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GERTRUD / Hermann Hesse
GERTRUD / Hermann Hesse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Esta é a história de uma sedutora mulher, cuja vida tomou rumos dramáticos e dolorosos por não pressentir o amor puro e sincero de um jovem tímido e apaixonado; de um violinista aleijado, que se torna compositor famoso, transformando em arte e beleza suas frustrações e sofrimentos pessoais; e também a vida de um cantor de alma tempestuosa, que inconscientemente destruía a felicidade alheia e a sua própria felicidade.

Este livro, pela primeira vez publicado em 1910 e muitas vezes republicado em alemão, tanto quanto traduzido e retraduzido para outros idiomas, revela o pensamento de seu insigne Autor de que a arte pode destruir a vida, embora ele tivesse um dia afirmado, sobre a sua própria obra, que muitos dos seus livros, "puramente líricos em natureza, são escritos sem qualquer propósito dominante". Em GERTRUD, o escritor alemão nos apresenta um tema que envolve arte e artistas. Vale citar o que sobre o romance escreveu o crítico Otto Heuschele:
"É um elevado cântico à música e ao amor puro. Todos os elementos característicos, que nos tornam tão querida e amada a obra de Hermann Hesse, estão presentes na história: a vontade de pureza e grandeza na arte e no ser humano, o trágico a que não se pode furtar quem guarda esquivamente o amor dentro de si.
Muitos dos temas apresentados em GERTRUD foram retomados por Hesse, sob nova forma, em livros posteriores; constitui motivo de emoção e encantamento encontrálos aqui na sua pureza originária. O fato, porém, de que hoje, depois que já nos chegou às mãos toda a obra de Hermann Hesse, este livro tem ainda a capacidade de comovernos tão fortemente, parece-nos uma prova da sua validade artística."
Fascinante romance, GERTRUD é um dos pontos altos da excepcional bibliografia de Hermann Hesse, Prêmio Nobel de Literatura.

 

 

 

 

QUANDO, com o olhar, percorro os fatos da minha vida, ela não me aparece especialmente feliz. Menos ainda, no entanto, posso dizê-la infeliz, não obstante todos os erros. Afinal de contas, é insensato indagar assim da felicidade ou infelicidade, pois penso que mais dificilmente renunciaria aos dias infelizes da minha vida do que aos alegres. Se, na existência de um homem, trata-se de aceitar conscientemente o inevitável, provar o bem e o mal e, ao lado do exterior, conquistar para si um destino mais intrínseco e não-fortuito, não foi minha vida nem pobre nem má. Se tive de suportar, como todos, o destino exterior, inevitável e decretado pelos deuses, meu fado interior foi obra minha, cuja doçura ou amargor cabem somente a mim e pelo qual entendo assumir sozinho a responsabilidade.

Muitas vezes, em anos anteriores, desejei ser poeta. Fosse um deles e não resistiria à tentação de recorrer minha vida até às sombras mais delicadas da infância e às fontes mais amorosa e carinhosamente, guardadas das minhas primeiras recordações. Mas essa posse me é por demais querida e sagrada, para que deseje correr o risco de estragá-la eu mesmo. Da minha meninice, pode dizer-se somente que foi bela e alegre; deixaram-me a liberdade de descobrir sozinho meus pendores e dotes naturais, ser eu próprio a origem das minhas alegrias e dores mais íntimas e ver o futuro, não como um poder estranho dominando do alto, mas como uma esperança e fruto das minhas próprias forças. Assim, passei imune pelas escolas como um aluno malvisto e pouco dotado, mas tranqüilo, que, no fim, se deixou entregue a si mesmo, já que parecia não tolerar qualquer influência mais forte.

Por volta dos seis ou sete anos, comecei a compreender que, dentre todas as forças invisíveis, a música estava fadada a ser aquela que mais firmemente me enlearia e dominaria. E, dali por diante, tive meu próprio mundo, meu refúgio e meu céu, que ninguém poderia tirar de mim nem restringir e que não desejava partilhar com ninguém. Eu era um músico, ainda que antes dos doze anos não aprendesse a tocar nenhum instrumento, nem pensasse em, mais tarde, ganhar o pão com a música.

E, desde então, nisso ficou, sem que nada de substancial mudasse; daí minha vida não me parecer, em retrospecto, nem variada nem multiforme, senão que afinada, desde o início, por um tom fundamental e orientada por uma única estrela. Corressem, quanto ao resto, as coisas bem ou mal, minha vida mais íntima manteve-se inalterada. Pude, por muito tempo, navegar em águas estranhas, não tocar num só caderno de música ou num só instrumento; a cada momento, no entanto, havia uma melodia em meu coração ou nos meus lábios, um compasso e um ritmo no meu respirar e viver. Por mais que procurasse salvação, olvido e libertação em vários outros caminhos, por maior sede que tivesse de Deus, de saber e de paz, foi sempre e tão-somente na música que encontrei tudo isso. Não se fazia mister que fosse Beethoven ou Bach: o simples fato de a música existir e de poder um ser humano ficar, por vezes, comovido até o âmago por uns poucos compassos e inundado por harmonias, sempre significou, para mim, um profundo consolo e uma justificação da vida. Ó música! Uma melodia nos vem à mente, nós a cantamos silenciosamente, por dentro, e ela empregna o nosso ser, empolgando-lhe todas as forças e emoções - e, durante o momento em que vive em nós, apaga tudo o que em nós é acidental, mau, grosseiro, triste, faz o mundo ecoar do seu som, torna leve o que é pesado e dá asas ao que é imóvel. De tudo isso é capaz a simples melodia de uma cantiga popular. E que dizer da harmonia! O soar conjunto de tons puros e afinados, como seja o de um repique de sinos, enche a alma de enlevo e deleite, que - aumenta a cada novo som superveniente e pode, às vezes, fazer o coração se inflamar e tremer de gozo, como não é dado a nenhuma outra volúpia.

De todas as representações da bem-aventurança idealizadas por povos e poetas, a mais elevada e essencial sempre me pareceu a de poder-se escutar a harmonia das esferas. Meus sonhos mais profundos e dourados beiraram isso: ouvir soar, num pulsar do coração, a estrutura do universo e o conjunto de todas as vidas, em sua secreta e congênita harmonia. Ah, mas como pode a vida então ser tão confusa, desafinada, falsa, como pode, entre os homens, haver somente mentira, maldade, inveja e ódio, quando a menor cantilena e a música mais modesta pregam, de modo tão claro, que a pureza, a harmonia e o fraternal e afinado entoar das vozes abrem as portas do céu? E como posso eu próprio repreender e indignar-me, eu que, com toda a boa vontade, não consegui fazer minha vida tornar-se canto ou pura música? Bem sinto, no íntimo, a inarredável admoestação, o anseio por um puro, deleitável e em si ditoso erguer-se e extinguir-se de um cântico; mas correm meus dias ao sabor do acaso e.da desarmonia; e para onde quer que eu me volte ou onde seja que eu bata à porta, de nenhuma parte um eco me responde alto e claro.

Mas basta destas considerações; vamos à narração. E se agora reflito naquela para quem escrevo estas páginas - que realmente tem tamanha autoridade sobre mim, que pode pedir-me confissões e romper a minha solidão- cumpre-me proferir o nome dessa mulher querida, que não somente teve grande importância no que vivi e no meu destino, mas está acima de tudo, como um símbolo sagrado, uma estrela.

II

SOMENTE nos últimos anos da escola, quando todos os colegas começaram a falar de suas futuras profissões, comecei também a refletir nisso. Fazer da música ofício e ganha-pão estava realmente longe das minhas cogitações; não conseguia, contudo, pensar noutro que me desse prazer. Nenhuma aversão sentia pelo comércio ou outras profissões que meu pai me propunha; era-mme, apenas, indiferentes. Mas, como meus colegas se mostrassem orgulhosos das que tinham escolhido, talvez também em mim uma voz se fizesse ouvir, intercedendo em favor daquilo que, afinal, me parecia bom e direito.: transformar em profissão o que, sem isso, já ocupava todo o meu pensamento e era a única coisa que me dava alegria. Favorecia-me o fato de que, a partir dos doze anos, começara a tocar o violino e, sob a orientação de um bom professor, o aprendera bastante bem. Conquanto meu pai se opusesse, aflito de ver seu único filho enveredar pela incerta carreira de artista, justamente a sua resistência fez crescer a minha vontade, e o professor, que gostava de mim, empregou-se quanto pôde em defesa do meu desejo. Finalmente, meu pai cedeu, e unicamente para pôr à prova minha firmeza e na esperança de uma modificação de rumos, me foi imposto mais um ano de escola, que cumpri com discreta paciência e durante o qual ainda mais certo me tornei dos meus anseios.

Durante esse último ano de escola, enamorei-me, pela primeira vez, de uma graciosa mocinha das nossas relações. Sem vê-la muito e também sem grande desejo disso, gozei e padeci, como num sonho, as doces emoções do primeiro amor. Nesse tempo, já que o dia todo eu pensava tanto na minha música quanto no meu amor e à noite deliciosa excitação não me deixava dormir, fixei pela primeiravez, em consciência, algumas melodias que me vieram à mente, duas pequenas canções, e procurei escrevê-las. Isso deu-me um prazer envergonhado, mas intenso, no qual esqueci por completo às penas do meu amor de brinquedo. Entrementes, vim a saber que minha amada tomava aulas de canto e fiquei desejoso de ouvi-la cantar. Essa vontade foi satisfeita meses depois, durante um sarau na casa dos meus pais. A graciosa menina foi convidada a cantar, recusou com veemência, mas no fim teve de fazê-lo; e eu esperava, com enorme ansiedade, por esse momento. Um cavalheiro a acompanhou em nosso pequeno e humilde piano, tocou alguns compassos e ela começou. Ai de nós! Cantava mal, dolorosamente mal, e enquanto ainda cantava, minha consternação e sofrimento transformaram-se em compaixão e, depois, em bom humor; e dali em diante já não estava mais apaixonado por ela.

Eu era um aluno paciente e não propriamente vadio, mas não um bom aluno, e no último ano não fiz mais o menor esforço. A culpa disso não foi a indolência nem, tampouco, o amorico, mas um estado de juvenil pendor para o devaneio e a apatia, um embotamento dos sentidos e da inteligência, que só por vezes se interrompia, de maneira repentina e violenta, quando uma das horas maravilhosas de prematura vontade criadora me envolvia como um éter. Então, eu me sentia circundado por um ar translúcido, cristalino, no qual nenhuma divagação e inatividade era possível, no qual todos os sentidos se aguçavam e ficavam à espreita, vigilantes. O que nascia nessas horas não era muito, talvez dez melodias e umas harmonias rudimentares; mas não esqueci nunca o ar dessas horas, translúcido, quase frio, nem o intenso condensar-se dos pensamentos para dar à melodia o movimento e solução certos, únicos, não-fortuitos. Eu não ficava contente com esses pequenos trabalhos e nunca os considerei valiosos e bons, mas se me tornou
clara que, na minha vida, nada será tão desejável e importante como a volta dessas horas da lucidez e da criação.

Ao lado disso, conheci também dias de arrebatamento, em que improvisava ao violino e gozava a embriaguez de efêmeros achados e coloridas emoções. Mas não tardei a saber que isso não era criação e sim brincadeira inconseqüente, da qual devia guardar-me. Percebi que uma coisa é abandonar-se aos próprios sonhos e saborear horas inebriadas, e outra lutar, de modo implacável e claro, como contra inimigos, com os mistérios da forma. Já então adquiri uma vaga noção de que a verdadeira obra de criação nos torna solitários e exige alguma coisa que nos obriga a romper com as comodidades da vida.

Por fim, estava livre: deixara a escola para trás, despedira-me dos meus pais e iniciara vida nova como aluno do conservatório da capital. Fiz isso com grandes expectativas e convencido de que, na escola de música, me tornaria um bom'aluno. Com dolorosa surpresa para mim, porém, não foi o que se deu. Custava-me esforço seguir os vários cursos, e o ensino do piano, ao qual agora devia submeter-me, constituía somente um suplício, e não tardou que eu visse nos estudos como que um monte intransponível posto na minha frente. Não estava, decerto, disposto a desistir, mas me sentia decepcionado e constrangido. Via agora que, apesar de toda a modéstia, eu me havia, sim, considerado uma espécie de gênio, subestimando seriamente as fadigas e dificuldades do caminho da arte. Além disso, tinha perdido totalmente o gosto de compor, pois agora, no menor dever, via somente montanhas de dificuldades e de regras, passei a não ter nenhuma confiança na minha sensibilidade e já não sabia se havia em mim uma só centelha de força própria. Assim, conformei-me; sentia-me deprimido e triste, fazia meu trabalho de modo não muito diferente do que o teria feito num escritório ou noutra escola, diligente e sem prazer. Queixar-me, não podia, e menos ainda nas cartas que escrevia para casa; ao contrário, prossegui, em silencioso desengano, o caminho iniciado, propondo-me, ao menos, tornar-me um bom violinista. Não parava de exercitar-me, engolia grosserias e ironias do professor, via outros alunos, que não julgara capazes disso, fazer rápidos progressos e colher louvores, e fui tornando meus objetivos menos pretensiosos. Porque também com o violino não estavam as coisas num pé do qual me pudesse orgulhar e me permitisse pensar em chegar, algum dia, a ser um virtuose. Tudo indicava que, com grande aplicação, poderia, quando muito, tornar-me profissional aproveitável, que, sem louvor e sem opróbrio, toca seu modesto violino numa pequena orquestra, recebendo em troca o seu pão.

Assim, esse tempo, pelo qual eu tanto ansiara e do qual tanto me prometera, foi o único da minha existência em que, abandonado pelo espírito da música, percorri caminhos sombrios e arrastei dias de uma vida sem sonoridade e sem ritmo. Justamente onde havia procurado prazer, enlevo, brilho e beleza, só encontrei exigências, regras, deveres, dificuldades, perigos. Se uma idéia musical me ocorria, ou era banal e cem vezes já usada ou contrariava todas as regras da arte e não podia, portanto, ter qualquer valor. Então, pus de parte todos os grandes pensamentos e esperanças. Eu não passava de um dentre os milhares, que com juvenil desfaçatez, chegam até à arte e cuja força falece, quando são postos seriamente à prova.

Essa situação durou cerca de três anos. Eu já passava dos vinte anos de idade, tinha errado, evidentemente, de profissão e prosseguia no caminho iniciado apenas por sentimento de vergonha e do dever. Não soube mais nada a respeito de música, mas tão-somente de exercícios para os dedos, deveres difíceis, violações da leis da harmonia, deprimentes aulas de piano por parte de um professor irônico, que em todos os meus esforços via apenas desperdício de tempo.

E, no entanto, não se achasse o velho ideal ainda vivo secretamente em mim, bem teria eu, nesses anos, podido levar uma existência agradável. Estava livre, tinha amigos, era um garboso e saudável rapaz, filho de pais abastados. Disso tudo gozei, por momentos; houve dias de alegria, namoros, bebedeiras, viagens de férias. Mas não era possível consolar-me com isso, abreviar minhas obrigações e, principalmente, ter uma juventude feliz. Sem que percebesse, em todos os momentos de descuido uma funda saudade, em mim, ainda buscava com o olhar a estrela já posta da vocação artística. Não me era possível esquecer e sufocar a decepção. Somente uma vez o consegui realmente.

Foi o dia mais louco da minha louca mocidade. Andava eu namorando, nesse tempo, uma aluna do famoso professor de canto H. Parecia passar-se com ela o mesmo que comigo: viera com grandes esperanças, encontrara mestres severos, não estava acostumada ao trabalho e, no fim, chegou até a pensar que perderia a voz. Mas não fez disso nenhum drama; flertava conosco, seus colegas, e sabia pôr-nos todos malucos, para o que, na verdade, não era preciso muito. Tinha aquela formosura incendiada e de cor viva, que cedo perde o viço.

Essa linda Liddy, com seu ingênuo coquetismo, tornava a cativar-me toda vez que eu a via. Nunca estive apaixonado por ela durante muito tempo, amiúde a esquecia completamente, mas, quando lhe estava perto, voltava o namorado a vibrar dentro de mim. Ela brincava comigo como com os outros, espicaçando-nos todos e gozando do seu poderio, sem ela própria participar mais do que com a sensualidade curiosa da sua juventude. Era muito bonita, mas se nte quando falava e se movia, quando ria com sua voz quente e profunda, quando dançava ou se divertia com os ciúmes dos seus namorados. Todas as vezes que eu voltava para casa de uma reunião na qual a tinha visto, ria-me de mim mesmo e me demonstrava que um homem do meu gênero não poderia, em absoluto, amar a sério aquela atraente comediante. Por vezes, contudo, com um gesto, com uma palavra sussurrada, conseguia ela de novo excitar-me de tal modo, que eu ficava metade da noite, em fogo e desvairado, perambulando nas vizinhanças da sua casa.

Passava, então, por um período de exaltação e de exuberância um tanto forçadas. Após dias de profundo abatimento e de obtusa apatia, minha juventude exigia movimentos impetuosos e embriaguez dos sentidos; e eu, então, com alguns companheiros da minha mesma idade, ia à procura de divertimento e de burlas. Passávamos por jovens turbulentos, folgazões, levados da breca, até mesmo perigosos, o que, no meu caso, não era exato, e desfrutávamos, junto de Liddy e seu pequeno grupo, de duvidosa mas agradável fama de heróis. Quanto nessa conduta houvesse de espontânea vivacidade juvenil e quanto de exaltação forçada, eu, hoje, não poderia mais decidir, já tendo de há muito deixado para trás aqueles estados de espírito e todas as manifestações exteriores de juvenilidade. Se algum excesso havia, paguei por ele.

Certo dia de inverno, já que não tínhamos aulas, saímos juntos da cidade, uns oito ou dez jovens, entre os quais Liddy com três amigas. Levávamos conosco trenós, cujo uso ainda passava, naquele tempo, por divertimento de crianças, e procuramos, nos montanhosos arredores da, cidade, os caminhos e prados das encostas com boas ladeiras para descer. Lembro-me exatamente desse dia. Fazia um frio moderado, por vezes o sol aparecia durante um quarto de hora, o ar revigorante cheirava deliciosamente a neve. As moças, em seus coloridos vestidos e lenços, sobressaíam estupendas no fundo branco, o ar acre inebriava e os movimentos vivos, naquela friagem, eram um prazer. Nosso pequeno grupo estava do mais alegre bom humor, apelidos engraçados e remoques voavam sem parar de um lado para outro, eram respondidos com bolas de neve, levando a pequenas batalhas, até que todos, afogueados e cobertos de neve, parávamos por uns momentos, para tomar fôlego, antes de recomeçar. Um grande castelo de neve foi construído, sitiado e tomado de assalto; e, entre uma coisa e outra, deslizávamos em nossos trenós, encosta abaixo, num ponto ou noutro de um pequeno prado.

Ao meio-dia, estávamos todos com uma fome feroz. Então, procuramos e encontramos uma aldeia e uma boa hospedaria, onde nos acomodamos, tomamos conta do piano, cantamos, gritamos, encomendamos vinho e grogue. Veio a comida e foi festivamente devorada, com o vinho correndo à farta; depois, as moças quiseram café e nós provamos os licores. Era tamanha a gritaria e a alegre balbúrdia no pequeno local, que nossa cabeça parecia estourar. Eu me mantinha sempre perto de Liddy, que nesse dia, de humor benigno, me distinguia com especial favoritismo. Sua formosura florescia resplandecente, naquela atmosfera estonteante de jovialidade; os lindos olhos cintilavam e ela tolerava alguns carinhos, arriscados meio a medo e meio atrevidamente. Houve um jogo de prendas, em que as prendas deviam resgatar-se ao piano, mediante a imitação de qualquer um dos nossos professores, mas algumas, também, com beijos, cujo número e natureza eram atentamente observados.

Quando, acalorados e barulhentos, deixamos o local, iniciando a volta para casa, a tarde ainda não ia muito avançada, mas já começava a escurecer. E através da neve, e de novo numa algazarra de crianças endiabradas, tomamos sem pressa o caminho da cidade, em meio ao lento aproximar-se da noitinha. Consegui ficar ao lado de Liddy, cujo paladino me constituí, não sem oposição dos outros. Durante alguns trechos, eu a puxava no meu trenó e a defendia, como melhor pudesse, das renovadas tentativas de ataque a bolas de neve. Por fim, deixaram-nos em paz, cada uma das outras moças encontrou seu companheiro e somente dois jovens cavalheiros, que haviam permanecido sós, seguiam aos lados, fazendo graçolas com ânimo belicoso. Eu nunca estivera tão excitado e loucamente apaixonado como naquelas horas. Liddy agarrara meu braço e tolerava que, caminhando, eu a puxasse de leve. Entrementes, ora conversava loquaz no anoitecer, ora silenciava feliz e, como me pareceu, toda promessas, ao meu lado. Eu ardia em desejo e estava decidido a tirar o máximo proveito da ocasião ou, pelo menos, a prolongar o mais possível aqueles momentos de intimidade e ternura.

Ninguém protestou quando, próximos da cidade, propus alongarmos um pouco o caminho e me meti por uma senda elevada, que corria acima do vale em escarpado semicírculo, rica em amplas vistas sobre o vale do rio e a cidade, que já brilhava ao fundo com fileiras de cintilantes lampiões e milhares de luzes vermelhas.

Liddy continuava segurando-se no meu braço e me deixava falar, acolhia com um sorriso meus arroubados extravasamentos e parecia ela própria estar profundamente emocionada. Quando, porém, com leve violência, eu a puxei para mim e a quis beijar, ela se soltou e pulou para o lado.

- Olhe - exclamou, respirando fundo - precisamos descer esse prado de trenó! Ou será que você tem medo, meu herói?

Olhei para baixo e fiquei pasmado, pois a ribanceira era tão íngreme que, por um momento, a arriscada empresa realmente me atemorizou.

- Oh, não - disse logo - já está escuro demais. Imediatamente, ela me cobriu de zombarias e palavras indignadas, chamou-me de covarde e jurou que desceria a escarpa sozinha, se eu fosse medroso demais para ir junto com ela.

- É claro que o trenó vai virar- esclareceu rindo - mas isso é o mais divertido da brincadeira.

Ao ser assim provocado, tive uma idéia. - Liddy - disse, em voz baixa - nós vamos descer essa encosta. Se o trenó virar, você está autorizada a me esfregar com neve, mas, se chegarmos embaixo sem novidades, quero receber a minha recompensa.

Ela riu e sentou-se no trenó. Olhei-a nos olhos, que brilhavam quentes e divertidos; então, tomei lugar bem na frente, mandei que se agarrasse a mim, cingindo-me com os braços, e parti. Senti que ela abraçava-me, cruzando as mãos sobre o meu peito, e queria ainda gritar-lhe alguma coisa, mas não pude mais. O declive era tão abrupto, que eu tinha a sensação de precipitar-me no vazio. Procurei imediatamente pôr os uois pés no solo, a fim de fazer o trenó parar ou mesmo tombar, pois de repente uma angústia mortal pela vida de Liddy invadira meu coração. Mas era tarde demais. O trenó continuou zunindo pelo morte abaixo, em corrida desabalada, eu sentia somente no rosto um turbilhão frio e cortante de pó de neve revolvida; depois, ouvi Liddy gritar assustada, em seguida, mais nada. Uma pancada monstruosa, como de um malho de ferreiro, me atingiu na cabeça e senti, num ponto qualquer, uma dor, lancinante. A última sensação que tive foi a de frio.

Com essa breve e veloz corrida de trenó expiei minhas alegrias e loucuras da mocidade. Depois, como muitas outras coisas, também o meu amor por Liddy se desvanecera de todo.

Do alvoroço e amedrontada azáfama que se seguiram ao acidente, fui poupado. Para os outros, foi uma hora penosíssima. Ouviram Liddy gritar, começaram a rir e lançar gracejos, lá de cima, para baixo, no meio da escuridão; por fim compreenderam que alguma coisa mais séria tinha acontecido, desceram a encosta com muita dificuldade e precisaram de algum tempo, antes que a ébria e transbordante jovialidade cedesse lugar à reflexão. Liddy estava pálida e meio desfalecida, mas incólume; somente suas luvas apareciam rasgadas e suas mãos, alvas e finas, um pouco esfoladas e sujas de sangue. Fui levado dali por morto. Mais tarde, tentei em vão tornar a achar a macieira ou pereira contra a qual se haviam esfacelado o trenó e os meus ossos.

Tinham pensado que eu morrera de uma comoção cerebral, mas o caso não era tão grave. A cabeça e o cérebro, sem dúvida, estavam afetados e durou muito até que, no hospital, eu recobrasse os sentidos; o ferimento, porém, sarou e o cérebro repousou o suficiente. A perna esquerda, contudo, não conseguiu mais restabelecer-se totalmente das várias fraturas. Desde então, sou um aleijado, que não pode mais caminhar normalmente, correr ou dançar. Com isso, estava inopinadamente apontado à minha juventude um caminho para um mundo menos agitado, que tomei não sem alguma vergonha e resistência. Mas o tomei, e por vezes parece-me que não desejaria, de nenhum modo, que a minha vida fosse privada daquela corrida de trenó e das suas conseqüências.

Confesso que penso menos na perna quebrada do que nas outras conseqüências daquele acidente, muito mais favoráveis e gratas. Fosse pelo próprio acidente, com seu momento de pavor e o olhar na treva, ou pelo longo período em que fiquei acamado e os meses de imobilidade e meditação, o fato é que o tempo de recuperação me fez bem.

O começo daquele demorado período em que permaneci deitalo, digamos, a primeira semana, desapareceu inteiramente da minha memória. Eu ficava, amiúde, inconsciente e, mesmo depois da cessação definitiva dessa fase, estava debilitado e indiferente. Minha mãe viera ficar comigo e passava todos os dias no hospital, fielmente sentada ao lado da cama. Quando eu a olhava e lhe dirigia alguma palavra, ela parecia afável e quase alegre, muito embora, como vim a saber mais tarde, temesse por mim, e, mais exatamente, não pela minha vida, mas pela minha razão. Às vezes, mantínhamos um com o outro longas conversações, no silencioso quarto de hospital. Mas nossas relações nunca tinham sido muito afetuosas; eu sempre fora maL ipegado a meu pai. Agora, ela estava enternecida pela piedade e eu pela gratidão, e disposto a perdoar; mas ambos nos havíamos por demais acostumado a aguardar um o gesto do outro e a uma negligente aceitação desse estado de coisas, para que a nascente cordialidade pudesse encontrar caminho em nossas palavras. Olhávamo-nos contentes, deixando inexpresso o que sentíamos. Ela era novamente minha mãe, já que me tinha agora doente e acamado e podia cuidar de mim; e eu tornava a vê-la com sentimentos de menino, esquecendo momentaneamente tudo o mais. Mais tarde, sem dúvida, voltamos à velha relação, e então evitávamos falar muito daquele leito de enfermo, que nos deixava embaraçados.

Aos poucos, comecei a pensar no meu estado; e, como houvesse superado o período de febre e parecesse calmo, o médico não mais continuou a fazer segredo de que daquela queda eu guardaria para sempre uma lembrança. Vi, então, minha juventude, que eu mal começara a gozar de modo consciente, sensivelmente mutilada e empobrecida, e tive todo o tempo para me adaptar à nova realidade, pois a permanência no leito durou ainda um bom trimestre.

Procurei também, com todo o empenho, refletir na minha situação e formar mentalmente um quadro do meu futuro, mas não fui longe. Pensar muito ainda não era para mim, eu me cansava logo e recaía, todas as vezes, num repousante devaneio com o. qual a natureza me preservava do medo e do desespero, obrigando-me ao sossego e à cura. Nem por isso-deixou minha desgraça de me atormentar durante muitas horas do dia e da noite, sem que eu pudesse imaginar um consolo digno de menção.

E então uma noite aconteceu que acordei após cochilar durante poucas horas. Pareceu-me haver sonhado alguma coisa boa e fazia esforços para me lembrar do que fora, mas em vão. Experimentava estranha sensação de bem-estar e liberdade, como se houvesse superado, deixando para trás, tudo quanto era desagradável. E enquanto jazia no leito meditando e sentia fluir em volta de mim correntes de recuperada saúde e salvação, uma melodia aflorou aos meus lábios, quase silenciosa; continuei sem cessar a trauteá-la e, de improviso, como uma estrela até ali velada, tornou a mirar-me a música, da qual eu, por tanto tempo, me havia alheado; e meu coração marcou o seu compasso e todo o meu ser refloriu, respirando um ar novo e puro. Não que isso me assomasse à consciência, apenas estava ali, impregnando-me suavemente, como se coros distantes cantassem baixinho para dentro de mim.

Com o refrigério desse entranhado sentimento, tornei a adormecer. Pela manhã, sentia-me contente e aliviado, como não acontecia havia muito tempo. Minha mãe notou e perguntou o que me dava alegria. Refleti um momento e disse-lhe que, havia muito, eu não tinha mais pensado no meu violino, e que ele me tornara à mente e me alegrara.

- Ainda durante muito tempo, porém, não poderás voltar a tocar - disse ela, um tanto preocupada.

- Não tem importância... mesmo que eu nunca mais possa tocar.

Não me compreendeu e não lhe podia explicar. Mas ela notou que eu estava melhor e que nenhum inimigo se ocultava atrás daquele infundado contentamento. Decorridos alguns dias, voltou à carga, com cautela.

- Escuta, o que há, afinal, com a tua música? Chegamos quase a pensar que te havias desgostado dela e teu pai falou com os professores. Não queremos intrometer-nos e muito menos neste momento ... Mas pensamos que, se porventura te enganaste e preferisses renunciar, deverias fazê-lo, e não insistir por teimosia ou vergonha. Que achas?

Voltou-me, então, à memória todo aquele tempo do alheamento e da desilusão. Procurei contar a minha mãe o que se passara comigo e ela pareceu compreendê-lo. Agora, porém, expliquei, eu me sentia novamente seguro do meu propósito e, em todo o caso, não queria fugir dele, ao contrário, queria era levar os estudos até o fim. E nisso ficamos, pelo momento. No fundo da minha alma, onde ela não podia ver, tudo era música. Fosse bemsucedido ou não no violino, tornava eu a ouvir o mundo soar como uma bela obra de arte, e sabia que fora da música não haveria salvação para mim. Se a minha condição não me permitisse mais tocar violino, teria de renunciar a fazê-lo e talvez procurar uma outra profissão, tornar-me comerciante talvez, mas nada disso tinha tanta importância assim: como comerciante ou fosse lá o que fosse, não continuaria menos a sentir a música e a viver e respirar na música. Eu voltaria a compor! Não era tocar violino, como dissera a minha mãe, o que me alegrava; minhas mãos tremiam na ânsia de compor música, de criar. Já, em vários momentos, tornava a sentir as puras vibrações de ares mais transparentes, a fresca tensão dos pensamentos, como antigamente, nas minhas horas melhores; e sentia, também, que, perto disso, uma perna aleijada e todo outro mal eram de pequena monta.

Dali em diante, fui o vencedor. E toda vez, desde então, que os meus desejos corressem no rumo da saúde e da mocidade, e toda vez que, com amargura e vergonha, odiasse e amaldiçoasse a minha deficiência física, nunca esse sofrimento se impôs facilmente à minha força: havia alguma coisa para consolar-me e transfigurar-me.

De vez em quando, meu pai vinha visitar-me; e um dia, porque meu estado já não era mais grave, levou minha mãe de novo para casa. Senti-me, nos primeiros dias, um tanto abandonado e só, e também me envergonhava do pouco carinho com que falara a minha mãe e do pouco-caso que fizera dos seus pensamentos e preocupações. Mas aquele outro sentimento por demais me dominava, para que tais cogitações pudessem ir além de bemintencionados passatempos mentais e sentimentalismos.

Então, inesperadamente, alguém que não se atrevera a fazê-lo durante a presença de minha mãe veio visitar-me. Era Liddy. Fiquei admirado ao vê-la. No primeiro momento, nem sequer me ocorreu como estivéramos próximos até pouco tempo, e quanto eu estivera apaixonado. Veio com grande acanhamento, que escondia mal; tivera medo de minha mãe e, até, da Justiça, sabendo-se culpada do meu acidente; e só aos poucos compreendeu que o caso não era tão grave e que, no fundo, não lhe dizia respeito. Então respirou, mas sem poder disfarçar um leve desapontamento. Por mais que a consciência lhe doesse, a moça, bem no fundo do seu bom coração feminino, tinha encontrado na história toda, num acidente tão emocionante e comovedor, um íntimo lenitivo. Chegou a empregar, mais de uma vez, a palavra "trágico", a cujo propósito mal pude conter o riso. Não estava de nenhum modo preparada para encontrar-me em tão boa disposição de espírito e tão pouco reverente em relação à minha. desgraça. Sua intenção fora a de pedir-me perdão, cuja concessão devia constituir para mim, como apaixonado, enorme satisfação, e, com base nessa cena comovedora, tornar a apoderar-se do meu coração.

Fora de dúvida, não constituiu pequeno alívio, para a leviana menina, encontrar-me tão bem-humorado e saber-se livre de culpa e de acusações. Esse alívio, contudo, não a alegrou, e, ao contrário, quanto mais a sua consciência se tranqüilizava e se desvanecia o temor que a acompanhara na visita, tanto mais a vi tornar-se silenciosa e fria. Ofendia-a bastante que eu estimasse tão pequena a sua participação no fato, que parecesse, mesmo, havê-la esquecido, que matasse no nascedouro seu enternecimento e pedido de perdão, defraudando-a da linda cena. Que eu não estivesse mais apaixonado por ela, percebeu-o perfeitamente, não obstante a minha grande cortesia, e isso foi o pior. Tivesse eu perdido braços e pernas, sempre fóra um seu adorador, que ela, sem dúvida, não tinha amado nem feito feliz, mas em cujos suspiros, quanto mais dolorosos fossem, tanto maior satisfação encontraria. Ora, nada disso acontecia, como claramente percebeu; e, assim, vi em seu bonito rosto mais e mais extinguir-se e esfriar o calor e a participação da compassiva visitante de enfermos. Por fim, foi-se embora, após empolada, despedida, e nunca mais voltou, se bem que o tivesse solenemente prometido.

Por mais penoso que houvesse sido e por mais que contrariasse o meu amor-próprio ver descambar no mesquinho e no ridículo o meu passado namoro, a visita me fez bem. Fiquei muito admirado de olhar, pela primeira vez sem paixão e sem ilusões, para a linda e desejada mocinha e verificar que não a tinha absolutamente conhecido. Se me houvesse mostrado a boneca que aos três anos de idade eu abraçava e amava, o meu alheamento e mudança de sentimentos não poderia causar-me espanto maior do que nesse caso, quando vi diante de mim, como uma pessoa completamente estranha, a moça que, ainda algumas semanas antes, ardentemente desejara.

Dos rapazes que tinham tomado parte naquele domingueiro passeio no inverno, dois vieram visitar-me umas poucas vezes; mas não encontramos muito que pudéssemos falar uns com os outros e notei perfeitamente seu suspiro de alívio, quando, tendo melhorado, lhes pedi que não sacrificassem mais o seu tempo. Mais tarde, não voltamos a encontrar-nos. Era curioso e produzia em mim estranha impressão de tristeza: tudo aquilo que pertencera à minha vida, naqueles anos da juventude, desprendia-se de mim, tornava-se estranho e se me perdia de todo. Vi, de repente, de que modo falso e lastimável vivera aquele tempo, pois agora amor, amigos, hábitos e alegrias daqueles anos eram abandonados como roupas velhas, e me desafeiçoava deles sem dor; de sorte que só restava admirar-me de como eu pudera conviver tanto tempo com eles e eles comigo.

Surpreendeu-me, ao contrário, outra visita, na qual nunca teria pensado. Um dia, veio o meu professor de piano, o cavalheiro severo e irônico. Ficou o tempo todo de bengala na mãc? e mãos nas luvas, falou no seu tom habitual desabrido e quase sarcástico, qualificou aquela descida de trenó como "no que dá meter-se a cocheiro de mulheres", e pelo tom da voz parecia regozijar-se altamente com o meu azar naquela ocasião. Contudo, era curioso que me visitasse e, se bem que não mudasse de tom, ficou também evidente que não viera com más intenções, mas, sim, para dizerme que me considerava, apesar da minha lerdeza, um aluno sofrível, que o seu colega, professor de violino, era da mesma opinião, e que eles esperavam, portanto, que cedo eu voltaria, em boa saúde, às aulas e lhes proporcionaria satisfações. Apesar do discurso, que quase parecia um pedido de perdão por anteriores rudezas, ser proferido no mesmíssimo tom, duro e ríspido, dos anteriores, soou aos meus ouvidos como que uma declaração de amor. Estendi a mão, agradecido, ao malquisto professor, para mostrar confiança nele, procurei explicar-lhe o que se tinha dado comigo naqueles anos e como a minha velha relação amorosa com a música começava a reviver.

O professor meneou a cabeça e assobiou de escárnio, ao perguntar:

- Ah, então o senhor quer tornar-se compositor? - Se possível - disse eu, aflito. - Bem, desejo-lhe muita sorte. Eu tinha pensado que, agora, o. senhor talvez voltasse aos exercícios com mais empenho, mas como compositor, naturalmente, não precisa disso.

- Oh, não foi isso que eu quis dizer! - O que foi, então? Fique sabendo de uma coisa. Quando um estudante de música é vadio e não gosta de trabalhar, aí resolve sempre dedicar-se à composição. Compor, qualquer um pode, e, notoriamente, todo mundo é gênio.

- Não foi realmente esse o sentido das minhas palavras. Deveria, então, tornar-me pianista?

- Não, meu caro senhor, estaria acima das suas possibilidades. Mas aprender a tocar violino decentemente, isso o senhor ainda poderia.

- Ora, isso quero eu também. - Esperemos que seja a sério. Não desejo demorar-me mais tempo. Faço votos pelas suas melhoras, meu caro, e até breve.

Com isso, foi-se embora, deixando-me perplexo. Eu pouco ainda havia pensado na volta aos estudos. Agora, receava o renovar-se das dificuldades e frustrações e que, no fim, tudo tornasse a ser como antes. Tais pensamentos, contudo, não resistiram muito tempo, e evidenciou-se também que a visita do rabugento professor fora feita, realmente, com boas intenções e sob o signo de sincera benevolência.

Depois de restabelecido, devia eu fazer uma viagem de recreio, mas achei melhor esperar até as grandes férias e preferi retomar logo os estudos. Então percebi, pela primeira vez, que efeitos surpreendentes pode ter um período de repouso, notadamente de repouso involuntário. Iniciei aulas e exercícios com desconfiança, mas tudo correu melhor do que antes. Na verdade via agora, claramente, que nunca chegaria a ser um virtuose; no meu novo estado de espírito, contudo, esse reconhecimento não me contristou. Quanto ao mais, as coisas correram bem e, especialmente, durante o longo intervalo, o sinistro matagal do ensino da música, da teoria, da harmonia e da composição se havia transformado num jardim perfeitamente acessível e aprazível. Sentia que os achados e tentativas das minhas horas boas não estavam mais fora de todas as regras e leis, que, dentro da rigorosa obediência do aluno, um caminho estreito, mas facilmente reconhecível, conduzia para a liberdade. Houve ainda, sem dúvida, horas e dias e noites em que tudo surgia diante de mim como uma cerca de arame farpado e em que eu, com o cérebro ferido, me atormentava na luta contra falhas e contradições; mas o desespero não voltou e a estreita vereda tornou-se mais nítida e transitável ante os meus olhos.

No fim do semestre, nosso professor de teoria, por ocasião da despedida para as férias, me disse, com grande surpresa minha:

- O senhor é o único aluno deste ano que parece realmente entender um pouco de música. Se algum dia compuser alguma coisa, eu de bom grado a examinarei.

Com essas consoladoras palavras, parti em férias. Por longo tempo não estivera em casa, e na viagem, a cidade natal reapareceu diante do meu coração, pedindo o meu amor e fazendo aflorar a corrente das semiperdidas recordações da infância e dos primeiros anos da juventude. Na estação, recebeu-me meu pai, e, num carro de praça, seguimos para casa. Mas já na manhã seguinte atraiu-me o desejo de dar uma volta pelas velhas ruas. E ali apoderou-se de mim, pela primeira vez, a mágoa pela perdida integridade física da minha juventude. Constituía para mim um suplício, com a perna torta e tesa e apoiado numa bengala, coxear pelas vielas, onde cada esquina evocava jogos de meninos e fenecidas alegrias. Voltei para casa abatido e quem quer que eu visse ou qualquer voz que ouvisse ou fosse lá no que pensasse, tudo me lembrava amargamente o passado e a minha manqueira. Ao mesmo tempo, sofri ao verificar que minha mãe estava visivelmente menos de acordo do que nunca com a minha escolha de uma profissão, se bem que não o dissesse claramente. Que um músico de esbeltas pernas pudesse exibir-se como virtuose ou como elegante regente de orquestra, ela ainda teria admitido; mas que um meio paralítico, com atestados de estudo apenas discretos e índole rettraída, pretendesse ir longe como violinista, isso lhe era incompreensível. Nessa idéia, era apoiada por uma velha amiga e remota parente, à qual meu pai, certa vez, proibira que voltasse à nossa casa, o que ela lhe pagava com um ódio arraigado, sem, contudo, deixar de ir lá, pois vinha, amiúde, visitar minha mãe durante as horas de trabalho de meu pai. Se bem que desde os anos da minha meninice mal tivesse trocado uma palavra comigo, ela não me suportava, e, se reputava a minha escolha de uma profissão por lamentável sinal de abastardamento, via no meu acidente um manifesto castigo e aviso da Providência.

No intuito de dar-me uma alegria, meu pai tinha preparado tudo para que eu fosse convidado a tocar, como solista, num concerto da associação musical da cidade. Mas eu não podia; recusei o convite e, durante dias seguidos, me retirei para o pequeno quarto que ocupara quando menino. O que especialmente me torturava era ser, a toda hora, interrogado e ter de dar explicações; de sorte que acabei não saindo mais. E foi quando me surpreendi a olhar pela janela, com dolorosa inveja, a vida da rua, os meninos de escola e, principalmente, as mocinhas.

Como ousaria eu esperar, pensava, que algum dia pudesse novamente mostrar amor a uma moça! Estava fadado a ficar sempre de parte, como na hora de dançar, e a ter somente de olhar e a não ser considerado pelas mulheres como um ser completo; e se alguma delas se mostrasse afável comigo, seria por compaixão. Ah, de compaixão já estava eu farto até a náusea!

Nessas condições, não podia continuar em casa. Também não era pouco o que meus pais sofriam com meu irritadiço abatimento moral, e quase nada disseram em contrário quando pedi licença para empreender logo a viagem, desde muito projetada, que meu pai me havia prometido. Também mais tarde minha perna defeituosa haveria ainda de apoquentar-me, destruindo-me desejos e esperanças profundamente acalentadas; mas nunca mais a minha invalidez e deformidade me afligiu de modo tão cruciante como então, quando a vista de todo jovem são e de toda graciosa figura feminina me humilhava e me doía. Tal como, lentamente, eu me acostumara à bengala e ao coxear, até quase não me incomodarem mais, assim tive de habituar-me, com o passar dos anos, à clara consciência, sem amargura, do meu mal e a suportá-lo com resignação e serenidade.

Por sorte, não precisando mais de especiais cuidados, pude viajar sozinho; toda e qualquer companhia me teria contrariado e perturbado minha cura interior. E já me senti mais leve quando, sentado no trem, ninguém mais olhava para mim de maneira ostensiva e condoída. Viajei sem interrupção o dia e a noite, num sentimento de verdadeira fuga, e respirei fundo quando, na tardinha do dia seguinte, avistei, através da janela embaçada, os píncaros pontiagudos de alguns altos montes. Ao escurecer, cheguei à última estação e me dirigi, cansado e alegre, pelas vielas de uma pequena cidade dos Grisões, para uma hospedaria; e, depois de um copo de vinho tinto muito escuro, descarreguei de cima de mim, com dez horas de sono, não só o cansaço da viagem como boa parte das aflições que trouxera.

De manhã, subi a um trenzinho alpino que, através de estreitos vales e ao longo de alvos e espumejantes arroios, rumou serra adentro; e, depois, numa pequena e erma estaçãozinha ferroviária, passeipara um carro. Ao meio-dia, estava eu lá em cima, numa das aldeias mais altas da região.

