela gritava que assim estava ótimo, que era menos um, tomara que nunca

mais voltasse. Depois disse que ia dormir; ao menos se aqueceria. Deu um empurrão em Bouteloup.

— Vamos, sobe! O fogo apagou, não há necessidade de acender a vela para ver os pratos vazios... Vens ou não vens, Louis? Já disse que vamos dormir... A gente fica bem juntinho, será um conforto. E que esse porco bêbado rebente de frio sozinho aqui embaixo.

Ao ver — se na rua, a mulher de Maheu atalhou resolutamente pelos jardins para ir à casa dos Pierron. Ouviu risadas. Quando bateu, houve um silêncio repentino. Levaram um bom tempo para abrir a porta.

— Ah, és tu! — exclamou a dona da casa, fingindo grande surpresa. — Pensei que fosse o médico.

Sem deixar a outra falar, ela continuou, mostrou Pierron sentado em frente a um grande fogo de hulha.

— Ele continua mal, continua mal, o coitado. O semblante é bom, mas a barriga está em petição de miséria. Precisa de muito calor, a gente tem de queimar tudo o que há.

Realmente, Pierron tinha ótimo aspecto, a tez rosada, a carnação rija. Resfolegava em vão, para fingir que estava doente. Ao entrar, a mulher de Maheu sentiu forte cheiro de coelho: certamente tinham escondido os pratos. Havia migalhas sobre a mesa, e, bem no meio dela, percebeu uma garrafa de vinho esquecida.

— Mamãe foi a Montsou para ver se arranjava um pão — continuou a outra. — Estamos aqui morrendo de fome.  Mas parou de falar; tinha seguido o olhar da vizinha e notou a garrafa Em seguida refez-se e contou uma história: aquela garrafa de vinho era uma dádiva dos burgueses da Piolaine para seu marido, a quem o médico receitara bordô. E não parou mais de demonstrar sua gratidão: que boa gente! a senhorita, principalmente, que não envergonhava de entrar em casa de operário para distribuir suas esmolas.

— Eu sei — disse a outra. — Já os conheço.

À idéia de que o bem vai sempre para os que menos precisam, seu coração confrangeu-se. Era sempre assim: os burgueses da Piolaine tinham jogado água no mar... Mas como não os vira no conjunto habitacional? Talvez tivesse conseguido alguma coisa deles.

— Vim aqui — confessou ela enfim — para ver se estavam em melhor situação do que nós... Terias um pouco de aletria para me emprestar? Pago na primeira oportunidade.

A outra armou um verdadeiro escarcéu.

— Mas não temos absolutamente nada, minha querida! Nem mesmo aquilo que se chama um grão de sêmola. Se a mamãe não voltar é porque não conseguiu nada, e teremos de ir dormir de estômago vazio.

Nesse momento veio um choro da adega e ela deu um soco na porta. Era a vagabunda da Lydie que estava trancada — dizia ela —, de castigo por só ter voltado para casa às cinco horas, após um dia inteiro ao deus-dará. Menina indomável, sempre desaparecendo!

A mulher de Maheu continuava parada, sem se resolver a ir embora. Aquele fogo generoso penetrava-a de um bem-estar magoado, a idéia de que ali havia comida aumentava a sua fome. Era evidente: tinha mandado a velha embora e encerrado a menina para empanturrarem-se com o coelho. Ah! por mais que dissessem, quando uma mulher se portava mal, isso trazia felicidade para o lar!

— Boa noite! — disse ela de repente.

Na rua estava escuro, era noite fechada, e a lua, entre as nuvens, iluminava a terra de uma maneira sinistra. Em vez de atalhar pelos jardins, a mulher fez a volta, desesperada, não ousando entrar em casa. Mas, ao longo das fachadas mortas, todas as portas ressudavam fome e inércia. De que adiantava bater? A miséria estava por toda parte. Havia semanas que não se comia mais, o próprio cheiro de cebola tinha desaparecido, esse cheiro forte que de longe, do campo, anunciava o conjunto habitacional; agora só havia um odor de porões bolorentos, de buracos úmidos onde ninguém vive. Os ruídos vagos iam esmorecendo aos poucos: eram lágrimas abafadas pragas soltas ao léu. E o silêncio era cada vez mais pesado, sentia-se avançar o sono da fome, o esquecimento dos corpos jogados nas camas, sob os pesadelos dos estômagos vazios.

Como passasse em frente à igreja, viu uma sombra esgueirar-se rapidamente. Cheia de esperança, apressou o passo, pois tinha reconhecido o pároco de Montsou, o Padre Gere, que dizia a missa de domingo na capela do conjunto habitacional; sem dúvida saía da sacristia, onde estivera resolvendo algum problema.

De ombros caídos, ele caminhava rápido com seu ar de homem gordo e calmo, desejoso de viver em paz com todo mundo. Se viera resolver seu problema à noite, era para não se comprometer no meio dos mineiros. Aliás, dizia-se que ele acabava de ser promovido; e, de fato, já fora visto em companhia do seu sucessor, um padre magro, com dois olhos que pareciam brasas.

— Senhor pároco, senhor pároco! — gaguejou a mulher. Mas ele não parou.

— Boa noite, boa noite, minha filha.

Ela estava defronte de casa. Suas pernas já não agüentavam mais. Entrou.

Todos permaneciam nos mesmos lugares: Maheu, derreado, continuava sentado na mesa; o velho Boa-Morte e as crianças apertados uns contra os outros no banco, para terem menos frio... E nenhuma palavra tinha sido trocada; apenas a vela continuava ardendo e já estava no fim, dentro em pouco a luz também faltaria.

Ao barulho da porta as crianças levantaram os olhos, mas, vendo que a mãe não trazia nada, voltaram a baixá-los, sofreando uma enorme vontade de chorar, com medo de serem repreendidos. A mulher voltou ao seu lugar, perto do fogo mortiço. Ninguém fez perguntas e o silêncio continuou. Todos tinham compreendido, julgavam inútil gastar esforços em conversas. Aferravam-se agora a uma esperança mínima, desencorajada, a esperança derradeira do socorro de Etienne, que talvez iria descobrir alguma coisa, em algum lugar. Os minutos continuaram a transcorrer, já nem os contavam mais.

Quando Etienne voltou, trazia enrolada, num pano de cozinha, uma dúzia de batatas cozidas e frias.  

— Foi tudo o que pude conseguir — disse ele.

Também na casa de Mouque estava faltando o pão; era o seu jantar que a moça lhe metera à força entre as mãos, beijando-o com toda a ternura.

— Obrigado — respondeu ele à mulher de Maheu, que lhe oferecia a sua parte. — Eu comi lá.

Era mentira; deprimido, olhava as crianças atirarem-se sobre a comida. O pai e a mãe continham-se também, para deixar mais aos filhos, mas o velho, vorazmente, engolia tudo. Tiveram que lhe arrancar uma batata para Alzire.

Etienne disse então que tinha novidades. A companhia, irritada com a obstinação dos grevistas, dizia que ia despedir os mineiros comprometidos. Decididamente, ela queria a guerra. Mas havia um boato ainda mais grave: a companhia vangloriava-se de ter convencido um grande número de operários a voltar ao trabalho; na manhã seguinte, a Victoire e a Feutry-Cantel deveriam estar trabalhando a pleno rendimento; e até na Madeleine e na Mirou haveria um terço do pessoal.

Os Maheu ficaram exasperados.

— Inferno! — gritou o homem. — Se há traidores, temos de ajustar contas com eles!

E, em pé, cedendo a um transporte de cólera sofrida:

— Amanhã à noite, na floresta! Já que não deixam a gente reunir-se no Bon-Joyeux, faremos da floresta a nossa casa!

Esse grito acordou o velho Boa-Morte, que cochilava empanturrado. Era o antigo grito de reunião, o ponto de encontro onde os mineiros de outrora iam organizar sua resistência aos soldados do rei.

— É isso! Vandame! Também irei com os outros! A mulher de Maheu fez um gesto enérgico.

— Iremos todos. Terminaremos com essas injustiças e traições! Etienne decidiu que o encontro seria marcado para todas os conjuntos habitacionais mineiros para a noite do dia seguinte.

Mas o fogo estava apagado, como na casa dos Levaque, e a vela também, repentinamente, terminou. Não havia mais hulha ou querosene; tiveram de se deitar no escuro, com um frio enorme que mordia a pele. As crianças choravam.

 

Jeanlin já estava restabelecido e caminhando, mas suas pernas tinham sido tão mal encanadas, que agora mancava de ambas. Era preciso vê-lo, parecia um pato, correndo tão depressa como antes, e com a mesma destreza de animal daninho e ladrão.

Naquele entardecer, na estrada de Réquillart, Jeanlin, acompanhado dos seus inseparáveis Bébert e Lydie, espreitava. Estava emboscado num terreno baldio, por trás de um tapume, em frente a uma venda quase vazia, localizada na curva de uma vereda. Uma velha meio cega expunha ali três ou quatro sacos de lentilha e feijão, negros de poeira; mas era um bacalhau velho e ressequido, todo pintalgado de dejeções de moscas e pendurado à porta, que ele cobiçava com seus olhos apertados. Já por duas vezes mandara Bébert apanhá-lo, mas tinha aparecido gente na curva do caminho. Eram os importunos de sempre, não se podia trabalhar à vontade!

Surgiu um homem a cavalo e os três deitaram-se rente ao tapume ao reconhecerem o Sr. Hennebeau. Desde o começo da greve, ele era visto cavalgando pelas estradas, percorrendo sozinho os conjuntos habitacionais revoltados, demonstrando uma coragem tranqüila em assegurar-se pessoalmente do estado de coisas da região. E

nunca uma pedra tinha assobiado nos seus ouvidos; só encontrava homens silenciosos e lentos que o cumprimentavam, mas, principalmente, namorados, que não se importavam com política e andavam pelos cantos para um momento de prazer. Ao trote de sua égua, sem olhar para os lados para não atrapalhar ninguém, passava, enquanto seu coração pulsava de um desejo que nunca fora saciado, mediante aquela fartura de amores livres.

Viu perfeitamente os dois meninos sobre a menina, amontoados. Até as crianças já sabiam divertir-se esfregando umas contra as outras as suas misérias! Com os olhos úmidos, desapareceu, muito teso sobre a sela, com a sobrecasaca militarmente abotoada.

— Diabo de azar! — exclamou Jeanlin. — Vai agora, Bébert; puxa pelo rabo!

Mas outros dois homens passavam e o menino murmurou nova praga quando ouviu a voz de seu irmão, Zacharie, que contava ao jovem Mouque como tinha descoberto uma moeda de quarenta soldos costurada numa saia da sua mulher. Riram às gargalhadas, dando-se palmadas nos ombros. O jovem Mouque teve a grande idéia de uma partida de críquete para o dia seguinte: partiriam às duas horas do Avantage; iriam para os lados de Montoire, perto de Marchiennes. Zacharie aceitou. Por que não paravam de aborrecê-los com essa greve? Queriam era divertir-se, já que não tinham nada mais para fazer! E dobravam a estrada quando Etienne, que vinha do canal, deteve-os e pôs-se a conversar.

— Será que vão dormir aqui? — perguntou Jeanlin, exasperado. — já é quase noite e a velha está recolhendo os sacos.

Outro mineiro estava descendo para Réquillart. Etienne afastou-se com ele. Ao passarem pelo tapume, o menino ouviu-os falando sobre a floresta; tinham adiado a reunião para o dia seguinte, temendo não poderem avisar todos os conjuntos habitacionais naquele mesmo dia.

— Aí está! — murmurou Jeanlin para os outros dois. — A bagunça é para amanhã. Temos que ir. Tocamos para lá de tarde, hem?

Com a estrada finalmente deserta, ele deu ordem de partida a Bébert.

— Chegou a hora! Puxa pelo rabo... E cuidado com a vassoura da velha!

Felizmente, estava quase escuro. Bébert, de um salto, agarrou-se ao bacalhau, cujo barbante rebentou. Saiu correndo, agitando o peixe como se fosse um papagaio de papel, seguido pelos outros dois. A velha, boquiaberta, saiu para fora sem compreender, não podendo mais distinguir aquele bando que se perdia nas trevas.

Esses gatunos acabavam sendo o terror da região, que fora invadida por eles, como por uma horda selvagem. A princípio contentaram-se com o pátio da Voreux, onde

chafurdavam no carvão, saindo de lá negros, brincando de esconde-esconde entre a provisão de madeira, onde se perdiam como no fundo de uma floresta virgem. Depois, tomaram de assalto o aterro, onde escorregavam pelas partes escalvadas, ainda escaldantes por causa dos incêndios internos, metiam-se por entre o matagal da parte abandonada, escondidos o dia inteiro, ocupados em brincadeiras tranqüilas como ratos lúbricos. E continuavam a conquistar terreno, indo engalfinhar-se por entre os montes de tijolos, percorrendo os prados, comendo, sem pão, qualquer espécie de erva que tivesse algum sumo, esquadrinhando a vegetação do canal em busca de peixes presos no lodo, que devoravam crus. E iam cada vez mais longe, andavam quilômetros, até os bosques de Vandame, onde se empanturravam de morangos na primavera, de avelãs e medronhos1 no verão. Não tardou muito para que a imensa planície lhes pertencesse.

Mas o que os atirava assim às estradas, de Montsou a Marchiennes, com seus olhos de lobos novos, era uma necessidade crescente de pilhagem. Jeanlin capitaneava essas expedições, lançando sua tropa sobre qualquer presa, devastando as plantações de cebola, saqueando os pomares, atacando os tendeiros. Na região, já estavam acusando os mineiros em greve, falava-se de uma enorme quadrilha organizada. Um dia, ele chegara a forçar Lydie a roubar sua própria mãe, fazendo que a menina lhe trouxesse duas dúzias de balas de cevada que a mulher de Pierron guardava num frasco no mostruário da janela; e a pequena, moída de pancada, não o traíra, a tal ponto temia a autoridade do companheiro. O pior era que ele sempre ficava com a parte do leão. Bébert também tinha de lhe entregar o resultado dos seus assaltos, e podia considerar-se um felizardo quando o capitão não o esbofeteava para ficar com tudo.

Jeanlin ultimamente andava abusando. Surrava Lydie como quem espanca a mulher legítima e aproveitava-se da credulidade de Bébert para comprometê-lo em aventuras desagradáveis, muito divertido em aturdir aquele menino grandalhão, mais forte do que ele, que podia aniquilá-lo com um murro. Desprezava os outros dois, tratava-os como escravos, contava-lhes que tinha por amante uma princesa, diante da qual eles eram indignos de se mostrar. E, realmente, havia oito dias que começara a desaparecer de repente ao chegar numa esquina, ao dobrar uma curva do caminho, onde quer que estivesse, depois de lhes ordenar de maneira terrível que voltassem para casa. Mas primeiro embolsava o resultado do saque.

Foi isso, aliás, o que aconteceu naquela noite.

— Passa para cá — disse ele, arrancando o bacalhau das mãos do companheiro quando os três pararam numa volta da estrada, perto de Réquillart.

 

1. Espécie de morango silvestre. (N. do E.)

 

Bébert protestou.

— Eu também quero... Quem é que foi apanhar?

— O quê? — gritou Jeanlin. — Tu não tens querer! Se eu quiser, dou-te, e não vai ser hoje: amanhã, se sobrar alguma coisa.

Empurrou Lydie, colocou um ao lado do outro, alinhados e perfilados como soldados. Depois, passando para trás deles:

— Agora, vocês vão ficar aí cinco minutos, sem um movimento. Se olharem para trás, juro por Deus! os bichos ferozes devoram vocês... E depois vão voltar imediatamente para casa, tenderam? Se no caminho o Bébert tocar na Lydie eu ficarei sabendo, e aí os dois vão levar uns bons tapas.

Imediatamente desapareceu na escuridão; era tão rápido que nem sequer o roçar dos seus pés descalços se ouviu. Os outros dois ficaram imóveis durante os cinco minutos, sem olhar para trás, com medo de receber um bofetão do invisível. Aos poucos, uma grande afeição nascera entre eles, como resultado daquele terror comum. Ele sempre sonhava tomá-la em seus braços e apertá-la com força contra seu coração, como via os outros fazerem. E ela bem que gostaria disso, porque nunca fora tratada com carinho. Mas nenhum dos dois ousaria desobedecer. Quando se foram, ainda que a noite estivesse muito escura, nem mesmo se abraçaram, caminharam lado a lado, comovidos e desesperados, certos de que, se se tocassem, o capitão, por trás, iria puni-los.

À mesma hora Etienne entrava em Réquillart. Na véspera, a filha de Mouque suplicara-lhe que voltasse, e ele voltava, envergonhado, sem querer confessar que começava a gostar daquela moça que o adorava como a um deus. Vinha, aliás, com a intenção de terminar com aquilo. Vê-la-ia, explicar-lhe-ia que não devia mais persegui-lo,

para evitar comentários dos companheiros. Os tempos eram difíceis, não estava sendo honesto aceitando tais facilidades enquanto os outros morriam de fome.

Não a tendo encontrado em casa, decidiu esperá-la, e começou a espreitar as sombras que passavam.

Sob a torre do sino de rebate em ruínas, via-se o poço semi-obstruído. Uma viga em pé, sustentando um pedaço de teto, parecia um patíbulo pairando sobre o buraco negro; e, no bocal derruído do poço, cresciam duas árvores, uma sorveira e um plátano, que pareciam sair das profundezas da terra. Era um recanto selvagem e abandonado, a entrada cheia de galhos e ramagens de um precipício, atravancada de madeiras podres, verdejante com suas ameixeiras silvestres e espinheiros, onde, na primavera, as toutinegras faziam seus ninhos.

Desejando evitar as grandes despesas de conservação, a companhia havia dez anos que tencionava atulhar aquela galeria morta, mas tinha, antes, que instalar na Voreux um ventilador, porque o centro de ventilação dos dois poços, que se comunicavam entre si, era em Réquillart, cujo antigo esgoto servia de chaminé. Tinha-se limitado a consolidar o madeiramento à altura do solo com escoras atravessadas, barrando o acesso à extração, e havia abandonado as galerias superiores só para vigiar a galeria do fundo, onde ardia a fogueira do inferno, o enorme braseiro de hulha, tão violento, que o aquecimento do ar fazia soprar um verdadeiro furacão por toda a galeria vizinha. Por motivos de segurança, para que ainda se pudesse subir e descer, havia ordens de que o fosso das escadas tivesse urna manutenção acurada. Mas ninguém se importava com ele, e as escadas estavam apodrecendo com a umidade; alguns patamares já tinham desabado. Em cima, a entrada estava fechada por espesso matagal; como o primeiro lance de escada tinha perdido alguns degraus, para atingi-la era preciso pendurar-se em alguma raiz de sorveira e depois deixar-se cair, encomendando a alma a Deus, no escuro.

Etienne pacientemente esperava, escondido atrás do matagal, quando ouviu um roçar prolongado entre os galhos. Julgou que fosse a corrida de uma cobra assustada, mas o repentino clarão de um fósforo causou-lhe espanto, e ficou estupefato ao reconhecer Jeanlin, que acendia uma vela e se engolfava na terra. Ficou tão furioso que se aproximou do buraco. O menino tinha desaparecido, mas um clarão fraco vinha do segundo patamar. Hesitou um momento para depois deixar-se escorregar, segurando-se às raízes; pensou que teria de dar um salto de quinhentos e vinte e quatro metros, que era o que media a galeria, mas acabou sentindo um degrau sob os pés, e começou a descer vagarosamente.

Jeanlin não devia ter ouvido; Etienne continuava a ver a luz descendo, enquanto a sombra do menino, colossal e apavorante, dançava nas paredes com o balanço das suas pernas aleijadas. 0 rapazinho pulava, com uma destreza de macaco, e conseguia segurar-se com as mãos, com os pés, com o queixo, quando os degraus faltavam. As escadas, de sete metros cada uma, sucediam-se, algumas ainda sólidas, outras bambas, rangendo, quase desabadas; os patamares estreitos passavam, uns após os outros, esverdeados, a tal ponto apodrecidos, que se andava escorregando, como em cima de musgo. E, à medida que se descia, o calor era cada vez mais sufocante, um calor de fornalha, que vinha do poço da fogueira, felizmente pouco ativa desde o começo da greve, porque em época de trabalho, quando a fornalha devorava os seus cinco mil quilos de hulha diários, ninguém se arriscaria ali sem sair assado.

"Raio de velhaco!", praguejava Etienne sem fôlego. "Onde diabo vai ele?"

Por duas vezes quase caiu. Seus pés escorregavam na madeira úmida. Se ao menos tivesse uma vela, como o outro... Batia-se de encontro à parede a cada momento; era guiado apenas pelo vago clarão que fugia sob ele. Seguramente, já era a vigésima escada, e a descida continuava. Começou a contar os lances: vinte e um, vinte dois, vinte e três, e cada vez descia mais. Parecia que estava com os miolos em fogo, chegou a pensar que tinha caído numa fornalha.

Enfim chegou a uma embocadura de galeria e divisou a chama desaparecendo no fundo. Trinta lances de escada, aproximadamente duzentos metros.

"Será que ainda terei que correr atrás dele por muito tempo?", pensou Etienne. "É na cavalariça que ele se encafurna, não há dúvida."

À esquerda, porém, a via conduzindo à cavalariça estava obstruída por um desmoronamento. A viagem recomeçou, cada vez mais penosa e perigosa. Morcegos assustados voejavam, colavam-se na abóbada da galeria. Teve de correr para não perder de vista a luz, jogou-se para a frente, mas onde Jeanlin passava facilmente com sua agilidade de serpente ele não podia penetrar sem machucar-se. Esta galeria, como todas as vias antigas, tinha-se estreitado e a cada dia estreitava-se mais sob a constante pressão da terra. Em certos trechos já era uma garganta muito fechada, que dentro em pouco também desapareceria. Nesse trabalho de estrangulamento, as estacas vergadas e quebradas tornavam-se um perigo, ameaçando dilacerar-lhe a carne, fisgá-lo na passagem com a ponta de suas lanças, agudas como punhais. Ele avançava com precaução, de joelhos ou arrastando-se, tateando a sombra na sua frente. De repente, um bando de ratos percorreu-o da cabeça aos pés, num galope de fuga.

"Com todos os diabos! quando é que ele vai parar?", grunhiu Etienne sem fôlego, com dor nas costas.

Chegavam. Ao fim de um quilômetro a garganta alargava e entraram num trecho de via admiravelmente conservado. Era o fundo da antiga via de rodagem, aberta na rocha, igual a uma gruta natural. Etienne teve de parar; observava de longe o menino, que protegia a vela entre duas pedras e se punha à vontade, tranqüilo e descansado, como um homem feliz por chegar em casa. Uma instalação completa transformara aquela extremidade de galeria numa habitação confortável. No chão, a um canto, um monte de feno servia de cama; sobre velhas madeiras, dispostas para formarem uma mesa, havia de tudo: pão, maçãs, litros de genebra abertos — uma verdadeira caverna de bandoleiro, com o produto dos saques acumulados durante semanas, mesmo coisas inúteis como sabão e graxa, roubadas pelo simples prazer do roubo. E o menino, sozinho no meio de toda aquela rapina, deliciava-se como um verdadeiro bandoleiro egoísta.

— Escuta, tu estás debochando dos outros ou o quê? — gritou Etienne depois de tomar fôlego. — Vens para cá refestelar-te enquanto estamos morrendo de fome lá em cima?

Jeanlin tremia, aterrado. Ao reconhecer o rapaz acalmou-se.

— Queres jantar comigo? — acabou dizendo. — Que tal? Um pedaço de bacalhau assado? Vais ver que beleza!

Ainda não largara o bacalhau e pôs-se a limpar com grande afinco a sujeira das moscas com uma ótima faca nova, um desses pequenos punhais com cabo de osso onde se gravam provérbios. No dele lia-se a palavra "Amor", simplesmente.

— Tens uma bela faca — observou Etienne.

— É um presente de Lydie — respondeu Jeanlin, que deixou de contar que Lydie o roubara, por ordem dele, de um vendedor ambulante de Montsou, defronte do botequim Tête-Coupée.

E, sem parar de raspar, acrescentou com orgulho:

— Então, a minha casa não é boa? É mais aquecida que lá em cima e cheira muito melhor.

Etienne sentara-se e estava resolvido a fazê-lo falar. Sua cólera passara, agora só tinha interesse por aquela criança perversa, tão valente e decidida em todos os seus vícios. Com efeito, gozava-se de certo bem-estar no fundo daquele buraco; o calor não era demasiado, a temperatura sempre igual em qualquer estação, uma tepidez de banho, enquanto lá em cima o rude dezembro gretava a pele dos miseráveis. Com o

envelhecimento, as galerias se purificavam de todos os gases nocivos, o grisu desaparecera, sentia-se ali somente o cheiro fermentado das madeiras antigas, um odor sutil de éter, como que adocicado por uma pitada de cravo-da-índia. Aliás, era até agradável olhar para essas madeiras, que tinham adquirido uma palidez amarelecida de mármore, franjadas de uma renda esbranquiçada, de vegetações esponjosas que pareciam envolvê-las numa passamanaria entretecida de seda e pérolas. Outras, ainda, estavam recobertas de cogumelos. E havia uma revoada de borboletas brancas, de moscas e aranhas de neve, uma população descolorida, que nunca veria a luz do sol. 

— Mas tu não tens medo? — perguntou Etienne.

Jeanlin encarou-o admirado.

— Medo de quê? Estou completamente sozinho...

Nesse ponto, o bacalhau já estava completamente limpo; acendeu um fogo baixo, esparramou as brasas e o pôs a assar. Em seguida, cortou um pão em dois pedaços. Era uma comida excessivamente salgada, mas assim mesmo deliciosa para estômagos sólidos.

Etienne aceitara sua parte.

— Agora não me espanta mais de te ver engordando enquanto emagrecemos. Sabes que o que estás fazendo é uma patifaria? Não pensas nos outros?

— Ora! E por que os outros são bobos?

— Aliás, fazes bem em esconder-te, porque se teu pai vier a saber que andas roubando estás frito.

— Como se os burgueses não roubassem também! Tu é que dizes isso. Quando furtei este pão dos Maigrat, foi para descontar um que ele nos devia.

O rapaz calou-se, com a boca cheia, perturbado. O menino fitava-o com aquela cara de rato, onde brilhavam dois olhos verdes e sobressaía um enorme par de orelhas, em toda a sua degenerescência de aborto humano, mas de uma inteligência cheia de meandros e de uma manha selvagem, lentamente reconquistada pela animalidade ancestral. A mina, que o tinha engendrado, acabara sua obra quebrando-lhe as pernas.

— E a Lydie? — perguntou novamente Etienne. — Costumas trazê-la aqui?

Jeanlin riu com desprezo.

— A menina? Essa é boa! As mulheres falam muito.

E continuou rindo, cheio de um imenso desdém por Lydie e Bébert. Não havia ninguém mais tolo do que eles. A idéia de que aceitavam cegamente todas as suas lorotas e sempre acabavam de mãos abanando, enquanto ele comia refesteladamente o

seu bacalhau, dava-lhe uma comichão de prazer. Em seguida, concluiu com uma gravidade de pequeno filósofo:

— E melhor estar só, assim não há discussões.

Etienne acabara de comer seu pão. Bebeu um gole de genebra. Chegou a perguntar-se se era direito aceitar a hospitalidade de Jeanlin, se não seria melhor arrastá-lo para cima, proibindo-lhe novos roubos, sob a ameaça de tudo contar a seu pai. Mas, ao examinar aquele esconderijo subterrâneo, uma idéia começou a tomar corpo na sua cabeça: quem sabe não viria a precisar dele, para os companheiros ou para si, no caso de as coisas piorarem lá por cima? Fez o menino jurar que não mais dormiria fora de casa, como costumava fazer, preferindo aquela cama de feno ao lar. Depois, apanhando um pedaço de vela, partiu na frente, deixando-o a arrumar tranqüilamente seus pertences.

A filha de Mouque esperava-o, já cheia de angústia, sentada num caibro, apesar do frio intenso. Ao avistá-lo saltou-lhe ao pescoço. Foi como se lhe cravassem uma faca no coração, quando ele anunciou a sua vontade de não mais revê-la. Deus do céu! Por quê? Então ela não o amava bastante?

Temendo sucumbir ao desejo de entrar na sua casa, encaminhou-a para a entrada, explicando-lhe o mais docemente possível que ela o comprometia aos olhos dos camaradas, que comprometia a causa política. Ela admirou-se; que tinha aquilo que ver com a política? Disse então que ele tinha era vergonha de ser visto ao seu lado; mas não estava magoada com isso, era bastante natural. Teve uma idéia: ofereceu-se para levar uma bofetada diante de todo mundo, para mostrar que estavam rompidos. Mas tinha de tornar a vê-la, pelo menos uma vezinha de tempos em tempos. Suplicou desesperadamente, jurou que ficaria escondida, que de agora em diante só o reteria por cinco minutos.

Ele, muito comovido, continuou a recusar. Não tinha outro jeito... Ao despedir-se, quis ao menos beijá-la. Caminhando, tinham chegado à entrada de Montsou e continuavam abraçados sob a lua cheia, quando uma mulher passou junto deles com um brusco sobressalto, como se tivesse tropeçado numa pedra.

— Quem é? — perguntou Etienne inquieto.

— Catherine — respondeu a outra. — Está voltando da Jean-Bart.

A mulher, agora, caminhava de cabeça baixa e pernas frouxas, com ar de muito cansada. O rapaz continuou a observá-la, desesperado de ter sido visto por ela, o coração invadido por um remorso sem causa. Então ela não estava com um homem? Não o fizera sofrer do mesmo sofrimento, ali mesmo, na estrada de Réquillart, quando se

entregara a esse homem? Mas assim mesmo sentia-se deprimido por ter-lhe pago com a mesma moeda.    

— Queres que te diga uma coisa? —  murmurou a filha de Mouque, ao partir, debulhada em lágrimas. —  Se não me queres é porque tens outra.               

No dia seguinte o tempo estava esplêndido: um céu claro de da, um desses maravilhosos dias de inverno, quando a terra dura soa como um cristal debaixo dos pés.

Jeanlin escapou de casa à uma hora, mas teve de esperar Bébert por trás da igreja e quase tiveram de partir sem Lydie, que a mãe mantinha fechada no porão. Acabava de ser solta, mas puseram-lhe um cesto nos braços, dizendo-lhe que, se não voltasse com ele cheio de dentes-de-leão, seria novamente encerrada com os ratos a noite inteira. Por isso, cheia de medo, quis ir colher a salada imediatamente, mas Jeanlin dissuadiu-a; veriam isso mais tarde.

Havia muito tempo que Polônia, a enorme coelha de Rasseneur, preocupava-o; passava justamente defronte do Avantage, quando a coelha saiu para a rua. Agarrou-a de um salto pelas orelhas, enfiou-a no cesto da menina e saíram correndo. Iam divertir-se à grande, fazendo-a correr como um cão até a floresta.

Mas pararam para ver Zacharie e o jovem Mouque, que, depois de terem bebido uma cerveja com mais dois companheiros, iniciavam sua grande partida de críquete. Tinham apostado um boné novo e um lenço vermelho, depositados no Rasseneur. Os quatro jogadores, dois a dois, tiraram a sorte para o primeiro turno, da Voreux à fazenda Paillot, cerca de três quilômetros; foi Zacharie quem ganhou; ele apostara em sete lances, ao passo que o jovem Mouque pedira oito. Tinham pousado a bola, o pequeno ovo torneado de raiz de buxo, no chão da estrada, com a ponta para cima. Todos empunhavam seus tacos, ou maços de ferro oblíquos, de cabos longos e enrolados em barbante muito apertado. Davam duas horas quando iniciaram a partida. Zacharie, magistralmente, no seu primeiro turno, composto de uma série de três lances, enviou a bola a mais de quatrocentos metros através dos campos de beterraba, pois era proibido jogar nas aldeias e estradas, onde já tinha morrido gente por causa desse esporte. O jovem Mouque, igualmente forte, arremessou a bola com tanto ímpeto, que ela foi cair cento e cinqüenta metros para trás. E a partida continuou, uma equipe avançando, a outra fazendo recuar, ambas correndo, todos com os pés contundidos pelas arestas geladas da terra lavrada.

A princípio, Jeanlin, Bébert e Lydie tinham corrido atrás dos jogadores, entusiasmados com as grandes tacadas. Depois, lembraram-se de Polônia, que eles sacudiam no cesto, e, abandonando a partida já no campo aberto, soltaram a coelha para ver se era capaz de correr muito. Em liberdade, ela saiu desabaladamente e os três correndo atrás; foi uma caçada de hora, em alta velocidade, cheia de desvios bruscos, gritos e bracejar no vazio. Se a coelha não estivesse com um início de gravidez, nunca a teriam apanhado.

Ainda esbaforidos, ouviram pragas que os fizeram voltar a cabeça. Encontravam-se novamente no meio do jogo de críquete e era Zacharie quem praguejava, porque por um triz não rachara a cabeça do irmão.

Os jogadores já estavam na quarta rodada: da fazenda Paillot tinham ido aos Quatre-Chemins, dos Quatre-Chemins a Montoire, e agora, em seis lances, de Montoire ao Pré-des-Vaches. Tinham ' percorrido duas léguas e meia em uma hora, tendo ainda parado no ! botequim do Vincent e na venda Trois-Sages, para beberem cerveja. Desta vez o jovem Mouque era mão. Tinha apenas dois lances para fazer, sua vitória estava assegurada quando Zacharie, usando do seu direito, sempre escarnecendo dos adversários, lançou a bola para trás com tanta destreza, que esta foi cair num fosso profundo. O parceiro do jovem Mouque não conseguiu tirá-la dali, foi um desastre. Os quatro jogadores começaram a discutir aos gritos, a partida estava no seu auge, e, devido ao empate, teriam de recomeçá-la. Do Pré-des-Vaches ao início das Herbes-Rousses não havia mais do que dois quilômetros, que seriam vencidos em cinco lances. Lá beberiam mais umas cervejas no Lerenard.

Jeanlin teve uma idéia. Deixou-os partir, tirou um barbante do bolso e amarrou-o à pata traseira esquerda de Polônia. Isso transformou-se numa grande brincadeira; a coelha corria adiante dos três garotos, puxando da perna, desancando de uma maneira tão ridícula, que eles riam como loucos. Depois amarraram-na pelo pescoço, fazendo-a galopar; como ela já estivesse cansada, arrastaram-na de barriga, de costas, como se fosse um carrinho de brinquedo. Como aquilo já durasse mais de uma hora e o animal estivesse estertorando, meteram-no outra vez no cesto ao ouvirem, perto do bosque, em Cruchot, os jogadores, cujo caminho atravessavam mais uma vez.

Agora, Zacharie, o jovem Mouque e os outros dois devoravam os quilômetros sem outro descanso que o tempo necessário para esvaziar copos em todas as tabernas do caminho. Das Herbes-Rousses tinham ido parar em Buchy, depois na Croix-de-Pierre, depois em Chamblay. A terra estremecia sob o calcar dos seus pés correndo sem descanso atrás da bola que pulava sobre a neve. O tempo estava bom, não se atolavam, nem corriam o risco de quebrar as pernas. No ar seco, as grandes tacadas espocavam como tiros. As mãos musculosas seguravam o cabo enrolado em barbante e o corpo inteiro se lançava, como para abater o boi. E isso durante horas, de um extremo a outro da planície, por cima dos fossos, das cercas, dos taludes dos caminhos, dos muros baixos dos cerrados. Era preciso ter bons foles no peito e juntas de ferro nos joelhos. Os britadores desenferrujavam-se com paixão nesse esporte. Havia fanáticos de vinte e cinco anos que chegavam a jogar num raio de dez léguas. Aos quarenta anos, já pesados, não jogavam mais.

Davam cinco horas, o crepúsculo já começava. Mais um jogo até a floresta de Vandame, para decidir quem ganharia o boné e o lenço. Zacharie gracejou, com a sua indiferença zombeteira pela política: seria engraçado se caíssem bem no meio dos camaradas.

Quanto a Jeanlin, desde a saída do conjunto habitacional, tinha por meta a floresta, apesar do seu jeito de estar apenas correndo os campos. Com um gesto indignado ameaçou Lydie, que, cheia de remorso e medo, falou em voltar à Voreux para colher dentes-de-leão. Então iam perder a reunião? Ele queria ouvir o que os velhos diriam. Empurrou Bébert, propôs alegrar o resto do caminho até as árvores desamarrando Polônia e perseguindo-a a pedradas. Seu plano secreto era matá-la; desejava levá-la para a sua toca de Réquillart e ali comê-la. A coelha recomeçou sua fuga, de focinho levantado e orelhas caídas: uma pedra esfolou-lhe o lombo, outra arrancou-lhe o rabo; apesar da escuridão crescente, os garotos a teriam matado se não tivessem visto, no centro de uma clareira, Etienne e Maheu parados. Atiraram-se sobre o animal, pondo-o mais uma vez dentro do cesto. Quase no mesmo momento, Zacharie e os companheiros davam a última tacada, lançando a bola, que foi cair a poucos metros da clareira. Estavam todos em pleno local da reunião.

Por toda a região, nas estradas e sendas da planície rasa, havia, desde o cair da tarde, uma longa fila, um deslizar de sombras silenciosas, caminhando isoladas ou em grupos, em direção às fímbrias violáceas da floresta. Todas as aldeias se esvaziavam, até as mulheres e crianças partiam como para um passeio sob o grande céu claro. Agora que os caminhos se tornavam escuros, não se distinguia mais essa multidão em marcha esgueirando-se para o mesmo local; sentia-se apenas o seu bater de pés, confusa, arrebatada por um único desejo. Ao longo das cercas, entre as moitas, apenas havia um roçar leve, um rumor vago de vozes noturnas.

O Sr. Hennebeau, que nesse momento justamente voltava para casa montado na sua égua, apurava o ouvido para aquele rumor perdido. Encontrara casais que

passeavam lentamente naquele belo anoitecer de inverno. Mais namorados que, beijando-se, iam esconder-se por trás dos muros para alguns momentos de prazer. Não eram esses os seus encontros habituais, moças deitadas no fundo dos fossos, indigentes enchendo-se da única alegria que não custava nada? E aqueles imbecis ainda se queixam da vida, quando tinham, à farta, a felicidade única de se amarem! De bom grado teria estourado de fome como eles, se pudesse recomeçar a existência com uma mulher que se entregasse sobre os cascalhos com todo o corpo e de coração aberto. Não encontrava consolo para a sua desgraça, invejava aqueles miseráveis. De cabeça baixa voltava para casa, guiado pelo passo moroso da sua égua, desesperado com aqueles ruídos longos que se perdiam na amplidão do campo em trevas, nos quais só distinguia beijos.

 

Era no Plan-des-Dames, na vasta clareira que uma derrubada acabava de abrir. Ela estendia-se em declive suave, cingida pela floresta espessa, por faias magníficas cujos troncos retos e regulares a envolviam de colunas brancas, esverdeadas de liquens. Os gigantes abatidos ainda jaziam sobre a grama; à esquerda, um monte de toros cortados mais parecia um cubo geométrico. O frio aumentara com o crepúsculo, o musgo gelado estalava sob os pés. Na terra já era noite fechada, os ramos altos recortavam-se contra o céu pálido, onde a lua cheia, subindo no horizonte, ia apagar as estrelas.

Perto de três mil mineiros tinham comparecido à reunião; era uma multidão fervilhante, homens, mulheres e crianças enchendo pouco a pouco a clareira, transbordando por baixo do arvoredo; e os retardatários continuavam a chegar; a maré de cabeças, afogada na sombra, espraiava-se até os cortes vizinhos. Um bramido subia daquele mar humano, igual a um vento de tempestade na floresta imóvel e gelada.

No alto, dominando o declive, encontrava-se Etienne, acompanhado de Rasseneur e Maheu. Estourara uma briga, ouviam-se seus ecos ressoando, intermitentes. Perto dos que discutiam estavam Levaque, de punhos cerrados, Pierron, que logo se pôs de costas, muito nervoso por não ter podido pretextar mais febres, e mais o velho Boa-Morte e o velho Mouque, ombro a ombro sentados num tronco, com ar de profunda meditação. Por trás deles agrupavam-se os trocistas: Zacharie, o jovem Mouque e outros ainda, que tinham vindo para se divertir, enquanto as mulheres, recolhidas e graves como numa igreja, formavam grupo à parte. A mulher de Maheu, muda, balançava a cabeça ouvindo o surdo praguejar da mulher de Levaque. Philomène tossia, atacada de bronquite com a chegada do inverno. Só a filha de Mouque ria com todos os dentes, divertida pela maneira com que a velha Queimada falava da filha, chamando-a de desnaturada, que a mandava sair para empanturrar-se com coelho, uma vendida que engordava graças à falta de caráter do marido. E sobre o monte de madeira encarapitara-se Jeanlin, içando Lydie e obrigando Bébert a segui-lo, ficando os três acima dos outros.

O responsável pela disputa era Rasseneur, que queria proceder formalmente à eleição da mesa. A derrota que sofrerá no Bon-Joyeux enfurecera-o, e tinha jurado tirar a desforra, gabando-se de reconquistar sua autoridade antiga quando se encontrassem frente a frente, não mais como delegados, mas como mineiros. Etienne, revoltado, achou imbecil a idéia da mesa, em plena floresta. Tinham que agir revolucionariamente, como selvagens, já que estavam sendo caçados como lobos.

Vendo que a discussão não terminava mais, subiu num tronco de árvore e apoderou-se subitamente da multidão, gritando:

— Camaradas! Camaradas!

O rumor confuso extinguiu-se num longo suspiro, enquanto Maheu abafava os protestos de Rasseneur. Etienne continuou com uma voz poderosa:

— Camaradas, uma vez que nos proíbem de falar, uma vez que a polícia nos persegue como se fôssemos bandidos, é aqui que temos de nos reunir! Aqui somos livres, estamos em nossa casa, ninguém virá para nos fazer calar, da mesma forma que não conseguem calar os pássaros e os animais!

Uma torrente de gritos e exclamações foi a resposta:

— Sim, sim, a floresta é nossa, temos o direito de conversar... Faia!

Etienne permaneceu por um momento imóvel sobre o tronco de árvore. A lua, ainda baixa no horizonte, só iluminava os galhos mais altos, a multidão permanecia envolta em trevas, pouco a pouco acalmada e silenciosa. Ele, igualmente no escuro, fazia por cima dela, no cimo do declive, uma mancha de sombra.

Levantou um braço num gesto lento e começou. Sua voz, no entanto, não ribombava mais, adotara o tom frio de um simples mandatário do povo prestando contas. Finalmente fazia o discurso que o comissário de polícia fizera gorar no Bon-Joyeux. Começou com um histórico rápido da greve, afetando uma eloqüência científica: fatos,

nada mais que fatos. Primeiro referiu-se à sua repugnância pela greve: os mineiros não a tinham querido, a direção os provocara com a nova tarifa de revestimentos. Depois lembrou a primeira visita dos delegados ao diretor, a má-fé da administração, e mais tarde, quando da segunda visita, sua concessão tardia, os dois cêntimos que devolvia depois de ter tentado roubá-los. Agora estavam nisso; começou a dar números provando que a caixa de previdência estava vazia, indicou o emprego dos socorros enviados, desculpando em algumas frases a Internacional, Pluchart e os outros, por não terem podido fazer mais por eles, devido às preocupações que tinham com seus planos de conquista do mundo. A situação agravava-se dia a dia, a companhia despedindo e ameaçando contratar operários na Bélgica; além disso intimidava os fracos, convencera certo número de mineiros a voltar ao trabalho. Toda essa fala foi pronunciada em tom monótono, como para ressaltar essas más notícias. Falou ainda da fome vitoriosa, da esperança morta, da luta já nos últimos haustos da coragem. De repente terminou, sem elevar a voz:

— E nestas circunstâncias, camaradas, que vocês devem tomar uma decisão esta noite. Querem a continuação da greve? E, nesse caso, que pretendem fazer para triunfar sobre a companhia?

Um silêncio profundo caiu do céu estrelado. A multidão, engolfada na escuridão, permanecia muda sob o peso daquelas palavras que lhe esmagavam o coração. Apenas se ouvia sua respiração angustiada por entre as árvores.

Mas Etienne já prosseguia noutro tom. Não era mais o secretário da associação que falava, era o chefe de bando, o apóstolo portador da verdade. Então havia covardes que faltavam à palavra empenhada? Então tinha-se sofrido um mês inutilmente para depois voltar às minas de cabeça baixa e recomeçar a eterna miséria? Não valeria mais a pena morrer de uma vez, tentando destruir essa tirania do capital que levava o trabalhador à inanição? Continuar submetendo-se à fome até o momento em que ela, novamente, revoltaria até os mais calmos não era um jogo estúpido que não podia continuar existindo? E mostrou os mineiros explorados, suportando sozinhos resultados da crise, obrigados a não mais comer no momento em que as necessidades da concorrência fizessem baixar os preços da mão-de-obra. Não! A tarifa do revestimento era inaceitável, não passava de uma economia disfarçada, queriam roubar de cada homem uma hora de seu trabalho diário. Desta vez era demais, estava chegando a hora em que os miseráveis, levados até o último degrau da sua miséria, fariam justiça.

Ficou de braços erguidos.

A multidão, à palavra "justiça", sacudida por um longo estremecimento, desatou em aplausos que rolaram com um barulho de folhas secas. Vozes gritaram:

— Justiça! Chegou a hora da justiça!

Aos poucos Etienne inflamava-se. Não possuía a abundância fácil e cascateante de Rasseneur. Muitas vezes, as palavras não lhe vinham, tinha de torturar a frase e dela saía com um esforço que ressaltava com um movimento de ombros. Mas nesses contínuos tropeços descobria imagens de uma energia familiar que empolgavam seu auditório. Da mesma forma, seus gestos de mineiro, os cotovelos para trás, depois estendendo-se e lançando os punhos para a frente, sua mandíbula repentinamente avançando, como para morder, exerciam também uma ação extraordinária sobre os camaradas. Todos o diziam, ele não era um espetáculo, mas prendia a atenção.

— O sistema assalariado é uma nova forma de escravidão — continuou ele com a voz ainda mais vibrante. — A mina deve ser do mineiro, como o mar é do pescador, como a terra é do camponês. Compreendam isso de uma vez por todas: a mina é de vocês, de todos vocês, que há um século a vêm pagando com tanto sangue e tanta miséria!

Com a maior sem-cerimônia abordou problemas obscuros de direito, a enfiada de leis especiais sobre minas em que ele se perdia. O subsolo, assim como o solo, pertencia à nação; apenas um privilégio odioso assegurava o monopólio às companhias. Para Montsou, a pretensa legalidade das concessões complicava-se com tratados passados outrora com proprietários de antigos feudos, segundo o velho costume de Hainaut. Os mineiros, portanto, só tinham que reconquistar sua propriedade. E com as mãos estendidas ele mostrava a região inteira, para além da floresta. Nesse momento, a lua, que subia no horizonte, escorregando pelos ramos mais altos, iluminou-o. Quando a multidão, ainda no escuro, divisou-o assim, todo iluminado, distribuindo a fortuna com suas mãos abertas, aplaudiu de novo, prolongadamente.

— Sim, sim, ele tem razão! Bravo!

A partir daí Etienne cavalgou no seu plano favorito: a distribuição de instrumentos de trabalho à coletividade, como ele dizia numa frase, cuja barbárie o comichava deliciosamente. Nele, agora, a evolução era completa. Tendo partido da fraternidade humilde dos catecúmenos, da necessidade de reformar o sistema assalariado, acabara na idéia política de o suprimir. Depois da reunião no Bon-Joyeux, seu coletivismo, ainda humanitário e sem fórmula, enrijecera num programa complicado, que ele ia discutindo cientificamente, artigo por artigo. Primeiro disse que a liberdade só podia ser conseguida com a destruição do Estado; quando o povo tivesse tomado o poder, as reformas seriam feitas: volta à comuna primitiva; substituição da família moral e opressiva pela família igualitária e livre; igualdade absoluta, civil, política e econômica; garantia da independência individual graças à possessão e ao produto integral dos instrumentos de trabalho; enfim, instrução profissional e gratuita, paga pela coletividade. Isso levaria a uma reforma da sociedade velha e podre. Atacou o casamento, o direito de fazer testamento, regulamentou a fortuna particular, pôs abaixo o monumento iníquo dos séculos mortos com um grande gesto, sempre o mesmo, o gesto do ceifador que derruba a colheita madura. Com a outra mão foi reconstruindo, erguendo a futura humanidade, o edifício da verdade e da justiça surgindo na aurora do século XX. Diante de tal tensão cerebral a razão perdeu pé, restou apenas a idéia fixa do sectário. Os escrúpulos da sua sensibilidade e do seu bom senso evaporaram-se, nada era mais fácil do que a realização desse mundo novo; previra tudo, falava dele como de uma máquina que montaria em duas horas, sem levar em conta o fogo e o sangue.

— Chegou a nossa vez! — gritou, numa última explosão. — Agora depende de nós conseguirmos o poder e a riqueza!

Uma aclamação rolou até ele, vinda dos confins da floresta. A lua, agora, iluminava toda a clareira, recortava em arestas brilhantes o mar de cabeças por toda a confusa lonjura da mata de corte e por entre os enormes troncos cinzentos. E naquele ar glacial havia u; ricto feroz nos rostos, olhos faiscantes, bocas abertas... Era todo u: povo em delírio de possessão, homens, mulheres e crianças famélicos, prontos para o assalto justo aos antigos bens de que estavam sendo esbulhados. Já nem sentiam mais frio, aquelas palavras ardentes aqueceram-nos até as entranhas. Uma exaltação religiosa fazia-os pairar sobre a terra, era a febre de esperança dos primeiros cristãos da Igreja esperando o reino próximo da justiça. Muitas frases obscuras lhes tinham escapado, quase nada entendiam daqueles raciocínios técnicos e abstratos, mas a própria obscuridade, a abstração, tornava ainda maior o campo das promessas, arrebatava-os num deslumbramento. Que sonho! serem eles os senhores, cessarem de sofrer, usufruírem finalmente da felicidade!

— É isso mesmo, com todos os diabos! Chegou a nossa vez!

Morte aos exploradores!

As mulheres deliravam; a de Maheu saindo da sua calma, presa da vertigem da fome; a de Levaque gritando; a velha Queimada, fora de si, agitando seus braços de bruxa; Philomene, sacudida por um acesso de tosse; e a filha de Mouque, num delírio, gritava palavras cheias de ternura para o orador.

Dos homens, Maheu, conquistado, soltara um grito de cólera, entre Pierron, que tremia, e Levaque, que falava demais; os galhofeiros, Zacharie e o jovem Mouque, tentavam fazer graça, mas sentiam-se comovidos, admirados com o companheiro que pudera falar tanto tempo sem molhar a garganta. Mas era Jeanlin, encarapitado no monte de madeira, quem fazia mais estardalhaço, açulando Bébert e Lydie, agitando o cesto onde jazia Polônia.

O clamor era cada vez mais intenso. Etienne saboreava a embriaguez de sua popularidade. Era o seu poder que ele detinha ali, como que materializado naqueles três mil peitos, cujos corações fazia bater com uma palavra. Se Suvarin se tivesse dignado a vir, teria aplaudido suas idéias, à medida que as fosse reconhecendo, contente com os progressos anarquistas de seu discípulo, satisfeito com o programa, salvo o artigo sobre a instrução, um resto de tolice sentimental, já que a santa e salutar ignorância devia ser o banho de onde os homens surgiriam com nova têmpera. Quanto a Rasseneur, dava de ombros com desdém e cólera.

— Tu vais deixar-me falar ou não? — gritou ele para Etienne.

Este saltou do tronco de árvore.

— Fala, veremos se te escutam...

Já Rasseneur o tinha substituído e pedia silêncio com um gesto. O barulho era cada vez maior; seu nome corria das primeiras fileiras, onde tinha sido reconhecido, às últimas, espalhadas por entre as faias. A multidão recusava-se a ouvi-lo, era um ídolo caído cuja vista bastava para enfurecer seus antigos fiéis. Sua elocução fácil, sua palavra cascateante e simpática, que por tanto tempo havia encantado, era chamada agora de tisana morna, para adormecer os covardes. Quis fazer o discurso de apaziguamento que trazia preparado sobre a impossibilidade de transformar o mundo mediante leis, sobre a necessidade de deixar à evolução social o tempo para amadurecer, mas ninguém lhe deu ouvidos; vaiaram-no, mandaram que se calasse; sua derrota do Bon-Joyeux agravou-se, tornou-se irremediável. Começaram a jogar punhados de musgo com gelo, uma mulher gritou com voz esganiçada:

— Abaixo o traidor!

Mas ele continuou explicando que a mina não podia ser propriedade dos mineiros, como é o tear do tecelão; declarou preferir a participação nos lucros, o operário interessado, transformado em filho da casa.

— Abaixo o traidor! — repetiram mil vozes, enquanto as pedras começavam a voar.

Nesse momento ele empalideceu e o desespero encheu seus olhos de lágrimas. Era o desmoronamento de sua existência, vinte anos de companheirismo ambicioso que afundavam sob a ingratidão das massas. Desceu do tronco com o coração despedaçado, sem forças para continuar.

— Isso te faz rir? — balbuciou ele, dirigindo-se a Etienne triunfante. — Muito bem, desejo o mesmo para ti... Tua hora chegará, ouviste?

E, como para eximir-se da responsabilidade nas desgraças que previa, fez um grande gesto e partiu sozinho através da campina muda e branca.

A vaia continuava; todos ficaram surpresos ao verem em pé sobre o tronco o velho Boa-Morte, que falava sem levar em conta a gritaria. Até ali, Mouque e ele tinham-se conservado absortos, com aquele jeito deles, parecendo que estavam refletindo sobre coisas passadas. Sem dúvida entrara numa dessas crises repentinas de tagarelice, que às vezes mexiam tão violentamente com o seu passado fazendo que às lembranças viessem aos seus lábios aos borbotões e por horas a fio. Fizera-se um grande silêncio, todos escutavam aquele velho de uma palidez de espectro sob a lua. E, como ele contava coisas sem ligação imediata com o assunto em pauta, longas histórias que ninguém podia compreender, a emoção aumentou.

Era da sua juventude que falava; narrava a morte dos seus dois tios esmagados na Voreux, a história da pneumonia que lhe carregara a mulher Mas a sua idéia central estava sempre presente no que dizia aquilo nunca andara bem e jamais andaria. Uma vez, tinham reunido quinhentos homens na floresta, porque o rei não queria diminuir a horas de trabalho. Em seguida, começou a contar a história de outra greve: vira tantas! Todas vinham desaguar sob tas árvores, aqui, no Plan-des-Dames, além, na Charbonnerie, ou mais longe ainda, no Saut-du-Loup. Em certas ocasiões fazia frio, em outras, calor. Uma noite chovera tanto que voltaram para casa sem poder falar. E os soldados do rei apareciam e as reuniões eram dispersadas a tiros.

— Levantávamos a mão, assim, jurávamos não mais voltar à mina... Eu jurei muitas vezes, ah! se jurei!...

A multidão escutava atônita, inquieta, quando Etienne, que acompanhava a cena, saltou para cima da árvore abatida e manteve o velho ao seu lado. Acabava de divisar Chaval entre os amigos da primeira fila. A idéia de que Catherine devia estar lá enchera-o de novo entusiasmo, da necessidade de ser aclamado diante dela.

— Camaradas, vocês ouviram bem o que ele disse. Aqui está um dos nossos anciãos, que falou dos seus sofrimentos e do que sofrerão nossos filhos, se não exterminarmos com os ladrões e os algozes.

Foi terrível, nunca falara com tamanha violência. Com um braço ele segurava o velho Boa-Morte, empunhando-o como uma bandeira de miséria e de luto, clamando por vingança. Em frases rápidas referiu-se ao primeiro Maheu, citou toda aquela família gasta na mina, devorada pela companhia, continuando faminta após cem anos de trabalho. E, como contraponto, falou em seguida dos barrigas-cheias da administração, que suavam dinheiro, de toda a quadrilha de acionistas que, como manteúdos, viviam havia um século de não fazerem nada, apenas desfrutando dos corpos dos mineiros. Então não era horrível que toda uma população de mineiros, de pai para filho, rebentasse-se no fundo da terra, para que ministros pudessem receber seu dinheiro por baixo da mesa e gerações de fidalgos e burgueses dessem festas ou engordassem placidamente sentados junto à lareira? Estudara as doenças dos mineiros, citou todas com detalhes horripilantes: anemia, escrofulose, bronquite negra, asma sufocante, reumatismo que paralisa. Esses miseráveis, que serviam de pasto às máquinas, que eram encurralados como gado nos conjuntos habitacionais, as grande companhias absorviam aos poucos, regularizando assim a escravidão ameaçando arregimentar todos os trabalhadores de uma nação milhões de braços, para enriquecer um milhar de preguiçosos. Mas o mineiro não era mais o ignorantão, a besta esmagada nas entranhas da terra. Um verdadeiro exército brotava das profundezas das galerias, uma messe de cidadãos cuja semente germinava e faria estalar o chão num dia ensolarado. Saber-se-ia então se, no fim de quarenta anos de serviço, alguém se atreveria a oferecer cento e cinqüenta francos de aposentadoria a um velho de sessenta anos que escarrava hulha e tinha as pernas minadas pela água dos veios. Sim! o trabalho acertaria suas contas com o capital, esse deus impessoal, desconhecido do operário, agachado em algum lugar, no mistério do seu tabernáculo, de onde sugava a vida dos mortos de fome que o alimentavam! Sim! iriam até ele, acabariam vendo sua cara à luz dos incêndios, afogariam em sangue esse porco imundo, esse ídolo monstruoso, empanturrado de carne humana!

Calou-se, mas seu braço continuou estendido, apontando para o inimigo ao longe, não sabia onde ao certo, mas espalhado por toda a terra. Desta vez o clamor da multidão foi tão violento, que os burgueses de Montsou ouviram-no e olharam para os lados de Vandame, com medo de que fosse algum desabamento formidável. Os pássaros noturnos começaram a voar por cima do arvoredo, ao luar.

Etienne quis concluir imediatamente:

— Camaradas, qual é a decisão de vocês? Votam pela continuação da greve?

— Sim! Sim! — gritaram todos.

— E que medidas querem tomar? Nossa derrota é certa se alguns covardes decidirem trabalhar amanhã.

As vozes voltaram num hausto de tempestade:

— Morte aos covardes!

— Vocês decidem então chamá-los ao dever, ao que foi jurado... Este é o plano que poderíamos pôr em prática: apresentarmo-nos nas minas e, com a nossa presença, trazer os traidores à ordem, mostrar à companhia que estamos todos de acordo e preferimos morrer a ceder.

— É isso mesmo! Às minas! Às minas!

Desde que começara a falar, Etienne procurava Catherine entre as cabeças pálidas que marulhavam à sua frente. Era certo que ela era. Mas Chaval continuava ali, dando de ombros e fingindo rir, devorado pela inveja, pronto a vender-se por um pouco daquela popularidade.

— E se há espiões entre nós, camaradas, eles que tomem cuidado, nós já sabemos quem são... — continuou Etienne. — Sim, porque estou vendo mineiros de Vandame que não abandonaram o trabalho.

— Isso é para mim? — perguntou Chaval com bravata.

— É para aqueles a quem servir a carapuça... Mas, já que falas, devias compreender que aqueles que comem não deviam meter-se com os que têm fome. E tu trabalhas na Jean-Bart...

Uma voz zombeteira o interrompeu:

— Ele trabalha? Tem é uma mulher que trabalha para ele, isso sim...

Chaval, de rosto afogueado, praguejou:

— Vão para o inferno! Então é proibido trabalhar?

— É! — gritou Etienne. — Quando os camaradas estão passando miséria para o bem de todos, é proibido ser egoísta e hipócrita e pôr-se do lado do patrão. Se a greve fosse geral, há muito tempo teríamos vencido... Então é correto que mesmo um único homem de Vandame se apresente ao trabalho enquanto Montsou está em greve? O grande golpe seria ter parado o trabalho em toda a região, tanto na mina de Deneulin como aqui, entendes? Só há traidores nos veios de Jean-Bart, todos vocês são uns traidores!

Em torno de Chaval a turba estava ficando ameaçadora, punhos erguiam-se aos gritos de "Morra! Morra!", cada vez mais próximos; ele sentiu que o sangue lhe gelava nas veias, mas, no seu ódio a Etienne, na sua ânsia de vencê-lo, uma idéia fez que se aprumasse.

— Escutem! Vão amanhã a Jean-Bart e vocês verão se eu trabalho!... Nós somos dos de vocês, mandaram-me aqui para dizer isto. É preciso apagar as caldeiras, é preciso que também os mecânicos entrem em greve. Tanto melhor se as bombas pararem, a água inundará as galerias e tudo irá para o inferno!

Por sua vez ele foi furiosamente aplaudido, o próprio Etienne ficou ultrapassado. Sucediam-se os oradores no tronco da árvore, gesticulando no meio da gritaria, lançando propostas terríveis. Era o ataque de loucura da fé, a impaciência de uma seita religiosa que, cansada de esperar pelo milagre prometido, decidira-se finalmente a provocá-lo. As cabeças enfraquecidas pela fome enxergavam vermelho, sonhavam com incêndios e sangue em meio a uma glória de apoteose, de onde subia a felicidade universal. E a lua, tranqüila banhava aquele mar agitado, a floresta imensa cingia com seu grande silêncio aquele grito de massacre. Só a relva gelada estalava sob os sapatos, enquanto as faias, eretas na sua força, com a delicada ramagem dos seus galhos negros, engastados no céu branco, não viam nem ouviam os seres miseráveis que se agitavam a seus pés.

Todos se empurravam, a mulher de Maheu, de repente, encontrou-se ao lado do marido, e ambos fora de si, arrebatados pela lenta exasperação que havia meses os minava, aprovavam Levaque, que exagerava, pedindo a cabeça dos engenheiros. Pierron tinha desaparecido. Boa-Morte e Mouque falavam ao mesmo tempo, diziam coisas vagas e violentas que ninguém compreendia. Por brincadeira, Zacharie pedia a demolição das igrejas, enquanto o jovem Mouque batia com o seu taco no chão, só para aumentar a barulheira. As mulheres pareciam possessas: a de Levaque, de mãos nos quadris, insultava Philomène, que ela acusava de ter rido; a filha de Mouque falava em descadeirar os policiais a pontapés em certo lugar; a Queimada, que acabava de espancar Lydie, ao encontrá-la sem cesto e sem salada, continuava a dar bofetões no vazio, em todos os patrões que ela gostaria de apanhar. Por um instante Jeanlin ficara assustado, quando Bébert lhe disse que soubera por um outro menino que a mulher de Rasseneur os vira roubando Polônia, mas, depois de decidir que iria furtivamente soltar o animal na porta do Avantage, gritou mais forte ainda, abrindo sua faca nova e brandindo-a para todos os lados, sentindo-se glorioso ao vê-la brilhar.

— Camaradas! Camaradas! — repetia Etienne exausto, rouco, tentando obter um minuto de silêncio para se entenderem definitivamente.

Por fim calaram para escutá-lo.

— Camaradas! Amanhã de manhã na Jean-Bart. Está combinado?

— Sim, sim, na Jean-Bart! Morram os traidores!

O furacão daquelas três mil vozes encheu o céu, indo extinguir-se na claridade pura da lua.

 

As quatro horas da manhã, a lua já desaparecera e a noite era A muito escura. Tudo dormia ainda na casa dos Deneulin; a velha casa de tijolos permanecia muda e sombria, com portas e janelas fechadas, ao fundo de um vasto jardim maltratado, que a separava da galeria Jean-Bart. Do outro lado passava a estrada deserta de Vandame, um grande burgo, escondido por trás da floresta, a três quilômetros aproximadamente.

