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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GIGI / Colette
GIGI / Colette

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

G I G I

 

GIGI é certamente uma das obras-primas de Colette, um dos romances em que ela empenhou toda a pujança de seu gênio artístico. Vamos encontrar em suas páginas as mesmas características excepcionais da Colette que conhecemos através de traduções anteriores: a sensibilidade lírica, a perspicácia a envolver em situações inesquecíveis os seus personagens, a vigorosa capacidade de criar tipos humanos sem descambar para a caricatura fácil, enfim, a pureza do estilo que a consagrou como um dos grandes clássicos da França contemporânea.

GIGI trata da história de uma jovem adolescente - Gilberte - que, iniciando-se nos segredos da vida, sofre as dúvidas e desilusões próprias da sua idade. É malícia que toma contacto com as coisas indispensáveis à graça feminina: a beleza de um vestido, o encantamento de um novo penteado, a elegante simplicidade de um ornamento... Viver o momento fecundo da transformação da criança em adulto; mal liberta dos hábitos infantis, já é uma promessa fascinante da mulher, aquela que um dia desabrochará em todos os seus encantos.

A esta jovem, Colette reservou alguns problemas de espantosa realidade. O maior deles, na pessoa de um velho conhecido da família, Gaston, que se apaixona pela vivacidade e juventude de Gigi. Ela o rejeita, é demasiado inexperiente para reconhecer a autenticidade de tal afeto, mas... é mulher! E o romance termina com uma solução original, capaz de encantar os leitores mais diversos.

Em GIGI, Colette é uma romancista que nos ensina as relações entre os seres e a vida. Magnífica pintora da alma, sabe captar e fixar o delicado movimento que anima a menina-moça nas suas primeiras experiências perante a crua realidade da vida.

 

 

- Não esqueça, Gilberte, de que você vai à casa de tia Alicia. Está ouvindo? Venha aqui enrolar os papelotes. Está ouvindo, Gilberte.

- Será que não posso ir sem papelotes, vovó? - Acho que não - disse, moderando-se Mme Alvarez.

Pousou sobre a chama azul de um fogareiro de álcool o velho ferro de papelotes, com suas tenazes terminadas por dois pequenos hemisférios de metal maciço e preparou os papéis de seda.

- Vovó, e se você me arranjasse uma onda de lado, para variar?

- Nem pense nisso. Para uma jovem de sua idade, anelar as pontas dos cabelos já é o cúmulo da excentricidade. Sente no banquinho.

Ao sentar-se no banco, Gilberte dobrou as pernas de quinze anos, longas como as de uma garça. A saia escocesa descobriu-lhe as meias grosseiras até para cima de uns joelhos cuja rótula oval era, sem que ela o soubesse, a perfeição mesma. A brevidade da barriga da perna e a altura do arco do pé eram vantagens que levavam Mme Alvarez a lamentar não ter a neta estudado dança. Naquele momento, porém, não era nisso que pensava. Apanhava as mechas louro-cendradas, enroladas e aprisionadas no papel fino e achatava-as entre as metades de bola do ferro quente. A paciência e a habilidade de suas mãos delicadas iam reunindo em grandes anéis dançantes e elásticos, a espessura magnífica da bem cuidada cabeleira de Gilberte, que, aliás, não lhe ultrapassava os ombros. O odor do ferro quente e o do papel fino, que rescendia vagamente a baunilha, amolentavam a menina imóvel. Por outro lado, Gilberte sabia vã qualquer resistência. Quase nunca procurava subtrair-se à moderação familiar.

- É Frasquita que mamãe vai cantar hoje?

- É. E esta noite Se eu fosse rei. Já disse que, sentada num banquinho baixo, você precisa aproximar os joelhos, dobrá-los juntos, à esquerda ou à direita, para evitar indecência.

- Mas vovó, estou de calça e saia de baixo.

- Calça é uma coisa, decência é outra - disse Mme Alvarez. - Tudo vai da atitude.

- Já sei, tia Alicia vive repetindo isso - murmurou Gilberte, sob o telhado de cabelos.

- Não preciso de minha irmã - disse azedamente Mme Alvarez - para te inculcar princípios de conveniência elementares. Sobre isso, graças a Deus, sei um pouco mais que ela.

- Se você me deixasse ficar, vovó, e eu fosse ver tia Alicia domingo que vem?

- Realmente! - disse Mme Alvarez com altivez. - Você não terá outra sujeição para me fazer?

- Sim - disse Gilberte. - Que me façam saias mais compridas para eu não ficar o tempo todo dobrada como um Z, quando me sento. Você compreende, vovó, tenho que estar toda a hora pensando no meu "isso-que-você-está-pensando", com estas saias curtinhas.

- Silêncio! Não tem vergonha de chamar a isso o seu "isso-que-você-está-pensando?"

- Por mim, bem que eu gostava de lhe dar outro nome...

Mme Alvarez apagou o fogareiro, olhou no espelho da lareira sua pesada figura espanhola, e decidiu :

- Outro não há.

De sob a fileira de caracóis louro-cendrados dardejou um olhar incrédulo, de um azul escuro e belo de ardósia molhada. E Gilberte ergueu-se de um salto:

- Olhe, vovó, de qualquer jeito, ou me fazem saias um palmo mais compridas, ou me acrescentam um babadinho...

- E muito agradável seria, para sua mãe, mostrar-se ao lado de uma marmanjona aparentando pelo menos dezoito anos! E a carreira dela? Reflita um pouco!

- Pois reflito - tornou Gilberte. - Que importância teria isso, se eu quase nunca saio com mamãe?

Ajeitou a saia que lhe subia pelo ventre liso, e, perguntou:

- Ponho o casaco de todo o dia? Acho bom.

- E como se haveria de saber, então, que hoje é domingo,? Vista o casaco liso e ponha o canotier azul-marinho. Quando é que você vai adquirir o senso do que convém?

De pé, Gilberte era da altura da avó. Mme Alvarez, à força de usar o nome de um amante defunto, adquirira uma palidez amarelada, engordara e lustrava os cabelos com brilhantina. Usava pó de arroz branco demais e, como o peso das bochechas repuxava-lhe um pouco as pálpebras inferiores, acabara por adotar o nome de Inês. Em volta dela gravitava em boa ordem a sua família irregular. Andrée, a filha solteira, abandonada pelo pai de Gilberte, preferira, a uma prosperidade caprichosa, a vida discreta das segundas cantoras, num teatro subvencionado. Tia Alicia - nunca ninguém ouvira dizer que lhe tivessem falado em casamento - vivia só, de rendas que dizia modestas. E a família dava grande importância às opiniões de tia Alicia - e às suas jóias.

Mme Alvarez examinou a neta, do canotier de feltro enfeitado com uma pena, aos sapatos molière comprados feitos.

- Não pode juntar mais as pernas? Desse jeito até o Sena passaria debaixo de você. Você não tem nem sombra de barriga e ainda assim acha jeito de empiná-la para a frente. E ponha as luvas, por favor.

Todas as atitudes de Gilberte eram ainda governadas pela indiferença das crianças castas. Parecia um archeiro, parecia um anjo rígido, parecia um rapazola de saias; raramente parecia uma mocinha. "Vestidos compridos, quando lhe falta o raciocínio de uma criança de oito anos!", dizia Mme Alvarez. "Gilberte me desanima", suspirava Andrée. "Se não fosse por mim, você desanimava por alguma outra coisa", revidava plàcidamente Gilberte. Pois era uma menina dócil e se acomodava à vida caseira, quase exclusivamente familiar. Quanto ao seu rosto, ninguém podia predizer coisa alguma. A boca era grande e o riso se abria sobre dentes de um branco maciço e novo; o queixo curto e, entre as altas maçãs do rosto, um nariz... "Meu Deus, onde foi ela buscar essa baratinha?", suspirava a mãe. "Minha filha, se você não sabe, quem há de saber?", replicava Mme Alvarez. Diante disto, Andrée, pudica tarde demais, enfadada demasiado cedo, silenciava apalpando as amígdalas sensíveis. "Gigi - assegurava tia Alicia __é um lote de matéria-prima. Pode arranjar-se muito bem, mas pode também dar em droga. . ."

- Vovó, estão batendo, eu vou abrir que estou de saída. .. Vovó - gritou do corredor - é titio Gaston!

Voltou acompanhada de um homem alto e jovem a quem segurava pelo braço enquanto falava, cheia de cerimônias e criancices, como fazem as colegiais em recreio.

- Que pena, titio, tenho que o deixar tão depressa! Vovó quer que eu vá ver tia Alicia. Que carro trouxe hoje? É a Dion-Bouton nova, conversível de quatro lugares? Dizem que se pode guiá-la com uma mão só! Você precisa de luvas bonitas, titio! Mas então, titio, você se zangou com Liane?

- Gilberte! E você tem alguma coisa com isso? - censurou Mme Alvarez.

- Mas, vovó, é coisa que todo mundo sabe! Estava no Gil Blas e começava assim: "Uma secreta amargura esgueira-se no produto açucarado da beterraba" ... No curso suplementar as meninas todas falaram disso comigo, porque sabem que eu o conheço. E - sabe, titio? - elas não dão razão a Liane, no curso suplementar. Dizem que ela não está agindo direito!

- Gilberte! - repetiu Mme Alvarez. - Diga até logo a M. Lachaille e suma daqui!

- Deixe a menina - suspirou Gaston Lachaille.

- Ela, ao menos, fala sem malícia. E é verdade mesmo que entre Liane e eu está tudo acabado. Você vai ver tia Alicia, Gigi? Então pegue o meu carro e depois mande-o de volta.

Gilberte deu um grito, um salto de alegria e abraçou Lachaille.

- Obrigada, titio! Oh! A cara da tia Alicia! O focinho da porteira!

E lá se foi, num tropel de potrinho sem ferradura.

- Você está mimando a menina, Gaston - disse Mme Alvarez.

Mas não falava a verdade. Gaston Lachaille só prodigava os mimos e luxos regulamentares: seus automóveis, seu insípido palacete no Pare Monceau, as mesadas de Liane e seus presentes de aniversário, o champanha e o bacará em Deauville, no verão, e em Monte Cario, no inverno. De tempos em tempos, numa subscrição qualquer, fazia um bom donativo em espécie, comprava um iate que logo revendia a algum monarca da Europa Central, ou comanditava um jornal novo - sem que com isso ficasse mais contente. Olhando-se no espelho, dizia: "Aí está o facies de um sujeito explorado." Como tinha o nariz longo e os olhos negros e grandes, o comum dos mortais julgava-o passível de ser logrado. Mas seu instinto comercial e sua desconfiança de rico o protegiam: ninguém jamais conseguira roubar-lhe os botões de pérola da camisa, as cigarreiras de metal maciço, incrustadas de pedrarias, nem a peliça debruada de zibelina escura.

Pela janela, viu partir o carro. Naquele ano, os automóveis eram altos e ligeiramente alargados em cima, por causa dos chapéus desmesurados, impostos por Caroline, Otero, Liane de Pougy e outras pessoas notórias de 1899. Por isso os carros derramavam-se molengas, nas curvas.

- Mamita - disse Gaston Lachaille - você não me faria um chá de camomila?

- Até dois - respondeu Mme Alvarez. - Sente-se, meu pobre Gaston.

De uma poltrona derreada, retirou umas revistas côncavas, uma meia por cerzir e uma caixa de pastilhas de alcaçuz. O homem traído acomodou-se com delícia enquanto a dona da casa dispunha as duas chávenas na bandeja.

- Por que será que a camomila que me fazem lá em casa tem sempre cheiro de crisântemo amanhecido? - suspirou Gaston.

- Questão de cuidado. Acredite se quiser, Gaston: muitas vezes é em Paris mesmo que colho a minha melhor camomila, em terrenos baldios. Uma camomila pequenina, que não é nada para se ver, mas o gosto é uma delícia. Meus Deus, que beleza a fazenda do seu terno! Essas listas imprecisas são da maior distinção. Aí está um tecido como seu pai gostava, coitado. Mas, a verdade é que ele não era tão elegante quanto você.

Só uma vez, em cada encontro, Mme Alvarez evocava a memória de um Lachaille pai, que assegurava ter conhecido muito. Destas antigos relações, verdadeiras ou falsas, ela não retirava outra vantagem senão a familiaridade de Gaston Lachaille e o prazer de pobre que aquele homem rico gozava, descansando na poltrona velha. Sob o teto embaçado pelo gás, as três mulheres não reclamavam dele nem colares de pérolas, nem solitários, nem chinchilas, e sabiam falar com decência e consideração de coisas escandalosas, veneráveis e inacessíveis. Desde os doze anos de idade, Gigi sabia que o pesado fio de pérolas negras de Mme Otero era "banhado", ou antes, artificialmente tinto, e que seu colar de três voltas graduadas valia "um reino"; que as sete voltas do de Mme de Pougy careciam de animação, que o famoso bolero de diamantes de Eugénie Fougère não valia nada e que uma mulher que se respeita não anda, como Mme Antokolski, num cupê forrado de cetim malva. Documente, Gigi rompera com sua colega de curso, Lydia Poret, quando esta lhe exibira um solitário montado num anel, presente do barão Ephraim.

- Um solitário! - exclamara Mme Alvarez. - Uma menina de quinze anos! Acho que a mãe dela está louca.

- Mas vovó! - respondera Gigi - não é culpa da Lydia, se o barão lhe deu o anel!

- Cale-se! Não é o barão que eu censuro. O barão sabe o que deve fazer. O simples bom senso é que exigia que a mãe Poret pusesse o anel num cofre, ou no banco, enquanto espera.

- Espera o quê, vovó?

- Os acontecimentos.

- Por que não na caixinha de jóias?

- Porque a gente nunca sabe. Tanto mais que o barão é homem para voltar atrás. Mas se ele se declarou mesmo, Mme Poret que retire a filha da escola. E enquanto as coisas não se esclarecem bem, você me fará o favor de não ir nem voltar do curso com a pequena Poret. Ora, quem diria!

- Mas, e se ela se casar, vovó?

- Casar? Casar com quem?

- Com o barão?

Mme Alvarez e a filha trocaram um olhar atônito. "Esta pequena é de desanimar - murmurou Andrée. - Parece que caiu de outro planeta."

- Então, meu pobre Gaston - disse Mme Alvarez. - É mesmo verdade essa briga? Por um lado, talvez seja melhor para você, mas, por outro, compreendo que a coisa lhe tenha causado aborrecimentos. Em quem há de a gente se fiar, pergunto eu...

O pobre Gaston escutava, bebendo camomila escaldante. Gozava assim um conforto igual ao de olhar a rosácea enfumaçada do lustre suspenso, "adaptado à eletricidade", mas fiel ao vasto abajur verde-nilo. O conteúdo de uma cesta de trabalho estava meio derramado sobre a mesa da sala de jantar, onde Gilberte esquecera seus cadernos. Sobre um piano de parede, uma ampliação fotográfica de Gilberte, com oito meses, fazia pendant com o retrato a óleo de Andrée num papel de Se eu fôsse rei... Uma desordem sem vileza, um raio de sol primaveril nas rendas da cortina, um calorzinho rastejante vindo do aquecedor quase frio, agiam como outros tantos filtros benfazejos sobre os nervos daquele homem rico, solitário e traído.

- Meu pobre Gaston, você está mesmo sofrendo muito?

- Propriamente falando, não é sofrendo que estou; eu estou é chat... aborrecido.

- Se não é indiscrição - volveu Mme Alvarez - como é que isso foi acontecer com você? Eu li os jornais, mas quem pode se fiar neles?

Lachaille puxou o bigodinho revirado a ferro e passou os dedos na cabeleira forte, cortada à escovinha.

- Oh! mais ou menos a mesma coisa que das outras vezes. Esperou o presente de aniversário e raspou-se. Ainda por cima, desajeitada a ponto de ir enfiar-se num cantinho tão pequeno da Normandia, que não foi preciso grande esperteza para descobrir que na estalagem só havia dois quartos: um ocupado por Liane, outro por Sandomir, um professor de patinação do Palais de Glace.

- Ah!, é um que valsa com a Polaire no five o'clock, não é? Hoje as mulheres não sabem mais guardar as distâncias. E logo após o aniversário... Não é delicado... É tudo o que há de mais incorreto!

Mme Alvarez, com o dedinho no ar, mexia na xícara a colherinha. Ao baixar o olhar, as pálpebras não lhe cobriam inteiramente os globos oculares salientes, o que tornava evidente sua semelhança com George Sand.

- Eu lhe dera um colar - disse Gaston. - Mas que colar! Trinta e sete pérolas. A do centro era do tamanho do meu polegar.

Avançou o polegar branco e bem cuidado, diante do qual Mme Alvarez manifestou a admiração devida a uma pérola de centro.

- Você faz as coisas como homem que sabe viver - disse ela. - E neste caso você se saiu muito bem, Gaston.

- Saí como corno, isso sim.

Mme Alvarez pareceu não ouvir.

- Se eu fosse você, Gaston, procuraria vexá-la. Arranjaria uma mulher da sociedade.

- Obrigado pelo remédio ~ disse Lachaille que, distraidamente, ia comendo as pastilhas de alcaçuz.

- Com efeito, já me disseram que quem não morre do mal... - apoiou discretamente Mme Alvarez. - É trocar cavalo zarolho por cavalo cego.

Respeitou então o silêncio de Gaston Lachaille. Um som abafado de piano atravessava o teto. Sem falar, o visitante estendeu a xícara vazia que Mme Alvarez encheu.

- Tudo bem na família? Que notícias há de tia Alicia?

- Minha imã, você sabe, é sempre a mesma. Muito fechada, muito sorrateira. Diz que gosta mais de viver de um belo passado do que de um presente feio. O rei da Espanha, o príncipe Milan, o quediva, rajás às dúzias... Acredite quem quiser! É muito gentil com Gigi. Como é justo, acha-a um pouco atrasada, quer que estude mais. Na semana passada, ensinou-a a comer, de maneira impecável, lagosta à americana.

- Para quê?

- Diz Alicia que é de uma grandíssima utilidade. Diz que as ..três pedras de toque de uma educação são a lagosta à americana, o ovo quente e os aspargos. Diz que a falta de elegância à mesa tem provocado brigas entre muitos casais.

- É verdade - disse Lachaille, sonhador. - É verdade...

- Oh!, Alicia não é tola e, para Gigi, isto vem a calhar, pois ela é muito gulosa. Tivesse aquela cabeça a mesma atividade das mandíbulas... Até parece uma criança de dez anos. E você que belos projetos tem para a Festa das Flores! Tenciona deslumbrar-nos mais uma vez?

- Eu não, que leve a breca! - resmungou Gaston. - Este ano, aproveito as minha infelicidades para economizar rosas vermelhas.

Mme Alvarez juntou as mãos. - Oh!, Gaston, você não faria uma coisa dessas! Sem você o desfile parecerá um funeral.

- Pode parecer o que quiser - disse sombriamente Gaston.

- Você vai deixar gente como Valérie Cheniaguine ganhar o estandarte bordado. Oh! Gaston, isto não pode ser!

- Pois vai ser assim mesmo - disse Gaston. - Valérie tem recursos.

- E pode estar certo que ela não se arruinará para isso! Gaston, o ano passado, aqueles dez mil buquês que ela atirava - sabe de onde vinham? Pois ela contratou três mulheres durante dois dias e duas noites, só para amarrar os buquês - e as flores foram compradas no mercado dos Halles. Nos Halles! Só o chicote do cocheiro, as quatro rodas e os arreios é que eram de Lachaune.

- Percebo a malandragem - disse Lachaille mais alegre. - Ora veja, comi todo o alcaçuz!

O passa martelado de Gilberte soou militarmente na antecâmara.

- lá de volta? - disse Mme Alvarez. - Que significa isto?

- Significa - disse a pequena - que tia Alicia estava indisposta. O essencial é que andei passeando no fonfom do titio.

Sua boca entreabriu-se, deixando ver os dentes brilhantes.

- Sabe, titio, enquanto andava no seu automóvel, fiz uma cara de mártir, assim para ter o jeito de que está cansada de tanto luxo. Diverti-me muito!

Atirou longe o chapéu, e os cabelos caíram-lhe sobre as têmporas e as faces. Sentou-se num tamborete bastante alto e dobrou os joelhos até ao queixo.

- E então, titio? Você está com cara de pesadelo. Quer jogar piquet? Hoje é domingo e mamãe não volta entre o espetáculo da tarde e o da noite. Quem foi que comeu todo o meu alcaçuz? Ah!, titio, isto assim não pode continuar. Você vai me dar outra caixa, pelo menos?

- Gilberte, tenha modos - ralhou Mme Alvarez. - Desça os joelhos. Você pensa que Gaston tem tempo para se preocupar com o seu alcaçuz? Endireite a saia. Gaston, quer que eu mande essa menina para o quarto?

O herdeiro Lachaille, de olho no baralho usado que Gilberte manejava, estava em luta contra uma terrível vontade de chorar um pouco, de contar suas desgraças, de adormecer naquela poltrona velha e de jogar piquei.

- Deixe a menina. Aqui, eu respiro, descanso um pouco. Gigi, aposto dez quilos de torrões de açúcar.

- Não me apetece o seu açúcar. Gosto mais de bombons.

- É a mesma coisa, e os torrões de açúcar são mais saudáveis que os bombons.

- Isso diz você, porque os fabrica.

- Gilberte, que falta de respeito!

Os olhos desolados de Gaston Lachaille sorriram. - Deixe a menina, Mamita... Que é que você quer, se eu perder, Gigi? Meias de seda?

Fez-se triste a grande boca infantil de Gilberte.

- As meias de seda me dão coceira... Eu queria...

Gigi levantou para o teto a cara de anjo de nariz chato, inclinou a cabeça, deixou escorrer de uma à outra face os anéis dos cabelos:

- Quero um espartilho Persephone, verde-nilo com rosinhas rococó bordadas nas ligas. Não, queria antes um rolo de música.

- Você estuda música?

- Eu não, mas minhas colegas do curso superior botam os cadernos em rolos de música, porque assim parecem alunas do Conservatório.

- Gilberte, não seja indiscreta - disse Mme Alvarez.

- Você terá o seu rolo de música e o seu alcaçuz. Corte, Gigi.

Daí a instante, o herdeiro dos torrões de açúcar disputava ardentemente suas cartadas. Nem seu nariz importante, que soava oco, nem seus olhos meio africanos intimidavam a parceira que, de cotovelos fincados, com as espáduas ao nível das orelhas, exasperados o azul dos olhos e o vermelho das faces, parecia um pajem bêbado. Jogavam os dois com pouco barulho, muita paixão e troca de injúrias abafadas. "Sua venenosa, sua aranha", dizia Lachaille. "Nariz de corvo", retrucava a pequena. Sobre a rua estreita, ia descendo o crepúsculo de março.

- Gaston, não é para você fugir - disse Mme Alvarez - mas já são sete e meia. Permite que eu vá cuidar do jantar?

- Sete e meia! - gritou Lachaille. - E eu que vou jantar no Larue, com Dion, Feydeau e um Barthou! A última rodada, Gigi!

- Por que um Barthou - perguntou Gilberte. - São muitos, os Barthou?

- Dois. Um, que é um belo rapaz e outro, que o é menos. O mais conhecido é o menos bonito.

- Não é justo - disse Gilberte. - E Feydeau, que vem a ser?

Lachaille depôs as cartas, pasmado.

- Ora, e esta!... Ela não conhece Feydeau. Então nunca vai ao teatro?

- Quase nunca, titio.

- Não gosta de teatro?

- Loucamente, não... E vovó e tia Alicia dizem que o teatro impede de pensar no lado sério da vida. Não conte a vovó que eu disse.

Soergueu sobre as orelhas as ondas dos cabelos e deixou-os cair outra vez resfolegando:

- Ufa, como esquenta esta juba!

- E o que é que elas chamam o lado sério da vida?

- Oh!, eu já não sei mais, titio Gaston! Nem sempre as duas estão de acordo. Diz vovó: "É proibido ler romances, dá tristeza. É proibido usar pó de arroz, que estraga a pele. É proibido usar espartilho, que estraga o corpo. É proibido parar sozinha diante de vitrina de loja. .. É proibido travar conhecimento com as famílias das colegas do curso, sobretudo com os pais que vêm buscar as filhas à saída..."

Falava depressa, respirando entre as palavras, como criança que deu uma corrida.

- E vem então tia Alicia, tocando outra música, e diz que eu já passei da idade do colête-corpinho, que preciso de lições de dança e de etiqueta e que tenho de estar sempre a par de tudo e saber o que é um quilate e jamais permitir que o chique dos artistas me encha os olhos. "É muito simples, diz ela, de todas as roupas que você vê no palco, não há uma, em vinte, que, uma vez sopesada, não se torne desprezível". Enfim, é de arrebentar os miolos da gente... E você, titio, que é que vai comer hoje no Larue?

- Sei lá! Filé de pescada com molho de mariscos, para variar. E, naturalmente, um lombo de carneiro trufado... Mexa-se, Gigi, tenho cinco cartas!

- Grande coisa! Estou com um jogo de ladrão! Aqui, vamos comer um resto de cassoulet requentado. Gosto muito de cassoulet.

- Ora, é só um cassoulet de porco - disse modestamente Inês Alvarez, que voltava. - Esta semana o ganso está proibitivo.

- Mando-lhe um de Bon Abri - disse Gaston.

- Muito obrigada, Gaston. Gigi, ajude M. Lachaille a vestir o sobretudo. Traga-lhe a bengala e o chapéu.

Quando Lachaille foi-se embora, meio de má vontade, farejando e lamentando o cassoulet requentado, Mme Alvarez voltou-se para a neta:

- Gilberte, diga-me direitinho por que voltou tão cedo da casa de tia Alicia? Não perguntei diante de Gaston porque jamais se deve agitar questões de família em frente de terceiros, não esqueça disto.

- Nada de mais, vovó. Tia Alicia estava de rendinha na cabeça em sinal de enxaqueca. Disse ela: "Estou passando mal". Disse eu: "Então volto para a casa, não quero cansar você". Disse ela: "Descansa cinco minutos". "Oh! - disse eu - não estou cansada, vim de carro". "De carro!" - exclamou ela, levantando as mãos, assim mesmo deste jeito. Eu deixara o carro esperando um momentinho, para mostrá-lo à tia Alicia, como você pode imaginar. "Pois é - disse eu - é uma Dion-Bouton conversível de quatro lugares; foi titio que ma emprestou, enquanto está lá em casa. Ele brigou com Liane". - "Com quem você pensa que está falando? - replicou ela. Ainda não estou no túmulo para ignorar coisas de notoriedade pública. Já sei que ele brigou com aquela vitrina de jóias. Está bem, agora volte para casa, não fique aqui se aborrecendo junto a uma pobre velha doente como eu". Enquanto eu entrava no automóvel, ela me dava adeus da janela.

Mme Alvarez apertou os lábios.

- Uma pobre velha doente! Ela, que nunca soube o que era um resfriado! Que topete! Que...

- Vovó, você acha que ele vai se lembrar do meu alcaçuz e do meu rolo de música?

Mme Alvarez elevou para o teto um olhar lento e pesado.

- Talvez, minha filha, pode ser.

- Mas, uma vez que ele perdeu, ele tem que pagar. . .

- É, ele ficou devendo, sem dúvida, e com certeza vai pagar. Põe o avental e arruma a mesa. Guarda as cartas.

- Sim, vovó... Vovó, que foi que ele contou de Mme Liane? É verdade que ela "pirou" com Sandomir e o colar?

- Antes de mais nada, "pirou" não se diz. Depois, venha aqui para que eu prenda o seu cabelo e ele não caia na sopa. E, em terceiro lugar, você nada tem a ver com as proezas de uma pessoa que agiu contrariamente ao savoir-vivre. Isto tudo são histórias íntimas da vida de Gaston.

- Mas, vovó, íntimas como? Todo o mundo fala delas, já chegaram até ao Gil Blas...

- Silêncio! Para você, basta saber que o comportamento de Mme Liane d'Exelmans contraria o senso comum. O presunto para sua mãe está num prato coberto, deixe-o em lugar fresco.

Gilberte estava dormindo quando sua mãe - Andrée Alvar, em letra miúda, nos cartazes da Opera Comique - voltou. Mme Alvarez mãe, sentada diante de seu joguinho de paciência, perguntou-lhe, por hábito, se não estava muito cansada. Para obedecer aos usos da polidez familiar, Andrée censurou-a por esperar acordada, e Mme Alvarez respondeu, segundo o ritual:

- Não dormiria tranqüila se não visse você voltar. Guardei presunto e uma tigelinha de cassoulet quente. E ameixas cozidas. A cerveja está na janela.

- A pequena está deitada? - Claro.

Andrée Alvar comeu bastante, dando provas de um apetite pessimista. A pintura tornava-a ainda mais bonita; sem ela, porém, a boca era descorada, e róseo o rebordo dos olhos. Por isso mesmo, tia Alicia afirmava que o sucesso de Andrée sobre o palco não se repetia nas ruas.

- Cantou bem, minha filha? Andrée levantou os ombros.

- Cantei, sim. E que adianta? Vai tudo para o Tiphaine, como você bem sabe. Ai, ai, ai, não sei como é que suporto uma vida destas...

- Você a escolheu... Mas suportaria melhor - disse sentenciosamente Mme Alvarez - se tivesse alguém... É a solidão que dá nos nervos e faz ver tudo negro. Você é anormal.

- Oh!, mamãe, não recomecemos; estou tão cansada... Que há de novo?

- Nada. Só se fala na ruptura entre Liane e Gaston.

- Acredito. Se o caso chegou aos bastidores da Opera Comique, que nem por isso é lugar tão moderno ...

- É um acontecimento mundial - disse Mme Alvarez.

- Já se fazem prognósticos?

- Que nada! Não houve tempo. Ele está na mais negra desolação. Você acredita que, às quinze para as oito, ele estava aí mesmo onde você está, jogando piquet com Gigi? Diz que não quer ir à Festa das Flores.

- Não?

- Pois é. Se isso acontecer, será um fato universalmente notado. Aconselhei-o a refletir, antes de tomar uma decisão destas.

- No teatro - disse Andrée - estavam dizendo que há uma artista de music-hall, uma tal de Cobra, do Olympia, que talvez tenha agora uma oportunidade. Dizem que aparece num número de acrobacia e que a trazem à cena num cesta pequenina, e ela vai saindo lá de dentro, desenrolando-se toda como um serpente.

Mme Alvarez esticou desdenhosamente o seu grande lábio inferior:

- Apesar de tudo, Gaston Lachaille não desceu ainda às artistas de music-hall. Justiça se lhe faça: ele sempre se ateve, como é dever de um solteirão de sua classe, às grandes demi-mondaines...

- Boas vacas - murmurou Andrée.

- Mede as palavras, minha filha! Não adianta nada chamar as pessoas e as coisas pelo nome. As amantes de Gaston sempre tiveram categoria. Para ele, a única maneira decente de esperar um brilhante casamento é ligar-se a uma das grandes demi-mondaines; isto, supondo que se case um dia. Em todo o caso, havendo algo de novo, as primeiras informadas seremos nós. Gaston tem muita confiança em mim. Você precisava ver como ele me pediu um chá de camomila. É uma criança, uma verdadeira criança. E com uma tal fortuna a lhe pesar nos ombros!

Irônica, Andrée piscou suas pálpebras rosadas.

- Lamente-o, mamãe, vá lamentando.. . Não é para reclamar, mas desde que conhecemos Gaston, nunca vimos dele mais do que a tal confiança...

- Nem ele nos deve nada. E sempre nos mandou açúcar para os doces e para o meu curaçau e, de tempos em tempos, uma ave de suas fazendas, e atenções para a menina...

- Se você se contenta com isso...

Mme Alvarez levantou bem alto a cabeça majestosa:

- Perfeitamente, contento-me, sim! Tanto mais que, se não me contentasse, isso não mudaria nada...

- Em suma, para nós, este Gaston Lachaille, tão rico, é como se não o fosse. Se nos víssemos em algum aperto, seria ele, ao menos, capaz de nos ajudar?

Mme Alvarez pousou a mão no coração.

- Estou convencida que sim - disse ela.

E, refletindo, acrescentou:

- Mas prefiro não ter que lhe pedir.

Andrée retomou o jornal que trazia a fotografia da abandonada.

- Olhando bem, ela não tem nada de extraordinário.

- Não - replicou Mme Alvarez - ela é extraordinária, sim. A prova é o renome que tem. Renome e êxito não são obras do acaso. Você raciocina como essas desmioladas que dizem: "Um colar de sete voltas ficaria tão bem em mim quanto em Mme de Pougy. E eu seria tão capaz quanto ela de viver à larga". Essas frases só me fazem dar de ombros. Leve o resto da camomila para banhar os olhos.

- Obrigada, mamãe. A pequena foi ver tia Alicia?

- E foi no próprio automóvel de Gaston. Ele emprestou-lho. Um carro que talvez faça sessenta quilômetros por hora. Ela não cabia em si!

- Pobre pequena! Pergunto a mim mesma o que fará na vida. É capaz de acabar manequim ou balconista. Parece atrasada. Eu, na idade dela...

Mme Alvarez pousou na filha um olhar carregado de eqüidade:

- Não se gabe muito do que fazia na idade dela.

Se bem me lembro, na idade dela, você disse adeus a M. Mennesson - embora ele fosse um industrial e mostrasse boa disposição para lhe arranjar a vida - e deu o fora com aquele professorzinho de solfejo...

Andrée Alvar beijou os bandos lustrosos de brilhantina de sua mãe:

- Mãezinha, não me maldiga mais a essa hora da noite, estou com tanto sono.. . Boa noite, mamãe. Tenho ensaio ao meio-dia e quarenta e cinco, mas almoço no restaurante, durante o descanso; não se preocupe comigo.

Num longo bocejo atravessou no escuro o quarto em que a filha dormia. De Gilberte, não entreviu na penumbra senão um chumaço de cabelo e o galão ruço da camisola. Trancou-se no exíguo banheiro e, apesar da hora tardia, acendeu o bico de gás debaixo do aquecedor de água. Entre outras virtudes, Mme Alvarez havia inculcado fortemente em sua descendência, o respeito a certos ritos e máximas, tais como: "O rosto, a rigor, pode-se deixar para o dia seguinte, em caso de urgência e de viagem. Mas o cuidado com a parte baixa do corpo é a dignidade da mulher."

Mme Alvarez deitava-se por último e levantava-se primeiro, não admitindo que a empregada tocasse no café matinal. Dormia na sala, no diva conversível e, às sete e meia em ponto, abria para os jornais, o litro de leite e a empregada, esta a carregar aqueles. Às oito horas, já tirara os grampos onduladores e alisara os belos bandos. Às dez para as nove, Gilberte seda para o curso, limpa e de cabelos escovados. Às dez horas, Mme Alvarez "pensava" no almoço, ou antes, enfiava as galochas e, pendurando no braço a alça da rede de compras, ia ao mercado.

Naquele dia como nos outros, depois de verificar que Gilberte já se levantara, ela pousou na mesa a cafeteira e a leiteira ainda fervendo, e desdobrou o jornal enquanto esperava Gilberte, que entrou fresca, cheirando a água de lavanda e cheia de sono. Um berro de Mme Alvarez acabou de a despertar.

- Gigi, chama tua mãe! Liane d'Exelmans suicidou-se!

A pequena soltou uma longa exclamação:

- Ooooooo! Morreu?

- Qual nada. Ela sabe o que faz.

- Como foi que ela fez, vovó? Usou um revólver?

Mme Alvarez olhou para a neta com ar de comiseração :

- Nem pense nisso. Tomou láudano, como de costume. "Sem poder ainda responder pelos dias da bela desesperada, os doutores Morèz e Pelledoux, que não se arredam de sua cabeceira, emitiram diagnóstico tranqüilizador". Pois o meu diagnóstico é que Mme d'Exelmans, desse jeito, acaba estragando o estômago ...

- Da outra vez, vovó, não foi pelo Príncipe Georgevitch que ela se matou?

- Onde está sua cabeça, meu bem? Foi pelo Conde Berthou de Sauveterre.

- Ah!, sim, é verdade.. . E agora, o que é que o titio vai fazer?

Durante um momento, os grandes olhos de Mme Alvarez divagaram.

- Das duas, uma, minha filha. Logo o saberemos, mesmo que ele principie negando-se a dar entrevistas. É preciso sempre começar recusando as entrevistas. Depois, enche-se as colunas dos jornais. Vá dizer à porteira que nos compre as folhas da tarde. Você comeu bem? Tomou as duas xícaras de leite, comeu a segunda fatia de pão? Calce as luvas antes de sair e não se atrase pelo caminho. Vou acordar sua mãe. Que história! Andrée, você está dormindo? Ah,., já se levantou? Andrée, Liane suicidou-se.

