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GLORIA / Alves Redol
GLORIA / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

UMA ESCRITA ACERCA DO POVO
OU
DA POSSIBILIDADE DE UM DISCURSO ETNOGRÁFICO
Como poderíamos mais adequadamente apreciar a obra que agora apresentamos? É evidente que nem pusemos a hipótese de tecer elogios ao seu autor, já que Alves Redol não precisa deles para alcançar, ou mesmo confirmar, o lugar a que tem, direito na literatura portuguesa contemporânea e, já num âmbito mais vasto, na literatura e cultura portuguesas. Bastar-nos-ia proceder a uma análise serena ou a uma esclarecida e objectiva leitura do significado da monografia Glória-Uma Aldeia do Ribatejo em relação à obra do autor e em relação às realizações suas contemporâneas e actuais de práticas etnográficas...
O melhor modo de afirmar que a iniciativa do autor de Glória ficou registada na história literária e cultural portuguesa havia de consistir numa promessa de continuação da obra executada. E assim nos juntaríamos a todos quantos nos últimos anos têm levado a bom termo a descrição etnográfica do povo português. A todos nós, porém, tem faltado algo que se nos impõe através da leitura da monografia de Redol, aquilo mesmo que se poderá resumir em poucas palavras: dedicação total e inesgotável entusiasmo.
Mais do que apreciar, ou situar, relacionar ou esquematizar- propor-nos-íamos outro programa: deixarmo-nos contaminar pela paixão que do autor se transmite à escrita, e partir também "sobraçando papelada e muito de entusiasmo por poder servir [...] o povo donde vi(mos) e que não traí(mos)". Partir também para a mesma aldeia ou para outras, quer do Ribatejo, quer de qualquer outra região de Portugal...

 


 


Falámos propositadamente de "paixão". Porque é mais do que entusiasmo. Ao longo das páginas que nos dão conta de uma aventura-narrativa vivida, assistimos ao registo
do que foi de facto realizado (e assim se descreve, se desenfia, se conta ...) e de como o sujeito-enunciador vive a sua concreta tarefa. Afirmaremos que, tal como
na realidade do trabalho de campo, a própria escrita se deixa envolver da atitude básica que vai justificar ou subsumir aqueloutro: o profundo amor pelo seu povo.
Não pelo Povo, entidade abstracta, distante, coado pela literatura e outros aparelhos ideológicos, mas o povo concreto, o do trabalho e o da festa, aquele com quem
se contacta, com quem se come e bibe, se canta e dança...
Deixares secretária, a sala de aula, a biblioteca, o museu ... e partir para a aldeia - esse seria o projecto para reviver e prosseguir o legado do escritor.
No entanto, por agora, ficar-nos-emos com a proposta realizada pelo escritor-etnógrafo Alves Redol. com ela embarcaremos na viagem até Glória do Ribatejo, observaremos
a aldeia-referente e o próprio autor a observá-la ... Tentaremos, então, sistematizar, pôr-nos-emos problemas que o autor sentiu e tentou resolver a seu modo, mas
que continuam a ser problemas ... nossos.
1. À procura do rosto do povo
Toda a obra de Alves Redol é uma procura de reconstrução e de compreensão da vida do povo. Referimo-nos, em primeiro lugar, aos romances. Estes constituem o verdadeiro
texto redoliano. Através da ficção, as personagens situadas no seu contexto socieconómico ilustram os problemas bem concretos desta ou daquela região. Apesar da
vontade de retratar rigorosamente toda uma realidade social, é óbvio que, pelas características do universo de ficção, o narrador nos apresenta, em cada romance,
um pequeno cosmo verosimilmente organizado, que não há-de nunca confundir-se com a própria Realidade: ele selecciona acções, paisagens, condensa-as e apresenta-no-las
como sociedade de "exemplo".
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Aliás, se, nesta perspectiva, toda a, narrativa se torna "exemplar", a de Alves Redol ainda o é mais acentuadamente. Na realidade, sabemos como o autor de Gaibéus
trabalhava a "realidade social" de que escolhia partir e na qual situava a intriga (a acção, as personagens e todos os elementos da narrativa), relacionando os aspectos
que considerava representativos no romance, na novela ou no conto a construir. Tornava-se-lhe imprescindível o conhecimento meticulosamente programado do "espaço"
que iria ser transposto para a ficção. Partindo para o "local", para a aldeia, ou vila, ou região, levava a cabo um exaustivo levantamento da paisagem, da realidade
humana e social - essas mesmas que viriam a ser componentes (ou principais, ou de segundo plano, mas sempre presentes) da sua obra. Registava o resultado da sua
observação: desde os acidentes geográficos, ou o falar da população, até à descrição dos objectos, quase sempre acompanhada dos desenhos ilustrativos e das respectivas
designações. Assim poderia construir com maior verosimilhança o seu universo narrativo: dir-se-ia que, para o escritor, a fase "etnográfica" precedia obrigatoriamente
a etapa de produção da escrita - e isso porque só assim o enunciador se sentiria mais na posse do extracontexto, o qual havia de se tornar, pela transformação enunciativa,
no intracontexto coerente e realisticamente estruturado. Esta preocupação que designaremos "etnográfica", a qual assegura a ligação do universo fechado da ficção
com o mundo da realidade concreta, constitui assim um dos alicerces mais sólidos da obra redoliana.
A par das novelas e dos romances para os quais havemos de pressupor que toda a investigação "etnográfica" previamente realizada se justificava em ordem a garantir
a construção de um pertinente "simulacro de referente", Alves Redol deixou-nos algumas obras nas quais ficou registado o seu paciente e seriíssimo labor etnográfico.
Essas obras, para além do seu valor científico a que mais adiante nos referiremos, têm o mérito de nos exemplificar os resultados do "trabalho de campo". Sobretudo
podem dar-nos uma ideia de como se efectuava a preparação para a etapa principal da escrita de Redol.
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Portanto, considerando a obra global do escritor, ela apresenta-se-nos una, em ordem à consecução de um objectivo. Diremos que a parte de ficção constituiria o verdadeiro
enunciado (os romances, as novelas, os contos são os enunciados de um Enunciado geral) da obra redoliana. As conferências, os ensaios, e de modo especial os trabalhos
de natureza etnográfica, sendo também enunciados, formam como que a amostra do registo da enunciação, em função do Enunciado acima referido. Quase sempre eles nos
explicitam as condições do escritor, isto é, do enunciador, e vão identificar-se como uma escrita do "antes do texto", do "pré-texto", tudo quanto podemos supor
ter sido feito antes ou/e ao mesmo tempo da produção dos textos principais, isto é, das obras de ficção.
Três obras são as que, para nós, assumem principalmente esse estatuto de registo do "antes-do-texto": a presente Glória - Uma Aldeia do Ribatejo, o Cancioneiro do
Ribatejo e o Romanceiro Geral do Povo Português. Elas constituem realizações de um mesmo projecto, ainda que se torne evidente a segurança da escrita (em relação
ao discurso etnográfico) da introdução de Cancioneiro do Ribatejo, se comparada com o texto da Glória. O que não nos espanta: alguns anos separam as duas escritas
etnográficas.
Essas três obras nascem de uma atitude remota em relação ao texto, ao enunciado principal da obra redoliana: a aproximação do povo na tentativa de o descobrir tal
como ele é, ou tal como ele existe e vive no dia-a-dia. É o encontro com o povo, a comunidade rural nas suas actividades, nas suas crenças, nas suas tradições, no
meio dos seres e dos objectos.
E a tarefa importante a levar por diante consiste em tomar o povo como "objecto" a descrever. Esse é o conteúdo polarizador de todo o texto redoliano. Romances,
narrativas, ensaios etnográficos não serão mais do que expansões desse núcleo semântico profundo. A estratégia a adoptar contará como objectivo a aproximação, pela
escrita e pelos processos que a possibilitem, do que convencionámos designar o "rosto do povo".
Este povo, cujo rosto escondido será necessário descobrir e desvendar, manifesta-se como vasta personagem que subsume não só os actores da ficção
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como também o seu próprio espaço e tempo. Daí dois modos de trazê-lo para o papel, "espaço" em que esse rosto há-de construir-se: pela citação e pela produção recriadora.
Ao primeiro destes processos referir-nos-emos adiante de forma mais desenvolvida.
Observar-se-á, no entanto, que "Povo" é uma entidade pouco concreta. Trata-se de uma noção que se nos escapa. Por isso, há que precisá-la, ou pelo menos caracterizá-la,
embora saibamos a dificuldade da tarefa. Contentar-nos-emos com uma aproximação meramente semântica (mas não histórica), e de acordo com a acepção que julgamos poder
encontrar na obra de Redol. Donde derivará que não nos interessa analisar o lexema em contexto como o que encontramos em expressões muito conhecidas: por exemplo,
"Povo Português". Como lexema que é, portanto, unidade da língua portuguesa, "povo" apresenta-se-nos com um significado no qual distinguiremos como pertinentes determinados
semas: "colectividade", "anonimato", "subalternidade" (em relação a elites sociais, económicas, culturais). Daí outros possíveis semas que consideraremos derivados,
ainda que não menos importantes: "grande número", "dinamismo" ou "que se ocupa de actividades tidas por não nobres, quase sempre manuais".
Quanto a esta última determinação sémica, o "povo" sempre se tem identificado mais com as populações rurais ou campesinas. Se referido à cidade, ele recobre a camada
que mais convenientemente designaremos por "classe trabalhadora" ou, mesmo num sentido mais preciso, "operariado". (Vide, sobre a noção de "Povo", a revista História,
nº 8, número especial, 1981.)
Mediante a leitura das obras de Alves Redol, facilmente nos daremos conta de que o povo é, para ele, justamente essa entidade colectiva, anónima, composta de sujeitos
de actividades subalternas. Entidade que vamos encontrar, quer através de algumas personagens de ficção bem definidas, quer através do grande número (queremos dizer,
grande número de personagens, mesmo que se trate de pequena comunidade), sempre trabalhado como força dinâmica, como agente de transformação e no qual se integram
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os trabalhadores manuais, operários e sobretudo os rurais.
É, com efeito, no campo, na aldeia, que Redol encontra o autêntico povo. Segue assim um dos princípios unanimemente aceites pelos etnógrafos, preocupados com a observação,
a análise, a descrição, o estudo, das populações rurais. Nestas há-de assentar sempre a verdadeira identidade de uma cultura.
com Glória-Uma Aldeia do Ribatejo, Alves Redol podia limitar o seu trabalho de investigador etnográfico a uma pequena comunidade. Ele dá razões para essa opção.
Opção que, para nós, fica como pertinente: assim se conjugavam amor entusiástico, ao que parece, súbito, ocasional, do homem por uma comunidade, e a necessidade
metodológica de investigador, de delimitar o corpus... Não esqueçamos que, anos mais tarde, outros investigadores viriam a retomar, continuando e aprofundando, o
trabalho iniciado pelo autor, pelo que demonstravam quanto a escolha havia sido acertada (ou, por outras palavras, quanto ele tinha razão ao afirmam: "Havia ali
um filão etnográfico a explorar").
Mas Redol, com toda a sua modéstia, diz-se "incapaz de produzir obra científica com semelhanças de mérito". Daí que classifique o seu trabalho de "tentame etnográfico"
...
2. Da possibilidade de um discurso etnográfico
Como se concretiza esse "tentame etnográfico"?
Inserindo-o numa tipologia de géneros discursivo-linguísticos, Redol considera-o um "ensaio". Tentame, tentativa, contributo, ensaio são no fundo sinónimos, quando
servem para designar um texto do discurso do saber. Partia, assim, o nosso autor para um objectivo diferente do da sua restante obra.
Vai mesmo esboçar a história de como o "ensaio" nasceu. Há a necessidade de justificar uma decisão, uma iniciativa que, digamos de passagem, não era (não é) habitual
nos costumes dos escritores portugueses, sobretudo romancistas.
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Como nasceu a ideia da monografia? De modo muito ocasional, já o dissemos. Tudo começa com um passeio pelo Ribatejo. Ao passar por Glória, alguém lhe fala da riqueza
dos costumes, da literatura oral dessa região... Aí se situa o incidente que vai ter como consequência pôr em funcionamento tudo quanto já se encontrava preparado
anteriormente por sugestões de pessoas amigas que, no texto, funcionam como porta-vozes da própria ciência ou de todo o saber académico. São as autoridades que,
aliás, são citadas com a reverência e a amizade que sempre nos merecem os grandes mestres: José Leite de Vasconcelos e Rodrigues Lapa. Outros nomes serão citados
ao longo da obra, como autoridades aceites (Freud, Claparède, Kilpatrick), mas são os dois acima referidos que merecem as honras da maior distinção.
No desvendamento da estrutura actancial comunicativa, estes mestres apresentam-se-nos como os representantes-delegados de um Destinado que é o verdadeiro, o autêntico
saber institucionalizado. O autor reconhece-se assim como detentor de um programa, ou, por outras palavras, encarregado de uma tarefa: a de seguir a sugestão e o
exemplo dos mestres ..., apesar de modestamente se considerar pouco competente.
Qual é o resultado desse programa que o etnógrafo-escritor se impõe levar a termo? Resumi-lo-emos com o reconhecer que é duplo: por um lado, um maior conhecimento
do povo, através de um contacto diário, conhecimento de costumes, tradições, literatura, linguagem; e, por outro, o registo escrito de tudo quanto for ficando anotado
desse conhecimento. Visa-se principalmente esta última etapa: a possibilitação de uma escrita que regista os dados recolhidos.
Para uma conveniente aproximação dos problemas que neste momento gostaríamos de esclarecer, tentaremos equacioná-los por fases. Começaremos pelos mais gerais e de
longe os mais importantes de todos.
A - Um discurso do saber
O saber, resultado progressivo de uma estratégia a um tempo pragmática e cognitiva (isto é, resultado
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da prática concreta do etnógrafo), de virtual passa a real mediante o registo peta escrita. Torna-se assim possível um discurso do saber.
Observamos no entanto que este discurso vai ser submetido a duas fortes condicionantes: a reorganização dos dados recolhidos por parte do sujeito-enunciador tornado
narrador e, como consequência, a estruturação do discurso como eminentemente descritivo/narrativo.
Expliquemo-nos, porque este aspecto se torna muito importante, para a análise em profundidade, da prática do etnógrafo. Para tal, progrediremos por etapas:
1 - A obra Glória - Uma Aldeia do Ribatejo é a concretização, o registo pela escrita, de todo um saber anteriormente adquirido. Na verdade, munido de toda a sua
preparação teórica e competência metodológica, o etnógrafo entra em contacto com a população escolhida. Neste caso, Alves Redol vai contactar com o micruniverso
de homens, costumes, tradições, etc., da Glória. Adoptando tácticas que relevam do domínio de uma actuação concreta e, ao mesmo tempo, de uma sua aptidão de armazenamento
e reprodução de conhecimentos, o etnógrafo regista de cor ou por escrito tudo quanto julgue pertinente para o seu trabalho. É evidente que, na fase contemporânea
ou posterior à sua prática de campo, os dados amontoam-se à espera de uma possível concretização discursiva.
2 - O etnógrafo passa, então, à fase mais importante: a de enunciador-produtor do discurso de saber a registar pela escrita. Neste ponto deparamos com várias possibilidades.
Entre elas enumeraremos as que temos por mais relevantes. Em primeiro lugar podemos conceber um diário de etnógrafo (exemplo: Corps pour corps- Enquête sur la sorcellerie
dans le Bocage, de Jeanne Favret-Saada e Josée Contreras, Galimard, Paris, 1981), em que a ordem factológica na escrita acompanhará cronologicamente a ordem da progressão
da própria prática de trabalho de campo. A segunda possibilidade definir-se-á por oposição à que acabámos de considerar: a ordem seguida pelo
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enunciador não terá em linha de conta a ordem real da prática etnográfica, e havemos, então, de pressupor que se adoptará antes uma hierarquização na exposição dos
dados, o que pode ir ao ponto de abandonar alguns tidos então por não pertinentes, ou, ainda, da adopção, no espaço textual, de contributos que nada têm a ver com
a experiência concreta de trabalho de campo (por exemplo, experiência de outros etnógrafos). Pode acontecer, e estamos então no caso presente, que interesse ao enunciador
etnógrafo a reorganização hierarquizada dos dados do saber, que considerámos na segunda possibilidade, sem que, no entanto, ele deixe de aludir às condições, ao
contexto, em que decorreu o trabalho de campo.
Não esqueçamos que, de facto, o enunciado da Glória subsume não só o próprio enunciado, mas também se revela como registador das condições (primitivas em relação
à escrita) em que nasceu o texto, isto é, como registador da enunciação. É o que designamos de "enunciação enunciada".
3 - Não há dúvida que estamos perante um discurso do saber. No entanto, longe de se caracterizar pela expressão abstracta dos dados cognitivos, esse discurso adequar-se-á
à natureza do resultado do trabalho de campo e ao objectivo pretendido. Uma primeira condição para a produção da escrita hierarquizada será submeter os dados recolhidos
a uma reorganização por parte do simples enunciador. É evidente que Glória - Uma Aldeia do Ribatejo segue uma progressão que sintetizaremos da seguinte forma: do
mais geral (a terra e as gentes) partimos para a des[ crição dos "objectos" concretos da vida quotidiana e, depois, para as manifestações folclóricas. Ou mais desenvolvidamente:
após alguns dados geográficos e históricos sobre a tetra e a gente, o ensaio divide-se em duas grandes partes, de acordo com a antropologia tradicional - a ergografia
e o folclore. Tanto para um como para outro desses domínios, escolhem-se os aspectos pertinentes de estudo. Na
ergografia seguem-se a lavoura em geral, o carro de bois, a cortiça, o moinho de vento, e ainda a cerâmica, a habitação, particularizando-se depois o "forno de
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pão". No folclore começa-se pelo vestuário (feminino, sobretudo), passando-se à etografia, mercê do estudo do que diz respeito à evolução da vida do homem: "baptizado,
namoro, casamento e morte", para se consagrarem desenvolvidas páginas aos "jogos de infância", à "arte manual", ao "teatro", ao "cancioneiro", às "danças" e à "religião",
e concluindo-se com uma colecção de "expressões" correntes. Um útil glossário da responsabilidade do autor agrupa alfabeticamente a terminologia dispersa ao longo
do livro.
Ao adoptar a táctica discursiva de reorganização hierarquizada dos dados do saber, o enunciador-etnógrafo faz entrar a narrativa na sua prática de escrita. O detentor
do saber será, então, o narrador do conhecimento. Para tal adoptará as duas estratégias discursivas que caracterizam qualquer enunciado narrativo: a descrição e
a narração.
Como é que, na prática, ou melhor, na ocorrência, essa narrativa se concretiza? A obra organiza-se mediante a justaposição de pequenos textos à primeira vista independentes;
no entanto, eles implicam-se num encadeamento hierarquizado a que, como já vimos, os dados são submetidos. Mas cada um desses pequenos textos, fragmentos de um todo,
constrói-se como descrição e como narração. Recorremos a um exemplo. Parecerá que, na obra, o "carro de bois" interessará como objecto de descrição ... Na verdade,
após um primeiro parágrafo em que se tenta comparar este com os outros tipos de carros de bois, opta o etnógrafo-escritor por considerá-lo peça por peça, sempre
com uma evidente preocupação terminológica e taxinómica. A descrição predominante é amplamente analítica, possibilitando-se assim a partir de uma base lexemática
(neste caso, "carro de bois") uma expansão discursiva por meio de terminologias e taxinomias em cadeia. A descrição já aponta para os seus prolongamentos narrativos.
No fim do texto já é possível construir um diálogo em situação, consequente resultado de uma invasão do discurso pela intencionalidade narrativa.
É óbvio que a narrativização pode muito bem ter como ponto de partida uma descrição de carácter terminológico ou uma tentativa taxinómica. Depois de se fazer a descrição
da telha e do forno de cerâmica,
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a conclusão exprime-se da seguinte forma: "Então nas pilhas, vermelho-brando, feridos de úlceras negras, aqui e ali, a telha e o tijolo esperam que os carros os
levem para a mão calejada do pedreiro, a erguer paredes ou a cobrir do tempo um casal que vai a noivar quando as colheitas saírem da eira." (Cap. "Cerâmica" .)
Resumindo, diremos que Glória - Uma Aldeia do Ribatejo constituiu um texto caracteristicamente etnográfico, isto é, um registo escrito, portanto, um enunciado, que
dá conta pelas várias estratégias textuais e discursivas (principalmente narração e descrição), do resultado de uma prática etnográfica (experiência/vivência/pesquisa
concreta).
Contudo, não esqueçamos o mecanismo complexo de discursos como o de Glória - Uma Aldeia do Ribatejo. Isto é, encontramo-nos perante um discurso que não só dá conta
do conjunto de aquisições (através da narratividade, ou melhor, da descrição e da narração) conseguidas junto do povo, mas também das condições (do ponto de vista
do próprio etnógrafo-enunciador-narrador) que tornaram possíveis tais aquisições. Donde, evidentemente, termos de chamar a atenção para o seu estatuto de ambiguidade.
Sabemos que hoje em dia se exigem características diferentes para a escrita dos que se ocupam de etnografia. A objectividade da descrição dos dados etnográficos
pressuporá a ausência (tanto quanto possível) das marcas subjectivas (do eu-etnógrafo) no próprio texto. Igualmente se não permitirá a transformação poética de um
discurso que deverá aproximar-se da linguagem de intenções referenciais.
Alves Redol vai optar por um discurso que prioritariamente manifesta o enunciado, mas não esqueçamos que, ao mesmo tempo, regista a enunciação. Neste ponto, temos
de falar da presença da enunciação em dois sentidos:
1 - Inscrição das condições da recolha, isto é, do trabalho anterior à escrita;
2 - Juízos sobre a sua obra e diálogo com o leitor ("Suponho ser este até um dos capítulos mais úteis do meu ensaio ...", cap. "Etografia").
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Temos ainda de acrescentar que outra ambiguidade caracteriza a obra: um discurso cognitivo vai ser objectivo-referencial e ao mesmo tempo subjectivo-literário.
Ora, é de ambas estas referidas ambiguidades que deriva o carácter original, a verdadeira dimensão, diríamos mesmo a beleza, desta obra de Alves Redol.
Glória-Uma Aldeia do Ribatejo, obra do período de juventude literária de Alves Redol, ressente-se do entusiasmo de quem pretende levar a cabo uma tarefa, como etapa
importante num programa militante de escrita. Cremos que aí tem origem o saudável tom sentencioso que encontramos em alguns passos da obra: "O trabalho em condições
humanas não avilta nunca" (cap. "Vestuário"). Igualmente se torna evidente a preocupação, por parte do jovem homem, de letras, de fazer literatura, de sobrecarregar
conotativamente o seu discurso. Donde algumas explosões de lirismo: "ela entrega-lhe em delírio apaixonado, como a melhor prenda dos seus anseios, e necessidades,
a flor radiosa do ventre" (cap. "Biografia"); ou a procura vernácula do efeito de sentido: "Que estupendo libelo contra esses sociólogos que vêem no trabalho das
mulheres uma quebra de encanto das suas virtudes femininas!" (Cap. "Vestuário".) A contaminação do discurso etnográfico pela literariedade surpreende-nos, por vezes,
pelos meios fortes de que se serve: "No Ribatejo Sul, plaino de horizontes largos, sem elevações notáveis, só em Salvaterra sentirá o prazer de passear os olhos
por esses perfis brancos, românticos, como noivas debruçadas no vale, à espera do que jamais chega, e acenando ao azul os quatro lenços das suas velas." (Cap. "Moinho
de vento".)
B - Ainda a especificidade do discurso etnográfico
Outras questões relacionadas com as que acabamos de expor, de âmbito mais restrito, mas nem por isso menos importantes, ajudar-nos-ão a considerar ainda mais de
perto a especificidade do discurso etnográfico, e principalmente da possibilidade de uma
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das suas modalidades (tal como Alves Redol em 1938 nos propôs).
Este discurso do saber que, como vimos em Glória - Uma Aldeia do Ribatejo, se nos patenteia narrativizado e com tratamento literário, apenas pode ser definido se
tomarmos em linha de conta que a sua produção só é possível mediante a confluência de quatro principais preocupações geradoras de escrita: a preocupação descritivo-narrativa,
a preocupação de integração (extra) contextual etnográfica; a preocupação de "citação" e a preocupação terminológica/taxinómica.
1 - Quanto à primeira, a preocupação que designamos "descritivo-narrativa", pouco mais vamos acrescentar ao que atrás já deixámos escrito. Vimos como o discurso
surge enquanto produção escrita da responsabilidade de uma instância que é o etnógrafo-enunciador, agora tornado enunciador-narrador. A produção escrita sucede-se
a uma actuação referencial, que chamaríamos de prática etnográfica de recolha. Por ela se pretende condensar, sintetizar, ou amplificar, ou ordenar os dados recolhidos
no trabalho de campo. Os dados referenciais são então reclassificados, rearranjados segundo as regras intertextuais do género escolhido, o ensaio, ou "tentame etnográfico".
Em termos mais específicos, o ensaio etnográfico deverá ser estudado como um "ser" que pressupõe duas fases do "fazer": um primeiro corresponde ao trabalho de campo
- dois actantes principais encontram-se frente a frente e transfôrmam-se mutuamente (o sujeito, ou seja o etnógrafo-enunciador, enviado em nome de um Destinador,
que é o próprio Saber, e os representantes da entidade Povo, os quais funcionarão como os informadores). Digamos de passagem que será importante um dia estudar mais
aprofundadamente se o etnógrafo não é um representante de um Saber (a Ciência) junto do Povo, para tomar conhecimento de um saber, mas saber diferente. O resultado
será a integração de um saber (o popular), mas transformado, na esfera do outro Saber (a Ciência).
O trabalho do etnógrafo poderia parar nesse momento: Alves Redol guardaria, então, as suas notas,
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as suas observações, a sua recolha, sem outro objectivo que não fosse o de querer arquivar aspectos da vida de uma comunidade do Ribatejo, ou então para os aproveitar
em futuras obras de ficção. Daí que tenhamos de nos referir ao segundo "fazer": é o da produção da escrita ela mesma. Nesta, o etnógrafo-enunciador vai assumir outro
estatuto: o de enunciador-narrador.