Na única e pequena hospedaria da tranqüila vilazinha, e por vezes como seu único hóspede, vivi até o outono. Meu propósito fora o de descansar ali durante breve período e depois prosseguir a viagem pela Suíça, para conhecer um pouco mais do mundo. Mas corria uma aragem naquela altitude, e que soprava um ar tão vibrante de claridade crua e grandiosa, que não desejei mais deixála. Um lado do alto vale estava coberto, até quase o cimo, por uma floresta de abetos; a outra vertente era pedregosa e nua. Ali passava meus dias, nas rochas acastanhadas pelo sol ou junto de um dos impetuosos e selvagens córregos, cuja canção, à noite, eçoava por toda a aldeia. Nos primeiros dias, gozei da solidão como de um tonificante elixir. Ninguém se ocupava de mim, ninguém me demonstrava curiosidade ou compaixão, eu estava livre e só, como um pássaro nas alturas, e não demorou que esquecesse meu sofrimento e meu doentio sentimento de inveja. Penalizava-me, por vezes, não poder ir muito longe pelos montes, para visitar pastagens alpinas e vales desconhecidos, galgar perigosos atalhos. No fundo, porém, me sentia esplendidamente bem. Após os acontecimentos e as emoções dos últimos meses, a quietude da solidão me circundava como uma fortaleza segura; e tornei a encontrar a paz do espírito, tão longamente conturbado, e aprendi a aceitar minha inferioridade física, senão com alegria, ao menos com resignação.

As semanas que passei lá em cima foram quase que as mais belas de toda a minha existência. Respirava o ar puro e límpido, bebia água gelada dos regatos, via os rebanhos de cabras pastarem nas íngremes encostas, vigiados por silenciosos, sonhadores zagais de negros cabelos, ouvia, por vezes, as trovoadas roncarem para além do vale, e via, muito próximos, nevoeiros e nuvens. Observei, nas fendas das rochas, o pequeno mundo de flores, delicadas e de vivo colorido, e as numerosas e estupendas variedades de musgo; e, nos dias claros, de bom grado caminhava uma hora monte acima, até que pudesse descortinar ao longe, para além do cume, os picos, de nítido perfil, de montes mais altos, cobertos de sombras azuis e de campos de neve, serenamente luminosos e prateados. Num ponto da trilha, onde um estreito rego recebia sua umidade de uma pequena e magra fonte, vi, num dia claro de sol, utn bando de pequenas borboletas azuis, centenas delas, pousadas lá, bebendo; mal se desviaram dos meus passos e, quando as espantei, me rodearam, zumbindo, numa revoada de asas minúsculas e macias como seda. Desde que conheci essa senda, voltei a percorrê-la somente nos dias de sol; e todas as vezes lá estava o cerrado bando azul, e todas as vezes era uma festa.

Se reflito melhor, no entanto, não foi aquele tempo inteiramente azul, ensolarado e festivo como o conservo na memória. Dias houve, não só de nevoeiro e de chuva, mas, até, de neve e frio; e também dentro de mim houve temporais e maus dias.

Não estava acostumado à solidão, e decorridos os primeiros momentos de repouso e do estimulante regozijo, o sofrimento, do qual tinha fugido, voltava de súbito, por vezes, a olhar-me terrivelmente de perto. Muitas horas frias do anoitecer passei, sentado no meu minúsculo quarto, a manta de viagem sobre os joelhos, entregue, cansado e indefeso, aos mais insensatos pensamentos. Tudo o que a mocidade deseja e espera, festas e folguedos com danças, amores femininos e aventuras, triunfos da força e do amor, tudo se achava lá longe, na outra margem, separado de mim para sempre e para sempre inatingível. Até mesmo aquele tempo ressentido e exuberante, de uma alegria em parte forçada, cujo fim fora minha queda de trenó, surgia-me então na lembrança, em lindas cores paradisíacas, como uma perdida terra da alegria, cujo eco distante ainda chegava até mim somente como os sons expirantes de uma báquica embriaguez. E quando, às vezes, durante a noite, as trovoadas se desencadeavam e o frio e incessante barulho das águas despenhando-se era coberto pelo rangido angustiado e lamentoso da floresta de abetos, sacudida e tumultuada, ou quando, no vigamento da frágil casa, os mil inexplicáveis ruídos da insone noite de verão se tornavam mais altos, aí eu jazia no meu leito em abrasados e desesperançados sonhos de vida e tempestades amorosas, invectivando, furioso, contra Deus; e me via como um pobre poeta e sonhador, cujo sonho mais belo não passava de tênue iridescência de bolha de sabão, enquanto milhares de outros seres, pelo mundo afora, jubilosos de suas energias juvenis, estendiam as mãos exultantes para todos os prêmios da vida.

No entanto, tal como-eu tinha a impressão de que a sagrada beleza dos montes e tudo o que Os meus sentidos diariamente gozavam olhavam para mim através de um véu e me falavam somente como de estranha distância, assim entre mim e aquele sofrimento, que amiúde irrompia de maneira tão furiosa, foi interpondo-se um véu e nascendo leve alheamento; e não tardou que, a certa altura, percebesse o esplendor do dia e as lamentações da noite como vozes vindas de fora, que me era dado escutar com o coração ileso. Eu me via e sentia a mim mesmo como um céu percorrido por nuvens, como um campo repleto de hostes em luta; e, fosse prazer e gozo ou sofrimento e pesar, soavam ambos mais claros e mais compreensíveis, desligavam-se da minha alma e vinham a mim de fora em forma de harmonias e séries de sons, que eu Percebia como que dormindo e, sem que o quisesse, se apossavam de mim.

Foi no silêncio de um anoitecer, ao voltar das rochas, que pela primeira vez percebi tudo nitidamente, e enquanto meditava e descobria que eu era um enigma para mim mesmo, de repente me ocorreu o que aquilo significava: era a volta daquelas longínquas, a mim estranhas horas, que, à guisa de pressentimento, eu antegozara em anos anteriores. E, com essa recordação, voltou aquela maravilhosa clareza, a quase vítrea nitidez e transparência dos sentimentos, cada um dos quais estava ali sem máscara, nenhum dos quais se chamava dor ou felicidade, mas significava tão-só energia e som e ininterrupto fluir. As tribulações, o brilho irisado e os embates dos meus exacerbados sentimentos se haviam convertido em música.

Agora, nos meus dias luminosos, via o sol e a floresta, as rochas castanhas e os distantes montes prateados com redobrado sentimento de felicidade e beleza, com uma nova percepção. Nas horas sombrias, sentia o coração dilatar-se e rebelar-se com redobrada veemência e não mais distinguia prazer e dor, senão que um era igual ao outro e ambos doíam e ambos eram deliciosos. E enquanto, internamente, eu provava bem-estar ou dor, minha força pairava tranqüila acima deles, contemplando-os como espectadora, e reconhecia a luz e a sombra como fraternais e inseparáveis companheiras, o sofrimento e a paz como tempos e forças e partes da mesma e grandiosa música.

Essa música, eu não podia escrevê-la, era ainda estranha a mim mesmo e desconhecida em seus limites. Mas podia ouvi-la, podia sentir o mundo, em sua perfeição, dentro de mim. E dela um pouco podia também reter, uma pequena parte e uma ressonância, adelgaçada e como que traduzida. Nisso pensei e cismei durante dias a fio e achei que ela podia expressar-se com dois violinos; e, assim como um filhote de passarinho que se atreve ao seu primeiro vôo, comecei, em toda a inocência, a escrever minha primeira sonata.

Quando, certa manhã, no meu quarto, toquei ao violino seu primeiro movimento, percebi perfeitamente as fraquezas da falta de acabamento e da insegurança; cada compasso, porém, corria- me como um estremecimento por todo o coração. Eu não sabia se aquela música era boa, mas sabia que era realmente minha, por mim vivida e de mim nascida, e não ouvida antes em parte alguma.

Embaixo, na sala da hospedaria, ficava sentado, ao longo dos anos, imóvel e de cabelos brancos como a neve, o pai do hospedeiro, homem de mais de oitenta anos, que nunca dizia uma palavra e se limitava a olhar cuidadosamente a seu redor, com olhos tranqüilos. Se o solene e taciturna ancião estava de posse de sobre-humanas sabedoria e paz de espírito ou se as faculdades mentais o haviam abandonado, constituía um mistério. Para junto dele desci, naquela manhã, com o violino debaixo do braço, porque observara que o velhinho escutava com atenção, não só quando eu tocava, como toda sorte de música. Encontrando-o sozinho coloquei-me em posição na sua frente, afinei o violino e toquei para ele meu primeiro movimento. O idosíssimo àncião ergueu para mim seus mansos olhos, cujo branco era amarelado e a orla das pálpebras vermelha, e ficou escutando; e, ainda agora, quando penso naquela música, revejo também o velho e seu rosto impassível, como de pedra, de onde o tranqüilo olhar me contemplava. Quando terminei, fiz-lhe um rápido aceno com a cabeça; ele piscou maliciosamente os olhinhos amarelados, pareceu compreender tudo e seu olhar respondeu ao meu. Depois, voltou-se para outro lado, baixou um pouco a cabeça tornou a apagar-se na sua velha e rígida imobilidade.

O outono começou cedo naquela altitude, e quando, certa manhã, de lá parti, havia cerrado nevoeiro e uma chuvinha fria peneirava em delicada poeira de gotas. Eu, porém, levava comigo o sol dos dias bons, e, além da agradecida recordação, um alegre destemor para o meu próximo caminho.

III

DURANTE meu último semestre no Conservatório, conheci o cantor Muoth, que gozava na cidade de honrosa nomeada. Concluíra seus estudos quatro anos antes e fora imediatamente contratado pela Ópera da Corte, onde é verdade que, então, aparecia.em papéis secundários e não conseguia brilhar ao lado de colegas mais velhos e em voga, mas era considerado por muitos como um futuro astro, cujo próximo passo o levaria certamente à celebridade. Eu já o tinha visto e ouvido em alguns desempenhos no palco e, todas as vezes, ele produzira em mim uma impressão forte, se bem que não pura.

Travamos conhecimento do seguinte modo. Após meu regresso à escola, eu levara a sonata para dois violinos, juntamente com duas canções que compusera, àquele professor que tão amigável interesse me demonstrara. Ele prometeu examiná-las e dar-me sua opinião. Mas o tempo ia passando sem que o fizesse e eu observava nele certo constrangimento, toda vez que o encontrava. Finalmente, um dia, ele me chamou à sua casa e me devolveu as músicas.

- Aqui estão seus trabalhos de volta - disse, um tanto contrafeito. - Espero que o senhor não tenha alimentado, a seu respeito, esperanças excessivas. Há neles qualquer coisa, sem dúvida, e o senhor poderá, algum dia, tornar-se alguém. Mas, falando francamente, eu o julgava mais maduro e tranqüilo e nunca teria atribuído à sua natureza tal grau de paixão. Pensava encontrar qualquer coisa mais calma e amena, que fosse tecnicamente mais segura e pudesse ser julgada pelo prisma técnico. Acontece, porém, que o seu trabalho, tecnicamente, é um malogro, de modo que pouco posso dizer a seu respeito; em compensação, é uma tentativa atrevida, que eu não saberia avaliar, mas, como seu professor, não gostaria de louvar. O senhor deu mais e, ao mesmo tempo, menos do que eu tinha esperado, e assim me colocou numa situação embaraçosa. Eu sou por demais professor para fechar os olhos aos pecados de estilo, e se eles são compensados ou não pela originalidade, é justamente o que menos ainda gostaria de decidir. Portanto, prefiro aguardar até conhecer qualquer outra coisa sua e lhe desejo muita sorte. Porque, pelo que pude observar, é certo que o senhor continuará a compor.

E, assim, eu fora embora, sem saber que conclusões tirar dessa opinião, que não era uma opinião. Eu julgara que, numa obra, devesse ser imediatamente visível se tinha nascido por brincadeira e como passatempo ou por necessidade e do coração. Guardei as músicas e propus-me esquecer tudo, por enquanto, a fim de estudar com afinco naquele meu último semestre escolar.

Aconteceu então que, certa vez, fui convidado por uma família, em cuja casa se fazia muita música e onde, por se tratar de conhecidos de meus pais, eu costumava fazer minhas visitas uma ou duas vezes por ano. Era um sarau como todos os outros, só que se achavam presentes algumas celebridades da Ópera, que eu conhecia de vista. Lá estava também o cantor Muoth, que me interessava mais do que os outros e, que eu via pela primeira vez tão de perto. Era moreno, alto e bonito, uma figura imponente, de modos seguros e, talvez, um tanto rebuscados; via-se nele claramente que agradava às mulheres. No entanto, independentemente dos gestos, não dava a impressão nem de orgulhoso nem de satisfeito consigo mesmo, mas, ao contrário, tinha muito de expectante e de insatisfeito, no olhar e nas expressões. Quando lhe fui apresentado, cumprimentou-me com breve e rígida mesura, sem me falar. Depois de alguns momentos, porém, veio repentinamente para junto de mim, dizendo:

- O senhor não se chama Kuhn?... Então, já o conheço um pouco. O professor S. mostrou-me seus trabalhos. Não deve levá-lo a mal, ele não é indiscreto. Mas calhou que eu chegasse justamente na hora em que os verificava, e como entre eles haviaruma canção, pude examiná-la, com licença dele.

Fiquei surpreso e embaraçado. - Por que falar nisso? - perguntei. - O professor não gostou, creio.

- Isso o magoa? Pois eu gostei muito da canção; poderia mesmo cantá-la, se tivesse alguém para acompanhar-me. E desejaria pedir esse obséquio ao senhor.

- O senhor gostou? Quer dizer, então, que pode ser cantada? - É claro... embora nem em todos os concertos. Mas desejaria tê-la para mim, para meu uso doméstico.

- Farei uma cópia para o senhor. Mas por que deseja tê-la? - Porque me interessa. É realmente música, a sua canção; e o senhor mesmo sabe muito bem disso.

Olhou para mim e senti-me embaraçado com o seu modo de observar as pessoas. Fitava-me diretamente no rosto, estudando-me sem a menor cerimônia, e seus olhos brilhavam de curiosidade.

- O senhor é bem mais jovem do que eu pensei. Certamente, já deve ter sofrido muito.

- Sim - disse eu - mas não posso falar nisso. - E também não preciso, não tenho nenhuma intenção de interrogá-lo.

Seu olhar me perturbou; ocorria, também, que ele era uma espécie de celebridade e eu ainda um aluno, de maneira que só podia opor-lhe uma defesa débil e tímida, muito embora seu modo de interrogar não me agradasse. Não era arrogante, mas de certa forma ofendia meu sentimento de pudor, sem que pudesse defender-me senão de leve, já que ele não suscitava em mim nenhuma real aversão. Eu tinha a impressão de que ele era infeliz e possuía um modo involuntariamente agressivo de tratar com as pessoas, como se delas quisesse sacar alguma coisa que o consolasse. Seu olhar escuro e indagador era, ao mesmo tempo, atrevido e triste, e seu rosto, bem mais velho do que ele poderia ser.

Pouco depois, enquanto suas palavras ainda calavam no meu espírito, vi-o palestrar de maneira amável e jovial com uma filha dos donos da casa, que o ouvia extasiada, olhando-o como se ele tivesse saído de um conto de fadas.

Desde o dia da minha infelicidade, levava eu uma vida tão solitária, que esse encontro continuou a repercutir em mim e a perturbar-me durante dias seguidos. Não estava suficientemente seguro de mim, para que não temesse aquele homem superior, mas; ao mesmo tempo, vivia por demais só e necessitado de expansão, para não me sentir lisonjeado com a sua aproximação. Por fim, pensei que ele se tivesse esquecido tanto de mim como do seu humor naquela noite. E aí, para minha grande confusão, ele apareceu na minha residência.

Foi ao anoitecer de um dia de dezembro; lá fora, já fazia completa escuridão. O cantor bateu à porta e entrou, como se não houvesse nada de estranho na sua visita; e, sem preâmbulos ou fórmulas de cortesia, foi direto ao assunto. Tive de dar-lhe a canção; e como ele visse no quarto um piano de aluguel, quis cantá-la imediatamente. Precisei sentar-me ao piano e acompanhá-lo, e assim ouvi a minha canção pela primeira vez, cantada certo.. Era triste e me comoveu, pois ele não a cantara à maneira dos cantores, mas em voz baixa e como que só para si. O texto, que eu tinha lido no ano anterior num periódico e transcrito, era o seguinte:

O vento sul assoprou forte
E a avalancha rolou,
Ribombando com tons de morte.
Foi Deus quem isso mandou?

Um pobre exilado, errabundo,
Saudoso de outro país,
Entre gente hostil, sou no mundo.
Foi Deus que assim o quis?

Não vê ele o meu desconforto,
Que não vem me socorrer?
Sim, ai de mim, Deus está morto!
E eu deverei viver?

Quando o ouvi cantá-la, compreendi que ele tinha gostado da canção.

Permanecemos em silêncio durante um momento; depois, eu lhe perguntei se ele não podia apontar falhas e propor-me correções.

Muoth olhou para mim, fitando-me com seus olhos escuros, e meneou a cabeça.

- Não há nada para corrigir- disse. - Não sei se a composição é boa, disso não entendo absolutamente nada. Há algo realmente sentido na canção; e, já que eu próprio não escrevo poesias nem componho, fico satisfeito quando, porventura, encontro alguma coisa que me dá a impressão como de coisa minha e que eu tenha prazer em cantar para mim mesmo.

- A letra, porém, não é minha - objetei. - Não? Bem, não muda nada; a letra é secundária. Mas o senhor deve tê-la vivido espiritualmente, senão não teriawomposto a canção.

Ofereci-lhe então a cópia, que já preparara fazia vários dias. Pegou as folhas, enrolou-as e as enfiou no bolso do sobretudo.

- Venha também visitar-me alguma vez, se quiser - disse, estendendo-me a mão. - O senhor vive sozinho e não pretendo tirar-lhe esse gosto. Mas, de vez em quando, agente tem prazer em ver de perto uma pessoa decente.

Depois que saiu, suas últimas palavras e seu sorriso permaneceram dentro de mim, em consonância com a canção que ele havia cantado e com tudo o que, até aí, eu sabia a seu respeito. E, quanto mais eu relembrava e ponderava isso tudo, tanto mais claro se me tornava; no fim, compreendi aquele ser. Compreendi por que viera ver-me, por que tinha gostado da minha canção, por que me solicitara daquela maneira, quase indiscreta, e me parecera esquivo e impertinente. Ele sofria, trazia na alma alguma grande dor; e a solidão o deixara faminto como um lobo. Esse sofredor tentara o recurso do orgulho e do isolamento, mas não resistira; e estava de atalaia, à espera de seres humanos, de algum olhar bondoso e de um sopro de compreensão, disposto a rebaixar-se para conseguilos. Assim eu pensava, então.

Meus sentimentos em relação a Heinrich Muoth não eram claros. Eu percebia muito bem seus anseios e desventuras, mas tinha medo dele como de um ser mais forte e cruel, que poderia utilizar-me e depois largar-me de mão. Eu era demasiado jovem e tinha vivência humana por demais escassa, para compreender e aprovar que ele, por assim dizer, quase se desnudasse e mal Parecesse conhecer o pudor do sofrimento. Mas via também que ali um homem ardoroso e cordial sofria e se achava ao abandono. Vieram-me involuntariamente ao pensamento todos os boatos que ouvira a respeito de Muoth, conversas entre alunos, pouco claras e feitas a medo, mas cujo tom e colorido minha memória conservara. Contavam dele as mais loucas histórias de mulheres e aventuras, e, sem que eu lembrasse pormenores, julgava ainda saber de um acontecimento sangrento, qualquer coisa como se ele tivesse estado envolvido num caso de assassinato ou de suicídio.

Quando, pouco tempo depois, vencido meu acanhamento, interroguei a esse propósito um colega meu, o fato revelou-se mais inofensivo do que me parecera. Contava-se que Muoth mantivera uma ligação amorosa com uma jovem senhora da alta sociedade e que esta, com efeito, se suicidara, fazia então dois anos, mas sem que ninguém se atrevesse a falar, mais do que com cautelosas alusões, numa qualquer relação do cantor com a história. Presu- mivelmente, minha própria imaginação, excitada pelo encontro com aquele homem singular e, para mim, um pouco inquietante, é que criara em volta dele essa atmosfera de terror. De qualquer modo, ele devia ter passado por maus momentos com aquele amor.

Eu não tinha coragem de ir à sua casa. Não podia esconder de mim mesmo que Heinrich Muoth era um homem sofredor e talvez desesperado, que estendia as mãos para mim e queria minha companhia; e, freqüentemente, me parecia que eu devia atender ao apelo e que seria um velhaco se não o fizesse. Contudo, não ia lá: outro sentimento me impedia. O que Muoth procurava em mim, eu não lhe podia dar. Eu era um ser completamente diferente dele, e mesmo se, sob vários aspectos, também me achava sozinho e não bem compreendido no meio dos meus semelhantes, mesmo se eu, talvez, fosse diverso dos outros, separado da maioria por destino e predisposição, não queria, contudo, fazer disso um bicho-de-sete-cabeças. Se o cantor era um ser demoníaco, eu não o era, e uma íntima necessidade me afastava do que dá na vista e do fora do comum. Eu tinha ojeriza e aversão à gesticulação violenta de Muoth; ele era um homem de teatro e de aventuras, parecia-me, e votado, talvez, a viver um destino trágico de ampla repercussão. Eu, ao contrário, queria viver no silêncio, estava fadado à resignação, e os gestos e palavras ousadas não condiziam comigo. Assim, continuava quebrando a cabeça em busca da tranqüilidade. Um homem, do qual tinha pena e que eu talvez devesse com justiça colocar acima de mim, batera à minha porta, mas eu queria sossego
e não tencionavl deixá-lo entrar. Embora me atirasse ardorosamente ao trabalho, não me livrava do angustiante pensamento de que atrás de mim estava alguém querendo agarrar-me.

Visto que eu não ia, Muoth tornou ele próprio a tomar a iniciativa. Recebi uma cartinha sua, escrita em letra de traços largos e orgulhosos:

"Meu caro senhor.

No dia 11 de janeiro costumo festejar meu aniversário em companhia de alguns amigos. Posso convidá-lo? Seria esplêndido se, nessa ocasião, pudéssemos ouvir a sua nova sonata. Que diz a isso? O senhor tem algum colega com quem possa tocá-la ou devo mandar-lhe alguém? Stefan Kranzl estaria disposto. O senhor me daria um grande prazer.

Heinrich Muoth"

Por essa é que eu não esperava. Deveria apresentar minha música, da qual ainda ninguém sabia nada, diante de um grupo de entendedores e tocar violino juntamente com Kranzl! Envergonhado e agradecido, aceitei; e, já dois dias mais tarde, Kranzl me convidava para mandar-lhe a música. Dois dias depois, eu era convidado para ir à sua casa. Esse consagrado violinista era ainda jovem, uma verdadeirafigura de virtuose: esguio, esbelto e pálido.

- Quer dizer, enao - fói logo dizendo, as sim que entrei - que o senhor é o amigo de Muoth. Bem, vamos começar sem perda de tempo. Se ensaiarmos cuidadosamente, a coisa já irá depois de duas ou três vezes.

Assim dizendo, ofereceu-me uma cadeira, colocou na minha frente a segunda parte de violino, marcou o compasso e começou, com sua arcada leve e sensível, ao lado da qual eu me sentia pequenininho.

- Menos acanhamento, homem! - exclamou para mim, sem parar de tocar; e assim, executamos a minha sonata do princípio ao fim.

- Bem, a coisa vai, sim - disse. - É pena o senhor não ter um violino melhor. Mas não faz mal. O allegro, porém, vamos pegá-lo um pouco mais depressa agora, para não pensarem que se trata de uma marcha fúnebre. Vamos lá!

E lá fui eu, já de todo confiante, ao lado do virtuose, desfiando as notas da minha música. Meu modesto violino soava junto com o dele, valiosíssimo, como se isso estivesse na ordem natural das coisas; e eu estava pasmado de achar tão simples, e até ingênuo, um cavalheiro de aspecto tão distinto. Quando me senti animado e menos intimidado, perguntei-lhe, hesitante, sua opinião a respeito da minha composição.

- Isso deve perguntar a outro, meu caro senhor, não entendo muito do assunto. Um tanto esquisita ela é, mas o pessoal gosta disso. Se o Muoth a apreciar, o senhor poderá gabar-se de ter lavrado um tento; ele não é homem que engula qualquer coisa.

Deu-me conselhos sobre a maneira de tocar e mostrou-me alguns pontos onde se faziam necessárias modificações. Depois, ficou combinado novo ensaio para o dia seguinte e fui embora.

Foi um consolo para mim encontrar tamanha sinceridade e retidão nesse violinista. Se ele pertencia ao rol dos amigos de Muoth, eu também não deveria sair-me mal entre eles. É verdade que era um artista completo, e eu, um principiante sem grandes perspectivas. Magoava-me, apenas, que ninguém quisesse expressar-se com franqueza sobre o meu trabalho. O juízo mais duro ter-me-ia sido preferível àquelas bondosas frases que nada diziam.

Fazia, naqueles dias, um frio atroz; mal se podiam aquecer as casas. Meus companheiros iam patinar assiduamente, um ano se passara desde a excursão com Liddy. Não era aquele um período agradável para mim, e eu me regozijava com a noite em casa de Muoth, sem, aliás, esperar muito dela somente porque, havia tanto tempo, não vira mais amigos nem ocasiões festivas. Durante a noite anterior a 11 de janeiro, fui acordado por desusado barulho e pelo calor, quase assustador, do ar. Levantei-me e fui à janela, admirado de que não fizesse mais frio. E que chegara, de repente, o mento sul, e agora soprava com violência, úmido e morno; no alto, a trovoada. empurrava à sua frente, pelo céu, montes de grossas e pesadas nuvens, e por entre seus claros brilhava, estranhamente grande e deslumbrante, uma que outra solitária estrela. Os telhados já apresentavam manchas negras e, pela manhã, quando saí de casa, a neve toda tinha desaparecido. Ruas e rostos apresentavam-se estranhamente mudados e por toda parte flutuava no ar um prematuro sopro de primavera.

Passei o dia caminhando a esmo, numa espécie de febril embriaguez, devida, em parte, ao vento sul e ao ar mormacento e, em parte, à grande tensão e espera da noite. Não sei quantas vezes, em casa, peguei minha sonata, toquei alguns trechos e tornei a guardá-la. Ora a achava realmente bonita e dela tirava uma alegre ufania, ora me parecia, repentinamente, insignificante, fragmentária e obscura. Não teria podido suportar por muito tempo essa alternativa de exaltação e ansiedade. No fim, não sabia mais se o aproximar-se da noite me causava alegria ou medo.

Mas a noite veio, vesti minha sobrecasaca, peguei meu estojo do violino e saí à procura da residência de Muoth. Longe, numa rua desconhecida e desertado subúrbio, custei, na escuridão, a encontrar a casa. Achava-se isolada no meio de um jardim, que parecia descurado e em ruína; atrás do portão, que não estava fechado a chave, veio agressivo ao meu encontro um grande cachorro, que alguém, de uma janela, chamou de volta com um assobio e que me acompanhou rosnando até a entrada. Ali me recebeu uma velhinha de olhos assustadiços, que pegou minha capa e, através de um corredor fartamente iluminado, me levou para dentro.

O viohntsta Kranzl morava fidalgamente e eu esperara encontrar um certo luxo também na casa de Muoth, tido por homem rico. Ora, o que vi foram dependências, sem dúvida, amplas e espaçosas, grandes demais para um solteiro que pouco esta em casa; fora disso, porém, tudo era muito simples ou, mais precisamente, não simples, mas comum e em desordem. Os móveis eram, em parte, velhos e pareciam pertencer à casa., mas de permeio havia coisas novas, adquiridas sem um critério na escolha e colocadas de qualquer modo. Esplêndida era somente a iluminação. Nenhum gás estava aceso, mas, em seu lugar, luziam grande quantidade de velas em candelabros de estanho e, na sala principal, também uma espécie de lustre, um singelo aro de latão guarnecido de numerosas velas. Ali se encontrava, como peça mais importante, belíssimo piano de cauda.

Na sala para onde fui levado, alguns cavalheiros estavam conversando em pé. Pus de parte o meu estojo do violino, cumprimentei-os, alguns responderam com uma inclinação de cabeça e voltaram a entreter-se uns com os outros; e fiquei lá como um estranho. Até que, em certo momento, Kranzl, que estava no meio deles e, não me tinha notado, veio ter comigo, apertou minha mão e me apresentou aos seus conhecidos, dizendo:

- Este é o nosso novo violinista. Trouxe o violino? - depois, gritou para a sala ao lado: - Muoth, o rapaz da sonata está aqui.

Então, Heinrich Muoth entrou, cumprimentou-me muito amigavelmente e me levou para a sala do piano, de aspecto acolhedor e festivo, onde uma linda mulher, de vestido branco, me serviu um cálice de sherry. Era uma atriz do Teatro da Corte e, aliás, para minha grande surpresa, não via, entre os convidados, nenhum outro colega do dono da casa; ela era, também, a única senhora presente.

Tão logo eu, em parte por embaraço e em parte por instintiva necessidade de aquecer-me após a úmida caminhada noturna, esvaziara rapidamente o meu cálice, ela voltou a servir-me, sem dar ouvidos à minha recusa:

- Tome à vontade, não pode fazer-lhe mal. Olhe que somente depois da música teremos qualquer coisa para comer. O senhor trouxe o violino e a sonata, não?

Respondi secamente e senti-me confuso; também não sabia que relação tinha ela com Muoth. Parecia fazer as vezes de dona da casa e constituía verdadeiro regalo para os olhos. Também mais tarde sempre vi meu novo amigo manter relações somente com mulheres de beleza exemplar.

Nesse meio tempo, todos se haviam reunido na sala de música. Muoth armou uma estante, os presentes sentaram-se e logo depois lá estavaeu tocando junto com Kranzl. Mas eu tocava sem o sentir e tinha a impressão que de modo lamentável; e somente de vez em quando, como fugazes lampejos e por poucos segundos, perpassava por mim a consciência de que tocava com Kranzl e de que essa era a grande noite aguardada com tamanha ânsia e de que se achava ali reunida uma pequena sociedade de entendedores e músicos acostumados ao que havia de melhor, para os quais executávamos a minha sonata. Somente durante o rondó comecei a ouvir que Kranzl estava tocando maravilhosamente; contudo, eu continuava tão conturbado e alheio à música, que pensava incessantemente noutras coisas e, em certo momento, me ocorreu, de repente, que ainda não dera os parabéns a Mouth pelo seu aniversário.

Agora, a sonata estava terminada. A linda senhora levantou-se, apertou a mão a mim e a Kranzl e abriu a porta para uma saleta, onde nos aguardava uma mesa posta, com flores e garrafas de vinho.

- Até que enfim! - exclamou um dos cavalheiros. - Estou morrendo de fome.

A senhora admoestou-o: - O senhor é terrível! Que é que o autor vai pensar? - Que autor? Por acaso, está aqui? Ela me indicou. - Está sentado ali. O homem olhou para mim e riu. - Ora, podiam ter-me dito isso antes. Aliás, a música era bastante bonita. Só que, quando se está com fome...

Começamos a comer, e mal tínhamos terminado a sopa e fora servido o vinho branco, Kranzl fez um brinde ao dono da casa e ao seu aniversário. Mouth levantou-se, logo depois de todos beberem à sua saúde:

- Meu caro Kranzl, se você pensou que agora eu faria um discurso em resposta, enganou-se. E, por favor, não vamos mais pronunciar discurso nenhum. O único que talvez seja necessário, tomo-o eu a meu cargo. Agradeço ao nosso jovem amigo pela sua sonata, que acho extraordinária. Talvez o nosso Kranzl algum dia ficará contente, se receber alguma coisa dele para tocar, o que, aliás, deve fazer, porque compreendeu realmente a sonata. Bebo à saúde do compositor e a uma boa amizade com ele.

Tocaram meu copo com os seus, riram, gracejaram um pouco comigo e não tardou a formar-se uma alegria exaltada pelo bom vinho, à qual me abandonei sem qualquer constrangimento. Fazia muito que não me sentia tão contente e despreocupado; fazia, mais propriamente, um ano. Agora, risos e vinho, tinir de copos, confusão de vozes e a vista de uma linda e alegre mulher abriam, diante de mim, as portas; até ali obstruídas, do júbilo; e por elas deslizei suavemente, na jovialidade comunicativa das conversações fáceis e animadas e dos rostos sorridentes.

Cedo, todos se levantaram da mesa e voltaram para a sala de música, onde o festim, com vinhos e cigarros, se espalhou por todos os cantos. Um tranqüilo cavalheiro, que pouco tinha falado e cujo nome eu não sabia, veio para junto de mim e me disse algumas palavras amáveis sobre a sonata, que eu havia completamente esquecido. Depois, quem me chamou para conversar foi a atriz, e Muoth veio sentar-se ao nosso lado. Tornamos a beber à nossa boa amizade e, de, súbito, ele me disse, com seus olhos escuros e sorridentes a bilhar.

- Agora, já conheço a sua história. E para a formosa dama: - Ele partiu os ossos andando de trenó, por amor de uma linda mocinha.

E, novamente para mim: - Isso é bonito! No momento em que o amor é mais belo e ainda sem manchas, despencar pelo monte de cabeça para baixo vale bem o sacrifício de uma perna sadia.

Rindo, esvaziou seu copo e voltou imediatamente a parecer sombrio e pensativo, ao dizer:

- O que foi que o levou a compor? Contei, então, o que me sucedera com a música, desde a meninice, contei-lhe do último verão, da minha fuga para os montes e da canção e da sonata.

- Sim - disse ele lentamente. - Mas por que cargas-d'água isso lhe dá prazer? Não é possível lançar uma dor por escrito num papel e, desse modo, ver-se livre dela.

- E não é o que eu quero - rebati. - Eu não desejaria abrir mão e me ver livre de nada, a não ser da fraqueza e da falta de liberdade. Desejaria sentir que a dor e a alegria vêm da mesma fonte e são movimentos de uma mesma força e compassos de uma mesma música, cada qual bonito e necessário.

- Mas, homem - exclamou ele vivamente - afinal de contas, aleijou uma perna! Então pode esquecer isso compondo música?

- Não, por quê? Mudá-lo é que não posso mais. - E isso não o leva ao desespero? - Não me alegra, pode ter certeza, mas confio em que nunca me leve ao desespero.

- Vê-se que é um felizardo. É verdade que eu não trocaria uma perna por uma felicidade dessas. Então, é isso o que se passa com a sua música? Ouviu, Marion? Aí está a tal magia da arte, da qual tanto se fala nos livros.

Irritado, exclamei para ele: - Não fale assim! Também não canta somente pelo que lhe pagam, senão que encontra nisso uma alegria e um consolo. Por que, então, zomba de mim e de si mesmo? Eu acho isso cruel.

- Calma, calma! - interveio Marion. -Senão, ele se zanga. Muoth olhou para mim. - Eu não vou me zangar. Ele tem toda a razão. Mas o caso da perna não deve ser tão grave assim, senão a música não lhe seria consolo suficiente. É um homem contente com a vida e continuará assim, a despeito de qualquer coisa que possa acontecer-lhe. Eu é que não estava persuadido disso.

E pulou em pé, furioso: - E, também, não é verdade! O senhor compôs a Canção da Avalancha, isso não é nenhum consolo nem contentamento, mas desespero. Ouça, ouça só!

Estava, de súbito, sentado ao piano; fez-se silêncio na sala. Começou a tocar, atrapalhou-se, deixou então de parte a introdução e cantou a canção. Cantava-a, agora, de maneira diferente do que fizera em minha casa e percebi que a tinha repassado várias vezes. E, desta feita, a cantava com a voz cheia, aquela voz de barítono que eu conhecia do teatro e cujo poderio e apaixonado sentimento faziam esquecer a inexplicável dureza da canção.

- É isto o que este homem escreveu, como ele diz, por puro prazer, um homem que não sabe nada de desespero e está mais do que satisfeito com o seu destino - exclamou, apontando para mim; e eu tinha nos olhos lágrimas de raiva e de vergonha, via tudo turvo e vacilante e me levantei, para acabar com aquilo e ir embora.

Aí, uma mão delicada mas enérgica me segurou, forçando-me a sentar-me de novo na poltrona, e depois afagou de leve, carinhosamente, o meu cabelo, de tal Rodo que me senti percorrido por seus quentes eflúvios, cerrei olhos e reprimi as lágrimas. Quando, depois, olhei para cima, vi Heinrich Muoth já na minha frente; os demais pareciam não ter notado nem o meu gesto nem a cena toda e continuavam a beber vinho e a rir.

- Que criança! - disse Muoth em voz baixa. - Quando alguém escreveu uma canção dessas, está acima de tudo isso. Mas lastimo muito. E o que acontece: a gente gosta de uma pessoa e, mal se encontra em sua companhia, começa a brigar com ela.

- Está bem - disse eu, vexado. - Mas agora desejaria voltar para casa; o melhor da noite de hoje, já o tivemos.

- Bem, não quero forçá-lo. Nós, aqui, penso eu, ainda vamos nos embriagar. De modo que o senhor me fará a fineza de levar Marion e acompanhá-la a casa, de acordo? Ela mora no Innern Graben, isso não vai alongar o seu caminho.

A linda mulher olhou um momento para ele, observando-o, e depois me perguntou:

- O senhor me leva? - Com prazer - respondi, e me levantei. Despedimo-nos somente de Muoth. Na ante-sala um criado nos ajudou a pôr as capas, depois apareceu também a velhinha, sonolenta, e, com uma grande lanterna, nos iluminou o caminho através do jardim até o portão. O vento ainda soprava brando e tépido, carregando pelo céu grandes nuvens pretas e movendo os desnudos copados das árvores.

Eu não me atrevia a oferecer o braço a Marion, mas ela o pegou sem me pedir, sorveu o ar da noite atirando a cabeça para trás e depois ergueu os olhos para mim de modo indagador e familiar. Eu estava como se ainda sentisse sua leve mão sobre os meus cabelos; ela caminhava lentamente e parecia querer conduzir-me.

- Ali adiante há carros de praça - disse eu, pois me era penoso que ela devesse acomodar-se ao meu passo arrastado e sofria de caminhar capengando ao lado daquela cálida, viçosa e esbelta mulher.

- Não - objetou ela - vamos andar a pé mais uma rua. E esforçava-se por caminhar bem devagar; e, se dependesse somente do meu desejo, eu a teria estreitado ainda mais a mim. Naquelas condições, porém, a raiva e a dor me martirizavam. Soltei o seu braço do meu e, quando ela me olhou surpresa, disse:

- Assim não vai bem, preciso caminhar sozinho, a senhora me desculpe.

Ela caminhava ao meu lado, ansiosa e simpaticamente, e se não me faltassem um andar reto e expedito e a consciência da segurança física, teria dito e feito tudo ao contrário do que disse e fiz. Fiquei silencioso e ríspido, não havia outra coisa a fazer, senão as lágrimas me teriam vindo de novo aos olhos com a saudade de sentir a sua mão nos meus cabelos. Mais que tudo, teria preferido dobrar a primeira esquina e fugir. Não queria que ela caminhasse devagar, que me poupasse, que se compadecesse de mim.

- Ficou zangado com ele? - indagou, por fim. - Não. Foi tolo da minha parte. Eu ainda mal o conhecia. - Ele me causa pena, quando fica assim. Há certos dias em que tenho medo dele.

- A senhora também? - Eu, principalmente. Com isso, ele não fere ninguém mais do que a si mesmo. Chega, às vezes, a odiar-se.

- Ah, faz-se de interessante! - O que é que o senhor diz? - exclamou, espantada. - Digo que é um ator. Que necessidade tem de fazer chacota de si próprio e dos outros? Que necessidade tem de puxar pelas aventuras e pelos segredos de um estranho, para ridicularizá-lo, o patife!

A medida que falava, voltava-me a ira de antes; queria ofender e diminuir o homem que me magoara e que eu, infelizmente, invejava. Também a minha consideração pela linda dama se havia reduzido, pois ela tomava a sua defesa e se pronunciava abertamente por ele na minha presença. Já não era grave que ela tivesse aceitado a situação de ser a única mulher naquela alegre reunião, regada a vinho, de homens solteiros? Não estava acostumado a muita liberdade, nessas coisas; e já que me envergonhava de desejar, apesar de tudo, aquela formosa mulher, preferia, na minha exaltação, iniciar brigas a ter de sentir por mais tempo a sua compaixão. Que me julgasse grosseiro e fosse embora, seria melhor do que se continuasse ao meu lado tratando-me amigavelmente.

Ela, porém, pôs a mão sobre o meu braço. - Alto lá! - exclamou, com tanto calor que a sua voz me penetrou no coração. - Não diga mais nada. Que é que o senhor está fazendo? Ficou magoado com umas poucas palavras de Muoth, porque não teve habilidade ou coragem suficiente para defender-se; e, agora, que não está mais lá, cai em cima dele, diante de mim, com palavras ofensivas! Eu deveria é ir embora e deixá-lo sozinho.

- Por favor, disse apenas o que penso. - Não minta! O senhor aceitou o convite que ele lhe fez, tocou violino na casa dele, viu como ele gosta da sua música e se rejubilou e ficou animado com isso; e agora, que está irritado e não pode tolerar uma palavra que ele disse, sai-se com impropérios. O senhor não tem esse direito e prefiro atribuir isso ao vinho.

Pareceu-me que ela, repentinamente, percebera o que se passava comigo e que não era o vinho o que me amargurava; mudou de tom, sem que eu tivesse feito a menor tentativa de justificar-me. Fiquei indefeso.

- O senhor não conhece Muoth - prosseguiu. - Então, não o ouviu cantar? Assim é ele, violento e cruel, mas, na maioria das vezes, contra si próprio. É um pobre homem de gênio apaixonado e impulsivo, com muitas energias e sem nenhum alvo. Desejaria, a todo momento, tragar o mundo inteiro, e depois o que consegue ter e fazer é, sempre, apenas uma gota. Bebe e não fica nunca bêbado, tem mulheres e não está nunca feliz, canta maravilhosamente e não quer que o considerem um artista. Gosta de alguém e o magoa, faz como se desprezasse todos os que estão contentes, mas é por ódio contra si mesmo, porque ele não pode nunca estar contente. É um homem assim. E, com o senhor, mostrou-se amigável, tanto quanto está nas suas possibilidades.

Eu guardava obstinado silêncio. - Talvez o senhor não precise dele - recomeçou ela- deve ter outros amigos. Mas, quando vemos alguém sofrer e na dor se tornar impaciente, deveríamos poupá-lo e não levar-lhe isso a mal.

Sim, pensei eu, é o que se deveria fazer; e, gradualmente, à medida que aquele caminhar na noite esfriava minha irritação, muito embora a chaga continuasse aberta e a clamar por socorro, comecei a refletir cada vez mais nas palavras de Marion e nas minhas tolices daquela noite, a reconhecer-me como um pobre infeliz e a pedir silenciosamente perdão. E então, já que os efeitos do vinho se haviam dissipado, apoderou-se de mim desagradável sensação de enternecimento, sem que tivesse muito mais que dizer à linda mulher, que agora, ela própria emocionada e com o coração em dúvida, caminhava ao meu lado pelas ruas semi-escuras, onde, num ponto ou noutro das mortas e negras superfícies, o reflexo de um lampião subia repentinamente do solo úmido. Ocorreu-me que deixara meu violino na casa de Muoth, e tornei a despertar para o pasmo e o terror a respeito de tudo. Quantas coisas se haviam transformado 'nessa noite! Aquele Heinrich Muoth e o violinista Kranzl e, novamente, a maravilhosa Marion, que fazia o papel de rainha, todos tinham descido dos seus pedestais. A sua olímpica mesa não estavam sentados nem deuses nem bem-aventurados, mas pobres seres humanos: um baixo e engraçado, outro angustiado e vaidoso, Muoth infeliz e febril na sua insensata autoflagelação, a importante atriz, pequena e pobre, como amante de um gozador violento e sem alegrias e, ainda assim, tranqüila, bondosa e sabedora do que é o sofrimento. Eu próprio parecia mudado, não era mais um homem simples, mas um ser como todos eles; tinha visto em cada qual traços fraternais e traços hostis, não podia amar este e detestar aquele, envergonhava-me da minha escassa compreensão e sentia, pela primeira vez na minha despreocupada juventude, que não se podia passar pela vida e pelos homens de modo tão simples, aqui com ódio, lá com amor, aqui com veneração, lá com desprezo, mas que tudo morava junto, "uma coisa de mistura com a outra e ao lado da outra, mal separadas e, por momentos, mal diferençáveis. Olhava para a mulher que caminhava ao meu lado e que, agora, também silenciara de todo, como se também ela encontrasse no seu coração várias coisas diferentes de como as tinha pensado e dito.

No fim, chegamos diante da sua casa, ela me estendeu a mão, que segurei de leve e beijei.