Deneulin, cansado por ter passado na véspera boa parte do dia no fundo da mina, roncava voltado para a parede, quando sonhou que o chamavam. Acabou acordando e ouviu realmente uma voz; correu para a janela. Era um dos seus contramestres, em pé no jardim.

— Que há? — perguntou ele.

— Uma revolta, senhor! Metade dos homens não quer trabalhar e não deixa os outros descerem.

Não compreendia direito, ainda com a cabeça pesada e cheia de sono, transido pelo grande frio, como por uma ducha gelada.

— Obrigue-os a descer, com todos os diabos! — gaguejou ele.

— Há uma hora que a coisa dura — continuou o contramestre. — Tivemos a idéia de chamá-lo. Só o senhor talvez consiga fazê-los voltar à razão.

— Está bem, já vou.

Vestiu-se correndo, o espírito já claro, muito inquieto. Poderiam pilhar a casa, nem a cozinheira nem p criado se teriam mexido. Mas do outro lado do patamar vozes alarmadas cochichavam. Ao sair. viu abrir-se a porta do quarto das filhas e ambas aparecerem, vestidas de roupões brancos, enfiados às pressas.

— Que está acontecendo, papai?

A mais velha, Lucie, já tinha vinte e dois anos, era alta, trigueira, de aspecto magnífico, enquanto Jeanne, a caçula, com apenas dezenove anos, era pequena, de cabelos dourados, de uma graça meiga.

— Nada grave — respondeu ele para acalmá-las. — Parece que uns baderneiros estão procurando barulho na mina. Vou ver. 

Mas elas reclamaram, não queriam deixá-lo partir sem antes tomar algo quente, senão voltaria doente, com o estômago arruinado, como sempre. Ele disse que não, jurou que tinha pressa.

— Escuta — decidiu Jeanne saltando-lhe ao pescoço —, tu vais beber um copinho de rum e comer uns biscoitos, porque senão não te largo, e tens de me levar contigo.

Teve de submeter-se, insistindo que os biscoitos iam fazer-lhe mal. Já elas desciam na frente dele, cada uma com seu castiçal. Embaixo, na sala de jantar, serviram-no às pressas, uma despejando o rum num cálice, a outra correndo à copa em busca de um pacote de biscoitos.

Tendo perdido a mãe muito cedo, tinham-se educado sozinhas, bastante mal, estragadas pela indulgência do pai, a primogênita possuída pelo sonho de cantar em teatros, a mais jovem, louca por pintura, de uma ousadia de gosto que a singularizava. Mas, quando tiveram de diminuir os gastos, devido a grandes dificuldades nos negócios, brotaram de repente dessas moças de ar extravagante duas donas-de-casa muito sábias e espertas, cujo olho descobria erros de cêntimos nas contas. Hoje, com seus ares independentes de artistas, geriam o dinheiro, economizavam soldos, discutiam com os fornecedores, consertavam constantemente os vestidos, conseguiam, enfim, tornar aceitável a penúria crescente da casa.

— Come, papai — disse Lucie.

Notando a preocupação em que ele afundava, silencioso, sombrio, ficou cheia de medo.

— É coisa assim tão grave para fazeres essa cara? Fala... Ficaremos contigo, poderão almoçar muito bem sem a gente.

Falava de um passeio projetado para essa manhã. A Sra. Hennebeau devia ir na sua caleça buscar primeiro Cécile, na casa dos Gregoire, depois passaria para apanhá-las. Todas juntas iriam a Marchiennes, almoçar nas Forjas, aonde tinham sido convidadas pela mulher do diretor. Era uma ocasião para visitar as oficinas, os altos-fornos e as fornalhas de coque.

— Claro que ficamos — declarou Jeanne por sua vez.

Mas ele zangou-se.

— Que idéia! Já disse que não é nada. Por favor, voltem para a cama e estejam prontas às nove horas, como ficou combinado.

Beijou-as e deu-se pressa em partir. Ouviu-se o barulho de suas botas cada vez mais fraco na terra coberta de gelo do jardim.

Jeanne fechou cuidadosamente a garrafa de rum, enquanto Lucie guardava os biscoitos a chave.

A peça tinha a limpeza fria das salas onde a mesa é parcimoniosamente servida. Ambas aproveitaram aquela descida matinal para ver se tudo tinha sido arrumado de véspera. Um guardanapo fora deixado fora do lugar, teriam de chamar a atenção do criado. Por fim, subiram.

Enquanto atalhava pelos caminhos estreitos da horta, Deneulin pensava na sua fortuna comprometida, no dinheiro de Montsou, no milhão que empatara, planejando decuplicá-lo, e que agora corria riscos tão sérios. Fora uma série ininterrupta de golpes de má sorte, de consertos enormes e imprevistos, de condições de exploração das mais ruinosas, e depois aquela catastrófica crise industrial, justamente no momento em que os lucros começavam. Se houvesse greve na sua mina, estaria perdido. Empurrou um pequeno portão: as edificações da mina eram contornos na treva, demarcados apenas por alguns lampiões.

A Jean-Bart não tinha a importância da Voreux, mas as instalações renovadas faziam dela uma bela mina, segundo os engenheiros. Não se haviam contentado em alargar o poço para um metro e cinqüenta e em aprofundá-lo até setecentos e oito metros, tinham-no reequipado totalmente: máquina nova, elevadores novos, todo o material novo, instalado segundo os últimos aperfeiçoamentos da ciência. Havia até um toque de elegância nas construções, o galpão da triagem com lambrequins recortados, torre do sino de rebate com relógio, a sala da recebedoria e a casa da máquina com uma abóbada estilo capela renascentista, encimada por uma chaminé em espiral axadrezada, feita de tijolos pretos e vermelhos. A bomba estava colocada no outro poço da concessão, na

velha galeria Gaston-Marie, reservada unicamente para o esgoto. À direita e à esquerda da extração, a Jean-Bart só tinha dois poços, o do ventilador a vapor e o das escadas.

De madrugada, a partir das três horas, Chaval já lá estava para convencer e incitar os camaradas, dizendo que era preciso imitar os trabalhadores de Montsou e pedir um aumento de cinco cêntimo por vagonete. Em breve, os quatrocentos operários da extração tinham abandonado o vestuário e aglomeravam-se na sala da recebedoria, num tumulto de gestos e gritos. Os que queriam trabalha empunhavam suas lâmpadas, estavam descalços e mantinham a pá ou a picareta debaixo do braço, ao passo que os outros, ainda de tamancos, o gibão sobre os ombros por causa do frio intenso, impediam o acesso ao poço. A essa altura, os contramestres já estavam roucos, tentando impor ordem, suplicando que fossem sensatos que deixassem descer aqueles que estavam dispostos a trabalhar.

Chaval ficou fora de si ao ver Catherine de calças e jaqueta, a cabeça enrolada na coifa azul. Ao levantar-se ordenara-lhe brutalmente que ficasse deitada, mas ela, desesperada com aquela suspensão do trabalho, fora para a mina, porque ele nunca lhe dava dinheiro e, muitas vezes, era ela quem pagava por ambos. Que iria acontecer-lhe se ficasse sem ganhar nada? Um medo a obcecava, o medo de uma casa pública de Marchiennes, onde terminavam as operadoras de vagonetes sem pão e sem teto.

— Diacho! — gritou Chaval. — Quem te mandou meter o nariz aqui?

Ela tartamudeou que não tinha recursos e queria trabalhar.

— Então estás contra mim, cadela? Volta já para casa ou eu te levo a pontapés na bunda!

Cheia de medo, ela recuou, mas não foi embora, resolvida a ver como iam acabar as coisas.

Deneulin chegava pela escada da triagem. Apesar da luz insuficiente dos lampiões, abarcou a cena com um olhar penetrante, estudando aquela multidão envolvida em treva, da qual conhecia todos os rostos: britadores, carregadores, ascensoristas, operadoras de vagonetes e até mesmo os meninos aprendizes. Dentro do galpão, ainda novo e limpo, o trabalho, parado, esperava; a máquina, sob pressão, emitia ligeiros assobios de vapor; os elevadores permaneciam suspensos dos cabos imóveis; os vagonetes, abandonados no caminho, atravancavam o recinto. Apenas oitenta lanternas tinham saído, as outras ainda flamejavam no depósito. Mas tinha certeza de que com uma palavra sua todo o trabalho recomeçaria.

— Então, qual é o problema, meus filhos? — perguntou ele com voz cheia. — Não estão contentes? Expliquem, porque havemos de entender-nos.

Ainda que sempre exigindo grande esforço dos seus homens, de ordinário mostrava-se paternal com eles. Autoritário, de gestos bruscos, os procurava primeiro conquistá-los com uma bonomia que tinha lampejos altissonantes, e muitas vezes fazia-se querer; os operários respeitavam nele, sobretudo, o homem corajoso, sempre veios com eles, o primeiro no perigo, tão logo um acidente lançava pânico na mina. Já por duas vezes, após explosões de grisu, fora descido aos locais de perigo, amarrado pelos sovacos com uma corda, quando os mais valentes recuavam.

— Espero que não façam que me arrependa por ter-me responsabilizado por vocês — continuou ele. — Bem sabem que não aceitei um destacamento de policiais aqui na mina... Falem calmamente, estou escutando.

Todos se calaram, medrosos, procurando afastar-se dele. Foi Chaval quem acabou por dizer:

— Sr. Deneulin, o que há é que não podemos continuar trabalhando sem um aumento de cinco cêntimos por vagonete.

Ele pareceu surpreso.

— O quê? Cinco cêntimos? A propósito de que esse pedido? Eu não me queixo do revestimento que vocês fazem, não quero impor-lhes uma nova tarifa, como a administração de Montsou.

— É verdade, mas os companheiros de Montsou estão certos. Eles não aceitam a tarifa e exigem um aumento de cinco cêntimos porque não se consegue fazer bom trabalho com as atuais empreitadas... Queremos mais cinco cêntimos, não é verdade, pessoal?

Alguns aprovaram, o murmúrio recomeçou, acompanhado de gestos violentos. Pouco a pouco iam apertando o círculo.

Uma chama incendiou os olhos de Deneulin, enquanto seus punhos de homem amante dos governos fortes se fechavam de medo de ceder à tentação de agarrar alguém pelo pescoço. Preferiu discutir, argumentar.

— Vocês querem cinco cêntimos, e concordo em que o trabalho vale isso. Mas eu não posso dá-los. Se desse, estaria perdido. Tratem de compreender que para vocês viverem é preciso que eu viva. E eu estou muito apertado, o menor aumento no preço da mão-de-obra me derrubaria. Lembrem-se de que dois anos atrás, quando da última greve, cedi, mas naquele tempo ainda podia. E saibam que essa alta de salário foi

extremamente ruinosa para mim, que desde então me debato numa crise. Hoje, prefiro fechar esta joça agora mesmo a não saber onde, no mês que vem, arranjar dinheiro para pagar vocês.             

Chaval riu maldosamente ao ver aquele patrão falando tão francamente dos seus negócios. Os outros baixavam a cabeça obstinados, incrédulos, sem poderem compreender que um chefe não ganhasse milhões com os seus operários.

Deneulin continuou insistindo. Explicou sua luta contra Montsou sempre à espreita, pronta a devorá-lo se ele, por descuido, caísse de mau jeito. Era uma concorrência desenfreada, que o forçava a fazer economia, tanto mais que a grande profundidade da Jean-Bart aumentava o preço da extração, condição desfavorável só compensada pela grande espessura das camadas de hulha. Nunca teria aumentado os salários após a última greve, se não fosse a necessidade de imitar Montsou, de receio de ver seus empregados abandonarem-no. Em seguida, ameaçou-os com o futuro, que só seria desfavorável para eles próprios: se o obrigassem a vender, ficariam sob o jugo terrível da outra administração. Ele não estava entronizado num tabernáculo ignorado e longínquo: não era desses acionistas que pagam a gerentes para explorar o mineiro e que este nunca viu; era um patrão, arriscava algo mais do que o seu dinheiro, punha em risco sua inteligência, sua saúde, sua vida. A suspensão do trabalho representaria a morte, certamente, porque não tinha estoque e precisava satisfazer às encomendas. Por outro lado, o capital que representava seu aparelhamento não podia ficar inerte. De que maneira manteria seus compromissos? Quem pagaria o juro das somas que lhe tinham confiado seus amigos? Seria a falência.

— Isso é tudo, minha gente! — disse ele para terminar. — Gostaria de tê-los convencido... Não se pode pedir a um homem que se degole... E, se eu concordar com esses cinco cêntimos ou permitir que entrem em greve, será a mesma coisa que cortar o pescoço.

Calou-se. Os murmúrios começaram a correr. Parte dos mineiros parecia hesitar. Diversos deles voltaram para perto do poço.

— Que ao menos haja liberdade de escolha — disse um contramestre. — Quais são os que querem trabalhar?

Catherine foi uma das primeiras a avançar, mas Chaval, furioso, empurrou-a, gritando:

— Estamos todos de acordo, só os velhacos é que abandonam os companheiros!   Desde esse momento a conciliação pareceu impossível. A gritaria recomeçou, os homens

que se encontravam perto do poço foram arredados aos empurrões e quase esmagados contra as paredes. 0 diretor, desesperado, tentou, por um momento, lutar sozinho, arremeter violentamente contra a turba, mas seria uma loucura inútil, teve de se retirar. E ficou por alguns minutos no fundo do escritório do recebedor, jogado sobre uma cadeira, ofegando, tão confundido na sua impotência que não conseguia pensar em nada. Finalmente acalmou-se e mandou um vigia buscar Chaval. Quando este último aceitou conversar, despediu os demais com um gesto.

— Deixem-nos sós.

A intenção de Deneulin era descobrir o que aquele astuto estava amando. Às primeiras palavras já pôde ver que era um vaidoso, devorado pela paixão da inveja. Agarrou-o então pela lisonja, fingiu espantar-se de que um operário com seus méritos comprometesse dessa maneira seu futuro. Ouvindo-o, dir-se-ia que, há muito, eleja tinha Chaval na mira para um posto melhor. Terminou oferecendo-lhe à queima-roupa o lugar de contramestre, para mais tarde. Chaval escutava-o silencioso, a princípio com os punhos cerrados, depois gradualmente abertos. Seu cérebro trabalhava sem descanso: se insistisse na greve, nunca passaria de lugar-tenente de Etienne, enquanto outra ambição florescia nele, a de ser um chefe. Um calor de orgulho lhe subia às faces e o embriagava. E, aliás, o grupo de grevistas que esperava toda a manhã não viria mais, a essa hora; algum obstáculo o detivera, talvez os policiais: era o momento da conciliação. Mas assim mesmo continuava a negacear com a cabeça, fingindo o homem incorruptível, batendo indignado no peito. Finalmente, sem falar ao patrão sobre a vinda dos grevistas de Montsou, prometeu acalmar os companheiros e convencê-los a descer.

Deneulin permaneceu escondido, os próprios contramestres mantiveram-se afastados. Durante uma hora ouviram Chaval perorar, discutir, em pé sobre um vagonete de recepção. Parte dos operários começou a vaiá-lo, cento e vinte foram embora, exasperados, obstinando-se na resolução que ele os tinha feito tomar. Eram já mais de sete horas, raiava o dia, muito claro, um dia alegre de grande geada. E, de repente, o movimento da mina recomeçou, o trabalho parado seguiu o seu curso.

Primeiro foi a máquina, cuja biela mergulhou, enrolando e desenrolando os cabos das bobinas. Depois, em meio à barulheira dos sinais, começou a descida; os elevadores enchiam-se, afundavam, subiam, o poço engolindo a sua ração de aprendizes, operadoras de vagonetes e britadores; enquanto isso, sobre o pavimento de ferro, os ascensoristas empurravam os vagonetes comum barulho ensurdecedor.

— Diabo, ainda andas por aqui? — gritou Chaval a Catherine que esperava a sua vez. — Desce de uma vez e começa logo a trabalhar!

Às nove horas, quando a Sra. Hennebeau chegou no seu carro acompanhada de Cécile, encontrou Lucie e Jeanne já prontas, muito elegantes apesar de seus vestidos vinte vezes reformados. Deneulin admirou-se ao ver Négrel, que acompanhava a caleça, a cavalo Então os homens também estavam convidados? A Sra. Hennebeau explicou com seu ar maternal que a haviam assustado dizendo que as estradas estavam cheias de gente mal-encarada, e achara por bem trazer consigo um defensor. Négrel riu e tranqüilizou-as: nada de grave, cão que ladra não morde, ninguém ousaria atirar urna pedra a uma vidraça.

Ainda alegre com o seu sucesso, Deneulin contou a revolta reprimida da Jean-Bart. Agora declarava-se perfeitamente tranqüilo. E ali, na estrada de Vandame, enquanto as senhoritas subiam na carruagem, todos se mostravam felizes com aquele dia maravilhoso, sem adivinharem, ao longe, na campina, o grande frêmito que tomava corpo, o povo em marcha, de que ouviriam o avançar se tivessem colado o ouvido ao chão.

— Muito bem, está combinado — disse a Sra. Hennebeau. — Esta noite o senhor vai buscar as suas filhas e janta conosco. A Sra. Grégoire também prometeu ir buscar Cécile.

— Conte comigo — respondeu Deneulin.

A caleça partiu para os lados de Vandame. Jeanne e Lucie debruçaram-se mais uma vez para fora e sorriram para o pai, que ficara parado à beira do caminho. Négrel trotava garbosamente atrás das rodas que fugiam.

Atravessaram a floresta, tomaram a estrada que vai de Vandame a Marchiennes. Ao passarem por Tartaret, Jeanne perguntou à Sra. Hennebeau se conhecia Cote-Verte, e esta, apesar de já estar residindo na região há cinco anos, confessou não ter visitado aquelas bandas. Fizeram então um desvio.

O Tartaret, na orla da floresta, era uma charneca inculta de uma esterilidade vulcânica, sob a qual, havia séculos, queimava uma jazida de hulha. Era uma lenda muito antiga, os mineiros da região contavam uma história sobre uma bola de fogo caindo do céu e atingindo aquela sodoma das entranhas da terra, onde as operadoras de vagonetes manchavam-se de abominações. O fogo se espalhara com tanta rapidez que elas não tinham tido tempo de escapar e ainda hoje ardiam no fundo daquele inferno. As rochas calcinadas, de um vermelho escuro, cobriam-se de uma eflorescência de alúmen, que era como uma lepra. O enxofre brotava em florações amarelas nas bordas das fissuras. De

noite, os corajosos que ousavam espiar por esses buracos juravam ver as chamas e as almas criminosas debatendo-se no braseiro interior. Labaredas errantes corriam à flor do solo, vapores quentes, expelindo o fedor da imunda cozinha do diabo fumegavam continuamente. E como um milagre de eterna primavera, .no meio daquela charneca maldita do Tartaret, a Côte-v-íte espraiava o seu prado sempre verde, as suas faias cujas folhas se renovavam sem cessar, suas semeaduras que chegavam a dar três colheitas. Era uma estufa natural, aquecida pelo incêndio das camadas profundas. Neve alguma resistia a tal temperatura. A enorme floração de verdura, ao lado das árvores despojadas da floresta, apresentava-se soberba naquele dia de dezembro, sem que a geada tivesse, sequer, queimado a extremidade de suas folhas.

Dentro em pouco a caleça corria pela planície. Négrel desmistificava a lenda explicando como o fogo começava, o mais das vezes, no fundo de uma jazida pela fermentação da poeira do carvão; quando não se podia dominá-lo, ele ardia indefinidamente. Citou o caso de uma mina da Bélgica que tivera de ser inundada, desviando-se um rio do seu curso para lançá-lo no poço.

Mas o engenheiro achou melhor calar-se, já que grupos de mineiros cruzavam agora a todo instante a carruagem. Passavam em silêncio, lançando olhares atravessados, examinando aquele luxo que os obrigava a abrir caminho. O seu número aumentava sempre, os cavalos tiveram de andar a passo na estreita ponte do Scarpe. Que estava acontecendo para que toda aquela gente andasse pelos caminhos? As damas começavam a ficar assustadas; Négrel farejava algo de mau naquela agitação. Foi com uma sensação de alívio que chegaram finalmente a Marchiennes. Esbatidas pelo sol, as baterias de fornalhas de coque e as chaminés dos altos-fornos expeliam fumaça, cuja sempiterna fuligem chovia no ar.

 

Na Jean-Bart, havia já uma hora que Catherine empurrava os vagonetes até o entroncamento. Estava tão alagada de suor que parou um momento para enxugar o rosto.

Do fundo do desmonte, onde britava no veio com seus companheiros de empreitada, Chaval admirou-se de não ouvir mais o barulho das rodas. As lâmpadas iluminavam mal, a poeira do carvão não deixava ver nada.

— Que aconteceu? — gritou ele.

Quando ela respondeu que estava desfazendo-se em suor e que sentia o coração saltando do peito, respondeu furioso:

— Burra! pois tira a camisa, como a gente!

Estavam a setecentos e oito metros, ao norte, na primeira via do veio Désirée, separados por três quilômetros do poço. Quando falavam daquela parte da mina, os mineiros da região empalideciam e baixavam a voz, como se estivessem falando do inferno. No mais das vezes limitavam-se a abanar a cabeça, preferindo calar sobre aquelas profundidades que ardiam como brasas. A medida que avançavam para o norte, as galerias aproximavam-se do Tartaret, penetrando assim no incêndio interno que, em cima, calcinava as rochas. O veio, no ponto a que se chegara, tinha uma temperatura média de quarenta e cinco graus. Estava-se em plena cidade maldita, no meio das chamas que os passantes da planície viam pelas fissuras, cuspindo enxofre e vapores nauseabundos.

Catherine, que já tirara a jaqueta, hesitou, depois tirou também as calças. E de braços e pernas nus, a camisa amarrada na cintura por uma corda, como se fosse uma blusa, pôs-se de novo a empurrar.

— Assim talvez melhore — disse ela em voz alta.

Sentia-se inquieta por estar seminua. Havia cinco dias que trabalhavam ali e que pensava nas histórias com que fora embalada na infância, nas operadoras de vagonetes de outrora que ardiam no Tartaret, como castigo por coisas que não se ousava repetir. Sem dúvida, já tinha idade bastante para não acreditar em tais bobagens, mas que faria ela, se repentinamente visse sair do muro uma moça rubra como um fogareiro e com olhos parecendo tições? A esta idéia, suava mais ainda.

No entroncamento, a oitenta metros do desmonte, outra operadora recebia o vagonete e empurrava-o mais oitenta metros. Dali ele era expedido pelo recebedor, com os demais que desciam das vias superiores.

Puxa que coragem! — disse a outra operadora de vagonetes, uma viúva magra de trinta anos, ao ver Catherine em camisa. 

— Eu é que não posso andar assim... Os garotos do plano inclinado não me deixam em paz com os seus palavrões. 

— pois eu — replicou Catherine — não ligo para o que dizem os homens. Estou sentindo muito calor.

E tornou a partir, empurrando um vagonete vazio. O pior era que naquela via do fundo outra causa vinha juntar-se à vizinhança do Tartaret para tornar o calor insuportável. Ao lado, havia uma galeria abandonada da Gaston-Marie, muito profunda, onde uma explosão de grisu, dez anos antes, incendiara o veio, que ainda ardia por trás do muro de greda, que fora construído ali para estancar o fogo e vivia sob contínuos reparos, a fim de limitar o desastre. Sem ar, o incêndio devia ter-se apagado, mas sem dúvida correntes de ar desconhecidas o mantinham aceso. Durando já dez anos, esse fogo esquentava a argila do muro como os tijolos de um forno, a ponto de se receber o seu bafo na passagem. E era ao longo dessa muralha de mais de cem metros que se fazia o transporte, a uma temperatura de sessenta graus.

Após duas viagens, Catherine sentiu-se novamente abafada. Felizmente a via era larga e cômoda no veio Désirée, um dos mais espessos da região. A camada tinha um metro e noventa, os operários podiam trabalhar em pé; mas eles teriam preferido cavar curvados e ter um pouco de ar fresco para respirar.

— Mais esta! Já estás dormindo? — gritou violentamente Chaval quando não mais ouviu Catherine movimentar-se. — Que castigo para mim ter conseguido uma estropiada dessa! Vais ou não vais encher teu vagonete e empurrá-lo?

Ela estava na parte de baixo do veio, apoiada na pá; olhava a todos com um ar imbecilizado, sem obedecer, presa de um súbito mal-estar. Mal podia vê-los à luz avermelhada das lâmpadas, inteiramente nus, como animais, tão negros e sujos de suor e carvão, que sua nudez não a incomodava. Era um trabalho feito na obscuridade, espinhas de macacos que se espichavam, uma visão infernal de membros chamuscados, esgotando-se em meio aos golpes surdos e aos gemidos. Mas eles, sem dúvida, viam-na melhor, porque pararam de bater com as picaretas e começaram a fazer brincadeiras ao perceberem que estava sem calças.

— Ei, cuidado, não deixes que te resfries!

— Que pernas que ela tem! Como é, Chaval? dá bem para dois!

— Queremos ver! Levanta mais um pouco! Mais alto! Mais alto, Chaval, sem se zangar com aquela pândega, insultou-a de novo.

— Diacho! Para ouvir palavrões ela é boa, poderia ficar ali até amanhã.

Num supremo esforço, Catherine decidiu-se a encher o vagonete e depois empurrou-o. A galeria era larga demais para que ela pudesse encostar-se nas madeiras

dos lados, seus pés descalços não se mantinham sobre os trilhos, onde buscava um ponto de apoio enquanto empurrava o carro lentamente, os braços retesados e o corpo curvado. E, assim que ladeava o muro de greda, o suplício do fogo recomeçava, o suor voltava a correr por todo o corpo, em gotas enormes, como uma chuva de tempestade.

Apenas a um terço do entroncamento, ficou inundada, cega, coberta também de lama negra. Sua camisa estreita, como que encharcada em tinta, colada à pele, subira até os rins com o movimento das pernas. Sentia-se tão dolorosamente manietada, que teve de parar o trabalho outra vez.

Afinal, que estava acontecendo com ela naquele dia? Nunca se sentira tão mole. Devia ser o ar contaminado. Não havia ventilação no fundo daquela via longínqua. Respirava-se toda espécie de vapores que saíam do carvão com uma efervescência de fonte, e às vezes com tal abundância que as lâmpadas apagavam-se. Sem falar do grisu, do qual ninguém se ocupava mais, tal a sua quantidade, intoxicando os mineiros, do princípio ao fim da quinzena. Ela conhecia bem esse ar contaminado, esse ar morto, como dizem os mineiros: embaixo pesados gases asfixiantes, em cima gases leves que se incendeiam e fulminam uma mina inteira e centenas de homens num relâmpago. Desde a sua infância respirara-o tanto, que se espantava de não poder suportá-lo agora, os ouvidos zumbindo, a garganta em fogo.

Não podendo mais, sentiu necessidade de tirar a camisa. Aquela roupa, cujas menores pregas pareciam entrar na carne, estava-se transformando numa tortura. Resistiu e quis continuar empurrando, mas foi forçada a endireitar a espinha. Num repente, dizendo-se que voltaria a vestir-se no entroncamento, tirou tudo, a corda e a camisa, com tanta ânsia que teria arrancado a pele, se pudesse. E agora, nua, deplorável, rebaixada ao trote de fêmea ganhando a vida pela lama dos caminhos, esfalfava-se, com a garupa coberta de fuligem e barro até a barriga, como uma égua de carroça. De quatro patas, ela empurrava o vagonete.

Sentiu que estava ficando desesperada, a nudez não a aliviara. Que mais havia de tirar? Estava surda com aquele zumbido nos dos parecia-lhe ter um torniquete nas têmporas. Caiu de joelhos. A lâmpada, enfiada nos fragmentos de carvão do vagonete, foi diminuindo. No meio das suas idéias confusas, uma única era clara: subir o pavio da lâmpada. Por duas vezes quis examiná-la, e em ambas, à medida que a pousava diante de si, no chão, notou que se extinguia, como se a ela também faltasse a respiração. De repente a lâmpada apagou-se e tudo foi engolfado pelas trevas. Sua cabeça parecia um moinho girando, seu coração foi parando de bater, entorpecido pelo mesmo imenso

cansaço que lhe atingira o corpo. Caíra de boca para baixo e agonizava no ar asfixiante, rente ao chão.

— Inferno! Garanto que ela anda outra vez fazendo das suas! — trovejou a voz de Chaval.

Pôs-se a escutar do alto do veio e não ouviu o barulho das rodas.

— Ei, Catherine! Diabo de mulher!

A voz perdia-se ao longe, na galeria escura, e nem um suspiro respondia.

— Queres que eu vá fazer-te andar?

Nada se movia, sempre o mesmo silêncio de morte. Furioso, ele desceu e saiu correndo com a sua lâmpada, quase tropeçando no corpo da operadora de vagonetes, que barrava a via. Boquiaberto, olhou-a demoradamente. Que teria ela? Não estaria fingindo, para tirar uma soneca? Mas a lâmpada, que baixara para iluminar o rosto da mulher, quase se apagou. Levantou-a, baixou-a novamente e acabou por compreender: devia ser um golpe de ar asfixiante. Sua violência desaparecera, a solidariedade do mineiro acordava diante do companheiro em perigo. Gritou para que lhe trouxessem a camisa dela, tomou nos braços a moça nua e desmaiada, erguendo-a o mais alto possível. Assim que lhe puseram nos ombros a roupa de ambos, partiu correndo, sustentando com uma das mãos o seu fardo, carregando na outra as duas lâmpadas. As galerias profundas desenrolavam-se na sua frente, enquanto corria, dobrando à esquerda e à direita, em busca da vida no ar gelado da planície, que o ventilador soprava. Finalmente parou ao ouvir um ruído de fonte, o borbulhar de uma infiltração vazando na rocha. Encontrava-se na encruzilhada de uma grande galeria carroçável, que antigamente era utilizada pela Gaston-Marie. Nesse ponto a ventilação soprava como uma tempestade, o frescor era tão grande que ele foi sacudido por um arrepio ao sentar-se por terra, encostando-se ao revestimento e com a amante ainda desacordada e de olhos fechados.

— Chega de brincadeiras, Catherine! Como é?... Vê se podes sustentar-te sozinha por um instante enquanto eu molho isto na água...

Estava assustado com a placidez dela. Mas assim mesmo conseguiu molhar sua camisa na fonte e lavar-lhe o rosto. Ela mais parecia uma morta, já enterrada, com seu corpo delicado de moça tardia, onde as formas da puberdade eram ainda hesitantes. De repente, um frêmito percorreu seu colo de criança, indo terminar no ventre e no sexo de pequena miserável, deflorada antes da idade. Abrindo os olhos, sussurrou:

— Tenho frio.

— Ah! agora sim, estou gostando... — exclamou Chaval, aliviado. Vestiu-a, enfiando-lhe facilmente a camisa, e praguejou devido à dificuldade que encontrava para enfiar-lhe as calças. Ainda atordoada e sem movimentos, ela não sabia onde se encontrava nem por que estava nua. Ao lembrar-se, ficou envergonhada. Como tivera a coragem de tirar tudo! Perguntou: tinha sido vista assim, sem ao menos um lenço na cintura? Ele, rindo, inventou história, contou que desfilara com ela nua por entre os companheiros que abriam alas. Também, que idéia ter ouvido seu conselho e pôr-se de bunda à mostra! Em seguida deu a sua palavra de que os camaradas nem ficaram sabendo se ela tinha o traseiro redondo ou quadrado, tanto ele correra.

— Com a breca! Estou morrendo de frio! — disse, vestindo-se também.

Nunca ela o vira tão carinhoso. De ordinário, para uma palavra boa, saíam logo duas grosseiras da sua boca. Seria tão bom se pudessem viver em paz! Ainda lânguida de fadiga, foi invadida pela ternura. Sorrindo, murmurou:

— Beija-me!

Ele beijou-a e deitou-se ao seu lado, enquanto esperava que ela pudesse caminhar.

— Estás vendo? — continuou a moça. — Não tinhas razão de gritar comigo lá no veio. Juro que já não podia mais. Onde vocês trabalham é menos quente, mas se tu soubesses como a gente cozinha no fundo da via...

— Claro — respondeu ele. — A gente estaria melhor a céu aberto. Tens sofrido um bocado nesta mina, minha pobre menina; disso não duvido.

Ficou tão comovida ouvindo-o concordar, que se fez de corajosa.

— É que hoje o ar está envenenado e eu tive uma indisposição.

Mas em seguida verás se sou preguiçosa. Quando é preciso trabalhar, trabalha-se, não é verdade? Prefiro morrer a ficar sem fazer nada...

Houve um silêncio. Ele segurava-a pela cintura, abrigando-a contra o peito. Ela, embora sentindo-se já com forças para voltar ao trabalho, entregava-se, deliciada.

— Eu só queria que fosses mais carinhoso — disse ela baixinho. — A gente podia viver tão bem se houvesse um pouco de amor...

E pôs-se a chorar mansamente.

— Mas eu te amo! — exclamou ele. — A prova é que te levei para viver comigo.

Ela respondeu com um aceno de cabeça. Muitas vezes os homens se juntavam a uma mulher só para usá-la, não se importando com a felicidade dela. Suas lágrimas começaram a correr mais quentes, desesperava-se ao pensar que poderia estar levando

uma vida agradável, se fosse outro o companheiro, um rapaz que gostasse de envolvê-la assim, pela cintura. Um outro? E a imagem desse outro foi surgindo da sua enorme emoção. Mas agora já era tarde, seu único desejo era viver até o fim com este, desde que não a maltratasse muito.

— Então — disse ela —, tenta ser assim de vez em quando... Os soluços não a deixavam continuar e ele beijou-a novamente.

— Bobinha! Está bem, eu juro que serei delicado. Até parece que sou pior do que os outros...

Olhando-o, ela começou a sorrir entre as lágrimas. Talvez ele tivesse razão, quase não há mulheres felizes. Embora não levando muito a sério o juramento dele, entregou-se à alegria de vê-lo tão solícito. Bom Deus! se ao menos aquilo durasse! Com novo ânimo, estreitaram-se num longo abraço, mas, ouvindo passos, puseram-se em pé. Três companheiros, que os tinham visto passar, vinham saber o que era.

Continuaram o caminho todos juntos. Eram quase dez horas e resolveram almoçar num canto arejado, antes de voltarem a suar no fundo do veio. Quando estavam acabando de comer o sanduíche duplo e iam beber um gole de café, ouviram um barulho que vinha de longe, das outras seções da mina, e que fez que apurassem o ouvido. Que seria? Outro acidente? Levantaram-se e correram. Britadores, operadoras de vagonetes e aprendizes cruzavam-se a cada instante, mas ninguém sabia de nada, todos gritavam, devia ser uma grande desgraça. Pouco a pouco a mina inteira estava assustada, sombras enlouquecidas desembocavam das galerias, as lanternas balançavam desaparecendo nas trevas. Onde era? Por que não diziam nada?

De repente um contramestre passou gritando:

— Estão cortando os cabos! Estão cortando os cabos!

Esse grito espalhou o pânico. Houve uma correria furiosa através das vias escuras. Ninguém sabia o que pensar. Por que cortavam os cabos? E quem os cortava, havendo homens no fundo da mina? Aquilo parecia uma monstruosidade.

Nesse momento a voz de outro contramestre ressoou e perdeu-se no emaranhado de galerias:

— É o pessoal de Montsou que está cortando os cabos! Saiam todos!

Ao compreender o que estava acontecendo, Chaval fez Catherine parar. A idéia de que ia encontrar os grevistas de Montsou fez que sentisse as pernas bambas. Então essa corja que ele acreditava já nas mãos dos policiais tinha vindo! Por um momento pensou em voltar e subir pela Gaston-Marie, mas aquela saída tinha sido fechada. Praguejou,

hesitante, ocultando o medo, repetindo que não havia razão para correr, que ninguém ia deixá-los fechados no fundo da mina.

Ouviu-se novamente a voz do contramestre que se aproximava:

— Saiam imediatamente! Usem as escadas! As escadas! Chaval foi arrastado como os demais companheiros; começou a empurrar Catherine, acusando-a de não correr o bastante. Será que ela estava querendo que ficassem encurralados ali, morrendo de fome? Os bandidos de Montsou eram capazes de quebrar as escadas, sem esperar que todos tivessem saído. Esta suposição pavorosa acabou de semear o pânico. Foi um salve-se-quem-puder ao longo das galerias, todos tentando chegar em primeiro lugar, frenéticos, enlouquecidos. Alguns gritavam que as escadas tinham sido quebradas, que ninguém sairia mais. Quando os grupos em pânico começaram a desembocar no patamar do poço, foi um verdadeiro atropelo: correram para o buraco negro e começaram a esmagar-se na porta estreita que dava acesso às escadas. Enquanto isto, um velho cavalariço que prudentemente recolhia os cavalos para a estrebaria observava-os com desdenhosa negligência, acostumado com as noites passadas na mina, certo de que acabaria sendo retirado dali.

— Com mil raios! sobe na minha frente! — disse Chaval a Catherine. — Se caíres, pelo menos posso aparar-te.

Atordoada, exausta devido à corrida de três quilômetros que a deixara novamente alagada em suor, ela abandonava-se, sem compreender, aos redemoinhos daquele mar humano. Ele, então, puxou-a pelo braço com tal violência, que quase o quebrou. A moça soltou um gemido e as lágrimas começaram a correr; ele já esquecera o juramento, nunca seriam felizes.

— Vamos, passa! — berrou o homem.

Catherine estava transida de medo. Se subisse na frente dele. seria maltratada todo o tempo, por isso resistia, enquanto o fluxo desvairado dos companheiros os empurrava para o lado. As infiltrações do poço pingavam em gotas enormes e o soalho da embocadura na galeria, abalado pelo tropel, tremia por cima do fosso, do desaguadouro lodoso, com dez metros de profundidade. Fora justamente na Jean-Bart, dois anos antes, que um terrível acidente, a ruptura de um cabo, precipitara o elevador no fundo do fosso, onde dois homens morreram. E todos pensavam nisso, que iam cair lá embaixo, se se amontoassem sobre as pranchas.

— Maldita cabeçuda! — gritou Chaval. — Pois então morre, ficarei livre de ti!

Começou a subir as escadas e ela seguiu-o.

Do fundo à superfície, havia cento e dois lances de escadas, cada um de aproximadamente sete metros, divididos por estreitos patamares da largura do fosso, com buracos quadrados que mal deixavam passar os ombros. Era como uma chaminé chata, de setecentos metros de altura, entre a parede do poço e o tabique do compartimento de extração, uma tripa úmida, negra e sem fim, onde as escadas se sobrepunham, quase a pique, a intervalos regulares. Um homem forte precisava de vinte e cinco minutos para galgar aquela coluna gigante. Aliás, esse fosso das escadas só era usado agora em caso de catástrofe.

A princípio Catherine subiu sem dificuldade. Seus pés descalços estavam acostumados com as lascas de carvão afiladas das vias e não sofriam com os degraus quadrados, providos de uma cantoneira de ferro para impedir o desgaste. Suas mãos, calejadas pelos vagonetes, agarravam-se sem titubear aos corrimões, grossos demais para elas. Ocupava-se com aquilo, esquecia seu desgosto naquela subida imprevista, vendo a serpente humana que coleava, içava-se, três homens por escada, de modo que, quando a cabeça surgisse na superfície, a cauda ainda se arrastaria no fundo do fosso. Mas ainda não estavam nesse ponto, os primeiros deviam ter vencido apenas um terço do caminho. Ninguém falava mais, só os pés se arrastavam com um ruído surdo, enquanto as lanternas, iguais a estrelas errantes, espalhavam-se de alto a baixo, numa linha sempre crescente.

Catherine ouvia atrás dela um aprendiz contando as escadas. Teve a idéia de fazer o mesmo. Já tinham subido quinze e chegavam a uma embocadura de galeria. Nesse momento chocou-se nas pernas de Chaval. O homem praguejou, dizendo-lhe que prestasse atenção. De vez em quando a coluna parava, imobilizando-se. Que era? Que estava acontecendo? E cada um encontrava voz para perguntar e fazer suposições apavorantes. A angústia aumentava, o desconhecimento dos acontecimentos no exterior era como um garrote que ia apertando à medida que se aproximavam da luz do dia. Alguém disse que teriam de descer, que as escadas estavam quebradas. Essa era a preocupação de todos, o medo de se encontrarem sem saída. Outra explicação veio descendo de boca em boca, o acidente com um britador que escorregara de uma escada. Não se sabia ao certo, os gritos impediam de ouvir. Então iam ficar passando a noite ali? Finalmente, sem outras explicações, a subida recomeçou, com o mesmo movimento lento e penoso, acompanhando o barulho dos pés no ferro dos degraus e a dança das lâmpadas. As escadas quebradas deviam estar mais acima.

À trigésima segunda escada, quando ultrapassavam a terceira embocadura de galeria, Catherine sentiu que suas pernas e seus braços se enrijeciam. Primeiro sentira um formigueiro na pele, muito leve. Agora, perdia a sensação do ferro e da madeira sob os pés e nas mãos. Uma dor vaga, que se foi tornando aguda, esquentava-lhe os músculos. E, no aturdimento que a invadia, começou a lembrar-se das histórias do avô Boa-Morte, do tempo em que não havia elevador e as meninas de dez anos subiam com o carvão nos ombros, ao longo das escadas sem corrimões, de maneira que, quando uma delas escorregava ou simplesmente um pedaço de hulha caía de um cesto, três ou quatro crianças eram precipitadas de cabeça para baixo. As cãibras nos membros estavam ficando insuportáveis, nunca chegaria ao topo.

Novas paradas permitiram-lhe respirar. Mas o terror que vinha lá de cima acabava de prostrá-la. Acima e abaixo dela, as respirações iam ficando cada vez mais ofegantes, respirava-se uma vertigem nessa ascensão interminável, cuja náusea a sacudia assim como aos outros Sentia-se sufocada, ébria de trevas, exasperada com o esmagamento das paredes contra sua carne. E tiritava devido à umidade, o corpo em suor, porejando gotas enormes que a inundavam. Aproximavam-se do nível, a chuva caía com tanta força que ameaçava apagar as lâmpadas.

Por duas vezes Chaval falou com Catherine sem obter resposta. Por que não respondia? Tinha engolido a língua? Que custava dizer se estava indo bem? Havia meia hora que subiam, mas tão vagarosamente que se encontravam apenas na qüinquagésima nona escada. Restavam quarenta e três. Catherine acabou balbuciando que se ia agüentando. Ele a chamaria de preguiçosa se tivesse confessado seu cansaço. O ferro dos degraus parecia perfurar seus pés, tinha a sensação de que estava sendo serrada até os ossos. Após cada braçada, esperava ver suas mãos largarem o corrimão, esfoladas e endurecidas, a ponto de não poder fechar os dedos. Acreditava que a qualquer momento ia cair para trás com os ombros arrancados, as pernas desconjuntadas pelo contínuo esforço. Era sobretudo a pouca inclinação das escadas que a fazia sofrer, aquela colocação quase a prumo, que a obrigava a içar-se com a força dos braços, a barriga colada à madeira. O resfolegar das respirações cobria agora o barulho dos passos, um enorme estertor, retumbando na parede do fosso, elevava-se do fundo e ia morrer na superfície. Houve um gemido, correu um murmúrio pelas escadas, um aprendiz acabava de quebrar a cabeça na aresta de um patamar. E Catherine subia. Ultrapassaram o nível. A chuva cessara, um nevoeiro tornava pesado o ar subterrâneo, envenenado por um cheiro de ferro velho e madeira úmida. Maquinalmente obstinava-se a contar baixinho:

oitenta e um, oitenta e dois, oitenta e três; faltavam dezenove lances. Só estes números, repetidos, a amparavam com seu balanço rítmico. Já perdera a consciência dos seus movimentos. Ao levantar os olhos, as lâmpadas redemoinhavam em espiral. Seu sangue escorria, sentia que estava morrendo, ao menor sopro seria precipitada escadas abaixo. O pior, agora, era que os de baixo estavam empurrando, e a coluna inteira se arremessava com novo ímpeto, cedendo à cólera crescente de sua fadiga, à necessidade furiosa de tornar a ver o sol. Os primeiros da coluna já tinham chegado à superfície, não havia portanto escadas quebradas, mas a idéia de que ainda podiam quebrá-las, para impedir que os últimos saíssem, enquanto os outros respiravam lá em cima, acabou de enfurecê-los. E, como houvesse uma nova parada, as pragas explodiram, todos continuaram a subir, empurrando, passando por cima de corpos, tentando chegar de qualquer maneira.

Nesse momento Catherine caiu. Chegou a gritar o nome de Chaval, num apelo desesperado, mas ele não ouviu, estava lutando arrebentara as costas de um companheiro a pontapés para passar na sua frente. Ela foi rolada, pisoteada. No seu desmaio, sonhou: era uma das pequenas operadoras de vagonetes de outrora, que um pedaço de carvão, caído de um cesto acima dela, acabava de jogar no fundo do poço, como um pardal atingido por uma pedrada. Faltavam apenas cinco lances de escadas para subir, tinham levado cerca de uma hora. Nunca soube de que maneira chegara ao topo, empurrada pelos outros, talvez graças à estreiteza do fosso. De repente encontrou-se num deslumbramento de sol, no meio de uma multidão ululante que a vaiava.

 

Desde o raiar do dia que um frêmito tinha agitado os conjuntos habitacionais mineiros, o frêmito que nesse momento se espalhava pelos caminhos, por toda a região. No entanto, a marcha combinada não pudera ser realizada em razão de uma notícia que corria de boca em boca: a tropa a cavalo e os policiais vasculhavam a planície. Contava-se que eles tinham chegado de Douai durante a noite, acusava-se Rasseneur de ter vendido os camaradas, prevenindo o Sr. Hennebeau. Uma operadora de vagonetes chegava a jurar que vira o criado levando o telegrama para ser expedido. Os mineiros

cerravam os punhos, espreitando os soldados por trás das suas persianas, à tímida luz da madrugada.

Por volta das sete e meia, com o nascer do sol, circulou outro boato que acalmou os impacientes. Era um rebate falso, um simples desfile militar, coisa que vinha acontecendo desde o começo da greve, por ordem do general e a pedido do prefeito de Lille. Os grevistas odiavam esta autoridade, a quem acusavam de tê-los enganado com a promessa de uma intervenção conciliadora e que se limitava a fazer que a tropa desfilasse por Montsou de oito em oito dias, para mantê-los na linha. Assim, ao verem a cavalaria e os policiais retomarem tranqüilamente o caminho de Marchiennes, depois de haver ensurdecido os conjuntos habitacionais com os cascos dos seus cavalos sobre a terra batida, os mineiros zombaram de um prefeito tão ingênuo, com seus soldados que davam as costas no momento exato em que coisas iam pegar fogo. Até as nove horas mantiveram-se calmos, pacatamente diante das casas, enquanto seguiam com os olhos, estrada afora, as costas pacíficas dos últimos policiais. No fundo dos seus grandes leitos, os burgueses de Montsou ainda dormiam a sono solto. Na direção, acabavam de ver a Sra. Hennebeau partir de carruagem, deixando sem dúvida o Sr. Hennebeau trabalhando, já que o palacete, fechado e mudo, parecia deserto. Nenhuma mina estava guardada militarmente, era a imprevidência fatal na hora do perigo, o erro natural das catástrofes, tudo o que um governo pode cometer de faltas, quando o essencial era prever qualquer eventualidade. Davam as nove quando os mineiros se puseram finalmente a caminho de Vandame, para a ação decidida de véspera na floresta.

Etienne compreendeu desde logo que não poderia contar, na Jean-Bart, com os três mil camaradas que tinham prometido ir. Muitos julgavam que a manifestação fora adiada, e o pior era que dois ou três grupos, já a caminho, iam comprometer a causa se ele não se pusesse, de qualquer maneira, à sua frente. Uns cem homens haviam partido antes do amanhecer e na certa tinham-se escondido sob as faias da floresta, à espera dos outros. Suvarin, que o rapaz fora consultar, deu de ombros: dez latagões bem dispostos fariam melhor trabalho que uma corja inteira. E tornou a mergulhar na leitura de um livro aberto à sua frente, recusando tomar parte na manifestação. Aquilo ameaçava transformar-se outra vez em sentimentalismo, quando bastaria incendiar Montsou, o que era bem simples. Ao sair pelo lado da casa, Etienne percebeu Rasseneur muito pálido, sentado defronte do fogão de ferro fundido, enquanto sua mulher, enorme na sua eterna roupa negra, o invectivava com palavras cortantes mas polidas.

Maheu foi de opinião que se devia manter a palavra empenhada. Um compromisso desse era sagrado. No entanto, a noite arrefecera os ânimos e ele, agora, temia uma desgraça e explicava que o dever deles era irem para lá a fim de manter os companheiros na ordem. A mulher aprovou com a cabeça. Etienne contemporizava, repetindo que era preciso agir revolucionariamente, mas sem atentar contra a vida das pessoas. Antes de partir, rejeitou a sua parte de um pão que lhe tinham dado de véspera com uma garrafa de genebra, mas bebeu de um só gole três copinhos, para combater o frio. E levou consigo um cantil cheio dela. Alzire cuidaria das crianças. O velho Boa-Morte, com as pernas doloridas da caminhada da véspera ficara de cama.

Por prudência, não foram juntos. Jeanlin já desaparecera havia muito tempo. Marido e mulher seguiram lado a lado, atalhando por Montsou, enquanto Etienne se dirigiu para a floresta, onde queria encontrar-se com os companheiros. No caminho encontrou um bando de mulheres, entre as quais reconheceu a Queimada e a mulher de Levaque. Enquanto caminhavam, comiam castanhas que a filha de Mouque trouxera, e até as cascas devoravam, para permanecerem mais tempo de barriga cheia.

Na floresta ele não encontrou ninguém, todos já tinham partido para a Jean-Bart. Então saiu desabalado e chegou diante da mina no momento em que Levaque e uma centena de outros penetravam no pátio. Os mineiros surgiam de todas as partes, os Maheu pela estrada real, as mulheres do meio dos campos, todos dispersos, sem líderes, sem armas, correndo naturalmente para ali como água que transborda e segue os declives. Etienne percebeu Jeanlin instalado sobre um passadiço, como se fosse a um espetáculo. Correu com todas as suas forças e entrou com os primeiros. Não eram mais que trezentos.

Houve um momento de hesitação quando Deneulin surgiu no alto da escada que conduzia à recebedoria.

— Que é que vocês querem? — perguntou ele com voz forte. Após ter visto desaparecer a caleça, de onde as filhas lhe sorriam ainda, voltara à mina, cheio de uma vaga apreensão. Mas tudo estava em ordem, os operários tinham descido, a extração funcionava, o que o deixou novamente tranqüilo. Conversava com o capataz quando lhe disseram que os grevistas se aproximavam. Dirigiu-se correndo para uma janela da triagem, e, diante daquela onda enorme que invadia o pátio, teve a consciência imediata da sua impotência. Como defender aquelas edificações abertas de todos os lados? Apenas poderia reunir em torno de si uns vinte dos seus operários. Estava perdido.

— Que é que vocês querem? — repetiu ele, lívido de cólera, fazendo um esforço para aceitar corajosamente sua derrota.

Houve empurrões e grunhidos na multidão. Etienne avançou e disse:

— Não viemos aqui para fazer-lhe mal, mas o trabalho tem que parar em toda a região.

Deneulin não se conteve e chamou-o de imbecil.

— Então acreditam que me estão fazendo bem parando o trabalho minha mina? É como se me disparassem um tiro pelas costas, à queima-roupa. Pois saibam que meus homens estão trabalhando e não subirão, a não ser que vocês me assassinem primeiro!

Estas palavras violentas levantaram um clamor. Maheu teve de segurar Levaque, que se atirava, ameaçador. Etienne continuou a parlamentar, procurando convencer Deneulin da legitimidade de sua ação revolucionária. Este, no entanto, respondia-lhe com o direito de trabalhar.

Aliás, recusava discutir semelhantes tolices; em sua casa era ele quem mandava. Só lastimava não ter ali quatro policiais para varrer aquela canalha.

— Perfeitamente, é minha culpa, mereço o que me está acontecendo. Com gente como vocês, só a força. Não sei como é que o governo pensa que pode comprá-los com concessões. Vocês o que farão é pô-lo abaixo com as armas que ele lhes fornecer.

Etienne, furioso, ainda podia conter-se. Baixou a voz:

— Peço-lhe, meu senhor, dê ordem para que subam os mineiros. Daqui por diante não respondo mais. pela conduta dos meus companheiros. O senhor pode evitar uma desgraça.

— Não! Vão para o inferno! Eu o conheço? Você não trabalha para mim, portanto não tem nada para discutir comigo. Só os salteadores é que percorrem assim os campos para pilhar as casas.

Vociferações cobriram sua voz; as mulheres, sobretudo, insultavam-no. Ele continuou a desafiá-los, sentindo um alívio naquela franqueza que desafogava seu coração autoritário. Já que, de qualquer jeito, a ruína era certa, achava uma covardia as concessões inúteis. Mas o número de revoltosos ia aumentando sempre, cerca de quinhentos já se atiravam para a porta e ele ia ser destroçado se o seu capataz não o tivesse puxado violentamente para trás.

— Por favor, Sr. Deneulin!... Isto vai ser uma carnificina. De que serve fazer matar homens inutilmente?

Ele debateu-se e protestou com um último grito atirado à turba:

— Súcia de bandidos! Vocês pagarão por isso quando nós voltarmos a ser os mais fortes!

Levaram-no. Um último ímpeto acabava de levar os que estavam na frente da multidão para o início da escada, cujo corrimão foi torcido. Eram as mulheres que empurravam, uivando, excitando os homens. A porta cedeu em seguida, era uma porta sem fechadura, cerrada apenas com ferrolho. A escada, porém, era muito estreita e a multidão, esmagada, não teria conseguido entrar se a retaguarda dos assaltantes não tivesse resolvido passar pelas outras aberturas. Desse momento em diante, a turba tomou conta de tudo, invadindo o vestiário, a triagem e a casa das caldeiras. Em menos de cinco minutos a mina inteira pertencia aos grevistas, que percorreram os três andares em meio a um furor de gestos e gritos, levando tudo pela frente no entusiasmo da sua vitória sobre o patrão que resistia. Maheu, assustado, fora dos primeiros a arremeter, dizendo a Etienne:

— Cuidado! Não devem matá-lo!

Este já corria, mas, quando viu que Deneulin se tinha barricado na sala dos contramestres, respondeu:

— E daí? Seria por acaso culpa nossa? Um louco desses... Contudo, ele estava cheio de inquietação, ainda bastante calmo para ceder a um gesto de cólera. Sofria também no seu orgulho de chefe, vendo que a turba escapava à sua autoridade, extravasando para fora da fria execução da vontade do povo, que era o que tinha planejado. Em vão pediu que se mantivessem calmos, gritou que não deviam dar razões ao inimigo, com atos de destruição inútil.

— Às caldeiras — berrava a Queimada. — Apaguemos as fornalhas!

Levaque, que encontrara uma lima, agitava-a como um punhal, dominava o tumulto com um grito terrível:

— Cortemos os cabos! Cortemos os cabos!

Em breve todos o seguiam. Apenas Etienne e Maheu continuavam a protestar, aturdidos, falando inutilmente no meio da gritaria. Por fim, o primeiro conseguiu fazer-se ouvir:

— Mas há gente lá no fundo, companheiros!

O alarido redobrou, todos falavam ao mesmo tempo.

— Pior para eles, não tinham que descer! Vai ser uma lição para esses traidores! Isso mesmo! Isso mesmo! Que fiquem por lá! E, depois, existem as escadas!...

Quando a idéia das escadas os tornou ainda mais decididos, Etienne compreendeu que devia ceder. Temendo um desastre ainda maior, precipitou-se para a máquina, querendo ao menos subir os elevadores, para que os cabos, serrados por cima do poço, não os esmagassem com seu peso enorme ao caírem sobre eles. O mecânico tinha desaparecido com os outros trabalhadores da superfície. Segurou a barra de direção e começou a manobrar, enquanto Levaque e outros dois subiam no vigamento de ferro que sustinha as roldanas.

Etienne acabava de fixar os elevadores nos ferrolhos de segurança quando se ouviu o ranger da lima cortando o aço. Fez-se um grande silêncio, esse ruído pareceu encher toda a mina, a turba ergueu a cabeça e escutou, presa de emoção. Maheu, na primeira fila, sentia-se invadir por uma alegria feroz, como se os dentes da lima os fossem livrar da desgraça, roendo o cabo de um desses buracos cheios de miséria, no qual nunca mais se desceria.

A Queimada tinha desaparecido pela escada do vestiário, gritando sempre:

— Apaguemos o fogo! Às caldeiras! Às caldeiras!

Algumas mulheres a seguiram. A de Maheu foi a primeira, para impedir que quebrassem tudo, da mesma forma que seu marido tinha tentado argumentar com os companheiros. Ela era a mais calma: podiam-se exigir seus direitos, mas sem fazer estragos no que era dos outros. Quando entrou na casa das caldeiras, as mulheres já estavam expulsando os dois foguistas, e a Queimada, empunhando uma grande pá, acocorava-se diante das fornalhas e as esvaziava violentamente, jogando o carvão incandescente sobre o chão de tijolos, onde ele continuava a arder, soltando uma fumaça negra. Havia dez fornalhas para os cinco geradores. Em breve, as outras seguiam o exemplo da Queimada; a mulher de Levaque manobrando sua pá com ambas as mãos e a filha de Mouque arregaçando as saias até as coxas para não se incendiar, todas elas como que cobertas de sangue por causa dos reflexos do fogo, suadas e desgrenhadas em torno daquela cozinha de bruxas. Os montes de hulha cresciam, o calor ardente crestava a enorme peça.

— Chega! — gritou a mulher de Maheu. — Esta joça já está pegando fogo!

— Melhor! — respondeu a Queimada. — Vai ser um trabalho completo... Eu tinha jurado que havia de fazê-los pagar pela morte do meu homem!

Nesse momento ouviu-se a voz esganiçada de Jeanlin:

— Atenção! Eu vou apagar isso! Vou soltar tudo!

Fora um dos primeiros a entrar, imiscuindo-se na a turba, encantado com a balbúrdia, procurando coisas para destruir. Teve então a idéia de abrir as torneiras de descarga, para soltar o vapor. Os jatos partiram com a violência de tiros, as cinco caldeiras esvaziaram-se com um sopro de tempestade, assobiando com tal estrondo que os ouvidos sangraram. Tudo desapareceu no meio do vapor, o carvão ficou branco, as mulheres eram apenas sombras de gestos imprecisos. Só o menino permanecia visível, subindo na galeria, por trás dos turbilhões de fumaça branca, encantado, rindo alegremente por ter desencadeado aquele furacão.

Isso durou cerca de quinze minutos. Tinham jogado alguns baldes de água sobre os montes de hulha para acabar de apagá-los: a ameaça de incêndio estava descartada. Mas a cólera da multidão não esmoreceu, ao contrário, foi açulada. Homens desciam com martelos, as próprias mulheres se armavam de barras de ferro e falava-se em destruir os geradores, quebrar as máquinas, demolir a mina.

Quando Etienne foi prevenido do que se tramava, veio correndo em companhia de Maheu. Ele mesmo estava ficando possuído, arrebatado por essa febre ardente de vingança. Mas nem por isso deixava de lutar, conjurando os companheiros a manterem-se calmos, agora que os cabos estavam cortados, as fornalhas apagadas e as caldeiras vazias, o que tornava o trabalho impossível. Mas continuavam não o escutando, sua liderança ia ser novamente contestada, quando se ouviu uma enorme vaia do lado de fora, dirigida para uma portinhola onde desembocava o fosso das escadas.

— Abaixo os traidores! Sujos! Covardes! Abaixo! Abaixo! Era a saída dos operários do fundo da mina que começava. Os primeiros, ofuscados pela luminosidade, não sabiam o que fazer, pestanejando. Depois davam alguns passos, tentando atingir a estrada e fugir.

— Abaixo os covardes! Abaixo os falsos irmãos!

Todo o bando de grevistas acorrera. Em menos de três minutos não havia um só homem nas edificações; os quinhentos de Montsou formaram duas fileiras, para obrigar a passarem entre elas aqueles de Vandame, que tinham feito a traição de descer. E a cada novo mineiro que aparecia na porta do fosso, com as roupas em farrapos e a lama negra do trabalho, as vaias recrudesciam, ditos ferozes os recebiam: "Olha esse aí, tem três polegadas de pernas e um cu enorme! E aquele lá, com o nariz roído pelas putas do Volcan! E este outro, mija tanta remela pelos olhos que com ela se poderiam fazer velas para dez catedrais! E este um grandalhão sem bunda, comprido como a fome!" Uma operadora de vagonetes que surgiu tropeçando, enorme, com os seios na barriga e a barriga no traseiro, provocou uma tempestade de gargalhadas. Quiseram apalpá-la, os motejos eram cada vez mais fortes, estavam ficando cruéis, os tabefes iam começar. O desfile dos pobres-diabos continuava, todos tiritantes silenciosos às injúrias, esperando os murros como animais acuados felizes quando podiam enfim correr para fora da mina.

— Diabo! Afinal, quantos estão lá dentro? — perguntou Etienne.

Espantava-se de ver tanta gente saindo, irritava-se de constatar que não se tratava de meia dúzia de operários, pressionados pela fome intimidados pelos contramestres. Fora então enganado na floresta? A Jean-Bart, quase em peso, descera. Soltou uma exclamação e precipitou-se, percebendo Chaval no umbral.

— Canalha! Foi para isso que nos fizeste vir?

Imprecações explodiram, houve um arranco em direção ao traidor. E então? Na véspera tinha feito o juramento com eles e agora era encontrado trabalhando, em companhia dos outros? Estava debochando deles?

— Agarrem-no! Ao poço! Ao poço!

Chaval, lívido de medo, gaguejava, procurava explicar-se, mas Etienne cortava-lhe a palavra, fora de si, possuído pela fúria da turba.

— Escolheste ser dos nossos, e serás. Vamos! em marcha, tratante.

Outro clamor cobriu sua voz. Catherine, por sua vez, aparecia, ofuscada pelo sol claro, temendo por sua sorte no meio daqueles selvagens. E, com as pernas arrebentadas pelos cento e dois lances de escada, as palmas das mãos sangrando, ofegava, quando a mãe, ao vê-la, atirou-se sobre ela com a mão levantada.

— Cadela, tu também! Enquanto tua mãe morre de fome, tu a trais por esse cafajeste!

Maheu reteve-lhe o braço, impedindo a bofetada. Mas sacudiu a filha, enfurecido como a mulher, censurando a sua conduta, ambos fora de si, gritando mais alto que os outros.

Ao ver Catherine, Etienne ficou ainda mais exasperado. Repetiu:

— A caminho! Para as outras minas! E tu vens conosco, velhaco! Chaval mal teve tempo de apanhar os tamancos no vestiário e de jogar o suéter sobre os ombros enregelados. Todos o arrastavam, forçando-o a correr no meio deles. Tonta, Catherine enfiava igualmente os tamancos, abotoava no pescoço a velha jaqueta de homem com que se abrigava desde o começo do frio. E saiu correndo atrás do amante, não queria deixá-lo um só instante, porque certamente iam massacrá-lo.

Então, em dois minutos, a Jean-Bart esvaziou-se. Jeanlin, que encontrara uma cometa, soprava-a emitindo sons roucos, como se estivesse reunindo gado. As mulheres — a de Levaque, a Queimada a filha de Mouque — arregaçavam as saias para correr, enquanto Levaque, empunhando um machado, esgrimia-o como um bastão de tambor-mor. A turba engrossava com novos companheiros que continuavam a chegar, eram já quase mil, sem ordem, esparramando-se pela estrada em aluvião. Como o portão de saída era muito estreito, botaram abaixo a cerca.