2 - Segunda preocupação: a de constante integração no (extra)contexto etnográfico. Teremos de reconhecer que esta preocupação se relaciona muito intimamente com
a anterior. Na descrição de objectos, na transcrição de textos da literatura oral, na narração de costumes, encontramos em Alves Redol não só a preocupação de os
considerar em si, mas de os relacionar, ou de estabelecer uma rede comparativa com objectos ou situações contextuais ou extracontextuais. Queremos dizer: com outros
objectos ou situações respeitantes à mesma ou a outra ou outras comunidades. É constante, de facto, o procedimento de encontrar elementos linguísticos que sirvam
de ponto de comparação com os de outras regiões. Afirma-o o autor no capítulo consagrado aos "Jogos de infância": "entendi poder encontrar nela [actividade lúdica
nas crianças da Glória] elementos linguísticos e etnográficos que servissem de ponto de comparação com a de outras regiões". Ou, ainda no capítulo consagrado aos
moinhos de vento, vemos defendida a mesma posição: "Pelo estudo comparativo realizado verifica-se a riqueza dos termos do moinho da Glória e a diferença da sua maioria
para os dos outros." A comparação tem em linha de conta as regiões de Glória, Figueira da Foz, Algarve, Abramar, Lavos.
3 - Chamaremos à terceira preocupação, "de citação". E parecerá talvez gratuito considerarmos que o texto de Glória - Uma Aldeia do Ribatejo manifeste tão particularmente
esta invasão pelo discurso do outro, que acrescentaremos mesmo tratar-se de uma das marcas específicas de toda a escrita etnográfica. Sabemos que (como o demonstra
Antoine Compagnon na sua recente obra La Seconde Main,), todo e qualquer texto é espaço de citação-espaço de rede de citações.
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No entanto, a escrita de Alves Redol exemplifica-nos a "criação" do texto etnográfico. Para melhor nos entendermos, distinguiremos dois tipos maiores de citação.
O mais relevante no nosso texto, e em todo o discurso de um enunciador-etnógrafo, consiste na aceitação/transcrição do texto do povo ou da população estudada. Em
primeiro lugar sabemos com que cuidado o etnógrafo vai registar os textos da população-informadora: os romances, as quadras, os provérbios, as adivinhas. Em seguida,
a preocupação de recolher os termos, as designações para objectos, partes de objectos, etc., a terminologia linguística, que acompanha as descrições, deve forçosamente
ser também, tida por trabalho de citação. Torna-se evidente que havemos de considerar a escrita do enunciador-etnógrafo como principalmente de citação. Nesta perspectiva,
a população estudada ou, neste caso, o povo da aldeia da Glória vai assumir um estatuto de emissor no processo da comunicação entre a comunidade e o etnógrafo. Mais:
ele será a "autoridade", o detentor do texto que o etnógrafo recebe, respeita e transcreve segundo as regras metodológicas próprias do seu ofício.
No entanto, outras autoridades vão colocar-se ao lado dessa primeira: com menor peso, mas sempre suportes de uma certeza de teorias e de métodos. São representantes
da Ciência, e tanto mais quanto os seus trabalhos se propõem como dignos exemplos de um "saber-fazer" expositivo. No seu estatuto mais frágil constituirão referências
a ajudas, apoios, em diferentes momentos da exposição ou da argumentação. Leite de Vasconcelos, Rodrigues Lapa, Fonseca Cardoso, Ricardo Severo, Ramalho Ortigão,
F. Kríiger, Gross, Claparède, Freud, Kilpatrick, etc., são autores que Alves Redol apela para o ajudarem, para o apoiarem numa estratégia discursiva quer de tipo
interpretativo, quer de tipo persuasivo.
Das duas preocupações que chamámos "de descrição" e "de citação" deriva uma outra: é a terminológica e a taxinómica.
4 - Considerámos esta última preocupação como parte do trabalho de citação, na medida em que, num
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discurso de saber como o etnográfico, ela consistirá principalmente no registo das designações propostas pelo próprio discurso do povo. No entanto temos de considerar
que essa preocupação terminológica pode ser mais lata, e abranger aliada outro domínio, ou seja, aquele que depende do repositório já estabelecido da Ciência Etnográfica
(por exemplo, as grandes divisões: Ergografia e Folclore), ou da própria iniciativa do etnógrafo.
Perante o objecto a descrever, ele poderá querer efectuar distinções, análises ou sínteses, o que exigirá uma classificação da sua própria responsabilidade. A proposta
de taxinomias constitui um dos aspectos específicos do discurso científico-técnico. Fazem-se sempre acompanhar de esquemas, de ilustrações, de gravuras. Daí que
o discurso icónico se torne suporte importante nos discursos do saber.
No estudo de Alves Redol, os registos terminológico e taxinómico aliados ao auxiliar icónico (desenhos quase sempre) levar-nos, a proceder a um estudo comparativo
entre o texto e o antetexto, ou o pré-texto. Graças à gentileza da família do escritor pudemos consultar os apontamentos que serviram para a redacção de alguns capítulos
de Glória. A cada objecto corresponde um desenho, em que são anotados os termos respeitantes às partes constitutivas das correspondentes no referente real. No livro
conservam-se alguns desses desenhos, aliás da responsabilidade de Júlio Gois, mas apenas com uma função supletiva, com que se procura de certa forma completar o
texto descritivo. As ilustrações perderam no texto a função de apoio às preocupações que tinham no pré-texto.
De toda a nossa precedente actuação resulta termos de reconhecer que sempre havemos de ser incapazes de caracterizar capazmente qualquer tipo de discurso. Quisemos
tentar esboçar um princípio de teoria que, se pretendeu dar conta de uma obra concreta, a Glória - Uma Aldeia do Ribatejo, pode muito bem aplicar-se a quase todas
as escritas etnográficas. Queremos assim contribuir para uma proposta de teoria do discurso etnográfico a partir dos aspectos mais
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pertinentes de uma escrita, tal como é exemplarmente facultada por esta obra de Alves Redol.

3. Actualidade da iniciativa de Alves Redol

Como atrás fica dito, esta monografia de Alves Redol traz as marcas do tempo. O entusiasmo jovem e as intenções programáticas constituem as principais motivações
dos aspectos que consideramos ou mais positivos ou mais negativos numa economia da apreciação actual da obra.
Se estivermos atentos ao processo da nossa leitura verificaremos que é a vivacidade, o entusiasmo, o militantismo provenientes da juventude do enunciador e, ao mesmo
tempo, da concepção da missão do etnógrafo e do escritor que tornam possível o nosso prazer da recepção de leitor. Contudo, são essas mesmas qualidades que podem,
a dado momento, intervir negativamente, sobretudo se as referenciarmos a um tipo de discurso mais contido, mais objectivo e menos literário, tal como hoje se requer
de uma monografia do género.
Do mesmo modo verificamos que, em determinados passos da obra, uma quase prosélita visão do mundo -que, aliás, merece o nosso apreço e mesmo a nossa adesão- pode
prejudicar a objectividade de alguns juízos. Podemos, por exemplo, discordar da pertinência do esboço da história da religião (cap. "Religião"). Mas também temos
de convir que nesse proselitismo vão assentar duas das mais importantes facetas do escritor: um esclarecido patriotismo e uma convicta defesa dos desfavorecidos.
Metodologicamente continua actual a orientação clássica seguida por Alves Redol. Note-se a vontade de privilegiar o domínio linguístico: o seu trabalho integra-se
num método bem preciso, o das "palavras e coisas".
Perante o objecto a estudar, a atitude básica será a da descrição. Não se pretende, portanto, atingir um grau posterior, com a verificação de leis estruturais, por
exemplo, que caracterizam as orientações antropológicas
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dos anos 60 e 70. Nessa descrição procura o etnógrafo nada perder de vista: tudo merece uma exaustiva atenção.
Apesar do trabalho que uma obra como Glória sempre pressupõe, Alves Redol modestamente nos diz que se trata do início de uma "caminhada titubeante e imprecisa".
É óbvio que ele não considerava haver tudo dito sobre esta aldeia do Ribatejo. Julgamos que Glória se reveste de carácter pontual e metonímico. Metonímico em relação
a toda a sua vasta obra, como também em relação ao conhecimento do povo português.
Haverá, portanto, um grande projecto para o futuro: por várias vezes, Alves Redol nos afirma a sua convicção de que terá de continuar esta tarefa.
Surge assim uma concepção dinâmica de um progresso confiante no futuro. As outras obras, sobretudo o Cancioneiro do Ribatejo, vão confirmar-nos da sua contínua preocupação
no contacto com o povo.
Mas, mesmo em algumas partes da sua obra, sentimos como, numa atitude científica, se formulam hipóteses que se deixam em suspenso, a fim de serem verificadas mais
tarde. Deste modo, no final do capítulo "Moinho de vento", afirma o autor: "É possível que um estudo que pretendo realizar sobre moinhos de vento no Ribatejo possa
confirmar, em parte, esta suposição ..."
Descoberta, portanto, de cultura popular - e, neste domínio, a obra de Alves Redol revela-se também actual. Através das obras publicadas nos últimos dez anos, descobrimos
um interesse não só pelas culturas ditas "exóticas", mas também pelas culturas "populares" (vide Les Cultures Populaires - Permanence et émergences des cultures
minoritaires locales, ethniques, sociales et religieuses, sous la dir. de G. Poujol e R. Labourie, I. N. E. P., Privai, Toulouse,
1979), e suas manifestações (literatura oral, superstições, etc.): não vamos agora analisar as razões do fenómeno. Não julgamos que se trate, como quer Michel de
Certeau, de contemplar a "beleza do morto", porquanto pensamos que as culturas populares estão e continuarão bem vivas.
Ao longo da obra, Alves Redol confirma-nos o quanto para ele o conceito de Povo significa. Temos
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sobretudo em mente o começo do capítulo sobre o "cancioneiro": "O povo, massa anónima que muitos aviltam e outros adulam para dominar, tem a sua epopeia - a mais
bela e grandiosa de quantas a humanidade conhece." E prossegue: "É ele que gera os nomes fulgurantes de todas as histórias, já acarinhando anseios que estas arvoram,
já seguindo-os e dando-lhes a nobreza do seu ímpeto ou da sua brandura."
No entanto verificamos com uma certa pena que o autor de Fanga não escapa a uma concepção de certo modo negativa da cultura popular. Expliquemo-nos: Alves Redol
não pôde evitar uma concepção negativa da cultura popular em relação à cultura erudita - quando nunca poderá ser legítima qualquer comparação de carácter judicativo
entre ambas. Aliás, muito bons estudiosos que se entregaram devotadamente ao estudo das produções do povo não conseguiram perspectivar da maneira mais lúcida todo
esse sistema de práticas significantes que vão das manifestações linguísticas aos objectos, às crenças, às superstições. Já nos referimos ao assunto em nota recente
acerca de uma antologia de "poetas populares" (vide Colóquio/Letras, nº 52, Novembro de 1979, pp. 74-79). Neste momento pensamos também em D. Carolina M. de Vasconcelos
que, amando o povo, não conseguiu evitar termos de conotação pejorativa como "degeneração", "deterioração", para se referir às produções populares.
Alves Redol tinha consciência da complexidade do assunto. Vemo-lo quando, ainda falando do povo, ele afirma: "Todas as grandes evoluções sociais viveram em germe
no seu espírito infantil, ao mesmo tempo sábio." Portanto, "infantil" versus "sábio"! Outras vezes não o diz directamente. Fica subentendido que a beleza conseguida
nas produções populares pode causar-nos espanto: "De qualquer assunto que fira a sensibilidade do povo, ele produz uma jóia pequenina de poesia, sempre pela intenção,
algumas vezes pela sua feitura perfeita." (Cap. "Cancioneiro".)
Noutro passo, ao aludir a uma cantiga do poeta popular João Manuel Pereira Caneiro, faz as seguintes considerações: "É uma produção que define a altura a que poderia
ascender o seu estro, se a cultura o tivesse arrancado às trevas onde o seu espírito cintilante
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se debatia." A oposição "cultura" /"trevas" impressiona-nos, porquanto se pressupõe, para cada um dos termos, "cultura erudita"/"cultura popular".
Sabemos que ressaltámos uns quantos pontos pouco importantes na economia da obra - mas representativos de uma concepção de que não ficaram isentos os investigadores
que, como Alves Redol, mais apaixonada e lucidamente observaram, descreveram e sobretudo amaram o seu povo.
Glória - Uma Aldeia do Ribatejo, metonímia concreta de uma atitude global perante o Povo, constituiu, em 1938, um marco importante na obra do seu autor, como tentativa
objectiva de proceder a um ensaio etnográfico e como etapa quase obrigatória na descoberta desse mesmo Povo que seria "reconstruído" noutro espaço de escritor, a
ficção. Na história da Cultura do Povo Português, ela é também trabalho de relevância como contributo sério e exaustivo de recolha e descrição etnográficas.
Se o progresso da metodologia, por um lado, e a mudança da vida da própria comunidade estudada, por outro, nos levam a reconhecer, numa perspectiva rigorosa, que
alguns aspectos se encontram ultrapassados, temos de acrescentar: ainda bem! Porque o muito que ficou feito é bem exemplar, bem representativo, em relação ao estado
da ciência etnográfica e à cultura da aldeia escolhida, nos fins da década de 30.
Glória - Uma Aldeia do Ribatejo foi ponto de partida para outros estudos de semelhantes objectivos (temos em linha de conta as publicações de Margarida Ribeiro e
de Idalina Senão Garcia). Esses trabalhos souberam continuar o que de mais apaixonante descobrimos na leitura do "tentame etnográfico" levado a cabo por Alves Redol:
a intuição do que devia ser a execução da tarefa, a metodologia escolhida e exemplarmente aplicada numa exaustiva descrição das práticas culturais da comunidade
estudada, o trabalho cumprido com a convicção de que importava preservar o património cultural popular, e sobretudo o entusiasmo com que a expressão mais adequada
acompanhou a reorganização do material num discurso de saber etnográfico - tudo isso que nos demonstra o que pode ser uma escrita acerca do Povo, tudo isso que nos
convence da possibilidade de um
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discurso etnográfico, tudo isso que nos certifica da actualidade da iniciativa firme, bem concreta e séria (e de maneira nenhuma "titubeante e imprecisa", como modestamente
julgava o autor) de Alves Redol.
J. DAVID PINTO-CORREIA
(Faculdade de Letras de Lisboa)
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PREÂMBULO
NÃO é um rito em holocausto à praxe, nem um sacrifício em louvor ao público, este preâmbulo escrito para elucidar o leitor, expondo-lhe o porquê do trabalho e o
seu objectivo, para que assim o julgamento seja tão exacto quanto possível - se alguém se der ao labor de o ler e de o julgar.
Deveriam as recolhas etnográficas ser dirigidas por entidade oficial que as centralizasse e seleccionasse, enriquecendo o material da nossa filologia, e executadas
por professores especializados que, abandonando a sua habitual fossilidade, fossem até ao povo buscar, com entusiasmo e carinho, os motivos tão belos da sua produção
material e artística e a tão eloquente expressão da sua linguagem.
E vindo a talho de foice, aqui devo lembrar as palavras de Rodrigues Lapa, a propósito da colaboração que nesta obra poderiam ter -ou melhor, deveriam- os alunos
da secção de filologia românica das nossas faculdades. "Nos quatro anos do curso, no intervalo das férias, iriam carreando materiais que condensariam em dissertação
final. Aprenderiam por montes e vales a filologia verdadeira, aquela que não vem nos livros, e de passo aprenderiam a conhecer melhor e a amar mais proveitosamente
a sua terra e o seu povo. A filologia seria assim um instrumento inapreciável de autêntica democracia."
com tais elementos, submetidos a uma unidade de objectivo e critério que não afogaria o mérito individual
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de cada investigador, se lançavam as bases firmes sobre as quais se poderia erguer o edifício esplendoroso do nosso Atlas linguístico, tão falado e ainda envolto
na -penumbra da fantasia.
O muito que a perseverança e o saber do Dr. Leite de Vasconcelos tem conseguido não é suficiente para salvar a riqueza exuberante da nossa ergografia e folclore,
antes que o ritmo apressado da civilização actual os incaracterize, como reflexo da interdependência económica que liga os povos e os encaminha para uma estrada
una, mais ampla e mais dócil que os atalhos íngremes e pedregosos por onde hoje marcham esfalfados e indecisos. Reconhecendo esta necessidade imperiosa, lamentando
esta funesta indiferença, a etnografia captou-me por um misto de interesse cultural e simpatia pelo seu abandono, levando-me a folhear alguns volumes da obra fecunda
do ilustre fundador do Museu de Belém.
Então, constatei melhor quanto de valor linguístico e social encerravam esses estudos, a viverem do heroísmo de meia dúzia, e, embora reconhecendo-me incapaz de
produzir obra científica com semelhanças de mérito, entendi poder colaborar na etnografia portuguesa, recolhendo com amor e desvelo aquilo que, no contacto vivificador
buscado sempre com alegria junto do meu povo, me parece merecer retenção.
E logo nas primeiras férias, enquanto para os meus conto? vivia a labuta ingrata do camponês do Ribatejo, ou a do que para aqui imigra -escrever sem viver é agitar
bonecos sem alma-, fui anotando pormenores para esse objectivo. Depois, concebi e tento realizar com a exiguidade dos meus recursos materiais, um Cancioneiro do
Ribatejo, onde se fixarão os motivos de alentos ou alegrias desta gente admirável, que moureja de sol a sol e traz a bailar-lhe no cérebro um sonho de melhores dias.
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Nesta missão de tudo encontrei. Vontades decididas a darem-me alentos para essa obra, carreando elementos, interessando outros e outros, e encolheres de ombros de
indiferença, senão objecções à sua execução. O material recolhido trouxe-me contudo a certeza de que algo se poderá realizar de vantajoso para o folclore nacional.
Entretanto, devo frisar, uma vez mais ainda, que para obra tão complexa não é suficiente esta iniciativa particular, antes pedia a sua adopção por organismo que
pudesse dar maior amplitude a esse trabalho.
Do mesmo desejo de ser útil a tão interessante e proveitosa ciência nasceu este estudo sobre a Glória.
Atravessava a lezíria de Vila Franca em busca de Montalvo, com alguns amigos que convidara para sentirem o arfar do Ribatejo, por -uma manhã serena e cálida. As
searas iam a sazoar, a caminho da foice, e aqui e além se sentia ainda a dizimação da última cheia, que pouco poupara no seu desígnio furioso.
As manadas de éguas e toiros, a tasquinharem nas ervas resplandecentes de viço, erguiam cabeças à nossa passagem. E ao trote largo duma parelha que nos embalava
e a mão firme do Pompeu Reis ia dominando, falou-se da lezíria e dos seus habitantes, da sua riqueza e dos costumes dos que a revolvem. O nosso condutor, cuidadoso
jardineiro dos campos que arrenda na campina, contou-nos com emoção o que apreendera no seu contacto com o rancho do Manuel Alexandre, da Glória.
Havia ali um filão etnográfico a explorar.
Rodrigues Lapa, sempre deslumbrado por tudo que represente labor dos humildes, incitou-me. E naquelas férias de Julho, sobraçando papelada e muito de entusiasmo
por poder servir, uma vez mais, o
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povo donde vim e que não traio, dispus-me a enfrentar as dificuldades da recolha.
Este ensaio - que outra designação não lhe poderei apor- é pois o produto dessas férias, em que pretendi penetrar e compreender a alma e os costumes das gentes humildes
e honradas dessa aldeia branquinha, que ínsoa a charneca, onde outrora se ouviam as trombetas de caça das montarias reais.
Segui o processo de palavras e coisas por me parecer o mais eficaz em investigações desta natureza, e assim ilustrarei quanto possível, por desenhos e fotografias,
todas as passagens que me pareceram dignas de o ser e a lei imperiosa das circunstâncias o permitiu.
E expondo ao leitor sinceramente o meu objectivo e as suas causas determinantes, cumpre-me tributar a todos os que permitiram com a sua colaboração o iniciar desta
caminhada titubiante e imprecisa os meus reconhecidos agradecimentos.
Desde Manuel Pasmarra e João Verde, que me acompanharam na Glória desbravando dificuldades, aos que me forneceram elementos de toda a ordem, e a Júlio Gois1, que,
sob apontamentos meus ou ainda em reproduções directas, ilustrou este ensaio, todos aqui têm o seu quinhão de mérito, sem o qual me seria impossível trazer à publicidade
este TRABALHO COLECTIVO.
Vila Franca de Xira, 2º semestre de 1937.
ALVES REDOL
1 Autor dos desenhos que Ilustraram a 1ª edição da obra. (N. do E.)
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A TERRA
NO concelho de Salvaterra de Magos, por aquela estrada cabisbaixa que une Marinhais a Coruche, está a Glória. Não conheço, em todo o Ribatejo percorrido, aldeia
que irradie mais simpatia por atributo próprio.
Emoldurada por campos áridos, onde o seixo é como espiga em seara basta, não a alinda vegetação farta e ébria de cores, fio de água a murmurejar, galgando de monte,
ou, ou a toalha azul do Tejo marcada de mouchões e velas.
Indo-se de Marinhais, nasce de um plaino de montado triste e desolador para cabeço suave, onde as casas se apinham num ramilhete de branco, como braçado de malmequeres
selvagens por ali abandonado a mirar os campos à volta, sem arrogância e ênfase, com o ar singelo dos que, embora subindo mais além, não cuidam, por modéstia e méritos,
de dominar os outros que os olham cá debaixo. Para o nascente e sul, a charneca dominada desdobra-se num lençol imenso de searas com raros copados de sombras e cores
-aqui, o verde metálico de uma oliveira, mais adiante, a pincelada de um sobreiro isolado-, desenrola-se num frenesi de quem tem caminho longo e vai com pressas
de o vencer. E para o norte, num monte de poucas aspirações, as cabeleiras envernizadas de pinheiros curvados ciciando ao alecrim são os únicos gritos vivazes que
acordam a natureza do seu torpor recolhido.
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Mas percorram-se algumas ruas limpas e largas, sem aquele sinal evidente do chinelo velho abandonado e do dejecto, característicos da aldeia portuguesa, namorem-se
certas curvas gráceis de recantos encantadores, com o branco esplendoroso do casario baixo a projectar-se na safira da abóbada que nos cobre e destapa, e os olhos
ficarão seduzidos pelo seu ar ingénuo de noiva entristecida que espera, em vão, moço prometido e jamais chegado.
As casas alinham-se como blocos de neve, sem altos e baixos, e lá de quando em quando, por sobre um muro de portão aberto, surge a cabeça de uma oliveira curiosa
que se debruçou no caminho a ver passar, para a fonte, cachopa de andar ritmado e seios a tremelicarem.
Lá acima, os moinhos giram ao impulso de um vento cavalheiro e raras asas desenham na amplidão imagens da fantasia de um artista delirante.
Em séculos que o tempo devorou, tudo era coutada à sua volta, num mato arrogante onde os homens mergulhavam e se perdiam.
A caça ali tinha os seus domínios e os escassos humanos que por lá viviam eram mais caçadores que camponeses.
A reis e príncipes não passou o local para suas excursões cinegéticas. E de Santarém a Salvaterra, ali vinham com grande tropel de cavalos abater porcos-monteses,
nos dias em que não caçavam a moirama, para que o treino constante das armas lhes desse perícia e ardor na conquista dos territórios que iam absorvendo.
D. Pedro I, apaixonado por aqueles exercícios e encontrando hábeis concorrentes nos caçadores locais, proibiu-lhes a matança da sua caça predilecta, mas em troca
concedia à Glória uma carta de mercês, fomentando a agricultura e a pecuária com facilidades de terrenos e pastos, e que assim rezava:
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D. Pedro pela graça de deus, Rei de Portugal e Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que eu, querendo fazer graça e mercê aos moradores em Santa Maria da
Glória, tenho por bem e mando que os seus gados passem comendo as ervas e bebendo as águas nas termas de Santarém, Muge, Salvaterra, Coruche e Benavente sem coima
nenhuma nem embargo de posturas ou defesas que por esses concelhos ou por cada um deles sejam postas em contrário disto, quanto que não façam dano com seus gados
aos donos das herdades e aos lavradores delas em seus pães e nas lavouras. E se o fizerem mando que os corrija a vista dos homens bons. E autorizo e mando que nos
mesmos termos das ditas vilas e de cada uma delas possam talhar sem coima nenhuma e levar para esse lugar de Santa Maria da Glória a madeira que lhes convier de
sobreiros e de carvalhos para suas casas e para seus pocilgas e para suas lavouras e apeiro dos seus porcos e para currais dos seus gados; e eles devem apenas cortar
o que lhes fizer falta e isto se entenda nos sobreiros e carvalhos que estão nas matas das ditas vilas e charnecas delas. E autorizo e mando eles possam lavrar e
fazer hortas e vinhas e pomares sem embargo nenhum no dito lugar de Santa Maria da Glória e arredores dele até uma légua. E autorizo e mando que eles possam colher
cortiça nas charnecas e matas dos ditos concelhos o que lhes fizer falta para cobrir suas casas e pocilgões e para suas colmeias e cobertura delas sem embargo nenhum.
E mando que eles possam matar caça nos termos das ditas vilas sem embargo nenhum com seus cães e faróis e bestas e armadilhas. Salvo porcos-monteses. E estes privilégios
e liberdade mando que hajam
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os moradores do dito lugar da Glória, enquanto ali morarem. E em testemunho disto lhes mandei passar esta carta.
E numa outra que se lhe segue no seu livro 2º de chancelaria, pp. 92 vº e 93, beneficiava-os "de não pagarem furada do pão e do vinho e doutras coisas que comerem".
Então, vieram guardas-coiteiros que aumentaram o número de povoadores, os quais, em cumprimento da ordem real, passavam buscas e vigiavam os caçadores de javalis,
que desta carne faziam provisões e venda.
com a repressão, os Glorienses voltaram-se para a charneca, trocando as armas pelo arado, e revolveram-lhe as entranhas, lançando sementes na promissão de colheitas
compensadoras. O mato crepitava incessantemente em fogaréus que incendiavam o azul. E os homens arroteavam-na, presos à terra como a grilheta forte que lhes tolhesse
a liberdade de outrora.
A propriedade era limitada pelo trabalho - quem mais desbravasse, mais possuía.
Os braços afanosos não paravam de hostilizar o solo; aos rebanhos, novas cabeças se juntavam.
Para que a mercê fosse cumprida na íntegra, pagavam em comum a um guardador que vigiava os gados, defendendo as searas das suas investidas desde o começo da Primavera.
E no domingo de Espírito Santo a proibição cessava. Os chocalhos tilintavam naquela légua em redor, tasquinhando as manadas onde os pastos fossem mais chorumes.
A terra era de todos.
E nova gente chegava atraída pelas facilidades de fixação.
Outra mercê, de que ignoro o doador, nem por informações consegui determinar, isentava da militança
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os homens da Glória. Fugidos à lei da guerra, ali se acolhiam para trabalhar, esquecendo lares e famílias, os foragidos à vida de quartel.
Contam os velhos, nas suas recordações de mocidade, que na igreja havia uma pedra onde tal ordem se gravava e que dali levaram não sabem para onde. Foi há sessenta
anos que de lá saiu o primeiro homem para servir o rei e envergar fardeta - Francisco António Pereira Caneiro, se chamava.