- Para variar - resmungou Andrée. - Aquela só tem uma idéia na cabeça, mas é teimosa.

- Você ainda não tirou os bigoudis, Andrée?

- Para meu penteado se desmanchar durante o ensaio? Muito obrigada!

Mme Alvarez mediu a filha desde os chifrinhos dos bigoudis até às chinelas de feltro:

- Bem se vê que você não precisa temer olhar de homem, minha filha. Presença de homem, eis a cura para mulheres que andam de roupão e chinelas. Que história a deste suicídio! Suicídio falhado, bem entendido.

A pálida boca de Andrée desenhou um sorriso de desprezo:

- Já começa a ser aborrecida essa criatura, com seus purgantes de láudano.

- E nem é ela que interessa, mas o menino Lachaille. É a primeira vez que isto lhe acontece. Ele já teve, vejamos... Já teve a Gentiane, que lhe roubou papéis e depois a tal estrangeira que queria por força que ele se casasse com ela. Mas a primeira suicida é Liane. Num caso destes, um homem notável como ele precisa de muita precaução para adotar uma atitude.

- Ora, ele vai rebentar de orgulho!

- Pois terá razão. Teremos novidades importantes, muito breve. Pergunto a mim mesma o que dirá Alicia de semelhante acontecimento.

- Há de querer fazer disto um bicho de sete cabeças.

- Alicia não é nenhum anjo. Mas devo reconhecer que enxerga longe. E sem mesmo sair do quarto!

- Sair para quê?? Tem telefone. Mamãe, você não quer que mandemos colocar um telefone aqui?

- É uma despesa - disse Mme Alvarez, preocupada. - E já estamos bem apertadas. O telefone só tem real utilidade para homens que fazem grandes negócios e mulheres com alguma coisa a dissimular. Se você mudasse de existência - é uma suposição - e Gigi entrasse na vida. .. seria eu a primeira a dizer: "coloquemos o telefone". Mas ainda não chegamos lá, infelizmente...

Permitiu-se um suspiro, calçou as luvas de borracha e, sem tristeza, pôs-se a cuidar da casa. Graças a ela, o modesto apartamento envelhecia sem decair muito. De sua vida passada, guardava os hábitos honrados das mulheres sem honra e os ensinava à filha e à filha de sua filha. Os lençóis não ficavam nas camas mais de dez dias e a arrumadeira-lavadeira-engomadeira contava em alto e bom som que em casa de Mme Alvarez mal se tinha tempo de ver passar as camisas e as calças das senhoras, e as toalhas de mesa. A um berro inopinado, "Gigi, descalça-te!", Gilberte devia tirar sapatos e meias, submeter a uma investigação completa os pés brancos e as unhas bem cortadas, e denunciar a menor ameaça de calosidade.

Durante a semana que se seguiu ao suicídio de Mme d'Exelmans, Lachaille teve reações incoerentes. Deu em seu palacete uma festa noturna em que dançaram estrelas da Academia Nacional de Música e, para uma ceia, obrigou a abrir quinze dias antes da data habitual um restaurante do Pré-Catelan. Footit e Chocolat representaram uma cena durante a noitada. Entre as mesas da ceia, volteava Rit del Erido no lombo de um cavalo, enfiada numa saia-calça com babados de renda branca, de chapéu branco sobre os cabelos negros, com plumas de avestruz espumejando em volta de um rosto implacavelmente belo, tão belo que Paris se enganou, anunciando que Gaston Lachaille a alçava (a cavaleiro) sobre um trono de açúcar. Mas, vinte e quatro horas depois, Paris desenganava-se. O Gil Blas, por ter divulgado falsos prognósticos, quase perdeu a subvenção que lhe concedia Gaston Lachaille. Um hebdomadário especializado, Paris en Amour anunciou outra pista falsa sob o título jovem e riquíssima ianque não disfarça sua inclinação pelo açúcar francês.

Enquanto isto, à leitura dos jornais, o peito de Mme Alvarez era sacudido por um riso de incredulidade. Pois era do próprio Gaston Lachaille que lhe vinham as suas certezas; duas vezes em dez dias, ele achara tempo para vir beber sua camomila e acomodar, nas almofadas da poltrona em concha, sua lassidão de industrial e seu mau humor de homem só. Trouxe mesmo, para Gigi, um ridículo rolo de música, todo em couro da Rússia, com fechadura de esmalte, e vinte caixas de alcaçuz. Mme Alvarez ganhou um foie-gras e seis garrafas de champanha, munificências das quais o titio Lachaille tirou sua parte convidando-se para jantar. Durante o jantar, Gilberte, um tantinho embriagada, contou os mexericos do curso suplementar e ganhou no piquet a lapiseira de ouro de Gaston. Ele a perdeu com boa cara, animou-se e riu, designando a pequena a Mme Alvarez: "É o meu melhor companheiro". E os olhos espanhóis de Mme Alvarez iam, cheios de uma atenção lenta e vigilante, das faces rubras e dos brancos dentes de Gigi ao herdeiro Lachaille, que lhe puxava os cabelos aos punhados: "Você escondeu o quarto rei na manga, sua malandra!" .

Entrementes, Andrée voltou da Opera Comique, viu a cabeça despenteada de Gigi, que rolava pela manga de Lachaille, aqueles belos olhos azuis quase negros e que choravam lágrimas de um riso louco. . . Não achou nada para dizer e aceitou um copo de champanha, depois outro e mais outro. Mas como, depois do terceiro copo, manifestasse o desejo de cantar para Gaston Lachaille a ária das campainhas, de Lakmé, sua mãe levou-a para a cama.

No dia seguinte, ninguém comentou aquele serão familiar a não ser Gilberte, que exclamou: "Nunca dei tanta risada em minha vida, nunca! E a lapiseira é de ouro!" Suas expansões chocavam-se com um silêncio estranho, ou com uns "Ora; Gigi, um pouco mais de seriedade", atirados como por distração.

Depois Gaston Lachaille passou quinze dias sem dar sinal de vida ou presença e a. família Alvarez documentou-se só pelos jornais.

- Você viu, Andrée? Assinalaram nos ecos mundanos a partida de M. Lachaille para Monte Cario. Esta partida parece circundada por uma espécie de mistério sentimental que nós respeitaremos... dizem eles!

- Vovó, você acredita que, no curso de dança,

Lydia Poret andava dizendo que Liane partiu no mesmo trem, só que em outro compartimento. Será verdade, vovó?

Mme Alvarez dava de ombros:

- Se fosse verdade, como é que essas Poret o haviam de saber? Será que elas têm relações com M. Lachaille, agora?

- Não, mas Lydia Poret ouviu dizer no camarim da tia, que é da Comédie-Française.

Mme Alvarez trocou um olhar com a filha.

- No camarim! Compreendo muito bem... - disse ela.

Mme Alvarez desprezava a carreira de artista, apesar da severidade do emprego de Andrée. Quando Mme Emilienne d'Alençon decidira apresentar coelhos ensinados fazendo piruetas, quando Mme de Pougy, mais tímida no palco que uma meninazinha, divertira-se mimando um papel de Colombina, toda de tule preto lantejoulado, Mme Alvarez aniquilara-as, a ambas, com uma frase: "Com que então já desceram a isso?"

- Vovó, diga vovó - tornou Gilberte - você conhece o Príncipe Radziwill?

- Que tem hoje esta pequena? Que bicho a mordeu? E, antes do mais, que Príncipe Radziwill? Existe mais de um.

- Não sei - disse Gigi. - O que vai casar. Na lista dos presentes estão "três guarnições de secretária de malaquita". Malaquita, o que é?

- Oh! Que menina aborrecida! Uma vez que ele se casa, deixa de ser interessante.

- Mas se titio Gaston se casasse também deixaria de ser interessante?

- Depende. Interessante seria se se casasse com a amante. Quando o Príncipe Cheniaguine casou com Valentine d'Aigreville, todo o mundo compreendeu que o que ele queria era aquela vida mesmo que ela lhe vinha dando há quinze anos, isto é, cenas, pratos atirados à parede, reconciliações em pleno restaurante Durand, na praça da Madeleine. Todo o mundo compreendeu que se tratava de uma mulher que sabia fazer-se apreciar. Mas tudo isto é complicado demais para você, minha pobre Gigi. ..

- E você acha que foi para casar com Liane que eles partiram juntos?

Mme Alvarez apoiou a testa na vidraça e pareceu interrogar o sol primaveril que dotava a rua de uma metade fresca e uma quente:

- Não - disse ela. - Ou então não entendo mais nada de nada. Preciso falar com Alicia, Gigi. Acompanhe-me à casa dela, deixe-me lá e volte pelo rio. Assim você toma ares, posto que hoje em dia parece que é preciso tomar ares. Eu nunca tomei ares mais que duas vezes por ano, em Cabourg e em Monte Cario. E não me sinto mal por isso. . .

Naquele dia Mme Alvarez voltou tão tarde que a família jantou sopa morna e carne fria, e bolos enviados por tia Alicia. E, aos "que foi que titia contou?" de Gilberte, ela opôs uma cara de manteiga gelada e respostas de bronze.

- Contou que vai ensinar você a comer ortolans.

- Que chique! - exclamou Gilberte. - E que disse do vestido de verão que me prometeu?

- Disse que ia ver. E que você não terá razão de queixa.

- Ah! - disse tristemente Gilberte.

- Recomendou também que você fosse almoçar com ela quinta-feira ao meio-dia em ponto.

- Com você, vovó?

Mme Alvarez olhou a garota comprida, sentada ali diante dela, o rosto de maçãs altas e rosadas, sob uns olhos azuis como a noite, os dentes fortes, mordendo lábios frescos e gretados e a abundância selvagem dos cabelos louro-cendrados.

- Não - disse ela, afinal. - Sem mim.

Gilberte levantou-se e passou os braços em volta do pescoço da avó:

- Você disse isso de um jeito. . . Vovó, você não me vai pôr. morando com tia Alicia, não? Eu não quero sair daqui, vovó!

Mme Alvarez limpou a garganta, tossiu e sorriu:

- Meu Deus, que menina tola! Sair daqui! Minha pobre Gigi, não é que eu queira repreendê-la, mas você não toma jeito!

À porta de sua casa, tia Alicia suspendera, à guisa de campainha, um cordão de contas com folhas verdes de parreira e roxos cachos de uva pintados no fundo. Mesmo a porta, de tão envernizada e re-envernizada, parecia molhada e brilhava com um lustro de caramelo-escuro! Abria-a um "criado homem" e, desde a soleira, Gilberte apreciava, sem discernimento, uma atmosfera de luxo discreto. O tapete, por sua vez coberto de tapetes persas, dava-lhe asas. Tendo Mme Alvarez declarado que a salinha Luís XV da irmã era "o próprio tédio", Gilberte repetia "a sala de tia Alicia é muito bonita mas é o próprio tédio!" e reservava toda sua consideração para uma sala de jantar toda de limoeiro pálido, datando do Diretório, dourada e sem incrustações, enfeitada somente pelas nervuras da madeira transparente como cera. "Mais tarde hei de comprar uma destas para mim", dizia Gilberte inocentemente.

- Isso mesmo, e no faubourg Antoine - zombava Alicia, com um sorriso da boca fina, ornada de dentinhos que se mostravam de vez em quando.

Com seus setenta anos, a velha possuía gostos pessoais, um quarto de dormir cinza-prateado com vasos vermelhos de porcelana da China, um banheiro estreito e alvo, quente como uma estufa e uma saúde robusta, que ela escondia sob afetações de fragilidade. Os homens de sua geração, quando desejavam descrever Alicia Saint-Efflam, perdiam-se em exclamações como "Ah!, meu caro!... Não há o que dê uma idéia..." Os que haviam sido íntimos, mostravam fotografias que os mais jovens achavam medíocres: "Era mesmo muito bonita? Pela fotografia não parece..." Os antigos apaixonados, diante dos retratos, sonhavam um momento, reconhecendo aquele pulso dobrado em pescoço de cisne, ou a orelha pequenina, ou o perfil revelador da deliciosa relação entre a boca desenhada em coração e o ângulo bem aberto das pálpebras de longos cílios...

Gilberte foi beijar a bonita senhora que trazia sobre os cabelos brancos uma renda negra, de Chantilly e, sobre o corpo um tanto pesado, um vestido de interior de tafetá changeant.

- Está com dor de cabeça, tia Alicia?

- Ainda não sei - respondeu tia Alicia. - Dependerá do almoço. Venha logo, que os ovos estão prontos. Tire o casaco. Mas que vestido é este?

- Vestido de mamãe reformado para mim. Têm algo de especial os ovos de hoje?

- Não. Ovos mexidos com pão. Também os ortolans não são complicados. Você vai ganhar creme de chocolate - e eu também.

Com sua tez jovem, sua renda sobre os cabelos alvos e suas rugas clementes, realçadas de cor-de-rosa, tia Alicia bancava a marquesa de teatro. Gilberte venerava a tia em tudo e por tudo. Sentando-se à mesa, puxou a saia debaixo de si, juntou os joelhos, aproximou dos flancos os cotovelos, fez sumir as omoplatas e ficou tal qual uma senhorita. Sabia a sua lição: partia o pão com delicadeza, comia com a boca fechada e tinha o cuidado de não deixar escorregar o indicador sobre o dorso da lâmina, ao cortar a carne. Uma fivela, apanhando-lhe os cabelos na nuca, descobria os contornos suaves da testa, das orelhas e do pescoço, que parecia singularmente forte, dentro da gola um tanto mal-feita do vestido reformado, de um azul triste, com o corpete franzido sobre uma pala e rematado, para alegrar, com três galões de mohair costurados à barra da saia e três vezes três galões de mohair nas mangas, entre o punho e o ombro.

Tia Alicia, diante da sobrinha, observava-a com seus belos olhos azul-negros e não achava o que censurar.

- Que idade tem você? - perguntou bruscamente.

- A mesma de outro dia. Quinze anos e meio. Titia, que é que você pensa desta história de tio Gaston?

- Por quê? Isso lhe interessa?

- Claro, minha tia. Isso me aborrece. Se titio SÔ arranjar com alguma outra, não voltará mais lá em casa para jogar piquet e tomar camomila, ao menos durante algum tempo. Seria pena.

- Esse é um ponto de vista, evidentemente. . .

Com as pálpebras apertadas, tia Alicia olhava para a sobrinha com ares críticos.

- Você está estudando direito, no curso? Quem são suas amigas? Corte os ortolans em dois, de um só golpe, firme, sem fazer a faca ranger no prato.

Mastigue uma metade e depois a outra; os ossos não contam. Responda às minhas perguntas sem parar de comer e, ao mesmo tempo, sem falar de boca cheia. Dê um jeito. Se eu faço, você também pode fazer. Quem são suas amigas?

- Ninguém, titia. Vovó não me deixa nem tomar lanche com a família de minhas colegas.

- Ela tem razão. Você não tem nenhum namorado? Nenhum funcionariozinho de pasta debaixo do braço? Nenhum colegial? Nenhum homem maduro? Previno que não adianta mentir, eu percebo.

Gilberte contemplava aquele rosto animado, de velha autoritária, que o interrogava com aspereza.

- Não, titia, não tenho ninguém. Alguém falou mal de mim? Ando sempre sozinha. E por que é que vovó está sempre me proibindo de aceitar convites?

- Desta vez, pelo menos, ela tem razão. Só viriam convites de pessoas comuns, o que vale dizer, inúteis.

- E nós não somos pessoas comuns?

- Não.

- O que têm os outros de menos que nós?

- Têm a cabeça fraca e o corpo imprudente. Além disto, são casados. Não creio, porém, que você compreenda.

- Sim, titia, compreendo que nós não nos casamos.

- Não que o casamento nos seja proibido. Mas, em vez de casar "já", acontece que a gente se casa "afinal".

- Será que isso me impede de freqüentar as meninas de minha idade?

- Sim. Você está se aborrecendo em casa? Pois aborreça-se mais um pouco. Isso não é mau, ajuda a formar decisões. Que é isso? Uma lágrima? Lágrima de boba, que não está avançada para a idade. Coma seu ortolan.

Tia Alicia apanhou com três dedos cintilantes o pé de seu copo e o ergueu:

- À nossa saúde, Gigi. Você vai ganhar um quediva com a xícara de café. Mas com a condição de não me molhar a ponta do cigarro e de não cuspir pedacinhos de fumo, fazendo ptu, ptu... E eu lhe darei também um cartão para uma das chefes da casa Bechoff-David, uma antiga colega minha que não teve êxito.. Seu guarda-roupa vai mudar. Quem não arrisca não petisca.

Os olhos azul-escuros brilharam. Gilberte tartamudeava de alegria:

- Tia! Titia! De... De... Be...

- ... choff-David. E eu, que não te julgava coquette?

Gilberte corou.

- Com as roupas que me fazem em casa, não posso ser coquette.

- Compreendo. Será que você tem gosto? E quando você pensa em se embelezar, como é que você se imagina?

- Oh!, titia! Eu sei perfeitamente o que me ficaria bem. Eu vi...

- Explique-se sem gestos; gesticulando, você se torna vulgar.

- Vi um vestido... criação de Mme Lucy Gérard. Centenas de preguinhas, em musselina cinza--pérola, de alto a baixo... E depois outro, todo com aplicações azul-lavanda, sobre um fundo negro, de veludo, formando na cauda um leque de pavão...

Brilhou no ar a pequena mão com belas pedrarias.

- Basta, basta, já vejo que você dá para se vestir como grande coquette do Français - e você toma isto como elogio I Venha servir o café. Não, não levante o bico do bule para cortar a queda da gota. Prefiro uma lagoazinha no fundo do pires à virtuosidade de garção de café.

A hora que se seguiu passou depressa para Gilberte: tia Alicia abrira seu cofrezinho de jóias preparando-lhe uma lição deslumbrante.

- Que é isto, Gigi?

- Um diamante navette.

- A gente diz brilhante navette. E isto?

- Um topázio.

Tia Alicia ergueu as mãos e o sol, ricocheteando sobre os anéis, borrifou-as de florinhas azuis.

- Um topázio! Tenho suportado muita humilhação, mas esta ultrapassa tudo! Um topázio entre minhas pedras? Por que não uma água-marinha ou um peridoto? Isto é um brilhante junquilho, minha tola, e não verá muitos iguais a este. E isto?

Gilberte entreabriu a boca, pôs-se sonhadora.

- Oh!... isso é uma esmeralda. Oh! como é linda!

Tia Alicia enfiou no dedinho a grande esmeralda quadrada e calou-se um momento.

- Está vendo - disse ela a meia voz - este fogo quase azul, correndo ao fundo da luz verde... Só as esmeraldas mais belas contêm este milagre de azul inatingível...

- Quem foi que lhe deu, titia? - ousou perguntar Gilberte.

- Um rei - disse tia Alicia simplesmente.

- Grande rei?

- Não, rei pequeno. Os grandes não dão pedras muito belas.

- Por quê?

Furtivamente, tia Alicia mostrou o branco dos dentes finos.

- Se quer minha opinião, não gostam delas. Cá entre nós, os pequenos também não.

- Então quem dá as belas pedras?

- Os tímidos. Também os orgulhosos. E os malandros também, por acreditar que, dando uma jóia monstro, provam boa educação. Às vezes, uma mulher, para humilhar um homem. Não use nunca jóias de segunda, espere que venham as de primeira ordem.

- E se não vierem?

- Pior. Em vez de um diamante mau, use um anel de cem tostões. Nesse caso, diga: "é uma lembrança, que não deixo nem de dia nem de noite". Não use nunca jóias de arte; isso desmoraliza inteiramente uma mulher.

- Jóia de arte o que é?

- Depende. Uma sereia de ouro com olhos de crisólito. Um escaravelho egípcio. Ametistas gravadas. Algum bracelete sem grande peso, mas que dizem cinzelado por mão de mestre. Uma lira, uma estrela montada em broche, uma tartaruga incrustada... Horrores, enfim! Nunca - mas nunca - use pérolas barrocas, nem para alfinete de chapéu. Evite também a jóia de família.

- No entanto, vovó possui um belo camafeu num medalhão.

- Belos camafeus não existem - disse tia Alicia, curvando a cabeça. - Existe a pedra preciosa e a pérola. Há o brilhante branco, junquilho, azulado ou rosado. Dos diamantes negros, não falemos, que não valem a pena. Há o rubi - quando a gente está bem certa dele. A safira, quando é de Cachemira, a esmeralda, contanto que não traga na água algum sabe Deus o que de claro ou amarelado...

- Titia, gosto muito, também, de opalas.

- Sinto muito, mas você não vai usá-las. A isso, oponho-me eu!

Espantada, Gilberte quedou-se um momento de boca aberta.

- Oh!, titia, será que você também acredita que trazem azar?

- E por que não? Sua tolinha - continuou tia Alicia rapidamente. - É preciso fingir que se acredita. Acredite nas opalas, acredite... Vejamos, que poderia eu indicar ainda? Nas turquesas, que morrem, no mau olhado...

- Mas - disse Gigi, hesitante. - Isso é... é superstição...

- Claro, minha filha. Dizem também que são fraquezas. Um bom lote de fraquezas e mais o medo de aranhas - é a nossa bagagem indispensável junto aos homens.

- Por que, titia?

A velha senhora fechou o cofre, conservando diante de si Gilberte, ajoelhada.

- Porque nove, entre dez homens, são supersticiosos; dezenove, em vinte, acreditam no mau olhado e noventa e oito, em cem, têm medo de aranhas. Eles nos perdoam.. . muita coisa, menos estarmos livres do que os inquieta.. . Por que esses suspiros?

- Porque jamais me lembrarei de tudo isso.

- O importante não é que você se lembre, mas que eu o saiba.

- Titia, que vem a ser uma guarnição de secretária de... malaquita?

- Em qualquer caso, uma calamidade! Mas, meu Deus, quem te andou ensinando essas palavras?

- A lista dos presentes dos grandes casamentos, nos jornais, titia.

- Bela leitura! Enfim, aí você poderá aprender quais os presentes que não se deve dar nem receber. ..

Enquanto falava, ia tocando aqui e ali, com sua unha aguçada, p jovem rosto à altura do seu, levantava o lábio gretado, verificava o esmalte sem mancha dos dentes.

- Belo maxilar, minha filha. Com dentes assim eu teria devorado Paris e o estrangeiro. É verdade que comi um bom pedaço. Que é isto aqui? Uma espinha? Você não pode ter espinha nenhuma perto do nariz. E isto? Você espremeu um cravo. Você não deve ter que espremer cravo nenhum. Eu te darei um pouco da minha água adstringente. E, de conservas, você só comerá presunto cozido. Não tem usado pó de arroz?

- Vovó proibiu.

- Ainda bem. Você vai regularmente àquele lugarzinho? Assopre no meu nariz. Afinal, a esta hora isto não prova nada, acabou de almoçar...

Pousou as mãos sobre os ombros de Gilberte:

- Preste atenção no que digo: você pode agradar. Tem um narizinho impossível, uma boca sem estilo, as maçãs do rosto um tanto mujiques...

- Oh!, titia - gemeu Gilberte.

- ... Mas pode superar tudo isso por meio dos olhos, dos cílios, dos dentes e dos cabelos, se não for completamente idiota. E quanto ao corpo...

Colocou as mãos em concha no peito de Gigi e sorriu:

- Projeto. Mas bonito projeto, bem plantado. Não coma muita amêndoa que isso faz os seios pesados. Ah!, lembre-me de lhe ensinar a escolher charutos.

Gilberte abriu tanto os olhos que as pontas dos cílios tocaram-lhe nas sobrancelhas. - Por quê? Recebeu uma palmadinha no rosto.

- Porque sim. Não faço nada sem razão. Se tomo conta de você, devo olhar por tudo. Quando uma mulher conhece as preferências de um homem, inclusive os charutos, quando um homem sabe o que agrada a uma mulher, estão bem armados um contra o outro...

- E então, batem-se - concluiu Gilberte com ar finório.

- Batem-se como?

A velhinha olhou consternada para Gigi:

- Ah! -disse ela - não foi você, seguramente, a inventora do espelho de três faces... Vem, psicóloga, quero te dar o bilhetinho para Mme Henriette, da casa Bechoff...

Enquanto ela escrevia, sentada num bonheur-du-jour minúsculo e rosado, Gilberte respirava o perfume do aposento bem cuidado e, sem cobiça, inventariava aqueles móveis tão familiares quanto mal conhecidos; o Amor Sagitário que indicava as horas em cima da lareira, os dois quadros galantes, o leito arredondado, com sua coberta de chinchila, o rosário de pequenas pérolas finas e os Evangelhos sobre a mesa de cabeceira, duas lâmpadas vermelhas de porcelana da China, contrastando com a pintura cinza...

-. Vai, filhinha, logo tornarei a convocar você.

Peça ao Vitor o bolo para levar. Devagar, não me despenteie! E fique sabendo que eu aqui estou, observando sua partida. Ai de você se sair em passo de granadeiro ou arrastar os pés!

 

O mês de maio, que trouxe de volta a Paris Gaston Lachaille, dotou Gilberte de dois vestidos bem feitos e de um casaco mais leve - "um paletó-saco, igual ao de Cléo de Mérode", dizia ela - além de chapéus e de sapatos. A tudo isto, ela acrescentou uns crespinhos -na testa que a banalizaram. Desfilou diante de Gaston com um vestido branco e azul que quase chegava ao chão: "Tem quatro metros e vinte e cinco a minha saia, só de roda, titio!"

A pequenez da cintura arrochada numa fita de gros giain com fivela de prata, enchia-a de orgulho. Maquinalmente, porém, tentava libertar o belo pescoço musculoso, preso numa gola com barbatanas e do mesmo pano que o corpete pregueado: venise imitation. As mangas e a saia rodada, em seda branca com listas azuis, farfalhavam levemente, e Gilberte, um pouco coquette, beliscava o bouffant das mangas sobre o braço, um pouco abaixo do ombro.

- Você parece um macaquinho - disse Gaston Lachaille. - Gostava mais daquela roupa escocesa. Estrangulada nessa gola, você está com jeito de galinha que engasgou com o milho. Vá se ver um pouco.

Arrufada, Gilberte pediu a opinião do espelho. Um caramelo, vindo de Nice pelas mãos de Gaston, fazia-lhe um caroço na bochecha.

- Já ouvi muita coisa a seu respeito, titio, mas quanto a ter gosto em matéria de vestidos, nunca ninguém me disse nada...

Sufocado, Gaston mediu de alto a baixo aquela jovem, subitamente uma moça, e desabafou com Mine Alvarez.

- Bela educação! Apresento-lhe meus cumprimentos.

Com isto, saiu - e sem tomar camomila. Mme Alvarez juntou as mãos.

- Que é que você foi fazer, minha pobre Gigi!

- Ora - disse Gigi - por que é que ele me provocou? Agora já sabe que eu respondo mesmo!

A avó sacudia-lhe o braço.

- Você não se dá conta, desgraçadinha? Meu Deus, com que idade vai você adquirir o uso da razão? Eis aí um homem talvez mortalmente ferido! Logo na hora em que a gente se esmera em...

- Se esmera em que, vovó?

- Ora, em fazer de você uma jovem elegante, em mostrá-la sob luzes favoráveis...

- Aos olhos de quem, vovó? Confesse que para um amigo velho como o titio não é preciso a gente se afobar.

Mme Alvarez não confessa nada, nem mesmo seu espanto, na manhã seguinte, ao ver aparecer Gaston Lachaille, jovial, todo de terno claro.

- Ponha o chapéu, Gigi. Vamos almoçar.

- Onde? - gritou Gigi.

- Em Versailles, no Reservoirs.

- Chique, chique, chique - cantou Gilberte. Voltou-se para a cozinha:

- Vovó, eu almoço no Reservoirs, com titio! Sem mesmo tomar o tempo de desatar o avental de cetineta floreada que lhe cingia o ventre, Mme Alvarez apareceu e interpôs a mãozinha entre o braço de Gilberte e o de Gaston Lachaille:

- Não, Gaston - disse ela simplesmente.

- Como não?

- Oh!, vovó! - chorou Gigi.

Mme Alvarez não pareceu ouvi-la.

- Vai para o quarto um momento, Gigi, quero falar em particular com M. Lachaille.

Esperou Gilberte afastar-se, fechando a porta atrás de si e depois, voltando-se para Gaston, suportou sem vacilação um olhar negro e bastante brutal.

- Que significa isto, Mamita? Desde ontem noto coisas mudadas aqui - por quê?

- Sente-se, Gaston, faça o favor - disse Mme Alvarez. - Estou cansada. Ai, minhas pobres pernas...

Suspirou, esperou um sinal de interesse que não veio e desatou o avental de babador sob o qual trazia o vestido negro, com seu broche grande de camafeu. Designou uma cadeira ao hóspede, e ficou com a poltrona para si. Depois sentou-se pesadamente, alisando os bandos já grisalhos e cruzou as mãos no colo. O lento movimento de seus grandes olhos de um preto ardente, sua facilidade em conservar-se imóvel, faziam julgar que estava muito senhora de si.

- Gaston, você sabe a amizade que lhe tenho...

Lachaille repuxou o bigode, permitindo-se um sorrisinho de homem de negócio.

- Amizade e gratidão. Mas nem por isso esqueço que tenho a meu cargo uma alma. Como você sabe, Andrée não tem tempo nem gosto para se ocupar da pequena. Nossa Gilberte não é uma menina desempenada, como há tantas. É uma verdadeira criança. ..

- De dezesseis anos - disse Lachaille.

- Que logo completará - aprovou Mme Alvarez. - Há anos você lhe vem dando bombons e brinquedos. Ela só jura pelo titio. E aí está você agora, querendo levá-la de automóvel, a almoçar no Reservoirs...

Mme Alvarez pôs a mão sobre o seio:

- Pelo meu coração e minha alma, Gaston, se só se tratasse de mim e de você, eu diria: "Leve onde quiser, eu a confio de olhos fechados". Mas existem os outros... Você é mundialmente conhecido. Sair sozinha com você, para uma mulher, é o mesmo que...

Gaston Lachaille perdeu a paciência.

- Está bom, está bom, já compreendi. Quer que eu acredite que só por almoçar comigo, Gigi ficará comprometida? Um pedacinho de mulher como aquele, verde como uma hortaliça, uma garota que ninguém conhece nem olha...

- Digamos antes - interrompeu Mme Alvarez, com doçura - que você a consagraria. Quando você aparece em algum lugar, Gaston, sua presença é assinalada. Uma moça que sai em sua companhia já deixa de ser uma moça comum ou mesmo uma moça... sem mais. Nossa Gilberte, porém, ao menos quanto a esse aspecto, não deve deixar de ser uma moça como as outras. Para você, Gaston, seria apenas mais um "caso". Mas deste, não teria eu a coragem de rir, se o viesse a ler no Gil Blas...

Gaston Lachaille levantou-se e, antes de responder, andou da mesa à porta e da porta à janela.

- Pois bem, Mamita, não a quero contrariar. Não discutirei mais - disse friamente. - Fique com sua garota.

Voltou-se para Mme Alvarez com o queixo alto:

- Entre parêntesis, pergunto eu a mim mesmo, para quem a estará guardando? Para algum empregadinho de dois mil e quatrocentos francos, que casará com ela e lhe fará quatro filhos em três anos? - Eu concebo de outra maneira o papel de mãe - disse pausadamente Mme Alvarez. - Farei o possível para não entregar Gigi senão ao homem que disser: "Encarrego-me dela, assegurarei seu futuro!" Terei o prazer de lhe oferecer sua camomila, Gaston?

- Não, obrigado, estou atrasado.

- Quer que Gigi lhe venha dizer adeus?

- Não vale a pena, vejo-a outro dia. Não sei quando, ando muito ocupado estes dias.

- Não faz mal, Gaston, não se incomode por causa dela. Bom passeio, Gaston.

Uma vez sozinha, Mme Alvarez enxugou a testa e foi abrir o quarto de Gigi.

- Gigi, você estava escutando atrás da porta!

- Eu não, vovó!

- Estava sim. Não se deve nunca escutar atrás das portas, é o melhor meio de ouvir atrapalhado e interpretar mal as palavras. M. Lachaille já foi.

- Estou vendo - disse Gilberte.

- Então vá esfregar as batatinhas novas num trapo. Eu as passarei na manteiga, quando voltar.

- Você vai sair, vovó?

- Vou à casa de Alicia.

- Outra vez?

- E quem é você para reclamar - disse com severidade Mme Alvarez. - Melhor fazia indo lavar os olhos na água fria, uma vez que já fez a tolice de chorar.

- Vovó...

- O quê?

- Que é que custa me deixar sair com titio Gaston de vestido novo?

- Silêncio! Você não entende nada de nada. Deixe ao menos raciocinar os que disso são capazes. E calce as luvas de borracha para lidar com as batatas.

Uma lei de silêncio pesou durante a semana toda sobre a casa das Alvarez que, um dia, inopinadamente, receberam a visita de tia Alicia. Veio num cupê, toda de rendas negras e seda fosca, com uma rosa ao ombro, e conversou com a irmã mais moça, muito preocupada e longe das demais. Ao despedir-se, não deu mais que um momento de atenção a Gilberte:

- Que é que ela queria? - indagou Gilberte de Mme Alvarez.

- Oh!... não queria nada. Só o endereço do médico que tratou do coração de Mme Buffetery.

Gilberte refletiu um instante:

- Demorou - disse ela.

- Que é que demorou?

- O endereço do médico. Vovó, eu queria um comprimido, estou com dor de cabeça.

- Ontem também estava. Dor de cabeça não dura quarenta e oito horas.

- É de crer que as minhas não sejam iguais às de todo mundo - disse Gilberte, sentida.

Ia perdendo um pouco a suavidade. Ao voltar do curso, dizia "o professor tem raiva de mim", queixava-se de insônias e escorregava para uma preguiça que a avó antes vigiava de perto que combatia. Um dia em que Gigi estava ocupada, passando alvaiade em suas botinas de atar, de lona branca, Gaston Lachaille veio entrando sem bater. Tinha os cabelos longos demais, a pele escurecida pelo sol e estava com um terno de verão, de xadrez baralhado. Parou de repente, diante de Gilberte, encarapitada num tamborete alto, de cozinha, e com a mão esquerda enfiada num sapato.

- Oh!... Vovó largou a chave na porta. É bem coisa dela!

Como Gaston não dizia nada e a olhava, a moça corou lentamente, pousou a botina sobre a mesa e puxou a saia sobre os joelhos.

- Então, titio, você chega como um ventanista! Sabe de uma coisa? Você emagreceu. O seu famoso ex-cozinheiro-chefe do Príncipe de Gales já não lhe dá comida bastante? Assim magro, seus olhos ficaram maiores, mas também o nariz parece mais comprido e...

- Quero falar com sua avó - interrompeu Gaston Lachaille. - Suma para o quarto, Gigi!

Por um instante a moça ficou boquiaberta. Depois, pulando do tamborete, estufou o forte pescoço de arcanjo e cresceu para Lachaille.

- Suma para o quarto! Suma para o quarto! E se eu lhe dissesse o mesmo? Está pensando que manda aqui dentro, para me dizer que suma para o quarto? Pois bem, é para lá mesmo que eu vou, para o meu quarto! E de uma coisa pode estar certo: é que de lá não saio enquanto você estiver nesta casa!

Bateu a porta e, teatralmente, passou-lhe o ferrolho.

- Gaston! - bufava Mme Alvarez - hei de exigir que essa menina lhe peça desculpas, sim, eu o exigirei e, se for preciso...

Gaston Lachaille não a ouvia, e olhava a porta trancada.

- Agora - disse ele - falemos pouco e bem, Mamita.

- Recapitulemos - disse tia Alicia. - Ele começou realmente por afirmar: "Ela será mimada como..."

- Como nenhuma outra mulher jamais o foi!

- Sim, mas isto é uma frase vaga, como todo homem diz. Eu sou pelas precisões.

- Nem elas faltaram, Alicia. Ele disse que desejava garantir Gigi contra todos os aborrecimentos, até contra ele mesmo, por um seguro, uma vez que era uma espécie de padrinho dela.

- Sim, sim, não está mal. Mas é vago, sempre muito vago...

Estava ainda deitada, com os cabelos brancos em cachos sobre o travesseiro cor-de-rosa. Preocupada, amarrava e desamarrava a fita da camisola. Mme Alvarez, pálida e sombria, como a lua e a nuvem, sob seu chapéu matinal, apoiava à cabeceira os braços cruzados.