— Às minas! Abaixo os traidores! Nada de trabalho!

E, de repente, a Jean-Bart caiu num grande silêncio. A mina estava deserta, não se ouvia uma respiração sequer. Deneulin saiu da sala dos contramestres e, sozinho, proibindo com um gesto que o seguissem, percorreu as instalações. Estava pálido, muito calmo. Primeiro, parou diante do poço, levantou os olhos, examinou os cabos cortados: as pontas de aço pendiam inúteis, os dentes da lima tinham deixado uma ferida viva, uma chaga fresca que reluzia no negro da graxa. Em seguida foi até a máquina, contemplou a biela imóvel, semelhante à articulação de um membro colossal atingido pela paralisia; tocou o metal já frio e sentiu um estremecimento como se estivesse tocando num cadáver. Depois desceu até as caldeiras; caminhando lentamente diante das fornalhas apagadas. abertas e inundadas, bateu com o pé nos geradores, que emitiram um som cavo. E agora? Estava tudo terminado, sua ruína concluíra-se. Mesmo que consertasse os cabos, que reacendesse as fornalhas, onde encontraria operários? Mais quinze dias de greve e estaria falido. E nessa certeza da sua bancarrota não mais conseguia odiar os bandidos de Montsou: via nisso a cumplicidade de todos, a culpa geral, secular. Brutos, sim; mas brutos que não sabiam ler e morriam de fome.

 

E o bando, pela planície rasa, toda branca de geada, sob o pálido sol de inverno, marchava, saindo da estrada, atravessando as plantações de beterraba.

Na Fourche-aux-Boeufs, Etienne tomou o comando. Sem fazê-los parar, começou a gritar ordens e a organizar a marcha. Jeanlin corria na frente, emitindo com sua cometa uma música bárbara. Nas primeiras filas avançavam as mulheres, algumas armadas com

paus, a de Maheu com um fulgor selvagem nos olhos, que pareciam procurar ao longe a cidade da justiça prometida; a Queimada, a mulher de Levaque e a filha de Mouque marchavam como soldados esfarrapados indo para a guerra. Em caso de encontro, queriam ver se os policiais ousariam bater nas mulheres. Em seguida vinham os homens, numa confusão de gado, formando uma retaguarda amplíssima, eriçada de barras de ferro, dominada por um único machado, o de Levaque, cujo gume reverberava ao sol. No centro, Etienne não perdia de vista Chaval, forçando-o a caminhar na sua frente, enquanto Maheu, atrás, sombrio, observava Catherine, única mulher entre aqueles homens, obstinando-se em marchar ao lado do amante, para impedir que lhe fizessem mal. Cabeças descobertas esguedelhavam-se ao vento; somente se ouvia o bater dos tamancos, semelhante a um tropel de gado solto, guiado apenas pelo toque selvagem de Jeanlin.

De repente, ouviu-se um novo grito:

— Pão! Pão! Pão!

Era meio-dia, a fome de seis semanas de greve despertava nos estômagos vazios, aguilhoada por essa marcha em campo aberto. As raras côdeas da manhã, as poucas castanhas da filha de Mouque já iam longe; e os estômagos gritavam, e esse sofrimento vinha aumentar a raiva contra os traidores.

— Às minas! Nada de trabalho! Pão!

Etienne, que em casa não quisera comer a sua parte, sentia no peito uma sensação insuportável de vazio, mas não se queixava. De tempos em tempos, apanhava seu cantil e tomava um gole de genebra, sentindo-se tão trêmulo, que julgava precisar daquilo para ir até o fim. Seu rosto se afogueava, uma chama iluminava seus olhos, mas a cabeça permanecia fria, pois ainda queria evitar estragos inúteis.

Ao chegarem ao caminho de Joiselle, um britador de Vandame, que se reunira à turba por vingança contra seu patrão, levou os companheiros para a direita, gritando:

— À Gaston-Marie! Vamos parar a bomba! Que as águas destruam a Jean-Bart!

A multidão, arrastada, já se dirigia para lá, apesar dos protestos de Etienne, que lhes suplicava que deixassem o esgoto trabalhar. De que serviria destruir as galerias? Apesar de todo o seu ódio, isso era uma coisa que revoltava seu coração de operário. Maheu também achava injusto atacar uma máquina. Mas o britador continuava a lançar seu brado de vingança; foi preciso que Etienne gritasse mais forte: 

— À Mirou! Lá é que estão os traidores! À Mirou! À Mirou! Com um gesto fizera que a multidão entrasse no caminho da esquerda, enquanto Jeanlin, outra vez na

vanguarda, tocava com mais força. Houve uma grande reviravolta, a Gaston-Marie, por ora, estava salva.

E os quatro quilômetros que os separavam da Mirou foram vencidos em meia hora num passo acelerado, através da planície interminável. Este lado do canal era cortado por uma longa fita de gelo. Somente as árvores das margens, transformadas pela geada em candelabros gigantescos, rompiam a uniformidade monótona, que se prolongava e se perdia no céu do horizonte, como um mar. Uma ondulação do terreno ocultava Montsou e Marchiennes. Era a imensidade nua.

Estavam chegando à mina quando viram um capataz colocar-se num passadiço da triagem para recebê-los. Todos conheciam muito bem o tio Quandieu, o decano dos contramestres de Montsou, um ancião com a pele e os cabelos muito brancos, que devia andar pelos setenta, um verdadeiro milagre de boa saúde nas minas.

— Que é que vocês vêm fazer aqui, súcia de vadios? — gritou ele. O bando estacou. Esse não era um patrão, era um companheiro.

Retinha-os o respeito por aquele velho operário.

— Há homens trabalhando na mina — disse Etienne. — Manda-os saírem.

— É verdade, há homens trabalhando, talvez umas seis dúzias, os outros tiveram medo de vocês, corja de biltres! — replicou o velho Quandieu. — Mas previno-os de que nenhum deles sairá, ou eu ajustarei contas com vocês!

Houve exclamações, os homens empurraram, as mulheres avançaram. Descendo rapidamente do passadiço, o contramestre estava agora barrando a porta.

Maheu decidiu intervir:

— Velho, é o nosso direito. Como havemos de conseguir que a greve seja geral, se não forçarmos os companheiros a estarem do nosso lado?

O velho permaneceu silencioso por um momento. Evidentemente sua ignorância em matéria de coalizão igualava a do britador. Finalmente, respondeu:       ,    

— É o direito de vocês, não digo o contrário. Mas eu estou cumprindo ordens. Estou sozinho aqui. Os homens têm de trabalhar no fundo até as três horas, e trabalharão até as três horas.

As últimas palavras foram abafadas pelas vaias. Ameaçaram-no com o punho, as mulheres berravam como loucas, soprando-lhe no rosto seu bafo quente. Mas ele mantinha-se firme, a cabeça erguida, em sua barbicha e seus cabelos de uma brancura de neve. E a coragem infundia-lhe tal vigor, que se podia ouvi-lo claramente, por cima da gritaria:

— Vão para o inferno! Aqui não passam. Juro pelo sol que nos ilumina, prefiro morrer a deixar vocês tocarem nos cabos. Não empurrem, ou eu me atiro no poço na frente de todos. Houve um estremecimento e a turba recuou, amedrontada. Ele continuou:

— Qual é o cachorro que não compreende isto? Eu não passo de um operário como vocês. Mandaram-me tomar conta disto aqui e eu tomo.

A inteligência do velho Quandieu não ia mais longe, obstinado na sua teimosia do dever militar, o cérebro tapado, o olho míope pela tristeza negra de meio século de fundo de mina. Os companheiros olhavam-no, tocados, sentindo em si o eco do que lhes dizia, essa obediência de soldado, a fraternidade e a resignação no perigo. Acreditando que eles ainda hesitavam, repetiu:

— Jogo-me no poço na frente de vocês!

Um grande movimento fez girar o bando. Todos voltaram as costas e a correria recomeçou pela estrada reta, que se estendia pelo infinito, por entre as terras. De novo os gritos se elevavam:

— À Madeleine! À Crèvecoeur! Nada de trabalho! Pão! Pão! No meio da multidão, no entusiasmo da marcha, houve uma algazarra. Era Chaval, diziam, que quisera aproveitar-se da história de Mirou para escapar. Etienne acabava de agarrá-lo por um braço, ameaçando-o de fazê-lo em pedaços ao menor sinal de traição. O outro debatia-se, protestando, enfurecido:

— Então onde é que estamos? Não se é mais livre? Estou tiritando de frio há já uma hora, preciso lavar-me. Larga meu braço!

Realmente, ele estava sentindo os efeitos do carvão grudado à pele, e seu suéter quase não o protegia do frio.

— Caminha, ou somos nós que te lavaremos — respondeu Etienne. — Ninguém te mandou exagerar pedindo derramamento de sangue.

Continuavam quase correndo; Etienne acabou por se voltar para Catherine, que ainda se mantinha ao lado do outro. Desesperava-o senti-la tão próxima, tão miserável, tiritando sob a velha jaqueta de homem, com as calças enlameadas. Devia estar morta de fadiga e contudo, não deixava de correr.

— Tu podes ir embora — disse ele afinal.

Catherine pareceu não entender. Seus olhos, ao encontrarem os de Etienne, brilharam somente com uma rápida chama de censura E não parou. Por que quereria que ela abandonasse seu homem? Chaval, na verdade, não era bom; até a espancava em certas ocasiões Mas era o seu homem, aquele que a possuíra primeiro. O que a enfurecia

é que se atirassem mais de mil contra ele. Tê-lo-ia defendido, não por ternura, mas por orgulho.

— Vai-te embora! — repetiu violentamente Maheu.

A ordem do pai fez que diminuísse o passo. Tremia, as lágrimas enchiam-lhe as pálpebras. Depois, apesar do medo que sentia, voltou e tomou seu lugar, sempre correndo. Então deixaram-na.

O bando atravessou a estrada de Joiselle, seguiu por um instante a de Cron, depois subiu para Cougny. Desse lado, chaminés de fábricas riscavam o horizonte plano, galpões de madeira, oficinas de tijolos, com portas enormes e cheias de poeira, desfilavam ao longo da estrada. Passaram sucessivamente pelas casas baixas de dois conjuntos habitacionais mineiros, o dos Cent-Quatre-Vingts, depois o dos Soixante-Seize. E de cada um deles, ao chamado da cometa, ao clamor lançado por todas as bocas, saíram famílias, homens, mulheres, crianças, também correndo, unindo-se à retaguarda dos companheiros. Quando chegaram diante da Madeleine eram bem uns mil e quinhentos. A estrada descia em declive suave, e a vaga marulhante dos grevistas teve de contornar o aterro, antes de se espalhar no pátio da mina.

Nesse momento não deviam ser mais de duas horas. Mas os contramestres, advertidos, tinham apressado a subida, e, quando o bando chegou, a saída dos operários já estava terminando, tendo ficado no fundo da mina apenas uns vinte homens, que logo depois desembarcaram do elevador. Fugiram, tendo sido perseguidos a pedradas. Dois foram espancados, outro deixou a manga da jaqueta no local. Esta caça ao homem salvou o material: os cabos e as caldeiras não foram tocados. E já a vaga rolava em direção à mina vizinha.

Esta, Crèvecoeur, encontrava-se a apenas quinhentos metros da Madeleine. O bando caiu novamente no meio da saída dos operários. Uma operadora de vagonetes foi apanhada e açoitada pelas mulheres, as calças rasgadas, as nádegas expostas diante dos homens, que riam. Os aprendizes recebiam tabefes, os britadores escaparam cheios de marcas azuis pelo corpo e o nariz sangrando. E nessa ferocidade crescente, nessa antiga necessidade de vingança cuja loucura fervia em todas as cabeças, os gritos continuavam, estrangulando-se, a morte aos traidores, o ódio ao trabalho mal pago, o rugido do estômago querendo pão. Puseram-se a cortar os cabos, mas a lima estava gasta, demorava muito, agora que estavam com a febre de seguir adiante, sempre adiante. Nas caldeiras uma torneira foi quebrada enquanto a água, jogada com grandes baldes nas fornalhas, fazia estourar as grelhas de ferro fundido.

Fora falou-se em marchar sobre a Saint-Thomas. Esta era a mina mais disciplinada, a greve não a atingira; nela, cerca de setecentos homens deviam ter descido. Isto dava raiva, esperariam por eles armados de porretes em formação de batalha campal, para ver quem cairia primeiro. Mas correu o boato de que havia policiais em Saint-Thomas, os policiais da manhã, de quem tinham feito troça. Como sabiam? Ninguém podia responder. Não importa! Ficaram com medo e decidiram-se pela Feutry-Cantel. E a vertigem voltou a possuí-los, encontraram-se novamente na estrada, batendo tamancos, empolgados: à Feutry-Cantel! Os covardes de lá deviam ser, pelo menos, uns quatrocentos; iam se divertir à grande! Situada à distância de três quilômetros, a mina ficava oculta num vale, próxima do Scarpe. Já estavam subindo a ladeira dos Gessais, para além do caminho de Beaugnies, quando uma voz na multidão aventou a idéia de que talvez a cavalaria estivesse na Feutry-Cantel. Então, de uma ponta à outra da coluna, correu o murmúrio de que a cavalaria lá estava. Uma hesitação refreou o passo da marcha, o pânico começava a soprar naquela região adormecida pelo desemprego e que pareciam percorrer havia séculos. Por que não haviam encontrado os soldados? Esta impunidade os perturbava, misturando-se à idéia da repressão que sentiam aproximar-se.

Sem que soubessem de onde partia, uma nova palavra de ordem lançou-os para outra mina.

— À Victoire! À Victoire!

Será que não havia policiais ou cavalaria na Victoire? Não sabiam. Todos pareciam tranqüilizados. E, dando meia volta, desceram para o lado de Beaumont, atalhando pelos campos para voltarem à estrada de Joiselle. O leito da estrada de ferro barrava a passagem; atravessaram-no pondo abaixo as cercas. Agora aproximavam-se de Montsou, a lenta ondulação dos terrenos era mais baixa, alargando o mar das plantações e beterraba, muito ao longe, até as casas escuras de Marchiennes.

Desta vez era uma caminhada de cinco quilômetros bem contados. Tamanho entusiasmo os empurrava que nem sentiam o cansaço atroz, os pés alquebrados e esfolados. O bando era cada vez maior, aumentando sempre com os companheiros apanhados pelo caminho e nos conjuntos habitacionais. Quando atravessaram o canal pela ponte Magache e se apresentaram diante da Victoire, já eram dois mil. Mas já tinham dado três horas, o trabalho terminara, não havia um só homem no fundo da mina. A decepção que sentiram explodiu em vãs ameaças, a única coisa que fizeram foi receber a cacos de tijolos os operários do desaterro que chegavam para pegar o trabalho. Invadiram a mina, que, deserta, passou a pertencer-lhes. E, no seu desapontamento por não terem

uma cara de traidor para esbofetear, atiraram-se às coisas. Um bolsão de rancor rebentava neles, uma pústula envenenada, que se enchera aos poucos. Anos e anos de fome os torturavam com uma sede de massacre e destruição.

Atrás de um galpão, Etienne divisou uns carregadores que enchiam uma carroça de carvão.

— Dêem o fora! — ordenou ele. — Daqui não sai um pedaço! 

À sua ordem, acorreram uns cem grevistas, e os carregadores mal tiveram tempo de escapar. Enquanto uns desatrelavam os cavalos, que, assustados, partiram a galope, ferroados nas ancas, outros emborcavam a carroça e quebravam os varais.

Levaque, com violentas machadadas, destruía os cavaletes para pôr abaixo os passadiços. Como resistissem, teve a idéia de arrancar os trilhos, de cortar a linha de um extremo a outro do pátio. Em seguida, todo o bando trabalhava para o mesmo fim. Maheu fez saltar os suportes de ferro fundido dos carris com a sua barra de ferro, que usava como alavanca. Enquanto isso, a Queimada, liderando as mulheres, invadia o depósito de lâmpadas, onde os porretes, dirigidos para todos os lados, cobriam o chão de estilhaços. A mulher de Maheu, fora de si, batia tão forte como a de Levaque. Todas elas ficaram cobertas de azeite, a filha de Mouque limpava as mãos na saia, rindo de ver-se tão suja. Por brincadeira, Jeanlin tinha-lhe despejado uma lâmpada pescoço abaixo.

Mas essas vinganças não enchiam a barriga. Os estômagos gritavam mais alto. E a grande lamentação dominou outra vez o tumulto:             

— Pão! Pão! Pão!  

Justamente na Victoire, um antigo contramestre tinha uma cantina. Certamente com medo, abandonara a sua barraca. Quando as mulheres voltaram, tendo os homens acabado de destruir a linha férrea assediaram a cantina, cujas janelas cederam imediatamente. Não encontraram pão, só havia dois pedaços de carne crua e um de batatas. Mas, enquanto pilhavam, descobriram umas cinqüenta garrafas de genebra, que desapareceram como uma gota de água na areia.

Etienne, que já esvaziara seu cantil, pôde reabastecê-lo. Pouco a pouco, uma embriaguez perigosa, a embriaguez dos famintos, congestionava seus olhos, fazia que seus dentes parecessem de lobo entre os lábios pálidos. De repente notou que Chaval tinha escapado durante o tumulto. Pôs-se a praguejar e alguns homens correram para caçar o fugitivo, que se escondia com Catherine por trás de um monte de lenha.

— Ah! cachorro sem-vergonha! — berrou Etienne. — Então tens medo de te comprometer? E eras tu que na floresta pedias a greve dos mecânicos para parar as

bombas!... Agora queres escapar, deixando-nos sozinhos na enrascada, hem? Pois muito bem, com mil raios! Vamos voltar à Gaston-Marie, eu quero que tu quebres a bomba. É isso! com mil raios! tu vais quebrá-la!

Estava bêbado, ele próprio lançava seus homens contra a bomba que tinha salvo algumas horas antes.

— À Gaston-Marie! A Gaston-Marie!

Todos o aclamaram e se precipitaram, enquanto Chaval, agarrado pelos ombros, arrastado, empurrado violentamente, continuava a pedir que o deixassem lavar-se.

— Vai-te embora! — gritou Maheu a Catherine, que também corria.

Desta vez ela nem sequer recuou, levantando para seu pai uns olhos ardentes, e continuou a correr.

Outra vez o bando invadiu a planície rasa. Voltava sobre seus passos, pelas compridas estradas retas, pelas terras cada vez mais amplas. Eram quatro horas; o sol, que se punha no horizonte, lançava no solo gelado as sombras daquelas hordas, de grandes gestos furiosos.

Desviaram-se de Montsou, dirigindo-se mais para cima, para a estrada de Joiselle. E, para não darem a volta pela Fourche-aux-Boeufs, passaram pelos muros da Piolaine. Naquele momento, precisamente, os Grégoire acabavam de sair para visitar o notário, antes de irem jantar com os Hennebeau, onde deveriam encontrar Cécile. A propriedade parecia dormir, com sua avenida de tílias deserta, sua horta e seu pomar pelados pelo inverno. Nada se movia na casa, cujas janelas fechadas se embaciavam devido ao aquecimento interno. E do profundo silêncio emanava uma impressão de bonomia e bem-estar, a sensação patriarcal de camas fofas e mesa farta, de felicidade tranqüila em que decorria a existência dos proprietários.

Sem parar, o bando lançou olhares sombrios através das grades, ao longo dos muros protetores, eriçados de cacos de garrafa. E o grito recomeçou:

— Pão! Pão! Pão!

Apenas os cães responderam com latidos furiosos, dois enormes dinamarqueses de pelo fulvo, que se punham nas patas traseiras, de goelas arreganhadas. E, por trás de uma persiana fechada, não havia mais que as duas criadas. Melanie, a cozinheira, e Honorine, a camareira, atraídas por aquele grito, suando de medo, empalidecendo ao verem desfilar aquele bando de selvagens. As duas caíram de joelhos, julgando-se mortas, ouvindo uma pedra, uma só, que quebrava o postigo da janela ao lado. Era mais uma de Jeanlin, que fabricara uma funda com um pedaço de corda, e, de passagem,

enviava lembranças aos Grégoire. Mas já voltara a soprar a sua cometa e a turba sumia-se ao longe, com o grito cada vez mais fraco:

— Pão! Pão! Pão!

Quando chegaram à Gaston-Marie, eram ainda em maior número, mais de dois mil e quinhentos furiosos, quebrando tudo, varrendo tudo, com a força impetuosa de uma torrente. Os policiais tinham passado por ali uma hora antes, seguindo depois para os lados da Saint-Thomas, mal informados por camponeses, sem mesmo tomarem a precaução, na sua pressa, de deixar uma guarnição de alguns homens, para proteger a mina. Em menos de quinze minutos as fornalhas foram emborcadas, as caldeiras, esvaziadas, as construções, invadidas e devastadas. Mas a bomba era o alvo principal. Não bastou que parasse com um último sopro de vapor, atiravam-se contra ela como a uma pessoa viva, a quem quisessem tirar a vida.

— Dá o primeiro golpe! — repetia Etienne, metendo um martelo na mão de Chaval. — Vamos! Não juraste como os outros?

Chaval tremia, recuava. E no acotovelamento o martelo caiu, enquanto os outros, sem esperar mais, destruíram a bomba com barras de ferro, tijolos, com tudo o que encontravam à mão. Alguns chegaram a esbordoá-la com varas. Os parafusos saltavam, as peças, de aço e de cobre deslocavam-se, como membros arrancados. Um golpe de enxada violentíssimo fez em pedaços o corpo de ferro fundido e a água jorrou. A bomba, ao esvaziar-se, fez um ruído de gargarejo, semelhante a um arranco de agonia.

Era o fim. O bando voltou para fora, enlouquecido, atropelando-se atrás de Etienne, que não largava Chaval.

— Morte para o traidor! Ao poço! Ao poço!

O infeliz, lívido, gaguejava, voltando, com a obstinação imbecil da idéia fixa, à sua necessidade de se lavar.

— Espera; se isso te incomoda — disse a mulher de Levaque —, aqui está a tina!

Havia ali um charco, uma infiltração das águas da bomba. Estava branco, coberto por uma espessa camada de gelo. Empurraram-no naquela direção, quebraram o gelo e forçaram-no a mergulhar a cabeça na água gélida.

— Vamos, mergulha! — repetia a Queimada. — Diabo! se não entrares, jogamos-te aí dentro... E agora vais beber um trago, vais, sim! como os animais, com o focinho no cocho!

E ele teve de beber de quatro pés. Todos riam, com a maior crueldade. Uma mulher puxou-lhe as orelhas, outra jogou-lhe no rosto um punhado de esterco que

encontrara na estrada, ainda fresco. Seu velho suéter não prestava mais, todo esfarrapado. E ele, desvairado, dava encontrões, empurrava, tentando fugir.

Maheu o maltratava, a mulher estava entre as mais ferozes, ambos dando vazão ao seu antigo rancor; a própria filha de Mouque, que de ordinário permanecia em bons termos com seus namorados, estava fora de si, chamava-lhe inútil, dizia que ia arrancar-lhe as calças para ver se ele ainda era um homem.

Etienne fez que se calasse.

— Chega! Com esse, apenas um de nós pode dar conta do recado... Se queres, eu e tu resolvemos o problema.

Seus punhos se fecharam, seus olhos iluminavam-se com um furor homicida, a embriaguez transformava-se em desejo de matar.

— Estás pronto? Um de nós dois vai ficar aqui... Dêem-lhe uma faca. Eu já tenho a minha.

Catherine, esgotada, apavorada, olhava para ele. Lembrava-se das suas confidências, da sua necessidade de dar cabo de alguém quando bêbado, envenenado a partir do terceiro copo, a tal ponto seus pais viciados no álcool tinham injetado aquela peçonha no seu corpo. Bruscamente ela arremeteu contra ele, esbofeteou-o com suas mãos de mulher, gritando-lhe na cara, sufocada de indignação:

— Covarde! Covarde! Covarde!... Já não chegam todas essas atrocidades? Queres assassiná-lo, agora que ele não pode mais manter-se em pé!

Virou-se para o pai e para a mãe, para todos os outros.

— Vocês não passam de uns covardes! Covardes, ouviram? Pois matem-me com ele. Arranco os olhos de vocês, se o tocarem outra vez. Covardes!

E pôs-se na frente do seu homem, defendendo-o; esquecia as surras, esquecia a vida de miséria, arrebatada pela idéia de que pertencia a ele, já que por ele fora escolhida, e que era uma vergonha para si própria que o destruíssem assim.

Etienne, com os tapas da moça, ficara pálido. O primeiro ímpeto foi de atacá-la, mas depois, tendo passado a mão pelo rosto, num gesto de homem que se desembriaga, disse a Chaval, no meio de um grande silêncio:

— Ela tem razão, chega disso... Vai-te embora!

Sem mais esperar, Chaval saiu correndo, e Catherine atrás dele. A multidão, boquiaberta, viu-os desaparecer na volta do caminho. A mulher de Maheu murmurou então:

— Você errou, devia mantê-lo conosco. Certamente ele vai fazer alguma traição.

Mas o bando pusera-se novamente em marcha. Já eram quase cinco horas; o sol, rubro como brasa na fímbria do horizonte, incendiava a imensa planície. Um vendedor ambulante que passava informou-lhes que a cavalaria estava descendo para os lados da Crèvecoeur. A notícia fê-los retroceder e espalhou-se outra palavra de ordem:

— Para Montsou! À direção! Pão! Pão! Pão!

 

O Sr. Hennebeau fora à janela do seu gabinete para ver a partida da caleça que levava sua mulher para almoçar em Marchiennes. Por um instante, seu olhar seguira Négrel, que trotava ao lado da portinhola, depois foi sentar-se tranqüilamente à sua mesa. A casa parecia vazia sem a presença buliçosa da mulher e do sobrinho. Justamente naquele dia era o cocheiro quem guiava a carruagem; Rose, a nova camareira, estava de licença até as cinco horas; só Hippolyte, o camareiro, permanecera, locomovendo-se à vontade pelas peças, e, naturalmente, a cozinheira, ocupada desde o amanhecer com suas panelas, toda entregue ao jantar que seus patrões dariam à noite. De modo que o Sr. Hennebeau planejara um dia de ande trabalho, na calma imensa da casa deserta.

Lá pelas nove horas, Hippolyte, ainda que tivesse recebido ordem para não deixar ninguém entrar, tomou a liberdade de anunciar Dansaert que trazia notícias. Foi só então que o diretor soube da reunião da véspera, na floresta. E os detalhes eram a tal ponto pormenorizados que ele os escutou pensando nos amores do capataz com a mulher de Pierron, tão conhecidos, que duas ou três cartas anônimas por semana denunciavam os desregramentos do seu empregado: evidentemente o marido falara, aquela delação cheirava a travesseiro. Aproveitou a ocasião, deu a entender que sabia de tudo, mas apenas recomendou um pouco de prudência, para evitar escândalo. Assustado com aquelas acusações durante seu relatório, Dansaert negou, gaguejando desculpas, enquanto seu narigão confessava o crime, subitamente rubro. Mas não quis insistir, contente de se ver desculpado com tanta bonomia, porque, de ordinário, o diretor mostrava-se de uma severidade implacável de homem puro, quando algum empregado resolvia regalar-se com alguma moça bonita durante o trabalho. A conversa continuou sobre a greve; essa reunião da floresta não passava ainda de uma fanfarronada de baderneiros, não havia uma ameaça séria. Em todo o caso, certamente os conjuntos habitacionais mineiros não se mexeriam nos próximos dias, graças à impressão de medo e respeito que lhes fora inculcada pelo desfile militar da manhã.

Quando o capataz partiu, o Sr. Hennebeau esteve a ponto de enviar um telegrama ao prefeito. Apenas o receio de dar provas de nervosismo o reteve. Já não se perdoava sua falta de faro, que o levara a dizer aos quatro ventos, e mesmo escrever à administração, que a greve não duraria mais do que uma quinzena. Para sua grande surpresa, ela se arrastava havia dois meses. Desesperava-se com isso, sentia-se humilhado, comprometido, forçado a imaginar algo brilhante, se queria voltar às boas graças dos administradores. Acabava de pedir-lhes instruções na eventualidade de alguma desordem. A resposta não vinha, esperava-a pelo correio da tarde. E perguntava-se se ainda estaria em tempo de enviar telegramas, pedindo a ocupação militar das minas, se essa fosse a opinião de Paris. Segundo ele, isso resultaria numa batalha, com sangue e mortos. Semelhante responsabilidade perturbava-o, apesar de sua habitual energia.

Até as onze horas trabalhou sem ser incomodado, sem outro ruído na casa morta que o da escova de encerar que Hippolyte manejava, muito ao longe, numa peça do primeiro andar. Depois uma após a outra, recebeu duas mensagens, a primeira anunciando a invasão da Jean-Bart pelos grevistas de Montsou, a segunda falando dos cabos cortados, das fornalhas apagadas, de todos os estragos. Não podia compreender. Que tinham ido fazer os grevistas na concessão de Deneulin, em vez de atacarem uma mina da companhia? Aliás, que arrasassem Vandame à vontade, isso não fazia mais que ajudar o plano de conquista que tramava. Ao meio-dia almoçou sozinho na vasta sala, servido em silêncio pelo criado, do qual nem mesmo os passos ouvia. Esta solidão tornava ainda mais sombrias as suas preocupações. Sentiu o sangue gelando nas veias quando um contramestre, que viera correndo, foi introduzido e lhe contou a marcha do bando sobre a Mirou. Quase em seguida, quando acabava de tomar café, um telegrama lhe informou que a Madeleine e a Crèvecoeur também estavam ameaçadas. Desse momento em diante sentiu-se extremamente perplexo. Esperava o correio às duas horas: devia pedir tropas imediatamente? ou seria melhor esperar, para não agir antes de ter conhecimento das ordens da administração? Voltou ao gabinete, quis ler uma nota para o prefeito, que na véspera pedira a Négrel que redigisse, mas não conseguiu encontrá-la. Pensou que talvez o rapaz a tivesse deixado no seu quarto, onde muitas vezes escrevia durante a noite. E, sem tomar uma decisão, perseguido pela idéia da nota, subiu ao quarto do sobrinho para procurá-la.

Ao entrar, o Sr. Hennebeau teve uma surpresa: o quarto não estava arrumado, sem dúvida por esquecimento ou preguiça de Hippolyte. Reinava ali um calor úmido, o calor abafado de uma noite inteira, aumentado pelo escapamento do calorífero que ficara aberto. Seu olfato foi açulado, quase sufocado com um perfume penetrante, que julgou ser o cheiro dos sais de banho, de que a bacia estava cheia. Uma grande desordem reinava na peça, roupas espalhadas, toalhas molhadas jogadas nos encostos das cadeiras, a cama descoberta, um lençol puxado, arrastando-se no tapete. Quando entrou, apenas lançou um olhar distraído a tudo aquilo, dirigindo-se para uma mesa coberta de papéis, em busca da nota desaparecida. Por duas vezes examinou os papéis, um por um, e decididamente o que buscava não estava entre eles. Onde diabo teria o desmiolado do Paul escondido o documento?

E ao voltar para o centro do quarto, olhando por cima de cada móvel, percebeu, na cama descoberta, algo que brilhava como uma faísca. Aproximou-se maquinalmente e estendeu a mão. Era um pequeno frasco de ouro entre duas pregas do lençol. Imediatamente reconheceu-o como da Sra. Hennebeau, o frasco de éter do qual ela nunca se separava. Continuava sem compreender como aquele objeto viera parar na cama de Paul. Num átimo ele se transformara: estava horrivelmente pálido. Sua mulher tinha dormido ali.

— Desculpe — murmurou Hippolyte da porta. — Como vi o senhor subir...

O criado entrou, olhando espantado para a desordem da peça.

— Meu Deus! É verdade que este quarto ainda não foi arrumado! Também, a Rose saiu, deixando tudo nas minhas costas...

O Sr. Hennebeau escondia o frasco na mão, apertando-o com toda a força.

— Quer alguma coisa?

— Está aí outro homem... Veio da Crèvecoeur trazendo uma carta.

— Está bem. Pode ir, e diga-lhe que me espere.

Sua mulher tinha dormido ali! Correu o ferrolho da porta, abriu a mão e olhou o frasco, que lhe deixara um sinal vermelho na pele. E subitamente começou a

compreender, a ver claro, aquela sujeira tinha lugar em sua casa havia meses. Lembrou-se da sua antiga suspeita, os ruídos leves contra as portas, os pés descalços caminhando de noite pela casa silenciosa. Era isso! Sua mulher subia para dormir ali...

Caído sobre uma cadeira, em frente à cama que contemplava fixamente, permaneceu por algum tempo como se tivesse sido golpeado. Foi despertado por um barulho, alguém batia à porta, tentando abrir. Reconheceu a voz do criado:

— Sr. Hennebeau... Ah! está fechado por dentro...

— Que quer?

— Parece que é urgente, os operários estão quebrando tudo. Há mais dois homens lá embaixo. Chegaram telegramas...

— Deixe-me em paz! Já vou.

A idéia de que Hippolyte teria descoberto o frasco, se tivesse arrumado o quarto de manhã, deixava-o gelado. Aliás, esse criado já devia saber: inúmeras vezes encontrara a cama ainda quente do adultério, cabelos da mulher caídos no travesseiro, manchas execrandas enodoando os lençóis. Se vinha a todo o momento importuná-lo, era por maldade.

Quantas vezes não teria ficado com o ouvido colado à porta excitado com a devassidão dos patrões?

O Sr. Hennebeau permaneceu imóvel, olhando para a cama. o longo passado de sofrimentos veio-lhe à memória, seu casamento com aquela mulher, o imediato mal-entendido, tanto físico como espiritual, os amantes que ela tivera sem que ele desconfiasse, aquele que tolerara por dez anos como se tolera uma perversão a uma doente. Depois, foi a chegada deles a Montsou, a louca esperança de curá-la, meses de languidez, de exílio modorrento, a aproximação da velhice, que enfim iria trazê-la de volta para ele. Mas surgia o sobrinho, esse Paul de quem ela se intitulava mãe, a quem falava do seu coração morto, enterrado em cinzas para todo o sempre. E ele, marido imbecil, nada via, na adoração por aquela mulher que era sua, que tantos homens tinham possuído e só ele não podia ter. Adorava-a com uma paixão vergonhosa, a ponto de cair de joelhos se ela resolvesse dar-lhe o resto dos outros. E o resto dos outros ela dava àquele rapaz.

Nesse momento, um toque de campainha longínquo fez o Sr. Hennebeau estremecer. Reconheceu-o, era o toque que se dava, seguindo suas ordens, quando chegava o carteiro. Levantou-se, falou em voz alta, num assomo de vulgaridade que jorrava da garganta, escapando ao seu controle.

— Ah! Que um raio os parta! Pouco me importam os telegramas e as cartas dessa gente!

Sentia-se invadido pelo ódio, necessitava de uma cloaca para nela enterrar toda essa imundície, esmagando-a com os pés. Aquela mulher era uma cadela! Procurava palavras indecorosas, para com elas emporcalhar a sua imagem. A repentina idéia do casamento entre Cécile e Paul, que ela arranjava com um sorriso tão inocente, acabou de exasperá-lo. Então nem sequer havia paixão, ou ciúme, em toda aquela sensualidade arrebatada? Na idade dela, já não devia ser mais do que um brinquedo perverso, a fixação no homem, uma recreação degustada como uma sobremesa a que estivesse acostumada. Acusava-a de tudo, quase inocentava o rapazinho que ela, com rejuvenescido apetite, mordera, como se morde o primeiro fruto verde, roubado na estrada. Quem mais devoraria, até onde desceria quando não houvesse mais sobrinhos condescendentes, bastante práticos para aceitarem em sua família, mesa, cama e mulher?

Bateram timidamente na porta e Hippolyte disse, com medo, pelo buraco da fechadura:

— O correio, Sr. Hennebeau... E está aí outra vez o Sr. Dansaert dizendo que se estão matando...

— Inferno! Já vou!

Que faria com eles? Expulsá-los quando voltassem de Marchiennes, como animais nojentos que não queria mais ter sob seu teto? Agarraria um pau e lhes gritaria que fossem espalhar longe dele o veneno de seu concubinato. Eram seus suspiros, seus hálitos confundidos que aumentavam o calor úmido daquele quarto; o cheiro penetrante que o sufocara era o cheiro de almíscar que exalava a pele de sua mulher, outro gosto depravado, uma necessidade carnal de perfumes violentos. Reconheceu então o calor, o cheiro de fornicação, o adultério vivendo nos vasos desarrumados, nas bacias ainda cheias, na desordem dos lençóis, dos móveis, da peça inteira, corrompida pelo vício. Um furor de impotência atirou-o para cima da cama aos murros, massacrou-a, amarfanhou os lugares onde via a marca dos dois corpos, furioso com as cobertas arrancadas, com os lençóis usados, moles e inertes sob seus golpes, como que também exaustos pela longa noite de amor.

Mas de repente pareceu-lhe ouvir Hippolyte subindo outra vez. Envergonhado, parou.

Ficou por um momento ainda ofegante, enxugando a testa, acalmando as batidas do coração. Em pé defronte de um espelho, contemplou seu rosto, tão descomposto que não chegava a reconhecê-lo. Depois, quando viu que voltava ao normal, por um supremo esforço de vontade, desceu.

Embaixo, cinco mensageiros, sem contar Dansaert, esperavam. Todos traziam notícias de gravidade crescente sobre a marcha dos grevistas pelas minas. O capataz contou com detalhes os acontecimentos da Mirou, salva pelo valoroso comportamento do velho Quandieu. Ele escutava, balançava a cabeça, mas não sabia o que o outro estava dizendo; seu espírito ficara lá em cima, no quarto. Por fim disse que podiam ir, prometendo tomar medidas. Vendo-se outra vez só, sentado em frente à sua mesa, pareceu adormecer, a cabeça entre as mãos, os olhos abertos. A correspondência estava ah, sobre a mesa, e decidiu procurar a carta esperada, a resposta da administração, cujas linhas, a princípio, dançaram ante seus olhos Contudo, acabou por compreender que os administradores queriam uma reação; claro, não lhe ordenavam que piorasse as coisas, mas davam a entender que alguns choques apressariam o desenlace da greve, provocando uma repressão enérgica. Desse momento em diante não hesitou mais, enviou telegramas para toda parte, ao prefeito de Lille, ao quartel do exército de Douai, à polícia de Marchiennes. Era um alívio, agora podia encerrar-se em casa, fez até espalhar boatos de que estava com gota. E durante toda a tarde escondeu-se no seu gabinete, sem receber ninguém, lendo apenas os telegramas e cartas que continuavam a chover. Seguiu assim de longe o bando da Madeleine à Crèvecoeur, da Crèvecoeur à Victoire, da Victoire à Gaston-Marie. Por outro lado, chegavam-lhe informações sobre o desnorteamento dos policiais e da cavalaria, perdidos pela estrada, sempre saindo das minas que iam ser atacadas. Podiam matar-se e destruir tudo, colocara novamente a cabeça entre as mãos, os dedos apertando os olhos, engolfados no grande silêncio da casa vazia, onde se ouvia apenas, e espaçadamente, o barulho das caçarolas da cozinheira preparando o jantar.

O crepúsculo já escurecia a peça, eram cinco horas quando uma algazarra fez que o Sr. Hennebeau acordasse sobressaltado, saindo do torpor e da inércia em que se encontrava, sempre com os cotovelos fincados na mesa. Por um momento pensou que eram os dois miseráveis que voltavam. Mas o tumulto ia num crescendo, e ao aproximar-se da janela deu-se uma terrível explosão de vozes:

— Pão! Pão! Pão!

Eram os grevistas que invadiam Montsou, enquanto os policiais, acreditando em um ataque à Voreux, galopavam em sentido contrário para ocupar aquela mina.

Justamente a dois quilômetros das primeiras casas, um pouco abaixo do cruzamento da estrada real com o caminho de Vandame, a Sra. Hennebeau e suas convidadas acabavam de assistir ao desfile do bando. O dia em Marchiennes passara-se alegremente, com um almoço delicioso na casa do diretor das Forjas e com uma interessante visita às oficinas e a uma fábrica de vidros das vizinhanças, como programa da tarde. Quando enfim voltavam, naquele límpido fim de um belo dia de inverno, Cécile tivera a fantasia de beber um copo de leite numa pequena fazenda da beira da estrada. Todos desceram da caleça. Négrel galantemente apeou do cavalo. A camponesa, assustada ao ver gente tão distinta, não sabia o que fazer, dizia que ia colocar uma toalha antes de servir. Mas Lucie e Jeanne quiseram ver a ordenha e todos foram para o estábulo com os copos na mão, transformando a idéia num piquenique, rindo muito ao afundarem-se na palha.

A Sra. Hennebeau, sempre dando-se ares de mãe condescendente, sorvia o leite aos golinhos, quando um barulho estranho vindo de fora e que ia num crescendo a inquietou.

— Que é isso?

O estábulo, construído à beira da estrada, possuía uma porta larga, para carroça, porque servia ao mesmo tempo de palheiro. As moças já tinham espichado os pescoços e espantavam-se com o que viam à esquerda: uma vaga negra, uma multidão que desembocava ululante do caminho de Vandame.

— Diabo! — murmurou Négrel, que também tinha saído. — Será que os nossos gabolas decidiram brigar?

— Devem ser outra vez os mineiros — disse a camponesa. — Já passaram por aqui duas vezes. Parece que a coisa vai mal, eles estão donos da região.

Dizia cada palavra com cautela, observando o efeito que produzia. Quando notou o pavor de todos, a profunda ansiedade em que aquele encontro os lançava, apressou-se a concluir:

— São uns patifes!

Négrel, vendo que era tarde demais para subirem à carruagem e voltarem a Montsou, deu ordem ao cocheiro para que abrigasse depressa a caleça no pátio da fazenda, onde a parelha de cavalos ficou escondida por trás de um galpão. Ele mesmo amarrou dentro desse galpão o seu cavalo, que um garoto segurava pela rédea. Ao voltar, encontrou sua tia e as moças fora de si, prontas a seguirem a camponesa, que lhes propusera refugiarem-se dentro de casa. Mas ele foi de opinião que ali estavam mais

seguros, certamente ninguém viria procurá-los dentro da palha. A porta do estábulo não fechava direito e tinha tantos buracos, que se via a estrada por entre suas tábuas apodrecidas.

— Vamos, coragem! — disse ele. — Venderemos caro a nossa vida.

Essa brincadeira aumentou o medo. O barulho aproximava-se, mas ainda não se via nada; na estrada deserta parecia soprar um vento agreste, igual a essas rajadas bruscas que precedem as tempestades.            

— Não, não quero ver — disse Cécile, indo encolher-se na palha.

A Sra. Hennebeau, muito pálida, cheia de ódio contra aquela gentalha que estragava um dos seus prazeres, mantinha-se atrás lançando olhares oblíquos e enojados, enquanto Lucie e Jeanne, apesar de trêmulas, espiavam por uma fresta, não querendo perder nada do espetáculo.

O ribombar de trovão aproximava-se, a terra foi sacudida e Jeanlin passou na vanguarda, soprando a sua cometa.

— Apanhem os sais, é o suor do povo que está passando — murmurou Négrel, que, apesar das suas convicções republicanas, gostava de rir da canalha em companhia das senhoras.

Mas seu gracejo foi carregado pelo furacão dos gestos e gritos. As mulheres tinham aparecido, cerca de mil, cabelos ao vento, desgrenhados pela correria, os farrapos deixando à mostra a pele nua, nudez de fêmeas exaustas de parir mortos-de-fome. Algumas traziam os filhos nos braços, e levantavam-nos, agitando-os como uma bandeira de luto e vingança. Outras, mais jovens, com peitos estufados de guerreiras, brandiam paus, enquanto as velhas, monstruosas, berravam tão alto que as veias dos seus pescoços descarnados pareciam rebentar. Em seguida vieram os homens, dois mil furiosos, aprendizes, britadores, consertadores, verdadeira massa compacta que rolava como se fosse feita de um só bloco, apertada, confundida, a ponto de não se distinguirem as calças desbotadas ou os suéteres esfarrapados, esbatidos na mesma uniformidade terrosa. Os olhos faiscavam, viam-se apenas os buracos negros das bocas cantando a Marselhesa, cujas estrofes se perdiam num bramido confuso acompanhada pelo bater dos tamancos na terra dura. Acima das cabeças, entre a floresta de barras de ferro, passou um machado, bem ao alto. Esse único machado, que era como o estandarte do bando, desenhava no céu claro o perfil aguçado de um cutelo de guilhotina.

— Que caras horrendas! — balbuciou a Sra. Hennebeau. Négrel disse entre dentes:

— O diabo me carregue se eu reconheço um único! De onde terão saído esses bandidos?

Realmente, a cólera, a fome, os dois meses de sofrimentos e aquela correria desenfreada pelas minas tinham transformado em mandíbulas de animais ferozes as feições plácidas dos mineiros de Montsou. Naquele momento o sol desaparecia; os últimos raios, de um púrpuro sombrio, pareciam ensangüentar a planície. E a estrada também pareceu lavada em sangue; as mulheres e os homens continuavam marchando, cobertos de sangue, como carniceiros em plena matança.

— Oh! maravilhoso! — disseram a meia voz Lucie e Jeanne, tocadas, no seu gosto de artistas, por aquele belo hórrido.

Mas mesmo assim tinham medo, recuando para perto da Sra. Hennebeau, que se apoiava numa manjedoura. Gelava-lhes o sangue nas veias pensar que bastava um olhar por entre as frestas daquela porta desconjuntada para que fossem massacrados. Também Négrel, que de ordinário era corajoso, sentia-se empalidecer, presa de um pavor mais forte que a sua valentia, um desses pavores que sopram do desconhecido. Cécile, aninhada na palha, nem se movia. E os outros, apesar do seu desejo de desviarem os olhos, não podiam, continuavam olhando.

Era a visão vermelha que arrastaria a todos, fatalmente, numa dessas noites sangrentas desse fim de século. Sim, uma noite, o povo em torrentes, desenfreado, correria assim pelos caminhos, gotejando o sangue burguês, exibindo cabeças, semeando o ouro dos cofres arrombados. As mulheres gritariam, os homens abririam suas queixadas de lobos, prontos para morderem. Sim, seriam os mesmos farrapos, o mesmo matraquear de tamancos grosseiros, a mesma turba assustadora, suja, de hálito fétido, varrendo o mundo caduco com a sua irresistível avalanche de bárbaros. Arderiam incêndios, nas cidades não ficaria pedra sobre pedra, regredir-se-ia à vida selvagem das florestas após o grande cio, o grande rega-bofe, em que os pobres, numa só noite, extenuariam as mulheres e esvaziariam as adegas dos ricos. Não sobraria nada, as fortunas e os títulos das situações adquiridas desapareceriam, até o dia em que talvez desabrochasse uma nova sociedade. Sim, eram essas coisas que estavam passando pela estrada, como uma força da natureza, e vinha delas o vento terrível que lhes açoitava os rostos.

Um enorme clamor se elevou, dominando a Marselhesa:

— Pão! Pão! Pão!

Lucie e Jeanne abraçaram-se à Sra. Hennebeau, que parecia sem sentidos, enquanto Négrel se colocava diante delas como para protegê-las com seu corpo. Seria naquela mesma noite que a velha sociedade viria abaixo? O que viram então acabou de atordoá-los. O bando escoava, na frente do estábulo passava agora um grupo de retardatários, quando surgiu a filha de Mouque. Ela sempre ficava para trás, espiando os burgueses pelos portões dos jardins, pelas janelas das casas. Quando descobria um, não podendo cuspir-lhe no rosto, mostrava-lhe o que era para ela o cúmulo do desprezo Sem dúvida tinha descoberto algum, porque, de repente, levantou as saias, espichou as nádegas, mostrou seu enorme traseiro, completamente nu aos últimos raios do sol. Aquela massa disforme não tinha nada de obsceno nem fazia rir, era antes feroz.

Como tinha vindo, desaparecera; a onda rolava agora para Montsou pela estrada em ziguezagues, por entre as casas baixas pintadas de cores vivas. A caleça foi novamente para fora, mas o cocheiro disse que não se responsabilizava em levar de volta para casa a senhora e as senhoritas com os grevistas ocupando a estrada. E o pior era que não havia outro caminho.

— Mas temos de voltar, o jantar nos espera! — disse a Sra. Hennebeau fora de si, exasperada pelo medo. — Essa escória foi escolher logo hoje, quando tenho convidados. Vá-se fazer bem a uma gentalha como essa!

Lucie e Jeanne tentavam retirar Cécile da palha; esta debatia-se, pensando que os selvagens ainda estavam desfilando, e repetindo que não queria ver. Finalmente todas entraram no carro e Négrel, já a cavalo, teve a idéia de passar pelas ruelas de Réquillart.

— Dirija devagar — disse ele ao cocheiro —, porque o caminho é muito ruim. Se mais adiante algum bando o impedir de voltar à estrada, pare atrás da mina velha e nós iremos a pé, entrando pelo portão do jardim, enquanto você guarda o carro e os cavalos no galpão da primeira estalagem que encontrar.

E, assim, partiram. O bando, ao longe, espalhava-se por Montsou. Após terem visto passar por duas vezes os policiais e a cavalaria, os habitantes do lugar agitavam-se, cheios de pânico. Corriam histórias terríveis, falava-se de cartazes manuscritos ameaçando os burgueses com uma carnificina. Ninguém os tinha lido, mas assim mesmo citavam frases textuais. Sobretudo em casa do notário o terror estava no auge, porque ele acabava de receber por baixo da porta uma carta anônima em que o advertiam de que um barril de pólvora estava enterrado na sua adega, pronto para explodir se ele não se declarasse a favor do povo.

Os Grégoire, que justamente protelavam o fim de sua visita em razão da chegada dessa carta, discutiam-na, afirmando ser obra de algum trocista, quando a invasão do bando acabou de apavorar a casa. Eles sorriam e espiavam por uma fresta de cortina, recusando-se a admitir um perigo qualquer, certos de que tudo terminaria amigavelmente, como diziam. Como eram apenas cinco horas, tinham tempo, esperariam que a rua estivesse livre para ir jantar defronte, na casa dos Hennebeau, onde Cécile, certamente já de volta devia esperá-los. Mas em Montsou ninguém parecia partilhar da confiança deles, pessoas passavam correndo, portas e janelas fechavam-se violentamente. Perceberam Maigrat, do outro lado da estrada, entrincheirando seu armazém com trancas de ferro, tão pálido e trêmulo, que sua raquítica mulherzinha é quem tinha de apertar os parafusos.

O bando concentrara-se diante do palacete do diretor e gritava sem parar:

—  Pão! Pão! Pão!

O Sr. Hennebeau estava em pé à janela quando Hippolyte entrou para fechar os postigos, temendo que os vidros fossem quebrados a pedradas. Fechou assim todo o térreo e passou ao primeiro andar; ouviam-se distintamente os rangidos dos fechos e o bater das persianas. Infelizmente não se podia fechar da mesma forma o respiradouro da cozinha, no subsolo, uma abertura perigosa onde se refletia o fogo das panelas e da assadeira.

Maquinalmente, o Sr. Hennebeau, que queria ver, subiu novamente ao segundo andar, ao quarto de Paul; era o mais bem situado, à esquerda, permitindo descortinar a estrada até os depósitos da companhia. E escondeu-se atrás da persiana, dominando a multidão. Mas o quarto apoderou-se dele uma outra vez, o toucador limpo e em ordem, o leito frio, com os lençóis trocados e lisos. Toda a sua raiva da tarde, a furiosa batalha que tivera lugar no âmago do grande silêncio da sua solidão, transformava-se num imenso cansaço. O seu ser era agora como aquele quarto, arrefecido, varrido das imundícies da manhã, de volta à ordem habitual. De que serviria um escândalo? Sua mulher tinha simplesmente um amante a mais; o grave era que o escolhera dentro da família. Mas talvez houvesse uma vantagem; dessa maneira salvava as aparências. Encheu-se de autopiedade ao lembrar-se do seu ciúme louco. Que ridículo ter esmurrado a cama! Já não tinha tolerado outro homem? Podia muito bem tolerar este. Seria apenas o problema de mais um pouco de desprezo. Um amargor terrível envenenava-lhe a boca, a inutilidade de tudo, a eterna dor de viver, a vergonha de si próprio, que continuava a adorar e desejar essa mulher, mesmo na imundície em que a abandonava.

Embaixo da janela os gritos explodiram com redobrada violência:

— Pão! Pão! Pão!               

— Imbecis! — disse o Sr. Hennebeau por entre os dentes fechados.                                        

Ouvia que o injuriavam por receber ordenados polpudos, que o chamavam de vagabundo, barrigudo, de canalha que tinha indigestões de iguarias enquanto o operário morria de fome.

As mulheres haviam descoberto a cozinha e houve uma verdadeira tempestade de imprecações contra o faisão que assava contra os molhos cujo cheiro gorduroso aguilhoava seus estômago vazios. Ah, burgueses imundos, haviam de empanturrá-los d champanha e trufas até verem suas tripas estourar!

— Pão! Pão! Pão!

— Imbecis! — repetiu o Sr. Hennebeau. — Acaso eu sou feliz1) Enchia-se de cólera contra aquela gente que não compreendia

Dar-lhes-ia com prazer seu polpudo ordenado para ter, como eles, o couro resistente, a cópula fácil e sem remorso. Com que prazer os poria à sua mesa, os cevaria com seu faisão, enquanto ele iria fornicar atrás das sebes, derribar as moças, rindo daqueles que já tinham feito o mesmo com elas antes dele! Daria tudo, sua educação, seu bem-estar, seu luxo, sua autoridade de diretor, para ser, por um dia, o último dos miseráveis que lhe obedeciam, liberto da sua carne, bastante patife para bater na esposa e ir procurar seu prazer com as vizinhas. E queria também morrer de fome, ter a barriga vazia, o estômago contraído pelas cãibras e o cérebro com vertigens, talvez isso matasse a eterna dor. Ah! viver como um animal, nada ter de seu, acampar nos trigais com a operadora de vagonetes mais feia, mais suja, e ter a capacidade de ser feliz!

— Pão! Pão! Pão!

Fora de si, gritou furiosamente no meio do alarido:

— Pão! Só isso chega, imbecis?

Ele comia, mas assim mesmo estertorava de tanto sofrimento. Seu lar destruído, toda a sua vida de amargura subia-lhe à garganta num espasmo de morte. Era um desgraçado porque tinha pão. Quem era o idiota que punha a felicidade deste mundo na repartição da riqueza? Esses revolucionários sonhadores podiam destruir a sociedade e criar uma nova, mas não tomariam maior a alegria da humanidade, nem diminuiriam suas tristezas, cortando a cada um a sua fatia de pão. O que fariam seria aumentar as desgraças da terra, levando até os cães a uivar de desespero ao se verem arrancados da tranqüila satisfação dos instintos para serem elevados ao sofrimento insaciável das

paixões. Não, o único bem era não ser, ou, sendo, ser a árvore,a pedra, menos ainda, o grão de areia que não pode sangrar sob o tacão dos viandantes.

E no auge do seu tormento, seus olhos encheram-se de lágrimas que começaram a escorrer em gotas ardentes pelo rosto. O crepúsculo engolfava a estrada, quando as pedras começara a esburacar a fachada do palacete. Já incapaz de cólera contra aqueles famintos, fendo apenas com a chaga em fogo do seu coração, continuou a balbuciar por entre lágrimas:

— Imbecis! Imbecis!

Mas o grito das barrigas vazias foi mais forte; como uma tempestade varrendo tudo, soprou o bramido: 

— Pão! Pão! Pão!

 

Etienne, sóbrio graças às bofetadas de Catherine, permaneceu à frente dos camaradas. Mas, enquanto os lançava contra Montsou com uma voz enrouquecida, ouvia dentro de si uma outra voz, a da razão, que, espantada, perguntava o porquê daquilo tudo. Ele não tinha querido aquelas coisas... Como, então, tendo partido para a Jean-Bart com o plano de agir friamente e impedir um desastre, acabava o dia de violência em violência, sitiando a residência do diretor?

E, contudo, era ele quem acabava de gritar: "Chega!" A princípio, sua única idéia fora proteger os depósitos da companhia, que falavam em ir pilhar. E agora, que as pedras já arranhavam a fachada do palacete, procurava, sem encontrar, a presa legítima sobre a qual devia lançar o bando, para evitar desgraças maiores. Como estivesse sozinho, impotente no meio da estrada, alguém o chamou, um homem parado à porta do botequim Tison, cuja proprietária se dera pressa em fechar as janelas, só deixando aberta a entrada.

— Sou eu... Vem aqui.

Era Rasseneur. Uns trinta, homens e mulheres, quase todos do conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante, que permaneceram em casa durante a manhã, tinham vindo à tarde em busca de noticias, e, com a aproximação dos grevistas, haviam invadido aquele botequim. Zacharie e Philomène ocupavam uma mesa. Além, Pierron e a mulher, de costas, escondiam o rosto. Ninguém bebia, tinham-se refugiado ali, simplesmente.

Etienne reconheceu Rasseneur e já se afastava quando este acrescentou:

— Minha presença não te é agradável, já sei... Eu bem te preveni, as dores de cabeça vão começar. Agora vocês podem pedir pão, vão receber mas é chumbo.

Ele, então, voltou e respondeu:

— O que me desagrada são os covardes que, de braços cruzados olham, enquanto arriscamos a pele.

— Então a tua idéia é pilhar aí em frente? — perguntou Rasseneur.

— A minha idéia é ficar até o fim com meus amigos, até que nos matem a todos.

Desesperado, Etienne voltou para o meio da turba, pronto para morrer. Na estrada, três crianças jogavam pedras e ele as afastou com um pontapé, gritando, para refrear os companheiros, que não adiantava nada quebrar os vidros.

Bébert e Lydie, que acabavam de se reunir a Jeanlin, aprendiam com este a manejar a funda. Cada um lançava a sua pedra, para ver qual deles faria o estrago maior. Lydie, que ainda não tinha prática, quebrara a cabeça de uma mulher na multidão, e os dois meninos riam como loucos. Por trás deles, Boa-Morte e Mouque, sentados num banco, observavam-nos. As pernas inchadas de Boa-Morte doíam tanto, que a muito custo se arrastara até ali, sem que se soubesse que curiosidade o impelia, porque tinha a fisionomia terrosa dos dias em que não se podia arrancar-lhe uma palavra.

Ninguém mais obedecia a Etienne. As pedras continuavam a chover, apesar das suas ordens em contrário. Ele sentia espanto, susto mesmo, diante daqueles selvagens que sublevara, tão lentos no começo e a seguir terríveis, de uma tenacidade feroz na cólera. Todo o velho sangue flamengo ali estava, pesado e calmo, levando meses para esquentar-se, atirando-se às violências mais inomináveis, sem querer ouvir nada, até que a besta ficasse ébria de atrocidades. No seu Meio-Dia, as multidões inflamavam-se mais depressa, mas trabalhavam menos. Teve de atracar-se com Levaque para arrancar-lhe o machado, não sabia mais como conter os Maheu, que atiravam pedras com ambas as mãos. Mas eram sobretudo as mulheres que o assustavam: a de Levaque, a filha de Mouque e as outras, possuídas de um furor assassino, os dentes e as unhas de fora, ladrando como cadelas, sob o comando da Queimada, que sobressaía dentre elas com seu corpo magro.

Houve então uma parada súbita, a surpresa de um minuto impunha o pouco de calma que as súplicas de Etienne não podiam obter. Eram simplesmente os Grégoire que tinham decidido despedir-se do notário e dirigiam-se para a casa do diretor. E pareciam tão calmos, tinham o ar de acreditar numa simples brincadeira por arte dos seus bons mineiros, cuja resignação os alimentava havia século, que estes, espantados, tinham com efeito parado de jogar pedras, temendo atingir esse senhor idoso e essa velha dama, caídos do céu. Deixaram-nos entrar no jardim, subir as escadas, bater à porta fortificada, que não tinham pressa de lhes abrir. Mas, justamente nesse momento, Rose, a camareira, voltava do seu passeio, e ria aos operários furiosos, que conhecia muito bem por ser de Montsou. E foi ela quem, esmurrando a porta, acabou forçando Hippotyte a entreabri-la. Já não era sem tempo: mal os Grégoire desapareceram, a chuva de pedras recomeçou. Saída do seu pasmo, a multidão gritava mais forte:

— Morte aos burgueses! Viva o socialismo!

Rose continuava rindo, já no vestíbulo do palacete, como que divertida com a aventura, repetindo ao criado aterrado:

— Eles não são maus, eu os conheço.

O Sr. Grégoire pendurou metodicamente seu chapéu. Depois, tendo ajudado a esposa a tirar sua capa de fazenda grossa, disse, por sua vez:

— Sem dúvida, no fundo não têm maldade alguma. Depois de gritarem bastante, irão jantar com mais apetite.

Nesse momento o Sr. Hennebeau desceu do segundo andar. Assistira à cena e vinha receber seus convidados com seu jeito habitual, frio e polido. Só a palidez do semblante denunciava as lágrimas que o tinham agitado. Mas o homem já fora domado, só restava nele o administrador correto, resolvido a cumprir com o seu dever.

— Sabem? — disse ele — as senhoras ainda não chegaram. Pela primeira vez uma inquietação apossou-se dos Grégoire.

Cécile ainda não chegara! E como haveria de entrar se aquela brincadeira dos mineiros se prolongasse?

— Pensei em fazer desimpedir a entrada — continuou o Sr. Hennebeau. — Acontece, porém, que estou sozinho aqui, e, aliás, não sei aonde enviar meu criado para trazer quatro soldados e um cabo para darem um jeito nessa canalha.

Rose, que permanecera ali, atreveu-se a murmurar novamente:

— Mas, meu senhor, eles não são maus...

O diretor abanou a cabeça, enquanto o tumulto crescia do lado de fora e se ouviam os golpes surdos das pedras contra a fachada

— Não lhes quero mal, até os desculpo, mas precisam ser muito estúpidos para acreditarem que queremos a sua desgraça. O caso é que sou responsável pela ordem. E dizer que os policiais, ao que me afirmam, estão percorrendo as estradas, e desde cedo não consegui um único!

Interrompeu-se para deixar passar a Sra. Grégoire e continuou:

— Passe, senhora, por favor, não fique aí, entre para o salão. Mas a cozinheira, exasperada, vindo do subsolo, reteve-os ainda alguns minutos no vestíbulo. Declarou não aceitar mais a responsabilidade do jantar, porque até agora esperava do pasteleiro de Marchiennes a massa para os pastéis, que encomendara para as quatro horas. Evidentemente o homem ficara pelo caminho, com medo daqueles bandidos. Talvez até tivessem roubado suas cestas. Via os pastéis bloqueados atrás de uma moita, sitiados, enchendo a barriga de três mil miseráveis que pediam pão. Em todo caso, o patrão estava prevenido, ela preferia atirar seu jantar ao fogo a vê-lo estragado por causa da revolução.

— Tenha um pouco de paciência — disse o Sr. Hennebeau. — Nada está perdido, o pasteleiro ainda pode vir.

E como se voltasse para a Sra. Grégoire, abrindo ele mesmo a porta do salão, ficou muito surpreso ao perceber, sentado na banqueta do vestíbulo, um homem que até o momento não tinha notado por causa do lusco-fusco.

— Como? É você, Maigrat? Que aconteceu?

Maigrat levantara-se e seu rosto apareceu, engordurado e lívido, descomposto pelo pavor. Tinha perdido seu aspecto de homem gordo e calmo. Explicou humildemente que viera até ali para pedir ajuda e proteção no caso de os bandidos assaltarem seu armazém.