E desde então, durante o tempo que os regulamentos fixam, os moços sadios da Glória trocam o contacto produtivo do rabo da charrua, da foice e do pampilho pela coronha
dura da espingarda, Num costume curioso que fixo no capítulo de Etografia, sente-se bem ligada às almas a saída dos homens da terra, para aquele serviço de que durante
anos os ilibaram as leis reais e a sua índole pacífica e laboriosa acarinhava.
E a aldeia foi conquistando a charneca, palmo a palmo.
E os senhores conquistaram aos Glorienses a mercê daquelas terras já desbravadas pelo seu suor.
Houve lutas. Intervieram fardas flamantes de dourados.
E os Glorienses perderam o que o seu esforço titânico e honrado tinha produzido.
As casinhas continuaram brancas - brancas como a farinha que os seus moinhos hoje produzem. Mas na alma daqueles rudes ficou pairando a nuvem negra dessa cruel injustiça.
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AS GENTES
FALAR em raça num país como o nosso em que as invasões se sucederam num ritmo vivace, quase trepidante, é criar imagem de estrofe para fins emotivos, gratos à voracidade
de certos complexos, esquecendo em fantasias as conclusões que os antropólogos nos legaram.
Sendo certo que o fundo autóctone das populações de Portugal é a raça pequena dolicocéfala, proveniente do tipo de Neanderthal da época paleolítica, verifica-se
que logo nos primeiros tempos do neolítico a Ibéria recebeu a imigração de uma raça de origem asiática ou mongolóide, de características braquicéfalas, de que hoje
ainda se encontram sinais evidentes nos naturais do Alto Minho.
A raça loira, kimrica ou teutónica, seguiu-se-lhe em várias invasões terrestres e marítimas, e a sua influência fez surgir entre as populações morenas os tipos de
cor rósea, cabelos louros e olhos claros, mantendo, contudo, nos crânios o tipo de dolicocefalia que também é sua característica étnica.
Nas gentes do litoral destaca-se a influência dos Fenícios, sempre marinheiros, colonizadores das nossas costas, de cor morena e cabeça dolicóide, olhos grandes
e rasgados e estatura média, tipo da raça semita-fenícia, segundo Fonseca Cardoso, ou líbia-fenícia, segundo Ricardo Severo.
De toda essa amálgama de Gauleses, Romanos, Suevos, Visigodos, Normandos, Fenícios e Árabes que
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na península estiveram, resultou uma população variada, que constitui, contudo, pela sua maioria, o tipo dolicocéfalo mais homogéneo da Europa, e o que a antropologia
designou como mediterrâneo ou ibero-insular, com filiação evidente na raça de Baumes-Chaudes.
Deveremos, pois, em substituição de raça, adoptar a designação de grupo étnico, mais exacta perante as causas que determinaram a evolução da população portuguesa.
A Glória, situada numa região plana, e como tal mais aberta a infiltrações de povos, não tem um tipo definido de habitante. Nela predomina, entretanto, o homem de
rosto moreno, cabelo negro e estatura média, semelhante à raça líbia-fenícia. O tipo louro é também vulgar, como afinal em todo o Baixo Ribatejo, onde entre os campinos
se encontram os exemplares mais varonis e esbeltos da população de Portugal.
A alusão à raça líbia-fenícia tem vários elementos que podem corroborar essa minha observação.
Como atrás cito, essa raça fixou-se principalmente nas costas do nosso país e é nas classes piscatórias onde se encontram com maior frequência as características
que a distinguem. Vejamos como poderiam ter vindo para a Glória e quais os pontos de semelhança com essas populações do litoral.
Assim, o tipo de casaco, a saia de muita roda, a cinta, os pés descalços e o uso da saia pela cabeça e costas, constituem excepções aos hábitos da camponesa do Ribatejo.
São antes costumes vulgares nas mulheres da Beira Litoral, o que se constata nos campos de Vila Franca e Azambuja em presença das carmelas que para aqui vêm nas
mondas e ceifas.
Do Granho, perto da Glória, sabe-se que a parte principal da sua população é daquela origem, e até na sua ergografia lhe encontramos influências nos
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moinhos de vento, semelhantes aos de Lavos (Figueira da Foz). Desse tipo de moinho, dali exportado para Marinhais e desta para a Glória, faço um estudo comparativo
em capítulo próprio.
Não é desconhecida a emigração que das regiões dessa parte da Beira se tem feito para o Ribatejo e para Lisboa, principalmente de Aveiro, Ovar e Estarreja, e que
constituem a sua população de pescadores.
Às mulheres que, com a graça dos seus corpos perfeitos e a harmonia dos seus pregões, põem nota de encanto nas ruas da capital e nas estradas de Vila Franca, chamam
os Lisboetas e os bordas de água as varinas.
Pois na Glória, à parte da população constituída por cingeleiros, os trabalhadores rurais designavam outrora por varinos.
O facto de trabalharem com a vara e não com a rede não é facto que possa afastar a minha hipótese, pois naquelas regiões o homem é um misto de camponês e pescador,
ora debruçando-se nas águas, ora nas terras, na busca do seu pão. Verifica-se, contudo, que os trajes dos cingeleiros não diferem dos de outras ocupações, e a sua
explicação pode encontrar-se em fenómenos sincréticos.
Assim, a Glória, nos seus prováveis sete séculos de existência, teria recebido primeiro ribatejanos e alentejões, para a vida da caça, e, depois da mercê de D. Pedro
I, gente da Beira, arrastada pelas concessões de el-rei para a cultura da charneca.
O maior número destes impunha, como é natural, trajes e costumes, mas assimilava, entretanto, dos primeiros povoadores, alguns outros mais fagueiros ao seu espírito.
Desta interdependência saíram as regras e os hábitos que dirigiam a comunidade.
O cognome de varinos e varinas, que seria dado primeiro à gente da Beira, acabou por cair em desuso, talvez por constatação de que os motivos que tinham
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imposto aquele nome eram já comuns a todos eles.
No presente, o nome com que hostilizam os cingeleiros obedece já a causa diversa. Sarrolhos lhes chamam, e procurando conhecer o seu íntimo me explicaram que assim
os denominavam em virtude de se expressarem em pior linguagem do que eles. O motivo dessa diferença, que aliás se verifica, provém do trabalho de cada um.
Enquanto o cingeleiro permanece na Glória conduzindo o seu gado e cultivando a sua terra, fechado a influências estranhas, o trabalhador rural vai para as lezírias,
para as regiões da grande cultura, e ali entra em contacto com outros trabalhadores de que recebe infiltrações.
Pagando-se na mesma moeda, o cingeleiro apoda o proletário rural de catalão.
É de frisar que as origens atribuídas à influência beira na Glória podem receber rectificações em alguns pontos, se um dia se vierem a conceder a estes estudos elementos
materiais que os adubem e façam florescer em cultura intensa.
Mas outra semelhança vamos ainda encontrar nas danças. A farrapeira, dança de roda principalmente cultivada na região da Bairrada, teve na Glória maior aura que
o fandango, o verde-gaio ou o bailarico. No restante que conheço do Ribatejo, nunca a encontrei, e sem dúvida que a sua adopção aqui se deve a um fenómeno imigratório.
Na sua índole o Gloriense é reservado e frio ao primeiro contacto, mas franco e acolhedor, hospitaleiro e bom, se mais na alma lhe penetramos.
Antes de ter iniciado este trabalho, todas as informações que colhi acerca dele, com excepção inteligente da de Pompeu Reis, foram francamente más. Tanto que ao
sair de casa previ a hipótese de voltar em breve, sem algo produzir de útil para o objectivo que visava.
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Mas quando, à noite do dia em que cheguei, fui dar balanço à minha actividade, pude constatar com alegria que o meu projecto não falhava por esse lado.
Não há dúvida que o que primeiro ressalta aos olhos de quem vê caras e não cuida de corações são os defeitos. As qualidades do povo, quantas vezes, só se elevam
depois de contacto mais íntimo, e ainda se o observador possui qualidades de insinuação que façam abrir o repositório das jóias fulgentes e raras da sua alma nobre.
É claro que o Gloriense terá senões. Mas já Ramalho Ortigão dizia que "cada um tem os defeitos das suas virtudes e as boas qualidades dos seus defeitos".
De começo fui recebido com certa antipatia porque não devo confessá-lo?
Se o homem da cidade quando se aproxima do trabalhador é quase sempre para o apoucar ou dele fazer negócio!
Mas passados os primeiros momentos, de quanto carinho me vi rodeado? Facilidades, sugestões, ofertas ...
Tudo que pretendi me foi possível conseguir.
Lembro como sintoma aquela tarde de calor asfixiante, horrível quase, em que andei recolhendo o seu cancioneiro. Duas velhinhas adoráveis, a Tia Inácia Bárbara e
a Tia Quitéria Mansa, tinham-se disposto
- com que reserva e cerimónia! - a dizerem-me algumas cantigas da sua mocidade.
À porta de uma casa, onde a sombra não esquecia a torreira cruel que o Sol irradiava, nos sentamos. Eu e a Tia Quitéria nuns seixos caiados que junto às habitações
aqui servem de defesa às águas, e a outra, numa cadeirinha baixa, como o são na generalidade as que usam.
Incertezas, tremores de voz, "diz lá tu", "tu é que sabes", até que surgiu o primeiro fio daquelas nascentes cristalinas. O mulherio que nos vigiava
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de longe foi-se aproximando. A garotada que se afastara silenciosa, olhando-me de soslaio, com timidez, também quis ouvir, E daí por um quarto de hora, nem talvez
tanto, já entre as minhas pernas eu tinha um pimpolho louro a pairar, e o lápis não dava vencida às cantigas de toda a espécie que me diziam entre galhofas e risadas.
É certo que as mulheres, nos campos para onde vão trabalhar, exigem quartéis separados, escolhem locais de faina também distantes dos outros ranchos e dançam à parte.
Mas a justificação dessa desconfiança encontra-se nos seus costumes. É que, sendo tabu entre os Glorienses casar com gente de outras terras -e raras são as suas
excepções-, evitam por todos os meios que o fogo se ateie, erguendo essas barreiras que os isolam.
São pacíficos, pouco brigões, o que amplamente se exemplifica com a nula percentagem de criminilogia entre eles.
Se os crimes violentos são mais frequentes nas zonas altas e ásperas, e a Glória se situa numa zona de plainos, nem só o elemento meio influi nesta passividade tão
atávica e tão humana.
A índole da sua gente produz também esse fenómeno virtuoso.
As poucas refregas que se davam, decididas a varapau, em cuja esgrima são mestres, desapareceram com a aversão de varinos e catalões (assim formam o plural de catalão).
Todos se auxiliam, não sendo raras as provas de solidariedade prestadas a viúvas e órfãos de companheiros de trabalho.
A vida, embora madrasta, corre docilmente, silenciosa, não obstante a tragédia da sua luta lhes andar na alma, como um látego que incessantemente os fustiga.
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ERGOGRAFIA

LAVOURA
A Glória vive principalmente da agricultura e quem cruzar os campos que a abraçam verificará a eloquência do trabalho produzido, do esforço sobre-humano realizado,
para que da charneca adusta, toda seixos e areias, se arranque bago de cereal. Só a fecundia de um labor exaustivo pode colher a tais terrenos espiga bem granada
ou maçaroca cheia.
Nos seus campos cria-se o centeio, a cevada, a aveia, o milho e o trigo. Os processos de cultura são idênticos aos de outras regiões e a sua descrição não lograria
interesse, por banal.
Este capítulo é, pois, um repositório de utensílios empregados na lavoura, para base de comparação com outros trabalhos produzidos e consequente enriquecimento da
língua portuguesa.
CHARRUA - O tipo de charrua que encontrei é o de subsolo. O extremo do instrumento onde o camponês pega é o rabo da charrua ou mão, e a ele se liga a rábica, por
sua vez ligada ao apo, que é a parte mais longa e onde entre as cambotas gira a roda. Para a regular, a fim de que a lavra se faça mais ou menos funda, segundo as
necessidades, há as orelhas.
Ligada à rábica e ao apo está o cepo, ao qual se une o rasto, que evita o desgaste daquele e se muda quando necessário. A aiveca, que volta a terra e a afasta do
rego, é apertada, com dois parafusos e porcas, à relha com que o solo é revolvido.
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É pela aranha ou mechilho que se faz a ligação entre o rasto e a aiveca, e esta por sua vez tem um gancho que a une à rábica. Na ponta do apo há o regulador ou puxador
onde engatam os estrovos - peças de ferro ou madeira para ligar as solas de atrelar o gado.
GRADE - Só encontrei grades rectangulares. São compostas de quatro varas, bances ou bonzos, ligadas aos extremos por dois testinhos. Ao centro, a grade tem duas
travessas para unir melhor os lances. Os bicos de ferro ou madeira que desfiam a terra são os tornos. O bance superior tem uma peça de ferro, a macha-fêmea, onde
se engatam as solas.
Quando abrem os regos e semeiam à mão, empregam um ancinho de ferro para tapar a semente, escondendo-a aos olhares perspicazes da pardalada.
Para tirar legumes da vagem usam o malho com que nas eiras a espancam.
"Mangual" não é termo usado. A mão do malho é a moira e o invólucro de coiro, com a abertura por onde passa a meã, é a capoila. A parte que bate designam-na por
pitro (deturpação de "pírtigo") e a sola que a une à meã é a capoila ou capoeira.
Entre a capoeira e o pitro colocam um pedaço de pau, cágado. As duas tiras que apertam este conjunto são designadas também por meãs. Alguns pitros têm duas cavas
no lado superior - semóssegas.
Em Leiria o malho é conhecido por moal e em Alpedrinha (Beira Baixa), por mongal.
Nesta, à moira chamam mingueira e ao pírtigo, pirto.
Para passar o cereal ao vento empregam o forcado, com dois dentes de ferro, a forquilha, com três dentes, a esmoinhadeira, com cinco, e a pá. Alguns colocam nos
dentes das forquilhas pontas de chifres de cabra, para lhes aumentar a resistência.
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Depois de passado à esmoinhadeira são tiradas as palhas grossas com um ancinho de pau. Em seguida, para varrer as espigas que ainda ficam, usam um ramo de salgueiro
que apodam de rabo de raposa. Levantam então o cereal com a pá; e, enquanto o limpador procede a esse trabalho, outro homem, o conhador, vai tirando a sujidade que
fica no pé do monte, com uma vassoura - conho. Para juntar o cereal que se espalha empregam o rodo ou "burra.
Tanto o forcado como a forquilha são por eles construídos. O primeiro é preparado de um ramo com forca, geralmente de salgueiro. Para fazerem a forquilha emecham
o outro dente, em ramo igual. Como estes instrumentos têm um rebaixo ao meio, metem-nos num aparelho que constróem com três paus e a que dão o nome de envergadeira.
Se não a têm, uma escada serve o mesmo objectivo.
Numa debulhadoura que todos os anos vem à Glória na época da eira do trigo, encontrei uma burra de tracção animal.
Servia para afastar da máquina as palhas miúdas que não iam à enfardadeira.
Depois disso, encontrei em Montalvo uma outra de tipo diferente. Dá-la-ei em desenho noutro estudo que penso fazer sobre arrozais.
Para tirar a maçaroca das brácteas que a envolve, usam o bico, e a operação respectiva é a descamisada. O bico é feito de um pau ou osso, e, se deste segundo material,
levam-no ao lume para amaciar, dando-lhe com navalha e lima e feitio desejado. No extremo inverso ao bico abrem um buraco, por onde passa o cordão com que prendem
o instrumento ao pulso.
O bico era geralmente oferta dos rapazes às suas namoradas. O costume rareia actualmente, assim como também os atavios que o guarneciam.
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Como nos campos de Vila Franca, Benavente e Salvaterra, os arrozais são frequentes, os Glorienses empregam-se muito nas plantações, mondas e ceifas dessa gramínea.
Para auxiliar a entrada dos pés de arroz no terreno coberto de água, servem-se de um pau com dois bicos na ponta e a que chamam o moço. Nas despontas de arroz e
ceifas empregam a vulgar foice, em cujo cabo se entretém a fazer marcas e enfeites. Na ceifa, os braçados que cortam, depois de colocados três ou quatro à retaguarda
do ceifeiro, tomam o nome de gavelas, que correspondem às paveias do trigo.
Após alguns dias de resteva para melhor seca e a fim de que o grau de humidade desça, as gavelas são emalhadas. Os molhos são colocados ao alto dos canteiros já
ceifados, encostando-se uns aos outros com as panícuias para cima. O conjunto de molhos é o rolheUro e a operação enrolheirar.
Fixo ainda um termo para mim desconhecido e que, como está em ligação directa com os trabalhos de lavoura, aqui anoto.
A mulher encarregada de contratar outras na praça e que depois as dirige no campo, como um capataz, recebe o nome de rainha. A designação encontra-se por toda a
lezíria do Tejo.
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CARRO DE BOIS
O aspecto do carro em nada difere dos que tenho visto em todo o Ribatejo e noutras regiões, Outrora havia um outro tipo mais primitivo com rodas de madeira, sem
raios, o qual despertava os caminhos com a melodia da sua chiada dolorosa. É o carro conhecido no Norte por chiador, e que aqui designam por chião. Indaguei se o
cingeleiro supunha, como Rodrigues Lapa anotou numa sua crítica a um estudo de Walter Ebeling, sobre a região oriental da província de Lugo que esses carros incitassem
os animais no trabalho. Mostraram-me um sorriso de descrença, como se lhes falasse de uma fantasia de poeta alucinado. E creio que de facto não lhe reconheciam vantagens
de qualquer ordem, pois o carro chião desapareceu completamente deixando de cruzar as estradas da Glória. Nem vestígios lhe pude encontrar, embora instasse que me
serviria ver algum já abandonado, e nem tal consegui, pois do seu uso há muito abdicaram.
Ao leito do carro, que no campo de Vila Franca conhecem por mesa, lhe chamam forro, e aos dois barrotes nos quais assenta, chadeiros - semelhança flagrante com chedeiro
com que noutras regiões apodam o leito do carro e ainda noutras o varal. Na Raposa, aldeia próxima, chamam mesas aos chadeiros.
Cada chadeiro tem cinco cadeias, que vão até ao varal, e com elas se constitui o cadeado do carro. À frente e à retaguarda, sobre o forro, há
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duas sobrecadeias. Os chadeiros têm ainda oito buracos (mechas) onde metem os fueiros e cuja designação total é a fueiradura.
O varal tem a forma quase comum ao País: cabeçalho, e no seu extremo dianteiro há uma mecha onde metem a chavelha, na qual engata o tamoeiro. A parte traseira do
cabeçalho, e que conhecem por rabo do carro, termina também numa mecha que leva um fueiro, no qual penduram as cordas para arrumação das carradas.
A canga é colocada no cachaço dos bois e tem quatro mechas que servem de abertura aos cangalhos. Em cada um deles são feitas quatro semóssegas por onde passam as
duas brochas que as ligam.
A canga possui ainda nos extremos duas azelhas atravessadas pelas piaças, que se ligam aos paus dos animais.
Os rebaixes que estão juntos ao centro da canga recebem o nome de cambalhais e por eles passa o tamoeiro quando vai engatar na chavelha.
O secairo, conhecido também por tempero do carro, em virtude de a sua utilidade ser idêntica à do volante no automóvel, parte de um cangalho interior, vem à frente,
ao cabeçalho, onde penetra numa mecha um palmo adiante da chavelha, designada por buraco do secairo, e liga-se ao outro cangalho interior.
A peça central da roda é a maça, furada com uma bucha de ferro, na qual trabalha o eixo. Da maça saem quatorze raios que terminam nas pinas, em número de sete, as
quais metem umas nas outras pelas bocas e tornos, e são unidas e apertadas pelo aro de ferro.
O eixo liga as duas rodas e une-as aos malhetes, sobre os quais assentam os dois chadeiros.
Para transporte de cortiça ou palha, e para tornar o forro maior, servem-se de uma grade, assim
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como para estrume ou areia de dois taipais e duas portinholas.
Cada boi usa uma coleira com chocalho ou campainhas, e para evitar que os animais, nos transportes dos molhos, comam as espigas, põem-lhes a focinheira, espécie
de acamo feito de junca ou arame.
Os carros da Glória não têm travão e o maioral
- seu condutor- fustiga os bois com uma vara de ponteira e aguilhão.
A junta de bois é o cingel, e assim o seu dono é designado por cingeleiro.
Os animais sempre submissos, seguem o maioral, pachorrentos, conhecendo-lhe a musicalidade dos brados e o assobio.
- Fasta cá, Ramalhete!... - E o boi vem-lhe comer à mão um punhado de favas.
- Eia, boi! Anda cá, Galante! ...
E a marcha gingada, possante, faz-se de seguida, sem que o aguilhão o fustigue.
Se o maioral quer dar volta ao carro, basta-lhe um "Volta cá atrás ... quêe"!; e, se é preciso parar, um assobio, com três brados a espaços, é sinal que se não repete.
- Aí! Oh! Ah!
E eles aí ficam - olhos grandes, bondosos e tristes pousados no chão, boca a remoer, onde uma baba de neve surge-, a tilintar as campainhas, quando se agitam.
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CORTIÇA
JÁ D. Pedro I dizia na sua mercê que os habitantes da Glória podiam "levar para esse lugar a madeira que lhe convier de sobreiros e de carvalhos para suas casas
e para seus pocilgos e para suas lavouras e apeiro dos seus porcos e para currais dos seus gados". Hoje nos campos continuam os chaparros e os sobreiros, ora em
aglomerados, ora em isolamento,
na tortura dos ramos caprichosos que sobem espreguiçando-se, mostrando a carne ensanguentada dos troncos, onde a machada penetrou na tirada da cortiça. Em cabeços,
de mistura com pinheiros de cabeleiras fartas, verde-carregado, lá estão eles vigiando a charneca. E dos seus ramos fortes partem asas brancas e longas de cegonhas
imponentes, que rasgam os ares com o seu voar suave e o castanholar dos bicos em melopeia.
Quando as pernadas reais engrossam e toda a árvore cresceu de porte, vem um operário tirar a
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prova - ver-lhe a idade e a excelência da casca, não lhe tenha a cobrílha devastado as fibras, como cancro
a corroer.
E faz-se-lhe a primeira extracção, deixando o sobreiro num lamento surdo, todo cor, que o vermelho-torrado do tronco define.
É a primeira tirada - e a cortiça que lhe arrancam designam-na de virgem.
O tirador, com o machado, corticeira, corta-lhe essa primeira camada e o entrecasca, para que, nove anos depois, o produto saia mais puro e útil à indústria. A cortiça
virgem é branca e empregam-na somente para moer e para a pescaria em bóias.
À da segunda tirada chamam-lhe segundeira, amadia ou anadia.
O produto só atinge toda a sua pujança na extracção dos nove anos seguintes.
Enquanto os tiradores com cuidado cortam a cortiça, não vá a árvore ferir-se mais fundo e contrair
Fig. 2
doença que a mate, outros operários juntam-na em montes que nomeiam de queimadoires.
Daqui vai a empilhar e com a enfardadeira, arco e anilhas, colocam-na em fardos, debastando-a ao tamanho do instrumento de enfardar. Chamam traçar a esta operação
de corte.
Os bocados maiores que sobejam são transportados em redes e os mais miúdos em sacas. Enchem-se as redes prendendo ao solo uns paus em vertical, forcas, onde atam
as extremidades do entrançado.
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A cortiça é então calcada dentro delas com a maça pau vulgar que um operário empunha.
Das aplicações que na Glória lhe dão, e que são várias, a principal é para a apicultura, hoje menos desenvolvida mas que outrora era quase geral, fazendo o mel parte
eloquente dos víveres da sua população.
O cortiço, no corpo do qual alguns fazem desenhos a canivete e indicações de datas, como a da ida a militar, casamento, etc., é constituído por duas folhas de cortiça,
mais raramente uma, que unem com uns pauzinhos de barbela - viros. Sobre ele colocam o tampo, e a abertura na base, para entrada e saída das abelhas, é conhecida
por telho.
No seu interior põem três cruzetas para facilitar o trabalho do himenóptero e que designam de travincas ou trancas.
Para tirar o mel, o crestador cobre a cabeça e o rosto com o peneiral, feito de arame e pano, levando consigo uma panela com bosta a arder, no fundo da qual fez
um buraco por onde sopra. O fumo, saindo pela boca, sufoca as abelhas e, forçando-as ao abandono do lar em que puseram o desvelo do seu labor azafamado, permite
que com a crestadeira lhe tirem aos depósitos, construídos com sábia arquitectura, cerca de 30 cm de provisões.
Na vida do Gloriense a cortiça tem inúmeras aplicações. No capítulo "Habitação" verificamos que os pedreiros a empregam na manufactura das cintas; que o moleiro
preserva a rela do veio inferior com um disco seu; que nos lacticínios dela fazem queijeiras para a seca dos queijos (fig. 1).
É rara a casa onde não há dois, três e mais trapeços (fig. 2), onde se descansam fadigas e se come; com ela se fazem cochos para beber água e colocar o fermento
do pão; saleiros para as cozinhas, caixas de costura, ataviadas, hoje menos que ontem, onde embutiam bonecos na tampa.
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Na vida das crianças a cortiça é elemento principal: em berços se embalam, em carrinhos se conduzem.
Quando os homens trabalhavam longe, levavam-lhes a comida em panelas de cortiça, para que chegasse quente e o estômago ficasse mais aconchegado após horas de suores.
com ela constróem prisões para pássaros de canto, e tive conhecimento da existência de uma mesa complicada, com gavetas e embutidos, que não pude ver por se encontrar
na fazenda do seu proprietário.
E em inúmeras outras aplicações o Gloriense serve-se dela, domando-a ao objectivo das suas necessidades.
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MOINHO DE VENTO
PRINCIPALMENTE no Ribatejo Norte é frequente deparar-se no alto dos montes, entre retalhos de culturas ou fauces rasgadas de pedreiras, com as velas brancas dos
moinhos, gemendo ao vento o seu girar.
Todos que conheço são cilíndricos, construídos de pedra e encarapuçados com cone móvel, tipo de moinho de vento vulgaríssimo em Portugal.
No Ribatejo Sul, plaino de horizontes largos, sem elevações notáveis, só em Salvaterra sentira o prazer de passear os olhos por esses perfis brancos, românticos,
como noivas debruçadas no vale à espera do que jamais chega, e acenando ao azul os quatro lenços das suas velas.
Na minha ida para a Glória vi um em Marinhais, e ali encontrei mais três do mesmo tipo, mas sem a alvura e o feitio desses outros, que namoram a terra meu berço.