- Ele acrescentou: "Não quero fazer nada bruscamente. Antes do mais, sou o melhor amigo de Gigi, quero dar a ela tempo de se habituar comigo..." Tinha lágrimas nos olhos. Disse ainda: "Ela não terá que se haver com um selvagem". Enfim, portou-se como um cavalheiro, um verdadeiro cavalheiro.

- Sim... sim... Cavalheiro um tanto vago. E à pequena, você falou claro?

- Falei como devia. Não era mais o momento de tratá-la como a uma criança, de quem a gente esconde os bolos. Falei claro, sim. Falei de Gaston como de um milagre, como de um deus, como...

- Ttt, tt, tt - criticou Alicia. - Eu teria antes feito ressaltar as dificuldades, a cartada que se está jogando, o furor das outras todas, a vitória a conquistar sobre um homem em evidência...

Mme Alvarez juntou as mãos:

- A dificuldade! O que está em jogo! Você pensa que ela se parece com você? Então não a conhece! Gigi não tem maldade, ela...

- Agradecida.

- Quero dizer que não tem ambição. Fiquei mesmo chocada de ver que não reagia num sentido nem noutro. Nem um grito de alegria, nem lágrimas de emoção. Tudo o que extraí foram uns "Ah!, sim... é muito gentil da parte dele..." No fim somente é que ela impôs, como condições...

- O que nos falta ouvir! - murmurou Alicia.

- ...que ela mesma responderia às propostas de M. Lachaille, que teria com ele uma explicação, a sós. Que, afinal, tudo isto era com ela.

- Podemos contar com um bonito arranjo! Você deu à luz uma inconsciente. Ela vai pedir a lua e - eu o conheço - ele não lha dará. É às quatro horas que ele vem?

- É

- Não mandou nada? Nem flores? Nem um bibelô?

- Não. É mau sinal, você não acha?

- Não. É bem o jeito dele. Cuida que a pequena se vista com graça. Está com boa cara?

- Hoje não muito. Pobre da minha meninazinha...

- Ora, ora - disse Alicia com dureza. - Deixe para chorar outro dia, quando ela tiver posto tudo a perder.

- Você não comeu nada, Gigi.

- Não tinha muita fome, vovó. Posso repetir um pouco de café?

- Claro que sim.

- E uma gota de Combier?

- Decerto. O Combier é soberanamente estomacal.

Pela janela aberta entravam os ruídos e a tepidez da rua. Gilberte mergulhava a língua até ao fundo do cálice de licor.

- Se tia Alicia visse você, agora, Gigi - disse Mme Alvarez.

Gigi respondeu apenas com um sorrisinho cínico. Seu velho vestido escocês apertava-lhe os seios e, por baixo da mesa, ela espichara as pernas compridas para fora da saia.

- Que é que mamãe está ensaiando hoje que não veio almoçar conosco, vovó? Você acha que ela foi mesmo ensaiar na Opera Comique?

- Pois se foi isso que nos disse.. .

- Pois eu acho que ela não quis almoçar aqui. - De onde lhe veio essa idéia?

Sem afastar os olhos da janela ensolarada, Gilberte levantou os ombros:

- Oh!, nada, vovó...

Enxuto o cálice de Combier, levantou-se e pôs-se a juntar os talheres.

- Deixa isso, Gigi, eu tiro a mesa.

- Por que, vovó? Estou fazendo como de costume.

Fincou nos olhos de Mme Alvarez um olhar que a velha não sustentou.

- Almoçamos tarde, já são quase três horas e você ainda não está vestida. Afinal, Gigi...

- Será a primeira vez que eu necessitaria de uma hora para mudar de roupa.

- Não precisa de mim? Seu cabelo está bem enrolado?

- Está sim, vovó. E quando tocarem, não se incomode, eu irei abrir.

Às quatro em ponto, Gaston Lachaille tocou três vezes. Um rosto infantil e preocupado apareceu na porta entreaberta do quarto, e esperou. Depois de mais três golpes impacientes de campainha, Gilberte avançou até o centro do aposento. Conservara o velho vestido escocês e as meias grossas. Esfregou as faces com os punhos cerrados e correu a abrir a porta.

- Bom dia, titio Gaston.

- Não queria abrir, malvada?

Passando na porta, esbarraram-se nos ombros e se disseram "Oh!, perdão!", com um ar altivo; depois, riram sem jeito.

- Sente-se, por favor, titio. Imagine que não tive nem tempo de me vestir. Não é o seu caso. Em matéria de sarja azul-marinho, não há melhor.

- Você não sabe nada. Isto é cheviote.

- É verdade! Onde estou com a cabeça? Sentou-se em frente dele e puxou a saia sobre

os joelhos. Olharam-se. A segurança juvenil de Gilberte desfez-se e uma espécie de súplica aumentou loucamente seus olhos azuis.

- Que tem você, Gigi? - perguntou Lachaille a meia voz. - Diga-me alguma coisa. Sabe por que estou aqui?

Ela fez que sim, com um grande meneio da cabeça.

- Você quer? Ou será que não quer? - disse ele, mais baixo.

Ela passou para trás da orelha um caracol de cabelo e engoliu a saliva, corajosamente:

- Não quero - disse ela.

Lachaille apertou as pontas do bigode entre dois dedos e, por um momento, desviou o olhar daqueles dois olhos azuis ensombrecidos, de uma sarda da face rósea, dos cílios recurvos, da boca ignorante de seu poderio, da pesada cabeleira cendrada, do pescoço torneado como uma coluna, forte, quase masculino, liso e virgem de jóias...

- Não quero o que você quer - volveu Gilberte. - Você disse a vovó...

Ele avançou a mão, interrompendo-a. Tinha a boca meio torta como se os dentes lhe doessem.

- Sim, eu sei o que disse a sua avó, não vale a pena você repetir. Diga só o que você não quer. E pode também dizer o que quer... eu darei...

- Verdade? - exclamou Gilberte.

Ele aquiesceu, deixando cair os ombros como quem está moído de cansaço. Surpresa, Gigi contemplava aquelas confissões de lassidão e tormento.

- Titio, você disse a vovó que desejava assegurar meu futuro.

- Um belíssimo futuro - disse firmemente Lachaille.

- Será belo se eu gostar dele - disse Gilberte, com firmeza não menor. - Encheram-me os ouvidos com o atraso em que estou para minha idade, mas assim mesmo compreendo o significado das palavras. Assegurar meu futuro, quer dizer que eu irei embora daqui. Que eu irei embora com você e que dormirei na sua cama.. .

- Por favor, Gigi...

- Mas, titio, por que me sentiria constrangida de lhe falar assim se você não se constrangeu em falar com vovó? Também vovó não se constrangeu em me falar. Vovó quis me fazer ver tudo cor-de-rosa. Mas eu sei mais do que ela disse. Sei muito bem que se você me assegurar o futuro, meu retrato vai aparecer nos jornais, terei que ir à Festa das Flores, às corridas e a Deauville. Quando brigarmos, nossa briga será comentada no Gil Blas e no Paris en Amour. E quando você me deixar definitivamente, como fez quando se cansou de Gentiane de Cévennes...

- Como é que você ficou sabendo disso? Quem misturou você com essas histórias?

Gravemente, ela inclinou a cabeça.

- Vovó e fia Alicia. Elas me ensinaram que você é um homem universalmente conhecido. Fiquei sabendo também que Maryse Chuquet lhe roubou cartas, que você deu queixa contra ela; que a Condessa Pariewsky não estava contente com você porque você se recusava a casar com uma divorciada e que ela lhe deu um tiro de revólver... Sei o que todo mundo sabe.

Lachaille pousou a mão no joelho de Gilberte.

- Não é dessas coisas que nós dois temos que falar, Gigi. Isso tudo acabou, passou.

- Claro, titio, até o dia em que começar de novo. Não é culpa sua, se você é um homem universalmente conhecido. Mas comigo não vai.

Puxou para baixo a saia, fazendo escorregar do joelho a mão de Gaston.

- Tia Alicia e vovó estão de acordo com você. Mas como, em todo o caso, trata-se um pouco de mim, quero também dar a minha opinião. E minha opinião é que isso não me serve.

Levantou-se e começou a andar de um lado para outro, na sala. O silêncio de Lachaille parecia embaraçá-la e ela pontuava o seu vaivém com "Pois é", "Ora, é isso..."

- O que eu queria saber - disse Gaston, afinal - é se você não está procurando esconder que eu lhe desagrado... Se eu desagrado a você, era mais fácil dizer logo...

- Não é isso, titio, você não me desagrada! Fico contente sempre que o vejo! A prova é que eu também quero propor uma coisa: você continuará a vir aqui, como sempre, até mais vezes. Ninguém verá nisso nenhum mal, você é amigo da família. Há de me trazer alcaçuz, champanha no dia do meu aniversário, nos domingos faremos um piquei monstro. .. Será que isso não é uma boa vidinha? E sem todo esse negócio de dormir na sua cama, para que todo o mundo o saiba, de perder colares de pérolas, de estar sempre sendo fotografada, e sempre alerta e...

Maquinalmente, ia enrolando um caracol de cabelo em volta do nariz e tanto que sua fala já se tornara fanhosa e a ponta do nariz, violeta.

- Uma vidinha muito bonita, sim, senhora - interrompeu Gaston Lachaille. - Só que você esquece, Gigi, que estou apaixonado por você.

- Ah! - exclamou ela. - Você nunca me disse isso.

- É.. . - confessou ele, desajeitado. - Pois agora estou dizendo.

Gigi continuava diante dele, de pé, com a respiração acelerada, em silêncio. Seu embaraço nada escondia dela, nem o pulsar dos dois seios, sob o corpete estreito, nem o rubor magoado, ao alto das faces, nem a palpitação daquela boca fechada, mas destinada a abrir-se e a fruir...

- Então isso é outra coisa - disse ela, afinal. - Mas, então, você é um sujeito horroroso! Está apaixonado por mim e quer me arrastar a uma vida que só me dará aborrecimentos, vida em que todo o mundo mexerica sobre todo o mundo, em que os jornais escrevem malvadezas... Está apaixonado por mim e acha muito natural me meter em aventuras abomináveis que acabam em separações, brigas, Sandomires, revólveres e láudano...

Estourou em soluços violentos e ruidosos como um acesso de tosse. Gaston cingiu-a nos braços, querendo incliná-la para si como um ramo, mas Gigi escapou e refugiou-se entre o piano e a parede.

- Mas escute, Gigi, escute.. .

- Nunca! Não quero ver você nunca mais! Nunca esperaria tal coisa de você... Você não é um apaixonado, você é um homem mau! Vá-se embora daqui!

Cegava-se, com os dois punhos a esmagar os olhos. Gaston a alcançara e procurava, naquele rosto bem defendido, o espaço para um beijo. Mas só achava para os lábios a orla de um queixo pequenino, coberto de lágrimas. Acorreu Mme Alvarez, com o barulho dos soluços. Pálida e circunspecta, conteve-se, hesitando na soleira da porta da cozinha:

- Meu Deus, Gaston - disse ela. - Mas o que é que a menina tem?

- Eh! - disse Lachaille - tem que não quer.

- Não quer - repetiu Mme Alvarez. - Como, não quer?

- Não quer, não. Estou falando claro, penso eu?

- Não, não quero, não - choramingou Gigi. Mme Alvarez olhou para a neta com uma espécie

de terror.

- Gigi. .. Mas é da gente dar com a cabeça na parede! Gigi, mas eu disse a você. .. Gaston, Deus é testemunha que eu disse a ela...

- Disse até demais - berrou Lachaille.

E virou para a pequena um rosto que já não passava do de um pobre homem apaixonado e entristecido. Mas Gigi só lhe mostrava as costas, sacudidas pelo pranto e a cabeleira em desordem. Ele exclamou com voz abafada:

- Ah! Isto também já chega! - e foi-se embora, batendo a porta.

No dia seguinte às três horas, tia Alicia, chamada por um pneumatique, saltava de seu cupê, subia ao andar dos Alvarez, imitando o arfar dos cardíacos, e empurrava sem ruído a porta que sua irmã deixara encostada.

- Onde está a pequena?

- No quarto. Quer vê-la?

- Há tempo. Como está ela?

- Muito calma.

Alicia elevou os pequenos punhos encolerizados.

- Muito calma! Faz desabar o telhado sobre nossas cabeças e está muito calma. Que geração!

Levantou o veuzinho de pintas e fulminou a irmã com o olhar.

- E você, aí plantada, que é que você pretende fazer?

Seu rosto de rosa amarrotada afrontava duramente o grande rosto branco da irmã que, moderadamente, empertigou-se:

- Como, o que pretendo fazer? O que não posso é amarrar essa pequena.

Um suspiro longo suspendeu-lhe as espáduas cheias:

- Bem se pode dizer que eu não merecia as filhas que tenho.- pois lamente-se! Lachaille saiu daqui no estado de espírito em que um homem faz todas as asneiras!

- E nem levou a palheta - disse Mme Alvarez.

- Subiu ao carro com os cabelos ao vento. A rua toda o viu!

- Se me dissessem que a estas horas está noivo ou fazendo as pazes com Liane, não me surpreenderia. . .

_ O momento é fatídico - disse lügubremente Mme Alvarez.

- Mas, como foi que ele falou com essa menina, com essa parasita?

Mme Alvarez apertou os lábios.

- Gigi talvez seja um pouco louquinha para certas coisas e atrasada para a idade, mas não é o que você está dizendo. Uma jovem que chamou a atenção de M. Lachaille não pode ser uma parasita.

As rendas negras de Alicia foram sacudidas por um furioso dar de ombros.

- Muito bem, muito bem... E uma vez calçadas as suas luvas de pelica, que foi você reprovar, à princesa?

- Procurei torná-la razoável. Falei da família, mostrei-lhe que estamos todas atadas à mesma corda, enumerei as coisas que ela podia fazer por ela mesma e por nós...

- E de coisas pouco razoáveis, você não falou? Não mencionou amor, viagens, luar na Itália? É preciso fazer ressoar todas as cordas. Não lhe disse que o mar do outro lado do mundo é fosforescente, e que há flores com colibris voando em roda, e que se ama sob gardênias, ao lado de chafarizes?

Tristemente, Mme Alvarez olhou para a sua vibrante irmã.

- Como haveria de falar, Alicia? Não sei nada disso tudo. O mais longe que fui, foi Cabourg e Monte Cario.

- Você não sabe inventar?

- Eu não, Alicia.

Calaram-se ambas. Alicia fez um gesto decidido:

- Vá chamar aquela franguinha. Vamos ver.

Quando Gilberte entrou, tia Alicia já havia recuperado sua gentileza de velhota frívola e cheirava a rosa-chá presa perto de seu queixo.

- Bom dia, minha Gigi.

- Bom dia, tia Alicia.

- Sabe o que Inês me contou? Que você tem um apaixonado! E que apaixonado! Para uma primeira experiência, é de mestre!

Gilberte fez que sim, com um sorrisinho de resignação e desconfiança. À curiosidade de Alicia, ela oferecia um rosto fresco a que a orla lilás das pálpebras e a boca febril acrescentavam uma espécie de maquilagem. Por causa do calor, levantara o cabelo nas têmporas, com o auxílio de dois pentes que lhe repuxavam o canto dos olhos.

- Parece, também, que você anda bancando a malvada e tem experimentado as garras em M. Lachaille, menina!

Gilberte ergueu para a tia olhos incrédulos.

- Bravo, sim, senhora! Ele será ainda mais feliz por isso, quando você voltar a ser gentil.

- Mas, eu sou gentil, titia! Só que não o quero - o caso é esse.

- Sim, nós sabemos. Você o mandou de volta às suas usinas, muito bem. Mas não o mande ao diabo que ele é capaz de ir mesmo. Em suma, você não o ama.

Gilberte fez com os ombros um gesto infantil.

- Ora, titia, gostar dele, eu gosto. Muito.

- É o que eu digo, não o ama. Note bem: eu não vejo mal nisso, assim você conserva toda liberdade de espírito. Ah!, não estaria tão sossegada se você fosse louca por ele. E é um belo moreno, o Lachaille, tem um belo corpo, basta ver as fotografias de roupa de banho que tirou em Deauville. Nesse ponto, ele tem reputação firmada. Sim, sim, minha Gigi, eu lamentaria que você começasse por uma paixão. Irem os dois sozinhos para o outro lado do mundo... Esquecer tudo nos braços do homem que nos ama, escutar o canto do amor numa primavera eterna. .. Não dizem nada ao seu coração estas coisas? Que acha você disso?

- Acho que quando acaba a eterna primavera, M. Lachaille vai-se com outra dama. Ou então é a dama, digamos, eu, quem o deixa, e M. Lachaille põe-se a contar tudo o que houve. E a dama, suponhamos sempre que seja eu, não tem outra coisa a fazer senão meter-se na cama de outro cavalheiro. Não quero. Não sou volúvel.

Cruzou os braços sobre os seios e estremeceu ligeiramente.

- Vovó, posso tomar um comprimido? Queria deitar-me, estou com frio.

- Idiota! - explodiu tia Alicia. - Você merece uma lojinha de modas. Anda, vai, casa com um expedicionário.

- Se você quiser, titia. .. Mas preferia ir deitar.

Mme Alvarez apalpou-lhe a testa.

- Você está se sentindo mal?

- Não, vovó, estou triste.

Apoiou a cabeça no ombro de Mine Alvarez e, pela primeira vez na sua vida, fechou os olhos pateticamente, como uma mulher. As duas irmãs entreolharam-se.

- Minha Gigi, você bem sabe que ninguém quer atormentá-la a esse ponto - disse Mme Alvarez. - Não sendo de sua vontade...

- O que gorou, gorou - disse Alicia secamente. - Não se vai falar nisso a vida inteira.

- Você não poderá nos censurar - disse Mme Alvarez - por não ter recebido conselhos, e dos mais competentes.

- Eu sei, vovó. Mas assim mesmo estou triste. - Por quê?

Sobre a face aveludada de Gilberte, uma lágrima desceu sem molhá-la e a moça não respondeu. Ao golpe brusco da campainha que tremelicou, Gigi levantou-se de um pulo.

- Oh! Deve ser ele - disse ela. - Vovó, é ele, não o quero ver, esconda-me, vovó!

Ouvindo a tonalidade baixa e apaixonada da voz, tia Alicia levantou a cabeça e aguçou o ouvido perito. Depois correu a abrir a porta e, prontamente, voltou, seguida de Gaston Lachaille, que vinha empalidecido e com o branco dos olhos turvo.

- Bom dia, Mamita, bom dia, Gigi - disse ele em tom jovial. - Não se incomodem, vim buscar minha palheta...

Não recebendo resposta de nenhuma das três mulheres, a segurança o deixou:

- Ora, afinal bem podiam me dizer uma palavra, nem que fosse só bom dia!

Gilberte avançou um passo:

- Não - disse ela - você não veio buscar palheta nenhuma porque está com outra na mão. Você não anda à cata de palhetas. Veio é me fazer sofrer outra vez.

- Isto - explodiu Mme Alvarez - é mais do que eu suporto! Então, Gigi! Eis um homem que, escutando somente seu grande coração. . .

- Vovó, com licença, um momentinho só, eu logo acabo...

Maquinalmente, puxou a saia, ajustou a fivela da cintura e marchou para Gaston.

- Eu refleti, titio, refleti muito mesmo. . .

Ele a interrompeu, temendo ouvir o que ela ia dizer:

- Eu te juro, minha querida. ..

- Não, não me faça juramentos. Refleti que preferia ser infeliz com você, do que sem você... Então ...

E a moça vacilou ainda, duas vezes:

- Então.. . é isso. Bom dia. . . Bom dia, Gaston.

Como de costume, estendeu-lhe a face e ele, um pouco mais longamente do que de costume, beijou-a, até que a sentiu atenta e depois imóvel e dócil em seus braços. Mme Alvarez fez como quem ia se precipitar mas a mãozinha impaciente de Alicia a reteve:

- Deixe. Não se meta. Não vê que isto já não é da nossa conta?

E mostrava a Gigi repousando a cabeça, confiante, no ombro de Lachaille, e derramando sobre ele a riqueza de seus cabelos soltos.

O homem feliz voltou-se para Mme Alvarez.

- Mamita - disse ele. - Faça-me a honra, a mercê, a alegria infinita de me ceder a mão...

 

                               O MENINO DOENTE

O menino que ia morrer quis levantar-se um pouco mais alto nos travesseiros e não pôde. Susteve-o a mãe, ouvindo seu pedido sem palavras. E o menino destinado à morte teve perto do seu, uma vez mais, o rosto maternal que acreditava já não ver, com seus cabelos castanhos, repuxados nas têmporas, como os das menininhas antigas, a face longa, pouco empoada e um tanto magra, o ângulo muito aberto dos olhos castanhos, tão certos de dominar suas inquietações que esqueciam amiúde de manter-se em guarda...

- Meu garoto está cor-de-rosa esta noite - disse ela alegremente.

Tinha, porém, impressos nos olhos castanhos um temor e uma fixidez bem conhecidos do menino.

Evitando suspender a nuca enfraquecida, a criança rolou, para o ângulo das pálpebras, suas pupilas de grandes íris verde-mar e, gravemente, retificou:

- Estou côr-de-rosa por causa do abajur.

Cheia de dor, Dona Mamãe olhou para o filho e, consigo mesma, censurou-o por ter apagado com uma palavra o róseo que lhe vira nas faces. O menino tornara a cerrar os olhos e, com a aparência do sono, voltara-lhe o semblante de criança de dez anos. "Ela pensa que durmo". Sua mãe voltou-se suavemente, como temendo que o pequeno doente sentisse a ruptura do fio do olhar e deixou-o. "Ele pensa que eu penso que ele dorme". . . Brincavam assim, às vezes, de se enganar. "Ela pensa que eu não sofro", pensava Jean. E, sobre as maçãs do seu rosto, os cílios tiritavam de sofrimento. Dona Mamãe pensava: "Como ele sabe imitar bem uma criança que não sofre! Outra mãe se enganaria, mas eu..."

- Vaporizei lavanda. Gostas do cheiro? O quarto está perfumado.

A criança fez que sim, sem falar; o hábito e a obrigação de poupar suas forças haviam-na, finalmente, dotado de um repertório de pequeninos sinais, de uma delicada mímica, complicada como a linguagem dos animais. Mostrava-se exímia no fazer dos sentidos um uso feérico e paradoxal.

Para ele, as cortinas de musselina branca, batidas pelo sol das dez da manhã, emitiam um som róseo e a encadernação antiga de uma Viagem pelas margens do Amazonas, toda de pelica loura, derramava em seu espírito um sabor de massa de pastéis quente. A vontade de beber exprimia-se por três "batidas" de pálpebras. Comer... oh!, na vontade de comer ele nem pensava. As outras necessidades do corpinho amolentado e desfeito, tinham sua telegrafia pudica e muda. Mas naquela existência de criança condenada, tudo o que ainda podia merecer o nome de supérfluo, de prazer ou brinquedo, mantinha-se preso à palavra humana, procurava termos exatos e variados, a serviço de uma voz harmoniosa e como que amadurecida pela doença, e apenas um pouco mais aguda que uma voz de mulher. Jean escolhera as palavras convenientes para o jogo de damas, para a "paciência" constelada de bolinhas de vidro, para o trou-madame e para muitas outras distrações desusadas que se serviam do marfim, da madeira de limoeiro e da marchetaria. Outros vocábulos, em sua maioria secretos, aplicavam-se a um baralhinho suíço de cinqüenta e duas cartinhas envernizadas, emolduradas e filetadas a ouro, como painéis de um salão. As rainhas eram como pastoras, toucadas com chapéus de palha ornados por uma rosa; os valetes-pastores traziam seus cajados; mas os reis eram barrigudos, corados, tinham olhinhos duros de proprietários montanheses e, por causa deles, Jean inventara uma paciência que excluía os quatro monarcas grosseirões.

"Não, pensou ele, meu quarto não cheira bem. Não é a mesma lavanda. Acho que, antigamente, quando eu vivia em pé.. . Mas posso ter esquecido".

Cavalgou uma nuvem de perfume que passava ao alcance das suas narinas pequeninas, brancas e apertadas, e afastou-se rapidamente. Sua vida no leito provia-o de todos os deleites da moléstia, inclusive a dose de malícia filial de que as crianças não concordam jamais em privar-se; e quanto a isto, ele não fornecia nenhum esclarecimento.

Montado na nuvem perfumada, vagueou pelo ar, dentro do quarto, e depois, aborrecendo-se, evadiu--se por um encaixe de vidro fosco, existente na bandeira da porta, e foi-se ao longo do corredor, seguido no vôo por uma enorme traça prateada que ia espirrando na esteira da lavanda. Para distanciar-se dela, seus joelhos pressionaram os flancos da nuvem de perfume com um desembaraço e um vigor de cavaleiro que, diante dos humanos, recusavam-lhe suas pernas inertes de criança semiparalítica. Evadido de sua vida passiva, ele sabia cavalgar, passar através de muralhas e, acima de tudo, sabia voar. Inclinando o corpo como o mergulhador que desce através das ondas, varava displicentemente com a testa um elemento de que já conhecia os recursos e as resistências. Com os braços abertos, bastava-lhe cortar de viés uma ou outra vaga, para modificar a direção do vôo, e um ligeiro golpe de quadris evitava-lhe o choque da aterrissagem. Aliás, ele aterrissava raramente. Uma vez, baixara até perto demais da terra, roçando imprudentemente um prado em que pastavam vacas.

Tão perto da terra, que vira, diante da sua, uma bela cara espantada de vaca loura, com os chifres em crescente de lua e os olhos a olhar o menino voador como duas lentes de aumento, enquanto as bocas-de-leão, florindo junto à relva, vinham ao seu encontro e cresciam como astros pequeninos.. . Tivera tempo de apoiar com firmeza as mãos nos longos chifres, para lançar-se para trás, pelos ares, e lembrava-se ainda do calor dos cornos lisos, da sua ponta arredondada e como que benfazeja. Os ladridos do cão pastor, úmido de orvalho, que acorrera para proteger a vaca, perdiam-se à medida que o menino voador remontava ao seu firmamento familiar. Nitidamente, Jean se lembrava de como tivera que esforçar-se, naquela manhã, para retornar através de uma aurora de pervincas, planar sobre uma cidade que dormitava e cair sobre o seu leito laqueado, no fundo do qual tombara de mau jeito, machucando-se muito; uma dor tenaz queimara-lhe os rins, atenazara-lhe os fêmures, uma dor tão forte que não lhe fora possível esconder de Dona Mamãe dois traços nacarados, de lágrimas...

- Meu filhinho chorou?

- Em sonho, Dona Mamãe, em sonho...

Prontamente, a nuvem de cheiro agradável atingiu o fim do corredor, bateu com o focinho na porta que dava para a cozinha.

- Ho, ho! Ho, ho! Que tonta! Ah!, essas lavandas mestiças de serpilho! Quebram-nos a cara, se não as segurarmos firme. Então, é assim que se atravessa uma porta de cozinha?

Duramente, apertava entre os joelhos a nuvem arrependida e guiava-a para as regiões superiores da cozinha, lá onde o ar é quente, perto do teto, onde seca a roupa lavada. Baixando a cabeça ao passar entre dois panos, Jean rompeu com destreza o atilho de um avental e passou-o pela boca da nuvem à guisa de freio. Boca nem sempre é boca, mas freio sempre é freio e o que ele freia pouco importa.

"Aonde vamos? Precisamos estar de volta à hora do jantar e já é tarde. Vamos, Lavanda, apressa o passo..."

Transposta a porta de serviço, divertiu-se descendo a escada de ponta cabeça, e depois praticou algumas escorregadelas de costas. Espantada com o que lhe pediam, a nuvem de lavanda resfolegava um pouco. "Agüenta, minha potranca de montanha!", dizia o menino, rindo às gargalhadas, ele, que em sua vida enclausurada não ria nunca! Na descida louca, arrancou, de passagem, os pêlos de um cão da casa, daquele que, ao que se dizia, sabia ir à calçada "fazer suas necessidades" e depois subir para junto de seus pais, e arranhar a porta. Surpreendido pela mão de Jean, o cãozinho ganiu e grudou-se à parede.

- Queres vir conosco, Riki? Levo-te na garupa!

Agarrou o cão com sua mãozinha possante, atirou-o à garupa enfunada e vaporosa da lavanda que, esporeada pelos calcanhares nus, degringolou pelos dois últimos andares abaixo. Aí, o cachorro, aterrorizado, saltou da garupa acolchoada e subiu as escadas, de volta, uivando de susto.

- Não sabes o que perdes! - gritou-lhe o menino. - Eu também tinha medo, nos primeiros tempos, mas olha agora, Riki!

Cavaleiro e montaria atiraram-se à pesada porta da rua. Para espanto de Jean, esbarraram, não com o maleável obstáculo de carvalho complacente, de fechaduras que se derretiam, e grandes ferrolhos que diziam "sim, sim", girando suavemente nos gonzos; chocaram-se à inflexível barreira de uma voz firmemente cinzelada que cochichava: "... que ele adormeceu ..."

Sufocado pelo choque, dilacerado de alto a baixo, Jean percebeu a cruel consciência das duas palavras, "que ele, kiele kiele", cortantes como lâminas. Junto a elas, jazia a palavra "ador. . .me. . .ceu", cortada em três pedaços.

"Ador. . .me. . .ceu" repetiu Jean. Acabou-se o passeio a cavalo, eis o "ador. . .me. . .ceu" enrolado como um gato. Adeus. . . adeus..."

Não teve nem tempo de perguntar consigo a quem atirava aquele adeus. Tinha uma pressa horrível. Receava a aterrissagem. À nuvem, estafada, faltaram os quatro pés que jamais tivera; antes de se dispersar, em gotinhas frias, como um meneio de anca inexistente, atirou o cavaleiro ao leito laqueado e Jean tornou a gemer àquele contacto brutal.

- Dormias tão bem... - disse a voz de Dona Mamãe.

Que voz, pensou o garotinho, toda misturada de linhas retas e linhas curvas - uma curva e uma reta- uma linha seca, outra úmida. Jamais, oh!, jamais ele tentaria explicar tal coisa à Dona Mamãe.

Primeiro, porque ela não compreenderia; depois, porque é preciso não inquietar Dona Mamãe.

- Acordaste gemendo, meu querido, era alguma dor?

Ele fez sinal que não, agitando da direita para a esquerda seu indicador delgado, branco e bem cuidado. Aliás, o sofrimento ia-se acalmando. Tombar naquela caminha um tanto áspera era coisa a que, afinal, estava habituado. E que se podia esperar daquela grande nuvem balofa, com suas maneiras de grosseirona perfumada?

"Da próxima vez, pensou Jean, montarei a Grande Patinette". Assim chamava, nas horas de pálpebras fechadas e de véu interposto entre a clara lâmpada e o abajur, um imenso corta-papéis niquelado, tão grande que, em lugar de um m precisava de dois e mesmo três, para o seu qualificativo.

- Dona Mamãe, você quer empurrar a Grande Pat. . . quero dizer, a faca de papel, um pouco mais para baixo do abajur? Muito obrigado.

Jean virou a nuca sobre o travesseiro, preparando com sossego o seu próximo passeio. Seus cabelos louros eram cortados bem curto atrás, para evitar que se emaranhassem. O alto da cabeça, as têmporas e as orelhas eram cobertas de anéis de um louro suave, vagamente esverdeado, louro de lua hibernai, condizente com o verde-mar dos olhos e com o branco-pétala do rosto.

- Que lindo que ele é! - murmurava as amigas de Dona Mamãe. - Parece-se tanto com o Aiglon. A isto, Dona Mamãe sorria com desdém, sabendo que o Aiglon tinha os lábios grossos como os de sua mãe, a imperatriz, e teria invejado os lábios arqueados e afilados nos cantos que aumentavam a beleza de Jean... E ela dizia com altivez: "Sim, sim, tem qualquer coisa... talvez a testa... mas, louvado seja Deus, Jean não é tuberculoso!"

Aproximados abajur e corta-papel pela mão hábil de Dona Mamãe, Jean verificou, sobre a larga lâmina cromada, a presença de um reflexo rosado como neve à aurora, sombreada de azul - uma cintilante paisagem de hortelã. Depois, pousando a têmpora esquerda sobre o travesseiro firme, escutou, lá dentro, som de gotas e de fontes, produzido pelos fios de crina branca, sob o peso da sua cabeça. Entrecerrou os olhos.

- Mas, filhinho, está quase na hora do jantar - disse Dona Mamãe, hesitando.

O menino doente sorriu à mãe, com indulgência. Deve-se perdoar tudo aos que têm saúde. Aliás, estava ainda vagamente abalado pela queda. "Tenho tempo", pensou, acentuando o sorriso, com risco de ver Dona Mamãe - diante de certos sorrisos muito bem acabados, por demais carregados de uma serenidade à qual só ela sabia dar sentido - perder o controle e sair do quarto precipitadamente, dando um encontrão no batente da porta.

- Meu querido, se isso não te faz diferença, eu jantarei rapidamente na sala, sozinha, depois que tiveres acabado o teu jantar...

- Sim, sim - respondeu o pequeno indicador branco e condescendente, dobrando-se duas vezes.

"Nós sabemos, nós sabemos", disseram também as pálpebras bordadas de cílios, piscando duas vezes. "Sabemos o que é uma senhora Mamãe muito sensível, aos olhos da qual surgem num instante um par de lágrimas, como um par de pedras preciosas. .. Para as orelhas, há muitas pedras preciosas. Mas brincos de olhos, só Dona Mamãe é que os tem, quando pensa em mim. Será que ela não vai habituar-se comigo nunca? Como ela é pouco razoável..."

Dona Mamãe inclinava-se e ele se pendurou no seu pescoço, ritualmente, erguendo os braços livres de entraves. Ela, orgulhosa da carga, levantou aquele corpo delgado de criança crescida, o busto fino e as longas pernas, inertes agora, mas que sabiam estreitar e dominar os flancos de uma nuvem ameaçadora.

Depois, por um momento, Dona Mamãe contemplou sua obra graciosa e defeituosa, recostada num travesseiro duro, em forma de espaldar, e exclamou:

- Muito bem! A bandeja do teu jantar já vem vindo. Mas é bom eu apressar Mandore, que anda sempre atrasada.

Saiu outra vez.

"Ela sai, ela entra.. . Mais que tudo, ela sai. Não quer deixar-me, mas não cessa de sair do meu quarto. Vai enxugar seu par de lágrimas. Ela tem cem razões para sair do meu quarto e, se por acaso as razões faltassem, eu lhe forneceria mais mil... Mandore nunca se atrasa."

Virando a cabeça com precaução, olhou Mandore que entrava. Não era mesmo justo, não era inevitável que - barriguda e dourada, sonora a todos os impactos, harmoniosa por sua voz bonita e pelos seus olhos lustrosos como a preciosa madeira dos alaúdes - esta forte empregada respondesse ao nome de Mandore? "Não fosse eu, ainda se chamaria Angelina".

Mandore atravessou o quarto; e sua saia listada de amarelo e marrom, ao roçar pelos móveis, ia ressoando com amplas sonoridades de violoncelo que Jean era o único a perceber. Atravessando-a no leito pequenino, pousou a mesinha de pés curtos, coberta por uma toalha bordada, que sustinha a tigela fumegante.

- Chegou o jantar!

- O que é?

- Primeiro, a fosfatina, é claro! Depois... você vai ver...

Sobre todo o corpo recostado, o menino doente recebeu o consolo de um olhar capitoso, trigueiro, vasto, refrescante: "Que boa essa cerveja preta dos olhos de Mandore! Como ela é gentil comigo... Como são todos gentis em relação a mim... Antes se contivessem um pouco..." Esgotado, sob a carga da universal gentileza, fechou os olhos, reabrindo-os ao ouvir um tilintar de colheres. Colheres de sopa, colheres de mingau, colheres de poção. Jean não gostava de colheres, exceção feita de uma de prata, uma bizarra colher de cabo longo e retorcido que acabava numa rodela toda lavrada. "É um quebrador de açúcar, dizia Dona Mamãe. - E a outra ponta da colher, Dona Mamãe? - Não sei bem. Creio que era uma colher de absinto..." E, quase sempre, seu olhar resvalava para um retrato fotográfico do pai de Jean, o marido que ela perdera tão jovem: "Teu pai querido, Jean", e que Jean designava friamente, com palavras reservadas ao silêncio e ao segredo: "o cavalheiro pendurado lá na sala".