- Durma bem! - disse-me em tom amigável, mas sem sorrir. E foi mesmo o que fiz. Rumei para casa e para a cama, e, não sei como, peguei imediatamente no sono e dormi ainda um bocado pela manhã adentro. Depois, levantei-me, como o polichinelo na caixa de surpresa, fiz minha ginástica, lavei-me e apanhei a roupa; e só quando vi a sobrecasaca pendurada na cadeira e dei pela falta do meu estojo do violino, é que me lembrei da véspera. Nesse meio tempo, dormira bastante, estava de humor diferente e não conseguia estabelecer qualquer elo de continuidade com os pensamentos da noite; ficava-me apenas a recordação de acontecimentos estranhamente diminutos, de ação e efeito unicamente interiores, e o pasmo de verificar que eu ainda estava ali, inalterado, o mesmo de sempre.

Queria trabalhar, mas não tinha o violino. Assim, saí, de início ainda indeciso, depois decididamente na direção da véspera; e cheguei à casa de Muoth. Ainda no portão, já o ouvi cantar; o cachorro queria agredir-me e foi contido a custo pela velha mulher, que saíra imediatamente. Mandou-mela entrar, e eu disse que desejava, somente apanhar o violino sem incomodar o dono da casa. O estojo estava na ante-sala, e o violino dentro dele; também a música tinha sido posta junto. Isso devia ser obra de Muoth, ele tinha pensado em mim. No quarto ao lado, cantava em voz alta; eu o ouvia caminhar em passos macios, como com solas de feltro, batendo de vez em quando uma nota no piano. Sua voz soava fresca e clara, mais controlada do que em tantas vezes que a ouvira noteatro; cantava um papel que eu não conhecia, repetindo-se amiúde, enquanto andava rapidamente de um lado para o outro do quarto.

Eu apanhara minhas coisas e queria ir embora. Estava tranqüilo e a recordação da véspera não me causava quase mais nenhuma emoção. Mas tinha curiosidade de vê-lo, de saber se ele também havia mudado. Aproximei-me e, sem o querer de todo, estava de repente segurando a maçaneta, que abaixara, e dava comigo em pé na porta aberta.

Continuando a cantar, Muoth voltou-se. Estava em fralda de camisa, uma camisa muito comprida, branca e fina, e tinha um ar fresco e bem-disposto, como se tivesse acabado de tomar banho. Assustei-me, mas tarde demais, de havê-lo surpreendido assim. Mas ele não pareceu nem admirado de que eu tivesse entrado sem bater nem ter noção de que não estava vestido. Como se tudo fosse a coisa mais natural do mundo, estendeu-me a mão, perguntando:

- Já tomou o seu desjejum? Depois que eu respondi que sim, foi sentar-se ao piano. - É este papel é que eu devo cantar! Ouça só a ária! Já ouviu salada igual? Vai ser representada no Real Teatro da Corte, com Blattner e Duelli! Isso, porém, não interessa ao senhor e, aliás, a mim tampouco. Como está? Descansou bem? Parecia esgotado, ontem, quando saiu daqui. E, além disso, estava zangado comigo. Bem, não vamos recomeçar logo com as bobagens.

E imediatamente depois, sem que eu pudesse dizer nada de permeio:

- Sabe de uma coisa? O Kranzl é um sujeito insuportável. Não quer tocar a sua sonata.

- Mas ele a tocou ontem. - Quero dizer, em concertos. Tentei empurrar-lhe a obra à força, mas ele recusa. Seria bom se, no próximo inverno, ela fosse incluída no programa de uma vesperal. O Kranzl não é tão estúpido, note bem, mas preguiçoso. Vive tocando essas músicas russas, de algum "insky" ou "owsky", e não gosta de aprender coisas novas.

- Não creio - comecei, então - que a sonata seja apropriada para um concerto, nunca tive essa pretensão. Tecnicamente, ainda deixa muito a desejar.

- Mas isso não tem importância! Lá vêm vocês com sua consciência de artistas! Não somos professores, e sem dúvida há coisas piores que são tocadas por aí, inclusive pelo próprio Kranzl. Mas tenho outra idéia. O senhor deve me dar a canção; e não demore a escrever outras! Na primavera, vou embora daqui. Já comuniquei minha despedida e vou tomar um longo período de férias. Durante esse tempo, gostaria de dar alguns recitais, mas coisas novas, não com Schubert e Wolff e Loewe e o resto que se ouve todas as noites; coisas novas e desconhecidas, algumas delas pelo menos, tais como a Canção da Avalancha. Que diz a isso?

A perspectiva de ver minhas canções cantadas em público por Muoth era, para mim, uma porta para o futuro, por cuja fresta eu avistava um mundo de esplendores. Justamente por isso, queria ser cauteloso e não abusar da amabilidade de Muoth nem, porém, contrair sobejas obrigações para com ele. Parecia-me que ele queria atrair-me a si com demasiada violência, deslumbrar-me e, talvez, de um modo qualquer, dominar-me. Por este motivo hesitei em aceitar.

- Vou pensar nisso - disse. - Vejo que o senhor é muito bondoso comigo, mas não posso prometer nada. Estou no fim dos meus estudos e agora devo pensar em conseguir boas notas. Que algum dia eu possa apresentar-me como compositor, não é coisa certa; por enquanto sou um violinista e preciso logo arranjar um emprego.

- Claro que o senhor pode fazer isso tudo. O que não impede que, vez por outra, lhe venha à mente uma canção como essa, que então dará para mim, não é?

- Bem, isso, sim. Não sei, porém, por que o senhor se interessa tanto por mim.

- Tem medo de mim? Gosto da sua música, simplesmente, e desejaria cantar algumas coisas suas, das quais me prometo algum resultado; é puro egoísmo.

- Está bem. Mas por que, então, o senhor fala comigo como ontem?

- Ah, ainda está ofendido? Mas que foi, exatamente, que eu disse? De modo preciso, não sei mais. Em todo caso, não queria tratá-lo mal, como parece que fiz. Afinal, o senhor pode perfeitamente defender-se! Cada qual fala e procede como é e como deve, e temos de levar em conta o modo de ser dos outros.

- É o que também acho, mas o senhor faz o contrário. Primeiro, me provoca e não toma em consideração o que eu digo. Depois, puxa por um assunto no qual eu próprio não gosto de pensar e que constitui segredo meu, e o lança contra mim, como uma censura. O senhor zomba até da minha perna dura!

Heinrich Muoth disse lentamente: - Bem... o fato, justamente, é que as pessoas não são iguais. Uma fica furiosa quando se dizem verdades, outra não suporta ouvir certas frases. O senhor se irritou porque não o tratei como se fosse um diretor de teatro e eu me irritei porque o senhor se escondia de mim e pretendia impingir-me os chavões sobre o consolo da arte.

- Eu disse exatamente o que pensava, só que não estou acostumado a falar dessas coisas. E das outras também não quero falar. O que se passa comigo e se estou triste ou desesperado e de que maneira encaro a minha perna e a minha manqueira, isso quero guardar para mim e não admito que se pretenda obrigar-me a dizê-lo ou que o tornem objeto de zombaria.

Ele se levantou. - Ora, mas ainda não tenho nada em cima do corpo: vou providenciar imediatamente. É uma pessoa direita, o que eu, infelizmente, não sou. Não vamos mais falar nisso. Então, ainda não percebeu que gosto do senhor? Espere um pouco aqui, sente-se ao piano, até eu acabar de vestir-me. Não canta?... Não? Bem, é só questão de minutos.

Com efeito, voltou logo, vestido, do quarto ao lado. - Agora, vamos para a cidade; o senhor almoça lá comigo- disse, em tom satisfeito.

Não perguntou se me agradava ou não; disse: "Vamos", e nós fomos.

Porque, por mais que seus modos me irritassem, também me infundiam sujeição: ele era o mais forte. Ao lado disso, revelava, na conversação e no comportamento, maneiras de criança caprichosa, que, amiúde, me encantavam e me reconciliavam totalmente com ele.

Desde esse dia, vi Muoth reiteradamente. Ele me mandava, com freqüência, entradas para a Ópera, pedia-me, às vezes, que fosse tocar violino na sua casa, e se nem tudo nele era do meu agrado, também ele tolerava de mim não pouco, que não era do dele. Nasceu, assim, uma amizade, a minha única de então, e comecei a pensar quase com temor no tempo em que ele não se encontraria mais ali. Muoth tinha realmente se despedido do teatro e, não obstante alguns esforços e concessões feitas para retê-lo,, não voltou atrás. Por vezes, aludia a uma oferta, que talvez recebesse no outono, por parte de um grande teatro; mas era assunto no qual, no momento, não se tocava. Nesse meio tempo, chegou a primavera.

Certa noite, estive em casa de Muoth para a última reunião masculina. Erguemos um brinde a nosso próximo encontro e ao futuro; dessa feita, não estava presente nenhuma mulher. Ao alvorecer, Muoth nos acompanhou até o portão do jardim, fez-nos um sinal de adeus com a mão e, na neblina da madrugada, voltou tiritando para a casa já meio desocupada, acompanhado, aos pulos e latidos, pelo cachorro. Eu, porém, tinha a impressão de que ali terminava uma fase da minha vida e experiência; pensava conhecer Muoth o bastante para estar certo de que dentro em breve nos esqueceria a todos, e somente agora sentia, de modo claro e indubitável, que me havia realmente afeiçoado àquele homem moreno, de temperamento genioso e autoritário.

Chegara também para mim o momento das despedidas. Fiz minhas derradeiras visitas a lugares e pessoas das quais tencionava guardar boa recordação e subi também, mais uma vez, à senda elevada, de onde olhei para a encosta, embaixo, que, de qualquer modo, não teria esquecido.

E parti para casa, ao encontro de um futuro desconhecido e, provavelmente, tedioso. Não tinha um emprego, não podia dar recitais por minha própria conta e, na cidade natal, nada me esperava, a não ser, para meu terror, alguns alunos, aos quais devia dar aulas de violino. É certo que me esperavam também meus pais, que eram bastante ricos para que eu pudesse não ter preocupações materiais, e além disso suficientemente bondosos e delicados para não insistir com perguntas sobre o que agora me tornaria. Mas que eu não resistiria por muito tempo, isso sabia de antemão.

Dos dez meses que então passei em casa, durante os quais dei aulas a três alunos e, apesar de tudo, não fui absolutamente infeliz, nada saberia relatar. Ali também viviam seres humanos, e ali também todos os dias acontecia alguma coisa; mas a minha relação com tudo isso não passou de uma indiferença amavelmente cortês. Nada me atingia o coração, nada despertava meu interesse. Em compensação, vivi silenciosas, solitárias e estranhas horas de música, nas quais a minha vida toda parecia petrificada e estranha a mim mesmo, deixando-me apenas uma fome de música que, durante as aulas de violino, freqüentemente me atormentava e certamente fez de mim um mau professor. Depois, no entanto, de cumprido o meu dever ou quando, com ardis e mentiras, conseguia furtar-me às aulas,-mergulhava a fundo em sonhos esplendorosamente irreais e trabalhava, como em estado sonambúlico, naconstrução de arrojados edifícios de notas, erguia atrevidas torres no ar, abobadava cúpulas de sombras profundas e fazia aéreos ornatos subirem, de maneira leve, jocosa e prazenteira, como bolhas de sabão.

Enquanto eu perambulava num estado de torpor e alheamento, o que afastava velhos conhecidos e preocupava meus pais, voltou de novo a jorrar dentro de mim, com ímpeto e abundância ainda maiores do que um ano antes, nas montanhas, o soterrado manancial; os frutos de anos vividos como em sonho, trabalhosos e, aparentemente, perdidos, tinham invisivelmente amadurecido e agora caíam leves e silenciosos, um depois do outro, tinham aroma e brilho e me envolviam com uma riqueza quase dolorosa, de que eu me apossava não sem titubeios e desconfiança. Começou com uma canção, à qual se seguiu um quarteto de cordas; e quando, dentro de poucos meses, se lhes haviam acrescentado mais algumas canções e vários esboços de peças sinfônicas, tive a sensação de que tudo aquilo era somente um começo e uma tentativa, e, no íntimo, pensava numa grande sinfonia, e nas horas mais ousadas, já, até, numa ópera! No meio tempo, escrevia, de vez em quando, cartas humildes a regentes de orquestra e teatros, juntando as recomendações dos meus professores e fazendo-me modestamente lembrado para a primeira vaga de violinista. Chegavam respostas curtas e corteses, que começavam "Mui prezado senhor"; às vezes não chegava resposta alguma, mas um emprego é que não vinha. Então, eu me sentia amesquinhado e me encolhia, durante um ou dois dias, dando aulas com todo o zelo e redigindo novas cartas humildes. Acontecia, porém, que, logo depois, me acudia à lembrança que eu continuava com a cabeça cheia de músicas ainda por escrever, e, mal recomeçava, lá iam as cartas e os teatros e as orquestras e os regentes e os mui prezados senhores despenhar-se num até nunca mais; e eu voltava a encontrar-me só, atarefadíssimo e dando-me por satisfeito com isso.

Bem, essas não são recordações às quais possamos referir-nos como às outras. O que um homem é para si e o que vive interiormente, de que maneira se torna outro e cresce e adoece e morre, tudo isso é inenarrável. A vida do homem laborioso é enfadonha; interessantes são os modos de existência dos vagabundos. Por mais rico que aquele tempo permaneça na minha recordação, nada posso dizer a seu respeito, porque eu estava fora de toda a convivência humana e social. Só uma vez e por um momento, tornei a aproximar-me de um ser humano, que não devo esquecer. Foi o preceptor Lohe.

Certo dia, já no fim do outono, fui passear. Na parte sul da cidade, surgira modesto bairro de pequenas casas com singelos jardins, habitadas por gente que vivia de magras poupanças ou pequenas rendas. Um jovem e hábil arquiteto construíra ali várias casas graciosas que eu queria ver.

Era uma tarde quente, num ponto ou noutro fazia-se a colheita das nozes amadurecidas tardiamente, os jardins e as pequenas e novas casas jaziam alegremente ao sol. Gostei muito daquelas construções airosas e simples e contemplei-as com o interesse superficialmente satisfeito que têm por essas coisas as pessoas jovens, das quais o pensamento de uma casa, um lar, uma família, o repouso e a cessação do trabalho está ainda longe. A pacífica rua de jardinzinhos causava uma impressão agradável e reconfortante; eu a percorri vagarosamente e, caminhando, veio-me a idéia de ler os nomes dos proprietários das casas nas pequenas e polidas chapas de latão dos portões dos jardins.

Numa delas estava escrito "Konrad Lohe", e ao lê-lo tive a impressão de um nome conhecido. Parei, refleti e lembrei-me de que um dos meus professores do curso ginasial se chamava assim. E, durante um segundo, o velho tempo veio à tona, olhando admirado para mim e fazendo rodopiar, em efêmeras vagas, um enxame de rostos de professores e companheiros, de alcunhas e de episódios. E, enquanto eu ali permanecia olhando para a chapinha de latão e sorrindo, um homem surgiu de trás de um pé de groselha, onde trabalhava agachado, e se acercou de mim, fitando-me no rosto.

- O senhor deseja alguma coisa? - perguntou; e era Lohe, o preceptor Lohe, a quem chamávamos Lohengrin.

- Para dizer a verdade, não - respondi, tirando o chapéu. - Não sabia que o senhor morava aqui. Já fui seu aluno.

Fitoú-me com maior atenção e seu olhar foi descendo por mim até a bengala; aí, lembrou-se e disse o meu nome. Não me tinha reconhecido pelo rosto, mas pela perna tesa, já que, naturalmente, estava a par do meu acidente. Então convidou-me para entrar.

Estava em mangas de camisa e trazia na frente, amarrado, um avental verde de jardineiro; não parecia de nenhum modo envelhecido, tinha um aspecto esplendidamente jovial. Caminhamos ao acaso no pequeno e bem cuidado jardim; depois, levou-me para uma varanda aberta, onde nos sentamos.

- Bem, 'eu nunca o teria reconhecido - disse, sincero. - Esperemos que o senhor guarde de mim, daquele tempo, uma boa recordação.

- Não de todo. Certa vez o senhor me puniu por uma coisa que eu não tinha feito e tachou de mentiras todos os meus protestos. Foi na quarta série.

- Não deve guardar-me rancor por isso; também o lastimo. Mas é o que freqüentemente acontece a todos os professores, com a melhor boa vontade deste mundo: alguma coisa não corre como deve e se comete facilmente uma injustiça. Conheço casos mais graves. Em parte foi por isso que abandonei a carreira.

- O senhor deixou o ensino? - Há muito tempo. Adoeci e, depois que sarei, minhas opiniões tinham mudado de tal maneira, que me despedi. Eu me esforçara por ser um bom professor, mas não o era; o bom professor já nasce bom. Assim desisti, e desde então me sinto muito bem.

Isso era visível no seu aspecto. Fiz outras perguntas, mas ele queria ouvir a minha história, cujo relato não demorou muito. Não lhe agradou inteiramente que eu me tivesse tornado músico; em compensação, manifestou pela minha desgraça uma compaixão amigável e cordial, que não me magoou. Procurou cautelosamente indagar de que modo eu conseguia consolar-me e não ficou satisfeito com as minhas respostas meio evasivas. Com misteriosos ademanes, hesitante e impaciente e recorrendo a tímidos rodeios, me fez saber que ele conhecia uma consolação, uma sabedoria perfeita, ao alcance de todos os que a procurassem seriamente.

- Já sei - disse eu - é a Bíblia. O senhor Lohe teve um sorriso esperto. - A Bíblia é ótima, é um caminho para a sabedoria. Mas não é a própria sabedoria.

- E onde se acha a própria sabedoria? - Isso o senhor, se quiser, encontrará facilmente. Vou darlhe alguma coisa para ler; ela lhe fornecerá os rudimentos. O senhor já ouviu falar na doutrina do Karma?

- Do Karma? Não. Que vem a ser isso? - O senhor verá, espere só! Saiu correndo e ficou ausente uns momentos, enquanto eu, admirado e em expectativa, permanecia sentado, olhando embaixo, no jardim, onde algumas árvores frutíferas anãs se achavam dispostas em irrepreensíveis fileiras. Pouco depois, Lohe voltava correndo: Olhou radiante para mim e estendeu-me um livrinho, o qual, no meio de misteriosos desenhos, trazia o título Catecismo Teosófico para Principiantes.

- Leve-o! - pediu-me. - Pode guardá-lo e, se quiser se aprofundar na matéria, não terei dificuldade em emprestar-lhe outros. Isto aqui é apenas a introdução. É a essa doutrina que devo tudo. Graças a ela, sarei de corpo e de espírito e faço votos de que o mesmo venha a dar-se com o senhor.

Peguei o livrinho e guardei-o no bolso. O homem me acompanhou jardim abaixo até a rua e, despedindo-se amigavelmente, pediu-me que voltasse breve. Olhei para o seu rosto, que era bondoso e alegre, e pensei que não poderia fazer-me nenhum mal tentar, uma vez, o caminho dessa felicidade. Assim, fui para casa, com o livrinho no bolso e a curiosidade do que poderia ser o primeiro passo nessa vereda para a bem-aventurança.

Mas dei esse passo somente depois de alguns dias. Na volta, as notas tornaram a atrair-me poderosamente e eu me arrojei para o meio delas, flutuei na música, escrevendo e tocando, até que, por essa vez, a tempestade amainasse e eu, passada a embriaguez, voltasse à vida de todos os dias. Então, senti imediatamente a necessidade de estudar a nova doutrina e me entreguei ao livrinho, do qual julgava poder dar conta rapidamente.

Mas não foi tão fácil. O livrinho crescia-me nas mãos, até, no fim, tornar-se intransponível. Começava com uma bonita e atraente introdução a respeito dos muitos caminhos da sabedoria, cada um dos quais tem sua validade, e sobre a fraternidade teosófica daqueles que, livremente, almejam atingiro saber e a perfeição interior e para os quais toda fé é sagrada e toda trilha para a luz, bem-vinda. Logo depois, vinha uma cosmogonia, que não compreendi; uma divisão do mundo em diferentes "planícies" e da História em épocas curiosas e a mim desconhecidas e nas quais aparecia, também, com uma certa importância, a submersa terra da Atlântida. Deixei provisoriamente isso de lado e passei a outro capítulo, onde era exposta a doutrina da reencarnação, que entendi melhor. No entanto, não me ficou bem claro se tudo aquilo pretendia ser-uma mitologia e fábula poética ou uma verdade literal. O último parecia ser o caso, o que não me persuadiu. Aí, vinha a doutrina do Karma. Revelou-se-me como uma adoração religiosa da lei de causalidade, que não me desagradou. E assim continuava. Não tardei a compreender muito bem que essa doutrina toda poderia constituir um consolo e um tesouro somente para quem, possivelmente, a aceitasse ao pé da letra e de modo efetivo e nela sinceramente acreditasse. Quem, como eu, a via apenas como a tentativa de uma explicação mitológica do mundo, como um símbolo, em parte bonito e em parte abstruso, esse podia, sem dúvida, dela tirar conhecimentos e votar-lhe respeito, mas não receber vida e força. Talvez fosse possível ser teósofo com espírito e dignidade; mas aquela consolação definitiva só acenava aos que estivessem imbuídos, sem muito espírito, de fé ingênua. No momento, não era nada para mim.

Apesar disso, fui repetidas vezes visitar o preceptor, que, doze anos antes, martirizara a mim e a si mesmo com o grego, e que agora, de outro modo, mas igualmente malsucedido, desejava ser meu mestre e guia. Não nos tornamos amigos, mas eu tinha prazer em ir à sua casa; foi ele, durante algum tempo, o único ser com quem eu me abria sobre problemas importantes da minha existência. Fiz aí, sem dúvida, a experiência de que tais conversas não têm o menor valor e levam apenas, no melhor dos casos, a sensatas máximas de vida; mas esse homem crente, a quem a Igreja e a Ciência tinham deixado frio e que, agora, na segunda metade da existência, experimentava a paz e a magnificência da religião, graças à ingênua fé numa doutrina de lucubrações curiosas e alambicadas, me comovia e era, para mim, motivo, quase, de veneração.

Não obstante todos os esforços, esse caminho permaneceume, até hoje, impraticável, e tenho pelos homens devotos, que se firmaram e encontraram plena satisfação em qualquer fé, uma inclinação admirativa, que eles não podem retribuir-me.

IV

DURANTE o curto período das minhas visitas ao devoto teósofo e fruticultor, recebi certo dia um vale postal, de origem para mim obscura. Seu remetente era um conhecido agente de concertos da Alemanha do Norte, com o qual nunca tivera quaisquer relações. A pergunta que dirigi, responderam-me que a importância fora enviada por ordem do Sr. Heinrich Muoth e representava minha remuneração pelo fato de Muoth ter cantado, em seis recitais, uma canção composta por mim.

Escrevi eno a Muoth, agradecendo e pedindo pormenores. Mais que tudo, teria gostado de saber de que modo a canção fora recebida nos recitais. Das viagens artísticas de Muoth, eu já tinha ouvido e, uma ou duas vezes, lido notícias de jornais, mas nestas não se falava da minha canção. Na carta, com as minúcias do solitário, dei-lhe informes sobre a minha vida e o meu trabalho; juntei, também, uma das novas canções. Depois esperei duas, três, quatro semanas por uma resposta, e depois, como esta não chegasse, voltei a esquecer a história toda. Ainda continuei a escrever, quase todos os dias, a minha música, que brotava de mim como que em sonho. Nos intervalos, porém, me sentia vacilante e descontente, dar as aulas custava-me terrível esforço e tinha a impressão precisa de que não agüentaria mais aquilo por muito tempo.

Foi para mim, portanto, como se me libertassem de um sortilégio quando, finalmente, chegou uma carta de Muoth. Escrevia ele:

"Meu caro Sr. Kuhn.

Não sou muito de escrever, por isso deixei sem resposta a sua carta, já que não sabia bem o que devesse dizer. Agora, no entanto, posso vir com propostas concretas. Estou contratado pelo Teatro de Ópera, aqui em R., e seria ótimo se o senhor também viesse. Poderia, inicialmente, empregar-se como segundo-violino em nosso teatro; o regente da orquestra é homem sensato e esclarecido, ainda que um grosseirão. Talvez, também, se apresente a ocasião de se tocar aqui, dentro em breve, alguma coisa sua; temos excelente música de câmara. A respeito das canções, também haverià algumas coisas a dizer-se; entre outras, que um editor daqui quer tê-las. Mas escrever é uma tal maçada; venha o senhor mesmo! Mas depressa, e telegrafe, é uNgente.

Cordialmente,

Muoth"

Lá estava eu, de súbito arrancado da minha solidão e da minha inutilidade e novamente imerso na correnteza da vida; tinha esperanças e ansiedades, temia e me regozijava. Não houve nada que me segurasse; e meus pais ficaram contentes de me verem tomar um rumo e dar um primeiro e decisivo passo na vida. Telegrafei sem perda de tempo e, três dias mais tarde, já estava eu em R. e na companhia de Muoth.

Fora hospedar-me num hotel, tinha ido à sua procura, mas sem o encontrar. Eis que ele veio ao meu hotel e estava repentinamente diante de mim. Apertou minha mão, não perguntou nada, não contou nada e não compartilhou minimamente da minha emoção. Era homem acostumado a deixar-se levar pelos acontecimentos e tomar sempre a sério e viver com intensidade apenas o momento presente. Mal me deu tempo de mudar de roupa e me levou à casa do maestro Rõssler, o regente da orquestra.

- Aqui está o Kuhn - disse.

Rõssler cumprimentou-me com um rápido sinal da cabeça: - Muito prazer. Que deseja? - Ora essa! - Exclamou Muoth. - É o violinista! O regente olhou para mim surpreso, voltou-se de novo para o cantor e declarou, de modo grosseiro:

- Disso você não me falou nada, que o cavalheiro arrasta de uma perna. Eu preciso de gente com os membros em ordem.

Senti o sangue subir-me ao rosto; Muoth, porém, permaneceu calmo. Limitou-se a sorrir.

- Será que ele precisa dançar, Rõssler? Eu diria que ele deve tocar violino. Se não souber, teremos de mandá-lo embora de volta. Mas primeiro vamos ver como se sai.

- Pois muito bem, senhores. Sr. Kuhn, venha ver-me amanhã de manhã, digamos, depois das nove. Aqui em casa. Ficou zangado com o que eu falei? Ora, o Muoth, também, podia dizerme isso antes. Está bem, veremos. Até amanhã.

Ao sairei os de lá, censurei Muoth. Ele deu de ombros e explicou que, se tivesse falado logo de início do meu defeito físico, dificilmente o regente concordaria em mandar-me vir; agora, no entanto, eu já estava lá, e se Rõssler ficasse contente comigo, pouco que fosse, eu não tardaria a conhecê-lo por aspectos mais favoráveis.

- Mas senhor, afinal, como pôde recomendar-me? - perguntei. - Não sabe absolutamente se estou à altura do posto.

- Bem, isso é problema seu. Pensei que iria dar certo, e vai dar. O senhor é tão tímido e modesto, que não chegaria nunca a nada, se, de vez em quando, não lhe dessem um empurrão. Este foi um; e, agora, trate de cambalear adiante! Medo, não precisa ter. O seu antecessor não valia muito.

Passamos a noite na sua casa. Aqui, também, ele tinha alugado alguns cômodos bem forma cidade, no meio de um jardim e do silêncio. Seu enorme cachorro veio pulando ao meu encontro e, mal estávamos sentados e começávamos a nos animar, tocou a campainha e chegou uma lindíssima mulher, de elevado porte, que nos fez companhia. Era a mesma atmosfera de antigamente e a sua amante, outra vez, era uma figura principesca, de uma beleza impecável. Ele parecia consumir mulheres bonitas com a maior naturalidade; e eu olhava para a nova bela com interesse e aquele acanhamento que sempre me tomou na presença de mulheres amorosas e ao qual não faltava uma pontinha de inveja, pois, com a minha perna defeituosa, continuava a não ser amado e sem esperanças de- o ser algum dia.

Como antigamente, também dessa vez bebeu-se bem e muito, na casa de Muoth; ele nos tiranizava com a sua jovialidade descomedida e, no fundo, mórbida, e ainda assim nos arrastava. Cantou maravilhosamente, inclusive uma canção minha; e todos os três nos tornamos amigos, nos animamos e estabelecemos intimidade entre nós, vimo-nos mutuamente com olhos sem disfarces e permanecemos juntos enquanto durou a animação. A esbelta mulher, que se chamava Lotte, cativou-me com a sua meiga afabilidade. Já não era a primeira vez, agora, que uma mulher bonita e apaixonada me demonstrava compaixão e me tratava com estranha confiança; também dessa feita isso me causou, ao mesmo tempo, prazer e dor, mas eu já conhecia um pouco esse estribilho e não o levei muito a sério. Ainda me aconteceria outras vezes que uma mulher apaixonada me dispensasse tratamento especialmente amigável. Todas elas tinham-me em conta de incapaz quer de amor, quer de ciúme; acrescentando-se a isso a maldita compaixão, confiavam em mim com uma familiaridade meio maternal.

Infelizmente, eu não tinha ainda a menor prática desse tipo de relação e não podia olhar de perto um amor feliz sem pensar um pouco em mim mesmo e em que também gostaria, uma vez, de fazer uma experiência semelhante. Isso reduzia, de algum modo, a minha alegria; ainda assim, foi uma noite agradável, aquela passada junto da linda mulher docilmente apaixonada e do vigoroso, brusco homem de olhos pretos, que gostava de mim e se preocupava comigo, e que, no entanto, não sabia demonstrar-me seu afeto senão da mesma maneira, desabrida e de humor variável, com que mostrava o seu amor às mulheres.

Quando, antes de nos despedirmos, erguemos para um brinde o nosso último copo, ele inclinou de leve a cabeça, dizendo:

- O que me caberia agora seria oferecer-lhe que nos tuteássemos, não é mesmo? E o faria com prazer. Mas deixemos tudo no pé em que está; as coisas irão bem também assim. No passado, sabe?, eu tratava logo por tu qualquer um de quem gostasse; mas isso não é bom e, menos ainda, entre colegas. No fim, briguei com todos eles.

Dessa vez não tive a doce-amarga ventura de poder acompanhar para casa a amante do meu amigo; ela ficou por lá e preferi que fosse assim. A viagem, a visita ao regente da orquestra, a expectativa pelo dia seguinte e a nova convivência com Muoth, tudo me fizera bem. Somente agora eu via quão embrutecido, misantrópico e esquecido de tudo me havia tornado, durante os anos da longa e inútil espera na solidão; e, com satisfação e salutar impaciência, sentia-me, finalmente, de novo animado e atuante entre seres humanos, sentia-me, outra vez, pertencer ao mundo.

No dia seguinte, de manhã cedo, lá estava eu na casa do regente Rõssler. Encontrei-o de chambre e despenteado, mas mais amável do que na véspera; me deu as boas-vindas e convidou-me a tocar, colocando à minha frente uma música manuscrita e sentando-se ao piano. Toquei o mais bravamente possível, se bem que a leitura das notas, mal escritas, me custasse algum esforço. Assim que terminei, ele não disse palavra, mas pôs na estante outra folha, que eu devia tocar sem acompanhamento, e, depois, uma terceira.

- Está bem - disse. - O senhor precisa acostumar-se mais um pouco à leitura das notas; nem sempre elas estão escritas como deviam. Venha hoje à noite ao teatro, eu lhe dou um lugar na orquestra; assim, o senhor poderá tocar a sua parte ao lado daquele que, na falta de outro, ocupou provisoriamente o posto até aqui. Vão fica} um pouco apertados. Examine bem a música, antes; hoje não temos ensaio. Vou dar um bilhete para o senhor, depois das onze, poder ir ao teatro e apanhar a música.

Eu não sabia direito a quantas andava; via, porém, que o homem não gostava de perguntas e fui-me embora. No teatro, ninguém queria saber da existência da música nem de me dar ouvidos. E eu, que não estava ainda acostumado aos hábitos da casa, fiquei desconcertado. Depois, mandei um recado urgente a Muoth, que veio; e logo tudo entrou maravilhosamente nos eixos. E, à noite, toquei pela primeira vez no teatro, onde me vi atentamente observado pelo regente. No dia seguinte, deram-me o emprego.

Tão singular é o ser humano, que, no meio da nova existência e com os meus desejos realizados, eu era estranhamente surpreendido, às vezes, por uma nostalgia fugaz, sentida apenas de leve e veladamente, da solidão e, até, do tédio e dos dias vazios. Nesses momentos, o tempo passado na cidade natal, de cuja deprimente monotonia agradecia haver escapado, aparecia-me como qualquer coisa altamente desejável. Principalmente, porém, eu pensava, com verdadeira saudade, nas semanas vividas, dois anos antes, nas montanhas. Parecia-me sentir que eu não estava destinado, na vida, ao bem-estar e à felicidade, mas, sim, ao sofrimento e a derrota, e que, sem essa sombra e esse sacrifício, a fonte da minha inspiração criativa fluiria mais turva e mais pobre. Realmente, no momento não podia sequer pensar em horas de silêncio e trabálho de criação. E, enquanto tudo me corria bem e eu levava uma existência rica em satisfações, tinha a impressão de continuar ouvindo, no fundo do meu ser, o leve murmúrio e o lamento do soterrado manancial.

Tocar violino na orquestra dava-me prazer e eu dedicava muito tempo ao estudo de partituras e ansiava por avançar ainda mais, tateando nesse mundo. Aos poucos, fui aprendendo aquilo que, até ali, conhecera somente de longe e de forma teórica, a compreender, de baixo para cima, a peculiaridade, o colorido e a significação de cada instrumento; ao lado disso, ouvia e estudava a música de teatro e esperava cada vez mais seriamente pelo.tempo em que me atreveria a compor uma ópera.

O trato familiar com Muoth, que ocupava um dos postos mais importantes e honrosos na Ópera, acelerou o aproximar-se desse momento e me foi de grande utilidade. Mas me prejudicou muito junto dos meus pares, os meus colegas da orquestra, com os quais não cheguei àquelas relações francas e amistosas que pretendia ter. Somente o nosso primeiro-violino, um estiriano chamado Teiser, veio ao encontro do meu desejo e tornou-se meu amigo. Uns dez anos mais velho do que eu, era um homem simples e leal, rosto fino e delicado, que se ruborizava facilmente. Era extraordinariamente musical e, notadamente, dotado de um ouvido incrivelmente sensível e agudo. Tratava-se de um desses homens que se dão por satisfeitos com a sua arte, sem a ambição de eles próprios desempenharem nela papel de relevo. Não eraum virtuose e jamais compusera o que quer que fosse; estava contente com tocar o seu violino e encontrava grande e íntima satisfação em saber a fundo o seu ofício. Conhecia do princípio ao fim, como talvez nenhum regente, todas as ouvertures; e, nos momentos em que se chegava a uma sutileza e a um ponto de grande efeito ou em que a entrada de um instrumento se destacava de forma especialmente bonita e original, ele ficava radiante e os gozava como ninguém em todo o teatro. Sabia tocar quase todos os instrumentos, de sorte que eu, todos os dias, tinha alguma pergunta a fazer-lhe e tirava proveito dos seus ensinamentos.

Durante meses seguidos não se falou, entre nós dois, senão do nosso ofício, mas eu gostava dele e ele via que eu punha o mais sério empenho em aprender alguma coisa; nasceu, assim, tácita e mútua compreensão, que não estava muito longe da amizade. Até que, por fim, lhe falei da minha sonata para dois violinos e lhe pedi que qualquer dia a tocasse comigo. Ele amavelmente aquiesceu e, no dia aprazado, veio à minha casa. A fim de lhe' dar alegria, providenciei para a ocasião um vinho da sua terra, do qual bebemos um copo; depois, coloquei a música na estante e começamos. Ele tocava primorosamente a primeira vista, mas de repente parou, baixando o arco.

- Escute, Kuhn - disse - esta música é um bocado bonita. Eu não vou tocá-la assim, de qualquer maneira; primeiro preciso estudá-la. Vou levá-la para casa. Posso?

- Claro. E, na vez seguinte, tocamos a sonata toda, duas vezes; e depois que terminamos ele me deu uma pancadinha nas costas, exclamando:

Seu sonso, hein! Leva o tempo todo se fazendo de criança pequena e depois, às escondidas, escreve coisas como essa! Não quero falar muito, não sou nenhum professor, mas que é bonita como o diabo, isso nem se discute!

Era a primeira vez que alguém, em quem eu tinha realmente confiança, elogiava meu trabalho. Mostrei-lhe tudo, inclusive as cançõesf que então já estavam no prelo e que pouco depois foram publicadas. Mas que eu tivesse a audácia de pensar numa ópera, faltou-me coragem para dizer-lhe.

Nesse bom período da minha existência, assustou-me um pequeno acontecimento, que nunca mais pude esquecer. Na casa de Muoth, aonde eu ia freqüentemente, havia algum tempo que não voltara a encontrar a linda Lotte; mas não fizera muito caso disso, porque não queria intrometer-me nas aventuras amorosas do meu amigo e, mesmo, preferia não tomar conhecimento delas. Por isso, nunca lhe pedira notícias da mulher e ele, aliás, nunca falava dessas coisas comigo.

Sucedeu que, uma tarde, eu estava sentado no meu quarto, estudando uma partitura. Na janela, dormindo, deitara-se o meu gato preto e o silêncio reinava em toda a casa. Abriu-se, então, a porta lá fora, alguém entrou, que a dona da casa cumprimentou e reteve, mas que se desvencilhou e veio até a minha porta, onde imediatamente bateram. Fui abrir; e entrou uma alta e elegante figura feminina, com o rosto escondido por um véu, que fechou a porta atrás de si. Deu alguns passos no quarto, respirou profundamente e, por fim, tirou o véu. Reconheci Lotte. Parecia presa de grande emoção e adivinhei logo o motivo da sua vinda. A meu pedido, sentou-se; tinha-me dado a mão, mas sem pronunciar uma só palavra. Ao notar o meu embaraço, pareceu aliviada, como se houvesse receado que eu a mandaria logo embora.

- É por causa de Heinrich Muoth? - perguntei, por fim. Ela assentiu com um sinal da cabeça. - O senhor já sabia de alguma coisa? - Eu não sei de nada, só imaginei.

Olhou-me no rosto como um doente olha para o médico, calou-se e tirou lentamente as luvas. De repente, levantou-se, pôs ambas as mãos nos meus ombros e cravou em mim os grandes olhos.

- Que devo fazer? Ele nunca está em casa, nunca me escreve, nem sequer abre as minhas cartas! Faz três semanas que não consigo mais falar com ele. Ontem, fui lá, sei que ele estava, mas não me abriu a porta. Nem ao menos assobiou para o cachorro, que rasgou o meu vestido; esse também já não quer mais saber de mim.

- A senhora teve alguma briga com ele? - perguntei, só para não ficar ali sentado sem dizer nada.

Ela riu. - Briga? Ora, brigas tivemos muitas, desde o começo. A isso já estava acostumada. Não, nos últimos tempos ele até que se mostrava cortês, o que já não me cheirou bem. Uma vez não estava, quando me tinha pedido que fosse lá, outra vez anunciava que viria e não vinha. Por fim, de repente, passou a tratar-me por senhora! Ah, teria preferido que ele voltasse a me bater!

Levei um susto enorme. - Bater...? Riu novamente. - Então o senhor não sabe disso? Oh, ele me bateu muitas vezes, mas, agora, há muito tempo que não o fazia. Tornou-se cortês, trata-me formalmente e não me conhece mais. Penso que ele tem outra. Por isso vim aqui. Diga logo, por favor! Ele tem outra? O senhor sabe! O senhor deve saber!

Antes que pudesse impedi-lo, ela agarrara as minhas duas mãos. Eu estava assombrado e, por mais que me esquivasse e desejasse abreviar a cena, sentia-mquase alegre de que ela não me deixasse falar, porque não teria sabido o que dizer.

Ela, esperançosa e em pranto, estava contente de que eu a ficasse ouvindo; e implorava e contava e se queixava, num rompante de paixão. Eu, porém, olhava incessantemente para o formoso rosto, maduro e banhado em lágrimas, e não sabia pensar noutra coisa: "Ele bateu nela!" Tinha a impressão de ver o seu punho e sentia horror, tanto dele quanto dela, que, depois das pancadas e do desprezo e das recusas, não dava mostras de ter outro pensamento e desejo senão o de achar outra vez o caminho que a levasse de volta para ele e para as passadas humilhações. Por fim, a enxurrada estancou. Lotte começou a falar mais lentamente, pareceu tomar consciência da situação e, vexada, calou-se. Ao mesmo tempo, largou minhas mãos.

- Ele não tem nenhuma outra - disse eu, em voz baixa pelo menos que eu saiba; e não acredito que tenha.

Olhou para mim agradecida. - Mas não posso ajudá-la - prossegui. - Nunca falo com ele destas coisas.

Permanecemos ambos, um momento, em silêncio. E meu pensamento corrël'para Marion, para a linda Marion e para a noite em que caminhara com ela no brando ar do vento sul, dando-lhe o laço, e em que ela tomara tão valentemente a defesa do seu "amante. Também nela ele tinha batido? E também ela continuou correndo atrás dele?

- Por que a senhora veio ver-me? - perguntei. - Não sei, precisava fazer alguma coisa. O senhor acredita que ele ainda pensa em mim? O senhor é uma boa pessoa e vai ajudar-me! Poderia, ao menos, tentá-lo, interrogando-o, falando de mim...

- Não, isso eu não posso. Se Muoth ainda a ama, ele próprio irá procurar a senhora. E, se não a ama, então...

- Então o quê? - Então a senhora deve deixá-lo ir embora. Ele não merece que a senhora se rebaixe até esse ponto.

Ela teve um súbito sorriso.

- Ora! Que é que o senhor conhece do amor! Ela tem razão, pensei; e, contudo, aquilo me doeu. Já que o amor não queria vir até mim, já que eu estava fora do seu alcance, por que haveria eu de transformar-me em confidente e protetor do amor alheio? Tinha pena da mulher, mas, mais ainda, a desprezava. Se o amor era aquilo, crueldade de um lado e aviltamento do outro, então vivia-se melhor sem amor.

- Não quero discutir - revidei friamente. - Não compreendo esse tipo de amor.

Lotte recolocou o véu e disse: - Pois bem, já vou embora. E agora ela me dava novamente pena, mas eu não desejava que aquela absurda cena recomeçasse; por isso, fiquei calado e abri a porta, para a qual ela se dirigiu. Passando diante da curiosa dona da casa, levei-a até a escada; ali, inclinei-me e ela se foi, sem dizer mais nada e sem olhar para mim.

Acompanhei-a penalizado com o olhar, e durante muito tempo não me livrei mais daquela visão. Seria eu, deveras, um ser inteiramente diferente de todos eles, de Marion, de Lotte, de Muoth? E aquilo seria, realmente, o amor? Eu as via todas, essas criaturas da paixão, cambalear como arrastadas pelas tormentas e flutuar no desconhecido: o homem, torturado hoje pelo desejo, amanhã pelo fastio, amando sombriamente e rompendo brutalmente, inseguro de qualquer inclinação, descontente com qualquer amor; e as mulheres, arrebatadas, suportando ofensas e pancadas, por fim enxotadas e, contudo, ainda agarradas a ele, aviltadas pelo ciúme e pelo amor repelido, numa fidelidade canina. Naquele dia, pela primeira vez desde muito tempo, eu chorei. Chorei lágrimas de indignação e de ira por essas criaturas, pelo -meu amigo Muoth, pela vida e pelo amor; e lágrimas silenciosas e secretas por mim mesmo, que vivia em meio a tudo isso como num outro planeta, que não compreendia a vida, que ardia em sede de amor e que, no entanto, devia temê-lo.

Durante muito tempo, não fui mais à casa de Muoth. Ele celebrava, nessa época, triunfos como cantor wagneriano e começava a ser considerado como um "astro". Ao mesmo tempo, eu também me apresentava modestamente ao público. Minhas canções saíram impressas, encontrando acolhida favorável, e duas peças minhas para orquestra de câmara foram executadas em concertos. Tudo ainda não passava de um tácito e animador reconhecimento por parte de amigos; a crítica mantinha-se à espera, silenciosa ou, então, benévola, levando em conta que eu era um principiante.