Construídos de madeira, em feitio de hexágono irregular, senão diferentes até nisso dos moinhos que F. Kriiger, no seu valioso estudo sobre a Póvoa de Varzim, cita
como vulgares no Norte da França, Bélgica e Alemanha, os quais apresentam configuração rectangular. Nas mesmas notas etnográfico-linguísticas são citados, como de
idêntica construção, os moinhos da região da Figueira da Foz, Alcobaça e Porto Santo (Madeira). Tenho conhecimento da existência de outros em Chão de Maçãs (Tomar),
e, ainda há pouco, na estrada de Alenquer para as Caldas, deparei com um outro misto - construído de pedra até
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cerca de um metro do solo e todo o restante, até ao cone, de madeira.
Fixemo-nos num dos três moinhos da Glória, absolutamente iguais entre si, comparando-o aos anotados em Abremar por Krúger e ao de Lavos, que a Revista Lusitana cita,
já para que melhor se avalie
Fig. 3
o quanto de urgente se torna a formação de brigadas recolhedoras do imenso caudal linguístico do nosso povo, já para que a sua descrição resulte menos árida, e o
leitor, pela curiosidade, se disponha a vencer-lhe as páginas.
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Os moinhos da Glória foram edificados há cerca de vinte anos, tendo o primeiro vindo de Marinhais, para onde fora importado do Granho.
Todo o moinho é construído de madeira, sendo a sua carcaça composta por oito barrotes perpendiculares, prumos de pé direito, ligados entre si por tesouras - barrotes
cruzados tomando o feitio desse objecto. Sobre os prumos assentam os fechais e deles parte o travejamento, no qual é assente o capelo na Figueira da Foz, cume; no
Algarve, capoeira; em Abremar, capela-carapuça.
Tem cinco janelas, sendo quatro fechadas por tampa de correr com pega e a principal por duas portas.
O moinho é de dois pavimentos, ambos de madeira sobre traves.
Todo o descrito assenta em duas vigas fortes, que formam ângulo agudo, tendo, no local onde se
Fig. 4
ligam, uma ponta forte de ferro, o aguilhão, que penetra na cavidade de uma pedra fixa, o pião (pedra da cepa, em La vos).
Cada viga tem no extremo um eixo onde trabalha uma roda de madeira, as quais giram sobre um círculo de cimento, rasto (carreira em Lavos), permitindo
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que o moleiro, por meio da alavanca, volva o moinho, dispondo as velas para onde o vento corre.
A alavanca, que em Lavos designam por tranca, é de madeira e termina em cunha, tendo dois braços para o moleiro agarrar. É feita na generalidade de um ramo forte
de sobreiro que forme forquilha.
O capelo é atravessado pelo eixo (mastro em Lavos e no Algarve, e eixo também em Abremar), o qual penetra no moinho por uma abertura, o postigo, e gira no moente.
Este é composto de duas peças de madeira, colcões, revestidas de uma chapa de bronze, a castanha.
Na parte que trabalha no moente o eixo é chapeado.
No lado oposto ao moente o moinho é atravessado pela viga do couce, a que corresponde trave, em Lavos, e trilho, em Abremar, a qual tem uma abertura, rela (esculata
em Abremar), onde penetra o aguilhão com que o eixo finda.
Sobre a rela há uma peça de madeira, a boneca, apertada por duas cavilhas. No eixo, e sensivelmente para o lado do postigo, trabalha uma roda grande, a entrosga
(também assim conhecida em Lavos e por entrosa em Abremar e no Algarve), composta de trinta e dois dentes, divididos em quatro grupos. Donde os dentes saem chamam-lhe
panos.
A entrosga engata no carreto (carrinho em Abremar, carrete no Algarve e roquete em Lavos), arqueado de ferro e com sete pauzinhos, os fuselos. No Algarve os moinhos
têm sete ou oito, e em Lavos seis. O carreto faz parte do veio superior que trabalha na ponte do carreto (ponte no Algarve e em Lavos, e linha em Abremar), num encaixe
de madeira, a boneca, e que corresponde ao taco do Algarve, à raposa da região da Figueira da Foz e à castanha de Abremar.
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O veio superior é redondo em cima, tem um palmo de esquina viva, e depois, e até ao palhetão com que termina, é chanfrado.
É este veio que, por intermédio do engranzamento do carreto com a entrosga, movimenta a mó de cima, corredeira (andadeira em Abremar).
No olho da mó superior há uma abertura, sobreal ou sobrelhal, para encaixe da sigurelha. É nesta, cujo nome é geral para todos os moinhos citados por Krúger, que
gira pelo palhetão o veio do carreto. É também dentro dela que se toca este veio com o da mó inferior, pouso (em Abremar, pé).
O veio de baixo é quadrado e termina em redondo, aguçando dentro de uma rela, apoiada no erreiro, instalado no primeiro piso. A um palmo deste, o veio tem uma roda
de cortiça que evita a caída do pó da farinha para o azeite da rela.
O veio inferior da Glória recebe em Abremar o nome de ferro e o de sigurança da pedra para o erreiro.
A rela é assim conhecida na Figueira da Foz, mas no Algarve é o mealho e em Abremar o godé.
No erreiro também se apoia o fiel para graduar as mós (temperar).
Parafuso do tempero da farinha chamam ao fiel em Lavos.
Voltando ao segundo piso, verifica-se que a mó inferior está assente sobre outras três, que se apoiam sobre um sobrado mais alto meio palmo que o restante, e se
chama tremunhado. No Candonero Gallego encontrei Moinado.
Em cima do tremunhado vem terminar o fiel, numa peça que designam por aviadora, em virtude de subir e descer para o tempero das mós.
A mó de cima tem à volta resguardos, cambeiros, que se apoiam numas cintas, também de madeira, chamadas piais.
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Este conjunto em Lavos é o combeiral e em Abremar o tremunhado, que já vimos corresponder a outra parte do moinho da Glória.
Pelo lado por onde sai a farinha não há cambeiros, mas uma saca, o panal (abafador na região da Figueira), e que com as duas guardas evita o desperdício da farinha.
Para a juntar para o ensaque o moleiro serve-se de uma pá.
O funil de madeira onde deitam o trigo para moer é o tegão ou moega, que pela quelha larga o pão (cereal) para o olho da mó. Agarrado à quelha e pousando na corredoura
tem um aparelho de madeira, o cadelo, que, pelos estremecimentos da rotação da mó, provoca a saída do grão.
Em Abremar e Figueira, bem como na Galiza, o funil é a moega, a quelha, calha na Figueira e quelho em Abremar, e o cadelo, chamador em Lavos e sem designação em
Abremar porque não usam esse aparelho. O contacto do veio quadrangular com o rabo do quelho produz igual resultado.
O moinho descrito, como na sua generalidade todos os especímenes portugueses, tem quatro velas e oito varas, presas ao eixo que sai pelo postigo.
As varas são ligadas entre si por cordas, travadoras (verdascos em Lavos e cordas em Abremar). As que vêm do eixo até à ponta das velas chamam-se espias, e as da
ponta da vela, onde está um arco designado por sapatilha, até às varas, as escotas ou escotas.
Nas travadoras costumam colocar peças de barro, búzios, para que o moinho cante quando o vento sopra.
Para parar o moinho deitam uma corda, o cabresto, à ponta de uma das varas, a qual está presa a uma das vigas, por argola de ferro.
Para entrar no moinho sobe-se um pial e fica-se no piso onde está o erreiro. É nele que se faz a limpeza do pão. Depois de crivado e passado à bandeja é deitado
na alcofa ou golpelha.
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O pão é joeirado sentando-se o moleiro no assento de joeirar. Para picar as mós empregam o picão e a picadeira e a bassoira para varrer. Colocam-nas em cima de duas
peças de madeira, o cepo e a espera (conforme conjunto da fig. 4), e o moleiro pica-as sentando-se no assento de picar, com quatro dedos de alto e que pousa na mó.
Pelo estudo comparativo realizado verifica-se a riqueza dos termos do moinho da Glória e a diferença da sua maioria para os dos outros.
Na nomenclatura igual que se depara verifica-se que uns correspondem a Abremar, outros a Lavos (Figueira da Foz), outros ainda ao Algarve.
Se estes moinhos que aqui abrem suas asas brancas vieram da região da Figueira, como supomos no capítulo "As gentes", qual o motivo de designações tão diversas?
Talvez se lhe possa encontrar explicação nos vários moleiros contratados para estes engenhos, e que, trazendo com eles os nomes das suas regiões, aqui os tivessem
deixado no ouvido dos Glorienses.
É possível que um estudo que pretendo realizar sobre moinhos de vento no Ribatejo possa confirmar, em parte, esta suposição.
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CERÂMICA
A indústria da cerâmica, representada por quatro fornos em laboração, adopta, exclusivamente, o trabalho do homem nas várias operações que constituem o seu processo
de fabrico.
Produzem somente cerâmica de construção, apesar de em Muge se ter desenvolvido bastante a de olaria e ser natural, portanto, a sua adopção nos fornos da Glória.
O regime de trabalho é o de sol a sol, dividido em quatro períodos, os quartéis. O primeiro finda às
10 horas, para o almoço, o segundo às 14, para o jantar, e os outros dois quando o Sol deixa na terra a saudade da sua luz e vai chamar ao trabalho outras gentes.
De Inverno, cada refeição dura uma hora, prolongada a de jantar, no Verão, em mais uma, para a sesta. Durante todo o dia, em parcelas de duas, ou duas e meia horas,
os operários largam o seu labor por dez ou doze minutos e repousam. Como na generalidade todos o empregam no fumar de cigarros, apodam este descanso de fumaça. Os
dois primeiros quartéis têm quatro fumaças e os últimos três.
Vejamos a transformação do barro, desde que a enxada fere a terra, até ao empilhamento do material, pronto a passar às mãos do pedreiro para o levantar de edificações.
Erguem-se as enxadas ganchas (de dois bicos, e por esse motivo assim designadas), rompendo a cosca endurecida do solo, na faina da descoberta.
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E, até três ou quatro palmos, toda a terra que as pás arremessam é de garganteão. Só depois vai aparecendo a constituída por sílica e alumina, própria para a indústria
pela sua ligação homogénea e plasticidade.
Deste local, designado por cabouco da cava do barro, é a argila transportada em carrinhos de mão para junto do barreiro - quadrado aberto no solo a pequena profundidade.
Ali a desterroam à enxada e só então a passam a pá para o barreiro, previamente cheio de água, que,
Fíg. 5
correndo por canalização de ferro, é tirada de um poço por meio de sarilho com quatro cruzetas.
Durante uma noite o barro fica de molho, a derregar, e ao outro dia um operário, o ateião, envergando calção curto, o amassa a pés e mãos, num labor esforçado que
abala o corpo pela violência.
Vamos seguir o fabrico do tijolo furado.
Conforme as necessidades, vai o barro para a mesa (fig. 5) onde o mestre o mete numa forma com quatro
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aberturas, pelas quais passam os dois galhurdos (fig. 6). Entre o mestre e a mesa há uma masseira com água para a limpeza constante dos utensílios.
Fig. 6
A forma é passada a rasoira, para lhe tirar o barro metido a mais, e levada para uma eira de tijolo, anteriormente varrida, onde o operário lhe tira os galhurdos
e a ergue, para que o material fique a secar. Uma hora passada está o tijolo enxumbraão (ligeiramente enxuto) e é batido com a batedeira.
Quando mais endurecido, levantam-no e colocam-no sobre um lado, ao cutelo, para que a parte de baixo se possa secar e o vento auxilie essa operação. Absolutamente
seco, é emttraçadado (posto em pilhas de quatro e cinco) e escacelhado com a escacelhadeira. Consiste essa operação em tirar ao tijolo os vincos e os altos, para
que o seu aspecto melhore e facilite também o trabalho de quem o há-de empregar.
Daqui, onde o enxugo se completa, é levado à pilha a aguardar a entrada para o forno.
O tijolo maciço e o tijolo de volta -este, próprio para a construção de poços - são feitos na eira em formas para duas peças.
Como eles, a tijoleira também assim é moldada, mas só uma de cada vez. A sua forma é quadrada,
0,30 m x 0,30 m, com a altura de 0,03 m.
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Para saberem a produção dos vários períodos de trabalho, os operários marcam no último tijolo feito o número de peças fabricadas.
Passemos à telha.
O barreiro é redondo e dele vai o barro para o assento - quadrado de tijolo onde o ateião de novo o amassa só com as mãos, a fim de lhe tirar as pedras e torrões
que possa conter. A amassadura é feita com desvelo, tirando-se bocados de barro do monte do assento, com as duas mãos, esfregando-os com os dedos e atirando-os novamente,
com ímpeto, ao monte.
Daqui são colocados sobre a mesa, num montículo designado por pilada.
Note-se que, depois de sair do barreiro e posto em qualquer monte, o barro toma sempre este nome.
A mesa para o fabrico da telha é construída de tijolo e tem um alpendre coberto com palha de centeio. Sobre ela, e do lado direito, há um recipiente rectangular,
como um pequeno tanque, também construído do mesmo material, e a que chamam cocho ou concha.
Do lado esquerdo fica o assento - rectângulo de cimento onde se põe a forma para a telha (ffraãe). No assento espalham um pó cinzento crivado e que está dentro da
concha, onde é mergulhada a grade sempre que nela se vá meter a matéria-prima.
Da pilada, o mestre tira uma bola de barro, o pêlo, que é colocada sobre o assento e entre a forma, espalhada com as mãos e passada com a rasoira. Esta é depois
metida num masseiro com água, na qual se dissolveram uns torrões de barro forte para lhe dar goma.
O lançador, operário que transporta a telha para a eira, vem então com o ganapo (fig. 7), utensílio para o transporte, e pousa-o sobre dois paus, chamados suportes,
embebidos na mesa, do lado esquerdo e três dedos abaixo. A grade é arrastada no assento
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e o barro, caindo no ganapo, toma o seu feitio. O lançador mete a mão no masseiro da água com goma e
Fig. 7
passa-a pela costa da telha, a fim de lhe dar lustro, encaminhando-se para a eira, já coberta de uma camada de areia espalhada com rodo e na qual a telha se vai
alinhando em fio.
Entre um quarto de hora a meia hora, a telha vai abrindo umas pequenas rachas, e então um operário, o curador, munido de um pauzinho em bico, a cunha, e de um caco
com água e um pedaço de barro, vai curá-la. Abre-lhe as fendas com a cunha, tapa-lhas e passa-lhe por cima, como num afago, as costas da mão.
Quando seca, a telha é embraçadada (erguida ao alto), e depois lá a levam para a pilha junto ao forno, esperando a cozedura.
Vejamos o forno.
É quadrado, aberto no solo, e tem a profundidade de 5 m.
A fornalha fica no fundo e é construída em arcos de tijolo, distanciados entre si cerca de 15 cm. Tem acesso por um caminho em declive, designado por corredeira,
e deste lado tem o forno um sobrearco, na face interior do qual se ergue a parede, em cuja base a boca aberta espera a lenha para o aquecimento. Do lado oposto está
a porta por onde se lhe mete o material. Quando se vai enfornar, descem dois homens por uma pequena escada móvel, e de cá de fora, da
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pilha até à porta, os operários em fileira passam o tijolo de mão em mão - à formiga, como lhe chamam.
Lá dentro, no fundo do forno, está o ladrilho assente nos arcos, e é em cima dele que os tijolos são postos em fiadas, a que dão o nome de adagues ou camas. Esta
operação, encasear, permite pela disposição do material que o calor circule facilmente, até atingir as camadas mais altas.
Postos alguns adagues de tijolo, é a vez de a telha entrar, transportada a braçado. Coloca-se ao alto, aprumada, voltando para cima a boca larga de uma, para a outra
levar a parte estreita, e assim sucessivamente, em fiadas de cem a cento e trinta. Desta, põem-se duas camas, e depois, de novo, outros adagues de tijolo até o forno
ficar cheio.
Faz-se-lhe então o testo, cobrindo o material com bocados de tijolos crus ou cozidos, e a porta é também fechada, deitando-lhe em seguida lenha durante vinte e quatro
horas a alimentar o fogo.
Pela boca o rubor das chamas afogueia os rostos afadigados dos operários, trabalhando sem cessar, e o fumo sobe no espaço a diluir-se.
Quando o mestre vê que o material está em brasa manda tapar a boca e cobrem-na com barro, bem como a porta e o testo-designam esta operação por barragem do forno.
Três ou quatro dias depois é o forno picado - tiram-lhe do testo alguns tijolos para o material respirar e mais depressa arrefecer.
Na eira o labor não pára. Uns carreiam, outros amassam, e o mestre, junto às mesas, vai metendo às formas o barro tornado maleável pelo esforço esgotante do ateião,
ressumando suor, a arquejar.
Passados dois dias, levantam todo o testo ao forno, abrem-lhe boca e porta, e, embora o material ainda escalde, começa a desenforna.
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Então nas pilhas, vermelho-brando, feridos de úlceras negras, aqui e ali, a telha e o tijolo esperam que os carros os levem para a mão calejada do pedreiro a erguer
paredes ou a cobrir do tempo um casal que vai a noivar quando as colheitas saírem da eira.
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HABITAÇÃO
A casa de tipo mais vulgar é a de paredes baixas e chaminé alçada sobre a da frente, havendo entre todas tal uniformidade de altura que os arruamentos se caracterizam
por uma harmonia singela destacada pelo branco do caiado.
Não se preocupa cada um em dominar o vizinho pela imponência da sua habitação, e a curva graciosa desta rua larga e limpa, toda branquinha é como que o reflexo das
almas brandas e simples dos seus moradores, dobrados sobre a gleba a auscultar-lhe a melodia do germinar.
Fig. 8
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Na parte mais antiga da aldeia há habitações que têm na frente empenas fortes que lhes reforçam as paredes e lhes quebram a frieza das linhas rectas.
Não têm mais de uma porta com postigo, cujas cores dominantes são o azul e o verde, rareando os rasgões das janelas ou frestas a receberem os benefícios da luz do
Sol e o movimento constante do ar.
A falta de pedra na região não permite fantasias arquitectónicas.
Tudo é simples, como os montes do Alentejo.
Por dificuldades de outros materiais, e ainda por causa económica, as casas são construídas de taipa ou adobe, cuja descrição de utensílios empregados e forma de
fabrico recolhi.
Fig. 9
A taipa é feita com o taipal que designam, quando armado, por trajecto completo (fig. 9). É constituído por dois taipais com 1,62 m de comprido, encostados a seis
costeiros que pousam sobre três agulhas, pelas quais se marca a espessura da parede. A agulha é uma
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peça de ferro, com três furacões para larguras de
0,40 m, 0,50 m e 0,60 m, e onde penetra o extremo do costeiro que finda em bico.
Os costeiros têm na parte superior uns rebaixes, as semóssegas, pelas quais passam as cordas que apertam os taipais. De taipal a taipal colocam dois paus, os escantilhões,
que permitem aos pedreiros verificar se o trajecto está em boas condições, para que a massa se lhe meta dentro.
Depois de o alicerce da casa surgir à superfície do solo, põem-lhe em cima, e a toda a volta, uma cinta de seixo e barro de salão -terra grossa-, armando nela o
taipal.
Entretanto, os serventes foram amassando a terra e o seixo, e com a fanga (fig. 10) vão transportando
Fig. 10
a argamassa para dentro dos taipais. Depois de se deitarem quatro fangas ao correr do trajecto, dois pedreiros, que estão dentro dele, espalham a argamassa e batem-na
com os maços, para que a compressão aumente a consistência das paredes.
Voltam as fangas a despejar o material, os maços continuam-no espalhando e batendo, e, quando cheio o trajecto, desarmam-no e colocam-no ao lado. De novo se repete
a mesma operação, até que a toda a volta a parede fica a igual altura. Sobre ela é feita nova cinta de seixo e barro de salão, a que alguns
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juntam pedaços de cortiça, armando-se em seguida o taipal para operação idêntica à já descrita. com taipas e cintas assim se levantam as paredes, nas quais colocam
o travejamento e as telhas de canudo.
O adobe é feito somente com barro de salão. Amassado com os pés, metem-no depois na forma, a adobeira, e alisam-no com as mãos e água.
A adobeira tem 0,50 m de comprimento por 0,25 m de largo e 0,10 m de alto. Após a terra estar metida na forma levantam-na pelas pegas, ficando o adobe a secar. A
adobeira é imediatamente limpa com um trapo e água, para o fabrico de nova peça. Ao fim de um dia o adobe é posto de cutelo, para que a seca se faça completa e mais
rápida.
Para erguerem as paredes, os operários ligam os adobes entre si com terra de salão amassada.
À quase geral uniformidade de linhas das habitações não correspondem, de igual modo, as chaminés, que se apresentam de vários tipos, dos quais o mais vulgar é o
de grelhas (a que as raparigas chamam as gregas), feito com tijoleiras. Há ainda as de capelo,
Fig. 11
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capelo e grelhas, e uma de duas torres, muito interessante e com certa originalidade.
Na figura 11 apresento alguns dos tipos de chaminés da Glória.
Vejamos o interior das habitações.
Na sua maioria as casas têm três divisões, todas térreas, sendo a mais espaçosa voltada para a rua, e as restantes, de que fazem os quartos, para as traseiras.
Na divisão maior está o canto, lareira, muito amplo, contendo todos eles bonecas, que o Dr. Leite de Vasconcelos classifica como vestígios de paganismo no nosso
país. Designam por boneca a parte que encima o conjunto. A base é o guarda-lume.
Junto ao canto há um armário de três prateleiras de madeira, com os lados de argamassa, a que chamam cantareira. Nela colocam os vários utensílios de cozinha, na
generalidade de barro, e que cito por neles encontrar alguns nomes que julguei de conveniência registar.
O alguidar onde põem a louça para as lavagens é a pia; a bilha grande para água, a quarta; uma bilha do mesmo tipo, mas pequena, é o gato; a outra mais pequena ainda,
de barro vidrado, com tons de verde e amarelo, que aproveitam para recolha de azeite e vinagre, nomeiam de enfusinha. Para servirem água numa mesa, ou meterem café,
leite ou vinho, têm o jarro; e para guarda de queijos, banha ou mel usam um recipiente que apodam de asade. Outrora, nas casas dos cingeleiros, havia ainda o barril,
feito de barro, onde levavam a água para as viagens longas, e cuja asa metiam no fueiro da retaguarda do carro.
Na mesma casa grande têm também as arcas e os caixões, onde guardam as roupas e os cereais, a mesa para as refeições, cuja altura não excede 0,70 m de alto, e uns
móveis de pendurar pintados de cores berrantes, onde guardam os pratos, e que designam
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por prateleiro - estanheiro lhe chamam em Coruche e no Alentejo.
Fig. 12 .
É quase geral o uso de bancos de cortiça, tropeços ou tropeços, e de que no capítulo "Cortiça" dou desenhos dos especímenes mais usados.
Para colocação dos candeeiros de petróleo, que substituem em grande parte as antigas candeias de azeite, usam o papagaio, suporte de madeira pintada, de que a figura
12 é prova.
Na retaguarda das habitações é vulgar a parreira preguiçosa alçando-se ao telhado, a enfeitar-lhe a alvura com o vinco negro dos seus troncos e o pairar alegre das
suas folhas e cachos.
Depenicam as galinhas no quintal, buscando grão, em cacarejes que são cantares. O galo pamparreta, orgulhoso das suas penas, passeia impando vaidade, como senhor
em harém. E no pocilgo o porco ronca, focinhando na lama onde chafurda.
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FORNO DE PÃO
DNCONTREI duas espécies de forno (junto à habitação e isolado), cada uma dividida em dois tipos.
Da primeira espécie há o tipo de boca para a rua
e que segue as linhas da frente do edifício, como se
fora uma dependência do mesmo, e um outro, sob
alpendre, cuja entrada nasce da frontaria, ficando o
forno recuado para a parte posterior da casa.
Fig. 13
Deste tipo também os encontrei nas traseiras das habitações e todos eles têm chaminé para saída de fumo, o que não sucede com os restantes outros.
Os isolados são geralmente construídos na retaguarda das casas, ora junto a elas, ora afastados,
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no meio dos quintais. Desta espécie há um tipo, com telhado, como se fora miniatura de casa, e se ergue em frente da habitação, sobre um pequeno cabeço, na berma
da rua.
O outro tipo é o mais característico, com o seu carapuço muito branco, assemelhando cúpula de mesquita, e que vou descrever.
A base do forno é o cepo e nele assenta o ladrilho, onde o pão se coloca, o qual é forneado pela boca. A abóbada pela parte interior é a volta e exterior o capelo,
em cima do qual colocam, geralmente, um fundo de bilha e denominam de coberta.
Ao lado do forno e no seguimento do cepo há o pial, onde pousam a masseira.
Como utensílios do forno anotei a pá para enfornar (composta pelo rabo e a pá), o barreãoire (pelo rabo e as barbas), o forcado e o sub-relhadoire, para espalhar
o brasido.
A farinha é passada por duas- espécies de peneira, conforme a desejam mais fina ou mais grossa.
Metem o fermento em cocho, de cortiça, e amassam a farinha em alguidar, tendendo-a, se para pão de milho, a que chamam bola, com tigelas dos fornos de Santo Antoninho
de Coruche.
Como há casas sem forno, os seus habitantes têm de recorrer aos vizinhos para a cozedura do pão, no fim da qual oferecem uma brandeira (deturpação de merendeira)
e a que chamam o pagamento da maquia. Em Alpedrinha, ao pão oferecido ao proprietário do forno, dão o nome de poia.
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FOLCLORE

VESTUÁRIO
QUANDO parti para a Glória uma certeza me acompanhava - a de que em todo o Ribatejo calcorreado eram as mulheres dessa aldeia sempre a noivar as mais características
no trajo.
No quadro resplandecente de cores em sinfonia de uma plantação de arroz, aquele rancho cativava a vista pela harmonia das manchas claras das blusas, em desafio com
os azuis-escuros das saias. Todo aquele pedaço de lezíria era uma termiteira gigante em laboração forçada, amenizando a faina as cantigas que o espaço arrecadava,
levando para longe.
Adeus Mota de Montalvo Rodeada de urtigas ...
E, nos canteiros cobertos de uma véstea de água, cachopas dobravam-se metendo os pés de arroz que outras arrancavam dos viveiros e quatro homens traziam em padiolas,
a passo estugado.
Mulheres de Sor, dos Foros de Salvaterra e da Glória.
Só estas ficaram na retina, pela beleza rústica que as suas mãos rijas, ao contacto da foice, das ervas daninhas e dos moços, vão criando às horas da sesta e depois
do desferrar, bordando aventais e casacos em tão feminil desvelo.
Que estupendo libelo contra esses sociólogos que vêem no trabalho das mulheres uma quebra de encanto das suas virtudes femininas.
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Que donaire, que graça, no andar leve dessas escravas dos escravos, dessas moçoilas desempenadas e airosas, labutando de sol a sol, mas conservando na ligeireza
dos dedos toda a fragilidade que os poetas cantam a essas outras forças mortas que para aí agitam caudas e desvendam colos.