Além da colher de absinto - absinto, absinto, ab-santo - Jean não gostava senão de garfos, demônios quatro vezes cornudos, sobre os quais se empalavam a almôndega de carneiro, peixinhos convulsionados na fritura, um quadrado de batata com seus dois olhinhos de pepino, uma lua de damasco em quarto crescente, com seu granizo de açúcar.

- Jean, querido, abre o bico...

Obedeceu, fechando os olhos e engoliu um remédio quase insípido, não fosse por um passageiro, mas inconfessável desenxabimento que disfarçava o pior... Em seu vocabulário secreto, Jean chamava a esta poção de "ravina de cadáveres". Nada, porém, o faria arrancar a si estas sílabas medonhas, para atirá-las aos pés de Dona Mamãe.

Seguiu-se à inevitável sopa fosfatada, paiol mal--varrido, calafetado de farinha velha nos cantos. Mas a esta perdoava-se tudo, em atenção ao que boiava de irreal no seu caldo claro, ao sopro floral, ao perfume empoeirado das florinhas que Mandore comprava na rua, aos ramalhetes, para dar a Jean...

Depressa passou um pequeno naco de carneiro grelhado.

"Corre, carneirinho, corre, eu faço boa cara, mas desce logo ao meu estômago, inteirinho, que por nada no mundo te mastigo, ouço ainda balir a tua carne e não quero nem saber se estás côr-de-rosa por dentro!"

- Jean, você está comendo tão depressa hoje...

A voz de Dona Mamãe tombava lá do alto, da penumbra, talvez daquela cornija de estuque encaracolado, talvez do armário grande. .. Em Jean, uma certa e particular mansuetude permitia a Dona Mamãe atingir, lá em cima do armário, um clima igual ao da roupa branca da casa. Ela subia por meio de uma escada dupla e, depois de invisibilizar-se por trás do batente da direita, descia carregada de grandes lajes de neve, talhadas na própria altitude. Sua ambição limitava-se a esta colheita. Jean viu mais longe e mais alto, lança-se sozinho aos cimos cândidos, penetra num par ímpar de lençóis, reaparece na bem arredondada dobra de um par. E que vertigens, que escorregadelas entre guardanapos rígidos e adamascados; e sobre determinada serra de bordado engomado e cercaduras gregas, que roer de ramos de lavanda seca, de flores desfeitas, raízes de íris, grossas e cremosas...

Era de lá, que ele descia ao amanhecer, duro de frio, pálido em seu leito, débil e malicioso: "Jean!. .. Meu Deus, ele se descobriu de novo, dormindo! Mandore, uma bolsa d'água quente, depressa!" Bem baixinho, Jean congratulava-se por chegar sempre a tempo e, numa invisível página de um certo caderno escondido no recanto ativo e latejante do seu flanco, por ele chamado de "bolso do coração", anotava as peripécias da ascensão, a queda das estrelas e o tremeluzir alaranjado dos cimos roçados pela aurora...

- Se estou comendo depressa, Dona Mamãe, é porque tenho fome.

Sim, sim, Jean conhece todas as astúcias. Pois não é que às simples palavras, "tenho fome", Dona Mamãe enrubesce de alegria?

- Ah!, meu querido, se isso é verdade, sinto muito só te dar como sobremesa geléia de maçã. Mas eu recomendei a Mandore que pusesse um nada de limão e uma casquinha de baunilha para perfumar.

Resoluto, Jean enfrentou a geléia de maçã, acidulada senhorita de província que, como tantas outras, ao acercar-se dos quinze anos, olhava para aquele garoto de dez, com altivez e desdém. É verdade que recebia o troco. Não estava ele armado contra ela? Não claudicava àgilmente, arrimado no seu bordãozinho de baunilha? "Sempre curto demais, sempre, este bordão", murmurava ele à sua maneira inatingível...

Voltava Mandore, e sua saia barriguda, de listas largas, inflava-se de tantos gomos quanto os de um melão. Andando, ela fazia soar só para Jean, tzrummm, tzrummm, as cordas interiores que eram, a própria alma, a rica harmonia de Mandore...

- Já acabou de jantar? Com essa pressa, a comida volta. Você não costuma comer assim.

Dona Mamãe de um lado, Mandore de outro, as duas junto ao leito. "Que grandes!" Dona Mamãe, com seu vestidinho cor de vinho, toma pouco lugar. Mas Mandore, além da caixa de ressonâncias, tem duas alças arredondadas, as mãos à cintura, que a ampliam. Resoluto, Jean demoliu a geléia, dispersou-a no prato, relegou-a, em festões, para o friso dourado da louça e mais uma vez a questão do jantar ficou resolvida.

Há muito tempo descera a noite de inverno. Saboreando seu meio copo de água mineral - a água fininha, furtiva e leve que ele acreditava verde porque a bebia na sua taça verde-pálido - Jean calculava precisar ainda de um pouco de coragem para encerrar seu dia de doente. Viria outra vez a toilette da noite, os cuidados minuciosos e inelutáveis que requeriam o auxílio de Dona Mamãe e mesmo - tzrumm, tzrummm - a assistência sonora e alegre de Mandore; viria a escova de dentes, a luva de esponja, o sabão, tão gostoso, a água morna e mais o conjunto de precauções que preservavam os lençóis das gotas erradias; outra vez as ternas indagações maternais...

- Filhinho, assim não podes dormir; a encadernação do Gustave Doré, grande, está bem embaixo das tuas costelas, e esta ninhada de volumes pequeninos, com cantos pontudos, espalhados pela cama toda... Não queres que eu aproxime a mesa?

- Não, Dona Mamãe, assim mesmo está bom.

Acabada a toilette, Jean lutava contra a embriaguez do cansaço. Conhecia, porém, o limite de suas forças e não tentava escapar aos ritos preparatórios da noite, nem aos prodígios que, caprichosa, ela pudesse engendrar. Temia somente que a solicitude de Dona Mamãe prolongasse além do possível a duração do seu dia, arruinasse o edifício material de volumes, de móveis, um certo equilíbrio de luz e sombra mantido e acatado por Jean, e que lhe custara os últimos esforços até à hora extrema, dez horas. "Se ela ficar, se insistir, se quiser cuidar de mim depois que o ponteiro grande inclinar-se para a direita do XII, vou me sentir branco, mais branco, ainda mais branco, meus olhos vão se encovar e nem os não-obrigado-está-bem-Dona-Mamãe poderei mais responder, e para ela isto é absolutamente necessário e. .. e. .. vai ser terrível, ela vai soluçar..."

Sorriu à mãe e a majestade com que a doença assinala as crianças que atinge, nasceu-lhe numa dobra flamejante da cabeleira, desceu às pálpebras e fixou-se amargamente em seus lábios. Era a hora, em que Dona Mamãe desejaria abismar-se na contemplação de sua obra martirizada e encantadora...

- Boa noite, Dona Mamãe - disse a criança muito baixinho.

- Estás cansado? Queres que eu vá embora?

O menino fez mais um esforço, abriu bem seus olhos da cor do mar bretão e, em todos os seus traços, manifestou a vontade de ser belo e disposto; baixou corajosamente os ombros altos:

- Será que estou com cara de menino cansado? Diga, Dona Mamãe!

Ela respondeu só com um ar travesso e um sinal de cabeça, beijou o filho e foi-se embora levando consigo gritos de amor refreados, adjurações juguladas, litanias a implorar que o mal retrocedesse, que desatasse aquelas' pernas longas e fracas, aqueles quadris emagrecidos mas não disformes, e devolvesse ao sangue empobrecido seu livre curso pelas ramificações verdes" das veias...

- Aqui estão duas laranjas no prato. Não precisas de mim para apagar a luz?

- Eu mesmo apago, Dona Mamãe.

- Meu Deus, onde estou com a cabeça! Hoje não tomei tua temperatura.

Uma neblina interpôs-se entre o vestido grenat de Dona Mamãe e seu filho. Naquela noite, com mil precauções, Jean queimava em febre; tinha no côncavo das palmas da mão um foguinho aceso, nas conchas das orelhas, um wu-wu-wu batendo e, em volta das têmporas, fragmentos de coroa escaldante.

- Fica para amanhã cedo sem falta, Dona Mamãe.

- A pêra da campainha está bem ao alcance de tua mão. Tens certeza que não queres mesmo uma pessoa para fazer-te companhia, nas horas que ficas sozinho, sabes, uma dessas bonitas enfer...

A última parte da palavra foi estrebuchar numa dobra de obscuridade e Jean rolou com ela. "No entanto, era uma dobra pequenina", dizia ele, ao cair, censurando-se. Devo ter arranjado uma corcova enorme atrás do pescoço. Fiquei feito um zebu. Ma xeu bebi; é... eu bem que vi que Dona Mamãe não cebeu, não, que ela não percebeu cair nada. Estava muito ocupada com tudo o que leva na saia, de noite, quando me deixa: suas pequenas orações, as observações que deve comunicar ao médico, a grande tristeza que lhe dou, não querendo ninguém comigo de noite. .. Tudo isto que ela carrega de noite, arrepanhado na saia levantada e - pobre Dona Mamãe - que transborda e rola pelo tapete. .. Que hei de fazer para que compreenda que não sou infeliz? Ao que parece, um menino de minha idade não pode nem viver deitado, nem estar pálido e privado de suas pernas, nem sentir dores - sem ser infeliz. Infeliz... infeliz eu era ainda quando me levavam a passear na cadeira de rodas. Inundavam-me com uma chuva de olhares. Eu me encolhia para que me atingissem um pouco menos. Tombavam como granizo os "Que bonitinho!" e os "Que pena!"... E eu, à guisa de alvo. Agora, de desgraça, só as visitas do primo Charlie, com seus joelhos esfolados, seus sapatões ferrados e essa palavra, boyscout, metade de aço e metade de borracha, com que ele me esmaga... E essa menina bonita que nasceu no mesmo dia que eu e a quem chamam, ora minha irmã de leite, ora minha noiva. Está aprendendo bailado. Ao me ver aqui deitado, alça-se no bico dos pés e diz: "Olha como eu faço". Mas isto são amolações; chega uma hora, à noite, em que as amolações adormecem. É a hora em que tudo está bem."

Apagou a luz, e plàcidamente, assistiu surgir em volta de si sua noturna companhia, o coro das formas e das cores. Esperou a eclosão sinfônica e a turba que Dona Mamãe chamava sua solidão. Retirou de sob o braço a pêra da campainha - brinquedo de doente, todo esmaltado de luar - e pousou-a sobre a mesa de cabeceira. "Ilumina, agora!" ordenou ele.

Ela não obedeceu de pronto. A noite, lá fora, não estava tão negra que não se distinguisse o galho extremo de um castanheiro da avenida, desfolhado, pedindo socorro, detrás do vidro. Sua ponta intumescida afetava a forma de um débil botão de rosa. "Sim, vais tentar outra vez enternecer-me, dizendo que és o broto da estação próxima. Mas, bem sabes como sou severo para com tudo o que fala do ano que vem. Não entres. Some. Desaparece! Como diria meu primo : vai saindo..."

Sua pureza ergueu-se em toda a sua altura, para estigmatizar com mais um sinal aviltante, o primo dos joelhos escalavrados e violáceos e seu vocabulário esmaltado de "mas é, hein?" "meto o pau, para mim é sopa, ah! fraquinho!" e sobretudo de "imagine!" e de "compreende!" - como se o pensamento e a agudeza de espírito pudessem deixar de fugir apavorados, com todas as suas delicadas pernas de grilos sapientíssimos, ante semelhante menino calçado de pregos e barro seco...

Só à vista do primo Christian, Jean limpava os dedos no lenço como para livrá-los de uma areia grosseira. Pois Dona Mamãe e Mandore, interpostas entre o menino e as leituras de baixa espécie, haviam--lhe feito a graça de só conhecer e amar dois luxos: a delicadeza e o sofrimento. Protegido, precoce, prontamente ele se apoderara dos hieróglifos da tipografia, e saíra pelos livros afora tão loucamente como cavalgava nuvens, forçando paisagens inscritas sob as superfícies polidas ou reunindo em torno de si tudo o que, para os privilegiados como ele, secretamente povoa o ar.

Deixara de se servir da caneta de prata gravada com suas iniciais desde o dia em que sua caligrafia amadurecida e veloz enchera de surpresa e, por assim dizer, ofendera o médico de mãos frias: "Isto então é caligrafia de criança, minha senhora? - Sim, sim, doutor, meu filho tem já uma escrita muito segura..." E os olhos de Dona Mamãe pediam desculpas. "Isso não é perigoso, ao menos, doutor?"

Do mesmo modo, continha-se para não desenhar, temendo as traições, a loquacidade de algum croquis, pois, tendo esboçado o retrato de Mandore, com todo o seu teclado de ressonâncias interiores, e a silhueta de um relógio de alabastro galopando velozmente sobre quatro colunas, e mais o cão Riki, nas mãos do cabeleireiro de cães, penteado à 1'Aiglon, como ele próprio, Jean amedrontara-se com a semelhança de seus ensaios e, prudentemente, rasgara suas primeiras obras.

- "Meu jovem amigo, você não desejaria um álbum com lápis de cor? Distrai e é um brinquedo apropriado para sua idade." A esta sugestão, que julgara extramedical, Jean respondera apenas com um olhar apertado entre os cílios, olhar grave e viril que media de alto a baixo o médico oferecedor de conselhos. "Não seria o barbeiro, meu amigo, que se permitiria dizer semelhante coisa." Não perdoava, ao médico, ter ousado interrogá-lo, certo dia, longe da presença materna: "E por que diabo você chama Dona à sua mãe?" Para dar resposta, puseram-se de acordo a voz fraca e musical e um olhar irritado e másculo: "Não imaginava que o diabo tivesse algo a ver com isso."

O gentil ceifador de cabelos desincumbia-se de sua missão de outro modo, contando a Jean sua vida domingueira. Todos os domingos, ia pescar nos arredores de Paris. Dando uma cintilante volta com suas tesouras, ensinava de que jeito se atira longe a rolha com a isca. E Jean até fechava os olhos sob o frescor das gotas d'água que se iam ampliando em rodelas, ao cair, quando o pescador erguia vitoriosamente a linha carregada...

- Quando o Sr. sarar, Monsieur Jean, levo-o comigo para a beira do rio...

- Sim, sim - concordava Jean de olhos fechados.

"Que necessidade têm eles todos de me ver curado? Eu estou à beira do rio. De que me serviria um perxão do tamanho de sua mão ou uma sôlha que nem sua faca de papel?"

- Barbeiro, meu amigo, seja gentil, conte mais...

E era então ouvir a história das borboletas crepusculares, coladas ao arco de uma pequena ponte, isca improvisada que permitira capturar "um montão" de trutas, com a ajuda de uma vara de aveleira, tirada de uma cerca, e de três pedaços de barbantes amarrados um ao outro...

Sob o acompanhamento provocante e fresco das tesouras chilreantes, a história começava:

-- O senhor vai até um miserável braço de rio, estreito como minha coxa, mas que se alarga à medida que atravessa o prado. Vê então dois-três salgueiros juntos, um pouco de mato de corte: é ali...

"É ali mesmo", repetia Jean, consigo: "Bem sei que é ali".

Desde o primeiro dia, Jean rodeara os dois-três salgueiros de grandes espigas de agrimônia eupatória, arrancados do álbum botânico, e de cânhamos de flores côr-de-rosa, esse mesmo que atrai e adormece crianças cansadas e borboletas. O salgueiro mais velho fazia caretas só para Jean, com sua cara monstruosa e podada, debaixo da coroa de convolvuláceas brancas. Um peixe saltando, partia o espelho da água do rio, dois peixes saltando... Ouviu-os o gentil barbeiro, ocupado com suas iscas:

- Estão caçoando de mim, esses aí... Já os apanho.

- Não, não - protesta Jean - fui eu quem atirou duas pedrinhas n'água...

A raineta canta e a tarde imaginária passa.. .

E sonhava o menino: "A raineta canta, quando ela se escreve com a e está sentada, invisível, na sua jangada de nenúfar. A outra raineta, a cinzenta, pende redondinha de um galho de macieira - e não canta".

Com o sonho, esfurnava-se rio, prado e ceifador de mechas douradas, deixando, na fronte de Jean, uma franja loura de cabelos ondulados, um doce e banal perfume.. . Acordado, o menino ouvia, vindo da sala, um sussurro, um colóquio longo e abafado entre Dona Mamãe e o doutor, de onde fugia uma palavra que, buliçosa e eriçada, vinha em busca de Jean: a palavra "crise". As vezes, vinha toda cerimoniosa, feminina, adornada para a distribuição dos prêmios, com um h atrás da orelha e um y no corpete: "Chryse, Chryse Saluter". "Verdade? É verdade?" dizia, ansiosa, a voz de Dona Mamãe. "Eu disse: talvez", replicava a voz do doutor, vacilante e mal equilibrada numa perna só. "Uma crise salutar, mas dura..." Chryse Saluter-Masdura, jovem crioula da América tropical, graciosa em seu vestido branco com babados.

O ouvido sutil da criança recolhia também o nome de outra pessoa, que certamente convinha manter em segredo. Nome incompleto, parecido com Alyzie Effanti, Lysie Infantil; e ele acabara acreditando que se tratava de uma meninazinha também acabrunhada por uma dolorosa imobilidade, dotada de duas longas pernas inúteis, e de quem se falava à parte para não lhe provocar ciúmes...

O galho extremo do castanheiro, obtemperando à ordem recebida, naufragara dentro da noite com a mensagem da primavera que viria. Surda a uma segunda exigência de Jean, a campainha em forma de pêra recusava-se a iluminar, com seu fogo opalescente e suavemente delimitado, a mesa de cabeceira com a garrafa de água mineral, o suco de laranja, a grande faca de papel cromada, que incubava sua aurora alpestre, o relógio míope de cristal convexo e o termômetro ... Nenhum livro sobre a mesa esperava a escolha de Jean. Os textos impressos, fossem quais fossem seu peso e formato, dormiam fechados ou, abertos, velavam na mesma cama que o menino doente. Uma encadernação grande pesava às vezes como um tijolo, sobre suas pernas irrigadas por uma vida tão avara - e ele não se queixava.

Com os braços ainda válidos, tateou em volta de si trazendo de volta algumas brochuras, esfarrapadas e mornas. De sob o travesseiro, um volume antigo dardejou o chifre amigo. Amontoadas como almofadas, as brochuras ajeitaram-se de encontro à pequenina anca do garoto magro e a face infantil e terna encostou-se a uma encadernação de vitela loura que datava de cem anos atrás. Sob a axila, Jean verificou a presença dura de seu companheiro favorito, um volume troncudo como um paralelepípedo, rezingueiro e robusto, que achava o leito suave demais e, geralmente, ia acabar a noite no chão, em cima do tapete branco de pele de cabra.

Como bons amigos, encaixavam-se ângulos de papelão, covas, cavidades e reentrâncias de uma frágil anatomia. A machucadura passageira disfarçava a pungência da dor crônica. Certos supliciozinhos voluntários, infligidos entre a orelha e a espádua pela vitela loura e chifruda, deslocavam e amenizavam os tormentos suportados pela mesma região e pelas costas, míseras e pequeninas, aladas de omoplatas salientes. .. "Que é isto aqui?" perguntava Dona Mamãe. "Parece um golpe. Não posso compreender como ..." De boa-fé, a criança machucada pensava um instante, e depois respondia consigo mesma: "Aqui... ora, vejamos, é isso mesmo... Foi que não desviei daquela árvore... Foi aquele telhadinho onde apoiei os cotovelos para ver voltarem os carneiros... Foi aquele ancinho grande que me caiu na nuca enquanto eu bebia água na fonte... E ainda bem que Dona Mamãe não viu, no canto de meu olho, o cortezinho, o sinal do bico daquela andorinha em que esbarrei, no ar... Não tive tempo de desviar, e ela era dura que nem uma foice. Também o céu é tão pequenino ..."

O rumor das suas noites erguia-se, esperando e até familiar, variando conforme os sonhos, a fraqueza, a febre ou a fantasia de um dia que Dona Mamãe acreditava tristemente semelhante a outros dias. Esta nova noite em nada se assemelhava à noite de ontem. A obscuridade é rica, possui incontáveis tons de negro. "Esta noite, tudo é violeta. Dói-me... dói-me, o quê? A testa. Não. .. que digo? São sempre as costas. Mas não, é um peso, são dois pesos que tenho suspensos aos quadris, dois pesos em forma de pinha como os da balança da cozinha. E você? Ilumina, afinal, ou não?"

Para obrigar a pêra de esmalte a obedecer-lhe, apoiou a face sobre a encadernação de vitela loura e estremeceu ao senti-la tão fria: "Se ela está gelada é porque estou queimando de febre." E não escorria luz nenhuma da fruta de esmalte à mesa de cabeceira. "Que terá ela? E eu, que terei eu, que hoje à tarde a porta da entrada me resistiu?" Estendeu a mão pelo ar noturno e povoado e, sem tatear, encontrou o fruto tenebroso. E a luz, caprichosa, mudando de fonte, surgiu no carão míope do relógio esférico. "Não te metas nisto", murmurou Jean. Contenta-te com dizer as horas."

Mortificado, o relógio apagou-se e Jean soltou um suspiro de poderio satisfeito. Mas, dos flancos endurecidos, não obteve mais que um gemido. Logo pôs-se a mugir um vento que ele reconheceu entre todos, o vento que rompe os pinheiros, que descabela os lariços, que ergue e desfaz as dunas; as imagens interditas ao comum dos sonhos, que não transpõem a franja das pálpebras fechadas, insurgiram-se, quiseram saltar livres, aproveitar aquele quarto sem limites. Algumas, estranhamente horizontais, quadriculavam a multidão vertical das que se tinham erguido de um salto. "Visões escocesas", pensou Jean.

Abalado pela ascensão vibrante da Grande Febre, seu leito tremia levemente. Sentiu-se três ou quatro anos mais leve e o medo, que quase não conhecia, o solicitou. Pouco faltou para que chamasse: "Socorro, Dona Mamãe, estão levando seu filhinho".

Nem nas suas cavalgadas, nem no rico domínio dos sons mais estranhos - sons corcundas, portadores de ampolas ressonantes nas cabeças e sobre as suas costas de besouros, sons pontudos, com focinho de lagosta - em parte alguma o menino vira, suportara, formara um enxame igual, degustado pelo ouvido como se fosse boca, descascado pelos olhos doloridos e encantados. "Socorro, Dona Mamãe, socorro! Você bem sabe que eu não posso andar! Só sei voar, nadar, rolar de nuvem em nuvem..." No mesmo instante, algo de indizível, algo de esquecido, moveu-se em seu corpo, muito longe, numa distância infinda, na extremidade última de suas pernas inúteis, uma desordem de formigas esparsas e perdidas. "Socorro, Dona Mamãe!"

Outra alma, porém, cujas decisões não dependiam nem da impotência nem dos benefícios maternais, fez um altivo sinal, impondo silêncio. E um constrangimento feérico manteve Dona Mamãe do lado de lá, no lugar em que ela esperava, modesta e ansiosa, mostrar-se tão valente quanto seu menino.

Por isso ele não gritou. Também os desconhecidos, fabulosos estranhos começavam já seu rapto. Surgindo de toda parte, derramaram-lhe quenturas e gelo, o suplício melodioso, a cor como curativo, a palpitação como maça, e ele, já voltado para fugir imóvel para a mãe, optou de súbito e atirou-se ao sabor do vôo, através de brumas e meteoros, de raios que o acolheram macios, fecharam-se, abriram-se e, quase ao sentir-se perfeitamente feliz, ingrato e alegre, desabrochado em sua solidão de filho único, em seus privilégios de paralítico e órfão, percebeu que uma fissura pequenina, uma fissura triste e cristalina, separava-o de uma felicidade cujo nome côncavo e dourado ele ainda não aprendera - a morte. Fissura pequenina, triste e leve, vinda talvez dalgum planeta para sempre abandonado... O som claro e pungente, ligado ao menino que devia morrer, erguia-se tão fiel que a evasão deslumbrante em vão o procurava distanciar.

Talvez tenha durado muito tempo sua viagem. Mas, libertado do sentido da duração, ele só julgava sua variedade. Acreditou freqüentemente seguir um guia indistinto e também perdido. Então, gemia por não poder assumir uma responsabilidade de piloto, e ouvindo seu próprio gemido de orgulho abatido ou de fadiga imensa, abandonava seu périplo, deixava a esteira de alguma rajada fusiforme e se refugiava, encolhido, a um canto.

Ali o alcançava a angústia de habitar um país sem cantos, sem substâncias angulosas, uma corrente de ar escuro, uma noite em cujo seio ele já não passava de garotinho perdido, em prantos. Levantava-se depois sobre pernas numerosas, subitamente múltiplas e promovidas ao grau de andas, que uma dor cortante ceifava em feixes crepitantes. Depois soçobrava tudo e só o vento cego informava-o da rapidez de sua carreira. Ao passar de um continente familiar a um mar desconhecido, surpreendia palavras de uma língua que se admirava de conhecer:

- O ruído do copo quebrado me acordou...

- A senhora está vendo como ele estala os lábios. Não acha que quer água?

Gostaria de saber o nome daquela voz. "A senhora, a senhora... que senhora?" Mas já a velocidade sorvia as palavras e sua lembrança.

Em certa noite pálida, ao sabor de uma pausa que lhe trouxe vibrações às têmporas, colheu assim algumas sílabas e as quis repetir. A parada brusca o pusera, dolorosamente, em face de um objeto consistente e ríspido, interposto entre dois mundos nobres e desabitados. Um objeto sem destino, finamente listado, eriçado de pequenos pontos e misteriosamente cúmplice - como ele descobriu mais tarde - de horríveis "meu jovem amigo". "É uma. .. uma. .. eu sei... manga..." E na mesma hora, alado e de ponta cabeça, atirou-se de volta ao caos que o sossegava.

De outra vez, viu uma frágil mão. Dotada de dedos afilados, a pele um pouco gretada e com manchas brancas nas unhas, ela repelia certa massa maravilhosa, toda zebrada, que corria do fundo do horizonte. Jean pôs-se a rir. "Pobre mãozinha, a massa engole-a de vez; ora vejam, uma massa toda listada de amarelo e preto, com um ar tão inteligente!" A mãozinha frágil lutava com todos os dedos separados, e as riscas paralelas começavam a distender-se, a divergir e vergar como barrotes moles. Entre eles, um grande hiato se abriu engolindo a mão frágil, que Jean surpreendeu-se a lamentar. Este sentimento retardava-lhe a viagem e, com um esforço, ele se lançou de novo. Mas carregava consigo a saudade, comparável ao tilintar de um copo quebrado há muito, muito tempo atrás. Daí por diante, quaisquer que fossem os redemoinhos e abismos embalados por inofensivas vertigens, sua viagem foi perturbada por ecos, sonoridades de pranto, a preocupada tentativa do que se assemelhava a um pensamento, e por um enternecimento importuno.

Um ladrido seco rompeu subitamente os espaços e Jean murmurou: "Riki..." Ao longe, ouviu uma espécie de soluço que repetia: "Riki! Madame, ele disse "Riki!" Outro balbucio disse também: "Ele disse Riki! ele disse Riki..."

Uma força pequenina, tremulante e dura, da qual percebeu a dupla pressão sob as axilas, parecia querer suspendê-lo para algum píncaro. Sentindo-se machucado, resmungou. Se pudesse transmitir suas instruções à força pequenina e aos seus ângulos, ensinar-lhe-ia que não se trata assim um viajante notável, que para ele existem veículos imateriais, corcéis não ferrados, trenós capazes de traçar sulcos de sete cores ao longo do arco-íris... Que ele só aconselha em ser molestado por... por elementos dos quais só a noite desencadeia e controla o ímpeto. Este ventre de passarinho, por exemplo, recém-pousado contra a sua face, não tem direito algum... E, aliás, não é um ventre de passarinho, pois se não é coberto de plumas, mas apenas orlado por uma mecha de pêlos longos.. . "Seria uma face", pensou ele, "se no mundo existisse outra face que não fosse a minha. .. Quero falar, quero mandar embora esta.. . esta falsa face... Proíbo que me toquem, proíbo..."

Reunindo forças para falar, aspirou ar pelas narinas. Com o ar, penetrou o prodígio, o encantamento da memória, o cheiro de uma cabeleira, de uma epiderme que ele esquecera do outro lado do mundo, e que precipitava nele uma corrente de lembranças torrenciais. Tossiu, lutando contra alguma coisa que crescia e que lhe atava um nó na garganta, mitigava uma sede acocorada ao canto seco dos seus lábios, salgava suas pálpebras transbordantes, e encobria misericordiosamente sua volta ao duro leito de aterrissagem ... Sobre uma extensão sem nome, uma voz falou, repercutindo ao infinito: "Meu Deus, ele está chorando. . . está chorando..." E a voz soçobrou numa espécie de tormenta donde surgiam sílabas desconexas, soluços, chamadas a alguém presente, escondido. . . "Depressa, venha depressa".

"Que barulhada, mas que barulhada", pensava o menino, censurando. Mas, inconscientemente, ia apertando cada vez mais sua face à suave superfície lisa, limitada por uma cabeleira e bebia ali, pérola por pérola, um orvalho amargo. .. Voltou a cabeça e encontrou no caminho um vale estreito, um ninho moldado bem para o seu tamanho. Foi o tempo de, consigo mesmo, dar-lhe um nome: "o ombro de Dona Mamãe" e perdeu os sentidos, ou antes, adormeceu...

Voltou a si para ouvir a própria voz, leve e um tanto zombeteira. "Então, donde vem, Dona Mamãe?"

Ninguém lhe respondeu mas a delícia de um gomo de laranja escorregado entre seus lábios sensibilizou-o para o retorno e para a presença daquela que buscava. Soube-a inclinada para ele, na doce e submissa atitude que lhe vergava o talhe e fatigava o dorso. Depressa esgotado, calou-se. Mas já o assaltavam mil cuidados e ele venceu a fraqueza para satisfazer o mais urgente: "Vocês me trocaram o pijama, Dona Mamãe, enquanto eu dormia? Ontem quando eu deitei trazia um azul e este é rosa."..

- Madame, é incrível! Ele se lembra que vestia um pijama azul na primeira noite em que...

Desprezando o resto da frase que uma voz grande e quente acabava de cochichar, ele se entregou às mãos que lhe retiravam a roupa umedecida. Mãos destras como vagas, entre as quais ele se embalava sem peso nem desígnio.. .

- Está ensopado... Enrole-o no roupão grande, Mandore, sem vestir as mangas...

-- O calorífero vai bem, Madame, não tenha receio. Coloquei uma bolsa quente agora mesmo. Ele está ensopado, de verdade...

"Se soubessem donde eu venho... Com menos a gente se molha. .." pensava Jean. "Gostaria muito de cocar as pernas, ou então, que me tirem estas formigas ..."

- Dona Mamãe...

Recolheu o mutismo, a imobilidade vigilante que eram a resposta de D. Mamãe, à espreita:

- Por favor, quer. . . quer cocar um pouco os meus tornozelos, por que as formigas...

Do fundo do silêncio, alguém murmurou, com um estranho respeito:

- Ele sente formigas. .. Falou em formigas. ..

Apertado no roupão grande, tentou dar de ombros. E por que não? Falara em formigas. E era assim tão espantoso dizer Riki e dizer formigas? Um sonho transportou-o, mais leve, aos confins da vigília e do sono, mas um roçar de pano o fez voltar. Reconhecendo, por entre os cílios, bem próxima, a manga odiosa, com seu desenho azul e seus pelinhos de lã, o ressentimento devolveu-lhe forças. Recusou-se a ver mais, mas uma voz veio abrir-lhe as pálpebras cerradas, uma voz que dizia: "Então, meu jovem amigo..."

"Enxoto-o daqui, enxoto-o", gritou Jean, consigo mesmo. "Ele e sua manga, e seus jovem-amigo e seus olhos pequeninos, eu os maldigo, enxoto-os!" Extenuava-se de irritação e ofegava.

- Então, que é que há? Quanta agitação... Ora, ora...

Veio a mão pousar-se na cabeça de Jean e ele, na impossibilidade de revoltar-se, esperou que um olhar seu fulminasse o agressor. Mas, sentado à cabeceira, no lugar de Dona Mamãe, encontrou apenas um bom sujeito meio pesadão, meio careca, cujos olhos se umedeceram ao cruzar os seus.

- Olha o meu garoto... o meu garoto... Então? É verdade que sente formiga nas pernas? É mesmo? Pois é gentil de sua parte, realmente muito gentil... Não quer meio copo de limonada? Não era capaz de tomar uma colher de sorvete de limão, ou um gole de leite?

A mão de Jean abandonou-se ao calor de uma palma, entre dedos gorduchos e muito macios. Murmurou um consentimento confuso, sem que ele mesmo pudesse distinguir se recusava ou se desejava o sorvete, a bebida ou o leite... Entre olheiras enormes e sobrancelhas escuras, seu olhar, empalidecido e quase cinzento, saudava dois olhinhos de um azul alegre, dois olhinhos piscadores, úmidos e ternos...

O resto daquele tempo novo foi apenas uma aparência de instantes desordenados, uma mistura de so-nos breves, longos, herméticos, de sobressaltos precisos e estremecimentos vagos. O bom do médico dissipou-se numa festa de ha-ham, ha-ham, de uma tosse forte e satisfeita, de frases como: "Felizmente, minha senhora! Estamos salvos!" - ruídos todos de um júbilo tamanho que Jean, se não estivesse derretido de indolência, teria perguntado o que acontecera naquela casa de tão feliz.

As horas passavam inexplicavelmente, compassadas por frutas em geléia e leite com baunilha. Um ovo quente soergueu sua pequenina tampa, revelando seu botão dourado. A janela entreaberta deixava passar um sopro capitoso, um vinho de primavera. . .

O gentil barbeiro não tivera ainda licença para voltar. Desciam pela testa e pelo pescoço de Jean cabelos de menina e Dona Mamãe arriscou atar-lhes uma fita rosa que o filho repudiou com um gesto de rapaz ofendido...

Detrás dos vidros, dia a dia, o ramo de castanheiro intumescia seus brotos modelados como botões de rosa e, pelas pernas de Jean, corriam formigas, munidas de pequenas mandíbulas beliscantes. "Desta vez agarrei uma, Dona Mamãe!" Mas era somente a sua epiderme transparente que ele beliscava e a formiga fugia para o interior de uma ramagem de veias da cor da relva primaveril. No oitavo dia dos tempos novos, uma grande écharpe de sol tendo-se atravessado sobre seu leito, Jean se comoveu mais do que podia suportar e decidiu que naquela noite mesma a febre quotidiana lhe daria aquilo que há uma semana esperava em vão, aquilo que a fadiga profunda e os sonos, talhados num bloco de negro repouso, afastavam dele: seus companheiros sem rosto, suas cavalgadas, seus acessíveis firmamentos, sua segurança de anjo em pleno vôo...

- Dona Mamãe, por favor, eu queria meus livros ...

- Meu querido, o doutor disse que. . .

- Não é para ler, Dona Mamãe, é para eles se habituarem de novo comigo...

Sem dizer palavra, Dona Mamãe, apreensiva, trouxe os tomos esfarrapados, o grande tijolo mal encadernado, a pelica loura e macia como pele humana, uma Pomologia pintada com frutas bochechudas e o Guérin manchado de leões de cara chata, de ornitorrincos, sobrevoado por coleópteros do tamanho de ilhas...

Vinda a noite, lastreado de alimentos enfeitiçadores, aos quais concedia o interesse e a avidez das crianças ressuscitadas, fingiu-se arrasado de sono, murmurou desejos, uma canção vaga e maliciosa que recentemente improvisara. Espreitou a partida de Dona Mamãe e Mandore e, assumindo o comando de sua jangada de in-fólios e atlas, embarcou. Detrás do galho de castanheiro, uma lua jovem denunciava que, graças à estação, os brotos iam-se abrir em folhas digitadas.

Sem auxílio, sentou-se na cama, rebocando as pernas, pesadas ainda e percorridas por formigas. Ao fundo da janela, na água celeste da noite, banhavam-se juntas a lua recurva e o reflexo indistinto de um menino de longos cabelos a quem ele dirigiu um chamado. Levantou o braço e o outro menino, docilmente, repetiu o gesto de ultimação. Meio embriagado de poderio e maravilhas, convocou seus comensais das horas privilegiadas e cruéis, os sons visíveis, as imagens tangíveis, os mares respiráveis, os ares nutritivos, as asas que desafiavam pés, os astros que riam...