Encontrava-me muito com o violinista Teiser, que gostava de mim e, com o júbilo de um bom colega, louvava meus trabalhos, vaticinando-me grandes sucessos, e mostrava-se sempre disposto. a fazer música comigo. No entanto, faltava-me alguma coisa. Muoth atraía-me, mas continuei ainda a evitá-lo. De Lotte não ouvi mais nada. Por que não me sentia contente? Repreendia-me sozinho de não me dar por satisfeito com a companhia do fiel e excelente Teiser. Mas sentia nele também a falta de alguma coisa. Teiser era demasiado alegre, demasiado solar, demasiado satisfeito para o meu gosto, e não parecia conhecer abismos. Não apreciava Muoth. Às vezes, no teatro, quando Muoth cantava, ele olhava para mim e murmurava: "Pronto, lá está ele, outra vez, metendo os pés pelas mãos. Isso já é vício! Mozart é que ele não canta, e sabe muito bem por quê." Eu era obrigado a dar-lhe razão, e contudo não o fazia de coração: era afeiçoado a Muoth, sem me animar a defendê-lo. Muoth tinha alguma coisa que Teiser não tinha nem conhecia e que me prendia a ele. Era o eterno ansiar, o intenso desejo, a insatisfação. Era isso o que me impelia ao estudo e ao trabalho, que me levava a estender as mãos para seres que não conseguia agarrar, tais como, justamente, Muoth, açulado e atormentado, de outra maneira, pela mesma insatisfação. Música, eu sempre faria, disso tinha certeza; mas almejava poder, uma vez, criar também por felicidade, superabundância d'alma e alegria sem sombras, em vez de sempre por pesar e penúria do coração. Ah, por que não seria eu feliz, graças ao que tinha como bem próprio, graças à minha música? E por que não o seria Muoth, graças ao que ele possuía, a sua descomedida energia vital e as suas mulheres?

Teiser era um homem feliz; não o torturava nenhuma ânsia pelo inatingível. Encontrava a sua alegria sensível e desinteressada na arte, à qual não pedia mais do que ela lhe dava, e, fora dali, era ainda mais frugal: precisava tão-somente de umas poucas pessoas amigas, de um bom copo de vinho, ocasionalmente, e, nos dias feriados, de um passeio pelos campos, porque era um valente andarilho e gostava do ar livre. Se havia alguma verdade na doutrina dos teósofos, então esse homem já devia achar-se à bei... da perfeição, tão bondoso era o seu gênio e tão pouco de paixão e descontentamento permitia ele que lhe chegasse ao coração. E, apesar disso e mesmo se, talvez, o propusesse a mim mesmo, eu não desejava ser como ele. Não queria ser diferente do que era, não queria estar na pele de ninguém, a não ser a minha, muito embora freqüentemente me parecesse demasiado apertada. Desde que os meus trabalhos começaram a ter sucesso, comecei a sentir certa força dentro de mim e já estava para tornar-me orgulhoso. Precisava encontrar uma ponte qualquer que me unisse ao resto dos homens, precisava, de um modo qualquer, poder viver com eles, sem ter sempre de levar a pior. Se não havia outro caminho, quem sabe se a minha música, realmente, não me conduziria até lá? Se eles não queriam amar-me, talvez tivessem de amar a minha obra.

Tais insanos pensamentos não me saíam da cabeça. E, não obstante, estava pronto para consagrar-me de todo e imolar-me a um ser, se apenas ele o quisesse, se apenas ele realmente me compreendesse. Não era a música, porventura, a lei secreta do mundo e não giravam planetas e estrelas numa harmoniosa dança de roda? E eu deveria continuar solitário e não encontrar nunca seres cuja alma formasse, de maneira bela e pura, consonância com a minha?

Um ano decorrera desde a minha chegada, forasteiro, à cidade. A não ser com Muoth, Teiser e o nosso regente da orquestra, Rõssler, poucas relações eu tivera, no começo; nos últimos tempos, porém, me deixara envolver num mais vasto ambiente social, que não me dava prazer nem desprazer. Graças à execução de minhas obras para música de câmara, travara conhecimento com os músicos da cidade, inclusive fora do teatro, e agora carregava o leve e agradável fardo de uma fama que apontava de mansinho em pequena roda, notava que me conheciam e observavam. De todas as famas, a mais doce é aquela que ainda não visa grandes sucessos, ainda não pode suscitar invejas, ainda não segrega. Perambulamos por aí, então, com a sensação de sermos, aqui ou acolá, objetos de consideração, de referência, de elogios, encontramos rostos afáveis, vemos notabilidades cumprimentar-nos complacentes e gente mais jovem do que nós saudar-nos com respeito; e temos sempre o sentimento de que o melhor ainda está para vir, como sempre acontece com a juventude, até ela dar-se conta de que o melhor já se foi. Esse agradável estado de espírito era prejudicado, no meu caso, principalmente pelo fato de que, no reconhecimento, eu sentia sempre uma ponta de compaixão. Com freqüência, tinha até a impressão de que usavam benevolência e eram amáveis comigo justamente porque não passava de um pobre coitado e de um aleijado, ao qual de bom grado se concede alguma consolação.

Após um concerto, durante o qual se havia tocado, de minha autoria, um duo para violinos, conheci o rico industrial Imthor, que tinha reputação de fervoroso amigo da música e protetor de jovens talentos. Era homem de estatura bastante baixa, calmo, de cabelo agrisalhado; nada nele indicava nem a sua riqueza nem a suá intimidade com a arte. Pelo que me disse, porém, pude avaliar o quanto entendia de música; não se desmanchava em elogios, mas dava a sua aprovação de um modo tranqüilo e objetivo, que a valorizava. Contou-me - o que eu já sabia de outras fontes - que na sua casa, de vez em quando, se realizavam saraus de música, antiga e moderna. Convidou-me para ir visitá-lo e, concluindo, disse-me:

- Lá em casa, temos também as suas canções; gostamos muito delas. Venha, minha filha também se alegrará.

Antes ainda que pudesse visitá-lo, recebi um convite. O Sr. Imthor pedia-me a permissão de fazer tocar, na sua casa, o meu trio em mi bemol maior. Já tinha à sua disposição um violinista e um violoncelista, ambos valorosos amadores; a parte do primeiro-violino ficava reservada para mim, no caso de eu ter prazer em tocar também. Eu sabia que Imthor costumava remunerar bem os músicos prüi'ssionais que tocavam na sua casa. Não me teria agradado aceitar isso; contudo, não via claramente como, por esse aspecto, devesse interpretar o convite. Acabei por aceitá-lo, quando outros dois músicos vieram ver-me para buscar as suas partes, realizamos alguns ensaios. Nesse meio tempo, fiz minha visita à casa de Imthor, mas não encontrei ninguém. E, assim, chegou a noite do sarau.

Imthor era viúvo e morava numa velha mansão burguesa, singelamente senhoril, uma das poucas, após o crescimento da cidade, que conservara intato o velho jardim em seu redor. Do jardim pouco vi, quando lá cheguei, à noite; apenas uma curta alameda de altos plátanos, cujos troncos, à luz das lanternas, mostravam manchas brancas, e, no meio deles, algumas estátuas de pedra, velhas e enegrecidas. Atrás das altas árvores, achava-se, modestamente, a velha casa, de construção ampla e baixa e cujas paredes, desde a porta de entrada e ao longo de corredores, escadas e salas, estavam quase totalmente cobertas de velhos quadros, uma quantidade de retratos de família e paisagens escurecidas, vistas antiquadas e pinturas de animais. Cheguei ao mesmo tempo que outros convidados e fomos recebidos por uma governanta, que nos mandou entrar.

A sociedade ali reunida não era grande, mas ficou comprimindo-se, um pouco apertada, nas acanhadas salas, até que foram abertas as portas para a sala de música. Nesta o ambiente era espaçoso e tudo parecia novo, o piano de cauda, os armários das músicas, as lâmpadas, as cadeiras; somente os quadros nas paredes, também aqui, eram todos velhos.

Os dois músicos que deviam tocar comigo já estavam lá; armamos nossas estantes, controlamos a luz e começamos a afinar os instrumentos. Nesse momento, abriu-se uma porta ao findo da sala e, através da peça, agora mergulhada na meia-luz, avançou na nossa tlireção uma figura feminina, de vestido claro. Meus dois colegas a cumprimentaram cerimoniosamente e percebi que se tratava da filha de Imthor. Ela, durante um momento, olhou interrogativamente para mim; depois, antes mesmo que eu lhe fosse apresentado, estendeu-me a mão, dizendo:

- Já o conheço. É o Sr. Kuhn, não é? Seja bem-vindo! A linda moça causara-me grande impressão logo que entrara; agora, a sua voz soava tão clara e bondosa, que apertei resolutamente a mão que se me oferecia e olhei alacremente aqueles olhos, que me cumprimentavam de modo meigo e amigável.

- Alegro-me à idéia de ouvir seu trio - disse ela sorrindo, como se eu correspondesse exatamente àquilo que esperara encontrar em mim e que isso lhe desse prazer.

- Eu também - respondi, sem saber bem o que estava dizendo; e voltei a olhar para ela, que me acenou com uma leve inclinação da cabeça. Depois, prosseguiu o seu caminho e saiu da sala, enquanto eu a acompanhava com o olhar. Voltou logo em seguida,asegurando o pai pela mão, e atrás dos dois vieram os convidados. Nós três já estávamos prontos, sentados diante das estantes. Os hóspedes foram ocupar seus lugares, alguns conhecidos me cumprimentaram com um movimento de cabeça, o dono da casa apertou minha mão e, quando todos estavam sentados, as luzes foram apagadas e somente as altas velas continuaram ardendo por cima das nossas folhas pautadas.

Eu quase esquecera da minha música. Procurei, no fundo da sala, a Srta. Gertrud, que estava sentada na sombra, encostada numa estante de livros. Seu cabelo castanho-escuro parecia quase preto; os olhos, eu não os via. Então, marquei o tempo em voz baixa, fiz um sinal com a cabeça e, em largas arcadas, atacamos o andante.

Agora, enquanto tocava, me sentia tranqüilo e concentrado em mim mesmo, balançando-me ao ritmo dos compassos, e pairava livremente em harmonia com o caudal sonoro, que me dava a impressão de inteiramente novo e como que inventado no momento. Meus pensamentos na música e meus pensamentos em Gertrud Imthor confluíam puros e sem tropeços; eu movia o arco do meu violino, dava com os olhos minhas instruções e a música fluía límpida e contínua, arrastando-me consigo, dourado caminho na direção de Gertrud, que eu não podia mais ver e que, agora, também não desejava mais ver. A ela eu abandonava a minha música e o meu respirar, os meus pensamentos e as batidas do meu coração, do mesmo modo que um caminhante matutino se abandona ao céu azul e ao brilho dos prados na manhã, espontaneamente e sem perder a noção de si mesmo. Ao mesmo tempo que a sensação de conforto espiritual e o crescente avolumar-se dos sons, transportava-me e exaltava-me uma maravilhada felicidade de que, agora, de repente, eu sabia o que era o amor. Não se tratava de nenhum sentimento novo, tão-só do aclarar-se e determinar-se de antigos pressentimentos, do regresso a uma velha pátria.

O primeiro movimento tinha acabado. Houve apenas alguns instantes de intervalo. As vozes das cordas soaram baixinho em branda confusão e, por cima dos rostos em aprovadora expectativa, pude ver, por um momento, os cabelos castanho-escuros, a delicada e clara testa e a rósea e severa boca; depois, bati com o arco de leve na minha estante e iniciamos o segundo movimento, que é um trecho de boa música. Os executantes animaram-se, a crescente melancolia do canto levantou inquietas vibrações, cruzou no alto em vôos insatisfeitos, procurou-se e perdeu-se em plangente angústia. Profundo e com calor, retomou o violoncelo a melodia, deu-lhe vigoroso e marcante relevo e a transpôs, esmorecendo, a nova e sombria tonalidade, para, no fim, resolvê-la, desesperadamente, em graves quase iracundos.

Esse segundo movimento era a minha confissão, a profissão da minha angústia e da minha insatisfação. O terceiro devia ser a redenção, a realização dos desejos. Mas, desde aquela noite, soube que não era nada e o toquei despreocupado, como uma coisa já deixada para trás. Porque eu pensava, agora, saber exatamente de que modo deveria ter soado a libertação, de que modo o fulgor e a paz deviam romper do borrascoso estrugir das vozes, assim como a luz da pesada acumulação de nuvens. Nada disso encontrava-se no meu terceiro movimento, que não passava de uma suave resolução das crescentes dissonâncias e de uma tentativa de purificar e altear um pouco a velha melodia fundamental. Daquilo que, agora, brilhava e cantava dentro de mim, não havia nele nem uma nota nem um vislumbre, e admirava-me de que ninguém o percebesse.

Meu trio estava terminado. Agradeci aos dois outros executantes com um sinal da cabeça e guardei o violino. As luzes tornaram a resplender, toda a gente pôs-se em movimento, algumas pessoas se aproximaram de mim com as costumeiras amabilidades, as frases de louvor e críticas, para se fazerem de entendidas. Ninguém me censurou o defeito principal da obra.

Os convidados espalharam-se por várias salas, foram servidos chá, vinho e biscoitos, fumou-se na sala de fumar. Passou uma hora, passou mais outra. E então, finalmente, quando eu já quase não o esperava mais, aconteceu que Gertrud estava em pé ao meu lado e me apertava a mão.

- A senhora gostou? - perguntei. - Sim, foi bonito - disse, confirmando com um aceno da cabeça.

Mas percebi que ela tinha visto mais longe. Por isso, perguntei-lhe:

- A senhora refere-se ao segundo movimento, não é? O resto não é nada.

Ela, então, voltou a olhar-me, curiosa com a sagacidade de uma mulher experiente, e disse com delicadeza:

- Bem, quer dizer que o senhor mesmo sabe disso. O primeiro movimento é boa música, não é verdade? O segundo adquire amplidão e grandiosidade e exige demais do terceiro. Durante a execução, via-se claramente onde o senhor punha à sua alma e onde não a punha.

Agradou-me aprender que seus olhos claros e bondosos me tinham observado sem que eu soubesse. E, já nessa primeira noite do nosso conhecimento, pensei que deveria ser bom e ditoso passar uma vida inteira sob o olhar desses olhos bonitos e sinceros, e que se tornaria impossível então fazer ou pensar, algum dia, qualquer coisa má. E, desde aquela noite, eu soube que meu desejo de unidade e delicada harmonia poderia realizar-se, e que existia alguém a cujo olhar e voz meu pulsar e respirar respondiam de forma imediata.

Também ela percebeu imediatamente em mim a amigável e pura ressonância do seu ser e teve, desde a primeira hora, a tranqüila confiança de poder abrir-se comigo e mostrar-se a mim sem disfarces e sem ter de recear mal-entendidos ou deslealdade. E, ato continuo, estreitou relações de amizade comigo, com a rapidez e naturalidade possíveis somente a seres jovens e ainda pouco conspurcados pela vida. Até então, eu já tinha estado, poucas vezes, enamorado, mas sempre - e, notadamente, depois de desfigurado - com um sentimento de timidez, cobiça e insegurança. Agora, em vez do namoro, chegara o amor; e eu tinha a impressão de que um véu fino e cinzento houvesse caído de diante dos meus olhos e de que o mundo estava ali na sua luz originária e divina, tal como aparece aos olhos das crianças e nos nossos sonhos paradisíacos.

Gertrud, naquele tempo, mal passara dos vinte anos de idade, era esbelta e sadia como uma jovem árvore esguia e transpusera incólume todo o amontoado de tolices e idéias falsas e logros da habitual adolescência; feminina, ao seguir o seu próprio e nobre ser como uma melodia de seguro andamento. Fazia-me bem ao coração saber que, neste mundo de imperfeição, vivia uma tal criatura; e longe de mim estava qualquer pensamento de algum dia agarrá-la e arrebatá-la unicamente para mim. Eu me dava por satisfeito com poder partilhar um pouco da sua bela juventude e saber-me no rol dos seLs bons amigos.

Nessa noite, após o sarau, custei a adormecer. Não me consumia febre ou desassossego; simplesmente, estava acordado e não procurava o sono, porque sabia ter chegado a minha primavera e achar-se o meu coração, depois de longos e ansiados transvios e invernos, no caminho certo. Frouxa e pálida claridade noturna tremeluzia no meu quarto; todas as metas da vida e da arte apareciam nítidas e próximas como cumes clareados pelo vento sul, eu sentia o som e o ritmo secretos da minha existência, tão amiúde inteiramente perdidos, chegarem de volta, sem lacunas, até os míticos anos da infância. E quando queria reter e condensar num nome essa sonhadora clareza e contida plenitude do sentimento, era o nome Gertrud que eu pronunciava. Com ele adormeci, já pela madrugada, e com ele tornei a acordar, de dia, bem-disposto e revigorado como após longo, demorado sono.

Voltaram-me, então, à mente os desalentados pensamentos dos últimos tempos, e também os orgulhosos, e compreendi o que me faltara. Agora, nada mais me angustiava e deprimia e irritava; eu tinha novamente no ouvido o grande acorde e tornava a sonhar os sonhos juvenis da harmonia das esferas. Orientava de novo os meus passos e pensamentos e respiração por uma secreta melodia, a vida voltava a ter um sentido e o futuro era uma radiosa aurora. Ninguém notou essa transformação, ninguém estava suficientemente perto de mim. Somente Teiser, com sua simplicidade infantil, cutucou-me jovialmente, durante o ensaio no teatro, dizendo:

- Pelo jeito, dormiu bem esta noite, não é? Refleti sobre de que maneira poderia alegrá-lo e, no primeiro intervalo, perguntei:

- Aonde vai este verão, Teiser? Riu, encabulado, corou como uma noiva à qual perguntassem pelo dia do casamento e respondeu:

- Meu Deus, até lá ainda falta tempo! Mas, olhe: já tenho os mapas aqui dentro. - Bateu no peito, indicando o bolso da carteira. - Desta vez começo no Lago de Constança: o Vale do Reno, o principado de Lichtenstein, Coire, o Albula, o Alto Engadine, o Maloia, o Bergell e o Lago de Como. A volta, ainda não sei.

Tornou a colocar o violino em posição e seus olhos azulacinzentados de criança, que pareciam não ter nunca visto nada da sujeira e da dor do mundo, olharam rapidamente mais uma vez para mim, argutos e deliciados. E eu me senti irmanado com ele; e, tal como ele se regozijava, de antemão, com as suas grandes excursões a pé, durante semanas, e com a liberdade e a despreocupada familiaridade com o sol, o ar livre e a terra, assim eu tornava a rejubilar-me com todos os caminhos da minha vida, que estavam diante de mim como um jovem sol, novo em folha, e que tencionava percorrer de cabeça erguida, com olhos claros e coração puro.

Hoje, quando volto a pensar nesse tempo, tudo já se distanciou e acha-se longe, no lado luminoso da minha existência; mas alguma coisa da luz de então ainda permanece no meu caminho, muito embora não brilhe mais de modo tão jovem e risonho, e hoje, como então, constitui o meu consolo, fortalecendo-me nas horas de desalento e removendo o pó da minha alma, assim que pronuncio o nome de Gertrud e penso nela, tal como veio ao meu encontro na sala de música, leve como um pássaro e familiar como um amigo.

E então voltei também à casa de Muoth, que, na medida do possível, evitara desde aquela penosa confissão da linda Lotte. Ele o havia notado e, como eu sabia, era por demais altivo e indiferente para procurar-me. Assim, havia meses não estivéramos juntos a sós. Agora, que eu me sentia animado por uma nova confiança na vida e cheio de boas intenções, pareceu-me necessário, antes de mais nada, reaproximar-me do descurado amigo. Deu-me ocasião de fazê-lo uma nova canção que eu musicara. Decidi dedicá-la a ele. Era parecida com a Canção da Avalancha, da qual ele gostava, e sua letra dizia:

Minha vela apaguei; e rompe a noite,
Pela janela aberta, a solidão Em que estou e me abraça com ternura
E me chama amigo e irmão.

Sofremos ambos da mesma saudade;
Soam, em nossos sonhos, tristes ais
E evocamos, baixinho, os velhos tempos
Na casa dos nossos pais.

Fiz dela uma bonita cópia e escrevi: " Dedicada ao meu amigo Heinrich My oth".

Levando-a comigo, fui visitá-lo numa hora em que sabia que ele certamente estaria em casa. E, com efeito, ouvi o seu canto; ele andava de um lado para o outro dos suntuosos aposentos, exercitando-se. Recebeu-me imperturbável.

- Ora vejam, o Sr. Kuhn! Eu já pensava que o senhor nunca mais viria.

- Bem - disse eu - aqui estou. Como vai? - Sempre o mesmo. E simpático que o senhor se animasse a vir de novo visitar-me.

- Sim, nos últimos tempos fui um pouco infiel...

- E, por sinal, de modo bem marcante. Sei por quê. - Isso eu duvido. - Sei, sim senhor. A Lotte esteve uma vez na sua casa, não foi?

- Sim, eu não queria tocar no assunto. - Também, não é preciso. Então, aqui está o senhor outra vez.

- E trouxe algo comigo. Dei-lhe a música. - Oh, uma nova canção! Esplêndido! Eu já temia que o senhor nunca mais saísse da enfadonha música para cordas. E traz também uma dedicatória! Para mim? Sério?

Admirei-me de que isso parecesse alegrá-lo tanto; eu tinha esperado, antes, algum gracejo a respeito da dedicatória.

- Claro que me alegra - disse ele, sinceramente. - Eu me alegro sempre, quando pessoas decentes mostram que me apreciam, especialmente no seu caso. Eu já tinha, tacitamente, colocado o senhor na lista dos mortos.

- O senhor mantém uma lista dessas? - Oh, sim, quando alguém tem, ou melhor, teve tantos amigos, como eu... Daria um lindo catálogo de nomes. Sempre estimei mais que todos aqueles com personalidade moral, e logo esses são os primeiros a largar-me. Entre os pulhas, acham-se amigos todos os dias, mas, no meio dos idealistas e dos cidadãos normais, é difícil a Amizade, quando a gente tem má fama. No momento, o senhor é quase que o único. Como sempre acontece, aquilo que se consegue com dificuldade é o que mais se aprecia. Não se dá o mesmo com o senhor? Sempre atribuí importância a ter amigos homens; em vez disso, quem corre atrás de mim são as mulheres.

- A culpa disso, em parte, é sua, Sr. Muoth. - Por quê? - O senhor gosta de tratar todo mundo como trata as mulheres. Com os amigos, isso não dá certo; daí eles lhe fugirem. O senhor é um egoísta.

- Isso eu sou, graças a Deus. Aliás, o senhor não o é menos. Quando a terrível Lotte foi procurá-lo, para chorar suas mágoas, o senhor não lhe deu o menor auxílio. Tampouco aproveitou a ocasião para converter-me, pelo que lhe sou grato. O senhor ficou horrorizado com o caso e limitou-se a não vir mais aqui.

- Bem, aqui estou de novo. O senhor tem razão, eu devia ter tomado as dores por Lotte. Mas é que não entendo dessas coisas. Ela própria riu-se de mim, dizendo que eu não compreendia nada do amor.

- Pois, então, atenha-se firmemente à amizade. É também um belo terreno. E, agora, sente-se aqui e toque o acompanhamento: vamos estudar a canção. Ah, ainda se lembra da primeira? Aos poucos, o senhor está se tornando uma celebridade, creio eu.

- Mais ou menos. Comparado com o senhor, em todo o caso, ainda não sou nada.

- Bobagem. O senhor é um compositor, um criador, um pequeno deus. Que lhe importa a celebridade? Nós outros é que precisamos andar ligeiro, se queremos chegar a alguma coisa. Nós, cantores e saltimbancos, somos como as mulheres: precisamos levar o nosso couro ao mercado enquanto está ainda bem liso. Celebridade, quanta a gente quiser; e dinheiro e mulheres e champanha! Fotografias nas revistas, coroas de louros. Mas basta que hoje eu me enjoe disso tudo ou basta, até mesmo, uma pequena pneumonia e, amanhã, estou liquidado e lá se vão a celebridade, as coroas de louro e todo o resto por água abaixo.

- Ora, o senhor não precisa preocupar-se antes do tempo. - Quer saber de uma coisa? No fundo, estou curiosíssimo da chegada da velhice. Isso de juventude é um logro, um reles logro de jornais e livros escolares. O mais belo tempo da vida! Pois sim! As pessoas idosas dão-me sempre a impressão de muito mais contentes. A juventude é o período mais difícil da vida, isso sim. Suicídios, por exemplo, é raro que se verifiquem na idade avançada.

Comecei a tocar e ele se voltou para a canção, pegou rapidamente a melodia e, num ponto em que esta voltava, de maneira expressiva, do tom menor para o maior, deu-me leve cotovelada de aprovação.

A noite, encontrei em casa, como temera, um envelope do Sr. Imthor, contendo umas poucas palavras amáveis e uma remuneração mais do' que condigna. Remeti-lhe o dinheiro de volta, explicando que era de família abastada e que preferia me fosse permitido freqüentar a sua casa na qualidade de amigo. Quando tornei a vê-lo, ele me convidou a voltar lá breve, acrescentando:

- Já imaginava que ia ser assim. Gertrud era de opinião que não devia mandar-lhe nada; eu, porém, quis tentar.

Daí por diante, passei a ser assíduo freqüentador da casa dos Imthor. Nos saraus musicais, eu me incumbia da parte de primeiro-violino, levava lá todas as novas músicas, minhas ou de outros, e foi lá que se executou, pela primeira vez, a maioria das minhas pequenas obras.

Numa tarde de primavera, encontrei em casa Gertrud sozinha com uma amiga. Chovia e levei um tombo, escorregando nos degraus da porta de entrada; e ela não permitiu que eu fosse embora logo. Falamos de música e aconteceu, quase sem querer, que comecei a contar meus casos, especialmente do tempo do Cantão dos Grisões, durante o qual compusera a primeira canção. Aí, fiquei confuso, não sabendo se tinha feito bem em abrir-me diante da amiga. Foi quando Gertrud disse, quase a medo:

- Preciso confessar uma coisa, que o senhor não deve levar a mal. Transcrevi para mim, transpondo-as, e estudei duas das suas canções.

- Como? A senhora canta? - exclamei, surpreso. E, curiosamente, veio-me à memória a aventura com o meu primeiríssimo amor juvenil, que ouvira cantar tão mal.

Gertrud sorriu contente e confirmou com um sinal da cabeça: - Sim, canto, apenas para mim e uns poucos amigos. Se quiser acompanhar-me, cantarei as canções para o senhor.

Fomos até o piano e ela me deu as músicas, transcritas com esmero pela sua delicada mão feminina. Iniciei o acompanhamento baixinho, para melhor ouvi-la. E ela cantou a canção e, depois, a segunda; e eu, sentado e atento, ouvia a minha música transformar-se como por obra de encantamento. Ela a cantava com uma voz aguda, leve como um passarinho, e foi a coisa mais linda que ouvi na vida. Em mim, porém, a voz penetrava como uma tempestade do vento sul num vale nevado, pondo, a cada nota, mais anu o meu coração; e, enquanto me sentia feliz e tinha a impressão de flutuar, precisava, ao mesmo tempo, lutar comigo mesmo e conter a emoção, pois as lágrimas nos olhos me dificultavam a leitura das notas.

Eu já tinha imaginado saber o que fosse o amor e me reputava homem sagaz; olhara, reconfortado, o mundo com olhos novos e sentira uma participação mais íntima e profunda com todas as criaturas vivas. Agora, era diferente, já não se tratava mais de clareza, consolo e aplacação, mas sim de tormenta e labaredas; agora o meu coração, exultante e a tremer, se lánçava à ventura, não queria saber mais nada da vida e ansiava somente por arder na sua própria chama. E se alguém me perguntasse o que, afinal, era o amor, eu bem julgaria sabê-lo e poderia dizer, mas minhas palavras soariam obscuras e inflamadas.

Entrementes, acima disso, adejava a leve e bem-aventurada voz de Gertrud e parecia chamar por mim, jubilosa, e querer tão-só a minha alegria; e, no entanto, voava longe de mim, rumando para longínquas alturas, inatingível e quase estranha.

Ah, agora eu sabia de que se tratava! Bem podia ela cantar, desejar ser gentil comigo, ter a meu respeito as melhores intenções; não era nada disso o que eu almejava. Se ela não me pertencesse, de todo e para sempre, e somente a mim, então a minha vida seria inútil e tudo o que de bom e terno e verdadeiro havia em mim perderia qualquer sentido.

Senti, então uma mão sobre o meu ombro; assustei-me, voltei-me e olhei para o rosto de Gertrud. Seus claros olhos estavam sérios e foi só aos poucos, já que eu a fitava, que começou docemente a sorrir e a enrubescer.

Eu só pude dizer obrigado. Ela não sabia o que se passava comigo, sentia e compreendia apenas que eu estava emocionado; e encontrou um indulgente caminho de volta para a anterior jovialidade e desembaraço da conversação. Pouco depois, fui embora.

Não fui para casa e não sabia se ainda estava chovendo. Apoiado na minha bengala, andei pelas ruas; mas aquele não era um caminhar e as ruas não eram ruas. Cavalgava nuvens de tormenta, percorrendo um céu agitado e sibilante, falava com a tormenta e eu próprio era a tormenta; e ouvia chegar, de infinita distância; um som de fascinante beleza, e era uma clara, leve, alada e flutuante voz feminina, e a voz parecia pura de pensamentos e tormentas humanos, e no entanto também parecia conter, no âmago, toda a se;'agem doçura da paixão.

A noite, fiquei sentado, sem luz, no meu quarto. Quando não pude mais resistir, já era tarde; saí para ir à casa de Muoth, mas encontrei as janelas escuras e dei meia-volta. Caminhei sem rumo durante longas horas da noite e, finalmente cansado e despertando dos sonhos, dei omigo no portão do jardim dos Imthor. As velhas árvores farfalham solenemente em volta da casa invisível, da qual não vinha nem um som nem um raio de luz; e, num ponto ou noutro do céu, aparecia e desaparecia, por entre as nuvens, o débil brilho de alguma estrela.

Aguardei alguns dias, antes de atrever-me a ir novamente à casa de Gertrud. Nesse meio tempo, chegou-me uma carta do poeta cuja canção eu havia musicado. Fazia dois anos que mantínhamos uma vaga relação epistolar. Vez por outra, chegavam-me curiosas cartas dele, eu lhe enviava os meus trabalhos e ele, as suas poesias. Agora, escrevia-me:

"Prezado Senhor.

Faz muito que não lhe dou notícias minhas. Andei trabalhando sem descanso. Desde que conheço e compreendo a sua música, sempre esteve presente ao meu espírito o propósito de escrever um texto para o senhor, mas não me saía nada. Agora, ele está praticamente pronto; trata-se de um libreto de ópera e deve musicá-lo. Poderá não ser um homem muito feliz, isso depreende-se da sua música. De mim, não quero falar, mas esse é um libreto sob medida para o senhor. Já que, fora daí, nada de agradável nos sorri, vamos fazer essa gente ouvir algumas coisas bonitas, com as quais os paquidermes vejam claro, durante uns momentos, que a vida não tem somente superfície. Porque, já que não sabemos onde dar com a cabeça, acossa-nos a necessidade de fazer sentir aos outros as forças que nos sobejam.

Hans H"

Foi como se uma centelha caísse no meu paiol de pólvora. Escrevi pedindo notícias do libreto e estava tão impaciente, que acabei rasgando a carta e telegrafando. Uma semana mais tarde, chegou o manuscrito, uma breve e apaixonada história de amor, em versos, ainda com lacunas, mas suficiente para mim, no momento. Li-a e passei a perambular com os versos na cabeça e a cantá-la e tocá-la no violino, dia e noite; e não tardou que corresse a visitar Gertrud.

- A senhora deve ajudar-me! - exclamei. - Estou compondo uma ópera. Aqui tem três trechos musicados para a sua voz. Quer passar uma vista neles? E depois cantá-los para mim?

Ela regozijou-se, quis que lhe contasse tudo, folheou a música e prometeu aprendê-la rapidamente. E veio um tempo de transbordante arrebatamento; eu estava embriagado de amor e de música, incapaz de qualquer outra coisa, e Gertrud era a única pessoa a conhecer o meu segredo. Eu lhe levava as folhas manuscritas, ela aprendia e cantava para mim, eu a interrogava e tocava tudo para ela, que se entusiasmava juntamente comigo, estudava e cantava, aconselhava e colaborava, encontrando um prazer enlevado no segredo e na obra nascente, que nos pertencia a ambos. Nenhum aceno, nenhuma sugestão que ela imediatamente não compreendesse e acolhesse; por fim, começou ela própria, com a sua fina caligrafia, a ajudar-me a copiar e transpor a música. No teatro, eu pedira licença por motivo de doença.

Nenhuma situação embaraçosa surgiu entre Gertrud e mim; ambos éramos arrastados pela mesma correnteza, trabalhávamos na mesma obra e era, tanto para ela como para mim, um desabrochar de forças juvenis amadurecidas, uma felicidade e um encantamento em que a minha paixão também ardia invisível. Gertrud não distinguia entre a minha obra e mim, ela nos amava e nos pertencia; e, também para mim, não era mais possível separar amor e trabalho, música e vida. Muitas vezes, eu olhava, com surpresa e admiração, para a linda moça e ela retribuía o meu olhar, e quando eu chegava ou ia embora, apertava a minha mão com mais calor e mais força do que eu ousasse apertar a dela. E quando, nesses tépidos dias de primavera, eu atravessava o jardim e entrava na velha casa, já não sabia se era a minha obra ou o meu amor o que me arrastava e me exaltava.

Tempos como esse não duram muito. Já se aproximava ele do fim e a minha chama continuava a arder, indivisa, em cegos desejos de amor; e, um dia, me encontrava sentado ao seu piano e ela cantava o último ato da minha ópera, cujo papel de soprano já estava terminado. Cantava maravilhosamente e eu pensava naqueles dias incendiados, cujo brilho já via empalidecer, enquanto Gertrud ainda pairava nas.suas alturas e eu sentia, a inevitável chegada de dias diferentes e menos cálidos. Foi quando ela me sorriu e, inclinando-se sobre mim, para ler melhor a música, notou a tristeza do meu olhar e me olhou interrogativamente. Sem dizer uma palavra, levantei-me, tomei delicadamente o seu rosto em minhas mãos, beijei a sua testa e a sua boca e torneia sentar-me. Ela deixou que tudo acontecesse, silenciosa e quase solenemente, sem estranheza nem contrariedade; e, ao ver-me lágrimas nos olhos, correu de leve a mão pelo meu cabelo e testa e ombros, num gesto indulgente.

Continuei então a tocar, e ela a cantar; e o beijo e aquela hora singular permaneceram silenciados mas não esquecidos entre nós, como nosso último segredo.

Porque o outro não podia continuar somente nosso por mais tempo; a ópera precisava, agora, de outros que dela tivessem ciência e lhe prestassem sua colaboração. O primeiro devia ser Muoth, pois nele eu tinha pensado para o papel do protagonista, cuja impetuosidade e amarga paixão eram de todo afins com seu modo de cantar e a sua natureza. Mas hesitei ainda por algum tempo. Minha obra era um pacto entre mim e Gertrud, pertencia a ela e a mim, dava-nos inquietude e prazer comuns, era um jardim do qual ninguém sabia ou um navio a bordo do qual nós dois sozinhos cruzávamos o oceano.

Foi ela mesma que indagou a respeito, quando sentiu e advertiu que não podia mais ajudar-me.

- Quem canta o papel do protagonista? - perguntou. - Heinrich Muoth. Pareceu surpresa. - Oh - disse - é sério? Não gosto dele. - É um amigo meu, Srta. Gertrud. E o papel lhe serve. - Sim. Agora, já havia um estranho entre nós.

ENTRETANTO, eu não tinha pensado nas férias de Muoth e no seu gosto pelas viagens. Ele se alegrou com o meu projeto de ópera e prometeu toda a colaboração, mas já tinha uma viagem planejada e só podia assumir o compromisso de ocupar-se do seu papel lá pelo outono. Eu o copiei, até onde estava pronto. Ele o levou consigo, e, segundo o seu costume, não deu sinal de vida durante todos aqueles meses.

Assim, tivemos um prolongamento do prazo. Entre Gertrud e mim subsistia uma boa camaradagem. Creio que, desde aquela hora aapiano, ela sabia exatamente o que se passava comigo, mas nunca disse uma só palavra a respeito nem modificou em nada o seu comportamento para comigo. Ela não gostava somente da minha música, gostava também de mim e sentia, como eu, que entre nós dois havia uma natural correspondência, que cada um de nós compreendia e aprovava instintivamente o modo de ser do outro. Assim, continuava ao eu lado em boa harmonia e amizade, mas sem paixão. Isso, por vezes, me bastava e eu vivia dias tranqüilos e gratos na sua companhia. Mas, logo depois, voltava sempre a intervir a paixão, e então cada prova de amizade era, para mim, tão-somente uma esmola, e sentia, angustiado, que as tormentas de amor e desejo que me agitavam lhe permaneciam estranhas e lhe desagradavam. Amiúde, tentava iludir-me à força, buscando persuadir-me de que ela era uma criatura de feitio uniforme, sereno e pacato. Mas meu sentimento sabia que isso era falso e conhecia Iertrud o suficiente para estar certo de que, nela também, o amor deveria gerar tormentas e perigosos transes. Tenho refletido freqüentemente no assunto e penso que se, então, eu a houvesse perseguido com insistência e puxado para mim com todas as forças, ela me seguiria e viria comigo para sempre. Assim, porém, a sua serenidade me era suspeita e tudo quanto me demonstrava de ternura e meiga dedicação era por mim levado à conta de humilhante compaixão. Não conseguia livrar-me da idéia de que, com outro homem, são e de bela presença, ela não poderia persistir naquela afeição calma e amistosa. E então voltavam, não raras, as horas em que eu teria dado a minha música e tudo o que vivia em mim por uma perna normal e um temperamento resoluto.

Por volta daquele tempo, estreitou-se a minha amizade com Teiser. Ele me era indispensável para o trabalho e, assim, foi a próxima pessoa a partilhar do meu segredo e a conhecer o libreto e o esboço da minha ópera, que, muito circunspeto, levou consigo, a fim de estudá-los em casa. Depois, porém, veio procurar-me; e seu rosto de criança, com a loura barba, estava rubro de contentamento e entusiasmo pela música.

- A sua ópera vai ser qualquer coisa de notável! Já estou sentindo a ouverture mexer os meus dedos! Agora, homem, vamos beber um trago de bom vinho; e, se não fosse imodéstia, diria que bebêssemos à nossa fraternidade. Mas isso não é obrigatório.

Aceitei com prazer e aquela se converteu numa noite de alegria. Teiser levou-me, pela primeira vez, à sua casa. Mandara vir, fazia pouco, uma irmã, que ficara sozinha após a morte da mãe; e não se fartava de gabar o conforto que sentia em tê-la em casa, depois de longos anos de solitária vida de solteiro. A irmã era uma moça simples, bem-humorada e ingênua, tinha olhos claros, infantis, vivos e bondosos como os do irmão e chamava-se Brigitte. Trouxe-nos doces e um vinho verde austríaco, bem como a caixinha com os compridos charutos Virgínia. Bebemos o primeiro copo à sua saúde e o segundo à boa amizade entre nós; e, enquanto comíamos os doces, bebíamos o vinho e fumávamos, Teiser não ficava um instante parado no quarto, e ora sentava-se ao piano, ora segurava a guitarra no sofá, ora o violino sobre a toalha da mesa, e tocava tudo o que de bonito lhe vinha à cabeça e cantava, com os, olhos cintilando, tudo em minha honra e da minha ópera. Patenteou-se que a irmã tinha os mesmos gostos que ele e, não menos do que ele, adorava Mozart; árias daFlauta Mágica e trechos do Don Giovanni rutilaram na pequena morada, interrompidos pelas conversações e o tinir dos copos e acompanhados à perfeição pelo violino, o piano, a guitarra ou, mesmo, somente o assobiar do irmão.

Eu me encontrava ainda engajado como violinista da orquestra para a curta temporada de verão; havia, no entanto, pedido demissão para o outono, pois pensava que, então, necessitaria de todo o meu tempo e de toda a minha vontade de trabalhar. O regente da orquestra, contrariado com a minha saída, passou, no fim, a dispensar-me especial grosseria, que, porém, o ótimo Teiser me ajudou a aparar e a não tomar a sério.

Com esse fiel companheiro, levei a cabo a instrumentação da minha ópera; e, assim como respeitava religiosamente meu pensamento, do mesmo modo apontava ele, inexorável, todos os erros no tratamento orquestral. Amiúde, ficava decididamente furioso e me repreendia como um rispido regente de orquestra enquanto eu não cortasse ou modificasse algum ponto duvidoso, pelo qual me encantara e ao qual me aferrava. E, se eu alimentava dúvidas e mostrava incerteza, tinha ele sempre exemplos à mão. Toda vez que eu queria impor alguma solução malograda ou não ousava recorrer a alguma arrojada, lá vinha ele correndo com partituras e me demonstrava como Mozart ou Lortzing tinha feito aquilo e que a minha hesitação era uma covardia ou a minha teimosia uma estupidez. Gritávamos um com o outro, batalhávamos e esbravejávamos; e, quando isso acontecia na casa de Teiser, Brigitte ficava ouvindo religiosamente, ia buscar vinho e charutos e tornava, caridosa e cuidadosamente, a alisar não poucas folhas de música amarrotadas. Nela, a afeição pelo irmão igualava a admiração por mim: eu era, para ela, um maestro. Todos os domingos, tinha de ir almoçar na casa de Teiser, e depois do almoço, quando havia nem que fosse uma só nesga de azul no céu, saíamos de bonde. E íamos, então, passear pelas colinas e pelos bosques, conversávamos e cantávamos, e os dois irmãos, volta e meia, lançavam para o ar, espontaneamente, os seus pátrios gorjeios à tirolesa.

Durante um desses passeios, fomos lanchar, certa feita, numa hospedaria de aldeia, de onde, pelas janelas escancaradas, vinha festivamente ao nosso encontro uma campestre música de dança; e, depois de comermos, quando estávamos sentados no jardim, descansando e bebendo sidra, não tardou que Brigitte se esgueirasse na direção da casa e embarafustasse por ela. Ao darmos por isso e ao procurá-la, a vimos, então, passar dançando diante da janela, fresca e vibrante como uma manhã de verão. Depois que voltou. Teiser a ameaçou com o dedo, dizendo que ela bem teria podido convidá-lo também. Ela corou, confusa, e com a mão fez um gesto, como para mandar-lhe que se calasse, e olhou para mim.

- O que é? - perguntou o irmão. - Nada; deixa - limitou-se a responder. Mas vi, casualmente, como ela chamava, com o olhar, a sua atenção para mim; e Teiser disse:

- Ah, bem.

Guardei silêncio, mas achei esquisito vê-la ficar constrangida por ter dançado na minha presença. Só então me ocorreu que também os seus passeios teriam sido mais expeditos e mais longos e diferentes sem o estorvo da minha companhia; e, dali por diante, só muito raramente voltei a tomar parte em suas excursões domingueiras.

Gertrud tinha perfeitamente notado, quando o papel de soprano estava chegando ao fim, que me pesava muito ter de renunciar às freqüentes visitas à sua casa e aos nossos íntimos colóquios ao piano, mas, também, que eu me esquivava de inventar pretextos para dar-lhes continuação. E então me surpreendeu com a proposta de acompanhá-la regularmente nas suas horas de canto; de modo que, dali em diante, fui à sua casa duas ou três vezes por semana, na parte da tarde. O pai via com prazer a amizade dela comigo; e, fora disso, como ela tivesse perdido a mãe muito cedo e desempenhasse funções de dona-de-casa, fazia-lhe todas as vontades.

O jardim achava-se no pleno resplendor do início do verão; por toda parte, em torno da silenciosa casa, havia flores e cantavam pássaros; e quando chegava da rua, entrava no jardim e, passando diante das velhas estátuas de pedra, me aproximava da casa circundada de verde, era, todas as vezes, para mim, como se ingressasse num santuário, aonde as vozes do mundo só podiam chegar em tom baixo e atenuadas. Ali, diante das janelas, em meio dos arbustos em flor, zumbiam as abelhas; o sol e leves sombras de folhagem penetravam no quarto e eu, sentado ao piano, ouvia Gertrud cantar, acompanhava atentamente o som da sua voz, que subia em leves vibrações, em fáceis embalos; e quando, após uma canção, olhávamos, sorrindo, um para o outro, havia entre nós um acordo completo e confidencial, como entre irmãos. Às vezes, então, eu pensava que seria suficiente estender a mão para colher de mansinho minha felicidade e guardá-la para sempre, e no entanto nunca o fazia, preferindo esperar pelo momento em que Gertrud acabasse mostrando que esse era também o seu desejo e anseio. Ela, porém, parecia respirar um ar de puro contentamento e não desejar outra coisa; e eu, freqüentemente, chegava a ter a impressão de que ela me pedia que não abalasse o nosso tácito acordo e não perturbasse a nossa primavera.

Se isso me causava decepção, consolava-me, contudo, sentir quão profundamente ela se interessava pela minha música, o quanto me compreendia e disso se orgulhava.

Essa situação durou até junho. Depois, Gertrud viajou com o pai para as montanhas e eu fiquei na cidade; e, quando passava diante da sua casa, essa estava vazia atrás do seus plátanos e com o portão fechado. Então, a dor recomeçava, recrudescia e perseguia-me pela noite adentro.