Venham vê-las e digam depois ainda, num objectivo que não tende a prestigiar a mulher, mas a dominá-la, que ela fora do lar é como peixe fora de água, como ave sem
rémiges.
O trabalho em condições humanas não avilta nunca. Protejam-na na fábrica e no campo, e deixem criar-lhe essa independência rebelde que o trabalho fecunda e tão necessária
é à formação das consciências livres - tão livres como o pode permitir a realidade que tudo domina e transforma, no seu caminhar adiante, por muitos obstáculos que
ergam à sua marcha.
O trajo da mulher da Glória não tem o preciosismo, a riqueza de execução do da minhota, por exemplo.
Constituem-no a blusa, a que chamam casaco, a saia, o avental e o lenço. Mas nestas vulgaríssimas peças, usadas pela maioria das camponesas de Portugal, elas põem
tal gosto de atavio que conseguem destacar-se, nos seus pobres riscados, das outras minhas conhecidas.
Todos os casacos sobem até meio do pescoço num colarinho, por vezes com pontas, donde nascem de alguns, para as costas, cabeções arrendados. As mangas levemente
tufadas terminam em punhos bordados com os mesmos motivos dos colarinhos. A cerca de seis dedos deste, a varanda - o que na linguagem das costureiras se conhece
por encaixe.
Toda a blusa é alindada com desenhos singelos, dispostos em sábia harmonia de cores e de motivos.
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vou descrever uma para auxílio de compreensão.
Do colarinho para o peito, onde os pomos se alçam rijos pelos alvéolos que o casaco tem, desce um rectângulo mais claro orlado de fita vermelha; dos ombros, da ponta
da omoplata, na direcção da axila, corre aos repregos largos fita da mesma cor; e nas costas, em abertos bordados, uma linha quebrada de azul, por baixo da qual
passam duas paralelas de um amarelo de espiga a amadurecer.
As saias compridas e de roda de sino, em cores escuras, têm no extremo, a toda a volta, uma barra estreita de fita clara, e são armadas num franzido miúdo que abre
e fecha como pregas de harmónio
Fig. 14
em dança trepidante. Apertam-nas com cintas vermelhas ou pretas que passam pelo sexo e vêm atrás num laço, a bambolear com os seus passos de um ritmo leve.
Um dos seus luxos, aqueles poucos que a condição do seu labor mal remunerado lhes permite, é o número de saias vestidas. Há quem vista quatro e cinco, e ainda mais,
como os negros o fazem com os coletes.
Sobre elas, os aventais são estridências de claro, ataviados também por quebradas e abertos.
Os lenços para a cabeça, geralmente amarelos ou brancos com ramagens vermelhas e pretas, têm por
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vezes bordados a ponto de cruz e são sempre atados arriba. Este costume nem os maridos conseguem alterar. Alguns que os preferem amarrados à barba
- abaixo do queixo- vêem-se desobedecidos nessa predilecção.
Andam geralmente descalças. Só no Inverno, e às vezes no campo, metem tamancos nos pés, pois a dureza das restevas ou do frio vence-lhes o hábito misto de liberdade
e economia.
Os brincos usados são de quatro tipos: botões, argolas, rabos de colher e cabaças.
com excepção dos rabos de colher, os outros são conhecidos vulgarmente pelos mesmos nomes.
Assim só se dá desenho deste, figura 14, para que se conheça o tipo.
Em beleza, as cabaças sobrelevam-no, já pelo seu tamanho, já pela opulência de desenhos.
Quando voltam do trabalho, ou no Inverno, pousam nos ombros, puxando-a ao peito, uma saia que as acompanha para tal fim. Outras a penduram num dos ombros em jeito
de capa. A figura 15 apresenta três cachopas em indumentária de trabalho, vendo-se ao peito da do meio um ramo de manjerico, costume vulgar, e trazendo as outras
duas a saia como citei.
Nas pernas vêem-se meias pretas a que cortaram os pés e que evitam que, nos canteiros de arroz, o contacto constante da água as fira.
Chamam-lhe canos e o seu uso é quase geral. Nas ceifas usam também nos pulsos uma tira de qualquer tecido enfeitada com flores e letras bordadas, que designam por
punho, e tende a defendê-las das hastes agressivas das palhas.
Em dias de festa os casacos são feitos de risca de seda -tecido de algodão com desenhos a linha brilhante - e as saias de casteleta.
A cinta é substituída por cinto preto, nas pernas vestem meias, e sapatos com fivelas cobrem-lhe os
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pés enrijados por longas caminhadas e contacto de restevas.
Uma alta expressão do cuidado das glorianas, assim se apodam, está nas toucas e vestidos dos seus
Fig. 15
filhinhos. Qualquer touca vulgar é engrinaldada de dois e três franzidos, e o restante coberto de bordados vários.
Nelas se esmeram, pondo-lhe na confecção toda a sua arte apurada.
O vestuário dos homens nada tem de original. Confunde-se com o de qualquer camponês da região e
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bem distante está da bizarria do trajo do campino, a caminho também de uniformidade.
Só alguns velhos mantêm ainda a calça muito justa com pestana comprida, a jaleca curta e o chapéu rijo. Os rapazes, na fita deste, põem flores e espigas que lhes
dão um ar festivo e delatam o encantamento do seu espírito em presença da natureza.
O barrete, sempre preto, é usado de preferência no Inverno. Só o compram com meio metro de comprido e borla pequena. Descosem-lhe a carapinha e enrolam-na com o
forro para a tornar mais grossa e para que a borla lhes bata no alto das costas. Em Almeirim e Alpiarça, esta é uma bola enorme e o barrete mais comprido. Puxam-no
ao lado e atiram com a borla para cima do ombro contrário. É o maior luxo e o maior devaneio dos seus camponeses vê-la saltar junto à clavícula, no movimento constante
que o andar lhe imprime.
Segundo os Glorienses, o barrete é composto de três partes: a borla, a peça e os bordos.
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ETOGRAPIA

ALGUNS dos costumes da Glória são encantadores e constituíram revelações para mim. Suponho ser este até um dos capítulos mais úteis do meu ensaio, abstraindo a parte
ergográfica, que pode servir aos filólogos para enriquecimento dos seus ficheiros e consequente proveito da língua portuguesa.
Sobre este título agrupei os referentes à evolução da vida do homem: baptizado, namoro, casamento e morte. Outros se encontram espalhados por vários capítulos, como
os referentes à festa grande e Carnaval.
Alguns dos costumes recolhidos pertencem ao passado, e como tal os anotei. É já a marcha do tempo, através das mais íntimas relações dos povos, a incaracterizá-los.
No entanto, a Glória é como uma ilha no meio do Ribatejo, a pretender fugir a influências estranhas, apesar de muitos dos seus habitantes procurarem na lezíria de
Vila Franca, Benavente e Salvaterra o trabalho que a terra adusta dos seus campos lhes não dá. O sincretismo dos hábitos faz-se lentamente nas mulheres e quase em
vertigem nos homens. No vestuário destes a absorção é já completa e todos os costumes que deles dependem estão perdidos.
A dança das fitas e a representação do auto na noite de Carnaval, por exemplo, não se realizam actualmente. Recolhi-os por reconstituição de amáveis informadores.
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As causas desta absorção nos homens e de fixação nas mulheres têm evidente porquê.
Assim, enquanto eles, ao ingressarem isolados na tropa ou na deslocação em pequenos grupos para as lezírias, recebem a influência directa do meio ambiente, sem possibilidades
materiais de reagirem ante o todo que os cerca, as mulheres emigram em grandes ranchos e evitam o contacto das outras, trabalhando, comendo e dormindo à parte, e
constituindo como que uma comunidade onde ninguém penetra. Mantêm assim o seu meio próprio, o que ainda se acentua pela recusa de aceitarem contratos muito longos
fora da terra. Deste modo, as influências que conseguem ultrapassar aquela barreira poderosa só penetram nos seus hábitos muito vagarosamente.
O registo civil, raras vezes seguido das praxes religiosas, não tem originalidade evidente. A madrinha oferece o vestido ao bambino e o padrinho paga as despesas
da papelada, escolhendo qualquer deles o nome do neófito.
Na volta de Muge ambos deitam amêndoas pelas ruas que atravessam, enquanto a turba se digladia pela sua posse, rojando-se no chão.
Mal a puberdade solta os primeiros chilreies, vão eles aguçando o novo apetite nos frutos ainda verdes que empinam o peito das cachopas, e elas miram-lhes às furtadas
o donaire do porte, a graça do pôr do barrete ou a desenvoltura dos pés nas remexidas e fandangos.
E no domingo da festa, à noite, buscam-se no adro para a dança, ao som da filarmónica e do foguetório rijo, com lágrimas e muito estoiro, enquanto às mães à volta,
sentadas no chão, puxam ao rosto as saias que os ombros acolhem, deixando correr a fantasia ou trocando com as comadres impressões da inclinação.
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- O Tóino e a Eugénia simpatiam - corre pela aldeia. Diz-se nas fontes, às horas de descanso e pelas portas.
E ela sabe. E ele alegra-se, como papoila em sol de Maio.
Naquela noite ambos sonham. Nos corpos afadigados pela crueza do trabalho vai uma torrente de desejos e pensamentos.
- Olhos galhardos! ...
- Foice na mão, outro na lhe vai à frente.
- É home de ganas! ...
Quando se vêem na mesma rua e há travessa que os salve, afastam-se um do outro. Se estão sós, olham-se e devoram-se. Mas se nada os pode desviar, lá seguem ruborizados,
titubeantes, parecendo que naquele momento largaram o berço, voltando os rostos como que envergonhados de terem pensado naquele desaforo.
No peito vai-lhes uma azáfama de palpitações, nos olhos uma turvação de tanto enleio.
A concertina arfa na vertigem de uma moda. As raparigas a um lado por mocidades - assim dizem às idades-, os rapazes a outro. E ele vai tirá-la.
Os passos e os rodares saem-lhe incertos, desastrados. Chocam-se com os outros e à sua volta há mais poeira - pois se lá dentro lhes vai um calor ...
O demónio do colarinho naquele dia parece apertado como mão a esganá-lo. E por mais voltas que lhe dê, parece o maldito que mais afoga.
- Ó Eugèna! ...
E lá vão, como aziela, aquelas palavras simples, tão sinceras, que só o povo sabe adoptar no seu trato expressivo.
- Queria-te pra mulher, s'a gente s'entendesse ... Ela dá-lhe silêncio. E rodam com mais ímpeto.
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Naquela noite não dançam mais. Nos braços de outros pares, eles se enlaçam com os olhos, à furteta (de fugida).
A nova vai, de boca em boca, pela aldeia fora.
- Sabe, Ti Inácia?... O Tóino do Alexandre procurou a Eugèna p'a namoro.
- Na vão mal, coitadinhos. É boa gente! ... É boa gente, é!
Quando ela vai à fonte, bilha à ilharga ou na cabeça, bamboleando os quadris num jeito natural de graciosos meneios, como a cirandar, ele aguarda-a- espera-a aos
encontros. Mas, se ela o vê, vá de lhe cortar as voltas. Ele persegue-a, ela foge-lhe, e por vezes o Tóino corre a cabo dela, ofegante, olhar fixo na saia agitada
pelos repregos que arfam.
Toda a semana no trabalho, ela canta menos pensa nele.
- Sim ou não? ...
De novo a tem nos braços com a concertina a guiá-lo na melodia de uma polca.
- Sim ou não, Eugèna?
- Pois sim, Tóino.
E os peitos unem-se mais numa canção uníssona.
Dando lições de civilidade a muito pintalegrete, ele não a faz seu exclusivo. Dançam, com quem lhes apraz, folgam, riem. Ela vai-se chegando para as namoradas dos
amigos dele, que formam grupo à parte, e as outras indagam, ela confirma, e os olhares que vão até ao Tóino o cumprimentam pela escolha.
Então no campo, nos carris que orlam as searas, à hora da comida ou no terreiro das poisadas depois de o Sol se pôr, ela vai marcando com enlevo, a perle e a linha
de retrós, os lenços de ramagens que comprou na venda. Na sua cabecita vai concebendo fantasias, imitando motivos, para que aqueles
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se distingam dos outros, na garridice das cores, na disposição dos enfeites.
E quando ele lhe dá a primeira prenda, símbolo de uma promessa firmada com palavras indecisas, mas sinceras, um lenço lhe vai às mãos, em troca. Geralmente a oferta
dele é um canivete - sabido que a mulher do campo usa sempre consigo esse utensílio para as horas de trabalho ou de refeições, tem ele um significado de utilidade
e de sentinela vigilante, a recordar-lhe o bem-amado, longe, em outras fainas, para onde a luta do pão o arrastou.
Nas Astúrias, quando os noivos se ausentam, costumam trocar prendas.
As raparigas suplicam:
- Amor mio, si te vás, déjame una prenda tuya; déjame Ia tu navaja para picar la verdura ...
E as da Galiza cantam:
- O meu Jiome ven d'as índias, regaloum unha navalla,
c'un letreiro que âeda:
"Se queres comer, traballa" ...
Quando emigram ou vão a militares, eles oferecem-lhes navalhinhas e elas lhes dão medidas e alfileres.
As raparigas solicitam alfileres e cordones, cintas de seda e navalhas, a que chamam àbuyetas.
A navalha tem assim na Glória, como nas Astúrias e na Galiza, a mesma predilecção dos enamorados, o mesmo conceito de lembrança querida, símbolo, talvez, do pão
que se há-de cortar em comum, no lar que ambos sonham.
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O lenço de assoar que ele traz junto ao peito, entre a camisa e o colete, encerra o mesmo simbolismo. Lá estão marcadas a ponto de cruz as iniciais dos dois, as
do pai dele e as da mãe dela, as dos mais íntimos amigos e as das respectivas noivas.
Tudo aquilo de mistura com vinhetas e estrelas, signos-saimões e flores, numa dispersão de letras, direitas umas, ao inverso outras, envolvendo pais e amigos numa
mesma comunhão de carinho e afecto. A inclusão do nome dos amigos e conversadas é uma sequência dos seus hábitos, pois as raparigas que namoram rapazes amigos passam
a ser íntimas também. No baile, no trabalho, nas festas, andam juntas. Trocam as suas alegrias e os seus pesares, formando, tal qual eles, um todo de fraterna convivência.
Ao sábado, quando ambos voltam a casa e à noite se encontram à porta dela, na troca de sonhos e de desejos, dá-lhe ele o lenço sujo.
E outro lhe vai à mão para aquela semana.
Quantas vezes perfumado! ...
Só ela lhe toca. Lava-o, passa-o e lá o guarda ao canto da caixinha de cartão, para no outro sábado se encostar àquele peito forte, onde palpita o mais ditoso dos
corações no amor, tão angustiado às vezes pela vida cruenta dos que desventram a terra e amanham o pão.
O sábado é o dia dos namoros. Também assim é entre os Vascos, que lhe chamam nechkaneguna, que significa o dia dos jovens, por ser dedicado ao amor.
Se vai à feira de S. Miguel, em Coruche, traz-lhe um anel, uma pregadeira (broche), uma medalha.
E ela, num êxtase, pendura-os na varanda do casaco, às vezes entre manjericos e flores. (A figura 16 mostra uma cachopa galharda, irradiando simpatia,
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tendo ao peito as prendas que o conversado lhe ofereceu.)
Fig. 16
Entretanto, nas poucas horas livres dos seus labores, ambos criam pequenas obras de arte para se presentearem.
com o canivete ele faz corações, cestinhos, botas, machados, beletas (bolotas), cadeiras, etc., de madeira ou chavelho.
Além dos lenços, ela oferece-lhe bolsa para relógio, carteira, pataca (porta-moedas), taleigos (um para a merenda, outro para a caderneta militar) o lenço de algibeira
para o fato domingueiro.
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Alguns usam também o relógio metido num lenço por elas bordado.
Fig. 17
Todas essas pacientes manifestações de costumes encantadores são reflexo de uma surpreendente intuição em criar beleza, tanto de admirar quão ingrata e arrastada
lhes é a vida de trabalhos e privações.
Não conhecendo a torpeza das convenções citadinas, franca e sincera como a natureza rebelde que a esmaga e ainda não lhe ensinaram a dominar, ela entrega-lhe em
delírio apaixonado, como a melhor prenda dos seus anseios e necessidades, a flor radiosa do ventre.
Os pais, quando o sabem, exultam. Os homens da Glória cumprem sempre -tão raras excepções! os compromissos tomados naqueles momentos em que, alucinados pelo poder
estranho que faz os homens
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mais selvagens e mais poetas, desfolham com ímpeto e ardor as pétalas de uma rosa cujos espinhos aguilhoam mais tarde.
O pai chama-o à fala. Não há ali subterfúgios ou palavras de sentido dúbio. Tudo é natural - como é natural o Sol fecundar a terra e a terra alimentar o homem.
E namoram-se em casa. Todos os sábados vão ao baile no largo do Pinheiro, em noites estreladas e amenas, ou em qualquer casa, quando o vento sopra e o céu se fende
em chuvas fortes.
Cada um com o seu grupo, cada qual dançando com outro par. Depois, pela noite fora, aquelas horas que mais parecem minutos em que são felizes, tudo esquecendo, e
o mundo cessa de os esmagar na fereza dos seus desígnios dirigidos.
E chega o momento de ele ir à tropa.
Parte com o seu saco grande, de ramagens, desolado e abatido - recordações aos rolheiros a tornarem mais penosa aquela ida à cidade que o subverte e onde não vive.
Ela abandona atavios, e o casaco, o avental e o lenço de cores claras, que lhe vão tão bem ao tostado do rosto. Veste de triste, quase sempre de roxo, e traz nos
modos o ar trágico daquela primeira viuvez.
Festas e bailes nunca mais! Se o Tóino não está lá!
Fica de longe a ver as outras folgarem, isolada, não vá tentar-se com os rodopios da dança; a pensar, talvez, que bem podiam escusá-la àquela exigência, quando o
rapaz lá pela cidade, na fardeta desajeitada, dirá a qualquer outra coisas que só ela ouvira e até sabia de cor.
Se ele tem licença para vir à terra, logo ela enverga o seu casaco rosa enfeitado a vermelho e preto, o avental de azul almeirão, o lenço branco das ramagens, e
espera-o à porta, radiante, toda ela sorrisos, compondo-se ao espelho e revendo-se.
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Se um dia se amuam, ele vai-se as prendas e queima-as ou rasga-as num furor raivoso, deixando-lhe à porta os restos chamuscados ou os pedaços de lãs. E toda a aldeia
o sabe.
- O Tóino ...
Mas aquilo passa como cirro em céu de Agosto.
Até que se concerta o casamento - para depois das colheitas.
Compra-se na feira de Marinhais o porco para a engorda, que depois de criar arrobas ficará na salgadeira, para ser comido no Inverno, quando os ganhos escasseiam.
Fazem-se os convites - "Tens de m'acompanhar ó João!" -, e os solicitados oferecem-lhes dinheiro e licores. Chamam a isto a gratificação aos noivos.
A casa é geralmente dada pelo homem e o pai dela a mobília com o melhor das suas posses.
Às vezes - tantas! - os ganhos são poucos. E, por mais voltas que dêem às jornas, não conseguem erguer a casita. Então, fica-lhes aquele desejo de uma telha sua
para se abrigarem, e deitam-se ao trabalho com mais afã, na perseguição daquela imagem que, muitas vezes, corre mais que quantos sonhos se concebem.
As despesas daquele dia as fazem a meias os pais dos nubentes e as testemunhas, que ainda pagam o registo em Muge e se aprovisionam com bastos quilos de amêndoas
para atirar pelas ruas.
Ele enverga o seu fato de lã, chapéu novo, e estreia corrente e relógio, se em solteiro, por legado do pai ou por economias, os não possuía ainda.
Ela veste casaco e saia de "risca de seda", sapato negro luzidio e xaile turco de grossos cadilhos. O xaile é o seu grande luxo, como na cidade o pomposo véu e só
o usam depois pelo Natal, festa de Setembro ou outro qualquer dia de grande nomeada, que pelo seu significado imponha apresentação impecável.
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O almoço daquele dia já é comido em comum, e só pela tarde, Sol fora muitas vezes, em alegre burricada ou caminheta, aí vão a unir-se pelos burocráticos laços.
Dá a caravana a volta à aldeia e as ruas apinham-se dos que vão ver os noivos e desejar-lhes boa sorte "tão boa como a desejo para os meus, Ti Rita!".
Os padrinhos e convivas deitam amêndoas -nas terras da província que conheço atiram-se confeitos e a massa agita-se, correndo e atropelando-se. Mas aquilo é uma
amostra. À volta, já casadinhos, é o dilúvio. As amêndoas, arremessadas às mãos-cheias, matraqueiam nos seixos da rua e todos se lançam a pôr-lhe mão- que aquilo
é doce e a despesa pouco passa de pisadela ou encontro menos dócil.
Padrinho abonado de amêndoas tem a reputação feita.
- Viva o padrinho! Viva! Viva!
E alguns dão palmas. Ele sorridente, impando de satisfeito, não cessa de afundar as mãos nos bolsos e atirá-las, ora para um lado, ora para outro, que aquilo mal
dividido descontenta uma das facções e todos são filhos de gente cristã.
Alguns por graça ou desconhecimento lançam poucas, e então, entre risos e ditos graciosos, fazem-lhe assuada.
- Padrinhos chochos! Chochos! Chochos!
E em tudo aquilo há uma sã alegria que faz esquecer, por momentos, a vida amargurada de todos os dias.
Se os padrinhos vão de visita a casa amiga ou se dispõem a dar volta para criar disposição para o jantar, a rapaziada não os larga e o colorido das amêndoas vai-lhes
deixando atrás um rasto que breve se extingue.
Para a boda não há regra na escolha de casa. Ou na do pai do noivo, ou na do da noiva, segundo o tamanho dos aposentos e o número de convivas.
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Há geralmente borrego morto para o jantar e o vinho corre claro dos jarros para os copos, ora cheiinhos até aos bordos, ora transparentes pela volta que lhes deram.
E o ruído vai aumentando noite fora com os licores e bolos, e sem os discursos pretensiosos de indigestão certa.
Depois há baile e descante. E enquanto a concertina tagarela um fandango, uma cachopa acompanha-a numa melodia de saudação aos casadinhos.
Viva o noivo, viva a noiva, Pai e mãe que os criou, O padrinho e a madrinha Que à igreja os levou.
O noivo está de cadeira E a noiva de cadeirinha. Volta-se o noivo prà noiva:
- Anda cá que já és minha.
É chegado, é chegado, É chegado não sei quem: O filho da minha sogra, O genro da minha mãe.
As aclamações estrugem e os dançarinos vão marcando com bico e tacão o ritmo do fandango, cada vez mais vertiginoso.
Dali ninguém arranca e os noivos, mirando-se em bocejos, mãos dadas a afagarem-se, ficam até ao fim. Os galos cantam no poleiro a acordar as capoeiras, e só então
alma misericordiosa se lembra que a manhã vai romper e a cama espera.
- Vamos embora, gente! Os noivos estão com más ideias ...
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A concertina ainda titubeia uma valsa puladinha. Nas Astúrias também cantam aos noivos e a saudação tem semelhanças:
Vivan el novio y la novia! ... Vivan el novio y la novia, Y el padrino y la madrina: Y toda la demás gente Que aqui estamos reunida...!
E outra:
Vivan la novia y el novio Y el cuira que los caso: el padrino y la madrina los convidados y y o ...!
... A festa prolonga-se por mais dois ou três dias, conforme os teres.
Outrora, no dia seguinte ao do casamento, "corria-se ao bolo".
Marcava-se uma distância, que oscilava entre cem a trezentos metros, pondo-se no local da chegada uma bandeira de papel içada num pau ajeitado. Juntava-se ali a
multidão para ver as corridas ou nelas tomar parte. Os concorrentes eram agrupados por sexos e idades, e ao sinal todos partiam em carreira, pretendendo atingir
cada um, em primeiro lugar, a bandeira que tremulava ao longe. O prémio era um bolo com cerca de meio quilo, feito com farinha de trigo, açúcar, manteiga e clara
de ovo, a que não faltavam os alindados de papel de cor e a bandeirinha ao centro.
Na Espanha, em Valle de Somiedo, a madrinha dá às moças uma "rosca" de manteiga, ovo e leite. Para os moços há outra, a qual é disputada "a correr".
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... Na generalidade, os casamentos são feitos entre pessoas da aldeia.
São recebidos sempre com hostilidade os que assim não procedem, formando-se entre eles como que um clã endogâmico, cujo espírito supremo abençoa uns, amaldiçoando
os outros que traem os seus desejos. É possível que, num passado já longo, imperasse tabu entre eles sobre consórcio, o que se aceita sem maior esforço, em presença
do rigorismo existente na actualidade. Nas Astúrias impera o mesmo costume, em alguns povos, resíduo de primitivas tribos que praticavam a endogamia. Se um homem
casa com mulher distante, logo se diz em pitoresca linguagem: "Se ela fosse mel tinha lá quem a lambesse. Se calhar já está corrida!"
E contra esta lógica poucos reagem.
O maior número de prevaricadores encontra-se entre os viúvos que, segundo o hábito, privados de novo casamento e impossibilitados de escolher mulher entre as glorianas,
a vão procurar a Marinhais, ao Granho ou aos Foros.
Noutros tempos, o homem, logo que formava família, deixava crescer a barba, fazendo suíças, símbolo de vergonha e respeitabilidade; mas hoje só alguns velhos -poucos-
mantêm essa tradição. Um dos meus informadores, o Tio Bento, dobrado pelos anos e pelas muitas canseiras, nelas põe o seu maior orgulho, sempre a filosofar, procurando
discernir pela intuição os mais complexos problemas da vida humana.
... A morte, entre os Glorienses, embora sentida nas almas e expressa nos lutos, é acompanhada de poucas manifestações de pesar, mais talvez por um costume radicado
entre eles do que por aceitação conformista do facto. Julgo que no passado haveria qualquer superstição inerente à morte, em que os que
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se aproximavam do cadáver teriam mais cedo cortado o fio da vida que as Parcas fiam e dobam.
Assim, ainda não há muito, logo que qualquer pessoa se finava toda a família saía de casa e a porta era fechada, ficando o morto vestido sobre qualquer móvel, sem
acompanhamento. Hoje mesmo, as velas são pouco frequentadas e os funerais de reduzido séquito.
Os filhos não acompanham os pais e vice-versa, nem os maridos se incorporam no enterro das mulheres.
Freud, no seu Totem e Tabu, cita que, entre os Maoris, todo aquele que tocasse num cadáver ou fosse acompanhar um funeral ficava "impuro".