Convocou principalmente certo garotinho fogoso que, secretamente, estourava de alegria ao deixar a terra, enganava Dona Mamãe e - senhor de sua alegria e de suas dores - mantinha-a prisioneira de cem ternas imposturas...

Depois esperou, mas não veio nada. Não veio nada naquela noite nem nas seguintes, nada, nunca mais. Desertara do corta-papel cromado a paisagem de neves rosadas, e jamais o menino voltaria a planar numa aurora de pervincas, entre os cornos agudos e os belos olhos redondos de um rebanho azulado pelo orvalho... Nunca mais Mandore, toda amarela e marrom, voltaria a ressoar com todas as cordas - tzroumm, tzroumm - zumbindo sob a vasta roupagem sonora. E a serra adamascada que se amontoava lá no armário grande, seria possível que recusasse a uma criança válida, em breve, os prazeres que consentia ao menino entrevado, nos declives de imaginárias geleiras?

Há um tempo em que é preciso aplicar-se em viver. Há um tempo em que se deve renunciar à morte em pleno vôo. Com um aceno, Jean disse adeus ao seu reflexo de cabelos de anjo, e a saudação foi-lhe devolvida do fundo de uma noite terrestre e despojada de prodígios - a única noite permitida às crianças livres do abraço da morte, às que adormecem de bom grado, curadas e desapontadas.

 

                         A MULHER DO FOTÓGRAFO

Quando aquela a quem chamavam "a mulher do fotógrafo" resolveu pôr fim aos seus dias, aplicou na realização de seu intento uma grande boa-fé, muito cuidado e uma inexperiência total em tóxicos; e graças a Deus, falhou. Com isso, o prédio inteiro se rejubilou e eu também, apesar de não ser do bairro.

Mme Armand - do atelier Armand, fotografia artística e ampliações - habitava no mesmo andar que uma enfiadora de colores de pérolas e era raro eu não encontrar a amável "mulher do fotógrafo" quando ia à casa de Mlle Devoidy. Pois naqueles tempos antigos, como todo mundo, eu tinha um colar de pérolas. Uma vez que todas as mulheres desejavam usar pérolas, houve pérolas para todas as mulheres e todas as bolsas. Que enxoval de casamento teria ousado passar sem "uma volta"? A mania começava com o presente de batizado, um fio de pérolas do tamanho de grãozinhos de arroz. De lá para cá, moda nenhuma apresentou exigência semelhante. A partir de um milheiro de francos, comprava-se um colar "verdadeiro". O meu custara mil francos, o que quer dizer que não chamava a atenção. Mas era bem vivo e tinha um alegre oriente, testemunha da sua e da minha boa saúde. Não foi por capricho que o vendi, durante a primeira grande guerra.

Para renovar seu fio de seda, eu não esperava que a necessidade se fizesse sentir. O enfiá-lo servia--me de pretexto para visitar Mlle Devoidy, conterrânea minha, à distância de algumas paróquias. De vendedora nas "Aux mille parures", onde tudo era falso, ela passara a enfiadeira de "verdadeiros". Era uma solteirona de mais de quarenta anos que, como eu, conservava o sotaque de nossa terra; agradava--me, além disso, por causa de um humour reticente que, do alto de uma honestidade meticulosa, zombava de muita coisa e muita gente.

Quando subia ao seu apartamento, eu dizia um bom dia amável à mulher do fotógrafo que, muitas vezes, encontrava de pé à soleira de sua porta escancarada, diante da porta sempre fechada de Mlle Devoidy. A mobília do fotógrafo transbordava para o patamar, começando por um "pé" daqueles bem antigos, um pé de máquina fotográfica de bela nogueira com veios, molduras e, ainda por cima, tríplice. Seu volume e caráter de imutabilidade lembravam-me aquelas roscas que, por volta da mesma época, nos aposentos decorados com algum gosto artístico, eram postas a suster alguma estatueta grácil. Fazia-lhe companhia uma cadeira gótica que servia de acessório nas fotografias de primeira comunhão. O nicho de vime, o lulu empalhado e o par de redes caro às crianças vestidas à marinheira, completavam o depósito de acessórios expulsos do atelier.

Reinava neste patamar terminal um cheiro incurável de pano pintado. No entanto, não era de ontem a pintura do pano de fundo reversível, em camaieu cinza sobre cinza. Uma das faces representava uma balaustrada orlando um parque inglês, e a outra, um mar pequenino, limitado ao longe por um porto indistinto, com a linha do horizonte pensa para a direita. Estando freqüentemente aberta a porta, eu via a mulher do fotógrafo sempre plantada contra o fundo tempestuoso desse mar enviesado. Presumia, vendo-lhe um vago ar de expectativa, que vinha respirar a frescura do último patamar ou espiar se subia algum freguês. Mais tarde, soube que me enganava. Eu entrava no apartamento fronteiro e Mlle Devoidy estendia-me uma de suas mãos secas, agradáveis, infalíveis, que ignoravam a pressa ou o tremor, mãos que jamais deixavam cair uma pérola, um carretel ou uma agulha e que, com um torcida firme dos dedos, engomavam a ponta de um fio de seda, passando-o sobre a meia-lua de cera virgem, e enfiavam-no pelo fundo de uma agulha mais fina que qualquer agulha de costurar. ..

De Mlle Devoidy, o que eu vi melhor, apanhado no círculo de luz debaixo do abajur, foi o busto com seu colar de coral sobre a gola engomada e branca e seu sorriso de zombaria contida. Possuía um rosto borrifado de sardas, meio chato e que mais servia de moldura e contraste para os olhos, que eram de um castanho de aventurina, penetrantes, pontilhados de ouro e desnecessitados de óculos ou lentes, pois chegavam a contar até essa poeira de pérolas chamada semente, com que se compõem torsades e échctveaux insípidos como miçanga branca, e denominados bayadères.

Em seu estreito alojamento, Mlle Devoidy trabalhava no primeiro aposento e dormia no segundo, que precedia a cozinha. Ã entrada, a porta dupla fazia de antecâmara minúscula. Quando um visitante batia ou tocava a campainha, Mlle Devoidy, sem se levantar, gritava:

- Entre! A chave gira para a esquerda!

Teria eu pela minha conterrânea um princípio de amizade? Com toda a certeza, gostava de sua mesa profissional, forrada de feltro verde como um bilhar, debruada como mesa de brídge e sulcada de canaizinhos paralelos ao longo dos quais a enfiadeira arrumava e calibrava os colares, auxiliando-se com pinças delicadas, dignas de. tocar as mais preciosas matérias: a pérola e a asa da borboleta morta.

Era amiga também das particularidades e surpresas de um ofício que exigia dois anos de aprendizagem, aptidões manuais e o hábito um pouco desdenhoso de lidar com jóias. O delírio do amor às pérolas, que tanto tempo durou, permitia à experimentada enfiadeira trabalhar em casa e à vontade. Quando Mlle Devoidy me dizia, escondendo um bocejo: "Fulano e Cicrano trouxeram-me ontem montões, foi preciso ficar compondo até duas da manhã..." minha imaginação fazia crescer feèricamente os "montões" e elevava o verbo "compor" à altura de um trabalho de espírito.

Desde a tarde, e no inverno também durante as manhãs escuras, uma lâmpada de mesa, dessas que se pode orientar à vontade, permanecia acesa. Sua luz forte varria todas as sombras da mesa de trabalho, na qual Mlle Devoidy não admitia nem o menor vaso de flores, caixinha ou bibelô capaz de esconder uma pérola perdida. Até mesmo as tesouras pareciam fazer-se chatas. Salvo este cuidado, que mantinha a mesa num estado de nudez estrelada de pérolas, jamais surpreendi em Mlle Devoidy o menor sinal de desconfiança. Colares e sautoirs jaziam desmembrados sobre o tapete verde como apostas desprezadas.

- Não está com muita pressa? Então arrumo-lhe um lugarzinho. Divirta-se com o que anda por aí, enquanto enfio seu colar. Então, esta fieira está lhe dando muito trabalho? Vai ser preciso usar uma agulha. Ah! a senhora não aprenderá nunca...

Enquanto zombava de mim, incumbia o seu sorriso de recordar-me nossa origem comum: uma aldeia cercada de bosques, a chuva do outono escorrendo sobre as maçãs amontoadas à beira dos prados, à espera do lagar. E eu, com efeito, me divertia com o que andava pela mesa. Às vezes, eram grandes sautoirs americanos, impessoais e faustosos. As pérolas de Cécile Sorel misturavam-se às trinta e sete célebres pérolas da Polaire. Havia ali colares de joalheiros, novinhos e leitosos, não comovidos ainda por uma longa amizade com a pele das mulheres. Aqui e acolá, algum diamante montado em fecho despedaçava arco-íris. Mais além, falando em papadas com rugas, tendões de velha e, quem sabe, em gânglios empolados, uma gargantilha de catorze voltas, paliçada de pequenas barras de brilhantes. ..

Terá mudado esta estranha profissão? Ou continua a lançar, diante de mulheres pobres e incorruptíveis, fortunas indefesas e tesouros aos montes?

Ao cair da tarde vinha às vezes Mme Armand sentar-se à mesa verde. Por discrição, abstinha-se de manusear os colares e passava sobre eles o seu olhar de pássaro, indiferente e brilhante.

- Já acabou seu dia, Mme Armand? - dizia Mlle Devoidy.

- Oh! o meu dia não é como o do meu marido, não se acaba quando acaba a luz. Tenho o jantar para aquecer, o atelier a arranjar, coisinhas aqui, coisinhas ali... Mas, também não é o fim do mundo.

Se era inflexível quando de pé, Mme Armand não o era menos quando se sentava. Seu busto, arrochado num corpete escocês vermelho e preto, entre os batentes entreabertos de uma jaqueta, fazia-me pensar num armário pequeno. Dela emanava uma certa sedução de mulher-tronco. Ao mesmo tempo, ela transpirava a amenidade das "caixas" sérias, e algumas outras grandes virtudes.

- M. Armand? - tornava Mlle Devoidy. - Que é que faz de bom a estas horas?

- Ainda está ocupado, trabalhando no casamento de sábado passado. Num negócio pequeno como o nosso, é preciso fazer tudo sozinho. Esse cortejo do casamento de sábado está dando muito trabalho, mas o lucro é apreciável. Primeiro o casal, depois as demoiselles d'honneur em grupo, depois o cortejo todo junto, em quatro poses, sei lá. .. Eu não o ajudo tanto quanto desejava.. .

A mulher do fotógrafo voltou-se para mim como para se desculpar. Ao falar, os engomados e diversos outros prestígios do corpete justo, da jaqueta e da gardênia de pano presa à botoeira, fundiam-se ao calor de uma voz agradável, quase sem modulação, feita para contar longamente histórias de bairro.

- Meu marido anda cansado por causa de um princípio de exoftalmia, digo exô para ir mais depressa... O ano foi ruim demais para que tomássemos um ajudante. O que me amola é não ter firmeza nas mãos, deixo cair tudo. Agora é o pote de cola, daqui a pouco a bacia de banhar chapas, depois, bumba, lá se vai para o chão uma moldura. A senhora imagina o déficit no fim do dia. ..

Estendeu para mim a mão que, na verdade, tremia.

- Nervos - disse ela. - Por isso deixo-me ficar nos meu domínios, trato das coisas da casa. Por um lado, parece que isso me faz bem aos nervos, mas...

 

Era freqüente ficar naquele "mas", depois do qual vinha um suspiro; e, como eu perguntasse a Mlle Devoidy se o "mas" não encerraria alguma história melancólica :

- Nem pense nisso - redargüiu minha conterrânea. - A criatura arrocha-se para ter cintura fina e depois é obrigada a tomar fôlego a cada instante.

Com seus traços regulares, Mme Armand permanecia fiel às golas altas e à franja na testa, pois já lhe haviam assegurado que se parecia à Rainha Alexandra da Inglaterra, só que num tipo mais travesso. Ora, mais travesso, aí está o que eu não afirmaria; mais trigueiro, certamente. Abundam em Paris, e procedentes da própria Paris, sem que lhes seja necessário o sangue meridional, as cabeleiras de um negro azulado acompanhadas de narizinhos corretos e peles bem brancas. Mme Armand possuía tantos cílios quanto uma espanhola, e um olhar de pássaro, isto é, um olhar negro de brilho invariável. O bairro pagava-lhe tributo lacônico e suficiente murmurando "bela morena" à sua passagem. Sobre o que a opinião de Mlle Devoidy punha uma restrição:

- Bela morena é o termo... sobretudo há dez anos.

- Há dez anos que conhece Mme Armand?

- Não, pois só há três anos ela e Gros Yeux vivem juntos. Eu sou mais antiga na casa. Mas posso imaginar como era Mme Armand há dez anos. Vê-se bem que é mulher que se rala.

- Que se rala? Isso é forte. Não estará exagerando?

Um olhar ofendido, cor de minério cintilante, passou por baixo da lâmpada e veio atingir-me na sombra.

- Errar é humano, Mme Armand também pode se enganar... Meteu-se-lhe na cabeça que leva vida sedentária, imagine! Todas as noites, antes ou depois do jantar, vai dar um passeio para tomar ar.

- É um hábito saudável...

Mlle Devoidy apertou os lábios, fazendo convergir os pelinhos incolores do buço que lhe crescia ao canto dos lábios - justamente como fazem as focas antes de mergulhar, fechando à água o acesso às narinas.

- Os hábitos saudáveis e eu, a senhora sabe. .. Desde que a mulher do fotógrafo encasquetou que padece sufocações quando não sai - isso basta para que, um dia destes, a encontrem sufocada no patamar.

- A senhora raramente sai, não é, Mlle Devoidy?

- Não saio quase nunca.

- E nem por isso se sente mal?

- Eu, não. Mas não impeço ninguém de viver doutro jeito.

Atirou à porta fechada, alvejando uma invisível Mme Armand, um olhar carregado de malícia que me fez pensar nas maledicências ferozes trocadas através das cercas pelas guardadoras de rebanhos da minha região, enquanto matam varejas inchadas de sangue no ventre sensível das novilhas...

Sobre uma carreira de pérolas minúsculas, Mlle Devoidy inclinou sua fronte orlada, no ponto em que terminava a cabeleira castanha, entre a orelha e a face, por uma penugem argêntea e vigorosa, como seu buço. Os traços todos desta reclusa parisiense falavam-me de salgueiros acetinados, de nozes maduras, de arenosos leitos de nascentes, de sedosas cascas de árvore. Ela dirigia a ponta da sua agulha, apertada entre o polegar e o indicador meio achatados, para o furo quase invisível de pérolas pequenas, de um branco opaco, que enfiava de cinco em cinco e depois deixava escorregar pelo fio de seda.

Um punho familiar bateu à porta.

- É Tigri-Cohen - disse Mlle Devoidy. - Estou reconhecendo o jeito. A chave está na porta, Monsieur Tigri.

A fisionomia desfavorecida de Tigri-Cohen aproximou-se da pequenina arena de luz. Era de uma feiúra alegre, às vezes, e às vezes irônica, ora suplicante e ora triste, como a de certos macaquinhos inteligentes demais que, ao mesmo tempo, acham motivo para apreciar os dons humanos e para tremer de medo deles. Sempre achei que Tigri-Cohen muito se constrangia para conseguir aquele ar de negaças, aventura e pouco escrúpulo. Dava-se mesmo um chique de agiota a juros altos, talvez por ingenuidade. Mas sempre notei que tinha a mão aberta, tanto para o dinheiro pequeno quanto para a "erva graúda", e por isso morreu pobre, no seio de uma honestidade ignorada.

Conheci-o nos bastidores do music-hall, onde ele passava a maior parte de suas noites. As artistazinhas trepavam-lhe aos ombros como araras ensinadas e tratavam de agradá-lo o mais possível. Sabiam que tinha os bolsos cheios de jóias falsas e de pérolas defeituosas, boas somente para o alfinete de chapéu. E ele as enchia de admiração exibindo pedras de má cor e nome bonito, peridotos, calcedônias, crisólitos e zircões ambiciosos. Tratava-as por tu, por tu era tratado e assim vendia, entre as dez e a meia-noite, alguns de seus pedregulhos brilhantes. Diante das vedettes afortunadas, porém, apresentava-se principalmente como comprador.

Seu amor pela pérola bonita sempre me pareceu mais sensual ainda que comercial. Não esqueço a exaltação em que o vi, um dia em que o encontrei em seu depósito, conversando com um sujeitinho comum e indecifrável que tirara de seu colete surrado um lenço de seda azul-celeste e, do lenço, uma única pérola. . .

- Ainda está contigo? - perguntou Tigri.

- Sim - disse o sujeitinho. - Mas não por muito tempo.

Era uma pérola redonda, não furada ainda, do tamanho de uma cereja bonita e que não parecia recebei* a luz fria, do lado par da rua Lafayette, mas emitir uma claridade igual e velada. Tigri a contemplava sem uma palavra; o sujeitinho calava-se.

- Ela é... ela é... - começou Tigri-Cohen.

Procurou em vão um louvor e levantou os ombros.

- Deixa ver? - perguntei eu.

Tomei na palma da mão aquela virgem cálida e maravilhosa, com seu enigma de cores instáveis, seu tom rosado indecifrável, que adquiria um azul nevoso e depois o trocava por um malva fugidio.

Antes de devolver a pérola gloriosa, Tigri suspirou. Depois o sujeitinho extinguiu as doces luzes no lenço azul, meteu tudo no bolso, distraidamente e foi-se.

- Ela.. . Ela tem a cor do amor - repetiu Tigri.

- A quem pertence?

Tigri estourou, levantando os braços compridos e simiescos.

- A quem pertence? De quem é? Vou lá saber? De uns tipos negros, lá das Índias. De um sindicato de safados. De selvagens, de gente sem fé sem sensibilidade, sem...

- Quanto vale?

Ele deixou tombar em mim um olhar de desprezo.

- Quanto? Uma pérola daquelas, uma aurora, circulando ainda de camisola de cetim azul, no fundo de um bolso de corretor? Quanto vale? Então é um quilo de ameixas? "Três francos, madame. Aqui estão, muito obrigado". Oh! que barbaridade!...

Sua cara inteira remexia, aquela cara de palhaço apaixonado e feioso, sempre rica de expressão excessiva, de riso demasiado, de exageros de dor. Aquela noite, em casa da Devoidy, lembro-me que ele estava molhado de chuva e pouco ligava. Com um gesto maquinai, explorava os bolsos que encerravam sautoirs de pedras de cor, anéis de pedra bruta, saquinhos onde dormiam diamantes em invólucros de papel. Atirou sobre o pano verde alguns cordões de pérolas:

- Toma, Devoidy, meus amores; arranja-me isto para amanhã. E esse. .. Achas muito feio? Se tirasses a pluma que entope a parte do meio, podias talvez enfiá-lo numa corda... Enfim, faze o que entenderes.

Por hábito, inclinou-se sobre o meu colar, com um olho fechado e outro aberto.

- A quarta a partir do centro, eu compro. Não? Como queiras. Adeus, minhas belas. Vou hoje à noite à ante-estréia do Folies Bergère.

- Noite boa para negócios - disse polidamente Mlle Devoidy.

- Bem vê que não entendes disso. Numa noite destas, elas só pensam no papel, no vestuário, na cara que lhes faz o público, e em se sentir mal por detrás dos reposteiros. Adeus, belas.

Outros passantes, principalmente outras passantes, batiam a porta e vinham abordar o pequeno círculo de luz dura. E eu os olhava a todos com a avidez que sempre senti em relação aos seres que não corro o perigo de tornar a ver. Mulheres adornadas avançavam sob a lâmpada as mãos transbordantes de grãos brancos e preciosos; ou então, com o gesto lânguido e orgulhoso dos que adquiriram o hábito das pérolas, abriam o fecho de seus colares.

Entre outras, minha memória reteve a imagem prateada de certa mulher coberta de chinchilas. Entrou agitada, tão robusta e tão populacheira, em seu luxo, que era até um gosto para os olhos. Rudemente, sentou-se no tamborete de palha e ordenou:

- Não desfie o colar todo. Separe só esta aí, ao lado da do centro; sim, esta bonita...

Mlle Devoidy, a quem não agradavam déspotas, cortou pausadamente dois nós de seda e empurrou para a freguesa a pérola libertada. A bela mulher tomou-a e estudou-a de perto. Ali, sob a lâmpada, eu poderia ter contado seus cílios aglutinados e palpitantes. Estendeu a pérola à enfiadeira:

- E a senhora, que acha desta pérola?

- Não sou entendida em pérolas - disse Mlle Devoidy, impassível.

- Verdade?

E a bela mulher, com gesto e intenção irônicos, apontou a mesa. Depois, a expressão de seu rosto alterou-se; apanhou um pequeno peso de ferro sob o qual Mlle Devoidy conservava suas agulhas já enfiadas e precipitou-o sobre a pérola, que se partiu em mil pedaços. Mau grado meu, escapou-me um "oh!". Mlle Devoidy, porém, apenas aproximou do seu busto, sob suas mãos fiéis, um trabalho inacabado e pérolas esparsas.

A freguesa contemplava sua obra sem dizer palavra. Explodiu, afinal, em lágrimas veementes, soluçando: "cachorro! cachorro!" enquanto recolhia o rimei dos cílios numa ponta de lenço. Depois enfiou na bolsa o colar amputado e reclamou "um papel de seda" no qual encerrou os mínimos fragmentos de pérola falsa e levantou-se. Antes de sair, fez questão de afirmar com energia que "aquele negócio não acabava assim" e carregou para fora os incômodos eflúvios de uma essência novíssima, festejada pela moda: o "junquilho sintético".

- É a primeira vez que a senhora assiste a um espetáculo destes, Mlle Devoidy?

Mlle Devoidy arrumava de novo sua mesa com mãos cuidadosas e sem tremores.

- Não, é a segunda - disse ela. - Com a diferença que da primeira vez a pérola resistiu. Era verdadeira. O resto do colar também.

- E que foi que a mulher disse?

- Não era mulher, era um homem. Ele exclamou: "Ah! que vagabunda!"

- Por quê?

- Porque o colar era da mulher dele e ela o fizera crer que só custara quinze francos... É mesmo; a senhora não imagina, em questões de pérolas há histórias de todas as cores. ..

Tocou com dois dedos seu colarzinho de coral. Espantei-me de surpreender naquela cética um gesto de esconjuro e de entrever uma nuvem de superstição sobre aquela cabeça teimosa.

- Pois então não gostaria de usar pérolas?

Hesitando entre a prudência comercial e a vontade de não mentir, ela deu de ombros num gesto enviesado.

- Sabe-se lá... A gente não conhece nem a si mesma. Em Coulanges havia um sujeito, anarquista como ele só, que metia medo a todos; e um dia ele herdou uma casinha com jardim, um pombal redondo e um chiqueiro... Queria que o visse, a estas horas. Onde foi parar o seu anarquismo...

Reencontrava logo o seu riso contido, sua expressão agradàvelmente sediciosa e seu jeito de aprovar sem baixeza e de criticar sem grosseria.

Certa tarde em que me demorava em sua casa, ela surpreendeu-me a bocejar e eu me desculpei, dizendo :

- Estou com uma fome daquelas... Nunca tomo chá e almocei mal, pois a carne estava mal passada e eu não posso com carne sangrenta...

- Nem eu - respondeu minha conterrânea. - Na nossa terra, bem sabe a senhora que se diz que a carne crua é só para ingleses e gatos. Mas se tiver paciência por cinco minutos, vai aparecer aqui um mille-feuilles, sem que eu me mexa desta cadeira. Quer apostar?

- Aposto uma caixinha de chocolate de leite.

- Está feito - disse prontamente Mlle Devoidy, estendendo aberta sua mão enxuta, que eu apertei.

- Mlle Devoidy, como é que sua casa não cheira nunca a peixe frito, nem a cebola, nem a ensopado? A senhora tem alguma fórmula secreta?

Ela fez que sim com um bater de pálpebras. - Posso saber?

Três batidas familiares soaram na porta da entrada.

- Está chegando seu folhado e meu segredo está descoberto. Entre, entre, Mme Armand.

Enquanto isto, fechava em minha nuca meu colarzinho burguês. Mme Armand, atrapalhada com a cesta, custou para me estender os dedos cronicamente trêmulos. Falou com precipitação.

- Esperem, esperem, não me toquem, trago coisa frágil.. . O prato do dia é carne assada à borgonhesa e trouxe-lhe também um belo pé de alface. Quanto ao mil-folhas, é pena ! Touxe ameixas cristalizadas.

Mlle Devoidy fez-me uma careta cômica, e quis aliviar da carga sua vizinha prestativa. Esta, porém, exclamou: "Levo tudo para a cozinha" e apressou-se em direção ao aposento escuro. Mas quando atravessou a zona iluminada, Mlle Devoidy e eu lhe entrevimos o rosto:

- Vou-me embora, vou-me embora, que deixei o leite no fogo! - disse ela, com jeitinho garoto.

Atravessou correndo a sala da frente e puxou a porta atrás de si. Mlle Devoidy foi à cozinha buscar duas ameixas cristalizadas, cobertas de açúcar cor-de-rosa, num prato decorado com uma granada flamejante e a inscrição: "À alvorada dos bombeiros sapadores."

- Não há dúvida - disse ela, pensativamente - de que a mulher do fotógrafo andou chorando. E que não há leite no fogo...

- Cena doméstica?

Ela sacudiu a cabeça.

- Pobre do velho Gros Yeux! Ele não é capaz disso. Nem ela. Ora vejam! como desapareceu depressa a sua ameixa! Quer mais? A mim, tirou-me a fome a cara descomposta da mulher de M. Armand.

- Isso amanhã já passou - disse eu distraidamente.

Em troca desta frase tão molenga recebi uma olhadela breve e cortante.

- Passou, hein? E se não passar, pouco se lhe dá, à senhora.

- E então? Está achando que não me apaixono suficientemente pelas encrencas do casal Armand?

- O casal Armand não lhe pede nada, nem eu tampouco. Seria a primeira vez, ora essa, que me veriam pedir a alguém...

Para tentar conter sua irritação, Mlle Devoidy baixava a voz. Éramos, penso eu, perfeitamente ridículas. Mas, graças a esta nuvem de raiva que surgira entre duas mulheres de sangue vivo, fixaram-se na minha memória os detalhes da tola e imprevista cena. Tive o bom senso de, apoiando a mão sobre o ombro de Mlle Devoidy, pôr fim ao incidente:

- Vamos, vamos. Não nos façamos de mais idiotas do que somos! Bem sabe que se eu puder ser útil a essa boa senhora.. . Teme que lhe aconteça alguma coisa?

Sob sua pele cor de avelã, Mlle Devoidy corou e cobriu o alto do rosto com a mão, num gesto romanesco e simples.

- Agora, a senhora mostra-se gentil demais. .. Não seja muito gentil comigo. .. Quando as pessoas são gentis demais, não sei mais o que faço, derreto que nem manteiga...

Descobrindo as belas e úmidas pupilas pontilhadas de ouro, empurrou para mim o tamborete de palha.

- Pode ficar ainda um minuto? Só um minutinho? Está chovendo, lá fora, deixe passar a chuva...

Sentou-se à minha frente, no seu lugar de trabalho e, vigorosamente, esfregou os olhos com os nós dos dedos.

- Antes do mais, é preciso notar que Mme Armand não é mulher de mexericos e confidencias. Mas mora tão perto, bem aí ao lado. .. Isto aqui é um prediozinho de coisa nenhuma, dos da moda antiga. Duas peças à direita e duas à esquerda, negocinhos nos quartos, em família.. . Gente que mora assim tão perto - não é que façam barulho, não é que eu os ouça - é que os sinto. Sobretudo Mme Armand que passa tanto tempo no patamar. Num lugar como este, quando as coisas não vão bem, os vizinhos não demoram a sentir, pelo menos eu. . .

Baixou a voz, cerrou os olhos, os pelinhos do buço rebrilharam e ela espetou na mesa a ponta duma agulha como se, cabalisticamente, estivesse contando as palavras.

- Quando a mulher do fotógrafo sai às compras, para mim ou para ela, pode-se ver a porteira, a vendedora de flores de debaixo da cúpula, a mocinha do bistro - se não é uma é outra - avançarem para ver onde ela vai. Ora, para onde iria ela? Vai ao leiteiro, ao cabeleireiro, vai buscar pão quente, como todo mundo! E as curiosas ficam desajeitadas, descontentes, como se lhes tivessem prometido alguma coisa e depois recusado. E na próxima vez, recomeçam. Quando sou eu quem sai, ou Mme Gâteroy lá de baixo, com a filha, ninguém fica espiando como se se tratasse de algum acontecimento.

- Mme Armand - aventurei eu - tem um físico um tanto... um tanto pessoal. Talvez mesmo abuse do escocês...

Mlle Devoidy sacudiu a cabeça e pareceu desistir de fazer-se compreender. Estava ficando tarde, as portas fechavam-se em todo o prédio, de alto a baixo; em todos os andares, ajeitavam-se cadeiras em volta das mesas, e dos pratos de sopa. Fui-me embora. Insòlitamente fechada, a porta do atelier fotográfico conferia um importante papel decorativo ao "pé" de aparelho e ao par de redes de caçar borboleta, cruzadas sob o bico de gás. Embaixo, a porteira ergueu a cortina para me ver passar. Eu nunca ficara até tão tarde.

A noite morna fumegava em volta dos bicos de gás e a hora insólita oferecia-me a pequenina angústia, não desprezível, que antigamente me empolgava à saída dos espetáculos de teatro começados sob o sol a pino e acabados com a noite fechada.

Merecerão, os meus passantes de épocas longínquas, reviver nestas poucas páginas em que os obrigo, ressurgir? Quiseram que os mantivesse secretos, pelo menos durante o tempo em que deles me ocupei. Por exemplo: no meu domicílio conjugai ignoravam a existência de Mlle Devoidy e minha familiaridade com Tigri-Cohen. O mesmo quanto à mulher do fotógrafo e quanto a uma bordadeira, hábil na arte de recobrir colchas esgarçadas e arranjar pedacinhos de seda multicor em forma de tapetes e cobertas de carrinho de criança. Gostaria eu dessa bordadeira por causa de seu trabalho que desprezava modas e máquinas de costura, ou por seu segundo ofício? Sim, porque às seis da tarde ela deixava seus hexágonos de seda e ia para a Gaîté Lyríque, onde cantava uma das partes dos "Mosqueteiros no Convento".

No interior de minha bolsa, entre o couro e o forro, guardei longo tempo uma bolsinha de cinqüenta centavos, perdida em casa de Tigri-Cohen e que ele, antes de ma devolver, divertira-se em constelar de diamantezinhos, seguindo a forma das minhas iniciais. Em minha casa, porém, não falei nem do lindo fetiche nem de Tigri, pois meu marido daquele tempo tinha do joalheiro uma idéia tão retangular e inflexível, uma concepção tão falsa e tão banal do "traficante", que eu nem poderia defender a causa de um nem reformar o erro do outro.

Teria eu verdadeiro afeto pela pequena bordadeira? Amaria, com amor de amigo, esse Tigri-Cohen, tão mal conhecido? Não sei. O instinto da dissimulação não roubou para si uma parte muito grande em minhas diferentes vidas. Importava-me, isso sim, como a muitas mulheres, escapar ao julgamento de certas pessoas que eu sabia sujeitas ao erro ou inclinadas a certezas que proclamavam em tom de afetada indulgência. Tal tratamento leva-nos - a nós, mulheres, a afastar-nos da verdade simples, como de uma melodia chata, sem modulações, para nos comprazermos no seio da meia-mentira, do meio-silêncio e das meias-evasões.

 

Vindo o momento, pus-me de novo a caminho da casa de fachada estreita, em cuja fronte a vidraça azul do atelier Armand punha sua viseira inclinada.

Logo no vestíbulo, barraram-me o caminho um entregador de tinturaria com seu avental preto e uma entregadora de pão, com sua comprida cistera de vime. O primeiro, sem que eu o provocasse, disse-me, prestativo: "Não é nada, é uma tempestade num copo d'água". Ao mesmo tempo, uma coursière de casa de modas, desceu pela escada abaixo, dando com sua caixa amarela em todos os barrotes da escada, e ganindo:

- Está branca como um lençol! Não tem uma hora de vida!

Como por magia, seus gritos agruparam uma dúzia de transeuntes a lhe fazerem perguntas de toda espécie. Puseram-se a lutar dentro de mim uma vontade de fugir, uma repugnância vaga e uma curiosidade basbaque; afinal, foi a uma resignação estranha que me entreguei, sabendo muito bem que não me deteria antes do último patamar. Por quem? Pela mulher do fotógrafo, ou por Mlle Devoidy? Quanto a esta, mentalmente, fui decidindo sua sorte, como se nada, jamais, pudesse pôr em perigo sua sabedoria zombeteira, a firmeza de suas mãos suaves como madeira sedosa, nem dispersar as constelações esbranquiçadas, perfuradas e preciosas, que ela perseguia de agulha em riste pelo pano verde da mesa.

Enquanto subia a escada, com o fôlego já curto, ia tratando de sossegar. Acidente? Por que não teria acontecido com as tricoteuses do quarto andar ou com o casal de encadernadores? Aquela tarde de novembro, carregada de umidade, conservava a força do cheiro da couve, do gás e da humanidade comovida que me indicava o caminho...

O ruído inopinado dos soluços é desmoralizante. Apesar de fácil de imitar, conserva seu prestígio grosseiro, de náusea. Enquanto, entre a rampa e um entregador de embrulhos empurrado com demasiada rapidez, eu passava por uma espécie de laminação sorrateira, ouvimos soluços - soluços convulsivos e viris - e os comentários da escada, ávidos, calaram--se. O ruído quase não durou; extinguiu-o alguém, lá em cima, fechando uma porta. Sem ter jamais ouvido soluçar aquele que Mlle Devoidy apelidara o "velho Gros-Yeux", não tive dúvidas de que era ele quem soluçava.

Atingi afinal o último patamar, atravancado de desconhecidos, entre as duas portas fechadas. Abriu--se uma delas e ouvi a voz mordaz de Mlle Devoidy.

- Minhas senhoras e senhores, onde vão desse jeito? Isto não é sensato. Para tirar fotografia, já é tarde. Ora qual, não houve acidente algum! Uma senhora luxou o tornozelo, já lhe puseram uma tala e é só!

Entre os ascensoristas correram alguns risos e um murmúrio de decepção. Pareceu-me, porém, que sob a iluminação crua, Mlle Devoidy estava com muito má cara. Proferiu ainda algumas palavras destinadas a desencorajar o invasor e entrou em seu apartamento.

- Ora, se Já acabou... - disse o entregador de embrulhos.

Para recuperar o tempo perdido, empurrou um empregado de adega, com seu avental de pano verde e mais umas mulheres indistintas, desaparecendo aos saltos; e eu, afinal, pude sentar-me na cadeira gótica reservada aos que faziam a primeira comunhão. Assim que fiquei sozinha, reapareceu Mlle Devoidy.

- Entre; eu já a tinha visto, mas não podia fazer sinais diante de tanta gente... Se me permite, não me desagradaria sentar-me um momento. ..

Como não houvesse outro refúgio senão o lugar a que se habituara com mais fidelidade, deixou-se tombar na sua cadeira de trabalho.

- Agora vai melhor! Sorriu-me, com um ar feliz:

- Ela vomitou tudo, a senhora sabe? Tudo mesmo.

- Tudo o quê?

- O que tinha tomado, ora essa! Uma coisa para se matar; uma porcaria repugnante.

- Mas, qual o motivo?

- Ora, o motivo. A senhora quer sempre que lhe apresentem trinta razões... Ela deixaria uma carta para o velho Gros-Yeux.

- Uma carta? Mas o que tinha para confessar?

Gradualmente, Mlle Devoidy recobrava o sangue frio e o seu tom desembaraçado e irônico:

- Não se pode esconder nada à senhora! Confessar, ela confessava tudo. Confessava: "Meu Geo querido, não zangues comigo. Perdoe-me por deixar--te. Na vida e na morte, sou tua Georgina fiel". Ao lado disto havia outro papelucho que dizia: "Está tudo pago, menos a lavadeira que, na quarta-feira, não tinha troco." Passou-se isto lá pelas duas e um quarto, duas e vinte...

Parou de falar, ergueu-se:

- Espere, sobrou café.

- Se é para mim, não, obrigada.

- É principalmente para mim - disse ela.