— Você bem vê que eu também estou ameaçado e não tenho ninguém para me proteger — respondeu o Sr. Hennebeau. — Teria feito melhor ficando em casa, para defender suas mercadorias.

— Sim! Sim! Pus trancas de ferro e deixei minha mulher tomando conta.

O diretor perdeu a paciência e não pode esconder seu desprezo. Que bela guarda, uma infeliz raquítica, saco de pancadas!

— Já disse que não posso fazer nada, trate de se defender sozinho. Aliás, aconselho-o a voltar imediatamente para casa, porque eles já estão pedindo pão outra vez... Escute...

Com efeito, o tumulto recomeçava e Maigrat chegou a ouvir u nome. Voltar não era mais possível, seria despedaçado. Mas ao esmo tempo a idéia da sua ruína transtornava-o. Encostou o rosto no vidro da porta, suando, tremendo, espreitando o desastre, enquanto os Grégoire se decidiam a passar para o salão.

Tranqüilamente, o Sr. Hennebeau fingia fazer as honras da casa. Em vão pediu aos seus convidados que se sentassem. A peça fechada, com barricadas nas janelas, iluminada por duas lâmpadas antes da noite, enchia-se de terror a cada novo clamor chegado de fora. No abafamento das tapeçarias, a cólera da multidão retumbava muito mais inquietadora, prenhe de uma ameaça vaga e terrível. Mas assim mesmo conversaram, e, por mais que tentassem, sempre voltavam àquela inconcebível revolta. Ele admirava-se de não a ter previsto; na verdade, seus informantes eram tão maus que se enfurecia sobretudo contra Rasseneur, de quem dizia reconhecer a odiosa influência. Mas os policiais tinham de chegar a qualquer momento, era impossível que o abandonassem dessa maneira. Quanto aos Grégoire, não pensavam senão na filha: pobrezinha! Assustava-se com tanta facilidade... Podia ser que, diante do perigo, a carruagem houvesse voltado para Marchiennes. A espera durou ainda um quarto de hora, exasperada pela algazarra da rua, pelo barulho das pedras batendo de vez em quando nas janelas fechadas e que ressoavam como tambores. A situação estava ficando intolerável, o Sr. Hennebeau disse que ia sair para enxotar sozinho os desordeiros e ir ao encontro da carruagem, quando Hippolyte surgiu gritando:

— Sr. Hennebeau! Sr. Hennebeau! A senhora está aí fora, vão matá-la!

Como o carro não pudera passar pela ruela de Réquillart por causa dos grupos que o ameaçavam, Négrel resolvera pôr em execução a sua idéia: fazer a pé os cem metros que os separavam do palacete e bater no portão do jardim que ficava ao lado das dependências de serviço; o jardineiro os ouviria, com certeza haveria alguém para abrir. No começo as coisas correram como o previsto; a Sra. Hennebeau e as senhoritas já batiam na entrada de serviço quando algumas mulheres, prevenidas, precipitaram-se para o beco. Nesse momento começaram as complicações. Ninguém abria o portão, Négrel tentou inutilmente arrombá-lo com o ombro. Havia cada vez mais mulheres, e ele, temendo não poder contê-las, tomou o partido desesperado de empurrar à sua frente a tia e as moças e chegar à entrada principal passando pelo meio da turba. Esta manobra, no entanto, teve resultado terrível: não os deixavam passar um grupo aos gritos os encurralou, enquanto o resto da multidão afluía de todos os lados, ainda sem compreender, espantado de ver aquelas damas bem vestidas perdidas no meio da batalha. Nesse momento foi tão grande a confusão que se deu um desses casos de desatino que não é possível explicar. Lucie e Jeanne, tendo chegado à escadaria, enfiaram-se pela porta que a camareira entreabria; a Sra. Hennebeau também entrou, seguida de Négrel, que voltou a pôr os ferrolhos, certo de que vira Cécile passar em primeiro lugar. Mas ela não entrara, tinha desaparecido no turbilhão, presa de tal medo que dera as costas à casa e se atirara no centro do perigo. Em seguida recomeçou o clamor:

— Viva o socialismo! Morram os burgueses!

Alguns, de longe, em razão do véu que lhe encobria o rosto, tomaram-na pela Sra. Hennebeau, outros por uma amiga dela, uma jovem casada com um industrial da vizinhança, odiada pelos seus operários. Mas isso pouco importava, eram seu vestido de seda, sua capa de peles, até aquela pluma branca do chapéu que os enlouqueciam. E estava perfumada, possuía um relógio, tinha uma pele fina de desocupada que não lidava com carvão.

— Espera! — gritou a Queimada. — Vamos enfiar-te no rabo toda essa renda.

— É da gente que essas cadelas roubam tudo isso — continuou a mulher de Levaque. — Enchem-se de peles enquanto nós morremos de frio... Arranquem tudo, que fique nua, vamos mostrar-lhe como se vive!

Imediatamente a filha de Mouque investiu:

— Claro, claro, e que leve uma boa surra!

E as mulheres, naquela rivalidade selvagem, empurravam-se, agarravam-se pelos andrajos, cada uma querendo alguma coisa daquela moça rica. Na certa não tinha o traseiro mais bem feito do que qualquer outra. Muitas dessas elegantes até podres estavam por baixo dos atavios. A injustiça já estava durando demasiado, todas elas teriam de ser obrigadas a vestir-se como operárias, essas rameiras que tinham o desplante de pagar cinqüenta soldos pela lavagem de uma saia!

Em meio a essas fúrias, Cécile tiritava, as pernas paralisadas, balbuciando repetidamente a mesma frase:

— Minhas senhoras, por favor, minhas senhoras, não me façam mal.               

Mas de repente soltou um grito rouco: umas mãos álgidas agarravam-na pelo pescoço. Era o velho Boa-Morte, para perto do qual fora empurrada pela multidão, que a

segurava dessa maneira. Ele parecia estar ébrio de fome, embrutecido pela longa miséria, saído bruscamente do seu meio século de resignação, sem que se pudesse saber que impulso de rancor o fazia agir assim. Depois de ter durante sua vida, salvo da morte uma dúzia de companheiros, arriscando a pele no grisu e nos desabamentos, cedia a coisas até então desconhecidas para ele, a um desejo de fazer aquilo, à fascinação daquele pescoço branco de moça. E, como aquele era um dos dias em que não falava, apertava os dedos, com seu ar de velho animal enfermo, ruminando recordações.

— Não! Não! — berraram as mulheres. — Queremos vê-la de bunda à mostra!

No palacete, desde que se deram conta do que acontecia, Négrel e o Sr. Hennebeau abriram corajosamente a porta para correr em socorro de Cécile. Mas a multidão atirava-se agora contra a grade do jardim, e não era fácil sair. Começaram a lutar, enquanto os Grégoire, horrorizados, surgiam à porta.

— Larga ela, velho! E a mocinha da Piolaine! — gritou a mulher de Maheu ao avô, quando reconheceu Cécile, a quem uma mulher rasgara o véu.

Por seu lado, Etienne, chocado com aquelas represálias contra uma menina, esforçava-se por fazer o bando largar a presa. Tendo uma inspiração, brandiu o machado que tinha arrancado das mãos de Levaque.

— Vamos para o Maigrat, que um raio o parta! Há pão lá dentro! Botemos o barraco de Maigrat abaixo!

E, com presteza, deu a primeira machadada na porta do armazém. Alguns homens o seguiram, Levaque, Maheu e outros. Mas as mulheres não largavam a presa. Cécile caíra das mãos de Boa-Morte nas da Queimada. Engatinhando, e a mando de Jeanlin, Lydie e Bébert introduziam-se entre as saias, para verem como era o traseiro da dama. Já começavam os repelões, suas roupas se rompiam, quando apareceu um homem a cavalo, arrojando o animal, chicoteando os que não escapavam a tempo.

— Canalhas! Vocês já chegaram ao ponto de bater nas nossas filhas!

Era Deneulin que vinha para o jantar. De um salto estava em terra; agarrou Cécile pela cintura, enquanto com a outra mão manobrava o cavalo com uma destreza e uma força extraordinárias servindo-se dele como de uma cunha viva, fendendo a multidão que recuava diante dos coices. Na grade a batalha continuava, mas assim mesmo ele passou, esmagando membros. Esse socorro imprevisto veio na hora certa para Négrel e Hennebeau, que se encontravam em grande perigo, no meio de pragas e socos. E, enquanto o rapaz entrava finalmente, com Cécile desmaiada, Deneulin, que protegia o diretor com seu corpo enorme, no alto do patamar, recebeu uma pedrada que quase lhe quebrou o ombro.

— Muito bem! — gritou ele. — Quebrem-me os ossos depois de quebrarem minhas máquinas!

Com a rapidez de um raio, fechou a porta, e uma chuva de pedras bateu na madeira.

— Que animais! — continuou ele. — Mais dois segundos e me rachavam o crânio como a uma cabaça vazia... É inútil tentar falar-lhes, vocês não acham? Estão loucos furiosos, só matando-os.

No salão, os Grégoire choravam, vendo Cécile voltar a si. Não estava machucada, nem um arranhão sequer, apenas seu véu se perdera. Mas o desespero deles aumentou quando viram sua cozinheira, Mélanie, que contava como a turba tinha demolido a Piolaine. Morta de medo, ela viera correndo para advertir os patrões e entrara também pela porta entreaberta no momento da confusão, sem que ninguém tivesse dado por isso. E, na sua interminável narrativa, a única pedra de Jeanlin, que quebrara apenas um vidro, transformava-se num verdadeiro canhoneio que tinha destruído as paredes. O Sr. Grégoire já não sabia o que pensar. Estrangulavam-lhe a filha, punham sua casa abaixo... Então era verdade que esses mineiros podiam odiá-lo só porque ele vivia como homem decente, à custa do trabalho deles?

A camareira, que trouxera uma toalha e água-de-colônia, repetiu:

— E engraçado... Apesar de tudo isso, eles não são maus.

A Sra. Hennebeau, muito pálida, sentada, não conseguia refazer-se das emoções por que passara; apenas conseguiu forças para sorrir quando felicitaram Négrel.

Sobretudo os pais de Cécile agradeciam ao rapaz; o casamento, agora, era certo. O Sr. Hennebeau, em silêncio, corria os olhos da esposa para o amante, que ele tinha jurado matar ainda naquela manhã, fixando-se depois na moça que, sem dúvida, muito em breve, iria livrá-lo dele. Não tinha pressa, só temia uma coisa, ver sua mulher cair mais baixo ainda, talvez nos braços de algum lacaio.

— E vocês, minhas queridas, não tiveram nada quebrado? — perguntou Deneulin às filhas.

Lucie e Jeanne tinham tido muito medo, mas estavam contentes por terem visto tudo aquilo; agora riam.

— Irra! — continuou o pai. — Que belo dia! Se vocês querem dote, tratem de consegui-lo por suas próprias mãos, e preparem-se para, ainda por cima, dar-me de comer.

Gracejava, com a voz trêmula. Seus olhos ficaram rasos de lágrimas quando as duas filhas se jogaram nos seus braços.

O Sr. Hennebeau tinha ouvido aquela confissão de ruína. Um pensamento rápido iluminou seu semblante. Realmente, Vandame ia pertencer a Montsou, era a compensação esperada, o lampejo de sorte que o poria novamente nas boas graças da administração. A cada nova desgraça da sua existência, ele se refugiava na estrita execução das ordens recebidas, fazia da disciplina militar em que vivia a sua reduzida parcela de felicidade.

Começavam a ficar calmos, o salão caía numa paz de exaustão, com a luz tranqüila das duas lâmpadas e o morno abafamento dos reposteiros. Que estava acontecendo lá fora? Os desordeiros se calavam, as pedras já não batiam na fachada, ouviam-se apenas uns golpes surdos, iguais aos que soam nos bosques quando as árvores estão sendo abatidas. Quiseram saber, foram ao vestíbulo espiar pela vidraça da porta. Até as senhoras e as senhoritas subiram ao primeiro andar para olhar por trás das persianas.

— Está vendo o patife do Rasseneur ali em frente, na porta daquela taberna? — perguntou Hennebeau a Deneulin. — Eu sabia, ele não podia faltar...

Mas não era Rasseneur, e sim Etienne, quem abria a machadadas o armazém de Maigrat. E, enquanto arrombava, continuou chamando pelos companheiros: então não era verdade que todas as mercadorias que estavam ali dentro pertenciam aos mineiros? Será que não tinham o direito de reaver o que era seu desse ladrão que os explorava havia tanto tempo e os esfomeava a uma simples palavra da companhia? Pouco a pouco, todos foram esquecendo a residência do diretor e acorriam para pilhar o armazém que ficava ao lado. O grito de "Pão! Pão! Pão!" retumbava de novo. Encontrariam pão por trás daquela porta. Um furor famélico os impelia, como se, de repente, não pudessem esperar mais, sob pena de morrerem naquela estrada. Jogavam-se com tal força contra a porta que Etienne receou ferir alguém ao golpear com o machado.

Enquanto isso, Maigrat, que deixara o vestíbulo do palacete refugiara-se na cozinha, mas dali não podia ouvir nada, começou a imaginar a horrível destruição da sua loja. Por isso, resolveu subir para esconder-se atrás da bomba, do lado de fora. Foi então que começou a ouvir claramente o arrombamento da porta, as vociferações dos

assaltantes, onde seu nome surgia a todo instante. Então, não era um pesadelo: continuava não vendo, mas ouvia, seguia o ataque com um zumbido nos ouvidos. Cada machadada feria-lhe o coração. Um gonzo devia ter saltado, mais cinco minutos e o armazém seria invadido. A cena surgia na sua imaginação com imagens reais, assustadoras, os assaltantes atirando-se para dentro, as gavetas abertas, os sacos rasgados, tudo comido, tudo bebido, a própria casa carregada, nada sobrando, nem mesmo um cajado para sair mendigando pelos vilarejos. Não! não se deixaria arruinar; antes morrer! Desde que se postara ali, percebia numa das janelas da sua casa, na parede do lado, o perfil tristonho da esposa, pálida e assustada por trás dos vidros; sem dúvida ela assistia aos golpes abalando a porta com seu jeito calado de pobre animal acostumado a apanhar. Por baixo havia um galpão, colocado de tal forma, que do jardim do palacete podia-se chegar até ele subindo pela latada da parede-meia; depois, daí era fácil rastejar sobre as telhas até a janela. A idéia de entrar na sua casa dessa maneira o torturava, no remorso de ter saído. Talvez ainda tivesse tempo de fortificar o armazém com os móveis; chegava até a inventar outras defesas heróicas, como azeite fervendo ou petróleo inflamado, derramados em cima. Mas esse amor pelas mercadorias lutava contra seu medo, estertorava na sua covardia represada. De repente, a um golpe mais violento do machado, decidiu-se. A avareza era mais forte, ele e a mulher cobririam os sacos com seus corpos; antes morrer do que entregar um pão.

Nesse momento ouviu-se uma gritaria:

— Olhem! Olhem! Há um gatão lá em cima! Ao gato! Pega o gato!

A turba tinha visto Maigrat esgueirando-se pelo teto do galpão. Na sua ânsia, apesar do seu peso, ele subira agilmente pela latada, sem se preocupar com as ripas que quebravam; e agora espichava-se ao longo das telhas, esforçando-se para atingir a janela. Mas a inclinação era muito forte, sua barriga o estorvava, suas unhas estavam sendo arrancadas. Assim mesmo ter-se-ia arrastado até a cumeeira, se não tivesse começado a tremer de medo de receber uma pedrada, já que a multidão, que ele não conseguia ver, continuava a gritar lá de baixo:

— Pega o gato! Pega o gato! Vamos fazê-lo em pedaços!

E bruscamente, suas duas mãos se soltaram, ele rolou como uma bola, bateu na biqueira e caiu atravessado na parede-meia, tão desastradamente que foi espatifar-se na rua, onde abriu o crânio no ângulo de um marco. O cérebro esguichou. Estava morto. Sua mulher no alto, pálida e assustada por trás dos vidros, continuava olhando.

Houve um momento de estupor. Etienne tinha parado e o machado escorregara das suas mãos. Maheu, Levaque, os outros todos esqueceram o armazém, os olhos voltados para a parede, de onde escorria lentamente um filete vermelho. Os gritos tinham cessado, abateu-se um silêncio pesado, na escuridão que aumentava.

Em seguida recomeçaram os gritos. Eram as mulheres que se precipitavam, presas da embriaguez do sangue.

— A justiça tarda mas não falha! Ah, porco, morreste, enfim! Rodearam o cadáver ainda quente e começaram a insultá-lo com gargalhadas, chamando de coisa imunda sua cabeça despedaçada, berrando na cara da morte o longo rancor de suas vidas sem pão.

— Eu te devia sessenta francos, já estás pago, ladrão! — gritou a mulher de Maheu, tão enfurecida quanto as outras. — Nunca mais vais negar-te a me vender fiado... Espera! Espera! Vou engordar-te mais ainda.

Começou a cavar a terra com as duas mãos, tomou dois punhados e os enfiou violentamente na boca do cadáver.

— Vai, come! Vamos, come, come, tu, que nos comias!

As injúrias eram cada vez mais violentas, enquanto o morto, estendido de costas, imóvel, olhava com seus grandes olhos vidrados o céu imenso de onde descia a noite. Aquela terra, enfiada na sua boca, era o pão que ele tinha recusado. E, de agora em diante, só comeria desse pão. Esfomear os pobres não lhe trouxera felicidade.

Mas as mulheres ainda queriam vingar-se. Rodeavam-no, farejando como lobas. Todas arquitetavam um ultraje que as desafogasse.

Ouviu-se a voz áspera da Queimada:

— Vamos castrá-lo como a um gato!

— Vamos! Ao gato! Mãos à obra! Esse asqueroso já fez demais o que não devia!

Imediatamente a filha de Mouque começou a abrir-lhe a braguilha e a puxar-lhe as calças, enquanto a mulher de Levaque levantava as pernas do morto. E a Queimada, com suas mãos secas de velha, abriu-lhe as coxas nuas e empunhou a virilidade morta Segurou tudo e fez tal esforço para extirpar o membro que suas costas magras se distenderam e seus braços enormes estalaram. Mas a pele mole resistia, ela teve de atracar-se novamente e acabou arrancando o despojo, um pedaço de carne cabeluda e sangrenta que agitou no ar com uma gargalhada de triunfo:

— Pronto, aqui está!

Vozes esganiçadas saudaram com imprecações o horrível troféu:

— Ah, desgraçado! Não engravidarás mais as nossas filhas!

— Chega! Não te pagaremos mais com a nossa carne! Nunca mais teremos de abrir as pernas para conseguir um pão!

— Olha, eu te devo seis francos... Queres fazer uma brincadeira por conta? Eu estou pronta, se tu ainda podes!

Este gracejo sacudiu-as com uma gargalhada feroz. Passavam umas às outras a carne pingando sangue, como um animal tinhoso que cada uma tivera de suportar e acabavam de esmagar, que agora tinham ali, inerte, à sua mercê. Cuspiam em cima, arreganhavam os dentes, repetindo, numa furiosa explosão de desprezo:

— Ele não pode mais! Ele não pode mais! Já não é mais um homem que vai para a cova! Começa logo a apodrecer inútil!

A Queimada, então, espetou o naco de carne na ponta da sua vara, e, levantando-o bem alto, como um estandarte, empreendeu a marcha, seguida pela debandada ululante das mulheres. O sangue gotejava sobre elas, o despojo horripilante pendia como um pedaço de carne no gancho de um açougue. No alto, à janela, a Sra. Maigrat continuava estática, mas, ao último raio do sol que se punha, os defeitos dos vidros deformavam seu rosto branco, que parecia rir. Espancada, traída a todo momento, curvada da manhã à noite sobre o livro de assentamentos, talvez mesmo risse quando a chusma de mulheres saiu estrada afora com o animal tinhoso, o animal decepado na ponta da vara.

A espantosa mutilação fora realizada em meio a um horror estupefato. Nem Etienne, nem Maheu, nem os demais tiveram tempo de intervir; permaneceram imóveis ante o galopar das fúrias. Na porta do Tison assomaram algumas cabeças: Rasseneur, trêmulo de revolta, e Zacharie e Philomène, boquiabertos com o que viam. Os dois velhos, Boa-Morte e Mouque, sempre graves, balançavam a cabeça. Apenas Jeanlin ria, empurrando Bébert, forçando Lydie a olhar.

As mulheres já estavam voltando e desfilavam sob as janelas do palacete. Por trás das persianas, as damas espicharam o pescoço. Não tinham podido ver a cena, que se desenrolara oculta pela rede, e agora mal enxergavam, com a noite já caída.

—  Mas o que é que elas têm na ponta daquele pau? — perguntou Cécile, que se enchera de coragem para olhar.

Lucie e Jeanne declararam que devia ser a pele de um coelho.

—  Não, não — murmurou a Sra. Hennebeau. — Devem ter pilhado a salsicharia, deve ser um pedaço de porco.

Com um estremecimento, calou-se. A Sra. Grégoire advertiu-a com o joelho. Ambas permaneceram atônitas. As moças, muito pálidas, não fizeram mais perguntas, seguindo de olhos arregalados aquela visão rubra no fundo das trevas.

Etienne brandiu novamente o machado, mas o mal-estar não se dissipava, o cadáver obstruía a entrada e protegia o armazém. Muitos tinham recuado. Era como se um torpor tivesse caído sobre o bando. Maheu, que continuava sombrio, ouviu uma voz dizer-lhe ao ouvido que fugisse. Voltou-se e reconheceu Catherine, sempre vestindo o seu velho paletó de homem, negra e ofegante. Com um gesto mandou-a embora, não queria ouvi-la, chegou a ameaçá-la com pancadas. Ela então hesitou e, em desespero, correu para Etienne.

— Foge, foge, os policiais vêm aí!

Ele também a escorraçou, injuriando-a, sentindo o sangue subir-lhe novamente ao rosto, à lembrança dos tapas que recebera. Ela, porém, não desistiu, obrigou-o a jogar fora o machado, arrastando-o pelos dois braços com uma força irresistível.

— Quando te digo que os policiais estão chegando, tens de me escutar! Se queres saber mais, Chaval foi buscá-los e já está vindo com eles. A mim isso me enojou, por isso estou aqui. Foge! Não quero que te prendam...

E Catherine arrastou-o no momento em que um pesado galope vindo de longe fazia o chão tremer. Imediatamente explodiu a gritaria: "Os policiais!" E começou uma correria desabalada, um salve-se-quem-puder tão rápido que em dois minutos a estrada ficou vazia, absolutamente limpa, como que varrida por um furacão. Só o cadáver de Maigrat manchava de escuro a terra branca. Diante do Tison permanecera apenas Rasseneur, que, satisfeito, rindo, aplaudia a vitória fácil dos sabres, enquanto em Montsou deserto, sem luzes, no silêncio das janelas e portas fechadas, os burgueses, escorrendo suor, não ousando espiar, batiam queixo. A planície estava afundada na noite escura, só os altos-fornos e as fornalhas de coque iluminavam ao fundo o céu trágico. O galope pesado dos policiais se aproximava. Quando apareceram, eram uma massa sombria, não se podia distingui-los. E atrás deles, confiado à sua guarda, o carro do pasteleiro de Marchiennes chegava, enfim. Dele saltou um entregador que se pós tranqüilamente a descarregar a massa para os pastéis.

 

Transcorreu a primeira quinzena de fevereiro, um frio inclemente prolongava o duro inverno, sem piedade dos miseráveis. Outra vez as autoridades tinham percorrido as estradas: o prefeito de Lille, um procurador e um general. E os policiais não foram suficientes, a tropa viera ocupar Montsou, um regimento inteiro, com seus homens acampando de Beaugnies a Marchiennes. Destacamentos armados guardavam os poços, havia soldados diante de cada máquina. O palacete do diretor, os depósitos da companhia, até mesmo as casas de certos burgueses estavam cercadas pelas baionetas. Ao longo das ruas só se ouvia agora o lento desfilar das patrulhas. No aterro da Voreux, uma sentinela permanente dava guarda, vigiando a planície rasa, sob o látego gelado do vento que soprava lá em cima. E de duas em duas horas, como em país inimigo, ressoavam os gritos da sentinela:

— Quem vem lá?... Passe a senha!

O trabalho ainda não recomeçara em lugar nenhum. Pelo contrário, a greve agravara-se: a Crèvecoeur, a Mirou, a Madeleine tinham suspendido a extração, como a Voreux; a Feufry-Cantel e a Victoire sofriam com uma diminuição diária do seu pessoal; na Saint-Thomas, até então indene, os trabalhadores estavam faltando. A greve transformara-se numa obstinação muda diante daquela exibição de força, que exasperava o orgulho dos mineiros. Os conjuntos habitacionais pareciam desertos no meio das plantações de beterraba. Não se avistava um único operário; se por acaso um homem surgia, estava isolado, olhava de soslaio, baixando a cabeça diante dos calças-vermelhas. E sob essa grande paz pressaga, naquela teimosia passiva de encontro aos fuzis, havia uma resignação mentirosa, a obediência forçada e passiva das feras enjauladas, que mantêm os olhos fixos no domador, prontas para lhe saltarem na nuca no momento em que ele dê as costas. A companhia, que tal paralisação do trabalho estava arruinando, andava dizendo que ia contratar os mineiros do Borinage, na fronteira belga, mas não se atrevia. De maneira que a batalha estava nesse pé, entre os operários que se encerravam em casa e as minas vazias, guardadas pela tropa.

A partir do dia seguinte à jornada terrível, produzira-se essa paz, de uma só vez, acobertando tal pânico, que se falava o menos possível sobre os estragos e as atrocidades. O inquérito aberto estabelecia que Maigrat morrera com a queda e a horrenda mutilação do cadáver permanecia inexplicada, já envolta em lenda. Por seu lado, a companhia não confessava os prejuízos sofridos, e os Grégoire não tinham a intenção de comprometer sua filha no escândalo de um processo, onde ela teria de testemunhar. Mas assim mesmo algumas prisões tinham sido efetuadas, de gente com papel insignificante nos acontecimentos, como sempre, de imbecis e pobres-diabos que não sabiam de nada. Por engano, Pierron tinha ido algemado até Marchiennes, fato de que os outros ainda riam. Rasseneur também quase foi parar lá, entre dois policiais. Na direção contentavam-se em preparar as listas de demissão, devolviam as carteiras de trabalho em massa: Maheu recebera a sua, Levaque também, assim como mais trinta e quatro dos seus companheiros, só do conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante. E toda a severidade recaía sobre Etienne, desaparecido desde a noite da revolta, e que estava sendo procurado, sem que pudessem encontrar traço seu. Chaval, no seu ódio, denunciara-o, recusando-se a nomear os outros, devido às súplicas de Catherine, que queria salvar seus pais. Os dias passavam, todos sentiam que nada acabara, esperava-se o desenlace com o peito oprimido por uma angústia.

A partir daí, os burgueses de Montsou acordavam aos sobressaltos todas as noites, ouvindo toques de alerta imaginários, as narinas invadidas pelo mau cheiro da pólvora. Mas o que acabou de transtorná-los foi um sermão do novo pároco, o Padre Ranvier, esse sacerdote magro, de olhos ardentes como brasas, que sucedia o Padre Joire. Como se estava longe da prudência sorridente deste, da sua única preocupação de homem gordo e bondoso, que era viver em paz com todo o mundo! Pois não é que o Padre Ranvier tivera o desplante de tomar a defesa dos detestáveis bandidos que estavam desonrando a região? Encontrava desculpas para as atrocidades dos grevistas e atacava violentamente a burguesia, sobre a qual lançava das as responsabilidades. Era a burguesia que, espoliando a Igreja das suas liberdades antigas em proveito próprio, transformara este do num lugar maldito de injustiça e sofrimentos; era ela, a burguesia, que prolongava as disputas, que empurrava a sociedade para uma catástrofe horrível com seu ateísmo, sua recusa em voltar à crença, às tradições fraternais dos primeiros cristãos. Ousou mesmo ameaçar os ricos, advertindo-os de que, se continuassem teimando em não escutar a voz de Deus, certamente ele se poria ao lado dos pobres, tiraria as fortunas dos ricos incrédulos e as distribuiria entre os humildes desta terra, para sua maior glória.

As beatas tremiam, o notário declarou que aquilo era o pior socialismo, todos viam o padre como cabeça de um bando, brandindo uma cruz, demolindo a sociedade burguesa de 89 a grandes golpes.

Quando o Sr. Hennebeau foi cientificado, contentou-se em dizer, dando de ombros:

— Se nos incomodar demasiado, o bispo nos livrará dele.

E, enquanto o pânico soprava de uma ponta a outra da planície, Etienne morava nas entranhas da terra, no fundo de Réquillart, na toca de Jeanlin. Era ali que ele se escondia, ninguém o julgava tão perto. A tranqüila audácia daquele refúgio, na própria mina, na via abandonada do velho poço, tinha feito malograr as buscas. Em cima, as ameixeiras silvestres e os espinheiros, crescidos por entre os caibros caídos da torre do sino de rebate, tapavam o buraco; ninguém se arriscava a entrar por ali, para tanto era preciso conhecer muito bem a manobra, pendurar-se nas raízes da sorveira, deixar-se cair sem receio, para atingir os degraus ainda firmes. Havia outros obstáculos que o protegiam: o calor sufocante do fosso, cento e vinte metros de descida perigosa, depois o penoso rastejar por um quarto de légua, entre os muros estreitos da galeria, antes de chegar à infame caverna, cheia de rapinas. Ali ele vivia na maior abundância, encontrara genebra, o resto do bacalhau seco, provisões de toda a espécie. A grande cama de palha era excelente, não havia corrente de ar naquela temperatura igual, de uma tepidez de banho. Apenas a luz ameaçava faltar. Jeanlin, que se fizera seu provedor, com uma prudência e uma discrição de selvagem, encantado de enganar os policiais, chegava a trazer-lhe até pomada, mas não conseguia pôr a mão num pacote de velas.

A partir do quinto dia, Etienne só acendeu a luz para comer. Não conseguia engolir no escuro. Essa noite interminável, total, sempre da mesma escuridão, era o seu grande sofrimento. Não adiantava dormir em segurança, estar aquecido, ter o que comer sentia como nunca sentira aquela noite pesando sobre sua cabeça. Tinha a sensação de que ela estava esmagando seus pensamentos! E agora, ainda por cima, vivia de roubos! Apesar de suas teorias comunistas, os velhos escrúpulos de educação acordavam; então contentava-se com pão seco, diminuía sua ração. Mas que fazer? Tinha de continuar vivendo, sua tarefa ainda não estava concluída Outro remorso o afligia ao lembrar-se daquela bebedeira selvagem da genebra emborcada a sangue-frio, com o estômago vazio, e que o lançara contra Chaval, de faca em punho. Isso revolvia nele todo um desconhecimento apavorante, o mal hereditário, a longa hereditariedade da embriaguez, não bebendo sequer uma gota de álcool sem cair no furor homicida. Terminaria como assassino? Quando se vira abrigado, naquela sossegada profundidade da terra, saciado de violência, dormira dois dias consecutivos com um sono de animal empanturrado, embrutecido. E a repugnância persistia, sentia-se moído, com a boca amarga, a cabeça doente, como numa interminável ressaca. Transcorreu uma semana; os Maheu, avisados, não puderam enviar uma vela; teve de renunciar à claridade, mesmo para comer.

Agora, horas a fio, Etienne permanecia deitado na sua palha. Idéias obscuras, que não julgava ter, atormentavam-no. Era uma sensação de superioridade que o colocava acima dos seus camaradas, uma exaltação da sua pessoa, à medida que se ia instruindo. Nunca refletira tanto, perguntava-se a causa daquele fastio no dia seguinte ao da furiosa sarabanda nas minas. Mas não ousava responder, repugnavam-lhe as coisas de que se lembrava: a baixeza das cobiças, a grosseria dos instintos, o fedor de toda aquela miséria sacudida aos quatro ventos. Apesar do tormento das trevas, chegava a temer a hora em que teria de voltar ao conjunto habitacional. Que náusea, todos aqueles miseráveis amontoados, comendo no cocho comum! Nenhum com quem se pudesse falar seriamente sobre política, uma existência de gado, sempre o mesmo ar empestado do cheiro de cebola em que se sufocava! Queria descortinar-lhes um horizonte mais vasto, elevá-los ao bem-estar e às boas maneiras da burguesia, fazer deles os senhores... Mas que caminho a percorrer! Já não se sentia com coragem para atingir a vitória naquele desterro da fome. Lentamente, a sua vaidade de ser o chefe, sua preocupação constante de pensar por eles o distanciavam, insuflando-lhe a alma de um desses burgueses que execrava.

Uma noite Jeanlin trouxe um coto de vela, roubado da lanterna de um carroceiro, e isso foi um grande alívio para Etienne. Quando trevas começavam a embrutecê-lo, pesando-lhe sobre a cabeça a ponto de sentir que ia enlouquecer, acendia a luz por um instante. Mas assim que expulsava o pesadelo, apagava a vela, avaro daquela claridade tão necessária à sua vida como o pão. O silêncio zumbia nos seus ouvidos, ouvia apenas a fuga de algum bando de ratos, os estalidos do madeirame velho, o levíssimo ruído de uma aranha fiando sua teia. E, com os olhos abertos naquele vazio absoluto, porém tépido. voltava à sua idéia fixa, ao que estariam fazendo os companheiros lá em cima. Uma defecção sua ter-lhe-ia parecido a última das covardias. Se se escondia assim era para permanecer livre, para aconselhar e agir.

Suas longas meditações tinham delineado sua ambição: enquanto o melhor não acontecia, quisera ser Pluchart, largar o trabalho, viver unicamente para a política, mas

sozinho, num quarto limpo, sob pretexto de que o trabalho intelectual absorve a vida inteira e exige muita calma.

No começo da segunda semana, como o menino lhe dissesse que os policiais acreditavam que ele tivesse atravessado a fronteira para a Bélgica, Etienne ousou sair da sua toca, assim que a noite desceu. Desejava estudar a situação, ver se deveriam continuar obstinando-se. Na sua opinião, a partida estava comprometida; antes da greve, duvidava do resultado; apenas cedera aos fatos; agora, após a embriaguez da rebelião, voltava à sua primeira dúvida, desistindo de fazer ceder a companhia. Mas ainda não queria confessá-lo a si próprio, a angústia o torturava quando imaginava os horrores da derrota, toda a pesada responsabilidade de sofrimento que cairia sobre ele. O fim da greve não seria o fim do seu papel, sua ambição derrubada, sua existência caindo outra vez no embrutecimento da mina e no asco do conjunto habitacional mineiro? E, honestamente, sem raciocínios baixos e mentirosos, esforçava-se em readquirir a fé, em convencer-se de que a resistência ainda era possível, que o capital ia destruir-se a si mesmo ante o suicídio heróico do trabalho.

Havia, com efeito, em toda a região, um longo fragor de ruínas. A noite, enquanto vagava pela planície escura como um lobo fora do esconderijo, parecia estar ouvindo o estrondo das falências, de uma ponta à outra do campo. À beira dos caminhos só encontrava fábricas mortas, com seus edifícios apodrecendo sob um céu baço. 

As que mais tinham sofrido eram as usinas de refinação de açúcar A Hoton e a Fauvelle, após terem reduzido o número de seus operários, haviam fechado uma atrás da outra. Na fábrica de moagem Dutilleul, a mó que ainda trabalhava tinha parado no segundo sábado do mês, e a cordoaria Bleuze, que fabricava cabos de minas fechara definitivamente suas portas por falta de trabalho. Para o lado de Marchiennes a situação agravava-se diariamente: todos os fogos apagados na vidraria Gagebois, demissões contínuas nas oficinas de construção Sonneville, dos três altos-fornos das Forjas só um aceso, nem mais uma bateria das fornalhas de coque ardendo no horizonte. A greve dos mineiros de Montsou, nascida da crise industrial que piorava havia dois anos, aumentara-a, precipitando a catástrofe. Às causas da crise, como a suspensão das encomendas da América, o estrangulamento dos capitais imobilizados num excesso de produção, juntava-se agora a falta imprevista de hulha para as poucas caldeiras que ainda permaneciam acesas — era essa a agonia suprema, a falta do pão das máquinas que os poços não forneciam mais. Assustada com o mal-estar geral, a companhia, diminuindo sua extração e esfomeando seus mineiros, em fins de dezembro encontrara-se fatalmente sem um

pedaço de carvão no pátio das suas minas. Eram os elos de uma cadeia, o flagelo soprava de longe, uma queda provocava a outra, as indústrias iam-se esmagando umas às outras, numa série tão rápida de catástrofes, que as conseqüências repercutiam até nas cidades vizinhas — Lille, Douai, Valenciennes —, onde certos banqueiros em fuga arruinaram famílias inteiras.

Muitas vezes, na curva de uma estrada, Etienne parava na noite gelada para ouvir choverem os escombros. Respirava profundamente as trevas, deixava-se possuir pela alegria do nada, pela esperança de que o dia raiaria sobre a exterminação do velho mundo, com todas as fortunas arrasadas, o nível igualitário passado como uma foice, rente ao chão. Mas o que mais interessava nesse massacre eram as minas da companhia. Punha-se de novo a caminho, cegado pelas sombras, visitando a todas elas, feliz ao constatar algum estrago recente. Os desmoronamentos continuavam a produzir-se, e cada vez mais graves, à medida que a não-restauração das vias se prolongava. Por cima da galeria norte da Mirou, a aluição do solo tomava tais proporções, que a estrada de Joiselle afundara num percurso de cem metros, como se tivesse havido um tremor de terra. E a companhia, sem regatear, pagava aos proprietários seus campos desaparecidos, tentando aplacar os rumores que corriam a respeito de tais acidentes. Crèvecoeur e Madeleine, de rocha muito desmoronadiça, estavam cada vez mais entulhadas. Falava-se que dois contramestres tinham ficado soterrados na Victoire; uma enchente inundara a Feutry Cantel; um quilômetro de galeria na Saint-Thomas teria de murado, porque o escoramento, por falta de reparação, estava rachando por todos os lados. Dessa forma, a todo momento havia enormes despesas, brechas abertas nos dividendos dos acionistas, ma rápida destruição das minas, que, com o tempo, terminaria comendo os famosos dinheiros de Montsou, centuplicados em um século.

Diante desses golpes repetidos, a esperança renascia em Etienne, acabava acreditando que com um terceiro mês de resistência daria cabo do monstro, do animal cansado e farto, agachado como um ídolo lá longe, no seu ignoto tabernáculo. Sabia que, com a revolta de Montsou, viva emoção se apoderara dos jornais de Paris, uma violenta polêmica entre a imprensa oficiosa e a imprensa da oposição, reportagens aterradoras que eram exploradas sobretudo contra a Internacional, a quem o império temia, depois de a ter encorajado. E, como a administração não podia continuar fazendo ouvidos de mercador, dois dos administradores tinham-se dignado vir para realizar um inquérito, mas de má vontade, sem parecerem inquietos com o desfecho, tão desinteressados que três dias depois já estavam partindo, declarando que tudo ia muito bem. Contudo, afirmavam-lhe, por outro lado, que esses senhores, durante sua permanência em Montsou, mantiveram-se em sessão permanente, desenvolvendo uma atividade febril, mergulhados em discussões das quais as pessoas em torno deles não quiseram falar. E Etienne acusava-os de simularem calma, chegava a chamar sua partida de fuga precipitada, certo agora do triunfo, já que esses homens terríveis tinham abandonado tudo.

Mas, na noite seguinte, ficou novamente desesperado. A companhia era muito poderosa para ser abatida com tal facilidade, podia perder milhões, mais tarde os reaveria por meio dos operários, cortando-lhes o pão. Nessa noite, tendo ido até a Jean-Bart, deu-se conta da verdade, quando um vigia lhe contou que se falava em ceder Vandame a Montsou. Ao que se dizia, lavrava a miséria mais terrível na casa de Deneulin, a miséria dos ricos, o pai doente por não saber o que fazer, envelhecido com a preocupação do dinheiro, as filhas lutando com os fornecedores, tentando salvar suas camisolas.

Nos conjuntos habitacionais famintos sofria-se menos do que nessa casa burguesa, onde se escondiam para beber água. O trabalho ainda estava suspenso na Jean-Bart, e fora preciso substituir a bomba da Gaston-Marie, isso sem falar no começo de inundação apesar do conserto imediato, exigindo grandes gastos. Deneulin apresentara enfim o pedido de empréstimo de cem mil francos aos Grégoire, cuja recusa, já esperada, acabou de abatê-lo. Os Grégoire diziam que, se recusavam, faziam-no por amizade, para o pouparem de uma luta inglória, e, ao mesmo tempo, aconselhavam-no a vender a concessão. Mas Deneulin, irredutível, continuava a dizer não. Enfurecia-o ter de pagar pela greve, preferia morrer primeiro com todo o sangue na cabeça, de apoplexia. Que mais podia fazer? Já conhecia as ofertas. Chicaneavam com ele, depreciavam aquela presa magnífica, o poço reparado, todo reequipado, onde só a falta de dinheiro paralisava a exploração. Dar-se-ia por satisfeito se pudesse conseguir o suficiente para pagar os credores. Durante dois dias batera-se com os administradores acampados em Montsou, furibundo com o jeito tranqüilo com que eles exploravam suas dificuldades, gritando-lhes "nunca" com sua voz poderosa. E as negociações ficaram nisso, os administradores voltaram a Paris para esperar pacientemente seu último estertor. Etienne farejou essa compensação de desastres, cheio de desânimo diante do poderio invencível dos grandes capitais, tão fortes na batalha, que engordavam com a derrota comendo os cadáveres dos pequenos, caídos ao seu lado.

No dia seguinte, felizmente, Jeanlin lhe trouxe uma boa notícia. Na Voreux, o revestimento do poço ameaçava ruir, a água infiltrava-se por todas as juntas, tiveram de pôr às pressas uma turma de carpinteiros para fazer a reparação.

Até ali, Etienne tinha evitado a Voreux, temendo a eterna figura negra da sentinela, postada no aterro por cima da planície. Não era possível evitá-la, via tudo, era como a bandeira de um regimento drapejando no ar. Lá pelas três horas da madrugada, o céu tornou-se sombrio e ele foi à mina, onde alguns camaradas lhe explicaram o mau estado do revestimento; eram de opinião que teria de ser todo refeito, o que suspenderia a extração por três meses. Andou por ali longamente, escutando os martelos dos carpinteiros batendo no poço. Alegrava-lhe o coração aquela nova ferida que era preciso tratar.

Ao alvorecer, quando voltava, encontrou a sentinela sobre o aterro. Desta vez, certamente, ela o veria. Foi-se embora pensando nesses soldados tirados de entre o povo e que eram armados contra o povo. Como o triunfo da revolução seria fácil, se o Exército, de repente se declarasse a seu favor! Bastava que o operário e o e o camponês nas casernas se lembrassem de suas origens. Esse era o perigo supremo, o grande pavor que fazia os burgueses baterem o queixo quando pensavam numa defecção possível das tropas. Em duas horas seriam varridos, exterminados, com os prazeres e as abominações de suas vidas de iniqüidades. Já se dizia que regimentos inteiros estavam contaminados pelo socialismo. Seria verdade? A justiça iria triunfar graças aos cartuchos distribuídos pela burguesia? E passando para outra esperança, o rapaz começou a sonhar que as guarnições das minas também entravam em greve, fuzilando a companhia inteira e entregando enfim a mina aos mineiros.

Notou então que subia o aterro, levado por aquelas reflexões. Por que não conversar um pouco com o soldado? Ao menos ficaria sabendo o que pensava. Com jeito despreocupado continuou aproximando-se, como se estivesse colhendo aparas de madeira abandonadas ali. A sentinela permanecia imóvel.

— Que tempo dos diabos, hem, companheiro? — disse enfim Etienne. — Acho que vamos ter neve.

Era um soldadinho muito louro, de rosto meigo e pálido, cheio de sardas. Parecia enleado como um recruta com aquele capote.

— É, eu também acho — murmurou ele.

E com os seus olhos azuis esquadrinhou longamente o céu lívido, o amanhecer fumacento, cuja fuligem pesava como chumbo sobre a planície ao longe.

— Que idéia estúpida de porem vocês aqui, gelando até os ossos... — continuou Etienne. — Como se os cossacos estivessem por atacar... Além do mais, venta muito neste lugar.

O soldadinho tiritava sem se queixar. Havia ali uma cabana de pedra solta, onde o velho Boa-Morte se abrigava nas noites de tempestade, mas, como a ordem era para não abandonar o topo do aterro, o soldado não se movia, com as mãos tão enregeladas que nem sentia mais a arma. Pertencia à guarnição de sessenta homens que guardava a Voreux; e, como aquele posto cruel já lhe tocara diversas vezes, estivera mesmo a ponto de lá ficar, com os pés encarangados. Isso fazia parte da profissão, uma obediência passiva tornava-o ainda mais entorpecido, respondia às perguntas com palavras tartamudeadas de criança que dormita.

Durante um quarto de hora, Etienne tentou inutilmente falar de política. Dizia sim, não, sem parecer estar compreende-lo, seus companheiros falavam que o capitão era republicano; quanto a' ele, não tinha opinião, era-lhe indiferente. Se o mandassem atirar , ele atiraria, para não ser punido.

O operário escutava, invadido do ódio popular contra o Exército contra esses irmãos a quem mudavam o coração, enfiando-lhe umas calças vermelhas.

— Como é o seu nome?

— Jules.

— E é de que região?

— De Plogoff, longe.

Estendeu o braço apontando ao acaso. Era na Bretanha, só isso sabia. Seu rostinho pálido animou-se, pôs-se a rir, entusiasmado.

— Tenho mãe e irmã. Estão-me esperando, claro. Ah, mas ainda falta um bocado! Quando parti, elas me acompanharam até Pont-D'Abbé. Os Lepalmec tinham-nos emprestado o cavalo, ele quase quebrou as patas na descida do Audierne. O primo Charles nos estava esperando com uma panelada de salsichas, mas as mulheres choravam tanto que a gente nem podia comer... Ah! meu Deus! como estou longe de casa...

Seus olhos encheram-se de lágrimas sem que deixasse de rir. A charneca deserta de Plogoff, a ponta selvagem de Raz, assolada pelas tempestades, apareciam-lhe como uma miragem brilhando ao sol, na estação cor-de-rosa das urzes.

— Será que — perguntou ele —, se eu não tiver punições, você acha que eles me darão uma licença de um mês, daqui a dois anos?

Etienne então começou a falar da Provença, de onde saíra em criança. Amanhecia, flocos de neve voltejavam no céu plúmbeo. Começou a ficar nervoso ao vislumbrar Jeanlin que se esgueirava por entre as moitas, estupefato de o ver ali. O

menino chamava-o com acenos. De que servia esse sonho de confraternizar com os soldados? Seriam ainda necessários anos e anos, sua tentativa inútil deixou-o abatido, como se estivesse contando com o êxito. Repentinamente compreendeu os gestos de Jeanlin: vinham render a sentinela. Afastou-se correndo, foi enfiar-se em Réquillart, o coração mais uma vez lacerado pela certeza da derrota, enquanto o garoto corria ao seu lado, acusando o canalha do soldado de ter chamado a guarda para atirar neles.        

No topo do aterro, Jules permanecera imóvel, o olhar perdido na neve que caía . O sargento aproximou-se com seus homens e os gritos regulamentares foram trocados:

— Quem vem lá? Passe a senha!

E ouviram-se os passos pesados partindo de novo, soando como terra conquistada. Apesar de já ser dia, ninguém se mexia nos conjuntos habitacionais; os mineiros, calados, enfureciam-se sob o tacão militar.

 

Durante dois dias a neve caíra; naquela manhã ela parara de cair, mas um lençol branco cobria tudo. Essa região escura, de estradas negras, com paredes e árvores cobertas de poeira de hulha, estava toda branca, de uma brancura única, que se estendia ao infinito. O conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante jazia sob a neve, como que desaparecido. Nem a mais leve fumaça escapava das chaminés. As casas sem fogo, tão frias como as pedras dos caminhos, não derretiam a grossa camada de neve sobre as telhas. O conjunto habitacional não era mais que um renque de lápides brancas, uma visão de vila morta, envolta na sua mortalha. Ao longo das ruas, só as patrulhas passando deixavam a marca lodosa dos seus cascos.

Nos Maheu, a última pazada de lascas de carvão ardera na véspera; e procurar mais no aterro, com aquele tempo terrível, quando os próprios pardais não encontravam um talo de erva, era impossível. Alzire, por ter teimado em procurar na neve, estava morrendo. A mãe tivera de a enrolar num trapo de coberta, enquanto esperava o Dr.

Vanderhaghen, à casa de quem já fora duas vezes sem o encontrar. A criada, no entanto, prometera que ele passaria pelo conjunto habitacional antes do anoitecer, e a mulher espiava agora pela janela, enquanto a pequena enferma, que tinha querido ficar embaixo, tiritava sobre uma cadeira, com a ilusão de que ali estava mais quente, perto do fogão apagado. O velho Boa-Morte, em frente, outra vez com as pernas endurecidas, parecia dormir. Lénore e Henri ainda não tinham voltado, andavam percorrendo as estradas em companhia de Jeanlin, pedindo esmolas. Pela sala nua, só Maheu caminhava pesadamente, tropeçando continuamente na parede, com o ar imbecilizado de um animal que já não vê mais sua jaula. O querosene também acabara, mas o reflexo da neve lá fora era tão branco, que iluminava vagamente a peça, apesar de já ser noite.

Houve um barulho de tamancos, e a mulher de Levaque empurrou a porta como um furacão, fora de si, gritando do portal para a vizinha:

— Então tu andaste dizendo que eu forçava meu inquilino pagar-me vinte soldos cada vez que ele dormia comigo?!

A outra deu de ombros.

— Não chateies! Eu não disse nada... Mas quem te contou isso?

— Disseram-me que tu tinhas dito, chega! E disseste também que escutavas, quando fazíamos a coisa, através das paredes, e que a sujeira era enorme na minha casa porque eu estava sempre de pernas abertas... Ainda tens coragem de negar? Fala!

Brigas como essa eram diárias, por causa da língua das mulheres; sobretudo entre as famílias que viviam em paredes-meias, as desavenças e reconciliações não duravam um dia. Mas nunca antes maldade tão desabrida os atirara uns contra os outros. Desde a greve, a fome exasperava os rancores, todos tinham necessidade de brigar, uma explicação entre duas mulheres terminava sempre com uma luta de morte entre os dois maridos.

Justamente nesse momento chegou Levaque, arrastando Bouteloup.

— Aqui está o sujeito, que ele diga se já pagou vinte soldos à minha mulher para dormir com ela.

O inquilino, que procurava esconder sua candura assustada com grandes barbas, balbuciou protestando:

— Oh, não! Nunca, nunca paguei nada!

Subitamente Levaque tornou-se ameaçador, com o punho no rosto de Maheu.

— Isso agora não passa, ouviste? Quem tem uma mulher assim desanca-a de pancadas... Tu acreditas no que ela disse?

— Mas com mil raios! — exclamou Maheu, furioso por ter sido arrancado do seu abatimento. — Vocês ainda encontram tempo para fazer intrigas? Será que a gente já não tem miséria que chegue? Deixa-me em paz ou eu te acachapo! Agora quero saber quem foi que disse que minha mulher falou isso!

— Quem?... Foi a mulher do Pierron.

A mulher de Maheu deu uma gargalhada sarcástica, e, voltando-se para a vizinha, disse:

— Ah, então foi ela! Pois bem, agora vou dizer-te o que ela me disse. Ouve bem! Ela me disse que tu dormias com teus dois homens, um por cima e outro por baixo!

A partir daí ninguém mais se entendeu. Todos estavam furiosos; os Levaque respondiam aos Maheu que a mulher de Pierron tinha dito poucas e boas a respeito deles: que tinham vendido Catherine e que estavam todos podres, até as crianças, contaminados por uma sujeira que Etienne apanhara no Volcan. 

— Ela disse isso? ela disse isso? — berrou Maheu. — Pois tudo bem, vou até lá, e, se repetir o que disse, rebento-lhe a cara.

Lançou-se para a rua, os Levaque o seguiram para assistir à briga, enquanto Bouteloup, que tinha horror de disputas, voltava furtivamente para casa. Excitada pelo bate-boca, a mulher de Maheu também ia saindo quando foi retida por um gemido de Alzire. Cruzou as pontas da coberta sobre o corpo trêmulo da menina e voltou para a janela, os olhos vagando. E esse médico que não vinha!

À porta dos Pierron, Maheu e os Levaque encontraram Lydie chafurdando na neve. A casa estava fechada, um fio de luz passava pela fenda da janela e a criança, a princípio, respondeu constrangida às perguntas: não, seu pai não estava, tinha ido ao lavadouro encontrar a Queimada, para trazer a trouxa de roupa. Depois ficou confusa, não quis dizer o que a mãe fazia naquele momento. Finalmente soltou a língua, com um riso sorrateiro de rancor: sua mãe a pusera para fora porque o Sr. Dansaert estava lá dentro e ela não os deixava conversar. O capataz passara toda a manhã no conjunto habitacional, com dois policiais, tentando recrutar operários, forçando os fracos, anunciando aos quatro ventos que, se não voltassem até segunda-feira ao trabalho, a companhia ia contratar mineiros belgas. E ao cair da tarde, tendo encontrado a mulher de Pierron sozinha, mandou embora os policiais. Depois instalara-se ali, bebendo genebra diante do fogo.

— Psiu! Fiquem quietos, vamos espiá-los — murmurou Levaque com um riso impudente. — Em seguida tiraremos satisfações. Vai-te embora, cadelinha!

Lydie recuou alguns passos enquanto ele punha um olho na fresta da janela. Em seguida começou a abafar risinhos, suas costas se arqueavam e fremiam. Por sua vez a mulher olhou também, mas disse, como se estivesse para vomitar, que sentia nojo. Maheu, que a empurrara, querendo ver também, declarou que já vira o bastante para poder desforrar-se. E os três recomeçaram, em fila, a olhar, como no teatro. A sala, reluzindo de tão limpa, era alegre graças ao belo fogo aceso na lareira; havia doces sobre a mesa, uma garrafa e dois copos; enfim, uma verdadeira farra. Era tanta coisa o que os dois homens viam que acabaram ficando exasperados com o que noutras circunstâncias os teria feito rir por seis meses.

Que ela levantasse as saias e se empanturrasse de sexo até não poder mais, ainda tinha graça. Mas, diacho! não era mesmo urna sem-vergonhice fazer isso diante de um fogo tão agradável e à base dos biscoitos, quando os demais companheiros não tinham uma migalha de pão ou uma lasca de carvão?

— Olha o papai! — gritou Lydie escapando.

Pierron voltava tranqüilamente do lavadouro, a trouxa de roupa num ombro. Maheu foi logo interpelando-o:

— Escuta aqui, disseram-me que tua mulher tinha falado que eu vendera Catherine e que lá em casa estávamos todos podres... E na tua, quanto paga à tua mulher o homem que neste momento está fazendo uso dela?

Atordoado, Pierron não compreendia, quando a mulher, assustada com o vozerio, perdeu a cabeça a ponto de entreabrir a porta, para ver o que se passava. Estava toda afogueada, com o corpete aberto e a saia ainda levantada, presa à cintura, enquanto Dansaert, ao fundo, enfiava as calças, em pânico. O capataz escapou, desapareceu, temendo que uma história dessa chegasse aos ouvidos do diretor. Armou-se então um escândalo terrível, com gargalhadas, vaias e injúrias.

— Tu que sempre andas dizendo que as outras são umas imundas — berrava a mulher de Levaque — não admira que sejas limpa, tens os chefes para te fazerem a limpeza.

— Ah! assenta-lhe como uma luva falar mal dos outros! — continuou Levaque. — Pois não é que essa cadela disse que a minha mulher dormia comigo e o inquilino, um por cima e o outro por baixo?! Tens coragem de negar que disseste isso?

A mulher de Pierron, porém, já dona de si, enfrentava os palavrões com um ar de desprezo, na certeza de ser a mais bonita e a mais rica.

— O que disse está dito, e deixem-me em paz! O que é que vocês têm que ver com o que eu faço? Bando de invejosos, que nos odeiam só porque depositamos dinheiro na caixa econômica! Podem ir falar à vontade, meu marido sabe muito bem por que o Sr. Dansaert estava aqui em casa.

E realmente Pierron se excitava, defendia a mulher. A briga tomou outros caminhos, chamaram-no de vendido, de espião, de lambe-botas da companhia; acusaram-no de fechar-se em casa para encher a barriga de guloseimas com que os chefes lhe pagavam as denúncias. Ele retrucava, dizia que Maheu enfiara um papel com ameaças por baixo de sua porta, onde estavam desenhadas duas tíbias em cruz, com um punhal por cima. E tudo aquilo terminou, forçosamente, por uma pancadaria entre os homens, como todas as intrigas de mulheres terminavam, visto que a fome punha fora de si mesmo os mais calmos. Maheu e Levaque atiraram-se sobre Pierron, massacrando-o; foi preciso separá-los. Quando a Queimada chegou do lavadouro, o sangue corria aos borbotões do nariz do genro. posta a par do que se passara, limitou-se a dizer:

— Esse porco é a minha desonra.

A rua ficou novamente deserta, nenhuma sombra manchava a brancura da neve. E o conjunto habitacional, imerso novamente na sua imobilidade de morte, estertorava de fome sob o frio intenso.

— E o médico? — perguntou Maheu fechando a porta.

— Não veio — respondeu a mulher, sempre em pé, à janela.

— As crianças chegaram?

— Ainda não.

Maheu voltou ao seu caminhar pesado, de uma parede à outra, com o seu ar de boi encurralado. Entorpecido na cadeira, o velho Boa-Morte nem sequer erguera a cabeça. Alzire também permanecia silenciosa, procurava não tremer, para não os preocupar; mas, apesar de sua coragem no sofrimento, por momentos tremia tanto, que se ouviam por baixo da coberta os calafrios que percorriam seu corpinho esquelético de menina enferma, enquanto, de olhos arregalados, olhava para o teto, observando o pálido reflexo dos jardins todos brancos, que iluminavam a peça com uma claridade de luar.

Entravam agora na última agonia, com a casa sem mais nada; era o desenlace. Atrás da lã, tinha ido para o brechó a fazenda dos colchões; depois foram os lençóis, a roupa branca, tudo aquilo que se podia vender. Uma tarde, venderam por dois soldos o lenço do avô. As lágrimas corriam a cada objeto doméstico de que tinham de se separar; e a mãe ainda se lamentava por ter levado um dia, enrolada na saia, a caixa de cartão

cor-de-rosa, antigo presente do seu homem, como se tivesse sido um filho que abandonara a uma porta. Estavam nus, não tinham mais nada a vender a não ser a pele, tão carcomida, tão estragada, que ninguém daria um centavo por ela. Por isso nem se davam o trabalho de procurar, sabiam que não havia mais nada, que era o fim de tudo, que não deviam esperar nem uma vela, nem um pedaço de carvão, nem uma batata. Aguardavam apenas a morte; a única pena que sentiam era pelas crianças, revoltava-os aquela crueldade inútil, preferiam ter estrangulado Alzire a vê-la doente por causa deles.

— Até que enfim, aí vem ele! — exclamou a mulher.

Uma forma negra passou diante da janela. A porta se abriu. Mas não era o Dr. Vanderhaghen... Reconheceram o novo pároco, o Padre Ranvier, que não parecia surpreendido de ter entrado naquela casa morta, sem luz, sem fogo, sem pão. Acabava de sair das três casas contíguas, andava de família em família, recrutando homens de boa vontade, como Dansaert com seus policiais. Foi logo explicando-se com sua voz febril de sectário:

— Por que não foram à missa no domingo, meus filhos? Estão errados, só a Igreja pode salvá-los... Vamos, prometam estar presentes no próximo domingo...

Maheu, após examiná-lo, pôs-se outra vez a caminhar pesadamente, sem dizer palavra. Foi a mulher quem respondeu:

— À missa, senhor pároco? Para quê? Será que Deus não se esqueceu da gente? Veja a minha menina, por exemplo, ardendo em febre... Que poderia ela ter feito para ser castigada dessa maneira? Não chega a miséria que já temos de suportar, ele a põe nesse estado, quando nem sequer posso dar uma xícara de chá quente.

O padre começou então a perorar. Analisou a greve, a miséria atroz, o rancor exasperado da fome, com o ardor de um missionário que catequiza selvagens, para maior glória da sua religião. Disse que a Igreja estava com os pobres, que um dia ela faria a justiça triunfar, fulminando com a cólera de Deus as iniqüidades dos ricos. E esse dia estava próximo, já que os ricos tinham tomado o lugar de Deus e governavam sem ele, roubando impiamente o poder. Mas, se os operários queriam a partilha justa dos bens terrestres, deviam entregar-se sem demora nas mãos dos padres, da mesma maneira que, quando Jesus morreu, os pequenos e os humildes tinham-se agrupado em torno dos apóstolos. Que força imensa teria o papa, de que exército disporia o clero, quando comandasse a multidão inumerável dos trabalhadores! Em uma semana o mundo estaria purgado dos malvados, os patrões indignos seriam expulsos, enfim o verdadeiro reino de Deus triunfaria, cada um recompensado segundo seus méritos, a lei do trabalho regendo a felicidade universal.

Escutando-o, a mulher julgava ouvir Etienne durante os serões do outono, quando este lhes anunciava o fim dos seus males. A diferença era que ela nunca tivera confiança nas batinas.

— Tudo o que o senhor diz é muito bonito — disse ela. — Quer dizer que então já não se entende mais com os burgueses... Todos os outros párocos que tivemos costumavam jantar com o diretor, e ameaçavam-nos com o inferno assim que reclamávamos pão.

Ele recomeçou, falou do deplorável mal-entendido entre a Igreja e o povo. Com frases veladas atacou os padres das cidades, os bispos, o alto clero amante dos prazeres, cumulado de poder, pactuando com a burguesia liberal, na imbecilidade da sua cegueira, sem ver que era justamente essa burguesia que o espoliava do comando do mundo. A libertação viria dos padres de aldeia, que se levantariam para restabelecer o reino de Cristo, com a ajuda dos miseráveis. E ele já parecia estar à frente deles, empertigava sua estatura angulosa, como um chefe de guerrilhas, como um revolucionário do Evangelho, os olhos resplandecentes, iluminando a sala escura. A ardente prédica era toda feita de palavras místicas, aquela pobre família já não podia compreendê-lo.

— Chega de tanto falatório — grunhiu bruscamente Maheu. — Teria feito melhor trazendo-nos pão.

— Vão domingo à missa — exclamou o padre. — Deus cuidará do resto!

E partiu, entrou na casa dos Levaque para catequizá-los, voando tão alto no seu sonho do triunfo final da Igreja, desdenhando a tal ponto os fatos, que percorria os conjuntos habitacionais mineiros sem uma esmola, de mãos vazias através daquele exército morrendo de fome, verdadeiro pobre-diabo que considerava o sofrimento como o incentivo da salvação.

Maheu continuava a esquadrinhar a peça, seus passos faziam tremer o soalho. Houve um ruído de roldana enferrujada, o velho Boa-Morte escarrou no fogão apagado. Depois a cadência dos passos recomeçou. Alzire, prostrada pela febre, delirava baixinho, ria, julgando que fazia calor e brincava ao sol.

— Maldita sorte! — murmurou a mulher, após tocar-lhe as faces. — Agora está queimando de tanta febre. Já não espero mais esse canalha, decerto aqueles bandidos o proibiram de vir.

Referia-se ao médico e à companhia. Contudo, soltou uma exclamação de alegria ao ver a porta abrir-se de novo. Mas seus braços voltaram a cair, permaneceu muito tesa, com a fisionomia carrancuda.

— Boa noite — disse Etienne a meia voz, após ter fechado cuidadosamente a porta.