Era-lhe vedada comunicação com os seus semelhantes e não podia entrar em casa nem contactar com pessoa ou objecto sem contagiá-los com a mesma qualidade. Os próprios
alimentos não deviam ser tocados com as mãos, pois estas estavam impuras.
Na ilha Tonga, quem tocasse o cadáver de um chefe tornava-se impuro por dois meses.
Nos hábitos dos Glorienses quanto à morte parece haver um significado semelhante aos que venho de citar. Outros adiante apontarei que correspondem às crenças de
vários povos distantes.
O transporte para Muge é feito num carro puxado a bois ou vacas e, se os haveres da família não são bastos, o morto é colocado sobre uma esteira e coberto com colcha.
As mulheres mais chegadas vestem-se de negro e andam com uma saia pela cabeça, que puxam ao rosto, mostrando somente os olhos (fig. 18).
Os homens não se barbeiam durante três ou quatro meses e enrolam-se numa manta de cordão. Chamam a este costume "andar embrulhado com o sentimento da morte de...".
No trabalho, os homens abandonam a manta na pousada, mas as mulheres levam a saia que, nas
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horas de labor, deixam cair para os ombros. Contudo, se por qualquer motivo se têm de afastar desse local, levantam-na de novo para a cabeça e cingem-na às faces.
Fig. 18
Há neste costume como que o objectivo de isolar a pessoa enlutada do resto do mundo.
Também entre os Shuswap, na Colômbia Britânica, os viúvos e as viúvas devem viver afastados do seu povo durante o período de luto; não devem tocar com as mãos na
cabeça e no corpo; toda a louça de que se servem fica subtraída ao uso dos outros.
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Na Glória, a loiça é tirada do prateleiro ou voltada para a parede. Parece temerem que a presença do morto nessa casa a tenha contagiado com a sua impureza. De resto,
noutros hábitos inerentes à morte, e que no nosso país são ainda de carácter geral, se encontram reminiscências de estados primitivos.
No distrito de Mekeo, da Nova Guiné Britânica, perde o viúvo todos os direitos civis, e vive por algum tempo como banido. O homem que perde a mulher deve evitar
o desejo de uma substituta; a viúva tem de lutar contra igual desejo, tanto mais que, não tendo senhor, pode provocar a cobiça de outros homens.
Toda a satisfação substitutiva seria contrária ao sentido do luto - despertava a cólera do morto.
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JOGOS DE INFÂNCIA
BUSQUEI com a possível minuciosidade a actividade lúdica das crianças da Glória, porque entendi poder encontrar nela elementos linguísticos e etográficos que servissem
de ponto de comparação com a de outras regiões.
Gross, cuja classificação Claparède adoptou, alterando-a levemente, divide os jogos infantis em dois tipos: os de experimentação, que desenvolvem os sentidos, e
os de exercício a tendências secundárias (luta, caça, imitação) e jogos sociais.
Do primeiro tipo anotei os seguintes:
Malha. - O vulgaríssimo jogo dos dois paus (paulitos) colocados frente a frente, a certa distância, procurando os jogadores deitá-los abaixo com pedras ou calhaus
de faces lisas e contando pontos pelo derrube e pela proximidade.
Jogo do feijão. - Cada jogador, com três feijões, procura metê-los dentro de um buraco (barranco) aberto no solo. Aquele que conseguir joga em seguida com os feijões
dos outros e guarda quantos fizer entrar no barranco. Se não os ganha totalmente, vai jogar o parceiro classificado a seguir. E assim sucessivamente, até à desaparição
dos feijões do terreno do jogo.
Jogo do capado. - No solo, com um dedo ou pau, fazem o tabuleiro, constituído por um quadrado, no meio do qual se encontram quatro linhas, duas das
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quais partem de uns cantos para os outros, e as restantes do meio dos lados para os opostos.
Jogam-no dois rapazes, sentando-se no chão à volta.
Cada um tem três pedrinhas, pondo o primeiro antagonista a jogar uma sua no centro. Depois o outro coloca uma pedra, até que cada um deles fique sem alguma na mão.
É declarado vencedor o que enfileirar as três pedras com que joga.
Do segundo tipo:
O pião; a roda ou argola, vulgarmente conhecida por arco; as escondidas, que designam por jogo do esconderil, e o anel, regra geral só adoptado pelas raparigas.
Estas brincam também ao trapalhaço, que é jogado numa roda, no centro da qual fica uma delas. Esta, batendo com a mão nas que a envolvem, vai dizendo:
Trapalhaço,
Trapalhaço,
com penas ao cabaço.
Roo,
Bão,
Boste a alçar,
Boste a andar.
A última tocada ao findar a cega-rega sai fora. E de novo se inicia, até ficar só uma na roda. Então todas as outras se escondem e as duas vão em sua busca, procurando
agarrá-las. Logo que conseguem deter uma, esta tem de transportar a captora até ao local do jogo. Voltam a procurar as restantes e só escapam ao castigo as que conseguirem
fugir para o couto.
As crianças da Glória têm ainda do último tipo, e segundo o sexo, duas brincadeiras a que dão marcada preferência: a casola e a eira.
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Claparède disse que "a infância tem por missão jogar e imitar".
As duas citadas são bem o reflexo da vida que à sua volta se faz, da poderosa influência do meio a actuar nos seus espíritos juvenis, como a traçar-lhes já a laboração
futura.
As raparigas fazem com terra um valadinho rectangular que dividem por dentro, e numa das divisões colocam uma espécie de cama, de pedaços de madeira, onde deitam
a boneca de trapos numa outra põem um bocado de tijolo, sobre o qual arrumam cacos e a que chamam a cantareira. É o quarto e a casa de fora. Este conjunto é a casola,
e dentro dela se metem a coser trapinhos e a varrer.
Os rapazes fazem eiras pequenas e malhos com que batem ervas, as quais emolham, transportando-as em carrinhos de cortiça a que atrelam paus com uma forca na extremidade,
imitando bois de trabalho.
Põem sobre eles uma canga e tiram-lhes bocados de casca para que assemelhem animais malhados.
O pau com forca, que na opinião de arqueólogos é a figura humana estilizada, é também objecto de brincadeira das crianças asturianas.
Kilpatrick escreveu que "o jogo é um dos mais efectivos meios de aprender a trabalhar".
As duas brincadeiras descritas são bem a escola, desses futuros proletários, que, no lar ou no campo, exercerão das actividades mais nobres.
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ARTE MANUAL
A arte dos Glorienses neste domínio táctil e visual, servindo-me da classificação de Squillace, sendo um excedente da vida material, como todas as superstruturas,
está intimamente ligada a esta, não sendo necessário recorrer a deduções para se encontrar o veio originário deste caudal de emoção que brota nos seus espíritos
rudes, simultaneamente sensíveis ao belo.
A arte não constitui um fim em si própria, e tanto nos objectos decorados, como nos motivos da decoração, se encontra sempre o objectivo de utilidade imediata do
temperamento prático do camponês, que
Fig. 19
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não pode exceder-se aos elementos que o rodeiam e dominam.
Este capítulo, que transborda para outros que o leitor descobre na leitura deste ensaio, é mais para o lápis de Júlio Gois que para a minha pena. No "Vestuário"
frisei o desvelo e a graça com que embelezam os seus casacos e aventais, em todos os momentos livres da sua vida de canseiras. Na "Etografia" descrevi costumes a
que estão ligados objectos que concebem e decoram - ofertas mútuas de namorados, trabalhadas a agulha e a canivete.
Fig. 20
Os bicos de descamisar, os moços, os cabos das foices, os azeiteiros, saleiros e pimenteiros de chifre, a que chamam pau do ar, os cortiços, recebem geralmente uma
linha quebrada, um coração, uma data, um nome. Servindo de adorno atingem simultâneamente
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a finalidade prática de um marco a distinguir os objectos entre si.
A pataca e a bolsa de relógio, das figuras 19 e 20, não constituem os padrões únicos dessas ofertas, pois se o primeiro nas linhas gerais não recebe alteração evidente,
a bolsa do relógio apresenta-se com outro aspecto, principalmente nalgumas que vi sem as borlas. Contudo, na disposição de cores e desenhos não há semelhanças em
qualquer deles.
Fig. 21
Encontrei uma carteira ornada de losangos, no meio dos quais se traçavam as iniciais do seu possuidor, quando na generalidade essas marcas são feitas na parte interior
das mesmas. A confecção de todos estes objectos é perfeita, admirável de acabamento, se atendermos
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às mãos que as executam, calejadas por todos os serviços mais violentos das fainas do campo.
O sentido de aproveitamento de elementos vários para estas produções de arte singela é notável.
Assim, por exemplo, as borlas da bolsa de relógio de que se apresenta desenho, bem decoradas e de uma fragilidade encantadora, têm quatro elementos: a borla, propriamente
dita, de lãs variadas, as três fitas estreitas de cores, os ornatos longos e os graciosos extremos.
Quem dirá que por debaixo da contextura delicada dos ornatos longos se encontra um pedaço de cana? E que os extremos, tão perfeitos e originais,
Fig. 22
não passam de seis vulgares ilhós de botas, cosidas à volta de uma bolinha de pano e revestidas de lãs? Não é isto uma predisposição em criar beleza, nata neste
povo tão olvidado e joguete de tão cruéis ambições?
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De um taleigo, oferta de uma cachopa ao noivo que foi à tropa, extraiu Gois alguns dos elementos decorativos que mais usam. A figura 21 é a que chamam o pinto -
motivo baseado em moeda antiga com esse nome; e a figura 22 é conhecida pela coroa.
Um dos elementos decorativos mais do seu agrado são os corações com a chave que os fecha a todas as maquinações e rodeios alheios.
Pelo Verão, é vulgar verem-se as raparigas com cordões e brincos que elas próprias fazem com a espiga de uma planta que nasce nos campos.
A abrigota, de que se servem para a cura de impigens, é uma raiz no feitio de amendoim, que na Primavera deita rama, no meio da qual nasce uma espiga, o gamão. Atinge
por vezes a altura de um homem, e é com ele, em entrançado paciente, que se ornam.
Seleccionando valores, dando-lhes cultura, quantos artistas se arrancariam à gleba e nos viriam transmitir toda a beleza inexplorada dos seus espíritos sãos e originais?!
...
Quantos artistas novos a rejuvenescer a arte decrépita de uma época caduca?! ...
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TEATRO
EMBORA só representado pelo Carnaval, o único auto que a arte reflexa dos Glorienses criou não tem sintomas hieráticos, como, por exemplo, a Dança das Donzelas,
de Arcozelo da Serra.
É de origem absolutamente popular, tendo contudo o mesmo objectivo dos momos, usados na corte de D. Afonso V e D. João II, e que Gil Vicente fez reflorescer no reinado
de D. Manuel.
O Bicho do Entrudo já hoje não faz parte das suas saturnais. Reconstituí-o por descrição de dois intérpretes, hoje saudosos desse tempo em que os homens buscavam
em si próprios motivos de folgança.
Na terça-feira à noite, na casa da brincadeira e no intervalo do bailarico, representava-se o auto assim o designei porque, embora não escrito em verso, tem o pitoresco
e a singeleza das produções que mestre Gil Vicente deu ao Paço depois de 1502.
Pelo ambiente em que os personagens vivem e pela sua própria natureza, creio que é de origem local, embora influenciado por outra qualquer representação assistida
pelo seu autor. Suponha-se há uma boa centena de anos :-o costume desapareceu há cerca de doze-, num meio primário como ainda hoje é a Glória, o sucesso que faziam
as cenas e os diálogos dessa produção de arte popular.
Os personagens eram doze e representavam num círculo aberto entre os assistentes do baile. Como ainda hoje é regra, as mulheres estavam separadas
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dos homens, havendo só contacto entre eles no momento da dança.
PERSONAGENS: O Velho proprietário. O Velho comprador (este tendo num dos ombros uma manta dobrada que lhe ia até aos pés). As seis Colmeias, desempenhadas geralmente
por garotos que se embuçavam em mantas de cordão, a imitar o cortiço. O Burro, coberto de pele de ovelha ou vitela, apoiando-se o actor com as mãos a um pau, onde
penduravam uma panela de barro a imitar a cabeça; às costas colocavam-lhe albarda apertada com cilha e na panela enfiavam cabeçada com arreatas. O Lobo envolvido
em pele de cabra e movendo-se com as mãos pelo solo. O Cão com pele de carneiro e deslocando-se de igual modo. O Moço do burro.
Abriam a representação os dois velhos que se arrastavam trôpegos, curvados pelos anos, barbichas nas faces e apoiados aos cajados, como a pedir-lhes arrimo. O Comprador
fazia-se acompanhar do Cão, que tinha entre as pernas duas cebolas imitando os testículos e uma borracha de desinfecções.
- Vossemecê quer vender um bocado de terreno p'a vivente?
- Lá isso é que eu vendo, se senhor.
- Tenho uns cortiços e quero prantá-los em terra a jeito.
- Arranja-se home! Assim houvesse a salvação... Este terreno aqui...
- Hum ...
- É brejoeira!
- Na m'agrada lá muito.
E, voltando-se para o lado das mulheres, marcava com o pau uma linha que lhe passava pelas pernas.
- Convém-me é por aqui.
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Elas encolhiam-se, fugindo algumas a gralhar ante as gargalhadas altas das que ficavam atrás e se sentiam defendidas dos gracejos.
- Veja bem, home! Veja bem! ...
- Isto aqui convém-me.
E voltava a marcar com o cajado.
- Aqui é mais frescal.
E o negócio fazia-se depois de larga discussão sobre preço e condições.
O Comprador saía então e trazia as Colmeias às costas, uma a uma, deitando-as sobre as mulheres que formavam a periferia do círculo.
- Pesam mais qu'o meu dinheiro! Arre! ...
As mulheres sacudiam os garotos, eles acometiam-nas com alfinetes que traziam para imitar a agressividade das abelhas atacadas, e os risos e dichotes não tinham
fim.
O Vendedor retirava-se e o novo proprietário, tirando a manta do ombro, estendia-a no chão e adormecia em ressonares altos.
O Cão, que se acolhera junto dos Cortiços que não cessavam de zunir e de picar, dava uma volta pelo recinto, rosnando ora a um, ora a outro, e, naquele gesto de
sublime desprezo dos cães, alçava a perna e, apertando a borracha, esguichava um jacto de água sobre as mulheres, encolhidas a gritar e a rir.
Após a digressão e esgotadas as provisões de líquido, sentava-se ao pé do Velho e adormecia.
E entrava, passo a passo, o Lobo matreiro e mão leve, cabeça no ar, como em decifração de perigo. Deitava a mão a uma colmeia e por aqui me sirvo. Depois outra ...
Outra ainda... E o Cão, acordando, ladrava furiosamente, deitando-se ao Lobo com ganas de o esganar. A luta não tinha tréguas, e, medindo-se, saltavam um sobre o
outro, qual de baixo, qual de cima.
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A refrega, cada vez mais bulhenta e movimentada, acabava por acordar o Velho, e este berrava incitamentos ao rafeiro para que lhe defendesse a propriedade.
- Anda, Tejo! Anda, cão! ... Anda, valente! ...
E o Lobo, acabando por dominar o adversário, lá levava outro cortiço. Por vezes, os garotos picavam-no como se fossem biscainhas agressivas, e o Lobo largava-os
para o chão, alucinado, a coçar-se.
Cada gesto era uma gargalhada, cada palavra um menear de assentimento.
Quando o Velho acordava, depois de ter caído novamente em sono profundo, e se via sem abelhas, lamentava a sua desgraça em altos berros, num carpir de velhas em
funeral.
- Ai a minha desgrácia!... Ai que estou perdido!...
- O que é isso, patrão? - perguntava o Moço que trazia o Burro à arreata.
- Venha para casa.
E o Velho cada vez se esmoncava mais em gritaria e choro.
- O que foi, home? Se senhor ...
E entrecortando a descrição com soluços, enquanto aos olhos levava o lenço para enxugar lágrimas, ia fazendo minucioso relato da sua tragédia.
O Burro então, aborrecido talvez, ou sofrendo longa crise sexual, zurrava e pretendia galgar para cima dos dois interlocutores, que o evitavam fugindo.
O Moço, como última solução, agarrava-se ao rabo do Burro para conter o animal, mas mal o largava logo o Velho era acometido com saltos e zurrares longos.
- Agarra lá esse alma do Diabo, ó rapaz!
- Por onde, patrão? Sei lá ... Por onde? ... Tanto o dono era perseguido, tanto o Moço segurava o Burro, tanto este se empinava, que o primeiro,
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em alucinação, erguia o varapau e desancava-o na cabeça, até da panela não restarem mais que cacos. O animal desfazia-se em zurrares altos, enfraquecidos depois,
e, até seus brados se extinguirem, ia deixando cair o corpo, ficando por fim sem movimentos, como morto.
- Ai o meu rico burro!
- O burro é meu, ó rapaz. Deixa-te disso, anda.
- Andei eu a tratar o animal e vossemecê faz-lhe uma dessas ... Ai que grande desgrácia!
- Atão tu na vias que o dianho do burro aos pulos e a zurrar ...
- Se senhor...
- E atão? ...
-Se calhar vossemecê também na gosta!
E a representação acabava entre aplausos e mofas. Voltava a concertina a arfar os repregos e a cachopada de novo pulava no ímpeto das remexidas e viras.
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CANCIONEIRO
O povo, massa anónima que muitos aviltam e outros adulam para dominar, tem a sua epopeia - a mais bela e grandiosa de quantas a humanidade conhece.
É ele que gera os nomes fulgurantes de todas as histórias, já acarinhando anseios que estes arvoram, já seguindo-os e dando-lhes a nobreza do seu ímpeto ou da sua
brandura.
Todas as grandes evoluções sociais viveram em germe no seu espírito infantil, ao mesmo tempo sábio. Porque se é da realidade que tudo se gera, se as revoluções nascem
duma insatisfação crescente, no povo ela surge primeiro, porque, mais junto ao amargor da realidade, mais em seu contacto íntimo, pode melhor sentir esse inconformismo
que tem escrito as mais radiosas páginas da epopeia da humanidade.
Essa música culta, elevada e dominadora que Beethoven e Wagner, Stravinsky e Honegger escreveram, não é mais que uma resultante daqueles brados de trabalho, de incitamento
aos animais, que a garganta do povo cantou.
As artes plásticas, que Rodin e Soares dos Reis, Velásquez e Pousão nobilitaram e engrandeceram, foram geradas pelos míseros caçadores de renas que, nos momentos
de repouso, ataviaram cavernas e caveiras com atitudes dos animais que abatiam, num sentido estético a alvorecer, mas já notável.
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E essa estátua da caverna de Willendorf onde o primeiro escultor, ainda indeciso na modelação, deu plasticidade à matéria bruta, cantando as belezas da fêmea?
A poesia que Virgílio e Camões, Antero e Lorca cultivaram com superior visão e sensibilidade dúctil, o povo lhe deu forma primária nos seus cantos de amor e de saudade,
de lamento e de angústia.
A ele iam os jograis buscar cantigas para que seus amos brilhassem na corte, e à riqueza do seu cancioneiro os trovadores tiravam o elemento tradicional para a poesia
da Provença, dando-lhe a seiva das suas serranilhas.
Mas, maior ainda que esta epopeia esplendorosa onde o seu nome surge como precursor, o povo tem a epopeia do seu trabalho que ergue cidades e faz abrir flores, devassa
minas e gera pão.
Enquanto escreve nos metais ou na gleba, na madeira ou na hulha, a ode heróica do seu labor produtivo, que faz agitar o mundo, o povo canta o seu poema, ébrio de
amor e de aspirações.
Toda a gama de sentimentos do seu emotivo, ele trata com lirismo e paixão - poeta de sonhos alevantados que muitos se esforçam por tornar vagos.
O cancioneiro da Glória é rico.
Numa totalidade de doze dias de trabalho em que recolhi todo o material deste ensaio, só algumas horas pude dedicar à dessa seara basta e pujante.
À revelação de muito poeta ignorado que cantou alguns pedaços sublimes deste poema popular juntei a de João Manuel Pereira Caneiro, analfabeto e vate querido, de
há anos, nos serões aristocráticos das salas escalabitanas, onde ia versejar.
A poesia da morte do burro é notável.
Creio mesmo que Caneiro deve ser dos maiores
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poetas do povo que Portugal tem tido. O diálogo do lobo e do burro, natural na sequência, exacto na rima, lembra, à espaços, uma fábula de La Fontaine.
É uma produção que define a altura a que poderia ascender o seu estro, se a cultura o tivesse arrancado às trevas onde o seu espírito cintilante se debatia.
Nas cantigas soltas dos poetas desconhecidos encontrei semelhanças evidentes com outras do Cancioneiro do Ribatejo que estou organizando e onde brilha a grande altura
o nome de Henrique Lamas, cauteleiro e investigador camoniano, que muito tem carreado do pouco que possuo para esse monumento de arte popular.
A origem dessas cantigas, a sua árvore genealógica, como Gaston Paris judiciosamente lhe chamou, talvez que um dia se possa determinar em presença de elementos que
se recolham por todo o país.
Por agora, poderei afirmar que o trabalho é o fio condutor dessa permuta de temas e é na lezíria que ela se opera em maior grau, pela reunião de vários ranchos que
aí se encontram na azáfama dos granjeios e das segas.
Uma outra semelhança verifiquei ainda, mas essa mais digna de relevo: é que no Cancionero Popular Gallego, que José Pérez Bellesteros organizou, deparei com uma
quadra de índole igual a duas que anotei na Glória.
Diz assim:
A vida d'o carreteiro non hai vida como ela. A semana no carreto e ao domingo na taberna.
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E as da Glória:
Se eu atentar a casar Há-de ser com um cavador. De semana, o pé na lama, Ao domingo é uma flor.
Se eu atentar a casar Há-de ser com um cingeleiro, De semana, a vara às costas, Ao domingo é um craveiro.
A Galiza e Portugal sempre se encontraram na história como nas artes.
Aí fica outro elemento para o estudo da compreensão de dois povos irmãos nas alegrias e nas desventuras.
De qualquer assunto que fira a sensibilidade do povo, ele produz uma jóia pequenina de poesia, sempre pela intenção, algumas vezes pela sua feitura perfeita.
Desde a adolescência à velhice o povo trabalha sem cessar, heróico e esforçado. Na malga as sopas são escassas e o fim da semana é doloroso.
Nasce-lhe no espírito uma interrogação.
E canta:
ó minha mãe dos trabalhos Para quem trabalho eu? Trabalho, mato o meu corpo, Não tenho nada de meu! ...
Mas o trabalho é a sua prisão e a sua liberdade. Orgulha-se dele, sente que será por ele que o mundo se regerá.
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Trabalha, homem, trabalha, Se queres ter algum valor, Que os calos são os anéis De um homem que é cavador.
No amor é sincero e ardente. A terra ensina-o a amar, com o exemplo dos seus idílios.
Dá o teu ao teu amor, Se ele te ama de vontade.
A renúncia, o apartamento, deixam-no amarfanhado. Quando cria raízes nada há que o alegre. O trabalho é mais pesado, o pão mais negro.
Sete estrelas, Sol e Lua, Marinhas de águas do mar, Choram as pedras da rua Por meu amor me deixar.
Nas horas da sesta pensa. Como é a vida? Que é o mundo? E a morte? E filosofa:
O mundo é uma vinha, Cada cepa uma questão; Vem a morte, faz vindima, Não procura geração.
Como é para o amor, dedicado e saudoso, assim para a terra. Em poucas aldeias de Portugal o amor ao torrão será tão vivo como na Glória.
Sair dela é uma angústia. Mas mais angustioso é querer ganhar o pão...
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Quem me dera na Glória, Quem me dera agora lá. A culpa tive-a eu... Não me viera de lá.
E, na volta ao lar, lá vai o adeus ao aposento, onde o corpo repousou das fadigas e as febres se tiritaram sobre a esteira.
Adeus, quartel de Montalvo, Rodeado de urtigas, Agora... ficas viúvo: Vão-se embora as raparigas.
E é assim este povo admirável, que quer ser feliz e o merece.
Os seus pesares e lutas, folguedos e amores, o fazem poeta. Primeiro que outros o cantassem, ele se cantou.
Mais uma vez precursor!
Precursor desta geração nova que o sente e admira, e, no fragor tempestuoso do momento que o mundo vive, tem para ele um olhar de bonança, uma chama de fé e um grito
de redenção:
- Ergue-te e vem. A vida é nossa!

AMOR
Apenas que nasce o Sol, Sai o pastor da cabana Gritando em altos berros:
- Triste vida tem quem ama!
Minha estrelinha do norte!... Agulha de marear!... É por ti que eu me guio Quando te quero falar.
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ó Sol, ó Lua, ó luar! ó mansa claridade!... Dá o teu ao teu amor, Se ele te ama de vontade.
O Sol prometeu à Lua Uma fita de mil cores. Quando o Sol promete prendas Fará quem tem seus amores.
No alto daquela serra Está um lencinho a acenar: Está dizendo viva, viva, Morra quem não saiba amar.
Amor que perdoa uma, Por ser a primeira vez, Se também perdoa uma, Perdoa duas ou três.
O meu amor é da vila E mora ao pé da cadeia: Mais vale um amor da vila Que vinte cinco d'aldeia.
Eu hei-de amar, ó Mira, Na rua dos caniçais, Aos saltinhos com'a lebre E aos voos como os pardais.
Olha o gajo do relógio com uma corrente aos anéis, Todo ele tem o meu agrado Da cabeça até aos pés.
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Os meus olhos não são pretos, Nem mesmo da cor da chama. Não são bonitos, nem feios: São leais a quem os ama.
Ó rapaz dos olhos pretos E cara da mesma cor, Muito gosto a cor morena Que é a cor do meu amor!
Penteei o meu cabelo E puxei-o para trás Pus-lhe uma travessa nova Para ver o meu rapaz.
Salvaterra está pendida, Está pendida mas não cai. Já o rei não quer mais tropa, Já meu amor lá não vai.
Mariana foi ao moinho
com três quartas de centeio,
Deu um beijo no moleiro
E trouxe um alqueire e meio.
Trago dentro do meu peito Um relógio a trabalhar: Dá horas e marca horas Sem ninguém corda lhe dar.
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com uma pena de pavão Fiz uma chave inglesa, Para abrir teu coração com toda a delicadeza.

CASAMENTO
Lá no lugar da Glória Anda já um forno em brasa. Está aqui uma menina Pró S. Miguel é que casa.
Joaquim, Joaquim, Cabeça de galo doido, Tu andas para casar, Tarde ou nunca serás noivo.
Se eu quisesse estar casada, Um viúvo me falou; Mas não quero criar pintos Que outra galinha tirou.
CONSELHOS
Cantem, raparigas, cantem, Cantem, rapazes, mais elas. Que não haja que dizer Nem, dos rapazes nem delas.