Vi surgir a popular panacéia, com o aparelha-mento do culto: o bule de esmalte azulado, duas xícaras ornamentadas com uma imagem grega vermelha e dourada, e um açucareiro de vidro retorcido. Fielmente, o odor da chicórea os escoltava, lembrando incômodos rituais, velórios, partos difíceis, palavras a meia voz, enfim, uma toxicomania ao alcance de todos...

- Pois então - tornou Mlle Devoidy - às duas, duas e um quarto, bateram à minha porta. Era o velho Gros-Yeux, todo atrapalhado, que dizia: "Não viu se minha mulher desceu?- Não, disse eu, mas pode ter descido sem eu ver. - É, disse ele, eu já devia estar na rua, mas na hora de sair quebrei um vidro de hipossulfito. Veja como estão as minhas mãos. - - Que desgraça - - disse eu. - Sim - disse ele - preciso de um trapo e os trapos estão no quarto de dormir, no armário embutido detrás da cama. - Se é só isso - disse eu - não mexa em nada que vou buscar um. Não é só isso - disse ele - é que o quarto de dormir está fechado a chave e nunca é fechado a chave. Olhei para ele e, não sei o que me passou pela cabeça, levantei-me, quase que o derrubando e fui bater na porta do quarto. Ele me dizia: Mas, o que tem a senhora? O que tem a senhora? E eu respondia: - E o senhor, então? Não olhou para a própria cara? Lá estava ele, de mãos afastadas, cheias de hipossulfito. Voltei aqui e apanhei a machadinha de cortar cavacos para acender fogo. A fechadura e os gonzos - garanto-lhe eu - saltaram de um só golpe. .. Essas portas não valem nada. . .

Bebeu alguns goles de café morno.

- Vou mandar pôr uma corrente de segurança na minha - disse ela. - Agora já sei como é frágil uma porta. ..

Eu esperava que retomasse o fio da história, mas Mlle Devoidy estava brincando, distraída com a pazinha de metal com que catava pela toalha as pérolas chamadas sementes; parecia não ter mais o que dizer.

- Então, Mlle Devoidy?

- Então, o quê?

- Ela, Mme Armand.. . Estava no quarto?

- Naturalmente que estava! Sobre a cama. Em sua própria cama. E de meias de seda e sapatos elegantes, de cetim preto, com um pequeno bordado em azeviche. Aquilo é que me espantou, aquelas meias e sapatos. Espantou a tal ponto que, enquanto enchia a bolsa d'água quente, disse ao marido dela: "Por que diabos ela se pôs na cama de meias e sapatos?" Ele explicou, soluçando: "É por causa dos calos e do terceiro dedo do pé, que é acavalado... Não queria que lhe vissem os pés descalços, nem mesmo eu... Dormia de meias... É tão cuidadosa com sua pessoa..."

Mlle Devoidy espreguiçou-se, bocejou e pôs-se a rir.

- Ah!, bem se pode dizer que os homens ficam aparvalhados em circunstâncias como estas. Aquele, então! Só o que sabia era chorar e repetir: "Querida, queridinha..." Foi sorte eu agir depressa •- acrescentou cheia de si. Afinal, ela está salva! Mas o doutor Camescasse, que mora no onze, só lhe permite, até nova ordem, um pouco de leite com água mineral. Mme Armand engoliu veneno suficiente para matar um regimento e parece que foi isto o que a salvou. O velho Gros-Yeux está de plantão ao lado dela. Vou lá dar uma olhadela. A senhora voltará? Traga-lhe um buquêzinho de violetas, será mais alegre do que se o tivesse de levar ao cemitério de Montparnasse.

Eu já estava na calçada quando, tarde demais, veio-me ao espírito uma pergunta: por que teria Mme Armand querido morrer? Percebi, ao mesmo tempo, que Mlle Devoidy esquecera de o contar.

Nos dias que se seguiram, pensei muito na mulher do fotógrafo e em seu acidente abortado. Por extensão, pensei na morte e, por exceção, na minha morte. Se eu morresse no bonde? E se morresse durante um jantar na cidade? Medonhas eventualidades, mas tão pouco prováveis que logo as abandonei. Nós, mulheres, raramente morremos fora de nossas casas; quando uma dor nos derruba, como os cavalos aos quais se mete um tocha acesa sob o ventre, achamos sempre a força de correr à nossa toca. Em três dias, perdi o gosto de escolher a morte mais agradável. E, no entanto, são bonitos os funerais no campo, especialmente em junho, por causa das flores. Só que as rosas logo murcham com o calor... Estava nisto quando um bilhete de Mme Armand com boa ortografia e uma letra linda, eriçada que nem um cãozinho tenerife - lembrou-me a "boa promessa" e convidou-me para "o chá".

No último patamar, cruzei com um casal de idade madura, que saía do atelier do fotógrafo; iam de braço dado, ele, envergando sua jaqueta debruada e sua gravata de plastrão e ela, toda de faille preta. O velho Gros-Yeux é que os vinha acompanhando e eu procurei os sinais de suas fogosas lágrimas nas suas pálpebras grossas. Ele me fez uma saudação entendida e jovial.

- As senhoras estão no quarto. Mme Armand ainda sentia certa fadiga generalizada e achou que a senhora desculparia de a receber assim, intimamente . ..

Guiou-me através do atelier, dizendo uma palavra cortês a propósito de minhas violetas - "são tão distintas as violetas de Parma" - e deixou-me à entrada do quarto desconhecido.

Cá em nosso estreito planeta, só temos escolha entre duas espécies de universos desconhecidos. Uma delas nos tenta - ah!, que sonho viver ali! - a outra é-nos irrespirável, sem reservas. Em questão de mobiliário, uma certa ausência de feiúra me faz maior mal que a própria feiúra. O conjunto do aposento em que Mme Armand saboreava sua convalescença não continha monstruosidade alguma mas me forçou a baixar os olhos e eu não acharia prazer algum em o descrever.

Meio estendida, ela repousava sobre a cama feita, a mesma cujos lençóis havia desfeito, para morrer. Sua solicitude, ao acolher-me, tê-la-ia posto em pé, não fosse Mlle Devoidy, que a reteve com seu pulso firme de anjo da guarda. Era novembro e o calor pálido da rua não chegava até ali. Mme Armand protegia-se do frio com uma coberta pequena, vermelha e preta, feita de crochê, de um ponto chamado tunisino. Não gosto de ponto tunisino. Mme Armand, porém, estava com boa cara, as faces menos áridas e os olhos mais brilhantes que nunca. A vivacidade de seus movimentos deslocou as cobertas, mostrando dois pés finos, calçados de sapatos de cetim preto e bordados - como mos havia descrito Mlle Devoidy - de contas de azeviche.

-- Mme Armand, um pouco de calma, por favor - ordenou gravemente o anjo da guarda.

- Mas eu não estou doente - protestou Mme Armand. - Estou sendo mimada, isso sim. Meu Exô paga-me uma arrumadeira para a manhã, Mlle Devoidy nos faz um bolo quatre-quarts e a senhora me traz umas violetas soberbas! Vida de preguiçosa! Querem provar uma geléia de groselha afromboesada, com o quatre-quarts? £ o último vidro do ano passado e, sem me gabar... Este ano, eu não consegui acertar a receita; também as ameixas na aguardente, eu acabei estragando. .. Este ano estraguei tudo. ..

Sorriu, como quem faz uma fina alusão. Por causa do brilho sem variedade de seus olhos pretos, fazia-me lembrar sempre não sei que pássaro; agora, porém, era um pássaro tranqüilo, descansado, dessedentado sabe-se lá em que sombria fonte. ..

- Neste negócio, entre mortos e feridos, todos se salvaram - concluiu Mlle Devoidy.

Saudei com uma piscadela de cumplicidade aquela sentença vinda diretamente da nossa terra natal e saudei também, uma depois da outra, uma xícara de chá bem preto e um copo de vinho com gosto de alcaçuz. O que não tem remédio, remediado está. Não me sentia à vontade. Não é assim às pressas que a gente se acostuma a evocar, sob a luz franca de uma tarde, um suicídio ainda da véspera, transformado, é verdade, em purgativo - mas preparado para que a suicida não voltasse a si. Tentei acertar o passo com a gente da casa, gracejando.

- Quem acreditaria que a encantadora senhora aqui diante de nós é a mesma que se mostrou tão pouco razoável, outro dia?

A encantadora senhora acabou seu triângulo de bolo, antes de fingir certa confusão e responder, duvidosa e coquette:

- Pouco razoável. . . pouco razoável... muita coisa eu poderia dizer a respeito disso...

Mlle Devoidy cortou-lhe a palavra. Ao que parecia, seu primeiro salvamento outorgara-lhe autoridade militar.

- Ora, vamos! Não vai recomeçar, pois não?

- Recomeçar? Oh!, nunca!

Aplaudi a exclamação, por sua espontaneidade. Mme Armand estendeu a mão direita para um juramento.

- Juro! A única coisa que faço questão de contestar é o que disse o doutor Camescasse: "Afinal, a senhora engoliu um tóxico durante uma crise de neurastenia?" Isso me aborreceu. Mais um pouco e eu teria respondido: "Uma vez que o Sr. está'tão certo, não devia me fazer perguntas." Em meu foro íntimo, bem sei que não me suicidei por neurastenia!

- Tt, tt - censurou Mlle Devoidy. - Há quanto tempo eu vi que a Sra. andara em mau caminho? Mme Colette, aqui presente, pode testemunhar que até lhe falei nisso. Quanto à neurastenia, foi neurastenia mesmo e não há de que corar!

Saltou a coberta de crochê e pouco faltou para que o mesmo acontecesse a uma xícara com o seu pires.

- Não, não foi assim! Acho que a mim também será permitido opinar sobre isso, pois não?

- Levo em conta sua opinião, Mme Armand, mas não a posso considerar do mesmo modo que a de um homem de ciência como o doutor Camescasse.

Por cima de minha cabeça voavam as opiniões - e tão vigorosamente lançadas que eu baixei a cabeça. Era a primeira vez que um suicida discutia diante de mim seu caso com desenvoltura reivindica-tória. Quanto ao anjo - como outros salvadores terrestres ou celestes - tendia a exagerar seu papel. Em seus olhos palhetados de ouro acendera-se uma centelha que não se podia chamar de angelical, enquanto a mulher convalescente tornava-se rubra sob o pó de arroz alvo demais.

Nunca desprezei uma briga de comadres. Um gosto muito vivo pelos espetáculos de rua me retém ao pé dos destampatórios ao ar livre, durante os quais encontro ocasião de enriquecer meu vocabulário. À cabeceira de Mme Armand, eu esperava que o diálogo entre as duas mulheres ganhasse esta virulência que marca os desentendimentos femininos. Mas havia a morte, a incompreensível morte, que nada ensina aos vivos, a lembrança de um veneno nauseabundo e o rigor de uma dedicação que tratava a vítima a golpes de férula - e tudo isto estava demasiado presente, esmagador, maciço, para permitir um saudável bate-boca. Que viera eu fazer naquele sítio timidamente regido pelo velho Gros-Yeux? E de sua mulher incompletamente seduzida pela morte - que me restaria além de um mistério desenxabido? Quanto a Mlle Devoidy - tipo acabado, íntegro e seco da solteirona - senti que acabara para mim o costume de a enfeitar com o nome de enigma e que a atração do vácuo teria que acabar um dia...

à tristeza, ao medo, à dor física, ao frio e ao calor em excesso empenho-me ainda em contrapor um rosto honrado. Mas abdico diante do tédio; este faz de mim um ser miserável e, se necessário, feroz. Sua aproximação e sua presença caprichosa, que afetam a musculatura dos maxilares, dançam no fundo do estômago e cantam um refrão ritmado pelos artelhos - não só me atemorizam, como me fazem fugir. Aquelas duas mulheres que, por encarnar, uma a gratidão, outra a dedicação, acabavam de erguer barreiras entre si, cometeram, a meu ver, o erro de não avançar até as atitudes clássicas. Não utilizaram o riso ultrajante, nem os insultos que cegam como pimenta, nem os punhos fincados na curva da cintura. Não chegaram a despertar nem mesmo esses agravos minúsculos e vivazes, conservados num longo sono de infusórios. Em todo o caso, ouvi perigosos vocábulos, tais como "neurótica... ingratidão. .-. Mete-se em tudo.. . imiscuir-se..." Acredito que foi por causa deste último verbo lindamente sibilante que Mlle Devoidy se levantou, lançou-nos um breve até-logo, em tom cerimonioso e amargo, e saiu.

Um pouco tarde, manifestei a agitação conveniente.

- Ora, que é isto? Mas que coisa! Que criancice! Quem havia de dizer...

Mme Armand não fez mais que um pequeno movimento de ombros "ora, deixe!" O dia acabava rapidamente e ela estendeu o braço, acendendo a lâmpada de cabeceira, aninhada no centro de um saiote de seda salmão. Imediatamente, desfez-se o caráter acabrunhante do quarto, e eu não escondi meu contentamento, pois o abajur, por mais franzido e pretensioso que fosse, filtrava pelo quarto uma claridade rósea, um encantamento de concha marinha. Mme Armand sorriu:

- Acho que nós duas estamos contentes - disse ela.

Vendo que eu ia tocar de novo no desagradável incidente, me fez calar.

- Deixe, minha senhora; estas rusguinhas, quanto menos a gente se ocupa delas, melhor. Ou isto se arranja por si ou não se arranja - e é ainda melhor. Tome mais um pouco de vinho, sim, sim, mais um dedo, é um bom vinho...

Saltou da cama, acertando destramente a barra do vestido. As mulheres não escorregavam de um diva ou de um carro desnudando, como fazem hoje, com indiferença fria e bárbara, um grande pedaço de coxa...

- Não está abusando de suas forças, Mme Armand?

Ela ia e vinha com os pés calçados de cetim e azeviche, aqueles pés pudibundos mesmo na morte. Serviu-me o pseudo-porto, puxou o toldo sobre a parte envidraçada do teto e, não sem certa graça, mostrou-se alerta e como que aliviada. Uma mulher amável, em suma.- pouco marcada pelos seus trinta e seis anos... Uma mulher que desejara morrer...

Acendeu outra lâmpada cor-de-rosa. O aposento, extraordinário à força de banalidade, respirava a alegria falsa dos quartos de hotel bem cuidados.

Minha anfitriã pegou a cadeira abandonada por Mlle Devoidy e plantou-a perto de mim, decididamente.

- Não, madame, não admito que acreditem que me matei por neurastenia.

- Mas - disse eu - nunca imaginei isso, nada fazia crer...

Estava surpresa de ver Mme Armand recordar, como fato consumado, sua vã tentativa. Deixou-me ver, bem abertos e fixos nos meus, seus olhos cujo brilho negro e extremo não revelava quase nada. Sua testa pequena, ,polida e ajuizada, sob a esponja de cabelos crespos, realmente, não parecia ter jamais alojado, entre as belas sobrancelhas, a desordem lamentável chamada neurastenia. Antes de sentar-se, com as mãos incertas, tornou a arranjar as violetas cujas hastes eu via tremer entre seus dedos. "Os nervos, sabe..." Mãos desastrosas, mesmo ao medir uma dose de veneno...

- Madame, é preciso que eu diga que sempre tive uma vida pequenina. . .

Tal exórdio ameaçava longo relato, Apesar disso, fui ficando.

É fácil relatar o que não tem nenhuma importância. Não me faltou memória para consignar as palavras ociosas das duas vizinhas de andar e suas ridículas blandícias, aplicando-me em torná-las semelhantes ao real. Mas a partir das palavras: "Sempre tive uma vida pequenina", sinto-me libertada dos medíocres cuidados que se impõem ao escritor; por exemplo, de anotar fielmente os "por um lado" e os "quanto a nós", demasiado freqüentes que como bolhas subiam durante o relato de Mme Armand. Para ela, estas coisas facilitavam o relato, mas a mim, cabe--me retirá-las. Meu serviço é abreviar e suprimir de nossa conversa também a minha insignificante contribuição pessoal.

- Uma vida pequenina.. . Casei com um homem tão bom, tão perfeito... Um homem assim trabalhador, dedicado e tudo, nem deveria existir. Que quer a senhora que aconteça de imprevisto com um homem tão perfeito? Nem filhos tivemos e, para não mentir, devo dizer que os dispensei facilmente...

"Uma vez, um rapaz do bairro... Oh! não, não foi o que a senhora está pensando. Um rapaz que teve a audácia de me interpelar na escada, porque era escuro. Bonito, ele era! E me prometia mundos e fundos, está claro. Dizia: "Não te quero pegar à traição, vais ver o que é bom, comigo. Garanto que te farei estourar de alegria - e de tristeza também. Será ao meu gosto, e não ao teu..." etc. etc. .. Uma vez ele disse: "Dá-me a tua mãozinha". Como eu não desse, ele a tomou e torceu. Mais de dez dias fiquei sem poder me servir da mão e quem a tratou foi meu pequeno Exô. De noite, depois de trocar a atadura - eu lhe dissera que tinha caído - ele ficava uma porção de tempo olhando o meu pulso machucado. E eu me envergonhava; sentia-me como um cachorro que chega em casa com uma coleira que ninguém conhece e a quem dizem: "Mas de onde trazes essa coleira?" Os menos espertos também têm suas finuras...   ....

"Com esse rapaz a coisa acabou antes, de ter começado. Sabe o que é que não pude suportar? É que um sujeito como aquele - a quem jamais respondi mais de três palavras - se permitia tratar-me por "tu". Tinha brotado do chão, diante de mim. Pois assim como brotou, sumiu-se.

"E depois? Nada mais. Nada mesmo. E não há de que espantar-se. Muitas mulheres - e não das mais feias - estariam no mesmo caso, se não tomassem a iniciativa. Não se deve pensar que os homens se atiram sobre as mulheres como antropófagos. Não, minha senhora. As mulheres é que espalham esse boato. Os homens têm muito mais cuidado com a própria tranqüilidade. Mas há muita mulher que não pode ver homem convenientemente comportado. Sei o que digo.

"Quanto a mim, não sou de temperamento a pensar muito nos homens. Por um lado, antes fosse. Quem sabe se não teria sido melhor para mim? Em vez disso... Não sei o que me foi dar na cabeça aquela manhã, enquanto aprontava a costeleta de vitela. .. Dizia eu comigo: "Já fiz costeleta com petit-pois no sábado passado; está bem, mas não devo abusar, que uma semana passa depressa. .. Onze horas! E meu marido que tem um grupo de batizado para posar, à uma e meia. Preciso dar conta da louça antes que apareçam os fregueses, meu marido detesta ouvir tilintar de louça e remexer de forno quando há fregueses no atelier. .. Depois preciso descer: esse tintureiro que não há meio de aprontar o terno preto de meu marido, tenho que lhe dar alguma coisinha... Se conseguir voltar para passar roupa antes de escurecer, há de ser por acaso. Tanto pior, umedecerei mais uma vez as cortinas da vidraça e passarei a ferro amanhã; é melhor que passar hoje ainda e deixar tudo amarelado. .. Depois, só terei o jantar para aprontar e mais duas ou três coisinhas, e acabou-se ..."

"Em vez de acrescentar, como fazia sempre: "Acabou-se e não é sem tempo..." continuei: "Acabou-se? Acabou-se mesmo? É só isto? Então isto é um dia inteiro - o dia de hoje, de ontem, de amanhã?

Mas, eu estou louca. Deve haver outra coisa, é claro, deve haver outra coisa no meu dia..." De noite, já deitada, ruminava ainda minhas tolices. No dia seguinte, eu estava melhor, tinha que fazer geléia, pôr os pepinos no vinagre - imagine se eu não mandava Mlle Devoidy às compras, era a vez dela - para me dedicar a limpar os meus morangos, a esfregar os pepininhos no sal... Quando estava de novo bem entregue às minhas tarefas, a coisa recomeçou: "Então, os acontecimentos de minha vida são os dias de fazer geléia? Cuidado com o tacho de cobre que tem fundo redondo e, se escorrega, que catástrofe!... Os potes de vidro que tenho não bastam, preciso pedir emprestados os de Mme Gáteroy, se for possível... E quando acabarem as geléias, qual será o acontecimento sensacional que vai aparecer?" Enfim, a senhora já faz uma idéia...

"Antes das cinco, estavam prontas as geléias. Prontas e ruins. Estragadas, estragadas como nunca, e eu me dispunha e recomeçar: "Amanhã, vejamos, amanhã. .. Amanhã temos essa senhora que vem colar as provas no papelão de fibra". O papelão de fibra era novidade, imitação de feltro, dava muito boa aparência às fotografias de esporte. Mas era preciso um artifício, uma cola especial. Uma vez por semana, portanto, vinha a tal senhora e eu a convidava para o almoço; para mim, era uma distração. Nem nós perdíamos com isso, pois ela sabia aproveitar admiràvelmente o tempo e, para ela, era melhor do que correr à leiteria, para o lanche. Eu acrescentava alguma gulodice, uns frios. ..

"Mas naquele dia de que estou falando senti que tudo para mim era ao mesmo, ou antes, que para mim nada bastava. E nos dias seguintes... é melhor ficar quieta...

"Que diz a senhora? Oh!, não! Oh!, a senhora está muito enganada, eu não desprezava meu serviço, ao contrário, nunca me dediquei tanto. Nada faltava. Só que eu achava o tempo longo demais e procurava algo com que o encurtar... Leitura? A senhora tem razão. A leitura distrai muito. Mas tenho um gênio esquisito.. . tudo o que tentei ler me pareceu... meio magro, meio pobre. Sempre aquela mania de alguma coisa de grandioso. .. Acabado o serviço da casa, o serviço do dia, ia respirar no patamar, como se de lá pudesse ver mais longe. Mas com patamar ou sem patamar, eu estava farta, mais que farta.

"Como diz? Ah! a senhora pôs o dedo na dificuldade. Farta de quê, ao certo? Mulher tão feliz, como dizia Mme Gâteroy, quando falava de mim. Mulher tão feliz... Perfeitamente, é o que eu teria sido, se na minha vida pequenina, de quando em vez, aparecesse algo de grande. Ao que chamo grande? Sei lá, minha senhora. Coisa que nunca tive. Se ao menos uma vez a tivesse, garanto que a saberia reconhecer logo como grande.. .

Levantou-se e foi sentar-se na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos, bem à minha frente. Um de seus olhos encarquilhava-se nervosamente e entre as sobrancelhas tinha incisa uma ruga, mas nem por isso me pareceu mais feia, ao contrário.

"Curiosos os pressentimentos, minha senhora! Não falo dos meus, falo dos de meu marido. Naquela época, ele me propôs, à queima-roupa: "Se quiseres, em julho voltaremos a Yport, para passar um mês, como há dois anos; isso te faria bem." Yport? Oh!, não é mau, é bastante familiar, como praia, mas não faltam as personalidades parisienses. Quando lá estivemos, víamos quase todos os dias Guirand de Scevola - esse pintor que se tornou tão conhecido. Pintava o mar em fúria, d'après nature, com os pés do seu cavalete enfiados na espuma das águas. Era um espetáculo, todo mundo olhava... Naturalmente, respondi ao meu caro Exô: "Bela idéia, ir atirar ao mar nosso dinheirinho." - "Quando se trata de ti, tornou ele, dinheiro não conta." Naquele dia e em muitos outros, jurei a mim mesma jamais dar desgosto a um homem como aquele. Aliás, não seria a viagem a Yport que traria à minha vida algo de grande. A menos que eu salvasse alguma criança que se estivesse afogando... Mas eu nem sei nadar.. .

"Francamente, tornei-me muito infeliz. Afinal, sabe o que fui imaginar? Imaginei que o que a vida não me dera, encontraria na morte. Disse comigo que quando a morte se aproxima, não depressa demais nem com muito ímpeto, a gente deve ter momentos sublimes, os pensamentos se elevam, deixamos tudo quanto é mesquinho, tudo quanto nos diminui, as noites mal dormidas, as misérias do corpo. .. Ah!, que consolo fui inventar!... Transportei para aqueles momentos todas as minhas esperanças, imagine a senhora.

"Oh! claro que sim, Madame! Pensei em meu marido. Dias e dias, noites e noites. Na tristeza dele. Faça-me a honra de crer: eu pesei tudo, encarei coisa por coisa, antes de me pôr a caminho. Uma vez embalada, porém, fui parar longe..."

Mme Armand abaixara os olhos para as mãos que cruzara e, inesperadamente, sorriu:

"Minha senhora, morre-se raramente por ter perdido alguém. Creio que mais se morre por alguém que nunca se teve. Mas pensa a senhora que me matando eu não perdia cruelmente meu marido? Depois, afinal, meu bem-amado Geo poderia reunir-se a mim, se sofresse demais... Creia, por favor, que antes de me pôr a caminho, cuidei dos mínimos detalhes. Parece nada, mas tive muita complicação. A gente pensa que é coisa pouca deitar na cama, engolir um horror qualquer e adeus! Só para arranjar a droga, quanto andei por aí traficando, quanta história tive que contar! De repente - um dia em que houve um acidente com a luz vermelha do laboratório e meu marido foi obrigado a sair logo depois do almoço - aproveitei. Mais um pouco e largava de tudo. Mas eu já estava presa, minha idéia era o que me dava forças, a idéia daquela espécie de...

Arrisquei um termo do qual Mme Armand se apoderou avidamente:

"Sim, Madame, apoteose! Justamente, apoteose! Naquele dia andava inquieta, perguntava cá comigo que amolação me apareceria ainda. Pois bem, a manhã passou-se num abrir e fechar de olhos. Em vez de almoço tomei uma infusão. A cama com os lençóis bordados, a casa bem arranjada, pronta a carta para meu marido, meu marido com pressa de sair... Chamei-o para lhe dar o casaco de meia-estação e pensava; ele quebrara aquele frasco de hipossulfito - lembra-se?

"Acreditei enfim estar sozinha. Fechei a porta a chave, instalei-me. Sim, aqui, mas enfiada na cama, com travesseiros bordados, bem frescos, nas costas. Bom! Assim que me deitei, lembrei-me da lavadeira. Levantei-me, escrevi umas palavras num papel e deitei-me de novo. Engoli primeiro uma cápsula para prevenir espasmos estomacais e esperei dez minutos, como estava prescrito. Depois, engoli a droga, de uma só vez. E acredite - Mme Armand torceu um pouco a boca - não era nada apetitosa.

"Depois? Depois fiquei à espera. Não, da morte, não; do que prometera a mim mesma, para antes. .. Estava como que num embarcadouro. Não, sofrer eu não sofria, tornava-se velha. Para cúmulo, meu pés começaram a esquentar, pois que estavam calçados, no fundo da cama e doíam que era o diabo, nos pontos em que estão machucados. Pior: imaginei que batiam na porta. Disse comigo: "É de propósito, isto hoje não acaba". Sentei-me na cama e recapitulei, a ver se não havia marcado alguma "pose", escutei... Mas pensei que eram os zumbidos dos ouvidos que começavam. Deitei-me de novo e recitei uma oraçãozinha, se bem que não seja particularmente crente: "Meu Deus, em vossa bondade infinita, tende piedade desta alma pecadora e desgraçada..." Não conseguia recordar o resto, ora veja!. .. Mas isto bem podia ter sido suficiente, não acha?

"E eu fiquei esperando. Esperando minha recompensa, a chegada dos belos pensamentos, de um par de asas bem grandes, para me levar, para me perder, para que eu não fosse mais eu... Minha cabeça rodava, pensava ver em volta de mim enormes círculos .. . Por um momento, senti-me como nesses sonhos em que a gente pensa estar caindo do alto de uma torre, mas foi só. Foi só isto - a senhora acredita? - isto e as minhas idéias e amolações de todos os dias e daquele também. .. Por exemplo, atormentava-me porque o meu caro Exô não teria naquela noite, quando voltasse, mais que carne fria e salada, além da sopa requentada. Ao mesmo tempo, pensava: "Ainda vai ser demais, a tristeza da minha morte lhe apertará o estômago. Todo o mundo vai ser gentil para com ele nesta casa.. . Meu Deus, tende piedade desta alma pecadora e desgraçada..." Jamais acreditaria que o que mais me doeria, na hora da morte, seriam os pés...

"Os zumbidos e os círculos faziam roda em volta de mim, mas eu esperava ainda. Esperava quietinha, tão ajuizada..

Escorregou para o centro do leito e, retomando a atitude e a passividade da sua morte transferida, fechou os olhos dos quais eu via apenas a linha dos cílios, emplumada e negra.

"Não perdi a cabeça; fiquei escutando os ruídos da escada, lembrando do que esquecera, ou deixara à matroca, do lado de lá, isto é, do lado de que me despedira. Reprovava a mim mesma aquelas caminhadas a pé que andara fazendo à noite, pouco me preocupando com meu marido que podia estar se aborrecendo, sozinho em casa, depois do dia de trabalho ... Uns nadas, umas ninharias, reflexões desinteressantes - aí está o que nadava acima dos círculos e zumbidos... Vagamente, lembro-me que desejei levar as mãos ao rosto, para chorar, e não pude; estava como que sem braços. Disse comigo: "É o fim. Como é triste não ter na morte o que tanto quis na vida. . .

"Sim, acho que é só, Madame. Um frio terrível veio cortar o fio de meus pensamentos; e nem disto estou bem certa. Do que estou certa, certíssima, é de que jamais tornarei a tentar me suicidar. Já sei que o suicídio não me pode servir para nada, fico por aqui mesmo. E julgue a senhora - sem ofender Mlle Devoidy - se estou ou não em juízo perfeito... Entre uma neurótica e eu, afinal, existe uma diferença!"

Mme Armand levantou-se àgilmente. Com a história, seu rosto se animara como que de febre. A conversa acabou, como uma plataforma de estação, depois de protestos e exclamações de "como é tarde" e nos separamos - por longo tempo. Ela manteve aberta a porta do apartamento, depois que saí, para que a luz do atelier clareasse o patamar. Lá ficou a "mulher do fotógrafo" à soleira de sua porta, delgada e só, mas não vacilante. Não creio que tenha vacilado uma segunda vez. Quando acontece eu me lembrar dela, vejo-a sempre apoiada naqueles seus escrúpulos que, modesta, chamava de "amolações" e sustida pelos impulsos daquela grandeza feminina, humilde e quotidiana que ela desconhecia e a que infligia o nome de "vida pequenina".

 

                        FLORA E POMONA

- Vamos dar de beber às mimosas - dizia eu à minha jardineira, na Provença.

Porque os fogos do céu bebiam a seiva de minhas quatre-saisons transportadas e suas folhas ob-longas, semelhantes às da oliveira, pendiam sedentas. A jardineira, porém, sacudia a cabeça:

- Já as reguei ontem, agora só amanhã. - Mas olhe para elas, estão com sede! A jardineira levantou os braços:

- Ah! se fica aí a ouvi-las, elas pedem mesmo. Quanto mais lhes der, mais querem. Quase me obrigam a ir às escondidas para regar os tomates podados, ao lado delas.

Por um pouco não as ameaçava com castigos, como fazia à sua pega mansa, que acusava de bater meio-dia às onze e meia para ganhar mais cedo sua refeição. Falando de criaturas enraizadas, ela me perturbava facilmente com suas palavras de adivinha ou curandeira. "Fazem-se fraquinhas de propósito", dizia ela baixando a voz e designando as mimosas das quatro estações. Diante dos desmaios e ressurreições dos vegetais, diante de suas rápidas reviravoltas em direção à luz, de sua teimosia, tanto em não morrer como em matar, eu era, aliás sempre fui - e por demais - propensa a chamar astúcia e sentimento ao que, provavelmente, não passa de reflexo mecânico. Na tela, as ampliações animadas - grau do milagre, indiscrição maior da fotografia - contrariamente ao que a princípio eu esperara, me desapontaram, como se o papel da exatidão fotográfica fosse, às vezes, o de violar a verdade pelo desmesurado, o de enganar o olho humano e embriagá-lo com acelerações e movimentos lentos.

O que mente ao ritmo mente, quase, à essência da criatura. Não foi através do cinema que experimentei mais intensamente a angústia e o prazer de sentir viver os vegetais; os meus sentidos, fracos mas completos, apoiando-se uns aos outros, serviram-me melhor do que o cinematógrafo a reforçar longamente apenas a vista.

Como tantos que viveram em contacto com a suave multidão vegetal, conheço-lhe a benignidade e protesto diante de um ritmo artificial que transforma em desesperada corrida o vagar da germinação e do crescimento, as eclosões em bocejos de feras, a gloxínia em armadilha, o lírio em crocodilo e os feijões em hidras. Se quiserem que eu aceite esse gigantismo do cinema, dêem-me sincronicamente e com igual mentira, a barulhada das plantas, também aumentada mil vezes, a trovoada das florações, a balística das sementes e o canhoneio das favas. O reino vegetal não é mudo, se bem que não chegue até nós sua atividade senão por acaso e exceção, como recompensa sutil, concedida ou à nossa vigilância ou a uma certa preguiça que equivale, pelo seu fruto, à observação.

Em Cours-la-Reine, eu gostava de visitar as exposições florais que tão fielmente marcavam as etapas do ano. Vinha primeiro a azálea, depois o íris e as hortênsias, as orquídeas e, por fim, os crisântemos. Lembro-me de uma prodigalidade extraordinária de íris em maio.. . Milhares e milhares de íris, um maciço azul junto a um maciço de amarelo, um violeta aveludado diante de um malva muito pálido, íris negros cor de teia de aranha, íris brancos florindo, íris, íris azuis como tempestade noturna, íris do Japão, de grandes línguas... Havia também trigrídias com seus ouropéis de saltimbancos magníficos. .. Milhares e milhares de íris ocupados em nascer e morrer pontualmente, incessantemente, em mesclar seu perfume a uma fedentina de adubos misteriosos. ..

Por barulhento que fosse, nosso Paris de antigamente possuía às vezes seus momentos de paz. Em Cours-la-Reine, entre uma e uma e meia, recolhidos os últimos caminhões, os amadores de flores e de silêncio podiam gozar de uma trégua estranha e de uma solidão em que as flores pareciam convalescer da curiosidade humana. O calor filtrado pelo teto de lona, a ausência de qualquer brisa, o peso soporífico de um ar carregado de perfumes e de umidade, são bens de que Paris, habitualmente, é avaro. Aos milhares, os íris pareciam chocar febrilmente o verão. Reinava a paz, mas não o silêncio; perturbava-o um ruído insistente e leve, mais fino que o roer dos bichos-da-seda, que um arranhar de tecido. O rumor de um entreabrir de élitros, de uma patinha de inseto, o rumorejar de uma folha morta dançando - eram os íris, sob a luz peneirada e propícia, descerrando a membrana seca, enrolada à base do seu cálice, a eclodir, aos milhares...

Rangido de uma existência e de uma exigência muito reais, golpe de força do botão, ímpetos de ereção de uma haste exangue à qual acabam de dar o alimento líquido, avidez de hastes aquosas como as do jacinto, da tulipa e do narciso; fantástico crescimento do cogumelo que sobe brandindo na cabeça redonda a folha que o viu nascer - tais são os espetáculos e músicas pelos quais, à medida que se agravava minha curiosidade, me vinha o respeito. Quererá isto dizer que, por escrúpulo ou ternura, eu poupe sofrimento ao vegetal, hesite no cortar uma fibra, abater uma cabeça, estancar a seiva? Não. Amar mais não leva a uma piedade maior.

Todos estremecemos quando uma rosa, desfazendo-se num quarto cálido, abandona uma de suas pétalas em concha, vogando sobre algum mármore liso. O som de sua queda, muito baixo, nítido, é uma sílaba de silêncio e basta para comover um poeta. A peônia despetala-se de uma só vez, desprendendo uma roda de pétalas ao pé do vaso. Mas falta-me o gosto dos espetáculos e símbolos de uma graciosa morte. Falem-me antes do suspiro vitorioso do íris que vem à luz, do árum que range ao desenrolar sua trompa, da grande papoula escarlate que empurra suas sépalas verdes e um tanto peludas com um pequeno "cloc" e depois, apressada, estira sua seda vermelha sob o impulso da cápsula das sementes, penujada de estames azulados! Tampouco a fúcsia é muda. Seu botão avermelhado não divide seus quatro postigos nem os levanta como cornos de um pagode sem primeiro estalar levemente os lábios; só então liberta, brancas, róseas ou violáceas, suas lindas anáguas amarrotadas.!.. Diante dele, diante da ipoméia, como não evocar outros nascimentos, o ruído enorme, inapreensível, de uma crisálida rompida, a asa úmida e dobrada, a primeira patinha tateando um mundo desconhecido, o olho feérico cujas facetas recebem o choque da primeira imagem terrestre?... Não me comovem as agonias das corolas. Mas o começo de uma carreira de flor me exalta, assim como o início de uma longevidade de lepidóptero! O que é a majestade do que acaba perto das partidas titubeantes, das desordens da aurora?