Nesse tempo eu ia, à noite, levando quase sempre músicas comigo, à casa dos Teiser, partilhava da sua frugal existência, bebia do seu vinho austríaco e tocava Mozart com eles. Depois, voltava para casa e no ar suave da noite, via os casais de namorados passearem nos jardins públicos e, emcasa, deitava-me na cama, cansado, mas sem conseguir conciliar o sono. Achava, agora, inconcebível que eu pudesse ter mantido com Gertrud um trato tão fraternal, que não tivesse quebrado o encantamento, atraindo-a a mim, arrebatando-a e conquistando-a. Eu a via no seu vestido azul-claro ou cinzento, bem-humorada ou séria, ouvia a sua voz e não compreendia como pudesse algum dia tê-la ouvido sem, apàixonadamente, declarar-lhe o meu amor. Ebrio e febril, levantava-me, acendia a luz e me atirava ao trabalho, fazendo vozes humanas e instrumentos cortejar, implorar e ameaçar; e repetia essa canção do anseio em novas e apaixonadas melodias. Muitas vezes, porém, essa colaboração não me chegava; e, então, permanecia deitado, abrasado e com os sentidos em tumulto, numa delirante insônia, a repetir desvairadamente o seu nome, Gertrud, Gertrud; e não queria saber de consolo e esperança, mas me abandonava, desesperado, à horrenda impotência do desejo. Invocava Deus, perguntando-lhe por que me havia feito assim, por que me havia mutilado e, em vez daquela felicidade concedida até aos mais pobres, não me tinha dado outra coisa senão o cruel consolo de revolver-me em sons e continuar incessantemente a pintar, ante o meu desejo, o inatingível em incorpóreas fantasias sonoras.

Durante o dia, eu podia dominar melhor a minha paixão. Mordia os lábios, punha-me ao trabalho de manhã cedo e, à força, conseguia a calma com longas caminhadas e me reanimava mediante duchas frias. Mas, ao escurecer, fugia da ameaçadora sombra do cair da noite na serena vizinhança dos irmãos Teiser, onde, por algumas horas, encontrava sossego e, às vezes, até quase que a paz do espírito. Teiser notava perfeitamente que eu sofria e estava enfermo; atribuía-o, porém, ao trabalho e me aconselhava repouso, muito embora ele próprio estivesse alvoroçadíssimo e, no fundo, visse minha ópera crescer com excitação e impaciência iguais às minhas. Por vezes, ia buscá-lo, para ficara sós com ele; e íamos os dois passar horas da noite num fresco jardim de hospedaria, onde, contudo, os casais de namorados, o azul do céu noturno, os lampiões, os fogos de artifício e o perfume de intenso desejo, que têm sempre as noites de verão dos citadinos, não me faziam bem.

O pior de tudo foi quando Teiser também partiu, a fim de ir passar as férias excursionando com Brigitte pelas montanhas. Convidou-me para acompanhá-los e o convite era sincero por mais que eu, com a minha dificuldade de caminhar, lhes fosse estragar o gosto pelas caminhadas; mas eu não podia aceitar. Durante duas semanas, permaneci sozinho na cidade, insone e extenuado, e o trabalho não progrediu mais.

Foi quando Gertrud me mandou, de uma aldeia do Valais, uma caixinha cheia de rododendros. Quando via a sua letra e desembrulhei as flores, murchas e amarelecidas, foi como se um olhar dos seus queridos olhos pousasse sobre mim; e envergonhei-me da minha exasperação e desconfiança. Achei que seria melhor se ela estivesse a par do meu estado; e, no dia seguinte, escrevi-lhe breve carta. Nela, contava-lhe, em tom meio jocoso, que não podia mais dormir, que isso se dava pela saudade que sentia dela, e que não podia mais aceitar a sua amizade, já que, da minha parte, tratava-se de amor. Ao escrever, fui novamente empolgado pela paixão, e a carta, que tinha começado calma e quase brincalhona, tornou-se, no fim, veemente e ardorosa.

O correio trazia, quase todos os dias, saudações e postais ilustrados dos irmãos Teiser, os quais não podiam imaginar que seus cartões e cartinhas me causavam, todas as vezes, uma decepção, pois eu aguardava correio de outra mão.

Por fim, este chegou: um envelope cinzento com a leve, serena letra de Gertrud, e contendo uma carta.

"Querido amigo.

Sua carta deixa-me perplexa. Vejo que sofre e atravessa um período difícil, de outro modo deveria repreendêlo de querer coagir-me assim. O amigo sabe muito bem o quanto lhe sou afeiçoada; mas eu estou contente com a minha atual condição e não sinto ainda o menor desejo de mudá-la. Se visse o perigo de vir a perder o amigo, faria tudo para guardá-lo. Mas não posso responder à sua ardente carta. Procure ser paciente, deixe as nossas relações no pé em que estavam, até que possamos rever-nos e falar um com o outro. Então, tudo será mais fácil.

Com amizade,

Gertrud"

Com isso, a situação não se havia modificado muito; a carta, no entanto, fez-me bem. Era uma saudação dela; ela tolerava e admitia que eu lhe fizesse a corte; não me tinha repelido. E a carta trazia, ainda, um pouco da sua personalidade, um pouco da sua clareza quase fria; e, em vez da imagem que a minha saudade havia criado dela, era ela própria que se encontrava novamente diante dos meus pensamentos. Seu olhar pedia-me confiança, eu sentia a sua proximidade e, incontinenti, surgiram em mim a vergonha e o orgulho, que me ajudaram a levar de vencida o langor que me consumia e a reprimir os veementes desejos. Não consolado, mas fortalecido e já apto para defender-me, reergui a cabeça. Fui alojar-me, levando o meu tralho, na hospedaria de uma aldeia, a duas horas da cidade. E ali ficava longamente sentado à sombra de um caramanchão de desfloridos lilases, refletindo e admirando-me da minha vida. Quão solitário e estranho seguia eu o meu caminho, incerto do fim ao qual me levaria! Em parte alguma havia lançado raízes e adquirido direito de cidadania. Com meus pais, as relações eram apenas formais, mediante cartas corteses; e tinha abandonado a minha profissão para perseguir perigosas fantasias de criador, que não me saciavam. Os meus amigos não me conheciam, Gertrud era o único ser com o qual poderia ter um entendimento total e uma comunhão perfeita. E o meu trabalho, aquilo para o qual eu vivia e que devia dar sentido à minha existência, não passava de um correr no encalço de sombras e um construir castelos no ar! Poderia ter realmente um sentido, e justificar e encher uma vida humana, ficar alguém amontoando séries de notas e brincando, emocionado, com construções sonoras, que, no melhor dos casos, algum dia ajudariam outros seres a passar uma hora agradável?

E, não obstante, tornei a trabalhar com um certo zelo; e, nesse verão, consegui concluir interiormente a minha ópera, mesmo se, exteriormente, faltasse ainda muito e só a menor parte estivesse escrita. As vezes, eu era novamente possuído por luminosa alegria e pensava com orgulho que minha obra iria conferir-me poder sobre os homens, que cantores e professores de orquestra, regentes e coros haveriam de ser executores da minha vontade e que ela repercutiria em milhares de pessoas. Noutros momentos, parecia-me quase sinistro e com um ar espectral que todos esses afãs e esse poderio devessem brotar dos sonhos e fantasias impotentes de um pobre e solitário ser humano, de quem todos se compadeciam. Noutros, ainda, perdia o ânimo e achava impossível que algum dia o meu trabalho fosse levado à cena, que tudo nele era falso e excessivo. Isso, contudo, acontecia raramente: no fundo, estava persuadido da vitalidade e da força da minha obra. E, realmente, ela era sincera e apaixonada, fora verdadeiramente vivida e corria sangue em suas veias; e ainda que hoje não goste mais de ouvi-la e componha música totalmente diferente, há, naquela ópera, toda a minha mocidade, de sorte que, quando alguns dos seus compassos voltam ao meu ouvido, dão-me a impressão de um tépido vento de primavera que viesse até mim, soprando dos abandonados vales da juventude. E quando penso que todo o seu fogo e o seu poderio sobre os corações nasceram da fraqueza e da privação e da saudade, não sei mais se a minha vida toda daquele tempo, e também a de hoje, deva ser para mim motivo de alegria ou de dor.

O verão aproximava-se do fim. Numa noite escura, ouvindo os violentos soluços de um pesado aguaceiro, terminei de escrever a ouverture. Pela manhã, a chuva abrandara e refrescara, o céu se apresentava uniformemente cinzento e o jardim, outonal. Empacotei minhas coisas e regressei para a cidade.

De todos os meus conhecidos, somente Teiser e a irmã já tinham voltado. Fui vê-los, bronzeados e de saudável aspecto. Haviam tido muitas aventuras, em suas excursões; apesar disso, demonstraram-se interessadíssimos e curiosíssimos de saber ém que ponto estava a minha ópera. Tocamos aouverture e eu próprio achei, até, solene o momento em que Teiser pôs a mão no meu ombro e disse para a irmã:

- Olha para ele, Brigitte, este é um grande compositor! Não obstante toda a saudade e emoção, eu aguardava com confiança a volta de Gertrud. Poderia mostrar-lhe um bocado de trabalho feito, ela o sentiria e compreenderia e teria prazer nele como se fosse seu próprio. Mais que tudo, porém, estava impaciente pela volta de Heinrich Muoth, cujo auxílio me era indispensável e do qual fazia meses não ouvira mais nada.

Por fim, ele apareceu, ainda antes do regresso de Gertrud, e, uma manhã, veio ao meu quarto. Olhou-me demoradamente no rosto.

- O senhor está com um aspecto péssimo - disse, abanando a cabeça. - Pudera, quando se escrevem coisas assim!

- Deu uma olhada no seu papel? - Uma olhada? Conheço o papel de cor e poderei cantá-lo assim que o senhor quiser. É uma música danada de boa!

- O senhor acha? - Vai ver, meu amigo. O seu tempo de sossego já terminou, espere só! Assim que a ópera tiver sido representada, acabou-se a sua celebridade de mansarda. Bem, isso é problema seu. Quando é que vamos cantar? Porque eu teria algumas observações a fazer. Em que ponto está a obra toda?

Mostrei-lhe o que havia para mostrar e ele me levou imediatamente para a sua casa. Ali ouvi-o cantar, pela primeira vez, aquele papel, para o qual, através de toda a minha paixão, nunca deixara de pensar nele, e senti a pujança de toda a minha música e da sua voz. Só então pude ver mentalmente diante de mim, no palco, a ópera toda, somente agora a minha própria chama vinha ao meu encontro, fazendo-me sentir o seu calor, e já não me pertencia, não era mais obra minha, mas tinha a sua vida própria e atuava em mim como uma força estranha. Pela primeira vez, senti esse desprender-se da obra do seu criador, em que, até ali, não tinha acreditado muito. A minha obra começou a tomar corpo, a mover-se e dar mostras de estar viva; pouco antes, eu ainda a tinha nas minhas mãos, e agora já não era minha, era como uma criança que se subtraíra à autoridade do pai e exercia poder por sua própria conta, olhava para mim com olhos independentes que eu não lhe conhecia e, no entanto, trazia gravados na testa o meu nome e o meu cunho. A mesma sensação de desdobramento, por vezes até terrificante, tive mais tarde, durante as representações.

Muoth estudara bem o papel e o que desejava ver modificado era coisa que eu podia conceder-lhe de bom grado. Mas, curioso, perguntou pelo papel de soprano, que ele conhecia somente em parte, e quis saber se já o ouvira cantado por alguma cantora. Tive então, pela primeira vez, de falar-lhe de Gertrud, e consegui fazélo com calma e discrição. Ele já conhecia o nome, mas nunca tinha estado na casa dos Imthor e ficou admirado ao saber que Certrud havia estudado o papel e sabia cantar.

- Nesse caso, deve ter uma boa voz - admitiu - muito aguda e leve. Quer levar-me até lá, algum dia?

- Eu mesmo lhe teria pedido isso. Gostaria de ouvi-lo cantar, algumas vezes, juntamente com a Srta. Imthor; vão ser necessárias umas quantas correções. Assim que pai e filha estiverem de volta na cidade, pedirei que o recebam.

- Afinal, é um homem de sorte, meu caro. E, para a orquestração, tem o Teiser como colaborador. Pode ter certeza, a obra será um sucesso.

Eu não disse nada, não tinha ainda a mente livre para pensar no futuro e no destino da minha ópera; primeiro, era preciso terminá-la. Mas, desde que o ouvira cantar, também acreditava na força do meu trabalho.

Teiser, a quem contei tudo isso, disse irritado: - Acredito. O Muoth tem realmente uma bela voz. Pena que, quando canta, seja um trapalhão. Ele nunca se preocupa com a música, só consigo mesmo. É um homem sem escrúpulos, em tudo.

No dia em que, atravessando o jardim outonal, onde as folhas das árvores começavam lentamente a cair, entrei na casa dos Imthor para, finalmente, visitar Gertrud, já de volta, o coração batia-me em grande aflição. Ela, porém, mais linda e graciosa, e com a tez um pouco bronzeada, veio sorrindo ao meu encontro, estendeu-me a mão e, coma sua meiga voz, seus claros olhos e todo o seu modo de ser, desenvolto e nobre, voltou a exercer imediatamente sobre mim o antigo fascínio; de tal sorte que eu, feliz, pus de lado os meus temores e desejos e dei-me por satisfeito com estar de novo na sua benéfica presença. Ela deixou-me falar, e como eu não encontrasse a maneira de chegar a tocar no assunto da minha carta e do pedido que continha, também ela guardou silêncio a respeito e não deu a menor indicação de que a nossa camaradagem estivesse toldada ou corresse perigo. Não procurou esquivar-se e voltou a estar, freqüentemente, sozinha comigo, confiando em que eu respeitaria a sua vontade e não tornaria a requestá-la, antes que ela mesma me encorajasse a fazê-lo. Passamos imediatamente a tocar e cantar tudo o que eu compusera nos últimos meses e eu lhe contei que Muoth já aprendera seu papel e o elogiava. Pedi-lhe permissão de trazê-lo comigo, já que me era indispensável ouvir cantados juntos, por ambos, os dois papéis principais. Ela deu seu consentimento.

- Já sabe que não o faço com muito prazer - disse. - Não costumo cantar diante de estranhos, e diante do Sr. Muoth isso me é duplamente penoso. E não somente porque é um cantor célebre. Ele tem qualquer coisa que me assusta, pelo menos no palco. Enfim, veremos; irá tudo bem.

Não me atrevi a defender o meu amigo e tecer-lhe louvores, para não a intimidar ainda mais. Estava persuadido de que, depois da primeira experiência, ela de bom grado continuaria a cantar com ele.

Alguns dias depois, fui lá, de carro, com Muoth. Éramos esperados e fomos recebidos pelo dono da casa, que se mostrou extremamente cortês e frio. Em nada ele se opunha às minhas freqüentes visitas e à minha intimidade com Gertrud, e teria dado uma risada se alguém o alertasse a esse propósito. Mas que agora viesse também Muoth, não era muito do seu gosto. Este último estava muito elegante e portou-se com absoluta correção, o que pareceu surpreender agradavelmente os Imthor. O cantor, reputado por homem violento e arrogante, pôde mostrar maneiras perfeitas; também não se revelou nada orgulhoso e, ao falar, o fez de modo resoluto, mas modesto.

- Vamos cantar? - perguntou Gertrud, após uns momentos; e nos levantamos para ir à sala de música.

Sentei-me ao piano, esbocei prelúdio e cena, dei algumas explicações e, por fim, pedi a Gertrud que começasse. Ela o fez de formaacanhada e cautelosa, em meia voz. Muoth, ao contrário, quando chegou a sua vez, cantou sem hesitações e sem se poupar, em voz cheia, empolgando tanto a ela quanto a mim, de modo que não tardou a contagiar-nos e Gertrud acabou perdendo o acanhamento. Muoth, que nas casas das famílias da boa sociedade costumava tratar as senhoras com muita cerimônia, dispensava-lhe, agora, toda a atenção; demonstrou interessar-se pelo seu canto e expressou-lhe admiração, com palavras cordiais e sem exageros, como entre colegas.

Daquele dia em diante, a situação de embaraço desapareceu: a música estreitava a amizade e a unanimidade entre nós. E minha obra, que continuava meio morta em trechos mal concatenados, foi crescendo cada vez mais, como um todo dentro de mim. Agora eu sabia que o principal já estava feito e que não havia mais nada de essencial que pudesse prejudicá-lo, e o trabalho pareceu-me bom. Não escondi a minha alegria e agradeci, comovido, aos meus dois amigos. Solenes e exultantes, saímos da casa e Heinrich Muoth me levou para um improvisado banquete no seu hotel. Ali, ao champanha, fez o que não quisera fazer nunca: tratou-me por tu e não voltou atrás; e fiquei contente e aceitei o tratamento.

- Cá estamos nós festejando alegremente o teu futuro sucesso.- disse, rindo - e fazemos bem em festejá-lo antecipadamente, é ainda a melhor maneira. Depois, tudo muda de aspecto. Agora, vais ingressar rapidamente no brilho da luz da ribalta, rapaz, e convém brindarmos a que isso não te liquide, como acontece à maioria.

Ainda durante algum tempo, Gertrud conservou sua timidez na presença de Muoth, mostrando-se sem constrangimento e sem prevenções em relação a ele somente na hora de cantar. Ele era muito reservado e respeitoso; aos poucos, Gertrud teve prazer em que ele fosse lá e, todas as vezes, tal como fazia comigo, o envidava, com desenvolta afabilidade, a voltar. Mas as horas em que nós três ficávamos juntos sozinhos tornaram-se raras. Os papéis haviam sido cantados e discutidos do princípio ao fim, e na casa dos Imthor tinham recomeçado com regularidade os saraus musicais, nos quais agora também Muoth, de quando em quando, comparecia, sem, contudo, participar como cantor.

Por vezes, parecia-me perceber que Gertrud começava a tornar-se menos familiar comigo, que se retraía um pouco; mas me censurava por esses pensamentos e me envergonhava da minha desconfiança. Compreendia que Gertrud, como dona-de-casa sociável, tinha de estar muito atarefada; e, amiúde, me regozijava de vê-la ir e vir e tomar providências em meio dos convidados, com sua figura esbelta e soberana e, no entanto, cheia de graça.

As semanas passaram depressa, para mim. Dedicava muito tempo ao meu trabalho, que pensava concluir, se possível, durante o inverno. Encontrava-me com Teiser, passava noites em sua casa, com ele e a irmã, e, além disso, tinha toda sorte de correspondência e de experiências, pois minhas canções começavam a ser cantadas um pouco em toda parte, e em Berlim houve execuções de tudo o que eu escrevera para instrumentos de corda. Chegavam pedidos e críticas de jornais, e de repente pareceu que alguém já sabia que eu trabalhava numa ópera, se bem que nunca tivesse dito uma só palavra a esse respeito, a não ser com Gertrud, os Teiser e Muoth. Agora, porém, que outros o soubessem, era indiferente; e, no fundo, esses indícios de sucesso me alegravam: parecia que, finalmente, mas ainda bastante cedo, um caminho se abria à minha frente.

Durante um ano inteiro, não fora mais à casa de meus pais, e pelo Natal viajei até lá. Minha mãe mostrou-se carinhosa, mas tolhida pelo velho constrangimento existente entre nós e que era, em mim, um medo de não ser compreendido e, nela, uma descrença na minha vocação artística e uma desconfiança contra a seriedade dos meus esforços. Agora, ela falava animadamente daquilo que tinha ouvido e lido a meu respeito, mais para dar-me alegria, contudo, do que por convicção, porque no fundo duvidava tanto desses aparentes sucessos quanto da minha música toda. Não é que não gostasse de música - ela própria, antigamente, cultivara o canto; mas a profissão de músico continuava sendo, aos seus olhos, um tanto chinfrim, e, além disso, não podia compreender ou aprovar a minha música, da qual conhecia alguns trechos.

Meu pai tinha mais fé. Como comerciante, pensava, antes de mais nada, na minha subsistência material, e se bem que me tivesse sempre auxiliado largamente, sem resmungar, e, desde a minha saída da orquestra, suportado de novo todas as despesas do meu sustento, via de bom grado que eu começava a ganhar algum dinheiro, com a perspectiva de algum dia poder viver do meu próprio trabalho, o que ele considerava, mesmo no caso de uma pessoa de posses, como base indispensável de uma existência honrosa. Aliás, estava acamado: tinha levado uma queda, justamente na véspera da minha chegada, ferindo-se no pé.

Encontrei-o com pendor para conversas de leve sabor filosófico. Senti-me ainda mais chegado a ele e tive prazer em ouvir as expressões da sua prática e experimentada sabedoria da vida. Pude lamentar-me com ele de alguns dos meus sofrimentos, o que, por vergonha, nunca fizera antes. E, nisso, ocorreu-me uma sentença de Muoth, que repeti a meu pai. Muoth dissera, certa vez, se bem que não a sério, que considerava a juventude como o período mais difícil da existência, e achava que as pessoas idosas são, na maioria das vezes, muito mais alegres e contentes do que os jovens. Meu pai riu e, depois, pensativo, opinou:

- Nós, velhos, dizemos o contrário, naturalmente. Nem por isso o teu amigo deixou de acertar com uma parte da verdade. Eu penso que, na vida, é possível estabelecer-se um limite preciso éntre a juventude e a velhice. A juventude acaba quando acaba o egoísmo, a velhice começa quando se começa a viver para os outros. Entendo isso do seguinte modo: os jovens têm, em sua vida, muitos prazeres e muitos sofrimentos, porque vivem somente para si mesmos. Então, todo desejo e toda idéia que vêm à cabeça são importantes, saboreia-se todo o prazer ou amarga-se todo o sofrimento, até o fim, e há mesmo quem, não julgando seus desejos realizáveis, atire a vida fora. Isso é próprio da juventude. Para a maioria dos homens, no entanto, chega um tempo em que essa atitude muda e em que passam a viver mais para os outros, não por virtude, em absoluto, mas muito naturalmente. Com a maioria, é a família que o determina. A pessoa, quando tem filhos, pensa menos em si e nos seus desejos. Outros perdem o egoísmo em prol de um cargo, da política, da arte ou da ciência. A juventude quer divertir-se; a velhice, trabalhar. Ninguém se casa só para ter filhos, mas, uma vez que os tem, eles o modificam, e no fim ele percebe que tudo, na verdade, acontecera somente em função deles. Isso prende-se ao fato de que a juventude, sem dúvida, gosta de falar da morte, mas nunca pensa nela. Com os velhos, dá-se o contrário. Os jovens julgam que vão viver eternamente; daí poderem reportar a si mesmos todos os seus desejos e pensamentos. Ao contrário, os velhos já perceberam que, num ponto qualquer, existe um fim, e que tudo o que alguém tem ou faz só para si mesmo acaba por cair no vazio e perder o valor. Assim, necessitam de outra eternidade, bem como da crença de que não estão trabalhando unicamente para os vermes. Para isso existem mulher e filhos, atividades e cargos e pátria: para saber-se por quem é, afinal de contas, que suportamos a lida e o desgaste e as aflições cotidianas. Nesse ponto, o teu amigo tem toda a razão: a pessoa está mais contente quando vive para outros do que quando vive para si própria. Só que os velhos não deveriam fazer tanto alarde disso, como se fosse uma espécie de heroismo, que não é. E, ainda, verifica-se que os melhores dentre os velhos provêm dos jovens mais vivos e não daqueles que já se portam como avós nos bancos da escola.

Demorei-me em nossa casa durante uma semana e passei muitas horas sentado à cabeceira de meu pai, que não era um enfermo resignado e que, cumpre dizê-lo, à parte o pequeno ferimento no pé, gozava de ótima saúde e de toda a sua energia. Confessei-lhe o meu pesar por não lhe haver feito justiça e não me ter aberto com ele antes, mas ele declarou que isso era recíproco e mais proveitoso para a nossa futura amizade do que se tivéssemos encetado prematuras tentativas de mútua compreensão, que são raramente bem-sucedidas. De forma cautelosa e amigável, quis saber, depois, em que pé estavam minhas relações com mulheres. A respeito de Gertrud, preferi não dizer nada; o resto da minha confissão era muito simples.

- Consola-te! - disse meu pai, sorrindo. - Tens o estofo para seres um bom marido, isso as mulheres inteligentes percebem logo. Só numa pobretona não deves acreditar, poderia visar somente o teu dinheiro. E, se não encontrares aquela que idealizas e gostarias de ter, nem tudo estará perdido. O amor entre dois jovens e aquele que vive num longo casamento não são a mesma coisa. Na juventude, cada qual pensa em si e cuida de si. Mas, uma vez que se forma uma família, existem outras coisas para se cuidar. Deves saber que o mesmo sucedeu também comigo. Eu estava muito apaixonado por tua mãe e o nosso foi um legítimo casamento de amor. Mas isso durou um ano ou dois; aí, a paixão acabou e não tardou a consumir-se até o último restinho, e cada um de nós ficou, então, sem saber bem como haver-se com o outro. Foi quando chegaram os filhos, as tuas duas irmãs mais velhas, que morreram muito cedo, e fomos obrigados a cuidar delas. Com isso, as nossas recíprocas pretensões diminuíram, a situação de estranheza cessou e, de um momento para o outro, o amor esteve novamente entre nós, se bem que não o anterior, mas outro, totalmente diferente. E, a partir daí, ele resistiu, sem precisar de muitos remendos, por mais de trinta anos. Não são todos os casamentos de amor que se saem tão bem; são poucos, por sinal.

Essas opiniões, na verdade, não serviam muito ao meu caso, mas os novos laços de amizade com meu pai me fizeram bem e renovaram o meu amor pela cidade natal que nos últimos anos se tinha tornado quase indiferente para mim. Quando tornei a partir, não estava arrependido da visita e decidi manter-me, no futuro, em melhores relações com os meus velhos.

O trabalho e algumas viagens ligadas à execução da minha música para cordas impediram-me, durante algum tempo, de visitar a casa dos Imthor. Quando voltei, encontrei Muoth, que antes tinha ido lá somente na minha companhia, entre os mais assíduos convidados. O velho Imthor continuava a tratá-lo com frieza e uma leve aversão, mas Gertrud parecia ter-se tornado sua boa amiga. Isso alegrou-me; não via nenhum motivo para ter ciúmes e estava persuadido de que dois seres tão desiguais como Muoth e Gertrud poderiam perfeitamente ter simpatia e interesse um pelo outro, mas não com mútua satisfação e amor. Assim, não alimentava a menor desconfiança quando ela cantava com ele e as duas belas vozes se misturavam. Ambos eram bem-apessoados, ambos figuras de elevada estatura e porte ereto, ele introvertido e sério, ela brilhante e serena. Sem dúvida, nos últimos tempos, eu tinha a impressão de que a velha e inata jovialidade de Gertrud fizesse algum esforço para manter-se, e de que às vezes estivesse cansada e anuviada. Ela, não raro, me olhava de modo grave e indagador, com curiosidade e interesse, como duas pessoas, preocupadas e assustadas, quando olham uma para a outra; se então eu lhe respondia com um sorriso alegre e um sinal da cabeça, ela distendia seus traços num sorriso, mas tão lentamente e com tamanho esforço, que me causava dó.

Só muito raramente, contudo, fiz essas observações; noutros momentos, Gertrud parecia bem-humorada e radiante como nunca, e assim considerei aquelas observações como fruto da minha imaginação ou atribuía sua origem a um mal-estar passageiro da moça. Somente uma vez fiquei seriamente alarmado.

Enquanto um dos amigos da casa tocava Beethoven, ela estava sentada, reclinada para trás na semi-escuridão, e devia julgar-se totalmente inobservada. Pouco antes, em plena luz, durante a recepção, eu a vira o tempo todo sorridente e animada, no meio dos convidados. Agora, no entanto, ensimesmada e, evidentemente, alheia à música, relaxara o rosto, que tinha uma expressão de cansaço, medo e timidez, como uma criança aflita e perplexa. Isso durou alguns minutos e, quando o percebi, meu coração queria parar de bater. Ela sofria e tinha algum desgosto, já isso era grave; e que se fingisse alegre comigo e me escondesse tudo, assustava-me. Assim que a música terminou, dirigi-me paro onde ela estava, sentei-me ao seu lado e iniciei uma conversação inofensiva. Falei que o inverno a mantinha muito atarefada e que Ou também sentia falta dela; mas disse isso tudo de leve, em tom de gracejo. Por fim, lembrei-lhe o tempo da primavera, quando tínhamos tocado, cantado e discutido juntos o começo da minha ópera.

Foi então que ela disse: - Sim, aquele foi um lindo período. Não acrescentou mais nada, mas já era uma confissão, pois o dissera com involuntária gravidade. Eu, porém, li naquelas palavras uma esperança para mim; e o meu coração lhe ficou grato,

Teria gostado de renovar-lhe a minha pergunta do verão. Pensava que, com toda a modéstia, podia interpretar a sua mudança de gênio, o embaraço e o esquivo acanhamento que ela, às vezes, demonstrava comigo, como sinais a mim favoráveis. Sentia-me comovido de ver que o seu amor-próprio de moça parecia sofrer e defender-se. Mas não me atrevi a dizer-lhe nada, por pena dela, na insegurança que revelava; e, também, julguei que devia respeitar a minha tácita promessa. Nunca soube como haver-me com as mulheres e pratiquei o erro oposto ao de Heinrich Muoth: comportei-me com as mulheres como com os amigos.

Já que, depois de algum tempo, não podia mais considerar as minhas observações como fruto de imaginação e que, contudo, compreendia só pela metade a mudada atitude de Gertrud, retraí-me, rareei um pouco as minhas visitas e evitei toda sorte de conversação íntima com ela. Pois, já que parecia sofrer e lutar consigo mesma, minha intenção era poupá-la e não a intimidar e assustar ainda mais. Ela, creio, o notou e não desgostou da minha reserva. Eu contava com que, no fim do inverno e da sua movimentada vida social, voltasse para ambos um período calmo e bonito; queria esperar até lá. Fréqüentemente, porém, a linda moça me causava grande pena, e contra a minha vontade eu próprio comecei, aos poucos, a inquietar-me, farejando qualquer coisa grave no ar.

Veio fevereiro; eu desejava ardentemente a chegada da primavera e padecia desse estado de tensão. Também Muoth pouco me visitava; é verdade que tinha um inverno de grande atividade, na Ópera, e que devia escolher entre dois honrosos chamados, que lhe haviam chegado ultimamente, da parte de grandes teatros. Não parecia ter mais nenhuma amante; eu, pelo menos, não tinha visto mais nenhuma mulher na sua casa, depois do rompimento com Lotte.

Havíamos, pouco antes, festejado o seu aniversário; desde então, não o vira mais. E agora sentia necessidade de visitá-lo. Eu começava a sofrer pela mudança das minhas relações com Gertrud, o excesso de trabalho e o cansaço invernal; e fui procurá-lo para voltar a palestrar com ele. Muoth serviu-me um sherry e começou a falar-me do teatro; estava, aliás, cansado, distraído e estranhamente manso. Fiquei a ouvi-lo, olhando em redor pelo quarto, e ia, justamente, perguntar-lhe se tinha voltado à casa dos Imthor quando vi sobre a mesa, ao lançar para esta um olhar indiferente, um envelope com a letra de Gertrud. Antes ainda que pudesse refletir no caso, senti o terror e a amargura invadirem-me. Podia perfeitamente tratar-se de um convite, um simples bilhete de cortesia; mas, por mais que tivesse tentado acreditar nisso, não conseguia.

Mantive a calma e, pouco depois, fui embora. E já, para meu pesar, eu sabia de tudo. Podia ser um convite, uma ninharia, um acaso - mas eu sabia que não se tratava disso. Subitamente, vi tudo claro e compreendi o que tinha acontecido nos últimos tempos. Propunha-me, sem dúvida, apurar a verdade e esperar, mas todos esses propósitos não passavam de pretextos e evasivas; no fundo, a seta estava cravada e a ferida supurava em sangue, e quando me encontrei sentado no meu quarto, o aturdimento cedeu lugar a uma terrível clareza, que me dava calafrios e me fazia sentir que a minha vida, agora, fora destruída, e aniquiladas a minha fé e as minhas esperanças.

Durante muitos dias, não cheguei a derramar lágrimas nem abandonar-me à dor. Sem o pensar, tinha decidido não mais viver.

Ou melhor, a vontade de viver entorpecera em mim e parecia ter desaparecido de todo. Eu considerava a minha morte como uma tarefa que deve cumprir-se sem discussão e da qual não se indaga se é agradável ou não.

Entre as coisas de que, antes, tinha de cuidar e cuidei, estava, em primeiro lugar, uma visita a Gertrud, a fim de obter - de certo modo, por uma questão de ordem - a confirmação, de todo supérflua para o meu sentimento. Poderia tê-la de Muoth; mas, muito embora ele parecesse menos culpado do que Gertrud, não me sentia com ânimo de ir vê-lo. Fui visitar Gertrud, não a encontrei, voltei no dia seguinte e, durante alguns minutos, entretive-me com ela e com o pai; até que este, julgando que quiséssemos fazer música, nos deixou a sós.

Agora estava sozinha na minha frente, e eu voltei a olhar com curiosidade para ela, que parecia levemente mudada, mas não menos bonita do que em qualquer outra ocasião.

- Desculpe-me, Gertrud-disse, em voz firme- se me vejo obrigado, mais uma vez, a importuná-la. No verão, eu lhe escrevi uma carta... posso ter a resposta agora? Preciso viajar, talvez por muito tempo, senão teria esperado até que, de sua própria iniciativa...

Como ela tivesse empalidecido e olhasse para mim espantada, fui em seu auxílio, prosseguindo:

- Deve dizer-me não, não é verdade? Eu já tinha imaginado. Queria somente ter certeza.

Ela confirmou tristemente com um aceno da cabeça. - É Heinrich? - perguntei. E ela tornou a confirmar com a cabeça; mas, subitamente, assustou-se e agarrou minha mão.

- Perdoe-me! E não faça nada contra ele! - Nem penso nisso, pode ficar descansada-respondi; e tive de sorrir, porque me vieram à memória aquela Marion e aquela Lotte, que também lhe eram tão intimamente afeiçoadas e em quem ele batera. Talvez ele viesse a bater também em Gertrud, destruindo toda a sua majestosa altivez e o seu caráter por demais confiante.

- Gertrud - recomecei - reflita bastante! Não por mim; quanto a isso, já compreendi tudo. Mas Muoth não a fará feliz. Adeus, Gertrud.

A minha frieza e lucidez tinham permanecido inabaláveis. Até que Gertrud, com o mesmo tom que eu conhecia desde que o ouvira de Lotte, olhou para mim, prostrada, dizendo:

- Não vá embora assim, eu não mereço isso da sua parte! Senti meu coração despedaçar-se, e só com muito custo pude dominar-me, estender-lhe a mão e dizer:

- Não quero fazer-lhe mal. Também não desejo prejudicar Heinrich. Mas espere ainda um pouco, não se deixe ainda subjugar por ele! Ele destrói todas as pessoas que ama.

Ela abanou a cabeça e soltou minha mão. - Adeus! - disse em voz baixa. - Não tenho nenhuma culpa. Guarde uma boa recordação de mim e também de Heinrich!

Estava tudo terminado. Voltei para casa e continuei tratando do meu plano como de uma tarefa a realizar. Certamente, de permeio, a dor me trucidava e o coração me sangrava, mas eu via tudo como que de longe e não tinha a mente livre para pensar nisso. Que nos dias ou nas horas que ainda me restavam eu me sentisse bem ou mal, não fazia diferença. Pus em ordem os montes de folhas de música, onde se encontrava a minha semiconcluída ópera, e acrescentei-lhes uma carta a Teiser, a fim de que a obra, se possível, fosse conservada. Ao mesmo tempo, refletia intensamente acerca de como deveria morrer. Teria, de bom grado, poupado meus pais, mas não encontrava nenhum gênero de morte que tornasse isso possível. Afinal, porém, não era tão importante assim; e decidi fazê-lo com o revólver. Todas essas questões emergiam diante de mim apenas como um jogo de sombras, irreais. Firme estava somente a noção precisa de que eu não podia mais viver; atrás do gélido invólucro da minha decisão, já sentia todo o horror do que seria a minha vida, dali em diante. Ela me olhava, monstruosamente, com suas órbitas vazias, e era infinitamente mais feia e temível do que a obscura e, afinal, bastante indiferente representação da morte.

Na tarde do segundo dia, todas as minhas providências tinham sido tomadas. Quis dar ainda uma volta pela cidade, precisava restituir alguns livros à Biblioteca. Tranqüilizava-me saber que à noite não estaria mais vivo. Tinha uma sensação como a da vítima de um acidente, que jaz meio anestesiada em seu leito e nãosente propriamente dor, mas, pressagiando sofrimentos horríveis, espera apenas poder afundar-se na inconsciência total, antes que a prevista dor se torne uma realidade. Era esse o meu estado de espírito. Eu padecia menos de uma dor real do que do torturante pavor de poder voltar à consciência e ter de beber até o fim o cálice, que a invocada morte devia afastar de mim. Por isso, dei minha volta depressa, fiz o que tinha de fazer e regressei diretamente para casa. Fiz somente um pequeno desvio, para não ser obrigado a passar diante da casa de Gertrud. Pois pressentia, sem poder pensá-lo claramente, que se visse a casa o insuportável tormento doqual estava fugindo investiria sobre mim e me abateria.

Assim, respirei ao chegar de volta à casa onde morava; abri o portão e subi imediatamente a escada, com a alma aliviada. Se agora o sofrimento estivesse no meu encalço, estendendo suas garras para mim, se a horrível dor começasse a cavar fundo em qualquer parte do meu ser, eu tinha apenas poucos passos e segundos entre mim e a libertação.

Um homem fardado vinha descendo a escada ao meu encontro. Procurei evitá-lo e, rente à parede, passar por ele, temeroso de que pudesse reter-me. Levou a mão ao boné e pronunciou o meu nome. Olhei para ele, cambaleando. Suas palavras, a parada, o verificar-se daquilo que eu temia provocaram-me calafrios e fui repentinamente tomado de um cansaço mortal, como se devesse cair ao solo, sem qualquer esperança de dar os poucos passos que ainda me faltavam para chegar ao meu quarto.

Entrementes, fitava aturdido o estranho, e como as forças me faltassem, sentei-me num degrau da escada. Ele perguntou se eu estava doente, ao que meneei a cabeça. Enquanto isso, continuava segurando alguma coisa que pretendia entregar-me e que eu não queria receber, até que ele a empurrou, quase à força, na minha mão. Fiz um gesto de recusa, dizendo:

- Não quero. Ele chamou a dona da casa, mas ela não estava. Então, agarrou-me por debaixo dos braços, no intento de levar-me para cima; e, tão logo percebi que não havia escapatória e que ele não me deixaria sozinho, consegui dominar-me de novo e subi na frente para o meu quarto, e, ele me seguiu. Visto, como me pareceu, que me observava com desconfiança, apontei para a minha perna aleijada e fingi que estava doendo, no que acreditou. Procurei minha bolsa e dei-lhe um marco; e ele empurrou definitivamente na minha mão aquilo que eu não queria aceitar e que era um telegrama.

Extenuado, permaneci de pé diante da mesa, refletindo. Agora, sim, tinham-me realmente retido, haviam desfeito o encantamento. Que era aquilo sobre a mesa? Um telegrama, está bem; mas de quem? Fosse lá de quem fosse, não me importava nada. Era irritante receber um telegrama num momento desses. Agora, que eu já tinha tomado todas as providências, no derradeiro instante, alguém ainda me manda um telegrama! Olhei a meu redor: sobre a mesa, estava também uma carta.

Pus a carta no bolso, não me despertava nenhuma curiosidade. Mas o telegrama me atormentava, tinha perturbado minha mente, estorvando o ciclo dos pensamentos. Eu estava sentado à sua frente e o via sobre a mesa; e refletia em se devia lê-lo ou não. Naturalmente era um atentado à minha liberdade, quanto a isso eu não tinha dúvidas. Alguém procurava perturbar-me. A minha fuga era vista com maus olhos, desejava-se que eu consumisse e saboreasse o meu sofrimento até o fim, que não me fosse poupada uma só mordedura, uma só pontada, uma só contração espasmódica.

Por que o telegrama me dava tanto cuidado, não sei. Fiquei sentado à mesa por longo tempo, sem coragem de abri-lo e com o sentimento de que ele ocultava uma força capaz de fazer-me voltar atrás e compelir-me a suportar o insuportável, de que queria fugir. Quando, por fim, o abri, ele me tremia nas mãos; e só lentamente decifrei o seu conteúdo, como se devesse traduzi-lo de uma insólita língua estrangeira. Dizia: "Papai agonizante. Favor vir imediatamente. Mamãe." Aos poucos, compreendi o seu sentido. Ainda na véspera, eu tinha pensado nos meus pais, lastimando ter de magoá-los, mas fora apenas uma consideração superficial. Agora eles se insurgiam, puxavam-me violentamente para trás, faziam valer o seu direito. Acudiram-me imediatamente à memória as conversações que tivera com meu pai no Natal. Os jovens, em seu egoísmo e sentimento de independência, dissera ele, podem chegar a atirar fora sua vida, por uma aspiração contrariada; aquele, porém, que sabe ter sua existência ligada a outrem, os desejos próprios não podem mais levar tão longe. E lá estava eu também preso a tal elo! Meu pai jazia à morte, minha mãe, sozinha ao seu lado, me chamava. A agonia dele e o apelo aflitivo dela, no momento, ainda não me haviam penetrado fundo no coração, eu pensava conhecer sofrimentos piores; mas que não era lícito, agora, arremessar-lhes também o meu próprio fardo, não dar ouvidos ao seu rogo e fugir, isso eu compreendia.

À noite, lá estava eu na estação da estrada de ferro, pronto para a viagem. Fiz, sem a menor vontade, mas conscienciosamente, tudo o necessário: comprei a passagem, embolsei o dinheiro que me deram de volta, aguardei o trem na gare e subi para um carro. Sentei-me num canto, preparado para a longa viagem noturna. Um rapaz entrou no carro, olhou em seu redor, cumprimentou e sentou-se defronte de mim. Perguntou-me alguma coisa e limitei-me a olhar para ele, não pensando em nada e nada desejando, senão que me deixassem sozinho. Ele tossiu, levantou-se, apanhou sua pasta de couro amarelo e foi procurar outro lugar.

O trem corria pela noite adentro, cego e com estúpido empenho, tão bronco e consciencioso quanto eu, como se houvesse alguma coisa para perder-se ou alguma coisa para salvar. Após várias horas, ao pôr a mão no bolso, encontrei a carta. Ainda mais essa, pensei; e abri-a.

Nela, o meu editor escrevia-me sobre concertos e remunerações e me informava de que as coisas iam bem, fazendo bons progressos, e que um importante crítico de Munique escrevera a meu respeito; ele acrescentava parabéns por isso. Junto, vinha um recorte de revista, um artigo com o meu nome como título e uma comprida lengalenga sobre a situação da música hodierna e sobre Wagner e Brahms, e depois uma crítica da minha música para cordas e das minhas canções, com fartos elogios e votos de boa sorte; e, enquanto lia aquelas letras pretas e miúdas, se me tornou gradualmente claro que aquilo se referia a mim, que o mundo e a fama me estendiam a mão. Aí, por um momento, tive vontade de rir.

A carta e o artigo haviam afrouxado a venda diante dos meus olhos e eu, subitamente, voltava a olhar para o mundo e não me via eliminado ou repelido, mas, sim, bem dentro dele e a ele pertencendo. Eu devia viver, tinha de conformar-me com isso. Como era possível? E agora vinha à tona tudo aquilo que, desde havia cinco dias, era a realidade, de que só me dera conta de modo obtuso e de que pensara escapar; e era tudo revoltante e amargo e vergonhoso: era uma sentença de morte e eu não lhe dera execução, tinha de deixá-la descumprida.

Ouvi o estrondear do trem, abri a janela e vi paragens escuras desfilarem encolhidas, tristes árvores desfolhadas de negra ramagem, casas de granjas com amplos telhados e colinas distantes. Tudo parecia existir a contragosto, parecia respirar sofrimento e aversão à vida. Podia-se achá-lo bonito, mas, aos meus olhos, era somente triste. Recordei-me da canção: Foi Deus que assim o quis?"