Costumava aparecer assim, com a noite fechada. Desde o segundo dia os Maheu foram informados do seu esconderijo, mas guardavam o segredo, ninguém nas redondezas sabia ao certo o que acontecera com o rapaz. Isso o envolvia em lenda. Continuavam acreditando nele, corriam rumores misteriosos: ia reaparecer à frente de um exército, com caixas cheias de ouro; era sempre a expectativa religiosa de um milagre, o ideal realizado, a entrada repentina na cidade da justiça que lhes fora prometida. Uns diziam tê-lo visto no fundo de uma caleça, em companhia de três cavalheiros, na estrada de Marchiennes; outros afirmavam que ainda por dois dias ficaria na Inglaterra. Com o correr do tempo, no entanto, começou a desconfiança, certos pulhas acusavam-no de esconder-se numa toca, onde a filha de Mouque o mantinha aquecido; essa ligação, conhecida de todos, prejudicara-o. Era, em meio à sua popularidade, uma lenta baixa de afeição, a surda maré dos convictos tomados de desespero, e cujo número, pouco a pouco, iria engrossando.

— Que tempo detestável! — acrescentou ele. — Como vai a coisa com vocês? Nada de novo? Sempre de mal a pior? Disseram-me que o Négrel tinha ido à Bélgica para contratar operários. Nem quero pensar... Se for verdade, estamos fritos!

Fora percorrido por um arrepio ao entrar na sala gelada e escura, seus olhos tiveram de se acostumar para poder ver os infelizes, que julgava estarem na parte mais escura da peça. Sentia a repugnância, o mal-estar do operário que não mais pertence à sua classe, refinado pelo estudo, insuflado pela ambição. Que miséria, quanto mau cheiro, e os corpos amontoados, e a imensa piedade que lhe dava um nó na garganta! O espetáculo dessa agonia desesperava-o a tal ponto que não encontrava palavras para aconselhá-los à submissão.

Mas Maheu colocara-se violentamente diante dele, gritando:

— Belgas? Que se atrevam, esses filhos da mãe! Que tragam belgas para trabalhar aqui, se querem que nós destruamos as minas.

Constrangido, Etienne explicou que não poderiam fazer nada, que os soldados que guardavam as minas protegeriam a descida dos operários belgas. Maheu cerrava os punhos, irritado sobretudo, como ele dizia, por ter as baionetas apontadas para as suas

costas. Então os mineiros já não eram mais donos de si? Eram tratados como forçados, obrigados a trabalhar, sob a mira de um fuzil? Gostava do seu poço, sentia falta dele, já fazia dois meses que não descia... Por isso, sentia o sangue fervendo quando pensava em tal desaforo trazerem estrangeiros para ali trabalhar. Mas, ao lembrar-se Mas, ao lembrar-se de que lhe tinham devolvido a carteira de trabalho, seu coração baqueou.

— Não sei por que me zango — murmurou ele. — Nada mais tenho que ver com isso... Quando me expulsarem daqui, posso ir morrer por aí.

— Deixa disso! — contestou Etienne. — Se quiseres, amanhã eles te recebem de volta. Operários como tu não são despedidos.

Interrompeu-se, espantado de ouvir Alzire, que ria suavemente, no delírio da febre. Até então só distinguira a sombra rija do velho Boa-Morte, e essa alegria da menina doente o apavorava. Era demais se até as crianças começassem a morrer! Com voz trêmula, decidiu-se:

— Isso não pode continuar, estamos perdidos... Temos que nos render...

A mulher de Maheu, até esse momento silenciosa e imóvel, explodiu de repente, gritando-lhe no rosto, tratando-o por tu e praguejando como um homem:

— O que é que tu estás dizendo? Tu dizes isso? Raios te partam! Ele quis apresentar suas razões, mas ela não o deixou falar.

— Não repitas isso, com todos os diabos! Ou eu, mesmo sendo mulher, te mando esta mão na cara... Então estamos aqui morrendo de fome há dois meses, vendi tudo o que tinha dentro de casa, meus filhos caíram doentes, para nada, para a injustiça recomeçar? Ah, só de pensar, o sangue me sobe à cabeça! Não e não! Prefiro queimar tudo, agora estou disposta até a matar em vez de me render.

Com um grande gesto ameaçador apontou para Maheu no escuro.

— Escuta bem, se o meu marido volta para a mina, serei a primeira a esperá-lo na estrada para cuspir-lhe na cara e chamá-lo de covarde.

Etienne não a via, mas sentiu o calor, um bafejo de animal latindo, e recuou assustado diante daquela fúria, que era obra sua. Achava-a tão mudada que não reconhecia mais nela a mulher prudente de outrora, que exprobrava a sua violência, dizendo que não se devia desejar a morte de ninguém, e agora não queria ouvir nada, fechada à razão, falando em matar gente. Já não era ele, mas ela que falava em política, que queria varrer de um golpe os burgueses, que pedia a república e a guilhotina, para limpar a terra dos ladrões ricos, engordados com o suor dos miseráveis.

— Era capaz de arrancar-lhes a pele com as minhas próprias mãos... Chega! é a nossa vez, como tu bem o dizias... Quando penso que o pai, o avô, o pai do avô e todos aqueles antes deles sofreram o que nós estamos sofrendo, e o que nossos filhos e os filhos dos nossos filhos sofrerão ainda, fico louca, tenho vontade de apanhar uma faca e sair por aí... No outro dia fomos muito comedidos. Devíamos ter arrasado Montsou, até o último tijolo. E, sabes? só lastimo uma coisa, não ter deixado o velho estrangular a moça da Piolaine... Eles não estão matando meus filhos de fome?

Suas palavras cortavam como machados em plena noite. O horizonte fechado não quisera abrir-se, o ideal impossível se transformava em veneno no fundo daquele cérebro enlouquecido pela dor.

— A senhora não me compreendeu — pôde enfim dizer Etienne, que batia em retirada. 

— Devia-se chegar a um acordo com a companhia; sei que os poços estão muito danificados e sem dúvida ela aceitaria uma conciliação.

— Não, isso nunca! — berrou ela.

Nesse momento Lénore e Henri entraram, de mãos abanando. Um homem lhes dera dois soldos, mas, como a irmã passava todo o tempo dando pontapés no irmão, o dinheiro se perdera na neve. Até Jeanlin os ajudara a procurar, mas inutilmente.

— E onde está Jeanlin?

— Foi embora, mamãe, disse que tinha o que fazer.

Etienne escutava, desesperado. Tempos atrás, a mulher ameaçava matá-los se os filhos ousassem estender a mão. Hoje era ela mesma quem os mandava para as estradas e falava até em irem todos, os dez mil mineiros de Montsou, com o bordão e a sacola dos mendigos velhos, invadindo a região apavorada.

A angústia foi ainda maior na peça escura com a volta dos pequenos famélicos, que queriam comer. Por que não lhes davam comida de uma vez? Começaram a chorar e a brigar entre si, acabaram caindo sobre os pés da irmã agonizante, que soltou um gemido. Fora de si, a mãe espancou-os, ao acaso das trevas. Depois, como eles gritassem ainda mais forte, pedindo pão, desfez-se em pranto, caiu sentada no chão, cingiu-os num só abraço que abarcou a pequena enferma. E assim, por muito tempo, correram-lhe as lágrimas, num relaxamento nervoso que a deixou mole, aniquilada, balbuciando vinte vezes a mesma frase, chamando a morte: "Meu Deus, leva-nos para junto de ti! Meu Deus, tem piedade, leva-nos uma vez, para terminar com isto!" O avô

conservou-se imóvel, uma velha árvore batida pelo vento e a chuva, enquanto o pai continuava a percorrer o espaço entre o fogão e o guarda-comida, sem olhar para nada.

De repente a porta abriu-se, e desta vez era o Dr. Vanderhaghen.

— Diabo! — exclamou. — Um pouco de luz não vai estragar os olhos de vocês... Vamos, vamos que estou com pressa!

Resmungava, como de hábito, esfalfado pelo trabalho. Felizmente traria fósforos; Maheu teve de acender seis, um a um, para que ele pudesse examinar a doente. Sem as cobertas, a menina tiritava sob a luz vacilante, magra como um passarinho agonizando na neve, tão fraca que só se lhe via a corcunda. E, contudo, sorria, um sorriso alucinado de moribunda, os olhos saltados, enquanto as mãozinhas se crispavam no vazio do peito. E, como a mãe, sufocada, perguntasse se era justo levar, antes dela, a única filha que a ajudava no trabalho da casa, tão inteligente, tão meiga, o doutor perdeu a paciência.

— Pois aí está, expirou... Morreu de fome, a desgraçada. E ela não é a única; agora mesmo vi outra ao lado. Todos vocês me chamam, mas eu não posso fazer nada, é de carne que precisam para se curarem.

Maheu, com os dedos queimados, soltara o fósforo, e as trevas voltaram a cobrir o pequeno cadáver ainda quente. O médico partira, correndo. Etienne ouvia apenas na peça escura os soluços da mulher, invocando a morte, numa lamentação lúgubre e sem fim:

— Meu Deus, chegou a minha hora, leva-me também! Meu Deus, leva o meu marido, leva toda a minha família, por piedade, para terminar com isto!

 

Naquele domingo, a partir das oito horas, Suvarin ficou sozinho na sala do Avantage, no seu lugar habitual, com a cabeça encostada ao muro. Já nenhum mineiro podia tomar seus dois soldos de cerveja; nunca as tabernas tiveram menos fregueses. Por isso, a Sra. Rasseneur, imóvel no balcão, guardava um silêncio irritado, enquanto o marido, em pé defronte ao fogão de ferro fundido, parecia seguir, com ar meditativo, a fumaça ruiva do carvão.

Bruscamente, naquela paz pesada das peças muito aquecidas, três pequenas pancadas secas, batidas num vidro da janela, fizeram que Suvarin voltasse a cabeça. Ergueu-se, tinha reconhecido o sinal do qual já diversas vezes Etienne se servira para chamá-lo, quando o via lá de fora fumando seu cigarro, sentado a uma mesa vazia Mas, antes que o mecânico alcançasse a porta, Rasseneur a abrira e, reconhecendo, graças à luz da janela, quem estava ali, disse:

— Será que tens medo de que eu te venda? Se querem conversar é melhor que o façam aqui dentro em vez de na estrada.

Etienne entrou. A mulher lhe ofereceu cortesmente um copo de cerveja, que ele recusou com um gesto. O taberneiro acrescentou:

— Há muito tempo que adivinhei onde te escondes. Se eu fosse um espião, como teus amigos dizem, já há oito dias teria mandado para lá os policiais.

— Não precisas defender-te — respondeu o rapaz. — Sei muito bem que não farias isso. Podemos não ter as mesmas idéias e continuar sendo amigos.

O silêncio voltou a reinar. Suvarin tornou à sua cadeira, de costas para a parede, os olhos vagando na fumaça do seu cigarro, mas seus dedos febris não paravam um momento; passava-os pelos joelhos procurando o pêlo tépido de Polônia, que naquela noite não se encontrava ali; era um mal-estar inconsciente, faltava-lhe alguma coisa, sem que ele soubesse o quê.

Sentado na outra extremidade da mesa, Etienne disse, enfim:

— O trabalho recomeça amanhã na Voreux. Os belgas chegaram com Négrel.

— De fato, chegaram quando já era noite fechada — murmurou Rasseneur, que ficara em pé. — Espero que não recomece a mortandade. — E levantando a voz: — Como vês, não quero continuar brigando contigo, mas isso terminará mal se vocês insistirem em fincar pé... Igualzinho à história da tal de Internacional... Anteontem fui a Lille resolver uns negócios e encontrei Pluchart; parece que a Internacional está desmoronando...

Deu detalhes. A Associação, depois de ter conquistado os operários do mundo inteiro, num ímpeto propagandístico que ainda fazia tremer a burguesia, estava agora sendo devorada, destruída aos poucos pelas batalhas internas das vaidades e ambições. Desde que os anarquistas triunfaram, expulsando os evolucionistas de primeira hora, tudo estava indo por água abaixo; a finalidade principal, a reforma do salário, afundava em meio aos conflitos de seitas, os grupos mais experientes se desorganizavam devido ao

ódio à disciplina. E já se podia prever o fracasso final desse levante de massa, que por um instante ameaçara varrer de um sopro a velha sociedade apodrecida.

— Pluchart está sem voz, doente com tudo isso — prosseguiu Rasseneur. — Mas assim mesmo faz discursos, quer ir a Paris para falar... Por três vezes me disse que a nossa greve está perdida.

Etienne, de cabeça baixa, não o interrompeu. Na véspera falara com alguns companheiros, sentia pesar sobre si ondas de rancor e suspeita; eram as primeiras vagas da impopularidade, anunciadoras da denota. Conservou-se sombrio, não queria confessar seu abatimento a um homem que lhe predissera que também um dia seria vaiado pela multidão, quando esta se quisesse vingar de uma decepção.

— A greve está perdida, sem dúvida, sei disso tão bem quanto

Pluchart — disse ele. — Era de prever. Aceitamos o movimento contra a vontade, não contávamos acabar com a companhia... O caso é que a gente se arrebata, espera coisas, e, quando tudo vai por água abaixo, esquece-se de que devia contar com isso, há lamentos e brigas como diante de uma catástrofe caída do céu.

— Mas, então — perguntou Rasseneur —, se julgas a partida perdida, por que não fazes os demais companheiros entenderem isso?

O rapaz olhou-o fixamente.

— Olha, estou farto das tuas histórias! Tens as tuas idéias, eu tenho as minhas. Entrei na tua casa para mostrar que te estimo apesar de tudo, mas continuo a pensar que, se morrermos resistindo, nossas carcaças de esfomeados servirão melhor à causa do povo que toda a tua política de homem equilibrado... Ah! se ao menos um desses soldados nojentos me metesse uma bala no coração... Como seria formidável morrer assim!

Seus olhos ficaram úmidos com esse grito onde explodia o secreto desejo do vencido, o refúgio onde gostaria de perder-se para sempre com seu tormento.

— Muito bem! — exclamou a Sra. Rasseneur, que, com um olhar, lançava a seu marido todo o desdém das suas opiniões radicais.

Suvarin, de olhar perdido, continuava a tatear com suas mãos nervosas, não parecendo ter ouvido. Seu rosto louro de moça, de nariz fino e dentes pequenos e pontiagudos, banhava-se de uma luz selvagem, de um devaneio místico, em que perpassavam visões sangrentas. E pôs-se a sonhar em voz alta, respondendo a uma frase de Rasseneur sobre a Internacional, pescada no meio da conversa:

— São todos uns covardes, só havia um homem capaz de transformar a sua organização num instrumento terrível de destruição. Mas era preciso querer, ninguém quer nada, por isso a revolução abortará mais uma vez.

E continuou a lamentar-se, cheio de asco pela imbecilidade dos homens, enquanto os outros quedavam perplexos ante aquelas confidencias de sonâmbulo, feitas para as trevas. Na Rússia estava tudo parado, sentia-se desesperado com as notícias que recebera. Seus antigos camaradas se transformavam em políticos, os famosos niilistas que faziam a Europa tremer, filhos de pope1, de pequenos burgueses, de comerciantes, não viam mais que a libertação nacional, pareciam acreditar que o mundo seria redimido assim que eles matassem o déspota. E, logo que lhes falava em ceifar a humanidade velha como a uma plantação madura, sentia-se, a partir daí, incompreendido, suspeito, desclassificado, arrolado entre os príncipes frustrados do cosmopolitismo revolucionário. E no entanto seu coração de patriota debatia-se, era com uma amargura dolorosa que repetia seu termo favorito:

— Besteiras!... Eles nunca conseguirão nada com as suas besteiras.

Depois, baixando mais a voz, narrou em frases amargas o seu velho sonho de fraternidade. Não tinha renunciado ao seu título e à sua fortuna, só se colocara do lado dos operários com a esperança de ver fundada enfim essa sociedade nova do trabalho em comum. Todas as moedas que trazia no bolso tinham passado havia muito tempo para as mãos dos meninos do conjunto habitacional; fora de uma solidariedade de irmão para com os mineiros, sorrindo à sua desconfiança, conquistando-os com seu modo tranqüilo de operário exato e pouco conversador. Mas, decididamente, a fusão não se realizava, permanecia um estranho, com seu desprezo por qualquer ligação amorosa, sua vontade de permanecer impoluto, fora das gloríolas e dos prazeres. E, sobretudo, ficara desesperado de manhã com a leitura de uma notícia que vinha nos jornais.

Sua voz mudou, seus olhos iluminaram-se, fixos em Etienne, e dirigiu-se diretamente a ele.

— Tu podes compreender isto? esses operários chapeleiros de

Marselha que ganharam a sorte grande de cem mil francos e, imediatamente, foram comprar títulos, dizendo que de agora em diante iam viver sem fazer nada! Essa é a intenção de todos vocês, operários franceses: encontrar um tesouro e em seguida comê-lo sozinhos, refestelados no egoísmo e na vagabundagem. Gostam de gritar contra s ricos, mas não têm coragem de dar aos pobres o dinheiro que a sorte lhes envia...

Vocês nunca serão dignos da felicidade enquanto possuírem alguma coisa, enquanto esse ódio aos burgueses for apenas o desejo desesperado de serem burgueses também.

Rasseneur deu uma gargalhada; pensar que os dois operários de Marselha teriam de renunciar à sorte grande parecia-lhe estúpido. Mas Suvarin fremia, seu semblante descomposto tornava-se amedrontador, numa dessas cóleras religiosas que exterminam os povos. Gritou:

— Vocês vão ser todos ceifados, derrubados, atirados à podridão!

Há de nascer um dia aquele que dizimará sua raça de poltrões e gozadores. Aqui está! Vocês vêem as minhas mãos? Se elas pudessem, agarrariam a terra, assim, e a sacudiriam até fazê-la em migalhas, para soterrar todos vocês nos seus escombros!

— Muito bem! — repetiu a Sra. Rasseneur, no seu modo cortês e convicto.

Fez-se outro silêncio. Em seguida Etienne falou dos operários belgas. Interrogou Suvarin sobre as disposições que tinham sido tomadas na Voreux, mas o mecânico, que voltara ao seu alheamento, mal respondia, apenas sabia que iam distribuir balas aos soldados que guardavam a mina. E a inquietação nervosa dos seus dedos sobre os joelhos chegou a tal ponto que acabou tomando consciência de que lhe faltava o pêlo macio e calmante da coelha.

— Onde está a Polônia? — perguntou ele.

O taberneiro deu outra risada e olhou para a mulher. Depois de certa hesitação decidiu-se:

— A Polônia? Está no quente.

Desde a sua aventura com Jeanlin, a enorme coelha, certamente ferida, só tivera filhos mortos. E, para não alimentarem uma boca inútil, tinham decidido nesse mesmo dia fazê-la com batatas.

— Comeste uma perna dela hoje na janta... Não estava bom? Chegaste a lamber os dedos...

A princípio Suvarin não compreendeu. Depois ficou muito Pando e teve uma contração de náusea; apesar de sua vontade de Ser estóico, duas grossas lágrimas encheram seus olhos.

Mas não tiveram tempo de notar sua emoção; a porta abrira-se violentamente e surgiu Chaval, empurrando à sua frente Catherine Após se ter embriagado de cerveja e fanfarronadas em todas as tabernas de Montsou, tivera a idéia de ir até o Avantage mostrar aos antigos amigos que não tinha medo. Entrou dizendo à amante:

— Diabo de mulher! Já te disse que vais beber uma cerveja! Quebro a cara do primeiro que me olhar atravessado!

Catherine, ao divisar Etienne, pusera-se muito pálida. Ao vê-lo Chaval deu uma gargalhada maldosa.

— Sra. Rasseneur, duas cervejas! Estamos festejando a volta ao trabalho.

Sem dizer palavra, como mulher que não recusava a ninguém sua cerveja, encheu os copos. Fizera-se silêncio. Nem o taberneiro nem os dois outros tinham-se movido de onde estavam.

— Eu sei que disseram que eu sou um espião — continuou Chaval cheio de arrogância —, e estou esperando que me digam isso na cara, para ir à forra.

Ninguém respondeu, os homens olhavam vagamente para as paredes.

— O caso é que há os que são vagabundos e os que não são vagabundos — continuou ele mais alto. — Eu não tenho nada a esconder, larguei aquela porcaria do Deneulin e amanhã desço à Voreux com doze belgas, que estão sob as minhas ordens, porque sou estimado. Se isso contraria alguém, pode ir dizendo, bateremos um papo.

Mas, como o mesmo silêncio desdenhoso acolhesse suas provocações, enfureceu-se contra Catherine.

— Vais beber ou não, raio?! Vamos, brinda comigo à morte de todos os crápulas que não querem trabalhar.

Ela brindou, mas com uma mão tão trêmula, que se ouviu o leve tilintar dos copos. Então ele tirou do bolso um punhado de moedas de prata que espalhou no balcão com uma ostentação de bêbado, dizendo que fora com seu suor que ganhara aquilo e desafiava os vagabundos a mostrarem dez soldos. A atitude dos outros o exasperava, chegou aos insultos diretos.

— Então esta é a noite em que as toupeiras saem da toca? É preciso que os policiais estejam dormindo para que a gente encontre bandidos!

Etienne levantou-se, muito calmo e decidido.

— Escuta aqui, não me aborreças... Sim, tu és um espião, esse teu dinheiro está fedendo a alguma traição que fizeste, e tenho nojo de tocar no teu couro vendido. Mas não importa! Há muito que me vens provocando, hoje vamos resolver essa parada.

Chaval cerrou os punhos.

— Pois rnuito bem! O covardão primeiro tem de ouvir boas se espinhar! Eu quero só a ti, cachorro! Tu vais pagar-me direitinho todas as sem-vergonhices que fizeram!

Com os braços estendidos, suplicante, Catherine interpôs-se entre eles, que não tiveram necessidade de repeli-la, pois ela própria sentiu a fatalidade daquela luta e recuou lentamente. Encostada à parede, permaneceu muda, tão paralisada pela angústia que nem tremia mais, com os olhos arregalados e fixos naqueles homens que iam matar-se por ela.

A Sra. Rasseneur simplesmente retirou os copos do balcão para que não os quebrassem, e voltou a sentar-se na sua banqueta, sem dar mostras de demasiada curiosidade. Contudo, não era possível deixar que dois antigos companheiros se atracassem assim. Rasseneur tentou intervir, mas Suvarin o agarrou pelo braço, levando-o para perto da mesa, dizendo:

— Não tens nada que ver com isso... Um deles é demais, o mais forte que viva.

Já Chaval, sem esperar o ataque, lançava no vácuo seus punhos cerrados. Era o mais alto e desenvolto, visava sempre ao rosto do adversário com furiosos golpes cortantes, com ambos os braços, um após o outro, como se estivesse manejando um par de sabres. E não parava de falar, exibia-se para a platéia, com uma enxurrada de insultos que o excitavam.

— Ah! maldito garanhão, vou achar-te as ventas! É o teu nariz que vou enfiar naquele lugar que tu já sabes! Vamos, mostra a cara, conquistador de putas, que eu quero fazer com ela uma lavagem para os porcos, e depois veremos se as cadelas das mulheres vão correr atrás de ti.

Mudo, de dentes cerrados, Etienne defendia-se na sua pequena estatura, fazendo o jogo certo, o peito e o rosto cobertos pelos dois punhos; e assim esperava para arremessá-los como se fossem molas, em profundidade.

A princípio não se machucaram muito. A dança falada de um, a fria expectativa do outro prolongavam a luta. Uma cadeira foi emborcada, os sapatos grossos esmagavam a areia branca esparzida no soalho. Com o tempo começaram a ficar cansados, ouvia-se o ruído da respiração, suas caras vermelhas inchavam, como se tivessem uma fornalha interna cujas chamas saíam pelos buracos claros dos olhos.

— Atingido! — berrou Chaval. — Achei-te a carcaça!

Com efeito, seu punho, igual a um malho lançado de través, atingira o ombro do adversário. Este conteve um grito de dor, houve apenas um ruído macio, o surdo esfacelamento dos músculos. E ele respondeu com um golpe em pleno peito, que teria rebentado o outro, se não se tivesse desviado com seu saltitar de cabra. Mas assim mesmo o soco atingiu-o no flanco esquerdo, e com tanta força que cambaleou, com a

respiração cortada. Cheio de ódio por sentir que os braços amoleciam de tanta dor, atirou-se como uma fera, visando à barriga para atingi-la com um pontapé.

— Toma! nas tripas! — gaguejou sufocado. — Quero pô-las para fora!

Etienne esquivou-se do golpe, tão indignado com aquela infração às regras de um combate leal, que saiu do seu silêncio.

— Cala a boca, animal! E não metas as patas, filho da mãe, ou agarro uma cadeira e deixo-te em frangalhos!

Desde aí a briga ficou mais séria. Rasseneur, revoltado, teria intervindo de novo se não fosse o olhar severo de sua mulher que o continha. Será possível que dois fregueses não podiam resolver seus problemas em paz? O taberneiro pôs-se então diante do fogão, pois temia que os dois acabassem caindo no fogo. Suvarin, com sua calma habitual, enrolara um cigarro, que, no entanto, esquecia de acender. Contra a parede, Catherine permanecia imóvel; inconscientemente pusera as mãos nas cadeiras e contorcia-as, arrancando a fazenda do vestido, em movimentos rítmicos. Fazia um esforço imenso para não gritar, para não matar um, expondo sua preferência, apesar de que, de tão enlouquecida, já nem sabia qual preferia.

Dentro de algum tempo Chaval ficou exausto, inundado de suor, batendo a esmo. Apesar de sua cólera, Etienne continuava a cobrir-se, aparando quase todos os golpes, alguns dos quais o tocavam de leve. Teve uma orelha cortada, uma unha arrancou-lhe um pedaço da pele do pescoço, causando tal ardência, que ele praguejou também, desfechando um dos seus terríveis diretos. Outra vez Chaval livrou o peito com um salto, mas tinha-se abaixado e o punho o atingiu no rosto, esmagando o nariz e afundando um olho. Imediatamente começou a jorrar sangue das narinas, e o olho foi inchando e ficando roxo. E o miserável, cego com o jato de sangue, atordoado com a pancada na cabeça, braceava perdidamente no ar, ando outro murro em pleno peito finalmente o derrubou. Houve um estalar e ele caiu de costas, com o baque pesado de um saco de gesso que se descarrega.

Etienne esperou.

— Vamos, levanta. Se queres ainda, podemos recomeçar...

Sem responder, Chaval, após alguns segundos de embotamento, remexeu-se por terra, estirou os membros. Começou a levantar-se com grande esforço, permaneceu um momento de joelhos, encurvado, pegando com a mão, no fundo do bolso, alguma coisa que não se via. Depois, quando se pôs de pé, precipitou-se de novo, com as veias do pescoço saltadas e urrando como um selvagem.

Catherine, porém, tinha visto; e, sem querer, soltou um grito que lhe saíra do coração e a deixou abismada, porque era a confissão de uma preferência que ela mesma ignorava.

— Cuidado! ele tem uma faca!

Etienne só tivera tempo de aparar o primeiro golpe com o braço. A lã do suéter foi cortada pela lâmina grossa, uma dessas lâminas fixadas num cabo de pau por uma virola de cobre. Mas já agarrara o pulso de Chaval e começou então uma luta assustadora, ele sabendo estar perdido se o largasse, o outro dando safanões para se soltar e ferir. Pouco a pouco a arma descia, seus membros retesados fatigavam-se, por duas vezes Etienne sentiu o frio do aço contra a pele. Teve de fazer um esforço supremo, apertou o pulso com tal força que a faca escorregou da mão aberta. Ambos se atiraram ao chão e foi Etienne quem a apanhou e por sua vez a brandiu. Mantinha Chaval deitado, debaixo do seu joelho, e ameaçava cortar-lhe o pescoço.

— Ah, velhaco, traidor, desta vez mato-te!

Uma voz horrível, dentro dele, enlouquecia-o. Ela subia das entranhas e golpeava sua cabeça como se fosse um martelo, uma repentina loucura de homicídio, uma sede de sangue. Nunca tivera uma crise tão violenta, e contudo não estava embriagado. Mas lutava contra o mal hereditário, com a excitação desesperada do enlouquecido de amor que se debate à beira do estupro. Acabou por vencer-se, atirou a faca para trás de si, balbuciando com voz rouca:

— Levanta-te e vai embora!

Desta vez Rasseneur acorreu, mas sem ousar arriscar-se demasiado entre eles, com medo de receber algum golpe. Não queria assassinatos em sua casa, estava tão zangado que a esposa, muito tesa ao balcão, fazia-lhe notar que ele gritava sempre antes do tempo. Suvarin, que quase recebera a faca nas pernas, decidiu-se a acender o cigarro. Já tinham acabado? Catherine continuava olhando, aparvalhada diante dos dois homens, ambos vivos.

— Vai embora, vai embora — repetiu Etienne —, senão dou cabo de ti!

Chaval levantou-se, limpou com as costas da mão o sangue que continuava a escorrer do nariz; e, com o queixo sujo de sangue, o olho roxo, saiu arrastando os pés, no auge do ódio com a sua derrota. Maquinalmente Catherine o seguiu. Ele então empertigou-se e seu ódio explodiu numa torrente de torpezas:

— Ah, não! Isso é que não! Já que é ele quem tu queres, vai dormir com ele, cadela imunda! E, se tens amor à pele, não voltes a pôr os pés na minha casa!

E desapareceu, batendo violentamente com a porta. Houve um grande silêncio na sala tépida, onde se ouvia o leve rumor da hulha queimando. No chão só havia a cadeira emborcada e a poça de sangue que a areia ia absorvendo.

 

Ao saírem de Rasseneur, Etienne e Catherine caminharam em silêncio. O degelo começava, um degelo frio e lento, que sujava a neve sem derretê-la. No céu lívido notava-se a lua cheia por detrás de grandes nuvens, farrapos negros que uma ventania altíssima varria furiosamente. Na terra não soprava nenhuma aragem, só se ouvia o gotejar dos telhados, de onde caíam bolas brancas, numa queda suave.

Etienne, embaraçado com a presença daquela mulher que lhe presenteavam, não sabia o que dizer, de tão sem jeito. A idéia de levá-la consigo e escondê-la em Réquillart parecia-lhe absurda. Preferia conduzi-la ao conjunto habitacional, para a casa dos pais, mas ela recusava, cheia de pavor: não, não, tudo menos voltar para a família depois de a ter deixado de maneira tão ignóbil. E nenhum dos dois conseguia dizer palavra, caminhavam ao acaso pelos caminhos que se transformavam em lodaçais. Primeiro tinham descido em direção à Voreux, depois dobraram à direita, passando entre o aterro e o canal.

— Mas tens que dormir em algum lugar — disse ele afinal. — Se eu tivesse ao menos um quarto, levava-te comigo...

Calou-se, cheio de timidez. Seu passado vinha-lhe à memória, seus enormes desejos de outrora, as delicadezas e as vergonhas que os tinham impedido de se juntarem. Acaso a quereria ainda, para se sentir tão confuso, com o coração pulsando cada vez mais forte de desejo renascido? A lembrança das bofetadas que ela lhe dera na Gaston-Marie agora o excitava, em vez de enchê-lo de rancor. E estava surpreendido; a idéia de levá-la para Réquillart já lhe parecia completamente natural e de fácil execução.

— Vamos, decide-te, onde queres que te leve? Tu me detestas tanto que não queres vir comigo...

Ela seguia-o lentamente, atrapalhada com os escorregões penosos dos tamancos nos sulcos do caminho. Sem erguer a cabeça, murmurou:

— Já sou bastante desgraçada, pelo amor de Deus, não me faças sofrer mais! De que adianta dizer isso, agora que já tenho um homem e tu tens uma mulher?

Referia-se à filha de Mouque. Julgava que viviam juntos, pois esse era o boato que corria havia uns quinze dias. E quando ele negou, jurando, ela balançou a cabeça e lembrou a noite em que os vira beijando-se na boca.

— Não é uma pena todas essas besteiras? — continuou ele a meia voz e parando. — Nós nos teríamos entendido tão bem...

A moça respondeu com estremecimento:

— Vamos, não te lamentes, não estás perdendo grande coisa. Se soubesses o traste inútil que sou, magra como um esqueleto, tão mal acabada que nunca serei uma mulher, juro-te!

E continuou a falar livremente, acusando-se como de uma falta, daquele longo atraso de sua puberdade.

Isso, apesar de já ter tido um homem, diminuía-a, relegava-se às fileiras das meninas. Quando se pode ter um filho, ainda há desculpa.

— Minha pobre criança! — murmurou Etienne, cheio de grande piedade.

Encontravam-se ao pé do aterro, escondidos à sombra do monte enorme. Uma nuvem de chumbo passava justamente pela lua, não podiam ver um ao outro, e seus hálitos se misturavam, seus lábios se buscavam, para o beijo cujo desejo os atormentara durante meses. Mas a lua reapareceu de repente, e viram por cima deles, no alto das rochas brancas de luz, a sentinela perfilada, que guardava a mina. E, sem que se tivessem beijado, separou-os o pudor, esse pudor antigo onde havia cólera, uma vaga repugnância e muito de amizade. Recomeçaram a vagarosa caminhada, com lama até os tornozelos.

— Então está decidido: tu não queres... — disse Etienne.

— Não — respondeu ela. — Primeiro o Chaval, agora tu depois um outro... Não, tenho nojo disso. Ademais, não sinto prazer algum, para que fazer, então?

Calaram-se, andaram mais cem passos, sem trocar palavra.

— Mas ao menos sabes para onde é que vais? Não posso deixar-te ao deus-dará com uma noite dessa.

Ela respondeu com naturalidade:

— Volto para casa, para Chaval, é com ele que tenho de ficar.

— Mas ele te prometeu uma surra!

O silêncio recomeçou. Ela dera de ombros, resignada. Sim, ele a espancaria, e, quando estivesse cansado de bater, pararia; preferia isso a andar rolando pelas sarjetas, como uma meretriz. E depois, já estava acostumada a apanhar; dizia mesmo, para se consolar, que, em dez mulheres, oito não viviam melhor que ela. Se um dia Chaval quisesse casar, tudo estaria resolvido.

Etienne e Catherine dirigiram-se inconscientemente para Montsou, e, à medida que se aproximavam, seus silêncios ficavam mais longos. Era como se não estivessem mais caminhando juntos. O rapaz não encontrava nada para dizer que pudesse convencê-la, apesar da grande tristeza que sentia de vê-la voltando para Chaval. Seu coração estava despedaçado, nada tinha a oferecer senão uma existência de miséria e fuga, uma noite sem amanhã, se a bala de algum soldado lhe varasse a cabeça. Talvez mesmo fosse mais sensato não procurar novos sofrimentos. E assim reconduziu-a à casa do amante, de cabeça baixa, e não fez um gesto de protesto quando, já na estrada real, ela parou à esquina do depósito da companhia, a vinte metros do Piquette, dizendo:

— Volta daqui. Se ele te vê, vai querer brigar de novo. Davam onze horas na igreja, o botequim estava fechado, mas a luz passava pelas frestas da porta.

— Adeus — murmurou a moça.

Estendeu-lhe a mão, que ele prendeu entre as suas; com esforço, lenta e penosamente, ela retirou-a, para deixá-lo. Sem olhar para trás, entrou pela porta pequena, com sua chave. Mas o rapaz permaneceu onde estava, espiando a casa, ansioso por saber o que se passava lá dentro. Apurou o ouvido, tremia com receio de ouvir os gritos de uma mulher sendo espancada. A casa conservava-se escura e silenciosa, apenas via luz numa janela do primeiro andar; e, como essa janela se abrisse e ele reconhecesse a figura franzina que se debruçava sobre a estrada, avançou.

Catherine, então, disse em voz muito baixa:

— Ele não voltou ainda, vou deitar-me. Vai embora, pelo amor de Deus!

Etienne partiu. O degelo aumentava, era como se a chuva rolasse dos telhados, um suor de umidade escorria das paredes, dos tapumes, de todas a» massas confusas daquela zona industrial, perdida na noite. Primeiro dirigiu-se para Réquillart, doente de tristeza e cansaço, querendo apenas desaparecer, ser tragado pela terra, mas, em seguida, começou a atormentá-lo a idéia da Voreux, dos operários belgas que iam começar a trabalhar ali, e vieram-lhe à memória os companheiros exasperados contra os soldados, resolvidos a não tolerar estrangeiros na sua mina. Dirigiu-se novamente para lá, costeando o canal, atolando-se nas poças de neve derretida.

Quando se viu novamente perto do aterro, a lua surgiu, muito clara. Levantou os olhos, olhou o céu, onde havia uma cavalgada de nuvens impelidas pela ventania que soprava no alto. Agora, porém, elas estavam esbranquiçadas, esfiapadas, mais leves, de uma transparência baça de água turva sobre a face da lua, e correndo tão rápidas que o astro, velado por momentos, incessantemente reaparecia na sua limpidez.

Com os olhos cheios daquela claridade pura, Etienne baixou a cabeça, detendo a vista num espetáculo que se desenrolava no cimo do aterro. A sentinela, entorpecida pelo frio, não mais conseguindo ficar parada, agora dava guarda andando vinte e cinco passos voltada para o lado de Marchiennes, fazia meia-volta e caminhava outro tanto, de frente para Montsou. Via-se o brilho prateado da baioneta pairando acima da silhueta escura do soldado, recortada nitidamente contra a palidez do céu. Mas o que interessava ao rapaz era uma sombra móvel, um bicho de rastos e à espreita, em quem logo reconheceu Jeanlin pelo dorso de fuinha, longo e desengonçado, emboscado por trás da cabana onde o velho Boa-Morte se abrigava nas noites de temporal. A sentinela não podia vê-lo, com certeza o pequeno bandido preparava alguma das suas, pois andava furioso com os soldados, perguntando quando se veriam livres daqueles assassinos, que ali estavam com seus fuzis para matar a gente.

Etienne hesitou, não sabendo se devia chamá-lo, para evitar que fizesse alguma bobagem. Num dos momentos em que a lua se escondeu, viu-o preparando-se para saltar, só não o tendo feito porque o astro voltou a brilhar. Invariavelmente a sentinela avançava até a cabana, dava meia-volta e repetia o trajeto já feito. Repentinamente, aproveitando as sombras de uma nuvem, Jeanlin saltou nas costas do soldado com um pulo enorme de gato do mato e agarrou-se a ele com suas garras, cravando-lhe o canivete na garganta. Como o colarinho duro resistisse, empunhou a arma com ambas as mãos e abateu-a com todo o peso do corpo. Já estava acostumado a sangrar as galinhas que encontrava ciscando por perto das fazendas. Fez um trabalho tão rápido, que só se ouviu na noite um grito sufocado e o ruído cavo do fuzil caindo. A lua, muito branca, brilhava outra vez.

Paralisado de espanto, Etienne continuava a olhar. Uma exclamação fora estrangulada no fundo do seu peito. No alto, o aterro estava deserto, já não se distinguia sombra alguma sob a fuga descontrolada das nuvens. Subiu correndo para encontrar Jeanlin de gatinhas diante do cadáver que caíra de costas e braços abertos. Na neve, ao luar, as calças vermelhas e o capote cinzento destacavam-se duramente. Não correra uma única gota de sangue, a faca ainda estava enterrada até o cabo na garganta.

Com um soco furioso e irrefletido ele prostrou o menino ao lado do corpo.

— Por que fizeste isso? — gaguejou, desesperado.

Jeanlin soergueu-se, rastejou sobre as mãos, com o arqueamento felino do seu dorso magro; e as suas grandes orelhas, seus olhos verdes, suas maxilas salientes fremiam e faiscavam na excitação do crime.

— Fala, demônio! Por que fizeste isso?

— Sei lá, tive vontade.

E insistiu naquela resposta. Havia três dias que tinha vontade de fazer aquilo. Só pensava nisso, chegava a andar com dor de cabeça de tanto pensar. Para que preocupar-se por causa desses soldados imundos que vinham incomodar os mineiros em suas próprias casas? Dos discursos violentos na floresta, dos gritos de devastação e morte ecoados nas minas, cinco ou seis palavras tinham ficado na sua memória, e ele agora as repetia, brincando de revolução. Outras explicações não sabia dar, ninguém o tinha empurrado, imaginara tudo sozinho, da mesma maneira que planejava roubar cebolas nas plantações.            

Etienne, abismado com aquele brotar surdo do crime no fundo de um cérebro de criança, escorraçou-o de novo com um pontapé, como a uma besta inconsciente. Temia que a guarnição da Voreux tivesse ouvido o grito abafado da sentinela e olhava para a mina a cada vez que a lua surgia. Mas nada se mexia, e ele debruçou-se sobre o cadáver, tocou as mãos que esfriavam, auscultou o coração arado sob o capote. Da faca só se via o cabo de osso, onde a divisa galante, a simples palavra "Amor", estava gravada em letras negras. Seus olhos correram da garganta para o rosto e ele reconheceu o soldadinho, era Jules, o recruta, com quem conversara num amanhecer. Sentiu uma enorme piedade diante daquele rosto de louro, cheio de sardas. Os olhos azuis, arregalados, contemplavam o céu com o mesmo olhar fixo com que o vira esquadrinhando o horizonte em busca da terra natal. Onde seria a região de Plogoff que lhe aparecia sob um sol resplandecente? Ah! longe, muito longe. Com aquela noite de temporal o mar bramia a distância. Esse vento que soprava tão alto tinha talvez passado pela charneca. Duas mulheres estavam paradas — a mãe, a irmã — de cabelos ao vento, olhando também, como se pudessem ver o que a esta hora estava fazendo o seu menino para além das léguas e léguas que os separavam. De agora em diante elas continuariam a esperá-lo. Que coisa detestável era isso, os pobres-diabos matarem-se entre si, pelos ricos!

Mas era preciso fazer desaparecer aquele cadáver. Etienne pensou primeiro em jogá-lo ao canal. Mudou de idéia com a certeza de que lá seria encontrado. Sua ansiedade crescia com o correr dos minutos. Que decisão tomar? Teve uma inspiração súbita: se pudesse levar o corpo até Réquillart, saberia então como fazê-lo desaparecer para sempre.

— Vem aqui — disse para Jeanlin. O menino estava arredio.

— Não, queres bater-me. E agora tenho o que fazer. Boa noite.

Realmente, tinha combinado com Bébert e Lydie encontrarem-se num esconderijo, um buraco que haviam preparado sob a provisão de madeira da Voreux. Para eles era uma farra enorme dormirem fora de casa para assistir à surra que os belgas iam levar se descessem à mina.

— Escuta, vem aqui — repetiu Etienne —, ou eu chamo os soldados para te cortarem a cabeça.

E, como Jeanlin se decidisse a ajudá-lo, amarrou fortemente seu lenço no pescoço do soldado, sem retirar a faca, que impedia o sangue de correr A neve derretia-se, o solo não estava manchado de sangue e não havia mesmo vestígios de luta

— Pega pelas pernas.

Jeanlin fez o que Etienne mandava, enquanto este segurava o morto pelos ombros, depois de colocar o fuzil às costas. E assim desceram lentamente o aterro, cuidando para não fazer rolar nenhuma pedra. Felizmente a lua estava escondida quando se esgueiravam, porem, pela margem do canal, ela surgiu, rnuito clara, e foi um milagre não os verem do posto da guarda. Silenciosos, caminhavam às pressas, atrapalhados pelo balanço do cadáver, sendo obrigados a pousá-lo de cem em cem metros. A esquina da viela de Réquillart ficaram horrorizados ao ouvir o barulho de passos e mal tiveram tempo de se esconder por trás de um muro para deixar passar uma patrulha. Mais adiante foram surpreendidos por um homem, mas ia bêbado e afastou-se injuriando-os. Chegaram enfim à galeria antiga, alagados de suor, tão perturbados que batiam o queixo.

Etienne havia pensado que não seria fácil passar o soldado pelo fosso das escadas. Foi uma trabalheira medonha. Primeiro, Jeanlin, de cima, deixou escorregar o corpo, enquanto ele, suspenso do matagal, acompanhava-o, para ajudá-lo a transpor os dois primeiros patamares, onde faltavam alguns degraus. Em seguida, a cada escada, teve de repetir a mesma manobra, descer primeiro, depois recebê-lo em seus braços. E isso se repetiu nos trinta lances seguintes, duzentos e dez metros, sentindo-o continuamente cair sobre si. O fuzil machucava-lhe a espinha, não quis que o menino

fosse buscar o coto de vela, que poupara avaramente. Para quê? A luz viria atrapalhá-los mais ainda naquele buraco estreito. Contudo, quando chegaram à embocadura da galeria, exaustos, mandou Jeanlin buscar a vela. Sentou-se perto do corpo, em meio às trevas, com o coração aos pulos 

Assim que Jeanlin voltou com a luz, Etienne consultou-o, já que o menino conhecia muito bem aquelas obras antigas, ate as fendas por onde os homens não podiam passar. Tornaram a partir arrastando o morto cerca de um quilômetro, por um dédalo de galerias em ruínas. Por fim, o teto foi ficando mais baixo, já estavam ajoelhados, por baixo de uma rocha que se esfarelava e era escorada por caibros meio rachados. Era uma espécie de caixa comprida, ali colocaram o soldadinho como num caixão, pondo a seu lado o fuzil. Depois, a pontapés, acabaram de quebrar os caibros, arriscando lá ficarem também. Imediatamente a rocha se fendeu; apenas tiveram tempo de se arrastar para fora. Quando Etienne se voltou, querendo ver, a queda do teto continuava, esmagando lentamente o corpo sob o peso enorme. Dentro em pouco —   o via mais nada a não ser a enorme massa de terra.

Tendo voltado ao seu canto da caverna onde armazenava os outros, Jeanlin atirou-se sobre a palha, murmurando, prostrado-

— Bolas! os garotos que me esperem, vou dormir uma hora.

Etienne tinha apagado a vela, da qual só restava um pedaço muito pequeno. Ele também estava exausto, mas não tinha sono, com a cabeça martelada por dolorosos pensamentos, que eram como pesadelos. Em breve, só um ficou, torturante, fatigando-o com uma interrogação a que não podia responder: por que não tinha acabado com Chaval quando o subjugara com a faca? E por que aquela criança terminava de esfaquear um soldado de quem nem sequer o nome sabia? Essa coragem para matar, o direito de matar, transtornava todas as suas crenças revolucionárias. Sena um covarde? O menino, deitado na palha, pusera-se a roncar, com um ronco de embriagado, como se estivesse curando a bebedeira de seu crime. E, repugnado, irritado, Etienne sofria com a sua presença. De repente estremeceu, um sopro de medo roçara-lhe o rosto. Um roçar rnuito leve, um soluço parecia-lhe ter saído das profundezas da terra. A imagem do soldadinho, deitado lá no fundo com seu fuzil, debaixo das rochas, fez que sentisse um arrepio nas costas e os cabelos em pé. Era idiota, toda a mina se enchia de murmúrios, teve de acender novamente a vela e só sossegou vendo o vazio das galerias àquela pálida claridade.

Ainda durante um quarto de hora esteve refletindo, sempre assolado pela mesma luta, com os olhos fixos naquele pavio que ardia. Mas houve um deslocamento de ar, o pavio foi-se afogando, e tudo voltou às trevas. Sentiu outro arrepio, teve ímpetos de esbofetear Jeanlin para impedi-lo de ressonar tão alto. A presença do menino era-lhe tão insuportável que fugiu em busca de ar livre, correndo pelas galerias e pelo poço das escadas, como se ouvisse uma sombra resfolegante a persegui-lo.

Em cima, entre as ruínas de Réquillart, Etienne pôde enfim respirar à vontade. Já que não ousava matar, restava-lhe morrer. Essa idéia de morte, que já tivera uma vez, renascia, tomava corpo no seu cérebro como uma derradeira esperança. Morrer corajosamente, pela revolução, eis a solução que acabaria com todos os seus problemas, impedindo-o de continuar pensando. Se seus companheiros atacassem os belgas, ele estaria na vanguarda e teria a oportunidade de receber os primeiros golpes. E foi com passos firmes que voltou a rondar a Voreux...

Deram duas horas. Da sala dos contramestres, onde se instalara a guarda que protegia a mina, elevava-se uma grande algazarra. O desaparecimento da sentinela alvoroçara os soldados, tinham ido acordar o capitão e acabaram acreditando que houvera deserção, após meticuloso exame do local. E, à espreita na sombra, Etienne pensou nesse capitão republicano, de quem o soldadinho lhe falara. Quem sabe se não o decidiriam a passar para o lado do povo? Se a tropa se recusasse a atirar, isso podia ser o sinal para o massacre dos burgueses. Começou a voar nas asas de outro sonho; não mais pensou em morrer, permaneceu horas com os pés enfiados na lama, a neblina do degelo a cair-lhe nos ombros, arrebatado pela esperança de uma vitória ainda possível.

Até as cinco horas esperou pela chegada dos operários belgas. Depois deu-se conta de que a companhia tivera a inteligência de fazê-los dormir na Voreux. A descida começou, os poucos grevistas do Deux-Cent-Quarante colocados de piquete hesitavam em prevenir os companheiros. Foi Etienne quem os advertiu sobre o que se estava passando, e eles partiram correndo, enquanto o rapaz esperava atrás do aterro, perto do embarcadouro. Deram seis horas. O céu escuro ia ficando pálido, iluminando-se com um alvorecer avermelhado, quando o Padre Ranvier surgiu por um atalho, com a batina arregaçada sobre as pernas magras. Todas as segundas-feiras ia dizer a missa na capela de um convento, do outro lado da mina.

— Bom dia, meu amigo — disse em voz forte, depois de examinar o rapaz com seus olhos de fogo.

Etienne não respondeu. Ao longe, por entre os cavaletes da Voreux, vira passar uma mulher e precipitou-se, inquieto, julgando ter reconhecido Catherine.

Desde a meia-noite que Catherine palmilhava o degelo dos caminhos. Chaval, ao voltar, encontrou-a deitada e a pôs em pé com um tabefe, gritando-lhe que saísse imediatamente se não quisesse voar pela janela. E ela, em lágrimas, sem abrigo, com as pernas todas roxas dos pontapés, tivera de sair, empurrada para fora com um último tapa. Essa separação brutal a deixara tonta. Sentara-se num portal, olhando a casa, esperando que ele a chamasse de volta, porque não era possível, ele devia estar espiando-a pela janela para mandá-la subir assim que a visse tiritar, abandonada, sem ninguém que a recolhesse.

Depois, passadas duas horas, decidiu-se, morrendo de frio naquela imobilidade de cão escorraçado: saiu de Montsou pelo mesmo caminho em que viera, sem ousar chamar da calçada ou bater na porta Afinal, tomou a estrada larga, planejando dirigir-se para o conjunto habitacional, à casa dos pais. Mas, quando lá chegou, foi possuída por tamanha vergonha, que correu ao longo dos jardins, temendo ser reconhecida por alguém, não obstante o pesado sono em que tudo estava mergulhado por trás das persianas fechadas. E, a partir daí, andou ao acaso, apavorada ao menor ruído, com medo de ser apanhada e conduzida como prostituta para a casa pública de Marchiennes, cuja ameaça a perseguia como um pesadelo havia meses. Por duas vezes foi dar na Voreux, assustando-se com a algazarra da casa da guarda, correndo esbaforida, olhando para trás, temendo que a perseguissem. A ruela de Réquillart estava sempre cheia de homens bêbados, mas ela acabou indo até lá, na vaga esperança de encontrar aquele que a expulsara horas antes.

Naquela manhã Chaval devia ir trabalhar. Este pensamento trouxe novamente Catherine para as proximidades da mina, se bem que soubesse que seria inútil falar-lhe: estava tudo acabado entre eles. Na Jean-Bart não havia mais trabalho e o homem jurara matá-la se ela voltasse a trabalhar na Voreux, onde temia comprometer-se em sua companhia. Que fazer, então? Ir embora, morrer de fome, ceder à sanha de todos os homens que passassem? Arrastava-se, tropeçava nas poças, as pernas trêmulas, toda enlameada. O degelo transformara-se numa enxurrada de lodo pelos caminhos; ela atolava-se, andando sempre, sem ânimo para procurar uma pedra onde pudesse sentar-se.

Surgiu o dia. Catherine reconheceu Chaval pelas costas, contornando prudentemente o aterro, no mesmo momento em que percebeu Lydie e Bébert, espiando do seu esconderijo, no monte de madeiras. Tinham passado a noite ali, esperando, sem se atreverem a voltar para casa, já que a ordem de Jeanlin era de esperarem por ele. E, enquanto este, em Réquillart, curava a embriaguez do seu crime, as duas crianças tinham-se lançado nos braços uma da outra, para aquecerem-se. O vento assobiava por entre os toros de castanheiro e carvalho, eles se enovelavam, como se estivessem numa cabana de lenhador abandonada.. Lydie não ousava dizer em voz alta seus sofrimentos de menina-mulher acostumada a apanhar, da mesma forma que Bébert não tinha coragem para queixar-se dos tabefes com que seu capitão lhe inchava o rosto. Mas este, no final das contas, estava abusando demasiado, fazendo que arriscassem suas peles em roubos que eram verdadeiras loucuras e depois recusando-se a fazer a partilha. E nos seus coraçõezinhos começou a pulsar revolta, acabaram beijando-se apesar da proibição do outro, não se importando de receber um tapa do invisível, com que ele os ameaçava. O tapa não veio e eles continuaram a beijar-se docemente esquecidos de todo o resto, pondo nessa carícia sua longa paixão reprimida, tudo o que havia neles de martirizado e enternecido Durante toda a noite tinham-se aquecido dessa maneira, tão felizes no fundo daquele buraco inóspito, que nem se lembravam de algum vez o terem sido tanto, nem mesmo na festa de Santa Bárbara quando comiam filhoses e bebiam vinho.

Um toque repentino de clarim fez Catherine estremecer. Pôs-se na ponta dos pés e viu a guarda da Voreux armando-se. Etienne surgiu correndo. Bébert e Lydie, de um pulo, saltaram para fora do esconderijo. Ao longe, dentro do dia que clareava, um bando de homens e mulheres vinha descendo do conjunto habitacional, com grandes gestos de cólera.

 

Acabavam de fechar todas as entradas da Voreux e os sessenta soldados, descansando armas, obstruíam a única porta que fora deixada livre, a que conduzia à recebedoria por uma escada estreita, para onde davam a sala dos contramestres e o

vestiário. O capitão alinhara-os em duas fileiras, contra o muro de tijolos, para não poderem ser atacados pela retaguarda.

A princípio, o grupo de mineiros vindos do conjunto habitacional manteve-se a distância. Eram no máximo uns trinta e faziam seus planos com palavras violentas e confusas.

A mulher de Maheu, que fora a primeira a chegar, despenteada sob um lenço posto às pressas, tendo nos braços Estelle, que dormia, repetia com voz febril:

— Que ninguém entre e ninguém saia! Temos que agarrá-los todos lá dentro!

Maheu aprovava, no momento em que o velho Mouque chegou de Réquillart. Quiseram impedir sua passagem, mas ele se debateu, dizendo que os cavalos não podiam ficar sem comer sua aveia e que nada tinham a ver com a revolução. E, ainda por cima, havia um cavalo morto, estavam à sua espera para retirá-lo. Etienne libertou o velho cavalariço, que os soldados deixaram descer ao poço. Um quarto de hora mais tarde, quando o bando de grevistas já estava maior e tornava-se ameaçador, uma porta larga do térreo se abriu e apareceram homens arrastando o animal morto, um espetáculo horrível, ainda enfiado na rede de corda, e que abandonaram no meio das poças de neve derretida. Foi tamanha a comoção que ninguém os impediu de entrarem novamente e trancarem a porta. Todos tinham reconhecido o cavalo, pela cabeça dobrada e amarrada ao flanco. Ouviram-se murmúrios:

— Não é o Trombeta? É, sim, é o Trombeta.

Realmente, era ele. Desde que descera, nunca pudera aclimatar-se Andava tristonho, sem gosto para o trabalho, como que torturado por uma nostalgia do sol. Em vão Batalha, o decano da mina, roçava-o amigavelmente com as costelas, mordiscava-lhe o pescoço, tentando incutir-lhe um pouco da resignação dos seus dez anos debaixo da terra. Estas carícias redobraram sua melancolia, seu pêlo fremia sob as confidencias do camarada que envelhecera nas trevas; e ambos, cada vez que se encontravam e relinchavam juntos, pareciam estar-se lamentando: o velho de já nem sequer recordar, o jovem de não conseguir esquecer. Na cavalariça, em manjedouras vizinhas, viviam de cabeça baixa, assoprando as narinas um ao outro, intercambiando seu contínuo sonho da luz, visões de pradarias, de estradas brancas, de claridades amarelas, sem fim. Depois, quando Trombeta, alagado em suor, agonizava na sua cama de palha, Batalha pusera-se a farejá-lo em desespero, resfolegando rapidamente, como se estivesse soluçando. Sentia que o outro estava esfriando, a mina arrebatava-lhe sua derradeira alegria, aquele amigo caído lá do alto, cheio de bons aromas que lhe recordavam sua juventude ao ar livre. E arrebentara a correia, relinchando de medo ao constatar que Trombeta não se mexia mais.

Mouque vinha advertindo o capataz havia oito dias do que se estava passando, mas quem iria importar-se com um cavalo doente naquela ocasião?! E depois, a direção não gostava de mudar cavalos. Agora, portanto, só restava tirá-lo para fora. Na véspera, o cavalariço e mais dois homens haviam passado uma hora amarrando o cavalo morto. Atrelaram Batalha para levá-lo até o poço. Lentamente, o velho cavalo puxava o camarada morto, por uma galeria tão estreita que tinha de dar safanões, arriscando arrancar-lhe a pele. E, exausto, abanava a cabeça, ouvindo o longo arrastar daquela massa que ia ser esfolada. Na boca do poço, quando o desatrelaram, seguiu com um olhar triste os preparativos da subida, o corpo lançado sobre travessas, por cima do fosso, a rede amarrada por baixo de um elevador. Afinal os ascensoristas deram o sinal de corpo, ele ergueu a cabeça para vê-lo partir, primeiro devagar, em seguida engolfado nas trevas, desaparecido para sempre naquele buraco escuro. E assim permaneceu, de pescoço espichado, sua memória vacilante de animal recordando-se talvez das coisas da terra. Mas tudo estava terminado, o companheiro nunca mais veria nada, ele próprio seria assim envolto como um embrulho atroz, no dia em que subisse por ali. Suas pernas puseram-se a tremer, o ar puro que vinha dos prados distantes o deixava tonto; e parecia bêbado quando voltou vagarosamente para a cavalariça.

No pátio, os mineiros continuavam sombrios diante do cadáver de Trombeta. Uma mulher disse a meia voz:

— Mais um homem que vai descer, se quiser...

Mas um novo grupo despontava vindo do conjunto habitacional, e Levaque, que marchava à frente, seguido da mulher e de Bouteloup, gritava:

— Morram os belgas! Fora com os estrangeiros! Morram! Morram!

Todos se precipitaram, Etienne teve de contê-los. Aproximou-se do capitão, um homem jovem, alto e delgado, com apenas vinte e oito anos, de fisionomia desesperada e resoluta. Começou a explicar-lhe tudo, tentando aliciá-lo, estudando o efeito das suas palavras. Para que arriscar um massacre inútil? Acaso a justiça não estava do lado dos mineiros? Eram todos irmãos, deviam entender-se. À palavra "república", o capitão fizera um gesto nervoso. Permaneceu todo o tempo numa postura militar, e disse bruscamente:

— Caia fora! Não me force a cumprir com o meu dever. Três vezes Etienne recomeçou. Por trás dele os companheiros resmungavam. Corria o boato de que o Sr. Hennebeau estava na mina e falava-se em descê-lo ao fundo pelo pescoço para ver se ele, sozinho, conseguiria tirar carvão do veio. Mas era boato falso, lá dentro só estavam Négrel e Dansaert, que, por um momento, chegaram a aparecer numa janela da recebedoria: o capataz conservava-se atrás, embaraçado desde a sua aventura com a mulher de Pierron, ao passo que o engenheiro, corajosamente, esquadrinhava a multidão com seus olhinhos vivos, sorrindo com aquele desprezo trocista com que envolvia pessoas e coisas. Começaram as vaias e desapareceram. No seu lugar surgiu a cabeça loura de Suvarin; estava de serviço, não tinha abandonado sua máquina não tinha abandonado sua máquina um só dia, desde o início da greve, num mutismo absoluto, aos poucos absorvido por uma idéia fixa, que como um prego de aço parecia luzir no fundo dos seus olhos pálidos.

— Caiam fora! — repetiu gritando o capitão. — Não tenho nada que ouvir, tenho ordens de guardar o poço e vou cumpri-las... Se vocês se aproximarem dos meus homens, eu saberei como fazê-los recuar.

Apesar da voz firme, sua inquietude e palidez eram cada vez maiores, diante do número sempre crescente de mineiros. Devia ser rendido ao meio-dia, mas, temendo não agüentar-se até lá, acabava de enviar a Montsou um mensageiro em busca de reforço.

Recomeçaram as vociferações:

— Morte aos estrangeiros! Morte aos belgas! Aqui nós somos os donos!

Etienne recuou, abatido. Era o fim, só lhe restava lutar e morrer. Daquele momento em diante deu rédea solta aos companheiros. O boato avançou até o destacamento. Eram perto de quatrocentos e os conjuntos habitacionais das imediações também estavam chegando, prontos para a batalha. Todos gritavam a mesma coisa; Maheu e Levaque, furiosos, conclamavam os soldados:

— Vão embora! Não temos nada contra vocês, desistam!

— Isso não é assunto para soldado — gritava a mulher de Maheu. — Deixem a gente resolver o problema entre nós!

Por trás dela, a mulher de Levaque acrescentava, ainda mais violenta:

— Será que teremos de dar cabo de vocês para poder passar? Vamos, dêem o fora!

Ouviu-se até a voz esganiçada de Lydie, que se metera no meio da turba, acompanhada de Bébert, e gritava a plenos pulmões:

— Soldados cretinos!

Catherine, a poucos passos, olhava, escutava, como que aparvalhada com aquelas novas violências, no meio das quais a má sorte a fazia cair. Será que já não

estava sofrendo bastante? Que pecado teria cometido para ser assim perseguida pela desgraça? Ainda na véspera, não tinha compreendido nada dessas violências grevistas que agora explodiam, e pensara que, quando já se tem o seu quinhão de maus-tratos, não se deve procurar mais. Mas agora seu coração enchia-se de ódio,lembrou-se do que Etienne dizia, quando procurava catequizá-los, e por isso procurou ouvir o que ele estava falando com os soldados. Etienne chamava-os de companheiros lembrava-lhes que também eram povo, que deviam estar do lado do povo, contra os exploradores da miséria.

Mas, de repente, a multidão abriu alas, e apareceu uma velha Era a Queimada, horrendamente magra, com o pescoço e os braços descobertos, chegando num tal galope que quase não enxergava com o cabelo grisalho todo desgrenhado caindo-lhe nos olhos.

— Raios os partam! Cheguei a tempo! — balbuciou ela respirando a custo. — O vendido do Pierron tinha-me fechado no porão!

E, sem tomar fôlego, caiu sobre a tropa com a sua boca negra vomitando insultos:

— Corja de canalhas! Corja de crápulas! Lambe-botas dos superiores, só são corajosos quando é para ir contra os pobres!

Os outros, então, juntaram-se a ela e foi uma torrente de injúrias. Alguns ainda gritavam: "Vivam os soldados! Para o poço com o oficial!" Mas dentro em pouco só se ouvia um clamor: "Abaixo os calças-vermelhas!" E esses homens, que tinham escutado impassíveis, de fisionomia imóvel e muda, os apelos à fraternidade, as tentativas amistosas de aliciamento, conservavam a mesma rigidez passiva sob aquela saraivada de insultos. Detrás deles o capitão desembainhara a espada. E, como a multidão apertava o cerco, ameaçando esmagá-los contra a parede, comandou preparar baioneta. Os soldados obedeceram, duas fileiras de pontas de aço vieram encostar-se ao peito dos grevistas.