Defesa, ataque, luta para durar e vencer: em nosso clima não vemos o pior dos combates a que se entregam as grandes e devorantes plantas exóticas. Mas, aqui, a suave e pequenina pinguícula enrola no inseto sua folha peluda e o digere, o sifão da aristolóquia se enche de minúsculas vítimas. O apetite do vegetal, se o faz semelhante ao animal, não o torna para mim mais difuso de amor que um bicho humanizado. "Não quer um macaquinho de presente?" - perguntaram-me certa vez. - "Não, obrigada - respondi - prefiro um animal". Não gosto das flôres-armadilha, com seus jogos de mandíbula e suas secreções mortais. Quantos crimes perpetrados de um reino para outro! Pois não serei obrigada, neste mesmo verão, a libertar a abelha presa no teu broto pegajoso, ó meu belo castanheiro? Ao menos, tu és belo. Mas que pensar - para vergonha da família das barbas-de-bode - de certo árum? Sua haste fálica tresanda em volta um cheiro de carne deteriorada que engana e embriaga nuvens de insetos. Entregam-se à tontura, depois ao torpor e vemo-los aglutinados, amontoados sobre a trompa, brigando por tudo quanto ela oferece, inclusive a morte, até que, prostrados, esquecem todos os antagonismos. Horrorizada, gostaria de saber...

Não, não gostaria de saber. Que o pequeno segredo negro permaneça ao fundo dessa flor-lugar--suspeito. Grande vantagem seria definir, denominar e prever o que a ignorância me permite considerar maravilhoso! Nem a flor é explicável, nem sua influência sobre nós. Uma folhagem é maravilhosa pela forma e colorido? Nossa curiosidade dirige-se, apesar de tudo, à sua modesta flor. Certo adolescente perdeu boa parte de sua admiração pela buganvília - esse manto de fogo alaranjado, violáceo ou cor-de-rosa que cobre os muros argelinos. "Desde que eu soube que não passam de brácteas..." - disse ele, sem mais explicações.

Ora, brácteas apenas. Não queremos reverenciar senão a cratera, que é a flor.

Sabe Deus se eu admiro, sobre as suaves terras da Ile-de-France, os pomares... Manuseados e re-manuseados, surribados e atormentados pelo homem, enriquecidos por ele, não há uma polegada de terreno em certos cantões preferidos, que não tenha dado cerejas, peras, groselhas ou framboesas. O talhe em forma de taça coloca a fruta ao alcance da mão e, dividindo a árvore, permite que desçam sobre ela os raios do sol e as brisas. Entre a framboesa escura e roxa, a "montmorency" que tem a carne tão fina que o caroço transparece contra a luz, a "mirabelle", sardenta como uma face - a quem dar o prêmio? E, no entanto, a glória da árvore frutífera, a imagem mais tenaz e apaixonadamente contemplada que dela conservamos é a lembrança de sua efêmera floração. Aqueles regalos brancos enfiados nos braços das cerejeiras, o apressado branco e verde a estrelar as ameixeiras, o cremoso branco das pereiras, todo eriçado de estames pardos, e as macieiras, afinal, brancas como rosas, róseas como a neve à aurora - esta espuma, esses cisnes, esses fantasmas e anjos, em oito dias nascem, desfraldam-se e se aniquilam, morrem esparsos. Esta semana, porém, apaga o esplendor sólido da duradoura e alegre estação dos frutos. Com a mão cheia a sopesar uma pêra alongada, dizemos: "Lembras-te de quando floresceram as pereiras desta colina - todas no mesmo dia?"

É que mesmo modesta e pequena, de poucas cores, uma floração conserva todas as características da explosão, enquanto o despontar de uma folha só leva a uma folha aumentada. Belo é o tinhorão, com sua folha grande e orelhuda, irrigada de rosa, verde e marrom! Mas, depois de ter sido folha pequena, não passa de folha grande. Do botão à corola, intervém um milagre de esforço e de eclosão. Só a flor tem sexo, segredo, apogeu. Depois dela, a semente convulsiva da balsâmina, com seu metralhar, e mesmo o crepitar da fava da aliaga madura, têm menos mistério.

Há quanto tempo vem o homem trocando a vida pela conquista da planta? Uma flor, tudo por uma flor. E o alpinista mata-se no momento de atingir a genciana, o rododendro ou o edelvais. Os exploradores do outro hemisfério - chamem-se eles Marcoy, Charnay ou Harmand - atravessam a América do Sul de oceano a oceano, afrontam o México. .. Por uma flor? Não, mas a tentação da flor, eles a encontram - e não a acreditavam tão poderosa. Lá as febres os apanham, largam-nos e tornam a possuí-los; sobre suas cabeças balançam-se cobras azuis e verdes e as feras hesitam espantadas, diante do homem branco. Enquanto isto, ele colhe orquídeas e, instalado em um banquinho de vento, na encruzilhada de quatro ou cinco riscos mortais, entre um tufão e outro, colhe uma orquídea com seu sortimento de pétalas, antenas, línguas, lúnulas e números, antes que sobre ela se lancem as formigas invencíveis... Um de meus heróis, que espreitava num carreiro de jaguares, levantou a vista e deu com uma flor desconhecida lá em cima; o jaguar passou tão fresco e florido de pintas que rivalizava com o Oncidiun papilio que o caçador preferira a ele... No pouso, o homem, meio cientista, meio criança grande e atônita, esquecia, estômago vazio, pés feridos, mosquitos despropositados e escorpiões - para dar à planta semimorta seus primeiros cuidados. Dobrava-a, fixava-a no herbário onde ela se tornava, como qualquer cadáver, um trambolho...

Divertida, mas com respeito, leio e releio estas memoráveis viagens de pobres. Quase sem dinheiro, três burros carregados, alguns fuzis, um punhado de negros, a quinquilharia e.. . o herbário. Era o herbário que o homem brandia, nadando com um só braço em correntezas rápidas; o herbário que se cobria de ponchos e folhas de palmeira para protegê-lo dos dilúvios tropicais, que se trancava numa lata, por causa das formigas... Acontecia que se o herbário chegasse a um museu e adormecesse num hipogeu provincial - a maravilha dissecada e esterilizada mais leve que uma batata palha, lá ficava, chata e irreconhecível, semelhante a uma coisa que nunca viveu. Mas o sertanista, homem honesto, corajoso e humilde como sempre, esmerava-se por chamá-la à vida: "Vejam aqui, esta parte da planta: ao natural, é de um róseo cor de carne, indizível, salpicado de púrpura. .. Aqui a flor destaca da corola uma pluma aérea de estames, um esporão amarelo-ouro, belíssimo ... Naturalmente, assim a gente não pode imaginar. .. Quanto ao perfume, é tão suave e imperioso, ao mesmo tempo, que afasta o sono... As noites... naquelas latitudes..." E interrompia a descrição impossível, com um gesto de quem desiste...

No entanto ele sabia falar e mesmo escrever muito bem sobre as coisas de que gostava, aquele homem que, antes do socorro do cinema ambulante e da telefonia com ou sem fio, percorria os antípodas e metia-se na cabeça que havia de subir o Zambeze e o Amazonas, forçar os segredos do Mato Grosso e trazer, entre a camisa e o peito, um bulbo até então inacessível. Além dos nomes que já disse, chamava-se também Baker e Serpa Pinto. Além de suas estranhas suíças, trazia uma barba de fazer a gente descer dos próprios olhos e uma cabeleira leonina que, ao que ele mesmo assegurava, o protegia tanto dos raios do sol quanto do orvalho da noite tropical. Ingenuamente, da Europa, levava para lá seus cães favoritos e depois chorava ao vê-los morrer, quase queimados vivos, sob sessenta graus centígrados. Sabia privar-se de tudo mas carregava consigo repugnâncias burguesas e não se pôde habituar a certo cereal que o teria curado da disenteria. Esse bravo, este coração puro, este francesinho requintado, este e não outro, é que ia colher flores em pântanos ainda mais assombrados que um pesadelo, armado apenas de um bom quilo de quinino que resumia toda sua panacéia...

Hoje em dia, só neste homem é que me fio, para correr o mundo sem deixar minha poltrona. Com ele caço o leão, salvo um colibri, assaltado pelas tesouradas de duas formigas ferozes e desmesuradas e conquisto delicadamente, nalguma galharada gigantesca, entre uma sucuri em jejum e um ninho de vespas-construtoras, a extravagante oncídia de Galeotti.

Quererá isto dizer que sou particularmente maníaca - como ele - pela espécie das orquídeas? Não. É em vão que elas estendem suas antenas rubras e cobrem-se de arabescos cor de sangue seco erigindo seus prestígios sobre um pedestal-abdome grande e purpurino como uma ameixa "de Monsieur". Que se mostre outro espectro floral de pântanos funestos sob aspecto de fada apenas rósea, toda de gazes finas... Depressa teria eu, em tão estranha companhia, suspirado pela rosa. Mas é o meu guia - meu febril e errante guia de pés de chaga - que lhe dá caça, e eu o sigo. Lá vai ele cheio de fé, com um papagaio ao ombro, uma cabrita fiel que recolheu e um canguru menor de idade enfiado numa bolsa de couro, na ponta de um pau. Extasiado, vai murmurando ladainhas botânicas, "Ah!, é a Arístolochia Jabiosa, é a Irichopilia tortilis". Só o de que não gosto é que me ensine vocábulos latinos quando desejava ouvir nomes populares. Mas que nomes familiares haveria a gente de dar a criaturas enlouquecidas de mimetismo, disfarçadas em pássaros, em himenópteros, em chagas, em sexos? A aristolochia tem bico de pato, uma peste eruptiva manifestada em violáceo sobre fundo esbranquiçado e possui, pendurado ao traseiro, um amplo saiote espanhol que cheira a cadáver. A miltonia reúne em si trapos geográficos, continentes castanho-avermelhados sobre mares amarelos. Ainda passa o oncidium, ainda passa a stanhopea, e a trichopilia. Até concedo ao meu guia sua miragem suprema: a cidade natal, aquela em que premedita depor, miraculosamente salva, embora um tanto pálida e anêmica, como ele mesmo, a flor única, o bulbo precioso, o pobre monstrinho friorento - c que restar da volante orquídea, arrancada aos negros continentes.

Em nós, a criação de um jardim remonta a concepções infantis. Com a perda da infância, vai-se grande parte do dom da invenção. Só nossos jardins de antanho foram criações autênticas, apesar de suas exíguas dimensões e da ingenuidade aparente daqueles cercadinhos plantados com malmequeres, folhagens de cenouras e bagas de espinheiro, rodeados por um minúsculo riacho cuja areia ia bebendo toda a água despejada pelo regadorzinho. Não há criança que não tenha desenhado seu jardinzinho, conforme sua idéia. Meu segundo irmão construía túmulos de boneca, com colunas do tamanho de um musaranho e, entre elas, passeava aquela sua alma que ninguém jamais soube decifrar. Eu era mais simples; desde tenra idade, senti horror pelas aléias retas e pelos jardins quadriláteros. Queria-os submetidos a curvas, encostados a declives ou a algum bosque e virados para o sul ou para oeste. Não há ser humano que mude tanto que em suas decorações e enfeites da idade adulta não seja reconhecível a improvisação que brotava da criança e se concretizava a um canto do pomar, sob a copa cerrada de um teixo, com o auxílio de uma pazinha de brinquedo.

Muitos jardins guardo eu na lembrança. Quase todos me satisfizeram, menos os que eram jovens demais e teriam que ser plantados por mim. Cobrir um namental, se sou eu quem vai, ou mesmo restaurar encordoamentos e palmas. Mas a árvore chamada ornamental, se sou eu quem a lança à terra, demora demais; vou eu mais depressa do que ela. Já não tenho tempo de esperar pela sua linda copa, que dará um dia sombra redonda, nem pela ramaria grande e desordenada. Idade é para os carvalhos, para as faias, para o que possui essência meditativa. Para nós, chegando o nosso outono, o que sobra é lidar alegremente com arbustos que dão flor, é divertir-se com as weigélias, as dêutzias nevosas, com o povo miúdo dos lilases e acácias e essa portadora de nuvens irisadas pela manhã e pelo orvalho, a árvore de peruca...

Minha infância e adolescência sedentárias, limitadas pelo espaço de dois ou três cantões; não aprendi, pois, a arte da jardinagem. Mas tampouco a entendiam os castelos das redondezas; há muito que ninguém pensara em rejuvenescer ou revolucionar o desenho daqueles parques, geralmente de estilo Luís XIV, revisto pelo Segundo Império. Ao centro dos gramados, diante de um terraço, com seus leões escamosos, elevava-se a compoteira de três bandejas escalonadas que fornecia água ao tanque e aos peixes vermelhos. Em volta, subsistiam as platibandas à francesa, empobrecidas pelo tempo e pela rotina., Pairava sobre os maciços solares, por isso mesmo, um ar de família. O jardineiro do castelo de Saint-Sauveur fornecia sementes aos Jeannet, que partilhavam mudas com os Orme-du-Pont, cujo mordomo, por sua vez, floria os canteiros dos Barres... Às vezes, algum jardineiro mais jovem e menos displicente escrevia com plantas anãs, nalgumas das rampas de grama que sustinham os terraços, algumas letras entrelaçadas, algum brasão, ou tentava ressuscitar, por meio de podas severas, as laranjeiras já velhas, em suas tinas.

Aos domingos, meio por prazer, meio por obrigação, os passeios de nossa infância e adolescência tinham por alvo uma das mansões vizinhas que, para sua defesa, só possuíam grades escancaradas, mata--burros aterrados e muros cimentados pela hera e pelo espesso e aveludado musgo. Destes limites não passávamos. A presença e o renome de algumas famílias antigas - um tanto empertigadas, caseiras e fiéis à missa dos domingos -- era o bastante para nos barrar o caminho. Nós, meninas, com falso atrevimento, avançávamos em pequenos bandos até uma das alamedas de entrada e então, a majestade do vazio nos emudecia. Mais alguns passos e, a uma volta da aléia orlada de velhos lilases, de bolas de neve e azáleas, aparecia, desvendado e nu, o castelo, reverberando ao sol das quatro horas.

Só no canil a alta voz dos cães de caça nos denunciava; mão nenhuma afastava as altas persianas entrecerradas; ninguém empunhava os varais do carrinho de mão esquecido diante do patamar. Vinham ao nosso encontro somente perfumes que caminham lentamente, eram os delegados da roseira amarela, da tília em flor e da grande papoula escarlate, a de haste peluda que nem filhote de javali que, no fundo de sua corola, esconde a mancha azul-escura de uma esquimose.

O silêncio bordado de ramagens grandes pelas abelhas e rãzinhas verdes; a quentura sobre a qual se curvavam os renques de arbustos maciços; uma tempestade mantida à distância detrás de uma colina; o pedalar longínquo de alguma batedeira de trigo; tais são, ainda hoje, os materiais que me servem para reconstruir o estio, como se a bela estação - independente da temperatura alta e estranha às praias ociosas - fosse de novo submetida ao poderio de uma certa lentidão do tempo, reservada às províncias do Centro, e cuidasse de lá ficar durando, escondida e cercada de trepadeira. Se vejo um pêssego mamilo-de-vênus, ainda meio verde, já meio rosado, mordido e abandonado pelo dentinho do rato que o apanhou - vejo o verão. Nalguma modesta mansão escancaram-se as janelas sobre o negrume dos quartos, enquanto as cortinas de musselina são aspiradas pelo vento cá de fora? É o verão. Verão, também, decantado nas réplicas ritualísticas trocadas pelas nossas damas de aldeia, que marcam o domingo pelo abrir de suas sombrinhas; verão, nos nomes dos morangos de antanho que se chamavam capron rosa, bela-de-junho, liégeoise-Haquin, este último era feio, amadurecendo tornava-se de um azul-cianótico, perfumava como fruta tropical e não passava do pomar à mesa sem se arranhar todo, sangrar, manchar a cesta, manchar toalha. .. Assim és, verão, tu e teu agosto e teus hóspedes receosos de sol. Colocavas à sombra as crianças do castelo e, seus pais, detrás das venezianas, em volta de um jantar bem servido. Mas a sala de jantar é glacial e os pequenos espirram. Entre a torta e o bolo, pavoneava-se um maravilhoso melão, misterioso como um poço, que bebeu um copo de Porto e duas colheres de açúcar em pó... E quando saímos, depois do jantar, o sol mudou de lugar e canta a saparia. .. Verão, oh!, meu deserto...

Certa vez, estando eu com o nariz metido entre dois barrotes de uma grade, vi à borda do gramado central uma mulher já bem gorda, toda de algodão branco e chapéu grande, de palha, abaixando-se com dificuldade para enfeixar os renovos das roseiras recentemente podadas. Seguia-a com os olhos um homem alto e magro; quando ele ergueu o chapéu para enxugar o suor da testa, reconheci, pelos cabelos brancos como alumínio, o senhor do castelo.

- Descansa, Yolande - gritou ele. - Sabes o que te espera, se abusas!

A operária de branco respondeu com algumas palavras que não ouvi e corei de haver surpreendido na mais humilde intimidade um casal que só se exibia à missa dos domingos, empertigado dentro de uma armadura de tafetá e engomados, distribuindo o que lhe restava de mocidade pela distância compreendida entre o degrau do break e o banco da igreja marcado por uma coroa.

Desde sempre, o francês, vivendo em suas terras por economia, sabe que a cultura das flores e os cuidados que exige são prodigalidades de tempo e dinheiro. Limita seu luxo de jardineiro à roseira rústica, ao complacente lilás, ao espinheiro vermelho - e ainda acusa a este último de trazer-lhe taturanas. O aldeão que se apaixona pelo seu jardim é logo tido como "original". Na vila principal do meu cantão havia o homem das rosas, um velho de boca de tartaruga que trincava uma haste de rosa, de uma ponta do ano a outra. No inverno, ele metia dentro de casa, em potes, um verdadeiro harém de rosas. Entre nós, a gloxínia apareceu tarde e criou algumas rivalidades. Não destronou a grande "taturana", esse regalo de campânulas malva, que sobe desmesuradamente e emoldura de um só jato as janelas todas, cobrindo-as de flores pela estação inteira.

O solar bretão tem seus trevos grandes e arborescentes, suas giestas e mesmo suas mimosas, suas nobres alamedas de entrada como raios de uma estrela, plantadas com sêxtuplas fileiras de árvores, suas muralhas compactas, com pinheiros iguaizinhos e sem brecha. Pouco hospitaleira por natureza, o francês trata os terrenos que o cercam de modo defensivo; rodeia-os de rosas-de-cão, acácias européias e zimbros; sendo preciso, rodeia de arame-farpado o seu jardim e o seu primeiro deboche de imaginação é para a cerca. No Sul, o vendedor de terrenos inventou uma tentação para o comprador. Cerca as paredes do loteamento com um pequeno muro ao qual acrescenta uma paliçada. E o novo proprietário, sentindo-se seguro e tendo tomado o gosto do que "é seu" por meio da grade e da fechadura, mostra um pouco os dentes e sorri por detrás dos barrotes, depois toma em seu terreno as medidas de um jardim meridional.

O jardim da casa em que nasci perdeu, com a ajuda do tempo, o hábito de afastar intrusos. Só lhe conheci uma grade benigna e portões abertos dia e noite. O portão da carroça, a aldeia toda sabia sacudi-lo pelo batente para fazer tombar lá atrás uma pesada barra de ferro que o deveria trancar. A hora de apagar a lareira, as últimas recomendações clamavam ao bom senso: "Ninguém feche a porta do patamar, que uma das gatas ainda não voltou! Será que, ao menos, a porta do palheiro está aberta? Senão aparece o gatão às três da manhã, miando debaixo da minha janela para que eu o deixe entrar!"

O Jardim de Cima e o Jardim de Baixo - os nomes revelam o bastante sobre o desnível do solo - deixavam-nos sair clandestinamente, pulando o muro e, clandestinamente, voltar. Em ambos, uma mistura de útil e supérfluo punha tomates e berinjelas ao lado de píretros e salpicava alfaces no canteiro das balsâminas e heliotrópios. Se nossas hortênsias andavam de cabeça soberanamente inchada e cor-de-rosa, não é que resultassem de tratamentos especiais, é que tocavam quase à bomba d'água e eram beneficiadas pelos restos dos regadores e da lavagem dos cântaros, que era atirado para o alto; bebiam à vontade. Para o prestígio de nosso jardim, seria preciso mais que a madressilva centenária e infatigável, que a glicínia em pequenas cascatas e a roseira coxa-de-ninfa? Todas as três, subindo pela grade, despregando-a, contorcendo-se pela calha e entrando sob as ardósias do telhado, ensinaram-me o que é profusão, os aderentes perfumes e sua excessiva doçura.

Cada um gera à sua própria semelhança. Meus amigos vos dirão que eu não arrumo jardins gráceis e parcimoniosos. Sinto-me bem entre os maciços floridos que, de repente, barram as aléias, limitando a vista, e não gosto que entre em minha casa, a toda hora, por todas as saídas uma paisagem gloriosa. A uma árvore que os mereça, eu dou ar e espaço, depressa e como se fosse eu mesma quem devesse morrer, sufocada. Mas nos jardins que orientei, a desordem foi sempre simulação: um certo descabela-mento só se obtém com a colaboração da tesoura de podar.

Meus olhos atônitos viram um jardim de Blasco Ibanez, mobiliado com maciços bancos de faiança onde se viam, esmaltadas sobre fundo branco, todas as frutas, maçãs, damascos, laranjas, peras. Monumental pomar, frutas de esmalte funéreo, a quebrar dentes de vivos e mortos - bancos de repouso tão acolhedores e macios quanto um catafalco espanhol.

Nem premeditação longa nem divagação aplicada trazem grande proveito aos jardins de nossa França. Jamais contemplei os jardins de Claude Monet mas sei que ele os queria azuis, às vezes, e às vezes, róseos. Por entre essas aparências, cuja magnificência organizara, ele caminhava, igual a si mesmo, envolto numa veste clara e ampla. Lembro-me que minha juventude impertinente fez, deste anfitrião imutável de edens mutáveis, um juízo escandaloso; pretendi ver aquele senhor de jardins declinar ou reverdecer, alternadamente sombrio e radiante, conforme o humor e a idade, entre estações e plantas subtraídas à sua tirania de artista. Mas quem sabe se não me foi mal contada a história de Monet e de suas flores governadas? ...

Ao contrário, agrada-me o dito de uma francesa, chegada de uma longa estada nas terras em que a morna exuberância quase não conhece variedade: "A rigor, pode-se dispensar a primavera; mas, não ter outono, isso não; no fim, não pude mais." Frase singular, a aparentar que mais podemos esperar da morte de todo ano que das primícias. Como dizia o mais amável dos iletrados, amador de jardins e de tudo o que vive, periclita e prospera: "Que querem vocês? as tempestades são necessárias..."

Este iletrado nascera a quarenta quilômetros de Paris, tinha quase a minha idade e não sabia ler nem escrever. Quando eu manifestava o meu espanto, ele respondia simplesmente: "Isso não se encontra assim em todo canto."

- Mas a lei torna obrigatório...

Ouvindo estas palavras, volvia o olhar ao horizonte denso e profundo que o protegera do soldado e do mestre-escola, à floresta de Rambouillet, que começava à minha porta e parecia não acabar mais, à bela floresta dominial de que eu só conhecia os caminhos mais claros e batidos, que levam aos tanques de Holanda, aos jacintos do Gros-Rouvre, às anêmonas selvagens de Mesnuls, às grandes digitais vermelhas das matas de corte acima de Saint-Léger. . .

Mas para o meu simpático iletrado, a floresta não era pródiga só em flores. Era seu refúgio, sua escola, o livro em que a ciência renascia para ele todos os dias, virgem e cristalina, escrita em raios de sol e chuva; a floresta tudo lhe dera e ele jamais deixara os ninhos, os bosques velhos e a caça... Em suma, era um homenzinho magricela e essa fragilidade - conforme ele me confessara - é que o tinha levado a casar-se e a morar sob um teto. No fim da vida, fazia serviços de jardineiro para os parisienses que mordiscavam a orla da floresta, construindo ali casas perecíveis. Em minha casa não trabalhava, pois eu esperdiçava todo o seu tempo consultando a memória segura e infalível daquela criatura não perturbada nem sobrecarregada pela rotina tipográfica nem pela feição da palavra impressa. Que pobre me sentia eu quando ele falava! Naquela boca, os nomes de pássaros, de árvores, de ervas, e as crônicas da floresta, se ajustavam ao objeto como a abelha à flor. Uma benevolência - ia escrevendo, uma particular santidade - desvia-o da caça proibida e do assalto aos ninhos. Os caçadores furtivos são, muitas vezes, sutis, interessam-me. Ensinam muita coisa, quando estão de veia para contar seus contos. Mas, quando silenciam, algo me afasta deles. Talvez aquele mutismo tenha escutado demais os últimos sons e os derradeiros terrores que eriçam plumagens, aglutinam pêlos e velam, com uma teia azulada, o olhar doce do bicho capturado.

Tentei esclarecer com as luzes de meu sapiente iletrado, a ignorância em que me vejo no que toca ao pássaro. Mas eu devia ter começado mais cedo; meu outro mestre, Jacques Delamain, nasceu tarde demais. Além disto, são precisos bons olhos a quem quer conhecer os passarinhos. Meu papel foi, pois, o do amador, com as alegrias e surpresas que comporta. Tive um pintarroxo que descia, ameaçador, bem em cima da cabeça da Gata. Durante uma breve estação, diverti-me vendo a abundância das alvéolas e o seu atrevimento no seguir o jardineiro; ele atirava-lhes as larvas e minhocas exumadas pela lâmina da enxada e elas as abocanhavam no vôo, como galinhas de casa. Fartei de grãos um casalzinho de tentilhões que, para entrar na pequena sala de jantar, sobrevoava a Gata, à soleira. Se, ao roçar duma asa, reacendia-se a olvidada chama caçadora nos olhos da Gata, bastava-me repreendê-la baixinho: "Gata!" e ela, para não me desgostar, extinguia aqueles faróis de perdição...

Foi meu jardineiro analfabeto - não lhe digo o nome porque sua mulher ainda chora por ele - que, ao saber de minha predileção pelo que Buffon cognominou "o mais feroz dos pássaros", ensinou-me a suspender ninhos em achas de bétula escarvadas e com uma entrada redonda feita em furo. Ele ignorava Buffon, mas conhecia bem o melharuco e achou infinitamente cômico o cognome criado pelo mestre. Apoiado ao cabo da enxada, contemplava um de meus preferidos: azul como o Pássaro Azul, verde e amarelo como a folha de amieiro na primavera, que ciscava diante de nós, esquadrinhava cascas de árvore, precipitava-se nalgum túnel de folhas mortas, saía de bico cheio e, voltava ao ninho - onde entrara, às vezes de ponta-cabeça, e às vezes trepando verticalmente com suas garras flexíveis. Da borda do ninho, atirava-nos uma advertência cominatória, um "turruititititit" vitorioso que, sem dúvida, reclamava nossos aplausos para suas proezas de melharuco, trabalhos de melharuco, acrobacias de melharuco. . . Então meu jardineiro curvava a cabeça e ria para dentro, como que recordando alguma boa piada marselhesa, e dizia:

- Oh!, o tal Buffon. . . Ora, meus amigos, o Buffon!... Hei de rir a vida toda...

Com o auxílio da reportagem jornalística e do cinema - quanto a este último, sob a forma de um argumento de filme que uma companhia italiana me comprou -- tive ocasião de passar quatro meses em Roma: de dezembro de 1916 a março de 1917. As restrições de guerra na Itália deixaram-me recordações, mas não amarguras; quinze gramas de açúcar por dia, uma bolota de manteiga, pão medido em fatias fininhas, que sei eu? Roma submergia sob a umidade vaporosa de seu inverno e eu me deliciava com aquela doçura suspensa, aquela temperatura ensolarada, ora igual à de Nice, ora sufocante, vaporizada e parecida àquele ar azulado que paira ao nível do solo, em torno das fontes termais.

Certa firma cinematográfica italiana adquirira os direitos de adaptação para a tela do mais conhecido dos meus romances e contratara a vamp francesa em evidência na época: Musidora. A artista trouxe para Roma seu humour corajoso, seus belos olhos, suas pernas perfeitas e longas, sua chocante beleza preta e branca, predestinada para o cinema - e os cineastas da Itália acharam-na troppo italiana. Uma biondinetta melindrosa seria mais de seu agrado. De morena fatal, naquele tempo, chegava a Francesca Bertini.

Remonto assim à época heróica do cinema, em que estrelas de carne e osso mergulhavam, atiravam--se de automóveis rápidos, viajavam nos eixos dos trens e montavam cavalos desencabrestados.

Na Itália, abundante de maravilhas arquitetônicas, mulheres jovens da mais modesta extração eram mandadas a remendar a roupa branca da família nos terraços e balcões que haviam visto passar, pelo menos, César Bórgia. Nos salões, o que marcava o fausto era o número de poltronas e mesmo o de pianos, suprindo a qualidade.

Como eu não falava a língua do país, visitei mal a Cidade Eterna, e pior ainda os museus, de onde saía esmagada, intimidada, abarrotada de obras-primas. Ia comer em restaurantes assaz modestos e no da Basília Ulpia, encontrei sempre com que me satisfazer, desde que me fornecessem, além do prato de massas, um buquê de alcachofras novas e pequeninas, passadas no óleo fervendo, rígidas como rosas fritas.

O filme ia rodando devagar. Automóveis de aluguel levavam para longe os intérpretes principais. Musidora, envolta em românticos babados de tule cor-de-rosa, de chapelão de palha de aba larga preso por um veludo preto, saía correndo pelos prados - sem que eu ficasse sabendo por quê. Creio que era por causa do cineasta, que era poeta. Coisa de que, aliás, ele deu-me provas daí a alguns dias.

Para a realização de uma festinha de artistas, entre pintores e modelos, ele quis autorização para filmar num jardim principesco, órfão de seus senhores e rigorosamente fechado aos visitantes. Lá entrei eu em sua companhia, num dia de abril, a despeito de um velho guarda hostil que parecia uma figura de buxo e parlamentava, mantendo a porta meio aberta. Mas já se lançava ao nosso encontro um paraíso imperioso e compassado, e tal que, só por si, deveria ter imposto respeito à nossa curiosidade.

Obra como aquela, humana e vernal, emprego assim tão refletido da estação exuberante, nem tento descrever. Recebi nas pálpebras o calor do sol malva, porque à transparência e, ao mesmo tempo, à espessura de uma cortina de glicínias, a luz mudava de cor sem encontrar obstáculo à sua claridade viva. Os cachos longos, inumeráveis, sobre uma armação vertical e escondida, cascateavam até ao solo. Outro efeito de onda e chuva vinha dos salgueiros chorões, com suas cabeleiras ralas, novas e paralelas. De maior mobilidade que as glicínias, eles vendavam e desvendavam outras arquiteturas vegetais, com pedaços de céu intercalados, gramados azuis ou violetas, um braseiro de marmeleiros-do-japão, uma ilha de lilases muito pálidos, a abrir-se sob um céu, como eles, quase incolor, uma nuvem de cerejeiras perfeitas em sua brancura, e paulóvnias, e árvores-da-judéia, irreais, ao longe, como tudo que é malva...

Seguindo por aquelas aléias de areia farinhenta, que nem mesmo rangia sob o pé, notei que não se via ali marca de passo nenhum. Um construtor de edens havia, outrora, distribuído massas e cores. O surpreendente era que tudo ainda lhe obedecesse. O senhor, morto há muito, persistia em dirigir aquele jardim, com suas águas-vivas, moldando-as aqui, como serpentes, entre as dobras das pedras ao longo das sendas, ali suspendendo-as e drapejando-as contra a luz, para que se visse, através delas, um pedaço de paisagem estremecendo, sacudido em soluços de sonho...

Atavios de moda tricentenária mantinham-se ainda em pé. Um filete d'água, cristal retorcido, jorrava da boca de um sátiro. O encantador assento de uma ninfa repousava ao centro de uma roda d'água. Uma concha virava fonte, um golfinho era uma palma d'água bipartida.

Talvez tenham outros jardins da Itália o mesmo encanto merecido, aléias em que só anda o passarinho, fontes que não estancam sede alguma. Eu só vi aquele e nem o pude esquecer nem me apaixonar por ele, como me acontece diante d'algum vale, ou de uma herdade feliz, ou de uma casinha de guarda--fronteira, em seu andor de colcíntidas, rosas-malva e dálias. .. Aquele jardim devia demasiado a uma vontade humana segura de si, que dispunha, sem erro, da natureza.

Ao meu lado, exaltava-se o cineasta, explicando quanto vinha a calhar um lugar daqueles para folguedos coreográficos. Correu à minha frente, galgou o patamar esboroado e saltou de pés juntos sobre o flanco de uma divindade ali deitada, que olhava Roma do alto de um terraço morno, longo e vazio!

- E ali... Ali... - exclamou ele, inspirado - será o desfile do cake-walk.

No tempo em que tínhamos laranjas... Falar nelas, quando faltam, é o bastante para suscitar, em nossas mucosas frustradas, uma saliva clara, a mesma que saúda o limão cortado de fresco, a azedinha crua, a mordente pimpinela. Mas a necessidade que temos de laranjas vai além da cupidez. Desejaríamos ver laranjas. Pensamos naquele reflexo, na luminosidade de ribalta que, dos carrinhos cheios, subia aos rostos inclinados, na rua. Desejaríamos comprar uma dúzia, duas, dez dúzias de laranjas. Desejaríamos sopesar, levar para casa aqueles galhos cortados, portadores de folhagens envernizadas e tangerinas, que balizam as barraquinhas da avenida Seleya, em Nice, ao longo do mercado de flores. Temos um desejo terrível daqueles cestos redondos que perfumavam nosso quarto de hotel e que mandávamos aos amigos parisienses - a vendedora acrescentava, sob a tampa, um buquê de violetas e um raminho de mimosas. .. Como são ácidas, irritantes, essas pequeninas lembranças... A vivacidade da evocação nos torna um tanto covardes. Havia também as minúsculas tangerinas da terra, inchadas no que poderia ser a sua linha do Equador e que, em sendo arranhadas, exudavam um óleo essencial, abundante... Havia aquela excelente guloseima italiana que consiste em alguns grãos de uva moscatel passados em caldo de vinho licoroso, enrugados ao sol, mumificados e capitosos, enrolados em folhas de uva. Havia frutas cristalizadas no açúcar, impregnadas de açúcar, que já não eram senão açúcar, de uma transparência vítrea como a das pedras semiduras, damascos-topázio, melões-jade, amêndoas-calcedônia, cerejas-rubi, figos-ametista... Um dia, em Cannes, vi um barco de açúcar colorido, com uma carga de frutas em conserva a transbordar. .. Caberiam, à vontade, dois passageiros. Que gulosa, que criança mimada embarcara seus sonhos num barquinho assim? Entrei. "Foi vendido, Madame. - E por quanto? - Por cinco mil francos". Cinco mil francos de antes da guerra, cinco mil francos de 1931...

Criticar-me-ão por tocar num assunto penoso, e não sem um certo sadismo? Responderei que há bastante tempo somos levados a olhar de frente e com firmeza os bens de que a guerra nos priva. É uma boa ginástica mental. Aliás, a mesma pessoa que não se abala diante de um tablete de chocolate, entrega os pontos à idéia de uma laranja fresca, enfeitada ainda com uma folhinha no cabo. Confesso que sou destas. Uma laranja... e pouco importa qual seja. A educação dos ocidentais ainda está por fazer. Pois não os ouvimos, no restaurante, pedindo "traga-me uma laranja" como se no mundo não existisse mais que uma espécie, uma safra, uma árvore, uma única e indistinta multidão de laranjas?