Por mais que procurasse contemplar, lá fora, árvores, campos e telhados, por mais atento que ficasse ao ritmo das rodas, por mais que me agarrasse, em pensamento, a tudo o que estava longe de mim e que podia recordar sem desespero, não era possível que isso durasse muito. Mal podia cogitar também de meu pai. Ele acabou afundando-se no esquecimento, com a paisagem noturna e as árvores; e, contra a minha vontade e os meus esforços, os pensamentos se voltaram para onde não deviam. Lá estava um jardim com velhas árvores, e entre elas uma casa com palmeiras na entrada, e, em todas as paredes, velhas e escuras pinturas; e eu entrava e subia a escada, passando por todos os velhos quadros, e ninguém me via e eu caminhava pelas salas como uma sombra. Lá estava uma esbelta figura feminina, de costas para mim, uma cabeça de cabelo escuro. Eu via um homem também, e eles estavam abraçados. Via o meu amigo Heinrich Muoth sorrir, como às vezes fazia, de modo tão tristonho e cruel, como se já soubesse que iria fazer sofrer e maltratar também essa moça e que não havia nada que pudesse impedi-lo. Era insensato e absurdo que as mais lindas mulheres coubessem a esse infeliz destruidor, e que comigo todo o amor e as boas intenções fossem em vão. Era insensato e absurdo, mas era assim.

Despertando de uma espécie de sono ou inconsciência, vi, pela janela, a lívida claridade do céu no alvorecer. Estirei os membros inteiriçados; sobriedade e preocupação dominavam o meu modo de sentir, e agora eu via, sombrio e contrariado, as coisas que tinha pela frente. Antes de mais nada, agora cumpria pensar em meu pai e minha mãe.

Amanhecia ainda, quando vi aproximarem-se as pontes e casas da cidade natal. No mau cheiro e na balbúrdia da estação, o cansaço e a relutância me assaltaram tão fortemente, que eu quase não queria descer do trem; depois, tomei minha leve bagagem e subi para a primeira carruagem, que rodando no liso asfalto e, depois, sobre a terra levemente gelada e ruidoso calçamento, parou diante do largo portão da nossa casa, que eu nunca tinha visto fechado.

Agora, porém, estava fechado, e quando, pasmado e assustado, puxei a campainha, não veio ninguém nem ninguém respondeu. Olhei para cima e vi a casa como num sonho alucinante e aflitivo, em que tudo está fechado e deve-se subir por telhados. O cocheiro olhava admirado, à espera. Dirigi-me, ansioso, para a outra porta, que só raramente era usada e que eu, fazia anos, não mais cruzara. Essa estava aberta, e atrás dela achava-se o escritório da firma de meu pai. Quando entrei, lá estavam sentados, em suas
roupas cinzentas, como sempre, silenciosos e empoeirados, os empregados do escritório, os quais, ao meu ingresso, se levantaram e me cumprimentaram, pois eu era o herdeiro. O contador Klemm, cujo aspecto em nada se distinguia daquele de vinte anos antes, fez a sua devida mesura e lançou-me um olhar triste e interrogativo.

- Por que na frente está fechado? - perguntei. - Não há ninguém lá. - Onde se encontra meu pai, então? - No hospital; e a sua mãe também. - Ainda está vivo? - Hoje de manhã estava, porém espera-se a cada momento... - Sim, mas o que é? - Como? Ah, sim, é ainda o pé. Foi tratado mal, é o que todos dizemos. De repente, vieram as dores, o seu pai dava gritos terríveis. Então foi levado para o hospital. Está com septicemia. Ontem, às duas e trinta, telegrafamos ao senhor.

- Sim, obrigado. Agora mande trazer-me, depressa, um sanduíche e um copo de vinho; e um carro, por favor.

Movimentou-se gente, cochichando, e fez-se novamente silêncio. Depois, alguém deu-me um prato e um copo, eu comi o pão e bebi o vinho, subi para um carro, o cavalo arrancou resfolegando e, pouco mais tarde, estava eu diante do portão do hospital, onde enfermeiras de toucas brancas e serventes, em suas roupas de linho listradas de azul, iam e vinham no corredor. Pegaram-me pela mão e levaram-me até um quarto; erguendo os olhos, vi minha mãe, em prantos, fazer-me um aceno com a cabeça e meu pai jazendo numa baixa cama de ferro, mudado e mirrado, com a barbicha grisalha estranhamente empinada para o ar.

Vivia ainda. Abriu os olhos e reconheceu-me, não obstante a febre.

- Ainda fazendo música? - indagou, em voz baixa; e voz e olhar eram, ao mesmo tempo, bondosos e zombeteiros. Piscou os olhos para mim, e havia neles um tipo de sabedoria cansado e irônico, que já não tinha nada a dizer; eu me senti como se ele estivesse olhando dentro do meu coração e vendo e sabendo tudo.

- Pai - falei. Mas ele limitou-se a sorrir, tornou a olhar-me de modo um tanto zombeteiro, mas já com um olhar distraído; depois, fechou novamente os olhos.

- Como estás abatido! - exclamou minha mãe, ao abraçar-me. - A notícia te abalou tanto?

Não pude dizer nada. Logo em seguida veio um jovem médico e, pouco depois, outro, mais velho; deram morfina ao moribundo e aqueles olhos inteligentes, que agora podiam olhar de forma tão superior e onisciente, não se abriram mais. Ficamos sentados à sua cabeceira e o vimos agonizando, e como se aquietava e seu rosto se modificava; e aguardamos o fim. Viveu ainda algumas horas e morreu no fim da tarde. Eu não sentia nada, a não ser uma dor abafada e um profundo cansaço. Fiquei lá sentado, os olhos ardidos e enxutos; e sentado, ao anoitecer, adormeci ao lado do leito do morto.

VI

que a vida é difícil de viver-se, isso de vez em quando eu já havia bscuramente sentido antes. Agora, tinha novos motivos para refletir no caso. Até hoje, nunca mais perdi o sentimento da contradição enraizada naquele reconhecimento. Porque minha vida foi pobre e penosa, e no entanto afigura-se a outros, e por vezes a mim mesmo, rica e esplêndida. Considero a vida humana como uma noite profunda e triste, que não se suportaria se, num ponto ou noutro, não rutilassem repentinos clarões, de uma luminosidade tão consoladora e maravilhosa, que seus segundos podem apagar e justificar anos de escuridão.

A escuridão, a treva desconsolada, é o ciclo da vida cotidiana. Para que nos levantamos de manhã, comemos, bebemos e voltamos a deitar-nos? A criança, o selvagem, o jovem sadio, o animal não sofrem com esse ciclo de coisas e atividades indiferentes. Quem não padece do mal de pensar alegra-se com levantar-se de manhã e comer e beber, acha-o de todo suficiente e não o quer de outra maneira. Mas quem perdeu a sensação da naturalidade disso tudo procura, no transcurso do dia, ávido e atento, os momentos de verdadeira vida, cujo súbito relampejar

todos os pensamentos sobre o sentido e finalidade do todo. Esses podem ser chamados os momentos criadores, porque parecem trazer em seu bojo o sentimento da unificação com o Criador, porque neles todas as coisas, inclusive aquelas que noutras vezes parecem fortuitas, são percebidas como determinadas pela sua vontade. É o mesmo a que os místicos chamam união com Deus. Talvez seja a deslumbrante luz desses momentos o que faz parecer tão escuro tudo o mais, talvez provenha da mágica leveza e do etéreo deleite desses momentos que o resto da existência pareça tão pesado, pegajoso e opressivo. Não sei; pensar, filosofar nunca foi o meu forte. Mas uma coisa eu sei: se existem uma bem-aventurança e um paraíso, só podem consistir na imperturbada duração desses momentos; e, se tal bem-aventurança pode alcançar-se somente mediante o sofrimento e purificação pela dor, nenhuma dor ou sofrimento são tão grandes que deles se deva fugir.

Alguns dias após o enterro de meu pai - eu ainda me achava num estado de prostração e de inércia espiritual - surpreendi-me, durante um passeio ao acaso, numa rua de jardins, no subúrbio. As casas, pequenas e graciosas, despertaram em Mim uma recordação imprecisa, que persegui, cismando, até que reconheci o jardim e a casa do meu velho professor, aquele que alguns anos antes quisera converter-me à doutrina dos teósofos. Entrei, o homem veio ao meu encontro, reconheceu-me e me levou amigavelmente para o seu gabinete de trabalho, onde, no meio dos livros e vasos de flores, pairava leve e agradável aroma de fumaça de cachimbo.

- Como vai passando? - perguntou o Sr. Lohe. - Ah, o senhor perdeu seu pai! E está com um ar muito acabrunhado. A perda o afetou tanto?

- Não - respondi. - A morte de meu pai teria sido mais dolorosa para mim se eu houvesse permanecido um estranho para ele. Mas, na minha última visita, tornamo-nos amigos e fiquei livre do penoso sentimento de culpa que se tem para com pais bondosos, quando se tira deles mais amor do que se lhes pode dar.

- Isso me alegra. - E como vai a sua teosofia? Gostaria que o senhor me dissesse alguma coisa, porque estou passando um mau momento.

- Que há de errado? - Tudo. Não posso viver nem morrer. Acho tudo falso e estúpido.

O Sr. Lohe contraiu dolorosamente seu satisfeito rosto de jardineiro. Devo confessar que até aquele rosto bondoso e gorducho me havia deprimido; tampouco esperava qualquer consolo do homem e da sua sabedoria. Queria apenas ouvi-lo falar, demonstrar a impotência daquela sabedoria e castigá-lo por sentir-se feliz e pela sua crença otimista. Minhas intenções não eram amistosas, nem para com ele nem para com ninguém.

Mas ele não se mostrou nem tão vaidoso nem tão entrincheirado no seu dogma quanto eu julgara. Olhou-me carinhosamente, com sincero pesar, e meneou, penalizado, a loura cabeça.

- O senhor está doente, meu amigo - afirmou, em tom decidido. - Talvez seja apenas do corpo, e nesse caso o tratamento é rápido. O senhor deve ir para o campo, trabalhar duro e não comer carne. Mas creio que o seu mal se encontra em outra parte. O senhor está enfermo da alma.

- Acha? - Acho. O senhor tem uma doença que, infelizmente, anda na moda, e com a qual todos os dias deparamos, em pessoas inteligentes. Os médicos, naturalmente, nada sabem a seu respeito. É uma doença aparentada com a moral insanity,* e pode chamar-se também individualismo ou solidão imaginária. Os livros modernos estão cheios disso. Insinuou-se no senhor a ilusão de que está isolado no mundo, de que nenhum ser humano é da sua conta e de que ninguém o compreende. Não é assim?

- Sim, mais ou menos - reconheci, admirado. - Está vendo? Para quem já contraiu a doença, bastam umas poucas desilusões para levá-lo a crer que entre ele e os outros seres humanos não existem quaisquer relações, ou existem, quando muito, mal-entendidos, e que todo homem, na verdade, anda por aí em absoluta solidão, sem conseguir que os outros o compreendam direito e sem poder compartilhar ou ter nada em comum com eles. Também acontece que tais enfermos se tornem orgulhosos e considerem todos os outros seres, os sãos, que ainda podem compreender-se e amar-se uns aos outros, como rebanho. Se essa doença se generalizasse, a humanidade se extinguiria. Mas ela é encontrada somente na Europa Central, nas altas camadas da sociedade. Nas pessoas jovens ela é curável, e aliás faz parte das doenças inevitáveis do desenvolvimento da juventude.

Seu tom professoral, levemente irônico, irritou-me um pouco.

* Em inglês, no original. (N. do T.)

Como não me visse sorrir nem fazer qualquer gesto em minha defesa, a bondosa expressão de pesar voltou ao seu rosto.

- Desculpe - disse, em tom amigável. - O senhor sofre da própria doença e não da caricatura dela em voga por aí. Mas existe realmente um remédio. Que não haja nenhuma ponte ligando o eu e o tu, que cada qual perambule pelo mundo solitário e incompreendido, é pura imaginação. Ao contrário, aquilo que os seres humanos têm em comum é muito maior e mais importante do que o que cada qual tem por si e pelo qual se diferencia dos outros.

- É possível - disse eu. - Mas de que me serve sabê-lo? Não sou nenhum filósofo e meu sofrimento não consiste em não poder achar a verdade. Não desejo tornar-me sábio nem pensador, mas, simplesmente, levar uma existência um pouco mais contente e mais leve.

- Pois bem, tente! Não precisa estudar nenhum livro nem ocupar-se com nenhuma teoria. Mas, enquanto estiver doente, terá de acreditar num médico. Quer fazê-lo?

- Quero experimentar, sim, de bom grado. - Ótimo. Se o senhor estivesse doente apenas do corpo e o médico o aconselhasse a tomar determinados banhos ou beber determinados remédios ou ir para o mar, talvez o senhor não compreendesse por que esse ou aquele outro meio lhe seria de proveito, mas experimentaria e seguiria o conselho. Pois faça o mesmo com o que lhe aconselho! Aprenda, durante um certo tempo, a pensar mais nos outros do que em si. É o único caminho para a cura.

- Como hei de fazê-lo, se cada qual, antes de mais nada, pensa em si mesmo?

- É necessário superar isso. O senhor precisa chegar a uma certa indiferença para com o seu próprio bem-estar espiritual. Precisa aprender a pensar: que importância tem o meu caso? Para isso, há somente um meio: deve aprender a amar outra pessoa qualquer, de tal maneira que o bem dela seja, para o senhor, mais importante do que o seu próprio. Não quero absolutamente dizer que deva apaixonar-se! Isso seria, até, contrário!

- Compreendo. Mas com quem experimentar? - Comece pelos que lhe estão perto, com amigos, com parentes. Sua mãe, por exemplo. Ela sofreu uma grande perda, está só, agora, e necessita de conforto. Cuide dela, dedique-se a ela e procure ser-lhe de alguma utilidade!

- Minha mãe e eu não nos compreendemos muito bem. Vai ser difícil.

- Claro, se a sua boa vontade se reduz a isso, vai ser difícil. É a velha cantiga do ser incompreendido! O senhor não deve ficar o tempo todo pensando que fulano ou sicrano não o compreendem direito e talvez não lhe fazem justiça. O senhor mesmo é que deve tentar compreender os outros, dar prazer aos outros, fazer-lhes justiça. Proceda assim e comece com sua mãe! O senhor deve dizer a si mesmo: já que a vida, de qualquer maneira, não me agrada, por que não deveria experimentar isso? O senhor perdeu o amor à sua própria vida; pois então não a poupe, ponha um fardo nas suas costas, renuncie à sua escassa comodidade!

- Tentarei. O senhor tem razão: é de todo indiferente o que eu faça; por que não deveria fazer o que o senhor aconselha?

O que me comovia e admirava nas suas palavras era a concordância com aquilo que meu pai, em nosso último colóquio, me expusera como sabedoria de vida: viver para os outros, não levar a si mesmo tão a sério! A doutrina contradizia totalmente o meu sentimento e lembrava um pouco catecismo e preparação para a crisma, coisas nas quais eu, como todo jovem sadio, pensava com aversão e desdém. Mas, afinal de contas, não se tratava de opiniões e concepções filosóficas, e, sim, de uma tentativa exclusivamente prática de tornar suportável a minha difícil existência. Eu queria tentar.

Fitei com admiração os olhos daquele homem, que eu nunca havia levado muito a sério e que agora aceitava como conselheiro e, até, como médico. Mas ele parecia ter realmente um pouco daquele amor que me aconselhava. Parecia compartilhar o meu sofrimento e desejar sinceramente o meu bem. Independentemente disso, já o meu sentimento me dissera que eu precisava de uma cura enérgica, para poder novamente viver e respirar como os demais. Tinha pensado num prolongado período de solidão nas montanhas ou em trabalhar sem descanso; agora, porém, preferia seguir o meu conselheiro, já que minha experiência e sabedoria estavam realmente no fim.

Quando informei minha mãe de que não tencionava deixá-la sozinha, mas esperava que ela viesse morar comigo e partilhar a minha existência, ela meneou tristemente a cabeça.

- Mas que idéia! - comentou. - Isso não é assim tão simples. Eu tenho os meus velhos hábitos e nunca poderia adquirir outros, novos; e tu precisas de liberdade e não tens o direito de te sobrecarregares com a minha presença.

- Poderíamos experimentar - propus. - Talvez seja mais fácil do 'que pensas.

No momento, o que eu devia fazer era bastante para impedir-me de desesperar. Havia uma casa e uma firma de certa importância, com créditos e dívidas; havia livros e contas, dinheiro a receber e dinheiro a ser pago, e surgia a questão de saber-se o que seria daquilo. Eu, naturalmente, estava decidido, desde logo, a vender tudo, mas isso não podia ser feito tão depressa; ademais, minha mãe estava afeiçoada à velha casa, e ainda era preciso cumprir-se o testamento de meu pai, com numerosas cláusulas e dificuldades. O contador e um tabelião tiveram de vir em meu auxilio, dias e semanas passaram-se em conferências e troca de cartas a respeito de dinheiro e dívidas, em planos e decepções. Cedo acabei por ficar completamente perdido, no meio de todas aquelas contas e fórmulas notariais; coloquei um advogado ao lado do tabelião e abandonei-lhes a tarefa de deslindar a meada.

Não raro, enquanto isso, pouco podia" dedicar-me a minha mãe. Eu me esforçava por tornar-lhe mais leve esse tempo, aliviando-a de todas as preocupações com os negócios, lendo para ela e levando-a a passear. As vezes, era-me difícil resistir ao desejo de arrancar-me dali e largar tudo, mas retinham-me o sentimento da vergonha e uma certa curiosidade sobre como aquilo iria acabar.

Minha mãe não pensava noutra coisa, senão no falecido, mas o seu luto manifestava-se numa quantidade de pequenas atitudes bem femininas, que, muitas vezes, me pareciam estranhas e mesquinhas. No começo, eu devia, à mesa, sentar-me no lugar de meu pai; depois, ela achou que eu não condizia com o lugar, o qual teve de ficar vazio. Em certas ocasiões, parecia que eu nunca poderia falar-lhe bastante de meu pai; depois, porém, ela voltava a guardar silêncio e me lançava um olhar doloroso, assim que eu o mencionava. Do que eu mais sentia falta, era a música. Não sei quanto teria dado para poder tocar violino durante uma hora; só me foi permitido, porém, tornar a fazê-lo depois de várias semanas, e mesmo então ela suspirava e via nisso uma espécie de profanação. Aos meus infelizes esforços de tornar-lhe mais compreensiva a minha índole e existência e conquistar a sua amizade, ela não correspondeu nunca.

Não poucas vezes isso me fez sofrer e me deu vontade de desistir daquele propósito; no entanto, consegui sempre dominar-me e fui me acostumando àqueles dias sem ressonância. Minha própria vida jazia frustrada e como morta; só raramente o passado ecoava sombrio, quando, em sonho, eu ouvia a voz de Gertrud ou, em alguma hora vazia, ocorriam-me involuntariamente melodias da minha ópera. Quando viajei a R., a fim de rescindir o aluguel da minha habitação e empacotar os meus pertences, tudo por lá pareceu-me extremamente remoto. Fui visitar somente Teiser, que me auxiliou, como amigo fiel. Não ousei perguntar por Gertrud.

Contra a atitude reservada e resignada de minha mãe, que, com o correr do tempo, começava a oprimir-me demais, fui gradualmente obrigado a abrir verdadeira luta, ainda que sorrateira. Se eu lhe perguntava abertamente o que ela desejava e em que estava descontente comigo, ela me afagava a mão e sorria tristemente, dizendo:

- Deixa, meu filho! Eu não passo, mesmo, de uma velha. Assim, tratei de pesquisar por minha própria conta, sem desdenhar as perguntas ao contador e aos empregados da firma.

Vieram à tona muitas coisas. A principal delas era que minha mãe tinha, na cidade, uma única parenta próxima e amiga, uma prima, velha solteirona que não cultivava muitas relações mas mantinha estreita amizade com ela. Essa Srta. Schniebel já não gostava de meu pai; por mim, porém, tinha demonstrado uma tal antipatia, que nos últimos tempos não vinha mais à nossa casa. Minha mãe prometera-lhe, em tempos idos, que, se sobrevivesse a meu pai, a acolheria em casa; e a minha permanência parecia baldar essa esperança. Depois que, paulatinamente, fiquei sabendo disso, fiz uma visita à velha solteirona e esforcei-me por ser-lhe agradável. Ver-me às voltas com pequenas esquisitices e pequenas intrigas era novo, para mim, e me deu quase prazer. Consegui trazer a velha donzela de volta à nossa casa e notei que minha mãe me ficou agradecida por isso. Mas o fato é que, então, as duas mulheres entraram a manobrar juntas contra a venda, que eu desejava, da velha casa; o que, realmente, conseguiram. A partir daí, as diligências todas da senhorita visaram a tomar o meu lugar na casa e alcançar o tão longamente almejado asilo para a sua velhice, que minha presença ainda lhe obstruía. Teria havido espaço suficiente para mim e para ela, só que ela não queria, a seu lado, nenhum dono-de-casa, e se recusava a vir morar conosco. Por outro lado, não deixou de visitar-nos assiduamente, tornando-se indispensável à amiga em numerosas pequenas coisas; passou a tratar-me diplomaticamente, como uma grande potência perigosa, e acabou apoderando-se, no governo da casa, do posto de conselheira, que não pude contestar-lhe.

Minha pobre mãe não tomava partido nem por mim, nem por ela. Estava cansada e sofria profundamente pela mudança na sua existência. Foi só aos poucos que me dei conta de quanta falta lhe fazia meu pai. Um dia, ao passar por um quarto, onde não podia supor que ela estivesse, encontrei-a atarefada com um armário. Assustou-se com a minha presença e caminhei rapidamente adiante, mas vi perfeitamente que ela examinava as roupas do finado; mais tarde, tinha os olhos vermelhos.

Com a chegada do verão, iniciou-se nova luta. Eu queria viajar com minha mãe; bem que estávamos ambos precisando de um período de repouso, e eu esperava, ao mesmo tempo, dar-lhe ânimo e conquistar maior influência sobre ela. Mas mostrou pouca vontade de viajar, embora quase não levantasse objeções. A Srta. Schniebel, por outro lado, expressou-se a favor de que minha mãe ficasse e eu viajasse sozinho. Contudo, eu não quis de forma alguma ceder nesse ponto: esperava muito dessa viagem. A vida na velha casa, com minha pobre mãe sofrendo e, agora, em constante agitação, começava a parecer-me por demais inquietante; contava, longe dali, poder ajudar mais minha mãe e dominar melhor meus próprios pensamentos e humores.

Assim, logrei que partíssemos em fins de junho. Viajamos em pequenas jornadas, vimos Konstanz e Zurique e, passando pelo Desfiladeiro de Brünig, rumamos para o Oberland bernês. Minha mãe continuava taciturna e cansada, aceitava a viagem passivamente e parecia infeliz. Em Interlaken, começou a queixar-se de que não podia mais dormir, mas persuadi-a a irmos ainda até Grindelwald, onde esperava encontrar paz para mim e para ela. Nessa insensata, interminável e desolada viagem, percebi perfeitamente a impossibilidade de alguém livrar-se de suas próprias misérias e fugir delas. Lá estavam os belos e verdes lagos, espelhando velhas e esplêndidas cidades, lá se elevavam os montes brancos e azuis, e geleiras de um azul esverdeado cintilavam na luz do sol. Mas nós dois passávamos por tudo calados e descontentes, envergonhando-nos de tudo e por tudo tão-somente deprimidos e fatigados. Dávamos nossos passeios, olhávamos para o alto dos montes, respirávamos o ar puro e doce, ouvíamos os chocalhos das vacas nos prados e dizíamos: "Que bonito!", sem ousarmos olhar-nos mutuamente nos olhos.

Em Grindelwald, agüentamo-nos uma semana. Aí, certa manhã, minha mãe me disse:

- Escuta, é inútil, vamos voltar. Gostaria de poder tornar a dormir uma noite. Se tenho de adoecer e morrer, quero que seja em casa.

Fiz então em silêncio as nossas malas, dando-lhe tacitamente razão, e, mais rapidamente do que na vinda, percorremos o caminho todo de volta. Eu tinha, porém, o sentimento de regressar, não para um lar, mas para uma prisão; e minha mãe também mostrava uma satisfação limitada.

Na noite em que chegamos de volta, eu lhe disse: - Que tal se eu partisse em viagem sozinho? Iria novamente para R. Ficaria de bom grado contigo, é claro, se visse nisso alguma utilidade. Mas estamos ambos doentes e deprimidos e não fazemos outra coisa senão continuar a contagiar-nos um ao outro. Toma em casa a tua amiga, ela pode consolar-te melhor do que eu.

Conforme o seu costume, ela agarrou minha mão e a acariciou. Fez com a cabeça um aceno afirmativo e olhou para mim sorrindo; e o sorriso dizia claramente:

- Sim, vai, vai! Com todos os esforços e os bons propósitos, eu nada havia alcançado senão atormentar-nos ambos durante alguns meses e alheá-la ainda mais de mim. Porquanto vivêssemos juntos, cada um de nós tinha carregado o seu fardo sozinho, sem partilhá-lo com o outro, e cada qual não conseguira senão engolfar-se mais profundamente na sua dor e na sua enfermidade. Minhas tentativas haviam sido infrutíferas e eu nada poderia fazer de melhor senão ir embora e deixar campo livre para a Srta. Schniebel.

Foi o que não tardei a fazer, e já que não sabia de outro lugar, voltei para R. Ao partir, veio-me à consciência que, agora, não tinha mais lar. A cidade na qual nascera e vivera os anos da infância e sepultara meu pai não me dizia mais respeito, não tinha mais nada a pedir-me nem nada a dar-me, a não ser recordações. Não o disse ao Sr. Lohe, quando me despedi dele, mas a sua receita não me fora de nenhuma ajuda.

Casualmente, estava ainda livre, em R., a minha velha habitação.

E foi, para mim, um sinal de que de nada vale querer romper os vínculos com o passado e fugir do próprio destino. Voltei a viver na mesma casa, no mesmo quarto e na mesma cidade, tornei a desembrulhar o meu violino e os meus trabalhos e encontrei tudo tal como o deixara, só que Muoth fora para Munique e Gertrud tornara-se sua noiva.

Retomei os pedaços da ópera, como se fossem os destroços da minha vida anterior, com os quais queria ainda tentar alguma coisa. Mas só lentamente recomeçou a música a dar sinal de vida na minha alma inerte, e não acordou senão quando o poeta de todos os textos que eu musicara me mandou uma nova canção. Chegou ela num momento em que, não raro, à noite, eu sentia novamente em mim a velha agitação, e, envergonhado e com mil fogos-fátuos no coração, ia dar voltas em torno do jardim dos Imthor. A canção dizia:

Todas as noites zune o vento sul Movendo a asa úmida e pesada.
Tontas, revoam tarambolas no ar;
Nada mais dorme, sob o céu azul,
A natureza toda está acordada,
- É primavera! - parece exclamar.

Nessas noites não posso mais dormir.
O velho coração rejuvenesce,
Das profundezas da recordação
Torna a felicidade a me sorrir,
Olha-me bem de perto e estremece
E foge, horrorizada, ante a visão.

Aquietar-te convém, meu coração!
Corre lenta no sangue e ainda brada A paixão que vibrou no teu abril
E por velhos caminhos dá-te a mão...
Hoje, o rumo que segue a tua estrada
Não é mais o do tempo juvenil.

Esses versos impregnaram-me o coração, tornando a despertar sons e vida. O sofrimento, tão longamente contido e suportado, derramava-se em dolorosas ardências dentro de mim e escorria em compassos e notas. Partindo da canção, reencontrei o perdido fio da ópera; e, após tão extensa aridez, voltou ela a revolver-me profundamente, na febril ebriedade de um caudal rolando até as livres alturas do sentimento, onde dor e beatitude não podem mais distinguir-se uma da outra e o fervor e a força da alma rompem, indivisos, para o alto, numa única e abrupta labareda.

No dia em que escrevi a nova canção e mostrei-a a Teiser, transitei à noite, voltando para casa, por uma alameda de castanheiros, com todo o meu ser penetrado por crescente energia a me impelir para o renovado trabalho. Os meses passados ainda me olhavam como através de olhos de máscara, em seu desolado vazio. Agora, o meu coração, sôfrego, batia rapidamente e não queria mais compreender por que motivo desejara, antes, fugir da sua dor. A imagem de Gertrud erguia-se, clara e esplêndida, do pó e eu tornava a contemplá-la, sem temor, nos límpidos olhos, escancarando o meu coração a todos os sofrimentos. Ah, mais valia sofrer por ela e cravar mais fundo o espinho na ferida do que escoar, modorrando, tempos fantasmais, longe dela e da minha verdadeira vida! Por entre as escuras e espessas copas dos castanheiros, o azul-escuro do céu transparecia cheio de estrelas, todas elas pairando sérias e douradas e resplendendo indiferentes nas distâncias infinitas. Isso faziam as estrelas, e as árvores punham livremente à vista seus rebentos, floração e cicatrizes, e significassem para elas prazer ou dor, abandonavam-se ao grande impulso vital. As falenas enxameavam às tontas ao encontro da morte, toda e qualquer vida tinha o seu próprio brilho e beleza; e eu olhei, por um momento, no interior disso tudo e o compreendi e achei bom, e considerei boas também minha vida e minha dor.

Durante o outono, terminei a ópera. Nesse período, encontrei, num concerto, o Sr. Imthor. Cumprimentou-me cordialmente e um tanto admirado, pois não sabia da minha presença na cidade. Ouvira somente dizer que meu pai tinha morrido e que, desde então, eu vivia na minha cidade natal.

- Como vai a Srta. Gertrud? - perguntei, o mais calmo possível.

- Oh, o senhor precisa vir averiguar isso pessoalmente. O seu casamento deverá realizar-se em princípios de novembro, e é claro que contamos com o senhor, sem falta.

- Obrigado, Sr. Imthor. E que notícias tem de Muoth?

- Ele está bem. O senhor sabe, eu não concordo muito com esse casamento. Há muito, meu amigo, que teria gostado de interrogá-lo sobre o Sr. Muoth. Até onde o conheço, não posso queixar-me dele, mas ouvi dizerem muitas coisas a seu respeito; parece que teve muitas histórias com mulheres. Pode dar-me alguma informação a esse propósito?

- Não, Sr. Imthor. E, também, seria inútil. Acho difícil que sua filha mude de decisão por causa de boatos. O Sr. Muoth é meu amigo e faço votos pela sua felicidade.

- Sim, sim. Breve tornaremos a ver o senhor em nossa casa? - Penso que sim. Até outro dia, Sr. Imthor. Pouco tempo antes, eu teria feito tudo para impedir o enlace dos dois, não por inveja ou pela esperança de que Gertrud pudesse, afinal, mostrar inclinação por mim, mas porque acreditava e julgava saber de antemão que seria um mal para ambos, porque pensava na melancolia de Muoth, com seu pendor para a autoflagelação, e na sua irascibilidade, do mesmo modo que na delicadeza da alma de Gertrud e porque Marion e Lotte ainda me estavam bem gravadas na memória.

Agora pensava de maneira diferente. Um grande abalo na minha vida, um meio ano de solidão interior e a despedida consciente da juventude tinham-me mudado. Agora era da opinião de que é insensato e perigoso estender a mão para o destino de outros seres e de que não tinha nenhum motivo para considerar minha mão hábil e a mim como um bom protetor e conhecedor dos homens, depois que todas as minhas tentativas nesse sentido se haviam malogrado, deixando-me amargo sentimento de vergonha. Ainda hoje, tenho fortes dúvidas quanto à capacidade dos homens para formar e moldar, com um mínimo de consciência, a vida própria e a alheia. Pelo próprio esforço, pode-se conseguir dinheiro, do mesmo modo que honrarias e condecorações, mas não a felicidade ou a infelicidade, quer para si, quer para os outros. Nisso, pode-se somente tomar o que vem, e é claro que se pode tomá-lo de muitos modos diferentes. No que me dizia respeito, não queria empreender mais nenhuma violenta tentativa de fazer minha existência voltar-se para o lado do sol, mas somente aceitar o que me estava destinado e, na medida das minhas forças, suportá-lo e dirigi-lo para o melhor.

Mesmo que a vida não dependa dessas meditações e passe por cima delas, ainda assim as decisões e os pensamentos adotados de boa fé deixam no seu rastro, afinal, alguma paz no espírito e ajudam a suportar o inevitável. Pelo menos, como quer parecer-me retrospectivamente, desde que adotei uma atitude de resignação e reconheci a indiferença do que pudesse acontecer-me pessoalmente, a vida me tratou com mãos mais suaves.

Que aquilo que não se alcança, por maiores que sejam a vontade e os esforços, chega às vezes inesperadamente, experimentei pouco depois, no caso de minha mãe. Eu lhe escrevia todos os meses e, desde algum tempo, não recebia resposta. Se estivesse passando mal, eu teria vindo a saber; daí, pouco pensar nela e continuar a escrever-lhe cartas, breves informes sobre a minha vida aos quais acrescentava sempre cordiais saudações para a Srta. Schniebel.

Nos últimos tempos, porém, essas saudações deixaram de ser transmitidas. Tudo se havia passado bem demais, para as duas mulheres, e elas não tinham suportado a realização dos seus desejos. A boa vida, notadamente, subira à cabeça da solteirona. Logo após a minha saída, ela triunfalmente completou a ocupação, indo instalar-se na nossa casa. Morava, agora, com a velha amiga e prima, e considerava como bem merecida, após longos anos de privações, a sorte de poder sentir-se no comando de uma casa confortável. Não que tivesse adotado hábitos dispendiosos-para tanto, demasiado fora o tempo passado em condições de aperto e de meia pobreza. Não usava vestidos mais finos nem dormia em outros lençóis; ao contrário, começou a poupar e juntar dinheiro, já que valia a pena e havia o que poupar. Mas ao que ela não queria renunciar eram o poder e a influência. As duas criadas deviam obedecer não menos a ela do que a minha mãe; e, também em relação a entregadores, operários e carteiros, ela se portava como dona da casa. E, já que as paixões não se extinguem com satisfazêlas, aos poucos foi ela estendendo seu gosto de domínio também para coisas nas quais minha mãe não podia estar tão disposta a ceder. Queria que as visitas que se faziam a minha mãe fossem igualmente consideradas como feitas a ela; e não tolerava que a prima recebesse alguma sem ela estar presente. Das cartas, notadamente das minhas, não queria ser informada apenas resumidamente, mas pretendia lê-las ela própria. E, por fim, descobriu que na casa de minha mãe nem tudo era conservado, cuidado e governado como ela julgava certo. Principalmente, não lhe parecia suficientemente rigorosa a vigilância sobre os empregados. Se uma criada não estava em casa depois do jantar, se outra se entretinha por tempo demasiado com o carteiro, se a cozinheira pedia uma saída num domingo, ela censurava, com a máxima severidade, a complacência de minha mãe e fazia-lhe longos discursos sobre como se governa bem uma casa. Além disso, doía-lhe amargamente ver com quanta freqüência e quão grosseiramente se violavam as normas da poupança. Encomendavam carvão demais, a cozinheira não prestava conta de quantos ovos gastava! Zelosa e gravemente, ela se opunha a isso; e foi ali que teve início a desunião entre as duas amigas.

Até então, com efeito, minha mãe admitira de bom grado tudo, se bem que nem sempre estivesse de acordo e, em muitas coisas, se sentisse decepcionada com a amiga, da qual, em relação à sua pessoa, decerto havia esperado um comportamento diferente. Agora, ao contrário, que estavam em perigo velhos e já veneráveis hábitos da casa e que a sua comodidade de todos os dias e a paz doméstica começavam a ser prejudicadas, não pôde mais reprimir suas objeções e tratou de lutar, no que, sem dúvida, não estava à altura da amiga. Surgiram discussões e pequenas brigas amigáveis; mas, quando a cozinheira quis deixar o serviço e minha mãe só pôde retê-la com dificuldade e muitas promessas e quase súplicas, o problema da autoridade na casa começou a originar verdadeira guerra.

A Srta. Schniebel, orgulhosa dos seus conhecimentos, experiência, parcimônia e virtudes domésticas, não podia compreender que não se lhe agradecessem todas essas qualidades, e sentia-se tão certa do seu direito, que não escondeu mais a sua crítica ao que fora, até então, competência de minha mãe, como administradora, e um piedoso desprezo pelos usos e esquisitices imperantes no andamento da casa. A dona desta reportou-se, então, a meu pai, sob cuja direção e com cujos métodos tudo, durante muitos anos, correra bem. Ele não tolerara mesquinharias nem medrosas economias, reconhecera de bom grado a liberdade e os direitos das empregadas, detestara brigas com criadas e rabugices. Mas, quando minha mãe invocou a figura daquele em quem ela própria, antes, também encontrara ocasionalmente coisas para criticar, mas que depois de morto era para ela um santo, a Srta. Schniebel não pôde conter-se e recordou mordazmente que sua opinião sobre o finado já fora formada e expressa desde muito tempo, opinando ainda que tinha chegado o momento de pôr um paradeiro naquele esbanjamento e criar juízo. Acrescentou que, para não melindrar a amiga, não quisera mexer na memória do finado, mas já que a própria amiga a ela se reportava, cumpria-lhe reconhecer que a culpa por muitos dos males da casa era do falecido dono, que ela não compreendia por que, agora que elas tinham as mãos livres, as coisas devessem continuar assim.

Isso, para minha mãe, foi como uma bofetada em pleno rosto, que nunca mais perdoou à prima. Antigamente, constituíra para ela uma necessidade e um prazer queixar-se, nas conversas com essa amiga íntima, das faltas do dono da casa; agora, porém, não tolerava a menor sombra sobre a sua transfigurada imagem, e começou a encarar aquele início de revolucionamento doméstico, não apenas como um incômodo, mas principalmente como uma ofensa à memória do finado.

Assim se tinham passado os fatos, sem que eu deles nada soubesse. Quando, agora, pela primeira vez, uma carta de minha mãe aludiu a tal discórdia, embora de modo discreto e cauteloso, achei graça. Na minha carta seguinte, omiti as saudações para a donzela, mas não procurei aprofundar as alusões, pois pensava que as duas mulheres resolveriam melhor o caso sem mim. Além disso, surgiu outra coisa, que me deu bem mais com que ocupar-me.

Já era outubro e a idéia do iminente casamento de Gertrud não me largava. Eu não voltara a visitar a sua casa nem tornara a vê-la. Depois da boda, quando ela tivesse ido embora, então, sim, pensava em reatar a convivência com o pai. E também esperava que, com o tempo, boas e cordiais relações se restabeleceriam entre ela e mim: estivéramos demasiado chegados um ao outro, para que o passado pudesse simplesmente ser riscado. Só que, no momento, eu ainda não tinha a coragem de enfrentar um encontro, ao qual ela, na medida em que a conhecia, não se iria furtar.

Eis, porém, que certo dia bateram à minha porta de um modo bem conhecido. Adivinhando quem seria, e conturbado, fui abrir, num pulo; e lá estava Heinrich Muoth estendendo-me a mão.

- Muoth! - exclamei, segurando aquela mão; e não pude olhar os seus olhos sem que em mim todo o passado despertasse e me doesse. Via novamente a carta sobre a sua mesa, a carta com a letra de Gertrud, e me via novamente despedindo-me desta e escolhendo a morte. Agora, lá estava ele, fitando-me com um olhar inquiridor. Parecia um pouco mais magro, mas bonito e altaneiro como nunca.

- Não esperava a tua visita - disse, em voz baixa. - Ah, não? Sei que não foste mais ver Gertrud... mas não vamos falar sobre isso! Estou aqui para ver que vida levas e o que fazes. Como está indo a ópera?

- Está pronta. Mas, em primeiro lugar: como vai Gertrud? - Bem. Logo se realizará nosso casamento. - Eu sei. - Sim. Não vais, breve, tornar a visitá-la? - Mais tarde, sim. Quero ver se a tratas bem. - Ora... - Desculpa, Heinrich, mas às vezes sou obrigado a pensar em Lotte, que maltratavas e em quem bateste.

- Deixa a Lotte em paz! Ela merecia. Não há mulher que apanhe se não quer apanhar.

- Talvez. Bem, quanto à ópera, ainda não tenho a menor idéia sobre a quem propô-la primeiro. Deveria ser um bom teatro, mas será que a aceitarão?

- Claro. Eu queria falar contigo a esse respeito. Traze-a para Munique! Provavelmente será aceita lá; estão interessados no que fazes e, sendo preciso, defenderei a tua causa. Gostaria muito que ninguém cantasse o papel antes de mim.

Isso vinha a calhar. Aceitei com prazer e prometi providenciar depressa as cópias. Examinamos os pormenores e continuamos a falar no assunto, embaraçados, como se fosse uma questão de vida ou morte; na verdade, queríamos somente fazer passar o tempo e fechar os olhos ante a brecha que se havia formado entre nós. Foi Mouth quem desfez o sortilégio.

- Escuta - disse - ainda te lembras da vez em que me levaste à casa dos Imthor? Foi há um ano.

- Sei muito bem - respondi - não precisas recordar-me isso. É melhor ires embora!

- Não, meu caro. Quer dizer que ainda te lembras. Ora, se já gostavas de Gertrud, por que não me disseste nada? Por que não me disseste: "Deixa-a em paz, deixa-a para mim!" Teria sido suficiente; eu teria compreendido também uma simples alusão.

- Eu não podia fazer isso. - Não podias? Por quê? Quem te mandou ficar olhando e calar a boca, até que fosse demasiado tarde?

- Eu não podia saber se ela gostava de mim. E, mesmo nesse caso ... se ela gosta mais de ti, que é que eu posso fazer?

- Mas que criança! Talvez ela fosse mais feliz contigo! Cada qual tem o direito de conquistar uma mulher para si. E se me houvesses dito uma palavra, logo no começo, ou feito um simples aceno, eu teria ficado longe. Depois, naturalmente, era tarde demais.

A conversa era-me muito penosa. - Penso de modo diferente, nesse assunto - disse - mas não te preocupes. Agora deixa-me em paz! Dá-lhe lembranças minhas; se eu for a Munique, irei visitar os dois.

- Não tens vontade de vir ao casamento? - Não, Muoth, seria de mau gosto. Mas... o casamento será também no religioso?

- Naturalmente; na Catedral. - Isso me alegra. Preparei uma música para a ocasião, um prelúdio para órgão. Nada de sustos, é muito curto.

- És um rapaz de ouro! Foi mesmo o diabo que eu te trouxesse tanto azar.

- Acho que deverias dizer sorte, Muoth. - Bem, não vamos discutir. Preciso ir andando, ainda há uma porção de coisas para comprar e só Deus sabe quantas mais para fazer. Vais mandar a ópera dentro em breve, não é? Manda-a para mim, eu mesmo a levarei ao nosso chefe. Antes que eu me case, porém, deveríamos ter, outra vez, uma noite só para nós dois. Que tal amanhã? Concordas? Então, até amanhã.

Lá estava eu de novo mergulhado no velho ambiente e passei a noite em pensamentos já cem vezes pensados e em sofrimentos já cem vezes amargados. No dia seguinte, fui visitar um organista meu conhecido e pedi-lhe que se incumbisse de tocar o meu prelúdio no casamento de Muoth. A tarde, repassei com Teiser, pela última vez, a ouverture. E, à noite, estava no hotel de Muoth.

Preparado para nós, encontrei um quarto com a lareira acesa e luz de velas, uma mesa posta com uma alva toalha, flores e baixela de prata; e Muoth já estava à minha espera.

- Ótimo, rapaz - exclamou - vamos festejar a despedida, mais minha do que tua. Gertrud manda-te lembranças, e hoje vamos beber à sua saúde.

Enchemos os nossos copos e bebemos em silêncio. - Bem, agora vamos pensar somente em nós mesmos. A juventude está declinando, meu caro; não sentes isso também? Dizem que é a coisa mais bonita da vida. Espero que isso seja uma fraude, como todas as máximas populares. O melhor deve estas ainda por vir, senão a vida toda não valeria a pena ser vivida. Depois que a tua ópera tiver ido à cena, tornaremos a falar no assunto.

Comemos com gosto e bebemos um pesado vinho do Reno. Depois, com charutos e champanha, nos refestelamos em amplas e cômodas poltronas, e então, por uma hora, tanto para mim como para ele, voltou o velho tempo, o prazer loquaz de fazer planos e palestrar; e olhávamos um para o outro, cismando descontraídos, com olhos sinceros e contentes um com o outro. Nessas horas, Heinrich mostrava-se mais bondoso e afetuoso do que nunca, conhecendo perfeitamente o caráter efêmero dessa atmosfera; e, enquanto a disposição de espírito se manteve viva, ele a dirigiu, firme e atentamente, com mão cuidadosa. Em voz baixa e sorrindo, falou de Munique, contou pequenas anedotas da vida de teatro e exerceu a sua velha e sutil arte de desenhar, com poucas palavras, homens e situações.

Depois que caracterizou, de modo jocoso e mordaz, mas sem maldade, os seus regentes de orquestra, o seu futuro sogro e outros, bebi à sua saúde e lhe perguntei:

- E o que dizes de mim? Tens uma fórmula também para gente da minha espécie?