— Canalhas! — berrou a Queimada, recuando.

Mas já estavam todos avançando novamente, num exaltado desprezo pela morte. Algumas mulheres se precipitaram, a de Maheu e a de Levaque clamavam:

— Podem matar-nos, podem matar-nos! Queremos os nossos direitos!

Levaque, em risco de se cortar, tinha agarrado nas mãos um feixe de baionetas, três baionetas, e sacudia-as, puxando-as para arrancá-las. E torcia-se com a força duplicada da sua cólera, enquanto Bouteloup, ao lado, arrependido de ter seguido o companheiro, olhava-o com toda a calma.

— Vamos, ataquem! — repetia Maheu. — Ataquem, se têm coragem!

E abriu a jaqueta e a camisa, mostrando o peito nu, cabeludo e tatuado pelo carvão. Começou a investir contra o aço, obrigando os soldados a recuarem, terrível na sua insolência e bravura. Uma das baionetas atingiu-o à altura do mamilo e ele, como doido, forçava-a que entrasse profundamente, querendo ouvir as costelas estalarem.

— Covardes, não se atrevem... Há dez mil atrás de nós. Podem matar-nos, terão de matar mais dez mil.

A posição dos soldados tornava-se crítica; tinham recebido ordem de só usarem suas armas em caso extremo. Mas como impedir aqueles loucos de se auto-imolarem? Por outro lado, o espaço diminuía, encontravam-se agora acuados contra a parede, na impossibilidade de continuar recuando. A pequena tropa, um punhado de homens, diante da avalanche de mineiros, continuava resistindo, executando com sangue-frio as ordens breves dadas pelo capitão. Este, com seus olhos claros, os lábios nervosamente adelgaçados, só temia uma coisa, vê-los perder a cabeça com as injúrias. Já um sargento jovem, alto e magro, com bigode ralo e em pé, piscava os olhos de uma maneira inquietadora. Ao lado dele, um velho cheio de condecorações, de pele curtida por inúmeras campanhas, ficara lívido ao ver sua baioneta torcida como uma palha. Outro, sem dúvida um recruta, ainda cheirando a terra lavrada, fazia-se rubro cada vez que era chamado crápula e canalha. E as violências não cessavam, os punhos estendidos, os palavrões, as torrentes de acusações e ameaças eram como bofetadas. Era necessária toda a força da disciplina para os conter assim, impassíveis, no altivo e triste silêncio da rigidez militar.

Um choque parecia fatal, quando surgiu por trás da tropa o contramestre Richomme, com sua cabeça alva de policial bondoso, fremindo de emoção. Falou aos gritos:

— Diabo os carregue, seus idiotas! Isso não pode continuar assim!

E lançou-se entre as baionetas e os mineiros.

— Companheiros, escutem... Vocês sabem muito bem que eu sou um velho operário e sempre fui um dos de vocês. Pois bem, raios me partam! Prometo-lhes que, se não forem justos com vocês, eu mesmo irei até os patrões para lhes dizer umas boas... Mas chega disto, não se lucra nada berrando palavrões a esta boa gente e querendo ficar espetado na ponta duma baioneta.

Todos escutavam, hesitantes. No alto, infelizmente, voltou a delinear-se o perfil de Négrel. Temia, sem dúvida, ser acusado de enviar um contramestre, em vez de arriscar a própria pele. Tentou falar, mas sua voz perdeu-se no meio de tão espantoso tumulto, que teve de abandonar novamente a janela, depois de ter dado de ombros. Daí por diante, por mais que Richomme suplicasse em seu próprio nome, por mais que repetisse que aquilo devia ser decidido entre companheiros, repeliram-no, cheios de suspeitas; mas ele não arredou pé do meio dos grevistas.

— Raios os partam! Podem rachar-me a cabeça, mas não saio daqui enquanto continuarem bancando os idiotas!

Etienne, a quem ele pedia que o ajudasse a demover os companheiros, fez um gesto de impotência. Era tarde demais, os grevistas já eram mais de quinhentos. E já não eram só os revoltados vindos para expulsar os belgas; formavam-se grupos de curiosos de trocistas que se divertiam com a briga. No meio de um grupo, a pouca distância, Zacharie e Philomène olhavam, como se estivessem num teatro, tão despreocupados que tinham até trazido os dois filhos, Achille e Désirée. De Réquillart chegou um novo bando e nele vinham os filhos de Mouque; ele foi logo bater no ombro do seu amigo Zacharie, fazendo piadas; ela, cheia de entusiasmo, correu para a primeira fila dos cabeças-quentes.

Enquanto isso, o capitão olhava a todo momento para a estrada de Montsou. O reforço pedido não chegava, os seus sessenta homens já não podiam continuar resistindo.

Por fim, decidiu, em desespero de causa, assustar a multidão, e mandou carregar armas. Os soldados executaram a voz de comando, mas a agitação redobrou, com fanfarronadas e piadas.

— Olhem, os vagabundos vão fazer exercícios de tiro! — diziam as mulheres, a Queimada, a esposa de Levaque e as outras.

A mulher de Maheu, com o peito coberto pelo corpinho de Estelle, que tinha acordado e chorava, aproximou-se tanto, que o sargento lhe perguntou o que ela vinha fazer ali com aquela pobre criança.

— É da tua conta? — respondeu ela. — Atira, se tens coragem. Os homens abanavam a cabeça, cheios de desprezo. Nenhum acreditava que atirassem neles.

— Os cartuchos não têm bala — disse Levaque.

— Será que nós somos cossacos? — gritou Maheu. — Não se atira em franceses, desgraçados!

Outros diziam que, tendo feito a campanha da Criméia, não mais tinham medo de chumbo. E todos continuavam a atirar-se de encontro aos fuzis. Uma descarga naquele momento teria ceifado a multidão. Na primeira fileira, a filha de Mouque estava rouca de

tanto gritar furiosa só de pensar que os soldados queriam assassinar mulheres. Já lhes havia cuspido todo o seu repertório de palavrões não encontrava mais uma injúria que fosse bastante ofensiva, quando de repente, não restando senão essa mortal ofensa para ela bombardear a tropa, mostrou o traseiro. Levantou as saias com ambas as mãos até a cintura e pôs à mostra as nádegas enormes.

— Toma pra vocês! E até que é limpo demais, nem merecem, seus porcos!

Dobrava-se, punha-se de bruços e ia-se virando para que cada um tivesse o seu quinhão, ao mesmo tempo que dizia:

— Pro oficial! Pro sargento! Pros soldados todos!

Houve uma verdadeira tempestade de gargalhadas, Bébert e Lydie se retorciam, o próprio Etienne, apesar da sua sombria expectativa, aplaudiu aquela nudez insultante. Todos, brincalhões e brigões, começaram a vaiar os soldados, como se os vissem cobertos de dejetos. Só Catherine, à parte, em pé sobre um monte de madeira velha, permanecia calada, com o sangue latejando nas têmporas, invadida por aquele ódio cujo calor sentia aumentar paulatinamente.

Começaram os incidentes mais graves. O capitão, para acalmar seus homens, decidiu-se a fazer prisões. De um salto a filha de Mouque escapou, metendo-se por entre as pernas da multidão. Três mineiros, Levaque e mais dois, foram apanhados no grupo dos mais violentos e guardados à vista, no fundo da sala dos contramestres.

Do alto, Négrel e Dansaert gritaram ao capitão para que entrasse e se fechasse com eles. Este recusou, sentia que essas edificações, de portas sem fechaduras, iam ser tomadas de assalto, e ele passaria pela vergonha de ser desarmado. Seu minúsculo destacamento já estava grunhindo de impaciência, não se podia fugir diante daqueles miseráveis de tamancos. Os sessenta, apertados contra a parede, de fuzis carregados, continuaram fazendo frente ao bando.

A princípio houve um recuo, um profundo silêncio. Os grevistas permaneciam espantados com aquele golpe de força, mas em seguida ergueu-se um clamor, exigindo os prisioneiros, reclamando sua liberdade imediata. Começou a correr um rumor de que estavam sendo esfaqueados lá dentro. E, sem terem combinado, levados pelo mesmo ímpeto, pelo mesmo desejo de desforra, todos correram aos montes de tijolos que ficavam ao lado, tijolos feitos com o barro do terreno margoso e que eram cozidos ali mesmo. As crianças os traziam um a um, as mulheres enchiam as saias. Dentro em pouco todos tiveram um monte de munição aos pés e começou batalha a pedradas.

Foi a Queimada quem começou a atirar; quebrava os tijolos na aresta aguda dos joelhos, e com ambas as mãos arremessava os dois pedaços. A mulher de Levaque quase destrancava os ombros de tão gorda e mole, e teve de se aproximar para não errar o alvo, apesar das súplicas de Bouteloup, que a puxava por trás, na esperança de levá-la para casa, agora que o marido estava engaiolado. A excitação era geral; a filha de Mouque, não querendo ferir as pernas flácidas com os tijolos, preferiu jogá-los inteiros. Até as crianças entraram na batalha. Bébert ensinava Lydie a atirar por baixo do braço. Era uma verdadeira saraivada de pedras, pedaços enormes que soavam surdamente. E, subitamente, no meio daquelas fúrias, lá estava Catherine, com os punhos no ar, brandindo também pedaços de tijolos, arremessando-os com toda a força dos seus braços finos. Se lhe perguntassem, não saberia dizer por que estava fazendo aquilo, sentia apenas que estava sufocada, desesperada, querendo destruir o mundo. Será que essa maldita existência de infortúnios não teria um fim breve? Estava farta de ser espancada e escorraçada por seu homem, de chafurdar como um animal acuado no lodo das estradas, sem ao menos pedir um pedaço de pão ao seu pai, que, como ela, não tinha nada para comer. Desde que se conhecia por gente sua vida fora horrível, e ia de mal a pior. E por isso partia os tijolos e arremessava-os, com a única idéia de tudo destruir, tão cega de ódio que nem via em quem acertava.

Etienne, que permanecera diante dos soldados, por pouco não teve a cabeça quebrada. Sua orelha inchava, voltou-se estremecendo ao compreender que o tijolo partira das mãos febris de Catherine; e, arriscando ser morto, ficou onde estava, a olhá-la. Muitos outros também permaneceram sem tomar parte, fascinados pela batalha. O jovem Mouque julgava os golpes, como se estivesse assistindo a um jogo: este acertou, aquele outro não teve sorte! Gracejava, mostrava a Zacharie, que brigava com Philomène, esta zangada por ele ter espancado Achille e Désirée, recusando-se a pô-los às costas para que vissem. Havia espectadores, aglomerados ao longe, ao longo da estrada. E no alto da ladeira, na entrada do conjunto habitacional, o velho Boa-Morte acabava de surgir, arrastando-se com a ajuda de uma bengala, imóvel agora, ereto contra o céu cor de ferrugem.

Quando começaram a chover os primeiros tijolos, o contramestre Richomme pusera-se outra vez entre soldados e mineiros. Suplicava exortava outros, sem levar em conta o perigo, tão desesperado que suas grossas lágrimas lhe corriam pelo rosto. Não se podiam entender suas palavras no meio do barulho, via-se apenas seu grande bigode grisalho que tremia.

Mas a saraivada de tijolos era cada vez mais forte. Os homens, a exemplo das mulheres, também atiravam.

Nesse momento a mulher de Maheu percebeu que o marido f cara para trás, de mãos vazias e ar sombrio.

— Que há contigo? Fala! — gritou ela. — Será possível que vais abandoná-los? Terás a coragem de deixar teus companheiros na cadeia? Ah! se eu não estivesse com esta criança tu verias!

Estelle, que se tinha agarrado ao seu pescoço, berrando, impedia-a de juntar-se à Queimada e às outras. E, como seu marido parecia não ouvir, ela empurrou com o pé alguns tijolos para junto dele.

— Raio de homem! Anda, pega isso! Ou será que serei obrigada a cuspir-te na cara diante de todo mundo para te dar ânimo?

Muito vermelho, ele começou a quebrar tijolos e a arremessá-los. Ela fustigava-o, aturdia-o, uivava por trás dele gritos de guerra, esmagando a criança contra o peito com os braços crispados. Ele avançou sempre encontrando-se finalmente diante dos fuzis. Sob aquela tempestade de pedras, a pequena guarnição desaparecia. Felizmente as pedras batiam alto, a parede estava crivada. Que fazer? A idéia de bater em retirada, de voltar as costas, enrubesceu por um momento o rosto pálido do capitão; mas nem esse movimento era já possível, ao menor gesto seriam despedaçados. Um tijolo acabava de quebrar a pala do seu quepe, gotas de sangue corriam-lhe da testa. Muitos dos seus homens estavam feridos e ele sentia-os fora de si, no estágio desesperado da defesa pessoal, em que se cessa de obedecer aos chefes. O sargento havia largado uma praga, com o ombro direito meio deslocado, a carne ferida por uma pancada surda, semelhante ao ruído que faz a lavadeira quando bate a roupa. Já por duas vezes atingido, o recruta tinha um polegar esmagado e uma queimadura ardente no joelho direito: por quanto tempo ainda teriam de suportar tudo aquilo? Como uma pedra, fazendo ricochete, tivesse atingido o velho soldado de carreira na barriga, este ficou lívido, sua arma tremeu e apontou, segura por seus braços magros. Por três vezes o capitão esteve a ponto de dar voz de fogo, mas uma angústia impedia-o, uma luta interminável de alguns segundos que acordava dentro dele idéias, deveres, todas as suas crenças de homem e de soldado. A chuva de tijolos era cada vez mais forte e ele ia abrir a boca para gritar "Fogo!" quando os fuzis começaram a disparar, primeiro três tiros, depois cinco, depois um tiroteio de pelotão e por fim um disparo sozinho, muito depois no profundo silêncio.

Houve um momento de estupor. Eles tinham atirado, a multidão boquiaberta permanecia imóvel, ainda sem poder acreditar. Mas gritos dilacerantes elevaram-se, enquanto o clarim tocava o cessar fogo. Seguiu-se um pânico tremendo, um galope de gado metralhado, uma fuga sem rumo pela lama.

Bébert e Lydie caíram um sobre o outro aos primeiros tiros, ela ferida na cabeça, ele abaixo do ombro esquerdo. A menina, fulminada, não se mexia mais; Bébert, porém, ainda tinha movimentos e abraçava-a nas convulsões da agonia, como se quisesse repetir o gesto que fizera no fundo do buraco escuro, onde tinham passado a sua última noite. E Jeanlin, que justamente naquele momento chegava de Réquillart, ainda sonolento, capengando no meio da fumaça, viu o amigo abraçar-se à sua mulherzinha e morrer.

Os outros cinco tiros tinham atingido a Queimada e o contramestre Richomme. Ferido pelas costas, no momento em que suplicava aos camaradas, o homem caíra de joelhos e, tombando para um lado, agonizava por terra, com os olhos arrasados das lágrimas que tinha chorado. A velha, com a garganta estraçalhada, caíra reta e rangendo como um feixe de lenha seca, gaguejando uma última praga por entre os borbotões de sangue.

A essa altura, o fogo do pelotão já varria o terreno, ceifava a cem passos os grupos de curiosos que riam da batalha. Uma bala entrou pela boca do jovem Mouque, derrubando-o, esfacelado, aos pés de Zacharie e Philomène, tendo as duas crianças ficado todas respingadas de sangue. No mesmo momento a filha de Mouque recebia duas balas na barriga. Tinha visto os soldados fazerem pontaria e correra, num movimento instintivo de mulher bondosa, para proteger Catherine, gritando-lhe que tivesse cuidado; e deu um urro de dor, caindo de costas com o choque das balas. Etienne correu, quis levantá-la e carregá-la, mas com um gesto ela disse que estava tudo acabado. Depois, no arranco da morte, não deixou de sorrir a um e outro, como se estivesse feliz de vê-los juntos, agora que se ia.

Parecia tudo terminado, o furacão de balas fora perder-se ao Longe, atingindo mesmo as fachadas do conjunto habitacional, quando o último tiro partiu, isolado, com atraso.

Maheu, atingido no coração, rodopiou e caiu com o rosto numa poça de água, negra de carvão.

Imbecilizada, a esposa abaixou-se.

— Eh, meu velho, levanta-te! Vamos! estás sentindo alguma coisa?

Com as mãos ocupadas por Estelle, teve de pô-la debaixo de um braço, para voltar a cabeça do seu homem.

— Vamos, fala! Onde é que estás ferido?

Maheu tinha os olhos vidrados, a boca escorrendo uma baba sanguinolenta. Ela compreendeu: o marido estava morto. Ficou então sentada no lodo, a filha debaixo do braço como um pacote, olhando estupefata para o seu homem.

A mina estava livre. Com o seu gesto nervoso, o capitão tirara e tornara a pôr o quepe rasgado por uma pedra; e conservava o mesmo aprumo, lívido diante daquele desastre da sua vida, enquanto seus homens, impassíveis, voltavam a carregar as armas. Surgiram na janela da recebedoria os rostos assustados de Négrel e Dansaert. Suvarin estava por trás deles, com a testa cortada por uma grande ruga, como se o prego da sua idéia fixa tivesse vindo cravar-se ali, ameaçador. Do outro lado do horizonte, na borda do planalto, Boa-Morte não se movera, com uma das mãos apoiadas na bengala e a outra fazendo uma pala sobre os olhos, para ver melhor, embaixo, o extermínio dos seus. Os feridos gemiam, os mortos esfriavam em posturas indefinidas, enlameados pelo lodo líquido do degelo, com a sujeira do carvão boiando ao seu redor e emoldurados pela neve imunda. E no meio desses cadáveres de homens pequenos, pobres e esqueléticos de tanta miséria, jazia o cadáver de Trombeta, um monte de carne sem vida, monstruoso e atroz.

Etienne não morrera. Continuava a esperar, ao lado de Catherine, caída de fadiga e angústia, quando uma voz vibrante o fez estremecer. Era o Padre Ranvier, que voltava da sua missa e, com os braços erguidos, num furor de profeta, pedia para os assassinos a cólera de Deus. Anunciava a era da justiça, a próxima exterminação da burguesia pelo fogo do céu, já que ela levava ao cúmulo os seus crimes, massacrando os trabalhadores e os deserdados deste mundo.

 

O tiroteio de Montsou repercutiu até em Paris com um eco formidável. Durante quatro dias, todos os jornais da oposição, indignados, publicaram nas suas primeiras páginas narrativas atrozes: vinte e cinco feridos, catorze mortos, entre eles duas crianças e três mulheres, e mais os prisioneiros. Levaque transformara-se numa espécie de herói, atribuíam-lhe uma resposta de uma grandeza antiga ao juiz de instrução. O império, ferido nas próprias carnes por aquelas poucas balas, fingia a calma do todo-poderoso, sem dar-se conta da gravidade da sua ferida. Era simplesmente um choque lamentável, coisa vaga e distante, na região carbonífera, muito longe do centro de gravitação, que era Paris. Tudo seria esquecido em pouco tempo, a companhia recebera ordem de abafar o problema e de acabar com a greve, cuja irritante duração se transformava em perigo social.

Por isso, na quarta-feira de manhã, chegaram a Montsou três administradores. A pequena cidade, que não ousara até então regozijar-se com o massacre, de coração oprimido, respirou, enfim, saboreando a alegria de se ver salva. Justamente nesse dia o tempo estava esplêndido, com um sol radioso, um dos primeiros sóis de fevereiro, cuja tepidez faz que os brotos dos lilases desabrochem. Todas as persianas da administração foram descidas, o vasto edifício parecia reviver e dali começaram a sair os boatos mais animadores; dizia-se que os administradores, muito chocados com a catástrofe, tinham vindo para abrir seus braços paternais aos desesperados mineiros. Agora que o golpe fora dado, sem dúvida mais violento do que eles queriam, prodigalizavam-se na sua missão de salvadores, decretavam medidas tardias e excelentes. Primeiro despediram os belgas, fazendo grande alarde dessa concessão extrema aos seus operários; depois suspenderam a ocupação militar das minas, que grevistas esmagados já não ameaçavam; foram eles também que obtiveram silêncio acerca da sentinela da Voreux que desaparecera: tinha-se esquadrinhado a região sem encontrar o fuzil ou o cadáver ficou decidido que o soldado seria declarado desertor, ainda que houvesse a suspeita de um crime. Em tudo esses senhores se esforçaram para atenuar os acontecimentos, tremendo de medo do futuro, julgando perigoso confessar a irrefreável selvageria de uma multidão, desencadeada pelos alicerces caducos do velho mundo. E além do mais, esse trabalho de conciliação não os impedia de conduzir a bom termo os assuntos puramente administrativos: Deneulin já fora visto entrando na administração para encontrar-se com o Sr. Hennebeau. As conversações para a compra de Vandame continuavam, afirmava-se que ele ia aceitar as ofertas dos administradores.

Mas o que sobretudo agitou a região foram os enormes cartazes amarelos que esses senhores mandaram afixar nas paredes; liam-se neles estas poucas linhas em letras garrafais: "Operários de Montsou, não queremos que os desmandos praticados nos últimos dias privem com seus tristes efeitos os meios de subsistência dos operários sensatos e de boa vontade. Por isso, na segunda-feira, de manhã, abriremos novamente todas as minas, e, quando o trabalho já estiver em curso, examinaremos com cuidado e benevolência as situações que poderiam ser melhoradas. Faremos, enfim, tudo o que for possível e justo." Numa manhã, os dez mil mineiros desfilaram diante desses cartazes. Nenhum falava, muitos abanavam a cabeça, outros iam-se, arrastando os pés, sem que um músculo do rosto se tivesse movido.

Até então, o conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante obstinara-se na sua resistência desesperada. Parecia que o sangue dos companheiros, que tingira o lodo da mina, impedia o caminho aos demais. Apenas uns dez haviam descido: Pierron e outros vendidos iguais a ele, que os demais, com ar sombrio, viam partir e voltar, sem um gesto ou ameaça. O cartaz afixado na igreja foi acolhido com surda desconfiança; nele não se falava das carteiras de trabalho que tinham sido devolvidas. A companhia voltaria a empregar os despedidos? O medo de represálias e a idéia fraternal de protestar contra a demissão dos mais comprometidos faziam que todos fincassem pé na obstinação. Tudo aquilo era muito equívoco, o melhor era esperar para ver, voltariam ao trabalho quando esses senhores resolvessem explicar-se com franqueza. Um silêncio esmagava o casario baixo, a própria fome já não tinha importância todos podiam morrer desde que a morte violenta voejara sobre suas casas.

Um lar principalmente, o dos Maheu, conservava-se negro e mudo, afundado na sua dor. Desde que tinha acompanhado o marido ao cemitério, a mulher não abria a boca. Depois da batalha, permitira que Etienne trouxesse para casa Catherine, enlameada e semimorta e quando a despia diante do rapaz, para a deitar, pensou por um instante que também a filha lhe voltava com uma bala na barriga, porque a camiseta tinha grandes manchas de sangue. Mas compreendeu logo: era, enfim, o sangue da puberdade que corria, devido ao choque daquele dia abominável. Que sorte a deles! Que belo presente aquele sangue! Poder fazer filhos para serem mortos pelos policiais... E não dirigiu a palavra a Catherine, como, aliás, não falou com Etienne. Este voltou a dormir com Jeanlin, arriscando ser preso, tomado de tal repugnância à idéia de voltar para as trevas de Réquillart, que preferia a prisão. Os arrepios o sacudiam, era o horror da noite após todas aquelas mortes, o medo inconfessado do soldadinho que jazia sob as rochas. De resto, imaginava a prisão como um refúgio no meio do tormento da sua derrota; mas a polícia nem sequer o procurou, passava horas horríveis, sem saber em que esfalfar seu corpo. E, além de tudo isso, a viúva às vezes os encarava, a ele e à filha, com ar rancoroso, como se estivesse perguntando o que estavam fazendo na casa dela.

Voltaram a roncar amontoados. O velho Boa-Morte ocupava a cama que pertencera às duas crianças, que dormiam com Catherine, agora que não existia mais a pobre Alzire para aninhar sua corcunda nas costas da irmã mais velha. Era ao deitar-se que a mãe sentia o vazio da casa, no frio do seu leito, agora tão largo. Em vão apertava-se de encontro a Estelle, isso não substituía o seu homem. E chorava em silêncio, horas a fio. Depois, os dias começaram a decorrer como antes: sempre sem pão, não tendo contudo a sorte de morrerem de uma vez por todas; coisas apanhadas a esmo que prestavam aos miseráveis o mau serviço de fazê-los durar. Nada havia mudado na sua existência, só havia de menos o seu homem.

Na tarde do quinto dia, Etienne, a quem aquela mulher silenciosa causava desespero, deixou a sala e caminhou lentamente ao longo da rua calçada da aldeia. A inação, que lhe era tão pesada, levava-o contínuos passeios, de braços caídos, cabeça baixa, torturado pelo mesmo pensamento. Vagava assim havia meia hora, quando sentiu, a cúmulo do constrangimento, que seus companheiros se punham às portas para o verem. O pouco que sobrava da sua popularidade fora-se com o vento da fuzilaria, já não conseguia passar entre eles ter de suportar olhares cheios de rancor. Quando ergueu a cabeça, figuras ameaçadoras o observavam, as mulheres entreabriam pequenas cortinas das janelas. E sob aquela acusação, muda ainda, sob a cólera contida daqueles olhos enormes, dilatados pela fome e pelas lágrimas, não sabia o que fazer, nem sabia andar. Às suas costas, a surda censura ia num crescendo. Presa de tal medo de ouvir todo o conjunto habitacional saindo à rua para lhe gritar sua miséria, voltou para casa, todo trêmulo.

Mas no lar dos Maheu a cena que o esperava acabou de arrasá-lo. O velho Boa-Morte estava ao lado do fogão apagado, pregado na sua cadeira desde que dois vizinhos, no dia da matança, tinham-no encontrado por terra, com a bengala quebrada, derrubado como uma velha árvore fulminada. E, enquanto Lénore e Henri, para enganar o

estômago, raspavam com ruído ensurdecedor uma velha panela, onde na véspera tinham cozinhado algumas couves, a mulher de Maheu, muito ereta, após ter pousado Estelle sobre a mesa, ameaçava Catherine com o punho.

— Repete, diabo! Repete o que acabas de dizer!

Catherine tinha falado de sua intenção de voltar a trabalhar na Voreux. A idéia de não ganhar seu pão, de ser apenas tolerada na casa da mãe como um animal incômodo e inútil, tomava-se-lhe cada dia mais insuportável. E, se não fosse o temor de receber uns tabefes de Chaval, já na terça-feira teria descido. Gaguejando, insistiu:

— Que queres? Não se pode viver sem fazer nada. Ao menos teríamos pão.

A outra interrompeu-a:

— Escuta, o primeiro de vocês que voltar ao trabalho, eu mato... Era só o que faltava! Assassinar o pai e continuar explorando os filhos! Chega! Antes prefiro ver todos vocês levados de pés juntos, como o que já foi.

E o seu longo silêncio explodiu furiosamente numa torrente de palavras. Que bela soma lhe traria Catherine! Apenas trinta soldos, aos quais se poderiam adicionar vinte se os patrões quisessem dar algum serviço ao bandido do Jeanlin. Cinqüenta soldos e sete bocas a alimentar! Os pequenos só prestavam para comer. Quanto ao avô, devia estar com algum parafuso no cérebro frouxo por causa da queda, porque parecia um idiota, ou então sofrera um abalo vendo os soldados atirarem nos companheiros.

— Não é verdade, velho? acabaram com a sua casca. De nada lhe vale ter as mãos ainda fortes, está liquidado.

Boa-Morte olhava-a com seus olhos baços, sem compreender Ficava horas com o olhar perdido, só sabia cuspir num prato cheio de cinza, que punham ao seu lado, por asseio.

— E nem ao menos pagaram a sua pensão — prosseguiu ela. — Estou certa de que vão suspendê-la, por causa das nossas idéias... Não, chega! Já disse que não quero mais nada desses desgraçados!

— Mas eles — arriscou Catherine — prometem no cartaz...

— Queres deixar-me em paz com esse tal cartaz? Outra arapuca para nos apanhar e destruir. Agora que nos furaram à bala podem bancar os bonzinhos para nós.

— Mas então, para onde iremos, mamãe? Não poderemos ficar aqui no conjunto habitacional, com certeza.

A mulher fez um gesto incompreensível e terrível. Para onde iriam? Não sabia, nem queria pensar nisso para não ficar louca. Iriam por aí, para qualquer parte. E, como o

barulho da panela estava ficando insuportável, jogou-se sobre Lénore e Henri e espancou-os. Uma queda de Estelle, que tinha engatinhado, aumentou a algazarra. A mãe acalmou-a com um tabefe: que felicidade se tivesse morrido! E começou a falar de Alzire, desejando aos outros a fortuna dela. Depois, bruscamente, explodiu em soluços, com a cabeça apoiada na parede.

Etienne, em pé, não ousara intervir. Sua presença na casa já passava despercebida, as próprias crianças se afastavam dele, cheias de desconfiança. Mas as lágrimas daquelas desgraçadas dilaceraram-lhe o coração e murmurou:

— Vamos! vamos! coragem! sairemos dessa...

Ela pareceu não o ouvir lamentando-se num queixume baixo e contínuo:

— Ah, quanta miséria! Como é possível? Antes de todos esses horrores ainda se podia agüentar. Comíamos pão seco mas estávamos todos juntos... O que aconteceu depois, meu Deus! Que fizemos nós para receber tal castigo, uns já debaixo da terra, os outros querendo ir? É bem verdade que mais parecíamos bestas de carga e não havia justiça na partilha, nós sempre apanhando e aumentando a fortuna dos ricos, sem qualquer esperança de um dia gozar das boas coisas da vida. A alegria de viver desaparece do não há mais esperança. Claro, isso não podia durar, era preciso respirar um pouco... Mas se ao menos a gente soubesse o que ia acontecer! Então é possível tamanha infelicidade só porque se quer justiça?

Os suspiros faziam-na estremecer, sua voz estava embargada por uma imensa tristeza.

— Depois, sempre aparecem os malandros que prometem que tudo vai entrar nos eixos, basta a gente querer... E perde-se a cabeça, o que já existe é causa de tanto sofrimento que se pede aquilo que não existe. Eu cheguei a sonhar como uma idiota, planejava uma vida de paz em comum; confesso que andava com a cabeça nas nuvens. E no fim cai-se outra vez na lama, partindo o lombo... Não era verdade, lá em cima não havia nada daquilo que se imaginou. O que havia era mais miséria, isso sim! Miséria à vontade, e tiros ainda por cima...

Etienne escutava essa lamentação e a cada lágrima sentia remorso. Não sabia o que dizer para acalmar a mulher, toda quebrada com a terrível queda do alto do seu ideal. Ela voltara para o meio da peça e encarava-o; e tratou-o por tu, num último grito de raiva:

— E tu também estás planejando voltar ao trabalho, depois de nos ter afundado a todos? Não te censuro nada, mas, se estivesse no teu lugar, já teria morrido de desgosto por ter feito tanto mal aos companheiros.

Ele quis responder, mas apenas encolheu os ombros, desesperado: para que dar explicações que a mulher, na sua dor, não compreenderia? E, arrasado pelo sofrimento, saiu, retomando a caminhada sem destino.

Outra vez encontrou o conjunto habitacional que parecia esperá-lo, os homens às portas, as mulheres às janelas. Assim que apareceu, começaram os murmúrios e a multidão aumentou. Um sopro de mexericos, que engrossava havia quatro dias, estourava numa maldição universal. Punhos ameaçavam-no, mães o apontavam para os filhos com um gesto de rancor, os velhos, ao vê-lo, cuspiam. Era o resultado da derrota, o reverso fatal da popularidade, uma execração que se exasperava em razão de todos os sofrimentos suportados sem resultado. Ele pagava pela fome e pela morte.

Zacharie, que chegava acompanhado de Philomène, deu um empurrão em Etienne no momento em que este saía. E riu maldosamente:

— Olha como está engordando! A carne dos outros deve ser um bom alimento...

A mulher de Levaque já estava na porta em companhia de Bouteloup. Falou de Bébert, seu filho, morto por uma bala; gritou:

— É verdade, há covardes que fazem massacrar crianças. Se ele quiser devolver-me o filho, que vá buscá-lo debaixo da terra!

A mulher não se lembrava mais do marido preso, a cama continuava ocupada, já que Bouteloup permanecera. Contudo, lembrou-se dele, e continuou aos gritos:

— Vejam estes! Os malandros passeiam, enquanto os valentes estão a ferros.

Etienne, para evitá-la, fora dar de cara com a mulher de Pierron, que atravessara correndo os jardins. Esta recebera como um alívio a morte da mãe, cujas violências iam levá-los à perdição; e quase não chorara a morte da filha do marido, a devassa da Lydie, de quem também se via livre. Mas entrava no coro das vizinhas, com a intenção de fazer as pazes.

— E a minha mãe? e a menininha? Viram-te muito bem, escondias-te por trás delas, quando receberam as balas que eram para ti!

Que fazer? Esbofetear a mulher de Pierron e as outras? Bater-se com todo o conjunto habitacional? Por um momento teve vontade. O sangue fervia-lhe na cabeça, chamava os companheiros de animais, irritava-se de vê-los sem inteligência e bárbaros, a ponto de o tornarem culpado da lógica dos fatos. Que estupidez! Vinha-lhe um desgosto resultante da impotência de poder domá-los novamente. E limitou-se a apressar o passo, como que surdo às injúrias. Em breve foi uma fuga, cada casa o apupava na passagem, encarniçavam-se atrás dele, todo um povo amaldiçoando-o numa voz pouco a pouco ribombante, no transbordar do ódio. Era ele o explorador, o assassino, a causa única da desgraça de todos. Saiu do conjunto habitacional, pálido, transtornado, correndo, com aquela turba ululante atrás de si. Por fim, na estrada, muitos o largaram; outros, no entanto, obstinavam-se, quando, no fim do declive, defronte do Avantage, deu com outro grupo que saía da Voreux. Nele encontravam-se o velho Mouque e Chaval. Depois da morte dos filhos, Mouque continuou no seu trabalho de cavalariço, sem uma palavra de pesar ou de queixa. Bruscamente, quando divisou Etienne, foi sacudido por um verdadeiro furor, saltaram-lhe lágrimas dos olhos e uma enxurrada de impropérios jorrou da sua boca negra e ensangüentada de tanto mascar tabaco:

— Canalha! biltre! velhaco!... Espera que vais pagar por meus cobres filhos, vou matar-te!

Apanhou um tijolo, partiu-o e atirou os dois pedaços.

— Isso, vamos liquidá-lo! — gritou Chaval, que gargalhava, encantado com aquela vingança. — Agora é a tua vez... Estás encurralado, porco imundo!

E ele também começou a apedrejar Etienne. Um clamor selvagem elevou-se, todos pegavam em tijolos, quebravam-nos e atiravam-nos para matá-lo, como tinham querido fazer com os soldados. Aturdido, o rapaz não fugia mais, enfrentava-os, procurando acalmá-los com frases. Vinham-lhe aos lábios seus antigos discursos, tão aclamados outrora. Repetia as palavras com que os arrebatara, na época em que os tinha na palma da mão, como um rebanho fiel. Mas a sua influência estava morta, só as pedras respondiam. Já recebera um ferimento no braço esquerdo, recuava, em grande perigo, quando se viu acuado contra a fachada do Avantage.

Havia um instante que Rasseneur surgira na porta.

— Entra — disse ele simplesmente.

Etienne hesitava; humilhava-o ter de refugiar-se ali.

— Vamos, entra, eu vou falar com eles.

Resignou-se, foi esconder-se no fundo da sala, enquanto o taberneiro obstruía a porta com seus ombros largos.

— Como é, meus amigos? Sejam razoáveis... Vocês sabem muito bem que eu nunca os enganei, sempre fui a favor da ordem, e, se me tivessem escutado, certamente não teriam chegado onde estão.

Mexendo com os ombros e com a barriga, falou demorada-mente, deixou fluir sua eloqüência fácil, de uma brandura calmante de água tépida. E todo o seu sucesso de outrora lhe voltava, reconquistava a popularidade sem esforço, naturalmente, como se já não tivesse sido apupado e tratado de covarde, um mês antes. Vozes o apoiavam: muito bem! isso mesmo! assim é que se devia falar! Recebeu uma tempestade de aplausos.

Dentro, Etienne sentia-se desfalecer, com o coração cheio de amargura. Lembrava-se da predição de Rasseneur na floresta, quando este o ameaçara com a ingratidão das massas. Que brutalidade imbecil! Que esquecimento imperdoável dos serviços que prestara! Era uma força cega, devorando-se constantemente a si própria. E, na cólera de ver aqueles brutos arruinarem a própria causa, havia o desespero de se ver acabado, o fim trágico de sua ambição. Pois muito bem! Estava tudo terminado? Lembrava-se de ter ouvido debaixo das faias três mil corações baterem no ritmo do seu. Naquele dia tivera sua popularidade nas mãos, esse povo lhe pertencia, sentira-se o senhor dele. Sonhos loucos o embriagavam então: Montsou aos seus pés, Paris ao longe, deputado talvez, fulminando os burgueses com um discurso, o primeiro discurso pronunciado por um operário na tribuna de um parlamento. E agora, tudo acabado! Despertava miserável e detestado; seu povo acabava de corrê-lo a pedradas.

Elevou-se a voz de Rasseneur:

— A violência nunca conseguiu nada, não se pode mudar o mundo num dia. Aqueles que prometeram a vocês mudar tudo com um passe de mágica são ou farsantes ou malandros!

— Bravo! Bravo! — gritou a multidão.

Quem era então o culpado? E esta pergunta, que Etienne fazia a si próprio, acabou de desesperá-lo. Realmente, seria culpa sua aquela desgraça da qual ele mesmo sangrava, a miséria de uns, a morte de outros, as mulheres e crianças esqueléticas e sem pão? Tivera essa visão horrível, uma noite, antes da catástrofe. Mas já então uma força o impelia, foi de cambulhada com os demais companheiros. Aliás, nunca os tinha dirigido, eram eles que o levavam, que o obrigavam a fazer coisas que nunca teria feito sem o empurrão daquela multidão por trás dele. A cada violência, ficara estupefato com os acontecimentos, porque não tinha previsto ou querido nenhum. Podia ele esperar, por exemplo, que os seus fiéis do conjunto habitacional o escorraçassem um dia? Esses loucos mentiam quando o acusavam de lhes haver prometido uma existência farta e de preguiça. E nessa justificativa, nos raciocínios com que tentava combater seus remorsos, agitava-se a surda inquietação de não se ter mostrado à altura da sua missão: era a dúvida do semiletrado que o perseguia constantemente. Mas sentia-se sem coragem, já não estava solidário com os companheiros, tinha medo deles, dessa massa enorme, cega e irresistível do povo, passando como uma força da natureza, varrendo tudo, fora das

regras e teorias. Uma repugnância o afastara deles pouco a pouco, o mal-estar dos seus gostos que se iam refinando, a subida lenta de todo o seu ser para uma classe superior.

Nesse momento a voz de Rasseneur se perdeu no meio das aclamações entusiásticas:              

— Viva Rasseneur! Não há outro como ele! Bravo! Bravo!

O taberneiro entrou e fechou a porta enquanto a turba se dispersava Os dois homens se olharam em silêncio e deram de ombros. Acabaram bebendo uma cerveja juntos.

Nesse mesmo dia houve um grande jantar na Piolaine, onde se festejava o noivado de Négrel e Cécile. Na véspera, os Grégoire tinham mandado encerar a sala de jantar e espanar o salão. Mélanie reinava na cozinha, vigiando os assados, mexendo os molhos, cujo odor subia até as águas-furtadas. Fora decidido que o cocheiro Francis ajudaria Honorine a servir à mesa. A jardineiro lavaria a louça, o jardineiro abriria o portão. Nunca tamanha festa pusera tanto alvoroço naquela mansão patriarcal e rica.

Tudo se passou às mil maravilhas. A Sra. Hennebeau mostrou-se encantadora com Cécile e sorriu para Négrel, quando o notário de Montsou propôs um brinde à felicidade dos futuros cônjuges. O Sr. Hennebeau foi também muito amável. Seu ar risonho impressionou os convivas; corria o boato de que, novamente no agrado da administração, ia ser em breve nomeado oficial da Legião de Honra, pela maneira enérgica com que tinha subjugado a greve. Evitava-se falar dos últimos acontecimentos, mas havia um tom de triunfo na alegria geral, o jantar transformava-se na celebração oficial de uma vitória. Enfim, estavam livres, podiam voltar a comer e dormir em paz! Fez-se discretamente uma alusão aos mortos, cujo sangue mal tinha secado sobre a lama da Voreux: fora uma lição necessária, e todos se comoveram quando os Grégoire acrescentaram que, agora, o dever de cada um era ir curar as feridas nos conjuntos habitacionais mineiros. Os donos da casa tinham readquirido a sua placidez benévola, perdoando os seus bons mineiros, vendo-os já no fundo das minas, dando o bom exemplo de uma resignação secular. Os notáveis de Montsou, que não tremiam mais, convieram em que a questão do salário exigia ser estudada com toda a prudência. Ao assado, a vitória tornou-se completa quando o Sr. Hennebeau leu uma carta do bispo anunciando a transferência do Padre Ranvier. Toda a burguesia da província comentava com paixão a história desse padre, que chamava os soldados de assassinos. E o notário, à altura da sobremesa, declarou-se firmemente livre-pensador.

Deneulin, acompanhado das duas filhas, estava presente à festa. No meio de toda essa alegria, esforçava-se por esconder a melancolia da sua ruína. Na manhã daquele dia tinha assinado a venda da sua concessão de Vandame à companhia de Montsou. Posto contra a parede, com a corda no pescoço, submetera-se às exigências dos administradores, entregando-lhes finalmente a presa cobiçada há tanto tempo, conseguindo apenas o dinheiro necessário para pagar seus credores. Chegara até a aceitar, no último momento, como uma grande coisa, a oferta de o conservarem como engenheiro de divisão, resignando-se assim a velar, como simples assalariado, por essa mina onde enterrara sua fortuna. Era a morte das pequenas empresas individuais, o próximo desaparecimento dos patrões comidos um a um pelo monstro sempre faminto do capital, afogados na maré montante das grandes empresas. Ele, sozinho, pagava as despesas da greve, sabia muito bem que se brindava ao seu desastre e à condecoração do Sr. Hennebeau. Seu único consolo era ver a bela arrogância de Lucie e Jeanne, encantadoras nos seus vestidos reformados, rindo da derrocada, desenvoltas como rapazes, desdenhosas do dinheiro.

Quando passavam ao salão para tomar o café, o Sr. Grégoire chamou o primo de parte e felicitou-o pela coragem da sua decisão.

— Que mais queres? O único erro que cometeste foi arriscar em Vandame o milhão do teu dinheiro de Montsou. Tiveste dores de cabeça terríveis, para no fim fazeres desaparecer o dinheiro nesse trabalho de escravo, ao passo que o meu, que não saiu da gaveta, dá-me de comer sem que eu tenha de fazer nada, como continuará alimentando os filhos dos meus netos.

 

No domingo, assim que anoiteceu, Etienne escapou do conjunto habitacional. Um céu muito puro, cravejado de estrelas, iluminava a terra com uma luz azul de crepúsculo. Desceu em direção ao canal, seguiu lentamente a margem para os lados de Marchiennes. Era o seu passeio favorito, uma vereda de duas léguas coberta de relva, estendendo-se muito reta ao longo daquela água geométrica, que se desenrolava como uma interminável lâmina de prata liqüefeita.

Nunca encontrava ninguém por aquelas paragens. Naquele dia, porém, ficou contrariado vendo um homem dirigir-se para ele. E, à luz pálida das estrelas, os dois caminhantes solitários só se reconheceram quando estavam frente a frente.

— Ah, és tu! — murmurou Etienne. 

Suvarin acenou com a cabeça, sem responder. Por um momento permaneceram imóveis, depois, um ao lado do outro, recomeçaram o passeio em direção a Marchiennes. Ambos pareciam continuar imersos em seus pensamentos, como que muito distanciados. 

— Viste no jornal o sucesso de Pluchart em Paris? — perguntou finalmente Etienne. — Ao sair da tal reunião de Belleville estava sendo esperado na calçada e recebeu uma ovação. O homem está lançado, apesar da sua rouquidão. De agora em diante ele vai dar as cartas.

O mecânico deu de ombros. Desprezava os discursadores, os astutos que entram na política como quem entra na advocacia, para ganhar dinheiro com a retórica.

Etienne, agora, estava entusiasmado por Darwin. Lera fragmentos seus, resumidos e vulgarizados num volume de cinco soldos, e dessa leitura mal compreendida, fazia uma idéia revolucionária da luta pela existência, os magros comendo os gordos, o povo forte devorando a fanada burguesia. Mas Suvarin irritou-se, alongou-se sobre a imbecilidade dos socialistas que aceitam Darwin, esse apóstolo da desigualdade científica, cuja famosa seleção só era boa para filósofos aristocratas. E o outro insistia, queria raciocinar e exprimia suas dúvidas por uma hipótese: a velha sociedade não existia mais, fora varrida até as migalhas; pois bem! não era de temer que o mundo novo crescesse, lentamente estragado pelas mesmas injustiças, uns fracos e outros fortes, uns mais hábeis, mais inteligentes, comendo tudo, e outros idiotizados e preguiçosos, voltando novamente à escravidão? Diante dessa visão de eterna miséria o mecânico exclamou em tom feroz que, se a justiça não era compatível com o homem, este tinha que desaparecer. Enquanto houvesse sociedades podres haveria massacres, até a exterminação do último ser. E o silêncio voltou a reinar.

Por muito tempo, de cabeça baixa, Suvarin caminhou sobre a erva fina, tão absorto que seguia bem à beira da água, com a tranqüila certeza de um homem sonâmbulo, sonhando ao longo de um beirai. Depois, repentinamente, estremeceu, como se tivesse esbarrado com uma sombra. Levantou os olhos e seu rosto era de uma palidez marmórea. Perguntou suavemente ao companheiro:

— Já te contei como ela morreu?

— Quem?

— Minha mulher, lá na Rússia.         .

Etienne fez um gesto vago, admirado com o tremor da voz, com aquela repentina necessidade de confidência num homem habitualmente impassível, no seu estóico distanciamento dos outros e de si mesmo. Sabia apenas que a mulher era uma amante e fora enforcada em Moscou.

— O golpe tinha gorado — começou a contar Suvarin, agora com os olhos perdidos no branco deslizar do canal, entre a colunata azul das grandes árvores. — Tínhamos ficado catorze dias debaixo da terra, colocando minas na estrada de ferro. E, em vez do trem imperial, foi um trem de passageiros que explodiu... Então prenderam Anuchka. Era ela que todas as noites nos trazia pão, disfarçada em camponesa. Foi ela também quem acendeu a mecha, porque um homem poderia ser notado... Segui o julgamento, escondido na multidão, durante seis dias intermináveis...

Não pôde mais falar, foi sufocado por um ataque de tosse. Em seguida continuou:

— Por duas vezes tive vontade de gritar, de furar a multidão para juntar-me a ela. Mas de que serviria? Um homem de menos é um soldado de menos; e eu percebia claramente que ela me dizia que não, com seus grandes olhos parados, quando encontrava os meus.

Tornou a tossir.

— No último dia, na praça, eu também estava... Chovia, os idiotas não sabiam o que fazer debaixo da chuvarada. Tinham levado vinte minutos para enforcar outros quatro: a corda rompia, não conseguiam acabar com o quarto... Ánuchka estava muito ereta, esperando. Não me via, procurava-me com o olhar na multidão. Subi numa pilastra e ela me enxergou, nossos olhares não se largaram mais. Mesmo depois de morta continuou olhando-me. Agitei meu chapéu e parti.

Houve novo silêncio. A fita branca do canal desenrolava-se até o infinito; ambos caminhavam no mesmo passo abafado, cada um imerso outra vez no seu isolamento. No fundo do horizonte, a água pálida parecia abrir no céu um risco de luz muito fino.

— Era o nosso castigo — continuou duramente Suvarin. — Éramos culpados do nosso amor... Sim, foi melhor que ela morresse, nascerão heróis do seu sangue, e eu, agora, tenho um coração de pedra... Ah! nem pais, nem mulher, nem amigo, nada que faça tremer a mão no dia em que for necessário tirar a vida de outros ou dar a sua!

Etienne parará, fremindo sob a noite fresca. Não discutiu, disse simplesmente:     

— Estamos longe, queres voltar?

Voltaram em direção à Voreux, lentamente; depois de alguns passos, acrescentou:  —  Viste os novos cartazes?

Eram os grandes cartazes amarelos que a companhia mandara fixar na manhã daquele dia. Neles, mostrava-se mais clara e conciliadora, prometia aceitar os mineiros despedidos que se apresentassem no dia seguinte ao trabalho. Tudo seria esquecido, perdoariam até os mais comprometidos.

— Sim vi — respondeu o mecânico.

— E que achas?

— Acho que está tudo acabado... O rebanho voltará ao trabalho. Vocês são todos uns covardes.

Etienne, febrilmente, desculpou os companheiros: um homem pode ser valente, uma multidão que morre de fome não tem força para nada. Passo a passo tinham atingido a Voreux. Diante da massa escura da mina, continuou, jurou que nunca mais voltaria àquele trabalho, mas desculpava os que voltassem. Em seguida, como corria o boato de que os carpinteiros não tinham tido tempo de consertar o estaqueamento, procurou informar-se. Seria verdade? O volume de terra contra o madeiramento que revestia o poço era tão grande que ele estava arqueado e um dos elevadores de extração roçava-o ao passar, numa extensão de mais de cinco metros. Era verdade isso?

Suvarin, caído novamente no seu mutismo, respondeu secamente. Trabalhara na véspera, e, realmente, o elevador roçava em certo trecho; os mecânicos tinham de duplicar a velocidade para poder passar naquele lugar. Mas todos os chefes acolhiam as observações com a mesma frase irritada: queriam carvão; mais tarde aquilo seria consertado.

— Imagina se rebenta... — murmurou Etienne. — Estaríamos perdidos.

Com os olhos na mina, sem forma definida no escuro, Suvarin concluiu tranqüilamente:

— Se aquilo rebentar, os companheiros o saberão, já que tu os aconselhas a voltarem ao trabalho.

Davam nove horas no campanário de Montsou. Como o outro dissesse que ia dormir, ele acrescentou, sem mesmo estender a mão:

— Bem, adeus. Eu vou embora.

— Como, vais embora?

— É isso mesmo, pedi minha carteira de trabalho de volta, vou para outro lugar.

Etienne, estupefato, comovido, fitava-o. Era depois de duas horas de passeio que lhe dizia aquilo, e com toda a calma, quando só o anúncio daquela brusca separação confrangia seu coração. Haviam-se conhecido, tinham sofrido juntos; só de pensar que nunca mais o veria, ficava triste.

— Tu te vais para onde?

— Por aí, não sei...

— Mas nós nos veremos de novo?

— Não, acho que não.

Calaram-se, ficaram por um momento frente a frente, sem saber o que dizer.

— Então, adeus.

— Adeus.

Enquanto Etienne subia em direção ao conjunto habitacional, Suvarin voltou as costas e dirigiu-se para a margem do canal. Lá, agora sozinho, de cabeça baixa, engolfado nas trevas, como uma sombra movendo-se na noite, caminhou ao léu. Por momentos parava para ver as horas, ao longe. Quando soou meia-noite, abandonou o canal e dirigiu-se para a Voreux.

Nesse momento a mina estava deserta, apenas encontrou um contramestre com os olhos pesados de sono. As fornalhas só eram acesas às duas horas, para o começo do trabalho. Primeiro subiu para procurar num armário uma jaqueta que fingia ter esquecido. Nessa peça de roupa encontravam-se enroladas diversas ferramentas: uma pua, um serrote pequeno muito forte, um martelo e uma talhadeira. Em seguida, partiu; mas, em vez de sair pelo vestiário, enfiou-se pelo estreito corredor que levava ao fosso das escadas. E, com a jaqueta debaixo do braço, desceu de mansinho, sem lanterna, medindo a profundidade pela contagem das escadas. Sabia que o elevador roçava a trezentos e setenta e quatro metros, de encontro à quinta passagem do revestimento inferior. Tendo contado cinqüenta e quatro lances de escada, tateou com a mão e sentiu a saliência das madeiras. Era ali.

Então, com a destreza e o sangue-frio de um bom operário que meditou longamente sobre a sua tarefa, pôs-se a trabalhar. Começou serrando um painel no

tabique do fosso que comunicava com o compartimento de extração. E, com a ajuda de fósforos rapidamente acesos e apagados, pôde estudar o estado dó revestimento e dos reparos que recentemente tinham sido feitos.

Entre Calais e Valenciennes, a abertura dos poços de minas encontrava dificuldades inauditas, para atravessar os imensos lençóis de água subterrâneos, ao nível dos vales mais baixos. Só a construção do revestimento com pranchas unidas umas às outras, como as aduelas de um tonei, conseguia conter os mananciais e isolar os poços no meio de lagos cujas vagas profundas e obscuras batiam contra as paredes. Ao abrir a Voreux, fora necessário construir dois revestimentos: o do nível superior nas areias soltas e argilas brancas, vizinhas do terreno cretáceo, fendidas de todos os lados, empapadas de água como uma esponja; depois, o do nível inferior, diretamente por cima das jazidas de carvão, numa areia amarela, fina como farinha, correndo com a fluidez de um líquido; e era aí que se encontrava a Torrente, esse mar subterrâneo, o terror das minas do norte, mar com suas tempestades e seus naufrágios, mar ignorado, insondável, com seus vagalhões negros, a mais de trezentos metros da luz do sol. De ordinário os estaqueamentos agüentavam a pressão enorme. Só a depressão dos terrenos vizinhos podia ser perigosa, já que essas terras eram constantemente abaladas pelas antigas galerias de exploração, que, ao se encherem, sorviam-nos. Nessa depressão das rochas, às vezes se produziam fendas que se propagavam lentamente até o estaqueamento, deformando-o com o tempo, empurrando-o para o interior do poço.

Esse era o grande perigo, uma ameaça de desabamento e inundação, a mina enchendo-se com as terras esboroadas e o dilúvio dos mananciais.

Suvarin, a cavalo na abertura que fizera, constatou uma deformação muito grave na quinta passagem do estaqueamento. A madeira estava arqueada, fora do enquadramento, muitas tinham mesmo saído do seu lugar. Infiltrações abundantes, "repuxos", como dizem os mineiros, jorravam das juntas, através da estopa alcatroada com que estavam calafetadas. E os carpinteiros, premidos pelo tempo, haviam-se limitado a colocar cunhas de ferro, tão negligentemente que nem todos os parafusos tinham sido postos. Produzia-se, evidentemente por trás, nas areias da Torrente, um movimento considerável.

Então, com a broca, principiou a desapertar os parafusos, de modo que um empuxão final arrancasse todos. Era um trabalho de temeridade louca, durante o qual várias vezes quase caiu, numa queda de cento e oitenta metros, que era o que o separava do fundo. Tivera de se agarrar às guias de carvalho, os madeiros por onde

corriam os elevadores; e, suspenso por cima do vácuo, locomovia-se ao longo das travessas que os ligavam de distância em distância deslizava, sentava-se, deitava-se de costas, simplesmente apoiado num cotovelo ou num joelho, com um tranqüilo desprezo pela morte. Um sopro o faria cair; por três vezes quase se despencou sem um arrepio. Primeiro tateava com a mão, depois trabalhava, só acendendo um fósforo quando se perdia no meio daqueles caibros viscosos. Desatarraxados os parafusos, começou a trabalhar nas próprias pranchas, o que mais aumentou o perigo. Tinha procurado a prancha mestra, a que servia de apoio às outras; contra ela se encarniçou, furando-a, serrando-a, afinando-a, para que perdesse resistência, enquanto a água, escapando em finos esguichos pelos buracos e fendas, cegava-o e ensopava-o numa chuva gelada. Dois fósforos se apagaram; todos estavam molhados. Agora era a noite, um vácuo profundo de trevas.

A partir desse momento, parecia ébrio de ódio. Os sopros do invisível arrebatavam-no, o negro horror daquele buraco batido pela água lançou-o num furor de destruição. Começou a golpear ao acaso o estaqueamento, batendo onde podia, com a broca, com o serrote, possuído pelo desejo de pôr tudo abaixo sobre si mesmo. E punha nisso tal ferocidade, que era como se estivesse esfaqueando um ser vivo, que odiasse. Havia de exterminar essa besta malfazeja, essa Voreux que estava com a goela sempre aberta e já devorara tanta carne humana! Ouvia-se o ranger das suas ferramentas, espichava-se, rastejava, descia, subia, mantendo-se por milagre, num vaivém contínuo, num esvoaçar de pássaro noturno por entre o vigamento de um campanário.

Mas acalmou-se, não contente consigo. Será que não se podiam fazer as coisas friamente? Sem se apressar tomou fôlego, voltou ao fosso das escadas, tornando a colocar o painel que serrara. Já bastava, não queria dar o alarme com um estrago muito grande, que tentariam consertar sem demora. A besta estava ferida na barriga, ver-se-ia se ela poderia viver até a noite. E lá estava a sua marca; o mundo, aterrado, viria a saber que ela não morrera de morte natural. Demorou-se enrolando metodicamente as ferramentas na jaqueta, subiu as escadas lentamente. Depois, tendo saído da mina sem ser visto, nem chegou a pensar em mudar de roupa. Deram três horas. Ficou na estrada, esperando. A mesma hora, Etienne, que não dormia assustou-se com um leve ruído que ouviu na escuridão espessa do quarto. Distinguia a respiração leve das crianças, os roncos de Boa-Morte e da viúva, enquanto, ao seu lado, Jeanlin emitia uma nota prolongada de flauta. Com certeza tinha sonhado, e já ia enovelar-se outra vez quando o ruído recomeçou. Era um estalido de madeira, o esforço abafado de uma pessoa que se levanta. Então pensou que talvez Catherine estivesse indisposta.

— És tu? Estás sentindo alguma coisa? — perguntou em voz baixa.

Ninguém respondeu, o ressonar dos outros continuava. Durante cinco minutos nada se mexeu, depois houve um outro estalido. E agora, seguro de não ter sonhado, atravessou o quarto, estendeu os braços para as trevas, tocando na cama da frente. Foi grande a sua surpresa ao encontrar a moça sentada, com a respiração suspensa, acordada e à espera.

— Por que não respondes? Que estás fazendo? 

Ela acabou por dizer:

— Estou-me levantando.

— Levantando a esta hora?

— É isso mesmo, vou trabalhar.

Comovido, Etienne teve de se sentar na borda da enxerga, enquanto Catherine explicava-lhe as razões do seu gesto. Sofria muito de viver assim, sem fazer nada, sentindo sobre si os eternos olhares de censura; preferia correr o risco de ser maltratada por Chaval lá na mina. E, se a mãe não aceitasse seu dinheiro, não havia de ser nada, já estava bastante adulta para viver sozinha e fazer sua comida.

— E agora vai, quero vestir-me. E não digas nada, hem? Sê bom. 

Mas ele ficou onde estava e tomou-a pela cintura, numa carícia de tristeza e pena. Em camisola, apertados um ao outro, sentiram o calor de sua pele nua, à beira daquela cama tépida do sono da noite. O primeiro movimento dela fora afastar-se, depois pôs-se a chorar baixinho, agarrando-o pelo pescoço para mantê-lo contra si, num abraço desesperado. E ficaram assim, sem outro desejo, com o passado dos seus amores infelizes, que não tinham podido satisfazer. Estava então tudo acabado, não ousariam amar-se um dia, agora que eram livres? Um pouquinho de felicidade seria o bastante para dissipar sua vergonha, esse mal-estar que os impedia de seguirem juntos, em razão de uma infinidade de idéias, que nem eles mesmos sabiam o que era.

— Vai deitar-te — murmurou ela. — Não quero acender a luz para não acordar mamãe... Já está na hora, vai...

 Mas ele não escutava, abraçava-a desesperadamente, o coração imerso em profunda tristeza. Uma necessidade de paz, um invencível desejo de ser feliz invadia-o. E via-se casado, numa casinha limpa sem outra ambição do que a de viverem e morrerem

assim, juntos . Só pão lhe bastaria; e, mesmo que houvesse apenas para um, esse pedaço seria para ela. Para que mais? A vida valeria mais que isso?

Ela já estava soltando seus braços nus.

— Por favor, vai...

Então, num transbordamento de coração, ele disse-lhe ao ouvido:

— Espera, vou contigo.

E admirou-se de ter dito aquilo. Jurara que não voltaria a descer, de onde viria então essa decisão brusca, saída dos seus lábios sem a ter pensado ou raciocinado? Agora fazia-se nele tamanha tranqüilidade, uma cura tão completa das suas dúvidas, que se obstinava na decisão, como um homem salvo pelo acaso e que enfim encontrasse a única saída para o seu tormento. Por isso não quis ouvi-la, quando ela se mostrou alarmada, compreendendo que seu gesto era pura dedicação, temendo os impropérios com que ele seria recebido na mina. O rapaz ria de tudo isso, os cartazes prometiam perdão, e isso bastava.

— Já decidi, vou trabalhar... Vamos vestir-nos sem fazer barulho. Vestiram-se no escuro, com mil precauções. Ela, às escondidas, tinha preparado de véspera a sua roupa de mineiro; o rapaz tirou do armário uma jaqueta e umas calças. E não se lavaram com receio de fazer barulho com o tacho. Todos dormiam, tinham de atravessar o corredor estreito onde dormia a mãe. Ao saírem, por desgraça tropeçaram numa cadeira. A mulher acordou, perguntando, cheia de sono:

— Hem? quem é?

Catherine, toda trêmula, tinha parado, apertando violentamente a mão de Etienne.

— Sou eu, não é nada — disse este. — Estou precisando de ar fresco, vou até lá fora respirar um pouco.

— Ah! — grunhiu a mulher, voltando a dormir.

Catherine não ousava caminhar. Finalmente desceu à sala e repartiu uma fatia que tinha guardado de um pão dado por uma senhora de Montsou. Depois, fecharam cuidadosamente a porta e partiram.

Suvarin permanecera em pé, ao lado do Avantage, numa curva da estrada. Havia meia hora que observava os mineiros voltando ao trabalho, confundidos com o escuro, passando com o seu surdo bater de cascos, como um rebanho. Contava-os, como os magarefes contam as reses à entrada do matadouro; e estava surpreso com a quantidade, não previra, mesmo no seu pessimismo, que o número de covardes pudesse ser tão grande. A fila não tinha fim, ele se retesava, friorento, cerrando os dentes, os olhos claros.

De repente estremeceu. Entre os homens que desfilavam e cujas fisionomias não distinguia, acabava de reconhecer um, pelo modo de andar. Avançou e fê-lo parar.

— Aonde vais?

Etienne, perturbado, em vez de responder, balbuciava:

— Como, ainda não partiste?

Depois confessou, voltava para a mina. Sim, tinha jurado, mas não era vida esperar de braços cruzados que as coisas, talvez dentro de cem anos, acontecessem; além disso, razões suas tinham feito com que se decidisse.

Suvarin escutara-o arrepiado. Agarrando-o por um braço, empurrou-o de volta ao conjunto habitacional.

— Volta já para casa!

Catherine se aproximou, ele reconheceu-a também. Etienne protestou, declarou que ninguém tinha o direito de julgar seus atos. E os olhos do mecânico foram da moça ao companheiro, enquanto recuava um passo, com um gesto brusco de desistência. Quando um homem tinha uma mulher no coração, estava liquidado, podia morrer. Talvez tenha visto, numa rápida visão, lá em Moscou, sua amante enforcada, o último laço carnal que cortara, que o tornara livre da vida dos outros e da sua. Disse simplesmente:

— Vai.