Escrevo estas linhas no mês de fevereiro. É este o momento em,que, nos anos de paz, saboreamos as tunisinas, a elite das laranjas. A tunisina é oval, avulta um pouco em roda do ponto de suspensão e enche a boca com um suco sem insipidez, dum ácido adocicado, abundantemente açucarado. Intacta, sua casca exala um perfume reminiscente de flor de laranja. A breve e boa estação para nos fartarmos de tunisinas vai de dezembro a fevereiro. Assim como os vinhos de lavras muito típicas, que, de garrafa para garrafa, fazem diferença, uma tunisina não é totalmente idêntica a outra tunisina, e o matiz convida a descascar mais outra laranja e mais outra, e mais outra, que será - quem sabe? - a melhor de todas. '

Depois da tunisina, vinha a "philippevillé", que não a iguala mas pode substituí-la, molhando bem a boca e, se o ano foi de bastante sol, açucarando-a toda. Vinha depois a "palermitane", ao mesmo tempo que as grandes ganas de beber trazidas por março e abril. Grimpando o sol simultaneamente com o termômetro, era-me necessário, mais tarde, recorrer às laranjas do Brasil e às espanholas. Mas a Espanha guarda para si as frutas melhores e nós, sem razão, acusamos a todas as laranjas da Espanha de nos deixar um ressaibo de cebola crua.

Afinal, o doido consumo de laranjada trazia a Paris e às praias uma laranjinha tardiamente amadurecida no frio dos planaltos ibéricos. Muito bem-vinda era ela, no momento em que se iam as cerejas e os morangos, que passam como um sonho. ..

No último dia, comprávamos cestos cheios da feia e pequenina laranja de verão para espremer sua carne pálida e coar o suco, misturando-o ao do limão recém-colhido. Pois se o limão provençal é digno de umedecer peixes e mariscos, a laranja local é apenas ornamento de pátios floridos, lua amarela de jardins e tempero de algum doce caseiro. Que ninguém lhe dê outro crédito além deste. Honra seja feita antes ao figo, que se enche de mel das mais belas horas estivais, inflando-se de orvalho noturno e chorando, por seu olho único, um só pranto de goma deliciosa, para que saibam todos ter chegado o instante de sua perfeição. Debaixo da árvore é que deve ser comido e quem dê valor ao meu juízo, não o ponha nunca em lugar fresco nem - oh!, que horror e sacrilégio! - sobre gelo picado, solução que serve para tudo, péssima solução inventada pelo rude paladar americano, e que paralisa o sabor, anquilosando o melão, anestesiando o morango e transformando uma rodela de abacaxi numa fibra mais têxtil que comestível.

Morna a fruta, fria a água do copo, que assim água e fruta parecem melhores. Que pensar de uma fruta que se afasta, como um planeta que se esfria, do calor que a formou? Sublime é o damasco colhido e comido ao sol. A hora que passei num laranjal marroquino está ainda tão viva na minha memória e na minha gratidão como se eu ainda conservasse, debaixo das unhas, a linha amarela deixada pelo desperdício de laranjas maduras demais. De cor intensa, mais para miúdas, às vezes com uma face pintada de vermelho vivo, já às dez da manhã - quando ainda a erva primaveril nos refrescava os tornozelos - elas estavam mornas. Se um de nós, como que por discrição estacava, o servidor marroquino estendia o braço ao horizonte e ria para nos fazer compreender que, mais ao longe, a perder de vista, esperavam-nos outras tangerinas, inumeráveis. ..

Marráquexe nos deu ainda mais. Águas puras, rosas e rouxinóis que, a certo sinal noturno, rebentavam a cantar todos de uma vez, auroras precipitadas, a invadir o céu como incêndios; e laranjas, nos laranjais do paxá Si Hadj Thami el Glaui. Opulentos laranjais de um dono a um tempo faustoso e prudente; secreto alinhamento do que, à primeira vista, parecia desordenado e provocador - quantos cuidados produziam e protegiam aquelas colheitas! Tombando do alto, seu perfume derramava-se pelo chão, quase impedindo a passagem. Não cessavam de cair pétalas de cera, trazendo consigo abelhas tontas; desciam juntas, e as abelhas levantavam-se empoeiradas e subiam de novo às flores suspensas entre as frutas. Por sua vez, tombava uma laranja - longa e pesada laranja em forma de ovo - que, tocando o solo, abria-se e sangrava um sangue rosado... Não longe, a cidade, com seus furos cor-de-rosa, sob um céu já empalidecido de calor, limitava este paraíso - aliás bem guardado. Estendesse eu a mão para os pomos de ouro e, nodoso e negro, o braço de um anjo marroquino rasgaria a folhagem brandindo um pau.. . A uma palavra do guia, porém, o braço de bronze sumia, para reaparecer ofertando na palma sombria uma laranja suculenta.

Uma cidade quente enxerta em nós lembranças de outrora ainda mais queridas que a água abundante que a enriquece, remirando o céu, reverdecendo as árvores, intumescendo as frutas e brincando sobre as areias. O Aguedal em Marráquexe é um espelho vasto e tremulante, margeado de verdura. Dos reflexos que lá vi estremecer, nenhum se desfez. .. Com pregos de prata, muitas outras fontes fixaram em mim o aspecto dos jardins que eu amei. Quantos anos, uma vez por ano, parei em Aixen-Provence, durante o trajeto Paris-Saint Tropez, só porque corria a água milenar de uma fonte? Eu estendia minha taça à água antiga, imitando os devotos da fonte, a velha senhora com sua bilha, o rapazito com seu balde, a meninazinha trigueira, com seu cântaro... A água de Aix, fresca e doce, deixa-se beber em abundância. A fonte romana é um elo da minha cupidez: cada vez que, num espaço estreito, vi a água surdir, saltar e ferver, eu a quis carregar dali para plantá-la no meu jardim - mesmo em se tratando da velha fonte de Salon, mamute com barba de capim, do qual cada pêlo canaliza uma gota d'água. Não há bastante murmúrio num jardim sem fonte e eu ainda não arranquei minhas saudades das nascentes de minha infância. Brotavam da terra natal em borbotões pequeninos, perdiam-se assim que nasciam e só eram conhecidas dos pastores, caminheiros, cães de caça, raposas e pássaros. Uma ficava no bosque, o outono cobria-a de folhas mortas; outra, num prado, debaixo da erva e era tão perfeitamente redonda que somente uma coroa de narcisos tão redonda quanto ela revelava sua presença. Outra escorria com música da margem escarpada da estrada; outra era uma jóia meio azul a tremer numa bacia de pedras toscas reunidas em torno e, no seu céu invertido, nadavam camarõezinhos d'água doce. Segundo me asseguraram, continua sempre pura mas, num esforço vão e cristalino, salta agora dentro de quatro paredes de cimento - presente da humana previdência. Ora, a mim, só me agradam fontes selvagens, guardadas pelo olho aberto dos miosótis e cardaminas e pela salamandra grande, malhada como cavalo pampa.

Queria uma fonte no meu jardim - ainda a quero, se bem que já não possua jardim... e uma vez que ao do Palais-Royal falta água desde o começo da guerra. Ultimamente, Jean Giono prometeu-me uma. E, tendo recebido essa promessa diante da mesa bem servida em que se festejava meu septuagésimo aniversário, uma embriaguez ligeira traçou para mim no fundo do copo a imagem de uma fonte cintilante e pontilhada de luzes e a de um Jean Giono tão louro quanto o vinho e pródigo em fontes que eu desejaria levar comigo a toda parte. "Dou-lhe a mais bela de todas as minhas fontes", disse ele, generosamente. Veremos. Por que havia eu de desistir do que sempre desejei? A fonte de Jean Giono é, talvez, de todas, a mais real. Se estas linhas atingirem o homem que estende seus domínios no flanco das montanhas, das ovelhas e das cascatas, ele saberá que, em espírito, possuo o que me deu. Sua fonte reuniu-se aos meus tesouros diversos. Alguns são tangíveis, como os pesos de papel, de vidro, no meio dos quais se contorcem flores e bactérias num frenesi fixo, como os grãos de aveia com barba de camarão que, virados para cá ou para lá, predizem o bom e o mau tempo, como uma jóia de vidro polida pelo mar, cuja cor iguala a da água-marinha. "Sabe o que é isso? disse-me um amigo malvado. - É um caco longamente embalado pelas ondas, um fundo de garrafa de "soda". Não se deve nunca mostrar aos céticos os tesouros devolvidos pelo mar.

Mas eu não possuo somente bens imóveis. Possuo, como propriedade minha, quase tudo quanto perdi: mesmo os mortos que me são caros. Nisto me pareço com um cavalinho malhado em que andei, num verão de antanho. Num caminho da Picardia, ele encontrou uma grade de aplainar terra que repousava ali, durante a sesta do cultivador. O cavalinho malhado, que era parisiense, perdeu completamente o sangue frio e pôs-se a dar voltas em torno de si, recuando, apertando a cabeça entre as patas dianteiras e recurvando os rins como uma sereia; nada o convencia ou acalmava e só voltamos para casa fazendo uma volta enorme. Depois, esquecemos a grade, tanto eu como ele, até o dia em que, no mesmo caminho e no mesmo lugar, o cavalinho malhado virou mármore. Mais um pouco e lá ia eu por cima dos varais.

- Que é que há? - perguntei.

- Ali - disse o cavalinho, tremendo. - Lá...

- Que foi? Uma cobra?

- Não, o monstro... O mesmo. ..

No caminho vazio, ele via tão bem o fantasma da grade que num minuto se pôs ensopado de suor. Batiam-lhe as narinas musculosas, não podia destacar da grade ausente o olhar de seus grandes olhos, azuis como tinta, em que a grade gravara sua imagem de espantalho triangular.

Tirando o medo, muitas vezes eu fui esse cavalinho visionário. A vida tem que se esforçar muito para me despojar do que é meu. Jamais acabaria de recensear o que o acaso me confiou. Ainda agora, quando o mais antigo de meus amigos, Léon Barthou, preferiu o ininteligível repouso dos mortos à tranqüila companhia de seus livros, de seus queridos móveis e de sua gata, continuo a contemplar, por trás do seu rosto trigueiro de habitante do Béarn, o horizonte celeste e a pequena terra chata que se descortina de cima de um balão livre; e inventario os instrumentos atirados à matroca no grande cesto de piquenique que é uma barquinha de aeróstato...

- Léon, como é que você chama aquele negócio pendurado ao alcance de sua mão, debaixo do balão, aquela coisa que parecia um minhocão e que você apertava de vez em quando?

Continuo a perguntar, nada mudou, a não ser que ele não responde mais. Ainda sobrevôo Versalhes a pouca altura, junto com ele, vendo os mosaicos do parque e os espelhos; um pé-de-vento nos manda de volta-a Paris e vira a sombra das malhas da rede sobre o vento do balão... Quantos jardins fechados na cidade... O ruído dos saquinhos de lastro jogados no Sena, sobe até nós, e uma súbita e insensível ascensão rouba-nos os jardins prisioneiros que, todos eles, contêm um pouco de verde-escuro, um disco que é uma mesa e outro menor, que é um chapéu de criança. ..

- Em que rua você me mostrou, Léon, aquele jardim tão cuidado e florido que lá de cima parece almofada de tapeçaria?

Ele não responde mais. Também, tantas ruas, tantos bairros, tantos jardins foram abolidos ou tornaram-se irreconhecíveis.. . Mudo de espetáculo-recordação, e herborizo ao acaso. Nem sempre é em vão. Ã força de me curvar sobre uma imagem da memória, acontece-me reconstituir alguma flor que outrora me intrigara. Assim recuperamos do abismo a palavra que ia sendo tragada, apanhamo-la por uma sílaba e trazemo-la à luz toda gotejante de mortal obscuridade. Procurei aquele cálice tubular com sua corola rendada, sua cor de cereja, seu nome... Apanhei-o. E agora não o largo mais, a não ser de uma vez por todas, quando chegar o meu fim. Bizarramente, chama-se pentstémon. Voltando a mim como que amansado, o pentstémon toca a parte que lhe cabe - e muito agradàvelmente - numa orquestração violeta, vermelha e malva que compõe com maestria o jardineiro da cidade. Gladíolos vermelhos e róseos, dálias róseas e vermelhas, as últimas rosas, as altéias róseas e violáceas, gerânios de fogo, o lanígero agérato que hesita entre o azul e o lilás - e o pentstémon: assim será até novembro, se for suave o outono.

Quantos jardins prisioneiros em Paris revelaram--me seus segredos? Eu não roubaria uma flor, raramente subtraí uma fruta; mas, pelos jardins fechados, tenho um amor indiscreto. Não faz muito tempo, os demolidores me expulsaram de um prédio fundo cuja fachada se abria para o faubourg Saint-Honoré. Passando ao segundo pátio pela brecha do muro, eu percebera um jardim velho, três degraus de patamar, um pouco de grama e uns alfeneiros escassos em flores, estirando-se para a luz.

Que surpresa posso comparar à descoberta que fiz, no XVI distrito, de um peristilo "diretório" em volta do qual enfileiravam-se macieiras? Davam fruto? Já era coisa inesperada que depusessem, como asa perdida, alguma pétala nos pavimentos de Paris. Ao fim da rua Jean Bologne, possuí, à força de os visitar, uma fachada de casa provincial orientada para o sul e um resto de terraço lajeado, com canteiros de legumes ... Na Rue des Perchamps, três mil metros de jardim inculto, com aveleiras, com tílias, foram meus por muito tempo, graças à proprietária, com quem tive uma amizade de alguns anos. Nos dias pares, ela queria vender seus terrenos; nos dias ímpares, mudava de idéia e dizia, com ares finórios: "Vender meu terreno de Auteuil? Não sou tola!" Isto durou anos. Num dia par, ela assinou um contrato e eu perdi o parque onde ia colher avelãs de casca vermelha e rosas degeneradas.

Jacques-Emile Blanche, de boa vontade, emprestava-me o seu jardim e eu não o utilizava, de medo de o estragar. Agora é que por lá passeio em pensamento, agora que seus donos já não existem, nem existe o canicho cor de café com leite que, sensível, amante da distinção, cobria a cabeça de cinza, queria morrer, entrar para o convento, se J.-E. Blanche lhe dizia a meia-voz, em tom de censura: "Meu Deus, Puck, que ar vulgar..."

O jardim de~ J.-E. Blanche, virado para o norte, possuía, como o atelier do pintor, algumas daquelas belas árvores disseminadas em Passy e Auteuil, das quais todos diziam que haviam conhecido a princesa de Lamballe. À sombra delas, serpenteava, para admiração minha, um riacho figurado, todo de miosótis particularmente azuis, densos e iguais, encerrados por duas margens de silènes cor-de-rosa. Este riacho guiava os visitantes ao atelier em que posei para três retratos sucessivos. Jacques-Emile Blanche destruiu os dois primeiros; o terceiro está no museu de Barcelona.

Durante as sessões de "pose", a luz fria da vidraça grande e a imobilidade esmagavam-me de sono e, para estar acordada, eu olhava para o alto, para duas telas igualmente ambíguas: a deliciosa pequena Manfred, fantasiada de querubim e Mareei Proust, mais ou menos aos dezoito anos de idade, com a boca estreita e os olhos muito grandes, adornado por uma ausência de expressão perfeitamente oriental. J.-E. Blanche, em ocasião nenhuma, pintou a não ser como J.-E. Blanche. Só o retrato de Mareei Proust difere do resto de sua obra por certa afeição à simetria, pela exaltação de uma beleza que foi real e durou pouco. A moléstia, o trabalho e o talento remodelaram aquele rosto sem rugas, aquelas suaves faces pálidas e persas, desmanchando aqueles cabelos que eram, não sedosos e finos mas grossos, de uma vitalidade que fazia medo, duros como a barba negra que despontava de novo logo depois de raspada. .. Os que passaram noitadas com Mareei Proust lembram-se de ter visto enegrecer sua barba entre as dez da noite e às três da manhã, enquanto mudava sob a influência do cansaço e do álcool, o próprio caráter de sua fisionomia.

Eu me recordo de um jantar do Ritz, começado muito tarde e prolongado pela ceia e pela conversa. Mareei Proust ainda estava em seus dias melhores; era um homem quase jovem e encantador, impregnado de uma cortesia excessiva, de uma obsequiosidade suplicante que se lhe pintava no olhar. Lá pelas quatro da manhã, porém, surgiu-me à frente uma espécie de garçon d'honneur embriagado, com a gravata branca em desordem, o queixo e as faces escurecidos pela barba que renascia, e um grande tufo de cabelos negros aberto em leque no meio das sobrancelhas. .. "Oh! não é ele", murmurou uma convidada. Muito ao contrário, eu esperava que aparecesse, devastado mas poderoso, o pecador que com o peso do seu gênio fazia vacilar o frágil rapazola de fraque ...

Mas esse momento não veio. A noite fazia-se aurora, empalidecendo ao sabor de uma conversa despretensiosa e sedutora. Os que parecem entregar--se a todos, são os que melhor se ocultam. De trás de sua primeira linha de defesa, minada pelo álcool, Mareei Proust ganhava posições mais obscuras e difíceis de forçar - e de lá nos espiava.

Quando Francis Jammes, num prefácio que muita honra fez ao primeiro volume que assinei, me atribuiu, como livro de cabeceira, La Maison rustique des Dames, estava antecipado. Ocupava-me então de culturas diversas, mas sem o autorizado guia mencionado pelo poeta, conduzida apenas pelo espírito limitado e fantasista da minha juventude. Hoje em dia, sim, Francis Jammes estaria mais perto da verdade. Ao lado da Grande Pomologie, das Trochilidés de Lesson, das Roses assinadas por Redouté, do L'Herbier, de l'amaíeur por Lemaire, de volumes botânicos berrantes e desemparelhados, Mme Millet-Robinet e sua suave ciência caseira, do enxerto, da cozinha e da criação, estão ao meu alcance.

Atenho-me, sem pejo, aos progressos agrícolas e caseiros do século passado. Fosse eu ainda proprietária de alguns metros quadrados no campo, e dedicaria meus domingos às aplicações da eletricidade e da mecânica. Dá-se o caso de, após diversas peripécias, encontrarem-se meus haveres de novo numa gaveta e nalgumas estantes de biblioteca. Quanto a criar coelhos na adega, galinhas no sótão, e uma vaquinha nos subterrâneos do Palais-Royal - nem é bom pensar. Mesmo que isso arruíne minha reputação, a verdade é que jamais criei um só animal para comer, nem sequer um desses pombos que mentem ao renome que têm, pois o pássaro de Vênus, na verdade, é batalhador e duro, possui uns olhos cruéis, de ouro rubro e, quanto à lendária fidelidade à pomba - mais vale deixar que o leitor conserve as ilusões.

Vi minha mãe chamar no pátio as galinhas e as galinhas bicarem o pão e o milho em suas mãos; e os ovos rosados e mornos passarem do ninho à mesa e os pintinhos subirem-nos aos joelhos. Um grito de angústia marca na minha memória o fim do galinheiro. "Meu Deus, matar a vermelhinha!", gemeu minha mãe. Depois do que, o galinheiro se despovoou, deitavam-se gatos nos ninhos de vime trançado, nós só comíamos frangos desconhecidos e os dois barracões das aves viraram estufas em que cochilavam, no inverno, bulbos de dálias, batatas de jacintos e tulipas, ou crocus... Enquanto isto, Sido, minha mãe, desolava-se de não poder ser vegetariana. "Lentilhas, não como, pois parecem percevejos", dizia ela. "Crosnes, não como, porque têm cara de larva de besouro; não gosto de favas, porque sabem a brejo. Ervilhas? Se não as colho eu mesma, esperam que virem chumbinho. A couve desonra a casa que a cozinha! Restam os ovos, a manteiga e as frutas. A propósito, Mme Millet-Robinet diz..."

Eu não ficava escutando o evangelho segundo Mme Millet-Robinet. Mas, desde então, tenho reconhecido os seus méritos, quando mais não seja para aprender e reaprender com ela nomes esquecidos e o código de uma vida rural pura, nova à força de ser desdenhada, e cheia de juventude - tanto temos envelhecido, separando-nos dela. ..

Não foi somente a bonomia de uma antiga existência que perdemos. Sua diversidade, que nos faz falta, era devida a muitos objetos e ao uso que deles se fazia. Nem daqueles nem destes, provinha o que aprendemos a chamar de seleção, mal que nos veio da América com suas duas maçãs, a vermelha e a branca, a vermelha com seu carmesim vigoroso, sua insipidez sadia de legume cru - a branca com sua água doce e ácida, um pouco mais pessoal. E põe-se logo a pomologista a "selecionar", aqui também, e a discutir calibre, transporte, conservação. Calville, maçãs do Canadá, maçãs e Calville. Não saímos mais disto, excetuando alguns vagões de fruta para cozinhar. Quando tornarmos a ver peras, será que Paris se vai resignar de novo à "duchesse", e à "passecrassane", com um breve intermédio de "beurré-Hardy" e umas poucas "doyennés-des-comices" para os afortunados deste mundo? O século XIX aproveitava melhor nossas riquezas. Encantador fim do século XIX - quanta graça puseste no saborear, esperdiçar, comparar. .. Encontrei sinais de ti, teu amor castelão pelo campo, tua vivacidade em sair do anonimato, tua assinatura, enfim, desenhada de viés sobre um modesto domínio que foi meu durante uns cinco ou seis anos, após haver pertencido a um velho senhor. Os dez hectares, negligenciados após a morte dele, testemunhavam ainda um coquetismo de proprietário, uma sabedoria no plantar, muito de molde a agradar-me. Mas, se começo a recordá-las, acabarei caindo em lamentações e vestindo luto pelos doze centos de árvores frutíferas, já velhas quando as recebi - e variadas, tanto pelo capricho como pelo judicioso conhecimento que lhes dirigiu a escolha. Levantai-vos, sombras de minhas pereiras! Quem conhece, quem canta e quem planta a pêra de Messire-Jean? Quem sabe que, vestida de um cinza-ruço, sob uma forma que se avizinha da esfera, ela esconde uma carne molhada e desabrida, um sabor realçado pela agradável acidez típica? Mme Millet-Robinet reconhece os altos méritos das "Messire-Jean" cor de muralha; também eu o faço. Mas quem lhes fará merecer a preferência das multidões?

O vento rude do Franco Condado embalava minhas peras cinzentas de cabo fino, na extremidade dos galhos delgados e desnudos. Sob as "Messire-Jean" mais altas, pouco folhudas e escamosas, amadureciam desde julho outras peras precoces, que se tornavam logo farinhentas, se não fosse colhidas a tempo, e que as vespas sugavam astuciosamente. Faziam um só furo pequenino, depois trabalhavam lá dentro e a pêra conservava sua forma. Quantas vezes esmaguei na mão o aeróstato amarelo cheio de vespas? A "cuisse-madame", vejo-lhe ainda a forma, suave como o nome, e não esqueço as maçãs, escolhidas entre as espécies que Mine Millet-Robinet chamava "dociles au cordon".. . Com as "doux-d'ar-gent", as "court-pendu", as "belles fleurs", eu estava munida de maçãs para todas as estações, e de ameixas, embora as árvores de "reine Claude", os "monsieur-jaunes" e os "damas-violet" estivessem enfraquecidos e chorassem resina. Filhas inumeráveis do Franco Condado, com uma face coberta de sardas e a outra verde como o âmbar, as "mirabelles" choviam nas orelhas das gatas e o cão abocanhava as melhores.

Havia em julho tão rubras, tão magníficas colheitas de cereja que as frutinhas secavam sobre a relva, enrugadas e comestíveis. "Nem os melros as querem", assegurava meu vizinho. "Nós fazemos com elas um Kirshzinho caseiro..." Dizia-se isto no tom de antigamente, um tom de beatitude meio desdenhoso, que zombava da abundância e da facilidade. Quanta riqueza em nossas mãos, tão fáceis de encher... Quanto bem gratuito, constante, a nos compensar dos anos pobres.. . Os lódãos e as sorveiras, nos bosques, as aboboreiras inclinadas sobre o muro dos galinheiros, para que as galinhas bicassem as abóboras - ou castanhas d'água - que mancham a terra de escarlate; os marmeleiros, rebaixados ao papel de cerca viva, ombreando com a ameixa-de-porco ou com a maçãzinha ácida, a espinhosa groselha selvagem, as ameixeiras ou o pessegozinho peludo - tudo isto, frutas e bagas sem dono, caídas da mão de Deus na do passante... Uma vez colhidas, iam todas de mistura para o tonel onde a aguardente elabora sua força sorrateira e seu sabor concentrado.

Nos dez hectares que me caíram sob a guarda não pretendi regenerar as árvores frutíferas com enxertos audaciosos e podas de copa inteira, embora a arte do enxerto, com seu mistério, suba à cabeça do amador de jardins. O enxerto talhado de esguelha, repousado, tornado tenro numa obscuridade úmida, depois esgueirado na fenda da árvore selvagem ou já velha, depois atado com resinas e tendo o ramo enrolado em trapos e ráfia, e depois adotado pela árvore que há de regenerar - posso assegurar aos que o ignoram que é com um grande e orgulhoso pulsar de coração que se saúda o momento em que o renovo dormente desse enxerto, que cochilava na haste estranha, desperta, reverdece e, afirmando seu paradoxo, impõe à roseira brava sua rosa, à ameixeira seu pêssego ou seu damasco.

O homem que fazia enxertos trazia sempre consigo a faca de enxertar, munida de uma laminazinha curta e lisa, de marfim, em forma de amêndoa, habituada a descolar as cascas sem ferir o alburno e poupando os "olhos". Para os enxertos mais delicados, ele chupava esta lâmina freqüentemente, pois concedia à saliva humana um poder cicatrizante e dizia: "Ter mão boa, não é tudo, é preciso fazer o curativo..." Pois a reza, sob suas formas conjuratórias, se insinua em toda parte...

A muda não é tão emocionante como o enxerto e não comporta a magia. O que não impede que, nos meus jardins, sempre me parecesse único o momento em que, depois de perder os sentidos, sucumbida ao corte, a muda se decide a viver, abrindo seus verdes canais à ascensão da seiva e empertigando-se em arrancões imperceptíveis...

Entre um despontar e um pôr de sol, na Provença, plantei setecentas mudas de gerânio-hera cor-de-rosa, auxiliada somente pela minha jardineira. É um serviço que se pode fazer bem instalada e sentada no chão, tendo à destra o plantador e movendo-se como fazem os paralíticos das pernas. No ano seguinte, o resultado foi uma beleza. Mas o prazer de escurecer uma vasta tapeçaria é menor que o de variar um bordado multicor. Se mais me lembro dos rebentos, dos bulbos, raízes e mergulhões do Condado, é que fui testemunha de seu esforço e boa vontade, pois afrontei, naquela encosta, tanto a Páscoa batida pelos ventos quanto o frio cortante de novembro. Para nos apegarmos a uma região, o que vale não é a estação bela, é a má estação! Diz um ditado camponês: "Não há cura para um mal, que não tenham marcado as quatro estações". Talvez me faltassem, para que me sentisse sòlidamente ligada à beleza do Sul, na França, as turvas estações intermediárias, o outono com os aguaceiros que fazem aluir colinas, arrastando para baixo a terra arável, e a primavera precoce, de humor inconstante, que inesperadamente gela as casas de paredes finas, abatendo as colunas de fumo e varrendo, com suas borrascas, as pétalas das amendoeiras, as pedras de granizo e tufos de mimosas.

Um duro clima sem surpresas velava sobre meu torrão do Condado. Acostumada ao seu bom acolhimento e à sua severidade, não desfigurei suas pereiras-roca, nem desbastei mais que o estritamente necessário suas árvores centenárias - havia lá espantosas acácias, ocas como chaminés, donde chovia, em dias de sol, uma poeira de pau consumido, semelhante ao pó de café - havia lariços melodiosos, negros pinheiros, tílias prateadas que o verão circundava de perfumes e abelhas. A araucária continuou a gesticular com todos os seus braços simiescos. Por que teria eu lesado, eu que apenas passava, aquele cenário um tanto acidentado e ultra-rebuscado, mas bem estabelecido dentro de seu plano de caminhos, bosques, arcos de pedra e vistas? Um homem que, enquanto aplica ao seu terreno um espírito produtivo, laborioso e largo, atormenta-o engenhosa e pacientemente, acabará por constituir o que mais tarde será chamado de estilo. O estilo é, quase sempre, o mau gosto dos que nos precederam; e data do dia em que se torna agradável para nós. Aliás, a menos que o aniquilemos, o estilo de uma paisagem restrita não pode ser desarrumado como uma simples mobília caseira. Que digo? O jardim, a paisagem arrumada pelo velho senhor nascido antes de 1830, é que avançou pelo interior da casa - e eu lá entrei, por assim dizer, acompanhando suas pegadas. Ele trouxe uma mesa oval, dessas que se pode alongar, toda de pereira negra, e nela é que eu comia e escrevia. Ã sua volta vieram agrupar-se móveis que não eram antigos nem raros, mas de que eu gostava. E não encontro mais nada para dizer deles, senão que o excepcional - o "achado", como se diz - muitas vezes apenas introduz confusão e espanto a um interior pacífico. Não, não continuarei a descrever o que foi tranqüilo, um tanto insípido, um tanto pesado, bom para o canto da chaminé, no inverno, e para um bonito terraço redondo, no verão. Compreendam apenas que, levada àquela casa, de olhos vendados, uma pessoa como eu teria predito que, em volta da moradia, arredondava-se um jardim de tal forma concebido, que o primeiro lugar - honra seja feita aos que o merecem - caberia à árvore de peruca, esse milagre burguês, teia de aranha para orvalho noturno, armadilha para jóias de chuva e arco-íris, árvore nimbada de nuvens vagamente róseas, o Rhus cotinus, enfim, conhecem? Não, vocês não o conhecem mais.

Rhus cotinus, peruca de anjo, sua presença inelutável garantia a da groselheira ornamental, de cachos amarelos e a da cássia estéril, de flores cor-de-rosa. E quando, num jardim de amador, o Rhus cotinus e a groselheira infrutífera tomam os principais lugares - quem evitaria a cena tilintante de favas vesiculosas e a altéia violácea? E que inovador ousaria impedir a passagem da fritilária, também chamada coroa imperial, com seus capítulos alaranjados e seu cheiro de má companhia? Ela própria atraía para junto de si uma população de píretros cor-de-rosa e brancos, "corylopsis" e alquequenjes veiados como pulmões, e mais uma quantidade de flores de borda de canteiro, brancas, ligeiramente odorantes que, segundo deformações regionais, chamavam-se "thlaspi" ou "théraspi". Quando estavam enfraquecidas, as bordas de "thlapis" eram substituídas por uma planta que se parecia traço por traço à orelha peluda de um burro branco. Pois, à borda de uma platibanda, em roda de um maciço, era preciso uma cercadura, uma orla e, à beira dessa orla, outra orla de telhazinhas arredondadas. Às vezes, essas telhas em forma de escama eram ainda protegidas por uma orla suplementar de arcos de ferro.

Tudo isso me vem à medida que escrevo, tudo o que antigamente florescia, os arredondados, as suavidades de desenho, as afetações e rotinas de uma horticultura de época - tudo o que foi banido por outra tradição pautada pelo cimento e pelas lajes unidas por linhas de grama, pelos ciprestes de bronze, os átrios, as pérgulas e os pátios. .. No entanto, uma sem-cerimônia ligeiramente irlandesa vai semeando pelos bosques "dafodils", croco-açafrão e "snow-flakes", e abrindo caminho, nos jardins, às labiadas selvagens e ao verbasco. ..

Que teria dito Mme Millet-Robinet de uma incúria imitada com habilidade? Bem que a previra, pois, do alto de sua Maison rustique, da soleira de sua decente floricultura, ela declara: "Tudo deve, numa terra bem cultivada, trazer o sinal da ordem. Todas as cestas devem ser bojudas". Sido dizia mais simplesmente: "Só gosto de ervas daninhas sobre o meu próprio túmulo". Em matéria de jardinagem, pois, meus dois oráculos concordavam em banir a facilidade e só me restaria segui-los; Mme Millet-Robinet por deferência; Sido, por amor, se...

. . .Se eu tivesse um jardim. Ora, acontece que já não tenho jardim. Não é terrível não se ter jardim. O grave seria que o jardim futuro, cuja realidade absolutamente não importa, estivesse fora do meu alcance. E não está. Certo crepitar de grãos secos num saquinho de papel basta-me para semear o ar. As sementes da nigela são pretas e brilhantes como pulgas e durante longo tempo, se aquecidas, conservam certo perfume de damasco que não transmitem à flor. Semearei as nigelas quando, no jardim de amanhã, tenham tomado, tenham retomado seu lugar o sonho, o projeto, a lembrança, sob forma daquilo que possuí e espero. Certamente as hepáticas serão azuis, já me aborrecem as daquele rosa avinhado. Azuis e em quantidade que chegue para orlar a cesta (todas as cestas devem ser bojudas...) que realce diélitras em pingentes, weigélias, dêutzias duplas e amores-perfeitos, quero só os que se pareçam - cara grande, barba e bigodes - com Henrique VIII; de saxífragas, só as que numa bela noite de verão, quando eu lhes oferecer polidamente um fósforo aceso, me respondam com sua inofensiva explosão de gás. ..

Um caramanchão? Naturalmente que terei um caramanchão'. Não será por um caramanchão que vou regatear. Seria mesmo preciso um poleiro de sarrafos para a cabeia violeta de língua de dragão, para a poligonácea e para o melão-a-remo... A remo? E por que não a abóbora-a-motor? Porque o melão de que falo - trepa, rema pelos sarrafos acima como uma simples ervilha, balizando sua corrida ascensional com melõezinhos brancos e verdes, açucarados e saborosos. (Vejam os textos de Mme Millet-Robinet).

Se todos os amadores de novidades hortícolas banissem todos os velhos amarantos rabo-de-cavalo, eu bem que recolheria alguns, nem que fosse só para lhes devolver o antigo nome: disciplinas-de-freiras. Dar-se-iam bem com aquele outro espanador prateado, o ginério, bom sujeito mas meio trouxa, que passa o inverno à direita e à esquerda da lareira, em vasos em forma de cometa. No verão, mandaremos para longe o ginério e plantaremos nos vasos os sufocantes lírios brancos, mais imperiosos, mais apaixonados que a tuberosa, e que, à meia-noite, sobem a escada e vêm nos buscar no mais profundo do sono...

Se o jardim for na Bretanha - como eu gosto de meus canteiros ideais, empenachados de agudos "se" - o dafne.. . Devo chamá-la dafne ou bois-gentil àquela florzinha pequenina, dissimulada e imensa, pelo seu aroma fresco e nobre, que penetra e perfuma o inverno bretão, desde janeiro? Um bosquezinho de bois-gentil, sob o aguaceiro que vem do oeste com a maré, parece banhado em perfume... Mas se eu for morar perto de um lago, além do feixe de arbustos que o velho senhor defunto arrastava consigo, hei de arranjar "chimonanthes" de inverno, em vez de dafnes. A "chimonanthe", flor de dezembro, tem tanta cor e brilho como uma lasquinha de sobreiro. Seu mérito é único, e a revela. Num determinado lugar, em Limoges, onde eu ignorava a sua presença, em tempo de neve, espreitei, procurei e, guiada pela sua fragrância, através de um ar glacial, acabei por encontrá-la. Fica na ponta do galho, acinzentada e opaca, mas dotada de um grande poder de sedução - quando penso na "chimonanthe", penso no rouxinol. Terei portanto "chimonanthes". Será que já não as tenho?

Terei muitas outras verbenas em rosáceas, aristolóquias em tinas, relva de Espanha em cristas, cruzes de Jerusalém em cruzes, tremoço em espigas e damas-da-noite insones, agróstides em nebulosas e cravinas na baunilha. Um cajado de São Tiago para me auxiliar os últimos passos de viajante; o áster para estrelar minhas noites... Uma campânula, mil campânulas para tilintar ao mesmo tempo que cantar o galo, uma dália crespa como um morango de Clouet, uma digital para enluvar a raposa - pelo menos, é isto que pretende seu nome popular - uma "julienne" e não cortadinha na sopa, como vocês estão pensando, mas para a cercadura. A cercadura, prestem atenção, a cercadura! E na cercadura, quero daquela lobélia de azul sem rival em mar ou terra. Quanto à madressilva, escolherei a mais frágil, aquela que de tão cheirosa fica lívida. Enfim, preciso de uma magnólia, bem poedeira, toda coberta dos seus ovos brancos, ao aproximar-se a Páscoa; uma glicínia que, à força de abandonar gota a gota suas longas flores, faça do terraço um lago cor de malva. E tamancos de Vênus para calçar a casa toda. Louros-rosa, não me ofereçam, só quero louros e rosas.

Não é pela minha escolha que, assim reunidas, se tornarão agradáveis à vista as flores que menciono. E, aliás, devo ter esquecido algumas. Mas não há pressa. Deixo-as sob julgamento, umas na memória, outras na imaginação. Aí elas encontram ainda, graças a Deus, o húmus, a água um tanto amarga, o calor e a gratidão que talvez as impeçam de morrer.

 

                                                                                Colette  

 

                      

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