- Oh, sim - confirmou, tranqüilamente, com um aceno da cabeça e fitando em mim os olhos escuros. - Tu és, em tudo, o tipo do artista. Um artista não é, como pensam os filisteus, um pândego que, por alegre exuberância, vai atirando obras de arte a torto e a direito, mas, infelizmente, o mais das vezes, um pobre-diabo que sufoca sob uma riqueza interior não aproveitada e, por isso, precisa dar algo de si. A lenda do artista feliz é falsa, pura conversa de filisteus. O alegre Mozart sustinha-se com champanha e, em compensação, passava fome; e por que cargas-d'água Beethoven não se matou na juventude e, em vez disso, escreveu coisas maravilhosas, ninguém sabe. Um artista que se respeite tem de ser infeliz na vida. Quando está com fome e abre o seu alforje, o que encontra lá dentro são sempre e somente pérolas!

- Sim, quando a pessoa deseja um pouco de alegria, calor humano e participação na vida, não cabe dúvida de que uma dúzia de óperas ou trios e coisas do gênero não são de grande auxílio.

- Acredito. Uma hora como esta, bebendo vinho com um amigo, quando se tem um amigo, numa conversação cordial sobre esta curiosa vida, é, realmente, o que há de melhor. Deve ser assim, e nós dois temos de estar satisfeitos de que ela não nos é negada. Quanto tempo trabalha um pobre-diabo para fazer um bonito foguete, e depois a alegria que este proporciona não dura sequer um minuto! Assim, convém economizar alegria, paz de espírito e consciência limpa, a fim de que, vez por outra, bastem para uma linda hora. A nossa, meu amigo!

No fundo, eu não estava absolutamente de acordo com a sua filosofia, mas que importância tinha isso? Sentia-me bem em passar uma noite como essa com o amigo, que receara dever perder e que, mesmo assim, não estava mais certo de conservar; e fiquei cismando com saudade no tempo passado, que se achava ainda tão perto, mas que já abrangia a minha juventude, cuja despreocupada candura nunca mais poderia voltar.

Finalmente pusemos fim à noite e Muoth ofereceu-se ainda a acompanhar-me a pé até a minha casa, mas lhe pedi que ficasse. Eu sabia que ele não gostava de caminhar comigo na rua, o meu capengar o incomodava e deprimia. Não era homem de fazer sacrifícios; e não há dúvida de que pequenos sacrifícios como esse freqüentemente são os mais difíceis. ór ão. Era

Causava-me alegria a minha pequena peça para g uma espécie de prelúdio e representava, para mim, um desligamento do passado, um agradecimento, um voto de felicidade aos noivos e um eco do bom tempo da amizade com ela e com ele.

No dia da boda, fui bem cedo para a igreja e assisti à cerimônia, contemplando-a do alto, escondido atrás do órgão. Quando o organista tocou a minha pecinha, Gertrud olhou para cima e fez com a cabeça um sinal para o noivo. Eu não mais a vira, durante aquele tempo todo; no seu vestido branco, parecia ainda mais alta e esbelta. Séria e graciosa, percorreu a estreita e ornamentada passagem que levava ao altar ao lado daquele homem altaneiro e ereto. O espetáculo teria sido menos bonito e imponente se, no lugar deste, estivesse palmilhando o caminho alguém torto e arrastando da perna, como eu.

VII

OS fados já haviam providenciado para que eu, durante muito tempo, não pudesse refletir no casamento dos meus amigos nem deixar meus sentimentos, desejos e relações enveredarem por ele.

Pouco eu tinha pensado, naqueles dias, em minha mãe. Sabia, pelas suas últimas cartas, que nem tudo eram rosas no conforto e na paz da sua casa; mas não tendo motivo nem vontade para imiscuir-me na desavença entre as duas mulheres, considerava-a, com um certo prazer perverso, como uma situação de fato, na qual a minha opinião era de todo dispensável. Desde então, eu tinha escrito, sem receber resposta; e andava por demais atarefado com providenciar e rever as cópias da minha ópera, para poder pensar na Srta. Schniebel.

Foi quando chegou uma carta de minha mãe, que me admirou pelo inusitado do tamanho. Era um doloroso libelo contra a sua companheira, pelo qual fiquei ciente de todas as infrações que esta praticara contra a paz da casa e do espírito da minha boa mãe. Fora-lhe difícil escrever isso a mim e o fazia com dignidade e prudência; só que era uma pequena confissão de quão iludida vivera a respeito da velha amiga e prima. Não somente dava razão à antipatia minha e do meu falecido pai pela Srta. Schniebel; agora ela estava disposta a vender a casa, se eu ainda o desejasse, e a ir morar noutra cidade, tudo apenas para livrar-se da Srta. Schniebel.

"Talvez fosse bom que tu mesmo viesses aqui. É que Lucie já sabe do que penso e planejo; nessas coisas, tem muito faro. Mas a tensão entre nós duas é demasiada, para que eu possa dizer-lhe o necessário na devida forma. As minhas alusões, de que preferiria estar novamente em casa sozinha e de que a sua companhia é dispensável, ela finge não entender; e não desejo uma briga declarada. Se quisesse convidá-la diretamente a ir embora, sei que ela poria a boca no mundo e se recusaria. É melhor vires e pores tu mesmo isso em ordem. Não quero escândalos nem que ela saia prejudicada, mas é preciso dizer-lhe tudo de maneira clara e decidida."

Eu estava pronto para matar o dragão, se minha mãe o pedisse. Assim, foi com grande prazer que preparei e empreendi a viagem para casa. Ali, logo ao entrar no velhotdifício, reparei em que nele reinava um novo espírito. A grande e confortável sala de estar, notadamente, adquirira um aspecto sombrio, deprimente e pobre, tudo parecia estar sendo meticulosamente vigiado e poupado, e sobre o velho e sólido soalho havia as chamadas "passadeiras", longas tiras de pano escuro ordinário e feio, como faixas de luto, para poupar os tacos e a despesa de encerá-los. O velho piano, fora de uso havia muitos anos, que se achava no salão, também tinha sido revestido com um pano desses; e se bem que minha mãe, para receber-me, tivesse preparado chá com biscoitos e arrumado a casa um pouco melhor, tudo cheirava, tão inconfundivelmente, a velha solteirona e a naftalina, que, logo ao chegar, sorri para minha mãe, torcendo o nariz, o que ela compreendeu logo.

Nem bem me havia sentado na cadeira, entrou o dragão: aos passinhos sobre a passadeira, veio até mim e dignou-se aceitar as minhas homenagens, que lhe prestei sem economias. Pedi notícias pormenorizadas da sua saúde e desculpei a velha mansão, que talvez não oferecesse todas as comodidades a que ela estava acostumada. Sem fazer o menor caso de minha mãe, a Srta. Schniebel tomou a si o papel de dona-de-casa, ocupou-se do chá, retribuía, solícita, minhas cortesias e pareceu ter ficado, sem dúvida, lisonjeada, mas, mais ainda, assustada e desconfiada com os exageros da minha afabilidade. Farejava alguma traição, mas via-se obrigada a corresponder ao tom amigável, e até mesmo a desdobrar o seu repertório, um tanto antiquado, de amabilidades. Sob os mais amplos protestos de estima e consideração, vimos aproximar-se a noite, desejamo-nos, mutuamente e com toda a cordialidade, o melhor dos sonos e nos separamos como diplomatas da velha escola. Creio, no entanto, que o duende, naquela noite, apesar de todas as palavras açucaradas, pouco dormiu, enquanto descansei satisfeito, e a minha pobre mãe, depois de tantas noites gastas no nervosismo e na aflição, talvez tornasse, pela primeira vez, a pegar no sono em sua própria morada com o sentimento de dona-de-casa restabelecido na sua integridade.

Durante o desjejum, na manhã seguinte, recomeçou o mesmo elegante joguinho. Minha mãe, que na véspera se havia limitado a escutar, silenciosa e impaciente, tomou ela própria, com prazer, parte nele e ambos tratamos a Srta. Schniebel com uma afabilidade e uma delicadeza que a encurralaram num canto, causando-lhe mesmo tristeza, pois ela adivinhava perfeitamente que em minha mãe aquele tom não provinha do coração. Cheguei quase a ter pena da velha donzela, quando começou a ter medo, esforçando-se por fazer-se pequena e louvar tudo e achar tudo bom; mas pensei na criada despedida, na cara descontente da cozinheira, que só não fora embora por amor a minha mãe; pensei no forramento do piano e em todo o cheiro melancólico e mesquinho da minha outrora alegre casa paterna, e permaneci inabalável.

Depois do almoço, pedi a minha mãe que fosse descansar um pouco e fiquei a sós com a sua prima.

- A senhora costuma dormir depois do almoço? - indaguei cortesmente. - Nesse caso, não desejo incomodá-la. É que eu teria alguma coisa para falar-lhe, mas não é assim tão urgente.

- Oh, não, eu nunca durmo durante o dia. Graças a Deus, ainda não sou tão velha. Estou à sua inteira disposição.

- Muito obrigado, Srta. Schniebel. Eu queria agradecer-lhe todas as atenções que dispensou a minha mãe. De outro modo, ela se teria sentido muito só, na casa vazia. Agora, porém, vai ser diferente.

- Como? - exclamou, sobressaltando-se. - O que vai ser diferente?

- A senhora ainda não sabe? Mamãe resolveu, finalmente, realizar o meu velho desejo e vir morar comigo. Naturalmente, não podemos deixar a casa sem ninguém. Assim, breve ela será posta à venda.

A solteirona fitou-me desconcertada. - Sim, eu também sinto muito - prossegui, em tom de lástima. - Mas para a senhora esse tempo foi cansativo. Tomou conta da casa com tanta dedicação e tanto zelo, que eu nunca poderei agradecer-lhe bastante.

- Mas eu, o que deverei... aonde deverei eu... - Ora, há de se achar uma solução. Precisará, forçosamente, procurar uma nova habitação, mas, naturalmente, não há essa pressa toda. A senhora mesma ficará contente de reencontrar o seu sossego.

Ela se havia levantado. Seu tom era ainda cortês, mas inquietantemente enérgico.

- Não sei o que deva dizer- exclamou, amargurada. - Sua mãe, cavalheiro, prometeu que me deixaria morar aqui. Isso tinha sido combinado da maneira mais firme; e agora, que tomei conta da casa e ajudei sua mãe em tudo, agora me põem no meio da rua!

Começou a soluçar e queria ir embora. Mas a retive pela magra mão e a fiz de novo sentar-se na sua poltrona.

- O caso não é tão grave - disse-lhe, sorrindo. - O fato de minha mãe querer mudar-se daqui modifica um pouco a situação. Entretanto, a venda da casa não foi decidida por ela, mas por mim, porque o proprietário sou eu. Que, ao procurar uma nova habitação, a senhora não deva pôr-se excessivos limites e deixe a despesa por conta dela, disso minha mãe faz absoluta questão. Assim, a senhora terá uma existência mais folgada e continuará sendo, de certo modo, sua hóspede.

Vieram, então, as previstas objeções, a altivez, o pranto, a bazófia alternando-se com os rogos; e, no fim, a amuada mulher compreendeu que ceder, no caso, era ainda o que havia de mais inteligente. Depois disso, porém, retirou-se para o seu quarto e não deu sinal de vida nem na hora do café. Minha mãe era de opinião que devíamos mandar servi-la no quarto, mas eu, depois daquelas cortesias todas, queria também ter a minha vingança e deixei a Srta. Schniebel persistir na sua obstinação até a noite, quando então, taciturna e macambúzia, mas pontualmente, ela apareceu para o jantar.

- Infelizmente, amanhã devo partir novamente para R. - disse eu, durante a refeição. - Se precisares de alguma coisa de mim, mamãe, poderei vir imediatamente, a qualquer momento.

Ao dizer isso, olhei, não para minha mãe, mas para a sua prima; e esta percebeu o sentido daquelas palavras. Minha despedida dela foi breve e, pelo que me diz respeito, quase cordial.

- Meu filho - disse-me, mais tarde, minha mãe - fizeste as coisas bem e eu devo agradecer-te. Não queres tocar para mim algum trecho da tua ópera?

Não se chegou a tanto, mas uma muralha fora derrubada e o dia começou a raiar entre a velha mulher e mim. E isso foi o melhor do caso todo. Ela agora confiava em mim e eu me regozijava de poder, breve, instalar-me com ela numa pequena casa e sair do longo período em que não tivera um lar. Parti satisfeito, deixei lembranças minhas para a solteirona e, logo após chegar de volta, comecei a procurar alguma residência aprazível e pequena para alugar. Teiser auxiliou-me na tarefa e, ria maioria das vezes, acompanhava-nos a irmã, todos os dois alegres, tal como eu, esperando uma agradável convivência entre as duas pequenas famílias.

Entrementes, minha ópera havia sido remetida para Munique. Passados dois meses e pouco antes da chegada de minha mãe escreveu-me Muoth, dizendo que ela fora aceita, mas não podia mais ser ensaiada naquela temporada; iria à cena, todavia, no começo do próximo inverno. Eu tinha, assim, uma boa notícia para minha mãe, e Teiser, quando soube dela, organizou uma festinha com danças de júbilo.

Minha mãe chorou, ao ingressar na nossa pequena casa com jardim, dizendo que não era bom ser transplantada, na velhice, para terreno estranho. Eu, contudo, achei ótimo tê-la comigo, e os Teiser também; e Brigitte a ajudou e se mostrou tão prestativa com ela, que dava gosto. A moça tinha poucos conhecidos na cidade, e muitas vezes, quando o irmão estava no teatro, ficava sozinha em casa - o que, porém, seu aspecto não revelava. Agora, vinha amiúde à nossa casa, e não só nos acudia em arrumá-la e torná-la habitável, como ajudava a mim e minha mãe a descobrir o difícil caminho de uma convivência tranqüila e agradável. Ela sabia fazer a velha mulher compreender os momentos em que eu precisava de sossego e de ficar sozinho; nessas ocasiões, estava sempre à mão para substituir-me junto dela e indicar-me, depois, várias necessidades e desejos de minha mãe, que esta nunca me teria dito e que eu nunca adivinharia. Assim, na nova casa, não tardou a formar-se um pequeno lar, com a sua paz doméstica; diferente e mais modesto do que o lar que eu imaginara poder, algum dia, construir para mim, mas suficientemente bom e bonito para alguém como eu, que não conseguira ir além do que era.

E agora minha mãe conheceu também a minha música. Não aprovava tudo e muitas vezes guardava silêncio, mas via e acreditava que não se tratava de passatempo ou brincadeira, e sim de coisa séria e de trabalho; e, de um modo geral e com surpresa, achou a nossa vida de músicos, que havia imaginado muito semelhante à dos charlatães de feira, apenas bem pouco menos burguesa e operosa do que, por exemplo, a do meu falecido pai. Também deste, agora, pudemos falar com mais vagar, e paulatinamente fui posto a par de mil episódios da vida dele e dela, dos meus avós e da minha própria infância. O passado e a família tornaram-se, aos meus olhos, queridos e interessantes, e não me senti mais estranho à minha própria gente. Por sua vez, minha mãe aprendeu a aceitar-me tal como eu era e a ter confiança em mim, mesmo se, nas horas de trabalho, eu me trancava ou me tornava irritadiço. Tivera uma existência fácil e agradável com meu pai, daí tanto mais dura haver sido para ela a provação, no tempo da Srta. Schniebel; agora voltava-lhe a confiança e aos poucos cessou de falar no seu envelhecimento e solidão.

Em meio desse conforto e dessa modesta felicidade, foi submergindo o sentimento de dor e de frustração em que eu tão longamente vivera. Não submergiu, porém, num sorvedouro sem fundo, mas ficou jazendo, sem se apagar, nas profundezas da minha alma, de onde muitas noites me lançava um olhar indagador e fazia valer o seu direito. Quanto mais longe parecia ter-se afundado o passado, tanto mais nítida emergia diante de mim a imagem do meu amor e do meu sofrimento, como silenciosa admoestação.

Muitas vezes eu julgara saber o que era o amor. Já nos anos juvenis, quando, fascinado, cobiçava a linda e leviana Liddy, julgara conhecer o amor. E depois novamente, quando vi Gertrud pela primeira vez e senti que ela era a resposta a todas as minhas perguntas e o lenitivo dos meus obscuros desejos. E ainda outra vez, quando começou o sofrimento e a clara amizade cedeu lugar à turva paixão, e, finalmente, quando a perdi. O amor, no entanto, sobrevivia e continuava dentro de mim; e eu sabia que nunca mais poderia desejar uma mulher e suspirar por um beijo de boca feminina, desde o dia em que tive Gertrud no meu coração.

Seu pai, que às vezes eu visitava, parecia agora conhecer os meus sentimentos por ela. Pediu-me o prelúdio que eu compusera para o seu casamento e manifestava-me uma tácita afeição. Devia ter adivinhado com quanto prazer eu ouviria notícias da filha e quão pouca vontade, no entanto, tinha de pedi-las; e me participava muito do que as suas cartas continham. Nelas, freqüentemente, falava-se também de mim, especialmente da minha ópera. Gertrud escrevia que tinha sido encontrada uma boa cantora para o papel de soprano e quanto estava contente de ouvir por inteiro, finalmente, a obra que já lhe era tão familiar. Alegrava-se, ainda, de que eu tivesse minha mãe junto de mim. O que escrevia a respeito de Muoth, não sei.

Minha existência desenrolava-se tranqüila, as correntezas do fundo não exerciam mais pressão para vir à tona. Eu trabalhava numa missa e tinha em mente um oratório, para o qual ainda me faltava o texto. Quando me via obrigado a pensar na ópera, esta surgia como um mundo a mim estranho. Minha música seguia novos rumos, tornava-se mais simples e fria, queria consolar e não suscitar emoções.

De grande valia nesse período, foram-me os irmãos Teiser. Víamo-nos quase todos os dias, líamos, fazíamos música, passeávamos juntos, tínhamos em comum pequenas festas e excursões fora da cidade. Somente no verão, pois eu não queria estorvar os dois valentes andarilhos, nos separamos durante algumas semanas. Os feiser voltaram a peregrinar pelo Tirol e o Voralberg, de onde me mandavam caixinhas com edelweiss; eu, porém, levara minha mãe para a casa dos seus parentes, no Norte da Alemanha, que ela costumava visitar todos os anos, e fora descansar no Mar do Norte. Ali ouvia, dia e noite, a velha canção do mar e me abandonava aos meus pensamentos e às minhas melodias. E ali encontrei, pela primeira vez, a força de escrever a Gertrud, em Munique - não à Sra. Muoth, mas à minha amiga Gertrud, à qual contava das minhas músicas e dos meus sonhos. Talvez ela se alegre, pensei, e talvez uma palavra de consolo e uma saudação amiga não lhe façam nenhum mal. Porque, se bem que a contragosto, eu duvidava do meu amigo Muoth e estava sempre um pouco preocupado por Gertrud. Conhecia bem demais aquele ser obstinado e melancólico, acostumado a viver ao sabor dos seus humores, incapaz de um sacrifício, arrebatado e guiado por obscuros impulsos e que, nos momentos de reflexão, assistia ao desenrolar-se da sua própria vida como ao de uma tragédia. Se sentir-se só e incompreendido era realmente uma doença, como me havia exposto o meu bom amigo, o Sr. Lohe, então ninguém sofria dessa doença mais do que Muoth.

Mas eu nada sabia dele; cartas, não me escrevia. Também Gertrud respondeu-me tão-só com um breve agradecimento e o convite para que eu fosse a Munique, no princípio do outono, pois logo no início da temporada prosseguiriam os ensaios da minha ópera.

No começo de setembro, quando todos já tínhamos voltado à cidade e à vida costumeira, reunimo-nos, uma noite, em minha casa, para examinarmos os meus trabalhos do verão. O principal deles era uma pequena peça lírica para dois violinos e piano. Resolvemos tocá-la. Brigitte Teiser estava sentada ao piano e eu podia ver, por cima da minha partitura, a sua cabeça, com as pesadas tranças de cabelo louro que, à luz das velas, mandavam reflexos dourados. O irmão estava de pé ao seu lado e tocava o primeiro-violino. Era uma música simples, espécie de canção, a sussurrar lamentosa, a extinguir-se em tons de crepúsculo estival, nem alegre nem triste, mas pairando em perdida atmosfera vespertina, como uma nuvem em brasa que se apaga ao pôr-do-sol. A breve peça agradou aos Teiser, e especialmente a Brigitte. Só raramente costumava esta dizer-me o que quer que fosse a respeito da minha música; comumente, numa espécie de reverência juvenil e feminina, guardava silêncio, limitando-se a olhar-me com admiração, porque me considerava um grande mestre. Dessa feita, tomou coragem e expressou a sua especial satisfação. Com os claros olhos azuis a cintilarem, olhou para mim carinhosamente, movendo a cabeça em sinal de aprovação; e a luz dançou sobre as suas louras tranças. Era muito bonita, quase uma beleza.

Para dar-lhe um prazer, tomei a sua parte de piano e, acima das notas, escrevi, a lápis, uma dedicatória: "Para a minha amiga Brigitte Teiser"; e devolvi-lhe a música.

- Doravante, isto deverá sempre achar-se por cima desta composição-disse-lhe galantemente, com uma mesura. Ela leu a dedicatória, corando lentamente, estendeu-me a mão, pequena e vigorosa, e de repente estava com lágrimas nos olhos.

- Isso é a sério? - perguntou em voz baixa.

- Deve ser - respondi, rindo. - E acho que a pecinha lhe assenta à perfeição, Srta. Brigitte.

Seu olhar, ainda cheio de lágrimas, deixou-me pasmado, de tão sério, mas não lhe dei maior atenção. Teiser, agora, guardava o seu violino, e minha mãe, que já lhe conhecia os hábitos, servia-nos vinho. A conversação animou-se, discutimos a propósito de uma nova opereta, estreada poucas semanas antes, e a pequena ocorrência com Brigitte só me voltou à mente mais tarde, quando, altas horas da noite, os dois se despediram e ela cravou seus olhos nos meus com uma estranha inquietação.

Em Munique, nesse meio tempo, haviam começado os ensaios da minha ópera. Já que um dos papéis principais estava, com Muoth, em excelentes mãos e que Gertrud louvava também a soprano, passaram orquestra e coro a ser o mais importante para mim. Deixei minha mãe aos cuidados dos dois amigos e viajei para Munique.

Na manhã seguinte à minha chegada, segui, pelas bonitas e largas ruas de Schwabing, até a silenciosa casa na qual morava Muoth. Tinha esquecido completamente a ópera e pensava somente nele e em Gertrud, e em como os encontraria. Numa ruela transversal quase de campo, a carruagem parou diante de uma pequena cassrodeada de árvores outonais; folhas amarelas de bordos formavam, varridas, pequenos montes nos dois lados do caminho. Entrei alvoroçado. A casa dava uma impressão de conforto senhoril; um criado tirou-me o sobretudo.

Na ampla peça, para onde fui conduzido, reconheci dois velhos e grandes quadros da casa de Imthor, trazidos para ali. Noutra parede, estava pendurado um novo retrato de Muoth, pintado em Munique; e, enquanto eu o contemplava, entrou Gertrud.

Meu coração bateu com força, quando, após tanto tempo, a olhei nos olhos. Seu rosto estava mudado, mais severo e mais maduro; mas ela sorriu com a velha amizade e deu-me cordial aperto de mão.

- A saúde vai bem? - disse afavelmente. - Envelheceu um pouco, mas está com ótimo aspecto. Há muito que o esperávamos por aqui.

Pediu notícias de todos os amigos, de seu pai, de minha mãe; e, à medida que se animava, esquecendo a timidez do primeiro instante, eu a revia tal como era antigamente. O meu turbamento então desvaneceu-se de súbito, e comecei a falar com ela como com uma boa amiga; contei-lhe do verão e do mar, do meu trabalho, dos Teiser e até, no fim, da pobre Srta. Schniebel.

- E agora- ela exclamou - agora a sua ópera será representada! Isso vai dar-lhe uma grande alegria.

- Sim- respondi - mas o que mais me alegra é que poderei, novamente, ouvir a senhora cantar.

Fez um aceno afirmativo com a cabeça. - Com isso alegro-me eu também. Canto muito, mas quase que exclusivamente para mim mesma. Vamos cantar todas as suas canções; estão sempre à mão, comigo não têm tempo de empoeirar-se. Fique conosco para o almoço, meu marido não demora a chegar e, à tarde, poderá acompanhá-lo para ver o regente da orquestra.

Fomos para a sala de música, eu me sentei ao piano e ela começou a cantar as minhas canções do nosso velho tempo; eu me conservava silencioso, fazendo esforços para mostrar-me sereno. Sua voz tornara-se mais amadurecida e mais firme, mas ainda alçava vôo com a mesma leveza e facilidade de antigamente; e de tal maneira me penetrava no coração, com a lembrança dos melhores dias da minha vida, que, sentado diante do teclado, como que enfeitiçado, tocando baixinho as velhas notas e, por momentos, escutando de olhos fechados, eu não conseguia mais distinguir o presente do passado. Acaso não era ela parte da minha vida? Não éramos chegados um ao outro como irmãos, ligados por estreita amizade? E claro, porém, que com Muoth ela cantara de modo diferente!

Permanecemos sentados ainda por algum tempo, conversando alegremente e sem termos muito que dizer, pois sentíamos que entre nós não eram necessárias explicações. Como lhe corria a vida e em que pé estavam as relações entre ela e o marido, nisso agora eu não pensava; mais tarde, eu mesmo poderia vê-lo. Em todo caso, ela não se apartara da sua linha de conduta e mantivera-se fiel à sua natureza; se alguma coisa não lhe ia bem e ela tinha de suportá-la, suportava-a com nobreza e sem amargura.

Decorrida uma hora, chegou Heinrich, que já fora informado da minha presença ali. Começou imediatamente a falar da ópera, que a todos parecia mais importante do que a mim mesmo. Perguntei-lhe que tal se sentia em Munique.

- Como em toda parte - respondeu, sério. - O público não gosta de mim, porque sente que eu também não lhe dou nenhuma importância. É raro eu ser recebido com carinho logo à primeira entrada em cena; todas as vezes preciso primeiro empolgá-los e arrebatá-los. Assim, tenho sucesso sem ser amado. Também é verdade que, às vezes, canto pessimamente, isso eu mesmo reco nheço.. Bem, a tua ópera será um sucesso, tanto para ti quanto para mim, podes ficar descansado. Hoje vamos falar com o regente, amanhã convidamos a soprano e quem mais quiseres. Haverá um ensaio de orquestra também amanhã de manhã. Creio que ficarás satisfeito.

A mesa, pude observar que ele era extremamente cortês com Gertrud, o que absolutamente não me agradou. E assim continuou durante o tempo todo em que fiquei em Munique e os visitava diariamente. Formavam um casal belíssimo e causavam impressão em toda parte aonde iam. Mas havia uma certa frieza entre eles; e veio-me a idéia de que somente a força e a superioridade moral de Gertrud tornavam possível que ele transformasse essa frieza em cortesia e correção formal. Ela parecia ainda longe de ter despertado da sua paixão pelo bonito homem e ainda alimentar esperanças num retorno à perdida intimidade. Em todo caso, era ela quem o compelia às boas maneiras. Era por demais fina e bondosa para o papel da mulher decepcionada e incompreendida, mesmo diante de amigos, e para mostrar a quem quer que fosse a sua dor secreta, se bem que não conseguiu escondê-la de mim. Contudo, nem de mim teria ela tolerado qualquer olhar ou gesto de compreensão ou de compaixão; falávamos e nos portávamos como se nada turvasse o seu casamento.

Por quanto tempo essa situação poderia sustentar-se era, naturalmente, uma incógnita e dependia inteiramente de Muoth, cujo gênio imprevisível eu via, pela primeira vez, domado por uma mulher. Ambos davam-me pena, mas não me surpreendia muito encontrar as coisas nesse pé. Ambos tinham vivido e gozado a sua paixão; agora, deveriam aprender a ter resignação, guardando saudosa memória do bom tempo, ou então achar o caminho de um novo amor e uma nova felicidade. Talvez um filho voltasse a reuni-los, não mais no abandonado éden da paixão amorosa, mas numa nova e sincera vontade de viverem juntos, adaptando-se um ao outro. Eu sabia que para isso Gertrud possuía a força e serenidade necessárias. Mas se também Heinrich asencontraria, nisso preferia não pensar. Por mais pena, porém, que me causasse ver que o impetuoso e belo vendaval do seu primeiro ardor e da ventura de estarem juntos já tinha amainado, alegrava-me a atitude de ambos em conservar intatas, não só perante os demais como em suas mútuas relações, a sua beleza e dignidade.

Não quis, todavia, aceitar o convite de ir morar na casa de Muoth e este respeitou a minha vontade. Ia lá todos os dias e fazia-me bem ver que Gertrud tinha prazer nessas visitas e em palestrar e fazer música comigo, de sorte que eu não era o único a tirar proveito delas.

A estréia da ópera fora, agora, marcada para dezembro. Fiquei em Munique duas semanas, assisti a todos os ensaios da orquestra, tive, num ponto ou noutro, de fazer cortes ou adaptações; verifiquei, porém, que a obra estava em boas mãos. Achava esquisito ver cantores e cantoras, violinos e flautistas, regente e coro atarefados com um trabalho que a mim se havia tornado estranho e que respirava uma vida que já não era a minha.

- Espera só - dizia, às vezes, Heinrich Muoth - não tardarás a respirar o ar maldito da notoriedade. Eu quase te desejaria que não fosse um sucesso. Porque, depois, terás a matilha no teu encalço, e dentro em breve poderás comerciar em cachos de cabelos e autógrafos e dar-te conta do bom gosto e gentileza em que prima a adoração do rebanho. Já agora não há quem não fale na tua perna aleijada. Que popularidade dá uma coisa dessas!

Depois dos ensaios indispensáveis, torneia partir, para voltar somente alguns dias antes da estréia. As perguntas de Teiser sobre a representação não tinham fim; ele pensava em mil pormenores orquestrais, aos quais eu mal prestara atenção, e aguardava o acontecimento com mais impaciência e excitação do que eu. Quando o convidei para assistir à estréia, juntamente com a irmã, deu pulos de alegria. Minha mãe, ao contrário, não quis participar daquela viagem invernal nem da excitação - o que não me desagradou. Aos poucos, porém, comecei também a ser presa da tensão nervosa, e à noite, para dormir, precisava de um copo de vinho tinto.

O inverno chegou cedo e a nossa pequena casa estava profundamente enterrada na neve do jardim, na manhã em que os irmãos Teiser vieram buscar-me de carro. Da janela, minha mãe fez um sinal de adeus com a mão, o carro partiu e Teiser entoou uma canção de viagem através do espesso cachecol enrolado no seu pescoço. Durante toda a viagem de trem parecia um menino de escola partindo para as férias de Natal, e a bonita Brigitte também exultava, mais discretamente. Eu estava feliz de ter a companhia dos dois, pois a minha tranqüilidade agora havia sumido e eu ia ao encontro dos acontecimentos dos próximos dias como um condenado.

Foi o que notou logo Muoth, que nos esperava na estação. - Estás com o nervosismo das estréias, rapaz - riu, divertido. - Deus seja louvado por isso! Porque, afinal, és um músico e não um filósofo.

Nisso pareceu ter razão, pois a minha agitação durou até a estréia e naquelas noites não dormi. De todos nós, o único calmo era Muoth. Teiser ardia em impaciência, vinha a todos os ensaios e não parava de fazer críticas. Encolhido e atento, ficava sentado ao meu lado durante os ensaios; nos pontos espinhosos, marcava o tempo, batendo sonoramente o punho, e aprovava ou sacudia a cabeça.

- Aí está faltando uma flauta! - exclamou, logo no primeiro ensaio de orquestra, e em voz tão alta que o regente olhou irritado na nossa direção.

- Tivemos de cortá-la - expliquei-lhe, sorrindo. - Cortar? A flauta? Mas por quê? Que estupidez! Toma cuidado, eles ainda vão te massacrar a ouverture toda!

Tive de rir e contê-lo à força, pois ele tomara o caso a peito. Mas no seu ponto preferido daouverture , quando entram as violas e os violoncelos, recostou-se na cadeira, de olhos fechados, apertou crispadamente a minha mão e, depois, murmurou, encabulado:

- Pois é, isso me pôs lágrimas nos olhos. É de uma beleza!... Eu não tinha ainda ouvido cantar o papel da soprano. Achei esquisito e deu-me uma sensação dolorosa ouvi-lo cantado, pela primeira vez, por uma voz estranha. A cantora o interpretou bem e me apressei a dar-lhe os meus agradecimentos, mas, no meu coração, pensava nas tardes em que Gertrud cantara aquelas palavras, e experimentava um inconfessado e triste sentimento de mal-estar, como quando, após nos termos desfeito de um objeto querido, o vemos, pela primeira vez, em mãos estranhas.

Pouco estive com Gertrud, naqueles dias; havia notado, sorrindo, o meu nervosismo e me deixara em paz. Eu fora visitá-la também em companhia dos Teiser e ela, com sorridente ternura, acolhera Brigitte, que olhava com admiração para a linda e distinta mulher. Desde esse momento, a moça passou a adorar Gertrud e a cantar os seus louvores, com o que o irmão concordava.

Dos dois dias antecedentes à estréia, não me lembro mais com exatidão, pois tudo dentro de mim estava em completo rebuliço. A isso acrescentaram-se outros motivos de preocupação: um cantor enrouquecera, outro estava ofendido de não ter um papel mais importante e portou-se pessimamente no último ensaio, e o regente foi-se tornando cada vez mais reservado e frio, à medida que eu tinha ainda alguma observação a fazer; Muoth, ocasionalmente, me apoiava, sorria calmíssimo no meio da barafunda e, nessa circunstância, foi-me de maior ajuda do que o ótimo Teiser, que parecia ter o diabo no corpo, corria de cá para lá e encontrava em tudo alguma coisa para criticar. Brigitte olhava-me com respeito, mas também com uma certa lástima, quando, nas horas de calma, ficávamos juntos, deprimidos e bastante taciturnos.

Mas os dias passaram e chegou a noite da estréia. Enquanto o teatro se ia enchendo, eu estava em pé na coxia, sem, no entanto, poder fazer ou aconselhar mais nada. Por fim, fui ter com Muoth, o qual, já com o traje de cena, esvaziava lentamente, num camarim, a um canto afastado da barulheira, uma meia garrafa de champanha.

- Queres um copo? - perguntou afavelmente. - Não - respondi. - Mas isso, afinal, não te excita? - O quê? O espetáculo? É sempre assim. - Refiro-me ao champanha. - Oh, não, esse me acalma. Bebo sempre um ou dois copos, quando quero sair-me realmente bem. Mas agora vai; está na hora.

Um porteiro acompanhou-me ao camarote, onde já encontrei Gertrud e os dois Teiser, bem como um cavalheiro graúdo da direção do teatro, que me cumprimentou sorrindo.

Logo depois, ouvi o segundo sinal da campainha, Gertrud lançou-me um olhar amigável e fez um movimento de aprovação com a cabeça. Teiser, que estava sentado atrás de mim, agarroume o braço, num enérgico beliscão. A sala escureceu e, lá das profundezas, subiu solenemente até mim a minha ouverture. Só então acalmei-me um pouco.

Ergueu-se e ressoou-me aos ouvidos, tão bem conhecida e, ainda assim, estranha, a minha obra, que já não precisava de mim e tinha sua vida própria. Alegrias e fadigas dos dias idos, esperanças e noites insones, paixão e nostalgias daquele tempo estavam defronte de mim libertadas e metamorfoseadas; e as emoções de horas secretas soavam livremente na sala, procurando conquistar mil corações estranhos. Muoth entrou em cena e começou a cantar com força sofreada; depois, foi crescendo e abandonou-se inteiramente ao seu arrebatamento sombrio e quase irado, enquanto a cantora lhe respondia com notas agudas, vibrantes, luminosas. Chegou então um ponto que eu guardava ainda no ouvido, exatamente como o escutara uma vez por Gertrud, e que fora uma homenagem a ela e uma sussurrada confissão do meu amor. Voltei o rosto e olhei seus olhos, tranqüilos e puros, que me compreenderam e saudaram com amizade; e, num instante, pareceu-me que o sentido inteiro da minha juventude me acariciava de leve como o aroma de um fruto maduro.

Desse momento em diante, fiquei realmente calmo e escutando como um mero convidado. Os aplausos estrugiram, cantores e cantoras vieram ao proscênio, inclinando-se, Muoth foi chamado repetidas vezes e sorria friamente para a sala agora iluminada. Instou-se também comigopara que me mostrasse; mas eu me sentia por demais aturdido e não tinha nenhuma vontade de sair capengando do meu agradável esconderijo.

Teiser, em contrapartida, estava radiante como uma manhã de sol; abraçou-me e sacudiu também ambas as mãos do importante cavalheiro da direção do teatro.

O banquete estava pronto e nos teria aguardado mesmo depois de um insucesso. Fomos lá de carro, Gertrud com o marido, eu com os Teiser. Durante o breve percurso, Brigitte, que ainda não dissera uma só palavra, desatou, repentinamente, a chorar. Procurou, de início, defender-se e resistir; depois, porém, escondeu o rosto nas mãos e deixou as lágrimas correrem. Achei melhor não dizer nada, mas fiquei admirado de que Teiser igualmente se calasse e não lhe fizesse nenhuma pergunta. Ele limitou-se a passar o braço por cima do ombro da irmã, sussurrando em tom carinhoso e consolador, como quem procura acalmar uma criança.

Quando, mais tarde, chegou o momento dos apertos de mão, das felicitações e dos brindes, Muoth piscou-me sarcasticamente o olho. Interrogaram-me insistentemente a respeito do meu próximo trabalho e mostraram-se desapontados quando eu disse que se tratava de um oratório. Depois, brindou-se à minha próxima ópera - a qual, porém, até hoje ainda não foi escrita.

Só em hora adiantada da noite, quando nos despedimos e fomos dormir, pude perguntar a Teiser o que se passava com a irmã e por que ela chorara. Brigitte já se havia retirado muito antes e ido para a cama. O meu amigo olhou para mim de modo indagador e um tanto surpreso, meneou a cabeça e começou a assobiar, até que repeti a pergunta.

- És mesmo um ingénuo ou cego - disse depois, em tom de censura. - Então, nunca percebeste nada?

- Não - respondi, num crescente pressentimento da verdade.

- Bem, agora já posso dizê-lo. Há muito que Brigitte gosta de ti. Naturalmente, a mim nunca me disse nada e a ti tampouco, mas eu compreendi; e, falando com toda a franqueza, estaria contente, se isso tivesse dado em alguma coisa.

- Oh, não! - lamentei, sinceramente contristado. - Mas hoje, o que houve?

- O motivo por que ela soluçou? És uma criança! Então pensas que não vimos nada?

- Mas o quê? - Meu Deus do céu! Não precisas falar nisso e aprovo que nunca me falasses; mas também, então, não devias olhar daquela maneira para a Sra. Muoth. Acontece que agora ficamos sabendo.

Não lhe pedi que guardasse o meu segredo: estava certo de que ele o faria. Pousou de leve a mão no meu ombro.

- E agora também posso imaginar, meu amigo, tudo o que nestes anos suportaste e não nos disseste. Também comigo, há tempos, deu-se uma vez caso semelhante. Agora é nos unirmos ainda mais e fazer boa música, está bem? E tratar de que a pequena se console. Dá cá a mão, foi uma linda noite! E até outro dia, lá em casa. Amanhã de manhã, parto com Brigitte.

Separamo-nos, mas pouco depois lá estava ele, correndo de volta, para dizer-me, categórico:

- Escuta, na próxima representação a flauta tem de estar lá outra vez, de acordo?

Assim terminou aquele dia de alegria e cada um de nós permaneceu acordado ainda por muito tempo, entregue aos seus pensamentos. Eu pensei em Brigitte. Estivera aquele tempo todo perto de mim e eu não tivera nem quisera ter com ela outra coisa senão uma boa camaradagem, exatamente como Gertrud comigo; e quando adivinhara o meu amor pela outra, passara-se com ela o mesmo que, outrora, comigo, quando descobrira a carta na casa de Muoth e carregara o revólver. E, por mais triste que isso me tornasse, fui obrigado a sorrir.

Os dias em que ainda me demorei em Munique passei-os, quase todos, em casa de Muoth. Não eram mais reuniões como as daquelas primeiras tardes, quando os três cantamos e tocamos juntos; mas, na repercussão da estréia, havia tácita e comum recordação daquele tempo, e também, por momentos, um reavivar-se da chama entre ele e Gertrud. Depois de ter-me despedido, fiquei ainda um pouco a olhar, de fora, para a silenciosa casa no meio das árvores invernais, com a esperança de poder ainda voltar lá outras vezes; e teria dado com prazer o meu escasso quinhão de satisfação e felicidade, se pudesse com ele restabelecer, e para sempre, a harmonia entre os dois seres que nela moravam.

VIII

DE regresso a R., a fama decorrente do meu sucesso me acolheu, tal como Heinrich me predissera, com numerosas conseqüências desagradáveis e, em parte, ridículas. Dos negócios, desobriguei-me facilmente, entregando a ópera a um agente. Mas havia também visitas, jornalistas, editores, cartas absurdas; e durou algum tempo até que me acostumasse aos pequenos inconvenientes de um nome que se tornara rapidamente conhecido e me refizesse das primeiras decepções. Os homens têm um modo curioso de fazerem valer seus direitos sobre alguém que alcance a notoriedade; e é indiferente que se trate de um menino prodígio, de um compositor, de um poeta ou de um assassino. Um quer ter o seu retrato, outro o seu autógrafo, um terceiro mendiga dinheiro, cada jovem colega envia-lhe seus trabalhos, acompanhando-os de desmedidas lisonjas e pedindo uma opinião; e se não se lhe dá resposta ou se lhe diz o que se pensa, o mesmo admirador torna-se subitamente acrimonioso, grosseiro, vingativo. As revistas querem publicar o retrato do homem, os jornais falam da sua vida, das suas origens, do seu aspecto. Companheiros de escola fazem-se lem- brados e parentes remotos declaram haver dito, muito antes, que o primo algum dia seria célebre.

Por entre as cartas desse gênero, que me deixavam sem jeito e em apuros, havia também uma da Srta. Schniebel, que nos divertiu, e outra de alguém em quem havia muito eu não tinha mais pensado. Era da bonita Liddy, que me escrevia sem, contudo, mencionar o nosso tombo de trenó, no mais perfeito tom de uma velha e fiel amiga. Casara-se, na sua cidade, com um professor de música e dava-me o endereço, para que eu pudesse mandar para ela, quanto antes, todas as minhas obras, com uma linda dedicatória. Juntava o seu retrato, que mostrava as feições tão minhas conhecidas, mas envelhecidas e abrutalhadas; respondi-lhe da maneira mais afável possível.

Essas pequenas coisas, contudo, entram no rol das que vão para o fundo sem deixar vestígios. Também os frutos bons e gratos do meu sucesso, as relações travadas com seres nobres e sensíveis, que têm a música no coração e não apenas nos lábios, não pertencem, propriamente, à minha vida, que continuou pacata como antes e que desde então pouco se modificou. Resta-me somente contar que voltas deu o destino dos meus amigos mais chegados.

O velho Sr. Imthor já não recebia tanto como antigamente, quando estava presente Gertrud. Mas na sua casa, no meio dos muitos quadros, realizavam-se, a cada três semanas, saraus, com seleta música de câmara, que eu freqüentava regularmente e aos quais, ocasionalmente, levava também Teiser. Imthor, porém, fazia questão de que eu o visitasse também noutros momentos. Assim, nas primeiras horas da noite, que eram as de sua preferência, eu ia, às vezes, vê-lo no seu singelo escritório, onde, numa parede, estava pendurado um retrato de Gertrud; e, já que entre o velhote e mim foi nascendo uma compreensão mútua, exteriormente fria, mas sólida, e uma necessidade de conversarmos, os nossos colóquios, não raro, versavam sobre aquilo que, mais que tudo, ocupava nosso coração. Tive de contar-lhe de Munique e não lhe escondi minha impressão a respeito das relações entre Gertrud e o marido. Ele assentiu com um movimento de cabeça.

- Pode ser que tudo ainda se arranje - disse, suspirando - mas nós nada podemos fazer para isso. Alegro-me em pensar no verão, porque, então, terei minha filha dois meses para mim. Em Munique, vou visitá-la raramente e não de bom grado; ela se porta tão corajosamente, que não me sinto no direito de importuná-la e amolecê-la.