Perturbado, Etienne demorava-se, procurando uma palavra de camaradagem, para não se separarem assim.

— Então, vais partir mesmo?

— Vou.

— Vamos, um aperto de mão, meu velho. Boa viagem, e sempre amigos.

O outro lhe estendeu a mão gelada. Nem amigo, nem mulher.

— Desta vez é para sempre. Adeus.

— Sim, adeus.

E Suvarin, imóvel nas trevas, seguiu com o olhar Etienne e Catherine, que entravam na Voreux.

 

Às quatro horas começou a descida. Dansaert em pessoa instalado na mesa do apontador, no depósito de lanternas, inscrevia cada operário que se apresentava e mandava que lhe dessem uma lanterna. Inscrevia a todos, sem uma observação, mantendo a promessa dos cartazes. No entanto, quando avistou Etienne e Catherine teve um sobressalto, muito vermelho e abrindo a boca para mandá-los embora; depois limitou-se a exultar, com um ar insultante: ah! ah! então o forte dos fortes estava por terra? A companhia não era assim tão ruim, uma vez que o terror de Montsou voltava de mão estendida! Silencioso, Etienne apanhou a sua lanterna e subiu em direção ao poço com a operadora de vagonetes.

Mas era ali, na recebedoria, que Catherine temia os impropérios dos outros. Logo que entrou, divisou Chaval no meio de um grupo de mineiros, esperando um elevador. Ele já estava avançando furiosamente para ela quando, ao ver Etienne, parou. Começou então a dar-se ares de deboche, com um ofensivo movimento de ombros. Pois muito bem! pouco se lhe dava, o outro fora ocupar o seu lugar ainda quente. Que se arranjasse! Se o cavalheiro gostava de restos, melhor para ele. E, na exibição daquele desprezo, transformara-se numa fera de ciúme, com os olhos flamejantes. O resto do grupo não tomou conhecimento da cena, permaneceu de olhos baixos, contentando-se em olhar de revés para os recém-chegados. Depois, acabrunhados e sem cólera, eles voltaram a olhar fixamente a boca do poço, lanterna na mão, tiritando sob a fazenda fina da jaqueta, que as correntes de ar da enorme peça atravessavam.

Finalmente o elevador fixou-se nos ferrolhos e gritaram que embarcassem. Catherine e Etienne enfiaram-se num vagonete, onde já estavam Pierron e dois britadores. Ao lado, no outro carro, Chaval dizia ao velho Mouque, quase aos gritos, que a direção errava em não aproveitar a ocasião para livrar a mina dos salafrários que a infestavam; mas o velho cavalariço, já de volta à resignação da sua vida de cachorro, não se enfurecia mais com a morte dos filhos, e respondeu apenas com um gesto conciliador.

O elevador desengatou-se, desaparecendo no escuro. Ninguém falava. De repente, quando estavam a dois terços da descida, houve um choque terrível, os ferros partiram e os homens foram jogados uns contra os outros.

— Maldição! — grunhiu Etienne. — Será que querem esmagar-nos? Vamos acabar ficando no fundo, com esse revestimento infame. E eles têm a coragem de dizer que já consertaram...

Contudo, o elevador tinha transposto o obstáculo e agora descia b uma chuva torrencial, tão violenta, que os operários começaram ficar nervosos com aquele dilúvio. Afinal, quantos escapamentos de água havia nas juntas?

Interrogado, Pierron, que já trabalhava havia vários dias, não is mostrar seu medo, que poderia ser considerado como um ataque à direção, e respondeu:

— Oh! não há perigo. É sempre assim. Sem dúvida não tiveram tempo de calafetar os repuxos.

O dilúvio desabava sobre suas cabeças; chegavam ao fundo, na última expedição, debaixo de uma verdadeira tromba-d'água. Nenhum contramestre tivera a idéia de subir pelas escadas para ver o que estava acontecendo. A bomba bastaria, os calafates revistariam as juntas na noite seguinte. Nas galerias, a reorganização do trabalho estava dando dores de cabeça. Antes de deixar os britadores voltarem às suas zonas de extração, o engenheiro decidira que, durante os primeiros cinco dias, todos os homens executariam certos trabalhos de consolidação, de urgência absoluta. Por todas as partes havia desabamentos iminentes, as vias tinham sofrido tanto que era necessário consertar o estaqueamento em extensões de muitas centenas de metros. Embaixo, formavam-se, portanto, equipes de dez homens, cada uma sob a direção de um contramestre; depois, eram postas a trabalhar nos pontos mais danificados. Quando a operação de descida terminou, constatou-se que trezentos e vinte e dois mineiros tinham descido, aproximadamente a metade do número que trabalhava quando a mina atingia pleno rendimento.

Chaval completou justamente a equipe da qual Etienne e Catherine faziam parte; e isso não foi por acaso, já que a princípio se escondera por trás dos companheiros, apresentando-se depois ao contramestre. Essa equipe foi fazer desobstrução no fim da galeria norte, a cerca de três quilômetros, de um desabamento que fechava uma via do veio Dix-Huit-Pouces. Atacaram as rochas desabadas a picareta e pá. Etienne, Chaval e cinco outros desentulhavam, enquanto Catherine e dois aprendizes transportavam o entulho até o plano inclinado. Quase não se falavam, o contramestre não os deixava. No entanto, os dois pretendentes da operadora de vagonetes estiveram a ponto de trocar bofetadas. Sempre rosnando que não queria mais saber daquela vagabunda, Chaval não a deixava em paz, dando-lhe empurrões disfarçados, enquanto Etienne ameaçava-o com uma refrega se não parasse com aquilo. Comiam-se com os olhos e foi necessário separá-los.

Por volta das oito horas, Dansaert passou para examinar o trabalho. Estava de mau humor, discutiu com o contramestre: continuava tudo na mesma, as madeiras tinham de ser mudadas à medida que o trabalho avançava. Como é que podiam fazer um trabalho tão porco? E lá se foi, avisando que voltaria com o engenheiro. Esperava Négrel desde a madrugada, não compreendia a causa do seu atraso.

Passou-se mais uma hora. O contramestre tinha suspendido a limpeza, para pôr todo o seu pessoal a revestir o teto; a própria operadora de vagonetes e os dois aprendizes pararam com o transporte de terra, e preparavam e traziam os caibros. Naquela extremidade de galeria, a equipe se encontrava como nos postos avançados, perdida nos fundos da mina, sem comunicação com os outros grupos. Três ou quatro vezes, ruídos estranhos, correrias longínquas fizeram que os trabalhadores voltassem a cabeça: que era aquilo? Parecia que as vias estavam sendo abandonadas, que os companheiros já estavam subindo à desfilada. Mas o ruído perdia-se no profundo silêncio e eles voltavam a colocar os caibros, atordoados com as marteladas. Por fim recomeçaram a desaterrar e a transportar o entulho.

Na volta da sua primeira viagem, Catherine, assustada, veio dizer que não havia mais ninguém no plano inclinado.

— Chamei e não responderam. Todos fugiram.

O pavor foi tal que os dez homens largaram as ferramentas e desembestaram. A idéia de se verem sozinhos, abandonados no fundo da mina, tão longe do poço, os enlouquecia. Só tinham conservado as lanternas, corriam em fila, os homens, os meninos, a operadora de vagonetes; e o próprio contramestre perdeu a cabeça, chamava em altos brados, cada vez mais assustado com o silêncio, com aquele deserto sem fim das galerias. Que estava acontecendo, para não se encontrar vivalma? Que acidente poderia ter feito o pessoal desaparecer dessa maneira? O terror aumentava com a incerteza do perigo, com a ameaça que sentiam presente, mas não conheciam.

Afinal, quando se aproximavam do poço, uma enxurrada embargou-lhes o passo. Em seguida, já estavam com água até os joelhos e não podiam mais correr, com muita dificuldade fendiam a torrente, certos de que um minuto de atraso seria a morte.

— Miseráveis! foi o estaqueamento que estourou — gritou Etienne. - Bem que eu dizia que nós ficaríamos enterrados! 

Desde que descera, Pierron, muito inquieto, via aumentar o dilúvio que caia no poço. Enquanto embarcava os vagonetes com outros dois erguia a cabeça, o rosto todo salpicado de grossas gotas, os ouvidos zumbindo com o ronco da tempestade que se desencadeava lá no alto. Mas seu susto maior foi quando notou que o desaguadouro, embaixo, o fosso de dez metros de profundidade, enchia-se. A água já jorrava do forro, transbordava pelo soalho de ferro fundido. Isso era a prova de que a bomba não chegava para esgotar a grande quantidade de água. Ouvia-a resfolegar, aos arrancos. Então, avisou Dansaert que praguejou furioso, respondendo que tinham de esperar peIo engenheiro. Mais duas vezes Pierron voltou à carga, só conseguindo arrancar do capataz um encolher de ombros exasperado. E daí? A água estava subindo, que queria que fizesse?

Mouque apareceu com Batalha, conduzindo-o para o trabalho; teve de segurá-lo com ambas as mãos, o velho cavalo sonolento empinou-se subitamente, a cabeça espichada para o poço, relinchando para a morte.

— O que é que há, filósofo, estás nervoso? Ah, é por causa da chuva. Vamos, vamos, isso não te diz respeito.

Mas o animal estava todo eriçado e Mouque teve de arrastá-lo à força para o trabalho.

Quase no mesmo instante, quando Mouque e Batalha desapareciam no fundo de uma galeria, houve um estalo no ar, seguido de um barulho prolongado de queda. Era um pedaço do estaqueamento que se soltava, caindo de cento e oitenta metros, batendo de encontro às paredes. Pierron e os outros carregadores tiveram tempo de se afastar, a prancha de carvalho esmagou apenas um vagonete vazio. Ao mesmo tempo, uma tromba-d'água, jorrando de um dique rebentado, espraiava-se. Dansaert quis ir ver, mas ainda não tinha acabado de falar quando desabou outra prancha. E, diante da catástrofe que os ameaçava, apavorado, não hesitou mais, deu ordem de subida, e enviou os contramestres para avisar o pessoal nas vias.

Começou então uma pavorosa correria. De todas as galerias chegavam magotes de operários desembestados, precipitando-se ao assalto dos elevadores. Esmagavam-se, matavam-se para ser subidos imediatamente. Alguns, que haviam tido a idéia de subir pelas escadas, voltaram, gritando que a passagem já estava obstruída. O terror era geral; após a partida de um elevador, ninguém sabia se o seguinte passaria por entre os obstáculos que obstruíam o poço. No alto, a derrocada devia continuar, ouvia-se uma série de detonações surdas; as madeiras, que se fendiam, rachavam sob o impacto contínuo e crescente da tempestade. Em breve um elevador ficou fora de serviço, inutilizado, não mais podendo deslizar entre as guias, sem dúvida partidas. O outro roçava tanto que certamente o cabo ia rebentar. E ainda havia uma centena de homens para sair todos estertoravam, agarravam-se ensangüentados, afogados. Dois foram mortos pela queda das pranchas; um terceiro, que se pendurara ao elevador, caiu de cinqüenta metros de altura e desapareceu no desaguadouro.

Apesar de tudo isso, Dansaert procurava impor um pouco de ordem. Armado de uma picareta, ameaçava abrir a cabeça do primeiro que não obedecesse; e quis pô-los em fila, gritava que os carregadores seriam os últimos a sair, depois de terem embarcado os outros. Ninguém o escutava; já impedira Pierron, trêmulo e lívido, de fugir em primeiro lugar. A cada nova leva que partia, tinha de afastá-lo com um tabefe. Mas ele mesmo batia o queixo, um minuto a mais e seria arrastado, lá em cima estava tudo desabando, era como um rio transbordando, uma chuva mortífera de madeiras. Alguns operários ainda apareciam correndo, quando, morto de medo, ele saltou para dentro de um vagonete, deixando Pierron saltar atrás dele. O elevador subiu.

Nesse momento, a equipe de Etienne e Chaval desembocava na galeria. Viram o elevador desaparecendo, precipitaram-se, mas tiveram de recuar sob o desabamento total do estaqueamento. 0 poço estava completamente obstruído, o elevador não desceria mais. Catherine soluçava, Chaval sufocava-se de tanto praguejar. Eram uns vinte, será que os canalhas dos chefes os abandonariam assim? O velho Mouque, que trouxera de volta Batalha, calmamente, ainda o segurava pela rédea, ambos estupefatos, o homem e o animal, diante da rápida subida da inundação. A água já atingia as coxas. Etienne, mudo, de dentes cerrados, segurou Catherine no colo. E os vinte berravam, olhando para cima, os vinte se obstinavam, imbecilizados, em fitar o poço, esse buraco esboroado que cuspia um rio e de onde já não lhes podia vir qualquer socorro.

Na superfície, Dansaert, ao desembarcar, divisou Négrel, que chegava correndo. Naquela manhã,—  por uma fatalidade, a Sra. Hennebeau o tinha retido ao sair da cama, para folhear catálogos na escolha das jóias que deveria oferecer à noiva. Eram dez horas.

— O que está acontecendo? — gritou ele de longe.

— A mina está perdida — respondeu o capataz.

E contou a catástrofe, gaguejando, enquanto o engenheiro, incrédulo fazia esgares: ora, vamos! como era possível que um revestimento se esboroasse assim? Estavam exagerando, tinha que ver.

— Ficou alguém lá embaixo?

Dansaert confundiu-se: não, ninguém. Pelo menos supunha. Podia ser que alguns operários se tivessem atrasado.

— Mas com mil diabos! — berrou Négrel. — Por que você subiu, então? Como pôde abandonar o pessoal?

Imediatamente deu ordem para que contassem as lanternas. De manhã, tinham sido distribuídas trezentas e vinte e duas, e só se encontravam duzentas e cinqüenta e cinco. Entretanto, diversos operários confessavam que haviam abandonado as suas embaixo, arrancadas das suas mãos, na confusão do pânico. Tentou-se fazer uma chamada, foi impossível estabelecer um número exato: alguns mineiros tinham escapado, outros não ouviam mais os próprios nomes. Ninguém chegava a um acordo quanto aos companheiros que estavam faltando. Talvez fossem vinte, talvez quarenta. O engenheiro tinha uma única certeza: havia homens no fundo; podiam-se ouvir seus gritos no meio do estrondo das águas, através das vigas desabadas, ao se debruçar na boca do poço.

A primeira providência de Négrel foi mandar chamar o Sr. Hennebeau e querer fechar a mina. Mas já era tarde, os mineiros que tinham corrido ao conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante, como que perseguidos pelo estalar do estaqueamento, tinham alarmado as famílias; e bandos de mulheres, velhos, crianças surgiam desabalados, sacudidos por gritos e soluços. Tiveram de ser repelidos; um cordão de vigias foi encarregado de mantê-los a distância, para não atrapalharem os trabalhos. Muitos operários que tinham subido permaneciam por ali, estupefatos, sem pensar em mudar de roupa, retidos por uma fascinação do medo, fitando aquele buraco horrendo onde quase tinham ficado. As mulheres, em volta deles, desesperadas, suplicavam que lhes dissessem os nomes. Quem estava lá embaixo? Fulano estaria? E beltrano? Eles não sabiam, balbuciavam, eram perpassados por arrepios e faziam gestos loucos, gestos que afastavam uma visão pavorosa, sempre presente. A multidão aumentava rapidamente, uma lamentação subia das estradas. E lá em cima, no aterro, na cabana de Boa-Morte, um homem estava sentado no chão: era Suvarin, que não se afastara e que olhava.

— Os nomes! Os nomes! — gritavam as mulheres, sufocadas pelas lágrimas.

Négrel surgiu por um instante e disse estas palavras:

— No momento em que soubermos os nomes, daremos a conhecer. Mas nada está perdido, todos serão salvos... Eu vou descer.

Então, muda de angústia, a multidão esperou. Realmente, com tranqüila bravura, o engenheiro preparava-se para descer. Fizera desenganchar o elevador, ordenando que o substituíssem por uma caçamba; e, como acreditava que a água iria apagar a lanterna, mandou pendurar outra por baixo da caçamba, que a protegeria.

Alguns contramestres, trêmulos, com o rosto lívido e descomposto, ajudavam os preparativos.

— Você vai descer comigo, Dansaert — disse Négrel com voz seca.

Depois, vendo-os todos sem coragem, e o capataz oscilando, ébrio de horror, afastou-o com um gesto de desprezo.

— É melhor que não vá, você iria atrapalhar-me... Prefiro ir sozinho.

Já tinha entrado para a caçamba estreita, que se balançava na extremidade do cabo, e, segurando a lanterna numa das mãos, apertando com a outra a corda do sinal, ele mesmo gritou para o mecânico:

— Devagar!

A máquina pôs em movimento as bobinas; Négrel desapareceu no sorvedouro, de onde continuavam a subir os gritos dos miseráveis.

No alto, o revestimento estava perfeito. Balançando no centro do poço, virava-se, iluminava as paredes: o vazamento nas juntas era tão pouco abundante que sua lanterna não foi atingida. Mas a trezentos metros, quando chegou ao revestimento inferior, a lanterna se apagou, conforme as suas previsões, e a caçamba ficou inundada. Daí por diante, para enxergar, só contava com a lanterna suspensa, que o precedia nas trevas. E, apesar de sua valentia, estremeceu e ficou pálido diante do horror do desastre. Poucas pranchas permaneciam no lugar, as outras tinham-se despencado com suas molduras; por trás, surgiam enormes cavidades, as areias amarelas, finas como farinha, corriam em massas consideráveis, enquanto as águas da Torrente, esse mar subterrâneo de tempestades e naufrágios ignorados, derramavam-se numa enxurrada de represa. Desceu mais, perdido no centro daqueles vácuos que aumentavam constantemente, esborrifado e redemoinhando sob a violência das águas, tão mal iluminado pela estrela vermelha da lanterna que ia embaixo, que julgou estar vendo ruas, encruzilhadas da cidade destruída, muito ao longe na dança das grandes sombras móveis. Nenhum trabalho humano era mais possível. Apenas uma esperança lhe restava: tentar a salvação dos homens em perigo. À medida que afundava, ouvia crescer os gritos. Teve de parar, um obstáculo intransponível vedava o poço, um amontoado de vigas, as madeiras soltas das guias, as paredes das escadas, tudo isso emaranhado com as correias arrancadas da bomba. Quando olhava longamente, com o coração apertado, os gritos cessaram repentinamente. Sem dúvida, diante do avanço das águas, os miseráveis tinham fugido para as galerias, se não tivessem sido engolidos pela enchente.

Négrel resignou-se a puxar a corda do sinal para que o subissem. Em seguida fez outro sinal para que parassem. Não conseguia voltar a si do espanto daquele acidente tão repentino, de que não compreendia a causa. Queria descobrir, examinou as poucas pranchas do estaqueamento que ainda estavam no lugar. A distância, ficara surpreso com as rachas e os cortes na madeira. A lanterna extinguia-se, afogada em umidade, e ele tateou com os dedos, reconhecendo nitidamente o trabalho do serrote e da broca, um hediondo trabalho de destruição. Evidentemente, aquela catástrofe fora provocada. Ficou boquiaberto, as últimas pranchas estalaram e afundaram no abismo, numa última queda que quase o levou junto. Sua coragem tinha desaparecido; só de pensar no homem que fizera aquilo ficava com os cabelos em pé, gelado com o medo religioso do mal, como se, à espreita nas trevas, o homem ainda estivesse ali, enorme, do tamanho da sua desmesurada maldade. Gritou, puxou histericamente o sinal; e já não era sem tempo, pois notou, cem metros acima, que o estaqueamento superior também começava a desmoronar; as juntas abriam-se, perdiam seu calafeto de estopa, desaguavam riachos. Agora não era mais que uma questão de horas, o poço estava-se desmontando e desabaria.

Na superfície, o Sr. Hennebeau, ansioso, esperava Négrel.

— E então? — perguntou.

Mas o engenheiro, sufocado, não conseguia falar. Desfalecia.

— Isso não é possível, nunca se viu nada semelhante... Examinaste bem?                 

O rapaz respondia afirmativamente com a cabeça, olhando para os lados. Não queria falar na frente dos poucos contramestres que escutavam; levou o tio a uma distância de dez metros, não se julgou bastante afastado, distanciou-se mais. Depois, muito baixinho, ao ouvido, contou-lhe enfim o atentado, as pranchas furadas e serradas a mina sangrada no pescoço e agonizando. O diretor empalideceu e baixou também a voz, na necessidade instintiva de silêncio sobre a monstruosidade dos grandes deboches e dos grandes crimes. Não deviam apresentar-se trêmulos diante dos dez mil operários de Montsou: mais tarde veriam. E ambos continuavam a segredar, aterrados com a coragem daquele homem que descera e pendurara-se no vácuo, arriscando incontáveis vezes sua vida naquela horrível tarefa. Não compreendiam mesmo aquela bravura louca de destruição, recusavam-se a acreditar, apesar da evidência, tal como se duvida dessas histórias de evasões célebres, desses prisioneiros que escapam por janelas, a trinta metros do solo.

Quando o Sr. Hennebeau se reaproximou dos contramestres, um tique nervoso repuxava-lhe o rosto. Teve um gesto de desespero, deu ordem para que a mina fosse evacuada imediatamente. Foi um dispersar lúgubre, de enterro, um abandono mudo, com olhares lançados para trás aos grandes edifícios de tijolos, vazios e ainda em pé, que já nada podia salvar.

E, quando o diretor e o engenheiro desciam por último da recepção, a multidão acolheu-os com seu grito, repetido com obstinação:

— Os nomes! Os nomes! Dêem os nomes!

Agora lá estava a mulher de Maheu, entre as outras. Lembrara-se do barulho que ouvira de noite, a filha e o inquilino deviam ter saído juntos, certamente estavam no fundo da mina. E, depois de ter exclamado que era bem feito, que eles mereciam ficar enterrados porque eram fracos e covardes, acorrera também e postara-se na primeira fila, trêmula de angústia. Aliás, já não duvidava mais, tinha certeza, pela discussão que se travava ao redor dela. Sim, sim, Catherine ficara, e Etienne também, um outro os vira. A respeito dos demais, no entanto, não chegavam a um acordo. Não, esse não, aquele sim, Chaval talvez, ainda que um aprendiz jurasse ter subido com ele. As mulheres de Levaque e Pierron, apesar de não terem nenhum dos seus em perigo, estavam excitadíssimas, lamentando-se tanto quanto as outras. Tendo sido um dos primeiros a sair, Zacharie, apesar do seu jeito trocista, abraçara em lágrimas a esposa e a mãe; e, permanecendo junto desta, tremia com ela, mostrando pela irmã um inesperado extravasamento de ternura, recusando-se acreditar que ela ficara soterrada, enquanto os chefes não o tivessem declarado oficialmente.                         

— Os nomes! Os nomes! Por piedade, os nomes!           

Négrel, enervado, gritou aos vigias:                    

— Tratem de fazê-los calar! Isto é um desespero! Nós não sabemos os nomes!

Já tinham transcorrido duas horas. No primeiro impacto do desastre, ninguém tinha pensado no outro poço, no velho poço de Réquillart. O Sr. Hennebeau anunciava que iam tentar o salvamento por esse lado, quando começou a circular um rumor: cinco operários acabavam de escapar à inundação, subindo pelas escadas apodrecidas do antigo poço fora de serviço; e citava-se o nome do velho Mouque, o que era uma surpresa, ninguém o supunha lá. Mas a narrativa dos cinco evadidos aumentou as lágrimas: quinze pessoas não tinham podido segui-los, perdidas, emparedadas pelos

desmoronamentos, e não era mais possível socorrê-las porque em Réquillart a água já atingira uma altura de dez metros. Todos os nomes foram dados a conhecer, o ar encheu-se com os gemidos de um povo desesperado.

— Façam que se calem! — repetiu Négrel, furioso. — E que recuem! Vamos, recuem cem metros! Há perigo, para trás, para trás!

Foi preciso empurrar aquela pobre gente, que começou a imaginar novas desgraças: estavam sendo expulsos para não terem conhecimento de novas mortes. Os contramestres, então, tiveram de explicar que o poço ia destruir a mina. Essa notícia deixou-os mudos de espanto, deixaram que os repelissem passo a passo. No entanto, foi dobrado o número de guardas que os continham, porque eles, mesmo sem querer, como que magnetizados, voltavam sempre. A multidão acotovelava-se na estrada, vinha gente de todas as aldeias operárias e até de Montsou. E o homem no cume do aterro, o homem louro com feições de moça fumava cigarros para passar o tempo, sem tirar da mina os seus olhos claros.

A expectativa começou. Era meio-dia, ninguém tinha comido e ninguém se afastava. No céu brumoso, de um cinzento sujo, passavam lentamente nuvens cor de ferrugem. Um cão enorme, por trás da sebe de Rasseneur, ladrava violentamente, sem descanso, irritado com o bulício da multidão. E essa multidão tinha-se espalhado, pouco a pouco, pelas terras vizinhas, rodeara a mina num círculo de cem metros. No centro desse grande vazio erguia-se a Voreux, onde não havia ninguém e o silêncio era completo, um verdadeiro deserto. As janelas e as portas, escancaradas, mostravam o abandono interior. Um gato fulvo, esquecido lá dentro, farejando a ameaça daquela solidão, saltou de uma escada e desapareceu. Sem dúvida apagavam-se as fornalhas dos geradores, porque a esguia chaminé de tijolos soltava fiapos de fumaça de encontro às nuvens sombrias, enquanto a ventoinha da torre do sino de rebate rangia ao vento, com um gritinho áspero, a única voz melancólica daqueles vastos edifícios que iam desaparecer.

Às duas horas tudo continuava no mesmo. O Sr. Hennebeau, Négrel e outros engenheiros vindos em socorro formavam um grupo de sobrecasacas e chapéus pretos à frente da multidão. E eles também não se afastavam, as pernas bambas de cansaço, febris, doentes de assistirem impotentes a tamanho desastre, murmurando raras palavras, como à cabeceira de um moribundo. O estaqueamento superior devia estar-se esboroando, ouviam-se estrondos repentinos, ruídos cadenciados de queda profunda, aos quais sucediam-se longos silêncios. Era a ferida que se alastrava: o desmoronamento, principiado por baixo, subia, aproximava-se da superfície. Uma impaciência nervosa apoderou-se de Négrel; queria ver, e já avançava sozinho naquele vácuo assustador, quando o seguraram. Para quê, se não podia impedir o desastre? No entanto, um velho mineiro, iludindo a vigilância, correu até o vestiário para logo reaparecer, tranqüilamente: fora buscar os tamancos.

Deram três horas. Nada ainda. Uma chuvada tinha ensopado a multidão sem que ninguém arredasse pé. O cão de Rasseneur pusera-se de novo a ladrar. E foi somente às três horas e vinte que um primeiro tremor sacudiu a terra. A Voreux estremeceu, resistindo, sempre em pé. Contudo, seguiu-se logo outro tremor, e um longo grito saiu das bocas abertas: o galpão de telhas alcatroadas da triagem, após oscilar duas vezes, desabou com um barulho terrível. Sob a enorme pressão, os caibros partiam-se e chocavam-se com tal força, que houve uma chuva de detritos. A partir desse momento a terra não parou de tremer, os abalos sucediam-se, desabamentos subterrâneos, roncos de vulcão em erupção. Ao longe, o cão parara de ladrar, soltava uivos lastimosos, como que anunciando as oscilações que pressentia. E as mulheres, as crianças, toda aquela gente que olhava não podia conter um clamor de angústia, a cada um desses tremores que a fazia oscilar. Em menos de dez minutos, o telhado de ardósia da torre do sino de rebate desabou, a recebedoria e a casa da máquina fenderam-se, abrindo uma brecha considerável.

Depois os ruídos pararam, a derrocada cessou, fez-se de novo um grande silêncio. Durante uma hora a Voreux permaneceu assim, aluída, como bombardeada por um exército de bárbaros. Já não se gritava mais o largo círculo de espectadores olhava apenas. Debaixo do monte de caibros da triagem, podiam-se ver os basculadores despedaçados, as tremonhas quebradas e torcidas. Mas era sobretudo na recebedoria que os destroços se acumulavam, em meio a uma montanha de tijolos, por entre paredes inteiras transformadas em farelo. A estrutura de ferro que sustentava as roldanas tinha vergado e estava meio afundada no poço; um elevador ficara pendurado, um pedaço de cabo arrancado flutuava; depois, era uma massa de vagonetes, de chapas de ferros fundidos, de escadas. Por um acaso, o depósito de lanternas ficara intato, mostrando à esquerda as fileiras claras de suas luzinhas. E, ao fundo de sua casa derruída, via-se a máquina, solidamente assente no pedestal de alvenaria: as peças de cobre reluziam, os grossos membros de aço pareciam músculos indestrutíveis, a enorme biela, dobrada no ar, assemelhava-se ao poderoso joelho de um gigante deitado e tranqüilo na sua força.

O Sr. Hennebeau, ao fim daquela hora de espera, sentiu a esperança renascendo. O movimento da terra devia ter terminado, teriam a sorte de salvar a máquina e o resto

dos edifícios. Mas continuava proibindo que se aproximassem, queria esperar mais meia hora. A expectativa tornou-se insuportável, a esperança aumentava a angústia, todos os corações disparavam. Uma nuvem sombria, crescendo no horizonte, apressava o crepúsculo, um fim de dia sinistro sobre aqueles destroços das tempestades da terra. Estavam ali desde as sete horas, sem arredar pé, sem comer.

E, de repente, quando os engenheiros avançavam com prudência, uma suprema convulsão do solo os pôs em fuga. Ouviam-se detonações subterrâneas, toda uma artilharia monstruosa bombardeando o abismo. Na superfície, abatiam-se as últimas construções, esmagando tudo. Primeiro, uma espécie de turbilhão sorveu os restos da triagem e da recebedoria; em seguida, a casa das caldeiras desmoronou e sumiu; depois, foi o torreão quadrado, onde estertorava a bomba de esgoto, que emborcou, como um homem varado por uma bala. E viu-se então uma coisa espantosa: a máquina, deslocada do seu pedestal, com os membros esquartejados, lutar contra a morte: caminhou, estendeu sua biela, seu joelho de gigante, como para se levantar, mas expirou, esmagada, sorvida. Apenas a esguia chaminé de trinta metros permanecia em pé, sacudida, igual a um mastro no meio do furacão; acreditava-se que ela ia esmigalhar-se e voar em pó, quando, de repente, afundou-se em bloco, tragada pela terra, derretida como um círio colossal; e nada ficou de fora, nem sequer a ponta do pára-raios. Era o fim, a besta má, acocorada no seu buraco, farta de carne humana, já não mais expelia seu hálito forte e extenso. A Voreux, inteira, acabava de desaparecer no abismo.

A multidão fugiu aos gritos. Mulheres corriam, tapando os olhos. O pavor dispersou os homens como a um monte de folhas secas. Ninguém queria gritar e gritava, com a garganta pulsando, os braços no ar, diante do imenso buraco que se abrira. Aquela cratera de vulcão extinto, com uma profundidade de quinze metros, estendia-se da estrada ao canal, numa largura de pelo menos quarenta metros. Todo o pátio da mina seguira os edifícios, os cavaletes gigantescos, os passadiços com seus trilhos, um comboio completo de vagonetes, três vagões, sem contar a provisão de madeiras, um bosque de estacas já cortadas, engolidas como palha. No fundo, não se distinguia mais do que um amontoado de caibros, tijolos, ferro, gesso, restos moídos, horrendos, emaranhados, nojentos, resultado da fúria da catástrofe. E o buraco aumentava, fendas partiam das suas bordas, corriam através dos campos, a grandes distâncias. Uma fenda subia até o estabelecimento de Rasseneur, cuja fachada rachara. Será que o conjunto habitacional seria atingido? Até onde teria de fugir para ficar a salvo, naquele medonho fim de dia, sob aquelas nuvens de chumbo, que também pareciam querer esmagar o mundo?

Négrel teve um grito de dor. O Sr. Hennebeau, que tinha recuado, chorou. O desastre ainda não estava completo, a margem do canal rompeu-se e ele precipitou-se de uma vez, como um lençol borbulhante, por uma das fendas. O canal foi-se esvaindo, caindo como uma cascata num vale profundo. A mina bebia aquele regato, a inundação agora submergia as galerias por muitos anos. Breve a cratera ficou cheia, um lago lodoso ocupou o lugar da Voreux, semelhante a esses lagos sob os quais jazem cidades malditas. Um silêncio aterrorizado tinha-se feito, só se ouvia a queda da água, roncando nas entranhas da terra.

Então, sobre o aterro aluído, Suvarin levantou-se. Tinha reconhecido a mulher de Maheu e Zacharie, soluçando diante dos escombros, cuja massa pesava tanto sobre a cabeça dos miseráveis agonizavam no fundo. E jogou fora seu último cigarro, afastou-se sem olhar para trás, pela noite escura. Sua sombra foi diminuindo, fundindo-se com as trevas. Era para lá que ia, para o desconhecido. Caminhava com seu ar tranqüilo, para o extermínio, para onde quer que houvesse dinamite para fazer ir pelos ares cidades e homens. Será ele, certamente, que a burguesia agonizante ouvirá, quando debaixo dela, sob seus passos, explodir o calçamento das ruas.

 

Na mesma noite do desmoronamento da Voreux, o Sr. Hennebeau partiu para Paris, querendo pessoalmente informar os administradores, antes que os jornais pudessem dar a notícia. E quando voltou, no dia seguinte, acharam-no muito calmo, com o seu ar de gerente correto. Salvara evidentemente sua responsabilidade, a confiança que lhe votavam não pareceu diminuída; ao contrário, o decreto que o nomeava oficial da Legião de Honra foi assinado vinte e quatro horas depois.

Mas, se o diretor estava salvo, a companhia oscilava com o terrível golpe. Não eram os poucos milhões perdidos, era a ferida no flanco, o medo surdo e constante do futuro, por causa da destruição de um dos seus poços. Ficou tão abalada, que mais uma vez sentiu necessidade de silêncio. Para que mexer naquela chaga? Para que descobrir o

bandido e fazer dele um mártir, cujo espantoso heroísmo enlouqueceria outras cabeças, geraria uma linguagem completa de incendiários e assassinos? De resto, não suspeitou do verdadeiro culpado, acabou acreditando num verdadeiro exército de cúmplices, não podendo admitir que um único homem tivesse a audácia e a força para praticar semelhante façanha. E era justamente este o pensamento que a obcecava: uma ameaça sempre maior em torno de suas minas. O diretor recebera ordem de organizar um vasto sistema de espionagem e depois despedir sem barulho, um a um, os homens perigosos, suspeitos de terem participado do crime. Limitaram-se a esta depuração de alta prudência política.

Só houve uma demissão imediata, a de Dansaert, o capataz. Depois do escândalo com a mulher de Pierron, o homem tornara-se impossível. E pretextou-se sua atitude no perigo, a covardia do capitão abandonando seus subalternos. Por outro lado, era uma discreta concessão aos mineiros, que o detestavam. 

No entanto, entre a população corriam certos boatos, e a direção teve de mandar uma nota retificadora aos jornais, desmentindo uma versão em que se falava de um barril de pólvora explodido pelos grevistas. Após rápido inquérito, o relatório do engenheiro d0 governo concluía por uma ruptura natural do estaqueamento, que o peso do terreno teria ocasionado. E a companhia resolveu calar- se e aceitar a censura por uma falta de cuidado. Na imprensa, em Paris logo ao terceiro dia, a catástrofe foi engrossar o noticiário: só se falava dos operários agonizando no fundo da mina, liam-se com avidez os telegramas publicados todas as manhãs. Em Montsou mesmo, os burgueses ficavam pálidos e emudeciam ao ouvirem falar na Voreux, criava-se uma lenda, que mesmo os mais afoitos apenas ousavam cochichar. Toda a região demonstrava grande piedade pelas vítimas, organizavam-se marchas à mina destruída, famílias inteiras iam admirar o horror dos escombros que pesavam tanto na cabeça dos miseráveis soterrados.

Deneulin, nomeado engenheiro de divisão, estreara na sua função em pleno desastre. Sua primeira tarefa foi repor o canal no seu leito, porque aquela enxurrada agravava cada vez mais os estragos. Grandes trabalhos eram necessários e ele colocou imediatamente cem operários na construção de um dique. Duas vezes o ímpeto das águas arrastou as primeiras barragens. Agora instalavam-se bombas, era uma luta encarniçada, uma reconquista violenta e demorada dos terrenos desaparecidos.

Mas o salvamento dos mineiros soterrados apaixonava ainda mais. Négrel estava encarregado de tentar um supremo esforço, e braços era o que não faltava, todos os mineiros vinham oferecer-se, num impulso de fraternidade. Esqueciam a greve, não se

preocupavam com o pagamento, podiam não lhes dar nada, só queriam enfrentar o perigo e tentar salvar os companheiros que estavam morrendo. Todos se apresentavam com as suas ferramentas, frementes, esperando que lhes dissessem em que lugar deveriam cavar. Muitos, doentes de horror após o acidente, agitados por espasmos nervosos, inundados de suores frios, perseguidos por pesadelos, levantavam-se apesar de tudo, mostravam-se os mais decididos a baterem-se contra a terra, como se tivessem uma desforra a tirar. Infelizmente, a dúvida começava diante da necessidade de fazer um trabalho útil: de que maneira7 como descer? de que lado furar as rochas?

A opinião de Négrel era que nenhum dos infelizes sobrevivia, quinze tinham seguramente morrido, afogados ou asfixiados. Contudo, nessas catástrofes de minas, a regra e sempre supor vivos homens emparedados no fundo; e nesse sentido é que se raciocinava. O primeiro problema consistia em deduzir onde eles poderiam ter-se refugiado. Os contramestres, os velhos mineiros, consultados, concordavam num ponto: diante da inundação, os homens certamente tinham subido, galeria por galeria, até os veios mais altos, de maneira que, sem dúvida, achavam-se encurralados em alguma via superior Isto, de resto, concordava com as informações do velho Mouque, cuja narrativa confusa fazia até acreditar que o pânico da fuga dividira os quinze em pequenos grupos, espalhando os fugitivos pelo caminho, em todos os andares. Mas as opiniões dos contramestres diferiam quando se abordava a discussão das tentativas possíveis. Como as vias mais próximas da superfície estavam a cento e cinqüenta metros, não se podia pensar em abrir um poço. Restava Réquillart, o único acesso, o único ponto por onde podiam aproximar-se. O pior era que a velha mina, também inundada, não mais se comunicava com a Voreux e não tinha livres, acima do nível das águas, senão trechos de gaíenas dependentes do primeiro patamar do poço. O esgotamento das águas ia levar anos; o melhor a fazer, portanto, era percorrer essas galerias, para ver se davam passagem às vias submersas, nas quais se suspeitava a presença dos mineiros em perigo.

Antes de chegar a essa decisão, tinham discutido rnuito, para afinal descartarem uma série de projetos impraticáveis.

A partir daí, Négrel começou a revolver a poeira dos arquivos, e, quando descobriu os planos antigos das duas minas, estudou-os, determinou os pontos por onde deveriam começar as pesquisas. Pouco a pouco inflamara-se com aquela busca, também ele estava possuído por uma febre de devotamento, apesar de sua irônica indiferença por homens e coisas. Começaram logo as dificuldades para a descida em Réquillart: foi

necessário desentulhar a boca do poço, derrubar a sorveira, cortar as ameixeiras silvestres e os espinheiros; e ainda tiveram que consertar as escadas. Depois começaram as tentativas. O engenheiro,-tendo descido com dez operários, fazia-os bater com as ferramentas em certos lugares do veio por ele indicados; e, num grande silêncio, cada um colava o ouvido à hulha, tentando perceber se algumas pancadas longínquas respondiam. Mas em vão percorreram todas as galerias transitáveis: nenhum eco se ouvia. As dificuldades aumentavam: em que lugar abrir um buraco? Encaminhar-se para onde, visto que ali parecia não haver ninguém? Contudo, persistiam, procuravam, cada vez mais enervados e ansiosos.

Desde o primeiro dia, a mulher de Maheu chegava de manhã a Réquillart, sentava-se na boca do poço, num barrote, e ali ficava sem se mexer, até a noite. Quando algum homem saía, ela erguia-se e perguntava com os olhos: nada? Não, nada! E voltava a sentar, sem uma palavra, com o rosto duro e fechado. Jeanlin também, vendo que invadiam sua toca, rondara assustado, como um animal de rapina cujos roubos acabariam por ser descobertos; e pensava ainda no soldadinho debaixo das rochas, temendo que fossem perturbar seu sono. Mas essa parte da mina estava invadida pelas águas, e mesmo as escavações dirigiam-se mais para a esquerda, na galeria oeste. A princípio Philomène também tinha vindo, para acompanhar Zacharie, que fazia parte da equipe de buscas; depois aborrecera-se de apanhar frio sem necessidade nem resultado e ficou no conjunto habitacional, arrastando seus dias de mulher sem energia, indiferente, ocupada em tossir da manhã à noite. Zacharie, ao contrário, vivia num inferno, seria capaz de comer a terra para encontrar a irmã. Gritava de noite, via-a, ouvia-a, macerada pela fome, com a garganta estraçalhada de tanto gritar por socorro. Por duas vezes tinha querido cavar sem ordem, dizendo que ali era o lugar, que sabia muito bem. O engenheiro já não o deixava mais descer e ele não se arredava daquele poço de onde o enxotavam, não conseguia sequer sentar-se e esperar junto da mãe, tanta era a vontade que tinha de agir, torturando-se sem descanso.

Estavam no terceiro dia. Négrel, desesperado, resolvera abandonar tudo nessa noite. Ao meio-dia, depois do almoço, quando voltou com sua equipe, para tentar um último esforço, ficou surpreso de ver Zacharie sair de dentro da mina, muito vermelho, gesticulando, gritando:

— Ela está lá dentro! Respondeu-me! Venham, venham de uma vez!

Tinha-se introduzido pelas escadas, apesar do guarda, e jurava que ouvira pancadas na primeira via do veio Guillaume.

— Mas já passamos duas vezes por onde você diz — observou Négrel, incrédulo. — Enfim, vamos ver.

A mulher de Maheu levantara-se; tiveram de impedi-la de descer. Esperava muito ereta na beira do poço, com os olhos fixos nas trevas do buraco.      

Embaixo, o próprio Négrel deu três pancadas, muito espaçadas, em seguida aplicou o ouvido contra o carvão, recomendando aos operários o maior silêncio. Nenhuma resposta lhe foi dada e abanou a cabeça; evidentemente o pobre rapaz tinha sonhado. Furioso, Zacharie bateu por sua vez e encostou o ouvido; seus olhos brilharam, estava todo agitado por um tremor de alegria. Então os outros operários renovaram a experiência, uns após outros; todos se animavam, percebiam claramente a longínqua resposta. Foi um assombro para o engenheiro, que colou outra vez o ouvido, acabando por distinguir um ruído extremamente leve, um rumor rítmico, quase indistinto, a conhecida cadência do sinal dos mineiros, quando batem contra a hulha, avisando que estão em perigo. A hulha transmite os sons com uma limpidez de cristal, muito longe.

Um contramestre presente estimou em não menos de cinqüenta metros a espessura que os separava dos emparedados. Mas parecia que já podiam estender-lhes a mão; houve grande alegria. Négrel começou no mesmo instante os trabalhos de aproximação.

Quando Zacharie, no exterior, voltou a ver a mãe, ambos se abraçaram.

— Não se entusiasmem muito — disse cruelmente a mulher de Pierron, que nesse dia resolvera dar um passeio até ali, por curiosidade. — Se Catherine não estiver, vocês vão sofrer muito, depois.

Era verdade, talvez Catherine estivesse noutro lugar.

— Deixa-me em paz! — gritou furiosamente Zacharie. — Eu sei que ela está lá.

A mulher de Maheu sentara-se outra vez, muda, imóvel. Pôs-se novamente a esperar.

Assim que a história se espalhou por Montsou, começou a chegar gente. Não se via nada, mas ninguém arredava pé, tiveram de manter os curiosos a distância. Embaixo, trabalhava-se noite e dia. Temendo encontrar algum obstáculo, o engenheiro mandara abrir no veio três galerias em declive, convergindo para o ponto onde se supunha que os mineiros estivessem emparedados. Apenas um britador podia abater a hulha na frente estreita do túnel; rendiam-no de duas em duas horas, e o carvão, retirado em cestos, era passado de mão em mão por uma cadeia de homens, que se alongava à medida que o buraco se aprofundava. No começo o trabalho andou depressa; abriram-se seis metros num dia.

Zacharie conseguira ser dos operários escolhidos para o desmonte. Era um posto de honra disputado. E enfurecia-se quando queriam substituí-lo, após suas duas horas de serviço regulamentar Roubava a vez dos companheiros, recusava-se a largar a picareta. Em breve sua galeria estava mais adiantada do que as outras; batia-se contra a hulha com ímpeto tão feroz, que se ouvia sair do túnel o seu arfar rouquenho, igual ao ronco de uma forja interna. Quando saía, enlameado e negro, morto de cansaço, caía por terra, tinham de enrolá-lo numa coberta. Depois, ainda cambaleante, voltava ao trabalho e a luta recomeçava, os grandes golpes surdos, os lamentos abafados, um arrebatamento vitorioso de massacre. O pior era que o carvão endurecia, por duas vezes quebrou a ferramenta, exasperado de já não avançar tão depressa. Sofria também com o calor, um calor que aumentava a cada metro de avanço, insuportável no fundo daquele buraco estreito, onde o ar não podia circular. Um ventilador manual funcionava bem, mas a ventilação não se fazia sentir, em três ocasiões foram retirados trabalhadores desfalecidos, estrangulados pela asfixia.

Négrel vivia no fundo com os seus operários; comia lá mesmo, às vezes dormia duas horas, sobre um feixe de palha, enrolado numa capa. O que os tornava incansáveis era a súplica dos miseráveis do outro lado, a chamada cada vez mais distinta que batiam para que se apressassem a socorrê-los. Agora o sinal soava muito claro, com uma sonoridade musical, como que dado nas lâminas de uma harmônica. Guiavam-se por ele, caminhavam em direção àquele ruído cristalino, como se marcha para o canhão nas batalhas. Cada vez que se rendia um britador, Négrel descia, batia e colava o ouvido; e de cada vez, até aquele momento, a resposta viera sempre, rápida e instante. Não havia dúvida, avançavam na direção certa; mas que lentidão fatal! Nunca chegariam a tempo. A princípio, em dois dias, tinham aberto treze metros, mas no terceiro fizeram somente cinco; depois, no quarto, apenas três. A hulha apertava, endurecia a tal ponto que, agora, abriam dois metros com muita dificuldade. No nono dia, depois de esforços sobre-humanos, tinham avançado trinta e dois metros e calculavam que ainda teriam uns vinte pela frente. Para os prisioneiros, era o décimo segundo dia que começava, doze vezes vinte e quatro horas sem pão, sem fogo naquelas trevas glaciais! Este pensamento horrendo enchia os olhos de lágrimas, enrijecia os braços dos que trabalhavam. Parecia impossível que cristãos pudessem continuar vivendo, as pancadas longínquas enfraqueciam desde a véspera, temiam continuamente não as ouvir mais.

Regularmente a mulher de Maheu vinha sentar-se à boca do poço. Trazia Estelle nos braços, já que a pequena não podia ficar sozinha da manhã à noite. Seguia os trabalhos hora a hora, partilhava das esperanças e dos desalentos. Nos grupos que rodeavam o local, até em Montsou, havia uma expectativa febril, comentários sem fim. Todos os corações da região batiam lá dentro, nas entranhas da terra.

No nono dia, à hora do almoço, Zacharie não respondeu quando o chamaram para ser substituído. Estava como louco, batia-se contra a hulha, praguejando. Négrel, que tinha saído por um instante, era o único a quem ele obedeceria; só havia ali um contramestre com três mineiros. Sem dúvida Zacharie, mal iluminado, furioso com a claridade bruxuleante que o impedia de trabalhar mais depressa, cometeu a imprudência de abrir sua lanterna. Com isso desobedecia a ordens severas, tinham-se declarado escapamentos de grisu, o gás formava uma massa enorme nesses corredores estreitos, privados de ventilação. Bruscamente ouviu-se o ribombar de um trovão, uma tromba de fogo saiu do túnel, como da boca de um canhão carregado. Tudo ardia, o ar inflamava-se como pólvora, de um extremo ao outro das galerias. A torrente de fogo carregou o contramestre e os três operários, subiu pelo poço, jorrou na superfície como uma erupção, cuspindo rochas e pedaços de madeira. Os curiosos fugiram; a mulher de Maheu levantou-se, apertando ao colo Estelle apavorada.

Quando Négrel e os operários voltaram, uma cólera terrível os possuiu. Queriam destruir aquela terra com os saltos dos sapatos, como a uma mãe desnaturada que mata seus filhos ao acaso, nos imbecis caprichos da sua crueldade. Devotavam-se, iam em socorro dos companheiros e ainda morriam homens! Após três longas horas de esforços e perigos, quando penetraram enfim nas galerias, a subida das vítimas foi lúgubre. Nem o contramestre nem os operários estavam mortos, mas cobertos de chagas, exalando um cheiro de carne queimada; tinham bebido fogo, as queimaduras iam até a garganta; e gritavam continuamente, suplicando que os matassem. Dos três mineiros, um era o homem que, durante a greve, destruíra a bomba da Gaston-Marie com uma picareta, os outros dois tinham cicatrizes nas mãos, os dedos esfolados, cortados, de tanto terem atirado tijolos nos soldados. A multidão, pálida e trêmula, descobriu-se quando eles passaram.

Em pé, a mulher de Maheu esperava. Apareceu enfim o corpo de Zacharie. As roupas tinham ardido, o corpo não passava de um carvão negro, calcinado, irreconhecível. Esmagada na explosão, cabeça tinha desaparecido. E quando aqueles restos horríveis foram depositados sobre uma maca a mulher seguiu-os maquinalmente, os olhos reluzindo, sem uma lágrima. Levava nos braços Estelle adormecida, caminhava trágica, com os cabelos fustigados pelo vento. No conjunto habitacional, Philomène ficou petrificada, depois começou a chorar copiosamente, sentindo-se aliviada. No mesmo passo em que viera, a mãe voltou a Réquillart: tinha acompanhado o filho, voltava para esperar pela filha.

Passaram mais três dias. Voltou-se aos trabalhos de salvamento em meio a dificuldades inauditas. As galerias de aproximação felizmente não tinham desabado com a explosão do grisu, mas o ar queimava, tão pesado e viciado, que foi preciso instalar outros ventiladores. De vinte em vinte minutos os britadores eram substituídos. Avançavam, apenas dois metros os separavam dos companheiros. Mas agora trabalhavam transidos, golpeando com força unicamente por vingança, já que os sinais tinham cessado, a chamada não soava mais com sua cadência clara e leve. Estavam no décimo segundo dia de trabalho, no décimo quinto da catástrofe, e desde aquela manhã fizera-se um silêncio de morte.

O novo acidente aguçou mais ainda a curiosidade de Montsou; os burgueses organizavam excursões, e com tal entusiasmo, que os Grégoire decidiram-se a fazer o mesmo. Organizaram um passeio, combinou-se que iriam à Voreux na carruagem deles, enquanto a Sra. Hennebeau levaria, na sua, Lucie e Jeanne. Deneulin mostrar-lhes-ia sua obra, depois voltariam para casa passando por Réquillart, onde Négrel lhes explicaria em que ponto estavam os trabalhos de perfuração e se ainda havia alguma esperança. Finalmente, jantariam todos juntos nessa noite.

Quando, por volta das três horas, os Grégoire e sua filha Cécile desceram diante da mina em ruínas, encontraram a Sra. Hennebeau, que chegara primeiro, de vestido azul-marinho, fugindo do pálido sol de fevereiro sob uma sombrinha. O céu, muito puro, era de uma doçura primaveril. O Sr. Hennebeau estava lá, com Deneulin; e ela escutava distraída as explicações dadas por este último sobre os esforços feitos para represar o canal. Jeanne, que sempre andava com um álbum, pusera-se a desenhar, entusiasmada com o horror do motivo, enquanto Lucie, sentada ao lado dela sobre um destroço de vagonete, também soltava exclamações de entusiasmo, achando aquilo "fantástico". O dique, ainda não concluído, apresentava diversos vazamentos, cujas ondas espumantes caíam, rolando em cascatas para dentro do enorme buraco da mina tragada. Mas a cratera se esvaziava, a água, bebida pela terra, baixava, deixando à mostra a horrível mixórdia do fundo. Sob o azul delicado daquele belo dia, era como uma cloaca, as ruínas de uma cidade destruída e diluída no lodo.

— E a gente sai de casa para ver isso! — exclamou o Sr. Grégoire desiludido.

Cécile, muito rosada, feliz de respirar ar tão puro, brincava, gracejava, enquanto a Sra. Hennebeau fazia beicinho, como se estivesse enojada, murmurando:

— A verdade é que isso nada tem de bonito.

Os dois engenheiros puseram-se a rir. Trataram de interessar os visitantes levando-os a visitar tudo, explicando-lhes o movimento das bombas e a manobra do bate-estacas. Mas as senhoras começavam a ficar nervosas. Estremeceram ao saber que as bombas funcionariam anos, seis, sete anos talvez, antes que se pudesse reconstruir o poço e toda a água da mina estivesse esgotada. Não, preferiam pensar em outra coisa, essas desgraças só serviam para dar pesadelos.

— Vamos — disse a Sra. Hennebeau, dirigindo-se para o carro. Jeanne e Lucie protestaram. Como? Já? O desenho ainda não estava acabado! Quiseram ficar, o pai as acompanharia para o jantar, à noite.

O Sr. Hennebeau embarcou na caleça com a esposa; desejava falar com Négrel.

— Vão na frente — disse o Sr. Grégoire. — Temos uma visitinha de cinco minutos a fazer ali no conjunto habitacional... Vão, vão, estaremos em Réquillart com vocês.

Subiu depois da Sra. Grégoire e de Cécile; e, enquanto o outro carro corria ao longo do canal, o deles subiu vagarosamente a ladeira.

Era uma ação caridosa que devia completar o passeio. A morte de Zacharie enchera-o de piedade por essa trágica família Maheu, da qual todo mundo falava. Não lastimavam o pai, um bandido, um assassino de soldados, que fora preciso abater como a um lobo. Apenas a mãe os comovia, essa pobre mulher que acabara de perder o filho, após ter perdido o marido, e cuja filha provavelmente já era cadáver debaixo da terra; isso sem contar que se falava de um avô enfermo, de um menino manco em conseqüência de um desabamento, de uma menina morta de fome durante a greve. E, ainda que essa família tivesse merecido uma parte das desgraças por seu espírito odioso, haviam resolvido afirmar a grandeza da sua caridade o desejo de perdão e de conciliação, levando-lhes eles mesmos urna esmola. Dois embrulhos cuidadosamente envoltos estavam debaixo de um dos bancos da carruagem.

Uma velha indicou ao cocheiro a casa dos Maheu, o número dezesseis do segundo quarteirão. Mas, quando os Grégoire desceram com os embrulhos, bateram em vão, acabando por esmurrar a porta com os punhos fechados, sem que ninguém viesse abrir; a casa ressoava lugubremente, como um lar desfeito pelo luto, gélido e negro, abandonado há muito tempo.

— Não há ninguém — exclamou Cécile, desapontada. — Que aborrecido! Que faremos com tudo isso?

Subitamente a porta do lado abriu-se e a mulher de Levaque apareceu.

— Meu senhor! minha senhora! Queiram perdoar! Desculpe, senhorita! Estão procurando a vizinha? Ela não está em casa, foi para Réquillart...

Numa torrente de palavras contou-lhes a história, repetiu que tinham de se ajudar mutuamente, que guardava em casa Lénore e Henri para que a mãe pudesse ir para lá, esperar. Seu olhar caiu nos embrulhos, começou a falar da sua pobre filha que ficara viúva, a alardear sua própria miséria, com os olhos faiscando de cobiça. Depois, hesitante, murmurou:

— Eu tenho a chave... Já que os senhores insistem... O velho está lá dentro.

Os Grégoire olharam para ela estupefatos. Como? Então o ancião estava lá e ninguém respondia? Estaria dormindo? E, quando a mulher de Levaque abriu por fim a porta, o que viram fê-los estacar.

Boa-Morte lá estava, sozinho, com os olhos arregalados e fixos, pregado numa cadeira, diante do fogão apagado. Em torno dele a sala parecia maior sem o cuco, sem os móveis de pinho envernizado que noutros tempos a alegravam; só restavam, no verde cru das paredes, os retratos do imperador e da imperatriz, cujos lábios róseos sorriam com benevolência oficial. O velho não se mexia, não piscava os olhos com a luz que entrava pela porta, idiotizado, como se não estivesse vendo todas aquelas pessoas. Aos pés tinha o prato cheio de cinza, como os gatos têm os seus, para fazerem suas necessidades.  

— Não reparem se ele não faz as honras da casa — disse a mulher de Levaque, cheia de dedos. — Parece que está com um parafuso frouxo. Faz quinze dias que não fala. 

Mas um arranco sacudiu Boa-Morte, um ronco profundo que parecia subir das entranhas; e cuspiu no prato um espesso escarro negro A cinza estava empapada de cuspo, era um lodo de carvão, todo o carvão da mina que ele arrancava da garganta. Em seguida voltou à sua imobilidade. Só se mexia para escarrar.

Chocados, nauseados, os Grégoire tentavam, contudo, pronunciar algumas palavras amigas e animadoras.

— Então, bom homem — disse o pai —, está constipado?

O velho, com os olhos na parede, nem virou a cabeça. E voltou a reinar um silêncio pesado.

— Por que não lhe fazem uma tisana? — acrescentou a mãe. O velho continuou mudo e rígido.

— Papai — murmurou Cécile —, já haviam nos dito que ele estava doente, mas tínhamos esquecido...

Interrompeu-se muito embaraçada. Após ter colocado em cima da mesa um pouco de carne cozida e duas garrafas de vinho, desfazia o segundo embrulho, tirando um par de sapatos enormes; era o presente destinado ao avô. E ficou com um sapato em cada mão sem saber o que fazer, contemplando os pés inchados do desgraçado, que nunca mais caminhariam.

— Hem? Chegam um pouco tarde, não é, bom homem? — disse o Sr. Grégoire, para desanuviar o ambiente. — Mas não tem importância, sempre servem.

Boa-Morte não ouviu, não respondeu, sempre com a mesma cara assustadora, de uma frieza e de uma dureza de pedra.

Então Cécile, furtivamente, colocou o calçado contra a parede. Mas, apesar de ter tomado todas as precauções, os pregos fizeram barulho; e aqueles sapatos enormes pareciam atravancar a peça.

— Ele nem sequer agradece! — exclamou a mulher de Levaque, lançando para os sapatos um olhar de profunda cobiça. — É o mesmo que jogar pérolas aos porcos, com perdão da palavra.

Continuou tentando arrastar os Grégoire para a sua casa na esperança de apiedá-los. Afinal inventou um pretexto, começou a elogiar Henri e Lénore, que eram umas graças, muito queridinhos e tão inteligentes, respondendo como dois anjos a todas as perguntas! Esses, sim, diriam tudo o que os senhores desejavam saber.

— Vens também, filhinha? — perguntou o pai, contente com a oportunidade que se lhe apresentava de sair.       

— Sim, já vou — respondeu ela.

Cécile ficou só com Boa-Morte. O que a retinha trêmula e fascinada era a sensação de já conhecer aquele velho: onde tinha visto aquela cara quadrada, lívida, manchada de carvão? De repente lembrou-se, enxergou a multidão ululante que a cercava, sentiu as mãos frias apertando seu pescoço. Era ele, era aquele homem. Não podia tirar os olhos daquelas mãos descansando nos joelhos, mãos de operário derreado, cuja força está nos pulsos ainda sólidos, apesar da idade. Pouco a pouco Boa-Morte parecera despertar e fitava-a, examinava-a também, com seu ar imbecilizado. Um rubor começou a subir-lhe às faces, um cacoete nervoso repuxava-lhe a boca de onde escorria

um fio de saliva negra. Hipnotizados, os dois ficaram um defronte do outro, ela florescente, rechonchuda e rósea, graças aos longos ócios e ao bem-estar refarto da sua raça, ele inchado de água, de uma fealdade atroz de animal estafado, degenerado de pai para filho por cem anos de trabalho e de fome.

Ao fim de dez minutos, quando os Grégoire, surpresos de não verem Cécile, voltaram à casa dos Maheu, soltaram um grito terrível. Sua filha jazia no chão, roxa e estrangulada. No pescoço os dedos tinham deixado as digitais vermelhas de um punho de gigante. Boa-Morte, oscilante sobre suas pernas trôpegas, tinha caído junto dela, sem poder levantar-se. Tinha as mãos ainda crispadas, olhava para as pessoas com o seu ar de idiota, de olhos arregalados. Na queda quebrara o prato, a cinza tinha-se espalhado, o lodo dos escarros pretos tinha enlameado toda a peça, mas o enorme par de sapatos estava são e salvo contra a parede.

Nunca foi possível restabelecer exatamente os fatos. Por que Cécile se teria aproximado? Como Boa-Morte, preso à sua cadeira, pudera agarrar-se à garganta da moça? Evidentemente, ao conseguir segurá-la, deve ter-se encarniçado, apertando sempre, abafando seus gritos, mantendo-se por cima dela até o último suspiro. Nenhum ruído, nenhum lamento atravessara a fina parede da casa vizinha. Teve-se de acreditar num acesso repentino de demência, numa compulsão inexplicável de assassínio, diante daquele pescoço branco de donzela. Causou assombro tal selvageria num velho enfermo, que sempre vivera honradamente, como uma besta de carga, contrário às idéias novas. Que rancor ignorado dele mesmo o envenenara, subindo-lhe das entranhas à cabeça? O horror fez concluir pela inconsciência, era o crime de um mentecapto.

Os Grégoire, ajoelhados, soluçavam, sufocados de dor. A sua filha adorada, essa filha tanto tempo desejada, cumulada de todas as vontades, a quem, nas pontas dos pés, iam espiar quando dormia, nunca alimentada o bastante, nunca bastante gorda! Para eles, a vida estava terminada; para que continuar vivendo, agora que ela não existia mais?

A mulher de Levaque, desvairada, gritava:

— Mas como é que esse velho salafrário fez isso? Ninguém podia esperar uma coisa dessa! E a mulher só vai voltar de noite! Querem que eu vá buscá-la?

Aniquilados, o pai e a mãe não respondiam.

— Querem? Acho que é melhor... Eu vou...

Mas antes de sair notou os sapatos. A notícia já corria pelo conjunto habitacional, uma pequena multidão amontoava-se na porta. Talvez os roubasse... E depois, alija não

havia mais homem para os calçar. Carregou-os disfarçadamente. Deviam ser o número de Bouteloup.

Em Réquillart, os Hennebeau esperaram muito tempo os Grégoire, em companhia de Négrel. Este, que saíra da mina, dava pormenores: esperava-se atingir nessa mesma noite o local onde estavam as vítimas, mas certamente só retirariam cadáveres, porque o silêncio de morte continuava. Atrás do engenheiro, a mulher de Maheu, sentada no barrote, escutava muito pálida quando a vizinha chegou com a terrível notícia. E ela apenas teve um grande gesto de impaciência e irritação; contudo, seguiu-a.