Cantigas são pataratas, Palavras leva-as o vento ... Quem se levar em cantigas É falto de entendimento.
DIÁLOGO i
- Deus te salve, mulher ingrata! Como estás tão bem deitada ...
Chamado Mulher ingrata.
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Nem o jantar me tens feito ... Estás uma serva empada! Não queres senão dormir sesta, Não te importas de mais nada.
- Se tu me chamas ingrata, Não sei que mal te fiz eu. Se não tens o jantar pronto, Podes comer cá do meu.
E se o meu não for bom, É o meu igual ao teu.
- Tu eras mal empregada Sem comeres um bom jantar. Tu deitada à boa vida
E eu farto de trabalhar.
- isto quem atura homens Deve-se revestir de graça. P'la paciência de Job, Sofrerei tudo que ele faça ...
- Olha: tu se não me quisesses, Não tomasses novo estado.
- Não bonda eu aqui ter Estes dois filhos ao lado.
- ó que grande trabalheira Só com dois filhos que tem! ... Há quem tenha meia dúzia Sem achegos de ninguém. Tratam deles como as mais
E ajudam os homens também.
- As mulheres são umas santinhas, São umas fracas criaturas ...
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- Que enganam os pobres homens com as falsas formosuras.
- Não há tenção de palavras; És um covil de imposturas.
- O teu pai fez muito mal De não te pôr num convento. Uma flor tão mimosa, Faz-lhe mal andar ao vento; Escusava de andar passando Tão rigoroso tormento.
- Não nasci para ser freira Nem senhora recolhida, Nasci só para ser tua
Pra levar esta má vida. Não sei que razão tu tenhas De me tratares assim!
- Tratando-te eu igualmente Como tu me tratas a mim... E se não emendas a língua, Isto breve terá fim.
- Dá-lhe fim quando quiseres, Quando for tua vontade.
Pra me governar Tenho muita habilidade.
- Queres andar à rédea solta! ... Estás, por certo, enganada. Dou-te cabo das costelas
A poder de bordoada.
- Se tu tens esse sentido Fazes bem em m'avisar.
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- Há-de te dar que entender Essa questão do jantar. Se não sabes quem eu sou, Eu te vou a demonstrar.
GRACEJO 1
S. João deu uma facada Em casa de S. Tomé; Apitou ao Stº António, Já está preso S. José.
S. Pedro pôs nos diários Que lhe tinha dado um estalo, Deu co as chaves em S. Paulo, Na casa de Stº Amaro.
Os Santos anunciaram: Depois do barulho armado Veio o anjo cuma embaixada:
- S. José vai-te esconder. E S. Luís ouviu dizer:
- S. João deu uma facada.
Apareceu Stº Agostinho.
- Cala-te que eu sei quem é.
- Hás-de ajudar a beber A tal garrafa de vinho Em casa de S. Tomé.
1 Designam a cantiga transcrita por Cantiga dos Santos Todos.
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Apareceu um diligente, (Isto agora é mais bonito) E apareceu S. Benedito Aos sopapos a S. Vicente.
Alto, lá para a frente,
Apareceu Stª Polónia,
Se tinha visto os cabos tristes.
E aí os primeiros gritos Apitou o Stº António.
Stª Teresa que ouviu, Ajudou-se a Stª Margarida E logo de casa saiu. S. Francisco a seguiu Mesmo descalço e a pé, E encontrou Stº André A porta de Stª Inácio. Disseram
a S. Bonifácio:
- Já está preso S. José.
As torradas são torradas E a faca corta o toucinho, Brigaram os santos todos Por uma garrafa de vinho.
Ainda torno a notar Nas abas do meu chapéu: Os homens brigam na Terra E os santos brigam no Céu.
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IRONIA
Anda aí uma moda e pêras, Não são pêras de comer. Vai-te embora toleirão, Não andes a padecer.
Maria das Trapalhadas, Das trapalhadas Maria, Mandei-te hoje ao azeite E quebraste a almotolia.
Eu não quero amor viúvo, Nem que venha o padre eterno. Que os olhos de amor viúvo São castiçais do Inferno.
Quem me dera uma cana Desse teu canavial. Quem me dera um viúvo Para cortiço do sal.
Prantei-me a dormir a sesta À sombra de uma formiga, Veio uma pulga, deu-me um coice, Ninguém me julgava viva.
Já vi uma pulga a ler, Um piolho a dar escola, Nas asas de um gafanhoto Armar-se um jogo de bola.
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Vi duas lebres à canga, Dois coelhos a lavrar. Amosidade ao amor Não há quem possa apartar ...
Não gosto de gente tola, Meu amor é toleirão. A samarra não é dele, O chapéu é do irmão.
Ó ladrão que me mataste O meu rico pintainho. Era um porco de cortiça, Já não chega a dar toucinho.
LAMENTOS
Tenho pena, minha mãe, De me chamarem morena; Mais valia eu morrer Quando inda era pequena.
Quando eu nasci, nasceram, Nasceram quatro num dia: Nasci eu, nasceu desgraça, Nasceu desgraça e Maria.
Sete estrelas, Sol e Lua, Marinhas d'água do mar Choram as pedras da rua Por meu amor me deixar.
Suspiros ao pôr da mesa, Suspiros ao levantar. Tudo em mim já são suspiros Por meu amor me deixar.
com pena pego na pena, com pena peguei a ler. com pena larguei a pena, com pena de te não ver.
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Eu amei uma ingrata Que tão mal pago me deu. Não me falem jamais nela ... Digam todos: já morreu.
MORTE
O mundo é uma vinha Cada cepa uma questão, Vem a morte, faz vindima, Não procura geração.
- ó homem, que ferro é este Que tu andas trabalhando?
- Isto é o ferro da morte
Que o meu corpo vai matando.
ó ferro, dá-te à terra, ó terra, que estás tão dura. com este ferro a bater É que eu abro a sepultura.
Alto céu que me roubaste, Minha doce companhia, Caixinha dos meus segredos, Espelho por onde me via.
PROFISSÕES
O pedreiro cheira a cal, O carpinteiro a madeira. Cada qual ao seu ofício Eu também sou lavadeira.
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Também vou lavar ao mar. Lavo roupa sem sabão, Lavo saia de entremeio, Fica-me o cheiro na mão.
Num homem que é cavador, É que eu faço estimação; A enxada é o seu cravo E o seu craveiro é o chão.
Se eu atentar a casar Há-de ser com um cavador. De semana, o pé na lama, Ao domingo é uma flor.
Adeus, ó ponte de Coruche, Por lá passou a preguiça E onde passa o meu amor Quando vai para a cortiça.
O meu amor é boieiro Toda a vida guardou gado, Tem uma chaga no peito De se encostar ao cajado.
Se eu atentar a casar Háde ser com um cingeleiro; De semana, a vara às costas, Ao domingo é um craveiro.
O meu amor é boieiro, Guarda bois de tralhoada, Quando me quer vir falar Deixa a vara na tapada.
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Meu amor é valador, Anda a vaiar no mouchão; Não é desprezo nenhum Andar de balde na mão.
Meu amor é valador,
Ele anda a vaiar na terra
Ele é fraquinho de corpo
E ao pé dos mais não se nega.
RELIGIÃO
Santo António era bom santo Se ele não fora gaiato; Foram as moças à fonte, Foram três, vieram, quatro.
A senhora da Glória Diz que m'há-de dar um dote, Se mo há-ãe dar em vida, Dê-mo à hora da morte.
A senhora da Glória Tem uma estrela na testa, Que lhe prantaram os anjos No dia da sua festa.
SAUDADE
Quem me dera na Glória Quem me dera agora lá. A culpa tive-a eu ... Não me viera de lá.
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Suspiros, ais e penas, maginações e cuidados É o comer dos amores, Quando andam ausentados.
Olha o lugar da Glória Tem um terreiro varrido, Antes que eu queira, não posso De lá tirar meu sentido.
Adeus, quartel de Montalvo, Rodeado de urtigas, Agora... ficas viúvo: Vão-se embora as raparigas.
Triste vida tem quem ama, Mais triste é quem namora; E mais triste é quem não vê Seu amor a toda a hora.
Quem me dera na Glória, Lá mesmo ao pé ou defronte: Queria ver o meu amor Nos carreirinhos da fonte.
TERRA NATAL
Lá no lugar da Glória Anda já um forno a arder. É a mãe do meu amor Que está agora a cozer.
Alpiarça vale dez réis, Santarém vale um vintém, E a Glória mil Cruzados P'las lindas moças que tem.
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ó Glória, ó Glória, Terra da maganaria. Quando eu era magana Toda a noite não dormia.
Olha o lugar da Glória Tem um tanque de água fria, Onde o meu amor se lava Em toda a hora do dia.
À entrada da Glória Está um portão encarnado, Onde mora a minha sogra, A mãe do meu namorado.
O lugar da Glória Tem um pinheirão à banda. Os rapazes no passeio, As cachopas na varanda1.
ó lugar da Glória,
Já te podes alegrar
Que as campinas2 que te faltam
Breve lá vão a chegar.
À entrada da Glória Está um gato pendurado. E os morandas vão dizendo:
- Fora, fora, que é malhado.
À entrada da Glória, Logo à primeira esquina, Está um tanque de água azul Coberto com prata fina.
1 Valado.
2 Camponesas.
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TRABALHO
O quartel de Montalvo Está caiado até ao chão; Por causa das raparigas É que os rapazes lá vão.
Semeei, não apanhei Milho miúdo n'areia. Quem semeia não apanha, Que fará quem não semeia.
Casadinha de há três dias Mandou trabalhar o homem. Trabalha, homem, trabalha, Quem não trabalha não come.
Trabalha, homem, trabalha, Se queres ter algum valor, Que os calos são os anéis De um homem que é cavador.
ó minha mãe dos trabalhos, Para quem trabalho eu? Trabalho, mato o meu corpo, Não tenho nada de meu! ...
Trabalhar, é trabalhar Numa terra de ladeira. Trabalhar é ter amores Na mocidade solteira.
Cavas terra, viras terra, Não te fartas de cavar? Essa tua opinião A cova te há-de levar.
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Tu não sabes trabalhar Nem carrear numa eira; Nem brochar uma charrua, Nem dar preceito à lavoira.
VARIAS
ó Maria, ó Maria! Destas Marias há poucas; Umas são Marias várias, Outras são várias e loucas.
O rapaz do chapéu preto Precisa a cara partida, Debaixo do chapéu preto Pisca o olho à rapariga.
Rapaz do barrete preto, Está-te bem que és trigueiro: Mal empregado barrete Na cabeça de um brejeiro.
ó minha pombinha branca Que andas no lameiro verde, Andas com o bico n'água Já andas morrendo à sede.
Foste dizer ao meu pai Que eu andava a namorar, E meu pai te respondeu:
- A inveja faz falar.
Hei-de cantar e bailar As vezes que eu quiser. O cantar mais o bailar Não me tira o ser mulher.
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VERSOS DE JOÃO MANUEL PEREIRA CANEIRO
Juntou-se o burro ralaço com o lobo marralheiro.
- Há muito que vieste do palheiro? Deixaste por lá algum retraço?
- O que te importa a ti que eu faço, Pedaço d'atrevião?
- Tu estás muito aborrecido ... E comichoso.
- Tu és lobo ou raposo? Malvado que és tão feio!... tava-te capaz de abrir ao meio com o meu faim.
- Tu estás assim?
- Olha que eu não sou quem tu procuras!
- Quem te fez essas mataduras? Pobre animal! ...
Responde a fera cerval Já de tacha arreganhada.
- Tu queres ser meu camarada, Este Verão?
E o dono influído a fazer carvão.
E o burro agoniado nas unhas do bicho vil. - Se fosse no mês d'Abril... Não estavas com esse arrazoado.
- ó malvado!
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A tua espingarda é de fuzil ou de fulminante?
- Pedaço de tratante!... Desinquietador! ...
Ele já de vista caída E olhos alvoroçados De tanto lacrimejar.
- Confessa os teus pecados Se os tens pra confessar.
- Eu a ti não te venho tratar mal... Nem a ti, nem aos teus parentes ...
E ele ferra-lhes os dentes na cachola.
- Eu nunca fui mariola
que recebesse tais enxovalhas!
- Hás-de ver se tenho alguns encalhas Pra encher barriga.
Eu quero que tu me digas, Dando-me razões que não mereço ... E ferra-lhe os dentes no sesso E puxa para trás. E o burro o que faz? Abre a boca e diz:
- Aqui já não há juiz, Nem administrador Que acuda a esta dor, A agonia da morte. Responde-lhe a fera de tal sorte:
- O fraldiqueiro malfadado! Se estás prisioneiro
Foste tu mesmo o culpado E o burro todo esfrangalhado.
Abala o seu dono do trabalho A procura do animalzinho. (Por sorte fica sem o burro O Francisco Baixinho.)
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E preparou o Moita De espingarda e polvarinho Para o lobo fazer espera. Mas ele matou um cão dizendo que era a fera.
O que se segue é confuso, possivelmente pela desmemória do meu informador, António Pereira Caneiro, descendente do poeta.
No lugar de Benfica Houve uma admiração. Contada é coisa rica: Namorar moça à traição Só em palha, João, É que tal coisa se vê. Namorar moça à força É uma coisa
contra a lei. Eu neste -mundo me achei
- E foi por Deus querer E a todo o mundo perguntei Se tal lei
Podia haver.
Todos me querem dizer, Tanto no sul ou no norte, Que na vida de cada um Ninguém se queira meter. E com a vida de namorados ... Ninguém se importe.
- Coração rijo e forte Querem desforçar uma donzela!
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- Devia ter sentença de morte Ou degredo pra Castela!
Uma moça boa e bela Faz um homem pesaroso. Foram ao juiz contencioso Por causa duma mulher; Mas acho caso melindroso Homem servir-se de papel.
E ela dizendo que o não quer Até aos seus confessores.
- Não há que mais desespere Que casar sem ter amores! Foram ao seu bom redentor Pedindo por grande favor Seu casamento impedido.
- Nunca julguei que um indivíduo Namorasse moça p&r falsidades.
Correram vilas e cidades com a moça de leilão; Mas a ela nada faz feição. Só o que não quer é casar. E nem que a deixem morta Não a podem obrigar.
- Eu bem sei que ele a merece E outras coisas de mais valor; Mas o que a mim m'aborrece, É ele querer casar
Sem ela lhe ter amor.
Prometeu-lhe três arráteis De peixe de posta. Mas ela ... Do noivo é que não gosta.
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Ela pra ele não se ri
E bom grado não lhe mostra.
Ela pra ele não se encosta.
- Uma coisa assim nunca vi!
Ele já deitava p'los olhos caganitas E até já trazia o Diabo às cavalitas.
Prometeu-lhe trinta grades
E um anojão.
E a ela nada faz feição.
- Isto é bem do seu noivado Que não é pão emprestado!
E ela cheia de melancolias.
Iam para uma festa cantada Pró lado da Lamarosa. A mãe ferra na filha uma dosa E fecha-a com o noivo três dias.
Sítios encobertos Como o quintal dos fetos. Nos cantos do curral, Não os tratando mal, Dão beijos e abraços Que fazem criar inchaços.
Debaixo da barba, Barriga larga.
- E eu atufado! ... Renego de tal gado! Promessas dos seus papéis, Prometendo os seus anéis
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Para meter nos seus dedos; Contando os seus segredos Aonde ninguém ouve. ... Servindo essa dita ramada De um grande açougue.
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DANÇAS
DESVENDANDO a origem das danças, Luciano J-' escreveu que "o coro dos astros, a conjunção dos planetas e das estrelas, a sua harmoniosa associação, o seu admirável
concerto, são os modelos da primitiva dança".
No Egipto, na Grécia, na índia e na China a dança fazia parte dos ritos em louvor aos deuses, e os Lacedemónios dela se serviam antes da partida para as batalhas,
marcando-a ao som de flautas.
Nas pinturas e baixos-relevos dos antigos templos de adoração encontram-se atitudes graciosas de bailarinas, desnudadas algumas, que, no erguer dos braços, piruetas
e jogo de pernas, nos mostram alguns pormenores da coreografia de épocas distantes.
A Igreja, adoptando costumes pagãos, incluiu a dança no seu ritual, e nos templos se construíram tablados, junto aos altares, onde crentes e sacerdotes a cultivavam.
No século VI foi o costume abolido por um bispo de Aunário, mas no século XIV a dança retornou ao seu prestígio entre o clero. Até que de novo a Igreja a aboliu
por pecaminosa.
Nas danças, como em toda a produtividade humana, material ou espiritual, verificam-se trocas mútuas entre os vários povos, arreigando-se alguns hábitos exteriores
de tal modo nos seus que acabam, em transformações locais, por tomar cunho privado.
O fandango é hoje comum a todo Portugal, e as nossas chacota, folia e vilão foram dançadas pela
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Europa, algumas delas como originárias de Espanha, quando de facto são portuguesas, segundo Luís de Freitas Branco.
A dança na Glória é muito cultivada. O vira, o fandango, o verde gaio, o bailarico, a remexida e a valsa serena têm a sua predilecção. Dançam também as marchas e
tangos da cidade, sob a designação geral de papo-secos ou danças à apache.
O vira de dois e três pares, o verde gaio, o bailarico e o fandango são comuns no Ribatejo, tendo este último, principalmente marcada preferência do homem da Borda
d'Agua. Em região alguma do nosso país ele tomou tanta riqueza no seu andamento vivo, em compasso 3/4, de acentuação forte em todos os tempos.
O campino, então, é o seu bailarino por excelência.
Quando o harmónio o titubeia, ele empina o tronco desenvolto, puxa a cinta vermelha arriba, pousa as mãos calejadas nos quadris, como a fixar em mármore o busto
fustigado por vendavais e sóis, e, num salto ágil, como corça galgando tapada, toca os dois pés e inicia a dança.
A borla do barrete álacre mal saltita. Só os rins e pernas se movem acompanhando o compasso. E desenha com a ponta do sapato ferrado as mais belas figuras da sua
imaginação fantasiosa.
O estrupido das solas matraqueia o andamento e tece bilros graciosos, dissipa as pernas numa fragilidade de fumo que se eleva e voga no espaço em caprichos de movimento.
Ficam nele os olhos enlevados. Um salto de quando em quando, uma torrente de passos leves que mal tocam o solo, e eléctrico, dinâmico, cruza os pés no espaço, desengonça
as coxas num alucinante frenesi, baixa-se, como à volta do lume dos cambarichos, ergue-se, firme como sobre a sela mourisca empunhando o pampilho.
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Domina tudo.
Quando o campino fandanga tudo se esquece até ele não recorda a labuta acre do seu viver incompreendido.
Foi na Andaluzia que o fandango nasceu, influenciado pelas danças dos Árabes que ali dominaram durante séculos. Nos Cantos Andaluces, Eduardo Ocoe escreve sobre
este bailado: "Bajo la denominacion de fandango están compreendidas la Malaguena, la Rondena, las Granadinas y las Murcianas, no diferenciandose entre si más que
el tono y alguna variante en los accordes: adernas de ser um canto popular espanol es uno de los bailes más antigos, y los instrumentos que se emplean son la guitarra,
castafieta ou castanuelas, triângulo, platillos y algunas veces el violin."
No Brasil também o seu povo dos campos canta, dança e sapateia, sob a mesma designação, e ao som da viola, muitas variedades de baile. Para ali o levou, certamente,
a gente portuguesa.
A farrapeira, dançada com dois pares, teve em épocas passadas a predilecção dos Glorienses. É uma música popularíssima na Bairrada e Rodney Gallop a transcreve nos
seus Cantares do Povo Português, anotando-a como ouvida em Casegas.
A letra cantada na Glória diz:
A farrapeira cantada, A farrapa da Galiza ...
Parece assim que a dança foi importada daquela província espanhola para o nosso país.
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Os Glorienses dançam ao som do harmónio, da concertina, da guitarra, da gaita de curra-beiços ou da flauta.
Convidam um tocador, a quem pagam e que se coloca no centro do lugar do baile, iniciando-se a função.
Preferem as danças de enlaçamento, e de entre elas a remexida vertiginosa e impulsiva, como os seus anseios de enamorados. Ladeiam, ele com a mão na ilharga dela,
que descansa a sua no ombro do par. Dão uns passos de volta, como a tomar vigor, e, unindo-se mais, rodopiam com ímpeto, batendo os pés e levantando poeira. As saias
dela espanejam no ar, rufiando como asas em movimento.
Os que ficaram sem rapariga estão à volta, e, quando lhes apetece, afastam outro, tomando-lhe o par. Se qualquer tem dança do seu agrado, pede-a ao tocador.
- Dou-te cinco tostões se tocares duas valsas a seguir.
O outro espalma a mão, mete a moeda ao bolso e prime as teclas do harmónio com mais vigor e entusiasmo.
As cachopas não gostam que os seus pares se apurem na dança com requebros exagerados e passos que chamem a curiosidade da assistência. Abandonam-nos no terreiro,
fogem-lhes e exclamam:
- Cheta, cão! ...
E eles riem, galhofam e tentam arrastá-las para a vertigem das remexidas ou a suavidade das valsas serenas.
Outrora, pelo Carnaval, faziam os homens uma dança de conjunto, muito louvada ainda por quantos se recordam dela. Vive nas recordações afectuosas daqueles que o
tempo semeou de rugas e cãs.
Desde as primeiras noites de Inverno que troava os ares a corneta chamando ao ensaio. Mestre João
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Parracha, que para ali trouxera a dança das fitas, apurava a rapaziada com exigências de ensaiador probo, e todos o queriam, e ouviam com reservado respeito.
E naqueles três dias a aldeia exultava, seguindo os dançarinos e admirando a perfeição das marcações, tão certinhas que mais parecia tudo aquilo movido por máquina
afinada, mexendo mecanicamente tão complicada engrenagem.
O caârómetro, assim chamavam ao grupo que realizava a dança, era composto de dezasseis dançarinos, o mestre, que dirigia os movimentos com apito, dois tocadores
de guitarra e um homem que transportava um mastro com cerca de três metros, no extremo do qual havia uma pinha, sobreposta por roda com dezasseis buracos, donde
pendiam fitas de várias cores.
Oito dançarinos vestindo-se de homens e os outros oito, escolhidos pelo rosto mais menineiro e corpo mais harmónico, envergam trajes femininos.
Usavam os primeiros calções de ganga azul com vivo vermelho ao lado, atados abaixo do joelho, sobre a meia branca, por cordão enfeitado a verde com borlas da cor
do vivo. Camisa alva cobria-lhes o tronco, cingindo-lhes os quadris cinta sanguínea, e na cabeça colocavam barretina de papel com dois penachos - um ao alto, como
agulha de campanário, outro na pala, sobre a esquerda. Nas mãos, um arco enfeitado a papéis de cor, com rosetas ao meio e no cimo.
As mulheres, passe a designação, envergavam vestidos brancos enfeitados com fitas de cores várias, mostrando a saia curta, meia branca bordada.
Na cabeça punham touca adornada também com fitas de seda, nas orelhas brincos presos com guitas, e grossos cordões ao peito, recolhidos entre os atavios das fêmeas
da família. O arco que traziam
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era composto de uma fita, donde pendiam outras variegadas.
Mal o cadrómetro saía do pátio do ensaio, dirigia-se com largo acompanhamento de curiosos para o largo da igreja, e ali, colocado o mastro ao centro, se iniciavam
as exibições.
Os pares punham-se-lhe à volta num quadrado, rostos para fora, como a defendê-lo de arremetida inimiga, e ao mando do apito de Mestre Parracha dançavam sempre, fazendo
gestos de defesa e ataque, até formarem uma estrela enorme, em atitudes guerreiras. Depois os pares trocavam-se e os homens, com um joelho em terra, dobravam o outro
ao jeito de assento, sentando-se-lhe na coxa a mulher que a troca lhe destinara. A novo apito tudo se desfazia e cada qual, com o seu par, dirigia-se ao mastro,
pegando na fita respectiva.
As guitarras trinavam uma marcha e em coro cantavam a primeira loa (designação local.)
Não venho aqui pra dar vivas, Nem mesmo pra dar vitória, Venho aqui pra agradecer A Senhora da Glória.
Logo se seguia a homenagem ao ensaiador, embevecido pela lembrança dos rapazes.
Viva cá o nosso mestre,
Que é o Parracha João,
Vestiu novo fardamento
Pra acompanhar o esquadrão.
Queira Deus que d'hoje a um ano
Faça ainda a mesma acção.
E fazendo vénias, recuando uns para avançarem os outros, lançavam loas entre si. Os homens a
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pedirem namoro ou a fazerem casamento, as mulheres respondendo-lhes com cantigas recheadas de termos adequados à quadra.
A loa cantada pelo Tio Bento, meu informador, dizia assim:
Tu tens-te andado a gabar Que não eras para mim, Mas tomaras tu ouvir À minha boca um sim.
E enquanto cantavam as quadras, que a assistência acolhia com risos e palmas, passavam os dançarinos pela frente uns dos outros, andando à volta, enquanto na pinha
se ia tecendo um emaranhado harmónico de fitas.
Tudo corria certo e aquele colorido seduzia os olhares ingénuos dos que rodeavam a dança, maravilhados com entrançado de tal perfeição que se diria realizado a tear.
Quando cada dançarino tinha na mão uma ponta da fita, estava o mastro até meio revestido daquele xadrez de dezasseis cores, e fazendo-lhe um nó abandonavam-na, agarrando
no arco.
Formavam então um túnel à volta, e, sempre obedecendo ao compasso do zangarreio das guitarras, o primeiro dançarino ia passando por debaixo de toda a arcaria até
ficar em último. Depois o segundo, o terceiro, até que os extremos se trocavam e os arcos voltavam a repousar, pegando de novo cada dançarino no nó da sua fita.
Ia-se desfazendo o matizado e quando todas as fitas pendiam do alto do mastro, agitadas pela viração que corria, mestre Parrachal à frente, guitarras numa marcha
alegre e marcial, os oito pares, bamboleando os arcos, lá iam ruas fora para outro local, seguidos de multidão descuidada e contente.
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E as velhinhas, que não podiam acompanhar-lhes o marchar leve, deixavam ir com eles os olhos já cansados de tanto ver e chorar.
- ó Ti Rosa, tá uma coisa chica! ...
- Que grandes bugalhões! ...
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RELIGIÃO
A religião não está profundamente radicada no espírito dos Glorienses, porque a vida chorume de labores não é fértil ao erguer dessa superstrutura e também porque
os actos rituais, sendo espaçados, não se lhes gravam fundo nas almas.
A sua mística é um aglomerado de parcelas míticas várias, como é afinal entre todos os religiosos, mas principalmente nas gentes rudes dos campos.