As cartas de Gertrud não traziam novidades. Quando, porém, pela Páscoa, esteve de visita ao pai e veio ver-nos também em nossa pequena casa, parecia mais magra e um tanto tensa; e por mais amável que se mostrasse conosco e procurasse ocultar o que lhe ia por dentro, víamos amiúde, em seus olhos agora sérios, laivos de uma inusitada desesperança. Quis que lhe tocasse as minhas novas músicas, mas quando lhe pedi que cantasse alguma coisa para nós, sacudiu a cabeça e olhou-me como a rogar que não insistisse.

- Noutra vez - disse, em voz insegura. Vimos todos que ela não era feliz, e o pai confessou-me, mais tarde, haver-lhe proposto que ficasse definitivamente na casa dele, mas não aceitara.

- Ela o ama - disse eu. Ele deu de ombros e olhou-me contristado. - Sei lá! Vá lá alguém compreender ainda alguma coisa, nessa desgraça toda! Mas ela disse que é por ele que fica em Munique, que ele está tão arrasado e infeliz que precisa mais dela do que ele próprio possa saber. Acrescentou que a ela não diz nada, mas que isso é visível no rosto dele.

Aí o velho baixou a voz e cochichou, envergonhado: - Ela acha que ele bebe. - Um pouco, sempre bebeu - disse eu, em tom de consolo - mas nunca o vi bêbado. Faz questão de não perder a linha. É um homem nervoso, incapaz de dominar-se, mas que talvez sofra mais por seu próprio modo de ser do que faça sofrer os outros.

Quão terrível fosse o sofrimento silencioso daquelas duas formosas, esplêndidas criaturas, nenhum de nós sabia. Não creio que algum dia cessassem de amar-se. Mas, por sua índole, não tinham nascido um para o outro e se afinavam somente nos momentos de emoção ou no fulgor das horas de enlevo. Aceitar a vida de maneira séria e serena, respirar, aplacado, na clara consciência do próprio ser, isso Muoth nunca soubera o que fosse. E Gertrud podia, sim, ter tolerância e comiseração pela sua impulsividade, seu pendor para torturar-se, suas quedas e reerguimentos, sua eterna necessidade de sair de si, aturdindo-se e exaltando-se, mas não podia modificar estes aspectos do marido nem compartilhálos. Eles se amavam, mas nunca chegaram a uma união completa; e, enquanto ele via frustrada sua tácita esperança de alcançar, graças a Gertrud, a paz e o sentimento da satisfação interior, ela era forçada a verificar, com pesar, que toda a sua boa vontade e sacrifícios eram baldados e que nem mesmo ela podia consolá-lo e pô-lo a salvo de si mesmo. Assim, achava-se destruído, aos olhos dos dois, o que fora o sonho secreto e o mais ardente desejo de ambos. Eles podiam viver juntos somente com espírito de sacrifício e de resignação; e era uma prova de coragem que o fizessem.

Não revi Heinrich antes do verão, quando ele trouxe Gertrud para a casa do pai. Mostrava-se delicado e atencioso, com ela e comigo, como eu nunca o vira antes; percebi perfeitamente o quanto ele receava perdê-la e também tive a impressão de que não suportaria a perda. Ela, porém, estava cansada e não pedia outra coisa senão sossego e dias de calma, a fim de reencontrar-se a si própria e recobrar forças e equanimidade. Passamos uma tépida noite no jardim da nossa casa. Gertrud estava sentada entre minha mãe e Brigitte, cuja mão segurava, Muoth passeava de mansinho entre as rosas e eu, na varanda, tocava com Teiser uma sonata para violino. A visão do modo com que Gertrud descansava em silêncio, respirando a paz daquela hora, e com que Brigitte se aconchegava, reverente, à linda e sofredora mulher, e Muoth, levemente inclinado, caminhava lá fora, na sombra, em silenciosas passadas e escutando a música, permaneceu na minha alma como um quadro inolvidável. Mais tarde, Muoth me disse, gracejando, mas com olhos tristes:

- Olha como estão sentadas juntas, as três mulheres! E, das três, somente tua mãe parece feliz. Vamos tratar, nós também, de chegar à sua idade.

Depois, partimos todos, cada qual para o seu lado: Muoth, sozinho, para Bayreuth; Gertrud, com o pai, para as montanhas; os Teiser para a Estíria, e eu, com minha mãe, novamente para o Mar do Norte. Ali, ia freqüentemente à praia, ficava ouvindo o mar e, não diferentemente de como o fizera anos antes, na primeira juventude, pensava com pasmo e terror no triste e insensato tumulto da vida, pensava em que o amor pode ser inútil e em que seres humanos que se querem bem acabam vivendo seu destino paralelamente, cada qual o seu próprio, incompreensível, e cada, qual desejando ajudar o outro, sem poder fazê-lo, como em pesadelos absurdos e confusos. E voltava freqüentemente a pensar também nas palavras de Muoth sobre a juventude e a velhice, curioso de saber se também para mim, algum dia, a vida se tornaria simples e clara. Minha mãe sorria, quando, em nossas palestras, eu tocava nesse assunto. Parecia estar, realmente, contente. E, para minha vergonha, me recordou o meu amigo Teiser, que não era velho e, no entanto, já o era bastante para ter o seu quinhão de experiências, e que ia vivendo sua vida despreocupado, com uma melodia de Mozart nos lábios, como uma criança. A questão não dependia de idade, isso eu via perfeitamente; e talvez nosso sofrimento e ignorância do que seja a vida não passasse daquela doença da qual, outrora, me falara o Sr. Lohe. Mas quem sabe se aquele sábio não era também uma criança, como Teiser?

Só que, fosse lá como fosse, por mais que eu pensasse, nada se modificava. Quando a música movia o meu ânimo, então, sim, compreendia tudo sem palavras, sentia puras harmonias no profundo de toda a criação e julgava saber que tudo o que acontece contém um sentido oculto e obedece a uma bela lei. Ainda que isso fosse uma ilusão, vivia nela e sentia-me feliz.

Talvez fora melhor se Gertrud, no verão, não se tivesse separado do marido. É bem verdade que ela começava a restabelecer-se e que no outono, quando a revi, de volta da viagem, parecia estar melhor de saúde e mais resistente. Mas as esperanças que construíamos sobre esse robustecimento eram ilusórias.

É que Gertrud vivera contente, alguns meses, na casa do pai, onde pudera ceder à sua necessidade de repouso e abandonar-se a um estado de tranqüilidade, respirando em paz e sem lutas cotidianas, tal como alguém, cansado, se abandona ao sono, assim que o deixam deitar-se. Agora, porém, evidenciava-se que ela estivera muito mais extenuada do que havíamos julgado e do que ela própria soubesse. Porque, agora que Muoth, breve, viria novamente buscá-la, foi tomada por desânimo e medo, perdeu o sono e pediu insistentemente ao pai que aguardasse mais algum tempo consigo.

Imthor, naturalmente, ficou um pouco assustado, pois obviamente devia pensar que ela teria prazer em voltar, com renovadas energias e vontade, para junto de Muoth; mas não a contrariou, e até sugeriu, cautelosamente, a idéia de uma separação provisória mais demorada, como preliminar de um futuro divórcio. Ela se opôs a isso, em grande alvoroço.

- Mas eu o amo - exclamou com veemência - e nunca o abandonarei! Só que é tão difícil viver com ele! Quero apenas ter mais um pouco de sossego, uns meses talvez até encontrar melhor disposição de espírito.

O velho Imthor procurou tranqüilizá-la, nada tendo em contrário em poder amparar a filha durante um período mais longo. E escreveu a Muoth que Gertrud ainda não estava bem e desejava permanecer emsua casa mais algum tempo. Infelizmente, este não recebeu a notícia com serenidade. Durante os meses da separação, a saudade da mulher tornara-se demasiado pungente, e ele alegrava-se ao pensamento do seu regresso, alimentando o propósito de reconquistá-la e fazê-la de novo inteiramente sua.

A carta de Imthor, assim, foi para ele uma grave decepção. Respondeu de imediato, em tom veemente, lançando suspeitas sobre o sogro. Julgava que este, já que desejava desfazer o casamento, tivesse instigado a filha contra ele; e pedia um encontro imediato com Gertrud, na certeira esperança de reconquistá-la. O velhote veio visitar-me com a carta e ambos refletimos longamente no que haveria de fazer-se. Pareceu-nos a ambos conveniente que, no momento, um encontro entre marido e mulher devesse ser evitado, porque, visivelmente, Gertrud não se achava em condições, por enquanto, de arrostar uma tempestade conjugal. Imthor estava preocupadíssimo, e pediu-me que fosse pessoalmente encontrar-me com Muoth, para persuadi-lo a deixar Gertrud ali por mais algum tempo. Sei, agora, que deveria ter feito isto. Na ocasião, porém, tive escrúpulos e considerei perigoso fazer saber ao meu amigo que eu era o confidente de seu sogro e que estava ao corrente de fatos da sua vida, a cujo respeito ele próprio nada quisera referir-me. Recusei-me, portanto, e tudo acabou numa carta do velho, a qual, naturalmente, não melhorou nada.

Muito ao contrário, foi Muoth que, sem se anunciar previamente, surgiu em pessoa na cidade, assustando-nos a todos com a mal contida excitação do seu amor e da sua desconfiança. Gertrud, que nada sabia da breve troca de correspondência, ficou totalmente surpreendida e atordoada com a inesperada visita do marido e com o tom quase irado da sua exaltação. Houve uma cena penosa, da qual pouco pude apreender. Sei somente que Muoth instou com Gertrud para que voltasse com ele para Munique. Ela declarou que estava pronta para fazê-lo, se não houvesse outra alternativa; pedia-lhe, contudo, que lhe permitisse ficar mais um pouco na casa do pai, pois estava cansada e necessitava ainda de repouso. Ele, então, a acusou de querer deixá-lo, de que a isso fora açulada pelo pai, e, tornando-se ainda mais desconfiado ante a doçura das suas declarações, num rompante de raiva e acrimônia chegou à insensatez de ordenar-lhe que voltasse com ele sem mais discussões. Contra isso rebelou-se a altivez de Gertrud; ela permaneceu calma, mas recusou continuar a ouvi-lo e declarou que agora ficaria, de qualquer maneira. A essa cena seguira-se, na manhã seguinte, uma espécie de reconciliação, e Muoth, envergonhado e arrependido, tinha então concordado com todos os desejos dela. Depois, tornara a partir, sem ter sequer vindo falar comigo.

Quando soube disso tudo, assustei-me e vi chegar o mal que temera desde o início. Depois da feia e absurda: cena de Muoth, pensei comigo, passaria muito tempo antes que ela voltasse a encontrar a serenidade e a coragem de regressar. E, nesse ínterim, ele corria o perigo de tornar-se ainda mais desarrazoado e, não obstante toda a saudade, ainda mais distanciado dela. Não resistiria por muito tempo, sozinho na casa em que fora feliz durante breve período, começaria a desesperar-se, beberia, talvez voltasse a ter outras mulheres, que, aliás, continuavam a correr atrás dele.

Entrementes, tudo permaneceu tranqüilo. Ele escreveu a Gertrud, renovando o pedido de perdão, ela lhe respondeu, em tom compassivo e carinhoso, exortando-o à paciência. Eu pouco a vi, nesse período. De onde em onde, fazia a tentativa de induzi-la a cantar, mas ela sacudia constantemente a cabeça. Contudo, mais de uma vez a encontrei sentada ao piano.

Era um espetáculo estranho e deprimente, para mim, encontrar, agora intimidada e abalada nas fibras mais secretas da sua sensibilidade, a linda e altiva mulher que eu sempre vira cheia de energia, alegria e tranqüilidade de espírito. Ela vinha, de vez em quando, visitar minha mãe, pedia afavelmente notícias de como estávamos passando e ia sentar-se, por alguns momentos, perto da velha mulher, no sofá cinzento, procurando palestrar; eu ficava a escutá-la e me partia o coração ver que esforços fazia para esboçar um sorriso. Salvavam-se as aparências, como se nem eu nem ninguém mais soubesse do seu sofrimento ou como se o considerássemos simplesmente nervosismo ou fraqueza física. Assim, eu mal me atrevia a olhá-la nos olhos, onde aquela angústia, da qual eu nada deveria saber, era tão claramente legível. E conversávamos e vivíamos e passávamos um pelo outro como se nada houvesse mudado, e no entanto evitando-nos, cada qual com vergonha do outro! Em meio a essa triste confusão de sentimentos, apoderava-se de mim, vez por outra, com súbito e febril ardor, a idéia de que o seu coração já não pertencia ao marido e estava livre, e de que agora dependia de mim impedir que ela voltasse a perder-se, conquistando-a para mim e abrigando-a junto do meu coração contra todas as tormentas e sofrimentos. Então, eu me trancava, tocava aquela apaixonada declaração de amor que era a música da minha ópera, a qual agora voltava repentinamente a amar e compreender, passava noites abrasado pelo desejo e sequioso de amor e padecia novamente todo o tormento, tão facilmente superado, da juventude e o mesmo irrealizável anseio, não menos intensamente do que quando eu me inflamara por ela, pela primeira vez, e lhe dera aquele único, inesquecível beijo. Voltava este, agora, a pôr-me os lábios em fogo e reduzir a cinzas, em poucas horas, a tranqüilidade e a resignação de anos.

Era só na presença de Gertrud que essa chama esmorecia sozinha. Ainda que eu fosse tão insensato e carente de nobreza para dar ouvido aos meus desejos, e, sem qualquer consideração pelo marido, que era meu amigo, requestasse o seu coração, haveria de envergonhar-me ante o olhar daquela criatura sofredora, delicada, obstinada e aferrada à sua dor, de acercar-me dela de outro modo que não com um sentimento de compaixão e uma cautelosa indulgência. Também, quanto mais sofria e, talvez, perdesse a esperança, tanto mais ela se tornava altiva e inacessível. Trazia a elevada figura e a delicada cabeça mais ereta e com mais fidalguia do que nunca, não permitindo a nenhum de nós o menor gesto de achegar-se a ela para ajudá-la a suportar seu fardo.

Essas longas e silenciosas semanas foram, talvez, as mais difíceis da minha existência. De um lado Gertrud, tão perto de mim e, no entanto, inatingível, sem nenhum caminho levando para ela, que queria estar só; do outro, Brigitte, de cujo amor por fim eu sabia e com quem, após longamente evitá-la, um tolerável convívio voltara lentamente a formar-se; e no meio de nós todos, minha velha mãe, que nos via sofrer e tudo adivinhava sem atrever-se a dizer nada, já que eu próprio tenazmente me calava, incapaz de proferir uma palavra sobre o meu estado. O pior, porém, era aquela mortal necessidade de assistir passivamente a tudo, a persuasão impotente de que os meus amigos mais chegados estavam destruindo-se a si mesmos, sem que eu pudesse, sequer, mostrar que sabia disso.

Mais gravemente do que todos, parecia sofrer o pai de Gertrud. Desde que o conhecera, anos antes, como um maduro cavalheiro, inteligente, vigoroso, tranqüilo e bem-humorado, ele envelhecera, estava mudado, falava em voz baixa e inquieta, não gracejava mais e parecia extremamemte preocupado e infeliz. Certo dia de novembro, fui visitá-lo, mais para ouvir novidades e haurir esperanças do que para confortá-lo e fazer-lhe companhia.

Recebeu-me no seu escritório, ofereceu-me um dos seus dispendiosos charutos e iniciou a conversação em um tom cortês e despreocupado, que lhe custava esforços e que logo abandonou. Com um sorriso desconsolado, olhou para mim, dizendo:

- Veio indagar como vão as coisas, não é? Mal, meu caro senhor, mal. Minha filha, certamente, suportou bem mais do que aquilo que nós sabemos, de outro modo enfrentaria melhor a situação. Sou decididamente favorável a um divórcio, mas ela nem quer ouvir falar nisso. Ela o ama, é, pelo menos, o que diz, e no entanto tem medo dele! Isso não é nada bom. Ela está doente, pobre menina, fecha os olhos, não quer ver mais nada e julga que tudo deverá melhorar, contanto que se espere mais um pouco e que a deixem em paz. Isso é nervoso, naturalmente, mas ela parece sofrer de doença mais profunda. Pense só: às vezes tem até medo de que o marido possa maltratá-la, se ela voltar para junto dele! E, contudo, acha que o ama.

Ele parecia não a compreender e olhava para os fatos sem saber, o que deveria ser feito. Para mim, o sofrimento dela era perfeitamente compreensível como uma luta entre o amor e o orgulho. O seu medo não era tanto de que ele lhe batesse, era de não poder mais respeitá-lo; e alimentava a esperança de tornar a encontrar energias naquela amedrontada espera. Ela o havia dominado e subjugado, mas nisso esgotara-se a tal ponto, que não confiava mais nas suas próprias forças; e era essa a sua doença. Agora, tinha saudade dele e, não obstante, receava perdê-lo definitivamente, se uma nova tentativa de vida em comum fosse malsucedida. E eu via claramente, agora, quão inúteis e cegas haviam sido as minhas atrevidas fantasias amorosas: Gertrud amava o marido e nunca seguiria outro homem.

O velho Imthor evitava falar de Muoth, sabendo-me amigo dele. Mas o odiava e não podia compreender como pudera fascinar Gertrud; via nele uma espécie de feiticeiro mau, que captura inocentes e não os devolve mais. Ora, a paixão é sempre um enigma inexplicável, e é certo, infelizmente, que a vida não poupa os seus mais belos filhos e que, freqüentemente, as mais esplêndidas criaturas acabam amando, justamente, aquilo que as leva à destruição.

Nessa sombria perspectiva, chegou-me, como uma salvação, uma carta de Muoth. Escrevia ele:

"Meu caro Kuhn.

A tua ópera está sendo, agora, levada em toda parte e, talvez, melhor do que aqui. Contudo, seria simpático se viesses novamente, por exemplo, na semana vindoura, em que eu canto duas vezes o teu papel. Como sabes, minha mulher está doente e eu me encontro aqui sozinho. Poderias, portanto, vir morar, sem cerimônias, na minha casa. Mas, por favor, não tragas ninguém contigo!

Cordialmente,

Muoth

Era tão raro ele escrever cartas, e nunca as desnecessárias, que decidi imediatamente viajar para lá. Devia estar precisando de mim. Por um momento, tive a idéia de participá-lo a Gertrud. Talvez fosse a ocasião oportuna para sair do atoleiro, talvez ela me confiasse alguma carta ou alguma palavra amigável para ele, talvez lhe pedisse para vir, talvez ela própria fosse lá comigo. Mas era somente uma idéia e não a levei avante. Antes da partida, visitei somente o pai.

Era um fim de outono de tempo mau, úmido, borrascoso; de Munique viam-se às vezes, durante uma hora, os montes vizinhos jazendo sob uma neve recente e a cidade estava coberta por um céu sombrio e chuvoso. Tomei um carro e fui imediatamente para a casa de Muoth. Ali tudo se achava como um ano antes, o mesmo criado, as mesmas salas, a mesma disposição dos móveis; só que tudo parecia desabitado e vazio, faltavam as flores, que na outra ocasião Gertrud providenciava. Muoth não estava em casa. O criado me acompanhou ao meu quarto e auxiliou-me a desfazer a bagagem; mudei de roupa e, como o dono da casa ainda não tivesse chegado, desci para a sala de música, onde, atrás das duplas janelas, ouvia as árvores agitadas pelo vento e tinha tempo de evocar o passado. Quanto mais me demorava lá sentado, olhando os quadros e folheando os livros, tanto mais a tristeza me invadia o coração, como se aquela casa não pudesse mais salvar-se.

Mal-humorado, sentei-me ao piano, para enxotar os inúteis pensamentos, e toquei o prelúdio do casamento, como se com ele pudesse resgatar as boas coisas do passado.

Finalmente, ouvi passos rápidos e pesados na sala contígua, e Heinrich Muoth entrou. Estendeu-me a mão e dirigiu-me um olhar cansado.

- Desculpa - disse - tive o que fazer no teatro. Já sabes que canto hoje à noite. Agora, porém, vamos almoçar, não é?

Precedeu-me. Achei-o mudado: estava distraído e indiferente, falava somente no teatro e parecia não desejar nenhum outro tema de conversa. Somente depois do almoço, quando os dois estávamos sentados um defronte do outro, em silêncio e quase embaraçados, nas amarelas cadeiras de vime, ele começou abruptamente:

- Foi bonito, da tua parte, que viesses. Hoje à noite, vou fazer um esforço todo especial.

- Obrigado - disse eu. - O teu aspecto não é nada bom. - Achas? Bem, vamos é tratar de estar alegres. Como sabes, sou, provisoriamente, um homem solteiro.

- Sim. Ele olhou para o lado. - Não sabes nada de Gertrud? - Nada de especial. Continua nervosa, não dormindo bem. - Sim, não falemos mais nisso. Ela está em boas mãos. Levantou-se e começou a andar pela sala. Tive a impressão de que queria dizer ainda alguma coisa; olhou para mim, examinando-me, e, pelo que me pareceu com desconfiança.

Depois, riu e mudou de assunto. - A Lotte também voltou a aparecer - recomeçou. - A Lotte? - Sim, aquela que uma vez foi visitar-te para queixar-se de mim. Está aqui, casada, e, pelo que parece, ainda se interessa por mim. Veio aqui em casa, para fazer-me uma verdadeira visita.

Lançou-me novamente um olhar malicioso, e começou a rir quando me viu horrorizar-me.

- E tu a recebeste? - perguntei, hesitando. - Ah, julgas-me capaz disso! Não, meu caro, dei ordem de mandá-la embora. Mas, desculpa, estou falando de tolices. Sinto-me tremendamente cansado, e à noite tenho de cantar. Se me dás licença, vou deitar-me e dormir uma horinha.


- Está bem, Heinrich, descansa a vontade; darei umas voltas pela cidade. Podes mandar vir um carro para mim?

Eu não tinha vontade de permanecer novamente sentado em silêncio naquela casa, à escuta do vento nas árvores. Fui de carruagem à cidade, sem rumo definido, e acabei dando na velha Pinacoteca. Ali, durante uma hora, fiquei olhando os velhos quadros na sombria luz cinzenta; depois, terminou o horário das visitas e não achei nada de melhor senão ir para um café, ler os jornais e contemplar, através dos vidros das altas janelas, as ruas debaixo da chuva. Formei o propósito de romper, a todo custo, aquela frieza entre Muoth e mim e falar com ele sinceramente.

Quando voltei, porém, encontrei-o sorridente e bemhumorado.

- O que me faltava era só um pouco de sono - disse alegremente. - Agora, estou de novo bem-disposto. Precisas tocar alguma coisa para mim, sim? O prelúdio, se quiseres mesmo ser amável.

Contente e surpreso de vê-lo mudado tão depressa, fiz-lhe a vontade; e depois que terminei de tocar, ele começou a palestrar como antigamente, com ironia e leve ceticismo, abandonando-se à colorida volubilidade do seu humor e reconquistando totalmente o meu coração. Voltaram-me à memória os primeiros tempos da nossa amizade e, à noite, quando saímos de casa, corri a vista involuntariamente em meu redor e perguntei-lhe:

- Não tens mais nenhum cachorro? - Não... Gertrud não gostava deles. Fomos então de carro para o teatro. Cumprimentei o regente da orquestra e pedi que me dessem um lugar. Tornei a ouvir a música bem conhecida; mas era diferente da última vez. Agora, eu estava sentado sozinho no camarote. Gertrud achava-se longe e aquele que, lá embaixo, representava e cantava também era outro. Cantava com paixão e ímpeto, o-público parecia apreciá-lo nesse papel e deixava-se empolgar desde o início. A mim, porém, aquela sua fogosidade parecia exagerada e a voz, alteada, quase grosseira. No primeiro intervalo, desci e fui vê-lo. Lá estava ele novamente no camarim, bebendo champanha, e durante as poucas palavras que trocamos seus olhos pareciam irrequietos, como os de alguém levemente embriagado. Mais tarde, enquanto Muoth mudava de roupa, fui falar com o regente.

- Diga-me uma coisa - pedi-lhe - Muoth está doente?

Tenho a impressão de que só se agüenta em pé à força de champanha. O senhor sabe, ele é um amigo meu.

O homem lançou-me um olhar desconfiado. - Se está doente, não sei. Mas uma coisa é clara: que ele está se destruindo. Já entrou em cena, algumas vezes, quase bêbado; e, quando não bebe, representa mal e canta de maneira infame. Já antigamente ele costumava beber uma taça de champanha, antes do pano subir; agora, porém, não faz por menos de uma garrafa inteira. Se o senhor quer dar-lhe um conselho... Mas acho que não há nada a fazer. O Muoth está fazendo tudo para destruir-se.

Muoth veio buscar-me e fomos cear no restaurante mais próximo. Estava de novo, como ao meio-dia, extenuado e inabordável, bebia descomedidamente do escuro vinho tinto, pois de outro modo não conciliaria o sono, e dava a impressão de querer, a qualquer preço, esquecer que existiam outras coisas no mundo além do seu cansaço e da sua necessidade de sono.

No carro, a caminho da casa, despertou por um momento e sorriu-me, exclamando:

- Quando eu não estiver mais aqui, rapaz, poderás recolher a tua ópera à prateleira; a não ser eu, ninguém pode cantar esse papel.

No dia seguinte, levantou-se tarde e estava fatigado e nervoso, com o olhar inseguro e o rosto pálido. Depois do desjejum, resolvi catequizá-lo.

- Estás te matando - disse-lhe, triste e aborrecido. - Procuras manter-te bem-disposto com champanha e depois, naturalmente, pagas por isso. Posso imaginar por que o fazes, e não diria nada se não tivesses uma mulher. É para com ela que tens a obrigação de conservar-te limpo e corajoso, por dentro e por fora.

- Ah, sim? - sorriu debilmente e aparentemente divertido com o meu fervor. - E qual é a obrigação dela para comigo? Ela, por acaso, se conserva corajosa? Fica em casa do pai e deixa-me sozinho. Por que eu deveria controlar-me, se ela não o faz? O pessoal já sabe que entre nós não há mais nada; e tu também sabes. Como se não bastasse, ainda devo cantar e bancar o palhaço para o público divertir-se; e isso não se consegue só com o vazio e o nojo que sinto de tudo, principalmente da minha arte.

- Mesmo assim, precisas mudar de vida, Muoth! Ainda compreenderia se fosses feliz! Mas o teu estado é lastimável. Se achas que cantar te cansa demais, pede uma licença, isso eles te dão imediatamente; não precisas absolutamente do dinheiro que te pagam. Vai para as montanhas ou para o mar ou para qualquer outro lugar e trata de recuperar a saúde. E pára com essa estúpida mania de beber! Não é só estúpida, é também covarde, sabes perfeitamente disso.

Limitou-se a sorrir. - Oh, sim - disse, friamente. - E tu, mexe-te e vai dançar uma valsa! Seria ótimo para a tua saúde, podes ter certeza! Não fiques o tempo todo com essa estúpida mania de pensar na tua perna, isso é pura imaginação!

- Pára com isso - exclamei, irritado. - Sabes muito bem que o caso é completamente diferente. Eu dançaria com prazer, se pudesse; mas não posso. Tu, porém, poderias perfeitamente dominar-te e ter um pouco mais de juízo. E precisas, terminantemente, parar de beber.

- Terminantemente... Meu caro Kuhn, dás-me vontade de rir. Posso tão pouco mudar e parar de beber quanto tu podes dançar. Preciso agarrar-me àquilo que ainda me dá um mínimo de vida e bom humor, compreendes? Os bêbados costumam largar a bebida quando encontram, no Exército da Salvação ou em qualquer outro lugar, alguma coisa que lhes proporcione uma satisfação melhor e mais duradoura. Para mim, havia uma coisa do gênero: as mulheres. Mas não posso mais meter-me com outras mulheres, agora, depois que a minha foi minha e me abandonou; portanto...

- Ela não te abandonou! Ela voltará. Está, apenas, doente. - É o que tu pensas e o que ela também pensa, eu sei. Mas não vai voltar. Quando um navio está para afundar, os ratos costumam abandoná-lo, antes. Eles também, provavelmente, não sabem que o navio vai soçobrar. Apenas sentem-se percorridos por um desagradável calafrio e fogem, certamente na melhor intenção de voltar logo.

- Não fales assim! Já várias vezes desesperaste da tua vida, e depois as coisas se endireitaram.

- Está certo, as coisas se endireitaram porque encontrei uma consolação ou um entorpecente. Uma vez, foi uma mulher; outra vez, um bom amigo; sim, tu já me prestaste este serviço! Outra vez ainda, a música e os aplausos no teatro. Agora, porém, essas coisas não me alegram mais e, por conseguinte, bebo. Não poderia cantar sem antes beber uns quantos copos, e tampouco posso pensar e falar e viver e sentir-me uma pessoa suportável, sem antes beber uns quantos copos. E para encurtar a conversa: deixa o sermão de lado, por melhor que te fique fazê-lo. Isso já me aconteceu uma vez, há doze anos, mais ou menos. Também então alguém me pregou um sermão e não queria parar de pregar; era por causa de uma moça, e casualmente tratava-se do meu melhor amigo...

- E daí? - Daí, vi-me obrigado a mostrar-lhe a porta da rua. E então fiquei sem qualquer amigo durante muito tempo, a bem dizer, até que você aparecesse.

- Isso é evidente. - Sim - acrescentou, em tom brando. - Agora, podes escolher. Mas quero dizer-te que não seria nada bonito se tu também, agora, me largasses de mão. Gosto de ti, e pensava mesmo proporcionar-te uma alegria.

- Verdade? De que se trata? - Bem, tu gostas de minha mulher ... ou, pelo menos, gostaste ... e eu também gosto dela, e muito, por sinal. Pois hoje à noite vamos dar uma festa, só tu e eu, em sua honra. E que há um motivo para isso. Mandei pintar um retrato dela; durante toda a primavera, teve de ir ao ateliê do pintor, eu também fui lá várias vezes. Depois, ela viajou, quando o quadro estava quase pronto. O pintor desejava ainda uma sessão de pose, mas fartei-me de esperar e quis o quadro assim como está. Isso foi há uma semana. Agora, já lhe puseram uma moldura e ontem chegou aqui em casa. Eu o teria mostrado logo, mas é melhor fazê-lo de forma festiva. É claro que a coisa não irá sem um pouco de champanha; de que outra maneira eu poderia pôr-me alegre? Que dizes a isto?

Senti que atrás do tom de gracejo escondiam-se a emoção e até as lágrimas, e concordei alegremente, se bem que a alegria fosse forçada. E assim preparou-se a festa em honra da mulher que ele julgava ter perdido definitivamente, tal como eu realmente a perdera.

- Ainda te lembras das suas flores? - perguntou-me. - Eu não entendo nada de flores e não sei como se chamam. Ela tinha sempre em casa umas brancas e amarelas, vermelhas também. Sabes quais são?

- Sim, algumas ainda sei. Por quê? - Deves ir comprá-las. Manda vir um carro; eu também, aliás, preciso ir à cidade. Vamos fazer tudo como se ela estivesse aqui.

E igualmente outras coisas lhe ocorreram, o que me fez dar conta de que modo profundo e ininterrupto ele havia continuado a pensar em Gertrud. Notá-lo fez-me bem e, ao mesmo tempo, mal. Por amor a ela, ele não tinha mais cachorro em casa, e, acostumado a não poder passar muito tempo sem mulheres, vivia sozinho. Havia encomendado um retrato dela e mandava-me comprar as suas flores preferidas! Era como se ele tirasse uma máscara e eu visse, escondido atrás daqueles traços duros e egoístas, um rosto de criança.

- Porém - ainda objetei - seria melhor olharmos o quadro agora, ou então de tarde. Os quadros devem ser vistos à luz do dia.

- Ora, amanhã poderás contemplá-lo ainda quanto tempo quiseres. Espero que seja boa pintura, mas, no fundo, para nós isso é indiferente; tudo o que queremos ver é a ela.

Depois do almoço, fomos à cidade fazer compras, principalmente de flores: um grande ramo de crisânterpos, uma cesta de rosas e uns ramalhetes de lilases brancos. Ele também se lembrou de encomendar o envio de uma grande quantidade de flores para Gertrud.

- As flores são realmente uma coisa bonita - comentou, pensativo. - Compreendo que Gertrud goste delas. Eu também gosto, só que não me ocorre cuidar disso. Quando não havia nenhuma mulher que se ocupasse dela, minha casa andava sempre desarrumada e não era realmente confortável.

A noite, encontrei o novo quadro na sala de música, coberto com um pano de seda. Jantamos lautamente, e Muoth desejava, antes de mais nada, ouvir o prelúdio do casamento. Depois que o toquei, descobriu o quadro e ambos ficamos, por alguns momentos, a contemplá-lo em silêncio. Gertrud fora pintada trajando um claro vestido de verão, de corpo inteiro, e dirigia familiarmente para nós os seus límpidos olhos; e passou algum tempo antes que pudéssemos olhar um para o outro e apertar-nos as mãos. Muoth encheu dois copos de vinho do Reno, inclinou a cabeça diante do quadro e bebemos à saúde daquela em que ambos pensávamos. Depois, pegou cuidadosamente o quadro nos braços e o levou para fora.

Pedi-lhe que cantasse alguma coisa, mas ele não quis. - Ainda te lembras - disse, sorrindo - da noite, antes do meu casamento, que passamos juntos, só nós dois? Agora, aqui estou, novamente solteiro; vamos tratar de esvaziar uns copos e ficar alegres. Quem deveria achar-se aqui conosco era o teu amigo Teiser; ele entende de alegrias mais do que eu ou tu. Quando estiveres de volta em R., dá-lhe lembranças minhas. É verdade que ele não me suporta, mas, mesmo assim...

Com aquela jovialidade cautelosa e contida, com que sempre havia saboreado as suas melhores horas, começou a palestrar, falando de coisas do passado; e fiquei admirado de como tudo, até os pormenores mais insignificantes e casuais, queeu julgava ele tivesse esquecido desde muito, vivia bem guardado na sua memória. Também a primeira noite em que eu estivera na sua casa, com Marion, Kranzl e os demais, bem como a nossa discussão de então, ele não esquecera. Só fez silêncio quanto a Gertrud. Nada mencionou sobre todo o tempo desde o dia em que ela se interpusera entre nós; e achei melhor que fosse assim.

Regozijei-me com aquelas horas belas e inesperadas e deixei-o beber à sua vontade o bom vinho, sem admoestá-lo. Eu sabia quão raras eram, nele, essas disposições de espírito, como ele próprio as protegia e cultivava, quando as conseguia - e, sem dúvida, nunca as conseguia sem vinho. Eu também sabia que isso duraria pouco e que, no dia seguinte, ele estaria de novo deprimido e impenetrável; e, contudo, sentia subir, dentro de mim, um calor cordial e um humor quase alegre, à medida que ia escutando as suas considerações perspicazes e meditativas, ainda que contraditórias. Enquanto falava, lançava-me, de vez em quando, um dos seus bonitos olhares, que só tinha nessas horas e que pareciam os olhares de alguém que foi acordado bem no meio de um sonho.

Num momento em que se calou, refletindo, comecei a contarlhe aquilo que o meu teósofo me dissera sobre a doença do solitário.

- Ah, sim? - comentou, em tom condescendente. - E tu, naturalmente, acreditaste, não é? O que deverias é ter-te tornado teólogo, isso, sim.

- Por quê? Pode haver alguma verdade naquilo. - Naturalmente. De quando em quando, os senhores sábios demonstram infalivelmente que tudo não passa de uma ilusão. Antigamente, eu também lia livros do gênero e só posso dizer-te é que não servem para nada, absolutamente nada. Tudo o que esses filósofos escrevem é uma brincadeira; talvez seja um modo de se consolarem a si mesmos. Um inventa o individualismo, porque não suporta os seus contemporâneos; outro o socialismo, porque não agüenta sentir-se sozinho. É possível que o nosso sentimento de solidão seja uma doença. O que, porém, não muda nada. O sonambulismo também é uma doença, e por isso mesmo é que o sonâmbulo fica realmente em pé no beiral do telhado e, se a gente grita para ele, despenca de lá de cima e parte o pescoço.

- Ora, não é a mesma coisa. - Por mim, não faço nenhuma questão de ter razão. Só quero dizer que com a sabedoria não se chega a nada. Existem somente duas sabedorias, e tudo o que há de permeio é conversa.

- Que sabedorias são essas? - Ora, ou bem o mundo é mau e miserável, como dizem os budistas e os cristãos, e aí o homem deve mortificar-se e renunciar a tudo, e penso que, assim, alguém pode realmente sentir-se feliz, e a vida dos ascetas não é tão ruim como dizem. Ou então o mundo e a vida são coisa boa e certa, e nesse caso só resta é participar dela e depois morrer tranqüilamente, porque, aí, acabou-se, não vem mais nada...

- E em qual das duas acreditas? - Isso não se deve perguntar a ninguém. A maioria das pessoas acredita em ambas, conforme o tempo que faz, o seu estado de saúde e se têm ou não têm dinheiro no bolso. E os que realmente acreditam numa, não vivem de acordo com ela. O mesmo se dá comigo. Porque a verdade é que eu creio, como o Buda, que o mundo não vale nada. Mas vivo, na realidade, do modo que faz bem aos meus sentidos e como se eles fossem o principal. Se isso fosse apenas um pouco mais divertido!

Quando terminamos, ainda não era tarde. Ao passarmos pela sala contígua, onde brilhava uma solitária lâmpada elétrica, Muoth me reteve pelo braço, acendeu todas as luzes e retirou o pano de cima do retrato de Gertrud, que estava lá encostado. Contemplamos, mais uma vez, o rosto claro e tão querido; depois, ele tornou a cobri-lo com o pano e apagou a luz. Acompanhou-me ao meu quarto e pôs sobre a mesa algumas revistas, para o caso de que eu ainda quisesse ler. Depois, apertou-me a mão, dizendo, em voz baixa:

- Boa noite, meu caro amigo! Fui para a cama e permaneci deitado, sem dormir, ainda uma meia hora, pensando nele. Tinha-me comovido e envergonhado verificar como ele guardara memória fiel de todas as pequenas ocorrências da nossa amizade. Esse homem, para quem era difícil mostrar-se amigo de alguém, era mais profundamente afeiçoado do que eu julgara àqueles aos quais queria bem.

Depois adormeci, e sonhei, de cambulhada, com Muoth, a minha ópera e o Sr. Lohe. Era ainda noite, quando acordei. Fora acordado por um susto, que nada tinha a ver com os meus sonhos. Vi, no quadrado da janela, o lívido alvorecer, cinzento e fosco, e senti uma angustiante opressão; soergui-me na cama e procurei despertar de todo e pensar claramente.

Ouvi, então, rijas e rápidas pancadas na minha porta. Pulei da cama e abri. Fazia frio e eu nem sequer acendera a luz. Do lado de fora, estava o criado, vestido sumariamente e me fitando assustado, com olhos horrorizados.

- Venha! - murmurou, ofegante. - Venha! Aconteceu uma desgraça.

Vesti rapidamente um roupão e desci a escada, seguindo o jovem empregado. Ele abriu uma porta, recuou e me fez entrar. Lá estava, sobre uma pequena mesa de vime, um candelabro onde ardiam três grossas velas, e, ao lado, uma cama desfeita; e nela, deitado de bruços, vi o meu amigo Muoth.

- Precisamos virá-lo - disse eu, em voz baixa. O criado não ousava aproximar-se. - O médico deve estar chegando - disse, balbuciando. Mas eu o obriguei a segurá-lo e viramos o corpo que jazia de bruços. Contemplei, então, o meu amigo no rosto; estava branco e crispado e a camisa achava-se empapada de sangue; e quando o deitamos e tornamos a cobri-lo, a sua boca contraiu-se de leve e os olhos já não tinham olhar.

Então o criado começou, solícito, a narrar o acontecido, mas eu não quis saber de nada. Quando o médico chegou, Muoth já estava morto. De manhã cedo, telegrafei a Imthor; depois, voltei para a casa mergulhada no silêncio, sentei-me à cabeceira do finado, ouvi o vento, lá fora, soprar nas árvores, e só então me dei conta exata de todo o afeto que eu votava àquele pobre homem. Não podia, porém, lastimá-lo: a sua morte fora mais fácil do que a sua vida.

A noite, estive na estação e vi o velho Imthor descer do trem, e atrás dele uma mulher de elevado porte e vestida de preto; e os levei para junto do morto, que agora jazia, vestido, em câmara ardente, no meio das flores da véspera. Gertrud, então, inclinou-se e o beijou na pálida boca.

Quando estávamos diante do túmulo, avistei uma mulher, alta e bonita, com o rosto úmido de pranto, que se mantinha apartada, segurando um buquê de rosas; e quando, curioso, olhei para lá, reconheci Lotte. Cumprimentou-me com um aceno da cabeça e eu som. Gertrud, porém, não tinha chorado; pálida, fitava, atenta e gravemente, a chuva miúda borrifada pelo vento. Conservava-se ereta qual uma jovem árvore e como se nada houvesse abalado as suas raízes. Mas era somente uma atitude de defesa; e dois dias mais tarde, quando de volta em casa desembrulhou as flores de Muoth, que tinham chegado nesse meio tempo, a sua resistência desmoronou-se, e durante um longo tempo nenhum de nós pôde mais vê-la.

IX

TAMBÉM comigo, só mais tarde a dor fez valer os seus direitos. E, como sempre acontece, vieram-me à memória inúmeras ocasiões em que cometera injustiças contra o meu falecido amigo. O pior, no entanto, ele próprio o fizera a si mesmo, e não somente com aquela morte. Refleti muito nessas coisas, sem poder concluir que houvera o que quer que fosse de obscuro e de incompreensível naquele destino; e, todavia, tudo nele tinha sido crueldade e zombaria. Não diferente era o que se dava com a minha própria vida e com a vida de Gertrud e de muitos outros. O destino não era bom, a vida era caprichosa e cruel, na natureza não havia nem bondade nem razão. Mas existe bondade e razão em nós, dentro de nós, seres humanos com os quais brinca o destino; e podemos ser mais fortes do que a natureza e do que o destino, mesmo que somente por horas. E podemos sentir-nos próximos uns dos outros, quando é necessário, e olharmos uns nos olhos dos outros, com compreensão, e podemos amar-nos uns aos outros e viver para mútuo consolo.

E, por vezes, quando as sombrias profundezas silenciam, podemos ainda mais do que isso. Podemos, então, por momentos, tornar-nos deuses, estender mãos de comando e criar coisas que não existiam e que, uma vez concluídas, continuam a viver sem nós. Com sons e com palavras e com outros elementos caducos e sem valor, podemos construir obras de fantasia, melodias e canções repassadas de significação e consolo e bondade, mais belas e imorredouras do que as cruas fantasias do acaso e do destino. Podemos trazer Deus no coração, e por momentos, quando nos sentimos mais intimamente unidos com Ele, Ele pode expressar-se através dos nossos olhos e das nossas palavras e falar também aos outros, que não O conhecem ou não O querem conhecer. Não podemos subtrair o nosso coração à vida, mas podemos formá-lo e instruí-lo de tal modo, que seja superior ao acaso e possa suportar, indômito, os transes dolorosos.

Assim, nos anos decorridos desde que Heinrich Muoth foi sepultado, pude fazê-lo reviver mil vezes na minha mente e falar com ele de maneira mais cordata e carinhosa do que jamais fizera quando vivia. E vi, quando o seu tempo chegou, minha velha mãe deitar-se e morrer, e vi também morrer a bonita e alegre Brigitte Teiser, a qual, depois de anos de espera e depois de curada, casou-se com um músico e não sobreviveu ao primeiro parto.

Gertrud superou aquela dor que a acometera e subjugara na ocasião em que as nossas flores lhe chegaram como uma saudação e uma declaração de amor de um morto. Não falo freqüentemente com ela a esse respeito, se bem que a veja todos os dias. Mas creio que, quando olha para trás, a sua primavera lhe aparece como um vale distante, visto em remotas jornadas, e não como um paraíso perdido. Reencontrou a energia e a serenidade, voltou também a cantar. Todavia, depois do beijo frio nos lábios do morto, não beijou mais nenhum homem. Uma ou"duas vezes, no transcurso dos anos, quando a sua alma, já sarada, reflorescia, exalando o velho e acre perfume, os meus pensamentos a acompanharam pelo velho caminho proibido, perguntando: e por que não? Secretamente, porém, eu já conhecia a resposta e sabia que, na sua vida, como na minha, não havia mais nada para corrigir. Ela é minha amiga, e quando, depois de períodos agitados de solidão, saio do meu silêncio dispondo de uma canção ou de uma sonata, é a nós dois, antes que a mais ninguém, que ela pertence. Muoth tinha razão: envelhecendo, nos sentimos mais contentes do que na juventude, que nem por isso pretendo menosprezar, pois em todos os meus sonhos continua a soar, de longe, aos meus ouvidos, como uma maravilhosa canção; mais pura e sonoramente afinada hoje do que quando ainda era realidade.

 

 

                                                                  Hermann Hesse

 

 

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