A Sra. Hennebeau quase teve uma síncope. Que horror! Pobrezinha da Cécile, tão alegre naquele dia, ainda tão cheia de vida uma hora antes! Foi preciso que Hennebeau carregasse a esposa para o casebre do velho Mouque. Com suas mãos desajeitadas, desabotoou-a, perturbado pelo perfume de almíscar que exalava o corpete aberto. E, como ela, banhada em lágrimas, abraçasse Négrel, descontrolado com aquela morte que punha um ponto final no seu casamento, o marido, liberto de uma preocupação, ficou ali, observando os dois a se lamentarem. Essa desgraça vinha em boa hora: preferia conservar o sobrinho consigo, para não ter que se preocupar com o cocheiro.

 

No fundo do poço, os miseráveis abandonados berravam de terror. Já estavam com água até a cintura. O barulho da torrente os aturdia, as últimas quedas do revestimento faziam-nos pensar num desabamento final do mundo. E o que acabava de os enlouquecer eram os relinchos dos cavalos encerrados na cavalariça, um grito de morte, terrível, inesquecível, de animal que está sendo degolado.

Mouque tinha largado Batalha. O velho cavalo permanecia ali, trêmulo, com os olhos dilatados e fixos naquela água que subia sempre. O patamar do poço enchia-se rapidamente, via-se crescer a enxurrada esverdeada ao rubro clarão de três lanternas que ainda estavam acesas na abóbada. E de repente, ao sentir aquela água gelada encharcando seus pêlos, ele partiu disparado, num galope furioso, engolfando-se, perdendo-se ao fundo de uma das galerias de transporte.

Então foi um salve-se-quem-puder, os homens seguiram o animal.

— Aqui não há mais nada a fazer — gritou Mouque. — Vamos tentar a Réquillart.

A idéia de que poderiam sair pela velha mina vizinha, se pudessem lá chegar antes que a passagem fosse cortada, arrastou-os. Os vinte, em fila, empurravam-se, mantendo as lanternas bem no alto para que a água não as atingisse. Felizmente a galeria elevava-se em uma rampa muito suave; andaram duzentos metros lutando contra a água, com ela sempre à mesma altura. Crenças adormecidas acordavam naquelas almas desesperadas, invocavam a terra, era a terra que se vingava, que soltava o sangue das veias, porque lhe tinham cortado uma artéria. Um velho balbuciava orações esquecidas, dobrando os polegares no sentido contrário das juntas, para apaziguar os maus espíritos da mina.

Mas, na primeira encruzilhada, entraram em desacordo. O cavalariço queria ir pela esquerda, outros afirmavam que encurtariam caminho indo pela direita. Um minuto foi perdido.

— Pois morram discutindo, pouco me importa! — exclamou brutalmente Chaval. — Eu vou por aqui.

Tomou à direita e seguiram-no dois homens. Os outros continuaram correndo atrás do velho Mouque, que se criara no fundo da Réquillart. Contudo, ele mesmo hesitava, não sabia para onde dobrar. Estavam perdidos, os veteranos já não reconheciam as vias, cujo dédalo tinha como que se emaranhado diante deles. Paravam hesitantes a cada bifurcação, mas eram obrigados a se decidir.

Etienne corria atrás de todos, retido por Catherine, a quem a fadiga e o medo paralisavam. Por ele, teria entrado à direita, com Chaval, porque o julgava no caminho certo, mas preferia ficar no fundo a segui-lo. E a dispersão continuava, outros tinham embarafustado por caminhos diversos, já não eram mais que sete atrás do velho Mouque.

— Pendura-te no meu pescoço que eu te levo — disse Etienne à moça, vendo-a fraquejar.

— Não, desisto... — murmurou ela. — Não posso mais, prefiro morrer agora.

Estavam cinqüenta metros distantes dos outros, e ele ia pegá-la ao colo, apesar da sua resistência, quando subitamente a galeria ficou obstruída: um bloco enorme tinha desabado, isolando-os. A inundação estava soltando as rochas, produziam-se desabamentos de todos os lados. Tiveram de voltar. Depois ficaram sem saber em que direção caminhavam. Estava acabado, era preciso abandonar a idéia de subir pela Réquillart. Sua única esperança era alcançar as seções superiores, de onde, talvez, viriam retirá-los, se as águas baixassem.

Etienne reconheceu, por fim, o veio Guillaume.

— Agora já não sei onde estamos — disse ele. — Que azar! Íamos no caminho certo, mas agora é tarde... Escuta, vamos seguir em frente, subiremos pela chaminé.

Tinham água até o peito, avançavam muito lentamente. Enquanto tivessem luz, não desesperariam. Apagaram uma das lanternas para economizar azeite, com a idéia de o passar para a outra. Estavam chegando à chaminé quando um ruído atrás deles fez que se voltassem. Seriam os outros, que, não tendo podido passar, voltavam? Ouviam um resfolegar ao longe, não podiam explicar aquela tempestade que se aproximava lançando espuma. E gritaram ao perceber uma massa enorme, esbranquiçada, surgir da sombra e lutar para os alcançar, entre os caibros muito estreitos para o seu tamanho.

Era Batalha. Ao deixar a expedição, galopava ao longo das galerias escuras, desesperado. Parecia conhecer seu caminho naquela cidade subterrânea, onde morava havia onze anos. E seus olhos enxergavam no fundo da noite eterna em que vivera. Galopava, galopava, curvando a cabeça, levantando as patas, correndo por aqueles estreitos intestinos da terra, onde seu corpo enorme mal cabia. As ruas se sucediam, as encruzilhadas abriam suas bifurcações, sem que ele hesitasse. Para onde ia? talvez para a visão da sua juventude, ao moinho em que nascera às margens do Scarpe, à confusa recordação do sol, ardendo no ar como uma lâmpada enorme. Queria viver, sua memória de animal acordava, o desejo de respirar o ar das planícies impelia-o para a frente, até descobrir o buraco, a saída para o céu quente e a luz. E uma revolta varria toda a sua antiga resignação, esta mina assassinava-o, depois de o ter cegado.

A água que o perseguia batia-lhe nas ancas, atingia a garupa. Mas, à medida que avançava, as galerias estreitavam, com tetos mais baixos e paredes mais unidas. Ele galopava apesar de tudo, esfolando-se, deixando nas madeiras postas dos seus membros. Toda a mina parecia convergir sobre ele, para o prender e sufocar.

Então, Etienne e Catherine viram-no tolhido entre as rochas, bem próximo deles. Tinha tropeçado e quebrara as duas patas dianteiras. Num derradeiro esforço, arrastou-se alguns metros, mas os flancos já não passavam mais, estava envolvido, estrangulado pela terra. E sua cabeça ensangüentada espichou-se, procurou ainda uma fenda, com seus grandes olhos turvos. A água cobria-o rapidamente, pôs-se a relinchar, na mesma agonia prolongada, atroz, em que os outros cavalos já tinham morrido na cavalariça. Foi uma morte horrenda a do velho animal, despedaçado, imobilizado, debatendo-se naquelas profundezas, longe da luz do dia. Seu relincho final não cessava; a água cobria a crina e o grito continuava a sair da sua boca espichada e muito aberta. Houve um último ronco, o ruído surdo de um tonei que se enche. Depois fez-se um grande silêncio.

— Deus do céu! Leva-me daqui! — soluçava Catherine. — Ah, meu Deus! Tenho medo, não quero morrer... Leva-me! Leva-me!

Ela tinha visto a morte. O poço desabado, a mina inundada, nada lhe insuflara tanto horror como o clamor de Batalha agonizante. E continuava a ouvi-lo, seus tímpanos pareciam estourar, todo o seu ser estremecia.

— Leva-me, leva-me daqui!

Etienne agarrou-a e levou-a. Aliás, já não era sem tempo, subiram a chaminé com água até os ombros. Tinha de ajudá-la, a moça não possuía mais forças para se agarrar às madeiras. Por três vezes ela quase escorregou, quase voltou a cair no mar profundo, cujas ondas estrondavam atrás deles. Felizmente, puderam respirar alguns' tos minutos, quando encontraram a primeira via, ainda desobstruída. Mas a água reapareceu, foi necessário içarem-se de novo. E aquela subida demorou horas, com a enchente expulsando-os de via para via obrigando-os a subir sempre. Na sexta via, uma parada os encheu de esperança; parecia que o nível da água permanecia estacionário. Mas uma alta mais forte teve lugar e foram obrigados a subir à sétima, depois à oitava. Restava apenas uma via; quando se viram nela, examinaram ansiosamente cada centímetro de água que aumentava. E se não parasse? Iam morrer como o velho cavalo, esmagados contra o teto, com a garganta cheia de água?

Ouviam-se desabamentos a todo instante. A mina inteira estava abalada, de entranhas demasiado delgadas, estourando com a enorme massa de água que a enchia. No extremo das galerias o ar comprimido acumulava-se, produzindo explosões formidáveis, entre as rochas fendidas e as terras revoltas. Era o estrépito aterrador dos cataclismos internos, um renascer da batalha antiga, da época em que os dilúvios convulsionavam a terra, jogando as montanhas nas planícies.

E Catherine, sacudida, atordoada por aquele desabamento contínuo, juntava as mãos, gaguejava as mesmas palavras, sem descanso:

— Não quero morrer... Não quero morrer...

Para tranqüilizá-la, Etienne jurava que a água não subia mais. Aquela corrida já durava bem umas seis horas, iam descer, enviar socorros. E dizia seis horas sem saber, a noção exata do tempo escapava-lhes. Na verdade tinham passado um dia inteiro subindo pelo veio Guillaume.

Molhados, tiritando, pararam para descansar. Ela despiu-se sem pejo, para torcer as roupas; depois tornou a vestir as calças e a jaqueta, que acabaram de secar no corpo. Como estava descalça, ele, que tinha seus tamancos, forçou-a a calçá-los. Agora podiam esperar, baixaram a mecha da lanterna, ficando com uma luz fraca da lamparina. Mas as cãibras começaram a aguilhoar seus estômagos e deram-se conta de que estavam morrendo de fome. Até então pareciam não ter vivido. No momento da catástrofe ainda não tinham almoçado, e acabavam de encontrar seus pedaços de pão, cheios de água, transformados em sopa. Ela teve de se zangar para que ele aceitasse sua parte, e assim que comeu adormeceu de cansaço sobre a terra fria. O rapaz, consumido pela insônia, velava-a, com a cabeça nas mãos, os olhos arregalados.

Quantas horas decorreram assim? Não poderia dizer. O que sabia era que na sua frente, pelo buraco da chaminé, vira reaparecer a vaga negra e movente, a besta cujo dorso eriçava-se continuamente para alcançá-los. A princípio foi apenas uma linha fina, uma serpente ligeira que se aproximava; depois transformou-se num espinhaço fervilhante que rastejava. E dentro em pouco foram alcançados; os pés da moça, que dormia, ficaram molhados. Ansioso, ele não sabia se devia acordá-la. Não seria cruel tirá-la daquele repouso, da ignorância prostrada em que estava engolfada, talvez sonhando com o ar livre e a vida ao sol? E de resto, por onde fugir? Indagou-se e acabou lembrando que o plano inclinado construído naquela parte do veio comunicava diretamente com o plano que servia à expedição superior. Era uma saída. Deixou-a dormir ainda, o mais possível, olhando a maré subir, esperando que os expulsasse dali. Afinal ergueu-se devagarinho e Catherine teve um grande estremecimento.

— Ah, meu Deus! é verdade... Estou aqui, meu Deus! Recordava-se, lamentava-se ao ver que a morte estava sempre próxima.

— Vamos, calma — murmurou ele. — Podemos passar, juro. 

Para alcançar o plano inclinado, tiveram de caminhar curvados, outra vez com a água até os ombros. E a subida recomeçou, mais perigosa, por aquele buraco inteiramente estaqueado com uma extensão de cem metros. Primeiro quiseram puxar o cabo, a fim de fixar embaixo um dos carros, porque, se o outro descesse durante a sua ascensão, seriam esmagados. Mas não conseguiram, um obstáculo tinha danificado o mecanismo. Arriscaram-se assim mesmo, não ousando servir-se do cabo que tolhia seus movimentos, arrancando as unhas naquelas madeiras lisas. Ele ia atrás, retinha-a com a cabeça quando ela escorregava, as mãos em sangue. De repente esbarraram contra os pedaços de madeira que obstruíam o plano. Um desabamento de terra impedia-os de continuarem subindo. Felizmente havia uma porta naquela altura, e desembocaram numa via. Diante deles, a luz de uma lanterna deixou-os boquiabertos. Um homem gritou-lhes furiosamente:

— Mais outros espertinhos tão idiotas como eu! Reconheceram Chaval, que estava bloqueado pelo desabamento que enchia o plano inclinado. E os outros dois que estavam com ele tinham ficado no caminho, com a cabeça esmagada. Chaval, ferido no braço, tivera a coragem de voltar, de joelhos, apanhar suas lanternas e revistá-los, para roubar-lhes a merenda. Quando fugia do local, um último desabamento, às suas costas, obstruiu a galeria.

Ao vê-los, jurou para si mesmo não repartir suas provisões com aquela gente que saía da terra, preferia matá-los. Mas em seguida reconheceu-os e sua cólera desapareceu, pôs-se a rir com um riso de alegria perversa.

— Ah, é a Catherine! Bateste com o nariz na porta e agora queres voltar para o teu homem, não é isso? Muito bem! Vamos tentar safar-nos desta juntos, está bem?

Fingia não ver Etienne. Este, aborrecido com o encontro, fizera um gesto para proteger a operadora de vagonetes, que se chegara para ele. Nada a fazer, senão aceitar a situação. Perguntou simplesmente ao outro, como se se tivessem despedido como bons amigos uma hora antes:

— Já viste no fundo? Não se pode passar pelas seções de desmonte?

Chaval continuava troçando.

— Pelas seções de desmonte? Que gracinha! Também ruíram, estamos entre duas paredes, numa verdadeira ratoeira... Mas tu podes voltar pelo plano, se és bom mergulhador.

Com efeito, a água subia, ouviam-na marulhar. A retirada já não era mais possível. O outro tinha razão, era uma ratoeira, um extremo de galeria que depressões consideráveis obstruíam atrás e na frente. Não havia saída, os três estavam murados.

— Então, ficas? — acrescentou Chaval chocarreiro. — É o melhor que tens a fazer, e, se me deixares em paz, não te dirigirei a palavra. Aqui ainda há lugar para dois homens... Em seguida veremos qual dos dois vai morrer primeiro, a menos que nos socorram, o que me parece difícil.

O rapaz disse:

— Se batêssemos, talvez nos ouvissem...

— Estou cansado de bater. Vai, tenta com esta pedra. Etienne apanhou o pedaço de arenito que o outro já tinha partido e bateu no veio, ao fundo, o sinal dos mineiros, a

cadência prolongada com que os operários em perigo assinalam sua presença. Depois colou o ouvido para escutar. Insistiu vinte vezes, mas não obteve resposta.

Durante este tempo, Chaval fingia arranjar calmamente suas coisas. Primeiro enfileirou as três lanternas contra a parede: só uma ardia, as outras serviriam para mais tarde. Em seguida colocou sobre um pedaço de madeira os dois pedaços de pão que ainda tinha. Era a provisão, dava para dois dias, poupando. Voltou-se, dizendo:

— Catherine, a metade será para ti, quando sentires muita fome.

A moça não respondeu. Para ela, era o cúmulo da desgraça encontrar-se entre aqueles dois homens.

E a vida de inferno começou. Nem Chaval nem Etienne abriam a boca, sentados no chão, a poucos passos um do outro. A uma observação do primeiro, o segundo apagou sua lanterna, um luxo inútil de luz; depois voltaram ao silêncio. Catherine deitara-se perto do rapaz, inquieta com os olhares que seu antigo amante lhe lançava. As horas passavam, ouvia-se o leve murmúrio da água subindo sempre, enquanto, de tempos a tempos, tremores profundos, estrondos longínquos anunciavam os últimos desabamentos da mina. Quando a lanterna se esvaziou e foi preciso abrir outra para acender, por um instante temeram o grisu; mas preferiam explodir logo a permanecer nas trevas. Nada aconteceu, não havia grisu. Deitaram-se novamente e as horas continuaram passando.

Um ruído fez que Etienne e Catherine levantassem a cabeça. Chaval decidira-se a comer: cortara a metade de uma fatia de pão, mastigava demoradamente, para não engolir tudo de uma vez. Eles, torturados pela fome, observavam.

— Não queres mesmo? — perguntou Chaval à operadora de vagonetes, com o seu ar provocante. — Pois devias querer.

A moça baixara os olhos, receando ceder, com o estômago dilacerado por uma cãibra tão forte, que lhe vinham lágrimas aos olhos. Sabia o que ele queria; já pela manhã fizera carícias no seu pescoço, tomado por um dos seus antigos furores de desejo, vendo-a junto do outro. Os olhares que lançava tinham a chama que ela conhecia muito bem, a chama das suas crises de ciúmes, quando caía sobre ela a socos, acusando-a de praticar coisas abomináveis com o inquilino da mãe. E não queria, temia voltar a ele, atirando os dois homens um contra o outro, nesse buraco estreito onde agonizavam. Deus! Não podiam ao menos morrer como amigos?

Etienne preferia morrer de inanição a mendigar de Chaval uma migalha de pão. O silêncio era cada vez mais pesado, parecia prolongar-se por uma eternidade, com a lentidão dos minutos monótonos que escoavam um a um, sem esperança. Havia um dia

que estavam encerrados juntos. A segunda lanterna começou a esgotar-se, acenderam a terceira.

Chaval atacou o segundo pedaço de pão e grunhiu:

— Não sejas idiota, vem!         

Catherine estremeceu. Para deixá-la livre, Etienne pusera-se de costas. Como a moça se conservasse imóvel, disse-lhe, em voz baixa:

— Vai, minha filha.

As lágrimas que ela sufocava correram então. Chorou longamente, não encontrando forças para se levantar, já sem saber se tinha fome, sofrendo de uma dor que a mordia por todo o corpo. O rapaz pusera-se em pé, ia e vinha, batendo em vão o sinal dos mineiros, odiando aquele resto de vida que era obrigado a viver ali, ao lado do rival que execrava. Nem mesmo havia espaço bastante para um ir morrer longe do outro! Mal dava dez passos, tinha de voltar e topar com esse homem. E ela, a infeliz, que era disputada até nas entranhas da terra, seria do que sobrevivesse! O outro a roubaria se ele morresse primeiro. Aquilo não terminava mais, uma hora vinha depois da outra, a revoltante promiscuidade agravava-se com a Pestilência dos hálitos, a imundície das necessidades fisiológicas satisfeitas em comum. Duas vezes atirou-se contra as rochas, como que querendo rachá-las a socos.

Outro dia acabava e Chaval tinha sentado perto de Catherine, repartindo com ela seu último pedaço de pão. A moça mastigava os bocados penosamente e ele cobrava cada um com uma carícia, no seu desespero de ciumento, que não queria morrer sem possuí-la diante do outro. Esgotada, Catherine se entregou, mas, quando o homem foi estreitá-la, lamentou-se:

— Ai! Solta-me, estás-me machucando.

Etienne, fremente, encostara a cabeça nas madeiras, para não ver. Voltou de um salto, enlouquecido.

— Larga-a, demônio!

— Que é que tens com isso? — disse Chaval. — Ela é minha mulher; é ou não é?

E abraçou-a de novo, apertando-a, por bravata, colando-lhe à boca seu bigode ruivo. E continuou:

— Deixa-nos em paz, por favor! Vai ver se a gente está lá no outro canto, vai.

Mas Etienne, com os lábios brancos, gritava:

— Se não a largares, estrangulo-te!

O outro pôs-se em pé de um salto, porque tinha compreendido, pelo sibilar da voz, que o rapaz ia dar cabo dele. Parecia-lhes que a morte custava a chegar, um dos dois tinha de desaparecer, imediatamente. Era a velha disputa que recomeçava, na terra onde em breve dormiriam lado a lado. E tinham tão pouco espaço que não podiam brandir os punhos sem se esfolar.

— Cuidado! — rosnou Chaval. — Desta vez acabo contigo.

O sangue começou a ferver na cabeça de Etienne. Sobre seus olhos baixou um vapor vermelho, a garganta latejava, afogada. A necessidade irresistível de matar possuiu-o, uma necessidade física a excitação sangüínea de uma mucosa que determina um violento acesso de tosse. Aquilo explodiu, fugiu ao seu controle, sob o impulso da lesão hereditária. Agarrou-se a uma lasca de xisto da parede, puxou-a e arrancou-a, enorme e pesada. Depois, com as duas mãos, com força redobrada, abateu-se sobre a cabeça de Chaval.

Este não teve tempo de saltar para trás. Caiu com o rosto esmagado, a cabeça aberta. O cérebro salpicou o teto da galeria, um jato purpúreo corria da ferida, igual a uma fonte. Em seguida formou-se uma poça onde a estrela fumacenta da lanterna refletiu-se. A sombra invadia aquela tumba emparedada, o corpo no chão parecia um montículo negro de restos de carvão.

Etienne, curvado, observava-o com as pupilas dilatadas. Estava feito; ele tinha matado. Confusamente voltavam-lhe à memória todas as suas lutas, esse combate inútil contra o veneno que dormia nos seus músculos, o álcool lentamente acumulado da família. E no entanto só estava ébrio de fome, mas o longínquo alcoolismo dos pais bastara para matar. Seus cabelos eriçavam-se com o horror daquele assassinato, e, apesar da revolta da sua educação, uma alegria fazia pulsar seu coração, a alegria animal de um apetite enfim satisfeito. Em seguida sentiu orgulho, o orgulho do mais forte. Surgiu-lhe uma visão, a do soldadinho apunhalado, morto por uma criança. Ele também havia matado.

Mas Catherine, em pé, soltou um grande grito:

— Meu Deus! Está morto!

— Estás sentindo falta dele? — perguntou Etienne enfurecido. Sufocada, ela não sabia o que dizer. Depois, cambaleante, atirou-se nos seus braços.

— Ah! Mata-me também! Morramos os dois! 

Desesperada, agarrou-se ao seu pescoço, ele cingiu-a também, e ambos, por um momento, acreditaram que iam morrer. Mas a morte não tinha pressa e soltaram-se.

Depois, enquanto ela tapava os olhos, o rapaz arrastou o miserável, jogando-o no plano inclinado, para tirá-lo do estreito espaço onde ainda teriam de viver. A vida não seria possível com aquele cadáver entre ambos. E levaram um susto quando ouviram o corpo mergulhando em borbotões de espuma. Então a água já tinha enchido aquele buraco? Nesse momento viram que o líquido transbordava pela galeria.

Começou nova luta. Tinham acendido a última lanterna, que se esgotava iluminando a enchente, cuja alta regular, obstinada, não parava. Primeiro tiveram água até os tornozelos, depois atingiu os joelhos. A via era em declive e eles se refugiaram no cimo, o que lhes deu uma trégua de algumas horas. Mas a vaga alcançou-os, ficaram com água até a cintura. Em pé, encurralados, colados à rocha, viam-na crescer sempre, sempre. Quando lhes chegasse à boca, tudo estaria terminado. A lanterna, que tinham pendurado no alto, amarelava o vaivém das ondas, mas começou a enfraquecer e agora eles só distinguiam um semicírculo que diminuía constantemente, como que tragado pela sombra que parecia crescer com o fluxo. E de repente foram envolvidos pelo escuro, a lanterna acabava de se apagar, depois de queimar sua última gota de azeite. Era a noite total, a noite das entranhas da terra onde dormiriam, sem jamais reabrir os olhos à luz do sol.

— Diabo! — praguejou surdamente Etienne.

Catherine, como se tivesse sido agarrada pelas trevas, aconchegara-se contra ele. E repetia a frase dos mineiros, em voz baixa:

— A morte apagou a lanterna...

No entanto, diante da ameaça, seu instinto lutava, uma febre de viver reanimou-os. Violentamente ele pôs-se a cavar o xisto com o gancho da lanterna, e a moça ajudava-o com as unhas. Fizeram uma espécie de banco elevado e ali sentaram-se, com as pernas balançando, curvados, porque a abóbada os forçava a baixar a cabeça. A água agora só gelava seus calcanhares; não tardaram porém em sentir o frio cortando-lhes as canelas, a barriga das pernas, os joelhos, num movimento invencível e sem trégua. O banco, mal nivelado, encharcava-se de uma umidade tão viscosa, que tinham de segurar-se com força para não escorregar. Era o fim; quanto tempo esperariam ainda, reduzidos àquele nicho, onde não ousavam fazer um gesto, extenuados, famintos, sem pão e sem luz? Sofriam sobretudo com as trevas, que não os deixavam ver aproximar-se a morte. Reinava um grande silêncio, a mina, cheia de água, estava quieta. Agora, por baixo deles, só tinham a sensação desse mar subindo, do fundo das galerias, sua muda maré.

As horas sucediam-se, todas igualmente negras, sem que pudessem medir sua duração exata, cada vez mais perdidos no cálculo do tempo. As torturas por que passavam, em vez de tornar os minutos intermináveis, faziam que passassem rápidos. Acreditavam estar soterrados há apenas dois dias e uma noite, quando, na realidade, já acabava o terceiro dia. Qualquer esperança de socorro se desvanecera, ninguém sabia que estavam ali, ninguém conseguiria descer, e a fome acabaria com eles, se a inundação não o fizesse. Tiveram a idéia de dar o sinal pela última vez, mas a pedra tinha ficado debaixo da água. E, além disso, quem os ouviria?

Catherine, resignada, apoiara contra o veio sua cabeça dolorida, quando um estremecimento a pôs atenta.

— Escuta! — disse ela.

Etienne pensou que ela falasse do marulho da água subindo sempre e por isso mentiu, quis tranqüilizá-la.

— Estou mexendo com as pernas, é isso que estás ouvindo.

— Não, não, não é isso... É ali, escuta!

Ela tinha colado seu ouvido ao carvão. O rapaz compreendeu e imitou-a. Uma espera de alguns segundos desesperou-os. Depois, muito longínquas, ouviram três pancadas, bem espaçadas e fracas. Duvidavam ainda, seus ouvidos zumbiam, eram talvez estalos do carvão. Não sabiam com que bater para responder.

Etienne teve uma idéia.

— Estás com os tamancos. Descalça-os e bate com os saltos. Catherine bateu o sinal dos mineiros e puseram-se a escutar, distinguindo novamente as três pancadas ao longe. Várias vezes recomeçaram, várias vezes veio a resposta. Choravam, abraçavam-se, arriscando perder o equilíbrio. Enfim os companheiros estavam do outro lado, já iam chegar. Foi um transbordar de alegria e de amor que varria os tormentos da espera, da raiva dos apelos por tanto tempo inúteis, como se os salvadores não tivessem mais que fender a rocha com o dedo para libertá-los.

— Viste? — exclamou ela alegremente. — Não foi uma sorte eu ter apoiado a cabeça?

— Tens um ouvido... — respondeu ele. — Eu não tinha escutado nada.

A partir desse momento revezavam-se, sempre um deles estava à escuta, pronto a responder ao menor sinal. Breve perceberam golpes de picareta: começavam os trabalhos de aproximação, abriam uma galeria. Nenhum ruído lhes escapava, mas a alegria se desvaneceu. Riam para enganar um ao outro, o desespero voltava a invadi-los

pouco a pouco. Primeiro acharam mil explicações: evidentemente vinham por Réquillart, a galeria desembocava na camada de carvão, talvez estivessem abrindo diversas, porque havia três homens trabalhando. Em seguida começaram a falar menos, acabaram calando-se quando calcularam a massa enorme que os separava dos salvadores. Mudos, continuaram suas reflexões, contavam os dias e dias que um operário gastaria para atravessar semelhante bloco. Nunca chegariam a tempo, teriam morrido várias vezes. E, abatidos, não ousando mais trocar palavra naquele crescer de angústia, respondiam à chamada com batidas de tamanco, sem esperança, apenas pela necessidade maquinai de dizerem aos outros que ainda viviam.

Um, dois dias se passaram. Havia seis dias que estavam soterrados. A água, à altura dos joelhos, não subia nem descia, e parecia que suas pernas se estavam derretendo com aquele banho gelado. Por uma hora ainda podiam tê-las levantadas, mas a posição era tão incômoda que se retorciam com cãibras atrozes, e tinham de deixá-las cair. A cada dez minutos deviam fazer um movimento com as nádegas para não escorregarem da rocha. As arestas do carvão perfuravam-lhes as costas, sentiam na nuca uma dor fixa e intensa, de a terem constantemente curvada, para não quebrarem a cabeça. E a sufocação aumentava, o ar, comprimido pela água, acumulava-se na espécie de bolsão onde estavam encerrados. Suas vozes, abafadas, pareciam vir de muito longe. Os ouvidos começaram a zumbir, ouviam as badaladas furiosas de um sino, o galope de um rebanho sob uma chuva de pedras interminável.

A princípio, Catherine sofreu horrivelmente de fome. Levava à garganta suas pobres mãos crispadas, dava enormes suspiros cavos, uma queixa contínua, dilacerante, como se uma tenaz lhe tivesse arrancado o estômago. Etienne, sofrendo da mesma tortura, tateava febrilmente no escuro, quando, junto de si, seus dedos encontraram um pedaço de madeira meio podre, que suas unhas esfarelaram. Deu um punhado à gradadora, que o engoliu rapidamente. Por dois dias viveram daquela madeira carunchosa, devoraram-na toda, ficando desesperados quando acabou, esfolando-se para arrancar outras, ainda sólidas e cujas fibras resistiam. Seu suplício aumentou, enfureciam-se de não poder mastigar a fazenda das roupas. Um cinto de couro do rapaz aliviou-os um pouco. Cortava-o em pedacinhos com os dentes e ela os triturava, encarniçando-se para engoli-los. Isso fazia com que mastigassem, dava-lhes a ilusão de que comiam. Depois, devorado o cinto, voltaram à fazenda, chupando-a horas e horas.

Em breve, porém, aquelas crises violentas cessaram, a fome passou a ser uma dor profunda, surda, o próprio abandono, lento e progressivo, das forças. Sem dúvida

teriam sucumbido se não tivessem água à vontade. Era só abaixarem-se, bebendo na palma da mão; e isso vinte, trinta vezes, pois a sede era tanta que nem toda aquela água podia saciá-la.

No sétimo dia, Catherine curvava-se para beber, quando bateu com a mão num corpo que flutuava a sua frente.

— Olha... Que é isso? Etienne tateou nas trevas.

— Não sei, parece o forro de uma porta de ventilação.

Ela bebeu, e, quando ia apanhar mais água, o corpo bateu outra vez na sua mão. Deu um grito terrível.

— É ele! Meu Deus!

— Ele quem?

— Ele, tu sabes quem é... Toquei no bigode.

Era o cadáver de Chaval que voltara do plano inclinado e fora trazido até ali pela cheia. Etienne estendeu o braço, tocou no bigode, no nariz esmagado. Um arrepio de repugnância e medo sacudiu-o. Possuída de uma náusea medonha, Catherine cuspiu a água que ainda tinha na boca. Teve a sensação de que acabava de beber sangue, de que toda aquela água profunda diante dela era agora o sangue daquele homem.

— Espera — tartamudeou Etienne —, vou empurrá-lo.

Deu um pontapé no cadáver, que se afastou. Mas em seguida sentiram-no de novo batendo-lhes nas pernas.

— Raio! Vai-te!

Na terceira vez Etienne teve de deixá-lo. Alguma corrente o trazia de volta. Chaval não queria ir embora, queria ficar ao lado deles, encostado neles. Foi um companheiro terrível, que acabou de envenenar o ar. Durante todo aquele dia não beberam água, lutando, preferindo morrer; mas no dia seguinte o sofrimento os decidiu: afastavam o corpo cada vez que recolhiam o líquido, e bebiam apesar de tudo. Não valera a pena matá-lo, voltara a interpor-se entre ambos, obstinado no seu ciúme. Estaria ali até o fim, mesmo morto, impondo sua presença.

Passou-se um dia e mais outro. A cada movimento da água, Etienne recebia um leve esbarrão do homem que assassinara, o simples gesto de um vizinho que não queria ser esquecido. E todas as vezes estremecia. Via-o constantemente, inchado, esverdeado, com seu bigode ruivo no rosto esmagado. Depois começou a esquecer, não o tinha matado, o outro nadava e ia mordê-lo. Catherine, agora, era agitada por longas, intermináveis crises de choro, no fim das quais permanecia aniquilada. Acabou caindo

num estado de sonolência invencível. O rapaz despertava-a, ela tartamudeava algumas palavras, mesmo sem abrir os olhos, e voltava a dormir. Temendo que se afogasse, Etienne passara-lhe um braço pela cintura. Agora era ele quem respondia à equipe de salvamento. Os golpes de picareta aproximavam-se, ouviam-nos atrás das costas. Mas suas forças também diminuíam, perdera toda a coragem de bater. Sabiam que estavam ali, para que cansar-se? Já pouco lhe importava que viessem ou não. No embotamento da espera, chegava a esquecer, durante horas, por que esperava.

Um alívio reconfortou-os um pouco; a água baixava e o corpo de Chaval afastou-se. Havia nove dias que trabalhavam para libertá-los, e eles davam, pela primeira vez, alguns passos pela galeria quando um espantoso tremor atirou-os ao chão. Buscaram-se, ficaram nos braços um do outro, doidos, não compreendendo, julgando que era outra vez a catástrofe. Nada se movia, o barulho das picaretas tinha cessado.

No canto em que estavam sentados, lado a lado, Catherine riu baixinho.

— Lá fora deve estar bonito... Vem, vamos sair daqui.

A princípio Etienne lutou contra esse ataque de demência, mas sua cabeça mais sólida começou a ficar contagiada e perdeu também a sensação justa da realidade. Os sentidos de ambos se alteraram, sobretudo os de Catherine, agitada pela febre, atormentada por uma necessidade de palavras e gestos. O zumbido nos seus ouvidos transformara-se em murmúrio de água corrente, em canto de pássaros; sentia um violento perfume de ervas esmagadas e via claro; grandes manchas amarelas voavam diante dos seus olhos; eram tão grandes que ela se julgava lá fora, na margem do canal, nos trigais, num dia de sol radiante.

— Que calorzinho, hem? Abraça-me, fiquemos assim, para sempre, para sempre!

Ele abraçava-a, a moça afagava-o, longamente, continuando naquela tagarelice feliz:

— Que idiotas fomos em esperar tanto tempo! Logo que te conheci apaixonei-me por ti e não compreendeste, ficaste zangado... Depois, lembras-te? Lá em casa, as noites em que não podíamos dormir, de barriga para cima, ouvindo a respiração um do outro, loucos de vontade de nos abraçarmos...

Contagiado por sua alegria, ele gracejou com a lembrança daquela mútua ternura:

— Tu me bateste uma vez, lembras-te? Dois tabefes bem aplicados, na cara!

— Porque te amava... — murmurou ela. — Sabes que eu evitava pensar em ti? Dizia-me que estava tudo acabado entre nós mas no fundo sabia que um dia viveríamos juntos... Só faltou ocasião, um acaso feliz, não é verdade?

Um arrepio o deixou gelado, quis afugentar aquele sonho, depois disse lentamente:

— Nada acaba para sempre, basta um pouco de felicidade para tudo recomeçar.

— Posso ficar contigo desta vez? Não vamos separar-nos mais? E, desfalecendo, ela escorregou. Estava tão fraca que quase não podia falar. Assustado, ele a retivera contra o peito.

— Estás sentindo alguma coisa? Ela endireitou-se, espantada.

— Não, não... Por quê?

Mas essa pergunta tirara-a do seu sonho. Desesperada, olhou para as trevas, torcendo as mãos, numa nova crise de soluços.

— Meu Deus, meu Deus! Que escuridão!

Já não eram os trigais, nem o cheiro das ervas, nem o canto das cotovias, nem o grande sol amarelo; era a mina desabada, inundada, a noite fedorenta, o gotejar fúnebre daquela tumba onde agonizavam há tantos dias. A subversão dos sentidos aumentava agora o horror, ela deixou-se possuir pelas superstições da infância, viu o Homem Negro, o velho mineiro morto que voltava à mina para torcer o pescoço das moças levianas.

— Escuta... Ouviste?

— Não, não ouço nada.

— O Homem... Tu sabes quem... Olha! Lá está ele. A terra largou todo o sangue das suas veias, para se vingar, porque lhe cortaram uma artéria. E lá está ele, olha, olha! Mais negro que a noite... Estou com medo, estou com medo!

Calou-se, trêmula. Depois, em voz muito baixa, continuou:

— Não, é sempre o outro.

— Que outro?

— Esse que está conosco, o que já morreu.

A imagem de Chaval a perseguia; falava dele confusamente, contava sua vida de cão, o único dia em que ele fora carinhoso, na Jean-Bart, os outros dias de tolices e tapas, quando ele a sufocava de carícias, depois de tê-la desancado a pancadas.

— Juro que é ele que vem vindo, para nos impedir de viver juntos... É o eterno ciúme dele... Manda-o embora, pelo amor de Deus! Abraça-me! Não deixes que me leve!

Num ímpeto, pendurou-se ao rapaz, procurando sua boca, onde colou apaixonadamente a sua. As trevas desapareceram, voltou a ver o sol, readquiriu um riso calmo de enamorada. Ele, trêmulo de a sentir assim contra a sua carne, seminua sob a jaqueta e as calças, cingiu-a, num despertar de virilidade. Realizou-se enfim sua noite de núpcias no fundo daquele túmulo, sobre um leito de lama, na ânsia de não morrerem sem antes serem felizes, no obstinado desejo de viver, de gerar vida pela última vez. Amaram-se desesperados de tudo, afundando na morte.

Em seguida não houve mais nada. Etienne voltou a sentar no chão, sempre no mesmo canto, com Catherine nos joelhos, deitada, imóvel. Assim passaram horas. Durante muito tempo julgou que ela dormia, mas ao tocá-la constatou que estava muito fria. Morta. Mas mesmo assim não se moveu, temendo despertá-la. A idéia de que fora o primeiro a possuí-la desabrochada, mulher, e que ela podia estar grávida, enternecia-o. Outras idéias, a vontade de partirem juntos, a alegria por tudo aquilo que fariam mais tarde, voltavam-lhe por momentos, mas tão vagamente, que pareciam roçar-lhe apenas a testa, como a própria respiração do sono. Estava muito fraco, só tinha forças para fazer um pequeno gesto, um lento movimento de mão, para assegurar-se de que ela continuava ali, como uma criança adormecida, na sua rigidez gelada. Tudo desaparecia, a própria escuridão soçobrava; ele não estava em parte alguma, sentia-se fora do espaço, fora do tempo. Alguma coisa batia bem junto da sua cabeça, golpes cuja violência se aproximava, mas teve preguiça de responder, entorpecido por um imenso cansaço. Agora, já não queria saber de mais nada, sonhava apenas que ela caminhava à sua frente e ouvia o leve bater dos seus tamancos. Passaram-se dois dias e ela não se movera; ele tocava-a com seu gesto maquinai, tranqüilizado por senti-la tão sossegada.

Etienne sentiu um abalo. Vozes tonitroavam, pedras rolavam até seus pés. Ao perceber uma lanterna, chorou. Pestanejava, seguindo a luz, não se cansava de vê-la, em êxtase diante daquele ponto avermelhado que mal iluminava as trevas. Alguns companheiros o carregaram, deixou-os enfiarem colheradas de sopa por entre seus dentes cerrados. Foi só na galeria de Réquillart que reconheceu alguém, o engenheiro Négrel, em pé diante dele. E aqueles dois homens que se desprezavam, o operário revoltado chefe cético, lançaram-se nos braços um do outro, chorando copiosamente, na comoção profunda de toda a humanidade que havia neles. Era uma tristeza imensa, a miséria das gerações, o excesso de dor em que pode cair a vida.

Na superfície, a mulher de Maheu, prostrada aos pés de Catherine morta, deu um grito, depois outro e mais outro, numa queixa sem fim, incessante. Diversos cadáveres já tinham sido trazidos e alinhados no chão: Chaval, que julgaram ter sido esmagado por um desabamento, um aprendiz e dois britadores, igualmente esmagados, com o crânio vazio e a barriga cheia de água. Mulheres, na multidão, perdiam a razão, rasgavam as saias, arranhavam o rosto.

Quando enfim o tiraram, depois de o terem habituado à luz das lanternas e alimentado um pouco, Etienne surgiu descarnado, com o cabelo todo branco. E todos se afastavam, estremecendo à vista daquele velho. A mulher de Maheu parou de gritar para olhá-lo estupefata, com seus grandes olhos fixos.

 

Eram quatro horas da manhã. A fresca noite de abril aquecia-se com a aproximação do dia. No céu límpido as estrelas vacilavam, enquanto uma claridade de aurora tingia o oriente. E o campo negro, adormecido, fremia com o leve rumor que precede o despertar.

Etienne, a grandes passadas, seguia pelo caminho de Vandame. Acabava de passar seis semanas em Montsou, num leito de hospital. Ainda macilento e muito magro, sentira-se com forças para partir, e partira. A companhia, sempre preocupada por suas minas, procedendo a demissões sucessivas, prevenira-o de que estava despedido, oferecendo-lhe um seguro de cem francos e o conselho paternal de abandonar o trabalho em minas, agora muito duro para ele. Mas não aceitara os cem francos. Uma resposta de Pluchart o chamava a Paris, numa carta em que vinha dinheiro para a viagem. Era a realização do seu sonho antigo. Na véspera, saindo do hospital, pernoitara no Bon-Joyeux, em casa da viúva Désir. E levantara-se de madrugada com um único desejo, despedir-se dos companheiros, antes de tomar o trem das oito horas, em Marchiennes.

No caminho, que estava ficando cor-de-rosa, Etienne parou. Fazia-lhe bem respirar o ar puríssimo da primavera temporã. A manhã anunciava-se radiosa. Lentamente o dia surgia e a vida da terra começava com o sol. Pôs-se outra vez em marcha, batendo vigorosamente com seu bordão de corniso1, vendo ao longe a planície sair da neblina da noite. Não revira ninguém; a mulher de Maheu fora uma única vez ao hospital, não voltando mais, sem dúvida por não ter podido. Mas sabia que todo o conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante trabalhava agora na Jean-Bart, inclusive ela.

Pouco a pouco os caminhos desertos povoavam-se; mineiros passavam continuamente por Etienne, macilentos, silenciosos. Dizia-se que a companhia tripudiava deles. Após dois meses e meio de greve, vencidos pela fome, quando voltaram às minas tiveram de aceitar a tarifa do revestimento, essa baixa disfarçada de salário, odiada por todos, ensangüentada pelo sacrifício de tantos companheiros. Roubavam-lhes uma hora de trabalho, faziam que faltassem ao juramento de não se submeterem, e esse perjúrio imposto ficava-lhes atravessado na garganta, como um bolsão de fel. O trabalho tinha recomeçado por toda parte, em Mirou, Madeleine, Crèvecoeur, Victoire... Por toda parte, na bruma da manhã, ao longo dos caminhos envoltos em trevas, filas de homens caminhavam de cabeça baixa, como um rebanho dirigindo-se para o matadouro. Tiritavam sob as roupas finas, cruzavam os braços, moviam os quadris, curvavam as costas, que o sanduíche, enfiado entre a camisa e a jaqueta, tornava corcundas. E, nessa volta em massa, nessas sombras mudas, negras, sem um riso, sem um olhar para o lado, pressentiam-se os dentes cerrados de cólera, o coração afogado de ódio, todos resignados apenas às necessidades do estômago.

Quanto mais se aproximava da mina, mais Etienne via crescer o número de mineiros. Quase todos caminhavam isolados, os que vinham em grupos seguiam uns atrás dos outros, já exaustos, dos outros e de si próprios. Percebeu um, muito velho, cujos olhos brilhavam como brasas, sob uma testa lívida. Um outro, jovem, resfolegava como se quisesse desencadear uma tempestade. Muitos levavam os tamancos na mão, e mal se ouvia o som cavo das suas grossas meias de lã. Era um passar sem fim, uma enxurrada, uma marcha forçada de exército vencido, seguindo cabisbaixo, secretamente dilacerado pela vontade de tornar à luta e de se vingar.

Quando Etienne chegou, a Jean-Batt saía do escuro, os lampiões suspensos dos cavaletes ardiam ainda no alvorecer que despontava. Por cima dos edifícios sombrios elevava-se um escapamento de vapor, como uma pluma branca delicadamente tingida de carmim Enfiou-se pela escadaria da triagem para ir à recebedoria.

A descida começava, os operários surgiam do vestiário. Permaneceu imóvel no meio daquele barulho, daquela agitação. 0 rolar dos vagonetes estremecia o pavimento de ferro fundido, bobinas giravam, desenrolavam os cabos em meio aos gritos do megafone, ao toque das campainhas, aos golpes da clava no cepo do sinal. Voltou a encontrar o monstro engolindo sua ração de carne humana, os elevadores emergindo, mergulhando, sumindo com carregações de homens, sem descanso, abocanhando com a facilidade de um gigante voraz. A partir do seu acidente, tinha um pavor, de fundo nervoso, pela mina. Os elevadores que submergiam arrancavam-lhe as entranhas. Teve de desviar os olhos; o poço exasperava-o.

Mas na vasta peça ainda escura, que os lampiões bruxuleantes mal iluminavam, não divisou um único rosto amigo. Os mineiros que ali esperavam, descalços, lanterna na mão, examinavam-no com seus grandes olhos inquietos, para depois baixarem a cabeça, como que envergonhados. Conheciam-no, sem dúvida, e já não guardavam rancor; ao contrário, pareciam temê-lo, corando à idéia de serem acusados de covardes. Essa atitude deixou-o comovido, esqueceu que aqueles miseráveis o haviam apedrejado, recomeçou a sonhar em transformá-los em heróis, em dirigir o povo, essa força da natureza que se devorava a si própria.

Um elevador encheu-se de homens, a fornada desapareceu, mas outros continuavam a chegar e ele viu, enfim, um dos seus lugares-tenentes, um valente que jurara morrer.

— Tu também! — murmurou ele compungido.

O outro empalideceu, tremeram-lhe os lábios; depois, com um gesto de desculpa:

— Que queres? Tenho mulher.

No novo grupo que vinha do vestiário reconheceu a todos.

— Tu também! Tu também! Tu também!

E todos tremiam, gaguejando com voz abafada:

— Tenho mãe... Tenho filhos... Preciso comer...

O elevador não voltava, eles esperavam, abatidos, sofrendo tanto com a derrota, que evitavam olhar uns para os outros, fixando obstinadamente o poço.              

— E a mulher de Maheu? — perguntou Etienne.

Ninguém respondeu. Um deles fez um sinal significando que ela já estava por chegar; outros ergueram os braços, trêmulos de piedade: pobre mulher, que desgraça! O silêncio continuou, e, quando o companheiro lhes estendeu a mão, despedindo-se, todos a apertaram com força, pondo naquele gesto mudo toda a raiva por terem cedido, a esperança febril da desforra. O elevador apareceu, embarcaram, desapareceram, engolidos pelo sorvedouro.

Surgiu Pierron, com a lanterna de fogo livre dos contramestres fixada no couro do gorro. Havia oito dias que era o chefe de equipe na expedição, e os operários o evitavam, já que as honrarias o tornavam presunçoso. Irritou-se ao ver Etienne, mas assim mesmo veio falar-lhe e tranqüilizou-se quando o rapaz lhe anunciou sua partida. Conversaram. Sua mulher dirigia agora o Café Progrès, graças ao apoio de todos os cavalheiros da direção, que eram muito bons para ela. Mas interrompeu-se para censurar o velho Mouque, acusando-o de não ter subido o estrume dos cavalos na hora regulamentar. O

velho escutou-o, cabisbaixo. Mas antes de descer, humilhado com aquela repreensão, ele também apertou a mão de Etienne, num gesto longo, cheio de raiva íntima, fremente de rebeliões futuras. E aquela mão calejada que tremia na sua, aquele ancião que lhe perdoava os filhos mortos, emocionou-o tanto que o deixou ir-se sem poder proferir uma palavra.

— Então, a mulher de Maheu não vem mesmo hoje? — perguntou ele a Pierron, passado um momento.

Primeiro Pierron fingiu não ter ouvido, não gostava nem de falar daquela gente, dava azar. Depois, afastando-se a pretexto de emitir uma ordem, disse:

— Hem? A mulher de Maheu?... Está chegando.

Com efeito, ela saía do vestiário, com a sua lanterna, vestindo calça e jaqueta, o cabelo envolto na coifa. Fora por caridosa exceção que a companhia, apiedada pela sorte daquela infeliz, permitira que voltasse a trabalhar na idade de quarenta anos. E, como parecia difícil usá-la no carreio, empregaram-na para acionar um pequeno ventilador que acabavam de instalar na galeria norte, na região infernal do Tartaret, onde não havia ventilação. Durante dez horas, com os rins alquebrados, ela fazia a roda girar, no fundo daquele buraco ardente, com o corpo cozido por quarenta graus de calor. Ganhava trinta soldos.

Quando Etienne a viu, deplorável naquelas roupas masculinas, com os seios e a barriga como que inchados pela umidade da mina não conseguiu falar de tanto espanto, não encontrou palavras para dizer que partia e desejava despedir-se dela.

A mulher encarou-o, impassível, e por fim disse, tuteando-o:

— Como é, estás admirado de me ver? É verdade que eu ameaçava matar o primeiro dos meus que voltasse à mina, e aqui estou eu. Devia matar-me, não achas? Asseguro-te que já o teria feito, se não fossem o velho e as crianças para alimentar.

E prosseguiu, na sua voz baixa e fatigada. Não se desculpava, contava simplesmente o que acontecera, que eles quase tinham morrido, que então se decidira, para não serem expulsos do conjunto habitacional.

— Como vai o velho? — perguntou Etienne.

— Sempre quieto e limpo, mas completamente pancada. Não foi condenado pelo que fez, sabias? Quiseram metê-lo no hospício, não deixei, arrasariam com ele em dois tempos... Seu caso nos prejudicou muito, pois retiraram-lhe a pensão. Um desses homens do escritório me disse que seria imoral pagarem qualquer coisa a ele.

— E Jeanlin, está trabalhando?

— Está, deram-lhe um trabalho externo. Ganha vinte soldos... Olha, não posso queixar-me, os patrões têm sido muito bons, como eles mesmos me disseram. Os vinte soldos do menino e os meus trinta soldos fazem cinqüenta. Se não fôssemos seis teríamos o que comer. Estelle já devora tudo o que encontra, mas o pior é que terei de esperar quatro ou cinco anos para que Lénore e Henri estejam em idade de trabalhar.

Etienne não pôde conter um gesto de pena.

— Eles também!

O rosto macilento da mulher ficou rubro e seus olhos faiscaram. Mas seus ombros curvos pareciam suportar o peso do destino. Disse:

— Que queres? Depois dos outros é o turno deles. Todos já foram sacrificados, agora lhes toca a vez.

Calou-se, interrompida por alguns carregadores que empurravam vagonetes. Pelas grandes janelas empoeiradas entrava o amanhecer, envolvendo os lampiões numa claridade baça. E a trepidação da máquina recomeçava: de três em três minutos, os cabos se desenrolavam, os elevadores continuavam a engolir os homens.

— Vamos, seus preguiçosos, apressem-se! — gritou Pierron. — Embarquem logo, senão não saímos daqui.

A mulher de Maheu, para quem ele olhava, não se mexeu. Já deixara passar três elevadores, e, como que despertando e lembrando-se das primeiras palavras de Etienne, murmurou:

— Então, partes?

— Sim, daqui a pouco.

— Muito bem, quanto mais longe deste lugar, melhor. Felizes os que podem... Gostei de te ver, quero que pelo menos saibas que nada tenho contra ti. Houve um momento em que era capaz de acabar contigo, depois de todas aquelas mortes. Mas refleti e acabei dando-me conta de que, afinal, ninguém tem culpa... Não, não tens culpa, a culpa é de todos.

Começou a falar com toda a tranqüilidade dos seus mortos, do seu homem, de Zacharie, de Catherine; só quando pronunciou o nome de Alzire lhe vieram lágrimas aos olhos. Voltara à sua calma de mulher sensata, julgando muito sabiamente as coisas. Nada de bom resultaria para os burgueses com a matança de tantos pobres. Certamente seriam castigados um dia, porque tudo se paga. Nem teriam necessidade de intervir; a coisa estouraria sozinha, os soldados atirariam nos patrões, como tinham atirado nos operários. E na sua resignação secular, nessa disciplina hereditária que a curvava de novo, surgia um resultado: a certeza de que a injustiça não podia continuar durando, e de que, se Deus estava morto, nasceria outro para vingar os miseráveis.

Falava baixo, lançando olhares desconfiados. E, como Pierron se aproximasse, acrescentou alto:

— Se te vais, tens que apanhar as tuas coisas lá em casa. São duas camisas, três lenços e umas calças velhas.

Etienne recusou com um gesto aqueles poucos trapos que não tinham ido parar no brechó.

— Não, não vale a pena, ficam para as crianças. Em Paris eu dou um jeito.

Mais dois elevadores tinham descido e Pierron decidiu-se a interpelar diretamente a mulher:

— Como é? Estão esperando... Já terminou a palestra?

Ela, porém, deu-lhe as costas. O vendido puxava a brasa para a sardinha dos patrões! Não tinha nada que ver com a descida dos operários! Já era odiado por seus subalternos ali na expedição... E ficou onde estava, com a lanterna na mão, enregelada pelas correntes de ar, apesar de não fazer frio. Nem Etienne nem ela tinham mais o que dizer. Permaneciam frente a frente, tão cheios de emoção, que gostariam de se dizer mais alguma coisa.

Por fim ela disse o que lhe veio à cabeça:

— A mulher do Levaque está grávida, o marido continua na cadeia. Enquanto ela espera, o Bouteloup tomou o lugar dele.

— Ah, sim! o Bouteloup...

— Ia esquecendo de te contar... A Philomène foi embora.

— Como, foi embora?

— Sim, com um mineiro de Pas-de-Calais. Tive medo de que ela me deixasse os dois filhos, mas não, carregou-os juntos. Que tal essa? Uma mulher que cospe sangue e parece que vai morrer a qualquer momento!

Meditou por um momento, para continuar lentamente:

— Como falaram de mim!... Lembras-te? Diziam que eu dormia contigo. Deus meu! Depois da morte do meu homem, isso poderia ter acontecido, se eu fosse mais nova... Hoje alegro-me de não ter havido nada, seriam mais dissabores para nós...

— Claro, seriam mais dissabores — repetiu Etienne simplesmente.

Daí por diante não trocaram mais palavra. Um elevador esperava-a, chamavam-na aos gritos, ameaçando-a com uma multa. Ela então decidiu-se, e apertou-lhe a mão.

Muito comovido, ele continuou a observá-la, tão miserável e acabada, com sua cara macilenta, seus cabelos descoloridos escapando da coifa azul, seu corpo de animal parideiro, deformado por baixo das calças e da jaqueta surrada. E, nesse último aperto de mão, reconheceu o mesmo aperto de mão dos demais companheiros, demorado e mudo, marcando encontro para o dia em que tudo recomeçaria. Compreendeu perfeitamente, no fundo dos olhos dela brilhava uma crença tranqüila. Até breve, e dessa vez seria para arrasar com tudo.

— Diabo de preguiçosa! — gritou Pierron.

Empurrada, dando encontrões, ela meteu-se no fundo de um vagonete com mais quatro. Puxaram a corda dando o sinal de corpo, o elevador soltou-se, caiu no escuro, não sobrando mais que a corrida rápida do cabo.

Etienne, então, deixou a mina. Embaixo, no galpão da triagem, divisou uma criatura sentada no chão, de pernas estendidas, no meio de um monte de carvão. Era Jeanlin, encarregado de fazer a limpeza grossa. Tinha um bloco de hulha entre as pernas e com um martelo retirava dele os fragmentos de xisto. Uma poeira fina envolvia-o numa nuvem de fuligem tal, que Etienne não o teria reconhecido, se o menino não tivesse erguido seu focinho de macaco, de orelhas abanando e olhinhos azulados. Fez um esgar que era um riso, partiu bloco de uma martelada e desapareceu na poeira negra que subia.

Fora Etienne seguiu pela estrada por algum tempo, absorto. Muitas idéias fervilhavam dentro dele. Mas teve uma sensação de ar livre, de céu aberto, e respirou longamente. O sol surgia no horizonte glorioso, era um despertar de regozijo por toda a extensão do campo. Uma vaga de ouro rolava do oriente ao ocidente, sobre a imensa planície. Esse calor de vida avançava, estendia-se num estremecer de juventude, e nele vibravam os suspiros da terra, o canto dos pássaros, todos os murmúrios das águas e dos bosques. Era bom estar vivo, o velho mundo queria viver mais uma primavera. E, avassalado por essa esperança, Etienne afrouxou o passo, examinando a paisagem, entranhando-se da alegria da nova estação. Pensava em si, sentia-se forte, amadurecido por sua dura experiência no fundo da mina. Sua educação estava terminada, partia armado, como soldado intelectual da revolução, tendo declarado guerra à sociedade, tal como a via e condenava. A alegria de reunir-se a Pluchart, de ser como Pluchart um chefe escutado, inspirava-lhe discursos, cujas frases lapidava. Pensava em alargar seu programa. O refinamento burguês que o elevara acima da sua classe injetava-lhe um ódio ainda maior contra a burguesia. Necessitava glorificar esses operários cujo cheiro de miséria tanto o incomodava agora; iria mostrá-los ao mundo como os únicos grandes, os únicos impecáveis, como a única nobreza e a única força capaz de retemperar a humanidade. Já se via na tribuna, triunfando com o povo, se este não o devorasse antes.

Um canto de cotovia, muito alto, fê-lo olhar para o céu. Pequenas nuvens vermelhas, os últimos vapores da noite, fundiam-se no límpido azul. E os rostos esfumados de Suvarin e Rasseneur lhe apareceram. Decididamente, tudo se estragava quando havia luta pelo poder. Fora o caso dessa famosa Internacional, que devia ter renovado o mundo e agora estava impotente, após ver seu formidável exército dividir-se, esfarelar-se por causa das lutas intestinas. Teria razão Darwin, o mundo não seria mais que uma batalha, os fortes devorando os fracos, para o embelezamento e a continuidade da espécie? Essa questão perturbou-o, ainda que tivesse para ela resposta categórica, como homem verdadeiramente satisfeito com seu saber. Mas dissipou-lhe as dúvidas uma idéia que o encantou, a idéia de lançar a sua antiga explicação da teoria na primeira vez que discursasse. Se era necessário que uma classe fosse devorada, não seria o povo, cheio de vida, jovem ainda, quem iria devorar a burguesia, exausta de tantos prazeres? Com sangue novo se faria a sociedade nova. E, nesta espera de uma invasão de bárbaros, regenerando as velhas nações caducas, ressurgia sua fé absoluta numa revolução próxima, a verdadeira, a dos trabalhadores, cujo incêndio abrasaria o fim do século com a mesma cor purpúrea desse sol nascente, que via ensangüentar o céu.

Continuava caminhando, batendo com o seu cajado de corniso nos seixos da estrada; e, quando olhava ao redor, reconhecia as regiões por onde passava. Na Fourche-aux-Boeufs, lembrou-se de que ali passara, comandando a multidão, na manhã do assalto às minas. Hoje, o trabalho de bestas, mortal, mal pago, recomeçava. Debaixo do chão, muito no fundo, a setecentos metros, parecia-lhe ouvir golpes surdos, regulares, constantes: eram os companheiros que vira descer, os negros companheiros que cavavam, cheios de um ódio silencioso. Sem dúvida tinham sido derrotados, pois haviam deixado dinheiro e mortos, mas Paris não esqueceria os tiros da Voreux, o sangue do império também correria por aquela ferida incurável. E, se a crise industrial chegasse ao fim, se as fábricas reabrissem uma a uma, não tinha importância, o estado de guerra continuaria, a paz agora era impossível. Os mineiros já sabiam quantos eram, já conheciam sua força, tinham sacudido com seu grito de justiça os operários da França inteira. A derrota deles não trazia segurança para ninguém; os burgueses de Montsou viram sua vitória minada pelo surdo mal-estar das seqüelas da greve, e olhavam para trás, suspeitando de que seu fim continuava a espreitá-los, inevitável, do mais recôndito daquele grande silêncio. Eles compreendiam que a revolução renasceria sem descanso, talvez mesmo amanhã, com a greve geral, a união de todos os trabalhadores resultando em caixas de socorros que os levariam a agüentar por muitos meses comendo pão. Desta última vez, fora um empurrão dado na sociedade em ruínas, e tinham sentido perfeitamente o chão fugindo sob seus pés, sentiam formarem-se outras convulsões, sempre outras, até que esse velho edifício abalado desmoronasse, tragado como a Voreux, sorvido pelo abismo.

Etienne tomou à esquerda o caminho de Joiselle. Lembrou então que, ali, impedira a turba de destruir a Gaston-Marie. Ao longe, iluminadas pelo sol radiante, viu as torres do sino de rebate de diversas minas: Mirou à direita, Madeleine e Crèvecoeur lado a lado. O trabalho ressoava por toda parte os golpes de picareta que ele julgava escutar nas entranhas da terra vibravam agora de um extremo ao outro da planície. Um golpe, e outro, e muitos outros, por baixo das plantações, das estradas, dos vilarejos, que riam à luz todo o obscuro trabalho dos forçados do fundo da terra, tão recoberto pela massa enorme das rochas que era preciso sabê-lo estar sendo feito lá embaixo, para poder captar o seu grande suspiro doloroso. E agora pensava que talvez a violência não ajudasse muito. Cabos cortados, trilhos arrancados, lanternas quebradas, que esforço inútil! Não, não valia a pena três mil pessoas percorrerem as estradas transformadas em bando devastador. Pressentia vagamente que a legalidade, um dia, podia ser mais terrível. Sua inteligência amadurecia; livrara-se da doença do rancor. Sim, a mulher de Maheu, sensata como era, tinha razão, seria o golpe de misericórdia na burguesia: arregimentarem-se em silêncio, conhecerem-se, reunirem-se em sindicatos, assim que a lei o permitisse. Depois, no dia em que fossem multidão, no dia em que milhões de trabalhadores se apresentassem diante de alguns milhares de desocupados, tomar o poder, ser os donos. Ah! que despertar da verdade e da justiça! O deus repleto e acocorado rebentaria na hora, o ídolo monstruoso escondido no fundo do seu tabernáculo, nesse desconhecido longínquo onde os miseráveis o alimentavam com sua carne, sem nunca tê-lo visto.

Mas Etienne, deixando o caminho de Vandame, entrou pela estrada pavimentada. Avistou Montsou à direita, desaparecendo no vale. Defronte tinha os escombros da Voreux, o buraco maldito que três bombas esgotavam, sem descanso. Depois, no horizonte, divisava as outras minas: Victoire, Saint-Thomas, Feutry-Cantel, enquanto, para o norte, as chaminés dos altos-fornos e as baterias das fornalhas de coque fumegavam no ar transparente da manhã. Se não queria perder o trem das oito, tinha de se apressar, havia ainda seis quilômetros a percorrer.

E, sob seus pés, continuavam as batidas cavas, obstinadas, das picaretas. Todos os companheiros estavam lá no fundo; ouvia-os seguindo-o a cada passo. Não era a mulher de Maheu sob aquele canteiro de beterrabas, curvada, com uma respiração que chegava até ele tão rouca, fazendo acompanhamento ao ruído do ventilador? A esquerda, à direita, mais adiante, julgava reconhecer outros, sob os trigais, as cercas vivas, as árvores novas. Agora, em pleno céu, o sol de abril brilhava em toda a sua glória, aquecendo a terra que germinava. Do flanco nutriz brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grande beijo. E ainda, cada vez mais distintamente como se estivessem mais próximos da superfície, os companheiros cavavam. Sob os raios chamejantes do astro rei, naquela manhã de juventude, era daquele rumor que o campo estava cheio. Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra.

 

                                                                                            Emili Zola  

 

                      

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