Preferem a uma prece, atitude passiva em face do imponderável das leis causais da realidade, um acto de magia positiva, o bruxedo, que Hubert e Mauss definem como
a técnica do animismo e Reinach como a sua estratégia, Na festa grande encontram-se vestígios evidentes de paganismo, não só nos símbolos fálicos das ornamentações,
gerais a todo o País, como noutros costumes que descreverei.
Parece-me, pois, necessário à justificação dessa amálgama de animismo, paganismo e cristianismo, um breve ensaio em que se defina a interdependência dessas correntes
religiosas, cada qual fruto de uma etapa económica da humanidade, mas absorvendo, as de eras mais próximas, vários rituais das outras que as antecederam. São os
elementos supérstites que o sincretismo vai captando, primeiro por esoterismo dos convertidos, depois por adopção aberta dos novos mitos.
É na época paleolítica média que o homem povoa o mundo de um número infinito de espíritos maléficos
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e benéficos, como reflexo das contradições da organização social que o liga à comunidade e por outras causas que a realidade apresenta ao seu infantilismo: sono,
sonho, morte, imagem nas águas, eco.
E do mesmo modo que gerava um espírito para cada facto inexplicável à sua índole primária, o homem, misto de caçador e pescador, procurava, por actos idênticos aos
usados para influir noutros homens, aplacar as iras e dominar os filhos da sua fantasia. Surgem então os actos mágicos, ainda hoje tão arreigados no nosso povo.
Uns, positivos, apaziguando, predispondo, e também atemorizando (aqui o acto procurava produzir o que se pretendia); outros, negativos, os tabus, vedando o que supunham
cair em desagrado do espírito a que queriam captar graças.
E com a comuna clânica vem o totemismo - a religião corporiza-se e na imagem de animais e plantas rende-se culto aos antepassados. Cada fratria, cada clã, cada tribo,
tem o animal ou vegetal de que descende, o qual protege os homens, seus filhos. Aparece a exogamia e à gente dos agrupados é vedado comer a carne do seu totem. A
morte e a destruição cairão implacáveis sobre os que romperem o tabu. Eles próprios ficarão tabus para o resto da comuna.
Os espíritos do animismo desapareceram, mas a magia, como factor material dessa primeira religião, mantém-se totalmente. Os ritos modificaram-se, mas a mecânica
é a mesma.
A evolução da sociedade vai-se fazendo, e com a divisão do trabalho, com novos elementos a dominar que aparecem ao homem, o totemismo, como religião, e portanto
como reflexo do que vai surgindo na vida material, evolui também. A chuva, o vento, o sol, o fogo, a água, entram no totemismo, como elementos de que o homem precisa
dispor.
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Lentamente, a sociedade passa da selvajaria à barbaria.
As relações económicas modificam-se. A técnica primitiva, que gerara o comunismo, vai suprimi-lo pelo seu aperfeiçoamento constante. O indivíduo vai surgindo mais
liberto no tablado social.
Sobre a terra o homem curva-se, desbravando-a à enxada. O cão, o boi, o carneiro e o porco são domesticados.
Esta primeira fase da agricultura vive quase exclusivamente do braço da fêmea. O macho caça, pesca e guerreia. A mulher é o elemento principal da sociedade de então.
Um segundo matriarcado se institui e a religião reflecte-o.
Adora-se a fecundidade através das deusas mães.
A evolução prossegue sempre na sua marcha processada por contradições.
O homem volta-se para a agricultura, A charrua substitui a enxada e a produção individualiza-se, tornando inútil a cooperação primária. A habitação comum é substituída
pela choupana de família. Ao matriarcado sucede de novo o patriarcado.
A terra desventra-se em produtos com os novos processos de cultura. O homem vai dominar outros homens. Surgem os chefes. E, dependendo mais intimamente do solo,
o homem substitui o culto dos antepassados pelo da natureza.
Para cada fenómeno um deus, para cada deus um acto mágico ou sacrifício. Adoram-se os mitos solares:- o homem é pagão.
Os sacrifícios agrários pretendem subornar o deus e poder-se-á remexer a terra, semeá-la, comer-lhe os frutos, sem que a maldição hostilize os agrupados humanos.
O ciclo de festas é de objectivo idêntico: dirigir os elementos para uma boa colheita, submetendo as estações e as sementeiras. Aos sacrifícios
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de flores, frutos, mel e leite sucedem-se os de animais.
Ceres prefere a porca; Baco, o bode; Vénus, a pomba. Outros deuses querem já a morte de humanos, e, finalmente, os próprios deuses se submetem ao sacrifício.
A decadência da sociedade antiga, vivendo da escravidão, gera novas religiões. Vislumbram-se os alvores da Idade Média. O Oriente é um alfobre de mitos em guerra.
O cristianismo, impregnado de teologia oriental, surge na Europa com os escravos importados e o seu carácter universalista - católico - dá-lhe a vitória das religiões
em luta.
Vejamos agora, em esboço, até onde o animismo, o totemismo, os mitos solares e outros credos deram material para o levantar do edifício cristão.
Do animismo encontram-se vestígios evidentes nos rituais (magia positiva) e nos pecados (magia negativa ou tabu). Entre os rudes, ainda o seu mundo se povoa de espíritos
que se escondem nas ravinas das montanhas, nos casebres abandonados, nas encruzilhadas dos caminhos.
Supérstites totémicas: Cristo é cordeiro e peixe. O Espírito Santo reveste-se de formas totémicas. A comunhão cristã corresponde ao repasto do totemismo.
Como é natural, os mistérios pagãos, por mais recentes, influem com forte vigor no culto de Jesus.
A origem da vida humana contada por Moisés no Antigo Testamento não é mais que a fábula de Prometeu e Epimeteu, filhos da união de Jápeto e Climene. A doutrina do
pecado original é de natureza órfica. O Veda conta o Dilúvio.
O Cristo do Apocalipse, montando um cavalo branco, lembra Mitra ou Atis. A semelhança de Jesus
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e de Mitra é evidente. Ao culto deste se tirou a festa do Sol invencível, a festa do solstício do Inverno, em 25 de Dezembro; a festa de S. Jorge, em Abril, substituiu
a de Parília; a de S. João Baptista, em Junho, a pagã, da água; em Agosto, a da Assunção, lembra a de Diana; a de Todos-os-Santos é a pagã dos mortos.
A árvore da cruz é reflexo de Átis, Adónis e ísis, que estavam ligados a árvores. Cristo, propriamente, diz: eu sou um ramo de videira, A cruz figura também no ritual
de Osíris. Da morte e ressurreição deste é o drama da Páscoa. O tema da Paixão é idêntico à festa das Sacéas, entre os Babilónios, que já gerara o Pourim dos judeus.
No Veda, livro sagrado dos Hindus, há pontos de contacto entre Cristo e Buda, este nascido 600 anos antes de Jesus.
No tempo do imperador Tibério, o piloto Tamur ouviu uma voz que lhe aconselhou a gritar "o Grande Pa é morto", em determinado local. Ouviram-se lamentos e choros,
como se a notícia fosse trágica. Então, o Grande Pa, segundo Eusébio, era Jesus.
Tal qual Dioniso (Baco), Cristo mudou a água em vinho; cavalgou dois jumentos e deu pão ao povo no deserto; como Esculápio, ressuscitou os mortos; como Poséidon,
andou sobre as águas; como Osíris, serviu-se do chicote; e as mulheres, como em Átis e Adónis, choraram e alegraram-se perante a sua figura serena e bela.
Autores há que comparam Jesus e Moisés e Josué. Jesus e Josué são nomes que se identificam em hebreu como em grego. Malvert afirma que Moisés é o nome de Masu, deus
solar. E a assiriologia demonstra que a sua história foi copiada em parte da do rei Sargão.
O paralelo entre Baco e Moisés é notável: ambos nasceram no Egipto e tiveram duas mães; expostos
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ao Nilo, o primeiro recebeu o nome de Misas; o outro o de Moisés (ambos significam "salvo das águas"); Baco passa o mar Roxo, Moisés o mar Vermelho, e os dois conquistam
terras com grande exército composto de homens e mulheres; ambos viveram em montes - um no Nisa, outro no Sinai; a Baco e Moisés uma deusa ordenou que destruíssem
um povo bárbaro; na cabeça de ambos há dois raios luminosos, e enquanto Baco traz na mão um tirso, Moisés detém uma vara milagrosa; um, faz nascer da terra uma fonte
de vinho, e é no tempo do outro que se encontra o cacho de uvas da Terra da Promissão, transportado com esforço por dois homens; é Moisés, ainda, que ao tocar em
rocha faz nascer água.
Esta recopilação breve é suficiente, creio, para que se justifiquem os elementos de vária ordem que o sincretismo amalgamou nos ritos da procissão à Senhora da Glória,
venerada por atavismo pelo seu povo humilde, voltado para o trabalho como para um deus que algo lhe oferece, do muito que o seu esforço e tenacidade mereciam.
Vem de longe, de há séculos, a adoração desta virgem mãe.
Já a primeira capela que ali se ergueu a mandou construir D. Pedro, o Cru, caçador apaixonado, que corria javalis, veados, gamelas e bicos, desde Santarém até à
charneca de Coruche, para lenir, talvez, uma imagem que o deixou na história como personagem shakespeariana, símbolo de um povo de paixões fortes, tantas vezes adormecido
a sonhar, "...e foi sempre grande caçador, e monteiro em tempo de infante; e depois que foi rei, trazendo grande casa de caçadores e moços de monte, e de aves e
cães de todas as maneiras, que para tais jogos
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[divertimentos] eram pertencentes". (Da Crónica de El-Rei D. Pedro I, de Fernão Lopes.)
De carácter impulsivo, é interessante frisar o seu desejo de paz para o povo português, porque nela via, certamente, a mais poderosa arma de progresso e de bem-estar.
Quando de novo, em Dezembro de
1363, Castela e Aragão travaram luta acesa, D. Pedro tornou-se neutral, e todo o resto da sua vida, de excentricidades e justiça, foi um modelo de pacifismo, em
face da guerra atroz que ensanguentava os reinos vizinhos.
Em fins de 1366, com ambos os contendores firmava tratados de paz e de amizade.
E é ainda o cronista que escreve: "E diziam as gentes que tais dez anos nunca houve em Portugal como estes que reinara El-Rei D. Pedro."
O seu nome está ligado à Glória, por fantasia que o povo, sempre poeta, concebeu e vem propagando através os séculos, em literatura oral.
A lenda não tem originalidade. As semelhanças com a do lendário D. Fuás, alcaide de Porto de Mós, no morro da Nazaré, são indicativo saliente da sua influência na
da Glória.
Andava D. Pedro batendo os matos da charneca com séquito e matilhas quando, entusiasmado em perseguição de peça grada, se isolou da sua gente.
O corcel fogoso abria clareira nas ervas, incitado pelos seus brados, e o veado, bonito exemplar, nervoso e ágil, altivo na imponência da sua armadura bem lançada
de galhos, tomava-lhe a dianteira numa fuga desesperada. Mas o cavalo não cedia, antes tragava aos poucos a distância que o ruminante lhe levava.
El-Rei, embriagado pela luta travada, esporeava sempre, olhos aguilhoando o objectivo da carreira, esquecido da companhia. De súbito, surge um pego
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enorme. E enquanto o veado o galgava, desaparecendo no cerrado da vegetação em bacanal, D. Pedro caiu-lhe dentro, tolhido o cavalo por intraduzível torpor.
De entre moitas, à sorrelfa, um bicho desconhecido, espécie de gato enorme, caminha para o atacar e, numa derradeira esperança, El-Rei invoca a Virgem da Glória.
O bicho, sem mais quê, de novo se embrenhou no mato e D. Pedro, livre e são, logo ali jurou erguer ermida a perpetuar graças.
Outros não dão comparsaria ao veado. O bicho perseguido salta o pego e o rei passa o mesmo momento angustioso.
Na igreja actual, que D. Maria mandou construir em 1783, lá está a cabeça do bicho, e na frontaria, do lado direito da placa da primeira rainha, em pedra carcomida
pelo tempo e que pincel impiedoso bordou de cal, um canteiro gravou: Era de 1400 anos, féria segunda, XXX dias de Maio, foi edificada esta igreja por o mui nobre
rei D. Pedro que em esta pôs a primeira pedra, a qual mandou fazer a Tomás [ilegível] Vasco Martins, escrivão, e foi acabada em um ano."
Do lado oposto, um escudo com dezasseis castelos, tendo ao centro as cinco quinas.
Outrora, junto à igreja, havia um redondel, onde se correram touros para gáudio da malta ribatejana, sempre destemida e disposta a bater palmas ao mais pintado,
e mais tarde aproveitaram-na para ferras e tentas dos lavradores próximos. Da sua construção resta hoje um pedaço de parede e recordações nos velhos que a viram
inteirinha, caiada, repletos os muros de multidão ruidosa a incitar capinhas e pegadores.
A festa da Senhora da Glória é a mais importante de todas que na aldeia se efectuam, embora o ciclo se cinja somente, além desta, ao Carnaval e Natal.
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Actualmente realizam-na em Setembro, quando os cereais foram recolhidos e as bolsas têm alguns cobres mais, mas durante alguns anos faziam-na pelo Espírito Santo,
em cumprimento de promessa de lavradores de Salvaterra, que, por epidemia de bexigas, o juraram e cumpriram. Falecidos, a imperiosa lei económica fê-la transferir
para o mês actual, sem domingo fixo.
Pela Páscoa, a bandeira sai a anunciá-la e recolhem-se os primeiros donativos pela aldeia e terras vizinhas.
Designam-na por "dia da casião" - dia da ocasião. Além do domingo, a festa inclui o sábado depois das 18 horas e a segunda-feira.
No primeiro dia chega a banda contratada, cuja espera se faz à entrada da aldeia, junto a um cruzeiro, que ali erguem, de madeira tosca revestida de folhas e flores.
Os dez festeiros, envergando capas azuis e brancas, prestam a guarda de honra, empunhando alguns as bandeiras da Senhora, e o juiz, ufano da posição, dá ordens e
deita foguetes e morteiros, anunciando o começo da festa.
A banda dá, então, a volta ao lugar, cumprimentando os festeiros do último ano, à porta dos quais se ergue uma bandeira nacional. Aí como à porta do regedor, estraleja
foguetório rijo.
Tudo sai à rua em ar festivo, acompanhando a música, correndo a vê-la passar marcial, nas encruzilhadas. Só as cachopas com moço na tropa se ficam a vê-la de longe,
envergando os trajos tristes que a sua primeira viuvez obriga.
À noite, com foguetões de lágrimas, peças de fogo preso e estalaria de endoidecer o mais são de miolo, as modinhas não cessam de alegrar a bugalhada.
Há bailes à parte. Os da Glória, sempre isolados, escolhem o terreiro entre o coreto e a quermesse; os do Granho dançam a outro lado, e os de Marinhais
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também formam roda própria, envolvidos todos em nuvens de poeira que seca as guelas, constantemente a refrescarem-se nas barracas de comes e bebes, com vinho branco
de Almeirim, dourado e fresco, sugado até às últimas pingas, em copos que pelo fundo não perdem.
E até alta noite as saias não cessam o rodopio.
No domingo há alvorada pela banda e mais foguetes, e pelas 9 horas recolhe-se o auxílio de cada um, sempre oferecido de bom grado, e ainda melhor, se a música não
diz em segredo aquilo que as pautas marcam. Depois do meio-dia, com acompanhamento de marcha garrida, dá-se a volta às fogaceiras.
com desvelado cuidado, a cachopa que oferece à santa aquele sacrifício, como no paganismo se ofereciam a Mercúrio, Vénus e Baco, enfeita a sua fogaça. Não são imponentes
como os tabuleiros de Tomar, mas têm mais variedade. São constituídos por um cestinho de verga enfeitado a flores e fitas de seda, do qual partem quatro arcos revestidos
de papéis de cores e donde pendem cachos de uvas e bolos. Dentro do cesto, mais frutas e gulodices.
Uma delas levava uma igreja muito perfeita nas suas linhas, a que não faltava o campanário, engrinaldada por arcos com cachos de bagos grossos e dourados. É a oferta
do produto da terra, para que o ano futuro corra com colheita grada.
Cada fogaceira leva duas camaradas e os seus vestidos têm certa harmonia de cores, se não totalmente iguais. Dos cabelos pendem-lhes fitas de seda.
Após a missa é a festa dos "mordamos". Perguntando-lhes o significado deste termo, me informaram: "Pelo amor de Deus, damos."
No meio do largo, em fileira, colocam-se as moças que querem dar o seu óbolo; noutra, em frente, os rapazes, ficando entre ambas um corredor largo. Dois festeiros
com bandeiras, acompanhados de outros com
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um saquinho, começam pelo extremo das filas, dirigindo-se um aos homens e outro às mulheres. Cada um beija a ponta da bandeira e dá a sua esmola. Desde então, até
nova festa, fica sendo irmão ou irmã da santa.
Em troca, se é moça, e segundo a oferta feita, dão-lhe uma pregadeira para o casaco - um cestinho de metal, aeroplano ou moto; se rapaz, um foguete.
Quando todos são irmãos, a banda toca uma marcha e os festeiros vão cumprimentar os mordamos, agradecendo o donativo. As cachopas ficam-se revendo nas pedrinhas
das pregadeiras e os moços queimam o foguetório em explosões de risos.
Mas já dentro da igreja começaram a leiloar os lugares da procissão.
- Andor da Senhora da Glória!
- Cinco escudos.
- Seis.
- Sete.
E o despique é aceso, por vezes. Depois o pálio, as velas, as bandeiras, os outros andores. A Virgem, quando sai, leva notas de vinte e cinquenta escudos presas
no vestido, cordões e medalhas - uma montra de ourivesaria.
À frente e atrás do andor vão os penitentes. Muitos deles vestem-se de branco, como com camisa de dormir, pondo touca da mesma cor na cabeça. Chamam a este trajo
a "mortalha". Dizem que vão de anjo, e pagam assim promessas feitas em momentos de angústia, em que, incapazes de reagirem perante qualquer facto, ou temendo a morte
em caso de doença, alijam a sua incapacidade ou impotência.
Lá vai no cortejo o juiz do próximo ano. Caminhando imponente, leva na mão a vara que foi buscar à igreja, pelo que se obriga a realizar o próximo dia da "casião".
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- À noite o arraial continua, São poucos os forasteiros - é a noite dos namorados.
À volta do baile as mães sentam-se no chão, embrulhadas nos seus xailes, algumas nos malhões, e ali deitam futuro aos filhos, fixando olhares desgarrados, conversas,
insistência de par.
Ali se iniciam casamentos - alegrias e desditas.
Noite fora, as comadres não deixam de rumorejar, chegando aos rostos a ponta dos xailes novos.
Na segunda-feira fazem-se as cavalhadas e pelas
18 horas vão os festeiros com a banda entregar a bandeira ao futuro juiz.
O arraial à noite vai a toque de harmónio, e em todo o ano, nas cavas e sementeiras, mondas e ceifas, aqueles dias de folgança ficam nas mentes, como um interregno
à vida dura e amarga que os grilheta à terra.
Os rapazes recordam cinturinhas flécteis que as mãos calejadas e sãs amarfanharam. E nos seios rijos das cachopas há ainda uma saudade dos peitos que feriram em
hostilidades de pagão sensualismo.
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EXPRESSÕES
POR todo este tentame etnográfico estão espalhadas palavras e expressões que couberam nos vários capítulos que o compõem, e que, para facilidade de consulta no glossário
final, vão a itálico.
Outras houve que nos seus diálogos anotei e que mereciam citação, já por interesse de estudo da língua, já porque este meu trabalho tem o objectivo de contribuir
para o conhecimento do povo português e algumas são verdadeiros espécimes da sua intelectualidade.
A literatura oral do povo é rica de conceitos, tem por vezes maneiras de dizer que, pela sua agudeza, pelo espírito criador revelado, são indicativos preciosos de
quanto a arte reflexa nacional poderia ganhar com a sua conquista, por uma cultura sã e elevada.
Não me sai jamais da mente uma expressão que ouvi a um camponês nos campos de Azambuja.
Estava na Casa Branca, onde passei encantado as minhas férias de 1936, e todas as manhãs, mal o Sol surgia, já me tinha erguido para vir à margem do Tejo embriagar-me
de um dos mais belos bocados da natureza que conheço.
Sentara-me na areia, enchendo os olhos de luz e de cor, e o Zé Dionísio, rapagão desempenado como um pampilho, louro como um trigal sazonado, ficara-se absorto,
deslumbrando-se comigo naquele pantoscópio maravilhoso.
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O rio corria batido por ondulação miúda e vinha morrer em soluços aos nossos pés.
E ele, de mãos na ilharga, cabeça erguida onde o barrete de negro ruço punha contraste, teve esta expressão:
- O Tejo hoje tá alqueivado.
E seguiu o seu caminho, bamboleando o corpo, que na eira havia milho para passar ao vento e a pá o esperava para iniciar a faina.
Não se podia encontrar maneira mais precisa de definir o dorso do Tejo. De facto, parecia que charrua o tinha desventrado, deixando ao carinho do sol as chagas do
seu corpo ferido.
Qualquer literato não teria outra imagem mais exacta e bela do que a do Zé Dionísio.
Os povos vizinhos alcunham-se de nomes com que se pretendem macular, baseados na generalidade em factos decorridos e que provocam iras e rixas, às vezes graves.
É um hábito que, felizmente, vai desaparecendo. Os povos sentem-se atraídos para uma comunhão mais estreita, reconhecendo nas lutas privadas semelhanças de destino,
de sofrimento e de causas.
Dos vários epítetos que anotei na Glória, só um merece citação, porque representa não uma hostilidade mas um gracejo, filho de apurada observação.
A gente do Granho é, na sua maioria, baixa e adiposa.
E os homens da Glória, procurando à sua volta palavra que lhes definisse o físico, chamaram-lhes pampas.
Pampas são peixes pequenos, de barriga grande, que habitam as valas.
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Na sua horta um gloriense trabalha, cavando com afã. Outro passa pela estrada e, depois de lhe dar os bons-dias, atira-lhe um gracejo.
Resposta: "Eh!, mel f ao! Se queres onibrar vem para aqui!"
Ombrar é talvez deturpação de ombrear - rivalizar.
Pôr-se lado a lado, ombro a ombro, para despique no trabalho.
Em dia de festa, rapaz bonito vestiu farpela nova. Uma velhinha olha-o enlevada e exclama:
- Vais bem estuado. És um bugalhão. Às raparigas chamam bugalhonas e à mocidade bugalhada.
Fala-me um gloriense numa paixão que tivera na tropa e se gerara em desilusão atroz. Depois, com o tempo, tudo se lhe lavou da alma e hoje está são e escorreito
desse mal.
Finda a conversa com esta frase, que a sua vida de sofrimento lhe ensinou:
- Foi uma camada de sezões que tive e despois abalaram.
Andar depressa é andar à frecha. Andar descalço é andar a pé de pombo. Andar a esconder-se é andar à furteta. Rir-se é estar a arreganhar o podão. Ir atrás de alguém
é ir a cabo de... Andar a fazer barulho é sapatear.
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Guardar dinheiro, fazer economias - álgíbeirar. Fazer-se valente - valentear.
Quando se referem ao seu povo, dizem com enlevo: a nossa família.
E sair da terra, ir trabalhar para longe, afastando-se dela durante meses, é desvairar.
Falando da sua aldeia, e para quererem justificar um aborrecimento que pretendiam descobrir em mim
- como se enganavam!-, iam descrevendo a vida da cidade e os seus confortos.
- E o senhor metido nesta terruça ...
Nas suas libações os Glorienses costumam fazer uma mistura de aguardente e capilé a que chamam traçado, e um outro de vinho e gasosa que conhecem por traviscada.
A uma boquilha para cigarros ouvi chamar caneta, e a umas polainas de pele de carneiro, atadas as pernas por correias, e que usam para que a aspereza dos matos as
não firam, botif arras.
Aos músicos chamam musiquentes.
Tirar a outro um despique por qualquer assunto é saltar-lhe à garupa.
Quando há muita frequência a uma festa, a um baile ou a qualquer acto dizem que veio tudo pela raiz.
Para um facto digno de admiração, exclamam: É um disparate!
Para responder a um chamamento ouvi este brado: Eh, ló! ...
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As lojas não adoptam aquelas designações, geralmente idiotas, que nas vilas e cidades se espaventam em tabuletas, com dourados e tremidos de letras.
É a loja de Fulano ou de Cicrano.
A outras alcunham-se pela sua situação ou por qualquer facto que se lhe liga.
Assim, ouvi dizer loja do lameiro, por no Inverno haver à sua porta grande lamaçal.
E a outra, pela escassez da freguesia: "O cá te espero".
Um camponês que se lamentava da incerteza da sua vida, dos poucos ganhos que usufruía e da falta de reconhecimento dos patrões pelo seu trabalho, exclamou entristecido
e magoado: "Eles não sabem o custo da galé.-"
Expressão que tem uma fonte evidente na escravidão a que outrora os homens eram submetidos, remando nesse tipo de embarcações.
O custo da galé!
Que melhor designação se poderia encontrar para a vida do proletário rural?
A outro, no sentido das asperezas que o seu viver lhe reservava, ouvi dizer, desiludido:
- Anda um homem a brigar com a vida e não tira o pé da lama.
Em algumas passagens deste ensaio aludi, por vezes, ao Tio Bento, tipo curioso de velhote, sempre observando a vida da melhor maneira, espécie de Dr. Pangloss perdido
aqui pela charneca.
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Tudo para ele vai com resignação; e, se há uma desgraça, é caso para erguer as mãos ao céu por ela não ter vindo ainda pior.
A sua conversa é recheada de expressões que revelam um observador sagaz.
O Tio Bento falava-me que agora via pouco, e que nos seus olhos quando se afirmava em qualquer coisa, tudo se lhe baralhava e nada distinguia, porque os inundavam
cores em mistura.
E sempre optimista, quando eu esperava um primeiro lamento seu, rematou sorrindo:
- É uma festa, senhor. Eu nunca vi cores tão lindas! ...
Aludindo ainda à noite, contando-me as suas belezas, dizendo que com ela tudo era igual, exclamou com embevecimento:
- Há lá coisa mais bonita! ... A noite não tem portas!
O primeiro sinal de desolação que lhe ouvi, foi quando me falou das dificuldades em que se debatem os camponeses,
- Vida ruim ... Ganhos maus ... Mais vale uma pessoa estar na cadeia com a porta aberta! ...
Certo dia, Tio Bento chamou a minha atenção para um facto que a já ferira: a igualdade das casas na sua altura, no seu aspecto, não havendo ali preocupações de se
dominarem pelo pé-direito das empenas.
As grandes fortunas por lá não avezavam e todos se davam ajuda, quando era necessário prestá-la.
E para me confirmar o que ia dizendo, teve esta frase bela, pujante de poesia e realidade:
- Ora repare o senhor. Aqui, o fumo das chaminés não alteia.

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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